Ramo de Flores

By João de Deus

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Title: Ramo de Flores
       acompanhado de varias criticas das Flores do Campo

Author: João de Deus

Commentator: Alexandre da Conceição
             Luciano Cordeiro
             Guiomar D. Torrezão
             António Cândido de Figueiredo

Release Date: March 16, 2008 [EBook #24847]

Language: Portuguese


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RAMO DE FLORES




RAMO DE FLORES

POR

JOÃO DE DEUS

      *      *      *      *      *

ACOMPANHADO DE VARIAS

CRITICAS DAS FLORES DO CAMPO


      *      *      *      *      *


PORTO

Typ. da Livraria Nacional

2--Rua do Laranjal--22

1869.




RAMO DE FLORES


I

SÊDE DE AMOR


    I

    Vi-te uma vez e (novo
    Extranho caso foi!)
    Por entre tanto povo...
    Tanta mulher... Suppõe

    Que mãe estremecida
    Via o seu filho andar
    Sobre muralha erguida,
    Onde o fizesse ir dar

    Aquelle remoinho,
    Aquella inquietação
    D'um pobre innocentinho
    Ainda sem razão!

    E ora estendendo os braços...
    Ora apertando as mãos...
    Vendo-lhe o gesto, os passos,
    Quantos esforços vãos,

    O triste na cimalha
    Faz por voltar atraz...
    Sem vêr como lhe valha!
    A vêr o que elle faz!

    Pallida, exhausta, muda,
    Os olhos uns tições,
    Com que, a tremer, lhe estuda
    As mesmas pulsações...

    (Porque não é mais fundo
    O mar no equador,
    Nem é todo este mundo
    Maior do que esse amor!

    Mais vasto, largo e extenso
    Todo esse céo tambem
    Do que o amor immenso
    D'um coração de mãe!)

    Assim, n'essa agonia...
    N'essa intima avidez...
    É que entre os mais te eu ia
    Seguindo d'essa vez!

    Porque te adoro!... a ponto,
    Que ainda hoje, crê!
    Escuto e oiço e conto
    Os grãos de arêa até,

    Que tu, mulher! andando
    Fazias estalar
    Já mesmo longe e... quando
    Deixei de te avistar!


    II

       Os olhos são
       D'uma expressão!
       Que linda bôca!
       O pé nem toca,
       De leve, o chão!

       Aquelle pé
       De leve até
       Nem se elle sente!
       E sente a gente
       Não sei o que é...

       E a graça, o ar,
       D'aquelle a andar!
       Que véla passa
       Com tanta graça
       Á flôr do mar!

       Os olhos vêr
       Um só volver
       De olhar tão dôce,
       Que mais não fosse...
       Era morrer!

       Os dentes sãos
       E tão irmãos
       E tão luzentes!
       Que bellos dentes!
       Que lindas mãos!


    III

    Estrella, nuvem, ave,
    Perfume, aragem, flôr!
    Consola-me! distilla,
    Da languida pupilla,
    O balsamo suave
    De um desditoso amor!
      Estrella, nuvem, ave,
    Perfume, aragem, flôr!

    A flôr, de que és imagem,
    A flôr, de que és irmã,
    Sacia-se, e desata
    O seu collar de prata
    Aos beijos da aragem,
    Aos risos da manhã!...
      A flôr, de que és imagem,
    A flôr, de que és irmã!

    A perola que encerra
    A flôr, é sua? Não.
    O pranto que a amima,
    Cahiu-lhe lá de cima
    Para cahir na terra,
    Para cahir no chão!
      A perola que encerra
    A flôr, é sua? Não!

    Tu já mataste a sêde,
    Mata-me a sêde a mim!
    Se em nuvem piedosa
    Te refrescaste, rosa!
    Tambem em ti eu hei de
    Refrigerar-me!... sim!
      Tu já mataste a sêde,
    Mata-me a sêde a mim!

    É para que me orvalhes
    Que te orvalhou o céo!
    O liquido que veio
    Aljofarar-te o seio
    Bem é tambem que o espalhes
    No chão... o chão sou eu!
      É para que me orvalhes,
    Que te orvalhou o céo!




II

LAMENTO


    Senhor! Senhor! que um ai nunca me ouviste
              Na minha dôr!
    Ai vida, vida minha, como és triste!...
              Senhor! Senhor!

    Quando eu nasci, o sol cobriu o rosto
              Mal que eu o vi!
    Tingiu-se o céo de sangue, e era sol-posto,
              Quando eu nasci!

    Pela manhã, a rosa era mais alva
              Que a alva lã!
    E o cravo desmaiou á estrella-d'alva,
              Pela manhã!

    Ao longe, o mar se ouviu, leão piedoso,
              Um ai soltar!
    Pelas praias, se ouviu gemer ancioso,
              Ao longe, o mar!

    Oh roixinol! a ti, nasce-te o dia
              Ao pôr do sol!
    Mostre-me a campa a luz que te alumia,
              Oh roixinol!




III

ENLEVO


    Não brilha o sol,
    Nem póde a lua
    Brilhar na sua
    Presença d'ella!..
    Nenhuma estrella
    Brilha deante
    Da minha amante,
    Da minha amada!

    A madrugada
    Quanto não perde!
    O campo verde
    Quanto esmorece!
    Quanto parece
    A voz da ave
    Menos suave
    Que a sua falla!

    A flôr exhala
    Menos perfume
    Do que é costume
    O seu cabello!
    Que basta vêl-o,
    Prende-se a gente!
    Prende-se e sente
    Gosto ineffavel!

    Que riso affavel
    Aquelle riso!
    Que paraíso
    Aquella bôca!
    Penetra, toca,
    Enche de inveja
    Um ar que seja
    Da sua graça!

    Onde ella passa,
    Onde ella chega,
    Quem lhe não prega
    Olhos avaros!
    Ha dotes raros,
    Rara doçura
    N'aquella pura
    Casta existencia!

    Oh! que innocencia
    Que ella respira!
    A alma aspira
    Não sei que aroma
    Mal nos assoma
    Ao longe aquella
    Pallida estrella,
    Que rege o mundo!...

    Nunca do fundo
    Do oceano
    Foi braço humano
    Colher tão linda
    Perola ainda,
    Como a formosa
    Candida rosa
    Que eu amo tanto!

    Não sei de santo
    Que ha no seu gesto!
    No ar modesto
    D'aquelle todo...
    N'aquelle modo...
    Que tudo esquece,
    E nos parece
    Estar no céo!




IV

SEMPRE!


    Pensas que te não vejo a ti? Bom era!
    Gravei tão vivamente n'alma a dôce
    E bella imagem tua, que eu quizera
    Deixar de contemplar-te, só que fosse
    Um momento, e não posso, não consigo!

    Foges-me, escondes-te e que importa? Esculpes
    Mais fundo ainda os indeleveis traços!
    Realça-te o retrato! E não me culpes!
    Culpa-te antes a ti!... Sigo-te os passos!...
    Vejo-te sempre!... trago-te comigo!...




V

ESPERA!


    Uivaria de amor a féra bruta
    Que pela grenha te sentisse a mão!
    E eu não sou féra, pomba! Espera! Escuta!
           Eu tenho coração!

    Não é mais preto o ébano que as tranças
    Que adornam o teu collo seductor!
    Ai não me fujas, pomba! que me canças!
           Não fujas, meu amor!

    A mim nasceu-me o sol, rompeu-me o dia
    Da noite escura d'olhos taes, mulher!
    Não me apagues a luz que me alumia
           Senão quando eu morrer!

    Eu não te peço a ti que as mãos de neve,
    Os dedos afusados d'essas mãos,
    Me toquem estas minhas nem de leve...
           Seriam rogos vãos!

    Não te peço que os labios nacarados
    Me deixem esses dentes alvejar,
    Trocando, n'um sorriso, os meus cuidados
           Em extasis sem par!

    Mas uivando de amor a bruta féra
    Que pela grenha te sentisse a mão,
    Eu não sou féra, pomba! escuta, espera!
           Eu tenho coração!




VI

ADEUS


    A ti, que em astros desenhei nos céos,
    A ti, que em nuvens desenhei nos ares,
    A ti, que em ondas desenhei nos mares,
    A ti, bom anjo! o derradeiro adeus!

    Parto! Se um dia (que é possivel flôr!)
    Vires ao longe negrejar um vulto,
    Sou eu que aos olhos d'esta gente occulto
    O nosso immenso desgraçado amor.

    Talvez as féras ao ouvir meus ais,
    As brutas selvas, as montanhas brutas,
    Concavas rochas, solitarias grutas,
    Mais se condoam, se commovam mais!

    E lá d'aquellas solidões se aqui
    Chegar gemido que uma pedra estala,
    Que um cedro vibra, que um carvalho abala,
    Sou eu que o solto por amor de ti...

    De ti! que em folha que varrer o ar,
    Em rama, em sombra que bandeie a aragem,
    De fito sempre n'essa cara imagem
    Verei, sorrindo, sentirei passar!

    De ti, que em astros desenhei nos céos!
    De ti, que em nuvens desenhei nos ares!
    De ti, que em ondas desenhei nos mares,
    E a quem envio o derradeiro adeus!




VII

MELANCOLIA


    Oh dôce luz! oh lua!
    Que luz suave a tua,
    E como se insinua
    Em alma que fluctua
    De engano em desengano!
       Oh creação sublime!
    A tua luz reprime
    As tentações do crime,
    E á dôr que nos opprime
    Abres-lhe um oceano!

    É esse céo um lago,
    E tu, reflexo vago
    D'um sol, como o que eu trago
    No seio, onde o afago,
    No seio, onde o aperto?
       Oh luz orphã do dia!
    Que mystica harmonia
    Ha n'essa luz tão fria,
    E a sombra que me guia
    N'este areal deserto!

    Embora as nuvens trajem
    De dia outra roupagem,
    O sol, de que és imagem,
    Não tem essa linguagem
    Que encanta, que namora!
       Fita-te a gente, estuda,
    (Sem mêdo que se illuda)
    Essa linguagem muda...
    O teu olhar ajuda...
    E a gente sente e chora!

    Ah! sempre que descrevas
    A orbita que levas,
    Confia-me o que escrevas
    De quanto vês nas trevas,
    Que a luz do sol encobre!
       As victimas, que escutas,
    De traças mais astutas
    Que as d'essas féras brutas...
    E as lastimas, as luctas
    Da orphã e do pobre!




VIII

SYMPATIA


    Olhas-me tu
    Constantemente:
    D'ahi concluo
    Que essa alma sente!...
    Que ama, não zomba,
    Como é vulgar;
    Que é uma pomba
    Que busca o par!...

      Pois ouve; eu gemo
    De te não vêr!
    E em vendo, tremo
    Mas de prazer!...
    Foge-me a vista...
    Falta-me o ar...
    Vê quanto dista
    D'aqui a amar!




IX

11 DE MAIO


    Se eu fosse nuvem tinha immensa magoa
    Não te servindo d'azas maternaes
    Que te podessem abrigar da agoa
         Que chovesse das mais!

    E sendo eu onda, tinha magoa summa
    Não te podendo a ti, mulher, levar
    De praia em praia, sobre a alva espuma.
         Sem nunca te molhar!

    E sendo aragem, eu, que pela face
    Te roçasse de rijo, alguma vez
    Que o Senhor com mais força respirasse,
         Que magoa immensa... Vês!

    E a luz do teu olhar que me não lusa
    Um rapido momento, a mim, sequer,
    Como a aguia no ar... que passa e cruza
         A terra sem n'a vêr!

    Mas que me importa a mim! Se me esmagasses
    Um dia aos pés o coração a mim,
    As vozes que lhe ouviras se escutasses,
         Era o teu nome... Sim!

    O teu nome gemido docemente
    Com toda a fé d'um martyr em Jesus,
    Se acaso já em Christo pôz um crente
         A fé que eu em ti puz!

    A fé, mais o amor! Porque elle expira
    Sem que a ninguem lhe estale o coração,
    E eu, se essa cruz dos olhos me fugira,
         Sobrevivia? Não!

    Assim como em ti vivo, morreria
    Tambem comtigo, se uma vez (que horror!)
    Te visse pôr, oh sol!... sol do meu dia!
         Astro do meu amor!




X

ATTRACÇÃO


      Meus olhos sempre inquietos
    Que posso até dizer,
    Só acham n'alma objectos
    Que os possam entreter;

      Meus olhos... coisa rara!
    Porque hão de em ti parar
    Como a corrente pára
    Em encontrando o mar!?

      E penso n'isto, scismo...
    Mas é tão natural
    Cahir-se no abysmo
    D'uma belleza tal!...

      Olhei!... Foi indiscreta
    A vista que te puz.
    A pobre borboleta
    Viu luz... cahiu na luz!

      Uma attracção mais forte
    Que toda a reflexão,
    (É fado, é sina, é sorte!)
    Me arrasta o coração...




XI

DESANIMO


    Que mimos me confortam?
    Que doce luz me acena?
    Eu tenho muita pena
    De ter nascido até!

    Quizera antes ao pé
    D'uma arvore frondosa
    Ter já em cima a lousa
    E descançar emfim!

    Alli, nem tu de mim
    De certo te lembravas,
    Nem estas feras bravas
    Me iriam assaltar!

