O Mandarim

By Eça de Queirós

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Title: O Mandarim

Author: Eça Queirós

Release Date: October 27, 2007 [EBook #16384]

Language: Portuguese


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EÇA DE QUEIROZ


O MANDARIM



LIVRARIA INTERNACIONAL

DE

ERNESTO CHARDRON, EDITOR.

Porto e Braga

1880




O MANDARIM




PROLOGO


1.^o AMIGO (_bebendo Cognac e soda, debaixo d'arvores, n'um terraço, á
beira d'agua_)

Camarada, por estes calores do estio que embotam a ponta da sagacidade,
repousemos do aspero estudo da Realidade humana... Partamos para os
campos do Sonho, vaguear por essas azuladas collinas romanticas onde se
ergue a torre abandonada do Sobrenatural, e musgos frescos recobrem as
ruinas do Idealismo... Façamos phantasia!...


2.^o AMIGO

Mas sobriamente, camarada, parcamente!... E como nas sabias e amaveis
Allegorias da Renascença, misturando-lhe sempre uma Moralidade
discreta...

(COMEDIA INEDITA).




I


Eu chamo-me Theodoro--e fui amanuense do Ministerio do Reino.

N'esse tempo vivia eu á travessa da Conceição n.^o 106, na casa
d'hospedes da D. Augusta, a esplendida D. Augusta, viuva do major
Marques. Tinha dois companheiros: o Cabrita, empregado na Administração
do bairro central, esguio e amarello como uma tocha d'enterro; e o
possante, o exuberante tenente Couceiro, grande tocador de viola
franceza.

A minha existencia era bem equilibrada e suave. Toda a semana, de mangas
de lustrina á carteira da minha repartição, ia lançando, n'uma formosa
letra cursiva, sobre o papel Tojal do Estado, estas phrases faceis:
«_Ill.^{mo} e Exc.^{mo} Snr._--_Tenho a honra de communicar a V. Exc.^a...
Tenho a honra de passar ás mãos de V. Exc.^a, Ill.^{mo} e Exc.^{mo} Snr..._»

Aos domingos repousava: installava-me então no canapé da sala de jantar,
de cachimbo nos dentes, e admirava a D. Augusta, que, em dias de missa,
costumava limpar com clara d'ovo a caspa do tenente Couceiro. Esta hora,
sobretudo no verão, era deliciosa: pelas janellas meio cerradas
penetrava o bafo da soalheira, algum repique distante dos sinos da
Conceição Nova, e o arrulhar das rolas na varanda; a monotona susurração
das moscas balançava-se sobre a velha cambraia, antigo véo nupcial da
Madame Marques, que cobria agora no aparador os pratos de cerejas
bicaes; pouco a pouco o tenente, envolvido n'um lençol como um idolo no
seu manto, ia adormecendo, sob a fricção molle das carinhosas mãos da D.
Augusta; e ella, arrebitando o dedo minimo branquinho e papudo,
sulcava-lhe as rêpas lustrosas com o pentesinho dos bichos... Eu então,
enternecido, dizia á deleitosa senhora:

--Ai D. Augusta, que anjo que é!

Ella ria; chamava-me _enguiço_! Eu sorria, sem me escandalisar.
_Enguiço_ era com effeito o nome que me davam na casa--por eu ser magro,
entrar sempre as portas com o pé direito, tremer de ratos, ter á
cabeceira da cama uma lithographia de Nossa Senhora das Dôres que
pertencera á mamã, e corcovar. Infelizmente corcóvo--do muito que
verguei o espinhaço, na Universidade, recuando como uma pêga assustada
diante dos senhores Lentes; na repartição, dobrando a fronte ao pó
perante os meus Directores Geraes. Esta attitude de resto convém ao
bacharel; ella mantem a disciplina n'um Estado bem organisado; e a mim
garantia-me a tranquillidade dos domingos, o uso d'alguma roupa branca,
e vinte mil reis mensaes.

Não posso negar, porém, que n'esse tempo eu era ambicioso--como o
reconheciam sagazmente a Madame Marques e o lepido Couceiro. Não que me
revolvesse o peito o appetite heroico de dirigir, do alto d'um throno,
vastos rebanhos humanos; não que a minha louca alma jámais aspirasse a
rodar pela Baixa em trem da Companhia, seguida d'um correio
choitando;--mas pungia-me o desejo de poder jantar no Hotel Central com
Champagne, apertar a mão mimosa de viscondessas, e, pelo menos duas
vezes por semana, adormecer, n'um extasi mudo, sobre o seio fresco de
Venus. Oh! moços que vos dirigieis vivamente a S. Carlos, atabafados em
paletots caros onde alvejava a gravata de _soirée_! Oh! tipoias,
apinhadas de andaluzas, batendo galhardamente para os touros--quantas
vezes me fizestes suspirar! Porque a certeza de que os meus vinte mil
reis por mez e o meu geito encolhido de enguiço me excluiam para sempre
d'essas alegrias sociaes vinha-me então ferir o peito--como uma frecha
que se crava n'um tronco, e fica muito tempo vibrando!

Ainda assim, eu não me considerava sombriamente um «pária». A vida
humilde tem doçuras: é grato, n'uma manhã de sol alegre, com o
guardanapo ao pescoço, diante do bife de grelha, desdobrar o Diario de
Noticias; pelas tardes de verão, nos bancos gratuitos do Passeio,
gozam-se suavidades de idyllio; é saboroso á noite no Martinho, sorvendo
aos goles um café, ouvir os verbosos injuriar a patria... Depois, nunca
fui excessivamente infeliz--porque não tenho imaginação: não me
consumia, rondando e almejando em torno de paraisos ficticios, nascidos
da minha propria alma desejosa como nuvens da evaporação d'um lago; não
suspirava, olhando as lucidas estrellas, por um amor á Romeo, ou por uma
gloria social á Camors. Sou um positivo. Só aspirava ao racional, ao
tangivel, ao que já fôra alcançado por outros no meu bairro, ao que é
accessivel ao bacharel. E ia-me resignando, como quem a uma _table
d'hôte_ mastiga a bucha de pão secco á espera que lhe chegue o prato
rico da _Charlotte russe_. As felicidades haviam de vir: e para as
apressar eu fazia tudo o que devia como portuguez e como
constitucional:--pedia-as todas as noites a Nossa Senhora das Dôres, e
comprava decimos da loteria.

No entanto procurava distrahir-me. E como as circumvoluções do meu
cerebro me não habilitavam a compôr odes, á maneira de tantos outros ao
meu lado que se desforravam assim do tedio da profissão; como o meu
ordenado, paga a casa e o tabaco, me não permittia um vicio--tinha
tomado o habito discreto de comprar na feira da Ladra antigos volumes
desirmanados, e á noite, no meu quarto, repastava-me d'essas leituras
curiosas. Eram sempre obras de titulos ponderosos: Galera da Innocencia,
Espelho Milagroso, Tristeza dos Mal Desherdados... O typo venerando, o
papel amarellado com picadas de traça, a grave encadernação freiratica,
a fitinha verde marcando a pagina--encantavam-me! Depois, aquelles
dizeres ingenuos em letra gorda davam uma pacificação a todo o meu sêr,
sensação comparavel á paz penetrante d'uma velha cêrca de mosteiro, na
quebrada d'um valle, por um fim suave de tarde, ouvindo o correr d'agua
triste...

Uma noite, ha annos, eu começára a lêr, n'um d'esses in-folios vetustos,
um capitulo intitulado _Brecha das Almas_; e ia cahindo n'uma
somnolencia grata, quando este periodo singular se me destacou do tom
neutro e apagado da pagina, com o relevo d'uma medalha d'ouro nova
brilhando sobre um tapete escuro: copío textualmente:

     «No fundo da China existe um Mandarim mais rico que todos os reis
     de que a Fabula ou a Historia contam. D'elle nada conheces, nem o
     nome, nem o semblante, nem a sêda de que se veste. Para que tu
     herdes os seus cabedaes infindaveis, basta que toques essa
     campainha, posta a teu lado, sobre um livro. Elle soltará apenas um
     suspiro, n'esses confins da Mongolia. Será então um cadaver: e tu
     verás a teus pés mais ouro do que póde sonhar a ambição d'um avaro.
     Tu, que me lês e és um homem mortal, tocarás tu a campainha?»

Estaquei, assombrado, diante da pagina aberta: aquella interrogação
«homem mortal, tocarás tu a campainha?» parecia-me facêta, picaresca, e
todavia perturbava-me prodigiosamente. Quiz lêr mais; mas as linhas
fugiam, ondeando como cobras assustadas, e no vazio que deixavam, d'uma
lividez de pergaminho, lá ficava, rebrilhando em negro, a interpellação
estranha--«tocarás tu a compainha?»

Se o volume fosse d'uma honesta edição Michel-Levy, de capa amarella,
eu, que por fim não me achava perdido n'uma floresta de ballada allemã,
e podia da minha sacada vêr branquejar á luz do gaz o correame da
patrulha--teria simplesmente fechado o livro, e estava dissipada a
allucinação nervosa. Mas aquelle sombrio in-folio parecia estalar magia;
cada letra affectava a inquietadora configuração d'esses signaes da
velha cabala, que encerram um attributo fatidico; as virgulas tinham o
retorcido petulante de rabos de diabinhos, entrevistos n'uma alvura de
luar; no _ponto d'interrogação_ final eu via o pavoroso gancho com que o
Tentador vai fisgando as almas que adormeceram sem se refugiar na
inviolavel cidadella da Oração!... Uma influencia sobrenatural
apoderando-se de mim, arrebatava-me devagar para fóra da realidade, do
raciocinio: e no meu espirito foram-se formando duas visões--d'um lado
um Mandarim, decrepito, morrendo sem dôr, longe, n'um kiosque chinez, a
um _ti-li-tin_ de campainha; do outro toda uma montanha de ouro
scintillando aos meus pés! Isto era tão nitido, que eu via os olhos
obliquos do velho personagem embaciarem-se, como cobertos d'uma tenue
camada de pó; e sentia o fino tinir de libras rolando juntas. E immovel,
arripiado, cravava os olhos ardentes na campainha, pousada pacatamente
diante de mim sobre um diccionario francez--a campainha prevista, citada
no mirifico in-folio...

Foi então que, do outro lado da mesa, uma voz insinuante e metallica me
disse, no silencio:

--Vamos, Theodoro, meu amigo, estenda a mão, toque a campainha, seja um
forte!

O _abat-jour_ verde da vela punha uma penumbra em redor. Ergui-o, a
tremer. E vi, muito pacificamente sentado, um individuo corpulento, todo
vestido de preto, de chapéo alto, com as duas mãos calçadas de luvas
negras gravemente apoiadas ao cabo d'um guarda-chuva. Não tinha nada de
phantastico. Parecia tão contemporaneo, tão regular, tão classe-média
como se viesse da minha repartição...

Toda a sua originalidade estava no rosto, sem barba, de linhas fortes e
duras; o nariz brusco, d'um aquilino formidavel, apresentava a expressão
rapace e atacante d'um bico d'aguia; o córte dos labios, muito firme,
fazia-lhe como uma bocca de bronze; os olhos, ao fixar-se, assemelhavam
dois clarões de tiro, partindo subitamente d'entre as sarças tenebrosas
das sobrancelhas unidas; era livido--mas, aqui e além na pelle,
corriam-lhe raiações sanguineas como n'um velho marmore phenicio.

Veio-me á idéa de repente que tinha diante de mim o Diabo: mas logo todo
o meu raciocinio se insurgiu resolutamente contra esta imaginação. Eu
nunca acreditei no Diabo--como nunca acreditei em Deus. Jámais o disse
alto, ou o escrevi nas gazetas, para não descontentar os poderes
publicos, encarregados de manter o respeito por taes entidades: mas que
existam estes dois personagens, velhos como a Substancia, rivaes
bonacheirões, fazendo-se mutuamente pirraças amaveis,--um de barbas
nevadas e tunica azul, na toilette do antigo Jove, habitando os altos
luminosos, entre uma côrte mais complicada que a de Luiz XIV; e o outro
enfarruscado e manhoso, ornado de cornos, vivendo nas chammas
inferiores, n'uma imitação burgueza do pitoresco Plutão--não acredito.
Não, não acredito! Céo e Inferno são concepções sociaes para uso da
plebe--e eu pertenço á classe-média. Rezo, é verdade, a Nossa Senhora
das Dôres: porque, assim como pedi o favor do senhor doutor para passar
no meu acto; assim como, para obter os meus vinte mil reis, implorei a
benevolencia do senhor deputado; igualmente para me subtrahir á tisica,
á angina, á navalha de ponta, á febre que vem da sargeta, á casca de
laranja escorregadia onde se quebra a perna, a outros males publicos,
necessito ter uma protecção extra-humana. Ou pelo rapa-pé ou pelo
incensador o homem prudente deve ir fazendo assim uma serie de sabias
adulações desde a Arcada até ao Paraiso. Com um compadre no bairro, e
uma comadre mystica nas Alturas--o destino do bacharel está seguro.

Por isso, livre de torpes superstições, disse familiarmente ao individuo
vestido de negro:

--Então, realmente, aconselha-me que toque a campainha?

Elle ergueu um pouco o chapéo, descobrindo a fronte estreita, enfeitada
d'uma gaforinha crespa e negrejante como a do fabuloso Alcides, e
respondeu, palavra a palavra:

--Aqui está o seu caso, estimavel Theodoro. Vinte mil reis mensaes são
uma vergonha social! Por outro lado, ha sobre este globo coisas
prodigiosas: ha vinhos de Borgonha, como por exemplo o _Romanée-Conti_
de 58 e o _Chambertin_ de 61, que custam, cada garrafa, de dez a onze
mil reis; e quem bebe o primeiro calix, não hesitará, para beber o
segundo, em assassinar seu pai... Fabricam-se em Paris e em Londres
carruagens de tão suaves molas, de tão mimosos estofos, que é preferivel
percorrer n'ellas o Campo Grande, a viajar, como os antigos deuses,
pelos céos, sobre os fôfos coxins das nuvens... Não farei á sua
instrucção a offensa de o informar que se mobilam hoje casas, d'um
estylo e d'um conforto, que são ellas que realisam superiormente esse
regalo ficticio, chamado outr'ora a «Bemaventurança». Não lhe fallarei,
Theodoro, d'outros gozos terrestres: como, por exemplo, o Theatro do
_Palais Royal_, o _baile Laborde_, o _Café Anglais_... Só chamarei a sua
attenção para este facto: existem sêres que se chamam
Mulheres--differentes d'aquelles que conhece, e que se denominam Femeas.
Estes sêres, Theodoro, no meu tempo, a paginas 3 da Biblia, apenas
usavam exteriormente uma _folha de vinha_. Hoje, Theodoro, é toda uma
symphonia, todo um engenhoso e delicado poema de rendas, _baptistes_,
setins, flôres, joias, cachemiras, gazes e velludos... Comprehende a
satísfação inenarravel que haverá, para os cinco dedos de um christão,
em percorrer, palpar estas maravilhas macias;--mas tambem percebe que
não é com o troco d'uma placa honesta de cinco tostões que se pagam as
contas d'estes cherubins... Mas ellas possuem melhor, Theodoro: são os
cabellos côr do ouro ou côr da treva, tendo assim nas suas tranças a
apparencia emblematica das duas grandes tentações humanas--a fome do
metal precioso e o conhecimento do absoluto transcendente. E ainda teem
mais: são os braços côr de marmore, d'uma frescura de lirio orvalhado;
são os seios, sobre os quaes o grande Praxiteles modelou a sua Taça, que
é a linha mais pura e mais ídeal da Antiguidade.... Os seios, outr'ora
(na idéa d'esse ingenuo Ancião que os formou, que fabricou o mundo, e de
quem uma inimizade secular me veda de pronunciar o nome), eram
destinados á nutrição augusta da humanidade; socegue porém, Theodoro;
hoje nenhuma maman racional os expõe a essa funcção deterioradora e
severa; servem só para resplandecer, aninhados em rendas, ao gaz das
_soirées_,--e para outros usos secretos. As conveniencias impedem-me de
proseguir n'esta exposição radiosa das bellezas, que constituem o _Fatal
Feminino_... De resto as suas pupillas já rebrilham.... Ora todas estas
coisas, Theodoro, estão para além, infinitamente para além dos seus
vinte mil reís por mez... Confesse, ao menos, que estas palavras teem o
veneravel sello da verdade!...

Eu murmurei com as faces abrasadas:

--Teem.

