Fanny: estudo

By Ernest Feydeau

The Project Gutenberg EBook of Fanny: estudo, by Ernest Feydeau

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Title: Fanny: estudo

Author: Ernest Feydeau

Translator: Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco

Release Date: December 1, 2009 [EBook #30571]

Language: Portuguese


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        Notas de transcrição:

        No texto impresso o tradutor, ou o impressor, não colocaram as
        marcas dos capítulos XXXIII e XLIII. Esta tradução foi comparada
        com o texto original, em francês (Paris, 1859), e as marcas de
        capítulo colocadas em conformidade com a intenção do autor.

        Foram encontrados e corrigidos alguns erros tipográficos evidentes.



                                   OBRAS

                                    DE

                          CAMILLO CASTELLO BRANCO

                          EDIÇÃO PARA BIBLIOPHILOS

                                    XVI

                                   FANNY



VOLUMES PUBLICADOS

    I--Coisas espantosas.
    II--As tres irmans.
    III--A engeitada.
    IV--Doze casamentos felizes.
    V--O esqueleto.
    VI--O bem e o mal.
    VII--O senhor do Paço de Ninães.
    VIII--Anathema.
    IX--A mulher fatal.
    X--Cavar em ruinas.
    XI, XII--Correspondencia epistolar.
    XIII--Divindade de Jesus.
    XIV--A doida do Candal.
    XV--Duas horas de leitura.
    XVI--Fanny.




                                   FANNY

                                  ESTUDO

                                    POR

                              ERNESTO FEYDEAU

                                  ROMANCE

           TRASLADADO PARA PORTUGUEZ, DA DECIMA OITAVA EDIÇÃO

                                    POR

                          CAMILLO CASTELLO BRANCO


                        Aquelle, que cavar um fosso, cahirá n'elle;
                        aquelle, que derruir uma muralha,
                        será assalteado por uma serpente.

                                                      ECCLESIASTES.



                              _TERCEIRA EDIÇÃO_



                                   LISBOA
                      PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA
                              LIVRARIA EDITORA
                        _Rua Augusta, 50, 52 e 54_
                                   1903




        Officinas typographica e de encadernação, movidas a vapor
                      Rua dos Correeiros, 70 e 72, 1.º
                                   LISBOA




I

A caza está situada de esguêlha, sobre um comoro de areia, á orla da
praia, olhando de soslaio o oceano, como desconfiada d'elle. É uma casa
baixa, de pavimento plano, com um recinto ao rez do chão, um portal,
seis janellas, e uma chaminé de gêsso, meio esburacada, no cume do
telhado.

Á primeira vez que de longe a vi, caminhando eu atravez de desertos
cabedellos, tinha ella um tão triste aspecto, que eu senti serrar-se-me
o coração. Estava inscripto o desamparo nas largas fendas que
desconjunctavam as paredes, e nas rachas profundas das telhas
desmantelladas. Gemia a porta a cada bulcão do vento que a embatia
contra o gonzo unico. Das montanhas aquosas do oceano erguia-se, como um
sudario, a nebrina que a envolvia.

Fazia frio. Uma briza cortante sacudia, silvando o dorso das vagas,
marulhando-as, revolvendo-as, e espedaçando-as. Rolos de areia, de
mistura com entulho, limos e cardos, refluiam até á testada da porta. Do
outro lado, á maneira d'uma nodoa verde-escura, crescia a herva, que
invadia o antigo jardim.

Uma pobre arvore, vergada sobre a parede, do lado de terra, escassamente
sustentava a ramagem que a ventania furiosa atormentava. Junto á raiz,
conservava apenas alguns restos de folhas dessecadas. Com lamentavel
aspecto, se erguia ella, dentre os sacões do vento, mas a goteira de
chumbo, pendida da cornija, e açoitada pelas refegas oppostas,
rossando-lhe nas grimpas, desfazia-lh'as a pedaços.

Eu, ao querer desterrar-me da sociedade, lembrei-me d'esta abegoaria,
que meu pae me herdára, e era o restante d'um casal, já desbaratado. Vim
alli procurar o silencio e a solidão. Mas não reparei o solar da porta,
nem fiz cultivar o jardim. Deixei as fendas do tecto, pelas quaes se
coava a chuva; deixei as fendas nas paredes, por onde irrompia o
asperrimo furacão das noites do outono. Não chumbei o gonzo do portal.
Não levantei a goteira de chumbo. Não me amiserei da velha arvore que se
estorcia como um crucificado contra o muro, por que a sorte não se
amiserára de mim.

Installei-me na salla unica sem alterar nada da sordida mobilia. Um
banco de pau foi a minha cadeira; um monte de cisco, revessado pelo mar,
foi o meu leito. Nunca na chaminé se accendeu lume. Nutri-me do pão
negro e duro dos marujos. Bebi agua empoçada que me dava a cisterna.

E desde o dia que entrei ahi até ao dia em que isto escrevo, nunca mais
sahi da casa triste. Prostrado sobre a folhagem dura, sentado no banco
estreito, com os joelhos justa-postos, os braços pendidos, as mãos
inclavinhadas, a face descaida, deixei correr os dias indifferentemente.
Como os bois corpulentos, que eu via, na minha infancia, ajoelhados
entre as hervagens dezertas, eu ruminava o pasto amargoso das minhas
remeniscencias.

Com tudo, algumas vezes, com o passo vacillante dos ébrios, transpunha
eu o limiar da porta, e errava lentamente, e cambaleando, em roda da
minha habitação maldita. Á luz gélida e palida das estrellas de
novembro, contemplava-a eu, comparando-a a tumulo abandonado, que
apodrece debaixo das hervas, e espantava-me sempre de a vêr em pé,
gemebunda, sob os açoites do vento que a verberavam.

Nunca, porém, me alonguei d'ella. Fóra d'ahi quem poderia attrahir-me? O
oceano, d'um lado, desdobrava suas ondas enfurecidas com clamor monotono
e afflictivo; do outro, o areal, mosqueado de manchas verdes,
alongava-se a perder de vista; por cima, rolavam as nuvens pesadas e
silenciosas. A minha casa era a unica, que recortava o horisonte
carrancudo com seu triste perfil; e o promontorio de rochas pardacentas,
ante mim, alongava sempre no flanco do mar o seu grande braço
minacissimo.


II

Se voluntariamente me exilei n'esta horrida solidão, é por que, por
desgraça minha, amei, e amo ainda. Não cuideis, porém, que algum
terrivel successo me distanciou, a meu pezar, da mulher que amo.
Prouvera a Deus!... Poderia ainda abençoal-a!

Desde muito que eu a amava sem ousar dizer-lh'o. Separavam-nos tantos
estorvos, que o combatel-os me atemorisava. Tinha eu então vinte e
quatro annos, de mais a mais! Eu corava quando nossos olhos se
encontravam. Diante d'ella, tremia, commovido pelo extasis. Comprehendeu
por fim que eu a amava, e serenamente, como quem se arremeça a transpôr
uma barreira, ella mesma, com sua mão gentil, removeu todos os
obstaculos.

Oh! era por isso mesmo, sobre tudo, que a eu adorava. E, depois, tão
meiga e linda! Aos trinta e cinco annos, conservava toda a frescura e
jovialidade da meninice, e a estes encantos alliava um não sei que de
serêno que as mulheres adquirem na experiencia e costumes da
sociabilidade.

Era alta, elegante, e de leve delgada nas espaduas, breve a cintura, os
encontros modestos; e o pizar mesurado denotava na sua firmeza uma alma
activa em agil corpo. Por costume, deixava cair os braços de rainha, e
nus os ajuntava cruzando as mãos, quando estava em pé: então, as grandes
dobras do seu vestido de veludo-granada, caíam-lhe verticaes sobre os
pés arqueados, e a cauda firmava-se no chão; e, quando caminhava a
passos solemnes, erguia um pouco a formosa cabeça, radiosa sobre colo de
cysne, suavemente inclinado.

Sentada, gostava de encostar a face á mão direita, repousando o braço
esquerdo sobre o setim brilhante da cadeira que seus dedos afilados como
franjas de marfim, rossavam de leve. Tinha cabellos loiros e lustrosos,
que desciam em espiraes ao longo das fontes, das faces pallidas, e em
redor do colo. Fronte pequena, nariz d'uma exquisita e suave belleza, a
barba liza, tudo em harmonia com as sobrancelhas arqueadas, e os labios
finos e justa-postos. Os olhos azues, em fim, d'um azul sombrio e meigo,
e amplas pupilas negras, languidamente envoltas em palpebras salientes
franzidas de cilios espessos, tinham uma expressão de ternura, de
candidez, de spasmo, de pureza que me irritava e endoudecia!

Amei-a perdidamente, e assim a amo ainda. E ella... amava-me como sabia
amar, com interior reserva, calculadamente. A naturalidade do seu ar
acanhava-me. Ainda quando me apertava em seus braços com transporte,
parece que me distanciava de si. As rainhas e imperatrizes devem amar
assim os seus amantes. Foi por isso que eu, desde o principio, soffri, e
vim até este extremo em que me vêdes.

Como eu quizera passar com ella os instantes todos da minha vida,
procurava todas as occasiões de encontral-a. Não podia contentar-me com
as duas horas que ella me dava de cada semana. Eram tantos os seus
encargos domesticos! E eu imprudentemente a perseguia por toda a parte,
ficando muitas vezes horas inteiras, com o rosto ao vento e os pés no
gêlo, só para vêl-a, passar, graciosamente encapuzada no capuz de sêda
côr de rosa, atravez do vidro de sua rapida carruagem. Todas as noites,
com o coração angustiado, errava eu, por entre os nevoeiros, debaixo de
suas janellas luminosas, ou, rebuçado e confundido com a gentalha, lhe
expiava a saida do peristylo do theatro dos italianos; ou, encostado á
couceira de uma porta, a esperava longo tempo para vêl-a entrar no
baile, com os cabellos enlaçados de flôres, as espadoas nuas até aos
seios, e então observa se o «corpinho» de setim branco tremia sobre a
pressão anceiada de seu peito, quando me via. Custava-me a não me
ajoelhar aos pés d'ella, quando a cortejava respeitosamente.

Ahi, no baile, n'esse ambiente pesado e saturado de acres perfumes, sob
os raios deslumbrantes que irradiavam como flechas do coração dos
lustres, eu a contemplava movendo-se graciosamente. Seguia-a com os
olhos, encostada ao braço d'um ancião cravejado de medalhas, que a
denominava affectuosamente pelo seu pronome. Distinguia-se entre todas,
quando, de fronte soberana, e pisar magestoso, circulava por entre os
grupos. Contemplava-a ainda, quando meio recostada ao espaldar d'uma
cadeira ampla, cortez sem frieza, acolhia os preitos dos mancebos
graves; ao passo que, unida ao hombro d'um walsador infatigavel, immovel
a cabeça e o tronco, redemoinhava em ondas de gaze e rendas, aos
accordes melodiosos das flautas e violinos. Coruscavam-lhe então os
olhos como estrellas, sob as flôres que se desinastravam das espiraes
dos cabellos. Desjunctavam-se os labios para se verem as perolas dos
dentes. Purpureavam-se-lhe, como ao contacto dos meus labios, as faces
pallidas, e as alvas espadoas.

E a cada rodopio, a ponta do pequenissimo pé, mostrava-se á orla do
vestido que a rapidez do movimento fazia recuar. Mas nem as seducções
das homenagens, nem as excitações da walsa, nem a minha mesma presença,
conseguiram excital-a! Com semblante alegre tudo acolhia com
tranquilidade egual de aspecto. Isto, mais que as sollicitações do
olhar, turvava e empallidecia aquelles, cujos olhos encontravam os
d'ella. Com tudo, nunca lhe surprehendi essas maneiras meio-zombeteiras
e seductoras que são a falsa linguagem da lucta de um coração abalado
com um espirito indeciso; maneiras que desfarçam e colorem as
concessões, e irritam a esperança sem desanimal-a.

Mas como é que a presença do seu amante a não perturbava nunca? Bem
podia eu fital-a até cegar na fixidez do olhar, que ella parecia não me
vêr nunca.

Era mulher até ás pontas dos cabellos!


III

Chegava emfim o dia suspirado! Erguia-me de madrugada, e todo me dava ao
infantil prazer de arrumar eu mesmo o meu quarto. Decorava-o de novas
flôres; baixava os transparentes de brocatol côr de rosa, enramalhados
de flôres, a fim de quebrar com suavidade o brilho da luz, que os
coloria magicamente. Refegava artisticamente os cortinados de cassa e
alizava com as mãos o tapete de cadarço do meu leito. Regulava o
relogio, cujo pendulo tão moroso então me parecia. Sobre um bofete de
páo das ilhas, dispunha em bandeijas chinezas, dôce de fructa,
pastelaria, e em roda calices de Bohemia, e alguns frascos empoeirados
de Marsalla. Mandava o creado passear até á noite, e ficava eu senhor
absoluto do meu elegante recinto. Ahi todo me agitava livre como a ave
entre ramagem dos bosques desertos, arredondando e brunindo com o peito
inquieto o dôce ninho dos seus amores.

Que cuidados me não dava o prevenir os menores desejos da mulher que eu
estremecia! com minhas mãos pregava os alfinetes no pregador de veludo.
Tirava do estojo de marroquim escarlate o pente de dentes escamosos que
ella usava para alisar os cabellos descompostos pela pressão de meus
dedos tremulos. Atiçava o dôce fogo que se avermelhava entre as cinzas.
Aproximava do fogão a cadeira d'ella; trazia do divan a almofada em que
ella punha os pés, e eu os joelhos, na attitude dos devotos contemplando
seu idolo. E quando estava assim disposto tudo, quando o ponteiro
d'ouro, avisinhando-se do numero escolhido, parecia dizer-me: «Vais
ouvir soar a hora de teu prazer,» mais inquieto e agitado que nunca, ia
eu pé ante pé, da porta á janella, como vae e vem o cão fiel,
atormentado pela impaciencia, adivinhando o andar de seu dono.

E eu dizia comigo: «A esta hora, tambem ella lança a furto os olhos ao
seu relogio. Sabe que a espero. Agora, deante do espelho, aperta na
barba o broche da capa de veludo. Incaracola os cabellos rebeldes sobre
a fronte pura. Involve as espadoas no chalé escuro, e aperta-o sobre o
peito com o alfinete de camapheu. Veste as luvas, e irrita-se. Sobre os
olhos negros accumula as dobras do véo tambem negro. Atravessa as salas
desertas. Passa. Roda a chave. Sae. Desce. Corre cozida com as casas.
Vou vêl-a!

E depois, mais nada... Oh! que longo é o tempo quando se espera e
desespera! Se algum estorvo sobreviesse! uma visita, o capricho d'um
filho! Que desgraçado sou! não virá ella? Já se demora!

E, com tudo, era-me tão dôce recebel-a aqui, uma vez mais, neste quarto
tão bem disposto para ella! Tão dôce o recebel-a nos braços, no limiar
da porta, e arrebatal-a para escondel-a como um thesouro! Tão bom
tocar-lhe as mãos, os cabellos, e vêl-a emfim fitar-me com seus olhos
lindos, e ouvil-a dizer: «tu» com aquella voz muzical!


IV

Chegava ella emfim! Encostado ao alizar da porta entre-aberta, escutava
eu o fremito do seu vestido, e o ranger das botinas sobre o tapete da
escada. Entrava ella, roixa de frio, offegante, com as pestanas
lagrimosas, e, sem erguer o véo, sem dizer palavra, atirava-se-me toda
ao peito, cingia-me o pescoço, e, timorata e assustada como um
passarinho, applicando o ouvido, escutava, convulsiva, o menor rumor que
se fazia na casa ou na rua.

E, quando emfim os mêdos se aquietavam, e que ella se decidia a transpor
o limiar, era uma como visão deslumbrante que alagava em ondas de luz a
camara fechada. Os menores objectos, com a presença d'ella, eram-me
thesouros inestimaveis. Tudo parecia animar-se então, como, nos
primeiros dias da primavera, despertam as florestas que dormiam sombrias
e taciturnas.

Algumas vezes, comtudo, festivos raios do sol, coando-se pelas juntas
dos cortinados, atravessavam o espaço, e quebravam-se ao fundo da
alcova, sobre a superficie polida d'um espelho. As flôres das jarras,
postas deante das janellas, desfolhavam uma a uma, juncando o tapete das
suas frescas petalas. Segredando, de mãos dadas, palavras incoherentes,
contemplava-m'o-nos como arrobados, absorvidos n'uma commoção deliciosa
e entranhada que nos adestringia docemente o coração, e nos marejava de
lagrimas os olhos. Como nosso amor, como nossa alegria, eram infinitas
estas expansões; nossos pensamentos, porém, não ultrapassavam as paredes
discretas do quarto silencioso. Para nós o mundo todo estava alli.

E como era aquelle devorar-m'o-nos de caricias! Que suave energia a dos
braços! que avidez nos beijos! que febril tremor nos gestos em quanto eu
lhe disputava em silencio os vestidos descompostos que ella retinha ás
mãos ambas, pallida d'um vago susto! Frenetico, de joelhos, cingia-a
pela cintura quebradiça, e ella, oscillante entre os meus braços
compressores, tomava-me a face entre as suas mãos, affastava-a com
meiguice, encarava-me, e voltava o rosto como se meus olhos a
aterrassem.

E eu, como esquecido de minha dignidade, arrastava-me aos pés d'ella,
beijando-lh'os nus. Oh! se eu morrêra alli, collados os labios áquelles
pés infantinos, brancos e rosados, que ella poisava n'um tapete de
plumas de cysne, a tiritar entre seus véos como o anjo da inquietação
meio involto na plumagem de suas azas!


V

Passado o primeiro momento da vertigem, parecia-lhe a ella coisa natural
o estar alli, ao tempo que eu a comprimia com ardor feroz. E então, no
explendor de sua desordem, desatadas as tranças, nuas as espaduas, nus
os braços, frios e viscosos os labios, mais muda, mais seria, mais
enleada que eu mesmo, estava tão senhora sua como se estivesse recostada
na cadeira de veludo ao pé do fogão de sua casa. Eu não sei o que ella
não fizesse com as mais naturaes e dignas maneiras! Nada a surprehendia
nem a molestava.


VI

De cada vez, tinhamos sempre que trocar um mundo de pensamentos novos.
Recontava-m'o-nos fadigas da espera, tristezas da auzencia, aspirações
da esperança, e o quanto era consolativo para amantes separados, o
pensar incessante um no outro. Fanny sobre tudo se deixava levar desta
união espiritual com toda a expansão d'uma alma juvenil. Recebia as
confidencias da minha ternura, como efluvios de incenso, que a immergiam
n'uma especie de torpor dulcissimo. Com mudos raptos de gratidão,
rosadas as faces, palpitantes as azas nazaes, sorrindo no olhar
embaciado, maravilhava-se ella da abundancia de minhas palavras, como
imagens graciosas que volitassem dos meus labios. Não a fatigava o
ouvir-me.--Mais, mais, ó meu Roger!--dizia ella. E, encostando o
cotovelo á almofada, inclinada a fronte na mão, requebrado o corpo, os
pés a resvalarem, anediando-me a testa e os cabellos, olhava-me com
tanta fixidez, como se quizesse esmirilhar os mais subtis lineamentos da
minha alma. Entretanto, eu, de joelhos, com as mãos juntas, sorria de
prazer como creança amimada, e cuidava que assim era o identificarem-se
nossas almas n'um apertar vago e dôce, com estremecimentos voluptuosos.


VII

No instante em que ella ia sahir, era então o irromper minha alma em
explosões de amor e angustia. E ella, pensativa, fitava nos meus, com
ternura, seus olhos azues e lympidos. Tomava-me affectuosamente as mãos,
que eu lhe disputava, voltando-me arrufado. Fazia-me graciosamente
sermões maternaes. Acariciava-me com bondade, abraçava-me, ia e vinha
para abraçar-me ainda.--Tornarei a vêr-te?--exclamava eu com
tristeza.--«Cala-te, Roger,»--respondia-me, abafando a voz n'um beijo.
Por fim, comprimia-a longo tempo ao coração; e, quantas vezes, ao
apartar-m'o-nos assim, sentiamos calidas lagrimas a cahirem nos labios
de ambos!


VIII

A minha vida ia com ella. Melancolicamente encostado ao peitoril de
minha janella, via-a por entre as fisgas das persianas, passar na rua.

Lá ia vagarosa, simples, tranquilla, bella. As duas fimbrias de seu véo
fluctuavam-lhe docemente sobre os hombros, acarinhando-lhe de cada lado
a face.

A barra do vestido, relevada de folhos de seda, sussurrava com o
movimento. Com ambas as mãos ajustadas sobre a cintura, comprimia as
dobras da cachemira que a involvia desde a nuca até ao artelho. Nunca se
voltava. Encostava-se ao longo das paredes para evitar o embate dos
caminheiros. Emfim, chegando ao angulo da rua, desapparecia; e eu
atirava-me sobre o leito, escondia nas mãos o rosto, avocando,
hallucinado, todas as minhas remeniscencias esparsas para ainda assim me
illudir com possuil-a.


IX

A primeira vez que ella ahi veio, não se espantou, mas examinava tudo o
que a rodeava, e em tudo bulia, com certo acanhamento. Havia lá espadas
de combate dispostas em tropheu. Lembra-me que ella reparou n'isso.

Tambem se deteve diante de um retrato de minha mãe, que tinha sido
formosissima, e deante da minha escrivaninha, coberta de livros e de
cartas. Mas, com discrição cheia de graça, passou, sorrindo, sem tocar
nas cartas.


X

Eu era feliz! Desprezava quantos não eram eu, porque ella os não amava!
De longe e de cima olhava o mundo. De tudo segregado, tudo via d'alto,
mas com indifferença, tumido de orgulho. Parecia-me que sobre mim
convergiam os perfumes todos da terra e sorrisos do céo. Nos olhares que
se encontravam com os meus, chammejavam os fulgores da inveja; e o
murmurar confuso das turbas agitadas, rumorejava aos meus ouvidos como
acclamações longinquas.

A imagem de Fanny absorvia-me a memoria, e desprendia-se de meus
pensamentos todos. Era, a um tempo, mais irritante que um sonho, e mais
consoladora que a esperança. Nunca eu antevera seduções tamanhas em
humana creatura, tantas delicadezas n'um coração, tanta graça na
reserva, tanto pudôr na renuncia de si!

Mescla de enthusiasmo e arrobamento, de illusões e desalentos, de
melancolia e criancice, fôra o bastante a conquistar-lhe o amor.
Parecia-me, todavia, pouco esmerada em attenções e cuidados. Tão amada,
por certo, tinha sido ella! Bella ainda, mais bella do que talvez se
cria, augmentava cada uma das suas graças com o esforço timido que punha
em evitar a apathia, que presentia de longe, com a vinda dos novos
annos.

Dias tinha ella em que era possivel traduzil-a nos olhos, quando cerrava
os labios n'uma expressão de meditar mais affectuoso, quando seus
cabellos, fluctuando-lhe sobre as fontes emaciadas, em flacidas spiras,
as envolviam com uma especie de suave piedade. Contemplava-lhe eu então
as mãos candidissimas, e figuravam-se-me duplicadas, para que suas
ultimas caricias fossem mais copiosas e maternas. Escutava ancioso os
suspiros que lhe sahiam do peito opprimido: tinha-os como protesto surdo
do coração que reagia ainda á indifferença, desejando-a acaso como
repouso, e expedia a sua mais bella flamma, antes de retrahir-se em si
para morrer.


XI

Eu era feliz! Mas a desgraça já vinha perto. Até então com a delicadeza
mais de incarecer, Fanny poupara-se sempre a fazer, diante de mim, a
menor allusão a seu marido. Com uma pouca de bemquerença, conseguira eu
phantasial-a livre e minha, sem partilha. Tão pudicamente se me déra
ella! Foi como rainha, sem nada mercanciar do que não podia ser vendido.

Um dia, porém--como isto foi, não sei!--ressoou suavemente nos labios
d'ella o nome de um filho seu, e, em seguida, não pôde deixar de
fallar-me d'elles.

Adorava-os com tão furioso amor, que me abandonaria se me eu não
comprazesse em ouvil-a repetir-me mil cousas pueris, tocantes a seus
filhos. Por mim fingia-me vivamente interessado n'esses contos, que ella
contava como abundancia extraordinaria de coração; eu, porém,
escutava-lhe mais a musica das palavras que as idéas. Eu adorava-lhe a
voz magica e melodiosa. E, de mais, eu era um tanto cioso de tudo que
ella amava.

Fallava-me, pois, de seus filhos. O mais novo soffrêra d'uma epidemia
passageira, e eu quasi que odiei essas criancinhas pelo unico delicto de
se aconchegarem comigo no ninho de amor do mesmo coração. O que ella
então fez forçou-me a reflectir mui amargamente sobre a affeição que uma
mãe póde dar a um homem. Esteve sem me vêr seis semanas. Não desamparou
esse berço sobre o qual se estorcia o dôce thesouro vivo, formado do
proprio sangue do seu coração. Escreveu-me quatro linhas apenas,
admoestando-me a soffrer com ella. Homem orgulhoso que pertendes
dominar, unico, sobre o coração d'uma mulher! aos menores vagidos de uma
creança, vê que lição te dá a natureza!

Á força de pensar n'esta creança, entrei a pensar no marido de Fanny; e,
a meu pesar, d'ahi a pouco, já não pensava senão n'elle. Nunca o tinha
visto. A mim que se me dava, n'outro tempo, de vêr o homem que lhe dava
o braço, para entrar no baile, e discretamente se sumia na multidão logo
que um circulo de admiradores a compelliam a isolar-se d'elle?

A ella amava, a ella sómente eu via, por ella vivia... que me importava
o marido d'ella?

Restabelecido o menino, Fanny, mais affectuosa e linda, ao primeiro dia
que me vio não percebeu que em mim havia um novo homem; adivinhou,
porém, que uma preoccupação secreta me alvoroçava, emquanto eu,
silencioso, lhe corria a mão sobre o braço nu. De repente, varada por
cruelissima suspeita, repulsa-me, ergue-se, e, voz em grita, jura que eu
a atraiçoara.

Sorri com doçura a esta louca arguição; e, tomaado-lhe a mão como
convite a sentar-se, simplesmente lhe disse que hesitava em pedir-lhe
novo favor, com receio de ser indiscreto.

--Que é?--disse ella, affastada ainda, e cravando-me um olhar de
surpreza.

Respondi que as seis semanas de solidão me haviam feito reflectir
tristemente sobre a nossa imprevidencia; que sem suspeitarmos que
incidente algum podésse apartar-nos, nunca nos cohibiramos de nos
aproximarmos. Finalmente, com um embaraço que eu não podia dominar,
balbuciei:

--Por que não sou eu admittido em tua casa? Bem sabia ella que eu
dissimulava a minha idéa, fallando assim: por que, de subito,
resplandeceu de sorrisos, e lançando-me ao pescoço ambos os braços com
vehemencia, confessou, córando, que, desde o primeiro dia, anciára
sempre o vêr-me em sua casa.

--Por que m'o não dizias? repliquei eu, acariciando-a. Respondeu-me,
fazendo gesto pueril de amuada, expediente malicioso das pessoas que
querem ser adivinhadas. E eu, doido com os projectos da convivencia,
communicava-lh'os aos labios por entre beijos... Vêr... amar os filhos
d'ella...

