Côrte na aldeia e noites de inverno (Volume I)

By Francisco Rodrigues Lobo

The Project Gutenberg EBook of Côrte na aldeia e noites de inverno (Volume
I), by Francisco Rodrigues Lobo

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org


Title: Côrte na aldeia e noites de inverno (Volume I)

Author: Francisco Rodrigues Lobo

Release Date: October 14, 2011 [EBook #37757]

Language: Portuguese


*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CÔRTE NA ALDEIA E NOITES DE ***




Produced by Rita Farinha and the Online Distributed
Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was
produced from images generously made available by National
Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)





    *Nota de editor:* Devido à existência de erros tipográficos neste
    texto, foram tomadas várias decisões quanto à versão final. Em caso
    de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final
    deste livro encontrará a lista de erros corrigidos.

                                          Rita Farinha (Outubro 2011)




BIBLIOTHECA UNIVERSAL

ANTIGA E MODERNA



CORTE NA ALDEIA

E

NOITES DE INVERNO

POR

FRANCISCO RODRIGUES LOBO

VOLUME I

16.^a SERIE--NUMERO 62

[Illustration]

LISBOA
COMPANHIA NACIONAL EDITORA

Successora de DAVID CORAZZI e JUSTINO GUEDES
40--Rua da Atalaya--52

FILIAES: Praça de D. Pedro, 127, 1.^o andar, PORTO
38, rua da Quitanda. Rio de Janeiro

1890




LISBOA

TYPOGRAPHIA DA COMPANHIA NACIONAL EDITORA

309, Rua da Rosa, 309

1890




                        Em quanto está o avaro em seu thesouro
                        Cevando os olhos, dando ao pensamento
                        Materia a vã cobiça de mais ouro.

                                     _Primavera_, Floresta, 5.




ADVERTENCIA


A _Noticia biographica_ de Francisco Rodrigues Lobo encontram-a os
leitores á frente do volume 23.^o da _Bibliotheca Universal Antiga e
Moderna_.




CÔRTE NA ALDEIA

E

NOITES DE INVERNO


DIALOGO I

ARGUMENTO DE TODA A OBRA


Perto da cidade principal da Luzitania está uma graciosa aldeia, que com
egual distancia fica situada á vista do mar oceano, fresca no verão, com
muitos favores da natureza, e rica no estio e inverno com os fructos e
commodidades, que ajudam a passar a vida saborosamente; porque com a
vizinhança dos portos do mar por uma parte, e da outra com a
communicação de uma ribeira, que enche os seus valles e outeiros de
arvoredos e verdura, tem em todos os tempos do anno o que em differentes
logares costuma buscar a necessidade dos homens: e por este respeito foi
sempre o sitio escolhido para desvio da côrte, e voluntario desterro do
trafego d'ella: dos cortezãos, que alli tinham quintas, amigos ou
heranças, que costumam ser valhacouto dos excessivos gastos da cidade.

Um inverno em que a aldeia estava feita côrte com homens de tanto preço,
que a podiam fazer em qualquer parte, se juntava a maior d'elles em casa
d'um antigo morador d'aquelle logar, que tambem o fôra em outra edade da
casa dos reis, d'onde com a mudança e experiencia dos annos, fez eleição
dos montes para passar n'elles os que lhe ficavam da vida, grande acerto
de quem colhe este fructo maduro entre desenganos. Alli ora em
conversação aprazivel, ora em moderado e quieto jogo se passava o tempo,
se gosavam as noites, se sentiam menos as importunas chuvas e ventos de
novembro, e se amparavam contra os frios rigorosos de janeiro.

Entre outros homens, que n'aquella companhia se achavam, eram n'ella
mais costumados, em anoitecendo, um letrado que alli tinha um casal, e
que já tivera honrados cargos do governo da justiça na cidade, homem
prudente, concertado na vida, douto na sua profissão, e lido nas
historias da humanidade: um fidalgo mancebo, inclinado ao exercicio da
caça, e muito affeiçoado ás cousas da patria, em cujas historias estava
bem visto: um estudante de bom engenho, que entre os seus estudos se
empregava algumas vezes nos da poesia: um velho não muito rico, que
tinha servido a um dos grandes da côrte, com cujo galardão se reparara
n'aquelle logar, homem de boa creação, e, além de bem entendido,
notavelmente engraçado no que dizia, e muito natural de uma murmuração
que ficasse entre o couro e a carne, sem dar ferida penetrante. Ao
senhor da casa chamavam Leonardo, e ao doutor Livio, ao fidalgo D.
Julio, ao estudante Pindaro, ao velho Solino. Fóra estes havia outros de
quem em seus logares se fará menção, que assim como os mais, não eram
para engeitar em uma conversação de poucas porfias.

Uma noite do novembro, em a qual já o frio não dava logar a que a
frescura do tempo convidasse ao sereno, estando ainda Leonardo á mesa,
porém no fim das iguarias, bateram á porta Pindaro e Solino, aos quaes o
velho mandou abrir com grande alvoroço e festa; porque a de o buscarem
era a que mais estimava por sua. Subiram, agasalhou-os com contentamento
e cortezia. Sentaram-se perto da mesa, e disse o senhor da
casa:--Peza-me que não viesseis mais cedo, que me poderieis acompanhar
n'este trabalho tão necessario da velhice. Mas se ainda virdes na mesa
alguma cousa de vosso gosto, lançae mão d'ella, que de mistura achareis
a minha boa vontade.--Eu sei (disse Pindaro) a que tendes de me fazer
mercê; mas venho ceiado e tambem Solino, a quem tive por hospede, e já a
conversação me dobrou o gosto das iguarias.--Eram ellas tão boas
(respondeu Solino) que a mim me davam graça. Porém o serdes vós tào
miudo nas cortezias, me deu muita pena: e já que sois tão discreto, e
tanto meu amigo, d'aqui adeante emendae-vos nas ceremonias da mesa; e
adverti ao vosso moço que não acompanhe com os olhos os bôccados dos
hospedes, até o estomago: porque apostarei que me contou todos os da
ceia, e anda tão destro no apartar das brigas, que ainda bem não desvio
um prato do outro, quando me dá xaque em ambos, e me deixa em casa
branca. E não vos pareça que é isto dizer que venho faminto; que, se
assim fôra, póde ser que o cumprimento do sr. Leonardo não ficára solto
e livre; antes é fazer-vos lembrança que, pois daes tambem de comer, não
tenhaes um moço Harpya, que descomponha o sabor dos manjares.--Bem sei
(respondeu Pindaro) que ainda farto não haveis de deixar de roer. O meu
moço é de uma d'estas aldeias vizinhas, ha pouco que me serve; por isso,
e por ser creado de estudante, lhe devieis perdoar o erro, e a mim o
remoque; porém a vossa condição não se sujeita a respeito nem a
desculpas.--É tão saborosa a murmuração de Solino (disse Leonardo) que
tambem na mesa se póde estimar como boa iguaria: e se a eu tivera muitas
vezes, déra vida ao appetite que para as outras me falta.--Se o ella
fôra (tornou Solino) em mais occasiões me valêra das em que a vós podeis
desejar. Mas, não tratando de vol-a offerecer, nem de a desculpar com
meu amigo; como ceiastes hoje tão tarde, e não vieram mais cedo o doutor
e D. Julio?--Antes (disse o velho) me mandaram já recado, e não devem
tardar. Eu o fiz com a ceia, porque os homens de serviço me não deram
logar senão a esta hora: mas ouço que batem á porta e devem ser elles.

A este tempo mandou juntamente alçar a mesa, e levar a luz á escada.
Subiram o doutor e D. Julio; saudaram-se com muita alegria; e sentados
perto do fogo, disse o velho: Muito deveis ambos a Solino; porque vindo
a esta casa com Pindaro, de quem foi convidado na ceia, e tendo a minha
em estado de que se podia aproveitar de alguma cousa d'ella, vos achou
menos, e perguntou a causa da tardança; signal é este de amor e da pouca
razão com que o temos por desobrigado de toda a affeição dos
amigos.--Não é Solino tão descuidado do que lhe eu mereço (tornou D.
Julio) que se esqueça de mim, e de quanto sentirei perder horas suas: e
pelo interesse das da conversação do doutor o tivera em menos conta se
as não desejára: e além d'isto posso affirmar que está pago da lembrança
que teve, com a diligencia que fizemos pol-o trazer comnosco, que
voltamos pela sua porta, e eu tirei uma pedra á janella, d'onde me
disseram que ceiava com Pindaro; e cada um dos dois me fez inveja.--Ah!
sr. D. Julio (respondeu elle) tão grande trovoada de cumprimentos seccos
não podia deixar de lançar pedra. Eu tenho feita a conta, e sei que não
posso pagar o que vos devo além d'essa honra e mercê, senão com a
humildade com que a todas reconheço por vossas. Dae-vos por satisfeito
de meus desejos, e de pôr aqui ponto nos cumprimentos; porque não tenho
polvora mais que para a primeira salva.--Já eu me quizera metter em meio
(disse o doutor) porque se vós a terdes em cortezias, não haverá quem as
pague, se não fôr Pindaro, que tem uma corrente tão arrebatada, que não
dá vau a nenhuma rethorica do mundo.--Agora (arguiu Leonardo) levastes
tres de um tiro; não me dou por seguro n'este logar, inda que é de minha
casa: porém não tendes razão contra Pindaro, que, cada vez que o ouço,
me parece um livro de cavallarias. Se elle tivera encantamentos escuros,
castellos roqueiros, cavalleiros namoradores, gigantes suberbos,
escudeiros discretos, e donzellas vagabundas, como tem palavras sonoras,
razões concertadas, trocados galantes, e periodos que levam todo o
fôlego, pudéra pôr a um canto o Amadis, Palmeirim, Clarimundo, e ainda o
mais pintado de todos os que n'esta materia escrevêram: e já estive em o
persuadir que se mettesse em uma empreza semelhante: porém receio que se
me ensoberbeça com a altiveza de seu estylo, e despreze aos amigos.--Não
merecia eu, sr. Leonardo, a vós, nem ao doutor (disse Pindaro) que
tomasseis meus defeitos por materia de vossa galantaria: falo como sei,
e cada um se extende conforme a roupa com que se cobre. Não sou tão
philosopho como o doutor, tão cortezão como vós, nem tão engraçado como
Solino, nem tenho maiores penas que a gaiola; porém se abrisse as azas
para compôr livros, não houveram de ser de patranhas. Por isso fiae mais
de meus pensamentos.--Nunca o tive de vos offender (respondeu o velho)
nem me parece com razão a vossa desconfiança; nem podeis fazer tão pouca
conta dos livros de cavallarias, e dos famosos auctores que os
escreveram, e que mostraram n'elles a sua boa linguagem com toda a
perfeição: a graça de tecer e historiar as aventuras, o decoro de tratar
as pessoas, a agudeza, a galantaria das tenções, o pintar as armas, o
betar as côres, o encaminhar e desencontrar os successos, o encarecer a
pureza de uns amores, a pena de uns ciumes, a firmeza em uma ausencia, e
outras muitas cousas que recreiam o animo, affeiçoam e apuram o
entendimento. Se vós tendes por despreso compôr livros de cavallarias,
eu vos desengano que pertencem mais cousas ao bom auctor d'elles, que a
um dos lettrados philosophos ou juristas, com que desejaes do vos
parecer; porque lhe importa saber a geographia dos reinos e provincias
do mundo, para encaminhar por ellas a sua historia; ter noticia dos
nomes e cousas que usam n'aquellas partes, d'onde faz naturaes os
cavalleiros, saber estylo de côrte para as mesuras, gasalhados e
cortezias, conforme as pessoas introduzidas, conhecer da justiça, do
torneio e do sarau. a ordem, as leis e as gentilezas, entender da
bastarda e da gineta, o que convém para pintar o encontro, a quéda, o
acerto, o dezar, o brio ou descuido de um cavalleiro, debuxar o cavallo
nas côres, concertal-o nas redeas, no pizar, no arremesso, na furia, na
destreza, nas carreiras, chaças e rodeios, e sobre o conhecimento de
todas as sciencias e disciplinas, tambem ha de ter alguma noticia dos
nigromantes antigos para os encantamentos que servem de bordão e
valhacouto aos historiadores.--Tenho por mal empregado (disse então o
doutor) tanto cabedal em cousa de tão pouco interesse, e não sou de voto
qee o auctor, que tiver as partes que vós dizeis que são necessarias
para essa composição se occupe n'ella. De que servem livros de
cavallarias fingidas? E se ha ociosos que os leiam, porque ha de haver
algum que os escreva? Ou que espere algum fructo de trabalho tão
vão?--Mas que certeza tão grande (tornou Leonardo) que cada um approva o
que segue, sendo assim que ninguem se contenta do que tem. Desejaveis
agora que todos os livros, e todos os homens tratassem sómente da vossa
profissão e fossem juristas e philosophos. Pois ainda que eu sou
bacharel em linguagem, me atrevo a contradizer essa opinião adquirida em
latim: porque para recreação, politica e bom estylo se não deve menor
logar a estes, que aos vossos de trapaças e opiniões, e outros a que
chamaes conselhos, que o dão ás vezes bem ruim a quem se fia de sua
leitura.

--Eu era de parecer (disse D. Julio) que poupassemos esta materia para
gastar a noite, pondo-a em maneira de disputa. E se a todos parece
assim, cada um diga sua opinião nos livros que mais lhe contentam, e das
razões que tem para os approvar; e d'este modo, ou affeiçoados, ou
convencidos, saberemos os que são de maior gosto, e utilidade.--A isto
(respondeu Solino) até agora estive calado contra minha natureza; porque
me houve por incapaz de fazer terço ao doutor e Leonardo: mas pois o
voto é que se jogue com toda a baralha, digo que é esta a melhor materia
que se podia escolher para passar o tempo. E já pode ser que algum dos
que aqui estão, que deseja deixar no mundo memoria de seu engenho, saiba
n'esta occasião o em que o pode empregar melhor.--Pelo que a mim toca
(disse o doutor) comecemos logo; e a vós, sr. D. Julio, é bem que demos
a mão a troco do alvitre: e não tratando dos livros divinos, nem dos
necessarios, dos de recreação nos podeis dizer quaes, e por que razões
vos contentam.--A minha inclinação em materia de livros (disse elle), de
todos os que estão presentes é bem conhecida: sómente poderei dar agora
de novo a razão d'ella. Sou particularmente affeiçoado a livros de
historia verdadeira, e mais, que ás outras, ás do Reino em que vivo, e
da terra onde nasci: dos reis, e principes que teve, das mudanças que
n'elle fez o tempo e a fortuna, das guerras, batalhas, e occasiões, que
n'elle houve, dos homens insignes, que pelo discurso dos annos
florecerão: das nobrezas e brazões que por armas, lettras, ou privança
se adquiriram. O que me inclinou á escolha d'esta lição, foi que tive
alguma de um homem muito douto, em o que o deve desejar de ser, e
parecer o que é bem nascido; ao qual elle dizia, que o que mais convinha
que soubesse era, o appellido, que tinha, d'onde lhe veio; quem fôram
seus passados, que armas lhe deixaram, a significação, e fundamento da
figura d'ellas, como se adquiriram, ou accrescentaram. Logo os reis que
reinaram na sua patria, as chronicas d'elles, os principios, as
conquistas, as emprezas, e o esforço de seus naturaes; porque falando
d'elles nas terras extranhas, ou na sua com extrangeiros, saiba dar
verdadeira informação de suas cousas. E alcançadas estas, lhe estará bem
tudo o que mais puder saber das alheias. E na verdade, nenhuma lição
pode haver que mais recreie, e aproveite, que a que sei que é
verdadeira, e por natural ao desejo dos homens deleitosa.--Não é essa a
minha opinião (disse Solino) porque contra o gosto me assombram muito
cousas passadas, e andar abrindo sepulturas de gente morta. E no que
toca á verdade, certo que á conta dos enterrados se escrevem algumas
vezes tão grandes mentiras, que lhes não levam vantagem os fingimentos
de historias imaginadas. E havendo um homem de ler o que não é, ou o que
sabe, é tão caldeado, e tão batido da forja dos auctores, que mudado
traz o metal, a côr, e a natureza: estou melhor com os livros de
cavallarias, e historias fingidas, que, se não são verdadeiros, não os
vendem por esses: e são tão bem inventados, que levam após si os olhos,
e os desejos dos que os lêem. E não estima um auctor matar mais dois mil
homens com a penna, para fazer valente o seu cavalleiro, com a espada,
sem estar receando os ditos das testemunhas que ficaram da batalha; que
por eguaes respeitos pende cada uma para seu cabo. Pois se é caso, em
que um historiador queira passar adeante como Ariosto, não matou mais
gente a peste grande em Lisboa, que Rodamonte nos muros de Paris.--Essa
é uma das razões, porque eu os reprovo (tornou o doutor) porque a fabula
é uma cousa falsa, que podia comtudo ser verdadeira, e acontecer assim
como se fingio. Porém a isto não dão logar os livros de cavallarias, com
esses excessos, e outros encantamentos, fazendo casas, e torres de
crystal, edificios, lagos, e columnas impossiveis, pyramides de
alabastro, e casas de pedraria, cuja riqueza podia empobrecer a fortuna.
E em nossos tempos, na India Oriental, sabemos que o rei Mogor andou
muitos annos fabricando uma casa de esmeraldas, por cujo respeito se
passavam d'este Reino á nossa India as da Occidental. E emfim morreu sem
a acabar; e não ha livro de cavallarias em que qualquer cavalleiro de um
castello não acabe cousas maiores. E deixando isto, é graça, e
galantaria, comparar historias verdadeiras com patranhas
desproporcionadas, que gastam o tempo mal a quem n'ellas se occupa,
quando as outras servem de exemplo para imitar, de lembrança para
engrandecer, e de recreação para divertir. A quem não anima ler as
historias de seus passados? A quem não move o desejo de egualar a fama
que lê de suas obras? O governo da paz? A ordem da guerra? O trato dos
homens? O commercio das provincias? D'onde se conserva, alcança, e sabe
senão pelas historias verdadeiras? Porque n'ellas sabe cada um
felizmente pelos successos alheios o que deve seguir. D'onde Marco
Tullio chamou á historia mestra da vida.--Vós, sr. doutor (disse Solino)
achareis isso nos vossos cartapacios: mas eu ainda estou contumaz.
Primeiramente, nas historias, a que chamam verdadeiras, cada um mente
segundo lhe convém, ou a quem o informou, ou favoreceu para mentir;
porque se não fôrem estas tintas, é tudo tão misturado, que não ha panno
sem nodoa, nem légua sem máu caminho. No livro fingido contam-se as
cousas como era bem que fôssem, e não como succederam, e assim são mais
aperfeiçoadas. Descreve o cavalleiro como era bem que os houvesse, as
damas quão castas, os reis quão justos, os amores quão verdadeiros, os
extremos quão grandes, as leis, as cortezias, o trato tão conforme com a
razão. E assim não lereis livro, em o qual se não destruam soberbos,
favoreçam humildes, amparem fracos, sirvam donzellas, se cumpram
palavras, guardem juramentos, e satisfaçam boas obras. Vereis que as
damas andam pelas estradas, sem haver quem as offenda, seguras na sua
virtude propria, e há cortezia dos cavalleiros andantes. E quanto ao
retrato e exemplo da vida, melhor se colhe no que um bom entendimento
traçou, e seguiu com muito tempo de estudo, que no successo, que ás
vezes se alcançou por mão da ventura, sem a diligencia e engenho
metterem nenhum cabedal. Não digo que os livros tenham excessos
desatinados, que não sejam semelhantes á verdade, nem os encantamentos
tão escuros e desconformes, que não tenham alguma maneira de enganar o
juizo; porém os livros bem fingidos, como verdadeiros obrigam. Um
curioso em Italia (segundo um auctor de credito conta) estando com sua
mulher ao fogo lendo o Ariosto, prantearam a morte de Zerbino com tanto
sentimento, que lhe accudiu a visinhança a saber o que era. E no que
toca ao exemplo; um capitão valoroso houve em Portugal, que o não teve
melhor o Imperio Romano, que com a imitação do um cavalleiro fingido,
foi o maior de seus tempos, imitando as virtudes que d'elle se
escreveram. Muitas donzellas guardaram extremos de firmeza, e
fidelidade, costumadas a lêr outros semelhantes nos livros de
cavallarias. Na malicia da India tendo um capitão nosso cercado uma
cidade de inimigos, certos soldados camaradas, que albergavam juntos,
traziam entre as armas um livro de cavallarias, com que passavam o
tempo. Um d'elles, que sabia menos que os mais d'aquella leitura, tinha
tudo o que ouvia lêr por verdadeiro (e assim ha alguns innocentes, que
cuidam que se não pode mentir em lettra redonda) os outros ajudando a
sua simpleza lhe diziam que assim era. Veio occasião de um assalto, em
que o bom soldado invejoso, e animado do que ouvia lêr, lhe pareceu
ensaio de mostrar seu valor, e fazer uma cavallaria, de que ficasse
memoria; e assim se metteu entre os contrarios com tanta furia, e os
começou a ferir tão rijamente com a espada, que em pouco espaço se
empenhou de sorte, que com muito trabalho, e perigo dos companheiros, e
de outros muitos soldados, lhe ampararam a vida recolhendo-o com muita
honra, e não poucas feridas. E reprehendendo-o os amigos d'aquella
temeridade, respondeu: Ah! deixae-me, que não fiz a metade do que cada
noite lêdes de qualquer cavalleiro do nosso livro. E elle d'alli adeante
o foi muito valoroso.--Muito festejaram todos o conto, e logo proseguiu
o doutor: Tão bem fingidas podem ser as historias, que mereçam mais
louvor, que as verdadeiras; mas ha poucas que o sejam; que a fabula bem
escripta (como diz Santo Ambrozio) ainda que não tenha força de verdade,
tem uma ordem de razão, em que se podem manifestar as cousas
verdadeiras. Xenofonte querendo pintar uma republica perfeita, e
regimento politico, por modo de historia, fingiu o governo de Cyro, rei
dos Persas. D. Antonio de Guevara, em nome de um imperador romano
escreveu o que elle queria dizer em Hespanha; e outros que ainda em modo
mais extranho ensinaram aos homens, como Esopo nas suas fabulas, e Lucio
Apuleio no seu Asno d'ouro; e todos os livros que em seu genero são
bons, se podem chamar perfeitos. Resta agora que o que escreve historia
seja verdadeiro; e não terá Solino de que o reprehender n'ella. O que
compõe fabulas seja verosimil, e não terei eu razão de o reprovar. O que
trata de sciencia, alegue razões. O que fala de artes, experiencia. E o
que quer ensinar principios, mostre auctoridade. E posto que eu tenha
muitas que allegar em favor da vossa opinião, sr. D. Julio, vós estaes
no caso, e todos os mais, que a historia verdadeira apascenta os doutos,
adelgaça os grosseiros, encaminha os moços, ensina os mancebos, recreia
os velhos, anima aos baixos, sustenta aos bons, castiga aos maus,
resuscita aos mortos, e a todos dá fructo a sua lição. E porque esta não
seja mais comprida, diga Pindaro agora a sua opinião.

--Apostarei eu (disse Solino) que, se a Pindaro lhe armarem com poesia
levantada sobre os bons conceitos, e versos, que com serem amorosos,
sejam arrogantes, que o tomaram como passaro em visco.--Para isso (disse
o doutor) arredar-lhe as occasiões, e vá com declaração, que não
tratamos de poesia.--Essa condição (accudiu Pindaro) logo ao principio
ficou declarada; que como exceptuastes livros divinos, n'esse numero
devem estar os dos poetas, que mereceram este nome; e o que elles
antigamente tiveram, e ainda agora lhe dão os Latinos, assim o deixa
entender. E Platão quando d'elles escreve, lhes chama divinos
interpretes dos deuzes, possuidos de espiritos celestes: d'onde Marco
Tullio tirou os louvores, com que os trata. Origenes affirma que a
poesia é uma virtude espiritual, que inspira em os poetas, e lhes enche
o animo e o entendimento de uma divina força. Santo Agostinho lhes chama
theologos para cantarem os louvores divinos. Diziam os philosophos
antigos que, se os deuses falassem, seria em verso: trazendo exemplo do
oraculo de Apollo, e das Sibyllas. Cassiodoro diz que a poesia tomou
principio da divina escriptura. De maneira que por auctoridade de tão
grandes varões, nunca os livros de poesia podem vir em competencia com
os de que até agora tratastes; que d'outro modo já estivera concluida a
differença.--O que eu vejo (tornou D. Julio) que, ainda que o doutor vos
cerrara a porta, que mettido de ilharga dissestes tudo o que cumpria a
vosso intento por junto, o quanto para mim estaes declarado; o com o
desejo de ouvir a opinião do doutor, não digo o mais que me,
parece.--Ora (respondeu elle) não quero que a essa conta fique o meu
voto ás escuras; e digo, não falando em poesia, que não escolho lição de
historiadores verdadeiros, nem tenho por melhor a dos fingidos; porque
uns servem de conservar a memoria, os outros de enganar o entendimento:
e serão melhores os livros que deleitem a memoria, e a vontade, e
apurem, e levantem o entendimento, como os de recreação, que com alguma
enganosa novidade tratam de materias politicas, e engraçadas: de côrte,
de aldeia, e de qualquer sujeito aprazivel: e ha d'estes muito bem
recebidos, approvados, e proveitosos na republica, cuja variedade, e
doutrina é para mim lição muito saborosa.--Não estou mal com essa
opinião (disse o doutor) o quasi que vós, e eu estamos em um mesmo
pensamento; senão que deixastes de declarar o que agora me fica para
dizer; porque até aqui falámos do modo de compor, e escrever livros; e
não das materias, que escriptas serão agradaveis. E deixando em duvida o
vosso parecer para se conferir com a tenção; o meu é, que o melhor modo
de escrever são os dialogos escriptos em prosa, com figuras
introduzidas, que disputem, e tratem materias proveitosas, politicas,
engraçadas, e cheias de galanteria: sendo a primeira figura da obra o
autor d'ella; e isso que vá guiando, e introduzindo as mais, que sejam
apropriadas áquellas materias, de que hão de tratar entre si. E além de
ser este estilo mais claro, mais vulgar, mais excellente, inclue em si a
lição de todos os outros modos de escrever, como o são os da historia
verdadeira, e fingida, das artes liberaes, e mecanicas; das sciencias, e
disciplinas necessarias; das profissões particulares; da razão do
governo; da vida politica ou privada. E quando este modo de escrever não
tivera por si mais que a auctoridade dos que n'elle escreveram, como foi
Platão, Xenofonte, Tullio, e outros infinitos: essa bastara para
acreditar os dialogos. Além d'isto, eu tenho para mim que aquella é
melhor escriptura, que com mais perfeição, e viveza imita a pratica, e
conversação dos homens; porque assim como a melhor pintura é a que mais
se parece com a obra da natureza, a que quer contrafazer; assim a melhor
escriptura é a que retrata com mais semelhança o falar, e conversação
d'entre os amigos. Nos poemas tinham os poetas antigos que o mais
levantado era a tragedia pela imitação natural da pratica, com
introducção de figuras, junto com a gravidade, peso, e tristeza dos
successos tragicos. E porque tambem a variedade é a que mais costuma
enterter, e deleitar o animo dos homens, e esta é mais certa, e mais
propria nos dialogos, me parece que no gosto d'elles serão melhor
recebidos.

--Pois assim é (disse D. Julio) que a principal razão porque approvaes
os dialogos, é porque mais familiarmente se parecem com a pratica.
Desejo saber qual é mais nobre cousa, se a pratica, se a escriptura:
porque a mim me parece que á escriptura se deve o melhor logar, e que
antes merecia a pratica por se parecer com ella; o que agora encontra a
vossa opinião.--Nenhuma duvida ha (respondeu o doutor) que a pratica
seja mais nobre, mais antiga o mais excellente; porque, além de o falar
ser operação natural dos homens, e acto em que elles fazem vantagem, e
differença a todos os animaes, a escriptura não é mais que uma escrava e
servente das palavras, e o escrever não é outra cousa mais que supprir
com um instrumento por meio da arte, e das mãos o que com a voz se não
póde exprimir e alcançar com os ouvidos, ou por distancia de logar, como
quem escreve aos ausentes, ou por discurso de tempo, como quem escreve
para os vindouros. E porque nunca a escrava é tão nobre como a senhora a
quem serve, em quanto escrava, nem o que substitue em logar d'outrem se
lhe póde preferir no mesmo logar; assim nunca a escriptura póde egualar
a nobreza e perfeição da pratica.--O contrario me parece a mim (replicou
o fidalgo) porque nem por a pratica ser mais antiga, e primeira que a
escriptura é mais perfeita; antes ella foi a perfeição da pratica: e
posto que seja própria operação do homem o falar, não é n'elle menos
nobre accidente o de escrever; antes me parece mais digno o que elle
alcançou por arte, que o que adquiriu por uso: e quasi que ousaria a
dizer que é operação sua o falar, dada a respeito de haver de escrever,
pois esse é o meio de se perpetuar, sustentando no entendimento dos
presentes, e na lembrança dos futuros a memoria das cousas passadas.
Assim que nem por a primeira razão merece a pratica melhor logar, nem a
escriptura, por servente e ministra sua, é menos nobre. Porque o sol
serve de mostrar as cousas creadas, que lhe são muito inferiores, e de
dar luz e nutrimento a outras de menor qualidade, e nem por isso ellas
se lhe podem antepôr. E quanto a substituir a escriptura em logar da
voz, ella o faz por tão excellente maneira, que lhe tem muita vantagem;
pois o que a voz não póde exprimir juntamente em differentes logares, e
a diversas pessoas em um mesmo tempo, o faz a escriptura com grande
perfeição, podendo muitas pessoas, em differentes logares, lêr em um
mesmo tempo a propria cousa: pelo que me parece que, ainda que a vossa
escolha fosse boa, não fundastes bem a razão d'ella.--Certo (disse
Leonardo) que de ambas as partes déstes tão boas razões, que fica
duvidosa a melhoria. Porém concedendo á pratica a excellencia, a acção,
o modo e a graça de falar, que é uma viveza a que se não eguala outra
nenhuma lembrança; a escriptura tem tantas grandezas que parece
egualmente necessaria para a vida, pois ficava o mundo ás escuras sem a
luz da dilação escripta; e só na tradicção dos homens se salvaria a
memoria das cousas; e nas principaes dominaria a ignorancia com mero
imperio. Porém, deixando isto por averiguar, pois com tanta galantaria e
agudeza está tocado o que baste, quero que passemos adeante, e, por me
fazerdes mercê, que me ensineis se na pratica, em voz, e na escriptura
considerada tem bom logar a nossa lingua portugueza; porque ouço de má
vontade a alguns naturaes que tratam mal d'ella e a condemnam por
grosseira e limitada.

--Uma cousa vos confessarei eu, sr. Leonardo (disse a isto D. Julio) que
os portuguezes são homens de ruim lingua, e que tambem o mostram em
dizerem mal da sua, que assim na suavidade da pronunciação, como na
gravidade e composição das palavras é lingua excellente. Mas ha alguns
nescios, que não basta que a falem mal, senão que se querem mostrar
discretos, dizendo mal d'ella: e o que me vinga de sua ignorancia, é que
elles acreditam a sua opinião; e os que falam bem desacreditam a ella e
elles.--Bravamente é apaixonado o sr. D. Julio (acudiu o doutor) pelas
cousas da nossa patria: e tem razão, que é divida que os nobres devem
pagar com maior pontualidade á terra que os creou. E verdadeiramente que
não tenho a nossa lingua por grosseira, nem por bons os argumentos com
que alguns querem provar que é essa; antes é branda para deleitar, grave
para engrandecer, efficaz para mover, dôce para pronunciar, breve para
resolver, e accommodada ás materias mais importantes da pratica e
escriptura. Para falar é engraçada com um modo senhoril: para cantar é
suave com um certo sentimento que favorece a musica: para prégar é
substanciosa, com uma gravidade que auctorisa as razões, e as sentenças:
para escrever cartas nem tem infinita copia que damne, nem brevidade
esteril que a limite: para historias nem é tão florida que se derrame,
nem tão secca que busque o favor das alheias. A pronunciação não obriga
a ferir o céo da bôcca com aspereza, nem arrancar as palavras com
vehemencia do gargalo. Escreve-se da maneira que se lê, e assim se fala.
Tem de todas as linguas o melhor: a pronunciação da latina; a origem da
grega; a familiaridade da castelhana; a brandura da franceza; a
elegancia da italiana. Tem mais adagios e sentenças que todas as
vulgares, em fé de sua antiguidade. E se á lingua hebrea pela
honestidade das palavras chamaram santa, certo que não sei eu outra que
tanto fuja de palavras claras em materia descomposta quanto a nossa. E
para que diga tudo, só um mal tem, e é que pelo pouco que lhe querem
seus naturaes, a trazem mais remendada, que capa de pedinte.--Folguei
extranhamente de vos ouvir (disse Solino) por não ficar tão covarde,
como até agora estava, em ouvindo murmurar da lingua portugueza; e não
ousava, ou não sabia dizer a minha opinião, a qual cuidava que me nascia
do amor que lhe tenho, e que cada um tem ás suas cousas como o corvo aos
filhos, e Pindaro ás suas trovas. Porém quando um homem tão bem fundado
na razão como o doutor, e tão auctorisado em seu parecer sustenta esta
parte, nenhuma haverá já tão rija, que me tire o atrevimento.--Nem a
lingua (disse Pindaro) pois não ha amizade que vos faça perder o
costume.--Perdoae-me (tornou elle) que vos feri por não perder o golpe.
E tornando ao que aqui se tratou para recordar o que começamos,
averiguou o doutor que a melhor maneira de escrever eram os dialogos
(ficando meu direito reservado nos livros de cavallarias), tocaram-se
louvores da pratica e escriptura com muito engenho; declarou-se como a
lingua portugueza não desmerece logar entre as melhores, para n'ella se
escreverem materias levantadas, apraziveis, proveitosas e necessarias.
Que falta entre vós para que d'estas noites bem gastadas, d'estas
duvidas bem movidas, e d'estas razões melhor praticadas se faça um ou
muitos dialogos, que sem vergonha do mundo possam apparecer nas praças
d'elle á vista dos curiosos, e ainda dos murmuradores?--Tem Solino muita
razão (disse D. Julio) e se assim forem os dialogos como se podem formar
com a pratica de alguns que estão presentes, bem se auctorisará a
opinião do doutor, posto que a minha fique de vencida com a vantagem que
aqui tem a pratica das escripturas alheias. E pois se aproveitam tão bem
as noites n'este logar, razão é que por meio d'elles se communiquem a
quem se aproveite da doutrina e interesse d'ellas.--Se eu não dormira
tão poucas horas da passada (disse o doutor) ainda houvera de proseguir
adeante e responder a isso; mas com vossa licença me vou recolher e
amanhã accudirei mais cedo.--Acompanhemos o doutor (disse o fidalgo), e
levantando-se elle, se despediram todos com muita cortezia, deixando ao
senhor da casa magoado de se acabar tão depressa a conversação; que quem
sabe estimar a que é tão boa, tem sentimento das horas que d'ella perde.




