Portugal contemporaneo, Vol. II (of 2)

By J. P. Oliveira Martins

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Title: Portugal contemporaneo, Vol. II (of 2)


Author: J. P. Oliveira Martins

Release date: October 13, 2023 [eBook #71871]

Language: Portuguese

Original publication: Lisboa: Livr. de Antonio Maria Pereira, 1895

Credits: Charlene Taylor, Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)


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                        Portugal contemporaneo




                         J. P. OLIVEIRA MARTINS

                         Portugal contemporaneo

                         3.ª EDIÇÃO (POSTHUMA)
        e com as alterações e additamentos deixados pelo auctor

                                TOMO II

                             [Illustração]

                                 LISBOA
               LIVRARIA DE ANTONIO MARIA PEREIRA--EDITOR
                     _50, 52,--Rua Augusta--52, 54_
                                  1895




                                PORTUGAL
                             CONTEMPORANEO


                              LIVRO QUARTO

                           A ANARCHIA LIBERAL
                               (1834-39)




I

O REGABOFE


1.--A SESSÃO DE 1834-35

No dia 15 de agosto, D. Pedro abriu solemnemente as camaras. A
physionomia da assembléa era diversa em tudo da de 26-8. Bem se póde
dizer que não estava alli a maior parte da nação, exterminada pela
guerra, ou jazendo esmagada sob o pé do vencedor. Era o Portugal-novo
que reinava, sobre os destroços e ruinas da nação antiga. A camara
reunia-se n’um d’esses conventos saqueados, onde á pressa se levantou
uma sala com paredes pintadas de azul e branco e um tecto de vidraças a
que a rhetorica posterior chamou _abobadas_. Tudo era novo e cheirava
ainda ás tintas, como o systema improvisado. D. Pedro, o faxina das
trincheiros do cerco, viro-se o mestre das obras parlamentares, e um
desembaraço egual fez com que a casa se achasse tambem prompta a horas.
Despresando ministros e conselheiros, tratou a obra com um rapaz havia
pouco chegado de fóra, o architecto Possidonio. Esto fel-a, e teve a
idéa de pôr nas paredes, como ornato, uns medalhões com o nomes dos
homens celebres de Portugal. N’um escreveu o do marquez de Pombal. E
quando os ministros vieram vêr as obras exasperarem-se: «o marquez do
Pombal! é lisongear Saldanha, meus senhores.» Seria o architecto da
opposição? Houve conselho de ministros, em que se resolveu supprimir
essa allusão perfida, dando-se ordem ao architecto para cobrir os nomes
com uma aguada que em dias humidos mal esconde as letras douradas
subjacentes. (_Apont. da vida_, etc.)

Tal era, ainda depois dos accôrdos do Cartaxo, o receio que inspirava
o chefe da opposição. As camaras iam abrir-se; e por mais que tivessem
feito, os ministros não tinham podido impedir que o Minho bucolico
enviasse ao parlamento Manuel Passos, chefe sympathico e ingenuo de
uma opposição pessoal ao regente e ao seu governo, e de uma opposição
formal ás doutrinas da CARTA. Os saldanhistas possuiam uma especie nova
de LIBERDADE, e propunham-se decididamente a fazel-a vingar sobre as
ruinas da anterior. Fóra da camara, o _Nacional_, do Rio-Tinto que não
gozava de boa fama, apoiava opposição parlamentar.

       *       *       *       *       *

Constituiu-se a camara e começou a guerra. A primeira batalha foi a
da questão Pizarro. O coronel, eleito deputado por Traz-os-Montes,
viera para o reino, d’onde o expulsava um decreto formal e pessoal do
regente, e fôra preso e encerrado em S. Julião. Era um attentado á
immunidade parlamentar, clamava a opposição; e o governo respondia que
a eleição fôra nulla pela inelegibilidade de um homem pronunciado por
crime de alta traição. Sob taes formulas legaes se encobria de parte a
parte a verdadeira questão: defender Pizarro, era atacar em cheio D.
Pedro, seu pessoal inimigo.

Levado pelo impeto de uma séria crença na liberdade, de uma esperança
formal nas instituições, Passos que luctava á frente, como já
verdadeiro chefe da opposição, embora Saldanha se tivesse sentado no
banco mais alto da mais extrema esquerda: Manuel Passos abandonava o
pretexto, e punha nitidamente a questão. A camara era coisa nenhuma,
nem representava a opinião do paiz. Não houvera liberdade nas eleições.
A censura prévia aguilhoava as manifestações do pensamento. Não
havia liberdade de imprensa, nem camaras municipaes, fóra Lisboa e
Porto: apenas commissões nomeadas. Durante as eleições tinham-se
suspendido as garantias.--Que se devia fazer? Era claro, simples e
urgente: estabelecer a liberdade de imprensa, supprimir a suspensão de
garantias, eleger camaras municipaes, e por fim dissolver o parlamento,
convocando côrtes constituintes. (Disc. de 25 de agosto)

Pois a constituição não estava feita? Não, por fórma nenhuma: esse
corpo de doutrina que fôra a bandeira de uma guerra e em cujo nome se
tinha invadido e revolucionado o reino, era renegado por uma opposição
enthusiasta e moça, a quem o futuro sorria. Ai de Mousinho, que estava
certo de ter encontrado a fórmula verdadeira e definitiva!

E quem era o culpado de tão flagrantes infracções á doutrina liberal,
segundo a entendia a opposição? Quem, mais do que esse ministerio
obnoxio--para não dizer o nome de D. Pedro, com o qual todos sabiam
que o ministerio fazia um? Depois da convenção de Evora-Monte, elles,
opposição, queriam a paz, a liberdade e a ordem; mas os ministros
(leia-se: o regente) deram á nação, em premio de seus serviços, o
regime da arbitrariedade, e a honra de pagar sessenta contos annuaes ao
tyranno vencido.--«O infeliz coronel Pizarro (regressando ao ponto de
partida) jaz n’uma masmorra porque o ministerio actual se constituiu
impio testamenteiro d’aquelle Coriolano tres vezes traidor á patria».
O Coriolano de Passos (a quem a educação jacobina inspirava nomes
romanos) era o fallecido Candido José Xavier que pegára em armas contra
a patria.--A camara, de pé, clamou por ordem. (Disc. de 25 de agosto)

       *       *       *       *       *

Era o que todo o reino pediria, se tivesse alma para pedir alguma
cousa. A metade vencida gemia porém, esmagada; e a vencedora
borborinhava tonta na faina de disputar o despojo da guerra. Cada qual
chamava a si uma parte maior ou menor da victoria, considerando-se
com direitos particulares adquiridos. Havia uma grande voracidade;
mas acima dos que faziam das opiniões o rotulo da sua fome, erguia-se
Passos, o stoico, exigindo a victoria dos principios, não a dos
homens e seus desejos e ambições. Outros lançavam-se desesperados ao
ministerio e ao regente, «porque essa roda comia tudo»; elle dirigia
o côro das imprecações, mas sereno, com os olhos fixos na imagem
etherea, nebulosa das suas cogitações e sonhos: uma liberdade candida,
pura, pacifica!

Entrou na camara a questão da legalidade com que D. Pedro exercera
e exercia o papel de regente, pômo das discordias antigas e sabidas
da emigração; e Passos dizia: «Eu sou um implacavel inimigo das
dictaduras». Como era novo ainda, e crente, o homem que só com
essa dictadura detestada veiu dois annos depois a outorgar a _sua_
liberdade!--E falseando um pouco os factos, continuava «que, porém,
se no momento de Paris fosse necessario um plebiscito para elevar o
imperador á terrivel dignidade de dictador, todos elles, opposição,
estavam promptos a assignal-o com o proprio sangue. Agora o caso
mudava: era mistér voltar á legalidade, e que se reconhecesse a
soberania do povo nas suas assembléas.»--Referindo-se logo ao principe,
falava em termos que na bocca de outro seriam crueis ironias, e na
d’elle eram desejos ingenuos, tanto a virtude se confunde com a
simplez! «Sacrificae o pae da patria!.. E quanto o conheceis pouco e
mal! S. M. I. é um principe philosopho. Cansado da purpura para gozar a
vida privada, com que philosophia não rejeitou ainda ha pouco a corôa
imperial!» (Disc. de 25 de agosto)

Cansado da vida, golfando sangue, estava prostrado no leito o
desilludido principe que morreu a tempo. Perante este facto que
trazia um novo elemento de complicações á trama cerrada dos embaraços
desencadeados pela liberdade, Palmella, com uma auctoridade que era
soberana, pois já lh’a não disputava o ex-emulo Saldanha, interveiu a
tempo: demittiu o ministerio, collocou-se-lhe nas cadeiras, dando a
rainha por maior, afim de preencher esse logar vago a que o liberalismo
chama throno. Ninguem melhor servia para isso do que uma creança
apenas mulher, pessoa sem querer, symbolo em vez de realidade, como
os vultos de palha que se põem nas cearas para afugentar os pardaes
vorazes. Estonteada, ainda a opposição clamou; e nos pares, Fronteira
e Villa-Real, Lumiares, Loulé e Taipa, votaram contra a maioridade da
rainha, pedindo a regencia da Infanta D. Isabel Maria. Taipa dizia alto
e bom som que o ministerio era uma camarilha feita para devorar o paiz
á sombra de uma creança. A infeliz CARTA, já violada na questão da
regencia, era segunda vez rasgada na da maioridade da rainha!

       *       *       *       *       *

Enterrado D. Pedro, caído o seu velho ministerio, extinguia-se um
pedaço do passado incommodo: começava com a rainha a vida nova
parlamentar-liberal. Mas, se para os radicaes a cova engulira o tyranno
regente, para os liberaes o espectro de D. Miguel mantinha-se-lhes
perante a vista esgazeada, ainda antes da vinda da noticia o protesto
do exilado em Genova.

No ardor da guerra, abandonadas todos as idéas stoicas de Mousinho,
decretara-se (31 de agosto de 33) a expropriação de um partido pelo
outro, sob o nome de Indemnisações. Tinham-se tornado responsaveis
os auctores da usurpação (todos e cada um _in solidum_, por suas
pessoas e bens) pelas perdas e damnos causados pela usurpação. Os bens
miguelistas eram sequestrados e vendidos em praça: isto é, transferidos
por nada aos arrematantes liberaes, quando não eram adjudicados
directamente aos vencedores lesados por não haver na praça lanço
egual á avaliação. Tinham-se creado commissões avaliadoras das perdas
e damnos, as quaes davam aos interessados cedulas acceitaveis como
dinheiro nas arrematações dos bens.

D’este modo se fartou muita gente, e o devorar teria continuado,
se, ainda antes da intervenção das camaras, não tivesse intervindo
o embaixador inglez, exigindo o terminar da faina. Parara-se pois;
mas o decreto não revogado estava suspenso sobre a propriedade dos
vencidos. Considerava-se indispensavel essa ameaça, porque o medo de
uma restauração era grande. Circulavam boatos aterradores. Dizia-se
que D. Miguel desembarcara em Hespanha, e atravessara a serra Morena
com 40:000 homens. A guerra carlista ardia para lá das fronteiras, e,
se vencesse, venceria em Portugal o miguelismo. Havia uma emigração
consideravel para os exercitos carlistas: tão grande que, apesar
da LIBERDADE, se propunha na camara a negação de passaportes aos
emigrantes. Fervia o roubo, o assassinato, a desordem, a vingança,
por todo o reino; e a nau liberal, fundeada no porto, amarrada com as
ancoras da quadrupla alliança, ainda balouçava como n’um mar banzeiro.
A tripulação não se considerava salva. Nas guardas nacionaes só se
admittiam os fieis a D. Maria, inimigos sabidos de D. Miguel.

O decreto das indemnisações confiara ás camaras municipaes as funcções
de tribunal supremo para as causas disputadas; e coube a José
Passos, sosia burguez do irmão poeta, a honra de atacar de frente,
pela primeira vez, a iniquidade. O Porto elegera-o presidente do
seu primeiro senado em março (34) e elle recusou-se formalmente a
exercer as funcções de juiz n’esses processos de espoliação. A camara
foi dissolvida, mas tambem o decreto suspenso até que o parlamento
resolvesse.[1]

O parlamento decidiu, abolindo-o. Ergueu-se, para o condemnar, Mousinho
que abolira no codigo penal o confisco, na Terceira os sequestros, e no
Porto não consentira se bolisse na arca santa da liberdade individual.
Ergue-se Passos, falando em paz, em amor, convidando a nação a um
abraço no seio da democracia. Ergueram-se Rodrigo, Seabra, e por fim,
vencido, o proprio Agostinho José Freire que fôra o auctor da lei da
vindicta.

Já a esse tempo (janeiro de 35) os medos se iam dissipando. Viera o
protesto de D. Miguel, mas não lhe respondera uma revolução: apenas
lhe respondeu a camara, rasgando tambem a convenção de Evora-monte,
banindo-o e á sua geração do territorio portuguez, declarando-o revel
e traidor. (Decr. de 19 de dezembro de 34). Assim o novo Portugal
via desapparecerem de todo da scena os ultimos restos do passado. A
estructura da nação caíra ás mãos de Mousinho; D. Pedro acabara n’uma
golfada de sangue; D. Miguel matava-o o novo reino pela voz dos seus
mandatarios. Começava uma vida nova com o reinado da joven rainha, a
quem era mistér dar um marido, para haver herdeiros que satisfizessem a
uma das formulas do systema. Estava pois fundeada a nau do liberalismo?
Oh, não! Principia agora uma viagem nova para o navio cujo commando
numerosos pilotos disputam--cada qual com sua carta, seu rumo, seu
norte, sua bussola. Ha tantos destinos quantas cabeças, e assim deve
ser no governo da Anarchia; mas antes que a viagem comece, é mistér
estudarmos os fastos da anarchia positiva, exprimindo a realidade da
doutrina nos primeiros momentos do seu imperio.


2.--OS BENS NACIONAES

A suppressão do decreto de agosto de 33 retirava bruscamente da meza,
onde os vencedores se viam sentados com um appetite genuinamente
portuguez, o succulento serviço dos confiscos miguelistas; mas
Silva-Carvalho, que auscultura os estomagos, sentia a necessidade de
os encher. Desertariam do banquete e talvez abandonassem a _causa_,
se se não substituissem os pratos. Os perigos eram muitos, a situação
grave: o habil mordomo não hesitou. Apresentou-se ás camaras (34) com o
plano da _kermesse_. As leis de Mousinho e o decreto do _mata-frades_
punham á disposição dos famintos uma vasta ceara de propriedade,
ceifada a seus donos, dispersa em mólhos por todo o vasto campo do
reino assolado. Eram os bens dos conventos, das capellas, commendas
e mais propriedades, da Corôa, da Patriarchal, da casa das rainhas e
da do infantado; eram campos e palacios, alfaias preciosas e mobilias
riquissimas: o espolio da nação assassinada, avaliado em dezenas de
milhares de contos.

O ministro sabia que de varios modos se podia utilisar esse dominio
collectivo: mas que modo melhor, mais util, mais urgente, do que saciar
os appetites vorazes, chamando em defeza do systema mal seguro os
instinctos egoistas de todos os que mais ou menos escandalosamente se
apoderassem das parcellas do saque? Em subido o que succedera á França
republicana; e urgia tambem crear uma aristocracia _liberal_ para pôr
no logar das velhas classes dominantes, arruinadas e demittidas. No
proceder do nosso estadista não havia apenas uma commiseração pela fome
dos seus clientes: havia um pensamento politico, que seria injustiça
não reconhecer.

Os bens nacionaes seriam vendidos em praça; porque essa publicidade e
uma legalidade apparente convinham para resalva; sem nada prejudicarem,
pois a praça ficaria deserto por não haver dinheiro nem licitantes. Não
havia dinheiro, é sabido; mas havia os papeis em poder dos clientes,
e esses papeis recebia-os o Thesouro como dinheiro. Assim, sem se
bolir nos numeros nem na legalidade, obtinha-se o resultado desejado,
porque o ministro não dava os bens: dava os papeis com que elles se
iam comprar em praça. Esses papeis eram os titulos de divida pelo seu
valor nominal, (um valor ficticio) eram o papel-moeda, os recibos de
ordenados vencidos, os titulos de commendas e direitos de pescaria
extinctos; eram finalmente os roes de indemnisações por perdas e
sacrificios da guerra: papeis extravagantes, contas onde gran-capitães
chegaram a sommar por centenas de milhares de réis as ferraduras
perdidas do cavallos mortos!

É evidente que o ministro não confessava o seu inteiro pensamento
á camara; e insistia sobre as vantagens economicas do seu systema;
antecipando lucidamente os tempos ulteriores, queria que as
propriedades se fragmentassem no maximo numero de parcellas, para
dividir a riqueza. (V. Prop. de J. S. Carvalho, sessão de 34) Dizia
mais que a venda dos bens nacionaes fomentaria o progresso, e d’ahi
viria um augmento da _decima_ com que se preencheria o _deficit_
assustador de 5:000 contos do exercicio de 34-5. Boas palavras,
desmentidas porém pelos factos. Toda a gente sabia e queria que os
bens se fundissem, sem se retalharem, trocados pelos titulos das
indemnisações com que os próceres do novo regime tinham inchados os
bolsos das sobre-cazacas. Toda a gente sabia que para preencher o
deficit o habil ministro tinha outros meios, mais commodos e praticos:
pois não tinha o Mendizabal com a sua cohorte de banqueiros e agiotas?
pois não era evidentemente melhor pedir dinheiro ao inglez, em vez de
abandonar uma occasião tão boa de enriquecer? A geração vencedora,
conscia do grande _serviço prestado_ á nação, achava natural que as
gerações futuras pagassem, nos juros dos emprestimos levantados, uma
parte do preço de uma redempção inestimavel. Ainda lucravam, e muito!

       *       *       *       *       *

Por isso ficaram sem echo todas as vozes, e á frente d’ellas estava
Mousinho protestando. Uns queriam que na compra dos bens se não
admittissem os famosos titulos das indemnisações; outros queriam que
o producto das vendas se applicasse comesinhamente á amortisação das
dividas; outros, lamentando a ignorancia do povo, e considerando a
instrucção a melhor ancora da _liberdade_, queriam, finalmente, que
as propriedades da nação se convertessem n’um fundo de instrucção
publica. O governo encolhia os hombros compadecido da ingenuidade
boa dos utopistas, e ia vendendo, vendendo, queimando, queimando. E
o numero das adhesões fieis e firmes á causa crescia, varrendo o
medo de uma possivel restauração do passado. Um comprava os campos
de Alcobaça, expulsando de lá a feliz população rural que os frades
tinham creado;[2] outro remia o seu antigo miguelismo ficando com o
Espirito-Santo de Lisboa; outros em sociedade, tomavam para si as
lezirias do Tejo o Sado; Palmella ficava com a serra da Arrabida
confiscada ao Infantado, que a confiscara aos duques de Aveiro no
tempo de Pombal. Terceira tomava para si o Sobralinho de Alverca.
Era positivamente uma conquista á maneira das conquistas historicas.
Succedia o que succedera no tempo dos godos: uma expropriação dos
vencidos pelos vencedores, salvo a franqueza da confissão, outr’ora
manifesta sem rebuço, agora encoberta sob fórmulas e sophismas de
legalidade liberal. E d’essa falta de sinceridade provinha uma nova
consequencia. Quando os cães disputam um osso, ladram e mordem; e
tambem n’esta faina do devorar havia latidos e dentadas, denuncias
formaes dos que tinham comido menos, contra os que tudo queriam para si.

O escandalo das Lezirias provocava protestos formaes das opposições.
Os pares, os deputados, Fronteira, Loulé, Sá-da Bandeira, os Passos e
outros imprimiram (10-14 de nov. de 35. V. os _Protestos_ nos jornaes
do tempo) declarações contra o decreto do dia 3 que punha á venda
«por junto e n’um só lote todas as propriedades nacionaes das margens
do Tejo, denominadas Lezirias e das margens do Sado, denominadas da
Comporta», mandando acceitar o lanço de dois mil contos feito por uma
companhia. Era uma infracção da lei de 15 de abril, outorgada para
fraccionar a propriedade rural: era um senhorio que se creava «onde
podia haver cinco ou seis centos de proprietarios livres».

Já então Saldanha, nas agonias do seu radicalismo, presidia ao gabinete
_chamorro_ e contra elle voavam os tiros dos seus velhos amigos o
defensores de Paris, os Passos. Ainda em 33, do Cartaxo, quando talvez
já oscillasse entre a democracia e a conservação, lhes escrevia para o
Porto: «Minha mulher (que acaba de participar-me que está feita dama
da ordem de Santa Izabel) manda-lhes dizer que quando vierem a Lisboa
não quer que tenham outro quartel senão a nossa casa.» (22 de outubro;
carta autogr. Corr. ined. dos Passos, á qual recorremos mais uma vez).
Agora, porém, tinha já virado completamente de rumo.

Ia-se vendendo, vendendo sempre e bem, apezar dos protestos. Já em
agosto, o conde da Taipa pedira na camara que se suspendesse a queima
até que se determinasse alguma ordem na venda «porque não corresponde
aos fins para que foi determinada». Fins? que fins? O unico fim
positivo era dispersar as massas de propriedade que podiam ser nucleos
do contra-revolução; era converter os tibios, saciar os soffregos,
tapar a bocca aos maledicos, e consolidar o sentimento da satisfação
universal na plenitude farta!

Em junho de 36 já havia realisados 5:266 contos das vendas. É verdade
que o Thesouro recebera apenas 2:158; mas o resto, ou 3:108, fôra a
chuva de ouro do governo, sob a fórma de _titulos_, indemnisações
(2:400), dividas: papelada! E para confirmar a sinceridade dos desejos
do ministro, quando propunha se retalhasse a propriedade, convém saber,
além do caso das Lezirias, que esses cinco mil contos das vendas se
distribuiam por 632 compradores, (Coll. de contas da comm. inter. da
Junta, _10 de set. de 36_)--o que dá a média de nove contos a cada um.
Á velha aristocracia da côrte e dos mosteiros succedia uma aristocracia
nova de aventureiros--os barões do castello de Chuchurumelo! (Garrett).

Silva Carvalho conformava-se com o mallogro das suas idéas de
economista, perante o exito do seu plano de politico: via a clientella
farta; e o rubro Aguiar socegava: os frades não voltariam, porque os
herdeiros dos seus haveres os haviam de defender com a tenacidade
do egoismo. Cabia-lhe a melhor parte da gratidão dos novos donos;
pois fóra elle quem; contra todos, redigira e publicára o decreto da
abolição das ordens religiosas, cujos bens eram a melhor parte do
opiparo despojo.[3]

Além das propriedades, casas e terras, tinha havido um diluvio de
alfaias, mobilias, ouros, pratas, e _caldeirões_ das baterias das
cosinhas pantagruelicas; e esta copia de bens moveis pudera sumir-se,
devorar-se, sem necessidade de fórmulas e processos liberaes-legaes.

Por isso mesmo a confusão em maior ainda n’esta especie, e mais
repetidos os clamores, as denuncias, as accusações. N’esse mar revolto
vinha a flux o lodo da rapina desenfreada. Do cubiculo escuro da
sua redacção, o diogenes do Porto, Bandeira, commentava assim os
acontecimentos parlamentares:

 O Claudio chamou ladrão ao Seabra. Olhe que lhe fez grande injuria!
 Não é similhante nome tão estimado? Não andam os ladrões nas palmas
 das mãos? Não são muitos votados para empregos e eleições? Não ha
 tanta gente de gravata lavada que os protege? Não são elles uma
 verdadeira potencia, com exercitos, caixa militar, capitães, capellães
 e cornetas? Não têem elles o direito de vida e de morte? Não impõem
 elles contribuições forçadas? (_Artilheiro_, 9 março de 36).

A allusão é clara ao bandidismo que imperava á solta, municiado e
protegido pelos partidos. Cada chefe tinha os seus clientes no fôro,
comprados a dinheiro; e as suas guerrilhas no campo, para dominar e
vencer a tiro nas eleições. Logo iremos vêr o que eram as provincias
e a sua orgia sangrenta: agora, estamos na capital, onde corre o ouro
dos emprestimos de Mendizabal, onde o Medicis-Farrobo dá largas á sua
phantasia de artista, agasalhado com as luvas do Tabaco. Progride tudo:
ha _omnibus_, ha o _tivoli_ da rua de S. Bento, á imitação dos jardins
parisienses. Vae-se dançar: annos antes, ia-se ás egrejas ouvir os
sermões dos frades. No _Circo olympico_ Avrilon faz de D. Pedro IV, com
grandes barbas e a farda de coronel de caçadores 5, no Porto, ao som
do hymno da CARTA. Ha um vivo enthusiasmo. (_Apont. da vida_, etc.)
Trocou-se o Evangelho pela Liberdade; o sermão pelos discursos de S.
Bento; as procissões pelas danças nos tivolis; os solemnes Te-Deum, com
largas capas de asperges recamadas de ouro e fulgurantes de pedrarias,
com tochas numerosas e thronos de luzes á hostia em custodias
magnificas, pelas representações da opera que Farrobo dirige, pelas
_soirées_ do seu theatrinho das Laranjeiras, um eden de merceeiro rico:
_otia tuta_! As egrejas estão abandonadas e vasias, nus os altares; os
frades vagueiam perseguidos, expulsos dos seus conventos, esmolando.
Fundiram-se as alfaias, andam as livrarias dispersas, vendidas a
peso, para embrulho nas lojas; e os templos profanados pelo padre
Marcos--Papam habemus Marcum!--servem de estrebarias ou graneis; os
conventos aquartelam soldados ou esperam os teares e engrenagens com
que o proteccionismo setembrista promette regenerar as industrias.
Já se não ouvem _bemditos_ pelas ruas; em S. Carlos dá-se com geral
applauso o _Turco em Italia_; e Pizarro, logo solto e livre depois da
morte de D. Pedro, põe na bocca de todos a palavra popular do heroe da
opera: «Voglio mangiare! voglio mangiare!» (_Apont._ etc.)


3.--O THESOURO QUEIMADO

Aguiar abolira os conventos; José da Silva Carvalho abolira o
papel-moeda: foram as duas unicas medidas energicas em que se empregou
o resto de força da dictadura.

O papel-moeda vinha de longe, como documento da miseria portugueza,
declarada desde o fim do seculo XVIII e todos os dias aggravada. Era
uma vegetação parasita que se enraizara no corpo da economia nacional
como fungo de varias côres: havia-o legitimo, havia muito falso. A
emissão feita pelo Thesouro, desde o 1.º de agosto de 1797 até 6 de
dezembro de 99, para accudir á guerra do Roussillon, sommara 16:513
contos, o tendo-se amortisado no mesmo periodo 5:820, ficou em 10:693.
Em 1805-6 (28 de junho a 31 de março) cresceu 500 contos. Depois
amortisaram-se 2:901; e feitas as sommas e deducções, o saldo existente
devia ser de 8:293 contos. (_Coll. de Contas da Comm. int. da Junta, 10
de set. de 26_) Observara-se porém que n’esses 2:901 contos amortisados
entravam 518 de papel falso, quasi a sexta parte: quanto haveria,
pois? De outro lado, os incendios e outras causas teriam sem duvida
amortisado muito; e o facto é que em 1830, exigindo-se o carimbo do
papel, o Thesouro só reconheceu a existencia de 8:008 contos. De 8 a
8:500 contos de papel-moeda, eis ahi o legado do velho ao novo regime.

A França revolucionaria, como é sabido, procurara nos seus bens
nacionaes a garantia para a circulação dos _assignats_, e a
consequencia fôra uma ruina colossal. Entre nós, a perspicacia do
ministro evitou esse perigo, que outras causas tambem afastavam. Os
nossos bens nacionaes eram reclamados para fins diversos. Converter
pois o papel-moeda em dinheiro com o producto dos emprestimos
arranjados por Mendizabal, decretar uma banca-rota parcial, para evitar
uma ruina futura, chamar os metaes preciosos á circulação: eis o
pensamento do decreto de 23 de julho (34) que inaugura a edade nova do
regime monetario nacional.

Era uma banca-rota parcial, mas só poderia deixar de o ser, se o
ministro tivesse perante si elementos politicos bem diversos, bem
melhores, do que os que havia. O papel-moeda declarava-se extincto a
partir de 31 de agosto, data além da qual todos os pagamentos seriam
feitos em especie. Os detentores do papel receberiam no banco o seu
importe em ouro, com a perda da quinta parte; ou sem ella, em titulos
que desde 37 a Fazenda receberia por metade nos pagamentos, e desde
38 integralmente. O desconto de 20 por cento era assim equivalente á
móra de dois annos e meio. E em vez de comprar metaes com o producto
do emprestimo destinado á conversão do papel, e cunhal-os, o ministro
preferiu admittir á circulação a moeda extrangeira, dando-lhe um
valor legal: os soberanos de ouro 4$120 rs. e os duros de prata 870
rs. (Decr. de 23 de julho de 34) O desconto de 20 por cento, ou a
banca-rota da quinta parte do valor do papel-moeda não era pois a unica
perda, porque o valor legal dado á moeda extrangeira era excessivo.
Substituia-se moeda sem valor intrinseco por moeda fraca. O soberano
não valia realmente mais de 3$750 rs.[4] nem a pataca ou duro mais do
800 rs. (L. J. Ribeiro, _Critica do rel._ de J. S. Carvalho, 34) Havia,
pois, um exagero de dez por cento que, com vinte de reducção no troco
do papel, elevavam a quasi um terço o que realmente o Estado devedor
deixava de pagar aos seus crédores.

Ao mesmo tempo que 16 ou 20 mil contos de propriedade caíam na posse
do Estado, o Thesouro tinha de pedir emprestado o dinheiro para fazer
uma composição com os seus crédores: taes são as consequencias naturaes
das revoluções--têem de enriquecer os seus sectarios. Os clientes do
ministro enriqueciam, com effeito, por ambos, por todos os modos:
engulindo os bens nacionaes o agiotando com a banca-rota. O decreto de
julho, porém, encarava o problema do restabelecimento da circulação
exclusivamente metalica apenas nas suas relações para com o Thesouro,
não attendendo ás relações contractuaes entre particulares. A isso
veiu occorrer a lei de 1 de setembro, cortando os embaraços pela raiz,
dispondo que todas as obrigações entre particulares se mantivessem
taes-quaes até 38, exprimindo-se d’ahi por diante as sommas na unica
moeda legal, o ouro. A natureza d’esta disposição, tornando solidarios
da banca-rota do Thesouro os particulares que tinham pactuado n’um
regime de circulação mixta--a _fórma da lei_ em que entrava um papel
depreciado--obrigou mais tarde a reformal-a.

       *       *       *       *       *

Esse incontestavel serviço da restauração da circulação metalica era
pago á custa de graves sacrificios. A historia dos emprestimos da
dictadura (V. _Relat._ de Carvalho, 34) era um tecido de confusões em
que a maxima parte dos criticos viam trapaças vergonhosas. Sem duvida,
a emissão de emprestimos durante as epochas desesperadas da guerra só
pôde ser feita á custa de enormes agios; mas a confusão era tal e tão
pequena a confiança na limpeza de mãos dos procuradores do Thesouro
que, invertendo com espirito e agudeza a locução ordinaria, dizia-se
«haver muito quem _não duvidasse_ da boa fé». (Ribeiro, _Critica do
rel. etc._)

Nos primeiros tempos vivera-se dos subsidios do Brazil: 654 mil libras
ou 2:943 contos, mais 437 gastos pela Junta do Porto, mais cerca de
300 nos Açores: ao todo 3:700 contos effectivos (V. _Relat._ Carvalho)
com que Palmella e a primeira regencia liberal se tinham subsidiado a
si, aos emigrados e ás varias tentativas e aventuras mallogradas. Tal
fôra a confusão d’esses gastos, que se passou uma esponja por cima das
contas, prescindindo-se d’ellas, considerando-se tudo approvado. Com
D. Pedro entrou em scena Mendizabal, e, afóra pequenos emprestimos
levantados no Porto e depois em Lisboa, os principaes recursos da
guerra vieram dos emprestimos londrinos. O de dois milhões (23 de
setembro de 31) de 5 por cento liquidou os encargos anteriores:

Devia-se a Marbeley       £  12:600 deram-se-lhe bonds por £   105:600
a commissão de aprestos
  vendeu por              »  52:000 titulos no nominal de  »   150:000
negociando-se a 48 por    » 837:312 o resto       »     »  » 1.744:000
                            -------                          ----------
          Totaes            901:912            nominal    »  2.000:000
                            -------                          ----------

D’esse producto só as duas primeiras verbas eram porém reaes: uma por
ser divida positiva, outra por ser dinheiro applicado á compra de
armamentos, soldo de mercenarios, etc. O resto representa-se d’esta
fórma:

Juros e outros encargos atrazados   £ 253:780
Commissões e premio da emissão      » 295:003
Dinheiro                            » 288:529

De sorte que o producto dos dois milhões era realmente £353:129, a
terça parte (ou £606:909 se se lhe juntarem os juros atrazados) saíndo
ao juro annual effectivo de 16 por cento. (Ribeiro, _Critica, etc._)

O primeiro ensaio não provou feliz, mas o segundo foi ainda peior:
é verdade que as condições tambem tinham peiorado e havia já muitas
esperanças perdidas, mas a politica _liberal_ em materia de finanças
estava conhecida. Que outra cousa podia ser, senão agiotagem, o systema
acclamado pelos bolsistas de Londres? A emissão de £600:000 (23 de
outubro de 32) produzia, liquido de premios e commissões, £151:925,
custando pois a razão de quasi 20 por cento ao anno. Já em Lisboa,
depois (14 de setembro de 33), contratam-se outros dois milhões; e
por fim, destinado á conversão do papel-moeda, um ultimo milhão. Os
tres milhões produzem, ainda captivos de commissões e premios que se
encobriam, £2.356:756, (V. _Relatorio_, etc.) que não dariam mais de
dezoito ou dezenove centenas de milhares de libras, custando entre 8 e
9 por cento.

Somma total, a divida externa, que do emprestimo de 1823, contava um
milhão esterlina, subia a quasi sete (6.729:800) ou 29:400 contos da
nossa moeda com o encargo annual de 1870. (_Orçamento para_ 35-6)

       *       *       *       *       *

Falta-nos vêr agora, para completar o nosso estudo, o estado da divida
interna. A importancia d’ella era em principios de 28: (_ap._ Bulhões,
_Divida port._)

Com juro: Consolidados de 1796 a 1827      contos 13:402
          Padrões, a cargo do Thesouro        »    7:000  20:402
                                                  ------
Sem juro: Papel-moeda, orçado em              »    6:000
          Divida fluctuante (atrazados)       »    6:490
          Emprestimos diversos                »    1:430
          Exercicios findos                   »    4:778  18:698
                                                  ------  ------
                                            Total  contos 39:100

Depois da conversão do papel-moeda; depois do decreto (23 de abril de
35) que converteu em 4 por cento, como juro a metal, a divida antiga de
6 na forma da lei; liquidada a guerra e consummadas as bancas-rotas,
podemos apreciar o estado em que se achou o Thesouro: (V. _Coll. de
Contas da Junta_; Ribeiro, _Critica_ e Bulhões, _Div. port._)


_Divida reconhecida_

Com juro: Emprestimos liberaes dos Açores,
            do Porto e de Lisboa           contos  2:520
          Titulos de divida antiga            »   12:375   14:895
                                                  ------
Sem juro: Papel-moeda, por amortisar          »    3:500
          Divida fluctuante (atrazados)       »    5:689
          Juros por pagar                     »      897   10:086
                                                  ------   ------
                                           Somma  contos   24:981
                                                           ======


_Divida não reconhecida_

Legitima:   Padrões de juros reaes          contos 4:800
            Outros emprestimos anteriores      »   1:670
            Atrazados de 23-4                  »  10:543
            Indemnisações approvadas, por
              pagar; e diversos                »  11:000    28:013

Illegitima: Emprestimos de D. Miguel em
              28-30                                          4:443
                                                            ------
                                            Somma  contos   32:456
                                                            ------
                                            Total    »      57:437
                                                            ======

O Thesouro, pois, devia em 1828                    contos   39:100
  e confessava dever em 1835:
  por titulos passados a extrangeiros     29:400     »
   »    »     nacionaes                   25:000     »      54:400
                                          ------            ------
                                  Excesso            »      15:300
Deixando de reconhecer creditos legitimos por        »      28:000
                                                            ------
                                  Excesso            »      43:300
                                                            ======

A esta somma devem juntar-se ainda os titulos naturalmente amortisados
pela abolição das corporações possuidoras d’elles. Quanto a encargos,
porém, a situação do Thesouro é diversa: pois a divida com juro era,
em 1828, de 20 mil contos e agora é de 44:300. Apesar da somma de bens
confiscados, o encargo do orçamento duplíca, embora se não paguem os
juros dos padrões, ainda representantes de um capital de cinco mil
contos.

       *       *       *       *       *

É impossivel dizer que sommas a crise custou á nação, porque se não
medem por numeros as perdas de riqueza e trabalho por todo o paiz,
e menos ainda a perda de gente e de forca, consumidas pela guerra e
pela intriga. Menos se póde contar ainda o valor perdido das energias
gastas em sustos e afflicções!

Póde talvez, porém, calcular-se o que financeiramente se perdeu,
reunindo numeros conhecidos:


_Por parte dos Liberaes_

Valor da divida que contrahiram no reino e fóra      27:522
  Id. dos subsidios do Brazil, recebidos              2:943
  Id. dos atrazados por pagar em 34                   4:000
Valor das indemnisações a solver                      7:000
  Id. das dividas legitimas não reconhecidas         17:013
  Id. do terço do papel-moeda, na conversão           2:500
  Id. dos confiscos de propriedade inimiga              ?


_Por parte dos Miguelistas_

Valor da divida que contrahiram                       4:443
  Id. dos vencimentos e juros não pagos durante o seu
governo                                               8:083
  Id. dos _dons_ voluntarios e confiscos                ?

Setenta, oitenta, cem mil contos, custou decerto á economia da nação
a guerra que terminára sem conseguir acabar ainda com a crise, porque
á lucta entre o velho e o novo Portugal iam succeder as luctas dos
partidos liberaes. Secco, devastado estava o reino com os vomitos da
cholera, as agonias da fome gemendo por todo elle: e da mesma fórma o
Thesouro, imagem viva do paiz, nú e vasio, gemia tambem com a lepra
da corrupção, da agiotagem, do puro roubo. O anno de 33-4 dera apenas
tres mil contos para uma despeza de treze mil;[5] e o orçamento de
35-6 apresentava um deficit de mais de quatro mil,[6] com receitas
exageradas.

Começaram a pronunciar-se vivamente os clamores contra a sociedade
Mendizabal-Carvalho e suas combinações em que tantos lucravam agios,
commissões, premios, bonus. Mendizabal furava pelo meio das bolsas de
Paris e Londres, dando luvas aos Rothschilds, aos Ricardos, aos Foulds,
aos Oppenheims, para pôrem o seu nome nos annuncios das emissões
portuguezas. (_A dynastia e a revol. de set._ anon.) Carvalho furava
pelo meio da selva das intrigas, como uma estrella caudata de ouro,
fechando os olhos: era dinheiro inglez! O seu processo evitava que a
causa se despopularisasse exigindo impostos, contentava o povo, pagava
tudo em dia, e dava ainda para vencer resistencias que as alfaias
dos conventos e os bens nacionaes não satisfaziam. Era uma chuva de
libras esterlinas: quem viesse depois, que se arranjasse! Não se podia
opprimir o povo, nem ser muito exigente com um funccionalismo inventado
assim, do pé para a mão, para pagar os serviços á causa. A decima
rendia apenas oitocentos contos; e até 1840 nem um dos recebedores
geraes nomeados em 34 tinha prestado contas: uns fugiam, outros
escondiam-se; e depois, ainda em vão o _Diario_, em 39, publicava a
lista dos remissos.

O ministro, indifferente, compassivo, passa-culpas, deixava ir,
considerando que o periodo era transitorio. Afinal, chegára o momento
da desforra: não tinham sido muitos os annos de amargura? Mas as
pretenções da opposição, exigindo limpeza de mãos ao governo, e
ameaçando com essa necessaria banca-rota onde acabam as viagens de
todos os Laws, veio transtornar a placidez dos dias felizes. Carvalho
caiu (27 de maio de 35) e no seu logar entrou o sincero Campos, mais
escrupuloso, menos atilado. Impellido para além do que a prudencia
mandava, o ministro expôz, em lagrimas, o triste sudario do Thesouro.
Chorar é bom; desacreditar o adversario póde não ser mau; mas que
remedio? Diz o povo que tristezas não pagam dividas. Campos tinha só
lagrimas e invectivas: caiu logo. (15 de julho) O Banco e a agiotagem
em peso exigiam a entrada de Rodrigo e de Silva Carvalho. Saldanha,
na presidencia, que havia de fazer? Deitou ao mar o lastro radical
do gabinete, admittiu os homens habeis em finanças. Estava imminente
a banca-rota: não havia um real, e os da opposição não mereciam
conceito aos argentarios. (Carnota, _Memor. of Sald._) O marechal,
entre os dois partidos, com a sua vaidade ingenua, já se acreditava um
arbitro--quasi um rei. Não o tinham convidado para monarcha no Rio
Grande? Não escrevia elle mais tarde, já depois de ter sido apenas o
méro instrumento cabralista, «estou persuadido que seria um bom chefe
n’um Estado qualquer»? (V. carta de 69, em Carnota, _ibid._) Deitou
fóra Loulé e Campos; metteu Rodrigo e Silva Carvalho.

Via-se que o Law portuguez, liberal em todos os sentidos e para com
todos, era indispensavel. Endividamo-nos: que tem isso? O futuro a Deus
pertence--dizem o turco e o portuguez. Nação de morgados hypothecados,
Portugal sentia-se bem empenhando o futuro. As dividas cresciam;
pagavam-se os juros com dividas novas; e assim se iam pedindo,
consolidando e pagando.--Não é o que ainda hoje[7] succede?--Só a
opposição clamava, e como a intriga era muita, apezar do fiasco do
verão, Campos voltou ao governo no inverno. (18 de novembro)

Desorientaram-se as cousas e o rival expulso esfregava as mãos
satisfeito: bem o dizia! Utopistas os que pretendiam viver dos recursos
d’uma casa arruinada! Pois não era evidentemente melhor aproveitar do
inglez que nos dava o que lhe pediamos? Era dinheiro que vinha para
cá. Tinhamol-o? Não. Custava muito caro? Deixal-o custar. Quando não
houvesse nada para os juros, não se pagavam: eis ahi está! Quem perdia?
O paiz? não; o inglez. Carvalho, que assim pensava, não deixava de ter
rasão; mas a hypocrisia politica impedia-lhe que o dissesse. D’ahi
provinha o ser batido pelas sonoras palavras dos adversarios.

Como os factos, porém, o vingaram! A desordem continuava a ser a mesma,
aggravada com a suspensão dos pagamentos. Os mercenarios clamavam
pelos soldos, suspirando por voltar para casa. Já conformados com a
falta das terras promettidas, pediam apenas um dinheiro que não havia.
Davam-se-lhes letras sobre Inglaterra, e empregados do thesouro, que já
tinham aprendido muito, iam a bordo descontar-lh’as a dez por cento e
mais. (Shaw, _Letters_) Tudo jogava: a vida era uma sorte. Farrobo fôra
cudilhado pela lei do papel-moeda. Faziam-se e desfaziam-se as riquezas
como nuvens passageiras. Bens de sacristão, cantando vêm, cantando vão!

O rigido Campos não era homem para tal gente, nem para tal epocha.
Levantava-se contra elle um clamor unanime dos prestamistas sem juros,
dos empregados sem vencimentos, dos soldados sem pret.--«Em que se
parece o sr. Campos com um cometa? Em ser barbato e caudato. E em que
mais? Nos resultados influentes. O do outro dia deixou-nos o frio, e
este a fome». (Bandeira, _Artilheiro_, n.º 19) Maldito governo que não
paga! «Isso é falta de paciencia ... O sr. Campos, quando entrou para o
thesouro, que achou lá? Pulgas!» (_Ibid._) Mas d’esses bichos, Carvalho
fazia libras, e por isso o foram chamar outra vez. (20 de abril de 36)
Era unico na sua especie.

       *       *       *       *       *

Comtudo os tempos iam durando, e nada ha peior do que o tempo
para todos os Laws. Se as cousas não andassem! Andavam, porém, e
rapidamente: com aquella velocidade progressiva da machina capitalista,
prolifica por meio dos juros, amortisações, capitalisações. Dois annos
tinham bastado para progredir d’este modo: (V. _Coll. de Contas_, 10
de setembro de 36)

                               1834    1836
                              ------  ------
Divida externa capital        29:400  40:398
  »    interna    »           14:895  20:748
                              ------  ------
                 Somma        44:295  61:146
                             |              |
                             +-------+------+
                                     |
Accrescimos--capital             16:851
             juros                  313
Divida sem juro:                     |                                     |
                             +-------+------+
                             |              |
      Papel moeda             3:500    3:115
      Diversos                6:586    6:852
                             |              |
                             +-------+------+
                                     |
Encargos totaes da divida: juros   2:334
                           amort.    627
    Divida mansa
(Padrões, atrazados, etc.)        17:013

E n’esses dois annos decorridos, estava consumido, além do mais, o
melhor dos bens nacionaes. Ardia tudo n’um fervor de appetite que já
para muitos começava a infundir receios de uma indigestão tremenda.
Dois annos de paz tinham custado quasi tanto como seis annos de guerra:
muito mais, se se contar o que o Thesouro não pagou. A guerra fôra
cara, mas a victoria era ruinosa. No meiado do verão (14 de julho de
36) pegou fogo no thesouro. Já tudo ardia, lá dentro d’esse palacio
onde á inquisição religiosa succedera a inquisição agiota, com as
suas tenazes de papel timbrado, os seus troncos de juros, retornos,
commissões, premios; com a sua algaravia bancaria, herdeira do
historico latim das sentenças singulares ... Qual dos desvarios dos
homens valerá mais?

Ardeu em verdadeiro lume o Thesouro em julho; mas já vinha ardendo
havia muito em lepra que o roía de torpezas, e n’um vasio que o
amargurava de contracções, como as dos estomagos famintos. O povo
dizia que o fogo fôra posto, para saldar muitas contas; mas o ministro,
Pombal da moderna finança, Law portuguez, iniciador da nação nova
nos segredos do capitalismo; o ministro, como o velho marquez no seu
terramoto, mandou pagar o semestre no dia seguinte. Ardia o Thesouro?
Agua ao fogo, e paguem!--traducção do «enterrar dos mortos e curar
dos vivos». Ardia o Thesouro! Boas, francas labaredas, impellidas por
uma ventania fresca, subiam crepitantes, levantando no ar os farrapos
da papelada. Durou doze horas o incendio, do meio-dia á meia noite.
Muitas horas mais, muitos dias, bastantes annos, ia durar outro
incendio, acceso pelas ambições mal soffridas, pelas illusões crentes,
pelo protesto contra o systema da veniaga e da delapidação, contra o
regabofe que a uns enchia de coleras e a muitos mais de invejas. Tambem
tinham soffrido: tambem queriam gozar!

Em julho ardeu o Thesouro; em setembro rebentou a revolução.


4.--A FAMILIA DOS POLITICOS

Mas antes de setembro e da nova face que as cousas tomam n’essa data,
falta-nos ainda estudar mais de um dos lados da nação, no seu primeiro
periodo liberal ...

Além das causas anteriores conhecidas, a propria victoria do novo
regime concorria mais ainda para que Portugal fosse uma nação de
empregados publicos. A suppressão dos conventos, o resfriamento
dos sentimentos religiosos, diminuiam a offerta e tambem a procura
de lugares na Egreja. As causas economicas anteriores já tinham,
póde dizer-se, supprimido a navegação; as tentativas industriaes
manufactureiras do marquez de Pombal não tinham vingado; e a recente
crise de oito annos, rematada por um terramoto das velhas instituições
sociaes, viera talar os campos, arruinar a agricultura. Portugal
achava-se, pois, forçado a substituir por um communismo burocratico
o extincto communismo monastico. Durante a guerra, a nação fôra um
exercito; agora, licenceadas as tropas e supprimidos os soldos, de que
viveriam os soldados? É verdade que o governo podia ter feito como se
fazia outr’ora em Roma; mas a distribuição das terras conquistadas não
podia ter lugar, porque os capitães queriam-n’as para si, por grosso.
Força era portanto optar por outra saída: e qual, senão os empregos
publicos?

Por sobre esta necessidade social appareciam as necessidades politicas.
Em que peze ás seccas affirmações doutrinarias e ás chimeras dos
philosophos, todas as nações consistem realmente na aggregação de
clientelas para as quaes um chefe é ao mesmo tempo um instrumento, um
representante e um defensor. Essa primeira fórma da sociedade romana
exprimia uma verdade natural que os systemas encobrem mal.[8] Quando,
mais tarde, se imagina subordinar a doutrinas abstractas a existencia
dos povos, observa-se que os factos naturaes espontaneos, reagindo,
tiram a realidade ás formulas. Assim, nas velhas monarchias havia
chefes e partidos, cujo poder era maior do que o do rei; assim, nos
governos formalistas liberaes, o poder pessoal dos chefes politicos,
apoiado sobre instrumentos como as eleições, a imprensa, etc., é a
força positiva que impera sophismando uma constituição, a qual os
chefes confessam e dizem respeitar por um sentimento de conveniencia e
de pudor publico, mais ou menos consciente.

Quando a machina social se desorganisa, apparecendo o que se chama
revolução ou crise, vêem-se mais ao vivo como as cousas são na
realidade. Era isto o que succedia entre nós, nos tempos que agora
atravessamos. Constituiam-se as clientelas; e como a sociedade era
ainda quasi um acampamento assente sobre um territorio desolado;
como não havia outros meios de vida patentes a numerosas classes
desorganisadas, essas clientelas eram o que podiam ser: burocraticas e
militares.

«Para um homem ser ministro de Estado basta que um batalhão, de
mãos dadas com um periodico, o queiram». (Bandeira, _Artilheiro_,
n.º 25) Sociedades como a portugueza, lançadas de chofre n’uma vida
nova, sem precedentes nem raizes na historia immediata; povos de um
temperamento violento ou ardente, sem instrucção nem riqueza: estão
condemnados a um revolvêr desordenado, em que idéas, ou falsas ou
mal concebidas, se combinam com os instinctos intimos que a anarchia
traz á flôr da realidade. Entre os debates de doutrinas extravagantes
e as luctas dos bandos armados, vae pouco a pouco effectuando-se,
de um modo naturalistamente espontaneo, a reconstituição do corpo
social desorganisado. É como quando o furacão levanta e ennovela o pó
das estradas que se agita, mistura-se, e gradualmente vae outra vez
assentando.

Nada nos deve pois admirar o que succedeu em Portugal: outrotanto
succede ainda hoje á Grecia e aos paizes do Oriente slavo; e o mesmo
que nos aconteceu a nós, foi o que se deu na Italia e na visinha
Hespanha. Os homens da Europa central, francezes, inglezes, allemães,
belgas, filhos de sociedades differentes, não podiam comprehender, nem
o nosso bandidismo, nem o systema das nossas clientelas ou partidos,
nem o nosso communismo burocratico, nem a nossa furia politica, paixão
dominante que a occasião, o interesse, e a doutrina da anarchia
individualista concorriam para fomentar. D’esta incomprehensão do
caracter da sociedade pelos extrangeiros que mandavam n’um paço
occupado por uma rainha quasi extrangeira, veiu a principal causa das
reacções e revoluções que alagaram o paiz em sangue, consummando a
obra de uma ruina já avançada. Dir-se-ha porém que, se tal motivo não
surgisse, a vida portugueza de 34 a 51 teria sido uma paz? Não, nunca.
Haveria apenas um elemento menos de guerra. Os diversos bandos, com
seus chefes e clientes, seus principios e interesses, seus programmas e
guerrilhas, teriam combatido da mesma fórma entre si, até que o cansaço
universal impuzesse uma paz que nenhuma clientela podia impôr com a
victoria, por falta de força bastante para a ganhar.

       *       *       *       *       *

O motivo de uma tal fraqueza está nas condições necessarias de uma
sociedade no caso da nossa. Os debates e as luctas dão-se entre a
minoria minima dos _politicos_, advogados ou militares, com discursos
ou correrias, formulas ou guerrilhas.

 Esta qualidade de homens é quasi a unica que se interessa nos negocios
 publicos; occupando todos os cargos da administração, constitue o que
 chamam opinião, domina as eleições e toma assento nas côrtes. D’ella
 se compõem os poderes executivo e legislativo, sendo ao mesmo tempo
 governo e povo. O numero d’estes politicos não é consideravel, mas é
 demasiado relativamente ao magro orçamento de Portugal. (Lasterie,
 _Portugal_ etc., na _Revue des deux mond._ 1841)

«Cada governamental, dizia o conde da Taipa, é um artigo da CARTA.»
E se, com effeito, o orçamento era magro de mais para sustentar os
politicos; se o communismo burocratico era bem mais difficil de manter
do que o monastico, pois os pedintes não se contentavam com o caldo e a
brôa das portarias: é tambem facto que os homens de alguma cousa haviam
de comer. E se não havia outra occupação para onde se voltassem?

    Uma nação de empregados
    É Portugal? Certamente.
    Até D. Miguel do throno
    De D. Maria é pretendente.

                    (Bandeira, _Artilheiro_, n. 22).

Não podia ser de outro modo, e já vimos o porquê. Mas o orçamento era
magro, magrissimo: se se pagava, honra seja á arte do nosso Law, que
achára em Mendizabal um corretor e em Londres uma colonia excellente
para a lavra das minas de libras. Comtudo essas fortunas sempre duram
pouco; e o Thesouro soffria de intermittentes, com os ataques de
escrupulo da opposição. Os pobres empregados viam-se n’uma situação
triste: «Em que se parecem com os papa-moscas? Em que estão todos com a
bocca aberta». (_Ibid. 31_)

Se é verdade que quem «ataca o governo não saiu despachado»; (_Ibid.
8_) não é menos verdade, comtudo, que seria injusto vêr na constituição
da familia politica o mobil exclusivo da fome ou da cubiça. Outros
motivos, não menos graves, concorriam para a formação das _gentes_
o para as rivalidades e luctas dos chefes e clientes. «Nunca póde
haver ministros bons; e porque? Porque os ministros são seis e os
pretendentes seis mil». (_Ibid. 28_) Nas velhas sociedades patriarchaes
ou feudaes, a tradição e a lei mantinham o lugar de cada um; mas agora
as fórmas de authoridade natural surgiam do seio da anarchia positiva,
e a doutrina da anarchia individualista e da concorrencia livre de
todos a tudo, consagrava a ambição do mando com a authoridade de uma
theoria.

A ambição, eis ahi, pois, o principal dos motivos pessoaes, superior
ainda á cubiça e á fome, cujo papel é mais anonymo e collectivo, mais
talvez dos clientes do que dos patrões. A franqueza com que todas as
portas se abriam a toda a gente; a segurança com que todo o «individuo»
por soberano, se achava apto para tudo; o _systema_, que destruira
a administração especialisada nas antigas juntas e conselhos, e
confiava a solução de todos os negocios ás assembléas saídas do cháos
da eleição; a victoria que «deitára tudo abaixo» e enchia de orgulhos
os demolidores: tudo concorria para inchar as vaidades e aquecer as
ambições. Pullulavam os _homens-novos_, soletrando Volney e Mirabeau,
Dupuy, Rousseau e o _Citator_, cheios de affirmações, philaucia, e
desprezo desdenhoso pelo antigo saber fradesco. E ao lado dos pedantes,
havia por todo o reino os ingenuos, cheios de crenças quasi religiosas
n’um Evangelho novo. A camara de Ribaldeira escrevia assim a Passos
Manuel:

 Não somos doutrinarios nem aristocratas; muito presamos Montesquieu,
 mas não é só elle que fórma a nossa propria bibliotheca; desde Hobbes
 até Rousseau, desde Machiavelli até Batham (_sic_) algües outros temos
 lido; em nossas aldeas tambem consultamos a Historia dos Washingtons,
 dos Triunvirs (!) dos Neros, etc., etc. (Off. de 20 de dez. autogr. na
 corr. dos Passos)

Os jornaes diziam tudo, conheciam todas as questões, resolviam todos
os problemas, porque nada ha mais atrevido do que a ignorancia. E
sentados sobre as ruinas da patria assolada, cuspiam-lhe em cima, com
desprezo, renegando-lhe a historia, com as cabecinhas empertigadas e
occas voltadas para a França, acclamada em phrases banalmente pomposas.
A emigração educára-os, e voltavam «enfatuados de sábia», escarnecendo
dos _goticos_, infelizes que nunca tinham saido de Portugal.

 Muitos se julgavam sabios por aprender um cumprimento em francez,
 misturando de vez em quando um _good night_ seguido de uma pirueta;
 por aprender meia duzia de nomes de autores, usar de charuto, alugar
 uma cara de tolo, raspar-lhe a vergonha, namorar a torto e a direito,
 entrar nos botequins, lêr por desfastio, fallar de politica e de não
 sei que contracto, metter a religião a ridiculo. (Bandeira, _Art. 23_).

Tudo era necessario e natural, embora seja indubitavelmente grutesco.
A pretensão de que a LIBERDADE era a formula absoluta, o systema a
verdade revelada e a historia uma peta; a pretensão da infallibilidade
da razão individual e da soberania das vontades humanas, tinham de
forçosamente trazer os costumes a um estado que corresponde aos outros
lados da physionomia social. A anarchia na escola era, e não podia
deixar de ser, a anarchia na realidade; e a negação systematica da
authoridade collectiva e do caracter organico da sociedade, depois
de condemnar a historia, condemnava a actualidade, valendo-se dos
abundantes documentos que ella lhe fornecia. Tudo era peta, burla,
infamia:

 Em que consiste o direito de votar? É o direito banal pelo qual eu sou
 obrigado a conduzir um papel de que não faço caso ...

 Que são os grandes, os chefes, junto ao throno? São canos reaes por
 onde se despeja toda a immundicie da alma dos seus protectores;
 delegados á latere do vicio, vendem os interesses do povo por um
 crachá, fazem e desfazem ministerios com a mesma sem-ceremonia com que
 despejam o regio ourinol ...

 Leilões de generos avariados: Boa-fé no largo das Necessidades;
 Egualdade de Direitos nas secretarias d’Estado; Liberdade de voto, nas
 assembléas eleitoraes, etc.

                  (Bandeira, _Artilheiro_, n. 2 e 23).

Com effeito, os chefes não se tornavam crédores de um respeito
demasiado.

Á morte de D. Pedro, segundo vimos, Palmella apoderou-se do governo,
fundindo-se a sua clientela, ou partido, com o da regencia n’esse
momento acabada. O caracter revolucionario do governo da dictadura
terminára, e dos antigos ficavam no ministerio apenas Freire, e
Carvalho o financeiro indispensavel. Era necessario pôr ponto no
«deitar abaixo». Já Palmella, no conselho de Estado, tinha votado com
a maioria contra a extincção dos conventos, que apezar d’isso Aguiar
decretou em secreto accôrdo com D. Pedro; já pozera depois o seu veto
ao remate do plano de Mousinho, a abolição dos morgados. Moderado
sempre e aristocrata, o radicalismo dos philosophos parecia-lhe tão mau
como a demagogia: quer a vencida demagogia miguelista, quer a demagogia
ameaçadora da opposição radical. Com os olhos invariavelmente voltados
para a Inglaterra, não concebia outro typo de nação, além do typo
aristocratico, liberal e conservador. No governo succedia-lhe agora
o que sempre lhe succedera: era antipathico e ninguem o recebia.
Reconhecendo todos a sua habilidade, parecia a todos que só a ambição
pessoal o movia. O povo, já minado pelas theorias democraticas,
considerava-o um tyranno; e a cauda dos odios pessoaes que as intrigas
e os erros da emigração lhe tinham feito, voltava-se agora e mordia-o.
Quando pela terceira vez a CARTA se rasgou para casar (1 de dezembro de
34) a rainha com o primeiro dos seus dois maridos allemães, quando a
opposição pedia «um fidalgo portuguez», dissera-se muito que Palmella
pensava em fazer da rainha sua nora.

Mas esse principe contratado para dar herdeiros á corôa portugueza (os
nossos visinhos hespanhoes chamam _coburgos_ a taes maridos) durou
pouco; e a sua morte (28 de março de 35) foi motivo de uma crise.
Lisboa appareceu crivada do pasquins accusando Palmella de envenenador,
o attribuindo-lhe a ambição de querer para seu filho a mão da rainha:
Wellington, de lá, apoiava o plano! O povo acreditou e saíu. Houve
tumultos graves (29), pedindo-se a cabeça do traidor. Terceira que já
em 27, nas Archotadas, _carregara essa canalha_ desembainhou outra vez
a espada fiel e manteve a ordem.

Mas só uma ordem apparente, porque no fundo havia uma anarchia real.
Varias clientelas, com os seus chefes e os seus programmas varios,
ambicionavam o poder. Palmella era um estorvo e contra elle se fundiam
as opposições todas, congregadas para o ataque.

    Um pasteleiro queria
    Fabricar um pastelão
    E porque tinha de nada
    Deu-lhe o nome de fusão

    Arde o forno, o pastel dentro
    Principia a fermentar
    Entornou-se; perde a massa:
    Só ficou o alguidar.

                     (Bandeira, _Artilh._ 12 set.)

Esse alguidar era Saldanha, que nunca pareceu mais vasio, mais de
barro, que agora. O rival tinha um pensamento, elle apenas um nome.
Palmella dispunha de uma clientela firme; Saldanha, já desacreditado
perante os radicaes, embora ainda representasse o papel de seu chefe,
era um general sem exercito, condemnado a presidir a um gabinete mixto.
Esturrou-se logo o pastel, e o alguidar appareceu transbordando de
gente radical: um ministerio puro de opposição. (Sá, Loulé, Caldeira,
Campos, 25 de nov.)

Varios tempos, licções eloquentes, arrependimentos já tardios, enchiam
a cabeça de Saldanha, lembrando-se do papel que fizera em 26-7, das
cousas que authorisara com o seu nome em Paris. Achara-se levado por
um ardor de gloria nas azas da revolução, e não tivera podido medir
bem o destino d’esse vôo. Já de ha muito que reconsiderara. O leitor
lembra-se dos episodios do Cartaxo. Mas, sem o talento do rival, que
ficaria sendo, se deixasse de ser o chefe de um radicalismo já então
por elle renegado? Uma espada apenas, prompta sempre a obedecer e
incapaz de mandar, como Terceira? Não: isso não podia admittil-o a sua
vaidade. Seria descer muito. Mas para não descer--elle provavelmente
já nem queria subir mais--era impossivel ficar immovel. O partido de
que se dizia chefe, tinha-o apenas como um rotulo, um pendão, sem dar
a minima importancia ás suas vontades ou desejos pessoaes. Seguia o
seu caminho, guiado por outros; e para que Saldanha, agora no governo,
não fosse francamente renegado, era mistér que saísse da inacção e
se declarasse o dictador que Passos foi no anno seguinte. Já em 27
succedera o mesmo, e lembrava esse episodio: quando faltava apenas
extender o braço e sagrar-se chefe da revolução, Saldanha, tendo-a
acompanhado até ahi, parava, tremia com escrupulos, fugindo.

Depois do Cartaxo quizera, como dissemos, remir os erros da emigração,
encostado-se ao cartismo (_Hontem, hoje e amanhan_, op. anon.); mas
os cartistas que lhe pagariam bem e usariam com prazer da sua espada,
como faziam á de Terceira, não lhe davam importancia ás opiniões nem
o reconheceriam chefe. Por seu lado os radicaes, vendo a fraqueza
inconsistente d’esse chefe theatral, sem repellirem o instrumento que
ainda lhes servia, já se esforçavam por mostrar bem claro que lhe não
obedeciam. Nas eleições de 34, Saldanha acompanhara D. Pedro ao Porto.
Ia n’uma posição singular, para convencer o principe do poder do seu
partido, dando por tal fórma um grande peso á sua adhesão ao throno. D.
Pedro, por seu lado, levava por fim bater no Porto, com a presença do
marechal, a influencia do radicalismo dirigido pelos irmãos Passos; e
com Saldanha á mão, Saldanha que lhe asseguraria a obediencia dos que
ainda talvez suppozesse seus clientes, esperava tudo da conversão do
caudilho militar ás opiniões conservadoras. (Macedo, _Traços_.)

Os chefes enthusiastas e fortes do futuro Setembrismo deram uma licção
ao principe e ao seu acolyto. Saldanha, candidato, foi batido no
primeiro escrutinio da eleição: onde estava o seu poder? Mas para
dizer a D. Pedro que a victoria lhe não pertencia, e para dizer ao
general que apesar do seu procedimento o não renegavam, usando de uma
magnanimidade que talvez o desviasse do tortuoso caminho que seguia,
elegeram-no no segundo escrutinio. (Macedo, _Traços_) Era uma victoria
mortal, uma estocada em cheio no inchado balão das esperanças dos dois
viajantes. Tornaram ambos a Lisboa corridos.

Saldanha, apesar de tudo, ainda foi sentar-se no ultimo e mais elevado
banco da esquerda da camara. Illudir-se-hia ainda com a boa figura que
fazia de lá a sua presença nobre e pomposa? Talvez; porque se tinha
ingenuamente n’uma grande conta, e dava ouvidos abertos á adulação.
(_Hontem, hoje e am._) Quando Palmella teve de cahir, o chefe natural
do governo era Saldanha: mas, como já vimos, a sua falsa posição
creou um _pastel_ mixto pouco duradouro; (4 de maio a 18 de nov.) e a
entrada do seu partido obrigou-o a elle a sahir, (25 de nov.) corrido,
desacreditado e renegado. Pagava o devido preço da sua politica dubia:
via fugir-lhe toda a clientela; era um homem perdido e abandonado pelos
que tinham sido os seus e o apeavam definitivamente de um throno que
durara oito ou nove annos. Retirou para Cintra a ensaiar lavouras.
(Carnota, _Mem._)

Não foi a queda d’esse chefe que pouco podia e já nada queria fazer,
foi a impotencia da nova clientela exaltada quem a precipitou do
governo (19 de abril de 36). Voltou a antiga gente, menos Palmella que
tambem no isolamento remia velhas culpas. Os dois próceres rivaes,
por tanto tempo inimigos poderosos, achavam-se egualmente reduzidos
a nada, agora que já se entendiam, depois de feitas as pazes. Havia
um outro duque, sem idéas politicas á maneira do diplomata, sem
fogachos de ambição e rompantes de soldado á maneira de Saldanha;
um outro duque, boa pessoa, politicamente nulla e por isso sempre
fiel, excellente individuo para pôr á frente de um governo onde a
antiga gente (Freire, Aguiar, Carvalho) restaurada queria começar uma
vida nova, pensando soffrear com o utilitarismo e uma administração
energicamente pratica, o torvelino de confusões politicas, de ambições
pessoaes. Seria outra dictadura. Mas onde estava D. Pedro? Terceira
presidiu a esse ministerio que a revolução de setembro derrubou,
encerrando o primeiro periodo da vida liberal portugueza.

Afflicto pelos pedintes, pois da sua clientela antiga só os mendigos
restavam fieis, despeitado, ferido no seu orgulho, prejudicado nos
seus interesses, Saldanha via-se na falsa posição de não poder ser
cousa nenhuma. Para o governo, vivamente atacado e decidido a dissolver
as camaras, o general buliçoso e ávido, era, porém, a ameaça viva de
uma revolta militar. Accusaram-n’o os seus amigos de outr’ora de se
ter vendido n’esta occasião: «desde aquella epocha, de deserções em
deserções, chegou á situação em que hoje (1854) está, desprezado por
todos os partidos: porque se algum ainda lhe faz festa não é porque o
estime, é por ser um tronco velho, sobre que ainda alguem se sustenta».
(Liberato, _Mem._)

Como é desoladora, melancholica, a historia funebre de todos estes
homens que a desesperança ou a fraqueza atiram como farrapos,
successivamente, para o lixo das gerações! Que singular poder tem a
anarchia das idéas, o imperio dos instinctos soltos, das chimeras
aladas fugitivas, para despedaçar os caracteres e perverter as
intelligencias! Já um caíu--Mousinho; hoje é outro, o heroe de 26, o
soldado do Porto--esse brilhante Saldanha! E ainda agora a procissão
começa; ainda agora vae no principio o devorar impossivel do Baal da
LIBERDADE, cujo ventre, como o do phrigio, pede honras, talentos,
forças e sangue, para o seu consumir incessante!

Com o fim d’este primeiro periodo da anarchia positiva acaba
Saldanha, da mesma fórma que Mousinho acabou ás mãos da sua anarchia
theorica. Acaba, dizemos; porque, embora a sua vida se prolongue
muito--demasiado!--ainda; embora o seu genio irrequieto, as suas
necessidades, a sua ambição, lhe não consintam abdicar e sumir-se, como
fez Mosinho e como fará Passos: a vida posterior que vae arrastar,
se tem ainda momentos theatraes, é uma triste miseria. De chefe de
um partido, passa a janisaro de um throno. De Cid, transforma-se em
Wallenstein. O que brigara para não ser a espada de Palmella, vem a ser
o punhal com que os Cabraes submettem o reino ao seu imperio. Sempre
simples, seguro de si, crendo-se muito, não tem a consciencia de quanto
desce. Lembra-se do que foi e poude; crê tudo o que os aduladores lhe
dizem, confia no soldado que ama por instincto o genio; incha-se com as
ovações que mais de uma vez ainda a turba ignara fará á sua sua figura
theatral, aberta, viva e san, sempre moça, nas proprias cans da velhice
que lhe emmolduram o rosto, augmentando ainda a seducção do aspecto
d’esse actor politico: «estou persuadido que seria um bom rei n’um
Estado qualquer!»

Rebellado ou submettido, contra ou pelo throno, no campo e em toda a
parte, comprado ou temido, Saldanha, suppondo-se um arbitro, não sente
quanto desce; não se reconhece um instrumento, nem que o deprimem as
cousas que faz. A confiança que tem em si chega a ser infantil: com a
mesma franqueza com que suppõe governar, imagina saber; e assim como as
suas politicas são chimeras, são tolices as suas obras homeopathicas,
ou inspiradas pelo catholicismo ardente que nunca perdeu. Quiz fazer
concordar o Genesis com a Geologia, e essa tentativa, ainda quando
soubesse o que não sabia, era a mesma que a sua propria pessoa
apresentava: a concordancia de um catholico e jacobino. D’essas
chimeras ficavam apenas livros maus e acções peiores. É verdade que os
livros, luxuosamente impressos, tinham douraduras nas capas: também a
vida do marechal tinha uma capa dourada de commendas, cordões e fardas
bordadas, que sobre um vulto bem apessoado, com a sua face bella e a
tradição da sua bravura, o faziam um excellente embaixador nas côrtes
extrangeiras.

Depois, caíu ainda mais, sem o saber, sem o sentir: crendo-se sempre um
grande homem. Agarraram-n’o os industriaes especuladores e serviram-se
da sua pompa para os seus negocios, sujando-o com trapaças ... Assim
acabou a historia a que agora vemos o começo. Em tão deploravel cousa
veiu a parar o homem que em 26 fôra como um heroe e o arbitro dos
destinos da patria.

Primeiro dos chefes politicos, reunindo á influencia parlamentar a
cortezan e uma influencia militar superior á de todos, a segunda phase
da vida de Saldanha devia ser esboçada aqui, n’este momento: é um typo
revelador. Ninguem teve uma clientela maior. Abandonou-a, renegando-a
pelo paço; e esses antigos saldanhistas de Paris, livres do estorvo que
já os sopeava, preparavam-se para o seu dia. Uma revolução andava no
ar: revolução que forçaria Saldanha a desembainhar a espada contra os
seus velhos clientes.

Approxima-se a crise; mas o leitor comprimirá a sua impaciencia,
porque, se já viu as fórmas mansas do regabofe, o dissipar do dominio
nacional, o beber a chuva de libras dos emprestimos inglezes, não
viu o outro lado da scena. A orgia era tambem cruel. Havia banquetes
e matanças. Estalava champagne, mas tambem estalavam repetidos,
insistentes, os tiros dos trabucos na caça dos vencidos. O portuguez
mostrava a outra fórma da sua sanha natural, respondendo com a bala á
forca.


5.--VÆ VICTIS!

A eloquencia do nobre Passos conseguira que se revogasse o decreto
iniquo das indemnisações:

 Tendes vós calculado d’onde hão do saír os meios para provêr á miseria
 de tantas familias que nós vamos fazer desgraçadas? Ou havemos de
 tapar os ouvidos e fechar os olhos ao coração, para não vermos
 espectaculo tão lastimoso? Quando um filho vos pedir pão, dar-lhe-heis
 uma pedra, ou um punhal ou o cadafalso? (Disc. de 28 de janeiro de 35)

A camara, como é sabido, aboliu o decreto, mas os miguelistas ainda
pagaram muitas «perdas e damnos»; pouparam-nos ao cadafalso, mas
deram-lhes pedras, punhaes e tiros de trabuco em desforra. A segurança
de uma victoria tão custosa, tão disputada, sobretudo incerta por tanto
tempo, embriagava homens que ouviam aos mestres doutrinas feitas a
proposito para os desenfrear. Soltaram-se com effeito todas as cubiças
e odios; pagaram-se a tiro todas as offensas; roubou-se e matou-se
impunemente. O miguelista era uma victima, um inimigo derrubado: o
vencedor punha-lhe o joelho no ventre e o punhal sobre a garganta.
Caçavam-se como se caçam os lobos, e cada offensa anterior, cada crime,
era punido com uma morte sem processo. Os vencedores, suppondo-se
arbitros de uma soberania absoluta, retribuiam a cento por um o que
antes haviam recebido.

Não era só, comtudo, a vingança que os movia, nem tambem a cubiça: era
um grande medo de que o monstro vencido erguesse a cabeça, á maneira
do que ás vezes faz o touro no circo, prostrado pelo bote do matador,
levantando-se e investindo, matando ás vezes, já nas ancias da morte.
Além do medo, havia ainda a fraqueza da authoridade liberal, fraqueza
inevitavel em que prégava ao povo a sua soberania, fraqueza natural no
dia seguinte ao da victoria; mas fraqueza infame, pois d’ella viviam
os chefes, passando culpas aos seus clientes, fechando os olhos aos
roubos e mortes: quando positivamente os não ordenavam para se livrarem
de rivaes incommodos ou de inimigos perigosos. Tal é a ultima face
da anarchia positiva; assim termina a serie de manifestações de uma
doutrina aggravada pelas condições de um momento. Destruira-se na
imaginação do povo o respeito da authoridade, condemnando-se-lhe o
principio com argumentos de philosopho; destruira-se todo o organismo
social; e em lugar d’elle via-se, portanto, a formação espontanea das
clientelas, chocando-se, disputando-se, consummando a ruina total,
explorando em proveito proprio a confusão dos elementos sociaes
desaggregados.

Toda esta dança macabra de partidos e pessoas corria sobre uma nação
faminta, apesar das libras que rodavam em Lisboa, e dos tivolis e
dos bailes das Laranjeiras. Força fôra accudir com socorros aos
lavradores. (Lei de 4 de outubro de 34) Uns queriam que o governo
comprasse gados e sementes e os distribuisse; mas a _doutrina_
ergueu-se, chamando a isso communismo, exigindo _liberdade_. Decidiu-se
emprestar dinheiro--oh, tonta tyrannia dos systemas!--para que o
pequeno lavrador comprasse grão e rezes n’um paiz assolado.[9] Toda
esta dança macabra de bandidismo infrene, dizemos, corria por sobre um
paiz devastado. No governo não havia força para impôr ordem, e havia
interessados em fomentar a desordem. Cada Ministro tinha o seu bando,
os seus _bravi_, para resolverem a tiro nos campos as pendencias que
a phrases se levantavam nas camaras. Mas ainda quando isto assim não
fosse, a condemnação em massa de todos os que no antigo regime exerciam
as funcções publicas; essa universal substituição do pessoal do
Estado, indispensavel para pagar os _serviços_, trazia aos lugares os
aventureiros, os incapazes, e verdadeiros bandidos.

Em vão se tinha duplicado (de 70 a 140) o numero dos julgados: era
impossivel corrigir uma desordem que a tantos convinha. Guerrilhas
armadas levavam de assalto as casas do miguelista vencido, roubando,
matando, dispersando as familias. Havia uma verdadeira, a unica
absoluta liberdade--a da força! Na Beira houve exemplos de uma
habilidade feroz singular. Matava-se a familia, deixando a vida apenas
ao chefe, em troca de um testamento a favor de alguem. Dias depois o
pobre apparecia morto e enriquecia-se d’esse modo. (_A dyn. e a revol.
de set._)

Os tribunaes, com o seu novo jury, eram machinas de vingança. De
Campo-maior, um bom homem escrevia a Manuel Passos o que observara. (29
de maio de 36; corr. autog. dos Passos) Saíra maguado de uma audiencia,
em que um negociante da terra pedia seis contos de perdas e damnos
a sete miguelistas que tinham deposto como testemunhas contra elle,
no tempo do Usurpador. O povo invadira-lhe os armazens, partira lhe
as janellas: nem uma testemunha, comtudo, accusava os réus de terem
praticado ou ordenado esses actos; mas o advogado «concluiu dizendo aos
jurados que já que não podiamos tirar a vida aos realistas por causa
da convenção d’Evora-Monte, lhes tirassemos os bens, pois que era esse
o unico mal que lhes podiamos fazer.--Os jurados eram quasi todos da
guarda-nacional e querem tambem indemnisações: condemnaram os réus na
conta pedida. Isto me fez tremer pela liberdade!» (Carta de José Nunes
da Matta)

Os magistrados novos roubavam desaforadamente; e o juiz de Angeja
conseguiu tornar-se notavel: só lhe faltou levar as portas e os
telhados das casas. (_A dyn. e a revol. de set._) Era um positivo
saque. O povo creou tal raiva a esse ladrão que a gente do Pinheiro
foi esperal-o, quando ia a Ovar, obrigando-o a fugir n’uma carreira
que só parou no Alemtejo. (_Ibid._) Na propria Lisboa succediam cousas
incriveis. Por ordem do governo foi saqueada a casa do visconde
de Azurara, ausente, e dois amigos do ministro ficaram-lhe com as
mobilias. (_Ibid._) O que succedeu ás dos conventos sabe-se--ou antes
ninguem soube. Bandeira, o Esopo liberal, que bom foi não ter morrido
em 28, publicava no novo diccionario: «Delicto-Delirio.--A significação
d’estas duas palavras ainda não está bem fixada, e varía em tempos e
paizes diversos».

       *       *       *       *       *

Não se imagine que escurecemos as côres do quadro. Leia qualquer as
memorias do tempo, ouça os que ainda vivem, e ficará sabendo como a
anarchia na doutrina, que era uma anarchia no governo, era tambem uma
anarchia de bandidos por todo o reino, matando e roubando impunemente.
E por cima de tudo isto pairava um medo positivo que entorpecia a acção
dos mandantes, e justificava, no sentido de uma defeza feroz, a caça do
miguelista.

 Aos corcundas promette-se D. Miguel; aos liberaes vertiginosos a carta
 de 20: revoluçãosinha no Casal-dos-ovos; Juntinha na Pederneira;
 Juntinha em Barrozas: ahi está tudo em aguas turvas; e é então que
 D. Miguel pesca. D’um lado o _Ecco_, o _Interessante_, o _Percursor_
 e o _Contrabandista_; e do outro o _Nacional_, o _Diabrete_, o
 _Marche-Marche_ e a _Vedeta_ dão com vocês doidos; e no meio d’esta
 confusão chega o _casus fœderis_, invoca-se a estupidez da nação, o
 desejo do absolutismo--e apparece o Homem! (Bandeira, _Artilheiro_ n.º
 16)

Á sombra d’esta confusão e d’este medo havia impunidade para tudo;
e n’um sentido era benemerito o bandido que assassinava e roubava o
inimigo. De facto não terminara a guerra: continuava, sob a fórma
de uma caçada. Em Setubal havia infinidade de ladrões e os proprios
militares não se atreviam a sair sem armas. (Shaw, _Letters_) Os
salteadores faziam batidas, traziam cadaveres que o povo, tomado de um
furor egual ao antigo, mas inverso no objecto, enterrava, cantando e
bailando. Pareciam selvagens. (_Ibid._) Serpa ficou celebre pela gente
que ali foi morta a tiro, sem combate, pelas janellas e pelas portas.
Batia-se: vinham abrir, e uma bala entrava e o infeliz morria. Era
um miguelista: não vale a pena incommodos. A justiça não se movia;
pagou culpas antigas! E os assassinos eram benemeritos. No Porto (20
de março de 35) o façanhudo Pita Bezerra, antigo carrasco cuja morte
se comprehende melhor, indo á Relação a perguntas, foi assaltado pela
multidão que o tirou á escolta, levando-o á Praça-Nova onde o matou;
arrastando o cadaver puxado por uma corda, pela ponte, a Villa-nova,
como quem mostra um lobo morto ás aldeias, e deitando-o por fim
ao rio. As quadrilhas de Midões assolavam toda a Beira. Arganil,
Avô, Coja, Folques, Goes, Villa-cova foram positivamente saqueadas,
levando os bandidos o despejo em comboyos de carros. (Secco, _Mem._) O
bandoleirismo florescia n’essa região serrana, como raiz de uma velha
planta que rebenta assim que bebe um raio de sol. Eram os descendentes
de Viriato. O miguelismo armara-os, e agora, bafejados pelo ar benefico
da anarchia, uns, implorados e defendidos pelos senhores de Lisboa
a quem serviam, voltavam-se contra os miguelistas, indifferentes a
partidos e opiniões, seguindo o seu instincto de uma vida aventurosa
e bravia. Outros, porém, mantinham-se fieis aos padres, e nos broncos
cerebros d’esses quasi selvagens apenas os fetiches do catholicismo[10]
podiam ás vezes mais do que os instinctos espontaneos. Era uma Italia
meridional, nas suas serras, o paiz que acabara sendo em Lisboa uma
Napoles. As Beiras viviam, á maneira da Grecia de ha poucos annos,
uma existencia primitiva da tribu armada, alimentando-se do roubo,
admirando a destreza e a coragem dos seus chefes.

Havia na serra da Estrela a guerrilha miguelista do padre Joaquim, de
Carragozela, irmão do celebre Luiz Paulino secretario da Universidade
no tempo de D. Miguel. Havia contra ella as dos Brandões, de Midões,
que serviam o Rodrigo e o Saldanha, chefes-de-partido em Lisboa.
Fundiram-se um dia esses inimigos no convenio de Gavinhos; mas ficaram
dessidentes os do Caca, fieis ao miguelismo, e acabaram queimados n’uma
adega, depois de a defenderem contra os sitiantes. (Secco, _Mem._) A
fusão das guerrilhas da Beira creou na serra um verdadeiro terror,
porque ninguem ousava desobedecer, e imperavam, saqueavam: houve casas
queimadas e, á luz dos incendios, orgias de vinho e estupros. (_Ibid._)

E nas revoluções e pronunciamentos que vão principiar em 36, n’essa
segunda epocha em que a anarchia passa violentamente para o governo,
tornando todo o exercito n’um corpo de guerrilhas, vê-se a tropa, ora
alliada, ora inimiga dos bandidos; e os palikaras portuguezes _fazendo
eleições_, pela Patuléa ou pelo Cabraes, levando as leis nas boccas dos
trabucos e resolvendo a tiro as pendencias locaes.

Vem distante, porém, isso ainda. Agora a faina é saquear e eliminar o
miguelista. De 34 a 39 só em Oliveira-do-Conde e nas Cabanas houve mais
de trinta assassinatos impunes. (_Ibid._) E nas côrtes e 38, Franzini
apresentou uma nota do periodo de julho de 33 a 37, que diz assim:

Faro      --     assassinatos 285 roubos  509
Castello-branco        »       84    »     90
Portalegre       assassinatos  89  roubos 595
Guarda                 »       221   »    373
Porto                  »       528   »    378
Braga                  »        41   »    620

O minhoto roubava melhor; na Beira e no Algarve matava-se com mais
furia. No Porto houvera mais de quinhentos mortos; mas a capital, onde
em um anno apenas (Disc. de Franzini, sess. de 38) se tinham visto 194
assassinatos e 614 roubos--homem morto, um dia sim um dia não, e dois
roubos em cada dia!--a capital levava a palma a tudo. Não era ahi o
centro, o foco, o tabernaculo?

Voltemos ao nosso Esopo: «Filho de burro não póde ser cavallo, dizia
meu avô», e valendo-se da fórma popular da fabula, põe o burro em
dialogo com a Liberdade:

    Não fujas, diz-lhe o jumento,
    Burro, que havia eu fazer?
    Burro nasci e só burro
    É meu destino morrer!

       *       *       *       *       *

Burro, como se sabe, queria dizer miguelista; e o poeta exprimia a
convicção intima da nossa incapacidade para comprehender a nova lei.
Com effeito, assim parecia, ao observar-se o que se passava por toda
a parte: a vergonhosa miseria dos caracteres, a absoluta impotencia
das vontades no sentido de reconstituirem de qualquer modo o organismo
derrubado pelos golpes do machado de Mousinho. As lascas do velho
tronco, os ramos e as folhas da arvore antiga, caídos por terra,
apodreciam no charco das lagrimas e das saudades dos vencidos, do
sangue copioso dos cadaveres. Era uma decomposição rapida e já tudo
fermentava.

Mas no lodo dos paúes, nadando sobre as aguas esverdeadas e putridas,
vê-se abrir, elegante e candida, a flôr do nenuphar. Assim brotava pura
no charco nacional a esperança de um futuro, a miragem de um destino, a
chimera de uma doutrina, o encanto de uma voz--a meiga voz de Passos,
um messias, pedindo paz, ensinando amor.

 Eu detesto os homens rancorosos. Essa gente é má. Quem aborrece e não
 ama, não póde ser virtuoso, nem póde ser livre,--porque a liberdade é
 a humanidade. (Disc. de 10 de set. de 34)

A liberdade era para o novo apostolo uma cousa diversa, porque as
expressões vagas consentem que cada qual introduza n’ellas os mais
variados pensamentos. Para Mousinho fôra um estoicismo secco uma
negação do passado, uma doutrina racional e utilitaria: agora surgia
uma LIBERDADE nova, especie de vestal sagrada e evangelica, envolvida
n’uma nuvem doirada de ambições poeticas. O liberalismo portuguez via
nascer-lhe um Lamartine; e no descredito da primeira definição, as
esperanças voltavam-se para a nova fórmula.

 Temo muito a liberdade nos discursos, mas pouca nos corações. Ha
 muitos que a intendem, mas poucos que a saibam amar. Temos mais
 liberaes nas bibliothecas do que nas praças, nos tribunaes, no
 gabinete. Muitos ha que tém lido, que sabem toda a liberdade, e que
 ainda tém coração para a amarem, mas não o tém para a defenderem.
 (Disc. de 10 de nov. de 34)

Ardia então na camara o odio aos vencidos, e as palavras de paz eram
um acto de coragem. Essas palavras do parlamento, ainda ouvidas com
attenção de colera ou de esperança, eram commentadas pelas provincias;
e de muitos pontos, em numerosas cartas sem nome, chegavam ao tribuno
eloquente os abraços, os applausos. «Não estranhe chamar-lhe amigo, sem
nunca o ter conhecido: quem trabalha para o meu bem, tem jus á minha
amisade», dizia um; e outro: «O modo por que se houve na questão das
indemnisações denota um saber profundo. É nimiamente liberal porque é
tolerante, e humano porque é sabio. Acceite o signal de reconhecimento
de um militar que recebeu duas feridas na guerra e se gloria de pensar
pela cabeça de v. s.» E assim outros, muitos. (Corr. authogr. dos
Passos, 34-5)

Mas, por duros e resequidos que a guerra e a baixeza tornem os corações
dos homens, raro será o instante em que os não commova uma palavra
sentida, de uma bocca virtuosa. Intemerato no seu nome, seductor na sua
voz, candido, ingenuo, virtuoso, tambem estoico, Passos destacava-se e
erguia-se por sobre os outros com a superioridade dos genios caridosos
sobre os espiritos sómente lucidos. Era mais do que uma rasão, era uma
virtude; mais que um homem, quasi um santo. Em baixo, muito em baixo,
ficavam, chafurdando em odios e vilezas, as turbas dos politicos.
A palavra d’elle subia, evaporando-se nas nevoas de uma aspiração
poetica, superior ao que a condição dos homens permitte realisar.
Na sua caridosa chimera pedia mais do que paz, pedia egualdade e um
estreito abraço dos vencedores e dos vencidos.

 A minha firme convicção é que todas as opiniões devem ser
 representadas e que todas devem ter garantias. Isto que eu quero,
 querem-no tambem os opprimidos ... Não quero a pena de morte para
 nenhum cidadão portuguez: oxalá que nunca mais ella seja executada
 sobre a terra! Não quero tambem penas perpetuas, porque até no fundo
 de uma prisão a nenhum desgraçado deve faltar o balsamo consolador da
 Esperança ... Penso que as lagrimas de um parricida, regando o tumulo
 do pae trucidado, são bastantes para lhe fazer perdoar tão grande
 crime. (Disc. de 28 de jan. de 35)

A liberdade é a humanidade, dissera o novo apostolo da doutrina; mas o
seu Evangelho não era, como o antigo, apenas um discurso, falando ao
sentimento indefinido, á piedade, á caridade, irreductivel a formulas
e doutrinas, fundo de luz nebulosa do puro espirito humano, que o
eleva acima da realidade triste e o poetisa amaciando-lhe as agruras e
espinhos: o Evangelho de Passos era um canon, uma lei, uma doutrina--e
por isso uma chimera. Era uma poesia, posta na prosa necessariamente
rasteira da politica. D’esses miguelistas que a sua caridade perdoava,
e a sua humanidade restaurava ao gremio de cidadãos, dizia:

 Deixal-os ... se ainda não tém olhos para fitar a Urna e vêr que alli
 está a liberdade de todos os homens! (Disc. de 10 de nov. de 34)

Os bellos sentimentos tornavam-se opiniões, e faziam-se idolatria; das
nuvens doiradas de esperanças e desejos ficava o pó de umas formulas
e a illusão de um symbolo. A Urna era outra Cruz. E onde os artigos
doutrinarios punham a soberania da razão individual e o absolutismo
do direito do homem, a nova definição que Passos dava á Liberdade,
rejuvenescendo o jacobinismo da sua infancia com a poesia da sua alma,
punha a soberania do povo, a voz da multidão, congregada nos seus
comicios. O paiz perdia-se por não a querer ouvir; Portugal caía por
vêr na Liberdade uma doutrina de individualismo, não uma doutrina de
democracia. Tudo o que se fizera fôra um erro: tudo havia a fazer de
novo. Assim, nas ruinas da velha cidade portugueza assentára o dominio
de um systema que, arruinado em dois annos, ia ceder o lugar a outro
systema novo e a novas ruinas.

Havia cá fóra, para commentar e applaudir as palavras calorosas do
tribuno, prégando a nova lei, um vasto numero de homens armados, e uma
opinião unanime condemnando a gente velha. Havia, além d’isso, esse
estado de espirito aventuroso, excitado, prompto a romper: estado de
espirito proprio de quem chega de uma guerra. Ao voltarem á capital,
os batalhões de voluntarios não tinham desarmado; percebiam vagamente
que, apesar de terminada a campanha, a guerra não acabara ainda. Tudo o
que o governo fez para os desarmar por boas foi inutil: punham guardas
ás portas dos lugares indicados para a entrega das espingardas, afim
de impedir que os pusillanimes obedecessem. (_A dynastia e a revol.
de set._) De arma ao hombro, pois, havia uma legião prompta a apoiar
as palavras do tribuno que a força das cousas ia obrigar a descer da
camara para a rua, do céu ethereo das suas esperanças para o triste fim
das suas desillusões. Passos acabará, como acabou Mousinho.

De tal fórma termina o primeiro periodo d’esta historia: dois annos que
principiaram com o acabar da grande guerra. Vamos estudar a _segunda_
liberdade; depois estudaremos a _terceira_, a _quarta_, etc.--até ao
fim.


NOTAS DE RODAPÉ:

[1] Pela primeira vez tenho occasião de me referir ao interessante
livro do snr. Macedo, _Traços da historia contemporanea_; e no decurso
d’este trabalho o leitor verá quanto me valeram os subsidios que
encerra e de que me utilisei a mãos largas. Quando este facto me não
auctorisasse a confessa-lo, obrigava-me a isso a nimia benevolencia com
que, inspirado por uma amisade que o levou a vêr em mim meritos que
não possuo, o snr. Macedo me honrou dedicando-me o seu livro. Estas
palavras são o testemunho de um agradecimento que devia ser publico,
assim como a offerta o foi.

[2] «Tudo sorria; e não se divisava pedaço de terra sem lavoura:
o systema das irrigações lombardas era admiravelmente percebido e
executado. Todas as _cottages_, respirando um bem-estar industrioso,
tinham hortas bem resguardadas com seus meloaes e aboboras, sua fonte,
e cepas, figueiras e macieiras em latadas. Os camponezes bem vestidos,
olhavam-nos affavelmente, porque tinham o coração aberto pelo bom
trato, os celleiros cheios, numerosos os rebanhos, e nos frades de
Alcobaça senhorios, nem avarentos nem tyrannos.» _Recollections_, etc.
(1794) do auct. de Vathek. (Beckford.)

[3] Desde muito que, no conselho, Aguiar, contra a opinião da maioria,
instava pela abolição dos conventos. No dia em que em Evora-Monte se
assignava a convenção, terminando a guerra, Aguiar voltou a insistir e
tornou a ser vencido. D. Pedro, porém, reteve-o, depois da saida dos
collegas, e ordenou-lhe que lavrasse o decreto. O ministro foi do paço
para a imprensa, ahi redigiu o decreto, que se compôz e imprimiu em
segredo, á sua vista, e não saiu da imprensa senão quando o _Diario_
saiu tambem. Os collegas souberam, pois, pela folha, da decisão tomada,
e que, a não ser assim, nunca se effectuaria.--_Comm. verbal de Duarte
Nazareth, que a houvera do proprio Aguiar._

Eis aqui a estatistica das corporações monasticas e os seus rendimentos
em 1834. (V. _Mappa das corp. ext._ pub. 42.)

a) Ordens militares   Christo      com  3 casas  }
                      S. Thiago     »   1   »    } _Rendimentos_
                      Aviz          »   1   »    } 34:482 m. rs.
b) Ordens monachaes   Cruzios       »  12 conv. e  5 hosp. 120:244 m. rs.
                      Loyos         »   8   »    e  1   »   55:066   »
                      Cartuxos      »   2                    6:253   »
                      Bentos        »  22   »       4   »  106:665   »
                      Bernardos     »  15   »       1   »   63:178   »
                      Jeronymos     »   9   »       1   »   44:391   »
c) Congregações       Neris         »   8   »               30:053   »
                      Rilhafoles    »   4   »                9:015   »
                      Camillos      »   6   »                6:427   »
                      Congregados   »   1   »                1:674   »
                      Theatinos     »   1   »                1:116   »
d) Ordens mendicantes Paulistas    com 13 conv. e 2 hosp.   25:963   »
                      Gracianos     »  17   »     2   »     45:749   »
                      Carmelitas    »  13   »     2   »     22:913   »
                      Dominicos     »  22   »     2   »     65:563   »
                      Trinos        »   8   »     1   »     15:335 m. rs.
                      Hospitaleiros »   6   »                4:566   »
                      Franciscanos  »  57   »     4   »     19:437   »
e) Id. reformadas     Paulistas     »             2   »        528   »
                      Grillos       »  17         3   »     14:790   »
                      Marianos      »  15         1   »     26:844   »
                      Trinos        »   2                      222   »
                      Capuchos      »  99        10   »     19:794   »
                      Terceiros     »  20         1   »     13:289   »
                      Missionarios  »   4                      476   »
f) Diversos           Conceição     »   1         2   »        283   »
                      Minimos       »   1         1   »      2:051   »
                      Nazarenos     »   1             »         53   »
                      Barbadinhos   »   2             »        630   »
                      Carm. all.    »   1             »      3:124   »
                      Dom. irland.  »   1                    3:364 m. rs.

                    Total: 389 estabelecimentos com o rendimento de 763
                             contos de réis; sem contar 12 conventos de
                             freiras egualmente supprimidos.

Para que se possa comparar a decadencia das corporações no periodo
das luctas civis desde 20, eis aqui a estatistica do _Mappa_, pub. em 22:

Conventos e hospicios do sexo masculino, 402; com 6:249 pessoas,
(sendo 628 creados) e rendimento em dinheiro, fóra os fructos, 607 contos.

Id. do sexo feminino, 132; com 5:863 pessoas, (sendo educandas 912
e 1:971 creadas) e rendimento em dinheiro, fóra os fructos, 341 contos.

O sr. Soriano (_Utopias desmascaradas_, op.) calcula assim o total dos
bens-nacionaes provenientes das leis de 32-4:

Rendimentos dos conventos supprimidos              763 contos

Deduzindo o valor dos dizimos, direitos
  senhoriaes, quartas, oitavas, jugadas, etc.
  abolidos                                         240    »
                                                  ----
Rendimento da propriedade                          523    »
                                                  ----
O que equivale a um capital de contos                     12:000

Propriedade dos 12 conventos de freiras supprimidos         ?

Alfaias de todos os conventos, sumidas                     (400)

Bens da Universidade de Coimbra, da Patriarchal,
  de S. Maria-Maior, das capellas da corôa, das casas
  do Infantado e das Rainhas                               4:000

Até 1836 tinham-se vendido cinco mil contos; e no orçamento de 1838-9
apparecem como para vender 11:595.

[4] Se o leitor quizer exprimir o valor real dos numeros com que se
denominam todos os emprestimos, expropriações etc. que vamos estudando,
tem n’este preço um meio. Como se sabe, varias causas, e principalmente
a descoberta das minas da California, diminuiram posteriormente o valor
dos metaes preciosos. Se a libra sterlina valia (em 34) 3$750 rs. e
hoje vale 4$500, é claro que os numeros que temos estudado têem da ser
augmentados com a quinta parte. Assim, o valor dos bens dos conventos
orçado em doze mil contos era o equivalente de 14:400 de hoje.