Já Fanny redobrava de elegancia o salão mais intimo em que seus amigos
eram unicamente recebidos. Que ventura poder, quasi todos os dias,
reunir em volta de si, os objectos todos de sua mais viva affeição!
D'ora em diante não seria obrigada a tirar o pensamento de seus filhos,
para ir em busca da minha imagem atravez do espaço, trazel-a para o meio
d'elles, e fazel-a docemente resplandecer n'esse recinto delicioso,
decorado por ella só, a seu bel-prazer. Eu de mim terei d'ora avante um
maior logar--não em seu coração que não é possivel--mas em sua vida, e
tomarei quinhão immediato em todos os seus jubilos, como em todas as
suas maguas. Era um bonito sonho!


XII

Concordamos em acceitar eu o convite de uma amiga d'ella, que, todas as
semanas convidava a jantar.

--Ahi nunca vae muita gente--disse ella--poderás facilmente ligar-te
comnosco.

_Comnosco_!... Era a primeira vez, que, n'uma só palavra, ella associava
comsigo innocentemente o marido, sem dar fé da angustia que esta
alliança me causava. Querida Fanny! eu sentia-me empallidecer sob uma
oppressão indefinivel, e ella purpureava-se de contentamento. Depois
d'aquella palavra, terrivel para mim, e sem valor para ella, ergueu-se.
Tinham decorrido as duas horas. Separamo-nos. Com ella foi a confiança;
comigo ficou a esperança horrivel.


XIII

Sim, esperança horrivel! porque eu não sei exprimir o que reluctava em
mim de duvida, anceio, e azedume meditando que ia vêl-a emfim sob os
olhos de quem lhe governava a vida.

Tudo isto se misturava em meu coração como venenos e contra-venenos, e
d'esta abominavel mistura, fumavam vapores d'um travor tal, que eu me
sentia na cabeça latejar o cerebro, e os joelhos vergavam sob mim.

Isto nada era, comparado ao que eu devia experimentar n'essa
estreitissima meza, onde á claridade dos globos, nenhum conviva poderia
esconder os pensamentos que lhe franzissem a fronte. Ao principio, nada
vi, e respondi ao acaso ás perguntas que me fizeram. Comia
machinalmente. Esforçava-me por ser attencioso e polido; mas denotava
mais inquietação que o assassino que se vê em risco de ser descoberto.

Atordoado pelo tinido dos copos, pelo estrepito da baixella, pelo atrito
das porcelanas, pelo reverbero das luzes nas tampas brunidas das
terrinas, pelo vai-vem dos creados pressurosos que serviam, sem dizer
palavra, e se moviam sem rumor d'um passo, como sombras negras de luva
branca; e suffocado pela athmosphera calida da sala impregnada de
evaporações penetrantes, misturadas com o odor do vinho e o das flôres,
eu não olhava Fanny, nem mesmo a escutava. Tornou-se-me insopportavel a
par de mim a presença d'ella: era como um peso que me abafava.

E tambem o não encarava a elle, elle, que eu viera procurar, de tão
longe, com o desejo e terror de conhecel-o. Inceguecido por visões
funebres, eu não podia vêl-o, com quanto elle estivesse defronte de mim.

De repente recobrei a minha lucidez sentindo um pé de mulher rossar o
meu, e comprimil-o brandamente. Era ella a prevenir-me da minha
preoccupação visivel de mais. Dirigi-lhe um lanço d'olhos agradecido; e,
encostando-me ao espaldar da minha cadeira, contemplei detidamente
aquelle que mal sabia que possante interesse ingendrára em mim o estudo
da sua pessoa.


XIV

Era uma especie de touro com face humana. De estatura mediana.

Quando comia, atirava para diante, as espaduas robustas, e a cadeira
gemia sob a gravosa flexão dos seus encontros quadrangulares. Eu via-lhe
do meu logar, na testa, os arcos carregados das sobrancelhas hirtas de
cabellos grossos, e abaixo fulgurava-lhe um olho pardo e luzidio
d'aquelle brilho metalico que reluz na pupila impassivel dos carnivoros.

Comia, ás mãos juntas, mãos carnudas e curtas, e levantava os cotovêlos
para melhor pezar sobre a faca brilhante, e sobre o cabo do garfo. Entre
cada prato respirava largamente, limpava a boca, e bebia a longos sorvos
grandes copos de vinho estreme.

Não tinha má cara, nem vulgar. O aspecto era de força. Todo elle
denotava pujança extraordinaria de musculos. A superficie das faces e
queixo perfeitamente escanhotado, apparentava regidez marmorea, e a
fronte rasgada, limpida, cercada de cabellos negros já betados de
russas, revelava um espirito de vontade cheio de rectidão e
persistencia.

Era affectuoso o sorrir d'elle, e o olhar desmalicioso, porém claro como
cristal. Incarava-vos de face, nos olhos, de um modo tal, que vos
julgarieis felizes, evitando esse espelho de aço incommodativo á força
de franco. O que elle tinha era dar cascalhadas estridorosas, repuchando
em sacões os peitoraes acima da cintura apertada, e descompondo para
traz a cara vermelhaça. Era grave e sonora a sua voz; o gesto
tranquillo, e um pouco sombrio. Tinha bonitos dentes, unhas rosadas,
brilhantes e bem feitas; em fim, dominava n'aquelle todo um ar de
inteireza e aceio.

Pareceu-me ter quarenta annos.

Primeiro, ao vêl-o, fiquei como humilhado: corri-me de entrar em
rivalidade com natureza tão possante. Involuntariamente me confrontei
com elle, eu, a par d'elle tão franzino, como o seriam quasi todos os
rapazes da minha idade. O que havia em mim de debilidade nervosa, e
fineza de raça, e de elegancia, amesquinhava-se em comparação d'aquella
riqueza de sangue, pujança de fórmas, e virilidade fria e pacata. Eu era
como um sylpho contemplando, assombrado, a estatua d'um gigante. Ao pé
d'elle que homem era eu? Forte e gentil expressão de homem era sómente
elle, eu não.

E, mais cruel ainda para commigo mesmo, passava depois a comparação de
mim para ella. E, vendo-a sentada ao meu lado, dôce e loura como Eva,
candida como uma virgem, com aquella cintura de fada, e aquelle colo
requebrado em languor, e todo aquelle ar de timidez que lhe impanava a
face adoravel como a sombra d'um vapor... vendo-a assim, e tão delicada
no pensar, perguntava-me, eu, phrenetico, como é que ella poderá amar
tal homem? Violenta associação de duas naturezas que entre si não tinham
um ponto só de contacto! Irmanavam-se com a seda e com o ferro!

Oh! Desdemona!--me dizia eu--que Othello escolheste! Mas mal sabia Fanny
que furor raivava ao seu lado! Dirigia-me placidamente a palavra,
olhando-me com ar de simples, e affastando com sua mão alvissima os
louros anneis que lhe volteavam como plumas sobre a fronte. E
fallava-lhe a elle, sem turvação nem embaraço... e dizia-lhe: _meu
amigo_, deante de mim.

E elle, com menos embaraço ainda, lhe respondia, todo attenções e
deferencia, com ar, porém, de grande superioridade.

O Hercules via n'ella um ser perigrino, mas absurdo: e por isso o que
lhe dizia eram bagatellas, com ar amavel e paternal, como os pais as
dizem aos filhinhos curiosos.


XV

Terminado o jantar, e passados os convivas á sala grande, e sentados em
redor das bancas do whist, avisinhei-me lentamente de Fanny que aquecia
os pés ao fogão.

Encostei-me ao rebordo da chaminé; e, com palavras de ternura que lhe
dizia a meia voz, intrometti coisas frivolas ditas em voz alta. Deste
logar via eu as costas dos jogadores inclinados sobre as bancas em que
flammejavam as velas, involtas dos seus quebra-luz, e incravadas em
magnificos castiçaes de prata; ouvia o ruido dos tentos de madre-perola,
e o murmurio dos equivocos que os parceiros se trocavam. Cuidava eu que
estariamos assim a seguro de reparos, com alguma astucia, até porque a
dona da casa fôra para o fundo da sala dedilhar no teclado do piano.
Novo encanto unido a outros tantos era aquelle dos accordes ondeando o
ar, a um tempo que as secretas melodias do amor, mais melodiosas ainda,
cantavam em nós. Porém, separando-se do grupo dos jogadores junto ao
qual até então estivera de pé, o meu rival dirigiu-se a nós com
semblante gracioso, e o mais natural possivel, e perguntou-nos em que
fallavamos. Com melindrosa urbanidade, que excluia todas as maneiras
familiares e nos distanceava um do outro, mas com serena voz e ares
cortezes, entrou elle a dirigir a conversação e eu não pude deixar de
acompanhal-o.

Por entre as melodias da muzica, e a ternura das vibrações, de que elle
não dava fé, fallou-me de caça, theatros, cavallos, que sei eu! não
deixando mesmo de entrar no amago dos assumptos banaes que eu
imprudentemente escolhêra, mas que o interlocutor me condemnava a
repetir, como se elle os julgasse unicos dignos de mim.

Dei-lhe duas ou tres respostas bastante arguciosas, e elle applaudiu-as
com os olhos, honrando-me com um gesto de assentimento.

Assim pois que era eu para elle um instrumento assaz futil com cujas
cordas brincava rossando-as com as pontas dos dedos. Se elle soubesse
que em meu coração havia uma d'aquellas cordas, cujo som horrivel podia
restrugir-lhe nos ouvidos, e insurdecêl-o!

Mais tarde, vi-o assentado ao lado d'ella, na sombra que fluctuava em
redor do clarão dos castiçaes. Sem me vêr a mim, nem a outrem, nem a
ella, apertava-lhe machinalmente a mão, scismando talvez em não sei que.
E eu, contemplava aquillo, como o mais estranho e monstruoso dos
espectaculos. Em quanto a ella, fixando os olhos nos meus, estava livida
como uma estatua de marfim; mas não ousava balbuciar, nem fallar, e
consentia.


XVI

Desde essa noite, uma só preoccupação me dominou--dissipar do meu
cerebro a imagem do que vira. Quiz, á custa de tudo, esquecer aquillo
que me humilhava e esmagava o coração. Como eu me castigava do que
fizera! Absurda cubiça de conhecer o que ella tão de siso me escondera,
e que eu devia ignorar sempre!

--Oh! não--me dizia eu--nunca mais ouvirei fallar deste homem temivel;
nunca mais lhe encontrarei os olhos dominantes; nunca os nossos halitos
hão-de encontrar-se na atmosphera da mesma sala; nunca mais, deante de
mim, ha-de a mão d'elle apertar a tua, ó mulher serena e docil!

Tres dias depois, quando veio a minha casa, não viu ella em mim mudança
alguma. A colera, a pouco e pouco, enchera-me de suas fezes a alma; mas
dôr era esta que simulava a quietação da paz.

Com apparencias de socegado, sentia-me ferido de morte. Golpeado no
coração, conservava o meu aspecto antigo, como aquelles fructos
escarlates cuja pele fina e tenra cobre carne que devora um verme
invisivel. E assim, de nada suspeitou Fanny. Todavia, como eu lhe
fallava d'ella, de mim, de tudo em summa, excepto do que mais a
preoccupava, Fanny parecia esperar anciosa. Por ultimo, no extremo da
minha contrafeita eloquencia, propellido pelo anceio de vingar-me d'uma
dôr nunca experimentada e cuja causa innocente ella era, lhe disse com
amargura:

--Tu queres saber o que eu penso de teu marido, e talvez que te dês por
venturosa se o juizo que esperas não lhe fôr desfavoravel. Mas, Fanny,
tu nunca has-de saber o sentimento que elle me inspira.

Pareceu-me que, ao ouvir-me estas palavras, todo o sangue do coração lhe
refluiu á face. Pobre mulher conciliadora! tanta alegria em chamar-me a
sua casa, para me vêr mais a miudo, para me unir a todos os entes doces
e queridos que lhe decoravam o coração!...

--D'onde vem essa mudança, Roger?--murmurou ella com penoso esforço.

«D'onde vem?!» exclamei eu infurecido... mas vi-lhe então o rosto
innundado de lagrimas; e logo, cahindo a seus pés, abraçando-a pelos
joelhos, disse-lhe brandamente:

«É que eu sou horrivelmente desgraçado, Fanny!... É porque me devoram
ciumes...

Ergueu-se de subito, como estupefacta, sem me repellir. Reteve-me
ajoelhado, pesando-me sobre os hombros com as mãos: eu permanecia de
joelhos, sem a comprehender. Fitou-me por largo espaço, profundamente,
explorando os intimos arcanos de minha alma inquieta. Depois ergueu
ligeiramente os hombros; e, baixando-se para me apertar a face ao seio,
exclamou:

«Filho, meu pobre e querido filho!»

E desde ahi, não tornou mais a fallar, por si mesma, neste assumpto.

Eu, porém, pensava n'elle incessante e dolorosamente, sem poder
abster-me de o recordar. Affagava-me então ella, e reprehendia-me.
«Perdes o tempo»--dizia-me, sorrindo-me, e abraçando-me, se me eu
detinha muito na exposição das minhas tristezas. E seus braços se me
inroscavam no pescoço com ameigadora volupia, com a fascinação dos olhos
me violentava a olhal-a, com graciosa e morbida ternura collava aos meus
seus labios. Mas tudo em vão. Já se não franziam meus labios para
saborear beijos d'amor; agora era o confrangerem-se soluçando gemidos.


XVII

Desde este funesto dia comecei a soffrer grandes torturas. A imagem
daquelle homem incrustara-se-me na memoria, e, por mais que eu fizesse,
não havia dilil-a de lá. Póde ser que aos olhos de toda a gente fosse
elle ridiculo, mas aos meus não cuidei que o fosse. Para mim, era
sinistro, terrivel, e, cada noite, espavorido, via-o, em sonhos,
trucidar carniceiramente o espectro da minha felicidade.

O feliz era elle, que tudo ignorava. No drama começado por transportes
de amor, e agora prolongado a travez de anciedades, terrores,
desespêros, não representava elle: tão prudentes tinhamos nós sido!

Atroz mudança de papeis! Era eu que tinha ciumes d'elle! O espoliador
soffria da posse pela posse. Não lhe restava mesmo o recurso de excitar
as suspeitas do espoliado para o fazer aquinhoar das torturas!

E era-me força desconfiar e occupar-me d'elle!

A meu pesar, para evital-o, cumpria-me ser ardiloso como a lebre. Este
papel de fugidiço, de temorato, degradava-me ao livel dos covardes. Meu
Deus! se eu a não amasse!...

Em comparação dos males que deviam vir, aquelles nada eram. Principiava
a caminhar n'uma senda espinhosa, cavada de abysmos, e não sabia que
flagellações me urgia supportar antes de chegar ao termo. Desde então,
se deante do fogão, no meu quarto silencioso, eu tentava divertir a alma
da dôr presente, levando-a ás memorias de amores passados; ou esporeando
á redea solta o meu cavallo, arriscava cem vezes a vida para quebrantar
o corpo de fadiga, a fim de reverter sobre elle a fadiga de meu cerebro,
ou se pedia á orgia o esquecimento, bebendo a grandes tragos o vinho que
nunca me valeu uma gota d'agua do Léthes; ou se, n'um só lanço de azar,
expunha os meus haveres para soffrer sequer uma sensação diversa
daquella que eu execrava; ou, se emfim, envolvido nos cortinados da
minha alcova, eu passava as minhas noites inteiras a lastimar-me,
invocando os phantasmas dos seres adorados que perdi: nunca, nem no
sonho, nem no perigo, nem na embriaguez, nem no jogo, nem ainda na
remeniscencia da minha mãe morta, eu pude conseguir estrangular a
serpente que me atassalhava o coração. Comigo, a visão fatal sorria aos
meus amores juvenis; comigo, cavalgava ella o meu cavallo espantado;
zombeteando, molhava ella os labios palidos no meu copo; no copo do jogo
fazia ella o tilintar dos dados; comigo, emfim, meditava ella em minha
mãe. Á flôr de minhas recordações todas, scenas incantadoras,
affectuosas, terriveis, que eu restaurava com a memoria, do fundo de
minha alma, surdiam incessantemente outras lembranças, outras imagens
que espancavam aquellas.

E não havia remedio senão acolher aquellas abominaveis lembranças;
affrontar de rosto com aquellas funestas imagens, porque era a isso
violentado; venciam-me, e eu então, encarava-as!

Havia ahi alguma coisa horrida, humilhadora, e angustiadissima.

Só quem ama póde formar idéa vaga de minhas agonias. Era tudo claro e
patente: nenhum refugio para a duvida! E eu me reprezentava a mulher
amada, linda, elegantemente vestida, meiga, candida, assentada ao angulo
do fogão em sua sala, ou á meza, no logar de honra, em face de seu
marido, rodeada de amigos, e filhos. Affavel sempre, com attenções
delicadas para todos, attenções que são a magica linguagem da graça do
coração. E para o dominador mais carinhoso que para os mais! Era-lhe
forçoso prevenir suspeitas de homem tão prespicaz: como não seria ella
carinhosa? E, a de mais, entre elles existia a communidade de tantas
coisas--interesses, filhos, viverem juntos, a toda a hora, alegres ou
tristes, sem nunca se apartarem!... E quantas expansões naturaes!... Era
elle o leão dominador daquella adoravel existencia; e eu, o lobo temido,
e salteador, de olhar ferino, esbaforido, que, de tempo a tempo, a risco
de perigos mil, exposto a humilhações degradantes, a uma bala, o roubava
nas trevas, em quanto elle dormia, alguns restos do seu quinhão.

Oh! era isto o que me humilhava muito; mas aqui vereis o que me fazia
pedaços o coração. Eu não podia suspender o trabalho indefesso de minhas
evocações. Completava-as, ruminando minhas dôres, com satanico prazer.
Então se mudava a scena, e figurava-se-me Fanny, por noite, só por só
com elle, depois da saida dos filhos, na alcova fechada, onde o chá
fumegava nas chavenas, ao suave clarão da lampada, ao pé do lume que
docemente crepitava nas cinzas quentes. E ella a olhal-o com aquelles
mesmos olhos que eu amava tanto! E a conversar com elle, amavel, facil,
fallando pouco para lhe deixar o prazer de fallar, submissa como convém
á mulher quando é formosa, e o dominador é forte. E não cuideis que eu
ficasse n'estas imagens de seductora intimidade.

Não podia. Continuava-as, exaggerava-as... que sei eu!... ajuntava-lhe
outras. Era forçoso que assim fosse, assim devia ser. Era tarde,
agonisava a chamma no fogão obscuro, a lampada mortiça abafava os seus
lampejos no quebra-luz, callavam-se todos os rumores na casa e na rua; o
passo sonoro do caminheiro retardado, marcava a hora do repouso e do
prazer. De mais, meninos e creados, tudo estava na cama. Estavam elles
sosinhos. E eram esposos!...


XVIII

Chegado até este ponto, tornava-me pallido. No mais recondito de minha
alma, alguma coisa se estorcia e agonisava em convulções desesperadas.
Estas imagens, evocadas cada noite, tornavam-me mais desgraçado, que se
eu tivesse visto a mulher adorada cuspida em minha presença. Erguia-me,
e via as horas; depois, despregava a rir, como doido, ou, involvendo a
cabeça nos braços, lançava-me a chorar sobre o leito.


XIX

De madrugada emergia do meu pesadelo, mais quebrantado que o ferido d'um
tétano.

E se me arrastava á janella, para aspirar um pouco de ar puro, a mesma
pergunta me desabrochava nos labios calcinantes como flôr venenosa:

Por que o amou ella n'outro tempo? Que ella o amou, já m'o disse; foi
por elle tirada á familia que a não queria ligar a um homem sem posição
e sem riqueza. Enriqueceu depois, por que é energico e paciente. Sabe
querer. Mas por que o amou ella? E, depois, por que me ama ella hoje a
mim? Somos tão differentes um do outro!

Um dia, finalmente, á força de moer n'esta ideia, e joeirar-lhe no
espirito os venenos todos, julguei que ia penetrar o proceder de Fanny.
Lembrando-me quanto ella era sensivel ás caricias; figurando-me as
scenas mais deleitosas do nosso amor, e comparando-me ao marido,
invergonhei-me e alguma coisa mais acre que o desgosto, mais amarga que
o despreso, mais peçonhenta que o odio, me subiu do coração aos labios.

--Ora ahi está por que ella me ama hoje--me disse eu sacudindo a cabeça.
Veio depois auxiliar-me a analyse mais uma vez, mas para ferir-me
covardemente com uma nova punhalada.--Ama-me para variar--disse eu
amargurado--para satisfazer, um contrario exagerado, um desejo mais
sentimental, mais delicado. A não ser para completar o seu ideal...
accrescentei eu sem reflectir na crueldade da supposição.

Mas em tal caso--grito eu com terror indisivel--eu não sou para ella
mais que metade d'um homem! Encho apenas metade d'um coração! Fui
medido. Acharam-me incompleto. Sou escassamente uma addição! Não passo
d'um complemento.


XX

Algumas vezes fugia de casa como d'um carcere, e ia espairecer minhas
interminaveis meditações na multidão que peja os passeios. Achando-me
entre pessoas felizes, indifferentes, occupadas; saboreando, a meu
pezar, os primeiros effluvios balsamicos da primavera, cessava de
julgar-me tão absolutamente miseravel, e classificava de creancice as
mais monstruosas hallucinações--É o ciume--dizia--que me torna absurdo.
Encontrando a cada passo tantas mulheres bonitas, elegantes, pelo braço
de cavalheiros, os quaes com ar de aborrecidos, volteam os olhos em
deredor, e escassamente lhes respondem, accrescentava eu:--Quantas
mulheres habitam sob as mesmas telhas com seus maridos, sem repararem
n'isso! Ao cabo de quatro annos de intimidade, o marido converte-se em
amigo, e nem sempre! É de toda a gente, menos de sua mulher...

Mas logo vinham as duvidas a mortificar-me, cada vez mais pungitivas, e
eu debalde a repelil-as de meu espirito. Que farte me conhecia eu para
saber que não poderia jámais adquirir o espirito de conformidade com o
meu seculo que permitte ao amante d'uma mulher cerrar a mão de seu
marido, amigo só que seja! Além d'isso, eu não queria cortejar esse
dominador, nem ajustar-me aos seus caprichos, nem tornar-me para elle o
homem indispensavel. Eu vaticinava--se as suspeitas alguma vez o
molestassem--quantas semsaborias me seria preciso fazer, quantas
mentiras engenhar, quantos desgostos e aviltamentos supportar para
destruil-as. E para aviltamento já bastava! D'aqui avante não
passo--protestava eu--já é de mais o lamaçal do meu caminho.

Mais cançado e inquieto que na sahida, voltava para casa. Os sorrisos da
primavera faziam-me vontade de chorar. A mornidão da atmosphera
ingravecia-me no cerebro os pensamentos. O espectaculo, e sussurro das
multidões ao longe, tornavam ainda mais incomportavel o silencio da
minha soledade.


XXI

Em troca d'estas dôres, que por serem silenciosas, não eram menos
crueis, nenhuma consolação eu recebia. Os meus prazeres eram extinctos.
A duvida resequira as novas flôres d'elles com seu impuro sopro.

Apenas meus sentidos se atrophiavam, vinha logo a mão adunca da
mysantropia cravar-se-me no hombro. A lembrança d'aquelle que, na logica
da minha paixão, eu nomeava meu vival, como spectro de suplicio infindo,
vinha interpor-se entre mim e ella, com uma atroz ironia, para
empeçonhar nossas caricias.

Eu via os traços d'elle nas palavras, nos gestos e modos e costumes da
mulher que eu adorava. N'aquelles braços que me apertavam ao coração,
estavam os seus moldes. No sangue que ondeava desordenado nas arterias
de Fanny, se infiltrára elle. Via-o na fronte pallida, no rosto
contemplativo, nos olhos amortecidos, todo n'ella, abraçando-me, com
ella, e suspirando nos seus suspiros... Como eu invejava amigos meus
abandonados, que se aturdiam juntos, nas bachanaes, ao tilintar do oiro
sobre os panos verdes das mesas do jogo, ás francas gargalhadas das
mulheres perdidas! E todos os amantes desdenhados, que, de braços
abertos e olhar internecedor, perseguem, sonhando, uma sombra altiva! E
ainda todos os amantes separados! Nenhum d'elles--dizia eu
lastimosamente--soffreu jámais por seu amor infertil, tanto quanto eu
soffro por meu amor partilhado. Zombaria atroz da possessão! quando nos
não fatigas, deshonras-nos.


XXII

Em fim contristava-me o desapreço que, a meu pesar, soffrêra o idolo em
minha alma. Até ahi, era um verdadeiro culto o que eu sentia: a
realisação de quanto eu sonhara puro e angelico, era ella: affizera-me a
vêr em Fanny alguma coisa sacratissima, impossivel de deperecimento ou
macula. Agora, via-a voluntariamente cahida do altar em que a minha
piedade a erguêra para manchar seus pés no contacto da terra, e
confundir-se no vulgo. Era isso o primeiro e mais cruente effeito do
ciume, que principia sempre por nos incutir uma horrivel mescla de
adoração, odio, furor, e desprezo.


XXIII

Comprehendi logo que estava travado para sempre, entre mim e Fanny, um
duelo de morte. Todos os meus pensamentos me vinham do fundo do coração
inficionados d'uma certa grosseria. Morrêra o respeito em mim.
Dominavam-me ideas brutaes de lucta. Esporeava-me o desejo acerbo de
castigar rudemente aquelle ente inoffensivo e graciozo que eu amava pela
vida! Eu queria invilecêl-o diante de mim ainda mais do que a sua imagem
se invilecêra na minha memoria.

Como pôde ella resolver-se a isto!--exclamava eu inraivecido!--Oh! que
execravel zombaria é isso de pureza de mulheres! Parece que os beijos
são coizas fugitivas, dos quaes nada lhe fica nos labios logo que os
enchugam.

Não podia mais. Fanny entrou na partilha das torturas que até então eu
guardava comigo só. Os homens não sabem soffrer longo tempo, sem
descarregar covardemente o pezo de suas penas, sobre quem elles mais
amam.


XXIV

Tu sabias que eu era cazada!

Foi a suprema razão que ella unicamente oppoz, com ar timido, aos meus
primeiros queixumes, ainda moderados.

Eu respondi:

«Não sabias tambem tu que eu podia ter uma alma dedicada, e não podias
prever, sendo minha, que tormentos me deviam cauzar o teu amor?

E depois, perguntei-lhe, sem preambulo, e violentado:

«Como viveis juntos?

Ella corou: estava offendida.

Não devemos fallar d'isso, Roger--respondeu com frieza.

Mas tão desgraçado me viu, que, por commiseração, fallou, violentando os
seus mais castos sentimentos. Era redobrar-me o supplicio.

Ella, porém, não me disse tudo. Aguilhoado pela cruel necessidade de
conhecer a extensão da minha desgraça, querendo saber, á custa de tudo,
onde ella acabava, instei, ferindo-lhe o pudor. Eu estava enfiado e sem
ar. Poz-me a mão na bocca. Ficamos silenciosos. Fanny contemplou-me
longo tempo. Chorava, e ella tambem. E, por fim, tragando o calix até á
derradeira gota, disse-me que ia responder-me.

Eu, chegado a este extremo, com embaraço imprevisto, com uma hesitação
que obscurecia as minhas palavras e abafava na copia d'ellas a froixa
luz da intenção que eu tinha; com uma turvação doloroza, que augmentava
a angustia do coração animozo; illaqueando o pensamento na rede das
divagações e periphrases, como se eu quizesse demorar o momento de
conhecer o que eu temia saber--interroguei-a ácerca de mil coisas
tendentes a velar de mim a existencia intima d'ella. Respondeu-me com
simplicidade, tão embaraçada como eu, vencendo, porém, intrepidamente a
vergonha deste estranho interrogatorio, com o fim de mitigar-me as
dôres, e dar-me um exemplo de desgostos que póde vencer a mulher que
ama, quando é desgraçado quem ella ama.

