O Christão novo

By Diogo de Macedo

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Title: O Christão novo
       Romance Historico do Seculo XVI

Author: Diogo de Macedo

Release Date: June 30, 2009 [EBook #29275]

Language: Portuguese


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                             _DIOGO DE MACEDO_


                              O CHRISTÃO NOVO

                      ROMANCE HISTORICO DO SECULO XVI



                                   PORTO
                            IMPRENSA PORTUGUESA
                           Rua do Bomjardim, 181
                                   1876




                              O CHRISTÃO NOVO



                             _DIOGO DE MACEDO_


                              O CHRISTÃO NOVO

                      ROMANCE HISTORICO DO SECULO XVI



                                   PORTO
                            IMPRENSA PORTUGUESA
                           Rua do Bomjardim, 181
                                   1876




ALGUMAS PALAVRAS


_Historia, segundo Cesar Cantu, é a narração dos factos considerados
verdadeiros. Tem por fim a verdade, porque, no conceito de Alexandre
Herculano, encarrega-se de averiguar qual foi a existencia das gerações
que passaram._

_Não deve porém considerar-se tam seria e limitada a periferia do
romance. O romance póde ser tambem a reproducção e apreciação dos
eventos e phenomenos sociaes subordinados a uma certa ordem chronologica
e a uma classificação methodica; mas, porque tem menos responsabilidade,
concedem-se-lhe mais fóros de liberdade e licença do que a esse grande e
solemne registo publico chamado historia._

_Pennejar-se conseguintemente um romance com todas as prescripções
historicas, é obrigação que a critica nem o bom senso exigem. O romance,
não querendo asphixiar os seus leitores em um ambiente de opio e
monotonia, apenas aproveita da historia o fundo e a base: as datas e os
factos cardinaes. Em quanto aos contornos e ás linhas e ás côres, aos
personagens ainda e ainda ao dialogo e á urdidura, usou sempre, seja
elle engenhado por Walter Scott ou seja devido á imaginativa de
Alexandre Dumas, de facil e plena liberdade. Mais ainda do que louçanias
e filigranas de estilo se reclamam, para repasto da curiosidade, os
meandros e caprichos da phantasia. Só por imposição de estranho
despotismo se deve sugeitar a contextura do romance historico a toda a
fidelidade ethnologica e a todo o rigor dos acontecimentos. A narrativa
e apreciação dos factos considerados verdadeiros--a historia--não podem
associar-se de nenhum modo aos partos da imaginação e aos caprichos da
phantasia--o romance._

_Comprehendendo-se portanto a differença que faz a historia,
propriamente sciencia natural, do romance, simplesmente exercicio
litterario, não se deve estranhar a maneira como pensei e escrevi. Sem o
auxilio da imaginação como se conseguiria entreter a curiosidade e
passar o tempo no decurso de algumas dusias de paginas com as
descripções dos obscuros successos dos dous seccos e aridos annos de
1553 e 1554?_

_É coisa natural que eu bastantemente abusasse das liberdades de
romancista. Por exemplo, do meu livro translusem o caracter e a
phisionomia de Simão Rodrigues com menos vantagens e virtudes do que as
que lhes foram munificamente abonadas pela tradição e pela escriptura.
Disse-se do celebre discipulo de Ignacio de Loyola que morreu (15 de
julho de 1579) com acrisolados sentimentos de religião. Nada o
assombrava nem esmorecia quando se tratava do serviço de Deus, sabendo
sempre em sua vida manifestar os mais austeros principios de abnegação e
dando em todos os seus actos os mais louvaveis exemplos de sabedoria._

_Egualmente a indole e os costumes de Dom João III não se descortinam em
painel que satisfaça as exigencias da critica e o rigor da verdade. Será
Dom João III o monarcha fanatico e frouxo retratado com as tintas
sombrias da palheta de Alexandre Herculano, ou antes o principe virtuoso
e prudentissimo que, segundo os annaes louvaminheiros de Frei Luiz de
Sousa, foi,_ sem a nenhum fasermos aggravo, um dos primeiros entre os
que louvamos de grandes e excellentes virtudes?

_Emfim referem os chronistas que o joven esposo da infanta de Castella,
essa princesa não pouco memorada pela energica protecção com que mais
tarde ensoberbecera o animo pusillanime de Christovam de Moura, falleceu
de enfraquecimento phisico dous meses depois do seu faustoso matrimonio.
Eu faço-o padecer no leito frio da morte os effeitos inclementes do
veneno!_

_Em quanto a ideias religiosas e a ideias politicas principalmente,
reconheço, como com magica eloquencia observa Emilio Castelar na vida de
Lord Byron, que tem este seculo incerto desde o seu começo vacillado
entre a rasão e a fé, entre o direito e a tradição, entre a liberdade e
o cesarismo; porém julgo-me no direito de não simpathisar com esse
esqueleto de corôa de ferro na cabeça e de guela a trovejar vinganças,
com esse systema obsoleto e feudal que felizmente passou ao mundo das
tradições depois de por tantos seculos haver sido o protogonista do
grandioso drama ou da grande tragedia da historia. Esse infeliz regimen,
o das praticas e theorias theocraticas do absolutismo, já não preoccupa
hoje em dia, apesar de ainda conservar alguns alentos de cadaver, o
espirito dos economistas e o genio dos philosophos. Hoje a escolha
decide-se pela monarchia constitucional ou pelo governo democratico.
Simplesmente o que resta averiguar em amigavel concordancia é qual dos
dous systemas offerece maior numero de vantagens sociaes e melhormente
contribue para a emancipação geral dos povos. Eu presumo que todas as
tendencias da mocidade preferem as doutrinas republicanas por serem as
mais desinteressadas e que todos os calculos da idade viril abraçam os
ouropeis da monarchia por serem de todos os systemas politicos o que
mais satisfaz a vaidade e as ambições dos homens. Haverá por isso quem
recrimine os meus devaneios democraticos e deteste as minhas expansões
liberaes? Deve comprehender-se que á consciencia repugnam todas as peias
e que as conquistas do progresso não obrigam o espirito do homem á
filiação ou observancia de uma unica fórma ou theoria de governo._

_Ainda tambem relativamente a formulas e sentimentos religiosos duas
ideias se devem estremar: a ideia de Deus e a dos seus representantes na
terra. As obras e immunidades do gremio catholico não saberei
respeital-as com aquelle mistico fervor e aquellas espirituaes
dedicações que me possam grangear nome e gloria nas lendas hagiolicas;
mas a ideia de Deus, sinthese de todo o bem e espelho de todas as
perfeições, venero-a sem vislumbres de duvida e com o vigor mais intimo
das minhas crenças._

_Não crer na bondade dos padres não é descrer das bondades divinas. Nos
tempos em que mais se invocava o simbolo da cruz e mais se pelejou pela
fé catholica, a christandade que de exemplos nos ministrou de acções e
virtudes menos orthodoxas! Conta H. Taine que Ricardo, o coração de
leão, quiz um dia sob os muros de San João de Acre comer a toda a força
carne de porco. Não havia carne de porco por mais que se procurasse.
Lembra-se o cosinheiro de matar um sarraceno gordo e tenro; salga-o e
cose-o seguidamente. O rei come-o e encontra-o delicioso. Quiz depois
ver a cabeça do seu porco e o cosinheiro lh'a conduz possuido de grandes
tremuras. O rei põe-se a rir e diz que o seu exercito não póde recear a
fome porque tem á mão fartura de provisões._

_Então, quando os devotos e defensores da cruz fasiam a guerra aos
sarracenos, ouvia-se sempre a voz dos anjos dos ceus que dizia:_ Matae,
matae! Não poupeis ninguem; cortae a todos a cabeça! _Esta voz dos anjos
era ouvida pelos christãos e por isso tomando-se qualquer villa ou
cidade tudo se passava a fio de espada, crianças ou mulheres. Na tomada
de Jerusalem setenta mil pessoas, o que prefasia toda a população, foram
exterminadas cruelmente[1]!_

_Bem mais delongadas observações em abono de creditos litterarios e
sobretudo por descargo de consciencia se tornavam talvez indispensaveis;
mas eu encorporo-me no avultado numero dos que reconhecem a inutilidade
e o desprestigio dos prologos. Não ha juisos nem avisos que salvem das
voragens do esquecimento um ruim livro. Se o livro é mal escrito e
delineado, todos os cordiaes e remedios são falliveis e impotentes da
mesma sorte que, se o livro é de materia agradavel e perfeita, dispensa
facilmente a importancia ou a formalidade dos prologos._

    [1] _H. Taine. Hist. de la litt. anglaise, t. I._




O CHRISTÃO NOVO




I

CIUMES DE UM REI


Por uma das mais somnolentas e placidas noites dos fins de outubro de
1553, no desvão de esguia janella do palacio dos nossos reis estava
casual ou intencionalmente encoberto pelas dobras de soberba cortina de
rendas de Flandres um personagem vestido com gibão de veludo preto.

Usava elle de curta cabelladura côr de castanha e não inculcava mais de
cincoenta annos de idade[2]. Em volta do pescoço alvejava-lhe uma das
amplas gorgueiras encanudadas que, na frase picaresca de um novellista
espanhol, davam á cabeça o irrisorio aspecto de um melão collocado em
cima de um prato de porcelana branca. Pronunciava-se-lhe bem um nariz em
demasia grosso, era baixo da corporatura como qualquer burguez e parecia
reforçado dos musculos como um legitimo descendente de Hercules.

Para melhormente sobresairem as tintas: «em mean estatura grande
proporção de membros; olhos entre verdes e asues; boca vermelha; rosto
alvo e de boa côr. Notava-se-lhe o pescoço um pouco curto e a cintura
grossa, mas não que chegasse a desar[3].»

Dominava-o finalmente a prurigem da impaciencia ou da curiosidade.
Translusiam-lhe no rosto arredondado a feição sombria do seu caracter e
no sorriso confrangido a indecisa severidade do seu genio. Algum
acontecimento inesperado lhe impressionara sobremaneira o espirito e
certamente era essa uma das mais criticas situações a que submettera
a sua delicada sensibilidade.

Nada com effeito de mais critica e extraordinaria situação.

Aquella esguia janella gothica pertencia ao quarto de dormir de uma
poderosa mulher e no centro do quarto via-se um dos mais nobres e
esbeltos personagens do segundo quartel do seculo XVI dado a indiscreta
conversação com essa mulher em quem todos «descobriam raras e heroicas
virtudes, grande zelo e piedade christan, grande brandura e affabilidade
em obras e palavras para com grandes e pequenos.[4]»

--Que nunca eu mereça o vosso desdem, exprimia-se elle com accento de
ternura e de respeito. Confio nos sentimentos do vosso coração e da
vossa nobresa, senhora. A não depositar nas vossas mãos a redoma das
minhas esperanças, teria levado o meu corpo á defensão da praça de
Arzilla ou das heroicas muralhas de Dio...