[5] V. as _Contas_, na sessão de 35 (9 de janeiro), de agosto 33 ao fim
de junho 34:

Receita: Ordinaria                      contos   3:513

        Extraordinaria: Emprestimos         7:847
                        Prop. nacion.       2:516   10:363   13:876
                                            ------  -------
Despeza: Ordinaria: Casa real                 177
                    Reino, Extr. Justiça      672
                    Marinha                 1:299
                    Guerra                  4:932
                    Fazenda                   411    7:491
                                            -----
Especial: Serviço da divida e oper. de fundos        3:415
          Diversas                                   2:970   12:876
                                                    -------  ======


[6] V. _Orçamento_ de 35-6, sessão de 35:


         _Receita_                        _Despeza_

Imp. directos         1:638    Serviço dos ministerios 8:890
 »   indirectos       5:604    Divida interna          1:984
Proprios e diversos   1:178       »   externa          1:870
Ultramar              1:482    Ultramar                1:612
Deficit               4:454
                     ------                           ------
          Contos     14:356                 Contos    14:356
                     ======                           ======


[7] 1.ª ed. (1881).

[8] V. _Quadro das instituições primitivas_, pp. 57 e segg.

[9] A lei de 4 de outubro de 34 mandou emprestar até 650 contos (a
juro de 5 por cento e amortisação em 5 annos) assim distribuidos por
provincias: Algarve 108; Alemtejo 123; Beira-Alta 21; Beira-Baixa 25;
Douro 103; Extremadura 161; Minho 55; Traz-os-Montes 28.--Em novembro
havia metade dos emprestimos feitos.

[10] V. _Syst. dos mythos relig._, pp. 297 e segg.




II

PASSOS MANUEL


1.--A REVOLUÇÃO DE SETEMBRO

A antiga gente do governo não se achava melhor com a substituição de
Palmella por Terceira: o segundo duque valia pouco e estava ameaçado de
cair depressa. Esse primeiro semestre de 36 corria prenhe de ameaças.
Já Carvalho não podia sacar dinheiro de fóra e a sua fecundidade
desacreditava-se. Succedia-lhe atrazar os pagamentos, como a qualquer
outro. Já se deviam 15:000 contos, por vencimentos e despezas dos
ministerios (5:426), por letras e escriptos do Thesouro (3:610), por
adiantamentos do banco, (4:494--V. _Rel. de Passos_, sess. de 37) sem
falar na matilha de credores por divida mansa não reconhecida, ou
esquecida, em 34. N’um regime de communismo burocratico, como o nosso,
isto era gravissimo: casa onde não ha pão ...

Por isso, não falando dos clamores das ruas, havia no seio da camara
uma opposição vehemente e applaudida. Eram os dois Passos e Sampaio,
era José Estevão e o banqueiro Rio-Tinto; eram Costa-Cabral, o Nunes,
Sá-Nogueira e Julio Gomes. O ministerio sentia-se tão mal que em
julho (14) dissolvera a camara, para reunir gente sua, convocada para
setembro. De fóra batia-o o _Nacional_, á frente da imprensa inimiga; e
no club celebre dos Camillos (os ministros diziam _Camellos_) troava
acima de todas a voz de Costa Cabral pedindo uma tyrannia de plebe, o
sangue dos aristocratas e dizem que até a cabeça da rainha. (_Costa
Cabral em relevo_, anon.) Era o nosso Marat: porque nós, copiando a
França, imitavamos sempre os figurinos de Paris.

O governo _fez_ as eleições, que foram como todas; e como sempre,
_venceu_. O reino inteiro o queria com uma unanimidade e um
enthusiasmo, que poucas semanas bastaram para demonstrar. Venceu em
toda a parte: salvo no Porto rebelde, imperio, cidadella, dos irmãos
Passos, de Bouças. Já que tudo era copia, digamos tambem que a chegada
dos deputados do Porto a Lisboa foi como a dos marselhezes a Paris.

Succedeu isso no dia 9, no Terreiro-do-Paço, onde gente armada foi
esperar os recemvindos e acclamal-os, com morras á CARTA e ao governo,
vivas á constituição de 1820 (ou 22) e á revolução. «Indo-nos deitar
na cama á sombra da CARTA, acordámos debaixo das leis da constituição
dada pelo povo no anno de 1820. Todos esfregavam os olhos e perguntavam
se era um sonho o que ouviam: mas era com effeito uma realidade.»
(Liberato, _Mem._) Foi assim, com esta simplicidade, que as cousas
mudaram; o que prova, não a força dos que venciam, mas a podridão das
cousas vencidas. Havia a consciencia de que a machina social, por
desconjuntada, não marchava; e um tal sentimento deu o caracter de uma
_saldanhada_ á revolução de setembro, contra a qual ninguem protestou.
No dia 10, de madrugada, a guarda-nacional foi ao Paço exigir a
queda do gabinete e a proclamação da constituição de 20. No dia 11 o
ministerio caía, e de tarde foi a rainha aos Paços do concelho jurar a
nova--ou antiga--constituição. Inutil é dizer que a camara _feita_ não
se reuniu: era necessario _fazer_ outra, de feitio diverso. Entretanto
acclamara-se a dictadura de Passos, Vieira de Castro e Sá da Bandeira.
A victoria surprehendera a todos, e mais do que ninguem aos vencedores
que a não esperavam. Era mistér decisão, porque o barometro não é fiel
quando sobe rapidamente. Chamou-se a capitulo: o dictador-em-chefe,
com Leonel e Julio Gomes, deviam ordenar a maneira de eleger as novas
côrtes. O Rio-Tinto offerecia dinheiro. Havia um formigar espesso de
gente dedicada, prompta a sacrificar-se pela patria, pedindo os lugares
que os vencidos _devoravam_ havia tempo demasiado. Passos «tinha o
braço cançado de assignar demissões».

       *       *       *       *       *

Nós já conhecemos, desde 26, o tribuno do Porto elevado ao fastigio do
poder. Os dois Passos, filhos de um proprietario de Bouças, pertenciam
a essa burguezia do norte do reino por estirpe e temperamento. Tinham
nascido na abastança, desconhecendo as privações crueis da infancia que
umas vezes formam os homens, mas muitas mais os estragam. Seus paes,
sem grandes propriedades ruraes--ninguem as tem no Minho--possuiam
bastos capitaes moveis, o que tambem no Minho é commum: em 28 tinham
na companhia dos vinhos e em casas de commercio do Porto o melhor de
sessenta mil cruzados. Na casa de Guifões havia frequentes banquetes
á antiga portugueza, servidos em velhas pratas; e os dois moços
foram mandados a Coimbra, onde só iam os abastados. O pae destinava
o mais velho, José, ao clero; o segundo talvez á magistratura.
Por quarenta mil cruzados a dinheiro tinha contratada a compra do
priorado de Cedofeita para o que veiu a ser vice-presidente da junta
em 46, bacharel formado em Canones. 1828 destruiu todos estes planos,
arrastando os dois irmãos á emigração, onde a riqueza da familia
começou a fundir-se. De 28 a 31 a mãe mandou-lhes trinta mil cruzados
para Paris: ahi os moços irmãos Passos, dos raros emigrados ricos,
eram uma providencia dos companheiros pobres, entre os quaes estava
Saldanha. (_Corresp. de Port._ 13 de dez. 80)

Agora, supprimida a CARTA, começava-lhes uma vida nova, e um reinado;
mas a seu lado vê-se um nome que não ficaria decerto esquecido depois
dos louros de honra conquistados no exodo para a Galliza, em 28.

Sá da Bandeira nascera em 29 de setembro de 1795. Tinha pois agora
quarenta annos: o vigor da vida, e um braço de menos levado por uma
bala no lugar que, mutilando-o, lhe accrescentou o nome. Cadete em
1810, aos quinze annos, foi para a guerra da Peninsula, ficando até á
paz prisioneiro em França. O liberalismo entre cesarista e demagogo do
imperio napoleonico aprendeu-o, pois, na infancia. Voltou a Portugal
com a paz, e esteve ao lado dos jacobinos em 20, tornado a França do
seu degredo de Almeida. Intelligencia recta e caracter forte, nem
podia perceber as _nuances_ das cousas, nem dobrar-se ao imperio das
conveniencias. Militar fiel á bandeira, subdito fiel ao rei, cidadão
fiel á patria, espirito fiel aos _principios_, Sá-da-Bandeira não podia
ser um _condottiere_ como Saldanha, nem um _politico_ como Palmella,
nem simplesmente um instrumento militar como Terceira, nem tampouco um
tribuno, idolo revolucionario, como Passos.

A reacção de 1823 acha-o em Lisboa com vinte e oito annos e não
o seduz. Em vez de pregar no peito a medalha _da poeira_, como
fizeram Saldanha e Villa-Flôr, emigra outra vez; para regressar em
26, collocando-se ao lado do governo, fazendo a campanha contra os
apostolicos e acabando-a em 27, nomeado major por distincção. No anno
seguinte foi prestar os seus serviços á Junta do Porto, e bem se póde
dizer que lhe salvou o exercito e a honra militar na retirada para a
Galliza que o fez chorar de amargura. Tinha trinta e tres annos.

Sereno e firme, estoico o virtuoso, julgava-se o _homme-lige_ da
liberdade portugueza. Ligado por principios ao radicalismo, andou
separado das suas intrigas na emigração. Viu sempre a questão como
uma guerra e sobretudo queria desembainhar a sua espada, obedecendo,
sem ambições de mandar, com a serena ambição de seguir o seu dever,
servindo onde, como e quando fosse necessario. Por isso, logo em 29
passou de Inglaterra á Terceira; e tendo sido aprisionado pelo cruzeiro
miguelista, escapou da cadeia de S. Miguel, indo apresentar-se a
Villa-flôr com o qual fez a campanha dos Açores.

Veiu com a expedição ao reino; e D. Pedro nomeou-o governador militar
do Porto em 26 de julho, substituindo o antecessor (D. Thomaz
Mascarenhas) que fugira na noite panica de 23-4. Depois foi ministro;
e em 34 governador do Algarve, para bater as guerrilhas do Remechido.
Consolidada a paz, tributado o preito de fidelidade ao throno que a
guerra levantára, embainhou a espada e sentou-se na camara do lado
esquerdo, pois, no seu entender, de ambos os lados se era egualmente
fiel á monarchia liberal. Imperturbavel na sua serenidade, com um
systema de opiniões assaz concatenadas para um espirito avesso a
profundar as cousas, a humanidade era a sua religião, o dever a sua
moral, a monarchia o seu principio, a espada o seu amor, o _povo_ o seu
dilecto. Estava pois longe de ser um demagogo como os dos Camillos, nem
um tribuno da plebe, á maneira dos de Roma--como do facto era Passos.

A revolução de setembro surprehendeu-o tanto como a todos; mas
inquietou-o mais, porque desorganisava a ordem da sua vida, pondo
em conflicto diversos aspectos da sua opinião. Decidira-se pela
unica solução adequada ao seu genio--abster-se. Mas se na rua o
amavam, no paço conheciam-no. Elle era o homem unico para evitar
que a monarchia, assaltada, caisse. Talvez esperassem fazer d’elle
um Monk, ou um Saldanha, mas se assim pensavam, illudiam-se, e
illudiram-se. Sá-da-Bandeira foi um Lafayette. Trahir era um verbo
que elle desconhecia por instincto. Se a monarchia julgava que nem a
revolução, nem os principios de 1820 eram inconciliaveis, elle, que no
fundo do seu coração _amava_ o povo, elle para quem a liberdade era a
_humanidade_, folgava em não ter de mentir a nenhum dos seus deveres;
e faria o possivel por alcançar a conciliação, corrigindo todas as
demasias democraticas que puzessem em perigo a solidez do throno.
Instado, acceitou, porque lhe disseram ser isso, exactamente isso, o
que lealmente se queria; e com leal serenidade foi sentar-se ao lado do
tribuno para o aconselhar, moderando.

Ora o paço esperava sempre que elle fizesse mais alguma cousa: não
conhecia o fundo do seu estoicismo, e logo que o percebeu mudou de rumo.

       *       *       *       *       *

É verdade que, tambem, a marcha das cousas arrastava-o e via-se
perdido no meio da onda da demagogia solta, que já o não renegava a
elle só, mas até ao seu antigo idolo, ao nobre, adorado Passos. Os
Camillos rugiam pela bocca de José-Estevão que se julgava um Danton,
e de Costa-Cabral pseudo-Marat. Havia ahi quem, tirando classicamente
o punhal da algibeira da sobrecasaca e brandindo-o, ameaçasse medir
com elle a distancia das Necessidades ao caes-do-Tojo. E José Estevão,
agarrando a golla de pelle de cabrito da pseudo-toga do pseudo-Bruto,
gritava-lhe: «Calla-te, miseravel!»--N’um momento de franqueza
inconsequente, natural dos bons, Passos exclamara: «A nossa imprensa!
Eu não tenho com que a comparar senão com o theatro do Salitre ...
Desgraçada nação, se tivesse de ser governada pelos arbitrios dos
follicularios!» (Disc. de 16 de jan. de 36) Mais de uma vez, tambem,
condemnara as dictaduras em nome da rigidez dos principios. E agora a
fatalidade das cousas, erguendo-se para dissipar as illusões, fazia-o
servo d’essa imprensa e obrigava-o a ser um _vil despota_. «É o
governo dictador sobre as leis; dictadora a imprensa sobre o governo:
dictadores os assassinos sobre o governo. Ninguem conta _com o seu
emprego_, nem com a sua reputação, nem com o futuro da sua patria.»
(_O Tribuno portuguez_, outubro) O _emprego_ apparece á frente, como é
dever n’um communismo burocratico. Doía o braço do dictador assignando
demissões, mas nem assim conseguia vencer a fome dos pedintes. Antes,
era uma oligarchia mais facil de contentar; agora, a _democracia_, o
governo de todos, obrigaria a uma partilha universal, se se quizesse
saciar os desejos universaes. «Não ha quem se não lembre d’essas
medonhas colunmas de descamisados que, vindo em cardumes do Porto
e de outras partes do reino, pejavam as escadas das secretarias e
atulhavam as avenidas de todas as repartições publicas». (_Hontem,
hoje e amanhã_, op. anon.) A guarda-nacional imperava; havia toques
de rebate em permanencia e um susto constante na população. Que seria
ámanhan? Quem podia contar com o futuro, quando tudo estava á mercê das
_marcas_, que dominando a milicia civica, faziam d’ella um instrumento
de agitação permanente? Tocava o rebate nos sinos, e por toda a parte
soava o rebate da extravagancia das opiniões, da embriaguez da basofia,
com que todos, _liberalmente_, dotados de uma soberania indiscutivel e
de um conhecimento das cousas mais especiaes, dissertavam, debatiam,
decidiam, cada qual certo de possuir a formula infallivel para dar
remedio a tudo.

    Se queres sabio ser, _recipe_: Toma
    De Benjamin, Rousseau, outavas duas
    E nos theatros, nos cafés, nas ruas
    Falla em comicios, em Catões, em Roma.

    Corta o cossaco audaz que strue, que doma
    Da porta no Balkan o esforço, as luas;
    Falla d’Egas tambem, Magriço e Fuas,
    De Palmira, Paris, London, Sodoma.

    Do Palmella a politica retalha,
    Abocanha o Carvalho em porcas phrases
    E sobre a chamorrice grita e malha.

    Estas do sabio são agora as bases:
    Terás os bravos da servil canalha.
    Serás um sabichão dos mais capazes.

                    (Bandeira, _son._ abril de 36).

A allusão é transparente. O sabio é Passos, com a sua confusa massa
de doutrinas e de factos, de naturalismo e idealismo, de tradições
antigas, maximas moraes, e opiniões singulares sobre a historia
nacional. N’esse vasto mar do conhecimentos anarchicos, apenas a
poesia da sua imaginação e o stoicismo e a santidade do seu caracter
mascaravam a inconsistencia do seu pensamento. Era um cháos de
elementos intellectuaes sobre que pairava, como Jehovah na Biblia, a
luminosa ingenuidade da sua alma.

A desordem que elle tanto concorrera pura desencadear, sob a nova fórma
demagogica, com o encanto e a seducção da sua palavra, já começava a
affligil-o, por não saber com que meios dominal-a. Embaraçado na teia
das suas opiniões contradictorias, inspirado por um vivo amor pelo
_povo_, crente na verdade mysteriosa, quasi mystica da voz da multidão,
Passos via approximar-se o momento da sua queda infallivel e desejava-o
ardentemente. Era um sonho que se ia esvaindo, uma nuvem que se
dissipava. Por isso, quando caíu de facto, achou-se apenas com os doces
affectos domesticos, e, destruidas as esperanças, maldisse da patria,
fazendo-a a ella responsavel pela inviabilidade da doutrina.

Ainda esse instante não chegou, porém. Ainda o dictador impera, com
o seu aberto sorriso, com a lhaneza popular que na praça encanta a
turba. Ainda impera, e o seu dia melhor, mais glorioso não passou
ainda. Ainda impera; e se organisa a seu modo a machina eleitoral e
administrativa (cod. de dezembro 10)--porque sem ella não póde viver a
revolução; porque é necessario substituir pela democracia o liberalismo
da legislação do Mousinho--espera tudo da restauração da instrucção
publica. «Eduquem o povo, e elle saberá ser _livre_»; porque a
liberdade era um rotulo que se pregava em todas as cousas. «Continuado
o pensamento interrompido de Mousinho da Silveira, disse com a maxima
impropriedade Rebello da Silva, e applicando as forças da sua dictadura
triumphante, o primeiro ministro da revolução de setembro verificou na
esphera dos interesses moraes e administrativos o que o de D. Pedro
já consummara na das grandes reformas politicas e econonomicas».
(_Passos Manuel_, na _Rev. contemp._) Á dictadura de Passos devemos,
com effeito, as escholas polytechnicas de Lisboa e Porto, as duas menos
felizes academias de Bellas-artes, e o conservatorio da capital; mas
á sua doutrina da paz na liberdade democratica pela instrucção, não
respondem acaso as revoluções dos nossos dias, e _communas_ como a de
Paris «o cerebro do mundo», na phrase de muita gente simples? mas á
doutrina da solidariedade da instrucção e da _liberdade_, não repondem
os paizes instruidos que não são _livres_?

Passos era a incarnação de todas as _phrases_ democraticas; mas como
essas expressões, ainda vagas e indeterminadas, continham em si a
semente de verdades criticas, os homens que com ellas formavam a sua
alma eram poetas, sim, e por isso chimericos, sendo ao mesmo tempo,
como os poetas são sempre, nuncios de um futuro longiquo, victimas de
um presente cruel.

       *       *       *       *       *

Essa crueldade estava nos desvarios demagogicos e na reacção
decididamente planeada pelo paço. Sabemos que a rainha enviuvara: em
abril (10) tornou a casar-se com o joven príncipe de Coburgo, D.
Fernando. O rei dos belgas, Leopoldo, com a influencia que exercia
sobre a tambem joven soberana de Inglaterra, foi durante um certo
periodo o accessor dos monarchas portuguezes. Com o principe veiu para
Lisboa Van der Weyer, trazendo na sua pasta de ministro da Belgica
o rol de instrucções necessarias para chamar Portugal á razão, para
consolidar a dynastia e organisar o liberalismo entre nós. Leopoldo
era então o pontifice da doutrina, e a Inglaterra não só o ouvia,
como punha ás ordens dos seus planos portuguezes as suas forças
navaes. E quando a Inglaterra assim obedecia, que haviam de fazer
senão, convencidos, agradecidos, obedecer tambem os dois monarchas
portuguezes, moços sem experiencia do mundo, e sem conhecimento directo
do paiz sobre que reinavam?

Tal era a situação na côrte, quando os marselhezes chegaram do Porto
em setembro. Na tarde de 9, á espera do vapor, o Terreiro-do-Paço
estava cheio de gente e os vivas e foguetes estalaram ao desembarque.
De noite tocou a rebate e a guarda-nacional reuniu-se, proclamando
a constituição de 22. Mandaram-se tropas contra ella, mas essas
tropas fraternisaram.[11] (Sá, _Lettre au comte Goblet_, etc.) No
paço havia uma grande inquietação e Van der Weyer exigia do moço
rei que montasse a cavallo e fosse com os batalhões fieis suffocar
a revolta: D. Fernando recusou-se. (Goblet, _Établ. des Cobourg_.)
Reconhecendo então não haver para onde appellar, o accessor dos reis
lembrou Sá-da-Bandeira que foi chamado, e veiu á presença dos tres.
Que impressão faria no espirito grave do nosso militar achar-se de
tal modo perante uma rainha que nascera no Brazil de mãe austriaca,
perante um rei allemão, e um belga que os governava a ambos, em nome
do seu rei e com o apoio da Inglaterra: achar-se, dizemos, perante
esse grupo, dando em francez leis a Portugal rebellado? Pois uma tal
desnacionalisação do governo não influiria no animo de Sá-da-Bandeira
no sentido de o inclinar ainda mais para o _povo_, pelo qual tinha um
grande fraco? Elle não o diz: mas deve-se crer. Em todo o caso, fosse
pelo que fosse, recusou o papel de salvador que lhe queriam confiar.
Mas a guarda-nacional clamava na praça e os seus gritos chegavam á
sala. D. Fernando, affavel, bondoso, e já talvez sceptico apesar de ser
ainda moço, tomou-lhe do braço, seduzindo-o: «Era um grande favor!»--O
nobre general que amando o _povo_, queria muito á monarchia, cedeu
então. Não esperassem d’elle os serviços de um Monk; não. Era pelo
povo; reconhecia os erros da CARTA, e detestava a politica seguida até
alli. O seu plano consistia em defender os principios da revolução,
harmonisando quanto possivel a CARTA, (26) com a CONSTITUIÇÃO (22). Sob
taes condições resignava-se a acceitar. (Sá, _Lettre au comte Goblet_,
etc.) Rainha, rei e o belga olhavam-se: que remedio? Ainda era a melhor
solução; e sobre tudo não se tinham podido prevenir as cousas. Fôra
uma surpresa: remediar-se-hia. A conta em que os extrangeiros podiam
ter-nos, infere-se da historia deploravel da emigração e da guerra, de
certo conhecida por elles, melhor ainda do que nós a conhecemos e a
contámos. A convicção de sermos um povo que necessitava de tutella era
geral.

Sá-da-Bandeira saíu, formou se a trindade dos dictadores, publicou-se o
decreto revogando a CARTA e proclamando a constituição de 22, que seria
reformada pelas côrtes. A mão da rainha hesitava, tremia, ao assignar o
papel. (_Ibid._) E que admira? Esse decreto reduzia-lhe a corôa a cousa
nenhuma; tirava-lhe o direito do _veto_ e todos os direitos soberanos;
ficava sendo, ella, a nobre senhora tão cheia de caracter e vontade, o
mesmo que fôra seu avô; e não tinha, como tivera D. João VI, fleugma
bastante para se sentar de manhan rindo e abrir a _Gazeta_ «a vêr o
que tinha mandado na vespera». Rainha no sangue, homem no caracter, o
pensamento de uma desforra talvez partisse d’ella; e se não partiu, mas
sim dos conselhos do ministro belga, é certo que o abraçou, e peior lhe
queriamos se o não tivesse feito. Deploravel condição de um systema que
exige dos reis a falta de brio, nos conflictos da corôa com o povo, ou
a indifferença sceptica pelos debates das questões do povo sobre que
lhes diz reinarem! Deploravel idéa a que obriga a acclamar presidencia
de uma nação a fraqueza, a indolencia, a indifferença!

O caracter da rainha era o inverso de tudo isso; mas os conselhos
belgas e a protecção ingleza faziam com que, em vez de buscar apoio
e força dentro da nação, os acceitasse de fóra, tornando-se de tal
modo ré de um crime que desvirtua o merito da sua energia. Que
nacionalismo se podia, comtudo, esperar de uma côrte inteiramente
extrangeira? É verdade que, nem Saldanha, nem Terceira, tinham querido
jurar a constituição restaurada: mas o ultimo em uma espada apenas e
não um partido, e o primeiro descera á condição dos _bravi_, desde
que renegára o eminente papel de chefe dos jacobinos. Podiam juntos
levantar alguns batalhões e fizeram-n’o depois; mas não conseguiam com
isso senão aggravar a situação de um throno, que o povo já desadorava
por causa das influencias extrangeiras, e mais desadoraria quando o
visse pretender impôr-se, defendido por batalhões de janizaros.

Não tinha, não, é facto, o nobre caracter da rainha outra força a que
apoiar-se, mais do que esses dois generaes, mais do que as tropas e os
navios inglezes, mandados para o Tejo por conselho do rei dos belgas
e corretagem do seu omnipotente embaixador. D’este modo, o plano da
reacção, coevo de setembro, amadureceu com o desbragamento crescente
das cousas da revolução; e dois mezes d’ella, achando-se maduro
bastante, decidiu-se dar o golpe d’Estado.

Quando Terceira ia para Belem tomar a parte que lhe tinham destinado,
encontrou Passos, o tribuno do povo de Lisboa. Falaram, altercaram.
E os ministros porque não restabelecem a CARTA? perguntava-lhe o
duque.--«Porque não são traidores» respondia-lhe Passos com uma pompa
mais apparente do que sincera; «encarregam-lhes a defeza da revolução
e ella será defendida. A revolução tem sido generosa, porque é forte;
mas se tomam a nossa generosidade por fraqueza, se appellarem para as
armas, se provocarem a guerra civil, ai, dos vencidos!»--E tomando um
ar terrivel, o bondoso homem fazia a voz grossa, a vêr se intimidava:
«Em duas horas hei de ter fusilado mais _chamorros_ do que tenho
demittido em mezes ...»--E a prova de que a ameaça era fingida está
no tom com que prosegue: «Estamos na vespera da guerra civil: ámanhan
v. ex.ª vae commandar os exercitos da Rainha e eu os da Republica: se
a espada de Bouças se medir com a espada de Asseiceira, nem por isso
ficaremos inimigos». (V. _Discurso_ de Passos, 18 de out. de 44)

Estava-se com effeito na vespera de uma guerra civil que duraria
quinze annos, mais ou menos ensanguentados. Tudo em sombra e duvida no
edificio da _liberdade_; e que melhor symptoma o demonstra do que a
mistura de ameaças e ironias, com reminiscencias classicas (Republica),
rhetoricas, e laivos de um scepticismo que punha por cima das amizades
politicas as amizades pessoaes? O tribuno aperta a mão do general na
vespera da batalha? Que singular comedia é esta? e que papel têem
n’ella os pobres córos de um povo trazido para a rua pelas phrases
ardentes da tribuna? Entendeu-se os actores, e representam uma tragedia
em que o povo, soberano, omnipotente, origem de toda a auctoridade e
destino de toda a acção, é um comparsa apenas? É assim, é.

Mas não se despedace a bella estatua do tribuno, porque elle era
sincero na sua dobrez. A fatalidade póde mais do que os homens, e muito
mais ainda do que os poetas, no momento em que as visões de esperança
começam a dissipar-se. Era o que succedia a Manuel Passos, já abatido
e semi-acabado por dois mezes de dictadura. O seu melhor dia, comtudo,
não chegára ainda, e, como o cysne da fabula, ia entoar o seu canto,
nas vesperas de morrer.


2.--A BELEMZADA

Van der Weyer preparára tudo; o dia estava aprazado. Era indispensavel
vingar o brio da joven rainha (17 annos) que debulhada em lagrimas
tinha jurado a constituição (Macedo, _Traços_)[12]; era necessario
acreditar o reinado do moço (20 annos) D. Fernando, que o monarcha da
Belgica enviára para cá. O corpo diplomatico tinha pedido garantias; os
pares da direita, presididos por Palmella, tinham protestado. Passos e
Sá tinham sido chamados a palacio, a dar explicações perante o belga,
perante o inglez Howard. Temia-se tudo: o miguelismo, a republica, a
regencia de Isabel-Maria, velha preoccupação de outros tempos, ou da
imperatriz viuva em quem se falava agora. Os dictadores affirmavam a
sua lealdade ao throno, garantiam, asseguravam que se lhe não boliria
(_Ibid._); mas o caminho que as cousas tomavam fazia com effeito
receiar que não tivessem força egual á boa vontade.

Van der Weyer poz, portanto, em execução as instrucções que trazia.
Tutor dos jovens e obedientes monarchas, metteu mãos á obra. Seria um
golpe d’Estado rapido, a que tudo se submetteria; mas o belga, tendo
estudado Portugal, estudára pouco a inteireza do animo heroico do
seu ephemero dictador. Não fosse elle, e o plano teria vingado. Tudo
estava combinado com o rei Leopoldo, que mandaria tropas suas; mas
emquanto não chegavam, Palmerston, de accôrdo--porque a rainha Victoria
adorava o tio--pozera ás ordens uma esquadra com tropas de desembarque,
fundeada no Tejo. Nada se faz sem dinheiro: Portugal não o tinha,
e claro esta que havia de pagar o preço da sua educação liberal. A
Belgica adeantava o necessario, mas com penhor, porque os belgas são
seguros e mercadores; e o penhor seria uma das possessões de Africa.
(Sá, _Lettre au comte Goblet_, etc.) Oh, pobre Portugal, mandado por
todos, ludibrio das gentes, triste nação já saqueada do que possuias
no Oriente, para ganhares a dynastia brigantina, e agora ameaçada de
perderes a Africa, para conservares os teus reis liberaes e forasteiros!

Elles, que não tinham nas veias sangue portuguez, não córavam de
vender a nação; mas tampouco fervia o sangue dos cartistas que,
ávidos, contavam com o regresso dos tempos perdidos. Foi o dia dois
de novembro, dia lugubre dos finados, o da tenebrosa combinação.
Armados a bordo, com as lanchas equipadas, estavam os inglezes; e os
conspiradores a postos esperavam que as fardas vermelhas chegassem, ou
a rainha fosse para bordo. Não se tinha D. João VI refugiado tambem
na _Windsor Castle_? Sermos uma especie de Tunis parecia natural aos
homens gastos por tantas aventuras, tão varias intrigas, onde lhes
tinha ficado todo o brio e caracter que a natureza lhes déra; sem
parecer extranho ao rei extrangeiro, aos diplomatas sabedores da nossa
historia, e á rainha que havia ganho o throno á força de batalhas n’um
paiz inimigo.

Mas Passos disse, terminantemente--não! E a sua ordem era apoiada por
Lisboa em armas havia tres dias. Foi ao paço, no dia de finados; e
pareciam-lhe cadaveres, cousas mortas, esses portuguezes que, ladeados
pelos extrangeiros, á sombra d’elles lhe exigiam a restauração da
CARTA, e que renegasse a revolução, isto é, o seu nome, o seu brio, a
sua honra. Foi, ouviu-os, e á rainha disse que se fugisse para bordo
dos navios inglezes era o mesmo que se abdicasse; e se chamasse para
terra os soldados extrangeiros, era como se declarasse a guerra á
nação sobre que reinava. Já não sorria, como quando falara ao duque da
Terceira. Agora, o sangue pulava-lhe e a sua bella face illuminava-se
com o enthusiasmo: era a imagem da honra nacional. Se a rainha tramasse
a contra-revolução, arrepender-se-hia; se o não fizesse, veria quanto
era amada. (Macedo, _Traços_) As palavras saíam-lhe fluentes, com um
timbre sereno porque brotavam sinceras, candidas, da sua grande alma.
E, como finados, os conspiradores ouviam-no, calados, corridos--cousas
mortas que eram. Mas na alma da joven rainha não havia uma corda que
respondesse ao bater incessante da palavra eloquente do procurador
dos povos? Quem sabe? É natural que hesitasse entre os dois que a
disputavam.

Os ministros offereceram-lhe a demissão, que ella nem acceitou,
nem negou. (_Ibid._) Se hesitava decidiu-se por fim pelo belga,
contra o portuguez. Seduzida a guarnição pelos generaes, tudo estava
combinado e previsto. Caía a tarde do dia 3, quando a côrte saíu das
Necessidades para Belem, onde os regimentos de Lisboa foram juntar-se,
sem ordem do governo, obedecendo aos generaes conspiradores. Rodeada
de soldados, á sombra dos navios inglezes, a rainha sublevada mandou
chamar os ministros. Eram dez horas da noite e estavam reunidos em
casa de Passos. Delegaram Vieira-de-Castro, e sem rebate, caladamente,
reuniu-se a guarda-nacional. O emissario voltou: ainda bem que não
tinham ido todos, porque o plano era prendel-os: a contra-revolução
estava consummada.--Isso não! respondeu Passos; e levantando-se,
decidiu que fossem a Belem, á frente da guarda-nacional, vêr cara
a cara o inimigo. Sá-da-Bandeira ficaria em Lisboa. Tocasse-se a
rebate em todos os sinos, rufassem todos os tambores, houvesse alarme
contra uma côrte inimiga: a ameaça a forçaria a recuar.--Fez-se
como o dictador mandou; mas a côrte, vendo-o chegar com Lumiares e
Vieira-de-Castro, escarneceu-os, demittindo-os, pondo em lugar d’elles
um ministerio, do dia em que fôra combinado--um gabinete de finados!

A noite acabou em paz. Em Belem contava-se ganha a victoria; mas em
Lisboa ninguem dormia, todos se preparavam.

       *       *       *       *       *

O dia 4 começou com um assassinio. Já a turba armada, com os animos
excitados, fazia das ruas baluartes, fortificando-se á espera de uma
invasão. Já as avenidas de Belem estavam guarnecidas, para impedir
o passo aos que pretendessem ir apoiar os conspiradores. De Belem
chamava-se a capitulo: viesse toda a velha guarda liberal, fiel á
CARTA, que o extrangeiro estava prompto a restaural-a. Agostinho José
Freire vestia-se, fardava-se de encarnado, todo recamado de ouro, para
ir receber as ordens da sua rainha, isto é, para voltar a um poder de
que a revolução o expulsara.

Freire nascera em 28 de agosto de 1780; contava 56 annos, mas apesar da
vida trabalhosa, estava robusto e são. Seguira a carreira militar sendo
porém sempre politico. Appareceu aos quarenta annos secretario das
côrtes em 20, emigrando em 23, voltando em 26, tornando a emigrar em
28. D. Pedro chamara-o a si em França, nomeando-o ministro da guerra,
lugar em que o vimos quando o historiámos. (_Vida e tragico fim de A.
J. Freire_, anon.)

Agora afivelava o espadim, pendurava os crachás sobre a farda vermelha,
preparava-se, brunia-se, para apparecer glorioso no paço onde o
chamavam. Era um velho, todo branco, alto, magro, elegante, com uma
phisionomía fina que revelava o seu temperamento nervoso e excitavel.
Falava com elle Aguiar, mais positivo, e tambem convidado para ir a
Belem; falava, aconselhando-lhe prudencia: eram odiados, bem o sabiam,
e podiam reconhecel-os no camínho e soffrer algum insulto. Freire não
concordava. A sege esperava-o em baixo, e já fardado descia, convidando
o collega a acompanhal-o. Aguiar recusou; saiu a pé, abotoado, sem
insignias nem fardamento, direito a um caes para embarcar. Ainda assim
o reconheceram, largando botes a perseguil-o: deveu a vida ao pulso dos
seus quatro remadores. (_A dynastia e a revol. de set._)

Sopeada pelos cavallos, travada, corridas as cortinas engraixadas, a
sege de Agostinho José Freire descia a ladeira ingreme da Pampulha.
Em baixo, onde vêem dar as viellas que dizem para o rio, havia um
posto de guarda-nacional de arma ao hombro, para impedir as viagens a
Belem. Fizeram parar a sege, correr as cortinas, e deram em cheio com o
personagem na sua farda vermelha constellada de commendas e bordaduras.
Conheceram-no todos? De certo não; mas o facto é que a farda bastava
para denunciar um inimigo, e o commandante do 15.º batalhão deu-lhe a
voz de preso. Estalou um tiro quando Freire se apeiava: dobrou-se e
cahiu morto. (_Vida e tragico fim_, etc.)

Logo que um caso d’estes succede, vem a sanha, como de cannibaes, a
aggravar o acto commettido. Ha muitos a querer a honra do feito; ha
muitos mais a afogar n’um desvario de atrocidades o remorso espontaneo
de um crime. Sobre o cadaver ferviam os tiros. Despojaram-no de tudo,
deixando-o de rastos, semi-nu, contra um lado da rua, crivado de
feridas, escorrendo em sangue, com uma tijella de barro ao lado para
receber as esmolas dos transeuntes. Mais tarde foi levado em maca ao
cemiterio, seguido por uma turba furiosa que duas vezes o exhumou,
negando-lhe a paz na propria cova. (_Ibid._)

       *       *       *       *       *

Essa furia da populaça, victimando o ministro, fazia-o expiar os crimes
de muita gente. Os juizos do povo são como os que se attribuem a
Deus:[13] cégos, apparentemente injustos muitas vezes, são os juizos do
Fado que, indifferente a nomes, escolhe á sorte um homem para victima
expiatoria de crimes mais ou menos seus. Da mesma fórma o povo escolhe
os idolos e os réus.

Essa furia da populaça era a consequencia da exaltação em que o
acto aggressivo do paço lançava Lisboa e o seu povo, já _soberano_
segundo a lei, verdadeiramente soberano agora que as guardas nacionaes
imperavam armadas. Ao som do rebate, formavam, em ordem de batalha, no
Campo-de-Ourique na manhan do dia 4. Parecia imminente um combate entre
ellas e a guarnição reunida em Belem, em torno da rainha. Passos estava
no seu posto á frente do _povo armado_, quando vieram do paço chamar o
dictador. Que lhe queriam? Fosse o que fosse, elle partiu, arriscando a
vida.

Sá-da-Bandeira, a quem a Junta do Campo-de-Ourique convidára para o
commando, recusára a principio, da mesma fórma que antes havia recusado
o papel de Monk offerecido por Howard; mas agora a agitação crescente,
a imminencia da crise obrigavam-n’o, e ficava, mais para conter do que
para guiar o povo armado. (_Lettre au comte Goblet._)

Passos entrou no palacio, e dir-se-hia que voltavam essas antigas
scenas da Edade-media, quando os tribunos da plebe iam á frente dos
monarchas. Em volta da rainha estavam o rei e os diplomatas e os
pares do reino, os conselheiros d’Estado, a infanta D. Isabel Maria,
e a imperatriz viuva. Era toda a côrte reunida para ouvir, para
condemnar, para seduzir? Era toda a côrte, perante o homem de Bouças,
rei verdadeiro de Lisboa. Passos curvou-se, beijou a mão da rainha, e
esperou que lhe dissessem o que d’elle pretendiam.

Então, pela soberana falou--quem? O seu ministerio dos finados? Não.
O inglez Howard, o belga Van der Weyer, e só depois dos extrangeiros,
Villa-Real, Lavradio e Palmella no fim. As falas eram mansas; não
se alludia ao ministerio dos finados, porque a attitude de Lisboa,
de manhan, infundira medo. Tratava-se de seduzir, não de ameaçar.
S. M. não podia consentir na abolição da CARTA, mas estava decidida
a reformal-a: entretanto, o inglez affirmava que o seu governo
não toleraria em Portugal a constituição quasi republicana de 22.
Involuntariamente, os olhos dirigiam-se para o rio onde o vento soltava
a bandeira vermelha da Inglaterra na pôpa das suas naus. E do lado da
rainha todos continuavam a não extranhar a figura de idiotas que faziam.

Repetia-se a scena da vespera; e Passos repetiu, em francez, mas com
uma firmeza mais calma e triste, o que disséra na vespera. Fôra nomeado
ministro com a constituição de 22, e não com a CARTA, a cuja sombra
se desbaratara a riqueza nacional por não haver garantias politicas
contra a oligarchia reinante. Não renegaria a revolução, embora desde o
principio tivesse affirmado a necessidade de emendas que consolidassem
o throno. Não era uma questão de fórmas, era a questão do principio, da
origem da authoridade. A CARTA fôra um dom do throno, a _constituição_
uma conquista da soberania popular. Socegasse, entretanto, S. M. que o
povo não queria mal ao throno: haveria duas camaras, _veto_ absoluto,
e direito de dissolução, «como na CARTA. Será como na Belgica, dizia a
Van der Weyer: não podereis condemnar».--E voltando-se para o inglez
impertigado e impertinente, dizia-lhe que a lealdade portugueza não
recebia lições britannicas. Eramos um povo livre, e não acceitavamos a
intervenção de ninguem. As cousas inglezas que elle amava e admirava,
haviam de entrar ás boas, em navios mercantes, para terem despacho
livre. Vindo em navios de guerra, as leis da Inglaterra só serviriam
para lh’as devolver sob a fórma de cartuchos. S.M. teria dignidade
bastante para repellir as offertas da Inglaterra; se as não acceitasse,
Portugal deixaria por uma vez de ser uma prefeitura britannica e
o seu soberano uma especie de commissario das ilhas Jonias. «Se
desembarcarem, dizia por fim a Howard, serão batidos». Á rainha,
convidava-a a ir para o Campo d’Ourique, onde veria que amor lhe
tinham os subditos; e aos generaes em ultima instancia: «A Inglaterra
ameaça-nos: ninguem se deshonrará. O vosso logar é no Campo de Ourique,
á frente dos portuguezes que ahi defendem a independencia da patria»
(Macedo, _Traços_, etc.)

Era um doido, varrido, _poeta_. Pôr os pontos nos ii, falar com
sinceridade em politica! E uma audacia! E um orgulho, n’esse indigena!
Howard estava absorto, o belga confundido, a rainha perplexa, os seus
portuguezes corridos. Havia silencio, ouvia-se o arfar do peito do
tribuno que derramara a flux as ondas da sua indignação ... E o facto é
que talvez se não enganasse: Lisboa era por elle ... Talvez os inglezes
fossem batidos, talvez os regimentos portuguezes fraternisassem como em
setembro.[14] Talvez ... Talvez ... E havia uma hesitação singular, e
uma longa pausa, quando a voz lenta e fanhosa do moço rei, n’uma phrase
indiscreta, exprimiu em francez o seu despeito colerico. _Monsieur le
roi Passos, comment vont vos sujets à Lisbonne?_--Reprimindo-se, elle
respondeu que não tinha subditos: eram-no da rainha. E D. Fernando
objectou: Mas não lhe obedecem!--«Porque S. M. manda o que não póde--e
o que não deve!» E outra vez excitado pela temeraria ironia do rei,
voltou dizendo que ordenára uma resistencia energica--até ao fim: «Se
morrermos, morreremos bem!» (_Ibid._)

Ninguem duvidava de que elle fosse capaz de morrer. A scena, começada
com o apparato de uma opera, para a seducção de um tyranno plebeu,
acabava n’um drama pungente. Na face da sua côrte, á frente dos
embaixadores, a soberana estava abatida e humilhada pela soberania
d’esse homem, que não era só o idolo de um povo prompto a defendel-o:
era um heroe para quem não valiam lisonjas, nem adulações, um estoico
indomavel, uma virtude inaccessivel. Em vez de seduzido, Passos
acabava seduzindo os proprios inimigos. Os que se não penitenciavam
do erro, sumiam-se corridos. Trigoso dizia á rainha que depois de uma
tal imprudencia só uma solução restava.--E qual? perguntava ella,
arfando.--Abdicar.--Pois não haverá outro recurso?--Para reinar com
honra, nenhum; para reinar .. um só.--Então qual?--Entregarmo-nos á
discrição do Manuel Passos ... (Macedo, _Traços_, etc.)

A rainha queria reinar. E o tempo corria, sem que nada resultasse
das habilidades com que Palmella buscava embaír o _rei de Lisboa_. E
começava o fogo das avançadas nos seus postos (pois correra que Passos
não voltava por estar preso) sendo necessario um bilhete d’elle para
cessarem os tiros. Quem valeria em taes angustias, senão o fiel Sá da
Bandeira, para impedir á rainha a vergonha de se render á discrição do
seu émulo da capital? Era já noite quando Passos regressou á cidade;
e, na manhan de 5 Sá-da-Bandeira partiu para Belem a cobrir a retirada
da infeliz rainha.

Mas, durante essa noite, os seus conselheiros, ou impenitentes ou
timoratos, fizeram desembarcar na Junqueira seis ou setecentos soldados
inglezes. Era a guerra. Era apenas uma tolice? uma ordem mal cumprida?
O facto é que a guarda-nacional desceu do Campo d’Ourique a Alcantara,
gritando em côro--a Belem! E se lá chegasse a ir, ai da rainha e de
todos! Na vespera, o nobre Passos defendera o povo perante a côrte:
hoje, contra o povo enfurecido, defendia a vida da rainha. A cavallo,
atravessado sobre a ponte do ribeiro que corta a estrada, vedava em
Alcantara a unica passagem da turba enfurecida, falava-lhe, acalmava-a,
ameaçava-a. «Para Belem não se passa, senão por cima do meu cadaver!» E
não era uma phrase banal, porque o podiam esmagar n’uma onda que viesse
rolando de mais longe. O povo desforrava-se, gritando, blasphemando,
exprimindo nas suas phrases grutescas o nenhum conhecimento que tinha
dos motivos do conflicto, e como ia arrastado por uma fatalidade,
sem consciencia, movido por instinctos: «Querem duas camaras? deixem
estar que não se lhes ha de dar nem uma!» Passos, ouvindo isto e o
mais, sentia invadil-o uma nevoa de tristeza que varria a luz das suas
esperanças ... Tal era o _povo_, o soberano, cuja sabedoria lhe tinham
ensinado tantos livros inchados de periodos rotundos! E a mó da gente,
clamando, revolvia-se, fluindo, refluindo, contra a ponte, onde Passos,
a cavallo, parado, se julgava a si e julgava o _povo_.

Sá-da-Bandeira conferenciava então com Saldanha no palacio do conde da
Junqueira, e exigindo como condição prévia da composição o reembarque
das tropas inglezas, exigia o cumprimento da promessa da vespera: que
a rainha demittisse os ministros do golpe d’Estado, nomeando-o a elle
presidente do conselho, restaurando o ministerio anterior. A demora
fazia nascer suspeitas e mal se podia conter a populaça em Alcantara,
onde Sá tambem foi acalmal-a a pedido da rainha, d’onde voltava dizendo
que, sem o decreto assignado, nada se conseguiria. (Sá, _Lettre au
comte Goblet_).

Saíram pois os decretos, restaurou-se o ministerio, voltaram as
tropas para bordo dos navios, e com ellas se sumiram tambem a bordo
os ministros de finados e a gente de Belem. Á tarde a rainha,
confessando-se devedora do throno e da vida a Manuel Passos, voltou
egualmente de Belem para as Necessidades, vencida, humilhada, por entre
as alas das forças _setembristas_ que occupavam as ruas. (_Ibid._) A
noite acalmára tudo; e D. Maria II continuava a reinar. Com honra?

_Ut arundo fragilis_, como o seu primeiro avô Affonso, _ferebatur_.[15]
A rainha, ou por ella os que a aconselhavam, cediam á força--mas só
momentaneamente. Fôra um plano mal traçado: voltar-se-hia á carga,
logo que as circumstancias o permittissem. Na guerra é licito proceder
assim; e D. Maria II declarara, ou tinham-n’a feito declarar guerra á
nação setembrista. Van der Weyer olhava para Terceira, para Saldanha,
dizendo comsigo que, se não serviam para isso, de que serviam então?...


3.--AS CORTES CONSTITUINTES

Era obrigação dos diplomatas, que tinham lançado a côrte na aventura
frustrada de Belem, garantir a sorte dos numerosos refugiados a bordo
dos navios inglezes e dos não refugiados, mas compromettidos. Howard
exigiu de Sá-da-Bandeira um perdão, que tanto elle como Passos como
Vieira de Castro, os triumviros, desejavam dar. (Sá, _Lettre au comte
Goblet_.) A clemencia é virtude dos bons, a magnanimidade symptoma da
força. Com o resultado dos dois dias de Belem, o setembrismo ganhára
uma auctoridade que ia baixando muito. Rendida, sem ficar convertida, a
côrte reconhecia o poder da revolução: era mister agora cumprir o que
se promettera, discutindo e votando uma constituição que resalvasse o
principio de origem na soberania popular, dando porém ao throno o veto
e o direito de dissoluçaõ e ás altas classes uma segunda camara. Uma
semana depois da Belemzada saía (12) o decreto convocatorio; e a 26 de
janeiro de 37 reunia-se em Lisboa o congresso constituinte. Abolida a
CARTA, havia que reconstruir o mechanismo politico, e as divergencias
de interesses e doutrinas accentuavam-se.

Expulsos do poder, os cartistas eram obrigados a construir em partido o
que antes fôra um aggregado de bandos cada qual com seu chefe, porque
agora apparecia no governo uma doutrina adversa á de todos elles.
Gorjão Henriques definia no congresso esta attitude com a _partida_ de
apresentar a CARTA por emenda ao projecto de constituição. Eram dois
unicos os deputados cartistas, e apenas podiam protestar, esperando
a decomposição fatal dos vencedores. Por seu lado, os miguelistas
começavam a crear esperanças, perante a desorganisação do novo
Portugal. Alguns soldados velhos saíram de Lisboa para as Marnotas,
(13 de maio) entre Loures e Friellas--a esperar os touros? não, a
proclamar D. Miguel. Mas os camponezes, já esquecidos, crendo-os
salteadores, prenderam-nos e destroçaram-nos.[16]

Não era pois das direitas que o governo tinha a temer: era da cauda
temivel da sua esquerda demagogica.

       *       *       *       *       *

Ferviam os clubs, d’onde os tribunos levavam para a camara as
exigencias mais radicaes. Leonel-Tavares mandava do _Burjaca_.
Costa-Cabral não consentia que ninguem lhe passasse á frente, porque
toda a preoccupação do tempo era ser mais _avançado_ do que o visinho.
Cabral tinha o seu club tambem, no Arsenal (que depois fechou), e
ahi discutia pausadamente com os carpinteiros da Ribeira, com o
philanthropo Formiga, a maneira de dar maior latitude ás ideias
democraticas. (_Dicc. bio-pol._) Era todo mansidão, deferencia, quasi
humildade, para com o _povo soberano_, ao qual pedia que o illustrasse
e o dirigisse. Aconselhado, vinha secco e hirto, petulante como quem
traz o rei em certas visceras, aggredir no congresso o governo e a
sua moderação, exigir que houvesse uma camara apenas, e não houvesse
veto, e nem sombra de peias á liberdade de imprensa. (V. _Diar._
Sessão de 37; e o _Dicc._ cit.) Ao lado d’esse homem frio que, ou
mudou inteiramente depois, ou seguia o exemplo antigo dos tyrannos,
conquistando o poder pelo caminho da demagogia: ao seu lado via-se
um rapaz em quem um sangue generoso pulava com ardor, discipulo
melhorado, _avançado_, de Manuel Passos, a exemplo do que este fôra
para com Fernandes-Thomaz. No seio do liberalismo era proprio que cada
geração progredisse no sentido da anarchia; pois os moços, cada vez
menos doutos, incapazes de perceber as distincções e subtilezas da
eschola, viam os _principios_ em grosso, e exigiam, com a violencia
propria dos temperamentos generosos da Peninsula, que os principios se
tornassem factos.

José Estevão nascera em Aveiro em 26 de dezembro de 1809: contava
agora 27 annos apenas. Aos dezenove alistara-se no batalhão academico,
militando sob o commando do cachetico Refoios em Morouços e no Vouga.
Emigrara para a Galliza, depois para Inglaterra, d’onde foi á Terceira
e de lá veiu ao Porto, cabendo-lhe um lugar na defeza da Serra. (F.
Oliveira, _Esboço historico_) Bravo, honrado, a sua mocidade contava
já uma historia meritoria. Possuia todos os dotes de um temperamento
peninsular, com os defeitos correspondentes: tinha a hombridade
castelhana, o valor portuguez, a eloquencia de um andaluz, e uma
face aberta, illuminada, sympathica, a que a voz e a fala davam um
poder de seducção. Mas nem tinha saber, nem juizo, nem prudencia, nem
a consistencia, portanto, sem a qual não ha homem verdadeiramente
superior. Era o bello vehiculo de um instrumento composto de
sentimentos valorosos e nobres, expresso em phrases que saíam e soavam
como arias. Foi o primeiro, talvez o unico, dos _tenores_ sinceros da
_liberdade_ portugueza.

No congresso declarava «pertencer á seita da mocidade e glorificar-se
d’isto.» (_Disc. de 25 de abril_) E essa seita da mocidade, na qual
tinha a seu lado Cabral, Vasconcellos, Santos-Cruz, sentava-se na
extrema esquerda, e reclamava: «Juiz só, a julgar só; um rei só,
com ministros responsaveis a executar só; uma camara só--eis a minha
monarchia, eis o meu governo representativo». (José Estevão, _Disc.
de 5 de abril_) Era simples, claro como agua: um solo de instituições
abstractas, uma aria de abstracções liberaes. Como não lembrava ainda
que a logica exigia uma purificação maior: o governo do povo pelo povo,
o governo directo, ou antes nenhum governo, nem sombra de Estado, a
anarchia absoluta? Nem a tradição, nem a economia das forças sociaes,
nem o estado das classes, nem cousa alguma do que real e positivamente
constitue uma nação, se tinha em vista n’essas opiniões _avançadas_ que
obedeciam á tyrannia terrivel das fórmulas abstractas. Triste, pois,
desanimado, o demagogo lamentava-se: «Vejo que o throno póde demittir
os legisladores populares, póde estorvar que a lei se faça; vejo que
o throno tem o veto absoluto, o direito de dissolver, e o de nomear
senadores ...» (_Disc. de 5 de abril_)

E todas essas _concessões_--porque assim, forçosamente, eram
considerados os direitos soberanos pelos defensores da soberania
popular--enchiam a opposição de colera contra o governo que se dizia
ter renegado a Revolução. E os clubs, onde Cabral e José Estevão
iam chorar as suas maguas: o do _Burjaca_, de Leonel Tavares; o do
_Arsenal_, onde reinavam França _que tinha coração_ (_Hontem, Hoje e
am._) e Soares-Caldeira, ambos athletas, ambos ignorantes e queridos
do povo: os clubs commentavam o proceder do governo não poupando já
o proprio Passos por ter dado a mão aos moderados (Sabrosa, Raivoso,
Derramado, Taipa, etc.) em vez de a extender ao puro setembrismo,
patuléa, descamisado.

O singular da revolução de setembro, e o que particularmente assignala
o estado da nação, não é a cauda de radicaes que todas as revoluções
criam. O singular é o desanimo dos chefes, a espontaneidade immediata
com que se accusavam dos proprios actos. Veremos a que estado
melancolico de scepticismo politico chegou Passos; mas Taipa logo na
primeira sessão do congresso (18 de janeiro) se levantava para fazer o
seu acto de contrição: «Aboliu-se a CARTA, mas todos sabemos que nem a
CARTA é um codigo tão insufficiente para as nossas circumstancias que
valesse a pena de uma revolução para o destruir, nem a constituição de
22 tão perfeita que valesse a pena de uma revolução para a restaurar».
(V. Sá, _Lettre au comte Goblet_, etc.) E, entretanto, era contra a
CARTA que desde 30, ou ainda antes, todos esses homens vinham clamando,
como causa dos males nacionaes. Chega a revolução que a supprime, e
todos a lamentam; seguem por não poder deixar de ser, mas «ninguem a
desejava, ninguem a applaude» (_Ibid._) Porque declamavam, pois? Porque
lançavam á terra de um povo anarchisado a semente de uma revolução?
Vêem-na germinar, e lamentam?

O porquê é simples. Não mediam nem sabiam o alcance do que diziam; e
agora, a braços com as consequencias, deitavam á culpa dos homens o que
provinha da natureza das cousas, por não terem a coragem ou a lucidez
bastante para se confessarem desilludidos, mortos, como fez Passos.
Os mais arrependidos mas não confessos, affectando uma segurança
que não possuiam, só buscavam alijar sem muita deshonra um fardo
que lhes pezava. Rasgar o programma ou o rotulo, sentiam que seria
despedaçarem-se a si proprios, porque, para dentro das suas pessoas
de politicos, não tinham, como o grande tribuno, uma alma feita de
sinceridade estoica e virtude santa. Destruir a revolução sem a negar;
cortar a cauda incommoda dos descamisados, defendendo-se contra os
inimigos da direita para não perderem o posto; equilibrar, ponderar as
cousas; fazer uma constituição tão parecida com a CARTA que para o paço
fosse a mesma cousa, sem deixar de ser CONSTITUIÇÃO no nome--eis ahi o
pensamento dominante nos homens que, mau grado seu, se viam mandatarios
da revolução. (Sá, _Lettre_, etc.) Evidentemente, isto daria de si um
pender gradual para o estado anterior a setembro, e assim foi: a Passos
succede Sá, depois de Sá vem Pizarro, (ou Sabrosa, segundo o baronato
que teve), depois de Sabrosa, Bomfim, depois Aguiar, Palmella, Terceira
e por fim a restauração da CARTA (1842).

       *       *       *       *       *

Agora, com a demissão de Passos, (1 de julho) andava-se a primeira
legua. Que motivos expulsavam do governo o vencedor da rainha em
Belem? O pretexto foi o voto que a maioria do congresso deu contra
os sub-secretariados de Estado por elle propostos. O motivo foi,
provavelmente, essa victoria de que todos se arrependiam tanto, que
Sá-da-Bandeira, contando o drama em que foi actor, (_Lettre au comte
Goblet_) a esconde tão cuidadosamente que se não percebe porque
razão teria cedido a rainha, rasgando a nomeação dos seus ministros,
restaurando o _rei de Lisboa_ e todos os decretos da sua dictadura
de dois mezes.[17] Além d’este motivo, porém, havia outro, muito
doloroso: era a penuria extrema, eram os _pontos_, os _saltos_, nos
vencimentos dos cidadãos de um communismo burocratico; era tambem a
agiotagem escandalosa que, brotando espontanea sob todos os governos
de todos os partidos, tirava ao setembrista o credito que tinha quando
clamava contra os _devoristas_ de 35, contra os argentarios engordados
por Law-Carvalho.

Não tinham os setembristas um Law, nem podiam tel-o com os principios
de honestidade estoica dos seus chefes. Campos chorara, chorava: mas
em vez de pagar em ouro, pagava em explicações longas, massadoras,
recheiadas da adhesão á causa popular. (_Hontem, hoje e am._) Essa
sinceridade, inimiga das finanças, desacreditára o unico financeiro
do partido; e a principal _pasta_ em um paiz devorado, teve de ficar
nas mãos pouco habeis, mas limpissimas de Sá, de Passos Manuel, cujo
estoicismo desprezava o dinheiro, cujo verbo ou cuja espada desdenhavam
dos algarismos e das contas.

Entretanto, o que peior lhes fizera fôra a sua rectidão: deixaram de
pagar quando não tinham com quê; exigiram dos contribuintes a decima
que os antecessores, para não afugentar partidarios, prescindiam
de cobrar. Ella dava agora mais do dobro: e comparando os numeros,
Passos na sessão de 37, tinha motivos para se gabar. O deficit que
encontrára (36-7) calculado era de (18:600-11:800) 6:800 contos,
devendo-se ao banco 4:834 e a outros 800; havendo ainda 3:516 contos
de papel-moeda em junho (36) e 4:087 de titulos admissiveis na compra
de bens nacionaes. (_Lei de 15 de abril de 35_) O governo amortisára
500 contos de papel-moeda e 2:876 de titulos; e o orçamento para 37-8
não apresentava um deficit superior a (11:217-9:294) 1:923 contos.
E com isto não se tomára emprestimo nenhum de fóra, e os encargos da
divida total, se tinham subido de 2:334 a 2:500 contos, era porque
se reconhecera o direito esquecido dos possuidores de _Padrões_,
convertendo-os em titulos de 4 por cento, por 2:960 contos com o juro
de 118. (V. _Relatorio de 24 de abril de 1837_)

«Quando entrei, dizia Passos, achei nos cofres da capital seis contos,
e não havia com que pagar os dividendos em Londres. (_Disc. de 21
de jan. de 37_) E defendendo-se a si e aos actos da sua dictadura,
sentindo que o tempo corria e o fim se approximava, definia todo o
seu pensamento: «A rainha não tem prerogativas, tem attribuições:
é o primeiro magistrado da nação. Eu fui o primeiro ministro que
executou o programma do _Hotel de Ville_ de Paris: cerquei o throno de
instituições republicanas ... Não houve só liberdade de imprensa, houve
licença, houve desafôro». (_Ibid._)

Liberdade e licença! liberdade e desaforo! Mas que linha as divide,
ou qual é o criterio que as distingue? Ah! eis ahi onde a doutrina
naufraga, assim que a põem a navegar no barco de uma constituição. Uns
pilotos caçam logo as velas e bolinam; outros mettem de capa; outros
dão a pôpa ao vento e correm desarvorados acclamando o temporal da
anarchia que os leva ... onde? Contra uma pedra a despedaçarem-se.

Passos não era homem para nada d’isto: nem bolinava, como outros;
nem se mettia de capa, esperando e resistindo ao vendaval; nem lhe
obedecia. No meio das nuvens cerradas, com o vento a assobiar, elle
teimava em vêr uma nesga de céu azul, prenuncio de bonança e fortuna.
A linha que dividia a liberdade da licença, esse criterio supposto
seguro, tinha-o elle na sua humanidade, na sua virtude. Não era mister
theoria, bastavam sentimento a caracter ... Mas se todos fossemos
Passos, para quê, leis, governos e forças organisadas?

Elle, no seu optimismo, teimava em pensar que eramos, ou seriamos, ou
deviamos ser optimos, o que é bem diverso. Uma nação affigurava-se-lhe
uma familia de irmãos, e a lei um osculo de Paz. Annos passados,
depois de toda a sua historia acabada, e da revolução extincta, ainda
glorioso, lembrava como o amor o a humanidade tinham vencido tudo:

 Tinhamos a luctar contra o partido cartista ... D. Miguel preparava
 uma insurreição em Portugal e nas ilhas. O Remechido estava levantado
 no Algarve. A causa da rainha Christina soffrera innumeros revezes; o
 general carlista Sanz marchava sobre a nossa fronteira do norte e o
 general Gomez com uma força connsideravel chegou a tocar o territorio
 de Portugal ... O governo armou a guarda nacional e ficou esperando
 ... A revolta de Belem foi aniquilada e os vencidos foram recebidos
 nos nossos braços. A revolta miguelista não appareceu.--Escrevi
 aos administradores geraes para que fizessem saber aos realistas
 que nenhum d’elles seria inquietado nem perseguido, mas que todo o
 atacante seria punido. (_Disc. de 18 de out. de 1844_)

E não se arrependia do que fizera. A paz, o perdão, o amor, eram as
ancoras das nações: em verdade os homens não o criam, mas nem por isso
elle chegava a perder a sua esperança, embora deixasse um governo
em que se achava deslocado. Saíu em julho, como dissemos; mas não
abandonou os seus antigos companheiros, senão quando elles mais tarde,
perante o cartismo sublevado, abandonaram a doutrina do perdão pela do
castigo, atulhando de presos as _persigangas_. (_Ibid._) Foi então que
descreu dos homens, e se voltou para dentro de si, como um eremita--por
estar longe, muito longe, a salvação da terra, pela paz e pelo amor!

Quando os inimigos viram expulso ou retirado do governo esse homem
temido, e que em seu lugar ficava apenas, além de politicos, o bom
e fiel Sá-da-Bandeira, as esperanças nasceram. A revolução estava
suffocada. Havia porém insoffridos que se não conformavam com a demora
dos caminhos ordinarios; e ninguem mais se exasperava do que Van
der Weyer, talvez com a vista no penhor do territorio africano. Não
houve meio de o conter; disse então aos marechaes que a hora tinha
soado--«Hombro, armas!»


4.--AS REVOLTAS DOS MARECHAES E DO POVO

Van der Weyer mandou-os marchar, e elles foram. O belga esperava poder
armar em Lisboa um pronunciamento cartista, pôr o reino inteiro n’uma
desordem maior do que havia já, para d’ahi saír com um bocado de
Africa entre os dentes. Portugal decerto resistiria á restauração da
CARTA, mas viriam os extrangeiros impol-a. Entretanto Palmerston, ou
avisado pela triste figura que as suas fardas vermelhas tinham feito
na Junqueira, ou desconfiando do zelo belga, resistia, como resistiu
depois, em 47, ás solicitações da Hespanha. Cedeu mais tarde perante a
força das cousas, mas agora o mau exito da aventura veiu auxiliar os
seus desejos. (Goblet, _Etab. des Cobourg_.)

Com effeito, nem Van der Weyer pôde conseguir que Lisboa se
pronunciasse, nem os marechaes que o exercito obedecesse, conforme
convinha. A correria foi rapida e o resultado grutesco, para tão
nobres personagens. O barão de Leiria principiou, acclamando a
CARTA (12 de julho) na Barca. Declarou-se logo o estado-de-sitio,
dividindo-se o reino em duas lugar-tenencias militares: Sá-da-Bandeira,
com José Passos por secretario, no norte; Bomfim, com Costa-Cabral, no
Alemtejo. Saldanha partiu de Cintra a 26, Tejo acima até Abrantes e
Castello-branco, chamando á revolta os regimentos com que veiu descendo
pela serra até Coimbra. Eram 10 de agosto quando ahi entrou. Em 15
estava em Leiria, em 22 em Torres-Vedras, onde se lhe reuniu Terceira,
saído de Lisboa a 17 ou 18. A 23, os dois marechaes e a sua tropa
chegavam ao Campo-grande, ás portas da capital, esperando o promettido
pronunciamento que não apparecia. (Sá, _Lettre_, etc).

Quatro dias esperaram em vão. Que faziam entretanto as tropas do
governo? Bomfim recolhera a Lisboa, porque as guarnições do Alemtejo
tinham fugido para Saldanha. Nas visinhanças da capital devia dar-se
a batalha inevitavel, mas os marechaes, vendo a mudez da cidade,
retiraram (27) para Rio-Maior; e o exercito do governo achou-se em
frente d’elles, a 28, no lugar do Chão-da-Feira.

Começou a acção, e quando chegava o instante decisivo viu-se um caso
singular. Corriam a galope esquadrões de cavallaria, com a lança
em riste ou a espada erguida, ameaçando fazerem-se pedaços; e n’um
momento, em frente uns dos outros, os soldados paravam, olhando-se,
levantavam as lanças, baixavam as espadas, dando vivas, de um lado, á
CARTA, do outro á CONSTITUIÇÃO. Não se bandeavam, mas tinham resolvido
não combater. (Sá, _Lettre_, etc.) Ás vezes, nas touradas em Hespanha,
quando a féra mostra mais juizo do que os toureiros, o povo das
bancadas acclama o toiro: é o que nós agora fazemos aos soldados! Com
um juizo superior, deram uma lição aos generaes, aos diplomatas, á
rainha, á côrte, e a todos.

Começou então uma scena egual ás muitas que se conhecem dos tempos
medievaes, quando os bandos dos senhores e das communas se encontravam
nas suas contendas. Os generaes avançaram para o meio das columnas
armadas, e para o quadro acabar como cumpria, devia seguir-se um
_bufurdio_, um juizo-de-Deus.[18] Mas os tempos eram outros, mais
pacificos. E os generaes, á maneira dos soldados, não queriam _morrer
por ello_. Combinaram um armisticio, retirando os sublevados para
Alcobaça e os do governo para Leiria, a vêr se podiam entender-se.
Vieram á fala em 30, em Aljubarrota; e ao outro dia, por não
conseguirem nada, recomeçaram as hostilidades. (Sá, _Lettre_, etc.) Que
houve então? Muito sangue? batalhas mal-feridas? Oh, não! Os marechaes
vão-se embora para a Beira-baixa, Bomfim deixa-se ficar em Santarem, e
Sá regressa a Lisboa. (_Ibid._) Se os soldados, com todo o juizo, não
queriam bater-se!

Andava por esse tempo em Hespanha, auxiliando a rainha contra os
carlistas, uma divisão portugueza, sob o commando do conde das Antas.
Mandou-se voltar; mas quando ella entrou por Traz-os-Montes em direcção
do Porto, já os marechaes tinham chegado a Moncorvo, e furtaram-lhe
uma brigada de infantaria. Reduzido, chegou pois Antas ao Porto,
onde encontrou já Sá-da-Bandeira, vindo de Lisboa (setembro, 13) com
um unico batalhão de caçadores. Os marechaes tinham Traz-os-Montes;
Leiria, desde que se pronunciara na Barca, possuia o Minho. Por aqui
se devia começar a batida, para não deixar a rectaguarda ao inimigo.
Antas, com effeito, occupou Famalicão a 15 e Braga a 16. Leiria recuava
pelo Cavado, a reunir-se aos marechaes em Traz-os-Montes: fortificou-se
em Ruivães; mas o inimigo desalojou-o d’ahi, depois de um breve combate
(18) obrigando-o a seguir até Chaves. Antas vinha quente das guerras
de Hespanha: as suas tropas, costumadas, não se recusavam a marchar.
Proseguiu, e os marechaes, vendo-se perdidos, propozeram a capitulação
na noite de 19-20. Antes uma composição má, do que uma boa demanda,
pensavam; e do lado opposto não havia tambem vontade de levar as cousas
ás do cabo. Fôra uma experiencia, a vêr: não vingou? Pois bem: nem se
fale mais n’isso! Bem no fundo, eram todos amigos: tinham combatido
juntos contra D. Miguel, e isto agora não passava de arrufos. As tropas
haviam de submetter-se ao governo, é claro; os marechaes não podiam
deixar de emigrar, é evidente; que figura viriam fazer para Lisboa? que
diriam a Van der Weyer?--Mas os pobres officiaes que não tinham culpa,
não podiam ficar sem pão: conservavam-se-lhes as patentes, com o soldo
de reformados. (Sá, _Lettre, etc._)

Assim acabou em nada a revolta dos Marechaes, que saíram d’alli para
Hespanha, indo acolher-se a Paris, á espera de tempos melhores. Acabou
esta revolta, mas o exemplo de generaes transformados em _condottieri_
estava dado e fructificaria: este ensaio era uma iniciação. De
lado a lado se começava a sentir a necessidade dos golpes-de-mão e
das resistencias violentas. Declarara-se a guerra, e os _liberaes_
appellavam para a força. Durante o conflicto referido, o governador
civil de Aveiro avisava Passos (16 de agosto) de que chamara tudo ás
armas, «o que não vier voluntariamente, ha de vir constrangido». Se o
Joäo Carlos (Saldanha) entrasse no districto e algumas pessoas d’elle o
acompanhassem, o governador estava resolvido-a, «não os podendo apanhar
e passar pelas armas, arrazar-lhes as casas». Eram as unicas medidas
adequadas ás circumstancias. Começara por querer levar tudo por meios
brandos e de suasão, mas vendo o nenhum resultado, virara-se para o
lado opposto. (Corr. autogr. dos Passos) Assim tambem D. Pedro fôra
forçado a libertar-nos!

Por seu lado o belga, frustrado duas vezes o plano de nos fazer
felizes, já em Belem, já agora em Traz-os-Montes, perdendo a esperança
do pedaço de Africa, abandonou-nos á nossa sorte. Van der Weyer foi
substituido. (Goblet, _Etabliss. des Cobourg_) Mudou de politica a
Belgica, mas o inglez que ella servia ainda de Lisboa aconselhava
Saldanha, já emigrado em Londres: «Porque não levanta um corpo de
tropas em Hespanha para salvar a rainha? Talvez isso lhe proporcionasse
o meio de voltar aqui, ao sue paiz, com _éclat_». (Carta de Howard
a Sald. 4 de out. de 37; em Carnota, _Mem._) Não pôde ou não quiz
Saldanha seguir o conselho, e a Inglaterra mudou tambem de plano. Em
vez de promover as revoltas no reino, declarou uma guerra diplomatica
ao governo.

Mas as licções dadas aos jovens monarchas prepararam-lhes,
educaram-lhes o espirito. Iniciada a rainha, senhora varonil e
nobre, nas cabalas da resistencia; ensinada desprezar as fórmulas
constitucionaes e a pôr em pratica as conspirações, a fomentar os
pronunciamentos, a servir-se dos generaes como _bravi_ de um tyranno
á italiana, e a contar com a força estrangeira para dominar uma nação
de que tudo a separavara: iniciada a rainha, dizemos, estes primeiros
episodios do governo são o prologo de aventuras maiores, mais serias.

       *       *       *       *       *

Emquanto a sedição lavrava no campo, ia o congresso debatendo-se
contra os vivos ataques de uma esquerda acirrada pelo medo da reacção,
esporeada pelos clubs que zumbiam em Lisboa armados. Havia declamações,
invectivas chimericas, apostrophes eloquentes, theorias radicaes,
formulas, phrases: peior do que em 1820! O ministerio, desconjuntado,
podia pouco ou nada contra a onda da demagogia: Campos não se calava; e
Julio-Gomes, que pedia ordem, via-se renegado pelos ultras, Bernardo da
Rocha e Barreto-Feio. Mais o peior, o mais doloroso de tudo isso, era
a penuria universal em que se vivia. Depois da saída de Passos entrara
na fazenda um homem novo, rico, sem politica, banqueiro, inglezado:
Tojal, de quem se esperava muito. Os portuguezes não provavam ser
habeis para a finança: mas agora este _inglez_ apparecia como successor
de José da Silva Carvalho, unico entre os antigos. Com a saída de
Passos o gabinete ia todos os dias pronunciando-se mais moderado, mais
_rasoavel_; e ao mesmo tempo, apezar da irritação das esquerdas no
parlamento e nos clubs, a constituição progredia por fórma que viria a
ser a propria CARTA. Em outubro (14) ganhou-se uma batalha grave: duas
camaras. Era um senado electivo por seis annos. E á força de trabalhos,
depois de serias campanhas, conseguiu-se por fim votar, jurar (4 de
abril do 1838) uma constituição muito soffrivel. Sá-da-Bandeira,
acreditava ingenua e seriamente ter concluido a éra das revoluções: via
chegada a paz desejada e considerava-se crédor das melhores graças do
seu paiz. (V. _Lettre au comte Goblet_.)

O pelatão clamaroso dos demagogos não o assustava muito: eram o _povo_,
o bom povo seu dilecto, a quem elle queria como os avós aos netos,
achando-lhes graça em tudo, mas não chegando a comprehendel-os quando
um dia começam a falar como homens. Do povo não tinha medo; para
conquistar o paço fôra admittindo no governo homens quasi cartistas,
muito moderados, como Bomfim. Mas não ficava, elle, sempre? Não era
elle a garantia? O _povo_ não o julgava assim, na primavera de 38. A
ingenuidade de Sá-da-Bandeira creara dios governos n’um só gabinete:
Bomfim e os moderados, contra Campos e os da montanha que se entendiam
com os clubistas. Eis ahi a paz que havia.

Os _Camillos_ tinham-se fechado; Costa-Cabral mudára muito: já não
perorava, e adherira á moderação. A _Associação civica_ passara para
o Arsenal, club do batalhão de operarios navaes de que era chefe o
capitão-tenente França. A marinha estava á frente da demagogia, que
tinha um imperio nos estaleiros. O capitão-de-fragata Limpo, inspector
do Arsenal, era clubista; e a segurança de Lisboa estava nas mãos do
vermelho Soares-Caldeira, deputado, administrador-geral (nome dos
governadores-civis d’então), e por isso director da guarda-nacional
da capital. Sá-da-Bandeira, repetimos, não receiava nada d’isso:
confiava de mais em si e na pureza das suas intenções. Era optimista
por bondade. Tinha os seus espias entre os demagogos; e um era o judeu
Pacifico de quem recebia as partes em arabe, porque o general sempre
amara o saber. Conhecia o que elles queriam, mas não acreditava que
se demandassem: bulhas dos rapazes! Ralhou paternalmente; e Limpo,
enxofrado, demittiu-se. (Sá, _Lettre_, etc.)

A guarda-nacional reunia mensalmente, por ordem do director: a 4 de
março Caldeira chamou-a e representou com ella á rainha, pedindo
a queda dos ministros moderados, isto é, Bomfim. Foi então que
Sá-da-Bandeira se offendeu contra a audacia dos rapazes. Deitavam
as mãos de fóra: déra-lhes armas para se distrahirem, e voltavam-se
contra elle! Que lhe doesse, não via remedio senão castigal-os. Por
isso demittiu Caldeira (7) e poz em lugar d’elle Costa-Cabral, que
dava esperanças de submissão, e promettia _reprimir a anarchia_.
Atacados assim, rudemente, os radicaes responderam na manhan do dia 9,
apparecendo em armas o batalhão do Arsenal e parte da guarda-nacional,
exigindo um ministerio _puro_. Era no Pelourinho, a cuja esquina havia
ainda o antigo botequim, politicamente celebre, do Marcos-Philippe.
A tropa cercava os sublevados, e no rio estava de canhões corridos
um navio prompto a metralhar o Arsenal, baluarte da sedição. Mas
Sá-da-Bandeira não queria que se derramasse sangue, nem podia desejar
que se esmagasse o _povo_: não iria logo o poder caír nas mãos dos
cartistas que o esperavam?

N’esta situação dubia e triste, não quiz vencer: pactuou a convenção de
Marcos-Philippe, promettendo impunidade e conseguindo a dispersão das
forças. Não podia comtudo deixar de demittir o França, nem de dissolver
o seu batalhão: isso fez, (Decr. de 9 de março) com grave escandalo dos
condemnados que lhe chamavam traidor. A opposição rugia nas camaras
e o ministerio caíu no mesmo dia: moderados (Julio-Gomes, Bomfim) e
radicaes (Campos) tiveram egual sorte. Ficou apenas Sá-da-Bandeira,
com o homem da Fazenda, o Tojal que não tinha côr politica?

Não é assim: pois detraz do governo e mais governo do que elle, estava
o administrador de Lisboa, Costa-Cabral, cujo verdadeiro destino
começava a desenhar-se. Convinha á sua ambição a posição falsa do
ministro, e ao seu genio tenaz, sem apparato, o trabalhar debaixo do
nome de outro, preparando o futuro em favor proprio. N’este momento
já elle, evidentemente, sabia o caminho que tinha a seguir. Não havia
um homem: sel-o-hia! Não havia uma doutrina, na desordem de opiniões
que se chocavam: elle restauraria a antiga doutrina da CARTA. Os
marechaes, por isso mesmo que estavam exilados e compromettidos, seriam
instrumentos doceis. E a rainha, porque era varonil e cheia de talento,
comprehenderia a rasão de ser de taes vistas, a sabedoria do plano e a
capacidade do homem.

Fôra demagogo? Tambem Saldanha. Isso nada importava á politica: nem
provavelmente o affligia a elle. Ou tivera de facto essas opiniões e
mudara, cousa que o devia fortalecer na opinião de agora; ou desde o
começo representara um papel, caminhando por vias tortuosas direito a
um fim, e isso dar-lhe-hia um grande orgulho, quando via confirmadas
as suas previsões. Arrependimento ou apotheose, a sua mudança não
diminuia a força propria do seu genio. Para os simples havia de passar
por traidor e falso: que importa? sempre os politicos o foram; e para
governar basta uma cousa, sem a qual toda a virtude é fumo: a força
victoriosa. O politico ha de ser temido e não amado: ai, dos que
esperam e crêem nos bons instinctos dos homens, como o fraco e virtuoso
Sá-da-Bandeira, reduzido á condicção de pára-choques entre o povo e a
côrte, reduzido a nada, renegado por todos!

A demagogia não se calara e reclamava uma desforra do dia 9. O ministro
nada podia, porque em vez de a vencer, obedecera-lhe, para depois a
acirrar com os decretos da tarde. Clamava-se pela revogação d’elles;
e o paço andam pallido de susto. Diz-se que d’então data o primeiro
accordo entre a rainha e Costa-Cabral. Diz-se que elle foi, e prometteu
resolver a crise; expoz o seu plano, e de tal modo, manifestando a
sua força, logo seduziu a rainha. Afinal encontrava-se um homem!
Com a tropa desarmaria o povo, e sem espingardas a democracia,
restaurar-se-hia a ordem. Era simples, era pratico e seguro.
Permittil-o-hia porém Sá-da-Bandeira? Até certo ponto permittiria;
depois não. Mas para esse tempo estaria já desacreditado de todo, e
deitava-se fóra. Talvez a rainha nem o planeasse, nem pensasse tão
cruamente. Costa-Cabral não podia pensar de outro modo.

Sá-da-Bandeira tinha mau genio, era teimoso e rabugento na sua bondade.
A teima e as ameaças com que lhe exigiam a revogação dos decretos
de 9 irritavam-no, dispondo-o bem para o papel que aos novos planos
convinha que elle representasse, e com effeito representou no dia
13. De madrugada a guarda-nacional appareceu a postos com os seus
commandantes que exigiam a reintegração de França. Tocava a rebate em
todos os sinos, rufava o tambor por toda a cidade. A tropa formava
no largo da Estrella para defender as Côrtes, e no das Necessidades
para defeza do paço. Cabral mandava, Sá obedecia, e Bomfim, Reguengo,
preparavam-se para dar _uma lição_. Haveria mortes? Provavelmente.
Marcharam as tropas, e a sua primeira acção foi desalojar os rebeldes
do convento de Jesus, tomado de assalto: correu ahi sangue, mas pouco.
Dos outros pontos a guarda-nacional debandou: não para fugir, mas para
ir reunir-se, com artilheria, no largo da Graça. A Estrella e a Graça
estão nos dois confins oeste e leste da cidade, que ardia toda em
desordem e gritos. E gritando orava no Congresso a esquerda, confiando
no exito da revolta que trabalhava por sua conta lá fóra.

Costa-Cabral levou Sá-da-Bandeira á Graça, e depois de muito falar
conseguiu que os revoltosos descessem. Era um ardil de guerra. Quando
chegaram ao Rocio, viram-se cercados por Bomfim que de todos os lados,
nas ruas das encostas, fechava essa baixa, de molde feita para curral
de gado tresmalhado. Houve ahi tiroteio e cousa de uma duzia de mortos.
Caía então a noite: estava acabada a funcção. Os sediciosos debandavam
e Costa-Cabral celebrava uma victoria incontestavel. Cumprira o que
promettera, mostrando ser homem para muito mais. Sá-da-Bandeira
agradecia-lhe, punha-se ás suas ordens, considerava-o o seu braço
direito. Se essa gente vencesse? que seria de tudo? Com effeito, não
podiam dar-se armas ao povo que tão mal usava d’ellas. Em urgente
dissolver os batalhões: não direi todos, mas os peiores, os mais
vermelhos ... Cabral começou pois a trabalhar, a dissolver batalhões; e
era em Lisboa, na administração, um Pina Manique: mais! o principio de
um Pombal. O genio organisador, administrador apparecia, depois da arte
e da bravura com que esmagara a revolta. Fazia regulamentos, organisava
cadastros, arruava as mulheres de má vida. Evidentemente subia, e não
se descortinava quem lhe fizesse sombra. A rainha dera-lhe a commenda
da Conceição--oh, tempos antigos! (V. _Costa Cabral apont. hist._ anon.)

Quatro dias depois do 13, o moderado Bomfim voltava para o governo;
e Sá-da-Bandeira, sempre crente, cheio de esperança, considerava
terminado o episodio dos tumultos, sellada a paz--com sangue, é
verdade!--e conquistado para a sua obra um homem novo, precioso. No
principio de abril, em sessão solemne (4), a rainha e o rei foram
jurar a constituição nova, bem rasoavel. Todos approvavam, todos
estavam satisfeitos, todos gabavam Sá-da-Bandeira, ou antes, acreditava
elle isso. Howard e a Inglaterra, Goblet e a Belgica, appoiavam
decididamente. Tinham terminado ambas as revoltas, a do povo, e a dos
marechaes que de Paris se submettiam, jurando o novo codigo. Era uma
_regeneração_, de lealdade e de virtude; ainda que o vencedor não
deixava de ter uma vaidade ingenua pelo modo como conseguira desviar
a revolução do perigoso caminho onde a levava o seu bom amigo Passos.
Illusões desculpaveis de um espirito todo _poesia_! Elle, via-se
pratico, sabio. Ia coroar-se a rainha Victoria em Londres; e Palmella,
afinal riquissimo com a fortuna da herdeira da Povoa sua nora; Palmella
que desde 36 amuara, fazia as pazes, indo ostentar o seu luxo na terra
onde passara dias tão crueis. (Sá, _Lettre_, etc.)

       *       *       *       *       *

Mas que singular tumulto é esse, no meio de uma paz tão firme? que
desordem se levanta no dia do Corpo-de-Deus? Era já tarde (14 de
junho), a procissão recolhia á Sé. Que surpreza, para os ouvidos de
quem se julgava acclamado, os insultos despedidos contra o rei, contra
a rainha, e contra elle proprio, o crédor da paz universal?--Maledicos
disseram que essa paz fazia mal á ambição do homem-novo: só nas bulhas
podia mostrar bem quem era e quem seria. Se elle, com effeito, arranjou
essa desordem para seu uso proprio, o resultado ia-lhe sendo ficar sem
vida.

A triste procissão entrou na Sé destroçada. Luziam as bayonetas
agitando-se, e as vozes do povo armado pediam sangue e cabeças. Cada
qual fugira para seu lado, escondendo-se pelos escadas. Era grutesco
vêr as fardas bordadas com espadins e commendas, os chapeus de plumas
e mantos de filó; era grutesco vêr os personagens correr, sumirem-se,
atarantados com o susto. O Law portuguez reformado e o Pombal nascente,
um passado e um futuro, encontraram-se socios no perigo, escondidos
n’uma escada, cuja porta defendia, irritado mas firme, o ministro
surprehendido. Uma bayoneta luziu com a ponta direita ao peito de
Sá-da-Bandeira, vindo cravar-se-lhe no crachá, a que deveu a vida: como
as condecorações ás vezes servem! O _marca_, falhado o golpe, via-se
perdido; mas Sá-da-Bandeira mandou que deixassem «passar esse homem». O
homem fugiu, a soldadesca popular foi correndo, clamando atraz da sege,
onde, _batendo_, um bolieiro salvava Costa-Cabral e Silva-Carvalho.
Em Santa-Justa, Cabral extendeu o braço, disparou a pistola contra a
turba que o seguia, como lobos. E a sege _batia_, fugia, até entrar no
Castello, onde se refugiaram. A carruagem de Costa-Cabral, vasia, foi
corrida á pedrada. (_Apontamentos historicos_, anon.)

Que surpreza singular! O ministro não caia em si. De certo, não havia
remedio: força era supprimir mais batalhões, inclinar ainda mais á
direita, dar todo o apoio ao homem novo, o unico homem capaz de pôr
cobro ás _demasias_ de um povo que teimava em não ser cordato: uma
pena! Costa-Cabral, commendador em março, subia a conselheiro, e no fim
do anno passava, da administração, para a camara. Voltava ahi com uma
pelle nova, homem inteiramente diverso do antigo deputado da montanha.
Descendo a bancos mais baixos--subia, subia sempre.

       *       *       *       *       *

Faltava agora, ao infeliz Sá-da-Bandeira, depois da ingratidão do
povo, a das potencias! Que a sessão parlamentar de 39 havia de ser
borrascosa, já o esperava: haviam de o accusar, e accusavam-n’o,
por pender para a direita, por atacar na guarda-nacional o palladio
da liberdade, etc. Estava preparado para isso, sabia o que devia
responder, e tinha na camara o seu Costa-Cabral. Mas o comportamento
da Inglaterra? Pois era o mesmo Howard, o proprio que o anno passado
lhe dava parabens, felicitando-o, approvando tudo? Agora se desilludia:
a Inglaterra que intrigára sempre contra Setembro; a Inglaterra da
Belemzada via chegado o momento de apunhalar n’elle o _povo_. Eram
exigencias sobre as questões do cruzeiro,[19] quando ninguem tinha
mais a peito abolir a escravatura. Havia um proposito ... Pedia-se a
bolsa ou a vida, exigindo-se meio milhão esterlino de contas de soldos
atrazados, ou em compensação a India. (Sá, _Lettre au comte Goblet_,
etc.) Havia um pensamento: obrigal-o a saír, expulsal-o do governo.
Porquê? Teriam já adiantado os planos entre o homem-novo e a corôa
para restaurar a CARTA? e seria uma fórma diversa, mais cavillosa, de
Belemzada? Quem sabe? Começaria Sá-da-Bandeira a desconfiar do papel
que representava? Voltar-se para o _povo_, já o não podia: talvez
tivesse tido mais juizo o Passos, retirando-se ...

Que havia um proposito, era fóra de duvida. Não se exigem impossiveis.
E podia elle dar a India? E podia elle dar o meio milhão, quando o
Thesouro, como sempre, estava phtisico? De certo não. As finanças,
essas malditas finanças, iam de mal a peior. Tojal, por fim, não dera
nada. Á falta de homens fôra mistér restaurar (17 de abril de 38) o
antigo barão de Chancelleiros, que deixára os negocios desde 28. Nem
um, nem outro: ninguem era capaz de pôr ordem n’esse cháos, que era o
descredito da revolução. Agora vinha a Inglaterra pedir meio milhão!
Era bom de pedir; mas como não havia que dar, Sá-da-Bandeira percebeu
que a exigencia encobria outra vontade--a de o expulsar do governo.
Abdicou, pois (18 de abril de 39).

O tempo que separava Costa Cabral do poder corria. Os successivos
momentos do seu plano realisavam-se. Não se podia ainda precipitar
a acção, nem isso convinha. O resto que havia de força na gente
setembrista consumil-o-hia um governo ephemero, mais _moderado_, o
governo do sagaz Pizarro, malicioso e astuto, improvisador facil sem
eloquencia, habilidoso sem talento, aristocrata por indole, setembrista
por ter sido inimigo de D. Pedro: do inconsciente Pizarro, feito barão
da Ribeira de Sabrosa. (_Hontem, hoje e amanhan_, op. anon.)

       *       *       *       *       *

A exigencia do meio milhão vinha a ponto, opportuna, porque nada
desacreditára tanto o setembrismo como a sua gerencia financeira.
Á ruina conhecida do paiz juntava-se a incapacidade de homens sem
talento para gerir, nem artes, nem caracter para mascarar. Via-se ás
claras, aggravado, o sudario que um Silva Carvalho enrolava habilmente
no bolso. Elle com a sua arte chamava, os setembristas com a sua
franqueza afugentavam o judeu de Londres, que era a melhor fonte, o
ultimo recurso do Thesouro de uma nação queimada. Em vão o setembrismo
creava a _protecção_, em pautas quasi prohibitivas para muitos generos:
a industria não surgia; encareciam apenas as cousas, e engrossava o
numero d’esses operarios fabrís que em Lisboa eram as _marcas_ da
guarda-nacional com que se faziam tumultos.

 Para animar e favorecer a nossa agricultura, industria e artes, devem
 marcar-se direitos protectores a todos os generos e mercadorias que
 produzimos e fabricamos, em ponto tal que possa dispensar-nos já ou
 vir a dispensar-nos da producção ou manufactura estrangeira. (_Rel._
 de José Passos; ref. de pautas; sess. de 39)

«Já temos _alguma_ fiação, observava com esperança o relator, e
se a legislação não mudar, teremos mais.» Talvez a Inglaterra não
applaudisse o novo pombalismo da revolução. Se o temia, fazia mal,
porque elle só creava elementos de desordem muito mais dispendiosa
do que o augmento de receita das alfandegas. A pobreza não cessára
de crescer. Pela legislação de 34 todo o papel-moeda devia acabar em
38, traduzindo-se em metal as obrigações contractuaes anteriores.
Mas como pagar tres mil contos ou mais, ainda em circulação? Força
foi, portanto, deixar á sua extincção natural, indefinida, o que
restava, prejudicando muito graves interesses; pois que as especies
contractuaes anteriores se prorogavam indefinidamente tambem, nem
podia ser de outra fórma. (D. de 31 de dezembro de 37) Era mais uma
banca-rota, a sommar aos successivos _pontos_, _saltos_, conversões de
vencimentos, etc. em titulos de uma divida de que não havia com que
pagar o juro. Uma nação de empregados tinha caimbras de fome. Todos os
estomagos davam horas.

Passos conseguira que a decima produzisse o dobro, de mil a dois mil
contos; mas isso era um copo de agua no mar. O orçamento para 38-9
apresentava um deficit de 7:259 contos (16:835-9576) no qual entravam
5:107 de vencimentos atrazados. E a divida, que era de 70:580 com o
juro de 2:417 em dezembro de 36, chegava a 79:235 com o juro de 2:885
em dezembro de 38. (A. Albano, _A div. pub. port._, 1839) A maré subia,
subia, de um modo assustador. (V. os numeros anteriores em 28 e 35)

Um anno depois, em novembro de 39, já não eram 80, eram 85 mil contos,
pois se iam capitalisando vencimentos, dividendos. E não escolhemos
um inimigo, antes um defensor e ex-ministro da revolução, que para a
defender compara os dois periodos de setembro de 36 e novembro de 39,
denunciando um accrescimo de cinco mil contos ao anno. (Sanches, _O
est. da divida pub._, 1849)

E a Inglaterra pedia meio milhão ou a India! Sá-da-Bandeira
demittira-se; Sabrosa em novembro, ao saír, dizia que a côrte era
a serva da Inglaterra que o expulsava: «Fômos despedidos com mais
sem-cerimonia do que costumo despedir os meus creados». (Liberato,
_Mem._) Foram despedidos. A revolução acaba, e começa, com a ORDEM, uma
historia de novas desordens. Bomfim serve de _plastron_ ás duas figuras
seccas e frias, sem illusões, Rodrigo e Costa Cabral que se acotovelam
no gabinete (26 de novembro). Qual d’elles vencerá?

Rodrigo tem a ironia e o scepticismo: «a questão ingleza são alguns
saccos de ouro.» (Liberato, _Mem._) Cabral tem a violencia e um plano.
Dissolveram a velha camara (25 de fevereiro de 40); e emquanto um
acceitava a constituição, acceitava tudo, porque tinha fé nas suas
manhas e artes; o outro, como doutrinario, puzera a peito organisar
as cousas sob um typo novo de instituições. Qual dos dois vencerá?
Primeiro, o doutrinario; porque o paço partilha as suas ideias, porque
ainda ha quem espere e creia. Depois, quando esse novo typo, fórma de
_liberdade_, tiver tido o destino natural, e tudo ficar em farrapos, os
principios e as esperanças, os marechaes e os partidos, então, sobre
as ruinas das chimeras, no seio do cansaço universal, reinará o perfil
ironico de Rodrigo, vencedor final ...

O futuro pertence agora a ambos ainda, e só a elles: porque um passado
que não voltará mais atirou com os coripheus do setembrismo para longe.
Sá-da-Bandeira sóme-se; Pizarro vae enterrar-se em Chaves onde morre;
Passos, o nobre Passos, já esquecido, no seu exilio de Alpiarça,
aguarda o momento de voltar a publico fazer uma confissão geral, dizer
as novas impressões e idéas que o exame directo da realidade acordou em
seu espirito.


5.--AS FOLHAS CAÍDAS

O anno de 44, pelo outomno, ouviu a final confissão do tribuno.
Seis annos ou sete havia que deixara o governo e se exilara. N’esse
periodo tinham occorrido cousas graves. Costa Cabral vencera Rodrigo,
restaurando a CARTA em 42, começando o seu reinado; e no principio
do anno em que Passos Manuel orou, frustrara-se a sedição (de
Torres-Novas), preparada para galvanisar o setembrismo. Passos já sabia
que elle estava bem morto: não adheriu. A sedição fôra suffocada.

 N’um dia passou por Alpiarça o tenente Portugal, que ia juntar-se aos
 revoltosos. No dia seguinte passou o coronel Pina, que ia unir-se
 ás forças do governo. Nem offendemos um, nem coadjuvámos o outro.
 Eu era estranho a estes movimentos que não tinha aconselhado, cuja
 conveniencia não conhecia ... Quando a revolta triumphasse não
 esperava d’ella grandes beneficios nem melhoramentos para o paiz.
 Alpiarça não queria ser elevada a cidade; nem eu nem os meus visinhos
 a paes da patria. Não tinhamos nada com estas bambochatas. (Disc. de
 18 de out. de 44)

Bambochata, a revolução! _Quantum mutatus ab illo_ ... Sim! Bambochata
fôra para elle todo o cartismo até 36, emquanto punha a sua fé e as
suas esperanças na Democracia, expressão genuina, verdadeira e pura
da Liberdade. Bambochata fôra a vida de todos esses homens, a quem o
governo coubera até setembro: mas depois? Depois tambem, reconhecia-o
agora, quando á empreza para restaurar a democracia dava um nome egual;
porque a gente a quem fôra confiada a defeza dos principios não pudera
com o peso do encargo:

 Se a Revolução está morta, não foram os seus inimigos que a mataram.
 (_Ibid._)

O tribuno presentira o passamento, e retirou-se para não assistir ás
exequias. Era uma grande agonia, uma afflicção dolorosa que o tomavam?
Não; eram as nauseas do desengano.

 Este fastio, esta indifferença, vieram-me no dia em que o meu
 proprio partido commetteu um grande erro, e, direi francamente, um
 grande crime; foi no dia da presiganga ... Desde então considerei
 a revolução como perdida, porque estava deshonrada ... e assisti
 melancholico ao seu passamento e ás suas exequias. Retirei-me da vida
 publica e fui buscar o descanço e as consolações da vida privada.
 (_Ibid._)

Mas o erro de uns homens não póde ser a condemnação de um principio.
Como Cincinato, Passos tomava o arado, á espera que a doutrina o
chamasse outra vez ao campo? Não nos illudamos, conforme elle parece
querer illudir-se. É muito doloroso e difficil de confessar que a nossa
opinião foi um sonho, uma chimera, ou um erro; mas quando se tem a
sinceridade propria das grandes almas, essa confissão vem do pensamento
aos labios e faz-se. Era o que succedia n’essa hora ao tribuno. Em vão
encobrira as ruinas das suas idéas com o fastio pelos homens a que
tinham sido confiadas. A sua descrença, a sua indifferença abraçava
homens e idéas, restando apenas a energia dos sentimentos do poeta e do
moralista. Eram estes que condemnavam como inuteis e vans as doutrinas
e systemas.

 O melhor governo será sempre aquelle que applacar e não inflammar
 os odios civis; o que souber inspirar amor e não inimisade; o que
 fôr mais humano e não o que fôr mais cruel ... A generosidade é o
 predicado da força, o laurel da victoria. Só a cobardia é vingativa: o
 medo não póde ser magnanimo ... Nada póde ennobrecer tanto os homens
 publicos e os partidos politicos, como a firmeza na adversidade e a
 moderação no triumpho. (_Ibid._)

E a coragem, a audacia, a fé, para propagar e impôr uma doutrina?
Pois já o politico não é um philosopho e um apostolo? Não, não é. As
illusões perderam-se, veiu o outomno e as folhas caíram: eram sonhos
as doutrinas, chimeras as esperanças. O veneno do scepticismo invadiu
a alma do antigo apostolo; e elle que fôra por mais de dez annos o
S. Paulo da democracia, despia agora o ardor de outr’ora e ficava um
Christo de amor, de paz, de meiguice ternamente compassiva, levemente
ironica. Os homens não mereciam mais. Portugal não lhe inspirava outro
sentimento. Essa Liberdade que nas phrases occas dos vaidosos fôra uma
conquista, era de facto um dom do acaso: não a tinham ganho, dera-lh’a
um destino.