E deu-se então em mim uma successão monstruoza de caricias e golpes;
mistura sem nome de balsamos e venenos; associação horrivel de martyrios
e glorificações. O facto execravel, cujo desmentido era impraticavel,
permanecia em toda a sua plenitude; porém, quantas consolações podiam
modificar-lhe o corrosivo e humilhante, todas ellas carinhosamente me
prodigalisou, espiando com sobresalto em meu rosto o effeito das
palavras confusas mas comprehensiveis, que pronunciava. A uma derradeira
pergunta, mais brutal que as outras, que eu de golpe lhe fiz, deu-se
n'ella uma soberba explosão de revolta, que me fez cahir a seus pés,
pedindo perdão. Eu devia crêl-a. Muito ávante tinha eu ido nas
conjecturas do meu ciume. Fanny repartia-se; mas não pensava sem horror
n'essa repartição.

Se eu a amasse menos, decerto me sentiria exaltado pela dolorosa
confusão que ella acompanhava de tantas consolações, pelas lagrimas que
lhe derivavam na face, quando me descobria a chaga sangrenta da sua
vida; eu poderia ficar altivo e grato, ou compungido ao menos d'aquella
tamanha dôr e humildade; mas, em meu espirito, havia uma só preocupação,
que me alheava de mim mesmo. Fóra d'ella nada comprehendia, não pensava
em nada.

Não tive pois palavra boa que lhe dissesse; satisfiz-me mostrando-lhe
receios pela sua tranquilidade.

«Teu marido deve suspeitar, vendo-te mudadada; por que tu amaste-o
n'outro tempo.

A esta monstruosidade, encolheu os hombros, e não enchugou as lagrimas.
Roger! Roger--disse ella--é pena que tu sejas sempre creança. Ouves, e
não comprehendes. Pois por ventura os nossos maridos pensam em nós? Que
mulher tomaria um amante, se o marido lhe desse o que um amante lhe dá?
Já não digo os cuidados, as attenções, os bons modos, a amizade; mas um
pouco desse balsamo que é a essencia da nossa vida toda--um pouco
d'amor!


XXV

Esta penosa discussão avantajou Fanny na minha estima, mas não me
consolou. Que me importa a mim para o essencial o modo imperceptivel da
intenção! O facto brutal era o mesmo. Não obstante, reprehendi-me da
curiosidade do meu ciume, que até me roubava a sombra da duvida que eu,
por momentos, affagava ainda.

Não podia, pois, atenuar a minha dôr o effeito das ultimas palavras de
Fanny. O que eu queria era vencer o invencivel, por que era oppressiva a
mesma angustia.

Eu espiava o olhar de Fanny como querendo calcular-lhe as forças, antes
de aggredil-a de novo. Mas os nossos olhos tinham-se encontrado, e não
podemos mais tempo resistir a nós mesmos. Fugiu de minha alma a menor
idea de lucta; do coração d'ella fugiu o menor desejo de resistencia; e
o abraço que nos apertou era tão forte, que, mais uma vez, gostamos um
minuto de verdadeira felicidade.


XXVI

A confissão, que eu arrancara a Fanny, devia fazel-a soffrer tanto como
a mim. Ella, porém, tão pouco se individualisava na offensa, que, desde
esse dia, em que eu lhe patenteei as minhas dôres, todas as suas
escondeu de mim, e risos me trouxe sempre, como a convidar-me
graciosamente a dominar os impetos do meu carater. Pobre mulher, que
vinha visitar-me por tempo horrivel, e a sua mais instante preoccupação
devia ser o urdir mentiras que legitimassem a sua ausencia de duas horas
em cada semana. Apesar d'isso, resistia aos aguaceiros da primavera,
como ás nevadas do inverno. Nem mesmo fallava dos incommodos que
precisamente devia soffrer para arrancar algumas horas de liberdade ás
estreitesas da escravidão da familia. Ria gentilmente dos seus vestidos
molhados, despindo a muito custo as luvas, ageitando os cabellos
desanelados, e chegando ao fogo a biqueira das botinhas fumegantes.
Tinha como brio de se vêr em minha casa depois de haver-se exposto a
perigos tamanhos, feliz por a não terem encontrado, contente porque me
via menos triste. O vencer obstaculos, a conservação do segredo, manter
a estima da sociedade, o cuidar do meu repouso, tudo isso não a deixava
sentir o cansaço. Não ha felicidade perfeita--dizia-me ella
enternecidamente com um suspiro--ambos pagamos á tristeza o tributo do
nosso amor; mas este amor é tão bom que o tributo que a tristeza recebe
não me parece uzurario.

Nunca suggeria discussões; nunca foi a primeira a fallar-me dos seus
deveres, que muito apreciava, e dos quaes me sacrificara a melhor parte.
Com seu maravilhoso instincto de mulher, adivinhava que não podia
fallar-me de seus deveres sem me irritar o orgulho, e ella respeitava o
meu orgulho, como cauza de soffrimento, quando mesmo o feria. Nunca pude
surprehender-lhe sombra de remorsos. Mas têl-os-ia ella?...

Quando eu estava sósinho, pensava assim:--Que cautellas terá ella tomado
para dissimular este amor? que invenções! que calculos! que ardis! para
se furtar a discussões sobre as suas sahidas! Quantas concessões para
não ser descoberta! E tanto que arrisca! Pobre mulher! Tanto tem que
perder! E eu tão pouco! Ah! que mau homem sou em atormental-a!

Tratava-me ella por creança, e, com franqueza, eu o merecia bem. Quantas
coisas eu sabia do seu viver que ella me occultava, com medo de
penalisar-me!

Eu não queria comprehender nunca que havia dias em que lhe era
completamente impossivel sahir, e a mais banal visita era bastante a
retêl-a em casa. Desconfiava então de abominaveis calculos. Affirmava
que ella me mentira. Cuidava que procedia a falta de excitações e
fadigas na partilha que ella devia detestar. Odiava-a.

«Fases-me piedade! dizia ella quando eu lhe deixava vêr os horrores do
meu infermo espirito.

Todavia, algumas vezes, meio esquecido de minhas magoas pessoaes, para
entrar ás profundezas da consciencia, dizia em mim: «Quando a tenho
torturado bastante, quando ella d'aqui sae chorando, attribulada,
golpeada no coração, perguntando-se se me tornará a vêr em sua vida, que
fará ella na rua para disfarçar o tormento que a aperta, e mascarar o
rosto com o gesto de habitual tranquilidade, para volver á mulher
risonha que eu conheço? Será á custa de carinhos que ella affasta as
suspeitas de um marido difficil de enganar? Ah! que lagrimas ella deve
chorar com seus filhos! São tantos os esforços dolorosos que elles lhe
custam!

E como sei bem que elles adivinham o segredo das lagrimas d'ella! E quão
certo é que, semelhantes á mãe, tão bons, tão discretos, com suas
mãosinhas lhe enchugam os prantos, sem lh'os trahirem.

Fanny soffria horrivelmente. Via-se-lhe o amarellecer da tristeza.

Eu, sem lh'o dizer, observava o circulo negro que marmoreava a
circumferencia de seus olhos elanguecidos, e lhe dava ao olhar estranha
expressão de piedade.

Via-lhe contrahidos os labios; e as rugas que subiam da fronte
perderem-se sob os cabellos sedosos como symbolos visiveis de dolorosos
pensamentos. Consternava-me este ar de desleixo que a definhava.

Diante de mim sómente ella affrouxava a rigidez do seu porte, e eu da
melhor vontade lh'o perdoava: devia estar cansadissima de representar de
senhora feliz!

Quem lhe dera a ella poder tudo confessar, e viver francamente commigo,
sem ignominia!

«Não me deixes--dizia-me ella por vezes--Tu es-me necessario como a
luz!»

E outras vezes accrescentava:

«O que me prova que eu te amo, é que eu amo tudo que é teu, o teu dôce
egoismo até, até a tua colera, mesmo as tuas sublimes injustiças!

Depois, ficava subitamente callada, como se algum funebre pensamento,
que não ousava confessar, a angustiasse sem desabafo.

Eu observava-a, e ella sacudia a cabeça. Depois, retorcendo os dedos,
exclamava:

«Trahir! trahir sempre! Eis aqui o horror que tudo me invenena, mesmo a
idea da minha felicidade. Eu sou a mais miseravel das creaturas. Deus
negou-me força, e, por toda a vida, cumprirei a sentença da minha
fraqueza. Tenho vivido sempre diversamente da vida que quizera ter;
tenho visto sempre ao pé de mim o que eu quizera fazer. Trahir! meu
Deus! como eu me detesto!

Tomava-a então nos meus braços para applacal-a; mas não achava que
responder-lhe--De que quer ella fallar?--Perguntava-me eu estupidamente.

Devia de ser do facto da perfidia; mas eu conhecia-a ainda mal, e
attribuindo-me as palavras fugidas á consciencia d'ella, sentia-me feliz
e orgulhoso.

Isto ás vezes fazia-me chorar, e tomar corajosas resoluções--Guardarei
para mim os males todos, e as consolações para ella--propunha eu comigo.

Por compaixão, pois, esquecia eu momentaneamente os meus desgostos;
sacudia o cansaço do meu pesado scismar, por me deixar levar dos
transportes ardentissimos da paixão. Refazia-me em meiguice e ternura e
sujeição, mais affectuoso que o molosso fiel que, apoz longa auzencia,
encontra o olhar do dono querido.

Vertia a fluxo nectar dulcissimo da lisonja á mulher estremecida;
tornei-me frivolo, fallador, volitando por sobre vinte assumptos a um
tempo, rindo desentoadamente, evitando sobre tudo proferir palavra que
dissesse respeito directo ao assumpto uzual dos meus tormentos.

Mas esta missão heroica, de que dei má sahida, não a enganava. Olhava-me
ella com spasmo. Escutava-me meneando a cabeça. Cuidaria ella, em
consciencia, que, extincto o ciume, seria o mesmo extinguir-se o amor?

Estes accessos de heroicidade não podiam durar em mim longo tempo.
Suspirando, como pessoa aliviada d'um peso grande, viu ella que eu
recobrava o meu aspecto triste.


XXVII

Acabei, para grande vergonha minha, por acceitar tacitamente aquella
situação. Mas, d'ahi em diante, havia entre nós alguma coisa, que não
podia já mais obliterar-se: um pensamento constante e unico, que,
mutuamente, nos atormentava os corações. Embora cerrassemos os labios
para o não deixar sahir em palavras, no intimo o sentiamos sempre como
dôr aguda que, a revezes, nos desentranhava imprecações. Um só grito
bastava então para incendiar uma explosão subita, e eu, principalmente,
esquecia os protestos de meu orgulho por dar livre curso á tristeza que
me devorava. Não queria fallar do meu rival, e fallava d'elle sempre.
Era um nome que me alanceava a memoria, e se me estorcia entre os
labios, como um aspide. Proferido apenas, mil perguntas incendiarias se
embaralhavam tumultuosamente em minha boca. Eu queria conhecel-o melhor
ainda. Queria saber tudo o que elle era, tudo que fazia, tudo que dizia.
Fanny formalisava-se então; meditava largo tempo antes de responder-me,
para não se desmentir, depois dava indicios de impaciencia e carregava o
sobr'olho.

Os homens são insaciaveis--dizia ella, com grande espanto meu--Não podes
contentar-te com ser amado? Por que te occupas incansavel no que se
passa em minha caza?

Apoz estas contendas, separavamo-nos tristes, e, passados oito dias,
esperava-a furioso, exasperado pela raiva, com a boca cheia de
sarcasmos, decidido a romper brutalmente com ella. Mas só de vêl-a, toda
a minha cholera se exhalava como fumo, ajoelhava-me aos pés d'ella, e
comprimia-a convulsivamente ao meu coração.

O que muito me espantava e irritava acremente era a docilidade com que
ella, sem murmurar, a tudo se submettia. A ausencia, os obstaculos, as
difficuldades, não podiam nada com ella. Vêr-me, não me vêr, era tudo o
mesmo. Sempre serena aquella phisionomia. Dava-se ares de victima, e não
dizia palavra.

«E se eu me matasse?» exclamei eu, um dia.

Fanny encolheu os hombros.

«E se algum incidente imprevisto nos separasse?»

--Que queres que eu te faça!...--disse ella, e em seguida entrou a
chorar.

Não podendo viver com ella, eu queria ao menos governar-lhe a vida, de
modo que as suas menores inspirações lh'as désse eu. De sobra
comprehendia ella a minha intenção, e mostrava-se; mas não me cedia
nunca em pontos de delicadeza que ella converteu em pontos de honra. E
dizia-me:

«Eu sou obrigada a soffrer a posição que me deu a sorte. Devassar-lhe os
segredos, de que monta? Affliges-te se fallo, affliges-te se me callo...
Tracta de esquecer as causas dessa tristeza, meu Roger.

Eu de mim esqueço-as sempre que venho aqui.

Outras vezes dizia meio risonha e meio motejadora:

«És muito egoista! Pelos modos eu não devo amar senão a ti!»

Impellido, porém, pela minha idea fixa, e sem admittir que ella
anteposesse a sua vontade á minha, astuciava com ella, impetrando-lhe
exclusivamente a piedade, e descia, por derradeiro, a tal degrau de
baixeza, que, irritado por ser eu só a penar, empregava toda a minha
influencia para exigir d'esta desgraçada mulher que seguisse uma norma
de proceder deametralmente opposta á que seu marido lhe traçára. Bem
sabia, eu, com isto, que a sua casa, até ahi pacifica, ia tornar-se um
inferno, e isso queria eu: Durante alguns dias, por cansaço, seguiu ella
docilmente os meus conselhos, e assim se viu intallada entre seus dois
senhores, como o ferro amollentado pelo fogo entre a incude e o malho.
Ambos nós, sem treguas, lhe flagellavamos o coração.

Espicaçada, emfim, pela tortura, e tambem por uma especie de espirito de
inteiresa, disse-me:

«Roger, tu aconselhas-me muito mal, por que me obrigas a perturbar-lhe o
repouso.»

Fiquei consternado, e cessei de empregar aquelle novo genero de
martyrio, por que era para mim cruelissima mortificação vêl-a erigir-se
em defensora de seu marido. Fanny, além disso, parecia fatigada d'essas
disputas aviltantes e penosas.--Tenho medo de infastial-a--disse-me eu
um dia.


XXVIII

Porém, nos mais violentos accessos de meu ciume, inraivecia-me vêr-lhe
no semblante aquelle seu ar pudico, que ella conservava sempre, mesmo na
mais avida vertigem do goso. Ora isto, com o correr do tempo, deu para
me irritar. Tomei a peito depraval-a, buscando abafar este amor nas
cinzas do fastio: Fanny ficava sempre a mesma! Estavam alli duas almas
diversas a exhalarem-se-lhe dos labios e dos olhares. Uma era a de
Phrynea absorvida, e séria, nutrida dos mais finos primores como das
especiarias mais corrosivas da paixão, o que, alternadamente, se
assignalava por um sorrir estranho e vago. A segunda era a de um anjo
immaculado. Ai! aquelle olhar d'ella! Aquella expressão de spasmo que
reluzia perpetuamente em seus olhos azues, tão rasgados, sob as placidas
e destacadas palpebras! Ainda agora me seguem e arrebatam! Sinto-os
sempre, fitos nos meus! Interrogam-me, e fascinam-me! Não poderei jámais
esquecer os olhos d'ella?...

Fanny, no garbo de suas attitudes, no meneio da cabeça, no andar, tinha
algumas vezes um não sei que que denunciava appetites de um sensualismo
profundo e vehemente, e mesmo alguma coisa dessa monstruosa concessão
duplicada, que tanto a meus olhos a invilecia. De subito, com uma
palavra só, transfigurava-se, e julgal-a-ieis uma outra mulher.

«Que mulher és tu, pois?» lhe disse eu, em seguida a uma discussão em
que me havia manifestado sentimentos os mais contraditorios. Levantou
ella a face, e encarou-me com os seus olhos tranquillos e lympidos;
porém, commoção interna lhe dilatava as azas nazaes e avermelhava de
leve as faces.

--Não posso viver sem amar--respondeu ella pausadamente--Não posso viver
sem ser amada. Minhas qualidades boas, e meus defeitos, são cousas
secundarias: todas as mulheres tem d'umas, e d'outros. Mas o que é
exclusivo meu, é a minha paixão.--E com leal exaltação, ajuntou:
«comprehendes-me?»


XXIX

Chegou o estio, ao cabo d'estas muitas e penosas discussões. Todos os
annos, Fanny ia passar aquella estação ao campo, nos arrabaldes de
Pariz. Um dia, veio ella afflicta annunciar-me a triste nova da partida;
eu, porém, recusei explicitamente conformar-me com a ausencia
«Escrever-nos-hemos» disse ella. Semelhante resignação exasperou-me. Não
sei que lhe respondi, esqueci-o; lembra-me só que combati aquella
resolução com energia de desesperado. Eu chorava tanto, estava tão
alvoroçado, tão infeliz, que ella houve piedade de mim. Apertando-me nos
braços, mil vezes me repetiu que consentia em adoptar os expedientes que
eu lhe indicasse.--Sê prudente! sobre tudo, não te arrisques--disse-me
ella, entre dois beijos, retirando.

Passados oito dias, encaminhei-me na direcção de Chaville. Á beira da
estrada real de Versaille é que estava a casa d'ella.

Quando ouvi dar a meia noite nos relogios longinquos, escalei o muro, e
fui ter a um pavilhão, cujo local me havia indicado Fanny. A vinte
passos, d'um ponto em que me occultavam as copas do arvoredo, vi um
vulto pardacento, immovel. Era Fanny. Corri para ella. Levou-me comsigo.
Fechei a porta. Estávamos ás escuras--Não falles--segredou-me ella, com
extraordinaria agitação--elle está desconfiado ha tres dias; anda
triste; deve ter suspeitas.

Aqui está uma variante nova na amargura da minha vida, com a qual eu não
contava.--Ouve--murmurou ella, com a voz tremula de mêdo--é preciso que
elle não desconfie; não quero que elle o saiba; não quero. Tu és homem,
a ti pertence dirigir o meu comportamento. Falla; e, se é de sacrificios
que vaes fallar-me não temas, que eu sou forte.--E sentindo-se
desfallecer, vendo-me perdido de dôr, disse-me com amargura:--Eu tinha
esquecido que tu não passas d'uma creança. Perdoa-me por haver-te
fallado como a um homem.

«Fanny,--disse-lhe eu solemnemente aconchegando-a de mim para fazel-a
sentar ao meu lado--serei talvez creança, mas tenho coragem de homem.
Surprehendido imprevistamente por esta cruel noticia, não sei que
inventar; mas, já que és forte, decide tu o que devemos fazer:
submetto-me. É preciso abandonar-te? Dize-o. Pela memoria de tua mãe, se
assim o queres, não me verás jámais, ainda que me procures por toda a
terra.

Não quero que morras--disse ella com voz soturna, erguendo-se, e batendo
no chão com o pé. Depois tomou-me a cabeça entre ambas as mãos e
abraçou-me convulsivamente sobre os labios. Mas o ruido de passos que
rangiam na areia impoz-nos silencio. Abraçados pela cintura, curvamo-nos
sobre a vidraça para vêr quem assim passeava no jardim a hora tal.

Era elle! Reconheci-o na largura dos hombros, nos cabellos arrussados
que volteavam ao vento sobre a cabeça nua. Caminhou parallelamente ao
pavilhão, pela rua larga e descoberta, alagada dos fulgores da lua que
cahiam sobre ella a prumo. Marchava lentamente, com as mãos enlaçadas no
dorso, cabisbaixo, as feições alteradas, como homem que leva de poz si
pensamento oppressivo. Passou ante nós, e imbrenhou-se no cerrado
arvoredo.

Tive de sustentar em meus braços a desgraçada mulher, por que os joelhos
não podiam sustel-a. «Socega, minha querida, disse-lhe eu--teu marido
nada suspeita. Está preoccupado; mas não se vê alli a inquietação febril
dos ciumosos. Eu sei bem o que é, de sobra me tenho observado a mim.

--Crês? exclamou ella n'um impeto de esperança que a vibrava.

«Tenho a certeza. Entretanto, separemo-nos. Passados oito dias,
tornarei. D'aqui até lá observa-o bem. Não sei o que é que o inquieta;
mas eu a quem tu hoje chamas creança, digo-te isto: teu marido não tem
ciumes.


XXX

Logo que ella partiu, fui impetuosamente no encalço do solitario
passeador. Via-o outra vez na volta d'uma rua. Passou, como primeiro,
deante de mim, sem me perceber, sempre sombrio, sempre meditativo. Curei
de surprehender alguma involuntaria palavra que me revelasse a causa da
sua concentração. Mas tinha cerrada a bôcca, e impassivel a fronte.
Subindo para casa, accelerou o passo. No patamar, parou, olhou o céo
estrellado com sombria seriedade, e alongou para elle os braços, como se
do coração lhe fugisse alguma prece ameaçadora. E eu exclamei
mentalmente: «É elle, pois, desgraçado tambem!»


XXXI

Passei os oito seguintes dias em angustia inexprimivel. Não parava em
parte alguma. Os temores, as suspeitas subiam-me ao cerebro em
borbotões, como os vapores da vinolencia. Pensava n'ella só! Dizia-me
não sei que de convicto e infallivel que eu estava ameaçado de perder
Fanny. Era como um espectro deante de mim a imagem d'uma separação
violenta. Não atinava com o modo de aliar esta especie de previdencia
com a certeza de que o marido ignorava tudo; mas esta previdencia
justificava-se tanto que eu entrei a tomal-a como aviso do céo.

Ao oitavo dia, á hora costumada, puz-me a caminho; mas, d'esta vez não
esperei a hora indicada, nem me acautelei para entrar em casa de Fanny.
Não. Caminhava deante de mim mesmo, com a violencia e direitura d'uma
balla, resolvido a procural-a mesmo no seu quarto, se a não encontrasse
no pavilhão. Timido de tudo, sem poder definir o objecto dos meus
temores, esporeava o cavallo, que se espadellava com a terra,
alternadamente contrahido e distendido como um grande arco atormentado
por mãos febris. A lua alumiava de travez a estrada silencioza que eu
levava, zebrando-a de listas de prata, e parecia voltar-se para mim
melancolicamente seguindo-me com os seus fulgidos olhares. Desfillavam a
meu lado as arvores, rapidas e negras como phantasmas vertiginosamente
marulhados n'um rodopio. Os cães, que dormiam nos pateos, atiravam-se
aos portões latindo ao estrepido das ferraduras do meu cavallo, que
estalavam na calçada. E o vento que me açoitava a cara, murmurava-me aos
ouvidos palavras irritantes. Tudo me impellia e me vaticinava algum
drama em que eu ia representar um papel. Armei-me para isso, decidido a
não succumbir sem luctar com todas as forças que a desesperação desde
muito me tinha dado. Quão exaggerado eu era na espectativa como nos
preparatorios! Este meu espirito enthusiasta não sonhava senão combates
sobrehumanos, desinteresse fero, esforços heroicos!... Ai! e que
desenlace tão vulgar me esperava!


XXXII

Transpondo o muro, fiquei surpreso de vêr Fanny assentada na margem d'um
passeio. Mais d'uma hora me tinha eu antecipado, e receava que seu
marido estivesse ainda fóra. Logo, porém, que me avistou, Fanny, veio
para mim, sem se esconder, como se fosse natural entrar eu em sua casa
pelo caminho dos malfeitores. Tomei-lhe a mão. Pareceu-me vêl-a inleada
e cuidadosa.

«Que aconteceu?--perguntei, levando-a para debaixo das arvores.

--Tinhas mais que rasão, Roger; meu marido não tem ciumes--disse
ella--Nunca se fiou tanto de mim. Não me cancei a interrogal-o. Hontem
contou-me a causa da sua preoccupação. Os seus haveres todos,
depositados em Inglaterra, estão em risco com a fallencia d'um
banqueiro. Esta manhã partiu para salvar alguns restos, se ainda for
tempo. É forçoso que a inquietação fôsse grande--ajuntou Fanny
suspirando--por que nunca foi commigo tão expansivo.

Não achei palavra com que responder a esta afflictiva noticia, com
quanto nos consolasse a ambos de tamanho pezo. Fiquei atordoado como
homem que soffreu violenta pancada na cabeça. Regorgitavam-me nos labios
os sarcasmos; mas eu represava-os.

«Nada respondes, meu amigo?--disse Fanny.

--Que heide responder?--exclamei, perdida a consciencia da minha
brutalidade.--Lamento-te se tinhas grande apego ao luxo de que vaes ser
privada; lamento-te, principalmente, por teus filhos; mas... «Mas?»
atalhou ella.

--Mas não posso lamentar-te por teres sido ameaçada de perder-me, e te
achares hoje mais livre que nunca para amar-me.

Fanny ergueu as mãos ao céo, como invocando o seu testemunho, com
expressão de piedade, e disse brandamente:

«Não fallemos mais de mim. Eu heide ser sempre um livro fechado para ti.

Passeamos, depois d'isto, debaixo das arvores vagarosamente, sem nos
darmos o braço, sem dizer palavra, durante meia hora: por fim, parou
ella deante de mim e tomou-me ambas as mãos, e disse em tom de voz
submissa:

«Roger, por que não fallas?

--Não tenho consolações que dar-te.

«Por que?

--Por que eu mesmo tenho talvez necessidade de ser consolado.

«Pois que te succedeu?

--Nada.

Continuamos a passear, ao acaso, entre o arvoredo, silenciosos, ella
curvando-se debaixo das franças, eu, erguendo-as, para ella passar.

--Agora vamos nós tomar quinhão nas amarguras d'elle--disse eu de
repente. «Assim deve ser» respondeu ella com tranquillidade.

O remate do nosso encontro foi magoado por um começo que eu não podera
prevenir. O pensamento de Fanny vagueava por outra parte. O meu, a meu
pesar, tambem. E, todavia, eu não poderia justificar-me d'um certo
prazer inquieto que me dava a idea d'um successo que podia apartal-a do
marido para sempre.

--Quem sabe--pensava eu commigo--se a sua ruina fará o que a minha dôr
não pôde fazer?


XXXIII

Depois d'este dia só em Paris nos tornamos a vêr. Era facil a Fanny
ausentar-se, agora que a ninguem devia contas de suas sahidas. Por isso
tornamos ao antigo viver. O que eu, porém, previra realisava-se com um
rigor de desesperar. Não era só o pensamento senão a vida de Fanny que
estavam n'outro logar. Cada vez o sentia mais. Nossa tranquillidade,
prazeres, expansões, jubilos dependiam absolutamente das cartas que o
marido lhe escrevia. Se faltava o correio, ficava distrahida, não me
ouvia. Se recebia de manhã carta inquietadora, ficava preoccupada e
taciturna. Quando a carta era de esperanças, irrompia ella em explusões
d'amor e d'alegria. Esta alegria, porém, molestava-me muito mais que a
tristeza, e aquelle amor, cuja explosão atava a alguma coisa que não
derivava d'elle mesmo, indignava-me. Gélido deante de sua inquietação,
mudo se ella estava triste, irritado pela sua alegria, recuzava
energicamente a receber a repercussão das novidades que tanto a
preoccupavam; e quiz-me parecer que Fanny não se incommodava ou nem dava
fé dos meus enfados. Isto desesperava-me.