    Alli, teria um ar
    Mais puro e respiravel,
    E a paz imperturbavel
    De quem, emfim, morreu!

    D'alli, veria o céo
    Ora sereno e puro,
    Ora toldado e escuro...
    Ainda assim melhor,

    Que este areal de amor
    Onde ando ao desamparo,
    Onde a ninguem sou caro
    E nem, a mim, ninguem!

    Alli passára eu bem
    A noite derradeira
    Á sombra hospitaleira
    Que mais ninguem me dá!

    Tu mesma, que não ha
    Quem eu mais queira e ame,
    Quem a minha alma inflamme
    De mais ardente amor,

    Os ais da minha dôr
    A ti o que te importam?
    Teus olhos nem supportam
    A minha vista ao pé!

    Que mimos me confortam?
    Que dôce luz me acena?
    Eu tenho muita pena
    De ter nascido até!




XII

N'UM ALBUM


    É esta vida um mar; e n'este mar
    Qual é o astro que nos alumia?
    Que norte, estrella ou bussola nos guia?
    Um olhar de mulher! um terno olhar!




XIII

O SEU NOME


    I

    Ella não sabe a luz suave e pura
    Que derrama n'uma alma acostumada
    A não vêr nunca a luz da madrugada
    Vir raiando senão com amargura!

    Não sabe a avidez com que a procura
    Ver esta vista, de chorar cançada,
    A ella... unica nuvem prateada,
    Unica estrella d'esta noite escura!

    E mil annos que leve a Providencia
    A dar-me este degredo por cumprido,
    Por acabada já tão longa ausencia,

    Ainda n'esse instante appetecido
    Será meu pensamento essa existencia...
    E o seu nome, o meu ultimo gemido


    II

            Oh! o seu nome
            Como eu o digo
            E me consola!
            Nem uma esmola
            Dada ao mendigo
            Morto de fome!

            N'um mar de dôres
            A mãe que afaga
            Fiel retrato
            De amante ingrato,
            Unica paga
            Dos seus amores...

            Que rota e nua,
            Tremulos passos,
            Só mostra á gente
            A innocente
            Que traz nos braços
            De rua em rua;

            Visto que o laço
            Que a prende á vida
            E só aquella
            Candida estrella
            Que achou cahida
            No seu regaço;

            (Não que lhe importe
            A ella nada...
            Que tudo escusa;
            E até accusa
            De descuidada
            Comsigo a morte!)

            Mão bemfazeja
            Se por ventura
            Encontra um dia,
            Com que alegria,
            Com que ternura,
            Ella a não beija!...

            Mas com mais quanto
            Amor te escrevo,
            Soletro e leio
            Nome de enleio!
            Nome de enlevo!
            Nome de encanto!


    III

    Como a agua d'um lago--toda um nivel,
    Vae de circulo em circulo ondeando,
    Se a andorinha a roça ao ir voando
    Atraz d'algum insecto imperceptivel;

    E quebrado esse espelho em mil pedaços
    (Que a imagem do céo desapparece)
    Em circulos concentricos parece
    Tornarem-se a formar novos espaços...

    Ou como d'entre as notas ineffaveis
    Dos canticos do céo--todo harmonia--
    Mal sôa o dôce nome de MARIA,
    Pasmam as multidões innumeraveis;

    E de onda em onda cada vez mais larga,
    De brisa em brisa cada vez mais pura,
    O nome d'essa excelsa creatura
    Por todo aquelle immenso mar se alarga;

    E tudo quanto cerca o trono eterno
    Áquella dôce voz desprende o canto,
    Formando um côro universal, em quanto
    Reina silencio no profundo inferno...

    Assim, n'esta paixão que me devora,
    Se aos labios essas syllabas me assomam,
    As negras sombras da minha alma tomam
    Gradualmente o explendor da aurora!

    Toda a idéa má recua um passo,
    Aplanam-se os dominios do futuro,
    E do crystal mais transparente e puro
    Se me arqueia a abobada do espaço!

    Desdobra-se o passado á luz do dia,
    Em valle ameno, aos olhos da memoria;
    E eu acho não ser perfida, illusoria,
    A fé que eu punha em certa luz que eu via...

    Vejo que aquelle informe e negro monte,
    Que me tapava a mim o fim da vida,
    Não era mais que a natural subida
    Para se dominar vasto horizonte!...

    Esse horizonte és tu, pombinha brava!
    Tu, cujo peito que aliás encerra
    O que ha de bello e grande em céo e terra,
    Só com duas conchinhas se tapava...

    Mas em quanto não chego áquella altura
    D'onde se avista a terra promettida,
    Irei cantando, distrahindo a vida
    Com essa invocação suave e pura...

    Invocação de nome tão suave
    Como esse olhar!... que eu, só de vêr, suspiro!
    Mas... que invoco em silencio... como admiro
    A luz da lua, e o olhar da ave!...


    IV

            E se algum dia
            Deres abrigo
            Ao desgraçado
            Pobre mendigo
            Expatriado,
            Morto de fome,
            Dize comtigo:
            «Mais consolado
            Se elle sentia
            Lendo o meu nome!»




XIV

SAUDADE


    Tu és o cálix;
    Eu, o orvalho!
    Se me não vales,
    Eu o que valho?

    Eu se em ti caio
    E me acolheste
    Torno-me um raio
    De luz celeste!

    Tu és o collo
    Onde me embalo,
    E acho consolo,
    Mimo e regalo:

    A folha curva
    Que se aljofara,
    Não d'agoa turva,
    Mas d'agoa clara!

    Quando me passa
    Essa existencia,
    Que é toda graça,
    Toda innocencia,

    Além da raia
    D'este horizonte--
    Sem uma faia,
    Sem uma fonte;

    O passarinho
    Não se consome
    Mais no seu ninho
    De frio e fome,

    Se ella se ausenta,
    A boa amiga,
    Ah! que o sustenta
    E que o abriga!

    Sinto umas magoas
    Que se confundem
    Com as que as agoas
    Do mar infundem!

    E quem um dia
    Passou os mares
    É que avalia
    Esses pezares!

    Só quem lá anda
    Sem achar onde
    Sequer expanda
    A dôr que esconde;

    Longe do berço,
    Morrendo á mingoa,
    Paiz diverso...
    Diversa lingoa...

    Esse é que sabe
    O meu tormento,
    Mal se me acabe
    Aquelle alento!

    Ah, nuvem branca
    Ah, nuvem d'oiro!
    Ninguem me estanca
    Amargo choro;

    E assim que passes
    Mesmo de largo...
    Vê n'estas faces
    Se ha pranto amargo.

    Tu és o norte
    Que me desvias
    De ir dar á morte
    Todos os dias;

    A larga fita
    Que d'alto monte
    Cerca e limita
    O horizonte!

    Tu és a praia
    Que eu sollicito!
    Tu és a raia
    D'este infinito!

    Se ha uma gruta
    Onde me esconda
    Á força bruta
    Que traz a onda;

    Á força immensa
    D'esta corrente
    D'alma que pensa,
    Alma que sente;

    Se ha uma véla,
    Se ha uma aragem,
    Se ha uma estrella,
    N'esta viagem...

    É quem eu amo,
    A quem adoro!
    E por quem chamo!
    E por quem choro!




XV

* * * *


    Não sei o que ha de vago,
    Incoercivel, puro,
    No vôo em que divago
    Á tua busca, amor!
    No vôo em que procuro
    O balsamo, o aroma,
    Que, se uma fórma toma,
    É de impalpavel flôr!

    Oh como te eu aspiro
    Na ventania agreste!
    Oh como te eu admiro
    Nas solidões do mar!
    Quando o azul celeste
    Descança n'essas agoas
    Bem como n'estas magoas
    Descança o teu olhar!

    Que placida harmonia
    Então a pouco e pouco
    Me eleva a fantasia
    A novas regiões!
    Dando-me ao uivo rouco
    Do mar, n'essas cavernas,
    O timbre das mais ternas
    E pias orações!

    Parece todo o mundo
    Só um immenso templo!
    O mar já não tem fundo
    E não tem fundo o céo!
    E, em tudo, o que contemplo,
    O que diviso em tudo,
    És tu!... esse olhar mudo!...
    O mundo... és tu... e eu!...


FIM


      *      *      *      *      *


CRITICAS

DAS

FLORES DO CAMPO


      *      *      *      *      *


FLORES DO CAMPO

POR

JOÃO DE DEUS

João de Deus não é sómente um grande poeta, é um iniciador. A estrophe
sahe-lhe do coração não só transparente e limpida, como um veio de
crystal, mas espontanea, harmoniosa e originalissima, como todas as
creações dos espiritos profundamente caracterisados e essencialmente
creadores.

João de Deus é um grande scismador e um grande artista. Concebe
admiravelmente, e executa melhor ainda. Cada lyrica é uma maravilha,
cada estrophe um mimo, cada verso um primor. Reune á intelligencia
apaixonada de Platão o delicadissimo senso artistico de Cellini. Ha
n'aquella lyra notas e harmonias d'uma frescura e de uma novidade dignas
de Homero ou de Wainamoinen. É que o talento poetico de João de Deus é
essencialmente espontaneo e primitivo, se me permittem a expressão.

Parece que não ha n'aquelles versos nem estudo de modelos, nem
influencia de escólas, nem escolha de assumptos.

A natureza poetica de João de Deus é sobre tudo virginal, sincera,
innocente. Canta, não para que o escutem, mas porque nasceu poeta;
chora, não para que o consolem, mas porque nasceu triste; medita, não
para que o considerem, mas porque nasceu scismador. É poeta... e não
póde ser mais nada; fizeram-n'o deputado talvez para fazerem um
epigramma á poesia, que tantos tem feito--epigrammas, entenda-se.--João
de Deus deputado é o mesmo... que um deputado João de Deus, duas
entidades a rirem-se constantemente uma da outra, como os dois
_oraculos_ de que falla Cicero.

Um João de Deus nasce feito... não se faz d'elle cousa nenhuma; ha de
ser sempre João de Deus, quer o façam rei, quer regedor de parochia.
_Ego sum qui sum_, dizia o espirito mais profundamente original da
humanidade. João de Deus, e os homens de uma individualidade assim tão
caracterisada podem, salvo a irreverencia, dizer o mesmo.

A João de Deus deu-lhe para ser poeta; se lhe désse para ser diplomata
era Bismark, e tinha a estas horas realisado a união iberica. Foi melhor
assim, ao menos para se não acabar com a possibilidade de termos volumes
como as _Flores do Campo_.

Dizem-me que João de Deus é um excellente tocador de viola, onde
improvisa devaneios arrebatadores. Esta prenda caracterisa-lhe o talento
artistico. É poeta como guitarrista e quasi improvisador como poeta.
Aquella alma é uma lyra: vibra, estremece e canta ás aragens fugitivas
da impressão. Natureza profundamente sympathica, tem um riso para cada
alegria, uma lagrima para cada amargura, uma consolação para cada
infortunio:

    Despe o lucto da tua soledade
    E vem junto de mim, lirio esquecido
           Do orvalho do ceu!
    Tens nos meus olhos pranto de piedade,
    E se és, mulher! irmã dos que hão soffrido,
           Mulher! sou irmão teu.

    Consolos não te dou, que não existe
    Quem de lagrimas suas nunca enxuto
           Possa as d'outro enxugar:
    Não póde allivios dar quem vive triste,
    Mas é-me dôce a mim chorar, se escuto
           Alguem tambem chorar.

E não ha artificios n'esta poesia, que é singela como todos os grandes
sentimentos, harmoniosa e virginal como um sorriso de creança, suave e
consoladora como uma parabola de Christo, serena e luminosa como um
dialogo de Platão:

    Mulher, mulher! quando eu n'um cemiterio
    Levanto o pó dos tumulos sósinho:
           Eis, digo, eis o que eu sou,
    Mas quando penso bem n'esse mysterio
    Da virtude infeliz: Vae teu caminho;
           Dois mundos Deus creou.

É poesia que se sente e que poucos exprimem, são versos que se admiram e
que rarissimos os escrevem.

As imagens adejam-lhe em torno frescas, vivas, alegres e graciosas, como
um bando de andorinhas em torno dos frisos d'um campanario:

    Quando em silencio finges,
    Que um beijo foi furtado,
    E o rosto desmaiado
    De côr de rosa tinges,
      Dir-se-ha que a rosa deve
    Assim ficar com pejo,
    Quando a furtar-lhe um beijo
    O zephiro se atreve.

    ............................

    A bôca é tão vermelha que, em te rindo,
    Lembra-me uma romã aberta ao meio
    Quando já de madura está cahindo.

    ......................................

    Quando a sua mãosinha pondo um dedo
    Em seus labios de rosa pouco aberta,
    Como timida pomba sempre alerta,
    Me impunha ora silencio ora segredo.

Não ha nada mais gracioso, mais natural, mais espontaneo, mais facil! A
gente chega a pasmar de não encontrar todos aquelles dizeres elegantes,
todos aquelles versos formosissimos nos outros poetas, tal é a fluencia
e a vitalidade d'esta inspiração.

Na voz de João de Deus ha as inflexões carinhosas de uma creança; os
versos parecem caricias; têm a suavidade affectuosa das orações de uma
santa e aquelle tom amavel e triste, mas nunca pretencioso, dos
verdadeiros scismadores:

    Foi-se-me pouco a pouco amortecendo
    A luz que n'esta vida me guiava,
    Olhos fitos na qual até contava
    Ir os degraus do tumulo descendo.