 Quem inspirou a Portugal o amor da liberdade? Foi Manuel Fernandes
 Thomaz, o patriarcha? Foi o venerando Manuel Borges Carneiro? Foram
 esses oradores das nossas primeiras camaras? Não! não! foram os
 sanguinarios ministros de D. Miguel que, abusando da inexperiencia
 do principe, em seu nome exerceram sobre o paiz a mais insupportavel
 tyrannia.

 Se D. Miguel em 1828 não procedesse com a precipitação de Minucio, se
 por mais tempo tivesse conservado o escudo da carta constitucional,
 e se como regente em nome de D. Pedro tivesse desligado uns apoz
 outros os commandantes dos corpos, a revolução de 16 de maio de 1828
 seria impossivel; o throno de D. Pedro, a liberdade do paiz teriam
 caído então como caíram em 1823, sem que se disparasse um tiro em sua
 defensa, sem que uma gota de sangue se derramasse pela liberdade do
 povo.

Estas palavras resumem e confirmam a historia que nós contámos; mas na
bocca de um dos chefes vencedores, não serão um triste commentario da
propria obra? uma annotação grave ás palavras de outro tempo? Caíram
os homens, caíram os systemas: pois agora tambem se apaga no espirito
do tribuno a victoria da Liberdade! O ar é muito mais transparente, a
vista muito mais penetrante pela tarde, ao descair do sol: em pleno dia
o clarão offusca. Na tarde da sua vida, Passos era mais perspicaz. A
victoria? um acaso. As doutrinas? vaidades. Os homens? bambochas.--Como
deve ser melancolico o approximar do tumulo, envolvido no renegar de
uma existencia inteira!

Felizes, porém, os poetas que, acaso por verem mais longe, vêem pouco e
mal o que está perto! Assim Passos, no meio das ruinas, appellando para
o amor, para a paz, appellava tambem para a ordem e para a legalidade.

 Acredito nos meios legaes ainda que debeis, no triumpho da liberdade
 ainda que tardio: não ambiciono a gloria militar, nem corôas de louro
 ... Na politica não ha atalhos: a estrada real é a legalidade.

Singulares expressões na bocca do dictador erguido por uma revolução,
do homem do Campo-de-Ourique, no dia da Belemzada, á frente da
guarda-nacional contra o throno! Singulares expressões que se diriam
uma apotheose do governo _cartista_, sentado alli a ouvil-o, a apoial-o
de certo: elle que em nome da legalidade restaurara a CARTA, chamando a
todo o periodo setembrista um crime contra a lei.

Lei, legalidade: mas qual? Se se discute a origem do proprio poder.
Onde está? no throno como uns querem, reconhecendo a CARTA que
o throno deu; ou no povo, como querias, oh nobre, inconsequente
orador? Como póde haver lei, quando se discute a propria origem da
authoridade que dá força ás leis?--Passos protestava, sim, contra as
sedições militares, não queria «corôas de louros»; mas desde que a
origem tradicional do poder se contestara; desde que a nova origem,
democratica, não podia enraizar-se, como o provára a historia de 36-39;
desde que vingava o constitucionalismo hybrido em que a authoridade,
nem por ter (ou antes por isso mesmo) duas fontes, deixa de ser uma
anarchia doutrinaria; desde que, finalmente, a victoria da liberdade
fôra um acaso--que podia ser a vida do paiz senão uma serie de sedições
e revoltas?

Triste, desoladora sorte, a de Portugal! Nem homens, nem systemas, nem
a propria religião nova, da LIBERDADE vingava! Não era para descrer da
patria? Não era para interrogar a historia, a vêr se nós não seriamos
um erro--como tantos!--que o tempo arrasta pelos seculos?

 Sou franco. Fui sempre grande partidista da união de Hespanha a
 Portugal: desejava muito que a politica não separasse por mais tempo
 aquelles que a natureza tinha unido. No estado actual da Europa as
 nações pequenas soffrem muito. Era bello vêr a rica peninsula iberica
 representar no mundo como grande potencia, como nação que a natureza
 fez cabeça da Europa!

A independencia portugueza era com effeito uma tradição da monarchia
que a fundara, e, salvas ambições intercorrentes, a defendera sempre.
Agora que a tradição caíra, e que, varridas todas as idéas antigas,
os homens buscavam na Natureza o principio das cousas achando só
desolação e anarchia, era justo, era necessario que a confissão do
tribuno acabasse por um renegar da historia. Não começara Mousinho
renegando-a tambem, com as suas opiniões de jurista e de economista,
nas instituições e no organismo? Afinal a politica, indo tambem ao
fundo, auscultar o seio de uma Natureza que suppunha prenhe de todas
as verdades, chegava onde devia chegar: á negação de uma nação feita
contra ella pelas artes dos homens; chegava onde ao moralista conduzia
o espectaculo da sua actual miseria--á condemnação formal. «No estado
actual da Europa as nações pequenas soffrem muito».[20]

E muito, acaso mais do que ninguem, soffria Portugal, assolado,
queimado, com os seus _bravi_ da tribuna e do campo, ceifeiros
desapiedados que devoravam as searas sem deixarem grão nem para a
semente. Passos, já ensinado pela experiencia, respondera aos de
Torres-Novas:

 Estou muito gordo para me dar á vida aventurosa e romantica das
 guerrilhas: não tenho pressa de entrar no Pantheon. A gordura e o
 casamento são duas grandes garantias de ordem ... Continúo no meu
 remanso a apanhar a minha azeitona, a comer os meus feijões e a lêr a
 minha gazeta, sem ter mais parte nos negocios publicos, depois que me
 retirei inteiramente á vida privada.

Precipitára-o pois a politica no scepticismo absoluto ou n’um
pessimismo amargurado? Não. A poesia salvava-o; e se perdera a
confiança nos homens, nos systemas, nos principios, na historia e na
patria, não perdera aquillo que tinha no fundo intimo da sua alma: o
seu amor, a sua virtude, a paz serena da sua consciencia, a luminosa e
meiga doçura da sua bondade.

 Se a politica me irrita, tenho uma cataplasma emmoliente a que me
 soccorro. Tomo a minha filha nos braços, aperto-a contra o meu peito,
 e procuro assim esquecer os infortunios da minha patria.

Quem não vê d’aqui o grupo suave, melancolico? o homem cuja face sorri
caridosamente para a innocencia? o homem que é uma ruina, mas com uma
flôr no seio, como succede aos edificios derrocados?

Assim, embalando nos joelhos a filha, abraçando-a, beijando-a, acaba
aquelle que nós vimos começar, estoico, em 26 ao jurar da CARTA no
Porto. Viveu annos ainda, mas ficou outro e que pouco importa á
historia. Dos soldados que a ANARCHIA matou, elle é o segundo: Mousinho
fôra o primeiro. Entra agora a ORDEM a fazer victimas: Cabral, Rodrigo,
Herculano. Vel-os-hemos morrer de varios modos: oxalá tivessem acabado
todos, como acabou Passos: com a filha sobre os joelhos, embalando-a,
beijando-a!

Esses beijos eram o despedir, o finar-se da chimera setembrista; mas o
amôr que traduziam tinha sido e é ainda o symbolo de uma idéa futura,
mal concebida nos dias de hoje--o symbolo da democracia, egualisadora
dos homens ...

Com Passos caíu a segunda definição do liberalismo: a ruina da
idéa derrubava o seu defensor. Mas, agora, apparecia em 39, com o
ministerio _ordeiro_, uma definição nova--d’esta vez a genuina, a pura,
a definitiva? Repellia ao mesmo tempo o radicalismo de Mousinho e a
idolatria da soberania-nacional setembrista. Voltava aos tempos de 30,
ás doutrinas estudadas com ardor na emigração pelos livros dos mestres.
Queria e pedia tudo á liberdade individual, condemnando a democracia;
mas em vez de renegar a historia, ia buscar á tradição a base para um
throno vacillante. Tornava-se á «melhor das republicas», e o coripheu
d’essa opinião em Rodrigo, se é que o sceptico estadista possuia
opinião; se é que não preferia esta exactamente por ser parda: côr
sobre que assentam bem quasi todas as outras. Não é pois á politica, é
á litteratura que nós iremos pedir a explicação do novo systema, prenhe
de esperanças, que só durariam dois annos. (39-42, restauração da
Carta).


NOTAS DE RODAPÉ:

[11] Eis aqui um documento authentico: (_Corr. de Rezende_)

Regimento            Ill.ᵐᵒ Sr.
4 de cav.ª

 He do meu dever levar no conhecimento de V.S.ª que hontem alguns
 sargentos e soldados do Regimento dicérão que não querião para os
 Commandar o Major Taborda Capitães Leal, Amaral e Cunha e só sim a
 todos os subalternos sendo eu o Commandante, o que V.S.ª já saberá; em
 consequencia d’istro tratei de conservar a disciplina (!) e boa ordem,
 em que nada se ácha alterada (?); hoje por oucazião da Parada de
 Missa fiz ver ao Regimento q. éra preciso segundo minha opinião, que
 viessem os officiaes e Major para o Regimento e bem assim V. S.ª ao
 que me responderão que só querião V. S.ª, e que nada dos outros, visto
 isto pesso a V. S.ª que quanto antes queira vir tomar o Commando do
 Regimento, e então V. S.ª verá o modo de fazer o q. julgar conveniente
 para ver se os Soldᵒˢ anuem á recepção dos nossos Camaradas no R.º,
 podendo eu asseverar a V. S.ª q. só dezejo _oportunidade_ e boa
 camaradage no R.º.

             Deos Gd.ᵉ a V. S.ª Quartel em Belem 11 de setembro de 1836.

                                       Ill.ᵐᵒ Snr. João X.ᵉʳ de Rezende.

                                                  Francisco Maria Vieira
                                                  T.ᵉ

                                Precursor opportunista, o nosso tenente!


[12] A narrativa do episodio da Belemzada, conforme se acha no livro
citado do sr. Macedo, é transcripta do _Echo Popular_, jornal de
José Passos, no Porto, e que Manuel, de Alpiarça, inspirava em 57
quando a noticia viu a luz. É certo, portanto, que se Manuel Passos a
não escreveu, como se suppõe, viu-a, emendou-a: tem pois o caracter
authentico.

[13] V. _Instit. primitivas_, pp. 156-66.

[14] Foi antes ou depois d’isto que a artilheria engatou em Belem para
fugir para Lisboa, sendo necessario mandar cavallaria cortar-lhe a
vanguarda; sendo necessario que D. Fernando fosse pela estrada fóra, a
galope, escapando por um triz á cutilada que um soldado lhe despediu?

[15] V. _Hist. de Portugal_, (3.ª ed.) I, pp. 66-9.

[16] «Em quanto as Marnotas e que V. erra de todo; era uma vasta
conspiração, abortada pela denuncia d’um miguelista que se vendeu, e
annos depois pagou a traição com a vida». _Carta_ do sr. Carreira de
Mello ao A.

[17] O sr. R. de F. (_Port. Contemp._) attribue a outra causa (inveja?
despeito?) o silencio de Sá-da-Bandeira ácerca do episodio do paço
de Belem: crendo tambem que Passos deixou o governo, forçado mas não
descrente. Não me parece isso a mim, á vista dos antecedentes e dos
consequentes.

[18] V. _Hist. de Portugal_ (3.ª ed.) I. p. 66; e _Instit. primit._ pp.
162-6.

[19] V. _O Brazil e as colon. port._ II, I.

[20] Accusa-me o sr. R. de F. (_Port. cont._) de ter interpretado
erradamente o famoso discurso de Manuel Passos, especialmente n’este
ponto. Relendo o texto vejo que, effectivamente, é licito inferir-se
do que escrevi que em 44 Passos veiu á camara prégar o iberismo. Não é
assim. Depois do periodo transcripto, o orador diz: «Comtudo, depois do
que tenho visto praticar no reino visinho ... eu não podia agora dar o
meu voto para uma união ... Se vierem, ainda pegarei n’uma espingarda e
farei fogo aos invasores».

Esclareçamos pois este ponto, já que assim se julga necessario. Passos
quer ou não o iberismo? Quer; _comtudo_, não o quer _agora_. É pois
uma questão de opportunidade e occasião que nada altera o fundo do seu
pensamento: por isso julguei que, embora necessaria esta nota, não
devia alterar o que diz o texto.

Accrescenta o meu amavel critico que o discurso de 44 não são _folhas
caidas_; que ahi se diz aos setembristas: «não desespereis nunca
da causa da patria; ella será salva pela efficacia da lei, pela
perseverança dos chefes, e pela confiança dos cidadãos»; que Passos
Manuel ainda continuou a figurar na politica, etc.

São modos de ver. Figurar, figurou: mas como? Ouve-se já por ventura
a fé, o enthusiasmo de outros tempos? Figurar na politica torna-se um
habito, e, como habito, necessidade. A voz do antigo tribuno amolleceu,
porque se lhe entibiou a fé. Que attitude propõe, que programma
formula aos seus partidarios? Uma attitude passiva, um programma de
_legalidade_. Ponha-se isto ao lado das palavras transcriptas no texto,
e concordar-se-ha que são _folhas caidas_.




III

O ROMANTISMO


1.--A VOZ DO PROPHETA

A primeira fórma politica sob que o romantismo appareceu em Portugal
foi a doutrina aprendida pelo duque de Palmella no retiro principesco
de Coppet. Já falámos d’essa doutrina, mas nunca é de mais insistir
nas particularidades de cada especie de liberalismo, porque só assim
distinguiremos os partidos. De outra fórma, o indeterminado e o vago
dos fundamentos das doutrinas não nos deixarão perceber, nos varios
agrupamentos de homens, mais do que motivos pessoaes. Esses motivos
havia, mas é errado suppôr que não houvesse outros. O proprio caracter
do liberalismo, com a sua falta de criterio a não ser a palavra
LIBERDADE,--uma palavra e nada mais,--era a causa da multiplicação dos
modos de a _traduzir_.

Duas d’essas traducções, a de Mousinho e a de Passos, já nós
conhecemos. Quanto á de Palmella nunca chegou a vingar entre nós,
porque até 28 impediu-o o absolutismo, e depois da guerra já o não
consentia a legislação da dictadura que destruira toda a sociedade
antiga. O liberalismo de Palmella era a doutrina de um politico,
habil e sceptico. Era a _moderação_, á maneira da que Luiz XVIII, com
um temperamento analogo, a entendia: uma cousa pratica. Mas, esta
politica teve como sustentaculo a doutrina do primeiro romantismo,
catholico, tradicionalista, monarchico, aristocratico, medievista, de
Chateaubriand e dos allemães. Sabemos como Palmella se oppôz á abolição
dos conventos, sem o conseguir; e como obteve que se não bolisse nos
morgados.

O primeiro romantismo, pois, concebido, ou pelo menos personalisado em
Palmella, operou apenas como obstaculo á plena expansão de um outro
pensamento liberal sem ser romantico, o de Mousinho. Conhecemos assaz
a doutrina do reformador para voltarmos a demorar-nos sobre ella.
Radical, individualista, utilitario, no systema das suas idéas não
entrava por cousa alguma a tradição: nem historica, nem religiosa, nem
aristocratica. Era um absolutismo individualista. A existencia de uma
religião d’Estado e de uma camara de pares, bem como a conservação dos
vinculos, deixavam a sua obra incompleta, e o novo edificio social
truncado. Palmella conseguira que houvesse pares e morgados; mas a
aristocracia, sem adherir ao regime novo, fazia da camara alta um
problema serio, porque a natureza tem horror ao vacuo.

Ao lado d’estes dois liberalismos, um romantico, o outro utilitario e
radical; um, filiado mais ou menos directamente no idealismo allemão,
o outro, filho directo do sensualismo inglez: ao lado de ambos e
comprimido até á revolução de setembro, vinha existindo o liberalismo
racionalista, de pura origem franceza, e que em francezes e portuguezes
se transformára, do velho jacobinismo, n’uma doutrina democratica só
diversa da antiga nas formulas e accidentes, mas em essencia fiel ao
typo transacto.

Taes são as tres fórmas de liberalismo, as tres diversas traducções da
palavra idolatrada, que o critico descobre na sociedade portugueza de
34-38.

       *       *       *       *       *

No fim d’este periodo, a desordem, o descredito e o cansaço já
congregavam os homens em novos agrupamentos, ao mesmo tempo que,
do absolutismo das doutrinas de Mousinho e do caracter em demasia
historico das doutrinas de Palmella, saía uma combinação media, cujo
interprete politico era Rodrigo da Fonseca, e cujo melhor defensor foi
Herculano. Era um segundo romantismo, individualista sem engeitar a
tradição, e até popular sem deixar de ser brandamente aristocrata. Era
a constituição de 38, com um senado electivo e temporario.

Eis ahi o verbo novo, a palavra de paz, o evangelho da liberdade
redemptora. O _propheta_ sonhava com ella desde 34, sem ainda a ter
definido bem claramente; mas entrevendo-a nas affirmações doutrinarias
de Mousinho e nas sympathias de Palmella pelas velhas instituições. E
foi n’isto que rebentou o tumor democrata (1836). E aos que julgavam
a victoria ganha, conquistada a paz, veiu a revolução dizer que
tudo havia a recomeçar. E quem era esse novo apostolo da desordem?
E que monstro de plebe solta vinha de tal fórma perturbar a paz dos
philosophos? E desmanchar com uma lufada de simún as suas sabias
architecturas politicas?

 Quem a preparou e a fez surgir? Não sei. Ostensivamente os seus
 authores foram a plebe de Lisboa e alguns soldados que se negaram a
 dispersar os amotinados. Os individuos que, depois de consummado o
 facto, tomaram nas mãos as redeas do governo, recusaram para si a
 paternidade d’aquelle féto politico.

                      (Herculano, _Opusculo_, 1).

Então o propheta subiu ao seu Sinay e ouviu a voz de Deus que lhe disse
cousas pavorosas:

 A licença mata a liberdade, porque se livremente opprimes, livremente
 podes ser oppresso; se o assassinio é teu direito, direito será para
 os outros o assassinarem-te.

 Porque a nação se dilacerará, e enfraquecida passará das mãos da plebe
 para as mãos de algum despota que a devore.

       *       *       *       *       *

 Crês porventura (rainha!) que é bello e generoso assentares-te n’um
 throno que a relé do povo conspurcou de lodo e infamia?

                   (Herculano, _A voz do propheta_).

E a democracia era lodo, era infamia. E porque o provo irritado matara
um homem, era assassina a doutrina. E esse povo era plebe. E por sobre
as ondas da turba desenfreada apparecia ao vidente biblico, romantico,
o espectro de D. Miguel, um tyranno democrata:

    Nas orgias de Roma, com teus socios
        Folga, vil oppressor!
    Folga com os hypocritas iniquos
        Morreu teu vencedor ...
    Envolto em maldicções, em susto, em crimes,
        Fugiste miseravel.
    Elle, subindo ao céo, ouviu só queixas
        E um chôro lamentavel.

              (Herculano, _Poesias_ (1.ª ed.) _D. Pedro_).

E o romantismo desvairava o pensamento do vidente, porque D. Miguel não
fugira: fôra expulso; porque ao lado do chôro lamentavel, D. Pedro, se
estivesse no céo, havia de tambem ouvir ainda o bater das pedradas nos
tampos da sua carruagem fugindo a galope de San-Carlos. E as ordens
que no Sinay, o deus dava ao propheta

    Plante-se a acacia,--o liberal arbusto
    Junto ás cinzas do forte:
    Elle foi rei e combateu tyrannos:
    Chorae! chorae-lhe a morte!

                               (_Ibid._)

não eram cumpridas, porque ninguem se importava já com o homem que
morrera em peccado _liberal_.

E o propheta que, no calor das suas conversas com os deuses, falava
a lingua de uma poesia sentida e bella, descendo á terra e vendo a
desolação dos diluvios, vestia o manto de um Jeremias, ou a capa de um
Diogenes, ou a toga de um Suetonio:

 Homens que teriam legado á posteridade nomes gloriosos e sem mancha e
 que, mais modestos nas suas ambições materiaes seriam vultos heroicos
 da historia, pararam-se como condottieri mercenarios; ao passo
 que outros, depondo as armas e voltando á vida civil, exigiam ser
 revestidos de cargos publicos, para exercer os quaes lhes faltavam
 todos os predicados.

                           (_Opusculos_, 1).

E perguntas ainda, propheta! quem preparou e fez surgir a revolução?
Quem? senão a colera do Senhor, como n’aquelle dia em que mandou o
diluvio? E de toda a humanidade perdida apenas houve dois Noés, que
merecessem graça aos olhos do Senhor! E um foi Passos, a quem elle
chamou ao seio da eterna sabedoria, embalando risonho a filha sobre
os joelhos, já esquecido da Liberdade; outro foi Sá, a quem confiou
o commando da Arca sobre as aguas do diluvio. E dentro da Arca havia
casaes de todas as especies. E quando o temporal cessou, Noé-Sá abriu
a Arca. E havia a constituição nova de 38, iris de bonança, fructo da
copula das gerações condemnadas cujas sementes se guardavam na Arca. E
era uma especie diversa do romantismo antigo ...


2.--A POESIA DAS RUINAS

Portugal apparecia, com effeito, como emergindo de um diluvio que
alagara e destruira tudo: as instituições e os caracteres, a riqueza
e os costumes. Mas, por cima de todos os destroços, a imaginação dos
poetas e artistas via os dos conventos. Não podia deixar de ser assim,
n’um paiz que fôra um communismo monastico. Os frades tinham saído a
campo a defender-se. Em 31 quasi todos os mosteiros ficaram abandonados
á guarda de um ou dois leigos, porque as communidades arregimentavam-se:

    Negros, uns vultos vaguear se viam
    A cruz do Salvador na esquerda erguida
    Na dextra o ferro, preces blasfemando:
    Não perdoeis a um só! feros bradando
    Entre as fileiras, rapidos, corriam.

                        (Herculano, _Poesias_).

Já a doutrina os tinha condemnado; já Mousinho na Terceira havia
escripto a sentença da sua abolição; e depois, e mais em nome da
vingança dos vencedores do que em nome da doutrina, foram exterminados.
«Negros, uns vultos vaguear se viam» agora, esmolando miseraveis, ou
foragidos pelas serras, homisiados, precítos, caçados e escarnecidos.
Herculano, com uma corajosa humanidade, protestava: era «uma das
realidades mais torpes, mais ignominiosas, mais brutaes, mais
estupidas e covardemente crueis do seculo presente». (_Os egressos_,
op.) Fôra um roubo a expropriação:

 Pague-se um juro modico dos valores que nos apropriámos. Se o
 fizermos, em lugar de sermos mil vezes uma cousa cujo nome não
 escreverei aqui, sel-o hemos só 999; porque teremos restituido a
 milesima parte do que loucamente havemos desbaratado. (_Ibid._)

O sentimento de uma justiça absoluta imperava já, no espirito do
poeta stoico, por sobre as paixões de uma guerra passada, por sobre
o enthusiasmo de una victoria--tão triste! por sobre o systema das
opiniões politicas e o conjuncto das impressões partidarias. Era
um acto de justiça humanitaria que nem poderia remir os crimes
commettidos. A educação kantista do poeta fazia-o, como a Mousinho, ter
um culto pela propriedade, expressão social positiva do individuo. Mas
a theoria era condemnada pela politica. Se se não tivesse sequestrado
no Porto, ter-se-hia morrido; se os bens dos frades se não tivessem
confiscado e retalhado, o liberalismo teria caído no dia seguinte ao da
victoria.

       *       *       *       *       *

Não era porém só o kantismo que entrava na composição do estado de
espirito dos novos romanticos. Era a tradição, o amor vago do passado,
que os levava á inconsequencia de renegar o kantista Mousinho,
reprovador da historia nacional. Era a tradição religiosa:

 Os tempos são hoje outros: os liberaes já conhecem que devem ser
 tolerantes e que precisam de ser religiosos. A religião de Christo é a
 mãe da liberdade, a religião do patriotismo a sua companheira. O que
 não respeita os templos, os monumentos de uma e outra cousa, é mau
 inimigo da Liberdade, deshonra-a, deixa-a em desamparo, entrega-a á
 irrisão e ao odio do povo. (Garrett, _Viagens_)

Atacando por este lado a tradição radical de Mousinho, abraçavam por
isso os romanticos a eschola opposta, embora tambem liberal (sempre
e todas, por diversas que sejam, são _liberaes_) de Palmella e do
primeiro romantismo? Não. Depois do diluvio da revolução setembrista
ficára no ar uma nevoa de indecisões poeticas. Queriam-se nomes, não se
queriam cousas: aristocracia, sem pares vitalicios; religião d’Estado,
mas tolerante e _liberal_; antiguidades, tradições, mas apenas como
thema para romances e xacaras. Amava-se com furor a Edade-media, mas
no papel. Era a sombra do primeiro romantismo, este de agora. Palmella
não tinha querido que os conventos se abolissem: Garrett não os queria
restaurar, lamentando porém que os frades tivessem desapparecido:
davam um tom pittoresco e côr local aos quadros: «Nos campos o effeito
era ainda muito maior: caracterisavam a paysagem». (_Viagens_) A
doutrina dissolvia-se politicamente n’uma anarchia positiva; e
moralmente acabava n’um desejo vago de artistas ou em contradictorias
exclamações de poetas. Qual era o novo codigo da novissima, da terceira
eschola liberal? Quem o sabe? Tudo; nada--o nevoeiro que o diluvio
deixára sobre as terras quando, perante os clamores unanimes dos
neo-romanticos, o setembrismo acabou.

       *       *       *       *       *

Não se creia, porém, que homens como Herculano e Garrett, pouco
_importantes_ na politica e por isso mesmo mais livres: homens cheios
do talento e estudo, não percebessem o fundo real das cousas. A propria
inconsistencia, a indeterminação mais ou menos sentida das doutrinas
que seguiam, davam-lhes ainda uma facilidade maior para verem a
verdade. Nós conhecemos em que termos Herculano apreciava os homens do
dia; e Garrett, além dos motivos de artista, via outros para lamentar a
queda do passado.

 O barão mordeu no frade, devorou-o ... e escouceou-nos a nós depois
 ... Mas o frade não nos comprehendeu a nós, por isso morreu; e nós não
 comprehendemos o frade, por isso fizemos os barões de que havemos de
 morrer ... E quando vejo os conventos em ruinas, os egressos a pedir
 esmola e os barões de berlinda, tenho saudades dos frades--não dos
 frades que foram, mas dos frades que podiam ser. (_Ibid._)

Não podiam ser, não; não podiam ser outros do que tinham sido, do que
ficaram até hoje, onde ficaram, do que serão emquanto existirem. Como
poderia o frade, crendo na ordem divina de um mundo formado tal-qual
por uma vontade absoluta, admittir a doutrina que põe na razão do homem
a origem de todas as cousas? Iria adorar, em vez da Trindade, o vosso
Architecto-supremo, ó maçons? Nem o frade vos comprehendia, nem vós ao
frade; e assim devia ser: porque a _broca da analyse_ não profundára
ainda a natureza das vossas doutrinas, varrendo as chimeras das vossas
illusões. O frade vinha ligado a um passado real, e vós apparecieis
prégando uma doutrina de inconsequencia, em que esse passado vivo
se tornava em miragem poetica, e o presente, com as vossas idéas
nebulosas, na realidade crua do novo imperio dos barões.

Tal aristocracia, materialista, brutal, sem lustre nem dignidade,
mandava a natureza que saísse da concorrencia livre entre individuos
soberanos. Ou renegar o individualismo, voltando ao romantismo velho;
ou reconhecer no barão um filho legitimo. Não o fazer, demonstra sem
duvida falta absoluta de senso. Chorar--e ainda bem!--prova que os
homens não tinham seccado de todo. Mas, em vez de chorar em publico,
na frente dos barões que se riam digerindo, não era melhor fazer como
o democrata condemnado: recolher-se a casa baloiçando a filha sobre os
joelhos?

Não seria; e já que os escriptores, redigindo a doutrina do terceiro
ou quarto liberalismo, sentiam a inutilidade das combinações, a
vaidade das esperanças e a victoria inevitavel dos barões; já que, sem
se convencerem, se submettiam, melhor era com effeito que, deixando
a politica, baloiçassem outra filha querida--a arte, as lettras.
Litterato sobretudo é, com effeito, o segundo romantismo, no qual os
principios do primeiro se tornaram themas de poesia. Aos barões que
imperavam na sociedade positiva, apesar das fórmulas e dos preceitos da
novissima constituição ordeira, havia que pedir esmola para os frades
mendigos, para os estudos abandonados.

 Pão para a velhice desgraçada! Pão para metade dos nossos sabios, dos
 nossos homens virtuosos, do nosso sacerdocio! Pão para os que foram
 victimas das crenças, minhas, vossas, do seculo, e que morrem de fome
 e frio! (Herculano, _Os egressos_, op.)

Passos clamara misericordia para o miguelista, Herculano pedia pão para
o frade: nenhum foi ouvido. O primeiro demittiu-se; o segundo abandonou
a politica pelas lettras; e com as ruinas da velha poesia, elle,
Garrett, e os discipulos de ambos propuzeram-se crear a tradição que
convinha ao novo regime.


3.--RENASCIMENTO

A historia nacional, que a nova geração se decidiu a estudar,
restaurando a erudição academica e monastica, offerecia tradições
varias. A primeira e mais importante, a que distinguia Portugal do
commum das nações; a do imperio de vastos dominios ultramarinos,
Hollanda do extremo occidente, que vivera da exploração de regiões
extra-europêas, nação de navegadores e colonisadores--nem foi lembrada.
Além de não estarem em moda os estudos geographicos, primando a tudo a
historia das instituições; além de ter ficado arruinado completamente o
systema colonial portuguez com a separação do Brazil e com a abolição
do trafico de escravos em Africa:[21] o pensamento economico da eschola
era o de Mousinho, e nós sabemos como elle condemnou o passado,
querendo que a nação vivesse por si, de si, com o seu trabalho,
sobre o chão que tinha na Europa. Apenas Sá-da-Bandeira instava pela
volta á politica colonial; mas fazia-o de um modo indiscretamente
humanitario, esperando construir um Brazil em Africa, com o trabalho
livre e a concorrencia e garantias liberaes. N’isto se mostrava o seu
_romantismo_. A sua preoccupação colonial passava por mania, e chegava
a sel-o.

Outra das tradições portuguezas, bastante ligada com a anterior, era
a do absolutismo ou do imperialismo: a fórma organica adequada á
existencia de uma nação, vivendo _contra naturam_ da exploração de
terras distantes: a monarchia de D. João II e D. Manuel, a D. João V,
e por fim a do Marquez de Pombal. Como reconheceria o romantismo esta
tradição, quando a alma do seu pensamento politico era a soberania do
individuo? É ocioso insistir em demonstrar as causas de antipathia.

A terceira, finalmente, das tradições portuguezas era a catholica. O
reino creara-se como feudo do papado; as ordens monasticas tinham sido
um dos principaes elementos da sua povoação na metade austral;[22] e
por fim, em tempos mais recentes, o jesuitismo invadira o espirito da
nação e os seus dominios ultramarinos. A Companhia foi a educadora
e colonisadora, em Portugal, na Africa e no Brazil,[23] depois de
ser missionaria no Oriente, na Africa e na America. De taes motivos
resultara a nação de sacristães, frades e beatos do XVIII seculo,
estonteados no seguinte, quando lhes faltaram as rendas do Brazil. Não
fôra contra esta que se batalhara por annos? Como havia de continual-a,
a gente que a destruira? Tradição propriamente aristocratica não
existia, porque toda a monarchia de Aviz se occupara com exito em
deprimir a nobreza medieval, e depois, a de Bragança teve de acabar com
ella, por castelhana, no tempo de D. João IV, por teimosa, no tempo de
Pombal.[24]

Que tradição de historia invocar, pois, quando a revolução romantica
era a negação da historia nacional? Iria o liberalismo acclamar
os despotas? Iria defender a escravisação das raças africanas e
americanas, o individualista inchado com a noção da soberania do homem
abstracto espiritual? Iria o livre-cambista, discipulo de Smith,
applaudir as protecções e monopolios á sombra dos quaes se formara a
riqueza nacional?

Não. Seria demasiada inconsequencia. Inconsequente era o romantico,
pretendendo conciliar uma tradição com o seu racionalismo abstracto;
inconsequente, comtudo, por necessidade, pois ainda «a broca da
analyse» não patenteara o systema das leis da evolução, que mostram não
haver na realidade absolutos, apenas formas transitorias, relacionadas
sempre, deduzindo-se naturalmente, espontaneamente. O romantismo ou
eschola historica prevía, precedia esta doutrina; mas o espiritualismo
racionalista que lhe andava ligado não o deixava avançar, e
precipitava-o em aventuras singulares.

       *       *       *       *       *

Uma das mais conspicuas foi de certo a tentativa de crear uma tradição
nacional portugueza, contra os elementos de uma historia de cinco
seculos, quando a duração total da nossa historia não excedia sete.
Mas esses dois primeiros affiguravam-se os puros: sendo o resto
erros, desvios da genuina tradição. De tal fórma se obedecia á moda
que lavrava nas nações germanicas; mas n’esses paizes a tradição
medieval era viva, estavam ainda de pé as instituições antigas; pois
só na França e na Hespanha se tinham constituido absolutismos, e só
a Peninsula tinha tido, para além dos territorios europeus, vastos
dominios ultramarinos.

Embora dirigidos por um criterio errado, os propugnadores do
romantismo, a cuja frente se viam Herculano e Garrett, mettiam mãos a
uma obra em todo o caso necessaria. A abolição dos conventos destruira
o systema dos estudos; e se cumpria aos governos organisar a instrucção
publica, era a obrigação dos escriptores novos continuar a obra dos
frades. Do valor esthetico ou scientifico d’esses trabalhos litterarios
da geração que nos precedeu não temos que nos occupar aqui, pois não
tratamos da historia litteraria, aproveitando das lettras apenas como
documento historico da sociedade.

 As estancias do Tasso, retumbando das bocas dos barqueiros nas margens
 do Brenta e do Adige e os romances de Burger, cantados em sons
 monodicos á lareira nas longas noites da Germania, e as trovas de
 Beranger repetidas por milhões de bocas em todos os angulos da França,
 dizem mais a favor da poesia em que transluz a nacionalidade do que
 largas dissertações metaphisicas.

                (_Jornal da soc. dos am. das lettras_).

Herculano escrevia isto em 34, applaudindo os _Ciumes do Bardo_ de
Castilho, _pastiche_ crú, nem portuguez, nem cousa nenhuma. Mau
symptoma: porque o critico confundia o _genero_ em litteratura com o
renascimento da nacionalidade.

 Burger empregou admiravelmente a poesia nas tradições nacionaes; e é
 a elle a Voss que devemos a renovação d’este _genero_ inteiramente
 extincto na Europa depois do XVI seculo ... A poesia deve ter,
 além do bello de todos os tempos, de todos os paizes, um caracter
 do nacionalidade, sem o qual nenhum povo se póde gabar de ter uma
 litteratura propria.

                  (Herculano, nas _Mem. do Conserv._)

Mãos, portanto, á obra. A «sociedade doa amigos das lettras», dos
Castilhos, não vingara. Com Bernardino Gomes, no Porto, já Herculano
tinha fundado a «sociedade das sciencias medicas e litteratura»--duas
cousas talvez admiradas de se acharem reunidas. Agora, em Lisboa, o
renovador dos estudos, o chefe da nova eschola, creava a «sociedade
propagadora dos conhecimentos uteis» cujo orgão, o _Panorama_, adquiria
uma circulação extraordinaria. Não havia outra cousa que lêr, e lêr
começava a ser moda na sociedade _das luzes_, como diziam, com ironia e
despeito, os antigos. O _Panorama_ trazia bonecos e receitas, além de
trazer os estudos iniciadores da tradição nova, assignados «A. H.»

Que eram, que são esses trabalhos? (_Lendas e Narrativas_, _Monge de
Cister_, _Bobo_, etc.) Sabiamente extrahidos das chronicas por um
erudito, que relação havia entre elles e as memorias e lembranças vivas
na imaginação popular? Nenhuma. Falasse a litteratura ao povo nas
aventuras das viagens, nas historias dos naufragios, e de certo acharia
ainda um ecco: mas em D. Fuas ou no celebre Paio-Peres-Correia? Quem se
lembrava de tal? que sentimentos, que memorias estavam ligadas a essas
façanhas de tempos breves e sem caracter particularmente portuguez?
O _genero_ porém impunha estes assumptos, e a educação litteraria,
de mãos dados com a philosophica e economica, repelliam os outros,
oriundos da positiva historia da nação. O modelo era Walter Scott,
traduzido pelo Ramalho. Nas novellas do escocez se achava o typo das
_tradições nacionaes_.

Mais perspicaz, Garrett punha em scena o marquez de Pombal (_A
sobrinha do Marquez_), typo vivo, presente, popular; e se tambem ia
á Edade-media (_Arco-de-Sant’Anna_, _Alfageme_), era para explorar
a moda, aproveitando os nomes antigos em dramas ou comedias da
actualidade. Mais perspicaz, via que no povo portuguez não havia
tradições medievaes, e que as lendas das chronicas eram objecto
de erudição, mas não de litteratura ou poesia nacional. Em vão se
procuraria ahi o renascimento. Cavou mais fundo e foi aos romances
e historias da tradição oral: essa era a poesia da raça, não a
poesia historica ou nacional. O _Romanceiro_, feito com um proposito
litterario e não ethnologico--Garrett não era como os Grimm--não
tinha comtudo alcance para o renascimento da nacionalidade, porque,
em Portugal, a nação provinha de uma historia e não de uma raça
individualisada. A poesia popular funde as nossas populações no corpo
das populações ibericas.

Em vão, portanto, o romantismo procurava uma tradição. Não a achava,
porque as idéas philosophico-economicas condemnavam as conhecidas; e
não havendo outras a descobrir, os romanticos implantavam um _genero_
litterario de importação da Escocia, _á Walter-Scott_, sem conseguirem
acordar no povo lembranças d’esses dois seculos de Edade-media de que
elle não tinha recordações, porque n’elles a vida da nação não tivera
caracter proprio. Senhorio rebellado, como tantos outros, até ao fim do
XIII seculo, é só com a vida maritima então iniciada que principia uma
historia particularmente portugueza.

       *       *       *       *       *

No lugar onde a Inquisição tinha sido, fôra o Thesouro que ardera, e
ficara--ficou até hoje!--em ruinas. N’esse lugar historico se levantou
o templo romantico do renascimento da tradição nacional. Pobre theatro
de D. Maria II! que vives da traducção das comedias francezas. Em
vez de representarem ahi as tragedias portuguezas: a historia das
viagens, dos naufragios e aventuras do Ultramar, a historia das
cruezas da Inquisição e a tortura do judeu, talvez até a historia da
propria queima do dominio do velho Estado, no lugar onde o Thesouro
ardeu--representaram scenas tão horrendas quanto frias: os melodramas
romanticos, de montantes e couraças, n’um estylo arrevezado e cheio de
«sus! eias! bofés! t’arrengos!» Á força de lagrimas, adormecia-se, em
vez de se acordar para a renascença de uma tradição apagada, tanto mais
que nunca existira. Garrett disse-nos como essa tradição se fazia:

 Vae-se aos figurinos francezes de Dumas, de Sue, de Victor-Hugo, e
 recorta a gente de cada um d’elles as figuras que precisa, gruda-os
 sobre uma folha de papel da côr da moda, verde, pardo, azul; fórma com
 elles os grupos e situações que lhe parece: não importa que sejam mais
 ou menos disparatados. Depois vae-se ás chronicas, tiram-se uns poucos
 de nomes e de palavrões velhos: com os nomes chrismam-se os figurões,
 com os palavrões _illuminam-se_, etc. (_Viagens_).

Assim era no theatro; assim na imprensa, Herculano, condemnando a
aristocracia e os seus vinculos, o Estado e a sua authoridade, o throno
e o seu poder; condemnando todas as instituições historicas, apenas
descobria uma, unica n’esses tempos breves, antigos e genuinos, depois
dos quaes tudo fôra erro,--o municipio. (V. _Hist. de Portugal_) Mas
esse municipio redemptor, verdadeira e pura tradição nacional, que era?
Elle nol-o diz tambem: (_Parocho d’aldeia_, _Carta aos eleitores_,
etc.) uma assembléa de cretinos.

 A sociedade é materialista; e a litteratura que é a expressão da
 sociedade é toda excessivamente e absurdamente e despropositadamente
 espiritualista! Sancho, rei de facto! Quixote, rei de direito!... É a
 litteratura que é uma hypocrita. (Garrett, _Viagens_).

Hypocrisia? não: innocencia, propria de litteratos ou doutrinarios.
O romantismo ficava sendo um _genero_ e falso; a sociedade seguia o
seu caminho. Sancho reinava. O municipalismo ficava sendo o que era,
o que podia ser, um instrumento administrativo. Dir-se-hia, pois, que
tudo eram tambem ruinas por este lado, e tudo anarchia? Não. Quando
os homens valem, as suas obras fructificam, apesar das formulas a que
obedecem. A natureza é mais forte do que as doutrinas, a realidade
sobrepuja as chimeras. Como obra de homens ficaram os trabalhos de
erudição historica de Herculano; ficou, para attestar o genio do
artista Garrett, uma tragedia em que a tradição realmente o inspirou, o
_Frei Luiz de Sousa_.

 Na sua commovedora simplicidade, o drama representa o fundo intimo
 da vida portugueza, com a mistura de anceios e tristezas, esperanças
 envenenadas de fortunas apparentes e impossiveis que conduzem a essa
 devoradora melancolia que se chama saudade. O effeito é tanto mais
 desolador, quanto a esperança realisada apenas serve para despedaçar
 os corações. No fim, quando os personagens principaes dizem adeus ao
 mundo para entrar no convento, parece que a nação inteira pronuncía os
 votos.

                    (Quinet, _Vacances en Espagne_).

O _Frei Luiz de Sousa_ é a tragedia portugueza, sebastianista.[25]
O fatalismo e a candura, a energia e a gravidade, a tristeza e a
submissão do genio nacional, estão alli. Não é classico, nem romantico:
é tragico, na bella e antiga accepção da palavra: superior ás
escholas e aos generos, dando a mão, por sobre Shakespeare e Goethe,
a Sophocles. N’um momento unico de intuição genial, Garrett viu por
dentro o homem e sentiu o palpitar das entranhas portuguezas. Que
ouviu? Um choro de afflicções tristes, uma resignação heroicamente
passiva, uma esperança vaga, etherea, na imaginação de uma rapariga
phtysica, e no tresvario de um escudeiro sebastianista.

Quando o genio tinha uma revelação d’estas, estaria forte, viva, crente
n’uma tradição seguida, ávida por um futuro certo, a nação entregue aos
braços da Liberdade?

Balouçada nos joelhos do tribuno a filhinha sorria, e elle tristemente
se consolava, esperando, esperando ... mas para longe, quando, tudo
acabado, D. Sebastião voltasse em uma manhan do nevoa ... um D.
Sebastião iberico ...


4.--A ORDEM

Por ora, não. O povo inteiro pronunciava os votos cada dia mais formaes
de uma abstenção decidida. Deixal-os, os politicos, fazer systemas e
revoluções, cartas, juntas, programmas, côrtes, leis; deixal-os comer e
engordar e devorarem-se: elles cançarão!

Já desanimados, tinham cançado Mousinho e Passos; mas havia gente nova,
para uma terceira investida, um terceiro liberalismo: a Ordem. Mas
como póde haver ordem nos factos, se as idéas são uma desordem? Como
conciliar as instituições e as idéas, quando as primeiras, reconhecendo
a aristocracia n’uma segunda camara, a, theocracia n’uma religião
d’Estado obedecem ainda ao pensamento do primeiro romantismo, ou do
tradição historica? quando o segundo fez recuar essa tradição para o
campo vago de uma poesia, além de insufficiente para dar consistencia
ao organismo social, falsa e artificial, obra de litteratos, paixão
de archeologos e eruditos, inaccessivel ao povo? Como conciliar essas
instituições com o principio da soberania do individuo, já combinado
pela revolução com o da soberania do povo? e com o systema da
concorrencia livre, prejudicado pela revolução, tambem, com o systema
da protecção ás industrias? Essa ordem é um cháos, de instituições
e idéas. Já não ha, é claro, uma Anarchia systematica, tal como a
concebera Mousinho; mas em vez d’ella ha uma mistura de elementos
contradictorios, liberaes, democraticos, romanticos, d’onde sae a
supposta ordem da constituição de 38.

Assim, tambem, já não ha bandidos: os marechaes voltaram e juraram; mas
sob a paz apparente lavram os germens de novas desordens. A anarchia
fôra até 36 um systema. Agora pedia-se ordem; mas as vida antiga ia
continuar contra a vontade dos homens já saciados, já desejosos de
gozar em paz o fructo dos seus trabalhos. Rodrigo apparecia á frente
dos setembristas e cartistas fusionados para o descanço: Rodrigo
sceptico desde o berço, mas talvez crente em que no scepticismo
estivesse a sabedoria, e por isso na constituição de 38 o porto
desejado da vida liberal.

Não, não podia ser: a confusão dos elementos não podia dar a ordem nas
instituições. Foi a rainha quem fez da Costa Cabral um instrumento para
restaurar a CARTA (1842), cudilhar Rodrigo e os ordeiros fusionados,
e os romanticos? Talvez fosse; talvez não fosse: logo o vermos. Mas o
facto é que o _status quo_ não era viavel, apezar das affirmações em
contrario dos vencidos.

Palmella com o seu romantismo aristocratico pugnára pela conservação
de uma camara de pares vitalicia, hereditaria; mas a revolução veiu e
destruiu-a. Depois, em 38, o meio-termo creou a camara dos senadores
temporarios, electivos. É verdade que, extincta ou protestante por
miguelista, a antiga aristocracia não podia preencher os lugares da
camara; mas não é menos verdade que um senado temporario e electivo
só é viavel dentro de um systema de representação de orgãos e classes
da sociedade; sendo uma chimera, um accessorio inutil, uma duplicação
van (como agora mesmo se vê em França), quando procede, como a
camara-baixa, do suffragio popular, directo ou indirecto.

A antiga aristocracia demittira-se, é verdade; mas a liberdade e a
concorrencia tinham creado um poder real e novo, uma plutocracia: a
classe dos burguezes ricos que não podiam deixar o seu poder, os seus
interesses, á mercê dos acasos das eleições; que não pactuavam com
o individualismo, nem com a democracia, querendo para si o dominio
seguro a que de facto lhes dava direito o seu poder estavel. Derrubadas
todas as authoridades em holocausto á doutrina, só uma não podiam os
doutrinarios destruir: o dinheiro. O dinheiro, pois, creou para si uma
doutrina nova, que teve por defensor Costa-Cabral. Era um quarto, ou
quinto liberalismo que surgia e vencia todos os anteriores.

Guizot e Luiz-Philippe tiveram de fazer em França o mesmo que D.
Maria II e Cabral fizeram cá. Aos burguezes diziam--enriquecei-vos!
e ás instituições e garantias reformavam-nas no sentido de crear e
consolidar a nova aristocracia dos ricos. Era uma fórma de Ordem que
escapou ás previsões dos romanticos: os seus medos e coleras tinham-se
voltado e consumido contra a democracia! O inimigo surgia abruptamente
d’onde o não esperavam, e bateu-os com a maxima fortuna. Restaurou-se a
CARTA, sem ser necessario um tiro: é verdade tambem que da mesma fórma
caíra em 10 de setembro. Os romanticos sinceros, ingenuos, esperando a
acção dos meios moraes, esqueciam a força dos elementos positivos: a
ordem que tinham fundado era uma bola de sabão. Um sopro desmanchou-a.

E assim devia ser tambem, perante a natureza das doutrinas. Pois se a
unica fonte da authoridade moral e politica era o individuo, pois se a
propriedade era a sagração de uma personalidade soberana, onde se havia
de ir buscar o mandato, senão á vontade da maioria? como se havia de
desconhecer a importancia suprema da riqueza? Porque protestavam, pois,
contra os setembristas, chamando _ignaras_ ás maiorias? e contra os
cabralistas chamando nomes aos argentarios? Ou o dominio do numero, ou
o imperio do dinheiro: eis ahi onde a _liberdade_ conduzia fatalmente.
Onde conduziria, senão á affirmação de uma authoridade cega do numero
ou das forças brutas, a doutrina que negára a authoridade social em
nome da natureza do individuo?

Falhára a conclusão democratica; mas ia vencer a aristocracia nova:
assim terminavam no _absolutismo illustrado_ os diversos liberalismos.

       *       *       *       *       *

D’esta ultima ruina qual é o cadaver que surge? Quem é agora o
successor de Mousinho ou de Passos? Ninguem; não ha, porque não houve
tempo bastante para fazer desilludidos. O tempo virá, e d’aqui por dez
ou doze annos, veremos como acabam de vez as illusões de Herculano, o
romantico ordeiro. O tempo virá, e na mesma hora veremos Rodrigo, já
cabalmente educado, já de todo em todo sceptico. Aprendera afinal a
conhecer a sua terra, a sua gente, o seu tempo! Singular cegueira fôra
o que suppunha em si perspicacia: «não o cudilhariam outra vez».

Agora, ainda o consummado actor não compunha bem o seu sorriso
final, satanico, de uma ironia e desprezo universaes; ainda tinha
despeito e até colera, vendo a victoria do rival duro e forte. Agora,
representava-se o _Frei Luiz de Sousa_ e as platéas, commovidas,
choravam, pensavam tristes. Ruinas, sempre ruinas!... Ergue-se, porém,
um homem novo: será um messias? será D. Sebastião? Mas recordavam-se de
o ter ouvido nos Camillos, e extranhavam ao vêl-o agora nos degraus do
throno. Entre duvidas, esperanças, tristezas, submissões, desesperos,
acabava a anarchia liberal, para dar logar ao absolutismo novo, erguido
sobre a Babel das riquezas obtidas, Deus sabe como! nos tempos da
desordem.

 A magnificencia de Lisboa é mais triste do que as charnecas de
 Hespanha: ruas sumptuosas, praças immensas, a cabeça de um grande
 imperio,--e o silencio, a solidão d’uma terra, ou d’uma Gomhorra
 subvertida. Feria-me sobretudo esta melancolia, quando a comparava á
 embriaguez das cidades de Castella e da Andaluzia. A Hespanha dança
 por sobre as suas ruinas: Portugal agonisa no atrio de um palacio.
 (Quinet, _Vacances en Espagne_)


NOTAS DE RODAPÉ:

[21] V. _O Brazil e as colon. port._ II, 1, 5.

[22] V. _Hist. de Port._ (3.ª ed.) I, pp. 123-5.

[23] V. _O Brazil e as col. port._ (2.ª ed.) I, 1, 5.

[24] V. _Hist. de Port._ (3.ª ed.) II, pp. 129-30 e 177-8.

[25] V. _Hist. de Portugal_, l. V, 4.




LIVRO QUINTO

O CARTISMO

(1839-51)




I

COSTA-CABRAL


1.--OS ORDEIROS

Rodrigo dissera que a questão ingleza, causa da queda de Sabrosa «era
um sacco de ouro», e entrou no governo, sob a presidencia de Bomfim,
tendo Costa-Cabral por lugar-tenente na Justiça, disposto a dar esse
ouro e a passar por cima de tudo, rapido, breve, dissimuladamente
unctuoso, affavel, risonho, cheio lá por dentro de orgulho e imperio,
(_Hontem, hoje e am._) sem olhar aos cachopos, navegando para ir
dar fundo no porto seguro da Ordem, e ser ahi acclamado como o mais
habil dos pilotos. O seu norte não era um principio, era um resultado
pratico. Achava egualmente singulares as preoccupações theoricas dos
democratas e dos cartistas, e sem partilhar nenhuma d’ellas, mirava
apenas a uma paz, para ganhar a qual não hesitava em as atropelar, nem
á dignidade, ao decóro, ao brio da nação. Elle julgava conhecel-a de
perto, e de ha muitos annos!

Saldanha, que desde a paz constitucional de 38 tinha regressado da sua
emigração, era o homem para mandar a Londres, amansar Palmerston. O
inglez, com effeito, chegara ao desespero perante a nossa resistencia
passiva e surda: a resistencia dos enfermos, similhante á do Egypto ou
da Turquia dos nossos dias. Reclamava o cumprimento do tratado para a
abolição do trafico dos negros, tratado que os nossos negreiros não
podiam consentir se executasse a serio.[26] Reclamava as despezas da
divisão auxiliar de Clinton em 27 (£173:030) e mais os soldos por
pagar a Beresford e Wellington (£124:255), ao todo uns 1:400 contos.
Sá-da-Bandeira, e agora Sabrosa, tinham caído, sem poder resolver a
questão. Esperava Rodrigo conseguil-o com as suas artes? Illudia-se. Em
maio, Palmerston mandou ordens positivas ao seu embaixador de Lisboa:
Se até 15 (maio de 1840) não fossem attendidas as reclamações inglezas,
expedisse o vapor que tinha em Lisboa para Malta, d’onde uma esquadra
saíria a tomar posse de Goa e Macau; e se se fizesse algum mal aos
residentes britannicos em Portugal, outros navios iriam apoderar-se da
Madeira. (V. Carnota, _Memoirs_.)

Em taes apuros valia Saldanha, cuja reputação militar servia ainda
perante extranhos de fiador ao nosso descredito. Howard, em Lisboa,
suspendeu a execução das ordens; Saldanha partiu para Londres e
obteve-se uma combinação de pagamentos a prazos, appellando para a
generosidade dos nossos protectores pela bocca do marechal diplomata.

Quando as camaras se abriram no principio do anno, Rodrigo, á frente
do gabinete, ouviu sereno as apostrophes setembristas: era um lacaio
de Palmerston, e o governo portuguez uma delegação da Inglaterra. (V.
os debates, sessão 40; espec. o disc. de José Estevão em 6 de fever.
dito do Porto-do-Pireu) Ouviu, e convencido de que os inimigos se não
convertiam, dissolveu o parlamento (25 de fevereiro): necessitava gente
sua, necessitava silencio para poder resolver a questão ingleza. _Fez_
novas eleições e, como sempre succedera e succederá, venceu-as. O paiz
era unanimemente _ordeiro_. Tres mezes depois (26 de maio), reuniu-se a
camara nova, mas--oh, triste sorte dos habeis!--o que se dissolvia era
a maioria. Formou-se uma colligação para a restauração da CARTA pura
(Seabra-Magalhães), contra o ecclectismo do governo ordeiro que não
dava suficiente ordem.

Com effeito o setembrismo, expulso da camara pela genuinidade dos
processos de representação nacional, appellara para a revolta. Foi
d’então que Rodrigo viu o seu erro, aprendendo a comprar os deputados
como se faz ás casas, em vez de lhes disputar o ingresso no _templo
da nação_. D’esta vez, porém, o mal estava feito: não havia cura.
No dia 11 de agosto uma turba de gente sublevada reuniu-se no largo
da Estrella, descendo a convidar para uma _revolução_ a guarda das
côrtes, a do banco e a de caçadores 2. A tropa não quiz; e elles foram
então para arrombar o arsenal do exercito, no Caes dos soldados, mas
encontrando uma força que os deteve, debandaram. Era nada como facto,
mas grave como ameaça. O setembrismo, tão liberal, não se convencia,
nem se curvava ao juizo-da-Urna! Duas semanas depois do caso de
Lisboa, chegou a noticia da revolta das guarnições de Castello-Branco
e Marvão (26). O tenente-coronel Miguel-Augusto arrastara os soldados:
era uma guerra civil. Mandaram-se tropas que facilmente repelliram
os pronunciados; e fugindo, os soldados rebeldes mataram na Guarda o
tenente-coronel, debandado, emigrando para Hespanha, ou submettendo-se.
A ordem vencia a _hydra da revolução_, mas não podia vencer a desordem
que se formava.

       *       *       *       *       *

Conhecemos assaz os motivos, isto é, o caracter incoherente das
doutrinas da situação ordeira a que o romantismo não podia dar
principios, pela razão breve de os não ter para si. Elle era um
_genero_ litterario apenas; e o governo era tambem um _genero_ de
governo: o genero sceptico, ainda prematuro. Não ha nada que mais
exalte as _doutrinas_ e exacerbe os odios do que a fome, e então havia
fome entre nós: só quando chegasse uma tal ou qual fartura, acabaria
o periodo dos _systemas_ e das _revoltas_, o reinado da phrase e
do tiro. Então venceria, sem duvida, Rodrigo. Por emquanto, o seu
scepticismo offendia os ingenuos, e como não dava o que faltava sobre
tudo--pão!--era duas vezes condemnado.

O primeiro clamor vinha de turbo dos empregados-publicos, a que, sobre
os pontos e atrazos, se tiravam dez por cento (6 de novembro de 41).
Se no reino, Rodrigo, ao leme da Urna, levava o barco a salvamento;
se Costa-Cabral, na Justiça, mostrava o que podia, a pobre Fazenda,
coitada! via succederem-se os medicos (Ferraz, Miranda, Tojal), sem
que surgisse um digno successor ao velho Law reformado. Não podia durar
tampouco, por mais tempo na Presidencia, o _plastron_ que Rodrigo
escolhera; e força foi reorganisar a tripulação do barco _ordeiro_ (9
de junho de 41). Aguiar tomou o lugar de Bomfim; e na Fazenda pôz-se
um homem novo, crédor de esperanças, que em pesados relatorios tinha
mostrado saber as operações. Poderia Avila descobrir a _operação_
mestra de encher o Thesouro? Se o fizesse consolidava a Ordem, porque
já de certo, a este tempo, o dinheiro poderia mais do que as doutrinas.
Mas não o fez: era impossivel! E em vez de encher, vasou ainda mais os
bolsos dos pobres empregados, como já se disse.

Nas camaras, o homem novo, de quem se exigia um impossivel, soffreu as
coleras de Garrett, e os epigrammas do conde da Taipa que reclamava
o _ponto_ para todas as dividas, salvo os consolidados. (Sess. de 15
de julho e 14 de agosto) Cá de fóra, batiam a _Ordem_, o _Nacional_
e o _Constitucional_, os setembristas e os cartistas scisionados.
Ferrer e Seabra, ambos colericos, faziam um tal escandalo, que o grave
economista Marreca, com o seu tom manso, a custo evitou o pugilato.
(Sessão de 14 de agosto) O riso de Rodrigo amarellecia, vendo sossobrar
o barco da sua dissimulada ambição contra os cachopos da penuria amarga.

«O verdadeiro e unico remedio para as finanças de Portugal é
uma banca-rota universal, e d’ahi por diante rigorosa economia.
Desenganae-vos: este é o especifico, tudo o mais são palliativos;
e a elle havemos de ir: não sei quando, mas a elle iremos. Se os
homens de setembro tivessem lançado mão d’elle, os homens de setembro
seriam eternos no poder, porque em Portugal ha de governar inabalavel
o governo que tiver o dinheiro de que precisar.» (_Hontem, hoje e
amanhã_) A sabedoria falava pela bocca do author do opusculo anonymo: o
programma da futura Regeneração estava escripto.

       *       *       *       *       *

Mas nem as condições da Europa nem as de Portugal consentiam ainda que
elle se pozesse em practica. Não se tinha accentuado ainda a epocha
industrial-utilitaria que a larga applicação do vapor ás manufacturas e
á viação veiu a abrir; e havia em França e na Hespanha, para onde nós
olhavamos, uma doutrina vencedora, acclamada, que parecia a fórmula
definitiva do liberalismo. Era a aristocracia dos ricos, apoiada a um
absolutismo hypocrita no throno, e a uma burocracia no governo. Guizot,
Gonzales-Bravo, pareciam modelos a seguir; e Costa-Cabral sentiu em si
força para os imitar, voltando-se desordeiramente contra a Ordem de que
era ministro, para organisar a outra, a definitiva ordem liberal.

É já nossa conhecida a pessoa do ministro da Justiça ordeiro.
Vimol-o, rabido, a declamar nos clubs; vimol-o depois a dirigir braço
de Sá-da-Bandeira para suffocar os tumultos de 38 em Lisboa. Os
setembristas começaram desde logo a odiar o transfuga, chamando-lhe
ambicioso, como se alguem, sem ambição, alguma coisa conseguisse! A
nós cumpre-nos estudar o valor d’essa ambição, em vez de condemnar
puerilmente o sentimento gerador de todos os actos humanos. Esse
ambicioso era uma resurreição de Pombal nas qualidades e nos defeitos.
Se tivesse encontrado ainda de pé alguma ordem verdadeira, alguma
authoridade fixa, como a que o predecessor achou no absolutismo, teria
sido tão grande como elle foi. Caiu, por falta de apoio: assim todos
tinham caído, porque nada se mantém de pé quando falta o chão firme de
uma doutrina enraizada nos animos, consistente e forte. Ha um modo de
se conservar erecto, no meio do vacillar de todas as cousas, ha; e é
quando, sem andar, se dispendem as attenções e os cuidados inteiros nos
equilibrios necessarios á attitude. Parece então que se existe, mas é
apenas uma sombra de vida ...

Ao tempo em que nos achamos, havia ainda forte desejo de viver; e
além d’isso um mal-estar, uma pobreza, que forçavam ao movimento.
Cabral fôra demagogo: por calculo, para gritar tão alto, que podesse
_vencer_ na concorrencia do leilão politico? por sinceridade e
opinião, abandonada depois? Elle o sabe; e a nós importa isso pouco.
Na politica, os homens são vehiculos de planos varios: a esses
planos, mais do que ás virtudes privadas, attende a historia. Quando
ella encontra um santo, como Passos, abençoa-o; quando encontra um
forte, como Cabral, admira-o; quando encontra um habil, como Rodrigo,
applaude-o. Na arte de governar os homens, a força e a habilidade
valeram, valerão sempre mais do que a virtude. Costa Cabral padecia da
falta de plasticidade do seu émulo no Reino: era hirto, duro, secco,
aggressivo, violento, como a _doutrina_ que fizera sua. Sendo Portugal,
como de facto era, um reflexo da França, acodem aos bicos da penna as
approximações: Cabral era um Guizot, Rodrigo um Thiers.

Qual venceria: a habilidade sceptica, ou a força doutrinaria? Em
França, em Portugal, venceu temporariamente a segunda. Foi necessario
48 lá, e cá uma guerra triste e lenta, para destruir a doutrina do
argentarismo. Não venceu elle, porém depois, com a força das cousas,
de um modo real? Não foram Thiers-Rodrigo os seus instrumentos
definitivos, mas sem consciencia, nem força, já, para o defenderem como
_systema_?

       *       *       *       *       *

Na administração de Lisboa, Cabral dera em 38 a medida dos seus
talentos; no ministerio da Justiça, agora, portanto, durava a ordem
provisoria, ia-se revelando cada vez mais o seu genio pombalino.
Restabelecidas as relações com Roma, que desde 34 estavam suspensas,
o ministro reorganisou a machina ecclesiastica, preenchendo as sés,
regulando, construindo tudo o que a anarchia derrubára. Outhorgando
a _Novissima reforma judiciaria_, adaptava a legislação antiga aos
principios novos estabelecidos pela revolução, organisando tambem o
pessoal da justiça, pondo regra e ordem n’esse deploravel cáos. Não era
um demolidor, a continuar a obra de Mousinho, não era um philosopho,
guiado por principios absolutos: era um homem prático, laborioso,
intelligente, serzindo, remendando, alinhavando os farrapos velhos e
novos, os retalhos ainda existentes do passado, com as amostras, breves
e já desbotadas, do futuro.

A sua fama crescia, e trabalhando, agora e sempre, conquistava uma
influencia muito mais solida do que a do émulo com as suas manhas
e ardís. O scepticismo e a ironia, com as artes e os ditos, vencem
e por vezes seduzem; mas a impressão é breve, e fica sem raizes. A
força ganha uma tenacidade differente. A força pessoal do homem que
vinha subindo era mais uma causa de naufragio para a ordem apparente
das esperanças de Rodrigo. Já o astuto chefe percebia que, em vez de
guiar, era dominado; e empregava todas as suas artes para encobrir a
derrota. Depois de certa votação, obtida na camara pela influencia
pessoal de Cabral, Rodrigo á saída, n’uma effusão de agradecimento,
deu-lhe um beijo. (_Apont. hist._ cit.) Era um beijo de Judas, a
denuncia de um condemnado, a declaração de uma guerra que appareceu
logo?

Esta desordem do gabinete ordeiro trazia para o governo a scizão
que desde o começo lavrara na direita da camara. Uma parte d’ella
seguia Rodrigo e a sua _ordem_; outra queria uma _ordem_ melhor,--a
restauração da CARTA--e punha em Cabral as suas esperanças. Afinal,
apparecia um _homem_, capaz de metter hombros á historia demorada,
dramatica e triste da renovação de Portugal. Era baixo, macilento,
commum e vulgar de aspecto? (Lichnowsky, _Record_.) E quem pensava
ainda no liberalismo palmellista, aristocratico? pois não vencera
decididamente a burguezia de letrados e agiotas?--Tinha no olhar
e no sorrir um não sei quê de falso? (_Costa Cabral em relevo_,
anon.) A _esperteza_ sempre foi condão de letrados e judeus. A testa
era breve, sem nobreza, o cabello corredio e tudo regular «como se
diz nos passaportes»? (_Ibid._) Assim devia de ser, porque o typo
dos democratas byronianos não convinha á gravidade da _doutrina_.
Correcto, commum, severo, Cabral, porém, tinha um fraco: era irascivel,
apaixonado e violento. Diverso temperamento, mais frio e magistral,
como o de Guizot, convinha ao papel que tomára para si. Em vez
de _expôr_ sem discutir, como fazia o ministro de Luis-Philippe,
Costa-Cabral perdia-se arrebatado por uma ardencia meridional.
Brilhavam-lhe os olhos como carbunculos, (Lichnowsky) gesticulava,
gritava a ponto de enrouquecer. Era um temporal cada um dos seus
discursos: mas para ser inteiramente forte deveria poder encobrir
melhor a sua força. A voz soava falsa, sem espontaneidade, nem
fluencia: era-lhe necessario irritar-se para ser eloquente. Não tinha
correcção, nem elegancia no dizer, apenas virulencia. (_Costa Cabral
em relevo_) Mudara de opiniões, mas a fala, o gesto, a oração eram os
proprios do antigo demagogo, e mais naturaes dos _Camillos_ do que
do chefe da _doutrina_. Rodrigo, ao vêl-o, possesso de ira, perder o
sangue-frio e o governo, devia esperar que essa fraqueza (_Hontem,
hoje e amanhá_) lh’o viria a entregar rendido, depois de algum combate
infeliz. Mas enganava-se. A audacia do tribuno conservador, a força
que lhe davam uma opinião e um plano sustentavam-no: cada batalha era
uma victoria. Rodrigo descia sempre. «A dedicação por uma convicção
politica cessa ordinariamente quando periga a segurança individual:
n’esta terra parece que os homens activos e energicos, os que a si
proprios se sacrificam, são ainda mais raros do que nos outros paizes.»
(Lichnowsky, _Record_.) Percebe-se ou não, o motivo da ascendencia
crescente do homem novo?

Esse fraco da irascibilidade, da ardencia no ataque, da virulencia nas
respostas, do plebeismo da phrase; esse fraco, importante em qualquer
camara, não o era tanto na portugueza, pouco habituada a obedecer á
authoridade moral do saber e ao prestigio do talento. Salvos raros
momentos em que o portuguez, como meridional, se deixava embalar pela
musica de algum orador-poeta; salvos esses momentos breves, apagadas
essas impressões mais estheticas do que moraes ou intellectuaes, o
temperamento chão e violento levava a melhor, e a camara parecia uma
«espelunca de club revolucionario. Estava-se como na rua, jogando-se
com o lodo e as pedras da calçada.» (Lichnowsky, _Record_.)

Tal era a ordem dos ordeiros, em toda a parte, no governo e nos
partidos, no thesouro e no parlamento. Evidentemente, o liberalismo
não marchava; e era indispensavel _restaurar_ qualquer cousa, erguer
qualquer pessoa. Quê, senão a CARTA? Quem, senão Cabral?


2.--A RESTAURAÇÃO DA CARTA

O symptoma mais decisivo do completo descredito do setembrismo foi o
facto da eleição da camara municipal do Porto nos primeiros dias de
42. O Porto, baluarte dos irmãos Passos, fóco da democracia jacobina,
virado assim! acclamando a rainha! sem um viva para a constituição
nova! (2 de janeiro) A cidade burgueza, celebre em tumultos desde os
tempos feodaes, preparar-se para um tumulto conservador?

Cabral já era o homem indicado por todos como um Monk cartista; e ou
foi elle que dirigiu as manobras do Porto, ou approvou-as, e adheriu
quando lhe escreveram chamando-o. (_Apont. hist._, cit.)

Era ministro: não podia ir, assim, claramente, rebellar-se contra o
governo de que fazia parte. Pretextou pois negocios domesticos, e
partiu: sendo recebido entre palmas e vivas no caminho da egreja da
Lapa, onde foi resar, como os soberanos, quando entravam nas suas
terras (19 de janeiro). Formou-se logo uma JUNTA (27), voltando-se
contra o inimigo as armas de que elle usara. A guarnição levada pelo
general Santa-Maria apoiava inteira esta revolta singular, reproducção
das de 23 ou 24, declarando o soberano coacto, e propondo-se a
libertal-o.

Taes eram as palavras do ministro aos seus companheiros, tal a opinião
corrente no Porto. A rainha, positivamente coacta, elegera Cabral para
a libertar; elle vinha com um caracter de enviado do throno pedir aos
povos que lhe accudissem, contra outros povos em cujas mãos se via
perdido. Era verdade? parece que sim; parece que desde 38 a rainha em
pessoa, ou as influencias diplomaticas extrangeiras que a rodeavam,
consideravam Cabral o seu homem; parece que o ministro, além de ir dia
a dia demolindo em publico o seu émulo Rodrigo, cudilhava-lhe a finura
com um calculo mais seguro: apoiar-se ao throno, contra a liberdade
e suas fórmulas, batendo o systema na raiz, com a unica força ainda
um tanto positiva: a monarchia.--Se em verdade não foi assim, e a
restauração do Porto não procedeu de ordem do paço, é fóra de duvida
que a audacia do restaurador agradou á soberana, conquistando-lhe para
sempre uma adhesão temeraria. Ou Cabral seguia ordens, ou superior
ainda aos fieis que só obedecem, sabia perscrutar os desejos e
antecipar os mandados.

Outros negam que houvesse no paço o proposito de uma restauração, e
fazem de Cabral um traidor que forçou a rainha a adherir a poder de
intrigas. (_Costa Cabral em relevo_) Não é inverosimil esta versão
perante a historia posterior? Admira tanto que a rainha, conspirando
contra a constituição, hesitasse e temesse? Que ordens podia elle
dar em publico, senão ordens legaes? Coragem não lhe faltava, para
amarrotar as leis e atiral-as como bolas de papel velho, sujo, á cara
dos seus contrarios; fizera-o em 36 em Belem, e havia de repetil-o
com melhor fortuna, dez annos depois no mesmo lugar. Porém agora, se
plano havia, o plano era diverso do antigo. A rainha já não carecia
de chamar soldados inglezes: tinha os de Santa-Maria; nem precisava de
um belga, porque achara um portuguez. O seu throno ganhava raizes, á
medida que as do setembrismo apodreciam.

Em Lisboa, o governo via-se nullo, impotente. Fugira-lhe a sua unica
força: restava apenas a manha que mordia os beiços, sentindo-se
absolutamente vencida pela audacia do rival temerario. Diziam-se
as palavras mais extravagantes: o caso do Porto só era comparavel
a Alcacerquibir! um fim de mundo! E na afflicção atordoada
escreviam-se proclamações que a rainha assignava, e corria-se a casa
do caduco Palmella, como quem appella para a homœopathia nos casos
perdidos. A prudencia e a moderação--homœopathia, ou agua-pura da
politica--salvariam o doente? Ás vezes, com effeito, a natureza deixada
a si faz mais e melhor do que os medicos: mas a natureza estava agora
do lado da força, e todos hesitavam, todos se sumiam, presentindo a
fatalidade do fim. Rodrigo tomava um ar solemne, vendo que teria de
recomeçar na opposição o papel de chefe de um partido cartista genuino,
inimigo do _cabralismo_, para no dia da victoria final soltar a sua
ultima risada sobre as ruinas de todos os partidos.

No Porto hesitava-se. Talvez se contasse com uma adhesão immediata da
rainha; e em vez d’isso viera a proclamação condemnatoria e o ajudante
Sarmento que teve largas conferencias com a JUNTA. Corria que a rainha,
pessoalmente, desapprovava, repellindo toda a idéa de cumplicidade.
Cabral passava por um impostor, (_Costa Cabral em relevo._) e a
ser exacta esta versão, achando se perdido, pedira chorando aos
companheiros que o não deitas-sem ao mar. (_Ibid._) Conhecedor da
restauração tramada, teria querido confiscal-a em proveito proprio,
dando-se como confidente e mandatario da rainha! É o que alguns dos
restauradores allegam. Santa-Maria bruscamente responderia: «O meu
fim é restaurar a CARTA, e não, fazer ministerios: avenham-se lá como
poderem». (_Ibid._)

Como quer que fosse, o facto é que as tropas saíram do Porto para
Coimbra, (5 de fevereiro) indo Cabral na divisão. Se a rainha o
não encarregara a elle da empreza, é fóra de duvida que adheria ao
movimento. O ministerio perdera as estribeiras, e a rainha, segura de
si, vendo a mudez do reino, a facilidade com que as tropas sublevadas
o atravessavam, _constitucionalmente_ annuia a tudo. Cabral era o medo
dos de Lisboa; o seu jornal (_Correio-portuguez_) fôra supprimido.
Avila que tanto lhe devera, renegava-o, lançando-se nos braços do
inimigo e echendo as columnnas da _Revolução_ de diatribes contra elle,
e contra Terceira que, á frente da sua divisão, esperava na capital de
braços abertos a divisão de Santa-Maria. Os ministros levavam á rainha,
e ella assignava, uma carta para Cabral, convidando-o a submetter-se.
(_Apont. hist._ cit.)

Era uma comedia? Era. Estava-se no entrudo. E _do entrudo_ se chamou
ao ministerio novo, em que Avila ganhara a conservação do lugar
á custa dos artigos da _Revolução_. Era de entrudo o ministerio
setembrista-palmellista que durou os tres dias (7-9) de farça, chamando
em vão pela guarda-nacional para o defender, servindo de ridicula
passagem da situação ordeira caída em desordem, para a situação
cartista proclamada pela tropa. (_Ibid._)

Cabral e Santa-Maria continuavam em Coimbra, esperando o que aconteceu.
Na madrugada de 8 uma salva real do castello annunciou a Lisboa a
restauração da CARTA. Que fez o ministerio do entrudo? Uma entrudada,
uma pseudo-revolução. Abriu os arsenaes, mandou desembarcar os
marujos e armar o povo, fazer barricadas. Abandonado pela tropa, o
governo appellava para as turbas: mas quem era esse governo? Palmella
o conservador aristocratico; Sá-da-Bandeira, que em 38 desarmara,
fusilara no Rocio esse povo para que appellava hoje. Era de facto um
entrudo, não só o governo, como tudo: o systema, exprimindo-se na voz
de falsete das mascaras; os homens, que dia a dia mudavam de dominós
e caraças. Palmella descia para a rua; Cabral subia dos _Camillos_
para o paço; Sá-da-Bandeira ia aos tombos; Passos estava esquecido e
só; Rodrigo despeitado contra si proprio. Apenas Terceira, de espada á
cinta, conservava o seu papel de condestavel do throno.

Demittiu-se o entrudo; veiu a quaresma, e--coisa singular!--era Cabral
o condemnado a jejuar do governo. O novo ministerio _cartista_ (9 de
fevereiro) consistia no condestavel com os seus antigos ajudantes
de campo, Loureiro e Mousinho. Transição, para não dar na vista? De
facto a rainha não queria accusar tão publicamente a sua connivencia,
por um escrupulo _constitucional_? Ou não haveria compromissos com o
Costa-Cabral? ou havendo-os, achar-se-hia prudente não se entregarem
tão completamente nas mãos de um homem audaz e forte?... Rodrigo,
observando a exclusão do émulo, teve uma esperança, e propoz a
Terceira uma conciliação: a CARTA, mas revista e reformada por côrtes
constituintes. O general voltou-lhe as costas e mandou Fronteira
entender-se com as tropas de Coimbra.

Cabral, porém, não concordava: via-se cudilhado, e fôra elle o author
verdadeiro da victoria. Instava com Santa-Maria para marcharem sobre
Lisboa. Entrar na capital, vencedor, triumphante, á frente de tres ou
quatro mil soldados augmentar-lhe-hia muito o prestigio politico. Mas
o general «que não queria fazer ministros», apenas restaurar a CARTA,
recusou-se; (_Costa Cabral em relevo_) e o futuro rei de Portugal veiu
só, desembarcar no Terreiro-do-Paço (29 de fevereiro), onde o cartismo
lhe preparou, entretanto, uma ovação. Cinco dias depois, Cabral entrava
no ministerio do Reino, posto eminente para organisar o _seu_ partido,
instrumento de um systema novo de liberalismo ao avesso.

Entrava naturalmente, como consequencia da empreza? Dizem alguns
(_Ibid._) que não; que o não queriam, que força lhe foi, a elle, usar
dos elementos já seus e de que no gabinete ia ser o orgão; dizem que
teve de levantar tropeços a Terceira e levar o Banco a pôr a faca aos
peitos do Thesouro, como sempre, vasio. (_Ibid._) Compromettia-se a
enchel-o, enriquecer os agiotas, transformar o reino todo.

Abria-se, pois, uma edade nova. Santa-Maria subia a conde, Mello a
visconde. Enchia-se de pares novos e fieis a camara-alta; e novas
eleições iam trazer uma camara-baixa de empregados publicos doceis.
Seria a sophisticação de todos as fórmulas, com o reinado positivo das
forças novas, reconhecidas, defendidas, pela bocca do audaz ministro.
Abriu-se o parlamento em julho (10) e choveram accusações. «Eu
rebellei-me? E vós, dizia Cabral, e vós todos?» E como ninguem podia
responder, calavam-se, curvavam-se. Levantara-se afinal um tyranno do
seio da anarchia.

       *       *       *       *       *

Com a restauração da CARTA não subia apenas ao poder supremo um
homem-novo com a maior de todas as clientellas politicas do liberalismo
portuguez: via-se a inauguração de um systema diverso de governo.
A aristocracia _liberal_, da gente que tinha conseguido enriquecer
e _subir_, classe nova formada pela anarchia de 34-38, reclamava
o imperio: era a força mais positiva que se levantára das ruinas
da sociedade antiga, e muitos dos homens velhos, ou saciados de
liberalismo ou indifferentes a doutrinas, só desejosos de ordem,
punham-se ao serviço d’essa aristocracia nova, cujo representante,
chefe e instrumento Costa-Cabral soubera tornar-se.

Restabelecendo a camara dos pares vitalicios e hereditarios, a CARTA
dava aos novos fidalgos um lugar eminente e seguro para defenderem
e zelarem os seus interesses; para satisfazerem a vaidade burgueza,
suppondo-se herdeiros dos nobres, isentando-se da sujeição humilhante
de irem periodicamente esmolar e exigir os votos populares. Palmella
reclamara sempre a conservação da camara dos pares, e n’um sentido
contradizia-se não adherindo á restauração; mas as revoluções dos
ultimos quatro annos, a abstenção de grande parte da velha nobreza, a
ruina das casas vinculadas liberaes, faziam com que o restabelecimento
da instituição antiga não podesse já agora ter o papel que o antigo
romantismo conservador desejára. A nova camara só na fórma correspondia
á velha, ou _estado da nobreza_: na essencia era de todo outra, pois
essa nobreza podia dizer-se acabada. Enchiam-se os bancos da camara,
dominavam nas suas decisões os vencedores da concorrencia _liberal_,
os homens dinheirosos e os altos funccionarios, barões da finança e da
secretaria.

Constituida assim no fôro legislativo a nova classe dominante, era
necessario modificar o systema das leis organicas, podando tudo o que
de longe ou de perto trouxesse para o jogo das forças politicas os
elementos democraticos, sobre que a revolução de setembro imaginára
fundar o poder e que a reacção ordeira não eliminára, temperara
apenas. Uma nova lei eleitoral, um novo codigo administrativo, eram
indispensaveis, e estava indicada a tendencia que o novo ministro
havia de seguir. Tornar indirectas as eleições, levantando bem alto o
censo eleitoral, era o meio de impedir a intervenção das plebes, dando
á representação o unico, absolutamente unico criterio que, repellida
a _soberania popular_, restava--e resta--ao liberalismo: o dinheiro.
Desde que o individuo é a fonte da authoridade universal, ou se hão de
dar fóros politicos a todos os homens, dando á authoridade uma origem
individual moral; ou se se lhe dér uma origem material, positiva,
social, como fazia a nova doutrina, resta apenas a riqueza para metro
da representação.

Mas, as idéas da nova doutrina e as licções crueis da anarchia anterior
levavam a confiar muito pouco na discrição das massas da classe-media a
que o censo dava ainda authoridade representativa. Não haja duvida de
que nos desejos dos doutrinarios estivesse uma reducção ainda maior do
paiz-legal, como se dizia em França, porque a tendencia do systema para
chegar a definir-se na sua pureza era a constituição de uma oligarchia
dos ricos. Não a proclamando, os estadistas obedeciam mais ou menos
conscientemente á força de uma tradição democratica, recente, mas
enraizada, e com a qual tinham de pactuar e transigir.

Podiam, comtudo, chegar indirectamente ao mesmo fim: centralisando
todas as funcções administrativas para mandarem nas eleições, e
escolhendo para candidatos a deputados os proprios funccionarios.
De tal modo se viciariam os elementos democraticos que era forçoso
manter, destruindo todo o resto de influencia, não só das plebes,
como das classes médias. Tal foi, com effeito, o plano systematico
do codigo administrativo, que veiu substituir o setembrista. Os
municipios existiam sob a tutella dos administradores; o papel das
Juntas-geraes, ou assembléas de districto, reduzia-se a nada; e os
parochos dispunham das Juntas-de-parochia. Desde a freguezia até ao
districto, mantinham-se pro-fórma as instituições representativas,
mas subordinando-se á discrição dos delegados do governo,
governadores-civis, administradores-de-concelho, parochos e regedores.
Se nas leis judiciarias já se tinha supprimido o jury de ratificação
de pronuncia, agora transferiam-se para a nomeação regia os antigos
cargos electivos: 400 administradores de concelho, 4:000 regedores, 20
ou 30:000 cabos de policia. N’um systema de communismo burocratico,
infere-se com facilidade que extraordinaria força taes medidas dariam á
nova clientella cabralista.

Procedia o ministro movido apenas pela ambição pessoal de se
consolidar, fomentando-a? Não o acreditemos, porque, para além d’esta
consequencia, taes factos teem maior alcance. Pois não era verdade,
confessada, reconhecida por todos, a incapacidade do _povo_, e o
mallogro das experiencias democraticas e localistas? Que havia pois a
fazer, de que recurso lançar mão: senão centralisar o poder, chamar
o governo a uma minoria consistente e forte; deixando de pé, para
não aggravar questões, todas as fórmulas que podendo ser viciadas
não prejudicassem o plano? Encerrado um circulo da sua existencia, o
liberalismo vinha caír n’uma oligarchia de facto, revestida de fórmulas
e garantias ficticias. Na Hespanha e em França acontecia outro tanto;
e lá e cá, depois das reacções que o absolutismo novo, _illustrado_,
provocou, o liberalismo cedeu o lugar ao scepticismo politico mais ou
menos cesarista do imperio francez, e da Regeneração portugueza.

Conhecemos, pois, nos seus traços essenciaes, o novissimo systema,
e como não póde haver politica sem uma base de elementos e forças
positivas a que se apoie, resta-nos saber quaes eram as do cabralismo.
No decurso do nosso estudo achámos duas já: a aristocracia nova do
propriedade e da finança, e a burocracia. Mas estes dois elementos,
preponderantes e decisivos na paz, não bastavam para resistir á força
material das numerosas plebes agitadas pela democracia setembrista. O
governo, desarmando e dissolvendo as guardas nacionaes, eliminára a
melhor arma de que ellas dispunham nas cidades; mas restavam os campos,
com os habitos de guerrilha, enraizados por annos de guerra e anarchia.
Contra esses tinha o governo o exercito: porque todos os commandos
estavam nas mãos de generaes fieis e a officialidade fôra depurada.

A restauração consummada por uma porção de tropa, tinha, de facto,
nos soldados o mais firme apoio, porque a adhesão decidida do throno
valia menos em uma nação a que _per vim_ se impozera uma dynastia
nova, discutida desde a origem e atacada, escarnecida, humilhada
muitas vezes. A rainha era, comtudo, o primeiro funccionario da nação,
e não valia mais nem menos do que a burocracia toda, com a qual se
inscrevera na nova clientella cabralista. Se lhe não succedeu como
a Luis-Philippe, ou a Isabel II, caír com o systema, foi porque a
Hespanha, a Inglaterra e as França vieram juntas defendel-a em 47.

Burocracia, riqueza, exercito: eis os tres pontos de apoio da doutrina;
centralisação, oligarchia: eis o seu processo; mas nem as fórmas nem
as forças bastam para constituir um systema: são apenas consequencias
subsidiarias d’elle. Que era, no fundo, a idéa? Seria o racionalismo
espiritualista do seculo XVIII que prégava, contra o catholicismo,
pela bocca da maçonaria, uma religião nova? Não; a doutrina reconhecia
o catholicismo, lavrára já a sua concordata com Roma, e via nos
padres excellentes instrumentos de governo. A maçonaria perdera havia
muito o caracter revolucionario, e a revolução perdera tambem as
ambições religiosas. Como os casulos do bombyx ficam depois que a
borboleta voou, assim ficavam as _lojas_, rede de sociedades secretas
subsidiarias das sociedades politicas visiveis, a que o segredo e o
mysterio, porém, seductores dos simples, augmentavam até certo ponto a
força. Costa-Cabral afeiçoara tambem essa machina ao serviço dos seus
designios e ambições.

       *       *       *       *       *

Se elle se propunha defender os ricos para consolidar a ordem, á
maneira do religioso Guizot, ou se, menos idealista nas suas vistas,
queria a ordem apenas como instrumento de enriquecimento do paiz,
é o que nos não sentimos habilitados a dizer; pensando, comtudo,
mais provavel a segunda hypothese. Como quer que seja, era por esta
que a sociedade opinava, já começada a converter ao materialismo,
sob a primeira fórma com que elle modernamente appareceu; era para
o materialismo pratico que a sociedade, desilludida das chimeras
_liberaes_, começava a pender.

Isso a que depois veiu a chamar-se _melhoramentos-materiaes_, isto
é, a construcção das obras publicas e o fomento da riqueza, eis o
que nós vemos como essencia do novo cartismo. A do antigo, sabemol-o
bem, fôra aristocratica. E, singular energia da realidade! Costa
Cabral, o percursor da nova edade portugueza, veiu a ser a victima
da _Regeneração_ que, por outras palavras e com outros meios, havia
de executar-lhe o programma. A antiga educação jurista e _liberal_
do ex-tribuno dos _Camillos_ compromettia com doutrinas um movimento
que, para vingar, exigia apenas scepticismo: assim em França, tambem
acontecia a Guizot, e os _regeneradores_ foram o nosso Segundo Imperio.

Mas, além d’estes defeitos de educação, o plano do Costa-Cabral
falhava por outro lado. José da Silva Carvalho antes, Fontes depois,
comprehenderam que a melhor finança para um paiz exhausto era importar
do fóra o dinheiro. Costa-Cabral, seguindo n’este ponto os erros
setembristas, pensou que os numeros, calculos e operações phantasticas
dos agiotas bastavam para inventar uma riqueza que não existia. D’ahi
veiu uma banca-rota precipitar a ruina do systema, batido tambem por
outros inimigos.

Costa-Cabral foi o iniciador dos caminhos-de-ferro, principal
instrumento com que depois se operou a restauração da riqueza nacional;
e a sua idéa de construir uma linha entre o Porto e Lisboa e outra
de Lisboa a Badajoz era considerada pelos politicos da opposição a
doidice de um vidente. O conde de Lavradio, na camara, (Sess. de 3
de fevereiro 1846) assegurava que entre Lisboa e Porto não haveria,
ao anno, mais de seis mil passageiros; e Cabral perguntava-lhe:
«E se forem trezentos mil?--Isso não é possivel, porque não ha no
paiz viajantes para tanto movimento». Qual dos dois via mais claro
no futuro? Os caminhos-de-ferro rematariam o systema de estradas
macadamisadas, contratadas com a companhia das _obras-publicas_; e
regularisada a questão do Thesouro--_hoc opus!_--estaria completo o
programma da regeneração economica do paiz.

O estadista que com tamanha audacia e tão variadas artes pretendia
chamar á industria uma nação que fôra desde seculos o emporio ou a
dependencia de um systema colonial, agora abandonado e caduco na parte
que se não perdera, esquecia que no reino extenuado e doente, costumado
á protecção e á preguiça, não havia os capitaes moveis necessarios para
realisar as obras projectadas. Havia, sim, grossas quantias dispersas e
infructiferas; mas a maxima parte d’ellas, ou a parte de que o Estado
podia dispôr sem ir atacar a propriedade individual, pertencia ainda
ás corporações de mão-morta que tinham escapado ao cutello liberal: ás
misericordias e confrarias, instituições religiosas de beneficencia,
cujos fundos o povo não estava ainda costumado a vêr mobilisar.
Fazel-o, parecia um roubo. E o governo, atrevendo-se a tanto, e
propondo ao mesmo tempo augmentos de impostos, tornava facil aos seus
inimigos um ataque apoiado em instinctos de populações vexadas já por
uma administração oppressora.

Não está porém n’isso a causa particular da ruina do edificio
cabralista, mas sim na essencia do seu plano de restauração da
riqueza nacional. Implantando entre nós o systema seguido lá por
fóra de enfeodar os serviços publicos a companhias de especuladores,
o cabralismo obedecia no principio da sua formação: era uma clientela
dos ricos. Confiando a aventureiros o encargo de realisar o plano das
obras-publicas, o governo chamava em seu auxilio a intervenção da
agiotagem. Isto não era original, nem particularmente nosso: tambem
Guizot dizia aos seus: _enrichessez-vous_! Mas uma nação como Portugal,
ainda commovida pelos odios pessoaes e partidarios, demasiadamente
afastada da Europa central, quer geographica, quer economica, quer
scientifica e religiosamente, para ter solidariedade com ella, nem
podia contar com a paz indispensavel ás regenerações economicas,
nem esperar que os capitaes europeus viessem encher os cofres das
companhias de agiotas portuguezes. Nem a formação de companhias
estrangeiras, nem a importação de muito dinheiro por emprestimos
successivos, eram possiveis ainda, como depois o foram; e sem elles as
combinações eram chimeras.

D’ahi resultou que as companhias, formadas apenas com os recursos
de que a nação dispunha, não viram o ouro a authorisar os numeros;
e mirradas, seccas, encastellando algarismos e trapaças, sem
conseguirem bater moeda, voltavam-se implorantes para o governo que
as creara com o fim de o auxiliarem a elle. E, entretanto, vencidas
por fas ou por nefas, as eleições de 45, o governo apparece como
triumphador, patenteando um plano largo e vasto de administração
e fomento. (V. _Diario_ de 2 de janeiro, 46) Tres annos de paz e
trabalho haviam permittido já desembaraçar o terreno dos obstaculos
praticos; e organisados os serviços, cumpria realisar o pensamento.
A divida externa converter-se-hia n’um typo unico de 4 por cento,
equilibrava-se o orçamento, e a companhia das _Obras-publicas_
apparecia para restaurar a viação d’onde viria a fortuna ulterior.
Havia esperança e fé. O 5 por cento estava a 70; o 4 a 57; e as
companhias (Confiança, banco, etc.) solidariamente ligadas á situação
cartista, viam na conservação do governo e na victoria do seu systema
futuros de riquezas douradas. Nunca a emissão do banco fôra tão longe:
passava de 9:000 contos.

Mas a victoria politica do governo dava lugar a uma derrota do systema,
como veremos; a prosperidade do edificio financeiro encobria mal a
sua falta de alicerce. Um vento de desordem que soprasse, e ficaria
feito em pó. Era um amalgama de supposições de valores, tendo como
realidade unica um vasio absoluto. As companhias pediam a protecção do
Thesouro; e o Thesouro sacava-lhes todo o dinheiro disponivel, para
com elle poder apparentar abundancia. 5:000 contos se deviam ao banco;
6:000 á _Confiança_. E como não havia dinheiro e só esperanças; e como
as companhias não passavam afinal de agentes do governo, ao qual iam
entregar fielmente o pouco que obtinham; e como o governo não poderia,
ainda que o quizesse, encobrir as fraudes, os roubos, dos agiotas cujo
representante era--o systema alluia-se por todos os lados, quando
parecia ter chegado á sua perfeição.

Bastou uma revolução para deitar por terra os castellos de cartas dos
Laws cabralistas; mas houve fomes e sangue derramado, porque a doutrina
não tinha outra base além do ouro e o ferro. Agiotas e soldados a
defendiam; acabou com uma guerra e uma falcatrua.

       *       *       *       *       *

A sua grande falta, a sua fraqueza invencivel eram a ausencia de um
principio moral, porque nem a ordem imposta pela força, nem a riqueza
creada contra a justiça chegam a ser principios; nem o é a idéa de que
uma nação obedeça ao pensamento exclusivo de se enriquecer. Quando isto
se préga, succedem casos analogos aos que succederam aos jesuitas:
pervertem-se os ouvintes e logo se corrompem os prégadores. Ou se criam
monstros, como as missões do Brazil e do Paraguay[27] e as companhias
cabralinas, ou se cáe na profunda atonia portugueza do seculo XVIII ou
na singular, chatin _regeneração_.

Enriquecer é bom, indispensavel até; mas a riqueza é um meio e não um
fim.[28] Errando n’este ponto, dando á força bruta um papel excessivo,
confiando de mais no entorpecimento do povo e na fraqueza dos inimigos:
o cabralismo tinha na sua doutrina a causa fatal da sua ruina, e o
motivo necessario dos erros e do descredito de chefes que precipitaram
a queda inevitavel do systema. Levantavam-se contra homens e systema
elementos de varias ordens: era a repugnancia instinctiva do _caracter_
setembrista pelas trapaças agiotas, eram os odios pessoaes, eram
as resistencias do povo contra os ataques a restos de instituições
historicas e costumes religiosos, era o bandidismo guerrilheiro
fervendo por voltar a uma existencia de aventuras, era a tradição
democratica do setembrismo que se não convertera, eram a resistencia
e o protesto contra a tyrannia da administração e as violencias das
eleições, era finalmente a existencia de numerosos officiaes expulsos
das fileiras por opiniões politicas.

Eis os elementos positivos da reacção que vamos vêr erguerem-se, para
condemnar a ultima tentativa de liberalismo doutrinario; para lançar ao
ostracismo o seu defensor; para concluir por fim o periodo propriamente
_liberal_, abrindo uma éra nova de scepticismo politico, em que o velho
idolo da LIBERDADE, apeiado, cede o altar ao deus novo: o utilitarismo,
pratico, positivo, conciliador e _moderno_, ou antes, _actual_.


NOTAS DE RODAPÉ:

[26] V. _O Brazil e as colon. port._ l. II, 1.

[27] V. _O Brazil e as colon. port._ I, 4-5.

[28] V. _O Regime das Riquezas_, introd.




II

A REACÇÃO


1.--A COALISÃO DOS PARTIDOS

No decreto (10 de fevereiro) em que a rainha declarara adherir á
revolta armada em Coimbra dizia-se que a CARTA seria reformada,
mas logo que o gabinete se constituiu, quinze dias depois, com
Costa-Cabral, viu-se que a promessa ficava em cousa nenhuma: era a
CARTA, tal qual existia antes de 1836; pares hereditarios, eleições
indirectas. Mousinho d’Albuquerque, reconhecendo que apenas passára
pelo governo para preparar a entrada de Costa-Cabral, abandonava o seu
duque e collocava-se em opposição.

Ia haver eleições, porque o novo systema não era nem pretendia ser
uma dictadura, mas apenas a maneira de fundar uma legalidade que
servisse de escudo a um absolutismo de facto. E na vespera d’essas
eleições ligaram-se todas as clientelas ou partidos contra o inimigo
declaradamente commum. Eram os velhos setembristas da gemma, com
a geração nova ainda mais radical; eram os _ordeiros_, antigos
cartistas, expulsos do poder; eram cartistas não cabralistas, e por fim
miguelistas. No seio do constitucionalismo via-se exactamente o mesmo
que a Edade-media, com o seu feodalismo, apresentára. A sociedade,
dividida em bandos rivaes o inimigos unidos em volta de um chefe,
existia á mercê dos pactos, allianças e rivalidade dos barões. Contra
o feliz, vencedor temporario, eram todos alliados, para se formarem
combinações novas, assim que o ramo da victoria passasse a mãos
diversas. Nos seculos passados, comtudo, não havia as mais das vezes
por motivo declarado senão a ambição pessoal, ainda que não fosse raro
vêr-se, como agora, servirem _principios_ de capa aos despeitos e
interesses. Nos seculos passados, os debates eram campanhas, e agora
pretendia-se que fossem comicios e discussões e votos; mas como isso
não bastava muitas vezes, logo se appellava para a _ultima ratio_, a
revolta.

A coalisão dos partidos preparou a batalha das eleições com um
_Manifesto_ (30 de março de 42): «Haverá um simulacro de representação
nacional, dizia. A universalidade da nação portugueza, _fraccionada
pelas diversas opiniões politicas_, verá passar pelo meio d’ella
um bando pequeno de homens compactos e ligados por seus interesses
pessoaes, e obter um falso triumpho, devido não só á sua força, mas á
divisão dos seus contrarios.» Mau prenuncio para quem desenhava tão
realistamente uma situação que pretendia dominar. Como esperava a
coalisão vencer, se o disparatado das ambições congregadas obrigava a
declarar a independencia dos _credos politicos_, e se a alliança tinha
por fim unico a batalha? Se ganhasse a victoria, de quem seria o ramo?
Novas contendas surgiriam sem duvida, o com ellas o estado anterior de
desordem.

Costa-Cabral venceu, e devia ser assim. Quem o havia de matar não
podia ser a opposição, mas sim a desorganisação e o descredito do seu
novo e tambem ephemero liberalismo. Agora, porém, começava apenas a
viagem e tudo eram confianças e esperanças. Havia adhesões numerosas,
e trabalhava-se. Palmella, convertido depois da sua triste entrudada,
dava ceremoniosamente a mão ao governo, e ia a Inglaterra negociar
o novo tratado que congraçaria de novo comnosco a nossa protectora,
coarctando as temeridades proteccionistas do setembrismo. Publicára-se
o codigo administrativo. (18 de março de 42) Reconstituia-se a _ordem_,
por dentro e por fóra; e confiava-se que tivesse chegado o momento
de pensar no futuro. Por isso se legislava sobre a Instrucção, se
levantava o theatro romantico, se projectavam estradas e pontes.