Em summa, aborrecido de me vêr assim atado ao meu rival pela mulher,
que, repartindo-se equitativa por nós, dava todos os seus pensamentos
aquelle que ella julgava ter mais urgente precisão de suas sympathias;
indignado por compartir dessas penas, e esperar-lhe anciosamente as
alegrias que só podiam fertilisar as minhas; aguilhoado da tristeza, do
ciume, e da desgraça, resolvi tentar um supremo esforço para recobrar o
socêgo, arrancando-lh'a a elle. Desde muito que se me gerava no animo o
desejo de exigir de Fanny o maior sacrificio que ella podia fazer-me;
mas, retido pelo vago receio d'uma recusa dolorosa, deferi de dia para
dia o momento de sollicitar-lh'o. Azou-se a occasião. Foi ella que a
deu.


XXXIV

«Uma mulher que se aliena--disse-me ella, uma vez, sem nexo que
explicasse o improviso, e olhando-me com ar piedoso--Uma mulher, que se
aliena, não pode amar sem tornar o seu amante o mais desgraçado dos
homens. Quanto mais me examino, Roger, mais conheço que, fartes vezes,
com desgosto meu, te devo fazer soffrer muito.

Commovido por este exordio, respondi balbuciante:

--E, todavia, a nossa alliança podia ser ditosa.

«Sim--disse ella amargurada--O que ha de mais entre nós é o amor.

O castigo secreto d'esta ligação é isso. Estas relações só duram com a
condição de serem banaes; e, se o são, devem repugnar a corações nobres
e delicados; se são profundas e intimas, tornam-se o supplicio de quem
as sente.

E suspirou. Respondi assim:

--Vou mais longe que tu, Fanny.

Um amante, ainda mesmo que o seu amor seja mero capricho, deve soffrer
com uma partilha que offende os sentimentos humanos todos. O amor
proprio, por igual com o amor, tem seus ciumes, seu pudor, suas
torturas. Uma amante, qualquer que seja o seu theor d'amar, conhece
sempre a existencia do marido. O marido, por via de regra mais feliz,
não conhece a existencia do amante.

«Isso é ir longe de mais--disse ella a meia voz; depois, alçando os
hombros, poz os olhos no céo, e exclamou:--Que é o amor proprio, Deus
meu?

Folgando em fim de encontrar Fanny em tal disposição de espirito,
aventurei-me. Peguei-lhe da mão, e erguendo-me, em quanto ella me olhava
affectuosa, disse, n'um tom supplicante:

«Com tudo... se tu quizeres...»

Fanny corou logo, comprehendendo que se demaziava.

--Que queres tu dizer-me?

Não ousei responder; mas ella, por certo me adivinhou, por que me
apertou meigamente a mão, e disse suspirando:--creança!

Eu fiz com a cabeça um gesto negativo! «Deixa-me!--disse ella de
sobresalto, em tom de precipitada--Curar-te has assim? Não posso
fazer-te feliz. Caza-te!»--A dôr anniquilou-a. Repelli-lhe rudemente a
mão, e fitei-a colerico, por essas phrazes que me pareceram uma ameaça.
Mas tão quebrantada a vi, que não tive coragem de a levar ao extremo, e
murmurei por de mais:

--Bem sabes que não é possivel isso.

Replicou:

«Dei-te quanto podia haurir d'affectos em meu coração, e és tu quem me
castigas!

Estava offendida: foi preciso aquietal-a, e jurar-lhe submissão; ella,
porém, não perdoava assim, e exclamou:

«Que queres que eu faça mais?

--Se me amas, como creio, o teu dever está traçado.

Corou outra vez: é que comprehendera.

«Meu dever! meu dever! Muito indiscreto és em proferir semelhante
palavra, Roger! Ignoras tu que o meu mais restricto dever me ordena de
não deixar a caza que governo?

--Ah! Fanny!--exclamei eu--que insignificancia tu trazes para me
ferir... que confronto!...

«A caza--replicou ella baixando os olhos--é o posto d'honra confiado á
mulher! Mulher que se respeita, não a abandona nunca!

Quiz interrompêl-a, mas ella continuou, de repente applacada, e
olhando-me com ternura:

«Raciocina um pouco, meu querido filho: póde uma mulher abandonar sua
familia honorifica, sem perder a estima de si propria? Póde ella
desquitar-se publicamente de todos os seus deveres sem despenhar-se aos
olhos do mundo entre as mulheres perdidas?

--São bem tristes considerações as da sociedade quando as cotejas com a
minha vida...--respondi eu.

Ficamos em silencio, alguns minutos. Fanny proseguiu:

«Se eu seguisse os conselhos que me deixas adivinhar por que és muito
honesto para m'os dar claramente, ser-te-hia forçoso, algum dia,
fazer-me arrepender.

Eu quiz jurar; mas ella cortou-me a palavra.

«Podemos nós supprimir o passado? Não és tu zeloso mesmo do passado? Oh!
quero poupar-te!--accrescentou Fanny, levantando-se, e lançando-me um
braço em roda do pescoço, em quanto com a mão sobre o meu peito, cravava
ternamente nos meus os seus olhos azues--«Em teu logar, crê-me, eu seria
tambem ciosa... Muito resististe!... disse ella, cahindo sobre uma
cadeira, e escondendo entre as mãos a face: «Por que me não fugiste,
quando era ainda tempo!

«Já era tarde, Fanny, bem o sabes, no dia mesmo em que te vi, pela
primeira vez, passar deante de mim.

Ergueu-se outra vez, e abraçou-me com mudo transporte. Pensativo,
alheado, recebia, como insensivel, as caricias. A final, pude dizer-lhe:

--O amor, Fanny, póde consolar muitas dôres, remir muitas humilhações,
substituir muitos affectos. Diz tu: o que é a estima do mundo, os
tranquillos sentimentos da familia, comparados á absorpção d'uma
existencia por outra existencia? É acaso tão longa a vida que possamos
consentir em immolal-a a coisas tão frivolas? E, de mais, que se lucra?
Quem nol-o agradece?

«Roger! Roger!--interrompeu Fanny--que estranha moral!

E eu prosegui:

--Não estás cançada de córar, de tremer, de te esconderes? Não tens,
emfim, vergonha da vergonha? E não te repugna ao coração esperar,
esperar mais, esperar sempre, para trazer-me os beijos avidos á minha
bôca faminta? No espaço d'um anno, com grande custo, apenas teremos cem
horas de viver juntos... a felicidade, de que devemos contentar-nos, é
isto? Se ao menos essa felicidade fosse pura, estrema, absoluta! Mas tu
não pódes ouvir-me, sem que a lembrança de tuas inquietações, perigos a
que te expões, os meus proprios tormentos, te não impallideçam; e eu,
tão desgraçado! não posso uma só vez abraçar-te, sem que logo um
espectro...

«Supplico-te--bradou ella impetuosamente--se me amas, não me digas que
és desgraçado, por que me matas.

--E se tu quizesses--continuei, fitando-a internecido--se quizesses!...
Não haveria no mundo existencia para competir com a nossa. O que eu te
peço é ser eu só o encarregado de te fazer serena a vida, desvelar-me
por ti eu só, preparar, suavisar sob os teus pés a vereda do futuro; ser
só a amar-te; o que eu quero é ser para ti o meio e o fim da felicidade;
é tomar sobre mim todas as penas, e dar-te em troca todos os meus
sonhos, prazeres, e felicidades; o que eu quero é ser a um tempo teu
filho, teu amante, teu pai, reunindo sobre a tua cabeça querida as mais
dôces e solidas affeições, é concentrar em ti as lembranças do passado,
as felicidades do presente, os anhelos do porvir, de modo que venhas a
ser toda para mim, e que não haja na minha vida inspiração que não seja
tua, que não proceda de ti, que não sejas tu! Se tu quizesses... Não ha
ahi paizes onde livremente os que a sorte separou e o amor ajunta pódem
emfim saborear aquelle particular repouso que resulta da plenitude da
felicidade que é a vida? Em meus sonhos, muitas vezes me figuro que
somos voluntariamente proscriptos na immensidade d'alguma solidão, onde,
sob um céo azul sempre, á sombra d'arvores sempre veridentes, á beira
d'um mar sempre sereno e sobre tapetes de musgo sempre em flôr, ahi, nos
saboreamos por nós mesmos, como se a nossa dupla existencia mais não
fosse que uma palpavel recordação. Que desgraça poderia ferir-nos ahi?
que inquietações assaltear-nos? que suspeita incutir-se-nos? que ciume
contristar-nos na felicidade de dias sempre eguaes? se tu quizesses...
Seria pouco para mim amimar-te sempre como a uma creancinha melindrada?
procurar incessantemente debaixo de tuas palpebras o olhar meigo de teus
olhos azues? escutar-te muito tempo o halito a brincar-te por entre os
labios? dormir com a boca presa á tua espadua, a mão inlaçada na tua
mão? vêr-te todos os dias, andar, ir, voltar, mais bella, mais
tranquilla, mais graça que o sonho das virgens? Ouve mais: não seria
nada para ti o teres-me sacrificado todos os prejuizos que formam o
coração das mulheres? teres-me tirado do abysmo de tristeza, no fundo do
qual me estorço ha tanto tempo? teres-me dado tu só mais felicidade do
que homem na terra póde cobiçar? Oh Fanny! Nunca mais, a chorar, eu te
diria: «amo-te!... se tu quizesses!...»

Estava suspensa dos meus labios Fanny. Bebia-me as palavras, ebria de
prazer. Inclinada para o hombro a cabeça, cahidos os braços, as
palpebras descidas, ouvia-me como ao longe a musica, de que não queremos
perder nada, arrobada n'um extasis que reunia todas as sensações e
quebrantos. Arfavam-lhe as rozadas azas do nariz; suaves respostas
inintellegiveis lhe ciciavam os labios; convulções electricas lhe
crispavam a cutis; tremiam-lhe as mãos em vibrações dulcissimas. Já não
poderá conter-se. Correu-me ao seio, e debulhou-se em lagrimas no meu
pescoço que ella cingia soffrega. Oh! que delicioso apertar aquelle!

«Não se falle mais n'isso--disse ella, com expressão de angustia,
recuando a face, e apertando-me a fronte com a mão--Isso faz-me um
grande mal. Querido Roger, o sacrificio, que queres fazer, é egual ao
que me pedes. A felicidade debuxada por tua boca persuasiva é o mais
bello sonho dos meus encantos; mas, ai! não passa d'um sonho! Meu Roger,
amemo-nos, adoremo-n'os; mas, por piedade de mim, não falles assim mais!


XXXV

Não me dei por vencido d'aquelle grito de desesperação que me revelava,
ao mesmo tempo, aspirações ardentes, e dôres mysteriosas. Nenhum de nós
nesta affectuosa discussão, havia empregado os verdadeiros argumentos.
Um tanto satisfeito por expôr a suprema questão da minha vida áquella
que devia resolvêl-a, deliberei deixal-a reflectir, para pouco e pouco a
ir affazendo. Esperava azo propicio para reluctar e vencer a minha
adorada inimiga.

Depressa veio o ensejo. Terrivel e imprevisto era elle: havia ahi uma só
alternativa: vencer os extremos escrupulos de Fanny, ou perdêl-a para
sempre.


XXXVI

Fanny pareceu-me preoccupada um dia. Fallava precipitadamente em muitas
bagatellas, como se quizesse abafar alguma coiza gravissima. Abstive-me
de interrogal-a, e fiz que não dava fé da sua turvacão. Acariciou-me
vivamente, e eu a ella, mas nossos espiritos e vontades pareciam alheios
aos affagos. Houve um instante em que um e outro esgotamos as palavras
ociosas. Tinha Fanny a cabeça inclinada sobre o meu braço, e eu, todo
attento no rosto d'ella, em muda anciedade a estava contemplando.
Subiu-lhe aos labios em suspiros do intimo a respiração suffocada; aos
meus olhares interrogadores respondia o descahir das palpebras, e o
voltar os olhos, córando.

Tomei-lhe a mão sem dizer palavra. Apertou-m'a com força febril.

«Falla em nome do céo!» disse-lhe eu empallidecendo. Abraçou-me
convulsamente, aconchegando-me o peito da face d'ella.

Fugiu-lhe dos labios a narrativa cruel, cortada por mil reticencias
confusas. Mas, desde a primeira palavra que proferiu, comprehendi tudo.
N'essa manhã mesma, o marido lhe dissera em carta muito expansiva, que
seria provavelmente obrigado a estabelecer-se em Inglaterra, por espaço
de alguns annos. Em tal caso--accrescentava elle--deveria Fanny metter
no collegio os filhos mais velhos, e ir ter com elle, levando o filho
mais novo. Fiquei aterrado. Irritou-me a coragem que ella tivera para em
fim proferir as abominaveis palavras de separação. Dessimulei, porém, as
angustias que me alanceavam o peito, e deixei só transparecer no
semblante os traços de dôr profunda. Abracei-a, comprehendi, e exclamei:

«Não será assim, Fanny!--juro que não, por que é arrancarem-me o coração
o separarem-me de ti.

--Que hei-de eu fazer, meu Deus?--disse ella retorcendo as mãos.

«Amarmo-nos--respondi exaltado, com quanta força temos, e tirar um
recurso da horrivel necessidade.

--Recurso!...--e eu interrompi-a logo: «Fanny! este momento é solemne;
não ha que vêr com subtis considerações do mundo e dos ciumes, do
passado: trata-se de viver ou morrer. Deante de Deus, te dou em penhor a
minha vida. Queres dar-me a tua? Atirou-se aos meu braços, repetindo:

--Que hei de eu fazer?

«Fugirmos para tão longe que ninguem nos veja mais.


XXXVII

Dito isto, cahimos em profundo silencio, Fanny retirou-se lentamente de
meus braços, poz-me ambas as suas mãos nos hombros, e fixou-me.

Baixei os olhos, receando-lhe a ira. Mas que mal a conhecia eu! O que
ella me revelou foi piedade sómente. Repartida entre o seu amor, e o
dever que lhe apontava o logar digno ao pé do chefe de familia, a luctar
sósinho no exilio para defender seus bens, Fanny deu-me testemunho d'uma
agonia que não cabe n'alma sem rasga-la. Bem sabia ella que eu devia
horrivelmente soffrer, pensando no proximo fim de união tão cara; mas
tambem comprehendia que lhe não era possivel desobedecer á voz que a
chamava. E isto flagelava-a com uma dôr sem nome. Perder-me e ser ella,
uma vez ainda, a causa unica de meus infortunios.

--Meus filhos!--exclamou ella em fim, impallidecendo, com uma
despedaçadora angustia. E pendurava-se-me do pescoço, fitando-me os
olhos penetrantemente--Meus pobres filhos, tão creanças! Pensas tu
n'isto? Tu que és bom, e me amas, podes-me exigir que os deixe?

Immediatamente comprehendi pela commoção que me estorcia o animo, que
quanto d'ahi em diante tentasse seria baldado. A pesar da resistencia,
senti um surdo protesto subir-me das entranhas em gritos de indignação.
Eu mesmo, no secreto de minha alma, não queria esse monstruoso abandono
de mãe, nem mesmo o covarde desamparo d'um marido por sua mulher que
adorava.

Mas, confessal-o-hei?--não me instigava tanto á lucta o desejo de passar
a minha vida com aquella mulher, como a idea de fazer cessar a partilha
execravel. Absolva-me dos males que causei um momento de franqueza! Eu
senti, abraçando de novo Fanny, que soffria menos com a certeza de a
perder que com a idéa de que ella ia unir-se ao marido. E, horrorisado
de mim, dôr nova para ajuntar a tantas, disse comigo mesmo:

«Aqui ha mais ciume que amor.» Entretanto, mais tranquilla, mas sempre
affavel, Fanny encostara-se ao cotovello e, voltada para mim, discutia
sósinha. Escutei-a.

«Se eu ousasse... se eu não temesse mortificar-te...

--Falla, que estou de animo assente para ouvir tudo. Já agora, não ha
nada ahi que possa fazer-me mais desgraçado.

Acariciou-me febrilmente, e disse, quasi desfallecida:

«Pois bem! eu não tenho coragem de arruinal-o. Hoje, o unico recurso
d'elle está no meu dote.

--É isso só? deixa-lhe tudo o que tens. Não sou eu bastante rico para
nós ambos?

«Não é isso! não é isso!--disse ella, meneando a cabeça.

Encarei-a. Estava enleada e escolhi vagas palavras com que disfarçar a
idéa. Continuou, a meia voz, como reprehendendo-se do que ia dizer:

«Como condemnal-o á solidão n'este supremo momento em que elle lucta
tanto por mim como por elle! Nunca voluntariamente me desgostou. Ama em
mim a companhia de quinze annos da sua vida, a mãe de seus tres
filhos...

--Por que o enganaste?--atirei-lhe eu em rosto, no impeto doloroso da
minha colera; mas, com uma só phrase me esmagou ella:

«Por que te amava!» e com expressão de orgulho que a engrandecia a cima
de si mesma, accrescentou:--Mas a perfidia não competia a ti
reprovar-m'a, Roger!

D'esta arte, quantos golpes eu lhe apontava, eram logo rigosamente
rebatidos; mas, nem assim, eu desistia do ataque. E se nos descobrissem!
repliquei eu, na certeza de que este golpe era difficil de aparar,
fitou-me fixamente como receando que a eu denunciasse para a possuir,
talvez, por esse infame meio.

Depois de olhar-me longo tempo, disse:

«Que desgraçado elle seria!...

Voltei-lhe o rosto, e Fanny concluiu:

«Elle diria com horror de mim: Nem por amor d'estas creancinhas...

Puz-lhe a mão nos labios, e, convulsivo, olhei para ella. Estava coberta
de lagrimas. Posto que perturbado, não pude deixar de admirar-lhe a
franqueza nobre que nem, neste lance, me poupava. Estava toda embevecida
na victima!

«Que faria elle?» murmurei. Fanny, levou as mãos á face, e respondeu com
voz abafada:

--Talvez me perdoasse...--

E, passados os soluços que lhe embargavam a voz, disse:

--Estamos demasiadamente castigados! Se obedeço ao dever,
abandonando-te; se não lhe obedeço, deshonro-me. De ambos os lados só
vejo a desgraça, e faço desgraçados. Infeliz por ti, por elle, por meus
filhos, por mim propria, nem me resta o recurso da morte para restituir
a paz a todos! Deus meu, que me has dado o coração, que me não serve
para consolar os entes que amo, e nem as suas dôres posso incerrar
n'elle, como thesouros caros!

E, a luz crepuscular na alcôva, sobre as rendas dos flacidos
travesseiros, enlaçados os braços e unidas as faces assim choravamos...
Quem acreditaria que, desde muitos dias, se passavam assim todas as
nossas entrevistas!


XXXVIII

Desde este dia funesto entendi que não devia esperar mais nada d'este
amor, e vivemos na penosa espectativa da decisão de um outro. Mas, como
se o destino houvesse resolvido não dos poupar em dôr alguma, a solução
todos os dias esperada, não chegava nunca.

Já as cartas não eram sómente assustadoras para Fanny. Era eu que as
desejava, e inquiria o contheudo dellas, e fazia ferventes votos pelo
bom exito d'aquelle que, máo grado meu, não luctava energicamente. Com
tudo por dar alguma coragem á desgraçada mulher, exaggerava a minha
confiança, e encomiava a esperteza conhecida, a firmeza de caracter e a
força de vontade de seu marido. Affirmava-lhe que elle ressarciria os
seus haveres, obteria justiça, e recobraria o tão merecido socego.
N'elle se estribavam todas as minha esperanças: pensava n'elle só, e
tomava apaixonadamente a peito a sua pendencia. A menos esperada ventura
que eu entrevia em meus vagos sonhos e almejava com o ardor da
desesperação, era a volta do meu rival, em cujos braços devia cahir a
mulher que eu adorava!

Se eu podesse coadjuval-o!... dizia eu commigo; mas de que sirvo eu? E
agora me pezava o inepto pudor que me não deixava entrar n'aquella
caza--Se eu tivesse menos orgulho, se eu não tivesse querido exaltar-me,
singularisando-me por uma delicadeza affectada, que, dos meus proprios
olhos, me não lava da minha acção; se, como fazem tantos nas minhas
circumstancias, eu me fizesse amigo do homem, cuja mulher roubava,
resgatando hoje a pequena parte remissivel de meus actos, poderia achar
algum lenitivo para esta afflicção. Mas eu tivera sempre mais orgulho
que bom senso. Pungia-me, então, a idéa de que, por falta minha,
n'aquelle desastre em que cada qual heroicamente desempenhava o seu
dever, estava eu sendo um ente inutil. Contrapondo á minha consciencia
taes subtilezas, tão futeis ellas eram, que não me illudiam. Mas, á
maneira do naufrago que se agarra aos limos fluctuantes, sem esperar
salvar-se, eu me escorava á minha propria dôr, accuzando-me de faltas
não commettidas, falsificando meu proceder e sentimentos n'isso mesmo
que elles tinham de honra, por que eu não sabia que fazer para
readquirir uns longes de esperança.


XXXIX

Fanny visitava-me como visitamos um doente incuravel, e retiramos sempre
admirados de encontral-o vivo. Palavras de alento não as tinha para m'as
dizer, que não carecia menos ella de ser consolada. Se eram boas as
noticias, suspirava; se eram más, chorava. Como ella, um dia
desenvolvesse em toda a sua horrivel extensão, a pesada cadeia das mais
secretas miserias que entrevia--atterrada por se não sentir com forças
para arrastal-a--eu rompi o silencio subitamente, e, com simplicidade,
lhe offereci todos os meus teres para desempenhar a honra de seu marido,
que, por derradeiro ludibrio, fôra entregue aos azares do jogo.

Mas, a pesar mesmo deste novo desastre sobreposto ao antigo, e tão
afflictivo que já fazia esquecer o outro, Fanny foi o que devia ser:

«É desgraçada a nossa situação--me disse ella com severidade
extraordinaria--Roger! amo-te agora mais do que nunca; mas não sou
livre; por isso mesmo que te adoro, é que tu és o unico homem de quem
não posso acceitar nada.


XL

A adversidade cansou. As cartas vinham cada vez mais animadoras, e já
não havia questões de honra, nem de miseria, nem se quer da separação
que tanto temeramos. Quando muito era só a perda de ametade dos bens que
podia preoccupar Fanny. Vieram o socego e os risos para ella; mas eu,
como um miseravel que tem duas chagas a pençar, senti immediatamente
despertar o ciume, mais ardente que nunca. O marido estava a chegar, e
esta vinda, d'antes tão desejada, incutia-me agora invencivel horror.
Dezejei-lhe a morte. Tornei-me sombrio, desconfiado, interrogador.
Recomeçaram as nossas luctas.


XLI

Nunca me viera a idea de romper com Fanny; mas travados outra vez em
guerra, de repente me appareceu, fulgurante como um relampago. E eu
senti entrar com ella em meu coração a suave caricia da esperança. Mas
esta esperança, ai! não durou mais que um segundo. Máo grado meu,
tremulo de horror, dei-me pressa em repulsar a idea do meu resgate.


XLII

Depois de uma discussão em que, mais uma vez, eu expozera aos olhos
d'ella as minhas angustias, Fanny veio de moto proprio a devassar d'um
pensamento que eu não ousara nunca deixar-lhe vêr.

--Não fui esperta--disse ella. Eu devia fingir-te a minha vida. Por
muito improvavel que fosse o que eu te contasse, tu acreditarias tudo,
por que iria no acredital-o o teu interesse. Não fui esperta, mas é que
eu nunca soube mentir.

Esta confissão foi para mim uma subita revelação, suppuz logo que ella á
semelhança d'outras mulheres, orgulhosa de ser feliz, escondia
vaidosamente a um tempo, vicios e dôres, e, desgraçada, queria que a
suppozessem feliz. Esta suspeita inquietou-me oito dias; mas a esperança
que me ella gerava no coração não podia durar. Instei Fanny,
facilitando-lhe recursos para desmentir-se e patentear-me tudo de sua
vida. Admirando-se de eu duvidar d'ella, Fanny confirmou glacialmente o
que me havia dito e tornou-me á desesperação.


XLIII

Approximava-se, n'esta conjunctura, o praso que o marido designara para
voltar. Parecia-me que devia ser esse o dia da nossa separação, e da
morte para mim. A idea da partilha enojava-me. Resolvi cem vezes
explicar-me com Fanny á cerca d'este assumpto horrivel, mas não me
attrevia. Havia n'ella uma especie de renascimento: nunca a vira tão
terna e submissa. Ao mesmo tempo deu em ser muito expansiva. Nos ultimos
tempos, coisas insignificantes tocantes á sua vida intima, andavam
sempre em nossas praticas; d'ahi vinha o continuar ella agora a
fallar-me dos minimos incidentes da sua vida. É o que devia, mais tarde
collocar-nos face a face, na attitude ameaçadora de dois inimigos.

Não sei como se deu, nem qual de nós foi causa da scena atroz que
sobreveio; lembra-me só que Fanny estava já para sair, e ambos nós em
pé. Acabava ella de apertar as fitas do chapéo, deante do espelho do
fogão, ao qual eu me encostava; já tinha o chale nos hombros, e buscando
com os olhos o lenço, que pozera sobre uma meza, acabava de abotoar as
luvas. Assim, continuavamos em termos meio affectuosos e familiares uma
contenda que intendia com ella e com o marido. Estavamos ambos serenos
quando lhe aconteceu proferir uma palavra que me gelou o sangue nas
veias:

--Eu mentiria, se dissesse que não tinha affeição a meu marido.

Logo que reflectiu na crueza d'essas palavras, tão imprudentes como
inuteis, arrependeu-se de as ter dito. Sem accrescental-as, nem
desmentil-as, acercou-se de mim, affastou o chale para me cingir o
pescoço com o braço, amimou-me o rosto com a mão livre, e alteou-se nas
pontas dos pés para abraçar-me.

Era carinhoso o olhar, que exorava perdão á crueldade da bôca. Forcei-a
lentamente a desprender-se-me do peito, e disse-lhe severamente:

«Vós outras, as mulheres, não tendes delicadeza alguma no coração.»

«Córou, fez-se mais meiga, mais insinuante, e quiz outra vez abraçar-me.

Puz-lhe a mão no hombro e affastei-a: dizendo-lhe, tremulo de furor:

--Ha dias que me falla em seu marido, incarecendo-o muito. Esquece-se de
que não é elle agora o mais digno de lastima?

Apertou-me inergicamente a mão, em quanto com os labios cerrados, á
mingua de palavras, me fitava com ternura supplicante.

Mas a colera recrudescia a proporção que Fanny denunciava
arrependimento. Continuei:

«É justo que o ame, por isso mesmo que a sua estima se lhe deve com
preferencia a tudo.

Conheceu Fanny que não poderia apaziguar-me. Não sabendo que mais fazer,
deixou passar aquella phraze de interpretação doble, desdeu os laços das
fitas do chapeo, pousou o chapéo e o chale sobre a cama, e assentou-se
n'uma poltrona defronte de mim. Com o cotovelo esquerdo apoiado no braço
da cadeira, a face na palma da mão, os olhares ondulantes, assim ficou
na sua habitual posição. Mais que nunca linda, com aquelles braços
maravilhosos, cuja alvura assombrada de pennugem destacava da seda negra
do vestido; com as grandes luvas de pelle da Suecia que lhe cobriam os
pulsos; com o collo flexivel e inclinado; e côr pallida; e os cabellos
louros voluptuosamente annelados sobre a fronte pura: era a semelhança
de algum bello retrato de Rubens. Por de sob a fimbria do vestido,
sahiam os pequenos pés reunidos e assentes no chão. Nas escuras dobras
da seda envolvia-se o braço direito, cuja mão, meio fechada, permanecia
immovel como se fôra de marmore.


