The Project Gutenberg EBook of O credito agricola em Portugal, by Jaime de Magalhães Lima This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: O credito agricola em Portugal Author: Jaime de Magalhães Lima Release Date: January 23, 2008 [EBook #24412] Language: Portuguese *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O CREDITO AGRICOLA EM PORTUGAL *** Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images from BibRia) BOLETIM DA REAL ASSOCIAÇÃO Central da Agricultura Portugueza SEPARATA O credito agricola em Portugal (Conferencia realisada na Real Associação Central da Agricultura Portugueza) POR JAYME DE MAGALHÃES LIMA 1899 TYP. ESTEVÃO NUNES & FILHOS _R. d'Assumação, 18 a 24_ LISBOA BOLETIM DA REAL ASSOCIAÇÃO Central da Agricultura Portugueza SEPARATA O credito agricola em Portugal (Conferencia realisada na Real Associação Central da Agricultura Portugueza) POR JAYME DE MAGALHÃES LIMA 1899 TYP. ESTEVÃO NUNES & FILHOS _R. d'Assumação, 18 a 24_ LISBOA Separata do «Boletim da Real Associação Central da Agricultura Portugueza» O credito agricola em Portugal Conferencia realisada na séde da Associação em a noite de 19 de abril por JAYME DE MAGALHÃES LIMA MEUS SENHORES: Encontrando-me n'este logar por virtude d'um convite da Real Associação Central da Agricultura Portugueza, a minha primeira obrigação é agradecer a honra que esse convite para mim significa. Essa obrigação cumpro-a com devoção, não só pelo respeito que me merecem as pessoas que me convidaram mas ainda pela superior consideração que ha muito votei á classe a que pertencem. É minha convicção que, se ha possibilidade de consolidação e desenvolvimento nacional, nenhuma classe está destinada a ter n'essa grande obra maior e mais proveitosa influencia do que a dos agricultores e proprietarios ruraes; porque em nenhuma outra é mais intimo e constante o contacto de grandes e pequenos, a penetração das diversas condições n'um labor conjugado e solidario e, por conseguinte, em nenhuma outra deverá manifestar-se mais intensamente esta harmonia social, este equilibrio moral e economico que é a corôa de toda a grandeza politica e que é a condição fundamental da paz e da verdadeira prosperidade. Mostrou a direcção d'esta Real Associação desejos de que me occupasse do credito agricola. Até por este lado o convite me foi agradavel! O credito agricola é uma questão sempre e para todos interessante, mas é particularmente para nós, n'este momento, da maior opportunidade. Estudado ha muito pelos trabalhos dos publicistas e pelas tentativas dos legisladores, não se póde dizer ainda uma questão resolvida mas póde affirmar-se que nunca como hoje se approximou tanto d'uma solução pratica e efficaz, d'uma solução, direi mesmo, iniciada com grandes beneficios e com esperanças ainda maiores. Oxalá a minha capacidade correspondesse á magnitude do problema! Bem sei que infelizmente não corresponde e que d'elle se distancia de modo incommensuravel. Por isso não é confiado n'ella que venho aqui mas pura e unicamente na certeza de que o saber e a indulgencia dos que me ouvirem supprirá a insufficiencia dos meus conhecimentos e a estreiteza do meu pensamento. O credito agricola é, meus senhores, uma questão estudada pelos nossos publicistas. Entre os seus trabalhos, que são numerosos e de valor, avultam o que em 1888 publicou o illustre agronomo sr. João Achilles Ripamonti e as longas paginas que no seu ultimo livro, _A Terra_, o sr. Anselmo d'Andrade consagrou a este assumpto; ambos conquistaram logar privilegiado na litteratura agricola nacional, o primeiro pelos elementos que colligiu sobre as instituições do reino e o segundo pela profundeza e pela multiplicidade d'aspectos com que encara o problema. Seria offender a illustração dos que me ouvem fallar-lhes dos bancos da Allemanha, da Escocia e da Italia que fazem descontos á lavoura ou por qualquer outro modo lhe prestam serviços. São do conhecimento de todos; a sua organisação está descripta innumeras vezes e as suas vantagens teem sido tão largamente apregoadas como reconhecidas. Demais, uma outra razão me obriga a ser breve n'este ponto. É que temos uma instituição nacional que nada fica a dever em beneficios aos bancos populares estrangeiros e que, não sei bem por que capricho, é muito pouco conhecida entre nós. Refiro-me á Caixa Economica d'Aveiro. A Caixa Economica d'Aveiro foi fundada ha cerca de quarenta annos (em 1858) pelo fallecido sr. Nicolau