The Project Gutenberg EBook of A Revolução Portugueza: O 31 de Janeiro (Porto 1891), by Jorge de Abreu This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. 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III--A REVOLUÇÃO PORTUGUEZA--O 31 DE JANEIRO (PORTO 1891), por _Jorge d'Abreu_. NO PRÉLO IV--A REVOLUÇÃO PORTUGUEZA--O 5 DE OUTUBRO (LISBOA 1910), por _Jorge d'Abreu_. V--A REVOLUÇÃO E A REPUBLICA HESPANHOLA (1868 A 1874), por _Victor Ribeiro_. BIBLIOTHECA HISTORICA (POPULAR E ILLUSTRADA) A Revolução Portugueza O 31 DE JANEIRO (Porto 1891) POR JORGE D'ABREU Logotipo do editor 1912 EDIÇÃO DA CASA ALFREDO DAVID ENCADERNADOR _30-32, Rua Serpa Pinto, 34-36_ LISBOA Composto e Impresso na Imprensa Libanio da Silva==Travessa do Falla-Só, 24--Lisboa PALAVRAS DE UM SOLDADO *ao presidente do tribunal de guerra, no acto do julgamento:* ... _Eu, meu senhor, não sei o que é a Republica, mas não póde deixar de ser uma cousa santa. Nunca na egreja sentí um calafrio assim. Perdí a cabeça então, como os outros todos. Todos a perdemos. Atirámos então as barretinas ao ar. Gritámos então todos:--Viva! viva, viva a Republica!_... Do «Manifesto dos Emigrados da Revolução do Porto de 31 de Janeiro de 1891.» O 31 DE JANEIRO (Porto 1891) CAPITULO I O movimento de 31 de janeiro filia-se no "ultimatum" de 1890 A revolta militar de 31 de janeiro de 1891 caracterisou-se pela precipitação com que foi decidida e a pouca ou nenhuma reserva com que foi organisada. Durante mezes uma parte do paiz teve conhecimento quasi minucioso de que se conspirava contra a monarchia e que na conspiração entravam elementos de importancia recrutados na officialidade dos regimentos que a guarneciam. No emtanto a explosão patriotica, que na madrugada de 31 fez triumphar por algumas horas a bandeira verde e vermelha, surprehendeu muita gente porque apenas uma insignificante minoria não julgava extemporaneo o _rebentar da bomba_. A causa unica do movimento podemol-a filiar no _ultimatum_ de 1890. Por espaço d'um anno, a agitação popular, que essa chicotada diplomatica provocara nos primeiros instantes--agitação que, no dizer de João Chagas, trouxera pela primeira vez para a rua, a manifestarem-se, «homens graves e de chapeu alto»--por espaço d'um anno, repetimos, essa agitação minou profundamente diversas camadas sociaes e fez augmentar por uma forma extraordinaria o descontentamento da nação, a sua hostilidade contra o regimen monarchico e o soberano. Viu-se claramente, n'esse momento grave da vida portugueza, que, ao substituir-se o ministerio abatido pelo _ultimatum_, o novo governo procurara antes de mais nada deitar uma escóra ao throno, desprezando em absoluto as reclamações do povo, a sua grita sedenta de justiça. Calcára-se a patria para sustentar no poder o monarcha brigantino. A dignidade da nação, o seu anceio fervoroso de que o _ultimatum_ obrigasse a politica governativa a mudar de processos, a trabalhar com seriedade, uma e outro foram espesinhados pelo empenho dos aulicos da monarchia em precavel-a da marcha progressiva das ideias democraticas. D'ahi o exodo para o partido republicano de muitos dos homens que até então tinham tentado servir os partidos monarchicos com boa fé e dedicação. Mais adeante desenvolveremos, na medida do possivel, esse periodo da historia contemporanea, cujos incidentes, voltamos a affirmal-o, fizeram germinar o pensamento da revolta e contribuiram directamente para que ella rebentasse no Porto no dia 31 de janeiro de 1891. Por agora limitaremos o nosso papel de modesto e desataviado chronista da Revolução Portugueza a descrever o que occorreu em Lisboa mal se soube da momentanea victoria das armas republicanas. É interessante recordar as horas de mortifera espectativa que a capital soffreu, emquanto a varias leguas de distancia um troço de valentes se fazia massacrar pela chamada _guarda pretoriana_. Nas vesperas da revolta, os jornaes de Lisboa ainda reflectiam quasi toda a indignação e a celeuma causadas pelo _ultimatum_. A poucas horas de ser iniciado o movimento, os _Pontos nos ii_ inseriam uma pagina faiscante de Bordallo Pinheiro, intitulada _A maldita questão ingleza_. As perseguições a differentes officiaes do exercito succediam-se com uma pertinacia feroz. No dia 30 de janeiro, um jornal, alludindo á que fôra movida ao alferes de caçadores 9 (aquartelado no Porto) Simões Trindade, salientava o facto curioso d'esse official ter sido, em 27 d'aquelle mez, mandado apresentar _immediatamente_ no quartel general da respectiva divisão; depois, d'ahi, mandado seguir, _immediatamente_, para o ministerio da guerra; d'aqui apresentado _immediatamente_ no quartel general da 1.ª divisão, onde tinham acabado por lhe dar uma guia afim de se apresentar, _immediatamente_ tambem, no regimento de infantaria 24, aquartelado em Pinhel. Os jornaes do Porto, confirmando esse furor persecutorio, accrescentavam que a violencia das auctoridades militares incidia especialmente sobre os officiaes inferiores. Surgiu a manhã de 31 e com ella principiaram a circular em Lisboa os boatos alarmantes. Um d'elles, talvez o primeiro e o que mais consistencia adquiriu desde logo no espirito do publico, dizia: _No Porto, ás seis horas, os regimentos de caçadores 9 e infantaria 10 e parte de infantaria 18, sahindo dos quarteis, dirigiram-se á praça da Regeneração, soltando vivas á Republica. O movimento tende a alastrar-se. A guarda municipal quiz oppôr-se-lhe; mas, depois d'uma descarga dada por caçadores 9, e da qual morreram 12 soldados d'aquella guarda, os outros adheriram aos revoltosos._ A seguir, correu que a primeira auctoridade militar do Porto pedira de madrugada reforço á _guarda pretoriana_, mas que ella se recusara peremptoriamente a combater as tropas sublevadas. Dizia-se tambem que toda a guarnição se solidarisara com os insurrectos. Estas e outras noticias, como é de comprehender, lançaram na capital uma agitação indescriptivel. Os primeiros momentos foram, sem duvida, de confusão e de panico. Ás 7 da manhã, o ministerio já estava reunido e procurava, não sem difficuldade, tomar contacto com a situação. Ás 8, eram chamados ao paço da Ajuda o presidente do conselho e o general Moreira, commandante das guardas municipaes. D'um extremo ao outro da cidade, desfilavam vertiginosamente as ordenanças, os correios, e a população, despertada pelo annuncio retumbante d'esse golpe de audacia republicana, espreitava curiosa a sequencia e o desfecho dos acontecimentos. Pouco depois das 8 horas, correu em Lisboa que um telegramma recebido no jornal o _Seculo_ affirmava estarem occupados pelos insurrectos todos os edificios publicos e que a população da capital do norte adherira em massa á obra iniciada pelo exercito. Era o triumpho completo da Revolução, o alvorecer radioso d'um novo regimen politico, interrompendo na nossa historia o desenrolar corrosivo da tyrannia monarchica. O governo, reunido, tentava com medidas successivas suffocar o incendio que lavrava no Porto. Os regimentos de infantaria recebiam ordem de partir para ali. O sr. Antonio Ennes, ministro da marinha, fazia-se conduzir ao Arsenal e ahi, em conferencia com o commandante geral da armada, exigia que os navios de guerra disponiveis seguissem sem demora a investir a cidade revoltada. O ministerio fremia de impaciencia e de terror. A familia real inquiria constantemente das diversas phases da insurreição. Os elementos avançados principiavam a respirar a atmosphera de liberdade trazida do Porto na lufada dos telegrammas optimistas. A alegria desenhava-se em quasi todos os rostos. Longas horas se passaram assim--horas de esperança, horas de espectativa anciosa--durante as quaes os boatos nunca cessaram de fervilhar. Contava no dia seguinte um jornalista que a confusão de momento era tal que os mesmos alviçareiros que espalhavam a noticia da victoria decisiva dos sublevados não tardavam d'ahi a instantes a divulgar o contrario. Para o paço de Belem havia desde manhã cedo enorme affluencia de personagens officiaes. «Desde os ministros, affirmou mais tarde um _reporter_, até os simples fidalgos cavalleiros, dos quaes vimos dois, fardados, irem em trem pôr-se ás ordens de D. Carlos, todos á porfia accorreram á regia morada.» A guarda do paço era n'esse dia de infantaria 2. Mas, apesar do reboliço que ia dentro do edificio, os soldados mostravam-se despreoccupados e no local--cá fóra--pouco se sabia da revolução. Os politicos, frequentadores da Arcada, andavam desvairados. Uns asseguravam que a população portuense, dirigida por officiaes de caçadores 9, arvorara a bandeira republicana no palacio da Bolsa; outros que infantaria 8, de Braga, e o 14, de Vizeu, tinham adherido ao movimento; outros ainda que a guarda municipal, fraternisando com os revoltosos, se apressara a soltar João Chagas, que então expiava na cadeia da Relação a condemnação imposta por um delicto de imprensa. Os que pareciam melhor informados accrescentavam a tudo isto que na madrugada de 30 de janeiro varios telegrammas cifrados haviam annunciado aos dirigentes da politica democratica o _estalar da bomba_. De Lisboa, por exemplo, tinham perguntado para o Porto: _Como vae o doente?_ Do Porto tinham respondido: _Deve morrer ámanhã_... Mas, ao começo da tarde, o optimismo cedeu o passo ao desalento. As agencias officiosas principiaram a falar em suffocação da revolta e em rendição de revoltados. Mudára a face das cousas. O paço animava-se, o governo cobrava sangue frio. O commandante da divisão militar com séde na capital do norte--o general Scarnichia--que na occasião se encontrava em Lisboa, tratando junto do ministerio da guerra das transferencias dos seus subordinados suspeitos de republicanismo, seguia ás 2 e 30 para o Porto n'um comboio especial. Uma parte das tropas que, tendo recebido ordem de marchar em soccorro da monarchia, já se agglomeravam nas estações de caminho de ferro, regressava a quarteis. Suspendiam-se por um mez as garantias em todo o districto do Porto e auctorisava-se a suspensão dos _jornaes perigosos_ ali e no resto do paiz. Evidentemente, a sublevação não lograra exito e o sangue derramado na manhã de 31 servira apenas a registar uma infructifera tentativa de reacção contra a dynastia oppressora. A democracia fôra vencida pouco depois de ter vencido. A atmosphera voltava a carregar-se de violencia, de jugo tyrannico, e no horisonte já se descortinava que as represalias iam ser ferozes. Uma gazeta das mais populares da epoca, reconhecendo que, uma vez dominada a _sargentada_, o governo se apressaria sem duvida a esmagar a mais insignificante velleidade de resistencia, escrevia vinte e quatro horas apoz a derrota: «Á mercê do arbitrio é difficil poder-se viver; aguardemos melhores dias de liberdade e... calemo-nos.» Extincto o clarão redemptor, a imprensa--salvo raras excepções--ou vociferava tonitruante, enraivecida, contra os revoltosos, pedindo para os vencidos o maximo do castigo--até a pena de morte--ou se curvava resignada sob a ameaça do triumphador, disposta a supportar em silencio a desforra cruel que os vencedores procurariam abertamente tirar dos derrotados. O nucleo dirigente do partido republicano escrevia a poucas semanas dos acontecimentos: «O directorio cumpriu o seu dever, synthetisando as aspirações d'um partido; em vez de appellar para aventuras anarchicas, recommendou á imprensa republicana, aos conferentes e propagandistas a demonstração calma e justificada d'esses principios. (Alludia aos que tinham sido consignados no seu manifesto de 11 de janeiro de 1891). «Acceitando o mandato de acção, conferido pelo ultimo congresso, o directorio entendeu que consistia essa acção em repellir a mesquinha subserviencia que envolvia o partido em accordos com os grupos monarchicos e em conter as individualidades sem mandato, que, trabalhando sem disciplina, compromettiam o partido, como em seguida os acontecimentos o provaram. «As revoluções são factos inherentes ao organismo social; não é um grupo de homens que as fazem, como ou quando querem; mas compete a esse grupo dar-lhes pensamento e direcção quando sobrevenham.» Resumindo: o directorio entendia de boa politica não se responsabilisar pela tentativa mallograda e condemnava-a pelo que ella se lhe affigurava de desordenada e inopportuna. N'outra passagem do documento a que nos referimos affirmava que «a nação inteira julgara immediatamente o movimento de 31 de janeiro pela sua _inopportunidade_.» E no emtanto, a poucos dias da revolta, o mesmo directorio tinha espalhado profusamente esta opinião nitida e vigorosa: «No momento que atravessamos não ha logar para demonstrações theoricas nem para argumentar com os pedantocratas do constitucionalismo. Elles já deram as suas provas. Para a crise extrema um supremo remedio». Supremo remedio!... Que outro poderia ser, afinal, senão o iniciado na manhã de 31? CAPITULO II O primeiro rebate do conflicto diplomatico anglo-portuguez Precisemos os factos: O _ultimatum_ de 11 de janeiro de 1890 teve como pretexto a expedição do major Serpa Pinto na Africa Oriental. Antes d'ella já se falava vagamente na possibilidade d'um conflicto anglo-portuguez e porque em 1889, nos fins do reinado de D. Luiz, tudo o que dependia da influencia ou da acção ministerial se inclinava a hostilisar--ainda que mais ou menos disfarçadamente--a Inglaterra e as cousas inglezas. Parece assente que aquelle soberano, levado talvez por considerações de ordem familiar, projectava lançar-se e lançar ostensivamente o paiz nos braços do imperio allemão, quebrando todos os laços intimos que, desde seculos, uniam a nacionalidade portugueza á Grã-Bretanha. D. Luiz e os seus ministros queriam mais: queriam amarrar á Allemanha o destino do nosso commercio vinicola e das nossas colonias--o primeiro ligado á França e as segundas relacionadas quasi todas com o dominio inglez. Tentou-se mesmo fazer derivar da França para a Allemanha a exportação dos vinhos nacionaes, com a organisação em Berlim d'um certamen, que, no fim de contas, nada deu de productivo. [Ilustração: Quartel de infantaria 18, e campo da Regeneração, onde se reuniram as tropas sublevadas na madrugada de 31 de janeiro] Mas o primeiro rebate d'essa hostilidade appareceu de fórma inilludivel em julho de 1889, quando o governo então no poder rescindiu o contracto de 14 de dezembro de 1883 (o contracto para a construcção do caminho de ferro de Lourenço Marques). Não diremos em absoluto que essa rescisão fosse apenas inspirada no desejo de ferir homens e interesses da Grã-Bretanha. A verdade, porém, é que muita gente quiz vêr logo no facto o ensejo propicio para o trespasse da mencionada concessão a um grupo de capitalistas allemães e essa suspeita surgiu clara e precisa na imprensa a mais ponderada e suave de termos. A Inglaterra, pela bocca dos seus orgãos jornalisticos, sentiu-se fundamente attingida com a medida tomada pelo governo portuguez e não tardou que désse largas a uma celeuma até certo ponto exagerada, mas comprehensivel em face das nossas manobras secretas com a chancellaria germanica. Os periodicos londrinos aconselharam acto continuo o governo inglez a enviar a Lourenço Marques uma esquadra, com o fim, diziam ironicamente, de «proteger os seus subditos ali ameaçados pela valentia de Portugal», e embora um ou outro d'esses mesmos periodicos indicasse vagamente a arbitragem como um meio decente de liquidar o assumpto, o conjuncto d'elles não desafinava na sua exigencia de que deviamos soffrer uma punição significativa. Por alguns dias receiou-se, effectivamente, que o governo inglez seguisse o conselho da imprensa exaltada. Mas, como ainda não soara a hora para a diplomacia britannica nos mostrar que andavamos por caminho errado, pretendendo, nos pactos de alliança internacional, substituil-a pela Allemanha, as cousas foram atamancadas sem grande dispendio de dignidade e as nuvens negras, que já carregavam e entenebreciam o horisonte, perderam um pouco do seu aspecto ameaçador. O partido republicano, tendo seguido com interesse patriotico a marcha dos incidentes, não duvidou estigmatisar publicamente o projecto desvairado da monarchia ao procurar enredar a nacionalidade na teia emmaranhada d'um conflicto diplomatico. Os jornaes da epoca falam pormenorisadamente da campanha que esse partido então fez não só contra a projectada alliança luso-germanica mas, principalmente, contra a entrega do caminho de ferro de Lourenço Marques a um grupo allemão. Quando surdiu o _ultimatum_, ninguem hesitou em reconhecer que, se a patada do colosso de além Mancha era brutal, mesmo brutalissima, á monarchia e aos seus governos cabiam, entretanto, uma boa parte das culpas. Opinião identica expressou-a mais tarde João Chagas ao tratar do assumpto, de collaboração com o ex-tenente Coelho: «Estava-se em principios de janeiro sob uma situação presidida pelo sr. José Luciano de Castro e na qual detinha a pasta dos estrangeiros o sr. Henrique de Barros Gomes, quando os jornaes começaram referindo-se com insistencia á possibilidade d'um conflicto com a Inglaterra, a proposito das pretenções d'esta nação sobre os territorios do Nyassa, onde algumas expedições portuguezas de caracter scientifico operavam ao tempo. O facto pareceu novo e surprehendeu, se bem que tivesse origem antiga no plano de absorpção da Africa Austral e dos territorios sertanejos de Moçambique, principiado a executar-se em 1888, pelo tratado feito entre a Inglaterra e o potentado Lobengula no qual era comprehendido o territorio dos Mashonas, reivindicado por Portugal; e levado a cabo pelo tratado de 18 de maio de 1891, extorquido pelo governo britannico á invalidez portugueza. «O litigio, que veiu a liquidar-se desastrosamente pelo _ultimatum_ de 11 de junho de 1890, pode dizer-se, começou então. Durante dois annos--forçoso é reconhecer para esclarecimento da historia e apuramento de responsabilidades--a Inglaterra oppôz ás pretenções de Portugal o _veto_ mais formal. Já em 1887, o marquez de Salisbury protestava contra os tratados, assignados e publicados, de Portugal com a Allemanha e a França, declarando não nos reconhecer o direito, que aquellas nações nos attribuiam, de exercermos jurisdicção em territorios d'Africa, onde não tinhamos occupação effectiva, e invocava, para justificar o seu protesto, as decisões da conferencia de Berlim. «Mais tarde, em 1888, sir James Fergusson pronunciava na Camara dos Communs um discurso que fez impressão em Portugal, mas nem por isso deixou de constituir uma negação severa, que o governo britannico officialmente apoiou, dos direitos de soberania, invocados pelo governo portuguez, sobre o sertão da Africa Oriental. Quando, apoz o tratado feito pela Inglaterra com o regulo Lobengulo, o governo portuguez quiz definir, por uma delimitação, a posse dos territorios da Africa Oriental (outubro de 1888) o governo britannico, presentindo que não chegaria a uma rapida conciliação, fez-lhe sentir, pelo ministro em Lisboa, sir George Petre, que o estado das relações entre os dois governos, no que se referia ás questões africanas, «estava longe de ser satisfatorio, e que uma prolongação d'esse estado podia conduzir a uma seria quebra de amizade entre os dois paizes.» Em janeiro de 1889, o marquez de Salisbury queixava-se ao representante de Portugal em Londres de que o governo lusitano tivesse feito partir para a Africa e com _destino mysterioso_ (aos territorios do Nyassa) a expedição do capitão tenente Antonio Maria Cardoso e avisava o diplomata portuguez «de que as boas relações dos dois paizes não podiam por muito tempo resistir ao perigo a que estavam sendo expostas». Essa expedição, á data da queixa do marquez de Salisbury, acampava no Monte Melange e luctava não só com as febres mas tambem com a falta de carregadores, parte dos quaes havia fugido. E facto curioso: emquanto o ministro inglez mostrava ao representante de Portugal apprehensões sobre o objectivo principal da expedição, «que lhe parecia ser o territorio occupado pelas missões e estações commerciaes inglezas», os indigenas da região atravessada por Antonio Maria Cardoso desfaziam-se em queixas contra os subditos britannicos, considerando-os d'uma tyrannia excepcional. Em resumo: os inglezes, antes mesmo de occorrer o facto que mais tarde invocaram como a causa directa do rompimento de relações com o nosso paiz, já preparavam o golpe, aproveitando todos os ensejos de insinuar na diplomacia portugueza a ideia de que cedo ou tarde rebentaria o conflicto e de que este seria motivado essencialmente pela nossa politica e a nossa acção na Africa Oriental. O _ultimatum_ de 1890 surprehendeu até certo ponto a população portugueza. O mesmo não succedeu, por certo, aos governantes, que estavam fartos de saber que a Grã-Bretanha só espreitava o momento favoravel de nos enviar essa ameaça humilhadora. [Ilustração: Elias Garcia] Ha quem attribua ao ministro do gabinete progressista que mais de perto lidou com a diplomacia ingleza intenções criminosas. Cremos, porém, que isso é exagerado. O ministro em questão, o sr. Barros Gomes, deve antes talvez ser accusado de incompetencia e inhabilidade. As cousas ter-se-hiam naturalmente passado de modo diverso se, quando appareceu na tela da discussão diplomatica a contestação da Inglaterra aos direitos que Portugal affirmava ter em varios territorios da Africa Oriental, o ministro, longe de empregar processos dilatorios, houvesse sem perda de tempo sujeitado o litigio ao exame e decisão d'uma conferencia das potencias signatarias do Acto Geral de Berlim. Por outro lado, como a Inglaterra fundamentava a sua contestação em que esses territorios nunca tinham sido occupados d'um modo effectivo por Portugal nem soffrido a menor influencia civilisadora, ao governo da epoca incumbia logicamente desmentir com actos, e não com palavras, os argumentos utilisados pela poderosa Albion. Mas o ministro culpado entendeu dever manter até quasi ás vesperas do _ultimatum_ uma attitude de indecisão e de pusillanimidade e assim, quando se iniciou a occupação definitiva dos territorios contestados, lançando-se atravez d'Africa algumas expedições, todas ellas chocaram innumeros obstaculos que precipitaram logicamente o desfecho da questão. O ministro n'essa altura ainda quiz emendar a mão; era tarde, porém, e os erros diplomaticos por elle commettidos não permittiam já que se recorresse á arbitragem internacional. Portugal tinha que aguentar a pé firme e sem esquiva tudo o que a Grã-Bretanha sobre elle fizesse desabar. CAPITULO III Serpa Pinto, á frente de 6000 homens, derrota os makololos revoltados A expedição Serpa Pinto, já o dissemos, foi o rastilho que faz detonar a ameaça contida no _ultimatum_. Contemos como o caso se deu: A expedição tinha por mobil o affirmar a soberania de Portugal nos territorios do Nyassa, que o nosso paiz reivindicava. Commandava-a aquelle major do exercito e compunham-na varios funccionarios e technicos. O engenheiro chefe da missão de estudo era o sr. Pereira Ferraz. Em fins de 1899, Serpa Pinto, sahindo de Messanje em direcção a Quelimane, entregou-lhe o commando da expedição, emquanto outro funccionario, o sr. Themudo, seguia para Mupasso com parte da gente e as embarcações transportando bagagens e mantimentos. O sr. Pereira Ferraz acompanhado d'uns duzentos homens dirigiu-se para ali a encontrar o seu collega de missão--disposto a acampar defronte de Mupasso para seguir á risca as instrucções do commandante em chefe. Tratava-se, não é mau repetir, de pacificar a região, que alguns pretos insubordinados «animados por uma influencia estranha, tentavam revoltar contra nós». Os effeitos d'essa attitude hostil não se fizeram esperar. Logo que a expedição chegou em frente da aldeia dos makololos, viu-se fóra do recinto da povoação varios homens armados e «dentro appareceram por cima da palissada muitas cabeças, ao todo talvez uns duzentos negros promptos a entrar em combate». O sr. Pereira Ferraz fez signaes para parlamentar com o que parecia ser o chefe dos pretos, o qual lhe correspondeu fazendo signal para que se approximasse. O sr. Ferraz queria dizer-lhe que não ia disposto á guerra, portanto que deixassem passar a sua gente e cargas e que lhe daria um presente. «Não me deixou, porém--informa o mesmo engenheiro--o negro dizer nada d'isso, pois logo que nos viu ao alcance das espingardas de pederneira com que elle e os outros estavam armados, disparou sobre nós, fugindo para dentro do recinto, pelo que, chamando alguns dos nossos, que eu posso affirmar não passavam de 40, fizemos fogo sobre a povoação, que elles abandonaram com perda de 6 homens e umas 12 barricas de polvora, que explodiram no incendio que os landins lançaram ás palhotas da aldeia». Por aqui se vê que os pretos tinham o firme proposito de aggredir a expedição. Esta pouco depois era avisada de que os regulos Massêa, Catanga, Molidima, Caberenguene e os filhos do Chipitura haviam reunido e armado a sua gente e se tinham juntado a Melaure para baterem os nossos. Estas informações aterradoras, note-se, foram ministradas á expedição pelos inglezes Harry e George Petit, accrescentando-lhes que o Melaure tinha comsigo muita gente, muita polvora e 6:000 espingardas. Um e outro d'esses agentes britannicos correspondiam-se com aquelle regulo e, tendo o sr. Pereira Ferraz convidado ambos, para maior segurança das suas fazendas e vidas, a retirarem-se para a povoação portugueza de Natumbe, a dois dias de viagem ao sul de Mupasso, pondo ás suas ordens, para isso, as necessarias embarcações, responderam-lhe que preferiam antes ir _to up_, sahindo logo no dia immediato em direcção ao norte, tentando ainda assim e infructiferamente lançar o panico entre os auxiliares portuguezes. Os makololos, refeitos do primeiro embate, saltaram sobre a povoação portugueza de Samoane e, em territorio nosso, destruiram o caminho collimado e atravessaram n'elle espinheiros, dizendo que até ali tudo lhes pertencia e que matariam quem se atrevesse a collimar um palmo de terra d'ali para cima. Os indigenas de Samoane fugiram aterrados a acolher-se á protecção do sr. Pereira Ferraz e este engenheiro julgou mais prudente collocar-se em guarda e esperar reforços que pediu ao governador de Quelimane. [Ilustração: Encontro dos revoltosos com as tropas fieis ao Governo] Foi depois d'sto que o major Serpa Pinto, accudindo com mais gente á expedição e elevando o seu contigente a uns 6.000 homens armados, marchou sobre os negros revoltados e travou com elles em Mupasso sangrento combate. Os makololos deixaram mortos no campo uns 72 homens e muitos prisioneiros importantes. A expedição poz-se novamente em marcha apoz a victoria, que, diga-se desde já, teve no estrangeiro uma extraordinaria resonancia. Na Africa Oriental e principalmente na região sublevada o effeito não foi menor. O sultão Macanjira estabelecido nas margens do Nyassa prestou vassalagem a Portugal. O chefe M'ponda apressou-se tambem a imital-o; o regulo Malipuiri e outro visinho dos makololos foram a Quelimane receber a bandeira portugueza. Mas, emquanto isto succedia, o _Times_, dando conta do combate, fazia affirmações d'este theor: que o major Serpa Pinto enganara o consul inglez na região onde elle se travara, affirmando intenções pacificas, mas que, decorrido algum tempo, levantara conflicto com os makololos, fazendo n'elles grande morticinio e tomando-lhes duas bandeiras britannicas recentemente dadas por aquelle consul. Os makololos, julgando-se abandonados pelos inglezes, tinham então reconhecido a dominação portugueza. O major Serpa Pinto, accrescentava o _Times_, annunciara a intenção de conquistar o Chire até o lago Nyassa e convidara os residentes inglezes a collocarem-se debaixo da protecção de Portugal, tornando-os responsaveis pelas consequencias no caso de recusa. A imprensa franceza, por seu lado, occupando-se da victoria alcançada por Serpa Pinto, falava pouco mais ou menos n'estes termos: «a acção do major portuguez poz termo á comedia que a Inglaterra andava representando em Moçambique. Felicitamol-o por isso. Portugal deu um excellente exemplo. Esperamos que outras nações o saberão seguir na occasião opportuna para fazerem respeitar as espheras de influencia de cada um, e não permittirem as continuas invasões da Inglaterra no terreno alheio». A informação relativa ao combate transmittida pelo consul britannico em Zanzibar ao marquez de Salisbury, que se encontrava ao tempo em Hatfield, foi logo noticiada na imprensa londrina com o commentario de que lord Salisbury certamente não procederia com rapidez emquanto não recebesse pormenores do facto; que pediria primeiro explicações a Lisboa, e, se o governo portuguez lh'as não desse, chamaria a Londres o diplomata sr. Petre. D'ahi a dias surgiu, com effeito, a primeira reclamação da Inglaterra sobre a expedição Serpa Pinto. O marquez de Salisbury dirigiu ao governo portuguez uma nota que foi entregue ao sr. Barros Gomes pelo sr. Glynn Petre, ministro britannico em Lisboa. A nota, diziam n'essa occasião os telegrammas de Londres, tinha a forma de uma representação sobre a acção de Portugal na Africa do Sul e Oriental e pedia que o nosso governo repudiasse os actos do agente portuguez no districto da Zambezia. O marquez de Salisbury, affirmava-se, não usava de ameaças; a nota continha uma exposição de varios factos que asseverava terem occorrido e pedia a restauração do anterior _statu quo_ na região em litigio; o governo inglez não podia permittir que fosse arriada a bandeira ingleza depois de arvorada por um representante responsavel. Outras informações diziam que a nota vinha redigida em termos correctos, embora o gabinete de Londres registasse, impressionado, as noticias recebidas pelo bispo Smythies, ácêrca de hostilidades a estabelecimentos inglezes por parte do major Serpa Pinto, acontecimentos que, afinal, não constavam no nosso paiz. Serpa Pinto, na verdade, objectava-se em Portugal, limitara-se a desembaraçar o caminho á expedição Ferraz perturbada pelos makololos e mais nada. Isto passava-se em 18 de dezembro de 1889. A nota do marquez de Salisbury referindo-se exclusivamente ao supposto ataque da expedição portugueza contra os makololos, e não fazendo menção alguma dos outros assumptos pendentes entre a Inglaterra e Portugal sobre as suas respectivas espheras de influencia na Africa do Sul e Oriental e pedindo ao sr. Barros Gomes uma resposta prompta, o mais rapida possivel, e, no caso do ataque se confirmar, a chamada a Lisboa do major Serpa Pinto; o ministro portuguez dos negocios estrangeiros replicou que as informações até á data recebidas não confirmavam as interpretações dadas pelo gabinete inglez aos actos do major, que «repellira sómente o ataque d'uma tribu hostil na bagagem da qual encontrara tres bandeiras inglezas». O sr. Barros Gomes terminava por pedir uma demora afim de poder communicar com o major Serpa Pinto. Entretanto, «para estar preparado para qualquer contingencia», o governo britannico decidia collocar as suas forças navaes proximo de Portugal. Persuadido de que «a reunião de barcos de guerra inglezes no Tejo augmentaria indefectivelmente a irritação dos portuguezes e entorpeceria a acção do governo lusitano nas suas negociações para o arranjo da questão relativa ao paiz do Nyassa», os couraçados britannicos receberam ordem de reunir-se em Gibraltar e de ahi se manterem «em expectativa dos acontecimentos futuros». Os navios destinados a essa empreza foram escolhidos entre os que formavam a esquadra do Mediterraneo. Os couraçados _Bendvor_ e _Colossus_, a 27 de dezembro, levantavam ferro de Malta com destino a Gibraltar. Em Malta tambem se encontravam as fragatas couraçadas _Agammenon_ e _Dreadnought_; em Edimburgo egualmente se preparavam outros navios. Em Portugal, no emtanto, percebiam-se os primeiros symptomas d'uma reacção forte contra o regimen. A imprensa democratica clamava altisonante que se a Revolução ainda se não tinha feito não era porque «o terreno fosse safaro, ou porque as vozes republicanas não encontrassem echo, mas apenas por motivos de ordem secundaria», que não cabiam ao momento discutir. «Comtudo estava provado que a realeza perdera o prestigio, que a dynastia de Bragança alienara todas as sympathias, que as instituições tinham cahido no descredito e que, por conseguinte, o povo desejava vida nova». E perguntava-se: «O que devemos á dynastia? Que principio superior anda ligado á existencia d'essa anachronica forma de governo? A Patria?... Oh! nós bem sabemos que, quando Portugal se quiz emancipar do jugo da monarchia hespanhola, quem mais conspirou contra a Patria foi o Bragança idiota, por quem os ingenuos combatentes de 1640 andavam expondo a vida; sabemos como esta funesta dynastia tem, pouco a pouco, em presentes de noivado e como premio de serviços contra a nação, entregado as nossas colonias aos inglezes; sabemos como, na hora do perigo para a nossa independencia, para a nossa honra nacional, o sr. D. João VI fugiu covardemente para o Brazil; sabemos como o pae do actual reinante (D. Luiz) escreveu umas cartas criminosas a Napoleão III, no intuito de se formar em seu proveito e da sua raça a união iberica. A Liberdade?... Não a suffocam, porque não podem. O Bragança, que aqui implantou o systema constitucional, fôra um despota no Brazil. Escorraçado de lá, como não podia apresentar-se em frente da monarchia tradiccional representada por seu irmão, em nome de outro principio deu-nos a constituição que, mais tarde, seu filho rasgou á vontade, abafando