Tinham-se, porém, _liberal_, constitucionalmente, convencido os
colligados da adhesão do reino ao seu novo regime? Não, nunca: pois que
cada qual possuia uma _verdadeira_ traducção de LIBERDADE, a questão
era para todos radical, e viciosa qualquer legalidade que não fosse
a propria. O principio da anarchia constitucional desvairava, assim,
os simples, servindo os programmas de capa aos habeis para esconderem
os seus motivos particulares. Batidos na URNA, appellaram para a
guerra. Uma lucta desabrida de improperios, na camara em discursos e
fóra d’ella nos jornaes e folhetos avulso, preparava o terreno para a
desejada insurreição em armas.

A coalisão dizia que «Palmella, por mandado do _vil_ e _infame_
governo, fôra negociar o tratado de commercio: por patriotismo, os
fabricantes deviam fechar durante quinze dias as suas officinas.»
(Circular de 9 de agosto) Duas semanas sem pão, ociosos nas ruas
os operarios de Lisboa, repetir-se-hiam as scenas de 38 e caíria o
governo. Planeava-se a revolta, a que Passos chamou «bambochata». E,
com effeito, era tal a desorganisação, que os miguelistas começavam já
a esperar e por isso a abster-se, vendo circumstancias opportunas para
se effectuar uma restauração nacional.» (Circ. de Saraiva, 24 de junho
de 43)

A revolta declarada ia precipitar o ministro no campo das repressões
violentas, forçando-o a desmascarar a sua legalidade que, no fundo,
era de facto a brutalidade da força; levando-o a mostrar com franqueza
o genio duro e secco, esse genio que em outros tempos e com outra
estabilidade de instituições, teria levado os inimigos ao mesmo caes de
Belem, onde Pombal conduziu os que lhe resistiram.[29]

Como o ministro de D. José, tambem o novo Pombal do constitucionalismo
era abocanhado e discutido na sua honra. Não era credor, ou
affigurava-se a muitos não ser, do respeito com que uma reputação
limpa ampara a força. Era temido, mas nem era venerado, nem chegava a
ser tomado a sério pelos antigos companheiros que o tinham conhecido
humilde, esbaforido, a declamar nos _Camillos_. Vêl-o assim erguido
sobre todos, desesperava os que, por lhe não terem ouvido phrases
pomposas e poeticas, lhe negavam um _talento_ que para romanticos
estava principalmente no estylo e na imaginação. Não era admirado:
pelo contrario. E o peior era que a sua honestidade não deixava de
ser discutida. Valiam mais e iam mais fundo esses ataques, do que as
investidas declamatorias e os protestos contra a _tyrannia_. Á força
de as ouvir, os ouvidos estavam saciados d’esse genero de esgrima;
mas quando se dizia que o ministro se vendia, conciliavam-se todas as
attenções.

Usar do dinheiro como instrumento _liberal_ fel-o do certo. «Dêem-me
dinheiro e deixem o resto por minha conta», parece que disséra ao
entrar no governo, nas vesperas das eleições de 42. (_Costa Cabral em
relevo_) E os seis contos--oh modestia spartana!--que recebeu e gastou,
foram o ponto de partida para as accusações da venalidade. Vendera
um pariato, dizia-se, recebendo como prenda um palacete. Quem do
Ultramar queria commendas, mandava o pedido acompanhado por uma ordem
de dois contos para um banqueiro. (_Ibid._) E sem duvida, á sombra do
ministro que governava com o dinheiro, formara-se um batalhão de gente,
especulando com tudo: contractos, empregos e graças. No norte do reino
parece que havia um intimo, outr’ora preso por falsario e ladrão, a
quem os pretendentes se dirigiam para resolver as pendencias que tinham
em Lisboa, discutindo-se, não o direito, mas sim a quantia. (_Ibid._)

A propagação de taes accusações mostrava o calcanhar do novo Achilles.
Quando todas as fontes de authoridade politica se estancam, resta
apenas a authoridade pessoal: e nada ha melhor, para a destruir, do que
o uso da arma acerada que fere um homem com o labéo de venal. O povo
crê sempre, porque é pessimista: tinha Portugal motivos para ser outra
cousa? E para destruir uma tal crença, não raro illusoria, nem provas
bastam. O politico é como a mulher de Cesar: além de honrada, (quem
sabe? até não o sendo) é mister que o pareça.

O nosso ministro não conseguia parecel-o, e soffria as consequencias
do seu plano de governo: «Enriquecei!» era o conselho se Guizot, a
quem ninguem taxou de deshonesto. Em Portugal, os costumes eram mais
soltos, a virulencia maior; e se ninguem fôra ainda atacado de um modo
tão cruel, isso prova que ninguem, tampouco, ainda mostrára uma força
e um genio tão superiores. Outro Pombal, repetimos, o novo ministro
ficaria tão celebre como o antigo, se achasse ainda de pé uma qualquer
authoridade social. Nas ruinas universaes não tinha com que construir,
e os elementos que iam rebellar-se contra elle obrigal-o-hiam a
empregar, francamente a força núa como instrumento de conservação.


2.--TORRES NOVAS E ALMEIDA

O melhor d’essa força era a tropa, mas usar d’ella na defeza de um
governo e de um systema cuja origem era discutida, tornava logo o
exercito em instrumento partidario, roubando-lhe esse caracter mudo e
passivo, sem o qual vem a ser um perigo permanente. As condições da
nossa historia, o abatimento caduco do nosso povo, tinham feito com
que, desde 20, as revoluções portuguezas--sem excluir a de 32-4--fossem
emprezas militares. Os chefes de partido, Silveiras, Terceira, D.
Pedro, Saldanha, Sá-da-Bandeira, eram invariavelmente generaes; e
agora, com Costa-Cabral, pela primeira vez se via o governo positivo
nas mãos de um paisano, mas sob a presidencia de Terceira, com a
adhesão de Saldanha, marechaes do exercito.

Educado desde largos annos na tradição dos pronunciamentos, o exercito
era, portanto, como que uma prolação dos partidos: uma parte, armada,
das clientelas. Vê-se que desordem isto produziria. A parcialidade
vencedora dispunha em proveito proprio do material de guerra: soldados,
espingardas, canhões, etc., expulsando os officiaes hostis para o
quadro da inactividade, e mantendo, assim, uma como que emigração
dentro do reino, constantemente preocupada de politica e tramando
a victoria dos seus, a queda dos contrarios. Com a exaltação de
Costa-Cabral, as cousas tinham chegado ao ponto de os coroneis pedirem
aos officiaes arregimentados _palavra d’honra_ de se não bandearem; e
os officiaes davam-n’a e faltavam por dinheiro que recebiam, e quando a
não davam eram riscados do effectivo. (_Apont. hist._ cit.)

De tal situação nasceu a revolta de Torres-Novas, a que Passos-Manuel
chamou bambochata. Commandava ahi cavallaria 4 o coronel Cesar
de Vasconcellos, (depois feito conde do lugar da façanha) que se
pronunciou contra o governo (4 de fevereiro de 44), e ao regimento
foram juntar-se os militares inactivos. No dia seguinte, Costa-Cabral
pediu ás camaras a suppressão de garantias e as leis marciaes, e
obteve-se no meio dos clamores da opposição: Mousinho d’Albuquerque,
Aguiar, Gavião e Silva-Sanches, Garrett, nos deputados; Lavradio,
Taipa, Sá-da-Bandeira, Fonte-Arcada, nos pares. Clamando, os
opposicionistas encobriam mal, sob expressões juridicas, a sua
cumplicidade na sedição militar; appellando em gritos violentos,
exclamações dirigidas ás galerias, para um motim popular.

Bomfim, o _ordeiro_ antigo, pozera-se á frente da desordem, e a praça
de Almeida pronunciara-se tambem: ahi se achavam o coronel Passos
e José-Estevão que deixára a camara pelo campo. (Oliveira, _Esboço
hist._) A coalisão dava de si uma revolta militar, e o governo via os
miguelistas a levantar a cabeça no meio da anarchia. Beirão que viera á
camara, eleito por elles, alliciava os estudantes realistas em Coimbra,
recrutando soldados para Almeida, d’onde lhe escreviam que mandasse o
Rebocho, para Minzella, _agitar-se_. (_Disc._ de Cabral, 18 de outubro
de 44) Para Almeida foram de Torres-Novas as tropas, e sem poderem
arrastar comsigo nenhuma parte do paiz, acharam-se ahi encerradas em
abril. O exercito fiel ao governo cercava-as. Em vão saíu José-Estevão,
romantica, aventureiramente, a _revolucionar_ Traz-os-Montes, passando
a fronteira e indo entrar em Moncorvo; em vão bateu ás portas de
Chaves, de Bragança e de Murça: ninguem respondeu; mas ninguem tampouco
entregou o estouvado romantico, pelo qual Costa-Cabral offerecera, ao
que se affirma, o premio de dois contos. (Oliveira, _Esboço hist._)
Almeida capitulou, os vencidos emigraram, o governo venceu; mas a
victoria obrigava-o á crueldade e a derrota exasperava os animos dos
submettidos á tyrannia de um homem que desprezavam.

       *       *       *       *       *

Das ruinas da revolta renasceu mais firme a coalisão, para as eleições
de 45. Havia uma guerra declarada contra o governo, cujo existencia era
um incessante combate. Todos os chefes e clientelas apertavam as mãos,
esquecendo odios antigos no ardor do odio novo contra o aventureiro
que os batia a todos. O calor era tal que o povo como que accordava,
interessando-se e intervindo nos debates dos politicos, emittindo
opiniões e pareceres. «A mania politica tem acommettido todos os
habitantes da capital, desde o fidalgo e o par do reino até ás fezes
da plebe. Apenas os pobres pretos de Africa que passeiam aos milhares
pelas ruas de Lisboa não discutem politica». (Lichnowsky, _Record_.)
A rede de sociedades secretas, que minavam o reino, estabelecia um
sub-solo á politica apparente. Costa-Cabral era chefe de uma maçonaria
sua, herdando o _malhete_ que fôra de Silva-Carvalho e de Miranda:
o centro cartista. Saldanha perdera o posto supremo da maçonaria
opposta, desde que se bandeara em 35, deixando o grão-mestrado a
Manuel Passos, que dirigia tambem outros conventiculos: templarios,
vendas-carbonarias, etc. (Macedo, _Traços_)

A alliança das opposições já tinha um jornal, a _Coalisão_ que,
francamente, accusava tanto o governo pela sua _tyrannia_, como o povo
pela sua indolencia.

 Ha no paiz muito homem que não sabe lêr. Ha muito homem que sabe lêr,
 mas não lê. Ha muito homem que lê, mas não entende. Ha muito homem
 que lê e que entende, mas que tem medo, que é vil como um porco e
 cobarde como um veado. Ha muito homem que vê as desgraças publicas,
 mas não as quer remediar; ou porque treme de susto, ou porque ganha
 com a _carrapata_. Aos que vivem da sopa gorda, da olha podrida do
 orçamento não ha que dizer ... Folgam com as listas de côr, de carimbo
 e de tarja, morrem pelas transparentes. Fingem que vão coactos, mas
 vão contentes. Votam pela comezana: gostam da boa fatia do pão do
 nosso compadre Povo.--Ó Costa-Cabral! quantas vezes terás tu dito como
 Tiberio, vendo estes poltrões, estes sanchopansas da liberdade: _ó
 homines ad servitutem paratos_! (_Coalisão_, 10 de janeiro)

Mas este tom, de uma sinceridade triste, não era o que convinha
na vespera da batalha: «Á urna! á urna! abaixo todos os ladrões e
comedores! Empregados, ladrões, falsarios e prevaricadores, votae com
o governo: não vos queremos. Tratantes! pertenceis de corpo e alma ao
ministerio». (_Coalisão_, 15 de janeiro.)

Costa-Cabral ainda confiava, ainda esperava dominar a tormenta que
todos os dias crescia. Tinha o exercito, tinha a burocracia, via-se
apoiado pelas nações alliadas; o balão da finança entumescia-se, e o
proprio Tojal, da Fazenda, mettera tudo quanto tinha n’uma operação de
fundos, de sociedade com banqueiros de Londres. A rainha entregara-se
nas mãos do seu homem-novo, no qual via uma coragem e uma força! ella
que, se fosse homem, faria exactamente o mesmo, ou mais ainda por ser
monarcha.

O ministro plebeu não podia resistir ás tentações da vaidade palaciana:
não via que as honras com que a rainha o exalçava, o diminuiam no
espirito commum. A sinceridade democratica do povo e a inveja dos
ambiciosos juntavam-se para ridicularisar o _parvenu_. A fortuna que
juntára no poder, alvo de tantas accusações, permitira-lhe comprar
as terras de Thomar, com o velho castello templario, onde o moderno
burguez afidalgado, occupando as salas historicas povoadas de sombras
romanticas de cavalleiros, as enchia de festas banaes por occasião da
visita da sua liberal soberana:

    Na cathedral de Lisboa
    Sinto sinos repicar:
    Serão annos de princeza?
    D’algum santo o festejar?
    É a rainha que se parte
    Té ás terras de Thomar.
    ..............................
    Em vez das armas antigas
    Dos nobres valentes Paes,
    Na fachada, sobre o portico,
    Vêem-se hoje as dos Cabraes
    Que em seu campo ensanguentado
    Por brazão tém tres punhaes.

                  (_Xacara da visita da rainha_, etc.)

O romantismo vingava-se, e as formulas da nova arte-poetica mostravam
servir para muito. Era um romance á imitação dos da collecção de
Garrett, e em que a mais desbragada calumnia não perdoava a ninguem.
Já não bastava a honra do ministro, exigia-se-lhe a da esposa e a da
propria rainha. Os dois casaes, o das Necessidades e o de Thomar,
viviam n’uma indecente promiscuidade. A castellan dizia á rainha:

    Mas não venhas tu sósinha
    Traz tambem o teu esposo
    Lá das terras d’Allemanha
    Esse moço tão formoso,
    De louros, finos, cabellos
    Gentil, nobre, _valoroso_.

E ao castellão «todo vestido de gala--cinge-lhe a fronte a armadura»,
ao mesmo tempo que «praticava mui de manso» com a rainha «recostada em
molle sophá.» Um temporal interrompe as festas, e vem o mendigo-povo
cantar a lenda que termina:

    E o Senhor decretou
    Exterminio á geração
    Sobre essa raça maldita!

       *       *       *       *       *

Assim, em artigos e trovas, se tirava a desforra de uma revolta
suffocada, infiltrando no animo do povo um desprezo e um odio
condemnadores do ministro e da rainha, do systema e das pessoas.
A colera politica subia de grau, e a _liberdade_ na imprensa--tão
verberada por Passos!--invadia as alcovas principescas, mostrando-as ás
plebes. Onde conduziria um tal systema? Não tinham os miguelistas razão
para se prepararem e esperar?

Batidas por fim de frente, por um homem superior e forte que lançára
mão dos elementos ainda resistentes da sociedade portugueza, as
parcialidades politicas, relativamente tolerantes entre si, não podiam
admittir a invasão e o imperio d’esse intruso importuno; mas elle
proprio, que não se atrevia, nem poderia, nem pensaria, em rasgar
a CARTA, mandar á fava o liberalismo, e voltar ao governo pessoal,
puro: que lhe restava senão curvar a cabeça á tyrannia das fórmulas?
E se as influencias de todos os chefes politicos, alliados contra
elle; se a acção de um ataque incessante á sua pessoa e á sua honra,
tinham concitado uma tempestade que o faria ser batido _na urna_: que
remedio lhe restava, senão esse expediente da violencia sob a capa de
legalidade? o processo de mentira descarada, em vez de hypocrita como
d’antes? esse processo que o mantinha, desacreditando-o, arruinando-o
cada vez mais?

Vencer, por fas ou por nefas, as eleições, n’esse anno de 45 da
decisiva batalha, era para Costa Cabral o mesmo que viver ou morrer.
Lançou, pois, mão de tudo, e foi ás do cabo. Tres camaras-municipaes
protestaram, vindo a Lisboa os vereadores implorar a rainha: á de
Evora voltou-lhe ella as costas, a de Villa-Franca foi presa, e ambas,
com a de Faro, dissolvidas. A opposição estava inteira a postos; o
programma era o antigo _Manifesto_ da coalisão, com o discurso de
Manuel Passos, em 18 de outubro anterior. Em Lisboa reuniam-se Mousinho
de Albuquerque, Aguiar, Sá-da-Bandeira, Herculano, José Maria Grande,
Marreca, Rio-Maior, Jervis, Garrett; José Passos tinha o Porto;
Bertiandos, o Minho; Povoas, não annuindo á abstenção ordenada por D.
Miguel, da Guarda mandava na Beira; o conde de Mello em Portalegre;
Manuel Passos e o barão de Almeirim em Santarem. (Macedo, _Traços_)

Nenhuma das conhecidas tricas para levar a Urna a dizer o que se
deseja--como nos velhos oraculos sagrados!--fôra esquecida pelo
governo. Os recenseamentos eram taes que não incluiam nomes como os
do marquez de Niza, da Fonte-Arcada, do Felgueiras juiz no supremo
tribunal, de Garrett, etc. Incluiam, porém, mendigos e lacaios,
aguadeiros e defunctos; incluiam nomes imaginarios, e soldados e
marinheiros. As listas eram marcadas: transparentes, pautadas,
carimbadas, tarjadas, numeradas. Os individuos influentes e perigosos
eram presos arbitrariamente: assim aconteceu a Rezende em Aveiro, a
Balsemão em Penafiel. Os governadores-civis distribuiam aos galopins
mandados de captura em branco. E onde as tricas não bastavam,
apparecia a força bruta. Em Alvarães e Porto de Moz houve descargas
cerradas de fusilaria. D. João de Azevedo foi espancado no Porto,
onde as assembleias se reuniam cercadas de tropa, junto dos quarteis.
O visconde da Azenha teve de emigrar de Guimarães; o de Andaluz, em
Pernes, bateu a tropa com um bando de gente armada. Para Villa-Franca
foi maruja e artilheria. No Sardoal a tropa de bayoneta calada impediu
a entrada dos eleitores na assembleia. Por toda a parte houve prisões,
mortes em muitos lugares. A violencia vinha rematar o systema de
perseguições fiscaes: iniquidade na repartição do imposto, crueldade
com os devedores das misericordias e irmandades, denegações de justiça,
etc. (Macedo, _Traços_) Para forjar um simulacro de parlamento,
para aguentar a sophismação da doutrina, chegava á maxima tyrannia,
atacando-se as mais necessarias garantias dos cidadãos.

Costa-Cabral venceu: se victoria se póde chamar a empreza que o
precipitou n’uma revolução.

No seio da sua camara unanime de clientes e funccionarios expoz então
o vasto plano dos seus projectos; mas na outra camara, os pares
protestavam clamorosos, erguendo-se acima de todas a voz sibilante
de Lavradio, e dominando a scena a figura de Palmella que, moderado
sempre, inclinava outra vez para o lado da opposição.

Cá por fóra os protestos corriam soltos e sem piedade:

 Que podemos nós esperar, quando a nossa vida, a nossa fazenda, a nossa
 liberdade estão á mercê de um punhado de devassos? Se esta nossa
 terra, se os nossos fóros e liberdades são enphyteose dos Braganças ou
 fateosim dos Cabraes? (Souto-Mayor, _Cartas de Graccho a Tullia_)

Os ministros são «doutores do pinhal d’Azambuja», que illudem a nação
com «tretas vís»; são «ladrões cadimos, salteadores, assassinos,
traficantes, ratoneiros, corsarios, bandoleiros»; e o povo não ouve?
não se mexe?

 Povo! meneia tres vezes a cabeça, reflecte. Não tens um pulso para a
 espada, um hombro onde encostes a espingarda, olhos para a pontaria,
 dedos para o gatilho? (Id. _Ultimos adeus_, 44)


3.--A MARIA-DA-FONTE

Accudiu o povo aos clamores dos que se apresentavam como seus
procuradores? Elles disseram que sim: á historia parece comtudo que
o povo era indifferente ás doutrinas e systemas da opposição; porque
nem ellas tornaram completamente a vencer, nem o povo se levantou
para as defender, quando a rainha por um acto de absolutismo
expulsou do governo os homens que ali tinham entrado sob pretexto da
Maria-da-Fonte. Como espontaneo movimento das populações, a revolução
do Minho tem apenas um caracter negativo. É contra os Cabraes, de
quem a propaganda activa fizera uns monstros mais que humanos, que
appareciam á imaginação popular como réus de todas as desgraças:

    Comem as cearas os pardaes?
    É por culpa dos Cabraes.

É contra os impostos, contra os enterramentos em cemiterios ao ar
livre, contra a mobilisação dos bens das Misericordias, contra o
systema de leis que tendiam a consolidar o novo Portugal, a acabar de
arruinar um Portugal antigo que ainda para as populações ruraes era
o verdadeiro, o ditoso, o bom. Tal caracter se observa no movimento
espontaneo das populações, confiscado á nascença pelos setembristas
como se fôra seu, e apresentado sempre como um documento da vitalidade
e raizes das suas doutrinas no seio da nação ...

Quando na camara dos pares os ataques sibilantes de Lavradio ao conde
de Thomar zuniam como o vento nas cordagens do navio ameaçado; quando
a eloquencia apopletica de José-Bernardo se entornava para defender o
irmão, ameaçando terra, mar e mundo; quando a batalha parecia decisiva
e final--chegou a Lisboa, subitamente, a noticia de motins populares no
Minho. (15 de abril) O governo assustou-se e os inimigos esperaram.

Entre clamores e protestos, votaram-se as leis marciaes usadas
em taes casos, porque nos momentos de crise o constitucionalismo
liberal vê-se forçado a abdicar: tal é a sua consciencia positiva.
Suspenderam-se os debates para irem começar os tiros. A opposição tinha
organisado por todo o reino a sua machina eleitoral _coalisada_: os
embryões das Juntas revolucionarias estavam formados, a postos todo
o pessoal dos partidos, para accudir ao levantamento das populações,
dirigindo-o, interpretando-o. Por seu lado o governo mandou para o
Porto José-Cabral, a quem o odio da cidade do Douro chamára o José dos
Conegos, e agora dava por escarneo o titulo de Rei-do-norte. Levava,
com effeito, o _rei_ poderes descricionarios e a alma cheia de coleras,
a bocca vomitando ameaças, o braço levantado para esmagar tudo com
a sua força. E assim que desembarcou, passou dos planos ás obras,
perseguindo, prendendo, ameaçando, aterrorisando, até que o obrigaram a
voltar, fugindo para salvar a vida.

E a tropa? Mais que podia a tropa contra uma sublevação de facto
popular, levantando a cabeça por toda a parte, oscillando, fugaz, e
movediça, lavrando e minando, com a vastidão e mobilidade dos fogos
fatuos no vasto cemiterio de um reino? O governo não tinha cem mil
bayonetas, e tantas ou mais seriam necessarias para pôr guarnição
em todas as aldeias, uma sentinella ao lado de cada minhoto. O caso
era diverso de 44, quando uns batalhões se tinham pronunciado:
outros batalhões mais numerosos foram ter com elles, encerraram-nos
em Almeida, obrigando-os a capitular. Que praça ou curral havia,
sufficientemente grande para encerrar meia população do reino e
obrigal-a a render-se pela fome? Praça ou curral era o reino inteiro, e
dentro da fortaleza a propria guarnição levantava-se. Que fazer? Onde
accudir? A força ensarilhava as armas por não achar alvo de pontaria;
e do mesmo modo que a tropa reconhecia a sua impotencia, via-se em
Lisboa a manada dos agiotas correr, sumir-se, apertados uns contra os
outros, furando como os bandos de carneiros acossados por um aguaceiro
a trotar miudinho. Ai! bancos estoirados, companhias fallidas,
papellada esfarrapada! O balão dos calculos tombava enrodilhado, a
Babel de algarismos caía por terra em estilhas! Pobres _fundos_ do
conde de Tojal, almoe-dados em Londres! quem dava por elles um chavo?

       *       *       *       *       *

No logar da Fonte, concelho da Povoa-de-Lanhoso, no coração do Minho,
existia a que foi a Joanna d’Arc do setembrismo. No Minho, como em
todas as regiões de stirpe celtica,[30] a mulher governa a casa e o
marido; excede o homem em audacia, em manha, em força; ara o campo
e jornadêa com a carrada do milho á frente dos boisinhos louros.
Requestada em moça nos arrayaes e romarias pelos rapazes que a namoram,
conversando-a com as suas caras paradas, basta vêr um d’esses grupos
para descobrir onde está a acção e a vida: se no olhar alegre, quasi
ironico da moça garrida, luzente de ouro, se na phisionomia molle do
rapaz, abordoado ao cajado, contemplativo, submisso, como diante d’um
idolo. A vida de pequenos proprietarios põe na familia uma avidez quasi
avarenta e na educação dos filhos instinctos de governo. Quando se
casam, as moças conhecem o valor do dote que levam, e os casamentos
são negocios que ellas em pessoa debatem e combinam. Não é uma esposa,
quasi uma serva, que entra no poder do marido, á moda semita que se
infiltrou nos costumes do sul do reino: é uma companheira e associada
em que o espirito pratico domina sobre a molleza constitucional do
homem desprovido de uma intelligencia viva. A mulher parece homem; e
nos attritos da dura vida de pequenos proprietarios, quasi mendigos
se as colheitas escasseiam, cercados de numerosos filhos, apagam-se
as lembranças nebulosamente doiradas da luz dos amores da mocidade,
e fica do idolo antigo um rudo trabalhador musculoso, com a pelle
tostada pelos soes e geadas, os pés e as mãos coriaceas das ceifas e
do andar descalça ou em soccos nos caminhos pedregosos, ou sobre a
bouça de urzes espinhosas. Não se lhe fale então em cousas mais ou
menos poeticas: já nem percebe as cantigas da mocidade no desfolhar dos
milhos!

A vida cruel ensinou-a: é pratica, positiva, dura. Odeia tudo o que não
sôa e tine, e tem um culto unico--o seu _chão_. Vae á egreja e venera
o «senhor abbade», mas com os idyllios da mocidade a sua religião
perdeu a poesia: ficou apenas um rosario secco de superstições, funda,
tenazmente arraigadas. Ai, de quem lhe bolir ou nos seus interesses,
ou no culto! na egreja, ou no chãosinho! Ai, d’aquelle que para
tanto lhe investir com os filhos, com o marido, que são para ella
os seus operarios. O sentimento innato da rebeldia, (que não deve
confundir-se com a independencia) essa vis intima dos celtas submissos
da Irlanda e da França, existe no minhoto, com o lastro de presumpção
e manhas, d’onde saem os nossos palradores do norte e os astutos
emigrantes do Brazil; com a segurança que a vida responsavel e livre de
proprietarios, não-salariados, lhes dá.

       *       *       *       *       *

O systema cabralino, seccamente _beirão_, era em tudo opposto ao
temperamento do norte; e o facto da CARTA haver sido restaurada
no Porto mostra quanto essa empreza foi uma obra de quartel e
secretaria, sem raizes no coração do povo. O governo, depois, atacou as
superstições, mandando que os mortos se não enterrassem nas egrejas; e
para que se veja quanto esta ordem judiciosa batia de frente os usos
religiosos e quanto elles estavam arraigados, basta dizer que ainda
hoje por todo o Minho se encontram villas, e não aldeias afastadas,
villas como Barcellos por exemplo, sem cemiterio. O governo queria
ainda que a _decima_ rendesse o que devia; mas o povo que já esquecera
o tempo dos dizimos, via no imposto lançado por uma authoridade para
elle extranha, desconhecida, a extorsão, a _ladroeira_, dos homens de
Lisboa, o ataque ao seu idolo adorado: o chão lavrado de milho ou de
linho, a carvalheira toucada de pampanos com os acres bagos de uma uva
ingrata pendentes em cachos negros.

E esses homens, que tanto exigiam, nem falavam em Deus, nem em cousa
alguma que os lavradores entendessem. Vinham sobraçando a pasta cheia
de papeis, com phraseados singulares, caras desconhecidas, cousas
extravagantes; e retorquiam ás replicas com a fusilaria dos soldados.
Esses homens já tinham vindo a pedir-lhes o _boto_, e elles coçando a
nuca hesitavam; mas as mulheres, praticas, attendendo ao antigo poder
do _senhor fidalgo_, e a submissão ingenita mandando obedecer quando o
caso era sem consequencia, tinham levado os camponios arregimentados,
com o papelinho entre os dedos, até á Urna. Que lhes importava isso?
Idéas dos fidalgos! e voltavam ao seu trabalho.

Agora o caso era outro: enterrarem os pobresinhos dos mortos como cães,
n’um quintal! levarem o nosso vinho e o nosso milho colhido com tanto
suor: isso não! E em apoio d’esta rebeldia, vinha o fidalgo, vinha o
padre (setembrista) com sermões e falas doces, esconjuros e meiguices,
incitando-os a resistir a quem lhes queria tanto mal, tão duramente
os tratava. O administrador era mais cruel do que o capitão-mór, por
ser de fóra, e secco, bacharel, plumitivo; o senhor capitão-mór, ás
vezes, fazia _cada uma_ ás raparigas! Mas o minhoto, naturalista,
não é susceptivel nos peccados de carne: fraquezas humanas! Muitas,
muitas raparigas, casam sem ser virgens, e isso, apezar de sabido, não
escandalisa.

A Maria-da-Fonte tornou-se o symbolo dos protestos populares. A
imaginação collectiva, provou ter ainda plasticidade bastante para
crear um mytho, uma fada, Joanna d’Arc anti-doutrinaria.[31] O heroe
da revolução minhota devia ser uma mulher, não um homem; devia ser
desconhecido, lendario: antes um nome do que uma pessoa verdadeira.
Na Bretanha, os casos de Paris em 48 eram assim explicados: um grande
guerreiro _le dru Rolland_ (Ledru-Rollin) saíra a campo para libertar
a fada La-Martyne (V. Michelet, _Revol. franc._) Os minhotos, affins
dos bretões, crearam um heroe feminino--guerreiro temivel que iria a
Lisboa bater esses tyrannos do sul conhecidos ainda hoje sob o nome de
senhor-Governo: um monstro mais ou menos definidamente humano!

       *       *       *       *       *

Entretanto, parece que de facto houve uma certa Maria-da-Fonte que
soltou o primeiro grito da sedição. A rebeldia, fomentada pela nova
legislação, declarou-se perante os excessos dos tyrannetes locaes,
bachareis enviados para o campo o ganhar jus a um logar no parlamento
ou nas secretarias. Um d’esses chegára a ferir com um guarda-sol
o pequeno de um lavrador, e o pae foi á torre da igreja e tocou a
rebate. Acudiu povo, quiemou os archivos, as _papeletas da ladroeira_,
dando «Morras» aos dois Cabraes, (D. João de Azevedo, _Os dois dias
de outubro_) e marchou sobre Braga. (Macedo, _Traços_) Nas villas e
cidades a tropa levava a melhor, porque o numero vale ahi pouco e
muito as armas: eram fusilados á queima-roupa. Mas nos campos podiam
tudo: se a tropa viesse, abafavam-na. Nem tinham espingardas, nem
polvora: só cajados, foices, machados, chuços, e era o bastante.
Na Senhora-do-Allivio reuniram-se mais de dez mil. (_Ibid._) E os
padres e os fidalgos applaudiam, incitavam: o conego Montalverne, o
padre Casimiro, o padre José-da-Lage, e os Costas, o Peso-de-Regua,
o Balsemão. Os fusilamentos, os confiscos, as prisões, toda a pasta
draconiana de José Cabral, do Porto, era inutil: via-se a fragilidade
da força cabralista.

Do Minho, a sedição lavrou, perdendo o caracter popular, tomando um
caracter militar e politico. A Maria-da-Fonte ficava na sua aldeia:
apenas o nome, como um ecco ou um rotulo, ia de um lado a outro
do reino. Por toda a parte nascem logo _Juntas_. Toda a força do
rei-do-norte estava na divisão do Vinhaes; e quando o general, bandeado
ou commovido, lhe disse que não bateria no povo, o _rei_ emalou os
papeis, fugiu do Porto, abandonando tudo. (_Ibid._) Do Minho a revolta,
galgando o Tamega, encontrou em Traz-os-Montes o conde de Villa-Real
para a commandar e os Carvalhaes para a fomentar. As authoridades,
corridas, foram fechar-se na praça de Chaves, sob a protecção do
Vinhaes que passou para os do povo e lhes entregou a villa. Appareceu
um programma: era a voz, o grito, a reclamação da Maria-da-Fonte?
Não; era, apenas uma combinação de politicos moderados, que nem
sequer exigiam a restauração do setembrismo; que apenas reclamavam
a dissolução das côrtes, a queda do ministerio, a organização da
guarda-nacional, e a revogação da lei do imposto de repartição (19
de abril de 45) da reforma da magistratura (1 de agosto de 44) e da
lei de saude. (26 de novembro de 45) (V. Ignacio Pizarro, _Memor. de
Chaves_) No Porto governava uma JUNTA, e a Extremadura, sob o commando
de Manuel Passos, tinha em Santarem uma capital _patuléa_. Outro
já, com sezões e desilludido, o Passos de agora apenas reclamava a
demissão dos Cabraes: a sua JUNTA dava vivas a «todo o existente». (V.
a _Proclam. da Junta de Santarem_) De um movimento popular espontaneo
formara-se uma sedição politica; e a fraqueza doutrinaria dos politicos
_coalisados_ via-se n’este momento em que, omnipotentes, reduziam a
_grande revolução_ á condemnação pessoal de um homem. Expulso elle,
conservar-lhe-hiam as obras, porque nada melhor podiam pôr em seu
lugar, caso as supprimissem. Singular revolução, de que os chefes são
logo os suffocadores!

       *       *       *       *       *

Mas em Lisboa, no paço e no governo? O destino fatal dos audazes sem
apoio, dos que, arrastados pela consistencia dos seus planos, imaginam
que planos bastam para crear elementos de governo; dos que embriagados
pela força e pela vida propria não observam a inercia alheia que só
pede socego e atonia e por isso é a primeira a renegar as temeridades,
as ousadias; o desejo de ser e mover-se; o fatal destino dos audazes
n’uma sociedade cachetica, perseguia o temerario ministro. O seu
edificio abria fendas por toda a parte. Os que o seguiam por convicção
entibiavam; os que iam por interesse, fugiam, renegavam; os fanaticos
começavam a descrer, desde que viam sossobrar o homem forte; a
clientela dispersava, o exercito bandeava-se, a banca-rota batia com a
mão descarnada á porta dos templos da nova religião do Dinheiro.

Os Cabraes pediram a sua demissão á rainha. Batiam, arrependidos,
nos peitos, confessando o erro da sua audacia, os crimes do seu
governo excessivo e tyrannico? Não. Elles eram ambos feitos de ferro
e fórmulas: homens que cáem, mas não se curvam. Duros beirões,
faltava-lhes a humanidade sincera e bondosa, que se torna em
scepticismo no decaír da vida--a humanidade de um Passos--sem terem
tampouco as manhas beiroas dos descendentes de Viriato, á maneira
de Rodrigo. Caíam, porque o exercito faltara; caíam porque houvera
um terramoto e abatia-se-lhes o chão debaixo dos pés; caíam porque
os derrubavam e não porque descessem. Caíam porque «o presidente do
conselho e ministro da guerra e como tal commandante em chefe do
exercito, no momento em que deviam desenvolver-se as forças do dito
exercito, declarou não ter força e que o _unico meio_ de debellar a
revolta era a prompta demissão do ministerio». (_Manif. de Cadix_,
27 de maio de 46) Para que tinham arrastado o molle, caprichoso,
aristocratico duque da Terceira a emprezas arriscadas? Elle não tinha
opiniões, e por isso não percebia o valor d’ellas para os outros.
Achara excellentes os Cabraes, emquanto vira n’elles penhores de ordem;
mas, doutrinarios atrevidos, bulhentos, opiniosos? Nunca. Porque não
tinham os ministros preferido Saldanha, mais homem, mais denodado,
menos escrupuloso, e, por genio, tão amigo das aventuras quanto o
collega o era da placidez bem ordenada?

       *       *       *       *       *

Assim renegados por todos caíram os Cabraes, (20 de maio) fugindo do
reino para Hespanha, homisiados como réus. Em tal passo a rainha não
via para onde voltar-se. Entregaria o governo á Maria-da-Fonte? Mas
a lavradeira de Lanhoso não chegára a Lisboa: vieram apenas o nome
e os manifestos das JUNTAS. Eram elles o manifesto do _povo_? Não
eram. O povo só manifestára horror a enterrar-se nos campos, recusa
a pagar a decima, e odio aos tyrannetes cabralinos. Mas nada d’isto
podia fazer um plano de governo novo, e uma novo experiencia de
liberalismo. As opposições, coalisan-do-se, tinham em parte abdicado.
O miguelismo resuscitava, dando as mãos aos radicaes no fôro dos
partidos e pelos confins das provincias. No norte do Douro, na Beira
borbulhavam esperanças; em Evora «o espirito dos seus habitantes he
miguelista ou setembrista», diz o coronel do corpo em officio para
o general da divisão. (_Corr._ autogr. de Rezende) Que sorte podia
ser a da revolução, imagem de Jano, olhando para um passado perdido
e para um futuro chimerico? Mas que sorte esperava a rainha depois
da ruina d’essa cohorte com que se tornára solidaria? Não havia no
horisonte politico sol novo para adorar; mas havia por detraz do
throno tres astros mais ou menos embaciados, porém ainda utilisaveis.
Façam-se ministros os tres chefes: Saldanha, Terceira, Palmella. Era o
expediente mais acceitavel; embora o primeiro, que andava por fóra, em
Bruxellas, não quizesse intervir. (Carnota, _Mem._)

Porém as JUNTAS acreditavam que tinham vencido, e o setembrismo chamava
sua á Maria-da-Fonte, reclamando os despojos da guerra. Palmella, por
seu lado, queria voltar á _ordem_ de 38, continuando em 46 a historia
interrompida pelo episodio cabralino: alastrou pois o gabinete com
elementos ordeiros. (Mousinho-d’Albuquerque, Lavradio, Soure; 26 de
maio) Terceira retirou-se. Restaurada a ordem, o reino foi dividido em
tres circulos, cabendo o do norte ao visconde de Beire, o do centro
a Rodrigo, o do sul ao ministro Mousinho. A _Revolução de Setembro_,
escarnecendo, chamava a isto a divisão do imperio romano (7 de junho);
e as JUNTAS, vendo empalmada a que suppunham victoria sua, protestavam
sem desarmar. Em vão o governo se cansava, distribuindo calmantes em
circulares mansas e sensatas, cheias de uncção e esperanças, chamando
o povo a decidir dos seus destinos na proxima _urnada_ livre. Em vão
chamava para casa os emigrados de Torres-Novas, fatigando-se a mostrar
que todo o mal vinha dos Cabraes, agora expulsos. Os emigrados,
recordando 38, com José-Estevão á frente, entraram como em triumpho,
desde a fronteira até Lisboa. (Oliveira, _Esboço hist._) Traziam a paz?
Não; a guerra, cantando:

    Se é livre um povo, não tolera, quebra
            De Neros as correntes!

Neros eram os Cabraes, mas não menos o era Palmella, com as suas
branduras, impedindo a victoria da democracia. Estava-se outra vez em
38: mas porque motivo se restaurara a CARTA, senão porque a _ordem_ de
Bomfim-Rodrigo era uma desordem insupportavel? Estava-se outra vez em
38: mas acaso então a democracia annuira? Como annuiria pois agora? Os
jornaes vermelhos protestavam contra a paz; as JUNTAS não desarmavam,
por não quererem perder uma victoria que julgavam sua.

 Parece que o governo fez pacto com o diabo e que forceja por conservar
 nos commandos homens nos quaes o povo não confia nem póde confiar.
 (_Revol. de Set._ 3 de junho)

 Os militares não querem as demissões? Leve-lh’as o ministerio
 escriptas em sangue. O throno não quer abraçar deveras o povo? Pois
 retire-se o ministerio do seu lado. E se a côrte vier depois para nos
 abrir os braços. Já temos a resposta prompta,--é muito tarde! (_Grito
 Nacional_, 5 de junho)

Vida nova! Começar outra vez! Côrtes constituintes! eis ahi o
clamor de toda a esquerda, julgando-se o ecco do _povo_, a voz da
Maria-da-Fonte, vencedora contra o throno, contra os Cabraes, contra a
_ordem_. Palmella, oscillando, bolinando, na sua esperança de fundar as
cousas sobre o equilibrio, metteu novo lastro no governo, lastro mais
_setembrista_--Sá-da-Bandeira, Julio Gomes e o antigo Aguiar. Estavam
satisfeitos?

A muito custo de rogos e promessas se conseguira o desarmamento das
JUNTAS. No Porto as authoridades foram de chapéu na mão pedir por favor
ás forças populares que debandassem; e em Santarem viu-se difficuldade
ainda maior, mais graves perigos. Os patuléas, em vez de reconhecer
o governo, queriam marchar sobre Lisboa e leval-a de assalto. O bom
Passos levantou-se da cama onde curtia a febre das sezões ribatejanas,
teve de montar a cavallo acompanhado pelo Galamba, para cortar o passo
ás forças que, depois de se armarem nos depositos arrombados, iam já em
Villa-Franca. (Macedo, _Traços_) O desilludido tribuno chorou, pediu,
rogou, e o seu prestigio antigo salvou Lisboa da invasão. No meado de
junho as JUNTAS estavam dissolvidas: no meiado de julho (19) entravam
os setembristas no gabinete. Equilibraram-se as cousas, renasceu a
ordem, sellou-se a paz? Não; ninguem o creia. Como póde haver paz
quando não ha pão? quando a capital e o reino ardem n’uma crise? quando
a agiotagem intriga para se salvar do naufragio? De certo se não
acertou com a verdadeira estrada: ha que voltar ao ponto de partida.

Qual? O radicalismo do _Sacramento_ diz que a Maria-da-Fonte quer
_liberdades_ e constituintes. Os conservadores, os agiotas no Banco
dizem que o reino e a riqueza querem CARTA e cabralismo. Qual dos
dois levará a melhor? Nenhum; e só depois de terminada a guerra que
vae começar, a _liberdade_ reinará sobre o vasio das idéas, com o
absolutismo dos interesses.


NOTAS DE RODAPÉ:

[29] V. _Hist. de Portugal_, (3.ª ed.) II, 176-8.

[30] V. _As raças humanas_, I, pp. 197-213.

[31] V. _Syst. dos mythos relig._ XVII.




III

A GUERRA CIVIL


1.--O 6 DE OUTUBRO

N’este dia, pelas dez da noite, a rainha chamou ao paço o duque
presidente do conselho, e fechando-o por sua propria mão n’uma
sala obrigou-o a lavrar o decreto da sua demissão e o da nomeação
de Saldanha. Era uma segunda Belemzada? Era; menos Passos e a
guarda-nacional, menos Van-der-Weyer e os soldados inglezes. A educação
liberal progredira a ponto de crear entre os politicos um partido de
absolutismo e de reduzir á impotencia a _soberania nacional_. Era outra
Belemzada, e a desforra de Ruivães; porque aos marechaes vencidos em
37 confiava a rainha agora a defeza do seu throno. Saldanha presidia o
governo, Terceira ia para o norte socegar o Porto (8) depois da parada
da vespera no Terreiro-do-Paço, onde a tropa acclamára a CARTA. Estava
definitivamente acabada a Maria-da-Fonte, restaurado o cabralismo,
mas sem Cabraes apparentes. Saldanha encarregara-se de lhes obedecer
no que mandassem: e de os defender e rehabilitar até dar tempo a
uma repatriação por emquanto prematura. Desde largos annos, dez ou
onze, que o marechal descera a não poder servir para mais do que para
instrumento da politica alheia.

Depois das suas campanhas diplomaticas de Londres e de Madrid (emquanto
durou o incidente irritante da navegação do Douro), o marechal,
desnecessario e incommodo, tinha sido enviado para Vienna no outomno
de 41 a gozar os ocios de uma espectaculosa embaixada. A rainha e os
seus confidentes tinham-no lá de reserva para o momento em que fôsse
necessario, quando em 42 a restauração da CARTA provocou a scisão do
cartismo. Contra os Cabraes, inclinando para o setembrismo com o qual
vieram a colligar-se, os ordeiros (Rodrigo, Palmella, Silva Carvalho,
etc.) preparavam com intrigas as desordens que os radicaes forjavam em
Torres-Novas e Almeida. Em Vienna, o marechal applaudira a restauração
da CARTA; e sendo embaixador portuguez, era o confidente do Paço que
tinha Dietz por orgão: «O paiz inteiro está tranquillo e detesta--á
excepção de alguns velhacos ou doidos--a revolução que vegeta em
Almeida. (27 de março) Se as intrigas de Palmella e Silva-Carvalho não
tivessem vindo naufragar perante a firmeza de S. M. a rainha e perante
o bom-senso da nação, _estariamos_ já a caminho de entregar o poder aos
setembristas e de vêr reinar em breve tempo Bomfim, Cesar e C.ª» (25 de
agosto de 44. Cartas de Dietz a Saldanha; em Carnota, _Mem._)

O pobre marechal ia servindo. Em Lisboa receiavam que elle voltasse,
e que, dando ouvidos, como sempre dava, ás tentações da lisonja,
viesse complicar mais as questões com o seu genio aventureiro, o seu
prestigio militar e uma provada nullidade politica que o entregava
áquelle que melhor o soubesse assoprar. «Fique onde está, escreviam-lhe
de Lisboa, porque penso que ainda hade ter de salvar a rainha de ser
posta pela barra fóra». (Carta de Reis e Vasconcellos, 9 de março de
46; em Carnota, _ibid._) A Maria-da-Fonte rebentou quando Saldanha
se achava na Belgica. Com os annos, as raizes catholicas do seu genio
reverdeciam e entretinha-se a ouvir sermões em Liege, opinando entre o
merito relativo dos prégadores. (_Ibid._) Desde Vienna que trazia em
plano uma grande obra: a concordancia das sciencias com os mysterios da
religião, e o alcance do seu espirito vê-se n’estas linhas escriptas
ao futuro cunhado, para Inglaterra: «Peço-lhe que indague ahi quaes
são os melhores authores, antigos e modernos, que tém escripto sobre a
existencia de Deus e a immortalidade da alma; quaes d’essas obras se
pódem obter e seus preços». (Carta de 31 de maio de 46, _ap. ibid._)
Já então Portugal ardia em guerra, e Saldanha deixou a sciencia pela
politica: valiam ambas a mesma cousa! Embarcou em Inglaterra, chegando
a Portugal a 23 de julho.

Quem o conquistaria? Palmella com o seu governo? Os radicaes? O paço?
Facto é que todos o queriam, todos o adulavam, todos lhe chamavam
salvador da patria, homem unico, arbitro, etc.; e o marechal, inchado,
não era capaz do medir o seu valor, nem de aferir a verdade das
adulações. Ao mesmo tempo que cada qual o queria ganhar a si, todos
receiavam as tentações alheias, por bem conhecerem com quem tratavam.
A rainha déra ordem para que de bordo fosse directamente ao paço,
«sem falar a ninguem antes». (Carnota, _Mem._) Elle foi, e conta
(_Curtissima expos._ etc.) que a rainha o advertira dos planos dos
cabralistas, dissuadindo-o de tomar a direcção do movimento que se
preparava contra os actos de maio e junho, passo que, na opinião d’ella
rainha, augmentaria em vez de diminuir as desgraças da patria.

Saldanha principiou, pois, por não ouvir os pedidos dos cabralistas
que renegavam os Cabraes por terem _fugido_ (_O d. de Sald. e o c.
de Thomar_, anon.) Depois mudou: a rainha mudou tambem. Agora Leonel
e os setembristas queriam seduzil-o; Palmella chegou a obter d’elle
annuencia para a expulsão dos Cabraes do Conselho d’Estado; mas, pelo
fim de agosto, já o marechal se entendia com Gonzalez Bravo, _alter
ego_ de Cabral em Lisboa. O seu amigo Howard, embaixador da Inglaterra,
advertia o particularmente, como a uma creança tonta: _for God’s sake,
be cautious!_--tenha juizo, pelo amôr de Deus! (Carta de 29 de agosto;
em Carnota) A Inglaterra não approvava de modo algum a restauração
cabralista projectada; e foi o que se viu claramente no decurso da
guerra. A preponderancia da influencia franco-hespanhola em Portugal
não lhe convinha.

Entre as varias tentações com que o disputavam, levou por fim a melhor
o cabralismo. Em 24 de setembro acceitou a presidencia d’esse partido;
e de Madrid, o conde de Thomar confessou-se-lhe obediente soldado. Com
a sua fôfa basofia, Saldanha, ingenuamente pacifico, propôz a Palmella
um ministerio de conciliação. Pois se elle em pessoa, elle, o grande
marechal, queria a paz e se lhe sacrificava,--elle o arbitro, elle o
tudo! Pobre infeliz que não via em si aquelle _tronco_ de que José
Liberato nos falou! Pobre simples, sem talento, de que a anarchia
apenas fazia um chefe--como a cortiça que tambem boia e corre sobre a
agua revolvida! Palmella recusou; e então o marechal sentiu o passo
que déra e como estava obrigado a ir até ao cabo, a representar o
papel para que, sem o saber, desde muito a rainha o escolhera: _seu_
marechal, d’ella e do conde de Thomar.

Era indispensavel outra Belemzada; e Saldanha que assistira á
primeira, receiava-o. No paço estavam elle, a rainha, o esposo, o padre
Marcos e Dietz: n’essa conferencia, a soberana expôz o seu despeito e
o sue plano. Saldanha observou a S. M. que se não fôsse bem succedido
e não morresse na empreza, seria inevitavelmente fusilado, e ella, a
rainha, expulsa do reino. O professor objectara ser n’esse caso melhor
pôr de parte o projecto, ao que a rainha, voltando-se para o marechal,
retorquira: «Deixa o lá; manda-o para um convento de freiras. Antes
quero perder a corôa do que seguir sendo insultada todos os dias. Se
fôr necessario, tambem eu sairei, tambem irei ás barricadas». (Carnota,
_Mem._) Pittoresco esboço de uma scena da Edade-media!

       *       *       *       *       *

Terceira, porém, não era como Saldanha. Na sua mansidão era grave, e
serio na sua curta capacidade. Aristocrata por temperamento e educação,
estivera em 23 ao lado do rei, contra as côrtes jacobinas; mas desde
que mudara em 26, conservou-se o mesmo sempre. Bondoso e pacato,
brioso e valente, nada chimerico, amando a boa-vida e o cumprimento
dos deveres, não era odiado pelos inimigos, embora fôsse o apoio mais
seguro do throno liberal. E mais seguro, dizemos, porque a sua adhesão
não proviera em 26 de uma opinião favoravel á doutrina da CARTA:
opinião que teria mudado sem duvida, como a tantos outros, a todos,
succedeu.

A sua adhesão provinha de uma preferencia pessoal por D. Pedro, de quem
se sentia o vassallo, o homem-ligio: para onde o imperador fôsse, ou a
rainha sua filha e herdeira, ia elle. De doutrinas não sabia; tinha só
instinctos, sentimentos, e esses eram aristocraticos e conservadores;
nem podiam ser outra cousa, com a linhagem, o temperamento e a educação
do duque. O constitucionalismo, e as suas fórmulas e discursos, eram
apenas uma distracção e um habito do seu genio: custar-lhe-hia a viver
sem o systema representativo, porque o entretinham muito os debates
da imprensa, as discussões do parlamento, e não podia passar sem as
conversas animadas e ás vezes chistosas dos corredores da camara.
(Macedo, _Traços_) Cortezão, homem-do-mundo, era um personagem das
antigas côrtes arrastado para a vida do liberalismo burguez pela
fidelidade ao suzerano.

Se a demagogia o irritava, provocando n’elle um odio desdenhoso, o
das Archotadas, o dos tumultos de Lisboa em 35, etc., a burguezia
de petulantes _parvenus_ provocava-lhe uma frieza ironica. Assim,
repellira os Cabraes do governo, negando-lhes o exercito contra a
Maria-da-Fonte; mas logo se retirou tambem, por não ter aquelle
desejo pueril de Palmella de _não ficar de parte_. Não pactuaria com
os patuléas como o diplomata pactuava com elles, com todos, com o
diabo em pessoa, a ver se conseguia _equilibrar_ um throno, ou um
monte de degraus desconjuntados, para sobre elle reinar com a sua
moderação e a sua sabedoria. Vendo-o assim descer, inclinar-se para a
democracia clamorosa, Terceira naturalmente se arrependeu do acto de
abandonar os Cabraes á condemnação popular e de certo as combinações
que tinham precedido a «revolta dos marechaes» (37) se renovaram para
uma outra aventura. Mas os conservadores tinham feito dos Cabraes mais
do que chefes, uma bandeira, e não viam no seu gremio pessoas que,
em talentos, em coragem, em audacia, podessem medir se com elles.
(Macedo, _Traços_) Os Cabraes estavam em Hespanha, onde tambem reinava
o _cabralismo_ da união-liberal, e de accôrdo com o reino visinho,
podiam suffocar-se de uma vez a demagogia e o miguelismo que ameaçava
levantar cabeça. Costa-Cabral governaria de fóra o barco n’esta sua
nova derrota, Saldanha ficaria em Lisboa, Terceira iria para o norte.

E a rainha? Que papel era o seu, n’esta segunda aventura, já o vimos.
Não só apoiava: instigava, ordenava. Não tremia jogando talvez a
cabeça, decerto a corôa, porque tinha coragem para tanto; porque
essa corôa estava, ou pensava ella estar, em maior perigo, antes, do
que depois do golpe-d’Estado. Se se não pozesse cobro á demagogia--e
Palmella não queria, não sabia, ou não podia fazel-o!--a historia
precipitar-se-hia; e devemos lembrar-nos de que as recordações dos
casos de Paris e da sorte de Luis XVI, que por falta de audacia morreu,
davam fundamento á resistencia. A rainha, por não ter a perfidia de
um Luis Philippe, não podia sophismar o systema: atacava pois de
frente, com audacia viril, á portugueza. Filha de reis, fôra educada
por mestres que lhe ensinavam o _cabralismo_ como a expressão pura do
systema liberal. A sua sinceridade nobre não pretendia ao absolutismo
antigo, mas queria a doutrina da CARTA de seu pae, repellia com energia
os ataques da patuléa reproba, _pé-fresco_, ataques dirigidos ao seu
caracter soberano e á sua honra de mulher.

       *       *       *       *       *

Havia pois uma guerra declarada entre a rainha e o _povo_, assim a
patuléa se dizia. O hymno da Maria-da-Fonte cantava-se com uma lettra
francamente denunciadora do estado dos animos:

    Apprende, rainha, apprende
    Mede agora o teu poder:
    Tu de um lado, o povo d’outro,
    Qual dos dois hade vencer!

Mas esse sentimento propagado da hostilidade da corôa, sentimento que
ganhara raizes com a violencia e os crimes do governo cabralista; essa
percepção vaga de um direito novo, de facto opposto ao direito sagrado
dos monarchas, quando queria transformar-se em opiniões e programmas,
só produzia as antigas chimeras jacobinas, desacreditadas; e se, por
um dos acasos da lucta conseguia vencer, era derrotado pela força das
cousas (como em setembro), dessorando-se logo na mão dos mediocres
(como em 38 e agora), para se entregar á moderação palmellista. A
doutrina _liberal_ achara em Cabral um homem; a doutrina democratica
não o achava, não o podia achar, porque longos annos, ainda não
decorridos, seriam necessarios para chegar a definir os principios
organicos do direito novo.

Os programmas dos democratas em 46 eram uma repetição de Setembro, já
renegado pelo seu homem eminente, Passos; e com razão se previa que a
dictadura de José-Estevão não seria mais do que a repetição aggravada
das scenas anarchicas de havia dez annos. Que pediam, do seu club
do Sacramento, José-Estevão, Foscôa (Campos), Sampaio e os socios,
na vespera das eleições _independentes_ annunciadas por Palmella do
governo? Constituinte! a antiga panacéa setembrista: mas--oh, fatal
condição das chimeras!--os que exigiam uma constituição nova, saída da
vontade do _povo_, iam ao mesmo tempo dizendo já qual essa vontade
havia de ser, e o que a constituição havia de fixar: «Proclamação
da soberania nacional como fonte de toda a authoridade;--Reforma da
camara dos pares;--Eleições directas;--Liberdade de associação e de
imprensa;--Approvação dos contractos pelas côrtes;--Reorganisação
da guarda-nacional;--Economias na despeza até equilibrio do
orçamento;--Reducção do effectivo do exercito;--Suppressão do
conselho-d’Estado;--Fomento industrial e economico;--Reforma da
lei da regencia, para que esta não possa recaír em extrangeiro,
embora naturalisado;--Exame dos contractos desde 42 e abrogação dos
illegaes;--Nacionalisação do pessoal da casa real;--Prohibição dos
deputados receberem empregos ou mercês». (V. o _Manif._ da Ass. eleit.
setembr. 5 out. 46)

Era um rol de receitas infalliveis: a patria seria, sem duvida alguma,
salva. Mas quem analysar, cada uma de per si, as propostas, e todas no
seu conjuncto, obtem uma impressão singular. Não tornaremos a falar já
da contradicção organica indicada antes; não entraremos no minucioso
estudo do papel. Acima de tudo, vemos: constituintes, eleições directas
(mas que o governo não possa comprar esses soberanos representantes
do povo soberano!) e guarda-nacional, isto é, a volta a 1836. Ora os
dez annos decorridos e as confissões do proprio Passos não seriam
uma resposta cruel a tribunos tão ardentes, mas tão pouco originaes?
A precipitação com que as cousas, entregues ás mãos já trémulas de
Palmella, iam pendendo para o lado da revolução, é um dos motivos da
decisão tomada em 6 de outubro; mas no programma do Sacramento lemos
_items_ que obrigam a scismar: Fomento economico? Economia na despeza?
Exame dos contractos?--Que intervenção é esta da finança nos projectos
dos ideologos, tão mal conceituados fazendistas?

       *       *       *       *       *

É que a solução violenta de 6 de outubro foi tambem determinada pelo
crescer da crise. A Maria-da-Fonte declarara-a; e os seus ministros nem
a sabiam resolver, nem podiam com os agiotas, suzeranos do Thesouro,
ameaçados de uma ruina total. De abril a junho o 5 por cento baixava
de 67 a 50 e com elle, na mesma razão, todos os papeis de bolsa. Tres
dias depois da queda de Costa-Cabral, declarava-se o curso forçado das
notas do banco. (Dec. 23 de maio) Houvera uma corrida, e os cofres
ficaram vasios: todo o producto da emissão, e mais ainda, estava no
Thesouro. De tal fórma se tinha mascarado por quatro annos a sua
penuria: fôra como uma restauração de papel-moeda; e agora, decretado o
curso-forçado, era de facto outra vez a praga que 34 quasi supprimira.
Mas se o Banco era credor do Thesouro, e o Thesouro lhe não podia
pagar, que havia de fazer o governo? Importar dinheiro? D’onde? com
quê? Pedil-o aos agiotas? Elles, em vez de darem, pediam, reclamavam,
e obtinham tambem uma moratoria para as _promissorias_ da _Confiança_,
que de outra fórma quebraria. (Dec. 29 de maio) Tambem o dinheiro
d’ella fôra todo parar ao insaciavel Thesouro portuguez faminto, desde
1820 até hoje, e talvez para todo o sempre condemnado á fome.

E a Maria-da-Fonte, a que reclamava em programmas o exame dos
contractos, era a propria cujos ministros aggravavam a crise, tornando
solidarios o Banco e a _Confiança_, preparando a ruina já começada
da emissão fiduciaria portugueza. E porque? Porque esses ministros,
e todos, eram forçados a obedecer á aristocracia nova creada pela
_liberdade_: com a differença de que uns a reconheciam, e outros,
nem por se rebellarem contra ella, eram menos os seus servos. Em 15,
o 5 por cento ainda valia 62; depois do decreto de 29 desce a 50.
Nos primeiros dias de agosto as notas rebatem-se a 400 e 480 rs. (V.
_Boletins da bolsa_, nos _Diarios_)

Os financeiros perdiam-se, olhando o Thesouro vasio; e sob o nome de
_economias_ decretavam uma banca-rota duas vezes má: porque rematava a
crise, acabando de arruinar o credito; e porque cerceava os vencimentos
dos empregados, sem ficarem com isso habilitados a pagar o resto dos
juros, nem dos ordenados. A divida interna, já com o desconto de
uma decima, recebia segunda; e duas de uma vez a externa. Perdida a
esperança de emprestimos extrangeiros, podia-se, com effeito, cortar as
unhas aos judeus de fóra. Ao mesmo tempo, os empregados soffriam uma
deducção de duas decimas. (Dec. 21 de agosto) A bolsa fecha: não ha
quem dê um real pelas inscripções; (18 agosto-setembro) e o rebate das
notas cresce, cresce sempre. Já tinham expirado as moratorias e, como
expediente, prorogaram-se por mais quarenta dias. Os tortulhos nasciam
da crise: agiotava-se largamente em rebates.

E não se via o meio de saír dos embaraços, porque as declamações
contra os Cabraes nada faziam; e a victoria do setembrismo, com as
suas chimeras de rectidão, com a sua incapacidade financeira, não
conseguiria nas eleições proximas senão queimar tudo ... E depois?
depois?... D. Miguel? A Hespanha? A cabeça andava-lhes á roda.

Em 1 de outubro uma medida _rasgada_, acompanhada de conselhos
prudentes e exortações patrioticas, appareceu no _Diario_. As
moratorias, o curso-forçado das notas prorogavam-se até ao fim do
anno. Mas descancem: não haveria mais agiotagem, porque o governo
punha um fiscal seu no Banco, e n’esses tres mezes ia arranjar-se o
dinheiro para lhe pagar, e elle então pagar as notas. Com a _Caixa
de amortisação_, creada na Junta, solver-se-hia a divida fluctuante,
ominoso legado cabralista. Essa caixa havia de encher-se depressa:
adjudicavam-se-lhe os bens-nacionaes ainda restantes e o que fôsse
rendendo a cobrança das dividas activas dos conventos! e os impostos em
debito até 41! e os juros de quaesquer inscripções amortisadas! e uma
dotação annual de 100 contos sobre o rendimento das Alfandegas. (Dec.
de 1 de outubro) Os cem contos ao anno não davam para o juro de uma
divida superior a vinte mil: tudo o mais eram palavras ou poeira, a vêr
se cegavam a vista dos crédores.

Baldado empenho, que só deu de si pôl-os decididamente do lado da
reacção tramada, uma vez que a fraqueza palmellista não era capaz de
resolver uma crise, na qual tinham as fortunas arriscadas. Ao lado de
Saldanha com a sua espada, estavam elles, pois, com as suas bolsas.
Passou o dia 6 de outubro; ganhou-se a victoria: mas deram todos com
inimigos imprevistos. Protestava, insurgia-se o reino inteiro--e o
rebate das notas, subia, subia! Em vez da paz, era a guerra; em vez
da fortuna, a ruina total. Saldanha desembainhou a espada; os agiotas
mostraram os dentes: multado em 50 a 500 mil réis quem recusar receber
notas! (Dec. 14 de nov.) Mas como impedir a subida dos preços? Mas
como usar da espada, se Antas no Porto se bandeou? Os capitalistas
apressaram-se a exigir as arrhas da sua adhesão; e a 19 appareceu
decretada a fusão do Banco e da _Confiança_: complicada, aggravada a
crise com um _negocio_ em que a agiotagem salvava os seus capitaes,
abrigando-os á sombra do curso-forçado permanente de 5:000 contos
outorgado ao novo banco, verdadeiro papel-moeda que valeria para a
totalidade dos pagamentos até junho de 47 e para dois terços até ao
fim de 48, devendo ir sendo amortisado gradualmente n’esse periodo.
(Dec. 19 de novembro) As acções da _Confiança_ triplicavam de valor,
e as notas baixavam sempre. A agiotagem déra o seu golpe-d’Estado,
salvando-se para arruinar a nação: mais feliz do que os politicos, a
ponto de irem a pique no naufragio do paiz.

       *       *       *       *       *

Saldanha, ou antes Cabral, de quem elle era o homem-de-ferro, contara
com a resistencia do reino e prevenira-se.

 Estou persuadido de que a ultima repentina mudança da administração em
 Portugal foi em parte levada a effeito por conselhos de Madrid, e que
 o marechal Saldanha tem estado, sem o saber, servindo de instrumento
 para pôr em pratica os planos do conde de Thomar e de Gonzales Bravo,
 nos quaes me parece que uma influencia hespanhola e uma união intima
 dos governos de Madrid e de Lisboa para o futuro se apresentam como
 causas principaes. (Southern a Palmerston, 22 de out. _Livro azul_)

A Hespanha, com effeito, representava n’esta segunda Belemzada o papel
que a Belgica e a Inglaterra tinham tido na primeira; e o ministro
inglez de Lisboa só se enganava suppondo Saldanha ignorante dos planos
do conde de Thomar, de quem elle era o instrumento. Os acontecimentos
precipitaram-se, pondo a claro a verdade, e collocando a Inglaterra
na posição falsa que durou até ao fim, de não tolerar a intervenção da
Hespanha, sem poder deixar de acudir a sustentar o throno da rainha,
mas sem se convencer tampouco de que esse throno perigasse com os
ataques setembristas. Restaurou-se todo o antigo pessoal administrativo
e militar cabralista, annullou-se a convocação das côrtes pelas
eleições directas, e o rei D. Fernando tomou o commando em chefe do
exercito, que tinha de entrar em campanha.

O Porto rebellava-se com a divisão de Antas, prendendo o proconsul
Terceira ahi mandado; mas pedindo apenas, moderadamente, a demissão do
ministerio. Porém ao mesmo tempo as proclamações circulavam em Lisboa,
respondendo á da soberana n’estes termos:

 Povo portuguez! A revolução do Minho, a revolução mais gloriosa da
 nação portugueza foi trahida pela Soberana! Não a acredites! Olha que
 ella mente como sempre tem feito!

 Povo portuguez! Olha que a rainha, chefe do Estado, que devia ser
 a primeira a respeitar a opinião dos povos, com as palavras de paz
 na bocca e veneno no coração, saíu para o meio das ruas da capital
 e poz-se em guerra declarada com a nação! Não contente com o sangue
 e ossos de que é composto o seu throno, ainda continua a fazer mais
 victimas--ainda este vampiro quer mais sangue!--é a paga que este
 tigre dá ao povo infeliz que lhe deu um throno!

 Povo portuguez! Tu nada lucras em conservares no teu seio esta
 vibora--ou ella hade respeitar os teus direitos ou então que tenha a
 sorte de Luiz XVI--este porém foi menos culpado!

 Povo portuguez! A tua rainha diz que quer paz, mas consente que os
 janisaros assassinem e roubem, como o estão fazendo.

 Povo portuguez! Ás armas! Senão serás fusilado ou deportado! Viva
 Portugal! Ás armas! e seja o novo grito de guerra: Viva D. Pedro V!
 (ap. _Livro azul_; corr. 11 out.)

Em Coimbra, Loulé, governador civil, ao saber do golpe d’Estado,
rebella-se, proclama, reconstitue o batalhão academico. Foi isto a 8;
no dia seguinte Aveiro segue o exemplo. Campos, no _Grito nacional_,
dizia claramente:

 Ha poucos dias arrojámos dois (traidores sc. Cabraes) pela barra fóra:
 pódem ir mais alguns. Marche todo o paiz a Lisboa e esmague a cabeça
 da hydra (a rainha?) se quanto antes a facção parricida não esconder a
 sua vergonha nas ondas do oceano.

A guerra estava formalmente declarada: chegava o momento de appellar
para as prevenções tomadas. Saldanha, então, officiou, pedindo a
intervenção aos governos de Londres, Paris e Madrid, segundo o tratado
de 22 de abril de 34, allegando que os miguelistas saíam a campo.
(_Relat. do min. neg. estr._ em 48) De Madrid estava certo, e os
hespanhoes mandaram logo um corpo de observação para a fronteira;
(_Ibid._ off. de Isturiz a Renduffe) mas a Inglaterra, não vendo
miguelistas, queria impedir a intervenção hespanhola e forçar a
rainha á paz. Em toda esta historia ver-se-ha a funesta consequencia
de uma tal politica, protrahindo uma guerra desoladora; porque, se a
Inglaterra não queria consentir na intervenção da Hespanha para dar
a victoria á rainha, tampouco intervinha para impôr uma conciliação.
Nós, em casa, evidentemente não tinhamos força para nos governarmos:
e depois de doze annos de liberdade, o Portugal novo achava-se, como
o antigo se achára, dividido em duas fracções sem que nenhuma tivesse
poder bastante para submetter a contraria.

Palmerston ordenava para Madrid ao seu delegado que não consentisse na
intervenção; (_Livro-azul_ P. a Bulwer, 5 nov.) e para cá mandava-nos
um coronel, o Wylde, afim de negociar uma paz entre os belligerantes.
Melancolica situação antiga em que nos achavamos, de que a liberdade
nos não tirava ... Costa-Cabral já era nosso embaixador em Madrid,
e a Hespanha, de accordo comnosco, procedia bizarramente, apezar de
soffreada pela Inglaterra. Mandara para a fronteira um exercito, e
enviava para Lisboa trezentos contos: (_Ibid._ Southern a Palmerston,
22-3 de out.) assim podesse trazer a Lisboa e ao Porto os seus
soldados!--suspirava Cabral em Madrid, e na capital Saldanha.

Porque a insurreição lavrava, e para peior, o miguelismo não no
pronunciava bastante para justificar a intervenção extrangeira.
(_Ibid._ 22, 3, 9 de out.) As noticias que lhe iam de Lisboa mantinham
Palmerston na sua reserva. «Era uma revolução como outra qualquer:
o inverso de 42; a propria JUNTA batia os miguelistas, raros e sem
importancia». E tudo ardia! as guerrilhas surgiam de todos os lados.
O Galamba e o Batalha com 500 homens corriam o Alemtejo; José-Estevão
estava em Alcaçovas com 600; (_Ibid._ 22-3) Taipa e Sá-da-Bandeira
no Porto; Aguiar em Coimbra; Mousinho-d’Albuquerque e Bomfim tinham
desertado do Lisboa; Antas vinha, caminho da capital, já em Leiria,
com 2:500 homens, fóra guerrilhas, devagar, aggregando gente todos os
dias. (_Ibid._ 29) Que seria de Lisboa, a que o inglez não deixava
o hespanhol acudir? O governo, entretanto, preparava-se, lançando
mão de tudo. Arregimentavam-se os empregados-publicos. Havia rusgas;
nas boccas das ruas os cabos de vigia prendiam. Todo o homem de
18 a 50 annos tinha de pegar em armas. Formara-se um batalhão das
Obras-publicas, outro do Commercio. Fortificavam-se, artilhavam-se
as linhas. O Banco dera 300 contos para acudir ás urgencias.
Prendiam-se os suspeitos nos navios no Tejo: todo o setembrista fugia,
e Palmella em pessoa estava homisiado.(_Ibid._ 22-3). Embargavam-se as
cavalgaduras e as pessoas, obrigando-as a trabalhar nas linhas.

Mas apesar de tão grandes esforços e de meios tão violentos, o rei
D. Fernando, commandante em chefe do _exercito_, não podia passar
revista a mais do 3:000 homens. (_Ibid._ 29) Que ia ser da rainha,
alvo de todos os tiros? Que resultado, o d’essa guerra encetada? Se a
Inglaterra não havia de vir a consentir que os vencedores acabassem de
vencer, que singular escrupulo a embaraçava?--E se os sublevados não
fossem afinal agrilhoados pela intervenção, que teriam feito? Depôr a
rainha? É natural. Proclamar uma republica? Provavelmente. Mas nenhum
d’esses dois actos destruiria os males constitucionaes do paiz, causa
da sua desgraça: nem a anarchia das doutrinas, nem a penuria universal.


2.--A JUNTA DO PORTO

José Passos era o presidente da camara do Porto. Já o telegrapho
dissera o golpe-d’Estado de Lisboa, quando em sessão abriu os officios
do novo governo, e o aviso da vinda do duque da Terceira. «Vou fazer a
revolução!» exclamou, levantando-se e saíndo. (D. João de Azevedo, _Os
dois dias de outubro_, ex. annot. por J. Passos) Chegava ao mesmo tempo
(9) ao Douro o vapor com o duque, Santa-Maria, Vallongo e Campanhan,
um estado-maior para o exercito do norte. José Passos desceu da
Casa-Pia ao Carmo; esbaforido, mandando tocar a rebate, convocando os
patriotas ás armas; e feito isto, _pronunciou_ a guarda-municipal e
os regimentos 6 e 3. Depois, montou a cavallo, dirigindo-se a Villar,
na margem do rio, a receber condignamente o duque já desembarcado.
A cidade estava sublevada, a guarnição por ella, os sinos batiam a
rebate, o povo borborinhava nas ruas, pedindo armas, e os gritos nasaes
da turba destacavam-se no côro do rufar dos sóccos sobre as lages das
calçadas. Entardecia: Passos era um rei. O sussurro da agitação ondeava
até ao fundo da grota de Villar, a poente da cidade, onde os generaes
de Lisboa se tinham recolhido na casa do Conde de Terena, quando,
já pelo escuro da noite, o rei do Porto chegou, seguido e acclamado
pela sua turba, perante o lugar-tenente da rainha de Lisboa. A cidade
não obedecia, rendesse-se o duque. Elle recusava-se, com firmeza,
assegurando que cumpriria a missão a que viera. Fóra, o povo clamava,
exigindo o reembarque dos generaes para o _Mindello_ que os trouxera.
Um certo Navarro subiu, e em nome do povo prendeu o duque.--«Meia
duzia de rotos que estão lá em baixo?»--«O bastante para repetir as
scenas de Alcantara!» (_Ibid._) Passos começou então a perceber que o
povo se excederia, que era capaz de trucidar alli o duque, se elle o
abandonasse. Tomou-lhe pois do braço e desceram, assim, até ao Ouro,
sobre o rio, para embarcar. O duque estava effectivamente preso, e
mais enleiado do que elle o seu guardião, defendendo-o contra a plebe
ameaçadora. Em uma noite negra e espessa de nevoeiro penetrante que
suffocava, alagando. Nada se via; apenas do meio do susurrar da turba
já se destacavam, já se repetiam os gritos--mata! mata! Ao longe
distinguia-se o rodar breve das seges que fugiam com os timoratos,
ouvia-se o rebate desesperado dos sinos; por entre o nevoeiro
moviam-se os archotes de lume vermelho, despedindo faiscas e rolos
de fumo, pondo manchas de luz funebre na massa espessa e humida do
ar. Seguiam pela estrada da Foz: ao lado, no rio negro, fluctuavam os
reverberos da procissão que parecia um enterro, ou o levar de um reu
ao patibulo. A turba clamava--mata! mata! e as suas ondas cresciam,
ameaçando passar por cima dos que iam adiante. Passos que levava o
duque pelo braço era corpulento, muito gordo; e o duque, sereno,
indifferente ao perigo, quando a onda do povo crescia impellindo-os,
dizia-lhe:--«O José Passos é uma formidavel trincheira!» (Macedo,
_Traços_) Assim chegaram á Cantareira, para embarcar; mas o escaler
desapparecera. José Passos, receando que o embarque fosse o signal
da fusilada, mandara-o embora, projectando já guardar os presos no
castello para os salvar. (_Disc._ do conde das Antas, sess. de 15
fever. 48)

O barco não apparecia; nada vinha do rio, negro e indifferente. Caía
a chuva, roncava o mar proximo nos baixios e cachopos da barra, e a
furia do povo crescia n’um clamor terrivel--mata! mata! O gordo Passos
suffocava: o cordão dos que com elle defendiam o duque, o Browne, os
Limas, os dois Navarros, Custodio Teixeira e os mais, continham a
custo as ondas do povo. E a chuva fria, miudinha, encharcava, deixando
distinguir mal a massa negra dos muros do castello bordados de recifes
contra os quaes o mar grunhia: só na densa bruma scintillavam as
lanternas entre as ameias, como pharoes a uma tripulação em navio
corrido pelo tempo. Dando a pôpa ao vendaval, acossados pelas ondas da
turba, batidos pelas rajadas de vozes pedindo morte, foram correndo
a entrar no porto de abrigo, dar fundo no castello. O duque estava
salvo, e preso. Passos socegado, regressou ao Porto.

No dia seguinte, com a adhesão do general da divisão do norte, o conde
das Antas, definiu-se a attitude do Porto sublevado: os extrangeiros
que dirigiam a rainha tinham-na obrigado a mudar o ministerio; S.
M. estava coacta e era mistér correr ás armas para a libertar.--O
programma da nova JUNTA repetia ao avesso o da de 42; e as revoluções
liberaes eram forçadas a usar de expedientes antigos de 23 e 24: os
expedientes apostolicos. Nada ha novo á luz do sol!

Para _libertar_ a rainha saíu, então, para o sul o conde das Antas com
o seu exercito, a juntar-se em Santarem a Bomfim: reunidos salvariam
Lisboa. O norte do Douro considerava-se seguro e por isso na urgencia
de congregar forças, retiraram-se as guarnições do Minho. Vianna,
proclamada a JUNTA, ficara sem tropa: os cartistas aproveitaram.
Expulsaram da praça o inimigo e fortificaram-se. Veiu em milhares o
povo dos campos dar um assalto, e a cidade capitulou: na refrega ficara
morto o tenente que a defendia. Os camponezes enfurecidos--eram quatro
mil--pediam vingança e mortes, exigindo as chaves do castello (onde o
velho governador reformado prendera tambem os mais compromettidos) mas
o homem prudente perdera as chaves a tempo, enfurecendo ainda mais a
turba com o seu ardil. Começavam os tiros, preparavam-se os machados,
ia começar o assalto, o arrombamento e a matança inevitavel, quando uma
piedosa senhora teve uma idéa abençoada.

Viu-se apparecer no meio das ondas do povo em furia uma procissão de
padres de cruz alçada, caminhando solemnemente, cantando--_Benedictus!
Benedictus! Dominus Deus, Israel!_ E os minhotos sobresaltados
paravam, escutavam, como tocados por um milagre. A furia começava
por ceder ao espanto. Que vinham fazer os padres? que mandaria Deus
agora?... Á sombra do crucifixo erguido, um sacerdote lh’o disse; e
caíram todos de joelhos, contritos, batendo nos peitos:--Bemdito!
bemdito e louvado seja! (D. João d’Azevedo, _Os dois dias_, etc.) Era
uma scena primitiva, e eloquente para nos mostrar até que ponto o povo
tomava parte na resurreição do setembrismo no norte. Seria José Passos
a verdadeira Maria-da-Fonte?

       *       *       *       *       *

Não era de certo elle a encarnação do genio das populações minhotas,
superiormente individualisado na poetica pessoa do irmão; mas era uma
resurreição do espirito burguez e portuense, de tradicionaes arruaças,
na Edade-media, contra os bispos, e depois contra os reis. Bacharel
tambem, aprendera em Coimbra as fórmulas benthamistas em que agora se
moldava o antigo espirito de rebeldia burgueza. O Porto era um reino
seu, porque o genio portuense, em todas as suas varias cambiantes, se
achava n’elle individualisado. Era _pratico_, popular, bonacheirão,
e no fundo bondoso, com uma ironia rasteira que os _patriotas_ não
chegavam a perceber e por isso os não offendia. Era corpulento, quasi
obeso, e com o seu chapeu alto, sempre na cabeça, os collarinhos
antigos que chegavam á raiz dos olhos, a sobrecasaca longa, o cinturão
e a espada pendente, esbaforido, communicativo, abraçando toda a gente
nas ruas, satisfeito de si, feliz, na paz da sua consciencia e na
importancia da sua pessoa: José Passos era a imagem d’essa burguezia
ingenua das cidades de tradições feodaes, rebellada contra os irmãos
burguezes que o novo systema levantára á classe de aristocratas.

José Passos reinava no Porto como um pater-familias: todos eram filhos,
amigos, _patriotas_, irmãos. A rua era uma permanente assembléa, e o
governo similhante ao que a historia nos conta das velhas republicas da
Grecia, e das communas ou concelhos da Edade-media. Resolvia-se tudo
familiar, popular, patriarchalmente. Faltava o dinheiro? O Passos ia em
pessoa ao banco, (_Commercial_) entrava na thesouraria, dava no balcão
um sonoro murro, e exclamava: «Arre! D’aqui ninguem sae!» E contava,
atava o sacco e partia. (Macedo, _Traços_) Assim tirou 67 contos ao
banco Commercial, e 16 á companhia dos vinhos. (_Ibid._) Ninguem punha
em duvida a sua honradez e o seu espirito de economia burgueza era
falado com motivo. _Arranjou_ o governo e a guerra, durante quasi um
anno, com mil contos, se tanto. Conhecia a fundo todos pormenores da
administração: era um homem do officio politico, pratico, sem a sombra
de uma idéa, apenas com as fórmulas e rotulos decorados na mocidade.
N’isto via-se o contrario do irmão.

A sua bonacheirice, a sua franqueza popular alegravam, incutindo
esperanças, dissipando duvidas, afagando ambições, lisongeando
vaidades. Promettia sempre, tudo. Que proporções viria a ter a
Alfandega, se lá entrassem todos os que pediam empregos, e a quem o
tribuno popular os promettia sempre, invariavelmente? A Alfandega era
o eldorado dos _patriotas eximios_. Com o chapeu enterrado na cabeça
descaída sobre o hombro esqueredo, José Passos descia da Casa-pia, onde
era o palacio do governo, e os grupos de curiosos, ou de assustados,
perseguiam-no. Queria fugir-lhes: não podia. Seguia apressado, e atraz
d’elle, como um rebanho, furando, ás corridas, seguia a cauda dos
perguntadores. Que ha?--Isto está aqui, está acabado!--E com um tom de
mysterio, como quem revela altos segredos (já de todos conhecidos) ia
de grupo em grupo animando os espiritos, picando as ambições. _Isto_
ia bem. O nosso conde (das Antas) era para a _cousa_. E a vaquinha lá
de baixo ia rendendo ... ia rendendo. Grande gente!--Queria sumir-se;
outro grupo accudia: E de Lisboa?--Excellente! Ha de ir tudo pelo pó do
gato ... salvo o respeito devido á rainha!--Mudando de tom e assumpto:
É verdade, já sentou praça? Ah, sim? Bom patriota! Assim é que se
querem!--Escapava-se: era em vão.

Outro chegava, mysteriosamente, segurando-lhe a banda da sobrecasaca,
dizendo-lhe ao ouvido: Ha cartistas dentro da Junta!--Elle, virando-se,
com um ar fino, baixinho, respondia: Socegue; bem sabemos; escrevemos
direito por linhas tortas. Isto vae bem, vae bem ... (baixando mais a
voz, ao ouvido), mas é para nós: não espalhe o que lhe estou contando,
ouviu?--O outro inchava-se; elle queria proseguir. Debalde. Um
_patriota_ chegava com um plano de campanha infallivel, seguro ... Dê
cá; traz isso escripto? Não? Escreva-m’o, escreva-m’o, meu general!--A
paciencia começava a fugir-lhe, quando outro vinha com uma combinação
dynastica para substituir D. Maria II e resolver tudo pela raiz.--Pois
sim, pois sim, meu patriota. Eu já tenho cinco memoriaes para rei.
Mande o seu, e será attendido na occasião competente ...

De tal modo conseguia romper, chegar pela Batalha á Aguia d’Ouro,
quartel general do setembrismo, no meio da confusão da gente
congregada. José Passos chamava a isto o _methodo confuso_, (T. de
Vasconcellos, _Prato d’arroz doce_) e com effeito nenhum outro methodo
podia servir no meio de uma agitação vaga, em que as plebes, sem
vontade determinada, só com odio aos Cabraes, seguiam os demagogos
presididos por chefes cujo proposito era moderar a revolução, convencer
a rainha a que pactuasse com elles. O _methodo confuso_ era o methodo
natural de uma cidade em coufusão, de um reino confundido. Todo o Porto
era um ágora e realisava o programma radical da omnicracia--o governo
de todos por todos.

Da Batalha e do Postigo do Sol, observando as janellas da Casa-pia,
espiando a saída de alguns dos da JUNTA, vinham os magotes enchendo
as ruas até á Aguia-d’Ouro e em frente do Estanislau. A Praça-Nova e
os Loyos, a rua de Santo-Antonio e as Hortas, os Clerigos, a rua das
Flores até S. Domingos, e por S. João até á Ribeira: todo o coração
do Porto borborinhava de gente, falando, resolvendo, discutindo,
ameaçando, com a verbosidade e a sufficiencia ingenitas nos filhos
da cidade da Virgem. Os mercadores estavam ás portas sentados nos
seus bancos, com a cabeça descoberta, os pés nos sóccos, trocando os
seus pareceres com os transeuntes. Estalavam nas lages das calçadas
as ferraduras de cavallos a galope, vinham ordenanças da municipal
correndo: que seria? Que novidade? O soldado no seu caminho,
atravessava os grupos com o _officio_ de papel branco entalado no
peito, e abriam-se as janellas para vir vêr: que haveria?--Outras vezes
eram cavalleiros que chegavam aos grupos, do outro lado do rio, com a
banda a tiracollo, a sobrecasaca desabotoada, em vez de barretina um
chapeu desabado; uns sem espada, mas na argola do sellote um bacamarte
de bocca-de-sino; outros á paisana, montando bons cavallos, seguidos
por creados de farda á velha moda da provincia: eram _fidalgos_ que
vinham juntar-se ao _povo_. A turba acclamava-os, elles paravam, e
havia effusões de sentimento, apertos de mão, saudes, vivas:

    Eia avante! Eia avante!
    Eia avante! Não temer!
    Pela santa liberdade,
    Pelejar até morrer!

Não descobre o leitor n’esta estrophe o que quer que é de _litterario_,
pouco espontaneo? Que _santa_ é essa _santa_ liberdade? Compare o
_Rei chegou_, francamente plebeu, nada metaphysico; compare o caso
de Vianna--Bemdito! e louvado seja!--francamente catholico, tambem
nada doutrinario: e diga se n’esse hymno que agora o povo canta, ha a
expressão do que elle sente. Não irá o povo levado sem saber para onde,
nem porque: apenas impellido por protestos negativos contra os males
que o affligem?

São burguezes rebellados, não são o povo em revolução, aquelles
que sob a presidencia do Passos se reunem na Casa-pia, o palacio
da JUNTA. É uma revolta de communa á antiga, a do Porto. São os
_popolani grassi_, que se levantam contra o _podestá_ de Lisboa.
Passos, entendido em politicas, bacharel, plumitivo, não é decerto
um Masaniello. O litterato Seabra não vem da rua: traduzia Horacio,
falara nas camaras, contara já por alguma cousa na politica (V. a biog.
por T. de V. na _Rev. contemp._); outrotanto Lobo d’Avila, o general;
outrotanto os mercadores de grosso trato; outrotanto o humoristico
Almeida e Brito, ouvido nos tribunaes, advogando. Na Casa-pia reinavam
patriarchal, espartanamente. Passos tinha os ministerios da fazenda
e dos extrangeiros, que ambos cabiam n’uma sala com duas mezas: n’uma
elle, na outra o secretario, official maior, amanuenses e tudo, n’um
homem só. Quando havia conselho, o _pessoal_ ia para fóra _patulear_
com os patriotas que enchiam os corredores, á espera de novidades.
Terminada a sessão, Passos abria a porta, de chapeu na cabeça, penna
entre os dedos, chamava o _pessoal_ (T. de Vasc. _Prato d’arroz doce_)
Não illuda porém tudo isto: a installação era provisoria, porque a
definitiva esperava-os em Lisboa. Nada queriam destruir: apenas acabar
de expulsar os Cabraes para governarem elles, com as suas opiniões e
pessoas, das quaes sinceramente julgavam depender a fortuna do povo.
O _povo_ era um bom instrumento, mas se tudo fossem soldados, melhor
ainda. «José, fiquei de cama por causa de uma constipação. Esta gente
(os populares) deve servir-nos como exercito auxiliar, mas a nossa
força real deve consistir nos soldados, ou ao menos em homens que o
pareçam». (Carta de Almeida e Brito a José Passos; em Macedo, _Traços_,
etc.)

       *       *       *       *       *

_Esta gente_, porém, chamada á revolta sentia pulsar-lhe nas veias o
antigo sangue de nómadas barbarescos, de bandidos historicos, serranos
guerreiros: não os minhotos, mas os transmontanos, os beirões, os
extremenhos, e toda a população transtagana. A sedição lavrava pelo
reino inteiro. A tyrannia cabralista acirrara o instincto adormecido, e
as politicos do setembrismo rebelde davam o pretexto para a explosão.
Por toda a parte surdiam guerrilhas; de todos os lados o exercito
se bandeava. José-Estevão e Vasconcellos tinham saído de Lisboa
a sublevar Santarem, quartel de cavallaria 4; e tres guerrilhas
esperavam, dominando na Extremadura, a chegada do exercito que vinha
do Porto, com o conde das Antas: Vasconcellos no centro, flanqueado
por José-Estevão pela direita e pelo conde da Taipa pela esquerda. A
JUNTA nomeara Braamcamp governador civil da capital, _in partibus_,
porque Lisboa era do governo; mas pelo districto o governador, com o
conde de Villa Real e outros, andavam de terra em terra alliciando
sectarios, fomentando a revolta. (_Elog. hist. de A. J. Braamcamp_, do
a.) Ao sul, mandava Mantas em Setubal, o conde de Mello e Galamba no
Alemtejo; o general Celestino levantara-se no Algarve com o guarnição;
Castello-Branco, Elvas, e Santarem onde Manuel Passos creara uma JUNTA
(D. João d’Azevedo, _Dois dias_, etc.), eram contra o governo.

A 6 de novembro saíu de Lisboa Saldanha com o seu exercito para se
bater com o de Antas. Na capital lavrava um terror verdadeiro, e
completa anarchia nos partidos. Presentia-se uma catastrophe, porque
os do governo, vendo o opposição da Inglaterra ao auxilio da Hespanha,
acreditavam-na alliada da JUNTA e consideravam Wylde um emissario
mandado a expulsal-os do poder. Corria que os inglezes davam todo o
dinheiro aos rebeldes. E porque fomentariam assim a rebellião? Para
minar a ordem reinante em Hespanha, creando tambem lá um partido
exaltado que contrariasse a influencia franceza, dominante desde o
fatal successo dos casamentos de Guizot. Assim a Inglaterra era a
supposta alliada da JUNTA, e não só ella o inimigo do throno portuguez:
tambem os falsos cartistas, os perfidos _ordeiros_. «Cartistas! (dizia
uma proclamação) O inglez Palmella, o rapoza Magalhães, o inglezado
Athouguia e outros que taes, tratam com um coronel inglez de nos
vender á Inglaterra. Fóra com os traidores! fóra com os marotos! Se
não querem deixar-nos a bem, saiam a mal: a pau ou a tiro! Fujam ou
morrem!» (No _Livro azul_, 19 de nov.)

Tal era o estado do centro e do sul. No norte, áquem Tamega, obedecia
tudo ao Porto; mas em Traz-os-Montes Cazal, declarando-se pelo governo
de Lisboa, veiu descendo, na esperança de combinações cartistas
preparadas dentro da cidade da JUNTA. Dois regimentos se bandeariam,
indo soltar o duque da Terceira e Cazal apoderar-se-hia da cidade. Mas
dos officiaes comprados, uns não estavam seguros dos sargentos, outros
receiavam as consequencias do combate: logo que os dois regimentos (3 e
15) se denunciassem, seriam provavelmente esmagados pela populaça; e a
_patuléa_ iria á Foz, e a consequencia seria o assassinato do duque e
seus companheiros. (T. de Vasc. _ibid._) Em vão, portanto, desceu Cazal
até Vallongo; em vão esperou; e despeitado por ter de recuar, vingou-se
trucidando barbaramente as aldeias que fugiam d’elle para os altos das
serras--Agrella, Villarandello, Constantim, (D. João d’Azevedo, _Os
dois dias_, etc.) Pobre gente sacrificada ás contendas liberaes! Era
o primeiro sangue que corria em abundancia, n’este novo episodio da
historia sangrenta de vinte annos! (1831-51)

Cazal retirou sobre Chaves, e do Porto saíu Sá-da-Bandeira com uma
divisão para o bater. Encontraram-se em Val-Passos, (16 de nov.) onde
dois dos regimentos do Porto se bandearam para o inimigo, dando-lhe
a victoria. Batido, o general regressou pelo Douro ao Porto, onde
havia uma desordem tão grande como a da capital. A JUNTA era um cháos
patriarchal: cada cabeça, cada sentença. Apenas a sedição se declarara,
e já os burguezes rebeldes começavam em rixas: que faria se vencessem!
Manuel Passos chegara ao Porto, fugindo ao conde da Taipa de quem os
soldados tambem fugiam, por elle os sustentar _a epigrammas_. (Azevedo,
_Dois dias_, etc.) Antas não bolia de Santarem, esperando que Saldanha
o fosse desafiar, em vez de aproveitar da fraqueza do inimigo. Cazal
ficára dominando em Traz-os-Montes. A sedição parecia um fogo-de-palha:
tão breve crescera, como ia morrer. Wylde chegára, falara, apresentara
as suas propostas, como delegado de Palmerston que de Londres resolvera
conciliar os inimigos: mas era inutil. O burguez é teimoso. No meio de
tão graves difficuldades, occupavam-se os da JUNTA a mascarar-se de
fidalgos, distribuindo entre si titulos, commendas, cartas-de-conselho.
(Azevedo, _Dois dias_, etc.) Sempre assim tinham sido as communas
rebelladas contra os barões. A principio, o Porto só falara em paz:
agora que a derrota de Val-Passos o ameaçava de morte, a sua voz
tinha ameaças. Levantára-se contra o «systema de sophisma, fraude e
corrupção»; houvera «bayonetas contra o peito dos eleitores desarmados,
(45) descargas de fusilaria: o sangue dos cidadãos correra». E era um
tal governo que a rainha restaurara em 6 de outubro! Queria «lançar
grilhões ao paiz?» Não; por força estava coacta. Mas «seu augusto
esposo descera da sua elevada posição á de simples empregado de um
ministerio protervo».--«A Europa (leia-se Wylde-Palmerston) não
consentirá que extrangeiros (leia-se hespanhoes) venham roubar um paiz
innocente á liberdade!» (_Manif. da Junta do Porto_, 3 de dezembro) Que
singular insistencia no _qui-pro-quo_! D’onde vem o motivo? Do facto
de a JUNTA pedir auxilio a um povo cuja soltura receia; de querer os
revolucionarios sem a revolução; de appellar para as plebes, para
ficar burgueza; de proclamar a democracia e ao mesmo tempo um respeito
_official_ á rainha, que injuriava em particular e por vontade quereria
vêr derrubada, necessitando por politica mantel-a no throno--mas
coacta, de uma verdadeira coacção, e não supposta, como a allegada no
_Manifesto_ e em que ninguem acreditava.

As consequencias de uma situação tão singular, quasi ridicula, viram-se
quando, no fim, victoriosa, a JUNTA achou que a victoria lhe não servia
e lhe era indispensavel ser vencida; essas consequencias viam-se já na
falta de unidade nos planos, no rivalidade dos commandos, deploravel
mal que deu de si a morte de muita gente.

A guerra, generalisada a todo o reino, em bandos, columnas e
guerrilhas, tinha porém a Extremadura como theatro principal. Antas
e Bomfim com o grosso das forças estavam em Santarem, o conde de
Villa-Real em Ourem. Foi contra este, para o bater, que Saldanha
destacou uma brigada sua (4 de dezembro) ao mesmo tempo que Antas
destacava Bomfim para cortar a retirada d’essa brigada, cousa que
não conseguiu. Em Leiria, porém, uniu-se a Villa-Real, e, reforçado
com mais tropa mandada de Santarem, Bomfim commandava cousa de 3:000
homens, quando foi surprehendido por Saldanha, vendo-se obrigado a
recolher-se a Torres-Vedras. Dizem que ao começar a batalha (22) o
pobre general sempre infeliz se escondera n’uma egreja, mettido n’um
confessionario, com uma bandeira preta cravada no telhado a indicar um
hospital de sangue. (Azevedo, _Dois dias_, etc.) Diz-se mais que Antas,
do seu quartel-general, ouvia a acção e não quiz acudir. (_ibid._) Como
quer que fosse, Saldanha obteve uma victoria cruel, ficando entre os
mortos o illustre Mousinho d’Albuquerque, merecedor de melhor sorte.
O governo ganhava uma batalha, mas vencer era-lhe impossivel. A guerra
fervia por todos os lados e de todos os mondos. Desde que os litigantes
tinham declarado a intransigencia, acontecia absolutamente o mesmo
que se observara em 32-4: nenhum dos combatentes podia vencer, nenhum
ser anniquilado. A guerra chronica é a sorte das nações arruinadas. O
governo não podia vencer, mas podia vingar-se; podia repetir D. Miguel
em cuja sítuação se achava, e fel-o, perdendo mais com a vingança do
que lucrara com a victoria. Os prisioneiros (43) de Torres-Vedras,
degredados para Africa no _Audaz_ (1 de fevereiro de 47) aggravaram o
labeu de sanguinario que a affinidade cabralista punha no governo.


3.--O ESPECTRO

Quando Sá-da-Bandeira, vencido em Val-Passos, depois de ter retirado
pelo Pinhão e embarcado, descia o Douro para recolher ao Porto, ao
passar em frente das Caldas d’Aregos, foi incommodado por tiros que
partiam das montanhas agrestes da margem. Era o Cazal que o perseguia?
Não; o Cazal retirara tambem para Chaves.--Desembarcou. Era o espectro
miguelista: um bando de quasi um milhar de homens tendo á frente
Macdonell, já nosso conhecido de Santarem em 34 ... Como espectro,
sumiu-se, dissipou-se, mas deixando um negro terror no animo de todos.