    ..................................

    Alma gemea da minha, e ingenua e pura
    Como os anjos do ceu (se o não sonharam...)
    Quiz mostrar-me que o bem, bem pouco dura.

    Não sei se me voou, se ma levaram,
    Nem saiba eu nunca a minha desventura
    Contar aos que inda em vida não choraram.

Camões não a sentiu mais, nem a escreveu melhor esta poesia da tristeza,
esta melancolia suave d'um scismador, esta saudade resignada de uma alma
nas soledades do infortunio, nos desterros do isolamento. Ha alli poesia
para vinte poemas, ha alli suavidade para vinte idyllios.

As rhimas parecem beijos, tão estreitas se enlaçam, tão ardentes se
casam, tão apaixonadas se apertam:

        Que magoa ou que receio
        Dos olhos te desata
        Aljofares de prata
        No jaspe do teu seio?

        Bem intima ser deve
        A pena que te opprime,
        Flôr tenra como o vime,
        Flôr pura como a neve!

        .......................

        Vós, lobos! ide em bando,
        Trepae pelo rochedo,
        Uivae, mettei-lhe medo,
        Levae-a recuando!

        Que faz quem se approxima
        D'um precipicio, diz-m'o?
        Que buscas tu no abysmo
        Se o ceu é lá em cima?

É só a lyrica intitulada--_Heresta_--que me fornece estes quatro
exemplos; podia fornecer-me trinta e dois, porque são trinta e duas as
quadras d'essa formosa composição.

Ás vezes o verso deixa de ser uma phrase e transforma-se n'um suspiro, a
estrophe deixa de ser um canto e converte-se n'um arrulho. Tudo alli é
muito amar, profundamente sentir e divinamente cantar:

      Que é d'esses cabellos d'ouro
      Do mais subido quilate,
      D'esses labios escarlate,
           Meu thesouro!

      .............................

      Que é d'uma flôr da grinalda
      Dos teus dourados cabellos,
      D'esses olhos, quero vêl-os,
           Esmeralda!

      Que é d'essa alma que me deste!
      D'um sorriso, um só que fosse.
      Da tua bôca tão dôce
           Flôr celeste!

      Tua cabeça que é d'ella
      A tua cabeça d'ouro,
      Minha pomba! meu thesouro!
           Minha estrella!

      ..........................

      E as desgraças, podia prevêl-as
      Quem a terra sustenta no ar,
      Quem sustenta no ar as estrellas,
      Quem levanta ás estrellas o mar.

      Deus podia prevêr a desgraça,
      Deus podia prevêr e não quiz;
      E não quiz, não... se a nuvem que passa
      Tambem póde chamar-se infeliz.

Quem escreve d'isto, sente-o. Um homem não arranca ao seu espirito
d'estas perolas sem as lá ter em sentimento e em amor. E só o alto calor
d'um grande, d'um immenso coração póde _cristallisar_ taes diamantes; o
fogo sómente do craneo não produz d'estes milagres d'inspiração:

    Não se é só pó no fim de tanta magoa,
    Senão diga-me alguem que allivio é este
    Que sinto, quando á abobada celeste
    Alevanto os meus olhos rasos d'agoa.

    ....................................

    Ha depois d'esta vida inda outra vida,
    Não se reduz a nada o grão d'areia,
    E havia de a nossa alma, a nossa ideia
    Nas ruinas do pó ficar perdida?

Se isto não é inspiração, e alta inspiração, não sei que nome se ha de
dar ás maravilhas do genio de Dante, de Shakspeare, de Camões ou de
Victor Hugo.

Um espirito que se eleva a taes alturas tem obrigação de produzir um
_Hamlet_, uma _Divina Comedia_ ou uns _Lusiadas_.

Sente-se pela leitura d'este volume que Camões é o auctor predilecto de
João de Deus. O livro abre até por uma composição que póde considerar-se
uma verdadeira profissão de fé em poesia. A propria fórma poetica da
maior parte das lyricas de João de Deus, um certo geito facil e
correntio na composição grammatical dos periodos, a suavidade das
rhimas, a doçura das expressões, a harmonia cadenciosa dos versos e um
certo tom de intima melancolia que se faz sentir até nas idêas as mais
graciosas revelam a decidida predilecção que o cantor da _Heresta_ tem
pelo desafortunado scismador de Macau.

É esta a feição seria, a feição elevada e talvez caracteristica do genio
poetico de João de Deus. Como todas as grandes vocações, como todas as
naturezas ricas, João de Deus porém não é menos apreciavel, nem menos
digno de estudo pelo lado alegre, malicioso e a espaços finamente
epigrammatico. Ás vezes chega a ser um observador digno de competir com
Molière ou Tolentino. Os _Caturras_ é composição de emparelhar com a
_Funcção_ ou com o _Bilhar_ do diabolico professor de rhetorica; e o
_Gaspar_ póde pedir meças em ridiculo a qualquer dos _frades_ grotescos
da numerosa collecção de Bocage. E o epigramma aqui é tanto mais
pungente quanto menos grosseiro, e a caricatura tanto mais graciosa
quanto menos exagerada.

Ha alli o sal attico de Terencio e não a especiaria acinante de Plauto,
a não ser talvez nos versos intitulados--_Uma femea_,--brazileiros no
titulo e no sabor, d'um _piquesinho_ de gosto bastante equivoco.

E já que entramos no capitulo das maculas, convém dizer-se que João de
Deus é por vezes revolucionario de mais em assumptos de metrificação. Eu
não gosto de absolutistas nem mesmo em poesia, mas tambem não morro de
amores pelos tão republicanos que nos levem á demagogia. É preciso que
sejamos um pouco _constitucionaes_ em tudo. Ora a _constituição_ poetica
tem artigos que se não podem infringir sem se incorrer no crime de leso
bom gosto, porque o bom gosto foi e ha de ser sempre o eterno legislador
d'estes codigos. Um verso frouxo ou manco e uma rhima equivoca ou
violenta hão de ser perpetuamente defeitos.

Quem disser o contrario ou é tolo ou tem ouvidos de cortiça. João de
Deus cahe por vezes nestes dous peccadilhos, deixando alguns versos
arrastados, e outros duros; estes porém muito menos frequentes do que os
primeiros. Mais frequentes são as rhimas violentas, algumas realmente
d'um mau gosto insustentavel, taes como: _justiça_ rhimando com pinça,
como a paginas 152; _rio_ e _viu_, como a paginas 159, e ainda algumas
outras.

É da tarifa dizer-se em occasiôes similhantes, como são da tarifa todas
as vulgaridades, que não ha livro sem defeitos. Eu creio piamente na
sentença, e até creio que um livro sem defeitos, se existisse, devia ser
o mais defeituoso de todos os livros, o mais sorna e o mais semsaborão.
Eu porém quando abro um livro não é para lhe andar a catar os defeitos
pagina por pagina, como quem anda ao _pulgão_ pelos vinhedos. O que
busco n'um livro são ensinamentos, calor de vida, fogo de coração e luz
de intelligencia; esplendores de espirito e esplendores de palavra;
genio, alma e sentimento.

Ora um livro de versos onde ha composição como a _Rachel_, _O Musgo_,
_Ultimo adeus_, _o Remoinho_, _a Carta_, e trinta outras lyricas de tal
novidade e tal merecimento, tem obrigação de ter defeitos, por que sem
elles... seria um livro impossivel, uma verdadeira monstruosidade.
Diga-se aqui pois, e para se pôr ponto ao aranzel, que o livro de João
de Deus tem maculas, mas que estas, como as do sol, desapparecem no meio
dos esplendores d'aquella immensa luz de vida, de genio e de inspiração.
_Flores do Campo_ é finalmente um livro de versos, como ha poucos n'este
paiz, desde que por cá se escrevem versos.[1]

Guarda, 4 de fevereiro de 1869.

                                          *Alexandre da Conceição.*

    [1]Jornal do Porto (1869) n.º 33.




LIVROS


REVISTA CRITICA BIBLIOGRAPHICA


Flores do campo, _por João de Deus, publicadas pelo seu amigo José
Antonio Garcia Blanco_--Lisboa, typ. Franco-portugueza, 1868--Em casa de
Ferin & Robin--1 vol. in-16.º--271.


João de Deus é um personagem semi-lendario na tradicção academica, e
apesar de homem do nosso tempo, e tão do nosso que até com um diploma de
deputado se nos apresentou ha pouco, anda-lhe o nome rodeado de quasi os
mesmos fulgores e as mesmas sombras em que uma historia superficial ou
mentirosa envolveu os velhos trovadores da Provença.

Permittam-me uma digressão.

Ha n'esta sociedade portugueza--já agora, ao que parece--condemnada a
refocilhar em monturo de sanefas lantejouladas e rotas que lhe deixou o
passado, e a dar ao mundo o triste espectaculo d'uma nacionalidade sem
_idêa_ que a represente na historia philosophica de amanhã, sem _ideal_
que lhe seja pharol e bussola na tormentosa navegação das sociedades
d'hoje; ha, digo, n'esta nossa sociedade amortecida: extraordinarias
visões, mysteriosos anceios, esforços convulsivos como que filhos de
ignotos impulsos, que bem poderiam passar por agonias e paroxismos
annunciadores da proxima dissolução, se um diagnostico escrupuloso não
encontrasse antes n'aquillo promessas de reacção proxima, de
rejuvenescimento que não vem longe, de evolução fatal, que, em Portugal
como em toda a parte, denuncia por aquellas aberrações e anormalidades a
sua sublime prenhez d'uma nova idêa, d'uma era nova.

Erguem-se no meio da grasnada petulante ou esteril da litteratura, vozes
persistentes... doces ou enthusiasticas, sympathicas ou ameaçadoras...
frescas, novas, _originaes_--_raræ voces!_--que parece irem na turba
desmoralisada pôr em vibração alguma cellulasinha não contaminada do
mal.

E a turba põe-se a escutar, a applaudir, a aspirar soffregamente os
frescores e doçuras, que tão enormemente se distanceiam dos miasmas do
ambiente habitual, do sabor da habitual pitança.

Alteiam-se, no meio da calaçaria geral, do geral e natural desanimo,
vontades energicas que a pedraria da mestrança ignorante, intolerante e
madraça não consegue desviar um momento da faina do estudo e da
evangelisação scientifica.

E a turba vae attentando n'ellas, vae sympathisando com aquelles
revolucionarios heroicos do marasmo, vae comparando-os com os idolos
anões que, sem ella saber como nem porque se grudaram aos altares da sua
admiração, vae fitando os novos horizontes para onde lhe apontam os
novos chefes, vae-os seguindo já ao impulso d'uma necessidade
indefinivel mas fatal. Ha n'isto, já se vê, alguma cousa d'allucinação
infantil. Crê-se que os novos Moysés levam comsigo, completas, as
verdadeiras taboas da lei, e rasgarão com a magica varinha as brumas que
envolvem a terra da promissão.

Engano. Não lhes dão as forças para mais que para um terço do caminho,
se tanto. Mas isso mesmo é muito, é o que basta. Hão de apparecer novos
guias. A questão é saír da esterilidade do deserto.

Citemos porém dois factos, tiremos dois exemplos, apenas, de tantos que
podiamos apresentar da revolução litteraria que se realisa surdamente no
seio da nossa pequena sociedade.

Sejam elles, por hoje, dois poetas: Theophilo Braga e João de Deus; dois
verdadeiros revolucionarios como outros de que para o diante terei de
fallar. Um, apesar do mal que dizem d'elle, e do mal, que é maior
talvez, que elle a si proprio faz, é inegavelmente um dos nossos poucos
talentos originaes na concepção e na manifestação litteraria, na _idêa_
e na _fórma_, e se não é marco que no futuro atteste um grande e
brilhante progresso na litteratura patria, é como que atrio imperfeito e
tosco, mas espaçoso e altaneiro que póde servir d'entrada a _pantheon_
de explendidos engenhos.

E grande engenho é Theophilo, de certo.

Por entre uma saraivada d'apodos e improperios de _mau gosto_ ou _má
fé_, conquistou elle um logar elevado, na poesia portugueza d'hoje,
cujos magnates na maxima parte, persistem, com risivel teimosia, em
trazer-lhe engastada na corôa á laia de fina joia, o carvão da
ignorancia, ou em mascararem-na com um falso e retrogrado
_classissismo_.

Theophilo porém avançou menos do que devia.

O _idealismo_ desvairou-o, o _romancismo_ perdeu-o.

Um dia a voz sympathica, insinuante, ora melancholica e dolorida,
ora--bem poucas vezes!--alegre e enthusiastica de João de Deus começou
de fluctuar por sobre o borburinho cançado e monotono das nossas letras.
Não se sabe como nem quando foi. Perdeu-se a chronologia biographica nos
encantos do _quasi_--extasis. Sabe-se sómente que a reputação do poeta
não nos entrou na terra, dentro do cavallo de pau d'algum chefe _grego_,
mestrão consummado n'estas maquinações. Sabe-se tambem que João de Deus
não andou por salas e officinas, annunciando a fazenda que tempos
depois, atirada ao mercado, podia realisar o caso da _mons parturiens_.