os clamores angustiosos da nação, com a intervenção das armas estrangeiras...» CAPITULO IV O governo progressista cede ante as exigencias da Grã-Bretanha Os primeiros dias de janeiro de 1890 ainda reflectiram as benignas razões dadas pelo sr. Barros Gomes ao governo inglez. Não se podia exauctorar Pereira Ferraz e Serpa Pinto--dizia o ministro e diziam alguns jornaes de Lisboa--prestando apenas credito ás informações dos funccionarios britannicos. Era necessario ouvir os dois expedicionarios e ouvir-lhes as allegações que, decerto, produziriam sobre a sua attitude em tão melindroso assumpto. Uma parte da imprensa acreditava até ingenuamente que a Inglaterra não tardaria a modificar o tom aggressivo das suas notas diplomaticas, substituindo-o por outro de feição conciliadora: «em primeiro logar, porque assim o quer o respeito devido por cada nação a todas as outras; em segundo logar, porque, se procurasse entregar á violencia a decisão d'um pleito em que devem ser ouvidos e escutados os argumentos de parte a parte e em que a justiça ou a equidade deve proferir sentença em unica instancia, não só concitaria a nossa resistencia mas, porventura, tambem provocaria a indignação do mundo». E essa parte da imprensa ia mesmo mais longe na sua ingenuidade: «A Grã-Bretanha sabe que, embora sejam enormes as suas forças comparadas com as nossas, poderia arriscar-se a revezes se desrasoadamente accendesse a guerra na Africa...» Ao abrir-se o parlamento, o rei D. Carlos, que, pela primeira vez, se apresentava a desempenhar o seu papel constitucional de «chave de todos os poderes», lendo o classico discurso da côroa, sublinhou estas passagens, que a assembleia dos representantes da nação escutou com rara e justificada avidez: «Recentemente as patrioticas aspirações da nação ingleza e do governo de sua magestade britannica, a dilatarem as suas vastas possessões na Africa, encontraram-se em mais d'um ponto d'esse continente, com o firme proposito de Portugal de conservar sob o seu dominio e de utilisar para a civilisação os territorios africanos que primeiro foram descobertos e trilhados pelos portuguezes, por elles foram revelados e abertos ás missões do christianismo e ás operações do commercio e nos quaes as auctoridades portuguezas teem praticado os actos de jurisdicção e influencia consentaneos ao estado social dos seus habitantes, actos que sempre bastaram para significar dominio incontestavel. «Este encontro poz em relevo desaccordos de opinião entre o meu governo e o de sua magestade britannica ácêrca das condições a que devem satisfazer e dos titulos que teem de adduzir as soberanias europeias em Africa, para serem reconhecidas pelas potencias, e d'esses desaccordos resultou uma correspondencia diplomatica que ainda os não poude sanar e que tambem houve de occupar-se de outras divergencias, posteriormente suscitadas, sobre o modo de apreciar um conflicto, occorrido nas margens do Chire, entre uma tribu indigena e uma expedição scientifica portugueza. O meu governo, inspirando-se no sentimento nacional e conformando-se com o voto unanime das duas casas do parlamento, tem diligenciado convencer o de sua magestade britannica do direito que assiste a Portugal de reger os territorios ao sul e norte do Zambeze sobre que versa a mencionada correspondencia, limitando-se, durante o incidente e em todos os seus termos, a manter dominios que sempre reivindicou, e reiterar declarações que sempre fez. E n'esta attitude persistirá com o apoio, que decerto lhe não ha de faltar, dos representantes da nação, esperando conseguir uma equitativa conciliação de todos os legitimos interesses, que promptamente restabeleça, como eu desejo, o perfeito accordo entre os governos de duas nações ligadas por vinculos de amizade e tradicções seculares». Pura illusão! No dia 5 de janeiro, o ministro inglez em Lisboa, rebatendo a asseveração do sr. Barros Gomes de que Serpa Pinto, travando combate com os makololos, se limitara a «repellir o ataque d'uma tribu hostil» escrevia-lhe notando que «essa asseveração não parecia ao seu governo de muito peso, pois que a acção dos makololos, quer tivessem ou não tomado a offensiva, fôra unicamente determinada pelo desejo de proteger o seu territorio contra a invasão dos portuguezes». A questão attingia, evidentemente, a sua phase aguda. O _Times_, referindo-se-lhe, dizia que, se a Inglaterra não tomasse promptas providencias «para apagar a impressão causada pelas incursões do major Serpa Pinto, toda a região dos Lagos Africanos se incendiaria; os makololos tinham visto a Inglaterra grosseiramente ultrajada; era necessario que a vissem reivindicar claramente a sua honra». Por outro lado, o governo portuguez, desejoso, sem duvida, de attenuar um pouco a irritação que o da Grã-Bretanha denunciara na nota de 5 de janeiro, havia ordenado a Serpa Pinto que recolhesse á metropole. Mas nem com isso o colosso amorteceu a pancada. O sr. Barros Gomes tentou então propôr a suspensão temporaria de qualquer procedimento e submetter o litigio ao exame e decisão d'uma conferencia internacional. Trabalho inutil. Á nota do dia 8 d'aquelle mez, em que o sr. Barros Gomes lamentava que a Inglaterra nunca tivesse reconhecido o direito historico constantemente affirmado por Portugal aos territorios do Chire e do Nyassa, a essa nota, o ministro Petre respondeu no dia 10 com um _memorandum_--guarda avançada da exigencia formal. «O governo britannico, frisava esse documento, precisa saber se foram ou não enviadas instrucções rigorosas ás auctoridades portuguezas em Moçambique com referencia aos actos de força e ao exercicio de jurisdicção que ali subsistem actualmente». E, quasi sem dar tempo a que a sr. Barros Gomes digerisse o tom comminatorio do _memorandum_, o ministro Petre entregou-lhe o famoso _ultimatum_ concebido n'estes termos: _O governo de sua magestade britannica não pode acceitar como satisfatorias ou sufficientes as seguranças dadas pelo governo portuguez, taes como as interpreta. O consul interino de sua magestade em Moçambique telegraphou, citando o proprio major Serpa Pinto, que a expedição estava ainda occupando o Chire e que Kalunga e outros logares mais no territorio dos makololos iam ser fortificados e receberiam guarnições. O que o governo de sua magestade deseja e em que insiste é no seguinte:_ [Ilustração: Alves da Veiga (1891)] _Que se enviem ao governador de Moçambique instrucções telegraphicas immediatas para que todas e quaesquer forças militares actualmente no Chire e nos paizes dos makololos e mashonas se retirem. O governo de sua magestade entende que sem isto as seguranças dadas pelo governo portuguez são illusorias._ _Mr. Petre ver-se-ha obrigado, á vista das suas instrucções, a deixar immediatamente Lisboa com todos os membros da sua legação, se uma resposta satisfatoria á precedente intimação não fôr por elle recebida esta tarde; o navio de sua magestade «Enchantress» está em Vigo esperando as suas ordens._ O _ultimatum_ tinha a data de 11 de janeiro. No mesmo dia o sr. Barros Gomes entregava ao ministro inglez a resposta. Não a transcrevemos na integra, dada a sua extensão. Registem-se comtudo os seus pontos essenciaes. Abria pela declaração infantil de que o governo portuguez julgava ter, com a sua nota do dia 8, satisfeito «por inteiro quanto d'elle reclamava o de sua magestade britannica; antecipando-se á segurança d'uma justa reciprocidade, que devia constituir o natural preliminar das suas resoluções, apressara-se a enviar para Moçambique as ordens mais terminantes no sentido de fazer respeitar desde logo, em toda a provincia, o compromisso tomado, no intuito de facilitar a realisação d'um accordo com a Grã-Bretanha, pelo qual o governo portuguez sempre pugnara». A resposta do sr. Barros Gomes fechava assim: _Na presença d'uma ruptura imminente de relações com a Grã-Bretanha e de todas as consequencias que d'ella poderiam talvez derivar-se, o governo de sua magestade resolveu ceder ás exigencias recentemente formuladas e, resalvando por todas as formas os direitos da corôa de Portugal nas regiões africanas de que se trata, protestando bem assim pelo direito que lhe confere o artigo 12.º do Acto Geral de Berlim, de ver resolvido definitivamente o assumpto em litigio por uma mediação ou pela arbitragem, o governo de sua magestade vae expedir para o governador geral de Moçambique as ordens exigidas pela Grã-Bretanha. Aproveito a occasião para renovar a v. ex.ª as seguranças da minha alta consideração._ Resumindo: se a intimação era cathegorica, e a ameaça do governo inglez resumava inilludivelmente o proposito de vexar, de humilhar o pequeno paiz ao qual ella se dirigia, a resposta não podia ser mais subserviente, apesar do fraco esboço de protesto com apoio no direito internacional consignado nas ultimas linhas do documento. Ao pontapé vibrado impiedosamente pela Inglaterra, Portugal offerecia uma curvatura de espinha só propria d'um lacaio... Custa dizel-o sem disfarce, mas é a verdade. A noticia do _ultimatum_ foi divulgada em Lisboa poucas horas depois do sr. Barros Gomes a ter recebido. No dia 12 de manhã, um jornal dos de maior circulação exclamava, em typo graúdo, no logar mais saliente da sua primeira pagina: «O governo inglez, o philantropico e honesto governo inglez, recorreu, emfim, ao argumento que lhe é usual nas discordias com os povos pequenos. Recorreu ao argumento da força! O governo portuguez recebeu uma intimação formal: ou dá promptas satisfações, n'um curto praso, que deveria ter terminado ás 2 horas da manhã de hoje, ou marcha sobre Lisboa a poderosa esquadra que está reunida em Gibraltar, com ordem de bombardear a capital de Portugal! Lisboa, a nossa querida e formosissima Lisboa, bombardeada pelos canhões da Inglaterra! A cidade de onde partiram os descobridores audazes que deram ao mundo--e no mundo mais que a nenhum outro povo, ao povo britannico--a America prodigiosa, e essa Asia, onde a Inglaterra tem o seu grande imperio, e essa Africa, por um ponto insignificante da qual se levanta o presente conflicto--a cidade dos navegadores heroicos e generosos, destruida a tiros de peça pelos couraçados da nação colonial por excellencia! É phantasticamente horrivel! «Que respondeu o governo? Salvou a sua honra, ou salvou a historia d'esta immensa vergonha, e Lisboa d'esta immensa catastrophe? Nada podemos averiguar. O ministerio esteve reunido até alta noite e do que decidiu só hoje, provavelmente, haverá conhecimento. A hora não é de recriminações. Aguardemos com serenidade e com firmeza o que o destino, a imprevidencia dos homens e a rapacidade d'uma nação egoista e desalmada nos preparam n'este momento solemne da nossa historia!» Estava lançado o rebate. O povo, a genuina massa do povo, não tardaria a entrar em scena, manifestando-se por uma fórma até então desconhecida pelos serventuarios da monarchia--explodindo indignação e sincero patriotismo. O partido republicano, firmando-se n'esse impulso da opinião, adquiria novo alento e preparava-se para ulteriores trabalhos de propaganda, mais forte, melhor orientada e, sobretudo, de maior efficacia. CAPITULO V O protesto contra o "ultimatum" echoa de norte a sul do paiz O domingo 12, isto é, o dia immediato ao da recepção do _ultimatum_, consagrou-o a população lisboeta a commentar o acontecimento. Uma parte da imprensa, fazendo o resumo do conflicto diplomatico que desfechara na affronta despedida pela Grã-Bretanha, accrescentava que, emquanto o ministro inglez sr. Petre entregava a intimação formal ao sr. Barros Gomes, este recebia do governador de Cabo Verde um telegramma communicando-lhe que entrara no porto de S. Vicente com carta de prego um cruzador britannico; o nosso consul em Gibraltar avisava-o, por seu turno, de que a esquadra do Canal lá estava concentrada, prompta ao primeiro aviso; o consul em Zanzibar tambem telegraphava participando a sahida para as costas de Moçambique de dez navios de guerra inglezes, acompanhados de um transporte com carvão e mantimentos. Perante esta situação, o governo consultara o conselho de Estado, que reunira sob a presidencia do rei D. Carlos. No conselho tinham votado pela satisfação ás exigencias da Inglaterra os srs. Barjona de Freitas, José Luciano de Castro, conde de S. Lourenço, Barros Gomes e João Chrysostomo. O sr. Antonio de Serpa manifestára-se pela arbitragem e por que só fossem mandadas retirar as forças portuguezas do Chire depois da Inglaterra a acceitar. Á tarde, apesar da excitação popular já ser bem visivel, o rei D. Carlos exhibiu-se em passeio na Avenida da Liberdade e seu irmão o infante D. Affonso percorreu á desfilada varios pontos da cidade, mostrando-se um e outro completamente alheiados do facto que enlutára a nação. Ao começo da noite formaram-se grupos numerosos no Rocio e como do Colyseu da rua da Palma sahisse, em certa altura, um cortejo de patriotas que soltavam calorosos vivas á nação, ao exercito e á imprensa e morras ao governo e á Inglaterra, os grupos addicionaram-se-lhes e uma enorme multidão dirigiu os passos para a Sociedade de Geographia. Ahi, d'uma das varandas, falou o sr. Luciano Cordeiro: --A Inglaterra, trovejou, pode expulsar-nos pela força, mas o direito subsiste! Precisamos protestar contra a pirataria britannica!... Mas, da multidão, elevaram-se outras vozes: --E contra o governo que nos atraiçoou! E contra os Braganças que nos jungiram á Inglaterra!... Depois, a grande massa dos manifestantes subiu á parte alta da cidade a saudar a imprensa, que se collocára abertamente ao lado do povo, verberando a affronta. As redacções do _Seculo_, _Revolução de Setembro_, _Jornal da Noite_, _Jornal do Commercio_, _Debates_, _Correio da Manhã_ e _Gazeta de Portugal_ foram alvo de manifestações de sympathia. Á passagem em frente da redacção do _Dia_, alguns dos populares deram palmas emquanto outros se limitaram a bradar: «Viva Portugal! Abaixo a Inglaterra!». Em frente ao _Correio da Noite_ produziu-se uma manifestação hostil ao governo, manifestação que se repetiu junto do _Reporter_ e que redobrou de violencia em frente das _Novidades_, com morras ao sr. Emygdio Navarro, aos «progressistas traidores» e gritos de: «Abaixo o _chalet_! Viva a Republica!» Na rua Serpa Pinto, a multidão, lembrando-se do nome do official que derrotara os makololos, rompeu em estrepitosas acclamações em sua honra. O enthusiasmo attingiu proporções indescriptiveis. Do terceiro andar d'uma casa habitada por uma modista, falou um academico convidando os collegas a realisarem no dia seguinte um grande cortejo patriotico. Foi delirantemente applaudido. Da rua Serpa Pinto, a massa popular avançou depois sobre o theatro de S. Carlos e irrompeu na sala dando vivas á patria e clamando contra a Inglaterra. Os _habitués_ da nossa Opera,--_a jeunesse dorée_--tranzidos de pavor, não lhe oppuzeram a menor resistencia. Dentro e fora do edificio os manifestantes gritavam: --Hoje não é dia de espectaculo, é dia de luto!... Sahindo de S. Carlos, alguem lembrou que o consulado inglez era na rua das Flores. O rastilho propagou-se. N'um abrir e fechar d'olhos, a casa do consul foi apedrejada, arrancando-se da parede o respectivo escudo. Apedrejaram egualmente a residencia do sr. Barros Gomes. E, só quando a policia interveiu, prendendo 61 dos populares, é que a mole se desfez, mas preparando _in mente_ para o dia seguinte novas e incisivas manifestações de antipathia á Grã-Bretanha e ao governo que promptamente se lhe submettera. Entretanto, esse ministerio pedia a demissão, abalado pelos primeiros symptomas da reacção nacional. Para mais o movimento de protesto não se limitára a Lisboa. Repercutira de norte a sul do paiz, revelando energias civicas que desnorteavam por completo a corôa e os partidos da monarchia. No dia 13 de janeiro, os estudantes da capital effectuaram uma reunião na Escola Polytechnica, reunião a que compareceram os alumnos da Escola Naval, da Escola do Exercito e do Collegio Militar. Presidiu o sr. Hygino de Sousa e falaram varios oradores, todos elles estygmatisando com violencia a affronta ingleza e aconselhando a _boycottage_ aos productos da Grã-Bretanha. Um professor do lyceu de Lisboa, sr. Carlos de Mello, tentou, n'um discurso habil, defender o sr. Barros Gomes, mas a assembléa recebeu pessimamente as suas palavras e foi resolvido acto continuo que a academia se dirigisse á camara dos pares a pedir ao parlamento declarações terminantes que serenassem o espirito publico. Assim se fez e um cortejo de mais de quinze mil pessoas, sahindo da Escola Polytechnica, encaminhou-se para S. Bento. Á entrada do Largo das Côrtes, do lado do mercado, um cordão de policias pretendeu impedir a passagem aos manifestantes, mas o cortejo rompeu-o e tudo passou. A guarda do palacio chamou ás armas e calou bayonetas. Em frente do edificio, destacou-se do cortejo uma commissão que foi falar ao presidente da camara. A policia dentro e fora do edificio era em tão grande quantidade que Fialho d'Almeida soltou esta _boutade_: --Os seios da representação nacional trazem hoje espartilho de guarda civil... Os aspirantes de marinha, receiando que a massa de povo aglomerada no largo fosse maltratada pela força militar, formaram deante d'esta, offerecendo-lhe como que uma barreira, e a sua attitude provocou uma ovação extraordinaria, frenetica de enthusiasmo. D'ahi a momentos, a commissão que se avistara com o presidente da camara voltou para junto dos manifestantes, e communicou-lhes que o parlamento, tendo tomado em consideração a _démarche_ patriotica da academia, occupar-se-hia, na sessão seguinte, dos assumptos que interessavam a defeza e a integridade do paiz. O cortejo andou depois a percorrer varias ruas da cidade, pronunciando-se hostilmente em frente dos jornaes caracterisadamente governamentaes e á noite repetiram-se as scenas da vespera, queimando-se bandeiras inglezas, victoriando-se em delirio os nomes de Serpa Pinto, Latino Coelho e outros democratas então em evidencia. No dia 14, pelas seis e meia da tarde, sahiu do Café Aurea um grupo de estudantes soltando vivas á patria, á liberdade, á independencia nacional, ao exercito e á marinha. A esse grupo juntou-se na rua do Ouro e praça de D. Pedro muito povo e á porta do Café Martinho o antigo deputado progressista sr. dr. Eduardo de Abreu propoz à multidão que se envolvesse em crepes a estatua de Camões. Dito e feito. Os manifestantes enfiaram pela rua Nova do Carmo e o Chiado, explodindo sempre o maior enthusiasmo, aos degraus do monumento subiram alguns individuos, arranjou-se uma escada, passou-se o crepe em largas dobras rodeando a estatua e rematando sobre a corôa de ferro ali deposta pelos estudantes em 1880 e, no meio do mais respeitoso silencio, leu-se ao povo este cartaz, que foi depois affixado: [Ilustração: Na rua de Santo Antonio] _Estes crepes, que envolvem a alma da patria, são entregues á guarda do povo, do exercito e da alma nacional. Quem os arrancar ou mandar arrancar é o ultimo dos covardes vendido á Inglaterra._ Uma prolongada e fremente salva de palmas acolheu a leitura d'este protesto, simples e curto, mas d'uma eloquencia esmagadora e o cortejo patriotico voltou, como nos dias anteriores, a percorrer as ruas de Lisboa, gritando febrilmente o seu desejo de liberdade e a revolta contra a ignominia com que a nação fôra aviltada. O ministerio progressista já tinha sido substituido por um outro de feição regeneradora, sob a presidencia do sr. Antonio de Serpa e em que figuravam pela primeira vez o sr. João Arroyo na pasta da marinha, João Franco na da fazenda e Vasco Guedes na da guerra. Um dos actos do novo governo, mal subiu ao poder, foi o de procurar reprimir todas as manifestações patrioticas inspiradas no _ultimatum_, mandando espadeirar dezenas de populares que na noite de 14 de janeiro desciam o Chiado desferindo as suas exclamações de odio á poderosa Albion. O inicio, como se vê, não podia ser mais promettedor de brutalidade e arbitrio. CAPITULO VI Serpa Pinto, heroe africano, perde o prestigio D'essa agitação imponente, d'essa inesperada revelação de civismo em face da humilhação inflingida ao paiz, sahira, porém, uma ideia, que, encontrando rapidamente o maior apoio em todas as classes manifestantes, em breve se traduziu n'uma aspiração nacional. Referimo-nos á subscripção da iniciativa dos alumnos da Escola Naval destinada á compra de meios de defeza maritima. De toda a parte acudiram donativos, e dentro de pouco tempo a commissão incumbida de os recolher e que tinha como secretario o sr. dr. Eduardo de Abreu, desligado do partido progressista e filiado, com Guerra Junqueiro, no partido republicano, houve de fazer as suas reuniões no salão do theatro D. Maria e de ali centralisar o trabalho que lhe estava affecto. Ao mesmo passo organisava-se a Liga Patriotica do Norte collocada sob a egide de Anthero de Quental; Alfredo Keil, imitando Rouget de Lysle, compunha o hymno a _Portugueza_, para o qual o sr. Lopes de Mendonça escrevia os versos e esse canto vulgarisava-se tanto ou mais que a _Marselheza_; faziam-se diariamente conferencias publicas de esclarecimento e de protesto; os nomes dos mais illustres africanistas andavam em todas as boccas aureolados de ruidosa celebridade. Houve mesmo uma epoca em que o de Serpa Pinto se ligou á narrativa d'um incidente sul-africano com proporções de feito heroico. Foi quando a imprensa deu publicidade á carta que elle dirigira ao agente britannico Buchanan que o intimara a não avançar pelas terras dos makololos, collocados sob a protecção do governo inglez. N'essa carta dizia Serpa Pinto: «Se na verdade os makololos estão debaixo da protecção do governo inglez e por conseguinte lhe obedecem, estou certo de que a minha passagem será facil e segura, porque o governo inglez, representado por v. ex.ª, só me póde dar facilidades, sendo eu d'um paiz que sempre teve abertas, franca e lealmente, as portas das suas colonias ás expedições scientificas inglezas, prestando-lhes todo o auxilio e amparo; mas, em todo o caso, se é verdade o que v. ex.ª, me diz, peço-lhe que convença os makololos de que a minha expedição é pacifica e scientifica, que lhes diga que pertenço a uma nação amiga da Inglaterra e que, portanto, não perturbem a minha marcha, perturbação a que v. ex.ª, n'esse caso, não pode ser considerado extranho; e assegurando-lhe que não posso consentir que um chefe negro queira disputar-me a passagem, ou fazer-me o mais insignificante insulto, asseguro, além d'isso, a v. ex.ª, que, se na minha entrada no territorio makololo eu fôr atacado, tomarei immediatamente a offensiva e acabarei de uma vez com essa causa constante de perturbação n'esta parte do Chire.» E n'outro paragrapho: «Emquanto á intimação que v. ex.ª me faz de não continuar no meu caminho, peço licença para lembrar a v. ex.ª que eu só recebo ordens do governo de sua magestade fidelissima, de quem as recebo directamente e, como não recebi ordem em contrario, continuarei, tenaz e pacificamente, a minha jornada, arvorando uma bandeira de paz e só de paz, mas prompto a repellir com energia quaesquer aggressões sem motivo que me possam ser feitas». Mas Serpa Pinto, longe de conservar esse favor popular, tornando-se o proeminente defensor das reivindicações da grande massa, optou, em breve, pelo serviço incondicional á corôa e essa attitude divorciou-o completamente do nucleo democratico, que o encarara durante algum tempo como uma das esperanças mais promettedoras. E, divorciado, perdeu o prestigio. Quando morreu, dez annos mais tarde, estava em absoluto esquecido. Continuemos, porém, a contar os episodios que caracterisaram essa phase de agitação nacional, consequencia do _ultimatum_. O sentimento da dignidade collectiva, despertando com extraordinaria vehemencia, produziu em todas as classes, até mesmo na aristocratica, uma reacção contra a Grã-Bretanha. O duque de Palmella, por exemplo, tendo renunciado ás condecorações inglezas que possuia, collocou-se á frente da commissão da subscripção patriotica; dos partidos monarchicos desertaram alguns homens dos mais eminentes; surgiu, emfim, uma nova imprensa, reflectindo, como diz João Chagas «não já os interesses especiaes do partido republicano, mas as coleras e os enthusiasmos do patriotismo, identificado com a republica para a missão commum da desaffronta». Fundou-se a _Patria_, jornal de estudantes de Lisboa, e, logo de entrada, essa folha, feita um pouco _à la diable_, investiu denodadamente contra o velho regimen, apaixonando em alto grau a opinião. N'ella se revelaram, entre outros politicos militantes, Brito Camacho e Hygino de Sousa. E a sua acção de propaganda foi tão intensa que a ella se deveu, sem duvida, uma grande parte da tensão revolucionaria mantida atravez do anno de 1890 e começo do anno seguinte. Aqui tem cabimento referir que o directorio do partido republicano, julgando azado o momento de sanccionar com a sua chancella a recrudescencia do partido democratico, publicou n'essa occasião um manifesto em que propunha a congregação dos esforços honestos no sentido de se rejuvenescer Portugal não só confiando-o ao novo regimen como protegendo-o internacionalmente por meio d'uma federação latina. Esse manifesto concluia assim: «Só a republica pode organisar o exercito e a marinha, fortificar Lisboa, administrar as colonias e defender a nação affrontada. A republica, no meio d'estes desastres publicos, está na consciencia de todos como o recurso definitivo da nossa estabilidade nacional. Da consciencia para os factos vae um momento. E esse momento approxima-se.» Por outras palavras: o directorio comprehendia, ou convencia-se, n'essa altura, de que a propaganda bem dirigida resultaria fatalmente na liquidação, dentro de curto praso, das instituições que envergonhavam o paiz. E se o trabalho no ambiente rubro dos centros politicos denunciava então uma actividade excepcional, fóra, na rua, auxiliavam-no, ainda que d'outro modo, as manifestações da grande massa, que não affrouxava em protestar energicamente contra o _ultimatum_ e a cobardia da familia brigantina. Dois dias a fio, um cortejo composto exclusivamente de marinheiros da armada appareceu n'alguns pontos de Lisboa, saudando enthusiasticamente a bandeira da patria e dando vivas á independencia nacional. O governo atemorisou-se com o facto e ameaçou os manifestantes de os encarcerar durante trinta dias. Ao mesmo tempo, a policia recebeu ordem de empregar maior violencia na dispersão dos grupos patrioticos. Uma coisa e outra, porém, não impediram que a onda de indignação se avolumasse e que frequentemente se produzissem incidentes demonstrando que o divorcio entre a nação e a dynastia se accentuava cada vez mais. N'um dos ultimos dias de janeiro, o Gremio Henriques Nogueira, tendo dirigido caloroso convite ao povo de Lisboa, organisou uma manifestação imponente que, em marcha correcta e digna pelas ruas da cidade, se dirigiu ás legações de França e Hespanha a agradecer á opinião dos dois paizes, a sympathia e a solidariedade moral dispensadas nas horas lutuosas da affronta ingleza. O gabinete regenerador, entretanto--muito embora todos os grupos politicos lhe tivessem offerecido apoio incondicional no respeitante á questão anglo-lusa--fazia dissolver o parlamento, collocando-se em verdadeira dictadura. O presidente do conselho, sr. Serpa Pimentel, e o ministro dos estrangeiros, o sr. Hintze Ribeiro, preparavam-se assim para negociar com a chancellaria britannica o accordo final, sanccionando a expoliação contida no _ultimatum_. Em 11 de fevereiro, repetiram-se na capital, e com maior intensidade, as scenas de agitação popular que haviam caracterisado os primeiros dias do mez anterior. Motivou-as a prohibição d'um comicio no colyseu da rua da Palma, em que se deveria «accordar nos meios de se enviar uma mensagem de congratulação e agradecimento ao povo francez e hespanhol e de se apreciar o pensamento e a opportunidade da liga portugueza anti-britannica como base dos trabalhos da federação dos povos latinos». Pouco antes, como corressem boatos de que o governo projectava dissolver a camara municipal de Lisboa, o presidente d'essa corporação, o sr. Fernando Palha, apressara-se a inquirir do chefe do governo os motivos de tão arbitraria resolução, tomando ao mesmo passo varias medidas tendentes a resistir-lhe caso ella fosse levada á pratica. O sr. Serpa Pimentel, apesar do decreto de dissolução já estar lavrado, receiou publical-o e respondeu ao sr. Fernando Palha que os boatos eram insubsistentes, calculando que, recuando n'essa altura da situação, poderia conjurar uma nova explosão de sentimentos patrioticos. No dia 11, á tarde, quando o povo se encaminhava para o colyseu da rua da Palma a assistir ao comicio, verificou-se que o governo não só decidira obstar á sua realisação como á d'um cortejo organisado pelo Gremio Henriques Nogueira, que se propunha, n'esse mesmo dia, collocar uma corôa no monumento a Camões. A policia e a municipal que estacionavam nas immediações do colyseu tinham modos provocadores. O povo, porém, conservou-se tranquillo e só ás 3 horas, quando se convenceu em absoluto de que a ordem do governo era irrevogavel, é que formou um cortejo, acompanhando na retirada do local os oradores que deviam falar no comicio: Jacintho Nunes, Manuel de Arriaga, Consiglieri Pedroso e outros. Chegado esse cortejo ao Rocio, Manuel de Arriaga, no intuito de fazer dispersar a multidão, subiu a um banco e dando um _viva á patria_, disse: --Povo: o governo sahiu da lei prohibindo a nossa reunião. Conservemo-nos dentro d'ella, protestando contra os que a violaram. O sr. Jacintho Nunes tambem proferiu algumas palavras no mesmo sentido. O povo, enthusiasmado, applaudiu os dois oradores. Mas não foi preciso mais para a policia iniciar as violencias e as prisões. As correrias dos guardas lançaram no recinto largos minutos de panico. Chamou-se ali, como reforço, um esquadrão de cavallaria. O povo recebeu-o com demonstrações de sympathia e os soldados desfilaram socegadamente, acompanhados dos vivas da multidão. Os primeiros presos foram Manuel de Arriaga e Jacintho Nunes. Depois a leva, comprehendendo uns 130 individuos, seguiu para o governo civil, d'onde, no dia immediato, foi mandada para bordo do _India_ e do _Vasco da Gama_. Assim que o facto constou na cidade, o commercio fechou meia porta e quasi todas as associações realisaram sessões de protesto. Reappareceram os incidentes tumultuosos, a população voltou a agitar-se, os jornaes democratas abriram subscripções em favor dos presos e, ás ameaças de novas e maiores violencias, o elemento popular respondeu approximando-se mais e mais dos vultos então em evidencia no partido republicano. A _Patria_, diario visado especialmente pelos serventuarios do regimen, escrevia a poucas horas de perpetrado o arbitrio governamental: «Consta-nos que da parte do governo ha todo o empenho em damnificar o nosso jornal e que se tomam providencias tendentes a supprimir a _Patria_ e bem assim prender os seus redactores. O publico fica de sobreaviso, na certeza de que todos os dias sahirá o nosso jornal com o nome que tem ou com qualquer outro, se lhe fôr inhibido usar o glorioso nome de _Patria_ que o encima. Não é com ameaças, levadas ou não a effeito, nem é com prisões ou detenções a bordo do _Africa_ que nos farão desistir da tarefa que nos impuzemos, porque, uns presos, outros virão, e quando esses forem presos outros virão ainda e a _Patria_ apparecerá implacavelmente e o governo d'este paiz ha de aprender que não é com vilezas e processos de mão baixa que se combatem sentimentos grandes e generosos, que só anceiam pelo bem estar do seu paiz.» [Ilustração: João Chagas (1891)] Mas os serventuarios do regimen não descançaram na tarefa de precavel-o contra o progresso da democracia, tentando por todos os modos estrangular os clamores do povo. Em 14 de fevereiro dissolveram a Associação Academica de Lisboa, sob o pretexto de que ella, contrariando os fins indicados nos seus estatutos, se «entregava a aventuras politicas que tinham perturbado a ordem publica.» Ainda mais: decidiram-se finalmente a publicar o decreto dissolvendo o primeiro municipio do paiz, apprehenderam alguns jornaes da opposição, entraram em conflicto com a commissão executiva da Subscripção Nacional, reorganisaram a guarda municipal, gratificaram a policia e, por uma série de medidas dictatoriaes, restringiram a liberdade de pensamento e o direito de reunião. Entretanto, caminhava-se a passos agigantados para a conclusão do tratado anglo-portuguez, o famoso tratado que devia, por assim dizer, ratificar o _ultimatum_ de 11 de janeiro e a perda subsequente do que Portugal disputava á Grã-Bretanha. CAPITULO VII O partido republicano nasce da dispersão do reformista Cabe agora dar aos leitores um rapido esboço das phases por que passou o partido republicano desde 1880 até á eclosão da revolta do Porto. Esse partido nasceu da dissolução do reformista, apoz o movimento de Cadiz que tambem animou o mesmo ideal em Hespanha. Do partido reformista sahiram Latino Coelho, Elias Garcia, Bernardino Pinheiro e Jacintho Nunes que, acompanhados de Oliveira Marreca e os generaes Gilberto Rolla e Sousa Brandão, fundaram o jornal _Democracia Portugueza_ á cabeça do qual foi logo inscripto o primeiro programma partidario accentuadamente democratico. Esse programma comprehendia: _Egualdade civil e politica. Governo e taxação do povo pelo povo. Suffragio universal e representação das