Historia de Portugal: Tomo I

By J. P. Oliveira Martins

The Project Gutenberg EBook of Historia de Portugal: Tomo I, by 
Joaquim Pedro de Oliveira Martins

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Title: Historia de Portugal: Tomo I

Author: Joaquim Pedro de Oliveira Martins

Release Date: November 21, 2010 [EBook #34387]

Language: Portuguese


*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK HISTORIA DE PORTUGAL: TOMO I ***




Produced by Pedro Saborano






    *Notas de transcrição:*

    O texto aqui transcrito, é uma cópia integral do livro impresso
    em 1908.

    Foi mantida a grafia usada na edição original de 1908, tendo sido
    corrigidos apenas pequenos erros tipográficos que não alteram a
    leitura do texto, e que por isso não foram assinalados.





HISTORIA DE PORTUGAL

TOMO I




                      *      *      *      *      *




J. P. OLIVEIRA MARTINS

OBRAS COMPLETAS

I. Historia nacional:

HISTORIA DA CIVILISAÇÃO IBERICA, 4.ª ed. (1897), 1 vol., br. 700 rs.
Enc. 900.

HISTORIA DE PORTUGAL, 7.ª ed. (1908), 2 vol., br. 1$400 rs. Enc. 1$800.

O BRAZIL E AS COLONIAS PORTUGUEZAS, 4.ª ed. (1888). 1 vol., br. 700 rs.
Enc. 900.

PORTUGAL CONTEMPORANEO, 4.ª ed. (1907). 2 vol., br. 2$000 rs. Enc. 2$400.

PORTUGAL NOS MARES, (1889), 1 vol., br. 700 rs. Enc. 900.

CAMÕES, OS LUSIADAS E A RENASCENÇA EM PORTUGAL, (1891). 1 vol., br. 600
rs. Enc. 800.

NAVEGACIONES Y DESCUBRIMIENTOS DE LOS PORTUGUESES, (_ed. do Ateneo de
Madrid_, 1892). 1 vol. (não entrou no commercio.)

A VIDA DE NUN'ALVARES, 2.ª ed. (1894). 1 vol., br. 2$000 rs. Cart.
2$400. Enc. (folhas doiradas) 3$200.

OS FILHOS DE D. JOÃO I, 2.ª ed., 2 vol., br. 1$400 rs. Enc. 1$800.

O PRINCIPE PERFEITO, (1895), 1 vol., br. 2$000 rs. Encad., folhas
doiradas, 3$200.

II. Historia geral:

ELEMENTOS DE ANTHROPOLOGIA, 4.ª ed. (1885), 1 vol., br. 700 rs. Enc. 900.

AS RAÇAS HUMANAS E A CIVILISAÇÃO PRIMITIVA, 2 vol., br. 1$400 rs. Enc.
1$800.

SYSTEMA DOS MYTHOS RELIGIOSOS, 3.ª ed. (1895), 1 vol., br. 800 rs. Enc.
1$000.

QUADRO DAS INSTITUIÇÕES PRIMITIVAS, 2.ª ed. (1893), 1 vol., br. 800 rs.
Enc. 1$000.

O REGIME DAS RIQUEZAS, 2.ª ed. (1894), 1 vol., br. 600 rs. Enc. 800.

HISTORIA DA REPUBLICA ROMANA, 2.ª ed., 1897, 2 vol., br. 2$000 rs. Enc.
2$400.

O HELLENISMO E A CIVILISAÇÃO CHRISTÃ, 2.ª ed., 1 vol., br. 800 rs. Enc.
1$000.

TABOAS DE CHRONOLOGIA E GEOGRAPHIA HISTORICA, (1884), 1 vol., br. 1$000
rs. Encadernado 1$200.

III. Varia:

A CIRCULAÇÃO FIDUCIARIA, 2.ª ed., 1 vol., br. 800 rs. Enc. 1$000.

A REORGANISAÇÃO DO BANCO DE PORTUGAL, opusculo, (1877), br. 150 rs.

O ARTIGO «BANCO», no _Diccionario Universal Portuguez_, (1877), 1 vol.,
br. 500.

POLITICA E ECONOMIA NACIONAL, (1885), 1 vol., br. 700 rs.

PROJECTO DE LEI DE FOMENTO RURAL, _apresentado á camara dos deputados na
sessão de 1887_, 1 vol., br. 300 rs.

ELOGIO HISTORICO DE ANSELMO J. BRAAMCAMP, _ed. part._ (1886), 1 vol.
(esgotado).

THEOPHILO BRAGA E O CANCIONEIRO, _opusculo_, (1869) (esgotado).

O SOCIALISMO, (1872-3), 2 vol., br. 1$200. (Esgotado)

AS ELEIÇÕES, _opusculo_, (1878), br. 200 rs.

CARTEIRA DE UM JORNALISTA: I. _Portugal em Africa_, (1891), 1 vol., br.
400 rs.

A INGLATERRA DE HOJE, CARTAS DE UM VIAJANTE, 2.ª ed., 1 vol., br. 600
rs. Enc. 800.

CARTAS PENINSULARES, (1895), 1 vol., br. 600 rs. Enc. 800.




                      *      *      *      *      *

                                HISTORIA

                                   DE

                                PORTUGAL

                                  POR

                         J. P. Oliveira Martins

                             Setima edição


                             TOMO PRIMEIRO


                                  1908
                     PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA
                            LIVRARIA EDITORA
                         _Rua Augusta--44 a 54_
                                 LISBOA




                      *      *      *      *      *

                    Composto e impresso na typographia
                                    DA
                      Parceria ANTONIO MARIA PEREIRA
                          _Rua Augusta, 44 a 54_
                                  LISBOA





Á

MEMORIA

DE

ALEXANDRE HERCULANO

mestre e amigo




ADVERTENCIA

    «Antigamente foi costume fazerem memoria das cousas que se fazião,
    assi erradas, como dos valentes & nobres feytos. Dos erros porque se
    delles soubessem guardar: & dos valentes & nobres feytos aos bõos
    fezessem cobiça auer pera as semelhentes cousas faseram.»

    _Coronica do Condestabre._


A historia é sobre tudo uma lição moral: eis a conclusão que, a nosso
vêr, sáe de todos os eminentes progressos ultimamente realisados no fôro
das sciencias sociaes. A realidade é a melhor mestra dos costumes, a
critica a melhor bussola da intelligencia: por isso a historia exige
sobretudo observação directa das fontes primordiaes, pintura verdadeira
dos sentimentos, descripção fiel dos acontecimentos, e, ao lado d'isto,
a frieza impassivel do critico, para coordenar, comparar, de um modo
impessoal ou objectivo, o systema dos sentimentos geradores e dos actos
positivos.

O desenvolvimento do criterio racional e o predominio crescente dos
processos proprios das sciencias, baniram os modelos antigos e fizeram
da historia um genero novo. Nem os discursos moraes ou litterarios
_sobre_ a historia, á maneira do XVII seculo, nem o doutrinarismo secco
do XVIII que sobre factos e instituições mal conhecidos construia
systemas geraes chimericos, nem a opinião, muito seguida em nossos dias,
de considerar a historia unicamente nos seus phenomenos exteriores,
averiguando eruditamente as epochas e as condições dos successos,
merecem, a nosso vêr, imitação.

Todos estes systemas, porém, ensaios successivos para determinar o
genero de um modo definitivo, teem um lado de verdade aproveitavel. Os
modelos classicos fizeram sentir o caracter moral da historia; os
modelos abstractos, a necessidade de comprehender os phenomenos n'um
systema de leis geraes; os modelos eruditos, finalmente, a condição
imprescriptivel de um conhecimento real e positivo da chronologia e dos
elementos que compõem o _meio_ externo ou phisico das sociedades.[1]

Nada d'isto, porém, é ainda realmente a historia, embora todas essas
condições sejam indispensaveis para a sua comprehensão. O intimo e
essencial consiste no systema das instituições e no systema das idéas
collectivas, que são para a sociedade como os órgãos e os sentimentos
são para o individuo, consistindo, por outro lado, no desenho real dos
costumes o dos caracteres, na pintura animada dos logares e accessorios
que formam o scenario do theatro historico.

Estes dois aspectos são egualmente essenciaes; porque a coexistencia
independente dos motivos collectivos e naturaes, e dos actos
individuaes, é um facto incontestavel na vida das sociedades.

Na _Historia da civilização iberica_ tratámos de estudar o systema de
instituições e de idéas da sociedade peninsular, para expôr a sua vida
collectiva, organica e moral. Tomámos ahi a sociedade como um individuo,
e procurámos retratal-o phisica e moralmente. Agora o nosso proposito é
diverso. Tratando da historia particular portugueza, somos levados a
encarar principalmente o segundo dos aspectos essenciaes da historia
geral. A sociedade portugueza, como molecula que é do organismo social
iberico, peninsular, ou hespanhol--estas tres expressões teem aqui um
alcance equivalente--obedeceu, nos seus movimentos collectivos, ao
systema de causas e condições proprias da historia geral da peninsula
hispanica. Por isso procurámos sempre, na obra referida, indicar o modo
pelo qual as leis geraes se realisavam simultaneamente nas duas nações
hespanholas: duas, porque a historia assim constituiu politicamente a
Peninsula.

Metade da historia portugueza está, portanto, escripta na _Historia da
civilisação iberica_: a metade que trata da vida da sociedade, como um
ser organico. Comprehender-se-ha, pois, que nos abstenhamos agora de
repetir o que está dito, e que nos limitemos a enviar o leitor para esse
livro; indicando, quando fôr necessario, o logar onde poderá encontrar a
explicação das causas geraes a que no texto se tem de alludir.

Resta fazer a segunda metade: resta caracterizar o que ha de particular
na historia portugueza; resta fazer viver os seus homens, e representar
de um modo real a scena em que se agitam: tal é o programma d'este
livro, cujas difficuldades de execução excedem em muito as do anterior.
N'esse, bastavam o conhecimento e o pensamento: um para nos dizer como
foram as cousas, outro para nos indicar o principio e o systema da
civilisação. Agora carece-se do faro especial da intuição historica, e
d'um estylo que traduza a animação propria das cousas vivas. Toda a
longanimidade do leitor será pois necessaria para desculpar as
imperfeições da obra.

É mistér indicar ainda outro assumpto e prevenir uma impressão, natural
em quem ler successivamente as duas obras. A _Historia de Portugal_
consiste n'uma serie de quadros, em que, na maxima parte das vezes, os
caracteres dos homens, os seus actos, os motivos immediatos que os
determinam e as condições e modo porque se realisam, merecem antes a
nossa reprovação do que o nosso applauso. Crimes brutaes, paixões vis,
abjecções e miserias, compõem, por via de regra, a existencia humana; e
por isso mais de um moralista tem condemnado o estudo da historia como
pernicioso para a educação.--Por outro lado, a _Historia da civilisação
iberica_ respira um enthusiasmo optimista que, ao primeiro exame,
pareceria contradictorio com o pessimo e mesquinho caracter que as
acções dos homens apresentam. Um exemplo bastará para demonstrar este
antagonismo: além considerámos as conquistas americanas e asiaticas uma
obra heroica, e agora veremos que montanha de ignominias foi o imperio
portuguez no Oriente.

Esta contradicção, real para o criterio abstracto, não existe, porém,
para o criterio historico. Toda a boa philosophia nos diz que o homem
real é a imagem rude de um homem ideal, que essa imagem vive no mundo
inconscientemente, e que todas as acções dos homens, maculadas de
defeitos e vicios, obedecem a um systema de leis, idealmente sublimes. É
esta verdade que o povo consagrou quando formulou o adagio: Deus escreve
direito por linhas tortas.

Pesada esta consideração, que não podemos agora desenvolver de um modo
cabal, vêr-se-ha como na historia de uma civilisação os caracteres
particulares das acções dos homens, fundindo-se no systema geral de
principios e leis que os determinam, perdem individualidade, e não valem
senão como elementos componentes de um todo superior: que sejam
humanamente bons ou maus, importa nada, porque só nos cumpre attender ao
destino que os determina, e a moral é um criterio incompetente para a
esphera ou categoria collectiva de que se trata.

Na esphera dos movimentos de instituições e idéas, na categoria da vida
social, as acções dos homens são sempre absolutamente excellentes;
porque a supremacia da sociedade sobre o individuo consiste no facto da
existencia de uma consciencia superior da Idéa, no organismo que se diz
sociedade. Os poetas épicos, seres privilegiados cuja voz não é propria,
senão collectiva, são os orgãos vivos da consciencia de uma civilisação:
assim Camões sente e exprime a grandeza historica do imperio das Indias,
que na propria opinião particular do poeta são uma Babylonia, um poço de
ignominias.

Esclarecido este lado do problema, embora de um modo incompleto e
rapido, resta-nos dizer que na segunda metade da historia, na que trata
dos individuos e dos episodios, na que pinta os costumes e os
pensamentos, o criterio é outro: por isso affirmámos que a historia é
uma lição moral. Nos vicios e nas virtudes, nos erros e nos acertos, na
perversidade e na nobreza dos individuos que foram, ha um exemplo
excellente. Na sabedoria ou na loucura dos actos politicos e
administrativos passados ha um meio de prevenir e encaminhar a direcção
dos actos futuros. A historia é, n'esse sentido, a grande mestra da vida.

Se os vicios, os erros, o crime e a loucura predominam sobre as
virtudes, os acertos, a nobreza e a sabedoria dos homens, como sem
duvida predominam, iremos por isso condemnar a historia por perniciosa?
Não, decerto. Apresentar crua e realmente a verdade é o melhor modo de
educar, se reconhecemos no homem uma fibra intima de aspirações ideaes e
justas, sempre viva, embora mais ou menos obliterada. Conhecer-se a si
proprio foi, desde a mais remota Antiguidade, a principal condição da
virtude.

    [1] V. _Th. da hist. universal_, nas _Taboas de chronol._,
        pp. VI-XXII.

                      *      *      *      *      *


HISTORIA DE PORTUGAL

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LIVRO PRIMEIRO

Descripção de Portugal

            «Onde a terra se acaba e o mar começa.»
                       CAMÕES, _Lusiadas_, III, 20

                      *      *      *      *      *




I

Os lusitanos


«O povo desde o qual os historiadores têem tecido a genealogia
portugueza está achado: é o dos lusitanos. Na opinião d'esses
escriptores, atravez de todas as phases politicas e sociaes da Hespanha,
durante mais de tres mil annos, aquella raça de celtas soube sempre,
como Anteu, erguer-se viva e forte: reproduzir-se, immortal na sua
essencia; e nós os portuguezes do seculo XIX temos a honra de ser os
seus legitimos herdeiros e representantes.»

Com esta ironia encoberta mas grave, fustigava Alexandre Herculano[2] os
seus predecessores, historiographos nacionaes, e, segurando com valor a
férula magistral, castigava o povo culpado de acreditar n'uma tradição
que tem para o erudito, além de outros defeitos, o de ser recente. Só
desde o fim do XV seculo o nome de _lusitani_ começa a substituir o do
_portugalenses_, nos livros; mas essa innovação, perpetuando-se entre os
eruditos, torna-se por fim uma crença nacional e quasi popular.

Que valor merece a innovação? Nenhum; e por varios motivos. «Tudo falta:
a conveniencia de limites territoriaes, a identidade da raça, a filiação
da lingua, para estabelecermos uma transição natural entre os povos
barbaros e nós.» Ora estes argumentos, decisivos para o sabio
historiador, não nos parece a nós--perdoe-se-nos o atrevimento--que o
sejam. Outro tanto succede com todas as nações, ou quasi todas, desde
que procuramos estabelecer a arvore genealogica, indo aos arcanos de um
passado ignoto reconhecer a phisionomia dos mortos de muitos seculos e
determinar d'entre elles os primeiros avós de uma nação. Seria absurdo
exigir conveniencia de limites territoriaes, ou por outra, identidade de
fronteiras, entre a localisação de uma tribu primitiva, e a de uma nação
moderna: nem aos povos que hoje mais indiscutivelmente representam,
pura, uma raça, poderia fazer-se tal exigencia. Se ha ou não identidade
de raça, é exactamente o problema que deveria agitar-se; e, sem isso,
negal-o é proceder dogmatica e não scientificamente.

Allega-se que são indecisas as noções de Strabão com respeito ás
fronteiras dos lusitanos; diz-se mais que não coincidem com as que
Augusto deu á provincia da Lusitania.[3] O geographo antigo, ora parece
incluir os callaicos nos lusitanos, entendendo as fronteiras d'estes
ultimos até á costa do norte da Peninsula; ora os separa, dando-lhes o
Douro como divisoria. A demarcação de Augusto adoptou esta segunda
versão. As fronteiras orientaes extendiam-se, quer para o geographo,
quer, depois, para a administração romana, muito além da raia
portugueza, incluindo Salamanca, e subindo quasi até proximo de Toledo.
D'alli para o sul, e depois para o nascente, seguindo o curso angular do
Guadiana, os lusitanos de Strabão e a Lusitania de Augusto tinham como
limite este rio, quasi desde as suas fontes, e até á sua foz, na costa
do nosso Algarve.

Se ligassemos, pois, um valor positivo ás resenhas dos antigos
geographos, e um alcance social-historico á identidade das fronteiras
primitivas e actuaes, parece-nos que poucas nações poderiam com melhores
motivos achar na etimologia dos antigos o fundamento da sua vida
moderna. Alargue-se a fronteira do norte ao Minho (conquista da
Lusitania sobre a Gallecia) retráia-se a fronteira de leste ao Douro
(conquista da Tarraconense sobre a Lusitania) e teremos feito coincidir
os antigos com as actuaes limites. Qual é, dos primitivos, o povo que no
decurso da sua vida historica deixou de conquistar e de ser conquistado?
qual é o que não ganhou ou não perdeu, de um lado ou d'outro, sobre ou
para os visinhos?

Se a maneira porque, a partir do seculo XV ou XVI, os historiographos
nacionaes filiam o Portugal moderno na antiga Lusitania justifica as
fundadas ironias do nosso grande historiador, não nos parece que o
processo por elle seguido para negar a doutrina, seja conveniente, nem
até verdadeira a opinião de que entre portugueses e lusitanos nada haja
de commum. Quando hoje vimos renascer de um modo erudito, e d'alli
affirmar-se no espirito popular, a tradição nacional germanica, a
italiana e até a romania: que valor tem o facto da tradição lusitana ter
estado obliterada por seculos, para só resurgir n'uma epocha
relativamente proxima e de um modo erudito? Se os portuguezes da
Edade-media não sabiam de seus avós lusitanos, acaso saberiam de seus
avós, italos, romanos ou teutonicos, os piemonteses, os vallacos, ou os
prussianos até ao XVIII seculo? Acaso, tambem, ser-lhes-ha mais possivel
do que a nós estabelecer uma transição natural e uma historia
ininterrupta desde as primeiras edades até ás modernas? Não, decerto. Se
a erudição podesse demonstrar a unidade da raça iberica, então os
lusitanos baixariam á condição de uma variedade sem autonomia; facto é,
porém, que pouco ou nada sabemos, nem de iberos em geral, nem de
lusitanos em particular, e por isso as fabulas dos velhos antiquarios
não merecem a attenção moderna. Não haverá, porém, acaso outro caminho
para atacar este problema? Á falta de monumentos escriptos, nada poderá
valer-nos? Entre a fabula ingenua dos antiquarios e as exigencias seccas
e formaes dos eruditos modernos, não estará outra via? Affigura-se-nos
que sim.[4]

Todos reconhecem hoje a indestructivel tenacidade das populações
primitivas. Raizes profundas que nenhuma charrua destroe apesar de
revolta a leiva pelo ferro das conquistas, depois de esmagadas as folhas
e troncos pelo tropear dos cavallos de guerra, depois de queimados e
reduzidos a cinzas pelos incendios das invasões: embora se lancem novas
sementes á terra e nasçam vegetações novas, essas raizes profundas
tornam a reverdecer, crescem, dominam um chão que é seu, e afinal
convertem ou esmagam, transformam ou exterminam, de um modo obscuro,
lento, mas invencivel as plantas intrusas.

A permanencia dos caracteres primitivos dos povos, facto hoje
indiscutivel, permitte fazer--consinta-se-nos a expressão--a historia ao
inverso: julgar de hoje para hontem, inferir do actual para o passado. A
questão da raça lusitana apresenta-se-nos pois n'estes termos: ha uma
originalidade collectiva no povo portuguez, em frente dos demais povos
da Peninsula? Crêmos que a ha circumscripta porém a traços secundarios.
Crêmos que as diversas populações da Hespanha, individualisadas sim,
formam, comtudo, no seu conjuncto, um corpo ethnologico dotado de
caracteres geraes communs a todas. A unidade da historia peninsular,
apesar do dualismo politico dos tempos modernos, é a prova mais patente
d'esta opinião.[5]

Esse dualismo, porém, leva-nos tambem a crêr que entre as diversas
tribus ibericas, a lusitana era, senão a mais, uma das mais
individualmente caracterisadas. Não esquecemos, decerto, a influencia
posterior dos successos da historia particular portugueza: mas elles,
por si só, não bastam para explicar o feitio diverso com que cousas
identicas se representam ao nosso espirito nacional. Ha no genio
portuguez o que quer que é de vago e fugitivo, que contrasta com a
terminante affirmativa do castelhano; ha no heroismo lusitano uma
nobreza que differe da furia dos nossos visinhos; ha nas nossas letras e
no nosso pensamento uma nota profunda ou sentimental, ironica ou meiga,
que em vão se buscaria na historia da civilisação castelhana, violenta
sem profundidade, apaixonada mas sem entranhas, capaz de invectivas mas
alheia a toda a ironia, amante sem meiguice, magnanima sem caridade,
mais que humana muitas vezes, outras abaixo da craveira do homem, a
entestar com as féras. Tragica e ardente sempre, a historia hespanhola
differe da portugueza que é mais propriamente epica; e as differenças da
historia traduzem as dessimilhanças do caracter.

Poderemos regressar agora ao passado, e perguntar-lhe a causa primaria
d'este phenomeno? Decerto não. Ou sombras impenetraveis o encobrem, ou a
escassez do nosso saber nos não deixou ainda desvendal-o. Como
hypothese--e do nosso atrevimento será escusa a nossa modestia--somos
levados a crêr que a individualidade do caracter dos lusitanos (quer
n'elles incluamos os callaicos, quer não) provém de uma dose maior de
sangue celtico ou celta (questionou-se outr'ora sobre isto) que gira em
nossas veias, de mistura com o nosso sangue iberico. Os nomes proprios
de logares, os nomes de pessoas e divindades, tirados das inscripções
latinas da Lusitania e da Tarraconense, que constituem o nosso Portugal,
provam a preponderancia de um elemento celtico. As vagas indicações dos
antigos falam-nos dos celtas das margens do Guadiana, e dão-nol-os na
costa Occidental da Peninsula. Vale porém mais do que isso a analogia
evidente entre as manifestações particulares dos lusitanos e dos
gallegos, e aquella phisionomia que os estudos eruditos sobre os celtas
da França e da Irlanda teem determinado a estes ultimos.[6]
Tentámos ha pouco esboçar a nossa phisionomia differencial: escusado é
tornar agora ao assumpto. Se a idéa de uma filiação dos lusitanos foi
expressa de um modo ridiculo pelos antiquarios classicos, a idéa de uma
filiação celtica ou celta teve já a mesma sorte quando, quasi em nossos
dias, houve quem pretendesse filiar directamente o portuguez na lingua
dos bardos. Paz do esquecimento a todas as chimeras!

    [2] V. o seu retrato no _Portugal Contemporaneo_ (2.ª ed.) II,
        pp. 283 a 327.

    [3] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) pp. 11-15 e
        _Taboas de chronol._, pp. 256-7.

    [4] V. ácerca dos lusitanos. _As raças humanas_, I, pp. 198-201,
        e 209-11, _nota_.

    [5] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) pp. XXXIV-XLIV.

    [6] V. _As raças humanas_, liv. II, p. 4.

                      *      *      *      *      *




II

Fundamentos da nacionalidade


Que valor tem o problema da nacionalidade perante a questão da
independencia politica?

Causas complexas, de ordem a mais diversa, e de merecimento mais
distante, circumstancias que não vêm agora ao caso desenvolver, fizeram
com que no nosso tempo se substituisse, ao principio do equilibrio
internacional, o principio das nacionalidades, na organisação dos corpos
politicos independentes da Europa.[7]

Invasora como todas as doutrinas, e além d'isso habilmente explorada
pelos estadistas, a das nacionalidades tentou--se não tenta
ainda--predominar absoluta no triplo conjuncto de causas naturaes que de
facto determinaram sempre, e sempre determinarão, a existencia das
nações: a geographia, a raça, e as necessidades de ponderação: uma vez
que a Europa é de facto uma amphictyonia. Sobre estes tres elementos
naturaes, ou antes coarctado por elles, o egoismo das nações e a ambição
dos imperantes talharam no mappa a delimitação das fronteiras. Por
escasso que seja o conhecimento da historia, ninguem ignora que de todos
tres o que mais impunemente tem sido e é atacado pela vontade dos
homens, é o primeiro. A rebeldia dos dois segundos traduz-se de um modo
mais immediato e efficaz nas guerras de equilibrio e nas guerras
commerciaes ou estrategicas. Guerras, propria e exclusivamente de raça,
são raras, se é que alguma houve; e os povos opprimidos por extranhos,
quando teem o sentimento como que religioso da communidade de origem,
extinguem-se, ou em revoltas estereis, ou emigrando. O equilibrio, o
commercio, a estrategia, porém, muitas vezes aproveitam o sentimento da
raça, fomentando-o, para dar com elle ás guerras a sancção que n'outros
tempos se achava, de um modo analogo, nas crenças propriamente religiosas.

Até hoje todas as successivas tentativas para descobrir a nossa _raça_
teem falhado. Latinos, celtas, lusitanos e afinal mosarabes, teem
passado: ficam os portuguezes, cuja _raça_, se tal nome convém empregar,
foi formada por sete seculos de historia. D'essa historia nasceu a idéa
de uma patria, idéa culminante que exprime a cohesão acabada de um corpo
social[8] e que, mais ou menos consciente, constitue como
que a alma das nações, independentemente da maior ou menor homogeneidade
das suas origens ethnicas. O patriotismo tanto póde, com effeito, provir
das tradições de uma descendencia commum, como das consequencias da vida
historica. Não ha duvida, porém, que, se assenta sobre a affinidade
ethnogenica, resiste mais ao imperio extranho do que quando provém
apenas de uma communidade de historia. No dia em que a independencia
politica se perde, obliteram-se mais rapidamente os caracteres
autonomicos, embora durante a lucta valham menos os elementos de força
provenientes da homogeneidade ethnogenica. Assim tantas nações perderam
na Europa moderna a sua autonomia, sem que restem vestigios vivos da sua
antiga independencia; ao passo que as individualidades ethnicas
apparecem ainda hoje distinctas no seio de nações politicamente
unificadas desde largos seculos: taes são o paiz basco, a Galliza e o
Aragão, na Hespanha: a Irlanda e a Escocia, de raça celtica, na
Inglaterra; a Provença, ou a Bretanha, em França: e, na Russia, a
Finlandia que é scandinava, ou as provincias balticas que são
germanicas.[9]

O patriotismo portuguez não é pois argumento a favor nem contra o
problema da unidade de sangue das populações com que Portugal se formou.
O jornalismo e a politica podem explorar rhetoricamente todas as cousas,
confundindo-as; mas á sciencia impassivel e soberana fica mal deixar-se
arrastar por motivos inferiores. O patriotismo é excellente, no seu
logar. Negar que durante os tres seculos da dynastia de Aviz a nação
portugueza viveu de um modo forte e positivo, animada por um sentimento
arraigado da sua cohesão, seria um absurdo. Essa cohesão que fôra ganha
nas luctas e campanhas da primeira dynastia, perde-se no XVI seculo, por
causa das consequencias do imperio oriental e da educação dos jesuitas.
Portugal acaba; os _Lusiadas_ são um epitaphio.

Deixemos pois celtas e lusitanos em paz, e aproximemo-nos dos tempos que
precederam a formação da monarchia portugueza. N'essa epocha, o Mondego
divide em duas metades o territorio nacional e as differenças typicas da
população deviam ser então ainda mais acentuadas do que o são hoje. Na
metade do sul o typo vae confundir-se com os limitrophes de além da
fronteira do reino: e na metade do norte, diz um nosso illustre
escriptor[10], «a Galliza, que tem comnosco de commum a
lingua, que é uma continuação natural da zona geographica portugueza,
podia muito melhor formar com Portugal uma nação, do que Portugal com
Castella». A Galliza, cuja lingua se tornou litteraria sob o nome de
portuguez[11], vem com effeito até ao Mondego: o mosteiro
de Lorvão dá-se em antigos documentos como situado _in finibus Galleciæ_.

O fallecido Soromenho (_Or. da ling. port._) dizia que «entre a lingua
usada na provincia de Entre-Douro-e-Minho e a que mais tarde apparece
nas terras do Cima-Côa e na Estremadura ha uma differença bastante
sensivel. Póde sem receio dizer-se que, á similhança do que succedia
além dos Pyreneus, em Portugal havia tambem uma _langue d'oc_ e uma
_langue d'oil_, a lingua do Norte e a lingua do Sul... O Mondego é a
lingua divisoria... ainda um seculo depois de D. Diniz ter abandonado o
latim como lingua official». Esta differença coincide singularmente com
as differenças, evidentes para todos, no clima, na vegetação, no
caracter das populações do Norte e do Sul do nosso paiz. E a
uniformidade posterior da lingua explica-se natural e comesinhamente
pelo facto de sete seculos de unidade nacional. «A importancia que o
portuguez adquiriu repentinamente, diz o sr. Ad. Coelho (_A lingua
portugueza_), _resultou da introducção da cultura poetica na côrte
portugueza_». É conhecido o papel da politica no sentido do unificar as
linguas do uma nação; abundam os exemplos de linguas substituidas, e nem
sempre a lingua denuncia a stirpe[12]. Os normandos perderam em França o
seu idioma scandinavo, os burgundios o os lombardos, na França e na
Italia, os seus idiomas germanicos; á maneira dos oseos e umbrios[13]
que tinham trocado pelo latim as suas linguas.

Não se pretenda por fórma alguma dizer, comtudo, que ao sul do Mondego
houvesse uma lingua diversa: diga-se, porém, que o argumento da _unidade
actual_ da lingua, depois de sete seculos de vida nacional, não tem
valor. Todos vêem ainda hoje como é rara a população no sul, menos
densos portanto os laços collectivos: e todos sabem como essas regiões,
sujeitas por seculos a guerras exterminadoras habitadas por mosarabes,
invadidas por berberes, taladas pelo fanatismo almoravide[14] passaram
para sob o imperio da monarchia nascida na Galliza portugueza. Como não
receberiam a lingua do vencedor? Não podia haver lucta entre duas
linguas romanicas, porque a arabisação do sul fôra completa: podel-a-hia
haver entre o arabe e o portuguez, quando a população captiva passava á
condição de escrava? quando as novas terras conquistadas eram povoadas
por colonias frankas, ou pelos cavalleiros hyerosalemitanos?

Por taes motivos parece evidente a ausencia de uma causa ethnogenica no
facto da formação da monarchia portugueza, cujas razões de existir são
comesinhas, praticamente comprehensiveis, sem theorias subtis. A lingua
vale decerto muito, como argumento: mas não valerá nada o homem que a
fala? Não se acham por esse mundo homens de uma mesma raça falando
idiomas diversos, e populações de um mesmo idioma, pertencendo a raças
differentes?[15] Ora quem trilhou Portugal e a Hespanha visinha observou
decerto--ou não tem olhos para vêr--uma affinidade incontestavel do
aspecto e do caracter, um parentesco evidente, entre as populações dos
dois lados do Minho, dos dois lados do Guadiana, dos dois lados da raia
secca de leste. Se esses homens não falassem, ninguem distinguiria duas
nações. E por outro lado, confundiu já alguem um algarvio, ou um
alemtejano puro, com um puro minhoto? A historia commum funde, não
scinde; e quando vêmos, depois de sete seculos, differenças tão
marcadas, a observação dos homens leva-nos a crêr que com effeito em
Portugal faltou uma unidade de raça, sobrando pelo contrario uma vontade
energica e uma capacidade notavel nos seus principes e barões. Com um
retalho da Galliza, outro retalho de Leão, outro da Hespanha meridional
sarracena, esses principes compozeram para si um Estado.[16]

                      *      *      *      *      *

A raça é de facto o mais tenue dos laços proprios para garantir a
cohesão independente de um povo. E além d'isso a doutrina--se
admittissemos a identidade d'ella e do facto--exigiria que á expressão
de raça se ligassem sempre certos caracteres correspondentes á vastidão
necessaria, á eminencia sempre crescente das funcções organicas, e á
originalidade activa, das nações modernas. Mal de nós, pois, se ao facto
de termos ou não termos sido os lusitanos, ou outros quaesquer, formos
pedir argumentos para defender a nossa independencia nacional; porque
esse facto não augmentará, nem a nossa força, nem as nossas razões:
porque esse facto nem sequer chega para motivar a nossa separação da
monarchia leoneza.

Não nos levantámos contra ella como lusitanos opprimidos: nós nem
tinhamos a menor idéa de que fossemos lusitanos, ou qualquer outra
cousa. A população do condado portucalense, ibera, cruzada de celtas,
romanisada, submettida ao governo dos godos, depois aos arabes, e
finalmente ao monarcha leonez, não podia ter decerto um sentimento de
cohesão collectiva ou nacional, incompativel com o estado da sua
cultura, com a tradição, e com a situação social e politica: é isso o
que todos os documentos historicos nos revelam. «Portugal, diz o snr.
Herculano, nascido no XII seculo em um angulo da Galliza, dilatando-se
pelo territorio do Al-Gharb sarraceno, e buscando até augmentar a sua
população com as colonias trazidas de além dos Pyreneus, é uma nação
inteiramente moderna.» É decerto; sem isso, porém, impedir que tenha
raizes antigas. Não confundamos esta questão com a da independencia, e
teremos, cremos nós, pisado o verdadeiro e solido terreno da historia.

A causa da separação de Portugal do corpo da monarchia leoneza não é
obscura, nem carece de largas divagações para definir-se: é a ambição de
independencia do governador do condado, que o tinha do rei suzerano: é o
afastamento d'esta nova região roubada aos sarracenos; é a necessidade
de pulverisação da soberania, que a alliança d'esta idéa com a de
propriedade, e a ignorancia de meios administrativos capazes de manter a
ordem em terrenos dilatados, tornam inevitavel na Edade-media.[17]
Portugal separava-se, da mesma fórma que o reino da Navarra
se dividira em tres, e pelos mesmos motivos. Portugal defende a
separação: o monarcha suzerano impugna-a. Debate-se mais de uma vez a
questão com as armas: não porque se chocassem os sentimentos nacionaes,
mas porque os principes defendiam o que era, ou julgavam ser,
propriedade sua. Estas primeiras guerras portuguezas não depõem decerto
de um modo particular em favor da independencia, porque eram a lei de
toda a Hespanha, a lei de toda a Europa--podemos dizer assim. É um
preconceito fazer do conde D. Henrique o fundador consciente da
independencia de uma nação, quando o conde apenas cuidava da
independencia pessoal e propria. O sentimento de independencia nacional,
a idéa de que os reis são os chefes e representantes de uma nação, e não
os donos de uma propriedade que defendem e tratam de alargar, bem se
póde dizer que só data da dynastia de Aviz, depois do dia memoravel de
Aljubarrota.[18]

No XII e XIII seculos Portugal é um certo territorio, propriedade de um
certo principe: d'onde vem? quem é? pouco importa. O conde D. Henrique
era francez. Assim, a epocha da primeira dynastia desmente por todos os
lados, e de todas as fórmas, a idéa de uma raça, possuindo, de um modo
mais ou menos definido, a consciencia da sua existencia collectiva.

É essa consciencia que dá porém o caracter eminente á segunda dynastia,
ou de Aviz, em cujas mãos Portugal desempenha um papel bem similhante ao
dos phenicios da Antiguidade.[19] Como aos phenicios succedeu aos
portugueses: no momento em que a razão de ser da sua acção na
civilisação da Europa desappareceu, a nação definhou, sumiu-se, perdendo
tudo até perder a independencia.

É verdade que a nossa independencia restaura-se em 1640. Mas como, de
que modo? Atrever-se-ha alguem a dizer que é uma resurreição? Não será a
historia da Restauração a nova historia de um paiz, que, destruida a
obra do imperio ultramarino, surge, no XVI seculo, como no nosso
appareceu a Belgica, filho das necessidades do equilibrio europeu? Não
vivemos desde 1641 sob o protectorado da Inglaterra? Não chegámos a ser
positivamente uma feitoria britannica? E ainda no decurso d'esta
historia o Brazil veiu, enchendo-nos de oiro, prestar-nos um ponto do
apoio extra-europeu, e como que restaurar o antigo caracter do Portugal
manuelino, capital europêa de um imperio ultramarino, á maneira da
Hollanda. E que melhor prova póde haver da nossa desorganização do que a
duração ephemera da obra do marquez de Pombal--o estadista que concebeu
a verdadeira restauração de Portugal, chegando por um momento a fazer
d'elle outra vez uma nação independente? que melhor prova do que a
reacção victoriosa de D. Maria I?

A perda do Brazil, reduzindo o reino á miseria, veiu mostrar a
fragilidade do nosso edificio politico. Os inglezes tiveram de nos
tutelar para manter, como lhes convinha, a dynastia de Bragança; e
passada, vencida a crise, appareceu com o liberalismo a impotencia
manifesta de restaurar a vida historica de uma nação imperial ou
colonial.[20]

Não confundamos, pois, pelo amor de tudo o que ha sensato, o patriotismo
com as questões e problemas scientificos das origens naturaes ethnicas.
Tambem a Suissa, alleman, italiana, franceza, odiou o austriaco, á
maneira por que nós _odiamos Castella_. Basta a historia, basta o
interesse, para dar homogeneidade social e politica a um povo; e basta
essa homogeneidade para crear um patriotismo. Ora o patriotismo das
raças assim formadas exprime-se na acção, e não em miragens enganadoras
de um passado que a historia acaba. Na sua lingua, nas suas tradições,
no seu caracter, o celta da Irlanda encontra sempre um ponto de apoio
vivo e positivo. Quereis uma prova da differença? Os pontos de apoio que
nós buscamos são mortos ou negativos: morto o imperio maritimo e
colonial, a India, e toda a historia que terminou com os _Lusiadas_ em
1580: negativo, o _odio a Castella_, que nem nos opprime, nem nos odeia.

                      *      *      *      *      *

Se a unidade da raça primitiva se não vê, menos ainda Portugal obedece
na sua formação ás ordens da geographia: os barões audazes, ávidos e
turbulentos são ao mesmo tempo ignorantes de theorias e systemas. Vão
até onde vae a ponta da sua espada: tudo lhes convém, tudo lhes serve,
com tanto que alarguem o seu dominio.

Por isso as fronteiras de Portugal oscillam durante os primeiros dois
seculos á mercê dos azares das guerras, com Leão e Castella de um lado,
com os sarracenos do outro; e Portugal vem a ser formado com dois
fragmentos: do reino leonez, um, dos émirados sarracenos, outro.

Quando Fernando-Magno de Castella, descendo do oriente, conquistou a
moderna Beira aos musulmanos,[21] a Galliza encontrou em
Coimbra e na linha de defeza do Mondego uma fronteira que a punha ao
abrigo de futuras correrias, até ou além do valle do Douro. Pelo meiado
do XI seculo a expressão geographica de Galliza ia, pois, até ao
Mondego; porém, as novas conquistas tinham sido constituidas pelo rei
n'um governo, ou condado, cujos limites eram, pelo norte, o Douro; e a
leste, uma linha passada por Lamego, Vizeu e Cêa, e que, descendo de
novo á costa, acompanhava os pendores setentrionaes da serra da
Estrella. Condado de Galliza ao norte, de Coimbra ao sul do Douro,
sarracenos ao sul do Mondego: eis ahi a condição do territorio do
moderno Portugal na segunda metade do XI seculo.

Já, porém, n'esta epocha, uma expressão a que não correspondia valor
politico, militar ou administrativo, apparece a designar o territorio de
entre o Douro e o Minho e a moderna provincia de Traz-os-Montes: a essa
parte do condado da Galliza chama-se já Portucale.

Nos ultimos annos do XI seculo correrias felizes deram ao celebre
Affonso VI a posse de Santarem, Lisboa e Cintra, alargando as fronteiras
christans até á linha do Tejo. Os nossos territorios de entre Mondego e
Tejo foram creados em condado ou governo, e confiados á guarda de
Gonçalo Mendes da Maia, o nomeado _lidador_: e os tres governos que
tinham por limites successivos o Douro, o Mondego e o Tejo, constituiram
em favor do genro de Affonso VI, Raymundo de Borgonha, uma especie de
vice-reino. Breve foi, porém, a duração d'este periodo; porque logo em
1097, depois do desbarato do conde borguinhão e da perda da fronteira do
Tejo, Affonso VI effectua uma nova divisão do territorio, dando
autonomia politica á expressão geographica de Portucale ou Portugal, e
annexando-lhe o antigo condado de Coimbra. O condado portucalense, por
tal fórma engrandecido, foi dado a um primo do conde da Galliza, e os
seus dominios recuavam assim de golpe desde o Tejo até ao Minho. Esse
primo era o conde D. Henrique, tambem genro do poderoso Affonso VI.

Na primeira metade do XII seculo, o conde e a viuva sua herdeira levam
as fronteiras do seu Estado, para leste, até Zamora, e para norte, por
entre Minho e Bivey, até Tuy e Orense. As guerras civis dos Estados da
Peninsula davam e tiravam assim, constantemente, territorios e
povoações. A fronteira norte-leste breve regressa, porém, aos seus
actuaes limites de além-Douro; mas o governo de Affonso Henriques, o
primeiro que ousou quebrar de todo os laços tenues da vassallagem a
Leão, viu alargar-se do lado opposto a raia até á linha do Sado, desde
que, no meiado do XII seculo, Lisboa, Santarem, Cintra, Almada e
Palmella cairam definitivamente em seu poder, accrescentando novas
terras ás do primitivo condado portucalense.

As fronteiras do norte e leste, no além-Douro, eram já, ao tempo da
accessão de Sancho I ao throno, as mesmas de hoje: margem esquerda do
Minho, por Melgaço a Lindoso, d'ahi a Bragança por Miranda, entestar com
o Douro no ponto em que agora se extremam Portugal e a Hespanha. A
fronteira de leste, entre Douro e Tejo, só no tempo de D. Diniz se
demarcou por onde hoje passa: no fim do XII seculo a raia seguia desde a
foz do Coa, rio acima, até á confluencia do Pinhel, e, acompanhando-o,
passava entre Sabugal e Sortelha, em demanda das fontes do Elga. D'ahi
ao Tejo, então e agora, a fronteira é a mesma.

Ao sul do Tejo é difficil, senão impossivel, determinar
chronologicamente as fronteiras portuguesas. A nacionalidade do dominio
nas cidades do Alemtejo permittiria traçar geographicamente a linha da
fronteira com uma aproximação conveniente, tanto mais que os territorios
de entre as cidades, devastados e ermos, eram posse de quem no momento
os pisava armado. Mas as successivas correrias de lado a lado, a tomada,
logo a queda; depois a reconquista de uma mesma cidade, ás vezes n'um
periodo de mezes, tornam impossivel demarcar a fronteira antes da epocha
em que definitivamente uma certa região passa para o dominio portuguez,
para d'elle não mais saír. Assim, a tomada de Evora em 1166 dá á linha
do Sado, pouco antes conquistada, um ponto de apoio a leste contra as
fortalezas sarracenas de Jerumenha, Elvas e Badajoz. Por ahi a raia
portugueza iria até Marvão, acaso até Arronches.

Tal é a linha das primeiras fronteiras do moderno Portugal.

No primeiro quartel do XIII seculo, Alcacer do Sal, base estrategica da
linha sarracena ao sul, e Elvas, padrasto avançado da linha de leste,
cáem em poder dos portuguezes; e á determinação final da nossa raia
alemtejana vem juntar-se, até ao meiado do seculo, a conquista do
Algarve, completando, entre o Guadiana e o mar, o moderno Portugal.

No ferir das guerras da conquista não são os musulmanos que põem um
freio á ambição pessoal dos principes, porque a sorte do imperio do
Islam estava lançada, e para a consummar concorriam todos os Estados
christãos da Peninsula. Será porventura a raça que delimita as
fronteiras da nova nação? Ocioso é já responder. Será a geographia? Não
parece; desde que vêmos a raia cortar de lado a lado as planicies do
Alemtejo, as bacias do Tejo e do Douro, e cair perpendicularmente sobre
as cumiadas das montanhas em vez de lhes seguir a orientação. Qual dos
tres elementos nos resta? O equilibrio. O equilibrio é com effeito o
elemento ponderador: á ambição dos principes de Portugal oppõe-se a
resistencia dos reis de Leão; as armas, invocadas, demonstram que, se um
dos antagonistas não tem força bastante para submetter o adversario, o
outro tem de usar com prudencia de um poder limitado. Quando tenta
passar além do Minho, ou adquirir para si Badajoz, a reacção mostra-lhe
até onde póde ir a acção dos meios de que dispõe. Do equilibrio ou
ponderação das duas forças antagonicas nasce a determinação geographica
do Portugal moderno, para o qual só no extremo norte e no extremo sul,
sobre o Minho e sobre o Guadiana, se assentou em admittir uma fronteira
natural.

Estas já longas explicações bastarão, parece-nos, a expôr claramente o
nosso pensamento. Ha ou não ha uma nacionalidade portugueza? Questão
absurda, assim formulada. Evidentemente ha, se nacionalidade quer dizer
nação. Se por nacionalidade se entende, porém, um corpo de população
ethnogenicamente homogeneo, localisado n'uma região naturalmente
delimitada, insistimos em dizer que tal cousa se não dá comnosco. Se por
nacionalidade se entende, finalmente, essa unidade social que a historia
imprime em povos submettidos ao regime de um governo, de uma lingua, de
uma religião irmans, como nós o temos sido durante sete seculos,
evidentemente a resposta só póde ser uma.

    [7] V. _Th. da hist. universal_, nas _Taboas de chron._,
        pp., XXII e segg.

    [8] V. _As raças humanas_, introd., pp. LXVII e segg.

    [9] V. _Instit. primitivas_, pp. 290-306.

    [10] O sr. F. Ad. Coelho.

    [11] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.), pp. 122-5.

    [12] V. As raças humanas, I, pp. 20-5.

    [13] V. _Hist. da repub. romana_, I, pp. 117-45.

    [14] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) pp. 81-111.

    [15] V. _As raças humanas_, I, pp 20-5.

    [16] V. _Th. da hist. universal_, nas _Taboas de chronol._,
         pp. XXX-I.

    [17] V. _Th. da hist. universal_, nas _Taboas de chronol._,
         pp. XXVI-VII e _Instit. primit._, pp. 222 e segg.

    [18] V. _Instit. primitivas_, pp. 233-43.

    [19] V. _Raças humanas_, I, IV, 2, 3.

    [20] V. _Portugal contemporaneo_, II, pp. 119-37.

    [21] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) pp. 116-7.

                      *      *      *      *      *




III

Geographia portugueza


Quando se observa o retalho da Peninsula, de que a historia fez
Portugal, separado do corpo geographico a que pertence, desde logo se vê
como a vontade dos homens pôde sobrepujar as tendencias da natureza. Os
rios e as serranias descem, perpendiculares sobre a costa occidental,
proseguindo uma derrota e provindo de uma origem que se dilatam para
muito além das fronteiras, até ao coração do corpo peninsular. As
cumiadas das montanhas e os valles extensos mudam de nacionalidade
n'aquelle ponto convencional que aos homens aprouve fixar.

Não falta, porém, quem pretenda encontrar, no nosso proprio territorio,
motivos determinantes da constituição primordial da nação: tanto póde a
obcecação doutrinaria! Diz um que essa separação dos litoraes é uma
regra;[22] nega outro o caracter arbitrario da linha das
fronteiras de leste, affirmando que essa linha coincide com os limites
extremos até onde os nossos rios são navegaveis. Decerto nunca os viu
quem tal affirma. No Guadiana apenas se navega até Serpa, e entretanto o
rio é portuguez nas duas margens até Monsarás, formando a raia d'ahi até
Elvas. O Douro para cima da Regoa é tão navegavel até Zamora como até á
Barca-d'Alva. No Tejo, passando Abrantes, tanto se vae até Alcantara,
como até Aranjuez. Onde está pois a concordancia da fronteira com a
parte navegavel dos rios? A allegada _base geographica_ da nacionalidade
desapparece pois, se é que uma tal expressão não quer apenas denunciar o
destino maritimo, como que phenicio, da nação.

As duas cousas não devem, porém, confundir-se, pois n'um caso
encontramos a causa determinante da aggregação social, emquanto no outro
se observa a consequencia do facto da existencia anterior d'essa
aggregação, fortuitamente constituida n'um litoral. É evidente que o
caracter maritimo e colonial da nação portugueza, na segunda dynastia,
não podia ter influido no facto já secular da independencia. É sabido
que D. Affonso Henriques, o author d'ella, não tinha navios, servindo-se
dos dos Cruzados para tomar Lisboa e Alcacer. A marinha foi uma creação
da monarchia e um producto da nação, depois de constituida: o caracter
maritimo é historico, não é primitivo em um povo rural, como era o
portuguez dos primeiros tempos, e ainda hoje o é o gallego. O movimento
de deslocação da capital do reino para o sul, as medidas de D. Diniz, as
de D. Fernando, depois a empreza do Infante D. Henrique, são momentos
successivos de uma historia que é o nervo intimo da vida portugueza.
Desde a reunião das esquadras cruzadas no Tejo para a conquista de
Lisboa, desde a introducção dos genovezes, que vieram ensinar-nos a
navegar, vê-se começar a formar-se essa nação cosmopolita, destinada á
vida commercial, maritima e colonisadora.[23]

É essa a nação que a historia fórma: e por isso mesmo que a vida
portugueza foi maritima, e o destino da sua historia o mar: por isso
mesmo avultam os elementos que diariamente tornam cosmopolitas as
cidades maritimas de um paiz cuja capital é um dos melhores portos do
mundo. Portugal foi Lisboa, e sem Lisboa não teria resistido á força
absorvente do movimento de unificação do corpo peninsular.

Erguido em frente do mar como um amphitheatro cujos primeiros degraus as
ondas constantemente aspergem, o territorio portuguez, independente,
adquiriu d'esta localisação um caracter seu: ao mesmo tempo que nos
habitantes de Portugal acaso uma diversa combinação de sangue favorecia
uma tendencia particular. Assim como, porém, as cristas das montanhas,
e, pelo coração dos valles, o curso dos nossos rios, são as veias e os
tendões que nos ligam ao corpo peninsular; assim tambem no nosso sangue
os elementos primitivos accusam o facto de uma origem e de uma raça irman.

E se temos uma phisionomia moral, distincta sem ser diversa, tambem as
condições do nosso territorio nos dão um genero de destino differente,
mas encaminhado a um mesmo fim. As navegações e descobertas são a nossa
gloria e a nossa maior façanha. Mareando a interrogar as mudas ondas,
construimos; conquistando, derrocámos. Navegadores e não conquistadores,
desvendámos todos os segredos dos Oceanos; mas o nosso imperio no
Oriente foi um desastre, para o Oriente e para nós. A bordo fomos tudo;
em terra apenas podémos demonstrar o heroismo do nosso caracter e a
incapacidade do nosso dominio. Façanhas de homens que dirigem instinctos
devotos e pensamentos de cubiça, eis ahi o que nós veremos ser o nosso
imperio oriental. Epopêa do espirito indagador, audaz e paciente, as
nossas navegações, as nossas explorações colonisadoras, tornam-nos os
genios d'esse elemento mysterioso, para o qual, porventura, a nossa alma
celtica nos attrahia. Quando á Europa humilhada o castelhano impõe a lei
com a espada e o mosquete, nós, amarrados ao banco dos remeiros,
segurando o leme, ferrando as velas, alargamos mar em fóra a nau, com o
olhar perscrutador fixado nos astros que nos guiam. Vamos de manso, ao
longo das costas... Ninguem nos vê: só as ondas ouvem as melopêas
monotonas dos marinheiros, cujo rithmo obedece ao rithmo do quebrar da
vaga contra o costado.--Elles vão, emplumados e vestidos de aço,
arrogantes e cheios de imperio, com o seu grito stridente e tragico,
ensurdecer e estontear o mundo! Ninguem diria dois povos irmãos; e
são-no, porque ambos obedecem a um motivo identico, a um pensamento
egual, que está no fundo da sua alma inconsciente, como a chamma que
arde no cerne da Terra, dando origem a rochas tão diversas no aspecto,
na côr, na rigeza, na structura, no merito.

Portugal é um amphitheatro levantado em frente do Atlantico que é uma
arena. A vastidão do circo desafia e provoca tentações nos espectadores,
arrastando-os afinal á laboriosa empreza das navegações, que era para
elles um destino desde que a politica os destacára do corpo da Peninsula.

                      *      *      *      *      *

Quando se percorre de norte a sul a estreita facha da nação occidental
da Hespanha, encontram-se os successivos prolongamentos das cordilheiras
peninsulares, galgando uns até ao mar, terminando outros mais distante
da costa. Entre elles abrem-se as bacias ou estuarios de rios parallelos
que podem dividir-se em dois systemas: o do norte e o do sul,
delimitados pela cordilheira da Estrella-Aire-Montejunto-Cintra.

No systema do norte, o Douro é a arteria central d'uma região montuosa,
coroada nos limites setentrionaes e austraes pelas duas cordilheiras
culminantes da Galliza e da Beira. De uma e de outra, como socalcos ou
degraus successivos d'essa platéa de montanhas que se fecha áquem da
fronteira portugueza, descem outras serras, entre cujas depressões se
precipitam os rios nacionaes do norte: o Minho, que delimita a Galliza,
o Lima, o Cávado e o Ave, ao norte do Douro, e ao sul o Vouga e o
Mondego. As serras de entre Minho e Lima são as do Suajo; as de entre
Lima e Douro, as do Gerez e do Marão, separadas pelo Tamega, confluente
d'este ultimo; as d'entre Douro e Vouga, Montemuro; as d'entre Vouga e
Mondego, Caramullo.

No sul, as bahias do Tejo e Sado, divididas pela peninsula da Arrabida,
constituem o centro de um systema de caudaes irradiantes que cortam a
zona mais plana, limitada de um lado pela serra da Estrella, do opposto
pela do Algarve. Ao norte, na raiz austral da primeira, corre o Tejo,
desinternando-se de Castella; destacando-se d'este, para sueste, o
Sorraia, em plena planicie; e, mais pronunciadamente para o sul, o Sado,
que vae nascer no pendor norte das montanhas algarvias.

Se a metade norte de Portugal é fechada a leste por um systema de
contrafortes avançados dos Pyreneus cantabricos, a metade sul, theatro
das guerras castello-portuguezas, contradiz de um modo incontestavel a
opinião dos que vêem na orographia a base necessaria da delimitação das
fronteiras nacionaes.

A começar do sul, o Guadiana fende a cordilheira andaluza penetrando no
interior da Peninsula. Curvando a sua orientação em Badajoz, o Guadiana,
depois de ter regado os nossos terrenos raianos, toma uma direcção leste
atravez das largas campinas da Estremadura hespanhola que os tratados
apenas dividiram do nosso Alemtejo. N'esta metade austral da nossa
fronteira de leste, as planicies e as aguas do rio que as rega mudam de
nação sem mudarem de natureza; e outro tanto succede aos contrafortes
avançados que reunem n'um mesmo promontorio as serras de Guadalupe e a
Morena, e onde em Portugal assentam Portalegre ao norte, Evora ao sul.
No troço de fronteira ao norte d'esta como que garra lançada pela
ossatura da Hespanha no Portugal alemtejano, corre, primeiro, o amplo
valle em cujo centro deslisa o Tejo, prolongando-se com elle,
Estremadura em fóra, até Toledo; e seguem, depois, as cumiadas da
Guardunha que dividem o Tejo do Zezere, apertando este rio contra a
serra da Estrella.

O pendor austral das serras do Algarve e a facha ou tapete de jardins
sobre que pousa a sua base o throno d'esses montes, formam uma ultima e
como que excepcional provincia geographica, vedeta sobre o continente
fronteiro, cujo clima e producções partilha.

                      *      *      *      *      *

Geognosticamente, o territorio portuguez póde dividir-se em tres regiões
principaes: a das rochas igneas e paleozoicas, a dos terrenos
secundarios, e a dos terrenos terciarios.

Tracemos uma linha que, partindo de Aveiro para norte, ao longo da
costa, se dobre para nascente acompanhando a fronteira marginal do
Minho. D'ahi extende-se por toda a raia de leste até ás serras do
Algarve, baixando-a em direcção poente, para a prolongar com a costa até
Sines. Depois, interne-se a contornar a bacia do Sado, por Grandola,
Cercal, Panoias, Aljustrel, Ferreira, Torrão até Vendas-Novas; em
seguida a do Sorraia, por Lavre, Mora, Ponte-de-Sôr, caíndo sobre o Tejo
em Abrantes, e caminhando para norte por Thomar, Alvaiazere, Anadia--e
ter-se-ha encerrado em Aveiro um perimetro que abrange cerca de tres
quartas partes da superficie total da nação. É a região dos terrenos
primitivos.

A dos terrenos secundarios compõe-se de dois retalhos isolados. O
primeiro extende-se ao longo da margem direita do Tejo, desde Lisboa até
á Barquinha; entestando d'ahi até Aveiro com a linha anteriormente
traçada, e vindo ao longo da costa, a descer para o sul, circumscrever a
serra de Cintra, chegando outra vez a Lisboa. O segundo é constituido
pelo litoral do Algarve, no pendor sul das serras, até ao mar.

A terceira região, finalmente, a dos terrenos terciarios, desce pela
costa, desde a ponta do Bogio, ao sul do Tejo, até Sines, alargando-se
pelas duas zonas divergentes dos valles do Sado e do Sorraia,
contornados pela linha determinada antes ao delimitar a raia da primeira
região.

Esta ultima é, como se viu, a mais extensa e importante. Abrange as duas
provincias ao norte do Douro, a quasi totalidade das duas Beiras e do
Alemtejo, e boa metade do Algarve. A Estremadura quasi por si só compõe
as duas segundas regiões--uma ao norte, outra ao sul do Tejo[24].

Na do norte predominam os terrenos cretaceos e jurassicos, formando
tambem estes ultimos a quasi totalidade do retalho algarvio da segunda
região. Uma pequena mancha de granitos em Cintra, os basaltos dos
arredores de Lisboa, e as dunas da costa, desde a Marinha-grande até
Aveiro, são os phenomenos esporadicos da geognosia d'esta parte de
Portugal.

Na região do sul do Tejo apenas a Arrabida e S. Thiago de Cacem
apresentam breves nodoas de terrenos jurassicos; e estes, os terrenos
modernos formados pelas alluviões do Tejo e Sado e que lhes bordam as
margens, e os areaes da costa entre o Bogio e o cabo de Espichel, são as
unicas excepções do vasto lençol da região dos terrenos terciarios.

Na primeira e mais extensa das zonas geognosticas de Portugal tambem o
Tejo póde dar lugar a uma divisão em duas sub-regiões differentemente
caracterisadas. Tomadas ambas como um todo, os terrenos, schistosos
quanto á structura, e primarios ou paleozoicos quanto á edade,
predominam em massa, envolvendo as rochas eruptivas ou igneas. Porém ao
norte do Tejo o volume d'estas rochas, exclusivamente graniticas, é
proximamente egual á dos schistos; ao passo que ao sul, além d'estes
ultimos predominarem, apparecem não só granitos mas porphyros e
diorites.

Entre Castello-de-Vide, Portalegre, Niza e o Crato, inscreve-se acaso o
maior e mais compacto affloramento de granitos ao sul do Tejo. Depois
d'este vem o de Evora, bracejando de um modo irregular, para norte até
Vimeiro, para nordeste até Lavre, e no lado opposto até Vianna, Aguiar e
S. Manços. Afinal, as pequenas nodoas de Galveas, de Santa Eulalia, de
Freia, de Reguengos, da Vidigueira, e de Valle-Vargo a nascente de
Serpa, completam o systema de affloramentos graniticos da sub-região do
sul do Tejo. Os porphyros e diorites constituem um longo dorso que vem
de sueste a nordeste, desde Serpa, por Beja, Alvito, Torrão, Alcaçovas,
terminar junto de Cabrella, quasi na raia da região terciaria. Além
d'esta formação principal, encontram-se destacadas as manchas sporadicas
de Alter, de Bonnavilla, de Monforte, e as duas mais consideraveis de
Campo-maior e de Elvas, proximo da fronteira.

Ao norte do Tejo as condições variam. A massa de rochas eruptivas
predomina sobre a dos schistos. Depois do macisso schistoso da
Guardunha, entre Castello-Branco e o Fundão, transposto o valle do
Zezere, encontra-se a base alastrada da serra da Estrella, e afinal os
alicerces de Monte-muro. Os granitos vêem desde a fronteira, entre
Alfaiates e a Barca d'Alva, pela Covilhan e Taboa ao sul, por Vizeu a
poente, entestar no Douro, cuja margem esquerda sobe até á raia de Leão.
Pequenas são as nodoas schistosas na área circumscripta: S.
João-da-Pesqueira e Villa-nova-da-Foscoa, na margem do Douro:
Villa-da-Egreja ás origens do Vouga; Pinhel e Valhelhas no pendor sul da
serra da Estrella.

Porém as abas occidentaes das serras da Guardunha, da Estrella e do
Montemuro, ladeadas ao sul pelo Tejo, formam duas vastas zonas de
terrenos paleozoicos, uma cortada pelo Zezere, outra pelo Mondego e pelo
Vouga: são estas zonas que vêem raiar com a região dos terrenos
secundarios até Aveiro, e com o mar desde Aveiro até â foz do Douro,
tendo de permeio a facha de dunas da costa.

Ao norte do Douro os schistos predominam para cima da linha
Regoa-Chaves, os granitos para baixo. Ao longo da costa, desde o Porto
até á Povoa, encontra-se, destacado, um affloramento de rochas
eruptivas; e, para leste, um outro nas serras do Gerez e do Suajo, a
poente do Tamega, lançando junto a Braga um ramo que vae, por Barcellos,
a Vianna e até Caminha.

A leste da linha Chaves-Regoa são irregulares e dispersos os
affloramentos eruptivos: acompanham a margem portugueza do Douro desde
Bemposta até Miranda; apparecem em dois pontos da extrema fronteira do
norte; vêem de Montalegre, por Chaves até Valpassos e Torre-de-D. Chama;
e pela serra do Marão, desde Mondim e Ribeira-de-Pena, por Villa-Pouca e
Villa-Real, morrer junto ao Douro em Villarinho. Todo o resto, o Marão,
da Campean a Santa Martha, as alturas á esquerda do Corgo, a maxima
parte do valle do Tua, e todo o valle do Sabor, são formados pelos
terrenos paleozoicos.

    [22] V. _As raças humanas_, introd., pp. XXXI-II.

    [23] V. _O Brasil e as colonias portuguezas_ (2.ª ed.) pp. 1-29.

    [24] V. para a geologia terciaria do Tejo, os _Elem. de Anthropologia_
         (3.ª ed.), pp. 212-17, podendo cotejar-se o estudo da região
         portugueza com o da Peninsula no seu todo na _Hist. da
         civil. iberica_ (3.ª ed.) pp. VII-XXI.

                      *      *      *      *      *




IV

A terra e o homem


Conhecida a orographia e a geognosia do territorio, brevemente
indicaremos o systema de caracteres agricolas e climatologicos, ambos
subordinados aos anteriores, e todos solidariamente ligados para formar
a phisionomia natural das diversas regiões do territorio portuguez.

A sua antiga divisão em provincias obedecia mais a estas condições
naturaes do que a moderna divisão em districtos: as causas determinantes
de uma e de outra são o motivo d'esta differença. As provincias
formaram-se historicamente em obediencia ás condições naturaes; os
districtos actuaes foram creados administrativamente de um modo até
certo ponto artificial. Umas provinham dos caracteres proprios das
regiões, e a administração limitára-se a reconhecer factos naturaes:
outros, determinados por motivos abstractos, nasceram de principios
administrativos e estatisticos (área, quantidade de população, etc.),
fazendo-os discordar o menos possivel dos limites naturaes, geographicos
e climatologicos. Por estes motivos nós agora estudaremos por
provincias, e não por districtos, o territorio portuguez; deixando para
o lugar competente o estudo das condições modernas da nação.[25]

A divisão das provincias apoiava-se em factos phisicos de um valor
eminente. Começando pelo norte, o territorio de além-Douro inscreve duas
zonas separadas pelo Tamega: a leste, Traz-os-Montes, a oeste,
Entre-Douro-e-Minho. Além de obedecer, como se vê, á geographia,
buscando nos rios fronteiras naturaes, a divisão das duas provincias
consagrava differenças essenciaes: as geognosticas já por nós observadas
(rochas eruptivas dominando a oeste, schistos a leste do Tamega), e além
d'ellas as climatericas. Portugal, segundo já se disse n'outro lugar, é
em geral um amphitheatro de montanhas, levantado em frente do Oceano.
Esta circumstancia caracterisa para logo as regiões de um modo tambem
geral, dividindo-as em duas categorias: as maritimas e as interiores; as
cis e as transmontanas; as que estão directamente expostas á acção das
brisas maritimas, e os declives orientaes, os valles interiores, e os
degraus ou socalcos das serras encobertas aos bafejos do mar por
cumiadas occidentaes sobranceiras.

Esta circumstancia dá caracteres inteiramente diversos ás duas
provincias do Douro-Minho e de Traz-os-Montes, divididas pelas serranias
do Gerez e do Marão, que roubam a ultima á acção das brisas maritimas.
Quem alguma vez transpoz o Tamega, decerto observou a profunda
differença da paizagem e do caracter e aspecto dos habitantes de áquem e
de além d'esse rio. O transmontano, vivo, ágil, robusto, destaca-se para
logo do minhoto, obtuso mas paciente e laborioso, tenaz, persistente e
ingenuo. Além do Tamega o clima é secco (40 a 60% de humidade relativa)
poucas as chuvas (500 a 1:000 millim. e no estio 70 a 80 apenas), grande
o calor no fundo dos valles apertados, mas temperado nas alturas;
intensos os frios hibernaes, que coroam de neve as montanhas e gelam a
agua pelas baixas (12 a 15° temp. média). Áquem, as brisas do mar,
estacadas na sua passagem pelas serras, condensam-se e produzem as
chuvas copiosas: por isso no Minho o pendor occidental das serras de
oriente é sarjado pelos numerosos e successivos rios parallelos, cujos
valles, reunindo-se junto á costa, formam ao longo d'ella a primeira das
planicies litoraes de Portugal. Habita essa região pingue uma população
abundante, activa, mas sem distincção de caracter, nem elevação de
espirito: consequencia necessaria da humidade e da fertilidade. Falta
essa especie de tonificação propria do ar secco e dos largos horizontes
recortados n'um céu luminoso e puro. O Minho é uma Flandres, não uma
Attica. As chuvas precipitam-se abundantes (1:200 a 2:000 mill. annuaes,
e no estio 80 a 200) sobre um chão lavrado de caudaes; a humidade (70 a
100%) torna flaccidos os temperamentos e entorpece a vivacidade
intellectual, que nem um frio demasiado irrita, nem um calor excessivo
faz fermentar, á maneira do que succede nas zonas genesiacas dos
tropicos. Temperado o clima (12 a 15°), sem excessivos afastamentos
hibernaes, a população satisfeita, feliz, e bem nutrida de vegetaes e de
ar humido, offerece a imagem de um exercito de laboriosas formigas sem
cousa alguma de aládo e brilhante de um enxame dourado de abelhas.

O clima determina a paizagem. Além Tamega as louras messes do trigo, os
pampanos rasteiros, o carvalho nobre e o castanheiro gigante vestem os
pendores de elevadas serras, cujas cristas dentadas de rochas, no
inverno coroadas de neves, se recortam no fundo azul do firmamento,
dando fixidez e nobreza ao quadro, e infundindo o quer que é de elevado
no espirito. A natureza vive na luz, e a alma sente que os elementos
teem dentro em si forças que os animam.