Quem evocára tão cruel apparição? Qual o réu d’esse crime de
leso-liberalismo? A JUNTA, diziam de Lisboa. O partido de setembro já
desde 34 parcial pelos vencidos, coalisado com elles em 42, em 45,
estava agora positivamente alliado para a guerra. Mas não tinham os
guerrilheiros do Macdonell feito fogo contra Sá-da-Bandeira? É que a
JUNTA, ao que parece, sem positivamente se alliar, deixava crescer
a desordem. Ella appellava para os exercitos da Maria-da-Fonte, o
_povo-armado_, e esse povo que em Vianna caíra de joelhos ouvindo a
homilia dos sacerdotes, tinha ainda vivas as raizes da velha religião
que reverdeciam. A JUNTA, diziam do Porto, (_Livro azul_, cartas do
consul, 18 de nov.) «não tem dado attenção ás guerrilhas miguelistas
e hade arrepender-se. A força d’ellas vae todos os dias crescendo.
São mais para temer do que pensam. (c. de 27) Todo o Minho jura essas
bandeiras, e ha planos positivos. Muita gente dará dinheiro; talvez
até a companhia dos vinhos, cujos directores na maior parte são
miguelistas. D. Miguel tem já sido positivamente acclamado. Ha pois
tres partidos hostís em campo, porque se os miguelistas se têem batido
até aqui sob a bandeira da opposição constitucional, agora voltam-se já
contra os setembristas, depois do episodio de Aregos». (_Livro azul_,
Southern a Palmerston, 3 de dezembro)

No proprio dia em que o ministro inglez mandava dizer isto para
Londres, affirmava a JUNTA no seu _Manifesto_ que «a facção sanguinaria
organisou guerrilhas para acclamarem D. Miguel!» Macdonell era para
muitos um enygma, e não faltava quem, com effeito, o acreditasse
mandado pelo governo, ou emissario da França para levantar o
miguelismo, dando assim motivo á intervenção que esmagaria o
setembrismo, forçando a Inglaterra a saír da sua reserva. Se assim foi,
o cartismo jogava com fogo; e tanto em Lisboa como no Porto, querendo
utilisar em proveito proprio o povo genuino, corriam o risco de serem
saccudidos por elle. Iam acordar ao seu tumulo um cadaver? Iam
galvanisar um morto? Queriam conquistar com elle o poder, ou esmagar
os rebeldes? Mas o espectro erguia-se, e a sua voz rouca, mas longa e
retumbante, acordava as populações da indifferença, falava-lhes uma
linguagem sabida de tempos antigas, falava-lhes no Throno e no Altar
destruidos.

E a voz do espectro caminhava, convertia. Já Macdonell e Garcia, um
hespanhol, (Azevedo, _Dois dias_, etc.) tinham entrado em Guimarães,
(25 de novembro) já occupavam Braga. Todo o Minho acclamava D. Miguel.
Corria que havia de casar com uma filha do marquez de Loulé, fidalgo
alistado no setembrismo, partidario da JUNTA, e que nada fazia para
coarctar a propagação d’esta nova e affirmativa _Maria-da-Fonte_.
Em Guimarães havia illuminações e festas (4 de dezembro); e no
Porto acreditava-se que a infanta Isabel-Maria estava á frente da
restauração. Macdonell em Braga já recusava gente: iam do Porto
offerecer-se-lhe em massa, fugindo á tyrannia burgueza do gordo Passos,
ás rusgas com que se alistava gente em monterias como a lobos, (_Livro
azul_, carta do consul, 18 de nov.) iam procural-o de todo o Minho
por onde corria um protesto formal contra _esta gente_, Cabraes e não
Cabraes. (_Ibid._ carta do consul, 11 de dezembro)

       *       *       *       *       *

E a JUNTA a affirmar que eram obras do governo para a comprometter! E
o governo a dizer que era o crime da patuléa! Quando era a positiva
consequencia da _liberdade_ e dos seus coripheus, quaesquer que
tivessem sido as primitivas origens da sedição: ou o tacito applauso
do Porto, ou as intrigas franco-hespanholas de Lisboa, ou ambas
simultaneamente. Se fôra o plano do governo, elle devia folgar porque
o exito excedia as esperanças. O povo tomara ao pé da letra as falas
insidiosas dos agitadores, e sem curar, sem saber de intrigas, via
chegado o momento de liquidar contas antigas. Errantes vogavam pelo
reino as sombras das velhas classes exterminadas, roubadas. E ao
mesmo tempo que o espectro miguelista falava pela bocca dos frades
guerrilheiros, falava pela bocca do jornalista Sampaio o _Espectro_,
jacobino, setembrista, patuléa. Da direita e da esquerda ouviam-se as
mesmas imprecações de colera, eguaes ameaças. O jornal, occultamente
impresso a bordo de um navio no Tejo, apparecia em toda a parte, como
espectro que era, condemnando em pessoa a rainha, a CARTA, a monarchia,
todo o _liberalismo_:

 Estão em presença dois principios, o popular e o pessoal. Mas o
 governo pessoal não triumpha e o principio revolucionario vae
 supplantal-o. O que fica sendo uma realeza vencida? Que prestigio póde
 ter um rei que desembainha a espada ferrugenta e que depois é obrigado
 a despir a farda no meio da rua? A realeza vilipendiada não é somente
 inutil, é um mal. O paço é incorrigivel: conspira sempre. Uma rainha
 que se declara coacta seis mezes em cada anno, não é rainha. O paço é
 a espelunca de Caco, onde sempre se teem reunido os conspiradores. A
 purpura dos reis tem servido para varrer a immundicie dos palacios e
 dos cortezãos mais abjectos. (_Espectro_, O estado da questão)

Assim vociferava o espectro jacobino, reclamando a abdicação da
rainha; e ás suas vozes respondiam os eccos do espectro miguelista,
condemnando a nova dynastia, acclamando o rei vencido em 34. E quando,
no seu primeiro numero, o _Espectro_ desenrolava o sudario da crise
financeira, a restauração no Minho, com uma voz mais verdadeira, não
accusava Pedro nem Paulo, Cabraes nem Passos: accusava o liberalismo
de ter emprazado o reino á praça de Londres, recordava D. Miguel que
reinara cinco annos sem tomar dinheiro emprestado ao extrangeiro, e
contava as riquezas desbaratadas, da patriarchal e da casa das rainhas
e do infantado e dos conventos, vendo-se agora os frades famintos a
pedir esmola miseravelmente.

E tomado de um accesso de franqueza e lucidez, o espectro de Lisboa,
contra a rainha, confessava o crime juridico do liberalismo:

 O throno da rainha só póde ser sustentado pelos liberaes: a sua corôa
 é condicional, segundo a CARTA. A um throno despotico, o direito de D.
 Miguel é melhor. (_Espectro_ n.º 2)

Era o que dizia o espectro minhoto, monarchico e legitimista: o nosso
direito é o verdadeiro! O vosso rei um usurpador! O nosso rei é
portuguez, o vosso extrangeiro. É uma rainha filha de mãe austriaca
e pae brazileiro, casada com allemão; allemães são os mestres e os
medicos do paço, o Dietz e o Kessler; inglezas as amas de leite, inglez
o cocheiro, franceza a modista. Só ha um portuguez, o capellão, um
padre indigno, o padre Marcos!

E os frades animavam-se, contando já com a restauração dos conventos,
e os cadaveres da nação morta em 34 erguiam-se dos seus tumulos para
ouvir, envolviam-se nos seus lençoes, saíam, caminhavam, em procissão
lenta e funebre para Braga, onde Macdonell reinava, em nome do rei
esperado dia a dia, outra vez adorado nos altares, chamado em preces
fervorosas. Mas Cazal que segunda vez descera de Traz-os-Montes e em
volta do Porto andara farejando a ver se achava a combinada brecha,
(Azevedo, _Dois dias_, etc.) de novo teve de retirar desilludido. A
sua crueldade vingara-se primeiro sobre as populações das aldeias
serranas, agora ia vingar-se na capital miguelista do Minho que atacou.
(31 de dezembro) Vencida uma batalha sangrenta, começou pelas ruas a
matança desapiedada. Eram tiros, gritos de misericordia, imprecações
de desespero, e um matar cruel e duro na gente amontoada pelas ruas. O
sonho de uma esperança morria breve afogado em sangue, e os cadaveres
com os seus lençoes tintos de vermelho tornavam pesadamente ás suas
covas. Caía a tarde, escurecia a noite, pelas esquinas das ruas havia
montões de mortos e poças de sangue coalhado por entre as pedras. Os
que ficavam, abraçados a Deus, varrida a esperança do Rei, foram pondo
nos lugares da matança nichos sagrados com cruzes lugubres, allumiadas
á noite por lampadas, com a triste lenda: Resae por alma de nossos
irmãos que foram mortos n’esta rua! (Azevedo, _Dois dias_, etc.)

Então a voz do espectro miguelista sumiu-se n’um largo pranto ...

       *       *       *       *       *

Mas o espectro jacobino de Lisboa, mundano e sem piedade, rangera
os dentes, prorompera em bramidos ao presencear a carnagem de
Torres-Vedras (22 de dezembro); e a sua colera não teve limites contra
a rainha a quem--oh, velhas, mentidas esperanças!--dera em Londres o
sceptro de ouro e a CARTA encadernada a primôr.

 A côrte dançou quando ouviu dizer que houvera muito sangue derramado.
 O valido e os protectores beberam á saude das victimas! A rainha deu
 beija-mão á sua criadagem! (_Espectro_ n.º 5) Quando a rainha soube
 da morte e aprisionamento dos bravos, saíu ás janellas do palacio, e
 como uma bacchante gritou para a sua guarda--Victoria! victoria!--No
 dia da chegada dos prisioneiros saíu a passeio em signal de regosijo.
 (_Ibid._ n.º 6)

E o espectro, lembrando-se da longa e dura guerra de seis annos, do
exilio e dos soffrimentos padecidos para exaltar essa rainha, dizia-lhe
do fundo da sua recondita imprensa:

 Morremos todos por via de ti! Morrendo te acclamámos, e tu
 exauthoraste-nos e mandaste-nos assassinar! O nosso sangue cairá sobre
 ti e sobre a tua descendencia! (_Ibid._ n.º 6)

Mas quem observa, não acha na voz d’este espectro a sinceridade
simples, a solemnidade epica das vozes espontaneas do povo--«Resae
por alma de nossos irmãos!» A _alma_ que aqui gemia era composta de
fórmulas doutrinarias, intrigas politicas, odios e ambições pessoaes.
O setembrismo falara sempre em nome do _povo_, mas esse povo era uma
fórmula rethorica, mais ou menos sincera no animo da gente democratica.
Mais romanticos, menos doutrinarios, mais calorosos mas menos audazes e
intellectualmente menos fortes, os setembristas eram mais sympathicos
e mais chimericos. O _povo_ de que falavam apenas acordara duas vezes:
uma para queimar as _papeletas da ladroeira_ em maio, outra para
acclamar D. Miguel, para caír, e ficar resando por alma dos martyres,
em dezembro. Partidos, intrigas, pessoas, ignorava-os.

Por isso a palavra do _Espectro_ é contradictoria comsigo propria; por
isso a lingua se lhe enrola e as phrases saem confusas, baças, desde
que, cessando de injuriar a rainha, pretende affirmar as ambições da
nação. «O povo respeita a rainha, respeita o throno.» (n.º 2) Que atroz
ironia é esta, depois do _Estado da questão_ que assentou o programma
do _Espectro_? «Para o rei ser irresponsavel é necessario que não faça
o mal.» (_Ibid._) Singular aberração, a idéa de um rei irresponsavel
no bem, responsavel no mal! É essa a doutrina _liberal_, genuina, que
oppunham ao cartismo?

Taes singularidades, que pintam o desnorteamento das cabeças
setembristas, poderiam multiplicar-se, se fosse necessario insistir
n’um facto já conhecido e demonstrado por varios modos. A guerra
tinha principalmente por alvo o throno: pois que esse throno, no meio
da incompatibilidade das clientelas politicas, era forçado a optar
e optava por uma d’ellas; pois que a fome e a excitação dos animos
faziam da politica uma campanha; pois que, finalmente, a rainha não
possuia o caracter astuto para usar das artes de um Luis Philippe,
mas sim a força viril para entrar pessoalmente na lucta. Declarada a
crise, o liberalismo, com effeito, tem de abdicar, e manha ou força
são indispensaveis no throno para illudir ou para rasgar as teias
constitucionaes. Quando voltam a paz, a indifferença e a fartura, por
isso, quando não ha _questões_, apparecem então os verdadeiros reis
constitucionaes, pela razão simples de que a sociedade prescindiria
perfeitamente de chefe.

       *       *       *       *       *
A rainha «bate o pé no paço e diz que se vencer,
a maior parte dos seus inimigos hade saír do
reino. E se não vencer?» (_Espectro_ n.º 6) Pois nem
depois de Braga e Torres-Vedras tinha vencido?
Não, não tinha; porque as forças odientas das
clientelas politicas exprimiam a crise constitucional
do paiz. Não tinha vencido; e para vencer seria
mister que viesse de fóra uma intervenção
apoiar e defender, ao mesmo tempo, o throno ameaçado
pela revolução armada, e os proprios chefes
d’essa revolução que tinham medo da victoria e
queriam ser forçados a ficar vencidos.

Clame, clame embora o _Espectro_ que «o tratado (34) morreu, apenas se
conseguiu o fim especialissimo para que se contratara; e senão, risquem
dos diplomas a phrase--rainha pela graça de Deus e da constituição,
e substituam: por graça dos alliados e vontade dos extrangeiros»;
clame, clame embora o _Espectro_. Essa intervenção, pedida a principio
por Lisboa assustada, é no fim egualmente necessaria para o Porto
embaraçado e afflicto com a quasi victoria consummada.

Essa intervenção é egualmente indispensavel, porque depois dos
morticinios de Braga e de Torres-Vedras, os setembristas vencidos
deram francamente a mão ao miguelismo que, tambem esmagado n’um
ponto, se levanta em varios outros de um modo já prudente e politico,
reconhecendo a liberdade patuléa. Manuel Passos mantinha ainda a
velha esperança de nacionalisar o liberalismo, e fazel-o equivalia a
converter os sectarios de D. Miguel. Povoas que saíra a campo na Beira,
dizia-se convertido; mas repetiria o dito o partido inteiro, se acaso a
revolução vencesse?

Á maneira que o miguelismo fôra crescendo, antes de Torres e Braga,
crescera em Madrid a vontade de intervir, pois, além das instancias
do conde de Thomar que os hespanhoes queriam para seu descanso vêr
restaurado ao governo em Lisboa, (_Livro azul_, Southern a Palm. 28 de
nov.) havia um medo positivo das faladas combinações entre o miguelismo
e o carlismo do conde de Montemolim. (Bulwer a Palm. Madrid, 13 dez.)
Assim, no meiado de dezembro, a Hespanha soffreada pela Inglaterra
e reduzida a observar a fronteira com o seu exercito e a abastecer
e auxiliar o de Cazal em Traz-os-Montes, (Southern a Palm. 28 nov.)
declara terminantemente que intervirá, com ou sem o auxilio das
potencias, se o miguelismo continuar a crescer. (Bulwer a Palm. Madrid,
13 dez.) A França falava pela bocca da nação nossa visinha; e perante
o miguelismo, aberta, publicamente alliado aos setembristas depois
de Torres, a Inglaterra teve de ceder. O embaixador em Madrid apenas
conseguira que previamente o avisassem antes de os exercitos se pôrem
em marcha. (_Ibid._) No fim do anno de 46 a intervenção, pedida no
ultimo trimestre, já parece o caso decidido que veiu a ser no meiado de
47.

O pobre _Espectro_, estonteado, inconsequente, enrouquece para
proferir palavras de paz. Tambem elle teme a victoria dos seus: «Para
que é incitar o povo a que entre no palacio dos nossos reis e ahi
pratique acções de cannibaes? O paço dos nossos reis é um foco de
corrupção politica, mas não o é de corrupção moral. Não ha rainha mais
virtuosa como esposa, nem como mãe de familias». (n. 27) O _Espectro_,
cabisbaixo, com a voz que fôra eloquente, parece pedir perdão do clamor
que levantára outr’ora, exigindo a abdicação d’essa propria rainha e a
limpeza da _caverna de Caco_. Porque é uma tal mudança? Foi o inglez
(Seymour) que veiu (fevereiro) a vêr se conseguia compôr os partidos
em armas, a vêr se evitava ainda a acção da Hespanha; e o _Espectro_, e
a gente que escolhera para seu orgão a voz de uma sombra, na esperança
do poder, moderavam a furia, mudavam o rumo. Mas como rainha e governo
se recusaram a pactuar com a revolta (abril), a voz do _Espectro_
voltou a vilipendiar aquella que tres mezes antes era o modelo das
virtudes:

 A côrte pela sua parte, toda sybarita, toda gastronomica, entra ainda
 na lucta com intenção doble. Se vence, o systema absoluto triumpha; se
 succumbe, acceita as condições e entrega os cadaveres dos seus amigos
 em holocausto á nacionalidade offendida, á moral publica ultrajada ...

E quando, afinal, a Inglaterra teve de annuir cabalmente ás exigencias
da França-Hespanha, consequindo apenas tomar tambem parte na
intervenção; quando as forças extrangeiras chegaram, para que os chefes
da revolta, não sabendo que fazer d’ella, se lhe entregassem, fingindo
obedecer á força, o _Espectro_, voltando a achar a eloquencia dos
primeiros dias, dizia nos ultimos:

 A côrte, o ministerio, o rei, tudo isso desappareceu. Não caíram
 ás nossa mãos, que nol-as ataram; mas sumiram-se na voragem de um
 protocollo. Isso que ahi se chama rei é um espantalho, os ministros
 são os lacaios de lord Palmerston. Foi a rainha, foram os Cabraes,
 quem nos vendeu, quem nos trahiu ... (n. 63. julho, 3)

Não seria acaso tambem o conde das Antas, indo metter-se com toda a sua
gente na bocca do lobo inglez que viam aberta á barra do Douro? Não
seria tambem Sá-da-Bandeira, por não querer passar de Setubal a Lisboa?
Não seriam tambem os chefes da revolução armada, politicos, generaes,
cortezãos em vez de tribunos, com medo da demagogia que passaria
por sobre elles, se acaso consummassem a victoria? A intervenção
servir-lhes-hia, se a Inglaterra a fizesse a favor do seu partido: como
a fez a favor do inimigo, a intervenção era um crime.

Quanto este _espectro_ é com effeito a imagem sumida da viva
personalidade do tribuno Passos em Belem! Dez annos bastaram para
mumificar a democracia; n’esses dez annos, os seus chefes tinham
fechado o _Arsenal_, dissolvido os batalhões, entregando-se nos
braços da _ordem_. Dez annos (32-42) tinham bastado tambem para que o
desenvolvimento necessario das premissas postas na legislação liberal
apparecesse: a _liberdade_ era um absolutismo da nova aristocracia
dos ricos nascida da concorrencia; e em vez de Mousinho, um Bentham,
apparecia imperando um homem duro e pratico, o conde de Thomar, imagem
ossea de um systema já consolidado.

Democratas, liberaes, eram agora todos, as sombras dos que tinham
sido. A miseria crua do paiz reduzia-os á condição de seres famintos,
amesquinhando-lhes os caracteres, baixando-lhes a estatura, avolumando
só a podridão natural das covas. Que o extrangeiro viesse a este
cemiterio afastado, mandar a cada espectro para a sua tumba, acabar
a funebre revolta de cadaveres, não admirava ninguem, porque a
_liberdade_ trouxera-a elle. Estava obrigando a manter o _systema_.
Mas, dez annos havia, o extrangeiro encontrara cá um povo singular,
extravagante, um dos sete dormentes da Europa, inaccessivel ás idéas
novas, mas vivo, abraçado de joelhos ao throno-altar. Agora, voltando,
o extrangeiro só via tambem o espectro d’esse povo antigo: sombras
errantes falando uma linguagem archaica tremida nos labios brancos
de frades rotos e senectos; cordões de mulheres luctuosas ajoelhadas
perante os nichos allumiados, resando «por alma dos nossos irmãos que
foram mortos n’esta rua!»

Uns dos mortos voltavam para sempre aos eternos jazigos; outros fugiam
do velho cemiterio das doutrinas, deitavam fóra o lençol da liberdade,
e a correr batendo os ossos, vestiam as fardas _regeneradoras_
lantejouladas, e, mirando-se em trajos de vivos, ficavam crendo ter
resuscitado.[32]


4.--A PRIMAVERA DE 47

Encetaremos a narrativa dos casos d’esta segunda e ultima epocha
da guerra dizendo o que sabemos das relações entre setembristas e
miguelistas armados, depois do desbarato de Macdonell em Braga. Fôra
a 28 de novembro que o caudilho, levantando abertamente a bandeira da
restauração de D. Miguel, entrara na cidade catholica, primaz das
Hespanhas. Com o escocez andavam as guerrilhas do padre Casimiro e do
padre Manuel Agra contando ao todo de dois a tres mil homens, dominando
no Minho e em parte de Traz-os-Montes, como dissemos. Não lhes faltava
dinheiro: davam cinco moedas a cada cavalleiro e uma a cada infante
armado, que se apresentassem, pagando o elevado soldo de 240 réis á
cavallaria, de 160 réis á infanteria. Cazal dispersou e anniquillou,
segundo contámos, esse fóco miguelista de Braga, quasi ao mesmo tempo
que Saldanha derrotava em Torres os setembristas; e a crueldade do
general no Minho não foi menor, antes excedeu a do governo de Lisboa.
Cento e quarenta pessoas foram trucidadas em Braga pelo vencedor que
não perdoou aos prisioneiros. (_Livro azul_, Southern a Palm., 5 de
jan.)

Macdonell conseguira fugir, apenas acompanhado pelo seu estudo-maior,
pondo-se a caminho de Traz-os-Montes, onde um piquete de cavallaria da
divisão de Vinhaes, acossando-o, o prendeu e matou nos ultimos dias de
janeiro. (Azevedo, _Dois dias_, etc.)

Da morte de Macdonell, com o qual acabava a sedição francamente
restauradora de D. Miguel, começa uma historia nova com o anno de 47.
A crueldade de Cazal em Braga, a morte do cabecilha, foram o rebate
para um levantamento geral, mas menos atrevido, do miguelismo. O padre
Casimiro esperava o apparecimento de guerrilhas carlista do outro lado
da fronteira, para organisar as d’este; mas, ao mesmo tempo, os antigos
generaes Povoas e Guedes eram enviados ao Porto para tratarem com a
JUNTA as bases de uma alliança. Diversas foram as versões correntes.
Uns falavam da simultanea abdicação de D. Miguel e D. Maria II o tio
e a sobrinha, noivos de outro tempo, acclamando-se D. Pedro V com
o governo representativo, mas gabinete miguelista. (_Livro azul_,
Southern a Palm., 5 de jan.) Outros diziam que a JUNTA se disposera a
acclamar D. Miguel em pessoa, e que para tanto já Manuel Passos partira
para Londres, o que era falso. (Azevedo, _Dois dias_, etc.)

Era comtudo verdade a fuga de D. Miguel, de Roma, e de crer que
projectasse vir a Portugal. (Thomar a Bulwer, Madrid, 29 de dez.)
Esta noticia enthusiasmava muita gente no Porto, embora os planos em
que se falava provocassem descontentamento em alguns corpos. Esses
planos dizia-se consistirem na entrada de dois generaes miguelistas
na JUNTA, no subsidio de 5:000 homens, na acclamação de D. Miguel rei
constitucional, na successão da corôa á casa Cadaval. (_Livro azul_,
cartas do consul Johnston, 1, 7, e 11 de janeiro) Quaesquer, porém,
que tivessem sido as verdades traduzidas por esta serie de boatos, o
facto é que, no meiado de janeiro, a situação definia-se claramente.
Punham-se de parte as combinações, sem se chegar a convenio de especie
alguma. A JUNTA acceitava o auxilio incondicional dos miguelistas,
deixando-lhes os logares e patentes, caso annuissem ás decisões que
ella tomasse depois de vencedora. (_Ibid._ Southern a Palm. 30 de
jan.) Era a _coalisão_ em armas. E Povoas saíu logo a campo, da sua
casa da Beira, proclamando a religião catholica apostolica romana, a
nação portugueza e o seu heroico pronunciamento; (V. proclam. de 17 de
jan.) deixando, como se vê, em aberto todas as questões politicas e
dynasticas. Acaso á sombra do equivoco se vencesse o que não vencera a
denodada affirmação.

Nem D. Miguel, nem uma parte grave do seu partido no reino, parece
que approvavam este proceder dubio e _politico_. A tradição custa a
morrer, e a tradição legitimista era pela nitidez das affirmações. D.
Miguel escapara com effeito de Roma disfarçado em crendo de um capitão
Bennett, e a policia ingleza sabia do seu esconderijo de Londres;
sabia que pensava partir para Portugal, pôr-se ao lado de Macdonell no
Minho. (_Ibid._ Palm. a Bulwer em Madrid; 16 de fev.) É desde então
que o ministro inglez principia a acreditar no miguelismo. Elle espera
comtudo que a derrota de Macdonell, noticia que acabava de chegar,
faria mudar de tenção o pretendente; (_Ibid._) e com effeito assim foi,
o que leva a crêr que o principe não approvasse a politica da coalisão,
já anteriormente condemnada nas circulares de Saraiva.

Coalisado com a JUNTA, o miguelismo perde a individualidade politica,
sem por isso deixar de ser um risco; porque se a JUNTA chegasse
a vencer, teria de começar a debater-se com os seus alliados: os
miguelistas á direita, os demagogos á esquerda; uns accordando em
pedir D. Miguel, outros D. Pedro V: ambos a queda da rainha, ambos uma
revolução que levaria Portugal, ou á restauração do absolutismo, ou á
implantação de uma republica. Qualquer das hypotheses era antipathica á
Inglaterra, que desde então reconheceu a necessidade de intervir. Mas
essa intervenção desejava ella que fosse um pacto, um accordo entre
os partidos constitucionaes belligerantes, e não viesse alargar a
Portugal a influencia da França doutrinaria, já exclusiva em Hespanha,
defendendo a todo o transe o partido cartista e a clientella dos
Cabraes.

       *       *       *       *       *

Depois de Torres-Vedras, o conde das Antas evacuou Santarem. A 27
estava em Alcobaça, retirando sobre Coimbra. Saldanha perseguia-o,
(_Livro azul_, Wylde a Palm. 29 dez.) sem força para o bater. O
resultado da victoria era nenhum, porque, passada a primeira impressão,
a revolta, generalisada a todo o reino, em vez de amansar, crescia.

Foi então que Povoas desceu da serra da Estrella, a vêr se podia
obrigar o general de Lisboa a não chegar ao Porto. Saldanha parou
no Sardão, e Antas entrava na cidade da JUNTA preparando a defeza
(Azevedo, _Dois dias_, etc.) Ia repetir-se um cerco? Ia outra vez haver
o que houvera em 32-3? Haveria, se agora, como então, os do Porto
podessem obter de fóra soldados, munições, dinheiro. Torres-Vedras
limpara de inimigos o centro do reino; mas, emquanto o Porto se
mantinha firme, e, no Minho disputado, Cazal e Antas jogavam o xadrez,
no sul do Tejo succedia proximamente o mesmo entre Schwalbach e o conde
de Mello que em vão atacava Estremoz (27 de fevereiro) sendo obrigado
a retirar sobre Marvão, (_Ibid._) esperando. Saldanha, entretanto,
avançava até Oliveira-de-Azemeis; e Antas, abandonando o Minho,
recolhia ao Porto, friamente recebido pelos junteiros que o accusavam
de nada ter feito. (_Ibid._) E Saldanha que fazia? Nada tambem, porque
lhe faltava tudo. Pedia para Lisboa armas e dinheiro, mas o governo não
os tinha para lh’os dar. «Se isto continua, o caso póde ser grave».
Já o povo de Braga arrazara a casa onde Cazal dormira, e a JUNTA fôra
acclamada logo que o vencedor voltara costas, e os ex-frades e fidalgos
preparavam uma insurreição medonha. O caso póde ser grave ... (_Livro
azul_, Wylde a Palm. 18 de jan.)

O mez de janeiro consumiu-o a JUNTA preparando-se para o cerco,
lançando contribuições sobre os bancos, trabalhando activamente na
defeza. A 26 estava acabado o primeiro circulo de barricadas e muito
adiantado o segundo; mas as deserções continuavam: dez ou doze homens
por dia. (_Livro azul_, _Cartas do consul_, 1, 7, 11, 26 de jan.) E
ao mesmo tempo que Antas perdia o tempo no Minho, Cazal recebia pela
fronteira da Galliza centenas de recrutas hespanhoes e material de
guerra. (_Ibid._ Carta de Vigo, 24) Sem poder intervir directamente,
a Hespanha fazia agora aos cartistas o que em 26-7 fizera aos
apostolicos. Em Vigo fundeavam duas fragatas, armadas, apparelhadas,
promptas a saír para o Douro á primeira ordem. (_Ibid._) A JUNTA ainda
se mantinha duvidosamente fiel á rainha, mas ameaçava desthronal-a, se
Saldanha avançasse do Sardão, e o ministerio teimasse em não caír. Os
meios não faltavam no Porto, mas já se sentia no Minho uma carestia
insupportavel: o milho regulava a 520 o alqueire. (_Ibid._ _Cartas do
consul_, 21 jan. 17 fever.) Saldanha, avançando até Azemeis, obrigara
Antas a recolher ao Porto: que ia haver? Um cerco? Naturalmente.

Resolveu-se, pois, repetir a historia anterior; e para abreviar os
episodios, começar desde logo pela expedição do Algarve confiada a
Sá--o Terceira de agora. A divisão, forte de mil homens, embarcou
(28 de março) indo tomar terra em Lagos, atravessando livremente o
Alemtejo, de correrias celebre, vindo entrar em Setubal onde se reuniu
ás forças do conde de Mello, inactivas desde fevereiro. Mas para cobrir
a capital, já o governo destacara Vinhaes para o sul, fortificando-se
nas collinas de Azeitão que, prolongando a serra d’Arrabida, dividem as
duas bacias do Tejo e do Sado. No Vizo, comoro das vertentes austraes,
ás portas de Setubal, feriu-se uma batalha (1 de maio) cujo vencedor
se duvidou quem fosse. Se a vantagem ficou por alguem, não foi pelo
governo; mas já a esse tempo os inglezes protegiam a rainha, como vamos
vêr, impedindo o general rebelde de proseguir. Desejava, pedia elle
outra cousa? Quereria entrar em Lisboa vencedor, para ter de se voltar,
nas suas ruas, contra os que commandava? para defender o throno, como
em 38? Não, decerto. A ponto de vencer, via-se perdido; e protestando,
exultava por achar os inglezes a vedar-lhe o passo, obrigando-o a
render-se.

No Porto succedia o mesmo ao conde das Antas. Felizmente os inglezes
tinham bloqueado a barra (27 de maio): estava chegado o momento de saír
da posição falsa em que se collocara. Nem a rainha nem o ministerio
cediam, e para os chefes a revolta não tinha mais valor do que uma
ameaça. Jogando com fogo democrata, miguelista, temiam a labareda que
tinham soprado. Quem viria apagal-a, sem os expôr ao labéo de traição
ou cobardia? Pois não chegava a tempo a intervenção, tão necessaria
a Lisboa como ao Porto, ao governo como á JUNTA? Abençoada esquadra
ingleza! providencial bloqueio do Douro!

Porque, se não fossem ambos, era forçoso vencer. No dia 20 tinham
chegado os vapores de Setubal para conduzir segunda expedição á ultima
campanha. Os quatro a cinco mil homens das excellentes tropas do conde
das Antas deviam desembarcar na Extremadura, cortando a Saldanha a
retirada de Lisboa, ao mesmo tempo que Povoas o acossaria do lado das
Beiras. (Azevedo, _Dois dias_, etc.) Esse plano de campanha parecia
feito a proposito para terminar tudo conforme convinha. Tres dias
havia que os inglezes bloqueavam a barra, e sabia-se isso muito bem
no Porto,--como se ignoraria?--quando a 30 o conde das Antas embarcou
a sua divisão e a sua pessoa. Ás seis da manhan do dia seguinte, os
vapores saíam a barra ... para entrar no seio salvador da esquadra
ingleza. Prisioneiros, protestando em boas e graves phrases, viam-se
salvos. Os inglezes foram deixal-os em S. Julião, na barra de Lisboa,
presos _pro-fórma_, já amnistiados por uma convenção.

Ao mesmo tempo uma divisão hespanhola transpunha a raia do Minho e
Traz-os-Montes, e Saldanha avançava de Oliveira de Azemeis sobre o
Porto. Que restava da revolta? A JUNTA ainda, em agonias.

       *       *       *       *       *

Mas nada sabemos da capital, n’esse primeiro e funebre semestre de 47.
Vimos o que a gente armada fez, mas ignoramos o que o gabinete fazia, e
que sorte a guerra dava á miseranda população de Lisboa.

Desde o principio do anno que as cadeias estavam cheias de setembristas
e miguelistas; desde então as emigrações ferviam. (_Livro azul_,
Southern a Palm. 10 de jan.) O governo communicára ás potencias a
decisão de bloquear o Douro, mas isso não passava de uma fórmula,
porque a marinha portugueza acabara de todo, e os poucos vapores que
havia tinham caído em poder dos rebeldes, senhores do mar. Mas o mais
triste, o mais grave, era o caso das notas do banco, infernal papelada
que, engordando os rebatedores, levava a miseria a toda a parte. Cada
moeda já tinha o desconto de mais de tres pintos; e apesar das ameaças
só recebia notas quem não podia evital-as. Papeis, inscripções, não
tinham compradores. As acções do banco tinham baixado de 385 a 300 mil
réis: só os homens da _Confiança_, a quem o decreto de 19 de novembro
salvara, viam subir as acções de 15 a 22, á custa do povo arruinado com
o sacrificio da emissão do banco.

O visconde de Algés, no Thesouro, achava-se perdido, porque de fóra
não vinha dinheiro, e em casa não o havia antes--quanto mais agora,
no calor da sedição. Se nem para Saldanha chegava! Em Madrid estava
embaixador o conde de Thomar e para elle se voltavam os olhos, se
dirigiam as supplicas e pedidos de conselhos. Não seria possivel
arranjar em Madrid um emprestimo? Em Lisboa preparar-se hia tudo:
custava pouco. Supprimiam-se as decimas das inscripções, externas,
internas; (Dec. de 29 jan. e 25 fever. revogando o de 21 de agosto)
e para pagar o coupon do 2.º semestre de 46, em divida, creavam-se
_bonds_ (600:000 lib.) garantidos pelo rendimento das alfandegas.
Quanto ás notas, revogavam-se as penas, e o Estado reconhecia-as como
suas: um verdadeiro papel-moeda. Não temesse o povo: iam-se _carimbar_
e em breve chegaria ouro bastante para as queimar todas! (_Decr._ 1 de
fever. art. do _Diario_)

Com effeito, o conde de Thomar em Madrid conseguira alguma cousa.
Os banqueiros propunham-se dar tres milhões esterlinos a 43 com a
commissão de dois e meio. Um ovo por um real. Mas ... davam no primeiro
anno só um milhão, o resto depois. Um milhão seja: tudo o que vier ...
Mas «queremos tres annos de juros adiantados».--O governo, desanimado,
caíu em si. Um pouco mais, e os banqueiros, cobrando adiantados os
juros, não dariam nada, ficando credores de muito. O que promettiam
emprestar vinha a saír a 25,5 por cento. (Southern a Palm. no _Livro
azul_, 31 jan.)

O governo não teve coragem para tanto: o ministro sumiu-se, deixando
o lugar a Tojal. (20 de fever.) E o rebate das notas a crescer, e
gemendo todos com fome, e a bordo do _Audaz_ cobertos de feridas os
infelizes prisioneiros de Torres, á espera do degredo! E uma rebeldia
surda a sussurrar por todos os cantos!.. No governo-civil o marquez
de Fronteira, com seu irmão D. Carlos Mascarenhas á frente da guarda
municipal, mantinham difficilmente uma ordem similhante á de Varsovia.
Lisboa parecia um acampamento; tudo estava armado em batalhões de
côres e feitios diversos: voluntarios, fusileiros, caçadores da
rainha, caçadores da CARTA. Havia exercicios constantes, e paradas,
e revistas, e o commandante em chefe, D. Fernando, que não nascera
para emprezas bellicosas, via-se forçado a arrastar a sua indolencia,
correndo os quarteis, vivendo n’um estado penoso de agitação por cousas
que, bem no fundo, lhe eram, ou antipathicas, ou indifferentes. E por
entre esta borborinhar de tropas mais ou menos grutescas, pullulavam
os turbulentos, os homens de má-nota, emprezarios de _bernardas_.
Aos empregados não se pagava desde outubro, em Lisboa que é uma
cidade-secretaria. (V. _Livro-azul_, Southern a Palm. 15 fever.) A
desordem, a excitação, a fome, traziam á flôr do charco social os
detritos humanos das cidades; e como nem na revolução, nem na reacção,
havia profundos motivos moraes, o caracter da crise, em vez de ser
tragico, era grutesco; e Lisboa que já fôra em 28 uma Jerusalem, era em
46 como Byzancio cercada por um turco--setembrista.

Vendo chegar Tojal, o commercio bateu palmas. (_Ibid._ 26 fever.) O
homem valia e trazia comsigo boticadas novas: «absurdo esperar dinheiro
de fóra, quando a exportação, sempre inferior á importação, era
agora, com a guerra, nulla; o ouro fugia para pagar o que compravamos
fóra; a guerra engulia o resto, e não lhe chegava; a desconfiança
aferrolhava as economias; havia juros em divida, e o Thesouro vazio, e
o curso-forçado das notas expulsava o ouro do mercado. Uma chimera o
emprestimo! Arranjassemo-nos com a prata de casa.» (V. _Diario_, art.
fever.) Mas que prata? se havia apenas cobre e falso! A prata eram
notas, notas infames com o rebate de metade! (2:250, abril) Moderar o
curso-forçado, fazendo entrar só por metade as notas nos pagamentos;
dar curso legal ás moedas americanas e hespanholas de ouro e prata;
elevar a 50 contos por mez a amortisação das notas; crear um emprestimo
_interno_ de 2:400 contos para abreviar a supressão das notas--eis ahi
o _recipe_ de Tojal. (V. _Dec._ 10 março) O doente vomitou-o, ou não o
quiz tomar: o medicamento _interno_ não valia mais do que o _externo_.
Farejaram-se os armarios e veiu de lá o Dulcamara com drogas antigas,
da velha alchymia: o emprestimo seria uma loteria, com premios de
_papel_, e bilhetes pagos a notas. (_Decr._ 9 de abril) A fazenda
receberia em notas tudo o que lhe deviam fóra de Lisboa: isto é, onde
o inimigo cobrava os debitos. (_Decr._ 6 de abril) Os titulos do
emprestimo _manso_ de 27 seriam convertidos em inscripções sob condição
de pagamento de um quarto nominal em notas. (_Decr._ 23 de abril) E por
fim os papeis andavam tão de rastos, tão rebatidos, que se reduziu a
proporção d’elles a um terço nos pagamentos. (_Decr._ 15 de junho)

Positiva fome lavrava em Lisboa no segundo trimestre do anno funebre
de 47. Para lhe accudir distribuiam-se diariamente 2:500 pães. (V.
as listas e contas no _Diario_) E o vasio dos estomagos, e exaltação
das cabeças, o desespero do governo ameaçado, batido por toda a
parte, fazem d’essa epocha um melodrama, lugubre nos soffrimentos do
povo, na morte dos soldados, entremeiado de fomes e cadaveres, de
intrigas e miserias, de sangue e lodo: farrapos de pobreza universal,
pobreza de genio e de caracter, pobreza de dinheiro e de força. Era
verdadeiramente uma lucta de espectros.

       *       *       *       *       *

Como sombras se tinham visto dissipar-se muitas forças do governo. A
columna que em Alcacer defendia Lisboa da patuléa do Alemtejo, fôra uma
noite aprisionada inteira. A tripulação do _Porto_, vapor mandado a
Vigo e a Vianna em serviço, prendeu em viagem os officiaes na camara e
levou o barco ao Porto, a entregar-se á JUNTA. (Wylde a Palm., 18, 27
fevereiro, no _Livro azul_) O mez de março declinava, approximava-se
o abril terrivel. Em Lisboa havia constantes rusgas para arregimentar
_voluntarios_, e Saldanha, immovel por impotente, avisava do seu
quartel general que resignaria a presidencia do conselho se não viessem
soldados de Hespanha, ou um accordo com o inimigo. O gabinete resolveu
então decididamente implorar o soccorro ao reino visinho, que ardia por
que lh’o pedissem, mordendo impaciente o freio posto pela Inglaterra.
(_Ibid._ Seymour a Palm. 14, 18 de março)

No principio de fevereiro a historia diplomatica da guerra chegára a
um momento decisivo, com o facto da alliança das forças miguelistas
ás da JUNTA, depois de Torres-Vedras. Costa Cabral, nosso ministro
em Madrid, conhecedor das resistencias da Inglaterra, declarara a
Bulwer Litton que se as forças miguelistas engrossassem, elle pediria
soccorros á Hespanha, invocando o tratado de 34 ou da quadrupla
alliança; (_Ibid._ 30 de janeiro) e o inglez, ao mesmo tempo que
protestava contra, escrevia-o para Londres contando os fundamentos das
insistencias do portuguez: que a alliança miguelista-setembrista era um
facto, um artificio o não se proclamar D. Miguel, positivo o _casus
fœderis_; que o irmão de Sá-da-Bandeira (Antonio Cabral) fôra a Londres
comprar munições, e Passos Manuel a Roma buscar D. Miguel (segundo
falsamente corria e convinha ao governo de Lisboa fazer crer). A
Hespanha terminava, decidida a intervir, não o fará comtudo sem accordo
comnosco. (_Ibid._ Bulwer a Palm 5 de fev.)

O leitor sabe que Palmerston enviára especialmente um legado militar,
o coronel Wylde, para obter a paz entre os belligerantes, para «servir
de medianeiro entre a JUNTA e o duque de Saldanha.» Restabelecer-se-hia
a constituição de 38, convocar-se-hiam côrtes, expulsar-se-hiam os
cabralistas do governo. (Palm. a Wilde, 5 de fev.) Não seria bem a
victoria da JUNTA, mas sim a do grupo _ordeiro_, vencido em 42. E
quando leu os fundamentos da nota do conde de Thomar a Bulwer, o inglez
pegou da penna e mandou dizer a Wylde que o tratado de 34 acabara,
que fôra especial e não permanente, que não só não havia motivo para
intervir, mas ainda quando houvesse, não se podia invocar um tratado
acabado. (Palm. a Bulwer, 11 de fev.)

Wylde nada conseguira da JUNTA, nem tambem do governo. Via-se
impossivel a transacção, e, impedida pela Inglaterra a intervenção
da Hespanha, qual seria a sorte de Portugal? Ficaria abandonado ao
resultado de uma revolta, de que os generaes temiam os soldados?
Venceria o governo? Venceria a JUNTA, e com ella passariam por sobre
as cabeças dos chefes, as columnas dos demagogos? e as legiões dos
miguelistas? Em março, como o leitor observou, parecia provavel a
victoria final da revolta. E em taes apuros, Saldanha, vendo que a
Inglaterra teimava em não deixar a Hespanha intervir, pediu licença ao
governo visinho para alistar tres mil homens. (_Livro azul_, Seymour a
Palm. 19-21 de março) A Hespanha recusa, «mas se isto durar annuirá».
(Bulwer a Palm. 24) Com effeito, o aperto era tão grande que o ministro
francez foi ás Necessidades offerecer a sua protecção á rainha.
(Seymour a Palm. 20)

Perante uma situação assim, Palmerston começou a hesitar. Com o
seu empenho de bater em Portugal o cabralismo que era o alliado do
doutrinarismo hespanhol, e ambos a copia do ministerio Guizot, ambos
a expressão da influencia franceza na Peninsula: com esse empenho,
não iria elle, acaso, servir a demagogia ou o absolutismo? Desde
fevereiro, a Hespanha e a França estavam de accordo em considerar
vigente o tratado de 34, (Bulwer a Palm. 23 de fevereiro, Madrid)
que elle Palmerston insistia em declarar abolido. Não seria um erro,
uma temeridade? Com effeito, a linguagem da Inglaterra muda. «Nem a
lettra, nem o espirito do tratado de 34 são applicaveis a Portugal
_agora_». Reconhece pois a existencia do tratado, e já chega a admittir
a hypothese da intervenção, mas insistindo pelas condições anteriores:
amnistia geral e plena, restabelecimento das leis constitucionaes,
ministerio nem cabralista nem setembrista (ministerio Rodrigo,
_ordeiro_) expulsão do Dietz--instituição portugueza, oh miseria! Assim
que o governo annuir, parta Wylde para o Porto a convencer a JUNTA.
(Palm. a Wylde, 5 de abril)

Ora o governo não annuiu, e a crise precipitava-se. Tojal
desesperava-se, porque os seus amigos Barings de Londres recusavam as
trezentas mil libras com que se havia de pagar o dividendo externo:
os temerarios não sabiam que a victoria da revolução seria um traço,
_riscando_ a divida extrangeira! Saldanha, irritado, oppunha-se á
amnistia. (Seymour a Palm. 26 de março) Havia em Lisboa uma grande
miseria, uma carestia excessiva de tudo, um doloroso mal-estar,
perseguições e recrutamentos, os batalhões sempre em armas, e as notas
fluctuando como os trapos de neve caíndo, cobrindo tudo, nos dias
mornos que precedem o desencadear da tormenta.

       *       *       *       *       *

A procella descia pelo Alemtejo com a divisão de Sá-da-Bandeira que
a 9 de abril se juntava em Setubal ás tropas do conde do Mello, do
Galamba, a todas as guerrilhas do sul, para virem, reunidos, conquistar
Lisboa. Em Setubal, o Logar-tenente da JUNTA (assim se intitulava
Sá-da-Bandeira) formava uma especie de governo: Braamcamp era o
secretario civil, Mendes Leite tinha a Marinha, José Estevão dizia-se
Quartel-mestre general. (_Elog. hist. de Braamcamp_, do a.) Em Lisboa
os ministros, attonitos, correram a Seymour implorando soccorro; e elle
de accordo com o ministro hespanhol que tinha no Tejo tres centenas
de homens, prometteu defender a rainha n’esse dia 11, aprazado para
a chegada da patuléa a Almada. (Seymour a Palm. 9 de abril) A força
das cousas transtornava os planos da Inglaterra; o setembrismo vencia
mais uma vez a _ordem_ e as suas combinações; e as potencias viam-se
obrigadas a fazer uma nova belemzada.

E Sá-da-Bandeira porque não chegava no dia 11 aprazado? Porque elle, o
infeliz homem de bem, achava-se outra vez na triste situação de 37, á
frente de uma revolução para a moderar. Porque via perdido todo o seu
improbo trabalho de 38. Porque media as consequencias da sua entrada
em Lisboa. Porque não queria, elle o monarchico leal, o sincero amigo
do povo, ser o instrumento da anarchia destruidora do throno, o orgão
da plebe acclamada. Porque, finalmente, sabia os planos combinados
para lhe facultar a entrada na capital,--planos tristes, deploraveis.
Haveria tumultos de noite, lançar-se-hia fogo a diversas casas e
arrombar-se-hiam as cadeias, soltando-se os presos. As prevenções
estavam, porém, tomadas: quando o castello desse tres tiros, as tropas
inglezas e hespanholas desembarcariam. Não tiveram de o fazer, porque
os sediciosos temeram. Apenas no Terreiro-do-Paço brigaram soldados com
officiaes, indo sessenta presos para o Bugio e um cadaver para a cova.

Almada estava já fortificada e D. Fernando, generalissimo, arrastava
melancolicamente a sua espada de Lisboa para a Outra-banda, aborrecido,
descontente do seu emprego de rei em uma nação tão pouco ajuizada, tão
mesquinha e miseravel. Dias depois houve um tumulto em Cintra, mas
já Vinhaes ao sul do rio guardava a capital; e se não fosse batido,
o perigo immediato estaria conjurado, a não ser o perigo constante
do espirito sedicioso de Lisboa. Contra a cidade, contra o caso da
victoria de Sá-da-Bandeira, para o salvar a elle e á rainha, havia
porém sempre o ultimo recurso: as forças anglo-hespanholas fundeadas no
Tejo. (Seymour a Palm. 14-16 de abril)

Mas, no acume da crise, abandonava-se o plano dos soccorros hespanhoes?
socegava o conde de Thomar em Madrid, esquecendo os delegados que
tinha em Lisboa? Não. Insistia cada vez mais, patenteava o horror das
consequencias, e obtinha por fim a ordem de marcha de um exercito
de doze mil homens para a fronteira, prompto a transpol-a para
embargar a marcha da patuléa sobre Lisboa. E que fazia o delegado
de Palmerston? Desde que a Inglaterra reconhecera a existencia do
tratado de 34 e o principio da intervenção--embora não reconhecesse a
opportunidade--a força das cousas obrigava-a a seguir a Hespanha, só
lhe consentia moderar-lhe os impetos. Foi isso o que fez. Bulwer em
Madrid conseguiu que a Hespanha enviasse um emissario a Sá-da-Bandeira
com um _ultimatum_, e que se esperasse o resultado d’essa tentativa
para proceder ou não á intervenção armada. Com o marquez de Hespanha,
enviado, veiu da embaixada ingleza Fitch por parte do seu governo
com instrucções de que «folgaria que a sua linguagem fosse mais para
aconselhar do que para ameaçar: porém até a ameaça póde ser empregada
com delicadeza». (Bulwer a Palm. 19)

Entretanto, o embaixador inglez de Lisboa procurava fazer acceitar as
bases de conciliação propostas por Palmerston, mas batia em vão na
teima do governo. (Seymour a Palm. 16) Corajosamente, o cabralismo
debatia-se contra a guerra civil, contra a protecção falsa dos
inglezes, promptos a defender a rainha, sob condição de condemnar o
systema e os seus defensores. Restava porém a estes a Hespanha--e
a rainha em pessoa que não queria ser defendida, sendo ao mesmo
tempo humilhada; restava-lhes a capacidade do chefe, a cohesão dos
partidarios, a timidez de inimigos temerosos de vencer, e o panico de
uma perspectiva de restauração miguelista ou de desordens setembristas.

       *       *       *       *       *

No dia 29 Lisboa presenceou um ensaio d’essas scenas previstas: era o
plano forjado para 11 e que fôra adiado. Ao caír da tarde, pelas cinco
e meia abriram-se as portas do Limoeiro e os presos saíram em columna,
com populares, direitos ao castello, para o tomarem. Eram seis centos,
e vendo-se recebidos a tiro, fugíram. Repellidos do castello, bandidos,
vadios e politicos, espalharam-se em grupos por toda a cidade. Houve
durante uma hora combates nas ruas. As casas fechavam-se, os habitantes
recolhiam-se; fortes patrulhas circulavam e D. Fernando, arrastando a
sua espada, era apupado. A bordo dos seus navios, o almirante Parker
tinha já as guarnições formadas, promptas a desembarcar. Viera a noite,
a fusilaria continuava, não já em combates, mas na caça dos presos
fugidos, dos quaes trezentos (sobre um total de 1:014) conseguiram
evadir-se para os arrabaldes, sumindo-se. E d’este bello ensaio de
revolução _democratica_ ficavam mortas oitenta pessoas, diz para
Londres o ministro inglez; oito ou dez, accusa o _Espectro_.

Qual acerta? Pouco importa. O grave é que Sá-da-Bandeira de certo não
podia querer vencer, para ser vencido pelos bandidos ou por quem os
soltava. Por isso, embora jámais o confessasse, é mais do que seguro
acreditar que a chegada dos emissarios da Hespanha e da Inglaterra lhe
tirou um grande peso de cima do coração. Perdeu 500 homens na acção do
alto do Vizo, o general setembrista; mas o _veto_ que os emissarios
pozeram á sua marcha valia para elle muito mais. Já entre Fitch, o
marquez de Hespanha e o governo de Lisboa (que mudara de pessoal, sem
mudar de politica) se assignara o protocollo de 28 de abril, estatuindo
a amnistia como condição de paz e impondo um armisticio.

A campainha diplomatica do conde de Thomar em Madrid conseguia uma
victoria, porque, embora cedesse a amnistia, ganhava o essencial, que
era a CARTA, obrigando a Inglaterra a desistir das suas pretensões
_ordeiras_. O doutrinarismo vencia, depois de intricadas complicações;
e o partido de 38, com o seu chefe Rodrigo, via perdidas as esperanças
de herdar o governo, batendo com a Inglaterra cartistas e setembristas,
Lisboa e Porto, a corôa e a JUNTA.

Esta, porém, onde os elementos democraticos dominavam, recusou-se
a aceitar as condições do convenio; disposta a ceder, sim, mas sem
mentir ás patentes que distribuira a miguelistas e patuléas, ás medidas
fiscaes que tomara. O seu exercito estava de pé, não fôra batido: mas
quereria o outro general, Antas, leval-o á guerra? Era isso o que as
cabeças exaltadas reclamavam--uma loucura. Ainda antes de ter chegado a
acta do protocollo finalmente assignado em Londres (21 de maio) para a
intervenção combinada das potencias signatarias do tratado de 34, já em
Lisboa Seymour e Ayllon, de mãos dadas, tinham resolvido mandar para o
Porto navios, afim de impedir um derramamento inutil de sangue.

Porém os navios anglo-hespanhoes não impediam o general do Porto
de levar a expedição por terra, se acaso elle tambem não desejasse
sobretudo vêr terminada a arriscada empreza em que se mettera. Por
isso embarcou para ser aprisionado, conforme contámos. De que valiam,
depois, as reclamações e os protestos, senão para mascarar a quéda
com uma certa dignidade apparente, e manter no animo dos ingenuos a
idéa de que se obedecera á fatalidade da força? senão para conservar
de pé a accusação de extrangeira, contra uma côrte que, vencida em
Belem, realisava agora o seu plano, _escravisando o povo_ com as forças
inglezas e hespanholas? Taes palavras serviriam para as campanhas
ulteriores da politica, mas não têem valor para a historia. Caíndo, a
JUNTA sabia muito bem o motivo porque caía, e não se lhe dava de acabar
assim. Que estimaria mais as primeiras condições inglezas, é fóra de
duvida; mas que preferisse á intervenção a guerra e a propria victoria,
é o que não é licito acreditar perante o procedimento dos seus chefes.
Os inglezes occuparam a Foz, os hespanhoes o Porto, e a 24 de julho
estava tudo acabado pela convenção de Gramido.

Da JUNTA dissolvida nada restava. Saldanha e os cabralistas continuavam
a governar com a CARTA. O Porto vira nos dois irmãos Passos as duas
faces da physionomia espontanea e popular da revolução: em um a
poesia minhota, em outro o genio burguez antigo. O poeta voltava para
casa chorando: chorando assistira á entrada de Concha. O burguez,
pomposamente, declarava ser necessario morrer! E morreu, veiu a acabar,
mas demente, dezeseis annos mais tarde. O leitor não carece de que se
lhe explique, nem a rasão das lagrimas, nem a causa da demencia. Viu
como as folhas caíram (1842): depois d’esse outomno chegou o inverno
frio e morto ...


NOTAS DE RODAPÉ:

[32] Duas palavras de despedida a esse homem que desappareceu da scena
(13 de setembro de 1882) em que por trinta annos representou o papel
de guardião do partido regenerador. Curado tambem dos romantismos
democraticos, resurgiu em Sampaio a sua primitiva educação fradesca.
Era na figura e na bonacheirice um velho portuguez: tinha o ventre
nacional e no estylo dos seus artigos lardeados de latim um tom de
sermão. Na mocidade chegára a prégal-os (T. de Vasconcellos, _O Sampaio
da Revolução_), e as reminiscencias não se apagam assim! Varrida a
illusão revolucionaria, ficou-lhe a _vis_ sarcasticamente plebéa com
que atacava os adversarios á direita e á esquerda, sem consciencia
nem fé, só por politica, nas questiunculas pessoaes dos partidos. Foi
o José-Agostinho do liberalismo, com menos talento do que o frade.
Via-se-lhe no estylo a tonsura e ferula do antigo mestre de latim. Uma
das muitas arbitrariedades da tyrannia miguelista lançou-o para o lado
dos liberaes, abrindo um parenthesis de vinte e tres annos (1828-51)
no desenvolvimento logico da sua personalidade. Tornou ao que fôra,
vestindo a farda depois de ter deixado a sobrepelliz. Dizem que acabou
dizendo assim: «Salvemos a monarchia ... Quero ver as _provas_». Acabou
como devia, pensando na imprensa que o fizera gente.




IV

OS IMPENITENTES


1.--O CADAVER DA NAÇÃO

Voltara a paz, e para que o leitor não proteste contra as côres
funebres com que pintámos a guerra, seja-nos licito transcrever aqui a
opinião contemporanea de um dos nossos mais levantados espiritos:

 Hoje (1849) nos achamos entre um passado impassivel (depois das leis
 de Mousinho) entre um futuro tremendo porque é obscuro, insondavel
 e de nenhum modo preparado, e com um presente tão absurdo, tão
 desconnexo, tão incongruente, tão chimerico, tão ridiculo emfim,
 que se a perspectiva não viesse, como vem, tão cheia de lagrimas,
 seria para rir e tripudiar de gosto, ver como vivemos, como nos a
 tributamos, como nos administramos, como somos emfim um povo, uma
 nação, um reino! (Garrett, _Mousinho da Silveira_)

Voltara a paz, dissemos. Era chegado o momento de encarar de frente
a situação do enfermo, que parecia mais incuravel depois do ultimo
accesso. Extenuado, jazia exangue, não diremos nas vesperas da morte,
porque o seu existir já não se podia chamar vida. As nações, como
os individuos, tambem pódem arrastar-se vegetando, sem propriamente
viverem. A guerra acabara, não ha duvida, mas faltava ainda liquidar a
crise, e como a paz não significava abundancia, mas sim a continuação
da miseria, continuava a mesma indecisão das medidas, ora dirigidas
a manter o credito das notas, ora a sacrifical-as ás necessidades
do Thesouro. O ministerio nomeado depois da paz reage contra as
resoluções tomadas n’este ultimo sentido, e restabelece a proporção de
metade apenas em dinheiro nos pagamentos do Estudo. A causa do agio,
diz, fôra a guerra e a excessiva procura de moeda metallica para o
exercito; mudaram as circumstancias e o augmento na relação das notas
nos pagamentos concorrerá para diminuir o rebate. (Decr. de 11 de
setembro) Mas o problema era mais complicado, as causas mais profundas,
e tres mezes bastam para que esta doce illusão se dissipe. A loteria
das suas esperanças ficava em papel; e nem por se ter acabado a guerra
podia apparecer dinheiro, porque o não havia em casa, nem de fóra
ninguem o daria, quando os juros da divida estavam por pagar. Tres
mezes bastam, dizemos, para convencer de que o unico meio de resolver
a questão é supprimil-a, por meio de banca-rota declarada. Tire-se ás
notas o caracter de papel-moeda; negue-lhes, por uma vez, o Estado a
sua garantia; declare que as considera um papel commercial, cotavel,
e já não fará mais do que reconhecer o facto nas relações privadas,
augmentando as receitas publicas insupportavelmente amesquinhadas
pelo rebate d’aquella parte, o terço ou metade, realisada em notas.
Os decretos de 9 e 14 de dezembro fizeram com effeito isto. Largas
considerações, meritorias por serem sensatas, francas e verdadeiras,
justificavam a medida que abolia o curso-forçado, retirava a garantia
do Thesouro e o caracter de moeda a umas notas que o banco já não podia
ser compellido a converter á vista, o que seria obrigal-o a fallir,
por isso que a sua amortisação fôra anteriormente pactuada por meios e
fórmas varias. A contar de 20 de dezembro as notas poderiam entrar por
metade nos pagamentos ao Thesouro, mas não pelo valor nominal, só pelo
valor real, segundo as cotações da bolsa.

Esta banca-rota positiva, mas opportuna e inevitavel vinha consummar
a ruina da circulação fiduciaria portugueza, augmentando os embaraços
de uma nação desprovida de capitaes circulantes e por isso mais
necessitada de inventar um instrumento artificial de circulação que
pudesse substituir a moeda escassa. Mas, para que os artificios
sirvam, é sobretudo mistér juizo, prudencia, e paz, cousas que nós
desconheciamos.

       *       *       *       *       *

A revolução e a guerra, deitando por terra o castello de cartas da
agiotagem cabralista, tinham arruinado comsigo, na queda, a circulação
fiduciaria portugueza. Era mais um passo andado no caminho de uma
decadencia economica, declarada desde o principio do seculo, e que
até agora o liberalismo não conseguira corrigir. As estatisticas do
commercio (V. _Mappas geraes_, 1848) demonstram-no de um modo eloquente:

                   _Exportação_  _Importação_   _Somma_
1801 (contos de reis) 25:104        19:337       44:441
1816       »          16:178        17:870       34:048
1830       »          10:468        12:955       23:423
1844       »           6:580         9:826       16:406
1848       »           8:543        10:806       19:349

Depois da primeira data, vem a invasão franceza e a franquia do
Brazil ao commercio extrangeiro; depois da segunda, a separação e
independencia da nossa colonia; depois da terceira, as revoluções
liberaes e a anarchia constitucional: eis as causas successivas de
empobrecimento. Agora começava a soprar uma aragem, prenuncio de
melhores tempos: viria uma regeneração? Ainda era cedo para o crer,
tanto mais que a França, infelizmente mestra dos nossos homens, ia
lançar-se n’uma aventura democratica, fazer a sua revolução-de-setembro
(em fevereiro), proclamando a republica. Não faltava entre nós quem
suspirasse por ensaiar esta ultima definição verdadeira, absoluta do
liberalismo, depois de desacreditadas as anteriores e successivas.

Não crescia, caía todos os dias o commercio externo, metro seguro da
prosperidade de um povo culto. Mas augmentava sempre, assustadoramente,
a divida contrahida para ensaiar, com intrigas e revoltas, essas varias
fórmas da doutrina. E a divida crescia, porque os ensaios, arruinando
internamente a nação, não consentiam que os seus redditos augmentassem.
O imposto não dava:

                             _Decima_    _Decima_    _Directo_
                 Fabricas   industrial   predial     em geral
1838-9 (mil reis)  4733      210:251     976:274     1.347:547
1841-2     »       3803      234:231     937:216     1.416:338
1846-7     »       3556      214:669     945:853     1.378:990
1849       »       3816      214:409     945:391     1.377:536
1850       »       3771      225:146     958:709     1.411:437

Já appareciam as observações retrospectivas e confissões sinceras
dos males accumulados. Eram reconhecidamente muitos: os erros
administrativos e financeiros, as eleições corruptoras ou barbaras, as
sociedades secretas, a licença da imprensa, os excessos da tribuna, e
sobre tudo a mendicidade dos empregos: «as guerras civis de Portugal
são evidentemente as guerras dos empregos publicos». (_Autopsia dos
partidos politicos_, op. anon.) São, nem podiam ser outra cousa, porque
o communismo burocratico substituira o monastico, no regime de uma
nação cachetica:

 N’esta babel em que vivemos, tudo passa inapercebido, no meio da
 confusão de todo o pensar e sentir. Esta é a terra classica da
 ingratidão regada pelo Lethes do Desmazelo e do Não-se-me-dá, da mais
 estupenda caducidade em que póde caír um povo. (Garrett, _Mousinho_)

Não-se-me-dá é a expressão natural dos pobres que nada teem a perder,
e por isso a ninguem se lhe dava que as cousas caminhassem para uma
banca-rota, já desde 38 considerada inevitavel, e util pelos que
propunham o _ponto geral_. Não se descobria, com effeito, o modo de
solver encargos progressivamente crescentes, perante recursos, ou
paralisados ou decadentes. O governo confessava o deploravel estado
das cousas, (V. o relatorio notavel do min. Falcão; março de 48) e os
observadores comparavam os numeros e apertavam a cabeça com as mãos,
vendo a perdição irremediavel. (V. _Autopsia_, etc.)

Em junho de 33 a divida era de             16:868 contos
e pelo orçamento de 45-7, accrescentada
  pela emissão recente de inscripções, de  87:579   »
Augmentara em 13 annos, a razão de
  quasi 5:500 por anno                     70:711   »

Quintuplicara, e para que? para ensaiar systemas, matar gente com
revoltas, e pauperisar cada vez mais o reino. E além d’essa divida,
havia a mais a fluctuante, em mais de dez mil contos que dariam o
dôbro, expressos em titulos _fundados_. E não se contava a divida
_mansa_; e os bens nacionaes vendidos tinham ainda assim produzido
cerca de vinte mil contos, e ás classes activas devia-se mais de um
anno, ás inactivas quasi dois, apesar das decimas, das capitalisações e
dos pontos anteriores successivos. (_Autopsia_, etc.)

       *       *       *       *       *

Como se havia de existir, com uma fome assim? Londres renegara-nos. Os
tempos dourados de Mendizabal-Carvalho não tornavam. O paço dos judeus
inglezes, o Stock-exchange, dera-nos com as portas na cara, não nos
julgando crédores da honra de sermos apresentados e cotados. Valiamos
nada.

Seria interessante saber se no meio da penuria, da anarchia e da
guerra, a população crescia. Não espantaria que crescesse, pois a
indigencia é prolifica, pois a legislação reduzira o numero dos
celibatarios, pois as guerras eram mais vergonhosas do que propriamente
mortiferas. Mas os subsidios faltam, e os poucos existentes merecem
pequeno credito. (V. Luis Mousinho, na ref. admin. 1836; C. Adriano da
Costa, _Rev. de Recens._ 1838; _Relat._ do minist. do reino, 1849 e 50)

               1836    1838     1849     1850
             (fogos) (habit.) (habit.) (habit.)
Minho          204     803      850      856
Traz-os-Montes  76     297      308      309
Beira-Alta     208}   1067     1139     1131
Beira-baixa     24}
Estremadura    177     668      748      748
Alemtejo        70     264      290      285
Algarve         30     125      139      142
              ----    ----     ----     ----
Milhares       789    3224     3474     3471
              ----    ----     ----     ----

A dar authoridade a estes numeros, conclue-se que a população crescera
duzentos mil habitantes em quatorze annos, ou a razão de 6,5 por mil ao
anno. A comparação dos recenseamentos de 1826 (No _Almanach de Lisboa_)
e de 1838 apresenta um progresso quasi egual, (3:013--3:224, augm. 210)
mas a estatistica d’esses dois annos contradiria o resultado observado
acima no periodo posterior ao segundo, (V. _Quadro_, no _Diario_, 21 de
abril de 40)

        _Nascimentos_   _Obitos_    _Casamentos_
1826      102:037        66:410        21:433
1838       99:097        67:541        23:598

porque, ao passo que em 26 ha uma sobra de (102-66) 36, em 38 essa
sobra é de (99-67) 32 apenas: a mortalidade seria no primeiro caso de
menos de 66 p. 100 da natalidade e no segundo de quasi 67.

Mas seria perdermos o tempo architectar hypotheses sobre alicerces tão
falliveis e grosseiros. Chama-nos a conclusão d’esse balanço economico
do paiz para um calculo interessante do custo da sua ultima revolução.
(V. _Diario_ de 8 de junho de 47)


_Perdas de credito_

Fundo de 5 p. 100: 19:361 c. de 74 a 50.   contos 4:646
  »      4     »  13:335    »   60 a 40.      »   2:671
Acções do Banco, 10:000 de 820 a 230:000.     »   5:400
Depositos, um terço de 700 c.                 »     233
Acções da _Confiança_                         »   3:248
Promissorias idem, reembolso em notas.        »     412
Acções da _União_, de 112 a 55.               »     570
40 p. c. do valor das notas                   »   1:600
Depreciação do credito externo                »     ?   18:780
                                                 ------


_Perdas do thesouro_

Despezas do exercito e marinha         contos 1:500
Descontos de notas                        »     700
Tres quartos da receita de nove mezes     »   7:500    9:700
                                              -----


_Perdas geraes_

Roubos, contribuições forçadas, etc.       »    900
23 a 30 mil braços sem trabalho productivo:
  9 mezes e 20 dias a 200 rs.                 1:620
Incendios, ruinas, etc.                    »     ?
Capital humano: mortos e feridos           »     ?     2:520
                                               -----   -----

              Total determinado            »          31:000
                                                      ------

As verbas indeterminadas calcule-as quem puder, e achará que a
revolução e a guerra deram uma ultima sangria não inferior a 50
mil contos ao corpo já quasi exangue da nação. Que admira pois a
cachexia universal? «Recordei-me com amargura e desconsolação dos
tremendos sacrificios a que foi condemnada esta geração, Deus sabe
para quê,--Deus sabe se para expiar as faltas dos nossos passados, se
para comprar a felicidade dos nossos vindouros.» (Garrett, _Viagens_)
Assim, poeticamente, se exprimia Garrett, memorando casos transactos;
e o que succedia depois não authorisava a crer que se tivesse comprado
então a felicidade dos vindouros. Expiar-se-hiam as faltas passadas?
Expiavam-se, expiavam-se de certo as consequencias de uma deploravel
educação historica; mas tambem se soffria o resultado natural de
uma illusão ephemera creada por uma philosophia erronea. Como nós,
a Hespanha saía das mãos do illuminismo jesuita para caír nas mãos
do espiritualismo liberal, e a historia da Hespanha era o mesmo que
a nossa. Mas a França, que toda a Europa seguia, sem ter tido essa
educação mortifera, soffria como nós as consequencias do romantismo
politico, do doutrinarismo individualista, e da anarchia positiva: do
governo immoral, além de tyranno, da burguezia rica, imperio formado
espontaneamente sobre as ruinas do velho Estado monarchico.


2.--O CONDE DE THOMAR

O setembrismo morrera de vez depois de terem desempenhado o seu triste
papel os chefes timidos que por suas mãos tinham abafado a revolução.
Mas teria a historia dos ultimos dois annos convertido os cabralistas,
cuja tyrannia brutal, cuja avidez deshonesta, alliadas á energia no
mando e á audacia no pensamento, provocaram o desespero e a revolta do
povo? Viu-se que não. Consideraram-se vencedores; e se o extrangeiro
lhes não permittiu vingarem-se, e se o desmoronamento da machina agiota
não consentia voltar-se aos doirados tempos, os cabralistas seguiam,
mais modestos, mais moderados, governando o reino como cousa sua.

Como rasto de um terramoto, a segunda metade de 47, depois de Gramido e
da victoria do governo, agitada com o borborinho das eleições proximas,
arrastou-se com um cortejo de vinganças e desordens. A soldadesca
desenfreadamente espancava nas cidades e especialmente no Porto--agora
tão odiado como antes o fôra no tempo de D. Miguel. Artilheria 3 era
apontada como eximia em arruaças cabralistas. Os vidros das casas
patuléas, do José Passos e d’outros, voavam em estilhas com pedradas.
O _Nacional_, o _Ecco popular_, orgãos dos vencidos, eram colhidos
das mãos dos distribuidores e rasgados aos centos. Por todo o reino
havia roubos, espancamentos, assassinatos. Só em Evora, nos tres mezes
depois de Gramido, houvera doze attentados em publico pela soldadesca.
(_Rev. de Setembro_, 8 de set. 47) O _Nacional_, cuja typographia
fôra assaltada, e a commissão opposicionista para as eleições, pediam
protecção ás potencias alliadas, reclamando a amnistia promettida.
Era um reflexo pallido do que succedera em 34 ao miguelismo, tambem
amnistiado depois de Evora-Monte.

As eleições de 48 trouxeram o conde de Thomar á camara. Chegava
triumphante, depois de um desterro, já transformado em uma embaixada,
d’onde guiara o seu lugar-tenente Saldanha, d’onde urdira a trama da
intervenção hespanhola que afinal arrastara a Inglaterra, congregando
os elementos da victoria. Os vencidos, vendo-o regressar ao seu posto,
á camara, primeiro degrau de um segundo throno, foram-se ás armas,
pegaram das munições, prepararam-se desde logo para uma nova campanha.
Costa-Cabral, o conde de Thomar, era mais do que um homem: era um
systema e um phantasma. No odio com que o recebiam mostravam-lhe quanto
elle valia, pelo medo que lhe tinham.

A cadeira de deputado foi, com effeito, a breve transição da embaixada
para o governo, onde substituiu Saldanha. (18 de junho de 49) Essa
restauração teria tido lugar muito antes, se a guerra não tivesse
respondido ao golpe-d’Estado de 6 de outubro, no qual Saldanha era
apenas a força bruta do exercito destinada a preparar a volta do
estadista banido em maio.

       *       *       *       *       *

Eis, portanto, de novo as cousas no estado em que a primavera de 46 as
achára; eis perdido o tempo, e o dinheiro, e as vidas, e dois annos
de revolução e guerra. Congregam-se outra vez as guerrilhas? agita-se
de novo o povo? Não. A Maria-da-Fonte morreu; Macdonell morreu; os
camponezes voltaram para suas casas batidos por uma saraivada de
desesperanças, decididos a não querer saber mais do governo; os
miguelistas resolutamente se fecharam nas suas covas. Nenhum espectro
surgia ...

Apenas a imprensa desvairada dos politicos batia sem piedade o homem
a quem se costumara a cobrir de lama. E a velha calumnia da lenda do
castello de Thomar levantava a cabeça, não poupando a reputação pessoal
da rainha a quem, confundindo a politica e a modestia, equivocamente
chamava tolerada. Accusavam de seu amante o ministro, e elle, o homem
forte, commetteu a maior das fraquezas, mandando processar em Londres
o _Morning Post_ que repetiu as infamias das folhas de Lisboa. É que
tambem caía, tambem descia, o antigo tribuno dos _Camillos_, o cansado
tyranno de Lisboa.

Só não cansava a imprensa, no seu desalmado ataque. A _Nação_, na
capital, imprimia um requerimento á rainha: «Senhora! o vosso ministro
é accusado de receber um caleche e dar por elle uma commenda. Senhora!
o vosso ministro pedia-vos uma commenda para pagar os caleches com que
o peitavam». E o _Nacional_, no Porto, publicava uma scena dramatica,
entre burlesca e tragica, amorosa e torpe, em que o côro exclamava--ó
ladrão! larga o caleche! (ass. C. Castello-Branco, 19 de dezembro,
1849) O _Supplemento burlesco_, em lithographias toscas e caricaturas
grosseiras insultava diariamente os Cabraes e a sua gente, mostrando
que o antigo genio soez da satyra portugueza não se extinguira. Aqui
vinha o _Triumpho do Chibo_: um bode (o conde de Thomar) com um
sacco aos hombros e o letreiro _roubo_; o chibo sobre um andor que é
um cofre, o Thesouro, levado por Saldanha e por José Cabral, o dos
conegos, de vestes talares. (n. 39, dez. 23 de 47) Além é o _Chibo
d’Algodres_, um grande bode com a face do conde de Thomar, de pé, tendo
uma vara ao hombro e pendentes, á laia de sacco, os palacios famosos:
Thomar, a Estrella; o rabo do bicho está enlaçado com folhas tendo
escriptos os nomes das companhias do tempo. (n. 28 nov. 15) N’outro
apparece o famoso padre Marcos, o _Arcebispo_ do _Cartaxo, Porto e
Chamusca_: é uma botija, tendo na bocca a cabeça do padre mitrada, e
nas azas ou mãos, o baculo de um lado, o copo do outro. (n. 32 nov.
29) O _José dos Conegos_ tambem é chibo com o trajo talar arregaçado,
pistolas ao cinto, na mão a _Arte de furtar_. (n. 42 jan. 3 de 48)
Veem tambem os empregados publicos, aranhas, esqueletos, mirrados e
seccos, e no centro da folha o conde de Thomar com um ventre inchado,
monstruoso «cheio como um ovo». (n. 29 nov. 18 de 47) Não falta o
Saldanha na _Arvore das caras_, em que os ramos, os rebentos, os
tortulhos do chão, tudo são _caras_ diversas do versatil, regadas
pelo jardineiro de Thomar com dinheiro em vez de agua. (n.º 41 dez.
30) E assim por diante, os pasquins pintados coadjuvavam as diatribes
escriptas. Veiu a _lei-das-rolhas_, e Cazal Ribeiro, bem moço ainda,
mas ensopado no virus politico, cheio de talento e enthusiasmo, homem
de uma geração nova que mal fazia em se envolver nas questões da
antiga, declamava n’um estylo obeso:

 Conde de Thomar, sois um concussionario porque entrastes para o
 poder pobre e tendes adquirido uma fortuna immensa por meios torpes
 e vergonhosos. Conde de Thomar, sois um traidor, porque vendestes
 ao paço a causa do povo em 1840; porque vos revoltastes contra a
 constituição que servieis em 1842; porque arrastaes agora o throno e a
 nação a um precipicio certo e talvez á invasão extrangeira. Conde de
 Thomar, sois um despota ignobil porque calcaes a decencia, as leis, a
 constituição, e governaes só pela bitola do vosso capricho. Conde de
 Thomar, sois um imbecil, porque a vossa habilidade cifra-se na intriga
 e o vosso poder depende só do favoritismo. Conde de Thomar, sois um
 miseravel, porque vos servís, como meio politico, da honra de uma
 senhora, de uma rainha: porque a sacrificaes impudentemente aos vossos
 nefandos fins. (Cazal Ribeiro, A _Imprensa e o conde de Thomar_, 1850.)

E a decadencia dos caracteres era--e continuou a ser--tal e tanta,
que os inimigos trocavam entre si as maximas injurias, sem logo se
apunhalarem, ou se baterem a tiro, a tres passos. Não! era _politica_.
Dias depois sorriam lado a lado, sentados juntos na mesma camara. Era
_politica_! Não se está sentindo a necessidade de uma _regeneração_?
Não se percebe que o momento da victoria final da rapoza se approxima?
De gritar estão fartos, de nodoas todos sujos, de gritar todos surdos:
abracemo-nos todos! Vinte annos escassos de uma historia que o conde
de Thomar, como um dormente, protrahia de mais, levavam a esse abraço
fatidico.

De um e de outro lado já se encontram nomes novos: Cazal e Latino
na opposição; Corvo, pelo governo, mostrando aos adversarios a
inconsequencia de atacar o gabinete por se apoiar no exercito,
quando tinham por chefe um general, (Antas) patenteando o vasio dos
seus desejos, o indeterminado dos seus programmas. (Corvo, _Fallou
a opposição!_ op.) E dos velhos jacobinos, dispersos, aborrecidos,
desilludidos, apenas um restava para condemnar não só o governo, como
o soberano; não só a rainha, como a dynastia inteira dos Braganças:

 De quantas dynastias senhoream hoje a Europa, é a de Bragança, que
 nos governa, a mais ominosa de todas, como quem teve principio em
 crimes e traições abominaveis. (D. Affonso matara o conde D. Pedro em
 Alfarrobeira; e o neto fôra degollado por D. João II em Evora) D’essa
 familia não se póde contar nenhum rei que fosse patriota; e se não
 fossem os extrangeiros (em 47) ter-se-hia dado o espectaculo novo
 de um rei expulso pelo povo portuguez.--Por Deus, senhora D. Maria
 II! Veja V. M. o paradeiro que teve em palacio, á vista da rainha D.
 Leonor Telles, o conde Andeiro! (J. B. Rocha, _Rev. de Portugal_, 52)

O conde Andeiro ria sarcasticamente. Chamavam-lhe estafador,
concussionario, ladrão publico; e elle mordia-se de colera, se é que
o habito lhe não dera já impassibilidade. Sabia demasiado o modo de
não irritar o povo: deixar-se de innovações perigosas, deixar seguir
o barco da conservação na maré da banca-rota. Seguro o exercito,
conhecido o modo de _fazer_ as eleições, legalisado o systema, que
lhe importava o ladrar dos inimigos? Mas é que esses ataques passavam
por sobre elle, iam direitos ao soberano: «Protege V. M. os homens
sabedores? Favorece os artistas? Acode á pobreza desvalida?--Nada
d’isso: só deu a Costa-Cabral o Alfeite.» (_Ibid._) E os periodistas
o follicularios já não se pejavam de propagar, clara, abertamente, a
urgencia da abdicação da rainha.

Tão longe não iam os pares na sua camara, mas nenhuma voz era mais
cruelmente desapiedada do que a voz sibillante do terrivel Lavradio.
O ministro rira até então, mas quando Saldanha, fosse pelo que
fosse, passou para a opposição, tornou-se serio, e nas vesperas de
acabar viu-se ainda o homem antigo. O marechal, passando-se, via o
exercito inteiro a bandear-se: imagine-se com que abraços a opposição
o não receberia! Quem se lembra já de Torres-Vedras, e das injurias,
e dos degredos! Politica! Mas Costa-Cabral propoz-se demonstrar que
Saldanha era nada: um homem-de-ferro, como o de S. Jorge na procissão
de _Corpus_; no que se não enganava inteiramente, como 51 o demonstrou
e veremos. O marechal foi demittido do paço, e logo pediu a demissão
de todas as suas honras e cargos. Deu-se-lhe; e o ministro, outra vez
temerario, não se lembrou de que um antigo Cid, um _condottiere_,
patrono de tão consideravel clientela, não se mata por metades. Ou se
fusila, ou se compra. O povo sempre disse: «quem o seu inimigo poupa,
nas mãos lhe morre.»

       *       *       *       *       *

Varios symptomas indicavam a morte proxima do cabralismo; mas, assim
como os doentes nas vesperas de acabar têem ás vezes como um clarão de
saude, assim é necessario, antes de apreciarmos as causas directas da
quéda proxima do conde de Thomar, contar o seu ultimo dia, quando a
antiga força pareceu reviver e o sangue todo circular com energia antes
de o coração parar.

Saldanha renegara-o; os pares da opposição (Taipa, Lavradio, Loulé,
etc.) tinham pedido á rainha a demissão do ministro odiado, accusado de
crimes torpes que manchavam de lodo o governo e até o throno. Abertas
as camaras no principio de 50, os debates pareciam audiencias e o
ministro um réu. As galerias dos Pares, cheias de povo, estavam com
a accusação: o conde de Thomar era, como Guizot e os doutrinarios em
geral, antipathico. O povo não ama a seccura e a rigidez das formulas
pedantes; o povo está prompto a crêr sempre na criminalidade dos que
o governam, desde que o principio da rebeldia constitucional contra
o Estado appareceu e venceu; desde que se poz no direito publico um
dualismo organico entre a _liberdade_ e a _authoridade_, supposta
antinomia. O conde de Thomar era antipathico, e não tinha para
contrariar esta consequencia da indole da sua politica, nem os creditos
de integro, nem os de sabio, que escudavam o seu modelo Guizot.

«Eu não posso ser considerado como obnoxio á nação que sendo chamada á
urna me favorece sempre com a sua opinião quasi geral.» (Disc. de 12
de jan.) Em vez de atacar, defendia-se, o ministro: evidente prova de
fraqueza; e a defeza era triste, molle. A quem pretendia enganar, ou
convencer? Pois sala e galerias, pares e povo, não sabiam todos o que
eram eleições e urna? Tanto sabiam, que estrepitosos risos acolheram a
saída do diogenes burocratico: fraco cynismo, se provoca o riso!

Mas essas gargalhadas os esporearam-no. Pulou. Torcia-se-lhe a face,
luziam-lhe os olhos, e resuscitava o homem de 42. Então, depois da
aventura do Porto, olhando a desafiar os inimigos, dissera-lhes:
Conspirei? tambem vós! conspirámos todos. Agora a accusação era outra,
mas o processo identico: Roubei? tambem vós! roubámos todos.

E sarcastico, odiento, inverteram-se os papeis: o réu passou para o
banco da accusação. Tinha diante de si um masso de jornaes impressos,
e abrindo-os, via-se cada folha tremer com a convulsão do pulso do
ministro: Accusam-me de ladrão? E quem? Saldanha não saberia que a
propria _Revolução de Setembro_ lhe dissera o mesmo a elle? Porque não
a processou, e quer que a processe agora eu?--E abria o papel, lia o
que occorrera em certa arrematação das Sete-Casas: «A praça estava
aberta, as condições foram umas e a arrematação foi feita por outras.
Não é isto uma burla?» Que motivos houvera? «Estavam já _calçadas as
luvas_. Vencedor de Torres! não córes; tudo se sabe». (_Rev. de Set._
10 de jan. de 48)

Nem a sala, nem as galerias riam já. O caracter não era ainda uma
ficção, como a Urna. O ministro feria com acerto, e, ávida de
escandalo, a assembléa, muda, obedecia-lhe.--Quereis mais? Ouvi: «Mais
vergonhosa ainda é aquella historia do retrato. O retratista recebeu
180$000 rs. para elle; para 400, vão 220 que faltam. Onde se sumiram,
duque de Saldanha?» Outro artigo: «Miseria, sr. ministro, é o roubo
de 220 mil réis; miseria é v. ex.ª considerar uma miseria a accusação
por esse roubo ... Quem recebeu mais de sete contos por um emprego que
nunca exerceu, não admira que considere 220 mil réis uma miseria».
(_Rev. de Set._ 18 de jan.)

O bote estava dado em cheio no refalsado peito do marechal que o
atraiçoara, depois de por tanto tempo o servir. Mudando o tom e a
voz, com uma gravidade de secretaria, o ministro observava, dobrando
os jornaes, que era «o primeiro a fazer justiça á honra e probidade
do digno par», mas que se achava na obrigação de defender-se. Todos
os homens d’Estado d’este paiz tinham sido accusados de ladrões pelos
jornaes diffamadores, e todos os tinham desprezado, nenhum os chamara
ao jury: elle faria outro tanto, seguiria tão bons exemplos. E
admirava-se de que fosse o marechal quem se voltasse contra elle; o
marechal que, ao saír da presidencia do conselho, declarára ser com
elle, ministro, «uma e a mesma cousa»; o marechal que em dezembro de
47 o mandara embaixador para Paris; o marechal, etc. (_Disc._ de 12 de
jan. de 50)

Fustigado, bem moído, este primeiro e novo inimigo, o conde de Thomar
voltou-se para os antigos. A opposição, no seu manifesto, reclamava
a demissão d’elle sob pena de uma revolução terrivel ou do dominio
hespanhol; e o ministro, firmando bem os pés no chão, n’um accesso de
furia, respondeu-lhe suffocado, rôxo:--«Não saírei d’aqui!» Dominou-se,
porém, logo, a contar como as cousas se dispunham na camara para
o atacar. «Havia pelotões para dar apoiados.» (A sala inteira riu
francamente). Observara-se como certos dignos pares que nunca falavam,
se agrupavam no cumprimento d’esse dever. Faziam bem: para nada
serviam! (_Ibid._)

Com este sarcasmo voltara a accusar. O conde da Taipa dissera que «o
presidente do conselho era objecto do odio geral», e quando repetia
estas palavras, o conde de Thomar exprimia aquelle orgulho quasi
voluptuoso que os homens da sua tempera sentem ao perceber, no odio,
a importancia que têem e o medo que inspiram.--Era objecto de odio
geral, dizia o conde: logo falariam; mas elle, ministro, buscava as
demonstrações legaes, e dizia que nos governos representativos a
Urna era toda a legalidade--resvalando outra vez o doutrinario para
a perigosa selva das fórmulas. Havia rumor, sussurro, na sala e nas
galerias, sempre que se falava na Urna.

«Se a guerra é contra mim, tenham a coragem de me accusar em fórma:
se o não fizerem hão de permittir que lhes diga que são hypocritas.»
A voz tremia-lhe, e agitando-se, crescendo-lhe o odio, chegava
á eloquencia verdadeira e forte. Com a audacia de um vencedor,
encarando de frente os inimigos, ensinava-lhes como haviam de formar o
libello.--Digam, vamos: 1.º O presidente do conselho commetteu o crime
de peita, dando uma commenda e recebendo por ella um caleche.--Sigam:
2.º Tem palacios, tem quintas, tem castellos, tem ricas tapeçarias
e um luxo asiatico ... A camara, pasmada vergava: era um monstro de
cynismo? Elle aproveitava a emoção, continuando: 3.º Tem um tinteiro de
ouro!--e vencia, arrancando aos ouvintes uma gargalhada unisona.--Não
parem: 4.º Quando a rainha o honrou, visitando-o no seu palacio de
Thomar, elle apresentou-lhe um serviço de ouro tão rico que a soberana
disse: é mais rico do que o meu!--Mais ainda: 5.º Está edificando uma
sumptuosa sala de baile, aproveitando-se dos marmores e madeiras do
palacio d’Ajuda.--Outra: 6.º Empalmou uma letra de mais de mil libras,
mandada do Brazil por um portuguez para as urgencias do Estado.--Mais:
7.º O _Mindello_ veiu carregado de espelhos para o seu palacio.--Mais:
8.º Possue a mais rica garrafeira.--Mais: 9.º Recebeu por peita
um cavallo.--«Havia mais? Dizia a imprensa alguma outra cousa?
Juntassem, sommassem; mas tivessem a coragem de o accusar, alli, clara,
publicamente.»

Até ahi o seu discurso galopava, esmagando tudo; mas quando, ao
parar, regressou, perdeu-se. Não teve habilidade para acabar, e quiz
defender-se. Guizot vencia pedagogicamente leccionando; não respondia
a ataques. Costa-Cabral vencia tambem, á peninsular, investindo:
porque se deixava bater, discutindo? Algum motivo inconsciente o
impellia a explicar casos que não seriam inteiramente calumnias? Se
assim era, provava a sua fraqueza; do contrario, a sua simplicidade.
O discurso continua embrulhado, pastoso, monotono. As explicações
podem satisfazer, mas com o odio, com as paixões, não se debate. Seria
mistér que ao periodo dos sarcasmos se seguisse uma d’estas provas
theatraes, dramaticas, capazes de impressionar a imaginação, embora não
convençam a razão fria que é sempre o dote do menor numero. Era isso o
que faltava ao ministro, a imaginação; era isto o que sobrava ao outro
homem que a historia põe diante d’elle, Passos. D’ahi vinha a um o ser
odiado, adorado o outro: apesar do segundo ser muito superior, como
força e verdadeiro talento. E Passos era virtuoso, podendo deixar de o
ser sem perder por isso a popularidade; e Cabral passava pelo não ser,
sem que podesse ganhar sympathias, ainda que o fosse.

O povo, como massa, tem um modo de sentir e de se decidir, para o
qual não colhem as fórmas simplesmente logicas da argumentação. Foi o
que o conde de Thomar e toda a eschola doutrinaria jámais perceberam,
teimando em convencer as massas com raciocinios e fórmulas, e
opprimindo ou burlando quando viam não serem comprehendidos. Nenhum
systema politico se presta mais á tyrannia e á burla do que o systema
arithmetico do governo das maiorias.

Inorganico, ou se perde na confusão da anarchia, ou cáe na paz da
indifferença apathica, ou n’uma corrupção systematica, n’um processo
de burlas e sophismas. O leitor viu a primeira conclusão, verá dentro
em pouco a segunda: a terceira é a de agora. E a fraqueza do Guizot
portuguez estava no acanhamento do seu espirito sêcco, tomando as
fórmulas escholarmente a sério. Hirto, duro, era um ariete para
bater; mas sem plasticidade, sem o que quer que é de communicativo e
seductor que arrasta o povo, em qualquer sentido. Era a Antipathia
personalisada. Vencia, mas não convertia. O advogado argumentava,
depois que o tribuno aggredira; e o povo, impressionado pela violencia,
ficava indifferente ás argucias. Não as comprehendia, e repugnavam-lhe.
O conde de Thomar era a personalisação, como que o symbolo da antiga
historia de delapidações: o povo espontaneamente o apedrejava, como
victima expiatoria. Pagava os crimes de muitos. Não era o sangue, eram
os roubos de uma geração que lhe caíam sobre a cabeça. Para se salvar
de uma tal situação, seriam mistér qualidades, genio, imaginação,
phrases, que não tinha. O clamor accusava-o de roubos: era necessario
mostrar-se modesto e desvalido. De que servia saber-se que a rainha lhe
arrendára o Alfeite? Nos governos de publicidade o rei é nada. Quando
a _opinião_ governa, é necessario que fique, ou pareça ficar pobre,
aquelle que para o governo não entrou rico. Ai, dos que enriquecem,
embora lisa, honestamente. O politico é como a mulher de Cesar; e na
psychologia da _opinião_ entra sempre e por muito a inveja. O marquez
de Pombal podia ter _aguas-furtadas_, porque estava na indole do velho
regime monarchico-aristocratico o enriquecimento dos ministros, valídos
d’um rei, _dono_ ainda da nação. Mas agora o rei já não era senhor, nem
amo, nem cousa alguma: deslocara-se a noção da origem do poder, e com
ella o criterio da moralidade na politica.

Estas considerações fizemol-as, emquanto o ministro, do seu lugar,
alinhavou pastosamente, como um advogado, a sua defeza. Não valia a
pena ouvil-o. Mas agora, transposta a parte molle do seu discurso:
agora que o aggressor volta, e a voz se lhe aquece e o olhar se lhe
aviva, é indispensavel observar a conclusão da batalha.

Não appella para o jury, repete, porque despreza as calumnias. Segue
o exemplo dos accusadores. Começara por Saldanha; era a vez do conde
da Taipa, agora.--Um par houve accusado de ladrão e até de espião
pago!--Taipa: E quem é esse par?--V. Ex.ª--Eu leio;--e voltou a
desenrolar um jornal, já antigo, amarello do tempo, como um espectro
evocado do tumulo: «Ao Gago ladrão, o _Raio_», assim começava o artigo.
Esse gago era um desprezivel saltimbanco sem honra e sem virtudes.
Respondeu a conselho de guerra por ladrão da fazenda publica. Mancha
a sociedade com o seu halito immundo. Era devasso, vivia em orgias
dissolutas, recebendo 3:200 por dia para ser instrumento do Marinho:
as suas denuncias atulharam as prisões. (_Raio_, 21 de maio de 36) Era
o ladrão da caixa militar do regimento de cavallaria 7, o espião dos
3:200, o urco de 1823 ainda empoeirado com a viagem de Villa-Franca, o
militar cobarde fugindo sem se saber porquê, (_Raio_, 9 de agosto de
36) etc. Tudo isto dissera o _Raio_, e o digno par não appellara para o
jury!

O odio crescia na camara indignada contra o temerario que, para
se defender, ia revolver assim, em publico, sujas aguas corridas,
levantando lodos que manchavam os legisladores. E era urgente
olvidar o passado, e as suas campanhas. Todos se sentiam anciosos de
esquecimento. Rodrigo começava a abrir os seus braços para o amplexo
final, fraterno ... Fóra, o importuno, o impenitente, que aos seus
crimes junta o crime de accusar o proximo!

Fatigada estava a camara, extenuado o orador: todos anciavam pelo
fim, por uma _regeneração_. A voz do ministro extinguia-se, e o corpo
pedia-lhe uma pausa.--«Para ganhar tempo, e não ouvir a resposta?»
perguntou Taipa. Esporeado, o conde saíu ainda: «Não é, não: ficarei
até ás dez da noite, se preciso fôr».--Taipa: «Eu não necessito
estudar!»--Thomar: «Preciso eu; mas para responder ao digno par--nunca!»

O resto foi um disturbio parlamentar, que os gritos de, ordem! a
custo dominavam. Acabava a scena em uma desordem: que era tudo senão
anarchia, desde os principios e doutrinas, até aos caracteres e á moral?

Assim foi o ultimo dia do conde de Thomar. Dera o que tinha. Durante
nove annos (42-51) contivera a maré do scepticismo pacifico, lançando a
patria nas aventuras de um _liberalismo_ novo. Agora, o padrão d’essa
doutrina, o padrão francez de Guizot, já fôra despedaçado em Paris
pela revolução (fevereiro de 48); os tempos mudavam, e a atmosphera
adequada ao temperamento do ministro desapparecera. A força das cousas
ordenava-lhe a abdicação, mas o genio rebellava-se-lhe. Como o toiro
que o matador só consegue abater depois de successivas estocadas, mas
que tem na espada o instrumento de uma morte fatal: assim o ministro
ainda marrou, erguendo-se, investindo, appellando ainda para a tribuna,
para as _bernardas_, mas perdendo sempre sangue, esvaindo-se até se
rojar vencido na fria arena das embaixadas.

É mais um dos successivos mortos do liberalismo, este duro beirão de
Algodres. Mas que morte a sua, tão diversa do sacrificio espontaneo do
minhoto, poetico Passos, caminhando para o altar coroado de flôres,
alegre, pacifico, resignado; confessando os seus erros antigos, o
dissipar das suas illusões, negando a verdade dos systemas, a força
dos homens, a vitalidade da patria! É que para dentro de tudo isso o
poeta sentia esperanças novas, para além d’esses dias fugidos, auroras
vagas: ao passo que o politico, uma vez rasgadas as fórmulas, achava-se
perdido n’um vacuo.




LIVRO SEXTO

A REGENERAÇÃO

(1851-68)




I

ALEXANDRE HERCULANO


1.--A ULTIMA REVOLTA

O homem que em 1826 iniciou a historia liberal é o proprio que agora
vae desembainhar a espada para encerrar com uma sedição militar a
serie de _pronunciamentos_ a que temos assistido. As successivas
physionomias politicas de Saldanha são o traço eminente do seu
retrato e do dos tempos em que existiu. Homem sem idéas, os partidos
e programmas são para elle occasiões, e nada mais; e como esses
programmas e partidos nasciam, cresciam, desfaziam-se constantemente,
na atmosphera duplamente movediça de um paiz arruinado e de uma
doutrina inconsistente, o marechal encontrava-se, ao decaír da vida,
tão carregado de annos como de opiniões diversas, sem que os annos
abatessem a sua rija constituição, nem as contradicções podessem
affligir um espirito que, a serio, bem no fundo da alma, só tinha uma
crença enraizada: o catholicismo portuguez, _beato_, quasi fetichista.

Em 1822 vira-se Saldanha applaudir a Constituição jacobina; em 23
recuar, com Terceira e muitos mais, até Villa-Franca, na jornada da
_poeira_, e applaudir a suppressão das côrtes. Em 1826 apparece-nos
proclamando a CARTA, seu ministro, e elevado a conde. É então e
por alguns annos o chefe da opposição ao regente, e isso o affasta
da campanha começada em 32. Nos apuros do Porto vem de Paris; e
successivamente general de um exercito, marquez, dotado com 100 contos
de bens nacionaes, vae pouco a pouco inclinando para a direita, até que
em 1835 preside um ministerio cartista. A corôa conquistou-o. E desde
então começou a pôr ás ordens d’ella a sua influencia e a sua espada.
Conspira em Belem contra os setembristas; subleva-se no anno seguinte.
A constituição de 38 tral-o da emigração ao reino, e até 46 não bole.
No 6 de outubro é porém elle a espada com que a rainha expulsa os
setembristas do governo; e por mais de dois annos, até ao meiado de
junho de 49, é o presidente do conselho cabralista, embora em dezembro
de 47 queira impedir a volta ao reino do eminente chefe do seu partido.
Cedendo-lhe em 49 o governo, virou-se logo contra elle, e d’ahi começou
a guerra declarada que veiu a acabar na Regeneração.

Mas que podia regenerar quem, depois de tantas aventuras, devia
achar-se dorido, e mais ou menos enlameiado depois de tão largas
viagens?