minorias. Abolição do juramento politico; de privilegios pessoaes; dos direitos de consumo para o Estado; do recrutamento. Serviço pessoal; exercito reduzido á escola e quadro; milicia nacional. Liberdade de consciencia; egualdade de cultos; casamento civil; registo civil; liberdade de imprensa e de ensino; julgamento pelo jury; liberdade pessoal; inviolabilidade do domicilio; liberdade de associação; de reunião; de representação, excepto para a força armada collectivamente. Poder legislativo de eleição; executivo delegado d'este e que dirige os negocios geraes do Estado. Descentralisação administrativa e autonomia das provincias ultramarinas. Ensino obrigatorio. Economia na despeza publica. Direito de resistencia aos actos da auctoridade, offensivos das leis. Justiça democratica retribuida pelo Estado, revertendo para este os emolumentos; jurados por eleição; juizes collectivos; ampliação da competencia dos arbitros. Harmonia do codigo penal e do processo com a philosophia do direito e o modo de ser da sociedade portugueza._ O programma foi obra, principalmente, de Latino Coelho e Elias Garcia--este dirigindo a _Democracia Portugueza_ emquanto o jornal arrastou a sua vida precaria. Os restantes redactores eram Osorio de Vasconcellos, Teixeira Simões, Gomes da Silva, Ferreira Mendes, Caetano Pinto e Feio Terenas. De camaradagem com estes nomes appareciam os de Manuel de Arriaga, Nunes da Matta, Sousa Larcher, Homem Christo, Magalhães Lima, Alves da Veiga, José Sampaio (Bruno), Emygdio d'Oliveira, etc., etc. Hintze Ribeiro tambem gosou durante algum tempo a fama de democrata e pode lêr-se na sua biographia que, quando estudante em Coimbra, escreveu artigos inflammados para um jornal de Ponta Delgada. Mas que admira, se da Universidade é que surdiram em todas as epocas os elementos mais avançados, os propagandistas mais devotados, os revolucionarios mais atrevidos... Quantos dos antigos ministros da monarchia portugueza não foram, afinal, durante a sua passagem por Coimbra, considerados as futuras escoras do partido republicano!... Quantos! Até 1880, esse partido apenas exerceu no paiz uma acção de simples sentinella, quasi perdida na immensidade do deserto. Ainda não havia despertado o sentimento civico entre os portuguezes como mais tarde despertou, precipitando-os em reivindicações revolucionarias e a nação mal dava pelos clamores do nucleo nascente que todo se esbofava na imprensa e nas palestras da rua a demonstrar que o reinado de D. Luiz cavava alguns metros mais no abysmo da nossa ruina. Em Lisboa, o partido republicano dispunha d'uma modesta influencia eleitoral, que, no emtanto, lhe permittia, uma vez por outra, travar lucta com os monarchicos. No Porto, toda a propaganda democratica se reduzia a meia duzia de homens--de alto valor, é certo, mas de fraco exito nas suas tentativas para arrancar a capital do Norte á tradicção monarchica. Na provincia, tudo se subordinava ao caciquismo e os republicanos ali eram encarados como fautores da anarchia e da desordem. Finalmente, o proprio nucleo democratico de que Lisboa se envaidecia antes de 1880, não apresentava a resistencia e a solidez necessarias á conquista do poder politico. A celebração do tri-centenario de Camões, realisada n'quelle anno--sacudindo o paiz inteiro n'uma rajada de patriotismo--deu corpo e energia ao ideal republicano e transformou o nucleo existente n'uma força respeitavel, digna de ser encarada pela monarchia como um inimigo serio. Melhor do que nós o poderiamos fazer, o dr. Magalhães Lima vae dizer aos nossos leitores da influencia decisiva d'essa apotheose na democracia portugueza: «O tri-centenario de Camões foi o primeiro capitulo da gloriosa jornada que teve o seu desfecho em 5 de outubro de 1910. Nunca se viu cousa semelhante em grandeza e sinceridade. O povo, o bom povo portuguez, compenetrado da elevação da festa, e ainda mais de que a homenagem ao immortal cantor das nossas glorias correspondia ao anceio d'uma revivescencia futura, acorreu a ella cheio de enthusiasmo, ardoroso, expandindo a maior alegria. A celebração do tri-centenario radicou no espirito da nacionalidade a ideia carinhosa de que no auctor dos _Lusiadas_ se symbolisavam as esperanças de melhores dias e talvez do regresso a um passado opulento, viril, de inapagaveis tradicções. «Mas a grandiosa homenagem não teve só esse condão. Despertou egualmente a energia democratica, congregou em volta das figuras do partido republicano, então em evidencia, os elementos dispersos, consolidou-os, deu corpo á opinião publica, foi o ponto de partida da marcha politica que, em successivas _étapes_, conseguiu, entre nós, pôr um ponto final no regimen monarchico. Devemol-a essencialmente a Theophilo Braga, que durante tres annos consecutivos fez uma propaganda intensissima para a sua realisação. A commissão executiva da festa compunham-na elle, Rodrigues da Costa, que representava ao tempo o jornal mais antigo, a _Revolução de Setembro_; Pinheiro Chagas, Eduardo Coelho, Jayme Batalha Reis, Ramalho Ortigão, Luciano Cordeiro, eu e o visconde de Juromenha, mais tarde substituido pelo Rodrigo Pequito. Cada um de nós tomou a seu cargo para a preparação da solemnidade o realisar um certo numero de conferencias em que, divulgando a obra do epico, se orientava ao mesmo tempo o espirito publico n'um ideal genuinamente patriotico. «E a influencia exercida pela nossa acção foi tal que, apesar da hostilidade que o governo progressista da epoca nos moveu, os _Lusiadas_ entraram em todos os lares e Camões, alcançando a maior consagração, passou a ser como que o orago da massa popular. As edições da monumental epopeia vulgarisaram-se por uma forma extraordinaria. Fizeram-se varias, desde a mais modesta, ao alcance de todas as bolsas, até á de luxo, regalo de privilegiados. Os nossos manifestos eram acolhidos com verdadeira soffreguidão e conseguiam maior exito do que os decretos do governo. Chamava-se ironicamente á commissão do tri-centenario o _comité_ de Salvação Publica, mas essa ironia dava bem a medida da nossa força e o que é mais: da impetuosidade da corrente democratica que caracterisou sempre e profundamente a homenagem ao grande poeta. «A celebração do tri-centenario fez expandir a ideia republicana que muitos espiritos acalentavam em silencio. Em 1880 havia republicanos, mas não havia conjugação de forças democraticas. O tri-centenario promoveu-a. Antes de se prestar a homenagem ao poeta, já se palpava a existencia de um ideal de liberdade e de justiça, o esboço d'uma reacção decidida contra o regimen monarchico. Recordo-me, perfeitamente, que no antigo _Commercio de Portugal_, ensaiando a verificação d'essa corrente avassaladora, obtive um resultado bastante lisongeiro. Nos caixeiros, mais talvez do que nas outras classes, encontrei elementos valiosos de propaganda--parte dos quaes fundou e installou o Atheneu e mezes depois da celebração do tri-centenario me auxiliou na fundação do _Seculo_. «Glorificando o epico immortal, revestindo de excepcional imponencia esse cortejo apotheotico do dia 10 de junho de 1880, Lisboa e, com ella, as provincias, soffreram um abalo salutar, enveredando decisivamente no caminho da destruição da tyrannia brigantina. A monarchia comprehendeu-o e quiz impedil-o. O rei D. Luiz pretendeu encorporar-se no cortejo e o governo não lh'o consentiu. Em summa, a influencia desprendida da festa foi enormissima e fez-se sentir de modo flagrante no decorrer dos annos e em diversos incidentes da vida interna da nacionalidade». Em 1881, quando a imprensa republicana promoveu uma campanha justa e violenta contra o celebre tratado de Lourenço Marques, a opinião vibrou como nunca até ali vibrara. Alguns officiaes do exercito chegaram a offerecer-se para, na impossibilidade do partido republicano se lançar abertamente n'uma revolução, organisarem guerrilhas e d'esse modo combaterem a monarchia. Crearam-se centros politicos, as associações de classe tomaram um incremento irreprimivel e o povo passou a interessar-se a valer pelas attitudes dos governantes. Apoz a celebração do tri-centenario, o dr. Magalhães Lima propoz-se deputado por Lisboa, ou melhor, pelo circulo 98, que comprehendia S. Paulo, Santos, Lapa e Alcantara. A lucta foi renhida. Theophilo Braga propoz-se depois por Alfama, Manuel de Arriaga pela Baixa e Elias Garcia pelo circulo 95 (Anjos). Durante annos foram estes os _candidatos chronicos_ dos republicanos da capital. Travaram-se batalhas eleitoraes que ficaram memoraveis. D'uma das vezes, disputando Magalhães Lima um circulo a Hintze Ribeiro, Fontes, ao tempo presidente do conselho, viu-se forçado a ir presidir a um comicio para _poder salvar a honra do convento_... Comtudo, esse impulso progressivo experimentado em 1880 pelo ideal democratico, soffreu um decrescimento apoz 1881, isto é, logo que a questão do tratado de Lourenço Marques se apagou do espirito publico. E essa decadencia, chamemos-lhe assim, chegou a ser tão accentuada que o incomparavel jornalista Emygdio Navarro não duvidou um bello dia fazer um appello ao estado maior do partido republicano convidando-o «a ir religiosamente enterrar uma bandeira que parecia condemnada a não se desfraldar jámais». O director das _Novidades_ supplicava a todos os democratas que fossem uteis á patria, levando a sua dedicação, o seu trabalho, a sua intelligencia aos arraiaes da monarchia, que os receberia de braços abertos. Deram-se mesmo algumas deserções. O jornalista portuense Emygdio de Oliveira cessou a publicação do diario _Folha Nova_ e renunciou á politica republicana. Outros dos seus correlligionarios acolheram-se a um novo gremio politico--a _Esquerda Dynastica_--fundado e dirigido pelo sr. Barjona de Freitas, e durante mezes, dada a crise de desorganisação que o minava, suppoz-se até que o partido mais avançado se fusionára n'aquella facção conservadora. CAPITULO VIII João Chagas abandona enojado a imprensa monarchica Mas sobreveiu o _ultimatum_ e esse conflicto diplomatico exerceu egualmente consideravel influencia nas condições politicas da sociedade portugueza. O patriotismo, offendido, encorporou-se nas fileiras democraticas e engrossou-as. Brotaram da indignação do momento varios jornaes que foram outros tantos pamphletos revolucionarios: a _Patria_, de Lisboa, o _Rebate_, do Porto, fundado pelo sr. Eduardo de Sousa, o _Ultimatum_, de Coimbra, fundado pelo sr. Antonio José de Almeida. Com essa erupção jornalistica coincidiu a formação, na Universidade, d'uma geração de propagadores do ideal, que apoz os dias luctuosos de 1890 publicou um manifesto vigoroso, aggredindo directamente o regimen monarchico e reclamando a bem da patria uma mudança de instituições. A policia não deixou circular esse documento, mas dois diarios reproduziram-no immediatamente nas suas columnas. Assignavam o manifesto, entre outros, estes estudantes: [Ilustração: A guarda municipal entrincheirada na egreja de Santo Ildefonso] _Fernando Brederode, João de Menezes, Agostinho de Campos, Cunha e Costa, Couceiro da Costa, Antonio José de Almeida, Pires de Carvalho, Lomelino de Freitas, Antonio Cabral, Mario Monteiro, Augusto Barreto, Silvestre Falcão, João de Freitas, Paulo Falcão, Francisco Valle, Julio Paulo de Freitas, Malva do Valle, Evaristo Cutileiro, Luiz Soares de Sousa Henriques, Affonso Costa, Manuel Galvão, Lucio Paes_ _Abranches, Julio de Mello e Mattos, Fausto Guedes, Bessa de Carvalho, Alberto de Oliveira, Bernardo Leite, Carneiro de Moura, Antão de Carvalho, Arthur Leitão e Virgilio Poyares._ É tempo de nos referirmos á entrada de João Chagas na scena politica, facto que se produziu em 20 de fevereiro de 1890. O eminente publicista, que até então trabalhara na imprensa monarchica, revoltado ou, melhor, enojado com o espectaculo que presenceara durante os dias agitados que se seguiram ao _ultimatum_, dirigiu n'aquella data esta carta ao _Correio da Noite_: «_Meu caro amigo_:--Não me convindo continuar a collaborar em jornaes da imprensa monarchica, nos quaes, aliás, tenho tido apenas collaboração litteraria, peço a v... me julgue desde hoje desligado da redacção d'essa folha. Aproveito o ensejo para lhe agradecer as provas de consideração que constantemente me tem dispensado.--Seu amigo e collega: _João Chagas_.» Egual declaração foi publicada no _Tempo_ e na _Provincia_ e no dia 21 um jornal republicano da manhã accrescentava, fazendo allusão ao facto: «desde já affirmamos que João Chagas traz ao nosso partido toda a sua intelligencia, toda a sua dedicação e todo o seu ulterior trabalho; é uma adhesão valiosissima, que mostra bem o que ha de diamantino no caracter do nosso amigo, que não hesita sacrificar interesses egoistas nas aras sacrosantas da patria, cuja remodelação é incompativel com a subsistencia do affrontoso regimen que nos vae explorando». Na _Historia da Revolta do Porto_, que escreveu de collaboração com o ex-tenente Coelho, João Chagas descreve assim os seus primeiros passos na propaganda do ideal republicano: «Em fevereiro de 1890, como um dos auctores d'esta obra, ao tempo joven e fazendo um jornalismo sem paixão e sem ambições, se decidisse a encetar o jornalismo politico e a adoptar a causa que era então de toda a gente, reuniu-se a um, egualmente joven--tudo foi juventude n'esse movimento!--alumno do curso de engenharia civil, Chrispiniano Fonseca, que mais tarde veiu a morrer no Brazil, de febre amarella, sob a republica de Floriano Peixoto; e tendo os dois concertado «que era preciso fazer alguma coisa», como se dizia por essa grande epocha, começaram por ir espionar a provincia do Algarve, onde certo dia se affirmou com alarme que rebentara uma sedição militar e, havendo reconhecido que tal sedição estava longe de ser um facto, voltaram as vistas para outro lado e decidiram, apoz diversas machinações, que o que havia a fazer era _propaganda_ muito activa e muito eloquente. «D'este accordo partiu a ideia de fundar um jornal republicano, já se vê, que tomasse a dianteira a todos os que já existiam e que, para a nossa impaciencia, pareciam excessivamente deficientes. «Alvitrou-se que se lançasse o jornal a publico o mais rapidamente possivel, dentro de quinze dias, dentro de um mez--e quando se discutiam as bases d'essa publicação imprevista e fulminante, lembrámos que um jornal, tal como o sonhavamos, desencadeando uma tormenta de paixões populares, só poderia nascer e cobrir-se de gloria no Porto, que até então não dera grandes signaes de vida civica, mas que se nos affigurava, pela sua tradicção e pelas nossas superstições, o unico centro de população portugueza susceptivel de soltar o primeiro de liberdade de que nos propunhamos ser os interpretes. «Lisboa, inçada de uma população heterogenea, disseminada n'uma grande área e dividida pelas opiniões mais diversas, foi posta de parte, como pouco propicia para o exito do nosso emprehendimento, e adoptou-se o Porto com enthusiasmo e esperança. Estes dois homens não dispunham, porém, de uma moeda de cobre que lhes permittisse acalentar tão vasto sonho, e, por outro lado, não tinham um nome que os auctorisasse a lançar-se nas luctas politicas, em meio da confiança dos que iam ser seus amigos e cumplices.» Apesar d'isso, João Chagas poz-se a caminho da capital do Norte, alcançou o concurso do velho democrata José Sampaio (Bruno) e em breve formou-se uma modesta empreza com o capital sufficiente para a fundação da ambicionada gazeta. O primeiro numero da _Republica_--tal era o titulo do novo jornal--sahiu a 18 de abril de 1890 e, embora esse e os numeros seguintes traduzissem ás claras o radicalismo das aspirações do seu director, a verdade é que o diario logrou pouca vida e pouco tempo depois suspendia a publicação. Em setembro do mesmo anno, João Chagas, recebendo o auxilio efficaz de tres democratas, Dyonisio dos Santos Silva, Joaquim Leitão e Alvarim Pimenta, voltou a insistir na creação d'uma folha demolidora e fez sahir a _Republica Portugueza_, que acolheu na sua redacção toda uma pleiade de velhos e jovens combatentes, animados por egual do desejo de derrubar o regimen. O artigo de apresentação inserto no primeiro numero dizia assim: «A obra d'este jornal será inteiramente e desassombradamente revolucionaria. Tanto vale dizer que será um jornal de combate e dirá tudo o que fôr mister: «a despeito da vontade pessoal do rei; «a despeito da tyrannia dos governos; «a despeito do odio e da antipathia dos homens e dos partidos que exploram o paiz.» No primeiro numero da _Republica Portugueza_ tambem foram estampados os retratos do rei e de dois dos ministros, precedidos d'estas palavras: _Pelourinho: Os tres de Inglaterra_. Nos outros logares do jornal explodia a incitação á revolta, usando-se d'uma linguagem que nunca até ali fôra empregada com tanta franqueza. D'aqui resultou o crear-se, pelo estimulo do exemplo, uma atmosphera de decisiva batalha, que nem os acontecimentos nem os homens haviam ainda preparado. Affirma-o João Chagas: «A revolta de 31 de janeiro pode attribuir-se em grande parte ás instigações directas d'esse jornal, o qual, por seu turno, se veiu a publico, não foi senão em virtude de circumstancias que não se produziriam sem o conflicto diplomatico anglo-portuguez. Por isso reputamos esse conflicto a causa unica do movimento revolucionario do Porto, que, sem elle, nem encontraria meio idoneo em que se consumasse, nem agentes que o provocassem. Dar-se-hia outro, mais tarde, e em outras circumstancias. Esse não». Na _Republica Portugueza_ collaboraram José Sampaio (Bruno), Julio de Mattos, Basilio Telles, Latino Coelho, Elias Garcia, Gomes Leal, Heliodoro Salgado e, o que é mais interessante fixar, varios officiaes do exercito--um dos quaes, em serviço na guarda municipal, teve um dia ensejo de ver querellada a sua prosa. A par d'essa collaboração, logo que a _Republica Portugueza_ viu a luz da publicidade, arremettendo violentamente contra as instituições, appareceram um sem numero de communicações «sob a forma de cartas e manifestos, de soldados, cabos e sargentos da guarnição portuense, a principio, depois de militares das guarnições da provincia, por ultimo de officiaes de todas as graduações já do Porto já de Lisboa». E os que as enviavam ao jornal faziam-no de modo tão explicito que, em certa altura, houve necessidade de destruir uma boa parte da papelada, receiando-se que ella cahisse em poder dos defensores do regimen e collocasse os signatarios em situação compromettida. Como amostra da linguagem empregada n'esses documentos, damos a seguir o trecho d'uma carta enviada n'essa occasião á _Republica Portugueza_ por um grupo de officiaes transmontanos: _Camaradas: A mãe-patria agonisa. É preciso que seus filhos a salvem sem demora, porque a sua salvação é do nosso dever. Salvemos a patria proclamando a Republica. Camaradas: Não ha tempo a perder._ D'aqui se deprehende facilmente que os acontecimentos de janeiro de 1890 não tinham apenas perturbado a massa generosa do povo, mas egualmente o exercito, que se sentira molestado nos seus brios. Como toda a nação, o exercito reclamava o desaggravo. E esse estado de animos não se revelava simplesmente nas communicações dirigidas á _Republica Portugueza_, mas tambem em dois orgãos da classe militar, o _Sargento_ e a _Vedeta_, que deram á imprensa democratica um forte contingente para a sua propaganda subversiva. O _Sargento_, por exemplo, exclamava com uma audacia que ia a todo o genero de infracções disciplinares: «O exercito aguarda o plebiscito da nação, sem as restricções, as formulas e os sophismas constitucionaes; o plebiscito dos cidadãos livres e honrados na urna livre e honrada; o plebiscito de protesto e da representação nos comicios; ou o plebiscito da revolução nas barricadas. «O povo é o poder legislativo; o exercito é o poder executivo. O povo é a vontade; o exercito é a acção. O povo é a soberania; o exercito é a força. O exercito não é uma guarda de suissos; o exercito não é uma casta. O exercito é a nação armada e é a democracia armada». A linguagem da _Vedeta_ não era menos arrojada e expressiva. A irritação na classe militar augmentava de dia para dia, e porque o governo de Hintze Ribeiro, sempre cuidadoso de rodear o throno do maior numero de garantias, entrara a valer no caminho das repressões, transferindo officiaes e mandando para o serviço do cordão sanitario, que então guarnecia a fronteira, certos contingentes de corpos suspeitos de rebeldia. Por outro lado, em agosto, o mesmo governo apresentava ao parlamento o tratado com a Inglaterra e esse novo acto de vergonhosa submissão ante a _fiel alliada_, longe de acalmar os espiritos, aguçara extraordinariamente as ideias revolucionarias. A medida ia a trasbordar... N'uma noite d'aquelle mez, um grupo de segundos sargentos e cabos de infantaria e caçadores, sem que a sua _démarche_ correspondesse a qualquer trabalho previo de alliciação, apresentou-se na redacção da _Republica Portugueza_ e um d'elles, Annibal Cunha, formulou o plano da rebellião. Tratava-se de fazer sahir infantaria 18, para o que diziam contar com o apoio de grande numero dos seus camaradas, depositando antecipadamente na alameda da Lapa, proxima do quartel, uma certa quantidade de espingardas de velho typo, existentes na arrecadação do regimento. As espingardas serviriam para armar os cidadãos que fosse possivel ligar á aventura. Exposto o plano, o grupo prometteu voltar ao jornal e voltou, com effeito, desferindo então mais largos vôos, ampliando a esphera do seu emprehendimento. Não era facil, porém, realisar na occasião qualquer tentativa e, apoz acalorada discussão, foi decidido aguardar o regresso ao Porto das tropas empregadas no cordão sanitario. Mas esse grupo, tendo iniciado o contacto directo com os homens que propagavam pela palavra e pela escripta o ideal republicano, não tardou que outros militares o imitassem e, dentro de semanas, a redacção da _Republica Portugueza_ passou a ser frequentada por dezenas de sargentos, cabos e soldados da guarnição do Porto, todos dispostos a collaborar na obra da revolução. Quer dizer: o _complot_ militar formava-se e avolumava-se gradualmente, espontaneamente, sem que os dirigentes da politica democratica para elle houvessem contribuido com o mais insignificante pedido de concurso. CAPITULO IX O dr. Alves da Veiga assume a chefia civil do movimento Comtudo, tornava-se necessario acceitar as adhesões que irrompiam cada vez mais numerosas e inflammadas e canalisal-as, dando-lhes orientação perfeitamente definida. João Chagas e a redacção da _Republica Portugueza_ procuraram entender-se, para tal effeito, com o dr. Alves da Veiga, que ao tempo gosava no Porto da situação d'um chefe de partido e dividiram com elle as responsabilidades da conspiração. Até o momento, os republicanos do Porto tinham-se limitado, na espectativa dos acontecimentos, a agitar a opinião por meio da imprensa e dos clubs; o directorio do partido, presidido por Elias Garcia, procurára iniciar um movimento egualmente de caracter militar e delegára em Basilio Telles o encargo de o secundar na capital do Norte. No emtanto, como de todos os republicanos portuenses o dr. Alves da Veiga era o que dispunha de maior actividade organisadora, foi elle que desde logo assumiu a chefia civil da conspiração, continuando Basilio Telles a operar de concerto com o directorio, extranho em absoluto a esta primeira phase dos acontecimentos. E assim, em setembro de 1890, lançando mãos á obra, o illustre jurisconsulto preparou nas provincias do Norte diversos _comités_ revolucionarios que deviam secundar, no ensejo propicio, a iniciativa do Porto. [Ilustração: Capitão Leitão (1891)] Restava encontrar quem reunisse á sua volta, e os estimulasse, os elementos de lucta que se offereciam constantemente á redacção da _Republica Portugueza_. Lançou-se os olhos sobre a figura gigantesca de Santos Cardoso e o famoso director d'um semanario de combate--que se propunha «pôr as calvas a descoberto»--embora soffrendo d'uma reputação pouco cuidada, appareceu immediatamente como o homem de acção capaz de aggremiar os officiaes inferiores da guarnição do Porto que se entregavam á causa da revolta. E assim succedeu. A casa de Santos Cardoso passou a ser o centro da conspiração dos sargentos. Mas o director da _Justiça Portugueza_, não contente com isso, quiz ir mais longe. Principiou a dirigir-se a varios officiaes, solicitando a sua adhesão e a corresponder-se com o directorio, de quem recebia communicações e mais tarde lhe conferiu um voto de confiança. Em 17 de setembro, deu-se no Porto a unica manifestação tumultuosa que precedeu na capital do Norte a revolta de 31 de janeiro. A sua iniciativa partiu d'um grupo de estudantes, entre os quaes se contavam Alberto de Oliveira e Eduardo Arttayette. Começou no café Suisso, na praça de D. Pedro. Pouco antes, tinham sido queimados á porta do estabelecimento varios jornaes do governo--como protesto contra a apresentação do tratado de 20 de agosto--e davam-se vivas á Patria e morras á Inglaterra, quando entrou no café o antigo republicano Felizardo de Lima. Resoou uma enthusiastica salva de palmas, o estudante Ernesto de Vasconcellos fez um discurso caloroso e alguem soltou este grito: --Para a rua! Os manifestantes sahiram em massa do estabelecimento e encaminharam-se para a rua dos Clerigos, tendo á frente, entre outros, João Chagas e o dr. Julio de Mattos. O cortejo comprehendia individuos de todas as classes sociaes e atroava os ares com vivas, morras e ruidosas salvas de palmas. Dos Clerigos, os manifestantes foram á Cordoaria. Depois, em frente da Relação, o estudante Eduardo de Sousa fez um discurso e o cortejo encaminhou-se para a rua das Taypas, produzindo novas e estrepitosas demonstrações deante do quartel de caçadores 9. Á porta e ás janellas do quartel appareceram muitas praças agitando os _bonnets_. Da rua das Taypas, os manifestantes dirigiram-se á rua do Triumpho, entoando a _Marselheza_ e a _Portugueza_, então muito em voga. Em frente do quartel de infantaria 10 reproduziram-se os applausos ao exercito e o cortejo seguiu para a rua do Pombal, parando junto d'uma das casas d'essa rua a acclamar o dr. Alexandre Braga, pae do illustre causidico do mesmo nome. Alexandre Braga, assomando a uma janella, falou ao povo, affirmando-lhe estar orgulhoso por encontrar nos moradores do Porto a sua altiva e tradiccional energia. A manifestação seguiu depois ao campo de Santo Ovidio, parando em varios pontos do percurso para ouvir improvisados oradores. Um d'elles disse: --O Porto precisa provar que ainda não perdeu o segredo das revoluções. No campo de Santo Ovidio, as demonstrações patrioticas attingiram o delirio. Alguns officiaes de infantaria 18 vieram até junto da multidão pedir-lhe cordura. A seguir, a manifestação desceu pela rua do Almada e, voltando á Cordoaria, passou pelo quartel da guarda municipal. Immediatamente sahiu d'ali uma força de cavallaria e, carregando sobre a multidão, que se refugiou no jardim, dispersou-a. Alguns individuos responderam á pedrada, houve gritos subversivos e na refrega um estudante ficou ferido nas costas. Reconcentrando-se, os manifestantes desceram á rua dos Clerigos e vieram para a praça de D. Pedro. Ahi, os soldados da guarda municipal, cravando as esporas nos cavallos, carregaram novamente sobre o povo, acutilando-o a torto e a direito, mettendo toda a gente debaixo das patas dos animaes, varrendo não só a praça mas as ruas circumvisinhas e ferindo e prostrando grande numero de pessoas. Os cafés do local foram logo fechados por ordem da policia. Muitos feridos receberam curativo no hospital da Misericordia. No dia immediato, a cidade reentrou no socego habitual; mas todos esses incidentes que acabamos de relatar foram a origem d'uma nova excitação que aggravou «a que já fundamente lavrava e havia de resolver-se no movimento de 31 de janeiro». Entretanto, os trabalhos para a organisação do _complot_ progrediam a olhos vistos. Os organisadores já contavam com o concurso de varios officiaes e porque alguns d'elles tinham apparecido nas redacções dos jornaes republicanos, decididos, pelo menos na apparencia, a contribuir para a derrocada da monarchia. E se é certo que no momento em que rebentou a revolta, apenas tres d'elles conseguiram justa evidencia, a verdade é que durante o periodo preparatorio da conspiração o numero de officiaes que n'elle intervieram contavam-se por dezenas. Cada corpo da guarnição do Porto, sem exclusão da guarda municipal, dava, pelo menos, um contingente de tres officiaes, cujos nomes circulavam entre os conspiradores e eram quasi do dominio publico. Os mais graduados eram capitães. Por outro lado, nas provincias, onde Alves da Veiga organisara _comités_ civis e militares, estes garantiam-lhe a sua plena adhesão. O commandante d'uma das forças aquarteladas no Porto compromettia-se a adherir ao movimento «caso não recebesse ordem em contrario do quartel general». Santos Cardoso affirmava a todo o momento que o major Graça, da guarda municipal, e que mais tarde havia de desempenhar um papel decisivo na insurreição, mas para a suffocar, estava ao lado dos revoltosos. Nos quarteis, entre os officiaes, era corrente que se conspirava. As noticias do facto transpiravam dia a dia e invadiam abertamente a opinião. Nos cafés do Porto não se falava n'outra cousa e os agitadores não se occultavam ao solicitar para a causa a adhesão de novos elementos. «Crescia-se em audacia. Todos suppunham e se convenciam que caminhavam realmente para um exito seguro». João Chagas, já na cadeia da Relação, a cumprir a sentença imposta por um delicto de imprensa, escrevia n'um artigo inserto na _Republica Portugueza_: «Estou convencido a serio, porque pertenço ao grande numero dos indisciplinados republicanos que querem a Republica--de que uma revolução se fará dentro em breve, a mais nobre, a mais generosa, a mais sympathica de quantas revoluções tem tentado um povo offendido, em nome da sua dignidade e da sua honra. «Quero-a, desejo-a, promovo-a e d'isso me ufano. Com a minha consciencia vivo na mais perfeita beatitude. Da minha intelligencia faço o uso mais nobre. Estou tranquillo por mim, porque pratico uma boa acção. Como convencional, fiz commigo proprio um pacto que vae desde a liberdade á morte. Ao serviço da minha causa puz todo o meu pensamento, todo o meu sentimento, toda a minha acção. Quero, pois, a Republica por vingança, por odio e por dignidade. Dias virão, cheios de alternativas, dias de orgulho, talvez dias de infortunio--quem sabe? «É todo um mundo a fazer! É toda uma sociedade a reformar! Vivemos sobre lama. Os pés enterram-se-nos no solo. Quanto esforço, quanto trabalho, quanta coragem para consolidar o chão que nos foge!... Pois bem! Batidos, vencidos, eu, nós, os meus companheiros de combate, recomeçaremos em qualquer ponto onde estejamos, aqui ou na terra estrangeira, dando o nosso sacrificio pessoal, entregando a nossa felicidade, a nossa vida á causa da patria e da liberdade. A opinião e a historia condemnarão os que prevaricarem e, se algum de nós os julgar um dia, dirá inexoravelmente como Manoel falando do rei de França: «Um traidor de menos, não é um homem de menos». As idéas de revolta inflamavam todos os corações. «Os estudantes das escolas do paiz que já se tinham offerecido ao governo para constituir um batalhão voluntario que fosse á Africa combater os inglezes e se tinham visto recusados, entravam resolutamente no vasto campo da rebellião. A mocidade academica de Coimbra, posta em contacto com os revolucionarios do Porto, aprestava-se a tomar parte na lucta em vesperas de travar-se. O grupo revolucionario academico--sessenta e tantos estudantes--organisara-se secretamente e reunia-se para exercicios de espingarda Kropatschek com o concurso dos sargentos de infantaria 23. Formavam-se novos clubs republicanos. Nos logares os mais publicos exhibiam-se opiniões revolucionarias. De toda a parte affluiam exhortações e incitamentos em telegrammas e em bilhetes postaes. Todos pediam que o movimento se iniciasse quanto antes. A impaciencia era flagrante e, mal contida, expressava-se nos menores actos dos conspiradores. Alves da Veiga, tomando o pulso á agitação, ponderando os trabalhos até então realisados e reconhecendo que o movimento necessitava á sua frente d'um chefe militar prestigioso, abalançou-se a procurar esse official e conseguiu a promessa formal do general Sebastião Calheiros, então residente em Vianna do Castello. Resolvido o problema, obtida assim uma direcção certamente efficaz no instante da revolta, aquelle official poz-se a caminho de Lisboa, decidido a arranjar collaboradores, que o auxiliassem em semelhante empreza. O contacto do general Calheiros com varios dos elementos republicanos residentes na capital do paiz prejudicou o bom andamento das cousas revolucionarias... É tempo de descrever aos leitores, como esse facto, e outros que se lhe seguiram, entravaram o movimento, tirando-lhe ao mesmo passo o caracter d'uma acção conjuncta da democracia portugueza. CAPITULO X O Directorio recusa a sancção official á revolta No mez de setembro de 1890, quando a redacção da _Republica Portugueza_ já concentrava um numero bastante regular de sargentos conspiradores, o partido republicano soffreu uma dissidencia profunda. D'um lado ficou Elias Garcia, congregando á sua volta toda a parte conservadora do partido; do outro surgiu o tenente de caçadores Homem Christo, com todos os radicaes. «O conflicto devia ter