XLIV

Quando o publico soube o desastre do marido de Fanny, soubera eu que em
Pariz circulavam boatos deshonrosos para elle. De ser rico e altivo
grangeou muitos inimigos. Deviam de ser calumniosos os ditos que sahiam
de bôcas invejosas. Não os desmenti por prudencia, mas fiz nota d'elles.
Bem sabia eu que um dia me serviria d'elles para vingar-me.

Esperava eu, exasperado pelo furor, que uma palavra, provocando-me de
novo, me desculpasse a crueldade. Ella, porém, de astucia não fallava,
adivinhando que eu interpretaria á feição de minha raiva tudo que me
dissesse. Assim ficamos ambos immoveis, callados, ella, esperando o
golpe final, eu reunindo as minhas forças todas para descarregal-o.

Decidi-me em fim: e, com uma só phraze cortante como gume de espada,
attacando o mais sagrado da honra do meu rival, repeti as infamias em
que eu não cria.

A resposta foi prompta e terrivel. Isso é indigno!--exclamou ella
erguendo-se hallucinada, escarlate, com uma expressão de colera e
indignação que me assombrou.

Não quero que se rosse na honra do chefe de familia! Não quero que se
deshonre aquelle cujo nome eu trago! Por isso que o trahi; por isso que
conspurquei a parte de sua honra que elle me confia, é que eu prohibo
que se ultraje a outra... e principalmente ao snr!... Envergonhe-se!...
Se acreditou essas calumnias, competia-lhe defendel-as commigo, pois foi
commigo que...

Interrompeu-se. Eu immudeci, e ella proseguiu: Fallou-me ahi na
indelicadeza de coração das mulheres; e eu fallarei do orgulho dos
homens. Não é só do amor das mulheres que carecem para estrado... Querem
tudo o que ellas prezam, tudo o que respeitam: estima do mundo, familia,
filhos, repouso, e até a honra de seus maridos. Tudo lhes é mister para
desvirtuar e rediculisar essa honra. Estou de mais castigada por ter
crido que podia impunemente amal-o! Fui prudente; e por isso não é meu
marido ultrajado que castiga a minha culpa; mas--castigo mil vezes mais
cruel--é o meu amor. Mereço esta pena... e é o snr. que me pune!

Continuei callado: e ella, com a boca a trasbordar sarcasmos, proseguiu:

É como todos! O que ahi ha é orgulho. Não sabe amar!

Desta vez, respondi turvado:

«Não sou desculpavel por aggredil-o?

--Aggrida-o como homem. Não tem tantas causas para o fazer?

«Por Deus que o farei!

Furioso, com os olhos injectados de sangue, os dentes cerrados, avancei
para Fanny, mas ella suspendeu-me a tres passos com um olhar glacial que
eu nunca lhe vira. Depois vagarosamente embrulhando-se no chale, da
cabeça aos pés, como a sacerdotiza antiga, sombria, feroz, desesperada,
deixou cair sobre mim outro relancear de olhos despresador, e sahiu.


XLV

Que farei para apasigual-a?--Tal foi a ignobil pergunta que eu me fiz,
ao amanhecer do dia seguinte.

Escrevi-lhe uma longa carta tão submissa que não pude revêl-a sem pejo.
Rasguei esta carta, comecei outra, mas tão acerba de estylo que devia
exasperar quem eu queria commover. Não a conclui, e andei uma hora a
passear phreneticamente em todas as direcções no meu quarto. Primeiro
tive ideias de rompimento immediato; depois desvaneceram-se. Rebentou em
chamas o furor e o ciume; depois apagaram-se. Por fim, comprehendi que o
procedimento a que eu quizera impellir Fanny, era um crime, o qual,
consumando irremediavelmente a desgraça d'uma familia inteira, devia
tornar-nos desgraçados para sempre. Era-me pavoroso pensar que, a ter-me
ella attendido, durante a nossa existencia toda, viriam interpor-se
entre ella e mim as imagens de seus filhos abandonados.

Mas ao mesmo tempo escasseava-me força para o resgate. Affizera-me ás
minhas dôres, e não ousava trocal-as por dôres desconhecidas. É preciso
ter sido, como eu fui, o tudo nas ternuras e affeições d'uma mulher, o
coração que incessantemente regia os movimentos d'outro coração, para
poder comprehender os horrores da solidão que segue um rompimento. Eu
delirava de raiva e dôr. Por fim, commovi-me, erguendo os olhos para o
retrato de Fanny.

--Que mal me fez ella?--dizia eu. Chorei; e, indeciso, vesti-me, e sahi.


XLVI

Seriam oito horas. O calor dos ultimos dias d'agosto purpureava o céo
carregado. As trevas, semelhantes a mortalhas espargidas, desciam com a
nevoa opaca atravez das arvores da grande avenida dos campos-Elyseos. Os
passageiros davam-se pressa para fugir á tempestade que trovejava
surdamente ao longe. As estrellas brilhantes das lanternas, aqui e além,
corriam, cruzavam-se e desappareciam. Nuvens de pó sacudido pelo vento
subiam diante de mim e toldavam o espaço. A meio-caminho, quasi entre
_Rond-Point_ e o «Arco do triumpho» parei.

Era alli. Encostei-me a um tronco de arvore, levantei o rosto, e olhei.
A meus pés era a passagem das carruagens que vão do portal á avenida.
Sobre a porta estavam abertas as quatro janellas da sala. Uma só
lampada, por certo, illuminava o recinto, por que a claridade que
translusia dos vidros escassamente brilhava como um clarão duvidoso.
Nenhuma sombra passava entre a lampada e os vidros. A casa está
vasia--pensei eu--e todavia Fanny não está em _Chaville_ por que a sala
tem luzes.

Estalou, neste momento, mais forte a trovoada.

Relampaguearam os coriscos. Um bulcão rugiu na ramagem dos alamos da
avenida, remoinhando turbilhões de folhas e terra. Então vi uma sombra
de homem chegar á ultima janella, e fechal-a. As outras tres fecharam-as
mais tarde. Depois, a froixa claridade que alumiava a sala bateu nas
vidraças mais tensa e viva: havia-se accendido uma segunda lampada.

E depois, mais nada. A avenida deserta, a tempestade no céo de todo
negro, eu em pé debaixo da minha arvore, e a sala vasia com as quatro
janellas lusentes. Soaram onze horas no relogio d'uma egreja visinha.

De repente, o estrepito de rodas acceleradas, mordendo a areia, passou
ao pé de mim. Eu dera, sem saber porque, alguns passos authomaticos.

--Arreda! Arreda! gritou uma voz irritada. Saltei para a margem da
estrada. Um _coupé_ vasio passou bamboando sobre o eixo, effeito dos
sacões; depois uma grande carroça de viagem tirada por quatro cavallos,
voltou de repente sobre si mesmo, ao tempo que se abriam os dois
batentes da porta-cocheira. Remirei a carroça com assombro. Ao fundo
estava um homem, que eu bem conheci--era elle. Ao seu lado uma mulher
que lhe fallava: era Fanny. Entre elles, sobre os joelhos, e nos braços,
tres meninos de cabellos louros. Foi uma visão rapida. Não sei se me
viram. A carroça desappareceu por debaixo do arco do portal, e logo os
dois pezados batentes rodaram nos gonzos, e bateram entre si com
estrondo lugubre e cavernoso.

Acabava eu pois de me arredar para dar passagem ao meu rival que entrava
como senhor em sua casa.


XLVII

Por que me não esmagou elle com as suas rodas?--exclamei, com a morte na
alma, retirando-me, e caminhando ao acaso como um ebrio.

Passava uma sege de praça; entrei--onde quer ir?--diz o boleeiro,
embrulhando-se no seu capote--onde quizeres, ao Bosque, onde quizeres. E
senti-me arrebatado d'aquelle sitio funesto.

A chuva escorria sobre as vidraças corridas. Encolhido n'um angulo da
sege, com os braços cruzados, e a face encostada á almofada, vi de lado,
ao clarão dos relampagos, estorcerem-se as arvores atormentadas pelos
furacões. A intervallos, resalteavam no ar as astilhas dos coriscos. E
eu dizia: Esta tormenta não os aterrará? Não sei que tempo passei
blasphemando, rasgando o peito com as unhas, chorando, dentro dessa sege
que corria atravez das arvores do bosque, ao clarão avermelhado dos
relampagos. Sentia-me abafar. Desci os vidros e a chuva batia-me na cara
e nas mãos. Encostei-me ao rebordo da portinhola, com a face deitada nos
braços. Tomou-me uma sensação horrivel de frio. Tinha febre. «Quer que
recolhamos?» dizia de espaço a espaço o boleeiro cançado.

--Quero--disse eu, fatigado já tambem.


XLVIII

Nascia a aurora lagrimosa no mal enchoto céo, quando, erguendo a face,
reconheci uma casa á margem da estrada. Era a della. Todas as portadas
da janella estavam fechadas, e as luzes extinctas. Apenas um clarão
avermelhado excessivamente mortiço, semelhante ao que sahe d'uma
lamparina, brilhava como um ponto entre duas taboinhas de persiana, na
ultima janella da direita, em uma alcova lateral ao salão. Debrucei-me
longo tempo sobre o apoio da portinhola para enxergar o ponto vermelho e
expirante. Mas não chorava já. Ia tranquillo, de gelo, prostrado de
fadiga.--Dormirá ella agora?--me dizia eu.


XLIX

Os primeiros dias, que seguiram esta noite horrivel, passei-os n'um
estado de stupor de que não havia arrancar-me. Esperava não sei que, que
devia terminar-me a vida e os males.--Isto não póde acabar assim!--dizia
eu. Vinte vezes ao dia, pedia a minha correspondencia mas nem se quer
abria as cartas que o meu creado me trazia. Bastava-me vêr a lettra dos
sobre-escriptos. De Fanny não vinha alguma. Affigurava-se-me que ella
tinha morrido. Isto amedrontava-me. Cheguei a duvidar da minha rasão.

Ao oitavo dia, depois da nossa ultima entrevista, tive um presentimento
de que ia vêl-a. Preparei tudo o que queria dizer-lhe. Senti-me vencido.
Queria pedir-lhe perdão; declarar-lhe que estava prompto a submetter-me;
queria supplicar-lhe alguma piedade para os meus padecimentos. Esperei-a
em vão até noite fechada, contando as horas nas pulsações alternadamente
precipitadas e desfallecidas do meu pulso. Não veio. Não escreveu.
Ninguem me deu um instante de esperança fazendo vibrar a campainha da
minha porta.

Ao anoitecer, sahi na direcção da casa d'ella. Chegando á alameda fiquei
surprehendido, vendo tudo fechado. A ideia de Fanny ter ido para longe,
tão longe que eu não podesse vêl-a mais, atravessou-me o cerebro como um
dardo. Com horrivel angustia, mas affoitamente, como um covarde, a cuja
cabeça subiram as fumaças da bravura, bati á porta e perguntei ao creado
se a senhora estava em casa. Eu estava pallido e tremulo; mas elle não
deu fé.--A senhora está no campo--respondeu, «Onde? em Chaville?»--sim,
senhor.

Fui encostar-me a uma arvore por que me sentia desmaiar.

Ao cabo de alguns minutos decedi-me a ir para casa. Era meia consolação
saber que Fanny estava ausente. Comprehendi, emfim, o motivo que lhe
estorvara a vinda; mas não comprehendi por que me não escrevera durante
oito dias. Eu deveria suppor tambem que ella esperaria carta minha; mas
havia ainda muito egoismo no meu despeito.

--Quem sabe se ella me espera lá--dizia eu para consolar-me.

Apenas esta ideia se me abriu no espirito que um desejo imperioso de vêr
Fanny, á custa de tudo, e logo, me assaltou. Estava então perto de casa.
Entrei rapido e pedi o meu cavallo. Ajudei mesmo o creado a
apparelhal-o. E lancei-me ao caminho, cheio de esperança, com as esporas
cravadas nas ilhas sacudindo as redeas, á desfilada, enlameando
passageiros, sem mandar arredar ninguem.

Tanto corri que receei ter-me desencaminhado, e não conheci a casa de
Fanny, que estava em frente de mim, vagamente alumiada, debaixo das
agigantadas arvores. Mas, alçando-me sobre os estribos, para olhar por
cima do muro conheci o pavilhão. Apeei, e entrei no bosque para prender
o cavallo a uma arvore. Depois, retrocedi, e vi com surpreza que a
graderia do jardim estava aberta. Um creado de farda estava á porta. Ao
cabo da aléa, no cunhal da casa, vi brilhar as duas lanternas d'uma sege
immovel.

A meio caminho entre a casa e a grade, um pouco á esquerda, no centro de
um amplo taboleiro de relva, os vidros coloridos do pavilhão fulguravam
aos raios d'um candieiro posto no interior.

--Que segnifica tudo isto?--perguntei eu, caminhando ao longe do muro
para encontrar a brecha por onde eu passára duas vezes. Mas apenas puz o
pé no jardim, fiquei como pregado no chão. Estava ouvindo imprecações e
soluços; do pavilhão, a vinte passos de mim, é que elles sahiam.

Cobriu-me o corpo todo um suor frio. Eu tremia como a folhagem dos
arbustos, sob as quaes me escondera.

Neste momento, a sege correu a grande trote dos cavallos para a grade;
de certo o cocheiro obedeceu a um chamamento que eu não tinha ouvido. Ao
chegar defronte de mim, parou, e o creado da almofada abriu a
portinhola. Tinham cessado os gritos e os soluços. Sahiu um homem do
pavilhão, e fechou-se a porta. Reconheci-o. Que outro poderia ser?
Assentou-se nos coxins, o creado subiu para a almofada, o cocheiro picou
os cavallos, a sege passou a grade, rodou sobre a calçada sonora, e a
grade foi fechada pelo creado de farda que estava ao pé.

Logo que este homem, caminhando para casa, se sumiu entre o arvoredo,
avancei precipitadamente, sem precauções. Antes, porém, de levantar o
trinco da porta, examinei atravez dos vidros. No centro do pavilhão
estava uma meza redonda, com um candieiro em cima. Em toda a roda corria
um amplo divan; e deitada sobre este divan, vi uma mulher chorando, com
a face entre as mãos, dando soluços de rasgar o coração, era ella!
Fanny! ella! Entrei precipitadamente abri-lhe os braços, e lancei-me de
joelhos a seus pés.

Mal me havia reconhecido, quando expediu um grito lacerante, apertou-me
a cabeça entre os braços, e abafou-me contra o seio. Eu não podia fallar
nem respirar. Fanny beijava-me os cabellos, desgrenhava-os com a face,
mordia-os para suffocar os gritos; depois ergueu-me a cabeça e eu senti
cahirem-me lagrimas nas faces, em quanto os seus labios frementes se
agitavam sobre os meus vertiginosamente, e suas mãos palpitavam por
sobre meus hombros, face, pescoço, em phrenetica inquietação.
Finalmente, cahindo desfallecida e quebrada de dôr tirou por mim, e
arrastou-me na quéda sobre o divan. Ergui-me. A partida do marido, e as
lagrimas d'ella, eram-me coisas incomprehensiveis. Entretanto, fiz
quanto pude por chamal-a á vida. O candeeiro, cahindo, apagara-se.
Caminhei para Fanny ás apalpadellas, arranquei-lhe os colchetes do
vestido, e tirei-lhe a pedaços o colete. Depois, á força de caricias,
rogos e orações, aquecendo-lhe as mãos com as minhas, e bafejando-a com
o meu halito ardente, consegui reanimal-a. Soltou um longo suspiro, e
ergueu-se amparada nos meus braços, e parecia reflectir. Torrentes de
lagrimas lhe rebentaram dos olhos, e lançou-se a mim com tanto amor, e
com ar de tanta piedade, que eu, a soluçar tambem, a comprimi ao peito.

--Oh! Roger! meu Roger--exclamou Fanny com a voz entrecortada--se
soubesses que desgraçada eu sou! Consola-me. Ama-me. Soccorre-me. Oh!
que bem me faz o chorar sobre o teu coração... Meu querido Roger!

Os soluços embargaram-lhe as palavras. Instei com ella que se
explicasse. Eu não sabia ainda que dôr podia ser esta, que rompia em
gritos de indignação.

--Teu marido sabe tudo, sim? disse-lhe eu. Fanny fez um meneio de cabeça
negativo, e respondeu:

«Não, não é isso; mas ha um anno que te minto. Eu sou a mais desgraçada,
a mais humilhada, a mais insultada das mulheres. A escoria, o opprobrio,
as infimas mulheres não são mais desgraçadas que eu!

A este grito, que lhe fugia do peito não tinha eu que oppor. Fiquei
estupido e estupefacto. Não achava palavra que lhe dissesse. O que eu
fazia era abraçar convulsamente a lagrimosa mulher. Subito, um raio de
luminosa previdencia me esclareceu o espirito.--Se não aproveito esta
occasião para confessal-a, nunca saberei nada--dizia eu commigo.
Tranquilla deste lance, nunca mais fallará.

Era judiciosa esta idéa. Fiz bem escutar-lhe a inspiração. Empenhei,
pois, toda a minha eloquencia para tirar desta pobre mulher o segredo,
que por tão largo tempo, me havia occultado. Instei, animei-a,
interroguei-a, mostrando-me consternado por sua dôr. Entrei, pois, no
segredo d'uma deploravel historia, não d'uma vez, mas arrancando-lh'a a
promenores, a pedaços, por que a sua exaltação, deixando-se ir até dizer
tudo, era intervallada de reticencias nos mais delicados pontos da
narrativa.

Fez-se luz então para mim tudo o que houvera escuro e incomprehensivel
na sua vida e proceder.


L

O marido de Fanny não era o homem fastidiosamente bom que eu cuidava.
Era um terrivel déspota. Mulher, amigos, creados, todos se acurvavam aos
seus caprichos e obedeciam passivamente ás exigencias do caracter
d'elle. Por zêlos, não é que elle opprimia a mulher, senão que por
indomavel espirito de vontade. Em sua casa havia uma unica pessoa que
dava regra e á qual deviam amoldar-se habilmente as de mais. Não se
tinha em conta de mero homem; dava-se ares d'uma especie de sol que
allumiava; aquecia, e communicava vida a tudo que o rodeava.

Pelo que, logo que viu sua mulher, aconselhada por mim, desviar-se
insensivelmente da norma de vida que elle traçara, ficou primeiro, como
pasmado; mas, com um carregar de sobr'olho, fez que Fanny entrasse
immediatamente na ordem. Todavia, não lhe deu canceira averiguar o por
quê d'aquella timorata tentativa de emancipação. A seu vêr, toda a
mulher era ente chimerico, dirigido por machinismo incomprehensivel, que
não merece analyse séria. Nem elle tinha arrebatado Fanny, nem a tinha
esposado por amor. Não. Seduzira-a por que era formosa, e elle queria
que uma mulher formosa fizesse as honras de sua casa. Raptou-a porque
lh'a negaram. Esposara-a porque era rica, e elle pobre, e, de mais,
queria, a um tempo, enriquecer-se e propagar-se.

E, como a visse submissa, todo elle era disvelos. Era-lhe ponto de honra
gastar cada anno, com sua mulher dobrado do rendimento do dote, e a
miudo a presenteava com ricas dadivas para ostentar sua liberalidade.
Sentia por ella, em summa, alguma coisa d'aquella rudeza attenciosa que
tem os cavalleiros arabes pelos seus cavallos de fina raça. Usam elles
mesmos arraçoal-os com uma das mãos, tendo na outra o chicote prompto a
castigar o menor desmancho.

Por largo tempo, Fanny, subjugada por aquella vontade superior,
docilmente se sugeitou. Pensou, executou, viveu por elle. Á força de
paciencia, obteve, por fim, de seu senhor uma apparencia de liberdade.
Alguns mancebos--segundo me pareceu--approveitaram isso para cortejarem
franca e assiduamente a bella mulher cujo ar de tranquillidade inculcava
um longo habito de rebellião interior, e de dôres inexpansivas. D'isso,
porém, o marido nem se quer suspeitou. Sómente o accaso lhe trouxera ás
mãos uma carta de comprometter. A scena immediata a este descobrimento
foi terrivel. Não se deram, com tudo, gritos, insultos, nem brutalidades
degradantes; nem duelo, nem explicações, nem separação forçada dos dois
imprudentes, que teriam castigado irremissivelmente o orgulho do esposo,
mesmo quando o vingavam. O intelligente marido o que fez foi declarar a
sua espoza que guardava a carta. E, desde então, cada vez que a via
inclinada a emancipar-se, servia-se da tal carta para a fazer tremer e
submetter-se. Um quarto de papel tornou-se nas mãos deste homem um
punhal com que elle espicaçava a mulher para fazel-a andar deante
d'elle.

Era, pois, um vilissimo homem? Não: era simplesmente orgulhosissimo.
Ainda que aquella carta preciosa fosse mil vezes mais explicita, o
marido não lhe daria credito. Em quanto a elle, aquillo, quando muito,
era a prova d'uma creancice perigosa que, astutamente explorada, poderia
degenerar em apparencias de crime. Mas no crime é que elle nunca
acreditou. E acreditar, como? Era impossivel, pela simples razão de que
sua mulher não podia mostrar-se criminosa para com elle. E não podia por
que era sua mulher. E não podia, por que elle... era ELLE. Por tanto,
censurando um pouco essa creancice humilhante, não se mostrava inquieto
nem menos feliz. E continuou a amar a mulher, a seu modo, com aquelle
seu coração de ferro. Depois de quinze annos de casado, vinham ainda ás
vezes uns dias em que elle era todo amores com ella.

A arma, porém, continuava a ser arma em suas mãos, e sempre com
serventia. Primeiro, graças á carta, obteve de Fanny que não fallasse
mais com sua mãe, que elle detestava, por que o não quizera de bôa
vontade acceitar por genro. Depois, exigiu que fizesse crear os filhos
em peitos alheios, sob pretexto que os cuidados maternaes lhe
desbotariam o gosto dos prazeres da sociedade. Depois, sem consultal-a,
e sem visivel utilidade, vendeu o castello onde ella nascera, onde
passara a infancia, e o parque onde estavam sepultados seu pai e seus
dois irmãos. Finalmente, graças á prestimosa carta, não havia repressões
que não lhe ordenasse, vexações que não lhe impozesse mas sem maldade,
mas prodigalisando-lhe sempre obsequios e cortezias, principalmente em
publico. E a vida de Fanny tornou-se um inferno no qual um implacavel
demonio a torturava com uma mão, e acariciava com outra.

Quando, porém, Fanny resistia a exigencias graves, ou a ultrages brutaes
á delicadeza d'ella, é que o marido rompia em transportes inauditos.
Nesse caso, perdia a consciencia de si proprio, mas por uma hora
sómente. Deixava de ser o homem urbanamente desdenhoso que trazia na
cara os mais exquisitos matizes da superioridade de caracter, e cujo ar
affavel e franco, parecia dizer a todo o mundo: «Vede que não ha que
temer de mim.» Transfigurava-se em leão que a natureza amassara com as
suas mãos callosas, e que a educação desbastara apenas. Hirtavam-se-lhe
como crina os cabellos. Flammejavam-lhe os olhos como reflexos d'oiro
fundido. As ventas dilatadas assopravam um halito ardente. A boca
contrahida abria-se, e mostrava dentes admiraveis, como se ameaçassem
dentadas. Crispavam-se-lhe os punhos cerrados. Era medonho. Havia um
insulto que não deixava nunca de esbofetear a victima. A carta dava
sempre o pretexto. E era sempre o mesmo insulto, a mesma palavra infame
que a marcava na fronte como ferro em braza, e que a rebaixava--como
ella dizia--á ultima escaleira de todas as mulheres.

Mas a sorte, que não tem compromissos com as paixões e os caracteres,
obstinava-se por vezes a brigar com este athleta. Feriam-no successos
imprevistos: obstaculos estranhos sahiam a empecer-lhe os passos. Então
era sublime! Não blasphemava, não injuriava a sorte, por que sabia que
era inutil; mas arcava com os successos e obstaculos, e luctava
silenciosamente, friamente, pacientemente. Por custume, dominava a
sorte. Quando lhe correram risco os bens da fortuna, á força de audacia,
conseguio resarcir a melhor parte, abandonando a outra, como um favor
irrisorio aos credores, seus emulos. Outro qualquer, no logar d'elle,
esmoreceria, que vontade como a sua não havia quem a tivesse. Mas um
exito mediocre não bastava a este homem, insaciavel de exitos
estrondosos. Decidira safar o seu navio de entre os escolhos onde fôra a
pique. Queria salvar tudo, carregação, apparelhos, e até o lastro.
Jurára de não ceder ao oceano, um prego só. Eil-o ahi, que, descançando,
na meditação de oito dias, dos seus primeiros trabalhos, reapparece no
sitio do naufragio mais azafamado, mais resolvido, que na primeira vez.
Esta partida subita cauzara a ignobil disputa de que eu fôra
involuntaria testemunha.


LI

Parece que, ao jantar, em poucas palavras annunciara elle os seus
projectos a Fanny. Mostrara-se tranquillo, meditativo, quasi affectuoso.
Gracejou com Fanny sobre o seu ar melancolico, motivado pela vida
absurda do campo. Brincou com os filhos. Foi polido, como sempre, com os
creados que o serviam. Ao pospasto, levantou-se, pedio um charuto,
accendeu-o, e dirigiu-se ao pavilhão, com Fanny sobraçada, dizendo-lhe
frioleiras com geito amavel. Como os filhos os seguissem, brincando na
relva, foi ter com elles, abraçou-os, despediu-os, e pediu-lhes
affectuosamente que fossem brincar mais longe. Depois, assentou-se no
divan do pavilhão, cuja porta estava aberta, fumando o charuto, e
bebendo, o seu café aos golinhos. Ao cerrar da noite, veio o escudeiro
com a luz. Pediu-lhe que mandasse pôr os cavallos á carruagem. Até ahi
dissera sómente frivolidades com ar festivo; mas, retirado o escudeiro,
ergueu-se a fechar a porta, tirou tranquillamente do bolso um papel
sellado, e disse a sua mulher:

«Minha querida, escreve a tua assignatura ao lado da minha no fundo
d'esta folha de papel.

Fanny pegou da penna que elle lhe offerecia, mas, antes de escrever,
disse-lhe:

--Que são estes engrimanços que eu assigno?

«Não é mais que um instrumento de doação reciproca de todos os nossos
bens.

Fanny depoz a penna sobre a meza, e perguntou-lhe mansamente algumas
explicações sobre o uso que elle ia fazer d'aquillo. O homem avincou a
testa, e annunciou-lhe que, por algum tempo, ia «reassumir o negocio, e
carecia de muito dinheiro.»

--Não somos nós já bastante ricos?--disse Fanny.

«Não.

--Então vai ser exposto o meu dote?

A esta pergunta, encarou-a carrancudo, e respondeu provocante e
glacialmente:

«Sim.

--Então não assigno--disse ella como atterrada da sua coragem--porque
não quero expor os bens de nossos filhos.

Foi então que estalou a borrasca. Foi curta, mas pavorosa. Vendo-se
contrariado por uma impossibilidade, o déspota rugiu de furor. Pela
primeira vez em a sua vida, travou do braço da esposa, apertando-lho
para obrigal-a a assignar, e pizou-lh'o. Fanny supportou, não respondeu,
nem chorou. Cumularam-se sobre ella desprezos, incriminações, injurias,
todos os insultos e vilanias compendiadas pela recordação das passadas.
Veio tambem a affronta suprema, a palavra fatal, estalar na lingua do
insultador. Ahi é que Fanny chorou, soluçou e decidiu-se a assignar.
Serenou logo o marido: agradeceu, e quiz beijar-lhe a mão; ella, porém,
mostrando-lhe o braço contuzo, disse:

--Não é por isto, Deus me é testemunha, que eu o desprezo; é pela
covardia do insulto. Dito isto, elle pediu perdão por de mais,
chamou-lhe creança e má cabeça, abraçou-a por força, chamou o cocheiro e
partiu.