de Bettencourt que, servindo n'aquella cidade o logar de governador civil e tendo fundado nos Açores, d'onde era natural, uma caixa inteiramente igual, quiz assignalar a sua passagem no governo do districto com uma creação cujos beneficios já por experiencia conhecia. Para isso pediu, instou e conseguiu a cooperação de todos os principaes proprietarios e capitalistas da terra que não eram muitos. Esses proprietarios reuniram-se e por escriptura publica formaram uma associação destinada a receber depositos em conta corrente com o juro de 5% ao anno, não podendo as respectivas entradas serem superiores a 30$000 réis nem inferiores a 100 réis e não podendo a somma total de cada depositante exceder a quantia de 400$000 réis. Para garantia d'estas operações os socios obrigavam-se por determinada importancia com que podiam ser obrigados a entrar, não vencendo todavia essas importancias juro algum. O fundo constituido pelos depositos e pelas entradas dos socios seria negociado em emprestimos sobre penhores d'ouro, prata, objectos de valor e facil venda e ainda sobre lettras garantidas por firmas acreditadas. A organisação era e é simples: tres directores, presidente, secretario e thesoureiro, eleitos annualmente e que são ao mesmo tempo a mesa da assembléa geral, assembléa geral que póde funccionar e deliberar validamente estando presente a quarta parte dos socios. Actualmente, como os accionistas não chegam a cincoenta, a assembléa geral funcciona com treze socios. Na Caixa Economica d'Aveiro, tudo começou por favor e emprestimo; não sei mesmo se o papel para o primeiro expediente foi um favor da repartição do governo civil e se o cofre que guardava toda a carteira commercial era o simples cuidado da pessoa que tomou isso a seu cargo. Pois essa instituição iniciada e continuada n'um regimen que em materia bancaria se póde dizer archaico, sem ter mudado de estatutos e com a sua administração patriarchal, estava em 31 de dezembro de 1898 na seguinte situação: Tinha 206:709$000 réis em 2.012 depositos, dos quaes 1.426, ou seja 70,9% não excediam a 100$000 réis. N'um movimento de réis 947:438$900 em lettras, 2.290 em 2.700 ou 84.8% não são superiores a 100$000 réis, emquanto em 4.001 penhores, representando um movimento de 124:981$420 réis, 3.071 ou 76,7% não excedem 10$000 réis. Se a isto accrescentarmos que a maior parte do movimento em lettras resulta de transacções com proprietarios e lavradores, escusamos dizer mais para mostrar o que é a Caixa Economica d'Aveiro, que beneficios presta, que classes ajuda e que significação lhe podemos attribuir como instituição servindo a agricultura. Não creio que estabelecimento algum estrangeiro mereça mais o nosso estudo e attenção do que esta singela instituição nacional. Seria agora occasião de me referir aos celleiros communs, tão bellamente estudados no livro do sr. Ripamonti. Sobre elles direi apenas que, sem embargo, prestaram serviços mas a sua hora passou; os caminhos de ferro, a intensidade da vida economica que resulta da facilidade de communicações exigem hoje qualquer cousa mais larga e mais geral do que poderiam ser esses estabelecimentos minusculos, disseminados desigualmente, sem relação entre si, sujeitos unicamente a condições locaes. Não se restauram facilmente instituições que caducaram por condições de vida nova que não podiam preencher. Não ha cousa mais captivante que uma cidade medieval e todavia não nos seria possivel crear um só organismo social d'esse typo. E assim em tudo o mais: outros tempos, outras necessidades. Do estudo, que os publicistas teem feito entre nós do credito agricola, tres conclusões parecem deduzir-se que nos hão de servir de guia para o que de futuro possamos resolver: 1.º A descentralisação dos capitaes. É necessario que os estabelecimentos de credito comprehendam uma pequena área; só assim se poderá conhecer inteiramente a solvabilidade dos que contractarem, o seu valor pessoal e o destino que dão aos seus capitaes, a sua vida moral e o seu tino economico, e só assim, por conseguinte, o credito poderá alargar-se com confiança. D'outro modo o capital retráe-se e deve retrair-se porque não póde correr aventuras. Os melhores estabelecimentos extrangeiros assim como a Caixa Economica d'Aveiro, todos funccionam n'uma estreitissima área; a Caixa Economica póde dizer-se que não vae além dos concelhos de Aveiro e Ilhavo e ainda um pouco d'aquelles que lhes são immediatamente visinhos. 