Áquem Tamega o scenario muda: a humidade cria em toda a parte vegetações
abundantes; não ha um palmo de terra d'onde não brote um enxame de
plantas: mas como o solo é breve, como a rocha afflora por toda a parte,
e os campos nascem do terreno vegetal formado nas anfractuosidades do
granito pelas folhas e ramos decompostos, e nos estuarios dos rios pelos
sedimentos das cheias, a vegetação é rasteira e humilde, o pinho
maritimo de uma constituição debil, o carvalho um pigmeu enleiado pelas
varas das vides suspensas. A densidade da população completa a obra da
natureza n'uma região onde o vinho não amadurece: o acido picante dá-lhe
uma similhança das bebidas fermentadas do norte, cidra ou cerveja, e com
ella, ao genio do povo, caracteres tambem similhantes aos de bretões e
flamengos. A vegetação, de si mesquinha, é amesquinhada ainda pela mão
dos homens: as necessidades implacaveis da população abundante produzem
uma cultura que é mais horticola do que agricola: pequeninos campos,
circumdados por pequeninos valles, orlados de carvalhos pigmeus,
decotados, onde se penduram os cachos das uvas verdes. No meio d'isto
formiga a familia: o pae, a mãe, os filhos, immundos, atraz d'uns
boisinhos anões que lavram uma amostra de campo, ou puxam a miniatura de
um carro. Sob um céu ennuveado quasi sempre, pisando um chão quasi
sempre alagado, encerrado n'um valle abafado em milhos, dominado em
torno por florestas de pinheiros sombrios, sem ar vivificante, nem
abundante luz, nem largos horizontes, o formigueiro dos minhotos, não
podendo despegar-se da terra, como que se confunde com ella; e, com os
seus bois, os seus arados e enxadas, fórma um todo d'onde se não ergue
uma voz de independencia moral, embora amiude se levante o grito de
resistencia utilitaria.[26] A paizagem é rural, não é agricola; a poesia
dos campos é naturalista, não é idealmente pantheista. Quem uma vez
subiu a qualquer das montanhas do Minho e dominou d'ahi as lombadas
espessas de arvoredo, sem contornos definidos, e os valles quadriculados
de muros e renques de carvalhos recortados, sentiu decerto a ausencia de
um largo folego de ideal, e de uma viva inspiração de luz. Apenas aqui e
acolá, engastado na monotonia da côr dos milhos, um canto do verde
alegre do linho vem lembrar que tambem no coração do minhoto ha um lugar
para o idyllio infantil do amor.

                      *      *      *      *      *

Descendo para o sul do Douro, entre a Beira montanhosa e a Beira
litoral, dão-se differenças analogas ás que distinguem o Minho e
Traz-os-Montes: analogas, dizemos, e não identicas, porque n'esta nova
região começam a sentir-se as influencias de causas geraes, como são as
da latitude. A zona anterior estanceia entre os parallelos de 41° e 42°;
as Beiras descem até 39° 30'. Portugal, inscripto entre 37° e 42°, e
lançado como uma estreita facha norte-sul, tem na latitude das regiões
uma causa geral a concorrer sempre com as causas particulares, quaes são
a altitude, a exposição e a constituição geognostica das montanhas, no
sentido de determinar os caracteres das suas differentes provincias.

N'esta de que agora nos occupamos, levanta-se ao centro a serra da
Estrella, a cujo pendor maritimo se chamou Beira-alta, dando-se aos
declives transmontanos oppostos, reunidos á Guardunha, o nome de
Beira-baixa. Tres zonas compõem a região das duas provincias: o litoral
formado pelos estuarios do Vouga e do Mondego, as serranias occidentaes
ou maritimas, e as orientaes ou transmontanas.

A serra da Estrella é a mais elevada das cordilheiras portuguezas; é o
prolongamento da espinha dorsal da Peninsula; é a divisoria das duas
metades de Portugal, tão diversas de phisionomia e temperamento; é
finalmente como que o coração do paiz--e acaso nas suas quebradas e
declives, pelos seus valles e encostas, demora ainda o genuino
representante do lusitano antigo. Se ha um typo propriamente portuguez:
se atravez dos acasos da historia permaneceu puro algum exemplar de uma
raça ante-historica onde possamos filiar-nos, é ahi que o havemos de
procurar, e não entre os gallegos ao norte do Douro, nem entre os
turdetanos da costa do sul, nem entre as populações do litoral cruzadas
com o sangue de muitas raças e com os sentimentos e costumes das mais
variadas nações.

O pastor quasi-barbaro d'essas cumiadas da serra a topetar com as nuvens
(1:800 a 2:000m. de altit.), abordoado ao seu cajado, vestido de pelles,
seguindo o rebanho de ovelhas louras, é talvez o descendente dos
companheiros de Viriato. Por essas eminencias, tapetadas de relva no
estio e de neves no inverno, nem as villas, nem as arvores se atrevem a
subir: só o pastor nómada as habita. Do alto do seu throno de rochas vê
gradualmente ir nascendo a vida pelas encostas: primeiro o zimbro,
rasteiro e roído pelo gado, circumda os altos nús; logo apparecem os
piornos, as urzes brancas, os carvalhos; depois, já a meia altura da
encosta, os castanheiros, as lavouras, e os enxames de aldeias; afinal,
na extrema baixa, o lençol de lagunas, tapete de esmeraldas engastadas
em fios de brilhantes, que o sol faceta ao espalhar-se no labyrintho dos
canaes.

A serra da Estrella, reforçada ao norte pelo contraforte de Monte-muro,
fecha, com o Marão e o Gerez, uma muralha natural, onde os ventos do mar
estacam. Apenas cortada pelos valles do Douro e do Tua--duas
fendas--essa barreira, cujos picos sobem até 2:000m., encerra e protege
o Portugal do norte, sendo a principal causa das chuvas abundantes e do
clima creador do litoral de além-Mondego.

O beirão, habitante da encosta occidental onde o ar é mais humido do que
em Traz-os-Montes (65 a 100%), as chuvas mais abundantes (700 a 1:200
millim.) e a temperatura identica: onde o castanheiro colossal, o cedro,
o carvalho e o pinheiro bravo põem na paizagem todos os tons e essa
grandeza propria de arvores que vivem seculos: o beirão é menos vivo,
mas mais robusto. Quem divagou por essas terras admirou decerto a
structura herculea dos seus homens, cuja face, não luzindo com os
brilhantes reflexos de vida interior, accusa todavia um pleno
desenvolvimento da vida animal. Berço dos audazes bandidos, anachronicos
representantes de uma independencia de outras edades,[27] a
Beira é o viveiro de musculosos trabalhadores, que vão todos os annos,
pelo estio, lavrar as glebas do sul do Tejo, levemente vestidos com as
bragas curtas de linho, descalços, com a camisola de lan agasalhando o
tronco, o barrete phrigio na cabeça, a manta e a enxada ao hombro.

Descendo ao litoral, o beirão é amphibio: pescador e lavrador. A lavoura
nasce do mar: os carros são barcos, adubos o _molisso_ de algas e
mariscos. Ao lado de um talhão de milho está uma marinha de sal. O mar
insinua-se pelos canaes retalhando a planicie, em cujo centro, como uma
arteria, corre placidamente o Vouga. A tres leguas da costa vê-se
fundeado um barco: as mulheres cozem as redes, ao lado, sobre a terra
humida e negra, que os bois lavram, ou o cavador abre á enxada. O calor
(15 a 16), a humidade permanente (65 a 80%), fazem germinar breve as
sementes, multiplicam as colheitas, e as febres. Essa paizagem deliciosa
e original, indecisa entre o mar e a terra, e que nos enche de vivo
prazer, quando a dominamos desde os altos de Angeja á raiz das
montanhas, attrahe-nos como a sombra da manzanilha, cheia de frescura e
veneno. Os elementos, confundidos, vingam-se da temeridade dos homens.

A exposição oriental ou transmontana das abas da serra da Estrella e dos
cerros subalternos da Guardunha dá á provincia da Beira-baixa um outro
aspecto: ha maior seccura no ar, e as chuvas são menos abundantes: os
olivaes medram melhor, e os hahitantes juntam á vida agricola a
industrial, tecendo as lans dos rebanhos da serra com a força das
torrentes que se despenham nas quebradas do valle do Zezere.

Já similhante por muitos lados ao alto Alemtejo, a Beira-baixa é a
transição da metade norte para a metade sul do paiz.

Caminhemos de oriente para occidente. O Alto-Alemtejo tem o clima de
Traz-os-Montes; a temperatura média é mais elevada (16 a 17.), porque a
menor altura das montanhas dá frios menos intensos no inverno; as chuvas
estivaes são menores tambem (30 a 50 mill.). Fronteira aberta da
Hespanha, a raia apenas convencionalmente o divide da Estremadura
castelhana. As mesmas planicies onduladas, as mesmas culturas
cerealiferas, as mesmas florestas de sobros e azinhos, as mesmas vinhas,
os mesmos costumes, os mesmos homens, estão de um lado e do outro da
fronteira. Torrada pelo sol a face barbeada, de olhar vivo, gesto livre,
porte nobre e seguro, bizarro, folgasão, hospitaleiro e communicativo, o
alemtejano exprime no seu todo a grandeza um tanto austera do chão sobre
que vive. Não é decerto um grego de Athenas, mas é um grego da Beocia.
Os seus campos são um granel, os seus montados um viveiro. Quando nas
longas e alinhadas estradas, entre lençoes de mattas de azinho escuro,
sob o calor de um sol dardejante, divisamos ao longe uma pequena nuvem
de poeira, que a luz illumina, e ouvimos o tilintar alegre das
campainhas e guizos nas colleiras dos machos--é o cazeiro, que a trote
largo, com a cara redonda e alegre, o ventre apertado nos seus calções
de briche preto, vae á feira de Villa-Viçosa em maio, ou á de Evora em
junho, tratar dos negocios da lavoura. A distancia, vem o arreeiro no
seu carro toldado, guiando a récua de machos carregados de odres de
vinho: logo o pastor com o guarda-mato de pelle de cabra, o cajado ao
hombro, conduzindo as ovelhas, a vara de porcos, gordos como texugos, ou
a boiada loura de longas hastes. O sol ardente dá tom a todas as côres,
vida a todos os movimentos: suffoca-se, a poeira céga, e as bagas de
suor camarinham na testa. O alemtejano diz pouco, e raro canta; não é
misanthropia, é indifferença. O idyllio não póde seduzir a quem vive em
ampla communhão com o campo largo, o céu sempre azul, o sol sempre em
fogo. Apenas, de verão, baila ao som da guitarra nas noites calmosas,
fazendo a vigilia aos seus santos favoritos, não para esquecer um
trabalho que lhe não dóe, mas para dar largas aos seus amores de um
momento.

Os que uma vez embarcaram abaixo de Serpa, onde as cataratas põem ponto
á navegação, Guadiana em fóra até ao Algarve, terão sentido ao chegar á
foz a impressão de quem entra, de um sertão, em um jardim: de quem deixa
uma gruta escura por uma planicie luminosa. Breve é a extensão do
Algarve, desde Villa-Real até Lagos, abrigado pela ponta do cabo de S.
Vicente; mas esse trajecto sombrio do Guadiana divide duas regiões
caracteristicamente accentuadas. O algarvio é um andaluz. Ao contrario
do alemtejano, tudo o interessa, de tudo fala, agita-se em permanencia,
com uma vivacidade quasi infantil. No Algarve não ha o silencio e a
impassibilidade: ha o movimento constante, o falar, o cantar de uma
população como a dos gregos das ilhas, ora embarcados nos seus navios
costeiros, ora occupados nos seus campos, que são jardins. Se a planicie
e os longos horizontes das montanhas dão ao espirito a placidez solemne,
tambem o arrulhar constante da onda, sobre a qual, debruçado como um
eirado, está o Algarve, põe no pensamento uma agitação permanente,
meio-tonta, mas encantadora. Ao calor de um sol já africano, durante o
estio, e no seio de uma constante primavera, durante o inverno, o
algarvio desconhece a aspereza da vida: nem os frios o obrigam á
industria para se vestir, nem a fome ao duro trabalho da enxada para
comer. Emquanto voga sobre o mar, mercadejando, pescando,
contrabandeando, crescem-lhe no campo a figueira, a amendoeira, a
laranjeira, cuja seiva o sol se encarrega de transformar todos os annos
em fructos. A alfarrobeira nas encostas da sua serra, a palma pelos
vallados, pedem apenas que lhes colham os fructos e os ramos; e o
mercador, no seu barco, ao longo da costa, espera as cargas, para as
trocar por dinheiro.

                      *      *      *      *      *

No decurso da nossa viagem deixámos em claro as mortiferas baixas do
Guadiana: nem vale a pena demorarmo-nos n'essa região desolada; porque
agora, regressando pela costa acima, o litoral do Alemtejo e a parte
occidental da Estremadura transtagana partilham com ella os caracteres
tristonhos e doentios. Entramos na região dos terrenos terciarios: as
aguas estagnam e apodrecem nas baixas; as populações definham. Ou
torradas pelo arido suão, que os areaes ardentes não podem suavisar, e
sem montanhas que obriguem os vapores do mar a condensarem-se; ou
envenenadas pelos miasmas dos paúes que o sol de fogo põe n'uma
fermentação permanente, as populações amarellecidas e magras definham,
curvadas pelo trabalho mortifero das marinhas de sal, ou da cultura
pantanosa do arroz. São o contraste das baixas do norte do paiz, estas
baixas do sul. Além, copiosas chuvas e uma humidade creadora; aqui o ar
secco (500 a 700 mil. annuaes, 30 a 50 no estio; humidade, 30 a 80%)
duro e carregado de emanações mephiticas. Além, uma temperatura branda;
aqui um calor (med. 17°) excessivo. Além, uma população exuberante:
aqui, as solidões e os areaes nús, matizados pela traiçoeira cevadilha,
e pelo áloes orgulhoso, levantando com imperio o seu penacho côr de
fogo. Além, homens laboriosos e familias; aqui tribus esfarrapadas em
choupanas, tiritando com o frio das sezões n'uma atmosphera de lume:
mulheres esqualidas, creanças verde-negras, homens na indifferenca de
desolação, ou na vertigem do crime.

                      *      *      *      *      *

Entre estas duas regiões litoraes extremas está porém a central, a
vingar-nos da miseria de uma e da opulencia da outra. Quem desce, de
Canha e Alcacer-do-Sal até Setubal na peninsula de entre Tejo e Sado, e
domina, desde o promontorio da Arrabida, a paizagem circumdante, respira
afinal a longos traços uma plena vida e uma doce alegria. Acaso não ha
no reino panorama nem mais bello, nem maior, nem mais nobre, nem mais
variado. A nossos pés descem as anfractuosidades da serra vestidas de
espessas matas: as giestas douradas, as bagas carmineas dos medronhos, o
rosmaninho, a alfazema, misturando todos os seus aromas inebriantes.
Sobranceiros a Palmella, vemos-lhe os muros ameiados: Setubal desenha-se
no valle encastoada n'um jardim de laranjaes; no fundo quebram-se as
ondas contra as rochas do Cabo; e para o lado opposto as collinas da
fidalga Azeitão ondulam por sobre o espesso tapete de pinhaes extendido
até ao Tejo. Erguendo a vista, divisamos além do mar a ponta de S.
Vicente e o sul; para leste, Evora de um lado, as campinas do Riba-Tejo
do outro; para norte, Lisboa em amphitheatro sobre a sua bahia; além
d'ella, Cintra e os montes da Estremadura cistagana, a qual, até ao
Mondego, fórma a primeira zona extremenha, por onde vamos entrar no
exame da ultima das regiões do nosso territorio.

O litoral do centro, entre o Mondego e o Tejo, é a parte mais benigna do
paiz. Ahi o ar temperado pelas brisas maritimas mantém um grau de
humidade, (60 a 85%), e as chuvas, regulares sem serem copiosas (700 a
800 mil. annuaes, e 20 a 30 no estio), uma rega, que fertilisam os
terrenos sem os tornar gordos, como os do norte. Nem o calor (15 a 16°)
tisna de verão as vegetações, nem o frio do inverno as atrophia. Por
tudo isto, a população abunda, sem exorbitar, como no Minho; e o
habitante reune á laboriosidade de uma vida agricola a liberdade de uma
existencia mais ampla. Por tudo isto, além dos caracteres geognosticos
da região, a flora é variada, reunindo o pinheiro bravo e o manso, a
vinha, a oliveira e o carvalho, o trigo, o milho e o centeio. Desde os
campos que o Mondego todos os annos fertiliza, por Leiria e Alcobaça
vestidas de florestas, pelas veigas do Nabão, chegamos ao Tejo; e,
transpondo-o, entramos no seu valle, que é para nós como o Nilo é para o
Egypto. N'elle com effeito o campino nos traz á idéa o typo d'essas
raças da Africa setentrional, lybios ou mouros, cujo sangue anda
misturado em nossas veias. A cavallo, de pampilho ao hombro, grossos
sapatos ferrados, gorro vermelho na cabeça, o ribatejano, pastoreando os
rebanhos de touros nas campinas humidas e vicejantes, é como um beduino
do Nilo. A vasta planicie matizada de povoações e bosques de choupos, de
salgueiros e de álamos, contornada ao longe pelas cumiadas das serras,
tem o caracter das paizagens do Egypto, ou de Tunis, dominadas pelo
esqueleto giganteo do Atlas[28].

Como o beirão, tambem o ribatejano reune á vida agricola a maritima ou
fluvial: é elle quem vem nos seus barcos de _agua-acima_, até Lisboa,
trazer o seu tributo de cereaes e fructas. Pelo Tejo, o Portugal
maritimo abraça o Portugal agricola fundindo n'uma as duas phisionomias
typicas da nação. Rio acima, o Alemtejo de um lado, a Beira do outro,
por esta fórma se communicam com a população maritima do litoral.
Lisboa, com Sines ao sul, Aveiro ao norte, eis os pontos cardeaes d'essa
costa Occidental, d'onde tantas grandes aventuras, tão dilatadas viagens
se emprehenderam. Capital geographica, Lisboa é tambem a nossa capital
maritima; e se as viagens e descobertas são o coração da nossa historia
particular nacional, Lisboa é tambem a nossa capital historica. As
toadas plangentes que ao som da guitarra se ouvem por toda a costa do
occidente; essas cantigas, monotonas como o ruido do mar, tristes como a
vida dos nautas, desferidas á noute sobre o Vouga, sobre o Mondego,
sobre o Tejo e sobre o Sado, traduzirão lembranças inconscientes de
alguma antiga raça, que, demorando-se na nossa costa, pozesse em nós as
vagas esperanças de um futuro mundo a descobrir, de perdidas terras a
conquistar ao mar?

Os sonhos cheios de encanto e melancolia, por tão longos tempos
embalados pelo incessante murmurio do mar bretão e pelo ciciar das
florestas druidicas; o carinho da natureza pelo homem, traduzido n'essas
lendas piedosas em que os animaes falam, os passaros veem fazer ninhos
na mão dos santos, e a voz das fadas se mistura com o ramalhar das
arvores e o murmurar das aguas: esse vaporoso e encantador botão da alma
celtica, porventura desabrochava no espirito nacional portuguez, quando
a conclusão das guerras da independencia assim o ordenou.

D. João de Castro, o marinheiro, tem, como um druida, o amor ingenuo da
natureza: «Ó vergonha e grande cubiça dos homens, que por haver as
desventuras dos metaes cavam tanto a terra que lhe tiram fóra as tripas,
derribam grandes outeiros, abaixam asperas e altissimas serras no andar
e olivel dos campos, e não contentes de _estragarem tanto a terra_,
rompem e furam pelo mar por haverem uma perla--e para esculdrinhar uma
obra maravilhosa da natureza são timidos e preguiçosos!»

    [25] V. _Portugal contemporaneo_, pass.

    [26] V. _Portugal contemporaneo_ (2.ª ed.), II, pp. 183-91.

    [27] V. _Portugal contemporaneo_, (2.ª ed.) II, pp. 51-3.

    [28] V. _Elem. de Anthropologia_ (3.ª ed.) p. 232.

                      *      *      *      *      *




V

A historia nacional


D'esta viagem, breve, pallida, e incorrectamente esboçada,
ficaria--ousamos crêl-o--no espirito do leitor uma impressão por isso
mesmo verdadeira. Pallida e como que indeterminada, sem fortes côres nem
linhas pronunciadas, é a phisionomia da nação, quer na paizagem, quer
nos homens. Nenhum traço profundo distingue a nossa geographia; benigno,
médio ou temperado é o nosso clima, e tambem o nosso caracter.

Se alguma cousa de facto nos individualisa, é a falta de affirmação do
nosso genio. Aquellas a que poderemos chamar qualidades peculiares
nossas, consistem na facilidade com que recebemos e assimilamos as de
extranhos. Navegadores--e só por si este caracter não imprime em nós um
cunho distincto dos demais povos maritimos--a maneira por que nos
aventurámos ao mar, retrata ainda a nossa phisionomia collectiva: fomos
prudente e pacientemente ao longo das costas africanas, ou de ilha em
ilha, no oceano, caminhando passo a passo, avançando sempre, tenazes,
mas jámais temerarios[29].

Essa individualidade passiva do nosso genio traduz-se na nossa historia.
Ninguem busque n'ella movimentos originaes e profundamente
caracterisados por uma idéa nacional: esperal-o-hia o castigo reservado
a todas as chimeras. Ninguem busque tampouco o systema de um
desenvolvimento proprio e organico, obedecendo a leis particulares, e
constituindo, no seu todo, aquillo a que se chama uma civilisação: por
esse lado apparecemos indestructivelmente ligados ao corpo peninsular; e
apesar de politicamente separados, obedecemos ás leis geraes que lhe
determinam a vida historica. O conjuncto dos nossos pensamentos moraes,
o caracter dos movimentos que compõem o systema do desenvolvimento das
instituições, o das condições das classes, e até as linhas geraes da
nossa vida politica, são apenas um aspecto do systema da historia da
peninsula iberica. Por isso nós, que, em outro livro,[30]
tratamos d'este assumpto, não voltaremos agora a occupar-nos d'elle,
para não fatigarmos o leitor com repetições inuteis. Procuraremos n'esta
obra determinar o modo particular, proprio ou nacional, com que
realisámos um programma historico geral, definindo a nossa
individualidade collectiva; procuraremos tambem indicar os movimentos
politicos, em que resolutamente defendemos a nossa autonomia; e
finalmente mostrar que, sendo a ausencia de caracter nacional
affirmativo, e a malleabilidade com que recebemos e assimilamos as
influencias extranhas, o que mais pronunciadamente nos individualisa
como povo, a independencia da nação não proveiu de factos naturaes,
porém sim dos actos de vontade dos seus homens. Causas de outra ordem
houve de certo que vieram dar-lhes um apoio energico, e, não falando
agora nas maritimas e coloniaes, referimo-nos ás influencias extranhas á
Hespanha, que por momentos nos pozeram, a nós, seus filhos, n'um estado
de antagonismo transitorio com o desenvolvimento da historia peninsular.
É sabido que a nossa primeira dynastia procedia de Borgonha; nos
primeiros tempos são numerosos os fidalgos e soldados estrangeiros entre
nós: e as conquistas de Lisboa, de Alcacer, do Algarve, effectuam-se com
o auxilio de exercitos e armadas forasteiros. Mais tarde veem combater
ao lado de D. João I os inglezes, com quem já ao tempo de D. Diniz
celebráramos tratados de commercio, e que, nossos alliados no tempo do
D. Fernando, nos impressionavam com os seus costumes e lettras. D'então
data a generalisação dos nomes inglezes como Tristão, Jorge, Duarte, que
se começam a encontrar ao lado dos antigos nomes romanos e gothicos. As
allianças inglezas repetem-se nos primeiros tempos da dynastia de Aviz,
até que o desenvolvimento do nosso imperio colonial nos torna soberanos.
Annexados á Hespanha depois, voltamos a depender da Inglaterra ou da
França, quando readquirimos a independencia. Generaes francezes
commandam as campanhas da Restauração, patrocinada pela França; generaes
inglezes, as guerras do principio do seculo subsidiadas pela Inglaterra.
E duas vezes, quando se tentou chamar a nação á vida eminente da
sciencia; duas vezes, quando D. João III e o marquez de Pombal
reformaram a Universidade; duas vezes se importaram mestres extrangeiros.

De tudo o que deixamos escripto o leitor decerto comprehendeu já o
systema de preceitos a que vae obedecer o nosso estudo; e
affigura-se-nos ser este o caminho verdadeiramente scientifico de
encarar a historia nacional, despindo-a de illusões patrioticas, e de
phantasias chimericas. Mal de nós, se, amando do coração a nossa
independencia, imaginarmos que ella póde manter-se firme sobre um
alicerce de fabulas, contra a recta e indestructivel verdade da
sciencia! A independencia dos povos assenta sobre tudo na vontade
collectiva: tal foi a base da nossa, tal continuam a ser, se com a
vontade tivermos o juizo correspondente. Sem elle, o querer é apenas um
capricho.

Obedecendo pois ao enunciado, dividimos a historia patria em quatro
periodos successivos. No primeiro, o da dynastia de Borgonha, não nos
destacamos ainda bem do systema dos Estados peninsulares: somos um
d'elles, e a independencia provém exclusivamente do espirito separatista
da Edade-média personalisado no ciume absolutista dos reis e barões
portuguezes.--Depois de Aljubarrota, porém, o sentimento de
independencia nacional torna-se popular, desde que a revolução do Mestre
d'Aviz o faz coincidir com o interesse particular da região portugueza.
Entretanto a vida maritima fôra-se desenvolvendo: e a nova dynastia
obedece conquistando o litoral da Africa aos marroquinos, á corrente
historica peninsular: e inicia, com as navegações e descobertas, um
movimento particularmente nacional. Póde então dizer-se que por um
momento Portugal esteve á testa da historia da Hespanha.

A terceira epocha abrange, a nosso vêr, a infeliz empreza do Imperio
oriental, onde o movimento maritimo nos levou. Os elementos de vida
propria, formados na epocha anterior, produziram uma colonisação á
antiga e uma litteratura néo-latina: n'estas duas circumstancias
provavamos faltar-nos uma fibra de intima originalidade nacional. A
perversão dos costumes, a vastidão das emprezas, o limitado dos nossos
meios, os erros politicos, finalmente, condemnam-nos á perda da
independencia.--Se na quarta e final das epochas da nossa historia
voltamos a reganhal-a, a nossa vida apparece, comtudo, outra. Ao imperio
oriental perdido, vem a exploração e colonisação do Brazil
substituir-se, dando um ponto de apoio externo ao pequeno corpo europeu;
e mais tarde, perdido a seu turno o Brazil, voltamo-nos agora, a vêr se
a Africa póde dar-nos os meios de custearmos as despezas de um paiz
pequeno e mediocremente abastado, sobre o qual pesam os encargos cada
vez maiores do machinismo nacional. Hollanda do extremo occidente,
radicada no corpo da Hespanha, como ella o está no corpo germanico, só
n'um ponto de apoio externo podemos fundar o alicerce de uma
independencia excepcional; só á custa de recursos coloniaes poderemos
talvez satisfazer as multiplas e dispendiosas exigencias da organisação
economica, scientifica e moral, hoje inseparaveis e indispensaveis á
existencia de uma nação.[31]

    [29] V. _O Brazil e as colonias portuguezas_ (3.ª ed.) pp. 2-6.

    [30] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.).

    [31] V. _O Brazil e as colon. port._ liv. IV-V, e
         _Portugal contemporaneo_ (2.ª ed.) liv. VI, 1, 3.

                      *      *      *      *      *




LIVRO SEGUNDO

HISTORIA DA INDEPENDENCIA

(DYNASTIA DE BORGONHA: 1109-1385)


    «He nossa entençon curtamente fallar, nom come buscador de novas
    razõoes, per propria invençom achadas, mas come aiumtador em huum
    breve moolho, dos ditos dalguns que nos prouguerom.»

                                     F. LOPES, _Chr. de D. Pedro I_.

                      *      *      *      *      *




I

A separação de Portugal


O condado portucalense, creado nos ultimos annos do XI seculo a favor do
conde borguinhão D. Henrique, genro de Affonso VI, pouco tempo existiu
sob o regime de uma vassallagem indiscutidamente reconhecida. Era essa a
epocha em que a Hespanha tendia a constituir-se n'um systema de Estados
independentes, á medida que successivas regiões iam saíndo de sob o
dominio musulmano para o dos descendentes dos godos asturianos, ou dos
seus actuaes alliados;[32] e o condado portucalense obedecia a esta
tendencia geral, no empenho que o seu conde não mais encobriu desde a
morte do sogro.

É com effeito da data do obito de Affonso VI que deve contar-se a éra da
independencia de Portugal; embora por largos annos ella seja mais uma
ambição do que um facto: embora essa ambição traduza um pensamento que
os acontecimentos posteriores da historia impediram se realisasse.
Qualquer que fosse o valor dado no XI seculo á expressão geographica de
_Portucale_, é facto provado por todas as memorias e documentos d'esses
tempos, que para ninguem deixava de considerar-se o territorio de entre
Minho e Mondego como parte da Galliza. O facto da constituição do
condado de nada vale contra esta opinião; porque demasiado se sabe que a
formação dos Estados medievaes, na Peninsula e fóra d'ella, jámais
obedecia ás prescripções geographicas ou etimologicas. Não se attribua
pois a causas d'esta ordem, nem á consciencia de uma solidariedade
nacional, o facto da desmembração da Galliza dos fins do XI seculo. A
scisão que o Minho demarcou obedeceu apenas a motivos de ordem politica.

Isto mesmo, porém, deu causa a uma ambição, na qual devemos reconhecer o
principio da vitalidade da nação portugueza, durante estas primeiras e
ainda indecisas epochas da sua existencia. A solidariedade nacional
espontanea existia de facto para os gallegos; e desde que a Galliza fôra
dividida pela politica em duas, áquem e além Minho, restava saber qual
d'essas metades tomaria sobre si o papel de representar um sentimento de
independencia, commum a todos os membros ainda então disconnexos do
corpo peninsular.

Varias causas concorriam para attribuir este papel á metade portugueza
da Galliza; e porventura acima de todas o facto do merecimento pessoal
do conde portuguez. Circumstancias d'esta ordem eram decisivas n'uma
epocha em que a anarchia systematica da constituição da sociedade fazia
principalmente depender os destinos immediatos d'ella da perspicacia ou
da bravura dos seus chefes. Nada ha de commum entre a vida d'estes
tempos e a dos posteriores: e n'um certo sentido póde até dizer-se que
os factos de ordem politica são independentes dos de ordem social,
porque a sociedade é como um elemento passivo que por este lado (mas por
elle apenas) obedece ás consequencias do desordenado capricho dos actos
e caracteres dos chefes militares que a governam, sem propriamente a
representarem.

Nos primeiros tres seculos, isto é, na primeira epocha da historia
portuguesa, a independencia é um facto originado no merecimento pessoal
dos chefes militares dos barões de áquem Minho. Nacionalidade
propriamente dita, não a ha; ou pelo menos não nol-a revelam os
monumentos historicos, unanimes, tambem, em revelar uma ambição
collectiva ou social que se estende a toda a Galliza. Ao merecimento
pessoal reune-se, nos primeiros monarchas portuguezes, a circumstancia
de serem os interpretes d'este sentimento. Por isso a tendencia
permanente e o principio claramente definido da politica portugueza, nos
primeiros seculos, é unificar a Galliza, constituindo a noroeste da
Peninsula um Estado tão homogeneo, como o Aragão ou a Navarra a
nordeste.

N'este proposito se filiam todas as guerras civis--se este nome convém
ainda aos conflictos entre Portugal e Leão--e as repetidas allianças dos
barões gallegos das duas zonas divididas pelo Minho. A facilidade com
que os reis portuguezes transpõem armados as aguas d'esse rio, o se
apossam por varias vezes dos territorios da Galliza leoneza, são provas
evidentes da opinião exposta.

Não quiz a sorte que chegasse a realizar-se este primeiro pensamento
politico, a que chamaremos hegemonia de Portugal na Galliza, para
usarmos de expressões modernas; antes ordenou que os limites
convencionaes do condado portucalense apenas inscrevessem o ponto de
partida da formação de uma nação, cujo caracter, ulteriormente definida,
proveiu principalmente da phisionomia geographica da região; de uma
nação, repetimos, que veiu a perder a tradição d'essa primitiva origem,
desde que o genio das populações de entre Mondego e Tejo sobrepujou o
das do norte, na direcção e impulso dados á vida collectiva portuguesa.

Se n'esta primeira epocha da nossa historia o pensamento occulto que
dirige com maior ou menor consciencia a politica, é incontestavelmente o
da hegemonia de Portugal na Galliza, seria absurdo suppôr que, ao lado
d'este principio, decadente desde certa epocha, se não fossem tambem
manifestando de um modo correlativo, e cada vez mais pronunciado, os
symptomas da deslocação do centro vital da nação.

A circumstancia que mais decisivamente determina este caracter da nossa
historia primitiva é a conquista dos territorios sarracenos de áquem
Mondego, levada a cabo pelos barões portugueses, sem os auxilios do
suzerano de Leão. É este movimento que, principiando por quebrar os
laços de solidariedade entre os gallegos leonezes e os portugueses, vae
gradualmente addicionando a estes ultimos os _Lusitanos_ (seja-nos
licito dizer assim, para mais claramente definir o nosso pensamento) até
ao ponto de os ultimos predominarem na phisionomia posterior da nação,
transferindo de Guimarães e de Coimbra, para Lisboa, a capital do reino:
fazendo substituir á vida rural, primeiro quasi exclusiva, a vida
commercial e maritima depois predominante e quasi absoluta.

A primeira epocha da historia portugueza offerece pois á observação do
critico dois movimentos[33], oppostos n'um sentido, concordes em outro,
que é o da affirmação positiva da independencia. Mas, se essa afirmação,
terminante nas guerras leonezas, e tambem nas sarracenas, exprime de um
lado a politica da hegemonia na Galliza, do outro exprime, de um modo
todavia inteiramente inconsciente e espontaneo, uma tendencia contraria.
É a da formação de uma nação _lusitana_, de que a Galliza portugueza
desce á condição de provincia ao norte, como o Algarve, mais
propriamente turdetano, vem a sel-o ao sul. O entre Douro e Guadiana,
isto é, a espinha dorsal da Estrella, ladeada pelas Beiras ao norte,
polo Alemtejo a sul, pela Estremadura a poente: eis ahi o que, logo
desde o XIV seculo, começa a representar o corpo homogeneo da nação
portugueza.

                      *      *      *      *      *

No Portugal primitivo, a politica da hegemonia na Galliza não se
fundava, porém, sómente em uma indeterminada ambição collectiva. Era um
pensamento decisivo e fixo dos monarchas, e trazia origens tão antigas
como a propria constituição do condado portucalense.

Creado por uma desmembração da Galliza, o condado cedido ao borguinhão
não é natural que satisfizesse os desejos ambiciosos do principe. Como
as almas que, desorientadas pelas extravagancias do barbaro
christianismo medieval, viviam n'um estado de aspirações nebulosamente
infinitas: assim a ausencia de um criterio fixo, intellectual ou moral,
e a lei da pura força em que existiam, lançavam os barões n'uma vida de
aventuras, cujo criterio unico era a sua ambição, cujo unico limite era
o limite imposto por uma força adversa. O poder do rei leonez era, para
o conde borguinhão, o limite forçado das suas temeridades.

Logo porém que Affonso VI morreu, deixando um vasto espolio a dividir,
D. Henrique exigiu para si um largo quinhão. Quebrada pela morte a
cadeia da vassallagem a um rei poderoso, e acaso desobrigado já da
gratidão para com um sogro que tanto favorecera o conde, é d'esta éra
que, a nosso vêr, data a independencia de Portugal: e não da éra, de
resto indecisa e impossivel de determinar, em que Affonso Henriques
tomou para si o titulo de rei. É dar uma demasiada importancia ao facto
exterior e secundario do titulo, o fazer d'elle o symbolo da
independencia da nação. Apesar de rei, D. Affonso Henriques prestou
vassallagem: e a sua monarchia não é, de facto, mais nem menos
independente, como monarchia, do que o condado de D. Henrique, ou o
infantado de D. Thereza. A força e não a definição de um dominio, só
effectivo quando se estriba nas armas, eis ahi o que exclusivamente
caracterisa os movimentos dos seculos XI e XII.

Ora essa força era já para D. Henrique um facto, desde que lhe morrera o
sogro. A unidade que o seu valente braço dava ao dominio sobre os
territorios herdados ou conquistados, levara-a Affonso VI comsigo para o
tumulo; e entre os dois herdeiros rivaes, D. Urraca e o rei de Aragão, o
conde portugalense tinha um logar bem preparado para exercer a sua
astuciosa influencia, e para impôr condições e preço a uma alliança que
ambos egualmente ambicionavam.

Passemos longe d'essas chronicas de perfidias, de violencias, de
adulterios e barbaridades que constituem a historia da herança de
Affonso VI. Como os generaes de Alexandre, os principes da Peninsula
retalham o manto do imperador: e a Edade-média, tão phantasiosamente
pintada com traços de nobreza e galhardia, não é de facto menos corrupta
e asquerosa do que a edade dos satrapas do Oriente. A ferocidade é mais
violenta, a luxuria menos requintada, a perfidia mais ingenua, porque os
homens são verdadeiramente barbaros, e não gregos barbarisados[34].

Do pacto de alliança de D. Henrique e D. Urraca resultou o
engrandecimento do condado, para o norte na Galliza e para leste ao
longo da bacia do Douro, abrangendo Tuy, Vigo, Santiago, por um lado,
Zamora, Salamanca, Toro e até Valladolid pelo outro. A divisão e
demarcação do novo Estado chegou a fazer-se com a possivel solemnidade,
e com a concorrencia de barões leonezes e castelhanos. Era a definição
de um Portugal que a historia não consentiu se mantivesse.

N'este convenio ou tratado vieram posteriormente fundando-se todas as
pretenções dos soberanos portuguezes á posse da Galliza, e d'aquella
parte da Castella-velha geographicamente denominada Terra-de-Campos:
territorios que o conde D. Henrique soubera ganhar para si na disputa da
herança de Affonso VI. Tres annos apenas gosou o conde a posse d'esses
seus dilatados dominios. Morrendo, a mesma historia de ignominias,
adulterios e barbaridades ia assignalar o governo de sua viuva herdeira,
como tinha assinalado o da viuva do conde Raymundo. Eram irmãs tambem,
no caracter e nos appetites sensuaes, as duas filhas do D. Affonso VI.

Morrendo, o velho conde portuguez, ao sitiar Astorga, chamou para junto
de si o filho, em cujo peito borbulhavam ambições: «Filho, toma esforço
no meu coração! Toda a terra que eu deixo, que é d'Astorga até Leão e
até Coimbra, não percas d'ella cousa nenhuma, que eu a tomei com muito
trabalho. Filho, toma esforço no meu coração! e sê similhante a mim, e
sê companheiro dos fidalgos e dá-lhes todos os seus direitos, aos
concelhos. Filho, toma esforço no meu coração!»

Tal era o testamento do conde; já deixava ao filho uma nação constituida
nas suas duas faces parallelas e correlativas: a nobreza, os concelhos.
«E depois que houve castigado o filho d'estas cousas e outras muitas que
aqui não dizemos, morreu.»

                      *      *      *      *      *

A viuva de D. Henrique, publicamente amancebada com o conde gallego
Fernando Peres, deu com os seus escandalos pretexto para uma revolta,
que poz em risco a conservação dos vastos dominios herdados de seu
marido. Assim tambem succedera a D. Urraca, perdida de amores pelo conde
de Trava.

Dissemos pretexto e não motivo, porque nos costumes ingenuamente
dissolutos da Edade-média a mancebia não era caso que offendesse o pudor
particular nem publico: os amantes das princesas offendiam, porém, o
ciume dos seus collegas em fidalguia; e o poder effectivo de que um
d'elles dispunha, á sombra do amor que o preferira, enchia de inveja e
odio os companheiros.

As memorias do tempo retratam-nos D. Thereza como uma mulher sagaz, viva
e bella. A astucia combinava-se no seu espirito com um amor que a levava
a _comprometter-se_, como diriamos na nossa linguagem moderna. Uma vez,
na cathedral de Vizeu, apresentou-se com o amante, no meio da egreja
apinhada de povo, e em frente do prelado que prégava. A authoridade dos
bispos corria então parelhas com a rudeza das suas liberdades; e o de
Vizeu não duvidou dizer á rainha, em voz alta, do pulpito ou dos degraus
do altar, que abandonasse o amante ou se casasse: era um escandalo
aquella união, uma vergonha proceder de tal modo. A condessa, vermelha
de colera e confusão, fugiu rapidamente da egreja seguida pelo amante.

Porque não succederia ao escandalo a vingança, para não quebrar a
constante alliança da impudicicia e da crueldade, dominantes na
Edade-média? Porque naturalmente as invectivas do bispo traduziam a
força do partido dos invejosos e rebeldes, que já faziam do moço filho
de D. Henrique um pendão de revolta contra a viuva apaixonada. Nem por
tão pouco se affligiria a consciencia do bispo, pois o clero demasiado
ouvia tambem os conselhos da carne, e os amores sacrilegos eram tão
frequentes como os amores livres ou adulterinos.

A princeza não era menos sagaz do que voluptuosa, e adiava para mais
tarde a vingança. Beijos lascivos, perfidias indignas e barbaridades
ferinas, eis os elementos que constituiam a mulher da Meia-Edade. Os
dotes femininos eram naturalmente pervertidos por um ambiente de
brutalidade anarchica nos sentimentos e nas acções; e, quando a mulher
dispunha da aucthoridade e da força, ou como a Fredegonda dos Merowigues
cevava em sangue a sua féra natureza, ou satisfazia n'uma impudicicia
desesperada as necessidades sensuaes do seu temperamento. Nem a
crueldade, nem a sensualidade eram menores nos homens: mas a natureza
que n'elles dá o predominio aos pensamentos, como o dá aos sentimentos
nas mulheres, fazia com que a rudeza dos primeiros andasse
subalternisada á ambição e aos calculos politicos, ou á bravura e ás
façanhas guerreiras.

Não se imagine, porém, a mulher da Edade-média um ser apenas formado de
crueldade e amor; menos se supponha D. Thereza uma similhante creatura.
A condessa, infanta ou rainha de Portugal--porque de todos estes titulos
usou--era tambem sagaz e astuta, qualidades que o filho veiu a herdar
com o sangue. Não tinha o animo varonil de uma amazona, mas tinha a
perspicacia e o juizo proprios dos principes d'esses tempos. Sabia
moderar a colera e engulir affrontas como a de Vizeu, quando não podia
vingar-se d'ellas. O amor traduzia apenas uma exigencia dos sentidos,
deixando livre e independente a acção da intelligencia. No meio das
agitadas circumstancias do seu breve governo, não deixou abandonadas as
conveniencias proprias, como dona e senhora do Estado portuguez.

Muitas vezes se lêem descripções de uma vida sentimental e heroica, em
que as mulheres andam loucas de paixões poeticas, e os homens, typos de
nobreza e audacia, são victimas dos conflictos do amor e da honra. Não
ha nada mais differente da verdadeira, do que essa Edade-média das
operas. A carnalidade desenfreada, o cynismo e a perfidia, uma frieza
sempre calculadora, uma ambição feroz, uma avareza sordida, uma
corrupção de todas as fontes da vida moral: eis ahi o que de facto
constitue a vida aristocratica da Edade-média. Onde está a causa de
tamanhas desordens? Está na coexistencia e no conjuncto de condições
barbaras e de tradições cultas. D'onde provém a illusão com que muitos
suppozeram bellezas espontaneas nos caracteres, e nobres dedicações nos
actos, creando com a phantasia um falso quadro de encantos? Da
ingenuidade dos typos barbaros.

Ha, com effeito, na natureza espontanea o quer que é de seductoramente
bello, que nos chama para uma região de deleites inconscientes: assim
todas as descripções das sociedades primitivas produzem em nós uma
impressão vivificante, e desde logo somos levados a engrandecer e
nobilitar os homens ainda não corrompidos pelas aberrações da
civllisação. É mistér porém observar que taes homens primitivos não são
os do XI seculo; que na Edade-média existem e vivem, principalmente por
via da Egreja, todas as tradições da cultura antiga; e que a conjuncção
da barbarie e do requinte lança nos caracteres uma semente de perversão,
prompta a rebentar em actos monstruosos, tão corrompidos no principio,
como barbaros na fórma. É popular o sentimento de tédio e nojo para com
o imperio de Byzancio; pois as causas originarias d'essa repugnancia são
tambem communs ás sociedades néo-latinas, ou néo-godas da Hespanha.[35]
Só variam as proporções: os elementos combinados são os
mesmos. No Oriente a cultura é maior, os costumes mais requintados: aqui
é maior a rudeza, e a feição barbara predomina. Por isso os vicios
procuravam, além, esconder-se sob o manto das convenções; e aqui se
expandem ingenua e francamente, á luz de uma ignorancia quasi primitiva.

                      *      *      *      *      *

Assim que D. Urraca morreu. Affonso VII, depois de reconquistadas ao
visinho aragonez as cidades de Castella, olhou para oeste, afim de
reconstituir de novo a monarchia leoneza, fazendo regressar ao seu
dominio os territorios de Campos e da Galliza. A invasão e a guerra
duraram apenas uma campanha; e a amorosa Thereza curvou-se ao imperio
das condições, reconheceu o facto da conquista, e confessou com
humildade a vassallagem ao sobrinho leonez.

Portugal retrahia-se aos primeiros limites--do Minho ao Mondego--do
condado creado por Affonso VI; e os calculos do conde borguinhão
frustravam-se, depois de menos de vinte annos de indeciso dominio.

Esse infortunio da _regina_ de Portugal acabou de decidir os invejosos
do conde gallego, seu amante. As tendencias de sublevação, até ahi
sopitadas ou mal definidas, tomaram corpo e unidade; e a revolta
declarada dos barões achou nos desastres de 1127 motivo sufficiente para
se erguer em campo aberto.

Capitaneava a revolta o infante portuguez. Não é esta a unica occasião
em que vemos erguerem-se em armas os filhos contra os paes, os irmãos
contra os irmãos, como prova de que, se os sentimentos andavam
pervertidos pelos instinctos brutaes, ou vinculos de familia eram apenas
laços tenues que se rompiam ao impulso de qualquer exigencia da colera
ou da ambição. Nem sentimentos, nem instituições fixas: uma anarchia
total no individuo e na sociedade, uma desordem acabada na moral e no
direito, eis ahi as bases historicas da Edade-média, cujo deus é a força.

D. Affonso Henriques, o primeiro rei portuguez, ou capitaneava ou era o
pendão apenas--hypothese que a sua curta edade justifica--da revolta que
tinha por chefes o arcebispo de Braga D. Paio, Sueiro Mendes o _grosso_,
Ermigio Moniz, Sancho Nunes, genro da _regina_ Thereza, e Garcia Soares.
Aos pactos de Braga succedeu o encontro de Guimarães. A rainha, abraçada
ao seu amante, vinha seguida por barões fieis de áquem, e pelos barões
de além-Minho, que se tinham submettido a Affonso VII[36].
A batalha decidiu-se pelo filho, e a rainha fugiu a esconder no condado
do amante o desespero da derrota. De protectora, os acasos da guerra
faziam-na agora protegida; e a historia deve ainda ao conde gallego a
justiça de mencionar que a não abandonou, quando a viu despojada do
poder e do titulo. Os prazeres da paixão acaso suavisariam á formosa
filha do grande Affonso a infelicidade das armas, e porventura tambem o
desespero maternal, se é que os vinculos de sangue tinham para a mãe um
merecimento superior ao que tinham para o filho.

No seio da barberie corrupta em que se revolvia, a Edade-média tinha,
porém, não só o instincto dos deveres, innato nos homens, como o medo
dos castigos divinos prégados por uma religião que até para o proprio
clero baixára ás condições de um quasi fetichismo. As lendas contam que,
vencedor, o filho encarcerára a mãe, e põem na bocca de D. Thereza este
anathema terrivel: «Affonso Henriques, meu filho, prendeste-me e
metteste-me em ferros e exherdaste-me da minha terra que me deixou meu
padre, e quitaste-me de meu marido: rogo a Deus sejas assi como eu sou,
e porque metteste ferros nos meus pés, quebradas sejam as tuas pernas
com ferros. Mande Deus que isto assim seja!» E o anathema cumpriu-se em
Badajoz, annos depois, porque Deus vingador não perdoava os crimes
frequentes dos filhos contra os paes. Assim pensavam esses homens simples.

Á batalha de Guimarães ligava-se, porém, um alcance maior do que o de
uma simples questão de familia: era a ruptura de solidariedade entre as
duas metades da Galliza, e a victoria da portugueza sobre a leoneza. Era
o primeiro symptoma de uma direcção nova, que se ia imprimindo na vida
historica nacional. Essa ruptura da solidariedade, e a força da
monarchia leoneza sob Affonso VII, serão dois motivos concorrentes para
impedir que as tentativas do primeiro rei portuguez tenham sobre o norte
resultados efficazes.

Logo depois de Guimarães, Affonso Henriques, preferindo o papel de
invasor ao de atacado, procura reivindicar as fronteiras perdidas em
1127 por D. Thereza. Duas vezes invade a Galliza transminhota: duas
vezes é forçado a recuar, em 1130 e em 1132; mas depois de Guimarães,
depois da lide de Val-de-Vez em que os portuguezes venceram, já a
independencia de facto estava conquistada. Sellados os preliminares de
paz, Affonso Henriques occupou-se em _acalmar_ as terras do seu senhorio
afim que nunca «lhe acontecesse outro tal desavisamento,» e conquistou
«todallas fortalezas de portugal assy como se fossem de mouros.»

Quem era Affonso Henriques? Já amestrado no officio de reinar, á maneira
porque então se entendia um tal officio, o moço principe reunia as
condições necessarias para consolidar uma independencia até ahi
precaria. Era audaz, temerario até, pessoalmente bravo, qualidade nem
tão commum no tempo, como a muitos acaso pareça. Fraco general, ao que
se vê, porque as batalhas feridas com as tropas leonezas perdeu-as
sempre, era feliz guerrilheiro. Capitaneando um troço de soldados, caía
de improviso sobre um logar, e a furia irresistivel do ataque deu-lhe a
maior parte das suas victorias. Nem a grandeza das emprezas o assustava,
nem as distancias o impediam de acudir a um tempo, do extremo norte,
quasi ao extremo sul no paiz. A estes dotes militares reunia outros não
menos valiosos, na precaria situação em que se apossára do reino. Era
secco, astuto, friamente ambicioso, sem chimeras, nem illusões. Era um
espirito agudo e pratico, e isso fazia boa parte da sua força. Mal dos
politicos ao mesmo tempo apostolos! Como a tenra haste que verga á mais
leve brisa do cannavial, assim Affonso Henriques, sem rebuços obedecia,
logo que a sorte lhe era adversa. Passada a tormenta erguia-se; e á
facilidade astuta com que se humilhava, respondia logo a teima perfida
com que se rebellava. Isto fazia-o indomavel. Tinha o quer que é de
fugitivo, na sua politica e no modo porque fazia a guerra. Ubiquo
militarmente, era nos negocios um proteu. Os seus amigos, leonezes,
sarracenos, não achavam por onde prendel-o. Submisso e humilde quando se
achava vencido, subscrevia a todas as condições, acceitava todas as
durezas; para logo mentir a todas as promessas, rasgar todos os
tratados, com uma franqueza ingenua, uma simplicidade natural, que
chegavam a espantar a propria Edade-média. Nem brios cavalleirosos, nem
sentimentos de familia, nem odios pessoaes, nem vinganças estupendas:
nenhuma chimera, nenhuma grande ambição, nenhum sentimento poetico,
enchiam a sua cabeça, estreita, e inteiramente occupada pela idéa fixa
de consolidar a sua independencia. O predominio absoluto de uma idéa
pratica, servida por uma intelligencia lucida, por um caracter sem
grandeza, e por uma valentia provada, tornavam-no invencivel, ainda
mesmo quando era batido. A sua teima fazia-o similhante a uma lamina de
aço, um instante vergada por um esforço momentaneo, logo estendida
quando livre, e impossivel de manter curvada desde que se acha solta. O
seu pensamento tinha a tenacidade da mola, e não a rigeza do bronze nem
o peso do chumbo. Vivia dentro do seu Portugal como um javardo no seu
refoio: assaltado, investia, despedaçando tudo com as fortes prezas.
Perseguido, fugia. Não tinha a nobreza do leão, nem a astucia ferina do
tigre: possuia apenas a tenacidade brava e bronca do javali. Um fraco
apenas lhe notam, embora os actos da sua vida não denunciem que esse
defeito o prejudicasse muito: gostava de ser adulado.

Affonso Henriques foi quem verdadeiramente consummou a separação de
Portugal, não pelos meritos proprios apenas, mas porque a direcção
politica do reino começou no seu tempo a ser encaminhada pelos factos no
sentido de definir de um modo positivo a independencia da nação.

Uma parte dos barões da Galliza leoneza, sublevados contra o suzerano,
acolheu-se em 1137 sob a protecção de Affonso Henriques, prestando-lhe
vassallagem, e, assim, de novo se levantou a questão das fronteiras do
norte de Portugal. Affonso VII não pudera, nos annos anteriores, descer
a rebater as invasões do turbulento visinho, occupado como estava a
debellar o navarro; agora, porém, tinha já os movimentos livres, e
apressou-se a submetter a Galliza. Por seu lado Affonso Henriques era
solicitado a defender a fronteira austral, onde os sarracenos tinham
vindo n'uma álgara feliz derrocar o castello de Leiria. É por estes
annos que o destino de Portugal se debate entre a Lusitania e a Galliza,
quando a actividade do guerreiro é solicitada, ora do norte contra os
leonezes, ora do sul contra os sarracenos. Oscillante ainda e indeciso,
breve assistiremos ao definitivo pender da balança no sentido do
alargamento das fronteiras austraes.

A simultaneidade do ataque leonez e sarraceno em 1137 obriga Affonso
Henriques a curvar a cabeça, assignando as pazes de Tuy, nas quaes
desiste das suas pretensões de além-Minho, confessando, ao mesmo tempo,
vassallagem ao suzerano de Leão. _Ut arundo fragilis ferebatur_: vergava
como o cannavial o principe, a este sopro da fortuna adversa! Desistia
de tudo, da ambição e até da independencia. Quem se fia, porém, na
palavra do pertinaz batalhador? Defendido o seu senhorio por norte, não
se demora a persistir n'uma guerra leal mas perigosa. Espera melhor
oocasião para a desforra; porque lhe não custa subscrever a um tratado,
a que não pensa decerto submetter-se, senão emquanto a força das cousas
a isso o violentar. Não assim os fronteiros de nordeste que, apesar das
pazes de Tuy, continuam a guerra por conta propria: tão frageis eram
ainda os laços, que reuniam os vassallos ao conde soberano de Portugal!
De Tuy, o leonez, subindo pelo valle do Lima atravez da Galliza
portugueza que assolára, vae encontrar as mesnadas dos ricos-homens
sublevados nos Arcos-de-Val-de-Vez. Resam as tradições de um torneio ou
_bufurdio_[37] em que os cavalleiros inimigos batalharam
por seus exercitos, vencendo os portuguezes na estacada, onde numerosos
combatentes ficaram mortos, segundo as regras da cavallaria. Apesar de
victoriosos, porém, os portuguezes não podiam resistir a Affonso VII,
tanto mais que D. Affonso Henriques desistira de continuar uma guerra
improficua.

Que fazia entretanto o principe? Tratava da desforra de Leiria; e em
1139 levava a cabo o temerario fossado de Ourique, pagando uma estocada
com outra; e preludiando esse duello de morte, entre Portugal e o
Al-Gharb sarraceno, com um golpe que foi, com a rapidez penetrante do
raio, ferir o corpo musulmano quasi junto a Chelb ou Silves, o coração
da Hespanha austral. A esta aventura temeraria, mas feliz, ia succeder
em curtos annos a empreza mais seria e importante da conquista da linha
estrategica do Tejo: facto de um alcance capital, n'esse periodo em que
o futuro destino da nação fluctuava ainda indeciso entre a Galliza e a
Lusitania.

                      *      *      *      *      *

Desde que o antigo condado portucalense, batido na sua tendencia de
absorver a Galliza, conquistava a região de entre Mondego e Tejo,
chegando a avançar padrastos ameaçadores para o sul, era evidente que um
novo Estado se formava; e esse Estado nascia dos actos proprios do conde
portuguez, não de concessões ou beneficios do suzerano. Esse Estado era
pois um reino, uma vez que a esta palavra andava ligada, de um modo mais
ou menos definido, a idéa da independencia, segundo o direito politico
dos godos. Foi, portanto, quando o plano de se apossar do sul do reino
começou a occupar o espirito do guerreiro, orgulhoso pela victoria de
Ourique, isto é, em 1139 ou 1140 (a erudição não conseguiu determinar a
éra) que Affonso Henriques tomou para si o titulo de rei. O caso não era
novo, porque por vezes a mãe usára chamar-se rainha de Portugal;
dava-se, porém, agora a circumstancia de que esse titulo, embora
juridicamente usurpado, o era com tamanho fundamento, que nunca mais
deixou de ser o dos soberanos portuguezes.

A razão politica da independencia, evidente hoje para a critica, não o
estava de certo para o rei, a quem as conquistas apenas satisfaziam a
ambição, e o titulo a vaidade. Via-se mais poderoso e grande; mas não
tinha de certo a consciencia de que isso importasse o primeiro passo no
caminho da formação de uma nova nação peninsular. Ferido, tirára do
sarraceno uma desforra completa; mas faltava ainda apagar a nodoa de
Tuy, rasgar esses tratados que ligavam, como vassalla, á corôa soberana
de Leão, a sua corôa ainda mal assente, o seu reino precario ainda. Uma
volta da fortuna podia outra vez precipital-o, das eminencias onde as
suas ambições o erguiam, na humilde condição de conde de Portugal.

Em Val-de-Vez Affonso VII assignára os preliminares de uma paz que os
acontecimentos dos annos posteriores não tinham consentido se traduzisse
n'um tratado definitivo; e agora não era já licito ao leonez exigir, nem
ao portuguez acceitar as duras condições de uma perfeita vassallagem.

O papado exercia então na Europa uma especie de suzerania espiritual
sobre os principes christãos; porque no meio d'esses guerreiros, bravios
e timidos como selvagens, o sacerdote tinha verdadeiramente o poder de
condemnar em nome de Deus.[38] Uma excommunhão valia muitas
vezes mais do que um exercito. Assim, o cardeal Guido, legado do papa, é
quem em 1143 dicta em Zamora, onde Affonso Henriques foi vêr-se com o
imperador (d'esse titulo usava Affonso VII) as condições do tratado de
paz. O portuguez desiste ahi das suas pretenções ás fronteiras cedidas
por D. Urraca, e Affonso VII por seu turno reconhece a independencia do
novo reino e o titulo do seu soberano. Esta soberania e independencia
não eram, porém, absolutas. Na jerarchia feudal havia graus diversos de
suzerania e vassallagem correspondente; e os tratados de Zamora
alteravam a natureza, mas não quebravam de todo os laços que prendiam
Portugal ao corpo da grande monarchia peninsular. Affonso Henriques
ficava sendo um rei, mas o seu reino nem por isso deixava de fazer parte
do imperio da Hespanha; nem elle proprio, por tal fórma, deixava de
ficar n'uma situação subalterna perante o imperador. Era uma vassallagem
politica, substituindo a pura vassallagem pessoal do regime anterior. O
direito feodal não se obliterára, porém, ainda ao ponto de prescindir de
uma obrigação pessoal; e por isso o soberano portuguez continuava a ser
vassallo do visinho, não como soberano, mas como senhor de Astorga, para
esse effeito doada a Affonso Henriques.[39]

Estas subtilezas propriamente byzantinas, inspiradas pela politica
ecclesiastica que imprimia o seu cunho ao feodalismo, formavam um
systema de enganos reciprocos, de mentiras mais ou menos sinceras, com
que se revestiam os actos brutaes da força, e os actos perfidos da astucia.

Affonso Henriques, _regendi imperii jam bene sciolus_, mestre acabado na
arte de enganar e na arte de combater, tinha já formado o seu plano, e
por isso subscrevia sem reserva a todas as exigencias do tratado. A
independencia e a soberania que elle lhe dava eram apenas pessoaes e
vitalicias, e nas idéas aristocraticas a hereditariedade era inseparavel
do dominio. O seu reino era pois um falso reino, desde que, não havendo
no direito politico dos godos outra base para a successão, além da
electiva, ou Portugal seria por sua morte absorvido no imperio
hespanhol, em via de cristalisação, ou o filho de Affonso Henriques
teria de recomeçar a debater com as armas a questão vital da
independencia. Os termos do tratado decerto o não illudiam,
garantindo-lhe apenas pessoalmente a independencia e a soberania; e se
da parte do leonez houvera o intento perfido de o enganar, elle
preparava uma licção ao mestre, e tão eloquente como fôra cruel a licção
que dera ao sarraceno.

Entre os dous litigantes o italiano perspicaz foi provavelmente o
conselheiro de ambos. Guido, como o insecto artificioso e cheio de
habilidades, teceu a trama. Ao leonez mostraria o modo de illudir o
adversario: conceder-lhe tudo, deixando esse tenue cordão umbilical de
Astorga, para no momento opportuno fazer reverter os territorios
portuguezes ao corpo da monarchia soberana. Voltando-se depois, com um
sorriso, diria baixo ao portuguez, que o tratado não valia nada de
principio a fim, se elle quizesse seguir-lhe os conselhos. Todas as
habilidades do imperador provariam inuteis: tinha um meio
seguro!--Affonso Henriques devia ouvir com attenção tenaz as
confidencias do cardeal. Havia um direito superior ao direito feodal:
era o canonico. Havia um soberano, rei dos reis: o papa. Porque não
seria Affonso Henriques vassallo do papa? Collocasse os seus reinos sob
a suzerania papal, e nenhum imperador das Hespanhas ousaria tocar-lhes.
Só assim a sua corôa ficaria segura na cabeça, d'elle e de seus
descendentes. A suzerania do papa era de resto infinitamente menos
incommoda. Reduzia-se a uma pequena somma de dinheiro. Um nada! Quatro
onças de ouro por anno, nem mereciam a pena contar-se deante da
independencia de facto. Se o rei acceitasse, elle proprio em pessoa
redigiria a carta, elle que redigira o tratado; elle proprio seria
portador da missiva ao papa. Se viera a Hespanha fazer a paz, iria de
Hespanha com o coração contente, por ter conquistado mais um vassallo
para a Egreja.--E mais um censo annual para o thesouro romano,
accrescentaria mentalmente!

Affonso Henriques desde logo acceitou. Pouco lhe importava o censo,
porque não tinha sequer a certeza de ser fiel ao pagamento. O cardeal
illudia-se, se suppunha que o rei tremia das excommunhões: um rei que
não havia de hesitar em rasgar as bullas pontificias, e pôr e depôr
bispos, como bem lhe approuvesse!

O cardeal partiu levando a carta do rei; e emquanto este ia formando a
tenção de supprimir o pagamento do censo, logo que lhe conviesse
fazel-o, o cardeal foi pela viagem ruminando o modo de colher as onças
de ouro, sem se inimisar com o leonez. Só annos depois Affonso VII veio
a saber como o visinho e já quasi émulo illudira as disposições do
tratado de Zamora. Insistindo com o papa para que recusasse a
vassallagem, não o consegue; mas tampouco Affonso Henriques consegue
aquillo por que pagára o preço de quatro onças de ouro annuaes; pois nas
piedosas cartas que lhe escreve, como suzerano a vassallo, o papa
cuidadosamente evita chamar-lhe _rei_, e _reino_ a Portugal.

Em vão Affonso Henriques insta e exige. Por fim, já nos derradeiros
annos do seu reinado, e á custa de um presente de mil morabitinos e do
augmento do censo annual, Alexandre III decide-se, e sancciona-lhe o
titulo, garantindo-lhe a hereditariedade, sob condição de preito e
confirmação outorgada aos seus successores.

                      *      *      *      *      *

Portugal, que já a esse tempo tinha uma razão de ser territorial
independente da Galliza, achava agora um fundamento juridico de
independencia de Leão. A suzerania do papa collocava o novo reino ao
abrigo das pretenções da monarchia leoneza; e se Affonso Henriques não
saía da condição subalterna de vassallo, porque apenas mudára de
protector ou suzerano, o facto é que na mudança ganhava uma liberdade
real, esperando o que de facto veiu a conseguir: que a vassallagem se
tornasse nominal apenas.

Ainda no tempo do primeiro rei portuguez de novo se ateia a guerra com
Leão; mas basta um exame superficial dos monumentos historicos para vêr
que o caracter e as condições d'essa nova campanha são já totalmente
outros. Não é um vassallo rebelde pugnando pela independencia: é o
choque de duas monarchias que reciprocamente se reconhecem como taes. A
serie de guerras entre os diversos estados da Peninsula--caminho por
onde ella chegou a determinar as condições definitivas das suas
constituições politicas--tem na campanha de 1160 um episodio. Affonso
Henriques, já rei de facto e de direito, já senhor da linha estrategica
de Santarem, e possuindo além d'isso, como vedetas avançadas para o sul,
varias praças do Alemtejo, dispunha de forças sufficientes para pesar
com a sua espada no debate das questões politicas dos Estados
peninsulares. Desde que se decidisse a fazel-o, é natural que a velha
ambição das fronteiras dilatadas de norte e nordeste fosse a causa
efficiente dos seus actos.

Fernando II de Leão casára com uma filha do rei portuguez, mas nem ao
genro nem á filha Affonso Henriques cedia os seus ambiciosos propositos.
Raras vezes a politica tomou em consideração os vinculos de familia. O
rei de Leão usurpára a corôa de Castella, e contava que a esposa lhe
trouxesse a alliança do portuguez; porventura teria havido
intelligencias positivas entre os dois monarchas. Quando com uma livre
audacia se rompiam as pazes mais solemnes, que admira que se mentisse a
convenios ou ajustes privados? Affonso Henriques era, como se sabe,
mestre na arte de reinar. O facto é que, logo um anno depois do
casamento da infanta, aproveita o momento em que o rei Fernando se
achava a braços com a insurreição dos castelhanos, para mandar seu filho
e herdeiro, Sancho, á batalha de Arganal, onde foi batido (1165).
Invadindo em pessoa a Galliza, o rei apossára-se facilmente de Tuy e do
districto de Toronho até ao Lerez, seguindo d'ahi para leste (1166).
Essa nova occupação portugueza da Galliza dura até ao desastre de
Badajoz (1169).

Correndo então ao sul, Affonso Henriques decide-se a consolidar as suas
possessões do Alemtejo, conquistando Badajoz aos sarracenos. Este acto,
porém, era simultaneamente um episodio da guerra com Leão, porque o wali
de Badajoz se collocára sob a suzerania de Fernando II, e porque a praça
ficava para fóra dos limites de leste, marcados em Zamora ás futuras
conquistas do rei de Portugal sobre os musulmanos.

A cidade caiu sobre o ataque do portuguez. Colhidos por surpreza, os
defensores encerraram-se na alcaçova, resistindo. Poz-se o cerco, mas
entretanto o rei de Leão, avisado, correu a defender o que era seu; e
Affonso Henriques foi colhido entre dois inimigos. De sitiante viu-se
cercado.

Afinal o temerario capitão caía em poder do adversario, afinal o caçador
colhia-o fóra do refoio. Debate-se, estrebuxa e, ainda vencido, lucta
desesperado; mas está pesado, velho e gasto. Faltam-lhe as forças para
arremetter como d'antes, com a cabeça baixa e as presas activas, contra
a matilha dos lebreus. Tropeça e cáe. É colhido. Cumpria-se o anathema:
Deus castigava o filho que prendera sua mãe! Prisioneiro, curva-se
submisso, recolhendo a colera e os dentes açulados, perante o seu nobre
vencedor. Tal nome convem de facto a Fernando II, cuja magnanimidade
perdoou as perfidias e ataques do visinho e sogro. «Restitua o que
roubou, guarde o que é seu, e vá em paz!» Cabisbaixo, com o joelho
ferido, a coxear, Affonso Henriques parte d'alli a Santarem, concluir o
que lhe resta de vida. Não tem coleras, nem fundas magoas pela afronta
que soffreu: só lamenta a virente Galliza, perdida para todo o sempre.

