Itinerario da viagem, que fez a Jerusalem o M.R.P.

By Francisco Guerrero

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M.R.P., by Francisco Guerreiro

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Title: Itinerario da viagem, que fez a Jerusalem o M.R.P.

Author: Francisco Guerreiro

Release Date: September 26, 2009 [EBook #30091]

Language: Portuguese


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                                             Rita Farinha (Set. 2009)




ITINERARIO

DA

VIAGEM,

QUE FEZ A JERUSALEM O M. R. P.

FRANCISCO GUERREIRO,

_Racioneiro, e Mestre da Capella da Santa Igreja de Sevilha,
natural da Cidade de Béja._


OFFERECIDO

AO SENHOR

ANTONIO VAN-PLATE,

Familiar do Santo Officio.



LISBOA OCCIDENTAL,

Na Officina de DOMINGOS GONÇALVES,
Impressor dos Monges das Covas de Mont-furado.

M. DCC. XXXIV.
Com todas as licenças necessarias.






AO SENHOR

ANTONIO VAN-PLATE,

Familiar do Santo Officio, &c.




_Este breve Itinerario da viagem dilatada, que fez a Jerusalem o
Reverendo Padre Francisco Guerreiro, natural da Cidade de Bèja,
Racioneiro, e Mestre de Capella da Santa Igreja Metropolitana de
Sevilha, bem conhecido pelos seus ascendentes, os Guerreiros de Campo de
Ourique, e pelas obras de musica, que fez estampar, sempre admiradas, e
nunca imitaveis, impresso pelo original Portuguez, que deixou escrito de
sua maõ, muito differente daquelle, que os Sevilhanos adulteraraõ, e
publicaraõ em outro seculo no seu idioma, offereço a vossa merce; naõ
para incitar mais o affecto, com que me deseja favorecer, que conheço
naõ poder crescer mais, como experimento, sim por me mostrar agradecido
a tantos beneficios, que recebo, e espero receber de sua Catholica, e
politica generosidade.

He este o primeiro original, que publico; e como vossa merce apadrinhou
o acto de meu mayor empenho, honrando-me com a sua assistencia, em outra
occasiaõ, agora desejo tambem que me faça a honra de o patrocinar, pois
pela materia, pelo Escritor, pelas noticias que inclue, e pela
antiguidade, he digno do seu nobilissimo, e piedoso influxo.

Tendo eu a certeza de que he do agrado de vossa merce, espero que o seja
de todos, pois a estimaçaõ vulgar sempre imita a particular estimaçaõ de
sogeitos da esféra de vossa merce; que entendo será correspondente ao
desejo, que tenho de obsequiar a vossa merce, a quem Deos guarde._

Af. V. e C. de V. M.

q. s. m. b.

_Joaõ de Carvalho._




ITINERARIO DA TERRA SANTA


Tendo eu, pela misericordia Divina, visitado os Lugares da Terra Santa,
muitos devotos me pediraõ escrevesse esta Santa viagem, para que à vista
do que eu vi, se abrazassem os seus animos, procurando seguir o mesmo
caminho, e serem informados do que lhe era necessario para este fim: e
por condescender com os seus desejos, e pelo gosto, que tenho da suave
memoria de o haver andado, naõ me será molesto o fazer huma breve
relaçaõ do que tenho visto: e para dar melhor noticia do movimento, que
tive, para fazer esta peregrinaçaõ, he preciso começar do tempo, que me
incliney a desejar ver cousas taõ dignas de hum peito Catholico.

Depois que meus pays, e familia passaraõ da Cidade de Beja, minha
Patria, a viverem na Villa de Zafra, me appliquey à arte de musica, e
nella me doutrinou meu irmaõ Pedro Guerreiro, doutissimo na faculdade; e
tanto fez com o castigo, e com a doutrina, sendo grande o desejo, que
tinha de saber, e o meu engenho accommodado à dita arte, que em poucos
annos teve gosto, e satisfaçaõ de mim. Foy preciso o ausentarse; e eu
desejando aperfeiçoarme, tive modo, para ser admittido às liçoens do
grande, e excellente Mestre Christovaõ de Morales, o qual me deu grande
luz na composiçaõ da musica, e me poz capaz de qualquer Magisterio;
tanto, que tendo de idade dezoito annos, fuy recebido por Mestre de
Capella, e Racioneiro da Igreja Cathedral de Jaem, occupaçaõ, que servi
trez annos. Neste tempo vim a Sevilha a visitar a meus pays, que entaõ
se achavaõ nesta Cidade, e o Cabido da Santa Igreja me deu huma praça de
Cantor com bastante salario; e por obedecer a meus pays, que desejavaõ,
e necessitavaõ da minha companhia, deixey o Magisterio, e Raçaõ de Jaem,
estimando a honra, que me fazia o Cabido da Santa Igreja, ainda que era
mayor, e de mais conveniencia a praça, que deixava.

Poucos mezes tinha eu de residencia nesta Santa Igreja, quando entre
seis oppositores, que havia ao Magisterio de Malaga, tive a primeira
nomeaçaõ, por me quererem favorecer o Illustrissimo Senhor Dom Bernardo
Manrique, Bispo desta Santa Igreja, e o Illustrissimo Cabido, e naõ por
merecimentos meus; e mandada a nomeaçaõ a ElRey, por sua ordem tomey
posse por hum Procurador. Já estava preparado para ir para a residencia
da Raçaõ, e Magisterio desta Santa Igreja; e o Cabido da de Sevilha me
impedio honrosamente, naõ permittindo, que eu me retirasse a Malaga; e
para que com melhor titulo podesse deixar o que já possuhia, ordenou,
que o Senhor Racioneiro, e Mestre da Santa Igreja Pedro Fernandes,
Mestre dos Mestres de Hespanha, nosso Portuguez, jubilasse, e se lhe
désse meya Raçaõ, e que eu tivesse a outra metade, e mais o salario de
Cantor, com obrigaçaõ de dar de comer, e o mais necessario aos Seyses
Typles; e que se eu lhe supervivesse, entrasse em toda a Raçaõ. Vinte e
cinco annos vivi com este grande sogeito na mesma casa, e depois que
Deos o levou, fuy provido em toda a Raçaõ por Bullas Apostolicas.

Os deste exercicio todos sabem, que temos muito particular obrigaçaõ de
compor as Chançonetas, e Vilhancicos em louvor do Nascimento de Jesu
Christo nosso Senhor, nosso Salvador, e nosso Deos, e de sua Santissima
Mãy a Virgem Maria Senhora nossa; e quando compunha as letras para as
Matinas de taõ luzida noite, e se nomeava _Bethleem_, se me
accrescentava a devoçaõ, e desejo de ver, e celebrar naquelle Lugar
Santissimo estes cantares em companhia, e memoria dos Anjos, e Pastores,
que lá começaraõ a nos dar liçaõ desta Divina Festa: e ainda que esta
pertençaõ era taõ grande, que me parecia impossivel o conseguilla, por
muitos inconvenientes, que havia entaõ, especialmente o de meus pays,
propuz, ainda que naõ fiz voto, de que se Deos me désse vida mais larga,
que a delles, de fazer esta Santa viagem: pelo que tanto que Deos os
levou desta vida, me pareceo, que tinha feito a mayor parte deste
caminho.

Estando sempre com este cuidado, de quando chegaria este tempo de me ver
em taõ Santo caminho, succedeo, que no anno de 1588. nosso Santissimo
Padre Papa Sixto V. mandou chamar ao Illustrissimo, e Reverendissimo
Senhor Cardeal Dom Rodrigo de Castro, Arcebispo de Sevilha, e estando
preparado para ir a Roma, lhe pedi me levasse no seu serviço, e pedisse
ao Cabido o tivesse assim a bem, e assim o consegui por sua Senhoria
Illustrissima.

Tanto que chegàmos a Madrid, deteve Sua Magestade ao Arcebispo, e como o
Veraõ entrasse muito caloroso, naõ determinou passar a diante, atè que o
tempo refrescasse; e eu como desejoso de me ver já em Italia, vendo esta
nova dilaçaõ, pedi a Sua Senhoria Illustrissima me désse licença para
hir a Veneza a estampar huns livros, entre tanto que fizesse tempo de
proseguir a sua jornada, porque ao presente estavaõ em Carthagena as
Galès do Graõ Duque de Florença. O Cardeal naõ sómente me deu licença,
mas tambem me fez merce de me dar a ajuda necessaria para a jornada, e
assim me parti a Carthagena, aonde achey outras Galès, que estavaõ para
navegar, que embarquey para Genova, e dahi passey a Veneza, a que
cheguey em oito de Agosto.

A primeira diligencia que fiz, foy ajustar a imprenssa dos livros de
musica; e dizendo-me o Impressor, que para se estamparem era necessario
tempo de cinco mezes, disse a hum amigo meu: _Nesse tempo podia eu fazer
a minha viagem a Jerusalem_; a que respondeo, dizendo: _Em boa occasiaõ
fallais, pois ahi está huma nao nova, e boa, que vay para Tripoli de
Syria_; do que tive grande alegria; e tomando a correcçaõ dos livros à
sua conta o Mestre Joseph Zertino, Mestre da Capella de Saõ Marcos, e da
Senhoria de Veneza, Varaõ doutissimo em musica, e outras artes liberaes,
me concertey com o Escrivaõ da nao, ajustando de lhe dar cinco escudos
pela embarcaçaõ, e por comer com o Capitaõ sete cada mez, o que he
ordinario.

Foy meu companheiro em toda esta Santa viagem Francisco Sanches, meu
discipulo, e assim alegremente nos embarcamos a quatorze de Agosto de
1588. tendo eu de idade sessenta, sem temor do mar, nem de tantas
naçoens inimigas, como se encontraõ nesta peregrinaçaõ, porque o gosto,
que tinha desta jornada, me facilitava, e suavizava tudo.




_Do caminho, que fizemos de Veneza a Jaffa, porto da Terra Santa._


No dia seguinte, que se contavaõ quinze do dito mez, em que se celebrava
a Assumpçaõ da Virgem Senhora nossa, começamos a navegar lentamente, por
termos pouco vento, e melhorando o tempo, chegàmos à Cidade de
_Parenço_, na Provincia de _Istria_; e daqui sahimos navegando
prosperamente pela costa de _Dalmacia_, terra, e Patria do Maximo Doutor
Saõ Jeronymo; e pela Esclavonia, e Albania, em quinze dias chegámos à
Ilha de _Zante_, terra na _Grecia_ de Venezianos, a que ha trezentas
leguas de Veneza; deixando à maõ esquerda a Ilha de _Chafallonia_, e
Golfo de _Lepanto_, adonde foy aquella grande batalha, que teve a Armada
da liga Christãa com a dos Turcos, e teve a vitoria a dos Christãos,
sendo General della o Senhor Dom Joaõ de Austria, irmaõ delRey Filippe
II. nosso Senhor. Retivemos em _Zante_ quatro dias; Ilha, bem provida do
necessario para a vida humana, especialmente de vinho, que o ha em
abundancia, e muito excellente; e vindo muitas naos de Levante a Poente
a carregar, para todas, e para os naturaes ha abundantemente.

Toda esta terra he de Gregos, e sómente os Governadores saõ Venezianos,
como Senhores della. Tem dous Bispos; hum Grego, outro Latino. Tem duas
Povoaçoens; huma junto ao mar, outra em hum alto monte, em que está huma
boa Fortaleza. A mayor parte das Igrejas saõ de Gregos. Tem hum Convento
de Religiosos de Saõ Francisco, adonde os Latinos dizemos Missa. Ouvimos
aqui huma Missa aos Gregos; e a officiaraõ de Cantochaõ Ecclesiasticos,
e seculares. He o seu canto simples, e ignorante. Dizem a Missa com
devoçaõ, e muitas ceremonias, e huma dellas he, que a materia de paõ
fermentado, e vinho que se ha de consagrar, a traz o Sacerdote sobre a
cabeça no Caliz muito cuberta, sahindo por huma porta do Altar, que o
divide do corpo da Igreja, e dando huma volta por ella, se torna a
recolher ao mesmo Altar, incensando hum Ministro ante elle, e o Povo
está adorando, em joelhos, a materia, que ainda naõ está consagrada.
Está esta Ilha perto, e fronteira à Morea, que he _Corintho_, adonde Saõ
Paulo escreveo duas de suas Epistolas.

Partidos de _Zante_, nos engolfamos atè chegar à Ilha de _Candia_, que
por outro nome se chama _Creta_, a que haverá duzentas leguas. Fomos
costeando-a, quasi cem legoas, e sem desembarcar, entramos por outro
Golfo, que será de outras duzentas legoas, pouco mais, ou menos, e
chegamos à Ilha de Chypre, terra fertil, e fermosissima de tudo o que se
pòde desejar. Esta Ilha, e Reyno possuem os Turcos de vinte annos a esta
parte, ganhando-a por força de armas aos Venezianos, que eraõ Senhores
della, ficando os naturaes com suas casas, e fazendas, porèm sogeitos ao
Turco. Os moradores saõ Gregos, e Latinos. Desde que sahimos de Veneza
atè que chegámos a huma Cidade desta Ilha, que chamaõ _Limisol_,
passaraõ vinte e sete dias.

Desembarcados nesta Cidade, começamos a tratar com os Turcos, e ainda
que com algum medo no principio, brevemente o perdemos; porque como os
Venezianos tem paz com elles, e nòs os Peregrinos vamos a titulo de
Venezianos, fallando na sua propria lingua, naõ ha que temer. Do tempo
da guerra ficou muito mal tratada esta Cidade. A Fortaleza está
arruinada da grande bataria, que lhe deraõ os Turcos, e as Igrejas, e
Cruzes, que estavaõ nas entradas, e a mayor parte das casas, estaõ
cahidas. Tem esta Ilha muitas cousas necessarias, e regaladas para a
vida, muito paõ, e vinho, assucar, e grande quantidade de algodaõ, de
que carregaõ muitas naos para Levante, e Poente. Aqui reside hum Consul
da naçaõ Franceza, e Italiana, que he o que está, e se poem por meyo
entre Christãos, e Turcos, e com elle tratàmos os nossos negocios. Fomos
a sua casa, e nella nos regalou; e delle soubemos da guerra, que o Turco
tinha na Persia, e das companhias de gente, que passavaõ pela
_Caramania_, que está muito perto, na terra firme de Asia; e da boa
occasiaõ, que havia na presente conjuntura, para tornar a cobrar este
Reyno, pela pouca guarniçaõ, que nelle tem: porèm melhor he naõ cuidar
nisto, porque os Christãos naõ tratamos de recuperar o que perdemos; e
temos experiencia, que o que estes Barbaros conquistaõ, já mais o
perdem.

Estando nesta Cidade, nos disse o Capitaõ, que se havia de dilatar com
sua nao mais de vinte dias, e dalli navegaria para _Tripoli de Syria_; e
assim lhe parecia, que partissemos para _Jaffa_, porto da Terra Santa,
distante de _Jerusalem_ doze legoas, e que adiantassemos estes dias:
pelo que nos ajustou a quatro Peregrinos que eramos, com hum barqueiro,
que tinha trez companheiros, e diziaõ, que eraõ Christãos. Levavaõ estes
a sua barca carregada de alfarrobas à Cidade de _Damiata no Egygto_; e
concertados em _vinte e cinco zequies_, que cada zequi vale huma pataca;
e em quatro dias chegamos ao dito porto, a que ha de _Limisol_ cento e
vinte legoas.