2.º A promiscuidade de operações. Todas as boas instituições de credito popular descontam indifferentemente ao commercio, á lavoura ou á industria, a todos aquelles que dão garantia de satisfação dos seus compromissos. Não ha situações privilegiadas; o credito é só um. Nem convém que as haja: não se comprehende como os differentes ramos da actividade economica d'uma sociedade devam ter credito differente se todos são igualmente lucrativos e igualmente uteis pois d'outro modo não devem subsistir. Póde a natureza das operações exigir differentes condições de contractos, conforme uma liquidação mais ou menos rapida, conforme o maior ou menor risco e consequente necessidade de amortisação, mas essas como muitas outras circumstancias só attingem propriamente a administração bancaria e nunca o credito, a possibilidade fundamental de desconto. Ainda n'este ponto, instituições nacionaes e extrangeiras nos indicam a boa regra. 3.º A interferencia do Estado. É uma conclusão muito particularmente para o nosso paiz esta intervenção do Estado que os trabalhos dos publicistas nos indicam como a iniciadora do credito agricola e de todo o credito popular; é uma condição nacional, mas parece-me ser uma condição. É singular que até a Caixa Economica d'Aveiro, tão prospera e tão bellamente mantida e administrada, por iniciativa particular, fosse creada por esforço e deligencia d'um homem que juntava á sympathia pessoal que merecia a qualidade de alto funccionario administrativo, que não foi nem podia ser indifferente ao bom resultado da sua tentativa. Os celleiros communs foram na sua quasi totalidade de creação e administração ou das corporações municipaes ou dos juizes de direito ou de qualquer outra entidade relacionada com os poderes do Estado. Administração livre e independente é caso raro, rarissimo. E este facto deve, a meu vêr, tirar-nos quaesquer illusões e esperanças que possamos ter sobre a instituição do credito agricola por iniciativa individual. Não é essa a tradição nacional nem, digamol-o de passagem, se vêem presentemente meios e tendencias de entrar em novos costumes. Disse que o credito agricola estava tambem estudado entre nós pelas tentativas dos legisladores. Attentemos agora um momento n'este segundo ponto. D'essas tentativas tres são notabilissimas, já pela alta capacidade dos homens que a ellas presidiram, já pelos elementos d'estudo que nos fornecem. O projecto de Alexandre Herculano em 1855, as leis de Andrade Corvo em 1866 e 1867 e finalmente o projecto do homem superior que foi o meu querido mestre e que até agora não tem successor, o projecto de Oliveira Martins em 1887, constituem um fundo de subsidios para o estudo da questão que põe a nossa litteratura agricola ao par das melhores que se teem occupado da materia. O projecto Herculano está n'uma proposta da Camara municipal de Belem, de que era presidente, ao parlamento para que lhe permittisse crear uma «Caixa de Soccorros Agricolas» nas condições que lhe designava. Esse projecto vem precedido d'um relatorio que hoje é um documento precioso para estudarmos as necessidades e o caracter das nossas populações ruraes; a grandeza do mestre até alli transparece com uma inegavel evidencia. Pretendia a Camara municipal de Belem crear um fundo destinado a subministrar capitaes baratos aos cultivadores e para isso reservaria annualmente tres quartos do producto do imposto sobre a farinha fabricada até completar a somma de 35:000$000 réis. Depois, esse capital assim creado passaria por emprestimo ás mãos dos cultivadores em condições altamente vantajosas que a lei indicava. Esta lei, se tivesse sido votada, seria uma concessão á Camara de Belem, mas evidentemente deixava a porta aberta para o estabelecimento do credito agricola no paiz porque não havia motivo para que não fosse applicada d'uma maneira generica. Estabelecia-o por um processo do mais rematado socialismo; isto é, a Camara reservava para si, por todos os meios coercitivos de que dispõe, uma parte da riqueza particular, e em seguida distribuia-a para beneficiar uma classe que carecia d'auxilio. Nada mais captivante, mas logo se pergunta onde vamos por este caminho. Porque um beneficio á lavoura com exclusão do commercio e da industria? Não são porventura todos esses factores d'igual valor na sociedade que os deve manter sãos e vigorosos n'uma boa economia? A poucos passos estariamos n'um perfeito communismo, o Estado recebendo e distribuindo