Como o avarento, em cuja alma a paixão exclusiva absorveu todos os
sentimentos e paixões humanas, assim na alma de Affonso Henriques a
monomania da conquista, doença vulgar nos principes da Edade-média,
atrophiára o desenvolvimento de tudo o mais. Mas, se entre os consocios
de uma patria irman, se entre os herdeiros de uma historia commum, ha o
amor por essa patria e a veneração pelos antepassados, nenhum merece na
alma dos portuguezes respeito maior, do que o primeiro de todos aquelles
a cujo braço esforçado se deve a obra da constituição politica da nação.
N'este sentido as manias chegam a ser sublimes. Um salteador é, não
raro, um verdadeiro heroe; a perfidia é uma virtude, a crueldade é um
titulo de gloria, porque o espirito collectivo substitue o criterio
moral e abstracto pelo criterio historico, o qual tem como base a
consagração dos factos consummados.

A separação de Portugal foi um facto consummado, graças ao valente
mediocre, tenaz, brutal e perfido caracter de Affonso Henriques.

    [32] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.), liv. III, 1.

    [33] Resumimos á politica o campo das nossas observações, por
         termos deixado na _Hist. da civil. iberica_ desenhados
         os traços geraes dos movimentos propriamente sociaes. V.
         Livro III; pass.

    [34] V. _Hist. da repub. romana_, I, pp. 309-48.

    [35] _V. Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) pp. 113 e segg.

    [36] V. _Instit. primitiv._, p. 215.

    [37] V. _Instit. primitivas_, p. 165.

    [38] _Th. da hist. universal_, nas _Taboas de chronol._, XXXII-III.

    [39] V. _Quadro das instit. primit._, pp. 267-75.

                      *      *      *      *      *




II

A conquista do Al-Gharb


Nas suas emprezas contra Leão, Affonso Henriques, batido sempre como
guerreiro, conseguira desforrar-se dos desbaratos com a astucia. Das
duas faces que apresenta a historia da fundação da monarchia, vimos a
primeira: resta-nos vêr a segunda. Assistimos aos actos do politico;
vamos assistir agora ás fecundas emprezas do conquistador.

O principe trazia para a guerra as manhas da côrte, sem prejudicar a
firmeza necessaria, a bravura, o sangue-frio e a audacia. Com este
conjuncto de elementos dava um caracter original á guerra (_novo genere
pugnandi_). Ia de noute, ás escondidas (_furtim_), como um chefe de
bandidos em assalto a algum villar, fortificado, no pendor de uma serra
distante (_quasi per latrocinium_). Assim investiu e tomou Santarem.
«Assim conquistou a maior parte dos castellos das provincias de Belatha
e Al-Kassr, este inimigo de Deus!» diz o chronista arabe. O ponto de
ataque era de antemão escolhido. Por uma noute escura e tempestuosa
punha-se a caminho com um troço de homens resolutos: dir-se-hia uma
quadrilha de salteadores. Galgavam rapidamente as distancias, e chegados
ao destino, apeiavam-se, approximando-se caladamente dos muros. Affonso
Henriques encostado á escada, era o primeiro a subir com o punhal preso
entre os dentes. Parava, escutava, com o olhar agudo, a respiração
suspensa: afinal pousava ancioso o pé entre as ameias, e apertando o
punhal nas mãos, cozia-se com os muros. Na sombra não o distinguiam.
Caía como um falcão sobre a sentinella, e apunhalava-a antes que ella
podesse tugir um grito. Entretanto os companheiros iam subindo. O bando
reunia-se na esplanada, armado e resoluto, o ao grito de «Santiago!»
caía sobre a guarnição adormecida e trucidava-a. «Tal foi o modo por que
este inimigo de Deus tomou a maior parte dos castellos das provincias de
Belatha e Al-Kassr!»

Havia porém ainda outra maneira de guerrear, cuja invenção não pertence
a Affonso Henriques: era o systema de álgaras, fossados ou correrias,
atravez dos extensos territorios fronteiros. De um lado e de outro,
n'uma zona mais ou menos larga, conforme o ordenavam a constituição
geographica e a estrategia, desdobravam-se as charnecas periodicamente
assoladas. Aqui e além, apertadas em cintos de muralhas, ficavam as
povoações, em cuja volta, como oasis, appareciam malhas de terrenos
agricultados. Confiar ao nervo e á velocidade dos cavallos o transpôr as
passagens perigosas d'esses desertos onde as sortidas dos castellos
podiam cortar a retirada, e cair impetuosamente sobre as searas,
incendiando-as, sobre os rebanhos, roubando-os, sobre os tardivagos,
matando-os; talando os campos, cortando as arvores, incendiando as
casas, e voltando rapidamente com as prezas feitas: tal era o processo
egualmente seguido por christãos e sarracenos; reduzido já a um systema
de invasões annuaes na epocha das colheitas, e contado como principal
recurso financeiro da rude economia do tempo.

Se a tomada de Santarem (1147) é um typo da primeira especie, a batalha
de Ourique, ou Orik (1139), é o typo da segunda. A fortuna accendia a
audacia de Affonso Henriques, que levou o fossado por entre as fortes
posições de Santarem e Alcacer, deixando Palmella, Cintra e Lisboa na
retaguarda; atravessando o Tejo, para ir talar os campos de Chelb ou
Silves, emporio sarraceno da Hespanha lusitana. Poucas vezes, porém, um
fossado era apenas uma correria e um saque. As guarnições dos castellos
passavam signal, combinavam sortidas; e o episodio de uma batalha
acompanhava quasi sempre a obra de depredação. A batalha de Ourique,
qualquer que tivesse sido a importancia numerica dos combatentes, deu a
Affonso Henriques uma victoria que o encheu de animo para entrar em
campanhas mais regulares e fecundas.

Os primeiros nove annos do governo do principe tinham sido absorvidos
pelas questões leonezas, quando em 1137 uma invasão sarracena veiu
destruir Leiria, que elle erguera para defender Coimbra das subitas
investidas dos inimigos. Ourique desforrou-o do desastre, que o rei por
outro lado remediava reconstruindo o castello, então fronteiro do
extremo sul dos seus Estados. Mas logo o musulmano responde, voltando
como uma onda que, alastrando o territorio christão, vae rolando até aos
altos de Trancoso, deixando pela segunda vez derrubadas as muralhas de
Leiria. Affonso Henriques consegue dominar a invasão, que retrocede ao
abrigo da linha do Tejo; e retribue logo a visita com uma tentativa
frustrada sobre Lisboa. Depois, alliado ao wali de Mertola contra o de
Santarem, vae assolar os districtos de Merida e Beja. Nos intervallos
d'estas correrias, o rei ferira as batalhas do tratado de Zamora, e
ganhára a victoria que lhe preparou o cardeal Guido.

O periodo de dez annos que está entre 1137 e 1147 offerece n'estas
guerras o aspecto de um movimento que oscilla, como um pendulo suspenso
de um ponto que é Lisboa: invasões sarracenas para o norte, portuguesas
para o sul do Tejo, instabilidade de resultado de ambas. O eixo d'este
movimento era evidentemente Lisboa e o systema das suas linhas de
defeza--Cintra-Almada-Palmella-Santarem. A conquista da linha do Tejo
tornava-se a condição indeclinavel, não já do alargamento, mas até da
conservação da monarchia de Affonso Henriques.

Demasiado, porém, sabia elle que os recursos militares de que dispunha,
se chegavam para os fossados annuaes, se bastavam para conquistar _quasi
per latrocinium_ os castellos isolados, eram demasiado escassos para
tentar empreza tão vasta como a da conquista do systema de fortalezas
que formavam o nucleo defensivo do centro do que foi depois o reino
portuguez. Na tentativa frustrada que fizera sobre Lisboa em 1140 fôra
ajudado por uma esquadra de Cruzados. As suas esperanças estribavam-se
n'um auxilio d'essa ordem: até porque, sem forças navaes para entrar no
Tejo--ainda então não havia marinha militar--seria absurdo tentar a
empreza.

Entretanto, sete annos iam passados depois d'essa primeira apparição dos
Cruzados, sem que outros viessem proporcionar-lhe occasião para realisar
os seus designios. Impaciente, orgulhoso ainda com o resultado da
correria de Beja (1145), seguro do lado de Leão pelas pazes de Zamora,
forte pela confirmação do seu titulo, confiado na protecção papal--o
sangue pula-lhe nas veias, e decide tomar Santarem, (1147) _á sua moda_,
isto é, por surpreza. Pela calada da noute appareceu á raiz das muralhas
da villa. Pozeram-se escadas. Subiu um furtivamente e abafou uma _vela_
(sentinella); depois subiu outro, depois terceiro, «e depois que todos
tres foram em cima do muro, a vela que estava em cima do caramancham,
quando sentiu Mem Moniz que se ia alongando, disse-lhe: «Manahu!» e elle
respondeu-lhe em aravia e fel-o descer, e logo que foi em baixo
cortou-lhe a cabeça e deitou-o aos de fóra. E então elles poseram outra
escada e subiram por ambas o mais toste que poderam, e foram tantos que
se apoderaram do muro e britaram as portas por onde entraram elrey e os
que com elle foram. E d'esta guisa foi furtada a villa de Santarem aos
mouros.» O resultado correspondeu pois ao plano, e quem sabe se a
temeridade teria arrastado o rei a proseguir do mesmo modo contra
Lisboa? Não foi, porém, necessario. Esse anno vieram os Cruzados[40] por
quem suspirava, e com elles metteu hombros á empreza.

A guerra toma desde então um caracter regular de cercos e campanhas. Os
meios correspondem aos propositos, e estes á idéa da nação que começava
a definir-se.

                      *      *      *      *      *

A tomada de Lisboa lavra a acta do nascimento da nação portugueza, até
ahi envolvida nos limbos da geração. O cerco affigura-se-nos como o
concilio internacional, uma especie de congresso guerreiro, em que a
Europa baptisa o recem-vindo á luz da historia. Creado pelos actos
geradores da vontade de um homem, abrigado pela égide da Egreja,
Portugal tem a existencia confirmada pela sancção dos exercitos cruzados
da Europa. O caracter cosmopolita da sua vida futura, da sua ulterior
phisionomia politica, parece ter-lhe sido desde logo imposto, como um
baptismo, quando, em frente d'essa piscina do Tejo, onde fundeiam
duzentas naus coroadas pelos pavilhões de tantas nações da Europa, se
estende o cordão do exercito de flamengos, lotharingios, allemães e
inglezes.

As columnas dos cavalleiros cruzados combatem ao lado das mesnadas dos
barões portuguezes, estendendo-se em meia lua, a investir o morro de
Lisboa; e com as pontas apoiadas contra o rio, formam metade do cinto
que a armada, fundeada no Tejo, encerra. Com os frankos e inglezes,
colossaes de estatura, rubros de sangue, herculeos de musculos, vêem
italianos sagazes, mestres consummados na arte das minas ou sapas. Sobre
os navios e do lado da terra a arte acorre em auxilio da força. Os
inglezes montavam as suas manganellas ou catapultas, os frankos as suas
torres; e Affonso Henriques pasmava d'esses maravilhosos instrumentos
deante dos quaes a escada e o punhal do salteador nocturno pareciam
miseraveis. Acaso a comparação offendia a sua opinião, bem fundada, de
atrevido; acaso achava mais rapido e simples confiar o resultado aos
seus expedientes favoritos de condôr: o facto é que decidiu começar por
um assalto. Foi no dia 3 de agosto que pela primeira vez rebombou a
trovoada dos golpes do moganons, o stridente sibilar das settas
despedidas do alto das torres, e das pedras soltas das fundas,[41]
o clamor apocalyptico dos combatentes, erguendo um côro de
imprecações ferozes, proferidas nas mais desvairadas linguas. Á tormenta
dos sons respondiam os relampagos do pez, do azeite, da estopa
incendiada, que os muros de Lisboa vomitavam sobre os assaltantes,
ajudando o sol que, illuminando a scena, congestionava as cabeças dos
filhos da algida Germania, da Britannia ou da Frankonia. Ás ondas de
lume, ao lume do sol, veio juntar-se um novo clarão de chammas e de
grossas voltas de fumo negro que subia cravejado de scentelhas a
perder-se no ar: as torres ardiam! O assalto era repellido; a tentativa
falhára.

Começou o cerco. Em poucos dias a voracidade feroz dos homens louros do
norte destruiu quanto havia em torno de Lisboa: hortas e pomares,
villas, cazaes e granjas. Dentro da cidade escasseiavam os mantimentos,
e bandos de soldados fugiam com fome: do alto dos muros, os que ficavam
perseguiam-nos com surriadas de pedras. Os gastadores minavam, atulhando
a sapa com lenha cortada nos arredores: no dia decisivo, o fogo,
consumindo esses transitorios esteios, roubaria a base ás muralhas. Os
italianos construiam uma grande torre, que ficou terminada em meiado de
outubro, quando a resistencia de Lisboa tocava o extremo. Queimaram-se
os robles da sapa, assestaram-se os tiros, prepararam-se as columnas de
soldados, e deu-se o assalto, logo que se ouviu o estrondo de um panno
inteiro das muralhas que se derrocava do lado do oriente.

Lisboa capitulou. Os Cruzados cevaram o amor do ouro, da prata, e das
mulheres formosas, (_auri et argenti et pulcherrimarum fæminarum
volupias_) que os levava á Syria; e Affonso Henriques tomou posse da
cidade. As fortalezas satellites de Lisboa não podiam resistir: Cintra,
Palmella, e Almada Cairam em curto espaço nas mãos dos vencedores.

A base geographico-maritima de Portugal estava ganha para não mais se
perder; e se o rei fôra o author do facto da separação, era o rei quem
todos os dias ia adiantando a obra de uma independencia positiva e
formal. Lisboa não valia menos, para tal fim, do que a protecção de Roma.

                      *      *      *      *      *

Esses dias de Zamora e de Lisboa (1143 e 47) marcaram o apogeu do
reinado do primeiro monarcha portuguez. Batido em Badajoz pelo genro
leonez (1169), foi-o tambem nas suas novas conquistas, pelo sarraceno
(1161-71). Affonso Henriques não era já o mesmo homem: a edade
quebrára-lhe o vigor de outros annos; e o perdão de Badajoz e as armadas
dos Cruzados deviam ter quebrado tambem a cega confiança que punha nos
seus recursos e habilidades. Via que no coração dos homens podia haver
mais do que ambição e manha; e na arte da guerra processos mais valiosos
do que a escada e o punhal, a _razzia_ e o assalto nocturno. Taes
observações, acompanhadas pela ferida do joelho que o conservava tolhido
roiam o velho capitão no seu antro de Santarem (1171).

O enthusiasmo da tomada de Lisboa tinha-o impellido a proseguir,
aproveitando a commoção triste dos vencidos e o apparecimento de novas
frotas que agora, christan Lisboa, demandavam o Tejo, para refrescar,
nas suas viagens para a Palestina.

Al-Kassr, ou Alcacer-do-Sal, era, para além de Lisboa, o centro
estrategico da linha de defeza do Alem-Tejo, que guardava Chelb ou
Silves. Logo depois de rendida Palmella, Affonso Henriques, confiando
demasiado nas proprias forças, investira, só e ao modo antigo, o
castello de Alcacer, mas fôra cruelmente vencido (1151). Annos depois,
vale-se do auxilio de uma frota ingleza, sem conseguir render a desejada
praça (1157), que afinal cáe perante o ataque combinado das forças
portuguezas e alliadas da Cruzada de 1158. Evora e Beja cedem tambem por
essa occasião; e dir-se-hia que Silves, desguarnecida da sua linha de
fortalezas fronteiras, ia cair rapidamente nas mãos do afortunado principe.

Não era, porém, assim. Essas successivas conquistas das praças do
Alemtejo não tinham a importancia decisiva que tivera a de Lisboa.
Levantadas como pontas de rocha isoladas, no meio dos vastos campos
desolados, as praças do Alemtejo offereciam aos guerreiros abundantes
prezas; e por isto os Cruzados de tão boa vontade paravam aqui, a
preludiar na Hespanha o programma feito para a Syria. Saqueadas,
incendiadas, porém, ou arrazadas, o seu valor para o reino era por certo
lado pequeno ou nullo. O rei não dispunha de forças bastantes para
guarnecer tão numerosos castellos e tão dilatadas fronteiras. Já para
conseguir manter a linha do Tejo, tivera de doar ás ordens
monastico-militares estrangeiras (Hospital, Templo, Santiago) as praças
rayanas de Thomar, de Palmella, de Leiria. Os territorios despovoados e
nús não vinham augmentar-lhe o numero de soldados, nem a riqueza. Para
que isso succedesse era mister que a paz e o tempo fomentassem o
desenvolvimento natural das forças economicas. Assim, desde que as
armadas dos Cruzados, abarrotadas de prezas, largavam a bahia do Tejo,
Affonso Henriques, tornando a achar-se a sós com os seus recursos
militares, era forçado a abandonar as conquistas avançadas do Alemtejo.
Annos havia, tomára e deixára Beja: e agora (1158), das praças
conquistadas, apenas guarnecia e conservava Alcacer.

Estas campanhas do Alemtejo estão perante Silves como, antes, as da
Estremadura perante Lisboa: emquanto o sarraceno pisar o Algarve, serão
precarias todas as conquistas n'este largo trato de terreno devastado
que não poderá nutrir-se e prosperar, emquanto não estiver ao abrigo das
invasões. Porque não foi Affonso Henriques cair directamente sobre
Silves, aproveitando-se de alguma esquadra de Cruzados, em vez de
consumir as suas forças na empreza esteril das correrias, conquistas e
saques das praças do Alemtejo? Porque evidentemente lhe faltava a larga
vista das aguias dominadoras, tendo só o que é commum a todas as aves de
rapina: o ataque fulminante, e a garra cheia de força e tenacidade.

Depois de saquearem Alcacer, os Cruzados tinham partido; e a noticia dos
successivos desastres dos ultimos onze annos decidira os almuhades[42]
a tratar seriamente de pôr cobro aos progressos de Affonso
Henriques. Invadem o Alemtejo; e junto de Alcacer, seis mil portuguezes
mortos, o exercito desbaratado, decidem a perda de todo o Alemtejo
(1161) pondo em perigo Lisboa. Os sarracenos chegaram a tomar Palmella e
Almada, mas julgaram prudente abandonar esses pontos destacados na
peninsula de entre o Tejo e Sado. Desde que outras emprezas obrigaram a
retirar o exercito almuhade depois de fortificar Alcacer, já Affonso
Henriques, e os seus discipulos em aventuras podiam á vontade recomeçar
as correrias e assaltos. Effectivamente, em 1162, um troço de burguezes
toma Beja por surpreza; e em 1166 um bando de salteadores, com Giraldo á
frente, de escada ao hombro, punhal nos dentes, entra uma noute em
Evora, que saqueia e atulha de cadaveres. Eram portugueses? eram
sarracenos? eram de uns e d'outros; eram uma das muitas companhias de
bandidos que batalhavam por conta propria, sem noção de patria a que
pertencessem, nem de religião que seguissem. Tinham por culto apenas a
ladroagem, e adoravam o deus do estupro, do saque, da matança. Eram de
todas as nações; e falavam uma algaravia, mosarabe nos christãos,
_most_'latina nos musulmanos--uma lingua franca.

Affonso Henriques não podia socegar vendo essas façanhas. Eil-o outra
vez a cavallo, Alemtejo em fóra, a correr charnecas e arremetter
cidades: Moura, Serpa, Alconchel, e, internando-se pela Estremadura
hespanhola, Caceres o Tordjala, ou Trujillo (1166). Essa era a sua
paixão, o seu furor. Que importa, se, apenas voltava costas, logo se
erguia de novo a bandeira musulmana nas muralhas que escalára á traição?
Elle tambem voltaria, no verão seguinte, a repetir a sua façanha. E
assim, por falta do genio militar do conquistador, as scenas
repetiam-se, os castellos passavam successivamente de mão em mão, e
portuguezes e sarracenos apenas podiam chamar seu ao terreno que
actualmente pisavam. Se as forças proprias do portuguez lhe não
consentiam outra cousa: se, sem o auxilio dos Cruzados, não podia
abalançar-se á empreza de Silves, melhor fôra sacrificar a paixão ao
interesse proprio, consolidando o dominio, do que pôr em perigo o
Portugal cistagano, por consumir de um modo esteril as forças militares
do novo reino nas correrias transtaganas. O rudo capitão não tinha porém
intelligencia para tanto: a correria arrastava-o, a presa seduzia-o, e a
guerra governava-o a elle, em vez de ser elle quem governava a guerra.
Sem plano fixo, á toa, á aventura, internára-se até Trujillo e queria
tomar Badajoz, invadindo territorios que, apesar de sarracenos, eram
vassallos do visinho monarcha de Leão. A sua loucura teve a sorte de
todas as loucuras; e já o vimos coxeando e duplamente ferido, no joelho
e nos brios, caminhar a esconder a sua vergonha em Santarem (1169).

O desastre de Badajoz devia ter soado por todo o Al-gharb, onde as
correrias e façanhas do bando de Affonso Henriques espalhavam a angustia
e o terror; e o musulmano, inimigo por patria e religião, não devia ao
bulhento principe a generosidade magnanima do genro leonez. Um novo e
poderoso exercito transpõe o Tejo, e vem cercar o ferido em Santarem
(1171). Acode-lhe Fernando II que, como verdadeiro rei, sabia calar os
resentimentos pessoaes, deante de um perigo commum para todos os
principes christãos da Peninsula. Duas vezes salvo pelo genro que o
vencera; humilhado, abatido, ferido e velho, Affonso Henriques já não é
o irrequieto soldado de outros tempos. Santarem que ganhára por esforço
proprio, escalando os muros, era o seu tumulo. Ahi n'um leito gemia
dores de muitas especies: todo o Alemtejo estava perdido; e agora (1184)
Jussuf, o grande émir de Marrocos, vinha em pessoa, dirigindo o
exercito, cercal-o outra vez. Acudiria o genro outra vez a salval-o?
Cinco annos havia que o exercito musulmano passeiava triumphante pelos
seus reinos. Não pudera entrar em Abrantes, mas tinha destruido Coruche,
que era para a defeza de Lisboa e da linha do Tejo, como fôra Leiria
para Coimbra e para a linha do Mondego. Evora apenas resistiria ás
invasões, que tinham levado Alcacer e Serpa, Beja, Moura, Jerumenha e
todo o Alemtejo (1179-82). Como o javali, encerrado no covil e perdido,
o guerreiro contava as horas, e antecipadamente sentia o penetrar das
lanças nas suas carnes abatidas pela edade, e o quebrar dos seus ossos
tão rijos ainda, mas mal governados pelos tendões flacidos. Chorava;
talvez se arrependesse dos seus erros. Feliz porém mais uma vez, os
acasos imprevistos concorriam para o salvar. Á magnanimidade do genro
devera o não ter ido acabar n'alguma masmorra escondida nas montanhas
das Asturias; e a esta circumstancia, verdadeiramente excepcional, de um
principe generoso, devera tambem o salvar-se do primeiro cerco. Em vez
de Fernando, que não acudiu agora, veiu em seu auxilio a sorte que matou
o émir de Marrocos, e espalhou uma peste no meio do exercito almuhade.

Levantou-se o cerco, Affonso Henriques pôde respirar ainda livre os
ultimos annos da sua já acabada vida.

                      *      *      *      *      *

O pensamento que elle não soubera ou não pudera realisar, coube ao filho
e herdeiro pôr em pratica. O modo serio de conquistar o Alemtejo era ir
com os Cruzados, por mar, investir Silves. Logo que Sancho I herdou o
reino, e desde que appareceu no Tejo a primeira armada, decidiu-se levar
a cabo a empreza. Já então havia uma frota portugueza; e se á
constituição geographica do corpo da nação faltava a metade meridional,
o coração, Lisboa, pulsava já independente e vivo; os navios da primeira
expedição do Algarve são d'isso a prova. Abria-se agora uma segunda
epocha; e, ou filha do genio do monarcha, ou proveniente da expansão
natural das forças nacionaes, ou resultado das duas causas combinadas, o
facto é que, entrados n'uma segunda edade, respiramos um ar diverso,
observamos um typo differente e uma nova phisionomia da nação.

Consolidam-se as conquistas, povoam-se e fortificam-se as villas, começa
a esboçar-se a administração, abandona-se a guerra de escada e punhal.
Ha um pensamento na politica e uma idéa nas campanhas. Sancho I é já um
rei: Affonso Henriques fôra como um bandido, á imitação de Pelayo.

O districto de Chenchir ou Al-faghar--assim os arabes denominavam o
nosso moderno Algarve,--era o que é hoje ainda: um jardim estendido
sobre a costa, e apoiado contra um muro de serras que o defendem dos
ventos do norte. A guerra não conseguira mirral-o, como succedeu á costa
da Berberia, fronteira. Retalho da Africa, scindido pelo mar do Calpe,
no Algarve tinham os arabes achado um pedaço da sua patria. O clima, a
flóra, não eram bem europeus; e quem, nos fins do XII seculo, visitasse
Silves, ou Chelb, dir-se-hia transportado a uma cidade oriental. D'entre
as varias raças que tinham vindo á Peninsula, foram os arabes do Yemen
que principalmente a povoaram. Chelb ao sul, Hayrun (Faro) mais ao
norte, eram as duas cidades principaes do Al-faghar; mas a primeira
excedia em muito a segunda. Contava cerca de trinta mil habitantes, era
opulenta em thesouros e formosa em construcções. Davam-lhe a primazia
entre as cidades da Hespanha arabe. Vestida de palacios coroados pelos
terraços de marmore, cortada de ruas com bazares recheiados de
preciosidades orientaes, cercada de pomares viçosos e jardins, Chelb era
a perola de Chenchir, onde os prodigos da Mauritania vinham gosar com as
mulheres formosas, de puro sangue arabe, os seus ocios luxuosos. Era ao
mesmo tempo uma praça temivelmente fortificada.

Quando pela primeira vez as armadas combinadas, dos portuguezes e dos
Cruzados, appareceram na costa de Al-faghar, Chelb intimidou os
guerreiros frisios e dinamarquezes, a ponto de lhes dominar a avidez com
que namoravam uma preza de tamanho quilate. Não se atreveram a atacar,
limitando-se a tomar Albur (Alvôr), e retirando com um saque abundante.

Para os Cruzados, homens louros do norte que, sob a ingenuidade azul dos
olhos, escondem uma crueldade fria e pratica e um desvairado appetite
dos gosos vedados aos climas setentrionaes, a empreza de Chelb tinha o
valor da riqueza a roubar, das bellas mulheres, d'esse Oriente
mysterioso e seductor, a gozar sobre os leitos de sedas da India ou nos
fôfos tapetes da Persia. Eram voluptuosidades que antegostavam;
calculando ao mesmo tempo os thesouros de pedrarias, os marfins, os
estofos preciosos, a myrrha, o incenso, os metaes reluzentes, com que
voltariam ás suas agrestes serras, ás suas costas algidas, deslumbrar as
noutes veladas á luz baça da candeia, de azeite de phoca. Positivos e
praticos ao mesmo tempo, mediam bem o impossivel da aventura, e por isso
preferiram á temeridade de atacar Chelb, a modestia de saquear Albur.
Bastava-lhes o que levavam.

Não succedia outro tanto a Sancho I. A conquista do Al-faghar tinha para
elle um alcance maior. E os portuguezes mais familiarisados com as
seducções dos costumes arabes, menos sensiveis ás tentações da carne,
mais abertos aos arrebatamentos da paixão, como todos os homens do sul,
tinham um proposito mais firme e intenções diversas.

Logo depois da primeira tentativa frustrada no proposito essencial,
appareceu no Tejo uma segunda e mais poderosa armada de guerreiros do
norte. Decidiu-se então a conquista de Silves. Sancho e as tropas
portuguezas iriam por terra, atravez do Alemtejo, investir a cidade pelo
norte, cortando os soccorros de Alcacer e das demais praças
transtaganas: emquanto as armadas combinadas iriam por mar e, subindo a
ria de Silves, poriam o cerco pelo sul, apoiando-se nos navios.

Silves, collocada n'uma eminencia e defendida por fortes muralhas, em
cujo recinto, no coração da cidade, se erguia a almedina ou alkassba,
estava ligada a uma torre albarran por uma couraça. A torre defendia uma
vasta cisterna que dava agua á cidade: conquistal-a seria, portanto, o
preludio do cerco. Desembarcados, os Cruzados começaram por assolar os
arrabaldes, destruindo quintas e casaes, trucidando os tardivagos,
incendiando e roubando, segundo a regra invariavelmente seguida n'estas
emprezas. Quando em torno dos muros não havia mais do que destroços,
ruinas e cinzas, atacaram a torre albarran. Foi em 21 de julho de 1189,
esta primeira tentativa frustrada. Em 29 chegou por terra el-rei Sancho,
cerrou-se o cerco, e prepararam-se os meios do ataque decisivo. Os
sitiados, no desespero, açulavam o furor e a cubiça dos inimigos com
insultos e crueldades. Nas ameias da torre albarran penduravam pelos pés
os prisioneiros christãos; e alli, em frente do exercito, como exemplo e
ameaça, matavam-nos ás lançadas. Era ardente o furor, incansavel o
trabalho. Estavam preparadas e promptas as machinas de guerra: começaram
os assaltos. Os allemães tinham montado um vae-vem coberto, cujas pontas
de ferro trabalhavam impunemente na derrocada dos muros: era a _origa_
dos gregos, a _testudo_ de Vitruvio, o _ericius_ das guerras dos
romanos, em portuguez _ouriço_--uma catapulta couraçada contra as massas
de estopa a arder em azeite que sobre ella os defensores vasavam. Muitas
torres, numerosos trons batiam os muros e levantavam os sitiadores á
altura das ameias. A albarran caíu por fim, entulhou-se a cisterna. As
fontes dos pateos ajardinados de Chelb deixaram de correr, e a sede veiu
auxiliar as machinas e as armas dos christãos. Os musulmanos,
fortificados na almedina, resistiam, comtudo.

O cerco entrava desde esse momento n'uma phase nova. Os assaltos
repetiam-se, infructiferos, e a alkassba parecia intomavel.
Soccorreram-se ás artes dos mineiros de Italia; mas os arabes eram
egualmente mestres na engenharia. As galerias subterraneas cruzavam-se,
encontravam-se, rompiam-se. Fatigados de pelejar em vão, á luz de um sol
abrazador, transferiram os combates para o coração da terra. Os
gastadores eram soldados, e rijas batalhas eccoaram n'essas galerias. A
lenha accumulada ardia presa do fogo; e á luz das chammas, buscavam-se,
um a um, os inimigos, ferozes como tigres, punhal ou alfange em punho, e
estrangulavam-se, despedaçavam-se, como feras. O crepitar do fogo
acompanhava as imprecações roucas, e nos olhos havia mais chammas do que
nos montes de troncos e ramos incendiados. O sangue corria dando á lama
das galerias subterraneas a côr do barro com que em tempos mais felizes
os arabes ladrilhavam os seus eirados alegres e os seus pateos ajardinados.

A furia dos combates era excitada pelos calores da sêde. Os sitiados
ardiam em febres. Viam-se nús estendidos sobre as lages das ruas, sobre
os ladrilhos das casas, para refrescar a pelle. Comiam o barro do chão.
Estorciam-se, desesperados, e morriam pelas esquinas. As ruas deixavam
apodrecer os cadaveres, e as mães engeitavam os filhos, quebrando-lhes
os craneos tenros contra as umbreiras das portas.

Nos sitiantes a furia era outra. Durava já um mez o cerco, o não fôra
para tão demorada campanha que os Cruzados tinham vindo. A alkassba não
caía! os perros musulmanos não se rendiam! Entretanto elles, Cruzados,
iam morrendo de feridas, de insolações; e o despojo promettido não
chegava. Não podiam perder assim o seu tempo. Isto diziam uns; outros
não queriam abandonar o trabalho gasto, e despedir-se de uma presa meio
conquistada. Sancho I, desanimado, pensou em retirar. Então rebentaram
as iras; porque a segunda opinião vencera no animo dos Cruzados. Quasi
chegaram ás mãos, os portuguezes e os homens louros do norte. Finalmente
a alkassba rendeu-se nos primeiros dias de setembro; mas isso deu logar
a novas rixas. O rei queria uma cidade, e não um despojo. Os Cruzados
queriam o contrario. Sancho offereceu pagar-lhes o valor da presa; os
Cruzados recusaram. Havia uma cousa que o rei não podia pagar com ouro:
era o delirio do saque, a orgia das matanças e dos estupros. Esses
ferozes caçadores de mouros queriam retoiçar-se pelo interior das
alcovas mysteriosas, e enterrar os braços nas arcas dos thesouros,
ensopar em sangue as almofadas macias sobre que iam abraçar as morenas
filhas do Yemen.

Cevados, partiram logo. Sancho pedia-lhes que acabassem a empreza,
tomando Hayrun. Recusaram; não queriam arriscar os lucros, e estavam
turgidos de goso. Só ambicionavam tornar á patria, para contar os seus
feitos, e depôr aos pés das louras e ingenuas donzellas do norte, de
suas noivas e de suas filhas, os collares, os brincos, as manilhas de
ouro arrendado, que tinham roubado nos leitos, com a honra e a vida, ás
filhas de Mafoma.

Sancho I, não podendo seduzil-os, nem convencel-os, desistiu da empreza;
e deixando Silves guarnecida, e occupado o oeste do Algarve, retirou
para o norte. Afim de consolidar a conquista, tomou Beja. Mas, emquanto
o velho Faro se conservava em poder do sarraceno, não devia o rei
portuguez considerar seu o Al-faghar.

                      *      *      *      *      *

Effectivamente durou pouco o primeiro dominio portuguez no extremo sul
do reino. Quando o filho de Jussuf, Jacub, chegou a soccorrer Chelb, já
a cidade estava perdida; e elle não soube ou não pôde retomal-a.
Vingou-se irrompendo pelo reino; e, galgando o Tejo, assolou a
Estremadura toda, pondo cerco a Thomar. Tampouco soube ou pôde vencer, e
retirou-se; mas para voltar no anno seguinte. Então Silves caíu de novo
em poder do sarraceno (1191) que, victorioso, tomou Beja, e na sua
_gaswat_ fulminante, veiu ameaçar Lisboa, desde os muros de Almada,
conquistada.

Portugal recuava outra vez aos limites do Tejo; porém Silves, embora
perdida, indicava o futuro inevitavel d'este longo e mortifero duello. O
rei occupava-se em consolidar os seus Estados, povoando, e organisando a
administração. Na impossibilidade de levar a cabo a conquista do
Al-faghar, enfraquecido militarmente o reino pelas correrias,
desilludido sobre a efficacia do auxilio dos Cruzados, abandonou com
razão o systema das álgaras e surprezas, com que, sem conseguir
manter-se um dominio estavel, se extenuavam as forças vivas da nação. O
seu governo sabio preparou as decisivas emprezas posteriores.

A primeira d'essas foi a tomada de Alcacer em 1217. No tempo de Affonso
II já os portuguezes se tinham achado na batalha das Navas de Tolosa
(1212), em que os principes christãos da Peninsula, tomando uma cruel
desforra do desastre de Alarcos, deram o ultimo golpe no dominio
sarraceno. Affonso II não tinha amor pela guerra. O lado organisador e
administrativo do governo de seu pae imprimira-lhe paixões pacificas.
Instigava-o ainda mais a sua avareza natural, e a condição dura em que a
fraqueza dos ultimos annos de Sancho I o collocara, por ter doado o
reino inteiro, thesouros e castellos, aos nobres e ao clero. Affonso II
não quiz tomar parte da empreza de Alcacer, porque andava occupado a
reivindicar para si o reino.

Kassr-al-Fetah, Castello-da-porta ou da entrada, se dizia essa chave do
Alemtejo; e sem a posse de um tal ponto estrategico, eram vans as
tentativas de consolidação do dominio portuguez ao sul do Tejo. Castello
sobre todos nocivo, chamam-lhe as memorias coevas, (_Castrum super omnia
castra nocivum_, GUSUINI CARMEN) porque d'ahi iam annualmente para
Marrocos cem prisioneiros christãos, arrebatados aos territorios
fronteiros até Lisboa, nas álgaras de todos os annos.

Com o auxilio de uma forte esquadra de Cruzados, Alcacer ficou
definitivamente em poder dos christãos no meiado de 1217. Nove annos
depois, Sancho II, em quem renascia o espirito guerreiro dos avós,
recomeçou a conquista do Algarve, caminhando ao longo da fronteira de
leste, valle do Guadiana abaixo, e tomando successivamente Elvas, Serpa,
Moura, Mertola, Ayamonte, Tavira e Cacella, que os arabes denominavam
Hisn-Kastala (1226). As deploraveis pendencias que lhe roubaram a corôa
não deixaram a Sancho II consummar a conquista do Algarve, que no meiado
do XIII seculo cáe por fim (1249), obscuramente, em poder do usurpador
da corôa fraterna, Affonso III.

Consolidada a separação, constituido geographicamente o paiz, resta-nos
agora observar os movimentos internos da nação; para vêrmos como dentro
d'ella se affirma a independencia, só plena e cabalmente definida,
porém, na crise que poz termo á dynastia de Borgonha.

    [40] V. nas _Taboas de chronologia_, a das Cruzadas, a p. 219.

    [41] V. na _Hist. da repub. romana_, I, pp. 251-5, a descripção
         das machinas de guerra dos antigos, que eram as da Edade-média.

    [42] _Taboas de chronologia_, pp. 43 e 271.

                      *      *      *      *      *




III

A monarchia e a justiça


«D. Diniz foi um aváro. Affonso IV um homem de juizo, Pedro I um doido
com intervallos lucidos de justiça e economia.» Assim A. Herculano
caracterisa os tres monarchas, a quem já fôra concedido reinar sobre
Portugal integralmente constituido, dentro dos limites das suas
fronteiras actuaes. Mas que eram então um rei e um reino?

Errada idéa formará d'essas epochas aquelle que não puder desprender-se
das impressões resultantes de periodos mais proximos de nós. Foi só
desde o XV seculo que o desenvolvimento das nações peninsulares
permittiu aos reis começarem a ter consciencia do caracter
juridico-social do seu cargo[43]. Até ao XIV seculo, os
Estados peninsulares, ou--limitando-nos agora ao campo exclusivo das
nossas observações--Portugal, não merece propriamente o nome de nação,
se a este vocabulo dermos o valor moderno. As comparações illustram
superiormente a historia: e em nossos dias temos exemplos de similhança
quasi absoluta. Esses principados slavos, onde a occupação da Turquia
jámais deixou de encontrar resistencias, são como foram a Hespanha. O
Montenegro reproduz as tradições das Asturias, ninho dos bandidos de
Pelayo; a Servia ou a Herzegovina, em cujas campinas, avassalladas pelo
turco, as quadrilhas dos indomitos montanheses veem periodicamente fazer
as suas razzias, são como foi Portugal. A historia repete-se ainda na
independencia final, ganha pela irradiação do fóco de resistencia
invencivel.

Regiões fadadas a tal existencia não podem ser propriamente nações: não
attingiram esse momento de existencia collectiva, não sairam dos
periodos preparatorios da organisação. O processo tem, n'este caso, dois
graus caracteristicos. Primeiro apparece o bando, depois a familia. O
rei é o chefe dos bandidos, antes de ser o protector, o pae, dos seus
subditos. Se a guerra é antes um systema de rapinas do que uma successão
de campanhas, a justiça é tambem mais a expressão arbitraria de um
instincto, do que a applicação regular de um principio. A sociedade que
se desenvolve de um modo espontaneo, á lei da natureza, vae
successivamente definindo as idéas collectivas, á maneira que progride
na serie das fórmas evolutivas do seu organismo[44].

A substituição do principio da justiça--no qual incluimos as relações
entre individuos, e entre classes e instituições--principio militar,
marca o momento da primeira transformação que é a passagem do organismo
do bando para a fórma social primitiva: a familia nacional, cujo pae ou
patriarcha é o rei.

A loucura de D. Pedro I vale, portanto, a nosso vêr, tanto como o
bandidismo de Affonso Henriques. Os dois reis são os dois typos--da
guerra e da justiça. Assim como a primeira era selvagem e feroz, assim a
segunda é irregular, cheia de caprichos e arbitraria. Mas se Affonso
Henriques foi o chefe do bando, D. Pedro I é decerto o _pae_ da familia
portugueza.

O seu furor justiceiro não é mais louco, do que o furor guerreiro do
primeiro rei. Tentámos esboçar a phisionomia d'essa epocha primitiva:
buscaremos agora, indo beber á fonte limpa das chronicas mais proximas,
accentuar as feições do segundo periodo. Na guerra não havia regra, nem
planos: era uma correria solta. Na justiça não ha processos, nem
garantias: é o dominio livre do capricho. Mas se, n'um caso, a bravura
engrandecia e a victoria exaltava os actos do bandido, no outro, a
rectidão dava força, e a protecção paternal coroava as decisões do
_kadi_. O rei é o grande Juiz da familia portugueza: a sua vontade é
lei, as suas sentenças são oraculos[45].

A justiça de Pedro I caracterisa-se, pois, para nós, com o merecimento
de um typo, da mesma fórma que a guerra de Affonso Henriques. São tambem
os dois individuos symbolicos, por isso mesmo que são como que doidos.
As phisionomias dos outros reis esbatem-se mais no fundo do quadro,
confundem-se de um modo mais ou menos completo na massa dos sentimentos
do povo; e os seus actos acompanham o desenvolvimento das forças e
instinctos collectivos, sem os dominarem de uma fórma superior e typica.
O leitor perspicaz não esquece que estas apreciações excluem a do
merecimento individual das pessoas. Sancho I tem uma bella vida
tristemente rematada n'um torpor de fraqueza. Affonso II tem uma
phisionomia commum e antipathica, sem nobreza, mas forte e penetrante.
Sancho II possue muito do seu predecessor em nome. Affonso III
destaca-se pela educação franceza, que lhe ensinara a dissimulação, a
perfidia, de mãos dadas com o bom-senso governativo. Diniz é um aváro;
Affonso IV é um homem de juizo, no dizer de Herculano. Todos reunidos,
porém, n'um grupo, formam um corpo de phisionomias indecisas ou communs:
são mais ou menos guerreiros, são pessoalmente melhores ou peiores, o
que á historia importa pouco; são bons ou maus administradores da
republica, seu patrimonio, cuja riqueza fomentam, acompanhando o
desenvolvimento natural da sociedade.

No principio e no fim d'esta serie estão, porém, os dois individuos
typos, os dois loucos--um, phrenetico, brandindo o punhal mortifero;
outro, carrancudo e fero, empunhando o latego do algoz e a vara de juiz,
ou risonho e folgasão, dançando e cantando nas ruas no meio da sua
familia, como um pae.

Pedro I tinha a paixão da justiça; era n'elle uma mania, como em seu avô
o fôra a guerra. Não prescindia de julgar todos os delictos. Os
criminosos vinham á côrte, desde os remotos confins do reino. Quando
algum chegava, manietado, e o rei comia, levantava-se pressuroso da
meza, e trocava a vianda pela tortura. Prazia-se em ajudar e dirigir os
algozes; indicava os expedientes e processos para obter a confissão dos
réos. Nunca abandonava o açoute: enrolado á cinta em viagem, tomava
d'elle, e por suas mãos castigava o facinora que no caminho lhe traziam.
Os adulteros mereciam-lhe um odio especial: jámais lhes perdoava. D.
Pedro tinha um escudeiro, Affonso Madeira, _luitador e trovador de
grandes ligeirices_, a quem embora amasse _mais que se deve aqui dizer_,
o rei mandou castrar, porque peccou com Catarina Tosse.--O rapaz
engrossou e morreu depois da _sua natural door_. Certa mulher era infiel
ao marido, que nem por isso se offendia: offendeu-se o rei, e mandando-a
queimar, respondeu ao esposo desolado que lhe devia alviçaras pelo ter
vingado. Havia um homem casado, com filhos, mas que antes da boda
forçara a mulher. Roussou? morra. Enforcou-o, entre os choros e
supplicas da esposa e dos filhos. O seu odio aos peccados da carne
perseguia com furor as alcouvetas; e as feiticeiras não lhe mereciam
menos cuidados.

Quando o tomavam os ataques da furia justiceira, a gaguez fazia ainda
mais terrivel a expressão da sua phisionomia. A fala não lhe deixava
traduzir bem as cóleras; e rubro, grosso, agitando o latego, n'um
delirio, mettia espanto. Os gagos, porém, teem isto de particular: tanto
o defeito accrescenta ao horror na furia, como põe nas horas mansas o
quer que é de bonhomia quasi ironica. Era assim D. Pedro. Caçador tenaz,
descansava do officio de juiz nas corridas do monte, seguido pelos moços
com os nebris e falcões, e pelas matilhas de caens. Então o seu rosto
aplacava-se, e era benigno, bemfazejo, liberal, folgasão. _Foi grande
criador de fidalgos._ Glotão, passava horas esquecidas á meza, onde a
vianda era em grande abastança.

Punir os maus, enfrear os fortes, «querendo fazer graça e mercê ao nosso
poboo» era o seu constante desvelo paternal. Nas côrtes que reuniu em
Elvas (maio de 1361) vê-se pelas respostas aos capitulos dos povos como
o seu governo era protector. Queixavam-se os conselhos de que as casas
dos mestres das ordens, dos bispos e priores, dentro das villas, caíam
em ruinas; e o rei decide de um modo simples: _filhem_ as nossas
justiças aos proprietarios o que for necessario para as obras. Filhem
mais, para as pôr em grangeio, as herdades e vinhas ermas. Os
ricos-homens veem ao concelho e pousam em casa de mulheres honestas,
perdendo-lhes a reputação; pousam nas adegas e nos celleiros de trigo, e
fazem d'elles cavallariças, allega o povo--e o rei ameaça o fidalgo que
assim fizer. O clero, isento como estava dos serviços militares da hoste
ou do appellido, recusa-se a acudir na hora de um perigo imminente? Que
os clerigos acudam com os leigos, diz o rei, quando haja fogo ou inimigos.

Mas o «nosso poboo» ás vezes exige de mais, como uma creança que se
sente adorada. Modere-se: o rei é um pae, mas o pae é um juiz, sempre
benigno e amoravel porém. Quando recusa, não se vê arrogancia, apenas
uma reserva prudente: «mostrem e declarem aquello em que lhis vam contra
seus foros, graças e mercees que ham e que, nos lhas faremos guardar.»
Exigir que as meretrizes e barregans andem estremadas pelo trajo, é
querer muito n'essa Edade-média prostituta e adultera, faminta e
leprosa, que vive de carnalidades, violencias e feiticerias: «Tragam
suas vestiduras como as poderem aver, porque perderiam muito em os
pannos que teem feitos e nos adubos que em elles tragem.» Mas quando o
povo se queixa do que soffre com os serviços militares, obrigado o
villão a ter cavallo e armas desde que possue uma certa _quantia_ de
bens, o rei attende e ordena que não sejam quantiados a nenhum os pannos
de seu vestir e de sua mulher até dois pares, nem as roupas de suas camas.

Sobre a cabeça do povo humilde pesam duas ameaças constantes: o nobre
com a sua violencia, o judeu com a sua manha. O fidalgo e o onzeneiro
são a desgraça da gente, a perdição das filhas e a ruina das searas.
Quem nos protegerá senão o rei? Se o judeu onzenar, responde este, «nós
o mandaremos matar e lhe tomar quanto houver.» Mas ninguem se atreva com
elle, a não ser a justiça, que anda sobranceira a todos, a tudo. De uma
vez D. Pedro mandou matar dois escudeiros por terem roubado a um judeu;
e se tambem cortou a cabeça a outro, dos bons, de Entre-Douro-e-Minho,
por ter partido os arcos de uma cuba de vinho a um pobre lavrador, foi
elle o proprio que mandou degolar o sobrinho do alcaide de Lisboa por
depennar as barbas a um porteiro.

A justiça havia de ser tremenda quando os costumes eram barbaros,
corruptos e ingenuos ao mesmo tempo; quando o incesto, o adulterio, o
assassinato, o estupro, o roubo, e essa offensa extravagante da
merdinbuca (_stercum in ore_), tão frequente nos foraes, acompanham as
linhagens das familias e enchem as paginas das cartas dos
concelhos.[46] O juiz não será um algoz, mas é mistér que
seja um tyranno; e o symbolo da justiça não está na balança com o seu
fiel sensivel, mas antes na espada e no latego, na furia e no amor, no
capricho benevolente e na sanha vingadora de um rei temido como foi D.
Pedro.

Assim como a sua justiça era, pois, destituida de magestade, assim o
eram as suas folganças. Dir-se-hia um rustico feito rei; e acaso por
isso o povo o amava tanto. Não tinha distincções, nem delicadezas, no
sentimento, nem no trato. Em tudo era brutal. Se confundia em si o juiz
e o algoz, as suas festas eram _kermesses_ extravagantes e plebeias. Os
instinctos aristocraticos e as fórmas da cortezia nobre, os torneios, as
lanças, não tinham n'elle um amador. Era um democrata, um _tyranno_ á
moda antiga, em cujo espirito encarnara toda a brutalidade popular: por
isso mesmo era adorado! Os seus castigos terriveis, passando de bocca em
bocca, faziam-lhe um pedestal de força; e as suas continuas folganças
populares cimentavam essa força com o amor intimo que nos merece quem
tem comnosco a irmandade de gostos. O povo via-se rei na pessoa de D.
Pedro.

Quando voltava em bateis de Almada para Lisboa, a plebe lisboeta saía a
recebel-o com danças e trebelhos. Desembarcava, e ia á frente da turba,
dançando ao som das _longas_ (trombetas) como um rei David. Estas folias
apaixonavam-no quasi tanto, como o seu cargo de juiz. Por ellas chegava
a fazer loucuras. Certas noites, no paço, a insomnia perseguia-o:
levantava-se, chamava os trombeteiros, mandava accender tochas; e eil-o
pelas ruas, dançando e atroando tudo com os berros das longas. As
gentes, que dormiam, saíam com espanto ás janellas, a vêr o que era. Era
o rei. Ainda bem! ainda bem! que prazer vel-o assim tão
ledo!--Vestiam-se todos á pressa, desciam ainda tontos de somno; e as
ruas, um momento antes silenciosas e negras, brilhavam com as luzes, e
tinham o clamor da multidão em vivas e o movimento das danças universaes.

Era uma loucura? Seria. A Edade-média é uma vertigem. O povo, afflicto
pelas miserias do mundo e pelos terrores do céo, vivia n'um sonho feito
de dôres positivas e de medos transcendentes: rodopiava n'um _sabbath_.
Deus abençoe o rei que nos defende por sua mão! que vem comnosco bailar
ás noites por essas ruas lugubres! que persegue os incantadores e
feiticeiras! É o nosso justo juiz, o nosso bom pae, o nosso amigo e
irmão: adoremol-o!

Não eram só justiça e festas que o rei lhes dava: era pão. Sabio
administrador, juntava grandes thesouros; e esta noticia augmentava, ao
medo e ao amor, o respeito por um rei tão bom. A brutalidade e o egoismo
dos costumes medievaes traduzia-se a miude n'um flagello terrivel--a
fome, de que o pobre povo soffria sempre mais ou menos. A fome e as
guerras geravam pestes. A primeira metade do seculo XIV fôra uma cadeia
de desgraças. «No anno do Senhor, de 1830, diz o livro de Ceiça, foi a
pestilencia grande e morreram então em dois mezes cento e cincoenta
religiosos. Os lazaros eram tantos e tão antigos que D. Diniz
deixara-lhes em testamento duas mil libras. Em 1333 houve fome, e os
mortos já não cabiam nos adros das egrejas, enterrados aos seis em cada
cova. No dia de S. Bartholomeu do anno de 1346, tremera a terra a ponto
de os sinos tocarem nas torres, pavorosamente, um dobre de finados,
annunciando o acabar do mundo. Depois veiu a peste de 48; e em 55, dois
annos antes da morte de Affonso IV, foi a secca, havendo outra fome
medonha. Da gafaria para a cova, ameaçado por todos, na terra e no céo,
o povo infeliz e faminto congregava-se em volta do throno protector,
adorando o rei justiceiro e providente, inimigo das pestes, das guerras,
das fomes, e sentia-se rico dos thesouros guardados nas torres do
castello. Além d'isso, D. Pedro fartava-o. As suas folias não eram só
danças e musicas. Quando Affonso Tello foi armado cavalleiro houve uma
kermesse monumental. Durante a vigilia d'armas, cinco mil tochas
illuminavam as ruas, desde S. Domingos até ao paço; e o rei, entre as
alas de lumes, radioso e bom, na sua gaguez, dançou com o povo a noite
inteira. Ao outro dia o Rocio estava coalhado de tendas e montanhas de
pão e grandes tinas cheias de vinho. Nas fogueiras, em espetos
collossaes, assavam-se vaccas inteiras. Havia de comer para toda Lisboa.
O povo exultava, n'esses ágapes da monarchia.

A velha tragedia dos seus amores e da sua rebellião augmentava-lhe ainda
as sympathias. O tyranno apparecia, justiceiro e bondoso, sobre o fundo
de um azul de amores infelizes que encantavam a alma popular. Ignez de
Castro, a sombra de um anjo, coroava-o de além do tumulo. Mas esta
piedosa recordação era, na alma do rei, um espinho que o mordia sem
cessar. O seu genio cruel pedia vinganças. Entendeu-se com o visinho de
Castella, e pôde haver ás mãos dois dos assassinos. O povo não approvou
o escambo; e o rei muito perdeu de sua fama, diz o chronista. O castigo
dos assassinos foi duro: D. Pedro estava fóra de si, as palavras
atropellavam-se-lhe na garganta, e não podendo satisfazel-o as muitas
injurias, deshonestas e feias, vingou-se a chicotear os infelizes na
cara. A sua colera attingia a ironia soez. Queria cebola e vinagre, para
comer o Coelho em molho-de-villão. Por fim mandou que lhes arrancassem,
vivos, os corações, a um pelo peito, a outro pelas costas. Gozou-lhes a
morte, e acabou vingado.

Pedro I é a viva imagem da Edade-média, politica e domestica. Todos os
vicios e todas as virtudes, a fereza e a ingenuidade, os odios terriveis
e as amisades espontaneas, sommadas n'um caracter primitivo onde acaso
alguma lepra dos vicios civilisados antigos punha nodoas novas, formavam
o caracter d'esse rei que é verdadeiramente um symbolo. Por isso o povo,
vendo-se n'elle retratado, o adorou.

                      *      *      *      *      *

A politica da independencia puzera no seio da familia portugueza um
membro, cujas arrogancias e pretenções ameaçavam desnortear o fiel da
justiça social. O clero aspirava a usurpar a authoridade á monarchia.
Além da força que as tradições juridicas lhe davam; além da authoridade
espiritual e do espectro das bullas de excommunhão, pavor das almas
ingenuamente crentes; além do poderio fundado n'uma riqueza excessiva e
na machina absorvente da mão-morta, poço onde caíam as heranças e
legados dos rudes batalhadores arrependidos; além de todas as causas
geraes, o clero invocava em Portugal um argumento particular: o rei era
vassallo, o papa suzerano. Por tal preço obtivera Affonso Henriques um
simulacro de sancção juridica para a sua rebellião.

A situação do clero catholico no seio da primitiva sociedade
portugueza--e das coevas em geral--resulta de um tal concurso de
elementos heterogeneos, que nenhuma das faces do systema dos costumes
retrata, melhor do que esta, a confusão cahotica d'esse novo mundo que
se formava sobre as ruinas e destroços do antigo. Politicamente, o facto
de um poder, superior por ter um fundamento transcendente, estranho ao
poder civil, é a primeira causa de conflictos.[47] Perante
a Egreja, todos são egualmente subditos, desde o rei até ao infimo dos
_viliores_. A base religiosa d'esse poder consolida-se com a força que
dá a riqueza. Os barões, crendo de facto na verdade da revelação, e
n'uma outra vida onde hão de ser julgados, teem uma religião feita de
medo; e como no fundo são barbaros, vivem na terra á lei da força,
remindo com esmolas e legados, á hora da morte, os longos rosarios de
crimes. Julgando-se proximos a apparecer perante o supremo juiz,
reconhecendo á hora da morte a inutilidade da força e da perfidia
perante quem tudo póde e tudo vê, compram o perdão com o fructo das
rapinas e dos crimes; e assim formam o alicerce de um poder real,
verdadeiro e mundano. Salvos os mortos, os que ficam teem de entender-se
com o clero herdeiro; teem de debater por todos os meios a influencia e
o poder, para outra vez, á hora da morte, repetirem os actos causadores
das luctas que lhes encheram a vida. Por tal fórma se encerra um circulo
vicioso que a politica não póde romper, porque a religião o não
consente. Desde que as raças germanicas, avassallando o imperio antigo,
não tinham podido desenvolver a sua independencia religiosa e acceitaram
o christianismo, força era que assim fosse, emquanto os dogmas christãos
governassem as consciencias.

N'este sentido é perfeitamente legitima a influencia do clero; e não o é
menos por virtude da authoridade que lhe dá o saber, com effeito já
pervertido, mas ainda preponderante sobre reis e principes analphabetos.
Legitima a sua influencia, historicamente legitima a sua força, o clero,
porém, recebia por seu turno a acção reflexa do meio ambiente em que
vivia. Era tão aváro, tão feroz, tão barbaro, tão vicioso, como os
seculares; e a sua cultura accrescentava ainda, aos defeitos da
brutalidade, os da civilisação. As perversidades requintadas, as
perfidias subtís tinham n'elle os melhores mestres; e por sua via
entravam no corpo de uma sociedade barbara. Os sacerdotes eram os
educadores politicos dos principes, quando não eram os seus declarados
adversarios. Ensinavam as manhas, a quem apenas sabia commetter os actos
brutaes. Aos vicios do instincto sabiam juntar as perversidades da
intelligencia.

Se os principes da Egreja influiam de tal modo, a plebe ecclesiastica
acompanhava as massas no rodopio lugubre e sanguinario da dança infernal
da Edade-média. Os homens da Egreja commettiam todos os crimes.
Sacerdotes, habitando os templos e os mosteiros, os seus erros eram
outros tantos sacrilegios, pela qualidade dos delinquentes e pela
condição do lugar. Roubavam, feriam, matavam, mentiam. Os casados
andavam bigamos; os solteiros, publicamente amancebados. Davam o braço
ás prostitutas, viviam com ellas, e desfloravam donzellas. Engeitavam os
filhos, repudiavam as esposas. Além de criminosos, eram indignos.
Faziam-se carniceiros em praça publica, matando e degollando as rezes,
vendendo carnes. Eram jograes, tafues, bufões. Escondiam a corôa,
deixavam crescer o cabello, e abandonavam o trajo ecclesiastico, para
mais á solta poderem abandonar-se aos seus desvarios.

E, obrando taes crimes, desvirtuando por tal modo os legitimos
privilegios do sacerdocio e da illustração, não deixavam de reclamar o
fôro de uma justiça especial. D'ahi resultava que o rei podia enforcar
um réo, por ser secular, e o cumplice ecclesiastico ficava impune.
Testemunhas seculares não valiam contra elles, e ecclesiasticas não
appareciam, porque o vedava a solidariedade da classe. O desvario era
tamanho, que havia quem chegasse a ordenar-se, unicamente para commetter
crimes impunemente.

Juntem-se estes costumes aos costumes bravios da epocha; junte-se mais a
serie de conflictos politicos e economicos, levantados pela condição
particular da Egreja; addicione-se a situação especial de vassallo em
que Affonso Henriques collocára o throno portuguez--e desde logo se
comprehenderão os motivos dos longos e pittorescos conflictos da
primeira época da historia nacional.

A erudição lançou para o campo das lendas os episodios tradicionaes do
tempo de Affonso Henriques; mas a historia não póde desprezar esses
traços pittorescos com que o povo retrata, infiel mas typicamente, as
tendencias e os costumes. Sabe-se a historia do bispo negro de S. Cruz
de Coimbra; e os monumentos remotos contam o que Affonso Henriques, se
não fez, poderia ter feito ao legado que veiu de Roma excommungal-o por
se ter levantado contra a mãe, pela ter mettido a ferros e não a querer
soltar--segundo resa a chronica. Era homem «muy bravo de grande coraçom»
o principe a quem a rebeldia do clero irritava. Foi esperar o legado ao
Vimieiro, chegou-se a elle, travou-lhe do cabeção, sacou da espada e
quizera cortar-lhe a cabeça. Os cavalleiros do rei acudiram: «Dirão em
Roma que sois herege!» O cardeal tremia de medo, o rei de colera, mas
baixou a espada e voltou: «Pois quero que Portugal não seja excommungado
em todos os meus dias e que não leveis d'aqui ouro, nem prata, nem
bestas, senão tres!» E proseguia exigindo uma carta de Roma garantindo a
posse «d'isto (Portugal) ca eu o ganhei com esta minha espada.» O
sobrinho do cardeal ficaria em refens: teria a cabeça cortada se a carta
não viesse em quatro mezes. O cardeal, diz-se, prometteu, annuindo a
tudo; e o leitor sabe, pelo modo como lhe contámos os pactos de Zamora,
qual é a verdade que esta scena pittoresca exprime. O rei que «em sua
mancebia foi muito bravo e esquivo,» prosegue a lenda, feitas as pazes,
disse ao cardeal: «Agora vede como sou herege!» E despindo-se,
mostrou-lhe as feridas de todo o corpo, contando-lhe as batalhas em que
as tinha havido. Resolvida a contenda, satisfeita a cubiça, aplacada a
colera, apparecia depois do guerreiro violento o homem timido e crente,
com a visão do inferno e o terror da excommunhão.

Por isso os prelados de Braga, Coimbra e Porto eram como tres reis no
reino, cujos limites já para um unico provavam escassos. Se as guerras
da separação, primeiro, depois a conquista do sul do reino e a
deslocação do seu centro para Lisboa, marcam os momentos geographicos
decisivos da historia da independencia, a resolução dos conflictos
ecclesiasticos e a consolidação do poder monarchico marcam, decerto, o
movimento tambem decisivo d'essa historia, sob o aspecto mais intimo e
organico da justiça social.

Dos tres reis mitrados, o do Porto foi o que mais trabalhos deu aos
monarchas portuguezes. O reinado de D. Sancho I, tão brilhantemente
iniciado pela conquista de Silves, e com tanta sabedoria dirigido para a
consolidação do centro assolado do paiz, é dos mais notaveis na historia
dos conflictos com o clero. O rei era tão irascivel como credulo:
acompanhava-o sempre uma feiticeira, diariamente consultada. Não tinha o
furor bellico do pae, nem a energia justiceira do neto: parece ter sido
um homem commum, mas serio.

Na primeira decada do XIII seculo governava o bispado do Porto Martinho
Rodrigues, homem atrevido, ambicioso, cheio de força e vicios. A
authoridade da corôa limitava-se por esses tempos ao velho Porto, hoje o
suburbio de Gaya, e o bispo imperava na cidade. Exacções e tyrannias,
communs a todos os senhorios feudaes, levaram os burguezes do Porto a
rebellar-se contra o bispo, invocando o auxilio que o rei lhes não
refusou. Acclamado pelo povo, Sancho I entra na cidade; arrombam-se as
portas das egrejas, a turba invade e assola os templos, conspurca os
altares; e o bispo fica cinco mezes preso no palacio episcopal, até que
finge submetter-se ás exigencias, com o proposito, que realisa, de ir a
Roma pedir desforra ao papa. Entretanto o de Coimbra encerrava os
templos e negava os serviços religiosos aos fieis: era esse um dos meios
ordinarios de combate. Sancho I vae a Coimbra, faz de bispo, obriga os
padres, á força, a celebrarem os officios divinos, mandando arrancar os
olhos aos recalcitrantes.

Voltou a final (1210) Martinho Rodrigues, de Roma, com bullas de
Innocencio III. O nuncio ou legado do papa devia em pessoa lel-as ao
rei; porque o chanceller Julião, valendo-se da ignorancia do soberano,
usava alterar o que lia. Sancho I ouviu com humildade a monitoria papal.
Estava doente, já fatigado da vida, e na perspectiva da proximidade da
viagem para o outro-mundo, memorava tudo o que tinha feito, os desacatos
e sacrilegios. Os remorsos enchiam de terror o seu animo duro, obtuso e
bravio. Curvou-se e penitenciou-se. Este era sempre o momento infallivel
da victoria da Egreja: a superstição entregava-lhe, manietados e
submissos, os seus terriveis inimigos, na hora da morte imminente.
Sancho I pedia aos monges de Alcobaça que rezassem por sua alma esses
lugubres psalmos, que pareciam aos infelizes como um ecco das terriveis
symphonias da eternidade. Reclinado no leito da morte, o rei, apavorado,
via a face medonha do supremo Juiz; e sentia-se já precipitado nos
abysmos ardentes, no seio das chammas crepitantes, roído, macerado pelos
monstros diabolicos, a gritar em dôres infernaes.

Desistiu de tudo; abandonou á sua miseranda sorte os burguezes fieis,
deu rendas, legados, terras, senhorios. Deu mais até do que possuia!
Conseguiria por tal preço obter o perdão? Os padres diziam-lhe que sim,
e abençoavam-no promettendo-lhe a salvação.

Fóra da camara, onde o rei agonisava (1211), o herdeiro, Affonso II,
vulgar e obeso, avarento e incapaz de perceber a situação cruel do pae,
ruminava porém, com o chanceller Gonçalo Mendes, discipulo de Julião, o
plano da desforra. Começou por confirmar tudo o que o fallecido doára ao
clero, porque primeiro tinha que liquidar contas com os irmãos e com o
seu partido. Sancho I deixára-lhes metade do reino. Affonso queria-o
inteiro para si: e era muito bastante para vêr que não podia bater-se ao
mesmo tempo com todos os adversarios. Faltava no caracter do filho a
nobreza do caracter do pae. Nas côrtes de 1211 confirma ainda a isenção
dos cargos publicos, mas prohibe ao mesmo tempo ao clero a compra de
bens de raiz. O de Braga protesta, e Affonso II manda-lhe arrazar os
campos, destruir as granjas e confiscar as rendas. Estava outra vez
declarada a guerra entre a monarchia e o clero. O rei morre,
impenitente, apesar das ameaças das bullas de Honorio III.

O segundo Sancho tinha muito do caracter do primeiro: era sinceramente
devoto, e na Edade-média a sinceridade implicava certeza de derrota. É
verdade que já a este tempo o terror das excommunhões diminuira: tão
excessivo uso o clero dellas tinha feito. Os interdictos e a denegação
de sepultura em sagrado eram acompanhamento constante de todas as
pretenções ecclesiasticas. Se, porém, a força das armas canonicas
minguára, não tinha diminuido o poderio positivo do clero, que era a
classe mais opulenta do reino. O que os bispos exigiam de Sancho era
demasiado; e como lhes foi negado, depozeram o bom e valente rei (1245).
Em França, o usurpador subscreveu a tudo; sentado no throno, o terceiro
Affonso, soube defender-se como se defendera o segundo. Trazia de fóra a
muita experiencia, a manha, e a pertinacia consummadas, que aprendera
nas côrtes mais polidas da Europa central.

Evidentemente o clero baixa n'esta longa e interessante batalha. O
fundamento juridico das suas pretenções vae gradualmente fugindo, á
medida que as tradições romanistas e o espirito secular inspiram as
acções dos monarchas, primando sobre as maximas do direito canonico.
Esta substituição traduz o aclaramento gradual que se dá nas
consciencias, á maneira que as superstições infantis d'essas primeiras e
obscuras alvoradas, se vão abrindo no dia claro do renascimento da
cultura intellectual.

D. Diniz (1279-325) já não é analphabeto, e mede bem o valor da
sciencia: prova-o a fundação das Escholas. Por outro lado, vê que a
principal causa da força do clero está no ultramontanismo, palavra então
desconhecida ainda para exprimir a influencia e authoridade soberanas
dos papas sobre as Egrejas nacionaes. Libertar-se d'essa perigosa
intervenção era o meio de diminuir a gravidade dos conflictos. Acaso a
tradição dos concilios da Hespanha visigothica influiu para a creação
das assembléas de prelados, cujas _concordatas_, registrando os fóros da
Egreja, a subtrahiam á influencia estrangeira, por tornarem nacional o
clero e internas as suas questões. O rei, que assim fomentava a educação
e nacionalisava a Egreja, cimentando por outro lado o desenvolvimento
economico do paiz, tinha uma intuição dos caracteres modernos das
nações. Portugal caminhava de facto, rapidamente, na estrada da sua
independencia, isto é, da sua constituição organica. O povo costumou-se
a dizer: «El-rei D. Diniz fez tudo o que quiz.»

