The Project Gutenberg EBook of O Christão novo, by Diogo de Macedo This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: O Christão novo Romance Historico do Seculo XVI Author: Diogo de Macedo Release Date: June 30, 2009 [EBook #29275] Language: Portuguese *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O CHRISTÃO NOVO *** Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images of public domain material from Google Book Search) _DIOGO DE MACEDO_ O CHRISTÃO NOVO ROMANCE HISTORICO DO SECULO XVI PORTO IMPRENSA PORTUGUESA Rua do Bomjardim, 181 1876 O CHRISTÃO NOVO _DIOGO DE MACEDO_ O CHRISTÃO NOVO ROMANCE HISTORICO DO SECULO XVI PORTO IMPRENSA PORTUGUESA Rua do Bomjardim, 181 1876 ALGUMAS PALAVRAS _Historia, segundo Cesar Cantu, é a narração dos factos considerados verdadeiros. Tem por fim a verdade, porque, no conceito de Alexandre Herculano, encarrega-se de averiguar qual foi a existencia das gerações que passaram._ _Não deve porém considerar-se tam seria e limitada a periferia do romance. O romance póde ser tambem a reproducção e apreciação dos eventos e phenomenos sociaes subordinados a uma certa ordem chronologica e a uma classificação methodica; mas, porque tem menos responsabilidade, concedem-se-lhe mais fóros de liberdade e licença do que a esse grande e solemne registo publico chamado historia._ _Pennejar-se conseguintemente um romance com todas as prescripções historicas, é obrigação que a critica nem o bom senso exigem. O romance, não querendo asphixiar os seus leitores em um ambiente de opio e monotonia, apenas aproveita da historia o fundo e a base: as datas e os factos cardinaes. Em quanto aos contornos e ás linhas e ás côres, aos personagens ainda e ainda ao dialogo e á urdidura, usou sempre, seja elle engenhado por Walter Scott ou seja devido á imaginativa de Alexandre Dumas, de facil e plena liberdade. Mais ainda do que louçanias e filigranas de estilo se reclamam, para repasto da curiosidade, os meandros e caprichos da phantasia. Só por imposição de estranho despotismo se deve sugeitar a contextura do romance historico a toda a fidelidade ethnologica e a todo o rigor dos acontecimentos. A narrativa e apreciação dos factos considerados verdadeiros--a historia--não podem associar-se de nenhum modo aos partos da imaginação e aos caprichos da phantasia--o romance._ _Comprehendendo-se portanto a differença que faz a historia, propriamente sciencia natural, do romance, simplesmente exercicio litterario, não se deve estranhar a maneira como pensei e escrevi. Sem o auxilio da imaginação como se conseguiria entreter a curiosidade e passar o tempo no decurso de algumas dusias de paginas com as descripções dos obscuros successos dos dous seccos e aridos annos de 1553 e 1554?_ _É coisa natural que eu bastantemente abusasse das liberdades de romancista. Por exemplo, do meu livro translusem o caracter e a phisionomia de Simão Rodrigues com menos vantagens e virtudes do que as que lhes foram munificamente abonadas pela tradição e pela escriptura. Disse-se do celebre discipulo de Ignacio de Loyola que morreu (15 de julho de 1579) com acrisolados sentimentos de religião. Nada o assombrava nem esmorecia quando se tratava do serviço de Deus, sabendo sempre em sua vida manifestar os mais austeros principios de abnegação e dando em todos os seus actos os mais louvaveis exemplos de sabedoria._ _Egualmente a indole e os costumes de Dom João III não se descortinam em painel que satisfaça as exigencias da critica e o rigor da verdade. Será Dom João III o monarcha fanatico e frouxo retratado com as tintas sombrias da palheta de Alexandre Herculano, ou antes o principe virtuoso e prudentissimo que, segundo os annaes louvaminheiros de Frei Luiz de Sousa, foi,_ sem a nenhum fasermos aggravo, um dos primeiros entre os que louvamos de grandes e excellentes virtudes? _Emfim referem os chronistas que o joven esposo da infanta de Castella, essa princesa não pouco memorada pela energica protecção com que mais tarde ensoberbecera o animo pusillanime de Christovam de Moura, falleceu de enfraquecimento phisico dous meses depois do seu faustoso matrimonio. Eu faço-o padecer no leito frio da morte os effeitos inclementes do veneno!_ _Em quanto a ideias religiosas e a ideias politicas principalmente, reconheço, como com magica eloquencia observa Emilio Castelar na vida de Lord Byron, que tem este seculo incerto desde o seu começo vacillado entre a rasão e a fé, entre o direito e a tradição, entre a liberdade e o cesarismo; porém julgo-me no direito de não simpathisar com esse esqueleto de corôa de ferro na cabeça e de guela a trovejar vinganças, com esse systema obsoleto e feudal que felizmente passou ao mundo das tradições depois de por tantos seculos haver sido o protogonista do grandioso drama ou da grande tragedia da historia. Esse infeliz regimen, o das praticas e theorias theocraticas do absolutismo, já não preoccupa hoje em dia, apesar de ainda conservar alguns alentos de cadaver, o espirito dos economistas e o genio dos philosophos. Hoje a escolha decide-se pela monarchia constitucional ou pelo governo democratico. Simplesmente o que resta averiguar em amigavel concordancia é qual dos dous systemas offerece maior numero de vantagens sociaes e melhormente contribue para a emancipação geral dos povos. Eu presumo que todas as tendencias da mocidade preferem as doutrinas republicanas por serem as mais desinteressadas e que todos os calculos da idade viril abraçam os ouropeis da monarchia por serem de todos os systemas politicos o que mais satisfaz a vaidade e as ambições dos homens. Haverá por isso quem recrimine os meus devaneios democraticos e deteste as minhas expansões liberaes? Deve comprehender-se que á consciencia repugnam todas as peias e que as conquistas do progresso não obrigam o espirito do homem á filiação ou observancia de uma unica fórma ou theoria de governo._ _Ainda tambem relativamente a formulas e sentimentos religiosos duas ideias se devem estremar: a ideia de Deus e a dos seus representantes na terra. As obras e immunidades do gremio catholico não saberei respeital-as com aquelle mistico fervor e aquellas espirituaes dedicações que me possam grangear nome e gloria nas lendas hagiolicas; mas a ideia de Deus, sinthese de todo o bem e espelho de todas as perfeições, venero-a sem vislumbres de duvida e com o vigor mais intimo das minhas crenças._ _Não crer na bondade dos padres não é descrer das bondades divinas. Nos tempos em que mais se invocava o simbolo da cruz e mais se pelejou pela fé catholica, a christandade que de exemplos nos ministrou de acções e virtudes menos orthodoxas! Conta H. Taine que Ricardo, o coração de leão, quiz um dia sob os muros de San João de Acre comer a toda a força carne de porco. Não havia carne de porco por mais que se procurasse. Lembra-se o cosinheiro de matar um sarraceno gordo e tenro; salga-o e cose-o seguidamente. O rei come-o e encontra-o delicioso. Quiz depois ver a cabeça do seu porco e o cosinheiro lh'a conduz possuido de grandes tremuras. O rei põe-se a rir e diz que o seu exercito não póde recear a fome porque tem á mão fartura de provisões._ _Então, quando os devotos e defensores da cruz fasiam a guerra aos sarracenos, ouvia-se sempre a voz dos anjos dos ceus que dizia:_ Matae, matae! Não poupeis ninguem; cortae a todos a cabeça! _Esta voz dos anjos era ouvida pelos christãos e por isso tomando-se qualquer villa ou cidade tudo se passava a fio de espada, crianças ou mulheres. Na tomada de Jerusalem setenta mil pessoas, o que prefasia toda a população, foram exterminadas cruelmente[1]!_ _Bem mais delongadas observações em abono de creditos litterarios e sobretudo por descargo de consciencia se tornavam talvez indispensaveis; mas eu encorporo-me no avultado numero dos que reconhecem a inutilidade e o desprestigio dos prologos. Não ha juisos nem avisos que salvem das voragens do esquecimento um ruim livro. Se o livro é mal escrito e delineado, todos os cordiaes e remedios são falliveis e impotentes da mesma sorte que, se o livro é de materia agradavel e perfeita, dispensa facilmente a importancia ou a formalidade dos prologos._ [1] _H. Taine. Hist. de la litt. anglaise, t. I._ O CHRISTÃO NOVO I CIUMES DE UM REI Por uma das mais somnolentas e placidas noites dos fins de outubro de 1553, no desvão de esguia janella do palacio dos nossos reis estava casual ou intencionalmente encoberto pelas dobras de soberba cortina de rendas de Flandres um personagem vestido com gibão de veludo preto. Usava elle de curta cabelladura côr de castanha e não inculcava mais de cincoenta annos de idade[2]. Em volta do pescoço alvejava-lhe uma das amplas gorgueiras encanudadas que, na frase picaresca de um novellista espanhol, davam á cabeça o irrisorio aspecto de um melão collocado em cima de um prato de porcelana branca. Pronunciava-se-lhe bem um nariz em demasia grosso, era baixo da corporatura como qualquer burguez e parecia reforçado dos musculos como um legitimo descendente de Hercules. Para melhormente sobresairem as tintas: «em mean estatura grande proporção de membros; olhos entre verdes e asues; boca vermelha; rosto alvo e de boa côr. Notava-se-lhe o pescoço um pouco curto e a cintura grossa, mas não que chegasse a desar[3].» Dominava-o finalmente a prurigem da impaciencia ou da curiosidade. Translusiam-lhe no rosto arredondado a feição sombria do seu caracter e no sorriso confrangido a indecisa severidade do seu genio. Algum acontecimento inesperado lhe impressionara sobremaneira o espirito e certamente era essa uma das mais criticas situações a que submettera a sua delicada sensibilidade. Nada com effeito de mais critica e extraordinaria situação. Aquella esguia janella gothica pertencia ao quarto de dormir de uma poderosa mulher e no centro do quarto via-se um dos mais nobres e esbeltos personagens do segundo quartel do seculo XVI dado a indiscreta conversação com essa mulher em quem todos «descobriam raras e heroicas virtudes, grande zelo e piedade christan, grande brandura e affabilidade em obras e palavras para com grandes e pequenos.[4]» --Que nunca eu mereça o vosso desdem, exprimia-se elle com accento de ternura e de respeito. Confio nos sentimentos do vosso coração e da vossa nobresa, senhora. A não depositar nas vossas mãos a redoma das minhas esperanças, teria levado o meu corpo á defensão da praça de Arzilla ou das heroicas muralhas de Dio... --Socegae, Dom Prior. Nada de perder o animo. Bem sabeis que de pouco serve o meu valimento; mas ainda assim me decidirei quanto possa em vosso auxilio. --É tudo o que vos supplico, porque sei que nada vos recusa el-rei... --Em pouco mais pensa el-rei do que no zelo da religião e no culto de Deus. As nossas praças de Africa vão sendo abandonadas pelas lanças dos portugueses e fracos são os reforços de soldados e munições com que se acode aos ricos dominios das Indias. Escuta lá el-rei os meus conselhos! --A quem ha de ouvir senão a vós, senhora? --Attende em mais e em tudo o reverendo Simão Rodrigues e esse terrivel prelado João Soares. Elle não conhece outro amor que não seja a puresa da fé e não respeita outros homens que não sejam os jesuitas... Amor do povo e da patria como o nutriam em seus heroicos seios seu pai e avô Dom Manoel e Dom João! Jámais esses bons monarchas offenderam a religião de Christo e sempre todavia se cumularam de gloria sem tribuanes de inquisição e sem ordens de jesuitas... --Não vos tacharei de injusta por não faltar-vos ao respeito, senhora minha. Certo é que Dom João presta ouvidos a Simão Rodrigues, criou o venerando collegio de Coimbra, estabeleceu em nossos reinos a mesa do Santo Officio e toda a sua alma se affervora no zelo da religião catholica; mas todas essas virtudes são effeito de piedade e não de falta de civica devoção. Ama tanto a fortuna dos filhos de Loyola e dos discipulos de Torquemada como o bem dos seus vassallos... --Não que o não fadaram os céus com a vossa indole, Dom Luiz. Por estas lagrimas o digo, accrescentou levando o lenço aos olhos. Que differença tam grande entre irmão e irmão! A vós não vos fallece galantaria nem juiso. Sois valente e generoso a um tempo. Todos vos apontam como enlevo das damas, captivaes as affeições do povo e mereceis a estimação dos mais esforçados cavalleiros da côrte... --Não me lisongeeis assim, que podem escutar-vos e de mim curtirem ciumes. --Ninguem me culpará perante Deus nem perante os homens. Sabe de sobejo meu esposo quaes são os meus sentimentos a seu respeito. Amor com amor se paga e por isso não deve tomar a mal que lhe eu pague com indifferença as suas frias indifferenças. --Julgo que nada padecereis, senhora. Mas fallo por mim... Ainda não eram concluidas taes palavras quando de repente a cortina se desvenda e o personagem que se conservara achegado ao peitoril da janella se adianta com passo grave. Parecia, embora a frase tenha laivos de sediça, a estatua severa do Commendador. Era agora, ao contrario das côres naturaes, pallido e altivo do rosto. Dos grossos labios desferia um sorriso de neve. Dos seus olhos entre verdes e asues dardejava um lampejo de indignação que devera ferir como o raio. Talvez se esperasse a tremenda explosão de colera por muitos dias sopitada. Entretanto o grave personagem declarou com serenidade: --Nada receeis, meu nobre irmão... Dom Luiz quedou em silencio. Ou a voz se lhe prendeu nas fauces ou o respeito o fez calar. Com porte severo e imponente apresentava-se-lhe de subito o muito alto e poderoso rei de Portugal e dos Algarves, sua altesa serenissima o senhor Dom João III. Era para Dom Luiz das mais solemnes e apertadas semelhante situação. Antes mil veses se quisera em luta encarniçada com os mouros de Asamor ou com as hordas do samorim de Calicut. Dom Luiz de Beja, Prior do Crato, digno infante de Portugal e esforçado filho de Dom Manuel foi havido sempre no consenso publico por cavalleiro valeroso e destemido. Em provas de coragem não no excederam os Pachecos nem os Albuquerques e ninguem com mais galhardia soube ainda no officio das armas brandir uma lança ou empunhar uma espada. D'elle recontam chronistas e historiadores que principe nenhum soube dar-se ao respeito melhormente ou faser em sua vida com que o amassem tanto. «O amor que os portugueses lhe tinham passava a idolatria. Adornavam-no todas as partes que podem fazer-se credoras da estima dos homens. Era nobre e generoso, compassivo e valente, affavel e tam ousado que passava a destemido. «A estas gentis condições andavam annexas muita mansidão na sociedade e rara prudencia nos negocios. Era guapo e bem feito; sensivel, terno e deveras affeiçoado ao trato das senhoras. «A fama das suas boas partes moraes e phisionomicas voára até os paizes estrangeiros. No serralho do xerife de Marrocos grangeara grande estima e uma das suas filhas morria de amores por elle. Todas as veses que a nobre donzella encontrava Dom Diogo das Torres, captivo a quem se facultava entrada livre no palacio por ser protegido de Muley Abel Mumen, irmão do xerife, nunca se fartava de fallar-lhe no infante. Um dia que passeava nos jardins do palacio viu Dom Diogo e chamou-o para lhe diser: «Colhei de aqui algumas flores e tecei com ellas uma corôa semelhante ás que trasem os principes christãos». Obedeceu Dom Diogo das Torres e cuidou de offerecer-lh'a. Tomando-a então e pondo a corôa na cabeça encantadora, ella lhe disse: «Permittam os ceus que eu algum dia viva unida com o infante Dom Luiz como suaesposa e que, sendo elle o rei, eu seja a rainha de Portugal![5]» Mas agora a conjunctura não demandava feitos de valor nem proesas de galanteria. Atrevera-se Dom Luiz entrar a sós em aposentos que apenas não eram vedados á pessoa do monarcha portuguez: a alcova nupcial de Catharina de Austria, essa virtuosa irman do Cesar das Espanhas, o victorioso imperador Carlos V! Mal decorreram alguns instantes quando se voltou el-rei para sua esposa a diser-lhe pausadamente e com um sorriso glacial: --Deveis desculpar-me, senhora, o vir interromper-vos nos vossos galanteios. Por Deus que vos dou uma lição que vos deve servir para de outra vez terdes em mais recato o pudor e a honra de uma rainha; mas sempre se desculpam os maus humores de um esposo e por isso espero de vós que não tomeis a mal a minha presença. Ás veias da orgulhosa princesa de Castella refluiu todo o sangue celta da raça de seu pae Filippe I, aprumou o seu bello pescoço de garça como se nada houvesse que temer, fitou firmemente com um olhar de aguia o semblante pallido de Dom João III e de prompto impugnou com a austera dignidade de uma rainha: --Jamais tive galanteios que não fossem para vós, senhor meu esposo! Sorriu o monarcha d'esta vez com aquelle sorriso contrafeito que lhe era peculiar e por ventura se dispunha a retorquir em termos de menos restricta etiqueta quando o infante se lhe dirige assim: --Assaz vos hei provado, meu irmão e senhor, a força da minha lealdade e o quilate da minha honradez. Sabei que junto da camara de vossa altesa não me trouxeram galanteios. Antes retalhara o coração com o gume da minha espada do que faltar algum dia á fidelidade e ás homenagens que a vós e a ella vos devo. Missão de outra naturesa me guiou á presença da esposa de vossa altesa serenissima. Vim pedir-lhe, senhor, que vos amolgue o genio á compaixão e vos decida a resgatar a honra de Dona Violante Gomes... A este suave nome de Violante Gomes pareceu sobresaltar-se o animo de el-rei. Os olhos, que até ahi os conservara como pregados na alcatifa multicor do aposento, erguera-os ao nivel do olhar do irmão e pareciam em semelhante conjuncção animados de uma estranha vivacidade. Mostrava-se agora mais varonil a phisionomia e mais aprumada a estatura do fanatico Dom João III. --Insensato que sois, meu irmão! Violante Gomes talvez algum dia venha a ser vossa esposa; mas juro-vos... juro-vos que, em quanto eu viva, nunca Dom João consentirá que uma barregan se associe á familia dos monarchas de Portugal! Inesperadamente assomou um vislumbre de colera ás faces amarellecidas do infante. Pouco lhe quedaria para se esquecer da obediencia que jurara a el-rei, quando Catharina de Austria adianta dous passos e se colloca de permeio como decidida a conjurar a tempestade. --É de justiça, aventurou-se a interceder, o que vos implora o infante Dom Luiz. Fará o vosso rigor com que mais se deva tomar-vos por tiranno que por monarcha. Elle falla em nome da humanidade e da honra, duas virtudes que o vosso espirito não poderá desconhecer nem póde repulsar. Por isso não vos merece a resposta do orgulho e do fanatismo... --Diseis bem, applaudiu Dom João com modos brandos e com uma indefinivel expressão que só elle e Machiavelo sabiam fingir. Diseis bem; mas esses negocios ficam para mais tarde. Veremos se elles interessam ao esplendor da religião e ao bem do estado. Estendendo depois o braço para a porta do aposento, pareceu indicar a Dom Luiz que era chegado o desfecho da entrevista. Dom Luiz de Beja, baixando a cabeça e não arredando os olhos do chão, dirigiu-se machinalmente para a porta e se retirou em completo silencio. [2] Nasceu a 2 de janeiro de 1502. [3] Frei Luiz de Sousa. _Annaes_, liv. I, cap. IV. [4] Frei Luiz de Sousa. _Annaes_, liv. III, cap. 11. [5] La Clede. _Hist. ger. de Portug._ II OS REIS NÃO COSTUMAM PERDOAR AS OFFENSAS RECEBIDAS Atravessara Dom Luiz a comprida sala chamada ordinariamente dos _tudescos_ e se dispunha a descer a marmorea escadaria dos reaes paços da Ribeira quando se lhe aproxima um dos pagens de Catharina de Austria e, em tom de quem dá conselhos, ousa segredar-lhe assim: --Tomae cuidado. Os reis não costumam perdoar as offensas que recebem. Ao misterioso aviso quasi que Dom Luiz não prestara ouvidos. Embuçando-se cautelosamente na sua fina capa de panno verde e carregando sobre os olhos o seu amplo chapeu de feltro enfeitado com bella pluma branca, atravessou a larga escadaria e em dous momentos se apresenta no meio do espaçoso terreiro. O Tejo, esse rio de arêas de ouro tam decantado pelos poetas, dormia placidamente. Soaram onze horas e o ceu mostrava-se empanado de sombrias nuvens. Raras pessoas transitavam pelas ruas da opulenta capital. Apenas de longe a longe o bronze dos campanarios vinha alterar a prolongada monotonia da noite. O infante, olhando a custo para as aguas ensombradas do Tejo, parecia meditar. Depois abandonou o terreiro e a passo lento seguiu pela rua da Palha a direcção da praça do Rocio. Absorvido em estranhos pensamentos ia elle no seu caminho quando lhe surdem inesperadamente de cara tres vultos agigantados. Em seguida sentiu no peito a lamina de dous punhaes e certamente o seu corpo ficaria sem forças e sem vida se os punhaes não resvalassem no aço finissimo de uma cota de malhas. --Covardes! gritou Dom Luiz ao mesmo tempo que desembainhava a espada e que se poz em guarda. Immediatamente se crusaram tres espadas contra uma. Era em extremo fino e destro no jogo das armas brancas Dom Luiz de Beja. Mas os seus adversarios mostravam-se lestos e ageis tambem. Além d'isso ajuntavam-se tres contra um. Não podia ser mais melindrosa a posição do infante. Por fortuna, quando já o suor lhe escorria pelas barbas e principiava de debilitar-se-lhe o pulso, eis que um novo personagem se intromette na peleja. Depressa cáe por terra o mais alentado dos aggressores e os dous restantes, naturalmente com receio da morte, poseram-se em immediata e vergonhosa retirada. --Obrigado, meu amigo, agradece o infante no momento em que aperta com fraternal reconhecimento a destra do seu salvador. Era elle o mesmo pagem que nos paços da Ribeira lhe segredara misteriosamente: _Cautela, que os reis não perdoam as offensas que recebem!