os capitaes da communa; não era facil pôr limites a esta socialisação da riqueza uma vez iniciada, tanto mais que as reclamações não tardariam a surgir instantes, á maneira que as necessidades se mostrassem. Depois, quem administra esses capitaes? A camara municipal, uma corporação eleita por todos os que teem capacidade politica? Aqui estamos pois chegados a todos os males da politica e das eleições que infelizmente sabemos bem o que são. Quando as assembléas geraes dos bancos e companhias são já perturbadas tão frequentemente por ambições de toda a casta e da mais duvidosa legitimidade, o que seriam essas assembléas geraes do banco communal em que se confundiam as cobiças da politica e os interesses da suprema distribuição do capital? Evidentemente, o caminho era perigoso; ou por isso ou por quaesquer outros motivos que desconheço, o projecto não teve seguimento. Outro tanto não succedeu a Andrade Corvo que viu convertido em lei o seu pensamento sobre o credito rural. Deu aos hospitaes, misericordias, confrarias e identicas corporações a faculdade de formarem com os seus capitaes bancos provinciaes ou districtaes de credito agricola e industrial com privilegios e garantias que os incitavam a aproveitar-se das concessões da lei. E todavia muito poucos usaram os beneficios da lei; quasi todos continuaram na antiga vida. Porque? Essas corporações tinham por certo os seus capitaes collocados e toda a transformação iria ferir interesses ou, pelo menos, trazer incommodos que haviam de ser um estorvo ao novo estado que se pretendia crear. Deus sabe mesmo até que ponto, com os abusos que são inseparaveis da administração da fazenda commum, os proprios gerentes d'essas corporações seriam os interessados em as manter no estado em que se encontravam! Mas, quando assim não fosse, quando a lei, aliás tão bem pensada, d'Andrade Corvo tivesse operado a transformação que ambicionava, ainda assim a questão não estaria resolvida. Ficava de pé o que tem sido uma das grandes chagas da economia nacional, a diversidade do preço dos capitaes que vae de 4% até 10 ou 20%. Quem era rico, ficava rico; quem era pobre, ficava pobre. Cada um viveria sobre si, por isso que os bancos se constituiam com os recursos locaes e operariam n'uma pequena área; haveria regiões de superabundancia e regiões de extrema miseria. E, depois, talvez succedesse que esses capitaes que se pretendia chamar á lavoura já na lavoura estivessem; ao tempo em que a lei foi publicada, a estreiteza do commercio e da industria era entre nós tamanha que fóra de Lisboa não haveria collocação segura de capitaes que de perto ou de longe não interessasse á agricultura. Era depois d'estas experiencias e tentativas que apparecia o projecto de lei de fomento rural de Oliveira Martins, tendo, como não podia deixar de ter em obra de tamanha vastidão e alcance, um capitulo consagrado ao credito rural. Creava um banco com o capital de 10:000 contos de réis, especialmente destinado a proporcionar capitaes, quer á lavoura, quer á propriedade rustica, não só para o desbravamento dos terrenos incultos como para o melhoramento dos cultivados. O banco teria uma agencia em cada concelho de população igual ou superior a 40:000 habitantes, ou em cada grupo de concelhos de 50 a 60:000 habitantes. O Estado constituia o banco administrador legal de todos os bens actuaes e futuros, comprehendendo os fundos consolidados, das seguintes pessoas moraes: igrejas, corporações religiosas, irmandades, confrarias, misericordias e quaesquer outros estabelecimentos de beneficencia ou piédade. Ao banco competiam varias obrigações, entre as quaes se comprehendia a fiscalisaçáo pelos seus agentes da applicação do dinheiro, e eram-lhe concedidos privilegios que iam até á garantia do juro pelo Estado. Completava-se d'este modo a lei d'Andrade Corvo, tornando obrigatorio o que fôra facultativo e trazendo á lavoura d'uma maneira segura os capitaes das corporações; e,--ponto capital do projecto em que transparecia o genio do mestre,--realisava-se por meio d'uma centralisação, seguida d'um derramamento uniforme, essa distribuição igual de capitaes em todo o paiz de que devia resultar a uniformidade na taxa do desconto. Era uma obra verdadeiramente nacional, destruindo toda a desigualdade de mercado de capitaes, fazendo acudir os centros de plethora ás regiões de miseria. Se exceptuarmos a garantia de juro pelo Estado, que entre nós tem dado sempre uma