Pedro, o justiceiro, com a sua typica individualidade conclue de um modo
terminante e brusco a velha questão da influencia de Roma, quando
estabelece o _placito regito_: «Nenhumas bullas, nem lettras pontificias
serão publicadas em Portugal sem consentimento meu.»

Procedia summariamente: e a sua politica, toda pessoal, acclamada com
enthusiasmo por um povo que o adorava, era a voz indomavel da nação que
falava por sua bocca. A sua loucura era a synthese do pensamento
collectivo. Quando o bispo do Porto reagiu, o rei foi lá em pessoa, diz
a chronica, fechou-se com elle n'uma sala, despiu o gibão para ficar
mais á vontade: trazia por baixo uma saia de escarlata. O bispo,
transido de susto, esperava, sem ousar pedir soccorro. D. Pedro
chegou-se e, placidamente, tirou-lhe a capa; desenrolou o latego, e
correu-o a açoites, dizendo-lhe a rir, gaguejando: vae! anda! toma!

Não podia conceber leis, a cuja sombra os criminosos ficassem impunes; e
por isso dava-se-lhe pouco de enforcar os padres.--E as regalias da
Egreja?--«Vam-no enforcando, respondia com bom humor e pausa, porque não
podia falar depressa. Vam-no enforcando: por esse caminho lá vae para
Jesus Christo, seu vigario, que no outro-mundo o julgará!»

E ficava-se a rir, vendo o tonsurado espernear na forca.

Tudo mudára. Os tempos eram diversos; as excommunhões, papeis
rabiscados; as regalias da Egreja, uma tradição apenas. O rei parado,
com os olhos na forca, ria!

«E diziam as gentes que taes dez annos nunca ouve em Portugal como estes
que reinara el-rei dom Pedro.(Fernão Lopes.)

                      *      *      *      *      *

A fidalguia não tem uma historia tão grave como a do clero. As condições
peculiares da constituição do reino portuguez augmentavam ainda os
embaraços que em toda a Hespanha houve para a formação acabada de um
feudalismo.[48] Todos os conflictos da nobreza com a Corôa
proveem, não de uma questão de ambição politica, não de um pensamento
definido de emancipação revolucionaria, como a do clero; mas da avareza,
da cubiça, da brutalidade pessoal dos homens, nos quaes é mistér incluir
tambem os reis.

A não serem, por outro lado, as revoltas do Porto, e as guerras entre
Bragança e outros concelhos transmontanos, por causa do senhorio de
Lamas, nada se encontra em Portugal que dê idéa de uma descentralisação
de dominio politico, similhante á que lavra para além das nossas
fronteiras[49].

Poucos são os conflictos entre o rei e os barões que não tenham por
origem a _pilhagem_ dos realengos. Distante, e por isso mais fraca a
acção da Corôa, o fidalgo do logar não receava chamar seu e apossar-se
violentamente do terreno visinho, pertencente ao rei. Além d'isto, os
nobres forjavam titulos, inventavam doações, para _honrarem_ territorios
sujeitos á acção das justiças reaes. D'estas causas provinham confusões
inextricaveis, que a força apenas decidia. Quando o mordomo do rei, ou o
seu aguazil, appareciam a cobrar um tributo ou reclamar um preso, o
fidalgo usurpador, ou, do terreno, ou do privilegio apenas, saía com os
seus homens: «Ca por aqui é _honra_!» E enforcava-os. Enforcava-os, ou
matava-os mais barbaramente ainda. Um porteiro, que ia fazer uma
penhora, teve as mãos cortadas, e foi depois assassinado. Outro, atado á
cauda de um cavallo, foi de rastos, levado a galope em volta de toda a
_honra_. Um foi _pendurado pelos braços_. Outra vez o fidalgo _prendidit
eos per gargantas_: os processos eram tão barbaros como o latim.

Entretanto, embora destituidas de um alcance ou significação
politico-feudal, não faltam nas primeiras epochas portuguezas revoltas e
desordens oriundas das necessidades bulhentas da fidalguia. Batalhar era
o unico meio de passar o tempo, ganhando fama e dinheiro ou terras. Mais
pacifico o reino occidental da Peninsula, «em aquell tempo os fidallgos
portuguezes hiam a Castella muitas vezes por se provarem pellos corpos
quando em Portugall mesteres nom avia.» Mesteres eram desordens, como a
que assolou o paiz no tempo de Sancho II e levou á deposição do rei. Eis
aqui um episodio do livro das _Linhagens_: «E este Raymão Viegas de
Portocarrero, sendo vassallo d'elrey D. Sancho de Portugal, veio uma
noute a Coimbra com a companha de Martim Gil Soverosa, onde el-rey jazia
dormindo na sua cama; e roubaram-lhe a rainha D. Mecia sua mulher de
apar d'elle e levaram-na para Ourem. O rei lançou-se apoz d'elles e só
os pôde alcançar em Ourem que era então muy forte. Disse-lhes que
abrissem as portas, pois era elrey D. Sancho, e levava seu preponto
vestido de seus signaes e seu escudo e seu pendão ante si, e deram-lhe
muy grandes sétadas e muy grandes pedradas no seu escudo e no seu pendão
e assim se houve ende (d'alli) a tornar.» Mesteres eram estas guerras
civis frequentes; mesteres, porém, menos nobres, eram as vinganças
crueis exercidas sobre o povo inerme, como a de um tal Martim Esteves,
que matou os doze melhores homens de Alter-do-Chão «por deshonra que lhe
ahi fizeram.»

Mesteres ainda, são os desaggravos do thalamo tão a miude violado. Houve
um Dom Rodrigo Gonsalves casado com Dona Ignez Sanchez; ella, estando no
Castello de Lanhoso, fez maldade com um frade de Boiro, e o marido,
certo d'isto, chegou ahi, cercou as portas do castello, e queimou-a a
ella e ao frade e homens e mulheres e bestas e caens e gatos e gallinhas
e todas as cousas vivas, e queimou a camara e pannos de vestir e cama, e
não deixou cousa movel.

Nos mesteres amorosos tambem essa gente barbara se «provava pellos
corpos» mas sem necessidade de ir a Castella. Quando em tão pouco se
tinha a vida alheia, como se teria em muito a honra? De Affonso
Henriques, o rei «muito bravo e esquivo em mancebo», conta a historia
que foi um dia hospedar-se em Unhão, a casa de um homem-bom que havia
nome Gonçalo de Sousa, e emquanto elle ia adubando o comer, foi elrey
vêr-lhe a mulher que tinha por nome Dona Sancha Alvares e
começou-lh'a... E Dom Gonçalo de Sousa entrou pela porta e viu assim ser
e pesou-lhe d'ahi muito e disse-lhe: Senhor, levantae-vos, ca adubado o
tendes. E o rei foi sentar-se, e comeu e partiu; e o marido pegou da
esposa, montou-a n'um jumento com a cara para a cauda, e mandou-a assim
á côrte entregar ao rei.

Estes escrupulos do fidalgo não eram, porém, geraes, e fazem-lhe honra.
A promiscuidade repugnante, o incesto, o sacrilegio são casos communs.
Um fez um filho em Tereja Mendes, abbadessa de Lorvão e levou-o para a
côrte, onde D. Diniz lhe deu muito bem e muita mercê. Outro «ouve um
filho, Ruy, que foi privado d'elrey D. Diniz e ouvidor de sua caza.» Os
reis, os nobres teem barregans publicas e legiões de bastardos. Quando
D. Maria Paes, amazia de Sancho I, vinha do enterro do rei em Coimbra,
encontrou em Avelans Gomes Lourenço, que lhe saíu ao caminho e a
_filhou_ por força, roussando-a. Elvira Annes roussou-a Ruy Gomes de
Briteiros. E D. Fernão Mendes, o bravo, «foi o que matou sua madre na
pelle da ussa e pose-lhe os caens, porque lhe baralhara com a barregan.»
A bestialidade nem respeita o sangue, nem um incesto impede o casamento
das nobres damas. «Dona Thereza Gil foi de mau preço e ouve filhos de
seu primo co-irmão»; Dom Pedro Garcia _jouve_ com sua irman e «fez em
ella semel.» Dona Mor Garcia não foi casada, mas roussou a seu irmão
Pedro e «fez em ella Martim Tavaya.» Outrotanto succedeu a uma Maria
Mendes, que depois casou com Lourenço Soares de Valladares. É longa a
lista das torpezas das _Linhagens_ da fidalguia. Taes são os poeticos
amores da Edade-média, cujo brio é perfidia, cuja bravura é crueldade,
cuja nobreza é astucia. A carne, o sangue e o ouro, a orgia bestial, a
carniceria e o roubo são os elementos d'essas historias, em que a rudeza
barbara apparece manchada de podridões asquerosas.

O roubo e o assassinato compõem essa epopêa aristocratica, cujos amores
são _roussos_, estupros, adulterios, cujo espirito é a avareza e a
perfidia.[50] _Filhar_ as terras do rei, é a primeira das
emprezas da _cavallaria_ em Portugal. E o rei não vale mais do que os
cavalleiros. Quantas vezes, com effeito, não seria usurpadora a sua
intervenção? quantas vezes a ira brutal do fidalgo não teria um
fundamento justo? Affonso II leva metade do seu reinado a espoliar da
herança os irmãos, e todo elle a _inquirir_ o fundamento legal da posse
dos dominios aristocraticos: faz-se idéa da regularidade do segundo
processo, depois de observada a primeira façanha. A confusão é tão
grande, que D. Diniz (1309) decide abolir todas as _honras_ posteriores
a 1290.

É tambem no seu tempo que um outro acto de grande alcance vem diminuir o
poder da nobreza, de um modo analogo ao que succedera ao clero. Assim
como, fóra da nação, o clero tinha em Roma o seu chefe supremo; assim
tambem as Ordens militares, estabelecidas em Portugal, tinham fóra do
reino os seus mestrados. Nacionalisar as Ordens militares (1310)
equivalia ao que se conseguira com as assembléas do clero. O _Templo_,
poderosa machina destruida por Clemente V, legava os seus bens ao
_Hospital_, mas os tres reis de Castella, Aragão e Portugal, _como todos
tres fuessemos uno a catar nuestro drecho_, conseguem nacionalisar os
bens dos templarios. É com elles que D. Diniz funda a ordem portugueza
de Christo.

                      *      *      *      *      *

Os monges militares[51] tinham representado um papel
importante no movimento da reconstituição economica dos territorios
portuguezes. Desde os primeiros tempos que ás Ordens jerosalemitanas
fôra confiada a guarda de numerosas povoações. O Templo, o Hospital e o
Sepulcro fruiam de abundantes doações; e Affonso Henriques concedera á
primeira a terça parte de todas as conquistas ao sul do Tejo. Á inopia
de forças para levar a cabo as grandes emprezas de Lisboa, Alcacer e
Silves, pontos decisivos da conquista do sul do reino, remediavam os
Cruzados; mas as esquadras partiam com o saque, e sósinhos os
portuguezes não podiam conservar o adquirido. N'este motivo se fundára a
concessão permanente de terras ás Ordens militares. Como vimos, Sancho
II estendeu as fronteiras do reino pelo alto-Alemtejo; e sem recursos
para conservar as conquistas, chamou para o reino os cavalleiros de
Santiago e Calatrava, cujo mestrado era castelhano.

Tal era o unico meio de guarnecer os castellos dispersos pelas vastas
campinas assoladas do sul do reino. A instabilidade do dominio e a
escassez da população--ainda hoje sentimos as consequencias d'essas
prolongadas guerras--não permittiam que a cultura se estendesse; e á
falta de productos da terra, christãos e sarracenos tinham de
soccorrer-se ao systema de correrias e algaras permanentes. Como em
nossos tempos na Servia, o lavrador trabalhava armado, na limitada área
aproveitada em torno dos lugares fortificados. Além da occupação
constante de _alancear mouros_, havia os grandes fossados annuaes, no
tempo em que as searas estavam maduras; e isto fazia precaria e
transitoria a agricultura. Todas estas causas reunidas produziam em
resultado a devastação universal, já consummada na edade de que nos
occupamos. Nos foraes dos primeiros seculos da monarchia, o alfoz dos
concelhos é demarcado por uma certa penedia no alto da serra, pelo
carvalho insulado, pela _velha_ estrada mourisca, por certa pedra de côr
diversa; jámais por casas, villares ou granjas.

O norte do reino, abrigado das invasões, defendido pelas linhas
estrategicas do Tejo e do Mondego, não era, desde seculos, theatro da
guerra santa. As depredações, menos geraes e menos frequentes, provinham
ahi apenas das rixas dos senhores e das guerras civis. Affonso II mandou
arrasar as propriedades do arcebispo de Braga. As guerras entre os
filhos de Sancho I, as commoções que acompanharam a queda de Sancho II,
a rebellião armada de Affonso (depois IV) contra seu pae, a do viuvo de
Ignez de Castro, entre outras, trouxeram decerto ruinas e desastres, mas
não para comparar com as assolações do sul, nem sequer com os males dos
primeiros tempos, quando a ambição de conquistar a Galliza fazia do
Minho o theatro das luctas quasi constantes com Leão.

As guerras castelhanas do tempo de D. Fernando teem um novo theatro,
porque o antigo condado portucalense descera já á condição de provincia
portuguesa. O coração do reino está em Lisboa, a terra querida d'elrey
Diniz, _ca hy nascera, hy fora criado y bautizado, e hy fora rey_. Nem o
norte do Mondego, rico e populoso, nem o sul do Sado, demasiado bravio e
inhospito, chamam a attenção administrativa dos governos. Toda ella se
applica para o centro do reino, a renovar e agricultar, e para o
desenvolvimento da navegação e do commercio pelo magnifico porto onde
todos os navios, em viagem dos mares do norte para o Mediterraneo,
vinham refrescar, desde que Lisboa era christan. D. Diniz lavrou o
primeiro tratado mercantil com a Inglaterra (1308). Os armadores da
Normandia, da Flandres e da Inglaterra, já no fim do XIII seculo
demandavam o Tejo, para mercadejar; e os cuidados dos reis não se
limitavam apenas a favorecer esse commercio, porque as plantações de
vastos pinhaes nas costas teem como motivo proporcionar madeiras ás
construcções navaes, e ao mesmo tempo defender as terras da invasão das
dunas, no litoral de entre o Tejo e Mondego.

O ultimo d'esta serie de phenomenos que demonstram a formação crescente
de um organismo nacional, é o apparecimento de Lisboa, a cidade querida,
como um centro de actividade maritima e commercial. Definitivamente
separado de Leão, obliteradas as ambições da absorpção da Galliza,
geographicamente completo até ao mar do Algarve, rota a dependencia
feudal de Roma, nacionalisado o clero e as Ordens militares, fortalecido
o poder dos reis, iniciada a organisação da justiça, da administração,
do ensino--o corpo da nação portugueza, até ahi acephalo, achava em
Lisboa a capital. A cidade do Tejo dava mais do que um centro de vida
organica, dava um destino definido--o maritimo--a uma nação que na terra
da Hespanha não tinha individualidade, nem por uma indole homogenea e
particular dos habitantes, nem por uma conformação especial e autónoma
do territorio.

Corintho ou Veneza do occidente, Lisboa _grande cidade de muytas e
desvairadas gentes_ era mais do que a capital do reino: era a razão de
ser da sua independencia.

    [43] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) liv. III, 4.

    [44] V. _Instit. primit._, pp. 233 e segg.

    [45] V. _Instit. primitivas_, pp. 137-47.

    [46] V. para os usos judiciaes, etc., na Edade-média portuguesa,
         o _Quadro das Instit. primit._, pp. 17-18, 154, 163-4, 170-1,
         175-8 e 181-205; e _Regime das Riquezas_, pp. 172-4.

    [47] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) pp. 158 e segg.

    [48] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) pp. 127-32 e 143-9.

    [49] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) pp. 135-43

    [50] V. _Instit. primit._, pp. 98 e 157.

    [51] V. _Instit. primit._, p. 263.

                      *      *      *      *      *




IV

A crise


Quando Portugal se encaminhava, por fim, no sentido de uma rapida e
definitiva constituição, quiz o acaso que o throno coubesse por herança
a um principe de fracas, mas sympathicas qualidades.

    Do justo e duro Pedro nasce o brando
    (Vede da natureza o desconcerto!)
    Remisso e sem cuidado algum Fernando.

O filho de Pedro I era uma infeliz creatura, mal equilibrada nas suas
qualidades e defeitos. Não era, decerto, aquelle homem de que a nação
carecia para consolidar de um modo seguro a sua independencia; e n'um
sentido póde dizer-se que as condições em que se achou foram a causa dos
males de que muito soffreu. Faltava-lhe a firmeza necessaria para
realisar os planos concebidos por uma intelligencia perspicaz. Era
inventivo, mas era chimerico. Media o alcance dos actos e pensamentos,
mas não sabia pesar o valor dos meios. O corpo de leis que promulgou
para fomentar a navegação e o commercio, honrarão eternamente a sua
intelligencia e a fina percepção com que via no desenvolvimento maritimo
o futuro da patria. A obra consideravel das fortificações da capital
(1377) concorre tambem a mostrar que reconhecia a verdade--cruamente por
elle aprendida--de que Portugal era já, e seria sempre Lisboa.
Accusam-no modernos sabios de ter defraudado a moeda: mas que outro
remedio havia então contra a penuria do thesouro? que outros exemplos
davam os demais principes? que outro exemplo damos nós ainda hoje,
quando, para não cercear o peso ou diminuir o toque do ouro, cunhamos
papel?--Accusam-no porque _hordenou almotaçaria em todallas cousas_
(1375): e que outro remedio havia, na curta sciencia do tempo, contra os
monopolios e agiotagens, mais funestos na paz do que as batalhas dos
tempos de guerra? Tarifar os generos e os salarios foi medida applaudida
quasi até nossos dias; obrigar os detentores á venda dos cereaes,
determinar a partilha dos grãos, foram actos de salvação publica
repetidos ainda depois de D. Fernando, e sempre que uma crise obriga a
suspender as garantias, ou justiça civil. Mas o rei que cerceava as
moedas e ordenava a almotaçaria em todas as cousas, era o que fundava a
marinha mercante nacional: era o que, olhando para o mar, não se
esquecia da terra, obrigando os proprietarios dos maninhos alemtejanos a
cultival-os, ou a aforal-os. A administração de D. Fernando é um
cesarismo. O desenvolvimento politico e economico da nação chegava a um
momento de crise organica traduzida por uma crise militar e dynastica. A
população e a riqueza tinham crescido de um modo notavel desde que,
havia mais de um seculo, terminára a reconquista do territorio aos
musulmanos. O censo que annos depois se fez (1417) dá ao reino 4:800
besteiros de conto, ao Porto 8:500 habitantes, e a Lisboa 63:750.
Pullulavam enxames de aldeias e casaes pelos campos agricultados, e
muitas villas que depois definharam eram ainda importantes: Sines,
Cezimbra e Mertola. Algumas cidades eram muito maiores do que são hoje:
Evora e Beja, Santarem, Thomar, Leiria. D. Fernando herdou o reino
robusto e forte.

Mas o pobre rei, tão bom e tão sagaz, tinha porém um fraco, que
estragava tudo: era doido por mulheres. Singular na edade-média, a
pessoa de D. Fernando parece estar no fim de uma epocha historica, como
um indicio e um typo mal esboçado de futuros personagens. Superior na
intelligencia, acaso por isso mesmo era desmandado no modo de proceder.
Talvez lhe conviesse o nome de sceptico, especie moral que o
desenvolvimento da inteligencia, sem o desenvolvimento parallelo da
vontade, ou do caracter, faz tão commum em nossos dias. Para Cesar, D.
Fernando era, porém, bondoso de mais: tinha um fundo de sinceridade que
o perdia, porque á indifferença não reunia o cynismo. Era, no fundo, um
pobre homem de talento. Este genero de individuos é sempre sympathico; e
por isso o povo, embora chegasse a mofar, nunca o odiou. As suas
fraquezas, prazeres e amores sempre foram criticados com benevolencia. O
povo sabia que no fundo o caracter do rei não era perverso. Não o podia
respeitar nem temer, mas sorria-se amigavelmente das suas
extravagancias. Era o filho prodigo da nação.

Ás suas qualidades e vicios sympathicos reunia o ser formoso, agil,
cavalleiro como os bons, caridoso, affavel, «gran criador de fidalgos e
muito companheiro com elles, cavalgante, torneador, grande justador e
lançador atavolado»--o jogo era uma das basofias do fidalgo
medieval--dadivoso para com todos, e grande agasalhador de estrangeiros.
A toda a gente queria bem, mas de um modo familiar e singelo, que não
infundia respeito. Os reis de fóra, sabendo-o tão singularmente bom e
simples, riam-se d'elle.

Era um infeliz, no sentido que a expressão tem popularmente em
castelhano. Dava tudo pela caça: uma paixão desenfreada. Só falcoeiros
de besta contava quarenta e cinco, e não estava satisfeito: queria
povoar com elles uma rua inteira em Santarem. Quando mandava por aves,
nunca lhe trouxessem para menos de cincoenta, entre açores e falcões,
gerifaltes e negris, todas _primas_. Tinha um regimento de mouros para
apresarem as garças e outras aves, que iam buscar a caça nas lagôas. Não
perdoava sequer os innocentes pombos. Eram ás legiões as matilhas de
cães para coelhos, rapozas e lebres. Correr lebres ou atirar aos pombos
era o seu _grande sabor e desenfadamento_. O do seu avô Henriques fôra
correr mouros e atirar ás ameias dos castellos: os tempos, os
temperamentos, eram já inteiramente diversos.

Ainda assim, não era a caça que perdia o rei. Namorado sempre e
mulherengo, «amador de mulheres o achegador a ellas,» diz F. Lopes,
tinha um feitio terno, _amavioso_. A carnalidade arrastava-o aos maiores
excessos, e é provavel que tivesse vicios ingenuos. Sua irman solteira,
a infanta D. Beatriz, fôra cinco vezes offerecida, outras tantas
recusada, a diversos principes, nas varias combinações politicas que a
sua fertil imaginação creava, e que a sua indolencia invencivel punha
logo de parte. A côrte d'essa irman era um viveiro de donas, onde o rei
permanentemente satisfazia os seus gostos mulherengos. Foi n'essa côrte
que viu e se perdeu de amores por Leonor Telles. Parece, comtudo, que
antes d'isso não amava; porque é proprio dos temperamentos, como era o
do rei, não ter paixões. A sua delicia era o gozar indolente dos
carinhos e meiguices das mulheres, não era amar. Não é provavel, pois,
«a suspeita deshonesta que alguns tinham da virgindade da infanta ser
por elle minguada.» Bastavam ao rei «os jogos e fallas tão a meude
misturadas com beijos e abraços e outros desenfados de similhante
preço.» Só aos fortes corações é dado amar e enlouquecer. D. Fernando
não tinha essa virilidade de caracter. Distincto, perspicaz, engenhoso
de espirito, bom, affavel de genio, faltavam-lhe o valor que faz os
homens, e a vontade que faz os reis. Era uma indolencia formada de
espirito e sensualidade; uma creatura romantica e sympathica; uma
mulher, fraca e intelligente, sentada no throno. Leonor Telles
conquistou-o, porque tinha o genio de um Homem; e o segredo d'essa
alliança tenaz não está n'uma paixão do rei, está na inversão das
pessoas e dos sexos. Ella fez-se rei; elle tornou-se a amante, passiva,
indolente, sensual.

                      *      *      *      *      *

O tempo de D. Fernando foi uma serie de guerras com o visinho reino de
Castella. As muitas desgraças d'essas emprezas loucas tiveram de bom o
affirmar de um modo terminante a independencia formal e positiva da
nação, como sáe da batalha de Aljubarrota. Á maneira de certas
enfermidades agudas, quando atacam o homem de temperamento indeciso e
constituição debil, na edade em que attinge a virilidade, e determinam
uma revolução organica, fixando e consolidando a saude--assim as guerras
castelhanas de D. Fernando. são, para Portugal, uma crise. O seu destino
vacillante, os seus orgãos esboçados apenas, soffrem a prova de uma
commoção violenta. Acordam outra vez as tentações antigas, já
anachronicas, da conquista da Galliza; o reino é mais de uma vez
invadido; a miseria, a ruina, as devastações e a penuria affligem, como
uma febre ardente, o corpo da nação. Falta decerto um rei que a dirija,
um homem forte que a represente e guie; mas isso mesmo concorre para
caracterisar a crise, demonstrando que a vitalidade collectiva existia
já, e não provinha apenas da imposição forte de um braço guerreiro. Em
dois seculos Portugal tornara-se de um amalgama de populações ruraes,
cuja unidade estava apenas no genio dos seus barões, em um organismo,
cuja consciencia de uma vida collectiva era real e definida. Tal é, a
nosso vêr, o merecimento d'essa revolução nacional, cujo supposto chefe,
o Mestre de Aviz, é mais o instrumento do que o heroe.

Não precipitemos, porém, a narrativa.

D. Fernando julgára convir-lhe apoiar a usurpação do throno de Castella
por Henrique de Trastamara, quando o poder do rei D. Pedro ainda chegava
para bater o rival em Najera. Depois que o usurpador, voltando de França
com o auxilio de Duguesclin, consegue desthronar o rei perdido, D.
Fernando julga conveniente alliar-se ao do Aragão e ao mouro de Granada,
contra o Trastamara victorioso. Formára o chimerico plano de bater o
vencedor com o partido vencido que o invocava; esperando sentar-se no
bello throno de Castella, de que promettia um retalho ao aragonez, outro
ao granadino. A empreza não destoava dos antecedentes historicos; porque
o regime politico da Hespanha, retalhada em varias monarchias, era um
systema de conquistas successivas de reinos. Era, porém, chimerica por
dous motivos, um ignorado então, outro evidente: a incapacidade do rei,
e o destino que marcava á Hespanha a solução unitária. Se Portugal pôde
escapar aos preceitos d'esse fado, deveu-o ao movimento que, por lhe dar
Lisboa, fazia d'elle uma nação cosmopolita, commercial e maritima, e não
propriamente hespanhola: outra Hollanda, no corpo de outra
Allemanha[52].

A politica de D. Fernando era, pois, historicamente insensata, falta que
seria absurdo irrogar ao rei; mas era tambem pessoalmente absurda,
porque os seus planos eram chimeras, tão breve nascidas como
abandonadas. Haveria no espirito do rei o pensamento, mais ou menos
definido, de se substituir ao castelhano na obra da unificação politica
dos Estados peninsulares? Nada authorisa a suppol-o; e até porque tal
pensamento não estava ainda cabalmente definido para os monarchas de
Castella.

O facto é que D. Fernando declarou a guerra e abriu a campanha,
invadindo a Galliza (1369); «mas sua ida foi de tal guisa que mais sua
honra fora não ir alla dessa vegada.» Muitos barões gallegos correram a
recebel-o, a acclamal-o. Tradições de outras eras? Ambições, ainda
vivas, de uma independencia, que mais de uma vez tinham considerado
solidaria com a soberania de Portugal? É provavel; mas é tambem certo
que a rapina era o motivo immediato da adhesão, porque «muytos vinham-se
a ele e pediam-lhe os bees dos que se iam para D. Henrique, o que era
dado ledamente.» O inimigo, de Castella, fazia outro tanto. O conde
Andeiro foi o mais caloroso dos partidarios gallegos de D. Fernando.
Saíu ao encontro do rei, alvoroçado, a gritar: «Hu vem aqui meu senhor
Elrey D. Fernando?» E o rei, esporeando o cavallo, radioso e feliz por
uma tão facil conquista, vendo-se já sentado no throno de Castella,
avançou, respondendo: «Eu som! eu som!» A invasão tornava-se um passeio
até á Corunha; mas pouco adivinhavam ambos, o conde e o rei, quanto
haviam de pagar caro os prazeres desses dias breves.

O castelhano corre sobre a Galliza, e D. Fernando foge a esconder-se em
Coimbra. A resaca assoladora vem até Braga e Guimarães, atravez de todo
o Minho. A provincia inteira gritava por soccorro: Aqui d'el-rei, contra
o castelhano!--O rei, indeciso, indolente, esperava a realisação da sua
chimera:--não é mister batalhar; Castella inteira vem entregar-se, como
se entregára, de braços abertos, a Galliza!--Passeava-se, entretanto,
com o exercito, entre Santarem e Lisboa. Ia, vinha, avançava e
retrocedia, tão tonto que já o povo da capital ria d'esses passeios:
_exvollo vae, exvollo vem!_[53]

Afinal em Coimbra--cidade funesta aos dois Fernandos[54]--decidiu-se a
acudir ao Minho, quando o rei de Castella, depois de assolar tudo, tinha
já partido para além da fronteira. Pela raia, porém, o batalhar
continuava, e tambem na costa andaluza o bloqueio maritimo: já Portugal
tinha armadas. Mas a guerra dilatava-se; e Castella, decididamente, não
o chamava para seu rei. Começou a _assentar-se del a covardice_,
abandonou os alliados; e aborrecido e desilludido por esta vez, assignou
as pazes de Alcoutim.

A sua chimera só, porém, o deixou quieto por tres annos.

D. Pedro tinha morrido em Montiel, assassinado ás mãos de Trastamara
(1369); a filha mais velha do defunto era casada com o duque João de
Lencastre, da casa de Inglaterra: d'ahi vinham as pretenções d'este á
corôa castelhana e o bravo duello que a Inglaterra e a França debateram
na Hespanha por muitos annos. A influencia franceza era dominante em
Castella; e para logo, nas successivas e ulteriores convulsões, a
alliança ingleza venceu em Portugal. D. Fernando, ou movido pelo desejo
de desforra, ou pensando ainda nas suas velhas ambições, e esperando
ludibriar o alliado, assigna em Braga (1372) o tratado de alliança com o
inglez, contra o castelhano. Henrique de Trastamara, em cuja côrte
andavam diversos fidalgos portuguezes, como os gallegos da invasão
anterior andavam com D. Fernando, manda Pacheco (o terceiro assassino de
D. Ignez de Castro) vêr se effectivamente o rei se dispunha á guerra.
Era tão voluvel o seu caracter, que o castellão não acreditava ainda.
Voltou Pacheco: sem duvida o rei estava disposto a entrar em campanha.
Então D. Henrique, com bondade, lhe pede que abandone essa chimera, e
insta pela paz. Elle, excitado pelas _hespanholadas_ de Affonso Tello,
suppõe que a fraqueza era o motivo da insistencia. Inuteis as
observações, o rei de Castella prefere invadir a ser invadido; e
rapidamente entra pela Beira (1372), cáe sobre Lisboa, cujo cêrco uma
esquadra, ao mesmo tempo partida de Sevilha, encerra por mar (1373).

Que fazia D. Fernando? Do alto dos muros de Santarem, onde se fechára,
via passar o exercito inimigo, sem ousar mover-se. Dois motivos lh'o
impediam. Esperava a toda a hora o soccorro do inglez; e se o fructo
d'essa guerra lhe era destinado a elle, bom seria que em pessoa o
disputasse. Deixar, porém, invadir assim o reino, pôr cêrco á capital,
abandonar o povo, abandonar Lisboa, era vergonhoso, decerto. Mas se
n'esses dias Leonor Telles, enferma, estava de cama, com as dôres do
parto? Como havia de o pobre rei acudir aos dois deveres? A quem
obedecer primeiro: ao tyranno politico, a corôa, ou ao domestico, a
rainha? Como todos os fracos, decidiu-se pelo mais proximo; tapou os
ouvidos aos clamores da nação, para attender só aos ais da enferma. Não
era por paixão que o fazia, era por indolencia: sempre esperava que
Lisboa afinal havia de resistir, e saberia defender-se!

Com effeito, não se enganava. A cidade valia muito mais do que o rei.
Quando viu approximar-se o castelhano, chegou a ser temeraria; porque
pretendeu defender com barricadas os arrabaldes, fóra dos muros. Lisboa
tinha a homogeneidade na resistencia; e em vão D. Diniz (o infante que
por condemnar o casamento de Leonor Telles fugira para Castella), em vão
Pacheco e os mais portuguezes de D. Henrique buscavam convencer os
lisbonenses da vantagem da rendição. Não estamos agora no norte, meio
gallego, onde a idéa de nacionalidade vogava indecisa nos dois lados do
Minho: estamos no coração do paiz, e n'uma terra sem tradições leonezas,
que não foi _separada_, que nunca obedeceu a outro rei mais do que ao
portuguez, a quem deve o que é. Inuteis as tentativas de D. Diniz, de
Pacheco, e dos mais, o exercito approximou-se. Viu-se então a temeridade
de defender os arrabaldes; e á pressa, recolheram-se todos para dentro
dos muros. O enxame acudia ás portas, correndo curvado com o peso das
trouxas, das arcas, onde salvára o que tinha mais precioso. Vinham as
familias em grupos, as mães, carpindo, arrastando os cordões de
creanças, espantadas de tudo aquillo. Já os castelhanos entravam pelos
casaes e quintas dos arredores: o lume ardia ainda na lareira, a porta
estava aberta, os quartos vasios. Arrazaram e queimaram tudo, desde as
hervas até aos telhados.

No rei assentára outra vez a covardice: e, como o inglez não acudia,
acceitou a paz, e foi de Santarem a Vallada assignal-a (1373). «Quanto
eu _haarricado_ venho!» dizia a rir, na volta. Effectivamente não queria
mal algum a D. Henrique; e, se a empreza falhára, o melhor era fazer
cara alegre, e acabar por uma vez com o muito que, do cêrco, padecia
Lisboa. Além d'isso, agradára-lhe o trato do inimigo: agradára-lhe
tanto, que lhe concedeu a irman, D. Beatriz, para casar com o irmão do
castelhano, Sancho. Triste destino o d'esta princeza, que era, nas mãos
do rei, como os joguetes que as creanças dão, tiram, voltam a dar, ao
sabor do seu capricho infantil!

Este mesmo modo de que usava com a irman, estava reservado á filha: a
outra Beatriz nascida em Santarem durante a invasão precedente. Henrique
de Trastamara tinha morrido; e o herdeiro, João I, na idéa de reunir as
duas corôas de Castella e Portugal, pedira a D. Fernando (que não tinha
outro filho) a mão da pequena D. Beatriz; ao que este annuira,
celebrando-se tratados, porque para casamento era cedo ainda: a pequena
teria oito annos, se tanto.

Mas o rei, diz o chronista, trazia sempre sua fala com os inglezes, o
mais encobertamente que podia. Que falas eram essas? Era a alliança de
Lencaster, na qual D. Fernando via talvez ainda luzir a possibilidade de
realisar a sua chimera. O conde Andeiro, que na primeira guerra abrira a
Galliza ao portuguez, fôra desterrado para Inglaterra, na occasião de
Alcoutim, por exigencia do castelhano. Era Andeiro o confidente do rei,
e o seu agente para com Lencaster. Veiu de Inglaterra, escondido, a
Extremoz, onde o rei, ao tempo, assistia: trazia novos tratos e
combinações, com a promessa de uma esquadra. O rei acceitou com
facilidade, e afiançou ao duque inglez a mão da filha promettida ao de
Castella.

D'esta vez decidiu-se a proceder com energia. O castelhano, porém, já
conhecedor de tudo, mandára começar as escaramuças pelas fronteiras de
entre Tejo e Guadiana, theatro das façanhas de Nunalvares (o futuro
condestavel, que agora começa a sua epopêa) em quanto dispunha o grosso
das forças para a campanha de Lisboa. A energia do portuguez consistiu
em enviar a esquadra a Sevilha destruir a inimiga. Com effeito, em
quanto mandasse no Tejo, Lisboa não podia ser efficazmente cercada. Mas
a _sandia presumpção_ de Affonso Tello perdeu a esquadra em Saltes
(1381). A armada castelhana, victoriosa, entrou no Tejo, trazendo a
bordo o infante D. João, irmão do rei, filho de D. Pedro o crú, que se
homisiára de cá por ter assassinado a mulher, Maria Telles, irman de
Leonor. Tambem lhe tinham acenado com a mão da pequena D. Beatriz, e a
ambição perdera-o! D. João repete as palavras de D. Diniz na campanha
precedente; mas é recebido a tiro, o infeliz. As surriadas de trons e
virotões exprimiram a eloquencia independente de Lisboa; e o infante,
humilhado, levou para Castella o desmentido formal a todas as sedições
que annunciára e promettera.

Chegou, afinal, por mar o Lencaster com os seus, trazendo novo alimento
á guerra, já accesa por todo o Alemtejo. Castella declarára-se pelo papa
de Avinhão, Clemente VII: os inglezes e o rei D. Fernando pronunciam-se
pelo papa de Roma. Urbano VI. A religião vinha azedar ainda mais os
odios dos combatentes. E os inglezes do duque, mercenarios o barbaros do
Norte duro, lançaram-se a este pedaço do Meio-dia, como lebreus famintos
a um regabofe. Estas gentes dos inglezes, refere o chronista, não vinham
como a defender a terra, mas para a destruir e buscar todo o mal,
matando, roubando e forçando mulheres. Nem se limitavam a tão pouco. De
uma guerra que lhes era indifferente, nas causas e motivos, entre povos
inimigos que não distinguiam, inimigos eram para elles todos, e cevar-se
o seu constante proposito. Guerreavam por conta propria, para saquearem.
Tomam aos portuguezes Monsarás, o Redondo e Evora; e as populações, por
fim desesperadas, acodem-se ao processo classicamente peninsular das
surprezas e assassinatos. «As gentes começaram a matar muitos d'elles
escusamente», a ponto de que mais de um terço ficou enterrado pelos
campos e aldeias do Alemtejo. Na extraordinaria confusão em que a
indolencia e as chimeras do rei punham o paiz, já cada um combatia por
si proprio, com o proposito unico da defeza nacional.

Se os inglezes deixaram em volta do Tejo alguma cousa a roubar, ou algum
campo a queimar, os castelhanos da esquadra, desembarcando, quando o
exercito anglo-luso tinha subido para Evora a encontrar o inimigo,
acabaram a obra destruidora n'uma razzia monumental, a que não escapou
eira nem beira, nem arvore, nem cousa viva. Em volta das muralhas de
Lisboa ficou tudo um deserto morno e secco.

Pela terceira vez assentou no rei a covardice; e sem combater, voltando
as costas ao inglez logrado, assignou as pazes de Badajoz com o
castelhano (1381). De novo a pequena infanta D. Beatriz torna a ser
promettida a outro noivo: Fernando, de Castella, que não vem ainda,
comtudo, a ser seu marido; porque, ao voltar para casa, o rei João,
enviuvando, teima no antigo plano da fusão dos reinos. O casamento da
filha com o valetudinario monarcha visinho, é o ultimo e o mais
insensato dos actos de D. Fernando. Extinguia-se com elle a dynastia; e
por herança legava, do leito da morte, a independencia em perigo ao povo
que, apesar de tão dorido, ainda e sempre lhe queria.

                      *      *      *      *      *

Fôra no viveiro feminino da côrte da irman que o rei Fernando vira
Leonor Telles. Era a terceira Leonor que escolhia para companheira, e
foi, desastradamente, a unica que veiu a ter. A primeira, de Aragão,
recusou-lh'a o perspicaz pae, por vêr quanto era defeituoso e fraco o
caracter do promettido genro. A segunda, de Castella, repudiou-a, desde
que viu e se namorou da terceira.

Maria Telles, irman de Leonor, era aia da infanta D. Beatriz. Leonor,
casada, vivia no seu solar da Beira. Estava em Lisboa, de passagem, a
visitar a irman, quando o rei a viu. Como começaram esses amores? Os
antecedentes do rei e o caracter da futura rainha deixam vêr bem que não
deveu ter havido uma d'estas paixões fulminantes, communs nos homens
d'armas, mas de que D. Fernando era incapaz, e Leonor Telles tambem.

A fria ambição calculadora era commum ás duas irmãs. A aia da infanta,
por quem o infeliz e louco D. João se namorára com paixão, preparára-lhe
cuidadosamente uma entrevista, á noute, no seu quarto. Quando o infante
chega, soffrego de amor, vê um altar e um padre diante do leito.
Casemo-nos primeiro, amaremos depois. O infante, coacto pela paixão,
casou-se para amar; mas a aia pagou mais tarde, com a vida, o erro de
brincar com um leão, como so fôra um rafeiro.

Leonor Telles tinha em si o saber sufficiente para ensinar: não carecia
das lições da irman. Percebeu que o rei, nas suas ligeirices, a preferia
á propria infanta; mas o papel de amante não lhe convinha: queria o de
rainha. Foi-se deixando ficar, e acirrava com tentações a inclinação do
monarcha sensual e passivo. «Era louçan, aposta, e de bom corpo». D.
Fernando costumou-se ás denguices da sereia: nos fracos, o costume gera
necessidades imperiosas, a que tudo sacrificam. Com o tempo, a idéa de
que Leonor era casada, naturalmente a insistencia com que ella, séria e
affectando decóro, falaria na necessidade de voltar para casa, para o
marido, fizeram sentir ao rei a impossibilidade de quebrar o habito dos
seus amores innocentes e molles. A indolencia é muito mais teimosa nas
suas exigencias do que a força; um habito sensual tem maior tenacidade
do que uma paixão. Leonor Telles devia saber isto perfeitamente. O
momento decisivo approximava-se: não podia continuar por mais tempo em
Lisboa, o marido chamava-a, as más linguas podiam falar...

O rei lembrou-se então de que para alguma cousa lhe podia servir sel-o:
desmancharia esse casamento, porque uma dama tão senhoril e casta não
podia ser sua amante. D. Fernando não tinha, o ingenuo, nem ponta de
cynismo. Falou seriamente, em particular, á irman. Mulheril como era,
este caso tinha maior gravidade do que uma guerra com Castella, pelo
repudio da princeza que lhe estava promettida nos tratados de Alcoutim.
«Melhor fizera elrey, dizia o povo, tel-a por tempo e depois casar com
outra mulher.» Bons conselhos! para quem vivia todo na atmosphera
feminina e molle da côrte de D. Beatriz, onde Maria Telles reinava. Como
se Maria, Leonor, não fossem excellentes senhoras, recatadas, mas
seductoras na sua terna dignidade!

Maria poz por condição o casamento; Leonor Telles concordou em que muito
queria ao rei, mas ainda mais ao seu nome. Combinaram tudo em segredo, e
foram, ás escondidas, ao norte, casar-se (1371) a Leça do Bailio, junto
ao Porto. Tinham, com effeito, medo de Lisboa. Quando regressaram á
côrte e os rumores se confirmaram, as opiniões moveram-se na capital. O
commum das gentes accusava o rei com odios apaixonados; mas não faltavam
os experientes a observar placidamente, «que não era maravilha; já a
outros acontecera cousa semelhante; todo o homem namorado tinha uma
especie de sandice; o amor era como dôr que doe e não doe ao mesmo
tempo». Muita gente se ria do marido infeliz que sensatamente fugira
para Castella, e para prevenir os motejos mandára pôr no barrete dois
cornos de ouro em fórma de plumas; muitos notavam a facilidade com que o
papa fazia e desfazia casamentos; e esta cumplicidade da religião e do
amor não augmentava em nada o respeito pela Egreja. Em summa, desde que
o riso entrava na questão, o odio do povo não era muito; e Lisboa
esperava para ver o resultado d'essa comedia, e tomar o pulso ao
caracter da rainha. Ninguem sabia ainda de quantas manhas elle era formado.

Mas nem em todos a longanimidade era tão grande; e uma parte da plebe
decidiu-se a pedir contas, a reclamar garantias, e até a protestar.
Esses adivinhavam a perversidade da rainha. No rei assentou a covardice,
e Leonor Telles não podia ainda contar com partido proprio. Fugiram,
pois, ás escondidas, para Santarem: e o povo, burlado, ficou em vão
esperando o rei no atrio de S. Domingos, para onde o comicio fôra
aprazado. Pelo caminho, na fuga, o rei carinhoso observava: «Olha
aquelles villões traidores, como se juntavam: prendiam-me certamente, se
lá vou.» E não podia esconder o susto, conchegando-se ao collo da
rainha, no seio d'uma inclinação protectora. Leonor Telles sorria,
calada. Era rainha, mas apupada: o plano da vingança acordava-lhe no
animo, e tambem o desdem por esse pobre rei, perdido e fraco.

Este primeiro acto da nova rainha foi decerto o seu primeiro erro. Desde
logo, até os mais indulgentes viram que não havia remedio; e o partido
dos seus inimigos cresceu em numero e ganhou forças e atrevimento. Ella
prejudicára os seus planos por um acto precipitado; e todos os esforços
que empenhava em ganhar sympathias eram vãos. «Era mui grada e liberal a
quaesquer que lhe pediam, mas quanto fazia tudo damnava; e a sua
caridade e as suas manhas não podiam encobrir os seus deshonestos feitos.»

Com effeito, a rainha nem melhorava a fraqueza do rei, nem o afastava
das suas loucuras e emprezas perdidas; e por sobre isto era
reconhecidamente má. Accusavam-na de ter preparado o assassinato da
irman pelo infante seu marido; e era publico que, no meio da agitação da
terceira guerra castelhana, tentára matar o Mestre de Aviz, forjando
para tanto um falso alvará. O povo já a descrevia como uma féra
sangrenta; e o povo sabia quantos odios comprimidos ella guardava contra
essa Lisboa miseravel que a insultava e a apupava. Toda a gente se
sentia offendida, humilhada, com a humilhação do pobre rei. Contava-se
como era com elle ousada e faladora; e como el-rei, submisso e
indolente, curvava a cabeça e se calava. Era uma desgraça que entrára no
palacio. Depois, além de cruel, sanguinaria, e descomposta no modo, era
de uma deshonestidade publica. Todos sabiam que nas barbas do marido
tinha o amante no paço. E o pobre rei não desconfiava, na sua cegueira.
Quando o Andeiro viera de Inglaterra, escondido, com os tratos de
Lencaster, el-rei recolheu-o na torre do seu paço de Extremoz. A sala da
sesta era o quarto do conde; e o rei ia-se, e a rainha vinha passar
horas esquecidas a sós com o amante. O rei, como homem de são coração,
não via o que escandalisava a todos. Pouco se lhe dava d'isso a ella,
chegando a fazer gala dos seus desvarios. O adulterio e a crueldade, o
prazer e o sangue, alliavam-se bem n'esse genio perverso, mas
intelligente e altivo, tão desdenhoso como impudico. Queria firmar sobre
o odio uma força que não pudera conquistar pelo amor. Repellida,
accusada, escarnecida por um povo, para quem talvez quiz ser boa,
decidiu impôr-se-lhe pelo desabrido do odio e pelo desplante do
comportamento. Vingava-se á maneira antiga, como uma Cleópatra.

No outomno de 1383 falleceu D. Fernando; e logo que a tampa caiu sobre o
caixão do defunto, rebentou a revolução.

                      *      *      *      *      *

A revolução de 1383-5 tem um caracter de um Juizo-de-Deus. A dynastia
mentira ao papel justiceiro: morra por ello! Por uma serie de
extravagancias domesticas e politicas, D. Fernando levára a uma crise a
obra lenta e demorada da independencia nacional, iniciada com uma espada
por Affonso Henriques, assegurada com um açoite por Pedro o crú. É
verdade que não deixára de fomentar a consistencia material interna do
corpo da nação; mas de que valia isso, pois que a deixava outra vez a
braços com o problema vital da successão, o problema da independencia?

Logo que o rei morreu, os differentes actores da tragedia começaram a
tomar os seus logares na scena.

O castelhano immediatamente encarcera em Toledo o infante D. João, o
mais perigoso dos seus émulos por direito de herança, mas perdido
perante o povo pela nodoa do ataque de Lisboa, na esquadra inimiga.

A rainha viuva, julgando o momento opportuno para conquistar sympathias,
representa uma scena de prantos. Abandonára por um instante a sua
politica de vingança, agora que tudo podia perder, se a não escudassem o
respeito, ou o amor dos seus. Ella não queria entregar o reino a
Castella: queria que a filha fosse acclamada rainha, e ella, como
regente, rei de facto. Talvez pensasse em casar-se com o Andeiro, a quem
parece amava do coração: seria esse o castigo fatal dos seus crimes, por
ser a causa da sua perdição?

Como a rainha sabia a ruim opinião que havia a seu respeito, «fingia-se
mui desconsolada e chorava em grandes prantos. Em uma camara escura,
coberta de dó, com lagrimas e soluços--que ás mulheres não faltam quando
lhes servem--se lamentava, com as visitas, do seu desamparo,
queixando-se do governo que o rei déra ao reino, agora pobre e infeliz.»
(Fernão Lopes) Na sua dôr, na boa vontade que tem de servir a nação
(para que ella a não expulse do throno) está por tudo. Com effeito, a
morte do marido punha-a á mercê da vontade do povo. «Era em tudo
obedecida, assim dos povos como dos grandes; mas bem via que essa
obediencia nada tinha de pessoal, porque ninguem a amava, nem a
respeitava. De um momento para outro podia perder tudo. Os de Lisboa
queriam que se constituisse um conselho de governo composto de dois
homens-bons de cada comarca: annuiu a essa tutela. Quando fôra a
acclamação da rainha D. Beatriz, mulher do castelhano, observára os
tumultos geraes e os votos desencontrados das cidades. Em Lisboa, a
acclamação provocára rixas e conflictos; muita gente era pelo infante D.
João ou pelo infante D. Diniz, que andavam por Castella; outros
gritavam: _Arreal, arreal, cujo for o reino, leval-o-há!_ Em Santarem o
infante D. João foi positivamente acclamado. Elvas, para não se decidir,
no meio de tanta confusão, gritou: _Arreal, arreal, por Portugal!_

Esse era effectivamente o grito da nação: por Portugal! Ninguem se
recommendava bastante, no animo do povo, para merecer uma corôa
disponivel, para se sentar n'um throno vago. O que Portugal não queria,
era que n'esse throno viesse sentar-se o castelhano. A rainha não o
queria tampouco; e era toda esforços para ganhar a si o povo, para
herdar de facto o reino. Organisada a regencia, pensou desde logo na
guerra; porque o rei de Castella já se preparava para vir occupar
Portugal. Nomeou os fronteiros do reino, e deu ao Mestre de Aviz a zona
de entre Tejo e Guadiana.

Havia porém dois homens que, no fundo, protestavam: Nunalvares e Alvaro
Paes. O primeiro é a mais nobre, a mais bella figura que a Edade-média
portugueza nos deixou. O typo cristallisado nos romances, o typo do
cavalheirismo e da pureza, tinha encarnado na pessoa do futuro
condestavel. «Usava muito de ouvir e lêr livros de historias, e
especialmente usava mais lêr a historia de Galaaz, em que se continha a
somma da tavola redonda.» Tinha a nobreza ideal do cavalleiro, e a
castidade de um mystico. Era uma açucena na alma, e um leão na bravura e
na generosidade. Resistira por muito tempo ao pae que o queria casar,
porque não curava de mulheres, nem isso lhe alegrava o coração. Por tudo
isto, a infamia da rainha abraçada ao amante, e as lagrimas fingidas
pelo marido, córavam-lhe as faces de pejo e enchiam-no de indignação.
Nunca a obra indispensavel de salvar Portugal podia levar-se a cabo com
tal mulher: Deus não consente aos impuros os grandes actos, «Um dia,
passeando só no paço, a cuidar no que havia de ser do reino»,
occorreu-lhe a idéa de que só a morte do Andeiro podia pôr termo ás
desgraças publicas.

O cavalleiro tinha então 24 annos; e esse rapaz, typo ingenuo e puro de
virtude, é a imagem de uma nação, tambem joven, e ainda crente n'um
futuro proximo. Á indignação da candidez forte junta-se a sabedoria fria
e o calculo experiente de Alvaro Paes, padrasto do futuro grão-doctor.
Tudo se conspirava para matar o Andeiro, para perder a rainha.--Era
verdadeiramente o juizo de Deus, cuja sentença, logo que fosse publica,
seria acclamada pela nação inteira. Isto assegurava ao mestre de Aviz
Alvaro Paes em Lisboa. Falava por sua bocca a cidade que Leonor Telles
tanto odiava, e que tamanhos medos tinha da rainha. Pensaria já o author
do plano do dia 6 de dezembro (1383) na fundação de uma nova dynastia?
Queria acaso matar apenas o valido para aterrorisar a rainha; e
entregal-a, assim, manietada, ao poder de uma oligarchia urbana, em que
Lisboa se arrogasse o papel de defensora do reino, tendo á frente de um
conselho de governo, com a regente vilipendiada e coacta, o Mestre,
homem simples, por instrumento e chefe? Era um plano atrevido, mas mais
de uma vez posto em pratica por diversas cidades opulentas da Hespanha.
Não contava, porém, Alvaro Paes, nem com a arte que os annos
desenvolveram no Mestre; nem com o generoso e nobre caracter de
Nunalvares; nem com a força invencivel dos futuros textos e doutrinas do
grão-doctor João das Regras.

Combinado o programma do dia 6, Alvaro Paes abraçou e beijou o Mestre.
N'esse dia foi este ao paço despedir-se da rainha: partia para a sua
fronteira do Alemtejo. Momentos depois voltou acompanhado por alguns
fidalgos dos seus. A rainha, surprehendida, interrogou-o.--A fronteira
era muito _grossa_, levava pouca gente, os arrolamentos estavam errados,
queria examinal-os...

Leonor Telles estava então na sua camara, sentada no meio das suas
damas, costurando, sobre o estrado. De joelhos, aos pés da rainha, o
Andeiro, de corpo bem disposto, _lustroso_, viril (40 annos), vestindo,
apesar do luto, um gibão de setim cramesi e um tabardo de panno preto,
sem o burel branco do estylo, falava manso com ella. Era um quadro de
familia, e tudo parecia sereno, menos o tom e o aspecto do Mestre e dos
seus, de pé, carrancudos e indecisos, como quem tem na mente um crime.

A rainha, inquieta, mas simulando indifferença e sangue frio, chamou o
escrivão da puridade e mandou abrir o livro dos vassallos da comarca:
Escolhesse o Mestre os que quizesse. O escrivão de pé, com o livro
aberto, ia lendo, indifferentemente _item_, _Dom_... etc, mas o Mestre
não lhe prestava grande attenção. Uns perante outros, os personagens da
tragedia adivinhavam-se, mas não se confessavam. Só, porventura, o
escrivão, no seu tabardo negro, com a voz monotona, era sincero. Andeiro
levantou-se, saíu a outra sala, a avisar os seus sequazes: o que o
Mestre vendo, receiou perder-se, ou que o ensejo lhe fugisse. Levou-o
comsigo para fóra. A rainha, no meio das suas damas, sobre o estrado,
costurava. O momento agudo da crise chegára: era mistér consummar o
acto. O Mestre empurra então o conde para o vão de uma janella. Elle ia
a fallar... «sendo, porém, mais tempo de o matar, do que de o ouvir»,
deu-lhe uma cutilada na cabeça, a valer. Desarmado, o infeliz não podia
defender-se; e assim que inclinou a cabeça rachada pelo meio, a gente do
Mestre acabou-o alli ás estocadas. Foi uma façanha arteiramente
combinada, barbara e cobardemente executada. Nunalvares, quando a mesma
solução lhe occorrera, pensou decerto n'um plano diverso.

Consummado o assassinato, poz-se em scena a comedia do contra-regras,
Alvaro Paes. Foi mandado um pagem a gritar pelas ruas que acudissem ao
Mestre, que o matavam no paço. Entretanto, dentro d'elle, era grande o
alvoroço. Uns fugiam pelas janellas, outros pelos telhados: todos
corriam como doidos, cheios de susto, e se acotovellavam nos corredores
e entre as portas. A rainha levantando-se, ao ouvir que lhe tinham
matado o amante, rugiu de colera, como a fera a quem roubam os filhos:
era a sua cruel fraqueza! Viu tambem a sua vida em perigo, e por ventura
n'este momento desejou a morte[55]. Animosa, mandou perguntar ao Mestre,
que n'um eirado do palacio, á vontade, descançava das commoções
violentas, se tambem a queria matar. Elle voltou, respeitosamente, que
não. Era um homem simples, costumado a vêr em Leonor Telles a mulher do
rei: e por isso, além de ser muito novo (26 annos), não se atrevia a
tanto. Era fogoso, brutal, e de instinctos pesados: um instrumento capaz
de executar os planos manhosos do Alvaro Paes, prompto para tudo, porque
não distinguia bem a linha que separa a nobreza da villania--como, de
resto, succedia a quasi todos os homens d'armas da Edade-média. Foram a
revolução, os companheiros e depois a mulher, quem fez d'elle na edade
madura um sabio rei.

Na rua, Alvaro Paes vinha a cavallo (por excepção rara, que era velho já
e pesado) á frente da procissão de energumenos, bradando por desvairadas
maneiras. A plebe, investindo com o palacio, quebrava os cancellos de
ferro, trazia escadas para o assalto e montes de lenha para queimar
tudo. Era uma algazarra incrivel de improperios e nomes deshonestos,
dirigidos á rainha. Já de dentro havia medo de que o fogo pegasse, e que
o fim da tragedia fosse um incendio justiceiro. Extenuavam-se a gritar
que o Mestre estava vivo, Andeiro morto; mas ninguem tinha ouvidos no
meio do clamor da turba. Por fim, o Mestre de Aviz appareceu a uma
janella e foi victoriado: «Vinde para nós, gritavam-lhe, e dáe ao démo
esses paços!» Alli mesmo, ao pé do palacio, ficava a Sé; Era necessario
solemnisar a festa com os repiques dos sinos, conforme a plebe o
ordenava; mas os padres, recolhidos no alto da torre, não sabiam o que
queriam d'elles: e por esse crime foram precipitados á rua o bispo e
mais dois: e os cadaveres, arrastados ao Rocio, ahi ficaram para pasto
dos caens.

Tambem o Mestre já sentia fome, depois de tamanho dia. Foi com Alvaro
Paes comer socegadamente. O homem cumprira o que tinha promettido: e, á
mesa, na satisfação da victoria, instruiu o rapaz sobre o que lhe
restava fazer: pedir perdão á rainha, depois de jantar. Quem sabe?
dir-lhe-hia elle, mastigando, mais tarde... casar com ella... E o
mestre, bastardo, pobre, ambicioso e simples, via abrirem-se-lhe
horisontes seductores.

Com effeito, depois de jantar, o Mestre de Aviz foi ao paço e, de
joelhos, pediu perdão á rainha. Tamanha simplez encheu-a a ella de
espanto. Estava calada, não sabia que responder: e como o pobre
insistia, ella, afinal com desdem, voltou-lhe: Falemos de outras
cousas... O Mestre saía desorientado e corrido, atraz d'elle as suas
guardas, quando a rainha, seguindo-os, deu de chofre com o cadaver do
conde empoçado em sangue e coberto com um tapete velho. Não pôde mais
conter-se; e o seu animo, perdido, rebentou em duras queixa: «Enterrae-o
ao menos, já que o mataste tão deshonradamente!» Elles não curaram
d'isso, nem se doeram do adverbio da rainha, e foram para suas pousadas.
Era tempo perdido.

Ao outro dia a rainha partiu para Alemquer--suffocada em odios contra
Lisboa: queria vel-a arrazada e queimada de mau fogo, queria uma
tonelada de linguas das suas mulheres. Queria uma vingança, uma desforra
que désse brado ao mundo. Que lhe importavam, á sua alma desvairada, a
nação e a independencia? No egoismo absoluto de uma paixão, esquecia
tudo; e por isso mudou de rumo á sua politica, e convidou o rei de
Castella a vir tomar posse de Portugal. Perdia-se irremediavelmente.

Entretanto a maxima parte da nobreza acompanhava-a, e a fidalguia era
então o exercito. Uns não queriam pactuar com a revolta da plebe de
Lisboa, nem curvar a cerviz ao imperio de Alvaro Paes. Outros eram fieis
á legitimidade da regencia. O resto dos que não acompanhavam a rainha e
grande parte das classes médias eram pelo infante D. João, preso em
Toledo. O plano de Alvaro Paes e o partido do mestre de Aviz caiam
tanto, que, desanimado, o ultimo decide-se a abandonar a empreza e a
fugir para Inglaterra--como fez depois o seu successor na historia, o
Prior do Crato. Poderam, porém, contel-o. Para que? Para o decidirem a
uma segunda vergonha. Eram incapazes de nenhuma grande audacia, de
nenhum plano temerario; e só um d'esses poderia dar a victoria. Não
sentiam o palpitar violento de uma nação forte que aspirava á vida. Os
seus meios eram mesquinhos, soezes e crueis. Conquistaram o castello em
Lisboa, levando á frente de si as mulheres e os filhos dos que o
defendiam pelo infante D. João. Angariavam sequazes, comprando-os a
dinheiro, segundo a regra de Alvaro Paes: _dae o que não é vosso,
promettei o que não tendes, e perdoae a quem vos errou._ A rapina e a
impunidade eram o alicerce da força do partido, já ridiculamente
alcunhado do _Mexias de Lisboa_. O segundo plano proposto, para evitar a
fuga do _Mexias_, era a antiga idéa commum e soez de Alvaro Paes:
casal-o com Leonor Telles. O Mestre accedeu; e propoz o caso á rainha,
que respondeu com uma gargalhada. Podia-se acaso descer mais? Não podia.

Quem faz, porém, os Messias é o povo. Valham pouco, valham nada, pouco
importa. São um lábaro, onde a turba escreve um moto. Vão, mas não
guiam. Portugal com effeito gerava uma revolução messianica; pedia em
altos brados que o salvassem; tinha a consciencia de que podia e havia
de ser salvo. Esta força latente e invencivel, era, porém, ignota para a
simplez do Mestre e para o lerdo instincto de Alvaro Paes. Andavam ambos
como cégos em torno de um pharol, sem o verem. Eram ambos como certos
animaes das trevas, a quem a desnecessidade priva de olhos.

Para vêr e para sentir a gravidade do momento, para conceber a audacia
da revolução, era mistér, ou a ingenua candura dos fortes, ou a refinada
sabedoria dos mestres. O de Aviz teve a fortuna de encontrar dois homens
que o fizeram rei, e tornaram o seu titulo ridiculo de _Mexias_, no
titulo verdadeiro e forte de Defensor-do-reino, positivo messias da
nação (1384).

Termina o reinado de Alvaro Paes, desde que o futuro condestavel e o
grão-doctor tomam conta, um da guerra, outro da politica. Temerarias,
audazes, quasi loucas ambas, exprimem ambas a suprema sabedoria; porque
traduzem o até ahi indefinido querer do povo, e empregam os meios unicos
de salvação. Nunalvares faz de toda a fronteira o theatro de incessantes
campanhas, pouco ou nada attende ás ordens do Defensor-do-reino, por
vezes desobedece formalmente. Á medida que o Mestre via o resultado das
armas do nobre capitão, ia reconhecendo a propria inferioridade; e a
simplez natural do seu genio tinha de bom o abrir-lhe os olhos á
verdade. Nos actos alheios, aprendia a pesar os seus, ganhando com isso
a attitude de um moderador prudente. Era sábia a arte com que ponderava
os conflictos inevitaveis de Nunalvares com João das Regras: do
cavalleiro idealista e heroico, e do habil, consummado politico: do
representante ingenuo de douradas phantasias, com o frio calculador das
cousas positivas; do ultimo homem da Edade-média, com o primeiro do novo
Portugal monarchico. Entre ambos, o Mestre de Aviz era um pendulo
regulador das duas forças em opposição.

A politica ia buscar outra vez as allianças inglezas, acordando a antiga
ambição castelhana da casa de Lencaster; e a guerra, ora terrivel em
batalhas, ora fidalga em reptos e duellos, ia acordar por todo o paiz a
revolução. Os grandes, os alcaides das terras, eram por Castella ou pelo
infante D. João; mas o povo era pelo Messias: cria e esperava o milagre.
Formavam-se _uniões_ espontaneas; e as levas de populares conquistavam
para o Mestre os castellos e villas fortificados aos senhores e aos
alcaides dos concelhos.

Uma grande parte do reino obedecia ao governo de Lisboa; mas a rainha, o
rei de Castella e o exercito invasor, na sua marcha sobre a capital,
occupavam Coimbra. Leonor Telles acabou ahi. Arrependida de ter chamado
o castelhano que a desprezava; reconhecendo que erradamente, por uma
precipitação, forjára por suas proprias mãos as cadeias do seu
captiveiro, vendo agora quanto se illudira, e que erro fôra o seu em não
avaliar a justa vitalidade do paiz, tentou ainda urdir uma trama para se
libertar, perdendo o genro e a filha. Os seus planos falharam; e anojada
e cheia de desespero, seguiu a ordem do genro, que de Coimbra a mandou
enterrar no mosteiro de Tordesillas. Como acabaria a sua vida? Quem
sabe? talvez arrependida, santamente amortalhada no burel monastico?
acaso roída de desespero, impenitente?

O exercito castelhano desceu sobre Lisboa, e este segundo cêrco da
capital (1384) foi mais cruel ainda do que o primeiro, no tempo de D.
Fernando. Veiu a fome perseguir os heroicos lisbonenses, que andavam já
doentes das cousas que comiam. Por fóra a peste alastrava, porém, de
cadaveres os arrayaes castelhanos; e quando, um dia, a rainha de
Castella, pretendente de Portugal, adoeceu tambem, os inimigos
levantaram o cêrco. O povo encontrava n'isto motivos para crer n'uma
protecção do céu.

Por mais de um anno se prolongaram ainda as guerras pelas provincias
afastadas; mas Lisboa, Coimbra e todo o centro do paiz era, já em 1385,
pelo Mestre. Os ultimos actos da revolução iam consummar-se: as côrtes
de Coimbra e a batalha de Aljubarrota.

Em Coimbra o grão-doctor é o general e o chefe. Essa batalha de
discursos era diversa, mas não menos brava de pelejar; porque uma grande
parte da nobreza, decidida a defender o reino do castelhano, não o
estava a acclamar rei o Mestre de Aviz. Legitimista, considerava-se
ligada ao infante D. João; e a união dos fidalgos, completa para a
defeza, não existia, agora que se tratava de consolidar, com uma nova
dynastia, a independencia e a constituição definitiva do reino.

O rei de Castella era schismatico e excommungado por apoiar Clemente VII
contra Urbano VI; e além d'isso os maus costumes de Leonor Telles não
deixavam ter certeza sobre a legitimidade de D. Beatriz.--Todos apoiavam
João das Regras, porque ninguem queria o castelhano.--D. João,
continuava o doutor (e aqui principiavam os murmurios) é bastardo,
porque el-rei D. Pedro jámais se casou com D. Ignez de Castro.--Um
momento houve em que Nunalvares esteve a ponto de brigar com o
_roncador_ Martim Vasques, o chefe dos _leaes_; e as côrtes por um triz
se tornavam n'uma batalha. Interveiu o Mestre de Aviz, apasiguando o
exaltado capitão, melhor no campo do que no conselho.

Ahi reinava o _grão-doctor_. Além de illegitimos, continuava sem se
perturbar, os filhos de D. Ignez de Castro tinham tomado armas contra a
patria; e este argumento, proprio a impressionar os leaes, pesou, mas
não os decidiu. Então o doutor lançou mão das reservas e venceu.
Apresentou as bullas, nas quaes o papa recusára acceder aos pedidos do
rei D. Pedro para a legitimação dos filhos. Podia haver prova mais
solemne? Ousaria ainda alguem conservar duvidas? E apoz isto desenrolava
todas as consequencias: a divisão das forças do reino perante o
castelhano, inimigo commum; a impossibilidade de acclamar rei um
principe preso em Castella, etc. O ataque era irresistivel; e tudo
cedeu, declarando-se vago o throno, e elegendo-se para o occupar o
Mestre de Aviz, D. João I.

Que melhor prova podia dar-se da vitalidade da nação e da sua
independencia já acabada, do que estas côrtes de 1385, em que ella
exalta uma dynastia, sem base na tradição nem na herança, unicamente
enraizada no querer absoluto, commum dos portuguezes? É só n'este
momento que bem de facto se póde dizer terminada a historia da
independencia; porque a dynastia de Borgonha trazia comsigo o peccado
original da doação primitiva, segundo o direito feodal: o reino era um
senhorio, sublevado, como por tantas vezes e por tão longos tempos o
tinham sido, na propria Hespanha, a Galliza e a Biscaya.[56] Agora as
cousas mudavam; e mudavam, porque a nação, alargando-se para o sul,
recebendo novas gentes em seu seio, fomentando a actividade commercial e
maritima em Lisboa, ao mesmo tempo que se constituia interna ou
organicamente, era já um ser diverso do antigo, e um ser dotado de vida
independente e propria. A crise, que temos vindo historiando--com um
vagar desculpavel pela sua significação excepcional--parece ter, para a
vida nacional portugueza, a importancia que a natureza dá ás crises que
determinam a passagem de uns para outros dos seus typos organicos.[57]

Não bastava porém uma acclamação, era necessario um baptismo, á nova
monarchia. Aljubarrota respondeu com as armas á eloquencia das côrtes;
e, victorioso no conselho e no campo, o throno de D. João I ficou
inabalavel. Segundo o parecer dos inglezes, seus alliados e mestres na
nova tactica militar com que vieram a esmagar em Azincourt a cavallaria
franceza, o Mestre d'Aviz entrincheira o seu pequeno exercito.
Nortberry, Hartcelle e d'Artherry, capitães, traçaram a _carriagem_.
Cortaram-se ramos de arvores com os quaes se levantou uma estacada para
paralysar as cargas da cavallaria; ao meio d'essa estacada um carreiro
estreito, internamente bordado por archeiros e bésteiros de pé, estava
aberto, como uma tentação e um laço ao ardor fidalgo dos inimigos.