solução no congresso annunciado para janeiro de 1891 e no qual os dois grupos travariam a batalha decisiva». Apesar da dissidencia, porém, os republicanos do Porto continuaram a entender-se com Elias Garcia, pois que este, como já tivemos ensejo de referir, tambem trabalhava na organisação d'um movimento de caracter militar e o seu delegado na capital do Norte, Basilio Telles, prestava rasoavel concurso á actividade de Alves da Veiga. Santos Cardoso, por seu lado, entrara na intimidade d'outros vultos em evidencia como Bernardino Pinheiro e Theophilo Braga. Em dezembro, Homem Christo, que não via com bons olhos a chefatura de Elias Garcia e o contrariava em tudo que parecesse dimanar da sua resolução pessoal, procurou-o e fez-lhe sentir a inconveniencia do Directorio secundar a _sargentada_ do Porto. «A revolta de sargentos, dizia elle a Elias Garcia, se vingar, vae ser funesta á disciplina do exercito; mas não vinga, porque lhe falta o elemento intelligente e de cohesão». Depois, logo a seguir, convidado por Jacintho Nunes, foi ao Porto «estudar a situação». No Porto, Homem Christo procurou Alves da Veiga e Rodrigues de Freitas, mas não lhes poude falar. Jacintho Nunes propoz-lhe então uma conversa com Santos Cardoso. Homem Christo recusou, porque odiava fundamente o director da _Justiça Portugueza_, mas depois consentiu em procural-o, para averiguar até que ponto eram authenticos os trabalhos revolucionarios. O encontro d'esses dois homens é assim relatado por João Chagas, que foi quem apresentou Homem Christo e Jacintho Nunes a Santos Cardoso: «A entrevista não teve o menor effeito na obra que estava em via de realisar-se e passal-a-hiamos em claro se o facto de termos assistido a ella não nos permittisse formular uma impressão exacta da situação reciproca dos dois homens--Santos Cardoso e Homem Christo--n'esse curioso lance, mais tarde exposto e discutido nos tribunaes e na imprensa. Homem Christo entrou em casa de Santos Cardoso munido de todas as prevenções que o indispunham contra o director da _Justiça Portugueza_. Por seu turno, Santos Cardoso recebeu-o como a um inimigo. [Ilustração: Uma carga de cavallaria.] «A memoria não nos soccorre de forma a podermos reproduzir, dez annos volvidos, os termos exactos d'essa conferencia; mas a impressão que nos deixou e que subsiste no nosso espirito é de que foi um acto sobre o qual pesou uma profunda e mal contida irritação. Santos Cardoso, com o seu ar fanfarrão de desafio e Homem Christo, com o seu duro e implacavel desdem, estavam destinados a não entender-se. E foi o que succedeu. «Como o director da _Justiça Portugueza_, pallido, mas affectando serenidade, a cofiar largamente a sua vasta pera, entrasse de enumerar com aparato aquellas forças de todas as proveniencias, que já reputava solidamente ao serviço da revolução, Homem Christo entrou, por seu turno, de dar evidentes mostras de impaciencia, menos talvez porque estivesse ali o homem que elle detestava, senão porque n'esse homem detestado via o paisano a mover soldados, que de todo o tempo irritou o espirito dos militares profissionaes. Não era realmente irritante que aquelle adventicio, alheio a todo o saber e a todos os interesses militares, se permittisse a impertinencia de dar sentenças a um militar de profissão, sobre o que fossem regimentos, batalhões, companhias, officiaes, soldados, parecendo ter a pretenção de usurpar com o seu desplante a soberania dos chefes militares n'esse movimento feito por sargentos que elle já parecia commandar? «Na sua cegueira, embriagado com o que suppunha já a sua obra e com o proprio ruido das suas palavras, Santos Cardoso não comprehendia até que ponto se tornava antipathico ao seu interlocutor. E proseguia inexgotavelmente, enunciando regimentos, guarnições, nomes de officiaes... Friamente, como quem se vinga, Homem Christo impoz á sua total ignorancia uma sabbatina cruel, reduziu-o a confessar-se em erro, em equivoco, em mentira. Santos Cardoso embrulhava-se, mettia os pés pelas mãos, já se agitava na sua cadeira, como procurando romper. É certo que, finda essa penosa entrevista, Homem Christo o tivesse maltratado, atirando-lhe ao rosto o epitheto de imbecil? Não o recordamos e não cremos que essa palavra tivesse sido pronunciada em termos d'elle a ouvir. Os dois homens despediram-se mesmo com cortezia. O que recordamos com precisão é que, já na rua, Homem Christo disse: «Vou ali falar com alguns rapazes» e que, poucas horas depois, como tornassemos a encontral-o, accrescentou: «Isto não está tão mau como eu pensava». D'ahi a alguns dias, como houvesse no Porto apprehensões sobre o valor do apoio que o Directorio dispensava ao movimento, João Chagas foi incumbido de ir a Lisboa falar a Elias Garcia. Encontrou-o no Hotel Atlantico, mas o chefe republicano, cauteloso e previdente, não quiz desde logo sujeitar-se á conversa sobre tão melindroso assumpto e, rasgando em duas metades um cartão de visita, entregou-lhe uma d'ellas dizendo: --Ás 8 horas, alguem lhe apparecerá com a outra metade d'este cartão. É pessoa de confiança. Pode seguil-a. Ás 8, com effeito, um emissario discreto conduzia João Chagas ao Directorio, que estava reunido em casa de Bernardino Pinheiro e, uma vez junto d'esse democrata, de Elias Garcia, Theophilo Braga e Sousa Brandão, o director da _Republica Portugueza_ constatou que nenhum d'esses homens hostilisava o movimento. Pelo contrario. A uma pergunta directa de João Chagas, o Directorio respondeu que trabalhava para secundar a revolta do Porto. E no fim, apoz animada conversa, ficou assente que o general Sousa Brandão iria pessoalmente ao Norte inteirar-se, _de visu_, da situação--o que fez, na realidade, encontrando-se ali com os mais importantes elementos da conjura. Em principios de janeiro reuniu em Lisboa o congresso do partido e os amigos de Homem Christo triumpharam dos de Elias Garcia. O novo Directorio, dias depois de eleito, fez circular pelo paiz um vigoroso manifesto em que parecia dar alento aos revolucionarios, apontando-lhes como unico caminho a seguir, perante o descalabro da monarchia, a execução immediata do plano da conjura. «No estado actual da crise portugueza--dizia uma passagem do manifesto, que era acompanhado d'um novo programma partidario--só existe uma solução nacional, pratica e salvadora: a proclamação da Republica. Só assim acabarão os interesses egoistas que nos perturbam e vendem, só assim apparecerá uma geração nova capaz de civismo e de sacrificios pela Patria». Mas, quasi a seguir, o Directorio mostrou-se como que cheio de remorsos por haver expendido doutrina tão francamente revolucionaria e, dedicando-se a entravar os progressos, já inilludiveis, da conspiração do Porto, fez publicar em 25 de janeiro uma circular em que dizia sem disfarce: «Prevenimos os nossos correligionarios para que abandonem ao seu isolamento egoista qualquer grupo perturbador que anteponha á magestade dos principios o fetichismo de personalidades e aos interesses da propaganda as vantagens dos lucros economicos». E concluia: «Aproveitamos este ensejo para lembrar ás dignas commissões a necessidade de se proceder aos trabalhos do recenseamento eleitoral; e, ao mesmo tempo, que todas as combinações importantes para a vida do Partido serão communicadas e estabelecidas por um enviado especial do Directorio, evitando assim as intervenções discricionarias de individualidades sem mandato, que enfraquecem toda a auctoridade». A circular visava, como se comprehende, a tirar aos conspiradores do Porto «qualquer sombra de auctoridade official». E para que não restasse duvidas sobre a sua significação, no dia 27, os _Debates_ publicavam um artigo de Homem Christo, intitulado _Uma prevenção_, em que se attribuia ao movimento o caracter d'uma _pavorosa_ urdida pelo governo e se exclamava: «Acautelem-se, pois, os republicanos com essas manobras. Revoluções fazem-se. Não se dizem, nem se apregoam. Quando se dizem e quando se apregoam, ou é desconchavo que faz rir, ou armadilha lançada aos ingenuos e simples do mundo. E como ha muito ingenuo e muito simples, sempre é preciso cuidado com taes armadilhas e artes de tratantes. Cautela, pois». Homem Christo vingava-se de Santos Cardoso e outras personalidades implicadas no movimento, mas que lhe eram antipathicas, aggredindo-as por essa forma indirecta e pretendendo _furar_ as probabilidades de exito que, porventura, caracterisassem o projecto de revolta. Antepunha á questão do partido uma questão de mero odio pessoal. E a esta sacrificava tudo, indo até á denuncia publica e formal do que se tramava na capital do Norte. CAPITULO XI A crise ministerial dos «vinte e sete dias» Retrogrademos um pouco até á apresentação ao parlamento do tratado anglo-luso. Este documento, tendo sido publicado no _Diario do Governo_ em fins de agosto de 1890, levantara, como já dissémos n'outro ponto, enorme grita de hostilidade. Os jornaes da opposição classificaram-n'o acto continuo de: «certidão de obito passada por um diplomata funebre a uma nação narcotisada por dois seculos de jesuitismo e de inquisição e esterilisada por pouco mais de meio seculo d'um constitucionalismo dissolvente e desmoralisador». Pela essencia do tratado, Portugal não podia alienar os seus territorios africanos sem previo consentimento da Inglaterra. As associações mais importantes da capital pronunciaram-se altivamente contra a ratificação de semelhante «hypotheca feita á Grã-Bretanha». Convocaram-se comicios em diversas cidades do paiz, houve mesmo um no Porto presidido pelo africanista Alvaro de Castellões, em que os oradores, alguns monarchicos, tonitruaram contra o negociador do tratado, o sr. Barjona de Freitas; de modo que no dia em que o ministro Hintze Ribeiro se aprestou a ler o respectivo texto á camara dos deputados, a esquerda parlamentar acolheu as suas primeiras palavras com uma enorme pateada. A esta manifestação da esquerda corresponderam ligeiras manifestações das galerias e a maioria rompeu em invectivas contra a opposição, despedindo-lhe phrases como estas: --Fóra pulhas!... --Isso é indecente!... é de canalhas! A opposição recrudesceu na gritaria e o tumulto generalisou-se. Serpa Pinto, que era deputado governamental por Lisboa, subindo a uma coxia, interveiu, clamando com intimativa: --Nem mais uma palavra aqui, nem mais um pio! --O que? O que diz? perguntou-lhe o padre Alfredo Brandão. Serpa Pinto replicou: --Nem mais um pio, sou eu que o digo. O reverendo agarrou então o heroe pelas orelhas, sujeitando-o nos seus dedos de ferro e a desordem tomou por momentos proporções inenarraveis. Restabelecida a calma, o tratado foi enviado ás commissões incumbidas de lhe dar parecer. Naufragara decisivamente por effeito do tumulto parlamentar. Ao cahir da tarde, esse tumulto repercutiu-se, sangrento, nas ruas de Lisboa. O povo, que se agglomerara durante o dia no largo das Côrtes, encaminhou-se ao terminar a sessão para os lados da Esperança. A policia quiz dispersal-o e effectuou uma prisão que foi mal recebida pela grande massa. Tanto bastou para que os guardas cahissem á cutilada sobre os populares, travando-se lucta renhida, pois a multidão resistiu corajosamente á ferocidade dos janizaros. A policia, por fim, refugiou-se na esquadra de S. Bento, em frente das grades do largo das Côrtes e d'ali disparou os revolvers sobre o povo, ferindo alguns individuos e matando o operario fundidor Carlos Franco (_Antonio Pardal_). O cadaver do infeliz foi transportado á casa mortuaria da Misericordia e o povo acompanhou-o em cortejo dorido, convidando toda a gente que encontrava no percurso a descobrir-se ante o «martyr sacrificado ás iras governamentaes». No dia seguinte declarava-se a crise ministerial. Por espaço de vinte e sete dias, a corôa recorreu a todos os expedientes afim de constituir o novo gabinete. Pretendia-se que o momento era azado para experimentar os politicos que não pertenciam á rotação constitucional. De Roma veiu a toda a pressa o sr. Martens Ferrão, mas nada conseguiu fazer. A situação era grave, confessavam-n'o os proprios jornaes monarchicos. «Estamos á mercê d'um movimento popular, que pode rebentar d'um instante para outro e porque a irritação publica augmenta a olhos vistos». Chegou-se a aventar a subida ao poder d'um ministerio de concentração, de que fizessem parte representantes do partido republicano. A propria imprensa democratica quasi que intimava os seus adeptos a tomarem conta das pastas vagas. No estrangeiro a Republica Portugueza annunciava-se para breve como um facto previsto, indiscutivel. A 18 de setembro repetiram-se os conflictos populares. Apoz um incidente motivado pela policia, no largo de Camões, de dois garotitos inoffensivos, uma força da guarda municipal parou em frente do Café Martinho, onde abancavam estudantes, jornalistas, militares, deputados, gente, emfim de todas as classes, e sem previo aviso desfechou sobre aquella mole desarmada, causando um mixto de panico e de colerico assombro nas victimas de semelhante surpreza. Depois, a mesma força andou em correrias selvagens pela avenida da Liberdade e arterias proximas, espancando quem encontrava desprevenido. Quer dizer: apesar de demissionario o gabinete regenerador, os serventuarios do regimen recorriam ao emprego da brutalidade e da selvageria para aterrorisar o povo e impedir o mais ligeiro gesto de censura ao regimen. Por fim, a crise ministerial foi resolvida com a constituição d'um gabinete extra-partidario da chefia do general João Chrysostomo e em que eram ministros: da guerra, o presidente do conselho; do reino, Antonio Candido; da justiça, Sá Brandão; da fazenda, Mello Gouveia; da marinha, Antonio Ennes; das obras publicas, Thomaz Ribeiro; dos estrangeiros, Barbosa du Bocage. Mas esta solução dada pela corôa á situação politica do momento não logrou aquietar os animos e as primeiras providencias decretadas pelo novo governo nada mais conseguiram do que intensificar os odios que o throno já concitára á sua volta, e no paiz inteiro. [Ilustração: Rodrigues de Freitas (1891)] Iniciaram-se perseguições á imprensa e, para dar satisfação ás reclamações inglezas sobre a rejeição do tratado de 20 de agosto, approvou-se um _modus-vivendi_, pelo qual Portugal concedia á Grã-Bretanha a liberdade de navegação no Chire e no Zambeze. Pela mesma época fundou-se a chamada _Liga Liberal_, partido em que preponderou o sr. Augusto Fuschini e que teve uma aura de sympathia, dadas as suas apparencias revolucionarias. Falhou quasi a seguir, porque não passava, afinal, d'uma liga de concentração de interesses conservadores. No emtanto, a agitação popular ia crescendo, crescendo sempre, a conspiração do Porto alargava mais e mais a importancia e o numero de adhesões e nos fins de dezembro de 1890 já se perguntava sem disfarce e em voz alta quando rebentava a revolta. A mocidade das escolas fremia de impaciencia e de indignação. Guerra Junqueiro publicara o seu _Finis Patriæ_ e as estrophes da bella poesia resoavam a todos os ouvidos como notas vibrantes d'um canto guerreiro. Em certa altura, Alves da Veiga apresentou-se em Lisboa e, ás advertencias do novo Directorio, que lhe fez sentir a inopportunidade do movimento em plena preparação effervescente, respondeu que da melhor vontade se esforçaria por addial-o, mas que tal empreza não era facil, porque a excitação dos elementos militares portuenses não admittia delongas. E, a comprovar-lhe a affirmativa, deu-se um facto que marcou por assim dizer a data da revolução, apressando-a, ou melhor, precipitando-a. Referimo-nos a uma reunião de sargentos da guarnição do Norte, effectuada a 24 de janeiro de 1891, n'uma casa da rua do Laranjal. Essa reunião foi provocada por um acto do ministro da guerra, que descontentou sobremaneira a classe. Os sargentos vinham desde muito reclamando, por intermedio do seu orgão especial, contra a forma de promoção; e as suas reclamações assumiram feição mais aggressiva, quando a ordem do exercito publicada em 17 de janeiro de 1891 inseriu a promoção ao posto de alferes de trez aspirantes,--promoção contraria á lei, visto que por ella deviam beneficiar dois aspirantes e um 1.º sargento. O orgão da classe transpareceu logo esse descontentamento e um grupo de sargentos da guarnição do Porto divulgou um protesto em que se dizia com toda a clareza: «Camaradas! «Nós temos sido a pella de brinquedo dos governos nos ultimos tempos e o nosso bom nome clama com energia para que termine este ultrage. Ha pouco era um ministerio que, tendo-nos constantemente illudido com a promessa de augmento de vencimento, só quando foi invadido pelo terror da agonia é que se lembrou de que nós podiamos ser seu sustentaculo, e por isso tentou corromper-nos, sacudindo nas nossas faces as migalhas da toalha do orçamento. Agora é um gabinete presidido por um general, que nós ingenuamente consideravamos nosso protector, nosso amigo solicito e desvelado, que, tendo-nos promettido a escala de promoção por antiguidade do curso, se curva ante as exigencias de uma aggremiação politica em que militam muitos officiaes da arma scientifica, respondendo com despreso á nossa ardente... e jubilosa expectativa. «Unamo-nos todos: que haja uma só voz, um só pensamento, uma só vontade! Só assim nos poderemos vingar impondo a nossa força e fazendo prevalecer os nossos direitos contra a perfidia dos nossos _amigos_. Desviemos os olhos d'este monturo pestilento, que exhala miasmas que nos asphyxiam e volvamol-os para a alvorada que desponta no horisonte social... Tomemos as armas nas mãos, e com fé e enthusiasmo saudemos o futuro, que elle minorará a nossa sorte ingrata.» Ao mesmo passo, tres sargentos-ajudantes da guarnição de Lisboa redigiam e faziam imprimir a minuta d'uma petição que enviaram a todos os corpos de infantaria e caçadores, a fim de ser assignada individualmente pelos 1.os sargentos d'esses corpos e remettida ao parlamento. A petição solicitava que a promoção continuasse a ser regulada na razão de um terço das vacaturas que occorressem no posto de alferes. Recebido no Porto esse documento, os sargentos da guarnição apressaram-se a reunir para o apreciar. CAPITULO XII «E as armas que nos foram entregues para defeza das instituições, voltal-as-hemos contra ellas» Á reunião na casa da rua do Laranjal--casa habitada por um individuo da intimidade de Santos Cardoso--presidiu o alferes de caçadores 9, Simões Trindade, homem da absoluta confiança da classe e que com ella cooperava no movimento da revolta. Mas os sargentos presentes, não se contentando com o subscreverem individualmente a petição enviada de Lisboa, foram mais longe: approvaram a minuta d'um verdadeiro _ultimatum_, ameaçando o governo com a sedição caso elle não respeitasse a lei no tocante ás promoções. A ameaça continha entre outras esta phrase: «..._e as armas que nos foram entregues para defeza das instituições voltal-as-hemos contra ellas_». O sargento-ajudante de infanteria 18 Arthur Ferreira de Castro, que tambem tomara parte na reunião, conseguiu obter copia do documento e entregou-o ao capitão do mesmo regimento Alexandre Sarsfield, que, por sua vez, o passou ao coronel Lencastre de Menezes. Estava denunciado o proposito dos sargentos e não tardou que o ministerio da guerra, tendo conhecimento minucioso do que se discutira na assembléa da rua do Laranjal e de posse de uma lista de officiaes inferiores que a ella tinham assistido, desatasse a transferir quantos se lhe affiguravam suspeitos de republicanismo. Quer dizer: a traição do sargento-ajudante Arthur Ferreira de Castro não só revelou ao governo a existencia da conspiração como, provocando as immediatas represalias, contribuiu directamente para que os revolucionarios apressassem a sua sahida e a levassem a cabo em condições bastante tumultuarias. «Sem a denuncia do sargento Castro--affirma uma testemunha dos acontecimentos--os sargentos do Porto não se teriam precipitado e a revolta, que se daria um mez ou dois mais tarde, teria tido provavelmente um chefe militar, um estado maior bem mais numeroso, um plano mais intelligente e, seguramente, uma maior e mais vasta repercussão. Não seria, então, uma revolta: seria uma revolução, incendiando pelo menos metade do paiz e á qual era de presumir que a outra metade adherisse, dada a disposição geral dos espiritos para uma transformação politica, que um grande numero reputava indispensavel e que os outros acceitariam sem protesto. Assim, foi um homem, um homem só, obscuro, desconhecido, vindo do anonymato e da treva, que subverteu a obra da redempção do anno de 91, entravando a evolução politica da nação, fazendo parar com seus fracos pulsos a ideia que já se precipitava na gloria de um futuro talvez maravilhoso, mergulhando--quem sabe?--a bella Patria portugueza na desesperação de um incerto destino ou de um outro, porventura, funestamente irremediavel». Ordenadas as transferencias de sargentos compromettidos no movimento, todos elles foram procurar Santos Cardoso e instaram energicamente para que se não addiasse por mais tempo a sua eclosão. Santos Cardoso entendeu-se com o dr. Alves da Veiga e este, convencendo-se de que não havia maneira de protelar a revolta embora inopportuna, tratou de, em curto espaço, ultimar os preparativos dando certa unidade aos elementos que, fora do Porto, o deviam secundar no momento decisivo. Santos Cardoso ainda tentou um derradeiro esforço junto dos sargentos mais exaltados, mas estes, vendo nas evasivas do director da _Justiça Portugueza_ um receio injustificado, puzeram a questão n'estes termos: «Se no dia 30 de janeiro não resolverem fazer a revolução, sahiremos para a rua á frente dos soldados». Não havia que hesitar. No dia 30, Santos Cardoso e o dr. Alves da Veiga decidiram o general reformado da arma de engenharia Correia da Silva a tomar a direcção do movimento, mas o general só acceitou o encargo «até ao momento em que algum official superior, em effectivo serviço, apparecesse a assumir o commando das tropas revoltadas ou ainda se os officiaes que se apresentassem á frente d'essas tropas concordassem em que fosse elle o chefe». D'ahi a uma hora, effectuou-se uma reunião em casa d'uns parentes do general, na rua de Malmerendas, reunião para que foram convocados todos os officiaes adherentes e os individuos da classe civil destinados á execução do plano revolucionario. Á mesma hora realisava-se n'uma casa da rua da Alegria uma reunião de cerca de setenta sargentos e estes, receiando que o general Correia da Silva opinasse pelo addiamento da revolta, foram á rua de Malmerendas demovel-o d'esse proposito. O general ouviu-os e, por fim, concordou-se em que o movimento rebentaria na madrugada. Faltava discutir o plano revolucionario. Para isso marcou-se nova reunião, ás 10 da noite, na rua de Santa Catharina. Talvez n'ella comparecesse maior numero de officiaes, visto que nem todos os compromettidos tinham recebido o respectivo aviso e a primeira reunião na rua de Malmerendas caracterisara-se pela falta de muitos d'esses elementos. «Para aproveitar o tempo que decorria até se realisar essa reunião, entendera o general, bem como o dr. Alves da Veiga, que fossem procurados alguns officiaes de superior graduação, convidando-os a comparecer em casa d'um conhecido negociante do Porto. Esses officiaes eram o coronel, o tenente-coronel e um major de caçadores 9, que se recusaram a acceder ao convite. Lembrou-se, em vista da recusa d'estes, o nome d'outro official, que, sem ter uma graduação superior, era comtudo muito estimado entre os seus camaradas e gosava de um notavel prestigio entre os seus subordinados. Este alvitre, porém, não foi aceito; por consequencia, o general Correia da Silva ficaria, até ulterior resolução e dependendo isso das circumstancias occorrentes, com o commando em chefe das tropas revolucionarias». Ás 10 da noite, na reunião da rua de Santa Catharina compareceram apenas o general, o dr. Alves da Veiga, Santos Cardoso, diversos civis, alguns sargentos, o capitão Leitão e um alferes da guarda fiscal. Os outros officiaes compromettidos não compareceram, ou, melhor, não foram convidados a comparecer. Durante alguns instantes, o general e o capitão Leitão discutiram o plano revolucionario. O primeiro entendia que as tropas deviam concentrar-se na praça da Batalha e tomar desde logo posse do quartel general, do governo civil e do telegrapho, cujos edificios estão reunidos n'aquelle local. O capitão Leitão desejava que a concentração se fizesse no campo de Santo Ovidio e contrariava a indicação do general, porque, dizia, os revolucionarios necessitavam antes de tudo vencer uma difficuldade: a da sahida do quartel do regimento de infantaria 18. A respectiva officialidade, quasi toda residindo dentro do edificio, fôra, decerto prevenida, do proposito dos sargentos pela denuncia do traidor Castro e trataria de oppôr-se a que elles sublevassem as praças. Por conseguinte, só com a presença dos outros corpos nas immediações do quartel é que infantaria 18 poderia, quebrando os laços da disciplina, cooperar na insurreição. Quanto ao quartel general, os revoltosos contavam que o sargento commandante da guarda o submetteria sem difficuldade. O general Correia da Silva insistiu mais do que uma vez na superioridade do seu plano estrategico, mas Santos Cardoso, collocando-se ao lado do capitão Leitão, fez vingar a ideia de se effectuar a concentração das tropas no campo de Santo Ovidio. Assentou-se tambem em que alguns dos civis presentes procederiam á detenção das auctoridades governamentaes, mas com a condição de não exercerem sobre ellas a menor violencia, salvo se isso se tornasse absolutamente indispensavel ao bom exito da causa. Do mesmo modo se deveria proceder para com os officiaes que se não solidarisassem desde logo com o movimento. Por ultimo: o general Correia da Silva só seria chamado ao campo de Santo Ovidio, se depois das tropas ali concentradas não apparecessem a commandal-as officiaes d'uma certa graduação. Dissolvida a reunião, o dr. Alves da Veiga e outros conjurados encaminharam-se para a loja maçonica o _Gremio Independencia_, d'onde deviam lançar as ordens necessarias para a execução do plano pouco antes delineado. A essa hora, no Porto, a noticia de que dentro em pouco rebentaria a revolta já se divulgara o bastante para que a maioria da população a não ignorasse. Mostra-o o depoimento do ex-tenente Coelho, consignado no livro que escreveu de collaboração com João Chagas. Vamos transcrevel-o, porque evidencia egualmente a precipitação com que, chegado o momento decisivo, se tocou a reunir nos arraiaes revolucionarios: «Entrando o tenente Manuel Coelho, por um mero acaso, na noite de 30 no Café Central, que era então um verdadeiro foco de conspiração, veiu a saber que se preparava a revolução para a madrugada immediata de 31 em circumstancias que é conveniente registar. Depois de haver trocado algumas palavras com um seu camarada, tomou assento a uma das mezas do café. D'ahi a pouco acercou-se-lhe o dr. João Novaes, que lhe disse: [Ilustração: Levantando os feridos] «--Já sabes que a revolução se projecta para a madrugada? «--Não, respondeu-lhe; e até me surprehende muito a noticia, porque o capitão Leitão me viu no quartel e de nada me falou. «--Pois toda a gente diz isso ahi á bocca cheia. Sabem-n'o todos, até mesmo a policia. «--Não sei de nada, e quer-me parecer que, se a noticia tivesse algum fundamento, certamente eu teria sido procurado. «--Tens razão, com effeito, replicou o dr. João Novaes; mas corre o boato com tal insistencia que me parece que elle tem fundamento. Mas eu vou já sabel-o; vou falar ao dr. Alves da Veiga. «O dr. João Novaes sahiu. Pouco depois entravam no Café Central o tenente da cavallaria 6 Vaz Monteiro, destacado no Porto, e o tenente Margarido de cavallaria da guarda municipal. Aquelle veiu immediatamente sentar-se junto de Manuel Coelho, acercando-se de ambos este ultimo, que, logo depois de cumprimentar, disse: «--Então sabes o que para ahi corre?... Diz-se que n'esta madrugada se vae fazer uma revolução republicana. «--Não ouvi ainda falar de tal. «E a rir replicou: «--Ah! que tu tambem estás compromettido! «--Não, não sei de nada, podes crêr... «E explicou que, se sabia a noticia, era por causa do impedido d'um official de infantaria 18 que o dissera no quartel a outras praças d'aquelle regimento. Passados momentos, entrava de novo o dr. João Novaes, que aproveitou o ensejo para dizer que, com effeito, estava plenamente confirmado o boato e que o dr. Alves da Veiga lhe affirmara que a revolução se iniciaria ás 3 horas da manhã, com a sahida dos corpos revoltados. Entretanto, iam conversando Manoel Coelho e os tenentes Vaz Monteiro e Margarido, em assumpto differente d'aquelle que primeiro abordaram. «Eram já dez e meia da noite e os freguezes do café começavam a rarear. Preparava-se Manuel Coelho para sahir, quando notou que, do guarda-vento envidraçado do café, um individuo, que apenas havia entrevisto, uma por outra vez, falar com o capitão Leitão, lhe fazia signal de querer transmittir-lhe qualquer communicação. Approximou-se d'esse individuo, que lhe disse: «--O sr. capitão Leitão manda-me aqui para dizer a V. que deseja falar-lhe. «--A mim? Sabe quem sou? «--É o sr. tenente Coelho, não é verdade? «--Com effeito. E onde está o sr. capitão Leitão? «--No _Gremio Independencia_. Se o consente, acompanho-o. «Seguiram os dois. As ruas estavam inundadas e a chuva persistente fazia caminhar rapidamente. Emfim, chegaram á rua Fernandes Thomaz, esquina da rua de Santa Catharina, tendo atravessado por uma das ruas lateraes do mercado do Bolhão. Subiram a longa escadaria do edificio onde estava installado o _Gremio Independencia_ e penetraram n'uma sala do segundo andar, onde estava reunido um grande numero de individuos. Eram os irmãos d'esse gremio, que tinham sido convocados pelo dr. Alves da Veiga, com o fim de encobrir a concorrencia áquella casa, de outras pessoas estranhas á associação. «Á volta do bilhar, jogando, andavam dois homens, um dos quaes era o capitão Leitão, trajando á paisana: grosso jaquetão de pelles, calça clara unida á perna e chapéo desabado. No nariz, a sua luneta de vidros escuros, que elle usava, mais que por outro motivo, pela necessidade de occultar a fixidez do olho direito immobilisado, quasi completamente, pela paralysia dos musculos da face. Muito embaraçado, olhou em redor e disse: «--O dr. Alves da Veiga está lá em baixo; vamos falar-lhe. «Depôz o taco e desceram ao primeiro andar. N'um pequeno gabinete interior, cuja forma se approximava do symbolico triangulo, encontravam-se, cada um sentado á sua meza, Santos Cardoso e o dr. Alves da Veiga. Em pé, e como esperando ordens, estava um homem ainda novo, pequeno bigode, quasi um buço sombreando-lhe o labio, grandes olhos vivos que pareciam prestes a sahir das orbitas, estatura menos que meã, largos hombros, busto amplo, poisando em pernas robustas; era Annibal Cunha, então cabo de infantaria 18, estudante da Escola Polytechnica. O dr. Alves da Veiga estava com um lapis pondo signaes em frente dos nomes registados no _Almanach Commercial_ e designados sob a rubrica--_Regimento de infantaria n.º 10_. «--É certo, perguntou Manuel Coelho, o que por ahi corre, da projectada revolução para esta madrugada? «Sim, era certo; não tinha podido ser de outro modo. Santos Cardoso, do lado, affirmou com superioridade: «--Estou a fazer os avisos. «Com effeito, em cartões de visita, com o seu nome, escrevia--_pede a V. para comparecer ás 3 da madrugada no campo da Regeneração_. E mettia depois esses cartões em envelopes nos quaes escrevia o nome d'um official, entregando-os a Annibal Cunha. «O tenente Manuel Coelho retirou-se preoccupado. As circumstancias não eram de natureza a fazer-lhe acreditar n'um triumpho. Todavia, era forçoso acceitar os factos como elles se apresentavam. Era tarde para discutir e inopportuno desobedecer». Emquanto no _Gremio Independencia_ se passava isto que acabamos de transcrever, varios republicanos em destaque, reunidos n'um gabinete do Café Suisso, preparavam o manifesto que desde o inicio da revolta seria lançado: _Aos camaradas do Norte e Sul de Portugal; aos cidadãos do Porto; aos cidadãos portuguezes!