DIALOGO II

DA POLICIA E ESTYLO DAS CARTAS MISSIVAS


Ficaram os amigos tão affeiçoados á conversação d'aquella noite, que,
por fazerem a do outro dia mais comprida, acudiram a ajuntar-se logo
depois de se pôr o sol; porém cada um com pejo de ser o primeiro,
passeavam em dois postos, o doutor com D. Julio, e Pindaro com Solino á
vista da casa de Leonardo, até que elle chegou á janella; e mostrando o
mesmo desejo que os quatro traziam, facilitou o receio e approvou as
horas. Subiram todos, e disse o doutor:--Pareceu-me este dia tão
comprido, na esperança da noite, como aos trabalhadores que devem o
jornal.--E a mim (tornou Leonardo) a noite, depois que me deixastes, tão
importuna como quem espera a manhã para cousa de seu gosto: e assim não
é muito que vós viesseis tão cedo, e que a mim me pareça que já era
tarde.--Todas as cousas que se desejam muito (tornou D. Julio) por pouco
que se dilatem, tardam mais.--E as que se temem (proseguiu Solino) por
muito que tardem, parece que se anticipam. D'onde um disse
maravilhosamente que o que queria que a quaresma lhe parecesse breve,
devesse pagamentos para a Paschoa. Emfim chegou mais cedo este prazo que
todos desejamos: e se o senhor da casa dormiu pouco, eu apostarei que ha
algum na companhia que se desvelou mais.--Não era occasião para
descuidos, (disse o doutor) e nos mancebos era demasiada desconfiança
entrar n'esta batalha desapercebidos.--Os apercebimentos (tornou o
fidalgo) podem fundir muito pouco: porque como até agora é incerta a
materia de que se deve tratar, serão sem fructo as diligencias.--É
engano (replicou Solino) que nunca falta uma carta em que prender; como
um homem tem as suas apuradas e ha cousas que se levam a rasto como
corpo morto, e quando sejam bem cuidadas, nunca são mal ouvidas. E se
não, digam-n'a as olheiras com que esta manhã vi a meu amigo
Pindaro.--Já sei (disse Pindaro) que vêdes mal: mas contra mim ainda é
peior a vossa tenção que a vista; não me pagaes bem o que vos mereço,
mas é na moeda que tendes.--E na que corre (tornou elle) que o rifão de
agora diz que fazer e dizer mal, nunca se perde. Não vos escandaliseis;
que tudo ha nos homens e nas cartas. Essa (disse então D. Julio) hei eu
de partir: porque desejava muito alçar por ellas; e pois o doutor falou
hontem em cartas missivas, e approvou para ellas a lingua portugueza,
nos ha de declarar o que ha de ter uma carta para ser cortezã e bem
escripta.--Esse cargo (tornou o doutor) convem mais ao senhor da casa:
porque ainda que a carta consta de lettras, não é profissão de lettrado
fazel-as cortezãs: e quem sabe tanto do estylo da côrte como Leonardo,
póde dar lei para ellas.--Vós (respondeu elle) sois doutor em tudo, e
meu superior em todas as materias, e como tal me podeis dar o grau de
cortezão. Eu o quizera parecer na confiança, e em obedecer ao gosto
d'estes amigos. Mas para eu proseguir com auctoridade é bem que vós
comeceis a principiar a materia: dizendo, que nome é _carta_, e o seu
principio, pois me daes o cargo antes de estar apercebido para
elle.--Bem sei (lhe respondeu o doutor) que por me honrardes a mim
tomaes tudo á vossa conta; folgarei de a dar boa do que me encommendaes.

Este nome _carta_ é generico, e teve origem de uma cidade do mesmo nome,
d'onde foi natural a rainha Dido, que, por o amor que tinha á sua
patria, pôz á que edificou por nome _Cartago_. E porque em carta se
inventou primeiramente a maneira em que se escrevia (ou fosse papel, ou
outra cousa semelhante a elle) tomou d'ella o nome como de _Pergamo_ o
_pergaminho_. É para saber que nos primeiros tempos, quando se
inventaram as lettras, escreviam os homens nas folhas das arvores: como
ainda hoje nas da palmeira escrevem os gentios de algumas partes do
oriente: as Sybillas n'ellas escreveram suas prophecias; e assim se
chamaram a seus escriptos _folhas sybillinas_; e ainda na linguagem
portugueza se conserva alguma cousa d'esta antiguidade, pois dizemos
_folhas de papel_ sem o papel ter folhas, mas é em lembrança das
primeiras que se usaram na escriptura. Depois se escreveu em uma casca
tenra de arvores, que é o entreforro da cortiça. E porque a esta
chamavam _livro_, conservam ainda agora elles o nome, e a divisão que
agora fazem os escriptores de _livro primeiro_, _segundo_, e d'ahi
adeante é o numero, porque então deviam contar aquellas cascas. Tambem
se escreveu em o miolo de uma maneira de juncos, a que chamaram
_papiros_: d'onde aos latinos ficou o nome para o papel. Depois se
escreveu em taboas nas quaes sobre cêra, com um instrumento de ferro ou
de latão, a que chamavam _estylo_, se assignavam as lettras; e do ferro
com que se escreveram, se veiu a derivar o que agora dizemos _bom_ ou
_máu_, _humilde_ ou _altivo estylo_ de escrever, passando-se por
translação a perfeição do instrumento ao concerto e policia das
palavras. D'este proprio modo se usa no nome de carta, que alcança em
genero a todo genero de papel escripto e ainda pintado. Os portuguezes
fazemos este nome particular tomando _carta missiva_ por a principal de
todas; e assim basta dizermos _carta_, sem mais declaração, para se
entender que é esta; porém nas especiaes d'ellas usam o nome com seus
attributos. E nos instrumentos judiciaes, que testemunham antiguidade,
se diz _carta precatoria, dimissoria, citatoria, de liberdade e de
venda_, e outras muitas: e ainda as de jogar, sem terem lettras, se
chamam commummente cartas. E a gente aldeã, conservando alguma cousa da
antiguidade, a qualquer estampa ou pintura em papel chamam _carta_. Os
latinos puzeram nome ás cartas missivas _Epistola_, do verbo grego, que
quer dizer _mandar_: e _letras_, porque a carta consta d'ellas. Os
italianos deram singular e plural a este nome segundo. E na nossa lingua
a que chamam limitada, não faltou nenhuma d'estas differenças, antes
houve maior perfeição: porque a umas chamaram _cartas mandadeiras_; ás
que tinham menos de papel, _escriptos_; e ás cartas de Italia _lettras_,
que são as de Roma, e as de cambio; porque deviam ter o mesmo principio;
porque logo nos de Portugal mandavam os reis d'elle por lettras copiosas
doações á sé apostolica, do que conquistavam. De maneira que o nome de
carta, quanto á sua origem, é geral e commum; e entre nós particular das
cartas missivas; e pois lhe descobri o nome, é necessario, sr. Leonardo,
que lhe deis agora o ser.

--Parece-me (respondeu elle) que estou já no meio da minha obrigação
(conforme ao dito do poeta) que quem começou, tambem tem feita a maior
parte. E passando do nome da carta aos exteriores d'ella, digo que ha de
ter: Cortezia commum, regras direitas, lettras juntas, razões apartadas,
papel limpo, dobras eguaes, chancella sutil, e sêllo claro; e com estas
condições será carta de homem da côrte. E falando da cortezia (disse
Solino) que entendeis n'ella?--A cortezia (lhe respondeu elle) não
falando na leitura da carta, é o sobrescripto, o apartado da cruz, até á
primeira regra; e do principio do papel até o começo de todas: e o
final, o nome de quem escreve, abaixo da data da carta. E porque n'isto
ha differentes costumes, e erros, me parece bem fazer de tudo
lembrança.--Nos sobrescriptos temos pouco que tratar (tornou Solino) que
depois que com a pragmatica os cercearam, não ha já _prezados_,
_magnificos_, _honrados_, e _illustrissimos_, nem os _senhores_. Ainda
(tornou Solino) ficaram alguns de rodeio que são muito para vêr, e assim
o dizem elles: a cujo proposito vos hei de contar uma historia. Eu (como
todos sabeis) vejo com oculos, e (conforme a opinião de alguns) com
elles muito menos. Os dias atraz, sendo eu ainda innocente d'este
costume, me deram uma carta de um amigo, que dizia: _Para vêr o senhor
Solino_: aberta ella, a lettra tal, tão miuda, e embaraçada, que
desmentia o sobrescripto, e por nenhuma via pude vêr o que dizia. Mas
respondi n'outra lettra muito peior, e puz no sobrescripto: _Para cegar
o senhor Fuão_; ao que elle depois me respondeu, que estava pelo costume
dos presentes.--Nem todos se hão de seguir (disse o doutor) que, como
escreve o philosopho Favorino, cada um deve usar de palavras presentes,
e costumes antigos; e mais quando é uso é abuzão, que no primeiro, por
ser tal, offenderam as leis; e no segundo o reprehendem os mesmos que o
usam. Comtudo Leonardo dirá o que lhe parece.--A mim respondeu elle que
a lei é boa, e a cautella escusada. Porém o sobrescripto tem mais partes
de cortezia, que essa que dissestes, ainda que á primeira vista pareça
cousa tão limitada. E para que comecemos em ordem; _sobrescripto é_ uma
noticia vulgar da pessoa a quem se escreve, e do logar aonde lhe mandam
a carta, exprimindo-se n'elle o nome, e a dignidade, por onde é mais
conhecida, e o do logar onde n'aquelle tempo assiste. N'esta regra geral
ha uma limitação, e é: Que ás pessoas do grande titulo, e cargo se pode
calar, ou usar de outro modo differente esta segunda noticia; porque,
além dos cargos declararem muitas vezes a assistencia das pessoas,
parece cortezia que as que são mui conhecidas por seu titulo, e
dignidade, basta essa, e o nome para serem buscadas. O primeiro modo é,
como se escrevessemos a N. Vice-Rei da India, A. N. General de Portugal.
O segundo como a N. Embaixador d'el-rei de Hespanha em a Côrte de Roma.
E posto que estes assistam a tal tempo em villas, ou cidades
particulares, não é necessaria outra leitura no sobrescripto. Não trato
aqui das cartas enviadas aos reis, de seus vassalos, porque não entram
n'esta regra as que vem dirigidas a seus conselhos particulares.--Bem
podereis (disse o doutor) metter n'esse logar a historia de um letrado
da minha profissão, que mandando uma informação á Meza do Paço, poz no
sobrescripto: _A El-Rei nosso Senhor nos seus Paços da Ribeira, junto de
Luiz Cesar_.--D'outro soldado ouvi eu contar (disse Solino) que escreveu
á India: _A. N. Vice-Rei da India, nos Paços de Goa, defronte de um
Lanceiro torto_.--Para gente tão nescia (disse Leonardo) não servem
preceitos: mas em outra vejo muitas vezes sobrescriptos tão miudos, e
sobejos, que pessoas muito particulares se podiam dar por afrontadas
d'elles, como é: A fuão, em tal terra, em tal rua, detraz de tal parte,
defronte de tal casa, e junto a N. E ás vezes é a pessoa tal, que deve
ser mais conhecida por si, que pelas confrontações.--Dos sobejos
(atalhou Solino) não posso eu calar um, que vi ha poucos dias, de um
frade que escreveu ao seu provincial, que tinha cinco padres nossos,
como conta benta, e dizia: _Ao muito Reverendo Padre nosso, o nosso
Padre N. nosso Padre Provincial, no Convento de nosso Padre S. N. Padre
nosso_.--Por isso digo (proseguiu Leonardo) que a noticia deve ser
vulgar que nem afronte, nem lisongeie, nem sobeje, nem falte.--Mais
provavel é (disse D. Julio) que se peque nos sobrescriptos por demazia,
que por falta; porque todos dizem o nome da pessoa, e a terra para que
escrevem.--Não já um (respondeu Pindaro) que escreveu: _A meu filho o
Licenciado em Salamanca, que Deus guarde_, parecendo-lhe que bastava o
grau em logar do nome. Mas que logar dareis vós aos titulos dos
sobrescriptos? Que ha alguns mais compridos que as cartas que resam o
nome, o titulo, o senhorio, o cargo, a commenda, e ainda as pretenções
da pessoa a quem se escreve.--A mim me parece (tornou Leonardo) que os
titulos é cousa conveniente, e necessaria; usados porém com moderação
conforme ao que tenho dito: que noticia vulgar é ser um homem conhecido
por o senhorio, e cargo que tem; e assim se ha de escrever de cada um o
cargo que tem. e por onde é mais conhecido. Do senhorio como: _A. N.
senhor de tal Villa_. E estando em ella: _A. N. na sua Villa N_. O que
tambem se usa nos logares, e quintas, em que cada um assiste. Do cargo:
_A fuão, do Conselho d'el-Rei, e seu Presidente da Fazenda, da
Consciencia_, etc. _A fuão Desembargador d'el-Rei nosso senhor, e seu
Ouvidor dos Aggravos_, etc. Tudo isto com a brevidade necessaria: por
que o sobrescripto, como disse, serve de noticia, e não já de adulação.
E na carta, não se permitte no sobrescripto o que se não consente no
interior; como se algum escrevesse a este Fidalgo, e lhe quizesse pôr os
títulos, que elle merece, no sobrescripto; convém a saber: _A D. Julio,
Columna da nobreza de seus passados, e gloria das esperanças de sua
patria_. Ou: _Ao Doutor Livio, honra e luz do Direito Civil, exemplo da
philosophia, e thesouro da humildade_: cousas eram estas, que d'elles se
podiam dizer: porém não são no logar do sobrescripto. E passando d'elles
adeante.

A segunda cortezia é no papel, da cruz até á primeira regra; que ha
alguns, que lhe põem os olhos muito junto com as sobrancelhas: outros,
que lhe deixam pelo meio uma estrada de coches; e pela desconformidade,
que ha entre uns, e outros, veio a ser a regra entre os eguaes, que
fique em branco a quarta parte do papel, que vem a ser no alto a
primeira dobra; e na ilharga um espaço razoado, que dá logar á mão para
ter a carta sem cobrir as lettras, e para se cortar, ou passar chancella
sem as offender.--E de que nasce (perguntou Pindaro) que muitos deixam
mais de meio papel em branco da ilharga, e vão a cerzir a lettra com a
cortadura da tesoura?--Esse erro, e outros muitos (respondeu elle)
nascem de mudarem alguns os serviços ás cousas: porque a invenção não
estava mal no seu logar, se a não fizeram servir nos alheios. Em cartas
de negocio, feitas a pessoas occupadas, que se fazem por capitulos, e
apartadas, ou perguntas sobre materias dos mesmos negocios, se deixa
egual parte do papel para responder á margem em ordem a cada uma das
cousas; e assim fica servindo para duas, uma mesma carta; mas estas não
guardam a regra, nem a cortezia das missivas. O mesmo erro ha no que
Solino primeiro apontou dos sobrescriptos: _Para vêr o senhor Fuão_, que
nasceu de alguns papeis emmaçados, que se passavam de ministro a
ministro com sómente aquelle sobrescripto sem outra carta, e sem terem
mais de carta, que o irem cerrados, e sellados, deram occasião aos que
usam o mesmo termo nos sobrescriptos d'ellas.

--Muitos erros ha (disse D. Julio), nascidos da mesma occasião. E posto
que seja sahir um pouco fora do proposito, é tão grande bugia da virtude
e da honra a vaidade, que, sómente por a seguir em as apparencias,
tropeça a cada passo em desatinos. Este escreveu, _Para vêr_; porque N.
Ministro, ou privado escreveu assim; e veste de tal panno, porque N. de
maior qualidade o trazia; e o que este fez (pode ser por remediar o seu
frio) faz outro á imitação, e se abraza de quentura. A Hespanha se
passou o uso de vestir dos soldados de Flandres, por bizarria; e razão
tinham de imitar em outras cousas aos praticos que militam em uma praça
tão ennobrecida das nações da Europa; mas o que elles faziam obrigados
do clima, e o sitio da terra, usavam os cortezãos por gala, levados do
engano da verdade, os chapéos de aba grande contra a neve, os
ferragoulos abotoados, e com descanços para o frio, as meias de
escarlata debaixo de botas altas contra a humidade, as solas levantadas
por detraz, para não resvalarem nos caramelos, as roupetas abertas sobre
as armas; tudo isto, e outras muitas cousas, sendo inventadas pela
necessidade, se passaram á galanteria. Deixo as côres de Rei, e da
Infante, e a historia do Mercador com el-rei D. João o III, que lhe
pediu que se quizesse vestir de um panno que tinha muito rico, o qual
lhe daria de graça; que com este ardil, em el-rei o vestindo, vendeu
elle a mór valia uma quantidade de peças d'aquella côr que lhe haviam
entrado n'uma partida.--Não é isso sómente nas cartas, e nos arrojos,
disse o doutor; que ainda passa adeante o engano. Em a côrte do
imperador Carlos V, andando elle indisposto, lhe mandaram os medicos
comer borragens, por ser herva medicinal para a sua enfermidade; e
porque os fidalgos e titulares a viam de ordinario na meza imperial sem
advertirem a occasião porque se fazia, veio a valer entre elles muito, e
a fazerem mil iguarias d'aquella herva, de sorte que se semeavam tantas
nas terras onde a côrte assistia, que não havia agros d'outro fructo.
Vão-se emfim as cousas mal, e ás vezes são nascidas de bom
costume.--Assim é (disse Solino) que até oculos, que se inventaram para
remediar defeitos da natureza, vi eu já trazer a alguns por
galantaria.--D'essa maneira seguiu D. Julio se devia mudar para as
cartas o estillo dos papeis, que o não estão por imitarem aos validos. E
tornando á cortezia, que cousas tem mais de que tratar?

--A terceira, tornou elle, é o nome, e signal do que escreveu a carta,
que nem ha de estar tão junto das lettras, que pareça soffrego d'ellas,
nem no meio do papel como quem escolheu melhor logar, nem tão apertado,
que fique ausente das regras, nem tanto na ponta do fim, que pareça que
se amuou áquelle canto; mas com um meio ordinario, como é assignar-se um
pouco abaixo das regras, mais inclinado á parte direita que á esquerda,
que é uma certa modestia, e humildade de quem escreve.--E que dizeis,
(perguntou o doutor) do acompanhamento do signal? Porque ha uns que se
nomeiam _servidor de vossa mercê_ N., outros _vassallo_; outros
_captivo_, outros _seu_ N. e ha n'isto muita variedade, e
ignorancia.--Primeiramente (continuou Leonardo) _servidor_ já se passou
das cartas para os retretes: _servo_ para os matos, e _captivo_ para os
comprimentos refinados em a pratica; _creado_, era termo bem creado, e
_seu_ é descortezia: e por fugir d'esta, e de alguns extremos, o mais
seguro é escrever cada um o seu nome sem mais leitura.--Não sejaes tão
estreito nas licenças(disse Solino) que deitaes a perder cartas que só
pelos comprimentos do signal merecem fama. Um homem escrevendo a sua
propria mulher, se assignou _vosso servo N._, e ella o fazia tal na
mesma ausencia. O outro, de que contam vulgarmente, porque corria nos
signaes o _menor creado de vossa mercê N._, escrevendo a sua mulher se
assignou _o menor marido vosso N._, e a senhora devia de ter mais varões
que a Samaritana. De uma gentil dama sei eu (disse Pindaro) que
escrevendo a um seu galante se assignou _sua N._, e elle lendo a carta,
voltou para um amigo com que estava, e disse _sempre temi esta nova_; e
perguntando-lhe o outro que era? Respondeu _sua N., e é principio de
verão_: Outro em Coimbra, querendo-se humilhar muito aos pés de um
amigo, a que escrevia, se assignou _Antipoda de vossa mercê N._--Quanto
mais galantes são essas historias (tornou Leonardo) tanto mais de
estimar é a moderação, e bom termo de não se sahir d'aquelle limite da
cortezia commum; e passando d'ella ha de ter a carta regras direitas,
que ha alguns que escrevem em escadas como figuras de solfa: lettras
juntas, e razões apartadas, com a distincção dos pontos, virgulas, e
accentos necessarios, para fazerem perfeito sentido das razões; porque
ha cortezãos, que por aformosearem a lettra, e facilitarem melhor os
rasgos da penna, vão encadeando as lettras pelas cabeças, como sardinhas
de Galliza; e de maneira confundem a escriptura, que não ha tirar d'ella
o sentido verdadeiro de seu dono; e ha cartas bem notadas, que por mal
escriptas perdem reputação; o papel seja limpo para n'elle empregar sem
fastio a vista o que ha de lêr, e porque pareçam melhor as lettras bem
ordenadas; a chancella sutil, porque ao abrir da carta a não offenda,
que alguns a fazem parecer carta rota antes de lida: dobras eguaes,
porque o concerto auctorisa as cousas, e as faz parecer melhor: o sêllo
claro, assim para lustro da carta, como para guarda d'ella, pois é o
cadeado que a defende dos curiosos de saber segredos alheios.--Não
corrais com tanta pressa (disse D. Julio) por essas particularidades, e
miudezas, que em algumas d'ellas tinha perguntas que fazer; mas
contentar-me-hei com as que se me offerecerem de novo sobre a materia
das armas, e tenções com que se costumam sellar as cartas; e assim
estimarei que nos digaes d'isto alguma cousa.

--As armas (respondeu elle) é a insignia que cada um tem de sua nobreza,
conforme ao appellido com que se nomeia, e com o sinete d'ellas sella as
cartas de importancia, ou com elmo, e folhagens sobre o paquife do
escudo, ou com elle em tarja, como tenção; que estas como são
pensamento, e desenho particular, se abrem ás vezes em redondo, ovado,
ou quadrangulo, e outras figuras, sem respeitar a do escudo. Em Portugal
é cousa muito antiga aos principes trazerem tenções, e emprezas com
lettras, e ainda as usavam misturadas nas Armas Reaes, que posto que
n'aquelle tempo não estavam tão apuradas como agora, nem eram sujeitas á
arte, que d'ellas e para ellas fizeram os modernos, não lhes faltava
entendimento, e galanteria. El-rei D. João o I trazia na orla das Armas
uma lettra, que dizia: _Por bem_. E a rainha D. Filippa de Alancastre
sua mulher, outra que respondia a esta em Inglez que dizia: _Me
contenta_. O infante D. Fernando seu filho, o Santo, trazia uma capella
de hera com seus cachinhos, e no meio d'ella a Cruz de Aviz, de cuja
cavallaria era Mestre. O infante D. Pedro uma capella do carvalho com
suas bolotas, e no meio umas balanças, e nas Armas Reaes, no banco de
pinchar, em cada pé d'alto abaixo mãos, e por cima umas lettras
escriptas muitas vezes, que diziam: _Dizer_, e entre cada palavra
d'estas um ramo de carvalho com bolotas. O infante D. João, que foi
mestre de S. Thiago, casado com a neta do condestavel D. Nuno Alvares
Pereira, trazia uma capella de ramos de silva com cachos de amoras, com
as bolsas de S. Thiago no meio, e tres conchellas em cada uma com uma
lettra em Inglez, que dizia: _Com muita razão_. O infante D. Henrique,
Mestre na Ordem de Christo, trazia as armas do Mestrado, e de antigas de
Portugal, e ao redor um cinto largo de correia, que abroxava no cabo de
baixo, e uma fivella que fazia volta com a correia, e em Inglez a lettra
dos cavalleiros de Garrotea, que elle tambem era, e dizia: _Contra si
faz quem mal cuida_. E uma capella de carrasco, e no banco de pinchar
tres flôres de lirio em cada pé. El-rei D. Affonso o V trazia pintado um
mundo com esta lettra: _Conheço que não te conheci_. El-rei D. João II
seu filho, trazia um rodizio, com esta lettra: _Setere_: e na outra
trazia um Pelicano ferindo o peito, e dizia a lettra: _Pela lei e pela
grei_. A rainha D. Leonor sua mulher, trazia uma rede de pescar, a que
chamam rastro. El-rei D. Manoel, uma esphera com uma Cruz. A excellente
senhora, uns alforges, e nas cevadeiras pintadas as Armas de Castella
com esta lettra: _Memoria de mi derecho_. O marquez de Valença, neto do
conde D. Nuno Alvares, trazia dois guindastes, que levantavam um titulo
de pedra, com quatro lettras, cada uma por parte. E além d'estas ha
memoria d'outras muitas, que dão testemunho do uso que d'ellas havia
n'este reino.--Por certo, disse D. Julio, que estou assás contente do
fructo que colhi da minha pergunta, por saber curiosidade tão notavel
dos nossos principes antigos, que para a minha natural inclinação é a
cousa de maior gosto, e interesse: e não fôra menor; pois falamos de
Armas, e Tenções, e vós sois visto n'ella fazer que saibamos mais alguma
cousa atraz d'esta materia, principalmente d'onde nasceu, e teve
principio o uso dos Escudos de Armas, e das Tenções.

--Quanto á minha opinião (respondeu Leonardo) é que armas, e emprezas,
ou tenções não tiveram no seu principio a differença, que agora lhes
assignam os que d'ellas escrevem de lettras, e corpos sem lettras, com
limitações, e regras mui apertadas. Antes me parece, que as armas eram
as insignias que os reis, e imperadores davam aos seus para ser
conhecida sua nobreza, conformando-se na figura d'ellas com a qualidade
dos successos por onde as mereceram, ou com a antiguidade do sangue
d'onde descendiam a quem as davam, e as que os mesmos reis tomavam para
si em memoria de semelhantes feitos, ou derivadas por seus antecessores.
Emprezas, ou tenções são as que os mesmos reis, principes, ou
particulares tomam, conformando as figuras, e lettras com o desenho, e
pensamento que cada um tem, para emprehender cousas altas. E d'aqui
adeante entram as regras, que depois lhe aconteceram; que, por ser um
discurso mui comprido, não tem logar em noite tão breve. Além d'estas
ha, outras armas dos reinos, provincias, republicas, e cidades, que se
devem chamar _diviza_, que tiveram principio ou das cousas de que são
mais abundantes, ou da maneira em que fôram povoadas, ou adquiridas. E
no que toca ao principio das armas, Hercules foi o primeiro que trouxe
por armas a pelle do leão que matou na relva Nemea, depois da victoria
que d'elle teve, e antes d'esta victoria trazia a mesma ínsignia do
porco de Erimanto, que matou em Arcadia. Jazon trouxe por armas o
Velocino de ouro, que conquistou. Thezeu o Minotauro. Ulysses, o
Paladion, e Eneas o escudo que ganhou de Ulysses na guerra de Troia:
estas eram verdadeiras armas, em memoria de valorosos feitos. E quanto
ao principio das emprezas, escreve Pauzanias, que Agamemnon trazia no
escudo a cabeça de um leão de ouro, com uma lettra que dizia: _Este é
terror dos homens, e o que o traz é Agamemnon_. Antioco trazia por armas
outro leão. Heitor, dois leões de ouro em campo vermelho. Seleuco um
touro. Alexandre, um rei de ouro em seu throno em campo azul. Alcibiades
um Cupido. Lucio Papirio o Pégazo. Cezar uma aguia preta. Pompeio um
leão com uma espada empunhada. Judas Macabeu um dragão vermelho em campo
de prata. Attila um açor coroado. E cada um d'estes, posto que poderam
tomar a figura das armas em significação de feitos celebrados, e
victorias adquiridas, só quizeram dar-lhe as figuras conforme ao seu
pensamento; e Cesar, ao agouro que da aguia teve. E descendo ás armas
particulares dos reis, que sabemos: As do imperador é uma aguia preta de
duas cabeças em campo de ouro, em memoria da de Julio Cesar, e da união
do Imperio Oriental, e Occidental. Armas d'el-rei de França são tres
flôres de lirio de ouro em campo azul, que fôram milagrosamente dadas a
el-rei Clodoveu. Armas d'el-rei de Portugal, os cinco escudos de azul em
cruz, em signal do vencimento que o primeiro rei D. Affonso teve dos
cinco reis mouros no campo de Ourique, e n'elles, e com elles, os trinta
dinheiros de prata, por que nosso Senhor foi vendido, em memoria da sua
Paixão, e do apparecimento que o mesmo rei vio antes da batalha: por
orla das armas sete castellos de ouro em campo vermelho, e por timbre,
um Drago coroado. Armas d'el-rei de Inglaterra, tres Leopardos de ouro
em campo vermelho: posto que d'antes tinha el-rei Arthur por armas tres
corôas de ouro em campo azul. Armas d'el-rei de Hespanha, os castellos,
e leões, tão conhecidos no mundo. Armas d'el-rei de Frizia, um escudo de
prata, riscado de linhas vermelhas, e atravessado com uma banda azul.
Armas d'el-rei de Jerusalem, uma cruz de ouro nos extremos, com cruzetas
do mesmo metal, e outras pelos vãos dos angulos. Armas d'el-rei de
Polonia, duas aguias de prata e um homem em cima de um cavallo, do mesmo
metal. Armas d'el-rei de Irlanda, uma harpa, e uma mão que a está
tocando. Armas do Preste João da India, um crucifixo negro, com dois
azorragues, em campo de ouro. Deixo outros muitos, como os bastões de
Aragão, as cadeias de Navarra, a romã de Granada, as bandas de ouro, e
vermelho de Malhorca, e outras que querer contar fôra infinito. Tem do
mesmo modo as provincias suas armas. Primeiramente, as quatro partes, em
que o mundo se divide: Azia, tres serpentes: Africa, um elephante:
Europa, um cavallo: A America, um crocodilo: Italia tinha por armas
antigamente o cavallo: Thracia, um Marte: Persia, um arco: Scythia, um
raio: Armenia, um bode: Fenicia, um Hercules: Sicilia, uma cabeça
armada: Albania, um cágado: Frizia, uma porca: Hespanha, um castello:
Luzitania, uma cidade. As Republicas tem tambem suas armas particulares:
A de Veneza, um leão com um livro nas unhas: A de Sena, uma loba: A de
Genova, um S. Jorge: A de Florença, um leão com um livro de ouro. As
Cidades, da mesma maneira: Athenas, a Coruja: Roma, a aguia: Lisboa, uma
nau com os corvos, em memoria do corpo do glorioso Martyr S. Vicente,
seu padroeiro: Coimbra, o drago, e a donzella coroada: Evora, as cabeças
das vigias: O Porto, a imagem de Nossa Senhora entre duas torres:
Leiria, uma torre entre dois pinheiros, e n'elles dois corvos. E assim
todas as outras. Porém isto é já muito tarde, e gastámos n'esta materia
mais tempo do que convinha á das cartas, em que começamos; e porque nas
armas, e tenções nos não fique por saber algumas significações, e
figuras de armas dos particulares senhores, e fidalgos de Portugal, que
todas fôram merecidas com louvores de gloriosos feitos: deixando os
animaes, significadores de fôrça, braveza, e velocidade: e os planetas
de poder, antiguidade, e clareza, e outras figuras semelhantes: Banda
significa postura de taboa: Escada, o engenho por onde se cometteu
alguma obra de valor, ou difficultosa entrada, com risco da vida: faxa,
ou barra, representa victoria da batalha singular de cavalleiro a
cavalleiro, e quantas fôrem, tantos diremos que são os vencimentos com
que se ganharam as armas. Parte de muro, torre, ou castello, significa
ser ganhado, entrado, ou soccorrido, com esforço, e perigo da vida.
Escadas, asteas, ou pedaços de lanças, denotam subida trabalhosa, ou
defensão arriscada na mesma subida. Assim que a variedade dos corpos, ou
forma que vêdes nas armas, todas nasceram de illustres façanhas, e
valorosos feitos. E todas as das empresas, e tenções, dão signal claro
do animo, e pensamento de seus donos: e com umas, e outras se devem
sellar as cartas, de maneira que se divizem as figuras, e lettras
d'ellas, como tenho dito.--Vejo (disse Solino) que temos a carta
cerrada, sellada, e com sobrescripto, sem ainda sabermos nada do
principal d'ella. Não vos enfadeis (respondeu elle) que na noite de
ámanhã a abriremos, e leremos muito de vagar a estes senhores, se não
ficarem de agora cansados do sobrescripto.--Antes (disseram elles) que
só o dia seguinte lhes parecia comprido, e vagaroso. E dando fim á
conversação d'aquella noite, deram o que d'ella ficava ao repouso, que
com a moderada recreação de horas bem gastadas é mais aprazivel.




DIALOGO III

DA MANEIRA DE ESCREVER, E DA DIFFERENÇA DAS CARTAS MISSIVAS


Mui satisfeito ficou D. Julio de ouvir a Leonardo aquella noite na
materia das armas; e quasi a escolhera antes, que a das cartas. Por
alguns particulares, que desejava saber, quiz com mão alheia, por não
parecer importuno, perguntar algumas cousas a Solino, que achou junto á
sua porta; e depois de o saudar, lhe disse: Como estaes depois da noite
de hontem.?--Como o dado (respondeu elle) que está de qualquer
ilharga.--Deveis de ficar do azar (tornou D. Julio) pois tendes tão
poucos pontos, que faltaes aos da cortezia:--Fiquei (tornou elle) tão
cansado das da carta de Leonardo, que lhe tomei aborrecimento, e nem
estou para vos servir, nem para o dizer, e perdoae-me.--Logo (disse o
fidalgo) não quereis continuar na conversação d'esta noite.--Se a carta
(lhe tornou Solino) ha de ser tão comprida como o sobrescripto, assim o
imagino.--Pois a minha tenção (proseguiu elle) era pedir-vos que na
materia das armas, que elle tocou, fizesseis hoje algumas perguntas á
minha conta sobre alguns particulares das familias d'este reino.--Vós
deveis buscar armas para me matar (disse Solino) porque das de hontem
sahi eu tão escalavrado, que determinava fugir d'ella; e sei que tem
Leonardo tantos livros de armas, e gerações, que, se o tirar a terreiro,
havemos mister todo o inverno para o ouvir.--Eu me contento (respondeu
D. Julio) com saber que elle tem os livros, e assim o escuso do
trabalho:









porque n'elles lerei alguns feitos particulares dos Portuguezes
merecedores dos brazões que seus successores possuem.--Bom seria (disse
Solino) acabar as cartas antes de entrar por esses feitos, e para isso
vos irei acompanhando até a casa de Leonardo, posto que tinha outra
determinação.--Porque vós não falteis (respondeu D. Julio) quero ir mais
cedo. E com esta pratica, e outras que occorriam, foram passeando, e
entertendo o que ficava do dia, até que a sombra da noite, e uma chuva
miuda os fez recolher a casa de Leonardo, onde os amigos esperavam já
que elles chegassem; e com Pindaro outro estudante seu companheiro, por
nome Feliciano, que, vindo-o a visitar, se aproveitou da occasião em sua
companhia. Festejaram todos a Solino; e elle vendo o hospede, de novo se
lhe inclinou com mais auctoridade, e disse para os outros: Tenho inveja
á dita do senhor licenciado que veio ao abrir da carta, que cerrámos sem
elle, e com não pequeno trabalho.--Não tivera eu por tal (respondeu o
estudante) antes por grande ventura, se do passado me coubera alguma
parte; e esta, que alcanço agora com o consentimento d'estes senhores
por meio de meu companheiro, tenho por muito grande favor, e mercê de
todos.--Essa humildade (disse Solino) está acreditando mil esperanças de
vosso entendimento; e bem sei eu que o de Pindaro sabe fazer esta
eleição dos amigos tambem, como em tudo o mais é discreto, e acertado: e
para que entendaes o logar em que vos fico, sabei que eu sou o mais
certo creado que elle tem entre os senhores presentes.