--Socegae, Dom Prior. Nada de perder o animo. Bem sabeis que de pouco
serve o meu valimento; mas ainda assim me decidirei quanto possa em
vosso auxilio.

--É tudo o que vos supplico, porque sei que nada vos recusa el-rei...

--Em pouco mais pensa el-rei do que no zelo da religião e no culto de
Deus. As nossas praças de Africa vão sendo abandonadas pelas lanças dos
portugueses e fracos são os reforços de soldados e munições com que se
acode aos ricos dominios das Indias. Escuta lá el-rei os meus conselhos!

--A quem ha de ouvir senão a vós, senhora?

--Attende em mais e em tudo o reverendo Simão Rodrigues e esse terrivel
prelado João Soares. Elle não conhece outro amor que não seja a puresa
da fé e não respeita outros homens que não sejam os jesuitas... Amor do
povo e da patria como o nutriam em seus heroicos seios seu pai e avô Dom
Manoel e Dom João! Jámais esses bons monarchas offenderam a religião de
Christo e sempre todavia se cumularam de gloria sem tribuanes de
inquisição e sem ordens de jesuitas...

--Não vos tacharei de injusta por não faltar-vos ao respeito, senhora
minha. Certo é que Dom João presta ouvidos a Simão Rodrigues, criou o
venerando collegio de Coimbra, estabeleceu em nossos reinos a mesa do
Santo Officio e toda a sua alma se affervora no zelo da religião
catholica; mas todas essas virtudes são effeito de piedade e não de
falta de civica devoção. Ama tanto a fortuna dos filhos de Loyola e dos
discipulos de Torquemada como o bem dos seus vassallos...

--Não que o não fadaram os céus com a vossa indole, Dom Luiz. Por estas
lagrimas o digo, accrescentou levando o lenço aos olhos. Que differença
tam grande entre irmão e irmão! A vós não vos fallece galantaria nem
juiso. Sois valente e generoso a um tempo. Todos vos apontam como enlevo
das damas, captivaes as affeições do povo e mereceis a estimação dos
mais esforçados cavalleiros da côrte...

--Não me lisongeeis assim, que podem escutar-vos e de mim curtirem
ciumes.

--Ninguem me culpará perante Deus nem perante os homens. Sabe de sobejo
meu esposo quaes são os meus sentimentos a seu respeito. Amor com amor
se paga e por isso não deve tomar a mal que lhe eu pague com
indifferença as suas frias indifferenças.

--Julgo que nada padecereis, senhora. Mas fallo por mim...

Ainda não eram concluidas taes palavras quando de repente a cortina se
desvenda e o personagem que se conservara achegado ao peitoril da
janella se adianta com passo grave.

Parecia, embora a frase tenha laivos de sediça, a estatua severa do
Commendador. Era agora, ao contrario das côres naturaes, pallido e
altivo do rosto. Dos grossos labios desferia um sorriso de neve. Dos
seus olhos entre verdes e asues dardejava um lampejo de indignação que
devera ferir como o raio.

Talvez se esperasse a tremenda explosão de colera por muitos dias
sopitada. Entretanto o grave personagem declarou com serenidade:

--Nada receeis, meu nobre irmão...

Dom Luiz quedou em silencio. Ou a voz se lhe prendeu nas fauces ou o
respeito o fez calar. Com porte severo e imponente apresentava-se-lhe de
subito o muito alto e poderoso rei de Portugal e dos Algarves, sua
altesa serenissima o senhor Dom João III.

Era para Dom Luiz das mais solemnes e apertadas semelhante situação.
Antes mil veses se quisera em luta encarniçada com os mouros de Asamor
ou com as hordas do samorim de Calicut. Dom Luiz de Beja, Prior do
Crato, digno infante de Portugal e esforçado filho de Dom Manuel foi
havido sempre no consenso publico por cavalleiro valeroso e destemido.
Em provas de coragem não no excederam os Pachecos nem os Albuquerques e
ninguem com mais galhardia soube ainda no officio das armas brandir uma
lança ou empunhar uma espada. D'elle recontam chronistas e historiadores
que principe nenhum soube dar-se ao respeito melhormente ou faser em sua
vida com que o amassem tanto. «O amor que os portugueses lhe tinham
passava a idolatria. Adornavam-no todas as partes que podem fazer-se
credoras da estima dos homens. Era nobre e generoso, compassivo e
valente, affavel e tam ousado que passava a destemido.

«A estas gentis condições andavam annexas muita mansidão na sociedade e
rara prudencia nos negocios. Era guapo e bem feito; sensivel, terno e
deveras affeiçoado ao trato das senhoras.

«A fama das suas boas partes moraes e phisionomicas voára até os paizes
estrangeiros. No serralho do xerife de Marrocos grangeara grande estima
e uma das suas filhas morria de amores por elle. Todas as veses que a
nobre donzella encontrava Dom Diogo das Torres, captivo a quem se
facultava entrada livre no palacio por ser protegido de Muley Abel
Mumen, irmão do xerife, nunca se fartava de fallar-lhe no infante. Um
dia que passeava nos jardins do palacio viu Dom Diogo e chamou-o para
lhe diser: «Colhei de aqui algumas flores e tecei com ellas uma corôa
semelhante ás que trasem os principes christãos». Obedeceu Dom Diogo das
Torres e cuidou de offerecer-lh'a. Tomando-a então e pondo a corôa na
cabeça encantadora, ella lhe disse: «Permittam os ceus que eu algum dia
viva unida com o infante Dom Luiz como suaesposa e que, sendo elle o
rei, eu seja a rainha de Portugal![5]»

Mas agora a conjunctura não demandava feitos de valor nem proesas de
galanteria. Atrevera-se Dom Luiz entrar a sós em aposentos que apenas
não eram vedados á pessoa do monarcha portuguez: a alcova nupcial de
Catharina de Austria, essa virtuosa irman do Cesar das Espanhas, o
victorioso imperador Carlos V!

Mal decorreram alguns instantes quando se voltou el-rei para sua esposa
a diser-lhe pausadamente e com um sorriso glacial:

--Deveis desculpar-me, senhora, o vir interromper-vos nos vossos
galanteios. Por Deus que vos dou uma lição que vos deve servir para de
outra vez terdes em mais recato o pudor e a honra de uma rainha; mas
sempre se desculpam os maus humores de um esposo e por isso espero de
vós que não tomeis a mal a minha presença.

Ás veias da orgulhosa princesa de Castella refluiu todo o sangue celta
da raça de seu pae Filippe I, aprumou o seu bello pescoço de garça
como se nada houvesse que temer, fitou firmemente com um olhar de aguia
o semblante pallido de Dom João III e de prompto impugnou com a austera
dignidade de uma rainha:

--Jamais tive galanteios que não fossem para vós, senhor meu esposo!

Sorriu o monarcha d'esta vez com aquelle sorriso contrafeito que lhe era
peculiar e por ventura se dispunha a retorquir em termos de menos
restricta etiqueta quando o infante se lhe dirige assim:

--Assaz vos hei provado, meu irmão e senhor, a força da minha lealdade e
o quilate da minha honradez. Sabei que junto da camara de vossa altesa
não me trouxeram galanteios. Antes retalhara o coração com o gume da
minha espada do que faltar algum dia á fidelidade e ás homenagens que a
vós e a ella vos devo. Missão de outra naturesa me guiou á presença da
esposa de vossa altesa serenissima. Vim pedir-lhe, senhor, que vos
amolgue o genio á compaixão e vos decida a resgatar a honra de Dona
Violante Gomes...

A este suave nome de Violante Gomes pareceu sobresaltar-se o animo de
el-rei. Os olhos, que até ahi os conservara como pregados na alcatifa
multicor do aposento, erguera-os ao nivel do olhar do irmão e pareciam
em semelhante conjuncção animados de uma estranha vivacidade.
Mostrava-se agora mais varonil a phisionomia e mais aprumada a estatura
do fanatico Dom João III.

--Insensato que sois, meu irmão! Violante Gomes talvez algum dia venha a
ser vossa esposa; mas juro-vos... juro-vos que, em quanto eu viva, nunca
Dom João consentirá que uma barregan se associe á familia dos monarchas
de Portugal!

Inesperadamente assomou um vislumbre de colera ás faces amarellecidas do
infante. Pouco lhe quedaria para se esquecer da obediencia que jurara a
el-rei, quando Catharina de Austria adianta dous passos e se colloca de
permeio como decidida a conjurar a tempestade.

--É de justiça, aventurou-se a interceder, o que vos implora o infante
Dom Luiz. Fará o vosso rigor com que mais se deva tomar-vos por
tiranno que por monarcha. Elle falla em nome da humanidade e da honra,
duas virtudes que o vosso espirito não poderá desconhecer nem póde
repulsar. Por isso não vos merece a resposta do orgulho e do fanatismo...

--Diseis bem, applaudiu Dom João com modos brandos e com uma indefinivel
expressão que só elle e Machiavelo sabiam fingir. Diseis bem; mas esses
negocios ficam para mais tarde. Veremos se elles interessam ao esplendor
da religião e ao bem do estado.

Estendendo depois o braço para a porta do aposento, pareceu indicar a
Dom Luiz que era chegado o desfecho da entrevista.

Dom Luiz de Beja, baixando a cabeça e não arredando os olhos do chão,
dirigiu-se machinalmente para a porta e se retirou em completo silencio.

    [2] Nasceu a 2 de janeiro de 1502.

    [3] Frei Luiz de Sousa. _Annaes_, liv. I, cap. IV.

    [4] Frei Luiz de Sousa. _Annaes_, liv. III, cap. 11.

    [5] La Clede. _Hist. ger. de Portug._




II

OS REIS NÃO COSTUMAM PERDOAR AS OFFENSAS RECEBIDAS


Atravessara Dom Luiz a comprida sala chamada ordinariamente dos
_tudescos_ e se dispunha a descer a marmorea escadaria dos reaes paços
da Ribeira quando se lhe aproxima um dos pagens de Catharina de Austria
e, em tom de quem dá conselhos, ousa segredar-lhe assim:

--Tomae cuidado. Os reis não costumam perdoar as offensas que recebem.

Ao misterioso aviso quasi que Dom Luiz não prestara ouvidos.
Embuçando-se cautelosamente na sua fina capa de panno verde e carregando
sobre os olhos o seu amplo chapeu de feltro enfeitado com bella
pluma branca, atravessou a larga escadaria e em dous momentos se
apresenta no meio do espaçoso terreiro.