_ Esse manifesto, composto e impresso na typographia da _Republica Portugueza_--e cujos exemplares foram destruidos ao ser um facto a derrota dos insurrectos--principiava assim: «A força militar do Porto acaba de dar por findo o reinado do sr. D. Carlos de Bragança. Proclamou a Republica. Não se trata d'uma simples, d'uma transitoria revolta. Foi uma revolução que se fez». Expunha a seguir, a traços largos, a situação do paiz, _situação aviltante, deshonrosa, receiante_. Era um documento em que cada um dos convivas d'essa historica ceia no Café Suisso puzera a sua «nota pessoal, philosophica, ou anedoctica» e que surgira dos commentarios calorosos, apaixonados, sobre o resultado do movimento que não tardaria a rebentar. Mas, emquanto os conspiradores davam a ultima demão aos preparativos da revolta, as auctoridades civis e militares tomavam conhecimento d'uma parte do plano concebido e concertavam os meios de o inutilisar. Ás 7 da noite de 30, um amigo do governador civil, Joaquim Taibner de Moraes, tendo ouvido a dois sargentos que infantaria 18 se insurreccionaria na madrugada de 31 «por causa da transferencia d'um sargento ajudante», foi avisal-o do caso e aquella auctoridade dirigiu-se immediatamente ao quartel do Carmo, a prevenir o commandante da guarda municipal. A conferencia foi rapida. N'ella ficou assente que o commandante da guarda concentraria, sem grande apparato, toda a força de que pudesse dispôr e que mandaria vigiar de perto os outros quarteis militares dados como suspeitos. Combinado isto, o governador civil e o commisario da policia procuraram o commandante interino da divisão--o general Scarnichia marchara pouco antes para Lisboa--e esse commandante foi, em pessoa, ao quartel de infantaria 18, onde, em face das suas ordens, todos os officiaes passaram a exercer a maior vigilancia nas respectivas companhias, «aguardando o que de anormal se preparava». Por outras palavras: á meia noite de 30, as auctoridades civis e militares do Porto sabiam perfeitamente o que estava planeado e repousavam descançadas, suppondo ter providenciado de modo a impedir qualquer tentativa de sedição. Comtudo é curioso registar que essas providencias se haviam limitado á policia civil, á guarda municipal e ao regimento de infantaria 18 e que aos commandantes de infantaria 10 e caçadores 9 nada fôra communicado ou transmittido que lhes revelasse _officialmente_ o proposito dos revolucionarios. CAPITULO XIII Vinte annos apoz a derrota... A manhã do dia 30 surgira nevoenta, tristonha, açoitada pelo vento agreste do inverno. D'ahi até a noite alta, a chuva cahiu a espaços inundando a cidade e afastando das ruas do Porto a massa de transeuntes. João Chagas, encurralado na cadeia da Relação, recebera á tarde a visita de Alves da Veiga, que sombrio e preoccupado lhe dissera, falando do movimento prestes a rebentar: --Vae ser desastroso... --Evite. --É tarde... Ao começo da noite, os soldados de guarda á cadeia e que estavam no segredo da conspiração foram despedir-se de João Chagas: --Vimos dizer-lhe adeus... até logo. --Até logo. Que se passou depois? Fala o brilhante jornalista, confiando ao auctor d'esta narrativa as suas impressões da madrugada tragica: «Já decorreram vinte annos sobre a derrota... Na vespera á noite, assim que a treva obscureceu o ambiente, começaram para mim horas inquietas e perturbadas. Sabia que a insurreição devia rebentar ás tres da madrugada. Tirei o relogio do bolso. Eram oito horas. Distrahi-me em coisas futeis, bebi café e fumei como um desesperado. Ainda, como distracção e talvez para surprehender mais facilmente o primeiro rumor d'essa arrancada decidida contra a monarchia, abri a janella. A noite, humida, afogava a cidade. Houve um instante, já quando se approximava a hora marcada para o rebentar do movimento, que suppuz aperceber o barulho de carros á desfilada... «Ás duas e meia, gelado pelo frio, comprehendi que se fazia um silencio magestoso, o silencio do somno pesado. Mas d'ahi a pouco levantou-se um clamor enorme e distingui gritos, brados, vivas, vozes confusas, retinir d'armas. Depois, uns minutos de treguas, minutos terriveis de anciedade e, _perto de mim_, o passo cadenciado d'uma força militar... Eu, que não resava, fiz _in mente_ uma grande e ferverosa prece _por elles_. A força não tardou a desapparecer e voltou a agitar-me a persuasão de que tudo recahira em tranquilidade absoluta. Os minutos escoaram-se dolorosissimos, augmentando a minha impaciencia, aguçando a minha ignorancia do que occorria. Cheguei a ter a impressão de que essa guarda-avançada dos insurrectos se submettia completamente e que a mesma noite que a vira nascer a veria sepultar. Horrivel e febril essa hesitação do meu espirito, sem outro horizonte que uma neblina glacial, torturante e a galhofa das sentinellas que vigiavam o meu carcere. «A fadiga e a commoção prostraram-me. Exhausto, renunciei a saber, a indagar, a prescrutar. Tombei no leito, fechei os olhos e dormi. Quando despertei, era manhã clara. A nevoa dissipara-se e a cidade surgia cheia de luz. Corri á janella. O socego parecia completo. O dia annunciava-se lindo, calmo. Mas não tardou que um homem de quem me não lembro o nome, entrando na cella, me communicasse que a revolução estava na rua, e, seguindo-o e enfiando a cabeça por umas grades de ferro, presenciei effectivamente um dos episodios do combate. O movimento estava realmente no seu auge. A fuzilaria crescia de minuto para minuto. Convencido do triumpho, preparei-me para a sahida da cadeia... Não tardariam decerto a vir-me buscar. «O resto é por demais sabido. Ao começo da tarde, a bandeira revolucionaria, que até então tremulara no edificio da Camara, desappareceu com o estrondear do canhão. Esse trapo, que era a minha esperança, sumira-se após um tiroteio pavoroso, encarniçado. Ao declinar do dia, tive a sensação da derrota. Sobre a cidade cahia verdadeira mortalha. Tornei de novo a estender-me no leito, dormi doze horas sem interrupção e, quando despertei, reconheci-me excellentes disposições para affrontar a tempestade que ia desencadear-se, impiedosamente, sobre a minha cabeça...» Vejamos o que á mesma hora succedia em Coimbra, onde, como em Santarem e outras cidades do paiz, a organisação revolucionaria portuense contava um auxilio efficaz. Resolvido que a sedição se iniciaria ás 3 da madrugada de 31, Alves da Veiga mandou a Coimbra Ricardo Severo com o encargo de communicar a Silvestre Falcão: «que estivessem todos a postos, mas que só sahissem em armas quando recebessem um telegramma em cifra, isto para evitar impulsos temerarios.» Ricardo Severo desempenhou-se cabalmente da missão e ás 10 da noite reuniam cerca de setenta rapazes na casa dos Arcos do Jardim, onde moravam, alem de Silvestre Falcão, Augusto Barreto, Guilherme Franqueira e Fernando Brederode. Em primeiro logar, a assembleia nomeou um _comité_ dirigente, que ficou constituido por Silvestre Falcão, Pires de Carvalho, Augusto Barreto, Barbosa de Andrade e Antonio José d'Almeida. Depois, Malva do Valle foi alugar o telegrapho, para se conservar até de manhã por conta do _comité_ e operou-se a juncção do elemento academico com os outros revolucionarios de Coimbra, combinando-se por ultimo o seguinte: [Ilustração: José Sampaio (Bruno) (1891)] Logo que Silvestre Falcão recebesse na Alta o telegramma cifrado de Alves da Veiga, dez ou doze estudantes desceriam a ladeira do Pio até á parte posterior do quartel de infantaria 23, onde receberiam as armas e as munições destinadas a armar os conspiradores. Em seguida todos elles atravessariam a cidade, descendo pelo Quebra-Costas e a rua Visconde da Luz até o quartel. Ahi bastaria uma manifestação ao regimento, que, á voz dos sargentos revoltados, viria para a rua em sedição. Removidos todos os obstaculos que, porventura, se apresentassem á execução do plano, os conspiradores iriam depôr a sua obra nas mãos de José Falcão, que, informado de tudo, horas antes, puzera o seu esforço ao serviço da Republica. Um dos estudantes ainda lembrou a conveniencia de se destacarem grupos armados para junto das residencias dos officiaes do 23, a fim de lhes embargarem o passo, caso pretendessem sahir em direcção ao quartel, mas Silvestre Falcão ponderou que isso era perigoso e podia provocar uma série de assassinios e a assembleia revolucionaria decidiu «caminhar temerariamente, lançando o exito da empreza aos azares da guerra». Até á manhã clara, os estudantes conservaram-se reunidos na Alta esperando o telegramma do dr. Alves da Veiga. Mas o telegramma não chegou e assim que todos elles adquiriram a convicção de que o movimento do Porto fôra mal succedido, dispersaram desalentados, ainda que dispostos, no intimo, a renovar mais tarde a audaciosa tentativa. E muitos d'elles a renovaram com effeito. As datas de 28 de janeiro e 4 e 5 de outubro, trouxeram á evidencia uma boa porção dos nomes dos academicos conspiradores de 1891. CAPITULO XIV A alvorada triumphante: caçadores 9 inicia o movimento Duas da madrugada... Terminada a reunião na rua de Santa Catharina, os sargentos da guarnição portuense que a ella tinham assistido dirigiram-se aos seus quarteis e tomaram desde logo as providencias necessarias para a sahida das forças no momento opportuno, preparando-a de modo que á rapidez de execução se alliasse o affastamento da intervenção de qualquer official que, pelo seu prestigio, conseguisse contrariar a revolta. Caçadores 9 foi o primeiro regimento a dar o signal da sedição. As companhias formaram na parada do quartel sob o commando dos sargentos e emquanto dois d'elles, Galho e Bandarra, e algumas sentinellas procuravam impedir que o coronel Malheiro, o official de inspecção e o tenente ajudante saissem dos aposentos e se mostrassem aos soldados, o 1.º sargento Abilio[A] soltou o primeiro grito de _Viva a Republica_!--calorosamente repetido por todos os seus subordinados. Entretanto, apesar de todas as precauções tomadas pelos revoltosos, o coronel e o tenente-ajudante appareceram na parada e o coronel, dirigindo-se ao 1.º sargento, exprobou-lhe em phrases paternaes a sua attitude: --Tambem você, Abilio... e eu... que era tão seu amigo! --Meu coronel--respondeu o interpellado--v. ex.ª dar-nos-hia grande prazer se viesse commandar o regimento. --Isso não... --Nesse caso, v. ex.ª fica e nós sahimos. O tenente-ajudante chorava que nem uma creança e pedia a todos os sargentos que desistissem da sua audaciosa sortida, empregando os maiores esforços n'esse sentido. O coronel Malheiro ainda tentou falar ao regimento, para o demover do seu proposito e por ultimo exclamou para o 1.º sargento Norberto, que, como mais antigo, commandava o corpo: --Mande retirar essa gente para as casernas! --Agora já é tarde, meu coronel; não pode ser... E logo a seguir, o mesmo 1.º sargento deu as vozes do estylo: --_Direita volver, ordinario marche_... A intervenção do coronel Malheiro falhara por completo. Caçadores 9, sahindo do quartel, subiu em boa ordem a rua de S. Bento e dirigiu-se á cadeia da Relação, onde estacou. A guarda á cadeia, fornecida por aquelle corpo, era commandada pelo alferes Malheiro. Desde que nenhum dos officiaes, conhecidos como republicanos, que estavam dentro do quartel, tinha querido assumir o commando do regimento, os sargentos lembraram-se durante o trajecto de o offerecer áquelle subalterno, que sabiam tambem professar ideias democraticas. E um d'elles, abeirando-se da porta da casa da guarda, gritou para dentro: --Ó sr. Malheiro, venha d'ahi... O alferes não sahiu e a mesma voz tornou a insistir: --Ó sr. Malheiro, tome o commando do regimento, porque o official de inspecção não quiz acompanhal-o... O alferes então accedeu ao convite e voltando-se para o sargento da guarda recommendou-lhe que vigiasse bem o edificio da cadeia, não fossem os presos aproveitar o ensejo para se evadirem. Ninguem se lembrou, n'esse momento, que lá dentro estava João Chagas e que era natural gosasse immediatamente da liberdade para collocar o seu nome, o seu talento, o seu esforço individual e a sua energia ao serviço da revolução. Pensou-se apenas--e n'isso o alferes Malheiro deu provas de extraordinario sangue frio--em deixar guarnecida a prisão, com o receio de que o menor descuido fizesse extravasar para as ruas do Porto a grande massa de criminosos ali agglomerada. Liquidado este incidente, caçadores 9 proseguiu a sua marcha em direcção ao grupo de Santo Ovidio. Dentro de pouco reunia-se-lhe o de infantaria 10. As condições topographicas do quartel que então alojava o segundo d'aquelles regimentos permittiram que elle formasse na parada interior sem que o official de inspecção desse por tal. Ás 2 e meia da madrugada, um dos revoltados foi avisar o capitão Leitão, que morava proximo e que não tardou a comparecer no edificio. Dirigiu-se logo á arrecadação, poz um capacete na cabeça e tendo inquirido dos outros officiaes compromettidos na conjura foi esperal-os para um caramanchão. Estava bem longe de suppôr que uma vez chegado ao Campo de Santo Ovidio, teria que assumir o commando superior das forças revoltadas... Os minutos, no emtanto, iam decorrendo e como não apparecessem no quartel outros officiaes republicanos, um sargento veiu convidar o capitão Leitão a seguir immediatamente com as forças para o campo de Santo Ovidio. Assim se fez e o regimento marchou em acelerado para o local da concentração. Á entrada na rua da Rainha, encontrou o tenente Coelho, que fora chamado ao quartel por um grupo de cabos. O tenente Coelho conferenciou rapidamente com o capitão Leitão, trocou o kepi que levava pelo capacete do 1.º sargento Vergueiro e assumiu o commando do 2.º pelotão de infantaria 10. No Campo de Santo Ovidio, os dois regimentos formaram d'este modo: o de caçadores 9, em quadrado, proximo da porta principal do quartel de infantaria 18; o de infantaria 10 em dois circulos na outra extremidade do Campo. Concluida a formatura, os soldados e os civis já então ali agglomerados começaram a dar vivas ao regimento de infantaria 18 para o decidir a cooperar na insurreição. Outras vozes elevaram-se: --Viva a Republica! --Viva o exercito! --Abaixo a monarchia! Momentos depois, o destacamento de cavallaria 6, alojado n'uma das dependencias do quartel do 18, sahindo pela porta posterior do edificio, veiu a galope formar em linha parallela á fachada. As saudações e os vivas redobraram de intensidade. Ao mesmo tempo convergiam para o campo as forças da guarda fiscal. O cabo João Borges apresentou-se á frente de 87 praças de infantaria e o 2.º sargento Silva commandando 24 praças de cavallaria da mesma guarda. Quer dizer: ás 4 da manhã de 31 todas estas forças estavam revolucionadas e só aguardavam a sahida de infantaria 18 para iniciarem marcha contra o inimigo monarchico, apenas representado, dentro do Porto, pela guarda municipal e a policia civil. Varios officiaes superiores tentaram, emquanto o 18 não appareceu no local, fazer voltar aos respectivos quarteis as outras forças sublevadas. O primeiro foi o major Graça, da _guarda pretoriana_. Sahindo do quartel do Carmo, á frente de infantaria e cavallaria, dirigiu-se ao Campo da Regeneração e chamando o commandante de caçadores 9 já ali estacionado, intimou o alferes Malheiro a render-se. --Agora é tarde, respondeu o official revolucionario. --Ainda não é... Um cabo que ouvira a intimação exclamou: --Se é militar, eu tambem o sou; se é portuguez egualmente o sou; mas não posso soffrer esta tyrannia por mais uma hora! O major Graça, em resposta, bradou: --Querem então que haja derramamento de sangue, e sangue portuguez, n'estes dolorosos momentos por que está passando a patria? Pois seja... Um individuo da classe civil ia, n'esta altura, a arengar qualquer cousa aos soldados, mas os militares oppuzeram-se, dizendo-lhe: --Cale-se; aqui só a tropa tem voz activa. O major Graça dispoz as suas forças nas ruas da Lapa e de Germalde e foi dar ordens ao quartel de S. Braz. D'ahi a pouco entrou no Campo de Santo Ovidio o sub-chefe do estado maior da divisão, tenente-coronel Fernando de Magalhães. Encaminhou-se para o 2.º pelotão de infantaria 10 e perguntou pelo seu commandante. Respondeu-lhe o tenente Coelho. --Que estão a fazer aqui? disse o sub-chefe.--Mande retirar essa gente para o quartel. Os senhores são uns doidos... --Não é possivel, replicou o tenente. Estou sob as ordens d'um capitão do meu regimento e, tendo sahido do quartel, insurrecionado, para proclamar a Republica, já é tarde para recuar. --Quem é esse capitão que commanda o seu regimento? --O capitão Leitão. E dizendo isto, o tenente Coelho apontou ao sub-chefe o sitio onde elle se encontrava. Junto do commandante de infantaria 10, o sr. Fernando de Magalhães empregou quasi as mesmas palavras: --Mande recolher essa pobre gente a quem está a comprometter. --D'aqui não sae ninguem, respondeu o capitão, a carta está jogada e vamos até ao fim!... A seguir, o tenente coronel ainda formulou novo conselho de retirada ao alferes Malheiro, mas ninguem lhe obedeceu, como, de resto, tambem lhe não obedeceriam se elle, em vez de meios suasorios, procurando impôr o prestigio da sua personalidade, tivesse tentado outros processos mais violentos. Deixemos as forças revoltosas especadas no campo de Santo Ovidio e cercadas por todos os lados pela guarda municipal e vejamos o que se passava no quartel de infantaria 18. A insurreição d'este regimento não fora levada a cabo com tanta facilidade como a de caçadores 9 e infantaria 10, por causa das prevenções tomadas pelos officiaes. Um dos sargentos do 18, que assistira á reunião na rua de Santa Catharina, ao regressar ao quartel recebera ordem de detenção e só por um prodigio de astucia é que, illudindo a vigilancia do official de inspecção, conseguira dar conhecimento das deliberações tomadas na mesma reunião aos sargentos de cavallaria 6. Ainda assim, á hora marcada para a revolta, as companhias, á ordem dos officiaes superiores, começaram a formar as casernas. [Ilustração: Proclamação da Republica] Presentindo o movimento, alguem quiz evital-o, mas inutilmente. D'uma janella do primeiro pavimento, o tenente-ajudante arengou ás forças que já estavam na parada, mas dois tiros disparados na direcção d'essa janella cortaram-lhe o discurso. O coronel do regimento, Lencastre de Menezes, mostrando uma indecisão extraordinaria, ordenou a varios officiaes que sahissem do quartel a indagar que forças estavam formadas no campo. Decorrido algum tempo, os sargentos do 18 compromettidos na revolta, julgando que nem todos os seus camaradas adheriam á insurreição e que a sahida do regimento não se operaria sem um impulso energico, soltaram gritos furiosos de traição!--e assim conseguiram arrastar um grosso contingente de soldados--quasi duas companhias--para junto dos revoltosos do 9 e do 10. Mas o portão do edificio voltou a fechar-se sobre a sahida d'essa força e os instantes foram passando sem que o regimento adoptasse uma attitude definida em conjunctura, como essa, tão critica. Era necessario, na verdade, tomar uma resolução. Apoz alguns momentos de reflexão, em que os officiaes revoltados trocaram impressões sobre o caso, infantaria 10 e caçadores 9, formando a quatro, encaminharam-se para a parte posterior do quartel do 18 e estacionaram em frente da egreja da Lapa. As forças da guarda municipal, sob o commando do major Graça, retiraram prudentemente e, deixando livres as ruas que conduzem ao campo de Santo Ovidio, foram estacionar para a praça da Batalha, junto do quartel general e do telegrapho. A multidão, que a cada instante crescia, misturava aos das tropas os seus vivas atroadores. «No rosto de toda a gente havia a expressão d'uma alegria indizivel. Por vezes, os mais enthusiasmados rompiam as fileiras e iam abraçar um sargento ou um soldado, victoriando-os, acclamando-os. Era tão quente o arrebatamento, tão ardente aquella ruidosa alegria que a doce e consoladora esperança na victoria revolucionaria penetrava em todos os corações, dissipando vagos receios que a longa inacção das tropas fizera despertar.» Tratava-se agora de invadir o quartel de infantaria 18 e impellir de qualquer maneira esse regimento para a revolta. Os populares que se tinham collocado na vanguarda das forças do 9 e do 10 fôram a uma estação de incendios, que havia perto, trouxeram de lá dois machados e abriram um rombo na porta do quartel do lado da Lapa, que o coronel Lencastre de Menezes fizera pouco antes barricar. Soldados e populares iam, certamente, a entrar de tropel no edificio e travar lucta com os elementos hesitantes, quando o actor Miguel Verdial, tendo, n'um relance, a visão da provavel carnificina--o quartel era habitado por muitas familias--exclamou para os invasores: --Suspendam, que eu vou parlamentar com o coronel. Cá fóra, os vivas ao regimento de infantaria 18 eram calorosos e sem interrupção. Atraz de Miguel Verdial, entraram no quartel Santos Cardoso e outros individuos da classe civil e por fim o capitão Leitão commandando uma força dos dois regimentos revoltados. Santos Cardoso, gesticulando como um possesso e ameaçando a officialidade do 18 de ser riscada do exercito caso não adherisse á Republica, encaminhou-se para junto do coronel Lencastre e disse-lhe: --A esta hora estão quarenta e quatro regimentos sublevados, o telegrapho na nossa mão, o rei a embarcar: não queira V. ex.ª ser a unica nota discordante. --Deixe-me, replicou o coronel, eu não sou republicano nem monarchico. Sahirei d'aqui a pouco. O capitão Sarsfield, que estava proximo, accrescentou: --Visto que vae parte do nosso corpo, vamos tambem. Por seu lado, o capitão Leitão tambem procurou convencer o coronel a acompanhar os revoltosos. E, ao cabo d'alguns momentos, conseguiu effectivamente d'elle essa promessa, que mais tarde, nos conselhos de guerra, varios officiaes do 18 se empenharam em negar tivesse sido feita. Emquanto isto se passava, uma força da guarda municipal commandada por um tenente apparecia no largo da Lapa a enfileirar ao lado de infantaria 10. Depois, por conselho do tenente Coelho, punha-se novamente em marcha e seguia pela rua que ladeia á esquerda o quartel do 18. D'ahi a pouco, o capitão Leitão, sahindo d'aquelle edificio, voltava para junto das forças sublevadas e communicava aos officiaes ás suas ordens: --O 18 vem já. Nós seguimos para a Praça Nova e lá o esperamos. O commandante disse-me que vinha em breve: que estando elle e quasi todos os officiaes presentes no quartel era necessario tomar certas medidas de ordem e segurança e que convinha reunir o conselho administrativo antes do regimento sahir. Mas não era só o capitão Leitão que affirmava isto. Militares e civis, todos quantos sahiam n'aquella celebre manhã do quartel de infantaria 18 asseveravam que o coronel Lencastre de Menezes não tardaria com as forças do seu commando a juntar-se aos insurrectos. E faziam-no, certamente, por terem ouvido ao official já citado palavras muito nitidas a tal respeito. Mais tarde, nos conselhos de guerra, pretendeu-se desmentir tudo isso, e embora tivesse sido aconselhado ao capitão Leitão e aos outros reos que não aggravassem a sua situação com accusações a officiaes superiores que não estavam mettidos no processo, a verdade é que das acareações feitas em pleno tribunal militar resultou o convencimento geral de que só por um mero acaso não soffreram o castigo imposto a certos dos conspiradores outras creaturas de maior patente e mais graves responsabilidades. [A] O 1.º sargento Abilio, hoje tenente n'um regimento de infantaria, apoz o mallogro da revolta de 31 de janeiro, deixou crescer a barba e prometteu á esposa que só a faria rapar no dia em que em Portugal fosse definitivamente proclamada a Republica. Quando rebentou a revolução de 4 e 5 de outubro, a esposa, que estava em Espinho, telegraphou-lhe para o Porto, anciosa, a pedir noticias. O 1.º sargento Abilio dirigiu-se á estação da praça da Batalha e depositou um telegramma de resposta em que dizia: «_Estou bom; foi proclamada a Republica_». O empregado dos telegraphos recusou acceitar a communicação. --Porque não acceita? perguntou-lhe o antigo revolucionario do 31. --Porque ahi diz que foi proclamada a Republica e a noticia ainda não é _official_. --Bem... não ha duvida, redijo outro telegramma. E redigiu. A esposa, quando o recebeu delirou de contentamento e foi mostral-o a umas pessoas amigas. Mas estas, lendo o texto, não se contiveram que não observassem: --Seu marido mandou-lhe um telegramma de troça. Pois não é?... _Estou bom; vou fazer a barba_... --Não é troça, não... _Se elle vae fazer a barba_ é porque _já foi proclamada a Republica_! CAPITULO XV Proclama-se a Republica no edificio da Camara Municipal Já manhã clara, as forças revolucionarias sahiram das immediações do quartel de infantaria 18 e dirigiram-se pela rua do Almada até á praça de D. Pedro, onde deviam occupar os paços do concelho para se effectuar a cerimonia da deposição do monarcha reinante e da proclamação da Republica. Segundo a formatura ordenada pelo capitão Leitão, abria a columna, tocando a _Portugueza_, a banda, quasi completa, de infantaria 10, com alguns musicos de caçadores 9, todos sob a direcção do musico de 1.ª classe Eduardo da Silva; seguia-se-lhe a guarda fiscal e depois as praças d'aquelles dois regimentos, as do 9 antecedendo o 10. Conta um chronista: «Desde que as forças começaram a marchar, sentia-se desapparecer a oppressão que invadira todos os espiritos n'essas longas tres horas em que, fóra ou dentro do quartel, se tentara que o regimento de infantaria 18, devidamente commandado, viesse augmentar as forças da revolta. O que se seguiria depois parecia não preoccupar os espiritos. Acreditava-se firmemente que o regimento de infantaria 18 estava inclinado a apoiar a revolta. Se assim fosse nenhuma duvida poderia offerecer a victoria decisiva da Republica; não porque a força do regimento de infantaria 18 desse ás tropas insurreccionadas uma superioridade notavel sobre as da guarda municipal, mas pela alta significação que teria não só para a população civil mas para o quartel general o facto das tropas sublevadas serem commandadas por um coronel e muitos officiaes. Era evidente que, se esse acontecimento viesse a realisar-se, as adhesões seriam innumeraveis. Ninguem teria duvida em acceitar os factos consumados; as garantias de victoria eram indiscutiveis; a resistencia da guarda municipal seria nulla, sem contestação; a ordem estava assegurada. «Animadas d'uma doce esperança, as tropas revolucionarias, ladeadas por immensa multidão, seguiram para a praça de D. Pedro. Ao longo da rua do Almada, desfilava a columna em formação regulamentar e disciplinadamente. As janellas estavam todas abertas, e os habitantes que já tinham conhecimento de que a guarnição militar da cidade sahira dos quarteis para proclamar a Republica recebiam a noticia com manifesto aprazimento. E assim, á medida que as forças da revolta iam descendo a rua, ás saudações erguidas pelo povo que as acompanhava, correspondiam das janellas, gritando: «--Viva a Republica! «--Viva o exercito portuguez! «Acenavam com lenços, davam palmas, n'uma grande expansão de alegria que punha nos corações um suavissimo calor e nos labios um sorriso de triumpho. Nunca tão espontanea e tão calorosa manifestação se produziu na bella cidade do Norte. Nunca o Porto, a cidade do trabalho e das grandes virtudes civicas, fez tão enthusiastica acclamação a um exercito victorioso, porque nunca esteve mais identificado com a ideia que esse exercito vinha proclamando. Na rua a multidão engrossava a cada momento, e, quando as tropas revolucionarias dobravam a rua do Almada para entrar na praça de D. Pedro, era difficil romper por entre a massa compacta que se agglomerava...» Chegadas as forças á praça de D. Pedro, formaram rodeando a mesma praça pelos lados do norte, nascente e sul, começando a linha pela guarda fiscal e terminando por caçadores 9. O esquadrão de cavallaria 6, que tambem acompanhava a columna, estacou na rua occidental da praça. Pouco passava das seis horas da manhã. As acclamações despedidas pelos populares continuavam vibrantes, enthusiasticas. De repente, abriram-se as janellas dos paços do concelho e alguns individuos da classe civil, entre os quaes se destacava a figura herculea de Santos Cardoso, appareceram a dar vivas á Republica, ao exercito e aos regimentos sublevados. Um popular, armado de espingarda, foi buscar a bandeira do Centro Democratico Federal 15 de Novembro; Santos Cardoso agitou-a freneticamente sobre a multidão e depois fel-a arvorar no mastro que sobrepujava o frontão do edificio. A guarda de honra nos paços do concelho era feita por uma força de infantaria 10 commandada pelo 1.º sargento Vergueiro. Decorrido algum tempo, o dr. Alves da Veiga assomou a uma das janellas da casa da Camara e proferiu um discurso, entrecortado pelos applausos da multidão. Depois ia a ler os nomes das pessoas que deviam constituir o governo provisorio, mas o actor Miguel Verdial arrancou-lhe o papel das mãos e procedeu a essa leitura. Esses nomes eram os seguintes: _Rodrigues de Freitas._ _Joaquim Bernardo Soares_ (desembargador). _José Maria Correia da Silva_ (general de divisão). _Joaquim Azevedo Albuquerque_ (lente da Academia Polytechnica). _José Ventura dos Santos Reis_ (medico). _Licinio Pinto Leite_ (banqueiro). _Antonio Joaquim de Moraes Caldas_ (professor). _Alves da Veiga._ Cada um d'estes nomes foi acolhido com vivas delirantes e estrepitosos. Proclamado o governo provisorio, a maioria dos populares que tinham entrado na casa da Camara desceu á praça a misturar-se com os soldados, que, diga-se sem hesitações, já começavam a sentir os effeitos d'uma immobilidade que afinal ninguem justificava. Na varanda dos paços do concelho ondulavam dezenas de bandeiras azues e brancas. O nevoeiro, que de madrugada amortalhara a cidade, dissipara-se lentamente. O capitão Leitão, vendo que, em contrario do que lhe assegurara o coronel Lencastre de Menezes, infantaria 18 não vinha juntar-se ás forças revoltadas, e que os minutos corriam rapidos sem que no local apparecessem outros officiaes além dos tres que desde o começo da revolta lhe tinham francamente adherido, approximou-se do tenente Coelho e disse-lhe: --Estou a perceber isto perfeitamente; fomos trahidos: _são uns infames_. Disseram-me que a guarda municipal adheria e não a vi no campo; que o sub-chefe de estado maior tambem vinha e eu tambem o não vi... Aqui acontece a mesma cousa. _São homens de pannos quentes._ Talvez haja motivo para demoras. Pelo sim pelo não continuarei a esperar... Mas os soldados mostravam desejos de seguir para a frente e um popular, approximando-se do capitão Leitão, observou-lhe que a guarda municipal já estava occupando a praça da Batalha, na defensiva e que era urgente desalojal-a d'ali para se occupar o telegrapho e o quartel general. Outro popular aconselhou-o a fraccionar as forças do seu commando. [Ilustração: A Bandeira da Revolta que foi hasteada na Camara Municipal] --Ora, tenha juizo, replicou o valente official. Ninguem nos hostilisa. E, voltando-se para o tenente Coelho, acrescentou: --Vou tomar uma resolução definitiva: vou mandar seguir pela rua de Santo Antonio, onde me apresentarei ao general; n'um caso ou n'outro elle dará as suas ordens... O tenente Coelho notou que a guarda da Camara tinha desapparecido e que era conveniente não deixar o edificio á mercê da populaça. O capitão Leitão concordou com a ideia e mandou para os paços do concelho uma força do commando d'um sargento. Feito isto dispoz-se a marchar em direcção á praça da Batalha. Antes, porém, reuniu com o tenente Coelho e o alferes Malheiro uma especie de conselho conversando os tres sobre a attitude que d'ahi por diante deviam adoptar as tropas sublevadas perante as outras que não manifestavam adhesão ao movimento. O tenente Coelho registou mais tarde, do seguinte modo, as ideias que predominaram n'essa conferencia: «O parecer de que as forças da revolta se dividissem em differentes fracções que por diversas ruas convergiriam na praça da Batalha, forçando a guarda municipal que ali se encontrava a abandonar o seu posto, atacada de frente, de revez e de flanco foi posto de parte, porque, apesar de tudo, se tinha como certa a adhesão d'essa força desde que as tropas sublevadas manifestassem não abandonar o seu proposito. A guarda municipal estava informada de que o regimento de infantaria 18 apoiava a revolução; vira com que ardentes acclamações eram saudadas as forças revolucionarias; sentia-se, portanto, isolada do resto das tropas da guarnição e das sympathias da população civil; demais entre aquella guarda havia um grande numero de homens que tomara parte nos preparativos da revolta. O que havia, pois, a fazer era, do mesmo modo que a guarda municipal procedera com as tropas sublevadas no campo de Santo Ovidio, procederem tambem para com ella, aconselhando-a a abandonar a sua attitude espectante e a adherir ao movimento insurreccional; o regimento de infantaria 18 havia adherido, não era rasoavel nem patriotico que a guarda municipal o não fizesse. As tropas sublevadas não tinham a menor intenção de fazer derramar sangue de irmãos d'armas; não desejavam uma lucta fratricida, tanto menos presumivel que, sem excepções, todo o exercito se sentia impellido a resgatar o paiz da humilhante situação em que se encontrava por virtude dos actos dos governos da monarchia, que não se inspiravam nos sagrados interesses nacionaes. «Não. A guarda municipal era com as tropas da revolta. Se estas não tinham a commandal-as officiaes, cujas patentes e cujos nomes se impuzessem, bem certo era que o regimento de infantaria 18, com o seu coronel e com os seus officiaes, tinha adherido ao movimento revolucionario e não havia que hesitar. Os tres officiaes que se encontravam com as forças sublevadas, ali, não queriam reivindicar nenhum direito de superioridade; contentavam-se bem com a satisfação da sua iniciativa e, nem por si, nem pelos seus subordinados, reclamavam nem outros postos nem outras honras. Se outras ideias germinavam no espirito dos que não tinham até aquelle momento adherido á revolta, que se desilludissem. Que o throno desapparecesse: mais nada. A nação governar-se-hia sem profundas transformações. Ellas viriam depois. O essencial era quebrar com a criminosa tradição. Por ella é que Portugal vergava ao peso de tanta deshonra, por ella é que a vida social vinha sendo insupportavel. Governar-nos-hiamos como irmãos, no mesmo sentimento commum dos interesses individuaes, coincidindo com os da Patria. Taes pensamentos animavam as tropas sublevadas. Não havia que discutir.» Resumindo: o capitão Leitão iria á frente das forças e ao chegar á praça da Batalha