A esta cortezia respondeu Pindaro, e o estudante com as suas, até que o
doutor os despartiu, e disse a Leonardo:--Bem gastado era o tempo em
comprimentos tão cortezãos, e tão devidos, se o desejo, que temos de
continuar a materia da noite passada, o não quizera poupar todo para
ella: e assim vos peço que me façaes mercê, e a todos, de ir por
deante.--Tendes razão (tornou elle) de me aliviardes mais depressa do
cuidado, em que me mettestes. E tornando a traz, por me aproveitar dos
vossos principios, dissestes que cousa era carta na origem do seu nome,
os primeiros modos de escrever, e o como entre nós se conservou; tratei
do sobrescripto, da cortezia, das lettras, do signal, das dobras, e
sello da carta, o que bastou para todos ficardes mais enfadados, que
saudosos.

Agora, começando a entrar na leitura das regras, saibamos que cousa é
carta missiva, ou mandadeira, e o para que foi inventada; que pela
definição de Marco Tullio, a quem todos seguem, é uma messageira fiel,
que interpreta o nosso animo aos ausentes, em que lhes manifesta o que
queremos que elles saibam de nossas cousas, ou das que a elles lhes
relevam. Tres generos de _cartas missivas_ assigna o mesmo Tullio, aos
quaes alguns costumam reduzir muitas especies d'ellas. O primeiro é das
_cartas de negocio e de cousas que tocam á vida, fazenda e estado de
cada um_, que é o para que as cartas primeiro foram inventadas; que, por
tratarem de cousas familiares, se chamaram assim. O segundo, de cartas
d'entre amigos uns aos outros, de novas e comprimentos de galantarias,
que servem de recreação para o entendimento, e de allivio e consolação
para a vida. O terceiro, de materias mais graves, e de peso, como são de
governo da republica e de matérias divinas, de advertencias a principes
e senhores e outras semelhantes. O primeiro genero se divide em cartas
domesticas, civis e mercantís. O segundo em cartas de novas, de
recommendação, de agradecimento, de queixumes, de desculpa e de graça. O
terceiro, que é mais grave e levantado, contém cartas reaes em materias
de estado, cartas publicas, invectivas, consolatorias, laudativas,
persuasorias e outras, que se pagam a cada uma das que nomeei em todos
os tres generos.--E onde deixaes (disse D. Julio) as cartas amatorias ou
namoradas? que se na vossa edade não teem logar, parece que o mereciam
n'este díscurso.--Bem sei eu (tornou Solino) quem as tomára no primeiro;
mas o sr. Leonardo já não joga com essas cartas.--Não me esquecia de
todo d'ellas (tornou elle), mas deixo-as para que no fim das mais sejam
melhor recebidas, e para proseguir a materia quem agora as puder apurar.

--As do primeiro genero (disse o doutor) me parecem cartas muito seccas,
que é materia esteril para que empregueis n'ella sem fructo o vosso
entendimento.--Antes (disse Leonardo) como essas foram as primeiras, e
d'ellas nasceram as leis e as regras para outras, será razão que debaixo
d'este genero tratemos das mais, repartindo o pouco que eu soube dizer,
por os logares de cada um. E assim me parece, que como a carta que
escrevemos ao amigo sobre seu negocio; ao creado sobre as cousas da
casa; e o mercador ao outro sobre seus tratos e mercancia; um aviso e
uma relação que lhe não podemos fazer em presença, fazendo-o por meio de
uma carta, devemos usar n'ella o que na pratica costumamos que é
brevidade sem enfeite, clareza sem rodeios, e propriedade sem
metaphoras, nem translações.--E quando (disse o doutor) faremos breves
em uma carta?--Quando (respondeu elle de tal maneira, e com tal
artificio a escrevermos, que se entendam d'ella mais cousas do que tem
de palavras.--E como póde ser? (tornou elle).--Por meio dos relativos e
subsequentes (disse Leonardo) que, sem nomear as palavras, as repetem; e
por ordem das sentenças e adagios que sem entender as cousas as
declaram; e n'isto se adeantam muito as cartas da pratica familiar, que,
se escrevem de cuidado, e tem mais tempo de se furtarem palavras para se
subentenderem razões.--E que cousa é enfeite ou affectação? (perguntou
Solino).--É, disse elle, o cuidado sobejo de enfeitar as palavras com
elegancia ou por via de epithetos, ou de escolha de logar para as
syllabas fazerem melhor som aos ouvidos. E em favor d'esta opinião,
dizia um homem insigne d'este reino, e que teve n'elle os melhores
logares da republica ecclesiastica e secular, que a carta e a mulher
muito enfeitada, em certo modo eram deshonestas: e eu antes seguira este
voto, que o de alguns rhetoricos, que deram á carta missiva cinco partes
de oração, convém a saber: _saudação, exordio, narração, petição e
conclusão_: e se houvessemos de seguir o seu estylo, mudariamos de todo
o das cartas.--Nunca rhetoricos (disse o estudante) souberam escrever
cartas, se as sugeitaram ás leis da oração. Mas parece que o sr.
Leonardo dá a entender que na carta se não devem usar epithetos ou
adjectivos por evitar o enfeite, e sobeja elegancia d'ella: e eu tenho
que sem elles se não póde escrever.

--Os epithetos (proseguiu Leonardo) ou servem para discripção e
declaração das cousas ou para propriedade, ou para ornamento e enfeite
d'ellas. Os primeiros são necessarios nas cartas como em tudo; os
segundos menos, os terceiros escusados. Para dizer ou escrever, _um
homem douto_, _uma mulher formosa_, _um cavallo ligeiro_, _uma arvore
alta_, _um caminho comprido_, _um peito forte_, sào attributos
necessarios para declarar o que queremos dizer; porque ha homem que não
é douto, mulher que é feia, e os mais. Os de propriedade como _ferro
frio_, _relva verde_, _sol claro_, _calma ardente_, _areia sêcca_,
_pedra dura_, estes são pouco necessarios nas cartas: e sómente por
comparação ou em adagios se devem usar n'ellas, como dizendo, _é duro
como pedra_, ou _é dar em pedra dura_, ou _é malhar em ferro frio_. Os
de elegancia e ornamento, tenho eu que se hão de degradar das cartas
missivas para fóra do termo d'ellas, como agora _firme soffrimento_,
_incansavel diligencia_, _solicito desejo_, _cuidadoso receio_,
_importuna lembrança_, _desusada brandura_, e outros que tem juiz de seu
fôro. Assim que não digo que faltem nas cartas epithetos necessarios,
mas que se escusem os sobejos; nem se andem grangeando as palavras para
fazerem assento em o cabo da sentença, que será ir contra a brevidade
sem enfeite ou affectação.

--Parecia-me a mim (disse Solino) que a carta breve seria a de menos
regras; e que não estava a cousa nos epithetos serem proprios ou
necessarios. Uma carta (proseguiu elle) póde ser breve, e levar
escriptas muitas

paginas de papel; porque póde tratar de tantos negocios ou cousas que as
occupem, mas estarão relatadas de modo que seja a leitura comprida, e a
carta breve.

--O segundo ponto (perguntou Pindaro) que é clareza sem rodeio, me
parece a mim que fica declarado n'essa primeira parte; pois sendo breve
a carta, e não tendo enfeite nas palavras, será clara e sem
rodeios.--Não estaes no caso (tornou elle), que posto que a clareza é
parte da brevidade, a clareza é das razões, e a brevidade das palavras:
e assim póde a carta ser breve, mas confusa; e clara sendo comprida: que
muitos para dizerem cousas querem estrada coimbrã, e caminho direito;
buscam rodeios e atalhos em que se perdem, confundindo o que querem
dizer. Em uma minha doença escreveu um amigo, e dizia: _Disseram-me que
a saude de vossa mercê corria perigo na inconveniencia de medicos
discrepantes no remedio dos males d'essa doença_. E fez estas trocas
onde podia dizer: _Soube que os medicos não se conformavam na cura dos
vossos males, que na duvida d'elles corria risco a vossa saude_. Outro
me escreveu ha muitos dias: _Se vossa mercê não está ausente das
lembranças que suas promessas me asseguraram de haver de ter muitas
d'este seu captivo_. Havendo de dizer: _Se vos não esquece que me
promettestes de ter lembranças de mim_. E porque ainda temos logar de
tornar aos particulares das disposições das razões:

Passando ao terceiro ponto, que é _propriedade sem metaforas_, ou
_translações_.--A propriedade (disse o doutor) era materia da noite
passada, quando falastes das letras e razões em seu logar, sem barbaria,
nem impropriedade no escrever: e como isto é parte do exterior da carta,
já hoje não tem dia.--A propriedade que vós dizeis (accudio Leonardo) é
exterior, mas muito differente a de que eu trato, e não pouco importante
ao falar, e escrever, que é a propriedade das palavras na sua propria
significação, sem serem emprestadas por via de translações para outros
logares, que é termo que argue nobreza de linguagem; e porque fique mais
declarado, sabei que dizemos em portuguez, falando propriamente dos
nomes: _Bando de aves_, _cardume de peixes_, _rebanho de ovelhas_, _fato
de cabras_, _vara de porcos_, _alcatéa de lobos_, _tropel de cavallos_,
_cafila de camellos_, _récua de cavalgaduras_, _manga de arcabuzeiros_,
_mó_, ou _roda de homens_; e se, trocando isto, disséramos: _Um cardume
de aves_, ou _uma alcatéa de ovelhas_, ou _um fato de porcos_, seria
impropriedade, e desconcerto. Dizemos tambem nos verbos: _Chiar_ de
aves, _balar_ de gado, _grunhir_ de porcos, _ladrar_ de cães, _rinchar_
de cavallos, _bramir_ de leões, _empolar_ de mares, _encapelar_ de
ondas, _assoprar_ de ventos, etc. E se dissessemos _chiar_ de porcos,
_rinchar_ de leões, e _grunhir_ de cavallos, seria o mesmo erro. E
porque ha metaforas e translações tão uzadas e proprias, que parecem
nascidas com a mesma lingua, que como adagios andam pegadas a ella, se
devem trazer (quando forem taes) nas cartas missivas, do mesmo modo que
na pratica se costumam. Dizemos dos nomes: _folha de espada_, _lume de
espelho_, _veia de agua_, _braços de mar_, _lingua de fogo_, _lanço de
muro_, _faxa de ferro_, e outras semelhantes: e nos verbos: _lançar o
cavallo_, _fazer á capa_, _quebrar a palavra_, _cuspir o pelouro_,
_arripiar a carreira_, e outras muitas: e além d'estas tão usadas, e
naturaes, que servem de propriedade á lingua portugueza, ha outras
nascidas de proverbios, ou adagios, que tem o mesmo logar, e
antiguidade, como são _furtar o corpo_, _ir vento em pôpa_, _nadar
contra a agua_, _ficar em secco_, _repicar em salvo_, _tirar barro á
parede_, _etc_. E quanto a carta tiver mais d'estas, será mais breve, e
cortezã; pois, como primeiro disse, por este modo se entendem da carta
mais coisas, do que tem escripto de palavras.

Pelo contrario, usando, em logar d'estas, outras humildes, populares, ou
innovadas, será vicio na propriedade da carta; como se nos nomes
dissessemos: _um feixe de cuidados_, _um mar de encommendas_, _um moio
de queixumes_, _um golpe de razões_; e nos verbos, como: _enfeitar o
desejo_, _tropeçar em cuidados_, _navegar em desconfiança_, e outras
muitas. Esta é a propriedade, de que trato, e a que me parece que se
deve usar no escrever das cartas missivas; porque não soffre o estilo
d'ellas o que em a pratica, ou em outro genero de escriptura não sómente
se permitte, mas muitas vezes se deseja.

--Espero (disse D. Julio) que deis alguma limitação, ou declareis a
linguagem, que se deve usar n'este estilo das cartas; porque encontro
muitas muito mal escriptas, cujos erros, a meu ver, nascem dos homens se
cançarem muito em quererem parecer singulares.--Posto que isso pertence
primeiro ao fallar, que ao escrever (respondeu Leonardo) pois, como já
disse, devemos escrever como praticamos; as palavras da carta hão de ser
vulgares, e não já populares, nem exquisitas: vulgares de modo que todos
as entendam; e ao menos, que a quem se escrevem, não sejam peregrinas: e
não já populares, que sejam termos humildes, palavras baixas, que a
cortezia não recebe: e que tão pouco, em logar dos adagios, e sentenças,
tenham anexins. Tambem se deve fugir ao termo exquisito de palavras
alatinadas, ou carreteadas de outras linguas estranhas, que sempre tem o
sabor da sua origem.--Assim na linguagem, como em tudo (accudio
Feliciano) ficavamos satisfeitos, se de aquelles tres generos, em que o
senhor Leonardo dividio as cartas, déra alguns exemplos que nos
allumiaram; porque nem as regras sem elles ensinam de todo, nem se póde
perder a lição de tão bom estilo. O que eu não pedira, se foram dos
vinte generos de cartas, em que um rhetorico as dividio; que, por querer
dar leis, e partes a cada uma, as confundio todas.--Em tudo (tornou
elle) vos quizera satisfazer: porém cartas mais se hão de escrever em
occasião, do que trazerem-se por exemplo; que é o porque eu lhe nào déra
regra certa, nem das muitas, que ha bem escritas, se póde tirar; que
esse auctor, que vós dizeis que lhe assignou vinte generos, achará fóra
d'elles infinitas cartas, bem melhor escriptas, que as com que os elle
quer auctorisar. Porém, com o presupposto de não dar preceitos:

As cartas do primeiro genero, familiares, domesticas, civis, e
mercantis, respeitam tanto a brevidade, que não podem os rhetoricos
dividil-as em partes, se não forem nas da oração; e bastava para exemplo
aquella de Cicero a Cornelio, que dizia sómente:


CARTA DE CICERO A CORNELIO

"Alegrai-vos de eu não estar mal; pois terei o mesmo contentamento de
saber que estais bem."


E muito é mais para notar uma carta de Octavio Imperador para Caio Druzo
seu sobrinho, que contém bem mais coisas, e avizos que palavras, e
dizia:


CARTA DE OCTAVIO A DRUZO

"Pois estais no Illyrico, lembrai-vos que sois dos Cezares; que vos
mandou o Senado; que sois moço; meu sobrinho; e cidadão Romano."


E estas, e outras semelhantes, nem tem regra, nem deixam de ser cartas.
Mas porque não só nos ajudemos das antigas, mas tambem com as nossas
façamos pestoleta; esta é breve, e domestica, que um cortezão escreveu a
seu amigo, a quem em uma ausencia deixára sua casa; e dizia:


CARTA MODERNA A UM AMIGO

"Estou tão confiado no que vos mereço, e tão seguro no que de vosso
animo tenho conhecido, que me não dá cuidado a familia que deixei á
vossa conta; senào o trabalho, que vos dará o sustentalla: não procuro
saber d'ella mais, que novas de vossa saude; que em quanto a tiverdes,
estará sem sobresalto a minha vida."


Á qual o amigo respondeu com brevidade; e dizia d'esta maneira:


RESPOSTA

"N'esta casa só vós fazeis falta; mas como sois o tudo d'ella, ainda que
sobeja a minha diligencia, lhe falta tudo. No que é servir-vos, a todos
satisfaço, senão o meu desejo, que é igual ás obrigações que vos tenho.
Vivei seguro; e gozai saude; que, em quanto a tiver, porei por vossas
coisas a vida."


--Não estão as cartas para desprezar (disse Solino) e para me assegurar
se a vossa memoria é archivo d'ellas, ou se as ides fingindo de repente
(ainda que isto é

menos curiosidade, que tenção) hei de pedir por parte d'estes senhores
que de alguma nos deis semelhantes exemplos.--Não quero (disse elle) que
acrediteis tanto o meu entendimento com mostrardes desconfiança da
memoria; mas a troco do louvor vos hei de obedecer nas que me lembrarem:
e proseguindo nas da segunda especie d'este genero, me parece carta
civil, e breve esta, que um amigo escreveu a outro, que mudava sua casa
para a terra, onde elle vivia; e dizia:


CARTA DE UM AMIGO

"Espero com grande alvoroço que venhais para esta cidade, para que com
vossa companhia viva n'ella contente, e vós desenganado de quam pouco em
si tem que me possa alegrar, senão depois que vos possuir."


A quem o amigo brevemente respondeu em outra que dizia:


RESPOSTA

"Assim como o desterro em o melhor lugar é penoso, nenhum pode haver tão
esteril, que, tendo a tal amigo, não seja desejado. Vós sois a quem
busco, é força que me contente a parte onde vos achar; que as pedras não
fazem a cidade, senão os homens: nem as commodidades da vida a
sustentam, senão os amigos."


As mercantis posto que são segundo os tratos, e negocios, e acodem mais
a elles, que ao bom termo dos comprimentos; não deixa de haver muitas
tão bem escriptas, que podem ter logar entre as melhores; e ainda que
não é d'ellas uma, que eu vi há poucos dias, a darei por ser tão breve,
e era esta:


CARTA MERCANTIL

"Ha nova de Cossarios no mar; e por esse respeito grande risco nas
fazendas d'essa terra: porém a valia d'ellas será muito avantajada, se
chegarem a este porto a salvamento; se a cubiça do interesse vence o
perigo das encommendas, ponde-as em ventura; que eu a terei para mim por
muito boa o vosso bom successo."


E assim não me desagradou outra, que dizia d'esta maneira:


CARTA MERCANTIL

"Com os tempos contrarios á navegação foram as occasiões ao nosso trato:
que, como as mercadorias não foram requestadas de extrangeiros, estão ao
presente abatidas: enviae-me menos d'ellas para que, faltando, mais as
procurem os mercadores da terra; e n'essa vos não descuideis de fazer
emprego, mandando-me o de muito boas novas vossas."


--Não me pareceu (disse o doutor) que tirasseis tão boa doutrina de
materia tão limitada; porque esse primeiro genero de cartas tinha eu que
não sahia de uns termos e principios, que andam escriptos no panno da
serpe, como são: _Á feitura d'esta_. _Esta não é para mais_. _Uma de v.
m. me deram_. _Pela de v. m. de tantos do passado_: _Depois de me
encommendar em v. m._ E d'aqui correndo por seus capitulos _de quanto a
isto_, e _quanto a est'outro_ até topar no _a quem Deus guarde_.--Esses
principios (disse Solino) estão já muito bolorentos; mas ainda para
cartas de mais ponto tenho outros grangeados de algumas secretarias
velhas, como impressão de Torres, de que me valho nas pressas de uma boa
nota, que não são tão corriqueiros.--Não me atreverei eu sem esses
(disse Leonardo) a ir por deante pelo que vos hei por notificado.--Pois
assim é (disse Solino) quero obedecer, ainda que perco grande valhacouto
em os descobrir; porque sabei que é comer feito para os ronceiros d'esta
mecanica; e o mór trabalho d'ella é desencalhar a penna com a primeira
palavra: e são quatro: _Como quer que_, _Tanto que_, _Depois que_, e
_Antes que_. E sabei que não ha proposito, que saia das unhas d'estes
bilhafres; e nos capitulos de _quanto isto_ etc., se mette em logar do
_quanto_, _no que toca a tal_, e _no que toca a qual_; que, a meu vêr,
era melhor o _item_, que tinhamos tomado aos latinos. Mas os notadores
de espada solta esgrimem já agora sem estes bordões
maravilhosamente.--Bons estão os principios (disse D. Julio) porém
haveis de metter a lettra em todos elles, para que nos não passem por
alto.--Antes por muito rasteiros (respondeu elle) vos ficarão entre os
pés. Porém tende tento, e vereis que são principios de parafuso e que se
encaixam, e viram para todas as partes como grimpa.


"Como quer que os meus serviços montem ante vós tão pouco, e a vontade
por minha seja de menos preço, etc.

"Como quer que o animo, com que sou vosso, me não deixa perder
occasiões, em que vos sirva, etc.

"Tanto que soube que era cousa de vosso gosto deixar esta empreza, etc.

"Tanto que me vi desfavorecido de vossas lembranças, lancei mão do meu
atrevimento, etc.

"Depois que me apartei de vós, não soube mais de mim, que para sentir
saudades vossas, etc.

"Depois que meus males me deram logar para tomar esta penna na mão, a
empreguei em procurar novas vossas, etc.

"Antes que me desculpe de meus descuídos, etc.

"Antes que vos dê larga conta dos meus successos, etc."


De modo, que são como materia prima, em que moldareis tudo o que
quizerdes: porém não quero ir adeante, e tomar o tempo ao sr. Leonardo;
que o vejo entrar já por outras cartas missivas.--Antes (lhe disse elle)
tomei folego em quanto vos ouvia falar n'essas. E tratando das do
segundo genero, que são cartas de novas, a que chamam narrativas de
cumprimentos, que se dividem em cartas de agradecimento, recommendação,
desculpa, queixume e outras muitas, cartas de galantaria ou jocosas,
como chamam os latinos: Para as narrativas nos podia servir de exemplo
aquella em que o imperador Tiberio Cesar dava novas de Italia a seu
irmão Germanico, que dizia:


CARTA DE TIBERIO CEZAR A GERMANICO

"Os templos se guardam; os deuses se servem; o senado está pacifico: a
republica prospera; Roma sã; a Fortuna mansa; o anno fertil; e isto, que
ha aqui em Italia, desejo que da mesma maneira gozeis em Asia."


Deixo a que Cesar escreveu a Roma, das novas de Persia, que continha só
tres palavras: _Cheguei: vi: venci._ E a de Gneu Sylvio, escrevendo as
novas da Farsalia, que dizia:


CARTA DE GNEU SYLVIO

"Cesar venceu: Pompeio morreu: Rufo fugiu: Catão se matou: acabou a
dictadura; e perdeu-se a liberdade."


E chegando a alguma, que com menos aperto faça sua relação, me não
pareceu engeitar a que Marcello escreveu ao senado romano, dando-lhe
novas da rota de Fulvio, que dizia:


CARTA DE MARCELLO AO SENADO

"Bem sei que a nova, que vos mando, é de sentimento. Fulvio Proconsul
com treze mil homens foi desbaratado e ferido. Porém não vos cause temor
este successo; que eu sou o mesmo, que, depois da batalha de Canas,
mortifiquei a soberba de Hannibal, vencedor d'ella: contra elle caminho
brevemente com o meu exercito para lhe fazer mais breve a alegria d'este
triumpho; e em vós desejo muito o mesmo animo que levo."


--Uma carta (acudiu o doutor) me escreveu os dias atraz um amigo, de
novas de Lisboa, que certo, pela brevidade, me pareceu digna d'esta
lembrança, e dizia:


CARTA MODERNA

"Esta cidade está abastada, mas descontente: o mar cheio de corsarios:
os portos de receios: o paço de requerentes; e elles de queixumes: para
os validos tudo é pouco: aos desamparados não cabe nada: do remedio de
tantos males não ha boas novas; e as minhas são que entre todos elles me
falta a vossa companhia."


--Essa (disse Leonardo) se póde ajuntar por exemplo ás antigas que
relatei: e por não me empregar em outras, que seria demasiado trabalho a
todos ouvil-as, e a mim recital-as, peço-as de recommendação de alguma
pessoa ou de algum negocio, nas quaes tem mais logar a disposição e
offerecimento dos rhetoricos, encarecendo os merecimentos da pessoa ou a
importancia da causa que encommendaes, facilitando-a na condição e
vontade a quem a pedia; concluindo com a petição e offerecimento de
vossa parte: e todas estas, e ainda um exordio de sentença, que hei por
escusado, se vêem em uma carta que ha pouco que li, que um rei de
Portugal antigo, escreveu ao de França, encommendando-lhe um fidalgo que
ia estudar a Pariz; e dizia tirada de latim, em que estava em um livro
extrangeiro:


CARTA DE EL-REI DE PORTUGAL AO DE FRANÇA

"Entre as virtudes e excellencias dos principes, me pareceu muito digna
de louvor a de terem particular cuidado e lembrança dos vassallos
benemeritos em seu serviço, para com favores e mercês os ajudarem: e por
esta razão me pareceu que devia encommendar a vossa magestade D. Pedro
de Almeida, que por occasião de seus estudos vae a essa côrte de Paris,
posto que claramente conheço que, sem recommendação minha, vae assás
encommendado pela liberalidade e brandura com que vossa magestade honra
e recebe os homens tão illustres como elle é. Além do que, tem elle
tantas partes e entendimento, que não achará melhor terceiro, que a si
mesmo. Deixo seu pae D. João de Almeida conde de Abrantes, que com suas
singulares virtudes e claros feitos, adquiriu e conservou até á morte
muito estreita privança e amizade com meus antecessores e commigo; de
sorte que ponho em duvida se importe mais a seu filho a minha carta, se
a fama e lembrança de seu pae. De qualquer modo o encommendo muito a
vossa magestade. E de minhas cousas não offereço de novo nada; pois pela
irmandade de meus antepassados e minha, em toda a occasião deve vossa
magestade usar d'ellas, como se foram communs a ambos."


Outra achei no mesmo logar, de el-rei D. Manuel, mais breve que a
passada, que era de seu antecessor, a qual elle escreveu ao mestre de
Rhodes, encommendando-lhe um noviço portuguez, que ia servir a religião
que será para exemplo das menos enfeitadas. O grão, mestre era o cardeal
Pedro de Buzon, e dizia:


CARTA DE EL-REI D. MANUEL AO GRÃ MESTRE DE RHODES

"Ayres Gonçalves, filho de Henrique de Figueiredo, vae a tomar o habito
d'essa religião: não pareceu fóra de proposito nem de humanidade,
encommendal-o a V. P. assim por sua nobreza, e ser creado de minha casa,
como pelos serviços e merecimentos de seus passados com os reis meus
antecessores; e finalmente por seu bom esforço e virtude. Rogo a V. P.
que com sua costumada brandura o favoreça de sorte que n'elle se
accrescente o valor e a devoção que leva: e não porei esta obrigação no
menor logar das muitas que tenho a V. P."


As cartas de agradecimento tem o campo mais largo para n'ellas se
espalhar a penna, e o entendimento; pois quem mais se obriga e encarece
o que recebe, escreverá com melhor termo, não sahindo dos da carta
missiva: e já os antigos não desconheciam esta galanteria; pois Lybanio
respondendo a Demetrio, que o obrigava a que lhe pedisse, escreveu
assim:


CARTA DE LYBANIO A DEMETRIO

"Não daes logar a que eu vos peça, porque me mandaes tudo. Ainda bem as
arvores não dão seu fructo, quando vossos creados m'o trazem: e do que
até nos agros se sente a falta, eu a não tenho. Como me haverei n'isto?
que o lavrador, quando o tempo lhe nega a agua, então a pede: porém, se
chove, contenta-se de vêr que favoreceu o céo suas esperanças."


O queixume por carta se deve fazer com toda a moderação que a urbanidade
requere: e póde n'estas servir para exemplo e lembrança a que Olympias,
mãe de Alexandre, respondeu a seu filho, a uma em que elle se assignava
por filho de Jupiter, que dizia:


CARTA DE OLYMPIAS A ALEXANDRE

"Muito me alegro com a victoria que alcançastes da cidade de Tyro; e com
todas vossas venturas e façanhas: porém tive por grande affronta minha
vêr que vos nomeaes por filho de Jupiter na carta que d'esta nova me
escrevestes. Estimarei muito, meu filho, que aquieteis n'isso o
pensamento, e me não leveis a juizo ante a deusa Juno; que algum grande
mal me ha de ordenar, sabendo que por lettra vossa me chamaes manceba de
seu marido."


E se me não parecêra um pouco enfeitada uma carta que Angelo Policiano
escreveu ao grande Lourenço de Medicis, a podéra pôr em exemplo da
moderação de queixume, porque dizia:


CARTA DE ANGELO POLICIANO AO DUQUE DE FLORENÇA

"O poeta é semelhante ao cysne na brancura e suavidade, em ser
affeiçoado a correntes de agua e amado de Apollo. Comtudo, dizem que o
cysne não canta senão quando o vento zephiro respira. Não é logo muito
que eu seja mudo tantos dias, sendo poeta vosso, se vós, que sois meu
zephiro, n'elles me faltaes."


As cartas jocosas, ou de galantaria, tem mais campo, e liberdade para se
poderem usar n'ellas alguns termos fóra das limitações das nossas
regras; porque assim em se entenderem mais, como em se sujeitarem menos,
ficam desobrigados das primeiras leis. que são _brevidade sem enfeite_:
_clareza sem rodeios_: _propriedade sem metaphoras_; pois o termo da
graça e galantaria, n'isso se differença do sizudo e pontual; não
negando que ha algumas que não perdem a graça nem o sizo, como é uma que
Lybanio escreveu a Aristoneto, que dizia:


CARTA DE LYBANIO A ARISTONETO

"Onde vos achaes, sei que dizeis sempre mal de mim; eu pelo contrario
não perco occasião de dizer louvores vossos; porém quem a ambos nos
conhecer, a nenhum de nós ha de dar credito."


Das mais ha tantos e tão differentes exemplos, que seria aggravo a cada
uma das outras trazer aqui algumas bem escriptas. Só direi que uma
especie d'ellas é narrativa, motejando do mesmo, que contam, ou das
novas que dão; que não são por esse respeito pouco engraçadas. Ha outra
das de disbarates, que, parecendo que se desviam nas palavras do
proposito que tomam, dão a entender, como em enygma, o pensamento de
quem as escreve; e são estas graciosas com subtileza. Outra ha das de
murmuração em materias leves, como satyras menores: e umas e outras tem
a galanteria no pintar e descrever as pessoas e as cousas, com apodos
graciosos, encarecimentos desuzados, palavras facetas, phrase humilde,
accommodada sempre ao sujeito. É certo que n'isto tiveram mão particular
os portuguezes, que escreveram ao gracioso, que nem os italianos na
phrase burlesca, nem os hespanhoes no estylo picaresco os egualaram.

--Não vos houvera eu de consentir esse salto (disse Solino) deixando
tantos exemplos em aberto, se não tivera pensamento de cobrar a demasia
n'outra occasião; e assim por isso, como por ser já passada tanta parte
da noite, vos peço que façaes a vontade ao sr. D. Julio com essas cartas
Reaes, de Estado e Governo, que as está desejando com a vida; pois a sua
é nadar na altura de cousas semelhantes.--Eu vos mereço (respondeu o
fidalgo) a boa opinião em que me tendes: porém egualmente me contentam
todas as cousas em que fala o sr. Leonardo: e porque sempre as ultimas
me ficam parecendo melhor que as primeiras, posso desejar esse terceiro
genero de cartas; e se d'elle tornar ao primeiro, farão o mesmo effeito
na minha satisfação.--Para responder a esse favor (tornou Leonardo)
havia mister o tempo que hei de gastar nas cartas que me ficam: e assim
ou uma ou outra cousa me havei por perdoada.

Não deixou o doutor ir os cumprimentos por deante, dizendo que eram em
prejuizo de terceiro; e proseguindo Leonardo, disse:

--As cartas do terceiro genero, que, pelas materias importantes, e
differença das pessoas, são mais graves e humildes; posto que se incluem
algumas d'ellas á oratoria, aproveitando-se da elegancia e razões para
persuadir, consolar, dar louvores ou reprehender; e posto que d'estas
estão cheias as chronicas e annaes de todos os reinos, recitarei algumas
que pareçam menos vulgares e mais breves para exemplo, como é uma que os
consulares C. Fabricio e C. Emilio escreveram a el-rei Pyrrho sobre uma
consideração em materia de Estado, que dizia:


CARTA DE FABRICIO EMILIO A EL-REI PYRRHO

"Pelos aggravos que de vós temos recebido, o maior cuidado nosso é
fazer-vos guerra com animo inimigo e braço esforçado: porém, para
exemplo commum de fidelidade, nos pareceu conservar-vos a vida, porque
com a perda d'ella nos não faltasse um contrario valoroso a quem vencer.
Nicias, vosso particular, veiu ter comnosco, pedindo-nos preço certo por
vos dar morte occulta; em que nós não consentimos, fazendo-lhe perder a
esperança de tirar fructo da sua maldade. Juntamente assentámos dar-vos
este aviso; porque, se alguma cousa acontecer, se não presuma que sahiu
do nosso conselho; e não sendo o intento d'elle pelejar por preço,
premio ou engano, vós, á falta de cautella, percaes a vida."


Tambem me não parece indigna de lembrança uma,

com que Rhodoge, mãe d'el-rei Dario, o reprehendia, e aconselhava na
segunda expedição contra Alexandre; que foi a que se segue:


CARTA DE RHODOGE PARA ELREI DARIO, SEU FILHO

"Deram-me novas que ajuntaveis poderosos exercitos de todas vossas
gentes e das alheias, para de novo offerecerdes batalha a Alexandre. Não
sei a que effeito; pois o poder de toda a redondeza não basta para
pelejar com os deuses immortaes que a elle o favorecem. Deixae esses
pensamentos altivos; apartae-vos da vangloria d'elles, concedendo á
grandeza de Alexandre alguma cousa; que melhor é deixar o que não podeis
ter, para gosar livremente o que possuis; que, querendo dominar tudo,
ficar sem nada."


Cada um dos presentes gabou estas cartas com tanto extremo, que não
deixaram que com ellas acabasse Leonardo sua obrigação; porque (disse D.
Julio) já pelo voto de Solino, estas são as cartas, que entram na
jurisdicção de minha curiosidade, não consinto que nos exemplos seja
este genero mais limitado; mórmente que d'este se tira outra doutrina
mais que a das cartas, que é a variedade das historias e occasiões
d'ellas.--Eu (respondeu Leonardo) ainda tinha cabedal para ir adeante,
se as horas tornaram atrás; mas partirei (como dizem) a contenda pelo
meio, recitando uma carta, que o grã senhor dos turcos escreveu aos
amazonios; e a valorosa resposta que elles lhe mandaram: e dizia a
primeira:


CARTA DO TURCO AOS AMAZONIOS

"Se por defensão de vossa liberdade sustentáreis guerra contra meu
poder, não vos tivera tanto por inimigos, como por valorosos cidadãos,
que pela patria, filhos, parentes e amigos punheis as vidas. Porém com
nenhuma razão me persuado que os que deixaram tantos annos governar o
reino a mulheres (como tenho ouvido) recusem agora o imperio, e governo
de homens valorosos."


E a esta carta responderam elles outra, que dizia:


RESPOSTA DOS AMAZONIOS

"Este reino das amazonas, que, como por affronta nossa nomeaes, com o
seu mesmo exemplo nos aconselha não obedecer a outrem: porque temos por
infamia e torpeza que o exforço varonil seja vencido do espirito e braço
feminino. Pelo que deveis julgar por invenciveis em armas, e dignos do
governo e principado do mundo homens, entre os quaes até as mulheres
apprenderam a reinar."