João de Deus apparecia-nos uma ou outra vez n'um periodico de Coimbra;
ora nos segredava uma estrophe singela e melodiosa pelo postigo de uma
typographia alemtejana; ora surgia em um periodico da capital a
contar-nos umas duvidas que o magoavam, umas saudades indefiniveis que o
pungiam, uns vagos amores que lhe andavam rumorejando lá dentro em vagas
harmonias.

E ninguem sabia quem era João de Deus. E ninguem procurava saber quem
fosse. Ou antes, julgavam todos sabel-o. Conheciam-no todos. Era um
cerebro em ebullição, um coração em ataxia permanente, um estomago que
valia por uma adega.

João de Deus era um doudo que forrava as paredes do albergue com as
folhas das _sebentas_, que dormia dentro da enxerga, porque achava mais
commodo isto do que dormir-lhe em cima, que se matriculava todos os
annos na faculdade em que o secretario-universitario se lembrava de
matriculal-o, que fôra de Coimbra a casa, d'algibeira vasia e lapis
constantemente occupado em fazer magnificos versos ou magnificos
desenhos, que se fizera um dia sachristão, e pozera n'outro, todo um
bairro em sobresalto, subindo aos telhados para apostrophar a lua, etc.,
etc.

E as anecdotas galantes succediam-se, e a cada nova poesia annexava-se
uma historieta, e quando as poesias escaceavam, attribuiam-se ao poeta
novas doudices, novas excentricidades, como a certo honrado e já
defuncto general se attribuiam quantos dispauterios o soalheiro burguez
produzia. Se eu fosse biographo de João de Deus havia talvez de lavrar
aqui um protesto esmagador.

Como não sou, limito-me a dizer o que penso do illustre algarviense.
_Mais_ ou _menos_ todos somos poetas. N'este _mais_ e n'este _menos_
está, creio eu, o segredo da organisação _sensorial_, se póde dizer-se
assim, organisação modificada é certo, mas não completamente
transformada pelo _meio_ e pelo _habito_.

Tal _sensação_ que n'uns individuos poria o cerebro n'um estado de
effervescencia que lhe _exagerasse_ a realidade, a ponto muitas vezes de
a substituir por uma concepção puramente subjectiva, em taes outros póde
dar apenas o facto funccional em condições normaes e ordinarias, e,
concentrando-se, converter-se em reflexão. Precisava isto longo
desenvolvimento. Ora como o primeiro modo de ser _sensorial_ póde dar-se
em todos, mas com mais ou _menos_ intensidade, com _maior_ ou _menor_
frequencia, digo eu (e dizem bons escriptores) que todos são _mais_ ou
_menos_ poetas. Isto quanto ao facto intellectivo. Quanto á expressão, o
mesmo se póde dizer sem receio de contestação seria.

Pois na concepção como na palavra eu tenho João de Deus por verdadeiro
poeta.

Dizia Merck, homem de profundo bom senso, a Goëthe, seu amigo:

«A tendencia irresistivel do teu genio é a de imprimir a fórma poetica
ás cousas _reaes_. Outros procuram uma _soi-disant_ poesia tranformando
em realidades, puras _imaginações_, o que só produz disparates.»[2]

Sem concordar incondicionalmente com a primeira phrase do sensato
allemão, sem querer acceitar a segunda como lei comprovada de critica
litteraria, parece-me que de João de Deus se poderá dizer que reune as
duas tendencias, as duas feições designadas, a _idealisação_ (phrase
consagrada e porventura inexacta) do _real_, e a personificação, melhor
talvez, a realisação plastica do _imaginario_.

Como que as sensações sensoriaes[3] n'aquelle cerebro delicado, ou
atravez d'aquelle organismo exageradamente impressionavel se destacam
algumas vezes do estimulo, ou alteram a natureza da propria
objectividade e criam um mundo novo, um mundo mystico, permittam-me a
expressão, a que o poeta dá uma realidade objectiva moldando-o pelas
manifestações plasticas do mundo em que vive. Acontece porém, poucas
vezes, nem podia deixar de ser assim, quando a indole da época e a
illustração do poeta se estão oppondo á formação e sustentação d'estas
concepções puramente subjectivas. Adivinha-se aqui ou alli a lucta
tremenda que vae no cerebro de João de Deus, lucta que é a feição
caracteristica do seculo, e que o manto esfarrapado do eclectismo
immoral não consegue abafar, lucta entre o velho _crêr_ e a _duvida_, a
duvida, que como a hydra da mythologia surge após cada decepamento, e
que não é possivel destruir como aquella decepando-lhe o tronco. Ouvide
um exemplo:

    Prestes, se inda na rocha de granito
    D'onde em tempo me vias, te sentares,
    Não olhes para a terra, ou para os mares,
    _Olha sim para o céo, que é lá que habito._

    _Lá, tão longe de ti mas não do terno,_
    _Bondoso pae que os dois nos ha gerado,_
    _Só para magoas não, que bem guardado_
    _Nos tem tambem no céo prazer eterno._

Que profunda crença, que certeza _mystica_, se póde dizer-se assim, não
rescende a suave _morbidezza_ d'estes versos! Ha alli alguma cousa do
cantor da Bice. Vêde porém a tempestade que se annuncia; a duvida
atravessou como um relampago o cerebro do poeta. Ouvide:

    Não se é só pó no fim de tanta magoa.
    _Senão_, diga-me alguem que allivio é este
    Que sinto quando á abobada celeste
    Alevanto os meus olhos rasos d'agua?

    Mentem os céos _tambem_? Os céos maldigo.
    Feras, tigres _tambem_ o céo povoam?
    _Tambem_ os labios lá sorrindo coam
    Veneno desleal em beijo amigo?

    _Mas na dôr é que os astros nos sorriem,_
    E os homens não sorriem na desdita.
    Astros! fio-me em vós, e Deus permitta
    Que os infelizes sempre em vós se fiem.

Refaz-se a crença, resurge a esperança consoladora:

    Ha depois d'esta vida uma outra vida.
    _Não se reduz a nada um grão d'areia,_
    _E havia de a nossa alma, a nossa ideia,_
    Nas ruinas do pó ficar perdida?

Pobre sonhador! Aquelle segundo verso é um protesto ironico contra o teu
ideal mystico, é o _grão d'areia_ que ha de intorpecer e desmandar todo
o machinismo psycologico da tua crença!

Continúa:

    _Isso que pensa e quer_ (até me admiro)
    Isso que a luz nos traz, que a luz nos leva, etc.

e accrescenta:

    _Onde_, não sei eu bem, mas sei que existe
    Deus remunerador. Depois de mortos
    Hemos de vêr-nos e um no outro absortos
    Fartar de glorias este amor tão triste.

    Tão triste e... (o coração que me adivinha?)
    N'este supplicio nosso, _este tormento_,
    Nunca dos labios teus minimo alento
    Num só beijo bebi em vida minha!

Fulge de novo o relampago, baqueia o edificio da crença, vêde que
tormento:

    _E morro sem te vêr!_ Cabeça douda
    Desasissado amor? sonhar afflicto
    Um sonho até morrer...

Pobre Hamlet!

    _... the rest is silence_

    Um sonho até morrer... Não: resuscito;
    Morto tenho vivido a vida toda.

Pobre Faust! O _insufficiente_ (das Unzuloengliche) atormenta-te, porque
te fascina o _inenarravel_ (das Unberchreiblichee). Que tempo precioso
perde comtigo o sensato Mephistopheles!

Preferes á gargalhada que te chama á realidade da vida, o _chorus
mysticus_ que te amargura a existencia com a mentira da miragem!


João de Deus é rigorosamente um artista _insaciavel_: «Satiari artis
cupiditate non quit,» como diria Plinio.

Adivinha-se em cada estrophe d'elle um ancear indefinivel, um vago
aspirar, se póde dizer-se assim, uma como que miragem que atráe o poeta,
que o alenta umas vezes e o desespera não poucas, que parece enviar-lhe
dos visos do horisonte uns suaves frescores envoltos em deliciosos
perfumes, e que como a miragem do deserto, lhe foge sempre aos labios
sequiosos.

E o pobre viandante vae caminhando e cantando sempre. É um descantar
dolorido geralmente, como que descantar de saudade do que sonhou e não
acha, e não gosa, e não encontra no caminho, como que de _saudade_ do
que lhe foge sempre, deixem-me usar a dôce palavra que bem sei eu que
não fica ella bem lexicographicamente applicada.

E assim com a imaginação embalada por um vago _ideal_ vae João de Deus
_poetisando_ como Goëthe na opinião do seu, já citado amigo, tudo o que
no caminho encontra. Poucas vezes se lhe altera a harmonia cerebral ao
impulso d'uma vibração mais violenta. Os successivos amores--fundem
quasi n'uma abstracção, parecem subtilisar-se até no _feminino eterno_
do cantor do Fausto. Hoje Margarida, amanhã Helena, depois... Depois
quem sabe?

Hoje Marina. É uma recordação.

    Como esse olhar é dôce!
    Dôce dâ mesma sorte
    Como se nunca fosse
    Toldado pela morte,

    Como se alumiasse
    O sol ainda em vida
    As rosas d'essa face
    Agora carcomida.

    Colhesse-as eu mais cedo
    E logo que alvorece,
    Já não tivesse mêdo
    Que a terra m'as comesse.
    .........................

    Se um dia nos meus braços
    Te desbotasse as côres,
    Passavam os abraços...
    Passavam os amores!...

    Oh não: mil vezes antes
    No céo lá onde habitas
    E os rapidos instantes
    Que vens e me visitas

    N'este degredo nosso
    Que tanta gente estima,
    E eu, só porque não posso
    Não largo e vou lá cima.

    Vem tu cá baixo, abala, etc.

    .......................

    Ha uma hora ou mais,
    Marina! que contemplo
    A casa de teus paes
    Que é para mim um templo.

    É esta vida um mar
    E bem se póde a gente
    Marina, comparar
    A rapida corrente

    Que vae de lado a lado
    Por esses valles fóra
    Sem nunca lhe ser dado
    Ter a menor demora:

    Pára quando a engole
    Aquelle mar sem fundo;
    Nem pára, é como o sol
    E como todo o mundo.

    .......................

Custa a resistir á tentação de transplantar para aqui completas, estas
magnificas _singelesas_. Não ha n'aquillo alguma coisa do que é
espontaneo e bello na _Vita Nuova_?

Mas, como dissemos, o poeta approxima-se tambem do _Faust_ na
volubilidade artistica.

    Maria! vêr-te á porta a fazer meia
    Olhando para mim de vez em quando
    É o que n'esta vida me recreia.

    ...................................

    E eu pallido, Maria! o pensamento
    Não é trabalho que nos dê saude,
    Esta imaginação é um tormento.

    ...................................

    É que a gente na sua mocidade
    Não cabe em si, não pára de contente
    E assim fui eu na flôr da minha edade.

    Tu eras n'esse tempo simplesmente
    A flôr que vae nascendo e mais valia
    Seres tão terna ainda e innocente.

    Já esse lindo pé que tens, Maria!
    Esse quadril tão largo e cinta estreita
    Me não vinha á ideia noite e dia;

    Esses encontros de mulher perfeita,
    Esse peito redondo e arqueado
    Como a pomba farta e satisfeita;

    Talvez vivesse então mais socegado
    Ou já que a minha sorte é sempre triste
    Ao menos não andasse enfeitiçado.
    ...................................

Depois é Margarida:

    Oh! que formosos dias, Margarida!
    Esses, etc. etc.

Depois... Ha nomes que não se proferem, que não se denunciam. São como
certo nome do Deus judaico.

O poeta diz simplesmente: _No leito nupcial._ Um nome depois d'isto fôra
mais que uma profanação, fôra uma infamia. Julgaes porém que ides ouvir
uma recriminação amarga ou uma indiscripção villã?

    Dorme, estatua de neve,
    Vergontea de marfim,
    Tocar que impio se atreve
    No que é sagrado assim!

    Dois são: o mais, mysterio
    Vedado á terra, Deus
    Talvez do solio ethereo
    Nem baixe os olhos seus.

    Respeita-os, tapa-os, como
    Japhet e Sem, o pae...
    Pende sagrado pomo,
    A vista ergue-se e cáe.

    Ergue-se e cáe, conforme
    A lei que o manda assim,
    _Ergue-se_ e... dorme, dorme,
    Vergontea de marfim!

    .......................

    Não segue acaso a sombra
    Teu corpo sempre, flôr?
    E pois porque te assombra
    Meu insensato amor?

    .......................

Depois é Beatriz:

    Tu és o cheiro que exhala
    Ao ir-se abrindo uma flôr;
    Tu és o collo que embala
    Suas primicias d'amor.

    Tu és um beijo materno,
    Tu és um riso infantil;
    Sol entre as nuvens do inverno,
    Rosa entre as flôres d'abril.

    Tu és a rosa de maio,
    Tua és a flamula azul
    Que atam á flecha do raio
    As nuvens negras do sul.

    .......................

E assim vae cantando sempre, de nome em nome, e de mysterio em mysterio
e d'amor em amor, de duvida em duvida, de saudade em saudade, d'anceio
em anceio. Não ha Beatriz que o retenha e lhe oiça o _Ecce Deos fortior
me veniens dominabitur mihi_.