O Tejo, esse rio de arêas de ouro tam decantado pelos poetas, dormia
placidamente. Soaram onze horas e o ceu mostrava-se empanado de sombrias
nuvens. Raras pessoas transitavam pelas ruas da opulenta capital. Apenas
de longe a longe o bronze dos campanarios vinha alterar a prolongada
monotonia da noite.

O infante, olhando a custo para as aguas ensombradas do Tejo, parecia
meditar. Depois abandonou o terreiro e a passo lento seguiu pela rua da
Palha a direcção da praça do Rocio.

Absorvido em estranhos pensamentos ia elle no seu caminho quando lhe
surdem inesperadamente de cara tres vultos agigantados.

Em seguida sentiu no peito a lamina de dous punhaes e certamente o seu
corpo ficaria sem forças e sem vida se os punhaes não resvalassem no aço
finissimo de uma cota de malhas.

--Covardes! gritou Dom Luiz ao mesmo tempo que desembainhava a
espada e que se poz em guarda.

Immediatamente se crusaram tres espadas contra uma.

Era em extremo fino e destro no jogo das armas brancas Dom Luiz de Beja.
Mas os seus adversarios mostravam-se lestos e ageis tambem. Além d'isso
ajuntavam-se tres contra um. Não podia ser mais melindrosa a posição do
infante.

Por fortuna, quando já o suor lhe escorria pelas barbas e principiava de
debilitar-se-lhe o pulso, eis que um novo personagem se intromette na
peleja.

Depressa cáe por terra o mais alentado dos aggressores e os dous
restantes, naturalmente com receio da morte, poseram-se em immediata e
vergonhosa retirada.

--Obrigado, meu amigo, agradece o infante no momento em que aperta com
fraternal reconhecimento a destra do seu salvador.

Era elle o mesmo pagem que nos paços da Ribeira lhe segredara
misteriosamente: _Cautela, que os reis não perdoam as offensas que
recebem!_

Por causa das sombras da noite não se lhe distinguiam as feições:
poder-se-hia divisar apenas que era fransino do corpo e que lhe relusiam
os olhos como a chamma de um lampadario.

Sorriu-se ouvindo os agradecimentos e, talvez com traça de se esquivar a
novos protestos de gratidão, pretendeu retirar-se. O infante porém
agarrou-lhe meigamente o braço e pediu-lhe que o acompanhasse.

Pouco adiante, a confinar com o adro de San Domingos, elevava-se em um
angulo meridional do Rocio uma elegante e vistosa casaria.

O infante bateu de rijo com os copos da espada tres pancadas no portal e
a porta franqueou-se-lhe minutos depois.

Ambos subiram os degraus de uma escadaria resguardada de tapetes e
depressa alcançaram assim o primeiro andar da casa.

Introduziu-os um domestico em uma sala de paredes vistosamente forradas
de ricos pannos de Arras e toda mobilada com largas cadeiras cobertas de
seda escarlate.

D'esta sala passaram a um gabinete de exiguas dimensões onde a seda,
o brocado, as rendas e os cristaes de Venesa offereciam ás vistas um
aspecto encantador.

Mais adiante abriu-se-lhes um salão da mais requintada opulencia. Tudo
ahi reçumava riquesa e bom gosto. Julgar-se-hia logo a perfumada
recamara de uma princesa.

Os reposteiros foram talhados de uma preciosa fasenda da Persia que Dom
Affonso de Noronha mandara recentemente nos galeões das Indias. Não eram
as tapeçarias que cobriam o soalho de menos valor e variedade. Por toda
a parte macios coxins estofados de seda asul e franjados de ouro. Alguns
quadros que representavam as viagens de Dom Henrique e as descobertas de
Vasco da Gama, pendiam das largas paredes. Varias figuras da melhor
porcelana da China se viam aos recantos do salão sobre dous elegantes
bufetes com esmero trabalhados de madeira de ebano. Mil outros objectos
de porcelana, prata e marfim decoravam finalmente com luxo oriental
aquella mansão de fadas.

Mal o pagem se dispunha a observar os ricos estofos e as admiraveis
pinturas, eis que apparece no salão uma das mais prendadas e gentis
damas do reinado de Dom João III.

Trajava um vestido de lhama asul guarnecido com alamares de passamanes
de prata e ouro, decotado a modo de revelar todo o seu alvo pescoço e
tam curto das mangas que se lhe viam quasi todas as rosadas carnes do
seu braço.

Poucos pintores estudaram ainda tam bello perfil e mais alegre figura.

Eram, como dous astros de amor, cheios de ternura e limpidez os seus
olhos castanhos. Não havia mãos de mais fina epiderme nem dedos de mais
esmerada estructura. O contorno do nariz não cedia em perfeições aos das
estatuas gregas que representam a deusa das graças e dos amores. Os
labios, feitos das petalas de uma rosa, possuia-os tam frescos e
delicados que pareciam de uma criança.

Quanto não valiam os seus sorrisos e que thesouros de ternura não
encerravam as suas fallas!

Era alta do corpo e franzina da cintura, como devem ser, á semelhança
das primorosas estatuas de Praxitelles e de Phidias, esse ideal das
artes plasticas, os contornos e proporções das rainhas da bellesa. Mais
nutrida que magra assim nos braços como no rosto e, para mais se
accenderem cubiças, da arca do peito avolumava-se-lhe o contorno dos
lacteos pomos de que Tasso e Camões nos fizeram a descripção.

Passava já dos trinta e seis annos de edade e comtudo ninguem lhe
calcularia acima de vinte e cinco primaveras: primaveras superabundantes
de rosas e frescura, porque uma eterna juventude é algumas veses
privilegio das mulheres formosas!

Imprimiu-lhe o infante um doce beijo na mão esquerda e, apontando para o
pagem, lhe disse risonhamente:

--Apresento-vos, minha querida Violante, um bom amigo que ainda ha pouco
me salvou os dias da vida.

O pagem conservou-se em mudez. Possuido de uma agradavel commoção,
ajoelhou aos pés da formosa dama e não pôde elle evitar que dos seus
olhos negros se escoasse uma lagrima de praser.

Violante Gomes estreitara-o nos braços de fada e com palavras
divinamente repassadas de doçura lhe rumorejou:

--Deus vos recompense o bem que fiseste.

Dispôz-se então a contar-lhe o infante o que se passara.

A narração foi simples e curta. Poupou todas as côres da fantasia e do
romantismo. Não se lhe ouviu sequer uma accusação contra os sicarios nem
contra a pessoa que lhes commettera a empresa.

O pagem depois tomou a palavra n'estes rapidos termos:

--Dom Luiz é denodado em demasia. Se lhe presaes a vida, minha senhora,
deveis aconselhar-lhe que não a exponha tanto. Inimigos poderosos lhe
sobejam...

--Talvez que só Deus o possa defender! exclamou Dona Violante.

--Deus, acrescenta o Prior do Crato, Deus e a minha espada e os meus
amigos tambem. Que ha traidores no mundo sei-o eu; mas que se guardem,
que se guardem bem os traidores!

--Guardam, guardam... Não vêdes como apenas mostram elles o braço e o
punhal?

A esta allusão da formosa dama logo vaticinou o pagem:

--Decerto não falta um vilão que a troco de alguns ducados assassine o
principe Dom Luiz!

--Mas que empenho haverá n'isso? Dizei-o, que vôl-o supplica Dom Luiz de
Beja!

--Quereis que vôl-o diga em voz clara? Alguma coisa devera aprender no
meu officio de cortesão e eu vos direi agora o que sei: vosso irmão o
senhor Dom João III não vos estima... antes vos odeia!

--Ousaes assim calumniar el-rei! com animo exaltado replicou o infante.
Bofé que, se vos não devesse a minha vida, diria agora que... ensandeceste.

--Rogo-vos moderação, acudiu a dama. Falla o que sente e o que sabe este
generoso mancebo. Oxalá sejam imaginarios os seus receios; mas não sei
que triste presentimento me leva a crêr que algum infortunio nos ameaça...

Sorriu-se o pagem com essa expressão de interna melancolia que não
se descreve nunca. Em seguida volveu-se para o infante.

--Perdão... mil veses perdão se vos offendi! lhe disse.

Abraçou-o o infante com o espirito sinceramente commovido. Descobrira no
pagem um tal caracter de franquesa e um certo cunho de verdade que desde
logo se lhe afigurou ninguem ser digno de maior estima.

Á primeira vista mostrava-se repugnante a phisionomia do pagem.
Predominava n'elle o sangue das raças selvagens do Oriente. Era negra
como aseviche a pupilla dos seus grandes olhos e essa pupilla parecia
tarjada de um leve circulo de sangue. O nariz era chato alguma coisa e
alguma coisa largo das asas; a côr da pelle bastante acobreada e os
beiços grossos sem desar. De idade não contava mais de vinte e dous
annos, mas na agilidade dos musculos e na vivesa do espirito poucos ou
nenhuns cavalleiros o excediam.

Nascera no paiz dos badages e ali fôra, em companhia de seus velhos
paes, convertido ao christianismo pela palavra e pelo exemplo de
Antonio Criminal. Quando os badages degolaram este malaventurado jesuita
foi tamanho o horror que a pobre criança concebeu pelo seu idolo
Trichandur que nunca mais quiz lembrar-se do seu paiz natalicio. O
vice-rei Jorge Cabral conhecera-o em Gôa, criara-lhe amisade pelas boas
prendas que em todo elle descobrira e embarcou-o para Lisboa no seu
regresso em 1550.

O pagem, embebido nos perfumes de um ambiente de delicias, agora não se
fartava de contemplar a peregrina formosura de Dona Violante. Nunca nos
salões da côrte lhe fascinaram os olhos princesa de fórmas tam
correctas, de maneiras tam delicadas e conversação mais suave. O terno e
melodioso accento com que fallava insinuava-se meigamente nos corações
como se fossem harmonias do ceu. Superabundavam-lhe bellesas assim no
corpo como na alma. Talvez porque o acaso lhe denegara a nobresa do
nascimento, concedera-lhe Deus todas as mil prendas que no mundo servem
de apanagio e de cortejo á graça e á formosura.

Dona Violante fez-lhes servir aos seus dous hospedes, em ricas
bandejas de prata, alguns doces e licores. Depois, a rogo do infante,
passou com agilidade os seus pequeninos dedos pelas cordas de uma harpa
e com ternissimas inflexões começou de cantar o bello soneto em que Luiz
de Camões define o amor:

    Amor é um fogo que arde sem se vêr;
    É ferida que doe e não se sente;
    É um contentamento descontente;
    É dôr que desatina sem doer.