E porque com exemplos gentilicos e barbaros não dê fim á conversação
d'esta noite, direi por remate uma carta que o veneravel sacerdote Beda
escreveu a Carlos Martelo, rei de França, e aos mais potentados
d'aquelle reino sobre a entrada dos mouros em Hespanha, que dizia:


CARTA DO VENERAVEL BEDA A CARLOS MARTELO REI DE FRANÇA

"Em quanto se move perigosa e cruel guerra na christandade, se apparelha
notavel ruina de toda a Europa: porque os sarracenos, occupada a Africa
e Libya, começando de Ceita, tem conquistada toda a terra de Hespanha,
tirando a das Asturias e Cantabria. Africa, que o capitão Belizario
cobrou aos romanos, e que cento e setenta annos obedeceu a seu imperio,
juntamente com a Hespanha Betica, tem tomado os mouros, fazendo-a
obedecer a seus falsos ritos, com grande ignominia e affronta do nome
christão. Que cousa póde haver mais excellente, valorosa e pia, que
contra estes inimigos de Deua tomar armas? Que fizeram os suevos, os
allemães e os mais varões do nome christão, que com tão grandes
destruições tendes perseguidos? Perto estào, e sobre vossas cabeças os
sarracenos, que com soberbo jugo ameaçam a toda a redondeza da terra.
N'elles tendes formosissimos reinos, grossas cidades, ricos despojos; e
vos esperam grandes triumphos da victoria: e principalmente incomparavel
premio de gloria com Christo nosso Salvador, que para tão santa empreza
com continuos brados vos está chamando."


Certo, disse o doutor, que, se pudéra dilatar a noite pelo interesse de
tão proveitosa doutrina; mas porque n'esta se não ha de dar fim ao nosso
exercicio, fiquem algumas perguntas, que agora escuso, para outra
occasião, pois agora a não tiveram as cartas amorosas nem as de
desafios.--As primeiras (replicou Leonardo) deixei por ser improprio da
minha edade tratar d'ellas; as segundas, por me não embaraçar com o
duello que está reprovado. Porém fica o campo livre para os mancebos.
Com isto se despediram dando-se boas noites: e o estudante foi
encarecendo ao companheiro o muito que o espantára vêr tanta côrte em
uma aldeia; que as cousas achadas onde não se esperam, são de maior
admiração, e de mais estima.




DIALOGO IV

DOS RECADOS, EMBAIXADAS E VISITAS


Amanheceu o sol tão claro e gracioso, que alguns dos amigos por se
lograrem d'elle com a occasião da caça se espalharam pelos montes; mas
depois de horas de vespera visitou o estudante em companhia de Pindaro
ao doutor Livio, com quem passaram a tarde n'um seu jardim em boa
conversação, esperando a da noite, a que elles foram os primeiros que
acudiram, e se acharam em casa de Leonardo; que commummente nos
lettrados se accende melhor o desejo de saber, e não n'aquelles aos
quaes lhes custou menos. Sentaram-se á vista do fogo, que á conta dos
hospedes estava melhor ordenado; e depois de gastarem algumas palavras
de cumprimento, chegaram D. Julio e Solino a quem todos fizeram muita
festa; e, reprehendidos da pequena tardança, disse Solino:--Grande
espaço ha que eu pudera gosar esta companhia, se me não detivera em
esperar resposta de um recado, que mandei ao sr. D. Julio.--E eu
(respondeu elle) se vos não encontrára, ainda não tinha entendido o
vosso moço; porque de maneira embaraçou o que me mandaveis dizer, que
nem por discrição pude tirar o recado: nem vos desfaçaes d'elle para os
que forem de importancia, que val a peso de ouro.

A isto se começaram todos a rir, e tornou Solino:--O meu moço, sr. D.
Julio, tem desculpa em ser nescio, porque é meu moço; que, se soubera
mais, eu o servira a elle; mas os creados dos grandes, como vós, esses
hão de ser discretos, pois são tão bons como eu: e comtudo eu vos sei
dizer que ha aqui moço que no dar um recado o pudera fazer como ao que
lá mandei, que não é dos peiores da sua ralé, e já entermette de lêr
carta mandadeira: mas nos recados ainda agora lê por nomes, e não acerta
a nenhuma cousa.--Pouca paciencia tenho (disse o doutor) a um creado que
esperdiça o entendimento de seu amo: mandaes um recado concertado,
discreto e cortezão: e o madraço, que o leva, muda-lhe os trastos e
desentôa com uma parvoice que vos desacredita, como com os meus me tem
acontecido mil vezes.--Nos vossos não é muito (disse Solino) que daes os
recados guarnecidos de rhetorica com seus vivos de latim, que são mais
perigosos na bôcca d'estes, que vidro em mão de menino: mas os meus, que
não passam de quatro palavras em linguagem corrente, e que assim os
virem do carnás e me mettam em vergonha, não é desgraça? Ora prometto
que os de importancia eu mesmo os leve como aconteceu ao cortezão
ausente, que levou elle proprio a carta a sua mulher: e os que houver de
dar o meu moço, que sejam seus, por não andar remendando o burel da sua
natureza com o trabalho da minha disciplina. D'aqui por deante bôcca faz
jogo: digo, que o que o meu moço disser, elle o diz, e que me não ha de
chamar por auctor das suas impertinencias.--Certo (disse Leonardo)
deixando de tratar dos meus, e vossos recados, que importam menos, e de
outros em que vae tão pouco, que é uma das cousas de maior consideração
aos reis, principes, republicas, e aos grandes mandarem suas embaixadas,
visitas e recados por homens de auctoridade, discretos e bem
disciplinados, em cujas razões e procedimentos consiste muitas vezes o
bom successo do que pretendem. E assim os reis, principes e republicas
nas materias de estado; as cidades e povos nas occasiões das côrtes; os
senhores particulares nas visitas; devem sempre escolher homens, que no
entendimento se avantajem dos outros, porque não sómente conseguem o fim
da pretenção de quem os manda; mas o acreditam: e porque ás vezes por
respeitos, privança e valia se antepõem os menos sufficientes para estes
cargos, se deitam a perder negocios de uma republica, em que consiste a
quietação e honra d'ella.--Pouco e pouco (disse Pindaro) se foi o sr.
Leonardo á materia dos recados, que não ficam fóra de seu logar, depois
de o terem as cartas missivas; e bem se póde fazer a noite bem
assombrada com tão bom sujeito.--Desculpado estou (respondeu elle) com o
trabalho, que na de hontem cahiu á minha conta, em fugir d'elle; mas não
de approvar a vossa advertencia.

A todos os mais pareceu que seria acertado tratarem a materia de mais
longe; e pediram ao doutor que, tomando-a á sua conta começasse.--Bem
pudera usar (disse elle) do privilegio do sr. Leonardo, e de outros para
minha escusa; porém ainda que os tinha, e qualquer dos presentes mais
sufficiencia para este encargo por lhe não pôr a elles ruim fôro, me dou
por obrigado. Digo que _recado_ é nome que entre nós tem a etymologia. A
significação é muito duvidosa, pelo modo em que usamos d'elle: porque,
se houveramos de derivar este nome do verbo italiano _recare_, que é
_trazer_; ou do verbo _recapacitare_ que é _recapacitar_ (d'onde elles
chamam _recapacitar_ ao _recado_) nunca disseramos d'elle tanto, como na
nossa lingua portugueza significamos; mas se lhe buscarmos a origem do
latim, virá mais ao nosso modo pela differença do messageiro ao que leva
recado: que o primeiro _missa gerit_, faz as cousas que lhe mandam; e o
segundo _recautus_, este é homem acautelado, que sabe o que ha de fazer
no que está á sua conta; que assim convém mais com o nosso modo de
falar, quando dizemos _homem de recado_, que quer dizer _de importancia,
posto a bom recado, que é seguro_, e _com cautella: tardar e arrecadar_,
que é levar ao fim o que começou: porém seja uma cousa ou outra, ou
ambas, o principal recado de todos é o do embaixador; e estes são de
duas maneiras, ou o que o principe manda a outro por occasião
successiva; ou o que de ordinario assiste em sua côrte, para conservação
da benevolencia e amisade que entre elles ha: estes segundos tinham os
romanos nas provincias junto á pessoa do consul, que as governava com
titulo de legados, e com elles despachava os negocios de importancia.
Mas aos primeiros chamavam elles oradores, por serem mui semelhantes no
officio de persuadir, mover e obrigar; e ainda em nossos tempos se
aproveitaram muitos d'essa arte, sendo escolhidos para o cargo de
embaixadores.--Eu (disse Leonardo) tenho um cartapacio não pequeno de
falas e orações de embaixadores portuguezes feitas a grandes principes,
e não pouco doutas e elegantes, como foi uma que fez o bispo D. Garcia
do Menezes ao papa Xisto, indo por embaixador por mandado de el-rei D.
Affonso V, e por capitão de uma armada que elle mandava contra os turcos
em favor da egreja no anno de mil e quatrocentos e oitenta e um: e
outra, que fez o doutor Diogo Pacheco ao papa Julio, indo com o
arcebispo de Braga por embaixador a lhe dar obediencia por el-rei D.
Manuel no anno de mil e quinhentos e cinco: e outra, que fez o mesmo
doutor ao papa Leão, indo com Tristão da Cunha embaixador a lhe dar
obediencia com aquelle famoso ornamento, que ainda agora é dignamente
celebrado na egreja romana assim pela grande devoção d'aquelle pio e
catholico rei, no anno de mil e quinhentos e quatorze, á qual o papa
respondeu em publico com uma doutissima oração de louvores do mesmo rei.
E não é este costume só dos nossos embaixadores, mas de todos os
extrangeiros, assim quando eram enviados a este reino, como a outros.
Vindo a este por embaixador de el-rei Francisco de França a el rei D.
Manuel, que estava em Almeirim, no anno de mil e quinhentos e seis,
Monsieur de Lanjaca, governador de Avinhão, lhe fez uma douta oração em
sua chegada: fóra outras muitas com que pudera allegar.--D'esses
exemplos ha muitos (disse o doutor), e continuando com o que convém mais
ao fim do nosso intento, devem ser escolhidos para este cargo de
embaixador os homens das familias mais illustres do reino, dos illustres
os mais discretos e cortezãos, d'estes os mais animosos e liberaes, dos
animosos os mais apessoados, e de todos os mais bem acostumados; e são
todas estas partes tão necessarias ao embaixador, que com a falta de
qualquer d'ellas ou arriscará o credito do principe, que o manda, ou o
negocio de que vae a tratar por sua parte. Primeiramente ha de ser
illustre por auctoridade de seu rei e de seu reino, e dos illustres
d'elle, e por honra tambem do principe a que é mandado, pois ha de fazer
as partes de um, e assistir á ilharga do outro. E assim n'este reino, e
nos vizinhos a elle vimos cada dia entrarem embaixadores muito chegados
em sangue ás casas dos reis que os enviaram, e sahirem outros da mesma
qualidade; o que não só tem exemplo dos reis da Europa, mas da Persia,
Japão e outras remotas partes do oriente. Depois de illustre ha de ser
discreto e cortezão, porque parece que mais que todas as outras partes,
lhe está requerendo o mesmo cargo aviso, entendimento, discrição e
cortezia para tratar as cousas convenientes á sua embaixada, encobrindo,
desculpando e persuadindo o que a seu rei convém; que esta é a
differença do recadista ao embaixador: que o primeiro relata o que lhe
mandam que diga: o outro dispõe, ordena e conclue o que lhe encommendam
que faça: um leva o recado na lingua, outro no peito, como disse um
embaixador dos romanos aos carthaginezes na guerra de Sagunto, que
levava a paz, e a guerra dentro no peito; e assim não vindo elles no que
os romanos pediam, declarou a guerra. Além d'isto como o embaixador é um
terceiro, e conciliador da amizade de dois principes, nenhuma cousa lhe
é mais importante, que o entendimento, e tambem o ser cortezão lhe
importa muito, pois a sua principal assistencia é no paço, e junto á
pessoa do principe, com communicação dos principaes senhores do reino; e
ás vezes por esta parte sendo engraçado, e acceito áquelle a quem é
mandado, acaba mais facilmente os negocios e pretenções de quem o manda.
Ha de ser animoso e liberal; o primeiro, porque nas materias que tocarem
á guerra, tregua e liga, ou confederação com seu principe, se não mostre
por sua parte acanhado, timido nem pusillanime: antes obrigue com seu
exemplo a que o respeitem e temam; e tambem porque na occasião em que se
offerecer ao senhor a quem assiste, acredite com o conselho e com as
obras as armas de seus ascendentes e naturaes. E o segundo, porque com a
magnificencia se conquistam mais vontades e animos extrangeiros, que com
qualquer outra valia, por grande que seja; e posto que esta parte a
todas as pessoas illustres é necessaria, e em todos os cargos de guerra
e officios da paz é tão estimada, no de embaixador é muito mais
proveitosa para saber o aviso, o secreto, o intento e a cautella que
convém ao de sua embaixada, e para mover os ministros e validos, em cuja
mão ou conselho está seu negocio. Convém além d'isto que seja o
embaixador homem apessoado, que pela vista obrigue a respeito e
veneração; que em outro modo o corpo pequeno em pessoas de grande logar
lhes tira muita parte do que se lhes deve. E um doutor nosso de muito
grande nome, e pequena estatura, mandou pôr ao pé de um retrato seu uma
lettra que dizia: _A presença diminue a fama_.

E outro do mesmo grau, e não de maior corpo, indo d'este reino com uma
embaixada a um rei assás poderoso, vendo-o elle tão pequeno, lhe
perguntou motejando d'elle: "Se el-rei seu irmão tinha em seu reino
outros homens mais apessoados que enviasse com semelhante cargo?" Ao que
elle respondeu valendo-se do entendimento, e animo que tinha: "Que na
corte d'el-rei seu senhor havia muitos homens do grande pessoa, e
partes, a que encommendar aquelle cargo; mas que para sua magestade lhe
pareceu que elle bastava, e por isso o mandára." Finalmente é de muita
importancia ser bem acostumado, para com sua temperança, continencia, e
bom termo conservar, e acreditar o bom nome, e fama de seu rei, a honra
de sua patria, e da propria pessoa. E porque com alguma demazia de seus
costumes não faça com que se diminua, e perca o respeito, liberdades, e
exempções que tem os embaixadores, como aconteceu aos da Persia, que
vieram a el-rei Amyntas de Macedonia, que foram mortos por traça de
Alexandre, filho do mesmo rei, o qual, não podendo soffrer sua estranha
dissolução, mandou alguns moços de bellissima figura, que em habito de
damas os servissem á meza, levando escondidos punhaes com que se
vingassem de qualquer deshonesto acometimento dos embaixadores; que
usando de sua demasiada luxuria foram mortos a punhaladas. O rei da
Persia offendido de se não guardarem com os seus as leis dos
embaixadores, mandou um poderoso exercito contra el-rei Amyntas; porém o
general d'elle sabendo como o caso passára, se retirou sem querer dar
batalha aos Macedonios. Tambem importa muito que os embaixadores sejam
escolhidos de sujeito acommodado aos negocios, de que hão de tratar; que
tal occasião se offerece, em que convém serem humildes; e outra, em que
é melhor mostrarem-se arrogantes; tal, em que hajam de ser animosos, e
arriscados; e outras brandos, e dissimulados. Francisco Dandalo,
embaixador dos Venezianos ao Papa Clemente V para levantar o interdicto
ao Senado, contra quem estava iroso por razão das coisas de Ferrara,
esteve lançado de bruços grande espaço á meza do Summo Pontifice, com
uma cadeia de ferro ao pescoço; e com tantas lagrimas, e palavras o
obrigou, que alcançou d'elle o que pedia. Este por sua grande humildade
foi chamado _cão_, e por seu valor succedeu no Ducado de Veneza. Pelo
contrario Orfato Justiniano, homem de letras, e animo generoso,
embaixador do mesmo Senado a el-rei Fernando de Napoles, que pelo mau
animo, que contra os Venezianos tinha, não fazia d'elle a conta, e
estima que seu valor merecia. Orfato lhe mostrava tão pouca inclinação,
e humildade, que o rei indignado mandou fazer tão baixa a porta, por
onde entrava a lhe falar, que á força lhe fizesse dobrar o pescoço:
porém elle entendendo a tenção de Fernando, entrou com as costas para
diante, e voltando-se direito na casa fez a mesma cortezia, que
costumava. Outro dia achando-se em um banquete, que o rei mandou fazer,
dando-lhe de proposito os convidados tão estreito lugar que achava sua
auctoridade, deixando o que tinha se sentou sobre uma rica toga, que
trazia vestida; e acabado o banquete, a deixou ficar como os outros
assentos.--A mim me parece (disse Leonardo) que os attributos mais
importantes ao embaixador, e que sempre n'elle devem andar annexos, são
esforço, e entendimento, que são como dois eixos, em que se revolve o
maior peso, e substancia, das coisas do Estado; o que se colhe dos
exemplos que dissestes, e de outros muitos; porque o esforçado e
entendido em nada falece, nem áquillo a que seu rei o manda, nem ao que
a si mesmo deve, nem á occasião de que se póde aproveitar, como
aconteceu a Pompilio, embaixador a el-rei Seleuco, sobre conservar
amisade com os Romanos, ou romper com elles guerra: que respondendo o
Rei que se aconselharia devagar no que lhe estava melhor; e entendendo o
Romano que aquella dilação se fundava em fraqueza, e cautela, com o
bordão que trazia fez um circulo na terra, em que Seleuco ficou mettido,
dizendo-lhe que antes que d'elle sahisse se havia de determinar na
resposta de sua embaixada; e com isto obrigou ao rei a acceitar a paz
que lhe requeria. E em caso differente Lucio Posthumio, embaixador aos
Tarentinos, lançando-lhe por desprezo sobre as roupas muitas immundicias
com grande rizada, e escarneo, o Romano lhe respondeu animosamente:
Vingai-vos agora do riso á vontade, porque tendes muito que chorar
quando com vosso sangue se lavarem as nodoas d'este meu vestido.--Esses
casos (accudiu D. Julio) são da mera jurisdicção do esforço, e
cavallaria; ainda que sejam acompanhados do entendimento, porque o valor
do animo a tudo acode, e em nada perde ponto. E se não, vede a estimação
que fizeram os reis catholicos do nosso prior do Crato D. Diogo
Fernandes de Almeida, quando estando elles sobre Granada, e o prior
sendo embaixador d'el-rei de Portugal, o ajudou a combater valorosamente
tirando com muitos louvores d'aquella batalha feridas; e querendo-o
el-rei desviar antes, porque não convinha ao cargo que trazia, lhe
respondeu que, se o officio lh'o defendia, o sangue, e o animo o
obrigava. E em que conta teria el-rei Filippe I a Frederico Badoaro, que
os Venezianos lhe mandaram por embaixador a Genova, sendo elle principe
de Hespanha, que estando com elles aos officios divinos no segundo
logar, succedeu chamar o principe a si ao duque de Saboia; e acenando ao
veneziano que lhe désse o lugar, o que elle não quiz fazer, o principe
com acenos, e palavras asperas o mandou muitas vezes tirar; mas
respondeu que antes havia de deixar a vida, que aquelle lugar, porque
com a morte de um particular se não fazia affronta ao Senado; mas que se
lhe faria muito grande, se désse o lugar, que lhe era devido, a pessoa
inferior em merecimentos. E quanto á dissimulação, e soffrimento só nos
esforços costuma a achar confiança para metterem em cortezania o que
puderam estranhar com arrogancia: como aconteceu a Giuberto Dandalo,
embaixador dos Venezianos ao Papa Nicolau III, que já mais foi ouvido,
nem pôde alcançar entrada do Summo Pontifice, por o enojo que tinha
contra o Senado, sobre a possessão de Ancona; até que, vendo elle o
pouco que importavam suas muitas diligencias, fingio um dia, sahindo com
alegre semblante, haver-lhe fallado, e alcançado o fim do negocio a que
vinha: e sem esperar outra coisa se partiu para Veneza; onde
perguntando-lhe o Senado o que passara, respondeu: "Não achei o Papa em
Roma, nem quem me soubesse dizer onde o acharia."

--Mui principaes (disse o doutor) são as partes de esforço, e
entendimento no embaixador; porém tem igual necessidade de todas as
outras para representar com a nobreza a pessoa do seu rei: para com a
magnificencia adquirir as vontades dos ministros, e criados: para com a
gravidade, e brandura ser amavel, e auctorisado: para com o conhecimento
das coisas do Estado, e experiencia d'ellas acertar nas que se lhe
offerecessem: e para com a gravidade, e gentileza da pessoa dar uma
approvação na vista, de tudo o que se conhecer de suas obras. Mas porque
não pareça que vou fora do em que comecei: A que os embaixadores não
levam recados, é certo, (que ainda que os seus sejam de maior confiança)
que levam por escripto muito do que hão de dizer, e do que hão de pedir,
ou conceder; porém a eleição do tempo, occasiões, e palavras fica
subordinada ao seu entendimento; e para isso dão os reis, e seus
conselhos supremos largas instrucções, regimentos, e ordens de como se
hão de haver nas coisas os embaixadores; que são mais largas, quanto são
mais remotas as provincias, a que são enviados.--O officio (disse
Leonardo) é de tanta importancia, que nenhum outro demanda maior cabedal
de partes da natureza, e das adquiridas por experiencia: e sei-vos eu
dizer que houve n'este reino famosos homens d'esta profissão, e taes,
que, querendo nomear alguns, faria manifesto aggravo a outros muitos.
Mas se o gran-duque de Florença, vencido da eloquencia, e partes de
Hermolau Barbaro (que estava em sua corte por embaixador dos Venezianos)
com tantas mercês, e favores o persuadia a que ficasse em seu serviço;
não faltaram outros, que sahidos d'este reino com o mesmo cargo, fizeram
maior inveja a principes, a monarcas mais poderosos. E algum teve lugar
nos tribunaes supremos da corte de Hespanha, que para negocios
particulares de um principe d'este reino foi mandado a ella, que pela
grande satisfação, que n'elles deu de sua pessoa, foi escolhido para os
de uma monarquia tão dilatada. Mas não é de espantar que de um
embaixador e messageiro particular se fizesse um conselheiro de estado,
sendo criado da casa de um senhor, do serviço do qual, como de outro
cavallo Troiano, sahiram heroes famosos, e varões insignes em todas as
profissões: d'onde sahiram vice-reis, e capitães maiores para o Oriente,
e soldados para capitães, e mestres de campo, que defenderam, e honraram
o Norte; cavalleiros, e bailios, que sustentaram Malta; fronteiros
valorosos, que se assignalaram em Africa, todos criados da mesma casa,
onde se acharam sempre em grande copia espiritos, que honrem a Marte, e
engrandeçam a Minerva, fazendo inveja aos mais avantajados nos
exercitos, e presidios hespanhoes, e aos mais insignes nas escolas, e
academias mais nomeadas da Europa.

--Tendes levantado este discurso de maneira (disse Solino) e está a
materia d'elle tão altiva, que me parece que eu e Pindaro ficamos esta
noite camarço, sem nenhum de nós fazer postoleta: ainda este mau jogo me
fez o meu moço, que não cuidei que d'elle saltasseis a coisas tão
differentes: folgara de saber se haveis de ficar n'esse tom, porque vos
deixarei em termo com o dono da casa, e o senhor D. Julio; e irei buscar
minha vida.--Ainda não tendes razão de vos queixar (respondeu elle) que
antes por me chegar pouco, e pouco aos criados, deixei muito dos
embaixadores, após os quaes se seguem logo os agentes, e procuradores,
que as cidades, villas, e lugares mandam a cortes, e outras vezes a
visitas, e occasiões dos principes, que não menos devem ser escolhidos
para estes cargos, buscando n'elles as partes mais necessarias que são
discrição, experiencia, e pessoa, quando não possam concorrer todas as
mais; porque a cidade, ou villa, que manda ao principe seu procurador,
ou agente, n'esse mesmo faz representação de sua sufficiencia.--De um
cidadão se conta (disse D. Julio) que, sendo enviado por procurador a
cortes, lhe esqueceu no caminho o que a cidade lhe encommendára, e
tornou a dormir a casa a perguntar a sua mulher o negocio a que ía: e
fôra melhor eleição, se a mandaram a ella, pois lhe não esqueceu.--De
outro ouvi eu (respondeu Solino) que jurou por vida da sua a el-rei
Filippe I que se havia de cobrir sua magestade para lhe fallar em nome
de uma cidade d'este reino: fóra outras impertinencias que na pratica
disse, mais dignas de riso, que de credito. E um conheci eu, a que
cahiram as luvas, e o chapéo da mão, começando a dar o recado de uma
cidade a um principe; e levantando-as, perdeu o que queria dizer, de
maneira que nunca atinou palavra.--Estes maus successos (proseguiu o
doutor) testemunham o muito cuidado, com que se hão de eleger os homens
para taes cargos; o que não importa menos aos titulares e fidalgos, que
mandam vizitar a outros em occasiões de pazes, ou parabens, por pessoas,
que saibam accommodar-se á tristeza, ou alegria que o caso requer, para
credito, e boa opinão de quem os manda.--Certo (accudiu Leonardo) que
não julgará bem quanto isso releva, senão o que já se envergonhou de
ouvir visitas desencaminhadas, como se fez uma a um fidalgo que eu
tratei particularmente, ao qual, estando enojado por morte de um seu
filho, visitou da parte de um personagem um capellão bem apessoado, e
disse que o senhor N. estimára muito aquella occasião para mandar
visitar a sua M. e se offerecer a seu serviço. A este conto fizeram
todos muita festa. E Solino, que vio lugar aos seus, accudio logo: "Não
sei se virá muito a proposito; porém tambem eu hei de dizer a minha
historia, em rasão da advertencia, e cuidado que deve ter quem visita em
nome alheio; pois se vê que mais desattentos, que ignorancias, os erros
d'estas materias. Uma senhora enojada por a morte de um seu irmão tomava
as visitas em uma camilha, como as mais costumam. A esta mandou visitar
outra parenta sua por uma pessoa de auctoridade; que entrando na
primeira casa achou tão escura que, pegando-se ás paredes, esperou uma
dona que lhe servisse de moço de cego; a qual o levou por a mão até uma
porta estreita, onde havia um degrau alto; e alli o soltou para passar
deante; a qual não alcançou tão bem o degrau, que não désse primeiro com
as queixadas na humbreira do portal; e sahido do perigo o tornou a guiar
a dona da mesma maneira até junto da camilha, onde o tornou a soltar:
esta pessoa, cuidando que tinha alli outra porta, por não errar o degrau
por baixo, levantou o pé de maneira, que o poz nos peitos á enojada, que
dando um grande grito a fez cahir de focinhos. Muitos, que estavam na
casa, e tinham furtada a luz aos que de novo vinham a ella, levantaram
tão grande riso, e borburinha, que desauctorisaram de todo o sentimento
do nojo, e cahia cada um para sua parte sem se poder valer." Como Solino
tinha graça natural no que dizia, deu muita a este conto, que foi
celebrado com riso de todos.--Se assim é (disse Solino) que nesses ha
tantos desatinos, e inadvertencias, não ha que espantar de criados
menores, que uns são por natureza tão rusticos, que em nada acertam;
outros por malicia tão depravados, que não querem saber senão o que é em
favor de sua maldade.--Uma questão se offerecia agora (acudiu Pindaro)
que, ainda que rasteira, é em materia proveitosa. Convem a saber se é
melhor servir-se um homem de um moço simples, e nescio; ou de um
malicioso ainda que seja esperto.--Eu estou melhor (tornou D. Julio) com
o que me engana, que com o que me enfada; porque a confiança, que fizer
do meu moço, será segundo a opinião que d'elle tenho para me poder
enganar em pouco: e do nescio nem posso confiar em um recado as minhas
razões, nem as minhas obras dentro em casa; que o que ignora o que ha de
dizer, menos sabe o que lhe convém calar: além de que é grande desgosto
andar um homem de continuo ensinando um rustico, sem proveito, que não
tomará em sua vida tinta de discrição, por mais que o cozam n'ella.--A
mim me parece outra coisa (disse Solino) em razão d'aquelle proverbio:
_Antes asno que me leve, que cavallo que me derrube_.--Pelo rifão
(respondeu Leonardo) entendo que quereis defender o vosso moço.--Se o
não fizer bem, ficarei no seu lugar (replicou elle). Porém o moço nescio
não pode desacreditar com sua parvoice o entendimento de seu amo, que
não está obrigado ao tirar das escolas de Athenas. E o malicioso, e
esperto, nem por o ser deixa de errar peior que os outros; porque não
aprende o que convém a seu amo, senão ao intento de sua maldade; e dá ás
vezes por recado o que lhe parece, em lugar do que lhe mandam; e quando
não, troca as palavras ou o sentido d'ellas; muda o tempo, e a acezão do
recado; vai quando quer, e não ao tempo que vos releva; tira-vos o
credito nas obras, se o conserva nas palavras, porque dizem que _qual o
amo tal o moço_; mais vos desacredita com a murmuração, do que vos
acredita com o recado; e quando vos lisonjeia, é quando vos rouba. O
simples, se não diz o que lhe dizeis, faz o que quereis, contenta-se com
o que d'elle fiais, e não trata de penetrar o que pretendeis; e muitas
vezes seus erros cahem em graça como as subtilezas dos outros em
damno.--Boas são essas razões (disse Feliciano) porém é dura coisa que
pelo moço nescio julguem por tal a seu amo; pois é regra de direito que
_faz por si o que manda fazer por outrem_: e se a victoria dos soldados
se attribue ao capitão, os ensinos, e palavras dos moços porque se não
hão de julgar por de quem os governa, e manda? e menor damno é qualquer
dos outros, que o de um homem parecer nescio á conta do seu moço. E
sobre tudo não se ha de pintar tão perverso o malicioso, que faça mal,
diga mal, e presuma mal, e seja intelligente; que os mais d'elles cantam
de quem roubam; que d'esse outro modo não é pintar criado, mas
inimigo.--E não sabeis vós (accudiu o doutor) que todos os criados, ou a
maior partes d'elles o são de quem os sustenta? e assim diz a sentença
de Euripides, que não ha maior, nem peior inimigo que o criado: e
Democrito diz que o criado é coisa tão necessaria, como amargosa:
Luciano diz que os criados sempre tem malicia, e traições armadas contra
seus amos.--A muitos tenho eu por inimigos (disse Feliciano) porém peior
o será o nescio, que o que o não for; e não sómente sustentará inimigo
em casa, mas senhor, que, como diz S. Jeronymo, não ha maior servidão
que mandar a um nescio.--Eu tenho procuração em causa propria (disse
Solino) para acudir pelos criados, como testemunha de muitos fieis, e
verdadeiros a seus senhores: e Euripides, e os mais devem de entender, o
que disseram, dos escravos, que, como lhe temos tomada a coisa mais
principal, e mais sua, que é a liberdade, sempre nos tem odio, e nos
desejam, e procuram mal; porque a vilesa do seu animo não soffre
mostrarem valor na sujeição.--Não me parece a mim essa boa razão
(accudiu o doutor) porque por dito de Seneca _nenhum escravo ha mais
vil, que o livre, que serve por sua vontade_. (Não entendo n'este conto
os nobres, e honrados, que servem aos grandes por respeitos razoaveis).
E dos escravos, a que fez taes ou a ventura de guerra, ou outra
desgraça, temos os livros cheios de exemplos de valor, e fidelidade, em
que deixaram muito atraz os proprios filhos. E se não, vêde se fez algum
o que o escravo de Publio Catieno. que, deixando-o o senhor por
universal herdeiro de seus bens, pela fidelidade com que o servira;
elle, por se mostrar agradecido na morte, se deitou vivo na fogueira em
que queimavam o corpo de seu senhor, e morreu com elle, mostrando que
estimava mais tal servidão, que a vida, e as riquezas que lhe deixava.
Erotes, escravo de Marco Antonio, se matou de pesar de ver a seu senhor
vencido de Augusto. Euporo, escravo de Lucio Graco, que se matou sobre o
seu corpo. E um escravo de Papinião, que, vendo que os inimigos entravam
uma quinta, em que o senhor estava, para o matarem, trocou com elle o
vestido, e metteu no dedo um seu annel de preço: e deitando-o fóra por
uma porta, sahiu pela outra a receber a morte, que haviam de dar a seu
senhor. E Frederico de Eveshim, escravo de Conrado Imperador, que,
sabendo que vinham para o matar, o fez sahir do paço, e se deitou na sua
cama, onde, cuidando os inimos que era Conrado, o mataram: o outros
muitos escravos sem nome, que mereciam que o seu ficasse eterno por
memoria de sua fidelidade. Nem se póde esquecer aquelle grande animo de
Lazaro Cherdo, escravo, de nação Serviano, que vendo seu senhor cativo
de turcos, e depois morto, desejando vingar-lhe a morte por preço de sua
vida, fingindo que vinha fugido dos hungaros, entrou no campo Turquesco,
e dizendo que queria fallar a Amurates, primeiro imperador d'aquelle
imperio, o matou a punhaladas; d'onde não pôde fugir, mas perdeu a vida
valorosamente.--D'esses escravos (replicou Solino) não trato eu, que
mereciam ser senhores de seus senhores; como tambem houve criados que
mereciam ser servidos de a quem serviram: que tambem Diogenes foi
escravo; e perguntando-lhe Xeniades, que o comprava, em que sabia
servir, respondeu: que _em mandar homens livres_; por o que Xeniades o
libertou dizendo: _aqui te entrego meus filhos para que os mandes_. E
Epicteto, que se chamava escravo de si mesmo: e a Phedão, escravo de
Cebes, ouvi dizer, que Platão dedicara um livro da immortalidade. Porém
a nós não nos cahiram em sorte estes escravos, senão a gente mais
barbara do mundo como é a de toda a Ethiopia: e alguma escravaria da
Asia, que é da gente mais vil das provincias d'ella; que uns, e outros
tratam os portuguezes com rigoroso cativeiro n'aquellas partes,
vendendo-os para serviço das minas das Indias de Hespanha como
condemnados á morte: e assim se podem estes chamar com razão inimigos
mortaes de seus senhores.--Tambem (disse o doutor) houve já n'este reino
escravos illustres de muito valor, entendimento, e sangue, conhecidos
por taes, e tratados como se estiveram em liberdade, que cativaram nas
nossas fronteiras de Africa, em cujas historias me eu não quero deter
por me não alongar mais do intento do nosso discurso dos recadistas, que
uns e outros representam a pessoa de quem os manda, no que toca ao
recado que dão: o que a mim me parece que está bem provado com o
costume, que os antigos tinham em mandar os seus, que não fallavam por
terceira pessoa, como é o nosso uso, que dizemos _diz fuão que vos beija
as mãos_; _que vos pede isto_; _vos encommenda este outro_; _vos lembra
tal coisa_: antes costumavam: _N. vos diz_, _beijo-vos as mãos_,
_rogo-vos isto_, _encommendo-vos este outro_, _lembro-vos tal coisa_,
representando nas palavras a mesma pessoa que as mandava dizer; e d'esta
maneira ficava arriscado nosso amigo Solino, representando pelo seu
moço: pelo que a mim me parece que o melhor do recado é ser tão breve,
que o possa dar sem erro quem o leva; e tão claro, que o entenda sem
trabalho a quem se manda. E com isto, e com vossa licença me hei por
desobrigado do que n'esta materia podia dizer.--Não pela minha parte
(disse D. Julio) porque deixais de fóra um officio de mais habilidade
que todos os de que falastes, em cuja profissão entra a de embaixador,
agente, procurador e recadista; e ainda outros muitos, que é o do
terceiro, ou alcoviteiro. A isto deram todos grande risada, e disse
Leonardo: O doutor calava esse officio, por ser mais vil, e reprovado,
que os de mais, e se empregar em materia tão odiosa á Republica: porém
sem entrar no fundo d'elle, nos poderá dizer alguma coisa da
superficie.--Bem sei (respondeu o doutor) que para me metter em
desconfiança levantais essa lebre; e não vos enganeis, que tanto se deve
tratar de officios viciosos para fugirem d'elles, como dos de virtude
para os seguirem, e desejarem; e posto que esse é tão vil, já os romanos
deram leis á sua profissão, segundo escreve Pedro Crinito; as quaes
estavam escriptas no templo de Venus; e Licurgo, aquelle grande
legislador dos Lacedemonios, tambem lhes deu regras, e liberdades, posto
que lhe está melhor o castigo com que os nossos direitos os agasalham;
mas se ha officio de muito cabedal, e pouca honra, é o do alcoviteiro,
porque ha alguns que os não vence Tullio no fallar, Catão no dissimular,
Sallustio no persuadir, Terencio no representar, Ovidio no fingir,
Lucano no encarecer, Diogenes no desprezar, Ulysses no tecer, Momo no
desdenhar; e todas as artes, e sciencias do mundo tem e empregam em
afeiçoarem com engano vontades innocentes. E para lhe assignarmos as
partes necessarias, fôra acertado pintar o avesso do embaixador, com que
só convém em ser discreto, e experimentado; porém ha de ser baixo, vil,
desprezivel, avarento, chucarreiro, mentiroso, ingrato e soffredor de
todos os escarneos e zombarias, porque não só é de sua profissão
enganar, mas tambem obedecer a toda a ignominia, e infamia que seu
exercicio merece.--Muito cruel estais contra elles (tornou D. Julio) e
não tendes razão; quando vitupereis o seu officio, não vos esqueçais da
grandeza das partes d'elle, pois o alcoviteiro descreve, enfeita, e
encarece melhor que um escriptor: persuade, aconselha, e convence como
um rhetorico: finge, disfarça, e representa com figuras, espantos,
meneios, e hypocrisias nos gestos, e palavras como um commediante:
pinta, veste, touca, accommoda, guarnece, doura, argenteia toucados, e
vestidos, e trata os rostos, e feições melhor que um pintor; sabe mais
da natureza das pessoas com que trata, que um philosopho; vende o falso
por verdadeiro, como logico; conhece as enfermidades, e achaques dos que
lisongeia, como medico; obriga, e engana no interesse, como legista;
adivinha os tempos, occasiões, e vontades melhor que um astrologo. Não
ha finalmente arte liberal, nem mecanica, de que se não valha, e em que
não vença a seus professores.--Ainda me parece (disse Solino) que haveis
de chegar á Celestina; que posto que o officio é do genero commum de
dois, accommoda-se melhor ao feminino. E pois de embaixadores descemos a
criados, não é de espantar que tropecemos em tão ruim gente.--Parece-me
(disse o doutor) que de aposta quereis profanar a minha auctoridade; não
vos quero dar esse gosto á minha custa: e não passemos d'aqui n'esta
materia: e tambem porque é mais tarde do que parece, demos lugar a que o
senhor Leonardo se recolha.