procuraria parlamentar com o sub-chefe de estado maior, Fernando de Magalhães, que os revolucionarios consideravam intelligente e de caracter. Elle decidiria em ultima instancia se a superioridade estava, na verdade, do lado dos sublevados e se a guarda municipal podia ou não submetter-se-lhes sem hesitações. Era o appello honesto a um arbitro de occasião, que gosava ao momento de justificado prestigio na classe militar. CAPITULO XVI O choque sangrento--A guarda municipal desbarata os revoltosos As forças do commando do capitão Leitão sahiram da praça de D. Pedro e principiaram a subir a rua de Santo Antonio. Formavam uma columna «em marcha de quatro», levando á frente a banda de infantaria 10; seguia-se-lhe a guarda fiscal e iam depois caçadores 9 e aquelle regimento. A guarda municipal formava ao alto da rua, no adro escalonado de Santo Ildefonso, guardando a entrada da Batalha pelas ruas de Santa Catharina, Santo Antonio, de Santo Ildefonso, de Cimo de Villa e viela da Madeira. A entrada pelas ruas de Entreparedes e Alexandre Herculano, vedavam-na cem praças fieis da guarda fiscal. No lado nascente do antigo theatro de S. João formava cavallaria 6, cobrindo o edificio do quartel general e governo civil. Uma multidão immensa acompanhava as forças da revolta na marcha rua de Santo Antonio acima e essa arteria do Porto tinha um aspecto quasi de festa. A maior animação e alegria illuminavam-na. Do povo sahiam brados enthusiasticos victoriando os sublevados. As senhoras que estavam ás janellas agitavam freneticamente os lenços, soltavam vivas calorosos, batiam as palmas n'um contentamento indescriptivel. A satisfação dominava tudo e todos. A marcha das forças tinha o caracter insophismavel d'um passeio triumphal, em que elles pareciam recolher os applausos pela victoria alcançada rapidamente e sem embate sensivel. Na altura da viela chamada dos Banhos, do lado direito da rua de Santo Antonio, o povo que acompanhava os sublevados hesitou e recuou. O capitão Leitão olhou para cima, e viu a guarda municipal em attitude defensiva com as armas apontadas para a columna. Não ligou grande importancia ao facto e, como a banda de infantaria 10 continuasse a tocar, não ouviu que de Santo Ildefonso os cornetas tinham feito o signal de _alto_--_meia volta_. Ia a proseguir na marcha quando presenceou que dois soldados da guarda fiscal, sahindo da fórma, se dispunham a disparar as armas contra a municipal. Correu para elles e gritou-lhes: --Não atirem!... A guarda não nos faz mal!... [Ilustração: Basilio Telles 1891] Os homens entraram na fórma e elle então, collocando-se á frente da columna, levantou os braços, como pretendendo affirmar á municipal que a attitude dos sublevados era pacifica. De nada valeu esse expediente. A guarda, fazendo pontarias baixas, deu uma descarga que lançou o maior panico nas forças da revolta e nos populares que pejavam a rua de Santo Antonio. A marcha deteve-se. Uma commoção violenta agitou aquella massa compacta. N'um segundo, ou em menos d'um segundo, produziu-se um grande e precipitado movimento de recuo. Os populares, como por instincto, penetraram nas fileiras da columna procurando um abrigo. Impellida pela força collossal d'essa enorme multidão, a columna dissolveu-se, desordenada e a breve trecho a rua de Santo Antonio ficou juncada de corpos inanimados e dos despojos das victimas. O capitão Leitão, ferido na cabeça, abrigou-se n'uma casa proxima, acompanhado de dois corneteiros e d'uma praça da guarda fiscal e mandou fazer repetidos toques de cessar fogo. Trabalho inutil. A guarda municipal, abrigada por detraz de pedras continuou a alvejar a rua de Santo Antonio, respondendo áquelles toques com tiroteio renhido. Entretanto, no meio de todo esse panico, os soldados revoltados ou se agrupavam junto de alguns portaes ou se deitavam no chão, offerecendo o menor alvo possivel ao fogo da guarda. E, emquanto tiveram munições, responderam com valentia ao ataque da força fiel ao regimen monarchico. Esses heroicos combatentes eram principalmente da guarda fiscal e de caçadores 9, porque o regimento de infantaria 10, estando no fundo da rua de Santo Antonio ao começar o tiroteio, fôra forçado a recuar até á casa da camara. E assim se sustentaram n'um ou n'outro ponto da rua, quasi sempre expostos aos projecteis da municipal, atirando sobre os adversarios com uma serenidade extraordinaria, desafiando impavidamente a morte. Em certa altura, ouviram-se na praça de D. Pedro os primeiros tiros da artilharia. A bateria da Serra do Pilar intervinha na lucta para lhe pôr o ponto final. Os revoltados até então escalonados na rua de Santo Antonio desceram até ao edificio municipal e ahi se reuniram ás forças do 10, que se tinham concentrado n'esse ponto desde o começo da refrega. O capitão Leitão, havendo conseguido, depois de abandonar a casa onde se abrigara, chegar por entre quintaes e escalando muros até á Praça Nova, ainda procurou com as forças reunidas na casa da camara operar um retorno offensivo sobre a guarda municipal. Mas não houve meio, ou melhor, já era tarde para tentar a sortida. Pequenas fracções da guarda, protegendo a bateria de artilharia postada nos angulos dos Loyos e de S. Bento, começaram a atacar os sublevados encurralados nos paços do concelho e um tiro de peça, arrombando a porta do edificio, mostrou áquelles valentes que a situação se definia, irremediavelmente como a derrota da Republica. O capitão Leitão abandonou a casa da camara e d'ahi a pouco os outros combatentes imitaram-n'o, terminando a lucta cerca das 9 da manhã. Durara duas horas. Por este relato é facil de vêr que a victoria alcançada pela guarda municipal foi mais devida á excessiva _boa-fé_--chamemos-lhe assim--das tropas revolucionarias do que á coragem dos soldados fieis á monarchia. Se as forças revolucionarias houvessem marchado sobre a praça da Batalha em disposição hostil, o resultado do choque sangrento teria sido, sem duvida, bem diverso. O proprio capitão Leitão reconheceu isso mesmo no conselho de guerra a que foi submettido: --Se eu adivinhasse que tratava com tal gente--disse elle, referindo-se ás forças do commando do major Graça--eu procederia d'outra forma e hoje não me alcunhariam de imbecil. Eu avançava com a maior serenidade e nem mesmo me passava pela mente que ia para um ataque. Suppunha-os plenamente seguros e, como já disse, tinha razões para isso. Se eu entendesse, se eu suspeitasse do que me esperava, não teria receio algum de os atacar. «Não era a guarda municipal, que de poucas forças dispunha, pois não estava toda reunida (e nem mesmo que o estivesse) que derrotaria as forças do meu commando. Cercal-a-hia, e isso sem grandes planos estrategicos e forçal-a-hia a render-se, sem mesmo disparar um tiro. E não se daria a grande desgraça que se deu. Eu envolvia a guarda e ella não poderia resistir. Não lhes chamem, pois, valentes, porque o não são. Estava espantado de um tal procedimento. «Eu não ia para isto»--disse na casa onde entrei. E esta é a verdade; a prova é que alguem que ouviu a minha phrase já aqui a referiu. Não digo isto para declinar responsabilidades, porque não quero declinal-as...» Incontestavelmente, a guarda municipal não poderia manter-se nas suas posições; e, nem pelo numero nem pela dextreza, conseguiria offerecer uma resistencia demorada. Alem d'isso, não estava suficientemente instruida no manejo da espingarda Kropatschek, que só muito pouco tempo antes da revolta lhe fôra distribuida; o serviço especial de policia, em que era empregada, não lhe permittia evolucionar convenientemente em combate. Pelo contrario; os seus adversarios, tendo passado pela carreira de tiro em exercicios reiterados, estavam perfeitamente aptos para se medir com ella e para a subjugar sem esforço sensivel ou grande dispendio de munições. E a prova é que a guarda se conservou sempre na defensiva, abrigada pelas varandas de pedra que guarnecem as escadas e patamares que dão accesso á egreja de Santo Ildefonso e só mudou de attitude quando a bateria de artilharia, rompendo o fogo contra o edificio municipal, rematou a contenda. Emquanto, na rua de Santo Antonio e na praça Nova se desenrolavam os acontecimentos que acabamos de narrar, as guardas de revoltados que haviam ficado nos quarteis impediam que ali entrassem os respectivos officiaes não adherentes ao movimento e que o mesmo movimento surprehendera ainda no leito ao romper da manhã de 31 de janeiro. No quartel de caçadores 9, por exemplo, ficara uma força sob o commando do sargento Galho, que mandara armar todas as praças que ali estavam, collocando-as ás suas ordens. Instantes depois do regimento ter sahido para a revolta, essa força avistando na rua de S. Bento um troço da guarda municipal, fel-a dispersar com uma descarga. E desde manhã até ao começo da tarde, todos os officiaes que tentaram penetrar no edificio foram respeitosamente prevenidos pelo sargento Galho de que desfecharia sobre elles a sua espingarda. [Ilustração: Bombardeamento da Camara Municipal pelas tropas fieis ao Governo] Só ás tres horas é que esse valente militar se rendeu, abandonando o quartel ao dominio dos vencedores. O capitão Almeida Soares que havia tomado conta da guarda á cadeia da Relação, appareceu á porta principal d'aquelle edificio e intimou o sargento a entregar-se-lhe. --Não, respondeu o revoltado. --Mas isso é uma loucura, insistiu o capitão. A insurreição já está suffocada. --V. ex.ª dá-me a sua palavra de honra? --Dou. Então o sargento Galho disparou a espingarda para o ar e franqueou as portas do quartel ao capitão Almeida Soares. Em infantaria 10 as cousas passaram-se d'outro modo. Ahi a guarda ao quartel, composta d'um cabo e varios soldados conseguiu, ás primeiras ameaças, que os officiaes não tentassem sequer empregar a sua auctoridade hierarchica para a demover do proposito em que se encontrava. Todos elles, percebendo a inutilidade de qualquer esforço n'esse sentido, dirigiram-se á casa do commandante do regimento e só mais tarde, quando a revolta se considerou completamente suffocada é que conseguiram submetter a guarda do quartel e as praças que retiravam da lucta que se travara. Mas, facto digno de registo: tanto n'um como n'outro quartel não se produziram violencias--aliás comprehensiveis n'um momento como esse de fundamentada agitação e irresistivel anormalidade. Violou-se é certo, a disciplina. Nem a revolução era possivel sem esse delicto. Mas ninguem faltou ao respeito individual pelos officiaes que não quizeram adherir ao movimento. CAPITULO XVII A noite negra do traidor Castro O destino de trez officiaes Relatados assim os factos que caracterisaram essencialmente a revolta, desde o primeiro viva á Republica soltado pelo sargento Abilio até á _reconquista_ dos paços do concelho pela guarda municipal victoriosa, não é demais uma referencia embora ligeira ao homem que, atraiçoando os seus camaradas, contribuiu de algum modo para que a noticia do movimento se divulgasse prematuramente e o contrariasse em mais d'um ponto. Esse homem, já o dissemos n'outro logar d'esta desataviada narrativa, foi o sargento Castro. «Tendo assistido á reunião da rua do Laranjal--contou elle em conselho de guerra, depondo como testemunha accusatoria dos implicados na revolta--vi, com espanto, que se tratava d'uma representação dos sargentos ao governo, elaborada em termos taes, que era mais uma ameaça do que um pedido. Á reunião presidiu o alferes Simões Trindade. Pretendi tomar a palavra, para combater a forma como fora escripto esse documento, mas a maioria dos assistentes abafou as minhas palavras e eu retirei-me do local. _No dia seguinte ao da reunião, procurei o capitão Sarsfield e narrei-lhe o succedido, para evitar que mais tarde me calumniassem_...» Mas a delação do sargento Castro não ficou por aqui. Provocando com essa narrativa ao capitão Sarsfield as perseguições que as auctoridades militares moveram dias antes da revolta aos officiaes inferiores da guarnição do Porto, o traidor, na tarde do dia 30, voltou a avisar aquelle capitão de que o movimento rebentaria na madrugada do dia seguinte. Fez a denuncia e sahiu do quartel do 18, disposto a não tornar a entrar lá dentro, porque receiava justamente que os seus camaradas de regimento, sabedores do seu acto ignobil, lhe arrancassem a pelle. Ás 11 da noite, porem, como tivesse deixado ficar no edificio a guia de marcha para Lisboa--o sargento Castro fora mandado apresentar com urgencia no ministerio da guerra--arriscou-se a penetrar novamente alli e falou ao capitão Fumega, que era o official de inspecção. O capitão, mal o viu, aconselhou-o a que se retirasse, accrescentando: --Olhe que a sua vida corre perigo... Alguns sargentos querem matal-o por não haver adherido á conjura... --Não tenho medo, respondeu o traidor, encaminhando-se para a secretaria. Nessa dependencia do quartel estavam reunidos o coronel Lencastre de Menezes e o capitão Sarsfield. O coronel dirigiu ao sargento Castro conselho identico ao que já lhe dera o official de inspecção: --O senhor desappareça do edificio, porque a sua presença aqui pode provocar um conflicto grave... --Vim buscar a guia de marcha, replicou o traidor. --Isso é o mesmo... Diga onde quer que eu lh'a mande amanhã de manhã... O sargento Castro obedeceu. E abandonando o quartel foi tomar café. Depois como se fazia tarde, lembrou-se de ir dormir a uma hospedaria da praça de Santa Thereza. Quando parou á porta, principiava a accentuar-se nas ruas o movimento das tropas insurrecionadas. Tremeu de medo. O seu acto infame seria, indubitavelmente castigado e castigado com rigor, pelas forças que aclamavam a Republica. Receiando que o vissem e lhe pedissem estreitas contas da delação foi para a esquadra dos Carmelitas e alli supplicou que o não entregassem aos revoltados pelos motivos acima expostos e que reproduziu entre lamentos cobardes ao commandante da força policial. Durante hora e meia, conservou-se recolhido n'esse abrigo, estremecendo a cada ruido indicativo da victoria dos insurrectos. Passado esse tempo veiu ordem do quartel do Carmo para toda a policia da esquadra dos Carmelitas--como das outras esquadras--auxiliar as evoluções das tropas fieis á monarchia. A esquadra ficou deserta. Cheio de terror, sentindo-se isolado no transe mais angustioso da sua vida, o sargento Castro acabou por tambem abandonar a esquadra e foi para o quartel do Carmo, onde suppunha estar em maior segurança. Ahi, apresentou-se ao official de inspecção e este vendo que elle ainda não tinha seguido para Lisboa, apesar da ordem urgente que recebera, prendeu-o incommunicavel e, no dia immediato, fel-o transportar para bordo da corveta _Sagres_. Na corveta detiveram-no por vinte e quatro horas e só o puzeram em liberdade quando o commandante do 18, intercedendo em seu favor, informou as outras auctoridades militares do papel repugnante que o prisioneiro desempenhara na insurreição... Fechemos aqui a historia do traidor Castro e sigamos o destino dos trez officiaes combatentes que se salientaram nas diversas phases do movimento revolucionario. O capitão Leitão, acabada a lucta na casa da Camara, refugiou-se nas proximidades do quartel de infantaria 10 e ás 8 da noite de 31 foi ao domicilio do tenente Coelho que ahi se acolhera apoz a derrota. O tenente Coelho, surpreso, de o ver, exclamou: --Como, pois tu aqui? --É verdade, replicou o valente official. Que fazer agora? --Meu caro, ou fugir ou apresentarmo-nos no quartel general. Para o caso de nos expatriarmos é preciso dinheiro que eu não tenho... --Nem eu. Comtudo, talvez um amigo m'o empreste. --Pois bem, concluiu o tenente Coelho, se conseguires o dinheiro necessario aos dois vem á minha casa ás duas da madrugada; se não alcançares senão o sufficiente para ti, vae só e sê feliz... O capitão Leitão sahiu e não tardou a apparecer ao seu companheiro de lucta. Na madrugada de 1 de fevereiro, montou a cavallo e dirigiu-se a Oliveira de Azemeis. «Aqui, dil-o uma testemunha presencial, apesar de o reconhecerem, as auctoridades não o perseguiram e elle seguiu para Albergaria-a-Velha, no intuito de comer alguma cousa. Quando chegou a essa localidade, estava o padre, que tem a alcunha de _O Sopas_, conversando com varios individuos ácerca dos acontecimentos do Porto. Este padre tinha sido, durante doze dias, hospede de cama e meza do capitão Leitão. Ao vêr o cavalleiro, exclamou: --«É elle!... «Alguem recommendou ao _Sopas_ que não denunciasse o fugitivo. Mas o padre approximou-se acto continuo do cavalleiro e disse-lhe: --«O senhor é o capitão Leitão! --«Não, não sou, respondeu o interpellado. «Mas, logo a seguir, commovido, fraco--havia muitas horas que não comia--o capitão Leitão succumbiu e cahiu com uma syncope. O padre procurou o administrador e este tomando conta do foragido, encerrou-o na cadeia. Na prisão, o capitão Leitão teve nova syncope. Quando d'alli sahiu, no meio da escolta que o devia acompanhar ao Porto, dirigiu-se ao povo em phrases sentidas e a commoção que provocou foi tão intensa, que muita gente derramou sinceras lagrimas.» No trajecto de Albergaria-a-Velha para aquella cidade, o capitão Leitão observou ao commandante da escolta: --Sabe uma cousa... Não triumphámos na revolta de 31 porque fomos trahidos. --Mas quem os atraiçoou no fim de contas... perguntou o commandante. --Sou bastante generoso para não denunciar ninguem! Na cadeia da Relação, o capitão Leitão mostrou-se por vezes excitadissimo e nunca cessou de solicitar do respectivo director que lhe consentisse vêr o filho--um rapazito de quatorze annos que ia alli levar-lhe a comida. No dia 6 de fevereiro á tarde, satisfizeram-lhe o desejo. E elle então, ao avistar a creança, ajoelhou, exclamando: --Perdoa-me, assassinei-te!... O tenente Coelho, esse, apresentou-se no dia 1 de fevereiro, no quartel general, aqui entregou a sua espada ao sub-chefe de estado-maior, que lhe deu voz de prisão e foi em seguida conduzido para o castello da Foz, onde ficou custodiado á vista. O alferes Malheiro, ao que depois se affirmou, tendo sido derrubado na rua de Santo Antonio pelos populares que fugiam das descargas da guarda municipal, acolheu-se á casa d'um amigo, d'onde mais tarde passou para uma quinta do Douro e d'aqui para a Povoa do Varzim. Na Povoa embarcou n'uma canoa de pesca para a Galliza e de Vigo seguiu mais tarde para a America do Sul. A maledicencia não poupou nenhum d'esses tres homens. Vendo-os derrotados, entreteve-se a assacar-lhes varias infamias, como se fosse necessario cobril-os de opprobrio para mais facil apotheose dos vencedores. Os jornaes da epocha, porém, registam diversos documentos que ao mesmo passo que evidenciam a qualidade dos manejos tecidos para denegrir a situação dos tres officiaes, demonstram egualmente que todos elles investiram de frente contra as insidias e calumnias espalhadas nos orgãos da monarchia. Vejamos, em primeiro logar, esta carta do capitão Leitão publicada, já depois de elle ter sido julgado e condemnado em conselho de guerra: «_Sr. redactor do «Seculo»_:--Informa o _Dia_ que minha esposa supplicára do general Scarnichia commandante da 3.ª divisão militar, o auxilio da rainha de Portugal em seu favor e que a soberana ia, com effeito, conceder-lh'o bem como a meus dois filhos. Achando-me eu separado ha annos da senhora de quem se trata, cumpre-me declarar em vista de tal informação, que nem sou solidario com os seus actos nem d'elles assumo a menor responsabilidade. Cumpre-me outrosim accrescentar quanto a meus filhos que a situação d'estes é perfeitamente independente da de minha esposa e se acham felizmente ao abrigo da regia philantropia. Lamentando que um tal facto me obrigasse a vir á imprensa desvendar um recanto da minha vida intima, etc.--_Antonio do Amaral Leitão_.» Trechos d'uma carta do tenente Coelho: «_Sr. redactor do «Diario Popular»_:--Tive por acaso conhecimento de que um jornal de Lisboa, no furor de fazer _reportage_, a proposito dos lamentaveis successos do dia 31 de janeiro se refere a um incidente da minha vida de estudante, deturpando-o e commentando-o de um modo insultante para mim. Indigna-me a cobardia; porque é facil e pouco perigoso insultar um preso que tem a absoluta impossibilidade de desforçar-se. Não fui eu o unico a quem aconteceu aquelle incidente, mas fui o unico que por elle respondi, sendo absolvido por unanimidade no conselho de guerra respectivo. Outros mais felizes obtiveram as suas cartas apesar de identicos incidentes. [Ilustração: Tenente Coelho (1891)] «Pois embora tivesse sido denunciado por um camarada, não deixei de lhe perdoar o muito que soffri pelo muito que os dignos officiaes que compunham o corpo docente da escola do exercito me beneficiaram a mim. E desde que vesti a minha farda de official, desde janeiro de 1883, posso erguer bem alta a cabeça, que na minha vida não ha uma acção que me deslustre! Tenho por testemunhas toda a população de Villa Real, onde sempre tenho vivido e os officiaes que commigo serviram em infanteria 13. Desafio quem quer que seja a desmentir as minhas palavras. Transferido violentamente e violentamente exonerado de ajudante de infanteria 13, como o prova o sr. conde de Villa Real, pelo simples facto de eu ser progressista, partido em que trabalhei afanosamente, bem podera ter ficado no mesmo logar se quizesse transigir com o partido regenerador, como pode proval-o um dos homens mais honrados e illustres d'esse partido, o sr. dr. Antonio de Azevedo Castello Branco. Mas não. O meu dever era não abandonar o partido em que me alistára e assim o fiz, apesar dos innumeros sacrificios que isso me custou. «Tendo um grande amor ao trabalho e ao estudo, todo Villa Real sabe e todos os que me conhecem testemunham como eu desde as 6 horas da manhã até ás 6 ou 7 da tarde, áparte as horas em que cumpria os meus deveres officiaes, leccionava varias disciplinas para angariar meios de subsistencia para a minha numerosa familia sem me arredar um ponto da linha recta da honra e da dignidade.--_Manuel Maria Coelho_.» Uma carta do alferes Malheiro: «_Sr. redactor do «Jornal de Noticias»_:--Tendo lido em diversos periodicos que eu tentara alliciar a força da guarda do meu commando, a fim de me acompanhar na revolta e que essa força não adheriu devido ao procedimento energico do 2.º sargento Benigno, que disse não abandonar o seu posto emquanto tivesse munições, tenho a declarar muito terminantemente que são falsas taes versões. «Na occasião em que se apresentou o regimento de caçadores 9 em frente da cadeia, sahi do meu quarto e como visse grupos de soldados passeando, intimei-os a recolher á casa da guarda, assistindo eu mesmo a essa retirada. Disse-lhes, finalmente, que ninguem sahiria d'alli a não ser ao brado d'armas. Tudo isto que declaro é a expressão da verdade, podendo ser garantido pelo sargento que estava n'esse momento a meu lado. «Nunca me passou pela imaginação a adhesão da força da guarda, pois n'aquelle momento de exaltação não deixei de pensar em que se tornava precisa a maior vigilancia sobre a cadeia. Seria leviano, mas não tanto como o julgam aquelles para quem escrevo esta declaração.--_Augusto Rodolpho da Costa Malheiro._» Repetimos: a maledicencia não poupou nenhum dos tres officiaes que se evidenciaram durante a revolta. Dias a fio bradou-se, á mistura com a divulgação dos mais censuraveis boatos, que era necessario applicar aos culpados todo o rigor das disposições penaes. Pouca gente, da affecta ao regimen e á dynastia brigantina, ponderou que a genese do movimento brotara exactamente dos erros e dos escandalos d'um e d'outra e que para os accusadores serem realmente justos precisavam, antes de mais nada, pensar nas suas proprias responsabilidades, ou nas dos partidos politicos a que pertenciam. CAPITULO XVIII O dia seguinte ao da derrota Suffocado o movimento, que fizera triumphar por algumas horas, a dentro dos muros do Porto, a bandeira verde e vermelha, os serventuarios da monarchia apressaram-se a enaltecer os talentos dos vencedores e a amesquinhar o valor da organisação revolucionaria. Não ignoravam elles que fóra d'aquella cidade se tinham dado occorrencias graves, reveladoras da amplitude d'essa organisação e que para evitar maiores complicações se mandara interromper a marcha d'algumas das forças militares a caminho do fóco insurreccional. «O mesmo regimento de infanteria 18--affirma-o um chronista da epoca--só ás dez da manhã, terminado completamente o combate, finda inteiramente a lucta, foi, a bandeira desfraldada, apresentar-se ao quartel general. Um dos regimentos do Norte, que chegou a desembarcar na estação de Campanhã, ahi mesmo levantou vivas á Republica. Muitas praças do regimento de caçadores 5 que faziam a guarda ás prisões onde se encontravam os revoltosos que não haviam conseguido fugir, diziam-lhes que tinham feito mal em não prolongar a lucta até á sua chegada, porque o regimento faria causa commum com a revolta...» Na imprensa monarchica liam-se as cousas mais affrontosas para os derrotados. Todos os que, durante os momentos victoriosos, tinham receiado pela sua integridade pessoal, atropellavam-se no empenho de accumular a _metralha accusatoria_ sobre os vencidos. Sacudiam-se responsabilidades e ninguem queria ter a menor solidariedade com os revoltosos. As mesmas corporações que no caso do triumpho republicano se apressariam por certo a saudar o advento d'um novo regimen com o appoio incondicional e festivo despejavam sobre o throno canastradas de felicitações, algumas n'uma linguagem servil e, por isso mesmo, abjecta. No dia 31, ao começo da tarde, o governador civil do Porto, Taibner de Moraes, fez publicar um edital suspendendo «as formalidades que garantem a liberdade individual», e o governo central acrescentou a isso a suppressão da imprensa republicana ou d'aquella que não vociferasse tonitruante contra o movimento e os seus promotores. A serie das bajulações á monarchia victoriosa que, afinal, durante a insurreição, não ganhara para o susto, foi aberta pela vereação portuense n'uma mensagem que ella propria veio entregar a Lisboa, dizendo todas estas enormidades: «N'esse nefasto dia (o de 31 de janeiro) uma parte da guarnição, esquecendo o juramento de fidelidade á sua bandeira e ás instituições que nos regem e não menos o dever da disciplina e da manutenção da ordem e da tranquilidade publica, praticou o maior dos attentados contra a patria, que na occasião se podia commetter. «Attentando contra a monarchia constitucional que é o mais seguro esteio da independencia portugueza, nem ao menos se ponderaram as criticas circumstancias em que nos collocam no actual momento as pretenções de uma poderosa nação sobre o nosso dominio africano e a situação da fazenda publica. «E quando todo o cidadão que verdadeiramente ama o seu paiz sente o impreterivel dever de não crear o menor embaraço nem levantar o menor estorvo á melhor solução d'aquellas difficuldades e perigos é que uns poucos de militares e um insignificante numero de individuos da classe civil intentam, verdadeiramente obcecados, mudar a natureza das instituições fundamentaes, abolir a monarchia e precipitar o paiz na revolução á mão armada...» A mensagem tinha os nomes dos srs. Oliveira Monteiro, Ribeiro da Costa e Almeida, Leão da Costa, Anthero d'Araujo, Mendes Correia, Pinto de Mesquita, Chaves de Oliveira, Christiano Vanzeller, Pires de Lima, Teixeira Duarte, Lima Junior, Silva Moreira, Alves Pimenta, José Arroyo, Fernando Bahia, Silva Tapada, Moreira Monteiro, Manuel da Silva Pinto, Vieira d'Andrade, Pedro de Araujo e Tito Fontes. A guarda municipal do Porto tambem recebeu a sua quota parte de felicitações e... melhoria de rancho, pelo «denodo com que repellira os insurrectos». Os jornaes da epoca estão pejados de documentos interessantes, revelando o calor bajulatorio projectado sobre os triumphadores do movimento. Um d'elles: «Satisfeito com o exemplar comportamento e bravura que mostrou o corpo da guarda municipal do Porto, no dia 31 de janeiro para conter os desordeiros e fazer respeitar a lei e o governo do paiz e seguindo as ideias do meu compadre e bom amigo João Pinto Ferreira Leite, tomo a liberdade de remetter a v. ex.ª (o commandante da guarda) a quantia de 50$000 réis destinados para melhorar o rancho dos soldados da mesma guarda.--_Januario Bastos_». Outro, egualmente dirigido ao commandante da guarda municipal: «_Meu bravo e glorioso camarada_: Felicito a v. ex.ª e felicito a valente guarda municipal do Porto, hoje mais do que nunca, uma honra para o nosso paiz, pela maneira corajosa por que acaba de arrancar da beira de um abysmo a monarchia e a nação. Consinta v. ex.ª que o abrace e este amplexo cinge toda a corporação da guarda municipal do Porto.--_Christovão Ayres_». Alguns dos membros do governo provisorio proclamado no edificio da camara municipal, uma vez suffocado o movimento, publicaram egualmente nas gazetas declarações terminantes repudiando a menor ligação com os revoltosos. O sr. Joaquim Bernardo Soares, por exemplo, dizia na sua carta: «Tenho sido sempre homem de ordem--nem o meu passado, nem as ideias que tenho manifestado inalteravelmente com o maior desassombro, podiam auctorisar um tal procedimento da parte d'aquelles que imprudentemente lançaram o meu nome para o publico e com os quaes não tenho relações de qualquer natureza nem sequer pessoalmente conheço. Repillo, portanto, com a maior indignação, o abuso que do meu nome se fez, sem que possa descortinar o motivo que o determinou». O sr. Azevedo Albuquerque foi mais laconico: «Declaro que não dei auctorisação para o meu nome figurar na lista dos membros do governo provisorio proclamado na casa da camara do Porto; e que não concorri nem directa nem indirectamente, para o movimento revolucionario». A declaração do sr. Rodrigues de Freitas, embora principiasse por affirmar que o seu auctor «desde muito se manifestara republicano-democrata e continuaria a professar firmemente as mesmas ideias» quaesquer que fossem os derrotados ou os victoriosos, acrescentava: «Não auctorisei ninguem, quer directa quer indirectamente, a incluir o meu nome na lista do governo provisorio lida nos paços do concelho no dia 31 de janeiro; e deploro que um errado modo de encarar os negocios da nossa infeliz patria levasse tantas pessoas a tal movimento revolucionario». Por ultimo esta declaração do sr. José Ventura dos Santos Reis: «Sabendo que o meu nome anda envolvido nos tristes acontecimentos que se deram n'esta cidade no dia 31 do mez passado, cumpre-me declarar cathegoricamente que não auctorisei absolutamente ninguem a incluir o meu nome na lista do governo provisorio, que foi lida nos paços do concelho; que fui completamente estranho a quaesquer preparativos ou combinações que precederam as occorrencias d'aquelle dia». Quarenta e oito horas depois da revolta, o governo fez publicar varios decretos com o fim, dizia elle, de supprir as deficiencias da legislação então vigente «provendo á necessidade de reprimir de prompto e punir com severidade os attentados commettidos contra a ordem publica, segurança do Estado e suas instituições». Por um d'esses decretos entregava á exclusiva competencia dos tribunaes militares, o conhecimento e o julgamento do crime de rebellião, aliás previsto e punido no codigo penal portuguez. Na cidade do Porto, não faltavam edificios onde podessem funccionar os conselhos de guerra nem cadeias onde acumular os individuos presos como implicados na revolta. Mas o governo receiou que a população se interessasse demasiadamente pelo espectaculo dos julgamentos e assim decidiu que os conselhos de guerra reunissem a bordo de navios de guerra. Para esse effeito, collocaram no porto de Leixões o transporte _India_, a corveta _Bartholomeu Dias_, e o vapor da Mala Real, _Moçambique_, guarnecido com marinheiros da _Sado_. Como deposito de prisioneiros juntaram a estes tres navios um velho pontão incapaz de navegar. Para o _Moçambique_ foram mandados João Chagas, Santos Cardoso, o capitão Leitão, tenentes Coelho e Homem Christo, as praças do regimento de caçadores 9 e os civis: Miguel Verdial, Felizardo de Lima, Santos Silva, o abbade de S. Nicolau (rev.