_ Por causa das sombras da noite não se lhe distinguiam as feições: poder-se-hia divisar apenas que era fransino do corpo e que lhe relusiam os olhos como a chamma de um lampadario. Sorriu-se ouvindo os agradecimentos e, talvez com traça de se esquivar a novos protestos de gratidão, pretendeu retirar-se. O infante porém agarrou-lhe meigamente o braço e pediu-lhe que o acompanhasse. Pouco adiante, a confinar com o adro de San Domingos, elevava-se em um angulo meridional do Rocio uma elegante e vistosa casaria. O infante bateu de rijo com os copos da espada tres pancadas no portal e a porta franqueou-se-lhe minutos depois. Ambos subiram os degraus de uma escadaria resguardada de tapetes e depressa alcançaram assim o primeiro andar da casa. Introduziu-os um domestico em uma sala de paredes vistosamente forradas de ricos pannos de Arras e toda mobilada com largas cadeiras cobertas de seda escarlate. D'esta sala passaram a um gabinete de exiguas dimensões onde a seda, o brocado, as rendas e os cristaes de Venesa offereciam ás vistas um aspecto encantador. Mais adiante abriu-se-lhes um salão da mais requintada opulencia. Tudo ahi reçumava riquesa e bom gosto. Julgar-se-hia logo a perfumada recamara de uma princesa. Os reposteiros foram talhados de uma preciosa fasenda da Persia que Dom Affonso de Noronha mandara recentemente nos galeões das Indias. Não eram as tapeçarias que cobriam o soalho de menos valor e variedade. Por toda a parte macios coxins estofados de seda asul e franjados de ouro. Alguns quadros que representavam as viagens de Dom Henrique e as descobertas de Vasco da Gama, pendiam das largas paredes. Varias figuras da melhor porcelana da China se viam aos recantos do salão sobre dous elegantes bufetes com esmero trabalhados de madeira de ebano. Mil outros objectos de porcelana, prata e marfim decoravam finalmente com luxo oriental aquella mansão de fadas. Mal o pagem se dispunha a observar os ricos estofos e as admiraveis pinturas, eis que apparece no salão uma das mais prendadas e gentis damas do reinado de Dom João III. Trajava um vestido de lhama asul guarnecido com alamares de passamanes de prata e ouro, decotado a modo de revelar todo o seu alvo pescoço e tam curto das mangas que se lhe viam quasi todas as rosadas carnes do seu braço. Poucos pintores estudaram ainda tam bello perfil e mais alegre figura. Eram, como dous astros de amor, cheios de ternura e limpidez os seus olhos castanhos. Não havia mãos de mais fina epiderme nem dedos de mais esmerada estructura. O contorno do nariz não cedia em perfeições aos das estatuas gregas que representam a deusa das graças e dos amores. Os labios, feitos das petalas de uma rosa, possuia-os tam frescos e delicados que pareciam de uma criança. Quanto não valiam os seus sorrisos e que thesouros de ternura não encerravam as suas fallas! Era alta do corpo e franzina da cintura, como devem ser, á semelhança das primorosas estatuas de Praxitelles e de Phidias, esse ideal das artes plasticas, os contornos e proporções das rainhas da bellesa. Mais nutrida que magra assim nos braços como no rosto e, para mais se accenderem cubiças, da arca do peito avolumava-se-lhe o contorno dos lacteos pomos de que Tasso e Camões nos fizeram a descripção. Passava já dos trinta e seis annos de edade e comtudo ninguem lhe calcularia acima de vinte e cinco primaveras: primaveras superabundantes de rosas e frescura, porque uma eterna juventude é algumas veses privilegio das mulheres formosas! Imprimiu-lhe o infante um doce beijo na mão esquerda e, apontando para o pagem, lhe disse risonhamente: --Apresento-vos, minha querida Violante, um bom amigo que ainda ha pouco me salvou os dias da vida. O pagem conservou-se em mudez. Possuido de uma agradavel commoção, ajoelhou aos pés da formosa dama e não pôde elle evitar que dos seus olhos negros se escoasse uma lagrima de praser. Violante Gomes estreitara-o nos braços de fada e com palavras divinamente repassadas de doçura lhe rumorejou: --Deus vos recompense o bem que fiseste. Dispôz-se então a contar-lhe o infante o que se passara. A narração foi simples e curta. Poupou todas as côres da fantasia e do romantismo. Não se lhe ouviu sequer uma accusação contra os sicarios nem contra a pessoa que lhes commettera a empresa. O pagem depois tomou a palavra n'estes rapidos termos: --Dom Luiz é denodado em demasia. Se lhe presaes a vida, minha senhora, deveis aconselhar-lhe que não a exponha tanto. Inimigos poderosos lhe sobejam... --Talvez que só Deus o possa defender! exclamou Dona Violante. --Deus, acrescenta o Prior do Crato, Deus e a minha espada e os meus amigos tambem. Que ha traidores no mundo sei-o eu; mas que se guardem, que se guardem bem os traidores! --Guardam, guardam... Não vêdes como apenas mostram elles o braço e o punhal? A esta allusão da formosa dama logo vaticinou o pagem: --Decerto não falta um vilão que a troco de alguns ducados assassine o principe Dom Luiz! --Mas que empenho haverá n'isso? Dizei-o, que vôl-o supplica Dom Luiz de Beja! --Quereis que vôl-o diga em voz clara? Alguma coisa devera aprender no meu officio de cortesão e eu vos direi agora o que sei: vosso irmão o senhor Dom João III não vos estima... antes vos odeia! --Ousaes assim calumniar el-rei! com animo exaltado replicou o infante. Bofé que, se vos não devesse a minha vida, diria agora que... ensandeceste. --Rogo-vos moderação, acudiu a dama. Falla o que sente e o que sabe este generoso mancebo. Oxalá sejam imaginarios os seus receios; mas não sei que triste presentimento me leva a crêr que algum infortunio nos ameaça... Sorriu-se o pagem com essa expressão de interna melancolia que não se descreve nunca. Em seguida volveu-se para o infante. --Perdão... mil veses perdão se vos offendi! lhe disse. Abraçou-o o infante com o espirito sinceramente commovido. Descobrira no pagem um tal caracter de franquesa e um certo cunho de verdade que desde logo se lhe afigurou ninguem ser digno de maior estima. Á primeira vista mostrava-se repugnante a phisionomia do pagem. Predominava n'elle o sangue das raças selvagens do Oriente. Era negra como aseviche a pupilla dos seus grandes olhos e essa pupilla parecia tarjada de um leve circulo de sangue. O nariz era chato alguma coisa e alguma coisa largo das asas; a côr da pelle bastante acobreada e os beiços grossos sem desar. De idade não contava mais de vinte e dous annos, mas na agilidade dos musculos e na vivesa do espirito poucos ou nenhuns cavalleiros o excediam. Nascera no paiz dos badages e ali fôra, em companhia de seus velhos paes, convertido ao christianismo pela palavra e pelo exemplo de Antonio Criminal. Quando os badages degolaram este malaventurado jesuita foi tamanho o horror que a pobre criança concebeu pelo seu idolo Trichandur que nunca mais quiz lembrar-se do seu paiz natalicio. O vice-rei Jorge Cabral conhecera-o em Gôa, criara-lhe amisade pelas boas prendas que em todo elle descobrira e embarcou-o para Lisboa no seu regresso em 1550. O pagem, embebido nos perfumes de um ambiente de delicias, agora não se fartava de contemplar a peregrina formosura de Dona Violante. Nunca nos salões da côrte lhe fascinaram os olhos princesa de fórmas tam correctas, de maneiras tam delicadas e conversação mais suave. O terno e melodioso accento com que fallava insinuava-se meigamente nos corações como se fossem harmonias do ceu. Superabundavam-lhe bellesas assim no corpo como na alma. Talvez porque o acaso lhe denegara a nobresa do nascimento, concedera-lhe Deus todas as mil prendas que no mundo servem de apanagio e de cortejo á graça e á formosura. Dona Violante fez-lhes servir aos seus dous hospedes, em ricas bandejas de prata, alguns doces e licores. Depois, a rogo do infante, passou com agilidade os seus pequeninos dedos pelas cordas de uma harpa e com ternissimas inflexões começou de cantar o bello soneto em que Luiz de Camões define o amor: Amor é um fogo que arde sem se vêr; É ferida que doe e não se sente; É um contentamento descontente; É dôr que desatina sem doer. Logo que terminou levanta-se o gentil prior com todo o carinho a apertar-lhe os braços em volta da cintura e com labios de fogo imprimiu-lhe nas rosas do collo um osculo fremente. --São estas as unicas venturas da minha alma! revelou elle ao pagem. Não vês como ella é formosa? Algum dia te contarei como nasceram estes amores... III RECOMPENSA DO CRIME Acabara de badalejar a meia noite no campanario da cathedral quando na portaria arqueada do memorando collegio de Santo Antão parou um homem de gigantea corporatura. Vinha embuçado em um capote de fartos cabeções e equilibrava na cabeça um desses negros chapeus com amplas abas e copa sumida em fórma de funil. Depois de relancear prescrutadoras e desconfiadas vistas, entrou sorrateiramente no alpendre do edificio e dirigiu-se por uma das portas lateraes para um modesto gabinete situado ao rez do chão. Aguardava-o ali com impaciencia um magro personagem de vestes sacerdotaes e de phisionomia carcomida pela sarna dos annos. --Então que boas novas me trazes tu? perguntou elle sentado em pobre tamborete de carvalho e desviando os olhos de um livro escrito na lingua latina. --Não me parecem tão alegres como desejava, regougou o recemchegado. --Bem mau é isso. Mas conta depressa o que aconteceu, meu Jacobo. --Pois saiba... saiba vossa senhoria illustrissima que tudo se frustrou por artes do diabo. --Jacobo, fallas a serio porventura? com preoccupação interrogou o padre. --Com verdadeira magoa o digo; mas é verdade. --O que tambem é verdade é que sois todos uns covardes... --Tudo menos isso, meu senhor. Era elle que vestia a pelle do diabo! A não ser assim, eu por Deus que soubera responder pelo ferro do meu punhal! --Sempre usaes do mesmo ripanso. Todos vos credes uns fanfarrões e uns Hercules; mas porfim de contas, se é mister que se mostre valentia ou governe com prudencia, sois deveras mais pecos e villãos do que um asno. --Deve saber vossa senhoria illustrissima que a culpa não foi nossa. Juro que não foi. Esperamol-o a sangue frio e logo, peito a peito como varões honrados, procuramos mandal-o de presente ás megeras do Averno quando os punhaes, em vez de toparem carne de christão, encontram o aço de uma saia de malha... Mas, ainda assim, tudo se remediava á maravilha: como os punhaes eram curtos, puchamos das durindanas em guisa de valentes campeões e em poucos minutos dariamos com meia duzia de cutiladas remate á nossa obra se de improviso se não intromette o demonio em favor d'elle. Um dos nossos cae por terra e os outros... os outros... --Escusas de confessar que fugiram... provavelmente com temor de lhes acaecer a mesma sorte. --Não foi o temor, meu padre. Tem vossa senhoria em mim um rude servo que nunca do sitio do perigo arredou pé com medo nem covardia! --Conheço-te bem, meu Jacobo. Faço justiça á tua valentia e espero que me toleres algum arrebatamento. O pobre velho não sabe o que diz, não sabe o que diz muitas veses... Mas dize-me ainda: que fiseste do companheiro que morreu? --Á falta de outras virtudes, nunca me arrependi de ser prudente. A estas horas, meu padre, está elle a servir de repasto aos peixes do Tejo. --És assisado, és assisado na verdade. Toma em paga dos teus serviços e retira-te por hoje. Atirou-lhe o padre com um punhado de moedas de ouro e o gigante, mirando-as com olhos de cubiça, lançou com prestesa mão d'esse precioso metal que na frase de Tolentino é o _tiranno do mundo_. --Sempre a vossa senhoria conheci generosidade, retorquiu elle correndo a mão esquerda pela desgrenhada cabelladura. Mas d'esta vez, meu padre, bem sabe que tenho de repartir... Cincoenta escudos[6] é pouco. --Nem um morabitino merecias ganhar, meu velhaco. Jacobo afastou-se sem novas replicas e a meia voz foi tratando de combinar a melhor maneira de embair a boa fé do seu companheiro. --Sempre lhe direi que não recebi mais de trinta escudos, rosnou elle pelo caminho. Em seguida poz-se a cantarolar aquella sabida canção[7]: Como no se desespera quien se vê como me veo tan lexos de dó desseo, tan cerca dó no quisiera? Entretanto o ecclesiastico de Santo Antão esfregava as engelhadas mãos como prova de quem se não julga de todo descontente. --Do mal o menos, murmurou levantando-se do tamborete. Escapou-nos por hoje, mas nada se descobriu... E que tudo se divulgasse e descobrisse? És muito anão, Dom Luiz de Beja, para ergueres o braço contra a pessoa que te mandou assassinar! O ecclesiastico fechou o livro e deixou-se cair novamente no meio da sola do tamborete. --Meu Deus, meu Deus! exclama então com gesto de arrependimento. As tuas doutrinas só respiram humildade e amor; queres que amemos o nosso proximo como nos amamos a nós mesmos; aconselhas o perdão das offensas e o abandono das riquesas do mundo... Mas como renegamos a tua lei e os teus conselhos, Deus meu! Entra uma vez nos seios do homem o veneno das ambições terrestres e esquecem-se bem depressa os deveres da virtude e a salvação das nossas almas. Tudo se esquece e... lá vamos nós, vermes orgulhosos, pelo menos subvertendo nas voragens do crime a tranquillidade do espirito e a saude do corpo! Abrio mansamente o livro, entregou-se por alguns momentos á leitura d'aquelle salutar capitulo que traz por epigraphe _De consideratione humanæ miseriæ_ e que principia por estas palavras de humildade: _Miser es, ubicunque fueris et quocumque te verteris, nisi ad Deum te convertas._ Seguidamente prostou-se o padre de joelhos e com modos de extrema beatitude fixou os olhos nas taboas do pavimento. --Eu sei, declamou ainda, que só trabalho para o progresso da religião catholica e em beneficio da santa madre igreja. Mas o meu coração está cheio de magoa, meu Deus. São grandes os meus erros, são enormes os meus peccados! Decorreram dous minutos de tranquilla meditação e tudo ali, como se fosse o recinto de um cemiterio, permanecia completamente calado. Nem o cicio dos insectos nem as oscillações da pendula dos relogios interrompiam o silencio sepulchral do gabinete. --Deus de misericordia! por fim proferio o padre batendo por duas veses com os punhos na arca do peito. Meu Jesus de misericordia, guiae-me como bom christão pelo caminho da virtude e fasei com que me não desampare nunca a vossa infinita graça. Eis aqui um grande peccador que, fingindo observar todas as virtudes da religião, encoberta as chagas dos maiores vicios! Eil-o aqui, humildemente offerecendo a cabeça ao gladio da vossa punição!... Mas tende vós piedade de mim; tende piedade de mim, senhor! Seguidamente lançou mão de um latego de rijos loros e dispôz-se, a exemplo dos mirificos varões de que nos fallam os livros de theologia, a flagellar rudemente as espaduas, os peitos e os rins. Não desprendia da garganta um unico murmurio de dôr e todavia cada vez com mais força se redobravam os açoutes. Sempre sereno do rosto e humilde da postura como as figuras de alguns macillentos retabulos da escola flamenga, disciplinava-se cruelmente á maneira do mais exemplar e do mais devoto dos filhos do christianismo. Se deixava de orar é porque as correas lhe açoutavam as carnes do corpo e, se parava com o castigo do latego, é porque em misticas leituras pregava os olhos nas paginas do livro. Esse livro abrangia mediana fórma e fôra publicado em 1492. Todo cheio de doutrinas religiosas, rescendia das suas bellas paginas os santos olores das folhas do evangelho. Era verdadeiro balsamo para o espirito de um christão e ainda hoje tanto consola o christão como o philosopho. «Admiravel apesar da negligencia do estilo, commove muito mais do que as argutas reflexões de Seneca e as frias consolações de Boeccio. Foi traduzido em todas as linguas e lê-se em toda a parte com infinito gosto. Conta-se até que um poderoso bey de Marrocos o guardava na sua bibliotheca e de quando em quando o lia com inexcedivel prazer[8].» Leitura sempre cheia de uncção e piedade, mereceo do sabio Fontenelle o conceito de «o mais bello livro sahido das mãos dos homens». Modestamente se intitula _De imitatione Christi_. O padre todos os dias e todas as noites o folheava com beatifica e inalteravel devoção. Todos os dias passava algumas horas lendo-o umas veses silenciosamente e outras em voz alta. Que mistico e santo apostolo não devia de ser este padre! Quem posesse o ouvido ao ralo da porta da sua pobre cella, ouvil-o-hia pedir com profundo arrependimento aos ceus misericordia para os seus peccados e salvação para a sua alma. Para castigo dos affectos humanos, não se poupava jejuns nem penitencias. Na boca dos irmãos da sua ordem jámais no orbe catholico brilhara jesuita de maiores virtudes. Quando em reverente