Com isto se levantaram todos, e se despediram, festejando e agradecendo
cada um ao outro o que dissera; que tanto se contenta o discreto da boa
razão alheia, como o nescio da sua ignorancia propria.




DIALOGO V

DOS ENCARECIMENTOS


Não perdiam tempo os da conversação em se chegarem aos interesses
d'ella: e era em todos tão egual o desejo, que nem a occupação de cada
um os desencontrava; porque o gosto, em que se enleva o entendimento,
faz menores todos os respeitos ordinarios da fazenda, e familia.
Entraram á noite juntos em casa do hospede com grande alvoroço, dando
cada um no caminho seu voto sobre a materia, em que se haviam de gastar
aquellas horas. Porém assentados, sem o estarem ainda no que seria,
disse D. Julio: Por certo, senhores, que estou tão enleado com uma coisa
que vos quero dizer, que temo das razões e da edade faltar ao decoro que
convém ao sujeito d'ellas; porque nos mancebos as palavras de mero
louvor de uma mulher, ainda sendo mui compostas, parecem lascivas; e
mais facil é de presumir um engano de affeição nos meus olhos, que de
persuadir um espanto a entendimentos tão levantados como os vossos.
Porém seja o que fôr, e corra o meu credito o risco que ordenardes; que
com todos, os que houver, me aventuro.--Que novidade é esta, senhor D.
Julio (disse Solino), que sermão quereis fazer, que tomaes a graça, e
nos tendes pendurados a todos no desejo de vos ouvir?--Esta manhã,
(proseguiu elle) porque me pareceu de caça, e por gastar n'ella o dia,
com menos cuidado do desejo da noite, me fui pôr detraz da nossa serra
alongando-me para a parte do mar um grande espaço de caminho; e voltando
sobre uma fonte, que nasce ao pé de uma corôa de penedos, coberta da
sombra de uns altos hervados, e atoeiras, cheios de verde rama como no
melhor tempo da primavera, embaraçados com umas vides silvestres que os
atavam, e que ainda de todo não estavam despidas de sua folha, vi junto
a ella, e coberto com elles o mais formoso rosto, que eu imagino que
pode haver no mundo para satisfação de uns olhos afeiçoados: era de uma
mulher em habito de peregrina, que fiada na solidão d'aquelle deserto, e
por gosar dos raios do sol, que n'aquelle logar se espalhavam, com os
toucados lançados sobre os ramos á vista da fonte concertava os
cabellos; e eram elles taes, que não sómente faziam perder ao sol a
formosura, mas cobrindo outro mais formoso, que era o seu rosto,
contentavam de maneira o desejo, que não fazia muito por passar d'elles
adiante. Eu sem atinar no silencio, com que era razão que me escondesse
por lhe não ser pesado, fiquei tão esquecido, que, afrouxando as redeas
ao cavallo, o deixei tropeçar entre os ramos, e fui sentido da formosa
peregrina; que levantando os olhos, a cuja obediencia os cabellos se
apartaram, qual sôa ferir o relampago d'entre as nuvens, me saltearam a
vista com uma luz estranha, descobrindo juntamente aquelle thesouro de
ricas pedras, que o ouro dos cabellos escondia. Os olhos eram duas
estrellas de diamantes, em cujo fundo um verde escuro de esmeraldas
apparecia, que communicando áquella formosa côr a claridade dos raios,
que despediam, roubariam as almas de quem os olhasse; e descendo d'elles
abaixo, era tudo tão cheio de perfeições, que o menor logar, em que se
empregava a vista, tinha desusados extremos de formosura. A bocca era um
laço de todos os pensamentos amorosos; e nunca vi coisa tão pequena, em
que coubessem tantas grandezas; pareceu-me um rubi partido pelo meio,
que com um perfilo aleonado se dividia, e por detraz luziam como por
vidraça as perolas, que até então me não descobrira o pejo, com que
ficou de haver visto. A columna, que sustentava este edificio, era um
pescoço de crystal jaspeado de umas veias roxas, e azues muito delgadas,
que me representaram n'aquella hora a côr do céo sereno, que pela rotura
de duas nuvens brancas apparece, a que fazia parecer mais formoso o
circulo da sombra, com que se engastava no aspero burel da esclavina que
a romeira vestia: apeei-me eu; e n'este mesmo tempo lançou ella o
toucado sobre os cabellos, pondo os olhos na fonte como em espelho; mas
como as suas madeixas eram mais compridas, que a toalha branca, com que
as quiz encobrir, se mexericavam pelos extremos das pontas, que vinham a
guarnecer de fino ouro aquelle grosseiro trajo: falei-lhe com a
cortezia, a que a modestia, e gravidade do seu rosto me obrigava; e ella
sem mostrar outro alvoroço de minha presença mais, que vestir de
escarlata a branca neve de que parecia formado, me respondeu,
perguntando se estava perto o lugar, e se era aquelle o caminho. Eu, que
não perdia com os olhos um só movimento dos que os seus faziam, me
pareceu tudo o que tinha visto, sombra da graça e brandura com que falou
com uma voz tão fina, que penetrava o interior do coração, e tão suave,
que o desfazia, e com uma modestia tão grave, que não dava logar a se
pôrem n'ella os olhos direitamente, senão com um respeito armado de
receios. Perguntei-lhe d'onde era, para onde ía, encarecendo-lhe o
perigo em que punha sua belleza de ser offendida, fiando-a de desvios
tão solitarios. Mas ella despresando todos os temores, e fazendo mais
difficultosa sua jornada, pelo que d'ella lhe pendia, que pelos trances
que á sua conta se me representavam, deu a entender muitas cousas, com
que eu perdi o accôrdo, e ousadia de lhe perguntar outras, e lhe
offerecer algumas das que costumam haver mistér os que fóra da sua
patria vem experimentar os males das alheias. E além de eu estar
atalhado com sua vista, o estava ella tanto com minha presença, que
perdi o interesse de a vêr, por o respeito de a não molestar: despedi-me
magoado: estou arrependido; e cubiçoso de a tornar a vêr, de maneira que
não aparto o pensamento do logar onde os meus olhos a deixaram. E porque
ainda me parece que deve ser mais estranho o successo, que a traz
n'aquelles vestidos, que a novidade de sua gentileza, a que se deve todo
o cortezão tributo de vontades bem nascidas; peço ao senhor Leonardo que
por a melhor via, que lhe parecer, saiba d'esta estrangeira, que por
esta noite deve de estar na aldeia; ouvirá d'ella mesma a sua historia,
e eu acreditarei com a vista o que tenho dito de sua formosura.--Bem
andastes, senhor D. Julio (disse o doutor) em tomar primeiro carta de
seguro para o que havieis de dizer; porque os encarecimentos d'essa
peregrina são mais pinturas vossas, que gentilesas suas; porque não ha
mulher nas obras da natureza tão perfeita cá na terra como a soube
fingir o vosso entendimento, ou affeição: e á conta d'ella me parecia
bem que assentassemos o retrato de belleza tão sobrenatural, que em
materias de amor tudo o que reluz é ouro, e tudo o que assombra é sol; e
só com esta desculpa salvareis louvores tão desacostumados.--A affeição
do que vi não posso eu negar (tornou elle) mas á vista da peregrina
dizei o que quizerdes contra minhas razões, que nas suas partes hei de
achar armas com que defenda o que disse. Leonardo se offereceu então a
mandar fazer a diligencia com muito cuidado: e voltando para Solino, que
tinha os olhos no chão, lhe disse: Vós, callaes, quereis allegar
serviços ao senhor D. Julio, porque a vossa natureza não é deixar passar
esta mercadoria sem registo.--Estava agora (respondeu elle) cuidando nos
livros de cavallarias, que ha poucas noites que defendi; e desejava dar
um cavalleiro andante áquella peregrina; que se uma cousa d'estas
apparecêra a meu amigo Pindaro, que encantamentos não rompera, e que
poesias, e obras heroicas appareceram de novo no mundo, que alabastros,
marfins, marmores, crystaes, topazios, jacintos, esmeraldas rodaram por
esses ares! Que posto que o senhor D. Julio sahiu d'este encontro mais
elegante do que se esperava; Pindaro, com sua licença, tem n'esta
materia mais direito adquirido; e não se houvera de contentar de descer
do céo as estrellas, e o sol em similhantes louvores: mas os archanjos,
cherubins, dominações e potestades haviam de ter logar n'elles.

--Não será fora de proposito (disse o doutor) divertirmo-nos agora com
esta materia em desconto, e recompensa das passadas; e gastar esta noite
em saber a causa, e o estilo dos encarecimentos namorados, que é
pensamento que já me desvelou em outra edade.--Obrigo-me eu (disse
Leonardo) que a nenhum dos presentes descontente a vossa escolha; e eu
particularmente estimarei seguil-a, tomando o primeiro voto do
Licenciado, que por hospede, estudioso e cortezão se lhe deve o
logar.--O meu voto (tornou Feliciano) é de pouca importancia, e o logar
devido a outrem; mas com toda a humildade acceitarei o que me derem: e
se com a minha razão ficar corrido, barato é o saber que se compra com
primeiro errar: e assim digo que os encarecimentos nascidos de amor não
devem parecer estranhos (por deseguaes que sejam) a nenhum juizo
affeiçoado; porque o amante para pintar a formosura de uma dama, que
satisfaz a seus olhos e pensamentos, difficultosamente achará nas cousas
creadas a que a compare, que lhe fique parecendo que a encarece; porque,
ainda que sejam formosas as estrellas, lhe não agradam tanto como os
seus olhos; e sendo o Sol tão bello, se alegra menos com a claridade de
sua luz, que com vêr o rosto de quem ama; e são de menos valia para seu
gosto e desejo o ouro, as perolas, rubins, esmeraldas, e saphiras, que o
riso da sua bôcca e a graça da sua vista; e de não imaginar na terra um
amante cousa que se eguale ao objecto da sua affeição, dá em o desvario
de a comparar aos espiritos que não alcança com o entendimento, subindo
com elle pelas gerarchias mais levantadas: a causa é, porque o amor faz
as cousas tão formosas a seus olhos, que leva muita vantagem á natureza
que creou umas, e outras; e a cubiça e opinião, que engrandeceu a muitas
d'ellas: que até do gosto, como diz Plauto, nem o que tem sabor sem amor
é saboroso; nem ha fel tão amargoso, que com elle não pareça suave: que
não sómente com seus poderes dá perfeição ás cousas, mas tambem as
converte em outra substancia.--Não estou contra a vossa razão (acudiu
Leonardo) mas parecem-me de forma os encarecimentos de que falaes, que
todos, pouco mais ou menos, não sahem de certos limites; porque, em
descendo da pedraria, os que são menos lapidarios empeçam em coral,
marfim, porfido, alabastro, rosas, neve, ouro: e, quanto por meu voto, a
paixão de amor não havia de guardar regra certa nas palavras, e
louvores, antes encarecer sua dama com as cousas que a seu gosto e
opinião sejam mais formosas; e como as affeições são tão differentes,
assim o seriam os gabos, e encarecimentos.--Para louvar (replicou
Feliciano) não ha tantos caminhos como para ter affeição; porque logo
daes com uma estrada Coimbrã, que é _tão bella como o Sol_, _tão clara
como a Lua_, _tão alva como a neve_, _tão loura como o ouro_; e d'aqui
adeante.--A mim me parece bem (disse Solmo) a razão do Licenciado, que o
doutor tinha geito de metter os louvores de uma dama em exemplos
caseiros, chamando-lhe fresca como o seu pomar, linda como o seu jardim,
clara como a sua fonte, e alta como as suas faias: e como os amantes
para encarecer se não contentam com pouco, todos chegam ao que pode ser:
todo o branco é crystal e diamantes; o corado rosas e rubins; o verde
esmeraldas; o azul saphiras; e o amarello ouro e jacintos; e até as mães
dos meninos, a que naturalmente tem excessivo amor, não lhes sabem
chamar pouco: quando os tomam nos braços, logo os intitulam de _meu
duque_, _meu marquez_, _meu conde_; nas pedras _meu diamante_, e nas
flôres _meu cravo_, e _minha rosa_: quanto mais louvando mulheres, a
quem todo o encarecimento fica curto, e envergonhado pela fôrça, com que
tem captivos os sentidos, e as potencias dos que hão de falar n'ellas. E
para conclusão de tudo, diga Pindaro o que sente n'este particular.--Os
encarecimentos, de que usam os amantes (disse Pindaro) menos são seus,
que adquiridos dos famosos poetas, que lh'os ensinaram deixando-os
escriptos em suas obras: porque, como retratadores das obras excellentes
da natureza, buscaram tão altivos materiaes para darem vivas côres á
formosura. E não é muito que, pintando um rosto formoso da terra, lhe
accommodassem côres, e attributos celestes, quando para pintarem cousas
do mesmo céo usam tantas vezes de semelhanças, e encarecimentos da
riqueza da terra, como o fez Ovidio na casa de Febo, com tectos de
lavrado marfim, e ladrilhos de ouro, com paredes de topazios, jacintos,
e esmeraldas; e o mesmo fez pintando os pavões, que no céo levavam o
carro da Deusa Juno, que depois accrescentou em obra e feitio Martiano
Capella. E como a phrase poetica é a mais excellente, e levantada, e por
tal escolhida das Sibyllas, e Oraculos para usarem d'ella, tambem
fizeram os amantes a mesma eleição; entre os quaes qualquer miuda
consideração de um voltar de olhos é arco, aljava, e settas de Cupido,
com todas as mais allegorias, e transformações que os poetas usaram.--A
verdade é (disse o doutor) que a perfeição da formosura animada se não
pode devidamente encarecer com alguma semelhança, que o não seja, porque
todas lhe ficam muito inferiores: o que declarou bem uma dama
Florentina, que perguntando-se-lhe o que lhe parecia de uma figura de
mulher de alabastro, feita por um famoso esculptor d'aquelle tempo;
ella, sem responder com palavras, fez que uma creada sua formosa e bem
proporcionada, despisse em si as partes, que a figura mostrava núas; e
logo á vista da natural belleza perdeu a pintura, a fama, e valor que
d'antes tinha. E eu vi tambem um jeroglifico da formosura, que declara
engenhosamente este pensamento: a figura do qual era uma mulher com a
cabeça mettida entre as nuvens, o corpo despido, mas rodeado de um
resplendor, que o não deixava vêr distinctamente; na mão direita um
lirio, e na outra um compasso; significando com a cabeça mettida no céo,
e no resplendor, que só com as cousas d'elle se podia encarecer, fazendo
impedimento á vista humana como raios derivados da belleza Divina; o
lirio denotando a graça das partes naturaes, porque em côr, e pureza foi
sempre symbolo da formosura; o compasso a medida, proporção, e
correspondencia dos membros, em que consiste toda a perfeição d'ella.
Mas Pindaro tudo quer attribuir á sua profissão: e n'esta parte não tem
pouca justiça: porque sómente na licença poetica podem entrar os
desvarios dos namorados, por serem muito eguaes o furor poetico, e o
amoroso. Porém, já que os encarecimentos estão approvados com tão boas
razões, estimara eu ouvir alguma em desculpa dos que vivem, morrem, e
ressuscitam a cada passo, e que andam sem almas como cantaros, e sem
coração como furões, que, a meu vêr, é gente que por privilegio de amor
vive exceptuada das leis da natureza.--A razão (respondeu Feliciano) é a
mesma; porque quem encarece a causa egualmente exagera os effeitos: a
pena de um desfavor, o termo de uma crueldade, ou esquivança é o maior
tormento da morte ao que ama; e um favor e brandura, que recebe em sua
affeição, é na sua estima o maior bem da vida; e quanto ao estilo de
viver sem alma, e sem coração, o declarou maravilhosamente um poeta
moderno, dizendo em um soneto á sua dama, da qual estava ausente, que
uma parte da alma, com que vivia, lhe ficara; mas a com que imaginava,
entendia, e amava, tinha sempre com ella. Nem é outra cousa os
desvarios, e desattentos dos que amam, senão viver em certo modo fora de
si, como pareceu a Propercio, dizendo que o que se entrega ao amor perde
o juizo; e o que eu vejo que poucos em presença da cousa amada ficam com
elle.--Tambem S. Jeronymo (accrescentou o doutor) escreve que o amor da
formosura é um esquecimento da razão; e assim chamam os poetas ao amor,
inimigo d'ella. E que maior exemplo se pode imaginar d'esta verdade e
mudança dos que amam, que o de Hercules, a quem os embaixadores de Lidia
acharam lançado no regaço de sua amada, mudando-lhe os anneis dos dedos,
ella com a corôa real na cabeça, e o famoso Thebano com um sapato seu
d'ella em logar de corôa? que menos esperado que o de Dionisio
Syracuzano, que por mão, e parecer de Mirta sua amiga despachava os
negocios importantes do seu reino? que mais extranho, que o de
Themistocles Atheniense, famoso capitão de Grecia, que namorado de uma
dama, que captivou na guerra de Epyro, usava em uma doença, que sua
amada teve, dos mesmos remedios que lhe a ella faziam, tomando as
purgas, e sangrias como a mesma dama, e lavando o rosto por regalo, e
gentileza com o seu sangue d'ella? que menos crivel, que o de Lucio
Vitelio Imperador, que namorado de uma filha de um escravo seu, a quem
libertara, de tal maneira perdia o juizo, que, tendo uma esquinencia,
não usava outro remedio mais que um unguento que fazia de mel com o
cuspo de sua dama, imaginando que a virtude do ser seu lhe podia dar
saúde untando com elle a garganta?--De maneira (disse Leonardo) que amor
tira os sentidos, e o juizo a quem se emprega todo em seus cuidados: e
eu tinha para mim, e ouvi sempre dizer que não podia o nescio ser bom
namorado; o que agora vejo que contradiz a vossa opinião, pois os que
amam não tem entendimento.--Só o discreto (respondeu Feliciano) sabe ser
amante, e por isso perde o juizo nas mãos de amor; que o nescio mal
poderá perder n'ellas o que não tem. E falando mais ao ponto da vossa
duvida, o amante pelo ser não fica nescio, mas parece-o em muitas acções
dos sentidos, e entendimento; porque, transportado na imaginação do que
ama, se descuida de tudo o que não é sua paixão.--Extranhamente (accudiu
Solino) me contenta ouvir esta razão para desculpar commigo os maus
successos de namorados, a que não sabia tão boa desculpa; que assás
grande é para esquecer cousas menores quem está fora de si: porque,
deixados esses exemplos de amantes, cuja grandeza de estado faz maior, e
mais notavel o desatino, com que nas mãos do amor renunciaram o
entendimento; de outros de menos estofa, e mais modernos sei eu
descuidos, que podiam entrar em historia n'esta occasião, e por me
aproveitar d'ella: Eu conheci um cortezão mui empenhado em finezas de
amor, que passeava em um terreiro, onde tinha a dama em um quartão, que
já aturava aquelle fadario todos os dias como em atafona; acertou
n'aquelle a ser mais favorecido da senhora, que de quando em quando lhe
apparecia, cevando com sua vista os desejos do namorado mancebo, que por
seguir a caça se esqueceu do tempo, e das horas de comer, mettendo-se
pelo certão da calma que n'aquelle tempo fazia; o cavallo, que não devia
de estar tão affeiçoado a aquella estancia como á sua costumada,
estancava muitas vezes do passeio, sem haver accordo nem espora que o
despertasse; até que uma vez, estando o amante parado com o ponto no
alvo da janella, acertou a passar um macho que levava uma rede de palha,
a que o rocim se arremessou com tanta furia, que, prendendo os copos da
brida nos laços da rede, se embaraçou de maneira, que levou ao quartão
enamorado por todo o terreiro, onde se resentio do rapto, sem se poder
valer contra os couces do macho, e risada dos rapazes. Mas não é muito
padecer d'elles afrontas quem do um tão mal acostumado fia sua
liberdade. Outro, que ainda nas guerras de amor não era armado
cavalleiro, passeava a pé á vista de seu cuidado, ora com os olhos na
janella, ora com o tento na postura, e galanteria de seu bom trajo: a
dama, que não trazia ainda aquella affeição em abertas, e publicadas,
porque não notassem os que passavam os meneios, e esgares que o mancebo
fazia, acenando-lhe se tirou do posto passando-se a uma janella mais
pequena que cahia sobre uma esquina das mesmas casas: o galante mais com
o tento na mudança, que no caminho, com os olhos no alto, deu com a
testa um grande encontro na esquina, de que se esmechou, e atolou em um
monte de cal amassada de fresco, que estava arrimado á parede, ficando
até os sendaes mais caiado, que cantareira d'Alfama.--A todos pareceram
os contos de Solino cheios de graça; e (disse Leonardo) sempre sahe o
amor culpado n'estes ferimentos; e não tenho por grande desar todo o que
succede á sua conta, que por isso o pintam cego, e são conhecidos por
taes os que o servem: porém a mim me parecia que quando o amante perde o
tento, e o sentido de tudo o mais, devia ficar só discreto, e avisado
para sua dama, que é o objecto em que todo se emprega; que para lhe
falar lhe sobejariam razões galantes, respostas obrigadas, termos de
subtileza, e galanteria: e eu pela experiencia acho o contrario, que dos
noivos, e dos amantes se contam as primeiras parvoices.--Não sei (disse
Solino) se dirá agora Pindaro que tomaram isso os namorados dos poetas,
como os encarecimentos.--Os poetas (respondeu elle) não são havidos por
parvos; e quem lhes quiz fazer todo o mal lhes chamou doidos: o que
poderia ser; que o arrebatarem-se, e alhearem-se de si os amantes com
affeição, como os poetas com o furor divino que os excita, aprenderiam
d'elles. Pelo que o vosso remoque não deu boa chaça: mórmente que esses
primeiros erros são de outra geração; e nenhum parentesco tem com a
parvoice. Antes é um modo de se atalhar, e suspender um homem o seu
entendimento com muita razão; porque não pode dizer cousa, que pareça
bem aos outros a primeira vez que fala com aquella a quem ama; que é
passo, onde os mais discretos o perdem.--Parece-me que está no certo meu
companheiro (disse Feliciano) que eu sei de homens, que entre os outros
podiam falar sem medo, terem-no muito grande a estes primeiros
encontros; que certo me parece mais respeito que se deve á formosura,
que falta que se possa dar em culpa ao entendimento: pois o verdadeiro é
que amor o apura, e engrandece; e por este respeito os Athenienses lhe
levantaram uma estatua na Academia de Palas como a sabio, e lhe
dedicaram uma escola os Samios, significando que só na de amor se
alcança com perfeição tudo, o que pelas do mundo variamente se aprende,
e com muito discurso de annos se alcança: o aviso no falar, a discrição
no escrever, a brandura no conversar, a policia no vestir, a graça no
parecer, a cortezania no tratar, a liberalidade no dispender, o esforço
no pelejar, a largueza no jogar, a humildade no servir, e a pontualidade
no merecer. Do pensamento, e juizo dos amantes sahiram ao mundo as
emprezas discretas; as chimeras escuras, as idéas levantadas, os motes
avizados, os versos excellentes, os enredos subtis, as cartas galantes,
as fabulas bem fingidas, os primores, os extremos, e as finezas tudo é
doutrina tirada das escolas de amor. E pois n'ellas se alcança tudo, não
é muito que se ache tambem um termo de falar encarecido, e levantado
sobre todas as cousas vulgares que tratamos, posto que o juizo d'este
acerto se não deve fazer por homens livres d'esta paixão amorosa, se
pode haver algum, a quem não coubesse em sorte padecel-a: e bastava sem
outros exemplos, fazer a eleição d'ella o sr. Julio, que em todas as
partes de côrte e gentileza pode servir de espelho aos mais
apurados.--Vós me obrigaes por tantas vias (respondeu o fidalgo) que
fico desconfiado de poder pagar nem com encarecimento do que mereceis,
nem com a restituição dos louvores injustos que me daes, que só são
devidos ao vosso entendimento. E pois a victoria d'esta batalha ficou
por elle em meu favor, quero-me aproveitar d'ella, e do cuidado que me
deu o dia com me recolher a casa, e fazer mais comprido o repouso da
noite.--Essa resolução (disse Leonardo) é em damno de todos: e muito
mais de sentir, porque á força nos obrigaes a que consintamos n'elle:
mas como em logar de preza trouxestes da caça empreza tão difficultosa,
poupaes horas para cuidar n'ella á nossa custa.--Antes (respondeu elle)
para reformar no somno as que me desvelei na madrugada.

A isto se levantou; e os mais dando boas noites o iam seguindo, e disse
para todos Solino: O senhor D. Julio vae a sonhar com aquelle thesouro
encantado que lhe appareceu na fonte; e para este cuidado não quer
companhia; que se a communicação dos bens de amor faz muito maior a
gloria d'elles nos contentes; aos que só o estão de seu pensamento
nenhuma cousa é mais agradavel, que saudosa lembrança.




DIALOGO VI

DA DIFFERENÇA DO AMOR, E DA COBIÇA


Cada um dos amigos ao outro dia fez curiosa diligencia por saber algumas
novas da peregrina, que D. Julio tanto encarecera a noite passada; e não
achando d'ella nenhuma noticia, tiveram a historia por fingimento.
Juntaram-se ás horas acostumadas á porta de Leonardo, a tempo que tambem
o fidalgo apparecia, e que o velho os vinha a esperar ao peitoril da
escada com um hospede que lhe viera, que era um clerigo de edade,
pessoa, e trajo auctorisado; que dos mais foi logo conhecido por ser
prior de uma egreja que perto d'alli ficava: sentaram-se agasalhando-o
entre si com a devida urbanidade; e depois de lhe perguntarem de sua
saude; como estavam com o desejo de tirarem a terreiro a D. Julio,
fizeram signal a Solino que começasse; porém Leonardo não deu logar á
boa vontade que elle tinha, e se lhe adiantou na pergunta.--Bem cuidava
eu, senhor D. Julio, (disse elle) que aquella formosa peregrina era
encantada, e que foi traça do vosso entendimento fazer a todos
cavalleiros d'essa aventura; porém a mim só a encommendastes; que pela
edade pudéra já estar aposentado para tal empreza; eu a tomei por vos
obedecer, e andei bem cuidadoso no seguimento d'ella, sem até agora
atinar no caminho, em que vos perdestes.--Minha foi só a desgraça
(respondeu elle) pois perdi comvosco, e com os mais o credito do que
disse, e para meu desejo a gloria do que pudéra tornar a vêr em sua
formosura.--Essa levantastes vós tanto sobre as estrellas (disse Solino)
que se devia de agasalhar com ellas no céo, e enjeitar a pouzada d'esta
aldeia.--Parece-me (accudiu o prior) segundo o que vos ouço, que nós
podiamos mostrar o jogo; porque a occasião, que me trouxe a este logar,
e leva a Lisboa, é uma estranha peregrina que hontem appareceu na nossa
aldeia, de cujos successos, e formosura se podiam contar grandes
extremos; que já pode ser que seja a de que falaes.

Com esta nova se mostraram os amigos mui alvoroçados, e D. Julio
contente; e Leonardo respondeu ao prior:--Não imaginei que tinha tanto
bem junto com o de vos ter n'esta casa; affirmo-vos que, se ella não
fôra vossa, não poderieis pagar melhor a pouzada, que com tão boas
novas: pelo que vos peço que as não dilateis, contando-nos mui
particularmente d'essa peregrina, que tem tão obrigados os desejos dos
que aqui estamos, como agora pendurados os olhos, e ouvidos do que nos
haveis de dizer.--Hontem á tarde (proseguiu o prior) a tempo que já o
sol se ía encobrindo com as azas da noite, andava eu continuando com a
obrigação da reza à vista da egreja; veiu fazer oração á porta d'ella, e
d'alli ter commigo uma mulher em habito de romeira; que se a minha vida
merecera a Deus que mandasse a algum anjo falar comigo, podera imaginar
que ella o seria; porque a sua belleza passava os limites do
encarecimento humano, e com uma voz, que respondia bem á honestidade do
seu rosto, e á humildade do seu trajo, me falou (posto que em lingua
estrangeira) de modo que se deixava entender mui sem trabalho:
perguntou-me se acharia gasalhado em algum hospital, ou casa de caridade
d'aquella terra, em que passasse a noite, e pela manhã guia de confiança
para ir ter á cidade, offerecendo que n'ella pagaria bem a quem a
encaminhasse. Eu, que no merecimento de sua vista achei que era pouco
tudo o que lhe podia offerecer, fiquei enleado; porém lhe disse:
Senhora, esta terra é muito pequena; e para o que vós representaes,
outra maior me parecera limitada. Eu, posto que sacerdote, e d'esta
edade, tenho em minha casa uma irmã viuva, e sobrinhas, que vos saberão
servir melhor que as naturaes da aldeia; fazei-me mercê de aceitardes a
pousada, qual ella é, e, á conta do que faltar ao que vós mereceis,
supprirá a vontade que é muito grande. Ella me deu as graças do
offerecimento com poucas palavras, mostrando que o acceitava: vim com
ella a minha casa, onde foi agasalhada, e servida com grande gosto, pelo
que as moças tinham de se estarem revendo nas graças da sua belleza.
Depois da cêa, em que a peregrina fez pouco damno, lhe pedimos nos
contasse a causa de sua peregrinação, e como sem companhia viera ter ao
nosso logar: e ella mudando a côr em um suspiro, entre algumas lagrimas,
e com tão discretas razões, que as não saberei eu agora referir com a
perfeição propria (posto que algumas palavras eram de linguagem alheia)
contou o seguinte:

Na ilha de Irlanda, e na cidade de Dublin principal de seus estados, no
maior enleio, e dissensão dos principes d'ella, que com a differença, e
variedade das erradas seitas de Inglaterra, a cujo rei obedecem, vinham
em total ruina, e destruição d'aquella provincia, nasci de generosos
paes, tão mimosa dos afagos, e enganos da fortuna em meu principio,
quanto depois a senti esquiva, e deshumana em minhas desgraças. Não
tiveram meus progenitores outro fructo, em que empregassem o amor
paternal, (que faziam notavel excesso á qualidade de seu sangue) mais
que a mim, que com esta boa sorte era invejada de todas as de minha
edade, e pertendida dos mais illustres mancebos de toda Irlanda. No
melhor de meus tenros annos, que a estes costuma morder sempre por
varios modos a inveja venenosa da dura parca, de uma arrebatada
enfermidade perdeu minha mãe a vida; e eu como ainda na minha não
provara outros males, senti este primeiro com grande pena: mas como a
sorte m'o ordenara para ensaio de novas desgraças, depois de me ter
encetado o soffrimento; em poucos mezes depois perdi meu pae, e senhor,
a quem muito amava, e fiquei mettida entre parentes cubiçosos de minha
herança, e amantes fingidos, que obrigados das riquezas d'ella me
procuravam por esposa. Tinha eu a todos, os que me offereciam, pouca
vontade; e grande obrigação de tomar estado conveniente aos respeitos de
minha nobreza. E como os favores, em que me creei, me ensinaram a ser
altiva (que este é um dos grandes damnos que faz a prosperidade) puz o
pensamento em quem com despreso, e ingratidão castigou minha arrogancia:
havia n'aquella mesma cidade um principe, mui chegado por descendencia
ao sangue real de Bretanha, cheio de muitas graças da natureza; que,
ainda que me era muito desegual por nascimento, tinha tão poucos bens da
fortuna, que fazia eu no meu dote confiança para o pretender. Alcançou
elle d'isto alguns signaes, que teve em pouco; não advertindo que a
vontade de uma dama sempre põe em divida a um espirito generoso, que
conhece o preço d'ellas. Succedeu pois que, tendo eu já de minha
pretenção poucas esperanças, o elegeram os da ilha de Lister, Ragrim, e
das mais da parte oriental de Irlanda, por capitão de uma armada de
corsarios, afim de fazerem uma preza muito importante no mar Oceano: e
como ás vezes o castigo dos maus intentos é a mesma fortuna, (posto que
outras como cega os favorece) se perdeu esta armada com uma tormenta, na
qual a maior parte da gente pereceu; e a que ficou do miseravel
naufragio se salvou em uma enseada, onde foi captiva de um turco
corsario, que a levou a Argel, e alli por o pouco segredo dos seus ficou
o seu general conhecido por quem era; e como o sangue, d'onde descendia,
junto ao cargo que levava, o faziam de mór preço para os que o
captivaram, ficou impossibilitado o seu resgate, e elle sem remedio
n'aquella prisão alguns annos: até que a necessidade, e apêrto d'ella me
aconselharam que de novo emprehendesse o de que com seus despresos
desconfiara, mandando-lhe offerecer liberalmente meu dote para resgate
de sua liberdade. E elle com o desejo d'ella, e obrigado d'esta
lembrança, tendo por menores grilhões os que de novo lhe punha, que os
que elle trazia, aceitou a offerta, e me mandou em satisfação um
escripto, em que me jurava por sua esposa. Puz eu, sem mais cautella, em
execução o meu intento, perdendo a affeição ás muitas riquezas, que
tinha, pela honra e contentamento, que d'aquelles desposorios esperava.
Tornou livre á sua patria, e mudou de improviso a tenção que fingira
para alcançar o remedio á custa do meu engano. Estranhou-lhe o mundo
esta crueldade: e os meus vendo-me sem dote, e sem marido, e, o que o
havia de ser, tão ingrato, e na opinião de todos tão culpado, me levaram
a o demandar por justiça nos tribunaes supremos, onde, depois de
convencido, me foi julgado por devedor, e por esposo. Mas como a minha
vontade não era que elle o fôsse contra a sua, esperei o tempo mais
conveniente para a declarar. Obrigado emfim da justiça, e, depois
d'ella, rendido aos conselhos dos principaes parentes que o tratavam; o
dia, em que se havia de desposar comigo, cumprindo por sentença a
palavra que me tinha dado, antes de lhe dar a mão, metti na sua um papel
em logar da minha, que era quitação plenaria de tudo o que por elle
déra, e juntamente do que elle com tanta ingratidão recusara, escolhendo
para castigo de minha altiveza a humildade da religião mais apertada.
Fez isto em toda a ilha grande espanto; e eu com o resto, que do meu
dote ficára, aborrecendo a patria como a madrasta, determinei logo
buscar em reino alheio segura morada. E porque a fama da religião
portugueza, e da famosa cidade de Lisboa, onde muitas religiosas do
illustre sangue de Bretanha vivem santamente em clausura, me trazia mais
affeiçoado o desejo; mandei por alguns mercadores de confiança o maior
cabedal do que possuia a quem até á minha chegada o detivesse; e eu como
tive a certeza de este dote mais necessario estar seguro, fugindo ás
affrontas, e odio de meus naturaes, me embarquei com o mais que me
ficava; e com prospero vento tomei porto em Galiza, e visitei a casa, e
sepultura do glorioso apostolo Santiago; d'onde caminhando por terra,
livre já dos enredos de minha ventura, não pude escapar á cobiça dos
criados que me acompanhavam; que esquecidos da fé que me deviam, e pouco
affeiçoados da catholica que professava á sua vista com tanta firmeza,
me roubaram as joias, o dinheiro que trazia, deixando-me n'estes desvios
desamparada. Senti mais esta derradeira desgraça, por ser a que me tomou
com a paciencia quasi rendida aos trabalhos da viagem, que venceram o
descostume e fraqueza femenina; e tambem por me achar tão só na confusão
d'estes caminhos: porém se pelos que parecem tão errados me quer Deus
guiar ao mais seguro, eu ponho em suas mãos o soffrimento: e por elle,
senhor, vos peço como a ministro seu que em tudo pareceis, que, ainda
que vos dê cuidado, me mandeis d'aqui em companhia de confiança, até
onde d'aquellas bemaventuradas religiosas seja conhecida; que á sua
vista poderei logo satisfazer a diligencia: a vós pagará o céo este
trabalho, e a estas senhoras o amor com que favorecem o meu desamparo;
que a maior consolação, que devem ter os perseguidos da sorte, é saber
que a todo o tempo, que se acolherem a Deus, acham n'elle brandura; e
que tem á sua conta pagar largamente as boas obras, que no decurso de
seus trabalhos receberam.