E a sua voz proseguiu, paciente e suave:

--Que me diz a cento e cinco, ou cento e seis mil contos? Bem sei, é uma
bagatella... Mas emfim, constituem um começo; são uma ligeira
habilitação para conquistar a felicidade. Agora pondere estes factos: o
Mandarim, esse Mandarim do fundo da China, está decrepito e está
gottoso: como homem, como funccionario do celeste imperio, é mais inutil
em Pekin e na humanidade, que um seixo na bocca d'um cão esfomeado. Mas
a transformação da substancia existe: garanto-lh'a eu, que sei o segredo
das coisas... Porque a terra é assim: recolhe aqui um homem apodrecido,
e restitue-o além ao conjuncto das fórmas como vegetal viçoso. Bem póde
ser que elle, inutil como Mandarim no Imperio do Meio, vá ser util
n'outra terra como rosa perfumada ou saboroso repôlho. Matar, meu filho,
é quasi sempre equilibrar as necessidades universaes. É eliminar aqui a
excrescencia para ir além supprir a falta. Penetre-se d'estas solidas
philosophias. Uma pobre costureira de Londres anceia por vêr florir, na
sua trapeira, um vaso cheio de terra negra: uma flôr consolaria aquella
desherdada; mas na disposição dos sêres, infelizmente, n'esse momento, a
substancia que lá devia ser rosa é aqui na Baixa homem d'Estado... Vem
então o fadista de navalha aberta, e fende o estadista; o enxurro
leva-lhe os intestinos; enterram-no, com tipoias atraz; a materia começa
a desorganisar-se, mistura-se á vasta evolução dos atomos--e o superfluo
homem de governo vai alegrar, sob a fórma de amor perfeito, a agua
furtada da loura costureira. O assassino é um philanthropo! Deixe-me
resumir, Theodoro: a morte d'esse velho Mandarim idiota traz-lhe á
algibeira alguns milhares de contos. Póde desde esse momento dar
pontapés nos poderes publicos: medite na intensidade d'este gozo! É
desde logo citado nos jornaes: reveja-se n'esse maximo da gloria humana!
E agora note: é só agarrar a campainha, e fazer _ti-li-tin._ Eu não sou
um barbaro: comprehendo a repugnancia d'um _gentleman_ em assassinar um
contemporaneo: o espirrar do sangue suja vergonhosamente os punhos, e é
repulsivo o agonisar d'um corpo humano. Mas aqui, nenhum d'esses
espectaculos torpes... É como quem chama um criado... E são cento e
cinco ou cento e seis mil contos; não me lembro, mas tenho-o nos meus
apontamentos... O Theodoro não duvída de mim. Sou um
cavalheiro:--provei-o, quando, fazendo a guerra a um tyranno na primeira
insurreição da justiça, me vi precipitado d'alturas que nem Vossa
Senhoria concebe... Um trambulhão consideravel, meu caro senhor! Grandes
desgostos! O que me consola é que o OUTRO está tambem muito abalado:
porque, meu amigo, quando um Jehovah tem apenas contra si um Satanaz,
tira-se bem de difficuldades mandando carregar mais uma legião
d'archanjos; mas quando o inimigo é o homem, armado d'uma penna de pato
e d'um caderno de papel branco--está perdido... Emfim são seis mil
contos. Vamos, Theodoro, ahi tem a campainha, seja um homem.

Eu sei o que deve a si mesmo um christão. Se este personagem me tivesse
levado ao cume d'uma montanha na Palestina, por uma noite de lua cheia,
e ahi, mostrando-me cidades, raças e imperios adormecidos, sombriamente
me dissesse:--«Mata o Mandarim, e tudo o que vês em valle e collina será
teu»,--eu saberia replicar-lhe, seguindo um exemplo illustre, e erguendo
o dedo ás profundidades constelladas:--«O meu reino não é d'este mundo!»
Eu conheço os meus authores. Mas eram cento e tantos mil contos,
offerecidos á luz d'uma vela de stearina, na travessa da Conceição, por
um sujeito de chapéo alto, apoiado a um guarda-chuva...

Então não hesitei. E, de mão firme, repeniquei a campainha. Foi talvez
uma illusão; mas pareceu-me que um sino, de bocca tão vasta como o mesmo
céo, badalava na escuridão, através do Universo, n'um tom temeroso que
decerto foi acordar sóes que faziam né-né e planetas pançudos resonando
sobre os seus eixos...

O individuo levou um dedo á palpebra, e limpando a lagrima que ennevoára
um instante o seu olho rutilante:

--Pobre Ti-Chin-Fú!...

--Morreu?

--Estava no seu jardim, socegado, armando, para o lançar ao ar, um
papagaio de papel, no passatempo honesto d'um Mandarim retirado,--quando
o surprehendeu este _ti-li-tin_ da campainha. Agora jaz á beira d'um
arroio cantante, todo vestido de sêda amarella, morto, de pança ao ar,
sobre a relva verde: e nos braços frios tem o seu papagaio de papel, que
parece tão morto como elle. Ámanhã são os funeraes. Que a sabedoria de
Confucio, penetrando-o, ajude a bem emigrar a sua alma!

E o sujeito, erguendo-se, tirou respeitosamente o chapéo, sahiu, com o
seu guarda-chuva debaixo do braço.

Então, ao sentir bater a porta, afigurou-se-me que emergia d'um
pesadêlo. Saltei ao corredor. Uma voz jovial fallava com a Madame
Marques; e a cancella da escada cerrou-se subtilmente.

--Quem é que sahiu agora, ó D. Augusta?--perguntei, n'um suor.

--Foi o Cabritinha que vai um bocadinho á batota...

Voltei ao quarto: tudo lá repousava tranquillo, identico, real. O
in-folio ainda estava aberto na pagina temerosa. Reli-a: agora
parecia-me apenas a prosa antiquada d'um moralista caturra; cada palavra
se tornára como um carvão apagado...

Deitei-me:--e sonhei que estava longe, para além de Pekin, nas
fronteiras da Tartaria, no kìosque d'um convento de Lamas, ouvindo
maximas prudentes e suaves que escorriam, com um aroma fino de chá, dos
labios de um Buddha vivo.




II


Decorreu um mez.

Eu, no entanto, rotineiro e triste, lá ia pondo o meu cursivo ao serviço
dos poderes publicos, e admirando aos domingos a pericia tocante com que
a D. Augusta lavava a caspa do Couceiro. Era agora evidente para mim
que, n'essa noite, eu adormecera sobre o in-folio, e sonhára com uma
«Tentação da Montanha» sob fórmas familiares. Instinctivamente, porém,
comecei a preoccupar-me com a China. Ia lêr os telegrammas á Havaneza; e
o que o meu interesse lá buscava, eram sempre as noticias do Imperio do
Meio; parece porém que, a esse tempo, nada se passava na região das
raças amarellas... A _Agencia Havas_ só tagarellava sobre a Herzegovina,
a Bosnia, a Bulgaria e outras curiosidades barbaras....

Pouco a pouco fui esquecendo o meu episodio phantasmagorico: e ao mesmo
tempo, como gradualmente o meu espirito reserenava, voltaram de novo a
mover-se as antigas ambições que lá habitavam,--um ordenado de Director
Geral, um seio amoroso de Lola, bifes mais tenros que os da D. Augusta.
Mas taes regalos pareciam-me tão inaccessiveis, tão nascidos do
sonho--como os proprios milhões do Mandarim. E pelo monotono deserto da
vida,--lá foi seguindo, lá foi marchando, a lenta caravana das minhas
melancolias...

Um domingo de agosto, de manhã, estirado na cama em mangas de camisa, eu
dormitava, com o cigarro apagado no labio--quando a porta rangeu
devagarinho, e entreabrindo a palpebra dormente, vi curvar-se ao meu
lado uma calva respeitosa. E logo uma voz perturbada murmurou:

--O snr. Theodoro?... O snr. Theodoro do Ministerio do Reino?...

Ergui-me lentamente sobre o cotovêlo e respondi, n'um bocejo:

--Sou eu, cavalheiro.

O individuo recurvou o espinhaço: assim na presença augusta d'el-rei
Bobeche se arquêa o cortezão... Era pequenino e obeso: a ponta das
suiças brancas roçava-lhe as lapellas do fraque d'alpaca: veneraveis
oculos d'oiro reluziam na sua face bochechuda, que parecia uma prospera
personificação da Ordem: e todo elle tremia desde a calva, lustrosa até
aos botíns de bezerro. Pigarreou, cuspilhou, balbuciou:

--São noticias para vossa senhoria! Consideráveis noticias! O meu nome é
Silvestre... Silvestre, Juliano & C.^a... Um serviçal criado de vossa
excellencia... Chegaram justamente pelo paquete de Southampton... Nós
somos correspondentes de Brito, Alves & C.^a de Macau... Correspondentes
de Craig and Co d'Hong-Kong... As letras vem d'Hong-Kong...

O sujeito engasgava-se; e a sua mão gordinha agitava em tremuras um
_enveloppe_ repleto, com um sello de lacre negro.

--Vossa excellencia--proseguiu--estava decerto prevenido... Nós é que o
não estavamos... A atrapalhação é natural... O que esperamos é que vossa
excellencia nos conserve a sua benevolencia... Nós sempre respeitámos
muito o caracter de vossa excellencia... Vossa excellencia é n'esta
terra uma flôr de virtude, e espelho de bons! Aqui estão os primeiros
saques sobre Bhering and Brothers de Londres... Letras a trinta dias
sobre Rothschild...

A este nome, resoante como o mesmo oiro, saltei vorazmente do leito.

--O que é isso, senhor?--gritei.

E elle, gritando mais, brandindo o _enveloppe_, todo alçado no bico dos
botins:

--São cento e seis mil contos, senhor! Cento e seis mil contos sobre
Londres, Paris, Hamburgo e Amsterdam, sacados a seu favor,
excellentissimo senhor!... A seu favor, excellentissimo senhor! Pelas
casas de Hong-Kong, de Chang-Hai e de Cantão, da herança depositada do
Mandarim Ti-Chin-Fú!!

Senti tremer o Globo sob os meus pés--e cerrei um momento os olhos. Mas
comprehendi, n'um relance, que eu era, desde essa hora, como uma
incarnação do Sobrenatural, recebendo d'elle a minha força e possuindo
os seus attributos. Não podia comportar-me como um homem, nem
desconsiderar-me em expansões humanas. Até, para não quebrar a linha
hieratica--abstive-me de ir soluçar, como m'o pedia a alma, sobre o
vasto seio da Madame Marques...

D'ora em diante cabia-me a impassibilidade d'um Deus--ou d'um Demonio:
dei, com naturalidade, um puxão ás calças, e disse a Silvestre, Juliano
& C.^a estas palavras:

--Está bem! O Mandarim... Esse Mandarim que disse portou-se com
cavalheirismo. Eu sei de que se trata. É uma questão de familia. Deixe
ahi os papeis... Bons dias.

Silvestre, Juliano & C.^a retirou-se, ás arrecuas, de dorso vergado e
fronte voltada ao chão.

Eu então fui abrir, toda larga, a janella: e, dobrando para traz a
cabeça, respirei o ar calido, consoladamente, como uma corça cançada...

Depois olhei para baixo, para a rua, onde toda uma burguezia se escoava,
n'uma pacata sahida de missa, entre duas filas de trens. Fixei, aqui e
além, inconscientemente, algumas cuias de senhoras, alguns metaes
brilhantes d'arreios. E de repente, veio-me esta idéa, esta triumphante
certeza--que todas aquellas tipoias as podia eu tomar á hora ou ao anno!
Que nenhuma das mulheres que via, deixaria de me offerecer o seu seio
nú, a um aceno do meu desejo! Que todos esses homens, de sobrecasaca de
domingo, se prostrariam diante de mim como diante de um Christo, de um
Mahomet ou de um Buddha, se eu lhes sacudisse junto á face cento e seis
mil contos sobre as praças da Europa!...

Apoiei-me á varanda: e ri, com tedio, vendo a agitação ephemera
d'aquella humanidade subalterna--que se considerava livre e forte, em
quanto por cima, n'uma sacada de quarto andar, eu tinha na mão, n'um
_enveloppe_ lacrado de negro, o principio mesmo da sua fraqueza e da sua
escravidão!... Então, satisfações do Luxo, regalos do Amor, orgulhos do
Poder, tudo gozei, pela imaginação, n'um instante, e d'um só sôrvo. Mas
logo, uma grande saciedade me foi invadindo a alma: e sentindo o mundo
aos meus pés--bocejei como um leão farto.

De que me serviam por fim tantos milhões, senão para me trazerem, dia a
dia, a affirmação desoladora da villeza humana?... E assim, ao choque de
tanto oiro, ia desapparecer aos meus olhos como um fumo a belleza moral
do Universo! Tomou-me uma tristeza mystica. Abati-me sobre uma cadeira;
e, com a face entre as mãos, chorei abundantemente.

D'ahi a pouco a Madame Marques abria a porta, toda vistosa nas suas
sêdas pretas.

--Está-se á sua espera para jantar, enguiço!...

Emergi da minha amargura para lhe responder seccamente:

--Não janto.

--Mais fica!

N'esse momento estalavam foguetes ao longe. Lembrei-me que era domingo,
dia de touros: de repente uma visão rebrilhou, flammejou, attrahindo-me
deliciosamente:--era a tourada vista d'um camarote; depois um jantar com
_Champagne_; á noite a orgia, como uma iniciação! Corri á mesa. Atulhei
as algibeiras de letras sobre Londres. Desci á rua com um furor d'abutre
fendendo o ar contra a presa. Uma caleche passava, vazia. Detive-a,
berrei:

--Aos touros!

--São dez tostões, meu amo!

Encarei com repulsão aquelle reles pedaço de materia organisada--que
fallava em placas de prata a um colosso d'oiro! Enterrei a mão na
algibeira ajoujada de milhões, e tirei o meu metal: tinha setecentos e
vinte!

O cocheiro bateu a anca da egoa e seguiu, resmungando. Eu balbuciei:

--Mas tenho letras!... Aqui estão! Sobre Londres! Sobre Hamburgo!...

--Não péga.

Setecentos e vinte!... E touros, jantar de lord, andaluzas nuas, todo
esse sonho expirou como uma bola de sabão que bate a ponta de um prego.

Odiei a Humanidade, abominei o Numerario. Outra tipoia, lançada a trote,
apinhada de gente festiva, quasi me atropellou n'aquella abstracção em
que eu ficára com os meus setecentos e vinte na palma da mão suada.

Cabisbaixo, enchumaçado de milhões sobre Rothschild, voltei ao meu
quarto andar; humilhei-me á Madame Marques, aceitei-lhe o bife corneo; e
passei essa primeira noite de riqueza, bocejando sobre o leito
solitario,--em quanto fóra o alegre Couceiro, o mesquinho tenente de
quinze mil reis de soldo, ria com a D. Augusta, repenicando á viola o
_Fado da Cotovia_.

       *       *       *       *       *

Foi só na manhã seguinte, ao fazer a barba, que reflecti sobre a origem
dos meus milhões. Ella era evidentemente sobrenatural e suspeita.

Mas como o meu Racionalismo me impedia d'attribuir estes thesouros
imprevistos á generosidade caprichosa de Deus ou do Diabo, ficções
puramente escolasticas; como os fragmentos de Positivismo, que
constituem o fundo da minha Philosophia, não me permittiam a indagação
_das causas primarias, das origens essenciaes_--bem depressa me decidi a
aceitar seccamente este Phenomeno; e a utilisal-o com largueza. Portanto
corri de quinzena ao vento para o _London Brazìlian Bank_...

Ahi, arremessei para cima do balcão um papel sobre o _Banco
d'Inglaterra_, de mil libras; e soltei esta deliciosa palavra:

--Oiro!

Um caixeiro suggeriu-me com doçura:

--Talvez lho fosse mais commodo em notas...

Repeti seccamente:

--Oiro!

Atulhei as algibeiras, devagar, aos punhados: e na rua, ajoujado,
icei-me para uma caleche. Sentía-me gordo, sentia-me obeso; tinha na
bocca um sabor d'oiro, uma seccura de pó d'oiro na pelle das mãos: as
paredes das casas pareciam-me faiscar como longas laminas d'oiro: e
dentro do cerebro ia-me um rumor surdo onde retilintavam metaes--como o
movimento d'um oceano que nas vagas rolasse barras d'oiro.

Abandonando-me á oscillação das molas, rebolante como um odre mal firme,
deixava cahir sobre a rua, sobre a gente, o olhar turvo e tedioso do sêr
repleto. Emfim, atirando o chapéo para a nuca, estirando a perna,
empinando o ventre, arrotei formidavelmente de flatulencia ricaça...

Muito tempo rolei assim pela cidade, bestialisado n'um gozo de Nababo.

Subitamente um brusco appetite de gastar, de dissipar oiro, veio-me
enfunar o peito como uma rajada que incha uma véla.

--Pára, animal!--berrei, ao cocheiro.

A parelha estacou. Procurei em redor com a palpebra meio cerrada alguma
coisa cara a comprar--joia de rainha ou consciencia de estadista: nada
vi; precipitei-me então para um estanco.

--Charutos! de tostão! de cruzado! Mais caros! de dez tostões!

--Quantos?--perguntou servilmente o homem.

--Todos!--respondi, com brutalidade.

Á porta, uma pobre toda de luto, com o filho encolhido ao seio,
estendeu-me a mão transparente. Incommodava-me procurar os trocos de
cobre por entre os meus punhados d'oiro. Repelli-a, impaciente: e, de
chapéo sobre o olho, encarei friamente a turba.

Foi então que avistei, adiantando-se, o vulto ponderoso do meu Director
Geral: immediatamente, achei-me com o dorso curvado em arco e o chapéo
comprimentador roçando as lages. Era o habito da dependencia: os meus
milhões não me tinham dado ainda a verticalidade á espinha...