Um dia encontra uma mulher formosa, joven, alegre. Ama. Será amado?

    Amas-me a mim! perdoa,
    É impossivel! Não,
    Não ha quem se condoa
    Da minha solidão.

    Como podia eu triste,
    Ah! inspirar-te amor,
    Um dia que me viste,
    Se é que me viste... flôr!

    .......................

    Via-te arfar o seio...
    Córar... mudar de côr,
    E embora, ah! não, não creio,
    Tu não me tens amor!

E o sonho foi-se e a visão desappareceu. Como se chamava aquella mulher?
Vão lá saber como se chama a estrella cadente que rasga a amplidão do
espaço e desapparece n'ella?

E foi uma estrella cadente, aquella. Perdoem a indiscripção.

Outro dia é o poeta que se afasta, que foge, porque receia macular com o
seu halito o puro fulgor da estrella.

    Tenho-te muito amor,
    E amas-me muito, creio,
    Mas ouve-me, receio
    Tornar-te desgraçada.
    O homem, minha amada,
    Não perde nada, gosa;
    Mas a mulher é rosa...
    Sim, a mulher é flôr!

    Ora, e a flôr, vê tu,
    No que ella se resume...
    Faltando-lhe o perfume.
    Que é a essencia d'ella,
    A mais viçosa e bella,
    Vê-a a gente e... basta.
    Sê sempre, sempre casta!
    Terás... quanto possuo!

Vou findar com as transcripções, que bastam as que ficam feitas para
comprovar o que ácerca d'estas mimosas poesias e d'este original poeta
tenho dito e hei de para o diante dizer. Não posso porém resistir á
tentação de citar ainda uns trechos d'uma das mais bellas e
caracteristicas composições de João de Deus. Podesse eu transcrevel-a
toda!

Não tem nome. Chamam-lhe alguns «A vida». Innumeras vezes tem ella feito
cessar as alegrias das salas e interrompido brilhantes festas como o
austero bispo de certa poesia de Thomaz Ribeiro, para mendigar ao
sentimento das damas um condoimento de triste sympathia pelas intimas
amarguras do poeta. Tem por epigraphe aquellas formosas palavras do
Tasso:

    Cosi trapassa al trapassar d'um giorno, etc.

e começa:

    Foi-se-me pouco a pouco amortecendo
    A luz que n'esta vida me guiava,
    Olhos fitos na qual até contava
    Ir os degraus do tumulo descendo.

    Em se ella annuveando, em a não vendo,
    Já se me a luz de tudo anuveava;
    Despontava ella apenas, despontava
    Logo em minha alma a luz que ia perdendo.

    Alma gemea da minha, e ingenua e pura,
    Como os anjos do céo (_se o não sonharam..._)
    Quiz mostrar-me que o bem, bem pouco dura.

    Não sei se me voou, se m'a levaram,
    Nem saiba eu nunca a minha desventura
    Contar aos que inda em vida não choraram.

Estas linhas fazem recordar Camões. Ha n'este tristuras que se
manifestam por versos parecidos, mas eu prefiro estes ao tão conhecido
soneto da «Alma minha gentil,» etc. Parece denunciar-se n'esta singelesa
_morbida_, se póde dizer-se assim, mais sentimento e espontaneidade.

Vamos mais além. Que superabundancia de ímagens! Que riquesa e variedade
de _sensação_! Que esplendidos quadros! Que magnificencia de colorido!

    Ah! quando no seu collo reclinado
    --Collo mais puro e candido _que arminho_,
    _Como abelha na flôr do rosmaninho_
    Osculava seu labio perfumado;

    Quando _á luz dos seus olhos_... (que era vêl-os,
    E enfeitiçar-se a alma em graça tanta!)
    Lia na sua bôcca a _Biblia santa_
    Escripta em letra _côr dos seus cabellos_:

    Quando aquella mãosinha pondo um dedo
    Em seus labios de _rosa pouco aberta_,
    _Como timida pomba_ sempre alerta,
    Me impunha ora silencio, ora segredo;

    Quando, _como a alveloa_, delicada,
    E linda _como a flôr_ que haja mais linda
    Passava _como o cysne_ ou _como ainda_
    Antes do sol raiar, _nuvem dourada_;

    ...................................

    Quando a _cruz_ do collar do seu pescoço,
    _Estendendo-me os braços, como estende_
    _O symbolo d'amor que as almas prende,_
    _Me dizia_... o que ás mais dizer não ouço;

    ...............................................

    Quando o _ouro da trança_ aos ventos dando
    E a _neve_ do seu collo e seu vestido
    --_Pomba_ que do seu par se ia perdido,
    Já de longe lhe ouvia o peito arfando;[4]

    Tinha o _céo_ da minha alma as sete cores, etc.

    ...........................................
    ...........................................

        Que é d'esses cabellos d'ouro
        Do mais subido quilate,
        D'esses labios escarlate,
            Meu thesouro!

        Que é d'esse halito, que ainda
        O coração me perfuma!
        Que é de teu collo de espuma,
            Pomba linda!

        ..............................
        ..............................

    De dia a estrella d'alva empallidece;
    E a luz do dia eterno te ha ferido.
    Em teu languido olhar adormecido
    Nunca me um dia em vida me amanhece.

    Foste a concha da praia. A flôr parece
    Mais ditosa que tu. Quem te ha partido,
    Meu calix de crystal, onde hei bebido
    Os nectares do céo... _se um céo houvesse!_

    Fonte pura das lagrimas que choro![5]
    Quem tão menina e moça desmanchado
    Te ha pelas nuvens os cabellos d'ouro!
    .....................................

      A vida é o dia d'hoje,
      A vida é ai que mal sôa,
      A vida é sombra que foge,
      A vida é nuvem que vôa;
      A vida é sonho tão leve
      Que se desfaz como a neve
      E como o fumo se esvae:
      A vida dura um momento;
      Mais leve que o pensamento,
      A vida leva-a o vento,
      A vida é folha que cáe!

      A vida é flôr na corrente,
      A vida é sopro suave,
      A vida é estrella cadente,
      Vôa mais leve que a ave;
      Nuvem que o vento nos ares,
      Onda que o vento nos mares
      Uma apoz outra lançou,
      A vida--penna cahida
      Da aza da ave ferida,
      De valle em valle impellida
      A vida o vento a levou!

    ..............................
    ..............................

    _Talvez_, é hoje a Biblia, o livro aberto
    Que eu só ponho ante mim nas rochas, quando
    Vou pelo mundo vêr se a posso vêr;
    E onde, como a palmeira do deserto,
    Apenas vejo aos pés inquieta ondeando
            A sombra do meu ser.

    ..............................

Depois d'isto comprehendeu-se que João de Deus se propozesse a traduzir
o _Cantico dos Canticos_.

Como, se bem me lembro, diz Herder, os elementos primordiaes da poesia
hebraica são a _sensação_ e a _imagem_, e posto que, no meu entender, a
boa critica não possa monopolisar aquella feição em favor apenas
d'aquella poesia, porque ella é caracteristica de todas as litteraturas
na sua genese, e nos primeiros periodos de constituição, em quanto
predominam no homem os sentimentos elementares como diz Veron[6],
comtudo a poesia hebraica propriamente tal quasi não chega a ultrapassar
o periodo d'aquelle predominio. Poderiam talvez accusar-se os versos que
acabo de transcrever de certo _garridismo_ que mal iria ao sentimento
que exprimem, se a violencia d'esse sentimento, o estado de exaltação
sensorial não estivessem justificando o que parece defeito aos leitores
que não sintam a transfusão psychologica que muitos hão de experimentar
ante aquelles versos magnificos.

A poesia de João de Deus é verdadeira musica. Se eu estivesse agora para
combater os que julgam como Lamartine[7] que a _versificação_, o
rhythmo, a cadencia, a rima, são cousas indifferentes á poesia na «época
adiantada e verdadeiramente intellectual dos povos modernos», os que
teem tudo isso, como Heine (cit. por Max. Buchon) por completa
puerilidade, para valente comprovação me podiam servir os versos do
nosso poeta.

São elles geralmente como que uma psalmodía. Allia-se a musica e a
poesia que tantos querem distancear, como se o rythmo fosse apenas
elemento especial d'uma arte. João de Deus como que tem uma rhythmopêa
espontanea. Sahe-lhe o verso moldado pela ideia e pelo sentimento, e
n'este como n'aquelle a modulação existe pelas fataes variantes dos
estimulos e das vibrações cerebraes. Procuraram os gregos systematisar
as relações do rhythmo para com a idêa e o sentimento, como se fôra
possivel marcar limite numerico aos modos de ser do pensamento, ou aos
productos da actividade intellectual e esthetica. Se, pois, em muitos
casos, são acceitaveis as velhas regras, geralmente a rhythmopêa deve
ser producto espontaneo, e não _canon_ de escóla. E porque se dá o
primeiro caso em João de Deus, é que talvez se revela nos seus versos,
bem salientemente o cunho da personalidade, condição essencial d'uma
obra poetica. É necessario não perder aquella de vista, porque, como diz
o critico francez, que atraz citei, o verdadeiro merecimento, na poesia,
está antes na esthesia do poeta de que na do leitor. Ora bastam as
transcripções que fiz para vêr como a personalidade do poeta, o seu
sentir e pensar se patentêam na expressão, na _fórma_, que em outros
escriptores mal disfarça com arrebiques e ouropeis a carencia da
sensibilidade e inspiração pessoal.

Ha mais poesia n'algumas _singelezas_ de João de Deus do que em muitos
_versos_ laureados que por ahi correm como modêlos de _metrificação_, e
que bem podem sêl-o, o que não basta de certo.

    Mais poesia em pobre margarida
    Que aos pés se pisa, enthesourada vejo,
    Que em muita madreperola polida
    Que as cinzas guarda de finado arpejo.

Toquei eu agora n'uma das melhores poesias de João de Deus, poesia que
elle diz ser fragmento, e fragmento que bem faz desejar a apparição da
obra toda.

Vou ainda transcrever alguns trechos que lançam de certo muita luz sobre
o vulto, quasi lendario do poeta, em pontos menos esclarecidos pelas
transcripções anteriores.

    Padre, ministro do Crucificado
    É bom ferreiro afeiçoando o ferro
    Com que ha de prestes ir rompendo o arado
    Os campos d'este secular desterro...

    ....................................

    Na montanha da Fé, mulher formosa
    Se ante mim a meus pés desenrolasse
    Como o demonio a vastidão pasmosa
    Que elle dava a Jesus se o adorasse
    E me pedisse em premio uma só cousa
    Ás mãos de minha mãe furtar a face;
    Eu lançava-lhe cuspo...

    ...................................

    Vêde-a ao berço, sofrega de vida
    Que a sua é pouca para dar ao filho;
    _Ella_ em cama de espinhos, mal vestida,
    _Elle_ enfaxado, em berço de tomilho;
    _Ella_ em continua, asafamada lida,
    _Elle_ vendo se apanha á luz o brilho...
    _Já descobrindo em tão tenrinha edade_
    _Que toda a sua sêde é de verdade._

    .................................
    .................................

    Irmãs da Caridade! A caridade
    Tem só duas irmãs--a Fé e a Esperança:
    Não traja as côres só d'uma irmandade,
    Traja as côres do Arco d'alliança;
    Leva sósinha o pão da piedade,
    Tira da roda essa infeliz creança...
    Roda da vida que anda de tal sorte
    Que, em se lhe dando, é já contar com a morte.

    Bemdita sejas tu, victima triste
    D'um peito amante e d'um amante ingrato!
    Que nunca á mesma loba lançar viste
    Inda mamando o cachorrinho ao mato;
    Bemdita sejas tu, que o que pariste
    Teu fructo, imagem tua e teu retrato
    Conservas como espelho onde te vejas;
    Bemdita sejas tu, bemdita sejas.

    ................................
    ................................

    Acaso é só dourada, altiva estola
    Que liga os corpos em as mãos ligando,
    Confunde corações e faz em summa
    Que a Deus se elevem duas almas n'uma?

Ahi tendes o apostolo, o campeão social. Não lhe aceiteis, muito embora,
a doutrina. Acatae-lhe a generosidade, a grandeza da _ideia_, a robustez
da convicção. Que poema enorme, magestoso e bello não será aquelle!

Colligir as poesias de João de Deus que por ahi andavam dispersas,
mutiladas e perdidas, foi de certo um grande serviço ás patrias letras.

Prestou-o o snr. José Antonio Garcia Blanco.

Poeta mais original, mais rico, mais verdadeiro do que aquelle, não
conheço na litteratura portugueza, e tanto como elle, ha de ser difficil
de encontrar entre nós, na litteratura d'hoje. Um certo _mysticismo_ mal
definido que recendem as suas poesias, é menos producto da tradicção que
originalidade genial. João de Deus é um homem do Meio-dia com o vago
ancear d'um poeta do norte. Opprime-o o _insufficiente_ como ao Faust.
Se lhe désse para ser philosopho, onde iria parar?...

Como poeta tem alguma cousa de Ossian com alguma cousa de Goëthe...[8]

                                                       *Luciano Cordeiro.*

    [2] «Goethe et Schiller» por E. Rambert. (Revue Suisse--fev. 1869).