postura de resa e devoção se collocava defronte do seu crucifixo, logo se poderia tomar por qualquer anachoreta da Nitria. Ninguem á primeira vista o julgara desmerecedor de participar dos mais subidos panegyricos das lendas hagiolicas. Chegou de Roma em Companhia de Francisco Xavier no anno de 1540. Elle e Francisco Xavier foram do numero dos jesuitas que o embaixador Pedro Mascarenhas solicitara de Paulo III para se dedicarem no imperio das Indias á conversão dos idolatras e ao esplendor da fé catholica. O piedoso navarro decidio-se com Misser Paulo e Francisco de Mansilhas a ir, por suas doutrinas e virtudes, ganhar entre o gentio o glorioso titulo de _Apostolo das Indias_; mas o seu companheiro preferio que el-rei Dom João o galardoasse com a menos obscura e penosa commissão de director do collegio de Coimbra. Era Simão Rodrigues,--o ladino padre mestre provincial que na sua qualidade de poderoso valido de el-rei julgava prestar mais acrisolados serviços á causa de Deus e ás venturas da patria. É certo que ao benemerito Francisco Xavier deveram as Indias uma das mais heroicas e soberbas paginas da sua epopêa. Eis o que a tal respeito apregoam as trombetas da fama[9]: «Uma noite, referem as chronicas, os soldados do rei de Achem entraram na praça de Malaca, deram sobre as embarcações ancoradas no porto, queimaram parte d'ellas e ao romper da madrugada retiraram-se em triunfo como se tivessem alcançado uma grande victoria. Encontrando um barco de sete pescadores malaquinos, cortaram-lhes as orelhas e o nariz e com o seu sangue escreveram uma carta prenhe de injurias ao governador Simão de Mello. Accendeu em colera tam cruel insulto os habitantes de Malaca e Francisco Xavier, movido de compaixão á vista dos pescadores mutilados de modo tam barbaro, foi o primeiro a diser que logo convinha vingar a injuria feita á nação portuguesa. «--Não se deve, accrescentava elle, supportar semelhante violencia. Cumpre embarcar, acodir em seu alcance e tirar todo o desejo de vos insultarem segunda vez. Ainda digo mais: que sois obrigados a isso se não quereis perder o nome e a reputação. «--Nós assim o entendemos, respondeu o governador, mas faltam-nos as forças. As vossas embarcações estão podres e incapases de servir. Para espalmar as que temos seria necessario mais tempo do que para fabricar outras de novo. De mais d'isso os inimigos são muitos e os nossos alliados não podem soccorrer-nos com tanta promptidão. «--E não ha outras senão essas difficuldades para superar, senhor governador? lhe replicou Francisco Xavier. Pois bem está: eu tomo a cargo o diligenciar que se concertem as embarcações. «Voltando-se depois para os officiaes e soldados, lhes disse em voz grave: «--Deus está pela vossa parte, amigos e irmãos, cavalleiros e soldados de Jesus Christo. Em seu nome vos advirto que arredeis do espirito qualquer temor e medo. Elle vos chama a uma guerra santa. Ou fiqueis vencedores ou vencidos, a palma sempre será vossa! «Marcha seguidamente para o porto, onde apenas achou sete fustas e um catur á mingoa de tudo o que era necessario para se meterem ao mar. Além disso os armazens reaes estavam completamente vasios. Não havia breu nem resina nem estopa para calafetar as embarcações. Faltavam armas, polvora e outras munições para poderem combater. Recorreu então a sete pessoas abastadas e moveo-as a faser as despesas demandadas pela expedição. Dentro em cinco dias poseram-se as fustas em estado de ir a corso. «Eram os portugueses ao todo 140 homens e embarcar tambem com elles desejava Francisco Xavier; mas não o consentiram o governador e os habitantes de Malaca. «O almirante portuguez encontrou no rio Parlés a frota achenina e então, saltando a um esquife, com a espada em punho visita as suas embarcações e proclama aos seus soldados: «--Filhos de Jesus Christo, lembrai-vos das promessas de Francisco Xavier. Das vossas mãos depende a victoria. Os acheninos não nos podem fugir e agora colherão o castigo devido á sua barbaridade. «--Todos pelejaremos, responderam os soldados, em defensa da lei de Jesus Christo para se desaggravar a nossa patria e manter-se a nossa gloria. Havemos de vencer. Descançae vós na nossa valentia e no despreso que temos pela morte.» «O almirante voltou para a sua embarcação e logo se avistou o inimigo que, soltando estridentes gritos, fasia retinir todo o rio. Achava-se disposto em dez linhas e cada linha constava de seis embarcações com excepção da primeira, que era de quatro. «Deram os inimigos uma descarga com toda a artilharia, mas sem causarem damno algum aos portugueses. Seguidamente os almirantes arremeçaram-se um sobre o outro e ambos disputaram largo tempo a victoria até que a do almirante inimigo foi metida a pique. As outras mais proximas, atravessando para salvarem a gente que nadava, voltaram os flancos para as forças portuguesas. De maneira que essas mesmas embarcações serviam de estorvar as que vinham atraz, porque as da seguinte linha vinham de encontro ás da primeira, as da terceira contra as da segunda e assim de tal modo que se dizia combatiam umas contra as outras. Então os portugueses despediram tres descargas successivas que meteram a pique nove embarcações grandes. Abordando depois ás embarcações acheninas, saltaram dentro e degollaram dous mil soldados. Vendo o resto dos acheninos a sorte dos companheiros, precipitaram-se no rio em procura de salvamento; mas afogaram-se todos. «Nunca se proclamou victoria mais completa nem que menos custasse! «Lavrava todavia a consternação em Malaca. Não chegara ainda noticia da frota desde que sahira do porto. Debalde Francisco Xavier se esmerava em socegar os habitantes e podia tanto com elles o medo, que em pouco tempo se persuadiram de ser perdida. Até alguns sarracenos tiveram a ousadia de divulgar como noticia certa que os acheninos a desbarataram completamente. A desconsolação por isso era geral na cidade e todos tornavam a Francisco Xavier a culpa de se perder a frota. O piedoso varão assegurava o contrario; mas ninguem se reconhecia no estado de crer o que elle assegurava. Accusaram-no geralmente de ser a causa de se perderem tantos homens valentes, zombando das preces que por elles fasia a Deus e disendo irrisoriamente que só lhes serviam de suffragio para suas almas. «Por fim o virtuoso varão declarou ao povo com um profundo convencimento: «--Deus é victorioso. Nossos soldados triunfam. Estou vendo os de Achem banhados no proprio sangue. O nosso exercito em marcha triunfante deve entrar sexta feira pelo porto de Malaca. «Chega entretanto Manoel Godinho e confirma tudo quanto fôra annunciado. Torna-se em viva alegria a entranhavel tristesa em que todos estavam. Os ares retiniram com voses festivaes. Divisa-se o praser em todos os rostos. Emfim entra o almirante na sexta feira pelo porto, bem cheio de gloria e carregado com os despojos opimos da batalha!» [6] Moeda de ouro mandada cunhar por Dom Duarte e depois refundida por Dom Manoel. Valia 1$600 reis. [7] Obr. de Sá de Miranda. [8] _Nov. diction. hist._ par une société de gens-de-lettres, art. Kempis. [9] La Clede. _Hist. ger. de Port._ IV O FESTIM DE BALTHASAR Era Francisco Xavier um dos raros exemplos com que os jesuitas poderiam alardear a santidade da sua universal associação; mas quem é que em Lisboa se importava das virtudes do apostolo das Indias? Por outras differentes rasões se recreava Lisboa com folganças e festejos. Desde o alvorecer da madrugada salvava com festival estrondo a artilharia do velho castello. Por todos os angulos do Rocio e do Terreiro do Paço resoavam alegres musicas de atabales e clarins. Grande parte das ruas e casarias se decoraram vistosamente com galhardetes multicores, bambolins de murta e festões de louro e rosas. Estavam preparados com sedas e damascos os toldos e os enfeites dos escaleres reaes. No tope dos mastareus das galeras e bergantins do Tejo viam-se tremular flammulas e estandartes de todas as nações. É que a côrte portuguesa regalava-se com um dos mais esplendidos dias de gala. Ao bispo de Coimbra, Dom João Soares, bem como ao duque de Aveiro, Dom João de Lencastre, fôra commettido o honroso cargo de irem buscar a Castella a princesa Dona Joanna e n'esse dia chegava esta guapa noiva á cidade de Lisboa com o mais soberbo acompanhamento de gentis-homens e equipagens que raras veses se vira em terras de Portugal. Nada pouparam o faustoso Dom João de Lencastre nem o opulento Dom João Soares para se mostrarem com a magnificencia que competia ao seu estado e á sua posição. Luxo e estrondo por toda a parte. Os mais ricos veludos serviam de fasenda aos elegantes capirotes dos pagens. Eram sedas recamadas de bordaduras de ouro os vestuarios dos condes e dos gentis-homens. Custosos brocados de prata reluziam nos xaireis de centenares de ginetes e no aço polido das armaduras dos arautos e reis de armas reflectia-se o sol com raios coruscantes. Nunca o povo de Lisboa se recordava de presencear festejos de tanta vista e de tamanho esplendor. Era grande a alegria d'elle por isso. Ao som de confusas charamelas soltava enthusiasticos vivas, e assim em infernal confusão de vivas e descantes cada vez mais accendia os seus enthusiasmos! Ia-se acoutando o astro do dia nos abysmos do oceano, á mesma hora em que nos reaes paços da Ribeira começou a solemne recepção da princesa castelhana e do seu apparatoso cortejo. Todos na sala do throno vestiam com o mais apurado gosto e com uma especie de luxo oriental. Eram principalmente as roupagens da rainha adereçadas da mais rica pedraria e do mais esquisito artificio. Cingia-lhe a fronte um bello diadema cravejado de perolas e diamantes. Cravejada tambem de preciosa joalharia decorava-lhe o peito a cruz da ordem de Isabel a Catholica. O manto, finalmente, era guarnecido de renda de ouro e pespontado dos castellos e quinas de que desde o fundador da monarchia fasem uso os mantos regios[10]. El-rei envergava uma custosa vestidura de terciopello e cobria-lhe os hombros alentados uma opa roçagante de lhama de ouro e prata. Por cima da curta cabelleira pousava-lhe na cabeça um chapeu enfeitado com plumas brancas, de aba erguida de um lado e presilha recamada de vistosa pedraria. Emfim as bellas insignias do Tosão de Ouro assoberbavam-lhe o peito e da cinta pendia-lhe um dourado espadim em que relusiam meia duzia das mais preciosas gemmas da colonia do Brasil. Satisfeitas as varias ceremonias e etiquetas exigidas em semelhantes conjuncturas, procedeo-se depois a um desses opiparos banquetes que entravam na lista dos praseres dos monarchas de Babylonia. De direito fez as honras da mesa el-rei Dom João III, ficando-lhe á dextra a princesa de Castella Dona Joanna e ao lado esquerdo o poderoso valido Antonio de Athayde. Em frente do velho monarcha sentara-se a rainha Dona Catharina de Austria, cedendo a cadeira de honra a seu filho o principe Dom João e a esquerda ao infante Dom Luiz de Beja. Por sua grandesa e gerarchia ali estava resplandecendo tudo o que se poderá notar de melhoria nas ordens clericaes e nas raças aristocraticas de Portugal. Não faltavam ao banquete, além dos principes e mais pessoas da familia real, o bispo de Coimbra, os arcebispos de Braga e Lisboa, o beato jesuita Simão Rodrigues, o illustre Dom João de Lencastre, o chanceler doutor João Monteiro, o desembargador Dom Gonçalo Pinheiro, o nobre Marquez de Villareal, o prudente Duque de Bragança e ainda tres dusias de lusidos personagens que na maior parte representavam a curia de Roma e as côrtes estrangeiras. Bellos vinhos de Caparica e Seixal, bons licores e as mais esquisitas iguarias serviam-se com profusão. Os vinhos eram de excellente paladar e por isso motivaram algumas alegres modificações no rigoroso codigo das etiquetas. Foi Dom João III o primeiro personagem que se ergueu com a copa na dextra. Já não era o monarcha de severo e sisudo caracter. Mostrava-se de faces rubicundas, olhos risonhos e maneiras joviaes. Nunca o seu espirito se abrira com tanta expansão e tanta liberdade. Sorrindo com alegria, olhou por um momento em derredor da mesa e proferiu pausadamente as palavras seguintes: --Sem lisonja o digo, senhores. Sobreluzem no semblante e no espirito da mui alta e excellente esposa de meu presado filho Dom João todas as graças e mais prendas que podem exornar a pessoa de uma princesa. Para goso e ventura de todos os meus vassallos imploro de Deus lhe dilate a preciosa vida por muitos annos. Sempre lhe tributarei n'esta côrte as mais ternas affeições como filha a quem muito amo e todas as homenagens como princesa das mais excelsas virtudes. Por isso é, fidalgos e prelados da minha côrte, que eu com summa alegria do meu coração brindo agora á saude da nobre princesa Dona Joanna! Todos os prelados e fidalgos levaram aos labios as preciosas amphoras espumantes do saboroso Caparica, ao mesmo tempo que, de pé e em reverente postura, baixaram respeitosamente para Dona Joanna as radiosas cabeças. De branco vinho do Seixal tornou logo o monarcha a encher a Copa e novamente se dispoz a abrir os diques á sua expansiva loquela. --Grandes e senhores da minha côrte, principiou elle, não deixarei tambem de faser votos pela existencia e ventura do herdeiro do meu throno. Piamente confio em que Deus lhe inspirará amor pela justiça, respeito ás leis do reino e obediencia ás doutrinas da nossa santa religião. Firmam-se n'elle as esperanças dos leaes portugueses e certamente meu filho se tornará digno por seus talentos e virtudes do amor dos meus vassallos. Escuso de lhe declarar as affeições do meu seio; mas saiba que eu o amo e preso como pai e como amigo. Rogarei sempre aos céus nas minhas orações lhe prospere Deus a preciosa existencia... Que Deus lh'a prospere e viva por muitos annos o glorioso principe Dom João! Meus senhores, perorou erguendo mais a copa e a voz, viva meu filho o principe Dom João! Um coro dissono e rapido de vivas eccoou pelos recantos do vasto salão do festim. Principes e embaixadores, fidalgos e prelados ouviram com enthusiasmo as ultimas voses de el-rei e todos a um tempo, levando á altura dos beiços as copas cheias d'esse valente liquido que _o peito accende e a cor ao gesto muda_, soltaram o grito fremente de _viva o principe Dom João! Viva o principe Dom João!_ Sentaram-se depois e por um pouco arrefeceram os gastronomicos delirios. Apenas se escutavam o rangido frouxo dos talheres e as brandas passadas dos criados. Foi porém de breve duração esta calmaria. Levantou-se o Conde da Castanheira e, com fallas adamadas e gestos em demasia palacianos, dispoz-se a discursar. --Pedindo venia a vossas altesas serenissimas--começou o poderoso valido, cortejando com a cabeça o monarcha e Dona Catharina--ouso tambem manifestar a grande satisfação que me desperta o glorioso dia que em tam esplendido banquete se commemora. O feliz consorcio do nosso principe real é para todos os leaes portugueses motivo de felicitações e regosijos. Quem não ha de exultar com as virtudes varonis e prendas naturaes dos augustos noivos? Permitti que vos saude, excelsa princesa! Dae-me a liberdade de brindar á vossa ventura, augusto principe! Dom Antonio de Athayde bebeo de um trago o vinho do seu calix e a tam palaciano brinde logo corresponderam em coro todos os convivas. Por seu turno ergueram-se ainda com os calices na mão o inquisidor geral D. Henrique, o velho arcebispo de Braga e tambem Dom João de Lencastre. Entresachados de latim e de textos theologicos se desenvolveram os dous primeiros discursos, mostrando-se assim a erudição e sabedoria dos respeitabilissimos varões que os proferiram. O de Dom João de Lencastre, esse foi declamado na lingua espanhola em frase singela e correntia como sendo de pessoa mais adestrada no jogo das armas que em torneios de palavras. Como nas marés dos oceanos, dá-se tambem o fluxo e o refluxo nas marés do enthusiasmo. Nem tudo, por esta rasão, era delirio e voseria. O silencio reinava tambem de longe a longe. Silencio profundo reinava no salão do banquete quando, emfim, de um dos recantos da mesa se levanta um mancebo de tez morena e bronzeada como a dos povos da India. Era o joven amigo do infante Dom Luiz de Beja. --Monarcha Dom João, prologou elle com voz clara e rosto sereno, eu venho como o profeta Daniel vaticinar-vos a sorte de Balthasar! Mal fôra proferida esta ameaça terrivel e já duas duzias dos mais esforçados fidalgos se adiantaram com o punho nos copos dos dourados chifarotes. O pagem não se intimidou, porém. Deu maior volume á voz e com o seu placido gesto exprimiu-se ainda: --Não encareço as vossas virtudes nem culpo os vossos vicios, monarcha Dom João; mas sempre vos imputarei a responsabilidade dos tremendos crimes que se commettem na vossa côrte... --Crimes na minha côrte! bradou o monarcha portuguez ao erguer-se da cadeira como impellido por uma secreta mola. --Admiro, replicou immediatamente a rainha Dona Catharina, que ainda não vos dissessem que tentaram hontem assassinar vosso irmão o infante D. Luiz. Á inesperada revelação succedeo um momento de espanto e alvoroço. Quem não presaria em Portugal a vida do infante? Presavam-na deveras assim fidalgos como peões e por isso ninguem havia entre os nobres commensaes que se não sobresaltasse com a nova de que a vida de Dom Luiz de Beja correra imminente risco. --Fallae agora vós, meu irmão. Por acaso premeditaram alguns sicarios contra a vossa vida? --Tentaram na verdade, placidamente respondeo a el-rei o infante Dom Luiz. Hontem por alta noite fui eu acommettido por tres bandidos e de certo dos seus punhaes seria victima innocente se me não acode aquelle generoso pagem. --Graças dou a Deus, volveu el-rei, por haverdes escapado do perigo. Mas que foi feito dos assassinos? Justiça rigorosa se fará, meu presado irmão. --Justiça rigorosa vol-a reclamo eu! solemnemente bradou a rainha. --Justiça! justiça! conclamaram todos os convivas. Gradualmente foram esmorecendo as vingadoras explosões de enthusiasmo e então o monarcha portuguez, retirando-se bruscamente da mesa, fez terminar esse festival e ruidoso banquete que, para dar em tudo semelhanças do festim de Balthasar, só faltou que mão invisivel escrevesse na parede as mysteriosas palavras _mané_--_thécel_--_pharês_! [10] Vid. _Hist. polit. e militar de Port._ por L. Coelho, t. I, pag. 249. V ORAÇÕES E JEJUNS REDIMEM TODAS AS CULPAS Da casa do jantar passou a maioria dos convivas para um faustoso salão em cujos moveis sobresaiam riquissimos estofos de cores amarella e carmesim. Aqui principiaram damas e fidalgos de se entreter com jogos de cartas, girando a rodo sobre as mesas moedas de prata e ouro como se fossem alcacer de Astrea os paços de el-rei Dom João III. Dom João III, esse vamos vel-o no seu gabinete preoccupadamente sentado em larga poltrona franjada de ouro e prestando a maior attenção ás fallas veneradoras de dous illustres personagens. Estes personagens vestem com excessiva desigualdade no feitio e na fasenda: traja o mais novo rico veludo roxo e o mais velho humilde roupeta de estamenha. Será empresa difficil todavia distinguil-os no valimento e no poderio. Ambos representam duas hierarchias eminentes: a nobresa e o clero. São o padre mestre