Em casa despejei o oiro sobre o leito, e rolei-me por cima d'elle, muito
tempo, grunhindo n'um gozo surdo. A torre, ao lado, bateu tres horas; e
o sol apressado já descia, levando comsigo o meu primeiro dia de
opulencia... Então, couraçado de libras, corri a saciar-me!

Ah, que dia! Jantei n'um gabinete do Hotel Central, solitario e egoista,
com a mesa alastrada de Bordeus, Borgonha, Champagne, Rheno, licôres de
todas as communidades religiosas--como para matar uma sêde de trinta
annos! Mas só me fartei de Collares. Depois, cambaleando, arrastei-me
para o Lupanar! Que noite! A alvorada clareou por traz das persianas; e
achei-me estatelado no tapete, exhausto e semi-nú, sentindo o corpo e a
alma como esvaírem-se, dissolverem-se n'aquelle ambiente abafado onde
errava um cheiro de pó de arroz, de fêmea e de punch...

Quando voltei á travessa da Conceição, as janellas do meu quarto estavam
fechadas, e a véla expirava, com fogachos lividos, no castiçal de latão.
Então ao chegar junto á cama, vi isto: estirada de través, sobre a
coberta, jazia uma figura bojuda, de Mandarim fulminado, vestida de sêda
amarella, com um grande rabicho solto; e entre os braços como morto
tambem, tinha um papagaio de papel!

Abri desesperadamente a janella: tudo desappareceu;--o que estava agora
sobre o leito era um velho paletot alvadio.




III


Então começou a minha vida de milionario. Deixei bem depressa a casa da
Madame Marques--que, desde que me sabía rico, me tratava todos os dias a
arroz dôce, e ella mesma me servia, com o seu vestido de sêda dos
domingos. Comprei, habitei o palacete amarello, ao Loreto: as
magnificencias da minha installação são bem conhecidas pelas gravuras
indiscretas da Illustração Franceza. Tornou-se famoso na Europa o meu
leito, d'um gosto exuberante e barbaro, com a barra recoberta de laminas
d'ouro lavrado, e cortinados d'um raro brocado negro onde ondeam,
bordados a perolas, versos eroticos de Catullo; uma lampada, suspensa no
interior, derrama alli a claridade lactea e amorosa d'um luar de verão.

Os meus primeiros mezes ricos, não o occulto, passei-os a amar--a amar
com o sincero bater de coração d'um pagem inexperiente. Tinha-a visto,
como n'uma pagina de novella, regando os seus craveiros á varanda:
chamava-se Candida; era pequenina, era loira; morava a Buenos-Ayres,
n'uma casinha casta recoberta de trepadeiras; e lembrava-me pela graça e
pelo airoso da cinta, tudo o que a Arte tem creado de mais fino e
fragil--Mimi, Virginia, a Joanninha do Valle de Santarem.

Todas as noites eu cahia, em extasis de mystico, aos seus pés côr de
jaspe. Todas as manhãs lhe alastrava o regaço de notas de vinte mil
reis: ella repellia-as primeiro com um rubor,--depois, ao guardal-as na
gaveta, chamava-me o seu _anjo Tótó_.

Um dia que eu me introduzira, a passos subtis, por sobre o espesso
tapete syrio, até ao seu _boudoir_--ella estava escrevendo, muito
enlevada, de dedinho no ar: ao vêr-me, toda tremula, toda pallida,
escondeu o papel que tinha o seu monogramma. Eu arranquei-lh'o, n'um
ciume insensato. Era a carta, a carta costumada, a carta necessaria, a
carta que desde a velha antiguidade a mulher sempre escreve; começava
por _meu idolatrado_--e era para um alferes da visinhança...

Desarraiguei logo esse sentimento do meu peito como uma planta venenosa.
Descri para sempre dos Anjos loiros, que conservam no olhar azul o
reflexo dos céos atravessados: de cima do meu oiro, deixei cahir sobre a
Innocencia, o Pudor, e outras idealisações funestas acida gargalhada de
Mephistopheles: e organisei friamente uma existencia animal, grandiosa e
cynica.

       *       *       *       *       *

Ao bater do meio dia, entrava na minha tina de marmore côr de rosa, onde
os perfumes derramados davam á agua um tom opaco de leite: depoîs pagens
tenros, de mão macia, fríccionavam-me com o ceremonial de quem celebra
um culto: e embrulhado n'um _robe-de-chambre_ de sêda da India, através
da galeria, dando aqui e além um olhar aos meus Fortunys e aos meus
Corots, entre alas silenciosas de lacaios, dirigia-me ao bife á ingleza,
servido em Sèvres, azul e oiro.

O resto da manhã, se havia calor, passava-o sobre coxins de setim côr de
perola, n'um _boudoir_ em que a mobilia era de porcelana fina de Dresde
e as flôres faziam um jardim d'Armida; ahi, saboreava o Diario de
Noticiais, em quanto lindas raparigas vestidas á japoneza refrescavam o
ar, agitando leques de plumas.

De tarde ia dar uma volta a pé, até ao Pote das Almas: era a hora mais
pesada do dia: encostado á bengala, arrastando as pernas molles, abria
bocejos de fera saciada,---e a turba abjecta parava a contemplar, em
extasis, o Nababo enfastiado!

Ás vezes vinha-me como uma saudade dos meus tempos occupados da
Repartição. Entrava em casa; e encerrado na livraria, onde o Pensamento
da Humanidade repousava esquecido e encadernado em marroquim, aparava
uma penna de pato, e ficava horas lançando sobre folhas do meu querido
Tojal d'outr'ora: «_Ill.^{mo} e Exc.^{mo} Snr.--Tenho a honra de participar
a V. Exc.^a... Tenho a honra de passar ás mãos de V. Exc.^a!..._».

Ao começo da noite um criado, para annunciar o jantar, fazia soar pelos
corredores na sua tuba de prata, á moda gothica, uma harmonia solemne.
Eu erguia-me e ia comer, magestoso e solitario. Uma populaça de lacaios,
de librés de sêda negra, servia, n'um silencio de sombras que resvalam,
as vitualhas raras, vinhos do preço de joias: toda a mesa era um
esplendor de flôres, luzes, crystaes, scintillações d'oiro:--e
enrolando-se pelas pyramides de fructos, misturando-se ao vapor dos
pratos, errava, como uma nevoa subtil, um tedio inenarravel...

Depois, apopletico, atirava-me para o fundo do coupé--e lá ia ás
Janellas Verdes onde nutria, n'um jardim de serralho, entre requintes
musulmanos, um viveiro de fêmeas: revestiam-me d'uma tunica de sêda
fresca e perfumada,--e eu abandonava-me a delirios abominaveis...
Traziam-me semi-morto para casa, ao primeiro alvor da manhã: fazia
machinalmente o meu signal da cruz, e d'ahi a pouco roncava de ventre ao
ar, livido e com um suor frio, como um Tiberio exhausto.

       *       *       *       *       *

Entretanto Lisboa rojava-se aos meus pés. O pateo do palacete estava
constantemente invadido por uma turba: olhando-a enfastiado das janellas
da galeria, eu via lá branquejar os peitilhos da Aristocracia, negrejar
a sotaina do Clero, e luzîr o suor da Plebe: todos vinham supplicar, de
labio abjecto, a honra do meu sorriso e uma participação no meu oiro. Ás
vezes, consentia em receber algum velho de titulo historico:--elle
adiantava-se pela sala, quasi roçando o tapete com os cabellos brancos,
tartamudeando adulações; e immediatamente, espalmando sobre o peito a
mão de fortes vêas onde corria um sangue de tres seculos, offerecia-me
uma filha bem-amada para esposa ou para concubina.

Todos os cidadãos me traziam presentes como a um Idolo sobre o
altar--uns Odes votivas, outros o meu monogramma bordado a cabello,
alguns chinelas ou boquilhas, cada um a sua consciencia. Se o meu olhar
amortecido fixava, por acaso, na rua, uma mulher--era logo ao outro dia
uma carta em que a creatura, esposa ou prostituta, me offertava a sua
nudez, o seu amor, e todas as complacencias da lascivia.

Os jornalistas esporeavam a imaginação para achar adjectivos dignos da
minha grandeza; fui o _sublime snr. Theodoro_, cheguei a ser o _celeste
snr. Theodoro_; então, desvairada, a Gazeta das Locaes chamou-me o
_extra-celeste snr. Theodoro_! Diante de mim nenhuma cabeça ficou jámais
coberta--ou usasse a corôa ou o côco. Todos os dias me era offerecida
uma Presidencia de Ministerio ou uma Direcção de Confraria. Recusei
sempre, com nojo.

Pouco a pouco o rumor das minhas riquezas foi passando os confins da
Monarchia. O Figaro, cortezão, em cada numero fallou de mim,
preferindo-me a Henrique V; o grotesco immortal, que assigna
_Saint-Genest_, dirigiu-me apostrophes convulsivas, pedindo-me para
salvar a França; e foi então que as Illustrações estrangeiras
publicaram, a côres, as scenas do meu viver. Recebi de todas as
princezas da Europa enveloppes, com sêllos heraldicos, expondo-me, por
photographias, por documentos, a fórma dos seus corpos e a antiguidade
das suas genealogias. Duas pilherias que soltei durante esse anno foram
telegraphadas ao Universo pelos fios da Agencia Havas; e fui considerado
mais espirituoso que Voltaire, que Rochefort, e que esse fino
entendimento que se chama _Todo-o-Mundo_. Quando o meu intestino se
alliviava com estampido--a Humanidade sabia-o pelas gazetas. Fiz
emprestimos aos Reis, subsidiei guerras civis--e fui caloteado por todas
as Republicas latinas que orlaram o golfo do Mexico.

E eu, no entanto, vivia triste...

       *       *       *       *       *

Todas as vezes que entrava em casa estacava, arripiado, diante da mesma
visão: ou estirada no limiar da porta, ou atravessada sobre o leito
d'oiro--lá jazia a figura bojuda, de rabicho negro e tunica amarella,
com o seu papagaio nos braços... Era o Mandarim Ti-Chin-Fú! Eu
precipitava-me, de punho erguido: e tudo se dissipava.

Então cahia aniquilado, todo em suor, sobre uma poltrona, e murmurava no
silencio do quarto, onde as vélas dos candelabros davam tons
ensaguentados aos damascos vermelhos:

--_Preciso matar este morto_!

E todavia, não era esta impertinencia d'um velho phantasma pançudo,
accommodando-se nos meus moveis, sobre as minhas colchas, que me fazia
saber mal a vida.

O horror supremo consistia na idéa, que se me cravára então no espirito
como um ferro inarrancavel--_que eu tinha assassinado um velho_!

Não fôra com uma corda em torno da garganta á moda musulmana; nem com
veneno n'um calix de vinho de Syracusa, á maneira italiana da
Renascença; nem com algum dos methodos classicos, que na historia das
Monarchias teem recebido consagrações augustas--a punhal como D. João
II, á clavina como Carlos IX...

Tinha eliminado a creatura, de longe, com uma campainha. Era absurdo,
phantastico, faceto. Mas não diminuia a tragica negrura do facto: _eu
assassinára um velho_!

Pouco a pouco esta certeza ergueu-se, petrificou-se na minha alma, e
como uma columna n'um descampado dominou toda a minha vida interior: de
sorte que, por mais desviado caminho que tomassem os meus pensamentos
viam sempre negrejar no horisonte aquella Memoria accusadora; por mais
alto que se levantasse o vôo das minhas imaginações, ellas terminavam
por ir fatalmente ferir as azas n'esse Monumento de miseria moral.

Ah! por mais que se considere Vida e Morte como banaes transformações da
Substancia, é pavoroso o pensamento--que se fez regelar um sangue
quente, que se immobilisou um musculo vivo! Quando depois de jantar,
sentindo ao lado o aroma do café, eu me estirava no sophá, enlanguecido,
n'uma sensação de plenitude, elevava-se logo dentro em mim, melancolico
como o côro que vem d'um ergastulo, todo um susurro de accusações:

--E todavia tu fizeste que esse bem-estar em que te regalas, nunca mais
fosse gozado pelo veneravel Ti-Chin-Fú!...

Debalde eu replicava á Consciencia, lembrando-lhe a decrepitude do
Mandarim, a sua gôta incuravel... Facunda em argumentos, gulosa de
controversia, ella retorquia logo com furor:

--Mas, ainda na sua actividade mais resumida, a vida é um bem supremo:
porque o encanto d'ella reside no seu principio mesmo, e não na
abundancia das suas manifestações!

Eu revoltava-me contra este pedantismo rhetorico de pedagogo rigido:
erguia alto a fronte, gritava-lhe n'uma arrogancia desesperada:

--Pois bem! Matei-o! Melhor! Que queres tu? o teu grande nome de
Consciencia não me assusta! És apenas uma perversão da sensibilidade
nervosa. Posso eliminar-te com _flôr de laranja_!

E immediatamente sentia passar-me n'alma, com uma lentidão de briza, um
rumor humilde de murmurações ironicas:

--Bem, então come, dorme, banha-te e ama...

Eu assim fazia. Mas logo, os proprios lençoes de Bretanha do meu leito
tomavam aos meus olhos apavorados os tons lividos d'uma mortalha; a agua
perfumada em que me mergulhava arrefecia-me sobre a pelle, com a
sensação espessa d'um sangue que coalha: e os peitos nús das minhas
amantes entristeciam-me, como lapides de marmore que encerram um corpo
morto.

Depois assaltou-me uma amargura maior: comecei a pensar que Ti-Chin-Fú
tinha de certo uma vasta familia, netos, bisnetos tenros, que,
despojados da herança que eu comia á farta em pratos de Sèvres, n'uma
pompa de sultão perdulario, iam atravessando na China todos os infernos
tradicionaes da miseria humana--os dias sem arroz, o corpo sem agasalho,
a esmola recusada, a rua lamacenta por morada...

Comprehendi então porque me perseguia a figura obesa do velho letrado; e
dos seus labios recobertos pelos longos pellos brancos do seu bigode de
sombra, parecia-me sahir agora esta accusação desolada:--«Eu não me
lamento a mim, fórma meio morta que era; chóro os tristes que
arruinaste, e que a estas horas, quando tu vens do seio fresco das tuas
amorosas, gemem de fome, regelam na frialdade, apinhados n'um grupo
expirante, entre leprosos e ladrões, na _Ponte dos Mendigos_, ao pé dos
terraços do Templo do Céo!»

Oh tortura engenhosa! Tortura realmente chineza! Não podia levar á bocca
um pedaço de pão sem imaginar immediatamente o bando faminto de
criancinhas, a descendencia de Ti-Chin-Fú, penando, como passarinhos
implumes que abrem debalde o bico e piam em ninho abandonado; se me
abafava no meu paletot era logo a visão de desgraçadas senhoras, mimosas
outr'ora de tepido conforto chinez, hoje rôxas de frio, sob andrajos de
velhas sêdas, por uma manhã de neve; o tecto d'ébano do meu palacete
lembrava-me a familia do Mandarim, dormindo á beira dos canaes, farejada
pelos cães; e o meu coupé bem forrado fazia-me arripiar á idéa das
longas caminhadas errantes, por estradas encharcadas, sob um duro
inverno asiatico.

O que eu soffria!--E era o tempo em que a populaça invejosa vinha pasmar
para o meu palacete, commentando as felicidades inaccessiveis que lá
deviam habitar!

Emfim, reconhecendo que a Consciencia era dentro em mim como uma
serpente irritada--decidi implorar o auxilio d'Aquelle que dizem ser
superior á Consciencia porque dispõe da Graça.

Infelizmente eu não acreditava n'Elle... Recorri pois á minha antiga
divindade particular, ao meu dilecto idolo, padroeira da minha familia,
Nossa Senhora das Dôres. E, regiamente pago, um povo de curas e conegos,
pelas cathedraes de cidade e pelas capellas d'aldêa, foi pedindo a Nossa
Senhora das Dôres que voltasse os seus olhos piedosos para o meu mal
interior... Mas nenhum allivio desceu d'esses céos inclementes, para
onde ha milhares d'annos debalde sobe o clamor da miseria humana.

Então eu proprio me abysmei em praticas piedosas--e Lisboa assistiu a
este espectaculo extraordinario: um ricaço, um Nababo, prostrando-se
humildemente ao pé dos altares, balbuciando de mãos postas phrases de
_Salvè-Rainha_, como se visse na Oração e no Reino do Céo que ella
conquista, outra cousa mais que uma consolação ficticia que os que
possuem tudo inventaram para contentar os que não possuem nada... Eu
pertenço á Burguezia; e sei que se ella mostra á Plebe desprovída um
paraiso distante, gozos ineffaveis a alcançar--é para lhe afastar a
attenção dos seus cofres repletos e da abundancia das suas searas.

Depois, mais inquieto, fiz dizer milhares de missas, simples e cantadas,
para satisfazer a alma errante de Ti-Chin-Fú. Pueril desvario d'um
cerebro peninsular! O velho Mandarim na sua classe de letrado, de membro
da Academia dos Han-Lin, collaborador provavel do grande tratado
Khou-Tsuane-Chou que já tem setenta e oito mil e setecentos e trinta
volumes, era certamente um sectario da Doutrina, da Moral positiva de
Confucio... Nunca elle, sequer, queimára mechas perfumadas em honra de
Buddha: e os ceremoniaes do Sacrificio mystico deviam parecer á sua
abominavel alma de grammatico e de sceptico como as pantomimas dos
palhaços, no theatro de Hong-Tung!