Logo que terminou levanta-se o gentil prior com todo o carinho a
apertar-lhe os braços em volta da cintura e com labios de fogo
imprimiu-lhe nas rosas do collo um osculo fremente.

--São estas as unicas venturas da minha alma! revelou elle ao pagem. Não
vês como ella é formosa? Algum dia te contarei como nasceram estes
amores...




III

RECOMPENSA DO CRIME


Acabara de badalejar a meia noite no campanario da cathedral quando
na portaria arqueada do memorando collegio de Santo Antão parou um homem
de gigantea corporatura.

Vinha embuçado em um capote de fartos cabeções e equilibrava na cabeça
um desses negros chapeus com amplas abas e copa sumida em fórma de funil.

Depois de relancear prescrutadoras e desconfiadas vistas, entrou
sorrateiramente no alpendre do edificio e dirigiu-se por uma das
portas lateraes para um modesto gabinete situado ao rez do chão.

Aguardava-o ali com impaciencia um magro personagem de vestes
sacerdotaes e de phisionomia carcomida pela sarna dos annos.

--Então que boas novas me trazes tu? perguntou elle sentado em pobre
tamborete de carvalho e desviando os olhos de um livro escrito na lingua
latina.

--Não me parecem tão alegres como desejava, regougou o recemchegado.

--Bem mau é isso. Mas conta depressa o que aconteceu, meu Jacobo.

--Pois saiba... saiba vossa senhoria illustrissima que tudo se frustrou
por artes do diabo.

--Jacobo, fallas a serio porventura? com preoccupação interrogou o padre.

--Com verdadeira magoa o digo; mas é verdade.

--O que tambem é verdade é que sois todos uns covardes...

--Tudo menos isso, meu senhor. Era elle que vestia a pelle do diabo! A
não ser assim, eu por Deus que soubera responder pelo ferro do meu
punhal!

--Sempre usaes do mesmo ripanso. Todos vos credes uns fanfarrões e uns
Hercules; mas porfim de contas, se é mister que se mostre valentia ou
governe com prudencia, sois deveras mais pecos e villãos do que um asno.

--Deve saber vossa senhoria illustrissima que a culpa não foi nossa.
Juro que não foi. Esperamol-o a sangue frio e logo, peito a peito como
varões honrados, procuramos mandal-o de presente ás megeras do Averno
quando os punhaes, em vez de toparem carne de christão, encontram o aço
de uma saia de malha... Mas, ainda assim, tudo se remediava á maravilha:
como os punhaes eram curtos, puchamos das durindanas em guisa de
valentes campeões e em poucos minutos dariamos com meia duzia de
cutiladas remate á nossa obra se de improviso se não intromette o
demonio em favor d'elle. Um dos nossos cae por terra e os outros... os
outros...

--Escusas de confessar que fugiram... provavelmente com temor de lhes
acaecer a mesma sorte.

--Não foi o temor, meu padre. Tem vossa senhoria em mim um rude servo
que nunca do sitio do perigo arredou pé com medo nem covardia!

--Conheço-te bem, meu Jacobo. Faço justiça á tua valentia e espero que
me toleres algum arrebatamento. O pobre velho não sabe o que diz, não
sabe o que diz muitas veses... Mas dize-me ainda: que fiseste do
companheiro que morreu?

--Á falta de outras virtudes, nunca me arrependi de ser prudente. A
estas horas, meu padre, está elle a servir de repasto aos peixes do Tejo.

--És assisado, és assisado na verdade. Toma em paga dos teus serviços e
retira-te por hoje.

Atirou-lhe o padre com um punhado de moedas de ouro e o gigante,
mirando-as com olhos de cubiça, lançou com prestesa mão d'esse precioso
metal que na frase de Tolentino é o _tiranno do mundo_.

--Sempre a vossa senhoria conheci generosidade, retorquiu elle correndo
a mão esquerda pela desgrenhada cabelladura. Mas d'esta vez, meu
padre, bem sabe que tenho de repartir... Cincoenta escudos[6]
é pouco.

--Nem um morabitino merecias ganhar, meu velhaco.

Jacobo afastou-se sem novas replicas e a meia voz foi tratando de
combinar a melhor maneira de embair a boa fé do seu companheiro.

--Sempre lhe direi que não recebi mais de trinta escudos, rosnou elle
pelo caminho.

Em seguida poz-se a cantarolar aquella sabida canção[7]:

    Como no se desespera
    quien se vê como me veo
    tan lexos de dó desseo,
    tan cerca dó no quisiera?

Entretanto o ecclesiastico de Santo Antão esfregava as engelhadas mãos
como prova de quem se não julga de todo descontente.

--Do mal o menos, murmurou levantando-se do tamborete. Escapou-nos
por hoje, mas nada se descobriu... E que tudo se divulgasse e
descobrisse? És muito anão, Dom Luiz de Beja, para ergueres o braço
contra a pessoa que te mandou assassinar!

O ecclesiastico fechou o livro e deixou-se cair novamente no meio da
sola do tamborete.

--Meu Deus, meu Deus! exclama então com gesto de arrependimento. As tuas
doutrinas só respiram humildade e amor; queres que amemos o nosso
proximo como nos amamos a nós mesmos; aconselhas o perdão das offensas e
o abandono das riquesas do mundo... Mas como renegamos a tua lei e os
teus conselhos, Deus meu! Entra uma vez nos seios do homem o veneno das
ambições terrestres e esquecem-se bem depressa os deveres da virtude e a
salvação das nossas almas. Tudo se esquece e... lá vamos nós, vermes
orgulhosos, pelo menos subvertendo nas voragens do crime a
tranquillidade do espirito e a saude do corpo!

Abrio mansamente o livro, entregou-se por alguns momentos á leitura
d'aquelle salutar capitulo que traz por epigraphe _De consideratione
humanæ miseriæ_ e que principia por estas palavras de humildade:
_Miser es, ubicunque fueris et quocumque te verteris, nisi ad Deum te
convertas._

Seguidamente prostou-se o padre de joelhos e com modos de extrema
beatitude fixou os olhos nas taboas do pavimento.

--Eu sei, declamou ainda, que só trabalho para o progresso da religião
catholica e em beneficio da santa madre igreja. Mas o meu coração está
cheio de magoa, meu Deus. São grandes os meus erros, são enormes os meus
peccados!

Decorreram dous minutos de tranquilla meditação e tudo ali, como se
fosse o recinto de um cemiterio, permanecia completamente calado. Nem o
cicio dos insectos nem as oscillações da pendula dos relogios
interrompiam o silencio sepulchral do gabinete.

--Deus de misericordia! por fim proferio o padre batendo por duas veses
com os punhos na arca do peito. Meu Jesus de misericordia, guiae-me como
bom christão pelo caminho da virtude e fasei com que me não desampare
nunca a vossa infinita graça. Eis aqui um grande peccador que,
fingindo observar todas as virtudes da religião, encoberta as chagas dos
maiores vicios! Eil-o aqui, humildemente offerecendo a cabeça ao gladio
da vossa punição!... Mas tende vós piedade de mim; tende piedade de mim,
senhor!

Seguidamente lançou mão de um latego de rijos loros e dispôz-se, a
exemplo dos mirificos varões de que nos fallam os livros de theologia, a
flagellar rudemente as espaduas, os peitos e os rins.

Não desprendia da garganta um unico murmurio de dôr e todavia cada vez
com mais força se redobravam os açoutes.

Sempre sereno do rosto e humilde da postura como as figuras de alguns
macillentos retabulos da escola flamenga, disciplinava-se cruelmente á
maneira do mais exemplar e do mais devoto dos filhos do christianismo.
Se deixava de orar é porque as correas lhe açoutavam as carnes do corpo
e, se parava com o castigo do latego, é porque em misticas leituras
pregava os olhos nas paginas do livro.

Esse livro abrangia mediana fórma e fôra publicado em 1492. Todo cheio
de doutrinas religiosas, rescendia das suas bellas paginas os santos
olores das folhas do evangelho. Era verdadeiro balsamo para o espirito
de um christão e ainda hoje tanto consola o christão como o philosopho.
«Admiravel apesar da negligencia do estilo, commove muito mais do que as
argutas reflexões de Seneca e as frias consolações de Boeccio. Foi
traduzido em todas as linguas e lê-se em toda a parte com infinito
gosto. Conta-se até que um poderoso bey de Marrocos o guardava na sua
bibliotheca e de quando em quando o lia com inexcedivel prazer[8].»
Leitura sempre cheia de uncção e piedade, mereceo do sabio
Fontenelle o conceito de «o mais bello livro sahido das mãos dos
homens». Modestamente se intitula _De imitatione Christi_.

O padre todos os dias e todas as noites o folheava com beatifica e
inalteravel devoção. Todos os dias passava algumas horas lendo-o umas
veses silenciosamente e outras em voz alta.

Que mistico e santo apostolo não devia de ser este padre! Quem posesse o
ouvido ao ralo da porta da sua pobre cella, ouvil-o-hia pedir com
profundo arrependimento aos ceus misericordia para os seus peccados e
salvação para a sua alma. Para castigo dos affectos humanos, não se
poupava jejuns nem penitencias. Na boca dos irmãos da sua ordem jámais
no orbe catholico brilhara jesuita de maiores virtudes. Quando em
reverente postura de resa e devoção se collocava defronte do seu
crucifixo, logo se poderia tomar por qualquer anachoreta da Nitria.
Ninguem á primeira vista o julgara desmerecedor de participar dos mais
subidos panegyricos das lendas hagiolicas.

Chegou de Roma em Companhia de Francisco Xavier no anno de 1540. Elle e
Francisco Xavier foram do numero dos jesuitas que o embaixador Pedro
Mascarenhas solicitara de Paulo III para se dedicarem no imperio das
Indias á conversão dos idolatras e ao esplendor da fé catholica. O
piedoso navarro decidio-se com Misser Paulo e Francisco de Mansilhas a
ir, por suas doutrinas e virtudes, ganhar entre o gentio o glorioso
titulo de _Apostolo das Indias_; mas o seu companheiro preferio que
el-rei Dom João o galardoasse com a menos obscura e penosa commissão de
director do collegio de Coimbra.