Foy alegrissima a vista a todos, descobrindo Terra, que com tanta razaõ
se chama Santa. Do caminho vimos a Cidade de _Cesarea da Palestina_, e
outras Povoaçoens, ainda que naõ sahimos em terra, por nos aproveitarmos
do bom tempo, e chegarmos com brevidade ao porto desejado. De _Veneza_
atè _Jaffa_ gastamos trinta e dous dias.




_Da Cidade de Jaffa, e do caminho que fizemos atè Jerusalem._


Esta Cidade, que por outro nome se chama _Joppe_, foy muito principal,
como se colhe das ruinas dos seus edificios. He muito celebrada na Santa
Escritura pelas cousas, que nella aconteceraõ. Aqui se embarcou _Jonas
Proféta_, quando fugindo elle de Deos, lhe ordenou este Senhor, que
fosse prégar a _Ninive_; e pela tempestade, que por sua culpa permittio
Deos, foy lançado no mar, e tragado da Balea. Aqui esteve algum tempo o
_Apostolo Saõ Pedro_, e nella vio aquella visaõ do Ceo aberto, e baixar
hum vaso ao modo de hum lançol, cujas pontas chegavaõ ao Ceo, cheyo de
serpentes, e aves, e outros animaes, e Deos lhe mandava, que matasse, e
comesse; e o mais, que nos Actos dos Apostolos se refere.

Aqui resuscitou o mesmo Santo Apostolo a huma mulher, chamada _Dorcas_;
e por estas, e outras muitas particulares cousas, que ha, e succederaõ
nesta Cidade, he muito famosa, e muito celebrado o seu porto. Logo que o
nosso barco chegou, e deu fundo, veyo da terra outro barco encaminhado
ao nosso, em que vinha o _Subasi_, que he o Aguasil da Cidade de _Ramà_,
com oito, ou dez arcabuzeiros, e frecheiros, e chegando ao nosso barco,
entraraõ nelle, olhando para nòs, e dizendo: _Christiani, Christiani_? E
nòs baixando a cabeça, lhe demos a entender, que sim. O barqueiro,
quando vio, que elles vinhaõ, escondeo dous barris de vinho, por saber o
quanto desejaõ este licor, deixando sómente o que bastava para a
merenda, que constou de paõ, e queijo, e alfarrobas.

Acabada a merenda, nos fez sinal para que entrassemos no seu barco; e
fomos para terra Christãos, e Turcos muito alegres, rindo de hum Turco,
que se emborrachou, ao qual diziaõ os companheiros muitas galantarias.

Chegados a terra, nos pedio o _Subasi_ de entrada hum _zequi_ por cada
hum; e recebido, nos encomendou a hum Turco, para que nos guardasse: e
visto que naquella noite haviamos de dormir no chaõ, em humas Tercenas
antiquissimas, entrámos em requerimento com o Turco nosso guarda, para
que nos deixasse dormir em hum barco no mar; e elle ainda que o
difficultou, concedeo a licença tanto que lhe démos certas moedas.

O _Subasi_ naquella mesma noite partio para _Ramà_, distante quatro
leguas; e lhe pedimos nos mandasse hum homem com bestas para nos levar a
_Jerusalem_, o que elle prometteo, e cumprio. Aquella noite, e a que se
seguio, estivemos em hum barco cheyo de Peregrinos, que vinhaõ de
_Jerusalem_, em que se achavaõ quatro Cavalleiros Francezes, e alguns
Religiosos, que nos regalaraõ no tempo, que alli estivemos.

No terceiro dia chegou hum homem de _Ramà_, que se chamava _Atala_, e
trouxe para cada hum de nòs hum jumento, e nos ajustámos os quatro
Peregrinos com elle em vinte e quatro _zequies_. Neste tempo chegaraõ
mais dous Perigrinos, hum Religioso de Saõ Francisco, que vinha do
_Cayro_, e hum Clerigo, ambos Francezes; e logo muitos Gregos com
mulheres, e filhos; e todos juntos fizemos jornada para Jerusalem.

Fallava o homem com quem caminhavamos muito bem a lingua Italiana, e
dizia, _que era Christaõ_; ainda que algumas vezes por graça, (que a
tinha, e entendimento) respondia, quando lhe perguntavamos porque comia
de boa vontade com Mouros, e Turcos: _Olha, eu sou Mouro com os Mouros,
e Christaõ com os Christãos, e com os ladroens sou ladraõ_; e eu lhe
dizia: _Sede vòs, amigo Atala, o que quizeres; mas agora comnosco sede
Christaõ_.

Chegámos a _Ramà_, que por outro nome se chama _Ramata_, adonde
estivemos trez dias. Todo este caminho atè _Jaffa_ he plano; ha muitas
oliveiras, vinhas, e outras frutas, e entre estas huma mayor que
meloens, que se chama em Italia _Anguria_: he muito fresca, e os Turcos
usaõ muito della para entreterem a sede. Foy esta Cidade muito fermosa
em edificios, e ao presente está arruinada; ainda que alguns existem, e
algumas Igrejas, e Torres, especialmente a de _Saõ Jorge_, que está fóra
da Cidade.

Aqui pousámos em huma casa, que ainda que em parte estava derrubada,
tinha bastante commodo para todos os da comitiva. Dizem, que era de
_Nicodemus_: agora he dos Religiosos de Jerusalem, e nella se recolhem
os Peregrinos. Nesta Cidade ha muito de comer, e barato, especialmente
gallinhas. Por grande alivio tivemos, que hum homem nos alugasse humas
esteiras para domir, e démos algumas moedas a hum Turco, para que nos
guardasse da parte de fóra do aposento; e apressando todos a _Atala_
nosso guia, para que fizessemos jornada, nos disse, que era preciso
avisar a hum Capitaõ de Arabes, para que estivesse em certo passo, para
nos segurar de outros Arabes ladroens, que nelle andavaõ roubando; o que
assim foy, pois na manhãa em que madrugámos para sahir desta Cidade, ao
amanhecer, achámos naquelle passo o Capitaõ que dizia, com vinte Arabes
de cavallo bem armados. Fizeraõ-nos deter a todos, e passada pouca mais
de meya hora, que o nosso _Atala_ fallou com elles, passámos de largo, e
seguimos o nosso caminho, e depois que delles nos apartámos, veyo
correndo a mim hum delles a cavallo, e tocando por todo o meu fato,
dizia: _Jarap, jarap_; no que me pedia, se levava vinho, que lhe désse
de beber; e como lhe disse: _Que de boa vontade lhe satisfizera a sede,
se o levara_, se foy muito triste, e eu fuy bem alegre, por me ver livre
delle.

Por todo este caminho atè Jerusalem a cada legoa nos sahiraõ quinze, ou
vinte Arabes com arcos, e frechas, taõ morenos do Sol, e taõ mal
vestidos, que pareciaõ os diabos, dando milhares de gritos ao nosso
_Trucimaõ Atala_, para que lhes désse o _Gafar_, que he certa portagem,
que lhes pagão, os que passaõ por aquellas partes por via de paz; porque
todos estes Arabes naõ estaõ sogeitos ao Graõ Turco, nem a outro nenhum
Senhor; e outra renda, ou officio naõ tem, mais que o que roubaõ.
Parecem quando nos sahem ao encontro, e nos poem as frechas nos peitos,
que nos querem assettear, e com lhe dar dous, ou trez tostoens por
todos, estaõ contentes; e com todos os mais, que nos sahem de legoa em
legoa, praticamos o mesmo; e ainda que saõ ambiciosos de modo, que nos
apalpaõ as algibeiras, e tiraõ o que nellas achaõ, saõ taõ comedidos,
que podendo tomarnos os escudos, que levamos escondidos, vamos seguros
pelo respeito, que todos tem ao nosso _Trucimaõ Atala_, em aquelles
caminhos, e porque os castigariaõ, se nos tratassem mal, e os
prendessem. Vimos neste caminho muitas Igrejas, naõ de todo arruinadas,
que a pouco custo se podiaõ reparar. Vimos hum edificio antigo, que
dizem ser a casa do Bom _Ladraõ_. Vimos as ruinas da Cidade de _Modin_,
terra, e Patria dos _Machabeos_. Todo este caminho he plano, e sómente
quatro legoas antes de Jerusalem he a terra montuosa, e pedregosa.

Tanto que foy meyo dia, descançámos à sombra de humas oliveiras, junto a
huma fonte; e estando comendo do que levavamos da Cidade de _Ramà_,
chegou hum Turco, montado em hum fermoso cavallo, e sem se apear, comeo
do que lhe dey com a minha maõ. Adverti no bom talhe do seu corpo, e o
como vinha preparado para a guerra. Trazia lança, cimitarra, arcabuz,
arco, e frechas, e maça, de que pendiaõ oito facas, adaga, punhal, e
martello. Pareceo-me, que podia contender com dez homens, e ainda
tirar-lhes a vida. Vejaõ se he necessario hirem bem prevenidos, e
petrechados, os que forem peleijar com esta gente. Este lugar aonde
descançámos, está junto ao Valle _Terebintho_, em que _David_ matou ao
_Filisteo Goliath_. Passámos hum rio de pouca agua, e conjecturo ser
este, o em que _David_ colheo as cinco pedras, que levou no çurraõ,
quando foy para a batalha, e com que venceo ao Gigante. Aqui ha huma
ponte quasi destruida, que mostra ainda hoje, que foy soberbo edificio.

Passado este Valle, e rio, subimos huma grande legoa de costa, e no alto
dèmos em caminho plano, ainda que pedregoso: chegando nòs à _Cidade
Santa de Jerusalem_, que está rodeada de montes, e sómente se vê della
alg[~u]a cousa do monte _Olivete_, daqui descobrimos hum pedaço de muro,
e as Torres do Castello; e foy tal a nossa alegria, e taõ extraordinario
o contentamento, que todos os Peregrinos Latinos, e Gregos nos apeámos,
beijando muitas vezes a terra, dando muitas graças, e louvores a Deos, e
enviando-lhe milhares de lagrimas, e suspiros devotissimos, dizendo cada
hum sua devoçaõ à Santa Cidade, e repetindo muitas vezes: _Urbs beata
Hierusalem_.

Neste tempo nos sahio a receber hum Christaõ, chamado _Bautista_, que
serve aos Religiosos de lingua para com os Mouros, e Turcos, e falla bem
Italiano, mandado pelo _Padre Guardiaõ_, que já tinha noticia da nossa
hida; e como chegámos à porta da Cidade, nos fez sentar, e que
esperassemos o aviso do _Padre Guardiaõ_, que he, a quem o _Pontifice_
tem nomeado por Cabeça dos Latinos; e seria passada quasi meya hora,
quando chegaraõ dous Religiosos Italianos, e nos saudaraõ da parte do
Padre Guardiaõ, e que fossemos bem chegados, e que esperassemos hum
pouco, em quanto elles procuravaõ dos Turcos a licença da entrada; que
logo vieraõ, e examinaraõ a roupa, que levavamos, que era bem pouca; e
he o que mais convèm para segurança do Peregrino. Logo que tudo viraõ,
nos deraõ a entrada livre, pagando cada hum dous _zequies de ouro_. Os
Gregos como mais de casa, e Vassallos do Turco, entraraõ logo, e foraõ
ao seu Patriarcha; e neste tempo vieraõ os Religiosos, e nos levaraõ aos
seis Latinos, que eramos. Em 22. de Setembro de 1588. dia do glorioso
_Saõ Mauricio_ entrámos na _Cidade Santa_, passados trinta e sete dias,
que tinhamos sahido de _Veneza_.




_Da Santa Cidade de Jerusalem, do Sagrado monte Sion, e de suas
Estaçoens._


Levaraõ-nos os dous Religiosos ao Convento de _S. Salvador_, que he o
principal da _Terra Santa_, adonde nos receberaõ os Religiosos
processionalmente, cantando _Te Deum laudamus, &c._ Entrámos na Igreja,
que está no alto da casa, e depois de fazer oraçaõ, se poz hum Religioso
junto ao Altar, e fez em lingua Italiana huma muito devota pratica, em
que nos representou a grande merce, que Deos nosso Senhor nos fizera, de
nos permittir o ver aquelles Santuarios, e Lugares Santissimos, e nos
exhortou, a que nos dispuzessemos a ganhar as Indulgencias, confessando,
e commungando.

Acabada a Pratica, nos levaraõ a huma casa, com a mesma Procissaõ,
adonde nos lavaraõ os pès com muita devoçaõ, cantando Hymnos, e
oraçoens; e acabado o lavatorio, nos deraõ bem de cear; e logo nos
guiaraõ para huns aposentos, e a cada hum nos sinalaraõ cama, em que
dormimos, e descançamos alegrissimamente, por nos Deos Senhor nosso
fazer taõ singularissima merce, que naõ concede a todos, pois muitos
Principes, e Reys o desejaõ, e naõ alcançaõ.

No seguinte dia nos preparámos para a confissaõ, e o Padre Guardiaõ deu
faculdade aos Confessores, para nos absolverem plenariamente, porque tem
as vezes do Pontifice; e mostrando-lhe as nossas Dimissorias, nos deu
licença para dizer Missa. Ha trez Altares nesta Santa Igreja, e todos
privilegiados, isto he, que se tira Alma do Purgatorio.

Acabado o Officio, nos encomendou a hum virtuosissimo Religioso
Italiano, chamado _Salandria_, que havia vinte annos, que estava na
_Terra Santa_, para andar as Estaçoens comnosco; e elle, e hum
Companheiro, e _Bautista_, que já nomeey, que he o nosso Interprete com
os Mouros, e Turcos, e nos defende dos rapazes, que nos tiraõ pedradas
pelas ruas, e nos avisa do que havemos de fazer, de que naõ tussamos,
nem cuspamos, porque entendem os Mouros, e Turcos, que zombamos delles,
começámos com alegria, e devoçaõ a andallas; e muitos Religiosos se
associaraõ tambem para o mesmo, que supposto tenhaõ visto muitas vezes
aquelles Lugares Santos, naõ perdem a occasiaõ de os visitar, e ganhar
as muitas Indulgencias, que lhes saõ concedidas.

Deste modo, e com este Santo acompanhamento sahimos os seis Peregrinos;
e a primeira Estaçaõ, que fizemos, foy à Igreja do _Apostolo Santiago_,
em que o Santo foy degollado. He esta Igreja de Armenios, muito grande,
e bem fabricada. A Capella da degollaçaõ está à maõ esquerda da entrada
da Igreja, adonde está hum marmore debaixo do Altar, que tocámos, e
reverenciámos. Tem os Armenios huma boa casa continuada com esta Igreja
em fórma de Convento.

Daqui fomos à casa de _Anàs_, adonde _Christo Senhor nosso_ foy levado
tanto que o prenderaõ. He Igreja de Armenios. Aqui deraõ a _Christo
Senhor nosso_ a bofetada. Mostra-se aqui huma _Oliveira_, a que dizem
estivera _Christo Senhor nosso_ atado, em tanto, que Anàs sahia para o
ver. Tem Indulgencia plenaria.