Então prelados astutos, com experiencia catholica, deram-me um conselho
subtil--captar a benevolencia de Nossa Senhora das Dores com presentes,
flôres, brocados e joias, como se quizesse alcançar os favores
d'Aspasia: e á maneira d'um banqueiro obeso, que obtem as complacencias
d'uma dançarina dando-lhe um _Cottage_ entre arvores--eu, por uma
suggestão sacerdotal, tentei peitar a dôce Mãi dos Homens, erguendo-lhe
uma cathedral toda de marmore branco. A abundancia das flôres punha
entre os pilares lavrados perspectivas de paraisos: a multiplicidade dos
lumes lembrava uma magnificencia sideral... Despezas vãs! O fino e
erudito cardeal Nani veio de Roma consagrar a Igreja; mas, quando eu
n'esse dia entrei a visitar a minha hospeda divina, o que vi, para além
das calvas dos celebrantes, entre a mystica nevoa dos incensos, não foi
a Rainha da Graça, loira, na sua tunica azul,--foi o velho malandro com
o seu olho obliquo e o seu papagaio nos braços! Era a _elle_, ao seu
branco bigode tartaro, á sua pança côr d'oca, que todo um sacerdocio
recamado d'oiro estava offerecendo, ao roncar do orgão, a Eternidade dos
Louvores!...

       *       *       *       *       *

Então, pensando que Lisboa, o meio dormente em que me movia, era
favoravel ao desenvolvimento d'estas imaginações--parti, viajei
sobriamente, sem pompa, com um bahú e um lacaio.

Visitei, na sua ordem, classica, Paris, a banal Suissa, Londres, os
lagos taciturnos da Escocia; ergui a minha tenda diante das muralhas
evangelicas de Jerusalém; e d'Alexandria a Thebas, fui ao comprido
d'esse longo Egypto monumental e triste como o corredor d'um mausoléo.
Conheci o enjôo dos paquetes, a monotonia das ruinas, a melancolia das
multidões desconhecidas, as desillusões do _boulevard_: e o meu mal
interior ia crescendo.

Agora já não era só a amargura de ter despojado uma familia veneravel:
assaltava-me o remorso mais vasto de ter privado toda uma sociedade d'um
Personagem fundamental, um letrado experiente, columna da Ordem, esteio
d'Instituições. Não se póde arrancar assim a um Estado uma personalidade
do valor de cento e seis mil contos, sem lhe perturbar o equilibrio...
Esta idéa pungia-me, acerbamente. Anciei por saber se na verdade a
desapparição de Ti-Chin-Fú fôra funesta á decrepita China: li todos os
jornaes de Hong-Kong e de Chang-Hai, velei a noite sobre Historias de
viagens, consultei sabios missionarios:--e artigos, homens, livros, tudo
me falla da decadencia do Imperio do Meio, provincias arruinadas,
cidades moribundas, plebes esfomeadas, pestes e rebelliões, templos
aluindo-se, leis perdendo a authoridade, a decomposição d'um mundo, como
uma nau encalhada que a vaga desfaz tábua a tábua!...

E eu attribuia-me estas desgraças da Sociedade chineza! No meu espirito
doente Ti-Chin-Fú! tomára então o valor desproporcionado d'um Cesar, um
Moysés, um d'esses sêres providenciaes que são a força d'uma raça. Eu
matára-o; e com elle desapparecera a vitalidade da sua patria! O seu
vasto cerebro poderia talvez ter salvado, a rasgos geniaes, aquella
velha monarchia asiatica--e eu immobilisára-lhe a acção creadora! A sua
fortuna concorreria a refazer a grandeza do Erario--e eu estava-a
dissipando a offerecer pecegos em janeiro ás messalinas do
Helder!...--Amigos, conheci o remorso colossal de ter arruinado um
imperio!

Para esquecer este tormento complicado, entreguei-me á orgia.
Installei-me n'um palacete da avenida dos Campos-Elysios--e fui medonho.
Dava festas á Trimalcião: e, nas horas mais asperas de furia libertina,
quando das charangas, na estridencia brutal dos cobres, rompiam os
_can-cans_; quando prostitutas, de seio desbragado, ganiam coplas
canalhas; quando os meus convidados bohemios, atheus de cervejaria,
injuriavam Deus, com a taça de _Champagne_ erguida--eu, tomado
subitamente como Heliogabalo d'um furor de bestialidade, d'um ódio
contra o Pensante e o Consciente, atirava-me ao chão a quatro patas e
zurrava formidavelmente de burro...

Depois quiz ir mais baixo, ao deboche da plebe, ás torpezas alcoólicas
do _Assomoir_: e quantas vezes, vestido de blusa, com o casquete para a
nuca, de braço dado com _Mes-Bottes_ ou _Bibi-la-Gaillarde_, n'um tropel
avinhado, fui cambaleando pelos _boulevards_ exteriores, a uivar, entre
arrotos:

  _Allons, enfants de la patrie-e-e!...
  Le jour de gloire est arrivé..._

Foi uma manhã, depois d'um d'estes excessos, á hora em que nas trevas da
alma do debochado se ergue uma vaga aurora espiritual--que me nasceu, de
repente, a idéa de partir para a China! E, como soldados em acampamento
adormecido, que ao som do clarim se erguem, e um a um se vão juntando e
formando columna--outras idéas se foram reunindo no meu espirito,
alinhando-se, completando um plano formidavel... Partiria para Pekin;
descobriria a familia de Ti-Chin-Fú; esposando uma das senhoras,
legitimaría a posse dos meus milhões; daria áquella casa letrada a
antiga prosperidade; celebraria funeraes pomposos ao Mandarim, para lhe
acalmar o espirito irritado; iria pelas provincias miseraveis fazendo
colossaes distribuições d'arroz; e, obtendo do Imperador o botão de
crystal de Mandarim, accesso facil a um bacharel, substituir-me-hia á
personalidade desapparecida de Ti-Chin-Fú--e poderia assim restituir
legalmente á sua patria, senão a authoridade do seu saber, ao menos a
força do seu oiro.

Tudo isto, por vezes, me apparecia como um programma indefinido,
nevoento, pueril e idealista. Mas já o desejo d'esta aventura original e
epica me envolvera; e eu ia, arrebatado por elle, como uma folha secca
n'uma rajada.

Anhelei, suspirei por pisar a terra da China!--Depois d'altos
preparativos, apressados a punhados d'oiro, uma noite parti emfim para
Marselha. Tinha alugado todo um paquete, o _Ceylão_. E na manhã
seguinte, por um mar azul-ferrete, sob o vôo branco das gaivotas, quando
os primeiros raios do sol ruborisavam as torres de Nossa Senhora da
Guarda, sobre o seu rochedo escuro--puz a prôa ao Oriente.




IV


O Ceylão teve uma viagem calma e monotona até Chang-Hai.

D'ahi subimos pelo rio Azul a Tien-Tsin n'um pequeno _steamer_ da
Companhia Russel. Eu não vinha visitar a China n'uma curiosidade ociosa
de _touriste_: toda a paizagem d'essa provincia, que se assemelha á dos
vasos de porcelana, d'um tom azulado e vaporoso, com collinasinhas
calvas e de longe a longe um arbusto bracejante, me deixou sombriamente
indifferente.

Quando o capitão do _steamer_, um _yankee_ impudente de focinho de
chibo, ao passarmos á altura de Nankin, me propoz parar, ir percorrer as
ruinas monumentaes da velha cidade de porcelana,--eu recusei, com um
movimento secco de cabeça, sem mesmo desviar os olhos tristes da
corrente barrenta do rio.

Que pesados e soturnos me pareceram os dias de navegação de Tien-Tsin a
Tung-Chou, em barcos chatos que o cheiro dos remadores chinezes
empestava; ora através de terras baixas inundadas pelo Pei-hó, ora ao
longo de pallidos e infindaveis arrozaes; passando aqui uma lugubre
aldêa de lama negra, além um campo coberto de esquifes amarellos;
topando a cada momento com cadaveres de mendigos, inchados e
esverdeados, que desciam ao fio d'agua, sob um céo fusco e baixo!

Em Tung-Chou fiquei surprehendido, ao dar com uma escolta de cossacos
que mandava ao meu encontro o velho general Camilloff, heroico official
das campanhas da Asia Central, e então embaixador da Russia em Pekin. Eu
vinha-lhe recommendado como um sêr precioso e raro: e o verboso
interprete Sá-Tó, que elle punha ao meu serviço, explicou-me que as
cartas de sêllo imperial, avisando-o da minha chegada, recebera-as elle,
havia semanas, pelos correios da Chancellaria que atravessam a Siberia
em trenó, descem a dorso de camêlo até á Grande Muralha tartara, e
entregam ahi a mala a esses corredores mongolicos, vestidos de coiro
escarlate, que dia e noite galopam sobre Pekin.

Camilloff enviava-me um poney da Manchouria, ajaezado de sêda, e um
cartão de visita, com estas palavras traçadas a lapis sob o seu nome:
«_Saúde! o animal é dôce de bocca_!»

Montei o poney: e a um _hurrah_! dos cossacos, n'um agitar heroico de
lanças, partimos á desfilada pela poeirenta planicie--porque já a tarde
declinava, e as portas de Pekin fecham-se mal o ultimo raio de sol deixa
as torres do Templo do Céo. Ao principio seguimos uma estrada, caminho
batido do transito das caravanas, atravancado de enormes lages de
marmore dessoldadas da antiga Via Imperial. Depois passámos a ponte de
Pa-li-kao, toda de marmore branco, flanqueada de dragões arrogantes.
Vamos correndo então á beira de canaes d'agua negra: começam a apparecer
pomares, aqui e além uma aldêa de côr azulada, aninhada ao pé de um
Pagode:--de repente, a um cotovêlo do caminho, paro assombrado...

Pekin está diante de mim! É uma vasta muralha, monumental e barbara,
d'um negro baço, estendendo-se a perder de vista, e, destacando, com as
architecturas babylonicas das suas portas de tectos recurvos, sobre um
fundo de poente de purpura ensanguentada...

Ao longe, para o Norte, n'um vago de vapor roxo, esbatem-se, como
suspensas no ar, as montanhas da Mongolia...

Uma rica liteira esperava-me á porta de Tung-Tsen-Men, para eu
atravessar Pekin até á Residencia militar de Camilloff. A muralha agora,
ao perto, parecia erguer-se até aos céos com o horror d'uma construcção
biblica: á sua base apinhava-se uma confusão de barracas, feira exotica,
onde rumorejava uma multidão, e a luz de lanternas oscillantes cortava
já o crepúsculo de vagas manchas côr de sangue; os toldos brancos faziam
ao pé do negro muro como um bando de borboletas pousadas.

Senti-me triste; subi á liteira, cerrei as cortinas de sêda escarlate
todas bordadas a oiro; e cercado dos cossacos, eis-me entrando a velha
Pekin, por essa porta babelica, na turba tumultuosa, entre carretas,
cadeirinhas de xarão, cavalleiros mongolicos armados de flechas, bonzos
de tunica alvejante marchando um a um, e longas filas de lentos
dromedarios balançando a sua carga em cadencia...

D'ahi a pouco a liteira parou. O respeitoso Sá-Tó correu as cortinas, e
vi-me n'um jardim, escurecido e calado, onde, por entre sycomoros
seculares, kiosques alumiados brilhavam com uma luz dôce, como colossaes
lanternas pousadas sobre a relva: e toda a sorte de aguas correntes
murmuravam na sombra. Sob um peristilo feito de madeiros pintados a
vermelhão, aclarado por fios de lampadas de papel transparente,
esperava-me um membrudo figurão, de bigodes brancos, apoiado a um grosso
espadão. Era o general Camilloff. Ao adiantar-me para elle, eu sentia o
passo inquieto das gazellas fugindo de leve sob as arvores...

O velho heroe apertou-me um momento ao peito, e conduziu-me logo,
segundo os usos chinezes, ao banho da hospitalidade, uma vasta tina de
porcelana, onde entre rodelas finas de limão sobrenadavam esponjas
brancas, n'um perfume forte de lilaz...

Pouco depois a lua banhava deliciosamente os jardins: e eu, muito
fresco, de gravata branca, entrava pelo braço de Camilloff no _boudoir_
da generala. Era alta e loira; tinha os olhos verdes das sereias de
Homero; no decote baixo do seu vestido de sêda branca pousava uma rosa
escarlate; e nos dedos, que lhe beijei, errava um aroma fino de sandalo
e de chá.

Conversámos muito da Europa, do Nihilismo, de Zola, de Leão XIII, e da
magreza de Sarah Bernardth...

Pela galeria aberta penetrava um ar calido que rescendia a heliotropio.
Depois ella sentou-se ao piano--e a sua voz de contralto quebrou até
tarde os silencios melancolicos da cidade tartara, com as picantes arias
de _Madame Favart_ e com as melodias afagantes do _Rei de Lahore_.

       *       *       *       *       *

Ao outro dia cedo, encerrado com o general n'um dos kiosques do jardim,
contei-lhe a minha lamentavel historia e os motivos fabulosos que me
traziam a Pekin. O heroe escutava, cofiando sombriamente o seu espesso
bigode cossaco...

--O meu prezado hospede sabe o chinez?--perguntou-me de repente, fixando
em mim a pupilla sagaz.

--Sei duas palavras importantes, general: _Mandarim_ e _chá_.

Bile passou a sua mão de fortes cordovêas sobre a medonha cicatriz que
lhe sulcava a calva:

--_Mandarim_, meu amigo, não é uma palavra chineza, e ninguem a entende
na China. É o nome que no seculo XVI os navegadores do seu paiz, do seu
bello paiz...

--Quando nós tinhamos navegadores...--murmurei, suspirando.

Elle suspirou tambem, por polidez, e continuou:

--...Que os seus navegadores deram aos funccionarios chinezes. Vem do
seu verbo, do seu lindo verbo...

--Quando tinhamos verbos...--rosnei, no habito instinctivo de deprimir a
patria.

Elle esgazeou um momento o seu olho redondo de velho mocho--e proseguiu
paciente e grave:

--Do seu lindo verbo _mandar_ ... Resta-lhe por tanto _chá_. É um
vocabulo que tem um vasto papel na vida chineza, mas julgo-o
insufficiente para servir a todas as relações sociaes. O meu estimavel
hospede pretende esposar uma senhora da famillia Ti-Chin-Fú, continuar a
grossa influencia que exercia o Mandarim, substituir, domestica e
socialmente, esse chorado defunto... Para tudo isto dispõe da palavra
_chá_. É pouco.

Não pude negar--que era pouco. O venerando russo, franzindo o seu nariz
adunco de milhafre, pôz-me ainda outras objecções que eu via erguerem-se
diante do meu desejo--como as muralhas mesmas de Pekin: nenhuma senhora
da familia Ti-Chin-Fú consentiria jámais em casar com um barbaro; e
seria impossivel, terrivelmente impossivel que o Imperador, o Filho do
Sol, concedesse a um estrangeiro as honras privilegiadas d'um
Mandarim...

--Mas porque m'as recusaria?--exclamei.--Eu pertenço a uma boa familia
da provincia do Minho. Sou bacharel formado: portanto na China, como em
Coimbra, sou um letrado! Já fiz parte d'uma repartição publica... Possuo
milhões... Tenho a experiencia do estylo administrativo...

O general ia-se curvando com respeito a esta abundancia dos meus
attributos.

--Não é--disse elle emfim--que o Imperador realmente o recusasse: é que
o individuo que lh'o propozesse seria immediatamente decapitado. A lei
chineza, n'este ponto, é explicita e secca.

Baixei a cabeça, acabrunhado.

--Mas, general--murmurei--eu quero livrar-me da presença odiosa do velho
Ti-Chin-Fú e do seu papagaio!... Se eu entregasse metade dos meus
milhões ao thesouro chinez, já que não me é dado pessoalmente
applical-os, como Mandarim, á prosperidade do Estado...? Talvez
Ti-Chin-Fú se calmasse...

O general pousou-me paternalmente a vasta mão sobre o hombro:

--Êrro, consideravel êrro, mancebo! Esses milhões nunca chegariam ao
thesouro imperial. Ficariam nas algibeiras insondaveis das classes
dirigintes: seriam dissipados em plantar jardins, colleccionar
porcelanas, tapetar de pelles os soalhos, fornecer sêdas ás concubinas:
não alliviariam a fome d'um só chinez, nem reparariam uma só pedra das
estradas publicas... Iriam enriquecer a orgia asiatica. A alma de
Ti-Chin-Fú deve conhecer bem o Imperio: e isso não a satisfaria.

--E se eu empregasse parte da fortuna do velho malandro em fazer
particularmente, como philanthropo, largas distribuições d'arroz á
populaça faminta? É uma idéa...

--Funesta--disse o general, franzindo medonhamente o sobr'olho.--A côrte
imperial veria ahi immediatamente uma ambição politica, o tortuoso plano
de ganhar os favores da plebe, um perigo para a Dynastia... O meu bom
amigo seria decapitado... É grave...