LII

Logo que Fanny, cedendo ás minhas instancias, me contou aquelles
extraordinarios successos,--não ordenados como os eu repito, mas em
fragmentos incoherentes, misturados de raptos de rancor;--logo que eu
nada tive que indagar, e que ella immudeceu por não ter nada que
contasse, ficamos algum tempo a contemplar-nos silenciosos, á luz tibia
das estrellas, com spasmo temeroso. Alguma coisa formidavel se estava
erguendo entre nós modificando estranhamente a nossa situação.

Eu não pude, ainda assim, entrar logo na averiguação dos factos que,
forçosamente, deviam derivar d'aquella surprehendente confissão. Eu,
vendo Fanny ainda pallida, descompostos os cabellos, e tremula, só
pensava na sua humilhação.--É pois desgraçada!--disse eu no intimo da
minha alma. Tirei-a a mim suavemente pelo colo, busquei-lhe os labios, e
abriguei-a nos meus braços com o ardor da esperança e da piedade.

Oh! como foi longo, estreito e desesperado aquelle abraço! Com elle se
esposaram nossas almas, e ali sentimos o que ha de piedade na mudez
d'aquelle apertar, de consolações nos suspiros, e que sympathia
reflorece da mixtão das lagrimas! Éramos sósinhos, silenciosos, n'uma
vaga escuridão, adornada pelo tibio alumiar de noite de estio. O
desalinho dos vestidos de Fanny, o cansaço de chorar que a retinha
deitada nos meus braços, o pejo d'uma confissão, que, posto que lhe
desse alivio á alma, lhe opprimia o orgulho pela primeira vez; a
felicidade de nos revermos mais amantes, mais alliançados que nunca,
após uma scena terrivel que devia desligar-nos: isso tudo insinuava-nos
não sei que desaffôgo de expansão reciproca, mesclada de amargura e
dulcificação. Emquanto meus labios lhe rossavam de leve os longos
cabellos desannelados, surprehendia-lhe no coração a velocidade de
movimentos que se me figuravam surdas expressões de cólera. O
arrepender-se de ter defendido por tanto tempo e nobremente, contra os
meus ataques, aquelle que lhe era um jugo na vida, arrancava-lhe gritos
de uma ironia implacavel. A irritação do insulto, e a indignação do
aviltamento immerecido, apertava-lhe os braços em volta do meu pescoço
mais energicamente do que nunca o fizera o amor. Ao mesmo tempo, o pesar
de ter flagellado o amante, cuja só presença lhe estava sendo a mais
terna das consolações, como a mais rapida e segura das vinganças,
inspirava-lhe a submissão e a supplica. A lembrança do meu rival,
presente a nós, ajuntava uma acrimonia angustiosa aos beijos d'ella, e
uma dôr infinita ás minhas caricias; e n'aquelle instante ao menos, em
que, sem fallar, trocamos tantas sensações e idéas bem comprehensiveis,
Fanny, estava emfim, na minha idealidade, absolutamente, e para sempre,
tão ligada a mim quanto apartada d'elle.


LIII

Quando recobramos a palavra, o furor, reconcentrado em mim, fez subita
explosão.

Fanny ficou estupefacta. Pronunciei, como um demente, palavras ardentes,
sem nexo. Uma especie de loucura acerava, como laminas de um punhal,
cada uma das minhas phrazes, e a raiva hervava-as de peçonha a mais
corrosiva.

O sentimento da impotencia da vingança, a certeza de que os males
d'aquella mulher deviam renovar-se infinitamente, e os meus ciumes
passados, e mais que tudo, a memoria das nossas deploraveis questões,
causadas por aquelle indigno homem, faziam-me offegar de colera como
homem que acaba de levar uma bofetada, e não pode despedaçar entre as
mãos aquelle que lhe gravou o ferrete deshonroso... Na minha demencia,
parecia-me que o amor de Fanny, perdia tanto do seu valor, quanto mais
desgraçada ella era; e, envergonhado d'esta atroz idéa, meditava em
matar, e dar por ella a minha vida. Fanny, porém, ainda abatida, mais
queria ser consolada que vingada.

Abraçou-me, e, coisa estranha! foi ella que me affagou para me
pacificar.


LIV

Passei o dia seguinte a recordar tudo o que tinha sabido. Havia muito
que eu não sentira, como então, o espirito desoprimido de duvida.

Um feliz provir se descortinava ante os meus olhos, depois de tão
tormentoso passado, como serenos valles e descampados aos olhos do
viajante que desce a ladeira escarpada de perigosas serranias. A
esperança d'uma existencia quieta refrigera a alma como a briza da tarde
que succede aos ardores do dia, e agora tudo me convidava a repousar-me
á borda da senda facil, que docemente se aplanava debaixo de meus pés
contusos. A serenidade dos dias, a auzencia das inquietações, eram a
minha prespectiva. Pensava n'isto sempre, e minha alma enlevada
derramava-se em effluvios de reconhecimento ao acaso que se cansara,
emfim, de me transviar.

Entrava n'este sonho necessariamente a imagem de Fanny. Era a
companheira que me seguira através dos abysmos da paixão. Soffrera
irmamente commigo a longura das caminhadas, a incerteza do fim, os
espinhos occultos sobre os quaes, juntos, laceravamos os pés. A mesma
dôr nos arraiara de sangue os olhos, e abrazára os nossos halitos. A
ancia do repouso sentiramol-a ambos ao mesmo tempo. E, como se fosse
preciso que o mais debil dos dois soffresse mais, Fanny dava-me alentos
para a resignação, e com as mãos trementes enxugava-me da fronte o suor
do desespero, e ao mesmo tempo escondia-me dôres e trances particulares
que ella suportava heroicamente para me não angustiar.

Mas agora esses desgostos que eu surprehendera, estavam sanados.
Renascer não poderiam mais. Ambos livres do phantasma que tão cruelmente
nos perseguira, podiamos, em fim, senhores de nossas acções,
compensarmo-nos amplamente do supplicio e dos terrores. Á maneira de
dois fugitivos, que não deixaram pégadas, e vão ás bordas das fontes, e
á sombra dos bosques silenciosos, sacudir o pó das sandalias, nós nos
íamos, emfim, vingar da sorte estupida, esquecendo os tormentos que nos
infligiramos.

D'est'arte sonhava eu, a sós commigo, contemplando a imagem querida de
Fanny que me sorria entre as mãos, cingida em moldura de ouro, como
d'uma aureola. Assim me comprazia dispondo ante nós as paragens do nosso
futuro.

Nunca eu afagara mais cruel illusão!


LV

O dia em que tornei a vêr Fanny, era um dia explendido!

Veio a minha casa, de manhã, deliciosamente vestida, como para celebrar
dignamente as nupcias da nossa felicidade. O seu vestido côr de malva,
que tão gentilmente condizia com a frescura da sua pelle, resplendia
sobre as fórmas esbeltas e finas, e caia-lhe em reverberos, sobre os
pés. Os braços meio nús, sobresahiam das rendas das mangas, com reflexos
baços como os de marfim não lustrado ainda. Do corpete chanfrado sobre o
seio elevava-se, um pouco inclinado, o colo alvissimo. Por de sobre as
faces ondulavam-lhe os cabellos.

Nenhum ruido nos perturbava, a não ser a campainha do relogio que não
ouviamos, e, de longe em longe, o rodar precipitado e passageiro das
carruagens, estremecendo a calçada. Conversamos, mais uma vez, sós por
sós. Fanny comeu pouco, sorrindo, como a pedir perdão. Eu ergui-me para
servil-a, e abraçava-a na passagem. Ella ministrava-me o vinho, com
graça, vertendo-o d'alto, e eu todo me enlevava na formosura d'aquelle
braço que se inquadrava no vacuo sombrio da sua larga manga. Nunca o
nosso quarto nos parecera tão bonito! Queriamos d'alli não sahir mais!

Ergueu-se Fanny, e foi sentar-se no diwan. Colloquei-me a seus pés sobre
uma almofada, com o cotovello sobre o joelho d'ella, e longo tempo
estivemos assim mudos a contemplar-nos. Com uma de suas mãos,
intromettidas nos seus cabellos, levantava-os aos tufos, e devidia-os. E
eu beijava-lhe a outra mão, travada na minha.

--Oh Fanny! se tu não fosses casada!...--dizia-lhe eu com paixão. E ella
respondia:

--Oh Roger! se tu não fosses cioso!...

Não sei como se passou o dia; mas mui rapido passou! Em mutuos olhares
de extasis, em abraços doidos de ternura, em ir e vir d'uma para outra
camara, que horas tão instantaneas correram! Quiz saber a historia da
minha vida. Contei-lh'a: era simplissima. Chorou ouvindo a narrativa da
morte de minha mãe.

Muito havia que não estiveramos tão intimos, serenos, e felizes. O
rancor atroz do ciume não nos separava. Expandimo-nos sem reverva: por
isso mesmo foi completo o socêgo de nossas almas. Havia ali felicidade
que bastaria á boa fortuna de dez amantes.

Cotejando em meu espirito aquelle dia singular com todos os precedentes,
lembrou-me de repente a causa que, por mais d'um anno, nos fizera tão
desgraçados. Rompeu de minha boca uma exclamação furiosa, e, por piedade
das angustias de Fanny, tanto tempo escondidas, não pude conter-me que
não exprobrasse o oppressor.

Fiquei como empedrado quando vi Fanny franzir então a testa, e morder os
labios. Relanceou-lhe rapida na face uma sensação, como o relampago
silencioso que fende uma nuvem. Depois sorriu, e acalmou como o céo
d'uma tarde estiva. Eu, porém, curei de indagar a causa d'aquella
sensação dolorosa, e tornei-me pensativo e triste, por não sei que
confusa remeniscencia.


LVI

Fanny retirou-se sem parecer notar em mim turvação alguma. Depois que
sahiu, mil recordações uma apoz outras, como vagas d'um mar silencioso
cumulavam-me o espirito. O porte de Fanny pareceu-me agora mais que
nunca incomprehensivel.

--Esta mulher é a mais extraordinaria ou a mais vil das
mulheres!--Disse, e repassei na memoria quanto sabia d'ella. Mas, outra
vez ainda, tudo me pareceu contradictorio em sua indole.--Por que
defendia o meu rival quando eu ignorava as suas violencias? Por que o
accusou depois? Por que impallidece agora se me ouve reprovar as acções
do homem que a ultraja? Oh! é possivel supporte tamanhos despresos,
vexações tão aviltantes, e conserve a minima affeição a um homem que a
tortura e humilha!! Indecifravel enigma. Ama-me ella? Ama o marido? Que
ha ahi de commum entre essa mistura de seres, de sentimentos, de
calculos, de transações, e o amor, esta paixão absoluta, intolerante, e
exclusiva? Deste modo ajuntava, separava, e confundia todos os factos da
nossa existencia commum sem poder desinredar o inextricavel fio da
meada. Cada facto, por seu turno, vibrava-me no ouvido, como um som
agudo; e, á maneira d'um clamor synistro, estrondeando por sobre tudo,
rugia incessante aquella palavra da consciencia de Fanny, proferida, um
dia, para meu supplicio:

--Eu mentiria se dissesse que o não estimo.


LVII

Desde então, illaqueado mais estreitamente que nunca na rede das
incertezas, um só desejo me dominava--tirar de Fanny a explicação do seu
caracter, não interrogando-a, mas compelindo-a a extremos indicativos.

Aggredi acintemente o marido deante de Fanny: difficil fôra o
defendel-o, por que o ataque era dirigido ás violencias que lhe eram a
ella feitas. Limitou-se, primeiro, ao silencio, erguendo ao céo os
olhos, por que eu a estava pranteando; depois, mostrou-se descontente da
asperesa das minhas palavras. Repentinamente lhe assomou á face o
sangue, os labios cerraram-se, as palpebras descahiram, isto a tempo que
eu lhe estava exaltando a resignação para melhor accusar os caprichos do
marido. Obedeceu, por fim, á sua eterna preoccupação, e disse-me:

--Não fallemos mais de tal: tudo isso é triste; mas eu sou obrigada a
submetter-me. Ao cabo de tudo, sempre é meu marido!


LVIII

Estas palavras nem me espantaram nem indignaram. Esperava-as. Sorri com
amargura, ouvindo-as dos labios da mulher estremecida. Eu passeava d'um
para o outro lado no meu quarto, e ella seguia-me com a vista.

--É a derradeira illusão que morre!--exclamei eu.

Fanny pediu-me a significação d'estas palavras, e eu recusei dar-lh'a, e
disse:

--Já são que farte as questões que temos ha um anno; por minha vez, te
rogo que não te importe saber o que se passa em mim. Amemo-n'os taes
quaes somos. Por mais que desesperemos e resistamos nunca se mudará a
nossa indole.


LIX

Durante a ausencia do marido, que foi de mais de seis mezes, houveram
grandes alterações na nossa vida. Eu via Fanny quasi todos os dias.
Ambos abusavamos da liberdade d'ella! Vinha passar commigo todo o tempo
disponivel. Frequentes vezes jantavamos juntos. Encontravamo-nos nos
passeios e no theatro, e nas lojas. Aqui, sem nos mostrarmos conhecidos,
trocavamos olhares furtivos, e, perpassando ao longo dos balcões,
sentiamos as delicias instantaneas do contacto. Escreviamos, além d'isso
tudo, cartas infinitas, e trocavamos flôres.

Fanny esmerava-se em attenções, para compensar-me do mal que me fazia.
Liberalisava-me aquelles delicados disvellos que as mulheres aguardam
dos homens, e dos quaes disvellos são tão economicas, quando se dignam
conceder-lh'os. Beijava-me a mão, chamava-me seu querido filho,
mostrava-se submissa, e esmerava-se por que não houvesse coisa que
turvasse a serenidade da minha vida. Nunca, porém, tratando-me como
dominador, se rebaixava. Ajoelhada deante de mim, tinha a inteira
dignidade d'uma rainha.

Ás vezes, quando as bellas noites do outono eram mais balsamicas e
suaves que as do estio, fugiamos da cidade, como aves cansadas do calôr
do dia. Hombro com hombro, recostados ao respaldo d'uma carruagem
fechada, com as mãos inlaçadas silenciosos, iamos ao bosque buscar um
pouco de ar, de silencio, e de solidão. Rentes comnosco passavam fogosas
parelhas tirando por grandes calexes descobertos, cheios de mulheres
risonhas cujos véos fluctuavam ao vento. Ouviamos o fremito das rodas na
areia, o resfolgar dos cavallos, e o estalido dos chicotes. Viamos
agitarem-se entre as arvores as luzes das lanternas, e mirarem-se na
agua morta dos lagos as sombras espessas dos bosquesinhos de pinheiros.
A lua, ás vezes tão melancolicamente ingastada no céo como nodoa de
prata, alumiava grandes moutas de espinheiros, donde subiam, razando as
hervas, nuvens alvas de vapor. Ebrios do aroma das carvalheiras, e da
mollidão dos nevoeiros luminosos, apeavamos no angulo d'algum caminho
estreito, e nos intranhavamos por debaixo da arcaria de immoveis
arvores, passeando vagarosamente, mais perdidos em nosso scismar do que
o estava a verde folhagem á sombra da noite linda. Era delicioso aquelle
momento em que Fanny, infadada, se me pendia do braço, e justapunha a
sua espadua á minha! Não fallavamos, sentia-se ali o viver, ouviamos as
nossas respirações; e, assim unidos, achavamos doçura estranha n'aquelle
nosso silencio e na incerteza de nossos passos.

Algumas vezes, com tudo, suscitavam-se ligeiras discussões,
remeniscencias attenuadas de antigas discordias. Fanny, porém,
tomando-me, a rir, pelo que eu era, uma creança, ou fazia que me não
intendia, ou, sacudindo-me o braço em ar de gracejo, dizia:

--Ora vamos, não se falla aqui do que já lá vae.

Todos os lados accessiveis da minha vida ia-os ella penetrando cada vez
mais. Como queria tudo saber, imperiosamente se senhoreava de tudo,
passado, presente, e dispunha de tudo, a bel-prazer do futuro. Eu
pensava em tudo como ella. Se me dava conselhos eu seguia-os como
ordens. Em minha casa era ella que dirigia tudo. Os moveis como que se
moviam espontaneamente para se collocarem nos logares designados por
ella; os quadros entravam n'outras molduras; os espelhos inclinavam-se á
vontade d'ella para lhe espelharem por toda a parte a imagem. Era-me
prazer grande o vêl-a assim dispôr do que era meu. A minha casa, tornada
sua, parecia afeminada. Já lá se não viam por sobre as mezas esporas,
chicotes, caixas de charutos; nem junto das paredes tropheus de armas
quarteadas; mas, em logar d'isto, estavam bocetas de flôres, alvissimas
caças rojando sobre os tapetes, mobilia colorida a lacca e incrustações
de Boule, e caixas de perfumarias. Levantavam-se do tapete agulhas e
fios de seda e lã: no rebordo da chaminé brilhavam o dedal e as
thesouras.

Foram, no drama da nossa vida, esses seis mezes uma especie de
entre-acto. Nada nos faltava para a felicidade, excepto a confiança.
Fanny estava sempre sobre-rolda receando ataque improviso, e eu
conservava no coração um certo azedume. Não havia consolar-me de não ter
podido vencer os escrupulos da mulher que eu tanto amava.

Cheguei á fraqueza piegas de pedir-lhe conselhos para a direcção dos
meus bens. Fanny não entendia nada de negocios, mas dava aproveitaveis
pareceres, porque eram sempre dictados por um espirito de desconfiança
feminil. Pois não a consultava eu até em compras de cavallos? No tocante
ao vestir era ella quem decidia soberanamente dos feitios e das côres.
Arranjava a minha roupa branca, a rir, erguida em pontas dos pés para
chegar aos lotes dos armarios, e intromettia-lhe bolsinhas odoriferas
que trazia comsigo, e nunca pude encontrar n'outra parte. Todos os
instantes dos meus dias estavam, em fim, contados. Não dava um passo sem
sua approvação; não comprava luvas ou gravatas que ella não elegesse. O
numero dos meus amigos fixou-o ella. Desprezei tres, porque tinham nomes
que não agradavam a Fanny. Tudo isto me parecia delicioso. Viver sem
ella é que eu não podia por mais que fizesse. Estava enfeitiçado.


LX

Mas o meu ciume, esse não estava morto, nem se quer entorpecido: apenas
tinha variado um pouco de objecto. Desde que o marido estava auzente, já
não podia soffrer por causa de uma partilha que não existia; mas os
menores sentimentos que Fanny me deixava adivinhar, inquietavam-me.
Afóra os filhos, e a mãe que ella via ás escondidas, eu não lhe
consentia amar ninguem. Fanny sorria, encolhendo os hombros. D'este modo
nos tyrannisavamos mutuamente.

Um dia, quando eu lhe tirava o «corpete», uma carta grande e
quadrada--lhe fôra entregue quando saía de sua casa--escorregou-lhe do
peito e caiu aos meus pés. Levantei-a. Tinha o sêllo de Londres. Encarei
Fanny, que, pallida, estendia a mão tremula a tomal-a.

«Teu marido escreve-te?» disse-lhe eu, entregando-lh'a.

--Que pergunta!--disse ella.

--Escreve-te regularmente?--ajuntei eu, depois d'um momento de silencio,
durante o qual eu sentia as garras do meu antigo furor atassalhar-me o
espirito.

--Pois então!... disse ella--todas as semanas.

«Porque te escreve elle?... Separados por tão violenta discussão,
parecia que os corações deviam separar-se para sempre.

Fanny olhou-me com espanto e ficou pensativa. Mas, como eu esperasse
resposta, replicou:

--Espantam-te sempre as mais singelas coisas. Não é natural que meu
marido me diga dos seus negocios, e me falle dos seus filhos?

«É justo... Eu não tinha pensado n'isso--murmurei.

Fallou-se de muitas coisas; mas, a sós commigo, reflexionei immenso.

«Respondes ás cartas de teu marido?

Fanny fez-se livida, hesitou, e deu signaes de impaciencia. Depois
simulou um ar de indifferença, respondendo:

--Escrevo-lhe raras vezes;

--Sim? e, diz-me cá, que lhe escreves?

--Não sei. Escrevo-lhe friamente. Falla-se de negocios. Isto não te
interessa nada.

Fiquei um tanto inleado; mas não pude reprimir-me.

--Como é que nunca tiveste a idéa de mostrar-me as cartas de teu marido?

Roger! Roger!--exclamou sorrindo contrafeita--eu creio que estás louco!
Uma mulher póde por ventura confiar a alguem, principalmente áquelle que
ama, o segredo dos negocios de seu marido?

--Tambem é verdade--murmurei eu.

Fanny quiz logo aproveitar a vantagem que obtivera.

--Feliz seria eu, disse ella, podendo mostrar-te essas cartas que te dão
tanto que pensar. Provar-te-iam que é uma sem-razão recear alguma coisa.
Sabe, pois, espirito desconfiado, que não se póde viver em menos união
do que eu vivo com meu marido.

--De certo!

--Como podes suspeitar o contrario depois que te confiei as minhas
amarguras?

--D'antes, tambem me confiavas o segredo dos negocios domesticos: não
esqueças isto, Fanny.

--Oh! hoje é muito differente.

--Porque?

--Porque... cá me entendo.

Isto fez-me reflectir novamente. Fanny levou as mãos ao céo com piedosa
expressão; eu estava como involto nas sombras da morte. E assim nos
contemplavamos. Era-me impossivel a quietação. Agitava-me d'um para
outro lado.

--Se dizes a verdade, Fanny, por que me não mostras as cartas que lhe
mandas?

--Não é possivel. Quem lêsse uma, comprehenderia as outras.

--Não obstante, eu bem quizera conhecer o tom das tuas cartas. Porque
lhe não escreves agora, mesmo aqui? Falla-lhe de tudo menos do que não
quizeres que eu comprehenda. Eu mesmo levo a carta ao correio.
Supplico-te, Fanny... Se nada temes de ti, dá-me esta prova de
confiança, para me tranquillisar que eu soffro muito.

--Não é possivel--redarguiu ella, com signaes de offendida.

A raiva que me devorava o coração estalou desassombrada:

--Que lhe escreves tu que não queres que eu saiba? Juraste matar-me?
Falla, se tens na alma sombra de piedade! Torturas-me barbaramente como
um algoz!

Fanny ergueu-se, pegou-me da mão e disse brandamente:

--Roger, eu não queria magoar-te.

--Pois que! que mais querias tu fazer-me? Vae! Tu és mulher de duas
caras; eu nunca fui amado por ti!

A esta phrase injusta, lançou-se-me ao pescoço, abafando-me com beijos
as palavras. Eu continuei:

«Como podiam magoar-me as tuas cartas, se, depois d'essa horrivel
contestação, ficaste despeitada com teu marido?

--Sê rasoavel: uma mulher póde ficar despeitada com seu marido?

«Pois que?--exclamei furtando-me aos braços d'ella--tu perdoaste-lhe?

--Rigorosamente não--disse ella, sentando-se quebrantada--mas foi-me
preciso acceitar as suas desculpas. D'esta vez, ainda assim, está tu
certo que não esquecerei mais os ultrages passados.

«Perdoaste-lhe! perdoaste-lhe, Fanny!--Bradei, de pé em frente della,
que olhava para mim assombrada--Não tens, pois, dignidade alguma? Não te
sentes das injurias? És assim vil? Amal-o? Mentiste-me, pois, a mim? Ah!
isto é que eu não acreditaria nunca!

Fanny continuava a ouvir-me silenciosa.

«Diz-me cá: por que me occultaste tanto tempo que elle te insultava?

--Não queria deshonral-o. Se tivesses mais alguma experiencia, não te
espantarias do que succede. Em summa, eu não quero fallar mais n'isto.
Seja-te bastante saber que se me elle restringe a liberdade, ou diz
arrebatado coisas indignas, tem pesar do que faz e diz, passada a
colera. Affirmo-te que o julgas mal. É possivel que eu exaggerasse os
factos no primeiro momento da indignação.. mas.

«Calla-te!--bradei eu--se tens pudôr, calla-te! Ha uma coisa que parece
passar-te desapercebida, e é que, á proporção que vaes fallando, não sei
que idéa peçonhenta lucta, em mim, com o meu amor. Não accrescentes uma
só palavra. Acceito ainda isso, por que sou vil, por que sou um fraco,
por que te amo muito, por que não posso dissuadir-me de te amar; mas
sabe tu que maior mal não m'o podias fazer. Supplico-t'o--não digas mais
nada.

E lançando-me a seus pés, exclamei:

«O despresares-te a ti propria, seria, sobre tudo, cruelissimo!


LXI

Sempre que tivessemos algumas dessas deploraveis luctas o apartamento
era frio, e eu ficava dias inteiros a reluctar com a memoria d'ella.
Mentalmente eu reproduzia os ataques e os argumentos, e inutilmente
sondava a causa misteriosa do seu proceder. Eu era muito moço e
inexperiente: avaliava-a mal. Aquella natureza complexa, que resumia no
seu caracter muitos caractéres diversos, queria eu que visse as coisas
absolutamente como eu as via. Eu, o que então sabia, era que as
palavras: sentimento, amor, delicadeza, ciume, e outras assim,
representavam para Fanny umas idéas, e para mim outras. Ignorava que o
custoso para mim não o era para ella, e que lhe bastava sempre a boa
intenção para indulgencial-a d'um facto, qualquer que fosse. Em mim, não
descontava nada á sua fraqueza. Depois é que apprendi a conhecêl-a.

Quantos maiores esforços eu fazia para desligar Fanny de seu marido,
mais eu estreitava os vinculos relaxados por quinze annos de existencia
commum. Fanny lastimava-me interiormente, mas eu devia ser-lhe pesado.
Bem sentia eu que a importunava, mas não estava em mim deixar de a
repellir de cada trincheira em que ella esperava o combate. Não me
passava pela mente que o unico recurso para conseguir o meu fim, era
mudar de tactica. Ninguem me havia dito que eu devia esconder o meu
ciume, como principal causa da nossa separação. Que candura! Eu via nas
manifestações do meu ciume provas de um amor que devia abalal-a. E, com
tudo, tão facil me seria serenar-lhe a vida a ponto de a forçar a
comparações, com vantagens minhas, entre os dois homens de quem ella
dependia. Mas mais simples que tudo seria não amal-a!...

Ama ella o marido? Não acredito, nunca o acreditei. Um sentimento banal,
resultante do costume e agradavel ás almas pacificas, porque
naturalmente continúa as coisas, e não cansa o espirito em mudanças,
esse devia tel-o. E o vêr o despota humanisado diante d'ella,
commovia-a; e o receber caricias da mesma mão que a castigava rudemente,
dava-lhe uma especie de satisfação. Não era isto fraqueza nem ingenita
baixeza de animo; era uma certa indifferença de genio, explicavel na
idade d'ella Fanny, em fim, certo, não tinha uma alma varonil, nem mesmo
uma alma muito nobre, por que antes queria astuciar que combater, e
antepunha o aviltar-se, repartindo-se, que transtornar o seu viver; era,
porém dotada de alma recta. Cuidava, certamente, que se resgatava, em
sua consciencia, da perfidia conjugal com uma submissão completa. Até
certo ponto, era indemnisar o marido, o tolerar-lhe os caprichos do
genio. Em que restingas, em que abysmos, em que cahos de coisas sem
nome, a probidade, esta rara perola, se esconde?