Deve saberse, que em todos os Santuarios, que se andaõ em toda a _Terra
Santa_, se diz hum _Hymno_, _Antiphona_, _Verso_, e _Oraçaõ_, para o que
ha livro particular, e rezado hum Padre nosso, e huma Ave Maria, se nos
explica o mysterio do tal Lugar.

Fomos daqui à casa de _Caifás_, em que está huma Igreja no Lugar em que
_Christo Senhor nosso_ foy accusado, e tudo o mais que consta do _Santo
Euangelho_. Visitámos o Altar mayor, e lhe serve de cuberta a _Pedra_,
que estava à porta do _Santo Sepulchro_, a qual com razaõ difficultavaõ
as _Santas Marias_, dizendo: _Quem nos tirarà a pedra?_ porque he de dez
palmos, pouco mais, ou menos, de comprimento, e quatro de largura, e
muito grossa. Na Capella mayor ha na parede hum retrete pequeno, em que
sómente poderáõ caber dous homens, e para se poder entrar he de joelhos,
por ter huma pequena entrada: he este o Lugar adonde _Christo Senhor
nosso_ esteve como encarcerado, em tanto que o Pontifice sahia para o
ver.

Sahimos da Igreja a hum patio, que está junto a ella, em que se vê huma
_Larangeira_, e he o lugar em que estavaõ ao fogo os Ministros de
_Caifás_, e adonde _Saõ Pedro_ negou a _Christo_. Do alto desta casa,
(que está _poucos passos fóra do muro da Cidade_) fizemos oraçaõ, e
ganhámos as Indulgencias do _Santo Cenaculo_, que está perto della, no
alto do _Monte Sion_, que por esta parte naõ he mais alto, que a Cidade.
Naõ entrámos nelle, porque os Turcos, com lastima nossa, o fizeraõ
Mesquita. Aqui foy o Lugar, em que _Christo Senhor nosso_ ceou com seus
Discipulos, e instituhio o _Santissimo Sacramento_, donde lhes lavou os
pés, donde baixou o _Espirito Santo_ no dia _Pentecostes_; e donde
habitava a _Virgem Senhora nossa_. Neste _Cenaculo_ assistiaõ os
Religiosos de Saõ Francisco, e haverá trinta annos, que o Turco o tirou
aos Religiosos. A causa dizem, que foy, que huns Judeos disseraõ ao
Turco, [~q] alli era a sepultura de David, e que naõ era justo, que os
Christãos pizassem a sepultura de taõ grande Proféta, e Rey: e como os
Turcos tem muita veneraçaõ aos Profétas do Testamento Velho, mandou, que
os Religiosos tomassem casa dentro em _Jerusalem_; pelo que vieraõ para
a Cidade, e compraraõ huma boa casa, que he a de _Saõ Salvador_, em que
agora vivem: ainda que por estar no Castello, que se chama dos
_Pisanos_, Fortaleza da _Santa Cidade_, Lugar eminente, os Turcos lhe
derrubaraõ os aposentos altos, porque naõ estivesse igual com o
Castello; e assim saõ terreos os aposentos. Este _Santo Cenaculo_ foy a
Casa Real; e tudo o que em circuito está despovoado, era o mais
principal da Corte de _David_, e dos mais Reys. Agora sómente está a
Casa, e Igreja do _Santo Cenaculo_; o mais està despovoado.

Sahidos da Casa de _Caifáz_, e da Cidade, baixando hum pouco pelo _Monte
Sion_ para a parte do Oriente, está o Lugar, adonde, levando os
Apostolos a sepultar o _Corpo da Virgem nossa Senhora_, lho quizeraõ
huns Judeos tirar, e secou o braço do seu Sacerdote, que atrevido tocou
no esquife; e depois lhe foy restituido, e se converteo à Fé. Naõ ha
outro sinal desta memoria, mais que hum montaõ de pedras. Aqui se ganhaõ
muitas Indulgencias.

Baixando mais alguma cousa por este _Monte Sion_, junto do muro da
_Santa Cidade_, está o Lugar, adonde Saõ Pedro _Flevit amarè_: e hum
pouco mais abaixo, junto ao muro antigo, está huma igreja, e Casa, como
Convento, fermosissima no exterior; e no mais alto da Torre tem huma
grande mea Lua de ferro. Nesta Igreja foy a _Santissima Virgem Maria
Senhora nossa_ presentada, sendo menina, com as demais Virgens. He agora
principal Mesquita dos Mouros, e Turcos; e está no ambito do _Templo de
Salamaõ_, que he dos muros a dentro.

Baixando o que resta do Monte Sion, chegámos ao Valle de _Josaphat_, de
que logo direy por levar direita a ordem, que tivemos em andar as
Estaçoens pela outra parte da _Santa Cidade_, e tornemos ao Convento de
_Saõ Salvador_, para dahi as proseguirmos.

No outro dia começando as Estaçoens, fomos pela _Rua da Amargura_, por
onde _Christo Senhor nosso_ sahio a morrer, levando a Cruz às costas da
casa de _Pilatos_ atè o _Calvario_. Deixámos à maõ direita a Igreja do
dito _Calvario_, e _Santo Sepulchro_, em que naõ entrámos, por a
reservarmos para a ultima Estaçaõ; e vimos a casa da piedosa mulher, que
com huma limpa toalha, chegando a ao _Divinissimo rosto de Christo
Senhor nosso_, o tirou estampado com o seu preciosissimo Sangue, e com a
sua verdadeira effigie. Duas dobras tinha esta toalha; huma se venera em
Roma, outra na Santa Igreja Cathedral de Jaem. Nesta rua vimos a casa do
rico Avarento, que naõ quiz dar esmola de suas migalhas ao _pobre_, e
_Santo Lazaro_; e o Lugar, adonde o Cyrineo tomou a Cruz a _Christo
Senhor nosso_, para lha ajudar a levar, e adonde as filhas de Jerusalem
o choravaõ, quando o Senhor lhes disse: _Filiae Jerusalem, &c._ Tambem
vimos a casa de Pilatos, da qual sahe hum arco em que estaõ duas
janellas, que saõ as mesmas pedras daquelle tempo, e de huma dellas
mostrou este Juiz a _Christo Senhor nosso_ ao Povo, quando disse: _Ecce
homo_. Por baixo deste arco passa a rua principal; e agora serve esta
casa à Justiça. Ha muitos Santuarios nesta rua destruidos; e hum delles
se edificou em memoria do sentimento, e dor, que a _Virgem Senhora
nossa_ teve, quando vio a _Christo seu Unigenito Filho Senhor nosso_ com
a Cruz às costas; e em todos ha muitas, e grandes Indulgencias. Junto
desta casa, que referi, rua acima, está a casa delRey Herodes, adonde
_Pilatos_ mandou a _Christo Senhor nosso_, que delle foy desprezado, e
do seu exercito, e vestido de huma vestidura branca, o remetteo a
_Pilatos_. Vimos tambem o carcere donde o Anjo tirou a _Saõ Pedro_. Aqui
ha hum pedaço de Igreja bem fabricado. No primeiro de Agosto celebra a
Santa Igreja Catholica esta memoria.

Proseguindo o nosso caminho por estas ruas, pelas quaes foy _nosso
Redemptor_ derramando o seu Sangue purissimo, e preciosissimo, fomos ao
_Templo de Salamaõ_, e sem que nelle entrassemos (porque naõ he
permittido aos Christaõs, e se algum entra, lhe custa a vida temporal,
ou a espiritual, renegando da Fé) vimos a _Piscina_, que está junto ao
dito Templo, em que _Christo Senhor nosso_ deu saude ao enfermo de
trinta e oito annos de enfermidade. Agora naõ tem agua, e está chea de
herva, e arvores de nenhum prestimo. Ainda se vem vestigios dos portaes,
que entaõ havia. Esta _Piscina_ está junto da porta da Cidade, e da casa
de _Saõ Joachim_, e _Santa Anna_, pays da _Virgem Senhora nossa_, e aqui
foy a sua purissima Conceiçaõ. Entrámos neste Santo Lugar, que está
quasi debaixo da terra; o que succede em commum a todos os edificios;
porque com a antiguidade do tempo os vay occultando em si a terra, que
cresce, cahindo huns edificios sobre outros: e sahindo pela porta da
_Santa Cidade_, que se chama de _Santo Estevaõ_, baixando como sessenta
passos, visitámos o Lugar em que este Santo foy apedrejado, em que
esteve huma Igreja, e hoje hum montaõ de pedras.




_Do Valle de Josaphath._


Baixando mais cincoenta passos, chegámos ao Valle de Josaphath, que he
bem apertado. Este Valle está entre o _Monte Olivete_, e o _Monte Sion_,
ou Jerusalem, que he o mesmo; porque a _Santa Cidade_ está edificada no
_Monte Sion_, pelo que parece, que o dito Valle he como fosso da _Santa
Cidade_. Ao presente naõ tem agua, mas quando chove, dizem que leva
muita, porque a chuva, que baixa do _Monte Olivete_, e Monte Sion, se
recolhe neste Valle.

Ha nelle boas oliveiras, algumas figueiras, e hortaliças. Passando a
ponte, visitámos huma fermosa Igreja de cantaria bem lavrada; e entrando
nella, baixámos por huma escada muito larga, que terá quasi quarenta
degraos; e à maõ direita desta escada estaõ em huma Capella os
Sepulchros de _Saõ Joachim_, e de _Santa Anna_, pays da _Virgem Senhora
nossa_, e defronte desta está outra Capella, em que se vê o Sepulchro do
Senhor _Saõ Joseph_, Esposo da _Virgem Senhora nossa_. No baixo desta
Igreja vimos huma grande nave, e à dita escada está fronteira outra
Capella, o que faz hum Cruzeiro bem formado. Na Capella, que he a mayor,
sem tocar em alguma das paredes, como Ilha, está huma Capellinha
pequena, em que só podem caber dous homens; e nella está o Sepulchro da
sempre _Virgem Maria Senhora nossa_. He de pedra, com outra que a cobre,
sobre que dizemos Missa. Os Religiosos de Saõ Francisco tem chave desta
Capella, e as mais naçoens de Christãos, para entrarem quando querem
celebrar; para o que fechámos as portas por dentro, porque os Mouros, e
Turcos naõ entrem a perturbarnos; e assim quietamente dissemos Missa
quatro Sacerdotes sobre o Sepulchro da Virgem Senhora nossa, que serve
de Altar. Naõ sey explicar a suavidade espiritual, que todos sentimos,
dizendo Missa em tal Santuario; e nelle se ganhaõ muitas, e grandes
Indulgencias. Tem esta Igreja pouca luz, porque sómente lhe entra por
huma fresta, que tem na Capella mayor, que está ao Oriente; e alguma,
que entra pela porta; e naõ he bastante para andar por ella sem luzes de
cera, que levavamos. Está este edificio pela mayor parte debaixo da
terra. Aqui vem todos os Sacerdotes das naçoens Christãas a celebrar,
especialmente no dia da _Assumpçaõ da Virgem Senhora nossa_. Ha nesta
Igreja huma cisterna, que tem agua muito boa.

Sahindo desta bemdita Igreja, a poucos passos, entrámos em huma cova,
grande, e redonda, de altura de huma lança, toda penhasco, e bem clara,
porque lhe entra muita luz, por huma abertura, que tem no alto. Está na
Villa, e _Horto de Gethsemani_, em que _Christo Senhor nosso_ orou ao
seu _Eterno Pay_ aquella oraçaõ trina, em que suou gotas de Sangue, e
adonde o Anjo lhe appareceo, e o confortou. O considerar, que neste
Lugar derramou _Christo Senhor nosso_ suor sanguineo, move os coraçoens
a devoçaõ, e contriçaõ, por duros que sejaõ; e a quarenta passos deste
_Oratorio de Christo Senhor nosso_ pouco mais, ou menos, se nos mostrou
o Lugar, adonde os trez discipulos _Saõ Pedro_, _Saõ Joaõ_, e _Santiago_
estiveraõ dormindo, e _Christo Senhor nosso_ os despertou, e reprehendeo
por naõ velarem, e orarem. Adiante hum tiro de pedra está o Lugar em que
ficaraõ os oito Discipulos. Mais adiante quarenta passos está o Lugar,
em que _Judas_ entregou a Christo Senhor nosso, e o prenderaõ. Com
pedras se fez aqui a modo de huma rua, que sinala o lugar. Em todos
estes Santuarios ha infinitas Indulgencias.

Poucos passos distante está a ponte do _Cedron_: e todo este caminho do
_Horto de Gethsemani_ atè aqui se anda pela raiz do _Monte Olivete_, e
junto ao Valle de _Josaphath_, adonde está esta ponte do _Cedron_.
Passada esta ponte se sobe huma grande costa, junto ao muro da Cidade, e
he o caminho por onde levaraõ a _Christo Senhor nosso_ prezo a casa de
_Anàs_. Neste mesmo Valle ha muitas cousas notaveis por antiguidade, e
para a devoçaõ. Aqui está hum famoso edificio, cavado na penha, a modo
de huma Capella redonda, que toda he de huma pedra, excepto o capitel, e
he o sepulchro de _Absalaõ_, filho de _David_. Ha nelle huma grande
abertura, que os moradores desta terra fizeraõ, tirando-lhe pedras, tal
vez por ser mao filho, pois perseguio a seu pay. Junto deste sitio ha
outro edificio, quasi arruinado, em memoria, de que alli esteve o
glorioso _Santiago_ o _Menor_ o tempo que prenderaõ a _Christo Senhor
nosso_ atè que resuscitou, e lhe appareceo, e lhe disse, _que comesse_;
porque tinha proposto de naõ comer, atè que o _Senhor_ resuscitasse.
Logo está o _Campo Santo_, a que chamaraõ _Haceldama_. He hum edificio
de quatro paredes fortes, e tem por cima hum terrado de quarenta passos
de comprido, e trinta de largo. Nelle estaõ quatro, ou cinco bocas por
donde lançaõ os defuntos, que aqui se enterraõ, pendurando-os por huma
corda, e bamboleando-os, atè que os deitaõ abaixo. Comprou-se este campo
com os trinta dinheiros, que _Judas_ recebeo dos _Fariseos_ em
satisfaçaõ, e venda de _Christo Senhor nosso_. Desde entaõ atègora he
sepultura de Peregrinos. Naõ muito distante se nos mostrou o Lugar donde
o malaventurado _Judas_ se enforcou; e junto a ella he a sepultura dos
Judeos, que parece o tomaraõ por patraõ, para o acompanharem na
sepultura, e no Inferno. Em distancia de cem passos está logo a cova, em
que os Apostolos estiveraõ escondidos atè a Resurreiçaõ. Mais adiante
está a casa, que chamaõ do _Mao conselho_, adonde se determinou a morte
de _Christo Senhor nosso_, dizendo Caifás, _que convinha, que hum homem
morresse pelo Povo, por que naõ perecesse toda a gente_.