--Maldição!--berrei.---Então para que vim eu á China?

O diplomata encolheu vagarosamente os hombros; mas logo, mostrando n'um
sorriso astuto os seus dentes amarellos de cossaco:

--Faça uma coisa. Procure a familia de Ti-Chin-Fú... Eu indagarei do
primeiro ministro, sua excellencia o principe Tong, onde pára essa prole
interessante... Reuna-os, atire-lhes uma ou duas duzias de milhões...
Depois prepare ao defunto funeraes regios. Funeraes d'alto ceremonial,
com um prestito d'uma legua, filas de bonzos, todo um mundo de
estandartes, palanquins, lanças, plumas, andores escarlates, legiões de
carpideiras ululando sinistramente, etc. etc... Se depois de tudo isto a
sua consciencia não adormecer e o phantasma insistir...

--Então?

--Córte as guelas.

--Obrigado, general.

       *       *       *       *       *

Uma coisa porém era evidente, e n'ella concordaram Camilloff, o
respeitoso Sá-Tó e a generala:--que, para frequentar a familia
Ti-Chin-Fú, seguir os funeraes, misturar-me á vida de Pekin, eu devia
desde já vestir-me como um chinez opulento, da classe letrada, para me
ir habituando ao traje, ás maneiras, ao ceremonial mandarim...

A minha face amarellada, o meu longo bigode pendente favoreciam a
caracterisação:--e quando na manhã seguinte, depois d'arranjado pelos
costureiros engenhosos da rua Chá-Coua, entrei na sala forrada de sêda
escarlate, onde já rebrilhavam as porcelanas do almoço sobre a mesa de
charão negro,--a generala recuou como á appariçâo do proprio Tong-Tché,
Filho do Céo!

Eu trazia uma tunica de brocado azul escuro abotoada ao lado, com o
peitilho ricamente bordado de dragões e flôres d'oiro: por cima um
casabeque de sêda de um tom azul mais claro, curto, amplo e fôfo: as
calças de setim côr de avellã descobriam ricas babouches amarellas
pespontadas a perolas, e um pouco da meia picada d'estrellinhas negras:
e á cinta, n'uma linda facha franjada de prata, tinha mettido um leque
de bambú, dos que teem o retrato do philosopho Lá-o-Tsé e são fabricados
em Swaton.

E, pelas mysteriosas correlações com que o vestuario influenceia o
caracter, eu sentia já em mim idéas, instinctos chinezes:--o amor dos
ceremoniaes meticulosos, o respeito bureocratico das fórmulas, uma ponta
de scepticismo letrado; e tambem um abjecto terror do Imperador, o odio
ao estrangeiro, o culto dos antepassados, o fanatismo da tradição, o
gosto das coisas assucaradas...

Alma e ventre, era já totalmente um Mandarim. Não disse á
generala:--_Bon jour, Madame_. Dobrado ao meio, fazendo girar os punhos
fechados sobre a fronte abaixada, fiz gravemente o _chin-chin_!

--É adorável, é precioso!--dizia ella, com o seu lindo riso, batendo as
maosinhas pallidas.

N'essa manhã, em honra da minha nova incarnação, havia um almoço chinez.
Que gentis guardanapos de papel de sêda escarlate, com monstros
fabulosos desenhados a negro! O serviço começou por ostras de Ning-Pó.
Eximias! Absorvi duas duzias com um intenso regalo chinez. Depois vieram
deliciosas febras de barbatana de tubarão, olhos de carneiro com picado
d'alho, um prato de nenufares em calda d'assucar, laranjas de Cantão, e
emfim o arroz sacramental, o arroz dos avós...

Delicado repasto, regado largamente de excellente vinho de Chão-Chigne!
E por fim, com que gôzo recebi a minha taça d'agua a ferver, onde deitei
uma pitada de folhas de chá imperial, da primeira colheita de março,
colheita unica, que é celebrada como um rito santo pelas mãos puras de
virgens!...

Duas cantadeiras entraram, em quanto nós fumavamos; e muito tempo, n'uma
modulação guttural, disseram velhas cantigas dos tempos da dynastia
Ming, ao som de guitarras recobertas de pelles de serpente, que dous
tartaros agachados repenicavam, n'uma cadencia melancolica e barbara. A
China tem encantos d'um raro gosto...

Depois a loira generala cantou-nos, com chiste, a _Femme à barbe_: e
quando o general sahiu com a sua escolta cossaca para o Yamen do
principe Tong, a informar-se da residencia da familia Ti-Chin-Fú--eu,
repleto e bem disposto, sahi com Sá-Tó a vêr Pekin.

       *       *       *       *       *

A habitação de Camilloff ficava na cidade tartara, nos bairros militares
e nobres. Ha aqui uma tranquillidade austera. As ruas assemelham-se a
largos caminhos d'aldêa sulcados pelas rodas dos carros; e quasi sempre
se caminha ao comprido de um muro, d'onde sahem ramos horisontaes de
sycomoros.

Por vezes uma carreta passa rapidamente, ao trote de um poney mongol,
com altas rodas cravejadas de pregos dourados; tudo n'ella oscilla, o
toldo, as cortinas pendentes de sêda, os ramos de plumas aos angulos; e
dentro entrevê-se alguma linda dama chineza, coberta de brocados claros,
a cabeça toda cheia de flôres, fazendo girar nos pulsos dois aros de
prata, com um ar de tedio ceremonioso. Depois é alguma aristocratica
cadeirinha de Mandarim, que koulis vestidos d'azul, de rabicho solto,
vão levando a um trote arquejante para os Yamens do Estado; precede-os
uma criadagem maltrapilha que ergue ao alto rolos de seda com
inscripções bordadas, insignias d'authoridade; e dentro o personagem
bojudo, com enormes oculos redondos, folheia a sua papelada ou dormita
de beiço cahido...

A cada momento paravamos a olhar as lojas ricas, com as suas taboletas
verticaes de letras douradas sobre fundo escarlate: os freguezes, n'um
silencio d'igreja, subtis como sombras, vão examinando as
preciosidades--porcelanas da dynastia Ming, bronzes, esmaltes, marfins,
sêdas, armas marchetadas, os leques maravilhosos de Swaton: por vezes,
uma fresca rapariga d'olho obliquo, tunica azul, e papoilas de papel nas
tranças, desdobra algum raro brocado diante d'um grosso chinez que o
contempla beatamente, com os dedos cruzados na pança: ao fundo o
mercador apparatoso e immovel, escreve com um pincel sobre longas
taboinhas de sandalo: e um perfume adocicado que sahe das coisas
perturba e entristece...

Eis-aqui a muralha que cérca a Cidade interdictca, morada santa do
Imperador! Moços nobres vem descendo do terraço d'um templo onde se
estiveram adestrando á frecha. Sá-Tó disse-me os seus nomes: eram da
guarda selecta, que nas ceremonias escolta o guarda-sol de sêda
amarella, com o Dragão bordado, que é o emblema sagrado do Imperador.
Todos elles comprimentaram profundadamente um velho que ia passando, de
barbas venerandas, com o casabeque amarello que é o privilegio do
ancião; vinha fallando só, e trazia na mão uma vara sobre que pousavam
cotovias domesticadas... Era um principe do Imperio.

Estranhos bairros! Mas nada me divertia como vêr a cada instante, a uma
porta de jardim, dois Mandarins pançudos que para entrar se trocavam
indefinidamente salamalés, cortezias, recusas, risinhos agudos
d'etiqueta, todo um ceremonial dogmatico--que lhes fazia oscillar d'um
modo picaresco, sobre as costas, as longas pennas de pavão. Depois se
erguia os olhos para o ar, lá via sempre pairar enormes papagaios de
papel, ora em fórma de dragões, ora de cetaceos, ora d'aves
fabulosas--enchendo o espaço d'uma inverosimil legião de monstros
transparentes e ondeantes...

       *       *       *       *       *

--Sá-Tó, basta de cidade tartara! Vamos vêr os bairros chinezes...

E lá fomos penetrando na cidade chineza, pela porta monstruosa de
Tchin-Men. Aqui habita a burguezia, o mercador, a populaça. As ruas
alinham-se como uma pauta; e no sólo vetusto e lamacento, feito da
immundicie de gerações recalcada desde seculos, ainda aqui e além jaz
alguma das lages de marmore côr de rosa que outr'ora o calçavam, no
tempo da grandeza dos Ming.

Dos dois lados são--ora terrenos vagos onde uivam manadas de cães
famintos, ora filas de casebres fuscos, ora pobres lojas com as suas
taboletas esguias e sarapintadas, balouçando-se d'uma haste de ferro. A
distancia erguem-se os arcos triumphaes feitos de barrotes côr de
purpura, ligados no alto por um telhado oblongo de telhas azues
envernizadas, que rebrilham como esmaltes. Uma multidão rumorosa e
espessa, onde domina o tom pardo e azulado dos trajes, circula sem
cessar; a poeira envolve tudo d'uma nevoa amarellada; um fedor acre
exhala-se dos enxurros negros; e a cada momento uma longa caravana de
camêlos fende lentamente a turba, conduzida por mongoes sombrios
vestidos de pelle de carneiro...

Fomos até ás entradas das pontes sobre os canaes, onde saltimbancos
semi-nús, com mascaras simulando demonios pavorosos, fazem destrezas
d'um picaresco barbaro e subtil; e muito tempo estive a admirar os
astrologos de longas tunicas, com dragões de papel collados ás cóstas,
vendendo ruidosamente horoscopos e consultas d'astros. Oh cidade
fabulosa e singular!

De repente ergue-se uma gritaria! Corremos: era um bando de presos, que
um soldado, de grandes oculos, ia impellindo com o guarda-sol, amarrados
uns aos outros pelo rabicho! Foi ahi n'essa avenida, que eu vi o
estrepitoso cortejo de um funeral de Mandarim, todo ornado de
auriflammas e de bandeirolas; grupos de sujeitos funebres vinham
queimando papeis em fogareiros portateis; mulheres esfarrapadas uivavam
de dôr espojando-se sobre tapetes; depois erguiam-se, galhofavam, e um
kouli vestido de luto branco servia-lhes logo chá, d'um grande bule em
fórma d'ave.

Ao passar junto ao Templo do Céo, vejo apinhada n'um largo uma legiao de
mendigos; tinham por vestuario um tijolo preso á cinta n'um cordel; as
mulheres, com os cabellos entremeados de velhas flôres de papel, roiam
ossos tranquillamente; e cadaveres de crianças apodreciam ao lado, sob o
vôo dos moscardos. Adiante topamos com uma jaula de traves, onde um
condemnado estendia, através das grades, as mãos descarnadas, á
esmola... Depois Sá-Tó mostrou-me respeitosamente uma praça estreita:
ahi, sobre pilares de pedra, poupavam pequenas gaiolas contendo cabeças
de decapitados: e gotta a gotta ia pingando d'ellas um sangue espesso e
negro...

       *       *       *       *       *

--Ouf!--exclamei, fatigado e aturdido.--Sá-Tó, agora quero o repouso, o
silencio, e um charuto caro...

Elle curvou-se: e, por uma escadaria de granito, levou-me ás altas
muralhas da cidade, formando uma esplanada que quatro carros de guerra a
par podem percorrer durante leguas.

E emquanto Sá-Tó, sentado n'um vão d'ameia, bocejava n'um desafôgo de
_cicerone_ enfastiado, eu fumando contemplei muito tempo aos meus pés a
vasta Pekin...

É como uma formidavel cidade da Biblia, Babel, ou Ninive que o propheta
Jonas levou tres dias a atravessar. O grandioso muro quadrado limita os
quatro pontos do horisonte, com as suas portas de torres monumentaes,
que o ar azulado, áquella distancia, faz parecer transparentes. E na
immensidão do seu recinto agglomeram-se confusamente verduras de
bosques, lagos artificiaes, canaes scintillantes como aço, pontes de
marmore, terrenos alastrados de ruinas, telhados envernizados reluzindo
ao sol; por toda a parte são pagodes heraldicos, brancos terraços de
templos, arcos triumphaes, milhares de kiosques sahindo d'entre as
folhagens dos jardins; depois espaços que parecem um montão de
porcelanas, outros que se assemelham a monturos de lama; e sempre a
intervallos regulares o olhar encontra algum dos bastiões, d'um aspecto
heroico e fabuloso...

A multidão, junto a essas edificações grandiosas, é apenas como grãos
d'arêa negra que um vento brando vai trazendo e levando...

Aqui está o vasto palacio imperial, entre arvoredos mysteriosos, com os
seus telhados d'um amarello d'oiro vivo! Como eu desejaria penetrar-lhe
os segredos, e ver desenrolar-se, pelas galerias sobrepostas, a
magnificencia barbara d'essas Dynastias seculares!

Além ergue-se a torre do Templo do Céo semelhando três guarda-soes
sobrepostos: depois a grande columna dos Principios, hieratica e sêcca
como o Genio mesmo da Raça: e adiante branquejam n'uma meia tinta
sobrenatural os terraços de jaspe do Santuario da Purificação...

Então interrogo Sá-Tó: e o seu dedo respeitoso vai-me mostrando o Templo
dos Antepassados, o Palacio da Soberana Concordia, o Pavilhão das Flôres
das Letras, o Kiosque dos Historiadores, fazendo brilhar, entre os
bosques sagrados que os cercam, os seus telhados lustrosos de faianças
azues, verdes, escarlates e côr de limão. Eu devorava, d'olho avido,
esses monumentos da Antiguidade asiatica, n'uma curiosidade de conhecer
as impenetraveis classes que os habitam, o principio das Instituições, a
significação dos Cultos, o espirito das suas letras, a grammatica, o
dogma, a estranha vida interior d'um cerebro de letrado chinez... Mas
esse mundo é inviolavel como um Santuario...

Sentei-me na muralha, e os meus olhos perderam-se pela planicie arenosa
que se estira para além das portas até aos contrafortes dos montes
mongolicos; ahi incessantemente redemoinham ondas infindaveis de poeira;
a toda a hora negrejam filas vagarosas de caravanas... Então invadiu-me
a alma uma melancolia, que o silencio d'quellas alturas, envolvendo
Pekin, tornava d'um vago mais desolado: era como uma saudade de mim
mesmo, um longo pezar de me sentir alli isolado, absorvido n'aquelle
mundo duro e barbaro: lembrei-me, com os olhos humedecidos, da minha
aldêa do Minho, do seu adro assombreado de carvalheiras, a venda com um
ramo de louro á porta, o alpendre do ferrador, e os ribeiros tão frescos
quando verdejam os linhos...

Aquella era a época em que as pombas emigram de Pekin para o sul. Eu
via-as reunirem-se em bandos por cima de mim, partindo dos bosques dos
templos e dos pavilhões imperiaes; cada uma traz, para a livrar dos
milhafres, um leve tubo de bambu que o ar faz silvar; e aquellas nuvens
brancas passavam como impellidas d'uma aragem molle, deixando no
silencio um lento e melancolico suspiro, uma ondulação eolia, que se
perdia nos ares pallidos...

Voltei para casa, pesado e pensativo.

Ao jantar, Camilloff, desdobrando o seu guardanapo, pediu-me com
bonhomia as minhas impressões de Pekin.

--Pekin faz-me sentir bem, general, os versos d'um poeta nosso:

  Sôbolos rios que vão
  Por Babylonia me achei...

--Pekin é um monstro!--disse Camilloff oscillando reflectidamente a
calva.--E agora considere, que a esta capital, á classe tartara e
conquistadora que a possue, obedecem trezentos milhões d'homens, uma
raça subtil, laboriosa, soffredora, prolifica, invasora... Estudam as
nossas sciencias... Um calice de Medoc, Theodoro?... Teem uma marinha
formidavel! O exercito, que outr'ora julgava destroçar o estrangeiro com
dragões de papelão d'onde sahiam bichas de fogo, tem agora tactica
prussiana e espingarda d'agulha! Grave!

--E todavia, general, no meu paiz, quando, a proposito de Macau, se
falla do Imperio Celeste, os patriotas passam os dedos pela grenha, e
dizem negligentemente: _Mandamos lá cincoenta homens, e varremos a
China_...

A esta sandice--fez-se um silencio. E o general, depois de tossir
formidavelmente, murmurou, com condescendencia:

--Portugal é um bello paiz...

Eu exclamei com seccura e firmeza:

--É uma choldra, general.

A generala, collocando delicadamente á borda do prato uma aza de frango,
e limpando o dedinho, disse:

--É o paiz da canção de Mignon. É lá que floresce a laranjeira...

O gordo Meriskoff, doutor allemão pela Universidade de Bonn, chanceller
da legação, homem de poesia e de commentario, observou com respeito:

--Generala, o dôce paiz de Mignon é a Italia: _Conheces tu a terra
privilegiada onde a laranjeira dá flor_? O divino Goethe referia-se á
Italia, _Italia mater_... A Italia será o eterno amor da humanidade
sensivel!

--Eu prefiro a França!--suspirou a esposa do primeiro secretario, uma
bonecasinha sardenta, de cabello arruivascado.