Esta historia contou a peregrina com os olhos cheios de agua, com que
orvalhava de quando em quando as rosas do seu rosto; e a nenhum dos que
alli estavam faltaram lagrimas. Eu lhe disse: Senhora, se o estado que
buscaes com tanto desejo, não fôra melhor que o que vos roubou a
ventura, muito era para sentir a que vos offende. Porém como o caminho
dos que Deus escolhe é tão differente do que seguem aquelles que lhe vão
fugindo; não podeis n'este ter maior seguro, que saber que vos acompanha
nos trabalhos presentes, e vos ha de dar o galardão e premio de todos: e
para que eu tenha n'elles alguma parte de merecimento, me offereço ao
remedio dos que ficam até tomardes logar n'essa clausura. Lisboa é terra
grande; e a muita confusão da gente e trafego d'ella a faz embaraçada; e
vós é razão que com a decencia e commodidade, que vossa pessoa e
qualidade requer, vos deis a conhecer. Pelo que, se quizerdes descançar
com estas minhas parentas, e ja criadas vossas n'esta aldeia, eu irei á
cidade, e procurarei servir-vos com todo o cuidado. Isto me agradeceu a
estrangeira com muito boas palavras, mostrando tambem nas côres do rosto
signaes de obrigação. E hoje, antes da minha partida, me fez uma
lembrança do que por sua parte havia de perguntar. No caminho me atalhou
a jornada uma occasião forçosa, que me fez passar a noite tão perto de
casa como vêdes, mas com o maior interesse que podia esperar: pois, além
das mercês do senhor Leonardo, goso a conversação de tantos amigos e
senhores, que é fim, a que se podiam dirigir outras jornadas
maiores.--Já agora (disse D. Julio) não serão tão culpados meus
extremos; pois nos que disse o senhor prior da peregrina ficam
acreditados; e passam as suas obras tanto adiante das minhas palavras,
que deixa a sua egreja e familia para por a servir no que eu nem ainda
me soube offerecer: e contou ao prior o como encontrara, andando á caça,
a mesma estrangeira, e o que n'aquella conversação tinha passado sobre
os louvores, com que elle quizera pintar sua formosura.--Nenhuns lhe
podieis dar (proseguiu elle) que não ficassem os maiores encarecimentos
devendo muito á verdade: e o maior espanto, que eu achei nos de sua
gentileza, foi que, sendo ella tal, houvesse um homem bem nascido, que
sobre obrigações tão forçosas a despresasse.--Isso (tornou D. Julio) não
tenho eu por espanto; que d'esse modo se costuma vingar a sorte da
naturesa, quando na perfeição de suas obras a não pode egualar: mais se
me representa a mim que seria o homem nobre, e sem entendimento, como ha
muitos, pois fugiu de tantos e tão poderosos attributos, como eram
formosura, riqueza, magnificencia, cortezia, e humanidade, todos
empregados em seu favor.--E a mim (acodiu Solino) me pareceu ingrato,
mas discreto, fugindo o jugo de uma mulher que lhe ficava sendo duas
vezes senhora, uma pelos poderes naturaes de sua belleza, e outra por a
divida, e preço de seu resgate.--O meu voto é (disse Pindaro) mui
differente; antes julgo que o que o homem aceitou por necessitado, veiu
a enjeitar por cubiçoso, vendo que se dispendera com sua liberdade o
dote que dourava as perfeições de sua esposa; que nunca deixara de o
ser, se fôra tão rica como no principio, em que o libertou; porque a
cobiça e o amor são grandes competidores.--Não me descontentam as
opiniões (disse Leonardo) mas já que vos entalastes entre esses dois
inimigos do socego humano, seja a questão e a materia da conversação da
noite á conta d'elles. E perguntou ao doutor, qual dos dois é mais
poderoso, e obriga os homens a maiores extremos?

--Se houvessemos de dar credito (respondeu o doutor) á experiencia, e
tomar os successos do mundo por argumento, com poucas porfias se
manifestará a verdade da vossa pergunta: mas tratando primeiro das
razões, vejamos em que se parecem, e os poderes em que os antigos
igualaram o amor, e a cubiça; que de ambos deixaram jeroglificos, e
figuras. Pintaram pois ao amor menino, formoso, com os olhos tapados,
despido, com azas nos hombros, e armado de arco e settas: menino, por
facil e fagueiro; formoso, porque a belleza é o objecto dos amantes;
despido, porque se não póde encobrir; cego, porque não vê, nem conhece a
razão; com azas nos hombros, por ligeiro, e mudavel; armado, por forte,
poderoso e cruel. A cubiça pintaram-a mulher, despida, com os olhos
tapados, e azas nos hombros. Despida, pela facilidade com que por seus
effeitos se descobre; cega, porque não vê nenhum respeito humano em
rasão do que deseja: com azas pela velocidade com que segue aquelle
objecto, que debaixo da especie de proveito se lhe representa. Assim que
só nas armas, e no sexo feminino achamos na pintura differença: porém se
considerarmos os effeitos da cubiça, ou foi que na pintura de mulher as
quizeram cifrar todas, ou que lhes faltou lugar para tantas armas;
porque se amor é forte e poderoso, e vence a tudo, como disse o poeta; o
mesmo confessa que a todos os extremos fórça, e obriga a sede do ouro
aos humanos; se a amor como a poderoso o fingiram Deus cruel, como diz o
poeta Seneca; não só a cubiça é Deus do avarento e cubiçoso, mas o mesmo
ouro que deseja, como d'elles disse um doutor santo; se lhe chamam cruel
pelos damnos que no mundo fizeram seus poderes, mais reinos assolados,
cidades destruidas, e damnos immortaes se fizeram no mundo por cubiça,
que por amor: e antes de chegar aos exemplos, com que se póde provar
esta verdade, vejamos em seu nascimento que coisa seja amor humano; e o
que é cubiça. A elle chamaram muitos auctores furor; e este definio
maravilhosamente um doutor grego, que disse que amor era um desejo
irracional, que facilmente se emprega, e com grande difficuldade se
perde. E da cubiça escreve outro mais moderno, que é um appetite fóra da
medida certa, que ensina a razão; que não tem modo, nem fim. É certo que
cada um d'elles podia trocar com o outro esta definição, sem ficar
enganado; porque o mesmo é excesso de um desejo irracional, que appetite
fóra dos limites da rasão: e o mesmo ser leve em se empregar, e
deixar-se com difficuldade, que não ter modo, nem fim. Mas posto que na
pintura, e nascimento os podiamos igualar, os effeitos da cubiça são com
mais força, e vehemencia, que os do amor; porque, se faz cego o amante
para perder o lume da razão, todavia não o faz vil, antes o engrandece:
e o cubiçoso é cego para não vêr razão, nem honra, e para se abaixar a
todas as infamias, a que se sujeita o interesse: se o pintam despido
para se não poder encobrir, com mais vergonhosas mostras se pinta a
cubiça: o que na mesma pintura de mulher está declarado. Se é ligeiro o
amor para se empregar, com tudo busca sempre a formosura como objecto
seu, e obra a que honrou a mesma natureza: e a cubiça se emprega nas
mais humildes e indignas coisas da terra, como d'ellas possa tirar
fructo o cubiçoso: que a Tito cheirava bem o dinheiro que cobrava das
immundicias de Roma; e no que são atrevimentos e ousadias, muito atraz
ficaram os amantes dos cubiçosos. Romper as entranhas da terra, e chegar
á vista do inferno por tirar ouro: descer ao fundo do mar por buscar
perolas, descobrir novas regiões, soffrer climas estranhos, e barbaras
gentes para adquirir commercios, obras foram de cubiça, e não de amor,
como tambem o foi a navegação, que na empreza do Velocinio d'ouro
começou: e se amor é cruel, muito menos o parece nas obras que a cubiça,
pois elle ao amante offende com suavidade amorosa, e aos estranhos com
animo compassivo tanto mais nobre, quanto elle o é mais, que a cubiça,
que mata no mundo mais homens em um só dia, que o amor em muitos annos.
Assim que a meu ver em competencia, ella tem mais poderes, e na
semelhança se parece tanto com o amor, que é elle mesmo; mas com tal
differença, que elle ama a formosura humana, e a cubiça a riqueza.

--Não consinto (disse o prior) que o vosso entendimento faça tão grande
aggravo ao amor, como é igualar com elle a cubiça: porque quando em
poderes tenham grande semelhança, na nobresa e nascimento tem muito
maior desegualdade; que posto que o amor considerado como appetite
carnal seja excesso de um desejo fóra da razão; significado como
affeição humana, é uma força que ajunta, ou deseja unir duas vidas em
uma, a do amante e da coisa amada, e é este amor tão natural a todos,
que é defeito e torpeza não saber amar, como diz S. Chrysostomo. E pelo
contrario Aristoteles chamou a cubiça desejo fóra da natureza. O amor
nasce tão nobremente, que tem por objecto a belleza humana, e os dotes
naturaes mais excellentes como são graça, juizo, parecer, e perfeição: e
assim diz S. Agostinho, que amamos coisas boas, porém com amor mal
intencionado. E a cubiça como é vicio do entendimento, e appetite
preternatural, sempre é mal nascida, e inclinada a coisas baixas. Assim
que sejam os poderes, e as pinturas quão parecidas quizerdes; são as
naturezas de ambos mui differentes.--Parece-me, senhor doutor (disse
Feliciano) que aquella razão ha de achar muitos votos contra o vosso,
porém eu por me pegar ao melhor parado, nem quero ir contra elle, nem
hei de encontrar o do senhor prior, antes ajudado da doutrina de ambos
accrescentarei o meu pouco, mettendo-me entre tão boas partes pela de
amor; e digo que posto que elle e a cubiça sejam semelhantes no poder,
no que é amar são em tudo deseguaes, porque não se ama a coisa que pelo
que é, e por amor de si propria se não ama; e menos se póde amar a que
se não conhece: e assim seria erro chamar amor ao do cubiçoso, que se
emprega em coisas que por si não merecem amor, e em outras, de que não
tem nenhum conhecimento: amar a uma pessoa, que obriga e sujeita a nossa
vontade; é ter-lhe amor por qual ella é, e por essa a desejamos unir
comnosco, por natural appetite: mas empregar a affeição no dinheiro, e
no ouro, que não amamos pelo que é, senão pelo que com elle se alcança,
não póde ser amor. E menos o será amar o que ainda não conhecemos, como
faz o cubiçoso a muitas coisas, que não vio, pelo interesse que d'ellas
espera. E não tratando ainda de que o amor não se considera só no que
ama, senão tambem na coisa amada; e que falta correspondencia, sendo
essa insensivel: o amor todo se emprega no interesse dos sentidos; e
este falta em todos elles ao cubiçoso: porque, se a sua temerosa côr o
cativara, nem d'essa o deixa usar o seu cativeiro. D'onde veio dizer o
poeta Horacio que o ouro para os avaros não tinha côr, porque o enterram
segunda vez, pois por essa e por seu nascimento lhe podem chamar
desenterrado: nem com a voz deleita os ouvidos, nem com a suavidade do
cheiro recrea, nem com o tacto agrada, nem com o gosto satisfaz. Diga-o
Midas, que o pediu aos Deozes por dom: e como lhe ficou por mantimento,
perecia na abundancia do que tanto desejara. Diga-o Pithio, o qual deu a
el-rei Dario o platano e videira de ouro: o gosto, que achou na ceia que
sua mulher lhe ordenára: o qual com sua demasiada cubiça não dava lugar
aos seus cidadãos de se empregarem em outro trabalho mais, que em
beneficiar as minas do ouro, em cuja ruina muitos d'elles miseravelmente
pereciam: pelo que, vendo as matronas da cidade tanto damno, foram
juntas pedir á mulher de Pithio que, compadecendo-se de tão grande mal,
rogasse por ellas a seu marido, pedindo-lhe que désse aos seus melhor
tratamento: e ella, a quem não faltava entendimento, nem piedade,
conhecendo que era vão vencer com rogos a sua cobiça, ordenou a Pithio
uma ceia esplendida em um dia de festa; na qual todas as eguarias, que
lhe deu, eram formadas de ouro. Alegrou-se muito com ellas na primeira
vista, e com a magnificencia do apparato, com que lhas apresentavam:
porém quando pelo discurso do banquete não viu nenhuma de que podesse
comer, perguntou pelas eguarias verdadeiras, confessando d'aquellas que
eram fingidas. Como (respondeu então a sabia matrona) queres que te
apresente outra comida, se só no cuidado da que tens deante occupas a
todos teus vassallos, pois se não lavram os campos, nem se cultivam as
arvores, nem se pescam os rios, nem se caçam as aves, nem se criam os
animaes, pelo exercicio continuo de tirar ouro? Contenta-te tambem com o
fruto d'elle por mantimento. E com este ardil emendou em alguma parte
sua demasia.

Bem parece que entendia esta verdade Halaono imperador da Tartaria, que
vencendo, em Baldaco, o Califa mestre da seita Mahometica, que era o
mais poderoso rico, que então havia no mundo, vendo que, por se não
ajudar de suas riquezas, e as não despender em soldo, não tivera
resistencia contra o exercito dos Tartaros; depois de captivo o mandou
metter em uma camara entre o ouro e joias preciosas, que antes tinha,
sem lhe mandar dar outro mantimento, dizendo que d'aquelle comesse á sua
vontade: e assim entre a grande abundancia de suas riquezas o miseravel
Califa morreu de fome.

Pois se o ouro por si não póde satisfazer ao gosto, nem deleitar sentido
senão com o engano do que com elle alcança, como póde ser capaz de amor?

--Vós (disse Pindaro) temestes ao doutor; porém não o seguistes: e eu
ajudado do vosso receio, e da sua auctoridade, me hei de valer da
primeira opinião que propoz, e é que o amante e o cubiçoso não differem
mais no amor, que no emprego d'elle; e para isto me fundo em uma opinião
moderna, que tem por si muitas auctoridades antigas; e é que nenhuma
pessoa ama mais a outra, que a si mesma, nem póde ter amor a outro, se
primeiro se não amar a si; e do amor que se tem, nasce o desejar e amar
as coisas a que se affeiçoa, e inclina mais a sua natureza: amo isto,
porque me parece bem, e o quero unir a mim, pelo que me quero, e desejo
tudo o que me agrada e satisfaz por meu respeito; e por isso chamaram ao
amigo uma alma em dois corpos, e, como diz o proverbio, _o amigo é outro
eu_; quero-lhe tudo o que para mim quero, e amo-o como a minha alma
unida com a sua. E Aristoteles diz que o amigo se hade egualar no amor
com o que cada um tem a si: logo tanto quer e deseja o amante o objecto
da belleza, em que se emprega, como o cubiçoso o ouro, que quer para si.
E quanto á objecção de que o ouro senão ama pelo que é, senão pelo que
vale, e por o que com elle se compra e alcança, os vossos mesmos
exemplos dirão por mim o contrario; que o cubiçoso, e avaro antes
perderá a vida, que resgatal-a com o ouro, a que quer mais que a ella; e
antes perece á fome, que satisfazel-a com dispender o que tem em mais
estima que a fartura; que para elle é mór damno gastar, que todos os
outros; como Lucilo conta de um avarento chamado Hermones, que, sonhando
uma noite que gastara certa quantidade de dinheiro, foi tanta a sua
paixão e dôr, que, cuidando que era verdade, se afogou. E assim diz S.
Jeronymo que tanta necessidade tem o cubiçoso do que possue, como do que
lhe falta, pois lhe falta animo para usar d'elle: e diz n'outro lugar
que só a avareza e cubiça fez no mundo pobres, porque assás o é mais,
que todos, o que tudo deseja; e possuindo mendiga, e padece como se lhe
faltára. Logo certo é que o ouro ama o cubiçoso, e não já o que com elle
se compra; pois o não quer para comprar, senão para o possuir. E
respondendo á deleitação dos sentidos, que o amor humano offerece, e na
cubiça falta, ousarei a dizer que o ouro, ainda enterrado, parece melhor
ao cubiçoso, que ao amante a formusura que appetece; e que é mais suave
a seus ouvidos o rumor, e tinido do dinheiro, que a brandura de todos os
requebros, e galanterias namoradas; e que nenhum gosto para elle é egual
com o que tem de tocar, tratar, e revolver-se entre o mesmo dinheiro: o
que se póde ver com grande admiração n'aquelle afamado cubiçoso o
Imperador Caligula, que, depois que a muitos obrigou que o instituissem
por herdeiro, aos quaes, depois de testarem, fez matar com peçonha
(rindo-se de haver homem que quizesse viver mais depois de haver
testado) atraz de em sua casa instituir publica mancebia de todos os
vicios, de que tirava um copioso tributo, se lançava despido entre o
dinheiro, que d'estas infames obras procedia; e, dando sobre elle mil
voltas, tinha em menos conta todas as outras delicias, que os homens a
preço do dinheiro procuravam. Certo é logo que o ouro ama, e a elle
quer, e com elle se deleita o avaro e cubiçoso; que, se o desejára para
o empregar em o que com elle se alcança, perdera o primeiro nome, e
podera merecer o de rico, prudente, e liberal: porque o ouro, e as
riquezas, como diz S. Leão Papa, não são boas de si, nem más; mas o bom
ou mau uso d'ellas engrandece, ou desacredita a quem as possue: e assim
não é rico o que muito tem, senão o que com o que tem se contenta: e não
ha maior pobreza, que, por empregar o desejo em um baixo metal, que sem
bom uso não presta, deixarem os homens o muito que com sua valia poderam
adquirir.

--Todos (disse Solino) deram sua pancada a esta lebre; Leonardo, que a
levantou, deixou-se ficar no covil; e eu fiquei atrás dos galgos sem dar
um brado; farei muito, se agora quizer desmanchar o bemdito de todos.
Comtudo a minha opinião é que quanto tendes feito na grandeza e poderes
da cubiça é errado, e que se haviam de attribuir ao ouro, e não a ella.
E tratando da pintura, em que a embaraçastes, e quizestes assemelhar com
o amor, tenho por mui errada a declaração d'ella: e posto que seja
contradizer a tão grandes entendimentos, a hei de explicar ao meu modo,
que me parece que a pintaram os antigos: mulher por sua fraqueza; pois é
tal, que se rende a qualquer pequeno, e vil interesse; despida como
desavergonhada, por quão sem respeito, nem moderação se atreve a
commetter qualquer infamia; com azas por a ligeireza, com que se
arremessa a qualquer preza como ave de rapina; cega por pedinte,
mendiga, e importuna: e se isto não é, venho a presumir que a fingiram
com o rosto de mulher, e as pennas de ave como a harpia, que na
etymologia propria do seu nome manifesta o roubo e condição do cubiçoso:
e assim como a harpia damna, e descompõe todos os manjares a que chega,
assim a cubiça estraga e corrompe toda as virtudes: pelo que me parece
que nenhum parentesco tem com amor, que na nobreza é tão desegual, e
pelos louvores de sua excellencia tão conhecido. O a que se podera
voltar a nossa porfia, e arguir mil historias extremadas, é a tratar dos
poderes do ouro, e da valia do interesse, que já nos tempos antigos, e
no prezente de agora póde tanto, que obrigou a dizer a um auctor que
esta é a verdadeira edade do ouro, porque só elle senhoreia os animos
dos homens. E viera isto mais ao proposito da vossa peregrina, que com
elle e sua formosura não pôde vencer a um coração ingrato.--A mim me
parece (respondeu Leonardo) que vós tinheis mui boa razão se a não
guardareis para tão tarde: porém em a noite d'amanhã se lhe fará
justiça; que n'esta é rasão que se dê ao hospede lugar conveniente para
o repouso, pois ha de ir á cidade e voltar no mesmo dia.--Por não mandar
em casa alheia (disse o prior) não defendo a minha parte; mas prometto,
se voltar a horas que possa passar a noite tão bem como esta, de a não
perder.

Então se levantaram os mais e se despediram; e o prior gastou muitas
palavras em manifestar a Leonardo a inveja que tivera d'aquella
companhia: ao que elle respondeu com a que a todos fazia com a vista da
peregrina, que lhe ficára em casa; que posto que a boa conversação é
manjar da alma, a vista de uma estranha formosura, que rouba as de
todos, tem muito maior poder sobre o desejo.




DIALOGO VII

DOS PODERES DO OURO E DO INTERESSE


No mesmo tempo, em que os amigos se juntaram para o seu costumado
exercicio, se apeava o prior no pateo de Leonardo; que o desejo que lhe
causara a noite do dia d'antes, o fez tornar mais cedo da cidade. Foi
recebido com alegria: e depois de lhe perguntarem do bom successo de sua
jornada, lhe disse Solino:--Agora vejo que roubou a ventura a empreza
d'aquella peregrina ao sr. D. Julio: pois a deu a quem a deixa de vêr
por nos ouvir.--Antes vereis (respondeu o prior) quão poderoso é o ouro,
que até para ouvir falar n'elle deixo a propria casa, e n'ella a vista
de tão extremada formosura.--Não sois vós (acudiu Leonardo) o primeiro
que a deixastes por ouro, nem usaes n'esta occasião como avarento, pois
que vindes com esse titulo de cobiça enriquecer a todos, e a esta
casa.--Vós (respondeu elle) me individaes para me empobrecer com a mercê
e cortezia que me fazeis; de maneira que sempre o meu erro é dourado
para contentar os cobiçosos, quando pareça a Solino culpa deixar a vista
da minha hospeda pelo interesse da vossa conversação.--Não é só elle o
que vos accusa (disse D. Julio) antes eu de a vós deixardes me queixo,
ainda que de a acompanhardes tinha ciumes.--Só esses faltavam (tornou
Solino) para a conversação ficar de ouro e de azul; mas se d'este se
batera moeda, nenhum de nós se queixára de pobre, porque a dos
comprimentos é a mais corrente de todas. Porque o maior mal que o avaro
faz ao ouro, é impedir-lhe a corrente com a prisão em que o encerra,
podendo com elle até ás prisões fazer agradaveis e formosas, que para
isso imagino que se inventaram as cadeias e grilhões de ouro, que d'elle
servem para ornato, e dos outros metaes para castigo.--Não me
descontenta essa razão (disse Leonardo), porque se ao ouro quando sahe
da mina, antes de o pôrem em seus quilates, chamam os artifices _ouro
bruto_, quanto com mais razão merece este nome o que o avarento tem
escondido e fechado? E a este proposito me cabe contar uma historia que
li esta manhã; e se fôr sobejo, pelo que callei a noite passada, se póde
descontar o que agora disser.

Houve em Italia, em um dos mais conhecidos logares d'ella, um honrado
pae de familia, nobilissimo por geração, rico de bens procedidos da
herança e nobreza antiga de seus antepassados, dotado de muitas partes,
e graças da natureza, e tão liberal do que possuia, que mais parecia
dispenseiro das riquezas, que carcereiro d'ellas. Teve este em sua
mocidade um filho tão industrioso e experto nos negocios de mercancia,
que ajuntou em poucos annos grande copia de dinheiro, o qual elle
guardava com tão solicito cuidado, como costumam os que com cobiça e
trabalhos o adquiriram: e era notavel espanto aos naturaes verem em um
velho a largueza e liberalidade de mancebo; e em o filho a avareza e
tenacidade de velho. O pae, que o via responder tão mal a suas
inclinações, e que já com a edade e continuação de gastar largo, estava
menos rico, muitas vezes lhe dizia e aconselhava com brandura que
conservasse, com o que ganhara, a honra que tinha de seus passados; e
não degenerasse d'elles, por seguir a villeza do interesse: que usasse
das riquezas como nobre, e favorecesse a velhice de quem o creára, e
honrasse aos pequenos irmãos que tinha; que fosse proveitoso aos amigos
e parentes; benigno aos pobres e se não captivasse ao trabalho de
enthesourar riquezas sem fructo. Mas como falar a um morto, e aconselhar
a um avarento é cuidado vão, nenhum effeito faziam os paternos rogos em
sua má natureza. Succedeu que o senado d'aquella republica por a
nobreza, e pessoa do mancebo, e pela industria e sagacidade que
mostrava, o elegeram em companhia de outros para ir com uma embaixada a
Roma ao Summo Pontifice. Depois de sua partida, vendo o pae occasião ao
que havia muito que desejava, mandou secretamente fazer chaves falsas,
com que entrou na camara do filho; e abriu os cofres em que aquelle
inutil thesouro estava depositado; e com a brevidade que o desejo lhe
pedia, vestiu a si, a sua mulher e filhos custosamente; deu libré a seus
creados; comprou ricas armações e baixellas; encheu a estrebaria de
cavallos formosos; fez esmolas a muitos pobres; acudiu em occasiões a
parentes e amigos necessitados; dispendeu emfim aquella prata e ouro que
o filho com muitas vigilias ajuntára da maneira em que elle, quando
florescia em riquezas usava d'ellas. Gastado o dinheiro encheu os saccos
em que antes estava, de miudos seixos e areia: e posto tudo na mesma
ordem em que o filho o deixára, tornou a fechar os cofres e as casas
como d'antes. Tornou depois o filho da sua embaixada: e os pequenos
irmãos o foram esperar á entrada da cidade vestidos custosamente, e com
o magnifico apparato de que então usavam. Vendo-se o irmão rodeado
d'elles ficou confuso; e enleado lhes perguntou logo d'onde houveram tão
ricos vestidos, e tão formosos cavallos. Ao que elles com uma
simplicidade innocente responderam que seu pae e senhor vivia com
differente largueza da que d'antes tinha; e que outros trajos e cavallos
de maior preço lhe ficavam. Entrando depois em casa de seu pae, nem a
ella, nem a elle conhecia, pelo differente estado em que a deixára: e
como n'esta mudança se lhe não aquietava o coração, foi-se com muita
pressa aonde o tinha posto. Entrou na sua camara, abriu os cofres: e
vendo que os saccos estavam cheios, e da maneira que elle os deixára, se
aquietou, porque não dava logar a mais vagarosa experiencia a pressa com
que os companheiros o chamavam, e o senado o esperava. Depois que deu
fim a aquella obrigação (que a elle não pareceu que fosse tão custosa)
fechando-se devagar no seu aposento, abriu as arcas e os saccos, em que
lhe parecia que estava a sua bemaventurança; e vendo o engano da areia e
seixos que dentro tinham, começou a gritar com grandes lamentações e
brados. A que primeiro, que todos, acudiu o generoso velho,
perguntando-lhe que tinha? de que se queixava? e quem o offendera? Ai de
mim (disse elle) que me roubaram as riquezas, que com tantos trabalhos,
e em tão largo discurso de annos tinha grangeadas. Como é possivel que
te roubaram (respondeu o pae) se eu vejo esses cofres e saccos cheios,
que parece que não podiam tirar nada d'elles, nem elles levarem mais? Ai
triste de mim (tornou o filho) que o de que elles estão cheios, não é do
ouro e prata, com que os deixei; que não tem agora mais que pedras e
areia sem proveito. A isto respondeu o generoso pae, sem no rosto fazer
mudança: Ah! enganado filho! que importava para ti que estes saccos
estivessem cheios de ouro fino ou de areia grossa, se a tua avareza te
não deixava fazer nas obras differença d'ella? Cessaram os brados, mas
não já o sentimento do filho com esta resposta; que a mim me pareceu
digna de ser contada entre as mais celebres do mundo.

--Eu a tenho por tal (disse o prior), e a historia por maravilhosa para
o nosso intento; e andou muito bem o pae de cumprir em vida o testamento
do filho; porque, como disse Pub. Mimio, nenhuma cousa o avaro faz boa,
senão quando morre, porque deixa o que tem a quem possa usar d'elle.--E
o mesmo (disse Feliciano) escreveu que para ninguem o avarento é bom: e
para si peior que para todos; pois nem dispende, nem se aproveita: e
n'este sentido me parece maravilhosa a allegoria d'aquella engenhosa
fabula de Midas, que, pedindo aos deuses, como cobiçoso, que tudo o que
tocasse se lhe convertesse em ouro, perecia de fome na grande abundancia
do que pedira. E quando a necessidade o fez mudar a petição forçado do
mal, que como bem procurára, lhe mandaram que se fosse lavar ao rio
Pactolo; que fez corrente do que elle queria fazer estanque, pondo em
suas douradas areias, para communicar a todos, o que Midas só para si
queria ter usurpado.--Bem se representou em Midas (accrescentou Pindaro)
um cobiçoso no pedir e em se não aproveitar: que por isso disse Seneca
que mais facilmente se atreveria a alcançar da fortuna que désse, que de
um cobiçoso que não pedisse. Mas deixemol-os a elles com seu engano, e
falemos nos poderes do ouro, que é o para que Solino nos convidou a
noite passada.--Como é certo (disse elle) que para o ouro todos se
convidam de boa vontade, e vós, pela que tendes a este metal, parece que
estivestes de ponto sobre a materia.--Não a apontei (respondeu Pindaro)
por esse respeito, mas por me contentar da que escolhestes; e é desgraça
minha que para os outros levantaes d'ouros, e para mim de espadas.--Eu
me quero metter entre ellas (acudiu D. Julio) e se assim parecer aos
mais, diga Solino todos os males do ouro, pois tem boa mão para dizer
mal; o Pindaro todos os bens: e sobre o que ambos disserem ficará logar
aos mais de darem suas razões.--Errastes, sr. D. Julio (disse o doutor),
que para Solino dizer mal no sentido que vós quereis, ha de dizer bem do
ouro, e Pindaro os males.--Dou-me por vencido, respondeu elle:--E eu por
obrigado (disse Pindaro) a obedecer. Todos festejaram a eleição; e
ordenando que fosse o primeiro, começou d'esta maneira!