º Paes Pinto), Eduardo de Sousa, Amoinha Lopes, Thomaz de Brito, Barbosa Junior, Alvarim Pimenta, José Durão, Pereira da Costa, Gomes Alves, Soares das Neves, Pinto de Moura, Pinto de Vasconcellos, Aurelio da Paz dos Reis, Cervaens y Rodrigues, Feito y Sanz e Simões d'Almeida. Para a _Bartholomeu Dias_ foram as praças de infantaria 18 e 10; para o _India_, o alferes Trindade e os revoltosos da guarda fiscal. Mais tarde, o tenente Coelho passou do _Moçambique_ para aquella corveta. Dos chefes civis do movimento, conseguiram expatriar-se o dr. Alves da Veiga, José Sampaio (Bruno) e Basilio Telles. [Ilustração: Santos Cardoso, preso a bordo] Reunidos os conselhos de guerra, os julgamentos decorreram de tal modo que ninguem se illudiu sobre a sorte que estava reservada aos revoltosos. Sabia-se de antemão que sobre elles recahiria o peso d'uma forte condemnação e que quaesquer que fossem os incidentes revelados durante as sessões dos conselhos elles em nada alterariam a sentença já lavrada. «O tribunal--affirmou-se mezes depois no manifesto dos emigrados da revolução--era uma tão evidente delegação do poder executivo que, em plena audiencia, um dos julgadores, nem sequer resguardando o melindre das conveniencias, declarou que não proseguiria n'um detalhe qualquer de juridicas investigações, _em virtude de ordens superiores_. «Foi decerto tambem em virtude d'essas ordens superiores que os julgamentos se realisaram sobre o mar, acossado por uma invernia excepcional. Foi em consequencia d'essas ordens que succedeu que, uma tarde mais aspera, as vagas arrojaram contra os paredões do porto (Leixões) ainda em via de construcção, desamparado e á mercê, consequentemente, um dos navios ahi ancorados, persuadindo-se todos os habitantes do Porto que a verminada carcassa desfeita fôra a d'um dos pontões onde se mandara apodrecer os suppostos criminosos e assistindo-se então ao tremendo exemplo d'uma população de mães e esposas clamorosas accorrendo, em gritos de dôr, a olhar a perfida, movediça sepultura, onde repousariam, emfim, seus desditosos filhos, seus tristes esposos, a alegria das suas almas, as esperanças de suas escuras existencias. «Em virtude e consequencia d'essas ordens superiores foi que um dos navios de guerra (pois que se transformaram os maritimos gloriosos do glorioso Portugal passado em carcereiros dos que almejavam restituir a patria ao seu antigo esplendor) se desprendeu uma noite de tempestade e, com um condemnado a bordo, andou perdido, sem provisões e sem rumo, na serração, pela clemencia infinita das aguas.» Terminados os julgamentos, os conselhos de guerra condemnaram na pena de prisão maior cellular (e, na alternativa, na de degredo): João Chagas, Santos Cardoso, Verdial, capitão Leitão, os sargentos Abilio, Galho, Silva Nunes, Castro Silva, Rocha, Barros, Pinho Junior, Fernandes Pinheiro, Gonçalves de Freitas, Villela, Pereira da Silva, Folgado, Figueiredo e Cardoso, os cabos João Borges, Galileu Moreira e Pires e o soldado da guarda fiscal Felicio da Conceição. O tenente Coelho foi condemnado a cinco annos de degredo. Aos restantes implicados couberam penas variaveis de deportação militar, degredo e prisão correccional. Os regimentos de caçadores 9 e infantaria 10 tambem soffreram castigo exemplar: o governo dissolveu-os. E comtudo, em 1826, o primeiro de esses corpos, tendo-se revoltado contra o marquez de Chaves, que defendia o absolutismo do sr. D. Miguel, fôra aclamado fiel e até comtemplado com augmento de soldo... CAPITULO XIX Para as despezas da revolta bastou um conto de réis Uma das accusações graves feitas aos revolucionarios do 31 de janeiro foi a de que o movimento só se levara a cabo para servir interesses inconfessaveis e apoiar especulações financeiras. Envolveram-se durante alguns dias os revolucionarios n'um circulo de malquerença e de odio, attribuindo-se-lhes propositos realmente nefandos--como dizia o governo nos documentos officiaes, classificando os incidentes do movimento. O _Diario Illustrado_ chegou mesmo a affirmar: «Elles (os revolucionarios) puzeram-se, conscientemente muitos, inconscientemente alguns, ao lado dos inimigos da patria, serviram a causa da Inglaterra, que nos quer expoliar em Africa; _serviram a causa dos financeiros que pretendem explorar com onzenices as desgraças da nossa situação_.» Outro jornal, as _Novidades_, ia mais longe: «D'onde veiu e para onde foi o dinheiro que se arranjara para a revolta? «Houve ha um mez uma reunião no Porto onde foram dois delegados de Lisboa. Ao contrario do que se tem dito, o accordo para a revolução foi completo. Nem os de lá nem os de cá divergiram. No que não concordaram os de cá com os de lá foi na forma da republica a proclamar, oppondo-se os de Lisboa á federação com a Hespanha. «O que é certo, porém, porque resulta de documentos encontrados, e de depoimentos recolhidos, é que a isto se seguiu a subscripção aberta em Lisboa para a revolta, que produziu rapidamente 20 contos que foram levados ao Porto por dois sujeitos, um dos quaes tem uma alta graduação burocratica. Esse dinheiro ficou nas mãos de Alves da Veiga. «Escusamos dizer que não foi encontrado na busca que a policia fez. Nem o dinheiro nem os papeis importantes, porque as gavetas foram já encontradas tiradas dos moveis, espalhadas pelo chão e alguns dos papeis que n'ellas ainda havia eram ou insignificantes ou rasgados.» [Ilustração: Actor Verdial (1891)] Em summa, as _Novidades_ diziam claramente que um dos chefes da revolta recebera alguns contos de réis e com elles se locupletara. Essa e outras accusações despertaram, como é natural, protestos vehementes. Os jornaes republicanos, apesar da mordaça que o governo lhes collocara apoz o 31 de janeiro, esforçaram-se o mais possivel por quebrar os dentes á calumnia e apagar a serie de apodos com que a imprensa monarchica mimoseava os revoltosos. E esse sentimento de protesto conquistou tambem a grande maioria dos jornaes madrilenos, porque um d'elles, o mais accentuada e tradicionalmente monarchico, o jornal ultra-conservador a _Epoca_ fez côro com os collegas radicaes que estygmatisaram a insidia cavilosa. E comprehende-se que assim succedesse. Não era crivel que o exercito portuguez--a parte d'esse exercito que se revoltara no 31 de janeiro--pensasse em saquear a cidade do Porto, como egualmente a imprensa monarchica pretendeu fazer acreditar. Admittir tal hypothese seria o mesmo que admittir que a revolta, longe de visar á proclamação da Republica, se limitava a favorecer o roubo d'umas tantas casas commerciaes. Narrou-o mais tarde um dos revolucionarios que conseguiu escapar á furia dos serventuarios do regimen, exilando-se em Hespanha: «Emquanto a estupida imprensa officiosa de Portugal enxovalhava de tal modo o exercito portuguez perante a Europa toda, por um momento occupada quasi exclusivamente do que estava ocorrendo na nossa terra, o jornalismo estrangeiro registava, ainda com os louvores mais rasgados, que a revolução militar do Porto não se devera a nenhum baixo mobil, não fora propulsionada por nenhum mesquinho interesse, antes, pelo contrario, constituira, na solidariedade moral europeia, um caso honroso para toda a humanidade e infelizmente raro, na historia d'um movimento politico, combinado e ultimado pelo simples prestigio das convicções. «E todavia a imprensa estrangeira ignorava que o traço particularmente typico do movimento de 31 de janeiro foi o da sua essencia genuinamente democratica; ignorava que nenhuma seducção poderia exercer em almas populares o fascinamento das posições sociaes de elevados alliciadores, pois que os não houve; ignorava que não sómente não existia caixa alguma, pittoresca, estolidamente, denominada _da revolução_, mas ainda que nem sequer o anonymo soldado recebera um real para sahir do quartel; ignorava que na noite famosa que precedeu o acontecimento se deixara bem assignalado que, na hypothese da victoria, nenhum dos militares revolucionados teria a mais somenos promoção ou o mais insignificante beneficio, de qualquer genero que fosse. «Em tão novas condições se consumou este movimento politico de 31 de janeiro de 1891 que elle fará a admiração das gerações portuguezas e nobilitará o paiz, comprehendendo-o na esphera dos povos que sabem, podem e querem, ao menos tentam pelejar e morrer pela consecução desinteressada d'um ideal de justiça abstracta. «A historia não ha-de ser commettida aos escribas da imprensa vendida dos nossos tempos; e a historia ha-de considerar o movimento republicano do Porto a uma altura que parece irrisorio talvez á tagarelice insensata de certos portuguezes de hoje». E tinha razão de sobejo o revolucionario emigrado. Tres dias depois de suffocado o movimento, o presidente da edilidade portuense, n'uma nota distribuida aos jornaes monarchicos, salientava o facto dos revoltosos não haverem tocado no thesouro da camara emquanto occuparam o edificio municipal. Na grande meza da sala das sessões repousaram, durante o tiroteio entre os revolucionarios e as forças fieis, magnificos tinteiros de prata. Pois ninguem lhes tocou, até que os empregados da camara, uma vez liquidado o movimento, os arrecadaram em logar seguro. A _Tarde_, jornal de Lisboa affecto ao antigo partido regenerador, bem se esfalfou em asseverar que a muitos dos militares presos tinham sido encontradas libras em ouro, o que provava que na madrugada de 31 de janeiro se fizera larga distribuição de dinheiro. Outras gazetas insinuaram egualmente que a revolução rebentara mais cedo do que fôra determinado pelos seus organisadores, porque um dos sargentos compromettidos tendo defraudado a caixa do respectivo regimento em centenas de mil réis--gastos em alliciar os subordinados--não queria de modo algum que em 1 de fevereiro de 1891 o obrigassem a prestar contas. Afinal, tudo isto cahe pela base sabendo-se que o unico dinheiro que serviu realmente a pagar despezas da revolta foi fornecido ao dr. Alves da Veiga pelo negociante portuense José Ferreira Gonçalves e não excedeu... um conto de réis. Não se dirá, por isso mesmo, que o movimento custou caro! Junte-se agora a essa quantia a de sete contos--em que se avaliou os estragos causados pelas balas nos predios dos Clerigos, rua de Santo Antonio e praça de D. Pedro--e vêr-se-ha que nunca se fez uma revolução com tanta economia de numerario e tanta nobreza de procedimento da parte dos que a levaram á pratica. Mas se os revolucionarios dispenderam pouquissimo dinheiro em investir contra o regimen monarchico, em compensação prodigalisaram os actos de heroismo. N'outro logar d'esta narrativa, já assignalámos o ardor com que a guarda fiscal e as tropas do 10 e do 9 sustentaram na rua de Santo Antonio e na casa da camara as arremettidas da guarda municipal. Devemos, no emtanto, registar dois casos typicos que a imprensa da epoca descreveu pormenorisadamente e que qualificam nitidamente o valor dos insurrectos. Um d'elles é o d'um guarda fiscal--figura de athleta--que, installado n'uma das janellas do Café Suisso, na praça de D. Pedro, ahi se manteve desfechando ininterruptamente a sua espingarda sobre os defensores da monarchia e só abandonou o posto quando lhe faltaram totalmente os projecteis. Essa janela do café ficou crivada de balas, mas o guarda fiscal em questão nunca perdeu o sangue frio e por espaço de horas visou, certeiro, a guarda municipal. O segundo caso é a reproducção do primeiro e occorreu n'outra janella do estabelecimento já citado, onde se entrincheiraram quatro estudantes. [Ilustração: Revoltosos presos a bordo do _India_] Compare-se a attitude d'essas creaturas luctando serenamente, imperturbavelmente, pelo ideal que se tinham proposto conduzir á victoria com o de outras que no curto espaço de tempo que durou a revolta se bandearam primeiro com os revoltosos e logo a seguir manifestaram a sua adhesão ao regimen monarchico. Os exemplos d'essa cobardia moral abundam. Respigamos ao acaso n'um jornal portuense do dia 2 de fevereiro de 1891: «C... proprietario d'um armazem de moveis e L... pharmaceutico, logo que viram o caso mal parado (o triumpho momentaneo dos insurrectos) tiraram das frontarias dos respectivos estabelecimentos os escudos com as armas reaes; mas depois tornaram a collocal-os, porque perceberam que a monarchia não fôra vencida na refrega.» CAPITULO XX Triste balanço: o das victimas da insurreição Vinte e quatro horas apoz a liquidação do movimento, espalhou-se que o numero de mortos na refrega não passara de doze--na sua maioria guardas municipaes. Entretanto, na população portuense ficou durante muito tempo a impressão de que esse numero não representava a verdade e que os cadaveres de revoltosos sepultados nos cemiterios da capital do Norte se tinham contado por centenas. O _Primeiro de Janeiro_, do dia immediato ao da revolta, forneceu aos seus leitores esta lista de feridos graves--muitos dos quaes vieram a fallecer dos ferimentos recebidos: «_Recolhidos no hospital do Terço._--Manuel Canedo, soldado de infantaria 10; Manuel Barreira, guarda municipal; Francisco Joaquim, guarda municipal; Manuel Maria, soldado do 10; José Joaquim Teixeira, guarda fiscal; João Manuel Gomes, guarda fiscal; Antonio Carneiro, soldado do 18; Pedro da Rocha, soldado do 10; Manuel Cardoso, cabo da municipal; João Nepomuceno, guarda fiscal; Antonio Pereira de Almeida, civil; Francisco José e José Antonio Carneiro, municipaes; João José Pereira de Azevedo Lobo e Joaquim Gomes, cabos da municipal; dr. João Henrique da Rocha, redactor da _Luz_; Maria Custodia Alves, costureira. Esta rapariga estava á janella da casa do sr. Henrique de Mello quando rebentou o tiroteio e recebeu uma bala no pescoço. «_Recolhidos no hospital da Misericordia._ Victorino da Assumpção e Domingos da Cunha, guardas fiscaes; Antonio Joaquim, municipal; Bernardino Gonçalves Losa, cabo da municipal; Albino Cardoso, guarda fiscal; Julio Cordeiro, sargento do 18; João Aleixo, corticeiro; José Manuel da Silva Monteiro, charuteiro; Joaquim Sant'Anna, pedreiro; João de Castro, empregado forense; Antonio Gomes Junior, alfaiate; Manuel Pereira da Fonseca, chapelleiro; Cosme Campos Cabral, estudante; Marianna Rosa, serviçal. «_Recolhidos no hospital militar._--Lemos Junior, cabo do 10; um soldado do 9 e tres soldados da guarda municipal.» Sobre o numero de mortos, dizia: «_No hospital do Terço._--Um soldado da guarda fiscal. «_No hospital da Misericordia._--José Joaquim d'Almeida, tamanqueiro; João de Carvalho, trolha; um desconhecido e José Gustavo Adolpho Alves de Almeida Guimarães. «_Nas ruas_--Um desconhecido; Silverio d'Almeida Santos, guarda fiscal; Taveira, 2.º sargento; Domingos Nogueira; João, entalhador e um empregado do commercio, irmão do redactor da _Republica_ Jayme Filinto.» Evidentemente, esta lista era deficientissima. Tanto assim que d'ahi a dias uma nota do commissariado geral da policia indicava como despojos dos militares compromettidos no movimento: «147 espingardas, 147 terçados, 1 espadim de official, 3 espadins de musicos, 1 bainha de espada de cavallaria, 147 patronas, 176 cinturões completos, 197 cananas, 14 cantis, 12 mochilas, 92 capacetes grandes, parte dos quaes sem a corôa real, 13 bonets da guarda fiscal, 9 instrumentos musicos, uma corneta, dois tambores, 39 capotes, um capote de official, 23 jaquetas, a maior parte das quaes pertencentes a sargentos, 173 massos de cartuchame embalado com vinte tiros cada um, 227 massos com dez tiros e uma grande porção de balas soltas.» Reproduzindo esta nota, não queremos dizer com isso que cada um dos objectos acima enumerados tenha realmente correspondido a um morto pela revolução. A nota, em primeiro logar, expressa por uma maneira bem flagrante a intensidade do panico que se desenvolveu ao principiar o recontro na rua de Santo Antonio. Por outro lado, muitos dos militares que empunhavam esse armamento recolhido pela policia, tendo conseguido escapar á fusilaria da municipal, abrigaram-se fóra do Porto e uma grande porção d'elles fugiu para Lisboa. Em resumo: se não foram apenas doze as victimas do movimento republicano--como se pretendeu affirmar no dia seguinte ao da derrota--tambem não cremos que tivessem passado de cincoenta os cadaveres enterrados nos cemiterios. No dia 3, á meia noite, correu no Porto que o regimento de infantaria 3, aquartelado em Santo Ovidio de camaradagem com o 18--fôra para ali horas depois de suffocada a revolta--se insubordinara e pretendia sahir á rua dando vivas á Liberdade e á Republica. A capital do Norte tornou a viver momentos de angustiosa espectativa. Pelo espirito da população portuense de novo perpassou a visão d'outros cadaveres empilhados no Prado do Repouso... A guarda municipal, prevenida dos boatos correntes, encaminhou-se sem demora para o Campo de Santo Ovidio. Ahi, reconhecendo que nada tinha a fazer, evolucionou em varias direcções e por fim desceu á Praça de D. Pedro, ostentando a _pose_ irritante adequada a _salvadores da monarchia_. De madrugada recolheu ao quartel e a cidade recuperou o socego. [Ilustração: Antonio José de Almeida (1891)] Nos dias immediatos, ainda os cemiterios receberam os corpos de algumas das victimas da Revolução. Tratava-se de feridos graves operados nos hospitaes e que não tinham resistido a amputações dolorosissimas, ás trepanações e outros trabalhos cirurgicos. A par d'essa liquidação funebre, a policia e as auctoridades militares procediam a uma outra: a das creaturas que se lhes affiguravam suspeitas de republicanismo. Para mais, nas buscas realisadas em diversas casas de revoltosos haviam sido apprehendidos documentos provando a adhesão ao movimento não só de quasi todos os officiaes inferiores da guarnição do Porto mas de dezenas de militares residentes n'outros pontos do paiz. E assim, a rede lançada pelos agentes da ordem procurou abranger o maior numero possivel de elementos accusatorios, collocando ao mesmo tempo os presos politicos em situação de esmorecerem de animo pelo effeito do tratamento que lhes dispensavam. Dil-o um testemunho insuspeito: «Punge-me a triste situação em que se acham os revoltosos do 31 de Janeiro. Aos presos apenas é dada uma triste açorda; não teem cama nem uma enxerga ou maca, nem uma pouca de palha em que se deitem, nem uma manta em que se embrulhem. Os que dispõem d'alguns recursos mandam ir das suas casas roupas e enxergas, mas os restantes, que são o maior numero, estão dormindo nas tabuas nuas, tiritando e morrendo com frio.» Pelo que respeita á assistencia judiciaria foram os revoltosos mais felizes. O curso do 5.º anno da Faculdade de Direito, n'um impulso de vehemente generosidade, offereceu-se em massa para defender os réus, explicando, porém, pela bocca do seu camarada dr. Lomelino de Freitas--o porta-voz do bizarro offerecimento--que «a sua attitude não implicava de modo algum profissão de fé politica nem approvação ou desapprovação dos acontecimentos.» Os republicanos que tinham conseguido abrigar-se em Hespanha, esses, depois de socorridos pelo governo do paiz visinho, haviam recebido ordem de se afastar da fronteira, internando-se--exactamente o contrario do que succedeu mais tarde, estando no poder o sr. Canalejas e tentando o ex-capitão de artilharia Paiva Couceiro restaurar a monarchia brigantina. A situação, em resumo, tornara-se difficil e penosa para todos os que, não partilhando da subserviencia incondicional ao regimen monarchico, se viam forçados a procurar no isolamento ou no exilio a tranquilidade que o mesmo regimen lhes negava. O governo, no proposito firme de cortar as azas á mais insignificante velleidade de resistencia, dissolvia os clubs republicanos e punha a guarda municipal constantemente de prevenção. E a sua furia contra as aggremiações democraticas attingiu taes proporções que só n'um dia mandou fechar quatorze das que então existiam em Lisboa. CAPITULO XXI A serenidade d'uns e o desalento de muitos Chegado o momento da justiça militar pedir contas dos seus actos aos individuos presos por effeito da revolta, houve o maximo cuidado, nas regiões officiaes, em impedir que os depoimentos dos _principaes culpados_ salientassem o condemnavel procedimento de varias personalidades consideradas sustentaculos do throno. Procurou-se assim dar ao grande publico, á nação inteira e até ao estrangeiro, a impressão falsissima de que a revolta de 31 de Janeiro brotára apenas dos cerebros de meia duzia de tresloucados, creaturas apagadas e de nullo valor social, sem ligação com outros elementos de superior importancia. Ao mesmo tempo, a imprensa monarchica tentou insinuar, falsamente tambem, que a maioria dos individuos presos como revolucionarios experimentára, ao embarcar nos navios-prisões, o arrependimento do seu gesto nobre e patriotico e só anceiava por alijar as responsabilidades que lhe cabiam á face das leis. Se é certo que no decorrer da instrucção do processo e mesmo durante o julgamento em conselho de guerra alguns d'esses homens mostraram falhas de animo e de coragem, devidas essencialmente á torturante atmosphera moral que os agentes da monarchia lhes tinham creado, muitos houve--e esses constituiram o maior numero--que evidenciaram não só incomparavel dignidade como uma presença de espirito, uma serenidade verdadeiramente heroicas. João Chagas, por exemplo, conservou uma placidez digna de registo. Dil-o um jornal da epoca: «O brilhante escriptor não afasta de si todas as responsabilidades nem as assume todas. Acceita as que tem e não as declina, antes entende que deve ufanar-se d'ellas. Essas responsabilidades versam principalmente sobre o que elle escreveu e sobre o que se publicou no jornal que dirigia: a _Republica Portugueza_». E como circulasse que no seu depoimento feito perante a auctoridade militar, o illustre pamphletario commentára acremente a attitude dubia de diversos individuos compromettidos na revolta, o mesmo jornal a que acima nos referimos accrescentou dias depois: «É inexacto que o depoimento de João Chagas contenha censuras. Elle julga simplesmente que é nobre que responda cada qual corajosamente pelos seus actos. É correcto. João Chagas mantem a serenidade e a tranquilidade dos primeiros dias. Dorme pouco em virtude d'uma tosse que contrahiu na frialdade humida da cadeia. Será visto por um medico. Um amigo do fogoso jornalista, desejoso de lhe provar a consideração e a estima em que o tem, fez-lhe, por intermedio do digno director da cadeia, alguns offerecimentos que elle agradeceu e recusou. Consta até que affirmou, mostrando desprendimento pela vida: [Ilustração: Os prisioneiros a bordo] --O ser condemnado pouco me importa. Estava um pouco cançado e o governo, mandando-me prender, offereceu-me descanço por alguns annos». D'uma vez, porém, a serenidade de João Chagas estremeceu ao de leve. Foi no dia, em que já encarcerado a bordo, viu passar, a curta distancia do local onde se encontrava, o famoso director da _Justiça Portugueza_. Então, voltando-se para um companheiro de prisão, disse, apontando Santos Cardoso: --Estamos aqui a pagar as antipathias que aquelle homem provocou... E já que falamos de Santos Cardoso: o seu depoimento confiado ao instructor do processo não correspondeu ao que se esperava do seu aspecto energico, quasi feroz. Mostrando-se muito abatido e desanimado, declarou que não tomára parte activa no movimento insurreccional, que nada soubera antecipadamente do _complot_ revolucionario e que apenas sahira á rua na madrugada de 31 de Janeiro depois de ter ouvido tocar a rebate na egreja da Lapa. Mais tarde descera á praça de D. Pedro e assistira na camara á proclamação da Republica. Contou, n'esta altura, um insignificante episodio occorrido dentro do edificio municipal. A seu lado, na sala, encontrava-se no momento da proclamação, um individuo envolto na bandeira do Club Democratico 15 de Novembro. Esse individuo, pretendendo deslocar-se para ir á varanda, ensarilhou o cordel da bandeira na espingarda d'um soldado e a arma cahiu no sobrado. A multidão, receiando que a espingarda se disparasse, afastou-se pressurosa do local... Decorridos alguns dias apoz o depoimento, a esposa de Santos Cardoso foi visital-o á prisão. O antigo director da _Justiça Portugueza_ soffreu tal choque com essa visita, que chorou desabaladamente, lamentando a sua situação e pedindo a todos que d'ella se apiedassem. «Ignorava, disse, a responsabilidade em que incorria, tomando parte no movimento; do contrario, não o teria feito». E quando teve conhecimento das declarações de Homem Christo, prestadas á policia, declarações que relatavam minuciosamente os seus trabalhos na preparação revolucionaria, então o seu desanimo tornou-se mais profundo. Succumbiu. O jornalista Eduardo de Sousa, que collaborara na _Republica Portugueza_ sob o pseudonymo de _Gualter_, esse, pretendendo fazer um depoimento revelador d'uma virilidade intemerata, lançou a policia na peugada de varios republicanos egualmente implicados no _complot_. A imprensa noticiosa da epoca chegou a asseverar que a defeza desse reu servira simplesmente a comprometter diversas personalidades, algumas das quaes tinham sido presas ao mesmo tempo que elle. Cremos, porem, que muito se exagerou a tal respeito e que a verdade do caso reside no proposito de atrevido exhibicionismo que acima registamos. O sargento Abilio, n'uma carta que escreveu ao juiz affirmou desassombradamente: «sou culpado, mas ha superiores meus mais culpados do que eu». Depoimento de Dyonisio Ferreira dos Santos Silva: «Sou republicano desde que me conheço, mas mais accentuadamente desde 11 de janeiro de 1890; no emtanto, nunca fui socio de nenhum club democratico e nunca privei com os homens dirigentes do partido republicano. Não sabia da revolta que se preparava para 31 de janeiro e não podia, portanto, ter alliciado para ella militares ou paisanos. Soube da sublevação horas antes de rebentar, porque era esse o assumpto de todas as conversas nos cafés, restaurantes, etc. Attribuo a minha prisão ao facto de ser pouco conhecido na policia...» Tambem declarou ter sociedade na empreza do jornal _Republica Portugueza_; fôra presencear, como curioso, os successos do dia 31, mas não tomára a menor parte n'elles, e sentia-se, por isso mesmo, tranquillo, não receiando o resultado do seu julgamento. Declarações do actor Verdial:« Não alliciei ninguem para a revolta; sabendo que o movimento estava para rebentar, fui ao Campo da Regeneração, onde collaborei nos episodios que ahi occorreram. Parlamentei com o coronel Lencastre, commandante de infantaria 18, e entrei depois na Camara Municipal, onde me conservei até o edificio ser atacado pelas tropas monarchicas. Só me pesa uma cousa: a lembrança de minha mulher e dos meus filhos. Comtudo, aguardo sereno, a sentença do tribunal.» Do abbade de S. Nicolau: «Tinha por costume recolher a casa todos os dias, ás 7 da tarde, sendo falso que conspirasse na sombra contra as instituições vigentes; para elle eram boas todas as formas de governo, desde que os homens se inspirassem nos verdadeiros principios da moral e da justiça. Desilludido com respeito aos processos governativos até aqui seguidos, a Republica era para elle uma esperança, mas não a queria por meio da anarchia; os comicios realisados no theatro do Principe Real, em que figurara, deram-lhe certa notoriedade, sendo essa a origem das desventuras por que estava passando. Não era homem de acção, porque d'isso o impedia o seu caracter sacerdotal. Tendo ouvido falar no dia 30 a alguns individuos na revolta que se ia dar, sobresaltara-se com a noticia e recolhera a casa. Na manhã seguinte, sahira para fins religiosos, ouvindo então falar na reunião das tropas na praça de D. Pedro. Ao avistarem-n'o, muitos populares ergueram-lhe vivas. Entrara no edificio da camara, mas ao vêr que ali reinava a anarchia, afastara-se do local, encaminhando-se novamente para o seu domicilio. Tinha confiança em que justiça lhe seria feita...» Alvarim Pimenta falou d'este modo: «Nunca commungara nos segredos dos dirigentes do partido democratico; como um dos societarios da empreza litteraria em que exercia o logar de administrador da _Republica Portugueza_, fôra presencear os factos occorridos no Campo da Regeneração e paços do concelho; mas não assistira ás reuniões preparatorias da revolução ou se envolvera nos acontecimentos que se deram.» Do aspirante a medico naval Gomes de Faria, accusado de ter tentado revoltar a guarnição da corveta _Sagres_: «Não tivera o minimo conhecimento dos preparativos da revolta, pois não estava pessoalmente relacionado com os individuos indicados como promotores d'ella; nunca assistira nem fora convidado a assistir a reuniões preparatorias para a sedição. Na madrugada de 31 de janeiro fora a sua casa o 1.º sargento Abilio de caçadores 9 que o convidára a um passeio até Massarellos, afim de ambos visitarem a corveta _Sagres_. Estranhara a proposta, recusára a principio, mas, instado, terminára por acceder. Quando ia a sahir de casa, acompanhado do sargento Abilio, este dissera-lhe que era melhor vestir o uniforme de aspirante a medico naval, para ter mais facil ingresso na _Sagres_. Achara natural a observação e vestira o uniforme. Chegados ambos a Massarellos, dirigiram-se para bordo da corveta. Só n'essa occasião é que o sargento Abilio lhe dissera que se tratava de sublevar a tripulação para adherir á revolta que ia rebentar. Hesitou quando soube o papel que lhe destinavam, mas sendo republicano convicto, embora não fosse partidario dos meios violentos, não tivera forças para retroceder; por isso fôra a bordo da _Sagres_ tentar, mas sem resultado, sublevar a guarnição. Suppozera sempre não ter incorrido em grande delicto; por esse facto não se homisiara, apesar de o terem aconselhado a fazel-o.» Por ultimo, o depoimento do commissario geral da policia: «Estava na Praça de D. Pedro e viu alli chegarem os revoltosos. Receiando que elles o prendessem, refugiou-se n'uma casa em obras proximo do restaurante Camanho, onde trocou o fato pela blusa d'um operario. Depois subiu mais um andar e d'ahi presenceou a lucta entre os republicanos e as tropas fieis. Parte dos revoltosos destroçados na rua de Santo Antonio veiu em debandada para a praça de D. Pedro, formando aqui tres pelotões commandados pelo capitão Leitão e recolhendo mais tarde á casa da camara. Tambem viu a fuga precipitada d'um troço de cavallaria da guarda fiscal em direcção aos Clerigos e recorda-se dos nomes de varias pessoas que se envolveram no movimento.» Escusamos dizer que o commissario geral da policia do Porto não se fez rogado para indicar ás auctoridades militares esses nomes, contribuindo assim com a sua solicitude para augmentar o numero de presos existentes a bordo dos navios fundeados em Leixões. CAPITULO XXII O julgamento dos revoltosos Vamos terminar. Mas, antes de o fazermos, é de necessidade registar algumas notas colhidas no decorrer dos conselhos de guerra que sentenciaram os revoltosos. Ellas darão aos leitores d'esta modesta e desataviada narrativa uma ideia clara da forma como se procedeu no julgamento de todos esses homens e da attitude de alguns d'elles em momento tão critico e tão grave. [Ilustração: Dr. Affonso Costa (1891)] _Depoimento do 1.º sargento Abilio:_ «Narrou pormenorisadamente todos os incidentes que caracterisaram a revolta e perguntado por fim sobre as intenções com que entrára no movimento, respondeu: «--Sim, entrei no movimento para ajudar a depôr o rei D. Carlos, porque sou republicano e tenho muitas razões para o ser. Não sou republicano de evolução, porque, por ella nem d'aqui a um seculo, julgo, teremos a republica em Portugal. O que reconheço é que fomos enganados, pois vi muitas adhesões escriptas e sabia de outras feitas verbalmente e de reuniões de camaradas meus e de outros de superior graduação. «Sobre a sua prisão conta que foi o ultimo a retirar da casa da camara, quando já não tinha munições. Refugiou-se n'um predio da rua do Almada. Quando ali appareceram soldados da municipal a perguntar se lá estava algum militar, o dono da casa perguntou-lhe o que queria que dissesse. Elle apresentou-se. Os municipaes cruzaram ainda armas contra elle, apesar de o verem só e desarmado. Deu-se á prisão. «O auditor insistiu com o reu para que declarasse quaes eram os militares que tinham relações com os auctores do movimento do Porto. O reu respondeu simples, mas dignamente: «--Não senhor, não digo... «E acentuou: «--Não quero acusar ninguem; quanto a mim, digo que foi da melhor vontade que entrei no movimento e não declino a minha responsabilidade. Na parada do quartel fui eu quem primeiro levantou um viva á Republica». _Depoimento de Eduardo de Sousa (aspirante a medico naval):_ «Declarou francamente ser republicano e repudiou por completo o seu depoimento escripto que lhe foi arrancado pela policia á força de ardis e por outros meios egualmente condemnaveis. Declarou mais ter dado a nota alegre na ceia que houve no café Suisso na vespera da revolta, assim como outros deram a nota philosophica, etc. Quanto a essa ceia, explica que era seu costume e dos demais convivas cear ali todas as noites. Accrescentou que acompanhára o movimento das tropas na qualidade de redactor da _Republica Portugueza_ E não na de _reporter_ como lhe chamaram». _Extracto da sessão do 2.