provincial Simão Rodrigues e o celebre Conde da Castanheira, esse poderoso valido que grangeara famas de que «n'aquelle tempo ninguem se lhe avantajava nas partes de conselho e maduro juiso[11]». --Juro-vos, estava asseverando o jesuita, que nada se descobrio. As palavras d'esse estonteado badage motivaram-nas os vapores do vinho. --O mesmo acredito eu, accrescenta o conde. A noite corria escura e a empresa foi commettida a gente de confiança... --Mas, interrompe el-rei, não me disseram já que o attentado se baldou por artes do diabo ou por manhas de quem quer que fosse? --Verdade é, responderam ambos ao mesmo tempo. --Em tal caso facilmente se poderia descobrir tudo... --Os aggressores, acode o jesuita, acautelaram-se bem. Os chapeus e os capotes deram-lhes panno de sobra para cobrirem as barbas e, quando chegou o diabo, todos debandaram com prudencia. --Tal accommettimento ha de ser sempre o dessocego do meu espirito! desabafa el-rei. --O bem do estado assim o reclama, volve por sua vez o conde. --Dizes, conde, que o bem do estado nos moveu... O bem do estado seria, mas porventura não peccamos nós contra os mandamentos da santa religião? Receio, meu padre, o castigo da Providencia! --Que póde recear vossa altesa real, o mais fervoroso filho de Deus? replica o poderoso jesuita com extrema brandura. --O castigo dos meus peccados, o castigo dos meus peccados... Conheço que ordenei um assassinio. Não terei eu, como Caim, manchado as minhas mãos em sangue fratricida? Meu padre, a colera do Senhor cairá sobre a minha cabeça! --A oração e os jejuns redimem todas as culpas... Proferia Simão Rodrigues esta mistica sentença quando estalou na sala do jogo um grande alvoroto de voses e passos. Sobresaltou-se o monarcha Dom João como se novamente lhe retumbasse nos ouvidos o tremendo vaticinio do pagem: _Eu venho, como Daniel, profetisar-vos a sorte de Balthasar._ O Conde da Castanheira dirigio-se com prestesa para a soleira da porta a colher noticia do alvoroto e, dando volta á chave, eis que frente a frente se lhe depara a figura travessa do indio. O badage, sem comprimentos nem venia, collocou-se em poucos passos defronte do monarcha. --Não se enfade vossa altesa serenissima, lhe disse respeitosamente. É natural o ruge-ruge que vos chega aos ouvidos, senhor. Não provém de rebellia nem de incendio. Toda a côrte se alvorota e desconsola porque o principe Dom João adoeceu repentinamente ao levantar-se da mesa. --Asseveras que está doente meu filho, o meu querido filho Dom João? inquire el-rei ao mesmo tempo que se levanta da poltrona com visivel preoccupação. --E doença de morte o accommetteu, prosegue o badage. Mas nada receie vossa altesa serenissima, que _a oração e os jejuns redimem todas as culpas_. --Pardés, assim ousaes chalrar com tal desassombro! prorompe o valeroso conde carregando o sobrolho. --Fallo a verdade sem rebuço e mais direi ainda se el-rei me permitte a ousia de fallar. --Sei que és ave de mau agouro; mas conta-nos tudo, conta-nos tudo! volve o monarcha em profundo estado de abatimento moral. --Pois sempre vos direi, meu rei e senhor, que propinaram veneno a vosso filho o principe Dom João! Cahio o monarcha na poltrona como se padecera os effeitos fulminadores de um raio. Assim alguns momentos se demorou em uma especie de glacial insensibilidade sem que o jesuita e o conde se atrevessem a interromper o silencio. Por fim ergueu-se tremulamente o monarcha e, não descobrindo já o destemido badage, perguntou com voz desfallecida: --Que é feito do pagem? Olharam os dous validos para todos os recantos do gabinete, mas já não avistaram ninguem. Não quiz el-rei que d'elle fossem em procura e, dirigindo-se para os seus validos, lhes exprobra com friesa: --Ahi tendes a vossa obra... Ahi tendes o castigo da Providencia! Quiz Deus punir-me com a morte de meu filho, esse innocente filho que sobre todas as coisas eu queria e presava. Mas ai de vós, senhores, ai de vós e de mim se elle morre! Os dous validos não aventuraram palavras de defesa ou de conforto com que salvassem semelhante conjunctura e el-rei, deixando-os impassiveis no meio do gabinete, saío pela porta a informar-se das clamorosas scenas que occorriam. --Trocaram-se os papeis provavelmente, resmoneou o Conde da Castanheira logo que se viu a sós com o jesuita. --Por certo, concluiu o antigo companheiro de Francisco Xavier em voz mais baixa ainda. Vou crendo que o veneno, em vez de o tragar o infante Dom Luiz, tocou desastradamente ao principe real. Feliz noivado, feliz noivado! Por fortuna a causa efficiente do bulicio parecia limitar-se a um leve achaque estomacal de que o principe se queixara. Explicara o joven principe que uma vertigem lhe estonteara a cabeça e algumas nauseas lhe trouxeram incommodos ao estomago, mas que já se sentia completamente alliviado e fóra de perigo. De feito o sabio medico Francisco Lopes, tateando-lhe o pulso com o maior cuidado, depressa declarou que a doença apresentava apenas o caracter de uns passageiros effeitos gastricos motivados naturalmente pelos molhos indigestos das iguarias. Foi o principe recolhido á cama com todos os conchegos e, como asseverava o discipulo de Hypocrates que os symptomas do accidente não offereciam gravidade, os bellos e illuminados salões do paço continuaram até deshoras a servir de entretenimento aos nobres fidalgos e aos venerandos prelados. No gabinete reentrou el-rei de espirito mais socegado e rosto mais ledo. Uma certa dose de satisfação parecia resumbrar dos seus olhos asues e a pallidez que pouco antes lhe amarellecera as faces fôra substituida por tintas rubicundas. --Receei peor coisa, rumorejou elle esfregando as mãos. Atraz de el-rei saira logo o Conde da Castanheira e foi por isso o jesuita a unica pessoa que se deixou ficar no gabinete. Abrira sobre a mesa regia o seu predilecto livro _De imitatione Christi_ e, pelos signaes de concentração que lhe transpareciam no gesto, inculcava aproveitar-se do momento para erguer a Deus alguma fervorosa prece. Não obstante disse pausadamente ao levantar-se da poltrona: --Estava rogando aos céus que afugentasse desditas dos paços de vossa altesa... --Obrigado, meu padre. Jamais olvidarei o interesse que tomaes por minha pessoa. Mas d'esta vez não succedeo perigo. Do sobresalto que soffremos foi culpado sómente aquelle estonteado badage. --A não fallecerem justiças n'este reino, cumpre que seja punido para lição de rebeldes e escarmento de atrevidos. De que pensar é vossa altesa? --Elle não tardará no tronco, meu padre. Mas agora outra coisa pretendo saber em puridade: poderei eu remir ainda com obras e orações as minhas culpas? --Está isento de culpas o coração de vossa altesa... --Sei que sou um grande peccador! --A alma de vossa altesa está limpa de mancha. É grande o amor que professaes pela fé catholica. Não esquece Deus os beneficios que tendes prestado pela igreja de Jesus Christo... --Consolam-me essas palavras, meu padre. Em recompensa de tantas consolações haveis de lembrar-me o que vou prometter-vos: se não fôr de morte o mal de meu filho, contai para as festas do milagroso Santo Antão com uma custodia de ouro massiço e pedras preciosas... --A graça de Deus seja comvosco... --Prometto mais quinhentos crusados para compra de alfaias e paramentos do culto... --Não deixarei jamais de rogar aos céus pelo bem do estado e pelas prosperidades de vossa altesa serenissima... --Lançai-me agora a vossa benção, meu padre. --Real senhor, eu vos abençôo em nome do Padre e do Filho e do Espirito Santo! Ajoelhou el-rei para receber a benção do jesuita e em tam humilde postura de santidade poder-se-hia conhecer que nunca um piedoso monarcha illustrara mais com suas devoções os fastos da monarchia portuguesa. [11] Frei Luiz de Sousa. _Annaes._ Parte II, livro II, cap. II. VI A CAÇADA Alguns dias depois do casamento convidou el-rei toda a côrte para assistir a uma caçada. Ajaesaram-se logo os mais vistosos palafrens e os mais rapidos ginetes. Desenas de creados afadigavam-se nos preparos dos nobres paços de Almeirim e tudo ali se dispoz com o luxo de uma casa de fadas. Chegou a côrte aos paços de Almeirim por uma tarde enxuta e serena, posto que bastante fria e nublosa a modo das tardes inglesas. Era a vespera da campanha venatoria. Na immediata madrugada foi servido um almoço leve e em seguida ao almoço montaram a cavallo damas e fidalgos. O monteiro-mór, a toque de uma ostentosa busina, repenicou o signal da partida e então el-rei, cavalgando ao lado da princesa Dona Joanna e precedido por uma centena de ricos fidalgos, adiantou-se com a rapidez de uma frecha em direcção dos matagaes. Abundavam as opulentas coutadas de Almeirim em caça grossa e miuda de toda a especie. Veados e corças, lebres e coelhos e cabras monteses costumavam fugir e saltar aqui e além por entre as urzes e os giestaes, por debaixo dos ramos dos sobros e das pernadas dos choupos. Porem a raça canina via-se decerto em penosa maré de infelicidade. Latiam, uivavam e remordiam-se os lebreus e os podengos sem conseguirem alcançar uma lebre ou abocar um coelho. Debalde se esperava nas clareiras a passagem de alguma peça grauda quando alguns dos mais affoutos caçadores resolveram entrenhar-se no cerrado da floresta. Ahi, sim, deixavam de ficar ociosas as balas e a polvora das clavinas. Os tiros rapidamente se succederam aos tiros. Entretanto a maioria dos caçadores ainda esperava nas clareiras. Em posição de pontaria por veses ergueram elles ao hombro o cano polido e relusente das espingardas, os latidos dos cães ouviram-se por veses a curta distancia e os cavallos, ao cheiro aspero da polvora, escarvavam impacientemente com as unhas ferreas na grama do solo; mas ainda não passara ao alcance das balas uma só lebre ou um só veado. Resolveram-se por isso desmontar e, aproveitando o exemplo dos primeiros caçadores, lá se entrenharam egualmente por entre os verdes arbustos e os robles gigantescos. A rainha, a princesa Joanna, o cardeal Henrique e o badage foram as unicas pessoas que permaneceram no mesmo sitio. Mas tambem depressa lhes falleceu a paciencia de esperarem assim na sella dos cavallos. Apearam-se pouco a pouco e a passos vagarosos foram passeando ao longo de um renque de choupos. --O tempo corre bem, disse a rainha dando principio á conversação. Temos um ceu claro e magnifico; mas parece-me que não produz resultado a caçada. --Também me parece, accrescenta a princesa Dona Joanna. --Juro pelos Vedas que ainda hoje teremos fartura de caça, replicou o pagem. --Fallaste nos Vedas; mas que entendes tu por isso? inquiriu o sabio cardeal cioso de desenvolver a sua vasta erudição. --Eu vol-o digo se vos apraz, senhor. --De bom grado escutarei. Dize lá: que são os Vedas? --Os Vedas formam uma grossa collecção de slokes ou estrofes escrita em sanscrito sob a designação de Rig-Veda, Yadjur-Veda, Sama-Veda e Atharvana. A todos os indios e povos do mundo, menos aos brahmanes, foi por Vichnu, o verbo de Brahma, prohibida a leitura d'elles. Mais ninguem sabe o que dizem e contém esses livros santos. Os brahmanes guardam-nos tão cuidadosamente nos seus pagodes como os usurarios podem guardar um cofre de ouro. Conta-se que o poderoso Akbar, imperador mahometano, quiz um dia conhecer as differentes religiões dos paizes que lhe eram tributarios e, como os brahmanes tenazmente se recusavam a revelar-lhe os mysterios da sua crença, usou então de um subtil estratagema. Lembrou-se o imperador mahometano de enviar á santa cidade de Benares um indiosito chamado Fietzi e, fasendo-o passar por filho de um brahmane, foi o indio adoptado e instruido na linguagem e nos ritos sagrados. De tal modo seria satisfeita a curiosidade de Akbar, mas aconteceu que Fietzi se apaixonou por uma formosa filha do seu preceptor e, arrependido da fraude, foi lançar-se em lagrimas aos pés d'elle e tudo ingenuamente lhe confessou. Imagina vossa altesa qual seria o procedimento do brahmane? Arrancou immediatamente do punhal para matar o sacrilego! Por fortuna o brahmane cedeu aos rogos da filha, dando-a por fim em casamento ao indio com a solemne condição de nunca em sua vida trahir os Vedas[12]. Ainda o pagem se dispunha a proseguir na anecdota de Fietzi quando o toque arrebatado e successivo das businas lhe fez dirigir a attenção para outro ponto. --Caça, temos caça? exclama com alegria Catharina de Austria. Inesperadamente por baixo das ramagens do arvoredo mais proximo appareceu e adiantou-se o corpo ameaçador de um lobo. Mostrava-se nas proporções de um molosso reforçado das patas, com os olhos horrorosamente injectados de sangue, com a cabeça de uma grossura enorme e infundindo pela arrogancia do olhar todo o pavor que podem incutir no espirito de um homem os animaes carnivoros. Era bem curta a distancia entre elle e os desapercebidos personagens. Alguns passos mais e logo as garras da fera encontrariam para repasto o corpo delicado e fragil da rainha. Mas o molosso, por uma impressão de medo ou qualquer motivo de surpresa, sosteve-se ali. Com as patas vigorosas escarvando o tojo e os urzes, por momentos estacou como se o prendesse pela cerviz um cadeado de ferro. Esta demora de segundos foi, todavia, bastante longa para acodir o badage. O corajoso rapaz depressa se postou fronteiro ao lobo. Ia agora travar-se uma luta hortenda. Iam certamente repetir-se as barbaras scenas do circo romano: o combate do homem contra a fera. De feito o molosso arremessou-se ao badage. Erguer as patas e aventurar um salto enorme, tudo foi obra executada com a rapidez de uma frecha. Mas o badage, que se affisera ás caçadas dos tigres e dos javalis nas florestas gentilicas da India, esperou-o com a firmesa de um athleta. Quando o lobo se arremessou ao pescoço do indio na intenção de lhe verter o sangue e lhe despedaçar as carnes com o vigor das garras, o indio de repente cravou-lhe na garganta a lamina de uma comprida faca de mato. A jorros espirrou o sangue da garganta da fera. Mas a fera não se estorceu nem baqueou. Abrindo com maior furia as patas dianteiras, apertou os hombros do indio e pretendeu esmagal-o com um amplexo terrivel. O indio não conseguio resistir áquelles musculos de bronze. Foi grande a convulsão que padeceu. Perdendo as forças e o equilibrio, cambaleou, estorçeu-se e cahio. Na queda acompanharam-no as garras do lobo. Estava decidido que, em holocausto da sua dedicação, o pobre mancebo perderia as forças e a existencia. Quem lhe podera acudir nos apertos e nos trances de tam medonha conjunctura? Talvez os companheiros. Porém o susto levara o augusto cardeal a esconder-se na toca de um carvalho e as duas delicadas senhoras seriam demasiadamente franzinas de pulso para tam heroica defesa. O badage, comtudo, não havia abandonado a coragem. Conservava na dextra a comprida faca e lembrou-se de ainda faser uso d'ella. Por um momento affrouxou o lobo a compressão das unhas e esse momento foi o melhor auxilio que o badage podia receber. Não é mais rapido um relampago: erguer o braço e ferir novamente a fera, eis os prodigiosos movimentos que elle fez. O aço da faca despedaçou agora as guelas do lobo e logo em maior abundancia se inundaram as algas e folhas do chão com um lago de sangue. A força da fera cedeu por fim ao esforço do homem. O lobo cahiu, estrabuxou e contorceu-se. Depois atroou as selvas com dous uivos medonhos e perdeu os últimos alentos de vida. Quasi ao mesmo tempo resoa nos espaços a buzina do monteiro-mór e é então que no estadio da contenda se apresentam de facas e carabinas os arredios caçadores. --Que novidades houve? inquire o monarcha ao passo que descança o cano da espingarda ao tronco de um carvalho. --Pardés que não nos faltou susto! apostrofou o timido cardeal ao mesmo tempo que se aventurava a sair da toca d'essa mesma arvore. El-rei não pôde conter a explosão de uma risada e todos, sem distincção de gerarchias, expansivamente lhe seguiram o exemplo. --É bom signal, affoutou-se a diser o pagem, que sua altesa esteja de agradavel humor. --Signal é de boa caçada. Não achas, pagem? --Assim me parece, meu senhor. --Mas que tens ahi? Que animal é esse? --Meu senhor, são os despojos da caçada. Em seguida contou a princesa Dona Joanna as peripecias do fatal acontecimento e logo de todos fôra o pagem felicitado por sua valentia e dedicação. [12] Cesar Cantu. _Hist. universal._ Edição francesa, tomo 1, pag. 305. VII A LUTA A rainha, forcejando por esquecer as extraordinarias impressões da caçada, recreava-se momentos depois na sua recamara dos paços de Almeirim com a leitura das trovas populares do celebre Juan de Encina. A tristesa empanava-lhe levemente o brilho dos olhos feiticeiros e a cada minuto lhe assaltava o espirito de ideias desconsoladoras. Parecia inquieta do animo como se adivinhasse alguma funesta novidade. Entrou o pagem n'esta occasião e pé ante pé dirigindo-se para o lado esquerdo da rainha, fitou-a com olhares de poetica melancolia. --Estimo ver-te, pagem. Tenho passado aborrecida e será muito do meu gosto ouvir contar alguma façanha alegre. Sempre me dirás o que tens feito... --Nem tudo se diz, senhora. --Sempre te conheci mysterioso. Mas agora, meu pagem, lembra-te de que estás ao pé de quem deveras te estima... --Sei reconhecer a vossa amisade, senhora. O pobre pagem deixar-se-hia estrangular pelas garras de um tigre só para vos compraser. Não faseis ideia da minha dedicação, não podeis medir a grandesa do meu amor! A rainha estremeceu levemente como se a ferisse a ponta de um alfinete. --Por ventura me tens amor? assim o interrogou com um sorriso jovial. --Juro-o pelos Vedas. --Mas não reparas nos meus annos? Não vês claramente que já sou velha! --Uma rainha nunca envelhece. É uma eterna primavera de florescencia e de perfumes. --Sendo verdade o que dises, reconheço que sou uma excepção. --Senhora, esplendem em vós todas as graças e possuis todos os encantos! --Ousado mancebo, não saberei regeitar as tuas galanterias; mas emfim não sabes que uma rainha não deve amar ninguem? Contenta-te com a minha estima. Dou-te a minha amisade e isso é bastante. --Sabei que para vos amar, confidenciou o badage com a selvagem entoação do seu paiz natal, pouco me foi preciso. Senhora, bastou o vosso olhar... Mas para odiar-vos ainda será preciso menos. Escolhei... --Escolhe tu, pagem. --Escolho o vosso amor! --Comprehendo; mas que provas queres tu que eu te dê, que exigencias por acaso imaginas impor-me? --Concedei-me tudo quanto vos peça. --Com algumas condições... --Sou orgulhoso. Não admitto condições. Disei se sim ou não. --Pois bem, prometto. O pagem, com o enternecimento de Othello ouvindo a Desdemona a primeira revelação de affecto, estremeceu fibra a fibra de alegria. --Obrigado, lhe agradece com enthusiasmo. Ides faser a felicidade do pobre pagem. Mil veses obrigado, senhora! --Mas então que pretendes de mim? volveu-lhe a rainha com uma espontanea expressão de carinho. --Quasi nada e todavia pretendo tudo. --Dize... --Quem sabe se vos offendo! Talvez me não atreva... --Fases mal. Eu gosto das pessoas temerarias... --Deixai-me, senhora, dar-vos na face... na, face de rosa... um beijo... um beijo unico! --Mancebo, retorquiu Dona