confusão de contos onerosissima para o thesouro publico, o projecto de Oliveira Martins era o que de mais captivante se tem apresentado ao parlamento portuguez sobre este assumpto. Embora abandonado, por motivos que não quero saber, o tempo veiu dar-lhe rasão; esse projecto está hoje realisado, em parte, por via de circumstancias inteiramente alheias á questão. É agora occasião de dizer em que razões me fundo para affirmar que o credito agricola tem em Portugal um inicio de solução. Depois da apresentação do projecto de fomento rural de Oliveira Martins, deu-se na vida economica portugueza um facto da maior grandeza destinado a ter em toda a nossa actividade as mais largas e fecundas consequencias. Estabeleceu-se o Banco emissor. O Estado, para accrescentar as suas receitas, segundo creio, contractou com o Banco de Portugal o privilegio da emissão fiduciaria, recebendo em troca varias e complexas vantagens. Em virtude d'esse contracto, o banco ficava sendo o thesoureiro do Estado e d'aqui provinha que, para o cumprimento das suas obrigações, tinha de estabelecer agencias em todas as capitaes de districto. Creio que o fim primitivo d'essas agencias era unicamente realisar as operações do Estado, mas o certo é que uma vez estabelecidas nenhuma razão havia para que não fizessem simultaneamente operações commerciaes: em 31 de dezembro de 1898 apparecem-nos com 1:454 contos de réis de lettras descontadas em carteira, ao mesmo tempo que se mostra que o banco emissor teve no reino e ilhas adjacentes um movimento de transferencias commerciaes por meio de lettras que sommou 16:249 contos. Está assim realisada a aspiração de Oliveira Martins; temos um banco dispondo de largos capitaes e descontando por preço uniforme em todo o paiz, fazendo essa operação não só sem subsidio mas antes com beneficio do thesouro. E temos ainda mais uma facilidade de cobranças baratas sem precedentes, o dinheiro viajando de Melgaço a Villa Real de Santo Antonio por um preço unico, por uma tabella uniforme. Todas as vantagens fundamentaes d'uma economia bem organisada possuimos; só falta que a lavoura d'ellas participe como é do seu interesse e do interesse do paiz. Multiplicar as agencias do banco emissor, exactamente n'aquella proporção que Oliveira Martins estabelecia, isto é, uma agencia por cada 50 a 60:000 habitantes, e reservar para a lavoura uma parte da emissão,--n'isto reside, a meu vêr, a solução do problema do credito agricola. Não o digo eu, alguem com mais competencia do que eu o disse já, antes de mim. O sr. Anselmo d'Andrade, com a profundeza e lucidez que caracterisam o seu bello livro, _A Terra_, escreveu: «... a uma economia no emprego da moeda deveriam corresponder reducções na circulação fiduciaria que permittissem ao banco apartar um fundo de capitaes disponiveis para agricultura. Poderia essa disponibilidade constituir o capital para desconto e redesconto do papel dos _Syndicatos agricolas_, merecedores de confiança pela qualidade das pessoas que os compozessem e dirigissem, não sendo muito que nos contractos do Governo com o banco emissor, e em conta do preço da emissão, entrasse como clausula obrigatoria a reserva d'uma importancia a fixar, e a juro que tambem se fixasse, para desconto d'esse papel agricola. Esta fórma de protecção saía, por assim dizer, de graça ao Estado, e bastaria como meio de fomento para que as associações de credito se desenvolvessem e generalisassem no paiz, á sombra de uma fórma proteccionista que lhe garantisse, a juro modico, o desconto do seu papel. É verdade que pelo seu contracto tem o Estado uma participação nos lucros do banco, mas se é certo que o banco deve ao Estado o seu privilegio, é tambem certo que deve ao mundo dos negócios os seus lucros, sendo por isso justo e necessario que elle multiplique os seus serviços tornando-os extensivos a cathegorias de clientes, que actualmente pouco se aproveitam d'elles, como são os agricultores... A commercialisação dos agricultores que se inscrevessem nos registos commerciaes, a intervenção dos _Syndicatos agricolas_ e associações de credito rural na distribuição de capitaes pelos associados, e a creação de um fundo especial destinado no Banco de Portugal ao credito agricola, são portanto condições de vida nova, capazes de egualar perante o credito a agricultura e o commercio...» São, sem duvida, condições de vida nova, d'uma infallivel prosperidade para a agricultura; encerram para nós a