A desproporção do numero era grande entre os combatentes. O castelhano
trazia comsigo vinte mil homens de cavallo, nos quaes entravam dois mil
francezes, gascões e bearnezes: com a peonagem, o seu exercito ia a mais
metade. Em volta de D. João I não havia mais de duas mil lanças,
oitocentos bésteiros, e quatro mil peões: alguns elevam a dez mil o
total. Evidentemente, só a força da arte podia vencer a desproporção do
numero. Pelo meio dia appareceu o exercito inimigo, victoriosamente
composto na galhardia das armas reluzentes com o sol, dos pendões e
bandeiras blazonadas, das mesnadas dos ricos homens da Hespanha e da
França meridional, montados nos seus cavallos de guerra. Os portuguezes,
calados, humildes e obscuros, por detraz das suas trincheiras, esperavam
o choque d'essa brilhante móle. Havia em muitos valentia e enthusiasmo,
mas não faltava o temor, menos ainda a decisão firme de morrer vencidos,
na desesperança de rebater um ataque tão poderoso. O condestavel e os
cavalleiros excitavam o ardor bellico; os bispos, confessando,
absolvendo, dando a commungar, distribuiam a paz ás consciencias,
preparavam para a morte, accendendo a coragem com os odios religiosos.
Havia exaltação, votos singulares, ditos agudos, mas sobradas duvidas
sobre o resultado do dia. Os padres resavam no seu latim: _Verbum caro
factum est_, e os soldados traduziam d'esta fórma o evangelho: muito
caro feito é este: Havia até medo n'essas levas de gente bisonha do
campo, soldados saídos de uma população rural; mas uns trinta peões que
fugiram, apavorados, foram trucidados pelos castelhanos: o que nos
prestou o serviço de evitar as deserções, consolidando o proposito da
defeza.

O exercito inimigo não se tinha decidido ainda sobre o modo de operar.
Uns optavam pela prudencia: vinham de longe, cansados da viagem, não
tinham comido ainda: esperassem, e os portuguezes, como javardos no seu
covil, seriam forçados a saír por lhes faltar o mantimento. Outros
achavam uma vergonha, para tão fidalgos cavalleiros, o parar deante
d'uma estacada mal defendida por um punhado de soldados bisonhos. Apesar
do rei vir em andas, doente com sezões, venceu a ultima opinião, e
atacaram galhardamente. «Em esto os ginetes dos inimigos provavam a
miude d'entrar na carriagem dos portuguezes, mas tudo achavam apercebido
de guisa que lhes non podiam empecer. De fórma que os castellãos tiveram
de apear e combater com armas curtas.» (F. Lopes).

Realisava-se a previsão, e a batalha acabou por um destroço completo da
cavallaria orgulhosa. O rei de Castella fugiu nas suas andas. Toda a
bagagem do seu exercito caiu em poder dos vencedores. Eram carretas e
azemolas sem numero e dezenas de milhar de cabeças de gado.

Como para a Europa central foi depois Azincourt, assim Aljubarrota foi
na Hespanha: o ultimo dia da cavallaria feodal, e o primeiro ensaio
d'esses combates de pé, com que dois seculos mais tarde a infanteria
castelhana de Carlos V havia de conquistar a Europa.

A Edade-média portugueza acaba no dia de Aljubarrota, com a primeira
epoca da nação, com o periodo da sua formação trabalhosa e lenta. Novos
horizontes, vastas ambições, pensamentos ainda inconscientes de um largo
futuro, amadurecem encobertos, no seio da nação, formada, acclamada,
baptizada em sangue. Chama-a de longe um dubio tentador--o Mar!

    [52] V. _As raças humanas_, I, pp. XXXI-III.

    [53] Curiosa coincidencia a repetição d'esta scena em 1834 na
         guerra civil: (_Portugal contemporaneo_ (2.ª ed.), II, pp. 371).

            D. Pedro vae
            D. Pedro vem,
            Mas não entra
            Em Santarem!

         O estribilho do tempo de D. Fernando acabava--_de Lisboa
         a Santarem_.

    [54] V. _Portugal contemporaneo_ (2.ª ed.), II, pp. 291.

    [55] V. _Instit. primit._, p. 157.

    [56] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) a pp. 118-21 os
         quadros dos estados peninsulares.

    [57] V. _Elem. de Anthropologia_ (3.ª ed.), pp. 13-20.

                      *      *      *      *      *




LIVRO TERCEIRO

A CONQUISTA DO MAR TENEBROSO

(DYNASTIA DE AVIZ: 1385-1500)


    ... quantas vezes estive mettido de baxo das bravas ondas por saber
    o fundo das barras e para que parte endereçavam os canais, e entrada
    dos rios até então nunqua lavrados cubertos de bravo mato; e asi
    mesmo que para alcansar a verdade das rotas, fluxos do mar, voltas e
    remansos de rios, surgidouros de portos, abriguo de enseadas,
    deferença das agulhas, altura das cidades, e fazer tavoas de cada
    lugar e rio em que se contem a mostra da terra, baxos, restingas,
    rotas, e como se devem de entrar, perdi muita parte da saude e
    disposição natural.

              DOM JOHAM DE CASTRO, _Primeiro roteiro da costa da India._

                      *      *      *      *      *




I

O Infante D. Henrique


Desde o miado do XII seculo que se propagára na Europa a noticia da
existencia de um imperio christão no extremo Oriente. O nuncio da Egreja
da Armenia falára ao papa (Eugenio III) em um principe, chamado João,
cujos dominios estavam situados para além da Armenia e da Persia, e que
reunia ao Imperio o sacerdocio: era um papa do extremo Oriente, e fizera
numerosas conquistas, o Preste-Joham.[58] Esta lenda, espalhada na
Europa, excitava tanto mais a pia curiosidade dos christãos, quanto
essas distantes regiões se pintavam como paraizos carregados de ouro e
encantos.

Durante a Edade-média, vogavam tambem extravagantes lendas ácerca do
Atlantico.[59] As tradições obliteradas pela ignorancia davam caracteres
phantasticos ás antigas viagens dos carthaginezes ao longo das costas
d'Africa, e ás ilhas do mar atlantico.[60] Esse infinito de aguas, onde
mergulhavam todas as costas conhecidas, povoava-se de monstros e sombras
extravagantes; era o Mar Tenebroso! Os homens do norte, que nas suas
barcas tinham descido desde os mares gelados do pólo a piratear nas
costas da França, foram caindo para o sul; e já no XV seculo tinham
chegado ás Canarias, já commerciavam ao longo da costa africana, para
cima do cabo Bojador, onde tambem, por terra, chegavam os berberes de
Marrocos.[61]

As tradições dos geographos antigos, idealisadas pela imaginação bretan,
tinham dado logar á formação de lendas maravilhosas. O mar tenebroso era
um oceano de luz, semeado de ilhas verdes onde havia cidades com
muralhas de ouro resplendente: ao cabo das longas e perigosas viagens
estava o paraizo terreal. Para os geographos arabes, menos fecundos em
phantasias, o mar tenebroso era uma vasta e infinita campina, a acabar
n'um cahos de nevoeiros e vapores aquosos; e, «ainda que os mareantes,
diz Ibn-Khaldún, conheçam os rumos dos ventos, não havendo, para além,
paiz algum habitado, perder-se-hão irremediavelmente, porque o limite do
oceano não é outro, senão o proprio oceano».

Além d'estas tentações maritimas, havia a ambição do Oriente e do seu
commercio, accendida em toda a Europa pelas Cruzadas; e mais
particularmente na Hespanha, pelo contacto intimo em que a occupação
arabe a puzera com os monopolisadores d'esse commercio, durante a
Edade-média. Hormuz[62] era o emporio mercantil de todos os mercadas do
oceano indico. D'ahi as carregações se dirigiam para a Europa e para a
Asia do norte, seguindo derrotas diversas. As da Asia iam em cáfilas,
caminho da Armenia, por Trebizonda, engolphar-se na Tartaria; as da
Europa, ou vinham por mar a Suês, e d'ahi em caravanas, pelo Cairo, a
Alexandria, ou seguiam por terra o valle do Euphrates a Bagdad, passando
em Damasco, no seu caminho de Beirut, sobre o Mediterraneo.

Tinha, porém, no começo do XV seculo, a empreza encetada com tamanho
vigor e tino pelo infante D. Henrique, o pensamento determinado de
chegar por mar--como veiu a chegar-se--ao imperio do Preste-Joham das
Indias? Parece-nos que não. Devassar o mar tenebroso em demanda das
ilhas de que havia uma noticia mais ou menos vaga; reconhecer e ir
occupando gradualmente a costa occidental da Africa--parecem ter sido
emprezas ainda não ligadas n'esse tempo com a da viagem aos reinos do
Preste-Joham. Esta viagem, comtudo, não occupava menos o espirito do
principe, que pensava leval-a a cabo por um caminho differente: por
terra. A conquista de Ceuta prende-se directa e principalmente a este
pensamento. Architectos arabes da Hespanha tinham ido pelo interior da
Africa até Timboktu, cujos palacios rivalizavam com os de Cordova ou de
Granada. Ceuta era a chave maritima do imperio de Marrocos; e,
porventura, atravez da Africa se poderia chegar ao dourado Oriente. Em
todo o caso a terra offerecia um campo de exploração mais definido do
que esse mar incognito, infinito, cheio de trevas.

No ambicioso espirito do infante, cabiam as duas emprezas: conquistar o
imperio marroquino, ou pelo menos o seu litoral, para garantir o
monopolio do commercio do Sudão;[63] e ao mesmo tempo conquistar ás
trevas as ilhas d'esse mar desconhecido, seguindo tambem o longo das
costas occidentaes para as visitar e explorar. Tenaz e até duro de
caracter, D. Henrique sacrifica tudo aos progressos da sua empreza: nem
o dobram as lagrimas do irmão infeliz sacrificado em Tanger, nem as
supplicas do outro irmão, o nobre D. Pedro, talvez por sua culpa morto
em Alfarrobeira. Ás conquistas da Africa immola os dois principes; ás
navegações os seus ocios, as rendas da Ordem de Christo, e as vidas
obscuras dos muitos que morreram ao longo das costas, ou na vasta
amplidão dos mares terriveis. Dominado por um grande pensamento, é
deshumano, como quasi todos os grandes-homens; mas, no limitado numero
dos nossos nomes celebres, o de D. Henrique está ao lado do primeiro
Affonso e de João II. Um fundou o reino, outro fundou o imperio ephemero
do Oriente: entre ambos, D. Henrique foi o heroe pertinaz e duro, a cuja
força Portugal deveu a honra de preceder as nações da Europa na obra do
reconhecimento e vassallagem de todo o globo.

                      *      *      *      *      *

A candida nobreza de Nunalvares, a sabedoria do grão-doctor João das
Regras, a explosão da força nacional, tinham feito de D. João I quasi um
heroe: os seus illustres filhos fazem d'elle o mais feliz dos paes.
Ditoso homem mediocre a quem tudo favorece, deu-lhe a sorte uma esposa
virtuosa e nobre na princeza, cuja lição e cujo exemplo põem a semente
das suas grandes acções no coração dos infantes--D. Pedro, acaso o typo
mais digno de toda a historia nacional; D. Fernando, cujos meritos
desapparecem perante o do martyrio que o santificou; D. Duarte, o rei
sabio e feliz: D. Henrique, finalmente, em cujo cerebro ferviam os
destinos futuros de Portugal. É uma pleiade de homens celebres,
presidindo a uma nação constituida e robusta. Com taes elementos
consegue-se tudo no mundo. Bons guerreiros, á antiga, os infantes não se
parecem, comtudo, já com os antigos personagens. A côrte apresenta uma
phisionomia diversa: dir-se-hia uma Academia. D. Duarte occupa-se em
cousas sábias, escreve o seu _Leal conselheiro_. D. Pedro, cujas
dilatadas viagens chegaram a formar lenda, traz comsigo vasta lição,
muitos livros, cartas, conhecimentos; a litteratura e a geographia
occupam-no por egual, e tambem escreve: dedica ao irmão primogenito o
seu tratado da _Virtuosa benfeitoria_. Á noute, nos serões, lêem-se,
_pouco, passo, e bem apontado_, como D. Duarte manda na sua obra, as
historias seductoras de Galaaz, de Merlim, de Tristão. Não é uma côrte
da Edade-média, é já uma côrte da Renascença, cheia de idéas novas e de
uma cultura eminente. A educação transforma a politica, e as theorias
monarchicas da Italia são applaudidas e adoptadas. Bole-se na
legislação, limitam-se os privilegios aristocraticos e burguezes,
adianta-se a obra da unidade organica do corpo nacional. Os principes,
valentes e sabios, são estadistas, no moderno sentido da palavra; e o
rei, que na mocidade obedecera aos impulsos de Nunalvares, ás lições de
João das Regras, obedece agora aos incitamentos dos filhos, que lhe
mostram, com os livros e os mappas, a conveniencia de ir tomar
Ceuta--primeiro acto de uma longa e ambiciosa historia que desenrolavam
perante os ouvidos soffregos do antigo Mestre de Aviz. A rainha,
orgulhosa nos filhos, approva tanto, que, já moribunda, ainda obriga o
marido a partir. D. João I, passivo agora e sempre, obedece; e, do
principio ao fim da sua fecunda existencia, parece fadado a ornar-se com
os louros por outrem ganhos, a ceifar a seara que outro semeou. Tinha
porém a habilidade propria dos homens de juizo--a de pesar, vêr, e
julgar com rectidão.

                      *      *      *      *      *

Os planos de D. Henrique mereciam a plena approvação do rei, que lhe
dava ampla liberdade para proseguir; e até o incitaria, se o infante
carecesse de estimulo. Já no proprio anno de Ceuta. D. Henrique fizera
uma primeira tentativa, enviando uma frota a sondar e reconhecer a costa
da Africa.

Terminada a empreza de Ceuta, poz decididamente mãos á obra, e
estabeleceu-se em Sagres. Era uma lingua de rocha cravada nas ondas e
acoitada pelas ventanias do noroeste. Estava-se alli como a bordo; e a
academia do infante parecia uma náu, em que vogavam os destinos ainda
ignotos da nação. Os antigos tinham chamado _sacrum_, sagrado, a esse
promontorio, e o nome de agora tambem traduzia, no pensamento e na
linguagem, a passada denominação. Sagres ia ser no XV seculo, como fôra
nos velhos tempos, o pedestal de um templo. Acreditavam os antigos
celtas, do Guadiana espalhados até á costa,[64] que no templo circular
do promontorio sacro, se reuniam ás noutes os deuses, em mysteriosas
conversas com esse mar cheio de enganos e tentações, aberto ao capricho
dos homens para os tragar. Agora, os modernos herdeiros dos druidas
erguiam em Sagres um novo templo, onde tambem ás noutes, não deuses, mas
homens, se entretinham em falas com os ignotos mares, com as regiões
desconhecidas. O espirito era o mesmo, a religião era outra:--era a da
Renascença--a sciencia, a tentação irresistivel que arrastava os homens
para a natureza; que os fazia extenuarem-se a desflorar a virgindade dos
mares, a interrogar a mudez das noutes, na sua ancia de saber, de
dominar, de conhecer o mundo inteiro e os seus segredos: «quantas vezes
estive mettido debaixo das bravas ondas, por saber o fundo das barras e
para que parte endereçavam os canaes!»

Em Sagres reunira o infante todos os recursos de que então dispunham a
cosmographia e a arte de navegar. D. Pedro trouxera-lhe das suas viagens
o manuscripto das peregrinações de Marco Paolo. Esses livros, os mappas
de Valseca, as narrativas e roteiros dos pilotos, as rudes cartas
maritimas, faziam vergar as mesas, a que o infante, tendo ao lado o seu
cosmographo, Jayme de Mayorca, então celebre, rodeado de discipulos,
passava os dias a discorrer, as noutes a interrogar, silenciosamente, os
enygmas propostos nos textos e desenhos. Como Raymundo Lullio, entre as
drogas e retortas do seu laboratório se extenuava a buscar o principio
da vida, os corpos simples ou elementares da materia para obter o
segredo da existencia physica e organica: assim o infante procurava
desvendar os segredos das ilhas e dos continentes, dos golphos e
enseadas, velados pelo manto azul-negro do Mar Tenebroso.

Essa paixão naturalista da Renascença nos seus primeiros tempos, essa
tenaz curiosidade scientifica, differia essencialmente do mysticismo
religioso da Edade-média, eivado de phantasias kabbalisticas, e da
ingenuidade das mythogenias primitivas. O homem já preferia a sciencia á
imaginação: rejeitava as fabulas, e confiava tudo aos processos e aos
meios positivos. «Ora manifesto é, diz, um seculo depois, Pedro Nunes,
que estes descobrimentos de costas, ilhas e terras firmes não se fizeram
indo a acertar; mas partiam os nossos mareantes mui ensinados e providos
de instrumentos e regras de astrologia e geographia, que são as cousas
de que os cosmographos hão de andar apercebidos. Levavam cartas mui
particularmente rumadas, e não já as que os antigos usavam, que não
tinham mais figurados que doze ventos, e navegavam sem agulha.» A
bussola, o astrolabio e o quadrante já guiavam as expedições maritimas
enviadas annualmente de Sagres pelo infante, a sondar o Oceano, ou a
descer a costa para o sul. Porto-Santo, a Madeira e os Açores foram por
esta fórma arrancadas ás trevas do mar.[65] Mas, apesar das
successivas investidas, não se conseguira ainda dobrar o cabo Bojador,
limite extremo até onde a costa era conhecida: havia doze annos que os
navios iam e voltavam sem resultado. Era uma barreira natural, junta a
um muro de terrores phantasticos.

Gil Eannes parte, afinal, em 1434, e volta com a desejada nova. O mundo
não acabava alli, sabia-se já; mas seria possivel ir além d'esse
_finis-terrae_ da Africa? Gil Eannes voltou para responder
affirmativamente. Dissiparam-se, portanto, os sustos; e os navios foram
seguindo, costa abaixo, por Cabo-Verde, a Guiné, onde, cheios de
satisfação, os mareantes aprisionam os primeiros negros--os azenegues do
Senegal.[66]

Era um antegosto das horrorosas façanhas a que as tentações do mar os
haviam de conduzir; mas as perdas de gente e dinheiro, já sensiveis, o
dilatado das viagens, sem consequencias fecundas, esfriavam nos animos o
enthusiasmo do principio. Não acabava, jámais, a costa da Africa! e o
Preste-Joham e os encantos do Oriente traduziam-se apenas pela
_malagueta_ da Guiné.[67]

O infante morreu em 1460, e com a sua morte parou o movimento das
navegações. A empreza, primeiro esboçada, parecia colossal de mais para
as forças da nação: não podiam ellas vencer de todo, nem o Mar, nem
Marrocos; e o que se tinha conseguido, perante os resultados praticos,
desanimava, e fazia sentir cansaço.

                      *      *      *      *      *

Antes de nos alongarmos na historia d'essa empreza, cabe-nos o dever de
registrar brevemente a da formação das forças navaes portuguezas,
indispensaveis para o emprehendimento das viagens de descoberta e das
expedições militares á costa da Berberia.

Póde dizer-se que, até ao fim do XII seculo, não ha marinha na Hespanha
occidental. As luctas da reconquista, então feridas, eram-no por terra
exclusivamente; e a impericia maritima dos christãos, junta aos
relativos progressos dos arabes concorriam para tornar difficil a
conservação das praças litoraes conquistadas. Os primeiros dispunham
apenas de pequenas lanchas costeiras; emquanto os segundos tinham navios
regularmente armados e equipados, com que percorriam toda a costa
occidental, refrescando nos seus portos, abastecendo-os de munições e
gente quando estavam cercados, e desembarcando a miude, com o fim de
talar os campos dos christãos e captivar os tardivagos ou indefesos. Já,
porém, no XI seculo o bispo de Compostella tinha mandado vir de Genova
pilotos, sob cuja inspecção construiu duas galés que foram ás costas do
Algarb sarraceno pagar em moeda egual antigas e grossas dividas. Os
genovezes foram os nossos mestres na arte de navegar.

Mas desde o meiado do XII seculo o exame das armadas de Cruzados, com
cujo auxilio Lisboa e depois Alcacer foram tomadas, tinha vindo
accrescentar os conhecimentos: demonstrando ao mesmo tempo que, sem o
imperio no mar, jámais poderia levar-se a cabo a conquista do sul do
reino. Á empreza de Silves, no tempo de Sancho I, vão já navios
portuguezes; e o que escrevemos sobre o caracter mais regular e
systematico da politica e das campanhas d'esse reinado leva-nos a crêr
que d'ahi deve datar-se a fundação da marinha militar portugueza. Com
effeito, essa marinha existe nos reinados de Sancho II e de Affonso III,
como o provam as expedições maritimas que terminaram pela conquista
definitiva do Algarve, e as façanhas do lendario Fuas Roupinho. Havia
então já um corpo de tropas especiaes de embarque.

Que eram esses navios, porém? O leitor de certo viu alguma vez, de
tarde, ao cair do sol, o recolher dos barcos, voltando do mar, nas
praias de Ovar ou da Povoa-de-Varzim. Viu a construcção e os typos
d'esses navios primitivos, e as pittorescas physionomias dos seus
tripulantes: eis ahi uma esquadra do XIII seculo.[68] Vel-a-ha, real e
verdadeiramente, se, com a imaginação, substituir por armas os
utensilios da pesca. E quando os barcos, encalhados na areia humida,
descarregaram--hoje o peixe, então as presas, os mantimentos e a
gente--homens e mulheres, fincadas as mãos sobre os joelhos, curvados,
com o dorso contra o costado do barco, em linha ao longo d'elle,
impellem-no, manobrando ao som de um canto rythmico, para o fazer rolar
sobre toros até ficar em secco, distante dos perigos das ondas. Essa
scena repetia-se para pôr a enxuto, e para pôr a nado as embarcações; e
Sancho II realisou um progresso, ainda hoje desconhecido nas nossas
praias de pescadores: mandou construir _debadoyras_ (cabrestantes) para
encalhar, tirados por cabos, os navios. No tempo de Affonso III já o
poder maritimo portuguez é de tal ordem, que os nossos navios vão em
soccorro a Castella, e o papa nos convida a acompanhar as gentes do
norte á Cruzada.

O reinado de D. Diniz marca uma segunda éra na historia da marinha
nacional. Reciprocamente indispensaveis a marinha mercante e a militar,
os cuidados do rei administrador dirigem-se principalmente a fomentar a
primeira, cuja importancia o tratado de commercio, feito em 1308 com a
Inglaterra, accusa. Além d'isto o rei applica-se a melhorar o porto de
Paredes, na costa ao norte do cabo da Roca, defendendo-o contra as
dunas, que, apesar de tudo, o invadem e destroem. Com este mesmo
pensamento mandaria semear o pinhal de Leiria. Tambem no seu tempo, por
morte do conde do mar, Nuno Cogominho, em cuja familia esse cargo
andára, vem tomar o almirantado da armada portugueza o genovez Pezzagna.
Nacionalizada, a familia dos Peçanhas tem por largos tempos o condado do
mar, ou almirantado, como já, á moda arabe, se dizia então.

Os progressos realisados no XIV seculo preparam os recursos poderosos,
com que, no seguinte, o infante D. Henrique póde levar de frente as duas
emprezas a que votára a sua existencia. D. Fernando, o _amavioso_ e
infeliz rei, merece n'esta historia uma menção condigna. Apesar das
chimeras da sua politica tornarem em derrotas as suas emprezas, a
sabedoria e o alcance economico da sua legislação dão-lhe o direito de
preeminencia na historia da formação do poder naval dos portuguezes. Já
então a alfandega de Lisboa rendia, por anno, de 35 a 40 mil
dobras:[69] o que demonstra o progresso commercial do reino,
e comprova a opinião expressa no livro anterior, da deslocação do centro
de gravidade nacional do norte para o sul, e da nova phisionomia
adquirida depois do antigo caso da separação do condado portuguez do
corpo da monarchia leoneza.

O rei que pretendia, com justiça, impedir aos proprietarios a detenção
improductiva das terras, obrigando-os a lavral-as, ou a dal-as a quem
por elles o fizesse, era o mesmo que, n'um corpo de leis, protegia e
fomentava o commercio maritimo de Lisboa, já então uma cidade
cosmopolita. Os genovezes, os lombardos, os aragonezes, os mayorquinos,
milanezes, corsos, biscainhos, gentes de tão variadas partes--de toda a
Hespanha e das costas circum-mediterraneas--fixavam-se em Lisboa a
commerciar. Pelo Tejo saíam cada anno para cima de doze mil tonneis de
vinho, sem contar o dos navios da segunda carregação, em março. Os
navios eram já maiores e tinham coberta. O chronista chama á capital
«grande cidade de muitas e desvairadas gentes». Era uma Veneza que se
formava para succeder á antiga; e, como nas cidades republicanas da
Italia, tambem o commercio era privilegio dos mercadores, prohibido aos
nobres e clerigos, sendo vedado aos estrangeiros negociar fóra do
porto-franco de Lisboa.

O rei D. Fernando assistia ao pleno desenvolvimento de uma potencia
commercial e maritima: e o que fez em favor do seu progresso demonstra a
lucidez do seu espirito. O rei em pessoa era armador e negociante de
certos generos exclusivos. Creou _bolsas_ de seguros maritimos, mutuos,
em Lisboa e no Porto, com o producto de uma taxa especial lançada sobre
o commercio, instituindo o cadastro ou estatistica naval. Reduziu a
metade os direitos de importação dos generos trazidos por navios
nacionaes, estabelecendo assim um direito differencial de bandeira, a
cuja sombra se multiplicou o numero dos navios mercantes portugueses.
Deu, aos que desejassem construil-os, a faculdade de cortar madeiras nas
mattas reaes. Isentou de direitos os materiaes de construcção naval, e
os navios construidos fóra, por conta de nacionaes: e o mesmo concedeu á
exportação dos generos do primeiro carregamento de navios novos. Por
sobre esta protecção efficaz e energica, emprestava ainda aos armadores
capitaes para commerciarem, ficando interessado com elles no dizimo dos
lucros, que se liquidavam duas vezes ao anno.

N'outro logar dissemos que o governo de D. Fernando fôra um cesarísmo, e
com effeito o foi de todos os modos: na sábia protecção dada ao fomento
material da nação, na violencia das medidas de salvação publica, na
desordem dos costumes da côrte, e no caracter bondoso e ingenuamente
devasso do rei. Este Cesar do fim da Edade-média preparava o caminho á
nação, cuja vida brilhante de dois seculos, afastada da estrada
ordinaria da agricultura e da industria, ia ser a vida de uma Roma
imperial, de uma Carthago, de uma Veneza: metropole acanhada de um
imperio colossal, subordinada nos seus destinos ao merecimento
individual dos governantes autocratas, mais do que á força espontanea de
um espirito nacional, ao machinismo activo de um systema de instituições
e classes, organicamente construido e funccionando normalmente. De todos
os fundadores do Portugal maritimo D. Fernando é o maior; e se as
queixas formuladas, ao decair do XVI seculo, contra os que afastaram os
portuguezes do arado para o leme, do campo para o mar, teem razão
absoluta--a sabedoria de D. Fernando foi como o peior dos erros. Camões
fulminava, pela bocca do velho do Restello, os que arrastavam Portugal
para o mar; como Plutarcho tambem condemnou Themistocles por ter lançado
os athenienses no caminho das emprezas maritimas.

Mas esses lamentos do espirito utilitario, se teem um cunho de verdade
positiva, teem tambem um escasso merecimento historico. Não tivesse a
Grecia sido colonisadora e maritima, e a sua voz educadora jámais se
teria ouvido no mundo. Outrotanto diremos de nós. Não tivessemos
alargado pelo mar um nome sem razão de ser na Europa, e, jungidos á
Galliza virente e á Castella farta, teriamos tido menos fome e menos
dôres, menos miserias decerto, mas nenhuma honra, tambem, na historia. O
proprio nome de Portugal não teria existido, senão como lembrança
erudita de um certo condado, que, nas mãos de principes astutos e
atrevidos, conseguira viver alguns seculos separado do corpo da nação
hespanhola.

Traduzirá isto apenas uma vaga e sentimental banalidade? Não, decerto.
Infeliz de quem não viveu; e viver, para os homens e para as nações,
differe de absorver, digerir e segregar, porque é mais do que satisfazer
as necessidades organicas. Além d'isto, o destino, fatalidade,
providencia, determinação, ou como se queira dizer--traduzido com as
successivas palavras, antigas, actuaes ou futuras, um mysterio
eterno--elege ou condemna--escolham tambem os sectarios entre as duas
expressões--os homens e as nações a uma determinada obra. Nós fomos
elegidos ou condemnados a conquistar para o mundo esse Mar Tenebroso que
o enchia de vagas ambições ou de funebres terrores.

Era este o momento opportuno de dizermos todo o nosso pensamento ácerca
da empreza nacional, do seu destino, da sua missão, ou como aprouver
melhor chamar-lhe. A viagem das Indias, que vamos contar--descrevendo
previamente a derrota, por Ceuta e Tanger, e, no reino, pela
consolidação do poder cesarêo dos reis--necessitava ser julgada: agora
que, ainda no molhe os tripulantes, sobre a amarra os navios, se não
desferrou o panno, nem se deram as salvas da partida.

Essa esquadra, que fundeia no Tejo, era já poderosa ao tempo de D.
Fernando. Os cuidados do rei em favor da marinha mercante abraçavam
tambem a marinha de guerra. A armada que foi bloquear Sevilha (1372)
era, no dizer do chronista, _formosa campanha de ver_. Mice Lançarote
Peçanha, da linhagem do genovez, ia de almirante; e o cosmopolitismo da
nova patria portugueza vê-se bem no nome dos capitães: um João Focin
castelhano, um Badasal de Spinola, um Brancaleon. Como Roma, Lisboa
recebia no seu seio e nacionalisava gentes de toda a parte; e d'este
agglomerado de caracteres, naturalmente inorganico, sairá, no momento
culminante do XVI seculo, um espirito superior ao espirito
nacional-natural e a noção de uma patria moral ou ideal, como foi a
patria de Virgilio.

A esquadra de Sevilha contava trinta e duas galés, trinta náus redondas,
afóra as que vieram _per ella da costa do mar_. Vinte e tres mezes teve
bloqueado o Guadalquivir, e retirou com a paz. Outra frota, quasi tão
poderosa como esta, foi ainda ao Mediterraneo, na seguinte guerra de
Castella, para soffrer o desastre de Saltes (1381) consequencia da
temeridade do fanfarrão Affonso Tello.

Agora, fundeada no Tejo, a armada, espera o rei e os principes para ir
conquistar Ceuta, em Africa.

    [58] V. _As raças humanas_, I, pp. 96-9.

    [59] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) pp. VII-VIII e
         _Elem. de Anthropol._ (3.ª ed.) pp. 126-7 e 215-17.

    [60] V. _As raças humanas_, liv. IV, 2.

    [61] _Ibid._, pp. 111-18.

    [62] Seguiremos em geral a orthographia de Kiepert nos seus Atlas,
         com referencia aos nomes geographicos do Oriente, traduzidos
         nas nossas chronicas pelo ouvido dos soldados da India.

    [63] V. _As raças humanas_, I, pp, 94-6 e _O Brazil e as colon.
         port._, (2.ª ed.), pp. 244-8.

    [64] V. _As raças humanas_, I, p. 184.

    [65] V. A chronologia particular das viagens de descoberta no
         _Brazil e as colonias portuguezas_ (2.ª ed.) pp. 2-3.

    [66] V. _As raças humanas_, I, pp. 116-7.

    [67] V. _O Brazil e as colon. port._, (2.ª ed.), pp. 14-5.

    [68] V. no _Regimen das riquezas_, pp. 81-8, a evolução dos
         vehiculos maritimos.

    [69] A dobra continha 4 libras e 2 soldos; 50 dobras compunha o
         marco de ouro cojo valor moderno é de 120$000 rs; a dobra
         equivaleria pois a 2$400 rs.; e o rendimento da Alfandega a de
         84 a 96 contos. Havendo no porto, como diz o chronista,
         «400 a 500 navios de carregação» e em Sacavem e no Montijo,
         a carga do vinho e do sal, 60 ou 70 em cada logar, suppondo
         que esses navios se substituissem quatro vezes, fazendo quatro
         viagens n'um anno, e sabendo nós que a sua lotação média
         regularia por 100 toneladas--vemos que o movimento do porto
         attingia mais de 200:000 toneladas de generos diversos.
         Comparando-a com o rendimento da alfandega, faremos idéa
         do grau de franquia do porto.

                      *      *      *      *      *




II

Portugal em Africa


Todos estavam impacientes por partir; mas o vento norte fresco, o vento
de monção, assobiava contra as paredes do quarto onde jazia moribunda,
com a peste, a rainha D. Philippa. Ninguem pozera na empreza melhor amor
do que ella: mandára fazer tres espadas cravadas de pedraria para os
filhos, que em Ceuta haviam de ser armados cavalleiros; mas o destino
não lhe consentiu vêr terminada a façanha. Morreu; e ainda não se tinham
acabado de arrancar das paredes do convento de Odivellas os pannos de dó
do enterro, quando a armada partia. Morrera a 20; são hoje 25 do mez de
julho de 1415.

As pazes celebradas com Castella no anno anterior tinham dado o socego a
uma côrte onde fervia o desejo de praticar grandes cousas. Diz-se que o
rei pensára em abrir em Lisboa um torneio de um anno, onde viriam os
mais celebres cavalleiros da Europa medir-se com os portuguezes; mas
esse plano extravagante foi substituido pelo projecto mais sensato de ir
a Ceuta. Para não prevenir os inimigos, conservára-se um segredo
absoluto sobre o destino da grossa frota que se reunia em Lisboa. Todos
temiam: o aragonez, e principalmente o mouro de Granada. Vinham de
varias partes soldados e navios. D. Duarte apparelhára em Lisboa oito
galeões, e D. Henrique tinha chegado do Porto com uma divisão de
cincoenta e dois navios de toda a classe. Havia inglezes, francezes e
allemães na armada, que, depois de inteiramente reunida, contava 33
galeões grandes, 27 menores, de tres bancos de remeiros, 32 galeras e
120 fustas, transportes, e outros vasos secundarios. Iam embarcados
cincoenta mil homens.

Ao passarem á vista do cabo de S. Vicente os navios baixaram as velas
_por razam das reliquias que ali havia_. Ainda em Sagres não existia ao
tempo a eschola do infante, mas o preito dado ao logar sagrado para
muitos parecerá symbolico. Era esta a primeira grande empreza maritima
de Portugal; ou antes e melhor, era a primeira vez que as esquadras
portuguezas saíam de Lisboa com o fito de alargar o reino para além do
mar. Inexperientes ainda os pilotos, as correntes do estreito dispersam
a poderosa armada, parte da qual é arrastada até Malaga, indo o resto
fundear em Ceuta.

Não nos permittem as proporções d'esta obra narrar todas as batalhas e
cercos, nem isso importa; pois que, salvas excepções que temos tomado em
conta, todos se parecem entre si. Nenhum caracter novo, nem particular,
apresentou a tomada da cidade que, colhida de improviso, não pôde
resistir. Os moradores abandonaram-na depois de um combate em que
obtiveram a prova da inutilidade da defeza; e os christãos saquearam a
cidade deserta, arrancando as columnas de alabastro, os marmores das
portas e janellas, os tectos lavrados em paineis dourados, dos palacios
da opulenta Ceuta. Emquanto a turba dos soldados se espalhava pelos
meandros das ruas e pelas casas da cidade abandonada, os fugitivos, de
longe, sobre as collinas, bradavam desesperados e miseraveis n'um triste
clamor de perdidos. Ficavam-lhes além, dentro dos muros da cidade
tomada, afóra tudo o que possuiam, os cadaveres insepultos dos muitos
que na vespera tinham morrido no combate.

Ceuta era portugueza; e uns sinos, antigamente tomados em Lagos, serviam
desde logo para solemnisar a sagração da mesquita dos infieis. O infante
D. Henrique, principal author, denodado executor da empreza, recebeu o
titulo de duque, novo então em Portugal. Todos os tres irmãos foram
armados cavalleiros.

Que se faria porém de Ceuta? Muitos opinavam pelo abandono, recolhido,
como estava, o saque: eram os que ignoravam os vastos designios do
infante, ou os não approvavam.

Ceuta guardou-se como principio de mais dilatadas emprezas.

                      *      *      *      *      *

Vinte annos decorridos--em que o infante se déra principalmente aos seus
trabalhos de Sagres,--e vendo acaso que as descobertas das ilhas do
Atlantico não valiam assaz perante os sonhos da sua ambição, e que ao
longo de Africa pouco se adiantou por mar, torna a preoccupal-o a idea
das conquistas marroquinas, desde tempo postas de parte. A Atlantida
mysteriosa teimava em não apparecer; ou reduzia-se afinal á Madeira, ou
ao archipelago açoriano, onde não havia, nem encantos, nem muralhas
d'ouro, nem estranhas gentes: só desertos cerrados de florestas, bravios
de abrir, e pouco remuneradores. O reino encantado do Preste-Joham
fugiria deante dos navios aventureiros, como uma miragem enganadora?

Já D. João I morrera a este tempo, e governava o reino o bom, infeliz D.
Duarte. O ambicioso irmão levou-o a emprehender a conquista de Tanger,
depois de ter convencido a que o acompanhasse o infante D. Fernando. O
rei, ou approvou, ou não teve energia bastante para se oppôr á temeraria
empreza. No conselho em que ella se debateu, porém, o outro irmão, D.
Pedro--cuja sensatez parece tel-o já a esta epocha afastado de uma
côrte, onde a irrequieta ambição de D. Henrique governava--observa que
tudo falta, para esperar um bom exito. Não havia dinheiro para custear o
exercito, e, sem grande cargo de sua consciencia, o rei não o podia
tomar aos povos. Mudar a moeda (enfraquecel-a) em proveito proprio, não
o devia: fallece-vos o principal cimento da passagem! Posto que Tanger
se tomasse, e Arzilla, e Azamor, que se lhes faria? Do reino, despovoado
e mingoado, era loucura enviar gente a guarnecel-as: seria trocar boa
capa por mau capello, perder Portugal sem por isso ganhar a Africa. O
exemplo dos castelhanos não colhia, porque dispunham de mais vastos
recursos.--O infante vira muito mundo, e aprendera a medir pelo seu
justo peso a importancia limitada da nação. A ignorancia, mãe de todas
as temeridades e audacias, não o cegava.

D. Henrique, pertinaz, decidido e, por sobre isso, violento e sem
carinho, não perdoou decerto a sabia prudencia com que o irmão se
oppunha aos seus designios. As relações de ambos, já frias, azedaram-se
talvez; e porventura aqui esteja o motivo da indifferença com que D.
Henrique ouviu os rogos do irmão, quando mais tarde lhe pedia que o
servisse perante o sobrinho, Affonso V--indifferença que decerto
concorreu para a morte de D. Pedro em Alfarrobeira, se porventura a não
causou.

As advertencias do principe no conselho eram tanto mais graves, quanto
os seus argumentos eram absolutamente fundados, positivos; e grandes os
creditos da sua opinião, merecido o respeito que todos tributavam ao seu
caracter. Por isso, apesar da nenhuma brecha que os argumentos, por via
de regra, fazem nas teimas, o rei (ou D. Henrique) julgou necessario
escudar-se com o parecer do papa. Consultou-se, pois, Roma; e a
resposta, que de lá veiu honra o nome do que a deu: «Se as terras foram
christans e ha templos convertidos em mesquitas, a guerra é santa; se o
não foram, deve distinguir-se: são visinhos incommodos e põem em perigo
os christãos? admoestem-se, ameacem-se e só em ultimo caso se recorra ás
armas. Não é este, porém, o caso? então, deixem-nos em paz, porque a
terra e a abundancia d'ella é do Senhor, que faz nascer o sol sobre os
bons e os maus, e dá de comer a todas as aves do céu.»

Esta ultima das tres hypotheses indicadas pelo papa era a verdadeira, o
que não impediu o infante de proseguir na sua teima. «A gente do reino
havia esta ida por tão pesada, que a mais d'ella preferia pagar as
multas (impostas aos refractarios ao alistamento) a arriscar as vidas.»
Nem as multas, nem o dinheiro do rei, nem os emprestimos, bastavam,
porém, para supprir o orçamento da armada; e por isso lançou-se mão dos
bens dos orfãos. Porém, apesar de tudo, dos 14:000 homens com que se
contava para a ida, apenas 6:000 se conseguiu reunir.

Partiram, afinal, os dois irmãos; mas logo um mau agoiro entristeceu os
soldados: o vento despedaçou a bandeira do infante, quando a
desfraldava. Essa bandeira, sobre que o mouro havia de cuspir affrontas,
ia já rota de Portugal...

O resultado correspondeu ás previsões geraes: depois de batida, a
expedição portugueza teve de capitular sob os muros do Tanger (1437),
deixando D. Fernando em refens de Ceuta, que era o preço da liberdade do
exercito. Tristes lagrimas de desespero orvalharam então as areias da
costa africana: não seriam as ultimas, nem as mais copiosas. D. Henrique
voltava com as reliquias da sua expedição, deixando o irmão preso. «Que
el-rey se lembre de mim... roguem por minha alma, que é a ultima vez que
nos veremos!» dizia o infeliz ao despedir-se, em lagrimas. D'alli os
mouros levaram-no a Fez. Ia como Isaac para o altar, ou como Jesus para
o Calvario. Conduziram-no montado n'um sendeiro mui magro, desferrado,
tendo por freio umas tamiças, a sella esfarrapada, os arções
despregados. Deram-lhe tambem uma canna, para guiar a azemola. Atraz
d'elle iam os outros prisioneiros amarrados sobre as bestas de carga. A
gente acudia ao caminho de Fez, chamada pelo pregão: «Venham vêr o rei
dos christãos!» E os apupos, as pedradas, os escarros, caíam sobre os
infelizes, chouteando, na sua paixão, esmagados por um sol abrazador.
Uns, com os apupos, remordiam-se colericos; o infante, submisso e
conformado, lembrava-se de que outro tanto, e mais ainda, soffrera Jesus
por elle. Antes, porém, ser de uma vez crucificado, do que acabar
lentamente nas lobregas estrebarias de Fez, varrendo as immundicies,
comido de bichos, devorado de febres, porque nem a lentidão do martyrio
lhe poupou o cadaver aos insultos da turba. Pendurado nú, pelos pés, nas
ameias da cidade, foi a sorte que lhe deram. Antes, pregado na cruz,
tivesse expirado como Christo. O pobre infante é o primeiro martyr da
nossa epopêa; e se nos honramos do muito que fizemos, é agora o momento
de deixar aqui uma lagrima de saudade e pena por esse infeliz precursor
do nosso imperio!

                      *      *      *      *      *

De volta ao reino, e salvo, D. Henrique oppoz-se decididamente á entrega
de Ceuta. O rei, lavado em lagrimas pela sorte do irmão, morreu logo no
anno seguinte, triste e taciturno. Com a deshumanidade de um apostolo,
D. Henrique sacrificava tudo e todos á sua fé. Por cousa nenhuma
consentiria que se entregasse Ceuta: e os reinos do Preste-Johan? e o
imperio do Oriente? Homens, familia, palavra, tudo era vão, diante
d'essa miragem que, desde tantos annos, lhe punha a cabeça em delirio.

Com o seu braço conquistára Ceuta: arrastára a Tanger o irmão; deixára-o
lá perdido, nas mãos féras dos inimigos: tudo isto eram holocaustos no
altar da sua idéa. Quem sabe se elle mesmo não choraria a sós a
crueldade do seu destino, e a desgraça do irmão que levára ao cepo do
sacrificio? Não é, comtudo, provavel. Pelo menos, a impressão que o
leitor d'estas historias recebe da narração dos seus actos consecutivos,
é a de que no caracter do infante não primava a humanidade.

Voltou a encerrar-se em Sagres, com os seus livros, os seus mappas, os
seus cosmographos e mareantes: voltou a olhar para o mar--pois que, por
largos annos, para sempre talvez! estava perdida metade da sua empreza.
Os seus navegadores iam vogando e _resgatando_[70] ao longo
da costa da Africa: e as ilhas dos Açores iam successivamente saindo dos
arcanos do Mar Tenebroso. O papa (Nicolau V) dava-lhe o senhorio e
dominio sobre todas as descobertas na Africa (1454): e o infante, no
meio das contrariedades, não desanimava na sua fé.

Entretanto o reino passára, das mãos da rainha viuva, para as do infante
D. Pedro (1438) e d'estas, finalmente, para as de Affonso V (1446);
entretanto miseraveis intrigas, a que D. Henrique não quiz oppor-se para
salvar o irmão que lh'o pedia, tinham levado á desgraça de Alfarrobeira
(1449); e o infante, com a influencia que exercia no curto espirito do
sobrinho, facilmente o decide a lançar-se nas aventuras africanas: já
morrera D. Pedro, para vir repetir o que dissera nas vesperas de Tanger.
Quando, em 1460, morreu D. Henrique, esse principe tão funesto aos seus,
mas tão proveitoso para o reino, já Affonso V tinha conseguido tomar
Alcacer-Seguer (1458). Dez annos depois, a conquista de Arzilla importa
a rendição de Tanger. O dominio portuguez na costa de Marrocos chegava
ao apogeu; mas qual era o resultado d'essas emprezas? Vinha por ahi a
Portugal o commercio das Indias, como D. Henrique pensára? Não.
Monopolisado pelos arabes no Oriente, logo que Ceuta foi para elles
perdida, desviou-se para outros portos do Mediterraneo. Varrida essa
illusão, que restava? Uma serie de praças fortes, eschola de soldados,
fonte de permanentes conflictos, esteril em proventos, pasto para a van
necessidade batalhadora da nação: precipicio aberto, que ia tragando,
improficua e ingloriamente, muitas forças vivas do paiz. A opinião do
sabio principe D. Pedro era absolutamente verdadeira: nós não tinhamos
recursos, no reino pequeno e pobre de gente, para povoar Marrocos; e
mudar parte de uma população escassa, de Portugal para a Africa, era
trocar «uma boa capa, por um mau capello». Á conquista de Ceuta movera
ainda uma illusão: mas agora, varrida ella, as campanhas de Africa eram
uma serie de emprezas quixotescas, que viriam a terminar pela doidice
varrida de D. Sebastião.

Contra uma opinião muito acceite, nós pensamos, pois, que a decisão de
D. João III, abandonando as praças africanas, só peccou por serodia; e
que Portugal nada tinha a esperar do seu dominio na Barberia--desde que
o destino o levava para o Oriente, e desde que era manifestamente
provado não poder chegar-se lá por via de Marrocos. Incidente na nossa
vida nacional, o dominio portuguez das praças do litoral d'Africa é
apenas um episodio da grande historia das descobertas e conquistas
ultramarinas; e o seu melhor merecimento foi de servir de eschola para
os guerreiros da India, de posto de acclimação--como hoje Malta ou
Gibraltar, para os inglezes. Para padrão das façanhas de Affonso V e das
lançadas de Lopo Barriga, não valia a pena que custou, ainda quando não
fosse a causa da final catastrophe de D. Sebastião.

    [70] _Regime das Riquezas_, pp. 92 e 107-9.

                      *      *      *      *      *




III

O principe perfeito


Perfeito não quer dizer sem nodoa, mas sim acabado, completo; não tem
aqui uma significação moral, tem um valor politico. D. João II é um
exemplar _perfeito_ do genero dos principes da Renascença, para quem
Machiavel escreveu (um pouco depois) o cathecismo: é um mestre da
moderna arte de reinar.

O exemplo mesquinho da pessoa do antecessor e pae, Affonso V, as
desordens do reino e a fraqueza do rei, tinham educado o espirito agudo
e observador do moço principe.

A tragedia de Alfarrobeira (1449) começára com um crime o espectaculoso
mas triste reinado do _africano_; e o epitheto dado ao rei ajudou a
formar a tradição de um homem cheio de valor e tenacidade, coisa que o
pobre Affonso V jámais foi. Combater com denodo, n'um momento de furia,
era uma qualidade commum que lhe não faltava; mas d'ahi ao valor
consummado vae uma distancia enorme. O grande defeito da sua mocidade
fôra a facilidade com que se deixava lisongear. Tutelado na sua
menoridade, pela mãe primeiro, pelo tio e sogro depois, o pobre rei
soffreu as consequencias communs a quasi todos os principes, como elle
acclamados em creanças. Em volta do rei, pupillo de futuro imperante,
formou-se um partido de adversarios da regencia, ambiciosos a quem não
satisfazia o juizo do infante D. Pedro, cheios de esperanças na
liberalidade e no caracter desegual do moço rei. Exploravam-lhe as
fraquezas, açulando-lhe os odios nos momentos de colera, distrahindo-o
com facecias e ditos nas horas de abatimento, gabando-lhe tudo: os
arremeços e as cobardias, a brandura e a colera, como aduladores de
officio. Da insensatez do rei esperavam colher uma farta ração de
beneficios e presentes. Apesar de o infante já ter feito entrega da
regencia, temiam-no ainda sobremaneira, e não cessavam de o malquistar
no animo do sobrinho e genro. D. Pedro em vão instava com o irmão, D.
Henrique, para que desmanchasse essas perfidias. Aborrecido de viver,
desejoso de deixar o mundo, o ex-regente via que tudo se conspirava para
o perder. «Era grande principe, de grande conselho, prudente, de viva
memoria, bem latinado, e assaz mixtico em sciencias e doutrinas de
letras, e dado muito ao estudo.» Era um dos poucos, a quem a sabedoria
tornára realmente bons.

Os seus brios offendidos, a perfidia dos validos, o tonto desvairamento
do rei, levaram ao encontro de Alfarrobeira, quando o principe vinha á
côrte justificar-se das calumnias: e vinha armado, por saber que no
caminho o esperavam para o matar. Effectivamente o mataram, a elle, e ao
seu fiel Achates, o nobre conde de Avranches, typo de lealdade
cavalheiresca, sempre rara, e agora de todo ausente em côrtes
italianisadas. Morto o seu principe, o conde prepara-se para morrer
tambem, vingando-se: «Ó corpo! já sinto que não podes mais; tu, minha
alma, já tardas!» E com furia, defendia-se e matava. Quando por fim o
derrubaram, ferido, cruzou os braços, dizendo: «Fartar, rapazes! vingar,
vilanagem!» E morreu, trespassado de lanças.

Livre do importuno conselheiro, Affonso V e os fidalgos da sua roda, tão
simples e estouvados como o rei, puderam abandonar-se á vontade ao
capricho das suas loucuras e batalhas. Fatigando o povo com impostos,
desbaratando com prodigalidades o patrimonio da corôa, o rei, levado
pela sua mania, sacrifica tudo ás correrias africanas, que a
decomposição interna do imperio marroquino já tornava possiveis.

Mais de vinte annos consumiu em taes emprezas que o envelheceram. Era
corpulento, e com os annos tornára-se gordo, a ponto de não poder já
usar senão vestiduras soltas. Tinha a barba espessa, e era calvo; os
cabellos ennegreciam-lhe as mãos, as orelhas, o nariz, accusando a
vulgaridade e a violencia bravia do seu temperamento. Apesar de bem
proporcionado, era tão commum no aspecto como no espirito. Brutal e
vingativo, obtuso mas teimoso, e até cruel, a sua phisionomia reproduzia
a do commum dos homens d'armas; e imprimiu o cunho a esses guerreiros de
Africa, broncos, sem o menor requinte de perversidade fina, nem ponta de
elevação distincta: como touros que marram ás cegas e qualquer destro
bandarilheiro dóma.

Foi isto mesmo que succedeu a Affonso V em França, onde Luiz XI se
fartou de rir do simples, illudindo-o com promessas, fatigando-o com
viagens, picando-o com ironias perdidas, carregando-lhe a nuca de
lisonjas, cumprimentos e attenções, como o bandarilheiro faz ao touro,
quando o carrega de vistosas farpas, bem aguçadas.

Affonso V fôra a França pedir auxilio, porque o castelhano batera-o. Em
1474, Henrique IV de Castella ao morrer, deixava por herdeira D. Joanna,
a _beltraneja_ (assim os adulterios da mãe tinham denominado a filha)
confiando o governo do reino ao visinho de Portugal, e pedindo-lhe que
casasse com a sobrinha. Affonso V julgou que o reino de Castella era a
nova Africa da sua velhice, e poz-se em campo para conquistar a corôa
testada; conquistar, dizemos, porque os castelhanos invocavam contra a
_beltraneja_ os mesmos argumentos que, um seculo antes, nós invocavamos
contra a mulher de João I, D. Beatriz. Castella offerecia o throno a
Isabel, como nós o tinhamos dado ao Mestre de Aviz.

Affonso V poz-se em campo. Já ao seu lado se via a reservada figura do
filho. Receioso das loucuras do velho, arrancára da sua fraqueza um
titulo secreto, pelo qual o rei annullava todas as doações superiores a
dez mil réis de renda que fizesse durante a guerra. O pae dava e não
dava, o filho dobrava cuidadosamente o papel, guardando-o para o futuro...

A batalha de Toro (1476) não foi propriamente uma derrota militar,
mas foi uma derrota para o rei e para as suas ambições. O pobre
velho, gordo, estafado, sem poder comsigo, foi correndo abrigar-se
em Castro-Nuño, e deitou-se logo a dormir. Avendaño, o fidalgo do
lugar, declarára-se por elle: mas a mulher, castelhana esperta,
apontava-lhe o volume de carnes, para alli deitado a resonar
ruidosamente, como os gordos, e dizia ao marido:--«Olha lá por quem te
perdeste!»--Effectivamente o rei não valia para cousa alguma. Os
castelhanos rebeldes desde logo reconheceram o seu erro, e Affonso V
tomou a resolução de ir pedir a Luiz XI que lhe valesse.

O principe herdeiro aprendia muito, porque observava tudo, com o seu
olhar profundo e sagaz. Deixou ir o pae, e ficando a reger o reino,
continuou, por amor da honra, mas sem calor, uma guerra que elle decerto
via não conduzir ao fim desejado. Emquanto o pae andava por fóra,
acclamaram-no, ou acclamou-se rei: diz-se que de França lhe viera uma
abdicação. Porém Affonso V, desilludido afinal, decidiu-se a voltar; e o
principe entregou-lhe immediatamente a corôa. Guardal-a, para que? Se
elle, de facto, continuava a reinar em nome do pae, desfeiteado,
vencido, quasi moribundo? Todas as maximas que Machiavel escreveu no seu
livro do _Principe_, tinha-as antecipadamente D. João II na memoria:--É
melhor ser louvado do que aborrecido, mas só quando isso não prejudica;
o bem é preferivel ao mal, quando se póde escolher entre ambos para se
conseguir um fim.--Por isso, como sabio principe, decidia-se a reinar
sob o nome do pae, já inteiramente docil e subjugado por tantas
miserias, esperando o momento proximo de outra vez tomar o nome de
rei--méra formalidade.

No decorrer de dois annos (1479-81) a paz, negociada pelo principe
_perfeito_, fazia da _beltraneja_, encerrada n'um convento, a
_excellente-senhora_, e do rei um cadaver, afogado n'uma agonia de
afflicções pungentes.

O filho não tinha nada dos loucos desvarios do pae, e desde logo vira o
absurdo da guerra de Castella. Seria mais nobre e cavalleiroso proseguir
valentemente na defeza dos direitos da corôa, da honra do velho, e da
vida e sorte da infeliz princeza confiada á guarda de Portugal? Seria.
Mas D. João II pensava (Machiavel) que o principe não deve preoccupar-se
com a infamia dos seus actos, quando sejam necessarios á conservação do
Estado; e que, depois de tudo bem pesado, praticar uma certa virtude
póde muitas vezes trazer a ruina, quando a infamia traria comsigo a
segurança e a fortuna.

Este era effectivamente o caso em 1479. Dizia o principe que tempos
havia para usar de coruja, tempos para voar como falcão. Não traduzia,
porventura, com uma concisão mais eloquente, as palavras do
italiano?--«O principe deverá imitar bem os brutos (porque ha duas
maneiras de combater: com as leis e com a força; a primeira dos homens,
a segunda dos brutos) e saber empregar as artes da raposa e do leão;
pois o leão não se defende dos laços, nem a raposa dos lobos: é portanto
mistér ser raposa para conhecer as redes, e leão para assustar os
lobos.»--D. João II, menos classico ainda, recorria aos exemplos
venatorios da Edade-media; tempos havia para usar de coruja, tempos para
voar como falcão!

Os filhos de D. João I, abrindo as portas da nação á cultura da
Renascença, chamando sabios, viajando, formando bibliothecas, tinham
lançado á terra dura do velho Portugal as sementes italianas. Affonso V
rebentára do solo como um cardo antigo, rijo e bravo, cheio de espinhos.
Fôra um aborto, ou um anachronismo medieval. D. João II nascia
italianisado, com todos os vicios e virtudes da cultura da Renascença. A
sua côrte era um retrato das pequenas côrtes de Italia; e o principe
como um italiano, cheio de perfidias e ambições, de lucidez e de manha,
de instinctos sanguinarios e fortes decisões politicas.

Os tempos de coruja tinham acabado, porque não carecia mais de pactuar
com as tontices do pae; rei agora (1481), seria o falcão. Mas para ser
verdadeiramente rei, teria de vestir ainda muitas vezes o habito da ave
nocturna, até vêr por terra o poder d'essa fidalguia que os erros do pae
tinham ensoberbado. Isto, porém, não satisfazia ainda as suas largas
ambições. O _homem_, como Isabel de Castella o designava com espanto,
mirava mais longe. A possibilidade de vir a sentar-se, elle ou os seus
herdeiros, no throno de uma Hespanha unida, affagára-lhe o espirito em
moço, e chegou a esperar (antes de Toro) realisal-a. Depois, rechaçado,
mas não desesperado, fez de coruja em 1479; contando voar de falcão no
momento opportuno. Nem paravam ahi as suas ambições: lembrava-se do
fallecido infante D. Henrique, e dos vastos planos, abandonados, que
tinham fervido n'aquelle cerebro. A sua monarchia dilatava-se da
Hespanha á India: e com a Peninsula na Europa, com a Africa, a India, o
encantado reino do Preste-Joham, sonhou a monarchia de Philippe II...

                      *      *      *      *      *

N'uma só cousa o portuguez primava ao italiano: era sobrio, severo,
detestava o luxo--que prohibiu. A sua côrte apresentava o quer que é de
funebre e austero, sempre agradavel a portuguezes. A sua figura, tambem,
nada tinha de imponente, nem de graciosa. Os habitos de coruja davam-lhe
mais caracter do que os de falcão: ás duas aves, porém, pedia a côr que
punha em tudo, o negro. De maravilhoso engenho, subida agudeza, e
_mixtico pera todalas cousas_, de memoria viva e esperta, faltavam-lhe
porém os dotes exteriores. Não tinha elegancia, nem no corpo, nem no
dizer: arrastava as palavras, falava a custo e com uma voz fanhosa. Era
alvo, mas com umas veias de sangue que o faziam «com menencoria ser muy
temido». Inspirava medo sem infundir amor. Aos 37 annos já tinha cans na
barba o nos cabellos; só n'essa edade deixou de ser abstemio. A força
muscular, dote necessario aos principes dos bons tempos, tornava-o
celebre: cortava com um golpe de espada tres e quatro tochas de cera
reunidas. «Muy grande astucioso e acquiridor, sem deixar de ser inteiro
e dadivoso, era muy manhoso em todalas boas manhas que um principe deve
ter.» A natureza não o ajudava, decerto; e tambem, na sua educação de
principe, deixava de obedecer á regra de Machiavel: «Não é necessario
ser-se dotado de todas as qualidades, mas é indispensavel
affectal-as;--possuil-as e servir-se d'ellas póde chegar a ser perigoso:
fingil-as é sempre util;--seja-se fiel, clemente, humano, religioso e
integro; mas de modo que, senhor de si, se possa e saiba fazer todo o
contrario, quando a isso o caso obrigue.»--D. João não era, nem
clemente, nem humano, e não julgava necessario ao seu papel fingil-o:
isso fazia com que muitos o detestassem, o que era um mal: fazendo com
que, se a maior parte o temia, ninguem o amasse, o que se tornava peior
ainda. A perspicacia e authoridade não eram n'elle bastantes para que
soubesse envolvel-as n'uma simulada bonhomia, porque doçura ou
humanidade não as havia na sua alma. Não hesitava perante o assassinato,
á italiana, mas tinha a fraqueza portugueza de confessar como isso se
praticava. Lopo Vaz, a quem Affonso V fizera conde, levantou-se em Moura
defendendo o titulo revogado ou não confirmado, e o rei «por não fiar já
d'elle... determinou de o mandar matar... por certos cavalleiros que
manhosamente lá mandou e o mataram á traição, aos quaes o principe fez
boas mercês». Mas o cardeal D. Jorge da Costa, o _alpedrinha_, vendo-se
ameaçado, temeu e fugiu para Roma: o rei expozera-lhe um modo facil do
acabar com elle--mandal-o tomar por quatro moços de esporas, afogal-o em
um rio e dizer que caira e se afogára por desastre.

Assim que o pae morreu, D. João II convocou côrtes (1482) e mostrou quem
era. Mandou examinar as jurisdições dos donatarios da corôa,
prescrevendo que os corregedores entrassem nas terras de doação no
cumprimento dos mandados regios, abolindo o direito de asylo dos
criminosos usurpado por muitos terrenos não coutados; e ao mesmo tempo
que assim coarctava as regalias historicas da nobreza, punha cobro ás
invasões anarchicas dos fidalgos no fôro dos concelhos, prohibindo o
lançamento de _pedidos_, o intrometterem-se na jurisdição do crime e nas
eleições e officios municipaes. O rei, inspirado pelas novas idéas
ácerca da authoridade soberana, começava por investir com a nobreza:
seria o successor, D. Manoel, que, reformando os foraes, atrophiaria a
outra face do systema duplo de instituições, cujo equilibrio mais ou
menos estavel formára a vida politica da Edade-media[71].
Mas D. João II via-se tambem forçado a emendar os erros do pae, como o
segundo Affonso tivera tambem de fazer á morte de Sancho I. O moço rei
decidira formalmente revogar as doações do antecessor, reivindicar para
a corôa o que os fidalgos tinham pilhado ao pobre, gordo, Affonso V. De
todos esses fidalgos, o chefe era o poderoso duque de Bragança, cujos
dominios contavam cincoenta villas, cidades e castellos, além de
propriedades sem numero; cuja mesnada subia a 3:000 de cavallo e mais de
10:000 infantes; um rei no reino, do qual possuia, pelo menos, a terça
parte. Costumado a considerar o rei como egual, da linhagem de reis, e
herdeiro do famoso condestavel, o duque sincera e ingenuamente
acreditava na justiça da sua rebeldia. «Deservia muito grandemente o
rei, fazendo-lhe guerra calada,» e carteava-se com o conde de Athouguia,
seu tio, então em Castella, homem prudente, que buscava dissuadil-o,
respondendo-lhe em enygmas ao gosto da epocha: «Tal não deveis cuidar,
quanto mais commetter... quereis abrir uma fonte para matar vossa
sede... achareis a agua tão quente que vos hão de lá ficar as unhas...
_tradiderunt quos deligebam_.» Com effeito, era atraiçoado, e o rei
tinha os seus espiões por toda a parte. Um certo Figueiredo vinha a
escusas referir tudo a D. João II, que lhe respondia, com a sua voz
demorada, baixa e fanhosa: «Guarda-te o melhor que puderes, e depois te
farei mercê».--O espião ia e tornava, e quando, afinal, o duque foi
preso por surpresa e executado, o rei deu a mão a beijar ao Figueiredo:
«Até agora fiz que te não conhecia, d'ora avante olharei por ti. Pede o
que quizeres: ha tempos de coruja e tempos de falcão...»

O duque foi degollado publicamente no rocio de Evora (1483), depois de
um simulacro de processo. Effectivamente, em taes causas os processos
são apenas formulas. A força impera á solta nas demandas politicas, por
isso mesmo que ellas põem em questão os fundamentos organicos da
sociedade, e portanto a lei civil. O duque e o rei eram inimigos velhos;
e aos odios antigos vinham juntar-se agora as intenções, rebeldes em um,
tyrannicas no outro. Entretanto, o caracter desnaturado da politica dos
reis na Renascença levava D. João II a representar um papel repugnante,
dando ao vencido uma palma como que de martyr; ao passo que a
sobranceria do fidalgo, quasi-rei, lhe mantinha a dignidade altiva até
sobre o cadafalso. Recusa prestar-se a responder no tribunal, a tomar
parte na comedia que o indigna; e quando os carrascos, afflictos, lhe
vestem o derradeiro trajo, uma loba roçagante, capello e carapuça de dó,
com os pollegares atados por uma fita ao cinto, elle observa
serenamente: «Soffrerei tudo, e mais um baraço ao pescoço, se S. A.
mandar!»

A morte, tão digna, do duque de Bragança excitou ambições de vingança na
nobreza, e positivamente começou a tramar-se o assassinato do rei, que o
sabia. Os seus espiões andavam por toda a parte; e a politica dependia
das intrigas de alcova e dos serviços dos miseraveis. O rei usava de
todos os instrumentos, e o _sancta sanctis_ da razão-d'Estado absolvia-o
de todos os crimes. Havia um Tinoco, privado do bispo d'Evora, o qual
tinha por manceba uma irmã d'elle, e que por isso lhe queria muito. O
rei descobriu o caso, e comprou-o. Tinoco veiu, disfarçado em frade, a
Setubal, contar a conspiração em que o prelado estava, e de que o duque
de Vizeu era chefe; e recebeu cinco mil cruzados em ouro e um beneficio
de seiscentos mil réis, porque D. João II não regateava o preço dos bons
serviços. Estava compilada e tratada «a segunda e desleal desaventura de
que se causou a triste morte do duque de Vizeu». O rei chamou-o a
Setubal, e matou-o por suas mãos ás punhaladas. Prescindiu de processo,
mas não de um auto posthumo, com o fim de justificar o seu crime, e a
perseguição dos mais conjurados. O bispo de Evora foi mettido no fundo
de uma cisterna, em Palmella, onde com peçonha acabou a vida; os outros
foram assassinados ou justiçados, onde quer que os encontraram os
algozes do rei; e um, que conseguira fugir para França, nem por isso
escapou com vida, porque o rei mandou lá um sicario matal-o.

O principe _perfeito_ mostrava-se consummado na arte de reinar, e
ninguem ousava já resistir-lhe. A primeira metade do seu programma
estava realisada--agora o falcão ia alargar os seus vôos amplos!

Ninguem lhe resistia, mas no fundo da consciencia alguma cousa o
denunciava como assassino. Uma noute, em Santarem, acorda em sobresalto,
ouvindo alguem chamal-o. Quem era? Ninguem. Illusões! dizia-lhe a rainha
no leito: era _cousa má_ que andava pelos vãos dos telhados.[72]
O rei não socegava, porém, e levantou-se, vestiu um roupão,
tomou a espada e a rodela, na mão esquerda uma tocha, e viu que uma
sombra o guiava. Quem era? Abria as portas diante do rei, e mostrava-lhe
o caminho. Foram assim até aos vãos dos telhados, a sombra e o rei. Aos
gritos da rainha acudiram todos, e acharam-no no sotão, despejado,
alegre e seguro, diz o chronista mentindo palacianamente. A coruja
noctivaga perseguia o ambicioso falcão: a educação do principe não
conseguira apagar de todo a consciencia do homem.