 É vaidoso e cheio de si. Demasiado abatido na má fortuna, enfunado e
 boiante na prosperidade, e pouco agradecido aos amigos do infortunio.
 É mudavel e contradictorio. Está muito velho e russo, e como signaes
 de edade temos notado n’elle um pendor e turno decidido para a
 mystica, onde parece que acabará como todos os bourbons, nos braços
 de uma supersticiosa devoção; e tambem pensamos que se hoje houvesse
 frades iria, por imitação do grande condestavel, vestir a roupeta do
 Carmello. Montalembert e Valdegamas converteram-no em Paris. Estuda
 theologia. (Rocha, _Rev. de Port._ 1851)

O retratista perspicaz, que tão a proposito notava a physionomia de
Saldanha, esboçando-o como um typo medieval, entre barão e monge, não
esquecia, porém, um traço que é commum aos heroes da Edade-media, aos
modernos, e aos de todos os tempos: a necessidade de dinheiro. «Allega
que não póde passar sem vinte contos por anno», (_Ibid._) e as cousas
tinham-no forçado a demittir-se de todos os seus rendosos cargos. Como
viveria sem os vinte contos? Não foi Saldanha o primeiro dos barões
rebellados por dinheiro; mas em caracteres taes, de si confusos, sem
lucidez nos planos e designios, não se póde dizer que o dinheiro seja
o estimulo immediato e directo, como é nos genios frios, politicos, em
que a habilidade predomina.

Com effeito, erraria quem suppozesse o marechal avarento ou sybarita.
Pelo contrario: no fundo tinha uma bondade ingenua e simples que,
misturada com o orgulho balofo, lhe impedia de vêr a realidade das
cousas. Se nem quando o compravam o percebia! Se ingenuamente o
confessava! Ouçamos as suas proprias palavras:

 Sou pobre de fortuna, mas rico de amigos. Em dezembro de 49, o conde
 de Thomar declarou-me guerra de morte, e dois mezes depois era eu
 demittido de todos os meus cargos. Alguns dias passados, procuraram-me
 os srs. Silva Ferrão e Tavares d’Almeida dizendo-me que segundo
 estava encarregado por alguns amigos de me pagar mensalmente o
 equivalente dos meus vencimentos. Uma condição havia n’esta generosa
 offerta a que eu me submetti com reluctancia. Era que eu não indagaria
 os nomes de quem tão nobremente contribuia. Desde então no primeiro de
 cada mez e cebo oitenta e duas libras. (Disc. 26 de março de 51)

Esta simplicidade, esta ingenuidade, esta sinceridade, espantam-nos.
Orgulhava-se de ser pobre, de ter amigos: mas não é verdade que só se
pede para pão? e que, por grande que fosse o clientela de Saldanha,
nunca o pão importaria em tanto? Elle não o percebia: por isso o
confessava; e se a uma compra habil chamava amisade, continuava a
suppôr-se arbitro, quando era cada vez mais aquelle _tronco_ em que
falara José Liberato. Satisfeito, simples, bom, irresponsavel como
uma creança, esfregando as mãos contente, ou quebrando os joguetes,
militares, politicos, nos seus despeitos infantis, o marechal, entrado
na velhice, ia, com a sua espectaculosa espontaneidade, seduzir um
grupo de homens ainda não desilludidos.

A sua vida tinha sido já tão longa e cheia de aventuras e descreditos,
que eram raros os que não tinham tido occasião de o vêr e avaliar por
dentro.

Os antigos _ordeiros_, com Rodrigo á frente, estavam promptos a
seguil-o para confiscar a victoria, fazendo do vencedor a unica cousa
para que servia: um rotulo brilhante de bordaduras e crachás, um
pseudo-chefe de parada, á sombra do qual viveriam, lisongeando-o e
pagando-lhe. Mas teriam os ordeiros, por si sós, força bastante para
mover o paiz contra o tyranno que rematara a sua obra amordaçando a
imprensa? Seria mistér acceitar as offertas dos velhos companheiros
de Paris, a quem Saldanha voltara as costas desde 35, contra quem
combatera: esses setembristas em cujo seio a influencia de José-Estevão
creava um grupo novo, filho da velha-guarda dos Passos, neto da quasi
extincta geração dos _vintistas_? Porque não? Saldanha confundia o seu
despeito com o interesse publico, da mesma maneira que confundia o seu
orgulho com a sua falta de meios.

Tendo-se recusado a acceitar a embaixada de Paris, com que em 49
Thomar pretendia evital-o, (como Rodrigo o evitara em 40, mandando-o
para Vienna) Saldanha, que n’um breve intervallo de ocio se occupara
em Cintra da creação das vaccas de leite (Carnota, _Mem._), depois de
em Vienna se ter occupado da existencia de Deus e da immortalidade da
alma: Saldanha desmascarou breve as suas baterias, pedindo á rainha
a queda do ministerio. Reconheceria elle agora o seu erro de 46?
lembrar-se-hia dos conselhos de Howard: _be cautious_? Veria o papel de
janisaro que desempenhara? Talvez. Arrependia-se, pois; e voltava-se
contra o partido de que fôra a espada. Não se tornava, porém, um chefe
da democracia como até 34, embora tivesse feito as pazes com os seus
inimigos da Maria-da-Fonte. Antas visitava-o; mas quando lhe propoz o
plano de uma sedição _setembrista_, o marechal, affavelmente, rindo,
senhor de si, respondeu que não. Tambem elle tinha a sua revolução, uma
boa, afortunada revolução a fazer: veria! (Carnota, _Mem._)

Que esperanças novas eram essas?

Conquistar um grupo de homens, mais pensadores do que politicos,
liberaes sem serem democratas, cartistas sem serem cabralistas, homens
como Ferrer, Soure, Pestana, no meio dos quaes se destacava o talento
já consagrado de Herculano, com um pensamento de pura liberdade
doutrinaria.

Herculano emigrára, e ouvimol-o chorar na solidão do exilio. Emquanto,
porém, a sua musa lyrica lhe inspirava poesias selladas com um profundo
cunho de sinceridade e belleza, o poeta, homem vigoroso no temperamento
intellectual, portuguez de lei, affirmativo e duro, o inverso do
artista Garrett: o poeta aprendia na mocidade, como Mousinho já quasi
na velhice, os dogmas e principios da crença liberal. A critica de
Kant mostrava-lhe no Individuo um rei, na Consciencia um deus; ao
mesmo tempo que os sabios, com a nova direcção dos seus estudos,
lhe mostravam na tradição e na historia as raizes das sociedades
deploravelmente abaladas pelo jacobinismo. As contradicções que
produziu esta dupla concepção, individualista e social, nunca em
Portugal se manifestaram tanto como no espirito do homem eminente que,
talvez unico, media o valor das doutrinas.

As tendencias eruditas e litterarias do seu genio philosophico
fizeram-no metter mãos á obra do renascimento das lettras portuguezas,
assim que no Porto houve lugar para pôr de lado a espingarda.
Assistira, combatera em todo o cêrco; e, terminado elle, entrou
como bibliothecario da livraria municipal. N’um paiz revolucionado,
a politica é absorvente, e por isso Herculano, ao mesmo tempo que
iniciava os seus trabalhos historicos, acompanhava a agitação dos
partidos. Setembro, isto é, a acclamação do jacobinismo que o
philosopho suppunha para sempre refutado e condemnado, provocou-lhe uma
ira portugueza que se vasou nos threnos biblicos da _Voz-do-Propheta_.
Demittiu-se em 37 para não jurar a constituição de 20; mas dois annos
depois, apaziguada a procella, retirado Passos, restaurada a _ordem_,
reconhece a constituição de 38 e abraça a fusão. Em 40 vae deputado ás
camaras, confiado em que o _liberalismo_ tal como elle o concebia ia
afinal enraizar-se; mas breve se desenganou e sumiu-se. Foi então que
o rei D. Fernando o convidou para bibliothecario da Ajuda, e d’ahi,
afastado, vivendo com os documentos da historia, entregue aos estudos
com uma energia ardente, conquistava a passo e passo o primeiro lugar
entre os escriptores nacionaes do nosso seculo, ao mesmo tempo que lá
por fóra seguia, desorientada e ferina, a procissão das revoltas e o
desvario dos governos.

Em tal estado o veiu encontrar Saldanha, convidando-o a prestar
a authoridade do seu nome e do seu conselho á empreza em que ia
lançar-se.[33] Herculano, como todos os que lidam mais com idéas
do que com homens, era quasi infantilmente ingenuo. Intelligencia
fomalista, não era tampouco dotado da perspicacia que adivinha os
caracteres, deslindando as confusões da inconsciencia alheia, e
definindo com clareza as situações. A sua imaginação poetica viu
no marechal um penitente de antigos erros, a sua nobreza ingenita
viu uma dedicação nobre; e o seu patriotismo e a sua doutrina viram
tambem chegado o momento da paz, da ordem, da organisação definitiva
do liberalismo. Entregou-se todo, de corpo e alma, e abriu as portas
da sua casa da Ajuda ás reuniões dos conjurados. Alli se pactuaram
as reformas urgentes que o marechal realisaria assim que tornasse
vencedor: as eleições directas, a abolição da hereditariedade nos
pares, a dos vinculos gradualmente convertidos em pequena propriedade
emphytheotica. Herculano exigiu que tudo se fizesse com gente _nova_,
excluindo os velhos todos, «de outra fórma seria o mesmo que d’antes»;
exigindo para si que o não fizessem ministro. Trabalharia, ajudaria
com o seu conselho, mas para governar «não tinha queda». Saldanha,
provavelmente sincero, applaudia, enthusiasmava-se, obedecia, promettia.

       *       *       *       *       *

No dia 7 de abril de 51 saiu Saldanha para _fazer a revolução_ no
Porto. Mas o governo, sem força para o prender, seguia-lhe os passos e
machinações. A _revolução_, como invariavelmente succedia, devia ser
o pronunciamento da tropa; porém Saldanha viu com magua quanto havia
descido, pois nem os commandantes nem os officiaes se prestavam a
acompanhal-o. Os progressistas do Porto consideravam tudo perdido, e o
marechal fugia tristemente para Hespanha, indo parar a Lobios aquelle
que para ahi mandara em 28 o seu exercito. Já estavam presos na Relação
os officiaes conjurados, e Victorino Damasio, antigo soldado da JUNTA,
engenheiro emprehendedor que ficara no Porto creando fabricas; Damasio,
appellando para os sargentos, e vendo que o governo tambem os prendia,
appellou para os cabos: appellaria para o seu regimento de operarios em
ultima instancia! Não foi necessario, porque com chaves falsas forjadas
no Bolhão, introduziu Salvador da França no quartel de Santo-Ovidio, e
os cabos e soldados do 18 proclamaram a _Revolução_. (Delgado, _Elog.
hist. de J. V. Damasio_) Saldanha regressou, e, com a tropa atraz de
si, foi sobre Coimbra.

De Lisboa para Coimbra tambem saíra o generalissimo D. Fernando com
tropa atraz; mas, quando tinha de atravessar a ponte do Mondego, achou
uma tranca passada de lado a lado e os estudantes que lhe seguraram as
redeas do cavallo, mandando-lhe tirar o chapéu e dar vivas ao Saldanha.
O rei, que era a urbanidade em pessoa, não podia recusar-se, e fel-o;
retirando logo para Lisboa a contar a tranca da ponte, e a reclamar a
queda do ministerio. Ministerios e partidos valiam acaso o trabalho
de partir por meio um madeiro? Não valiam; ninguem já tinha força
para cousa alguma. Derreados e desilludidos, todos, no aborrecimento
universal, admittiam tudo, e tinham razão para isso. O maior crime do
conde do Thomar era desconhecer o tempo de agora, querendo usar da
força contra uma resistencia pastosa e molle. Raivoso e desesperado,
quando viu chegar D. Fernando no seu cavallo a passo, e opinar pela
queda do ministerio com a voz fanhosa e arrastada com que dera os vivas
ao Saldanha; raivoso, «a gente do paço dizia que o conde do Thomar
chorara grossas lagrimas e com as suas mãos labregas se agarrara ao
puro manto da rainha: valha-me senhora! proteja o seu fiel ministro!»
(Rocha, _Rev. de Port._) Não é natural que a rainha costumasse andar
por casa de _puro manto_, embora seja de crer que o ministro apellasse
para aquella que tanto lhe devia, que chorasse de raiva observando as
deserções rapidas dos homens que elle tirara do nada. Se até o proprio
irmão, o José-dos-conegos, se voltou contra elle no dia em que Saldanha
se bandeara!

Teve do fugir outra vez, e o duque da Terceira occupou-lhe o posto
(26 de abril) conservando o ministerio decapitado. Era a esperança do
manter o partido, sacrificando o chefe? ou o conde de Thomar pensava
em ir repetir a campanha diplomatica de 46, e pedir aos seus amigos
de fóra que o viessem restaurar? Esses amigos, porém, tinham caído. O
doutrinarismo morrera com Guizot em fevereiro de 48, e já não havia
miguelistas. Taes fortunas não se repetem na vida: d’esta vez a quéda
era para sempre. O doutrinarismo, dissemos, morrera em 48, e a França
vivia ao tempo sob o governo republicano: iria pois haver uma republica
entre nós? Não faltava quem o desejasse: Sampaio e José-Estevão, Cazal,
Braamcamp, Nazareth--os homens novos do velho setembrismo. Portugal,
porém, caminhara mais depressa do que a França: a republica de 48
tivera-a em 36, e o imperio de 52 vinha sendo reclamado desde 49: era
a traducção real da palavra nova, REGENERAÇÃO. Rodrigo era um Morny,
beirão e burguez. Que motivo havia para este nosso adiantamento? Um
motivo evidente e simples: a superior consistencia social da França,
a nossa extrema miseria, a nossa fraqueza singular. O principio
do individualismo anarchico e liberal, destruidor do passado e da
tradição, creador de uma nova classe de ricos saídos da concorrencia,
tinha de acabar n’um scepticismo systematico e n’uma confissão formal
da idolatria da Utilidade, depois de ter percorrido o circulo de
experiencias e ensaios possiveis dentro das fórmulas, e depois de ter
demonstrado o vazio de todas ellas. N’um paiz caduco, essa evolução
fazia-se muito mais rapidamente: por isso era já impossivel saír do
doutrinarismo para o idealismo republicano, como em França; por isso
os moços republicanos como José-Estevão adheriram á _regeneração_,
proclamando a necessidade de _melhoramentos materiaes_; (Oliveira,
_Esb. hist._) por isso Rodrigo, um precursor, batido por um intruso em
42, ia vencer definitivamente em 51.


2.--O FIM DO ROMANTISMO

Na capital havia uma anciedade singular pela volta do triumphador.
Tinham-lhe mandado vapores, para elle com a sua gente vir do Porto,
e cada qual fazia o possivel para o conquistar para si. Choviam as
cartas. Os ordeiros pediam-lhe prudencia, Antas pedia-lhe audacia:
«Ponha de parte todos os obstaculos: colloque-se na situação de um
chefe revolucionario». (Carta de 5 de maio; em Carnota. _Mem._)
No paço, D. Fernando chorava--porque? e a rainha anciosa entrevia
a possibilidade de uma abdicação forçada. Que faria Saldanha?
Deixar-se-hia seduzir pelas acclamações de regente que a turba lhe
ia dar ao desembarque? Outros temiam uma traição palaciana para
o abafar, matal-o--quem sabe? A rainha em pessoa era forçada a
escrever-lhe, protestando a sua lealdade. (V. a carta em 8 de maio;
em Carnota, _ibid._) Uns aconselhavam-lhe que não desembarcasse no
Terreiro-do Paço, que fosse á Pampulha--os vivas eram perigosos! outros
aconselhavam-lhe Cascaes: havia machinas armadas para o matar! Este via
a esquadra franceza apresando os vapores na costa, aquelle os navios
inglezes apresando-os no Tejo: venha por terra! E o proprio Herculano,
assustado, lhe escrevia: «Marechal! marechal! lembre-se de que a sua
vida, a sua salvação, a sua liberdade, são a vida, a salvação e a
liberdade do paiz!» (V. a carta; _ibid._)

A entrada de Saldanha em Lisboa (15 de maio) foi um triumpho. Tomou
posse do governo, e o rei entregou-lhe o bastão do commando-em-chefe.
Contente, radiante, Saldanha despicara-se. A rainha em pessoa, no
theatro, teve de acclamar, de pé na sua tribuna, o--mais uma vez--rei
de Portugal. Chamavam-lhe de novo D. João VII. E o bom do marechal
acreditava-se ingenuamente um Augusto, vencedor de Lepido Cabral e de
Antonio-Passos, dos cartistas e dos setembristas, fundador do novo
imperio _regenerado_. Em vão Terceira e José Cabral, no club da rua
dos Mouros, palacio do Galvão, projectavam restaurar a CARTA pura de
cabralismo, tentando sublevar a guarnição de Lisboa. (18 de maio)

Saldanha tinha-se compromettido a abandonar ao seu descredito os homens
velhos, a consolidar com gente nova a paz dos partidos; e no primeiro
momento, afogueado com a sinceridade satisfeita de vencer, implorava
de Herculano que acceitasse a pasta do Reino, ao que o escriptor
terminantemente se oppoz, ficando de fóra como um conselheiro dedicado,
leal e convicto. Soure e Pestana de um lado, Atouguia pelos ordeiros,
Franzini _preenchendo_ as finanças pelos cartistas, e Loulé por parte
do setembrismo: eis o ministerio que havia de regenerar a nação,
convocando uma camara que fosse a _legitima_ representante da vontade
do paiz.

Mas, na commissão da lei eleitoral debatia-se um problema grave:
teriam, não teriam voto os guardas do tabaco? Continuaria, não
continuaria a ser o _contracto_ (inteiramente affecto ao _ordeiro_
Rodrigo, ainda de fóra) um poder do Estado? um patrono da URNA?
Fontes, homem novo, de instinctos imperiaes, amanhados por seu mestre
e protector Rodrigo, era pelos guardas, a que se não podia negar o
direito de cidadãos, etc.--discursos e phrases que irritavam Herculano
e o levavam a protestar desabridamente contra a falta de brio da
mocidade. O ingenuo philosopho appellava ingenuamente para Saldanha,
agradecido ao favor de amigo, com que, em confidencias intimas, o
marechal lhe contava os embaraços da sua bolsa.--E se mettessemos o
Rodrigo? dizia Saldanha; e Herculano respondia que sairia elle, pois
seria continuar a vida antiga, quando o seu proposito era crear uma
vida nova de liberdade, sinceridade, honra, brio, e nobreza moral.
O marechal applaudia, abraçava-o; e no dia seguinte voltava: «E se
mettessemos o Rodrigo?»--contando mais uma vez os apuros em que se
achava e os embaraços crescentes cada dia.

Herculano começou a reparar, a meditar, e descobriu por fim a razão das
confidencias e perguntas insistentes. Era um Portugal regenerado, era,
mas havia modos varios de conceber a regeneração; e Saldanha debatia-se
entre o modo de Herculano que inspirava o ministerio, e o modo de
Rodrigo, modo pratico e politico, que se propunha substituil-o e o
havia de conseguir. Estavam pelo seu lado a fraqueza podre de todas as
clientelas, a anemia da nação exhausta por uma serie de catastrophes, a
começar da primeira, a vinda dos francezes. Chegara o dia da victoria
do scepticismo antigo, e do utilitarismo moderno. Rodrigo e Fontes, um
velho e um moço, duas faces de um só pensamento, mestre e discipulo, o
antigo letrado _rabula_ e o novo engenheiro habil, janota e pratico,
são as figuras eminentes da definitiva regeneração. (Min. de 7 de julho)

O breve intervallo de uma esperança de reforma moral terminava.
Saldanha voltava á realidade. «A sua bondade levou o a crêr na
santidade dos homens e na possibilidade de formar um governo de anjos»,
dizia Algés (V. Carnota, _Mem._) que não era nenhum anjo, applaudindo
a isenção com que o marechal saccudira a tyrannia. Levado pela mão
de Rodrigo, respirava bem, porque só o adulavam, não o importunando
com exigencias estoicas. A Regeneração foi o ultimo acto de Saldanha,
porque o seu 19 de maio (1870), _saldanhada_ por excellencia, é um
episodio da senectude, só proprio para demonstrar a cachexia politica
da nação. Já ocioso no governo, o marechal pôde mostrar que tambem
se _regenerara_, quando caíu do poder em 56. Entregou-se a outras
batalhas: e o que fôra bandeira de revoluções passou a rotulo de
companhias. (_Luso-Hespanhola_, _Guano chimico_, _Minas de Leiria_)
Boiara sempre á mercê dos acontecimentos: eram elles que o levavam para
o campo das contendas. Assim como sonhara sempre com a pompa clamorosa
e balofa, assim agora, acabando, sonhava fortunas, dividendos, riqueza
para toda a sua familia de pedintes: «Não haverá parentes pobres!»
(Carnota, _Mem._) O bom marechal não era cubiçoso: era apenas simples.
Simples no gabinete, simples no escriptorio das emprezas, simples na
carteira do escriptor: depois da Fé, entregara os ocios á Pecuaria;
e por fim acabou na Homœopathia, vencedor do dr. Bernardino. (1858)
Castilho, com a sua lisonja ironica de litterato, escrevia-lhe:
«Adeus, meu caro Achilles; guerreiro, medico e escriptor a um tempo:
porém Achilles banhado na preciosa agua da vida desde a cabeça até ao
calcanhar--inclusivamente». (V. carta; _ibid._) Ingenuo, o marechal
tomava-se sempre a sério. Não é triste vêr assim escarnecida a figura
de um como que heroe, pela gargalhada perfida do litterato?

Saldanha acabou. Voltemos á Regeneração.

       *       *       *       *       *

Publicado o Acto addiccional, não se boliu mais na constituição;
ficaram em paz os pares, os vinculos, o Contracto. Já em 32 tinham
escapado, sem se saber como, á furia de Mousinho: salvavam-se agora
milagrosamente das ameaças de Herculano.

O excentrico, sem ambições, voltou aos seus estudos. Ainda em 56
o vemos inscripto no centro eleitoral progressista, mas as suas
esperanças poeticas morreram. Como não chegara a governar, como não
vira desmanchar-se-lhe nas mãos a sua chimera liberal, ficou pensando
que a liberdade era excellente, apenas detestaveis os seus sacerdotes.
Como vinha depois do cartismo e do setembrismo, como aprendera com a
queda de Guizot e com os desvarios da segunda republica franceza, a sua
intelligencia descobria lhe respostas e emendas a todos os erros, pois
a doutrina que chegou a conceber e formular trazia raizes de varias
origens. Era radical como kantista, era municipalista como erudito, sem
ser democrata, mas tendo laivos de socialismo pratico: era sobretudo a
concepção de uma sociedade de estoicos, á imagem do caracter do que a
formara. Era a condemnação do materialismo pratico, do scepticismo: a
condemnação d’esse movimento em que entrara, por não ter a perspicacia
bastante para ver que a nação pedia exactamente o inverso do que elle
queria dar-lhe. Portugal já não tinha nervos para ser nem virtuoso, nem
doutrinario de especie alguma.

E o philosopho, voltando aos seus estudos, levou a sciencia d’este
facto, que mais ainda o empedernia no fanatismo da sua opinião. Sem
o temperamento poetico e doce de um Passos, a sua descrença não se
traduzia em perdões humanitarios, formulava-se em sentenças terriveis;
e mais forte, intelligente e sabio do que o democrata, o desmanchar das
suas esperanças não destruia a sua convicção no valor dos systemas e
idéas. A singular physionomia de um homem que de fóra da vida publica
tanta influencia exerceu sobre ella, ha de obrigar-nos e estudal-o no
seu exilio voluntario.

Escarmentado pela maneira por que fôra illudido a sua colera rompeu
violenta nos dias immediatos á verdadeira Regeneração:

 A historia politica é uma serie de desconchavos, de torpezas, de
 inepcias, de incoherencias, ligadas por um pensamento constante,--o de
 se enriquecerem os chefes do partido. Idéas, não se encontram em toda
 essa historia, senão as que esses homens beberam nos livros francezes
 mais vulgares e banaes. Hoje achal-os-heis progressistas, ámanhan
 reaccionarios; hoje conservadores, ámanhan reformadores: olhae porém
 com attenção e encontral-os-heis sempre nullos. (_Paiz_, 29 de outubro)

Esta condemnação formal dos homens, de todos os homens, exprime a
misanthropia do que não entende nem obedece á corrente fatal que
arrasta a sociedade:

 O erro deploravel dos adeptos de certa eschola é desprezarem a
 distincção entre o progresso que influe no melhoramento moral e social
 dos povos e aquelle que só melhora a sua condição physica. (_Os
 vinculos_)

Era essa eschola que o vencia e batia; e Herculano, sem reconhecer que,
como conclusão natural da anarchia _liberal_ se chegava ao scepticismo;
sem reconhecer que para isso concorriam as novas classes aristocraticas
formadas pela concorrencia, as novas forças organisadas com os capitaes
moveis e a terra livre, a tendencia industrial fomentada pelas
descobertas scientificas; sem ver que taes phenomenos eram communs
a toda a Europa: Herculano attribuía tudo á perversidade dos seus
conterraneos e á mesquinhez da sua patria.

 Em civilisação,--dizia, e era verdade--estamos dois furos abaixo da
 Turquia e outros tantos acima dos hottentotes. Agitamo-nos no circulo
 estreito das revoluções incessantes e estereis; a legalidade tornou-se
 impossivel, a acção governativa um problema insoluvel. (_Paiz_, 24 de
 julho)

Rodrigo era ministro havia dias e ia desmentil-o. Desmentiu-o com
effeito, dando á nação o governo que ella pedia, e ao tempo aquella
legalidade apparente, aquelle systema de burlas, indispensavel ao
funccionar da machina constitucional.

E tanto Rodrigo tinha razão, tanto o estoicismo nobre de Herculano
vinha fóra de tempo, que toda a gente acclamou vencedora a rapoza
ordeira, com a sua cria, brunida, sécia e petulante. Toda a gente
apedrejava o conde de Thomar--um importuno! todos, Passos--um
louco! todos, Herculano--um caturra de genio azêdo! O proprio
Garrett, ajanotado, com os cabellos pintados, espartilho e colletes
mirabolantes, artista que, obedecendo á moda romantica, chamara ao
mundo «uma vasta Barataria em que domina el-rei Sancho» (_Viagens_),
ordeiro que assim condemnava o cabralismo precursor:

 Plantae batatas, ó geração do vapor e do pó-de-pedra; macadamisae
 estradas; fazei caminhos de ferro; construí passarolas de Icaro, para
 andar a qual mais depressa estas horas de uma vida toda material,
 massuda e grossa, como tendes feito esta que Deus nos deu tão
 differente do que a vivemos hoje. Andae, ganha-pães, andae; reduzí
 tudo a cifras, todas a considerações d’este mundo a equações de
 interesse corporal, comprae, vendei, agiotae.--No fim de tudo isto,
 que lucrou a especie humana? Que ha mais umas poucas de duzias de
 homens ricos. E eu pergunto aos economistas-politicos, aos moralistas,
 se já calcularam o numero de individuos que é forçoso condemnar á
 miseria, ao trabalho desproporcionado, á desmoralisação, á infamia, á
 ignorancia crapulosa, á desgraça invencivel, á penuria absoluta para
 produzir um rico? (_Viagens_)

O inconsequente artista, com todas as fraquezas proprias d’esse typo
de homens, brunido, pintado, postiço, encobrindo a edade depois de
ter inventado o nome para se afidalgar, (V. Amorim, _Garrett_) tambem
consagra a victoria da geração do vapor, sentando-se (4 de março de 52)
no ministerio entre Rodrigo e Fontes. A sua vaidade pueril exigia-lhe
esse prazer; mas a sua intuição maravilhosa descobrira o caracter da
edade-nova: o fim do romantismo e da _liberdade_, sua filha legitima;
o comêço de uma historia que, principiando pelo imperio anarchico
da aristocracia dos ricos, pelo governo immoral da corrupcão intima
de todas as cousas, pela adoração do bezerro-d’ouro, havia de, por
tal preço, reconstituir primeiro as forças economicas das sociedades
abaladas por longas crises doutrinarias, para depois voltar á moral
e ao direito, reconstituindo os orgãos e funcções sociaes. Entre o
romantismo liberal e a democracia futura está a _regeneração_ (nome
portuguez do _capitalismo_), um periodo triste, mas indispensavel como
consequencia do antecedente e preparação do ulterior.

A nova esperança de Herculano appareceu como episodio fortuito no
meio da evolução natural; e a corrente das cousas fataes envolveu-a,
rolou-a, deixando-a á margem, abandonada como objecto singular e
anachronico.

Vidente, especie de Jeremias, sobre as ruinas do Templo, ficou
o philosopho, a quem a politica--tyrannia fatal das nações
minusculas!--interrompia, perturbava, levava a abandonar os seus
estudos sabios. Os tempos foram correndo, e a miseria nacional
crescendo. Veiu um rei, especie de D. Sebastião liberal, tambem
anachronico, e Herculano acaso teve ainda alguma esperança. Amou-o.
«Se eu tivesse um filho e me morresse, não me custava mais a morte
d’elle do que me custou a d’aquelle pobre rapaz!» Mas D. Pedro V
acabou cedo, moço: foi-se como uma apparição, levado n’uma onda de
lagrimas; e o philosopho preparou-se para morrer, enterrando-se n’um
exilio voluntario. Ahi, essa imagem viva de outros homens, deu calor,
vida, licção e amisade a muitos homens novos que aprenderam com elle
a condemnar o presente, embora o fizessem com idéas e principios que
lhe irritavam a intelligencia, sem diminuirem a amisade do antigo e
inconvertivel romantico.

A sua hora chegou por fim, e, ao sentil-a vir, affagou-a. Olhava
em roda e dizia comsigo: «Isto dá vontade da gente morrer!» Pato,
(_Ultimos mom. de A. H._) _Isto_, deviam ser muitas cousas: a Liberdade
naufragada, a vida vivida em vão, a patria miseravel, os homens cada
vez mais razos! Elle foi o ultimo dos que possuiram alma bastante
para protestar, para accusar. Depois d’elle, as gerações convertidas
ao optimismo, commodo para a intelligencia que assim descansa e para
o corpo que assim engorda, acharam que viviamos no melhor dos mundos
possiveis; que Portugal é pequeno «mas um torrão de assucar», como
dizia a Link o corregedor de Vizeu. Os Pancracios ou Falstaffs achavam
afinal a _verdadeira_ liberdade: consummara-se a revolução definitiva,
morria afinal o ultimo e importuno Jeremias.

«Portugal é uma vasta Barataria em que reina (liberalmente) el-rei
Sancho.»


3.--O SOLITARIO DE VAL-DE-LOBOS

A cova do cemiterio de Azoia onde baixou o cadaver de Herculano no
verão de 77 é, no seu isolamento, o symbolo da insensibilidade com
que Portugal o sepultou. Os camponezes arrancavam das oliveiras do
Val-de-Lobos tristes ramos d’essas pardas arvores melancolicas, em
memoria do que vivera entre elles: sejam tambem estas palavras,
esboçadas pouco depois da morte de Herculano[34] e agora de novo
escriptas: sejam tambem como um ramo de saudades deposto por mão
fielmente amiga sobre a pedra do sepulchro.

Os camponezes celebravam, poetica, ruralmente, um saímento que deixava
indifferentes os grandes homens de Lisboa; e assim devia ser, porque o
morto fôra em vida um açoite para os poderosos, e um pae, um protector,
um amigo, para esses humildes em cuja sociedade vivia. Como um Voltaire
no seu retiro, Herculano era uma especie de patrono dos camponezes,
defendendo-os contra os casos arbitrarios de uma justiça, de uma
politica, muitas vezes cruel. O mesmo que já reclamara uma esmola para
as pobres freiras de Lorvão, era o que salvava do degredo um condemnado
da Azoia, victima de um erro judiciario, sem poder evitar que a
cadeia o matasse com as doenças alli ganhas. Herculano, procurador
do infeliz, vinha a Lisboa, pedia, batia de porta em porta, subia ás
casas dos conselheiros--e com que ironia contava a sorte a que se via
reduzido!--para alcançar o perdão da victima injustamente condemnada
em todas as instancias. Sob uma descrença convicta nos homens, elle,
afinal, tinha no coração uma ingenuidade feminina, e sob o aspecto rude
de uma quasi affectada dureza, uma verdadeira meiguice, uma caridade
doce, uma candura diaphana.

O seu genio produzia o seu pensamento. Era uma intelligencia lucida
enkystada em fórmulas duras, e um coração bondoso e meigo, encoberto
pela educação, sob um exterior rigido e apparentemente hostil. Quem o
ouvia, depois de o ter lido, irritava-se muitas vezes; quem o tratava
não podia deixar de o amar. Ingenuo como uma creança, mais de uma vez
foi visto dando o braço, nas suas palestras peripateticas do Chiado, a
algum janota a quem expunha a theoria de Savigny sobre os municipios da
Edade-média: o janota ouvia, orgulhoso, mostrando-se,--porque então era
moda, como alguem disse, «trazer o Herculano ao peito». Se o advertiam,
elle, sem se offender, ao contrario, respondia com uma fala arrastada e
séria: oh, di.a.bo!

Era a candura propria dos bons; mas o singular no genio de Herculano
estava na força de uma convicção que, em vez de religiosa, era civica,
e que, portanto, em lugar de se affirmar condemnando abstractamente
o mundo como um mystico, affirmava-se condemnando individualmente os
homens, pelos seus nomes, como um Juvenal ou um Suetonio. Ninguem lhe
falasse no Saldanha, no Rodrigo! E esta direcção que o seu estoicismo
tomára levado pela vida de Portugal, fazia com que, para muita gente,
Herculano passasse por um ser duro, aspero, intractavel, construido
apenas com orgulhos e odios.

Mas, se no fundo do seu coração havia notas doces de meiguice e uma
candidez ingenua, não foi sem duvida este o traço dominante do seu
caracter. Ao lado da humanidade tinha Herculano a dureza e a força
lusitana; e por cima da espontaneidade, abafando muitas vezes o
coração, dando sempre uma fórma intelligivel á força, viera a educação
racionalista dar uma unidade, mais ou menos consistente, aos seus
pensamentos e aos seus sentimentos. Assim, a palavra que o retrata é o
Caracter, porque n’elle a vida moral e intellectual eram uma e unica: o
contrario do sceptico, não raro santo, o proprio do estoico, não raro
obtuso.

Dizemos pois Caracter no sentido e valor que a palavra teve na
Antiguidade, e não na vaga accepção moderna. Não é a vida intemerata,
não é o desprezo dos bens mundanos, o odio á ostentação van, a
recusa desabrida de titulos, de honras, de lugares, que em si
constituem o Caracter: embora a repugnancia pelas cousas mesquinhas
seja consequencia indispensavel d’esse modo de existir que consiste
essencialmente na afinação perfeita das regras da moral e dos
principios da intelligencia, da vida do cidadão e da existencia do
philosopho. O typo do caracter á antiga é o estoico, e este é o nome
que propriamente define a physionomia de Herculano; este é o typo que
passo a passo veiu crescendo até dominar nos ultimos annos, quando as
licções successivas do mundo, nunca estoico e muito menos do que nunca
em nossos dias, e muito menos do que em parte alguma em Portugal:
quando os desenganos do mundo o degredaram para o exilio, não como um
martyr, mas como um homem que, protestando sempre, se não converte, nem
se corrompe.

Por isso o estoico é por natureza austero e duro; e na pessoa de
Herculano esse genero aggravava-se com effeito por varios motivos: já
pelo seu temperamento lusitano, já pela deploravel baixeza do nivel
moral da sociedade portugueza, já pelo saber consideravel systematisado
pelo philosopho e sem duvida alguma desproporcionado para a illustração
média do paiz em que vivia. Olhando para as miserias alheias e para a
alheia ignorancia, por modesto que fosse--e não o era--viu-se muito
acima, como homem e como sabedor. Isto, e não a cohorte dos aduladores
ineptos a que não dava importancia, embora a sua bondade os não
fustigas-se, fazia-o inconscientemente orgulhoso, porque nenhum orgulho
nem pedantismo tinha para com todos os que via crédores de attenção e
respeito.

Do accôrdo da intelligencia e da moral vem ao estoico um pensamento
bem diverso e até opposto ao dos santos, que do antagonismo sentido
partem para as soluções mysticas. Esse pensamento é o individualismo,
cujo traço fundamental consiste na idéa de que o homem é em si um ser
completo e a unica verdadeira realidade social; a idéa de que a razão
humana é a fonte do conhecimento certo e absoluto, a consciencia a
origem da moral imperativa, e a liberdade, portanto, a fórmula da
existencia social. D’este modo de vêr as cousas nasce aquillo a que
podemos chamar o orgulho transcendente, isso que os antigos estoicos
disseram Caracter, quando pela primeira vez uma tal fórma de pensamento
appareceu systematisada em doutrina.

Se na mocidade, pois, ao vêr terminada a iniciação dolorosa que as
suas poesias nos contam, Herculano, ainda impellido por illusões
generosas, ainda incerto do destino fatal do seu genio, entrou na
batalha da vida como soldado, esperando chegar a vêr realisadas as
normas esboçadas em seu espirito, esse enthusiasmo caíu depressa; e
já no ardor com que escreveu a _Voz do Propheta_, para condemnar a
democracia, anti-liberal em sou conceito, se vê esboçada fugitivamente
a condemnação futura dos partidos todos sob a fórma artificial do
um estylo prophetico, á Lammenais. O momento de se convencer das
razões de uma tal sentença chegou em 1851, quando fugiu corrido de
vergonha e tédio perante uma corrupção que se lhe figurava excepcional
e unica. Passou á condição de caturra para os homens practicos, de
orgulhoso para os simples, e de protesto symbolico contra a decadencia
portugueza, e contra o abatimento universal da Europa, utilitaria e
_imperialista_, para os que, de fóra do mundo, como criticos, observam
e classificam os phenomenos. Tornou-se o remorso vivo de uma nação
degenerada. É n’este momento que as cousas levam o genio de Herculano
a definir-se na sua pureza; e é por isso que ao extinguirem-se-lhe as
illusões politicas, principia a tornar-se um typo o caracteristico da
nossa vida contemporanea. Póde dizer-se que, ao morrer para o mundo,
nasce para a historia. O lugar que lhe compete, na galeria dos nossos
homens modernos, é este. Embora já antes o seu nome tivesse andado nos
programmas e polemicas, a sua individualidade não se destacava ainda
senão pelo valor addicional da reputação litteraria conquistada.

No revolver da vida agitada em que se achára, iam pouco a pouco
reunindo-se, como que cristalisando, os elementos da individualidade
futura, distincta e typica. A nobreza e a rectidão ideal do seu
espirito tinham na sua profundidade o motivo de uma cegueira
systematica para pesar e medir as cousas reaes com a imparcialidade
fria de um critico, ou com a caridade de um santo. Com o seu metro
absoluto e integro, Herculano, na agitação do mundo, corria atraz
da chimera de achar aquelles homens que o seu estoicismo concebia,
aquelles raros, dos quaes elle era em Portugal um e unico. O critico,
se é politico, manobra com os homens como um general com um exercito,
auscultando as vontades e os caprichos, dirigindo as forças direito
a um fim, sem attenção pelos instrumentos d’elle. Perante os homens,
o santo tem na piedade uma força intima: a coragem que não abranda;
tem o enthusiasmo que o move e a caridade que lhe explica e lhe faz
comprehender, em Deus, as fraquezas e as miserias da terra. Combate,
pois, sem recuar, levando nos labios a palavra de uncção e o sorriso de
uma ironia boa, ao mesmo tempo cauterio e balsamo. O estoico, porém,
ferido, pára. O mundo era elle e nada mais além da sua razão, da sua
consciencia, da sua liberdade. E quando as feridas, as perseguições,
os ataques, os ultrages são profundos e agudos como os que expulsaram
da politica--e tambem das lettras--Alexandre Herculano, o estoico,
repetindo a phrase historica do Africano, suicida-se. É então que
vivamente nasce, pois só então o caracter apparece em toda a sua pureza.

Não o mata o scepticismo, mata-o o excesso de uma doutrina imperfeita.
Não descrê, e é por cada vez mais acreditar em si que foge a um mundo
rebelde a ouvir a verdade. A morte não é pois um acto de desespero,
é um acto de fé. Só a differença dos tempos fez que no suicidio do
Herculano não entrasse o ferro, como entrou nos suicidios estoicos da
Antiguidade. A vida assim coroada, o homem assim transfigurado n’um
typo e a sua palavra e o seu exemplo n’um protesto, superior ao mundo
e ás suas fraquezas, ficam aureolados com o forte clarão dos heroes,
lume que aos navegantes, errando no mar escuro da vida, guia a derrota
e indica o porto.

       *       *       *       *       *

O racionalismo kantista foi o molde onde se vasaram em systema as
tendencias naturaes do espirito de Herculano, um D. João de Castro da
burguezia e do seculo XIX. O antigo estoicismo portuguez era catholico
e monarchico; o estoico de agora foi romantico e individualista,
exprimindo a reacção contra a religião dos jesuitas e contra a doutrina
da Razão-d’Estado que, depois de ter feito as monarchias absolutas,
fizera a Convenção e Napoleão.

O kantismo como philosophia, o individualismo como politica, o
livre-cambio como economia, eis ahi as tres phases da doutrina que, por
ser um philosopho, Herculano medía em todo o seu alcance.

 Eu, meu caro democrata e republicano, nunca fui muito para as
 idéas que mais voga tém hoje entre os moços e que _provavelmente
 virão a predominar_ por algum tempo no seculo XX, predominio que
 as não tornará nem peiores, nem melhores do que são. A liberdade
 humana sei o que é: uma verdade da consciencia, como Deus. Por ella
 chego facilmente ao direito absoluto; por ella sei apreciar as
 instituições sociaes. Sei que a esphera dos meus actos livres só tem
 por limites naturaes a esphera dos actos livres dos outros e por
 limites facticios restricções a que me convem submetter-me para a
 sociedade existir, e para eu achar n’ella a garantia do exercicio das
 minhas outras liberdades. Todas as instituições que não respeitarem
 estas idéas serão pelo menos viciosas. Absolutamente falando, o
 complexo das questões sociaes e politicas contém-se na questão da
 liberdade individual. Por mais remotas que pareçam, lá vão filiar-se.
 Mantenham-me esta, que pouco me incommoda que outrem se assente n’um
 throno, n’uma poltrona ou n’uma tripeça. Que as leis se affiram pelos
 principios eternos do bom e do justo, e não perguntarei se estão
 accordes ou não com a vontade de maiorias ignaras. (Extr. da corresp.
 com o A. carta de 10 de dez. de 1870)

Herculano é o legitimo discipulo de Mousinho, que tanto admirava; e,
depois do que dissemos ácerca da theoria individualista, ao estudar
o primeiro defensor d’ella entre nós, parece-nos desnecessario
entrar em repetições. Já avaliámos o merecimento, já tambem vimos as
consequencias practicas de uma idéa que, supprimindo toda a especie de
authoridade collectiva, resumindo na consciencia individual a origem
do direito, funda a sociedade sobre uma nova especie do antigo _pacto_
dos juristas. Renegando o direito-divino dos monarchas, expressão
tradicional, renega a soberania popular da democracia, expressão ainda
com effeito por definir, ensaio rude, arithmetico, tyrannia brutal do
numero, imperio de _maiorias ignaras_; mas expressão embryonaria da
futura authoridade organica do Estado.

Tomando a nuvem por Juno, o individualismo não distinguia o que
necessariamente tem de grosseiro e rude um primeiro ensaio. Ainda
então as sciencias naturaes não tinham caracterisado definitivamente
o movimento das idéas do seculo, nem a verdadeira natureza organica
das sociedades humanas, outra especie de colmeias ou formigueiras;[35]
ainda o espiritualismo fazia do homem um milagre e das suas sociedades
actos voluntarios, pactuaes. Mas, inconsequente, o individualismo não
propõe afinal outra fórmula senão a do governo dos numeros brutos, das
maiorias ignaras: que ha de propôr, senão essa fórma inexpressiva de
uma força positiva indispensavel á cohesão social, desde que não ha
nas idéas um principio organico?

 Para quem tem estas crenças, a questão das monarchias e das republicas
 é uma questão secundaria. Se entende que a monarchia corresponde
 melhor aos fins, prefere-a; prefere a republica, se entende o
 contrario. Tão illegitimo acha o _direito divino_ do soberania
 régia, como o _direito divino_ da soberania popular. Para elle,
 a soberania não é direito, é facto; _facto impreterivel_ para a
 realisação da _lei psychologica e até physiologica_ da sociabilidade;
 _mas em rigor, negação_, porque restricção, nos seus effeitos, do
 direito absoluto, e cujas condições são portanto determinadas só por
 motivos de _conveniencia pratica_, e dentro dos limites precisos da
 necessidade. Fóra d’isto, toda a soberania é illegitima e monstruosa.
 Que a tyrannia de dez milhões se exerça sobre um individuo, que a de
 um individuo se exerça sobre dez milhões d’elles, é sempre a tyrannia,
 é sempre uma cousa abominavel. (_Ibid._)

Este periodo, eloquente, é revelador da energia que as idéas adquirem
quando se tornam o sangue do nosso sangue, chegando a desorientar a
rectidão ingenita da nossa intelligencia. Herculano, cujo bom-senso,
cujo saber lhe não consentiam ir até aonde logicamente manda a
doutrina, isto é, até á Anarchia systematica, negação de toda e
qualquer sociedade, apotheose do estado selvagem de quasi puro
individualismo: Herculano que não é Rousseau vê-se obrigado a chamar
conveniencia practica, ao que linhas antes dissera lei psychologica e
até physiologica do homem--a sociedade.

É que, com effeito, não basta o principio individualista para nos
explicar a physionomia intellectual de Herculano. Varias causas
concorriam para o temperar, ou desviar das suas conclusões logicas.
O saber é uma d’essas, mas a principal é o seu temperamento estoico.
Para Herculano, e em geral para o estoicismo, uma doutrina não é
um producto da intelligencia pura, que póde ser, ou não, amado e
_vivido_. O estoico _vive_ com o que pensa, o seu pensamento está
no seu coração: é a carne da sua carne, o sangue do seu sangue; é
uma fé, não é apenas uma opinião. Eminentemente forte, é por, isso
mesmo positivo e practico. As doutrinas são para elle realidades, não
são abstracções; e nada valem quando nada representem na esphera da
consciencia e da moral, quando nada valham na do direito e da economia.
Por isso as conclusões extremas do individualismo, irrealisaveis,
practicamente absurdas, immoraes até, repugnantes para o proprio
instincto, contradictadas pelo saber mais mesquinho: essas conclusões,
delicia de espiritos seccos, de philosophos abstrusos, de ignorantes
ingenuos, não podia Herculano, sabio e estoico, abraçal-as. Parava,
pois, afim de conciliar a sua opinião com o seu sentimento, e, se em
resultado saiam inconsequencias, ellas não fazem senão demonstrar a
verdadeira nobreza da sua alma e a tempera rija da sua intelligencia.

       *       *       *       *       *

Lado nenhum das suas idéas mostra isso mais do que o economico. Tão
livre-cambista como individualista, ou ainda mais, porque sentia e
temia o socialismo, vendo n’elle um positivo e declarado inimigo e o
problema vivo do futuro: ou ainda mais, dizemos, porque não parava,
nem limitava as conclusões ultimas, Herculano era radical no _free
trade_, pois acreditava firmemente n’elle como n’uma panacéa. Estoico
sempre, a doutrina da concorrencia apparecia-lhe principalmente por um
lado secundario para os economistas. O livre-cambio, proclamado como a
melhor receita para crear a riqueza, era para Herculano sobretudo a
melhor fórma de a distribuir. Queria que as leis pulverisassem o solo,
no qual não reconhecia outro valor senão o que o trabalho consolidara
n’elle; e esperava que a concorrencia, desembaraçada de todas as peias,
creasse uma sociedade proudhoniana, em que todos fossem capitalistas e
proprietarios. Como estoico, era um socialista; mas o seu socialismo
realisar-se-hia pela liberdade, pela concorrencia. E quando se lhe
contavam os casos repetidos, actuaes, do sem numero de monopolios de
facto, nascidos, não das leis, mas sim da guerra natural economica,
elle parava, scismava e não respondia.

Via-se que lá dentro luctavam a doutrina e a lucidez; e, sem se
convencer, sem mudar, apparecia o moralista invectivando os vencedores
d’essa lucta d’onde elle esperava a justiça, e d’onde apenas saía o
dolo. Ninguem o excedia então; e ao ouvil-o, dir-se-hia algum fugido de
Paris, dos tempos da Communa, pois nos referimos agora aos seus ultimos
annos, ás vesperas da sua morte, quando a agiotagem _livre_ de Lisboa
e Porto provocou uma crise bancaria. Quiz então o governo cohibir a
liberdade de emissão, mas não o pôde.

 Do folheto do meu amigo[36] o que infiro é que esses banquistas
 d’ahi são uma alcateia de tratantes e burlões e que o governo quer o
 monopolio da cousa para uns amigos seus de Lisboa que vam tratando da
 vida, mas com quem o governo se acha nos apertos trazidos por despezas
 tantas vezes, posto que nem sempre, irreflectidas e insensatas. As
 façanhas e cavallarias dos banqueiros do Porto resultam claramente
 do seu folheto: as do governo são inferencias que d’elle tira a
 minha damnada má fé.--O governo que faça a sua obrigação; que tenha
 bem azeitados os gonzos e fechaduras das cellulas e bem safas as
 escotilhas dos navios da carreira d’Africa. Por indulgencia com a
 imbecilidade humana (sejamos indulgentes) quando a tratantada fosse de
 algum banco, bastaria dissolvel-o e filar a direcção. (_Ibid._ c. de
 fev. de 77)

Pobre governo que caíu! Pobre Estado, sem força para bater-se com os
novissimos Senhorios creados pela liberdade que o philosopho prégava!
Porque até perante um claro exemplo das consequencias da concorrencia,
como que ferido por um remorso, por uma vaga duvida, Herculano insiste,
defendendo a sua opinião arraigada:

 Preto velho não aprende lingua. A questão unica de doutrina que me
 parece haver em toda essa embrulhada é a emissão de notas: se ha de
 ser livre, se restricta, se monopolisada. Liberdadeiro empedernido
 no peccado, adopta a primeira solução em toda a sua amplitude. O meu
 amigo vae para o monopolio: tambem isso é natural. O socialisto vê no
 individuo a cousa da sociedade: o liberal vê na sociedade a cousa do
 individuo. _Fim_ para o socialista, ella não é para o liberal senão
 um _meio_; creação do individuo que a precedeu, que lhe estampou o
 seu sello; porque, faça ella o que fizer, nunca poderá manifestar
 a sua existencia e a sua acção senão por actos individuaes, unidos
 ou separados. O collectivo n’essas manifestações não passa de uma
 concepção subjectiva; não existe no mundo real. (_Ibid._)

Mas, se essa liberdade expressa na concorrencia economica--a franca
emissão de notas, no caso especial tomado para exemplo: mas se essa
liberdade conduz a taes resultados, sendo em si excellente, força é que
haja um vicio no mechanismo das instituições. E ha, ha sem duvida, diz
Herculano, é o anonymato.

 Na essencia, a _banknote_ é a expressão do credito que o individuo
 attribue a si. Que se reunam 7,70 ou 700 individuos para sommarem
 essas avaliações; que se chamem banco e que exprimam collectivamente
 o total, isso não muda a essencia da cousa. Supprimia todas as
 responsabilidades _limitadas_. A responsabilidade é de sua natureza
 illimitada até onde chegam os recursos e a pessoa do responsavel. _Non
 habet in posse, dicat in corpore_, é maxima que se não devia despresar
 n’esta questão do abuso do credito. Note que eu desejaria supprimidas
 todas as responsabilidades limitadas, tacitas ou expressas, manifestas
 ou disfarçadas. (_Ibid._)

Vimos antes como o espirito do historiador erudito corrigia em certo
ponto a doutrina individualista; vemos aqui o jurista a corrigir
o livre-cambio; vamos ver o canonista a corrigir para a direita o
ultramontanismo, para a esquerda o atheismo. A educação do homem
temperava os principios do philosopho, e essas correcções eram-lhe
indispensaveis para que os seus pensamentos se mantivessem de accôrdo
com os seus rectos instinctos, com as suas bellas aspirações: eram-lhe
indispensaveis, porque o estoico não admitte divergencia entre a
intelligencia e a moral, entre o mundo das idéas e o das realidades.

Mas, se ha pouco notámos a inconsequencia, não é verdade que a opinião
de abolir o anonymato é paradoxal--fóra do socialismo que reconhece
a instituição anonyma por excellencia, o Estado? Sem anonymato, como
levareis a cabo as obras colossaes, a que nenhuma responsabilidade
individual basta? Ou condemnareis a realidade fatal em nome dos
principios? Como Herculano claramente o via, o anonymato, isto é, a
fragmentação do Estado em senhorios economicos, uma especie nova do
feodalismo, consequencia necessaria de todas as anarchias: o anonymato
é a refutação do individualismo na economia social. Destruindo toda
a propriedade collectiva, roubando ao Estado toda a força real,
resta apenas á lei um prestigio abstracto que é logo vencido pelas
influencias anarchicas ou _feodaes_ do capitalismo individualista.
Liberdade quer dizer responsabilidade; e, se uma é um principio
absoluto, a outra ha de tambem ser absoluta. Esta é a regra; e n’este
ponto não era Herculano, era a fatalidade a origem da inconsequencia.
Por cima das theorias galgam e vencem sempre os factos necessarios.

Assim no direito publico o processo das maiorias apezar de _ignaras_;
assim na economia o anonymato, apesar de juridicamente infundado,
passam por cima do individuo, da liberdade, da responsabilidade.
E, os que vêem com outros olhos os phenomenos sociaes, encontram
n’esses factos os primeiros esboços do futuro Estado, que se
reconstruirá depois de terminada a evolução natural dos principios
liberaes-individualistas. Das maiorias, organicamente representadas,
sairá a representação da vontade collectiva; das companhias,
opportunamente transformadas, sairá a unificação do poder publico. O
voto universal e o anonymato são o esboço rudo da constituição do novo
direito politico e da nova constituição economica de sociedades em
que o liberalismo destruiu as instituições de protecção e o direito
monarchico.

       *       *       *       *       *

Com fundado motivo dizia Herculano que perante os principios--liberal
e socialista, ou individualista e collectivista--era indifferente
a questão das fórmas do governo: «pouco me incommoda que outrem se
sente n’um throno, n’uma poltrona ou n’uma tripeça». E essa questão da
republica ou monarchia, é para elle um problema não só historico, mas
tambem religioso.

 São na essencia o mesmo o calvinismo e o puritanismo, e o calvinismo
 penetrou tão profundamente na vida moral dos suissos, como o
 puritanismo nas antigas colonias inglezas emancipadas. Mas o
 calvinismo e o puritanismo que são, senão a democracia republicana
 na sociedade espiritual? A vida politica das duas sociedades foi,
 digamos assim, uma prolação da sua vida moral. Quando as instituições
 e as idéas politicas de um povo derivam das suas crenças e
 instituições religiosas, a manutenção tenaz das primeiras nada tem de
 extraordinario. (_Ibid._ c. de 15 de nov. de 72)

Pondo de parte, pois, a questão da opportunidade no momento de uma
crise, a republica não parecia a Herculano adequada «á velha Europa,
sobretudo a estas sociedades meio-germanicas na indole e celto-romanas
na raça[37] que estanceiam ao occidente ... educadas pelo catholicismo
que, na pureza da sua indole é o typo da monarchia representativa».
(_Ibid._)

A tradição religiosa, ou antes aquella pseudo tradição de um
catholicismo liberal inventada pelo romantismo, servia, pois, ao
philosopho para temperar o seu individualismo, conciliando-o com
um resto de authoridade social consagrada nas prerogativas do
throno representativo. De tal modo se combinava o racionalismo com
o romantismo, e este traço é o que dá a Herculano, ou antes á sua
doutrina, um caracter de individualidade original, depois do ensino
apenas racionalista de Mousinho da Silveira.

Tambem o temperamento entrava, ao lado da educação, para acabar de
afeiçoar a physionomia religiosa de Herculano. O mechanismo do frio
Deus kantista não bastava á sua indole peninsular. A imaginação
pedia-lhe a antiga historia tradicional; o sentimento reclamava o quer
que é de affectuoso e meigo--a doce caridade catholica--e o bom senso
exigia o culto e pompa que impressionam as massas. O protestantismo,
alvo das suas acerbas satyras, não satisfazia a sua alma, nem as suas
exigencias de canonista. Nada propenso ao mysticismo, e até rebelde
a comprehendel-o fóra da caridade practica, via, porém, na religião
principalmente a Egreja--instituição e disciplina. Roma e a politica
ultramontana, n’isto se resumia para elle a historia do catholicismo a
partir de certo concilio em que pela primeira vez se infringiram certos
canones. Por este lado, o seu pensamento, aliás tão grave, aproxima-se
mais do espirito superficial e em demasia negativo do seculo XVIII,
do que do espirito placido e comprehensivo do seculo em que vivemos.
Fazendo da questão religiosa uma questão de datas e leis, marcava a éra
em que a Egreja começara a mentir ao seu papel, e aos que lhe falavam
em nome do Espirito, respondia com a Historia: a morte veiu achal-o
occupado na empreza van de converter um rapaz mystico e catholico.
Tinha odios ao papado, e a paixão do sectario, quando se erguia
contra os desvarios dos seus contemporaneos, cegava-o até ao ponto de
desconhecer o passado e de applicar as fórmulas da nossa éra a todas
as edades. Assim, para elle, a solução da questão religiosa estava no
regresso ao puro espirito do catholicismo _representativo_, religião
que concebia como canonista e não como philosopho. Punha Döllinger
muito acima de Luthero; Hegel, Feuerbach ou Strauss mereciam-lhe apenas
um sorriso desdenhoso.

Esta maneira, evidentemente incompleta, de comprehender a religião
levava-o a consideral-a, por um lado, como cousa puramente individual,
e n’este sentido apoiava a celebre fórmula «Egreja livre no Estado
livre»; em quanto por outro, olhando-a como instituição positiva, a
julgava simples materia administrativa. O publicista liberal assustado
pela força da Reacção, cujo verdadeiro caracter não percebia,
erguia-se, pois, para debellar com leis o que só a prégação moral
póde encaminhar e dirigir, jámais vencer: a irresistivel tendencia do
espirito collectivo para affirmar religiosamente a sua unidade.

A Liberdade, supposto principio que para elle resumia a essencia de
um espirito racional e absolutamente consciente, era afinal o seu
verdadeiro e intimo deus. É essa a religião do estoico; e o deus
da _Harpa do Crente_ é um ser eminentemente livre que por um acto
de vontade absoluta creou tudo o que existe: o deus do estoico é a
divinisação da personalidade. E, como todos sabem por quanto esta
antiga philosophia entrou na formação do christianismo, é desnecessario
mostrar, desenvolvidamente como e até que ponto, Deus era para
Herculano o deus christão.

       *       *       *       *       *

Duas palavras agora ácerca do escriptor: duas palavras apenas, porque
não tratamos da historia litteraria, mas temos de nos occupar de
litteratura, sempre que ella influe, como n’este caso, na vida geral ou
total da sociedade.

Obras de tres naturezas diversas nos revelam pelo estylo tres
physionomias distinctas. A primeira official e grave, são os seus
trabalhos historicos, onde o periodo redondo e classico, mas sem
affectação quinhentista, se desenvolve alimentado pelos _caldos
de Vieira_ que nos receitava, a nós os moços, para educar a mão. A
segunda são os seus romances e escriptos humoristicos, onde, mal
ataviado o periodo jesuitico, ás vezes combinado com fórmas e _tours_
extrangeirados, transparece sempre o _gout du terroir_, o cunho de
portuguezismo duro e pesado, mais aggressivo do que engraçado. Na
terceira, finalmente, em nossa opinião a mais bella; nos escriptos
de polemista, a phrase rotunda é quente, a aggressão é viva, as
palavras têem calor, e a dureza do genio lusitano acha nos sentimentos
expressos em orações duras, uma convicção, uma independencia que a
ennobrecem. Ouve-se a voz do estoico, e ha uma harmonia perfeita entre
o pensamento profundo, grave e forte, e o estylo redondo, sobrio e
nobre. A rhetorica classica é o molde proprio do classico pensamento
estoico. Mas entre estas obras ha uma, uma unica, (_Carta á Academia
das sciencias_) onde o homem intimo, sensivel, caridoso e simples, esse
homem que nós esboçámos fugitivamente, porque a vida, a educação, o
temperamento, de mãos dadas concorriam para o subalternisar ao homem
estoico: ha uma, dizemos, em que as palavras não falam apenas, choram
e vociferam, têem lagrimas e imprecações e ironias. Ferido no vivo
coração da sua existencia, o homem poz no papel o melhor do seu sangue.
O que o genio do artista obtem com intuição, consegue-o o poeta com
emoção. A _Carta á Academia_ é tão bella como as melhores das poesias
intimas de Herculano.

Para elle que, como lusitano, nada tinha de artista (prova, os seus
romances), a litteratura era uma missão e não um dilettantismo. O
universo, a historia, a sociedade não se lhe apresentavam como assumpto
de estudos subtís e curiosos, de observações finas ou profundas,
de quadros brilhantes, vivos ou commoventes; mas sim como objecto
de affirmações ou negações, inspiradas pela convicção estoica. Nos
seus livros póde seguir-se ao mesmo tempo o desenvolvimento do seu
pensamento e a historia da sua consciencia. São o retrato da alma do
author, ora apaixonada, ora melancholica; quasi sempre triste, mas
sempre convicta, energica e franca.

As _Poesias_ e o _Eurico_ revelam-nos o crente na providente liberdade
de um Deus poderoso e justo, a alma rijamente temperada contra o acaso
funesto, o coroação aberto ás emoções da natureza que se lhe manifestam
com o caracter de uma fatalidade cruel e de um desabrimento cego. Deus,
a Natureza o Homem, são, n’essas obras, personagens de uma tragedia
biblica, tendo a tempestade rouca por musicas e por fundos de scena
bulcões de nuvens negras a velar o azul do céu.

Vêem depois na obras polemicas, vasta e riquissima collecção (reunida
nos _Opusculos_, I-IV e segg. em via de publ.) que patenteia a omnimoda
actividade do pensamento de Herculano, e lhe dá o caracter de um
philosopho, cujo pensamento, em vez de se manifestar em tratados,
se exprime em controversias. Profissionalmente, era historiador. A
_Historia de Portugal_ e os trabalhos que com ella formam o corpo
dos estudos do erudito (a _Hist. da Origem e Est. da Inquisição_; os
opusculos sobre a batalha de Ourique; o _Do estado das classes servas_;
os diversos ensaios no _Panorama_; o ined. sobre o feodalismo em resp.
a Cárdenas; as edições da _Chron. de D. Sebastião_, de Bernardo da
Cruz, dos _Annaes de D. João_ III, de Fr. Luis de Sousa, do _Roteiro
de Vasco da Gama_; a collecção dos _Portugalliæ monumenta historica_;
etc.[38]) são a obra mais importante do escriptor e o solido
fundamento do seu nome immorredouro na historia litteraria portugueza.
Reunindo a um saber geral vasto e forte a paciencia do erudito e o
escrupulo do critico, esses trabalhos não respiram a seccura pedante do
especialismo; e, se não constituem nem podem constituir uma historia
nacional, fizeram com que os problemas das origens sociaes e politicas
da nação portugueza fossem por uma vez resolvidos. A historiographia
peninsular tem em Herculano o seu mais illustre nome: um nome que
se conservará ao lado do de Mommsen ou de Guizot, cujos golpes de
vista comprehensivos partilhava; e do de Thierry, a quem acompanhava
na faculdade de representar vivas, nos seus habitos, costumes e
leis (senão em sua alma, como um Michelet) as passadas gerações;
avantajando-se a ambos na coragem com que arcou com o trabalho improbo
de colligir, coordenar, traduzir, interpretar os monumentos historicos
de um povo que não tivera benedictinos eruditos. Robinson de nova
especie, Herculano achou-se como n’um paiz deserto e teve de descobrir
os materiaes antes que podesse pôr mãos ó obra.

Prodigio de trabalho, de saber, de paciencia, de talento, a _Historia
de Portugal_ é um monumento; entretanto, devemos dizel-o, se quizermos
ser inteiramente justos, mais de uma cousa lhe falta, para poder
ser considerada um typo, e o seu author um grande historiador, como
um Ranke. Falta-lhe ar na contextura sobrecarregada de discussões
eruditas; falta-lhe, sobretudo, aquella alta e serena imparcialidade,
aquellas vistas rigorosamente objectivas, aquella isenção critica,
impassivel perante as escholas, os systemas, os partidos, sem a qual
a historia deixa de o ser. Herculano peccava, com toda a eschola
romantica, Guizot á frente, porque a opinião e a politica de mãos
dadas o levavam a fazer da historia da Edade-media uma apologia do
systema representativo. Como Guizot, tambem estoico, Herculano era
demasiado convicto e apaixonado para poder prescindir de si, das suas
crenças, das suas opiniões. Levava, pois, para o estudo do passado as
preoccupações do presente, porque essas preoccupações eram a essencia
da sua vida moral. O romantico de 30, o liberal ardente, o soldado da
CARTA, enfatuado com as suas theorias constitucionaes e municipalistas,
tinha de condemnar _in limine_ a centralisação monarchica dos seculos
XVI e XVII, consequencia indiscutivelmente necessaria, consequencia
europêa da Edade-media e preparação dos tempos modernos.

Além d’isto, ha uma falta de nexo na _Historia de Portugal_, resultado
do modo como primeiro foi concebida. «Eu comecei por imaginar apenas
uma historia do povo e das suas instituições, alguma cousa no genero da
_Histoire du tiers état_, de Thierry, mas mais desenvolvida--dizia-nos
Herculano--porém tendo colligido materiaes para a primeira epocha,
vi que possuia n’elles tudo o que era necessario para a historia
politica: d’ahi veiu a resolução de escrever uma _Historia de
Portugal_». É por isso que as duas faces do livro se não ligam; é por
isso que os homens e os seus actos nos apparecem como um appendice,
subalterno, indifferente, dando a impressão de que se tivessem sido
outros e diversos, nem por isso a vida anonyma da sociedade poderia
ter seguido rumo differente. E, se não vemos a acção dos elementos
voluntario-individuaes ou fortuitos sobre os elementos sociaes,
nem a inversa, perdendo assim a historia o seu caracter eminente
de realidade, juxtapondo artificialmente, a uma chronica veridica
desinçada dos erros e das invenções fradescas, uma dissertação
erudita sobre o desenvolvimento das instituições: succede tambem que
a apreciação dos elementos moraes, crenças individuaes, phenomenos de
psychologia collectiva, é feita á luz de doutrinas quasi voltairianas;
e, no avaliar das lendas religiosas e da acção do clero, o historiador
prescinde de profundar os motivos moraes, ou cede a palavra ao sectario
que nos bispos e em Roma não vê outra cousa mais do que sacerdotes da
astucia e uma Babylonia de perversão.

Tal foi a _Historia de Portugal_ que o romantismo concebeu;
e demorámo-nos tanto sobre ella porque vimos ahi um symptoma
caracteristico para apreciar o valor d’essa fórma de Liberdade que
teve em Herculano o seu derradeiro e mais illustre sectario. Para o
romantismo, a renovação social era uma volta a tradições scindidas
pela monarchia absoluta: já o dissemos, e não é portanto necessario
repetil-o. E essas tradições que deviam ser--oh, singular confusão da
intelligencia!--o alicerce de uma liberdade racionalista, inspiravam
a Garrett o _Frei Luis de Sousa_, elegia mystica, e a Herculano um
fragmento de _Historia_ para uso dos sabios, apenas popular por ter
sido mais um ataque ao catholicismo tradicional portuguez.

       *       *       *       *       *

O clero pagou com guerra o odio que o historiador lhe dispensava nos
seus livros aggressivos. Conjuraram-se os padres, e Portugal assistiu
a mais um protesto do espirito antigo, inconvertivel, impenitente.
Em vez de congregar o povo na communhão de um pensamento nacional,
a _Historia_ saía como uma arma de combate. As tradições vivas,
possiveis, eram todas inacceitaveis, como o leitor já sabe. As
guerrilhas do Minho em 46 foram trucidadas em Braga, mas o enraizado
espirito catholico não se podia vencer nem com armas, nem com livros:
só acabaria com os caminhos-de-ferro, com as pontes e estradas, com a
Regeneração utilitaria, materialista e practica.

Herculano, vendo-se isolado, vendo no pulpito o padre excommungando-o,
no governo «o bom homem que, nas horas vagas de certas funcções
elevadas, espairecia os tedios da vida revolvendo com o bico da bota
a velha corôa de D. João I n’uma celha de lodo que viera do Tibre»;
Herculano, clamando sem ser ouvido, a Sá-da-Bandeira: «Acorda, moderno
Bayard, que te matam!» (_A reacção ultramontana_, 1857) abdicou e
homisiou-se, levando para a sua thebaida a crença na ruina fatal. Os
antigos não se convertiam, os novos entregavam-se de corpo e alma á
Regeneração: elle, só, chorava as desgraças da patria que saía da
sacristia para entrar na tavolagem, trocando a egreja pela bolsa,
e os bentinhos e os rosarios pelos arrebiques dos peralvilhos e
pelas tabuadas de financeiros: o Breviario pelos Melhoramentos.--E o
evangelho? oh, gente perdida! E a justiça? e a moral? e a liberdade?
e a poesia? A turba não podia mais ouvil-o: com a liberdade fôra-se a
religião; com o romantismo salvador, a perdida nação jesuita! Velhos e
novos, de mãos dadas, adoravam o deus novo--Regeneração! cujo sacerdote
em Rodrigo, Fontes o diacono, e Saldanha o idolo bem fardado.

Herculano abdicou, pois. Durante o periodo que medeiou entre a sua
abdicação e a sua morte, o espirito europeu, abandonando a vereda
romantica de um subjectivismo que desde 89 assolava o mundo com
revoltas, restauradas as sociedades latinas pelo utilitarismo
imperialista que as enriqueceu outra vez: o espirito europeu, dizemos,
retemperou-se na tradição naturalista, constituindo um corpo inteiro de
conhecimentos novos, transformando os methodos das sciencias, esboçando
philosophias originaes. O antigo estoico, o kantista de 30, com as
suas idéas exclusivas, com o seu racionalismo frio, com o seu methodo
subjectivo, com a sua comprehensão formal das cousas, com o seu deus
mechanico, e a sua liberdade dogmatica: homem como que abstracto, vendo
os homens fóra do mundo e da evolução, como um milagre divino: esse
homem, solitario em Val-de-Lobos, adorado por quantos o conheciam,
estudado como um monumento da historia por muitos dos que o tractavam,
não podia mais dirigir a educação da gente nova.

Nem o conhecimento intimo da natureza viva obtido pela sciencia, nem o
sentimento ideal do Universo, profundado pelas philosophias allemans
(concepções até agora oppostas, mas que o tempo approxima todos os dias
e virá a combinar afinal); nenhuma das acquisições fecundas do espirito
humano nos ultimos quarenta annos, poderam destruir no pensamento de
Herculano o systema granitico das suas idéas. O maravilhoso corpo
de sciencias philologicas que a Allemanha construira e que são como
que a embryogenia das sociedades e suas idéas politicas, juridicas e
religiosas, revelando uma biologia social tão positiva e verdadeira
como a zoologica, mostrando-nos a sociedade como realmente é--um
organismo vivo: esse mundo novo do saber que destruia o individualismo
e apeiava do seu throno a Liberdade, não só era desconhecido para o
solitario estoico, mas era objecto das suas ironias melancolicas--«os
desvios das symbolicas, das estheticas, das syntheticas, das
dogmaticas, das heroicas, das harmonicas, etc.» (Corr. com o a. _carta
de 1869_) em que «lhe faria pena vêr perdido» qualquer escriptor moço.

E quando, elle que observara impenitente o velho Portugal,
abandonados ao lodo utilitario os seus coevos, via tambem a mocidade
mediocremente respeitosa por essa religião do Individuo que era a
sua; quando via as tendencias centralistas e socialistas,--confessas
ou inconscientes--dominarem nos governos e opposições, nos partidos
conservadores e nos revolucionarios, elle chorava, outro Isaías, sobre
as ruinas do templo abatido, sem reconhecer que as pedras d’esse
edificio derrubado já começavam a formar um novo monumento.

 Meu amigo; provavelmente não tardará muito que eu vá dar um passeio
 ao outro mundo sem tenção de voltar. Passado um seculo, é muito
 possivel que o liberalismo tenha desaparecido. As gerações precisam ás
 vezes retemperar-se nas luctas da anarchia ou nas dores da servidão:
 concentram-se para a explosão calcadas sob o pé ferreo da força
 brutal. Deixe-me levar, para me entreter a ruminal-a pelo caminho, a
 convicção de que, entalada entre duas betas negras,--a tyrannia em
 nome do céu e a tyrannia em nome do algarismo,--surgirá como um foco
 de luz, nas paginas da historia, a epocha em que se proclamavam os
 direitos individuaes absolutos e imprescriptiveis, embora as paixões
 humanas nem sempre os respeitassem. (Ibid. carta de fev. de 77)

Mezes depois morria; mas esse fóco de luz não se extinguia, porque
entre os varios symptomas da vida organica de uma sociedade está o
respeito e a admiração pelos seus grandes homens. Esse fóco de luz
não se extinguia tambem--ainda hoje o dos estoicos da Antiguidade nos
allumia!--porque os direitos individuaes são funcções imprescriptiveis
do organismo social, embora não sejam a expressão summaria da
sociedade; porque as duas betas negras, se têem essa côr quando o
desvairamento dos homens ou a fatalidade das cousas dão lugar á
tyrannia, têem realmente côr diversa, uma côr viva e pura! São a
propria existencia do organismo collectivo, destruido sempre que deixar
porém de ter uma unidade moral e economica, uma authoridade positiva,
eminente, real, e poderosa. Assim é nos centros nervosos do animal que,
recebendo as impressões externas as unificam, as synthetisam, e d’ahi
imprimem a acção, a vontade e o pensamento ao homem, que é tambem,
dizem-no os naturalistas, uma sociedade de individuos physiologicos.

No declinar da vida, teria fraquejado a convicção do estoico? Batido
por tantas e tão variadas tendencias: umas que odiava sectariamente,
outras que justamente condemnava, outras finalmente que a sua alma
nobre e bondosa instinctivamente respeitava; contrariado pelo passado
catholico, pelo presente _regenerador_, e por um futuro que reconhecia
conquistado para o socialismo--não hesitaria? Quem sabe? Não houve
alguem que em palavras espontaneas, irreflectidas, lhe descortinasse,
ou um symptoma de duvida intima, ou um vislumbre de conversão? Talvez
houvesse. Como porém morreu sem se confessar, a pedra do tumulo guarda
esse segredo. Antes de expirar disse apenas: «Isto dá vontade de
morrer!» Traduza cada qual o enygma ao sabor da sua opinião.


NOTAS DE RODAPÉ:

[33] O que se conta, sempre que a origem se não cita, provém da
narrativa que ha cinco ou seis annos o seu chorado mestre e amigo fez
verbalmente ao author.

[34] V. _Os dois mundos_, out. de 77.

[35] V. _Elem. de Anthropol._ (2.ª ed.) pp. 195-7; e _Inst. primit._
V-VII.

[36] _ed. reorgan. do banco de Port._

[37] V. _Hist. da civil. iber._; introd.--_Hist. de Portugal_, l. 1, 3.

[38] V. _Hist de Portugal_; _app._ 111.




II

A LIQUIDAÇÃO DO PASSADO


1.--A RAPOSA E SUAS MANHAS

Enxutas as lagrimas devidas á memoria do ultimo dos liberaes, passemos
a tratar dos vivos, _regenerados_. Como um Saturno devorador dos
filhos, assim a Liberdade tragara os melhores dos seus: Mousinho,
Passos, Cabral, Herculano--tudo victimas! Dos antigos, para herdar os
restos, ficam apenas dois bastardos: Saldanha e Rodrigo o sceptico, nem
liberal nem cousa alguma, sem doutrinas, sem illusões, com o instincto
negativo apurado pelos annos, e a dura licção de 42 presente.

Figura perfida, sulcada pelas rugas da edade e pelos antigos despeitos
reprimidos, é a imagem do Portugal velho catholico e liberal, da nação
que tudo abandona, de tudo descrê com um riso de ironia amarga. A
face é a do beirão, quadrada, cheia e forte; mas os labios finos não
exprimem colera senão desdem, e nos olhos vivos ha largas revelações de
intrigas miseraveis, de podridões sabidas, ha dardos que atravessam o
recalcitrante dizendo-lhe: vi-te em tal dia, conheci-te em tal hora: se
te sei podre, porque vens falar-me em honra? Sem o dizer com a bocca,
insinuava-o com o olhar; e depois de submetter o hypocrita que lhe
falava, apertava-lhe as mãos ambas, com sorrisos o palavras meigas,
confessando a sua amisade.

De tal modo imperava sobre todos; e como, sem preconceitos
doutrinarios, dizia sempre que sim, cortando uma situação difficil
com um dito, quando não era possivel um emprego, todos rodeavam o rei
novo, acclamado pela mesquinhez universal. Elle era a unica das velhas
arvores altos que o tufão liberal deixára de pé; e, vendo sobranceiro
as cabeças rasteiras que o vento não dobrara, porque a insignificancia
é resistente, tinha com a sua ironia desdenhosa o contrario das
coleras: uma compaixão protectora pela sua côrte reles. Costa Cabral
fôra a imagem da Antipathia; Rodrigo era a mascara do Desprezo. Já
edoso quando a victoria o coroava, como acompanhara a Liberdade desde
26 assistindo-lhe á nascença e á vida, conhecia-a bem por dentro, sabia
como era feita. Auscultara muito a Urna. Tomara o pulso á Opinião. E,
medico perspicaz, vendo que a molestia era organica, só receitava _pro
forma_, para satisfação da familia, certo de que todos os medicamentos
eram vãos. No decurso da vida de antigo boticario politico,
experimentara já o effeito de todas as tisanas e simples: tambem tivera
nos Brandões os seus bandidos, tambem _fizera_ eleições como os mais.
Mas levara um cudilho do Costa-Cabral, o atrevido!--levara um cudilho,
elle o homem de outra geração. A Liberdade pedia sem duvida tratamento
diverso. Diz-se que preferiu comprar os deputados como as casas: depois
de feitos.

A sua astucia tornava-o popular, as suas manhas celebre. O povo
chamava-lhe rapoza. Raros o odiavam--só algum _caturra_ como Herculano:
elle, tambem, encolhia os hombros, sorria. Lá por dentro é natural
que respeitasse; e quem sabe se o mundo em 51 fosse outro, se elle
tambem não seria diverso? Os homens, o tempo, a doutrina, de mãos
dadas, porém, concorriam para tornar opportuna a efflorescencia do
scepticismo, o reinado da ironia, a victoria de um cesarismo que em uma
nação de empregados só podia ser burocratico. Rodrigo era um Morny de
secretaria, e no _imperio_ portuguez, Saldanha, o Saint-Arnaud, tinha
um papel secundario, de parada apenas.

Valia muito pouco; estava já velho e em demasia desacreditado, o
marechal, para poder alguma cousa: vivia á sombra da authoridade
consolidada do politico. E Rodrigo tinha de pessoalmente representar
scenas de comedia para lhe acudir, porque esse _vulto_ era
indispensavel aos seus planos: elle bem subia que a nebulosa Liberdade
era uma illusão fugaz, que o culto da chimera exigia sombras por
sacerdotes, e que o mais conveniente e pratico para marear o barco
portuguez era fazer do governo uma peça de theatro. O povo ouviria os
actores gravemente mascarados dizer os seus papeis, olharia o scenario:
bastava. A sinceridade estava condemnada por vinte ou trinta annos
de tentativas varias e diversas, qual d’ellas mais infeliz. Rodrigo
era o melhor actor do seu tempo. A edade, o trajo antigo, o aspecto
desembargatorio não o deixavam confundir com os peralvilhos moços. O
povo como que via n’essa face barbeada, com os collarinhos desafiando
as orelhas, um collete grande e antigo, a sobrecasaca de amplas abas
pendentes, as calças de ganga amarella classica, uma imagem de outros
tempos, chorados sempre, apezar de tudo! Os infortunios dão por via
de regra aos povos, e principalmente ao portuguez apathico, miragens
doiradas do passado, dos bons dias fugidos! Violento, o portuguez não
tem o temperamento revolucionario, nem conservador: tem o genio d’onde
sahiu o sebastianismo.

O aspecto _antigo_ do ministro era mais um motivo de exito para o actor
perante o seu publico. As galerias ouviam-no; e a sua gravidade, a
sua mansidão, seduziam. Nos seus bancos, os pares, os deputados como
comparsas nos bastidores, sublinhavam as phrases do eximio actor,
confessando o talento, applaudindo a arte irresistivel. Assim os odios
se fundiam em risos, assim o riso como uma esponja lavava as nodoas,
assim esquecidos os crimes tão benignamente perdoados, os réus passavam
a sentir-se outros, puros, e uma vida nova saía dos labios ironicos,
nunca abertos para o sarcasmo nem para a accusação.

Por isso, quando o conde de Thomar, o velho rival outr’ora (42)
vencedor agora vencido para sempre, tornou á camara como um dos
sete dormentes acordado, e quiz ainda entrar no combate com as suas
antigas armas já embotadas, reptando o marechal, expondo o sudario das
suas traições: Rodrigo com a bonhomia mansa e a gravidade affectada
proprias do palco, levantou-se para defender o homem, presidente que
fardava a situação, mas sem o exaltar, para o não perder.--«Para
se enriquecer, Saldanha!» dizia com lagrimas sentimentaes na voz;
Saldanha tão boa-pessoa!--«E entre todos os incentivos que imperam no
coração do homem, só o digno par achou essa da mais indigna vileza,
para o attribuir ao seu adversario?» Pausa: com ar concentradamente
triste, soltava logo o dardo: «E quem d’este modo argúe, como poderá
ser julgado?» (Disc. de 14 de fev. 1854) O ferro tinha dois gumes:
um feria em cheio o indiciado de roubos; o outro abria no coração de
todos a porta da contrição, demonstrando a urgencia de pôr ponto a um
systema de recriminações crueis que os desacreditavam a todos perante
as platéas. As roupas sujas lavam-se em familia: não é proprio fazel-o
á vista do publico. Decóro, senhores! Tape-se a bocca a esse villão
importuno que desconhece as regras da boa sociedade e nos compromette.
Cada qual sabe de si e Deus de todos: para que o ha de tambem saber
o povo? Esperaes que depois d’isso nos respeitará mais e se deixará
governar melhor?

Taes eram as conversas dos bastidores que se exprimiam na scena em
estylo mais solemne. O ministro affligira-se muito, ao ouvir o digno
par (com uma cortezia) dizer que o duque de Saldanha havia descido
ao campo da revolta porque tinha fome e queria enriquecer-se.--Que
temeridade, meu Deus! Pois seria crivel tão grande infamia? Para
enriquecer-se o duque de Saldanha!--Pausa: que ao mesmo tempo
desacreditava o proprio duque, e o defendia. E depois, n’um tom
importante e grave de homem d’Estado: «Esta phrase proferida pelo
digno par affigura-se-me de grande impropriedade, filha de notavel
hallucinação, e que póde ter consequencias pessimas», perfidamente
sublinhadas. (Disc. de 14 e 16 de fev. de 1854)

Chegara a Rodrigo a hora de desforrar o antigo beijo de 40 na face do
seu émulo d’então. Os tempos, afinal, tinham trabalhado, preparando
pouco a pouco ao vencedor, por uma dissolução evolutiva das fórmulas
successivas de Liberdade, o throno de cynismo sobre que reinava. A
sinceridade batalhara com armas, depois com improperios, sem conseguir
vencer, conseguindo apenas matar na vida, na fé, no juizo, ou no
caracter, os varios combatentes. A arena estava cheia de mortos, e os
espectadores saciados de espectaculo. Depois de tragedias de sangue,
houvera melodramas de phrases: agora vinha o entremez final. Depois
do terramoto de 34 que havia de restaurar a nação, as guerras e os
debates, a Espada e a Urna de mãos dadas tinham consumado a ruina.
Todos choravam frio e fome. A penuria é má conselheira. Uma nação
exangue póde ter coleras epilepticas--tiveramol-as em 28--mas não é
capaz de força. Por isso a Liberdade acaba entre nós n’uma Regeneração,
em vez de acabar, á franceza, n’um Imperio. Mas, cá e lá, o que vence é
um cesarismo, militar ou burocratico, segundo as condições dos paizes;
um cesarismo que além nega, e aqui apenas sophisma as instituições;
um cesarismo que além opprime e corrompe, e aqui intriga corrompendo
tambem; um cesarismo que em ambas as nações vence, porque a ambas dá,
em vez de fórmulas, pão.

Rodrigo era um Morny, já se disse; Saldanha um Saint-Arnaud, peninsular
e catholico; o moço Fontes, iniciado como Rouher, viria a ser o
futuro vice-monarcha. Mas Napoleão, rei, imperador, cesar, quem era?
D. Maria II? Não; a nobre, infeliz senhora chegava opportunamente ao
fim (15 de nov. de 53) da sua vida atribulada. A sua coragem viril,
o seu levantado caracter, as suas virtudes, a sua intelligencia
forte e recta faziam d’ella o contrario dos Cesares, por necessidade
scepticos. A rainha era a sinceridade viva. Tambem concebera de certo
modo o liberalismo; e, como tinha no temperamento a virilidade, no
coração a virtude, na imaginação as licções aprendidas n’um berço
coroado, empenhou-se na lucta, lançou mais de uma vez a corôa na
balança--lançaria a espada se podesse usar-a!--para fazer vingar o
_seu_ liberalismo. E se não tivesse sido tão pessoalmente virtuosa, é
de crêr que, apesar do auxilio repetido dos extrangeiros que depois de
a sentarem no throno mais de uma vez a sustentaram n’elle, é de crêr,
dizemos, que tivesse tido uma sorte diversa.

D. Maria II, pois, não tinha o temperamento cesareo. Talvez que tambem
a edade e as licções do tempo a viessem a converter á apathia, mas essa
prova foi desnecessaria porque morreu a proposito, deixando o throno ao
nosso Napoleão III--D. Fernando: humano, _viveur_, sceptico, artista,
cheio de intelligencia e de _humour_, vasio de fórmulas, vasio de
crenças, _moderno_, e bom. Como um Cesar, desceu do paço e affectando
um aristocratico plebeismo, passeava a pé fumando o seu charuto ...

Não era uma positiva regeneração, oh manes de D. João VI chocalhado
no seu coche doirado, com a escolta de cavallarias chouteando? Eis a
_verdadeira_ liberdade! eis o reinado da paz e da fartura!


2.--A CONVERSÃO DA DIVIDA

Este é o euphemismo liberal com que se denomina a ultima banca-rota
portugueza--urgente, inadiavel, já desde annos reconhecida por
muitos como a unica solução, não só para saír do circulo vicioso das
agitações, como para entrar no caminho da pontualidade financeira
indispensavel á regeneração economica do paiz, exclusivo proposito
actual da politica cesareo-burocratica portugueza. Se nós em 36
já tinhamos tido o nosso 48, tambem tivemos com vinte annos de
antecedencia um opportuno Salaverria. (Voltará elle, d’aqui por tempos?
É natural; parece inevitavel.[39])

O acto addicional á CARTA proclamado dictatorialmente, evitando as
constituintes, era afinal a banca-rota de vinte annos de revoluções: um
minimo de reformas politicas sufficientes para pacificar os partidos
que já não pediam senão paz. A conversão foi o acto addicional da
Divida, que era o duro commentario do codigo de 26. As duas medidas,
iniciando uma edade nova, completavam-se: eram a liquidação do passado
financeiro e politico e o prologo da edade presente.

Entre as varias causas das desordens successivas dos tempos anteriores,
a mendicidade do Thesouro de uma nação mendiga foi, como temos dito, a
principal. Casa onde não ha pão ... E das revoltas e crises resultava
uma aggravação sempre crescente da ruina publica. A divida, com a sua
historia accidentada, retratava esta situação. Como o leitor sabe, a
CARTA comprara-se com uma guerra paga a emprestimos em Londres. Ganha a
victoria sobre um paiz inimigo e confiscados os bens das instituições
abolidas, nem se lhes pudera applicar o valor para amortisações, por
ser necessario para retribuir os serviços e crear partido; nem se
pudera pedir á nação exhausta o necessario para os gastos ordinarios,
porque era conveniente fazer crêr que a CARTA supprimia o imposto.
Talvez assim o camponez se convertesse.

Quando o setembrismo venceu, a situação appareceu outra. Condemnado
o principio de viver de emprestimos, os democratas acharam no
proteccionismo fabril uma arma duplamente util: os direitos pautaes,
fomentando a creação de fabricas, creavam batalhões de operarios
democratas, e davam ao Thesouro uma receita importante. Mas, por
engenhosa que fosse a combinação, nem o setembrismo tinha um Pombal
nem sobre tudo teve em Passos um fazendista. Continuou-se a pedir
emprestado; e á maneira que as cousas inclinavam para a _Ordem_, iam
tambem inclinando para o _Ponto_. De 37 a 40 havia sete semestres de
juros por pagar.

Com os crédores nacionaes bem iamos, porque, sabendo-se que o reino
não tinha que emprestar ao Thesouro, o descredito não prejudicava
a economia da divida. Eram mais pensionistas em atrazo. Mas com os
crédores londrinos o caso mudava, porque, depois de quatro ou cinco
annos de tentativas estereis, era mistér confessar que José da Silva
Carvalho tinha razão, e que só do dinheiro extrangeiro se podia esperar
a regeneração economica do reino. Ora como nos emprestaria dinheiro
quem reclamava o juro e não o conseguia? A divida externa era, pois,
duas vezes grave como problema: já por isto, já pela importancia
absoluta. (V. Bulhões, _Divida port._) Em 38 chegava a 53 mil contos,
ou quasi doze milhões sterlinos, sendo quatro e meio de 5 e o resto
de 3 por cento. E no fim de 40, aggravada com os _coupons_ por pagar,
attingia a somma de £12.358:000.

Não perguntemos agora que valor real de dinheiro effectivamente
importado representam estes numeros. Um terço? muito menos.
Lembremo-nos de que os emprestimos ulteriores tiveram em grande
parte por fim pagar os encargos dos anteriores; e talvez não erremos
suppondo que de 12 milhões só 2, quando muito, se teriam visto em
Portugal. E isto, convém dizel-o, para salariar tropas, salvo o que
serviu á amortisação do papel-moeda. Não nos demoremos porém agora em
calculos. O facto era dever-se. Fôra o dinheiro mal comprado e peior
applicado? É evidente que o crédor nada tinha que vêr com isso. A nossa
ingenuidade não nos consentia especular com a propria ruina, e quando
o pensassemos fazer, errariamos; não só porque a Inglaterra crédora
mandava no governo ordeiro, como porque sempre tinha de curvar a cabeça
quem não meditava senão em obter novos emprestimos.

De tal situação nasceu o decreto de 2 de novembro de 40, primeira
tentativa da regeneração. Era ao tempo em que Costa-Cabral já decerto
planeava a sua restauração da CARTA; e com ella e com a escala
ascendente, com a ordem na politica e na finança, esperava iniciar o
utilitarismo, fazendo do velho Portugal sebastianista uma Belgica. O
leitor sabe já porque e como este plano falhou com o doutrinarismo.
Por detraz da Liberdade, cujos systemas eram como as nuvens rotas que
muitas vezes fluctuam ao nascer do dia, levantava-se o sol vencedor,
o sol utilitario que as dissiparia todas. O leitor sabe como foi a
crise, mas não lhe dissemos ainda os termos da combinação em que vivia,
socegada, a divida externa.

O decreto citado consolidava os _coupons_ em atrazo e convertia ao
typo de 5 p. 100 toda a parte da divida de 3, dando aos crédores como
indemnisação, premio, ou o que quer que fosse, a quinta parte mais do
que se lhes devia. Assim

100 £ de 5 p. 100 eram representadas pelos novos titulos em 120
100 »    3, convertidas em 60 de 5, eram etc.             »  72

D’esta combinação resulta que, havendo

5 milhões de 5 passava a haver 6   }
6    »       3    »        »   5,4 } titulos novos

o nominal da divida ficava proximamente o mesmo, mas o juro subia
proximamente de 4, em média, a 5. Era pois o premio de um por cento ou
540 contos ao anno? Era; ou antes seria, se a combinação podesse ir até
ao fim; porque os juros differiam-se, por meio de uma escala ascendente:

  De 1841 a  4 pagar-se-hiam 2,5 p. 100
  »    45 a  8       »       3   »
  »    40 a 52       »       4   »
  »    53 a 60       »       5   »
  Depois de 60       »       6   »        até amortisação
do que nos anteriores periodos se pagara menos do que 5.

Durante o praso de vinte annos a ordem politica e financeira
permittiria fazer estradas e vias-ferreas, a agricultura progrediria,
etc. Sabemos de que fórma o cabralismo pensou realisar este plano, com
a ordem doutrinaria e com a babel das companhias do agiotas.

Em 41 (9 de novembro) o moço financeiro Avila, ainda não duque mas
já importante, entregou a administração da divida externa á Junta do
Credito Publico, impondo ao mesmo tempo aos crédores da interna a
deducção do decimo dos juros. Tivessem paciencia esses pensionistas do
Estado: tambem os funccionarios a tinham!

Com os crédores londrinos é que se não podia bolir: ora indispensavel
consolidar o systema da escala ascendente a vêr se se conformavam
com elle e nos contavam no seu stock-exchange. Só depois d’isso
se conseguiria algum novo emprestimo! Costa-Cabral concebendo uma
_ordem_ diversa da ordeira, uma ordem cartista, concebeu outra
chimera: a de obter recursos internos, para com a riqueza da
nação--exhausta!--supprir o que o extrangeiro nos não dava. De um tal
plano era orgão o legado cabralista no Thesouro, o conde do Tojal.

Mas os embaraços cresciam, o dinheiro faltava. Os titulos externos
estavam recebendo a 3 p. 100 em 45, quando para vêr se se obtinha
uma paz, o governo resolveu (lei de 19 de abril) reconvertel-os para
4 compromettendo-se a uma amortisação annual de £25:000. Ainda se
não reconhecera esta verdade elementar: que pedir emprestado para
amortisar é uma illusão ruinosa. Erro, illusão era, porém, tudo, e a
Maria-da-Fonte veiu demonstral-o. Mas não era mais sensato, nem mais
practico o seu governo que lançava a reducção de 20 por 100 aos juros
das duas dividas, juros que elle não podia pagar, e assim, lucrando
nada, desacreditava-se por dois caminhos. Abolidos esses descontos
impensados, voltou-se ao estado anterior da decima unica na divida
interna, capitalisando se os dividendos por se não poderem pagar.

Tojal saíra por uma vez, como quem para nada prestava já (22 de agosto
de 47). Havia paz durante o reinado de Saldanha, Monk de Costa-Cabral,
(18 junho de 49) que poz na Fazenda Avila, esperanças da patria. O
segundo ministerio cabralista não foi melhor na finança do que na
politica. Apesar de moço, Avila sempre fôra velho no pensar: jurava
pela amortisação! E jurando, as cousas iam indo de mal a peior; e, se
Costa-Cabral caíra em 46 precipitado do alto de uma torre de papeis,
agora ia pouco a pouco enterrando-se n’um olheiro de penuria. Desde
julho de 48 que se supprimira o systema de capitalisar os juros em
divida: para se pagarem? Sim, menos a quarta parte; mas nem isso, cousa
nenhuma se deu, nem a nacionaes, nem a extrangeiros.

Não se está vendo a urgencia de _regenerar_ as cousas?

       *       *       *       *       *

Com um espirito novo a Regeneração veiu proclamar o contrario do que
até então se dissera e estava desacreditado. Como introito, para
simplificar, capitalisou em fundo de 4 p. 100 todos os dividendos
por pagar desde 50. (decr. 7 de julho de 51) E como affirmação de
principios supprimiu o da amortisação. (decr. 3 de dezembro) Fontes era
moço, na edade e no espirito. Não vinha de Coimbra: estava limpo das
doutrinas classicas e caducas. Amortisar, o quê? para quê? Amortisar,
pedindo emprestado, nós que temos de nos endividar para solver os
encargos annuaes ordinarios, é aggravar as consequencias do juro
composto que tal situação nos impõe. Amortisar, o quê? A divida? não,
que deve ser _fundada_, permanente, eterna, como caixa-de-economias,
instrumento de distribuição de riqueza, de capitalisação de migalhas.
Outr’ora dissera-se ser necessario pagar o que se deve. Doutrinas
fosseis! Um Estado não é um particular. Quanto mais uma nação dever,
mais rica será!

O san-simonismo infiltrára-se nos pensamentos da geração nova, com
os seus dogmas chrematisticos e communistas. Prégando a religião da
riqueza, e o culto do capital como meio de a crear, era natural que
trouxesse theorias novas para o problema das dividas nacionaes. O
Thesouro, com as _rendas_ annualmente distribuidas, era uma funcção
normal do Estado, cuja divida adquiria um caracter social, perdendo a
natureza commum ás dividas particulares. Por outro lado, que melhor
modo de desenvolver a riqueza do paiz do que derramar sobre elle
uma chuva de oiro extrangeiro? Custaria caro? muito? Seria nada: os
redditos do Thesouro cresceriam n’uma progressão superior á progressão
dos encargos da divida.

Taes opiniões, geraes no tempo, e convictamente abraçadas pelo
financeiro regenerador, entraram com elle no Thesouro portuguez.
Á parte o valor da doutrina, á parte as consequencias d’ella--com
que nos achamos hoje, dizem uns que embaraçados, dizem outros que
afortunados--é mistér vêr na finança regeneradora a continuação do
antigo pensamento de José da Silva Carvalho. Uma nação exhausta só
poderia renascer regada por chuveiros de libras esterlinas. Quando,
batidos os doutrinarios financeiros, os Campos e os Passos, os Tojal e
os Avilas, voltou o espirito practico, a Regeneração encaminhou para
cá os capitaes de fóra. Os milhões dos antigos emprestimos serviram,
no todo, para guerras; os milhões dos novos serviram n’uma parte para
estradas e caminhos-de-ferro; d’ahi a reconstituição da economia rural
da nação.

Abolido o principio da amortisação, substituida a renda ou divida
_fundada_ ao systema de emprestimos temporarios, faltava unificar essa
renda, adoptando um padrão unico. É evidente que se uma conversão se
faz de um juro menor para um juro maior, o nominal dos titulos baixa;
e, se existe o principio da amortisação, esse facto ou o inverso podem
importar muito. Mas se o principio das emissões é o da _renda_, fundada
em vez de amortisavel, permanente e não temporaria, pouco importa
que a conversão se faça de um juro maior para menor, e que cresça
correlativamente o nominal dos titulos, pois que esse valor não é
reembolsavel. Os numeros por que se exprime o capital da divida publica
significam nada, e tudo o encargo annual, ou renda que o Thesouro tem
de servir aos portadores d’ella.