LXII

Era urgente que eu accedesse á nova concessão do aproximarem-se os
esposos. Mas de concessão em concessão lá se ia, desfeita em lagrimas, a
minha estima. Eu humilhava-me como o escravo que não póde resistir, com
gritos de raiva surda, e desejos immensos de vingança. Ah! se Fanny
soubesse que ella devia accusar-se só a si da minha abominavel vingança!


LXIII

Inraivecido por não poder vencer a pertinacia do caracter de Fanny,
trahi-a. Amor e ciume, quiz tentar matal-os na devassidão.
Conspurquei-me voluntariamente, e acintamente, ao contacto de labios
impuros da luxuria estupida. Cada noite, de proposito, como ladrão que
se embusca no angulo d'uma rua, entrava rindo sarcasticamente de mim
mesmo, no infame prostibulo onde eu contava apagar a sêde de vingança.
Sorria amargamente ainda, como traidor que pensa na confiança dos
ludibriados, eu arrastava commigo, aos braços da mulher querida, a torpe
recordação das creaturas degradadas, cujas caricias não tinha podido
sevar-me o rancor; e deste modo eu achava um meio de identificar Fanny
commigo, sem o ella saber, e ingolphal-a commigo nas mesmas execraveis
immundices.

Mas era-me maior a vergonha na sahida que a cegueira do furor na
entrada. Estorcia-me os pulsos na rua, e arrancava os cabellos
desesperado. Mais ciumento, mais aferrado, mal vingado, castigado por
minhas proprias mãos, martyrisava-me com o profundo pensamento da
inutilidade dos meus esforços. Não sei que desgosto corporal me subia
aos labios. Era um horror de mim mesmo. Vagava, de ventura, toda a
noite, como miseravel sem abrigo, esperando vencer com a fadiga do corpo
os tormentos do cerebro. Debruçado sobre o parapeito das pontes via
redemoinhar a onda negra do Sena, menos sombria e mais lodacenta que os
pensamentos, irriquietos do meu espirito attribulado. Eu chafurdava nos
lamaçaes, como para destruir sobre immundices impalpaveis, a impalpavel,
mas real immundice que imporcalhava o meu amor. E sempre diante de mim,
perpassando como phantasma nas sombras que se tiravam ao longo das ruas,
via a imagem de Fanny, com o seu ar tranquillo, fronte serena, olhar
sombrio, como que a visitar-me, mas forçando-me a pensar n'ella quando
eu ia cuidando em matar-me para esquecêl-a. Oh! que terrivel estado
aquelle, sem repouso nem treguas ás minhas angustias! que me exacerbava
e prostrava! que incharcando no nôjo a minha desesperação, infamava o
meu ciume sem applacal-o!


LXIV

Sustentava-me, comtudo ainda, um resto de coragem, essencial na minha
indole. Estas pelejas intimas davam-me alento. Resolvera buscar o
remedio até encontral-o, e, não o tendo, emprehender algum arrojo de
desesperado, para arrebatar Fanny, a pezar d'ella. Ninguem sabe os
estragos que uma idéa fixa póde fazer d'uma alma. Incrivelmente vos vos
roja até vêr o bem nas coisas repugnantes ás menos temerosas
consciencias.

Após maduro reflectir, decidi-me ao penoso sacrificio da ultima
concessão. Estava eu como um doente, que desenganado da cura, pactua com
o mal, e dispõe-se de modo que seja menos o soffrimento no restante de
seus dias.

«Tudo te perdôo!--disse eu a Fanny.»--nunca mais te fallarei dos nossos
eternos motivos de discordia. Não examinarei o teu proceder; não te
sondarei os sentimentos; tudo te concêdo, tudo acceito, excepto a
abominavel partilha que tanto me fez soffrer, e tão demorada tem sido.
Não posso mais... antes quero vêr-te desgraçada; antes morta; quero
morrer eu. Sê-me leal, supplico-t'o--accrescentei com tristeza--porque
me faz um mal horrivel duvidar de ti.

--Pois bem, não haverá mais partilha--respondeu Fanny, com um aperto de
mão--não te inquietes, não soffras mais. Quando meu marido voltar,
approveito-me do pretexto dos ultimos insultos para impor-lhe condições.
Viverei completamente separada d'elle em sua caza. E isto, por toda a
vida Roger, socega, sê emfim feliz. Não dependia de mim o seres feliz ha
mais tempo.

«Restitues-me a vida!--exclamei, lançando-me aos pés d'ella, e
abraçando-os.

--Querido filho!

--Liguemo-nos por um juramento.

A isto sorriu-se ella, mas jurou solemnemente, dadas as mãos, e fixados
mutuamente os olhos.

«E agora--disse eu--se por qualquer motivo, uma vez só, resolveres
faltar á palavra, juras que me avisarás, para que não haja entre nós
traição.

--Por que queres tu que eu jure.

«Pela minha vida.

Fanny sorriu outra vez, mas jurou solemnemente.

Depois d'isto fiquei totalmente tranquillo. Picou-me n'alma o ciume como
a recordação de um sonho que de tempo a tempo, nos sobresalta.
Reapreceu-me a vida bella e ampla. Confiava.


LXV

E por isso a chegada do marido apenas me incommodou pela impossibilidade
de me avistar tantas vezes com Fanny. Chegara o estio. Fanny habitava
outra vez a sua casa campestre, e eu ia vêl-a algumas vezes, por noite,
no caramanchão da tapada, e mais vezes vinha ella a Pariz, quando
engenhava pretexto para passar fóra um dia. Mostrava-se mais livre que
d'antes, pelo menos as visitas eram mais delongadas; mas, mais que
d'antes, me pareceu pensativa e preoccupada. Attribui este enleio aos
infadamentos procedidos da palavra que me dera. Entendo que novos
debates, novos tormentos a faziam desgraçada; e, lastimando-a de todo o
meu coração, animei-a á resistencia, e consolei-a quanto em mim cabia.
Fanny, porém, denotava constrangimento, suspirava, e acolhia os meus
beijos á flôr dos labios, como se tivesse esfriado em seu amor.

Estava escripto que tudo, na nossa historia, fosse extraordinario, e que
eu não intendesse nunca o procedimento d'esta mulher. Logo que me eu
persuadia de ter-lhe penetrado a nova tristeza--imputando-a a discordia
que o respeito do seu juramento devia acarear--soube um facto que me
atirou, mais que nunca, a um mar de incertezas.

Recobrando o repouso do animo, dei-me a um viver menos solitario. Meus
amigos procuravam-me, por que os eu procurara. Interessou-me, de novo, a
sociedade. Um dia, com grande espanto, soube que, a respeito do marido
de Fanny, vogavam boatos escandalosos. Dizia-se que, durante a sua
ultima viagem a Inglaterra, se tinha elle namorado de uma irlandeza que
se estreara no theatro da Rainha; que a tirara da scena; que a chamara
para França, havia um mez. Diziam-se maravilhas da magnificencia em que
elle a tinha. Era lindissima, alta e esbelta como Fanny, mas morena como
as filhas do Norte, com bellas côres rosadas, e finos cabellos sedados
que se desenrolavam languidamente em longos anneis até ao peito.

Jubiloso de nova tal, fiz tenção de lhanamente contal-a a Fanny, a fim
de fortalecêl-a na resistencia, e ministrar-lhe um terrivel argumento
contra o nosso inimigo, se elle se obstinasse em tormental-a. Nova
surpreza me esperava, que devia sobrelevar todas as mais a prodigiosa
altura.

Fanny, como tantas outras mulheres, atraiçoando seu marido, não queria
que elle a atraiçoasse. Irritada pelo meu ar de triumpho, nem deu
credito á realidade da historia, nem á sinceridade da justificação.

--Ou mangaram comsigo, ou o snr. forjou uma historia desinfadadamente,
para me atormentar. O que me diz aborrece-me. A grosseria desses
sentimentos enoja-me tanto que não posso perdoar-lhe, faça o que fizer.
Saiba que meu marido ama-me sempre. A tristeza que soffre, de mais o
demonstra. O juramento que o snr. me arrancou, lealmente o tenho
sustentado. Incumbe-lhe respeitar a minha sensibilidade, cessando de
calumniar um homem que, por causa do snr., é desgraçado.

Foi tamanha a minha estupefacção, que nem me occorreu a idéa de censurar
aquellas estranhas palavras. Fanny mortificava-me cruelmente fallando-me
da «sua susceptibilidade, do seu juramento arrancado, da minha supposta
calumnia» a proposito da infidelidade exactissima, do homem que eu
detestava. Cuidava eu que Fanny se daria por feliz sabendo que, emfim,
espontaneamente, o marido se afastava d'ella, como ella, desde muito, se
afastara d'elle. Esperava eu acções da graça, e sahiu-me cólera, orgulho
offendido, retaliações, que, a meu vêr, tinham as apparencias todas do
ciume. Isto era para indoudecer!


LXVI

Incutiram-se-me suspeitas novas, e estas, mais crueis mil vezes que
quantas me haviam suppliciado. Desta vez, porém, o acceital-as
docilmente, não me foi facil. Intranhara-se-me a desconfiança como
vibora no coração, e o germen da peçonha, que ella ahi revessara,
circulava-me nas veias.

O ciume resurgiu mais abrasado. A só escusa, que podia mitigal-o, era
imposssivel. Não era já da partilha que eu accusava Fanny; mas sim da
mais rasteira traição. Resolvi esclarecer a incerteza, por todo o preço.
Nada disse a Fanny, fingi-me longe de suspeitas. Menti no rosto como nas
palavras. Affectei consummado comico, a maior liberdade de espirito,
quando me estava a morte no coração.

Pela primeira vez na minha vida, fui homem. Por mim, e só commigo, fiz
quanto cumpria para descobrir a verdade. Comprei, com um pseudonimo, a
casa contigua á de Fanny. Instalei-me secretamente lá. Todo o dia,
cosido com as portadas das janellas, escutava os menores rumores da casa
visinha, e via tudo que lá entrava, como se estivesse á espera de vêr
algum estranho entrar ahi a roubar-me a mulher que me era a vida. De
noite, escoava-me através da sebe de arbustos que separavam os nossos
quintaes, e andava debaixo das janellas de Fanny, como ladrão que estuda
o edificio que quer assaltar. Assim apprendi os costumes da familia que
eu espionava. O erguer, o comer, o deitar, sabia tudo. Via de manhã os
creados abrirem portas e janellas, e ouvia o roedôr dos moveis,
deslocados na limpeza dos quartos e da sala. Ás oito horas, o dono da
casa descia ao jardim, onde encontrava os filhos. Ás nove apparecia
Fanny em desalinho campestre. Dava com elle alguns passeios. Ás onze
horas chamava a campainha ao almoço. Ao meio dia, esperava o _coupé_ á
porta. O marido sahia, e só voltava ás sete horas para jantar. Muitas
vezes, depois do meio dia, vi Fanny assentada na raiz d'uma arvore
enorme, que assombrava largo ambito, conversar com os filhos, lêr, ou
occupada em algum trabalho de agulha. As visitas eram numerosas. Das
tres ás seis horas, quando estava bonito o tempo, circuitava o grande
taboleiro de relva, longa fileira de trens, cujos cavallos escarvavam na
areia, á sombra das arvores, sacudindo os freios, a tempo que os bandos
de senhoras e cavalheiros, assentados em cadeiras de bambu, riam, e
bebiam gelados. Ao intardecer sahiam todos, e os homens faziam caracolar
os cavallos á portinhola das carruagens, ou reunidos atraz dos trens,
caminhavam lentamente fumando os seus charutos. Fanny recebia-as com uma
graça incantadora: variava muito de vestidos, e da minha janella via eu
que as mulheres examinavam detidamente os seus deliciosos enfeites, ao
passo que ella, parecia descuriosa de si, como se sempre estivesse
adornada, sem o saber. Raro sahia de noite, se o calôr não era ardente.
O marido passeava então com ella; mas ordinariamente tornava para Pariz
ás oito horas, e quando tornava, era por alta noite.

Nos dias em que nos uniamos em Pariz, Fanny entrava no _coupé_ com o
marido.--Qual de nós é o enganado?--dizia eu commigo. Eu montava, e por
travessas, e a galope, chegava a minha casa primeiro, e ahi era tão
pouco preguntador quanto ella era meditativa. Era-o em toda a parte, em
sua casa como na minha. Ao mesmo tempo, os passos do marido, mandava-os
eu espiar. Nunca ia senão ao club, e a casa da amante. Aqui pernoitava
algumas vezes. Fallava n'isso francamente aos seus amigos, e continuava
a mostrar-se prodigo com ella em demasia. Era um homem prefeitamente
feliz. Não o attribulavam suspeitas nem inquietações: rico, pae de
galantes filhos, uma mulher adoravel. Que lhe faltava? Eu invejava-o.

Mas não me bastava assistir á vida exterior da familia, cujos segredos
eu queria conhecer. Ao cabo de quinze dias, vendo esteril a minha
espionagem, cancei-me da futilidade d'ella. Obtivera apenas o direito de
suppor que Fanny cumpria a palavra, por que o marido, passeando com
ella, parecia exclusivamente entretido com os filhos. Além disso, a
frequencia das visitas que ella recebia, estorvava-me de vêl-a
concentrada em si, tanto quanto eu queria. Resolvi introduzir-me em sua
casa, sem o ella saber. A frieza, com que me estava tractando, era
assustadora. Distrahida sempre. Muitas vezes, com terrivel commoção, de
longe a via, quando se julgava sósinha, cahir sobre um banco, e esconder
n'um lenço, o rosto lavado de lagrimas. Em oito dias, centuplicaram as
minhas suspeitas.


LXVII

Por uma bella noite de agosto é que eu executei o horrivel designio,
cujo exito devia decidir do meu destino. Não sei que hora era; mas,
havia muito que as estrellas radiavam na face do céo a sua suave
claridade. Abri a ultima janella do primeiro andar da minha casa
contigua á de Fanny, fixei a persiana contra a parede, e resvallei pela
rampa; pendurei-me do varão sutoposto á baranda da casa visinha; fixei
um pé na goteira da sacada, depois o outro pé, e saltei. Estava em casa
d'elles.

Fiquei immovel a escutar o silencio, interrompido apenas pelas
precipitadas pulsações do coração. Perto de mim, uma janella alumiada
como um grande quadrado de luz, branqueava de clarão baço, a parede
innegrecida da casa. Baixando-me sobre os joelhos, enxerguei que esta
janella não estava de toda fechada. As beiras das portadas tocavam-se,
mas deixavam coar uma resteasinha de luz. Duas cortinas de cassa branca,
pendentes diante das vidraças, deixavam-me vêr todo o quarto através
d'um alvadio de leite que esfumava um pouco os objectos.

Lembra-me tudo isto. No fundo do quarto havia um grande leito, e sobre
este, uma corôa de ebano lavrado donde pendiam cortinas de estofo escuro
que contrastavam com a brancura dos lençoes. Á esquerda da cama, um
tapete estreito, á direita, uma commoda; ao pé da chaminé uma poltrona
de espaldar muito alto. Que sei eu? Creio que outros moveis estavam lá,
mas eu não reparei. Ao principio, não vi ninguem no quarto, alumiado
desigualmente, por um grande candieiro de cobre, coberto de quebra-luz,
que dardejava sobre o pavimento os raios, deixando o tecto escuro. O
leito ficava assim cortado longitudinalmente pela zona luminosa. Como
quer que eu me chegasse á vidraça para examinar se elle estava occupado,
uma sombra passou lenta entre o candieiro e a janella, desenhando-se nas
cortinas brancas. Pulsou-me o coração mais rijo. Agachei-me rente com a
sala, recuando um pouco.

Reconhecio-o. Era elle. Ainda o vejo. A viração tepida da noite de
agosto, suspirava á volta de mim na folhagem; cantava um passaro entre
os arbustos; a terra vaporava odores balsamicos; mas eu não via, não
sentia, não investigava senão elle. Alongando o pescoço para ajustar os
olhos á entre-aberta da janella, vi-o, com espasmo mudo, como se fosse
para mim coisa extraordinaria vêl-o de pé n'um quarto de sua casa. Tinha
os pés nus em amplas moiras de marroquim amarello; afivellava nos
encontros uma larga calça branca de flanella. Despeitorado, arregaçado o
colleirinho, arremangada a camiza, ia e vinha pelo quarto, fumando um
charuto, dando corda ao relogio, mirando-se ao espelho, e esticando os
braços. Assentou-se depois na grande cadeira encoirada, cruzou uma perna
sobre o joelho da outra, e bamboando-a deixou cahir a chinela. D'onde eu
estava, via-lhe perfeitamente a sola do pé nú levantada ao nivel dos
meus olhos, e o braço carnudo descançado sobre o encosto da cadeira. O
outro braço subia e baixava do joelho para o rosto, quando levava aos
beiços o charuto, cujo fumo odorifero se exhalava até mim.

De repente, voltou a cara para uma porta que eu não tinha devisado,
collocada ao pé do leito. Esta porta estava aberta, e no inquadramento
obscuro que ella cortava no fundo do quarto, vi, duvidoso da minha
razão, uma fórma vaga alumiada em rosto por um castiçal que ella trazia.

Potestades do céo! Era ella! Oh Deus! por que me não fulminaste
n'aquelle momento!

Entrou vagarosamente, depoz o castiçal sobre a commoda, e, atravessando
longitudinalmente o recinto, foi direita a elle, que a observava
tranquillo, e sem levantar-se.

Fanny estava meio vestida com aquelle desleixado traje que eu lhe vira
algumas vezes pelas manhãs, quando, ao sahir da cama, passeava no jardim
com os filhos. Era um chambrão muito farto de cachemira azul aberta no
peito, entre flocos de cambraia, deixando vêr o começo dos seios.
Sahiam-lhe das largas mangas os braços nús. Trazia desmanchados
negligentemente os cabellos, apanhados sobre as faces lizas, e apertados
por grossos tufos sobre a nuca. Aquelle eterno porte de placido pudor,
lá o apparentava no semblante.

Mas que vinha ella fazer alli a tal hora? quem lhe pedira isso? Não póde
a recordação do amante retêl-a no limiar d'aquella porta? Dir-se-hia que
ella nem se quer se lembrava de ter jurado, nem lhe passava pela mente a
existencia d'algum homem para ella, senão aquelle que alli estava
sentado, encarando-a, sereno como ella.

Fuzilou-me na alma um relampago de esperança, mas foi relampago.
Abaixado sobre os joelhos e as mãos, embaciado o vidro pelo meu bafo,
senti oscillar-me os braços como se o balcão estremecesse debaixo de
mim. Suor de agonia, acre e frio, me banhava a face e os membros;
rangiam-me os dentes, cahi, desfallecido, como arvore tombada ao ultimo
golpe do machado. Mas ouvi palavras; e, repuchando quantas forças tinha,
ergui-me sobre os joelhos e punhos.

Via-a andar mansamente d'um para o outro lado do quarto. Tocava,
vagamente, e como em distracção nos objectos de sobre os moveis, tal
qual costumava fazer em minha casa. E o marido tendo-a sempre d'olho.
Fallavam; mas a minha commoção só me deixava ouvir um murmurinho.
Rodeava-o ella, socegada e perfida, com os seus azues e suaves olhos, e
apparencias de simpleza vaga. A instantes, sorria um sorriso
melancolico. Quiz vêr n'esse rir, que lhe dilatava os labios sem
illuminar-lhe o olhar, alguma coisa forçada. Não se mostrava pensativa,
nem contemplativa, nem commovida. Estava perfeitamente á sua vontade,
natural e tranquilla. Bem sabia ella que a sua grande magia era a
irritadora tranquillidade.

O marido riu tambem, por sua vez. Vi-lhe o brilho dos seus alvos dentes.
Dava mostras de defender-se ingenuamente d'uma accusação que ella fazia,
sem cólera, mas como uma malignidade gracejadora, que não era isempta de
desdem e altivez. Discutiam tão pacificamente que pareciam nenhum
acreditar na realidade da sua disputa familiar. A final, debaixo da
testa quadrada do marido, brilharam mortiços os olhos; e, quando ella
perpassava diante d'elle, rossando-lhe com o vestido o pé, a decisão foi
prompta; calçou a moira; e tirando brandamente pela cintura da mulher,
sem resistencia, fêl-a assentar no seu joelho.

Saltaram-me as lagrimas então, lagrimas ardentes, que as palpebras não
podiam reprezar, e desceram silenciosas pelas faces até aos labios.
Emfim, comprehendia tudo; via a profanação, posto que a não quizesse
vêr; affirmava que não era sonho aquillo, e queria duvidar. Não posso
exprimir o que então se apartava de mim, o melhor de minha essencia, e o
mal que me fazia vêr aquella mulher, que eu adorava, nos braços d'outro.

Fanny continuava sentada com as mãos cruzadas sobre os joelhos, e com os
olhos no marido, conversava serenamente. Nada ha ahi mais casto que a
simplicidade da sua attitude, a pureza do seu perfil, e aquella
expressão dos olhos azues. No entanto elle, comprimindo-a cingida pela
cinta, amimava-lhe a face com a mão livre. A final, Fanny lançou-lhe por
sobre o hombro o braço esquerdo, e pendeu para elle langorosamente.
Vi-lhe então as costas, cobertas de tranças dos cabellos, e o vestido
fazia roda por largo espaço com impudor esplendido. Oh! como a
abominavel creatura cheia de graça e lascivia se aconchegava d'aquella
espadua robusta!

--É impossivel aquillo!--gritei eu em minha consciencia.--Não ha-de ser
assim!--Mas elle abraçou-a, collando a boca espessa ás puras faces
d'ella, e não sei o que lhe disse a meia voz. Fanny fez um gesto
negativo com a cabeça, muitas vezes, sem córar. Elle, por cortezia,
insistiu sorrindo, e ella, resistindo, pouco e pouco se rendia! Mulher
scelerada! como ella prolongava o meu supplicio! O debate mudo, durou
algum tempo. Não sei como foi que o sinto se lhe despregou, e rolou nas
dobras do vestido. E eu chorava sempre. Levantou-se ella em fim, aquella
mulher de resplendores e flôres, e, por um só movimento de braços e
hombros, fez escorregar o chambre até aos pés. Eu cahi de joelhos, e
ergui as mãos, como a exorar piedade. Ella tirou com afan, os pés do
monte de estofos, e, um tanto pallida, mas em silencio, caminhou para o
leito, achegando ao peito as ultimas coberturas. Quantas vezes a vira eu
assim impallidecer! Cravei as unhas no rosto. O marido ia depós ella,
vagarosamente.

E eu sem uma arma! Eu queria immediatamente estrangulal-a, espedaçal-a,
ingolphar meus braços nas entranhas d'aquella mulher estupida. Com todo
o sangue d'ella, não se apagaria o ardôr da minha tortura. Arquejante
como o tigre, que vê a garra do leão cravada na sua preza, ergui-me a
prumo, ferrei as unhas contra os dentes, escorria-me o suor da face,
soluçava, como em arrancos de morte, estrebuchava, e via os horrores
d'aquelle quarto.--Piedade! piedade!--foi o meu grito! E furioso, e
perdido, avançara um passo! mas os cabellos heriçaram-se-me, e os olhos
saltavam-me das orbitas, e a minha vista acerada entrou como um punhal
nos cortinados sombrios, e vi... vi tudo! Quiz ir ávante, e não pude. A
punição pregava-me os pés á balaustrada, e de minha bôca sahiam
gargalhadas de demonio. Que horror! Eu testemunha d'aquelle espectaculo,
a rir, como um doudo, a comprazer-me d'um jubilo que não tem nome nas
linguas humanas! Tentei de novo avançar, por que ouvira suspiros, e
queria saber qual das duas bôcas os exhalavam. Por um esforço prodigioso
dos meus musculos todos, cheguei a despregar o hombro da parede, e dei
ainda um passo; mas por que ao coração intumecido me refluira todo o
sangue, perdi o equilibrio, e cahi como um pezo inerte sobre o balcão.


LXVIII

Quando cobrei o alento, estava a janella fechada e apagada a luz. Corri
as mãos sobre os vidros impenetraveis. Corri a baranda em toda a sua
extenção; tudo apagado, tudo fechado, dormia tudo. Dominava-me uma raiva
glacial. Á custa de tudo, eu queria remirar esta mulher que eu detestava
com o coração, com a alma, com os sentidos, com todo o meu ser. Mas ir
até ella, como? Pendurei-me na rampa, e deixei-me cahir ao jardim.
Rodiei vinte vezes a casa, empurrando todas as portas; mas a minha
fraqueza não podia com ellas. Finalmente, atirei-me ao chão, e ahi, com
o rosto entre as mãos, desafoguei-me em soluços.

--Trahido! trahido!--bramia eu, com monotonia desesperadora.--E o céo
impassivel!--De subito ergui-me, e, sem idéa fixa, atravessei as trévas,
rapido como se me viessem perseguindo assassinos. Precorri a tapada;
saltei o muro, atravessei a estrada, entrei nos campos, e a correr
sempre, com a cabeça nua, chorando e fallando sósinho, atirei-me como um
attribulado gamo, que foge com os dentes de matilha feroz incravados nos
flancos.

Onde ia eu? não sabia. Fugia áquelle espectaculo. Salvava-me a todo o
correr, para o mais longe possivel, para não vêr a imagem horrenda que
me ficara nos olhos. Trahido! Trahido! era o grito que me esporeava, e
excitava a fuga. Despenhei-me em barrancos. Levantava-me ferido, coberto
de suor e lama, e corria de novo, sem destino, por escuridade pavorosa.
Lancei-me desamparadamente em cancellos insilveirados; deixava-lhes os
meus vestidos a pedaços, e caminhava. Esgalhos de arvores batiam-me no
peito, raspavam-me a face e os hombros os tojos lacerantes; parava a
chorar e depois caminhava. Atravessei as ruas dezertas das aldeias, que
resoavam sob os meus passos; campos cultivados, cujas searas me
ondulavam nas pernas como vagas; collinas, bosques, regatos, atalhos,
estradas que desfilavam á roda de mim, como se o solo fosse arrastado
commigo no arremeço d'um sorvedouro immenso. Faltava-me a respiração, e
eu corria ainda, chorando, chorando sempre.

--Ó minha mãe!--bradei eu.--Se soubesses quanto eu soffro!

De repente, achei-me com os pés em agua. Ante mim, distendia-se um vasto
espaço negro, uniforme, entranhado nas trevas, d'um lado e d'outro, com
grandes e mysteriosos zunidos. A lua dardejando de viez o seu reflexo
argentino, sobre esta superficie luzente, parecia serpente enorme
assanhada contra mim, para engulir-me. Involvia-me o nevoeiro. Avancei
tropeçando nas pedras, mas os jactos d'agua da torrente rapida,
embargavam-me o passo. Horrida tentação me assaltou. Contemplei o céo
sereno, onde brilhava, entre nuvens immoveis, o dôce astro dos amantes;
puz a mão sobre o coração, e caminhei. Dava-me a agua pelos joelhos, mas
sentia sempre o chão lodento em redor dos meus pés que escorregavam. Não
podia mais. Vergado á fadiga e á commoção, soluçando como as mulheres,
cahi, e fui arrastado na torrente que marulhava em sua marcha obscura.


LXIX

O que decorreu depois d'isto, não sei.

Atrophiara-me um frio horrivel. Era nos ouvidos o sibilar lacerante.
Sentia abafar. Muitas vezes cheguei a ajoelhar, impellido sempre pelo
peso das aguas. Por fim, esqueci tudo; entendi que morria.