Era Simão Rodrigues,--o ladino padre mestre provincial que na sua
qualidade de poderoso valido de el-rei julgava prestar mais acrisolados
serviços á causa de Deus e ás venturas da patria. É certo que ao
benemerito Francisco Xavier deveram as Indias uma das mais heroicas e
soberbas paginas da sua epopêa. Eis o que a tal respeito apregoam as
trombetas da fama[9]:

«Uma noite, referem as chronicas, os soldados do rei de Achem entraram
na praça de Malaca, deram sobre as embarcações ancoradas no porto,
queimaram parte d'ellas e ao romper da madrugada retiraram-se em triunfo
como se tivessem alcançado uma grande victoria. Encontrando um barco de
sete pescadores malaquinos, cortaram-lhes as orelhas e o nariz e com o
seu sangue escreveram uma carta prenhe de injurias ao governador
Simão de Mello. Accendeu em colera tam cruel insulto os habitantes de
Malaca e Francisco Xavier, movido de compaixão á vista dos pescadores
mutilados de modo tam barbaro, foi o primeiro a diser que logo convinha
vingar a injuria feita á nação portuguesa.

«--Não se deve, accrescentava elle, supportar semelhante violencia.
Cumpre embarcar, acodir em seu alcance e tirar todo o desejo de vos
insultarem segunda vez. Ainda digo mais: que sois obrigados a isso se
não quereis perder o nome e a reputação.

«--Nós assim o entendemos, respondeu o governador, mas faltam-nos as
forças. As vossas embarcações estão podres e incapases de servir. Para
espalmar as que temos seria necessario mais tempo do que para fabricar
outras de novo. De mais d'isso os inimigos são muitos e os nossos
alliados não podem soccorrer-nos com tanta promptidão.

«--E não ha outras senão essas difficuldades para superar, senhor
governador? lhe replicou Francisco Xavier. Pois bem está: eu tomo a
cargo o diligenciar que se concertem as embarcações.

«Voltando-se depois para os officiaes e soldados, lhes disse em voz grave:

«--Deus está pela vossa parte, amigos e irmãos, cavalleiros e soldados
de Jesus Christo. Em seu nome vos advirto que arredeis do espirito
qualquer temor e medo. Elle vos chama a uma guerra santa. Ou fiqueis
vencedores ou vencidos, a palma sempre será vossa!

«Marcha seguidamente para o porto, onde apenas achou sete fustas e um
catur á mingoa de tudo o que era necessario para se meterem ao mar. Além
disso os armazens reaes estavam completamente vasios. Não havia breu nem
resina nem estopa para calafetar as embarcações. Faltavam armas, polvora
e outras munições para poderem combater. Recorreu então a sete pessoas
abastadas e moveo-as a faser as despesas demandadas pela expedição.
Dentro em cinco dias poseram-se as fustas em estado de ir a corso.

«Eram os portugueses ao todo 140 homens e embarcar tambem com elles
desejava Francisco Xavier; mas não o consentiram o governador e os
habitantes de Malaca.

«O almirante portuguez encontrou no rio Parlés a frota achenina e então,
saltando a um esquife, com a espada em punho visita as suas embarcações
e proclama aos seus soldados:

«--Filhos de Jesus Christo, lembrai-vos das promessas de Francisco
Xavier. Das vossas mãos depende a victoria. Os acheninos não nos podem
fugir e agora colherão o castigo devido á sua barbaridade.

«--Todos pelejaremos, responderam os soldados, em defensa da lei de
Jesus Christo para se desaggravar a nossa patria e manter-se a nossa
gloria. Havemos de vencer. Descançae vós na nossa valentia e no despreso
que temos pela morte.»

«O almirante voltou para a sua embarcação e logo se avistou o inimigo
que, soltando estridentes gritos, fasia retinir todo o rio. Achava-se
disposto em dez linhas e cada linha constava de seis embarcações com
excepção da primeira, que era de quatro.

«Deram os inimigos uma descarga com toda a artilharia, mas sem
causarem damno algum aos portugueses. Seguidamente os almirantes
arremeçaram-se um sobre o outro e ambos disputaram largo tempo a
victoria até que a do almirante inimigo foi metida a pique. As outras
mais proximas, atravessando para salvarem a gente que nadava, voltaram
os flancos para as forças portuguesas. De maneira que essas mesmas
embarcações serviam de estorvar as que vinham atraz, porque as da
seguinte linha vinham de encontro ás da primeira, as da terceira contra
as da segunda e assim de tal modo que se dizia combatiam umas contra as
outras. Então os portugueses despediram tres descargas successivas que
meteram a pique nove embarcações grandes. Abordando depois ás
embarcações acheninas, saltaram dentro e degollaram dous mil soldados.
Vendo o resto dos acheninos a sorte dos companheiros, precipitaram-se no
rio em procura de salvamento; mas afogaram-se todos.

«Nunca se proclamou victoria mais completa nem que menos custasse!

«Lavrava todavia a consternação em Malaca. Não chegara ainda noticia
da frota desde que sahira do porto. Debalde Francisco Xavier se esmerava
em socegar os habitantes e podia tanto com elles o medo, que em pouco
tempo se persuadiram de ser perdida. Até alguns sarracenos tiveram a
ousadia de divulgar como noticia certa que os acheninos a desbarataram
completamente. A desconsolação por isso era geral na cidade e todos
tornavam a Francisco Xavier a culpa de se perder a frota. O piedoso
varão assegurava o contrario; mas ninguem se reconhecia no estado de
crer o que elle assegurava. Accusaram-no geralmente de ser a causa de se
perderem tantos homens valentes, zombando das preces que por elles fasia
a Deus e disendo irrisoriamente que só lhes serviam de suffragio para
suas almas.

«Por fim o virtuoso varão declarou ao povo com um profundo convencimento:

«--Deus é victorioso. Nossos soldados triunfam. Estou vendo os de Achem
banhados no proprio sangue. O nosso exercito em marcha triunfante deve
entrar sexta feira pelo porto de Malaca.

«Chega entretanto Manoel Godinho e confirma tudo quanto fôra annunciado.
Torna-se em viva alegria a entranhavel tristesa em que todos estavam. Os
ares retiniram com voses festivaes. Divisa-se o praser em todos os
rostos. Emfim entra o almirante na sexta feira pelo porto, bem cheio de
gloria e carregado com os despojos opimos da batalha!»

    [6] Moeda de ouro mandada cunhar por Dom Duarte e depois refundida
    por Dom Manoel. Valia 1$600 reis.

    [7] Obr. de Sá de Miranda.

    [8] _Nov. diction. hist._ par une société de gens-de-lettres, art.
    Kempis.

    [9] La Clede. _Hist. ger. de Port._




IV

O FESTIM DE BALTHASAR


Era Francisco Xavier um dos raros exemplos com que os jesuitas
poderiam alardear a santidade da sua universal associação; mas quem é
que em Lisboa se importava das virtudes do apostolo das Indias?

Por outras differentes rasões se recreava Lisboa com folganças e festejos.

Desde o alvorecer da madrugada salvava com festival estrondo a
artilharia do velho castello.

Por todos os angulos do Rocio e do Terreiro do Paço resoavam alegres
musicas de atabales e clarins.

Grande parte das ruas e casarias se decoraram vistosamente com
galhardetes multicores, bambolins de murta e festões de louro e rosas.

Estavam preparados com sedas e damascos os toldos e os enfeites dos
escaleres reaes.

No tope dos mastareus das galeras e bergantins do Tejo viam-se tremular
flammulas e estandartes de todas as nações.

É que a côrte portuguesa regalava-se com um dos mais esplendidos dias de
gala.

Ao bispo de Coimbra, Dom João Soares, bem como ao duque de Aveiro, Dom
João de Lencastre, fôra commettido o honroso cargo de irem buscar a
Castella a princesa Dona Joanna e n'esse dia chegava esta guapa noiva á
cidade de Lisboa com o mais soberbo acompanhamento de gentis-homens e
equipagens que raras veses se vira em terras de Portugal.

Nada pouparam o faustoso Dom João de Lencastre nem o opulento Dom João
Soares para se mostrarem com a magnificencia que competia ao seu estado
e á sua posição.

Luxo e estrondo por toda a parte. Os mais ricos veludos serviam de
fasenda aos elegantes capirotes dos pagens. Eram sedas recamadas de
bordaduras de ouro os vestuarios dos condes e dos gentis-homens.
Custosos brocados de prata reluziam nos xaireis de centenares de ginetes
e no aço polido das armaduras dos arautos e reis de armas reflectia-se o
sol com raios coruscantes.

Nunca o povo de Lisboa se recordava de presencear festejos de tanta
vista e de tamanho esplendor. Era grande a alegria d'elle por isso. Ao
som de confusas charamelas soltava enthusiasticos vivas, e assim em
infernal confusão de vivas e descantes cada vez mais accendia os seus
enthusiasmos!

Ia-se acoutando o astro do dia nos abysmos do oceano, á mesma hora em
que nos reaes paços da Ribeira começou a solemne recepção da princesa
castelhana e do seu apparatoso cortejo.

Todos na sala do throno vestiam com o mais apurado gosto e com uma
especie de luxo oriental. Eram principalmente as roupagens da rainha
adereçadas da mais rica pedraria e do mais esquisito artificio.
Cingia-lhe a fronte um bello diadema cravejado de perolas e diamantes.
Cravejada tambem de preciosa joalharia decorava-lhe o peito a cruz
da ordem de Isabel a Catholica. O manto, finalmente, era guarnecido de
renda de ouro e pespontado dos castellos e quinas de que desde o
fundador da monarchia fasem uso os mantos regios[10].

El-rei envergava uma custosa vestidura de terciopello e cobria-lhe os
hombros alentados uma opa roçagante de lhama de ouro e prata. Por cima
da curta cabelleira pousava-lhe na cabeça um chapeu enfeitado com plumas
brancas, de aba erguida de um lado e presilha recamada de vistosa
pedraria. Emfim as bellas insignias do Tosão de Ouro assoberbavam-lhe o
peito e da cinta pendia-lhe um dourado espadim em que relusiam meia
duzia das mais preciosas gemmas da colonia do Brasil.

Satisfeitas as varias ceremonias e etiquetas exigidas em semelhantes
conjuncturas, procedeo-se depois a um desses opiparos banquetes que
entravam na lista dos praseres dos monarchas de Babylonia.

De direito fez as honras da mesa el-rei Dom João III, ficando-lhe á
dextra a princesa de Castella Dona Joanna e ao lado esquerdo o poderoso
valido Antonio de Athayde. Em frente do velho monarcha sentara-se a
rainha Dona Catharina de Austria, cedendo a cadeira de honra a seu filho
o principe Dom João e a esquerda ao infante Dom Luiz de Beja.

Por sua grandesa e gerarchia ali estava resplandecendo tudo o que se
poderá notar de melhoria nas ordens clericaes e nas raças aristocraticas
de Portugal.