Catharina com accento grave e de rosto em plena calma, saberás que a palavra de uma rainha não falta ao que promette. Aqui tens a minha face! O pagem com a rapidez de uma frecha aproximou-lhe do rosto os labios cubiçosos e ali imprimiu com soffreguidão um beijo escandecente como as lavas do Etna. Immediatamente, como possuindo-se de vergonha e respeito, fugiu com prestesa da recamara. --É certo que tambem lhe consagro eu alguma coisa mais do que amisade, ficou a rainha pensando agora. Grande coração aquelle! É capaz de todos os heroismos e todavia diante de mim parece uma criança cheia de timidez. Parece decerto uma criança. Mas quem o não é em taes circumstancias de enleio e talvez de demencia? Amor, amor! és o mobil de todas as acções esquisitas, porque és o germen de todos os pensamentos humanos. Jamais se realisam os teus desejos e todavia ninguem deixa de sujeitar-se de boa vontade ao teu jugo. Queres e não queres, acaricias e odeias, confias e desconfias de tudo ao mesmo tempo. Foi sempre voluvel o teu caracter como voluveis costumam ser as ondas do mar. És a gota de agua que fertilisa a aridez da vida, és ainda uma redoma de perfumes e um sacrario de virtudes; mas tambem és um elemento de odios e um antro de vicios. Socrates não saberia definir as tuas virtudes; Hercules não poderia medir-se com a tua força. Homens e mulheres egualmente abrigam e sentem nas fibras dos seios as tuas chammas e os teus effeitos; porém quem logrou ainda sondar os teus arcanos, quem porventura conseguiu explicar os teus mysterios? N'este comenos transpunha o pagem uma sala immediata á luxuosa recamara. Depois, abrindo uma porta gigantesca, predispunha-se a entrar no vasto corredor do palacio quando quatro alabardeiros do serviço particular de el-rei lhe impedem a passagem. --Acompanha-nos, meu caro. A esta desceremoniosa intimação de um dos quatro soldados o badage retorquiu orgulhosamente: --Á ordem de quem? --Manda el-rei nosso amo e senhor. Obedece! --Preciso primeiramente conhecer-vos. Em guarda, belleguins! O pagem desnudou a fiel espada com a ligeiresa de quem d'ella se sabia servir a tempo e horas e, recuando tres passos, aguarda com animo frio a aggressão dos alabardeiros. --Mãos á obra! ordena um d'elles. Faça-se por mal o que se não póde faser por bem. Pagarás cara a temeridade, meu criancelho! Á luz baça do corredor montantes e alabardas em poucos momentos se disposeram a começar o seu officio. Era vasto o corredor; mas todos conservavam as mesmas posições. O badage, mestre consummado no jogo da espada, não deixava adiantar uma polegada aos quatro contendores. Ninguem, resuscitando o pomposo estylo do padre Vieira, soube ainda com mais garbo e valentia brandir a lança, erguer a espada e fulminar o montante. Crusavam-se as armas, acachoavam diabolicas imprecações, empregavam-se titanicos esforços para se decidir da contenda; mas o badage parecia sustentar nas mãos de bronze a clava de Hercules. --Com mil demos! rugiu um dos alabardeiros ao cambalear no soalho com o desiquilibrio de um ebrio. --Sinto-me ferido! regougou o segundo camarada ao largar a alabarda com desanimo de uma vez para sempre. Eram agora sómente dous os inimigos do badage. Mas um d'elles principalmente não affrouxava os golpes. Era de todos o mais alentado e o mais temerario. --Aposto que me não conheceste ainda, meu criançola! O badage retorquiu-lhe: --Parece-me que já nos encontramos, sicario. --Por signal que te acompanhava um alto personagem. Bella noite aquella! --Covarde! Eras tu quem de emboscada queria assassinar o infante Dom Luiz? --Tens memoria, meu fidalgote. Nem mais nem menos... Olha bem para mim: sou o teu conhecido Jacobo. O badage retrocedeu meio passo e por dous momentos apresentou a descoberto a arca do peito. Aproveitou este arriscado estratagema para triunfar do seu terrivel adversario, porque Jacobo, julgando certeiro e infallivel o golpe, resolveu apenas valer-se da vantagem de ferir o pagem. Todavia o denodado mancebo, por meio de uma rapida manobra, desviou o corpo e arremessa a ponta da espada em direitura do contendor. Em um abrir e fechar de olhos rasga-lhe a carotida e completamente lhe atravessa o pescoço de lado a lado! Ouve-se então um clamor horrendo. Á testa de uma dusia de archeiros e familiares do Santo Officio com ascumas e espadas acode tumultuariamente o jesuita Simão Rodrigues, o qual, primeiro que o pagem aproveitasse ensejo de evasão, com arrogancia o intima a render-se por ordem de el-rei. VIII OS ESTAUS Ao indio amarraram os pulsos com rijas cordas e violentamente o conduziram dos paços de Almeirim á residencia inquisitorial do Rocio. Aqui foi, sempre debaixo de uma orchestra de apupos, introduzido na abobada subterranea que servia de encerro, onde lhe vestiram uma casula ou escapulario de panno amarello com cruses de Santo André pintadas de vermelho assim por diante como por detraz. Era o carcere um espaçoso quadrilongo lageado de tijolos, sustentado por vastas arcadas e com paredes lavradas de cantaria. A humidade, o frio e todas as inclemencias da invernosa estação ali contrariavam sobremodo todos os elementos de hygiene. Ausencia radical de mobilia, de conforto e ambiente puro. Á propria luz do dia, que é propriedade que Deus reparte sem restricção por todos os seres racionaes ou irracionaes, era quasi totalmente prohibido o accesso. Para bem se descrever precisava-se do estylo de Victor Hugo: era, em frase do grandioso poeta, morada onde não havia ar no verão, onde não havia fogo no inverno, onde não havia pão nem de inverno nem de verão. Morada lugubre do mysterio e do crime, áquella especie de catacumbas romanas de proposito se imprimira o caracter de infecta e lobrega sepultura a que faltava apenas a terrivel inscripção do inferno do Dante: _lasciate ogni speranza!_ Tres dias successivos viveu o pagem a codeas de pão e a goles de agua sem que lhe indicassem a sorte de supplicios que lhe cumpria padecer. Unicamente communicava com o alcaide ou carcereiro, cerbéro de aspecto extremamente alvar e discreto de lingua como um rochedo. Todavia o pagem não se incommodou com o seu estranho encerro. Naturesa moldada a todos os vaivens da fortuna, a transição da ventura para o infortunio era quasi para elle um phenomeno insensivel. Sempre se dispunha com animo inquebrantavel a experimentar quaesquer acontecimentos por mais extraordinarios que fossem. --Na verdade, monologava elle em maré de maior expansão, tem suas rasões o procedimento de Simão Rodrigues. Confesso que a sua senhoria não era affecto nem adstricto de maneira que podesse facilmente dispor dos meus serviços e, juro-o pelos Vedas, não se enganou de todo o ladino jesuita. Mas eu prometto ainda, meu padre, prometto ainda pagar-te juros e capital na mesma moeda. Pardés que havemos de saldar contas! Só ao entardecer do quarto dia é que foi o pagem visitado. O proprio Simão Rodrigues lhe appareceu disfarçado nos trajos de familiar do santo officio. --Não ignoras, lhe disse depois de algumas palavras de comprimento, não ignoras, meu filho, que peccados te condusiram a estes lugares. Escuso de avisar-te que, por teu mal, és accusado, na qualidade de christão novo, de rebelde ás praticas da religião e de Deus... --Quando se não póde esmagar a vibora, respondeu-lhe corajosamente o pagem, foge-se pelo menos da sua presença. Eu devera fugir para longe, embora procurasse nas brenhas dos sertões do Mandovy a companhia das onças e dos tigres. Mas sem cautela me deixei quedar n'este paiz de fanatismo e de crimes. Por isso me não reconheço justiça de queixar-me. Aqui me tens agora, bem disposto de alma e corpo a escutar as tuas fallas e á espera dos teus castigos. Adivinho o que me espera: antes do baraço da forca o soffrimento da masmorra, ou talvez, para mais demora das derradeiras agonias, a tortura da fogueira... --Estranha linguagem é essa, volveu-lhe com brandura o jesuita. De certo, pobre mancebo, o teu cerebro não regula assisadamente. A falta de crenças e de fé estiolara o vigor do teu espirito. Quem te manda ser tam orgulhoso? Lembra-te que é virtude evangelica a humildade. Os humildes serão exaltados e os orgulhosos abatidos conforme a palavra infallivel do Evangelho. --Meu padre, embora me chames hereje ou christão novo, aprecio as bellesas e virtudes da religião catholica. Por ella abandonei as crenças de meus paes e as tradições seculares da minha raça. Voluntariamente recebi o baptismo das mãos de Antonio Criminal e desde então para sempre se inflammou no meu espirito o amor acrisolado do Deus dos christãos. De bom grado lidarei por toda a vida em defensão da cruz e da fé. Porém não quero, meu padre, seguir os teus preceitos e abraçar as tuas doutrinas, Não quero que me obrigues a pensar a teu sabor, repugnam-me todas as peias impostas á liberdade de consciencia, abomino emfim o jugo atroz a que a vossa oligarchia clerical reduz o espirito humano. De outro modo bem diverso comprehendo os deveres do homem. Não basta a Deus que o amemos sobre todas as coisas? Não basta ao rei que se seja bom cidadão? Obedecer ás leis, dar exemplos de bons costumes, estimar a familia e defender a patria: eis tudo! --Fallas bem, mas não convences. Amor de Deus e obediencia ao rei não bastam. --Dize-me então quaes são as leis que governam o mundo. Explica-me todos os mysterios do teu governo e da ordem inquisitorial. --Em duas palavras se resumem, criança: _mandar e obedecer_. --Mas a quem se obedece, meu padre? A Deus, ou aos seus missionarios na terra? ao nosso rei, ou aos aulicos miseraveis que, usurpando-lhe o sceptro, abusam da indole e fraquesa do rei? --Vou mostrar-te a quem é. A esta laconica e mysteriosa ameaça chamou o jesuita pelo silencioso carcereiro, a quem ordenou, ainda com maior laconismo, estatelasse o pagem no segredo. O carcereiro puchou por uma das argolas de ferro pregadas na parede e, mediante um alentado esforço, depressa fez sobresair uma abertura da capacidade de tres palmos de largo e uns sete palmos de alto. Guardando sempre o mesmo silencio, pegou do corpo do badage como se lidasse com uma pluma de ave e, começando de lhe introduzir os pés e as pernas, fechou-o com celeridade na mysteriosa crypta. A nova prisão era uma especie de armario de granito cuja parte superior, á semelhança de um enorme funil, apresentava geometricamente o desenho de uma figura conica. Sendo armario como parecia, abundava em estantes ou prateleiras, mas prateleiras de gosto e feitio a darem ideia aproximada das divisões funerarias de que se formam as capellas dos nossos cemiterios. --Sepultam-me vivo estes sacerdotes do Senhor, pensou o pagem. Está decidido que de aqui só se vae para o ceu ou para o inferno. Mas o pagem, mal se lhe proporcionava ensejo de criar este lugubre pensamento, viu escancarar-se de novo a tampa do seu sepulchro. --Podes sair, ordena o jesuita. --Bem ruim gracejo, meu padre. Julguei asphixiar como se fosse um perro. Nem luz nem ar e sobretudo um cheiro, a vermes podres que deveras me incommodava o nariz. --Pois arrepende-te dos teus erros. Os bens da terra não os merecem os peccadores que a todos os momentos offendem a vontade de Deus. Reconhecendo as leis e o dominio da nossa ordem, terás para sempre o socego do teu corpo e a ventura do teu espirito. Os filhos de Jesus Christo, a despeito de parecerem os ultimos pela modestia do habito, são hoje por todas as partes do mundo os primeiros na força e no poderio. Ai do insensato que julga encravar com um dedo a roda dos seus triunfos! Por isso, meu filho, expulsa quanto antes do teu seio as glorias vans do mundo secular. Em vez do gibão de velludo ou do cossolete de aço polido, enverga o saio de estamenha e abraça o lenho sagrado de Jesus Christo. O jesuita, deixando novamente a sós o badage, retirou-se a passo lento. Vendo-se agora o badage n'quella solidão tremenda, por mais uma vez relanceou as vistas em redor do carcere. A argola puchada pelo carcereiro inflammou-lhe a imaginação e, querendo descobrir o segredo de outras argolas identicas, adiantou-se em direitura da parede. Á imitação do homunculo, puchou com força. Era uma argola de ferro carcomida pela ferrugem de alguns annos. Ella parecia ceder ao primeiro empuxão; mas ficou segura e fixa como se a pretendesse abalar o pulso de uma criança. Novo empuxão com maior violencia e ainda, todavia, se não obteve mais feliz resultado. --A questão é de geito, considerou o pagem. Com effeito, sem exigir metade do esforço a argola cedeu á sexta ou setima tentativa. No bojo da parede, ainda que de fórma differente do armario de granito onde fôra introduzido o badage, manifestou-se uma crypta de genero egualmente lugubre. Formavam-na quatro paredes escuras de dez ou doze palmos de largo e deseseis ou desoito palmos de altura. Nada inculcaria de notavel a não ser uma especie de feretro levantado no centro do pavimento. O feretro, que era fabricado de pedra tosca em harmonia com todo o escondrijo, servia de asylo a um esqueleto de mulher. Os braços e tronco, as pernas e a caveira ali se viam com a pelle arroxeada e os ossos amarellecidos pelos effeitos da podridão. O badage, pensando na sorte das malaventuradas creaturas, sentiu ainda mais activa a prurigem da curiosidade. Não cuidando de fechar a porta do escondrijo, lembra-se de percorrer a trechos a parede. Lançou as mãos a segunda argola e eis que lhe apparece novo escondedouro. Não tem sarcophagos, nem feretros, nem prateleiras, nem divisões. Menos alto do que largo, é simplesmente uma grande caixa de pedra. No pavimento amontoam-se braços encrusados, pernas desconjuntadas e caveiras ás duzias. Era uma pilha putrefacta e immunda de caveiras e esqueletos humanos: um repulsivo e fetido ossario emfim. Nuvens de fumo espesso e acre vieram entretanto invadir pouco a pouco o espaço do carcere. Cada vez se pronuncia mais um cheiro violento de substancias asphixiadoras. Ficam por todo o espaço predominando esses dous inimigos dos pulmões: o acido carbonico e o acido sulphydrico. Esta horrivel atmosphera devia naturalmente influir nos sentidos e na organisação do badage. Influiu. A cabeça entonteceu-lhe e, cambaleando como um ebrio, cahiu na distancia de algumas polegadas das caveiras e esqueletos do ossario! IX O CARCEREIRO O badage irremediavelmente morreria asphixiado pela acção dos vapores deleterios se o carcereiro, cuidando de abrir uma larga janella situada ao fundo do calabouço, não permittisse rapido ingresso a uma camada violenta de ar. Abertas as portas da janella, os fluidos atmosphericos vieram naturalmente substituir os vapores do enxofre e assim em poucos momentos se restabeleceu nas gemonias inquisitoriaes um ambiente mais ou menos salutar. O badage acreditou na sua ressurreição. --Obrigado, obrigado. Antes estourar de uma cutilada de mouro de Asamor do que morrer abafado como um perro. Com mil brecas! --Poupe os seus agradecimentos, resmoneou o carcereiro. Fiz apenas a minha obrigação. Mandaram-me que o não deixasse morrer e eu obstei a que morresse. Mandassem-me o contrario, eu o contrario teria feito sem tugir nem mugir e vossa mercê, fóra de duvida, morreria sem remissão nem aggravo. --Comprehendo, observa-lhe o badage, que influa mais no teu espirito a religião do dever do que a da misericordia. Mas tambem é certo que debaixo d'esse pello de perro austero e selvagem tens ou deves ter uma alma. Por ventura deixarias morrer, á guisa de fera estorcida na jaula, um pobre homem nascido e criado á semelhança de Deus? --Desempenho á risca as ordens que me dão. Para isso me sustentam e pagam. --Então se te dissessem--_estrangula tua irman e assassina tua mãe!_ tu, em obediencia á malvadez do amo, julgarias cumprir com o teu dever? --Por Deus que ninguem me obrigava a tirar a vida a meus irmãos ou a meus paes! --Mas supponhamos que assim acontecia... O carcereiro experimentou uma ligeira contracção de nervos, estendeu com gestos de ameaça terrivel os braços musculosos e regougou em bruscos termos como se disposesse da voz do trovão: --Eu, escravo, em caso tal arrancaria com estas garras de hyena a lingua do meu amo! --Não te fallece por tanto uma certa intuição do bem e do mal. Por instincto ou rasão natural, sempre dispões de uma certa faculdade pensante que te diz não ser infinita a orbita dos teus deveres servis. Reconheces em summa que o universo é maior... --Não comprehendo bem. Um desastrado carcereiro não póde saber de letras nem sabe o que são ideias. É um cão de fila a quem disseram: _guarda esse rebanho e no fim de cada mez receberás as gorduras de uns tantos ossos_. O cão desempenha cada dia o seu serviço de guardar e jámais se importa que o rebanho seja de ovelhas limpas e alfeiras ou bravias e tinhosas. Obedece á voz de quem manda. --Mas porque obedeces tu? --Porque me pagam. --Logo, obedeces a quem te paga... --Está visto. --Logo, o serviço está em relação com a paga: maior paga, melhor serviço. --Naturalmente. --Logo se eu te pagar maior quantia do que a que tu percebes como carcereiro, depressa abandonarás a profissão de carcereiro... --Nem mais nem menos, meu fidalgo! --Dize-me então: quanto ganhas n'esta enxovia? --Conta redonda: 150 crusados por anno. --150 crusados por anno correspondem a pouco mais de 12 crusados por mez e a menos de 200 reis por dia. Julgas que não é pouco? --Deveras é muito pouco para quem se vê obrigado a sustentar mulher e filhos... --Ah, tambem tens familia? --Quem não tem familia, meu fidalgo? --De certo não sabes quem eu sou. Eu vivo sem paes, sem irmãos e sem parentes. Disem que sou um christão novo! Sou talvez um apostata, um reprobo, um paria! Vivi por longo tempo na innocencia e no socego dos sertões. Meus paes e meus parentes nutriam-se dos cachos das palmeiras, com todo o fervor das suas almas fasiam as suas orações no templo de Trichandur e as tempestades da desgraça jámais varreram tanto o repouso do seu corpo como as crenças do seu espirito. Mas um dia[13] nos mastareus de enormes galeões appareceu arvorada a bandeira lusitana n'esse grandioso imperio onde[14] _as plantas são fructos, as aguas perolas e as pedras preciosas_. Esta bandeira significava o symbolo da fé; era o labaro da paz e da fraternidade. Por isso de todas as cidades e aldeias se receberam os companheiros de Vasco da Gama como irmãos e amigos. Estabeleceu-se a troca dos generos, entabolaram-se todas as transacções commerciaes, vendiam-se pelos brocados de seda e pelos tecidos de lan ou de algodão o coral e o marfim, as perolas e o ouro, a canella e toda a casta de especiarias. Mas, ah, depressa a cobiça das riquesas transtornou a paz e a ventura das Indias! Em vez da troca e dos contractos mercantis, os portugueses foram preferindo as dadivas e a vassalagem por não desmentirem que chegavam _tam mortos de fome como vivos de cobiça_[15]. Accendeu-se então por toda a parte o facho da guerra e da discordia. Familias inteiras perderam a fasenda e a liberdade, povos inteiros perderam a familia e a existencia. Não te farei a resenha dos roubos e das violencias, dos combates e dos incendios. Basta saberes que foi assim que eu fiquei só no mundo: sem patria, sem dinheiro e sem amparo... --Uum, uum! Não sei se acredite o que me