O decreto de 18 de dezembro de 52 é a inauguração da nova edade
financeira em Portugal; e se o leitor tem presente como em uma nação,
qual a nossa vinha sendo desde 1808, o Thesouro e a sua divida têem um
papel eminente: o leitor não recusará o justo applauso ao estadista
que teve a intelligencia e a coragem de pôr o ponto final na historia
anterior, reconhecendo e liquidando com uma banca-rota o systema dos
_pontos_ e banca-rotas precedentes. Esse decreto foi simples e breve,
como convém ás leis. Creou, para substituir os antigos titulos, um
typo unico de divida fundada de 3 p. 100, mantendo porém a distincção
apenas formal de divida externa e interna. Tomou para typo da
conversão o 5 p. 100 externo, creado em novembro de 41, reduzindo-lhe
o juro a 3; e subordinou a conversão da divida interna a uma razão
correspondente: 100 de 4 p. 100 = 80, de 6 p. 100 = 120 do novo typo
de 3. Era uma positiva banca-rota, pois não só a conversão era forçada
e não facultativa, como o juro effectivo se reduzia de 5 a 3 p. 100
(embora em 48 já o tivessem reduzido a 3,57) sem ao menos se differir a
indemnisação, como se projectara fazer em 41. _Differida_, isto é, só
com direito a juro a contar de 63, ficava a divida dada em pagamento
dos dividendos atrazados de 48 a 52.

Eis aqui um quadro desenvolvido da divida interna em junho de 51,
quando o novo regime politico se installou: (V. L. J. Ribeiro, _Est. da
div. int._)

                                                                 Depois
                                                     Antes de 33  de 33
Apolices de 1823, consol. do papel moeda                   1:334
   »        1826    »     dividas d’Ajuda                     70
   »        1827    »       »     fornec. 14-19              255
Inscripções 1837 (Passos) conversão de Padrões de 6 p. 100 2:503
   »        1835 (Carvalho)   »        Títulos    »        4:010
   »        1837 (Passos) Pagamento á c. dos vinhos                 739
   »        1836 (id.) Emissão                                    2:119
   »        1835 (Carvalho) id.                                     499
   »        1848 (Falcão) conversão de Padrões 5 p. 100      204
                                                          ------ ------
                                                           8:376  3:415
                                                          -------------
                                    do juro de 4 p. 100      11:791
                                                             ------

Apolices, consolid. letras do commissariado 21               754
   »      1820-2 de divida publica                         1:025
   »      1823 idem                                          800
   »      1827 idem                                        2:186
   »      1833 idem                                                 391
   »      1839 idem                                               4:050
   »      1840 idem                                               1:483
   »      1841 idem                                               5:142
   »      1843 idem                                               2:874
   »      1845 idem                                               2:598
   »      1848 idem                                                 373
                                                          ------ ------
                                                           4:765 16:911
                                                          -------------
                                    do juro de 5 p. 100      21:676
                                                             ------

Inscripções de 3 p. 100, capit. dos juros de 47-8                   450
      »     dos Açores, etc.                                        549
                                                          -------------
                                                 Totaes   13:141 21:325
                                                          -------------
                                   Totaes geraes             34:466
                                                             ------

ao juro medio annual, liquido da dedução de 25 p. 100 (de
  agosto 48) de 3,5 p. 100                                        1:203

Para além d’esta somma de divida ficava ainda a chamada _mansa_,
titulos azues, indemnisações, etc., etc. (V. Bulhões. _Divid. port._)
que com o papel-moeda por amortisar, subia á somma de 11:887 contos.
Os numeros que expozemos acima, referidos ao meiado de 41, tinham
crescido no fim do anno seguinte; e o decreto de 18 de dezembro operou
sobre estes valores: (_Ibid._)

Divida interna, contos 38:827 juro 1:166
   »   externa    »    46:913   »  1:407
                       ------      -----
                       85:740      2:573

Se addicionarmos a divida mansa, e compararmos o total com a divida
de 28, veremos que a Liberdade e os seus ensaios custaram ao Thesouro
58:500 contos, afóra os bens nacionaes vendidos ou queimados, sem
com isso melhorar a situação economica do reino, segundo já deixamos
patente.

A conversão propunha-se regularisar um estado provadamente intoleravel.
Abolindo as verbas de amortisação o reduzindo as de juro, que no meiado
de 52 attingiam sommadas 3:491 contos (_Ibid._), limitava os encargos á
somma acima indicada. Alliviado assim o Thesouro, seria fiel aos seus
compromissos? Eis o que se não acreditava. Tinha-se assistido a tantos
_pontos_, a tantas capitalisações successivas e todas apregoadas como
decisivas e finaes, que os crédores, de certo bem dispostos a receber
menos, mas sequer alguma cousa, não viam com bons olhos o ministro
moço e audaz. Choravam-se as victimas de mais uma espoliação: eram
9:511 particulares e 519 corporações, os portadores da divida interna.
(Ribeiro, _Divida_) Aos que defendiam os actos do governo, recordavam
os crédores a famosa instituição do Credito-nacional, de 1841, para
«se porem os pagamentos em dia»; as decimas lançadas nos juros; as
_metades_, a que tinham sido reduzidas as classes inactivas em 1844;
toda a serie de miseraveis banca-rotas que desde 35 se tinham repetido
com uma constancia invencivel.

       *       *       *       *       *

Enganavam-se, porém, os accusadores. Os tempos tinham mudado, em
Portugal e em toda a parte. Chegara a saciedade de liberalismo e as
attenções voltavam-se para um norte differente das antigas chimeras
doutrinarias. Reconhecia-se conquistada a Liberdade no seio do
scepticismo. Custára muito? Ao reino, é impossivel dizer quanto;
ao Thesouro, cincoenta, sessenta, oitenta mil contos? Ponto, sobre
essa historia antiga! De joelhos, perante o deus Fomento! Com esse
culto novo podia gastar-se á larga, á farta, porque á maneira do
verdadeiro Deus (ainda por habito ou hypocrisia se era christão, mas
_liberal_) o Deus novo pagaria com muitos mil os emprestimos que se lhe
faziam. Caminhos de ferro! caminhos de ferro! Circulação, liberdade
respiratoria para o corpo economico! Vida nova! E assim o moço ministro
engenheiro, introduzido na scena pelo seu patrono Rodrigo, entrava pela
mão do scepticismo velho prégando a religião nova. Patrono e cliente,
mestre e discipulo, pae e filho, eram o mesmo em dois corpos, um
representando a negação do passado, o outro as affirmações do presente.

Reformaram-se as pautas setembristas n’um sentido mais livre; começava
a picareta a abrir as trincheiras do caminho de ferro; fundia-se o
historico Terreiro com as Sete-casas, estabelecendo-se um _octroi_;
reformavam-se os correios, adoptando-se a estampilha, symbolo da
mobilisação universal idealisada no comboyo correndo como o vento: um
comboyo que era ainda apenas sonho e um desejo! Em vez de uma sociedade
agitada por partidos e doutrinas, aspirava-se para uma agitação de
gozo, de riqueza, de utilidade positiva.

Em 49 houvera uma exposição de Industria em Lisboa, mas não era o
fabrico o enlevo da idéa nova: era o movimento. O pombalismo acabara
com os setembristas, e as tendencias economicas eram levadas agora n’um
caminho diverso. Já as nações se não olhavam como organismos autónomos,
porque o cosmopolitismo infiltrara-se nas doutrinas. O cabralismo fôra
um precursor da edade nova, mas errava imaginando ainda, á antiga,
que para a realisar fosse necessaria a reconstituição de uma classe
aristocratica. Assim acontecera em França a Luis-Philippe. Mas o
socialismo tambem reagira contra o governo dos ricos, e o segundo
imperio francez e a Regeneração portugueza, egualmente democratas,
realisavam por outras fórmas, com outros meios, o pensamento capital
dos regimes precedentes. O imposto de repartição, motivo da queda
dos Cabraes em 46, servia agora para recompôr esse lado da machina
administrativa.

Cheias as vélas com um vento de esperanças aladas, o barco da
Regeneração vogava, com Fontes, pimpão, moço e janota, ao leme;
Rodrigo, perspicaz, de gageiro á prôa; Saldanha na camara, fardado,
solemne, falando ás visitas. Nem uma nuvem no horisonte? Nada, apenas
o sapatear da agua no costado, as ondas pequenas, mansas, dos crédores
de casa, agiotas e pensionistas, clamando contra a _conversão_. Deixar:
larga! Mas, viajando, acossou-os a vaga mais temivel dos crédores de
Londres. Escarmentados pela conversão de 40, depois pela de 45, não
acreditavam na de 52. O caso era grave, porque sem dinheiro londrino
para que serviria o ministerio creado ás obras-publicas? (30 de agosto
de 52) Com a fallencia aberta, riscados da sociedade das nações-de-bem
inscriptas na biblia do _Stock-exchange_, de que valiam os talentos e
desejos dos estadistas novos? Inuteis as cartas, Fontes preparou a mala
e saíu para Londres em dezembro de 55, embaixador perante o congresso
soberano do capitalismo londrino.

Vinte annos Palmella implorara em favor da Liberdade a protecção dos
verdadeiros monarchas. Agora ia Fontes confessar as culpas, protestar
o arrependimento, pedir o perdão, e prometter um abandono formal de
theorias tão funestas. O filho prodigo emendar-se-hia: tinham sido
verduras da infancia!

A França de Napoleão III fizera pazes com a Inglaterra, agora sua
alliada para a guerra (da Crimêa), para a exploração bancaria das
nações pupillas. Em Londres, Fontes achou Thornton, Fould em Paris,
promptos a annuir á conversão de 52, a restituir o credito a Portugal,
a dar-lhe os dezeseis mil contos que pedia, mas sob condições em
verdade onerosas, e mais graves por que hypothecavam o futuro. Fontes
annuia, annuiu a tudo. Querem que se lhes dê em titulos differidos
o que a conversão lhes tira? Não ha duvida. Querem os banqueiros
(Thornton, Fould) o direito de preferencia em todos os emprestimos
futuros? De accordo. Querem os engenheiros (do _Credit mobilier_,
de Morny-Pereire, sob a protecção de Napoleão) a preferencia nos
contractos de construcção de obras, e desde já estudos rendosos?
Tambem vol-o dou; mas cotemme os fundos, deem-me dezeseis mil contos!
(V. Roma, _Reflex. sobre a questão financ._) É necessario hypothecar
o futuro para liquidar o passado? Faça-se. Faça-se tudo, acceite-se
tudo, mas haja dinheiro e caminhos de ferro.

Regressado de Londres, os farrapos dos velhos partidos caíram sobre o
homem na sessão de 56. As antigas denominações tinham acabado, e havia
contra os regeneradores o amalgama que se chamou _historico_, e que
com effeito o era, sombra historica sem vida, presidido por um grave,
mudo, impassivel: Loulé. Os restos do cartismo acabado protestavam
tambem: Roma no _Jornal do Commercio_, Avila e Carlos-Bento na
camara. Na imprensa defendiam o ministro Lobo-d’Avila e José-Estevão
na _Revolução_; na camara defendia-se elle a si proprio, com a
verbosidade que parecia eloquencia por ser nova a rhetorica empregada:
melhoramentos, fomento, etc. em vez de principios, abobadas da sala
(que é envidraçada), etc. Eram vivos o ataque e a defeza; e tamanha
a temeridade do ministro-Esau que cedera tudo por um emprestimo,
tamanha a precipitação juvenil com que nos arrastava, á velocidade d’um
expresso, na estrada do fomento, que a apathia portugueza _historica_
derrubou-o. (6 de junho de 1856) Caiu um ministerio; mas a Regeneração
não caíu, nem podia, porque estava na necessidade das cousas. Como um
moderador passivo apenas, levanta-se perante o grupo dos audazes, o
grupo dos historicos presidido por Loulé; mas nem já o _setembrismo_,
nem politica alguma _sui generis_ o inspirava.


3.--OS HISTORICOS

O novo governo, successor da Regeneração em 6 de junho de 56, vinha,
como dissemos, fadado para ser apenas um moderador do enthusiasmo,
da precipitação, da largueza-de-mãos dos predecessores. Já despidas
as togas democraticas pelos restantes do antigo setembrismo, já
trocado o nome de progressistas pelo nome inconscientemente eloquente
de historicos, a nova gente nada significava como affirmação no
poder. A sua inconsistencia prova-se na constante mudança do pessoal
governativo, durante os tres annos escassos da sua gerencia. Eram todos
homens bons, ronceiros, pacatos, _liberaes_ sempre, ainda que isto nada
já quizesse dizer. Como que sombras de outras éras, vinham presididos
por uma sombra ambulante, muda e nobre ...

D. Pedro V tomara posse do governo (16 de setembro de 55), e o
temperamento melancholico e pessimista do novo rei preferia esta
gente antiga aos regeneradores modernos e moços, cujo materialismo
não agradava á metaphysica regia. Somnambulos, rei e ministro, ambos
alheios á indole dos tempos novos, ambos sem pensamento nem força para
os condemnarem, iam caminhando, ou antes deixando a nau do Estado
seguir á mercê da direcção da corrente. Mas desde que o estabelecimento
do imperio em França restaurára ahi as influencias ultramontanas,
depois de as desillusões de 48 terem convertido Pio IX ao jesuitismo,
a esperança de reconquistar para o catholicismo puro todas as nações
latinas abaladas pela Liberdade impia, inspirou uma politica activa.
Habilmente sentiam os novos apostolos que não eram missionarios nem
sermões o meio adequado á novissima propaganda. As gerações passadas
ou actuaes tinham-se perdido ou eram inconvertiveis: restava appellar
para a educação da infancia. E de que modo? Repetindo o que no seculo
XVI se fizera?[40] Não; seria temerario. Não se podendo pretender desde
logo ao monopolio da instrucção official, o caminho indicado era o da
Caridade e o da Liberdade.

As irmans de S. Vicente-de-Paulo, soldados piedosos e humildes do
exercito apostolico; as irmans-da-Caridade que a guerra da Crimêa
vira nos hospitaes e campos de batalha, tão corajosas como dedicadas,
eram quem devia vir a Portugal ensinar a infancia desvalida nos
asylos creados pelas senhoras ricas da fidalguia. O ultramontanismo
é nos nossos tempos eminentemente aristocratico. Rodrigo, perspicaz
e sceptico, jámais annuiu á vinda; mas agora o rei catholico e
neo-romantico, amante de uma esposa beata, e o ministro com o seu
genio principesco e molle, que mal podiam achar na introducção d’essas
mulheres piedosas, tão celebradas na sua caridade, tão simples na sua
humildade obscura? Pois não valia mais que as creanças tivessem um
amparo protector? Por toda a parte as fidalgas cantavam o elogio das
pobres irmans-da-Caridade, tão boas, tão santas, tão _bonitas_ nos seus
babitos negros, com a alva touca de linho de abas soltas como azas
de pombas! Este renascimento de piedade religiosa nada tinha, porém,
de commum com a antiga religião vencida em 34. Era aristocratico,
a outra fôra plebêa; e a mesma plebe que ainda nas procissões, nas
semanas-santas, no Senhor-dos-Passos da Graça, conservava um resto
de culto pela religião antiga: era essa mesma plebe de Lisboa que
apedrejava as irmans-da-Caridade, missionarias da religião nova,
aristocratica, afrancezada.

Loulé consentira a entrada das Irmans (9 de fevereiro de 57) quasi ao
mesmo tempo que pela primeira vez a locomotiva assobiava conduzindo os
convidados á inauguração da primeira secção do caminho de ferro (28 de
outubro de 56). Tudo se modernisava n’esta nação que, feudataria da
Inglaterra, era a copia da França--em 33, em 42,--e agora, depois de
51, a copia do segundo imperio. Agradecia-nos ella a fidelidade com que
aprendiamos? Não, e brutalmente nol-o provou com o deploravel episodio
da _Charles et George_, que derrotou por fim o ministerio historico,
batido com vehemencia pela voz do José-Estevão.

Foi na primavera de 59 que Loulé caíu, arrastando comsigo Avila da
Fazenda. A Regeneração abrira-nos de novo as portas do sanctuario do
crédito; Avila, senão convertido, adherindo ás idéas novas, deixava-se
ir na corrente. A possibilidade de _emittir_ era uma tentação
irresistivel para nós que, desde 20 até hoje, nunca podemos prescindir
de emprestimos para pagar as despezas correntes. Mas desde 51, a parte
que se empregava no fomento servia de pretexto plausivel para encobrir
a parte maior com que se preenchiam os _deficits_. Assim, a divida que
a Regeneração deixára em 96 mil contos com o juro de 2:900, deixavam-na
os historicos em 120 com o juro de 3:600--tres annos, a 233 ao anno,
_ratio_ que subirá sempre d’aqui para o futuro.

       *       *       *       *       *

Depois dos tres annos (56-9) historicos, viu-se um intermedio
regenerador (16 de março de 59 a 4 de julho de 60) apenas importante
quanto ao pessoal politico. Como presidente, isto é, pendão e apparato,
Terceira succede a Saldanha, para deixar por morte o logar a Aguiar.
Fontes substitue o fallecido Rodrigo na direcção do partido; e ao
lado do chefe vêem-se os homens novos: Cazal, Serpa, Martens, que com
Sampaio e Corvo formarão a guarda politica, o pessoal de governo
no futuro reinado de D. Luiz. Era uma geração nova, já educada no
liberalismo novissimo. Todos os antigos se somem nas casas ou nas
covas, á maneira do que succedera em 35, quando morreu D. Pedro. Cabral
exilado é o D. Miguel de agora; e, se o quixotesco imperador acabou
vomitando sangue e abraçando ainda os seus soldados, Rodrigo, summa e
synthese de trinta annos de miserias, Rodrigo a imagem do Desprezo,
dizem que se finara murmurando assim--«Nascer entre brutos, viver entre
brutos e morrer entre brutos é triste!» O Desprezo, eis a transição da
éra das doutrinas para a edade das conveniencias...

A segunda Regeneração nada regenerou. Fizera-se, da primeira vez, tudo
o que havia a fazer; e, como partido de homens practicos, clientela
de gente rica, inimiga de reformas, doutrinas e movimentos, não podia
consummar o que ainda faltava para completar entre nós a revolução
liberal.

Podia-o Loulé, que voltou? (julho 4 de 60) Não elle, mas sim o
homem-novo, especie de resurreição cabralista, tão duro, tão energico,
tão ambicioso, como o conde de Thomar--Lobo-d’Avila, depois tambem
conde, de Valbom. Fallecido D. Pedro V, Braamcamp, o novo ministro
do reino (1862), pôde acabar com o incommodo espinho das irmans da
caridade, expulsando-as (junho 9, de 62) e subscrever a lei de abolição
dos vinculos (maio 19, de 63) (_Elog. hist. de Ans. J. Braamcamp_, do
a.) complemento da obra destruidora de Mousinho da Silveira, porventura
temerariamente promulgado n’um paiz que a historia não deixara acabar
de construir rural e demographicamente. (_Proj. de lei de fom. rural_,
do a.) Tinham-se, porém, abolido finalmente os morgados, tinha-se
instituido o credito-predial, franqueada a barra do Douro, extinguido
o contracto do tabaco, reformado as alfandegas, e por fim o primeiro
comboyo corria assobiando, desde Lisboa até Badajoz (maio 30, de 63).
Á maneira que, porém, crescia a influencia de Lobo d’Avila, o homem
novo, caía o chefe apparente do governo, o duque de Loulé. Na camara
ouvia-se o Serpa, accusando fria e desapiedadamente de burlão o da
_unha preta_; ouviam-se outros crivando de epigrammas o rei de Sião,
duque, ministro somnambulo. Por fóra, nas ruas eram grandes lanternas
de papel pintado com uma cruz negra, e os garotos apregoando a historia
de um assassinato e de um roubo. (V. _a Cruz de Scutulho_, op. 1865)
Lobo-d’Avila via-se precipitado do governo, antes de ter realisado a
sua hegira do Porto; e o Bomfim de agora, se não conseguia vencer,
conseguia pelo menos esmagar o rival importuno e antipathico.

Se Costa Cabral com a sua doutrina viera pôr um termo ás successivas
definições da Liberdade, desacreditando-a, similhante destino tinha
a aventura de Lobo-d’Avila para com as clientelas politicas formadas
depois de 51. A sua quéda era o fim dos historicos. Em vão Loulé se
apresentou á camara com um gabinete singular, (março 5 de 65) e um
financeiro joven, lavado em lagrimas. Houve um riso universal, e ambas
as _unhas_ caíram tristemente na valla dos mortos.

       *       *       *       *       *

E como tudo estava safado, molle, roto, podre, fundiu-se tudo. A
_Fusão_ (setembro 4 de 65) era, porém, o modo grave do partido
historico se sumir. Sombra evocada de um passado extincto, guiada por
um fidalgo somnambulo, querido de um rei excentrico e misanthropo,
devia ter-se dissipado quando o rei morreu. Trouxe-lhe um ar de vida a
força de um ministro moço, mas a physionomia antipathica d’essa força
enodoou-lhe os actos. Se lhe prolongou a duração, foi para lhe preparar
um fim mais triste ainda: a cruz negra de um assassinato, as lagrimas
ingenuas de um financeiro, a gargalhada unisona da plateia popular.

E era triste, triste vêr acabar assim um homem sympathico na sua
molleza aristocratica, um bello typo da raça apurada portugueza, um
impassivel: é tão rara a distincção! O duque de Loulé, velho Mendoça,
procedia da estirpe dos senhores de Biscaya, em tudo reis, menos no
nome. Os Mendoça tinham-se ligado aos Val-de-Reis, vindo a ligar-se
aos Rolim, da descendencia do flamengo a quem Affonso-Henriques dera o
senhorio de Azambuja.

Singular extravagancia da historia que fizera de um tão nobre senhor
o membro e mais tarde o chefe do partido que primeiro foi e depois
se dizia ainda democrata! É que a sua vida principiara no meio de
condições proprias a desorientar a educação. Seu pae, condemnado á
morte por ter sido um dos que invadiram Portugal com os francezes
de Massena, perdoado em 21 por D. João VI, morrera assassinado em
Salvaterra, tres annos depois, ás mãos do partido apostolico. Seria o
espectro do pae a causa da inclinação politica do filho? Entretanto,
em moço não abandonou a côrte e era o mais bello e seductor dos
fidalgos d’então. A infanta, perdendo a cabeça, casou-se com elle; e
os noivos tiveram de fugir, porque D. Miguel vinha irritado por esse
escandalo cortezão. Assim o bello marquez emigrou; assim se encontrou,
descendente dos Mendoça de Biscaya, marido de uma infanta portugueza,
envolvido no partido revolucionario.

O seu lugar natural seria ao lado de Palmella, na côrte da futura
monarchia representativa; mas preferia o lado opposto, e foi
setembrista, foi patuléa, foi pé-fresco. Era outro _Egalité_? outro
louco? um mau? um ambicioso? Nada d’isso era; apenas um discipulo
do romantismo, que á sua intelligencia, limitada mas nobre,
apparecia democraticamente poetico, em vez de liberalmente jurista.
Afastal-o-hiam tambem da côrte representativa as repugnancias pelo
feitio antipathico e menos limpo, nada nobre, dos conservadores? É
tambem natural, em quem teve uma existencia immaculada.

A tradição de honradez e virtude, constante no partido dos Passos,
do Sá-da-Bandeira, deve contar-se por uma das forças mais energicas
com que o setembrismo bateu em 36 os cartistas e dez annos depois
os cabralistas. E essa tradição, ainda viva depois da Regeneração,
era tambem ainda uma das melhores, senão a melhor arma do partido
historico, personalisado no seu chefe, o duque de pedra, frio, mudo,
impassivel, mas sem uma nodoa, e com um ar de superioridade soberana
que vencia os proprios sabedores do pouco valor d’esse aspecto.

O duque não tinha de certo o olhar profundo, escrutinador das leis a
que obedecem as sociedades, nem a audacia, instrumento da victoria em
epochas da natureza d’aquella em que vivera. Era mediocre, mas não como
caracter. O papel eminente que lhe distribuiram depois de 51 acaso o
devia mais á tradição aristocratica do seu nome, á amisade pessoal
do rei--historico tambem!--do que ao merito proprio. Mas a educação
fidalga, o temperamento frio, a serenidade de uma consciencia limpa,
a facilidade de uma vida opulenta, deram-lhe sempre uma indifferença
altiva, proverbial e caracteristica, que por vezes se tornou, em
certos episodios turbulentos, n’uma placidez quasi heroica. Foi entre
nós o typo mais perfeito, senão o unico, d’esses fidalgos-democratas
inglezes, que amam o povo abstractamente, mas não dão o braço á gente,
porque desceriam. Como um peninsular, porém, era benigno e affavel,
embora reservado sempre e mais do que discreto. Todos se lembram ainda
de o vêr, impassivel e frio, quasi ou inteiramente indifferente,
responder em seccos monosyllabos aos discursos vehementes dos tribunos
das opposições. Elle passava, impavido e mudo, pelo meio os tempestades
parlamentares; pisava a camara como a sala do throno, e a politica
implacavel e plebêa, irritada e cheia de despeito, poz-lhe por nome o
Rei-de-Sião.

Não via incompatibilidade alguma em ser estribeiro de el-rei e
ao mesmo tempo chefe de um partido que fora, e se dizia ainda,
nas suas folhas, democrata. Em pé, descoberta e curvada a cabeça,
abria, com uma servidão fidalga, a portinhola do coche real, para em
seguida ir collocar-se á frente dos ministros; e esta posição dupla,
inconsequente, mais de uma vez lhe trouxe dissabores. Um grande fidalgo
não póde hoje entrar na politica, senão para a escravisar a ella e para
impôr a sua vontade aos reis: só assim remirá, perante o seu povo, o
seu vicio de origem. É mistér ser-se Wellington, de quem tremeu Jorge
IV, e a rainha Victoria foi pupilla; Saldanha, a quem deu vivas D.
Maria II; ou Bismarck, o que levou pelo beiço o imperador Guilherme. De
outra fórma o povo vê sempre o cortezão, e raro o politico. Por isso
Loulé jámais foi popular, apesar de sério, fiel, honrado e bom. Humano
e caridoso á antiga, quasi perdulario por desdem, não por luxo, que
vivia pobremente, era adorado pelos seus clientes privados; mas os
seus clientes e adversarios politicos, saídos da massa do povo avaro,
_parvenus_ mais ou menos petulantes, não lhe perdoavam a sua fidalguia.
E a indolencia invencivel do duque dava-lhes frequentes motivos para o
accusarem com fundamento. Diz-se que o vergonhoso resultado da questão
_Charles et George_ proveiu de uma nota franceza que o ministro metteu
no bolso e a que jámais se lembrou de responder.

Ferveram sobre elle as calumnias, e por vezes estiveram para ferver as
pedradas da plebe amotinada. Chegaram a accusal-o de envenenador da
familia real, para succeder no throno; mas ás calumnias não respondia:
não responde quem se présa; e uma vez que o povo clamoroso rodeava
a carruagem, ameaçando o, mandou parar, abriu a porta, desceu e
disse: «Que me querem? Deixem-me. Vão para casa e soceguem». Disse-o
placidamente, sem erguer a voz, e o povo rendeu-se. Sem _pose_, tinha
uma coragem fria, verdadeira. Ardia-lhe a casa, de noite: vieram os
creados afflictos, chamal-o; e elle, ouvindo-os, disse-lhes que quando
o fogo chegasse ao quarto immediato o avisassem. Assim deixava arder a
sua casa, porque era _historico_, e nada tinha do ávido temperamento
burguez, imperante nas companhias, nas bolsas, nos caminhos de ferro.
Era um D. João VI, mas bello; ou como o rei que tanto lhe queria,
como um D. Pedro V já velho. _Historico_ por descendencia fidalga e
politica, duas illusões o acompanharam ao tumulo: a do sangue e a
da LIBERDADE. Uma das suas ambições era a de «fazer umas eleições
prohibindo sériamente a intervenção ás authoridades administrativas».
Morreu sem vêr realisado esse desejo, confissão plena da genuinidade da
representação, proferida por quem de perto conhecia as cousas; e ao
mesmo tempo documento da sinceridade com que os homens são capazes de
acreditar em chimeras.

Confrange, é verdade! entristece, o lembrarmo-nos da somma de rectidão,
de lealdade, de quasi heroismo gastos por nossos paes em levantar um
edificio aereo que nem sequer lhes foi licito deixarem de ir vendo
cair, pedaço a pedaço, hora o hora, até á da final subversão no riso
sceptico, regenerador!

       *       *       *       *       *

Em 51 fôra uma parte do setembrismo mais rubro (Sampaio, José-Estevão)
que se convertera; em 65, na _Fusão_, converteu-se a parte _branca_
do partido historico. A _unha-preta_, cauda democratica de um partido
forçado a ser conservador; a _unha-preta_, menos o seu chefe (tambem
convertido), restaurou as declamações setembristas proferidas na
tribuna por Santos-Silva, na imprensa pelos Tanas do _Portuguez_. Por
outro lado, José-Estevão desquitara-se da segunda regeneração (59-60),
ministerio addicto ás irmans-da Caridade, e teimava ainda em crear uma
democracia com _elementos novos_. Morreu na faina (nov. 4 de 62) o
tribuno peninsular, e as duas caudas dos dois partidos extinguiram-se
pouco a pouco, sumindo-se pelas covas, ou pelos empregos--da alfandega,
principalmente. A unha negra do fado condemnava-os todos a uma sorte
commum.

Outra garra, branca como o halito da locomotiva, novo idolo do tempo,
chamava á conservação politica no seio da revolução economica, a gente
_séria_ de todos os lados, fusionada, abraçada n’um liberalismo pratico
sem doutrinas, n’um catholicismo tambem pratico sem exageros, n’uma
religião de sala, perfumada, afrancezada, burguezmente aristocratica,
n’uma moral facil, n’uma vida commoda, já que de todo não podia ser
regalada.

E porque? porque apesar de quasi vinte annos de _regeneração_, o
Thesouro teimava em se não encher, e era indispensavel moderar a
furia com que pediamos emprestado. O povo «podia e devia pagar mais».
Mais quando a _Fusão_, já inteiramente regeneradora desde 66 (9 de
maio), reclamou impostos de consumo, os negociantes do Porto fizeram a
_Janeirinha_ de 1868. Houve a sombra de uma revolução, houve um terror
palaciano, muitas phrases, ondas de cousas ridiculas, e por fim, como
orgão da novissima democracia, o duque d’Avila primeiro, o bispo de
Vizeu depois. A Regeneração acabava; a nova éra abria-se entre um
baculo e um brazão.


NOTAS DE RODAPÉ:

[39] Voltou em 1892; e coube ao A. a triste sorte de proceder á
execução. (3.ª ed.)

[40] V. _Hist. de Port._ l. v.




III

AS GERAÇÕES NOVAS


1.--A INICIAÇÃO PELO FOMENTO

Mas, emquanto todo o alto-pessoal dos partidos pouco a pouco se ia
fundindo desde 51, até depois de 68 se constituir sob o nome antigo
de regeneração n’um partido conservador, é mistér estudarmos o
desenvolvimento obscuro, desordenado mas grave, das idéas que vieram
substituindo a da Liberdade no espirito das gerações novas e nos
projectos dos homens destacados dos partidos antigos, como José-Estevão
sempre moço até á morte.

O primeiro em data dos homens novos, orgãos dos pensamentos modernos,
é sem duvida alguma Fontes, cuja physionomia procurámos já esboçar.
Imperialista por temperamento, engenheiro por educação, alitteratado
por um resto de romantismo, e por indole portugueza; de resto sem
malicia, prosaicamente crente na limitada capacidade ideal das
sociedades, por não ter genio e por obedecer ás correntes da epocha;
convictamente sectario da opinião dos economistas ex-sansimonianos,
como Chevalier, que viam na producção da riqueza o segredo da fortuna
dos Estados e nas associações capitalistas, n’isso a que chamou com
razão feodalismo novo, o instrumento adequando do progresso: Fontes
tinha na palavra juvenil um calor quasi poetico, um enthusiasmo tão
ardente que seduzia o temperamento de José-Estevão, em phrases de que,
ao tempo, só os velhos se riam, e que hoje não é possivel deixarem de
acirrar a ironia dos moços.

 Eu já era fanatico pelas vias de communicação, sr. presidente; e, se
 fosse possivel passar uma lei para que a nação portugueza viajasse por
 tres mezes, estavamos salvos. (Disc. de 2 de abril de 56)

Isto seria ridiculo, se não fosse sentido. Sendo-o, prova apenas a
natureza do _genero_ novo da politica e a capacidade do cerebro do
estadista. O caminho de ferro é para elle verdadeiramente, não um
symbolo, mas a realidade do progresso. Correr a vapor, ganhar, trocar,
gozar, que outra cousa é a vida?

_Ceci tuera cela_, dizia: porque Hugo substituira Cicero, da mesma
fórma que os jacobinos tinham substituido os Prophetas pelos Romanos.

 Se a imprensa pôde matar a architectura, como meio de traduzir o
 pensamento de um indivíduo ou de uma epocha,--porque não hade o
 caminho de ferro matar a estrada, como elemento da vida das nações e
 como ultimo fórma da civilisação moderna? (Vozes: _muito bem!_ Disc.
 de 18 de abril de 56)

Este novo Antony da viação a vapor, perfumado, bem vestido, leão da
moda, tinha expresso no rosto o retrato do novissimo romantismo. A
poesia baixara de inspiração, de motivo, de estylo: era banal e vulgar
como um empreiteiro endomingado nas salas aristocraticas invalidas.
Parece que D. Pedro V lhe poz por alcunha o Dom Magnifico! A palavra
do moço orador, _passe-par-tout_ facil, verbosa, fluente, sem cunho de
personalidade, já antes da importancia conservadora lhe impôr a reserva
calculada, afinava-se por todos os tons, possuia todos os dotes, sem
se elevar em nenhum d’elles:

 Tem um pouco do phantastico do sr. José-Estevão; do positivo e
 escholastico do sr. Avila; do sarcastico do sr. Cunha; e até do
 nebuloso do sr. Carlos Bento. Sabe retorquir ao sr. Avila com
 algarismos; ao sr. Antonio da Cunha com ditos picantes; ao sr. Carlos
 Bento com algumas phrases tumidas e bombasticas sobre a theoria
 transcendental do credito, ou sobre a philosophia hyper-critica dos
 carris de ferro. (_Apont. s. os oradores parlam._ 53)

Assim o avaliavam, não sem maliciosa ironia, os contemporaneos. E nós
que ainda o somos, tambem lhe temos ouvido essa linguagem diffusa,
sonora, longa, redonda, e banal, por custoso que seja dizel-o de um
vivo. Nem uma imaginação colorida (como a José-Estevão), nem um talento
verdadeiro (como a Cazal-Ribeiro), nem uma veia sarcastica (como a
Souto-Maior), nem finalmente o saber especial e sufficiente ácerca do
que se trata (como a Serpa ou Corvo), apenas a habilidade verbosa o
distinguia. Subiu levantado n’um castello de palavras. Mantem-se n’um
trapezio de embustes.

E á medida que a edade crescia, como lhe faltara sempre a paciencia
e o tempo para estudar, o seu estylo baixava sem diminuir a sua
facundia. Addicto sempre a esse velho culto, tradição e até certo ponto
gloria da sua vida, a rhetorica levava-o a proferir phrases que, sem
commentarios, soariam ao futuro como excentricidades de um burocrata
maniaco:

 E não ando todos os dias em caminho de ferro porque não posso; porque
 as minhas occupações públicas m’o impedem: aliás era _touriste_ dos
 nossos caminhos de ferro. Isto comprehende-se da minha parte porque
 propugnei por estas idéas; padeci muito por ellas! muito ... e nem eu
 quero dizer! (Disc. de 18 de jan. de 65)

Melhor era com effeito calar tão crueis agonias, depois de obtido o
effeito rhetorico; e, se podesse ter supprimido a antiphona, não teria
sido muito melhor ainda?

 Acima do cavallo da diligencia está o tramway, acima d’este a
 locomotiva, e acima de tudo o progresso! (_Ibid._)

Parece inventado, e não é.

       *       *       *       *       *

É que se chocavam singularmente os moldes da rhetorica antiga com os
motivos da vida moderna. Hymnos, antiphonas, acclamações, apostrophes,
madeixas desgrenhadas, olhos em alvo, palmadas sobre o coração,
diziam com a antiga ideologia liberal ou democrata: diziam melhor ou
peior, mas não chocavam; avaliava-se o talento, a _logica natural_,
avaliava-se tambem a sinceridade. Mas cantar o caminho de ferro em
discursos rhetoricos pareceu sempre tão ridiculo como pôr em verso
as _machinas febrís_. Fontes introduziu na politica este genero de
litteratura, romantismo bastardo parallello ao do socialista Castilho
que vinha resuscitar Dellile, Gessner ou Saint-Pierre para presidirem
ás lettras nacionaes. A regeneração era moralmente, intellectualmente,
um _rifacimento_. Era-se ainda romantico, por se não poder ser outra
cousa; mas de um romantismo litterato apenas, exterior, janota:
romantismo de sala, que não entrava na intelligencia, conquistada já
pelo utilitarismo. Todos os litteratos d’este tempo acabaram mais
ou menos na Alfandega, ou no ministerio da Fazenda. Assim foi Serpa,
o author de madrigaes: assim Sant’Anna; assim muitos, assim todos. A
liberdade não era uma _deusa_, era uma menina que se namora:

    Poeta da liberdade
    Fiz d’esta nova deidade
    A dama do meu pensar
    Prostrei-me aos pés da donzella
    Heide com ella e por ella
    A minha terra cantar!

                        (Palmeirim, _Poesías_).

O chefe d’este neo-romantismo, entre burocratico e piegas, artificial,
sem raizes no coração de uma gente prosaica ou devassa; o chefe d’esse
romantismo, cujos derradeiros foram Chagas e Thomaz Ribeiro, «christão,
portuguez e bacharel formado», (_Prol. do D. Jayme_, 2.ª ed.); o chefe
de uma eschola arrebicada e pedante, foi Castilho, um velho Fontes da
poesia!

Ao seu temperamento feminino ou infantil agradavam as ternuras doces
dos Byrons do Terreiro-do-Paço; e, se lá no fundo tinha uma ironia
aguda para os crivar de epigrammas antigos, vingando-se, não podia
deixar de os lisongear, de os acolher, de os encher de louvores e
mimos, chamando Isto a um, Aquillo a outro: um congresso de genios!
A hypocrisia natural em sociedades que, tombando na chateza do
utilitarismo, não querem confessar, por um resto de pudor esthetico,
o _americanismo_ dos seus sentimentos e motivos; esse estado de
desaccordo da intelligencia moral, da esthetica e da pratica, reclamava
o governo politico de um homem como Fontes, e o governo litterario de
outro homem tambem vasio de idéas, repleto de _sábia_ poetica, um
arcade como Castilho.

E se o primeiro cantava em discurso a «locomotiva, e sobre a locomotiva
o progresso!» se o primeiro obedecia á corrente do Capitalismo moderno:
o segundo, cantando a _Felicidade pela agricultura_, o _Hymno do
trabalho_, obedecia á corrente do fourierismo; e ambos recebiam e davam
a iniciação propria da edade do Fomento, nas suas duas faces.

Capitalismo, Socialismo, eis ahi, com effeito, o que se achava no
fundo da Regeneração; sem que os nossos regeneradores tivessem uma
consciencia nitida do que faziam e do que eram. Succede quasi sempre
assim aos homens, e muito mais succedia então, quando tudo apparecia
ainda confuso, indeterminado, n’um crepusculo de Liberdade ainda
confessada, n’uma combinação ainda vaga dos elementos futuros das
questões sociaes. Fourier, Saint-Simon, Owen, Cabet: capitalistas ou
socialistas? As duas cousas a um tempo. Era o socialismo pelo capital:
tambem na politica era a liberdade pela riqueza. E por cima da vasta
confusão de idéas e preconceitos, de phrases ingenuas e astucias
calculadas, havia apenas na sociedade portugueza um desejo ardente de
paz, riqueza e goso. Os jovens politicos aprendiam corajosamente o
_can-can_ com as francezas do _Jardim mythologico_.

Esta consequencia immediata da iniciação do Fomento, apoz a longa
historia das duras campanhas liberaes, levava a mocidade regeneradora
a não presentir as inconsequencias das suas opiniões, nem o caracter
ás vezes infantil das suas distracções. Emigrados da miseria, no
dia da abastança não se fartavam de gosar; e no seio da paz, assim
como as _lettras_ eram uma distracção amena de homens graves, assim
o era a politica. Lisboa teve o quer que é de _rococó_ burocratico
e litterato, n’esses tempos doirados da mocidade regeneradora, em
que,--como creanças perante um brinquedo, a locomotiva,--se via no
Salamanca e na cohorte dos _hommes d’affaires_ que desciam da Europa
a _faire-le-Portugal_, uma aurora do futuro, sarjada de rails, com
aureolas de clarões de fornalhas entre nuvens de um forte cheiro a sebo
queimado.

Se Castilho tinha os seus saraus, onde os poetas de fartas melenas iam
recitar peças lyricas ou hymnos trabalhadores, os politicos pisavam
tapetes em salões celebres que recebiam de portas abertas uma pleiade
de estadistas novos--os filhos da Liberdade! Os nomes conhecemol-os
todos; mas talvez já não lembrem algumas das diversões interessantes
das noites de _comadres_. Cada cavalheiro tirava á sorte a comadre,
na quinta-feira propria; e cada comadre, uma dama, tinha uma divisa:
Liberdade, Democracia, Joanna-d’Arc, Corday, a Padeira? Não: imagens
de agora, vivas. Uma era a Prosperidade-publica, e _saiu_ a Fontes;
outra a Camara-dos-deputados, e _saiu_ a José-Estevão; outra a
Fazenda-nacional, e _saiu_ a Cazal-Ribeiro; outra a Imprensa-periodica,
e _saiu_ a Sampaio; etc. (_Rev. penins._ Chron. fev. de 56) Não tivemos
razão de chamar á Regeneração um cezarismo de secretaria?

Quasi vinte annos levou a dissipar-se (51-68) esse neo-romantismo
da geração em que primeiro se enxertaram as idéas sociaes modernas,
pelos modos e fórmas que esboçámos rapidamente. Outros modos, fórmas
diversas: um neo-setembrismo, um socialismo platonico, a Iberia, a
Republica, vieram entretanto invadindo os cerebros de outras camadas,
e forçando as anteriores a congregarem-se definitivamente em partido
conservador. Foi o que já vimos, faltando-nos ainda estudar as novas
influencias do periodo da Regeneração.

Depois de 68 nada ha que regenerar, ou todos regeneram de um modo
egual. Depois d’esta epocha, e consummada uma tal ou qual restauração
da riqueza nacional, todos apparecem convertidos ao opportunismo
pratico. Não ha mais distincções de partidos, ha apenas grupos
diversos. Não ha mais programmas, porque ha a liberdade pratica
bastante e toda a ideologia liberal morreu. Os bandos politicos
já não têem rotulos, basta-lhes o nome dos chefes: é o d’este, o
d’aquell’outro. E uns succedem-se aos outros, até que ... Ponto. Não
precipitemos o discurso.


2.--O IBERISMO

O leitor sabe que nos ultimos reinados da dynastia de Aviz a politica
de fusão dos dois estados, já ao tempo unicos na Peninsula, inspirou
por mais de uma vez a côrte portugueza.[41] Sabe tambem a deploravel
historia da annexação de Portugal, e a da occupação castelhana, mais
deploravel ainda. Em 1640 uma conspiração palaciana, com a protecção
dos jesuitas e da França, restaura a independencia portugueza,
levantando a dynastia de Bragança. No meiado do XVII seculo acontecia
o que succedera no seculo XII e no fim do XIV: as tres dynastias
portuguezas foram, nos seus primeiros periodos, o symbolo da
independencia nacional.

Á maneira, porém, que com o tempo se obliterava a lembrança das crises
successivas, renascia, com as complicações dynasticas, o pensamento
natural da união. Assim aconteceu no tempo de D. Fernando; assim desde
D. Affonso V até 1580. E quando foi a crise peninsular, determinada
pela invasão franceza, D. João VI, do Rio, onde se achava, viu
despontar a perspectiva da união, e a côrte voltou a ser iberica.
O duque de Palmella estava então enviado junto á Regencia de Cadix
(1809-10) e dizia-se do Brazil que se o throno viesse a pertencer
a Carlota Joaquina, uma esquadra iria leval-a a Hespanha, e essa
solução teria «as vantagens de preparar e facilitar a reunião das duas
monarchias». (Off. no _Conimbricense_, n. 3664)--Depois, na crise
dynastica, determinada em Portugal pela morte de D. João VI, voltavam
os planos ibericos.

A ambos os pretendentes se attribue o pensamento de resolver, por meio
do iberismo, o problema em que se viam afflictos. (_Port., seus gov. e
dyn._ op.)

Logo que a volta de D. Miguel em 28 levou Saldanha a emigrar, o Cid
portuguez escrevia de Londres para o Rio a D. Pedro excitando-o,
acenando-lhe com planos ibericos, conforme já vimos. (Liv. prim. I, 3)
Em 31, regressado D. Pedro á Europa, e emquanto não havia ainda decisão
assente sobre a marcha a seguir, Saldanha d’accordo com o general Mina
foi a Londres convidar o principe para a empreza, a que Palmerston se
teria opposto. (Carnota, _Mem._)

Pensaria D. Pedro n’um imperio mais ou menos napoleonicamente liberal,
herdando Fernando VII e expulsando D. Miguel? D’este, diz se, como
já vimos, que no mais desesperado momento da guerra teria pensado em
correr sobre Madrid, ao tempo quasi desguarnecida, tomal-a, e fazer
causa commum com D. Carlos, então a ponto de vencer.

Qualquer que seja o grau de verdade d’estas allegações, é facto que,
resolvida a questão dynastica em Portugal, vencedor o liberalismo,
a sua historia deploravel arraigou em muitos a opinião unionista.
Palmella toda a sua vida dizem ter affirmado que «Portugal, depois
da separação do Brazil, não tinha mais remedio do que unir-se á
Hespanha». Do lado opposto, vimos Passos confessar na tribuna que
o futuro nacional estava na união. A opinião do duque de Palmella
firmava-se naturalmente na historia do paiz que vivera por quatro
seculos da exploração de territorios ultramarinos, e que desde 20 se
achava reduzido ao _canapé_ europeu de D. João VI, porque o resto das
suas colonias, armazem de escravos apenas, de nada valia desde que o
tráfico dos negros era prohibido. As finanças nacionaes, exprimindo a
ruina economica portugueza, eram o commentario eloquente da doutrina e
a causa immediata mais grave das agitações da politica.

Chegaram as idéas de união a inspirar os actos das côrtes de Lisboa e
de Madrid? Querem alguns que sim: o futuro o dirá, quando se poderem
vêr os tombos das embaixadas e ministerios. Como se sabe, Portugal,
alliado á Hespanha pelo tratado de 34 que expulsara D. Miguel, tinha
mandado uma divisão com o conde das Antas auxiliar Isabel II a expulsar
D. Carlos. No theatro da guerra, diz-se, o conde e o general Cordoba
teriam projectado combinações, que dos seus gabinetes faziam tambem
Mendizabal e o primeiro marido de D. Maria II. Esse principe morreu
breve, mas a nossa rainha casou-se logo, e em 38 já tinha os seus
dois primeiros filhos. Por casar ainda em 44 a rainha de Hespanha,
accrescenta-se que adquirira grande acceitação a idéa de um duplo
enlace de Isabel II com o herdeiro de Portugal, e de D. Luiz com a
infanta hespanhola. (Borrego, _Hist. de una idea_, ap. Rios, _Mi
mision_, etc.) O doutrinarismo vingou porém em Hespanha; Guizot casou
a rainha em 46, de modo a tornar provavel a successão de Montpensier ao
throno; esteve a ponto de haver uma guerra; e, dissipada a esperança
de enlaces dynasticos, veiu a intervenção hespanhola de 47 em Portugal
terminar completamente este episodio da historia moderna do iberismo.
(Rios, _Mision_)

Os emigrados que, ás centenas, o doutrinarismo hespanhol expulsava para
Paris eram ibericos; e emquanto no exilio os progressistas do reino
visinho punham a união no seu programma, em um canto afastado do mundo,
em Macau, estava, consul pela Hespanha na China, D. Sinibaldo de Más
que converteu ao iberismo o bispo portuguez. (_Ibid._) Fôra isto em 50;
e no anno seguinte deu-se a Regeneração, cuja physionomia moderna o
leitor conhece.

O escasso ou nenhum valor que o utilitarismo dá ás idéas, a
importancia exclusiva ligada ao fomento material estavam dizendo que
a união encontraria adeptos entre os moços. Não seria a visão de um
imperio poderoso, como o que D. João II planeara, como o que enchia
democraticamente os sonhos de Passos. Era a demonstração rigorosa
e exacta de quanto havia a _ganhar_, apagando as linhas raianas,
unificando a economia, subordinando a rede da viação a vapor á
geographia commercial da Peninsula, em vez de a torturar por motivos
politicos. «Fraternidade, Egualdade, União, entre portuguezes e
hespanhoes», trazia como epigraphe o livro de D. Sinibaldo, traduzido
em portuguez e prefaciado pelo joven Latino Coelho. (_A Iberia_, por D.
Sin. de Mas: tr. Lisboa 1853)

Os embaraços, com que então se luctava entre nós para levar a cabo
o caminho de ferro de Leste, eram o motivo immediato para declarar
urgente a união que agora procedia de razões economicas, como se vê,
sem se ligar a chimeras politicas, no genio de homens que tinham o
espirito afinado pelo tempo. D. Sinibaldo dizia que se nós queriamos
o caminho de ferro, adherissemos á união. Como? De um modo pratico e
simples: casando o rei portuguez com a herdeira hespanhola, D. Pedro
V com a princeza das Asturias, «construir-se-ha o caminho de ferro a
Badajoz». (_Iberia_) Fontes passava por partidario d’esta combinação
(Rios, _Mision_); e um dos publicistas mais graves e entendidos
escrevia assim: «O paiz menor tem um varão reinante, o paiz maior tem
uma princeza por successor ao throno». (Cl. Ad. da Costa, _Mem. sobre
Portugal e a Hespanha_) Emquanto D. Sinibaldo se fixava mais sobre
as condições de politica internacional, sobre as opiniões da geração
nova, sobre as considerações de geographia commercial e politica,
determinando já a capital--Santarem--ao mesmo tempo que desenhava a
futura bandeira iberica quadricolor: Costa, o estatistico, alinhavava
os algarismos, multiplicava os calculos para demonstrar as riquezas que
nos viriam da união. Era um iberismo positivo, pratico, regenerador.

Mas com este novo espirito portuguez tinha-se tambem insinuado em
Portugal um corpo de sentimentos modernos, ainda mal definido em
idéas, mixto de socialismo humanitario e republicanismo cosmopolita,
federalista: a atmosphera necessaria de idealismo que alimentava o
espirito dos moços, formando a vanguarda dos partidos revolucionarios
portuguezes de 51 a 68, forçando os regeneradores a tornarem o
Fomento solidario da Conservação. Concebe-se facilmente como a
semente do iberismo devia germinar em um solo bem preparado pelas
idéas cosmopolitas e humanitarias, pois que estas idéas, em vez de
penderem para o lado dos antigos liberalismos, se alliavam á doutrina
do fomento economico eivada de socialismo, democratico e não cesarista.
Além d’isto o phenomeno singular do pessimismo portuguez, oriundo do
caracter apathico do povo, justificado pela historia, corroborado com
eloquencia pelas miserias presentes, conduziam a vanguarda da geração
nova a vêr na solução iberica a conclusão natural da historia patria.

Latino, publicista imaginoso, artista nas idéas, no temperamento, no
estylo, apresentava no seu prologo á _Iberia_ as opiniões vagas e
nebulosas da gente que, ligada partidariamente á Regeneração, como
José-Estevão se achava ainda, se não satisfazia já com o mutismo
politico regenerador. Latino via auroras para além do _zollverein_
peninsular. Não via Fontes «sobre a locomotiva o progresso?» Mas o
progresso do ministro era a riqueza apenas; e as auroras do publicista
eram a Humanidade, uma Republica europêa, a Paz universal! «Se a
federação europêa não é tão cedo possivel, não será mesquinho o nosso
desejo, se aspirarmos á diminuição progressiva do numero dos Estados
independentes.--A peninsula iberica que já formou uma só nação pela
conquista, poderá, deverá ser um só paiz pela fusão espontanea». (Prol.
da _Iberia_, anon.) Era tambem a opinião de Cazal Ribeiro que acclamava
a Iberia, sob a fórma de uma republica federativa. (_Rev. lusit._ maio
53) Era tambem a opinião do moço, mallogrado Nogueira, (_Fed. iberica_,
54; ap Th. Braga _Sol. pos. da pol. port._) que chorava sentidamente a
nossa dolorosa situação: «Minha pobre patria! escuta a voz do ultimo
e mais obscuro de teus filhos. Sacode essa nuvem de harpias que
especulam com a tua passada grandeza, para se nutrirem em teu corpo
extenuado! Quando volverem dias mais auspiciosos lança-te resolutamente
na vanguarda do movimento peninsular, onde tu e os teus briosos
companheiros tens tudo a ganhar e nada a perder». (ap. _Iberia_, tr.
port.) Tambem o prologo da _Iberia_ dizia: «Portugal, só, como está,
desajudado, moribundo, que poderá jámais tentar? Exhauriu-se de forças
na lucta: precisa que lhe injectem sangue novo. É, depois da Turquia, o
povo mais atrazado».

       *       *       *       *       *

Podia este pessimismo agradar á Regeneração gloriosa, magnifica? Podia
agradar-lhe a Iberia, quando o pensamento da união, democratisando-se,
passava do segredo das secretarias para a publicidade dos papeis?
quando, em vez de combinação de gabinetes e arranjo dynastico, se
tornava a expressão de ambições revolucionarias, mais vagas, mais
nebulosas, mais graves do que nunca? O fomento pugnava pró, mas não
pugnaria contra a conservação indispensavel ao progresso da riqueza?
E, se tudo isto era assim, não valia mais recuar, abandonando as
esperanças dos caminhos-de-ferro vastos e geometricos, da futura
Lisboa--outra Londres--para conservar a nossa pobreza e a nossa
monarchia? Em Hespanha pensava-se outro tanto, antepondo-se á união
a conservação, por medo das revoluções. E desde que, accordes n’esta
politica, (V. Rios, _Mision_) os conservadores dos dois paizes
abandonavam os planos de enlaces dynasticos, o melhor partido que os
regeneradores podiam tirar do iberismo era o de usar d’elle como arma
para condemnarem os revolucionarios novos, aos quaes afinal o tinham
ensinado.

D’ahi veiu para nós uma situação que mais de uma vez se tornou
grotesca e sempre ridicula. D’ahi veiu inventar-se o 1.º de Dezembro,
festa patriotica em que annualmente arremettemos contra os visinhos
com bombas, foguetes, philharmonicas, e peior ainda! com discursos
apopleticos de uma rhetorica plebêa. D’ahi veiu o ter-se assistido á
queda de successivos gabinetes por esse labeu de iberismo explorado
pelos partidos, lançado como uma pélla de um a outro lado, fazendo
crêr que no meio de um odio universal á Iberia, todos em Portugal
são ibericos! D’ahi veiu o accender-se no coração do povo passivo, e
em proveito da intriga politica, um odio archaico, absurdo, talvez
responsavel de futuro sangue innocente derramado, se um dia os vae-vens
do equilibrio europeu fizerem com que a Hespanha nos conquiste. D’ahi
veiu o ridiculo de uma nação fraca, mui governada, sem marinha, com um
exercito indisciplinado, nem instruido, nem aguerrido, nem numeroso,
com as fronteiras abertas, as costas por defender: de uma nação que
não poderia resistir á mais pequena das invasões, dar ao mundo--se o
mundo olhasse para nós!--o espectaculo ridiculo da fanfarronice mais
disparatada. «Rrre ...benn ...too de fo.o.rça!» diz n’uma comedia
hespanhola um portuguez, inchando-se, com as faces rubras; e os
hespanhoes vingam-se não nos ouvindo, e chamando-nos amavelmente
_portuguecitos_.

Tal foi a situação creada pela iniciação iberica de 53, depois
aggravada quando a revolução de 68 fez da successão de Hespanha um
problema. Renasceram, é natural, as combinações dynasticas; mas o
iberismo, já ao tempo declaradamente federalista, era a revolução:
não se repetia, pois, a historia anterior? Não eram forçados os
conservadores a cohibir quaesquer ambições que tivessem, para defender
a monarchia, para se defenderem a si, para esmagarem os contrarios,
explorando o patriotismo em proveito proprio, condemnando em nome
d’elle a revolução que affirmava ser urgente _renegar a nacionalidade_?
(Quental, _Port. per. a revol. de Hesp._)

Mas antes que este segundo momento apparecesse para crear
definitivamente a situação que desenhámos ha pouco e é a de hoje;
antes, entre as duas crises, que attitude era a da Hespanha? Tambem
na côrte de Madrid se sabia que a Iberia seria a revolução e a quéda
dos Bourbons: como poderia haver planos de annexação? Os partidos
conservadores, nos dois paizes (regeneradores, _unionistas_), tinham
chegado áquelle triste ponto de nada, absolutamente nada, poderem
fazer no sentido de melhorar a sorte do povo, pela razão de que
toda e qualquer idéa fecunda era, e é,--a situação conserva-se a
mesma--confiscada, apropriada a si pela opinião revolucionaria,
atmosphera hostil que rodeia e paralysa. Se, portanto, em Hespanha
existia um medo, não de uma invasão portugueza, mas do iberismo como
arma revolucionaria, em Portugal havia-se já insinuado, generalisado no
povo um odio a Castella, que aos conservadores convinha que houvesse,
para com essa irritação, cuja falta de fundamento elles mais do que
ninguem deviam conhecer, obterem a protecção decidida do paço e uma
arma de parada para baterem as opposições.

Mas os conservadores portuguezes, excitando assim um sentimento
anarchico para se servirem a si e á monarchia, foram réus de graves
desvarios. Logo á morte de D. Pedro V o povo de Lisboa, choroso e
commovido, misturou o iberismo no corpo de protestos com que exprimia
a condemnação constante, ora tacita, ora expressa, pela ordem das
cousas. Ha, sem duvida, uma pathologia collectiva sem o estudo da qual
o historiador jámais poderá iniciar-se no intimo dos sentimentos de um
povo. As doenças mysticas do catholicismo do XVII seculo constituem
um corpo de symptomas eminentes; e Portugal cujo organismo raros
momentos gozou de uma saude perfeita; Portugal cujo ultimo ataque de
febre monarchico-catholica nós estudámos em 26-33; Portugal que desde
a implantação do liberalismo, ou em collapso não se movia, ou passava
da inacção a alguma furia: Portugal apresenta um symptoma curioso
para diagnostico ao medico politico. Todos os seus reis envenenados,
todos os seus estadistas, burlões, eis a genuina opinião do povo, que
qualquer póde obter interrogando-o. Envenenado D. João VI, D. Pedro
sem duvida alguma envenenado, D. Maria II--quem o ignora? E depois de
tudo isto, morriam D. Pedro V e os infantes (D. Fernando, D. João)
envenenados tambem.

Envenenados morreram, com effeito, mas com os miasmas do charco de
Villa-Viçosa.--Qual charco! dizia o povo; um charco sim, mas o dos
politicos: o de Loulé que quer ser rei, acudiam uns; e outros diziam
que não, affirmando terem sido o Salamanca e os socios para nos
_venderem á Hespanha_. Assim, lavrando na imaginação popular, a semente
do iberismo lançada pela iniciação do Fomento, tornava-se agora contra
os que por interesse eram os adversarios da união iberica.

Nos tumultos do inverno de 61, por occasião das mortes na côrte,
o protesto espontaneo do povo rebentou de um modo symptomatico,
declamando absurdos, exigindo crueldades: querendo a cabeça de Loulé
que para a guardar teve de fugir pelos telhados das secretarias;
propondo-se saquear a casa de Salamanca, o que envenenara no almoço de
Santarem a familia real na volta de Villa-Viçosa! (Nota de Valencia,
11 de nov. ap. Rios, _Mision_) Quem denunciava estes criminosos?
Ninguem; todos. De quem é a voz que nas tempestades fala em trovões
reboando pelas quebradas das serras? A turba, como as massas da
electricidade, tem uma fala cujas expressões a ninguem pertencem.

Mas assim como a trovoada não vem sem causa, assim os clamores
populares, embora absurdos nas palavras, teem um motivo intimo e
grave. Já na historia houvera delirios, e sempre, no fundo da loucura,
appareceram verdades. Tambem os allucinados no seu tresvario vêem longe
muitas vezes. Ninguem envenenara os principes, ninguem projectava
vender-nos a Hespanha. Loulé, em vez de burlão, era um homem de bem.
Mas que importa? Alguem ha de ser o réu, alguem o objecto da nossa
colera, do nosso mal-estar, da vaga consciencia da nossa miseria, e
quem, senão quem nos governa?

Se o organismo portuguez tivesse ainda energia para se rebellar, o
fim de 61 teria provavelmente assistido a uma revolução: mas não
sabemos nós, acaso, que depois da Maria-da-Fonte a guerra de 46-7 foi
já um combate de espectros? E depois d’esse episodio funebre, não
viera a Regeneração medicar-nos com tisanas de scepticismo e caldos
substanciaes de _melhoramentos_? Se o enfermo levantava cabeça, não
podia ser ainda para pensar: era apenas a convalescença em que o
organismo pouco a pouco se robustecia com a transfusão de sangue de
libras inglezas, por emprestimos successivos.

Quando chegou o dia do rei D. Luiz se casar, e a Hespanha que, mais
viva, estava proxima a ajustar contas com o _liberalismo_ de Isabel
II, viu que a noiva era a filha do piemontez já rei da Italia unida,
temeu-se em Madrid que a tradição da familia saboyana, o exemplo da
outra peninsula meridional fizessem de Portugal um Piemonte hespanhol.
Quanto injusto favor nos concediam! Que temerarios planos attribuiam
ao nosso modesto rei, aos nossos estadistas timidos, mediocres! O
embaixador que a Hespanha tinha em Lisboa apressou-se a dissipar os
sustos palacianos:

 O rei D. Luis é um joven sem experiencia, de curto alcance e pouco
 a proposito para dirigir um negocio de tanta consequencia. (Desp.
 do m. de la Ribera) Se me perguntasse qual eu creio que seja o
 caracter distinctivo d’esta sociedade, diria que é o de uma profunda
 prostração. Não temo que, no curso da politica, qualquer que ella
 seja, Portugal possa influir nos destinos da Hespanha. Não ha
 aqui nenhum dos elementos que se reuniram no Piemonte; não vejo
 partido bastante energico e poderoso para ter uma politica externa
 de verdadeira iniciativa; nem distingo em nenhum homem publico um
 verdadeiro homem d’Estado. (Desp. de Coello y Quesada, 5 de set. 64,
 _ap._ Rios, _Mision_)

Dissipadas as sombras de sustos, apertaram-se outra vez as mãos entre
Madrid e Lisboa, contentes, esperançados, os Bourbons e os Braganças,
os regeneradores e os _unionistas_, em que o espectro revolucionario
da Iberia ficasse para todo o sempre mudo. De repente, porém, surge em
Hespanha uma revolução (3 de outubro de 1868) que n’um instante expulsa
a rainha, acclama Prim, e fica á espera de saber que destino ha de dar
a nação. Republica? Monarchia? Iberia? Centralisação? Federalismo?...
Depois a guerra assolou a França, abatendo o segundo imperio. As duas
grandes nações latinas acharam-se desprovidas de governo, entregues
aos vae-vens das opiniões partidarias, abertas a toda a especie de
experiencias, como navios desgarrados de uma esquadra açoitada pelo
tempo. Faltava a unidade de direcção almirante, e dentro de cada nau o
commando fluctuava á mercê do acaso ou da fatalidade. A Hespanha tentou
uma monarchia e varias fórmas de republica. A França, gemendo, não se
decidia á dar á luz fórma alguma conhecida de governo. Mas em Hespanha
e França o socialismo appareceu sob a fórma de deploraveis revoltas
communaes, eivado de preoccupações federalistas e demagogicas, cruel,
rudemente esboçado em Paris e em Carthagena. Não eram, porém, mais nem
menos violentas, sanguinarias e ridiculas do que as da Edade-media,
raizes de um liberalismo burguez hoje acclamado por ser vencedor. Em
França e Hespanha portanto a revolução, denunciada sob o seu novissimo
aspecto, levou as classes médias a congregarem-se para se defenderem.
D’ahi nasceram, nos dois paizes, governos analogos, egualmente
_opportunos_, embora diversos como fórma: a monarchia para áquem, a
republicana para além dos Pyreneus.

       *       *       *       *       *

Com a revolução hespanhola de 68 o iberismo acordou por varios modos.
Em outubro liam-se nas esquinas de Lisboa pasquins dizendo:

 Viva a união iberica! Viva o sr. D. Luiz I chefe dos dois paizes
 unidos!--Ponhamos de parte estupidos preconceitos; portuguezes e
 hespanhoes são irmãos pela religião, pelos costumes, pelo idioma,
 e sobretudo pelo seu decidido amor á liberdade. Não percamos,
 portuguezes, a occasião que a Providencia nos offerece para nos
 engrandecermos, constituindo uma nação que será invejada de todas
 as nações do mundo, podendo dar leis a todas, sem de nenhuma as
 receber.--Viva a união iberica!

Esta proclamação, supposta portugueza, era provavelmente hespanhola:
forjada pelos emissarios que Prim, ao tempo, sabidamente tinha em
Portugal. Se o general relesse os despachos de Quesada, quatro annos
atraz, se tivesse genio para auscultar bem o temperamento do paço, do
governo, e do povo, reconheceria mais cedo como perdia o tempo. D. Luiz
nunca foi Victor-Manuel, nem Carlos-Alberto, nem Guilherme IV; Fontes
não era evidentemente um Cavour, nem um Bismarck: menos o era ainda o
duque d’Avila presidente da Janeirinha.

Por outro lado, Prim, nem tinha audacia nem força para fazer de nós o
que Bismarck fez dos ducados do Elba. Mas a Hespanha necessitava um
rei! Ainda a guerra alleman não destruira o imperio em França: uma
republica seria um escandalo. Um rei! pelo amor de Deus, um rei! diziam
afflictos de Madrid. E bem perto, em Lisboa, havia um, em inactividade
temporaria, nos casos de servir. Mas casado! Dariam á Hespanha a
condessa d’Edla como rainha? Por ahi a negociação falhou. (V. Rios,
_Mision_) E tambem porque, embora allemão, embora já com filhos o
rei portuguez, os conservadores viam no affinidade das dynastias um
longinquo receio de iberismo. Appareciam graves folhetos sombrios
(Corvo, _Perigos_; _Duas palavras_, etc.) pintando com sinceridade,
ou sem ella, as ameaças imminentes. E acordar no povo o _odio a
Castella_ foi ainda, como sempre fôra, um meio de _fazer opposição_.
Os regeneradores tinham agora a conquistar o poder ao _reformismo_ da
janeirinha, e para tanto, o melhor meio era chamar-lhe iberico e encher
de sustos a cabeça do bom do rei.

E entretanto, nem o Bispo, nem Latino, nem ninguem era iberico; embora
o _reformismo_ tivesse laivos de republicano, embora Latino tivesse
prefaciado o livro de D. Sinibaldo. Illusões tambem passadas! A
iniciação do fomento convertera as gerações novos, e os ideologos
de 54 eram opportunistas em 70. Tambem os federalistas platonicos
d’esses tempos passados eram conservadores de agora, como Cazal. O
federalismo iberico, mais ou menos eivado de socialismo demagogico,
era já em Portugal apenas o credo de uma minoria minima, sem valor
politico de especie alguma. E passada a crise, restaurada a monarchia
em Hespanha, a situação voltou o ser, com os partidos novos, o que fôra
com os antigos. Conservadores de ambos os lados da raia: conservadores
regeneradores, conservadores canovistas, conservadores progressistas,
etc., etc.,--opportunistas todos.


3.--O SOCIALISMO

Esta doutrina saía mais directamente do que a idéa precedentemente
estudada, do progresso material defendido pela regeneração. Os
regeneradores não estavam de todo limpos da mancha socialista, como
vimos. Chevalier, o mestre economista do partido, trouxera da egreja de
Menilmontant para o mundo as maximas da economia sansimonista.

Mais do que ao iberismo ainda, porém, acontecia ao socialismo o que
antes vimos succeder: abraçarem os revolucionarios a idéa, fazerem-na
sua, obrigando os regeneradores a renegal-a, recuando cada vez mais,
accentuando todos os dias o seu caracter conservador. O individualismo
das antigas escholas e partidos finara-se, porém, como lettra morta;
e quer cesarista, conservadora ou imperialistamente, quer democratica
e revolucionariamente, «o melhoramento da sorte dos desvalidos da
fortuna» era uma preoccupação tão dominante dos espiritos, como
n’outro tempo o fôra «a garantia dos direitos soberanos do individuo».
Os socialistas francezes eram geralmente lidos. Os moços chegaram a
ensaiar phalansterios. A classe dos engenheiros, nova em Portugal,
com a sua educação mathematica, seguia os exemplos dos discipulos da
eschola polytechnica de Paris. Commungavam n’um sansimonismo, mais ou
menos accentuado, Carlos Ribeiro e Rolla, Garcia, Bettamio, Delgado,
e Brandão, author da _Economia social_ (8.º 1857) com epigraphe:
_Unicuique secundum opera ejus_. Fourier apparecia como um precursor,
Proudhon como um apostolo. Para além do presente entrevia-se um futuro
doirado de fortunas.

 Por acreditar na imperfeição e na perfectibilidade da raça humana,
 ninguem pecca por fourierista ou proudhoniario. A poesia romantica
 tem, não ha duvida, muito de socialista mas annuncia um socialismo
 mais sabido que ainda está por vir. A poesia é toda inspiração e
 vaticinio. A magia existiu antes dos caminhos-de-ferro, do gaz e do
 magnetismo. Dante viu as estrellas do hemispherio austral antes que
 este se descobrisse; Seneca vaticinou a descoberta da America; Eschylo
 no _Prometheu_ a redempção; e Virgilio adivinhou alguma cousa da moral
 christan e até o progresso civilisador da Europa, extendendo por todo
 o mundo os seus costumes, o seu poder, a sua religião, a sua sciencia.
 (_Rev. Peninsular_, 55)

Isto era escripto commentando Espronceda, o author do _Pirata_ e do
_Mendigo_, o poeta néo-romantico que puzera nos seus versos todo o
desespero, todas as ironias, todo o _satanismo_ de uma alma já sem
obediencia a nenhuma especie de authoridade moral, mas cheia de impetos
e aspirações democraticas e socialistas.

Com effeito, a revolução das idéas approximara estas duas opiniões;
e se já não havia jacobinos, tambem ainda o socialismo não ganhara a
expressão exclusiva, odienta, de uma guerra de classes, como partido
de _populani_ magros resuscitado da velha historia das republicas
italianas. Uma atmosphera nebulosa de humanitarismo cheio de esperanças
philantropicas envolvia as doutrinas revolucionarias: choravam-se as
desgraças dos italianos, dos polacos escravisados; e a liberdade que
para os passados fôra um criterio racional e a base de um systema de
idéas, era agora invocada com um caracter mais de politica autonomica
das nações, do que de soberania constitucional dos individuos. A
republica seria a paz universal! Pouco importava, a ninguem offendia
que as ephemeras republicas de 48 fossem tyrannas com laivos de
communismo. Tudo isso era liberdade! Aos homens, educados pelo espirito
jurista e pela critica de Kant, succediam os discipulos de Louis Blanc
e de Lamartine.

Na camara portugueza--como as idéas correm, como as nações mudam
rapidamente, n’este seculo revolucionario!--na camara portugueza,
na sessão de 49, Souto-Maior, sem ser expulso nem apupado, defende
«a nobre, santa e justa causa em que se acha empenhada a Italia
inteira para constituir a sua liberdade, firmar a sua independencia,
e estabelecer a sua unidade». E no seu jornal, _Estandarte_, o orador
escrevia do papa: «Resumo de uma grande historia morta, póde ainda ser
o symbolo de um grande povo vivo». A _Carbonaria_ italiana, dirigida
pelo mystico republicano Mazzini, alargando os seus ramos por toda a
Europa, para fundar a republica universal e redemptora, infiltrara-se
entre nós tambem com a sua _alta-venda_ ou _choça-mãe_ d’onde dependiam
as vendas ou choças filiaes e as _barracas_. Em Coimbra havia a choça
de Kossuth, o hungaro. (M. Carvalho, _Hist. contemp._) N’esta maçonaria
novissima alistavam-se os moços, e d’ahi saía a direcção politica,
republicana e democratica.

N’este estado veiu a Regeneração encontrar os elementos desordenados
e fracos dos revolucionarios portuguezes; e os laivos de socialismo
que n’elles havia fizeram com que ella em grande parte absorvesse a
cauda moça do partido setembrista, já tambem eivada de doutrinas ou
sentimentos cosmopolitas e philantropicos. Das vendas carbonarias
passou então o foco da agitação revolucionaria para as sociedades
operarias. Fundou-se em Lisboa o _Centro-promotor_. «As idéas
societarias que desde 48 tinham ido calando no coração dos desvalidos
da fortuna» inspiravam ao mesmo tempo os typographos que se faziam
litteratos-politicos (Vieira-da-Silva, Albuquerque, etc.), os
engenheiros mais ou menos socialistas (Rolla, Latino, Brandão),
e os antigos setembristas que viam a urgencia de infiltrar idéas
e sangue novo no partido. Ao theatro romantico de Mendes-Leal,
heroes panta-façudos, homens-de-ferro com uma linguagem de medos,
substituiu-se um outro genero: eram os homens ou as mulheres _de
marmore_, dramas satanicos mostrando ao povo a corrupção dos
ricos; eram as _peças_ operarias, inspiradas pelas obras de Sand e
Eugenio-Sue, em que o homem de trabalho apparecia heroe, luctando com
energia e talento contra os crimes e preconceitos de uma sociedade
madrasta.

Desgarrados, sem cohesão nem consistencia todos estes elementos
revolucionarios, a Regeneração tendia a inclinar todos os dias mais
no sentido revolucionario, á imagem do que succedia por toda a Europa
latina.

Rodrigo, que a principio se apoiara no grupo setembrista da
_Revolução_, foi pouco a pouco bolinando tanto no sentido opposto, que
a presidencia official do partido passou de Saldanha para Terceira
(no gabinete de 59). Já em 54 D. João de Azevedo escrevia de Lisboa a
José Passos: «Conte que antes de pouco tempo muitas notabilidades do
partido cabralista hão-de obter graças e mercês, _porque a estrategia
de Rodrigo está hoje posta n’isso_.» (Carta, na corr. autogr. dos
Passos) Assim tinha de ser. Que era a Regeneração, senão o utilitarismo
cabralista sem doutrina? Que fôra o cabralismo, senão uma regeneração
sem dinheiro nem scepticismo, só com doutrina e violencias? 48
levantara uma labareda, mas o incendio apagou-se rapido. A Polonia, a
Italia, a Hungria ficaram quaes se achavam antes; a França restaurou o
papa em Roma, e tolerou em Milão o austriaco. Depois dos dias de junho
em que o socialismo de Paris foi esmagado, viera Napoleão III pôr um
freio ás temeridades revolucionarias.

O romantismo politico, a que nós estudámos as duas faces successivas
(1826-1838, Palmella, Herculano), finara-se de todo com uma revolução
em que já entravam elementos de diversa origem.

 O que caracterisa esse periodo é a grandeza generosa das aspirações,
 combinada com a indeterminação das idéas, um vago idealismo ou antes
 sentimentalismo que envolve e abraça, sem dar por isso, as maiores
 contradicções praticas e se lança no caminho das mais perigosas
 aventuras com um sorriso de confiança ingenua e quasi infantil. Este
 phenomeno de uma revolução sem pensamento explica-se pelas condições
 particulares do meio em que se desenvolveu.

 Era em primeiro lugar um individualismo sentimental, ao mesmo tempo
 cheio de reivindicações e de effusões e que pretendia corrigir o
 egoismo das reclamações do direito individual com os preceitos
 moraes e poeticos da fraternidade.--Em segundo lugar, a attitude
 determinadamente hostil das monarchias constitucionaes dominadas pela
 alta burguezia ávida e agiota, tornava-lhes imminente a queda sem que
 se podesse dizer que essa queda implicava uma verdadeira revolução
 porque as classes contra ellas insurgidas não tinham principalmente
 em vista destruir, no seu principio, o regimen existente, mas pelo
 contrario, entrar n’elle, apossar-se d’elle, alargando-o (pelo
 suffragio) até ás proporções da nova democracia.--Em terceiro
 lugar, finalmente a attitude das classes operarias vinha lançar no
 meio d’esta confusão intellectual e politica mais um elemento de
 perturbação, e o mais formidavel de todos. O Socialismo, tão mal
 comprehendido pelos seus adversarios, como mal definido pelos seus
 partidarios, foi transformado n’um monstro, o famoso _espectro
 vermelho_; e o terror abria caminho a uma reacção tão geral e
 irresistivel que arrastou comsigo não só o Socialismo, não só a
 Republica, mas ainda o proprio regimen liberal e todas as garantias
 legaes tão custosamente conquistadas.

 O drama romantico veiu a dar por toda a parte n’uma conclusão tragica.
 A Hungria foi esmagada, esmagadas a Italia, a Rumania, a Polonia. Na
 Alemanha, na Austria, o cezarismo dissolve os parlamentos nacionaes,
 rasga as constituições que o susto lhe fizera jurar no primeiro
 momento de surpreza e estabelece solidamente e por muitos annos o
 regimen militar. Em França, d’onde partira o impulso revolucionario,
 o Socialismo, tornado a execração de todos os partidos, cae exangue
 nas barricadas de junho, e o movimento reaccionario, uma vez lançado,
 não pára sem ter destruido a republica, as garantias liberaes
 constitucionaes, humilhado a democracia, e sobre todas estas ruinas
 estabelecido o imperio conservador, ao mesmo tempo rural, militar,
 bancario e clerical.

 Taes foram os resultados da evolução romantica. Mas a geração que
 a preparou e a consummou não podia prever taes resultados. A sua
 confiança era tão longa, como vastas as suas aspirações: e se
 aquella era infundada, estas eram generosas e alevantadas. Talvez
 nunca a historia registrasse uma tão completa catastrophe, saída
 d’um tal concurso de bellos sentimentos, de elevados intuitos, de
 personalidades brilhantes e heroicas. Os promotores e fautores
 d’aquelle movimento, os Lamartine, Ledru Rollin, Arago, Luis Blanc,
 Proudhon, Raspail, Mazzini, Garibaldi, Manin, Gagern, Rosetti, Bem,
 Kossuth, e todos os que indirectamente o prepararam, oradores,
 pensadores, poetas, Lammenais, Michelet, Quinet, Hugo, Sand, Sue,
 Leroux, Mickiewicz, Gioberti, Manzoni, Cantu, Mamiani, Feuerbach,
 Heine, formam uma pleiade incomparavel pelo talento e pelo caracter;
 e não admira que, apezar do vago e do incoherente das suas doutrinas,
 dominassem tão completamente o espirito da geração que atraz d’elles
 se lançou fanatisada no caminho de inevitavel desastre. (A. de
 Quental, _Lopez de Mendonça_, no _Operario_.)

Em Portugal, varias causas concorriam para que a revolução de 48 não
chegasse a nascer. Era o cançasso dos partidos, era a miseria da nação,
era a influencia de Rodrigo, epilogo sceptico da historia liberal.
Era tambem a circumstancia de que dos dois motivos do 48 europeu, o
democratico já entre nós fôra ensaiado e ficara desacreditado em 36;
e o socialista não tinha classes operarias fabrís bastante numerosas
para o fazerem vingar. Em vez de uma revolução, tivemos uma Regeneração
a que os revolucionarios como José-Estevão, Lopes-de-Mendonça etc.,
adheriram, conforme sabemos. Mas quando todos esses viram o partido
novo tornar-se cada dia mais velho; quando assistiram ao accordo de
Regeneradores e Historicos a favor das irmans-da-Caridade, que era
a questão ardente, separaram-se, para fundar o _Futuro_, jornal,
partido das aspirações vagas de um romantismo serodio cujo chefe era
José-Estevão. A ausencia de numerosas classes operarias principalmente
impedira antes a revolução, e impedia agora o nova partido de ganhar
estabilidade. E como não chegou a haver lucta, não houve motivo para
repressões: e como uma das causas da paz era a fraqueza, manteve-se a
liberdade por não haver interesses nem motivos fortes em conflicto.

Opportunamente morreu o tribuno (nov. 4 de 62) que durante a vida
não cessara de praticar nobres actos inopportunos. Como typo e
symbolo de uma geração que nunca chegou a ter voz, passou para o
tumulo deixando os companheiros dispersos, entregues á desillusão,
absorvidos pelos seus trabalhos profissionaes. Ao _Futuro_ succedeu
ainda a _Politica-liberal_; á _Patriotica_, o club do Pateo-do-Salema,
d’onde saíu ainda a força bastante para em janeiro de 68 derrubar os
conservadores do governo.

Veiu logo a revolução de Hespanha complicar a situação com esperanças
republicanas e intrigas ibericas; veiu depois a guerra do Paraguay
seccar a fonte dos ingressos de dinheiro do Brazil: tudo isto declarou
em crise o resto das antigas esperanças.

Debandaram todos, cada qual para seu lado. Os excentricos ficaram
esperando pela republica doirada; os praticos, ou se alliaram aos
conservadores, ou se congregaram em reformismo opportunista. E as
velhas idéas societarias? Tambem a iniciação do fomento influiu sobre
ellas; mas a dureza do regime capitalista da burguezia, em vez de lhes
fazer como a politica _realista_ fazia aos romanticos: em vez de as
reduzir a um pó de chimeras, obrigou-as a declararem-se em partido
dos pobres contra os ricos, n’uma guerra de classes, anachronica de
certo, mas ameaçadora. A Hespanha teve Carthagena, a França teve ainda
a Communa de 71: nós tivemos umas gréves apenas, por não possuirmos
sufficiente industria fabril.

Tal foi o caracter que o Socialismo tomou, sob o influxo do
Utilitarismo, sem que se veja ainda que outro e melhor o espera.
Dissipadas as chimeras, conquistadas as garantias individuaes,
conferida ao povo uma soberania negada ao throno: crê alguem que tudo
está feito? Espera alguem que esse povo, soberano e mendigo ao mesmo
tempo, não reclamará uma revisão da legislação economica? Perigosa
teima será negal-o, porque as revoluções inevitaveis, se se não
consummarem de cima para baixo, dar-se-hão ao inverso, de baixo para
cima--como a labareda que sóbe crepitante!


4.--D. PEDRO V

Esquecemos, n’estes successivos relances, o throno. E entretanto em
Portugal nunca deixou de haver monarcha. Depois de D. Maria II, matrona
antiga coroada, veiu o rei-artista, cezar sem amor á guerra; depois
D. Pedro V; por fim o rei actual. O seu finado irmão era um romantico
posthumo. Contava dezoito annos quando subiu ao throno (n. 16 de set.
de 37; r. 55) e com um temperamento observador, grave, desde creança o
foram impressionando os episodios deploraveis da historia d’esse tempo.
Tem o leitor presente a memoria de D. Duarte, o infeliz rei, tão sabio,
tão bom, tão cheio de terrores e de escrupulos? Foi como elle D. Pedro
V «esse pobre rapaz» que o destino condemnara a ser principe. Já não
estava nos usos consultar bruxas e adivinhos, mas o rei tinha em si
o feitio de espirito que pede milagres. Considerava-se predestinado,
ao inverso de D. Sebastião, para um fim breve e funebre; via-se
coberto de terra, mettido n’uma cova, imagem viva da morte, fatalidade
ambulante movido por uma sina triste. Era uma saudade, a sua alma; e
o coração, batendo, parecia-lhe um dobre de finados! Saudade de uma
honra esquecida, dobres pela morte de um povo desditoso? Symbolo de uma
nação cadaver, considerava-se, elle rei, minado por todas as pestes.
Roía o um remorso inconsciente que o fazia apparecer bisonho e triste,
com um sorriso doentio na face, a mudez nos labios, no olhar o quer que
é de somnambulo. Interpretando os acasos com o seu fado, explicando
tudo pela sua sina, achava em si a causa de muitas desgraças. Quando
o patriarcha voltava de o baptisar, partiram-se-lhe as rodas da
carruagem e caíu ... Aos dez annos, já o principe tinha pesadelos
que o faziam scismar: uma grande aguia negra tomava-o nas garras,
levantava-o ao ar, deixando-o caír e despedaçar-se ... A aguia tornava
a subir levando para os ares o mano Luiz ... Tinha então dez annos e
contava os terrores ao seu mestre. (Bastos, _Mem. bio. de D. Pedro
V_) Depois chegou a crer que matava o que tocasse. O general Loureiro
morrera de apoplexia? porque elle o affligira com certos ditos. D.
Carlos de Mascarenhas morrera? porque elle o obrigara a um passeio
excessivo. E o _Curso-superior_, o filho do seu amor ás lettras, era
baptisado com o cadaver de D. José d’Almada, com a loucura de Lopez de
Mendonça! (Andrade Ferreira, _Vida_, etc.) Tragica figura de um rei que
se acredita a má sina do seu povo! Não seria ella o summario de uma
historia miseravel, o symbolo de uma nação pobre, o espectro de um povo
caduco? Não viria como resultado de trinta annos de miseria, lentamente
cristolisados n’um cerebro impressionavel, definir com o seu genio a
epocha?

Se ás superstições funebres se póde achar esta razão de psychologia
historica, não é mistér appellar para tão longe quando se observa o
outro lado do seu caracter. Com olhos de pessimista, e esses eram
os bons olhos para vêr Portugal, tinha em tanta conta os que o
rodeavam, cria tanto n’elles, que mandou pôr á porta do seu palacio
uma caixa-verde, cuja chave guardava, para que o seu povo podesse
falar-lhe com franqueza, queixar-se, accusar os crimes dos governantes.
Singular modo de conceber o seu papel de rei de uma nação _livre_,
parlamentar! Os ministros que não escarneciam d’elle, principiavam a
temel-o; outros a odial-o. O povo começava a amar a bondade e a justiça
de um rei tão triste. Já corria de bocca em bocca a lenda do novo
monarcha: um infeliz! E o amor não era feito de esperanças, mas de
presentimentos funebres e de uma consciencia certa da fatalidade commum
do povo e do rei. «Se elle podesse!» Mas entre elle e o povo simples
havia de permeio os politicos.--«Como o rei é justo, bom e nobre! Nem
quer que lhe beijem a mão, nem que dobrem o joelho, nem quer matar um
só criminoso, o santo! Se não fossem os politicos!» E esta corrente
de intimidade entre o povo e o rei cresceu a ponto de se chegarem a
formular votos pelo absolutismo. (Th. Braga, _Hist. do rom._) A alma
espontanea dos povos latinos, idealistas, sem os calculos, as reservas,
os planos de outras raças, só acclama os factos simples: é inaccessivel
ás fórmulas. Quem no meio-dia quizer ser grande, seja forte, seja
_rei_: Pombal, D. Miguel, Saldanha ainda, ou seja um bom pae, um bom
protector do povo!

Como o seria porém D. Pedro V, se se acreditava marcado por uma
estrella funesta; se, fumando como um estudante o seu cigarro,
ouvia a licção do seu mestre Herculano, licção em que ás fórmulas
liberaes-romanticas se juntava o ensino de uma reprovação
universal--dos politicos, um bando; do povo, um desgraçado? As fórmulas
sabias murchariam a flor da ambição, se ella viesse a desabrochar,
porque as jeremiadas do propheta enraizavam na alma do rei o seu
pessimismo. Como que abdicava, instruindo-se; e, em vez de se entregar
ao officio proprio do seu posto, velava as noites a estudar, os dias
passava-os aferindo a realidade por uma historia vista com oculos de
metaphisicas nebulosas, de idealismos mysticos. Parecia um monge
somnambulo; mas a mocidade, a virtude estampada no seu rosto, ganhavam
um encanto de melancholia com essa perda das noites veladas. O dia, a
luz do sol, a realidade, os homens, tudo então se lhe affigurava um
sonho: pesadelo triste, a sua má sina! Quando não era funebre, era
ironico, epigrammatico: o seu reino parecia-lhe o peior da Europa.
Lera o livro de About _La Grèce contemporaine_, e annotando-o, poz no
titulo: _La Grèce--et Portugal_.

Ora Portugal já por fórma alguma era como a Grecia contemporanea.
Fôra-o sem duvida, mas desde que o espirito pratico vencera em 51,
conquistando a si o primeiro dos palikaras portuguezes, Saldanha, todas
as ambições nacionaes estavam tornados para uma Beocia antiga, farta de
cearas. O genio do rei não chegava a conceber um ideal tão mesquinho, e
só via o passado, com os olhos cégos para o futuro iniciado. Elle era o
fim de uma historia, o epilogo summario de um tomo, inserido por erro
depois das primeiras paginas do livro seguinte. Por isso lhe chamámos
posthumo. Considerava-se a si um nuncio da morte e via moribundo o
seu povo. Estimaria que o caminho de ferro se fizesse com inglezes
«para metter sangue novo nas veias d’esta raça atrophiada». Como se
sabe, os operarios cruzam com as camponezas e o caminho de ferro ia
atravessar o reino em dois sentidos. Singulares, dramaticas deviam ter
sido as conversas entre o mystico principe e o Salamanca, o aventureiro
audaz das novissimas emprezas que se propuzera regenerar Portugal.
O embaixador que as ouviu, apresentando ao rei _antigo_ o moderno
barão da industria e do banco, dizia que para descrever bem a acena
«seria necessario la pluma de un Cervantes.» Salamanca, _soccarron_,
affectando gravidade na sua face castelhana, como um Gil-Blaz, ouvia D.
Pedro que queria _lucir-se_. O _picaro_ confessava a sua ignorancia:
nem era philosopho, nem sabio! um homem-de-negocios, senhor! E D.
Pedro V contava-lhe a nossa pobreza, a incapacidade de sustentarmos
caminhos de ferro, filiando estas opiniões tristes no quadro lugubre da
decadencia das raças latinas. Saindo, o emprezario sagaz, que estudando
um doente vira um homem, disse para o embaixador companheiro: «Deus nos
livre de que este rei tivesse os meios e o valor das suas convicções.»

De casa do filho, foram ambos a casa do pae. Que mudança! Tambem
Salamanca era _artista_, tambem apaixonado pelo bric-à-brac,
derradeira poesia dos scepticos; tambem sybarita, _viveur_
aristocratico, distincto, palaciano. «Parecian hechos el uno para
el otro». Viram os museus, commentaram as faianças, os charões, as
porcellanas, os quadros, rindos como gréculos. O pensamento de ambos,
inconscientemente, nadava na expressão classica do papa da Renascença:
_Quod commoda da Deus nobis hœc otia, Christi!_ «Quedaran encantados.»
E para rematar a amisade, o rei D. Fernando fazia indirectamente a
apologia dos povos latinos, confessando o seu desamor pelos inglezes
que maltratava. (V. Desp. de Pastor Dias, 10 dez. 59 ap. Rios,
_Mision_) Triste engano do acaso, que invertera o lugar proprio das
pessoas. O pae devia ser o rei; o filho o principe que, sem os cuidados
do throno, acaso teria tido, no Portugal novissimo, o papel de D.
Henrique no de Aviz--o papel de um iniciador na sciencia!

Quem se não lembra de ter visto o rei, attento como um discipulo, a
ouvir nas salas do seu _Curso_ as lições dos professores, com o aspecto
grave, a mão cofiando o pequeno bigode, denunciando a actividade do
seu cerebro? Porque lhe não concedia a sorte viver a vida para onde o
seu genio o chamava? Porque a sua sina era perdida e uma estrella má o
condemnava a elle a reinar, e ao reino a padecer as consequencias de um
destino cruel. A bofetada que a França nos deu, vindo buscar armada ao
Tejo o negreiro apresado em Africa, arroxeou-lhe a face, e o rei chorou
afflicto. Veiu uma epidemia de cholera em 56; outra de febre-amarella
em 57; veiu a irritação cruel das irmans-da-Caridade. As desgraças,
os embaraços teciam a rede de malhas cerradas em que se lhe afogava
a existencia; sem lhe occultar, mostrando-lhe sempre, fatidica, a
estrella má do seu destino.

Quando um sceptico tem superstições--contradicção só aparente, e de
resto vulgar, do espirito humano--não reage, obedece; não resiste,
cae. Quando ellas atacam um mystico, fortalecem-no com uma coragem
transcendente. D’ahi veem os monges heroicos, stylitas e outros. A
alma de um santo que havia em D. Pedro V, retemperada pelo estoicismo
aprendido nas licções de sua nobre mãe, mostrou-se quando Lisboa
dizimada o via passar nas ruas, visitando os enfermos, caminhando para
os fócos do contagio, como um Isaac para o sacrificio biblico. O amor
do povo tornou-se então uma paixão; e corriam as anedoctas com que a
imaginação popular cristallisa os heroes. Mandara a um medico medroso
descalçar a luva para tomar o pulso ao enfermo. E se Portugal já tivera
em D. Sebastião um rei Arthur, não é verdade que se formava uma lenda,
diversa sem ser menos bella: a lenda da santa rainha de Hungria, ou
do rei santo de França? Nas pestes milanezas, o Borromeu ganhou a
canonisação; nas de Lisboa, D. Pedro V foi canonisado pelo povo. E
quando, quatro annos depois, morreu, na aureola da caridade o povo
engastou palmas de martyrio.

Nas angustias d’esses dias afflictivos, o moço, infeliz rei achar-se
hia bem, sem o crer, sem o pensar, sem o sentir. Assim a cevadilha só
floresce nos terrenos da malaria. Assim os maus só crescem no seio da
pravidade. Tambem os temperamentos funebres, com o espirito feito de
presagios, se prazem no seio das desgraças. Ellas vêem como confirmação
dos presagios. E nada aflige mais o homem do que a duvida, quando o
que o rodeia não obedece ao que pensa, ou ao que sente. Como não viria
a peste, se a estrella do rei era mortal? Cumpria-se o fado da sua
existencia. Os presagios não mentiam; o seu coração falava verdade. E
esta affirmação externa do seu sentimento intimo, afogava-o mais, cada
vez mais, nas suas superstições funestas, no seu pessimismo ingenito.

Em taes momentos, os temperamentos como o de D. Pedro V raras vezes
caem: quasi involuntariamente requintam. Formula-se então em doutrina o
que era apprehensão. O acaso, segredo ou mysterio do Universo, torna-se
Providencia; e, quando se é christão, por via de regra, entra-se nos
moldes conhecidos, que tantos mysticos formularam, desde Alexandria até
Manreza. A religião arde como chamma a que se dá, em novo combustivel,
a somma de apprehensões coordenadas. Era D. Pedro V christão? ou
apenas deista á moda romantica, isto é, reconhecendo no christianismo
a mais pura fórma de deismo até hoje concebida? Não sei. As licções
de Herculano, os livros modernos da sua leitura deviam ter abalado
a sua orthodoxia; mas os espiritos romanticos, na inconsistencia das
doutrinas, na poesia dos sentimentos, conservavam sempre aberta a porta
para o arrependimento. E tantos foram os que, penitentes, se curvaram
beijando a terra: tantos, tão dignos, tão nobres, obedecendo tão
espontanea e sinceramente, que hesitamos em dizer se o rei teria ou não
sido um d’esses.

A occasião levava a um tal fim a vida moral de D. Pedro V, quando o
casamento (18 de maio de 58) trouxe para o seu lado uma rainha piedosa,
candida, pura, como anjo que vinha, entoando os canticos da Egreja,
acompanhal-o a bem morrer, ou mostrar-lhe, apparição fugitiva, vaporosa
Beatriz de religioso encanto, o paraiso que o esperava depois da selva
escura da existencia terrestre. Tinha vinte e um annos Dona Estephania,
(n. 15 julho 37) quando casou com o rei que contava edade egual. Eram
duas creanças? Não; apesar dos annos. Porque a elle a imaginação
tinha-lhe feito viver já uma longa existencia de pensamentos, presagios
e angustias; e a rainha desde creança vasara toda a sua bondade
angelica nos moldes da devoção catholica. Apesar dos annos, pois, eram
ambos, em moços, como se já fossem velhos; e a edade juntava ao encanto
d’esse par tão nobre, tão cheio de sympathia. Ella tinha retratada a
candura da sua alma na suave expressão de um rosto meigo; e o rei, no
aspecto carregado, mostrava a força do seu caracter, a tristeza do seu
espirito. Um presentimento tragico assaltava quem os via passar nas
ruas da cidade: nenhum dos dois parecia bem d’este mundo--elle uma
victima expiatoria, ella um anjo custodio!

A devoção da rainha e a superstição do rei davam de si uma authoridade
espontanea á primeira no espirito do segundo. Era então o tempo em que
a questão das irmans-da-Caridade, complicada com a politica, se tornara
um espinho irritante; e a rainha devota e o rei funebre começavam
a ser accusados de clericaes e ultramontanos. Com effeito, nenhum
dos dois fôra feito para o throno. Tinham demasiada virtude, ambos,
para reinar em qualquer dos nações latinas, sobretudo em Portugal. A
sua sinceridade não era comprehendida, e arriscava-os a soffrer as
consequencias de uma politica desalmada.

D. Estephania morreu a tempo (julho de 59), antes que se desmanchasse
ás mãos duras de quem não tinha coração para a amar, a cristallisação
poetica formada no espirito do povo sensivel com a sua formosura
angelica, com a sua devoção ingenua, com a sua caridade fervente.
Morreu, e ainda bem! É como quando no meio da charneca desolada e
secca, fatigado, o viandante depara com um puro arroyo cristallino,
e bebe: assim nos acontece a nós deparando com um typo de candura e
poesia na vasta charneca de urzes d’esta historia. Que importa morrer?
Mais vale que o arroyo logo se perca, sorvído por alguma fenda ... Se
corresse e seguisse atravez do chão empoeirado, não é verdade que as
suas aguas se haviam de sujar, misturando-se com as gredas do solo e as
folhas podres das urzes?