                      *      *      *      *      *

Fernando e Isabel, de Castella, que lhe haviam tomado o pulso, ainda em
tempo do pae, admiravam-lhe muito as qualidades e tinham-no em grande
conta. Elle, nem por ter tratado as pazes de 1479, desistira dos seus
grandiosos planos. Os reis castelhanos tinham uma filha, D. João II um
filho: o casamento de ambos seria talvez um meio, mais simples e mais
rapido do que uma guerra, para dar ao herdeiro um grande throno.
Tratou-se, ajustou-se e fez-se o casamento (1490); e n'esse dia de
grandes esperanças, o rei sombrio e fanhoso quiz mostrar que tambem
sabia ser magnifico. As bodas de Evora ficaram celebres, e
principalmente o banquete, uma _kermesse_ formidanda. Na sala do jantar,
onde os noivos, o rei, e toda a côrte se achavam, appareceu uma vasta
machina: era um estrado com rodas, tendo em cima um carro com dois bois,
á canga. Os bois estavam assados inteiros, com as pontas e as patas
doiradas; e o carro carregado de carneiros tambem assados, tambem
inteiros, com as armas doiradas. Vinha um fidalgo, de aguilhada ao
hombro a dirigir o carro, e moços empurrando a machina. Deram a volta da
sala, cumprimentando o castelhano, que gabou muito a idéa; e entre os
applausos de todos, o carro saiu, e bois e carneiros foram dados ao
povo, pasmado fóra. Terminado o idyllio culinario, foram-se todos á
comida, a côrte e o povo. Nos velhos tempos do rei D. Pedro essas festas
eram uma só: o rei comia na rua entre os seus, e bailava, ao som das
_longas_, com as raparigas da rua.

Á noute houve _mômos_, que ficaram celebres.


    Entrou (el-rei) pelas portas da sala com nove bateis grandes, em
    cada um seu mantedor, e os bateis mettidos em ondas do mar feitas de
    panno de linho e pintadas de maneira que parecia agua. Com grande
    estrondo de artilheria, que troava, e trombetas, atabales, e
    menistres altas, que tangiam, e com muitas gritas e alvoroços de
    muitos apitos de mestres, contramestres e marinheiros, vestidos de
    brocados e sedas, com trajos de allemães, em bateis cheios de tochas
    e muitas velas doiradas accesas, com toldos de brocado e muitas e
    ricas bandeiras.

    E assim vinha uma nau á vela, cousa espantosa, com muitos homens
    dentro e muitas bombardas, sem ninguem vêr o artificio como andava,
    que era cousa maravilhosa.

    O toldo de brocado e as velas de tafetá branco e roxo, a cordoada de
    ouro e seda, e as ancoras doiradas. E assi a nau, como os bateis,
    com muitas velas de cêra douradas todas accesas, e as bandeiras e
    estandartes eram das armas d'el-rey e da princeza, todas de damasco
    e doiradas, e vinha diante do batel d'el-rey, que era o primeiro
    sobre as ondas, um muito grande e formoso cysne com as pennas
    brancas e doiradas, e apoz d'elle vinha na prôa do batel o seu
    cavalleiro em pé, armado de ricas armas, e guiado d'elle, e em nome
    d'el-rey saíu com sua falla e em joelhos deu á princesa um breve,
    conforme sua tenção, que era querel-a servir nas festas do seu
    casamento; e sobre conclusão de amores desafiou para justa de armas,
    com oito mantedores, a todos os que o contrario quizessem combater.

    E por rei de armas, trombetas e officiaes para isso ordenados, se
    publicou em alta voz o breve e desafio, com as condições das justas
    e grados d'ellas, assi para o que mais galante viesse á teia como
    para quem melhor justasse. E acabado, os bateis botaram pranchas
    fóra, e saiu el-rey com seus requissimos mômos, e a náu e bateis,
    que enchiam toda a sala, se saíram com grandes gritos e estrondo de
    artilharia, trombetas, atabales, charamellas e sacabuxas, que
    parecia que a sala tremia e queria caír em terra.

    El-Rey dançou com a princeza, e os seus mantedores com damas que
    tomaram, e logo veio o duque com fidalgos da sua casa, com outros
    requissimos mômos. E veio outro entremez muito grande, em que vinham
    muitos mômos mettidos em uma fortaleza, entre uma rocha e mata de
    muitas verdes arvores e dois grandes selvagens á porta, com os quaes
    um homem de armas pelejou e desbaratou, e cortou umas cadeas e
    cadeados que tinham cerradas as portas do castello, que logo foram
    abertas, e por uma ponte levadiça sairam muitos e mui ricos mômos; e
    em se abrindo as portas, saíram de dentro tantas perdizes vivas e
    outras aves, que toda a sala foi posta em revolta e cheia de aves
    que andavam voando por ella até que as tomavam. E saído este grande
    e custoso entremez, veiu outro em que vinham vinte fidalgos, todos
    em trajos de peregrinos, com bordões dourados nas mãos, e grandes
    ramaes de contas douradas ao pescoço, e seus chapeus com muitas
    imagens, todos com manteos que os cobriam até ao joelho, de brocados
    e por cima com remendos de veludo e setim... E assi vieram muitos e
    ricos mômos que não digo... e dançaram todos até antemanhan; e foi
    tamanha festa que, se não fôra vista de muitos, que ao presente são
    vivos, eu a não ousara escrever.


O principe _perfeito_ sabia tambem ser magnifico, e qual um Medicis, no
momento opportuno. De facto, o casamento affagava-lhe as esperanças e
ambições, abrindo horizontes de novas grandezas.

Ainda Colombo não descobrira a America, mas o futuro imperio do principe
Affonso alargava-se já por ignotas regiões. D. João II queria dar, em
troca de Castella, um bom dote ao herdeiro; queria-o, além de imperador
da Hespanha inteira, e da Italia hespanhola, imperador dos Estados
orientaes do Preste-Joham. As propostas de Colombo, apesar de recusadas,
excitavam-no; e por terra e mar enviava expedições em busca do lendario
principe. A empreza iniciada pelo infante D. Henrique proseguia nas mãos
do rei, que tomára a peito descobrir os mundos remotos. O seu poder
naval era já tão grande, que o Tejo via com pasmo o famoso galeão de mil
tonneis, monstro boiando n'agua, erriçado de canhões. Nunca os
estaleiros tinham produzido navio tão grande; nunca até ahi surgira a
idéa que o rei teve de artilhar as caravelas, dando um alcance e uma
mobilidade desconhecida aos trons do mar. No seu pensamento havia um
proposito firme de o subjugar, desvendando-o até aos seus ultimos
confins, dissipando inteiramente as trevas e mysterios das ondas. Mandou
aperfeiçoar as bussolas, desenhar cartas maritimas para orientação das
rotas; commettendo esses estudos a uma Junta em que entraram os seus
phisicos, mestre José e mestre Rodrigo, ambos judeus, com o famoso
allemão Behaim, discipulo de João Monte-Regio, que em Vienna estudára
astronomia com o celebre Purbach. Foi essa junta que inventou as taboas
da declinação do sol, permittindo aos navios alongarem-se das costas,
rumando seguros em alto mar. Traçavam-se como que estradas sobre as
ondas, estradas tão mysteriosas como as regiões da Mina, cuja navegação
costeira a astucia do rei envolvia em descripções terriveis para
afugentar rivaes--á maneira do que os phenicios tinham feito, quando os
romanos pretendiam seguil-os nas suas viagens mediterraneas.[73]
A posse dos segredos das costas e dos segredos das rotas
enchia de confiança o animo do rei no futuro grandioso do seu imperio. O
cabo da extrema Africa, limite por tanto tempo invencivel, tinha já
recebido o nome de Boa-Esperança! (1486).

Aladas esperanças eram todas essas que o rei afagava, olhando a cabeça
do filho. N'este momento, a que podemos e devemos chamar revelador, D.
João II teve a consciencia do famoso destino que se preparava á
Hespanha: do seu imperio universal, da extraordinaria vastidão do seu
poder politico, e da sua influencia moral. Symbolisava tudo isso na
cabeça do filho amado; porque a cegueira dos homens careceu sempre das
lunetas de um symbolo para vêr de certo modo a realidade das cousas. Os
symbolos passam, as cousas ficam; e da mesma fórma os homens morrem e as
idéas vivem eternamente. E, na sua fraqueza, o espirito humano amortece,
desespera e cáe quando vê apagado ou destruido o symbolo em que para
elle estava, mesquinhamente, a realidade inteira.

O funesto acaso da queda de um cavallo, matando o principe Affonso
(1491), foi para D. João II como o tiro do caçador, quando n'um instante
precipita, ás voltas, o passaro que de azas pandas vogava, inebriado, no
oceano do ar e da luz. O largo vôo do falcão estacou, e todas as
illusões se apagaram deante do cadaver gelado do principe, casado de um
anno. Essa vida que se finára, levava comsigo todos os sonhos doirados,
todas as esperanças, todas as chimeras!

Foi um choro universal. «El-rey por tamanha perda, tamanho nojo e
sentimento, se trosquiou. E elle e a rainha se vestiram de muito baixo
panno negro. E a princeza trosquiou os seus bellos cabellos e se vestiu
de almafega e cabeça coberta de negro vaso.» Nas exequias, os homens, as
mulheres, até as creanças, tomados de vertigem, arrancavam as barbas e
os cabellos, davam bofetadas nas faces, batiam com as cabeças nas quinas
da eça funeraria, e arranhavam o rosto a fazer sangue. O luto era geral
e desvairado. Á imitação do rei e da princeza viuva, toda a gente andava
tosquiada; o os que não podiam, por pobres, comprar o burel, que
encarecera excessivamente, adoptaram trajos extravagantes: as mulheres
vestiam as saias do avêsso, e os homens punham em cima de si os saccos
de forragens e os xaireis ou cobertas das bestas de carga.

Este incidente imprevisto da morte do principe é um dos que obrigam a
meditar sobre o valor do acaso na historia. Tivesse-se consummado a
união dynastica de Portugal ao resto da Hespanha já unificado, e a
historia da Peninsula, a historia da Europa, seriam diversas.[74]
Que papel teria tido no mundo um imperio exclusivamente
senhor de todas as regiões descobertas? Que teria succedido, se Carlos V
e a dynastia austriaca não viessem reinar em Hespanha, pondo nas mãos de
um homem o imperio da Allemanha, da Italia e da Peninsula iberica? Acaso
a união, realisada no periodo ascencional da Hespanha, se tivesse
consolidado abafando o cristallisar da alma portugueza na éra classica e
abastardando a semente que nos deu Camões. Unido então, Portugal ficaria
como se nunca tivesse existido, por isso que não chegára ainda a
formular o seu pensamento historico, nem a consummar a sua empreza...

D. João II, humilhado, abatido, e rapado por dó, voltou a envergar o
habito da coruja, para morrer (1495). Agonisante, mal podendo articular
já as palavras, com uma voz arrastada e fanhosa que a proximidade da
morte fazia satanica, dizia, encostando a cabeça felina sobre a mão
descamada: «Persigam-me sem dó os filhos do Bragança!»

    [71] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) p. 137-49.

    [72] _V. Systema dos mythos relig._, p. 291.

    [73] V. _As raças humanas_, liv. IV, 3.

    [74] V. _Theoria da hist. universal_, nas _Taboas de chronol._,
         pp. XXXII-III.

                      *      *      *      *      *




      IV

      Em demanda do Preste-Joham das Indias


No verão de 1486 tinha Bartholomeu Dias partido de Lisboa, para dobrar o
Cabo da Boa Esperança; o que de facto conseguiu, não podendo porém ir
mais ávante, porque lh'o não consentiram as tripulações assustadas. No
mesmo anno mandára o rei, por terra, para o Oriente, Antonio de Lisboa e
Pero Montaroyo, que não passaram de Jerusalem, por só ahi reconhecerem
que, não sabendo falar o arabe, não podiam intentar a viagem.

No anno seguinte, portanto, escolhem-se dois homens que sabem arabe,
para ir por terra descobrir o Preste-Joham. A viagem por mar, ou se
abandonava por parecer impossivel, ou aprazava-se para mais tarde:
quando houvesse informações mais cabaes, colhidas nas expedições por
terra. Affonso de Payva e Pero da Covilhan partiram de Lisboa, via
Napoles, com cartas de credito sobre o principe banqueiro, Cosme de
Medicis. D'ahi os viajantes embarcam para Rhodes, depois para
Alexandria, d'onde seguiram pelo Cairo para Tur, (Tor) na praia do mar
Vermelho ao sopé do Sinai, como mercadores, acompanhando as caravanas.
De Tur foram a Aden, onde se separaram: Covilhan para a India, Payva
para Suâkin (Suaquem) na costa da Abyssinia; aprazando o encontro, á
volta, no Cairo.

Covilhan, em Aden, embarcou para Kananor, no Malabar, e d'ahi foi a
Kalikodu (Calecut) e a Gôa. Atravessou, depois, o oceano indico, indo
parar a Sofala, onde colheu noticias sobre a costa oriental da Africa, e
sobre a ilha da Lua (Madagascar). Voltou logo ao Cairo, pressuroso de
enviar a Lisboa as importantes informações obtidas, e ahi soube da
prematura morte de Payva. Recebidas em Lisboa as cartas do viajante, D.
João II recambiou logo os arabes seus emissarios, com ordem de visitarem
Hormuz e a costa da Persia. Executada essa missão, Covilhan, cujo
primeiro dever era obter noticias do Preste-Joham, partiu para a
Abyssinia. Já por esta epocha o encantado principe que, segundo Marco
Paolo, habitava a Asia central, fôra transferido para a Nubia: e a lenda
personalisava no obscuro Negus o extravagante monarcha, tão falado e
admirado em tempos anteriores. Covilhan, de quem não houve outras
cartas, por largos annos aprendêra no Oriente a verdade; mas não podia
transmittil-a para Portugal. Preso, sem ser maltratado, favorecido e
rico pelo contrario, viveu por trinta e tres annos na Ethiopia,[75]
onde acabou.

Se a sua viagem não saciava a curiosidade principal do monarcha
portuguez, se o Preste-Joham continuava a ser um mytho, o facto é que
mais valiosos resultados se tinham obtido. A Covilhan cabe a honra de
ter marcado o itinerario da navegação da India, affirmando que pelo sul
da Africa se chegaria ao Oriente. Nas cartas que enviou do Cairo, dizia
que os navios que navegassem ao longo da costa da Guiné, chegariam,
proseguindo, ao extremo sul do continente africano: e que, aproando ahi
para leste, em direcção da ilha da Lua, por Sofala, se encontrariam no
caminho da India.

D'estas e das mais informações recebidas se compoz o programma da
atrevida expedição do anno de 1497, cujo destino marcado era desde logo
Kalikodu, ou Calecut, como cá lhe chamavam, e onde Covilhan estivera.
Vasco da Gama foi escolhido por D. Manuel (já a esse tempo D. João II
tinha tres annos de fallecido) para commandar a expedição. Era um homem
ousado mas prudente, e reunia ás qualidades militares as de marinheiro,
cousa então commum, e depois ainda. Succedeu o mesmo a Affonso
D'Albuquerque, a D. João de Castro, e a muitos outros; e a esta
circumstancia deve dar-se um merecido alcance. A separação das aptidões
não vinha embaraçar os planos; e havia uma unidade no mando, porque o
capitão era tambem o piloto.

O maior juizo e prudencia dirigiam os preparos da expedição. Pesavam-se
e debatiam-se todas as noticias do Covilhan, commentando-as com os
conhecimentos anteriores. Examinavam-se os roteiros e cartas; e
Bartholomeu Dias de viva voz contava tudo o que lhe succedera, os
embaraços com que havia a luctar, as difficuldades a vencer. Com a sua
larga experiencia dirigia a construcção dos navios, banindo os exageros
nas dimensões, recommendando a solidez dos cavernames. O descobridor do
Cabo devia acompanhar a expedição até S. Jorge da Mina, e ficar ahi no
_resgate_ do ouro. Eram quatro náus pequenas, para poderem entrar em
todos os portos, visitar todas as angras, passar os baixios, ao longo
das costas. A sua construcção ia aprimorada e forte, como jámais se
vira: madeiras escolhidas, sans, e de exagerada grossura, pregadura bem
atacada, demorado e cuidadoso calafeto. As attenções não eram menores
com o equipamento: levavam tres _esquipações_ de velas armadas e mais
apparelhos, cordoalha tres vezes dobrada, e mantimentos, armaria e
bombardas em abastança. Levavam seis padrões de pedra lioz com o brazão
portuguez e a esphera armillar, que o rei adoptara por emblema,
esculpidos. Um havia de ser collocado na bahia de S. Braz, outro na foz
do Zambeze, outro em Moçambique, outro em Melinde, outro em Calecut,
outro na ilha de Santa Maria. Iam dois capellães a bordo de cada navio;
iam linguas ou interpretes negros, cafres e arabes; iam dez condemnados
para qualquer sacrificio necessario, e finalmente iam cento e quarenta e
oito soldados. Tinham-se escolhido os melhores pilotos, e o rei não
consentia que se poupasse em cousa alguma. Vinha em pessoa examinar o
estaleiro, e demorava-se a conversar com os mestres, ouvindo as
observações de Bartholomeu, de Pedro Dias, e Vasco da Gama, que lhe
mostrava o novo astrolabio de Behaim, tosco triangulo de madeira, mas
muito efficaz. Pelo modelo tinham-se mandado fazer outros, mais
pequenos, de latão.

Tres dos navios levavam os nomes dos tres archanjos: _S. Gabriel_,
capitanea, de 120 toneis, _S. Miguel_ (antigamente _Berrio_) e _S.
Raphael_ de 100 toneis. O nome do quarto, de 200 toneis, desconhece-se.

No fim de junho estavam todos concluidos, promptos e fundeados no mar,
em frente da egreja de Restello, onde os capitães velaram a noute de 7
de julho. No dia seguinte, depois da missa, acompanhados pelo rei e por
todo o povo da cidade, seguiram em procissão para a praia, cantando, com
tochas nas mãos, e embarcaram.

Diz Camões que, n'este momento,

    ... hum velho d'aspeito venerando,
    Que ficava nas praias entre a gente,
    .....................................
    C'hum saber só d'experiencias feito,
    Taes palavras tirou do experto peito:
    ......................................
    Oh maldito o primeiro que no mundo
    Nas ondas vela poz em sêcco lenho!

No peito de muitos havia, com effeito, uma condemnação formal por essa
teima persistente dos monarchas em sacrificar dinheiro e gente á chimera
das navegações.[76] A prudencia de experiencias feita, ronceira e fria,
não acreditava no exito, depois de tantas tentativas falhadas. O
resultado havia de votar contra ella; mas as palavras do poeta
prophetisavam as consequencias funebres d'um imperio, que todos porém,
os audazes e os prudentes, acclamaram quando Vasco da Gama voltou.
Camões, assistindo já ao declinar do sol, pôde contar as fomes soffridas
no mar, os temporaes e os naufragios, as peregrinações nos reinos
adustos do terrivel Adamastor, e o collar de esqueletos brancos
estendidos ao longo dos areaes das duas Africas--um rosario de tragedias
funebres! Pôde tambem contar as ondas de protervia e crimes, d'esse mar
da India, que se estirou até á Europa para afogar Portugal em vasa.

                      *      *      *      *      *

Com sete dias de viagem, a 15 (julho), chegam ás Canarias, onde um
nevoeiro dispersa a pequena frota, que, entre 23 e 27, se reunia outra
vez em Cabo-Verde, para d'ahi partir em 3 de agosto. Tres mezes gastaram
para descer até Santa Helena (nov. 7), onde refrescaram, porque tinham
seguido ao largo, sem se internarem no golpho da Guiné. Desembarcaram
tambem para reconhecer a altura, com o astrolabio, porque a bordo não
lh'o consentiam os balanços dos navios; tiveram algumas escaramuças com
os indigenas, e partiram afinal no dia 16 de novembro. A 19 estavam á
vista do cabo Tormentoso ou da Boa-esperança, dois nomes que egualmente
justificou d'esta vez. Tres dias alli andaram, batidos pelos temporaes.
O vento e o mar eram tantos, que os navios mettiam as postiças debaixo
de agua, e difficilmente se diria se andavam sobre as ondas, ou de
envolta com ellas. No alto dos castellos, á pôpa, levavam as náus
retabulos pintados, com a imagem dos santos do seu nome; e quando o mar
lançava com estrepito os paineis, sobre o tendal, toda a tripulação das
náus empallidecia de susto. Era um triste prognostico, e parecia que o
favor divino os queria desamparar. Mares crueis e espantosos vinham pela
pôpa arrebatando os bateis, arremeçando-os contra os costados das náus,
avariando os lemes. Amainavam as velas, cortavam os tendaes, começavam a
alijar carga ao mar... Por fim o tempo abonançou: «Nosso Senhor seja
louvado, que nas maiores fortunas soccorre com a sua infinita
misericordia!»

Dobrado o cabo a 22, no dia 25 fundeavam na bahia de S. Braz, onde as
calmarias os forçaram a demorar-se até 7 do mez seguinte. Navegando uma
semana ao longo da costa austral d'Africa chegam a 15 aos ilheus-Chãos,
derradeiro termo da viagem de Bartholomeu Dias. Começavam agora a seguir
as instrucções do Covilhan, o piloto ausente pelas terras do
Preste-Joham, a quem demandavam. Queriam seguir ao longo da costa, mas
as correntes, a que haviam grande medo, lançavam-nos para o pélago do
sul, vasto e perdido. Os marinheiros revoltam-se inutilmente: Vasco da
Gama, como um destino, inexoravel e prudente na sua audacia, venceu as
revoltas e as correntes.

Saíam por fim do Mar Tenebroso, e só agora se podia considerar vencido o
temivel cabo. As tempestades e as correntes amansaram. De dia a calma e
o céu de azul puro: á noute, por duas ou tres vezes, no topo dos
mastros, brilhava a luz de S. Fr. Pedro Gonçalves, o Sant'Elmo de
Lisboa. Tudo eram promessas de bonança. Subiam aos mastros a vêr os
signaes do milagre, e traziam, com devoção, os pingos de cera verde que
o santo lá deixára. Ás vezes chegavam a brigar contra algum incredulo, e
mais de um d'esses pagou _por ello_. Os marinheiros recordavam-se
piamente do seu santo, que ficára em Lisboa, e de Xabregas, onde cada
anno o levavam em procissão, vestindo o melhor que tinham, pondo os seus
ouros, coroados de coentros e flores, com bailes, musicas, folias e
merendas, pelas hortas do arrabalde. O bom santo protegia-os: já se não
rebellavam, e alegres proseguiam, confiados tambem na pericia e valor do
capitão, que os domava com intrepidez.

A 10 de janeiro tomavam terra em Inhambane, communicando com os cafres:
a 22 tinham subido até Quilimane, onde veem visital-os a bordo
_fidalgos_, com toucas de seda lavradas na cabeça. Pela primeira vez
chegavam _á India_. Viam gentes diversas, e signaes d'essa civilização
distante, demandada com tanto ardor. Emergiam do mar d'Africa e da
obscura sombra do continente negro. Esses _fidalgos_, para quem olhavam,
porém, quasi com amor, como irmãos, seriam os seus mais crueis inimigos.

Ficam um mez em Quilimane, para reparar os navios e restaurar a saude,
porque o escrobuto começára a lavrar com força nas tripulações; e,
partidos, chegam em 2 de março a Moçambique. Os symptomas anteriores
augmentam: veem mais, muitos _fidalgos_: estão, decididamente, ás portas
da India! vão afinal chegar ao imperio do Preste!

O que observavam augmentava-lhes o desejo, avivando-lhes a curiosidade.
Tudo era novo para elles, mas tudo avigorava as esperanças de virem a
encher-se com o saque dessas cousas brilhantes, marfins e sedas, ouros e
pedras, que luziam nos toucados e vestidos dos _fidalgos_ de Moçambique.
Em volta da esquadrilha fundeada vogavam os navios da terra, sem coberta
nem pregaria: as taboas cosidas a couro, e velas de esteiras de
palma.[77] Os mouros vinham mercadejar com elles. O proprio
sultão em pessoa quiz cumprimentar Vasco da Gama, que o recebeu a bordo.
Pediu-lhe pilotos que o guiassem á India, á terra do Preste-Joham;
pediu-lhe informações ácerca do famigerado imperador. O mouro disse-lhe
que o Preste era um poderoso principe, com muitas cidades n'aquella
costa, grandes navios e muita copia de mercadores: foi, pelo menos, isso
o que Vasco da Gama percebeu, e taes novas encheram-no de alegria.

Mostrou-se depois o sultão perfido, e a esquadrilha, sem os pilotos, foi
seguindo, costeiramente até Mombas (8 de abril), onde um acaso a salvou
da traição que _os mouros_ lhe preparavam. Elles tinham descortinado já
perigosos concorrentes n'esses homens vindos por mar ás regiões que,
desde a Arabia, o Egypto e a Nubia, eram até ahi imperio seu e
indisputado. Salvo por um milagre, Vasco da Gama seguiu a Malinda (15),
onde o _sultão_ o acolheu bem; mas não confiando mais n'esses _fidalgos_
do Zamgebar, aproveitou de um mouro que se deixára ficar a bordo em
Moçambique, e que succedeu conhecer a rota para Kalikodu. Fizeram-se ao
mar, e em vinte e seis dias (24 de abril a 19 de maio) estavam na India.
Durára a viagem dez mezes e onze dias.

Foi então que o seu espanto chegou ao auge. Tudo o que já tinham visto
não dava uma idéa, nem distante, do que viam agora, desembarcados. O
esplendor e o fausto natural do Oriente enchiam-nos de admiração e
cubiça; e na sua ignorancia religiosa viam por toda a parte os christãos
do Preste. Os indigenas adoravam a Virgem Maria; e os nossos
prostravam-se tambem deante de Nossa Senhora na pessoa de Gauri, a deusa
branca, Sakti de Shiva, o destruidor. Esta confusão, augmentada ainda
por não se entenderem no que diziam, dava logar a scenas ingenuamente
comicas. Alguns, duvidosos, observavam que, se os idolos eram diabos, a
sua reza era só para Deus; e com esta reserva mental ficavam quietos na
consciencia. Para augmentar o espanto, veiu ter com elles um _mouro_ a
falar portuguez: «Boa ventura! boa ventura! muitos rubis! muitas
esmeraldas!»

E nada d'isto era um sonho, eram «sem mentir, puras verdades.» Os
indigenas abraçavam-nos, e os broncos alemtejanos, os beirões, os
marinheiros do Tejo, ingenuos e ignorantes, abraçavam-nos tambem, na
effusão de um instincto humano, como patricios. Dir-se-ia que se
conheciam de muito, e que pouco ou nada os distinguia: de Lisboa á India
era uma curta distancia, porque o sentimento não tem bitolas. Eram todos
christãos, tambem tinham reis! o mundo era um só, e o homem o mesmo em
toda a parte! A naturalidade ingenua com que se praticavam as maiores
cousas, é a grande prova da força heroica dos homens da Renascença.

Por esse tempo, na India--e com este nome designamos todas as costas e
ilhas incluidas entre os meridianos de Suês e de Tidor, e entre 20° de
latitude S. e 30° N., theatro das campanhas portuguezas--na India,
dizemos, raças estranhas impunham uma especie de dominio em tudo
similhante ao que foi depois o dos portuguezes: um monopolio
commercial-maritimo, e como consequencia d'elle, feitorias, colonias e
Estados. Os povos que nós iamos despojar d'esse dominio eram os arabes e
os ethiopes, os persas, os turkomanos e os afghans, que, descendo do mar
Vermelho e do mar da Arabia, confundidos na onda religiosa do islamismo,
tinham avassalado a peninsula do Indo ao Ganges, e a Africa oriental
desde Adal até Monomotapa. Estendendo-se para o extremo Oriente iam,
como nós fomos, até Kambodja e Tidor nas Molucas, atravez do Arakan e do
Pegu, da peninsula de Malaka e de Birma e Shan (Sião) no continente,
atravez de Sumatra e Borneo e pelo meio do archipelago de Sunda. A todas
essas gentes chamaram os portuguezes _mouros_,[78] expressão generica já
usada na Europa para designar os sectarios do Islam, e por isso tambem
adoptada agora que, tão longe e atravez de tantos mares, iamos
encontrar-nos de novo, frente a frente, com o _turco_, antagonista do
_christão_ em todo o mundo.

«Al diablo que te doy! Quien te trouxe acá?» assim um mouro de Tunis, em
Kalikodu, cumprimentava o portuguez; e como em Moçambique e em Mombas,
os _mouros_ (usaremos d'ora ávante d'esta expressão generica, já
explicada) induzem ou obrigam o Samudri-rajah (Çamorim), rei ou conde--a
India vivia n'um regime simili-feodal--de Kalikodu, a exterminar os
portuguezes. Kalikodu era o emporio commercial da costa do Malabar, e os
dominios do seu rajah formavam o chamado reino de Kanará.

Facil seria, sem duvida, convencer o principe de que Vasco da Gama era
um pirata, o seu rei uma burla; e sem o pensarem, decerto, os mouros de
Kalikodu definiam antecipadamente o dominio portuguez, que só veiu a
differençar-se d'uma pirataria commum, em ser uma rapina organisada por
um Estado politico. Convencido ou violentado, o rajah manda perseguir os
navegantes, que embarcam e se defendem (agosto 30.) Depois de uma
estação, de alguns mezes na ilha de Anjediva, sobre a costa, Vasco da
Gama decide voltar; e faz-se de vela para Portugal em 10 de julho de 98.
Um anno depois, no mesmo dia, chegava a Lisboa. Na viagem, separou-se da
frota Nicolau Coelho em Cabo Verde, e Vasco da Gama veiu pela Terceira,
sepultar ahi o irmão que morrera no mar.

O enthusiasmo foi grande em Lisboa, á chegada de Vasco da Gama: tambem
D. Manuel tinha as suas Indias, e Portugal o seu Colombo! E o
Preste-Joham, que noticias? E de Covilhan? Nada. O navegador conseguira
vencer o Cabo e achar a India, mas não conseguira decifrar o enigma, que
a este tempo já contava tres seculos de successivas indagações.

Pouco viriam essas a importar para a historia. O essencial era a
decifração do outro enigma, ainda maior--o do Mar Tenebroso. Pouco
faltava já; e em vinte annos mais, não haveria, na rotunda superficie do
globo, um canto de terra incognita, nem um palmo por explorar na vasta
amplidão dos mares. «Debaixo das bravas ondas, por saber os segredos da
terra e os mysterios e enganos do oceano», os portuguezes, com uma
curiosidade heroica, tomaram em suas mãos o futuro da Europa, e do
mundo. No anno seguinte ao da descoberta da India, Pedro Alvares Cabral,
que para lá fôra mandado com uma imponente esquadra, não resiste á
tentação da curiosidade. Descendo no Atlantico, em direcção de leste,
uma pergunta incessante o persegue: que haverá para o poente? Para esse
lado descobriu Colombo umas Indias no hemispherio norte: acaso haverá
mais Indias no hemispherio do sul? Amarou para oeste, a indagar, a
vêr... Mais uns mezes, na longa viagem do Oriente, que importavam? Com
effeito, descobriu o Brazil;[79] a terra de oeste vinha, desde o extremo
norte até ao extremo sul, estendendo-se ao longo, nos dois hemispherios.
Só então a America se pôde dizer inteiramente descoberta.

A noticia das novas terras encontradas impressionou pouco Lisboa; na
côrte ardia o desejo de descobrir o Preste, o encantado Preste-Joham; de
fazer com elle um bom tratado, para chamar a Portugal um pouco, ao
menos, das tantas cousas boas que Vasco da Gama vira por seus olhos, e,
contadas, enchiam de cubiça o espirito de toda a gente. Cabral fôra
mandado a isso, e não a descobrir terras: já eram demais as Cruzes, e os
nomes do repertorio escasseavam já para denominar ilhas e cabos, portos
e bahias, costas e continentes. Desejava-se outra cousa, ferviam outras
esperanças:

«Boa ventura! boa ventura! muitos rubis! muitas esmeraldas!»

                      *      *      *      *      *

Tomarem-no por um pirata enchera de colera Vasco da Gama. Além da
necessidade de mostrar ao Çamorim perfido o poder do rei de Portugal,
era indispensavel desaggravar os brios do fidalgo offendido. Não podia
ir d'esta vez, mas para outra seria a sua vingança.

Logo que Vasco da Gama chegou, decidiu-se, pois, enviar uma grande
armada á India; porque agora, sabido o caminho, não havia mais receios,
nem motivos, para reduzir o numero, nem a lotação dos navios. Pedro
Alvares Cabral fôra nomeado almirante da frota, que contava treze náus,
e levava mil e duzentos homens.

A construcção dos navios tinha progredido com a frequencia e extenção
das viagens. Naus e galés, embarcações de vela e remo, tinham-se
preparado melhor, augmentando em dimensões. No primeiro quartel do XVI
seculo, porém, quando a avidez commercial não pervertia ainda a
prudencia, a lotação ordinaria não excedia 400 toneladas.[80]
A náu navegava á vela, jogando dos costados a artilheria, no
convez ou sob a coberta. Á pôpa e prôa, nos castellos, luxuosamente
ornados de lavores e douraduras, assentavam tambem canhões; e nos cestos
de gavea havia pequenas colubrinas. De um a outro castello corria um
baileu ou varanda volante, d'onde, nos combates, atiravam os
mosqueteiros, e se passava á abordagem dos navios inimigos. Muitas náus
andavam munidas de rostos ou esporões de aço nas prôas, para a
investida. As galés, navios de remo, dividiam-se em _bastardas_ e
_subtis_: as primeiras de 27 bancos a tres remeiros e 7 peças grossas;
as segundas de 25 bancos e 5 peças apenas. A artilheria grossa jogava
sómente á prôa, nos costados: entre os remeiros, collocavam-se, porém,
umas peças menores, a que se chamava _berços_. Havia, além d'isto, as
_fustas_, galés pequenas de 16 ou 20 bancos de dois remos, com duas
peças grossas. As galés, comtudo, tambem velejavam: e para isso tinham
dois mastros, onde levavam latinos; as fustas um só. Havia, porém, galés
que, por se approximarem mais da armação das náus, se diziam
_bastardas_: armavam dois mastros, mas no do traquete tinham duas velas
redondas, e cestos de gavea, como as náus.

A esquadra de Pedro Alvares Cabral levantou ferro do Tejo no dia 9 de
março do anno de 1500. Os gritos da marinhagem, para alar a um tempo os
viradores nos cabrestantes, melopêa triste e funebre como o mar; o surdo
roçar das amarras nos escovens; o apito dos mestres, dirigindo as
manobras; as bandeiras multicolores soltas ao vento; e as velas meio
desdobradas nos mastros, formavam o vivo quadro da nação que tambem
partia, no anno de 500, já confessada e bem disposta, para essa longa
viagem de pouco mais de um seculo, cheia de escrobutos e naufragios, ao
cabo da qual a esperava um tumulo, vasto como é o mar, mudo como elle é
nas calmas funebres dos tropicos.

Não havia protestos agora, senão esperanças, cubiças, ambições. Não
partiam á aventura; partiam á conquista do que tinham descoberto, e
queriam trazer para Portugal, para casa. Ninguem duvidava do exito, e o
capitão levava cartas solemnes do rei para o Çamorim. Em troca d'ellas,
da sua alliança, dos presentes que lhe mandavam, viriam os rubis e as
esmeraldas, a pimenta e a canella, monopolisada pelo turco, inimigo de
Deus!

Já na praia começava a levantar-se a basilica, monumento ingenuo d'essa
religião do commercio, erguido a Jesus e á Pimenta--os dois deuses que
viviam no céu portuguez (ou carthaginez): dois deuses piamente adorados,
mas servidos ambos de um modo egualmente barbaro.

O almirante acaso pensava, já no Tejo, n'esse rumo de Oeste, o de
Colombo, que o levaria á America; e porventura acreditava pouco na
existencia do lendario Preste-Joham, por cuja causa tantas viagens se
tinham feito. Não o mandavam descobrir, mandavam-no conquistar; mas elle
queria tambem inscrever o seu nome na lista dos que, durante o seculo
anterior, tinham pouco a pouco rasgado as trevas do mar mysterioso. A
sua viagem, além de iniciar o dominio portuguez na India, teve, com
effeito, as duas consequencias desejadas. Varreu as duas lendas, a do
Preste e a do Mar Tenebroso: descobriu o Brazil, e veiu dizer a D.
Manuel que o supposto imperador do Oriente era um miseravel rei preto,
infiel, acantonado nas montanhas invias da Abyssinia.

Atraz de uma lenda, attrahido por uma voragem, Portugal descobrira os
continentes e ilhas do Atlantico e chegára á India. Por uma illusão,
consummára a realidade que espantava o mundo inteiro. O mundo é uma
miragem, e os homens sombras levadas pelos sabios ventos do destino...

Reconhecidas as terras, sulcados os mares, por occidente e por oriente,
faltava porém ainda reunir essas duas metades do mundo conhecido, e
dar-lhe a volta, para se saber que cabia todo, inteiro, nas mãos do
homem: eis ahi o valor da viagem de Magalhães, vinte annos mais tarde.

Não ha mais trevas no mar; consummou-se a grande conquista. Mas uma nova
empreza se desenha agora: devorar o descoberto, digerir o mundo.

Portugal inteiro embarca para a India na esquadra de Cabral[81].

    [75] V. _Regime das riquezas_, p. 109.

    [76] V. _Hist. da repub. romana_, p. I, XIX, _intr._

    [77] V. _Regime das riquezas_, pp. 85-6.

    [78] V. nas _Raças humanas_, a ethnographia do Oriente a
         pp. 70-85, 90-105 e 122-41 do vol. I.

    [79] V. no _Brazil e as colon. port._ p. 3 (2.ª ed.) a descoberta
         das costas brazileiras.

    [80] V. no _Brazil e as colonias port._ (2.ª ed.) a composição
         typo de uma nau da India, a p. 34 _nota_.

    [81] _Hist. da republ. romana_, I, pp. 217-8.

                      *      *      *      *      *




LIVRO QUARTO

A VIAGEM DA INDIA


    Dês o primeiro dia que com a vista a experiencia propria me acabei
    de desenganar do grande erro que até alli me trazia a fama das
    cousas da India... me nasceu logo um desejo ardentissimo de fazer
    por esta via um grande e extraordinario serviço.

    RODRIGUES DA SILVEIRA, _Reformação da milicia e governo do Estado da
    India oriental._

                      *      *      *      *      *




I

D. Francisco d'Almeida


Em 13 de Setembro do anno de 500 chegou Cabral a Kalikodu. Não ia, como
Vasco da Gama fôra--como descobridor; ia como embaixador, á frente de
uma poderosa armada, para não ser tomado por pirata, mas sim pelo
emissario, que era, do nobre monarcha portuguez, portador das suas
cartas e propostas de alliança para o rajah de Kalikodu. Como tal foi
effectivamente recebido, n'uma audiencia solemne. Os portuguezes,
vestindo as suas melhores roupas, as suas armas mais bellas e polidas,
pensavam impôr de ricos ao monarcha do Oriente; mas os representantes da
pobre e forte Europa iam ficar deslumbrados com as magnificencias da
India opulenta. O brilho das armaduras era offuscado pelo rutilar da
pedraria «cujas chammas impediam a vista». O rajah vinha em um palanquim
ou andor trazido aos hombros pelos nobres, recostado sobre almofadas de
seda, entre colchas lavradas de fio de ouro caíndo em pregas franjadas
com borlas cravejadas de pedras preciosas, e pannos de carbaso de linho
finissimo, cuja alvura sorria ao lado da vermelhidão sanguinea das sedas
e brocados. Corria a compasso o andor coberto por um pallio de seda
franjado de ouro, e dentro d'este duplo sacrario via-se o rajah negro
rutilante de pedras preciosas. Cegava olhal-o. Aos lados do pallio iam
pagens com leques de pennas de pavão agitando o ar, e á beira do
palanquim os que levavam as insignias da soberania: a espada e a adaga,
e estoque de ouro, a flor de liz symbolica, o gomil de agua, e
finalmente a copa onde o rei cuspia o betele, cujo mascar faz os dentes
côr de rosa e dá «muito bom bafo».

Em toda a volta e prolongando-se na cauda da procissão, charangas de
musicos atroavam o ar com os seus tambores, com os tam-tams de prata e
de ouro, suspensos por cordeis em bambus altos, com as trombetas
enormes, umas rectas, outras curvas, levantadas para o ar, e que davam
aos musicos o aspecto de elephantes com trombas douradas, cujos
pavilhões se viam cravejados de rubis e esmeraldas. Vinha uma grande
trompa de ouro levada por dois homens a cavallo! Os musicos, negros, iam
nús, com manilhas nos braços e nas pernas, e á cinta um panno cobrindo
as vergonhas. Nús iam os nayres e mais tropas do rajah, esgrimindo aos
saltos em pyrrhicas singulares, parecendo atacados de furia, com as suas
armas variadas: alfanges curvos para os golpes de cutilada, espadas
largas e ponteagudas para as estocadas, espadas triangulares com o
vertice nos copos e na ponta a base espalmada, arcos e molhos de frechas
de bambu delgados, lanças com anneis tilintantes e guizos, correndo,
saltando e gritando em brados: «Cucuya!» como na hora das batalhas. Mais
ao largo, o povo mudo, n'uma impassibilidade de orientaes, olhava.

A recepção do embaixador fez-se no _çarame_ do rajah, á beira-mar,
pavilhão de fórma oitavada erguido sobre esteios, todo rendado de
varandas e lavores, marchetado de marfim, chapeado de prata e ouro em
folhas, com pinaculos e corucheos que se desenhavam levemente no fundo
azul do ceu--tão azul como o do mar onde fundeava a esquadra de Pedro
Alvares Cabral. Na longa praia apinhavam-se as choças dos pescadores e
galeotes e por entre ellas a multidão negra, espantada. Para o interior
avistava-se a cidade, com os palacios e jardins do rei, dos nobres e dos
ricos, docemente abrigados contra o sol inclemente pela sombra dos
palmares e dos bosques de arvores aromaticas. No meio de um turbilhão de
gritos de guerra, de sons de trombetas, o cortejo encaminhou-se para o
palacio do rajah.

Ahi o Çamorim estava sentado sobre o véllo preto, insignia da realeza,
no seu throno de prata com braços de ouro e as espaldas cravejadas de
rubis, diamantes e esmeraldas, no meio da sua côrte, recostado em macias
almofadas de seda, sobre fôfos tapetes da Persia, somnolento e immovel.
Negro, nú, um véo de linho branco descia-lhe em pregas desde o umbigo
até aos joelhos, com a ponta caída e n'ella enfiados anneis de ouro e
rubis. Da extremidade pendia uma perola enorme. Os dedos, braços,
estavam cobertos de anneis e manilhas. Das orelhas caíam arrecadas de
ouro cravejadas: á cintura trazia um cinto de ouro. Ao pescoço collares
roliços, de ouro tambem; e duas voltas de um fio de perolas, grandes
como avellans, que desciam até ao umbigo, suspendiam um enorme coração
de ouro encastoando a mais bella, a maior esmeralda. Nos cabellos
compridos e apanhados em nó no alto da cabeça havia perolas e pingentes,
e a corôa era um deslumbramento. O thesouro inteiro de Kalikodu saíra á
luz. Ao lado do rajah, em pé, viam-se os pagens nús com pannos de
purpura, apresentando as espadas e adagas de copos de ouro cravejados, e
junto ao soberano o da copa de ouro com a toalha a tiracollo, e o da
boceta cravejada de brilhantes, com o sal delido em agua de rosas, onde
molhava as folhas de betele, antes de as dar ao brahmane-mór, que detraz
das espaldas do throno as passava religiosamente ao rajah, para mascar.
Outros pagens tinham as toalhas, perfumadas de almiscar, com que nas
occasiões devidas esfregavam os braços e as pernas núas do soberano
reluzentes de manilhas cravejadas de rubis. Em torno havia castellos de
alfaias: vasos e urnas de bronze, de prata, de ouro, e os lampadarios de
metal amarello sempre accesos, segundo os ritos ordenavam. Os escrivães,
de pé, tinham debaixo do braço as longas folhas de palmeira, seccas,
onde se registravam as leis e tratados, em sulcos abertos pelos
estyletes de ferro, que balouçavam entre os dedos. Em frente de Pedro
Alvares Cabral, que, sentado, lia a carta de D. Manoel em arabigo,
estava a credencia com os presentes que trazia: uma taça e duas massas
de prata, quatro almofadas de brocado e dois pannos de Arraz, de um
desenho primoroso. A côrte, de pé, escutava em torno. Mais longe
agrupavam-se as mulheres do rajah, untadas de sandalo, e núas da cintura
para cima, com as cabeças coroadas de flôres, e collares de contas de
ouro, e pedraria, manilhas grossas nas pernas, braceletes, e anneis
fulgurantes. O rajah tinha mais de mil, entre amantes e varredeiras,
escravas e embostadoras. Para além das columnatas de alabastro, nos
pateos inundados de sol, viam-se os elephantes submissos, com os seus
collares de campainhas e guizos, cobertos por xaireis de seda recamada
de ouro; viam-se os pallios e leques do cortejo do soberano; os truões e
os fakires, rebolando-se no chão, desgrenhados, a uivar gritos. Depois
formavam alas, ou esgrimiam com tregeitos e cutiladas, os nayres,
bucellarios do rajah, casta singular e polyandra de quem disse o poeta:
«geraes são as mulheres porém sómente para os da geração de seus
maridos.»[82] Mas o que sobretudo enchia de espanto e cubiça os
portuguezes, envergonhados da sua pobreza, eram os rios luminosos da
pedraria que, destacando-se do fundo acobreado das pelles indigenas, os
cegavam: «As chammas que d'elles saíam impediam a vista!» Sobre o ouro
de Sofala, eram os rubis do Pegú, os diamantes do Dekkan e de Narsinga,
as saphiras de Simhala (Ceylão) e os seus topazios e turquezas,
jacinthos e amethistas. Eram as bellas esmeraldas de Babylonia!

De parte a parte, comtudo, passada a recepção solemne, não se entendiam
bem; e os escrivães em balde mostravam as longas folhas de palmeira
escriptas, agitando os estyletes de ferro, a indicar as passagens das
leis que julgavam oppôr-se ao que pensavam serem os pedidos dos
portuguezes. Estes, em tregeitos, esforçavam-se por lhes fazer perceber
que queriam pôr alli feitorias, para trazerem por mar, para a Europa, as
preciosidades da India; e não cessavam de affirmar quante el-rey de
Portugal era poderoso e forte. Apesar de não ter tantos ouros nem
pedrarias tinha o bronze das suas peças e o ferro das suas granadas!
accrescentavam com decidida importancia. Os escrivães iam
comprehendendo, desconfiados: e os portuguezes desconfiavam tambem dos
sorrisos do rajah. Apesar d'isto, porém, foi concedido o que pediam; e
Cabral fundou a primeira feitoria portugueza na India, em Kalikodu.

Logo os mouros vieram reclamar contra os intrusos que os despojavam: e
favorecidos pelo indigena, caíram sobre a feitoria, trucidando os
portuguezes que lá havia: cincoenta ao todo. Começava a historia da
India. Seguiram-se logo as terriveis represalias do almirante. Tomou dez
náus de mercadores arabes, passou á espada mais de 500 homens
tripulantes, e, bombardeando a cidade, poz-lhe fogo. O incendio de
Kalikodu, em 16 de dezembro do anno 1500, era a funebre aurora da
historia oriental. Se as pedrarias tinham cegado os olhos dos
portuguezes, agora as chammas cegavam os olhos afflictos do rajah,
n'essa noute de cruel memoria.

Incendiada Kalikodu, o almirante foi com a esquadra entrar em Katchi
(Cochim) um pouco ao sul, na mesma costa de Malabar, mas já para além
dos dominios do rajah perfido de Kalikodu. O terror da recente façanha
abriu-lhe os braços do pequeno soberano de Katchi; e fundou-se ahi, em
boa paz e amizade, uma feitoria, tomando o almirante, entretanto,
refens, para segurança. Triumphára; o brahmane rajah de Katchi,
revoltára-se abertamente contra o Çamorim seu suzerano. No meiado de
janeiro (1501) partiu Cabral para Kananor: ahi carregou as suas náus de
pimenta e canella, e regressou ao reino. Dos treze navios com que
partira um anno antes, apenas tres o acompanhavam: cinco, desgarrados,
voltaram por diversas vias, e outros cinco foram tragados pelo Mar
Tenebroso. Esse inimigo terrivel, embora vencido, não estava domado, e a
primeira expedição da India, este primeiro acto da tragedia de mais de
um seculo, esboçava já todos os elementos da acção: assassinatos e
incendios, morticinios e naufragios; a espada e a pimenta; as armas do
guerreiro em uma das mãos, as balanças do mercador na outra; uma
Carthago moderna--e, no fundo, a voragem aberta do mar, prompto a
devorar homens, navios e riquezas; a fonte perenne do vicio, entornando
caudaes de torpezas!

                      *      *      *      *      *

Da curta historia anterior da India resultavam dois factos: a inimisade
perfida do rajah de Kalikodu, e a feitoria de Katchi. Castigar
terrivelmente o primeiro e consolidar, fortificando-a, a ultima, foi o
principal motivo da segunda armada, que em 1502 (fevereiro) partiu de
Lisboa para o Oriente, sob o commando de Vasco da Gama, o capitão
desapiedado, o fidalgo offendido nos brios pelo miseravel _Çamorim_.

A historia da viagem é um horror; e a desforra do capitão uma prova
d'essa frieza sanguinaria, impassivel e cruel, que effectivamente existe
no temperamento, quasi africano, do portuguez. Obliterada na sujeição ou
na paz, rebentou sempre com o dominio e com a victoria, na guerra. Se
taes sentimentos, vivos na alma do Gama, inspiram os seus actos, a sua
campanha não obedece a um plano, nem no seu rude espirito cabem as
largas vistas do estadista. Se algumas levava, reduziam-se a espantar a
India com a crueldade das suas façanhas, e a dominal-a com o terror dos
seus morticinios. Grande sobre as ondas, em lucta com os temporaes, é a
imagem da nação, cuja grandeza está na coragem e na teima com que soube
vencer o Mar Tenebroso. Um terramoto agitou o mar da India quando o Gama
pela segunda vez o trilhava; e o almirante, imagem da bravura épica do
povo portuguez, acreditou e disse que até as proprias ondas tremiam com
medo nosso--com medo d'elle!

Navegando porém no mar das Indias, com toda a artilheria carregada de
metralha, para arrasar Kalikodu, encontra o Gama uma náu de mercadores
arabes que ia para Meka ou voltava, nas romarias constantes á santa
Kaaba. Além da tripulação, o navio trazia duzentos e quarenta homens
passageiros, com suas mulheres e filhos. Era isto no dia 1 de outubro de
1502, «de que me lembrarei toda a minha vida!» escreve o piloto ainda
horrorisado, ao recordar como a náu foi cobardemente incendiada, com
todos os que continha, e que morreram desesperados no fogo ou no mar. Ia
a bordo um flamengo, que assim refere a occorrencia: «Tomámos uma náu de
Meka, onde iam a bordo 300 passageiros, entre elles mulheres e creanças;
e depois do sacarmos mais de 12:000 ducados de dinheiro e pelo menos
10:000 de fazenda, fizemol-a saltar com os passageiros que continha, por
meio de polvora, no 1.º de outubro.» Satisfeito de si, o capitão rumou
para Kalikodu. Mandou intimar ao rajah a expulsão de todos os mouros,
que eram cinco mil familias, das mais ricas da cidade: dizendo-lhe que
qualquer creado d'el-rey D. Manuel valia mais do que elle, _Çamorim_; e
que seu amo tinha poder para fazer de cada palmeira um rei!--Como era de
vêr, o rajah recusou; e o capitão que, ao fundear, apresára um numero
consideravel de mercadores no porto, mandou cortar-lhes as orelhas e as
mãos, e amontoados n'um barco, foram com a maré varar na praia, levando
a resposta do Gama á recusa do afflicto principe.[83] Começou logo o
bombardeio (2 de novembro). A cidade ardia outra vez; e á população em
choros, respondiam as risadas ferozmente cynicas dos marinheiros,
abrigados detraz das amuradas dos navios, junto ás peças que vomitavam
fogo. Era uma inepcia, uma barbaridade e uma covardia; porque as curtas
lanças e as settas dos indigenas não podiam medir-se com as granadas,
despedidas de longe, de bordo das náus. O Gama, cada vez mais satisfeito
de si, foi-se a visitar o porto amigo de Katchi; e decidiu regressar ao
reino por Quilua, d'onde trouxe o ouro com que o rei D. Manuel fez uma
custodia para o seu templo dos Jeronymos. Vinha contente da brava
desforra que tomára: o _Çamorim_ estava punido!

Deixára o Gama na India uma parte da sua armada sob o commando de
Vicente Sodré, personagem tão eminentemente celebre como o proprio
almirante, cujo tio era. Fidalgo, este amava as façanhas brutaes e
estrondosas; o outro queria mais á pirataria e ao roubo. Com effeito,
assim que o Gama partiu da costa do Malabar, o de Kalikodu, invocando
porventura direitos de suzerano sobre o visinho de Katchi, exigiu d'elle
a expulsão dos portuguezes da feitoria. Mas os ataques repetidos ao
poderoso rajah do Canará ensoberbeciam os seus vassallos, e fomentavam a
decomposição do systema politico de Hindustan. O de Katchi resistiu,
implorando o auxilio do Sodré, que pouco se lhe dava da feitoria, e a
abandonou para ir ao corso das náus de Meka: era trabalho de mais
proveito e menor risco piratear de parceria com a corôa portugueza nas
costas de Adal e da Arabia, á embocadura do mar Vermelho.[84]
O producto das náus de Meka pertencia, metade ao rei de
Portugal, metade ás tripulações: cabendo aos soldados uma parte, aos
marinheiros duas, outras duas aos bombardeiros, quatro aos pilotos e
outro tanto ao mestre. Pilhavam todos, de braço dado com a Corôa.

Vicente Sodré andava n'isto, ao mesmo tempo que Ruy Lourenço, por sua
conta e risco, varria a costa de Zamgebar, caçava navios e cobrava
tributos aos sultões.

O dominio portuguez adquiria logo de começo o caracter duplo que jámais
perdeu, apesar de todas as tentativas posteriores de regularisação e de
ordem. Era no mar uma anarchia de roubos, na terra uma serie de
depredações sanguinarias. Vasco da Gama ensinára o modo de imperar com o
fogo e o sangue; Sodré indicava o modo de ceifar no mar, pela abordagem,
as náus de Meka. A pirataria e o saque foram os dois fundamentos do
dominio portuguez, cujo nervo eram os canhões, cuja alma era a Pimenta.

Na artilheria, effectivamente, estava o segredo do poder dos invasores
da India. Ao tempo em que o Gama voltava da sua segunda viagem, partia
de Lisboa uma terceira esquadra (1503, abril) com Affonso de Albuquerque
e Duarte Pacheco a bordo. Foram a Katchi acudir ao rajah, na sua guerra
com o de Kalikodu, e construiram a primeira fortaleza na India.
Albuquerque voltou ao reino; Pacheco ficou em Katchi com as tropas e
navios preparados para o ataque. O heroe--porque este bateu-se como uma
féra, no seu covil de Kambalaan, nobre, desinteressada e
bravamente--desde logo disse que _toda a festa havia de ser de
artilheria_. De que serviam com effeito as armas brancas e de arremeço,
principal equipamento dos indigenas, que mal sabiam usar dos mosquetes e
bombardas, perante o vomitar distante da metralha? Isto explica a
possibilidade da resistencia dos setenta homens de Pacheco, brandamente
auxiliados pelos naturaes, contra os cincoenta mil que se dão ao
exercito do Samudri-rajah de Kalikodu. As surriadas da mosquetaria
auxiliavam decerto, mas a defeza decisiva consistia nas ondas de
metralha, que n'um instante varriam as jangadas cobertas de gente que
vinham por mar, e as columnas cerradas dos nayres armados de settas e
lanças investindo por terra. Mas nem por si só a artilheria seria capaz
de resistir á onda massiça das columnas inimigas, se a coragem, a
rapidez fulminante das marchas, a ubiquidade--póde dizer-se assim--do
primeiro heroe soldado do Oriente não animasse os poderosos meios de
defeza. Quatro mezes durou o assedio de Katchi, que terminou pela
derrota do Samudri-rajah.

A esquadra de Lopo Soares de Albergaria trouxe para o reino (1505)
Duarte Pacheco: um homem simples que, por voltar carregado de feridas,
mas leve de dinheiro e diamantes, foi parar á capitania de S. Jorge da
Mina, para de lá vir em ferros por _capitulos_ que d'elle deram; para
jazer no carcere por muito tempo, e acabar esquecido e pobre. A sorte
d'este heroe, diz Goes, «foi de calidade que se pode d'elle tirar
exemplo para os homens se guardarem dos revezes dos reis e principes e
da pouca lembrança que muitas vezes tem d'aquelles a que são em
obrigação.» Pacheco voltou, pois, do Oriente, e na India ficou, por
capitão do mar, Telles Barreto com a missão de _correr as náus de Meca_.
A armada trazia para o reino, a bordo, Pacheco--um infeliz!--e uma carga
abundante de especiarias e cousas ricas. A côrte, o rei, em Lisboa,
quizeram muito mais ás segundas, do que ao primeiro.

Entretanto a este devia D. Manuel a consolidação do seu imperio
oriental, incipiente ainda. Pacheco demonstrára aos naturaes e aos
arabes que os portuguezes não eram apenas piratas; e podiam fazer mais
do que bombardear impunemente uma cidade desarmada, ou tomar náus de
indefesos mercadores e romeiros. A façanha de Katchi fôra o baptismo de
sangue do novo imperio; e o baluarte, de pé, atestava a força dos novos
dominadores.

Mas já do principio, tambem, surgia a ultima das pragas da India: a
inveja, a sizania, os odios, a maledicencia, com que, uns aos outros, os
homens do ultramar se abocanhavam na côrte; e a inepcia do governo do
rei, incapaz de pesar o valor das palavras, de medir o alcance das
accusações, e de ser justo e sabio. A lisonja reinava, e sobre ella o
favoritismo.

Cinco annos tinham decorrido depois da viagem de Cabral; havia já uma
fortaleza em Katchi; estava batido o de Kalikodu; os navios portuguezes
pirateavam em liberdade no mar da India; e numerosas náus de Meka iam
sendo apresadas. Esboçava-se o futuro imperio, anarchicamente, mas já
por fórma tão decisiva, que era mistér organisal-o, dar-lhe uma lei e
uma direcção.

                      *      *      *      *      *

D. Francisco de Almeida foi o homem escolhido para governador da India,
constituida em vice-reino. Das tres successivas phisionomias que o
imperio portuguez no Oriente apresenta, é elle quem lhe imprime a
primeira; dos tres vice-reis mais notaveis, é elle o primeiro tambem.
Sem o heroismo antigo de Albuquerque, um Annibal;[85] sem a
sympathica pureza ingenua de um Castro, imitador fiel dos typos de
Plutarcho; Francisco de Almeida, valente como soldado, habil como
almirante, é sobretudo um estadista.

Pondo de parte o merecimento absoluto d'essa politica commercial,
fecundo systema de explorar uma região inteira, fielmente executado mais
tarde e com tamanho exito pelos hollandezes, o facto é que, para
conseguir o fim desejado de roubar aos arabes o imperio, e a venezianos
e arabes o commercio do Oriente, a politica de Francisco de Almeida, sem
grandeza, é lucida, perspicaz e forte. O governo da India formou tres
grandes homens: Castro, que se póde dizer um santo; Albuquerque, a quem
melhor cabe o nome de heroe: Almeida, que é um sabio administrador, um
feitor intelligente.

No seu caminho para a India, o primeiro viso-rei foi ajustar as contas
antigas com o sultão de Mombas, e arrazou-lhe a cidade (1505, agosto
14.) Levava tambem ordens para construir fortalezas em Quilua, Kananor,
Anjediva, além da de Katchi, que seria augmentada e reparada, depois dos
damnos soffridos no anno anterior. Não iam então as ambições do governo,
no reino, mais além d'esse pedaço da costa oriental da Africa, com as
estações fronteiras na costa do Malabar. Entretanto no pensamento do
viso-rei, maduro pela observação local e pela prova de uma primeira
guerra maritima com que o impenitente rajah de Kalikodu o recebera,
formulava-se já todo o seu plano de dominio. Não duvidou expol-o a D.
Manuel na carta que lhe escreveu, e que é um dos documentos mais
importantes da historia portugueza no Oriente.

Toda a nossa força seja no mar, dizia; desistamos de nos apropriar da
terra. As tradições antigas de conquista, o imperio sobre reinos tão
distantes, não convém.[86] Destruamos estas gentes novas
(os arabes, afghans, ethiopes, turkomanos) e assentemos as velhas e
naturaes d'esta terra e costa: depois iremos mais longe. Com as nossas
esquadras teremos seguro o mar e protegidos os indigenas, em cujo nome
reinaremos de facto sobre a India; e se o que queremos são os productos
d'ella, o nosso imperio maritimo assegurará o monopolio portuguez,
contra o turco e o veneziano. Imponhamos pesados tributos, exageremos o
preço das licenças (_cartazes_) para as náus dos mouros navegarem nos
mares da India e isso as expulsará: as nossas armadas darão corso aos
contrabandos. Não é mal decerto que tenhamos algumas fortalezas ao longo
das costas, mas sómente para proteger as feitorias de um golpe de mão;
porque a verdadeira segurança d'ellas estará na amisade dos rajahs
indigenas, por nós collocados nos seus thronos, por nossas armadas
apoiados e defendidos. Substituamo-nos, pura e simplesmente, ao turco; e
abandonemos a idéa de conquistas, para não padecermos das molestias de
Alexandre. O que até agora se tem feito é uma anarchia e um esboço
apenas; um systema de matanças, de piratarias e desordens, a que é
mistér pôr cobro.--A primeira condição de um imperio seguro é um
pensamento definido, e tal era o do viso-rei.

As difficuldades appareciam-lhe tanto mais fortes, quanto «as guerras
passadas eram com bestas, agora as temos com venezianos e turcos do
Soldão». Com effeito, a antiga impunidade, de que os nossos gosavam á
sombra da artilheria, desapparecia, desde que o veneziano e o do Egypto,
vendo em perigo o seu poder no Oriente, tinham lançado ao mar Vermelho
uma esquadra poderosa, e tão bem artilhada como as nossas. A guerra
tomava um caracter novo; e os portuguezes já não se encontravam apenas a
braços com as armas brancas do indigena. Apparecera a polvora do lado
dos inimigos; e a esta grave e nova phase das cousas veiu juntar-se, no
animo do viso-rei, o resultado cruel da temeridade do filho, que em
Tchala (Chaul) morrera batido pela esquadra egypcia: a armada de
_Mirocem, capitão-mór do Soldão do Gram Cairo e de Babylonia_--como se
dizia no tempo.

Confirmando a doutrina com o exemplo, esporeado pelo desejo de vingar a
morte do filho,[87] e pela necessidade de destruir essa
armada que ameaçava matar á nascença o dominio portuguez na India.

    ... vem o pae com animo estupendo,
    Trazendo furia e magoa por antolhos.

Descendo pelo Mar Vermelho, a esquadra egypcia viera deitar ferro em
Diu, na costa do Gujerât (Guzarate), impondo ao indio a obrigação de ser
defendido. Entre _mouros_ e portuguezes, que uns a outros disputavam a
presa do commercio do Oriente, os rajahs, perseguidos pela protecção de
ambos, não sabiam as mais das vezes por quem se decidir, incertos do
lado para onde a victoria final penderia. Os vencedores foram sempre os
fieis alliados de todos os fracos. Tal era a situação do indio de Diu.
Não teve remedio senão acompanhar os rumes, e aprisionar os portuguezes
da esquadra batida de Lourenço d'Almeida, guardando-os como penhor, e
base de argumentos e desculpas para com o viso-rei--caso este vencesse
com a nova armada em que vinha.

Effectivamente D. Francisco d'Almeida subia ao longo da costa, deixando
apoz si o rasto de cinzas e sangue, que por toda a parte annunciava a
passagem dos portuguezes. As faulhas do incendio de Deval (Dabul) e os
lamentos da população dispersa chegavam até á ria onde fundeavam as
esquadras do egypcio e do de Diu, já engrossadas com as trezentas fustas
que o de Kalikodu enviára tambem, para vêr se conseguia exterminar por
uma vez os incommodos visitantes.

O egypcio, apesar de victorioso, temia o viso-rei; e fundeada a
esquadra, dispozera que picassem as amarras os navios assim que fossem
abalroados, dando á costa, e arrastando comsigo os portuguezes, sobre os
quaes as lanchas e fustas dos indios cairiam então desapiedadamente. Mas
o viso-rei, percebendo o ardil, mandou preparar as ancoras á pôpa, e os
navios inimigos foram sosinhos varar na praia. Era 3 de fevereiro (1509)
festa de S. Braz, pelo meio dia. A viração do mar soprava fresca pela
pôpa dos navios portuguezes, quando a _capitaina_ desfraldou o guião
azul á prôa e, toda empavezada, no meio dos gritos de «Senhor Deus;
misericordia! Santiago!» ao som das charangas de trombetas, soltou a
primeira banda de artilheria. Um clamor immenso de vozes, de trompas, de
tiros lhe respondeu, e a batalha generalisou-se com artilheria e arma
branca, á abordagem. A confusão de gentes que alli combatiam era
inextricavel; e os pavilhões da Cruz e do Crescente, erguidos nos
mastros dos navios, abrigavam os sentimentos mais extravagantes, as
crenças mais disparatadas. É que não se combatia, nem pela fé, nem pela
patria: disputava-se com furor o saque da India; e a cubiça torna irmãos
os homens de todas as fés, os filhos de todas as raças. Havia allemães e
francezes por bombardeiros a bordo das náus portuguezas; havia indios,
brahmanes e até _mouros_. Havia, do lado opposto, na confusão dos
navios, desde o nubio até ao arabe, desde o ethiope até ao afghan; havia
musulmanos de toda a casta, persas, e _rumes_ do Egypto--mercenarios de
todas as partes, a que se dava este nome generico; havia ao lado da
multidão dos infieis, o veneziano, renegado ou catholico, mas sobretudo
mercador, que por ordem da sua republica vinha como artilheiro defender,
no mar da India, os interesses solidarios dos seus socios no commercio
oriental. Em volta da população confusa da esquadra dos _rumes_,
apinhava-se em seus juncos a massa obscura dos indios, de Diu no
Gujerât, de Kalikodu no Kanará.

Os navios portuguezes eram poucos, mas solidos, e ainda bem construidos
e artilhados; as suas guarnições não excediam mil homens. Eram náus
principalmente; mas tambem galés, _bastardas_ e _subtis_, e _fustas_--os
_avisos_ d'essas antigas esquadras. As náus vomitavam fogo das amuradas.
Nos castellos de pôpa e prôa fusilava a artilharia menor, baptisada com
os nomes da monteria feodal, _aguias_, _sacres_ e _falcões_, _leões_ e
_serpes_, _pedreiras_ que arrojavam balas de granito, _berços_,
_camellos_, _colubrinas_ e _esperas_. Nos bailéos, de pôpa á prôa, os
mosqueteiros despediam continuas surriadas de balas; e as xaretas de
corda, presas nas amuradas, defendiam as náus das abordagens dos juncos
e galeotas dos indios. A bordo das galés, o capitão sobre o
chapiteu--Jesus! S. Thomé! Ave-Maria!--excitava os soldados que, de
espada e rodella, se juntavam á prôa para a abordagem dos navios
inimigos, ou da pôpa, a tiros, caçavam mouros. As enxarcias appareciam
crivadas de settas. Da prôa tambem, o castello das galés vomitava fogo;
e o ligeiro navio, caíndo perpendicularmente sobre o contrario,
rasgava-lhe o ventre com o esporão, despedaçava-lhe os remos, crivava-o
de balas. Sentados os forçados, nús e negros, acorrentados aos bancos,
remavam agil e poderosamente; obedecendo aos gritos do comitre que, de
espada em punho, corria na coxia, entre as platéas dos bancos,
distribuindo cutiladas. Sob a coberta, junto ao paiol defendido por
colchas e cobertores escorrendo agua, o capitão-do-fogo distribuia a
polvora, tirando-a ás gamellas dos caldeirões. E os bombardeiros, com os
murrões e bota-fogos a bom resguardo, obedeciam á ordem de atirar. Os
bailéus, d'onde a taifa dos soldados se lançava ás abordagens, defendiam
com a mosqueteria os remeiros; e as velas estavam carregadas nos
mastros, por causa dos incendios. O fogo punha um elemento novo n'este
antigo modo de batalhar no mar.[88] No meio do enxame das galés e
caravelas,[89] correndo á caça dos paráos fugitivos, os navios de vela,
de typos novos, náus e galeões, urcas e carracas, eram como fortalezas
fluctuantes, vomitando lume, estrondos, fumo, naufragios e morte.