solução do problema e encerram tambem a prova do desatino governativo da nação. Porque é preciso saber-se e repetir-se, para que se lhe dê remedio, se esperanças de remedio póde haver, que o Banco emissor fechava o anno de 1898 tendo nas suas agencias 1:454 contos de réis em lettras descontadas quando em 1897 fechava a sua conta com 1:684 contos sob igual rubrica. Baixou 230 contos e, se tão pouco baixou, deve-o ás instancias do commercio, da lavoura e da industria e nunca ao zelo do Estado. Como se explica este retrocesso, se a prosperidade do paiz vae crescendo e se o interesse do banco é alargar as suas operações? Unica e exclusivamente, todos o sabem e o proprio relatorio do banco o confessa aos accionistas, pela abusiva intervenção do Estado, pela absorpção, com uma avidez insaciavel, de toda a nova emissão fiduciaria na conta do thesouro. De fórma que esse mesmo Estado que devia ser o maior propulsor da actividade economica é o seu maior inimigo, pela desenfreada concorrencia que lhe faz no mercado dos capitaes. Assim, toda a tentativa de credito agricola ou de qualquer outra especie de credito é vã, trabalho baldado. O Estado levou todo o dinheiro do Brazil no tempo em que elle de lá vinha com abundancia; consumiu mais tarde todo o oiro estrangeiro quando o credito das praças europeias nos trazia em constante abundancia; absorve toda a emissão fiduciaria agora que os instrumentos de circulação nos pertencem. Emquanto ao mercado concorrer um cliente assiduo que tem mais de 50:000 contos de réis de rendimento por anno e outros que não teem 50$000 réis, desenganemo-nos, a victoria será sempre do mais rico, tanto mais que esse tem na sua mão uma arma formidavel e vem a ser: que elle é que faz a lei para si, para os outros, para aquelles proprios que lhe devem. Ouvi que o Estado ia renovar o seu contracto com o Banco de Portugal e que d'ahi tiraria um accrescimo de receita no valor de trezentos contos de réis. Se alguma cousa me fosse dado pedir, pediria que, uma vez ao menos, o Estado abrandasse a sua voracidade e, em logar de exigir mais trezentos contos para si, exigisse a multiplicação das succursaes do Banco de Portugal, dotadas de capital bastante e administradas em condições idoneas ao serviço da lavoura. Iria mesmo mais longe. Ainda mais uma vez commungando nas ideias do sr. Anselmo d'Andrade, acceitaria o alvitre que esse illustre publicista propunha n'um artigo publicado no _Jornal do Commercio_ de 15 de março ultimo. Não veria o menor perigo n'um pequeno alargamento da circulação fiduciaria com tanto que esse alargamento fosse unica e exclusivamente destinado ao desconto mercantil e agricola; pelo contrario, tanto enfraquece o banco a emissão absorvida pelo Estado como reforça a sua solidez e o seu credito a emissão transformada em carteira commercial. Quando o banco tivesse creado cem agencias, estava realisada a ambição de Oliveira Martins, distribuidos os estabelecimentos de credito n'aquella proporção com a população que elle indicava. Pois essas cem agencias não demandariam uma despeza inicial superior a 200 contos, despeza que com o tempo havia de annular-se completamente e até mesmo converter-se em beneficio. Fossem essas agencias dotadas com trinta contos de réis cada uma,--e não consentiria em que nos primeiros annos tivessem maior dotação porque a collocação de capitaes só lentamente póde realisar-se com inteiro proveito, e os exaggerados alargamentos de desconto são mais nocivos á economia nacional que um desmedido retraimento;--fossem essas agencias dotadas com trinta contos e não hesito em affirmar que tão estreita somma, e tão barata para a administração publica, havia de produzir milagres de prosperidade. Já não são pequenos os que produzem os miseros 1:454 contos de réis que o banco emissor tem na carteira commercial das suas agencias; tanto me basta para avaliar do futuro. Quando o Estado tivesse assim cumprido a sua missão, estaria, a meu vêr, terminada a sua tarefa. Cessava aqui a solução do problema por parte dos poderes publicos, a questão ia mudar d'aspecto e de questão economica converter-se-ia n'uma questão moral. O Estado poz capitaes á disposição dos lavradores, é a estes que agora compete darem garantia bastante para o levantamento d'esses capitaes. Luzzati, cuja principal gloria está em ter iniciado e propagado os bancos populares na Italia, exclamava apreciando-os: «Mas o que seriam as nossas casas de credito sem