diz, atalhou o carcereiro. Não acredito de certo. Vossa mercê ou vossa senhoria é mais do que inculca ou inculca mais do que é. --Então que favoravel ou ruim ideia fases de mim? --Imagino que seja algum fidalgo poderoso. --Não sou fidalgo. --Pelo menos algum conde... --Enganas-te. --Meu senhor, ninguem, sem que seja de altas hierarchias e de singular poderio, gosa da honra de entrar aqui. Para simples peões não foram feitas as seguras grades e as grossas paredes que sustentam estas abobadas. --Tens rasão. Nada sou do que dises e sou todavia muito mais que tudo isso. --Algum marquez? --Mais! --Algum duque?... O snr. duque de Lencastre, o snr. duque de Bragança, o snr. duque de Viseu?... --Mais, muito mais! --Acima de um duque nada conheço. São os maiores fidalgos do reino. Ninguem acima d'elles a não ser sua altesa serenissima o senhor Dom João III. --Pois recorda-te bem. Ha ainda quem valha mais de que el-rei! --Mais do que el-rei? --Muito mais, muito mais! --Aposto, aposto! Em nossos reinos juro e aposto que não ha quem valha mais do que el-rei nosso amo e senhor! --Vaes sabel-o já... --Pois quem é, quem é? --Alguem é. --Mas quem? --Simão Rodrigues! O carcereiro poz-se a matutar por alguns momentos. Depois aventurou dous passos ao longo do calabouço, estalejou emfim com a mão direita uma palmada na testa e disse pausadamente: --Na verdade o jesuita é poderoso. Vale mais em forças e poderio do que um duque... --Mais que o monarcha. O monarcha tem a corôa na cabeça e o sceptro na dextra; mas isso tudo não passa das vans insignias da realesa. Vale menos o manto de terciopello do que o saio de estamenha. Perante a vontade inquebrantavel de Simão Rodrigues tudo averga e affrouxa como o vime, se quebra e desfaz como o vidro. Elle governa o estado em nome da igreja; em nome da religião escravisa a nobresa e o povo, essa cohorte de hebreus sempre amaldiçoada pela igreja. Tudo lhe obedece piamente e é el-rei o primeiro escravo que lhe obedece... --Assim é, assim é. --Todavia Simão Rodrigues teme e reconhece a força e as traças de alguem... --O papa? --Não. --O snr. Conde da Castanheira, que vale tanto como o papa? --Tambem não. --Pois quem é? --Eu! --Vossa senhoria, meu fidalgo, sempre me parecera muito rico e muito poderoso... --Em verdade sou e não sou. Mas nada mais te digo. Se queres saber quem sou, experimenta, experimenta... --Que devo faser então? --Deves desaferrolhar-me a porta do carcere... --Perco o meu emprego. --Quanto vale o teu emprego? --Vale mais de 100 escudos. --Terás 500 escudos, terás 1:000 escudos. Queres vender a minha liberdade por 1:000 escudos em boas moedas de ouro? O carcereiro esgaseou attonitamente os olhos e respondeu com firmesa: --Por 1:000 escudos vende-se a alma ao diabo. Quero, meu fidalgo! --Fases bem, fases bem. Estas abobadas cheiram a vermes podres e a cadaveres queimados! [13] Vasco da Gama aportou ao reino de Calicut em 20 de maio de 1499. [14] Conde da Ericeira. _Portug. restaurado._ [15] D. João de Castro. Carta da India a D. João III. X VANTAGEM DE DOUS CONTRA UM Preparava-se o badage para se escapulir do carcere quando o homunculo, em attitude de lhe embargar a passagem, desfechou das suas guelas herculeas uma estridente cascalhada de riso. --Meu fidalgo, regougou elle, julga que eu seja de animo tam simplorio que lhe favoreça a escapula sem primeiro arrecadar no bolso os mil ducados promettidos por vossa senhoria? Pardés que me rio com vontade, meu fidalgo! --Fallas com prudencia e siso. Quem deve, paga. Eu, em troca da minha liberdade, devo dar-te 1:000 escudos. Devo-te portanto 1:000 escudos em ouro ou prata. Mas esse dinheiro, embora seja em perolas de Ceylão ou em ouro de Ophir, difficilmente se arrecada no bolso do gibão. --Pois, meu fidalgo, teremos o contracto desmanchado... Demais, quasi estou repeso do que fiz. As más acções produsem o effeito da ferrugem nos metaes: fasem mossa na consciencia. Porventura merecem os meus amos que os atraiçoe? Pagam pouco, é verdade. De que valem 150 crusados? De que valem elles? Uma ninharia que não chega para a cova de um dente e não é preciso que o dente seja de elefante. Mas emfim sempre me pagam... --Percebo, percebo. Sabes que mais val um passaro na mão do que dous a voar. Dá cá, toma lá. Não é isso? Pois eu vou satisfaser os teus desejos. O badage pediu um tinteiro e sobre meia folha de papel escreveu com letra maiscula o seguinte bilhete: «Dona Catharina de Austria, rainha de Portugal, entregará ao portador a quantia de mil ducados em ouro ou prata. Do cárcere da inquisição do Rocio, aos 29 de desembro de 1553. Pedro, o pagem.» --Toma, disse depois ao homunculo. Este bilhete vale bem o teu dinheiro. Ficas satisfeito? O carcereiro empolgou a meia folha de papel e com soffreguidão o perpassa duas veses em frente dos olhos. Quando lhe cresceu tempo de o ler, curvou a cabeça em testemunho de respeito e contrictamente resmoneou: --Meu fidalgo, bem adivinhava eu a estirpe de vossa senhoria! Tem relações com sua altesa serenissima Dona Catharina de Austria, um coração de bondade como não ha outro mais protector dos pobres e dos infelises. Que immensa gloria, que felicidade a minha em topar com tam boa e poderosa gente! Beijo-lhe as mãos, meu rico infantão. Agora sim. Para tudo quanto precise tem ás suas disposições o servo mais humilde e mais dedicado. Prompto, meu amo! Logo ou ámanhan, agora e já, sempre e sempre me disponho a servil-o. Palavra de homem honrado: quer partir já? quer que se bote o fogo a esta casa maldita? quer que se espatife com um cutelo a cabeça do snr. Simão Rodrigues? Eu obedeço como deve sempre obedecer o servo, o escravo. Ordene, meu fidalgo! --Muitas veses nos arrependemos da maxima confiança. Sou de aviso que primeiramente recebas o premio dos teus serviços. Vai e volta depois. Porventura não receias que te engane? --Meu amo, replicou o alcaide ao mesmo tempo que rasgava com nobre desinteresse o seu papel de 1:000 escudos, de hoje por diante ficarei sempre ás ordens de vossa senhoria illustrissima. Ja pouco me importam os meus ducados. Podemos partir quando queira, meu nobre senhor... Ouviu-se então uma voz dissonora como a furia do vendaval. --Não partireis! trovejou Simão Rodrigues ao assomar com passo grave no portal do sombrio ergastulo. Infelizmente para elle, o jesuita commettera um acto de rara imprudencia. Vinha só. Affeito á cega obediencia de um numeroso exercito de clerigos e alabardeiros, confiadamente se apresentou á porta do carcere sem soldados nem sequito. O badage e o carcereiro ficaram com o espirito indeciso. Ambos conheciam até que ponto alcançavam a sagacidade e jurisdicção do jesuita. Bastar-lhe-hia um gesto ou uma palavra para todos á porfia executarem immediatamente as suas ordens. Por isso não deixava de ser melindrosa a situação. Mas depressa o badage e o carcereiro comprehenderam a vantagem que levavam ao jesuita: dois contra um é sempre uma vantagem. Simão Rodrigues entrou no carcere e o homunculo adiantou-se para a umbreira da porta. A porta era solida e perra; mas o pulso vigoroso do homunculo fel-a girar nos gonzos sem difficuldade e logo em um abrir e fechar de olhos lhe correu com a chave a lingueta da fechadura. Depois, tomando a prevenção de esconder a chave no bolso das calças, foi augmentar o grupo do jesuita e do badage. O jesuita fallava assim: --Pagem, quiz ganhar de el-rei o vosso perdão. Mas el-rei nosso amo não quiz perdoar os vossos crimes e vós, convicto do crime de heresia, no primeiro domingo do Advento padecereis como christão novo o supplicio da fogueira. Encommendai a vossa alma a Deus... O badage, desfechando uma risada, em bom genio redarguiu: --Não careço do teu perdão, meu padre. Agora na minha presença deixarás de ser o provincial Simão Rodrigues: és simplesmente um reptil, um covarde, um malvado... Queres ainda lutar comigo? Braço a braço, esmago-te! --Assim, assim, meu valente! Esmague-me essa vibora! jarrete-me esse verdugo! Apenas o carcereiro desprendera das fauces tam rudes imprecações, o jesuita impallideceu como um cadaver. Comprehendeu o conluio; adivinhou que se trocaram os papeis. Em vez de mandar e ser obedecido, restava a Simão Rodrigues o papel de obedecer como escravo. Lance desesperado para o seu orgulho! --Estranho o vosso procedimento, desabafou emfim. Insensatos que sois! Por ventura me faltareis á obediencia? Por acaso attentareis contra a minha vida? A minha vida pertence á igreja e a Deus. Cautela com a maldição de Deus! De nada, porém, valeram os argumentos. Carcereiro e encarcerado abafaram com um lenço a boca de Simão Rodrigues, por detraz das costas amarraram-lhe os braços com um pedaço do sambenito despido pelo badage e, como se faz a uma rez no matadouro, jungiram-no pela gorja a uma das argolas do carcere. --Vamos deixar-te agora, proferiu o badage. Ficarás ahi, filho de Torquemada, entregue ao arrependimento e ao remorso dos teus crimes. Não teve força nem coragem el-rei Dom João III para reprimir as tuas ambições e castigar os teus delictos. Pois desempenho eu os deveres do rei! Para bem do povo e desaggravo da humanidade faz-se mister que desappareças da face do mundo e que tambem desappareça comtigo essa ordem de viboras e de tigres que para desdita nossa introdusiste de Roma nos reinos de Portugal. Adivinhas o que te vai succeder? Adivinhas por acaso? Desapparecerás para sempre, Simão Rodrigues. Antes de meia hora será o teu corpo um esqueleto e esse esqueleto se redusirá a um punhado de cinzas! Em seguida desprendeu dos pilares da abobada uma lanterna e com a chamma do pavio incendiou as roupas talares do jesuita. Começando então de atear-se uma labareda fumegante, logo os dous companheiros a passo lesto se dirigiram para o umbral da porta e assim sem saudades abandonaram aquella horrenda masmorra. XI A TAVERNA O carcereiro e o pagem toparam-se defronte do sombrio edificio de San Domingos por altas horas de uma noite escura como breu e sem ideias determinadas sobre a melhor direcção que lhes convinha aproveitar. Era certo que por longos momentos não podiam ali permanecer sem o risco de serem percebidos e presos. Mas, em conjuncturas de indecisão, quem se lembra de acodir convenientemente pela propria segurança? Viam-se em liberdade e esse unico bem lhes parecia a suprema fortuna. A largos sorvos aspiravam as emanações puras da noite e com as vistas abrangiam o espaço immenso onde volitam os astros. Pisavam aquelle chão por cem veses trilhado pelas doloridas plantas das victimas inquisitoriaes. Por ali passaram em companhia do carrasco e dos defensores da cruz algumas dusias de martyres envolvidos na samarra e cobertos das terriveis carochas sarapintadas de chammas e demonios. Mas, ainda assim, que feliz differença se se comparava a sombria praça de San Domingos com as estreitas e miasmaticas gemonias onde o corpo se esquartejava no excesso das torturas e a consciencia desfallecia á mingoa do ambiente da liberdade? Entretanto os dous foragidos, como julgando-se proximos de um foco de miasmas e de peste, reconheciam a necessidade instinctiva de se desviarem para longe. Não tinham pensado ainda na escolha do refugio. Lisboa, essa decantada sultana de marmore e granito a não invejar bellesas a Stambul, era cidade grandiosa e opulenta, era então, como a soube descrever um dos mais sympathicos engenhos da moderna geração, a «perola das cidades do mundo, a Phryné das capitaes da Europa, a terra do luxo, dos praseres, das ostentações e das grandesas.»[16] Não lhe faltavam palacios nem choupanas, igrejas nem tavernas. Mas o olho dos activos inquisidores, Argos da peor especie conhecida, com tanta facilidade se estendia aos santuarios de Christo como sobre os santuarios das familias. Nada aos filhos de Loyola e aos discipulos de Torquemada lhes era vedado nem recondito: o seu fim predilecto e a sua ambição natural eram avassallar o mundo, eram enroscar-se como serpente gigantesca, desde as raises ao vertice da ramada, na arvore do universo! Por fim os miseros foragidos tomaram uma subita deliberação. Dirigiram-se para o palacio hospitaleiro de Violante Gomes. Apesar do prolongado e tardio da noite, ainda a formosa dama não se entregara aos dominios do somno. Entretinha-se a desferir da sua harpa de ebano e marfim alguns ligeiros acordes repassados de ternura e melancolia. A principio sobresaltou-se e estremeceu com a presença dos estranhos hospedes; mas logo com um sorriso feiticeiro de meiguice e suavidade se dirigiu ao indio: --Por acaso, meu esforçado amigo, tendes algumas aventuras mais? --Aventuras sérias, respondeu o badage com signaes de desanimo e tristesa. --Não percebeis quanto sinto os vossos desgostos. Mas a culpa não será vossa? Porque não gosaes a vida em socego, sem vos importarem os negocios do estado e os interesses alheios? Vós, os homens, tendes todos o espirito mordido pelo sarcopto das ambições. Nada vos contenta. --O destino assim é. Arrasta o nosso espirito para o bem ou para o mal do mesmo modo que succede a uma lasca de taboa ou a um pedaço de cortiça dominado pelas ondas do mar. Fica-me porém a consolação de que nunca a minha consciencia se encaminhou para o mal. Inesperadamente sentiu-se um alteroso arruido. Algum serio acontecimento se passava no largo do Rocio. Nem mais nem menos: o palacio de Violante Gomes fora assediado por uma turba sediciosa e infrene de alabardeiros e familiares do Santo Officio. Não era agradavel nem segura a posição dos foragidos das gemonias inquisitoriaes. Escapar, seria negocio difficil. Combater, seria temeridade com todos os visos de loucura. Sem embargo o indio não desanimou nem tremeu. --Senhora, disse para Violante Gomes, os vossos hospedes são incommodos e perigosos. Por isso vos disemos adeus até melhor occasião. Vamos ao encontro dos inimigos... --Loucos! acodiu a esbelta dama. Deixai as escadas e vinde por este sitio. Segui-me depressa! Violante Gomes, allumiada por um castiçal de prata, adiantou-se por um corredor estreito, subiu os degraus de umas escadas mais estreitas ainda e chegou ao recanto de uma saleta desguarnecida. --Já, já! Apressai-vos a abrir essa janella. Deita para os telhados visinhos e, tres ou quatro varas além, podeis escapulir-vos com segurança. Não afianço que não haja perigo... --Podemos cair dos telhados á rua como dous gatos ou dous perros, então regougou pela primeira vez o ex-carcereiro. Mas nada de sustos. D'entre dous perigos escolhe-se o menor. Alguns momentos depois a janella tornara-se a fechar e Violante Gomes desceu com animo desassocegado aos primeiros aposentos. O borborinho e a algasarra não affrouxavam. Pareciam o preludio de uma d'essas tremendas tempestades que se chamam revoluções populares. --Abram a porta, abram a porta! A estes rugidos de panthera ninguem respondia do palacio. As voses proseguiam entretanto: --Abram, senão arromba-se! --Arrombe-se a porta! --Á ordem de el-rei! Manda el-rei! --Abram! abram, sôs fidalgos! Como a porta não cedesse á intimação, as coronhadas principiaram de desempenhar o seu papel destruidor. Grito infernal, desacato immenso! De longe a longe uma voz robusta e vibrante forcejava por dominar a gritaria. --Basta, basta! bociferava.. Esforços baldados, porém. O barulho, em vez de esmorecer, augmentava pouco a pouco. Scenas de sangue e horror iam começar ainda. Entretanto os evasores dos ergastulos inquisitoriaes conseguiram chegar ao meio da rua da Bitesga e ali resolveram parar á porta da taverna de um parente do carcereiro. Em derredor de comprida e nodoenta banca de pinho bebiam, gesticulavam e rosnavam em selvatica liberdade uns quinze homens de esqualida catadura e trajos andrajosos que logo á primeira vista se consideravam relé de virtudes duvidosas. Ainda mais seis ou oito colossos de eguaes trajos e costumes resonavam a fartos folegos aos recantos da baiuca, uns acocorados indolentemente no chão e outros encostados sem a minima ceremonia a escabellos e tamboretes. Se aquella turba esqualida não denunciava um covil de feras, certamente não parecia um grupo de seres humanos. Eram homens todavia; mas homenzarrões de côr macilenta, voz cavernosa e cabeça guedelhuda e cerdosa como de juba de leão. --Leve o diacho, rugia um d'elles, que leve o diacho tanto a zurrapa como quem nol-a vende. Esse filho da breca jamais nos deu cousa com geito. O vinho... que peste! O vinho é sempre do peor e do mais caro como se o vendesse a mastins da igualha d'esse bisneto de Judas. --Pois andas mal, pedaço de asno, acodiu segundo bebedor dirigindo-se do mesmo modo ao taverneiro. Se te não emendas e não cobras tento, nós ensinamos-te deveras. A freguesia, meu lorpa, deixa-te ás moscas o presepio... --Por isso, redarguiu de mau humor o dono da taverna, não me ha de ferver o miolo. Fregueses como tu, Chico, ou tambem como tu, Miguel Farçante, juro que os tomara ver a cem leguas do bairro. Sempre traseis os bolsos mais cheios de sarna e cotão que de chelpa. De calotes estou eu farto dês que vos aturo. --Cala-te ahi, volveu-lhe o bebedor Miguel Farçante. Bem sabes que não sou de genio talhado para lerias... --Puf, meu valentão das dusias! Lerias tuas é que pouco me importam. O que mais quero é que me paguem e tu, se herdasses a vergonha dos homens honrados, não me punhas mais as patas de portas a dentro. --Uum, uum! Pois isso vai assim, grande lorpa! Toma lá pela injuria... Logo na face cadaverica do vendeiro estalou uma punhada gigantesca. O vendeiro quedara a principio silencioso e soffredor como uma estatua; mas depois com a ligeiresa de um tigre pegou pelo bojo de um cangirão quasi cheio de vinho e, ministrando-lhe a força de um punho de Sansão, em um apice o arremessou á cabeça do aggressor. O barro quebrou-se em pedaços e dous jorros de sangue borbulharam da testa em que elle bateu. Immediatamente, em guisa de campo de batalha, se estremaram dous partidos. Em todas as mãos luziam aos reflexos das candeias facas e punhaes. Metade dos fregueses predispunha-se para a defesa e outra metade para a investida. --Vaes levar a tua conta, meliante! --O vendeiro teve rasão... --Rasão vamos ver quem a teve! Trocaram-se estas rudes ameaças em um abrir e fechar de olhos. Eram o preludio de uma contenda furiosa entre dusia e meia de ebrios e malvados, homunculos sem consciencia do bem e do mal, tam lestos em derramarem o sangue das veias de seus irmãos como em beberem até aos bordos um cangirão dos saborosos liquidos extrahidos das parras do Seixal. Foi então que o ex-carcereiro e o badage reconheceram a necessidade de entrar na taverna. --Meus rapases, fallou-lhes o badage, não estamos em maré de bulhas e rixas com amigos. O valor e a coragem podem experimentar-se em outra liça. Quereis mostrar-me agora que sois valentes, meus rapases? --Topa-nos ás ordens, fidalgo! Mas primeiro deixe-nos dar uma tosquia a taverneiros desaforados. O vendeiro estava já bem seguro pela gola da jaqueta. Miguel, querendo vingar-se da ferida, ergueu o braço musculoso e ia sem clemencia descarregar-lhe sobre o peito a lamina do seu punhal. Mas o golpe falhou. O badage segurou com força extraordinaria o braço que sustentava o punhal. Então o barulho arrefeceu e aquella corja de