    [3] Quando digo «sensações sensoriaes», fallo das sensações
    «externas e internas», como vulgarmente se classificam, e não excluo
    as que se dão sem realidade objectiva que as provoque, e que
    constituem o estado pathologico da «allucinação», estado a que
    porventura se poderia reduzir algumas vezes, creio, o «mens
    divinior» dos antigos. Esta ultima observação é minha, as anteriores
    são de Luys (Recherches sur le système nerveux, etc., etc., cit. par
    Littré) e E. Littré, De la méthode en psychologie (Phil.
    posit.--Revue--1.^er vol.)

    [4] Seguia-se a seguinte quadra, que não apparece na collecção e que
    eu acho não só egual em bellesa ás citadas, mas superior a algumas:

        Quando _o annel_ da bôcca lusidia,
        Vermelha _como a rosa cheia d'agua_
        Em beijos á saudade abrindo a magua
        _Mil rosas_ pelas faces me esparzia;

    [5] Variante:

        Oh lagrima das lagrimas que choro!

    [6] Superiorité des artes modernes.

    [7] Cours fam. de litt.

    [8] Revolução de Setembro (1869) n.^os 8012, 8015 e 8023.


      *      *      *      *      *




FLORES DO CAMPO

DE

João de Deus


É indispensavel crêr na poesia como se crê no Evangelho, como se
acredita em Deus. No perpassar d'esta via dolorosa, cortada a todo o
passo de agrestes sinuosidades, a poesia luzindo de quando em quando ao
viageiro extenuado como um iris de bonança, significa a mais completa
redempção da materia pelo espirito.

Aguia sobranceira que elevando-se até perder de vista o lodo em que se
immergem tantos e tantos seres, vae roçar com a fimbria da aza a crista
das nuvens, confundindo os seus arrulhos mysteriosos com as melodias dos
seraphins!

Creou Deus a poesia para que a primavera com os seus canticos e
perfumes, com a sua opulenta vegetação, encontrasse quem a
comprehendesse, quem a cantasse: creou Deus a poesia para escarmento ao
vicio, distanceando-nos do finito que é o começo do scepticismo, para o
infinito que é Deus! Surgiu a poesia para que nas trevas de um mundo que
ri de tudo como Democrito, que tudo amesquinha, brilhasse uma luz que só
de vêl-a a alma se purificasse e o espirito adejasse para o ideal.

Não chamem á poesia trivialidade.

Estudem os seculos; contemplem as nações e digam se a poesia teve ou não
extraordinaria influencia nos grandes acontecimentos sociaes.

Quem, senão Roger de l'Isle, ergueu palpitante toda a França com umas
quantas estrophes, a _Marseillaise_?

Não foram os versos de Shakespeare, de Milton, de Pope, que
poderosamente concorreram a immortalisar a Inglaterra?

Portugal não deve a fama da sua gloria aos _Lusiadas_ de Camões?

Consintam os homens de algarismos, os materialistas que antepõem a carne
ao espirito, que fazem d'ella o seu credo, que os poetas, os sonhadores
de chimeras deixem devanear a imaginação por esses horisontes de anil;
deixem que reclinados á proa do baixel da vida namorem o azul das aguas
depois de terem contemplado o dos céos.

Ai da humanidade, se o poeta deixar pender a fronte desalentada ao
partirem-se-lhe as cordas da lyra! a prosa invadirá o sanctuario dos
mais nobres estimulos, e o sceptico exultará ao soltar a sua risada
infernal como a dos condemnados do Dante.

Não sei quantas vezes temos lido as _Flores do Campo_, exhaurindo sempre
novos e exquisitos perfumes.

Tem isso a originalidade, que é o distinctivo d'este poeta. Costumamos
dizer com referencia a qualquer notavel escriptor nosso: aquelle talento
tem a suavidade de Lamartine, o sentimento de A. de Musset, o mysticismo
de Chateaubriand, a ironia de Byron, a energia apaixonada de Victor
Hugo.

Porque não havemos de dizer que João de Deus tem o cunho original da
poesia portugueza na sua mais genuina expressão?! Quem se compraz em
parodiar constantemente os usos e idiomas dos de fóra, deve uma vez por
outra, ufanar-se do que tem de seu original e portuguez de lei, como o é
João de Deus em todos os seus escriptos.

Atravez dos versos do mimoso poeta contemplam-se as noites estrelladas
de Portugal, o Tejo com as risonhas margens, Coimbra com a sua _Fonte
das Lagrimas_, o clima emfim e a vegetação esplendida d'este pequeno
eden.

Vê-se que este poeta é portuguez de feição, e comprehende-se quanto na
patria de Camões e Garrett a poesia se manifesta espontanea e esplendida
na fórma e ideia!

Começa o livro com a poesia _Camões e Byron_, e termina com o _Cantico
dos Canticos_: abre pois com chave de prata para fechar com chave de
ouro.

Ha estrophes de uma suavidade tão nimiamente infantil, tão peculiarmente
despretenciosa, que a ninguem senão a João de Deus poderiam
attribuir-se, quando mesmo o seu nome não estivesse engrinaldando
luxuosamente o adito d'este livro.

Citaremos, entre muitas, estas:

    Maria! vêr-te á porta a fazer meia
    Olhando para mim de vez em quando,
    É o que n'esta vida me recreia.
    ..................................

    Esses olhos azues... que olhar! Receio
    E desejo estar sempre a contemplal-o;
    Não ha mais doce e mais custoso enleio.

    ..................................

    Bem poderas, Maria andar tapada
    Só com o teu cabello, á similhança
    Do sol em nuvem de manhã doirada.

    ...................................

    A bôca é tão vermelha que, em te rindo,
    Lembra-me uma romã aberta ao meio,
    Quando já de madura está caindo.

Na poesia _Innocencia_ revela o poeta, a par de uma finura de sentimento
e extrema sensibilidade, um preito á virtude, que toda a mulher que a
lêr deve necessariamente sentir-se attrahida por um sentimento de
gratidão para quem a escreveu:

    Casta innocencia, de Deus filha e bella
    Entre as mais bellas! virginal aroma!
    Rosa ineffavel, que se á luz assoma,
    Haste e raiz apodreceu com ella!

Percebemos tambem que João de Deus pertence ao numero dos crentes, ainda
tão mal limitado; prova-o exuberantemente as suas poesias _Luz da Fé_,
_Fragmento_, e varias outras.

    Deus era inda meu pae. E em quanto pude
    Li o seu nome em tudo quanto existe;
    No campo em flor; na praia arida e triste,
    No céo, no mar, na terra e... na virtude!

Como o poeta adora a poesia e o quanto tem d'ella feito o seu credo,
dil-o eloquentemente esta quadra:

    Oh! poesia, poesia altissima
    Como o fecho do impyreo! eu me ajoelho
    E beijo a tua base, harpa celeste!
    O coração--a corda que nos deste.

Na alma d'este homem que tem na fronte uma estrella de fogo e talvez um
martyrio no coração, suspiram ternuras indiziveis que a sua lyra traduz
em canticos suavissimos:

    É do sangue e das mães que eu fallo, e certo,
    Que ha na vida mais sancto? O sangue é vida;
    E as mães fontes de vida: eu nunca esperto
    Esta lampada d'alma, suspendida
    Na abobada eterna e que tão perto
    Parece ter a origem..............
    ....................senão quando
    Vejo essa cara imagem suspirando.

Querem dizer, e talvez com razão, que João de Deus abusa da rima
deixando-a por vezes defeituosa.

A meu vêr esta pecha está na razão das manchas que o sol contém, mas que
os nossos olhos não descobrem sem o auxilio do telescopio, o que não
obsta a que o sol seja o astro do dia.

«Marcar balisas á poesia, é impossivel, diz um illustre poeta e critico,
a poesia é livre como o pensamento, e grande como a immensidade.»

Eis-ahi está o segredo da culpa, e _feliz culpa_!

Se João de Deus pertencesse a um certo numero de poetas que esgravatam
na areia e folheiam livros alheios primeiro que possam rabiscar algumas
insulsas linhas, talvez a rima lhe saísse menos incorrecta segundo a
arte, mas acanhada e rachitica segundo o pensamento.

A verdadeira poesia, como diz C. de Figueiredo, surge livre como a
natureza; irrompe, inunda de luz de fogo, sem muitas vezes poder
sujeitar-se aos acanhados moldes da arte.

Apparece-nos o poeta, namorado como Bernardim Ribeiro, n'estas
dulcissimas estrophes:

    Não ha existencia alguma
    Que não tenha amor, nenhuma;
    Porque o amor, é, em summa,
    Essencia de todo o ser.
    Ha sempre quem nos attraia,
    Mil vezes que a onda caia,
    Ha uma rocha, uma praia
    Aonde a onda vae ter.

Seria um nunca acabar se fossemos a exarar aqui todas as preciosissimas
joias d'esta corôa opulenta que veio enriquecer a nossa litteratura.

Apartamo-nos do livro com extrema saudade, recommendando á leitora, que
por acaso ainda o não possue, a prompta acquisiçao d'elle para
collocal-o ao lado das rosas, jasmins e violetas com que, durante a
formosa estação que se avisinha, ha de perfumar o seu _boudoir_.[9]

                                                 *D. Guiomar D. Torrezão.*

    [9] Voz Feminina (1869) n.º 60.

      *      *      *      *      *




ANNO LITTERARIO DE 1869


CARTAS A J. SIMÕES DIAS


Á hora dos phantasmas, á meia noite, escreveste o _Anno litterario de
1868_. A noite é sombria e triste; e por isso as tuas reflexões
humoristicas não occultam de todo a descrença, a tristeza e o desanimo,
com que espalhaste a vista pelas coisas litterarias da nossa terra.

Fundado ou infundado, não chamarei eu esse desalento, porque, de onde em
onde, nos encontrariamos, se eu fosse ajustar o padrão da tua critica ao
juizo que eu fizesse de producções da arte.

Não posso, comtudo, deixar de querer muito a essa franqueza, que é o teu
caracter, e a tua regra em materias de critica. E tanto mais lhe quero,
quanto eu reconheço que a franqueza, hoje em dia, é fazenda de
contrabando nas nossas alfandegas litterarias.

Quando o anno de 1868 pertencia já ao passado, scismavas á meia noite
sobre o mau rumo que te pareceu levarem as nossas letras. Eu sou um
pouco mais crente, e menos atrabiliario: á entrada de 1869, estendo os
olhos ao futuro, e espero e creio muito, porque já não são de pouca
monta as primicias que nos offerece o anno litterario de 1869. Fallo das
_Flores do Campo_ de João de Deus.

Com a analyse d'este livro, abro uma serie de apreciações, em que te
fallarei das obras poeticas que n'este anno, e em Portugal, se derem á
estampa. O meu voto, em materia alguma tem força, nem eu procuro
dar-lh'a, para se insinuar no animo do publico: é um voto individual, em
que apenas acharás o merito da sinceridade e da franqueza.

Direi de caminho que não sigo a trilha que me deixou o teu _Anno
litterario_. Não deslembrarei os preceitos da critica analytica, para
não apreciar, em synthese, obras que exigem demorado exame das suas
partes.

Tambem não escolho, para te escrever, a hora lugubre dos phantasmas.
Começo a escrever-te ás horas d'uma esplendida manhã, espalhando os
olhos por aquellas duas margens do nosso Mondego: a relva rasteira que
as veste, e que me falla de vagas esperanças, ha de desentranhar-se em
flores e fructos. Deixa-me crêr muito no dia de ámanhã.

E porque não virão as flôres da poesia derramar perfumes sob este céo de
Portugal, n'este _jardim da Europa_, onde já suspirou melodias
Bernardim, Camões, Garrett, Castilho! Não morre a poesia portugueza: a
estatua da deusa ainda não tremeu na peanha; e quando os iconoclastas do
bello quizessem contra ella erguer braços profanos, a quantos apostolos
da arte não teriam de suffocar a voz!

Bem-vindos sejam estes sonhadores de chimeras, estes utopistas cheios de
alma e coração, luctando de contínuo com o mundo real, e de contínuo
erguendo-nos a mundos imaginarios, mas bellos d'uma belleza que não é da
terra!

Fallo-te da poesia individual, e eu sei bem que lhe não queres tanto
como eu. Desejas que a poesia se concentre no mundo estreito dos fins
sociaes; entendes que a poesia deve de limitar-se a mostrar o caminho á
humanidade que marcha, ou á exaltação dos dogmas do seculo. Por certo
que se não desvirtua a poesia, seguindo por taes veredas; mas o genio
não tem peias nem limites: veste de luz o lirio dos valles; alumia a
estrada ao caminheiro da vida; doira as arestas do serro escalvado;
enche a noite de luz; de fulgores inunda o espirito, e não sei por
quantos mundos nos leva a alma absorta!

Marcar balisas á poesia, é impossivel, porque a poesia é livre como o
pensamento.

Deixa pois cantar os poetas que levantaram a vista do pó da terra, onde
tudo é limitado como a materia, e vil como o gusano das ossadas. Deixa
que eu te falle de um poeta, cujo espirito é aguia que raro avisinha a
ponta das azas aos marneis da sociedade. A gente pasma da altura a que
se eleva aquelle espirito, e acontece ás vezes que a nossa vista não
póde acompanhar tão levantados vôos: perde-se elle no vacuo, e, quando
divaga em mares de luz, ficamos nós em trevas, sem vêr a direcção que
elle toma...