Não faltavam ao banquete, além dos principes e mais pessoas da familia
real, o bispo de Coimbra, os arcebispos de Braga e Lisboa, o beato
jesuita Simão Rodrigues, o illustre Dom João de Lencastre, o chanceler
doutor João Monteiro, o desembargador Dom Gonçalo Pinheiro, o nobre
Marquez de Villareal, o prudente Duque de Bragança e ainda tres dusias
de lusidos personagens que na maior parte representavam a curia de Roma
e as côrtes estrangeiras.

Bellos vinhos de Caparica e Seixal, bons licores e as mais
esquisitas iguarias serviam-se com profusão. Os vinhos eram de
excellente paladar e por isso motivaram algumas alegres modificações no
rigoroso codigo das etiquetas.

Foi Dom João III o primeiro personagem que se ergueu com a copa na
dextra. Já não era o monarcha de severo e sisudo caracter. Mostrava-se
de faces rubicundas, olhos risonhos e maneiras joviaes. Nunca o seu
espirito se abrira com tanta expansão e tanta liberdade. Sorrindo com
alegria, olhou por um momento em derredor da mesa e proferiu
pausadamente as palavras seguintes:

--Sem lisonja o digo, senhores. Sobreluzem no semblante e no espirito da
mui alta e excellente esposa de meu presado filho Dom João todas as
graças e mais prendas que podem exornar a pessoa de uma princesa. Para
goso e ventura de todos os meus vassallos imploro de Deus lhe dilate a
preciosa vida por muitos annos. Sempre lhe tributarei n'esta côrte as
mais ternas affeições como filha a quem muito amo e todas as homenagens
como princesa das mais excelsas virtudes. Por isso é, fidalgos e
prelados da minha côrte, que eu com summa alegria do meu coração
brindo agora á saude da nobre princesa Dona Joanna!

Todos os prelados e fidalgos levaram aos labios as preciosas amphoras
espumantes do saboroso Caparica, ao mesmo tempo que, de pé e em
reverente postura, baixaram respeitosamente para Dona Joanna as radiosas
cabeças.

De branco vinho do Seixal tornou logo o monarcha a encher a Copa e
novamente se dispoz a abrir os diques á sua expansiva loquela.

--Grandes e senhores da minha côrte, principiou elle, não deixarei
tambem de faser votos pela existencia e ventura do herdeiro do meu
throno. Piamente confio em que Deus lhe inspirará amor pela justiça,
respeito ás leis do reino e obediencia ás doutrinas da nossa santa
religião. Firmam-se n'elle as esperanças dos leaes portugueses e
certamente meu filho se tornará digno por seus talentos e virtudes do
amor dos meus vassallos. Escuso de lhe declarar as affeições do meu
seio; mas saiba que eu o amo e preso como pai e como amigo. Rogarei
sempre aos céus nas minhas orações lhe prospere Deus a preciosa
existencia... Que Deus lh'a prospere e viva por muitos annos o glorioso
principe Dom João! Meus senhores, perorou erguendo mais a copa e a voz,
viva meu filho o principe Dom João!

Um coro dissono e rapido de vivas eccoou pelos recantos do vasto salão
do festim. Principes e embaixadores, fidalgos e prelados ouviram com
enthusiasmo as ultimas voses de el-rei e todos a um tempo, levando á
altura dos beiços as copas cheias d'esse valente liquido que _o peito
accende e a cor ao gesto muda_, soltaram o grito fremente de _viva o
principe Dom João! Viva o principe Dom João!_

Sentaram-se depois e por um pouco arrefeceram os gastronomicos delirios.
Apenas se escutavam o rangido frouxo dos talheres e as brandas passadas
dos criados. Foi porém de breve duração esta calmaria. Levantou-se o
Conde da Castanheira e, com fallas adamadas e gestos em demasia
palacianos, dispoz-se a discursar.

--Pedindo venia a vossas altesas serenissimas--começou o poderoso
valido, cortejando com a cabeça o monarcha e Dona Catharina--ouso
tambem manifestar a grande satisfação que me desperta o glorioso dia que
em tam esplendido banquete se commemora. O feliz consorcio do nosso
principe real é para todos os leaes portugueses motivo de felicitações e
regosijos. Quem não ha de exultar com as virtudes varonis e prendas
naturaes dos augustos noivos? Permitti que vos saude, excelsa princesa!
Dae-me a liberdade de brindar á vossa ventura, augusto principe!

Dom Antonio de Athayde bebeo de um trago o vinho do seu calix e a tam
palaciano brinde logo corresponderam em coro todos os convivas.

Por seu turno ergueram-se ainda com os calices na mão o inquisidor geral
D. Henrique, o velho arcebispo de Braga e tambem Dom João de Lencastre.
Entresachados de latim e de textos theologicos se desenvolveram os dous
primeiros discursos, mostrando-se assim a erudição e sabedoria dos
respeitabilissimos varões que os proferiram. O de Dom João de Lencastre,
esse foi declamado na lingua espanhola em frase singela e correntia como
sendo de pessoa mais adestrada no jogo das armas que em torneios de
palavras.

Como nas marés dos oceanos, dá-se tambem o fluxo e o refluxo nas marés
do enthusiasmo. Nem tudo, por esta rasão, era delirio e voseria. O
silencio reinava tambem de longe a longe.

Silencio profundo reinava no salão do banquete quando, emfim, de um dos
recantos da mesa se levanta um mancebo de tez morena e bronzeada como a
dos povos da India.

Era o joven amigo do infante Dom Luiz de Beja.

--Monarcha Dom João, prologou elle com voz clara e rosto sereno, eu
venho como o profeta Daniel vaticinar-vos a sorte de Balthasar!

Mal fôra proferida esta ameaça terrivel e já duas duzias dos mais
esforçados fidalgos se adiantaram com o punho nos copos dos dourados
chifarotes.

O pagem não se intimidou, porém. Deu maior volume á voz e com o seu
placido gesto exprimiu-se ainda:

--Não encareço as vossas virtudes nem culpo os vossos vicios, monarcha
Dom João; mas sempre vos imputarei a responsabilidade dos tremendos
crimes que se commettem na vossa côrte...

--Crimes na minha côrte! bradou o monarcha portuguez ao erguer-se da
cadeira como impellido por uma secreta mola.

--Admiro, replicou immediatamente a rainha Dona Catharina, que ainda não
vos dissessem que tentaram hontem assassinar vosso irmão o infante D. Luiz.

Á inesperada revelação succedeo um momento de espanto e alvoroço. Quem
não presaria em Portugal a vida do infante? Presavam-na deveras assim
fidalgos como peões e por isso ninguem havia entre os nobres commensaes
que se não sobresaltasse com a nova de que a vida de Dom Luiz de Beja
correra imminente risco.

--Fallae agora vós, meu irmão. Por acaso premeditaram alguns sicarios
contra a vossa vida?

--Tentaram na verdade, placidamente respondeo a el-rei o infante Dom
Luiz. Hontem por alta noite fui eu acommettido por tres bandidos e
de certo dos seus punhaes seria victima innocente se me não acode
aquelle generoso pagem.

--Graças dou a Deus, volveu el-rei, por haverdes escapado do perigo. Mas
que foi feito dos assassinos? Justiça rigorosa se fará, meu presado irmão.

--Justiça rigorosa vol-a reclamo eu! solemnemente bradou a rainha.

--Justiça! justiça! conclamaram todos os convivas.

Gradualmente foram esmorecendo as vingadoras explosões de enthusiasmo e
então o monarcha portuguez, retirando-se bruscamente da mesa, fez
terminar esse festival e ruidoso banquete que, para dar em tudo
semelhanças do festim de Balthasar, só faltou que mão invisivel
escrevesse na parede as mysteriosas palavras _mané_--_thécel_--_pharês_!

    [10] Vid. _Hist. polit. e militar de Port._ por L. Coelho, t. I,
    pag. 249.




V

ORAÇÕES E JEJUNS REDIMEM TODAS AS CULPAS


Da casa do jantar passou a maioria dos convivas para um faustoso
salão em cujos moveis sobresaiam riquissimos estofos de cores amarella e
carmesim.

Aqui principiaram damas e fidalgos de se entreter com jogos de cartas,
girando a rodo sobre as mesas moedas de prata e ouro como se fossem
alcacer de Astrea os paços de el-rei Dom João III.

Dom João III, esse vamos vel-o no seu gabinete preoccupadamente sentado
em larga poltrona franjada de ouro e prestando a maior attenção ás
fallas veneradoras de dous illustres personagens.

Estes personagens vestem com excessiva desigualdade no feitio e na
fasenda: traja o mais novo rico veludo roxo e o mais velho humilde
roupeta de estamenha.

Será empresa difficil todavia distinguil-os no valimento e no poderio.
Ambos representam duas hierarchias eminentes: a nobresa e o clero.

São o padre mestre provincial Simão Rodrigues e o celebre Conde da
Castanheira, esse poderoso valido que grangeara famas de que «n'aquelle
tempo ninguem se lhe avantajava nas partes de conselho e maduro
juiso[11]».

--Juro-vos, estava asseverando o jesuita, que nada se descobrio. As
palavras d'esse estonteado badage motivaram-nas os vapores do vinho.

--O mesmo acredito eu, accrescenta o conde. A noite corria escura e a
empresa foi commettida a gente de confiança...

--Mas, interrompe el-rei, não me disseram já que o attentado se
baldou por artes do diabo ou por manhas de quem quer que fosse?

--Verdade é, responderam ambos ao mesmo tempo.

--Em tal caso facilmente se poderia descobrir tudo...

--Os aggressores, acode o jesuita, acautelaram-se bem. Os chapeus e os
capotes deram-lhes panno de sobra para cobrirem as barbas e, quando
chegou o diabo, todos debandaram com prudencia.

--Tal accommettimento ha de ser sempre o dessocego do meu espirito!
desabafa el-rei.

--O bem do estado assim o reclama, volve por sua vez o conde.

--Dizes, conde, que o bem do estado nos moveu... O bem do estado seria,
mas porventura não peccamos nós contra os mandamentos da santa religião?
Receio, meu padre, o castigo da Providencia!

--Que póde recear vossa altesa real, o mais fervoroso filho de Deus?
replica o poderoso jesuita com extrema brandura.

--O castigo dos meus peccados, o castigo dos meus peccados...
Conheço que ordenei um assassinio. Não terei eu, como Caim, manchado as
minhas mãos em sangue fratricida? Meu padre, a colera do Senhor cairá
sobre a minha cabeça!

--A oração e os jejuns redimem todas as culpas...

Proferia Simão Rodrigues esta mistica sentença quando estalou na sala do
jogo um grande alvoroto de voses e passos.