ebrios, baixando as facas e os punhaes, pediu e celebrou tregoas. --Disei-me pois, dirigiu-se-lhes novamente o badage, se quereis ou não quereis provar o vosso valor e a vossa força. Preciso do serviço dos vossos braços, meus rapases. --Fidalgo, responderam logo, diga lá o que nos quer. --Toca a beber primeiro, volveu o badage. Quem paga é a minha bolsa. Venha lá do melhor e do mais caro: Seixal ou Caparica do mais velho. O vendeiro apresentou seguidamente seis garrafas cobertas de pó e foi despejando as primeiras duas no bojudo cangirão. O badage pegou da vasilha e dispôz-se a offerecel-a a cada um dos homunculos. Cada cangirão mal chegava para quatro bebedores, mas á medida que se esvasiava não se esquecia o taverneiro de o reencher até aos bordos. Todos beberam á vontade em menos de meio quarto de hora e como o badage tivesse pressa de lhes aproveitar os serviços tratou de conduzil-os em direitura do Rocio. --Adeus e obrigado, disse para o taverneiro. Ahi tens um ducado de ouro de lei. Guarda-o em paga do teu vinho. --Obrigado lhe digo eu, fidalgo. A despesa está paga. Não aceito o dinheiro de vossa senhoria e ainda lhe fico devedor de muito mais. --O taverneiro é generoso, é generoso! conclamou a maioria dos fregueses. Preparavam-se todos para sair quando se lhes dirige ainda o taverneiro: --Mas para onde vades assim, papalvos? --Nós te diremos depois para onde vamos, retrucou o ex-carcereiro. Quem fôr peco e desanimoso que fique para ahi como um perro. Pela nossa banda queremos só gente de animo decidido e braço alentado. --Bofé que ninguem dirá que o taverneiro da Bitesga foi algum dia peco! Mas ouvi rosnar por ahi que era preciso combater e brigar. Se a coisa é séria, unicamente facas e punhaes são armas de pouca monta. --Fallas com a prudencia de Dom Vasco da Gama, apoiou o indio. Mas não temos horas a perder e, na falta de outras armaduras, todas as que se encontram á mão nos parecem de boa tempera. --Serão. Mas devem concordar que as ha bem melhores de tempera e de alcance. Uma espada alcança mais longe do que um punhal e os pelouros de um bacamarte vão mais longe ainda... --É certo. Mas onde ha por ahi perto algum arsenal? --Um fiel vassallo de sua altesa serenissima deve estar sempre bem apercebido e armado. Esperem um bocado, esperem que eu venho já. Subiu o taverneiro ao primeiro andar da escura baiuca e momentos depois se apresentou no meio dos seus fregueses com um braçado respeitavel de bacamartes e de pistolas e machados, ascunhas e espadas. Para complemento da collecção de armaduras de que falla o cantor dos _Lusiadas_ faltavam ainda _Os_ arneses e peitos relusentes, Malhas finas e laminas seguras, Escudos de pinturas differentes, mas certamente sobejavam Pelouros, espingardas de aço puras, Arcos e sagittiferas aljavas, Partasanas agudas, chuças bravas. --Para meia dusia de amigos, regougou o taverneiro, aqui temos pão e queijo. Escolham á vontade... Ficaram logo apercebidos e apetrechados seis ou oito dos mais robustos e decididos. O numero restante julgou-se egualmente bem armado com os seus punhaes de fina lamina e as suas facas de ponta cuidadosamente afiada. --Agora, ordena o badage, cuidemos da partida. Alma alegre e caras á frente. Vamos combater nada mais e nada menos que os serventes e soldados do Santo Officio... --Do Santo Officio! exclamaram com espanto. Houve um momento de indecisão. Aquella palavra terrivel incutiu deveras o terror nos espiritos mais varonis e affrouxava de medo o braço mais possante. O tribunal do Santo Officio ou da _Santa Casa_, segundo o conceito de um escriptor, comparava-se então pouco mais ou menos com a arca de Noé, observando-se unicamente a differença de que os animaes que entraram na arca sairam como tinham entrado e de todos os que eram encerrados nos carceres da inquisição se viam sair mansos como cordeiros aquelles que á entrada tinham a crueldade dos lobos e a feresa dos leões! --Vejo, rosnou o ex-carcereiro, que não sois homens para empresas serias. Tanto medo para nada! Eu, que servi por alguns annos essa corja de inquisidores, confesso-vos que não recuo nem me arreceio. --Aqui ninguem confessa medo! interferiu o vendeiro com heroica resolução. A vida é uma ninharia e a mim tanto se me dá morrer hoje na praça como ámanhan na cama. Vamos ou não vamos, rapases? Momentos mais tarde a baiuca ficou permanecendo silenciosa e vasia. [16] Arnaldo Gama. _O segredo do abbade._ XII REFERTA DE TIGRES E LEÕES Este arrojado troço de feras humanas premunidas com lanças e espadões, ascunhas e alabardas, facas e mosquetes investiu no Rocio com rude e selvagem ousia contra a infrene multidão. Ia travar-se agora uma luta de tigres e leões. Nem a surpresa nem o medo conseguiram afugentar as mulheres ou as crianças. As mulheres gritavam e rugiam como pantheras, as crianças, em corridas vertiginosas arremessavam pedras e calhaus, os velhos sentiam refluir-lhes o sangue da juventude e serviam para animar os brios dos mais novos. Uma destemida populaça e uma horda fanatica de soldados lidavam e combatiam, como em liça de musulmanos contra christãos, com egual coragem e com o mesmo furor. Decorreram breves minutos e já se via, como na manhã seguinte de uma noite de batalha, o chão alastrado de corpos ensanguentados e moribundos. Mais de quinze cadaveres, não memorando a desastrada hecatombe dos feridos e contusos, eram já os tristes despojos e as victimas infelises da contenda. O ruge-ruge, a voseria, a confusão e as cutiladas pareciam todavia cada vez mais longe do seu fecho. Mas, predispondo-se a restabelecer o socego, um personagem de altivo porte e animo resoluto á semelhança dos paladinos da idade media, rompeu com bravura por entre o populacho e a soldadesca proferindo em voz sonora: _basta, basta!_ Depressa foi reconhecido o campeão e, sendo-lhe franqueada a passagem com todas as demonstrações de respeito, ergueu-se o grito geral de--_viva sua altesa! viva o senhor infante!_ O infante Dom Luiz desembuçou a capa de veludo, mostrou ao povo o seu rosto sympathico e com serenidade lhe fallou assim: --Ordem, ordem! El-rei deseja e estima a vida dos seus vassallos. Não quer que elles vertam o seu sangue de tal sorte. Cobrai tento e socego, meus amigos! Entretanto um dos mais inquietos e terriveis contendores foi pouco a pouco recuando com a espada em punho até se aproximar do infante. Não recuava de susto ou por impulsos de fraquesa, que nunca o seu espirito fôra abalado pelo medo nem os nervos do seu braço jámais affrouxaram nas conjuncturas do perigo. --Debalde gastaes a paciencia e o tempo, lhe segreda. Esta corja infrene e rebelde que nem de filhos de Satanaz, decerto vos não obedece nem respeita. Não lhe sobejou ensejo de alongar o discurso. Um troço de aggressores armados de alabardas e espadas, de picos e ascunhas investiu contra elle ao grito diabolico de--_morram os hereges, morram os traidores!_ --Morram, morram os judeus e os hereges! conclamaram logo de todas as partes. O infante, desnudando a espada, enrostou com a massa dos aggressores. Elles porém, demovidos pelo respeito e pela estima que todos professavam pelo irmão de el-rei, suspenderam o passo. --Ousareis porventura, lhes disse, erguer armas contra o irmão de el-rei? --Não queremos offender vossa altesa, responderam do meio dos aggressores. Queremos só esse herege e esse criminoso que ahi está. Esse buscamos, buscamos esse só. --Que me quereis então? proferiu com sobrecenho e desassombro aquelle que indigitavam. --A vossa cabeça. A vossa cabeça de traidor para a ponta das nossas lanças e o vosso corpo de herege para a fogueira do Santo Officio. --Rapases, retorquiu o infante com asedume, a el-rei sómente incumbe o castigo. Não vos é dado justiçar por vossas mãos. Se ha ahi algum criminoso, os juises de el-rei o tem de punir segundo as leis e usos do reino. --Diz bem o senhor infante, concordaram alguns dos representantes da populaça. --Ide-vos em boa paz então. Restabeleça-se a ordem e haja por toda a parte socego. --Mas quem nos responde pelo herege? Quem nos responde por elle? A estas interrogações dos mais exigentes, accrescentaram ainda algumas voses: --Sem castigo não deve ficar. É de justiça, é de justiça que seja punido... --Será feita justiça, retorquiu o infante. Prometto-vos debaixo de minha palavra de Prior do Crato e, o que não vale menos, de leal cavalleiro, que o levarei á presença de el-rei para que se faça justiça rigorosa. Seguidamente pela Bitesga e outras ruas dispersou-se pouco a pouco a sediciosa turba. O infante Dom Luiz acompanhado pelo badage, esses meteram pela rua da Palha em direcção aos paços da Ribeira. --Decerto cumprirá vossa altesa a sua palavra? inquire o badage a meio do caminho. --Sinto, meu amigo, que me reservasses o officio de carcereiro. Mas confio que meu irmão e senhor não deixará de vos tratar bem. --Alimenta vossa altesa mais esperanças do que as que eu nutro. Do animo generoso de el-rei pouco espero. Desconfio que precisa a guela d'aquelle serenissimo sapo de mais uma doninha... XIII O LEITO DA DOR As festas e os folgares não se interrompiam nos alegres paços da Ribeira. Comtudo não havia remedios nem divertimentos que restabelecessem a saude do joven herdeiro da coroa. A maior parte dos dias passava-os elle de cama. Acommettera-o grave enfermidade. Queixava-se continuamente de dores de entranhas e revoluções de estomago. Emmagrecia a olhos vistos e a cada hora mais se lhe pronunciava a debilidade do corpo. Á sciencia medica os symptomas e o caracter do mal não despertavam todavia os minimos cuidados. Effeitos do fastio e consequencias de debilidade, eis a opinião uniforme de todos os Esculapios e Galenos da côrte. Mas é certo que sua altesa peorava de dia para dia. Pouco a pouco encovavam-se-lhe os olhos, entesavam-se-lhe os dedos, empallideciam-lhe as faces, afilava-se-lhe o nariz, destingiam-se-lhe os beiços e enfraqueciam emfim todas as carnes e todos os musculos. Nada o entretinha nem consolava. Até os seus dilectos livros e os seus estimados trovadores lhe enfastiavam agora. Já não dava apreço ás quintilhas de Francisco de Sá, á _Diana_ de Souto Mayor nem aos autos de Gil Vicente. Consumia todo o seu tempo em suspiros e lamentações. Á proporção que lhe desfalleciam as forças do corpo, iam-lhe fugindo do espirito a coragem, a resignação e a paciencia. Scena enternecedora em verdade era vel-o carpir as desditas da sua mocidade quando a esposa delicada e nervosa o procurava alentar com o balsamo das esperanças e dos carinhos! Era o seu anjo tutelar a fiel e amoravel esposa. Jamais lhe abandonou o leito da dor e todos seus thesouros de ternura com elle os gastava generosamente. Nunca seios de mulher compartilharam assim das amarguras alheias. A alcova e os aposentos do principe ficavam no segundo andar dos paços regios. Ali de canto a canto reinava um luxo oriental nas rendas e nas tapeçarias, em todos os ornamentos e em toda a mobilia. Mas de que valiam esses brocados e essas riquesas? Faltava ali uma coisa vulgar: a alegria. A saude não se póde comprar com ouro e sem o dom precioso da saude não existem as alegrias domesticas, os risos da existencia. El-rei seu pai, talvez porque o excesso da sua augusta sensibilidade lhe não permittia espectaculos de tristesa, raras visitas se dignava faser-lhe. Em compensação a rainha sua mãe todas as manhans se lhe dirigia á cabeceira do leito e a todas as horas mandava perguntar por suas damas se o principe melhorava. Pela saude do joven principe todas as damas, fidalgos e poetas da corte simultaneamente se interessavam. Muitas noites estava a sua alcova liberalmente cheia de amigos e aduladores. Como se não julgava de gravidade a molestia, facilitava-se a honra da entrada a todas as pessoas do tracto e das relações do paço. Vai correndo o dia dous de janeiro de 1554 e são quasi dez horas da manhan. Sua altesa parece dormir a somno solto e na sala contigua estão esperando que estremunhe e acorde duas dusias de poetas e fidalgos, de damas e criados. As damas chamam-se Dona Francisca de Aragão, Dona Catharina de Athayde e Dona Leonor Mascarenhas. Os poetas, contando os de maior nota, são Dom Manoel de Portugal, João Rodrigues de Sá, Frei Paulo da Cruz, Dom Simão da Silveira, João Lopes Leitão, Jorge Souto Mayor e Antonio Ribeiro Chiado. Conversam uns com os outros em voz desanimada e confrangida. A todos parece faltar assumpto e liberdade. Está reinando certamente um quarto de hora de monotonia. Mas eis que entra ainda um homemzinho magro e pletorico, de barbas louras e cabellos compridos. Tem o nariz afilado, os olhos vivos e as faces pallidas. A boca mostra-a de exiguas dimensões, mas, segundo a fama que em Lisboa corria, no comprimento da lingua ninguem se lhe avantajava. Vem todo aparaltado e nedio com sua gargantilha encanudada e seus punhos de alvas rendas. Traz na mão esquerda um chapeu de feltro enfeitado com sua pluma branca. Dos hombros pende-lhe um farto capirote de panno preto. Calção e gibão foram talhados de veludo verde. As meias eram de fina seda cor de carne. --Seja bem vindo vossa mercê, meu illustre coripheu da _Castalidum turba_! A esta jovial saudação de Souto Mayor o recem-chegado estendeu a dextra e apertou com extremos de delicadesa a robusta mão do cantor da _Diana_. Todos os outros cavalheiros procedem por sua vez a eguaes manifestações de amisade e seguidamente se dirige o recem-chegado para a alcova do principe. Depressa porém reapparece na ante-camara. --Está descançando no regaço de Morpheu, murmurou elle com um sorriso prasenteiro. --É certo que sua altesa está a dormir, confirma prosaicamente a celebrada e formosa Natercia. Mas por isso não nos ha de deixar o nosso amigo Pedro Caminha. Estou anciosa por ouvir as suas poesias, meu caro Apollo. --A musa tem andado constipada, minha gentil Galatea. --Os numes não se constipam, acode o faceto Chiado. --Não o deixamos partir sem nos recitar algum poema, accrescenta Dona Francisca de Aragão. --Assim rogam tanto! Estou plebeamente envergonhado por não traser peça de valor; mas não sei se lhes mostre... --Mostre, mostre, senhor Caminha! rogaram com alegria tres voses de guelas feminis. --Mas que lhes hei de eu mostrar, pobre versificador de eglogas e elegias! --Quer mote? --Metem-me em trabalhos, metem-me em trabalhos de Hercules; mas venha de lá... --Deixemo-nos de mote, replica Souto Mayor. Ouvi diser que é maravilhoso o ultimo parto do engenho de vossa mercê. Recite-o antes vossa mercê. --Votos, pedimos votos! regougam a um tempo dous divergentes cavalheiros. Entretanto uma das travessas damas atreve-se a introdusir os ageis dedos no bolso do collete de Pedro Caminha e logo com expansivo contentamento desembrulha uma pequenina folha de papel amarrotado. --Eureka! exclamou ella com enthusiasmo. --Leia lá, senhora Dona Francisca. --Eu leio, eu leio! Pegou Pedro Caminha no precioso autographo[17] e com entono magestatico se dispoz a recitar: Muitas veses meus versos me pediste Que t'os mostrasse e nunca te mostrei; Em não pedir-te os teus, se bem sentiste, Entenderias porque t'os neguei: Da paga me temi; se a não tivera Muitas veses meus versos já te lera. Subito rubor purpurea as faces de Souto Mayor. Julga que elle mesmo fôra o alvo do epigramma e vai certamente dar o troco em egual moeda quando o auctor do _Olyssipo_ requer explicações. --Diga-nos vossa mercê, acodiu Jorge Ferreira, que allusões cavillosas são essas as do seu epigramma, senhor Caminha? Caminha virou nas mãos a folha de papel e em voz mais elevada continua de ler: Um tem dois olhos e com vista clara, Outro um só tem e esse co'a vista estreita. Diz este áquelle: «Amigo, eu apostara A qual de nós tem vista mais perfeita?» Quem houvera que a si não se enganara Como o outro que enganado a aposta aceita? Diz-lhe este: «Vê que vejo mais que ti, Pois dois olhos te vejo, um só tu a mi!» --Bravo, excellente! exclamara João Rodrigues de Sá quando comprehendeu que os epigrammas se dirigiam a esse misero poeta que valia mais que todos elles porque se chamava Luiz de Camões e porque era talvez o primeiro, o ultimo, o maior portuguez do seculo deseseis. --Deveras excellente! Excedeis Horacio e Marcial, meu illustre e grandioso vate! com estudado sorriso e com excesso de lisonjaria acrescentou ainda Jorge de Souto Mayor. A este pomposo elogio immediatamente replica o padre-mestre dos epigrammas: --Agradeço as vossas finesas, meu Petrarcha. Um frouxo de tosse fez por esta occasião acorrer as damas ao quarto do principe. Acordara sua altesa com a indiscreta algasarra e a meio corpo se erguera sobre os macios travesseiros do leito. Parecia mais alliviado da enfermidade, mais jovial do olhar e menos cadaverico do gesto. --Vossa altesa dormiu bem? pergunta-lhe Dom Jorge de Moura aconchegando-se do leito. --Sinto-me com mais animo e parece-me que vou melhorando... --Não tardará que vossa altesa esteja restabelecido. Isso não ha de ser nada, querendo Deus. --Assim espero que aconteça; mas não sei, meu amigo, não sei o que sinto nem o que padeço. Ha tantos dias na cama sem forças nem saude! --Disem os medicos que não passam de debilidade os achaques de vossa altesa... --Os medicos sabem tudo, sabem tudo... Só não sabem dar-me cura! Abriu-se o reposteiro da alcova e a comprimentar o principe entrou agora a colmea dos admiradores do poeta Caminha. [17] Veja-se a _Vida de Camões_, por Theoph. Braga. XIV EFFEITOS DO VENENO Respeitosamente foi comprimentado o herdeiro da coroa por todos os poetas e cortesãos que de improviso assaltaram a alcova. Mas o joven Dom João não se encontrava em maré de paciencia para aturar importunidades e por isso a numerosa colmea dos nobres aduladores cuidou logo de se despedir. A alcova permaneceu deserta; mas soou depressa o estalido de uma secreta mola e a um dos cantos sahiu vagarosamente por uma porta escondida na parede o aventuroso pagem. --Bom pagem, fallou-lhe o principe decorridos alguns momentos, sinto que me vão affrouxando o animo e a paciencia. O badage aproximou-se do leito. --São effeitos da doença, respondeu pausadamente. --Disem-me todos que isto nada é. Todos me enganam... Só tu me dises que estou doente... Sabes que doença padeço? --Sei, meu principe. --Que doença é? --Francisco Lopes que vos responda, senhor. --Não és sincero. Tambem tu me enganas, pagem. --Receio declarar-vos a verdade. --Tenho coragem para a ouvir. Falla, falla... --Vós todos, principes e monarchas, só tendes abertos os ouvidos á adulação e á mentira. A verdade é amarga e severa. Seria para as vossas organisaçoes anemicas e sedentarias um eleboro violento em demasia. Mas podesseis comprehender as bellesas e vantagens da verdade que seria mais tranquilla a vossa consciencia e mais duradoura a vossa saude. Então saberieis ler no livro mysterioso do destino os deveres que vos determina a Providencia. Serieis então os amigos e os protectores do povo... O enfermo escutava pela primeira vez tam dura e irreverente linguagem; mas, como se tivesse o espirito fascinado pelo canto de uma sereia, não ousava interrompel-a. Com mais valentia de voz o badage proseguiu: --Abençoados os monarchas que são os amigos e protectores do povo! Abençoados