º conselho de guerra (8 de março de 1891)_: «... A parte mais interessante foi o promotor requerer acareação entre o tenente de cavallaria 6, Vaz Monteiro, do destacamento aquartelado no Porto, com o reu Thadeu Freitas, sargento de infantaria 10. Na audiencia de hontem, Thadeu disse que o referido tenente affirmára ao tenente Coelho que o esquadrão estava prompto a sahir para acompanhar os revoltosos. Chamado o tenente Vaz Monteiro, este negou ter dito semelhante cousa. Acareado com o sargento Thadeu continuou negando a pés juntos. Thadeu confirmou, acrescentando que o tenente Vaz Monteiro pedira senha ao tenente Coelho. «Acareados ambos com este reu, Coelho disse não se recordar de semelhantes palavras. Falara no Campo da Regeneração com o tenente Vaz Monteiro, mas este apenas lhe observara: «Manuel, vae-te embora». Nada mais. O sargento Thadeu disse que era verdade tudo que tinha affirmado e que se o tenente Coelho dizia não ter ouvido as palavras do tenente Vaz Monteiro não era porque as não ouvisse. O que o levava a proceder assim era o seu cavalheirismo e a nobreza do seu bello caracter, que não queria comprometter ninguem. Que bem sabia que o tenente Coelho era um homem de honra e por isso comprehendia a sua negativa. «O promotor requereu com urgencia auto de noticia das declarações cathegoricas do sargento Thadeu para as enviar ao quartel general, segundo o seu dever, a que não podia faltar. O incidente causou impressão, sendo todos concordes em elogiar o procedimento do tenente Coelho, que a ninguem quer comprometter». _Depoimento de João Chagas:_ «Que o artigo da _Republica Portugueza_ sob o titulo _Terceira meditação_ era seu e que o artigo que se seguia a esse o não era; sabia bem de quem era, mas não o dizia. De resto, sendo elle director do jornal, folgava em poder declarar que assumia, inteira e completa, toda a responsabilidade dos artigos alli publicados. Inquirido sobre o facto de ter incitado á revolta, declarou ter incitado á revolução que não se dera, porque o movimento de 31 de janeiro não fôra um erro politico, mas um erro de gramatica, um erro de palmatoria. Respondendo á pergunta--se os artigos do seu jornal eram attentatorios das instituições vigentes--disse que os membros do tribunal bem melhor do que elle poderiam e deveriam saber de semelhante cousa. «Era republicano e, como tal, não poderia, está bem visto, defender as instituições que julgava não convirem á felicidade da sua patria. Uma vez convencido d'isto, não recuaria deante de qualquer obstaculo ou contratempo; a sua convicção, arreigada pela força da experiencia da sociedade portugueza, era pela mudança do systema de governo. No movimento de 31 de janeiro não tomara parte pelo motivo de estar preso na cadeia da Relação, por causa da primeira querella do seu jornal, depois da lei restrictiva de Lopo Vaz contra a imprensa democratica. «Todas as suas declarações, feitas com um tom de franqueza e sinceridade, proprias da sua nobreza de caracter, foram escutadas attentamente e produziram sensação. Ao findar o seu interrogatorio, travou-se entre elle e o auditor o seguinte dialogo: «--Teve conhecimento antes, do movimento que havia de effectuar-se no dia 31? «--Sim, senhor. «--Pode dizer-me, quem lh'o disse? «--Não quero». _Depoimento de Homem Christo_: «Contrariara o movimento, como provava pelo artigo dos _Debates_ e pela circular do Directorio em que figura o seu nome, pela sua ida ao Porto para dissuadir Santos Cardoso e pela descompostura que por esse motivo recebeu do mesmo Santos Cardoso. [Ilustração: Conselho de guerra a bordo do transporte _India_] «A sua qualidade de republicano d'alma e coração não era cousa que o impedisse de vêr as cousas como ellas realmente são e lhe não permittisse discernir o que convém á Patria e ao partido do que não convém nem a uma nem a outro, e antes é prejudicial a ambos. A paixão politica não o obceca a tal ponto». _Depoimento do capitão Leitão:_ «--Em abono da verdade, disse o réu, e porque não me soffre o animo vêr que um innocente está envolvido no movimento revolucionario preciso que o tribunal tome conhecimento de que o espingardeiro de infantaria 10 não tomou a minima parte na revolta. A accusação que sobre elle impende é falsa. Reconheci perfeitamente todas as praças da minha companhia e o espingardeiro não estava ali no acto da sublevação. «A passagem mais curiosa do depoimento é, porém, a seguinte, com referencia ao coronel Lencastre de Menezes: «--O sr. coronel disse-me então: «Obste a que entre mais gente no quartel e faça sahir os populares que estão dentro». Cumpri essa ordem e depois de a cumprir voltei para junto do sr. coronel, ouvindo distinctamente que elle dizia aos paisanos com quem falava: «Vão descançados, que eu lá estou ás seis horas. Dou-lhes a minha palavra de honra que não hostiliso o movimento.» Deram-se então muitos vivas ao coronel do 18. Isto seriam quatro horas e um quarto, o maximo quatro horas e meia. O coronel accrescentou ainda: «Preciso ordenar certas providencias para guardar os reclusos do presidio e o cofre. Os senhores já lá teem duas companhias e eu tenho pouca gente disponivel...» «Eu entrei no movimento militar, continuou o capitão Leitão, por muitas circumstancias e não foi só a ideia de ser ou não republicano que em mim imperou; foi só pelo bem do meu paiz que trabalhei. Não sou monarchico, mas já o fui. Comecei a carreira militar apoiando o partido regenerador e em 1874, nas suas fileiras, procurei ser util ao meu paiz. Tambem militei no partido progressista, no qual julguei antever uma regeneração da minha patria. Dentro em pouco, percebi que tanto um como outro d'esses partidos nada faziam em bem da nação. Quasi todos os annos promettiam vida nova; mas não passavam d'isso; eram tudo apparencias enganadoras. «Afinal tudo isto me chegou a fazer crer e a convencer de que todos nós--o paiz--estavamos fóra da lei e que eu, estando o paiz fóra da lei, o estava egualmente. Eu não posso permittir nem admittir que a lei seja por degraus. Eu julgo a lei superior a tudo e a todos e, portanto, não admitto irresponsabilidades a ninguem. Eu, como capitão, aquelle como coronel e este como general, todos teem deveres e obrigações e são responsaveis pelo seu cumprimento. Ha, porém, uma unica excepção--o que prova que a nossa lei não é egual para todos, (_exaltando-se_) não é!--Ha um unico responsavel é o rei! «Eu sempre tive um odio profundo ao inglez--desde que me conheço (_exaltando-se_): os jornaes disseram que eu estava desanimado, mas não ha tal: é mentira! Tinha um tio que se bateu contra os inglezes, morrendo de 101 annos de edade. Como todos os velhos militares, gostava de narrar os seus feitos ou os dos seus camaradas. Com as suas historias, fez-me elle conceber esse odio, narrando-me algumas das infamias e torpezas da tal raça. O que me custava mais é que, depois do _ultimatum_, não terminassem ainda com essa alliança. «O que eu queria e quero é um governo que traga a felicidade do paiz, que tão humilhado está. Embora preso e vilipendiado como estou, espero ainda a redempção. Considerar-me-hei feliz, se, com o que fiz, concorrer de alguma forma para o bem da patria. Não receio nem temo o castigo: o que fiz foi o principio de alguma cousa. Ficarei satisfeito, serei feliz, se a semente, fructificar. No entretanto, nada receio, além de que conto não cumprir a pena a que me condemnarem.» Para se avaliar da maneira atrabiliaria como se lançou á conta de dezenas de individuos as responsabilidades da sublevação, basta reproduzir alguns trechos dos discursos de defeza proferidos nos conselhos de guerra: _Do Dr. Pires de Lima:_ «N'uma das guerras da religião foi cercada pelos catholicos uma cidade protestante. Renderam-se os sitiados; e, conforme os usos barbaros d'esses calamitosos tempos foram todos condemnados á morte pelos invasores. Como na cidade tomada havia tambem muitos catholicos, perguntaram ao legado do papa como os haviam de distinguir dos huguenotes. «Matem-nos todos, respondeu o catholico varão; Deus lá os separará.» O mesmo se fez agora. Fôra visto qualquer individuo republicano na camara ou no campo da Regeneração? Prendam-n'o e mandem-n'o para bordo. Mas elle está innocente: É o mesmo. O tribunal lá os separará.» _Do capitão Fernando Maia:_ «Acho extraordinario o que se fez aos soldados que ficaram no quartel quer de guarda, quer nas casernas. Foi um desvairamento singular a maneira como se procedeu. Que tumultuaria maneira de apreciar criminalidades e avolumar o numero dos presos! Viu-se aqui, no tribunal, bem clara e positivamente como tudo isso se fez. Prendeu-se a esmo. Quantos estavam no quartel e não cahiram nas boas graças, foram presos e de mais a mais ao engano, dizendo-se-lhes que era para averiguações, ainda com receio de que a sua justiça valesse mais do que a disciplina! «Onde está a nota dos que se apresentaram voluntariamente? Onde a d'aquelles que nenhuma parte tomaram no movimento? Onde a relação das armas limpas e intactas? Onde a d'aquelles que tinham licença para dormir fóra? Se até appareceu aqui quem negasse a existencia d'essas licenças, quando existem n'este tribunal os documentos officiaes que as confirmam! Comprehende-se a irritação natural dos chefes contra os subordinados rebeldes, mas o sentimento da justiça, e a natural piedade para com os vencidos deviam preponderar para que se tratasse de indagar devidamente as condições especiaes em que cada um se encontrava». _Do mesmo official referindo-se a muitos dos acusados:_ «Reus! É quasi um sarcasmo qualifical-os assim, a todos esses que ahi estão submissos, respeitosos e obedientes, a todos esses cujas declarações sinceras, ingenuamente sinceras, commoveram profundamente quantos as ouviram. «E os sargentos? Apparece como principal figura o sargento Abilio. Todos o ouviram aqui: todos apreciaram a franqueza, a nobreza das suas declarações. Podia falar, podia comprometter muita gente; podia revelar cumplicidades graves. A sua generosidade levou-o a repudiar até a defeza primitivamente apresentada, comquanto referindo inteira verdade. «E como é nobre o seu procedimento acerca dos soldados! «De nada sabiam, disse elle: foram levados por mim: conheciam-me e obedeceram-me». Eis o segredo de tudo quanto se passou. Essa influencia deviam tel-a os officiaes; não é momento agora para apreciar as razões porque a não tinham e tirar d'ahi as legitimas consequencias». Os quesitos referentes aos reus e submettidos aos officiaes julgadores foram em grande numero. Damos apenas os seguintes, relativos ás diversas classes em que se dividiu a natureza dos crimes: _Para os reus civis:_ «O crime da rebellião de que o reu é accusado no libello por, na madrugada do dia 31 de janeiro do corrente anno, com outros individuos e muitos militares dos corpos da guarnição da cidade do Porto e outros militares, haver tentado destruir a fórma de governo monarchico-representativo, pela qual é regida a nação portugueza, apoderando-se do edificio da Camara municipal da mesma cidade, de uma das varandas da qual foi proclamada a Republica e até lida uma lista dos membros do governo provisorio, está ou não provado? «A cumplicidade no crime de rebellião de que o reu é accusado no libello, por haver por meio de propaganda em logares publicos directamente aconselhado ou instigado a execução do mesmo crime, consistente em se haver tentado destruir a fórma de governo monarchico-representativo pelo qual é regida a nação portugueza, crime este praticado na manhã de 31 de janeiro do corrente anno, em que os meus auctores, apoderando-se do edificio da camara municipal da mesma cidade, chegaram a proclamar a Republica d'uma das varandas do mesmo edificio e a ler uma lista dos membros do governo provisorio, sendo que sem esse conselho e instigação podia ter sido commettido o crime, está ou não provado?» _Para os réus militares:_ [Ilustração: Tumulo das victimas no cemiterio do Repouso, no Porto] «O crime de revolta militar de que o réu é accusado no libello por, no dia 31 de janeiro do corrente anno, cerca das 3 horas da manhã no quartel d'aquelle regimento, na cidade do Porto, tendo sahido com outros militares do mesmo regimento, em numero muito superior a quatro, das respectivas casernas, desordenada e tumultuariamente, e tendo com os mesmos militares, sem preceder toque previo, pegado nas suas armas e sem auctorisação entrado em fórma, de commum concerto, se haver recusado a obedecer as ordens do seu commandante, o coronel do regimento que os intimou a dispersar, e sahindo depois do mesmo quartel incorporado com outros em numero excedente a oito, sob o commando de alguns sargentos e depois do alferes Augusto Rodolpho da Costa Malheiro, que se lhes reuniu junto á guarda da cadeia da Relação, onde, com outras forças revoltadas, persistindo na desordem e commettendo violencias, não haver dispersado á voz dos superiores Fernando de Magalhães, tenente-coronel sub-chefe do estado maior da divisão e José Maria da Graça, major da guarda municipal, está ou não provado? «O crime de revolta militar de que o réu F... n.º... de matricula e... da companhia do batalhão n.º 3 da guarda fiscal é accusado, por têr na madrugada de 31 de janeiro ultimo, cerca das 3 horas da manhã, sahido na cidade do Porto, com muitos outros militares, todos armados, para a rua, desordenada e tumultuariamente, e ter desobedecido a um dos seus legitimos chefes, que o exhortou a entrar na ordem e seguir o caminho legal: e ainda porque, juntando-se com muitos outros revoltosos, fez uzo das armas contra tropas fieis, comettendo violencias e não despersando ás intimações de seus legitimos superiores, persistindo na desordem--está ou não provado?» Antes de serem lidas as sentenças aos accusados, o capitão Leitão teve ensejo de usar novamente da palavra--o presidente do tribunal perguntara-lhe se tinha mais alguma cousa a allegar em sua defeza--e disse: «--Eu, infelizmente, sendo o principal accusado sou o unico a quem não foi permittida a defeza. A minha fé, porém, está de tal fórma arreigada que não ha nada que a possa abalar. A fé desterra o medo, abala os tyranos e vence. O que se passa commigo é uma monstruosidade e n'isto sirvo-me das proprias palavras do sr. promotor. O sr. auditor, como homem de brio, disse, quando aqui se tratou da questão da minha defeza, que desde o momento em que o meu defensor (o quintanista de direito Lomelino de Freitas) apresentasse documentos que o auctorisassem a advogar, na conformidade com o que dispõe o regulamento de 26 de dezembro de 1888, seria admittido. «V. Ex.ª (_dirigindo-se ao auditor_) devia ter esclarecido o conselho de guerra sobre este assumpto. É verdade que tive defeza que agradeço ao sr. dr. Alvaro de Vasconcellos. Essa defeza não foi engeitada mas foi emprestada. O illustre advogado empregou todos os esforços, embora não tivesse em seu poder muitos dos apontamentos que possuia o sr. Lomelino. O sr. dr. Vasconcellos disse que se achava coacto. Eu o estou egualmente e protesto contra a perseguição que se me faz. Cortou-se-me a defeza, apesar do meu defensor apresentar documentos legaes: aqui decidiu-se que todos os advogados podessem defender os seus constituintes, desde o momento em que apresentassem os necessarios documentos provando estar para esse fim habilitados. Todos apresentaram esses documentos; uns mais cedo, outros depois. Como o meu defensor não podesse apresentar logo os seus documentos, resolveu-se que o sr. dr. Alvaro de Vasconcellos tomasse a minha defeza até que elle os apresentasse. N'essa occasião, o sr. promotor declarou que desejava dar a maior latitude á defeza e que por isso, seria acceite o defensor que eu escolhera, logo que se apresentasse devidamente auctorisado. «Chegou o dia dos debates: o meu defensor apresenta documentos devidamente authenticados, de fórma a ninguem os poder contestar e negam-me a defeza! Admiro que o sr. promotor, assistindo a tal facto e em vista da sua anterior declaração, não protestasse immediatamente contra a violencia de que eu era victima. «Estou coacto e apello, não para o conselho, que não me pode merecer confiança, mas para a imprensa, para que esta faça demonstrar bem alto este meu protesto. Apesar de tudo, a minha fé fica firme, porque é sincera; ninguem a póde ferir. O que commigo se passa é simplesmente odioso. Eu continuo incommunicavel, quando é certo que o sr. auditor tinha levantado a minha excommunhão. Eu chamo-lhe assim, porque isto não é mais que uma excommunhão. O eu continuar incommunicavel é uma monstruosidade, como afinal, é tudo isto, segundo o proprio sr. promotor o declarou. Eu ainda sou official, tenho direitos que ninguem póde contestar. Estou coacto, tendo defeza emprestada, quando eu só depositava confiança no defensor que escolhera. Eu tenho a fazer uma referencia. O sr. promotor atirou umas pedradas contra o meu regimento, que Deus haja, por quanto infanteria 10 já não existe. V. Ex.ª (_dirigindo-se ao promotor_) disse que nós fôramos cobardes... «_O promotor_--Eu não disse isso... Não dou mais explicações porque não posso discutir com V. Ex.ª. O senhor póde apresentar novos argumentos para a sua defeza e nunca discutir as minhas palavras. «_O capitão Leitão_--Não quero discutir as palavras de V. Ex.ª Não posso, porém, admittir que me chamem cobarde. Se não me deixam defender, dêem-me ao menos o direito de protestar. Nós iamos em caminho do quartel general... «_O promotor (interrompendo)_--Eu não me referi nunca ao sr. capitão Leitão. Referi-me á defeza; e demais não tenho que dar satisfações do que aqui disse. «_O capitão Leitão_--Eu então termino mais depressa. Quando me chegar a minha vez, eu appellarei para tudo e até para a imprensa, para se conhecer bem que não tive defeza, e desde já protesto contra todas as violencias que se me fizeram». Outro protesto não menos vibrante reproduzido na imprensa republicana: «Em nome dos republicanos prezos a bordo do vapor _Moçambique_, pedimos-lhe o favor de protestar perante o publico contra a ultima violencia que se está commettendo comnosco na demora injustificada, e por todos os motivos arbitraria, da leitura da sentença do primeiro conselho de guerra. Sujeitos a todos os vexames, os officiaes militares submettidos a um regimen contrario á lei e attentatorio da sua dignidade, os prezos civis conduzidos como assassinos e salteadores, em carros cellulares desde a Relação até Massarellos, e a pé, no meio d'uma escolta, desde a Foz até Mattosinhos, depois de terem corrido graves riscos na barra do Porto a bordo do vapor chamado _D. Luiz_, com um tratamento vergonhoso na 2.ª camara do vapor _Moçambique_, apezar de nos exigirem a cada um uma quantia sufficiente para um tratamento regular, só nos faltava que o governo conservasse por tantos dias, como conserva, suspensa a leitura da sentença do tribunal que nos julgou, sob o pretexto ridiculo ou comico do receio de manifestações populares. «O paiz avaliará um governo que não tem força para fazer julgar em terra uns centos de accusados politicos e, por esse motivo, os conduz violentamente para bordo de varios navios ancorados n'um porto que só por cumulo d'irrisão se pode denominar «porto de abrigo», onde as tempestades desencadeadas teem produzido os estragos que se conhecem e posto em perigo imminente a vida de tantos homens, muitos dos quaes os proprios accusadores officiaes declararam «innocentes» durante a discussão da causa! O paiz julgará da força e do prestigio d'um governo que conserva, durante oito dias, um tribunal em sessão permanente e «secreta», só porque receia a discussão publica e as manifestações do povo em cima d'uma sentença que o proprio governo vem declarando ha muito ser a sentença mais levantada e mais patriotica de quantas se poderiam lavrar e pronunciar na nossa terra. «O paiz que julgue isso tudo. Nós protestamos, com toda a força do nosso direito e da nossa justiça, contra a ultima violencia que se comette comnosco. «A bordo do _Moçambique_, 20 de março de 1891.--_João Paes Pinto_, abbade de S. Nicolau; _João Chagas_; _Francisco Christo_.» Por fim sempre appareceram as decantadas sentenças. Como se verá pelo extracto que damos a seguir nada tiveram da _elevação_ e do _patriotismo_ apregoados pelos defensores do regimen monarchico e antes se caracterisaram por uma manifesta desegualdade na applicação das diversas penas. _No 1.º conselho de guerra:_ Santos Cardoso, condemnado a 4 annos de Penitenciaria seguidos de 8 de degredo; 1.º sargento Abilio e 2.º sargento Galho, 6 annos de Penitenciaria; João Chagas e 2.º sargento Manuel Nunes, 4 annos de Penitenciaria e na alternativa de 6 annos de degredo; 2.º sargento Castro Silva, 3 annos e 4 mezes de prisão maior cellular; 1.º cabo Galileu Moreira e o actor Miguel Verdial, 2 annos de Penitenciaria; Eduardo de Sousa, 2 annos de prisão correcional; Felizardo de Lima, Amoinha Lopes e Manuel Pereira da Costa, 18 mezes de cadeia; 8 cabos, 1 corneteiro e 32 soldados, 3 annos de deportação militar; 8 cabos, 3 corneteiros e 23 soldados, 3 annos e 6 mezes de deportação; 1.os cabos Arthur Carneiro e Rosas Pinto, 4 annos de deportação; o soldado Albino Rodrigues e os corneteiros Jacintho Duarte e Sousa Vaz, 5 annos de deportação. _No 2.º conselho de guerra:_ Capitão Leitão, 6 annos de Penitenciaria, seguidos de 10 de degredo; tenente Coelho, 5 annos de degredo; sargentos Joaquim Pinheiro, Thadeu de Freitas, Pinto Villela e Hermenegildo Silva, 4 annos de Penitenciaria; sargentos Raymundo de Carvalho, Alcoforado e Antonio Maria, o musico Eduardo Correia, 3 aprendizes de musica, um mestre de corneteiros, 12 cabos e 45 soldados, 3 annos de degredo; sargento Nunes Folgado, 4 annos de Penitenciaria; sargentos Correia Mendes, Rodrigues da Silva, Pinto Gomes, Botto Machado, Joaquim Moutinho, os musicos Eduardo Silva, José Silverio, Eduardo Fortuna, Joaquim da Rocha, Manuel Correia, Aurelio Silva, Jayme Lopes, o aprendiz Costa Rebello, 17 cabos e 48 soldados, tambem 3 annos de degredo; 1.º cabo Thomaz Bastos, 5 annos de degredo; 2.os sargentos Alexandre de Figueiredo e Vasconcellos Cardoso, 4 annos de Penitenciaria. _No 3.º conselho de guerra:_ Sargentos Guilherme Rocha, Miranda de Barros, Pinho Junior e Alfredo Fernandes e cabo João Borges, 4 annos de Penitenciaria, seguidos de 8 annos de degredo; 2.os cabos Ferreira Pires e Felicio da Conceição, 4 annos de Penitenciaria; 1 cabo e 5 soldados da guarda fiscal, 18 mezes de prisão militar. De todos os revoltosos condemnados á prisão maior cellular, apenas um, cremos nós, o cabo Salomé, da guarda fiscal, chegou realmente a ser internado na Penitenciaria de Lisboa. Os outros, como nas suas sentenças havia a alternativa de uns tantos annos de degredo, foram espalhados pelos presidios ultramarinos. D'um d'estes se evadiu mais tarde João Chagas, aproveitando o concurso dedicadissimo d'um official da marinha mercante portugueza. A evasão do illustre escriptor revestiu pormenores rocambolescos. Indo parar a uma colonia franceza da Africa Occidental, de lá se transportou a Paris onde viveu algum tempo na intimidade doutros revoltosos emigrados. Breve, porém, sentiu a nostalgia da patria e um bello dia abalançou-se a regressar ao Porto, onde a espionagem policial o descobriu e o prendeu... Agora que já decorreram muitos annos sobre os episodios que constituiram a revolta de 31 de janeiro, não nos furtamos ao desejo de relembrar como a classificaram então as individualidades que eram o sustentaculo do throno. Se a revolta houvesse triumphado, por certo a linguagem empregada teria sido muito outra. Mas não triumphou e a arrojada tentativa d'um punhado de valentes foi assim qualificada: «...lamentaveis acontecimentos que um bando de ambiciosos sem escrupulos promoveu e por quem, infelizmente, alguns homens que vestiam a nobre farda do exercito portuguez se deixaram arrastar n'uma lucta fratricida contra os seus camaradas fieis, faltando ao seu sagrado juramento de soldado e á sua nunca desmentida lealdade e disciplina, commettendo um verdadeiro crime de lesa-patriotismo...» Isto appareceu n'um documento official--o elogio tributado pelo general da divisão do Porto ás praças da guarnição da cidade que não haviam tomado parte na revolta. Ao mesmo passo, e tambem em documento official, dirigia-se estas amabilidades á guarda pretoriana: «Mais uma vez, a guarda municipal do Porto deu provas da sua inquebrantavel lealdade, disciplina, bravura e coragem nunca desmentidas. O dia de hontem (31 de janeiro) foi muito trabalhoso e de grande risco para todos, mas foi um dia de gloria para esta guarda. A ella, a mais ninguem, pode dizer-se sem receio de que alguem possa vir affirmar o contrario, se deve a suffocação da revolta, que os corpos da guarnição d'esta cidade, esquecidos dos seus deveres de honra, do juramento que prestaram, e do que devem á nossa querida patria e á dignidade propria, levaram a effeito, intentando derrubar as instituições que felizmente nos regem e os poderes legalmente constituidos, reconhecidos e respeitados pela grandissima maioria da nação. Foi um acto da maior indisciplina que pode dar-se na familia militar; ainda bem, porém, que outros militares fizeram baquear os revoltosos, e certamente um rigorosissimo castigo cahirá sobre elles e os fará então arrepender, se já não estão arrependidos, da erradissima acção que praticaram». Por outro lado, as camaras municipaes como que obedecendo a um _mot d'ordre_ superior, felicitaram a monarchia pela victoria obtida e uma d'ellas, em mensagem de maior requinte litterario, expressava-se d'este modo: «_Senhor._ Reconhecendo que as sociedades, obedecendo ás leis biologicas, tendem a ser successivamente modificadas na sua organisação, mas attento o grave e critico momento historico que a nossa querida patria está atravessando, profundamente commocionada pelos irreflectidos e criminosos acontecimentos que em 31 de janeiro findo enlutaram a cidade do Porto e o paiz inteiro, a camara municipal d'este concelho, interprete dos sentimentos que animam os povos que o constituem vem depôr junto de vossa magestade como representante d'um paiz que caminha na vanguarda das aspirações sociaes, o seu preito de dedicação e fidelidade ao regimen monarchico e de felicitação a vossa magestade e a toda a familia real, por ver n'este angustioso momento, junto de um dos thronos mais dignos da consideração universal, reunida a grande massa da nação, que só deseja ordem e inteira união de todas as classes para debellar os males que a affligem e poder repellir os inimigos que tentam sepultar a sua autonomia.» Não faltaram elogios e homenagens aos triumphadores como se não poupou os vencidos a toda a casta de imprecações. No momento da derrota ninguem pensou em que a explosão revolucionaria podia reproduzir-se, apoz certo lapso de tempo, e que essa reproducção podia ser acompanhada de elementos de exito seguro. Todos trataram, na occasião, de mostrar á dynastia brigantina um servilismo fóra do commum e aos pés do rei cahiram dias a fio excessivas doses de lisonja que, por serem de encommenda, nem ao proprio alvejado deviam illudir. E comtudo a revolta do 31 de janeiro marcára uma _étape_ bem nitida no caminho da modificação do regimen. Tão nitida, que pouco antes d'ella ser julgada nos conselhos de guerra, como em outro logar referimos, o manifesto dos emigrados portuguezes residentes em Madrid soltava este grito de esperança, desferido com tanto enthusiasmo como se já o illuminasse um clarão inapagavel de victoria: «...Nós, orgulhosos, obscuros, altivos e humildes, porque cuspimos nos homens indignos e imploramos a Deus justiceiro, entendemos que bate o minuto em que urge gritar a um povo honrado, a um povo valente que não póde ser mais: que não hade ser ainda; que é inevitavel, que é irremediavel que é necessario, immediata e incontrariadamente, cavar fundo, rasgar immenso, despedaçar largo, destruir vasto, já, já, agora, agora, de maneira que a incomparavel vergonha se envergonhe, esta incomparavel, esta inverosimil, esta unica e extraordinaria hediondez de que uma nação inteira continue, inerte, tranquilla e triturada, sob as patadas obscenas d'uma canalha que ella abomina muito menos do que ella despreza. «E, se os emigrados teem toda a esperança no paiz, o paiz não se hade vexar envergonhado, dos seus filhos hoje proscriptos, antes com elles deve e pode contar para todos os sacrificios que a salvação da patria em perigo tem o direito de exigir dos cidadãos probos e dedicados. A grande palavra de Danton, de que ninguem consegue partir do solo que embalou o berço em que vagiu a infancia, levando a patria pegada ás solas dos sapatos, tem-n'a presente constantemente os emigrados no espirito. Com sobresaltada attenção espiam os successos; com a alma em susto, forçados, a, raivosamente, cruzarem os braços, n'uma inefficacia provisoria, assistem ao desesperador espectaculo do crescente amesquinhamento do paiz, que, com fervoroso impeto, respeitam e amam. «Mas, aguardando sempre, não se differenciam dos seus concidadãos, injuriados pelo roubo das liberdades outr'ora conquistadas nem se desinteressam das preoccupações que os agitam. Os de fóra continuam a fazer causa commum com os que, a dentro de fronteiras, mal podem expressar seus queixumes. Do exilio os alentam, da terra estrangeira lhes clamam a esperança no futuro. Solde-se assim um pacto santo. Que a ultima palavra que pronunciamos seja a que em breve, verbo reformador, ascenda de todos os corações generosos e irrompa em todos os puros labios, como a consummação, salutar e fecunda, da grande obra iniciada a 31 de janeiro: «Viva Portugal! «Viva a Republica!» Este manifesto era assignado, entre outros emigrados, por Alves da Veiga, Basilio Telles, alferes Malheiro, Antonio Claro, Carlos Infante da Camara, Annibal Cunha, José Sampaio, Alipio Augusto Trancoso e José Tavares Coutinho. A obra iniciada a 31 de janeiro... essa veiu a consummar-se quasi vinte annos depois. FIM Indice _Do TEXTO_ Pag. Palavras de um soldado 3 Capitulo I--O movimento de 31 de Janeiro filia-se no «ultimatum» de 1890 7 » II--O primeiro rebate do conflicto diplomatico anglo-portuguez 14 » III--Serpa Pinto, á frente de 6.000 homens, derrota os makololos revoltados 20 » IV--O governo progressista cede ante as exigencias da Grã-Bretanha 27 » V--O protesto contra o «ultimatum» echoa de norte a sul do paiz 34 » VI--Serpa Pinto, heroe africano, perde o prestigio 40 » VII--O partido republicano nasce da dispersão do reformista 48 » VIII--João Chagas abandona enojado a imprensa monarchica 54 » IX--O Dr. Alves da Veiga assume a chefia civil do movimento 62 » X--O Directorio recusa a sancção official á revolta 69 » XI--A crise ministerial dos «vinte sete dias» 75 » XII--«E as armas que nos foram entregues para defeza das instituições, voltal-as-hemos contra ellas» 82 » XIII--Vinte annos apoz a derrota 92 » XIV--A alvorada triumphante: caçadores 9 inicia o movimento 96 » XV--Proclama-se a Republica no edificio da camara Municipal 107 » XVI--O choque sangrento--A guarda municipal desbarata os revoltosos 114 » XVII--A noite negra do traidor Castro--O destino de tres officiaes 121 » XVIII--O dia seguinte ao da derrota 129 » XIX--Para as despezas da revolta bastou um conto de reis 138 » XX--Triste balanço: o das victimas da insurreição 144 » XXI--A serenidade de uns e o desalento de muitos 149 » XXII--O julgamento dos revoltosos 156 _Das GRAVURAS_ Quartel de infanteria 18, e campo da Regeneração, onde se reuniram as tropas sublevadas na madrugada de 31 de Janeiro 15 Elias Garcia 19 Encontro dos revoltosos com as tropas fieis ao governo 23 Alves da Veiga (1891) 31 Na rua de Santo Antonio 39 João Chagas (1891) 47 A guarda municipal entrincheirada na egreja de Santo Ildefonso 55 Capitão Leitão (1891) 63 Uma carga de cavallaria 71 Rodrigues de Freitas (1891) 79 Levantando os feridos 87 José Sampaio (Bruno) (1891) 95 Proclamação da Republica 103 A Bandeira da Revolta que foi hasteada na camara Municipal 111 Basilio Telles (1891) 115 Bombardeamento da Camara Municipal pelas tropas fieis ao governo 119 Tenente Coelho (1891) 127 Santos Cardoso, preso a bordo 135 Actor Verdial (1891) 139 Revoltosos presos a bordo do _India_ 143 Antonio José de Almeida (1891) 147 Os prisioneiros a bordo 151 Dr. Affonso Costa (1891) 157 Conselho de guerra a bordo do transporte _India_ 161 O tumulo das victimas no cemiterio do Repouso, no Porto 167 * * * * * A sahir brevemente o 5.º volume DA BIBLIOTHECA HISTORICA A Revolução e a Republica Hespanhola (1868 a 1874) POR Victor Ribeiro Da Academia das Sciencias Um elegantissimo volume de 200 pag. 200 rs. broc. e 300 rs. enc. em percalina BIBLIOTHECA DA INFANCIA COLLECÇÃO ILLUSTRADA DE LEITURAS EDUCATIVAS Sob a direcção litteraria DE VICTOR RIBEIRO Da Academia das Sciencias Volumes em 8.º, illustrados com esplendidas gravuras no texto e de pagina, nitidamente impressos em magnifico papel, expressamente fabricado para esta publicação, formando elegantissimos livros de cerca de 200 paginas. 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BIBLIOTHECA DA INFANCIA COLLECÇÃO ILLUSTRADA DE LEITURAS EDUCATIVAS SOB A DIRECÇÃO LITTERARIA DE VICTOR RIBEIRO Da Academia das Sciencias VOLUMES PUBLICADOS I--*Narrativas e Lendas da Historia Patria* (A Conquista do Reino). II--_A Daudet_--*A Creança Abandonada*. III--*Narrativas e Lendas da Historia Patria* (O Condestavel). IV--*A Vida dos Animaes* (No Paiz do Leão). V--*Narrativas e Lendas da Historia Patria* (D. João I, o rei eleito do povo). VI--_Victor Hugo_--*O Bom Bispo*. VII--*Narrativas e Lendas da Historia Patria* (Os filhos de D. João I). VIII--*A Vida dos Animaes* (Os cães). IX--*Narrativas e Lendas da Historia Patria* (O Infante D. Henrique). NO PRÉLO X--*A Terra Portugueza* (Portugal Pitoresco). Cada volume em 8.º, illustrado com esplendidas gravuras nitidamente impresso em magnifico papel, expressamente fabricado para esta publicação, forma um elegantissimo livro de cerca de 200 paginas. *Os mais baratos e elegantes brindes para creanças e premios escolares* 200 réis cada volume brochado--300 réis enc. em percalina Pedidos a ALFREDO DAVID--Encadernador Rua Serpa Pinto, 30 a 36--Lisboa End of the Project Gutenberg EBook of A Revolução Portugueza: O 31 de Janeiro (Porto 1891), by Jorge de Abreu *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A REVOLUÇÃO PORTUGUEZA *** ***** This file should be named 29484-8.txt or 29484-8.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: http://www.gutenberg.org/2/9/4/8/29484/ Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. 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Redistribution is subject to the trademark license, especially commercial redistribution. *** START: FULL LICENSE *** THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase "Project Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg-tm License (available with this file or online at http://gutenberg.org/license). Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. 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