Tingiram-se mais uma vez de vermelho as aguas do mar das Indias;
morreram innumeros; boiavam feridos, pedindo misericordia e recebendo
tiros: e por fim, depois de todos os episodios e scenas proprias d'estas
tragedias, a victoria foi pelo vice-rei que destruiu rumes e indios.
Esta batalha naval tinha uma importancia superior ainda á das victorias
de Duarte Pacheco em Katchi: porque os indios, meditando e observando,
reconheciam que a phalange portugueza não era só invencivel para elles:
era-o tambem para os rumes do Egypto, e para a artilharia de Veneza...

O de Diu, que estivera sempre indeciso, ao vêr o resultado da batalha,
veiu pressuroso, desculpar-se, entregar logo os prisioneiros da empreza
anterior. Guardára-os para os salvar das garras ferozes dos rumes, a
quem desejava todo o mal, sem lhes ter podido resistir. Mandava-os
carregados de presentes e parabens, por tão grande victoria, que o
libertava da odiosa tyrannia dos rumes.

No chapiteu da sua náu, o almirante e vice-rei contemplava a scena de
carnagem, agora muda, e os destroços que boiavam com os cadaveres no mar
tinto em sangue; e estava glorioso e contente no meio dos seus, que
contavam com verbosidade os episodios, o que tinham feito, como se
tinham saído, cada qual de seu lance... quando chegaram á borda, n'uma
almadia, os prisioneiros forros, gritando alegres, a pedir que os
recebessem. O vice-rei lembrou-se então que lhe faltava o filho, e «se
foi assentar na tolda com um lenço na mão, que não podia estancar as
lagrimas que lhe corriam!» Acudiram todos a consolal-o; e elle,
tomando-lhe os animos, ergueu-se, e disse-lhes enxugando os olhos, e
tratando-os por filhos, que isso já passára e traspassára a sua alma,
que se alegrassem todos agora com a boa vingança que Nosso Senhor por
sua misericordia lhes dava!

E regressando, conformado com a sua sorte, ao passar em frente de
Kananor, salvou á terra para celebrar a victoria; mas, para acabar de
vingar a morte do filho, mandou amarrar prisioneiros ás boccas das
bombardas, e as cabeças e membros despedaçados dos infelizes iam cair na
cidade como pelouros... A morte do filho transtornára o seu lucido
espirito, mudando as suas opiniões antigas de estadista n'um furor
carniceiro, attestado pela devastação da costa do Gujerât. Cedêra tambem
ás intrigas e maledicencias dos capitães que tinham vindo de Hormuz,
fugindo ao mando terrivel de Albuquerque, atemorisados pela loucura das
suas emprezas tytanicas. Bulhavam, o governador que acabava o praso do
governo, e Albuquerque já nomeado de Lisboa para lhe succeder; e á côrte
haviam chegado noticias perfidas de excessos commettidos pelo sabio
vice-rei. Em paga dos seus trabalhos esperava-o a masmorra de Duarte
Pacheco; porém, na viagem para o reino, deu á costa da Cafraria, o foi
morto pelos negros ás pedradas e zagunchadas.

                      *      *      *      *      *

O seu plano de governo, por ser sabio, era chimerico, pois que a India
era uma loucura. Só homens de genio, como Albuquerque, poderiam tornar
grande uma empreza condemnada; só, como Castro, um santo podia resalvar
o brio portuguez da nodoa de uma ignominia formal.

Para que o nosso dominio fosse maritimo e mercantil apenas, era
necessario que essas tradições estivessem na alma portugueza, como
tinham estado, n'outras edades, na alma de Carthago, e como agora
estavam na de Veneza. Em Portugal, o espirito patrio fôra formado pela
religião e pela cavallaria; e exigir dos soldados d'Africa que não
desembarcassem dos navios, convencel-os de que o verdadeiro modo de
conquistar fosse prescindir do governo, era querer uma cousa impossivel.
Alargar, ao contrario, os dominios portuguezes, avassallar territorios,
fazer conquistas, e crear um imperio á antiga, como o de Alexandre e o
dos romanos, era o pensamento commum--naturalmente deduzido dos
antecedentes militares da nação, e agora fomentado de um modo especial
pela cultura classica, enlevo de todos os bons espiritos da Europa. A
idéa de que Portugal era uma Roma preoccupava os reis e os escriptores,
que se fatigavam a procurar origens e a indicar analogias, de certo
verdadeiras. Albuquerque fez vivo em si um tal pensamento, e viu-se o
Scipião d'essa Roma[90], ou antes o Alexandre da nova Grecia.

Além dos motivos intimos que tornavam inacceitavel a politica commercial
e maritima do primeiro vice-rei da India, havia motivos mais praticos.
Uma das suas justas exigencias era a da prohibição do commercio aos
soldados, magistrados e capitães do Oriente. Com effeito, o dominio, tal
como elle o concebia, não era um saque: era uma protecção armada a um
commercio, franco por um lado, monopolio do Estado, ou apanagio da
corôa, pelo outro. Os capitães e governadores seriam simultaneamente
agentes commerciaes de S. A., excelso mercador da Pimenta. Isto exigia
uma fleugma de que só os hollandezes foram capazes, e ainda assim á
custa de salarios que supprimem as tentações.

Desde que o rei era o primeiro negociante, porque não seria o vice-rei o
segundo, os capitães das fortalezas e das armadas os terceiros, os
soldados os derradeiros? Só isto era, evidentemente, logico; e, apesar
de todas as confusões, quem bem observa, descobre sempre que a historia
obedece á logica. Ninguem distinguia bem, na era de 500, entre a pessoa
individual do rei e a pessoa abstracta ou symbolica do monarcha. Não se
separavam Rei e Estado; e só com esta perspicacia moderna poderia
convencer-se o rude soldado da India de que o commercio, bom para o rei,
era mau para elle; de que uma virtude podia ser um vicio, por mudarem as
condições. Além d'isto, os portuguezes lançavam-se, famintos, ao
banquete do Oriente, como seculos antes os povos do norte, ao banquete
da Gallia, da India, da Hespanha[91]. Ninguem seria capaz
de lhes arrancar dos dentes essas carnes palpitantes, que devoravam com
ancia; e eram inevitaveis as consequencias funestas, que D. Francisco
d'Almeida previa sabiamente.

Fleugmatico e pontual no cumprimento dos seus deveres duplos de capitão
e caixeiro, o vice-rei, ao mesmo tempo que expunha para Lisboa os seus
planos de governo, mandava os seus relatorios commerciaes, como um
correspondente ao seu patrão de Genova ou de Veneza. O vice-rei estudára
como geographo o Oriente; e para fundamentar o seu plano de imperio
maritimo dizia, com Barros, que a India «tem entradas e saídas de que
seu commercio vive, e que são como o corpo animado, que, se lhe tiram a
entrada e saída das cousas que o sustentam, não tem mais vida.» O
principal estado consiste na navegação, escrevia o vice-rei; só com ella
se governará no mar Vermelho e no golpho persico, essas duas correntes
da exportação da India; só com ella na peninsula de Malaka, que é a
transição da India para o extremo Oriente; só com ella manteremos o
privilegio da passagem do cabo da Boa-Esperança, caminho que descobrimos
para a Europa. Albuquerque em Hormuz, em Goa, em Malaka, assentou na
terra firme os limites do imperio que para o seu antecessor devia vogar
fluctuante sobre as ondas.

Estadista e geographo, D. Francisco d'Almeida era ao mesmo tempo um
mercador cuidadoso e até habil. Dava ao rei minuciosas informações dos
generos, preços e pezos. «E o lacre que V. A. diz lhe mande, será
maravilha haver-se, porque estas náus (portadoras de cartas) partem
cedo, e as náus que o trazem do Pegú e Martamão (Martaban) veem tarde.
Espero por uma boa somma d'elle, porque o tenho mandado trazer... E assi
V. A. me manda que a pimenta vá limpa e secca, e que o pezo se faça com
nossas balanças e pezos... e dá-se tal aviamento que, com duas balanças,
té vespora pesaram mil quintaes. Se os navios não chegassem tão
avariados, em vinte dias carregariam e partiriam. O baar de Cochim
(Katchi) tem tres quintaes e trinta arrateis de pezo velho, e custa o
quintal mil e quinhentos réis e meio.--Mandei noticiar com pregões que
todos trouxessem pimenta, e que logo se lhes pagaria á vista: é o meio
de bater os mouros, que são regatões e compram fiado. Acodem os gentios
com pimenta, e levam o cobre muito alegres.--Quanto á pimenta e drogas
que vão ao Levante, são de Malaca, Sumatra e Diu, onde nasce muita
pimenta longa e redonda, e muito bem sei por onde passa e em que tempo:
falta-me o principal.--O aljofar e perolas que me manda que lhe envie
não os posso haver, que os ha em Ceylão e Carle (?); os sinabafos,
porcellanas e mais cousas de jaez são de mais longe. As escravas que
quer, tomam-se depressa: que as gentias d'esta terra são pretas e
mancebas do mundo, como chegam a dez annos.--Tem cobre aqui para cinco
annos, vermelhão sem numero, chumbo e azougue, pannos de lan a
apodrecer, escarlatas, espelhos, oculos, chapéus, e sellas ginetas, que
é mui certa mercadoria para cá.» E continúa assim, misturando toda a
especie de mercadoria, desde as escravas mancebas do mundo, até ás
perolas e aljofar.--Porque não manda S. A. papel? Seria um excellente
negocio.»

Eis ahi o motivo intimo, o principio fundamental, o cuidado superior do
rei e dos seus governadores na India.[92] D. Manuel perdoava tudo, os
crimes e os roubos, as carnificinas e as brutalidades, os incendios e as
piratarias, com tanto que lhe mandassem o que elle sobretudo
ambicionava: curiosidades, primores e riquezas para encher os seus paços
de Lisboa, e deslumbrar o papa em Roma com a sua magnifica embaixada.
«Manda pimenta e deita-te a dormir», dizia mais tarde, da côrte para a
India, Tristão da Cunha, ao filho Nuno, governador. O saque do
Oriente--este é o nome que melhor convém ao nosso dominio--ia ordenado
de Lisboa.

    [82] V. _Quadro das instit. primit._, pp. 264-7.

    [83] «Então mandou aos bateis que fossem roubar os pageres (barcos)
         que eram dezeseis e as duas náos, em que todos acharam arroz e
         muitas jarras de manteiga e muitos fardos de roupa. Então tudo
         isto recolheram aos navios e a gente toda das náos grandes, e
         mandou que recolhessem o arroz que quizessem, que tomaram quatro
         pageres, que vasaram, que não quizeram mais. Então o Capitão-mór
         mandou a toda a gente cortar as mãos e orelhas e narizes e tudo
         isto metter em um pager, em o qual mandou metter o frade tambem
         sem orelhas, nem narizes, nem mãos, que lhas mandou atar ao
         pescoço com uma ola (folha, carta) para el-rey em que lhe dizia
         que mandasse fazer caril para comer do que lhe levava o
         seu _frade_.

         E a todos os negros, assim justiçados, mandou atar os pés,
         porque não tinham mãos para se desatarem, e porque se não
         desatassem com os dentes com páos lhes mandou dar n'elles
         que nas bocas lh'os metteram por dentro, e foram assim
         carregados uns sobre os outros embrulhados no sangue que d'elles
         corria e mandou sobre elles deitar esteiras e ola secca e lhe
         mandou dar as vélas para terra com o fogo posto, que eram mais
         de 800 mouros, e o pager do _frade_ com todas as mãos e orelhas
         tambem á véla para terra sem fogo, com que foram logo ter a
         terra, onde acudiu muita gente a apagar o fogo e tirar os que
         acharam vivos com que fizeram seus grandes prantos.»
         Gaspar Correia, _Lendas_, I, p. 302.

    [84] «... em que no mar tomaram náos de Cambaya e Calecut que iam
         para Meka, a que roubaram o melhor que acharam de que se
         carregaram os navios e caravellas quanto poderam e mormente
         roupas de muito preço e muitos mantimentos e mouros para dar
         ás bombas, e não se occuparam em carregar os navios de pimenta
         e drogas que levavam as náos de Calecut que a todas, umas e
         outras, poseram fogo e queimaram com toda a gente sem a nenhum
         darem vida, mas Vicente Sodré mandou que os Mouros que tinham
         tomado para a bomba todos os tornaram com os outros e todos
         forão mortos.» Gaspar Correia, _Lendas_, I, pp. 365-6.

    [85] V. _Hist. da republica romana_, I, pp. 215-80.

    [86] V. _Hist. da republica romana_, I, pp. 211 e segg.

    [87] «O Viso rey estava assentado em uma janella que vinha sobre
         a praya com o Capitão e com outros fidalgos, e vendo o geito
         da caravella e o capitão d'ella d'arte que desembarcava, se
         tirou da janella e se assentou dentro em uma cadeira e poz
         o braço na cadeira e sobre a mão encostou a face direita e disse:

         --Esta caravella me traz a nova que eu tenho no coração; pois
         que as náos de Cochim vieram sem meu filho, é que elle é morto.

         Ao que o Camacho entrou com grande tristeza no rosto, o qual
         antes que fallasse, o Viso rey lhe fallou dizendo:

         --Camacho, ainda que meu filho seja morto, porque não salvaste
         esta fortaleza: pois não é do pae do morto? Que meu filho não
         era mais que um só homem... Nem me fica outro.

         O Camacho não lhe respondeu, mas poz os joelhos no chão e com
         muitas lagrimas disse:

         --Senhor, Nossa Senhora perdeu a seu bento filho posto na Cruz
         entre dois ladrões, e vós perdestes o vosso filho pelejando com
         os turcos do Soldão.

         O Viso rey com o rosto muy seguro lhe disse:

         --Ora vos ide a descançar e mandae á caravella que faça sua
         costumada salva e eu mandarei na Egreja fazer signal pelo
         defunto e acodirá gente e lhe dirão paternosters pela alma,
         porque quem o frangão comeu hade comer o galo ou pagal-o.

         Com o que se recolheu para uma ante-camara, onde assentado, o
         Capitão e fidalgos moveram pratica de sustancias consolatorias
         para abrandar tamanha dor como sentiam que o pae devia ter com
         a morte de tal filho. Ao que o Viso rey lhes foi á mão, dizendo:

         --Eu não me posso escusar da dor que a carne me dá, como pae,
         de força da natureza, mas espero em Nosso Senhor que me ajudará
         por sua misericordia, e com a ajuda de meus amigos ma dará
         alegria n'esta dor que ora tenho, em que acabando a vida será
         para mim o mór descanço. Vão-se Vossas Mercês embora, que as
         palavras de conforto são das mulheres para suas amigas, quando
         pranteam seus filhos mortos em acontecimentos como ora foi
         d'este meu.

         E lhes fazendo sua cortesia se recolheu á sua camara.»
         Gaspar Correia, _Lendas_, I, 775.

    [88] V. quadros das batalhas navaes dos antigos, _Hist. da republ.
         romana_, I, pp. 193-8.

    [89] «Não tém cestos de gavea (as caravelas) nem as vergas fazem
         angulos rectos com os mastros, mas pendem obliquas d'uma alça
         que é triangular, roça quasi pelas amuradas. As vergas que se
         amuram aos costados do navio são pela parte de baixo grossas
         como mastareus, e adelgaçam até ao cimo da vela. De vasos
         d'esta feição se servem na guerra maritima os portuguezes,
         pelo muito ligeiros que elles são, sendo-lhes mui maneiro
         apontar á prôa ou á pôpa o conto d'estas vergas, e ainda a
         meio costado do navio passalas da direita para a esquerda
         segundo lhes faz feição, ferrar o panno ou disferillo das
         vergas, a que o atam pelo cepo da entenna, com quem as velas
         abrem a base do angulo: e qual lhes sopra o vento, tal lhe
         apresentam o bojo da vela não tardios. Todo o vento lhe fas
         geito, de modo que com vento de ilharga bolinam em direitura,
         como se foram arrazadas em pôpa, e para ir o mesmo navio em
         senso contrario não tem mais que mudar o velame, o que muy
         prestes se prefaz.» Osorio, _Vida e feitos d'el-rey D. Manuel_
         (tr. F. M. do Nascimento) I, p. 193.

    [90] V. _Hist. da republ. romana_, I, pp. 292 e segg.

    [91] V. _As raças humanas_, I, pag. 358 e segg. e _Hist. da
         civilisação iberica_ (3.ª ed.), pag. 34 e segg.

    [92] _V. Regime das riquezas_, p. 90 e segg.

                      *      *      *      *      *




II

Affonso de Albuquerque


«As cousas da India fazem grandes fumos!» costumava dizer o novo
governador. Mas que _fumos_ eram esses? Eram a vaidade e os erros de
tantos pigmeus que o gigante via formigar activamente, encelleirar, e,
depois de gordos e ricos, pavonearem-se na côrte, allegando serviços,
com a basofia de quem tudo sabia das cousas do Oriente. Fumos, com
effeito, eram todos esses para o governador, que aprendera nas suas
primeiras viagens, e agora levava já bem definido o seu plano. Levava
sem o saber os seus _fumos_ tambem: porque em fumo se havia de tornar o
imperio ephemero que construia na mente...

Quando em 1506 partira de Lisboa, o rei tinha-o mandado como subalterno,
na armada de Tristão da Cunha; mas o genio do guerreiro não se reprimia
com isso, nem estava decidido a esperar que o tempo lhe desse o mando
absoluto, para pôr em pratica o seu plano gigantesco. Elle sabia demais
que, no cháos da India, cada qual trabalhava por sua conta e risco; e
que, n'esse vasto campo de batalha, as manobras não obedeciam ao mando
de um general; iam ao acaso, segundo a audacia e o genio dos capitães.
De Lisboa a Zamgebar uma armada era um exercito; no mar da India o
exercito fraccionava-se em batalhões independentes, e cada capitão era
senhor de proseguir, conforme o seu plano, na vasta empreza de saquear o
Oriente. O plano de Albuquerque não era o de um saque, era o de um imperio.

A esquadra de Tristão da Cunha foi de caminho, como introducção,
arrasando, queimando e saqueando Juba (Oja) e Barava (Brava),[93]
na costa, acima de Zamgebar, dirigindo-se a Sokotra--essa
ilha que, junto á ponta extrema da Africa, pelo norte, o cabo de
Jar-Hafun (Guardafui), era a vedeta sobre a entrada do mar Vermelho, e a
estação onde os navios de corso ás náus de Meka se deviam abastecer e
refrescar. Os arabes defenderam a sua ilha em vão; e Cunha matou-os
todos, sem ficar um só, e construiu a fortaleza, deixando-a guarnecida.
Feito isto, dirigiu-se á India, destacando Albuquerque (impaciente quasi
até á rebeldia, durante a delonga da construcção do forte) com seis
navios e quinhentos homens, para a caça das náus, no Estreito.

Afinal, o capitão commandava! Afinal dispunha de uma phalange sua! e
resolveu não perder um só dia. Logo que as velas de Tristão da Cunha
desappareceram, na sua viagem para a India, Albuquerque largou de
Sokotra para a costa da Arabia, ao longo da qual foi subindo
vagarosamente, assolando tudo. Formára o plano de começar por Hormuz as
suas conquistas, marcando primeiro o limite por norte e occidente, para
mais tarde ir ao oriente, pôr em Malaka o extremo do seu imperio.
Hormuz, Sofala e Malaka são tres quinas de um triangulo, cuja base mede
70 graus em longitude, cuja altura, até ao vertice de Hormuz, conta 50
em latitude.

Foi a 10 de agosto do anno de 507 que Affonso de Albuquerque largou de
Sokotra, em direcção do golpho Persico. A sua esquadrilha compunha-se de
seis navios apenas, e não contava mais de quinhentos homens; mas a
poderosa unidade que o mando do atrevido capitão imprimia, a confiança
que todos tinham no seu genio e na sua sabedoria, e tambem nos mosquetes
e artilharia das náus, tornavam poderosa como um ariête esta pequena
divisão. Para nos servirmos da expressão de Francisco d'Almeida,
tratava-se apenas de combater _com bestas_; e não havia ainda que temer
em Hormuz a artilharia dos rumes, nem os bombardeiros venezianos. A
novidade de um engenho de guerra e a audacia de um guerreiro á antiga,
iam levar a cabo uma empreza, de facto espantosa, como as de Alexandre
ou de Cyro.

Seguindo os exemplos d'esses famosos, cuja sombra Albuquerque tinha na
mente, punha em pratica os antigos meios orientaes. Avançava no meio de
um côro de afflições e mortes, precedido por uma columna de incendios,
para que, ao chegar, a vanguarda do terror precipitasse os animos na
abjecção. Assim ia ao longo da costa da Arabia assolando e devastando
todos os logares vassallos do suzerano de Hormuz. Primeiro arrazou
Kalhât (Calayate) «que é feito de casas de pedra, terradas e muitas
cobertas de palha, casas espalhadas e mal armadas e fóra do logar á mão
direita um palmar de palmeiras de tamaras, onde estavam uns poços de
agua de que bebiam. O logar assenta ao longo d'agua, e por detrás ha
grandes serranias de pedra viva, e no mar alguns zambucos e náus que vem
aqui carregar cavallos e tamaras e peixe salgado.» (G. C., _Lendas_).

Em Karayât (Curiate), que lhe resistiu, cortou as orelhas e o nariz a
todos os prisioneiros, soltando-os para irem, lavados em sangue e
mutilados, annunciar por toda a parte a fama do seu poder. Em
Khor-Fakhan (Orfacate) reduziu tudo a cinzas; e como em Karayât, mutilou
todos os prisioneiros. Entre elles, porém, estava um velho letrado
persa, de longas barbas brancas, que vivia de admirar Alexandre, cujo
livro possuia. O velho applaudia o portuguez, commentando o livro com as
façanhas do novo heroe; e applaudia-se a si por ter ainda em vida
assistido á resurreição do filho de Olympias. Acclamava o portuguez, ou
o grego, confundindo a realidade com a historia; e de joelhos,
adorando-o, deu o seu livro a Albuquerque. O novo Alexandre perdoou-lhe.

Em Makât (Mascate), já na entrada do golpho, e quasi fronteiro a Hormuz,
tinham vindo acudir a curar-se, chorando, os fugitivos de Karayât e
Khor-Fakhan, atroando os ares com a fama do poder terrivel d'esse heroe
que se approximava. Tremiam todos de susto; mas quando a esquadrilha
appareceu diante da poderosa cidade, ainda houve quem pensasse em
resistir, por vêr que os navios eram tão poucos. Ignoravam, porém, que
cada um d'elles, com os seus canhões escondidos por detraz das amuradas,
era um vulcão prompto a rebentar em lava, um inimigo perfido cuja força
latente não podia medir-se. Maskât foi bombardeada. A mesquita onde os
infelizes se tinham refugiado caíu a machado, e os captivos, mutilados,
foram fugindo, chorando, reunir-se á gente da cidade escondida nas
serras. Havia cadaveres em todas as ruas e o fogo posto começava a
crepitar lavrando nos armazens cheios de azeite e de melaço. As
labaredas subiam, zumbia ao longe o clamor dos desgraçados, e á maneira
que o terribil heroe se alongava na praia com os seus para regressar aos
navios, os _mouros_ vinham anciosos e cheios de medo vêr se podiam ainda
salvar algumas migalhas da sua cidade, pasto das chammas vivas. Era em
vão. Como uma tromba devastadora, Albuquerque proseguiu deixando um
rasto de sangue e cinzas. Hormuz estava proximo, e cumpria que a onda do
terror, que fôra crescendo, estoirasse agora de um modo pavoroso.

Hormuz era então a joia mais preciosa da corôa da Persia. Chamavam-lhe
_a pedra do annel_ das Indias. Era a Londres oriental, onde todos os
productos do Oriente vinham desembarcar; d'onde saíam nas longas
caravanas que se dirigiam a Bagdad e ao Cairo, para a Tartaria e o
Turquestan, por toda a Asia do norte. Os armadores levavam por mar a
Hormuz a pimenta, o cravo das Molucas, o gengibre, o cardamomo, os paus
de sandalo e brazil, os tamarinhos, o açafrão, a cera, o ferro, as
cargas do arroz de Dekkan, os côcos, as pedrarias, as porcellanas, o
benjoim, os pannos de Kambai, de Chala, de Deval, e os cinabasos de
Bengala. Ahi vinham, de Aden, no estreito de Bab-el-Mandeb, o cobre, o
azougue, os brocados, os chamalotes, e tudo quanto Veneza mandava da
Europa, pelo caminho de Alexandria, a Suês, via do mar Vermelho. Toda a
Persia se abastecia em Hormuz dos generos de fóra; por Hormuz toda ella
mandava importar os productos indigenas. Os navios carregavam ahi a seda
e o almiscar, rhuibarbo de Babylonia, e as récuas de cavallos da Arabia,
tão queridos no Dekkan, em Kambai e nos Estados da contra-costa de
Cholomandalam (Coromandel) até Bengala, na foz do Ganges. Contra o arroz
e os pannos que levavam, os commerciantes traziam de Hormuz as tamaras,
o sal das suas collinas coloridas, as passas, o enxofre e o aljofar
grosso, muito procurado em Narsinga.

A cidade era em si pequena, mas um brinco. Era uma terra de luxo e
prazer, uma côrte de mercadores. As casas, recheiadas de cousas
preciosas, eram thesoiros ou museus, com paredes forradas de marmores,
columnatas, eirados, pateos ajardinados e fontes preciosas. A vida
custava ahi carissimo, porque o luxo absorvia todos os recursos
naturaes. A terra, uma salina, era esteril de si: tudo vinha da Persia,
da Arabia, da India: mas os mercadores tinham defronte, além, na costa
firme, as quintas e hortas, onde iam com frequencia. Ahi o platano
magestoso do Oriente, o álamo esguio e esbelto, o negro cypreste
meditativo, destacavam-se no meio das hortas viçosas, das quintas e
jardins de rosas, povoados de rouxinoes, abrigando nas encostas á sua
sombra as vinhas ferteis. Os pomares regados estavam coalhados de
laranjeiras, de fructos de ouro e flôres de neve perfumada; de
macieiras, pecegos, albaquorques; de figueiras de fórmas extravagantes e
amplas folhas; de granadas, com os fructos rebentados a sorrir nos seus
grãos côr de rubi. No chão serpeavam as redes de hastes dos meloaes,
louros e perfumados; e das latadas e parreiras caíam com peso os cachos
de uvas preciosas de todas as côres. Por entre os bastos pomares e do
seio dos jardins de rosas, levantava-se orgulhosa e nobre a palmeira,
com o seu turbante de folhas agudas, carregada de tamaras.

Nas ruas da formosa cidade, em frente dos bazares, sob os toldos que a
defendiam da luz e do calor do sol, formigava uma população de varias
raças, de côres diversas, occupada em comprar, em vender; mais occupada
ainda em gozar a vida no seio de uma devassidão torpe. O calor e os
perfumes inebriavam os sentidos, e acordavam todos os instinctos
sensuaes. Vinham ali vender neve, de trinta leguas do interior da
Persia. Amar era o primeiro de todos os commercios de Hormuz; e o persa,
alto, elegante e formoso, entregava-se a todos os desvairamentos da
pederastia. Por isso as mulheres valiam pouco, eram até aborrecidas em
Hormuz. Os pobres escravos, moços e mutilados, enchiam os harens dos
ricos, e os bordeis para o commum dos mercadores. Era uma devassidão
abjecta, e um luxo desenfreado. Os personagens, nos seus passeios, iam
sempre seguidos por pagens, com toalhas e jarras de prata e bacias com
agua. Havia musicas e festas por toda a parte e as bandas e orchestras
andavam constantemente nas ruas onde os mercadores expunham á venda o
aljofar em colchas purpurinas. Os trajos eram dos mais preciosos
estofos, e sobre as camisas brancas de algodão finissimo vestiam-se
tunicas de chamalote ou gran, cingidas por almejares com grandes adagas
ornadas de ouro e prata e pedras preciosas. Os broqueis eram redondos,
forrados de seda; os arcos acharoados, ou de corno de bufalo com cordas
de seda. Usavam, além do arco e da frecha, do escudo e da adaga,
machadinhas e maças de ferro, todas preciosamente lavradas e tauxiadas
de ouro e prata. Os mouros diziam que o mundo era um annel e a pedra
Hormuz. Só a alfandega rendia meio milhão de xerafins.[94]

As noticias de Maskât, os mutilados de Karayat e Khor-Fakhan encheram de
terror essa população embriagada na orgia de uma vida de delicias. No
porto havia, com effeito, uma poderosa armada que escondia as aguas:
eram centenas de náus e galeões, uma infinidade de terradas. Tinham-se
arrestado os navios dos mercadores e do seio da frota estava a náu de
Cambaya, a _Meri_, de mil toneis, com gente basta e numerosa artilharia.
Havia o melhor de duzentos galeões de remo com arrombadas de saccas de
algodão tão altas que escondiam os remeiros. O persa que vestia os
laudeis, em vez de corpos de aço, couraçava tambem de algodão os navios.
As terradas alastravam o mar, carregadas de gente armada, com
estandartes garridos «que era cousa fermosa para ver». Na terra, ao
longo da praia, havia de quinze a vinte mil homens formados com as suas
musicas de trombetas e anafis. «As gaitas do mar e terra eram tantas que
parecia que se fundia o mundo!» Mas os fugitivos abanavam a cabeça
desesperados, contando como os seis, seis navios apenas portuguezes!
traziam no ventre uns monstros de fogo destruidores! E o soldão persa,
afflicto, não sabia de que modo receber a visita de Albuquerque e dos
seus navios, que já estavam, terriveis mas quietos como um volcão em
paz, fundeados no meio do porto, entre os galeões de Hormuz. Albuquerque
exigia-lhe que abandonasse o persa, e se declarasse vassallo do
portuguez; e o infeliz estava decidido a abandonar tudo, para que
deixassem em paz--quando o capitão, enfadado com as delongas e
subtilezas, rompeu inopinadamente o fogo. Começou a varejar em torno o
estendal de barcos, reduzindo-os a uma massa de destroços, de naufragios
e cadaveres que era horroroso de vêr. Estava como um lobo no meio de um
rebanho de ovelhas. Não era uma batalha, era uma carnagem. Os fugidos
nadavam n'um mar rubro de sangue, perseguidos pelas almadias em que os
soldados matavam n'elles ás lançadas e cutiladas. Da amurada das náus os
grumetes e pagens rasgavam-lhes o ventre com os croques, pondo pastas de
visceras fluctuantes no mar de sangue. Houve grumete que matou assim
oitenta _mouros_. E emquanto a armada de Hormuz e as tropas do sultão
eram chacinadas, desmanchava-se o lançol de barcos como uma teia cujas
malhas se soltam. Havia correrias sobre as ondas, e de espaço a espaço o
mar sorvia uma atalaia com a gente e as armas. Outras, já ardendo, iam
fugindo em chammas, como trombas de fogo correndo, vogando á mercê do
vento «que era um grande espectaculo para vêr». Ainda oito dias depois
do sanguinario caso havia cadaveres boiando no mar, e os portuguezes em
lanchas occupavam-se n'essa particular especie de pesca. A colheita era
abundante, os cadaveres aos centos, os trajos ricos, e muitos os anneis
e alfinetes, as adagas e punhaes tauxiados de ouro e prata com joias
engastadas. Denudados, vinham a bordo as familias reconhecer os
cadaveres e leval-os piedosamente, em lagrimas, aos seus sepulcros. A
façanha fôra tão grande, que parecia milagre: pois não se viam nos
corpos mortos as chagas das frechas, não havendo similhante arma entre
os nossos? Milagre! diziam os soldados e os capitães, perante esse caso
tristemente revelador da confusão do combate com o novo Alexandre da India.

O pobre sultão de Hormuz, afflicto, immediatamente accedeu a tudo:
consentiu que Albuquerque levantasse uma fortaleza e pagou-lhe vinte mil
xerafins de tributo. E d'este concerto se fizeram duas cartas, uma em
folha de ouro, a modo de livro, escripta em arabico com letras abertas a
buril e suas brochas de ouro com tres sellos de ouro dependurados por
cadeias; a outra em parsi, que era a linguagem commum da terra, e em
papel com letras de ouro. E ambas estas cartas mandou Affonso
d'Albuquerque a el-rei D. Manuel.

                      *      *      *      *      *

Hormuz escapara, rendendo-se, aos horrores de um saque: mas isto mesmo
desesperava os capitães e soldados da esquadrilha, que murmuravam,
cubiçosos de tamanha riqueza desenrolada diante de seus olhos. Não
comprehendia para que se haviam de demorar alli, a construir uma
fortaleza; quando, a não saquearem a cidade, mais valia partirem para o
rendoso corso das náos de Meka, na bocca do Estreito. A intriga
insinuava-se, dizendo que o capitão-mór queria construir a fortaleza
para si, e fazer-se rei de Hormuz, levantando-se contra o de Portugal:
na India não havia ainda mais tradição do que a do saque maritimo, e o
pensamento imperial de Albuquerque chegava a não ser comprehendido. Nem
em tres annos, diziam, voltariam á India, perdendo occasião de carregar
as quintaladas que tinham de ordenado. A cubiça de mãos dadas com a
violencia e a cegueira agitavam perigosamente as guarnições.
Albuquerque, impassivel, proseguia. De uma vez que lhe levaram um
requerimento quando vigiava pessoalmente a obra da fortaleza, tomou-o
assim dobrado como lh'o deram, e sem o ler metteu-o debaixo de uma pedra
do portal da torre que se estava erguendo. O baluarte ficava cimentado
com as queixas. Mas as lages não pesavam bastante para as abafar, e
recrudesceram. Além do mais, os queixosos reclamavam a metade dos 20:000
xerafins pagos pelo de Hormuz, que, esperançado n'estas desordens,
confiado em promessas de sedição, e nos auxilios que o persa lhe
enviava, ousou romper as hostilidades. Viera com effeito o cheik Yar
(Xaquear) trazendo comsigo quatro mil arabes. Albuquerque estava n'um
serio perigo, e outro qualquer perder-se-hia. Os capitães recusavam ir
ao combate; mas elle, arrancando as barbas, aos punhados, ao capitão
Nova, levou diante de si os soldados, sósinho, ás cutiladas. Dos seis
navios, porém, fugiram-lhe tres, que vieram para a India contar ao
vice-rei as loucuras e barbaridades do conquistador: não podiam resistir
ao seu mando _terribil_, só lhes era dado fugir! Albuquerque retirou
tambem de Hormuz, quando viu a impossibilidade de levar por diante a
empreza, abandonado por metade das suas forças. Levantou ferro, voltou a
Sokotra aprisionar as náus de Meka, e mais um navio o abandonou ahi:
nenhum podia supportar o ferreo mando do heroe.

Em novembro de 508, depois de ter voltado ainda outra vez a Hormuz,
estava de regresso á India, em Kananor, onde abriu a carta de Lisboa,
que lhe confiava o governo do Oriente. N'esse momento a violencia do seu
genio furioso arrebatou-o: queria castigar os capitães insubordinados,
queria sobretudo terminar rapidamente o plano das suas conquistas; e
foram necessarios os rogos de D. Francisco de Almeida, a quem o filho
acabava de morrer, para consentir na expedição naval de Diu. Só quando,
mezes depois, chegou á India a fidalga armada de D. Fernando Coutinho,
poderam terminar as deploraveis contendas, entre o vice-rei e o seu
successor. Coutinho levava de Lisboa ordem expressa de tomar Kalikodu;
e, cheio de basofias, lançou-se na empreza em que achou a morte.
Engolfados na matança e no saque, no meio de parte da cidade incendiada,
os portuguezes foram por sua vez trucidados, quando os inimigos os
colheram dispersos e sem armas.

Só e livre, absoluto senhor do imperio nascente, Albuquerque entregou-se
com franqueza e decisão ao seu projecto. A primeira condição d'elle era
a fundação de uma cidade, uma capital portugueza--cousa que até então
não existira. Katchi, cujo rajah desde o principio se abraçára aos novos
invasores, era uma cidade India, onde possuiamos apenas uma fortaleza,
abrigo da feitoria e guarda de um porto amigo. Albuquerque elegeu Goa
para capital. Collocada a meia altura da costa Occidental da peninsula,
bom porto, a cidade reunia as condições desejaveis. Fazia elle então
parte do reino de Vijajapur (Bijapor) fracção que no fim do XV seculo se
separára do de Dekkan, declarando-se o seu khan independente, sob o
titulo de adil-shah (Adil-Khan, Hidalcão); e o adil-shah do Vijajapur,
ao tempo de Albuquerque, tinha por nome Yusuf. Por este governava em Goa
Sipahdar, a quem os nossos chamaram Sabaio. Em fevereiro de 510
Albuquerque tomou Goa por surpreza; e pela primeira vez houve no Oriente
um Estado portuguez. Até então, depois de uma batalha, a tomada de um
logar significava apenas a substituição da suzerania indigena pela
nossa; e o estabelecimento de feitorias e a construcção de fortalezas,
tinham sómente em vista assegurar o commercio e a cobrança das páreas ou
tributos de vassallagem, segundo o plano do primeiro vice-rei.
Albuquerque iniciava um systema differente; creava uma cidade
propriamente portugueza; e com o novo governador, o nosso dominio
desembarcava dos navios para a terra firme. A um systema de colonias,
como fôra em volta do Mediterraneo o dos phenicios ou o dos gregos,
substituia-se um imperio, como Annibal o sonhára na Italia, e Alexandre
o fundou na Asia. Albuquerque, porém, não pensava em fazer de Goa uma
cidade portugueza, no sentido de ser exclusivamente habitada por
europeus: seria chimerico. Faltava-lhe gente, e para obviar a isto
fomentou os cruzamentos de portuguezes com mulheres indigenas, creando,
tanto em Goa como depois em Malaka[95], uma população de mestiços, que
mais tarde se tornou um dos elementos de dissolução do nosso imperio.
Sob o dominio portuguez, os naturaes viveriam livremente na sua
religião, com as propriedades garantidas, mas sujeitos ao imperio
protector e soberano de Portugal.[96] Era um plano correspondente ao que
mais tarde os inglezes pozeram em pratica, sem todavia cruzarem com os
indigenas: da mesma fórma que os hollandezes preferiram os planos
maritimo-commerciaes de D. Francisco d'Almeida.

Goa occupou ao governador todo o anno de 510; porque o _Sabaio_, tomado
por surpreza em fevereiro, voltou no verão; e os soldados de Albuquerque
não quizeram resistir-lhe. Apesar do desespero e das maldições, da furia
e das ameaças do governador, abandonaram a cidade e embarcaram. Os
planos de Albuquerque pareciam loucuras aos bandidos e piratas da India,
que além de lhes não comprehenderem o alcance, se viam privados de
saques, apenas fartos de guerra. Goa perdeu-se em agosto; mas logo
tornou para o dominio portuguez, ganha por assalto em novembro. Os
soldados obedeciam, porque o commando do governador era _terribil_,
desapiedada a sua crueldade genial, fervorosa a sua fé catholica.
Alexandre cria-se um deus, Albuquerque _viu_ mais de uma vez os milagres
do céu nas horas do combate. Em Goa viu Santiago: um cavalleiro de armas
brancas, no manto uma cruz vermelha, pelejando contra os
_mouros_[97]--conforme a tradição historica portugueza. Nas cidades da
costa da Arabia, viajando para Hormuz, as suas crueldades tinham sido
barbaras: em Goa não o foram menos. Além queria impôr pelo medo; aqui
destruia como politico. Todos os _mouros_ de ambos os sexos, de todas as
edades, mais de seis mil, foram mortos; e queimados vivos os que se
tinham refugiado na mesquita, sendo a terra assim «despejada», porque
para socego d'ella só devia conter gentios. Era o logar escolhido para
capital do imperio dos novos gregos pelo moderno Alexandre.

Consolidada a posse da capital, no coração da India, Albuquerque
voltou-se rapido para as duas emprezas que rematariam o seu imperio:
Malaka e Hormuz. Embarcou, logo no principio de 511, e tocando em
Ceylão, a terra encantada das pedras preciosas, delicias do mundo,
patria da canella e das perolas, achamol-o, já em maio, em frente de
Malaka, no extremo Oriente.

Malaka, na ponta da peninsula da Indo-China, sobre o estreito a que dá o
nome, era para esta região, como Hormuz, a norte-leste, para a outra.
Assim como além se permutavam os generos da India com os da Arabia e da
Persia, e em Adem com os do Egypto; assim em Malaka se faziam todas as
trocas dos productos occidentaes da China e das Molucas, e de todo o
extremo Oriente. De Malaka iam as náus a Ternate e a Tidor, a Banda e a
Ambon, em procura do precioso cravo; e o estreito andava coalhado de
_juncos_ de Java, conduzindo á cidade o arroz, as carnes, a caça e os
_crizes_ tauxiados de fino aço, em troca dos damascos e brocados, que
levavam de retorno para as ilhas do archipelago. Amphibios, os malaios
viviam no mar em permanencia, com a casa e a familia a bordo; e os seus
_juncos_, com enxarcias de verga, iam buscar a Malaka os pannos de
Paleakat e de Mahabalipurum (Meliapor), na costa de Coromandel, e as
drogarias de Kambai.

Do saque de Malaka, o governador reservou para si apenas seis leões de
bronze, destinados ao seu tumulo. Sem se demorar, avassalou todo o
archipelago malaio, levantando fortalezas e deixando guarnições; e,
segura a porta oriental da India, voltou-se a Goa, de caminho para
Hormuz e Aden, a consolidar o imperio pelo occidente. Em fevereiro de
513 sáe com uma armada para Aden, que não consegue tomar; viaja em torno
do Mar Vermelho, incendiando e bombardeando as costas; mas não sente
forças para levar a cabo o seu plano de conquistar a Arabia, indo a Meka
despedaçar a santa Kaaba. A campanha de 513 não tem portanto resultado
positivo, desde que Aden consegue resistir ás investidas do governador.
Adiou pois para outra vez esses planos, que eram a cupula do seu
edificio e a chave do imperio que vinha construindo. Conquistada Aden,
as duas emprezas que meditava eram relativamente faceis na sua
simplicidade temeraria. Levaria quatrocentos homens de cavallo em
taforeas ou caravellas e iria desembarcar em Liumbo, partindo n'um
galope até Meka, logar santo mal guardado por gente prostrada em
adorações. Roubaria o thesouro sagrado e o proprio corpo do propheta:
com ambos se resgataria o Santo-Sepulcro de Jerusalem, captivo.
Consumar-se-hia a obra mallograda das Cruzadas, tradição piedosa que na
Renascença passara das nações do norte para a Italia e para a Hespanha,
arrastando mais tarde Portugal a Alcacerquibir. Ao mesmo tempo, e por
outro lado, a grande empreza do mar Vermelho descarregaria um golpe
mortal no Egypto, que era a joia do imperio dos turcos e o arsenal de
onde vinham as armadas á India. O seu plano consistia em «cortar uma
serra muy pequena que corre ao longo do rio Nilo, na terra do Preste
Joham, para lançar as correntes d'elle por outro cabo que não fossem
regar as terras do Cairo».[98] Desviando o Nilo seccaria o Egypto.[99]
Já pedira a D. Manuel que lhe mandasse officiaes da Madeira, onde os
havia mestres no córte das serras para formar as levadas de rega dos
canaveaes. Tudo isto continha a empreza de Aden, cujo mallogro cortou os
vôos ás ambições grandiosas do heroe.

Embora no céu, lá para os lados das terras do Preste abexim, tivesse
fulgurado aos olhos do mystico e terrivel heroe uma cruz vermelha,
Christo abandonara-o na empreza. Quando o famoso milagre surgiu,
Albuquerque e todos, ingenuamente, crentes na missão divina em que
andavam, caíram de rastos adorando a cruz.[100] E o capitão, para
corresponder ao céu, mandou tanger os córos de trombetas, responder com
artilheria aos cumprimentos de Jesus. Lavrou-se um _estromento_
assignado pelas guarnições, que veiu para D. Manuel, com a carga de
pimenta, afervorar a piedade mystica da côrte carthagineza.

Como, porém, apesar do milagre, nada se fez, Albuquerque em 514 volta-se
para Hormuz, cujo dominio não estava seguro. Outro Alexandre em
Persepolis, o heroe condemnou-se em Hormuz: a grandeza das suas façanhas
tinha-lhe feito nascer um orgulho, que já não distinguia o bem do mal.
Orientalisado como o imperador, cujos exemplos seguia, não lhe bastavam
já a crueldade, nem a força: appellava para a perfidia; e
intromettendo-se nas miseraveis politicas dos persas, chamou á sua tenda
para uma festa o ministro que então governava o principe idiota de
Hormuz, e assassinou-o covarde e friamente, substituindo-se-lhe. Estava
proximo da cova: e a sorte não queria que á historia d'este heroe
faltasse o epilogo frequente da historia dos heroes: uma abjecção.
Tampouco a verdade consente que se esconda um fraco de vaidade e
fraqueza commum. Alexandre mimoseava os litteratos de Athenas para que o
exaltassem: Albuquerque mandava anneis de pedras preciosas ao chronista
Ruy de Pina «para escrever com melhor vontade os memoraveis feitos da
India».

De volta de Hormuz a Goa morreu na viagem: a morte salvava-o, como
fizera a D. Francisco de Almeida, dos ferros que tinham servido a Duarte
Pacheco. A côrte de Lisboa já o mandára substituir no governo por Lopo
Soares de Albergaria, que, chegando, começou por condemnar o seu
predecessor, exaltando todos os que lhe eram inimigos. Antes de acabar,
Albuquerque pegou da penna e dirigiu uma carta ao rei--«quando esta
escrevo a V. A. estou com um soluço que é signal de morte!» E pedia-lhe
que lhe honrasse a memoria e protegesse o filho: o que o rei fez, honra
lhe seja. Agonisando, via-se incomprehendido pela tacanha côrte de
Lisboa, e acceitava de bom grado a morte: «Mal com os homens por amor
d'elrey, mal com elrey por amor dos homens, bom é acabar». E acabou, á
vista de Goa. Era homem de mean estatura, rosto comprido e corado. Era
avisado latino e de grandes ditos: falava e escrevia muito bem; mui
facil na conversação, muito grave no mandar, muito manhoso no negociar
com os mouros, muito temido e amado de todos. Nascera filho segundo de
uma familia de sangue nobre, e educara-se na côrte militar de Affonso V,
viveiro da geração dos capitães da India amestrados nas guerras de
Africa. Fôra em 1480 na esquadra mandada a Napoles em auxilio do rei
Fernando contra os turcos, e nove annos depois partira para Africa a
defender a fortaleza da Graciosa, em Larache, contra os mouros. Era
estribeiro-mór de D. João II e já um grande fidalgo quando, em 1503, D.
Manuel o mandou á India pela primeira vez. Foi, voltou com bons
creditos, mas sem nada ter feito de singular; provavelmente observou e
aprendeu muito, levando já um plano formado quando o rei o mandou como
capitão na esquadra de Tristão da Cunha. D'essa ida começa a historia
que narrámos e que termina agora com a sua morte.

Os soldados, a bordo, amortalharam-no no habito de Santiago com
borzeguins e esporas, espada á cinta, na cabeça uma carapuça de velludo
e aos hombros uma beca tambem de velludo. O enterro subiu em lanchas, e
era tamanho em todos o choro e pranto, que parecia fundir-se o rio de
Goa. Ao desembarcar, foi levado aos hombros dos soldados, sob o pallio,
pelas ruas da cidade que conquistara; e os gentios, vendo-o com os olhos
meio abertos, a longa barba atada até á cinta, fluctuando, não o criam
morto: Deus o chamara para alguma façanha no céu! Voltaria breve. E por
muito tempo houve romarias ao sepulchro do heroe, vindo os naturaes
pedir-lhe justiça contra os desmandos e perfidias dos portuguezes,
offerecendo-lhe boninas e azeite para a sua lampada. Do extremo Oriente,
desde o Pégu até á China, ficaram-lhe chamando o Leão-do-mar.[101]

                      *      *      *      *      *

Hormuz, Goa, Malaka, os tres pontos cardeaes do imperio fundado por
Albuquerque no breve periodo de cinco annos (1507-11), valiam o dominio
em todo o mar das Indias e a vassallagem de todas as costas, desde
Sofala, em Africa, ao cabo de Jar-Hafun; desde Khor-Fakhan, na Arabia,
até ao golpho Persico; desde o Indo até ao cabo Kumari (Comorim); d'ahi
ás boccas do Ganges, e descendo pelo Arakan e pelo Pégu, até Malaka--com
as ilhas dispersas de Madagascar e Sokotra, Anjediva, os archipelagos de
Lakkha (Laquedivas) e de Malaja (Maldivas), Sinhala (Ceylão),[102] e
Sumatra e Java, Bornéo e as Molucas, até aos pontos extremos de Banda e
Ambon. Com effeito, depois de Malaka e da viagem temerosa mas esteril de
513 a Aden, todo o Oriente pasmava e tremia de Albuquerque, o
_terribil_. A Goa vinham de toda a parte embaixadas e tributos; todos os
principes queriam a amisade do portuguez, e a seus pés arrastavam a
corôa os rajahs de Ahmednagar e de Kambai, de Vijajapur e de
Narsinga,[103] o shah da Persia e os sultões de Sião, do Pégu, do
Arakan; e até o proprio _Hidalcão_, o adil-shah do Kanará, consentindo a
fortaleza de Kalikodu, comprada com tanto sangue, seguia o exemplo do
Gujerât, do Konkana, do Karnataka e de Bengala. Desde o Indo até ao
Ganges, pelo Cabo Kumari, desde Kambai até Golkonda, o litoral da
peninsula estava inteiramente submettido ao jugo portuguez.

Entretanto este imperio não podia dizer-se ainda construido: era um
esboço apenas. Como depois de uma victoria brilhante os timidos se
curvam todos perante o vencedor, assim acontecia no Oriente. Lançado na
politica de conquistas, o imperio portuguez ganhava a primeira batalha;
mas não podia decerto ensarilhar as armas, emquanto a costa da Arabia e
as margens do mar Vermelho se conservassem em poder dos inimigos. Os
naturaes da India, avassallados por uma corrupção antiga, acceitavam o
dominio de qualquer vencedor; mas era necessario, para o manter, que a
victoria fosse decisiva. Ora o inimigo, o _mouro_, fôra batido, mas não
fôra expulso. Como n'uma doença, tinham-se debellado muitos symptomas,
mas não se destruira o principio morbido. Aden continuava a ser o
emporio do dominio commercial maritimo dos arabes e egypcios no Oriente;
o mar Vermelho, o Suês, no extremo fundo d'esse estreito corredor, as
boccas sempre abertas, para vasar sobre a India navios, artilheria e
soldados. O dominio, que os portuguezes se propunham substituir,
continuava; e do caracter dual ou mixto que a occupação da India
apresentava, resultaria um estado de guerra permanente com os _mouros_ e
com os naturaes, que ora os preferiam a elles, ora a nós. Ninguem, nação
alguma seria capaz de resistir a um seculo inteiro de similhante vida. O
destino do imperio portuguez no Oriente dependia do exclusivo do
dominio, desde que era impossivel pactuar ou dividir a presa entre os
dois caçadores rivaes.

O genio de Affonso de Albuquerque adivinhava isto com toda a lucidez:
Aden, Meka, o mar Vermelho, eram a sua preoccupação: «Tres cousas, diz o
filho e commentador, ha na India que são escapolas de todo o commercio
das mercadorias d'aquellas partes, e chaves principaes d'ella. A
primeira é Malaka, que está em tres graus na entrada e sahida do
estreito de Singapura; a segunda Aden, que está em vinte e um graus de
altura e na entrada e saída do mar Rôxo; a terceira é Hormuz, a qual
está em quinze graus e na entrada e saída do estreito do mar da Persia.
Este Hormuz, a meu vêr, é a principal de todas. E se el-rey de Portugal
tivera senhoreado Aden podera chamar-se senhor de todo o mundo.» Dar um
golpe mortal no islamismo era, além de retribuir em Meka a affronta
humilhante de Jerusalem, mostrar aos musulmanos do Oriente que Jesus
podia mais do que Mafoma. Mas se o genio excepcional de Albuquerque não
bastou para levar a empreza ao fim, como poderiam bastar para isso os
pigmeus que lhe succederam? Valentes muitos ou quasi todos, incansaveis
no mar e na terra, os governadores da India foram extenuando em um
seculo de guerra permanente as limitadas forças da nação, sem pensamento
politico, sem plano definido, á tôa e á mercê d'um capricho, ou d'uma
idéa a que o ciume imbecil da côrte limitava constantemente os vôos. A
primeira politica, a maritima, fôra abandonada com a queda de Francisco
de Almeida; a segunda politica, a imperial, condemnada com a deposição e
morte de Albuquerque. Faltava assim a condição essencial de um dominio
estavel e seguro: uma tradição.

Esta falta, comtudo, provinha de causas mais intimas, umas nacionaes,
outras chronologicas. O absurdo espirito da politica de Lisboa, e a já
provada incapacidade dominadora dos portuguezes, estão na primeira
categoria: na segunda estão os costumes e idéas de tempos relativamente
barbaros. Os portuguezes, ao pôr pé na India, faziam o mesmo que os
povos germanicos, ao descer dos Alpes sobre a Lombardia: cevavam-se. A
historia de Affonso de Albuquerque em Hormuz (1507) demonstra bem quanto
era impossivel impôr disciplina e ordem em campanhas que tinham no saque
o exclusivo motivo.

    Fomos ao rio de Meca,
    Pelejámos e roubámos
    E muito risco passámos.

Estas palavras de Gil-Vicente resumem a historia da India; e com taes
elementos era possivel saqueal-a, era impossivel dominal-a.

Por isso, n'esse seculo de 500 que a historia da India abrange, o
conjuncto dos caracteres da occupação portugueza fórma dois systemas: o
da rapina, contra o qual protesta e reage em vão a espada militar de
Albuquerque; e depois o da simonia, contra o qual, em vão tambem, reage
a vara justiceira de D. João de Castro.

Estudemos agora o primeiro, a seu tempo estudaremos o segundo. Todos os
soldados de Antonio da Silveira, um capitão que andava pela costa, entre
Chala e Daman, trouxeram fato, escravos e dinheiro, com que foram
contentes; e assolaram tudo «em tanta maneira que se despovoaram todolos
logares da fralda do mar, que pela terra dentro dez leguas não havia
gente». Em Barava, destruida por Tristão da Cunha, os barbaros cortaram
as mãos e as orelhas ás mulheres para furtarem as manilhas e brincos de
ouro. A tomada de Mangaluru ficou celebre: «Foi entrada com muito valor,
e dentro d'ella fizeram os nossos espantosas cruezas, não perdoando a
sexo nem a idade, nem ainda ás alimarias». D. Paulo de Lima «deu na
cidade de Johore (Jor)--escreve á esposa--e assolou-a _com o favor
divino_». N'outro logar os combatentes, empilhados contra os muros,
pedem aos da frente que, _por amor de Deus_, lhes deixem matar um
_mouro_. Á approximação dos portuguezes, despovoam-se as cidades e fogem
todos com terror: assim aconteceu em Bintang. Albuquerque sustentou por
tres annos, no mar da Arabia, a sua armada com as presas das náus de
Meka. Quando os portuguezes occuparam as terras de Bardez «fizeram mui
grandes males de roubos, tyrannias, tirando as mulheres e filhas
formosas a seus maridos, e outras corrompiam, e as furtavam e tornavam a
vender». O de Hormuz queixava-se de que, em paz, lhe tiravam, a elle e
aos seus, «parentas de que (os nossos) faziam uso, tornando-as christans
a seu pesar». O roubo e a luxuria, alliados aos inimigos, davam lugar a
interminaveis guerras: assim os capitães de Malaka originaram as de
Johore e do Atchim (Achem); e nas Molucas a cidade de Bachian,
despovoada e vasia, foi incendiada, indo-se os barbaros ás sepulturas
dos reis furtar os ossos, na esperança de receber por elles, mais tarde,
um grosso resgate. Roubando e pirateando á solta, o genio aventuroso dos
portuguezes larga as azas, e os exploradores vão até aos confins do
mundo, fiados no seu atrevimento. Dois heroes das _Peregrinações_ teem
uma historia extravagante. Um, Antonio de Faria, vae á China roubar os
sepulcros dos imperadores; outro, Diogo Soares de Albergaria, obtém o
titulo de irmão do rei de Pégu, com duzentos mil cruzados de renda e o
commando do exercito: é o rei, mas morre assassinado, por ter furtado
uma rapariga. Nem se julgue que só pelos confins do mundo oriental
portuguez, em Hormuz ou em Malaka, ou só pelas costas, nos seus navios,
a furia dos portuguezes se desmanda em ferocidades anarchicas. Na
propria Gôa, capital, a vida é um combate. Pelas ruas ha batalhas e
cadaveres insepultos. Um governador prende certos salteadores
portuguezes, manda-os ferrar no rosto, junto á picota, e degredar para o
Brazil: logo um pelotão de amigos se amotina em armas para os libertar,
e, não podendo conseguil-o, vae a bandear-se para os mouros inimigos: o
governador manda-os desorelhar e amarrar aos bancos das galés; fogem e
fortificam-se, e é necessario tomar á força o reducto; prisioneiros,
são, afinal, amarrados vivos a elephantes, e esquartejados. É conhecida
a tragedia em que a amante de D. Paulo de Lima, precipitando-se das
janellas do seu palacio de Pangin, morreu, e o seductor, de espada e
rodella, abriu caminho por entre a gente armada que acudia com o marido.

Até dentro das proprias egrejas havia rixas, a tiros: viam-se homens
caír assassinados no confessionario, e nos degraus dos altares, á meza
da communhão; e uma vez foi morto com um tiro o bispo quando levava a
hostia, em procissão, pelas ruas.

Era uma anarchia barbara; e decerto os naturaes lamentavam a má-sorte
que os condemnava a supportar tantas crueldades ferozes. Antes o mouro
indolente e molle, e o antigo tempo que placidamente corria no seio de
uma orgia podre mas calma, nos braços do luxo, da opulencia e dos
prazeres! Como demonios vomitando fogo, negros nas suas armaduras, esses
portuguezes eram enviados para os desgraçar, para os punir talvez! E
levas esfarrapadas de fugitivos, n'um côro unisono de lagrimas e
afflicções, acompanhavam por toda a parte a visita dos terriveis
forasteiros, que não sabiam fazer-se amar do indio, tão submisso, tão
bem disposto para obedecer e servir.

Os _fumos_ da India (como Albuquerque dizia) embriagavam os pobres
portuguezes, limitados na Europa á porção congrua do bragal e do aço,
sujeitos a uma forçada sobriedade e a costumes mais presos. Na India o
_fumo_ desenfreava o animal, que se retouçava delirante nas sedas e nos
perfumes, nas fructas e nas mulheres, coberto de diamantes, abarrotado
de pardaus de oiro. Breve, porém, esse _fumo_ se dispersou no ar; e a
desolação universal trouxe a miseria, o luxo trouxe a fraqueza; e á
violencia de barbaros, os portuguezes juntaram a mesquinhez de chatins.

    [93] «Ao que se achou presente Tristão Alvares, que era feitor do
         capitão-mór, que não consentiu que ninguem tomasse nada e com
         João Rodrigues Pereira que o ajudou levaram tudo ao capitão-mór,
         o qual logo tudo mandou qubrar e ameaçar e deu ao capitão e
         aos fidalgos da repartição primeira a cada um um quintal de
         prata e a Affonso de Albuquerque tres, porque nunca estes
         capitães e fidalgos se apartaram para ir roubar.»
         G. Correia, _Lendas_, I, 677.

    [94] O xerafin (as hrafi) = 12 rupia = 1 cruzado. Duarte Barbosa
         da-lhe a equivalencia de 300 reis.

    [95] V. _Raças humanas_, I, pp. LX-I.

    [96] Não consentia o governador A. de A. que os portuguezes tratassem
         (negociassem), dizendo que onde tratassem haviam de querer ser
         poderosos e valorosos e não ser humildes como mercadores, do
         que se recreceriam males de os matarem e perderem suas
         fazendas... e tambem que, se os mouros vissem que lhes
         tomavamos seus tratos nos teriam mór odio, e mais, que os
         homens, andando tratando, andavam fóra do serviço de Deus e
         d'Elrey, de que elle daria muitas contas a Deus: pela qual
         razão não consentia que nenhum homem andasse fóra do serviço
         d'Elrey. Com esta pragmatica os portuguezes eram muito temidos
         por cavalleiros e não mercadores, e tão temidos e obedecidos
         que ainda que um só portuguez fosse em uma almadia, se o
         topassem naus de mouros, todas amainavam e lhe iam obedecer,
         mostrando-lhe seus cartazes que tinham para navegar, que todos
         eram assignados por A. de A.»--Gaspar Correia, _Lendas_, I, 518.

    [97] V. _Systema dos mythos relig._, p. 331.

    [98] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) p. 243.

    [99] V. _As raças humanas_, I, pp. 106-10.

    [100] V. _Syst. dos mythos relig._, p. 331.

    [101] Ainda hoje os indios chamam _Affonso d'Albuquerque_ a um
         certo peixe, do tamanho da corvina, e cujo nome zoologico
         não podemos apurar. Diz a lenda que o Leão do Mar não morreu:
         afundou-se, e revive n'esses animaes marinhos. A maxilla
         inferior do peixe, descarnada, tem o aspecto aproximado das
         figuras portuguezas do seculo XVI: o barrete, as barbas
         ponteagudas e longas, etc. Os indios pintam esses ossos,
         dando-lhes phisionomia humana e guardam os _Affonsos de
         Albuquerques_ como fetiches.

    [102] V. _Inst. primit._, p. 3.

    [103] V. _Ibid._, pag. 163.

                      *      *      *      *      *




III

D. João de Castro


Morto Albuquerque, as cousas da India voltam ao estado anterior; e
abandonada a politica imperial, torna-se á politica maritima; ou antes o
dominio fluctua ao acaso, indeciso entre os dois planos. Lopo Soares
proseguiu ainda as guerras de conquista, acabando de avassallar Ceylão e
as Molucas. Vasco da Gama voltou pela terceira vez á India, como
vice-rei, para vêr se podia pôr cobro ás desordens e á corrupção interna
das colonias: foi com elle que se inaugurou o systema das successões,
mandadas de Lisboa em cartas, que só se abririam por ordem numerica, na
falta de cada vice-rei, para prevenir as frequentes desordens, a que
dava lugar a transmissão do governo. O almirante morreu tres mezes
depois de chegado, succedendo-lhe D. Henrique de Menezes; a este, Pero
Mascarenhas, e o usurpador Lopo Vaz de Sampaio, tão celebre pelas suas
perfidias.

Nuno da Cunha tomou posse do governo em 1528 em condições difficeis. As
torpezas dos governos anteriores tinham sublevado contra nós os
monarchas do Hindustan. O de Kambai, ao norte, com o de Kalikodu,
inimigo antigo, ao sul, estavam desde tempo em guerra aberta comnosco,
de mãos dadas com os _mouros_, nossos rivaes. O governador, em quem os
dotes de guerreiro primavam, decidiu reunir todas as suas forças para ir
tomar Diu, na costa do Gujerât, castigando por um modo ruidoso a
insubordinação do de Kambai.

Quem via a esquadra com que Nuno da Cunha se foi a Diu, podia avaliar a
transformação que trinta annos apenas, ou menos ainda, tinham produzido
no caracter dos portuguezes. Ninguem os tomaria já pelos descendentes de
Pedralvares Cabral, envergonhados da sua pobreza em Kalikodu; nem sequer
pelos piratas domesticados com a disciplina de Albuquerque: pareciam já
mouros, na opulencia e nos costumes. A esquadra era das maiores, senão a
maior de todas as que se tinham reunido na India: constava de
quatrocentas velas, entre as quaes mais de quarenta vasos maiores, e
multidão de bergantins, galeaças, fustas e catures. Apoz ella vinham os
juncos malaios com mantimentos, e um cardume de zambucos e cotias de
taverneiros, gente da terra, vendendo comestiveis e vinho. Capitães e
soldados tinham-se preparado como para uma funcção, luxuosamente
vestidos, carregados de pedras preciosas e ricas armas tauxiadas. As
mulheres enxameavam a bordo, esposas e amantes da gente da guarnição; e
além das mulheres os escravos eram numerosos. O governador tinha
promettido premios de 1:000, 500 e 300 pardaus aos primeiros que
successivamente subissem ás muralhas. Era uma expedição mercenaria, e
não uma aventura de bandidos. Isto exprimia a transformação que já se
tinha operado; e o governador, apesar dos seus meritos, nada podia
contra ella.

Seguindo as boas tradições, a esquadra foi ao longo da costa deixando o
seu rasto de carnificinas e investidas covardes, contra os pontos
indefesos; e quando chegou em frente de Diu, rompeu o bombardeio. Dentro
da cidade era grande o susto. Os commerciantes mouros agitavam-se,
escondendo os seus thesouros e preparando-se para a fuga. Os fakirs
immundos, nús, e de rastos, estrebuxavam, e, erguendo-se como doidos,
acutilavam os braços e as pernas, ou batiam com calhaus grossos na
ossatura do peito, como a quererem matar-se n'um delirio de visões
santas. E o brahmine, com os seus longos cabellos enlaçados em turbante
no alto da cabeça coroada de flôres, perfumado de aloes e de agua de
rosas, untado de sandalo branco e açafrão, lançava-lhes uma esmola e
palavras de paz, para não juntar á desgraça da guerra novas desgraças de
suicidios! Os senhores de Diu, ricos do Gujerât, principes de Kambai,
attonitos, vagueavam nas ruas com as mulheres, a procurar refugio contra
as bombardas que estalavam por toda a parte. Com as caras rapadas á
navalha e os longos bigodes negros caídos, arrastavam pressurosos as
compridas camisas de algodão e de seda, calçados nos seus sapatos
bicudos de cordovão lavrado: e os longos brincos de ouro cravejados de
pedras balouçavam e tilintavam nas orelhas, em quanto corriam
desafivelando, cansados, os cintos de ouro rutilantes de esmeraldas.
Atraz d'elles as mulheres, de uma raça delicada e formosa, com o rosto
de um branco de leite, meio encoberto em mantos de seda com que vestiam
o tronco nú, corriam descalças, mostrando nos dedos dos pés os ricos
anneis, nas pernas as manilhas de ouro e prata, os braços nús carregados
de pulseiras, as mãos rutilantes de pedras preciosas. Era um terror e
uma agitação por toda a cidade, ao ouvirem o ribombar da artilheria, e
ao verem no ar a trajectoria de fogo das bombardas, que vinham sem
piedade rebentar em estilhas no meio da gente, crivando de lascas o
corpo côr de perola das mulheres, e as carnes côr de barro dos fakires
tisnados pelo sol, cobertos de uma camada de lodo secco e de immundicies
das estrebarias dos elephantes.

As tropas de Kambai, nos seus postos das muralhas, esperavam o assalto,
para então se medirem com esses homens que, abrigados por detraz das
suas peças, distribuiam assim impunemente a devastação e a morte.
Tremiam comtudo; e os mouros, por entre os batalhões, lamentavam-se da
falta dos artilheiros venezianos e das esquadras dos rumes. Esperavam,
porém, muito da tropa de elephantes, que eram quinhentos com as prezas
limadas e o pé triturador, com que haviam de fazer em pastas humidas de
sangue a phalange portugueza.[104] As balas dos mosquetes
nada podiam contra a couraça da sua pelle, e esmagando com o peso,
despedaçando com as prezas, acabariam a obra começada pelos besteiros e
fundibularios de cima das torres. Mudos e immoveis, os quinhentos
elephantes de Kambai estavam na planicie, como ancora da salvação de
Diu; e os soldados olhavam para elles com amor. Além dos elephantes,
tambem a cavallaria se achava formada, montando á bastarda os leves
cavallos da Persia, embraçados os seus escudos pequenos e redondos
forrados de seda, ao cinto duas espadas e uma adaga, ao hombro as settas
e o arco. Uns vinham defendidos com armaduras e cotas de malha de aço,
outros com laudeis, que eram mantos de algodão acolchoado, onde todos os
golpes morriam perdidos. Os cavallos traziam testeiras de aço. Porém,
apesar de toda a força reunida, a artilheria dos navios aterrorisava-os;
e já por mais de uma vez alguma bomba, caíndo no meio dos elephantes,
dispersára as montanhas de carne, a correr em rugidos, com a tromba
erguida, como um mastro, entre as prezas de marfim. Na cidade havia
tambem artilheria e mosquetes, mas que nada podiam contra os navios
distantes: os pelouros disparados recochetavam na agua.