sejam! Mas a maioria d'elles entrega-se noite e dia ao turbilhão vertiginoso dos praseres e das orgias em menoscabo dos interesses publicos e em prejuiso da ventura das nações. Não é grande o numero dos monarchas, por mais ricos e poderosos que sejam, que morrem com a consciencia de haverem feito a felicidade dos seus vassallos. Parece que teem os olhos vendados para o bem... --Cala-te, que és injusto e severo. Que mal te fez meu pai ou tenho feito eu para seres assim tam rigoroso de palavras? --Sois christão e mostraes ignorancia da leitura do Evangelho. Pois sabei que pelas culpas dos paes respondem os filhos até á quinta geração... --Eu sei o que disem as escripturas santas; mas de que mal e de que peccados accusas meu pai? --Rio-me da vossa innocencia, meu principe. Por ventura ignoraes os descreditos e vexames que todos vamos soffrendo cada dia? Quantos desacertos e que torturas se não commettem ao sabor de Simão Rodrigues e só por interesse do tribunal da inquisição? Bastará o _Santo Officio_ para causar maiores damnos do que a peste e mais opprobrio do que a forca. Nas mãos dos seus ministros flammeja o cutelo do carrasco, que é o mesmo que o estilete do assassino. Confisca-se a propriedade, assassina-se o fidalgo, rouba-se com a riquesa a honra alheia e queima-se nas labaredas da fogueira o servo da gleba para que se accenda mais uma lampada no altar da tirannia e se fortifique ainda com mais uma columna o templo da igreja! --Não blasfemes assim, hereje. Lembra-te que fallas diante de um principe de sangue. --Principes e monarchas não os respeito nem acato senão pelo esplendor das suas virtudes. Onde está o rol das vossas virtudes? Foi benefica a missão de que vos encarregou o Deus que sempre tendes á flor dos labios e a que nunca ergueu altares o vosso coração. Deus mandou-vos amar o proximo. Devieis ser o auxilio e não o latego do povo. Mas vós, que tendes para tudo ministros e conselheiros, só os não tendes para vos aconselharem a minorar os infortunios do pobre e obrigarem a repartir com as crianças que padecem fome as iguarias superfluas dos lautos e magnificos banquetes... --Não te quero ouvir mais, não te quero ouvir mais. Lembra-te que ainda te posso punir e esmagar, villão! --Tendes o poder e a riquesa, herdeiro do throno de Portugal. Sei que sempre a vossos pés se rojaram desenas e dusias de cortesãos ambiciosos, cortesãos que se habituam a procurar o esplendor das gemmas preciosas das coroas regias para encobrirem a baixesa da sua consciencia e a lepra do seu espirito. Sei que todos os vossos caprichos e devaneios, embora custem milhares de crusados, serão satisfeitos mais depressa, do que se enxuga o pranto do desvalido que, relado pela fome, se vê estrebuchando na enxerga pestilenta da miseria... Mas vejo tambem que se offusca o nimbo da vossa gloria e declina a estrella da vossa grandesa! Em vez de ser de perolas e rubis, será logo de terra e de cinzas a vossa coroa. Depressa se desfará em pó o vosso sceptro e, em vez de recamarem o vosso corpo o ouropel e os avellorios do throno, será entregue o vosso corpo aos vermes e á podridão do sepulchro! --Basta, basta! São de fogo as tuas palavras. Sinto que me requeimam as entranhas, pagem! N'este comenos entrou Francisco Lopes a satisfaser a sua visita ordinaria. O medico aproximou-se do principe, ausculta-lhe o peito com a maior observação e em seguida com todo o cuidado lhe tatea o pulso. Não proferiu um monosyllabo e jámais denunciou pelas impressões do rosto ou por outros quaesquer signaes exteriores a gravidade ou as melhoras do enfermo. Sempre com a mesma austeridade aproximou-se de um dos angulos da alcova, recurvou-se de vagar sobre uma elegante mesa de jacarandá, serviu-se de uma penna de pato collocada ao longo de um precioso tinteiro de prata e com rapidez formula em meia folha de papel o recipe do costume. Em seguida o medico ergueu com dous dedos a receita, baixou com gesto comprimentador a cabeça em direcção do leito e logo com inalteravel silencio transpoz os umbraes da porta. No centro da sala contigua esperava-o uma pessoa vestida completamente de roupas negras que ninguem mais era senão o jesuita Simão Rodrigues. A meia voz segredou-lhe o medico: --Está moribundo. Está sem vida. Morre antes de meia hora. O jesuita laconicamente accrescentou: --_Requiescat in pace!_ Entretanto não abandonara o badage o leito do principe. Ninguem mais se conservava ali. Talvez porque se quisesse poupar a organisação debil do principe ás fadigas das conversações e ao constrangimento das visitas, ou então por que o quadro pavoroso da morte não é espectaculo que deleite as vistas e atraia a presença dos cortesãos. O espirito de sua altesa estorcia-se nos derradeiros paroxismos. Poucos momentos de vida lhe restavam já e que severos momentos de tortura não deviam de ser aquelles! Affligiam-no contorsões horrendas; o fogo violento de um vulcão abrasava-lhe as entranhas; os musculos e tendões dos braços pareciam fios de arame agitados por uma descarga electrica. Elle todavia prestava segura e ininterrompida attenção ás palavras mysteriosas do badage. Sobresaltava-se, contorcia-se, desesperava-se como se lhe ardessem as carnes no brasido infernal de uma fornalha; mas ainda nutria alentos e voz para de quando em quando diser ao badage: --Contai-me tudo, contai-me tudo o que sabeis... O badage continuou a revelar-lhe: --Vou por fim denunciar-vos tudo o que sei. É caso incrivel, mas é verdade. Foi crime horrendo, mas aconteceu. Está soffrendo vossa altesa os effeitos do veneno e é el-rei, acredite-me vossa altesa, é el-rei Dom João III a causa da sua morte! A tam inesperada e tremenda revelação o corpo do principe contorceu-se com maior violencia. Quiz erguer-se do leito, gritar logo por soccorro e despedaçar as carnes com as unhas como se o dominassem os instinctos de um abutre. Porém a alcova nupcial tornara-se depressa a habitação lugubre da morte. Agora a voz e as forças abandonaram de vez o corpo franzino do principe. Era elle apenas um cadaver! XV O PERDÃO Com o espirito entregue aos dominios de uma vaga melancolia desceu seguidamente o badage ao primeiro andar dos Paços da Ribeira, onde, ao derredor de uma luxuosa banca pejada de papeis, meia dusia dos mais altos personagens se debatiam em calorosa conversação nos aposentos particulares de el-rei. O badage, predispondo-se a colher o fio da conversação, cautelosamente applicou o ouvido ao ralo da porta dos regios aposentos. --É mister, continuava de expor ao monarcha o beato provincial, um tremendo e exemplar castigo. Aquelle herege não póde ser absolvido nem perdoado. Sabeis, senhor, até onde alcançam o grau dos seus crimes, o excesso das suas heresias, o numero dos seus peccados? --Já me contaste, meu padre, o que por desfortuna vos aconteceu. Confesso que foi horrivel a vossa posição. Atrever-se aquelle herege a martyrisar-vos com o fogo! Presumo que não foram os vossos tormentos inferiores aos de San Lourenço, o martyr das grelhas. --Pela minha parte lhe perdôo tudo. Encontro-me salvo e livre de perigo. Agora só me resta esquecer de boamente o mal que me fez. Mas os desacatos á religião catholica, as offensas dirigidas a Deus... --Perdoae-lhe vós, observou a rainha, que Deus tudo perdoa como pai de misericordia. --Vejo que minha presada esposa, accrescenta o monarcha, se interessa generosamente pelo seu pagem. Cá de mim não tenho resentimentos nem gostei nunca de vindictas. Em boa fé, meu padre, vos declaro que tudo esqueço. Mas que diseis, Simão Rodrigues? De vós depende o perdão ou o castigo! Dispunha-se a retorquir o provincial quando o badage se apresenta de improviso. --Recuso, disse com firmesa, todo o perdão e todo o favor. Simão Rodrigues, Simão Rodrigues, sois vós que precisaes da graça de el-rei! --Não comprehendo bem o teu orgulho, meu amigo! acodiu o nobre Duque de Beja. --É o orgulho de quem estima e defende uma boa causa: a causa do povo. --O povo, sempre o povo! exclama com asedume o terrivel jesuita. Dize-me: que entendes tu por essa massa enorme e infrene, esse corpo sem entendimento nem consciencia que apedreja hoje o idolo da vespera, essa cabeça desvairada que nunca soube comprehender as doçuras da paz nem respeitar as glorias de Deus? --O povo, proferiu o indio com enthusiastico espirito, é um instrumento de trabalho que emprega todo o suor do seu corpo e todos os dias da sua existencia no roçar das charnecas, no arroteamento dos latifundios, nos perigos e labores das officinas, sobrecarregado sempre de gabellas e desfavores, ganhando apenas os meios pecuniarios de não morrer de fome e não conseguindo nunca abandonar a sua condição servil. É o contrario de essa classe que se chama a nobresa e de essa oligarchia que se chama o clero. O nobre e o padre, favorecidos por uma legislação de isenções e privilegios, são homens livres que deixam de contribuir para as despesas do estado, que tudo á larga possuem e que desconhecem os suores do trabalho. Gosam e mandam a seu alvedrio... O povo, todavia, constitue a maxima parte, a grande porção do estado. Do seu braço, das suas forças e da sua actividade provém a riquesa publica, a defesa das monarchias ou das republicas, a manutenção da ordem e da paz, o desenvolvimento do commercio e das industrias. O povo é o elemento mais forte das instituições politicas e da ordem social: o eixo e as rodas da machina social. Seria preciso conseguintemente não despojal-o da sua personalidade e da sua liberdade... Mas quando irromperá a fulgorosa alvorada em que esse rebanho de ilotas ou escravos desperte ao grito heroico e triunfal de um novo Spartaco, o libertador dos povos? Quando, proclamado o advento da igualdade e da justiça, surgirá a epocha redemptora em que a essa _cohorte renegada de hebreus_ se concedam pelas prescripções de uma legislação benefica e humana os foros de cidadãos e os direitos de homens livres, a sua alforria politica e social emfim? Eu erguerei sempre a minha voz contra os excessos da tyrannia feudal, inquisitorial ou real que fasem do povo uma besta de carga. O systema pagão ainda prevalece nas hodiernas sociedades, apesar de já decorrerem mais de quinze seculos de christianismo[18]: isto é do reinado da igualdade, da liberdade, da fraternidade humana. Porque se não ha de abolir este nefando systema aperfeiçoando as coisas existentes, dando ás ideias diversa direcção, melhorando as leis e os habitos e os costumes? Vós, provincial Simão Rodrigues, confiaes que, submettendo o povo ao jugo da escravidão e roubando-lhe a luz do sol nas abobadas dos carceres, conseguis a regeneração da sociedade civil e a grandesa da igreja catholica. Mas por acaso ignoraes que a consciencia publica e o senso universal reprovam com vehemencia as traças e ardis empregados pelo vosso systema estacionario e fanatico, systema vergonhoso que directamente conduz á anniquilação e ao opprobrio? As nações não podem viver sem leis de egualdade na distribuição dos bens e dos males, dos cargos e beneficios. Não podem os homens coexistir e prosperar sem as vantagens de uma associação commum. Como é pois que a vossa corporação de jesuitas ambiciona dispor de todas as forças e riquesas, de todos os elementos de soberania e de todos os graus de despotismo? Não comprehendeis o grande pensamento do dever--que é a lei da vida, a grandiosa ideia do bem--que é o dever da humanidade! Conheço que debalde cairei sem nome nem gloria como o soldado ferido no fragor dos combates. Mas eu vos profetiso, Simão Rodrigues, eu vos profetiso que ainda um dia, ao grito de triunfo dos meus irmãos, ha de sobre as cinzas frias do jesuitismo e dos Cains do Santo Officio erguer-se em canticos de alegria o altar da liberdade! Logo Simão Rodrigues se dispunha a esfriar a impressão do democratico discurso do badage; mas Catharina de Austria, com a fronte radiosa de firmesa e coragem, apressou-se a diser para seu esposo: --Não approvaes, senhor, os gentis e nobres sentimentos d'este mancebo? Por Deus vos declaro que não conheço em nossos reinos mais generoso fidalgo nem mais leal vassallo! --Assim o creio, concordou o monarcha impressionado por um estranho sentimento de generosidade. Tanto que resolvo mostrar-lhe a minha gratidão e a minha graça. Ficas satisfeito, proseguiu ao dirigir-se affavelmente ao badage, em aceitar a commissão com que me apraz honrar-vos? Quero provar-vos com animo generoso que sei premiar as virtudes e serviços dos meus vassallos... --Senhor, atalhou com um olhar de fogo o jesuita Simão Rodrigues, por Deus que vos não pertence premiar os herejes nem os criminosos! --Jamais um monarcha de Portugal deixará de cumprir quanto prometteu... Pagem! mando-vos substituir nos meus dominios da India com os mesmos foros e jurisdicção o viso-rei Dom Affonso de Noronha. Seguidamente fôra o badage abraçado com espontaneas manifestações de contentamento pelo seu sincero amigo o duque de Beja. --Fez-se justiça, fez-se justiça por fim! exclama a rainha com viva explosão de enthusiasmo. Experimentaram os nervos do badage uma passageira commoção, humildemente recurvou elle pela primeira vez a sua cabeça altiva e com brandura ajoelhou aos pés do sombrio monarcha: --Muito agradeço a vossa altesa, lhe disse, as honrarias e os louvores; mas consinta-me que não aceite. --Puf! meu rapaz. Pareces bem orgulhoso e bem louco. Pois já te não convem o viso-reinado das Indias? Ao successor de Dom Manoel, o glorioso principe que tam respeitado e temido fisera no Oriente o nome portuguez, retrucou o indio com magestosa serenidade: --Parto para as agras e florestas do meu paiz; mas deixe-me vossa altesa partir sem honrarias nem proveito. Não me sedusem as grandesas da vida nem os avellorios do mundo. Christão velho ou christão novo, deveras ficarei contente com dar a Simão Rodrigues um exemplo de modestia e uma lição de humildade! [18] Lamennais. _Du passé et de l'avenir du peuple._ XVI A VINGANÇA Foi annunciado o almoço e então suas altesas as pessoas reaes, acompanhadas de suas senhorias os conselheiros e o celebre provincial, poseram logo termo á audiencia. Apenas se conservou na sala o badage. --Talvez me chamem desassisado, scismou elle. Regeitar assim riquesas e titulos!... Grande virtude e grande proesa, na verdade... Quem não gosta de elevar-se e engrandecer-se, quem não deseja passar de braço erguido por cima da cabeça dos outros, embora á custa da sua consciencia e da sua dignidade? Todavia do meu procedimento não me arrependerei nunca. As Indias são emporio de riquesas e eu depressa possuiria armasens de fasendas e especiarias, cofres de joias e de barras de ouro... Mas quem me dava todos esses bens? Porventura sua altesa serenissima? O rei, no seu officio inalteravel de gastar, dispõe dos haveres e dos suores do povo, a massa que produz e trabalha. De certo deveria a minha fortuna ás generosidades do rei... Mas não és tu--a maior, a grande porção da humanidade--que trabalhas e que produses e que tudo vaes pagando?... Povo, das bagas do teu suor é que nascem as perolas das coroas regias. Eu comprehendo isso, comprehendo! Havia pois de enriquecer-me á vossa custa, meus irmãos? O badage sentou-se na luxuosa estadella do monarcha, dobrou a cabeça sobre os braços crusados na beira da mesa e assim por alguns momentos permaneceu como adormecido pelo cansaço. Entregava o seu espirito á meditação, porque logo alteou a sua cabeça esbelta e se dispoz lentamente a escrever. Todos os mais intimos e sinceros sentimentos do seu coração transmittia-os agora a meia folha de papel. Estava confiando por meio das letras alfabeticas de uma carta dirigida a Catharina de Austria os seus fervorosos affectos e as suas saudosas despedidas. --Amei-a com dedicação! monologava elle quando acabou de escrever. Mais pelas prendas do seu espirito que pelas bellesas do seu corpo... Conheci-a sempre bondosa e casta como os anjos. O orgulho, a soberba e a impudicicia de uma rainha são vicios que jamais lhe empanaram o brilho das suas virtudes. Não me esquecerei nunca de abençoar o seu nome e de estremecer a sua imagem. Nobre e gentil senhora! quem soffreria os impetos e cruesas de vosso esposo, o lobo sombrio e fanatico, se não fossem as vossas caricias e os vossos conselhos de ovelha paciente e delicada? Leu a carta seguidamente, reflectiu ainda por alguns minutos e rasgou-a em varios pedaços a final. --Não! reconsidera com altivez. Não darei eu esta prova de fraquesa. Coragem, coragem!... Sempre, como perola escondida na clausura da concha, apertarei nos meus seios de alma o segredo dos meus amores. Quem sabe se lhe causaria despreso em vez de saudade, riso em vez de compaixão? O badage levantou-se bruscamente da estadella, correu as vistas pelas douradas paredes da sala e dirigiu os passos para o lumiar da porta. Aquelle palacio escaldava-lhe a cabeça como se o abrasasse a cratera de um volcão. Resolvera abandonal-o para sempre e já caminhava ao longo do corredor quando um magro personagem de semblante pallido como o de um cadaver e de vestes negras á semelhança de um fantasma o obriga a parar improvisamente. Em repasto da sua vingança, não se recusara Simão Rodrigues a ensanguentar o seu punhal traiçoeiro. Elle em carne e osso, com o punhal escondido na manga da roupeta, aguardava o pagem na penumbra solitaria do corredor. O pagem cahiu, com effeito, ao borbulhar do seio um jorro de sangue. Não acodiria braço que o protegesse nem medicina que o salvasse. Crisparam-se-lhe os dedos, arroxearam-se-lhe os beiços, empallideceram-lhe as faces e entregou a Deus o derradeiro alento da sua juvenil existencia depois de articular esta crudelissima ironia: --É assim... que se vingam... os filhos de... Ignacio de... Loyola! FIM. INDICE Algumas palavras 5 I--Ciumes de um rei 11 II--Os reis não costumam perdoar as offensas recebidas 23 III--Recompensa do crime 35 IV--O festim de Balthasar 53 V--Orações e jejuns redimem todas as culpas 65 VI--A caçada 75 VII--A luta 85 VIII--Os estaus 95 IX--O carcereiro 105 X--Vantagem de dous contra um 115 XI--A taverna 123 XII--Referta de tigres e leões 139 XIII--O leito da dor 145 XIV--Effeitos do veneno 155 XV--O perdão 165 XVI--A vingança 175 PORTO--IMPRENSA PORTUGUEZA End of the Project Gutenberg EBook of O Christão novo, by Diogo de Macedo *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O CHRISTÃO NOVO *** ***** This file should be named 29275-8.txt or 29275-8.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: https://www.gutenberg.org/2/9/2/7/29275/ Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images of public domain material from Google Book Search) Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. Creating the works from public domain print editions means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for the eBooks, unless you receive specific permission. If you do not charge anything for copies of this eBook, complying with the rules is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation of derivative works, reports, performances and research. They may be modified and printed and given away--you may do practically ANYTHING with public domain eBooks. 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