Sobresaltou-se o monarcha Dom João como se novamente lhe retumbasse nos
ouvidos o tremendo vaticinio do pagem: _Eu venho, como Daniel,
profetisar-vos a sorte de Balthasar._

O Conde da Castanheira dirigio-se com prestesa para a soleira da porta a
colher noticia do alvoroto e, dando volta á chave, eis que frente a
frente se lhe depara a figura travessa do indio.

O badage, sem comprimentos nem venia, collocou-se em poucos passos
defronte do monarcha.

--Não se enfade vossa altesa serenissima, lhe disse respeitosamente. É
natural o ruge-ruge que vos chega aos ouvidos, senhor. Não provém de
rebellia nem de incendio. Toda a côrte se alvorota e desconsola porque o
principe Dom João adoeceu repentinamente ao levantar-se da mesa.

--Asseveras que está doente meu filho, o meu querido filho Dom João?
inquire el-rei ao mesmo tempo que se levanta da poltrona com visivel
preoccupação.

--E doença de morte o accommetteu, prosegue o badage. Mas nada receie
vossa altesa serenissima, que _a oração e os jejuns redimem todas as
culpas_.

--Pardés, assim ousaes chalrar com tal desassombro! prorompe o valeroso
conde carregando o sobrolho.

--Fallo a verdade sem rebuço e mais direi ainda se el-rei me permitte a
ousia de fallar.

--Sei que és ave de mau agouro; mas conta-nos tudo, conta-nos tudo!
volve o monarcha em profundo estado de abatimento moral.

--Pois sempre vos direi, meu rei e senhor, que propinaram veneno a vosso
filho o principe Dom João!

Cahio o monarcha na poltrona como se padecera os effeitos fulminadores
de um raio.

Assim alguns momentos se demorou em uma especie de glacial
insensibilidade sem que o jesuita e o conde se atrevessem a interromper
o silencio. Por fim ergueu-se tremulamente o monarcha e, não descobrindo
já o destemido badage, perguntou com voz desfallecida:

--Que é feito do pagem?

Olharam os dous validos para todos os recantos do gabinete, mas já não
avistaram ninguem.

Não quiz el-rei que d'elle fossem em procura e, dirigindo-se para os
seus validos, lhes exprobra com friesa:

--Ahi tendes a vossa obra... Ahi tendes o castigo da Providencia! Quiz
Deus punir-me com a morte de meu filho, esse innocente filho que sobre
todas as coisas eu queria e presava. Mas ai de vós, senhores, ai de vós
e de mim se elle morre!

Os dous validos não aventuraram palavras de defesa ou de conforto com
que salvassem semelhante conjunctura e el-rei, deixando-os impassiveis
no meio do gabinete, saío pela porta a informar-se das clamorosas scenas
que occorriam.

--Trocaram-se os papeis provavelmente, resmoneou o Conde da Castanheira
logo que se viu a sós com o jesuita.

--Por certo, concluiu o antigo companheiro de Francisco Xavier em voz
mais baixa ainda. Vou crendo que o veneno, em vez de o tragar o infante
Dom Luiz, tocou desastradamente ao principe real. Feliz noivado, feliz
noivado!

Por fortuna a causa efficiente do bulicio parecia limitar-se a um leve
achaque estomacal de que o principe se queixara. Explicara o joven
principe que uma vertigem lhe estonteara a cabeça e algumas nauseas lhe
trouxeram incommodos ao estomago, mas que já se sentia completamente
alliviado e fóra de perigo.

De feito o sabio medico Francisco Lopes, tateando-lhe o pulso com o
maior cuidado, depressa declarou que a doença apresentava apenas o
caracter de uns passageiros effeitos gastricos motivados naturalmente
pelos molhos indigestos das iguarias.

Foi o principe recolhido á cama com todos os conchegos e, como
asseverava o discipulo de Hypocrates que os symptomas do accidente
não offereciam gravidade, os bellos e illuminados salões do paço
continuaram até deshoras a servir de entretenimento aos nobres fidalgos
e aos venerandos prelados.

No gabinete reentrou el-rei de espirito mais socegado e rosto mais ledo.
Uma certa dose de satisfação parecia resumbrar dos seus olhos asues e a
pallidez que pouco antes lhe amarellecera as faces fôra substituida por
tintas rubicundas.

--Receei peor coisa, rumorejou elle esfregando as mãos.

Atraz de el-rei saira logo o Conde da Castanheira e foi por isso o
jesuita a unica pessoa que se deixou ficar no gabinete.

Abrira sobre a mesa regia o seu predilecto livro _De imitatione Christi_
e, pelos signaes de concentração que lhe transpareciam no gesto,
inculcava aproveitar-se do momento para erguer a Deus alguma fervorosa
prece.

Não obstante disse pausadamente ao levantar-se da poltrona:

--Estava rogando aos céus que afugentasse desditas dos paços de vossa
altesa...

--Obrigado, meu padre. Jamais olvidarei o interesse que tomaes por minha
pessoa. Mas d'esta vez não succedeo perigo. Do sobresalto que soffremos
foi culpado sómente aquelle estonteado badage.

--A não fallecerem justiças n'este reino, cumpre que seja punido para
lição de rebeldes e escarmento de atrevidos. De que pensar é vossa altesa?

--Elle não tardará no tronco, meu padre. Mas agora outra coisa pretendo
saber em puridade: poderei eu remir ainda com obras e orações as minhas
culpas?

--Está isento de culpas o coração de vossa altesa...

--Sei que sou um grande peccador!

--A alma de vossa altesa está limpa de mancha. É grande o amor que
professaes pela fé catholica. Não esquece Deus os beneficios que tendes
prestado pela igreja de Jesus Christo...

--Consolam-me essas palavras, meu padre. Em recompensa de tantas
consolações haveis de lembrar-me o que vou prometter-vos: se não fôr de
morte o mal de meu filho, contai para as festas do milagroso Santo
Antão com uma custodia de ouro massiço e pedras preciosas...

--A graça de Deus seja comvosco...

--Prometto mais quinhentos crusados para compra de alfaias e paramentos
do culto...

--Não deixarei jamais de rogar aos céus pelo bem do estado e pelas
prosperidades de vossa altesa serenissima...

--Lançai-me agora a vossa benção, meu padre.

--Real senhor, eu vos abençôo em nome do Padre e do Filho e do Espirito
Santo!

Ajoelhou el-rei para receber a benção do jesuita e em tam humilde
postura de santidade poder-se-hia conhecer que nunca um piedoso monarcha
illustrara mais com suas devoções os fastos da monarchia portuguesa.

    [11] Frei Luiz de Sousa. _Annaes._ Parte II, livro II, cap. II.




VI

A CAÇADA


Alguns dias depois do casamento convidou el-rei toda a côrte para
assistir a uma caçada.

Ajaesaram-se logo os mais vistosos palafrens e os mais rapidos ginetes.
Desenas de creados afadigavam-se nos preparos dos nobres paços de
Almeirim e tudo ali se dispoz com o luxo de uma casa de fadas.

Chegou a côrte aos paços de Almeirim por uma tarde enxuta e serena,
posto que bastante fria e nublosa a modo das tardes inglesas.

Era a vespera da campanha venatoria.

Na immediata madrugada foi servido um almoço leve e em seguida ao
almoço montaram a cavallo damas e fidalgos.

O monteiro-mór, a toque de uma ostentosa busina, repenicou o signal da
partida e então el-rei, cavalgando ao lado da princesa Dona Joanna e
precedido por uma centena de ricos fidalgos, adiantou-se com a rapidez
de uma frecha em direcção dos matagaes.

Abundavam as opulentas coutadas de Almeirim em caça grossa e miuda de
toda a especie. Veados e corças, lebres e coelhos e cabras monteses
costumavam fugir e saltar aqui e além por entre as urzes e os giestaes,
por debaixo dos ramos dos sobros e das pernadas dos choupos. Porem a
raça canina via-se decerto em penosa maré de infelicidade. Latiam,
uivavam e remordiam-se os lebreus e os podengos sem conseguirem alcançar
uma lebre ou abocar um coelho.

Debalde se esperava nas clareiras a passagem de alguma peça grauda
quando alguns dos mais affoutos caçadores resolveram entrenhar-se no
cerrado da floresta. Ahi, sim, deixavam de ficar ociosas as balas e a
polvora das clavinas. Os tiros rapidamente se succederam aos tiros.

Entretanto a maioria dos caçadores ainda esperava nas clareiras. Em
posição de pontaria por veses ergueram elles ao hombro o cano polido e
relusente das espingardas, os latidos dos cães ouviram-se por veses a
curta distancia e os cavallos, ao cheiro aspero da polvora, escarvavam
impacientemente com as unhas ferreas na grama do solo; mas ainda não
passara ao alcance das balas uma só lebre ou um só veado.

Resolveram-se por isso desmontar e, aproveitando o exemplo dos primeiros
caçadores, lá se entrenharam egualmente por entre os verdes arbustos e
os robles gigantescos.

A rainha, a princesa Joanna, o cardeal Henrique e o badage foram as
unicas pessoas que permaneceram no mesmo sitio. Mas tambem depressa lhes
falleceu a paciencia de esperarem assim na sella dos cavallos.
Apearam-se pouco a pouco e a passos vagarosos foram passeando ao longo
de um renque de choupos.

--O tempo corre bem, disse a rainha dando principio á conversação. Temos
um ceu claro e magnifico; mas parece-me que não produz resultado a
caçada.

--Também me parece, accrescenta a princesa Dona Joanna.

--Juro pelos Vedas que ainda hoje teremos fartura de caça, replicou o
pagem.

--Fallaste nos Vedas; mas que entendes tu por isso? inquiriu o sabio
cardeal cioso de desenvolver a sua vasta erudição.

--Eu vol-o digo se vos apraz, senhor.

--De bom grado escutarei. Dize lá: que são os Vedas?

--Os Vedas formam uma grossa collecção de slokes ou estrofes escrita em
sanscrito sob a designação de Rig-Veda, Yadjur-Veda, Sama-Veda e
Atharvana. A todos os indios e povos do mundo, menos aos brahmanes, foi
por Vichnu, o verbo de Brahma, prohibida a leitura d'elles. Mais ninguem
sabe o que dizem e contém esses livros santos. Os brahmanes guardam-nos
tão cuidadosamente nos seus pagodes como os usurarios podem guardar um
cofre de ouro. Conta-se que o poderoso Akbar, imperador mahometano, quiz
um dia conhecer as differentes religiões dos paizes que lhe eram
tributarios e, como os brahmanes tenazmente se recusavam a
revelar-lhe os mysterios da sua crença, usou então de um subtil
estratagema. Lembrou-se o imperador mahometano de enviar á santa cidade
de Benares um indiosito chamado Fietzi e, fasendo-o passar por filho de
um brahmane, foi o indio adoptado e instruido na linguagem e nos ritos
sagrados. De tal modo seria satisfeita a curiosidade de Akbar, mas
aconteceu que Fietzi se apaixonou por uma formosa filha do seu preceptor
e, arrependido da fraude, foi lançar-se em lagrimas aos pés d'elle e
tudo ingenuamente lhe confessou. Imagina vossa altesa qual seria o
procedimento do brahmane? Arrancou immediatamente do punhal para matar o
sacrilego! Por fortuna o brahmane cedeu aos rogos da filha, dando-a por
fim em casamento ao indio com a solemne condição de nunca em sua vida
trahir os Vedas[12].