Daqui fomos pela outra ribeira deste Valle de Josaphath, e junto do muro
da Cidade está huma _Fonte_, que chamaõ de _nossa Senhora_, que vem,
conforme dizem, do Templo, que já referi, em que a _Virgem Senhora
nossa_ se creou; de que se colhia agua para beber, e para o mais serviço
da casa. He muito bonissima, e della bebemos com grande devoçaõ, por
usar della a _Virgem Senhora nossa_. Junto a esta _Fonte_ ha outra, a
que chamaõ Syloe, à qual mandou _Christo Senhor nosso_ o cego, para que
lavasse os olhos do lodo, que fizera de terra, e sua benta saliva, com
que lhe restituhio a vista. He de muito boa agua, e da que superabunda,
se regaõ muitas hortas.

Na parte do Meyo dia, à sahida da _Santa Cidade_ ha outra _Fonte_, que
dizem fez _Salamaõ_, e trouxe esta agua por conductos de Bethleem do
_Fonsignato_. Cahe a Fonte sobre a casa de sua mãy _Bersabè_. Bebemos
della quando fomos, e quando viemos de Bethleem, por curiosidade de a
gostar, por ser antiga, e feita por _ElRey Salamaõ_. Naõ vi outras
fontes na _Santa Cidade_ nem dentro, nem fóra; porque toda a agua, que
se bebe na Cidade, e nos campos, he de chuva recolhida em cisternas; e
ainda que he boa, com tudo a muitos causa damno a sua frescura.




_Do Sagrado Monte Olivete, e Bethania._


Neste _Sagrado monte Olivete_ obrou _Christo Senhor nosso_ muitas cousas
pertencentes à nossa Redempçaõ; porque alèm do que tenho dito, que se
obrou na raiz deste _Sagrado Monte_, ha muito em todo elle, que
considerar, e reverenciar. Direy por agora sómente do Lugar da _Ascensaõ
admiravel_, e tornarey a baixar, por hir pelo caminho, por onde este
Senhor foy muitas vezes a _Bethania_.

Começámos a subir junto à Igreja do _Sepulchro de nossa Senhora_, e a
poucos passos parámos, adonde dizem, que vindo esta mesma Senhora das
Estaçoens deste Sagrado Monte, que ordinariamente fazia, depois que
_Christo seu Unigenito Filho, e Senhor nosso_ subio aos Ceos, vio
apedrejar a _Santo Estevaõ_, e que neste Lugar orou, atè o Santo
Prothomartyr entregar a Deos o seu espirito; e subindo pouco mais, vimos
o Lugar, em que dizem, que o _Apostolo S. Thomè_ recebera o cinto da
_Virgem Senhora nossa_. Mais acima está o Lugar, adonde os _Apostolos_
disseraõ a _Christo Senhor nosso_ que os ensinasse a orar, e lhes deu a
oraçaõ do _Padre nosso, &c._ Neste Lugar está huma Igreja cahida.
Subimos hum pouco mais, e vimos o Lugar adonde os _Apostolos_ compuzeraõ
o _Credo_; e mais acima, o em que _Christo Senhor nosso_, e os
_Apostolos_, vendo a _Jerusalem_, e ouvindo este Senhor que elles
louvavaõ a fabrica do Templo, e o bem lavrado das pedras, lhes disse,
_como tudo havia de ser destruido_: e assim o foy pelos Emperadores
_Tito_, e _Vespasiano_; e tambem lhes disse os sinaes, que haviaõ de
preceder ao dia do Juizo.

Ha outros Santuarios mais, que os Mouros possuem, e alguns estaõ
convertidos em Mesquitas. O Lugar da Ascensaõ naõ he Mesquita, porèm os
Mouros, e Turcos tem a chave, e naõ permittem a entrada aos Christãos,
sem que lhe paguem muito bem. No alto deste _Sagrado Monte_, está huma
Igreja grande, mas muito cahida; e no meyo está huma Capella redonda de
bobeda inteira, e no meyo della huma pedra de dous palmos, e pouco mais
de altura, em que se vê hum pè sinalado, que dizem ser de _nosso
Redemptor_, quando daqui subio aos Ceos: o outro pè, dizem, o levara hum
Principe Christaõ, que naõ sey dizer, quem fosse. Com grande devoçaõ
beijámos este pé muitas vezes. He este Lugar de Santa alegria para todos
os Christãos, que o vem; porque nos parece, que vemos a _Christo Senhor
nosso_ subir pelos ares, e à _Virgem nossa Senhora sua Santissima Mãy_,
e aos Apostolos, que estaõ com os olhos, e coraçoens suspensos, olhando
o caminho, que _Christo Senhor nosso_ fazia para si, e para os seus
Fieis.

Adorámos,e despedimo-nos com muita saudade deste Santo Lugar, e fomos
pelo alto, e plano deste _Sagrado Monte_ para a parte do Septentriaõ,
pouco mais de duzentos passos, a huma torresinha, e casa; Lugar, aonde
dizem, que baixaraõ os Anjos, e disseraõ no dia, e hora da _Ascençaõ_
aos saudosos _Apostolos: Viri Galilaei, &c._ pelo que se chama Galilea
pequena. He muito alegre, e fermoso este _Sagrado monte_. Tem muitas
arvores, especialmente oliveiras, (de que tomou o nome) figueiras &c. e
vinhas. Está à parte Oriental da _Santa Cidade_. De tal modo estaõ este
_Sagrado Monte_, e o de _Siaõ_, que tudo o que hum tem se vê do outro; e
vendo-se do _Olivete_ a _Santa Cidade_, por ser hum pouco mais alto, he
huma das mais alegres, e deliciosas vistas, que ha no Mundo, ainda que
_Jerusalem_ hoje he muito pequena; porque está assentada no meyo do
_Monte Sion_, da maneira que hum livro está em huma estante; pelo que se
podem contar todas as casas, e torres de cima a baixo, sem que falte
alguma. Saõ as mais das casas de bobeda, como Capellas de Igrejas, e
todas de terrados, e assim ha poucas, ou nenhuma, que tenha madeira, o
que tudo faz, e representa huma magestosa vista. Tem a Cidade quatro mil
visinhos, pouco mais, ou menos; ainda que em outro tempo foy das grandes
do Mundo, como se vê das ruinas, que ha por aquelles outeiros, de que
está rodeada. As ruas que atravessaõ do Meyo dia ao Septentriaõ saõ
planas, e as do Poente ao Oriente costa abaixo, ainda que naõ muito
empinadas, pois corre muito bem hum cavallo por ellas.

Deste _Sagrado Monte Olivete_ se vê bem o _Templo_, no Lugar em que
esteve o de _Salamaõ_, que agora he Mesquita de Mouros, e Turcos. Está
no meyo de hum grande quadro murado, e hum angulo delle he muro da
_Cidade Santa_, em hum prado desembaraçado, e limpo, com algumas
arvores. He fabricado à maneira de hum Zimborio, de Moysaico, e
riquissimas columnas, e taboas de marmore, e jaspe; e por fóra eleva
apparatosamente a vista. Nenhum Christaõ entra dentro sobpena de perder
a vida, ou renegar; o que se pratica em todas as suas Mesquitas, como
tenho dito; porèm nesta he com mais rigor; porque depois da Casa de Meca
em que estes barbaros dizem estar o Çancarraõ de Mafoma, esta he a mais
principal. Algumas vezes ouviamos a hum Mouro, que de huma Torre chamava
o Povo para a sua oraçaõ com grandes gritos; o que praticaõ em todas as
Mesquitas; porque naõ admittem sinos, nem os permittem aos Christãos.

Baixámos deste Sagrado Monte pela parte, por onde subimos, e ainda que
huma vez fomos a _Bethania_ pela outra parte, quizemos nesta occasiaõ
hir por onde _Christo Senhor nosso_ fora, poucos dias antes de sua
_Sacratissima Paixaõ_: e tornando ao rio _Cedron_, começámos a subir a
ladeira do mesmo _Sagrado Monte_ em roda, que he caminho mais plano.
Este he, por onde o _Senhor_ sahia a visitar as suas devotas _Maria
Magdalena_, e _Martha de Jerusalem_ a _Bethania_ por este caminho he
menos de meya legoa; e nelle nos mostraraõ a horta, em que estava a
_Figueira_, que _Christo Senhor nosso_ amaldiçoou.

Chegámos a _Bethania_, que hoje terá sessenta casas, que mais parecem
covas de coelhos, que habitaçaõ de homens, por estarem quasi debaixo da
terra. Naquelles tempos foy grande Povoaçaõ, hoje nem o que foy mostra.
Entrámos logo na casa de _Simaõ Leproso_, que saõ duas Capellas de
pedra, bem lavradas, no Lugar donde _Christo Senhor nosso_ ceou com
_Lazaro_ resuscitado, e Maria Magdalena o ungio. Está hum Altar em que
se diz Missa no dia, que se canta este Euangelho, e ao presente he
curral de cabras, e boys: e naõ faltará que alimpar, quando neste Lugar
se houver de dizer Missa; e ainda que nos entristece o ver quaõ
maltratados saõ estes Lugares dos Mouros, e Turcos, naõ desmaya a
devoçaõ, e Fé dos Catholicos, porque consideramos, que Deos permitte que
assim seja por seus occultos juizos. Daqui fomos a visitar o sepulchro
de Saõ Lazaro, de que tem os Mouros a chave, e dando-lhes algum
dinheiro, de boa vontade abrem a porta. Entrámos por huma escada de
quinze, ou mais degraos, debaixo da terra, a este Lugar, em que estava
sepultado, quando _Christo Senhor nosso_ o resuscitou. He Lugar de muita
devoçaõ, considerando as lagrimas de _Christo Senhor nosso_, de _Maria_,
e de _Martha_, e dos mais, que estavaõ com os Apostolos. Daqui sahimos,
e andados alguns passos, vimos o Castello, e casa que foy de _Saõ
Lazaro_; e ainda que está tudo arruinado, bem mostra ter sido casa de
homem principal, e visitámos a casa de _Maria_, e de _Martha_, que estaõ
destruidas. No caminho está huma pedra, em que dizem, esteve sentado
_Christo Senhor nosso_ atè que chegou _Martha_, e disse: _Domine, si
fuisses hîc, &c._ Tudo o [~q] referi está fóra da Cidade de Bethania,
ainda que esteve dentro naquelles tempos, por ser entaõ Cidade grãde, e
hoje muito pequena a Povoaçaõ. Della sahimos, e subindo por hum outeiro
como trezentos passos, chegámos ao Lugar adonde foy _Bethfage_. Delle
mandou _Christo Senhor nosso_ aos Apostolos pela asna, e jumentinho, e
subindo nella fez a sua entrada solemne, e triunfal em _Jerusalem_. Naõ
ha aqui algum edificio, mais que humas Figueiras para sinal. Daqui se
vem algumas casas da Cidade de _Jericó_, que todas saõ poucas. Está
edificada em campina raza, que vaõ acabar nas margens do _Jordaõ_. Está
distante de Jerusalem trez legoas, poucos mais, ou menos. Tambem se vê
deste sitio hum lago, que terá de comprimento trez legoas, pouco mais, e
de largo duas. He este lago do _Rio Jordaõ_, e nelle se acaba, pois naõ
tem outra corrente, nem sahida. Chama-se o _Mar morto_; e debaixo delle
estaõ aquellas malditas, e infames Cidades _Sodoma_, e _Gomorrha_: e se
vê tambem outro monte, que estará quasi huma legoa distante, a que
_Christo Senhor nosso_ se retirou, e nelle jejuou quarenta dias, e
quarenta noites, e foy tentado pelo demonio. Passado o _Jordaõ_ por esta
parte, que está de _Jerusalem_ oito legoas, pouco mais, principiaõ os
montes de Arabia.

Sahimos do Lugar de _Bethfage_, e subimos ao alto do _Monte Olivete_,
levando o rosto para o Septentriaõ, e declinado ao Poente, passando pela
Igreja da _Ascensaõ_, baixámos ao Lugar, adonde vendo _Christo Senhor
nosso_ a Cidade de _Jerusalem_, chorou sobre ella, dizendo: _Si
cognovisses, & tu, &c._ e descendo ao Valle de _Josaphath_, subio à
Cidade, e _Templo_, entrando pela _Porta Aurea_, que agora está no muro
cerrada de cal, e pedra, sahindo o Povo a seu recebimento com ramos de
palmas, e os meninos cantando: _Hosanna in excelsis_.

Todos os annos faziaõ os Religiosos Latinos esta representaçaõ, em que o
_Guardiaõ_, que representava a _Christo Senhor nosso_, e doze Religiosos
os _Apostolos_, sahiaõ paramentados de _Bethfage_, e mandava o
_Guardiaõ_ a dous Religiosos, que fossem pela asna, e jumentinho; e
trazendo-a, subia nella; e cantando os Religiosos em circuito do Preste,
e chorando pela muita devoçaõ varios Hymnos, e versos a este proposito,
ordenavaõ na Dominga de Ramos esta triunfal, e solemne Procissaõ, e o
sahiaõ a receber da Cidade muitas naçoens Christãas, e muito Infieis, e
lançavaõ ramos, e as suas vestiduras, por donde passava. Os Mouros; e
Turcos estavaõ como pasmados vendo esta Procissaõ, sem perturbarem aos
Christãos, o que parecia milagre, e o era certamente, por naõ terem
mãos, nem linguas para os impedir, por _Deos nosso Senhor_ o naõ
permittir; e subindo ao _Santo Cenaculo_, que era entaõ Convento seu,
proseguiaõ o Officio daquelle dia. No tempo, que eu estive na Santa
Cidade naõ se fazia esta Procissaõ, porque o Turco mandou, que se não
fizesse.




_Da Cidade de Bethleem, e do caminho que fizemos atè lá chegar._


Já he tempo de tratar do alegrissimo, e bemditissimo caminho, que ha da
_Santa Cidade de Jerusalem_ à de Bethleem, que saõ duas leguas para a
parte do Meyo dia. Sahimos da _Santa Cidade_ ao nascer do Sol, pela
porta de Jaffa, e passando pela _Fonte de Salamaõ_, e _casa de Bersabè_
sua mãy, subimos huma pequena, e suave costa, e démos em hum caminho,
todo plano, ainda que nelle ha muitas pedras. He este caminho muito
aprazivel, porque o espaço de huma legoa delle tudo saõ herdades,
vinhas, oliveiras, frutas, e muitas Torres, e casas, o que tudo faz huma
deliciosa vista, e muitas dellas foraõ casas de Profétas, e algumas já
foraõ Igrejas. Vimos em hum campo grande quantidade de pedras taõ
pequenas como graõs, e do seu feitio; e se conta, que a _Virgem Senhora
nossa_ vendo semear grãos a hum Lavrador, lhe pedio, lhe désse delles; e
que elle zombando respondera, que naõ eraõ grãos; que eraõ pedras, e
assim saõ atè hoje. Eu os vi, e trouxe alguns. Vimos tambem neste
caminho huma grande arvore, que me pareceo _Aroeira_, e lhe chamaõ
_Terebintho_. Tomámos ramos com devoçaõ, porque à sua sombra dizem que
descançára a _Virgem Senhora nossa_. Vimos tambem o _sepulchro de
Rachel_, que os Mouros, e Turcos guardaõ, e usaõ delle Mesquita. He
fermoso edificio, situado em hum lindo quadro, com hum muro cuberto com
hum capitel sobre columnas. Vimos tambem huma cisterna de muita, e boa
agua, em que os _Santos trez Reys_ tiveraõ grande alegria, por lhes
apparecer a _Estrella_, que se escondera, antes que entrassem em
_Jerusalem_, e dalli os guiou atè o Lugar aonde estava o _Menino Deos_
no portal de _Bethleem_. Vimos tambem huma Igreja de Gregos, que he a
casa adonde esteve _Elias_. Ha por esta parte muitas antigalhas dignas
de ver, e curiosas. Desta casa se descobre a feliz, e desejada Igreja, e
Cidade de _Bethleem_.