Se as causas são pelos effeitos conhecidas, e elles testemunham a
excellencia ou maldade d'ellas, qual o foi de maiores males e damnos na
redondeza, e metteu aos homens em mais perigosos trabalhos que o ouro, a
quem com muita razão podiam todos chamar _peste do mundo_? E posto que
os notaveis exemplos das destruições e ruinas que n'elle fez, podiam
tomar mais tempo do que agora tenho para tratar d'elle; quero começar
primeiro de seu nascimento, para que mostrem os seus arriscados
principios os desastrados successos para que a malicia humana o
descobriu. E não desprezando o que diz Plinio tão doutamente, que não
contentes os homens com o que a superficie da terra produzia para sua
recreação e mantimento, a formosura das arvores, a diversidade dos
fructos, a belleza e cheiro das flores, a verdura das hervas, o esmalte
das boninas, a abundancia dos legumes; quizeram desentranhar do centro
d'ella os segredos que a benigna natureza nos escondia. Nasce o ouro nas
entranhas dos montes, e nas arterias occultas dos penedos; e subindo
como arvore da profunda raiz, d'onde começa, vae espalhando os ramos em
desegual medida, convertendo o sol com seus poderes aquella materia
disposta e propinqua, até que chega a ser ouro, e se demonstra por
duvidosos signaes na face da terra; que logo d'aquella emprenhidão se
mostra triste, dando por indicios da riqueza que encerra, herva
descórada, delgada, subtil e sequinhosa areia, e barro leve, secco e sem
proveito; e até as aguas, que por entre as veias descem, sahem cruas e
com sabor pesado. Espreitando estes signaes a industria humana, entra
fazendo guerra ao profundo, caminhando por debaixo dos montes
sustentados em columnas da mesma terra, deixando a vista do sol e das
estrellas, pondo as vidas ao risco das ruinosas machinas, que mil vezes
o opprimem, que tanto a nossa sede fez cruel á benigna terra, que parece
menor temeridade tirar do fundo do mar perolas e aljofar, que do seu
seio o inimigo ouro, que ainda então o não é mais que nas esperanças.
Depois de tirado com tão custosas diligencias, sahindo como parto de
venenosa vibora, rompendo as maternas entranhas, com o fogo se aparta,
apura o aperfeiçoa. ficando menos apto para o serviço dos homens, na
cultivação dos campos e arvoredos, e mais apparelhado para sua
destruição e ruina: porque ou se lavra para ostentações e demasias da
vaidade, ou se bate e cunha em moeda, cujo preço tyrannisa os poderes e
graças da natureza. Tirou o ouro a valia a todas ellas, e fez em si
estanque de todos os commercios do mundo, no qual, antes que elle
apparecesse, se trocavam as cousas umas por outras, com uma composição e
trato mais conforme e obrigado á necessidade e commodos da vida que aos
roubos da cobiça, maldades da avareza e sobejidões da vaidade; e
apoderou-se tanto de tudo o que na terra havia, que veiu a ser preço até
da liberdade dos homens contra o direito natural, em que viviam. Foram
crescendo seus atrevimentos: e se antes de sahir do centro da terra
começou a matar homens, sahindo d'ella se levantou contra o céo, fazendo
guerra de rosto a rosto a todas as virtudes: tirou logo a vara das mãos
á justiça: e deitado em sua balança perverteu o fiel de sua egualdade.
Diga-o Commodo imperador, que todos os crimes de homicidios e insultos
deseguaes, remiu a preço de ouro, vendendo por elle publicamente não só
a pena dos delictos, mas os proprios logares dos julgadores. Cerrou os
olhos á misericordia, para não se compadecer dos affligidos: como se viu
no exercito de Tito Vespaziano, que tendo cercada Jerusalem, os
moradores, que opprimidos da fome se sahiam da cidade com licença sua,
enguliam primeiro uma pequena moeda de ouro, para que na passagem o
pudessem salvar dos inimigos; os quaes sabendo esta astucia, a dois mil,
que em dois dias sahiram da cidade, partiram pelo meio para lhes tirarem
do bucho a moeda, por não esperarem que com o termo commum da natureza
d'ahi a pouco espaço a lançassem fóra: assim que aquella pequena
quantidade de ouro, qual de finissima peçonha, lhes tirou a vida.
Derribou a columna, e quebrou os braços á fortaleza, atados com as
prisões de seu interesse: diga-o Ulysses que por elle vendeu a Priamo o
corpo de Heitor Troyano; e Aulo Posthumio, que a preço de ouro deixou a
empreza da guerra de Jugurtha, e a gloria d'ella. Desterrou do mundo a
fidelidade; pois por elle vendia Nicias aos romanos a vida de el-rei
Pyrrho seu senhor: Demonica a cidade de Efezo a Bresso capitão francez,
que de industria a afogou com peso de ouro: Tarpeia Romana, a entrada do
Capitolio aos Sabinos, que do mesmo modo com o peso de ouro e dos
escudos a acabaram. Depravou a piedade, e veneração que os antigos
tinham aos mortos, não perdoando a suas sepulturas, como el-rei Dario,
enganado com o letreiro da de Semiramis, que dizia que, se algum rei seu
successor se visse em necessidade, abrisse aquella sepultura, e acharia
um thesouro: elle confiado creu o letreiro, revolveu a pedra; e achou
outro que dizia: _Se não foras cobiçoso, não andaras desenterrando os
mortos._ Os romanos desenterraram os mortos de Corintho para lhes
tirarem a moeda que tinham por costume metter comsigo na sepultura; para
o que é mais notavel aquelle caso extranho que conta Paulo Diacono, de
Rodoaldo rei de Lombardia, o qual, porque seu pae se mandára enterrar
com as insignias reaes de ouro, abriu uma noite secretamente a
sepultura, e, depois de roubar e despojar o cadaver paterno, lhe
appareceu S. João Baptista, em cuja egreja aquelle corpo estava
enterrado; e reprehendendo-o rigorosamente, lhe mandou em castigo do
atrevimento que commettera, que mais não entrasse n'aquella sua egreja:
e assim querendo o rei alguma vez commetter a entrada, foi pelo mesmo
santo lançado fóra. O ouro sustenta e favorece a todos os peccados
capitaes, a soberba com suas pompas, apparatos e vaidades. As baixellas
de Midas, as grandezas de Cresso, os escravos de Claudio, o theatro de
Nero, as casas de Clodio, e todos os mais excessos da vangloria d'elle
nasceram. A avareza n'elle como em materia propria se conserva e
accrescenta; por elle deixava Oco, riquissimo rei dos persas, de sahir
de casa por não dar certas moedas de ouro ás mulheres que o sahiam a
receber como era costume d'aquelle reino, como conta Plutarcho. Nero
despojava por este as matronas bem vestidas, e roubava as tendas dos
mercadores: e Angeloto, de quem escreve Pontano que era tão avaro, que
se levantava de noite a furtar a ração a seus proprios cavallos; e sendo
achado pelo estribeiro ás escuras no furto, o açoutou cuidando que era
dos escravos da estrebaria. A sensualidade com o ouro se cria, pois a
força d'elle corrompe a pudicicia, como os antigos engenhosamente
significáram na fabula de Danae, a quem Jupiter enganou convertido em
chuva de ouro: d'elle nasceram os estupros de Commodo, os incestos de
Caligula, as luxurias de Heliogábalo, os adulterios de Julio Cesar; pois
só a perola com que conquistou a Servilia, mãe de Bruto, lhe custou
seiscentos sestercios. Por ouro tem a ira feito abominaveis estragos e
homicidos no mundo. Pygmalion matou a seu cunhado Sichueu por lhe roubar
o thesouro que tinha. Polimnestor tirou a vida a Polidoro, de quem era
tutor, por lhe roubar a herança das riquezas que esperava. As demazias e
sordidezas da gula, a delicia e sobejidão dos manjares com elle se
compram.--Das mezas de Cleópatra, das hortas e banquetes de Lucúlo, dos
manjares e convites de Heliogábalo elle tem a culpa. A venenosa inveja
n'elle, como em seu objecto natural, se emprega toda. Herifile invejosa
das manilhas de ouro de Adrasto entregou á morte Amfiarau seu marido; e
Julio Cesar invejoso das riquezas da Luzitania, se fez salteador das
cidades d'ella. A preguiça e descuido sobre o ouro descança e se
aquieta: elle fez preguiçosa e muda a lingua de Demósthenes com o preço
que lhe deram por não orar: e o symbolo e jeroglifico da preguiça foi o
kagado, por o vagar e peso com que se move. Que cousa com mais
difficuldade e tardança se abala, que um rico? E se a diligencia cahiu
em sorte á pobreza, pois a necessidade foi inventora das artes e
subtilezas; o peso do ouro entorpece os sentidos empregados todos
n'aquella materia: e, por conhecer esta verdade, Crates Thebano o afogou
no mar para apprender a philosophia. Pitaco e Anacarso não acceitaram a
Cresso o que lhes mandava: Anacreonte tornou a engeitar a Policrates o
que lhe déra: e Curio recusou aos Samnitas o grande peso d'elle que lhe
traziam.

Foi o ouro finalmente a ruina de todos os bens, que mereciam este nome;
e um veneno mortifero para a vida humana: e se muitos a perderam indo em
seus alcances pelo centro da terra, e outros buscando as extranhas, em
que elle se cria, por remotos climas entre irracionaes Ethiopes
feneceram; não estão seguros do mesmo damno os que dentro em suas casas,
e fechado em seus cofres o possúem. E fazendo pausa em seus males (que
para os contar todos fôra infinito) só um bem tem o ouro, que eu não
quero deixar á conta dos louvores de Solino, que é o que os Gregos
declararam n'aquelle seu celebrado proverbio, que diz: _O de que serve
ao ouro a pedra de toque, serve o ouro ao homem_; pois no toque d'elle,
como em um espelho de desenganos, é conhecido: e se elle d'esta minha
invectiva se houver por aggravado, vingança lhe tem dado a ventura até
ao que de seus males me fica por dizer.

Todos ficaram por extremo satisfeitos de ouvir a pratica de Pindaro; e o
prior a gabou de bem ordenada, e elegante; e gastaram n'isto algumas
razões, tendo os olhos em Solino, que começando a falar com engraçadas
mostras os obrigou a silencio, e disse:

--Posto que eu podera dizer do ouro, como a raposa de Ezopo das uvas, a
que nào chegava; nem quero tomar tão humilde vingança de quem me foge,
nem (como alguns costumam) dizer mal de meu proprio desejo: a empreza é
facil, e só no muito, que ha para dizer d'ella, difficultosa: porém se a
copia aos discretos empobrece, (como um d'elles disse) nào pode ser que
a do ouro faça effeito tào desegual; pois que n'elle consiste toda a
riqueza. Bem o posso invocar como poderoso, e desejar ao menos uma bôcca
de ouro, de que sahiram dignamente os seus louvores; mas é tào inimigo
do que lhe quero, que, por me offender a mim, fugíra d'elles. E
começando do nascimento d'este desejado metal, que quanto mais queremos
culpar engrandecemos: Nasce (como Pindaro disse) nas entranhas dos
montes, porque até a mesma natureza nos ensinou a fazer d'elle thesouro,
pondo tantos muros da terra, para o defender, para que tambem a
difficuldade e rareza lhe dê maior valia. Logo sahindo da mina, onde se
cria, e provado no fogo, em que se apura, começa a fazer competencia com
sua formosa côr ás mais bellas obras da natureza. O mais nobre dos
planetas, que é o sol, dourado nos apparece, e o seu luzente carro com
raios de ouro allumia a terra: o fogo, mais nobre e poderoso dos
elementos, da sua côr se veste; o arco celeste, que nas tempestades da
terra nos assegura, perfilado de ouro se descobre; as nuvens ao pôr do
sol, da sua côr guarnecem os horisontes. As rosas brancas e encarnadas,
os lirios roxos, e azues, as cecens brancas, os bem-me-queres, e as
boninas com uma roza dourada no meio se guarnecem, e enfeitam para os
olhos dos homens; os fructos das arvores, quando chegam á sua desejada
perfeição, e as searas na fertilidade de suas espigas se tornam de ouro:
e as mais formosas creaturas humanas, com as cabeças douradas, mostram
sua belleza; e a esta imitação trazem os principes, e monarchas do mundo
o ouro sobre a cabeça; os reis e imperadores nas corôas, os papas nas
thiaras, os bispos nas mitras, e as matronas illustres nos toucados, ao
pescoço, sobre o peito, e pendurado das orelhas, nos dedos, e nos
braços, fazendo voluntarias prisões de sua formosura. No culto divino
elle orna e aformosea os templos sagrados, as cruzes, imagens,
retabulos, calices, patenas, lampadas, e castiçaes; com elle se adornam
os tectos, frizos, columnas, pedestaes, e todos os ornamentos, e
vestiduras da egreja. Batido em moeda é preço, e resgate das cousas de
maior valia, sem que n'elle se começasse o trato, e commercio do
dinheiro: pois antes que o cunhassem de ouro, o houve de prata, cobre, e
latão: assim que, sem prejudicar a seus louvores o mal que usam d'elle
os avarentos, lhe podiamos com razão chamar formosura do mundo; ornato,
e guarnição de todas as virtudes. A humildade carregada de ouro se
inclina mais, e é mais formosa, como foi a de Primislau primeiro rei de
Bohemia; que no maior poder de sua riqueza, e senhorio, mandava trazer
ante si as alparcas de pastor com que se creara, mandando que andassem
em morgado a seus descendentes para antidoto contra a soberba da
dignidade real. E deixando exemplos estrangeiros, a nossa rainha Santa
Izabel, o nosso infante D. Fernando, a nossa infante D. Sancha, D.
Branca, e D. Joanna, e o condestavel D. Nuno Alvares Pereira, bem
douraram com sua grandeza, e poder a virtude da humildade. Com o ouro se
exercita, e põe em pratica a liberalidade, que sem elle parecera virtude
sem mãos; que mal as tivera Marco Antonio triumviro para aquelle excesso
de magnificencia, que usou com um amigo, se o não tivera: porque,
mandando-lhe dar pelo seu thesoureiro vinte cinco mil escudos, parecendo
ao avarento creado que aquella largueza nascia da ignorancia de seu
senhor, lhe mostrou aquella quantidade de dinheiro sobre uma meza,
dizendo lhe que aquillo era o que mandava dar. Mas o romano por
desmentir a malicia do thesoureiro (que entendeu logo) lhe disse:
Fizeste bem de me avisar; que não cuidei que dava tão pouco: pelo que
sobre estes accrescenta outros vinte cinco mil; e dá-lhe cincoenta. O
mesmo, e quasi pelo mesmo modo, ouvi que acontecera a um principe de
Hespanha com seu pae, mandando dar a uma moça humilde trinta mil
cruzados. E vindo aos nossos exemplos: bem dourou e engrandeceu a
liberalidade com seus poderes o nosso primeiro rei D. Affonso Henriques,
que nas terras, que conquistava, edificou mais egrejas ricas, que Paços
Reaes, e casas pobres: bem o seguiram os mais de seus descendentes em
differente modo. D. Pedro o justiçoso com os pobres, que até a manga do
braço direito mandava fazer mais larga, e comprida, para alcançar a
todos no fazer mercês, como o mesmo rei dizia. Seu filho el-rei D. João
o I, foi tão liberal com os vassallos que o serviram, que deixara sem
patrimonio a corôa, se el-rei D. Duarte seu filho não fizera a lei
mental, com que limitou sua largueza. El-rei D. Manuel com os poderes de
sua riqueza, e a magnificencia de sua condição assombrou as nações
extranhas, e ao nome portuguez fez mais honrado. A castidade mais
excellente, e formosa parece guarnecida de ouro, que nos humildes trajos
da pobreza; e por isso foi tão louvada em Scipião, que poderoso, rico, e
vencedor, quando entrando Carthago lhe offereceram captiva uma formosa
dona, e bem nascida, em logar de gosar d'ella a mandou honradamente
acompanhada a seu marido com o resgate, que por sua liberdade lhe
offereciam. Não faltou esta excellencia em muitas donzellas do sangue
real d'este reino, que, deixando riquissimos dotes da ventura,
offereceram a Deus este da natureza. E se é celebrado el-rei D. Affonso
o Casto em Hespanha, não desmerecia este nome o rei portuguez, que
persuadido de seu valoroso animo, e errado conselho, perdeu a vida nos
campos africanos. A paciencia quanto é mais louvavel e excedente no
poderoso rico, que no miseravel, em quem não tem execução a ira, nem a
vingança. Rico e poderoso no mundo era Filippe, rei de Macedonia, que
perguntando aos embaixadores athenienses o que lhe queriam, respondeu
com inconsideravel liberdade um d'elles, que _vêl-o sem vida_; e elle
voltando aos outros com muita brandura disse: _Dizei aos Athenienses que
mais modesto é quem soffre essas palavras, que os sabios de Athenas, de
quem elles se prezam_. E se contam d'el-rei D. Affonso I, rei de
Napoles, que, sabendo que um creado seu dizia mal d'elle, lhe fez muitas
mercês, com que elle obrigado disse depois de suas obras mil louvores; e
o rei avisado d'isto disse: _Folgo que esteja em minha mão dizerem bem
de mim_: tambem houve rei em Portugal que em muitas occasiões usou o
mesmo termo, como se verá da chronica d'el-rei D. João o II, e de muitas
memorias do III, não esquecendo a paciencia d'el-rei D. Diniz com seu
filho, e a d'el-rei D. Pedro, sendo principe, com seu pae. A temperança
medida por vasos de ouro, e ainda á vista d'elle, é mais estimada: como
a de Curio, que com o ouro dos Samnitas deante não deixou a panella de
couves, e nabos que cozinhava; antes respondeu aos que lh'o traziam, que
não era necessario a quem com tão humildes viandas se sustentava. A
sobriedade, e temperança nos nossos reis naturaes é tão louvada, que de
mui poucos sabemos que bebessem vinho, e de nenhum que comesse
demasiado: e tanto pareceu isto bem ás nações extrangeiras, que a
imperatriz D. Leonor, filha d'el-rei D. Duarte de Portugal, e mulher de
Frederico III, Imperador de Allemanha, não tendo geração, e averiguando
os medicos que por a frialdade d'aquella provincia não concebia, porém
que, se bebesse vinho, teriam filhos; ella não consentio no remedio: e
Frederico disse que antes queria sua mulher esteril, que mal acostumada.
A caridade, subida sobre columnas de ouro, se levanta sobre as
estrellas; e ainda nos que sem lume da Fé a conheceram, com o poder do
ouro a sustentaram: como Cimon Atheniense, poderoso, e rico, que mandava
abrir as portas aos jardins e pomares, que tinha para que entrassem
livremente os necessitados a colher seus fructos: mandava aos seus que,
achando algum velho mal vestido trocassem com elle os seus para o
melhorarem; dava todos os dias banquete publico aos que mendigavam pela
cidade: e aos pobres de qualidade sustentava com esmolas secretas. Não
fôram n'isto os nossos reis e principes portuguezes inferiores, como o
testemunham os varios hospitaes, mosteiros, casas de caridade, e santos
costumes, que deixaram n'este reino, para agasalhar peregrinos,
sustentar, e vestir pobres, e curar enfermos e feridos: no que fôram,
entre os outros, insignes os reis D. Affonso I, D. João I, II, e III, e
o insigne cardeal e devoto rei D. Henrique. Á diligencia com muita razão
lhe calçáram os antigos esporas douradas, pois o duro estorvo da
pobreza, como pintou Alciato, impede as azas e limita os passos á
diligencia. Com ouro e com os poderes d'elle conquistaram Alexandre, e
Cesar em mui limitados annos a redondeza: o nosso rei D. Diniz com os
poderes d'elle accrescentou em seu reino quarenta e quatro villas com
castellos, e fortalezas; izentou a Ordem de S. Thiago de Portugal; e
instituio a de Christo; e fez os primeiros estudos de Coimbra. E os reis
D. João, e D. Manuel descobriram, e ganharam para a Fe as terras do
Oriente com tanta inveja, como espanto das nações extrangeiras. De
maneira que, se os avarentos, que usam mal do ouro e das riquezas,
guerream com elle contra as virtudes, nenhuma cousa ha que tanto como
elle as engrandeça e alevante. E se os cubiçosos na sua conquista perdem
tantas vidas, muitas mais se compram, e resgatam a preço d'elle. E
deixando o balsamo de ouro, tão admiravel nas feridas, o ouro potavel,
tão celebrado dos distilladores nas enfermidades; qual risco da vida,
qual perigo ou necessidade d'ella, qual oppressão ou captiveiro não
remio o ouro? Elle faz a formosura das cidades, a belleza dos edificios,
a fortaleza dos exercitos, a bizarria dos trajos, a galanteria das
côrtes: com elle se alcançam n'ellas as honras, dignidades, titulos, e
privanças, e até os louvores e as mesmas graças da natureza: todos o
buscam, o desejam, e o conquistam: e ainda os outros metaes se querem
converter n'elle por meio de alquime; os animaes se rendem á sua
formosura; pois não ha caça mais certa que a que se toca com laço de
ouro, nem melhor pescaria que a que se alcança com anzol d'elle: e é tão
grande a fôrça de seus poderes, que se atreveu a dizer um auctor, que na
maior furia de um leão, de um tigre, e de outra qualquer féra, se lhe
lançarem moedas de ouro deante, amansarão com ellas sua braveza. E
passando por todas as cousas da terra sua valia, podem os ricos subir ao
céo por escadas de ouro, e dar-lhe com elle assalto e bataria, pondo as
balas e settas d'este metal nas mãos da caridade. E de elle se subir em
tanta altura nasce ficar de mim tão longe, como está de ser digno de
seus louvores meu humilde talento, que, se fôra de tão illustre metal,
tudo alcançara.

A todos pareceu extremada a oração de Solino, posto que alguns a
esperavam menos grave, e mais engraçada: e assim lhe disse
Leonardo:--Parecestes-me esta noite mais orador insigne, que murmurador
galante. Folgo que, errando eu a eleição, acertasseis vós tambem os
louvores.--Não vos agradeço (respondeu elle) os que me daes; por quanto
d'antemão vos vingastes d'elles. Porém se quereis vêr em outrem com
gravidade o que de mim esperaveis como satyra e agudeza, pois os bens e
males do ouro estão encetados; diga o senhor prior agora os poderes do
interesse, que no successo da sua peregrina achará largo campo para esta
materia.--Essa é mui larga (disse o prior) e são passadas muitas horas
da noite; e eu me não escusara com ellas, se não imaginara que todas as
verdades, que cahem sobre este sujeito, hão de parecer murmuração.
Porque dizer que o interesse tudo vence, e a tudo alcança, é sentença
antiga, e experiencia moderna; porém, se particularisar os modos e
termos, com que batalha, será ir com os dedos aos olhos de muitos. Se
disser que o interesse quebrou muitos sceptros reaes, quem se defenderá
d'elles? Se affirmar que torce, e derriba varas da justiça, quantas se
virarão para castigar-me? Se ousar a dizer que profana as leis, e
offende a immunidade das egrejas, temo que até na minha me neguem a
entrada. Se contar que é carta de seguro de salteadores, couto de
homicidas, torre do facinorosos, e merecimento de descuidados, quantos
se levantarão contra minha verdade? Só direi em um conto breve o que de
sua valia se pode presumir na necessidade; e será julgar pelas unhas o
leão, e pela pisada de Hercules a medida de sua grandeza.

Um homem curioso, bem intencionado, e não mal entendido, andou alguns
annos na milicia do Oriente: e vindo d'elle a este reino para se
despachar, trouxe entre algumas cousas de menos valia, que curiosidade,
umas imagens de santos, e anjos de marfim, maravilhosamente obrados. E
depois de entrar em seu requerimento, deu conta a um amigo, pratico nas
cousas da côrte, do estado de seus negocios; aconselhou-o elle como
convinha e buscando entre o movel, que trouxera, peça que podesse
offerecer a um ministro, com quem tinha intelligencia, lhe inculcava
aquelles santos de marfim, que o tinham muito affeiçoado.--Como (disse
elle) não trouxestes da India algum pagode, ou idolo de ouro d'esses
gentios?--Para que? lhe perguntou o pouco esperto requerente.--Ah,
respondeu o amigo, que para o que vós pretendeis, e cá se costuma, _Mais
podem diabos de ouro, que anjos de marfim_. E assim não me parece que
está mal o dito vulgar do povo, _que o interesse é diabo_. E pois o
tempo é tão curto, seja isto uma cifra do que se pode dizer de seus
poderes; que são tão grandes, que a mim me tiram a liberdade de falar,
contra o desejo que tenho de vos obedecer. E sendo elles taes, e o ouro
o principal interesse de todos, mui bem lhe cabem com os males, que
Pindaro d'elle disse, os louvores com que Solino o celebrou fazendo a
differença sómente no uso d'elle. Que se Santo Agostinho lhe chamou
enfermidade da soberba, fraqueza das virtudes, materia de trabalhos,
perigo do possuidor, senhor insoffrivel, e escravo atraiçoado; Santo
Ambrosio, laço do demonio; S. Chryzostomo, escola dos vicios, e doença
da alma; e se d'elle nasceu a Cresso a soberba, a Heliogábalo e
Sardanápalo a luxuria, a Nero a crueldade, a Cómmodo e Vitelio a gula:
se por elle Polycrates morreu na forca, Cresso na fogueira, Crasso
degolado, Heliogábalo arrastrado, e outros ricos tiveram fins
semelhantes; não teve a culpa o ouro, senão a má avareza de quem o
possuia, ou a cubiçosa sede do que o desejava; pois elle nos animos
livres não impede o caminho das virtudes, antes lhes dá forças, lustre e
grandeza: como em um Constantino Magno, que enriqueceu a egreja Romana;
um Carlos IV, que comprou com elle a vida; um Emmanuel, que honrou o
nome Portuguez, o dilatou a fé catholica pelo Oriente; um Lourenço de
Medicis, que honrou Florença: um Leonardo Lauredano, que libertou
Veneza; um Carlos Brugi, que soccorreu a esterilidade de Flandres; e
outros muitos, que o souberam dispender valorosamente. De maneira que
n'elle está a condemnação ou justificação, a morte ou a vida de quem o
possue ou deseja. Para o que eu acho extremada aquella historia, que
toca Auzonio poeta em um seu epigramma. E é que um homem desesperado com
uma paixão, que teve, se hia enforcar em um logar secreto, levando
comsigo o baraço, em que havia de deixar a vida. Succedeu que com a
força que fez, cahindo uma parte da terra n'aquelle logar, se lhe
descobrio um thesouro; a cuja vista mudou logo o pensamento: e, levando
o que achara, deixou em seu logar o baraço que trazia. Vindo depois o
que alli o escondera, e achando-o menos, e em seu logar a tentação de
sua desventura, fez, porque perdera um thesouro, o que o outro deixou de
fazer porque o achara: de modo que a um deu a vida o ouro, a outro matou
a avareza d'elle.--Com tão boa historia (accudiu D. Julio levantando-se)
é razão que vamos satisfeitos, e deixemos ao senhor prior bem
agazalhado, posto que pelo interesse de sua conversação deixara eu
muitos dos que os outros desejam; porque se a opinião dos cubiçosos deu
preço ao ouro e pedraria, á conversação dos sabios o não pode tirar a
mesma ventura.




DIALOGO VIII

DOS MOVIMENTOS, E DECORO NO PRATICAR


Foi-se o prior da casa de Leonardo em apparecendo o dia: e n'ella em
vindo a noite se ajuntaram os amigos, sentindo grandemente a falta
d'aquelle que os deixara. Foi essa a primeira cousa, de que trataram: e
entre outras disse Feliciano:--Por todas as razões se devia desejar a
conversação de tão discreto, e douto cortezão, como é o prior, em todo o
tempo, mas n'este das noites do inverno muito mais: e n'ellas encherá
elle muito bem o seu logar; porque, além de saber e auctorisar o que diz
com o fundamento das lettras e curiosidade que tem, é muito composto e
engraçado no que fala: e por extremo me pareceu bem aquelle modo de
encarecer negando na materia do interesse, e o descrever com brevidade
nas historias.--Quanto mais ouvirdes d'elle (lhe respondeu Leonardo) vos
parecerá melhor. E sabei que, antes de trazer aquelles habitos parecia
muito bem nos de côrte; e que debaixo dos compridos pode ainda dar
lições d'ella a muitos de capa e espada.--Parte é o falar bem (accudiu
D. Julio) que leva tudo após si: e não consiste este bem só nas razões
discretas e palavras escolhidas, senão no bom modo e graça de as dizer:
o que eu comparo a uma cousa escripta de boa ou ruim lettra; que a boa
aformosea, e dá ser, côr, e graça ao que lêdes; e a ruim desconcerta,
empeça, e afeia as razões, sendo todas umas: e não faltarão mui perto
exemplos d'esta verdade.--Fujamos das comparações para a doutrina (disse
Pindaro) e melhor fôra ser essa a materia, em que se gastára este
serão.--Ainda vos ficaram sobejos do passado (tornou Solino) pois vos
adeantaes da companhia: porém eu a quero fazer ao vosso voto, se ha de
ir aos mais.--Nem a mim me descontenta (disse Leonardo) se o doutor nos
abrir o caminho.--Sempre (respondeu elle) me mandaes deante como os
frades menores nas procissões; quero-os tambem imitar na obediencia:
porém lembro-vos que são duas materias as que tocou o sr. D. Julio,
convém a saber, a graça, e composição do rosto e corpo no falar, e o
concerto das palavras, e discrição das razões.--Essa divisão parece
escusada (disse Leonardo) porque a graça não se aprende, nem se pode
alcançar por arte, pois é mero dom da natureza--Todas as cousas d'ella
(tornou o doutor) se aperfeiçoam e melhoram com a arte: e, para saberdes
logo esta verdade, tomarei á minha conta o em que vos parece que ha
menos que dizer; e fique á vossa a demazia.

Primeiramente no movimento, e graça do falar, chamou Marco Tullio
_eloquencia do corpo_: e Quintiliano disse que com todas as partes
d'elle se ha de ajudar a pratica. E posto que esta doutrina parece que
convinha então aos oradores, como agora aos prégadores, uns e outros
praticam, e em todo o tempo é necessaria: e assim pintaram alguns o
jeroglifico da rhetorica com uma mão aberta, outra cerrada.--Muito
contraria me parece essa lição (disse D. Julio) á policia da côrte, onde
é regra que o homem ha de falar com a lingua, e ter quieto o corpo e as
mãos.--Eu concertarei essa regra com as minhas (replicou o doutor), que
o homem no falar nem ha de parecer estatua, nem bonifrate: e logo vereis
que o que quero dizer é o mesmo, em que vos quereis anticipar. O
primeiro instrumento da pratica é a voz: e, para essa ser engraçada no
falar, ha de ter estas propriedades, _Ser clara, branda, cheia, e
compassada_: porque a voz escura confunde as palavras, a aspera e secca
tira-lhes a suavidade; a muito delgada e feminina faz impropria a acção
do que fala; a muito apressada empeça e revolve as razões, que por si
podem ser muito boas: não trato das que a natureza inhabilitou para esta
perfeição, como é a voz do gago, do cicioso, e do rustico grosseiro: mas
na do cortezão tomara eu estes attributos; porque ha alguns que falam
com a voz tão mettida por dentro, que deixam as palavras para si, e os
ouvintes ás escuras, que lhes é necessario estar espreitando o que lhes
querem dizer: e outros, que pronunciam com tanta aspereza, que espinham
as orelhas dos que escutam; e outros, que falam tão apressadamente, que
parece que levam esporas na lingua.--Entre vozes (disse Solino) tambem
eu hei de soltar a minha: e no que é a voz cheia, que dizeis, quizera
saber a differença; porque eu tenho que ainda é peor a muito grossa que
a feminina: porque ha homem que, quando fala, mais parece tom de baixo,
que espirito de voz. E egualmente aborrece vêr um homem com um rosto
como uma peneira, muito versudo da barba e sobrancelhas, sahir com voz
de frauta muito exprimida.--O meio (respondeu o doutor) em todas as
cousas é a perfeição d'ellas: e se estaes bem lembrado, tambem deixei de
fora a voz grosseira, como a quem a natureza privou da graça no falar.
Depois da voz, os olhos dão muito espirito ás razões: porque, como elles
são as janellas d'alma, por elles se communica vida ás palavras: e assim
hão de ser claros, alegres e moviveis: porque os muito intensos, e
extendidos entristecem; os muito apertados e franzidos movem a desprezo;
os muito abertos, pasmados, e sahidos para fora, fazem temor; e posto
que os olhos, por risonhos, nunca perdem a graça, parece que nas
praticas graves, e de importancia, não hão de ser muito
chocalheiros.--N'isso tendes vós muita razão (disse D. Julio) que ha
homens. que dão olhado ao que falam: porém não vos esqueçaes das
sobrancelhas.--Tambem a acção do falar toma muito d'ellas (tornou o
doutor) porque franzidas fazem carranca, e mostram que fala um homem com
melancholia; baixas representam tristeza, ou vergonha; muito arqueadas
significam espanto; e levantadas alegria. E não menos convém a
composição da barba, que fincada nos peitos mostra desconfiança ou
porfia; e posta no ar vangloria: e o pescoço, que nem se ha de ter tão
levantado que faça soberba nas palavras, nem tão baixo, que pareça que
não pode com a cabeça; a qual não ha de estar tão firme, que pareça que
a espetaram n'elle; nem se hade quebrar para todas as partes como
grimpa. Da mesma maneira a bôcca ha de ser quieta quando fala, sem estar
mordendo beiços, nem torcendo-se, nem inchando com as palavras; nem com
o riso se ha do mostrar tão descuidada, que as entorne pelos cantos; nem
tão apertada, que offenda a boa pronunciação e graça d'ellas; no que vae
mais á lingua portugueza, que a outras muitas: porque sabemos que todas
as nações orientaes naturalmente opprimem a voz na garganta quando
falam, como os Indianos, Persas, Assyrios, e Chaldeus: e todos os
Mediterraneos referem as palavras aos padares da lingua, como fazem os
Gregos, Frygios e Asiaticos: e todos os occidentaes, como os Francezes,
Italianos, e Hespanhoes, mastigam as palavras entre os dentes, e as
pronunciam na ponta da lingua: posto que em alguns logares, conquistados
outro tempo dos Africanos, ficaram usos e palavras, que ainda obrigam a
sua pronunciação; mas os que estão mais izentos d'ella são os
Portuguezes, como aqui na primeira noite da nossa conversação se tocou.
Além d'estas partes do rosto tem o movimento do corpo o seu logar: que
pode parecer airoso, quando fala, mostrando as materias sobre que fala
nos contos, historias, graças ou galanterias, não representando o que
diz com meneios de comediante, nem com modestia e compostura sobeja, mas
com uma boa sombra, e um termo no persuadir assocegado, no relatar mais
ligeiro, no arguir esperto, no desculpar ou defender-se mui brando; nem
fazer badallos dos pés quando fala assentado, bolindo sempre: nem estar
com os olhos n'elles quando passeia. Sobre todos os mais gestos ou
acções, que tenho tocado, se ajuda a pratica do movimento das mãos, que
ha de ser com um leve ar e compostura, com que o discreto favorece as
palavras que diz, não falando com ambas ellas, nem chegando com alguma
perto da vista dos ouvintes; e guardando estas e outras advertencias
semelhantes, pode fazer um homem uma agradavel gentileza no praticar,
emendando algumas faltas da natureza, ou favorecendo com o cuidado as
graças, que ella lhe dotou: não tratando dos incuraveis, a que já não
possam valer estes remedios; mas dos que á falta d'elles, e com o largo
discurso de maus costumes se vieram a fazer incuraveis.--Parece que daes
a entender, senhor doutor, (disse Pindaro) que ha mais algumas
advertencias, que podem ser de importancia n'esta materia: e, para a
tratar de fundamento, não é razão que fiquem de fora.--Para essas e para
o mais, que tenho dito (respondeu elle), nomearei alguns vicios, que são
contra o bom termo da pratica; que, reprovados n'ella, acreditarão as
minhas opiniões, a que eu não posso nem quero dar nome de preceitos,
posto que são fundadas em os melhores dos que d'esta materia escreveram.


O primeiro é _escutar-se um homem a si proprio quando fala, por se
contentar do que diz_.

O segundo _repetir outra vez o que tem dito, com os olhos nos ouvintes,
para que lh'o gabem_.