Quando me senti viver, estava na minha cama, com a cabeça em fogo. Abri
os olhos esgazeados. Tremia em todas as fibras. Sacudia-me o corpo,
desde a cabeça aos pés, uma horrivel febre. Ao meu lado, estavam dois
amigos observando-me. Fallei, e elles abanaram a cabeça. Veio um homem,
e tomou-me o pulso: encolheu os hombros, e partiu. Continuei a tremer.
Isto durou muitos dias.

Depois soube que uns pescadores me tinham, de madrugada, encontrado sem
sentidos, nas margens do Sena, com a cabeça envazada no lôdo.
Buscaram-me as algibeiras, e acharam na minha carteira uma carta, e,
guiados por ella, me trouxeram a minha casa. Delirei no caminho, e
tiveram-me em conta de doido. Estava-o, realmente.

Fanny, porém, ignorante de tudo, admirada de me não vêr, veio uma manhã;
mas o meu creado, a chorar, impediu-lhe a entrada no quarto, e
contou-lhe o que sabia. «Quiz afogar-se--disse elle--e agora está
doido»--Ella, porém, não quiz crêr no suicidio, e supplicou a entrada.
N'esse dia, um abatimento sem nome, semelhante ao dos cadaveres
prostrados em seus sepulchros, me tinha como pregado pelas costas ao
leito, com os braços alquebrados e os olhos abertos. De repente, devisei
na porta, que se abriu ao pé do meu leito, uma fórma humana, de pé e
quieta.

Não atinei logo com quem fosse aquella mulher que me vinha vêr
moribundo, adornada de trajos de estio tão elegantes e frescos, com
braceletes nos braços e flôres no chapéo: tambem não entendi por que
chegava com ambas as mãos o seu véo branco ao rosto. Os meus amigos
tinham-se retirado para o fundo do quarto, afim de respeitar, quanto
fosse possivel, um segredo que não queria ser penetrado. A mulher
adiantou-se até á minha cama, e eu ouvi-lhe o fremito do vestido.
Curvou-se-me sobre o leito, e levantou o véo. Como que senti
refrigerar-se-me a alma, de vêr sobre o meu rosto aquella face viçosa
cheia de graça, e como perfumada de saude.

Fanny! exclamei subitamente, erguendo os braços. Fanny abaixou-se a
soluçar sobre o meu peito. Mas a memoria restaurara-se com o conhecêl-a;
levei-lhe á face os punhos fechados, e repelli-a de mim, gritando
furioso «sai d'aqui!» Ella acreditou que eu estava doido, e arredou-se
chorando; mas com um resto de força que a raiva me déra, bati-lhe no
hombro, e, ao lançar-me fora da cama, cahi por terra aos pés d'ella.


LXX

Quando sahi do lethargo, suppliquei, de mãos postas, aos meus
enfermeiros, que não deixassem entrar em minha casa aquella mulher.

Ella, porém, que não podia suspeitar o succedido, e continuava a crêr na
minha demencia, vinha todos os dias--disseram-m'o depois, e todos os
dias com gestos afflictivos, sollicitava vêr-me.--O medico não
consente--respondia inflexivel o meu creado. Fanny offerecia dinheiro e
prendas; mas comprehendendo a final que a sua presença podia matar-me,
retirou-se, pedindo a Deus a minha cura, e offerecendo-lhe, em troca da
minha, a sua vida. D'isto não sabia eu nada então. Decorriam os dias, e,
por desgraça minha, graças aos disvellos que me rodeavam, a vida pouco a
pouco affluiu apagando a febre.


LXXI

Ao cabo de seis semanas entrei em plena convalescença. Já os amigos me
tinham deixado. Perguntou-me, muitas vezes, o creado, se eu queria
receber aquella pessoa que tanto parecia amar-me, e cuja presença tão
mal me fizera uma vez. Sempre com repellão lhe disse que o expulsava se
a deixasse entrar. O desejo, porém, de a vêr, entrou commigo, e
tornou-se emfim n'uma irresistivel necessidade. Fiz fallar o creado
sobresaltado, que não intendia a minha frieza. Contou-me tudo que eu não
sabia; que ella vinha diariamente, e elle já não sabia que dizer-lhe,
para estorvar-lhe a entrada. Se ella vier hoje,--murmurei eu
impetuosamente, corrido de vergonha,--recebo-a.

Sentia-me eu abalado como se alguma funesta esperança tentasse renascer
em mim. Com o abatimento da molestia, quasi que a cólera se desvanecera;
mas ganhara-me uma dôr intensa, e eu assentava--tamanho desgosto era o
meu por tudo--que não podia viver. Aquella noite terrivel da traição,
lembrava-me como um sonho máo. A um tempo, amava e desprezava a mulher
graciosa e perfida, cuja imagem era commigo sempre. O que eu esperava
para acabar com tudo, era alguma cousa indelineavel.

Estava eu sentado n'uma poltrona, ao pé da minha janella, com os olhos
fechados, repassando no animo o que eu diria á prejura, quando senti
apertarem-me a mão, e misturarem-se n'ella os beijos com as lagrimas.
Abri os olhos. A meus pés, de joelhos, livida, mas formosa ainda,
formosissima, estava Fanny, olhando-me com eloquente ternura. Senti o
perfume d'ella. Nada diziamos. Eu sei que chorava.

Fanny ergueu-se, abraçou-me maternalmente a fronte e os cabellos, com os
seus dois braços nús. Não resisti, porque me era aprazivel receber
aquellas caricias, a que eu tinha direito, em quanto não fallasse. E por
isso mesmo é que não fallava. Finalmente, como eu chorava sempre e a não
abraçava, Fanny disse:

--Foi-se o teu amor, Roger?

--Ainda não--respondi, tapando o rosto com as mãos. Ella não intendeu, e
deteve-se em pé e agitada defronte de mim.

--Fanny, diz-me que é um sonho, ou que estou doido. Diz-me que não devo
odiar-te, porque este odio dilacera-me.

Não córou. Não impallideceu. Pura como a chamma, e crendo-se talvez ella
mesmo pura, amimou-me internecida, com apparencias de admirada.

Foi então que eu, reunindo as minhas forças todas, a tomei pela cintura
gentil em meus braços, e a fiz sentar defronte de mim. E disse-lhe:

--Sei tudo.

«O que? tu que sabes?

--Vi tudo.

«Mas que?

--Porque me trahiste? Tu não cedeste, porque foste tu quem o procurou,
não foi elle a ti. Foste tu, que trocando despejadamente o papel, o
seduziste a elle.

Fanny não perdeu ainda a côr, e quiz fallar. Eu, porém, com os olhos
cravados n'ella, sem cólera, e frio como o aço, continuei:

--É necessario dizer-te tudo? Não merecias confiança. Comprei a caza
vizinha da tua, em Chaville...

Aqui, impallideceu, e disse:

«E depois?

--Uma noite, horrivel noite!... depois de te espiar em vão quinze dias,
arriscando a minha vida, consegui introduzir-me sobre o balcão da tua
casa. Não sei que hora era. Ajoelhado por traz da vidraça do quarto de
teu marido, pude vêl-o. Como te vejo agora, tudo vi. Estava elle só.
Entraste...

«Isso é falso!» exclamou Fanny, mais horrivelmente pallida. Semelhava um
cadaver sentado n'uma cadeira defronte de mim.

--Será preciso dizer mais?--accrescentei.--Vestias um chambre de
cachemira azul. Trazias os cabellos em desalinho, e o peito nú. Calçavas
chinellas de setim. Nús, trazias os braços. Serena como sempre, no
momento mesmo em que prejuravas, não amaldiçoaste aquelle que vinhas
saciar, por que ha em ti dois corações, para amar dois homens, Fanny, a
elle, e a mim.

Fanny sacudiu rapidamente a cabeça, e disse com voz abafada:

«É falso! é falso! tu não me conheces!

--Será preciso dizer mais?... Exprobraste-lhe a traição, que é
certissima. Defendeu-se elle, a sorrir. Tu, cem vezes, passaste diante
de teu marido, por que querias fascinal-o, sem lh'o dar a intender, com
os teus exteriores pudibundos. Sahiu-te tudo ao pintar, por que elle
puchou-te para sobre o coração, e tu deixaste-te sentar sobre os
joelhos, e nem de mim te lembravas, de mim, a agonisar, com aquelle
espectaculo diante...

«Basta!»--exclamou Fanny, e ficou a olhar para mim. Parecia soffrer
horrorosamente; mas não chorava. Dilatavam-se-lhe as pupilas, e
crispavam os labios resequidos. Com pena d'ella, baixei os olhos, mas
accrescentei:

--Sabe que eu estive ali, eu, que te adorava, e é de crêr que a vergonha
e a dôr não matem, por que eu vi tudo, e não morri.

Como duas estatuas fronteiras, nas bordas d'um jazigo, assim ficamos em
contemplação, e immoveis. Por fim, disse ella:

«Eu devo fazer-te horror!

--Fazes.

Ergueu-se, levantou as mãos ao céo, lançou-se a mim, como sobre uma
preza, apertou-me entre os braços, sentou-se-me nos joelhos, peito a
peito, e a buscar-me os labios, com estas exclamações:

--Não importa! eu adoro-te sempre.

Mas eu, levantando-me, sacudi-a, e atirei-a ao chão, e ella ahi ficou.
Abismada a meus pés, como a Magdalena, soltas as tranças, nodados os
braços aos meus joelhos, desfeita em pranto, exclamava:

«Perdão! piedade! Eu tinha perdido o juizo! estava doida! mas amo-te
sempre! Tem compaixão de mim.

E prometteu submetter-se a tudo que eu exigisse d'ella. Propôz-me a
fuga, bradando:

«Mata-me, e não me repulses! Esmaga-me aos teus pés. Sou culpada, mas
não me abandones. Amo-te. Rasga-me o coração...

Fiz que se erguesse e sentasse. Estava corada, e escondia o rosto; mas
eu sentia-me impiedoso. Recrudescera o meu furor com a narração do meu
supplicio. Voltei as costas áquella mulher, cuja soberba, por tanto
tempo me mentira. Ainda assim queria ella violentar-me, estendendo para
mim os braços; mas fiz-lh'os recuar á face, com um gesto.

--Sabe que te detesto e adoro--disse-lhe eu--É isto o meu castigo, por
que eu fiz minha, a mulher d'outro, e devo ser castigado. Tu, para mim,
és uma deshonra, e mais nada. És um idolo attascado em lama. Vi-te, em
attitude pudica, com o rosto angelical, e olhar infantil; vi-te grotesca
e disforme, raivar e uivar, como a loba mordida pelos cães. Cala-te! tu
fizeste peor que as creaturas com quem esse homem hediondo te compara:
essas, ao menos, não mentem.

«Mas elle é meu marido!--disse Fanny.

--Não tens consciencia? Diz-me com franqueza se é certo seres tu um ser
intelligente, e se uma idéa dirigiu a tua acção funesta. Quem te
obrigava a ir procural-o?

Fanny, com grande esforço, respondeu:

«Eu via que elle se desprendia de mim. Não o amo, por que te amo, mas
dependendo d'elle. Não é natural? Repartida entre o desejo de conservar
sua affeição, e o receio de ser forçada a mostrar-lhe uma affeição
semelhante, quiz segural-o quando me fugia, e, quando se approxima, é
escusado tentar eu fugir-lhe. Cedi ao dever. Reciei que me deixasse. O
temor de me vêr abandonada com os meus filhos, inlouqueceu-me.
Perdoa-me. A mulher, que elle conheceu em Londres, é a causa de tudo. Eu
preciso de paz, socega-me tu. Fiz mal, por que te amo; mas sou mulher, e
tu não conheces as mulheres. Não calculas quanta honestidade pode haver
nas traições d'ellas.

--E o teu juramento?--exclamei. Fanny contorcia as mãos afflictivamente.
Eu prosegui:

--Mentes, quando dizes que cedeste ao dever. Não cedeste senão ao
orgulho. Intristecia-te o ser abandonada por esse homem que não amas, e
te não ama, e te opprime, e te despreza e insulta. Não cedeste tambem á
sêde d'um prazer abominavel? Repito-te que ouvi tudo.

Neste conflicto, encontraram-se os nossos olhos. Fanny fez-se escarlate,
quiz fugir, tornou para mim, e cahiu de joelhos, exclamando:

«Se soubesses quanto eu me abomino! Eu queria arrancar o coração deste
corpo. O meu coração está puro. Vêr-te, ouvir-te, sentir-te ao meu lado,
bastára-me sempre. Por isso mesmo que te amo, é que tu és o unico ente,
mais que homem para mim. Tu és neste mundo o meu amor unico. És a minha
vida.

--Amas-me!--bradei eu com raiva.--Mas de que modo me amas? Acima de mim,
em teu coração tão puro, estão vãs considerações do mundo, razões de
sociedade, costumeiras mesquinhas, está teu marido. Não me falles de
teus filhos. Que amor é aquelle que não conhece a virtude dos
sacrificios? que recua diante de qualquer respeito? que é limitado? que
soffre prescripções? que não é uma abnegação absoluta do individuo, de
todos os seus pensamentos, e affectos, e deveres e virtudes? Quem se
perde pelo ente que ama, e destroe a honra e segurança do seu futuro, e
chega, por amor delle, até ao crime, e se tortura a inventar maiores
provas ainda, não dá o mais radioso testemunho da paixão exclusiva,
intolerante, e soberba. Tu nunca soubeste que o amor não vive senão de
si, e nada reserva fóra de si. Renegado sublime, piza os mais santos
objectos, forte da felicidade que inventa, e que lhe justifica a
impassibilidade. Porém, tu! mulher das dedicações mesquinhas, das
virtudes pequenas, dos deveres timidos, chamas loucura a tudo isto. É
alto de mais para ti! a tua vista não alcança tanto. O que tens,
superior a ti, é a tua casa, é o teu bem-estar, é o luxo que te cerca, é
a falsa estima do mundo que tanto se dá de ti como das outras, são as
relações banaes, é um complexo de coisas miseraveis. E dizes que me
amas! Supportarias tu o abandono da sociedade? Offereci-te tudo que
tinha; dar-t'o era a minha felicidade; para ti roubaria eu os
indigentes. Ainda assim, aceitarias tu o menor incommodo como preço da
minha felicidade? Não ultrajes, pois, o amor, a paixão soberanna, que
não quer ouvir em redor do seu throno, uma voz que não seja a sua. Crês
que amas por te haveres entregado? Vai, já te disse que vi tudo. Estavas
com elle como commigo. Custou-te tanto a passar dos meus braços para os
delle como d'um vestido para outro.

Fanny, ergueu-se desesperada, e quiz partir; mas eu retive-a, atirei-a
para o fundo da alcova, e collocando-me diante da porta, com os braços
cruzados, exclamei:

--Hasde ouvir tudo!

Faltou-me a expressão. Arquejava de anciedade. As minhas palavras eram
gritos. Cerrei os punhos em postura ameaçadora; Fanny olhava-me de revéz
com inexpremivel terror. As palavras vieram, depois, impetuosas:

--Eu nunca tive crença em ti. Tanta certeza eu tinha de que me
atraiçoavas, que, por minha desgraça, quiz conspurcar o nosso amor.
Sabe-o, se nunca o supposeste; sabe que eu, teu adorador, atraiçoei-te
com as mais rasteiras mulheres.

Fanny não me acreditava. Attribuia á impotencia do furor o que eu
dissera, e fez um gesto de denegação soberba. Máo grado meu, repassado
de angustia, fallei n'um tom de voz supplicante, e branda. Toda a minha
cólera cahiu sob o pezo da piedade.

--Sabe, pois, murmurei eu com as mãos erguidas, que eu te amava ao mesmo
tempo com amor de mãe, de mulher, de creança. Quanta piedade, respeito,
e ternura que podem resumir-se em amor no coração, quantas delicias,
tocam a divinisação pela maviosidade, todas senti por ti, desde o
primeiro dia em que te vi passar com tuas graças, com a tua serena
suavidade, com a tua formosura. Sabe que te adorei piedosamente; que só
em ti pensava; que eras a minha segunda alma; que me doiam mais teus
males que os meus; que, por desvanecer-te do animo uma incerteza, teria
dado, risonho, a vida, que eu só amava por que te era aprazivel. Vê que
choro. Tudo que era teu, amei: teus filhos, tua mãe, tua casa, teus
creados; as irregularidades irritaveis do teu caracter, os teus
vestidos, e as tuas rendas. Creio até que o amava a elle, por que, em
meu espirito, a tua imagem andava associada á d'elle. Nem minha mãe amei
como a ti. Por ti, têl-a-hia abandonado, com tudo que venero. Eras o meu
eterno espirito, o meu bem mais caro, a imagem perfeita das coisas
puras.

«Perdão!» exclamou ella, recahindo de joelhos.

--E tu, Fanny, calcaste aos pés este respeito, este amor incomparavel,
este coração...

«Piedade!

--Recalcaste-me como a féra impassivel que esmagou com as garras as
primeiras flôres do campo. E agora... aqui me tens sem futuro, como um
desgraçado que não pode amar alguem, como o ancião, que viu em roda de
si, morrerem todos os seus. Tudo feneceu, tudo apodreceu em meu coração.
Estou velho! tenho cem annos! vou morrer! sou um sepulchro! Tu sabes de
mais que estou sósinho no mundo...

«Piedade! perdão!--exclamou Fanny, indo hallucinada, esbarrar nos moveis
e nas paredes.--Não me digas que és desgraçado!

--Oh! desgraçado! e não digo bem o que sou. A lingua não tem voz que o
diga.

Ingrata! Não te bastava ser senhora da minha alma, do meu coração, da
minha vida; vens ainda tirar-me o que eu mais amava no mundo... a estima
de ti... que me era mais que tu mesma!

«Piedade! piedade!»--continuava ella exclamando.

--Assassinaste-me a mocidade. Pois bem! ouxalá que nunca soffras o que
eu estou soffrendo... Adoro-te, e horrorisas-me!

Dito isto, quiz feril-a e abraçal-a ao mesmo tempo; mas cahi
desfallecido: e, por noite, quando abri os olhos, e a procurei no quarto
ás apalpadellas, não a encontrei.


LXXII

No dia seguinte, senti-me saciado de vingança. Experimentava aquella
especie de serenidade cruel, que segue as execuções supremas. Sentia-me
satisfeito, em fim, como o juiz que tem em seu poder a irrecusavel prova
do crime que puniu.

Já me não afligia o pensar n'ella. Não obstante, eu previa lucidamente
os graves desgostos da sua vida.

--Soffrerá longo tempo, e depois odiar-me-ha. Incadeada sob o jugo,
debalde tentará soffrêl-o corajosamente. A resignação desdiz do caracter
d'ella. Outro virá, mais tarde, substituir-me. Se a não amar, será
despresado. Amando-a, repetir-se-hão immediatamente, e com as mesmas
phrazes--identicas luctas, as mesmas perfidias, iguaes torturas.
Emquanto viva, Fanny perseguirá fatalmente a sua chimera. O amor ideal
que a arrasta não se dessipará mesmo nos gelos da idade; quando as rugas
sobrevierem a provar-lhe que tudo é mudavel na terra, ella continuará a
evocar o phantasma d'uma paixão que foi e será sempre o seu supplicio.
Ha-de apartar-se da sociedade, como os soldados feridos no fogo de vinte
pelejas. Como elles, afastada de tudo, saciada de tudo, tirará commoções
para uma vida nova no mysterioso poema das suas remeniscencias. Os
filhos, que adora, não a consolarão. Quem sabe se virão a
desprezal-a?... Condemnada a amar por egoismo, não se fará feliz a si,
nem a outrem. Impotente para o bem, ser-lhe-ha martyrio eterno o
procural-o. Para a felicidade propria, faltar-lhe-ha sempre um vicio;
para a felicidade alheia, faltar-lhe-ha sempre uma virtude. Tem coração
de mais, e coragem de menos.

Dest'arte, julgava eu, de longe, aquella mulher que eu, por ultimo
conhecera, á custa da minha ventura. Não posso dizer que a lastimava.
Com quanto me sentisse prostrado de fadiga, a irritação surda, contra
ella, era immensa. Como se annos e annos medeassem entre nós as suas
barreiras, eu me sentia separado d'ella, mas ainda a sentia viver em
mim. Era-me a memoria d'ella, como o ferrete aberto com ferro em braza.
O estygma intalhado a fogo no coração, não podia eu, forçado do amor
desvanecêl-o.


LXXIII

Se, porém, julgando-a, me não compadecia d'ella, era-me impossivel
pensar em mim, sem padecer em todas as fibras do meu ser. Quanto amor eu
tinha, quanta affeição filial, ternura piedosa, e veneração, exhalava-se
de mim como vapores, e dissolvia-se em lagrimas amargas, que eu tragava,
sobre a cruz onde a sorte immisericordiosa me cravára. Estorturava-se,
este amor, como joven robusto que saboreou a vida e não quer morrer. A
affeição de filho, que eu naturalmente lhe dera, por causa da differença
de nossas idades; a piedosa ternura que ella me inspirava, como um bem
suavissimo; a veneração, em summa, que lhe era a ella um incenso grato,
isso tudo, o melhor de minha existencia, desfazia-se em meu coração, e
evaporava-se lentamente em caricias de effluvios e perfumes. Qual
viajor, surprehendido, ao despertar, nas steppes infinitas da Asia, por
um turbilhão fluctuando raso com o chão, tal eu me sentia perplexo nas
minhas revoluções, prudencia, e coragem. Em redor de mim tudo se movia
vagarosamente, derramando-se em fórmas confusas: fugia tudo; memorias
queridas, votos superfluos, ternos desejos, pezares, aspirações, tudo se
esvahia nas distancias do meu sonhar, e me deixava, sósinho, n'um grande
espaço. E desse turbilhão nevoento de sensações, vontades, e habitos;
densas oscillações impalpapeis de penas, prazeres, e esperanças,
prolongadas até ao extremo limite que meus olhos viam, surdia emfim um
phantasma enorme que subia, subia até ao céo, tristemente involvido em
pallida mortalha. Este phantasma reconheci-o na amargura que tinha
impresso na face assombrada, no atrophiamento da sua attitude, na sua
mudez, no rir amargo que lhe circuitava os labios descorados. Ah! uma
vez o tinha eu já visto crescer para mim, e me sentira estalejar com
elle nas dobras de seu sudario. Vinte annos tinha eu. Foi quando perdi
minha mãe, e da sepultura d'ella, revolvida de fresco, sahia e me
aferrara nos braços a glacial SOLIDÃO.

Eu chorava. Tudo estava em redor de mim fallando-me d'ella. Todo o mal
que me fizera, esqueci-o. Mil vestigios deixára Fanny n'aquelle quarto
que eu preparava amorosamente para recebel-a. N'aquelle tecto que lhe
cobrira a cabeça, nos tapetes pisados por ella, nos moveis que tocaram
suas roupas, em tudo me apparecia serena e consoladora. Aqui me abria os
braços de veludo, a poltrona onde ella se assentava tantas vezes; ali a
molle pegada do seu sapato, no coxim em que ella descançava os pés;
acolá, resequidas, nos vazos chinezes, desfolhando-se tristemente, as
flôres que ella amava; além, as cortinas que ella tantas vezes levantava
com sua mão timida; ali, se move ainda o pendulo do relogio, para o qual
ella estava olhando sempre; aqui, o véo d'ella, aqui as cartas, seus
dôces reflexos; além, o pente embalsamado com o perfume dos seus
cabellos; e acolá, finalmente, frio e cerrado como um tumulo, o leito
onde tantas vezes chorávamos.

Agora, me assoberbava a memoria, tudo o que dissemos, pensamos, e
esperamos. Como longinqua musica, trazida na viração do mar, soava-me
nos ouvidos o cantar de suas palavras; como emanação de flôres que se
evapora com o orvalhar das noites, deliciava-me o olfacto, o perfume de
sua cutis olorosa; como bafejo de primavera, perpassavam-me nos labios
os effluvios de seus beijos. Ardia-me a mão que ella tocara; ardia-me a
fronte que ella afagara em seu seio; ardiam-me os olhos que ella
adorara, a boca em que a sua apremara nas vertigens da paixão, o peito
que ella duplicara com o seu peito. Oh! que prazer me era sorrir-lhe ao
retrato, e remecher nas cartas d'ella! Affigurava-se-me ouvil-a ainda;
esperal-a ainda, como nos dias passados; vêl-a chegar assustada, como a
cerva dos bosques, a esconder-se em meus braços. Mas, ao mesmo tempo,
não sei que vaga essencia se desprendia de mim em soluços e gemidos.
Quebrantava-me uma tristeza profunda; uma lethargia sem nome paralisava
todas as minhas idéas. Meditativo, como póde sêl-o o homem no leito da
morte, eu dizia commigo:--Acabou tudo! não nos tornaremos a vêr, nós,
que tanto nos amamos!...


LXXIV

Era tamanha a minha tribulação, que eu receei succumbir á paixão. A
imagem d'ella, entrava em todas as minhas meditações. Como não podia
arrancal-a da memoria, fugi com ella, precipitadamente, sem voltar o
rosto, como o incendiado que não quer ouvir os gritos de maldição
sahidos d'entre as chammas accendidas por sua mão cruel. Parti, sem
dizer onde ia, para partir, para me afastar. A minha mesma coragem me
apavorava. Mas a memoria ia commigo, chorava commigo. Cançado um dia, da
vista dos homens, deixei os caminhos trilhados, e intranhei-me, ao
norte, nas areias que bordam a foz do Loire. Caminhei trinta horas sem
parar. Ao anoitecer, apeei n'um deserto, e resolvi acabar ahi...

Não queria porém, eu, que ahi dissessem que irreflectidamente me
suicidara como um louco, ou como creança infraquecido na lucta.
Apozentei-me, pois, aqui, para luctar contra mim mesmo, e vêr se a cura
me póde ser ministrada por um hospede menos frivolo que a morte.
Impuz-me o prazo d'um anno, para viver uma vida differente, só,
meditativa, austera. Estou resolvido a esperar até final. Algumas vezes,
detesto-me, e todavia espero. Fio-me não sei de que. Amo, como nunca
amei, a mulher que me reduzio a isto. Não a desprezo já. Absolvo-a. Eu
teria feito o mesmo, se fosse ella, e affirmo que valem menos que ella,
as que de outro modo se comportassem. Mas ha momentos em que a detesto,
e me arrependo de a não ter esmagado. Assim, e incessantemente, vou d'um
extremo de amor e piedade, ao outro extremo de furor e odio. Oh! amar!
que supplicio!

As forças da minha alma estão extinctas. Já me não pulsa o coração. Hoje
principalmente, que dou fim aos traços do drama da minha vida, sinto a
tentação terrivel de completal-o com um sanguinario epilogo.

Mas, porque ha-de ser aqui, e não ha-de ser além ao pé d'ella? É porque
me resta ainda o pudôr d'um ciume feroz, que não quer ser carpido. Qual
besta-féra, que, ferida de morte, procura uma caverna onde morrer em
paz, e esconder seus ossos; assim eu, se devo morrer, quero que seja
n'um deserto, longe d'aquella que eu amei de mais.


FIM




                                PARCERIA

                         ANTONIO MARIA PEREIRA

                            LIVRARIA-EDITORA

                               OFFICINAS

                     TYPOGRAPHICA E DE ENCADERNAÇÃO

                       _MOVIDAS A ELECTRICIDADE_

                     44 a 54--Rua Augusta--44 a 54

                                LISBOA





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Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
https://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at https://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit https://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including including checks, online payments and credit card
donations.  To donate, please visit: https://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


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