Parou afinal o bombardeio, e todos olhavam com ancia, porque esperavam
assistir ao desembarque e contavam com a peleja. Viram, porém, com
surpreza que as náus emmastreavam e as galés mudavam a prôa ao mar,
afastando-se ao impulso dos remos. Fôra medo? fôra fraqueza? Decerto; e
a esquadra, atulhada de escravos e mulheres, não tinha forças para uma
batalha: apenas se arriscava a um canhoneio sem perigos. Já era fóra de
duvida que os deixava. As velas desfraldadas impelliam os navios na
volta do mar. A alegria e a assuada substituiram então o pavor e o
silencio. Todos pulavam contentes, desde o fakir immundo, até ao grave e
perfumado brahmine; desde os velhos e as creanças, até ás mulheres,
envolvidas nos seus mantos de seda, com os braços e as pernas núas, a
correr, agitando os longos brincos, preciosos, tão pesados que lhes
rasgavam as orelhas. Os commerciantes mouros abriam os bazares e
desenterravam os cofres; e todos vinham á praia vêr a armada que se
afastava, despedindo-se d'ella com vaias e gritos de zombaria, tangendo
musicas, disparando tiros de espingardas para o ar, e mandando, por
cortezia, pelouros, a arranhar a superficie azul das ondas. Diu estava
salva das ameaças do portuguez.

Porém quatro annos depois, intervindo nas questões internas dos sultões
e rajahs da peninsula, Nuno da Cunha obteve a permissão de construir a
fortaleza de Diu, celebre depois pelo heroismo dos seus cercos. A
politica do governador não desdenhava, comtudo, o assassinato; e o pobre
sultão de Kambai, convidado a uma entrevista, foi trucidado, á maneira
do que já succedera antes em Hormuz. D'ahi proveiu a guerra e o primeiro
cerco de Diu, sobre-humanamente defendido por Antonio da Silveira.

As chronicas chamam a Nuno da Cunha vencedor de Kambai, heroe de
Bassaim, de Kalikodu, e fundador de Diu. Basta esta enumeração dos
lugares para demonstrar que o dominio portuguez na India inclinava já,
com trinta annos de vida apenas, á decadencia. Os erros politicos
originavam guerras permanentes; e o poder dos invasores, que n'um
relampago se alargára por todo o Oriente, não se consolidava: agitava-se
desordenadamente, no meio de questões sempre renascentes, extenuando as
forças defensivas, e corrompendo-se intimamente. Se Nuno da Cunha merece
dos coevos o nome de heroe, não é pelo valor ou alcance dos meritos
proprios, é pela absoluta incapacidade dos seus predecessores e dos que
lhe succederam. D. Garcia de Noronha, que veio apoz elle, era um fidalgo
pobre, sem merecimentos, além do da pobreza e das sympathias do rei, que
o mandou á India enriquecer. «Honra, eu a tenho: não venho mais que a
levar dinheiro», dizia mais de um governador. D. Estevam da Gama foi
ninguem; e Martim Affonso de Souza prégou com o exemplo, francamente
cynico, a abjecção em que a administração da India se tornára--agora que
terminára o saque de todas as costas, e as náus de Meka, mais raras e já
artilhadas e preparadas para rudos combates, não davam com que
satisfazer a cubiça dos occupantes.

A segunda epocha da historia da India, a da podridão, apparecia já
desenvolvida e accentuada por tal fórma, que o governo de Lisboa
reconheceu a necessidade de pôr cobro a tamanha desordem, e nomeou
viso-rei D. João de Castro, leitor assiduo de Plutarcho e decidido, por
opinião, a ser um modelo de virtude, e um typo de nobreza á antiga,--ou
pelo menos á moda do que então se julgava terem sido certos dos antigos
heroes.

                      *      *      *      *      *

Effectivamente o estado das cousas exigia remedios energicos. Martim
Affonso de Souza deve abrir o rol, porque ninguem melhor e mais
ingenuamente vivia no seio da podridão e o confessava, nas cartas que
enviava para Lisboa, ao rei. A successão do governo de Vijajapur era
debatida entre dois principes indigenas; e o governador «tardou em se
determinar, porque estava esperando quem levava a melhor». Afinal
decidiu-se pelo _Hidalcão_, que parecia ter mais justiça e era _mais
firme_, «ainda que vos certifico que da outra (parte) havia tantas
razões e contrarios que foi necessario _soccorrer-me a missas e
devoções_». Além das devoções, o vencedor deu-lhe 70:000 pardaus para
el-rey, 20:000 para elle proprio governador, e uma joia para sua esposa.
Deus, porém, não se contentando com ajudar o modo por que o governador
vendia o seu apoio, matou o rival vencido. Tudo corria para o melhor,
quando, para coroar o caso, vem um privado de Assud-Khan propôr-lhe a
divisão do thesouro do fallecido: 500:000 pardaus: «Mando 300 a el-rey,
mas d'estes tomei 30:000 para mi, que é o dizimo que lá mando a minha
mulher: que em razão está que tenha alguma parte d'isso, pois o podera
ter todo, que eu podera ter tomado este dinheiro sem o ninguem saber».
Esta pratica de vender o auxilio nas contendas indigenas não era,
todavia, privilegio de Martim Affonso. Em Hormuz, sob a tutela dos
portuguezes, D. Duarte de Menezes substitue a um governo amigo dos
nossos, um outro que preferia o mouro, porque este lhe deu «cem mil
pardaus em xerafins novos, e em conta ricas perolas e joias e aljofar».
Gaspar Correia diz do governador, que gostava de «boas peças e dadivas e
alvitres de apanhar dinheiro, e banquetes e prazeres, e com mulheres
solteiras com que ia folgar no tanque de Tinoja, e em tudo era mui
devasso».

Os capitães seguiam os exemplos dos governadores. De um de Hormuz, Diogo
de Mello, queixa-se o _rei_, porque o alguazil o ferira e quizera matar
por lhe não dar dinheiro e joias que exigia; pedindo soccorro, pois se
lhe não acudissem, despovoava-se a cidade. E nem só as fortalezas, ao
lado dos soberanos indigenas, eram rendosos meios de rapina: o mar
produzia tambem muito. Ruy Vaz vae por sua conta a Bengala _ás prezas_; e
dois navios, mandados expressamente de Lisboa á India com instrucções e
cartas, para decidir o pleito entre Pero de Mascarenhas e Lopo Vaz,
fogem para Madagascar _ás prezas_, e ahi se perdem. A pirataria dos
portuguezes era tão productiva que excitava os estranhos; e de parceria,
piratas francezes, guiados pelos nossos, dão a volta d'Africa, e vão
explorar a India. Não era tampouco raro vêr nos mares do Oriente navios
de arabes guarnecidos por portuguezes mercenarios; os _mouros_ pagavam
melhor do que o rei. A guarnição da armada com que Lopo Vaz foi ás ilhas
de Sunda incendeia os navios por falta de pagamento do soldo; e os
naturaes assaltam os portuguezes á pedrada, obrigando-os a pedir
capitulação. Effectivamente a sorte dos soldados era tão dura, que se
recusavam a embarcar em Goa, sem primeiro terem sido pagos. Os
governadores eram obrigados a mandal-os caçar pelas ruas e casas,
levando-os algemados ao tronco, e da prisão para a armada.

A vida do soldado da India e a organisação militar eram com effeito
singulares. Desembarcando sem dinheiro em Goa, depois das doenças da
viagem, os que não tinham parentes ou amigos na capital da India,
espalhavam-se pedindo esmola em bandos pelas ruas, dormindo esfarrapados
e semi-nús debaixo dos alpendres das egrejas, ou nas galés e lanchas
varadas na praia. Empenhavam o que traziam: a capa, a espada; ou
preferiam roubar para viver, esperando o arrolamento da armada, que
todos os annos ia varrer as costas do Malabar, inçadas de piratas arabes
cujo rei era o Cutiale (Kuuat-Ali).[105] Chegada a epocha,
lançado o bando, nomeiavam-se os capitães dos navios--logo veremos
porque artes e maneiras o capitão tratava de angariar a sua gente. A
_chusma_ da marinhagem compunha-se de negros captivos, agarrados a laço
pelas ruas. Os soldados recrutavam-se nos bandos já amestrados na rapina
e que, de volta das expedições, se pavoneavam nas ruas de Goa: era uma
tropa de salteadores e adulteros, malsins e alcoviteiros, que enchiam a
cidade de roubos e assassinatos nocturnos, occupando-se a beber nos
lupanares e a matar por officio e dinheiro. Os _reinoes_ bisonhos
entravam só nas faltas, até que tivessem por seu turno aprendido como se
era soldado da India. O capitão dava dez xerafins a cada um dos soldados
para se prepararem e armarem. Cada qual escolhia as armas que bem lhe
agradavam, e muitos preferiam gastar o dinheiro em orgias, indo para
bordo esfarrapados e sem mosquete, nem lança, nem rodella, nem espada:
com as mãos vazias.

A mesma anarchia se usava no ataque; desembarcavam em chusma, e
_davam-lhes de Santiago_, cada um conforme podia e sabia. Dispersavam-se
todos com a mira no que podiam roubar, porque esse era o verdadeiro
soldo; os dez xerafins um preparo apenas. Geralmente a primeira
investida era irresistivel: e logo ao ataque se seguiam o incendio, o
roubo, a matança--muitas vezes tambem a reacção dos inimigos. Dispersos,
deixando as armas ás portas das casas para irem mais leves a roubar, os
soldados eram mortos um a um: como succedera no grande desbarato de
Kalikodu, onde morreu D. Fernando Coutinho; como succedia a cada passo,
por toda a parte. Com tal systema, a guerra protrahia-se
indefinidamente; mas era isso o que convinha a todos, porque d'ella
tiravam o melhor dos seus proventos.

Os soldados roubavam, os capitães roubavam com elles, roubavam-nos a
elles, cerceando-lhes as rações de arroz avariado e podre. E depois da
façanha, em que muitos ficavam, depois de forçados a fugir em debandada,
«os capitães-móres das armadas recolhem-se com os focinhos quebrados e
com alguns navios perdidos. E ao entrar a barra de Goa, é tanta a
bombardada que não ha quem se ouça, e ao sahir em terra tanta pluma e
bisarrice, como se deixaram destruido o mundo.[106]--E não
é bem, accrescenta outra testemunha, a facilidade com que os capitães da
India entram em Gôa triumphando, esbombardeando, cheios de plumas e
pontas de ouro, deixando muitos companheiros descabeçados nas praias de
Calecut.»

Não é bem, decerto; mas não podia ser de outra fórma; e ainda assim a
basofia, apesar de ser enorme, não era a peior das fraquezas dos
capitães da India. Pedro não obedecia a Gonçalo por não ser tão fidalgo
como elle: eram todos _pontinhos e biquinhos de honra_. Em tendo sido
capitães de quatro fustas, não queriam mais saír fóra sem bandeira na
quadra; «e alguns não teem mais noticia da guerra que passear ás damas.»
O peior, o peior de tudo era que uma vergonhosa corrupção apagava todos
os brios. Nuno da Cunha dizia que os homens da India eram como os
doentes de colera, tinham os gostos damnados; e outro accrescentava que
os viso-reis, ao passarem o cabo da Boa-Esperança, perdiam de todo o
temor a Deus e ao rei, como perdem a memoria os que passam o Lethes.

Vimos ha pouco o modo por que se guarnecia uma armada; resta dizer que
as capitanias do mar e as das fortalezas eram compradas por dinheiro aos
viso-reis: um rapaz imberbe pagou uma d'essas por um serviço de mãos e
um saleiro de prata; e duzentos pardaus eram _as ordinarias_, isto é, o
preço usual de uma capitania. Providos no seu lugar, os capitães, que o
tinham comprado, faziam-se mercadores e contrabandistas, conluiando-se
com os empregados fiscaes, e associando-se com os mouros e judeus. Os
capitães de Malaka tinham náus para irem de sua conta, á China, de um
lado; a Diu, Chala, Daman, Bassaim, do outro. Os de Hormuz commerciavam
por mar com Bengala, com os portos da costa occidental da peninsula, e
com o Zamgebar. Como negociantes, á imagem do rei, exigiam tambem em
favor proprio um monopolio; e d'ahi vinham as desordens e violencias
brutaes exercidas sobre os indigenas. «A guarda do _cartaz_
(salvo-conducto que os navios _mouros_ pagavam para navegar no mar da
India) é o credito do nosso Estado», diziam os homens-bons do Oriente;
mas por cima de tudo o mais, os capitães, para fazerem prezas, buscavam
_bicos_ no exame dos passaportes e roubavam os navios e as cargas. Os
lucros do commercio não lhes bastavam, e o roubo vinha engrossar o
rendimento das capitanias. Hormuz era, sobre todas, celebre n'esta
especie. Arrolamentos de guarnições ficticias, matriculas de praças
mortas, para embolsarem o soldo de suppostos soldados, eram casos
ordinarios e communs a todas: só d'esta verba um capitão de Hormuz fazia
30:000 cruzados em tres annos. Com os navios succedia outro tanto:
fundeados, a apodrecer nas aguas, ou varados na praia, custavam ao
thesouro da India o preço de guarnições que só existiam no papel. E
estes roubos eram tão vulgares que não havia pejo em os confessar. Um
capitão de Hormuz declarava alto e bom som, que não perdoaria um real da
somma que se tinha decidido a ganhar--300:000 cruzados.

Um certo Alvaro de Noronha, na mesma praça, accusado, responde que outro
tanto fizera o seu antecessor, «que sendo _apenas um Lima_ levára
140:000 pardaus: elle _como Noronha_, havia de levar mais». O brazão da
sua casa ficaria manchado, seus avós corariam, se gente menos nobre lhe
passasse adiante em qualquer cousa--até no roubo.

E os crimes dos capitães não podiam ser punidos, porque os viso-reis
faziam outro tanto e mais: quando o exemplo vinha de cima, como se havia
de condemnar a copia? O governador Lopo Vaz de Sampaio, que era pobre e
tinha muitos parentes a proteger, foi a Hormuz _para fazer proveito_,
com doze navios, cujos capitães eram todos seus proximos e afilhados.
Diogo de Mello era seu cunhado, e isso o deixou impune dos roubos e
males extraordinarios que tinha commettido. Nas deploraveis intrigas com
que empolgou o governo a Pero de Mascarenhas, Lopo Vaz, para crear
partidarios, usou de todos os meios. Pagaram-se todos os _alcances_ por
meio de folhas de suppostos soldos vencidos; e n'esta _agoa envôlta_
muitos enriqueceram. A um certo Nuno Redondo, eximio em _falsar sinaes_,
deveu o governador o alvará com que espoliou o seu émulo.

As principaes rendas dos governadores provinham de diversas especies de
peculato: as _peitas_, ou luvas que recebiam por todos os empregos; as
heranças jacentes que roubavam; os cabedaes do indio ou judeu queimado
pela Inquisição de Goa; os conluios com os _contadores_, para
extorquirem dinheiro aos funccionarios e litigantes; a falsificação da
moda; o roubo do cofre dos orfãos; o fornecimento de material de guerra;
as matriculas de soldados mortos ou nunca arrolados; a amortisação dos
titulos de divida do governo, comprados no mercado por vil preço, e que
nas contas iam mettidos pelo seu valor nominal.

A turbulencia e devassidão dos soldados provinham dos crimes dos
commandantes, ficando por isso impunes; os roubos dos governadores
authorisavam os dos capitães: mas se o governador fosse punido, não
poderia acaso varrer-se o lodo e moralisar-se o dominio? Poderia; mas os
governadores tinham a favor da sua corrupção argumentos muito valiosos,
e podiam contar com a impunidade. Em Lisboa, salvas momentaneas
excepções, considerava-se a India como uma vasta seara a colher. «Cartas
se liam pelas portas, em ajuntamentos de cadeiras, que era uma vergonha
os descreditos que n'ellas vinham.» Desde o rei até ao mais infimo dos
moços da chusma, todos eram commerciantes; e o commercio, cuja mira é o
lucro apenas, tolera tudo, pactua com todas as devassidões. Contam que
D. Manuel em pessoa achava graça ás manhas e expedientes vis, com que se
explorava a India, quando os que de lá vinham justificavam as artes com
a riqueza, augmentando a opulencia faustuosa da côrte. Bastante dinheiro
e um pedaço de lisonja venciam tudo. Diogo de Mello, de quem já falamos
como heroe, foi condemnado á morte pela Relação de Lisboa; mas _fiqou_
em morte civil para S. Thomé; depois para Africa; e, por fim, com dar
500 cruzados para a Arca-da-Piedade, casando suas filhas com as muitas
riquezas dos roubos que n'este mundo não pagou.

Pagal-os-hia no outro? Não era de crer; porque o jesuitismo tinha
descoberto que a simonia não era peccado, sempre que se seguissem umas
certas regras. O furto deixava de provocar escrupulos de consciencia,
desde que os casuistas tinham averiguado ser licito cobrar por qualquer
modo, o que se não póde haver por demanda, de pessoa poderosa. Ora quem
mais poderoso do que o rei, dono do thesouro da India? Por isso, uma vez
os conegos de Goa fecharam a sua egreja e suspenderam o culto, quando o
viso-rei, distante em Katchi, deixou atrazar-se-lhes as pagas. E além
d'esta justificação de todos os expedientes, os padres confessores da
_Companhia_, defendendo os que recebiam _luvas_, diziam que o nome de
_peita_ se entende só do que se toma da parte antes de a despachar, ou
de concerto que se faça para o negocio[107]. Mas se a parte
fôr despachada, póde muito bem gratificar depois: é um agradecimento, e
não uma peita.

Não deixaria, por certo, de valer para muitos esta boa paz em que se
achavam com o céu; mas é fóra de duvida que os escrupulos religiosos não
incommodavam a maxima parte, senão quando, na volta para o reino, os
assaltavam os temporaes da costa d'Africa. A cumplicidade de Deus era
muito; mas era melhor ainda a cumplicidade das justiças, que na terra
podiam confiscar, prender e matar. Um chronista erudito escrevia: «O
imperio romano não se começou a perder, senão depois que se começaram a
vender os magistrados; e assim eu dou a India por acabada». Não eram só
venaes, eram tambem analphabetos, os juizes: fazia-se um desembargador
com _dois debrums de latim_. As testemunhas custavam em Goa a pardau por
cabeça «e se a um ladrão ou salteador, por conhecido que seja, não
faltam 4 ou 6 testemunhas que o abonem, como faltarão a um viso-rei?»
Além d'isso, de que valeriam rigores contra os «roubos, injurias,
mortes, forças, adulterios com as casadas, viuvas, virgens, orfans... se
dizem que elrey N. S. é tão cheio de misericordia, que por males que lhe
façam, tudo perdoa e quita?» Gaspar Correia achava, entretanto,
indispensavel que se mandasse cortar a cabeça de um viso-rei no caes de
Goa.

A misericordia de S. A. não consentia isso, mas o povo esteve por um
nada a fazel-o. Quando o conde da Vidigueira, ex-governador, partia para
o reino, as turbas derribaram da porta da cidade de Goa a estatua do bis
avô (Vasco da Gama), enforcaram-no em effigie na verga de uma náo, e
envenenaram ao neto o pasto dos animaes que levava de vitualha para a
viagem[108].

Mais graves e decisivos symptomas de desaggregação do ephemero imperio
da India rebentavam constantemente, e por toda a parte. Ferviam as
deserções; e grupos de soldados iam arrolar-se nas tropas indigenas, ou
nos navios arabes, por miseria, por cubiça, por homizio, arrastados pela
fome ou pelas _moraxas_ infieis, espalhando-se em Kambai, no
Balutchistân, no Afghanistân e na Persia, de um lado; em Bengala, do
opposto; alastrando-se pelo Arakan, por Pegú, por Malaka, e Kamboja, até
á China. Os que militavam debaixo das insignias dos reis e principes
infieis eram tantos, «que sem muitas lagrimas não se poderá considerar,
quanto mais escrever... e muitos se põem por soldados em navios de
chatins, onde, posto que o soldo não seja tão honrado como o d'elrey, é
mais proveitoso, por ser melhor pago». Em tempo d'elrey D. Sebastião
havia na India 16:000 portuguezes, e não se poderam mandar 800 homens a
soccorrer Malaka.

Já em Chala, no tempo de D. Francisco de Almeida, logo no começo da
occupação da India, 50 marinheiros da armada do viso-rei, perante o
inimigo, conspiravam para se passar aos _mouros_, que pagavam melhor.
Estes phenomenos, pois, não provinham directamente da decadencia,
manifesta agora; mas tinham causas intimas, e logo evidentes no começo
da empreza.

Além dos que desertavam, outros iam por conta propria estabelecer
feitorias, ninhos de piratas «buscando pão para comer, por não haver
armadas ou fortalezas em que lh'o deem». Assim em Tchitâgan, assim em
Ugoli de Bengala, em Nagapatan na costa oriental da India, em Macau e em
infinitos lugares.[109]

                      *      *      *      *      *

Para engrenar esta roda de miserias, foi do reino enviado D. João de
Castro. O quarto viso-rei da India[110] era, havia muito,
conhecido pela candida nobreza do seu caracter, pela sua experiencia de
navegador e guerreiro, e pela vastidão do seu saber, pelo seu amor ás
boas lettras. Esse amor punha na sombra os dotes ingenuos do seu
espirito; e esse asceta e amante mystico da natureza, qual o descobrimos
nos seus escriptos, vestia a toga dos heroes antigos, para apparecer em
publico na attitude classica do estylo dos seus papeis de Estado e do
cortejo do seu triumpho em Goa. A preoccupação romana do XVI seculo em
Portugal tinha em D. João de Castro um fervoroso sectario; e como o
genio do viso-rei era de uma sinceridade candida, a affectação antiga
tomava para elle as proporções de um culto. As suas phrases e gestos,
copiados dos antigos heroes, não eram decerto uma mascara postiça,
embora a nós se affigurem taes. Affonso de Albuquerque, porém, tinha no
sangue a força de Alexandre; e a D. João de Castro só a imaginação fazia
um Numa, e um Cincinnato. Mas a imaginação governava-o tanto, que lhe
moldou o genio, tornando-o um exemplo vivo do poder que a educação moral
é capaz de exercer sobre o temperamento. Esta construcção artificial do
caracter produzia, comtudo, contradicções necessarias. O amor litterario
da phrase, e o enthusiasmo da copia, arrastavam-no a cousas, senão
ridiculas, extravagantes. Não ter em casa uma gallinha para comer,
enfermo, e confessal-o com orgulho, era de certo misturar á honradez
natural uma ponta de affectação. Quando pediu a Goa trinta mil pardaus
para levantar a fortaleza de Diu, mandou os cabellos das barbas por
penhor; mas, com o symbolo, era forçado a dar tambem uma provisão para o
thesoureiro de Goa, adjudicando ao pagamento do emprestimo o rendimento
dos cavallos. Todos os casos da sua vida sympathica demonstram a nobreza
ingenita de um caracter, cunhado artificialmente pela educação litteraria.

Era este o homem capaz de engrenar a roda da decomposição do imperio
oriental? Não, decerto. A sua propria grandeza na honra valia pouco, por
ser affectada, embora não fosse fingida. Os homens positivos e
corrompidos da India sorriam d'esse espectaculoso heroe; e, vendo ao
mesmo tempo a ingenuidade candida e pura do seu espirito, confiavam
descansados em que não lhes viria d'ahi mal algum para os seus
interesses. A propria affectação _antiga_ do viso-rei demonstrava a
fraqueza do estadista; porque só uma alma ingenua podia ligar tamanho
amor ás fórmas, e a ingenuidade jámais venceu nos governos. Integro,
forte, e piedoso no seu fôro intimo, D. João de Castro era um heroe e um
santo; mas nem essa fórma subjectiva do heroismo, nem a santidade, foram
nunca os meios de travar o movimento de decomposição de uma sociedade,
ou de a impellir no caminho do progresso. Para tanto, exigem-se as almas
duras, os espiritos frios, sem escrupulos, de um João II, ou de um Pombal.

D. João de Castro não tinha em si os dotes de nenhum d'esses; e o seu
governo ficou inutil como uma bella pagina de moral: á maneira do livro
em que lhe escreveram a vida, e que é uma boa pagina de rhetorica.[111]
Ficou, porém, como um sincero protesto: esse é o seu valor
social-historico. Ficou como um exemplo de bravura temeraria, attestada
nos cercos de Diu--quando o sultão da Turquia (Soliman II) mandou de
reforço quatro mil janisaros, ou _rumes_ sob o commando do pacha do
Cairo, em auxilio de Khuajeh Safar (Cogeçofar), o ministro do rei do
Gujerât--mas d'esses exemplos abundavam; ficou, por fim, como um typo,
ao mesmo tempo nobre e interessante, do caracter de um santo e da
influencia da litteratura no genio dos individuos, ou antes nas suas
acções.

Se é que alguem havia em Portugal capaz de governar a India, o governo
de D. João III demonstrou cegueira, escolhendo-o; ainda que, por
distinctos que fossem os dotes de qualquer outro, é tambem facto que a
empreza de levantar da anarchia o imperio do Oriente excedia as forças
humanas, porque os vicios d'elle eram congenitos da sua existencia.

Ao terminar este rapido esboço da vida politica de Portugal no Oriente,
convém mencionar a opinião do quarto viso-rei e as suas observações,
transmittidas para Lisboa, em cartas ao monarcha. «Cá está tudo,
escrevia, em estado que não ha mouro que cuyde haveis de ser de ferro
para o seu ouro, nem christão que o creio.» E passava a enumerar o
estendal das miserias. As armadas ficavam podres, que se desfaziam com
as mãos; e não escapariam ao inverno, sem irem ao fundo. Nenhum dos
soberanos do Oriente confiaria nem uma palha a um portuguez: a tanto
chegára o descredito. Fôra um milagre trazer do reino á India, a
salvamento, a esquadra em que viera. Todos os dias havia em Goa
lançadas, revoltas e desafios, capazes de maravilhar até a propria
Italia. Não havia soldado que não tivesse uma ou mais mancebas. Todos
desobedeciam aos capitães, e cada qual se arvorava em chefe. Por causa
das mancebas dos soldados havia revoltas e desastres em todas as náus.
Nas Molucas, os nossos, depois de saquearem e roubarem as casas de um
certo rei, pozeram-no a ferros e «forçaram suas mulheres com tamanhas
desonestidades, que se não póde dizer a V. A.--Todos são ladrões, todos,
sem excepção, chatins. As cobiças e vicios teem cobrado tamanha posse e
authoridade, que nenhuma cousa já se póde fazer por feia e torpe, que
dos homens seja estranha. E são mais as almas perdidas dos portuguezes
que veem á India, do que se salvam as dos gentios que os prégadores
religiosos convertem á nossa santa fé.»

    [104] V. _Hist. da republica romana_, I, pp. 161-2 e 275-6.

    [105] V. na _Hist. da repub. romana_, I, pp. 188-95, a descripção
          da pirataria mediterranea: causas identicas produzem
          resultados eguaes.

    [106] V. _Hist. da republica romana_, I, p. 274.

    [107] _Hist. da rep. romana_, II, p. 187.

    [108] V. _Hist. da rep. romana_, I, p. 356

    [109] V. nas _Raças humanas_, a p. LX-I do vol. I, o estado actual
          dos restos da colonia portugueza de Malaka; tambem I,
          pp. 75 e segg.

    [110] 1 D. Francisco d'Almeida 1505 1.º viso-rei

          2 Affonso de Albuquerque 1509

          3 Lopo Soares de Albergaria 1515

          4 Diogo Lopes de Sequeira 1518

          5 D. Duarte de Menezes 1521

          6 Vasco da Gama 1524 2.º viso-rei

          7 D. Henrique de Menezes 1524

          8 Lopo Vaz de Sampaio 1526

          9 Nuno da Cunha 1529

         10 D. Garcia de Noronha 1539 3.º viso-rei

         11 D. Estevam da Gama 1540

         12 Martim Affonso de Sousa 1542

         13 D. João de Castro 1545 4.º viso-rei

         14 Garcia de Sá 1548

         15 Jorge Cabral 1549

         16 D. Affonso de Noronha 1550 5.º viso-rei

         17 D. Pedro Mascarenhas 1554 6.º viso-rei

         18 Francisco Barreto 1555

         19 D. Constantino de Bragança 1558 7.º viso-rei

         20 D. Francisco Coutinho 1561 8.º viso-rei

         21 João de Mendonça 1564

         22 D. Antão de Noronha 1564 9.º viso-rei

         23 D. Luiz de Athayde 1569 10.º viso-rei

         24 D. Antonio de Noronha 1571 11.º viso-rei

         25 Antonio Moniz Barreto 1573

         26 D. Diogo de Menezes 1576

         27 D. Luiz de Athayde 1578 12.º viso-rei

         28 Fernão Telles de Menezes 1581

         29 D. Francisco Mascarenhas 1581 13.º viso-rei

         30 D. Duarte de Menezes 1584 14.º viso-rei

         31 Manuel de Sousa Coutinho 1588

         32 Mathias de Albuquerque 1591 15.º viso-rei

         33 D. Francisco da Gama 1597 16.º viso-rei

         Pela constituição do vice reino da India o mandato dos
         governadores durava tres annos, findos os quaes podiam ser
         reconduzidos por novo triennio, conforme succedeu a muitos,
         e se vê do rol supra. Com a nomeação do vice-rei iam, em
         cartas fechadas e numeradas, as dos substitutos; e quando
         occorria a morte do governador abria-se a primeira _successão_,
         na falta do individuo ahi indicado, a segunda, etc. As datas
         acima inscriptas e a ausencia do titulo do viso-rei mostram
         quem governou por _successão_. O titulo de vice-rei, excepcional
         a principio, tornou-se inherente ao cargo de governador
         desde 1550.

    [111] J. Freire de Andrade, _Vida de João de Castro_.

                      *      *      *      *      *




IV

Summario da derrota. Volta ao reino


Anarchicamente iniciada, a occupação da India foi, de principio a fim,
uma exploração anarchica. A politica maritima e commercial de D.
Francisco de Almeida, o imperio de Affonso de Albuquerque, o virtuoso
reinado de D. João de Castro, provaram egualmente impotentes para
organisar o dominio portuguez no Oriente, de um modo regular e
duradouro. Nem a arte, nem a força, nem o santo exemplo, poderam
disciplinar a turba dos invasores da India.

Causas intimas, a que de passagem temos alludido, o impediam. A
Renascença, apresentando aos homens um sem numero de idéas e impressões
novas, desorganisando os systemas, as crenças, as instituições e todo o
organismo das sociedades medievaes, abandonou o individuo aos impulsos
desordenados da natureza, pondo ao mesmo tempo nos seus actos uma
energia affirmativa até alli desconhecida. Heroismo pessoal e
naturalista, uma grande explosão de força, a devassidão nos costumes e a
anarchia nas idéas, eis ahi em que se resume, por este lado, a
Renascença. A França, a Italia, a Hespanha, a Inglaterra e a Allemanha,
isto é, a Europa inteira, offerecem ao observador caracteres de
phisionomia bastantes para suppôr que, se a qualquer d'ellas tivesse
cabido o destino de occupar as Indias, o seu imperio não teria sido
melhor nem peior do que foi o nosso.

Porventura, porém, ás nações protestantes que nos succederam com
superior fortuna no Oriente poderia a rigidez fanatica ter cohibido um
tanto, e o genio mercantil ter mostrado mais depressa os meios efficazes
de explorar a India, sem a saquear. A nós faltavam-nos os dois
requisitos. O catholicismo não era então--como o era a religião
protestante--uma fé intima e absorvente: era uma convicção para uns, uma
convenção para outros, uma conveniencia para muitos, e um desvairamento
para os defensores intolerantes da fé. Havia decerto uma affirmação
religiosa unanime e violenta; mas desapparecera a unanimidade ingenua e
espontanea da crença, que radica as religiões. O catholicismo
atravessára uma crise, de que saíra malferido; e a violencia com que se
impunha, estava denunciando que ficára sendo, antes uma expressão de
authoridade, do que uma expansão de sentimento popular. Isto fazia com
que o povo, sem renegar o catholicismo, fosse caíndo n'um relaxamento; e
que, ficando com a religião, deixasse de lhe dar significação ou
importancia moral. Muita devoção e muita devassidão; eis ahi a
concomitancia resultante, e universalmente provada pelos costumes das
nações catholicas depois da Renascença.

Apesar do catholicismo, podemos, pois, dizer que não havia no dominio da
India uma religião capaz de moralisar o imperio, embora houvesse
exemplos de uma santidade heroica como a de Antonio Galvão, o apostolo
das Molucas. Mas taes exemplos eram excepções, e faltando o primeiro
elemento de ordem, quando os motivos sociaes não se tinham definido
ainda de um modo sufficiente, o individualismo naturalista do tempo
arrastava os homens a todas as desordens, precipitava-os em todos os
crimes; e umas e outros cresciam tanto mais, quanto maior era a força
intima, o arrojo, a temeridade dos guerreiros. Sobre isto, a influencia
dissolvente do clima, do luxo, da sensualidade oriental, veiu lançar a
sua semente de corrupção; e o individuo, desarmado, sem crenças nem
leis, vivendo ao bel-prazer dos seus instinctos e paixões, caíu n'um
poço de ignominias, perdendo inteiramente a noção do proprio brio, da
força, e tornando-se, de um pirata, em um chatim.

A estas causas geraes é necessario addicionar as causas particulares,
provenientes da incapacidade fortuita dos governos em Lisboa; e
porventura, se a India se tivesse descoberto meio seculo mais cedo, o
genio politico de D. João II teria desde o começo evitado graves
transtornos. D. Manoel e os seus conselheiros tinham para a India um
plano só: exploral-a, e arrastar a Lisboa, por quaesquer meios, as
riquezas do Oriente. Systema e programma de governo foram cousas
desconhecidas; e assim vemos que a occupação muda de caracter com os
successivos governadores, e ao sabor das idéas ou das inclinações de
cada um d'elles. A India soffre de todos os inconvenientes dos governos
electivos e temporarios, sem gozar das vantagens dos governos
hereditarios; e é n'isso que se fundará sempre a accusação de
incapacidade que a historia formula contra o nosso dominio.

Porém essa incapacidade trazia raizes de mais fundo. Explorar o Oriente
commercialmente á hollandeza, era cousa para que o nosso genio nos não
chamava. Nos estadistas não houve a perspicacia bastante para medirem as
differenças que distinguiam Portugal de Veneza, e as condições do
commercio anterior do Oriente das condições em que elle ia achar-se,
desde que nós chegámos por mar, armados, á India. A geographia dera aos
arabes o dominio indisputado dos mares das Indias; e era ella tambem que
fazia dos venezianos os alliados do Turco, e de Veneza o emporio do
commercio oriental. Para nos substituirmos na India aos arabes, na
Europa a Veneza, tinhamos contra nós, não só a geographia, mas ainda e
principalmente outra circumstancia. Indo despojar os arabes da sua
preza, deviamos commerciar de armas na mão, manter poderosas esquadras
n'esses mares longinquos outr'ora avassallados pacificamente por visinhos.

Estas causas naturaes, alliadas ás causas egualmente naturaes da falta
de tirocinio commercial, produziram um genero de exploração, até certo
ponto novo na historia; porque não é propriamente uma _razzia_, como as
conquistas dos antigos persas ou assyrios, pois pretende ser um
commercio; mas, como o commercio só póde fazer-se á sombra da fortaleza
ou á vista da esquadra, as transacções andam sempre misturadas com
pilhagens e mortes, com roubos e violencias. Isto dá aos nossos capitães
da India uma phisionomia original na sua dualidade. Vê-se de um lado um
mercador, como foram outr'ora os carthaginezes ou phenicios; mas vê-se
no mesmo homem um soldado, como os de Cyro, ou Assurbanipal.[112]

Uma tal confusão de cousas, um tão grande cahos de elementos oppostos e
idéas contradictorias, bastavam para arruinar breve e necessariamente o
imperio; ainda quando, por sobre tudo isto, o caracter do portuguez,
pouco vivo na sua audacia, bronco, cheio de orgulho ingenuo, mais
temerario ainda que valente, presumpçoso e fanfarrão, não viesse
accrescentar difficuldades; ainda quando o ar inebriante, os venenos
adormentadores, as seducções perigosas, os vicios extenuantes do
encantado Oriente, não viessem entorpecer os braços e perverter o
espirito dos occupadores.

                      *      *      *      *      *

O padre Manuel Godinho, que estava na India pelo meiado do XVII seculo,
dividia em quatro epochas a historia do nosso dominio oriental. A
primeira eram os 24 annos do reinado de D. Manuel; a segunda os 35 do de
D. João III; a terceira vinha do 1557 a 1600; e a quarta, finalmente,
até á epocha em que elle viajava no Oriente.

Logo na primeira, o dominio portuguez conseguira alargar-se por todas as
costas e ilhas, desde Sofala até Malaka; isto é, pela Africa Oriental,
pela Persia, por todo o Hindustan, do Indo ao Ganges, e pela Indo-China.
Algumas, poucas, cidades propriamente portuguezas, feitorias e
fortalezas espalhadas por toda a parte, e a vassallagem dos soberanos em
cujos Estados assentavam: eis ahi a fórma do nosso dominio. Goa e Malaka
eram nossas; e tributarios da corôa portugueza os soberanos
(independentes ou subalternos, porque o regime politico indigena era
feodal)--o de Hormuz, na Persia; o de Tidore, nas Molucas;[113]
o de Simhala; o das ilhas Malajas; o de Batukala (Batecalá),
no Kanará; o de Kollan, em Karnataka, na extremidade austral da
peninsula da India; e na costa de Africa, os de Malinda e de Quilua.
Além d'estas suzeranias, algumas dellas consignadas apenas nos tratados,
varias fortalezas garantiam a vassallagem de outros territorios. A de
Sofala era a primeira, para quem vinha do reino pelo Cabo; depois a de
Sokotra na ilha d'esse nome, junto ao Jar-Hafun, dominando a embocadura
do mar Vermelho; d'ahi Hormuz, na garganta do golpho persico; depois, na
costa occidental da India, descendo para o sul, Chala, Anjediva,
fronteira a Goa; Kananor, Kalikodu, onde Vasco da Gama primeiro aportou;
Kadunguluru (Cranganor); Katchi, theatro das façanhas de Duarte Pacheco;
e Kollam (Coulão), proximo do cabo Kumâri. Sobre as ilhas do oceano
indico havia a fortaleza de Malaia (Maldiva), e a de Kola-ambu (Colombo)
em Ceylão; e finalmente, lá para os confins orientaes, Persaim (Pacem)
no Pégu,[114] e Ternate nas Molucas.

Os annos do segundo periodo viram consolidar-se estes dilatados dominios
por meio de numerosas fortalezas que, completando o systema esboçado
pelas antigas, bordavam de feitorias todas as costas. Na oriental da
peninsula hindustanica, ou de Cholamandalam (Coromandel), levantaram-se
os presidios de Nagapatan e de Mahabalipurum (Meliapor, S. Thomé).
Completou-se a occupação da ilha de Ceylão por meio de fortalezas e
colonias-feitorias[115] de Jafanapatan, de Negombo, de Kalitura
(Calaturé) e de Galla, na costa occidental; e de Pattikalo (Baticaloa) e
Trinkonomali (Triquimalé), na oriental. Bassaim, Daman e Diu, além de
outros pontos fortificados, asseguraram a costa de Kambai. Incessantes
guerras, bem succedidas, abateram as revoltas, consolidaram dominios
antigos, ou alargaram o imperio portuguez. Assim, a derrota final do
Samudri de Kalikodu, do sultão de Kambai, do Shah de Vijajapur
(Hidalcão), do Nizam de Ahmednagar (Melique, Isamaluco, Nisamaluco, ou
Nisamoxá), garantiram a posse pacifica de toda a costa occidental da
India, no Gujerât, em Kontana, no Kanará. As guerras da Indo-China
firmaram o poder portuguez em Jadithani (Ujantama), no reino de Annam, e
em Johor: em Bintang (Bintão), na ponta extrema da peninsula de Malaka;
em Atchim (Achem), na ilha de Sumatra; e a submissão de todo o
archipelago de Sunda até ás Molucas completou, por oriente, o
imperio colonial portuguez, reproducção do velho typo grego e
liby-phenicio.[116] Por occidente, os resultados eram menos decisivos; e
se as duas costas que levam ao estreito de Bab-el-Mandeb se confessavam
tributarias de Portugal, nem em Aden ao norte, nem ao sul, na costa de
Adal, o nosso dominio era positivo. O musulmano guardava com ciume a
porta do mar santo de Meka; e os mercadores arabes sabiam que, mais ou
menos embaraçados, jámais seriam de todo expulsos do commercio da India,
emquanto possuissem o mar Vermelho, onde os inimigos iam, sim, mas não
conseguiam fixar-se. De arma ao hombro, na sua ilha de Sokotra, e a
bordo das armadas que cruzavam no golpho do mar da Arabia, o portuguez
espiava o armamento das esquadras de rumes e os comboyos das náus de
Meka; mas não faltavam opportunidades para que umas e outras, astuta ou
violentamente, conseguissem atravessar o estreito, entrando ou saíndo
para mercadejar ou combater.

No terceiro periodo conserva-se, não se alarga o dominio da corôa; ainda
que na Africa oriental e na costa do Malabar apparecem novos presidios.
São, no Kanará, Barkuluru (Barcelor), Mangaluru (Mangalor), e Hanavare
(Onor). Na Africa, pela derrota e morte do _rei_ de Laum, a fortaleza de
Patta; mais ao sul a de Mombas, e a da ilha de Pemba; e além do
Zamgebar, já avassallado, Monomotapa, na costa de Moçambique. Afóra
isto, funda-se ainda Sirian, no Pégu; e Hugli (Golim), em Bengala, sobre
o delta do Ganges.

Porém o acontecimento mais grave d'este periodo foi a guerra simultanea
do Adil-Shah contra Goa, do de Ahmednagar contra Chala, do Samudri
contra Kalikodu. Os principes indigenas da India Occidental, collocados
contra o portuguez, foram porém batidos; ao mesmo tempo que o era o de
Atchin (Achem) atacando Malaka; e que um pirata incommodo e celebre nos
mares da India, o _Cunhalle_ (Kunji-Ali-Markar), era degollado em Goa
depois de tomado o seu forte de Pudepatan, d'onde saía ás prezas.

Apesar dos symptomas de decomposição, o imperio commercial portuguez
attingia, no fim do XVI seculo, o seu apogeu. As frotas singravam,
carregadas de preciosidades, até aos mares do Japão e da China, d'onde
traziam a prata e o ouro, sedas e almiscar. Das Molucas vinha o cravo,
de Sunda a massa e a noz, de Bengala toda a sorte de finissimos tecidos,
do Pégu os rubis, de Ceylão a canella, de Mausalipatam os diamantes. Na
pequena ilha de Manaar, junto a Ceylão, carregavam-se as perolas e
aljofares; em Atchin, na Sumatra, o benjoim; das ilhas Malajas trazia-se
o ambar; e Ceylão exportava elephantes, por Jafanapatan. Katchi
contribuia com os angelins, tekas e couramas; toda a costa com a
pimenta, e com o gengibre o Kanará. Nas ilhas de Sunda, Madurá fornecia
o salitre, Solor o pau, e Bornéo dava a camphora. De Kambai vinham o
anil, o lacar, os tecidos; e Chala era celebre pelas suas baetas. Hormuz
vendia os cavallos da Arabia, e as sedas e alcatifas da Persia: e, do
outro lado do mar da India, a Africa dava em Sokotra o azebre, em Sofala
o ouro, em Moçambique o marfim, o ebano e o ambar. Além dos preciosos
carregamentos, além dos lastros de arroz do Kanará para mantimentos, e
de pimenta que era um estanco régio, as náus da corôa levavam, de Diu,
de Hormuz e de Malaka, as grossas quantias de dinheiro que n'esses tres
pontos estrategicos se cobravam, pelos _cartazes_ que ahi compravam os
navios mercantes.

As causas de decadencia, tão antigas como a descoberta, mas avolumadas
todos os dias, precipitaram porém a queda, logo que, pela união a
Castella, Portugal se achou envolvido nas guerras com a Inglaterra e a
Hollanda. Mais tarde ou mais cedo, de um ou de outro lado, é, porém,
fóra de duvida que o dominio portuguez na India, corroido de tão grandes
lepras, cairia, desde que os protestantes, maritimos e mercadores,
seguissem caminho do Oriente, pelo cabo da Boa-Esperança, na esteira das
náus portuguezas. Já por vezes piratas francezes tinham ido por ahi á
India; e se, com o inglez, nem o hollandez lá fôra ainda, era porque
lh'o impediam as condições e embaraços que, a religião para um, para o
outro a independencia, levantavam na Europa. Batida a Hespanha pela
Inglaterra protestante e pelas Provincias-unidas independentes, ambas
estas nações, alliadas, iam batel-a na India, com a facilidade com que
se vence um inimigo doente, mal apercebido, cheio de vicios e molestias.

Os que no meiado do XVII seculo observavam o imperio portuguez, diziam
no estylo pretencioso do tempo: «Está o estado da India tão velho que só
o temos _por estado_. Se foi gigante é pigmeu. Se foi muito, não é já
nada.» Era apenas Goa e Macau, Bassaim, Daman, Diu, Moçambique e Mombas.
Já não havia armadas nos mares; e os hollandezes e inglezes, fomentando
a rebellião dos naturaes, e auxiliando-os, substituiam-nos, como nós
tinhamos substituido os arabes--mas com outra arte e muito juizo.

Uns preferiram a Indo-China, outros as partes occidentaes; e em
cincoenta annos varreram das costas e ilhas os presidios e feitorias
portuguezas. O inglez combateu ao lado do persa em Hormuz para nos
expulsar, e o exito levantou todos os naturaes. O soberano do Arakan
lança-nos fóra do Pégu, o de Bengala despede-nos de Hugli, perdemos
assim Mahabalipurum e na contra-costa, Mangaluru, Barkuru, Hanavare,
Chala, Kalikodu. A perda de Hormuz arrastou comsigo Maskat, com a qual
se foram todos os estabelecimentos no litoral da Arabia até ao mar
Vermelho; e desguarnecida a costa do norte, inutil era conservar Sokotra
e os pontos fronteiros no Adal, que foram abandonados com Quilua em
Africa, as ilhas de Malaja e Anjediva, e Passir (Pacem) em Sumatra.

Os hollandezes herdavam, do nosso imperio do extremo Oriente, tudo o que
não voltava a caír no poder dos naturaes. Outro tanto succedia na India.
Da Africa, Arabia, e Persia, isto é, das fronteiras occidentaes,
ficavam-nos Mombas e Moçambique;[117] das fronteiras orientaes, o ponto
isolado de Macau, já na China, e Solor; do centro, restavam apenas uma
cidade e quatro fortes--memoria, mais do que dominio, em frente d'esses
mares, onde já se não via tremular a bandeira portugueza em poderosas
esquadras como as de outro tempo.

Ambon, Tidor, Ternate nas Molucas, Malaka na sua peninsula, Madura e
toda a Sunda, eram hollandezas; os nossos antigos pontos de
Ceylão--Kola-ambu e Kalitura, Negombo e Battikalo, Trinkonomali, Galla e
Jafnapatan, com a ilha de Manaar visinha--pertenciam-lhe tambem; e nas
duas costas da peninsula hindustanica tinham-nos tomado egualmente
Negapatan de um lado, Kollam, Kadunguluru, Kananor, e Katchi, do outro.
Abertamente se proclamava a queda do imperio portuguez, e até os mais
infimos blasonavam. Um regulo do Arrakan escrevia nos seus estandartes:
«Fatekan, senhor de Sundiva, derramador do sangue dos christãos e
destruidor da nação portugueza!»

Tudo estava perdido, e a viagem terminada. Não havia outra cousa a
fazer, senão voltar a casa: embarcar para o reino, com o producto das
rapinas, dando a pôpa a esse mundo, onde a nossa missão terminára.

Cada capitão que, nos bons tempos, regressava da India, fazia outro
tanto: cerrava as arcas atulhadas de ouro e pedrarias, arrumava a
bagagem no porão, e largava as velas á náu, dizendo adeus para sempre ao
Oriente!

                      *      *      *      *      *

Assim aconteceu em 1589 a D. Paulo de Lima, o que assolára Johor, na
Malasia.[118] Foi em janeiro d'esse anno funesto que embarcou em Goa.
Vinha rico; e a náu gemia com o peso do carregamento, abarrotada com um
lastro de pimenta a granel, o convez atulhado de arcas, fardos e
escravos. O capitão trazia comsigo a esposa e domesticos; e embarcaram
com elle, de passageiros, numerosas pessoas: soldados de retorno,
frades, clerigos e mulheres.

Como na India não havia estaleiros onde os navios podessem vêr o fundo e
passar o calafeto, a náu, já velha e demasiadamente grande, voltava em
mau estado. Ao embarque benziam-se todos e imploravam a protecção dos
frades, lembrando-se dos muitos naufragios que o tamanho e má condição
das náus multipticava todos os dias. Este contava que da esquadra de
Kalikodu, no anno anterior, tinham desapparecido quatro náus com toda a
gente, vindo um mastro com a cordoalha da enxarcia entrar pelo rio de
Daman. Aquelle, que já tres vezes fôra á India, narrava o naufragio
celebre da _Flamenga_, e chamava ás náus sepultura de homens, e vasos de
desastres: e um, persignando-se, contrito, dizia que as náus iam e
vinham tão alastradas de peccados, que nas tormentas se ouviam falar os
demonios claramente. Os religiosos não declaravam que fosse impossivel,
mas recommendavam resignação e esperança no auxilio divino; intercalando
nos seus discursos phrases breves, n'um latim sagrado.[119]

Entretanto a viagem seguia feliz com um mar bonançoso. Todos confiavam
em que Deus não deixaria de proteger um capitão piedoso como era D.
Paulo de Lima. Isto, porém, não impedia que fossem commentando as
tristes cousas do mar; e com tanta maior liberdade, que começavam a
crer-se salvos d'esses perigos, á medida que viam irem-se approximando
do terrivel cabo da Africa. Asseguravam que nem um terço dos que
embarcavam em Lisboa chegavam á India, e isto ninguem impugnava, por ser
verdade reconhecida; e que a volta ao reino acabava os que as doenças da
terra, a miseria e a guerra tinham poupado no Oriente. Era um sorvedouro
de homens, era... De 700 a 800 que cada náu levava, só metade vinha a
servir. Depois, queixavam-se dos calafates que lançavam os navios ao
mar, mal feitos e mal vedados; e referiam os numerosos casos de
agua-aberta, dentro do Tejo, em navios novos. Outros accusavam o modo
deshumano com que se arrumava a bordo muita mais gente do que a lotação
permittia: iam como carneiros, a monte, nas toldas, expostos ao sereno
mortifero das noutes, sem camas nem para os enfermos, respirando o ar
podre das cobertas: por estas causas havia o escrobuto, as febres
podres, as dysenterias... como se não bastassem os perigos do mar e dos
ventos! Na náu em que fôra á India D. Antonio de Noronha iam 900
pessoas: metade morreu na viagem. Além d'isso os capitães--era
sabido--roubavam nos mantimentos, e para poupar, escolhiam generos da
peior especie. Tudo ia avariado e podre, a agua corrompida. N'uma viagem
de seis mezes, como a da India, abasteciam-se para cinco apenas: d'ahi
resultavam fomes.

Estas conversas exaltavam muitas vezes os animos. Como punham nos crimes
o nome dos réus, levantavam-se os partidos; e mais de uma vez houve
rixas tão bravas, que o capitão se viu forçado a leval-os de roldão,
para debaixo do castello de prôa; e os frades, atraz, de crucifixos nas
mãos, prégavam paz e amor, com orações pausadas em latim.

Os fidalgos e religiosos, no chapiteu da pôpa, commentavam as queixas
dos soldados, reconhecendo que, em verdade, tinham razão; e como eram
mais letrados, ligavam os effeitos ás causas.

A abundancia da pimenta e uma economia mal entendida tinham exagerado as
dimensões dos navios, ainda por cima aggravada pelo excesso das cargas.
Era funesta uma cubiça, causa de tantas victimas; mas o mal vinha de
longe, desde o reinado de D. João III. Os navios, mal desenhados, de
muito porão, e, por cima de tudo, abarrotados, não obedeciam ao leme, e
eram ronceiros... Verdade seja dita, os antigos não tinham podido
admirar as monstruosas carracas de sete e oito cobertas, com alojamento
para dois mil homens e porões para mil tonelladas de carga. Cada um
d'esses navios parecia um reino! Armavam peças de vinte tonelladas de
peso e calavam mais de dez braças. O costado media cincoenta palmos
acima do lume de agua á meia náu, e chegava a oitenta nos castellos á
pôpa e á prôa. Os baileus, que os ligavam, tinham dois andares: e nos
cestos de gavea cabiam dez ou doze homens, para manobrar os canhões
pequenos: berços e sacres. Mas as carracas, observavam tambem, eram
pessimas no mar: boiavam, não andavam. E um dos fidalgos velhos contava
como era o _S. João_, o _Botafogo_ em que fôra, em 1535, com a divisão
portugueza, a Tunis, na expedição de Carlos V.

E por fim, esquecidos de males distantes, todos concordavam em admirar a
grandeza de Portugal, onde havia sempre para mais de 400 navios de
alto-bordo, além de perto de 2:000 caravelas e vasos menores... porque o
tempo ia bonança, e o vento fresco levava-os rapidamente, pelo canal de
Moçambique, direito ao Cabo.

Estavam em 26° quando, porém, quasi á vista da ponta austral de S.
Lourenço (Madagascar), deram por uma agua que a náu fazia. Tudo correu
aos porões, clamando contra os calafates, por cuja causa as náus se
perdiam, andando pelo mar a Deus misericordia, por pouparem quatro
cruzados. Afastando a carga, viram que a agua era na prôa, abaixo das
escôas, ás primeiras picas: cuspia as estopas e as pastas de chumbo do
fôrro, jorrando no porão, d'um torno tamanho que por elle cabia um
punho. Mas, como o tempo estava bonança, não se affligiram demasiado,
depois de terem vedado o rombo com saccas de arroz; e foram rumando para
o sul, até 32°, a oitenta leguas da terra do Natal. Já levavam tres
mezes de viagem.

Foi então que o vento rondou a sudoeste, o que os forçou a fazerem-se na
volta do norte. O mar crescia, e com o quebrar das vagas a náu
desconjuntava-se, e o torno da prôa, vedado com arroz, cedeu. Agua
aberta e temporal desfeito: era um dia de juizo! Começaram a ouvir-se os
demonios, e as mulheres a gritar em ais. Cada qual implorava o seu
santo, a sua Nossa-Senhora, com uma fé simples e espontanea, beijando os
relicarios e bentinhos, resando em voz alta, confessando em grita os
seus peccados, arrepellando os cabellos, estorcendo-se nas ancias do
medo da morte e do inferno. Decorriam os expedientes devotos e pediam-se
milagres. O capitão levava a bordo uma cruz de ouro com uma particula do
Santo-Lenho engastada: reliquia, fetiche, em que todos punham as maiores
esperanças. Amarraram-na com um fio de retroz, ataram-na piedosamente a
uma espia, lançaram-na pela pôpa, a vêr se moderavam a sanha do mar. A
náu rolava com as ondas, o Santo-Lenho, seguro na pôpa, com um prégo
para o afundar, seguia os balanços do navio. Milagre! milagre!
exclamaram quando o céu aclarou, amainando o vento, parecendo socegar as
ondas. Os homens--fidalgos, soldados e escravos, brancos, pretos,
mulatos e amarellos, pozeram mãos á obra, confiando ainda na salvação.
Havia seis palmos de agua no porão; mas apesar da ancia, revezando-se
nos aldropes das bombas, não conseguiam vencel-a. Alijaram ao mar toda a
carga do convez, para libertar as escotilhas e alliviar a náu que vinha
abarrotada. Nos porões a carga nadava, e as pranchas de brazil, as pipas
da aguada, e mais volumes, boiando, eram lançados pelos balanços do mar
contra o costado, batido por fôra com violencia pelas ondas. O temporal
recrescia; o Santo-Lenho não queria protegel-os! Era um inferno e um
desespero de estrondos, com o assobiar sinistro do sudoeste na cordoalha
das enxarcias. Como as bombas não vasavam os porões, estabeleceram
forcas nas escotilhas, e por ahi tiravam a agua em barris, como de um
poço. D. Paulo de Lima não fugia ao trabalho, puxando á corda como os
escravos. Nem comer podiam; e os frades iam de uns a outros, com agua e
biscoitos, matando-lhes a fome e a sede, combatendo o cansaço com
exhortações, e recommendando contra a desesperança que confiassem na
providencia de Deus...

Tres dias, desde 12 a 14 de março, conservaram a fé e os brios. Ao
quarto viram que trabalhavam debalde. A agua já inundava a coberta, e só
no convez se podia estar. As bombas não trabalhavam, entupidas com a
pimenta a granel do porão; e só á custa do muito que iam alijando--todo
o fructo das rapinas da India!--conseguiam que o navio não sossobrasse.
Já tinham resolvido varar na terra; mas o temporal crescia sempre, e no
meio da cerração plumbea, não podiam governar-se. Para mais, uma vaga
partiu o leme. O vento sudoeste vinha batido em salseiros rijos, que
despedaçavam o panno. A pobre náu era um destroço, com que as ondas
brincavam na sua furia. Assim estiveram, perdidos e já sem esperança,
duas noites e um dia. De 14 para 16, os transes foram medonhos. Em
montes, estendidos no convez, os homens, ou blasphemavam, ou se
confessavam em voz alta, accusando todos os seus crimes, os roubos, as
violencias, os estupros, as matanças da India, e pedindo em lagrimas,
aos clerigos, que os salvassem das penas do inferno! As mulheres,
pranteando-se, levantavam um choro de resas, lembravam-se dos seus
santos favoritos, as _nossa-senhoras_ particulares da sua devoção,
fazendo votos e promessas. Os frades ouviam as confissões, absolviam,
deixando semi-mortos, na confiança do perdão, os que antes clamavam em
desespero, movidos pelo terror. E por sobre tudo isto os salseiros rijos
do vento assobiavam nas cordas, bradando: morte! morte! «D. Paulo havia
que aquelle castigo era por seus peccados.»

No dia 16 o tempo clareou um pouco: e no rumo de nor-nordeste que
levavam, descobriram terra á prôa. A noute de 17 passou-se em afflicções
e esperanças; mas quando amanheceu, e os olhos ávidos não poderam tornar
a vêr a costa, decidiram formalmente deitar o batel ao mar. Logo todos
se precipitaram no barco, ainda suspenso nos apparelhos. A ancia de
viver enlouquecia-os; e D. Paulo em pé sobre o batel, com a espada e a
adaga em punho, defendia-o, acutilando os invasores, como n'uma
abordagem. O seu abatimento, a sua fraqueza, a sua desesperança,
apagavam-se, varridos pela aurora derradeira. Repellidos os homens, o
batel desceu e poisou no mar. Depois veiu remando, pela pôpa da náu,
para receber pela varanda os fidalgos, suas mulheres, e os frades: o
commum dos infelizes tinha a bordo um tumulo feito. Com os balanços da
náu e o impulso da vaga, o batel ameaçava despedaçar-se a cada momento
contra o costado; e as mulheres desciam, penduradas em cordas de lançoes
e pannos, até ao mar, onde as apanhavam.

Os do batel gritavam, desesperados por partir, porque a gente era demais
e o barco afogava-se; os da náu gesticulavam, bradando em furia para que
os salvassem. Uma escrava, com o filho da senhora nos braços, mostrava-o
de bordo á mãe que lh'o pedia, exigindo que a salvassem, se queriam
salvar da morte a creança. E os marinheiros condemnavam, em altos gritos
e phrases insultuosas e obscenas, D. Paulo e os fidalgos, pelos
abandonarem cruamente a uma morte miseravel. Mais difficil fôra o
naufragio da nau _Santiago_, no baixo da India, e tinham-se salvado
todos em jangadas. Não abandonassem os infelizes, lembrando-se apenas de
si, os fidalgos malditos! Havia tempo para formar uma jangada, onde
todos iriam, guiados pelo batel.

N'este desespero infernal e no meio da explosão de egoismo feroz houve
um unico heroe: um frade que não saiu de bordo, sem ter confessado todos
os condemnados. Absolvidos, lançou-se ao mar, e foi a nado agarrar-se ao
batel que se afastava pesadamente: o habito salvou-o, porque os do barco
não ousavam repellir o sacerdote, como repelliam a golpes os mais que
vinham a nado. Na imminencia da morte, escrupulisavam de matar um padre.

Por toda essa noute de angustias, o batel vogou nas aguas da náu: os
remos não podiam vencer a força das ondas, e o vento arrojava-o para o
mar. A carga era demasisada, e reconhecendo isto, deitaram fóra seis
homens; depois mais seis, ficando de 110, em 98, ao todo. A bordo da náu
havia mais de outro tanto.

Condemnados a uma morte inevitavel, já confessados e absolvidos, estavam
resignados. Ainda tinham formado duas jangadas, que o mar logo devorou:
e depois d'isso unanimemente resolveram morrer, a bem com Deus. Os do
batel viam no escuro da noute as luzes das velas accesas ao retabulo da
_nossa-senhora_ do castello da pôpa,[120] diante do qual,
prostradas de rastos, com os cabellos desgrenhados, chorando, as
escravas resavam. Os homens faziam procissões sobre o convez, cantando
ladainhas e hymnos. Pela manhã viram o batel tão perto que chegaram á
fala; e pediam ainda que os salvassem com vozes tão profundas e
piedosas, que mettiam medo e terror.

Finalmente, n'um clamor de gritos e n'uma columna de fumo, espadanando a
agua, a náu sossobrou: no alto do capitel da pôpa a escrava, com a
creança nos braços, mostrava-a á mãe, desolada no batel. A náu
sossobrou, enterrando comsigo os homens, as mulheres e «as cousas da
India, adquiridas pelos meios que Deus sabe».

                      *      *      *      *      *

A viagem da India não terminou aqui. O imperio submergiu-se, mas os
salvados foram arrastando ainda, pela arenosa costa, uma vida de miseria
e perdição...

O batel foi dar á terra em 27°20' sul, na terra dos _fumos_, a que os
cafres chamam Macomata, a Zuluandia. Desembarcaram, os restos da náu da
India; e achou-se que tinham 5 espingardas, 5 espadas e um barril de
polvora. Eram ao todo 98. Dos remos fizeram contos de lanças, e ferros
das verrumas dos carpinteiros. Formaram em columna, seguindo costa em
fóra, em demanda de Lourenço Marques.

Á frente ia um frade com a cruz alçada; depois D. Pedro de Lima com
metade da gente e das armas, na cauda o capitão da náu com o resto; e,
entre ambos, as mulheres, umas de pé, outras em andores levados por
marinheiros e grumetes, e feitos com os remos e velas do batel. Seguiam
a columna bandos de cafres, com quem por vezes tinham de pelejar, e que
fugiam rebolando-se no chão e em gatinhas, como bogios aos saltos.
Dormiam na areia ao relento; comiam alguma cousa que apanhavam,
principalmente os caranguejos da praia; levavam os pés empolados e em
chagas... Em tamanha miseria se tornára o antigo imperio com que tinham
andado pela India, pela Arabia e por Johor, em Malaka!

Na altura de 26°30' depararam com os restos das jangadas da náo
_Santiago_; uma sorte commum esperava, no regresso, todos os que vinham
da India; e esses desastres eram os da nação, que em massa embarcára, e
agora em massa tambem naufragava. «Estas desventuras e outras, diz o
chronista, que cada dia se vêem por esta carreira da India poderam
servir de balizas aos homens, principalmente aos capitães de fortalezas,
para n'ellas se moderarem com o que Deus á boa mente lhes dá, e deixarem
viver os pobres».

Os naufragos, miseraveis e famintos, internaram-se em Manhica, achando
nos cafres a protecção e carinho que negavam no Oriente aos naturaes.
Dispersaram-se em varias direcções, indo uns por mar a Inhambane; e na
ilha de Inhaca, D. Paulo «caío em cama, ou para melhor dizer, no chão»,
e morreu...

Não eram, porém, sómente as ondas que, punindo a desordem e a avidez,
tragavam os navios podres e abarrotados; eram tambem os nossos inimigos,
cruzando nos mares da India, que apresavam as náus portuguezas, como
outr'ora nós tinhamos apresado as dos arabes e egypcios.

Cornelio Honteman, perseguido pela Inquisição de Portugal, fôra para
Amsterdam, e publicára o que sabia das viagens da India, incitando os
hollandezes com as perspectivas de grossos lucros. Em 1595 partiu de
Texel a primeira frota hollandeza que dobrou o cabo da Boa-Esperança; e
já em 1591 os inglezes tinham feito uma viagem á India. Em 1602
fundou-se a companhia hollandeza das Indias orientaes: foi no primeiro
quartel do XVII seculo que o imperio portuguez caíu.

Tudo se desmoronava de um modo simples e rapido. As esquadras perdiam-se
inteiras; e tantas desgraças abatiam os animos antigos, a ponto de
tornarem a covardia tão vulgar, como eram de antes a audacia e a
bravura. Entre outros casos, conta-se o de um philippebote hollandez
tomando um galeão que montava dobrada artilheria e guarnição. Em 1591 e
92, de 22 navios de alto bordo saídos da India, só duas náus chegaram ao
Tejo, porque vinham vasias por velhas. Quer á ida, quer á volta, os
cruzeiros inimigos caçavam as nossas frotas; e a destruição do poder
maritimo portuguez garantiu para todo o sempre a destruição consummada
do imperio do Oriente.

Essa louca viagem, sem pilotos habeis, terminava por um breve naufragio;
e os mares que, no seculo XV nós vencemos com tamanha audacia,
vingavam-se, no XVI, do nosso atrevimento. Rasgáramos as nuvens do Mar
Tenebroso; mas, para além dos seus confins, fomos perder-nos no seio dos
nevoeiros prognosticados pelos geographos arabes, no meio das trevas da
nossa perversidade. A natureza offendida punia-nos com a morte; e o
destino implacavel retribuia-nos todos os males com que tinhamos
flagellado o proximo.

    [112] V. _Raças humanas_, II, pp. 185-91, e _Taboas de Chronol._,
          pp. 45-9.

    [113] V. ácerca dos costumes dos indigenas. _Quadro das instit.
          primit._, pp. 14-5, 158, 160-1, 174; e _Regime das riquezas_,
          pp. 56, 65, 85, 109.

    [114] V. _Regime das riquezas_, p. 109.

    [115] V. _O Brazil e as col. port._, L. IV, 3.

    [116] V. _Hist. da rep. romana_, I, pp. 183-91.

    [117] V. _O Brazil e as colon. Port._ (2.ª ed.), p. 36.

    [118] V. _Hist. da republica romana_, II, p. 185.

    [119] V. a estatistica dos naufragios no _Brazil e as colonias
          port._ (2.ª ed.), p. 34, _nota_.

    [120] V. _Hist. da republ. romana_, I. pag. 194.


FIM DO TOMO PRIMEIRO

                      *      *      *      *      *




INDICE

DO

TOMO PRIMEIRO


         ADVERTENCIA
         LIVRO PRIMEIRO
         Descripção de Portugal
      I. Os lusitanos
     II. Fundamentos da nacionalidade
    III. Geographia portugueza
     IV. A terra e o homem
      V. A historia nacional
         LIVRO SEGUNDO
         HISTORIA DA INDEPENDENCIA
         (DYNASTIA DE BORGONHA: 1109-1385)
      I. A separação de Portugal
     II. A conquista do Al-Gharb
    III. A monarchia e a justiça
     IV. A crise
         LIVRO TERCEIRO
         A conquista do Mar Tenebroso
         (DYNASTIA DE AVIZ: 1385-1500)
      I. O Infante D. Henrique
     II. Portugal em Africa
    III. O principe perfeito
     IV. Em demanda do Preste-Joham das Indias
         LIVRO QUARTO
         A viagem da India
         (1500-1640)
      I. D. Francisco d'Almeida
     II. Affonso de Albuquerque
    III. D. João de Castro
     IV. Summario da derrota. Volta ao reino





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forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

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effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection.  Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
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property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
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that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
https://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at https://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit https://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including including checks, online payments and credit card
donations.  To donate, please visit: https://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


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     https://www.gutenberg.org

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