O terceiro _deter-se tanto nas palavras como que as vae pezando, e
compondo para as dizer_.

O quarto _ir-se arrimando a bordões para que lhe accudam em tanto as
palavras_.

O quinto _ir á mão ao que quer responder, por querer falar tudo_.

O sexto _bracejar muito, e dar grandes risadas a seus proprios ditos_.

O setimo _borrifar as palavras com o humidade da bôcca, por falar com
vehemencia_.


--Vós (accudiu Solino) formastes aqui uns sete peccados mortaes contra a
discrição, e cortezania, que não merecerá n'ella ter graça quem n'elles
estiver culpado. Cada um dos presentes examine sua consciencia, porque
receio que falaes de proposito contra alguem.--É tão má a vossa natureza
(lhe tornou o doutor) que quer perverter a minha boa tenção, e d'estes
peccados contra a policia tirar outros que offendam a amisade: vale-me
porém ser a vossa conhecida. E proseguindo a materia dos vicios, os tres
primeiros nascem do amor proprio que cada um tem a suas cousas, a que os
gregos chamaram _Filaucia_: os quatro seguintes, ou da ignorancia, ou do
descostume e falta de doutrina cortezã. Escutar-se um homem, quando
fala, é de quem bem lhe parece o que diz: e posto que o vicio é natural,
tem ruim patria; que o homem, que se escuta, é lisongeiro de si mesmo, e
elle se paga por si de suas palavras, vendo-se e enfeitando-se n'ellas
como em espelho, conforme os proverbios antigos, que _a cada um parece o
seu formoso_; e outro, que _não ha melhor musico que cada um a si
mesmo_; e que _a cada um contenta o seu rosto, a sua arte, e cheira bem
o seu suor_.--Outro (disse Solino) me parece a mim melhor que todos
esses, porque os declara; e é que _quem se contenta a si contenta a um
grande nescio_; que não pode deixar de o ser o que do seu engano se
satisfaz. E não achareis discreto d'esse feitio, que não caia nos tres
primeiros laços: porque são encadeados uns com outros: e em se escutando
um homem a si, o vereìs ir encarecendo as palavras com as sobrancelhas,
enchendo com ellas a bôcca, e pronunciando-as com muito
cuidado.--D'esses disse Horacio (accudiu Pindaro) que _falavam empolas_;
é está muito bem o nome á inchação das suas palavras. Mas o segundo
vicio, que é da repetição, parece menor erro; porque o que é bem dito se
pode repetir, conforme ao que disse o poeta; e só será a culpa quando o
dito não fôr acertado.--Essa estimação não ha de ser feita por seu dono
(respondeu Solino), nem elle pode pôr o preço a suas palavras, cuidando
que fala ouro; em obras alheias, referidas por outrem, tem logar essa
desculpa; e não se podem servir d'ella os que com os olhos, e com a
repetição do que disseram, estão puxando por vós a que lh'as gabeis, e
vos contenteis á força da sua razão; e mettem de quando em quando um
_entendeis-me? estaes commigo? digo bem? que vos parece? não sei se me
declaro_. De maneira que, para encarecerem o seu aviso, fazem dos outros
nescios. E com este cahem logo no terceiro, que é deter-se muito em cada
palavra, soltando-as por compasso, dilatando uma da outra, porque se não
peguem: e é vicio, que fará ser aborrecivel a todo o mundo a quem o tem;
e até á mesma discrição fará importuna este mau uso d'ella. E mais é mui
certo andar annexa esta boa parte a uma fala de doente mui molle; que
tudo junto vem a ser um xarope de semsaboria, que não ha quem o leve. O
quarto não entendo bem, porque não sei ao que chama _bordão_ o
doutor.--Sabei (disse elle) que os arrimos, a que se pega ou encosta o
que fala, quando as palavras lhe cançam, se chamam _bordões_, e são de
duas maneiras: uns que pertencem, ou para melhor dizer, que são
impertinencias nas acções do falar; e outros nas palavras: os primeiros
são mais culpaveis que os segundos, porque ha um que não sabe praticar
comvosco sem vos estar desabotoando, ou alimpando o cotão, e arrancando
a frisa do vestido: outro, que a cada palavra vos pega do cinto, ou
travando-vos do braço vos molesta: e ainda ha alguns tão desatinados,
que vos dão com a mão nos peitos a cada cousa que dizem: e outros que,
se deixam de entender com quem praticam, o hão comsigo, não estando
quietos com as mãos; esgravatando os dentes, ou bolindo nos narizes e
falando, tirando cabellos da barba, e mordendo as unhas; e outros vicios
semelhantes, que servem como uns espaços e reclamos, a que lhe acodem as
palavras. Os segundos são mettidos na mesma pratica com alguns, que em
cada palavra d'ella mettem um _diz_, _assim que digo_, _tal e qual_,
_sim senhor_, _vae vem_, _então_, _senão quando_, _espere vossa mercê_,
_assim que senhor_, _estaes commigo_; e outros muitos, fora os que vós
apontastes no vicio da repetição, que são bordões da primeira
classe.--Certo (disse Feliciano) que tem muita razão o doutor em dizer
que este vicio e os dois, que se seguem, nascem do descostume, e falta
da doutrina cortezã: porque eu alcancei ainda por condiscipulo um
estudante, que na opinião dos mais não era tido por o que falava peior,
que, por o grande odio, que tinha aos bordões, inventou um modo
excellente para os desterrar da conversação dos amigos, com que tratava
de ordinario; e foi um jogo de não menor engenho, que utilidade; e pelo
exercicio d'elle se perdeu até a semente dos bordões entre aquelles
amigos.--Não vos esqueçam (disse Leonardo) os termos de tão bom jogo,
que já pode ser que occupemos com elle uma noite, mais bem empregada, do
que o remedio será necessario para os presentes, porque não são dos
homens limitados, que se apegam a estes encostos: e se quereis
conhecel-os, ouvi-lhes contar uma historia, e metter-vos-hão n'ella mais
bordões, do que tem de palavras.--O quinto vicio (proseguiu o doutor) é
incomportavel; porque ha homens tão sôfregos de falarem tudo; que
atalham as palavras ao que lhes começa a responder, querendo anticipar
com o seu entendimento a tenção alheia.--Esses taes (disse Solino) falam
a duas mãos, porque querem que vá tudo por elles. E como me acho entre
esses, por não pedir por mercê que me ouçam uma palavra, deixo o feito
sem parte; e como ficam falando á reveria, desfaço as suas sentenças com
uma bochecha de agua.--Esses faladores são como cigarras, que atrôam, e
não deleitam (disse D. Julio) e é sentença mui approvada entre cortezãos
que tres cousas não ha de haver entre elles demasiadas, _sobeja parola,
comprida porfia, e grande rizada_; porque _quem muito fala d'elle damna_
(como diz o rifão) _e com quem aporfia não disputes; e onde ha muito
riso ha pouco siso_; que todos estes pertencem á conversação.--Essa
terceira parte (proseguiu o doutor) é do sexto vicio, que é bracejar
quando fala, e festejar com risadas seus proprios ditos o que se quer
vender por discreto. E assim vereis alguns, que falam ás pancadas; e se
acharem um pulpito deante, o farão em pedaços, como se a policia podéra
soffrer o desassocego e inquietação da sua esgrima. As risadas, além de
arguirem falta de entendimento, são mais impertinentes quando um homem
festeja seus proprios ditos; que, para terem galanteria, elle, que os
diz, ha de ficar sisudo; e os que o ouvem, risonhos. E assim os
engraçados de nossos tempos que conhecemos, e outros, que deixaram esse
nome, sabiam festejar moderadamente as graças alheias, e dissimular o
riso nas suas, fazendo menos caso d'ellas.--Duas cousas (disse D. Julio)
se me offerecem para vos perguntar n'essa materia: e seja a primeira,
que moderação se ha de usar no riso, com que um homem festeja o conto ou
graça do que falla deante d'elle?--Os homens (respondeu o doutor) não
hão de ser tão sevéros que nunca riam como Catão Censorino, Anaxagoras,
e Sócrates: nem como Marco Crasso, que rio uma só vez na vida; pois é
definição e differença do homem _ser animal racional_, e a sua propria
paixão é _ser rizivel_: porém não menos se ha de guardar de ser
desentoado nas risadas; que, para n'isto haver uma moderação politica,
lhe buscaram os antigos muitas differenças: e deixando o riso Jonio,
Megarico, Sardonio, e Synclusio, dos quaes falam tantos auctores gregos,
e latinos; colhida d'elles a melhor doutrina, não ha de rir o homem com
a bôcca aberta que dá grande tom ao riso, nem com os beiços apertados,
como costumam os que tem cieiro n'elles; nem sómente mostrando os
dentes, que a estes chamaram os latinos _riso de cavalgaduras_; nem com
um riso molle e affeminado, como era o Jonio; mas com uma boa sombra e
graça na bôcca e no ar do rosto, com que se mostre, agradecido do que
escuta. E se esta resposta vos satisfaz, bem podeis continuar com a
segunda pergunta.--Ainda que as minhas (tornou elle) não fôssem muito a
proposito, com o interesse de vossa doutrina ficariam desculpadas, como
será esta: Se na graça, que outrem conta, em que eu a não acho, sou
obrigado em primor cortezão a me mostrar risonho? Obrigado é o cortezão
(respondeu o doutor) a se mostrar agradavel aos com quem se pratica: e
não o poderia ser quando seccasse o riso na occasião, em que outrem
mette cabedal para o provocar a elle; que seria mettel-o em
desconfiança.--Eu me dou por satisfeito (disse o fidalgo) e já agora
podereis passar ao setimo erro; em que ha pouco que discorrer segundo me
parece; que nao é mais que um descuido e desattento dos que, mostrando o
fervor do animo com que falam, borrifam com humidade o que dizem, e ás
vezes a quem os escuta.--Não cuido eu (disse Feliciano) que são esses os
de que trata o proverbio, que _falam fontes de prata_.--Antes (tornou
Solino) lhes chamara eu _homens que falam frescos_ que nem uma manhã de
abril deixa tao orvalhado um campo do boninas, como elles a roda dos que
os estão ouvindo; e para estas immundicias houvera de ter a discrição um
Almotacé da limpeza.--Desterrados pois (continuou o doutor) da
conversação estes sete inimigos d'ella, parecerá um homem cortezão aos
que o escutarem, falando agradavelmente nas palavras as leis que agora
lhe der o senhor Leonardo: que posto que a verdadeira discrição seja
natural, nenhum dos dons da natureza deixa de receber beneficio da arte,
da continuação e dos costumes.--Muito depressa vos quereis desobrigar
(respondeu Solino) e eu ainda esperava que passasseis pela minha porta,
dando algum toque na murmuração, como déstes no riso: que tambem estes
preceitos são fóra das palavras.--O riso sim (lhe tornou elle), mas não
o murmurar; que é culpa que não se attribue á pratica, posto que alguns
digam que sem esse sal a mais discreta é pouco saborosa: e é porque ha
muitas cousas, que não queremos dizer, e folgamos em extremo de as
ouvir. Assim que o que murmura ordinariamente agrada a gostos alheios de
gente ociosa, com risco proprio. Porém, por fazer as pazes comvosco,
entrarei em contendas, de que estou desobrigado, tocando na murmuração
engraçada; e para lhe dar logar, a metterei no meio de uma sentença
excellente, que diz que _dos animaes bravos a peior mordedura é a do
praguento_; e _dos mansos a do lisongeiro_. O praguejar é maldade, o
lisongear traição, o motejar levemente galantaria: o discreto nem ha de
morder, nem lamber; porém picar levemente, e com arte, é graça da
conversação. Para o que, deixando auctoridades, exemplos, preceitos, e
cousas infinitas, que poderão levar grande tempo: o cortezão, quando
arguir para graça, ha de considerar tres cousas: o que fala, com quem, e
deante de quem. O primeiro por fugir de materia em que o presente
desconfie: o segundo por não motejar com quem não saiba pesar e conhecer
as galantarias: o terceiro por não falar graças, de que, algum dos
ouvintes se envergonhe: porque de outro modo, sendo a graça pesada,
perderia o nome. Não falo do murmurar de ausentes, que em todo o modo me
parece culpavel. E bem podiam servir para lei d'estas galantarias as
vossas, que a todos agradam, e que, se aos ouvintes não fazem fastio,
tão pouco aos offendidos causam queixume.--Lembra-me (disse Pindaro) que
no quinto vicio condemnastes o querer um homem falar tudo: e não déstes
regra aos que falam pouco.--Seria (respondeu o doutor) por me conformar
com uma sentença, que diz: _Aos que pouco falam, poucas leis lhes
bastam_. Além d'isto até agora não tratei dos louvores do silencio, nem
da verdade d'aquelle dito: _Assás sabe o que não sabe; se calar sabe_. E
o outro, que: _O nescio calando, parece-se com o discreto_. Falo sómente
da maneira de praticar entre os amigos, onde as palavras não tem mais
que estas duas medidas, que são _falar a tempo_, e _a proposito_: a
tempo, porque nem em todos se pode dizer tudo o que é bem dito.

Nas comidas se ha de fugir falar em cousas que enojem o estomago, e
offendam ao gôsto, ainda que em outros logares podem dar muito. Entre
enojados não dizer graças, ou contos, que desautorisem a tristeza, e
provoquem a riso. Entre enfermos não contar historias, que causem temor
ou desconfiança em seus males. Entre ecclesiasticos guardar-se de coisas
que saibam a lascivia, e profanidade. A proposito; porque ha muitos, que
se desviam do principio da pratica, de maneira que do primeiro salto vão
parar a Flandres; outros, que em tudo querem metter uma historia que
sabem, contar uma nova que lhes veiu, um dito que ouviram, um sonho que
sonharam; e pela deleitação, que tomam de contar coisas proprias, perdem
o decóro, com que hão de escutar as alheias, e o tento do que elles
mesmos respondem: e tambem me a mim parece que me vou mettendo nas que
não são minhas; que me fizeram passar os termos de maneira, que nem a
meu amigo ficou tempo para continuar com a segunda parte d'este
discurso.--Vós dizeis tudo tão bem (tornou Leonardo) que se perde pouco
no que eu havia de accrescentar, quanto mais, que o que se dilata não se
tira; e já ámanhã terei cuidado, ou espaço de cuidar no que hei de
dizer, por não cahir no terceiro peccado de ir compondo as palavras com
o vagar que enfastia.--Em casa cheia (disse Solino) de pressa se faz a
cêa; e em entendimento tão rico, como o vosso, nem de cousas, nem de
palavras pode haver pobreza: guarde-vos Deus de uns meus senhores, que
as pedem fiadas aos livros de cavallarias, com suas sentenças de cabo de
capitulo, que se se lhe atravessa um escarro de um dos ouvintes,
varreu-lhes toda a prégação da memoria, e vão com a pratica em muletas
até tomarem assento com muito trabalho seu, e de quem os escuta.--Hora,
não o dêmos tão grande ao senhor Leonardo (disse D. Julio) que hoje o
não deixemos dormir, pois ámanhã o havemos de despertar; que as duas
noites passadas foram de hospede, e a conversação dos que são de mais
gôsto, roubam melhor o tempo; e comtudo. a parte que se tira ao repouso,
sempre faz falta,

Começaram-se os outros a levantar, e o velho ainda os deteve em pé
dizendo:--O senhor D. Julio em tudo tem tenção de me fazer mercês; porém
esta não é das em que fico devendo mais: porque antes quizera poupar o
tempo do somno para viver, que o da vida para dormir. E se é verdade que
na conversação de tão bons amigos só se vive, qual posso eu ter melhor,
que, fazendo estas noites mais compridas, alargar a minha edade? que
sentença é antiga, que _o tempo, em que dormimos, perdemos da vida_:
pelo que chamaram ao somno _imagem da morte_.




DIALOGO IX

DA PRATICA, E DISPOSIÇÃO DAS PALAVRAS


Ia crescendo o gosto d'aquelles amigos com o exercicio de tão proveitosa
conversação, de tal maneira, que nenhum perdia o sentido das materias,
que ficavam tocadas, para se armarem de razões, contos, e exemplos, com
que cada um mostrasse aos outros sua sufficiencia. N'aquella porém da
pratica vulgar ficou Leonardo muito atalhado, assim por ser cousa em que
tudo pende de opiniões incertas; como porque o doutor lhe cortara a
urdidura, com que havia de ir tecendo o seu discurso, desejava mudar o
proposito a outra cousa, que viesse mais ao seu; mas como aquelle era o
de todos, não via caminho de o desviar. Veiu pois a noite do outro dia,
e com ella os companheiros mui alvoroçados; aos quaes elle festejou com
a mesma alegria; e logo, depois que se assentaram, lhes disse: Se hei de
falar verdade, eu estou tão carregado com o officio que de novo me
déstes, que me não atrevo a dar boa conta d'elle; porque todas as que
fiz para me dispôr a isso, me sahiram erradas: e me parece tão
difficultoso falar de cuidado, e ordenadamente na materia em que se ha
de praticar na lingua portugueza, que me hei de chamar ao engano, e o
maior de todos foi darem-me espaço para temer, quando eu cuidei que o
tomava para me prevenir.--Em vós (disse D. Julio) é gentileza esse
receio; e ainda que fôsse fingido, eu o tenho por a primeira regra de
falar bem, pois ensinaes aos discretos a não falarem com sobeja
confiança; e pela que eu tenho de vossa discrição, só em uma cousa
achara difficuldade, que é pôrdes em regras, e preceitos, o que tendes
por natural, e por costume; que servieis mais para exemplo de quem vos
ouve, que para mestre dos que não podem comprehender a vossa
doutrina.--Se com titulo de me fazerdes mercê (respondeu elle) quereis
que desconfie, mais facil vos será isso, que a mim o acertar: mas, para
que não erre no principal, digo que não posso fazer escola de falar bem,
mormente entre cortezãos tão discretos, que cada um me poderá dar
preceitos para o ser: mas se disser em algumas cousas a minha opinião,
faço-o para com as razões dos que a contradisserem aprender a
acertar.--Parece-me (disse Solino) que as melhores duas lições para os
discretos são essas primeiras, _receio_, e _humildade_. E passando
adiante, começae já a descobrir essa rhetorica, nova á lingua
portugueza.--Por escusar (tornou elle) uma muito comprida; e dilatada em
preceitos, e limites, que á força se hão-de misturar com os da latina; e
por evitar a largueza da arte, e poupar a paciencia dos ouvintes para
outras noites, accudirei brevemente a alguns vicios da lingua
portugueza, não fugindo dos termos da latina, nem levando-os a elles por
fundamento, mas fazendo-o n'estas cinco advertencias:


_Falar vulgarmente, com propriedade._
_Fugir da prolixidade._
_Não confundir as razões com a brevidade._
_Não enfeitar com curiosidade as palavras._
_Não descuidar com a confiança._


--Certo (disse o doutor) que me parece essa uma rhetorica abreviada, que
podia servir a todas as linguas: porque a confusão dos muitos preceitos
e figuras, que lhe attribuem os mestres d'esta arte, se podem
comprehender debaixo d'esses cinco muito bem achados. E pois Solino
chamou aos meus vicios sete peccados contra a discrição, podia chamar a
estes preceitos os cinco sentidos d'ella. E tratando do primeiro, como
entendeis _falar vulgarmente com propriedade_, que em parte me parece
que o vulgar não guarda muitas vezes o respeito ao proprio? --Falar
vulgarmente (respondeu Leonardo é qual os melhores falem, e todos
entendam sem vocabulos estrangeiros, nem esquisitos, nem innovados, nem
antigos, e desusados: senão communs, e correntes, sem respeitar origens,
derivações, nem etymologias; que a linguagem mais pende do uso, que da
razão: e por isso se chama lingua materna, porque nas mulheres, que
menos sahem da patria, se corrompe menos o uso do falar commum, posto
que ellas saibam pouco da razão de seus principios. E d'isto, e do falar
com propriedade, tenho dito na pratica que tivemos sobre as cartas
missivas; o que não será necessario repetir agora de novo, mas sómente
dar mostra de que estes dois termos se não encontram: que se o falar
proprio, é com palavras naturaes, e menos figuras da rhetorica, para
ornamento d'ellas; e não usar dos tropos de allegorias, metaforas,
translações, antonomazias, antifrazes, ironias, enigmas, e outras
muitas; isso se usa na pratica vulgar para se tratarem livremente as
palavras proprias, pois sómente algumas translações, antonomazias, e
ironias se acham n'ella; e mui raramente outras figuras: e posto que
n'isto me detenha mais do que determinava, me hei de embaraçar com estas
três figuras. _Translação_ é figura quando passamos as palavras de uma
cousa a outra, porém com uma semelhança conveniente, como quando dizemos
_uma fonte de sabedoria_, _um pôço de lettras_, _um rio de ouro_, _um
thesouro de partes_, ou _de graças_. Esta figura se costuma usar para um
de quatro effeitos, ou para evitar palavras deshonestas, ou para
abreviar razões compridas, ou por accudir á pobresa da linguagem, ou por
aformosear e enfeitar a pratica. No primeiro modo faz officio mui
necessario, que é dar a entender, por palavras alheias, cousas que sôam
mal por o seu nome proprio, como dizer: _uma mulher que usa mal de sua
formosura_; _que se vende a preço_; _que se entrega a Venus_; _que serve
o seu gôsto_. _Um homem affeiçoado a ramos_; _perdido por Bacco_;
_esquecido de si_. Tambem, para abreviar razões, é de muita utilidade na
pratica, como quando dizemos, _ficou em secco_, _deitou azar_, _torceu a
orelha_, _deu cinco_. Os outros dois modos me parecem na pratica
sobejos, e culpaveis: o primeiro, porque sempre se ha de fugir n'ella o
enfeite, e ornamento das palavras: e o outro, porque não faltam na
lingua portugueza as necessarias para cada um declarar o que lhe convém
dizer. A figura da _Antonomazia_ se usa algumas vezes na conversação:
posto que só nas pessoas, ou partes do mesmo reino será mais aceite.
Entre nós, quando nomeamos _o Poeta_, se entenderá Luiz de Camões, _o
Historiador_, João de Barros: _o Duque_, o de Bragança: _o Marquez_, o
de Villa Real: _a Cidade_, a de Lisboa: _a Coutada_, a de Almeirim; e
outras semelhantes cousas, ás quaes a grandeza deu superioridade das
outras do mesmo nome. A _Ironia_, mais que todas, é propria na
conversação, pois consiste mais na graça, riso, ou dissimulação do que
fala, que nas palavras: esta se considera em duas maneiras, a primeira
tirando a propriedade ás cousas; a segunda, furtando o sentido ás
razões; uma é mero escarneo; a outra dissimulada subtileza. A primeira,
quando do fraco dizemos que é um Hercules: do louco, que é um Catão: do
miseravel, que é um Alexandre: e da mulher pouco casta, que é uma
Helena. A segunda, como se disseramos: _Nunca lhe cahiu a lança da mão_
ao que a não tomou n'ella: _não lhe chegou ninguem com a espada_,
falando do que fugiu: _nunca pediu nada_, falando do que furta: _paga
mais do que deve_, entendendo o que paga por justiça. No que pertence ás
figuras me parece que basta esta lembrança. E as palavras, que se devem
escusar para falar vulgarmente, não hão de ser estrangeiras, nem
esquisitas, nem innovadas, nem tão antigas, que se perdesse já o uso
d'ellas. Das primeiras teem muita culpa os estudantes, e lettrados, que
introduziram as latinas na conversação, fazendo a linguagem de
misturas.--Essa culpa (respondeu o doutor) é dos mancebos que como no
praticar não teem a madureza, que só costuma a ensinar a experiencia,
cuidam que se melhoram em falar escuro, e elegante, fazendo na prosa
accentos de musica, ou medidas de poesia.--Muitos lettrados sei eu
(disse Solino) que não são moços, e n'isso o querem parecer, que falam
uma linguagem como sereia, mulher até aos peitos, e ametade peixe; e são
homens, a que não escapa por nenhuma via o verbo no cabo; e sendo a
nossa lingua de muito bom metal, lhe misturam tanta liga, que perde
muito de seus quilates.--Não tenho por grande erro (acudiu Pindaro)
quando a conversação é entre doutos, usar de algumas palavras tiradas do
latim, quando forem melhores que as com que nos podiamos declarar em
portuguez: antes creio que, se isto se fôra introduzindo, viera a nossa
lingua pouco a pouco a se apparentar com ella, e ficar tão polida, e
apurada como a toscana.--E essa (tornou Leonardo) que fructo tirou do
parentesco, se não foi chamarem-lhe alguns auctores _bôrra da lingua
latina_?--O caso é (disse Solino) que vós devieis ser affeiçoado á
phrase de um cirurgião de Coimbra do nosso tempo, que por ella se fez
famoso, que disse á moça de um ferido, a quem curava: _Traga-me um panno
corpulento, para fricar os labios d'esta cicatrice._ E a um rustico, que
vinha esmechado, respondeu que não tinha mais lesa que a superficie da
fronte; e tendo palavras com outro, lhe disse que o aniquilaria, se
dissesse alguma cousa em vilipendio de sua dignidade. E certo que tenho
raiva, sabendo que a lingua portugueza não é manca, nem aleijada, vêr
que a façam andar em muletas latinas os que a haviam de tratar
melhor.--Ha outros (proseguiu Leonardo) que nem com isso se contentam; e
andam buscando palavras muito esquisitas, que por termos mui escuros
significam o que querem dizer. Como um que se queixava de sua dama, que
de ciosa andava inquirindo os escrutinios do seu pensamento. E outro a
um barbeiro disse, que lhe rubricára a parede com a sangria.--Alguns
(disse o doutor) conheci eu culpados n'esse modo impertinente de falar,
que por taes eram reprovados: porém o uso das palavras innovadas não
achei ainda entre os portuguezes, como os hespanhoes e italianos. Nem
tenho por grande vicio aproveitar de algumas antigas, muito bem usadas
em outro tempo, e desterradas, sem razão, na nossa edade.--Não faltam
(respondeu Leonardo) curiosos, que por acharem pobre a lingua, ou por
elles o estarem de seus vocabulos, fazem alguns ao seu modo: como um
lettrado, que querendo auctorisar umas casas para certa occasião, disso:
_É necessario que as paredes d'este domicilio sejam alreadas, e que o
fato uzivel fique retendo nas ultimas d'elle_. E outro disse de um
navegante, _que fôra felice, se não fortuneara tanto no exito da
viagem_. E ao que dizeis das palavras antigas, posto que em algum tempo
fôssem boas, não o ficam sendo na parte em que se perdeu o uso d'ellas;
pois, como já disse, esse só é o fundamento e razão das palavras: e
assim, não diremos _leixou_, _trouve_, _dixe_, _ca_, _sicais_, _acram_,
_leidisse_, e outros vocabulos de que usaram auctores gravissimos de
cujos escriptos podemos aprender a perfeição da lingua portugueza. E
bastou o contrario uso para n'esta parte poderem seguir os que agora
escrevem, e falam bem.--Com uma só razão (accudiu Solino) condemnára eu
a toda essa turba dos que no falar querem parecer singulares, e é que
não falam para que os entendam melhor, senão para que pasmem d'aquella
sua estranha eloquencia e galanteria. E haveis de saber que é lanço
muito certo, que os que se contentáram com saber pouco do latim, falam
mais alatinado, para que os ouvintes cuidem que o sabem: e assim como
virdes cirurgião, ou boticario, que acabou a grammatica na quinta
classe, ponde-lhe abrolho, que o não tirareis com vinte galgos á estrada
do falar commum e se me esperardes estudante de philosophia em grade de
freiras, vereis uma linguagem meada de logica, que vos não entendereis
com o sentido d'ella. E dos que falam pela tempera velha, eu o não
consentira, senão em homens de barba larga, penteada sobre os peitos,
com carapuça redonda, e pelote de abas pregadas, que vos conte historias
d'el-rei D. Manuel, e dos infantes em Almeirim, e de quando D. Rodrigo
de Almeida tomou por compadre a Villa de Condeixa, do filho que alli lhe
nasceu, em tempo do bispo D. Jorge. Porem nos vestidos justos de agora,
e barbinhas turquescas tiradas pela fieira, e tintas sobre branco,
palavras d'aquelle tempo parecem remendo de outra côr.


FIM DO 1.^o VOLUME




INDICE


Advertencia      5

Dialogo I--Argumento de toda a obra      7

Dialogo II--Da policia e estylo das cartas missivas      22

Dialogo III--Da maneira de escrever, e da differença
das cartas missivas      35

Dialogo IV--Dos recados, embaixadas e visitas      54

Dialogo V--Dos encarecimentos      70

Dialogo VI--Da differença do amor e da cobiça      81

Dialogo VII--Dos poderes do ouro e do interesse      95

Dialogo VIII--Dos movimentos e decoro no praticar      110

Dialogo IX--Da pratica e disposição das palavras      121




Lista de erros corrigidos


Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:


  +----------+-----------------------+---------------------------+
  |          |       Original        |         Correcção         |
  +----------+-----------------------+---------------------------+
  |#pág.  67 | os proprio filhos     | os proprios filhos        |
  |#pág.  91 | totos                 | todos                     |
  |#pág. 118 | descuido)             | descuido                  |
  +----------+-----------------------+---------------------------+





End of the Project Gutenberg EBook of Côrte na aldeia e noites de inverno
(Volume I), by Francisco Rodrigues Lobo

*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CÔRTE NA ALDEIA E NOITES DE ***

***** This file should be named 37757-8.txt or 37757-8.zip *****
This and all associated files of various formats will be found in:
        http://www.gutenberg.org/3/7/7/5/37757/

Produced by Rita Farinha and the Online Distributed
Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was
produced from images generously made available by National
Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)


Updated editions will replace the previous one--the old editions
will be renamed.

Creating the works from public domain print editions means that no
one owns a United States copyright in these works, so the Foundation
(and you!) can copy and distribute it in the United States without
permission and without paying copyright royalties.  Special rules,
set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to
copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to
protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark.  Project
Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you
charge for the eBooks, unless you receive specific permission.  If you
do not charge anything for copies of this eBook, complying with the
rules is very easy.  You may use this eBook for nearly any purpose
such as creation of derivative works, reports, performances and
research.  They may be modified and printed and given away--you may do
practically ANYTHING with public domain eBooks.  Redistribution is
subject to the trademark license, especially commercial
redistribution.



*** START: FULL LICENSE ***

THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE
PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK

To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free
distribution of electronic works, by using or distributing this work
(or any other work associated in any way with the phrase "Project
Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project
Gutenberg-tm License (available with this file or online at
http://gutenberg.org/license).


Section 1.  General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm
electronic works

1.A.  By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm
electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to
and accept all the terms of this license and intellectual property
(trademark/copyright) agreement.  If you do not agree to abide by all
the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy
all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession.
If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project
Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the
terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or
entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8.

1.B.  "Project Gutenberg" is a registered trademark.  It may only be
used on or associated in any way with an electronic work by people who
agree to be bound by the terms of this agreement.  There are a few
things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
even without complying with the full terms of this agreement.  See
paragraph 1.C below.  There are a lot of things you can do with Project
Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
works.  See paragraph 1.E below.

1.C.  The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
Gutenberg-tm electronic works.  Nearly all the individual works in the
collection are in the public domain in the United States.  If an
individual work is in the public domain in the United States and you are
located in the United States, we do not claim a right to prevent you from
copying, distributing, performing, displaying or creating derivative
works based on the work as long as all references to Project Gutenberg
are removed.  Of course, we hope that you will support the Project
Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by
freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of
this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with
the work.  You can easily comply with the terms of this agreement by
keeping this work in the same format with its attached full Project
Gutenberg-tm License when you share it without charge with others.

1.D.  The copyright laws of the place where you are located also govern
what you can do with this work.  Copyright laws in most countries are in
a constant state of change.  If you are outside the United States, check
the laws of your country in addition to the terms of this agreement
before downloading, copying, displaying, performing, distributing or
creating derivative works based on this work or any other Project
Gutenberg-tm work.  The Foundation makes no representations concerning
the copyright status of any work in any country outside the United
States.

1.E.  Unless you have removed all references to Project Gutenberg:

1.E.1.  The following sentence, with active links to, or other immediate
access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently
whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the
phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project
Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed,
copied or distributed:

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org

1.E.2.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived
from the public domain (does not contain a notice indicating that it is
posted with permission of the copyright holder), the work can be copied
and distributed to anyone in the United States without paying any fees
or charges.  If you are redistributing or providing access to a work
with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the
work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1
through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the
Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or
1.E.9.

1.E.3.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted
with the permission of the copyright holder, your use and distribution
must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional
terms imposed by the copyright holder.  Additional terms will be linked
to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the
permission of the copyright holder found at the beginning of this work.

1.E.4.  Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm
License terms from this work, or any files containing a part of this
work or any other work associated with Project Gutenberg-tm.

1.E.5.  Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this
electronic work, or any part of this electronic work, without
prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with
active links or immediate access to the full terms of the Project
Gutenberg-tm License.

1.E.6.  You may convert to and distribute this work in any binary,
compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any
word processing or hypertext form.  However, if you provide access to or
distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than
"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version
posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org),
you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a
copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon
request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other
form.  Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm
License as specified in paragraph 1.E.1.

1.E.7.  Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works
unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.

1.E.8.  You may charge a reasonable fee for copies of or providing
access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided
that

- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
     the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
     you already use to calculate your applicable taxes.  The fee is
     owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
     has agreed to donate royalties under this paragraph to the
     Project Gutenberg Literary Archive Foundation.  Royalty payments
     must be paid within 60 days following each date on which you
     prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax
     returns.  Royalty payments should be clearly marked as such and
     sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
     address specified in Section 4, "Information about donations to
     the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."

- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies
     you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
     does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm
     License.  You must require such a user to return or
     destroy all copies of the works possessed in a physical medium
     and discontinue all use of and all access to other copies of
     Project Gutenberg-tm works.

- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any
     money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
     electronic work is discovered and reported to you within 90 days
     of receipt of the work.

- You comply with all other terms of this agreement for free
     distribution of Project Gutenberg-tm works.

1.E.9.  If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
electronic work or group of works on different terms than are set
forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

1.F.1.  Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection.  Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or
corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual
property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by
your equipment.

1.F.2.  LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right
of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all
liability to you for damages, costs and expenses, including legal
fees.  YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
PROVIDED IN PARAGRAPH 1.F.3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
DAMAGE.

1.F.3.  LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a
defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can
receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a
written explanation to the person you received the work from.  If you
received the work on a physical medium, you must return the medium with
your written explanation.  The person or entity that provided you with
the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a
refund.  If you received the work electronically, the person or entity
providing it to you may choose to give you a second opportunity to
receive the work electronically in lieu of a refund.  If the second copy
is also defective, you may demand a refund in writing without further
opportunities to fix the problem.

1.F.4.  Except for the limited right of replacement or refund set forth
in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.

1.F.5.  Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
the applicable state law.  The invalidity or unenforceability of any
provision of this agreement shall not void the remaining provisions.

1.F.6.  INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need, are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
http://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at http://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit http://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including checks, online payments and credit card donations.
To donate, please visit: http://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     http://www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.