João de Deus não canta para a sociedade, canta para si. Quer discorra
por vergeis de poesia singela e perfumada, quer se eleve a alturas
desmedidas, não se importa de que lhe não oiçam nem entendam o canto
sempre harmonioso. É talvez por isso que elle não publicou, nem
publicaria as _Flores do Campo_.

Ao amigo que lh'as estampou, muito devemos nós todos os que presamos as
nossas boas letras.

Agora se me offerece caso para cogitações profundas: as _Flores do
Campo_ saíram a lume ha quasi um mez, e, até á data em que te escrevo,
dormem os nossos criticos a bom levar, sem que uma palavra lhes haja
irrompido dos labios, sobre o merecimento d'este magnifico livro. Aqui,
ha por força caso virgem, mas... ponto em bôcca.

E pois que os criticos não querem, ou não ousam, pronunciar o seu
_veredictum_, vou eu mostrar-te o valor em que tenho as _Flores do
Campo_, por que me digas ao depois se não são ellas, para a nossa
litteratura, prenuncios d'um outono avergado de fructos.

Quando o visconde de Chateaubriand trabalhava por agremiar em torno da
cruz as multidões, que ainda sentiam nos ouvidos a voz tentadora de
Robespierre e Mirabeau, surgia na Inglaterra um homem extraordinario,
personificação pasmosa do genio e do scepticismo--lord Byron.

Ninguem como o cantor do _Childe Harold_, pôde jámais aliar uma alma de
poeta ao scepticismo, á duvida, á frieza, que ressumbram de cada verso
do _Don Juan_:

    For me, I know nought; nothing I deny,
    Amit, reject, contemn; and what knew you,
    Except perhaps that you were born to die?
    And both may after all turn out in true.

Mas... na mente de Byron reflectia-se uma das tendencias mais
caracteristicas da sociedade contemporanea; o scepticismo apresentou-se
revestido com a aureóla do genio, ergueu-se como chamma incendiaria, e
lavrou pela litteratura do seculo.

Que restava aos adeptos da poesia? O maior numero, como os companheiros
de Ulysses, deixou-se arrastar pelos cantos da sereia, e, se não abordou
á ilha encantada, d'onde lhe acenava a gloria, mediu a profundeza do
abysmo que a tentação lhe abriu aos pés...; outros, refugiram á
attração, e velejaram alegres por onde os não batessem os pampeiros da
descrença e do scepticismo.

A poesia que abre o livro de João de Deus é o emblema dos dous rumos por
onde tomam os argonautas da arte, e estrema o scepticismo e crença,
_Camões_ e _Byron_. Não sei se esta composição vale muito aos olhos dos
mestres; para mim, é das mais somenos de João de Deus, e, se não fôra
collocada alli para denunciar, talvez, as crenças litterarias do auctor,
não a quizera vêr á entrada d'este livro. A arte exige para um edificio
primoroso um portico lavrado a primor.

Na composição alludida, se a ideia é grande e original, a fórma que a
reveste não, não é perfeita; sem fórma, não concebo arte, e sem arte não
se traduz o sentimento do bello.

Não vás porém julgar que estou dando lições de poetica a um poeta como
João de Deus. Mais do que ninguem, conhece elle por ventura os defeitos
do seu livro, e, se os poupou, ao limar os seus versos, é que não teve
em tanta conta, como geralmente se tem, certas exigencias da arte.

    Que vês?--Sóes, de tal sorte
    Que os crêra tochas _pallidas_,
    Quando as guedelhas, _madidas_
    De sangue, arrasta a morte.

    ...........................

    --Falla.--Deus! que harmonia!
    Aqui a alma _exalta-se_;
    A alma aqui _dilata-se_...
    _Camões!_--É a poesia.

Nem a critica imparcial tanto exige, nem eu tenho logar bastante para
transcrever aqui todas as estrophes, em que as rimas se me deparam
defeituosas e erradas. Cito-te de passagem _queime_ e _geme_, _deixe_ e
_feche_, _confesso_ e _immenso_, _cuides_ e _virtudes_, _outro_ e
_encontro_, _géra_ e _inteira_, _teimo_ e _supremo_, _prega_ e _negra_,
_avaro_ e _ara_, _sêde_ e _hei-de_, _põe_ e _foi_, _vê_ e _adorei_,
_inteiro_ e _quero_, etc.

E comtudo João de Deus parece brincar com as maiores difficuldades da
rima. Para não fallar na poesia _Boas Noites_, basta apontar-te aquelle
trecho da poesia _O Musgo_:

    Um dia, não sei que tinha...
    Uma tristeza tamanha!
    E lembra-me ir á montanha
    Que temos aqui visinha,
    Onde em tempo me entretinha
    Horas e horas sósinha,
    Quando ainda não se extranha
    Que n'uma teia de aranha
    Se prenda uma innocentinha,
    Ou atrás d'uma avesinha
    Se cance a vêr se a apanha.

Em metricação tambem as _Flores do Campo_ nos offerecem provas de que
João de Deus não é, n'este ponto, nimiamente escrupuloso. Assim ficou
errado este decassyllabo:

    Chamando-os com enternecimento,

e aquelle septissylabo que vae sublinhado:

    Que é a torre exactamente
    _De David n'esses ares,_

para não citar passagens como estas:

    _Adeus tranças côr de ouro,_
    Adeus peito côr de neve.

    _Tornaram-se-me em estrellas_
    _As lagrimas de dôr._

Versos ha tambem nas _Flores do Campo_ defeituosos pela disposição dos
accentos predominantes. Bastam tres exemplos em versos decassyllabos:

    Ha puros sonhos de imaginação.

    E eu digo, digo á luz scismadora.

    Expôz aos coices... leão moribundo.

Mas um verso completamente errado, e que por certo não sahiu assim da
penna de João de Deus, é aquelle

    Que fez tremer as abobadas do inferno.

Não é necessario ser auctor das _Flores do Campo_, para condemnar um
verso tal. Descuido do impressor, e falta de cuidado na revisão,
occasionaram aquelle erro, a que de prompto se obviaria com a suppressão
de dous _ss_ inuteis.

O que para alguém não será defeito, mas que para muitos torna
inintelligiveis algumas passagens, do livro, é, por vezes o abstruso da
ideia, velada por sombras impenetraveis. Dá-me tu, se podes, a chave
d'este enigma:

    Oh! ha tres vistas com que as coisas vêmos;
    Ha tres rasões que as coisas determinam;
    Uma a dos olhos; outra a que escondemos
    N'isso ante que os álamos se inclinam;
    Outra a que dentro no coração temos,
    Que os limites do espaço só terminam:
    Coube a primeira em sorte á borboleta;
    A outra ao homem; a terceira ao poeta.

E quando João de Deus, á vista d'um retrato, exclama:

    És tu! Amo-te e muito! O que fluctua
    Na fornalha que o sopro eterno acende,
    Não beija a mão do anjo que o suspende
    Com mais amor que eu beijo a sombra tua!»

Quem é que fluctua na fornalha acesa pelo sôpro eterno? Será o sol?

Especialmente n'aquelle fragmento que principia na pagina 130, mais
alguns pontos se me deparam, para cuja interpretação me não sinto com
forças. Não te faço mais citações, a este proposito, porque bem póde ser
que toda a gente penetre o que para mim é escuro. Demais d'isto,
parece-me que o poeta nem sempre tem obrigação restricta de moldar os
vôos da sua imaginação pela myopia dos que só podem curvar-se diante das
nuvens que velam a sarça ardente...

Agora, vaes talvez esquecer as manchas que divisastes n'esta joia
litteraria, para festejares comigo quadros esplendidos de poesia
originalissima, rica de sentimento, de graça e de harmonia.

Originalidades litterarias, poucos ha, já agora, que n'ellas creiam.
Escorre de vez em quando, por ahi uma sanie de novidade tão asquerosa
pelas folhas volantes da nossa litteratura de hoje, que os apreciadores
de pituitaria melindrosa, não ha quem os desatrelle da sentença de que
_tudo o que é novo é mau, e que tudo o que é bom é velho_.

_Nihil sub sole novum!_--cantava o Gessner biblico, asseguravam os
juizes de Galileu, e rouqueja Boileau com os demais amphyctiões da
litteratura. Respeitemos o talento; mas aos que duvidam da grandeza do
genio, e pedem ao passado a chave do futuro, atiremos-lhe á face com a
resposta de Galileu:--_E pur si muove._--

Admittida a originalidade, moldada pelo bom gosto, devemos saudal-a em
João de Deus, o poeta mais original que eu conheço entre os nossos
homens de letras. Estudo João de Deus, dês que leio versos, e ainda não
pude encontrar o segredo d'aquella harmonia tão sua, d'aquella elegancia
tão despretenciosa, d'aquelle sentimento que tanto nos captiva a alma,
sem sabermos como.

Ou eu me engano muito, ou da poesia de João de Deus me vêm uns aromas
que não desdizem d'aquella fragrancia que o esposo dos _Canticos_
aspirava nos jardins da Sulamite biblica; d'aquella gravidade scismadora
que resaltava das cordas do psalterio de David; d'aquelle adejar sublime
e vago da aguia de Páthmos. Tranemos agora o mar dos seculos, ponhamos
ao lado das _Flores do Campo_ as fantazias de Schiller a Laura, e verás
que muitos arrojos da imaginação do bardo portuguez não desmerecem a
companhia dos do bardo do norte.

Mas, sobretudo, o que mais me enfeitiça nas _Flores do Campo_ é aquelle
mimo e suavidade que matizam estrophes como estas:

    Ah! quando no seu collo reclinado
    --Collo mais puro e candido que arminho,--
    Como abelha na flôr do rosmaninho
    Osculava seu labio perfumado;

    Quando á luz dos seus olhos... (que era vêl-os,
    E enfeitiçar-se a alma em graça tanta!)
    Lia na sua bôca a Biblia Santa
    Escripta em letra côr dos seus cabellos;

    Quando a sua mãosinha pondo um dedo
    Em seus labios de rosa pouco aberta,
    Como timida pomba sempre álerta,
    Me impunha ora silencio, ora segredo;

    .....................................

    Quando em balsamo d'alma piedosa
    Ungia as mãos da supplice indigencia,
    Como a nuvem nas mãos da Providencia
    Um lagrima estila em flôr sequiosa;

    Quando a cruz do collar do seu pescoço
    Estendendo-me os braços, como estende
    O symbolo d'amor que as almas prende,
    Me dizia... o que ás mais dizer não ouço;

    ........................................

    Tinha o céo da minha alma as sete côres,
    Valia-me este mundo um paraizo,
    Distillava-se a alma em dôce riso,
    Debaixo dos meus pés nasciam flôres.

É assim que João de Deus se recorda da visão fugitiva que lhe doirou os
sonhos de poeta e moço. Mais adiante, parece esquecer o lucto da
saudade, mas não perde a doçura da harmonia:

    Como os teus pés são lindos! como é doce
          A curva do teu peito!
    Oh! se o meu coração fosse o teu leito,
          E o teu amado eu fosse!

    Que preciosas perolas descobre
          Teu meigo, humilde labio!
    E virgem! como Deus foi justo e sabio
          Em te deixar tão pobre!

    ....................................
          ........................
    Tu não tens mais do que uma pobre saia,
          E essa, curtinha e leve.

    Onde o corpo te alteia, a saia avulta;
          Onde te abaixa, desce...
    És como a rosa! A rosa nasce e cresce,
          Não para estar occulta.

    O que te falta, pois? os teus desejos
          Quaes são? de que precisas?
    Ah! não ser eu o marmore que pisas...
          Calçava-te de beijos!

Ao terminar a transcripção d'este mimosissimo trecho, sinto não poder
attribuir a João de Deus a chave que o fecha. O aprimorado e suave
oratoriano Manoel Bernardes já tinha dito na sua excellente _Luz e
Calor_, fallando a Jesus menino:

    «Menino da minha alma, meu eterno nascido de ainda agora, meu
    gracioso molhinho de amores perfeytos, minhas bellezas encantadoras
    do coração humano: faze-me Serafim, para que te ame muito: dá-me
    limpeza grande em meus labios _para calçar teus pésinhos de mil
    osculos santos_: deyxa cahir das conchinhas de teus olhos hua
    lagryma sobre meu peyto, etc.» (Pag, 556, ediç. 1724.)

Mas que importa isso? Prouvera a Deus que os plagiatos, de que a
litteratura anda eivada, se pautassem por este!

Vivacidade de expressão, galanteria e graça, podes vêr d'isso um modelo
no madrigal, epigramma, ou como quizeres chamar-lhe, feito _A uns olhos
azues_:

    Cáe a folha da rosa pudibunda,
    Cáe a rosa da face virginal,
    Cáe das nuvens a aguia moribunda,
    Cáe o sol na montanha occidental.

    .................................

    Cáe do céo a centelha incendiaria,
    A nuvem cáe, se um sopro Deus lhe dá,
    Cáe ante o dia a noite solitaria
    Como o falso Dagon ante Jehovah.

    Cáe tudo, flôr! cáe tudo; eu só não caio:
    Mais do que um rei, que o sol, egual a Deus,
    Cahir, mulher! só posso á luz d'um raio
    Se elle cahir do céo dos olhos teus!