       *       *       *       *       *

Mas o pobre rei, mais a sua sina fatal, quando se viu só, depois dos
breves mezes de casado, mais se enraizou ainda nos seus presagios.
Era a morte, elle que matava tudo o que tocava. Via-se já nos ares
arrebatado pelo aguia negra dos seus pesadelos. Sentia sobre si o
peso de muitas vidas ceifadas; e, chorando, lamentava o seu triste
isolamento. Não estaria cumprido ainda o seu fado? Que novas desgraças
havia de causar? Quando lhe seria dado terminar o seu desterro d’este
mundo, para ir n’um céu, visto em sonhos, sentar-se ao lado do anjo
que para lá fugira? Como uma pomba branca voando breve no horisonte
da sua vida, tocando-lhe com a aza a face a dispertal-o dos seus
sonhos tristes, assim passara a idolatrada rainha, assim fugira, assim
desapparecera no seu vôo. De longe, accenava-lhe agora. Era a Beatriz
dos seus pensamentos mysticos: não uma Laura de amores humanos.

Assim um novo motivo de tristeza se juntava aos anteriores; assim tudo
ganhava um caracter fatidico para o espirito do rei. A fatalidade
estava n’elle, e não nas cousas. Quando um relampago azulado illumina
a noite, tudo nos apparece azul. Caía triste o outomno de 61: havia
dois annos que D. Estephania morrera, quando o rei e os principes foram
a Villa Viçosa caçar, e voltaram de lá envenenados pelos miasmas de
um charco dos jardins. Eloquente symbolo, porque os miasmas do charco
portuguez eram o veneno que o rei tragara no berço e lhe fizera da vida
uma enfermidade chronica.

As mortes galoparam rapidas como na ballada de Burger. Caíu primeiro o
joven infante D. Fernando, e o rei tinha a certeza de morrer tambem. Já
no leito ardia com febre delirante. Em frente do palacio, fundeada no
rio, a corveta _Estephania_ de espaço a espaço soltava um tiro--como
o bater do relogio lugubre da morte. E esses tiros ouvia-os o rei,
chamavam-no, excitavam-no, davam-lhe os desejos de acabar por uma vez
com a vida miseravel, para ir abraçar no céu a Beatriz do seu delirio.
Se a voz dos anjos podesse ser o troar dos canhões, não era ella que
o chamava? Talvez; porque os tiros chegavam á camara do rei, já
brandos, como um ecco, um murmurio, e vinham do navio que tivera o nome
d’ella--Estephania! Seguidos, constantes, infalliveis como um destino,
repetiam-se; e o delirio do rei, interpretava-os: eram vozes! A sua
vista conturbada já perdera a noção da realidade; e vivo ainda, já se
julgava transportado ás regiões sonhadas n’uma longa existencia de
vinte annos ...

Dizem que na agonia murmurava os threnos de Dante:

    Per me si vá nella citá dolente ...
    Per me si vá n’ell’ eterno dolore ...

No largo do palacio o povo espesso, na sua afflicção, dividia-se entre
as lagrimas e as coleras. Era um espectaculo antigo, como quando
outr’ora, nos seus pequenos reinos, os reis eram paes, protectores,
quasi idolos. A um povo desgraçado, a desgraça do rei apparecia como
symbolo dos proprios infortunios; e a crueldade de uma estrella funesta
tinha o condão de ferir ainda a alma de uma gente já descrente e
scepticamente regenerada; tinha uma virtude que decerto não teria tido
o talento, a audacia, a ambição de um rei heroe. A morte no paço era
symbolica, e a turba obedecia inconscientemente a um d’esses movimentos
de psychologia collectiva, tão mysteriosos ainda. A morte no paço era o
symbolo da morte no reino, e por isso, repetimos, na sua afflicção, o
povo dividia-se entre as lagrimas e a colera. Os olhos choravam a sorte
do rei, a sorte de todos! e o sangue pulava nas veias contra os réus
do assassinato--do rei? da nação? Envenenadores, salteadores, burlões,
homicidas!

Quando finalmente se soube que D. Pedro V tinha expirado (11
de novembro de 1861), o clamor das coleras reunidas soltou-se,
extravagante, absurdo, cruel, mas inconscientemente justo, como é
sempre o povo em massa. O symbolo do Juizo-de-Deus, grosseira expressão
de um mysterio de electricidade popular, via-se no calor com que
pelas ruas, n’essas noites attribuladas, a turba corria proclamando
a sentença final de uma historia miseravel. Partiam ás pedradas as
vidraças dos palacios dos _grandes_, pediam as vidas dos ministros,
tombavam da sua carruagem e deixavam por morto na estrada o typo dos
amoucos do palacio. Todos eram réus.

Tinham envenenado o rei! Tinham envenenado tudo! Tinham roubado, tinham
vendido, tinham retalhado o povo, o reino, a fazenda, e a nossa miseria
era a consequencia dos seus crimes. Agora este queria para si a corôa,
aquelle queria vender-nos a Castella: queriam todos a desgraça do
povo. Havia ahi partidos? Não; esse clamor provocado pela morte do rei
martyr era uma condemnação total, universal, espontanea! Era um ultimo
adeus ao ultimo dos reis amados, um dissolver da monarchia, em lagrimas
tristes, soluçadas!

Objectarão os homens seccos que umas companhias de tropa bastaram
para emmudecer as vozes desvairadas da turba. É verdade. Nem de outro
modo podia ser. As revoluções não saem dos tumulos. As covas provocam
lagrimas e arrancar de cabellos. Mas o que á historia importa agora,
não é a força d’essas turbas afflictas, pois sabemos todos por que vias
a nação chegara a sentir cravada em si a estrella fatidica do rei;
pois sabemos todos que pessimismo intimo, que desesperança absoluta,
que vaga tristeza, que anemia organica, a historia de meio seculo nos
trouxera. Não é pois uma força que todos sabemos extincta, é o caracter
do protesto, é a natureza dos clamores condemnando a côrte e o governo
na sua totalidade, os partidos, os estadistas e a historia: é esse
caracter singular que tem para nós uma gravidade reveladora ...

As companhias de tropa acalmaram a turba; e quando se fez o enterro, só
já se ouvia o sussurro languido dos soluços. Cem mil pessoas estavam
nas ruas. Tambem o azul do céu de Lisboa entristecera, tambem se
cobrira de dó n’esse dia nublado e triste; tambem chorava lagrimas,
ennegrecendo com chuva o basalto das calçadas. «Deus mandou a chuva,
para até as pedras vestir de luto!» diziam mulheres carpindo. E todos
ouviam os soluços murmurar, como se ouve o bater das azas quando passa
nos ares um bando. Eram esperanças, aladas, brancas, fugindo tambem,
voando!


NOTAS DE RODAPÉ:

[41] V. _Hist. de Port._ (3.ª ed.) II, pag. 42-5.




IV

CONCLUSÕES


1.--AS QUESTÕES CONSTITUCIONAES

Com o finado rei desappareceram as irmans-da-Caridade. O successor
expulsou-as, liberalmente, sempre em nome da liberdade! e seccas as
lagrimas, esquecido o passado, rasgados os crepes, tambem o throno se
entregou nos braços da Regeneração. Na côrte onde reinara o mysticismo
devoto, reinava agora catholicamente ao lado do monarcha, por esposa,
a filha do rei excommungado da Italia: sempre fieis á religião!
N’um systema de fórmulas, mais do que nunca vasias da realidade,
liberalismo, catholicismo, que são? Hypocrisias inconscientes de quem
não tem na alma a força, nem na mente a capacidade de conceber e
defender idéas. Velhos bordões rhetoricos, politicos, ou como escoras
de madeira carunchosa, pintada para illudir, aguentando o edificio
desconjuntado.

Em 68, como já vimos, houve a sombra de uma revolução contra a sombra
de uma tyrannia. Embuçada logo ao nascer pelo duque d’Avila, veiu com o
tempo achar no bispo de Vizeu o seu definidor. Singular povo! singular
revolução! Já se pensou bem no valor psychologico d’esse movimento? Que
reclamava, que promettia, que applaudia? Negação tudo.

Nem uma só palavra affirmativa. «Moralidade, economias!» Esse programma
patenteava o vasio, porque nenhum partido jámais prégou a corrupção nem
o desperdicio. Mas praticavam-nos ambos, os regeneradores? Era pois uma
questão de homens, nada mais.

Não paremos, comtudo, aqui. O pessimismo constitucional do caracter
portuguez via tambem no Bispo outra cousa: um bota-abaixo! Os
derrocadores foram os unicos homens acclamados pelo povo, desde que
em 1820 se declarou a crise: por esta razão simples de o povo ter a
consciencia da podridão universal. Além d’estas negações que havia? No
Porto, uns mercieiros lesados pelo imposto do consumo, que se cotisaram
para fazer arruaças; em Lisboa uns conspiradores platonicos que, apesar
de já terem distribuido entre si os cargos da republica, se declararam
satisfeitos com a quéda da Regeneração. O duque d’Avila preenchia bem
o lugar de porta-voz da revolução! N’esta éra nova iniciada, o duque
tornou-se a bomba-de-choque para amortecer a violencia das transições.

Veio a revolução de Hespanha complicar as cousas de um modo subito;
veiu a guerra brazileira, baixando o cambio, seccar o rio de dinheiro
que annualmente vasava no Thesouro para o alimentar a elle e nos
sustentar a nós. Aggravaram-se as cousas, cresceram os perigos: a nação
pedia um demolidor! Bota-abaixo! Mas como ninguem sabia que pôr em
lugar do existente, o sentimento acclamador do Bispo era uma gritaria
van de gente _possidonea_, e consolava os conservadores vingados.
Demolir é facil, mais duro o construir. Derrubar paredes arruinadas,
qualquer hombro o póde; mas levantar novos muros com os materiaes
velhos, ninguem. E que nova materia-prima existia? Nenhuma. Homens?
Zero. Idéas? Menos. O fundo do sacco das fórmulas liberaes era pó. Nós
tinhamos já vasado tudo; e depois de tudo isso já Rodrigo, mostrando o
avesso com uma careta, como um arlequim n’um tablado de feira, viera
dizer, «meus senhores, peça nova!»

Agora os discipulos, seguindo o mestre, voltavam. Pois que querem?
Falta ainda alguma cousa á Liberdade? Pois ha, devéras, omissão? Querem
reformados os Pares? Porque não? Suffragio universal? Tambem. E viu-se
os conservadores fazerem o que a _revolução_ não fizera; viu-se alargar
o direito de suffragio, sem que longas, prévias campanhas o exigissem.
E ninguem o exigia, porque já passara o tempo em que se _esperava_ nas
alterações de fórmulas. E fizeram-no os conservadores, porque tinham
visto em França Napoleão dar-se bem com isso; e sabiam que quantos
mais camponios votassem, maior seria o poder formal--e positivo, pois
fórmulas, apparencias são tudo--de cada um dos barões ruraes, de cada
um dos senhores da finança que nas cidades compram a dinheiro os votos
da plebe. Desde que no espirito d’essas plebes a loucura setembrista se
acabara, que perigo havia em lhes dar a soberania? Nenhum, de facto; só
a vantagem de bater o inimigo reformista com as suas armas, e consagrar
mais uma _conquista da liberdade_.

Este facto curioso mostra ao critico uma das feições da apathica
physionomia nacional. O leitor sabe que 33 não saíu do sangue da
nação, como um 89. Foi uma conquista á mão-armada, que substituiu a
classe governativa do reino. No decurso da historia que narrámos, o
facto da separação do governo e do povo cresceu com o descredito do
primeiro e com a miseria do segundo, até que Rodrigo veiu confessar
que «comprando-se feitos deputados e casas» era tudo uma comedia; até
que o povo, percebendo-o, poz de banda o bacamarte de guerrilheiro,
deitando-se á enxada e esperando em casa o politico, para lhe pedir
estradas, isenções de recruta, e uns cobres pelo dia perdido com a
Urna. Consummado este accordo tacito, houve logo paz e liberdade. Os
politicos bulharam de palavras: já não havia guerrilhas; e o povo
deixou fazer leis sobre leis em Lisboa, sem dar por isso. Cada qual
vive como gosta, e Portugal é verdadeiramente agora aquelle torrão de
assucar de que falava o corregedor de Vizeu. Falstaff e Prudhomme fazem
bem as suas digestões, e consideram este canto occidental do mundo o
modêlo das nações livres.

E é, com effeito, é. Como não haveria liberdade, se não ha opiniões
divergentes? Viu-se já tamanha paz? tão grande accordo? Nem póde deixar
de haver paz, concordia, liberdade, entre todos os portuguezes, desde
que todos elles, como uma boa população de provincianos, chegando ao
cumulo da sabedoria salomonica--_Vanitas vanitatum!_ descobriram que
no mundo ha só dois homens, Quixote e Sancho, e que só o segundo é
credor de applauso. Opiniões, partidos, paixões, esperanças? Fumo, meus
amigos. Nobreza, justiça, virtude, heroismo? Poesia! Espantado com a
nossa _liberdade_, dizia-me alguem uma vez, perante a sala das côrtes:
«Veinte _padres_, amigo mio! veinte curas ... y todos liberales!» Com
effeito, n’este «jardim da Europa á beira-mar plantado», até o clero,
combatente em França, na Belgica, na Allemanha, é liberal. «Todos
liberales!» Alguns extasiam-se com isto; outros, sem patriotismo
nenhum, acham que esta liberdade prova um entorpecimento deploravel da
intelligencia e do caracter. São modos de vêr differentes.

O leitor já sabe que as populações, indifferentes, alheias ao governo
do paiz, só reclamam que elle lhes dê obras-publicas e lhes torne
o mais doce possivel o recrutamento. Enriquecendo, pouco se lhes
dá o resto. Nas aldeias são politicos os empregados, nas cidades
os bachareis: por toda a parte os que vivem ou aspiram a viver do
Thesouro. Os trabalhadores, os rendeiros, os pequenos proprietarios
«não querem saber d’isso» e no fundo, instinctivamente, desprezam o
politico pela razão simples de o verem depender d’elle para os votos.
Desprezam, mas não lhes passa pela cabeça o supprimil-o. Para que? Isso
não rende; e entretanto arderia a ceara. Até ahi chega o instincto, e
instrucção não têem nenhuma.

Mas não é raro, antes commum, e n’um sentido até normal, verem-se
populações, embora soberanas de direito, viverem passivamente sob o
governo de minorias, ou aristocraticas ou burguezas, a que a riqueza
ou a illustração dão a força. Commum é tambem que n’essas classes
directoras exista a consciencia do facto, e por systema ou interesse se
procure manter esse estado social: foi o pensamento do doutrinarismo em
França, na Hespanha, e foi até entre nós a idéa dos cabralistas. Mas
desde que a democracia vaga e sentimental de 48 destruiu similhante
plano, condemnando o machiavelismo liberal dos seus authores, o facto,
embora contestado, manteve-se por outras fórmas em toda a parte onde
essas classes directoras tinham, com a consciencia da sua força, a
illustração bastante para governar. D’ahi saíu o cezarismo francez.
Ora o triste em Portugal, e acaso o primeiro motivo da physionomia
singular da nação, é a ignorancia, ou, peior ainda, a sciencia
desordenada nas classes medias. Todos sabem de que genero é a educação
secundaria; todos sabem o que é a instrucção superior, em tudo o que
não diz respeito ás profissões technicas (medicina, engenharia, etc.)
cuja importancia é para o nosso caso subalterna. Com tal ensino se
cria em Coimbra um viveiro de estadistas que annualmente cáem sobre
Lisboa pedindo fama e empregos. O proprietario é em geral illetrado, o
capitalista é brazileiro. A fortuna dos ricos, a sorte dos pobres, vão
pois guiados por uma cousa peior ainda do que a ignorancia--a sciencia
falsa, pedante sempre.

Que alguem se atreva a dizer a sombra de uma verdade e será condemnado.
Que alguem se lembre de bolir n’um qualquer dos idolos do tempo, e será
apedrejado--liberalmente! Por isso a liberdade que provém da apathia
parece ao critico o symptoma do contrario da vida: da verdadeira
liberdade forte, independente, na concorrencia de opiniões conscientes
e sábias. Por isso nós apresentamos caracteres singulares. Leiam-se
os jornaes, ouçam-se os discursos. Ninguem fala mais _de papo_,
desculpem a expressão. De quê? De tudo. Os Pico-de-Mirandola, senhores
de si, anafados, satisfeitos, sempre na rua, sempre verbosos, com
as cabecinhas álerta, a resposta prompta, a fórmula breve, um andar
miudinho de pedante, um livrinho azul debaixo do braço se não são
janotas, nos miolos a consciencia do seu saber, da verdade definitiva
da «sciencia moderna», uma grande prosapia ingenua, uma grande
segurança e entono: os Pico-de-Mirandola, que sejam conservadores ou
demagogos, deputados da direita ou rabiscadores de jornaes esquerdos,
têem uma physionomia commum. A patria são elles; a sciencia sabem-na
toda, a moderna. Sómente uns acham que é moderna a que já governa,
outros fossil a de hoje: só verdadeira a de ámanhan, quando elles
derem a lei!

Pêccos fructos de uma arvore contaminada, se dão um passo cáem. Um dos
phenomenos curiosos em Portugal é o devorar dos homens pelo governo.
Hoje sobem, ámanhan somem-se, corridos, desprezados. Porque? porque a
arvore, secca, apenas tem vida para reconhecer o seu definhar, para
desprezar os que no seu pedantismo ingenuo, mais ainda do que na sua
corrupção, successivamente se lhe seguram aos ramos. Outro phenomeno
é a facilidade com que a opinião muda n’essas classes directoras da
sociedade portugueza. Como um catavento, sobre um pião giratorio,
batido, movido pela brisa leve, assim anda o juizo dos homens graves.
Se lhes falta o alicerce do saber, e mais ainda o alicerce social de
raizes lançadas pelo meio das classes vivas da sociedade! Se são um
_rifacimento_, uma superfetação politica em um povo que nada quer
saber do governo! Assim os vereis hoje em solemnes relatorios declarar
a patria á beira de um abysmo, e ámanhan com egual entono chamar a
Portugal um primor, á sua condição abençoada! Virarem os cataventos
politicos, é caso vulgar, individual apenas, em regimes anarchicos; mas
girar de tal modo a opinião sobre os proprios sentimentos essenciaes de
uma nação, senão é unico, é raro: hoje ibericos, ámanhan nacionalistas;
hoje tudo negro, ámanhan tudo azul; hoje arruinados, ámanhan
opulentos--quem vos entende, ó sabia gente?

Entende-vos o critico, vendo n’este agitar de opiniões como as
rasteiras nuvens de poeira tonta que ás vezes o vento se diverte a
mover sobre uma larga campina: indifferente, o chão fica immovel.
Assim os ministerios succedem aos ministerios sem haver mudança.
E que alteração poderia dar-se, não existindo forças moraes vivas,
nem questões economicas ardentes? Que outra cousa ha a fazer senão
ir, mansamente, deixando o tempo correr: dando _melhoramentos_ ao
campo, consolidando no Thesouro os dinheiros do Brazil, despachando o
expediente, comprando algumas armas e navios por distracção ou simplez?
Não falta quem sinceramente creia serem as cousas de sua natureza
assim, assim as nações-a-valer, assim o mundo, assim a realidade. O
resto? sonhos de poetas, bilis de homens amarellidos! Vamos indo assim,
que vamos bem.

Outros pensam, comtudo, de um modo diverso. Ha nos seus postos,
egualmente distantes, egualmente desarraigados da nação, o pessoal
inteiro da Republica salvadora, scientifica, patriota, federalista,
vermelhissima. Quem observa, descobre logo; um é Robespierre, outro
um soffrivel Marat; não falta Desmoulins, e Theroigne de Mericourt já
préga ás massas. É um velho _cliché_ jacobino, sem Danton, é verdade!
um velho _cliché_ jacobino envernizado de novo. É tambem uma poeirada
que passa; mas quando a atmosphera está incerta, de um para outro
momento vem um aguaceiro que precipita o pó, e pousa sobre o chão uma
camada de lodo. O tempo a seccará breve, o vento a levantará outra vez
em pó, mas entretanto mais de um se ha de atolar.

É provavel essa revolução possivel? Talvez; porque a nação não tem
força para a impedir, e os conservadores vivem da fraqueza alheia e
não de energia propria. Talvez, porque, se não ha quem a evite, as
cousas concorrem para a provocar. Será proxima? Ninguem o póde dizer:
é materia de acaso. Tanto póde ser ámanhan, como d’aqui a bastantes
annos. Todos concordam em que _isto_, se não houver tropeços, ainda
póde durar. Quem sabe se os demagogos de hoje ficarão na historia como
os da geração precedente, acantonados pela força das cousas nas mesas
das secretarias?

Talvez assim venha a succeder, e talvez não. Ha poucos annos
dizia alguem que estavamos «a pedir bispo». Tenha de haver outra
_janeirinha_, e _bispo_ será a quéda da monarchia constitucional. Em 28
rebentou em furias o tumor historico portuguez; e para essa data futura
uma puncção vasará a agua que existe no ventre da hydropica Liberdade.
Ver-se ha então como cheira e a que sabe. Esse incidente politico é
necessario por varias causas, particulares e geraes. As primeiras
demandam estudo mais demorado a que passaremos já; as segundas estão
na atmosphera que as nações latinas respiram actualmente, atmosphera
viciada mais ainda entre nós pela desordem intellectual atraz esboçada.

O jacobinismo não acabou ainda. Como um camaleão, quando vestiu a côr
do romantismo fez-se monarchia parlamentar; mas falta que se faça outra
vez republica radical, federalista, naturalista, positivista, porque,
sem ter consummado a destruição dos velhos symbolos, a sua missão não
terminou. O organismo futuro das nações não poderá formar-se emquanto
o velho organismo não tiver acabado de se dissolver inteiramente pelo
classico aphorismo: _corpora non agunt nisi soluta_.

Só depois d’isso se reconstituirá o Estado e a democracia achará
a definição que vem pedindo ha um seculo, sem a encontrar. _Vox
clamantis in deserto_, ninguem lhe responde, por isso que a idéa
individualista-espiritualista, conservadora ou jacobinamente expressa,
tyrannisa ainda as intelligencias. Mas já hoje do corpo das sciencias
naturaes sae esta definição: a sociedade é um organismo vivo,
contradizendo a definição de quasi um seculo: a sociedade é uma ficção,
o individuo humano a unica realidade. Esta idéa nova, que todos os dias
conquista partidarios, encontra a contra-prova nos factos economicos
e nas tradições da historia. A civilisação de um povo apresenta os
mesmos phenomenos que a evolução progressiva de qualquer individuo
animal: especialisação de funcções, definição dos orgãos, cohesão de
movimentos, centralisação de commando. O Estado é como um cerebro.

Ninguem já hoje crê em milagres, e menos do que em nenhum outro
no do direito divino. Entretanto, é mistér vêr, n’essa concepção
transcendente, o symbolo de uma idéa positiva. O espirito collectivo
nunca errou; e a historia não é mais do que a explicação successiva
dos enygmas por milagres symbolicos, e afinal dos milagres pelas idéas
na sua pureza. O direito divino era a expressão religiosa, ou, se
quizerem, metaphysica, da soberania popular. A nação personalisava-se
n’um rei, da mesma fórma que a humanidade se personalisava n’um
Deus-homem. Desde que não ha direito-divino todos são democratas, isto
é, todos põem no povo a origem da authoridade: resta descobrir as
fórmulas adequadas ao exercicio d’essa authoridade. No direito-divino
a fórmula era a hierarchia, a classe. Na democracia, o criterio é
a Egualdade; a fórmula acha-se na realidade das funcções organicas
da sociedade. No direito-divino rege a vontade da pessoa-symbolo do
monarcha; na democracia a vontade dos cidadãos.

N’este momento se chega pela doutrina á politica, e pela theoria
á practica. De que modo se exprime essa vontade? _Viritim_,
individualmente, peia somma dos votos? Assim se tem dito; e d’ahi têem
vindo as revoluções, a anarchia, o moderno feodalismo consequente.
Oxalá que a broca da analyse--bella expressão de Mousinho!--penetre
rapido e demonstre que esse processo confunde deploravelmente a
administração com a politica; scinde a duração e ataca a consistencia
indispensaveis aos pensamentos governativos; põe tudo, todas as cousas
mais especiaes, á mercê das opiniões menos competentes; e torna
os interesses collectivos dependentes dos interesses individuaes
amalgamados, chocados, sem poderem fundir-se n’uma synthese organica.

Sob o nome de democracia existe apenas uma anarchia, constitucional,
sim, quando atravessâmos calmarias politicas, mas que se desenfreia
logo que se levanta o minimo temporal. E a liberdade consiste em uma
concorrencia franca, da qual sae o consequente feodalismo--bancario,
industrial, burocratico. São factos naturaes, modificados apenas nos
aspectos por condições diversas. Assim, quando o Estado imperial romano
decaía até tombar de todo, se distribuiram as terras a protectores
armados; assim, quando o Estado monarchico acabou, se distribuiram
os instrumentos de força collectiva aos novos barões da finança e da
industria. São dois exemplos de pulverisação da authoridade collectiva:
um violento, o outro pacifico; um sanccionado pelas armas, o outro
pelas leis liberaes: ambos fataes, ambos espontaneos.

Ora emquanto a nação prescindir de cerebro, isto é, de Estado,
manter-se-ha acephala; emquanto o Estado não tiver como pensamento a
Egualdade, ou emquanto, mantendo-se uma ficção de poder, se obedecer
de facto ás ordens dos patronos das varias clientelas politicas,
bancarias, industriaes; emquanto esses novos barões fizerem de povo: a
Democracia será uma chimera, por isso mesmo que a nação demonstrará não
ter capacidade para ser senão o que é. Á sombra de uma liberdade sempre
crescente, dia a dia, com o crescer da riqueza, irá crescendo a scizão
dos pobres e dos ricos, em virtude d’essa lei simples que dá a victoria
a quem mais póde.


2.--AS QUESTÕES ECONOMICAS

Resta-nos agora estudar as causas d’essa crise que provavelmente nos
ha de arrastar á revolução, pois no conjuncto singular dos caracteres
nacionaes nem se vêem elementos com juizo bastante para evitar o
conflicto, nem facções com energia capaz de derrubar o existente. Os
Saldanha morreram todos; e se na ultima _saldanhada_ de 19 de maio se
viu como seria facil uma _revolução_, é facto que se acabou a tradição
dos golpes-de-mão da soldadesca, especie quasi unica das revoluções
em Portugal. Quem nos leva para a crise são as causas geraes, e uma
fatalidade superior ás forças de conservadores e demagogos.

Este sentimento arraigado, geral nas classes médias, esta convicção
de um destino desastrado, commum nos homens de governo, são tambem
um symptoma particular que a apathia nacional explica; bastando a
basofia portugueza para nos explicar a simplez com que alguns teimam
em se convencer de que somos um povo feliz, rico, ditoso. Quando a
opinião assim gira do norte ao sul, e desembaraçada de preoccupações
partidarias, não é verdade que os seus dois pólos mostram por fórmas
diversas uma enfermidade constante?

E, entretanto, póde-se ser nobre, feliz, honrado e até forte na
pobreza. A opulencia é até certo ponto indifferente ao mero facto da
existencia das nações. Mas não é decerto indifferente ao seu progresso,
mormente quando se ficou em tamanho atrazo. A questão da capacidade
de enriquecimento em Portugal é complexa. Tambem, como nós, a Grecia
tem população pouco densa, vastos territorios de serras escalvadas e
improductivas; mas tambem, como nós, tem no ingresso das riquezas das
suas colonias commerciaes mediterraneas, o que nós temos no ingresso
das fortunas dos _brazileiros_. É uma fonte de riqueza anormal. Com
effeito, desde que as nossas guerras civis acabaram, desde que por
outro lado a independencia do Brazil se consolidou, a emigração e
a repatriação funccionando regularmente,[42] deram em resultado
um affluxo consideravel de dinheiro. Junte-se-lhe o que entra por
via de emprestimos ao Thesouro, e teremos as principaes causas do
enriquecimento relativo da nação, se nos lembrarmos tambem das leis que
desamortisaram o resto da mão-morta e aboliram os vinculos.

Que se póde ser ao mesmo tempo rico e incapaz, demonstra-o a qualquer
a observação do proximo. As nações são n’este ponto como os homens.
De 51-2 para 78-9 o valor do nosso commercio e o rendimento das
nossas alfandegas triplicaram; mas para prevenir os optimistas convém
dizer que, ainda triplo, não vae além de 13:500 rs. a capitação
do nosso commercio externo: quasi o mesmo que em 1818, já depois
dos francezes,[43] e sem contar com a subida do valor dos generos,
proveniente do da diminuição do valor da moeda. Não exageremos pois
a nossa fortuna. E menos o devemos fazer ainda, quando observarmos
que, sem uma crise, sem uma guerra, apenas com estradas e caminhos
deferro; sem justificação cabal, a não ser a do nosso desgoverno, nos
temos endividado de modo que, se em 54 cada portuguez pagava 600 rs.,
cada portuguez paga por anno, em 79-80, rs. 3:077 de juros da divida
nacional.

Não ha duvida que a riqueza collectiva tende a crescer, embora o
accrescimo da população seja lento: outrotanto succede em França, e
todos sabem que os dois movimentos podem não corresponder, podem ser
até inversos. É de esperar, comtudo, que em outro quarto de seculo
triplique ainda? De certo não. Houve causas especiaes que determinaram
um salto, e ha causas organicas a impedir as progressões rapidas, só
com effeito observaveis nos paizes onde a industria occasiona uma
singular condensação de riqueza, como na Inglaterra, na Belgica, na
França do norte, na Alsacia, etc. Os paizes principalmente agricolas
só enriquecem lentamente. A nós succede-nos que, além de nos faltar
o carvão, materia prima industrial, nos faltam materias primas
incomparavelmente mais graves ainda: juizo, saber, educação adquirida,
tradição ganha, firmeza no governo e intelligencia no capital. Todas
estas faltas essenciaes, e o avanço ganho pelos outros povos da Europa,
affigura-se-nos condemnarem-nos a ficar decididamente occupados em
lavrar terras e emigrar para o Brazil. Os lucros agricolas e o dinheiro
dos repatriados são o mais liquido das nossas economias nacionaes. A
tentativa fabril do setembrismo não foi mais feliz do que a pombalina;
e o vapor matou a nossa industria historica de transportes maritimos,
porque tambem fomos uma Grecia marinheira, no extremo opposto da
Europa. Estava na natureza da Regeneração o ser livre-cambista: esse
proto-naturalismo ainda não definira as nações como organismos: via
apenas massas, e a circulação livre como vivificação. O _meio_ atrophia
e extingue muitas especies; e contra a influencia d’elle reagem os
cruzamentos, as domesticações, todas as artes humanas. A sociedade
é em grande parte um producto d’ellas; e tambem o homem é um animal
domesticado por si proprio.[44]

Regenerada á solta lei da natureza, a nação vê que, em parte
consideravel, a riqueza creada sobre ella não lhe aproveita. Os
caminhos de ferro que não são do Estado, pertencem a estrangeiros; a
estrangeiros o melhor das nossas minas; estrangeiros levam e trazem o
que mandamos e recebemos por mar. Só o solo nos pertence, só o liquido
do rendimento agricola nos enriquece? Não. Á fartura de uma população
rural ignorante, junta-se a opulencia das classes capitalistas de
Lisboa e das cidades do norte, não mais culta, porém mais _videira_.
Uma granja e um banco: eis o Portugal, portuguez. Onde está a officina?
E sem esta funcção eminente do organismo economico não ha nações. Póde
haver populações provinciaes; póde haver Monacos; mas falta um orgão á
circulação, um membro ao corpo humano. Um povo constituido em nação é
como um abecedario: todas as lettras lhe são necessarias para escrever
o que pensa.

E como em Portugal faltam lettras, os escriptos portuguezes não se
entendem. Assim as populações ruraes e as urbanas, a propriedade e
o capital, sem o nexo da industria, isoladas, não se penetram. Se o
capitalista compra terras, é para as arrendar, vivendo sempre do juro.
E capitalista e proprietario, provinciano um, cosmopolita o outro,
nenhum sente palpitar em si a alma da nação. Um olha para os milhos,
o outro para os papeis, absorvidos ambos no seu interesse egoista,
indifferentes a tudo o mais. A economia consumma de tal fórma o que
a historia preparou: o governo é um _rifacimento_. Os politicos são
uma classe áparte; as finanças e o Estado um _outro_, um extranho a
que o proprietario pede _melhoramentos_ e o capitalista _juros_. Como
corretor, o politico, de permeio, recebe de um os emprestimos, dá aos
outros as obras, e vive da corretagem. Proclama pois a excellencia de
tudo, e quando apregôa o credito que temos _lá fóra_, esquece dizer que
os banqueiros de Paris são tambem outros corretores que sabem o destino
final dos papeis em mais ou menos breve praso: a burra do brazileiro.

Que se lhe dá o proprietario do que passa em Lisboa? Imagina com razão
que nada lhe arrancará d’alli ao pé o caminho-de-ferro ou a estrada.
E ao capitalista que se lhe dá? Os jurinhos vão vindo; rabiscando por
aqui, por ali, jogando um pouco, assignando emprestimos, creando o seu
banco, etc. vive bem, satisfeito, os annos que lhe restam. É positivo e
pratico, como os que não vêem um dedo adiante do nariz. E finalmente o
politico, esfregando as mãos, demonstra em discursos e relatorios que
se não póde ir melhor: os rendimentos crescem: vejam! Como é grande
o nosso paiz! E a platéa de Sanchos, mas sem ironia sequer, Sanchos
conservadores, Sanchos demagogos, Sanchos monarchicos e republicanos,
metaphysicos e positivistas, proprietarios e capitalistas, nobres e
burguezes: toda a platéa applaude, grita, acclama a fortuna do grande
reino da Barataria.

Decerto é um desvairado misanthropo, nada moderno, que contesta o
fundamento de acclamações tão unanimes. Desvairado o que pergunta qual
cresce mais: se a receita, se a despeza? Desvairado o que pergunta com
que recursos se fará o que falta: a instrucção que não temos, as obras
publicas de que possuimos apenas uma amostra. Desvairado, o que indaga
a raiz das cousas e se não contenta com os aspectos. Desvairado, o que
pensa no que seria de nós se o brazileiro desconfiasse, e deixasse de
comprar a divida com que saldamos contas annualmente; ou se uma guerra,
outra crise na America, embaraçasse o ingresso dos capitães.[45]
Desvairado o que pergunta o que será de nós então: que fazer de toda
a gente: orfans, viuvas, hospicios, asylos, hospitaes, com os seus
fundos _convertidos_ em papel do Estado? Então, na crise da penuria, se
observará a limpo a verdade da confiança!

E entretanto essa crise affigura-se a espiritos desvairados como
o nosso, tão fatal, tão necessaria como a crise constitucional, e
muito mais séria do que ella. Se a nossa _liberdade_ é a expressão
da nossa absoluta anemia politica, a nossa fortuna apparente exprime
a nossa cegueira economica. E assim como a todos convém não bolir na
constituição, assim convém a todos que se não bula na reputação de
ricos. Como ao enfermo ou ao arruinado, sobre tudo nos convém guardar a
immobilidade e as apparencias. Quem lucra em as negar? Quem tem coragem
e força para dizer da tribuna do governo: peccámos, senhores, peccámos:
perdoae-nos! Quem tem genio para indicar o caminho do arrependimento?
As causas vêem de mais longe: estão na fatalidade das cousas, de que a
vontade dos homens é apenas o instrumento.

E como se haveria de exigir d’elles uma confissão de arrependimento que
os arruinaria a todos? aos politicos nos seus interesses e vaidades;
aos capitalistas nos seus juros e papeis; aos proprietarios nas
urgencias que têem de novos caminhos? Não seria querer mais do que as
forças humanas consentem?

Por uma doirada estrada, tambem se vae para o supplicio. Em Roma, que
pensaria o boi quando o adornavam de collares e faxas preciosas, para
o conduzirem ao altar nos _suovetaurilios_ lustraes? Como uma rez, nós
marchamos todos, seguindo os sacerdotes que nos levam, perfumados de
myrrha, coroados de plantas odoriferas: bellas phrases, sorrisos de
satisfação alegre, passo grave e gesto largo. Mas em Roma o sacerdote
sabia que ia matar o boi: em Portugal ignora o politico que talvez
conduza a nação ao seu fim? Mede bem o alcance do _ponto_ futuro,
inevitavel? O da Regeneração foi o fim da Liberdade: como se chamará o
que nos espera?


3.--AS QUESTÕES GEOGRAPHICAS

Já em outra obra,[46] já em paginas anteriores d’esta, dissemos o que
deviamos ácerca do lugar da nossa terra na Peninsula. E se o leitor
tem presente o que escrevemos, decerto faz uma observação. É a mais
singular das feições singulares que temos successivamente indicado.
Mais ou menos, um ou outro dia, todas as nações pequenas tiveram a
receiar a perda da independencia: não é isto o que nos particularisa.
Em nós succede que, no decurso de uma historia de já quasi oitocentos
annos, é constante o sentimento, ou de medo, ou de esperança em uma
fusão no corpo da nação visinha. Este oscilar da opinião tambem de
norte a sul, como um catavento, sem estabilidade, não está mostrando
a falta do que quer que é similhante ao lastro que mantém seguros,
enterrados n’agua, os navios? Agora, são guerras feridas para nos
defender, logo planos para nos annexar; agora declamações de odio a
Castella, logo confissões de impotencia no isolamento. E isto vem
assim, durante oito seculos, como these e antithese, que se não
resolvem. Singular! Não parece que, no desdobramento dos nossos
pensamentos collectivos, nunca chegou a formular-se cathegoricamente
o da independencia? Não parece que, no desenvolvimento do nosso
organismo, se por um lado attingimos a independencia politica, a
litteraria, a lingua independente, falta ainda--faltará sempre?--um
que quer que seja bastante, para dar a populações provincialmente
differenciadas, a differenciação radical que affirma as nações? Um
protesto póde ter força para conservar de pé quem o pronuncia, e a
prova é a nossa separação de facto; mas não é singular que, apezar de
ás vezes parecer esquecido o sentimento de negação e ganhar segurança
consciente o da autonomia: não é singular que, declarada uma crise,
appareça invariavelmente, e até hoje, o espirito nacional dividido
entre as ameaças do patriotismo, as confissões da fraqueza, e as
esperanças da união?

Notado este caracter da nossa historia, ainda patente em nossos dias,
não nos cumpre agora indagar-lhe as causas nem expôr-lhe a theoria:
trata-se de estudar a influencia que póde ter nos destinos ulteriores
da nação.

É fóra de toda a duvida que a Europa se constitue no seculo actual
em um grupo de grandes imperios, cujo contorno definitivo ainda não
está inteiramente desenhado. Varias cousas concorrem para isso: a
complexidade crescente do organismo das nações, a centralisação
de commando consequente, a natureza dos meios de communicação, de
aggressão. N’esta lucta para a vida collectiva são tambem devorados os
pequenos, e por isso, quando causas imprevistas não venham impôr uma
direcção differente ás tendencias constitucionaes das nações europêas,
parece necessario que n’um periodo mais ou menos distante Portugal e
todas as demais nações minusculas desappareçam.

Não é, comtudo, essa ainda propriamente a questão. Por grande que
seja a nossa basofia e a mania da desproporção com que entre nós
se avalia tudo, é facto que teriamos de obedecer, voluntaria ou
involuntariamente, a um destino geral e necessario. Se o concerto
europeu decretasse, e a Hespanha podesse cumprir o decreto de
absorpção, para onde se havia de appellar? Pelo amôr de Deus, supprima
o leitor aqui as phrases inchadas que a tal respeito escrevem os
jornaes e dizem os deputados: morrer até ao ultimo, alviões por
armas, etc. Tambem os chinezes pensaram fazer parar as tropas
franco-britannicas, vedando-lhes o caminho com monstros de papel
pintado! Mas o palacio de Pekin ardeu.

Não temos exercito digno d’esse nome, é verdade; nem a raia, nem os
portos defendidos. Mas não é essa a questão, porque havendo vontade e
dinheiro o problema resolve-se, ainda que a relação entre a extensão
das fronteiras, terrestres e maritimas, e a área e população de um
reino estreito e longo aggravam as dificuldades. Embora. O portuguez
é, como o turco, um bom soldado; krupps compram-se; e quando não ha
generaes, alugam-se. Assim nós fizemos sempre: Schomberg, Lippe,
Beresford, Solignac, Bourmont, Napier.--Resta porém dizer que tudo
isso seria em pura perda: a Dinamarca estava armada até aos dentes e
bateu-se denodadamente. Esta hypothese de uma absorpção sentenciada
pelos congressos europeus, é porém relativamente indifferente para o
nosso caso. Está claro que a sentença se cumpriria por vontade nossa ou
_per vim_. Contra a força não ha resistencia.

O que nos interessa a nós saber, é se da marcha natural das nossas
cousas sairá ou não, declarada uma crise, a perda da independencia:
porque, se não queremos perdel-a, convém tambem estudar o modo de o
conseguir. Ora n’este momento, se escutamos os pareceres dos homens
graves, ve-mo-nos sériamente embaraçados, porque tambem achamos os
pensamentos dos estadistas correndo como cata-ventos, do norte ao sul,
de um polo ao polo opposto. Singular terra em que tudo gira á mercê do
vento, e permanentemente se discute a propria raiz da vida nacional!
Não se diria que ella, arrancada do solo, batida pelo ar, sem alimento,
se mirra?

Mousinho e Palmella, na crise da primeira metade do seculo, tiveram
opiniões oppostas; e durante a paz da segunda metade essas duas
opiniões continuam antagonicas. Um dizia que, perdido o Brazil, nós
perderamos os elementos de vida independente: D. João VI chamava a isto
o seu _canapé_ da Europa. Outros, variando agora sobre o mesmo thema,
apoiam o parecer quando declaram indispensavel á vida portugueza fazer
da Africa um novo Brazil.--De outro lado, com sérios argumentos,
mostra-se a differença dos tempos e dos meios, e condemnando-se o
dinheiro gasto nas colonias--dinheiro perdido!--repete-se a opinião
de Mousinho, affirmando-se que qualquer porção de gente, trabalhando
e vivendo em qualquer zona de territorio, póde constituir uma
nação: Portugal tem dentro de si, na Europa, elementos de vida e
prosperidade!--Não será facilimo destruir os argumentos de uns pelos
dos outros, e concluir por uma negação total? Talvez se chamasse
temerario, e decerto se lapidaria quem o fizesse. Mas o que é
necessario affirmar, embora chovam pedras, é que uma tal divergencia de
opiniões sobre o proprio nó vital portuguez depõe muito pouco em favor
de uma conclusão affirmativa.

O leitor sabe como, ancorada em Lisboa a patria pelos seus fundadores,
principiámos a saír o Tejo, a rodear a Africa e viemos a viver da
India, e do Brazil depois. Sabe que meios se empregaram, e tambem
que differenças de condições e idéas ha hoje: o commercio é uma
concorrencia, não um monopolio; o trabalho é livre, não forçado,
etc.[47] Se portanto inquirirmos a historia, acharemos na tradição
fundamento para o primeiro parecer; mas se estudarmos as idéas e
condições actuaes, parece-nos claro que essa tradição se scindiu, e que
é pelo menos problematico o exito da empreza de a restaurar.

Em que ficamos, pois? Sim ou não? Quem sabe? O vento assobia, a agulha
gira, do norte para o sul, do sul para o norte ... Se não ha opiniões
firmes, como ha de o critico descobril-as? Quem sabe? Talvez? O
ministro fulano disse, o conselheiro sicrano opinou ... E emquanto,
rodando, girando, a agulha obedece aos movimentos mais desencontrados,
o critico observa que a nação, nas suas granjas e nos seus bancos,
ceifando cearas e juros, provincial ou cosmopolita, vae andando. Vamos
indo; vamos vivendo. Não é a unica observação positiva que se póde
fazer?

O egoismo deita para depois de si o diluvio; o espirito pratico
olha apenas para o pão-nosso de cada dia. A verdade é que Palmella
enganava-se quando suppunha o Brazil perdido. O Brazil dá-nos muito
dinheiro, sem o trabalho de o governarmos. Mas o que poupamos por esse
lado perde-mol-o por outro. Outr’ora vinham _quintos_ para o Thesouro,
hoje vêem saques para particulares. Esses saques breve se convertem em
inscripções, é verdade; mas o processo é mau, porque, assim, o Thesouro
tem dividas em vez de rendas; e se por fim, quando o _ponto_ final
vier, o resultado tivér sido o mesmo, o _ponto_ trará comsigo a mais
grave das crises.

Perdemos ainda por outro modo. Outr’ora o portuguez ia, voltava, sem se
desnacionalisar; hoje não renega a patria, mas casa-se com brazileiras,
desenraiza-se da sua aldeia e vem para o Porto ou para Lisboa formar
uma classe exotica, opulenta, mas com um papel desorganisador da
homogeneidade e do funccionar normal da economia da sociedade.
Cosmopolitas, esses caçadores de juros, nada vêem fóra dos papeis: nem
o trabalho, nem a industria, nem o estudo.

Que remedio? Um unico, evidente, immediato: exploral-os. É o que faz a
politica pratica, sacando-lhes o dinheiro em emprestimos com que compra
por _melhoramentos_ a adhesão dos campos; sacando-lhes tambem subsidios
para directamente comprar os eleitores soberanos das cidades. Que
remedio?

O diluvio dista ainda; e no armazem dos expedientes ainda os ha com
fartura. Com o dinheiro do Brazil, directa ou indirectamente se
resolvem as questões internas; com a tradição brigantina da alliança
ingleza consegue-se manter uma independencia de acrobata no trapezio.
As colonias, dadas, pedaço por pedaço, desde 1640, servem de maroma.
Havia um resto de India que nos servia para nada, aos inglezes para
muito: enfeodou-se, e muito bem. Porque se hesita em dar Moçambique,
o Zaire? Porque a agulha com um sopro de vento apontou ao norte: as
colonias são a salvação do paiz!

Mantém-nos, comtudo, de pé só esta protecção da Inglaterra? Não, de
certo. Defende-nos a desordem da Hespanha, por tantos lados similhante
á nossa; defende-nos o haver lá aquillo mesmo que faz o nosso mal
organico: a falta de alma ou pensamento consciente na direcção do
Estado. Defende-nos tambem, vagamente, a historia, com os seus sete
seculos tão fustigados pela rhetorica, com a lingua differenciada, com
uma dynastia, com um Camões, até com o estalar dos foguetes e phrases
nos Primeiro-de-Dezembro. Tudo isso tem o seu valor, embora muitas
vezes o perca pela mania de desproporcionar tudo, grave symptoma do
nosso juizo avesso.

Outros motivos mais pesados nos defendem tambem, no sentido de que
poderiam trazer sérios embaraços digestivos á Hespanha, se ella
irreflectidamente decidisse engulir-nos, e o fizesse. Primeiro, é
difficil assimilar uma população de quatro milhões a quem não conta
mais do quadruplo; depois, é difficil, com essa relação numerica,
realisar uma combinação dualista, como a Suecia-Noruega, ou a que
foi Inglaterra-Escocia. Para nos fundirmos somos demasiados, para o
dualismo poucos. N’um caso poderiamos reagir o bastante para impedir a
consolidação da unidade, no outro não contariamos o sufficiente para
ter em respeito o collega.

Além d’isso, está Lisboa, excentrica, á maneira de Nova-York. Madrid é
como um Washington: onde ficaria a capital? D. Sinibaldo e o iberismo
da Regeneração, pensando bem n’este caso, propunham Santarem. Mas
quanto vae d’ahi aos Pyreneus? E ficariam em Portugal a capital
politica e a capital commercial? Lisboa, que a geographia destinou para
magestoso porto da Peninsula, tornou-se pelos acasos da historia o
maior embaraço á unificação dos Estados peninsulares. Sobre o seu porto
ancorou Portugal, como uma cabeça de gigante n’um corpo de pigmeu,
e d’ahi lançou braços pelo mundo transatlantico. Vieram inimigos
posteriores com armas aceradas cortar os tentaculos d’esse monstruoso
polypo do seculo XVI, mas ficou a cabeça ainda e o pigmeu. Por outro
lado, tambem a Hespanha bracejou para o mar: Vigo do norte, Cadix do
sul, duas portas subalternas, ganharam vida e importancia. A unificação
politica da Peninsula traria comsigo revoluções graves á Hespanha:
Cadix, Vigo, decairiam, reduzidos ao seu trafego natural; Lisboa
tornar-se-hia a Nova-York do occidente da Europa.--Mas uma Nova-York
portugueza? Sim. Ou seria mistér repetir as scenas de oppressão
violenta para a fazer castelhana.

Taes embaraços, resolvem-nos os phantasistas com a phantasia federal.
Dir-me-heis que federação ha entre a cabeça que dirige e a mão que
obedece, entre o estomago que digere e o musculo que se alimenta?
Em vez de federação, chimera nascida do erro de suppor aggregados as
nações, dizei coordenação organica, para exprimir o funccionar d’esses
corpos collectivos. O afamado principio federativo já defendido em 54,
restaurado agora pelo néo-jacobinismo, é um crasso erro de observação
sociologica e uma aberração do estudo politico, historico.[48] É uma
fórma primitiva das republicas; e do mesmo modo a fórma embryonaria das
aggregações animaes inferiores. Um coral é uma federação, uma colmeia
é uma sociedade. Á maneira que o typo se define e cresce a eminencia
das suas funcções, coordenam-se os orgãos. O exemplo dos Estados-Unidos
tem feito um grande mal aos que da Europa não vêem que a aggregacão
colossal de gentes desvairadas, em territorios illimitados, exprime um
typo rudimentar de sociedade, repetindo em nossos dias e com os meios
materiaes de uma consumada civilisação, os exemplos primordiaes da
historia. D’aqui por um ou dois seculos se verá em que pára a federação
americana. Da Suissa, quem a estudar, vê como, á maneira que hoje os
caminhos-de-ferro, perfurando as suas montanhas, a afastam da vida
primitiva agricola em que se mantivera, como se tém mantido tantos
animaes ante-diluvianos: vê, dizemos, que vae pouco a pouco rasgando a
sua constituição federal, obedecendo á força das cousas.

Que a fórma definitiva de coordenação das funcções, fórma vindoura, mas
bem distante ainda! tenha no Estado democratico um caracter federativo,
de orgãos equiparentes, dirigidos pelo forte cerebro de um Estado,
pensamol-o: mas esse criterio pouco importa agora, se ás esperanças
sentimentaes ou ás chimeras doutrinarias, se trata com effeito de
substituir na politica o espirito positivo. A observação mostra-nos
que tudo concorre para apressar uma marcha cada vez mais accentuada no
sentido da centralisação e das dictaduras pessoaes ou collectivas.

Em Hespanha, o antigo espirito jacobino, encorporando-se nas tradições
localistas, e inspirando-se na doutrina de Proudhon, deu de si a
deploravel historia cantonalista. Viu-se agitarem-se alliadas as idéas
mais incongruentes: era a ultima revolta fuerista, era um novo 1812
individualista, eram communas socialistas. O passado, o presente,
o futuro, n’um turbilhão, corriam, prégando loucuras, semeando
anarchias. Na Serra-Morena havia já alfandegas como na Edade-média;
em Alcoy incendios como os de Paris; por toda a parte declamações
como as de Cadix, levantando em altares a soberania? a divindade, do
Individuo! Um equivoco de observação, um erro de doutrina, e o facto da
unificação ainda não consummada das raças peninsulares deram isto de
si. Já em 90, em França, os girondinos não poderam fazer outro tanto:
e, se em França ha federalismo, é socialista, communalista; e não
historico, geographico, ethnico. O atrazo relativo da fusão das raças
peninsulares, esse facto em que os néo-jacobinos, com o seu chefe Pi y
Margall, viam um argumento em favor proprio, (V. _Las nacionalidades_)
era, e é, o máximo argumento contra a opportunidade da revolução,
cujos laivos socialistas se desmandavam em preoccupações tradicionaes.
Como se o ideal consistisse em restaurar a Edade-media com os seus
cantões e povos differenciados, isolados pela força das cousas, e pelo
isolamento, hostís!

Em Hespanha o partido caíu com a deploravel ruina da empreza. Entre
nós, porém, não deixou de haver quem viesse offerecer-nos esse prato
requentado da cosinha revolucionaria. Não se sabe, comtudo, ás vezes
bem se o nosso joven federalismo é iberico, se o não é; ainda que
d’elle saiu a singular idéa de fazer de nós os authores da hegemonia
peninsular. Onde leva a falta de proporção no avaliar as cousas! Não
parece um cumulo de ironia, a invenção de um espirito humorista, o
dizer a uma nação que vive perguntando se póde existir, dizer-lhe que
d’ella depende a existencia alheia? Na serie de symptomas singulares do
nosso estado mental, deve ficar como documento esta idéa da novissima
geração.

Ninguem, porém, tema que a precedente, e é ella quem nos governa ainda,
se deixe seduzir por tão extravagantes politicas. Ella é pratica,
e como tal, não tem mais ambição do que a de manter o que existe,
acompanhando passivamente, passo a passo, o desenvolver espontaneo
dos elementos da vida nacional. O seu liberalismo provém da sua
passividade calculada. Vamos andando. A Inglaterra, confiam elles
que nos ha de proteger: e quando não houver Africas para lhe pagar?
Entretanto, o minhoto vae, o brazileiro vem, e os emprestimos tomam-se;
entretanto as estradas fazem-se e o proprietario enriquece. E cada vez
mais esta pequena Turquia do occidente, com a sua Lisboa que é outra
Constantinopla, ganhando a força de uma existencia rural, provinciana,
e de uma vida bancaria cosmopolita, perde o caracter organico de nação.
Entre-se no Tejo, entre-se até no Douro, e ver-se-hão as bandeiras
de todas as còres, menos a portugueza; formigam, fumando, os vapores
inglezes. Lisboa é uma estalagem, nós os recoveiros. Não! que desde que
ha caminhos-de-ferro nem o lucro das recovagens embolsamos; somos o
moço da arriaria, porque o nosso capital prefere aos caminhos-de-ferro,
se não são do governo, as inscripções de cá ... e de Hespanha!
Proprietarios ou juristas os burguezes e os lavradores, caixeiros e
artífices de industriaes forasteiros os proletarios, a nossa situação
é de facto como a do turco. Ahi nos conduziram as qualidades de um
genio por tantos lados affín, os resultados de uma condição a tantos
respeitos similhante. Lisboa é para nós um elemento de resistencia
passiva: Constantinopla é-o para elles. Não se está vendo quanto custa
a resolver esse problema? O nosso é proximamente egual. Tambem á Europa
convirá mais ter no Tejo uma estação franca, do que a cabeça de um
imperio concorrente. Se assim é, com effeito, temos de optar entre duas
hypotheses, nenhuma d’ellas, por certo, inteiramente satisfactoria:
ou abdicar da autonomia em favor de um futuro distante de grandeza
peninsular; ou conformarmo-nos a ir vivendo, regeneradamente, á espera
do que está para vir. É uma crise? Decerto. Um cataclysmo? Talvez sim,
talvez não: depende das circumstancias. Será, como consequencia natural
dos factos actuaes conhecidos, um futuro honroso, nobre, meritorio?
Será outra vez a repetição de D. Manuel, ou do Brazil de D. João V? Não
se vê como possa ser.

O que eu d’aqui estou vendo, ao pôr as ultimas palavras n’esta obra
triste, é o leitor irritado amarfanhar o livro nas mãos, pisal-o com
os pés, vingando-se do atrevimento de quem lhe disse cousas que tanto
o offendem. Nunca os jornaes tal escreveram, nunca o parlamento ouviu
taes heresias: nem os velhos, nem os moços jámais as proferiram!
Tambem os medicos, por via de regra, escondem ás familias a gravidade
das doenças: umas vezes não as percebem, outras convem lhes mentir,
para não assustar! Assim estão as classes que nos governam; e até
hoje, força é dizer que o povo não descobriu ainda meio de se libertar
d’ellas.

Nem descobriu o meio, nem demonstrou a vontade. Dorme e sonha?
Ser-lhe-ha dado acordar ainda a tempo?


NOTAS DE RODAPÉ:

[42] V. _O Brazil e as colon. port._

[43] V. _Hist. de Port._

[44] V. _Elem. de Anthropol._

[45] Foi o que succedeu com a revolução do Brazil em 1889: deitou
abaixo o castello-de-cartas portuguez. (3.ª ed.)

[46] V. _Hist. de Portugal_.

[47] V. _O Brazil e as col. n. port._

[48] V. _Instituições primitivas_, pp. 290 e segg.




APPENDICES




A

CHRONOLOGIA


=1826=--=Março=--6. Nomeação da Regencia do reino por D. João VI: a
infanta D. Izabel Maria presidente.--10. Morte de D. João VI.--20.
Reconhecimento de D. Pedro IV, rei, pela Regencia.

=Abril=--26. D. Pedro IV, do Rio, confirma os poderes da Regencia.--27.
Amnistia os crimes politicos.--29. Outorga a Carta Constitucional.--30.
Nomeia os pares do reino, segundo a Carta.

=Maio=--2. D. Pedro IV abdica a corôa em D. Maria II sob condição de
jurar a constituição e casar com D. Miguel.

=Julho=--2. Chegada de Stuart a Lisboa na corveta _Lealdade_ com
a Carta.--12. Publicação da Carta em Lisboa, pela Regencia.--31.
Juramento da Carta. = 22-6. Pronunciamentos militares absolutistas no
Minho e Traz-os-Montes; suffocados.

=Agosto=--1. Izabel-Maria, regente em nome de D. Maria II.--3.
Composição do ministerio constitucional. = 21. Tentativa de
pronunciamento absolutista do corpo de policia em Lisboa.

=Outubro=--4. Juramento da Carta por D. Miguel em Vienna de
Austria.--5. Pronunciamento do marquez de Chaves em Villa-Real;
pron. militares em Vizeu, Villapouca, e no Algarve.--8. Eleições
das camaras.--23-5. Invasão dos absolutistas refugiados em
Hespanha: Silveira por Bragança, Telles-Jordão por Almeida, Magessi
pelo Alemtejo. Guerra civil. Sublevação de toda a provincia de
Traz-os-Montes.--29. Celebração dos espousaes de D. Miguel e de D.
Maria II em Vienna.--30. Abertura das côrtes geraes em Lisboa.

=Dezembro=--15. Acção de Cavez, indecisa.--16. Recomposição do
ministerio no sentido reaccionario; entrada do bispo de Vizeu.--23.
Encerramento das côrtes. = 24. Chegada da divisão ingleza de Clinton a
Lisboa, partindo para o theatro da guerra.

=1827=--=Janeiro=--2. Abertura das camaras.--9. Derrota dos
absolutistas em Aguiar da Beira.--19. Convenção anglo-portugueza para a
defeza da Carta.

=Fevereiro=--5. Acções da Ponte do Prado e da Barca; repellidos os
absolutistas para além da fronteira.

=Março=--8-10. Desarmamento dos exercitos absolutistas internados em
Hespanha; fim da guerra civil.--31. Encerramento das camaras.

=Abril=--13. Amnistia dos emigrados, que a não acceitam.--28. Saldanha
segunda vez ministro da guerra, reacção liberal.--29. Sublevação
absolutista da guarnição de Elvas.

=Junho=--8. Recomposição ministerial, no sentido constitucional; saída
do bispo de Vizeu.

=Julho=--3. D. Pedro, no Rio, nomeia D. Miguel seu um lugar-tenente
em Portugal.--23. Saída de Saldanha do ministerio.--24. Tumultos
republicanos em Lisboa (_Archotadas_).--28-30. Agitação do Porto.

=Agosto=--27. Chega a Londres o decreto de 3 de julho.

=Outubro=--8. Chega a Lisboa o _Camões_, portador do decreto.--24. Sae
de Lisboa a fragata _Perola_ para conduzir D. Miguel.

=Dezembro=--6. D. Miguel sae de Vienna. O banco suspende o pagamento
das notas, restabelecido a 10.--19, em Paris;--30, em Inglaterra.

=1828=--=Janeiro=--2. Abertura das camaras.

=Fevereiro=--9. D. Miguel embarca em Plymouth.--22. Chega a
Lisboa.--26. Jura a Carta, assume a regencia, nomeia ministerio,
substitue os governadores militares.

=Março=--14. Dissolução das camaras. Nomeação da Junta das instrucções
eleitoraes. Prohibição do hymno da Carta.--18. Assassinato dos lentes
de Coimbra, em Condeixa.

=Abril=--2. Retirada da divisão ingleza.--25. Tumultos absolutistas em
Lisboa. Acclamação de D. Miguel I pelo Senado da capital, de Coimbra e
de Aveiro.

=Maio=--3. Representação da nobreza do reino pedindo a acclamação.
Decreto convocatorio dos Tres-Estados.--(No mesmo dia, no Rio, D.
Pedro declara definitiva a sua abdicação e nomeia D. Miguel regente
em nome de D. Maria II).--14. Dissolução dos batalhões do commercio e
nacionaes em Lisboa.--16. Pronunciamento constitucional da guarnição do
Porto, formação da Junta de governo; sedição de Aveiro.--18. Acclamação
de D. Miguel nos Açores.--22. Restauração da Carta, na Terceira;
acclamação de D. Pedro em Coimbra.--25. Pronunciamento constitucional
no Algarve, suffocado.--26-30. Creação dos batalhões de voluntarios
realistas. Saída do exercito do governo para o norte. Pronunciamento
constitucional da praça de Almeida.-- 28. Manifesto da Junta do Porto;
creação de batalhões de voluntarios de D. Pedro IV.

=Junho=--2-20. Marcha do exercito da Junta até Condeixa.--21. Retira
sobre Coimbra. Organisa-se o batalhão academico.--20. Execução dos
estudantes de Coimbra.--23. Reunião dos Tres-Estados no paço da Ajuda.
Reintegração dos emigrados de 27 em Hespanha, que voltam ao reino.--22.
A Madeira adhere á Junta do Porto.--24. Acção da Cruz de Morouços.--26.
O exercito da Junta retira sobre o Vouga. Chegada ao Porto do _Belfast_
com Palmella, Terceira, Saldanha, etc.--28. Acção do Vouga; o exercito
da Junta retira sobre Azemeis.--30. D. Miguel assume o titulo de rei.

=Julho=--3. Entrada do exercito no Porto; retirada dos da Junta pelo
Minho, direcção da Galliza. Partida do _Belfast_ com os emigrados que
trouxera. Dissolução da Junta.--5. Partida de D. Maria II do Brazil
para vir casar com o tio.--6. Entrada do exercito constitucional na
Galliza.--7. Juramento de D. Miguel, perante os Tres-Estados.--11.
Acclamação do rei.--14. Alçada ao Porto.--15. Dissolução da assembléa
dos Tres-Estados. A Terceira não recebe o governador enviado por D.
Miguel.--16. Capitulação da guarnição de Almeida.

=Agosto=--6. Alçada á Madeira.--4-18. Decretos do Terror: creação do
conselho militar, confisco dos bens dos emigrados, commissão dos crimes
de lesa-magestade, devassas.--15. Chegada da esquadra á Madeira.--20.
Desembarque de officiaes constitucionaes do Porto; resistencia da
ilha.--22. Ataque pela esquadra, desembarque, restauração do governo
de D. Miguel.--26. Começa na Galliza o embarque do exercito da Junta,
para Inglaterra, terminando em 12 de setembro.

=Setembro=--2. Chega a Gibraltar D. Maria II, do Brazil, e sabe da
usurpação, partindo para Inglaterra.--8. Desembarque de officiaes
constitucionaes na Terceira, vindos de Inglaterra na fragata brazileira
_Isabel_; constituição de um nucleo de resistencia.--24. Chegada de D.
Maria II a Falmouth.

=Outubro=--6. Id. a Londres, onde fica.--4. Acção do Pico do Celleiro,
e submissão de toda a ilha Terceira ao governo constitucional;
installação de uma Junta provisoria de governo.

=Novembro=--9. Accidente em que D. Miguel fractura uma perna caíndo da
carruagem.

=Dezembro=--Bloqueio da Terceira por navios de guerra inglezes.--7.
Dissolução do deposito dos emigrados constitucionaes em Plymouth, por
ordem do governo inglez.

=1829=--=Janeiro=--6. Partida de Saldanha com quatro navios de
emigrados para a Terceira.--9. Tentativa frustrada de revolta
militar em Lisboa.--16. O cruzeiro inglez impede o desembarque de
Saldanha.--30. Regressa a expedição, chegando a Brest; interna-se em
França.

=Fevereiro=--2. Desembarque dos Voluntarios da Rainha na Terceira.--14.
Novo desembarque de emigrados de Inglaterra.

=Março=--3. Novo desembarque id.--6. Execução em Lisboa dos condemnados
da conspiração do brigadeiro Moreira.--Suppressão do bloqueio inglez da
Terceira.--8. Chegada de 600 emigrados de Inglaterra.

=Maio=--7. Execução, no Porto, dos réus da insurreição da Junta de 16
de maio 28.

=Junho=--16. Partida de Lisboa da expedição para submetter
a Terceira.--22. Chegada de Terceira a Villa-da-Praia como
capitão-general, nomeado por Palmella em Londres.

=Julho=--29. Apparecimento da esquadra do governo nas aguas da
Terceira; bloqueio.

=Agosto=--11. Acção da Villa-da-Praia; repellida a tentativa de
desembarque das tropas do governo; retirada da esquadra.--13.
Introducção dos jesuitas em Lisboa.--29. Protesto de Barbacena em
Londres em nome da rainha, contra a politica ingleza.--31. Partida da
rainha para o Brazil, com a noticia da victoria da Villa-da-Praia.

=Outubro=--2. Reconhecimento de D. Miguel, rei, pelos Estados-Unidos da
America;--11, pela Hespanha.

=1830=--=Janeiro=--7. Morte da Rainha viuva D. Carlota Joaquina, em
Lisboa.

=Março=--7. Morte do marquez de Chaves.--15. Chegada de Palmella á
Terceira; constituição da Regencia.

=Junho=--15. D. Pedro, do Rio, confirma a Regencia da Terceira.
(Palmella, Terceira, Guerreiro).--Chegada a Brest do marquez de Santo
Amaro, enviado de D. Pedro.

=Outubro=--18. Nova bandeira portugueza, bicolor.

=1831=--=Fevereiro=--8. Tentativa frustrada de sedição militar em
Lisboa.

=Abril=--7. Emprestimo levantado na Terceira.--Abdicação de D. Pedro,
imperador do Brazil, no Rio.--13. Saída do ex-imperador do Brazil, para
a Europa.--Id. de D. Maria II para Brest, na _Saine_.--17. Expedição
da Terceira ás ilhas de oeste.--19. Ruptura de relações do governo de
Lisboa com a França; saída do consul, de Lisboa.

=Maio=--4. Em viagem, D. Pedro toca no Fayal, escrevendo a
Terceira.--9. Occupação da ilha de S. Jorge pelos constitucionaes.

=Junho=--12. Chegada de D. Pedro a Cherburgo.--23. Occupação do Fayal,
seguida pela de Flores, Corvo e Graciosa.--26. Chegada de D. Pedro a
Londres.--Segundo emprestimo na Terceira.

=Julho=--11. Entrada da esquadra franceza no Tejo, apresamento
dos navios portuguezes.--26. Visita de D. Pedro a D. Maria II em
França.--30. Partida da expedição da Terceira a S. Miguel.

=Agosto=--1. Desembarque na ladeira da Velha, occupação de S.
Miguel.--16. D. Pedro fixa a residencia em França.--22. Pronunciamento
constitucional de infanteria 4 em Lisboa, suffocado.

=Setembro=--21. Reconhecimento de D. Miguel, rei, pelo papa.

=Outubro=--2. Morte de José Agostinho de Macedo.

=1832=--=Fevereiro=--2. Manifesto de D. Pedro.--10. Organisada a
expedição em Inglaterra, armada em Belle-Isle, D. Pedro parte para os
Açores.--22. Chega a S. Miguel.

=Março-=-3. Chega D. Pedro á Terceira. Assume a regencia. Nomeia
ministerio. (Palmella, Mousinho, Freire) Terceira general, sob o
regente.--28. Manifesto de D. Miguel.--29. Bloqueio da Madeira pela
esquadra constitucional, levantado em maio, sem resultado.

=Abril=--4. Decreto de abolição parcial de morgados.--19. Id. da siza,
portagens e direitos feodaes.--25. D. Pedro vae a S. Miguel preparar a
expedição ao reino.

=Maio=--16. Decreto organisando a administração, a justiça e a fazenda.

=Junho=--20-2. Embarque.--27. Partida da expedição de S. Miguel para o
continente.

=Julho=--8. Desembarque em Pampelido.--9. Entrada no Porto, evacuado
pelas tropas do governo.--14. Primeiro ataque dos miguelistas,
rechassado.--18. Acção de Penafiel.--22. Reconhecimento de Vallongo,
retirada para Rio-Tinto.--18. Junção dos generaes miguelistas
Santa-Martha e Povoas em Souto Redondo, ao sul do Douro.--23. Batalha
de Ponte-Ferreira.--27. Acção de Grijó.--29. Organisação da ordem da
Torre-e-Espada.--30. Decreto de abolição dos dizimos.

=Agosto=--7. Acção de Souto-Redondo, derrota e retirada sobre o
Porto--8. Reconhecimento miguelista sobre o norte do Porto.--12.
Decreto de abolição das doações regias.--12. Decreto de abolição dos
bens da corôa.

=Setembro=--8-11. Ataques á Serra do Pilar e ao Porto, repellidos.
Occupação de Gaya pelos miguelistas. Principio do bombardeamento.
Teixeira (Pezo da Regoa) toma o commando do exercito miguelista.--16.
Sortida constitucional, occupação do cerro das Antas.--29. Ataque geral
dos miguelistas ao Porto, repellido.

=Outubro=--11. Batalha naval nas aguas do norte, indecisa.--13-14.
Ataques á Serra-do-Pilar, repellidos. Desenha-se o cerco, artilhando-se
a margem esquerda do Douro.--16. Partida de D. Miguel para Braga.--26.
Santa Martha substitue Teixeira no commando.

=Novembro=--14, 17, 28. Sortidas successivas dos sitiados, batidos.

=Dezembro=--17. Sortida a Gaya, batida.--Revista de D. Miguel ao
exercito sitiante.

=1833=--=Janeiro=--1. Solignac, general do exercito
constitucional.--24. Ataque frustrado ás posições miguelistas do Crasto
e do Queijo, a noroeste do Porto.--28. Chegada de Saldanha.

=Fevereiro=--21. O conde de S. Lourenço general do exercito miguelista.

=Março=--4-24. Ataques miguelistas ás linhas leste e noroeste,
repellidos.--16. Vinda de D. Carlos para Portugal.

=Abril=--9. Sortida e occupação do reducto do Covello.

=Junho=--1. Chegada ao Porto de Palmella e Napier, com reforços.--8.
Napier almirante.--13. Demissões de Sartorius e Solignac.--Saldanha
chefe do Estado-maior; Terceira commandante da expedição do sul, com
Napier, e Palmella governador civil.--21. Partida da expedição do
Algarve.--24. Desembarque e occupação de Tavira.

=Julho=--5. Batalha naval do Cabo de S. Vicente, apresamento da
esquadra miguelista.--14. Bourmont commandante do exercito miguelista
no Porto.--25. Ataque ás linhas, repellido.--23. Acção da Piedade,
destroço dos miguelistas.--24. Entrada de Terceira em Lisboa, evacuada
pela guarnição miguelista.--26. Partida de D. Pedro, do Porto, para
Lisboa por mar.--27. Morticinio dos presos de Estremoz.

=Agosto=--9. Retirada de Bourmont do Porto para o sul. Reconhecimento
do governo de D. Maria II pela Inglaterra.--10. D. Miguel em
Coimbra.--15. Decreto convocando côrtes.--18. Saldanha bate a divisão
miguelista do Porto, levanta o cerco pelo norte e leste.--20. Os
miguelistas retiram da margem sul.--D. Miguel e o exercito avançam de
Coimbra sobre Lisboa.--25-6. Concentração das forças miguelistas em
torno de Lisboa.

=Setembro=--5-14. Ataques ás linhas constitucionaes, repellidos.--18.
Substituição de Bourmont por Macdonell no commando do exercito
miguelista.--22. Chegada de D. Maria II ao Tejo, por mar, de
França.--27. Prorogação da convocação das côrtes.--Exigencias de
Hespanha perante D. Miguel para a expulsão de D. Carlos do territorio
portuguez.

=Outubro=--10-11. Sortida de Lisboa para leste. Saldanha obriga os
sitiantes a retirar sobre Santarem, onde se fortificam.--Reconhecimento
do governo de D. Maria II pela França;--23, pela Belgica.

=Novembro=--3. Expedição constitucional ao Alemtejo; acção de Alcacer,
morticinio dos prisioneiros.

=1834=--=Janeiro=--14. Saldanha toma e fortifica Leiria.--30. Acção e
victoria de Pernes.

=Fevereiro=--18. Batalha de Almoster.

=Março=--18. Decretos de exautoração do infante D. Miguel e abolição
da casa do Infantado, encorporados os bens nos da nação.--Operações no
Minho.--23. Napier toma Caminha.--27. Vianna e Ponte de Lima.--Cabreira
entra em Santo Thyrso.

=Abril=--2. Occupação de Braga.--3. de Valença.--Expedição de Terceira
ao centro do reino; chega ao Porto; operações no Tamega.--22. Tratado
da quadrupla alliança.

=Maio=--8. Occupação de Coimbra.--10. Confirmação do tratado em
Lisboa.--16. Batalha da Asseiceira.--17. Retirada de D. Miguel de
Santarem para Evora.--18. Occupação de Santarem.--27. Convenção de
Evora-Monte.--28. Convocação das côrtes ordinarias.--Decreto de
abolição das ordens religiosas.--30. Embarque de D. Miguel.

=Junho=--20. Manifesto de D. Miguel, de Genova.

=Julho=--4. Expulsão dos jesuitas.--Interrupção de relações com a côrte
de Roma.--23. Decreto da extincção do papel-moeda.

=Agosto=--15. Reunião das côrtes.--28. Confirmação da regencia de D.
Pedro.--30. Juramento da carta pelo regente.

=Setembro=--20. D. Maria II começa a reinar.--24. Morte de D.
Pedro.--Ministerio Palmella, principio do regime parlamentar em
Portugal.

=Outubro=--4. Votação da lei de soccorros aos lavradores.

=Dezembro=--1. Casamento da rainha com o principe de Leuchtenberg.--19.
D. Miguel e seus descendentes banidos por lei.

=1835=--=Março=--28. Morte do rei-esposo. Tumultos de Lisboa contra
Palmella e o seu governo.

=Abril=--23. Conversão da divida da 6% em 4.

=Maio=--27. Queda do gabinete Palmella. Saldanha no governo.

=1836=--=Janeiro=--9. Casamento da rainha com o principe D. Fernando de
Coburgo.

=Julho=--14. Incendio do palacio do Thesouro, no Rocio de
Lisboa.--Dissolução das camaras, convocadas para 11 de setembro.

=Setembro=--9-10. Sedição em Lisboa, suppressão da Carta. Queda do
ministerio. Dictadura de Passos-Manuel.--11. Juramento da Constituição
de 22 pela rainha.

=Novembro=--4. Conspiração palaciana, abortada, para restaurar a Carta.
(_Belemzada_) Assassinato de Agostinho José Freire.--12. Convocação de
côrtes constituintes.

=1837=--=Janeiro=--26. Abertura do congresso constituinte.

=Maio=--13. Sedição miguelista das Marnotas, suffocada.

=Junho=--1. Queda de Passos-Manuel. Gabinete Sá-da-Bandeira.

=Julho=--12. Sedição militar cartista, revolta _dos Marechaes_,
(Saldanha, Terceira).

=Agosto=--28. Acção do Chão-da-feira.

=Setembro=--16. Nascimento de D. Pedro V.--18. Acção de Ruivães,
convenção de Chaves, emigração dos marechaes vencidos.

=1838=--=Março=--9-13. Revoltas dos radicaes, clubistas do Arsenal, em
Lisboa.

=Abril=--4. Juramento da constituição novamente feita. Regresso dos
marechaes.

=Junho=--14. Tumultos radicaes em Lisboa.

=Outubro=--31. Nascimento de D. Luiz I.

=1839=--Queda do gabinete Sá. Ministerio Sabrosa.

=Novembro=--26. Queda de Sabrosa. Ministerio Bomfim-Cabral-Rodrigo.

=1840=--=Fevereiro=--Dissolução da Camara.

=Maio=--26. Abertura do parlamento; maioria cartista.

=Agosto=--11. Tumulto setembrista em Lisboa, suffocado.--26.
Pronunciamento em Castello-Branco. (_Miguel Augusto_) idem.

=Fevereiro=--15. Execução de Diego Alves, na forca.

=Julho=--25. Homicidios de Mattos Lobo, em Lisboa.

=Maio=--21. Publicação da _Novissima reforma judiciaria_.
Restabelecimento das relações com a côrte de Roma.

=1842=--=Janeiro=--14. Partida do ministro Costa Cabral para o
Porto.--27. Pronunciamento militar no Porto, restaurando a Carta (de
26).

=Fevereiro=--5. Os pronunciados marcham sobre Coimbra.--7. Queda do
gabinete: ministerio Palmella-Soure-Avila.--8. Sedição cartista em
Lisboa.--9. Gabinete Terceira-Mousinho.--10. Decreto restaurando a
Carta com promessa de uma reforma.--14-16. Dissolução das Juntas
cartistas do Porto e Coimbra.--19. Regresso de Costa Cabral a
Lisboa.--24. C. C. ministro do reino; principio da longa administração
Cabral-Terceira.

=Março=--18. Promulgação do novo codigo administrativo.--30. Manifesto
da coalisão das opposições, setembrista, miguelista e cartista
dissidente.

=Julho=--10. Abertura das camaras.--16. Execução de Mattos Lobo na
forca: a ultima em Portugal.

=1843=--=Julho=--1. Lei de reforma das contribuições: decima de
repartição.

=1844=--=Fevereiro=--4. Pronunciamento militar em Torres-Novas,
suffocado.

=Abril=--8. Sedição da praça de Almeida, rendida.

=Agosto=--1. Reforma da organisação da justiça.--Nova lei eleitoral.

=1846=--=Abril=--15. Sublevação popular no Minho (_Maria-da-Fonte_).
Formação de Juntas revolucionarias no reino.--20. Decreto de suspensão
de garantias.

=Maio=--20. Queda do gabinete perante a revolução. Exilio dos irmãos
Cabraes.--26. Ministerio Palmella; desarmamento das Juntas. Curso
forçado das notas do banco de Lisboa. Regresso dos emigrados de 44.

=Agosto=--21. Decreto impondo segunda decima ás inscripções. Prorogação
do curso forçado das notas.

=Outubro=--1. Nova prorogação.--6. Golpe d’Estado, demissão do gabinete
Palmella. Saldanha no ministerio.--9. Restabelecimento da antiga
lei eleitoral. Dissolução das camaras.--Terceira, mandado ao Porto,
como lugar-tenente, é ahi preso.--10. Sublevação do Porto, creação
da Junta, propagação do movimento de resistencia em varios pontos do
reino.--16. O ministerio pede a intervenção extrangeira para debellar a
revolução.--25. Pronunciamento de S. Miguel.--26. Marcha do exercito da
Junta sobre Santarem.

=Novembro=--4. Occupação de Santarem pelos revoltosos.--6. Costa
Cabral embaixador em Madrid. Saída de Saldanha, com o exercito fiel,
de Lisboa.--14. Decreto do curso forçado permanente das notas do
banco.--16. Acção de Val-passos, entre Sá-da-Bandeira e Cazal.--19.
Decreto de fusão do Banco de Lisboa e da Companhia Confiança.--25.
Entrada dos miguelistas em Guimarães.

=Dezembro=--3. Tomada de Valença, pelos de Lisboa.--4. Ataque de Vianna
pelos miguelistas.--Manifesto da Junta do Porto.--Acção de Ourem.--22.
Acção de Torres-Vedras, victoria de Saldanha pela rainha.--26. Creação
do banco de Portugal.--31. Os miguelistas trucidados em Braga, morte de
Macdonell.

=1847=--=Fevereiro=--1. Degredo dos prisioneiros de Torres-Vedras para
Africa, no _Audaz_.--27.--Ataque de Estremoz pelo conde de Mello,
patuléa.

=Março=--28. Partida da expedição de Sá-da-Bandeira, por mar, do Porto
a desembarcar em Lagos; marcha sobre Lisboa.

=Abril=--11. Sedição em Lisboa, mallograda.--29. Tumulto de Lisboa;
abertura das cadeias. Fome: começam as distribuições de sopa-economica,
até junho.-- Pronunciamento da Madeira.

=Maio=--1. Acção do Alto-do-Vizo.--21. Protocollo de Londres para a
intervenção extrangeira.--22. Pronunciamento da Terceira.--27. Bloqueio
do Douro, pela esquadra ingleza.--30. Embarque da expedição do conde
das Antas no Porto.--31. Aprisionamento pela esquadra ingleza.

=Junho=--3. Entrada da divisão hespanhola de Concha, que occupa o
Porto. Os inglezes em S. João da Foz.--24. Convenção de Gramido,
dissolução da Junta e fim da guerra civil.

=Dezembro=--9-14.--Decretos abolindo o curso forçado das notas e
retirando-lhes a garantia do Estado.

=1849=--=Abril=--4. Morte de Mousinho da Silveira.

=Junho=--18. Queda do gabinete Saldanha. O conde de Thomar presidente
do conselho.

=1850=--=Fevereiro=--7. Demissão de Saldanha, de mordomo-mór do paço.
Opposição ao ministerio.

=1851=--=Abril=--7. Partida de Saldanha para o Porto. Pronunciamento
militar do norte; marcha sobre Lisboa. (_Regeneração_).

=Maio=--1. Queda do conde de Thomar. Saldanha no governo--15. Entrada
em Lisboa.--18. Tentativa de pronunciamento cabralista, suffocada.
Reforma da lei eleitoral.

=Julho=--7. Constituição do ministerio: Saldanha, Rodrigo, Fontes.

=1852=--=Julho=--5. Acto addicional á Carta Constitucional.

=Dezembro=--18. Decreto de conversão da divida, em titulos de 3%.

=1853=--=Novembro=--15. Morte de D. Maria II. Regencia de D. Fernando.

=1855=--=Setembro=--16. Principio do Reinado de D. Pedro V.

=1856=--=Junho=--6. Queda da Regeneração. Gabinete Loulé: o partido
historico.

=Outubro=--28. Inauguração da 1.ª secção da linha de Leste.

=1857=--=Fevereiro=--9. Alvará de introducção das irmans da Caridade.

=Maio-=-18. Casamento de D. Pedro V com D. Estephania.

=Agosto=-=Dezembro=--Febre amarella em Lisboa.

=1858=--=Julho=--17. Morte de D. Estephania.

=1859=--=Março=--16. Queda de Loulé. Gabinete
Fontes-Martens-Cazal-Serpa. (2.ª regeneração).

=1860=--=Junho=--30. Reforma das instituições vinculares.

=Julho=--4. Ministerio Loulé-Lobo d’Avila.

=1861=--=Abril=--4. Lei da desamortisação dos bens dos conventos e
estabelecimentos pios.

=Novembro=--6. Morte do infante D. Fernando.--11. Id. de D. Pedro
V.--16. Enterro do rei.

=Dezembro=--22. Reinado de D. Luiz I.--25. Tumultos de Lisboa.

=1862=--=Janeiro=--18. Morte de Passos-Manuel.

=Junho=--9. Expulsão das irmans de Caridade.

=Setembro=--15. Revolta de Braga, suffocada.--27. Casamento do rei com
a princeza de Saboya, D. Maria Pia.

=Novembro=--4. Morte de José Estevam.

=1863=--=Maio=--19. Abolição dos morgados.--30. Abertura do caminho de
ferro a Badajoz.

=1865=--=Setembro=--4. Ministerio Aguiar. (Fusão).--15. Abertura da
exposição universal do Porto.

=1868=--=Janeiro=--4. Tumultos no Porto e Lisboa. _Janeirinha._
Ministerio Avila.




B

OS MINISTERIOS LIBERAES[49]

      _Datas_  _Presidencia_  _Reino_   _Estrang._  _Guerra_  _Marinha_  _Justiça_  _Fazenda_  _Obras-Pub._

                                     (=1.ª Epocha--Dictadura da Regencia=)
                                                         ---------      --------------------
1832--Março     3     --          Palmella                Freire        Mousinho da Silveira    --
      Julho    29     --  Mous. Albuq.   Palmella  Freire  Mous. Albuq.      »                  --
      Setembro 25     --    Palmella        »         »        »             »                  --
      Novembro 10     --  Mous. Albuq.      »         »    Sá da Band.       »                  --
         »     18     --  Sá da Band.     Freire      »        »             »                  --
      Dezembro  3     --       »             »        »        »        Magalhães-S Carvalho    --
1833--Janeiro  12     --     Xavier        Loulé      »        »             »        »         --
      Março    26     --  Mous. Albuq.   Palmella     »    Silv. Carvalho    »        »         --
                                                                        ---------------------
      Abril    21     --     Xavier       Loulé       »      Loulé         Silva Carvalho       --
      Julho    26     --       »          Xavier      »      Freire              »              --
      Outubro  15     --     Aguiar       Freire      »     Margiochi            »              --
1834--Abril    23     --     Carmo          »         »        »         Aguiar   S. Carvalho   --

                                     (=2.ª Epocha--Regime parlamentar--cartista=)

      Setembro 24  Palmella  S. Luiz    Villa Real  Terceira  Freire     Ferraz   S. Carvalho   --
1835--Fevereiro 16     »     Freire      Palmella     »    Villa-Real      »          »         --
                                                   -------------------
      Março    20      »        »          »           Villa Real          »          »         --
                                       ---------
      Abril    28      »        »      Villa Real           Linhares      Leitão       »        --
      Maio      4  Linhares     »          »                   »            »          »        --
       »       26      »        »      Villa Real   Saldanha   »            »          »        --
       »       27  Saldanha  Magalhães  Palmella     »      Loulé     Chancelleiros   Campos    --
      Julho    15      »     Rodrigo       »          »        »        Magalhães   S. Carvalho --
       »       25      »        »          »          »    Atouguia        »           »        --
      Novembro 18      »    Sá da Band.  Loulé    Loureiro Sá da Band.  Caldeira      Campos    --
        »      25  Loureiro Mous. Albuq.   »          »        »           »           »        --
1836--Abril  19-20 Terceira  Freire   Villa Real  Terceira  Miranda      Aguiar    S. Carvalho  --

                                               (=3.ª Epocha--Revolução de Setembro=)

      Setembro  10 Lumiares  Passos M. Sá da Band. Lumiares Lumiares   V. Castro   Sá da Band.   --
      Novembro   3  Valença   Banho       Valença   Leiria    Leite    Oliveira    Porto-Covo    --
                                          -----------------    ---------------
        »       5-6 Sá da Band.Passos M.    Sá da Bandeira         V. Castro        Passos M.    --
                                          -------------------------      -------------
1837--Maio      27      »       »                Sá da Bandeira           Passos M.              --
                    -------------------               ---------------
      Junho      1-2   Dias Oliveira      Mesquita          Bobeda    D. Oliveira    Tojal       --
      Agosto    10 Sá da Band.   Sanches      »     Bobeda Sá da Band. Al. Campos      »         --
      Outubro   25      »        »            »       »       Tojal         »          »         --
        »       30      »        »            »   Celestino     »           »          »         --
                                                 ------------------
      Novembro   9      »        »       Sá da Band.      Bomfim            »          »         --
                                          ----------------------          ----------------
1838--Março      9      »      Tojal              Sá da Band.                   Tojal            --
        »       22      »     Coelho                  »                   Leitão  »  --
      Abril     17      »       »            »      Bomfim  Sá da Band.      --  Chancelleiros   --
                                           ------------
1839--  »       18  Sabroza   Sanches               Sabroza               Araujo      »         --
      Setembro  25    »         »          Sabroza           Ottoline        »        »          --
      Novembro  26  Bomfim    Rodrigo      Bomfim           Villa Real     Thomar   Ferraz       --
      Dezembro  28    »         »    Villa Real     Bomfim       »           »        »          --
1841--Janeiro   28    »         »        »            »          »           »      Miranda      --
      Março     12    »         »     Rodrigo         »        Miranda       »       Tojal       --
                     --------------
      Junho      9        Aguiar         »        Villa Real   Pestana       »        Avila      --
1842--Fevereiro  7-8 Palmella  Magalhães Palmella Sá da Band.  Atouguia    Soure        »        --

                                           (=4.ª Epocha--Restauração da Carta=)

                                           ------------
        »       9   Terceira   Mous. Albuq.  Terceira  Loureiro  Mous. Albuq.       Loureiro     --
        »      20       »           »           »         »       Felgueiras            »        --
        »      24       »         Thomaz        »      Campello  Mello Carv.          Tojal      --
      Setembro  5       »           »           »        Tojal        »                 »        --
        »      14       »           »     Castro  Terceira  Falcão   Algés              »        --

1844--Junho     27  Terceira    Thomar    Castro    Terceira  Falcão    Thomar   Tojal       --
1845--Maio       3      »     J. Cabral      »         »        »      J. Cabral   »         --
      Julho     24      »       Thomar       »         »        »         »        »         --
1846--Abril     21      »          »         »         »        »       Thomar     »         --
                      ---------------               ---------------      ------------
      Maio      20        Palmella        Saldanha     Terceira          Palmella            --
        »       23           »               »         »      Mous. Albuq.   »               --
        »       26  Palmella  Mous. Albuq. Lavradio Saldanha  Loureiro  Soure    Palmella    --
                       --------------
      Julho     19       Palmella            »   Sá da Band. Mous. Albuq. Aguiar Sanches     --
      Outubro    6  Saldanha  V. Oliveira  Carreira Saldanha  Portugal  Farinho V. Oliveira  --
        »       13      »           »          »        »        »         »       Algés     --
      Novembro   4      »           »      Portugal  Algés       »         »        »        --
1847--Fevereiro 20      »           »          »      Ovar       »         »       Tojal     --
                                           ---------------
      Abril     28      »        Proença        Bayard         Tojal     Leitão     »        --
      Maio       3      »           »      Bayard     Barca      »         »        »        --
      Agosto    22      »      Mello Carv.  Luz     Almofalla J. Fontes  Ferrão   Franzini   --
                                           ----------------
      Dezembro  18  Saldanha      Gorjão        Saldanha       Albano    Queiroz   Falcão    --
1848--Janeiro    8      »            »     Saldanha   Francos    »          »       »        --
      Fevereiro 21      »            »         »         »       »        Moura     »        --
                    ------------------
      Março     29       Saldanha            Castro      »     Ourem      Faria     »        --
                                                      --------------
1849--Janeiro   29          »                   »           Ourem         Vargas L. Branco   --
      Junho     18        Thomar              Tojal   Ferreri   Ferraz     Felix   Avila     --
1851--Abril     26  Terceira      Felix         »        »         »         »      »        --
        »              »            »           »     Terceira     »         »      »        --

                                          (=5.ª Epocha--Regeneração=)

                    -----------------                 ---------------       --------------
      Maio      1        Saldanha              Luz          Francos             Franzini     --
       »       17           »                   »      Saldanha  Luz               »         --
        »       22 Saldanha  Pestana  Atouguia  Saldanha  Loulé    Soure  Franzini      --
      Julho      7    »      Rodrigo    »           »     Fontes  Rodrigo  Ferrão       --
      Agosto    21    »         »       »           »       »        »     Fontes       --
1852--Março      4    »         »     Garrett       »    Atouguia  Seabra     »         --
      Agosto    17    »         »    Atouguia       »       »        »        »         --
        »       19    »         »       »           »       »     Rodrigo     »         --
        »       30    »         »       »           »       »        »        »       Fontes
1853--Setembro   3    »         »       »           »       »    S. Pereira   »         »
1856--Junho      6  Loulé    Sanches  Loulé    Loureiro Sá da Band. Pessoa Loureiro Sá da Band.
        »       25    »         »       »           »       »        »       »       Loulé
                                               ------------------
1857--Janeiro   23    »         »       »         Sá da Bandeira     »     Sanches      »
      Março     14            Loulé                      »           Ferrer  Avila  Carlos Bento
                                                                     ------------
      Maio       4              »                        »               Avila          »
      Setembro   8              »               Couceiro   »               »            »
      Dezembro   7              »                   »      »      J. Silvestre  »       »
1858--Março     31              »                   »      »             Avila          »
                                               ------------
      Dezembro  16              »               Sá da Bandeira              »           »
1859--Março     16  Terceira  Fontes    Terceira       Ferreri       Martens   Cazal   Serpa
1860    »       12    »         »          »           Fontes           »        »      »
      Abril     24    »         »  Cazal       Serpa       »            »        »      »
      Maio       1  Aguiar      »    »          Luz     Vargas          »        »      »
      Julho      4  Loulé          Avila      Garcez  C. Bento   Moraes Carv.  Avila  Horta
      Dezembro   3    »              »      Sá da Band.    »            »        »      »
1862--Fevereiro 21  Loulé  Braamcamp Loulé      »     M. Leal        Gaspar   Valbom    »
         »      26    »         »      »        »          »            »        »     Loulé
                   ----------------
1864--Janeiro   14-16      Loulé           Ferr. Passos   »            »         »   Abreu Sousa
      Dezembro  12           »                  »    Abreu e Sousa     »         »      »
1865--Março      5  Loulé Sabugosa   Loulé  Sá da Band.  Loulé        Ayres   Mathias   »
                                                 --------------
1865--Abril    17 Sá da Band.  Sanches    Avila    Sá da Band.     Sanches  Avila  Carlos Bento
                  --------------------
      Setembro  4         Aguiar         Castro T. Novas Pr. Grande Barjona Fontes    Castro
                                                -------------------
         »     26           »               »       Praia-Grande        »      »         »
      Novembro 22           »               »   França       »          »      »         »
                                                ----------------
1866--Abril    23           »               »      Praia-Grande         »      »         »
      Maio      9    Aguiar  Martens      Cazal Fontes       »          »      »       Cazal
      Junho     6       »       »           »       »        »          »      »       Corvo
                     --------------------------
1868--Janeiro   4             Avila             Magalhães  Amaral     Seabra J. Dias   Canto


NOTAS DE RODAPÉ:

[49] V. a _Noticia dos Min. e Secr. Estado etc._ (Lisboa
1871).--Dividimos os gabinetes em cinco series ou epochas, conforme o
regimen constitucional vigente: na 2.ª ep. entra a Carta em exercicio;
na 3.ª substitue-se-lhe a constituição de 20, e depois a de 38; na
4.ª volta a por-se em vigor a Carta de 26; na 5.ª finalmente fazem-se
n’ella alterações constitucionaes.--Os gabinetes, pois, não vão
classificados por partidos politicos, cousa que seria quasi impossivel,
attendendo á excessiva versatilidade de muitos ministros; mas o leitor,
cotejando este catalogo com o texto, fica sabendo a côr ou caracter de
cada gabinete.

Como muitos dos politicos, adornando-se de titulos, mudaram de nome, e
isso possa dar lugar a confusões, usámos sempre do ultimo nome por que
são conhecidos.




C

MINISTROS DE D. MIGUEL

(1828-1834)


 Duque de Cadaval; _min. assistente_ (até 1 julho 1831).

 Conde da Louzan, D. Diogo; _fazenda_.

 Conde de Villa Real; _guerra e estrangeiros_ (até 3 março 1828).

 Visconde de Santarem; _estrangeiros_ (desde 13 março 1828).

 Conde do Rio Pardo; _guerra_ (de 3 março 1828 a 20 fevereiro 1829).

 Conde de S. Lourenço; _id._ (desde 20 fevereiro 1829).

 Conde de Barbacena; _id._ interino (desde 21 fevereiro até 16 julho
 1833, durante o commando do exercito pelo effectivo).

 Conde de Basto; _reino e marinha_ (até á sua morte em 2 agosto 1833).

 Guião; _reino_ (desde 22 setembro 1833).

 Rio de Mendonça; _justiça_ (até 11 abril 1829).

 Barbosa de Magalhães; _id._ (até 27 junho 1831).

 Paula Furtado; _id._ (desde 27 junho 1831).

 Bourmont; _guerra int._ (desde 15 agosto 1833).




INDICE

DO TOMO SEGUNDO


LIVRO QUARTO

A ANARCHIA LIBERAL

(1834-39)

I O REGABOFE                                                           1

1. A sessão de 34                                                      1
2. Os bens nacionaes                                                   9
3. O Thesouro queimado                                                17
4. A familia dos politicos                                            31
5. Væ victis!                                                         46

II PASSOS MANUEL                                                      58

1. A revolução de setembro                                            58
2. A Belemzada                                                        73
3. As côrtes constituintes                                            84
4. As revoltas                                                        94
5. As folhas caídas                                                  111

III O ROMANTISMO                                                     120

1. A voz do propheta                                                 120
2. A poesia das ruinas                                               125
3. Renascimento                                                      130
4. A ordem                                                           138


LIVRO QUINTO

O CARTISMO

(1839-51)

I COSTA-CABRAL                                                       143

1. Os ordeiros                                                       143
2. A restauração da Carta                                            153
3. A Doutrina                                                        158

II A REACÇÃO                                                         170

1. A coalisão dos partidos                                           170
2. Torres-Novas e Almeida                                            175
3. A Maria-da-Fonte                                                  183

III A GUERRA CIVIL                                                   197

1. O 6 de outubro                                                    197
2. A Junta do Porto                                                  213
3. O Espectro                                                        227
4. A primavera de 47                                                 239

IV OS IMPENITENTES                                                   259

1. O cadaver da nação                                                259
2. O conde de Thomar                                                 269


LIVRO SEXTO

A REGENERAÇÃO

(1851-68)

I  ALEXANDRE HERCULANO                                               283

1. A ultima revolta                                                  283
2. O fim do Romanismo                                                293
3. O Solitario de Val-de-Lobos                                       302

II A LIQUIDAÇÃO DO PASSADO                                           328

1. A rapoza e suas manhas                                            328
2. A conversão da divida                                             334
3. Os historicos                                                     348

III AS GERAÇÕES NOVAS                                                360

1. A iniciação pelo fomento                                          360
2. O iberismo                                                        367
3. O socialismo                                                      381
4. D. Pedro V                                                        389

IV  CONCLUSÕES                                                       402

1. As questões constitucionaes                                       402
2. As questões economicas                                            413
3. As questões geographicas                                          419


APPENDICES

A. Chronologia                                                       433
B. Os ministerios liberaes                                           445
C. Os ministros de D. Miguel                                         451





        
            *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK PORTUGAL CONTEMPORANEO, VOL. II (OF 2) ***
        

    

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Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg™

Project Gutenberg™ is synonymous with the free distribution of
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computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It
exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations
from people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg™’s
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remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg™ and future
generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see
Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org.

Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service. The Foundation’s EIN or federal tax identification
number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by
U.S. federal laws and your state’s laws.

The Foundation’s business office is located at 809 North 1500 West,
Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up
to date contact information can be found at the Foundation’s website
and official page at www.gutenberg.org/contact

Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

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increasing the number of public domain and licensed works that can be
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