--Ah! a França!...--murmurou um addido, revirando um bugalho d'olho
ternissimo.

O gordo Meriskoff ageitou os oculos d'oiro:

--A França tem um mal, que é a Questão social...

--Oh! a Questão social!--rosnou sombriamente Camilloff.

--Ah! a Questão social!...--considerou ponderosamente o addido.

E discreteando com tanta sapiencia, chegámos por fim ao café.

Ao descer ao jardim, a generala, apoiando-se sentimentalmente ao meu
braço, murmurou-me, junto á face:

--Ai, quem me dera viver n'esses paizes apaixonados, onde verdejam os
laranjaes!...

--É lá que se ama, generala--segredei-lhe eu, levando-a dôcemente para a
escuridão dos sycomoros...




V


Foi necessario todo um longo verão para descobrir a provincia onde
residira o defunto Ti-Chin-Fú!

Que episodio administrativo tão pittoresco, tão chinez! O serviçal
Camillof, que passava o dia inteiro a percorrer os Yamens do Estado,
teve de provar primeiro que o desejo de conhecer a morada d'um velho
Mandarim não encobria uma conspiração contra a segurança do Imperio; e
depois foi-lhe ainda preciso jurar que não havia n'esta curiosidade um
attentado contra os Ritos sagrados! Então, satisfeito, o principe Tong
permittiu que se fizesse o inquerito imperial: centenares d'escribas
empallideceram noite e dia, de pincel na mão, desenhando relatorios
sobre papel d'arroz; mysteriosas conferencias sussurraram
incessantemente por todas as repartições da Cidade Imperial, desde o
Tribunal astronomico até ao Palacio da Bondade Preferida; e uma
população de koulis transportava da legação russa para os kiosques da
Cidade Interdicta, e d'ahi para o Pateo dos Archivos padiolas estalando
ao peso de maços de documentos vetustos...

Quando Camilloff perguntava _pelo resultado_, vinha-lhe a resposta,
satisfactoria que se estavam consultando os Livros Santos de Lá-o-Tsé,
ou que se iam explorar velhos textos do tempo de Nor-ha-chú. E para
calmar a impaciencia bellica do russo, o principe Tong remettia, com
estes recados subtis, algum substancial presente de confeitos recheados,
ou de gomos de bambú em calda d'assucar...

       *       *       *       *       *

Ora em quanto o general trabalhava com fervor para encontrar a familia
Ti-Chin-Fú,--eu ia tecendo horas de sêda e oiro (assim diz um poeta
japonez) aos pés pequeninos da generala...

Havia um kiosque no jardim sob os sycomoros, que se denominava, á
maneira chineza, do _Repouso discreto_:--ao lado um arroio fresco ia
cantando dôcemente sob uma pontesinha rustica pintada de côr de rosa. As
paredes eram apenas um gradeado de bambú fino forrado de sêda côr de
ganga: o sol, passando através d'ellas, fazia uma luz sobrenatural de
opala desmaiada. Ao centro afofava-se um divan de sêda branca, d'uma
poesia de nuvem matutina, attrahente como um leito nupcial. Aos cantos,
em ricas jarras transparentes da época de Yeng, erguiam-se, na sua
gentileza aristocratica, lirios escarlates do Japão. Todo o soalho
estava recoberto d'esteiras finas de Nankin; e junto á janella
rendilhada, sobre um airoso pedestal de sandalo, pousava aberto ao alto
um leque formado de laminas de crystal separadas, que a aragem entrando
fazia vibrar, n'uma modulação melancolica e terna.

As manhãs do fim d'agosto em Pekin são muito suaves; já erra no ar um
enternecimento outonal. A essa hora o conselheiro Meriskoff, os
officiaes da legação, estavam sempre na chancellaria _fazendo a mala_
para S. Petersburgo.

Eu então, de leque na mão, pisando subtilmente na ponta das babouches de
setim as ruasinhas areadas do jardim, ia entreabrir a porta do _Repouso
discreto_:

--Mimi?

E a voz da generala respondia, suave como um beijo:

--_All right_...

Como ella era linda vestida de dama chineza! Nos seus cabellos
levantados alvejavam flôres de pecegueiro; e as sobrancelhas pareciam
mais puras e negras avivadas a tinta de Nankin. A camisinha de gaze,
bordada a soutache de filigrana d'oiro, collava-se aos seus seios
pequeninos e direitos: vastas, fôfas calças de foulard côr de _côxa de
Nympha_, que lhe davam uma graça de serralho, recahiam sobre o tornozêlo
fino, coberto de meia de seda amarella:--e apenas tres dedos da minha
mão cabiam na sua chinelinha...

Chamava-se Vladimira; nascera ao pé de Nidji-Novogorod; e fôra educada
por uma tia velha que admirava Rousseau, lia Faublas, usava o cabello
empoado, e parecia a grossa lithographia cossaca d'uma dama galante de
Versalhes...

O sonho de Vladimira era habitar Paris; e fazendo ferver delicadamente
as folhas de chá, pedia-me historias ladinas de _Cocottes_, e dizia-me o
seu culto por Dumas filho...

Eu arregaçava-lhe a larga manga do casabeque de sêda côr de folha morta,
e ia fazendo viajar os meus labios devotos pela pelle fresca dos seus
bellos braços;--e depois sobre o divan, enlaçados, peito contra peito,
n'um extasi mudo, sentiamos as laminas de crystal resoar eoliamente, as
pêgas azues esvoaçarem pelos platanos, o fugitivo rhythmo do arroio
corrente...

Os nossos olhos humedecidos encontravam ás vezes um quadro de setim
preto, por cima do divan, onde em caracteres chinezes se desenrolavam
sentenças do Livro Sagrado de Li-Num «sobre os deveres das esposas». Mas
nenhum de nós percebia o chinez... E no silencio os nossos beijos
recomeçavam, espaçados, soando dôcemente, e comparaveis (na lingua
florida d'aquelles paizes) a perolas que cahem uma a uma sobre uma bacia
de prata...--Oh suaves séstas dos jardins de Pekin, onde estaes vós?
Onde estaes, folhas mortas dos lirios escarlates do Japão?...

       *       *       *       *       *

Uma manhã Camilloff entrando na chancellaria, onde eu fumava o cachimbo
d'amizade de companhia com Meriskoff, atirou o seu enorme sabre para um
canapé, e contou-nos radiante as noticias que lhe dera o penetrante
principe Tong.--Descobrira-se emfim que um opulento Mandarim, de nome
Ti-Chin-Fú, vivera outr'ora nos confins da Mongolia, na villa de
Tien-Hó! Tinha morrido subitamente: e a sua larga descendencia residia
lá, em miseria, n'um casebre vil...

Esta descoberta, é certo, não fôra devida á sagacidade da burocracia
imperial--mas fizera-a um astrologo do templo de Faqua, que durante
vinte noites folheára no céo o luminoso archivo dos astros...

--Theodoro, ha-de ser o seu homem!--exclamou Camilloff.

E Meriskoff repetiu, sacudindo a cinza do cachimbo:

--Ha-de ser o seu homem, Theodoro!

--O meu homem...--murmurei sombriamente.

Era talvez o _meu homem_, sim! Mas não me seduzia ir procurar o _meu
homem_ ou a sua familia, na monotonia d'uma caravana, por essas
desoladas extremidades da China!... Depois, desde que chegára a Pekin,
eu não tornára a avistar a fórma odiosa de Ti-Chin-Fú e do seu papagaio.
A Consciencia era dentro em mim como uma pomba adormecida. Certamente, o
alto esforço de me ter arrancado ás doçuras do _boulevard_ e do Loreto,
de ter sulcado os mares até ao Império do Meio, parecera á Eterna
Equidade uma expiação sufficiente e uma peregrinação reparadora.
Certamente Ti-Chin-Fú, acalmado, recolhera-se com o seu papagaio á
sempiterna Immobilidade... Para que iria eu, pois, a Tien-Hó? Porque não
ficaria alli, n'aquelle amavel Pekin, comendo nenufares em calda
d'assucar, abandonando-me ás somnolencias amorosas do _Repouso
discreto_, e pelas tardes azuladas, dando o meu passeio pelo braço do
bom Meriskoff, nos terraços de jaspe da Purificação ou sob os cedros do
Templo do Céo?...

Mas já o zeloso Camilloff, de lapis na mão, ia marcando no mappa o meu
itinerário para Tien-Hó! E mostrando-me, n'um desagradavel
entrelaçamento, sombras de montes, linhas tortuosas de rios, esfumados
de lagôas:

--Aqui está! O meu hospede sobe até Ni-ku-hé, na margem do Pei-Hó...
D'ahi, em barcos chatos vai a My-yun. Boa cidade, ha lá um Buddha
vivo... D'ahi, a cavallo, segue até á fortaleza de Ché-hia. Passa a
grande muralha, famoso espectáculo!... Descança no forte de Ku-pi-hó.
Póde lá caçar a gazella. Soberbas gazellas... E com dois dias de
caminhada está em Tien-Hó... Brilhante, hein?... Quando quer partir?
Ámanhã?...

--Ámanhã--rosnei, tristonho.

Pobre generala! N'essa noite, em quanto Meriskoff, ao fundo da sala,
fazia com tres officiaes da embaixada o seu _whist_ sacramental; e
Camilloff, ao canto do sophá, de braços cruzados, solemne como n'uma
poltrona do Congresso de Vienna, dormia de bocca aberta;--ella sentou-se
ao piano. Eu ao lado, na attitude d'um Lara, devastado pela fatalidade,
retorcia lugubremente o bigode. E a dôce creatura, entre dois gemidos do
teclado, d'uma saudade penetrante, cantou revirando para mim os seus
olhos rebrilhantes e humidos:

  L'oiseau s'envole,
  Lá bas, lá bas!...
  L'oiseau s'envole...
  Ne revient pas...

--A ave ha-de voltar ao ninho,--murmurei eu enternecido.

E, afastando-me a esconder uma lagrima, ia resmungando furioso:

--Canalha de Ti-Chin-Fú! Por tua causa! Velho malandro! Velho garoto!...

       *       *       *       *       *

Ao outro dia lá vou para Tien-Hó--com o respeitoso interprete Sá-tó, uma
longa fila de carretas, dois cossacos, toda uma populaça de koulis.

Ao deixar a muralha da cidade tartara, seguimos muito tempo ao comprido
dos jardins sagrados que orlam o templo de Confucio.

Era no fim do outono; já as folhas tinham amarellecido; uma doçura
tocante errava no ar...

Dos kiosques santos sahia uma susurração de canticos, de nota monotona e
triste. Pelos terraços, enormes serpentes, veneradas como deuses, iam-se
arrastando, já entorpecidas da friagem. E aqui e além, ao passar,
avistavamos buddhistas decrepitos, sêccos como pergaminhos e nodosos
como raizes, encruzados no chão sob os sycomoros, n'uma immobilidade de
idolos, contemplando incessantemente o umbigo, á espera da perfeição do
Nirvana...

E eu ia pensando, com uma tristeza tão pallida como aquelle mesmo céo
d'outubro asiatico, nas duas lagrimas redondinhas que vira brilhar, á
despedida, nos olhos verdes da generala!...




VI


Já a tarde declinava, e o sol descia vermelho como um escudo de metal
candente, quando chegámos a Tien-Hó.

As muralhas negras da villa erguem-se, do lado do sul, ao pé d'uma
torrente que ruge entre rochas: para o nascente, a planicie livida e
poeirenta estende-se até a um grupo escuro de collinas onde branqueja um
vasto edificio--que é uma Missão Catholica. E para além, para o extremo
norte são as eternas montanhas rôxas da Mongolia, suspensas sempre no ar
como nuvens.

Alojámo-nos n'um barracão fetido, intitulado _Estalagem da Consolação
terrestre_. Foi-me reservado o quarto nobre, que abria sobre uma galeria
fixada em estacas; era ornado estranhamente de dragões de papel
recortado, suspensos por cordeis do travejamento do tecto; á menor
aragem aquella legião de monstros fabulosos oscillava em cadencia, com
um rumor secco de folhagem, como tomada de vida sobrenatural e grotesca.

Antes que escurecesse fui vêr com Sá-tó a villa: mas bem depressa fugi
ao fedor abominavel das viellas: tudo se me afigurou ser negro--os
casebres, o chão barrento, os enxurros, os cães famintos, a populaça
abjecta... Recolhi ao albergue--onde arreeiros mongoes e crianças
piolhosas me miravam com assombro.

--Toda esta gente me parece suspeita, Sá-tó--disse eu, franzindo a
testa.

---Tem Vossa Honra razão. É uma ralé! Mas não ha perigo: eu matei, antes
de partirmos, um gallo negro, e a deusa Kaonine deve estar contente.
Póde Vossa Honra dormir ao abrigo dos maus espiritos... Quer Vossa Honra
o chá?...

--Traze, Sá-tó.

Bebido o chá, conversámos do _grande plano_: na manhã seguinte eu a
levar a alegria á triste choupana da viuva de Ti-Chin-Fú,
annunciando-lhe os milhões que lhe dava, depositados já em Pekin:
depois, de accordo com o Mandarim governador, fariamos uma copiosa
distribuição de arroz pela populaça: e á noite illuminações, danças como
n'uma gala publica...

--Que te parece, Sá-tó?

--Nos labios de Vossa Honra habita a sabedoria de Confucio... Vai ser
grande! Vai ser grande!

Como vinha cançado, bem cêdo comecei a bocejar, e estirei-me sobre o
estrado de tijolo aquecido que serve de leito nas estalagens da China;
enrolado na minha pelliça, fiz o signal da cruz, e adormeci pensando nos
braços brancos da generala, nos seus olhos verdes de sereia...

Era talvez já meia noite quando despertei a um rumor lento e surdo que
envolvia o barracão--como de forte vento n'um arvoredo, ou uma maresia
grossa batendo um paredão. Pela galeria aberta, o luar entrava no
quarto, um luar triste d'outono asiatico, dando aos dragões suspensos do
tecto fórmas, semelhanças chimericas...

Ergui-me, já nervoso--quando um vulto, alto e inquieto, appareceu na
facha luminosa do luar...

--Sou eu, Vossa Honra!--murmurou a voz apavorada de Sá-tó.

E logo, agachando-se ao pé de mim, contou-me n'um fluxo de palavras
roucas a sua afflicção:--emquanto eu dormia, espalhára-se pela villa que
um estrangeiro, o _Diabo estrangeiro_, chegára com bagagens carregadas
de thesouros... Já desde o começo da noite elle tinha entrevisto faces
agudas, d'olho voraz, rondando o barracão, como chacaes impacientes... E
ordenára logo aos koulis que entrincheirassem a porta com os carros das
bagagens, formados em semi-circulo á velha maneira tartara... Mas pouco
a pouco a malta crescera... Agora vinha d'espreitar por um postigo: e
era em roda da estalagem toda a populaça de Tien-Hó, rosnando
sinistramente... A deusa Kaonine não se satisfizera com o sangue do
gallo preto!... Além d'isso elle vira á porta d'um Pagode uma cabra
negra recuar!... A noite sería de terrores!... E sua mulher, o osso do
seu osso, que estava tão longe, em Pekin!...

--E agora, Sá-tó?--perguntei eu.

--Agora... Vossa Honra! Agora...

Calou-se: e a sua magra figura tremia, acaçapada como um cão que se roja
sob o açoite.

Eu afastei o cobarde, e adiantei-me para a galeria. Em baixo, o muro
fronteiro, coberto d'um alpendre, projectava uma funda sombra. Ahi com
effeito estava uma turba negra apinhada. Ás vezes uma figura,
rastejando, adiantava-se no espaço alumiado, espreitava, farejava as
carretas, e sentindo a lua sobre a face, recuava vivamente, fundindo-se
na escuridão: e como o tecto do alpendre era baixo, faiscava um momento
á luz algum ferro de lança inclinada...

--Que querem vossês, canalha?--bradei eu em portuguez.

A esta voz estrangeira um grunhido sahiu da treva; immediatamente uma
pedra veio ao meu lado furar o papel encerado da gelosia; depois uma
flecha silvou, cravou-se por cima da minha cabeça, n'um barrote...

Desci rapidamente á cozinha da estalagem. Os meus koulis, acocorados
sobre os calcanhares, batiam o queixo n'um terror; e os dois cossacos
que me acompanhavam, impassiveis á lareira, cachimbavam, com o sabre nú
nos joelhos.

O velho estalajadeiro d'oculos, uma avó andrajosa que eu vira no pateo
deitando ao ar um papagaio de papel, os arreeiros mongoes, as crianças
piolhosas, esses tinham desapparecido; só ficára um velho, bebedo
d'opio, cahido a um canto como um fardo. Fóra ouvia-se já a multidão
vociferar.

Interpellei então Sá-tó, que quasi desmaiava, arrimado a uma viga: nós
estavamos sem armas; os dois cossacos, sós, não podiam repellir o
assalto: era necessario pois ir acordar o Mandarim governador,
revelar-lhe que eu era um amigo de Camilloff, um conviva do principe
Tong, intimal-o a que viesse dispersar a turba, manter a lei santa da
hospitalidade!...