os bons costumes dos seus socios!» Entre nós, pelo que sabemos da Caixa Economica d'Aveiro, poderiamos dizer outro tanto. É facil a constituição de casas de desconto: o que parece mais difficil é a creação d'esses bons costumes que hão de fazer que ellas funccionem com inteiro proveito para a riqueza publica e particular, para a boa ordem social. O penhor nas mãos do mutuante ou do mutuario, a garantia na alfaia e nos fructos pendentes, a associação de qualquer especie como intermediaria e principal responsavel entre os bancos e os lavradores, a simples fiança pelo acceite em lettras de cambio, tudo são processos que podem utilmente ser aproveitados e a nenhum d'elles ousarei contestar valor benefico. Mas sempre direi que tudo o que não seja a singela assignatura em uma letra de cambio garantida com duas firmas que, pelos seus bens e principalmente pelo seu tino e honestidade, mereçam confiança, é mais um signal de descredito do que de credito. Ai d'aquelle cuja reputação não basta e precisa ser amparada por qualquer cousa d'ordem material! Ha muito o commercio e a industria assim o comprehenderam e não sei nem posso attingir, a não ser que os procure em viciosos costumes, os motivos porque um industrial póde levantar dinheiro n'um banco na supposição de que não disporá das mercadorias fabricadas sem satisfazer os seus compromissos e outro tanto não póde fazer o lavrador que é tambem fabricante de productos commerciaveis. Não sei por que ao commerciante se entregam capitaes n'um ajuste tacito de que a elles ficam obrigados os generos que guarda na loja, e não se póde fazer outro tanto com o lavrador que tem celleiro e adega onde guarda objectos igualmente commerciaveis. É muito facil a um negociante de cereaes ou de vinhos encontrar credito, mas é difficil alcançal-o o lavrador que primitivamente produziu e possuiu aquellas mesmas mercadorias. Administrei a Caixa Economica d'Aveiro durante cinco annos, ha cerca de seis annos que sou agente do Banco de Portugal; quer n'um quer n'outro logar tenho contractado muito com lavradores por meio de lettras de cambio. Pois não exaggero dizendo que nunca com elles perdi um real e que a Caixa Economica d'Aveiro dá o primeiro logar na sua carteira commercial ao papel firmado por lavradores. Tudo está unicamente no tino de quem administra esses estabelecimentos, no zelo com que procura averiguar da applicação a que o dinheiro se destina e das qualidades pessoaes de quem o procura. A fiança, o simples acceite n'uma lettra de cambio, a equiparação do lavrador e do commerciante, eis o que a minha estreita experiencia me indica como o processo mais facil, mais prompto, e porventura mais seguro, de operações de credito, quer agricola quer de qualquer outra especie. Para isso porém, torna-se necessario que proprietarios e lavradores comprehendam as suas obrigações de patronato. Da maneira como ellas são ignoradas permitta-se-me que recorde um exemplo que é caracteristico. Conheci uma região no districto de Coimbra, terra fertil, feracissima, abundantemente regada, com um magnifico clima, em que o primeiro dos quarenta maiores contribuintes pagava de contribuição predial 400$000 réis, o quarto 40$000 réis, o quadragesimo 13$000 réis. Calcule-se por ahi a distribuição da propriedade, monopolisada nas mãos dos poucos de que dependia uma basta legião de arrendatarios. As rendas eram exageradissimas, raro o anno em que, o arrendatario as podia pagar por completo. Estranhei este systema a um proprietario que, na melhor boa fé e julgando provar assim capacidade de administrar, me respondeu;--É muito bom. D'este modo estão sempre em divida e pagam o mais que podem. Quando se chegava a junho ou julho, o mais tardar, o arrendatario já não tinha pão e ia procurar um homem que invariavelmente lhe accudia. Esse homem retratava-o Herculano, no relatorio que precede o seu projecto de credito agricola, com uma fidelidade e um relevo que a mais aperfeiçoada machina photographica nunca alcançará: «É homem chão, modesto, exacto no cumprimento dos seus deveres civis, laborioso, valedor: é quasi um bom homem. Ignora as partidas dobradas e repugnam-lhe por via de regra não só os juros exorbitantes, mas até o juro legal. Quando empresta o seu dinheiro ao agricultor é por dó d'elle; é para lhe acudir n'um apuro. O que quer é assegurar o reembolso da somma mutuada. Tendo horror ás demandas, se o lavrador é proprietario não lhe acceita o predio como