De vez em quando, o poeta apparece-nos pensador e philosopho; mas, ainda
assim, a razão não vence o sentimento:

    Irmãs da Caridade! A Caridade
    Tem só duas irmãs--a Fé e a Esperança:
    Não traja as côres só d'uma irmandade,
    Traja as côres do Arco da Alliança;
    Leva sósinha o pão da piedade;
    Tira da roda essa infeliz criança...

    ....................................

Mais longe iria eu, se me propozesse trancrever tudo o que nas _Flores
do Campo_ se apresenta digno dos mais levantados encomios. Assim, por
não alongar em demasia a presente carta, recommendo-te a leitura da
_Heresta_, da _Rachel_, do _Ultimo adeus_, da _Marina_, do _Remoinho_,
do _Leito nupcial_, da _Innocencia_, da _Joven captiva_, e, muito
especialmente, do _Cantico dos canticos de Salomão_.

Lamennais e Renan haviam traduzido esplendidamente o _Cantico dos
canticos_; João de Deus inspirou-se da pastoral de Sulem, e fez um poema
quasi seu: seu pela fórma, pelo colorido, e pela disposição das scenas.

O _Cantico dos canticos_ pertence, como sabes, ao numero dos livros
sagrados, e é ponto inconcusso, entre os padres da Egreja, que os
desposorios de que falla Salomão exprimem a união mystica do Verbo
incarnado com a natureza humana, com a Egreja e com as almas justas.

Os presidentes da synagoga judaica prohibiam a leitura d'este livro a
quem não tivesse mais de trinta annos; e, ainda em tempos do piedoso
João Gerson, nem os doutores o liam antes d'essa edade. E de feito nem
Theocrito nem Florian deram jámais aos seus idylios aquelle perfume
voluptuoso que, por entre flôres de poesia immorredoira, livremente se
respira no idylio de Salomão.

Theodoro Mopsueste teve o ousio de ligar a esse idylio um sentido
exterior, e não mystico, interpretando-o litteralmente, mas foi
condemnado pelo segundo concilio de Constantinopla. Hoje não ha temor de
que a Egreja condemne João de Deus, e todos os que separam da poesia o
dogma, talvez porque a Egreja, boa mãe, não quer vêr o mundo coalhado de
herejes.

E que importam ao leitor as convicções de João de Deus? A alma piedosa
que se edificava na contemplação dos amores da Sulamite, pela versão de
S. Jeronymo, que perde ella contemplando-os na lingua de Camões? «Para
um coração puro, tudo é puro.»--É palavra de Deus, com que o poeta se
auctorisa para trazer a lume a interpretação litteral do _Cantico dos
canticos_.

Já agora, apezar da extensão d'esta carta, deixa-me ainda expôr á tua
vista algumas das paizagens mais seductoras d'este paraizo de amor, onde
a volupia oriental se escoa semi-nua por ondulantes pradarias em flôr.
Ouve:

    A SALUMENSE.

    Sou trigueira, mas formosa,
    Moças de Jerusalem!
    Senão, vêde o pavilhão
    Que arma em campo Salomão,
    Se ha coisa mais preciosa,
    E por fóra a cór que tem;
    Vêde as barracas dos moiros,
    Por dentro tantos thesoiros,
    Por fóra, negras tambem.

    Não vos dê pois isso pena
    Ter assim a côr morena:
    Minha mãe mandou-me pôr,
    Por culpa de meus irmãos,
    De guarda á vinha; o calor
    Queimou-me o rosto e as mãos
    E eu, a vinha, é escusado
    Dizer-vos que nem eu tinha
    Senão agora o cuidado
    De estar a guardar a vinha.
    Oh! para que banda vás
    Com o gado, meus amores!
    E pela folga onde estás?
    Bem vês os outros pastores,
    E a gente não adivinha.
    Eu não hei de andar atrás
    D'esses rebanhos sósinha.

    .........................


    SALOMÃO.

    Que enlevo! que formosura!
    A pomba não tem de certo
    No olhar tanta doçura:
    E fóra o que anda encoberto.

    O cabello, em quantidade
    E tamanho, é singular;
    E não me lembra senão
    Das cabras de Galaad
    Ques lhes roja pelo chão
    Em ellas indo a andar.

    Os dentes, em tu abrindo
    A tua boca, que lindo!
    Nem um rebanho de ovelhas
    Todas brancas e parelhas
    Quando em sendo tosquiadas
    Vêem sahindo do banho
    D'uma em uma, enfileiradas,
    E atrás d'ellas cada uma
    Seus dois gemeos d'um tamanho,
    Sem ser maninha nenhuma.

    Pois a boca é comparada
    A uma fita encarnada.
    A voz, ouvil-a é um gosto.
    Parte a romã pelo meio
    Verás as rosas do rosto;
    E fóra no que eu receio
    Fallar, que me não é dado.

    O pescoço, pensa a gente,
    Em o vendo de collares,
    Que é a torre exactamente
    De David n'esses ares,
    De baluartes, e toda,
    Lá cima, escudos á roda.

    Os peitos, é um casal
    De corcinhas, que o seu pasto
    São açucenas do valle:
    Nada mais timido e casto.
    E deitam um cheiro á gomma
    Da myrrha mais do incenso,
    A ponto que ás vezes penso
    Que elles são duas collinas
    Por onde aquellas resinas
    Espalham aquelle aroma.

Se a esta hora me não accusasses de abuso de paciencia, ainda te repetia
toda aquella mimosa _carta_ que principia:

    Maria! vêr-te á porta a fazer meia,
    Olhando para mim de vez em quando,
    É o que n'esta vida me recreia.

    Acordo até de noite, suspirando
    Por que rompa a manhã, e tenha o gosto
    De te vêr já tão cedo trabalhando.

    Desde pela manhã até sol posto,
    Que não tens de descanço um só momento;
    Por isso tens tão bella côr do rosto!

    E eu pallido, Maria! o pensamento
    Não é trabalho que nos dê saude,
    --Esta imaginação é um tormento!...[10]

Mas... basta. O livro de João de Deus tem defeitos: escaceia a revezes a
ligação dos pensamentos, a clareza das ideias, a exactidão do metro, a
perfeição da rima, e não metteria uma lança em Africa o linguista que
nas _Flores do Campo_ descortinasse, uma vez por outra, impureza e
incorrecções de linguagem. Se, porém, eu mirasse a comprovar, n'esta
rapida e singela revista, com os versos de João de Deus a sympathia e a
admiração que elles me devem, não seria este o espaço que abrangesse
tudo o que alli me pareceu filho d'uma inspiração verdadeira e original.
Demais, o poeta não lucraria com estas transcripções a esmo, sobre não
poderes fazer do livro uma ideia exacta, á mingua de apreciador
conspicuo.

Alexandre Herculano diz bem: a critica em Portugal é impossivel. Mas se
nós todos cruzarmos os braços diante dos Ananias da litteratura que
introduzem a mercancia do encomio, o servilismo e a chocarrice no
santuario das letras, quem expulsará ámanhã os vendilhões, do templo? Já
que me não ouvem, prega tu a estas multidões que não sabem o que amam,
nem o que detestam; e praza a Deus que a tua voz não seja a voz do que
bradava no deserto.


Post-scriptum

Bem avisado andei eu, quando, a proposito dos versos obscuros de João de
Deus, tive a franqueza de conceder que toda a gente penetrasse o que
para mim era obscuro. Os versos nublosos que lá citei, eram, pelo que me
dizem, claros como agua. Um amigo nosso, optimo charadista ao que
parece, pôz-me tudo em pratos limpos; e, pelos modos, o nosso OEdipo tem
artes para desdar o nó aos mais envencilhados enigmas da mais implacavel
Sphynge. Ora eu, que respeito o mysterio mas desadoro o enigma, e a quem
nunca charadas desvelaram as noites, não pasmei de vêr luz onde se me
antolhavam trevas. O discipulo amado de Jesus não jubilaria tanto, se
visse quebrar os sete sêllos do livro que elle viu na visão do
Apocalypse, como eu jubilei quando, a par de outras revelações, soube
que o individuo que _fluctua na fornalha accêsa pelo sopro eterno_ é o
anjo que as lendas piedosas figuram no purgatorio, dando a mão aos que
lá se purgam das culpas temporaes para subirem ás regiões do premio
eterno.

Pelo que vejo, a decifração não era para fazer suar o cabello; mas
confesso-te que, se cem braços eu tivera, como Briareu, para revolver o
embotado escalpello da minha critica, cem braços me desfalleceriam
diante dos cem olhos d'estes Argos que espreitam maliciosos o rumo
indeciso dos mineiros obscuros da justiça e da verdade...

Seguiu-se-me noite de insomnia. Visões estranhas vieram povoar-me o
leito. Sobre o meu travesseiro dormiam comigo as magestosas _Torrentes_
de Theophilo Braga, livro de que, em seguida ás _Flores do Campo_, eu
contava fallar-te. Por cima de mim, por cima do livro, emtorno do meu
leito, adejavam uns demoniosinhos, microscopicos como os lilliputianos
de Gulliver: uns expediam risadinhas agudas, como de feiticeiras em
noites de S. João; outros folheavam o livro e dobravam os joelhos por
baixo das estrophes de mais levantada inspiração; estes murmuravam
monotono kyrie em volta do livro, arrancando-m'o da mão, como da mão
d'um profano se arranca a hostia sacrosanta; aquelles desfaziam o livro
em tiras, entreteciam com ellas uma corôa, e collocavam-n'a na cabeça.
Se me voltava para a direita, os da esquerda escouceavam-me com um
arreganho diabolico; se me voltava para a esquerda, os da direita
afiavam a pequenina dentadura, e arranhavam-me as pantorrilhas. O
equilibrio era impossivel: esmagava-me um pesadelo! Acordei.

Sobre a minha meza de trabalho estava um livro, notavel pela
despretenção e suavidade do estylo, e pelo primor da versificação, sobre
ser escripto em portuguez sem mistura; mas apenas no frontispicio li o
nome de Antonio Feliciano de Castilho, passou-me pela mente a visão das
_Torrentes_, e os lilliputianos da noite acercaram-se do _Medico á
força_, reproduzindo os sarcasmos ou as ovações, os afagos ou as
mordeduras, consoante as tendencias de cada qual.

Estava entre a bigorna e o martello, entre a cruz e a caldeirinha. Quem
me salvaria de posição tão melindrosa? Um esforço supremo: fechar as
_Torrentes_ e o _Medico á força_, e não aventurar juizo sobre estes
notaveis livros.

Suspendo, pois, a revista do anno litterario de 1869, em quanto me vier
á ideia aquella visão aterradora. Sinto-me com algumas forças para
luctar com os lilliputianos da visão, mas não me sinto com paciencia
para lhes soffrer os motejos e os tripudios, as risadinhas e as
beliscaduras. Quero dormir a somno solto, e levar estas noites de
Coimbra a sonhar sem pesadêlos, em paz com anjos e demonios, e até com
os individuos das mais infimas classes animaes.

Não quero luctar como Chatterton. Chatterton luctou, mas teve depois
Vigny que o cingiu de louros, immortalisando-o. A troco da
immortalidade, ainda eu me atiraria á lucta: ve lá se queres ser o meu
Alfred de Vigny.[11]

                                                  *Candido de Figueiredo.*

    [10] Já que ao generoso critico merece especial menção a _carta_,
    advertiremos que o primeiro verso da ultima quadra é assim:

        Nas asas da ventura atravessando.

    [11] A Folha, (1869) n.º 7, 8, 9 e 10.


Fim das criticas das "Flores do Campo."

      *      *      *      *      *




INDEX


RAMO DE FLORES

I--Sede de amor                                                    5

II--Lamento                                                       13

III--Enlevo                                                       15

IV--Sempre                                                        19

V--Espera                                                         21

VI--Adeos                                                         23

VII--Melancholia                                                  25

VIII--Sympathia                                                   29

IX--11 de Maio                                                    31

X--Attracção                                                      35

XI--Desânimo                                                      37

XII--N'um Album                                                   41

XIII--O seu nome                                                  43

XIV--Saudade                                                      51

XV--* * *                                                         57


Criticas das Flores do Campo

Flores do Campo, por Alexandre da Conceição                       63

Livros--Revista critica-bibliographica, por Luciano Cordeiro      75

Flores do Campo, por D. Guiomar D. Torrezão                      105

Anno litterario de 1869, por Candido de Figueiredo               113


FIM DO INDEX.


      *      *      *      *      *




Á VENDA

NA

LIVRARIA INTERNACIONAL

DE

ERNESTO CHARDRON


Obras de fundo e edições:

    *Memorias* de Fr. João de S. Joseph Queiroz, bispo do Gran-Pará. Com
    uma introducção e muitas notas illustrativas, por C. C. Branco.
    1 volume.                                                          500

    *Poesias e prosas ineditas* de Fernão Rodrigues Lobo Soropita, com uma
    introducção e notas por Camillo Castello Branco. 1 volume.         500

    *Ponson du Terrail.*--Os Filhos de Judas, Tomo 1.º Um conto das mil e
    uma noites.--2.º O amor fatal. 2 volumes.                        1$000

    *Estudos de Escripturação Mercantil*, por J. M. Outeiro. Segunda
    edição consideravelmente augmentada. 1 vol.                       1000





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