Quando a vimos, Peregrinos, e Religiosos, que nos acompanharaõ, nos
puzemos de joelhos, cantando Hymnos, e oraçoens, dando muitas graças a
Deos pelo Mysterio do seu Nascimento, e por permittir que, que
visitassemos aquella _Santa Cidade_; e assim continuámos, até chegarmos
a ella, e à porta da Igreja, que está fóra da dita _Cidade_, que agora
terá pouco mais de sessenta visinhos. Entrámos pela porta principal da
Igreja, que está defronte da Capella mayor, ficando à maõ esquerda a
entrada do Convento. Sahiraõ-nos a receber os Religiosos de Saõ
Francisco, que alli assistem, e commummente saõ nove, ou dez; e fizemos
oraçaõ na Igreja, que he da Invocaçaõ de _Santa Catharina_. Esta Igreja,
Convento, e Igreja grande do _Santissimo Nascimento_, fazem hum corpo, e
na de _Santa Catharina_ dissemos Missa no dia que chegámos.

Dita a Missa, todos os Religiosos, e Pereginos com tochas accezas,
baixámos por huma escada, que está na parede, e lado da Epistola, e tem
vinte degraos, a humas covas, em que estaõ fabricadas na penha viva
estas Capellas. Hum Altar, no Lugar, em que foraõ mortos muitos dos
meninos Innocentes; poucos passos mais dentro, a hum lado o _sepulchro
de Santo Eusebio_, discipulo de _Saõ Jeronymo_; mais dentro dous passos
em huma Capella o _sepulchro de Santa Paula_, e de sua filha
_Eustochio_; e de fronte na mesma Capella o _sepulchro de Saõ Jeronymo_;
mais dentro huma Capella, adonde _Saõ Jeronymo_ viveo muito tempo, e
traduzio a _Sagrada Biblia_. Todos os dias se visitaõ estes Santos
Lugares processionalmente cantando Hymnos, Antifonas, Versos, e Oraçoens
em cada huma destas Estaçoens, e se ganhaõ muitas Indulgencias. Daqui
sahimos, e entrámos por hum passadiço apertado, e estreito, para hirmos
à Capella do _Santissimo Nascimento_, e nos pareceo, quando entrámos,
que entravamos no Paraiso.

Esta Santissima Capella em que a _Virgem Mãy de Deos, e Senhora nossa_
pario ao _Filho de Deos_, está fabricada, como as outras, na penha viva.
Terá como doze palmos de comprimento, de largura quatro, e dous estados
em alto. He cuberta de marmore, e jaspe, e de fermosissimo Moysaico. Ha
nella hum Altar de huma só pedra, vaõ por baixo, que he o proprio Lugar,
em que nasceo _Jesu Christo, verdadeiro Filho de Deos, Homem, e Deos
verdadeiro_. Está este Lugar sinalado com huma pedra branca, que no meyo
tem huma Estrella de jaspe. Sobre este celestial Altar dissémos Missa do
Nascimento dous dias. Dous passos adiante está o Lugar, como huma
piasinha de marmore quadrada, mais baixo que o pavimento, em o qual foy
o Menino Deos reclinado no Presepio. Aqui está descuberto hum pedaço de
penhasco, taõ ditoso, que gozou (se se pòde dizer) do resplandor, e
gloria de Deos humanado: e na verdade, que este penhasco nos alegrou
mais que todos os mais jaspes, e Moysaicos; porque estes nos alegraraõ a
vista corporea, aquelle nos encheo a alma de contentamento. Bem
discretos foraõ os edificadores deste Santissimo Lugar, em o deixar à
vista, para alegria espiritual de todos os que o vem.

Entre o Lugar do _Santissimo Nascimento_, e _Santissimo Presepio_, está
hum Altar de marmore, que sinala o Lugar, em que os Reys offereceraõ os
seus dons. Eu como musico tive mil desejos, e ancias, de ter alli os
melhores musicos do Mundo, assim de vozes, como de todos os
instrumentos, para dizer, e cantar mil vilhancicos, e chansonetas ao
_Menino Jesus_, a sua _Mãy Santissima_, e ao glorioso _Saõ Joseph_, em
companhia dos Anjos, Reys, e Pastores, que se acharaõ naquelle
diversorio; que ainda que parecia pobre, excedia a todas as riquezas,
que imaginar se podem.

Nos lados do Altar do _Santissimo Nascimento_ ha duas escadas, porque
subimos à _Capella mòr da Igreja_ principal, porque o Lugar do
Nascimento Santissimo, e os demais que referi, estaõ debaixo desta
Igreja. Esta he fermosissima, ainda que em parte está despida da sua
fermosura, porque todas as paredes, e pavimento, estiveraõ cubertas com
taboas de marmore, que os Turcos ha poucos annos a esta parte tiraraõ
para ornarem as suas Mesquitas. He de trez naves, a do meyo muito alta,
e sustenta-se o tecto em ricas, e grandes columnas de marmore, inteiras,
e bem lavradas, e saõ quarenta e oito. Sobre estas columnas estaõ
assentadas vigas de cedro, que atravessaõ de huma a outra, muito
curiosas pelo artificio; e sobre isto ha outros arcos de pedra, e sobre
elles em hum lado está lavrada de riquissimo Moysaico a geraçaõ de
_Christo Senhor nosso_, como a escreveo _Saõ Mattheus_, e do outro lado,
como a escreveo Saõ Lucas; tudo de figuras de meyo corpo, com seus
nomes.

Junto à Capella mayor està hum Altar, adonde o _Menino Deos_ foy
circumcidado. Nesta fermosa Igreja se diz Missa algumas vezes, e naõ
sempre; porque os Turcos quasi todo o dia estaõ nella, e como saõ muito
porcos, está pouco aceada. O Padre Guardiaõ nos levou aos terrados da
Casa, e Igreja; e de lá vimos o lugar, e prados, em que os _Santos
Pastores_ estavaõ, quando o Anjo lhes disse, que _Christo nosso
Salvador_ era nascido, cantando: _Gloria in excelsis Deo_. Está de
_Bethleem_ como a terceira parte de huma legoa. Vimos tambem o Lugar, em
que estavaõ as vinhas do _Balsamo_, no tempo de _Salamaõ_, que se chama
_Engadi_. Está pouco mais de huma legoa de _Bethleem_.

Desta _Santa Casa_ sahimos como cem passos, e entrámos em huma cova (de
que os Mouros tem a chave) adonde estiveraõ escondidos a _Virgem Senhora
nossa, o Menino Deos_, e _Saõ Joseph_, quando o _Anjo_ lhes disse, que
fugissem para o _Egypto_, por Herodes procurar o _Menino_ para o matar.
Nesta cova dizem, que dando a _Virgem Senhora nossa_ de mamar ao seu
_bemditissimo Filho_, lhe cahira do seu purissimo _Leite_ na terra; pelo
que todos levaõ desta terra por devoçaõ, para dar às mulheres, que tem
falta de leite, e lançada em hum vaso de agua, ou vinho, se lhestitue,
confórme a fé da que o usa.

Aqui nos hospedaõ os Religiosos, dando-nos de comer, e camas a todos os
Peregrinos com muito amor, e caridade, sem que seja necessaria
recompensaçaõ; ainda que todos, conforme a sua possibilidade, contribuem
com o que podem, por agradecimento, o que naõ espera a sua grande
caridade, com que trataõ a todos sem differença. A mayor parte dos
edificios desta Casa edificou _Santa Paula_ em tempo de _Saõ Jeronymo_.
Aqui habitaraõ atè morrerem. O que está aruinado se pòde reparar, porèm
naõ o permittem os Turcos. Tem bastante vivenda para os Religiosos. Tem
dous Jardins, em que ha muitas Larangeiras, e outras arvores, frutas, e
hortaliças; bons passeyos, boas vistas, e em tudo o que se descobre
houve antigamente cousas notaveis. Tem hum dormitorio para os
Peregrinos, à maneira de huma nave, em que se podem hospedar atè
duzentos. Sahimos deste Santo Lugar com tantas saudades, como quem
deixava lá a alma, e naõ acertavamos a nos retirar: e tornámos para a
_Santa Cidade de Jerusalem_ pelo mesmo caminho, chorando, sem tirarmos
os olhos, em quanto o alcançamos com a vista, de Lugar taõ Santissimo.




_Da Igreja do Monte Calvario, e Santo Sepulchro._


Vistos os Santuarios da _Santa Cidade de Bethleem_, pedimos ao Senhor
Guardiaõ nos procurasse a entrada no _Sagrado Monte Calvario, e Santo
Sepulchro_; e ajustado o dia, e hora com o _Subasi_, Governador da
_Santa Cidade de Jerusalem_, que tem as chaves desta _Santa Igreja_, que
sempre está fechada, e sómente se abre quando elle quer, ou quando o
Padre Guardiaõ o avisa de que haõ de entrar Religiosos, ou Peregrinos,
ou alguma das naçoens Christãas; e chegado o dia, que foy quinta feira
de tarde, veyo _Subasi_ com o Escrivaõ, e Porteiro, e se sentou à porta
desta _Santa Igreja_ sobre hum poyal, que se cobrio com hum tapete, e
coxins de veludo; e o Padre Guardiaõ com outros Religiosos, e hum
Christão da terra, que se chama _Ánà_, muito bom homem, e fiel
interprete do Convento, que falla bem Italiano, e Arabigo, que he a
lingua commua da terra em toda a Palestina, e Syria. Chegámos sete
Peregrinos, que eramos, que o Padre Guardiaõ appresentou ao Subasi, e
perguntando-me o nosso interprete, pois era o primeiro, o como me
chamava? Respondi, que _Alberto_; porque parecesse nome Tudesco, e naõ
_Hespanhol_, por ser de perigo, que elles saibaõ, que somos Hespanhoes,
porque entendem, que vamos por espias, e nos fazem escravos; e fallando
Italiano, os assegurámos de toda a suspeita. Escreveo o Turco o nome,
que eu disse, com huma penna de cana, e lhe dey nove _zequies_ de ouro,
que vale cada hum sete centos e cincoenta, e o mesmo deu meu
companheiro, e os mais. Os Religiosos Sacerdotes naõ pagaõ cousa alguma.
Paga se sómente este dinheiro na primeira vez, que se entra nesta Santa
Igreja; e depois, quando se abre, basta que se dê ao Porteiro hum, ou
dous maydines.

Entrámos logo nesta Santissima Igreja, em que a vista naõ pòde estar
ociosa, pelo muito que ha, que ver, e venerar. A primeira cousa he o
Lugar, aonde _nosso Redemptor_ foy ungido para o sepultarem; e à maõ
direita, na mesma nave, està o _Santissimo Calvario_, à maõ esquerda na
nave do meyo, defronte da porta do Coro ao Poente, está o _Sepulchro do
nosso Redemptor_; e no meyo da Igreja o Coro, que tem quatro Cadeiras
Patriarchaes, em que em outro tempo se sentàraõ juntos os quatro
Patriarchas da Christandade. Está hoje a cargo dos Gregos, e nelle tem o
seu Altar mayor com Imagens de Santos, pintadas com todo o primor. As
naves saõ direitas, excepto que para a parte do Oriente, e Poente saõ
redondas, à maneira de Colisseo. A Igreja he de fermosa fabrica. O tecto
em partes he de Moysaico. As paredes em outro tempo estiveraõ cubertas
de marmores, agora está a pedra aberta. Naõ perde com tudo a fermosura
esta fabrica excellentissima, ainda que tenha agora esta falta.

As naçoens Christãas, que ha em _Jerusalem_ de diversos Reynos, e
Provincias, e Linguas, saõ estas.

_Latinos. Gregos. Armenios. Georgianos. Jacobitas. Abexins. Surianos.
Maronitas._

De cada huma destas naçoens ha dous, ou trez Religiosos, repartidos
pelas Capellas desta Santa Igreja, que dizem o Officio Divino cada hum a
seu modo, rito, e lingua, e tem cuidado das suas alampadas, que estejaõ
sempre accezas, e limpas. A habitaçaõ dos nossos Religiosos de Saõ
Francisco Latinos he a melhor; porque tem Refeitorio, Dormitorio, e tudo
o que basta para poderem estar atè trinta pessoas.

Comem, e dormem estas naçoens dentro nesta Igreja, e os Peregrinos, que
estaõ dentro, dando-lhes de comer, e o que pedem por hum buraco, que a
casa tem como fresta, cruzada com duas barras de ferro. Por esta fresta
fallaõ, e se lhes ministra o necessario, e se vê hum pedaço da Igreja;
por ella fazem oraçaõ os que estaõ de fóra. Tal ordem tem dado o Turco,
para que estejaõ conformes, e como germanadas estas naçoens, humas com
outras, que se huma alampada se estiver apagando, e o visinho a quizesse
atiçar por devoçaõ, o condemnariaõ em muitos cruzados; e assim com este
rigor, ha summa paz entre todos, e nenhum se intromete na obrigaçaõ, ou
devoçaõ do outro.

A todos saõ communs os _Santuarios_, para os poderem visitar em qualquer
hora, que quizerem, porque estaõ continuamente abertos; e como sempre
està fechada a porta da Igreja, tudo està bem guardado: pelo que he de
grande contentamento, e devoçaõ o poder entrar livremente, de dia, e de
noite, em que muitissimas alampadas a illuminaõ. Em todos os Santuarios
tem todas as naçoens suas alampadas, huns mais, outros menos, e cada
huma cuida das suas.

Começámos os Peregrinos, e Religiosos a nossa procissaõ nesta Santa
Igreja com vèlas accezas, cantando o Hymno, Antifona, e Verso daquelle
Santuario, que visitamos, e chegando o Religioso, que està paramentado,
nos diz o Mysterio, que alli passou, e a Indulgencia, que ganhámos.

A primeira Estaçaõ foy em huma Capella, que se chama o _Carcere de nosso
Salvador_, no qual esteve em tanto, que os Judeos esperavaõ, que a Cruz,
e o lugar em que se havia pôr, estivessem aparelhados. Mais adiante
visitámos huma Capella, na qual os Soldados, que prenderaõ a _Christo
Senhor nosso_, lançáraõ sortes sobre as suas vestiduras. Mais adiante
entràmos por huma porta, e baixando trinta degraos, chegámos à Capella
de S. Helena, mãy do Emperador Constantino, em [~q] se sentou a Santa
Emperatriz, em tanto, que se cavava, procurando a Cruz. Aqui nesta
Cadeira da Santa ha muitas Indulgencias. Baixámos mais onze, ou doze
degraos, feitos na mesma penha do _Monte Calvario_, e he o Lugar adonde
a Santa Emperatriz achou a Santa Cruz, titulo, cravos, e as cruzes dos
Ladroens. Chamaõ-se estas Capellas da Invençaõ da Cruz. Estaõ bem
fabricadas, e muito espaçosas, ainda que debaixo da terra, que
corresponde ao Calvario.