Mas Sá-tó confessou-me, n'uma voz debil como um sôpro, que o Governador
de certo é quem estava dirigindo o assalto! Desde as authoridades até
aos mendigos, a fama da minha riqueza, a legenda das carretas carregadas
d'oiro inflammára todos os appetites!... A prudencia ordenava, como um
mandamento santo, que abandonassemos parte dos thesouros, mulas, caixas
de comestiveis...

--E ficar aqui, n'esta aldêa maldita, sem camisas, sem dinheiro e sem
mantimentos?...

--Mas com a rica vida, Vossa Honra!

Cedi. E ordenei a Sá-tó que fosse propôr á turba uma copiosa
distribuição de sapeques,--se ella consentisse em recolher aos seus
casebres, e respeitar em nós os hospedes enviados por Buddha...

Sá-tó subiu á sacada da galeria, a tremer; e rompeu logo a arengar á
malta, bracejando, atirando as palavras com a violencia d'um cão que
ladra. Eu abrira já uma maleta, e ia-lhe passando cartuchos, saccos de
sapeques--que elle arremessava aos punhados com um gesto de semeador...
Em baixo havia por momentos um tumulto furioso ao chover dos metaes;
depois um lento suspiro de gula satisfeita; e logo um silencio, n'uma
suspensão _de quem espera mais_...

--Mais!--murmurava Sá-tó, voltando-se para mim ancioso.

Eu, indignado, lá lhe dava outros cartuchos, mais rôlos, mólhos de
moedas de meio real enfiadas em cordeis... Já a maleta estava vazia. A
turba rugia, insaciada.

--Mais, Vossa Honra!--supplicou Sá-tó.

--Não tenho mais, creatura! O resto está em Pekin!

--Oh Buddha Santo! Perdidos! Perdidos!--chamou Sá-tó, abatendo-se sobre
os joelhos.

A populaça, calada, esperava ainda. De repente, uma ululação selvagem
rasgou o ar. E eu senti aquella massa avida arremessar-se sobre as
carretas que defendiam a porta em semi-circulo: ao choque todo o
madeiramento da _Estalagem da Consolação terrestre_ rangeu e oscillou...

Corri á varanda. Em baixo era um tropel desesperado em torno dos carros
derrubados: os machados reluziam cahindo sobre a tampa dos caixotes: o
coiro das malas abria-se fendido á faca por mãos innumeraveis: no
alpendre, os cossacos debatiam-se, aos urros, sob o cutelo. Apesar da
lua, eu via em roda do barracão errarem tochas, n'uma dispersão de
fagulhas: um alarido rouco elevava-se, fazendo ao longe uivar os cães; e
de todas as viellas desembocava, corria populaça, sombras ligeiras,
agitando chuços e foices recurvas...

Subitamente, na loja terrea, ouvi o tumulto da turba que a invadia pelas
portas despedaçadas: de certo me procuravam, suppondo que eu teria
commigo o melhor do thesouro, pedras preciosas ou oiros... O terror
desvairou-me. Corri a uma grade de bambús para o lado do pateo.
Demoli-a, saltei sobre uma camada de matto grosso, n'um cheiro acre de
immundicies. O meu poney, preso a uma trave, relinchava, puxando
furiosamente o cabresto: arremessei-me sobre elle, empolguei-lhe as
crinas...

N'esse momento, do portão da cozinha arrombada rompia uma horda com
lanternas, lanças, n'um clamor de delirio. O poney, espantado, salta um
regueiro; uma flecha silva a meu lado; depois um tijolo bate-me no
hombro, outro nos rins, outro na anca do poney, outro mais grosso
rasga-me a orelha! Agarrado desesperadamente ás crinas, archejando, com
a lingua de fóra, o sangue a gottejar da orelha, vou despedido n'uma
desfilada furiosa ao longo d'uma lua negra... De repente vejo diante de
mim a muralha, um bastião, a porta da villa fechada!

Então, allucinado, sentindo atraz rugir a turba, abandonado de todo o
soccorro humano--_precisei de Deus_! Acreditei n'elle, gritei-lhe que me
salvasse; e o meu espirito ia tumultuosamente arrebatando, para lhe
offerecer, fragmentos de orações, de _Salvè-Rainhas_, que ainda me
jaziam no fundo da memoria... Voltei-me sobre a anca do potro: d'uma
esquina ao longe surgiu um fogacho de tochas: era a corja!... Larguei de
golpe ao comprido da alta muralha que corria ao meu lado como uma vasta
fita negra furiosamente desenrolada: de subito avisto uma brecha, um
boqueirão erriçado d'esgalhos de sarças, e fóra a planicie que sob a lua
parecia como uma vasta agua dormente! Lancei-me para lá,
desesperadamente, sacudido aos galões do potro... E muito tempo galopei
no descampado.

De repente o poney, eu, rolámos com um baque surdo. Era uma lagôa.
Entrou-me pela bocca agua putrida, e os pés enlaçaram-se-me nas raizes
molles dos nenufares... Quando me ergui, me firmei no sólo,--vi o poney,
correndo, muito longe, como uma sombra, com os estribos ao vento...

Então comecei a caminhar por aquella solidão, enterrando-me nas terras
lodosas, cortando através do matto espinhoso. O sangue da orelha ia-me
pingando sobre o hombro: á frialdade agreste, o fato encharcado
regelava-se-me sobre a pelle: e por vezes, na sombra, parecia-me vêr
luzir olhos de feras.

Emfim, encontrei um recinto de pedras soltas onde jazia, sob um arbusto
negro, um d'aquelles montões d'esquifes amarellos que os chinezes
abandonam nos campos, e onde apodrecem corpos. Abati-me sobre um caixão,
prostrado: mas um cheiro abominavel pesava no ar: e ao apoiar-me sentia
o viscoso d'um liquido que escorria pelas fendas das tábuas... Quiz
fugir. Mas os joelhos negavam-se, tremiam-me: e arvores, rochas, hervas
altas, todo o horisonte começou a girar em torno de mim como um disco
muito rapido. Faiscas sanguineas vibravam-me diante dos olhos: e
senti-me como cahindo de muito alto, devagar, á maneira d'uma penna que
desce...

Quando recuperei a consciencia estava estirado n'um banco de pedra, no
pateo d'um vasto edificio semelhante a um convento, que um alto silencio
envolvia. Dois padres lazaristas lavavam-me devagar a orelha. Um ar
fresco circulava; a roldana d'um poço rangia lentamente; um sino tocava
a matinas. Ergui os olhos, avistei uma fachada branca com janellinhas
gradeadas e uma cruz no topo: então, vendo n'aquella paz de claustro
catholico como um recanto da patria recuperada, o abrigo e a consolação,
rolaram-me das palpebras duas lagrimas mudas.




VII


De madrugada, dois padres lazaristas, dirigindo-se a Tien-Hó, tinham-me
encontrado desmaiado no caminho. E, como disse o alegre padre Loriot,
«era já tempo»; porque em redor do meu corpo immovel um negro
semi-circulo d'esses grossos e soturnos corvos da Tartaria já me estava
contemplando com gula...

Trouxeram-me sem demora para o convento n'uma padiola,--e grande foi o
regosijo da communidade quando soube que eu era um latino, um christão e
um subdito dos Reis Fidelissimos. O convento fórma alli o centro d'um
pequeno burgo catholico, apinhado em torno da maciça residencia como uma
casaria de servos á base d'um castello feudal. Existe desde os primeiros
missionarios que percorreram a Manchouria. Porque nós estamos aqui nos
confins da China: para além já é a Mongolia, a Terra das Hervas, immenso
prado verde-escuro, leziria sem fim, colorida aqui e além do vivo das
flôres silvestres...

Ahi jaz a vasta planicie dos Nomadas. Da minha janella eu via negrejar
os circulos de tendas cobertas de feltro, ou de pelles de carneiro; e
por vezes assistia á partida d'uma tribu, em filas de longas caravanas,
levando os seus rebanhos para o oeste...

O superior lazarista era o excellente padre Giulio. A longa permanencia
entre as raças amarellas tornára-o quasi um chinez: quando eu o
encontrava no claustro com a sua tunica rôxa, o rabicho longo, a barba
veneravel, agitando devagar um enorme leque--parecia-me algum sábio
letrado mandarim commentando mentalmente, na paz de um templo, o Livro
sacro de Chú. Era um santo: mas o cheiro d'alho que exhalava--afastaria
as almas mais doloridas e precisadas de consolação.

Conservo suave a memoria dos dias alli passados! O meu quarto, caiado de
branco, com uma cruz negra, tinha um recolhimento de cella. Acordava
sempre ao toque de matinas. Em respeito aos velhos missionarios, vinha
ouvir a missa á capella: e enternecia-me, alli, tão longe da patria
catholica, n'aquellas terras mongolicas, vêr á clara luz da manhã a
casula do padre, com a sua cruz bordada, curvando-se diante do altar, e
sentir ciciar no fresco silencio--os _Dominus vobiscum_, e os _Cum
spiritu tuo_...

De tarde ia á escóla, admirar os pequenos chinezes declinando _Hora,
Horoe_... E depois do refeitorio, passeando no claustro, escutava
historias de longiquas missões, de viagens apostolicas ao _Paiz das
Hervagens_, as prisões supportadas, as marchas, os perigos, as Chronicas
heroicas da Fé...

Eu por mim não contei no convento as minhas aventuras phantasticas:
dei-me como um _touriste_ curioso, tomando apontamentos pelo Universo. E
esperando que a minha orelha cicatrizasse, abandonava-me, n'uma lassidão
d'alma, áquella paz de mosteiro...

Mas estava decidido a deixar bem depressa a China, esse Imperio barbaro,
que eu odiava agora, prodigiosamente!

Quando me punha a pensar que viera desde os confins do Occidente, para
trazer a uma provincia chineza a abundancia dos meus milhões, e que
apenas lá chegára fôra logo saqueado, apedrejado, fréchado--enchia-me um
rancor surdo, gastava horas agitando-me pelo quarto, a revolver coisas
feras que tentaria para me vingar do Imperio do Meio!

Retirar-me com os meus milhões era a desforra mais pratica, mais facil!
Demais, a minha idéa de resuscitar artificialmente, para bem da China, a
personalidade de Ti-Chin-Fú, parecia-me agora absurda, d'uma insensatez
de sonho. Eu não comprehendia a lingua, nem os costumes, nem os ritos,
nem as leis, nem os sabios d'aquella raça: que vinha pois fazer alli,
senão expôr-me, pelo apparato da minha riqueza, aos assaltos d'um povo,
que, ha quarenta e quatro seculos, é pirata nos mares e traz as terras
varridas de rapina!...

Além d'isso, Ti-Chin-Fú e o seu papagaio continuavam invisiveis,
remontados de certo ao Céo chinez dos Avós: e já o aplacamento do
remorso visivel diminuira em mim singularmente o desejo da expiação...

Sem duvida o velho letrado estava fatigado de deixar essas regiões
ineffaveis para se vir estirar pelos meus moveis. Vira os meus esforços,
o meu desejo de ser util á sua prole, á sua provincia, á sua raça--e,
satisfeito, accommodára-se regaladamente para a sua sésta eterna. Eu
nunca mais avistaria a sua pança amarella!...

E então mordia-me o appetite de me achar já tranquillo e livre, no
pacifico gozo do meu oiro, ao Loreto ou no _boulevard_, sorvendo o mel
ás flôres da Civilisação...

Mas a viuva de Ti-Chin-Fú, as mimosas senhoras da sua descendencia, os
netos pequeninos?... Iria eu deixal-os barbaramente, na fome e no frio,
pelas viellas negras de Tien-Hó? Não. Esses não eram culpados das
pedradas que me atirára a populaça. E eu christão, asylado n'um convento
christão, tendo á cabeceira da cama o Evangelho, cercado d'existencias
que eram incarnações de Caridade--não podia partir do Imperio sem
restituir áquelles que despojára, a abundancia, esse conforto honesto
que recommenda o Classico da Piedade Filial...

Então escrevi a Camilloff. Contava-lhe a minha abjecta fuga, sob as
pedras da turba chineza; o abrigo christão que me dera a Missão; o vivaz
desejo de partir do Imperio do Meio. Pedia-lhe que remettesse elle á
viuva de Ti-Chin-Fú os milhões depositados por mim em casa do mercador
Tsing-Fó, na avenida de Cha-Coua, ao lado do arco triumphal de Tong,
junto ao templo da deusa Kaonine.

O alegre padre Loriot, que ia a Pekin em missão, levou esta carta, que
eu lacrára com o sêllo do convento--uma cruz sahindo d'um coração em
chammas...

Os dias passaram. As primeiras neves alvejaram nas montanhas
septentrionaes da Manchouria: e eu occupava-me a caçar a gazella pela
Terra das Hervas... Horas energicas e fortemente vívidas, as d'essas
manhãs, quando eu largava á desfilada, no grande ar agreste da planicie,
entre os monteadores mongolicos que, com um grito ululado e vibrante,
batiam o matagal á lançada! Por vezes, uma gazella saltava: e, d'orelha
baixa, estirada e fina, partia no fio do vento... Soltavamos o falcão
que voava sobre ella, d'aza serena, dando-lhe a espaços regulares, com
toda a força do bico recurvo, uma picada viva no craneo. E iamo'l-a
abater, por fim, á beira d'alguma agua morta, coberta de nenufares...
Então os cães negros da Tartaria amontoavam-se-lhe sobre o ventre, e,
com as patas no sangue, iam-lhe a ponta de dente, desfiando devagar as
entranhas...

Uma manhã o leigo da portaria avistou emfim o alegre padre Loriot,
galgando á lufa-lufa pelo caminho ingreme do burgo, de volta de Pekin,
com a sua mochila ao hombro, e uma criancinha nos braços: tinha-a
encontrado abandonada, nuasinha, morrendo á beira d'um caminho:
baptisára-a logo n'um regato com o nome de _Bem-Achado_: e alli a
trazia, todo enternecido, arquejando de tanto que estugára o passo, para
dar depressa á creaturinha esfomeada o bom leite da cabra do convento...

Depois d'abraçar os religiosos, d'enxugar as grossas bagas de suor,
tirou da algibeira dos calções um enveloppe com o sello da aguia russa:

--É isto que manda o papá Camilloff, amigo Theodoro. Ficou optimo. E a
senhora tambem... Tudo rijo.

Corri a um recanto do claustro a lêr as duas folhas de prosa. Meu bom
Camilloff, de calva severa e olho de mocho! Como elle alliava tão
originalmente ao senso fino d'um habil de Chancellaria as caturrices
picarescas de diplomata bufo! A carta dizia assim:

     «Amigo, hospede, e carissimo Theodoro,

     «Ás primeiras linhas da sua carta ficámos consternados! Mas logo as
     seguintes nos deram um grato allivio, por nos certificar que estava
     com esses santos padres da Missão christã... Eu parti para o Yamen
     imperial a fazer uma severa reclamação ao principe Tong, sobre o
     escandalo de Tien-Hó. Sua excellencia mostrou um jubilo
     desordenado! Porque, se lamenta como particular a offensa, o roubo
     e as pedradas que o meu hospede soffreu, como ministro do Imperio
     vê ahi a dôce opportunidade d'extorquir á villa de Tien-Hó, em
     multa, em castigo da injuria feita a um estrangeiro, a vantajosa
     somma de _trezentos mil francos_, ou, segundo os calculos do nosso
     sagaz Meriskoff, _cincoenta e quatro contos de reis_ na moeda do
     seu bello paiz! É, como disse Meriskoff, um excellente resultado
     para o Erario imperial, e fica assim a sua orelha copiosamente
     vingada... Aqui, começam a picar os primeiros frios, e já estamos
     usando pelles. O bom Meriskoff lá vai soffrendo do figado, mas a
     dôr não lhe altera o criterio philosophico nem a sábia
     verbosidade... Tivemos um grande desgosto: o lindo cãosinho da boa
     Madame Tagarieff, a esposa do nosso amado secretario, o adoravel
     _Tu-tu_ desappareceu na manhã de 15... Fiz, na policia, instancias
     urgentes, mas o _Tu-tu_ não nos foi restituido,--e o sentimento é
     tanto maior, quanto é sabido que a populaça de Pekin aprecia
     extremamente estes cãesinhos, guisados em calda de assucar...
     Deu-se aqui um facto abominavel e de consequencias funestas: a
     ministra de França, essa petulante Madame Grijon, esse _galho
     sêcco_ (como diz o nosso Meriskoff), no ultimo jantar da legação,
     deu, em desprezo de todas as regras internacionaes, o braço, o seu
     descarnado braço, e a sua direita á mesa a um simples addido
     inglez, lord Gordon! Que me diz a isto? É crivel? É racional? É
     destruir a ordem social! O braço, a direita, a um addido, um
     escossez côr de tijolo, de vidro entalado no olho, quando havia
     presentes todos os embaixadores, os ministros, e eu! Isto tem
     causado, no corpo diplomatico, uma sensação inenarravel...
     Esperamos instrucções dos nossos governos. Como diz Meriskoff,
     oscillando tristemente a cabeça--_é grave... é muito grave_!--O que
     prova (e ninguem o duvidava) que lord Gordon é o Benjamim do _galho
     sêcco_. Que podridão! Que lodo!... A generala não tem passado bem,
     desde a sua partida para essa malfadada Tien-Hó; o doutor Pagloff
     não lhe percebe o mal; é uma languidez, um murchar, uma saudosa
     indolencia que a conserva horas e horas immovel sobre o sophá, no
     _Pavilhão do Repouso discreto_, com o olhar vago e o labio cheio de
     suspiros... Eu não me illudo: sei perfeitamente o que a mina: é a
     desgraçada doença de bexiga, que lhe veio das más aguas, quando
     estivemos na legação de Madrid... Seja feita a vontade do
     Senhor!... Ella pede-me para lhe mandar _un petit bonjour_, e
     deseja que o meu hospede apenas chegue a Paris, se fôr a Paris, lhe
     remetta pela mala da Embaixada para S. Petersburgo (d'ahi virá a
     Pekin) duas duzias de luvas de doze botões, numero _cinco e tres
     quartos_, da marca _Sol_, dos armazens do Louvre; assim como os
     ultimos romances de Zola, Mademoiselle de Maupin de Gautier, e uma
     caixa de frascos de _Opoponax_... Esquecia-me dizer-lhe que mudámos
     de padeiro: fornecemo-nos agora na padaria da Embaixada ingleza:
     deixámos a da Embaixada franceza para não ter communicações com o
     _galho sêcco_... Ahi estão os inconvenientes de não termos aqui na
     Embaixada russa uma padaria--apesar de tantos relatorios, tantas
     reclamações que, sobre esse ponto, tenho feito para a chancellaria
     de S. Petersburgo! Elles sabem bem que em Pekin não ha padarias,
     que cada legação tem a sua propria, como um elemento d'installação
     e d'influencia. Mas quê! Na côrte imperial desattendem-se os mais
     serios interesses da civilisação russa!... Creio que é tudo o que
     ha de novo em Pekin e nas legações. Meriskoff recommenda-se, e
     todos d'esta Embaixada; e tambem o condesinho Arthur, o Zizi da
     legação hespanhola, o _Focinho cahido_, e o Lulú; emfim todos; eu
     mais que ninguem, que me assigno com saudade e affeição

     «_General Camilloff_».