hypotheca, porque conhece a imperfeição das nossas leis hypothecarias; se o não é, nem por isso quer abandonal-os. N'esta situação que faz? Empresta sem juro; mas exige um contracto que lhe dê a certeza do reembolso. O cultivador ha de pagar em genero na eira. E como ha de ser o pagamento? Os cereaes regular-se-hão pelos preços mais inferiores do genero n'essa conjunctura. É uma precaução. Para os riscos das baixas possiveis, que depois sobrevenham, de uma venda anterior, d'uma divida desconhecida, de uma colheita insignificante, etc., o mutuario promette o abatimento de um, de dois, de tres vintens ou mais em alqueire. É outra precaução. O usurario é compassivo, é benevolo para com a sua victima, mas precisa de ser prudente. O contracto fica secreto, não se escreve porque o mutuante conta com a probidade do mutuario, ou para melhor dizer, com o temor que este terá de achar em novos apuros condições mais onerosas, e esses apuros são quasi inevitaveis desde que o pobre cultivador cahiu uma vez nas suas mãos.» Este homem bemfazejo, na região a que me refiro, contenta-se com pouco; empresta em junho uma moeda para receber em setembro ou outubro o capital e mais um alqueire de trigo e até ás vezes de milho. Preço modico, um juro que oscilla entre 20 e 30% ao anno. Conheci um que, não tendo propriedades, tinha um celleiro para receber... os juros. Está assim fechado o cerco; onde não chega o proprietario com as suas brutaes exigencias accode galhardamente o usurario. Que fica ao agricultor? O direito de emigrar? Não, que tambem não ha dinheiro para a passagem. Servo da gleba, miseria e humildade, a astucia deshonesta para accrescentar o que o trabalho não dá,--eis o seu triste destino. Pensando bem, talvez ninguem tivesse lucrado. O proprietario desvalorisa a propriedade tendo-a em meio d'uma população indigente e anniquillando assim o mercado em que a podia negociar por bom preço; o agricultor tem a sorte que sabemos; e até o usurario... não, o usurario esse accrescenta a sua fortuna rapidamente. Alguem havia de capitalisar o trabalho do lavrador de cujo producto este só usufrue uma parte minima. Emquanto taes costumes se mantiverem, emquanto as obrigações e os interesses do patronato, de auxilio e protecção aos humildes não entrarem na vida corrente dos proprietarios e dos mais abastados, emquanto não se comprehender que uma parte da nossa fortuna consiste sempre em a possuirmos entre gente rica e por isso enriquecendo o visinho nos enriquecemos tambem, emquanto assim fôr, as loucuras da administração do Estado encontrarão digna imagem na incapacidade individual. Mas que a boa razão, quer d'um quer d'outro lado, comece de prevalecer e o problema do credito agricola em Portugal não tardará a ter solução. Uma derradeira abservação. Eu acceitei o alvitre do sr. Anselmo d'Andrade quando propunha que o banco emissor descontasse aos syndicatos que seriam os fiadores e principaes pagadores dos creditos individuaes; mas, entenda-se bem, isto será unicamente um dos processos de negociar. O desconto directo ao lavrador é porém uma necessidade sempre que o credito d'este o permitta. Porque, d'outro modo, os intermediarios, sejam elles quaes forem, hão de reclamar o preço do seu risco e do seu trabalho e aqui temos iniciado um caminho perigoso que deixa margem a muito negocio escuro. Tal é, meus senhores, sobre a questão do credito agricola o meu pensamento, na exposição do qual abusei talvez da vossa bondosa attenção que, reconhecido, agradeço. End of the Project Gutenberg EBook of O credito agricola em Portugal, by Jaime de Magalhães Lima *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O CREDITO AGRICOLA EM PORTUGAL *** ***** This file should be named 24412-8.txt or 24412-8.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: http://www.gutenberg.org/2/4/4/1/24412/ Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images from BibRia) Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. 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Redistribution is subject to the trademark license, especially commercial redistribution. *** START: FULL LICENSE *** THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase "Project Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg-tm License (available with this file or online at http://gutenberg.org/license). Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. 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