Sahimos desta Capella, e visitámos outra, donde està hum pedaço de huma
columna, em que Christo Senhor nosso esteve sentado, quando os Ministros
de Pilatos, depois de o açoutarem, o coroaraõ de espinhos. Daqui subimos
por dezanove degraos, e fomos ao _Santo Monte Calvario_, e nos pareceo,
que entràvamos no Paraiso. Estando no alto, vimos huma Capella, que saõ
duas estancias a modo de tribuna, que corresponde à primeira nave da
Igreja. A primeira he o Lugar Sacratissimo, em que o _Filho de Deos_ foy
levantado na Cruz; nelle está o buraco donde a Santa Cruz esteve fixada.
Tem hum bocal de prata, e o adorámos, e beijámos, como Santuario taõ
admiravel. Metemos dentro os nossos braços nùs, e assim digo, que terá
de fundo como trez palmos. Nos lados estaõ sinalados os Lugares das
cruzes dos Ladroens, que me parece, que tocavaõ huma, e outra cruz. Ha
entre a de _Christo Senhor nosso_, e a do mào Ladraõ, _huma abertura_ na
penha de sete palmos de comprido, e mais de hum de largo, que chega
abaixo ao Lugar da _Invençaõ da Santa Cruz_. Esta se abrio quando
_Christo Senhor nosso_ espirou. Na outra parte da Capella, a trez
passos, està o Lugar em que cravaraõ a _Christo Senhor nosso_, estando a
Cruz no chaõ, e dalli a levantaraõ, e puzeraõ no sitio referido. Donde
isto succedeo está huma memoria de jaspe, e marmore bem lavrados. Esta
Capella, que se chama da _Crucifixaõ_, toda está cuberta de marmore, e
jaspe finissimo com muitos lavores, e o tecto he todo de Moysaico, de
que estaõ pendentes mais de cincoenta alampadas de todas as naçoens de
Christãos. Dissemos Missa na parte da _Crucifixaõ_, na sexta feira
seguinte ao dia, em que entràmos, e foy a da _Paixaõ secundùm Joannem_;
e este Altar se divide com huma cortina do Lugar em que esteve fixada a
Santa Cruz. Naõ poderey explicar a grande afluencia de devoçaõ, que
todos aqui sentem interior, e exteriormente, considerando, que tudo, o
que o Santo Euangelho refere, se obrou neste Santissimo Lugar. A parte
donde _Christo Senhor nosso_ foy encravado, està entregue ao cuidado dos
Religiosos de Saõ Francisco; adonde esteve crucificado aos Religiosos
Georgianos, que saõ extremosamente devotissimos, e sempre estaõ neste
Sagrado Lugar rezando, e cantando. Saõ virtuosissimos Varoens, e de
muita abstinencia, e pobreza. He taõ agradavel, e devota para a alma, e
corpo esta estancia do _Sagrado Monte_, que não se enfada, ou cança
alguem de estar nella. Em tudo he hum Paraiso. Oh que bem pareceraõ aqui
alguns Musicos cantando as lamentaçoens de Jeremias, vendo, e
considerando o _Calvario_, e _Santo Sepulchro_, porque ambos estes
Santuarios se podem ver juntamente!

Baixando deste Sagrado Lugar, chegàmos ao meyo da primeira nave, e
veneràmos huma pedra grande, pegada na terra, cercada de grades de ferro
de altura de palmo; e por cima estaõ pendentes oito, ou nove alampadas
de todas as naçoens Christãas. Neste Lugar foy ungido _Christo Senhor
nosso_ para o sepultarem, por seus devotos servos, _Nicodemus_, e
_Joseph ab Arimathea_, assistindo a _Virgem Senhora nossa_, e as mais
_Santas Mulheres_, e o amado Discipulo _Saõ Joaõ_. Este Santo, Lugar
està defronte da porta da Igreja, e se vê pela fresta, que nella ha; e
os que estaõ fóra, por ella fazem oraçaõ, e ganhaõ as Indulgencias.
Daqui ao _Santo Sepulchro_ haverà quarenta passos para a parte do
Poente, dentro da mesma Santa Igreja. Esta inestimavel reliquia possuem
os nossos Religiosos de Saõ Francisco, e sómente os Latinos dizemos
nelle Missa. A sua fórma he esta. Antes da entrada ha huma pequena
Capella quadrada, em que caberáõ dez, ou doze pessoas, e no meyo della
está huma pedra de dous palmos de altura, e dous de grosso. Nesta pedra,
dizem, que o _Anjo_ estava sentado, quando fallou às _Marias_,
dizendo-lhes, que já _Christo Senhor nosso_ resuscitára. Por esta
Capella se entra a outra taõ pequena, que a porta terá quatro palmos de
alto, e trez de largo. Á maõ direita está o _Santo Sepulchro de nosso
Salvador_, donde esteve o seu _Santissimo Corpo_, e delle resuscitou. He
hum Altar como huma arca, cuberta com huma pedra marmore. Sobre este
preciosissimo _Sepulchro_ dissémos Missa; e naõ cabe neste lugar mais
que o Sacerdote, e o que o ajuda. O vaõ ninguem o vê, porèm o mais gozaõ
todos, tocando-o, e beijando-o. Da parte superior pendem muitas
alampadas de todas as naçoens. Aqui disse Missa pela misericordia de
Deos, e foy a da Resurreiçaõ, e foy grande alegria para mim, quando
dizia no Santo Euangelho: _Surrexit, non est hîc, ecce locus ubi
posuerunt eum_; sinalando com o dedo o lugar adonde esteve o _nosso
Salvador_. Move certamente os nossos coraçoens esta verdadeira
representaçaõ.

Esta Capella do _Santo Sepulchro_, ainda que por dentro he quadrada, por
fóra he redonda, e tem as paredes cubertas de marmore. Em cima tem hum
capitel de columnas muito bem lavrado, que offerece huma boa vista aos
que o vem de fóra. Está no meyo de hum circuito de columnas, sem tocar
em alguma parte. O zimborio da Igreja, que lhe corresponde, he huma meya
laranja de madeira de cedro muito antiga. No meyo tem huma grande
abertura, como coroa, por donde entra a luz aos que estaõ em baixo. No
alto de huma parte está o retrato da Emperatriz _Santa Helena_, e da
outra o do Emperador _Constantino_ seu filho, de rico Moysaico, muito
antigo, e outras figuras de Santos, que quasi naõ se parecem, por
estarem maltratadas da antiguidade, e do tempo.

Sahidos deste Santissimo Lugar como dez passos, à maõ esquerda, estaõ
duas pedras redondas de marmore postas na terra, huma apartada da outra,
como trez passos. Em huma esteve _Christo Senhor nosso_ depois de
resuscitado, na outra a _Santa Magdalena_, quando lhe appareceo em
figura de Hortelaõ, e lhe disse: _Noli me tangere_. Daqui fomos à
Capella, e Coro dos nossos Religiosos Franciscanos, em que dizem,
appareceo _Christo Senhor nosso_ a sua _Santissima Mãy_. Na entrada
desta Capella, na parede, guardada com huma rede de ferro, de modo que o
podemos tocar com os dedos, está hum pedaço da columna, em que _Christo
Senhor nosso_ foy açoutado. Com esta Estaçaõ acabámos de visitar esta
Santissima Igreja. Nos quatro dias, e noites, que nella estivemos
encerrados, reiteramos estas Estaçoens muitas vezes em procissaõ, e sós.
He de grande contentamento ouvir pela meya noite a todas estas naçoens
dizerem Matinas, cada h[~u]a na sua lingua, e canto.

Sahidos desta Santa Igreja, nas costas da Capella Mayor, e no mais alto
della, que he parte do _Sagrado monte Calvario_, visitámos huma Capella,
adonde _Abraham_ offereceo o sacrificio; e outra, que está perto, adonde
_Melchisedech_ offereceo paõ, e vinho; das quaes tem cuidado os
Religiosos Abexins: e tornando para o nosso _Convento de Saõ Salvador_,
nelle estivemos alguns dias, esperando ao nosso _Trucimaõ Atala_ para
ajustarmos a nossa vinda. Nestes dias reiterámos as Estaçoens dos
Sagrados montes _Sion_, e _Olivete_; e chegando à Santa Cidade de
Jerusalem quatro Religiosos de Saõ Francisco, que vinhaõ do _Cayro_,
dous Italianos, e dous Hespanhoes, o principal dos Italianos se chamava
_Fr. Mattheus Salerno_, homem nobre do Reyno de Napoles, e muito
virtuoso, que vinha para Comissario de _Jerusalem_; e o principal dos
Hespanhoes, Fr. Luiz de Quesada, natural de Sevilha, os acompanhámos na
continuaçaõ destes exercicios, que nunca enfadaõ, mas antes nos daõ
recreaçaõ espiritual, por espaço de dez, ou doze dias. Trazia o Padre
Salerno muito dinheiro, e muitas joyas para o serviço do _Santo
Sepulchro_. Muitas toalhas, corporaes, e demais cousas para o Altar, e
celebraçaõ das Missas, que offereciaõ muitas Senhoras de Hespanha, e
Italia. Hum rico Caliz, que mandava ElRey de Hespanha; e outro com huma
alampada, que offerecia o Grão Duque de Florença. Tudo me mostrou na
Sacristia por contentar o meu desejo, e querer fosse eu testemunha de
tudo.

Já tratavamos de voltar para Italia, e o nosso _Atala_ nos persuadia, a
que fossemos com elle a Jaffa; porèm o _Padre Salerno_ disse, que de
nenhum modo queria andar por mar a costa da Palestina, porque já entrava
o Inverno; pelo que resolveo hir por terra atè Tripoli, e eu em o
acompanhar: e tendo eu assistido hum mez na _Santa Cidade de Jerusalem_,
e os Religiosos quinze dias, dispuzemos a jornada; e agradecemos ao
Padre Guardiaõ a hospedagem, dando-lhe tambem cada hum a esmola, que
podia, e naõ a que desejava: e recebemos delle as patentes, e testemunho
da nossa entrada na _Santa Cidade_, escritas em pergaminho, com o sello
do _Santo Cenaculo_.




_Da nossa sahida da Santa Cidade de_ Jerusalem.


Chegou o tempo de sahirmos da Santa Cidade de _Jerusalem_, e o Padre
Guardiaõ ajustou com _Atala_, e outros Mouros visinhos de _Jerusalem_,
que nos levassem a _Damasco_, caminho de oitenta legoas. Com elles
sahimos em jumentos, (por naõ permittirem, que os Christãos andem a
cavallo) sete Religiosos, e seis Peregrinos. Dous Religiosos destes
faziaõ jornada para _Alepo_; trez para _Constantinopla_; dous, que eraõ
o _Padre Salerno_, e seu Companheiro Fr. Serafino, e hum Leigo
Hespanhol, chamado _Irmaõ Juliaõ_, e nòs Pedro Tudesco, e Nicolao
Polaco, para Veneza.

Despedidos do Padre Guardiaõ, tomada a sua Santa bençaõ, e abraçando com
muitas lagrimas a todos os Religiosos, sahimos acompanhados de todos
muitos passos fóra da Cidade, e repetidos os abraços, e lagrimas,
começamos a caminhar, voltando a cada passo os olhos a traz, para vermos
a _Santa Cidade_, os Sagrados montes _Sion_, e _Olivete_, e nos
despediamos de taes Santuarios com muita tristeza; e tendo caminhado
como meya legoa, a perdemos de vista. Nesta meya legoa vimos huma
Igreja, e he o lugar adonde _Jeremias_, vendo a Cidade, e chorando,
compoz as Lamentaçoens.

Fizemos noite em huma Cidade destruida, trez legoas de _Jerusalem_, e
nella esperámos huma caravana de trinta e trez camellos de mercadores
Mouros, por fazermos jornada em sua companhia. Nesta Cidade foy que a
_Virgem Senhora nossa_ achou menos ao seu Filho _Christo Jesus_ de tenra
idade, e tornando a _Jerusalem_ a procurallo, o encontrou no meyo dos
Doutores no Templo. Proseguimos a jornada por esta parte de _Judéa_, e
entrámos na Provincia de _Samaria_. Neste dia fizemos noite na Cidade de
_Sichar_, a que os Mouros chamaõ _Nablos_. Aqui está o poço, donde
_Christo Senhor nosso_ fallou à _Samaritana_; naõ o vi, porque entrámos
já de noite; porèm meu companheiro o vio, que ficou a traz com parte da
companhia, e disse que naõ tinha agua. Estivemos naquella noite dentro
da Cidade, e dormimos na rua, porque nos naõ déraõ pousada; e no dia
seguinte, pela tarde, continuámos a jornada.

Nesta Cidade de _Sichar_ prégou _Christo Senhor nosso_ dous dias,
convertendo os seus moradores. He muito fermosa, e fresca, e tem boas
casas, e muitas Torres. He habitada de dous mil visinhos. Está entre
dous montes, e o principal he o _Garisim_. Tem hum valle, dos fermosos
que se podem ver, em que ha muitas hortas, e fontes, arvores, e frutas.
Quando eu vi da outra parte da Cidade tantas fontes, passando por este
valle, entendi que as naõ haveria no tempo da Samaritana; porque
havendo-as, naõ buscaria taõ longe a agua. Aqui habitou _Jacob_ com seus
filhos, e gados, e deu a _Joseph_ por melhor huma herdade, como diz a
_Santa Escritura_. Na Cidade nos mostraraõ a sua casa. Toda esta Comarca
de _Sichar_ he fertilissima de paõ, gados, e de tudo o necessario para a
vida humana. Ao outro dia chegámos à Cidade de _Sebaste_, Cabeça do
Reyno, e Provincia de _Samaria_; nome que teve em outro tempo; agora
está destruida, ainda que alguns edificios bem mostraõ a sua antiga
grandeza. Ha nesta Cidade huma Igreja de pedra, e duas partes della
estaõ cahidas; porèm o que está em pé, he taõ bem lavrado, como a mais
perfeita obra Romana. No Altar desta Igreja, dizem, foy degollado o
grande _Saõ Joaõ Bautista_ por mandado delRey Herodes. He digno de
consideraçaõ particular, o ver esta Cidade em que residiraõ tantos Reys,
destruida; pois apenas terá cincoenta casas; o que tambem se vê em toda
a Palestina, pois vimos Cidades, pelos caminhos que andámos, que
antigamente foraõ populosas, e insignes; e hoje só se vem pedras, e
algumas paredes. Bem se colhe ser vontade de Deos; e que estaõ
destruidas por peccados dos habitadores daquelle tempo. Aqui nos
disseraõ, que a companhia dos camellos, que vinha comnosco, ficando
muito a traz, a roubáraõ os Arabes. Naõ sey que assim fosse, o que posso
dizer he, que já mais a vimos; e démos graças a Deos por nos livrar.