     «P.S. Em quanto á viuva e familia de Ti-Chin-Fú, houve um engano: o
     astrologo do templo de Faqua equivocou-se na interpretação sideral:
     não é realmente em Tien-Hó que reside essa familia... É ao sul da
     China, na provincia de Cantão. Mas também ha uma familia Ti-Chin-Fú
     para além da Grande Muralha, quasi na fronteira russa, no districto
     de Ka-ó-li. A ambas morreu o chefe, a ambas assaltou a pobreza...
     Portanto, esperando novas ordens, não levantei os dinheiros da casa
     de Tsing-Fó. Esta recente informação mandou-m'a hoje sua
     excellencia o principe Tong, com uma deliciosa compota de
     calombro... Devo annunciar-lhe que o nosso bom Sá-Tó aqui
     appareceu, de volta de Tien-Hó, com um beiço rachado e leves
     contusões no hombro, tendo apenas salvado da bagagem saqueada uma
     lithographia de Nossa Senhora das Dôres, que, pela inscripção a
     tinta, vejo que pertencera a sua respeitavel mamã... Os meus
     valentes cossacos, esses, lá ficaram n'uma poça de sangue. Sua
     excellencia o principe Tong condescende em m'os pagar a dez mil
     francos cada um, das sommas extorquidas á villa de Tien-Hó... Sá-Tó
     diz-me que se o meu hospede, como é natural, recomeçar as suas
     viagens através do imperio em busca dos Ti-Chin-Fú,--elle
     considerar-se-hia honrado e venturoso em o acompanhar, com uma
     fidelidade canina e uma docilidade cossaca...

     «_Camilloff_».

--Não! nunca!--rugi com furor, amarrotando a carta, monologando a largas
passadas pelo melancolico claustro.--Não, por Deus ou pelo Demonio! Ir
de novo bater as estradas da China? Jámais! Oh sorte grotesca e
desastrosa! Deixo os meus regalos ao Loreto, o meu ninho amoroso de
Paris, venho rolado pela vaga enjoadôra de Marselha a Chang-Hai, soffro
as pulgas das bateiras chinezas, o fedor das viellas, a poeirada dos
caminhos aridos--e para quê? Tinha um plano, que se erguia até aos céos,
grandioso e ornamentado como um trophéo: por sobre elle scintillavam,
d'alto a baixo, toda a sorte d'acções boas: e eis que o vejo tombar ao
chão, peça a peça, n'uma ruina! Queria dar o meu nome, os meus milhões,
e metade do meu leito d'oiro a uma senhora Ti-Chin-Fú--e não m'o
permittem os prejuizos sociaes d'uma raça barbara! Pretendo, com o botão
de crystal de Mandarim, remodelar os destinos da China, trazer-lhe a
prosperidade civil,--e veda-m'o a lei imperial! Aspiro a derramar uma
esmola sem fim por esta populaça faminta--e corro o perigo ingrato de
ser decapitado como instigador de rebelliões! Venho enriquecer uma
villa--e a turba tumultuosa apedreja-me! Ia emfim dar a abundancia, o
conforto que louva Confucio, á família Ti-Chin-Fú,--e essa familia
some-se, evapora-se como um fumo, e outras familias Ti-Chin-Fú surgem,
aqui e além, vagamente, ao sul, a oeste, como clarões enganadores... E
havia d'ir a Cantão, a Ka-ó-li, expôr a outra orelha a tijolos brutaes,
fugir ainda pelos descampados, agarrado ás crinas d'um potro? Jámais!

Parei: e de braços erguidos, fallando ás arcadas do claustro, ás
arvores, ao ar silencioso e fino que me envolvia:

--Ti-Chin-Fú!--bradei--Ti-Chin-Fú, para te aplacar, fiz o que era
racional, generoso e logico! Estás emfim satisfeito, letrado veneravel,
tu, o teu gentil papagaio, a tua pança official? Falla-me! Falla-me!...

Escutei, olhei: a roldana do poço, áquella hora do meio dia, rangia
devagar, no pateo: sob as amoreiras, ao longo da arcaria do claustro,
seccavam em papel sêda as folhas de chá da colheita d'outubro: da porta
meio cerrada da aula vinha um susurro lento de declinações latinas: era
uma paz severa, feita da simplicidade das occupações, da honestidade dos
estudos, do ar pastoril d'aquella collina, onde dormia, sob um sol
branco d'inverno, o burgo religioso... E com aquella serenidade
ambiente, pareceu-me receber na alma, de repente, uma pacificação
absoluta!

Accendi com os dedos ainda tremulos um charuto, e disse, limpando na
testa uma baga de suor, esta palavra, resumo d'um destino:

--Bem, Ti-Chin-Fú está contente. Fui logo á cella do excellente padre
Giulio. Elle lia o seu Breviario á janella, debicando confeitos
d'assucar, com o gato do convento no collo.

--Reverendissimo, volto á Europa... Algum dos nossos bons padres vai por
acaso em missão, para os lados de Chang-Hai?...

O veneravel superior pôz os seus oculos redondos: e folheando com uncção
um vasto registro em letra chineza, ia assim murmurando:

--Quinto dia da decima lua... Sim, ha o padre Anacleto para Tien-Tzin,
para a novena dos Irmãos da Santa Creche. Duodecima lua, o padre Sanchez
para Tien-Tzin tambem, para a obra do Catecismo aos Orphãos... Sim, caro
hospede, tem companheiros para Léste...

--Ámanhã?

--Ámanhã. É dolorosa a separação n'estes confins do mundo, quando as
almas se comprehendem bem em Jesus... O nosso padre Gutierrez que lhe
faça um bom farnel... Nós já o amavamos como irmão, Theodoro... Coma um
confeito, são deliciosos... As coisas estão em feliz repouso quando se
acham no seu lugar e elemento natural: o lugar do coração do homem é o
coração de Deus: e o seu está n'esse asylo seguro... Coma um confeito...
Que é isso, meu filho, que é isso?

Eu estava collocando sobre o seu Breviario aberto, n'uma pagina do
Evangelho de pobreza, um rôlo de notas do _Banco d'Inglaterra;_ e
balbuciei:

--Meu reverendissimo, para os seus pobres...

--Excellente, excellente... O nosso bom Gutierrez que lhe faça um farnel
copioso... _Amen_, meu filho ... _In Deo omnia spes_!...

Ao outro dia, entre o padre Anacleto e o padre Sanchez, montado na mula
branca do convento, desci o burgo, ao repique dos sinos. E ahi vamos
para Hiang-Hiam, villa negra e murada, onde atracam os barcos que descem
a Tien-Tzin. Já as terras ao longo do Pei-Hó estavam todas brancas de
neve: nas enseadas baixas já a agua ia gelando: e embrulhados em pelles
de carneiro, em roda do fogareiro, á pôpa do barco, os bons padres e eu
iamos conversando de trabalhos de Missionarios, de coisas da China, por
vezes dos interesses do Céo--passando em redor sem cessar o grosso
frasco da genebra...

Era Tien-Tzin separei-me d'aquelles santos camaradas. E d'ahi a duas
semanas, por um meio dia de sol tepido, passeava, fumando o meu charuto
e olhando a azafama dos caes d'Hong-Kong, no tombadilho do _Java_ que ia
levantar ferro para a Europa.

       *       *       *       *       *

Foi um momento commovente para mim, aquelle em que vi, ás primeiras
voltas do helice, afastar-se a terra da China.

Desde que acordára, n'essa manhã, uma inquietação surda recomeçava a
pesar-me na alma. Agora, punha-me a pensar que viera áquelle vasto
imperio para acalmar pela expiação um protesto temeroso da Consciencia:
e por fim, impellido por uma impaciencia nervosa, ahi partia, sem ter
feito mais que deshonrar os bigodes brancos d'um general heroico, e ter
recebido pedradas pela orelha n'uma villa dos confins da Mongolia.

Estranho destino, o meu!...

       *       *       *       *       *

Até ao anoitecer estive encostado sombriamente á borda do paquete, vendo
o mar liso, como uma vasta peça de sêda azul, dobrar-se aos lados em
duas pregas molles: pouco a pouco grandes estrellas palpitaram na
concavidade negra; e o helice na sombra ia trabalhando em rhythmo.
Então, tomado d'uma fadiga molle, fui errando pelo paquete, olhando,
aqui e além, a bussola alumiada; os montões de cabrestantes; as peças da
machina, n'uma claridade ardente, batendo em cadencia; as fagulhas que
fugiam do cano, n'um rôlo de fumaraça negra; os marinheiros de barba
ruiva, immoveis á roda do leme; e as fórmas dos pilotos, sobre o pontal,
altas e vagas na noite. Na _cabine_ do capitão, um inglez de capacete de
cortiça, cercado de damas que bebiam Cognac, ia tocando melancolicamente
na flauta a aria de _Bonnie Dundee_...

Eram onze horas quando desci ao meu beliche. As luzes já estavam
apagadas: mas a lua que se erguia ao nivel da agua, redonda e branca,
batia o vidro da _cabine_ com um raio de claridade: e então, a essa meia
tinta pallida, lá vi estirada sobre a maca a figura pançuda, vestida de
sêda amarella, com o seu papagaio nos braços!

Era _elle_, outra vez!

E foi _elle_, perpetuamente! Foi elle em Singapura e em Ceylão. Foi elle
erguendo-se dos areaes do deserto ao passarmos no canal de Suez;
adiantando-se á prôa d'um barco de provisões quando parámos em Malta;
resvalando sobre as rosadas montanhas da Sicilia; emergindo dos
nevoeiros que cercam o morro de Gibraltar! Quando desembarquei em
Lisboa, no caes das Columnas, a sua figura bojuda enchia todo o arco da
rua Augusta; o seu olho obliquo fixava-me--e os dois olhos pintados do
seu papagaio pareciam fixar-me tambem...




VIII

Então, certo que não poderia jámais aplacar Ti-Chin-Fú, toda essa noite
no meu quarto ao Loreto, onde como outr'ora as velas innumeraveis das
serpentinas davam aos damascos tons de sangue fresco, meditei sacudir de
mim, como um adorno de peccado, esses milhões sobrenaturaes. E assim me
libertaria talvez d'aquella pança e d'aquelle papagaio abominavel!

Abandonei o palacete ao Loreto, a existencia de Nababo. Fui, com uma
quinzena coçada, realugar o meu quarto na casa da Madame Marques: e
voltei á Repartição, d'espinhaço curvo, a implorar os meus vinte mil
reis mensaes, e a minha dôce penna de amanuense!...

Mas um soffrimento maior veio amargurar os meus dias. Julgando-me
arruinado,--todos aquelles, que a minha opulencia humilhára, cobriram-me
de offensas, como se alastra de lixo uma estatua derrubada de principe
decahido. Os jornaes, n'um triumpho de ironia, achincalharam a minha
miseria. A aristocracia, que balbuciára adulações aos pés do Nababo,
ordenava agora aos seus cocheiros que atropellassem nas ruas o corpo
encolhido do plumitivo de Secretaría. O clero, que eu enriquecera,
accusava-me de _feiticeiro_; o povo atirou-me pedras; e a Madame
Marques, quando eu me queixava humildemente da dureza granitica dos
bifes,--plantava as duas mãos á cinta, e gritava:

--Ora o enguiço! Então que quer vossê mais? Aguente! Olha o pelintra!...

E, apesar d'esta expiação, o velho Ti-Chin-Fú lá estava sempre á minha
ilharga, obeso e côr d'óca,--porque os seus milhões, que jaziam agora
estereis e intactos nos Bancos, ainda de facto eram meus!
Desgraçadamente meus!

Então, indignado, um dia subitamente reentrei com estrondo no meu
palacete e no meu luxo. N'essa noite, de novo o resplendor das minhas
janellas alumiou o Loreto: e pelo portão aberto viram-se como outr'ora
negrejar, nas suas fardas de sêda negra, as longas filas de lacaios
decorativos.

Logo, Lisboa, sem hesitar, se rojou aos meus pés. A Madame Marques
chamou-me, chorando, _filho do seu coração_. Os jornaes deram-me os
qualificativos que, de antiga tradição, pertencem á Divindade: fui o
_Omnipotente_, fui o _Omnisciente_! A aristocracia beijou-me os dedos
como a um Tyranno: e o clero incensou-me como a um idolo. E o meu
desprezo pela Humanidade foi tão largo,--que se estendeu ao Deus que a
creou.

Desde então uma saciedade enervante mantem-me semanas inteiras n'um
sophá, mudo e soturno, pensando na felicidade do _não-ser_...

Uma noite, recolhendo só por uma rua deserta, vi diante de mim o
Personagem vestido de preto com o guarda-chuva debaixo do braço, o mesmo
que no meu quarto feliz da travessa da Conceição me fizera, a um
_ti-li-tin_ de campainha, herdar tantos milhões detestaveis. Corri para
elle, agarrei-me ás abas da sua sobrecasaca burgueza, bradei:

--Livra-me das minhas riquezas! Resuscita o Mandarim! Restitue-me a paz
da miseria!

Elle passou gravemente o seu guarda-chuva para debaixo do outro braço, e
respondeu com bondade:

--Não póde ser, meu prezado senhor, não póde ser...

Eu atirei-me aos seus pés n'uma supplicação abjecta: mas só vi diante de
mim, sob uma luz mortiça de gaz, a fórma magra de um cão farejando o
lixo.

Nunca mais encontrei este individuo.--E agora o mundo parece-me um
immenso montão de ruinas onde a minha alma solitaria, como um exilado
que erra por entre columnas tombadas, geme, sem descontinuar...

As flôres dos meus aposentos murcham e ninguem as renova: toda a luz me
parece uma tocha: e quando as minhas amantes véem, na brancura dos seus
penteadores, encostar-se ao meu leito, eu chóro--como se avistasse a
legião amortalhada das minhas alegrias defuntas...

       *       *       *       *       *

Sinto-me morrer. Tenho o meu testamento feito. N'elle lego os meus
milhões ao Demonio; pertencem-lhe; elle que os reclame e que os
reparta...

E a vós, homens, lego-vos apenas, sem commentarios, estas palavras: «_Só
sabe bem o pão que dia a dia ganham as nossas mãos: nunca mates o
Mandarim_!»

E todavia, ao expirar, consola-me prodigiosamente esta idéa: que do
Norte ao Sul e do Oeste a Léste, desde a Grande Muralha da Tartaria até
ás ondas do Mar Amarello, em todo o vasto Imperio da China, nenhum
Mandarim ficaria vivo, se tu, tão facilmente como eu, o pudesses
supprimir e herdar-lhe os milhões, oh leitor, creatura improvisada por
Deus, obra má de má argilla, meu semelhante e meu irmão!


Angers, junho, 1880.




PORTO--TYP. DE A. J. DA SILVA TEIXEIRA

62, Cancella Velha, 62





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electronic work or group of works on different terms than are set
forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

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effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
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works, and the medium on which they may be stored, may contain
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property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
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LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
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LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
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in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
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If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
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provision of this agreement shall not void the remaining provisions.

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that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
http://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at http://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit http://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including checks, online payments and credit card donations.
To donate, please visit: http://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     http://www.gutenberg.org

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including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
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