Passadas dez legoas de travessia desta Provincia de _Samaria_, entrámos
na de _Galilea_. Da Santidade della basta dizer, que Christo Senhor
nosso a passeou muitas vezes, e nella obrou as maravilhas, que referem
os Chronistas Sagradas. Cinco legoas dentro nesta Provincia está h[~u]a
Igreja cahida entre h[~u]as casas, de que se fórma huma pequena Aldea,
chamada _Janim_, em o lugar adonde Christo Senhor nosso sarou aos dez
Leprosos. Mais adiante trez legoas, vimos quatro celebrados montes. O
_Carmelo_, [~q] está ao Poente do nosso caminho, junto ao Mediterraneo.
O _Hermon_, [~q] está à parte de Levante, e junto a elle a Cidade de
Naim, adonde _Christo Senhor nosso_ resuscitou o filho da Viuva; agora
he pequena Villa. O monte, a que está contigua a _Santa Cidade de
Nazareth_, adonde encarnou o _Filho de Deos_. Naõ subimos a este lugar,
bem que estava perto, por[~q] o naõ permittiraõ os nossos Mouros; e
sómente vimos branquear as ruinas dos edificios. A ditosa casa, em que a
_Virgem Senhora nossa_ concebeo ao _Filho de Deos_, que estava nesta
Cidade, a trouxeraõ os Anjos, haverá duzentos annos, para Italia, e a
collocáraõ em _Loreto_, tendo primeiramente sido levada a duas partes.
Obra Deos nella infinitos milagres, de que estaõ cheyos os livros, e na
Igreja em que está, já naõ ha parte adonde se ponhaõ tantas memorias.
Tem muita riqueza de pessas de ouro, e prata, ornamentos, offertas que
fizeraõ Pontifices, Reys, Principes, Senhores, &c. no que lhe naõ excede
alguma Igreja do mundo. Cercaraõ os Pontifices esta camara Angelical com
huma fermosa Igreja, e está no meyo della. As paredes de fóra estaõ
cubertas de marmore lavrado de lindas figuras, em que se vê a vida da
_Santissima Virgem, Mãy de Deos, e Senhora nossa_. Por dentro estaõ
descubertas as pedras, e ladrilho, mais agradaveis, ainda que antigos,
que todas as pedras preciosas do Mundo, pois cremos, que foraõ tocadas
milhares de vezes por _Christo Senhor nosso_, e sua _Santissima Mãy_ Tem
no meyo hum Altar donde dizemos Missa, que divide a huma parte a
chaminé, adonde a _Virgem Senhora nossa_ guizava a sua ordinaria comida.
Está esta ditosa chaminé cuberta de prata, e outras riquezas.

Junto a esta Santa Igreja está hum sumptuoso Collegio da Companhia de
Jesus, em que assistem Religiosos de muitas naçoens. Esta Santa Casa he
frequentada de muita gente, que a visita, de toda a Christandade.

Desta Santa Cidade de _Nazareth_ sahio a Virgem _Senhora nossa_ pejada,
acompanhada do seu _Esposo Santissimo Saõ Joseph_, a escreverse na
Cidade de Bethleem, pelo edito, e mandato geral do Emperador _Cesar
Augusto_, por ser esta Cidade sua, como descendentes da Real estirpe de
_David_; e alli pario a seu _Unigenito Filho_, e do _Eterno Pay_. De
Nazareth a Bethleem ha trinta legoas, pouco mais, ou menos.

O outro monte he o _Thabor_. Ao pé delle chegámos, e vimos dous
edificios cahidos; hum no principio, outro no alto do monte, adonde
_Christo Senhor nosso_ esteve com os seus Discipulos _Saõ Pedro_, _Saõ
Joaõ_, e _Santiago_, e se transfigurou ante elles, e de _Moysés_, e
_Elias_. Nelle ouvio a voz do _Eterno Pay_, dizendo: _Hic est Filius
meus dilectus, &c._ Demais da Santidade deste monte, que he o principal,
por nelle se mostrar _Christo Senhor nosso_ glorioso, e resplandescente
com os rayos de gloria; he tambem muito alegre, fermoso, e bem
proporcionado na sua postura, alto redondo, e apartado dos outros; de
modo, que parece, foy posto à maõ naquelles Valles.

Proseguimos o nosso caminho, levando o rosto ao Norte, e chegámos ao mar
de _Galilea_, que se chamou _Tiberiades_. Ainda que se chama _Mar_, naõ
o he; porque a agua he doce, e está apartado do Mediterraneo mais de
doze legoas. Neste _mar_, ou _lago_, fez Deos milhares de maravilhas.
Aqui estavaõ pescando _Saõ Pedro_, e _santo André_, e em outro barco
_Saõ Joaõ_, e _Santiago_, quando os chamou _Christo Senhor nosso_ para
que o seguissem, e que os faria pescadores de homens; e deixando as suas
redes, o seguiraõ. Ha na ribeira deste lago muitas Povoaçoens, que em
outro tempo foraõ Cidades principaes. Entre ellas he celebre
_Capharnaum_, _Corozaim_, e _Bethsaida_. Ao presente sómente se vem as
suas ruinas. Junto a este lago fez _Christo Senhor nosso_ o milagre de
dar de comer às turbas, que o seguiaõ, com cinco paens, e dous peixes.
Muitas vezes andou, e navegou sobre as suas aguas este mesmo Senhor.
Aqui se manifestou aos Discipulos, depois de resuscitado. Terá este
cinco legoas, pouco mais, ou menos de comprido, e de largo pouco mais de
duas. A agua he do _Rio Jordaõ_, que nelle entra, e sahe correndo, mais
de quarenta legoas atè o _Mar morto_, em que se recolhe, e naõ torna a
sahir. Na sua ribeira ha muitas fontes. Pousàmos esta noite, e tarde,
que chegàmos, junto a este lago, em Bethsaida, terra, e Patria dos
Apostolos _Saõ Pedro_, _Santo Andrè_, seu irmaõ, e _Saõ Filippe_.
Alegria grande tivemos por pernoitarmos aqui, pois _Christo Senhor
nosso_ aqui esteve muitas vezes. He agora huma Villa de cem visinhos. A
Comarca he das fermosas, que tem o Mundo, muito fertil de gados, frutas,
e palmas. Comemos peixe deste lago, que nos soube muito bem, por ser
donde _Christo nosso Redemptor_ o comeo algumas vezes, e por ser
bonissimo, e pela devoçaõ com que o comiamos, e pela fome, que tinhamos.

No outro dia madrugàmos muito, e caminhàmos por asperas montanhas, e
chegàmos antes do meyo dia ao celebre _Rio Jordaõ_, que ainda que nesta
parte naõ foy o _Bautismo de Christo Senhor nosso_, com tudo por nelle
se celebrar, nos deu a sua vista muita alegria, e contentamento.
Apeàmonos todos contra a vontade dos Mouros, e com grande ancia chegàmos
à agua, bebendo toda a que podémos, lavando nella cabeça, rosto, e mãos;
e nos parecia, que tinhamos desejo de nos converter em peixes, para naõ
sahirmos de aguas taõ santificadas. Nesta parte he o rio apertado, e se
pòde vadear. A agua he cristalina, fresca, e muito doce. Passàmos por
huma ponte de pedra bem lavrada, e à maõ esquerda vimos huma lagoa, que
se chama _Aguas Meronas_, que saõ do mesmo rio.

Nasce este famoso rio de duas fontes, que vem do _Monte Libano_, huma
chamada _Jor_, outra _Daõ_, e dellas toma o nome de _Jordaõ_. Estas
fontes deixamos à maõ esquerda, quando vamos de _Damasco_ a _Tyro_, e
_Sydonia_.

Passado o rio Jordaõ, entràmos na _Syria_, que commummente se chama
_Suria_, e em trez dias chegàmos a _Damasco_. Naõ vimos cousa notavel
neste caminho, sómente encontràmos muitos Senhores, e Cavalheiros
Turcos, acompanhados de muita gente de pè, e cavallo, e muitos camellos
carregados com as suas recamaras, mulheres, e familia, que faziaõ
jornada para o _Cayro_. Neste mesmo caminho me lembra sempre, quando hum
Turco me deu com hum pao, sómente por passatempo, e foy rindo com os
seus companheiros. Antes de chegarmos à Cidade quatro legoas, a vimos;
porque se descobre assentada ao pè do _Monte Libano_. He muito fermosa
pelas muitas Torres, que tem; e pela abundantissima veiga. Legoa e meya
antes que nella entrassemos, passàmos muitas hortas, assudes, fontes, e
sitios frescos, e aprasiveis. A tarde antes, e o dia, em que entràmos,
vimos sahir, e entrar nella mais de mil camellos, com provimentos
necessarios. Entràmos, e andàmos grande parte della primeiro que
chegassemos à pousada, que foy na _Alfandega_, sempre a pè porque naõ
consentem os Turcos, que entremos a cavallo; nos seus Povos, e pelas
jornadas sómente nos permittem jumentos.

Tem esta Cidade em todas as ruas, ao menos huma fonte. He a mais
abundante do necessario para a vida, assim de comestivel, como de sedas,
brocados, panos, tèlas, &c. que naõ creyo haja outra no Mundo. He a sua
Povoaçaõ, pouco menos, que a de _Sevilha_. Por fóra naõ parecem as casas
bem, ainda que por dentro ha muitas principaes, e apparatosas. Ha nella,
como diziaõ, quatro centas mil Mesquitas, bem edificadas, e todas tem à
porta fonte, para se lavarem, os que entraõ a fazer sua oraçaõ. Por fóra
vimos muitas, porque dentro naõ podemos entrar na fórma que està dito.

Estivemos nesta Cidade cinco dias, e quasi todos os Peregrinos
enfermàraõ, porque dormiamos no chaõ, e em mao aposento; porèm Deos me
reservou pela sua misericordia, com saude, para tratar delles. Havia
naquelle tempo em Damasco hum Cavalheiro Veneziano, chamado _Bernardo_,
Consul dos Italianos, que nos deu nestes dias de comer regaladamente,
com que reparàmos o damno, que experimentàvamos de naõ ter comido de
_Jerusalém_ atè àquella Cidade mais que paõ, uvas, e agua; porque ainda
que naõ falta de comer, como naõ ha estalagens para os Christãos,
passàmos mal, pois pousàmos nos curraes, e estrevarias em companhia de
camellos, e bufallos. Com este Cavalheiro, e hum Religioso de _Saõ
Francisco_, que o _Baxà_ ViRey, e Senhor da Cidade tinha em sua casa por
ayo de seus filhos, de quem sómente os fiava, e naõ de Turcos, ou
Mouros, andàmos muitas vezes a mayor parte da Cidade passeando-a, para a
vermos, e para comprar algumas cousas para a nossa jornada.

Celebravaõ os Turcos, e Mouros nestes dias que alli estivemos a sua
_Paschoa_, que durou trez dias, em que todos andavaõ muito alegres. Em
hum destes hia eu por huma rua, em que havia muita gente, vi, que hum
Turco andava a cavallo correndo por entre elles, e era necessaria grande
destreza para os que estavaõ naõ ficarem atropellados. Levava hum
alfange nù, e estava bastantemente borracho, pelo que abrio a cabeça a
hum Mouro com huma só cutilada. Eu me escondi entre os Mouros, e passou
como rayo. Delle escapey diligentemente, porque sem duvida gostaria de
dar outra tal, vendo hum Christaõ. Este foy o encontro, que tive de
receyo; pois sempre andámos pela Cidade, vendo suas festas, sem que nos
offendessem. Naõ deve esta Cidade nada às melhores do Mundo. He habitada
de Turcos, Mouros, e Judeos Mercadores, e de muitas naçoens de
Christãos, que saõ o mais viandantes. Em todos os officios tem bons
officiaes; e muito particularmente os que tecem sedas; o que vimos na
casa de hum Turco, em que se tecia o melhor brocado, que vi na minha
vida. Bem merece esta Cidade o ser Cabeça da _Syria_. O que nella ha que
ver de devoçaõ, he a casa de _Ananias_, Discipulo de _Christo nosso
Redemptor_, em que lhe fallou, e mandou, que fosse buscar a _Saõ Paulo_
já convertido, que estava orando, e o foy a bautizar, e confortar.
Mostráraõ-nos o muro, por donde a este _Santo Apostolo_ o lançáraõ os
Christãos em huma alcofa, e assim escapou delRey _Aveta_, que o queria
matar. Mostráraõ-nos tambem em huma praça huma pedra cercada com humas
grades, e della dizem, subio a cavallo Saõ Jorge, quando foy a matar a
Serpente. Sómente escrevo o que vi, e o que nos disseraõ.

Chegou o tempo de fazermos viagem para Veneza, e o Consul Veneziano, que
nos regalou neste tempo, ajustou com huns Mouros honrados, e fieis para
nos levarem à Cidade de _Tripoli_, donde nos haviamos de embarcar, que
tambem está na _Syria_. Alcançámos ainda em _Damasco_ a Festa de _Todos
os Santos_, e o dia dos Fieis Defuntos, e dissemos Missa no aposento do
Consul encerrados, e era quanto celebravamos, esperavaõ de fóra
_Mouros_, _Turcos_, _e Judeos_, que vinhaõ a negociar, para nos naõ
perturbar.

Tratouse antes de sahirmos da Cidade, do caminho mais direito para
_Tripoli_; e nos disséraõ, que pelo _Monte Libano_, por onde viera hum
Cavalheiro Veneziano, naõ fossemos; porque nelle havia muitos ladroens
Arabes, e o monte estava muito cheyo de neve: e assim rodeando, como
vinte legoas ao nosso Mediterraneo, sahimos de _Damasco_. Vimos _Tyro_,
e _Sydonia_; passámos por _Baruth_, e por suas hortas fresquissimas. Por
este caminho seraõ como quarenta e cinco legoas de _Damasco_ a
_Tripoli_.

He esta ribeira da _Syria_, de excellente terra, grandes montes, muitas,
e boas herdades, e algumas de Christãos Maronitas, que vivem no _Monte
Libano_, junto a _Tripoli_. Ha por estes montes perdizes, e outras caças
de Europa; e muitos rios, e passagens por regates, que baixaõ do
_Libano_ ao Mediterraneo.

Passando a ribeira do mar, fomos por hum caminho estreito aberto nas
penhas, e chegámos a hum rio, que passámos por huma fermosa ponte do
tempo dos Romanos. Alli se lê em duas pedras hum letreiro Latino, e
outro Arabigo, em que se faz memoria dos Emperadores _Marco Antonio_, e
_Marco Aurelio_. Chama-se o rio _Caõ_, por certa fabula dos Gentios, que
dizem, que este Caõ, que era de pedra, dizia aos desta terra, quando
havia de haver guerra, ou alguma fatalidade, e depois o lançáraõ no rio,
que tomou o seu nome. Eu o vendo pelo preço, que o comprey. Cada hum
crea o que lhe parecer.

He este _Monte Libano_ muito grande, e atravessa muita terra de Damasco
atè o mar. Tem muitos braços, e o principal vay direito a Tripoli, e
passando duas legoas a diante da Cidade, se vê bem a parte mais alta,
que toda estava cuberta de neve. Deste monte se cortou a madeira para o
_Templo de Salamaõ_. Ha nelle boas vinhas, e o vinho dellas he
excellentissimo. He digno de se ver, pelas muitas vezes, que a Santa
Escritura faz delle memoria. No dia, que chegámos a _Tripoli_ choveo
muito, pelo que naõ sahio huma grande embarcaçaõ, e tinhamos grande
desejo de a alcançarmos. Deos nosso Senhor parece que a guardou por sua
infinita bondade para virmos nella; porque ainda que havia outras naos
para _Constantinopla_, e para outras partes de _Italia_, e _França_,
esta vinha em direitura a _Veneza_.

He a Cidade de _Tripoli_ na _Syria_ muito boa, e de fortes casas. A sua
Povoaçaõ está em trez montesinhos, junto ao mar; ainda que o porto está
desviado meya legoa. He fresquissima, abundante de aguas, e hortas,
laranjas, limoens, palmas, e tudo o mais que tem huma terra fertil. He
escala dos Mercadores de meyo Mundo, de Poente, Levante, e India
Oriental. Na nossa nao vieraõ para hirem para Veneza nove Mercadores
Italianos, que vinhaõ da India, a que ha mais de duas mil legoas por
terra, passando quarenta dias por desertos, como nos affirmáraõ, e por
caminhos de area, adonde nem se acha agua, nem que se coma: pelo que
trazem o que haõ de comer, e beber em camellos, que commummente costumaõ
trazer mil em companhia.

Recolhemonos em _Tripoli_ em h[~u]a casa de Religiosos, e Peregrinos,
que he como hum Convento, em que estaõ ordinariamente trez Religiosos de
_Saõ Francisco_, mandados pelo Padre Guardiaõ de Jerusalem, que saõ como
Curas dos Mercadores Italianos, que alli estaõ.

He esta Cidade habitada de Turcos, Mouros, e Judeos. O Padre Guardiaõ
nos acompanhou a todos, Religiosos, e Peregrinos atè a embarcaçaõ: e
excepto os Religiosos, nos embarcàmos sete Peregrinos.




_Da nossa viagem de Tripoli atè Veneza._


Sahidos do porto de _Tripoli_, navegámos, e pouco a pouco chegámos à
Ilha de _Chypre_, passando à vista de _Famagusta_, Cabeça deste Reyno; e
démos vista de _Candia_, costeando pela Turquia, até chegar à _Morea_, à
vista de _Modon_. Daqui caminhámos a _Zante_, em que estivemos dez dias,
e logo a _Corfu_, adonde estivemos e celebrámos a Festa do _Nascimento
de Christo Senhor nosso_. He esta Ilha de _Corfu_, huma das mayores
forças, que os Venezianos tem na _Grecia_; e como tal, he de muita
consideraçaõ, por ser como chave de Italia.

Passámos a costa de _Esclavonia_, _Albania_ e _Dalmacia_, e chegàmos à
agradavel Ilha, e Cidade de _Lesna_, e nos hospedáraõ os Religiosos de
_Saõ Francisco_ no seu Convento por espaço dos cinco dias em que houve
no mar grande tormenta. Fallaõ aqui os naturaes a lingua _Esclavonica_,
ainda que entendem a _Italiana_. A Cidade he pequena; tem boas, e fortes
casas, e bom porto. Daqui viemos pela costa de _Istria_ à Cidade, e
Bispado de _Parenço_, e sahindo da nao em hum barco, passámos a
_Veneza_, a que ha quarenta legoas, adonde chegámos com saude, e
alegria, e a Deos démos as graças por nos levar, e trazer de taõ Santa
viagem, e jornada taõ perigosa por mar, e terra. Gastámos de _Tripoli_ a
_Veneza_ a sessenta e seis dias. Entrámos na Cidade em 19. de Janeiro do
anno 1589. e desde que della sahimos, atè que tornàmos, passáraõ cinco
mezes, e cinco dias.




_Da jornada, que fizemos de Veneza atè Sevilha._


Detivemonos mez e meyo em Veneza, por repararmos a saude, e socegarmos
do trabalho do caminho, recolher, e emendar os meus livros, que achey
estampados. Hospedou-nos hum Cantor da _Senhoria_, chamado _Antonio de
Ribera_, que me regalou de modo, que meus pays se foraõ vivos, e alli se
acháraõ, o naõ fariaõ melhor, nem com mais amor, o que foy causa, de que
nos restituissemos ao que eramos, pois vinhamos muito maltratados.

Sahidos de Veneza, viemos a _Ferrara_, _Bolonha_, _Florença_, _e Pisa_,
Cidades principaes de _Italia_. Chegámos a _Leorne_, porto de _Toscana_,
procurando as Galés do _Graõ Duque de Florença_, que partiaõ para
Marselha, a buscar a _Graõ Duqueza_ sua esposa, filha do _Duque de
Lorena_. Estava o _Graõ Duque_ em _Leorne_, e me fez a merce de me
admittir a beijarlhe a maõ. Mandoume aposentar, e dar o necessario com
toda a grandeza; e me prometteo de me accómodar nas Galés do _Papa_, que
estava esperando por instantes para hirem em companhia das suas, que jà
tinhaõ partido com as de _Genova_, e _Malta_, que por todas eraõ
dezaseis, adornadas, e armadas com toda a magnificiencia, como para a
occasiaõ de bodas de taõ grande Principe.

Chegàraõ as Galés do _Papa_, e o Capitaõ General a rogo do _Graõ Duque_,
me recebeo, e me regalou na sua Capitania, trazendo-me na camera de
popa, e dandome a sua mesa, e tambem tratado cheguey a _Marselha_, que
naõ estranhey o mar, pois nelle tive todos os regalos da terra.

Na Semana Santa entrey em _Marselha_, e nella tive a _Paschoa_; e como
as Galés ficáraõ esperando a _Duqueza_, fretámos hum Bergantim para
virmos a _Barcelona_, em que embarcámos dous Genovezes, (hum se chamava
_Joaõ Ansaldo_) dous Italianos, e dous Hespanhoes.

Sahimos do porto com hum pouco de mao tempo, e com o desejo de tornar
para _Marselha_, tanto que nos fizemos ao largo; e tendo caminhado como
cinco legoas; entrámos no abrigo de huma calheta, por naõ podermos
passar a diante. Apenas puzemos os pés em terra, quando vimos junto a
nòs hum Bergantim, que entendemos, vinha, como o nosso, a esperar, que o
tempo melhorasse. Vinha elle cheyo de arcabuzeiros ladroens, e muitos
Lutheranos; e descubrindo-se com os arcabuzes à cara, lhes dissémos,
_que se detivessem, que nos dávamos por rendidos_, porque se nos
puzessemos em resistencia, nos perdiamos, pois em o nosso Bergantim
sómente havia espadas, e dous arcabuzes mal preparados; e ainda que
fossem mais, eraõ poucos; e assim melhor era salvar as vidas. Estes
soldados (ou ladroens, por melhor dizer) entraraõ no nosso Bergantim,
tomáraõ-nos as chaves dos nossos alforges, e maletas, e tudo revolveraõ,
naõ deixando cousa em seu lugar. Estavamos nòs em terra, vendo o que
passava, e esperando o fim destes ladroens, com taõ pouca esperança de
vida, olhando huns para os outros sem dizer palavra. Era já quasi noite,
quando nos mandáraõ entrar em o seu Bergantim, e tomáraõ posse da nossa
roupa, e armas; e nos fizeraõ tornar a traz a huma Fortaleza em que
viviaõ, e donde sahiaõ a fazer estes roubos. Antes que a ella nos
levassem, nos puzeraõ em huma camara cheya de palha, e junto a ella
muita lenha, e todos estiveraõ de fóra fallando na sua lingoa: e nòs
encomendando-nos a Deos, com o temor de que aquelles Hereges nos
queimassem; porèm _Deos nosso Senhor_ nos tirou deste temor, e perigo.

Levaraõ-nos dahi a pouco à Fortaleza, deraõ-nos de cear, e as suas
pobres camas; e começámos a perder o medo. Démos à mulher do Capitaõ
alguns escudos de ouro, e ella nos assegurou, que naõ haveria perigo em
nossas vidas. Trez dias estivemos desta maneira, sem nos deixarem sahir,
nem aos nossos marinheiros, que tambem estavaõ prezos comnosco; e
começámos a tratar da nossa liberdade, sendo medianeiro hum _Francez_
que hia, e vinha. Pedio o Capitaõ por cada hum de nòs cem escudos, e que
nos daria a roupa; ao que respondemos, que os naõ tinhamos, que fizesse
o que quizesse.

Neste tempo chegou hum homem de Marselha desta companhia; e naõ soubemos
que ordem trouxe; porèm o Capitaõ disse logo, _que de nòs naõ queria
cousa alguma, porque elles eraõ Christãos, e nòs tambem; mas que como
pobres soldados necessitavaõ_. Cada hum deu o que pode; a mim me custou
a minha roupa vinte e cinco escudos; e deramos no dia, em que nos
prenderaõ, pela segurança da vida, quanto nos pedissem. Aqui estivemos
oito dias, e nos embarcámos com seu beneplacito, acompanhando nos o
Capitaõ, e companheiros trez, ou quatro legoas no seu Bergantim, e nòs
no nosso. Quando se apartou nos disse, _que naõ tornassemos a Marselha;
porque se tornassemos, e elle nos colhesse, nos cortaria as cabeças_; e
certamente o fariamos se podessemos, para que se soubesse de semelhantes
Hereges ladroens.

Caminhámos dous dias por esta costa de _França_, e na Provincia de
_Languedoc_ em huma manhãa, caminhando nòs a remo, vimos sahir outro
Bergantim com muita pressa de hum rio, e que nelle entrava alguma gente
de terra, e começou a remar para o nosso, porèm os nossos marinheiros
tanto trabalháraõ, que nos naõ puderaõ alcançar; porèm quando cuidámos,
que estavamos livres delle, appareceo hum navio à vèla, que vinha contra
nòs. Entendemos, que seria navio, que caminhava para Levante; mas logo
que emparelhou com o nosso Bergantim, amainou, e mandou que parassemos,
e se descubriraõ doze arcabuzeiros ladro[~e]s, e Lutheranos, que com as
armas à cara nos renderaõ, e entraraõ o nosso Bergantim, e de nòs, e da
roupa fizeraõ o mesmo, que os outros ladroens Lutheranos, ainda depois
de lhe darmos o que levavamos nas bolças. Ataraõ o nosso Bergantim ao
seu navio, e nos leváraõ como huma legoa, rio acima, junto ahuma
Povoaçaõ, que chamaõ _Cirinhan_. Esta segunda prizaõ nos deu mais temor
da morte, porque como disse hum dos soldados a _Joaõ Ansaldo_, teve o
arcabuz à cara para me matar, e disparando-o, errou o tiro, ou passou
por alto; o que todos attribuimos, a que neste tempo nos encomendámos à
_Virgem Senhora de Monserrate_, fazendo voto de ir visitar a sua Casa, e
de lhe dizer Missa. Passadas quatro horas, estando assim, veyo hum
Cavalheiro, Alferes desta terra, e tomou por conta em hum rol toda a
nossa roupa, e ordenou se guardasse no navio; e logo nos levou a huma
Villa distante huma legoa, rogando-me, para que aceitasse o seu cavallo,
e que elle como mais moço caminharia a pè, de que todos lhe démos o
agradecimento, e chegados ao lugar, a todos deraõ pousada, e a mim me
levou para sua casa, adonde me regalou.

Neste lugar reside hum Cavalheiro, Senhor de dous lugares, este nos
recebeo alegremente, e dando-nos palavra de segurança (porque era
Catholico Romano) nos disse escreveria ao _Duque Motmoranci_, Senhor da
Provincia de _Languedoc_. Era Secretario deste Duque hum _Genovez_
parente, e amigo de _Joaõ Ansaldo_; e tanto que soube da nossa prizaõ,
fez toda a diligencia pela nossa liberdade; e por elle nos mandou
despachar o Duque, e nos deu hum passaporte, para que se encontrassemos
outros navios do seu destricto, tivessemos segurança; pelo que sahimos
alegres, ainda que alguns escudos nos ficáraõ nas mãos dos soldados.

Sahimos daqui, e em quatro dias chegámos a _Barcelona_, aonde démos
graças a Deos por nos livrar destes ladroens Francezes Lutheranos, e de
muitas Galeotas de Turcos, que andavaõ por esta costa, das quaes tomou
nove o filho de _Andrè Doria_. Digo certamente, que tendo andado por
tantos, e taõ varios caminhos entre Turcos, Mouros, e Arabes, naõ
tivemos o perigo, e pezar que padecemos na França. Visitámos a _Virgem
Santissima de Monserrate_, e lhe démos as graças pelas merces que _Deos
nosso Senhor_ nos fez, por sua intercessaõ; e logo tomámos o caminho de
_Valença_, _Murcia_, _Granada_, e chegámos a Sevilha, eu, e meu
companheiro Francisco Sanches, com saude, adonde com muito contentamento
fuy recebido de todos, especialmente do Illustrissimo Cardeal, o Senhor
Dom Rodrigo de Castro, e do Cabido da Santa Igreja.

Dey conta neste breve tratado da minha viagem à _Terra Santa_, com toda
a verdade Christãa, a todo o que desejar saber o caminho. De _Sevilha_ a
_Jerusalem_ ha mil e quatro centas legoas de ida; e pela volta, que dey,
pela Cidade de Damasco, entendo, que de ida, e vinda, ha trez mil
legoas. He facil andar este caminho, pois eu o andey, tendo sessenta
annos; pelo que se animem os moços, e que tem possibilidade, a fazerem
taõ Santa viagem; que eu lhes certifico, que depois de vistos taõ Santos
Lugares, seja tal o seu contentamento, que o anteponhaõ ao de possuirem
todos os thesouros do Mundo.


FIM.




Lista de erros corrigidos

Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:


 +----------+-----------------------------+-----------------------------+
 |          |           Original          |          Correcção          |
 +----------+-----------------------------+-----------------------------+
 |#pág.  25 | C,ancarraõ                  | Çancarraõ                   |
 +----------+-----------------------------+-----------------------------+





End of the Project Gutenberg EBook of Itinerario da viagem, que fez a
Jerusalem o M.R.P., by Francisco Guerreiro

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     has agreed to donate royalties under this paragraph to the
     Project Gutenberg Literary Archive Foundation.  Royalty payments
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     prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax
     returns.  Royalty payments should be clearly marked as such and
     sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
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     the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."

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electronic work or group of works on different terms than are set
forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

1.F.1.  Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection.  Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or
corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual
property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by
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1.F.2.  LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right
of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all
liability to you for damages, costs and expenses, including legal
fees.  YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
PROVIDED IN PARAGRAPH F3.  YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
DAMAGE.

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your written explanation.  The person or entity that provided you with
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opportunities to fix the problem.

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in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
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WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.

1.F.5.  Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
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provision of this agreement shall not void the remaining provisions.

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trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
https://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at https://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit https://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including including checks, online payments and credit card
donations.  To donate, please visit: https://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     https://www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
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