Ainda o pagem se dispunha a proseguir na anecdota de Fietzi quando o
toque arrebatado e successivo das businas lhe fez dirigir a attenção
para outro ponto.

--Caça, temos caça? exclama com alegria Catharina de Austria.

Inesperadamente por baixo das ramagens do arvoredo mais proximo
appareceu e adiantou-se o corpo ameaçador de um lobo.

Mostrava-se nas proporções de um molosso reforçado das patas, com os
olhos horrorosamente injectados de sangue, com a cabeça de uma grossura
enorme e infundindo pela arrogancia do olhar todo o pavor que podem
incutir no espirito de um homem os animaes carnivoros.

Era bem curta a distancia entre elle e os desapercebidos personagens.
Alguns passos mais e logo as garras da fera encontrariam para repasto o
corpo delicado e fragil da rainha. Mas o molosso, por uma impressão de
medo ou qualquer motivo de surpresa, sosteve-se ali.

Com as patas vigorosas escarvando o tojo e os urzes, por momentos
estacou como se o prendesse pela cerviz um cadeado de ferro.

Esta demora de segundos foi, todavia, bastante longa para acodir o
badage. O corajoso rapaz depressa se postou fronteiro ao lobo.

Ia agora travar-se uma luta hortenda. Iam certamente repetir-se as
barbaras scenas do circo romano: o combate do homem contra a fera.

De feito o molosso arremessou-se ao badage. Erguer as patas e aventurar
um salto enorme, tudo foi obra executada com a rapidez de uma frecha.
Mas o badage, que se affisera ás caçadas dos tigres e dos javalis nas
florestas gentilicas da India, esperou-o com a firmesa de um athleta.
Quando o lobo se arremessou ao pescoço do indio na intenção de lhe
verter o sangue e lhe despedaçar as carnes com o vigor das garras, o
indio de repente cravou-lhe na garganta a lamina de uma comprida faca de
mato.

A jorros espirrou o sangue da garganta da fera. Mas a fera não se
estorceu nem baqueou. Abrindo com maior furia as patas dianteiras,
apertou os hombros do indio e pretendeu esmagal-o com um amplexo terrivel.

O indio não conseguio resistir áquelles musculos de bronze. Foi grande a
convulsão que padeceu. Perdendo as forças e o equilibrio, cambaleou,
estorçeu-se e cahio.

Na queda acompanharam-no as garras do lobo. Estava decidido que, em
holocausto da sua dedicação, o pobre mancebo perderia as forças e a
existencia. Quem lhe podera acudir nos apertos e nos trances de tam
medonha conjunctura?

Talvez os companheiros. Porém o susto levara o augusto cardeal a
esconder-se na toca de um carvalho e as duas delicadas senhoras seriam
demasiadamente franzinas de pulso para tam heroica defesa.

O badage, comtudo, não havia abandonado a coragem. Conservava na dextra
a comprida faca e lembrou-se de ainda faser uso d'ella. Por um momento
affrouxou o lobo a compressão das unhas e esse momento foi o melhor
auxilio que o badage podia receber.

Não é mais rapido um relampago: erguer o braço e ferir novamente a fera,
eis os prodigiosos movimentos que elle fez.

O aço da faca despedaçou agora as guelas do lobo e logo em maior
abundancia se inundaram as algas e folhas do chão com um lago de sangue.

A força da fera cedeu por fim ao esforço do homem. O lobo cahiu,
estrabuxou e contorceu-se. Depois atroou as selvas com dous uivos
medonhos e perdeu os últimos alentos de vida.

Quasi ao mesmo tempo resoa nos espaços a buzina do monteiro-mór e é
então que no estadio da contenda se apresentam de facas e carabinas os
arredios caçadores.

--Que novidades houve? inquire o monarcha ao passo que descança o cano
da espingarda ao tronco de um carvalho.

--Pardés que não nos faltou susto! apostrofou o timido cardeal ao mesmo
tempo que se aventurava a sair da toca d'essa mesma arvore.

El-rei não pôde conter a explosão de uma risada e todos, sem distincção
de gerarchias, expansivamente lhe seguiram o exemplo.

--É bom signal, affoutou-se a diser o pagem, que sua altesa esteja de
agradavel humor.

--Signal é de boa caçada. Não achas, pagem?

--Assim me parece, meu senhor.

--Mas que tens ahi? Que animal é esse?

--Meu senhor, são os despojos da caçada.

Em seguida contou a princesa Dona Joanna as peripecias do fatal
acontecimento e logo de todos fôra o pagem felicitado por sua valentia e
dedicação.

    [12] Cesar Cantu. _Hist. universal._ Edição francesa, tomo 1, pag.
    305.




VII

A LUTA


A rainha, forcejando por esquecer as extraordinarias impressões da
caçada, recreava-se momentos depois na sua recamara dos paços de
Almeirim com a leitura das trovas populares do celebre Juan de Encina.

A tristesa empanava-lhe levemente o brilho dos olhos feiticeiros e a
cada minuto lhe assaltava o espirito de ideias desconsoladoras. Parecia
inquieta do animo como se adivinhasse alguma funesta novidade.

Entrou o pagem n'esta occasião e pé ante pé dirigindo-se para o lado
esquerdo da rainha, fitou-a com olhares de poetica melancolia.

--Estimo ver-te, pagem. Tenho passado aborrecida e será muito do meu
gosto ouvir contar alguma façanha alegre. Sempre me dirás o que tens
feito...

--Nem tudo se diz, senhora.

--Sempre te conheci mysterioso. Mas agora, meu pagem, lembra-te de que
estás ao pé de quem deveras te estima...

--Sei reconhecer a vossa amisade, senhora. O pobre pagem deixar-se-hia
estrangular pelas garras de um tigre só para vos compraser. Não faseis
ideia da minha dedicação, não podeis medir a grandesa do meu amor!

A rainha estremeceu levemente como se a ferisse a ponta de um alfinete.

--Por ventura me tens amor? assim o interrogou com um sorriso jovial.

--Juro-o pelos Vedas.

--Mas não reparas nos meus annos? Não vês claramente que já sou velha!

--Uma rainha nunca envelhece. É uma eterna primavera de florescencia e
de perfumes.

--Sendo verdade o que dises, reconheço que sou uma excepção.

--Senhora, esplendem em vós todas as graças e possuis todos os encantos!

--Ousado mancebo, não saberei regeitar as tuas galanterias; mas emfim
não sabes que uma rainha não deve amar ninguem? Contenta-te com a minha
estima. Dou-te a minha amisade e isso é bastante.

--Sabei que para vos amar, confidenciou o badage com a selvagem entoação
do seu paiz natal, pouco me foi preciso. Senhora, bastou o vosso
olhar... Mas para odiar-vos ainda será preciso menos. Escolhei...

--Escolhe tu, pagem.

--Escolho o vosso amor!

--Comprehendo; mas que provas queres tu que eu te dê, que exigencias por
acaso imaginas impor-me?

--Concedei-me tudo quanto vos peça.

--Com algumas condições...

--Sou orgulhoso. Não admitto condições. Disei se sim ou não.

--Pois bem, prometto.

O pagem, com o enternecimento de Othello ouvindo a Desdemona a primeira
revelação de affecto, estremeceu fibra a fibra de alegria.

--Obrigado, lhe agradece com enthusiasmo. Ides faser a felicidade do
pobre pagem. Mil veses obrigado, senhora!

--Mas então que pretendes de mim? volveu-lhe a rainha com uma espontanea
expressão de carinho.

--Quasi nada e todavia pretendo tudo.

--Dize...

--Quem sabe se vos offendo! Talvez me não atreva...

--Fases mal. Eu gosto das pessoas temerarias...

--Deixai-me, senhora, dar-vos na face... na, face de rosa... um beijo...
um beijo unico!

--Mancebo, retorquiu Dona Catharina com accento grave e de rosto em
plena calma, saberás que a palavra de uma rainha não falta ao que
promette. Aqui tens a minha face! O pagem com a rapidez de uma frecha
aproximou-lhe do rosto os labios cubiçosos e ali imprimiu com
soffreguidão um beijo escandecente como as lavas do Etna.

Immediatamente, como possuindo-se de vergonha e respeito, fugiu com
prestesa da recamara.

--É certo que tambem lhe consagro eu alguma coisa mais do que amisade,
ficou a rainha pensando agora. Grande coração aquelle! É capaz de todos
os heroismos e todavia diante de mim parece uma criança cheia de
timidez. Parece decerto uma criança. Mas quem o não é em taes
circumstancias de enleio e talvez de demencia? Amor, amor! és o mobil de
todas as acções esquisitas, porque és o germen de todos os pensamentos
humanos. Jamais se realisam os teus desejos e todavia ninguem deixa de
sujeitar-se de boa vontade ao teu jugo. Queres e não queres, acaricias e
odeias, confias e desconfias de tudo ao mesmo tempo. Foi sempre voluvel
o teu caracter como voluveis costumam ser as ondas do mar. És a gota de
agua que fertilisa a aridez da vida, és ainda uma redoma de perfumes e
um sacrario de virtudes; mas tambem és um elemento de odios e um
antro de vicios. Socrates não saberia definir as tuas virtudes; Hercules
não poderia medir-se com a tua força. Homens e mulheres egualmente
abrigam e sentem nas fibras dos seios as tuas chammas e os teus
effeitos; porém quem logrou ainda sondar os teus arcanos, quem
porventura conseguiu explicar os teus mysterios?

N'este comenos transpunha o pagem uma sala immediata á luxuosa recamara.
Depois, abrindo uma porta gigantesca, predispunha-se a entrar no vasto
corredor do palacio quando quatro alabardeiros do serviço particular de
el-rei lhe impedem a passagem.

--Acompanha-nos, meu caro.

A esta desceremoniosa intimação de um dos quatro soldados o badage
retorquiu orgulhosamente:

--Á ordem de quem?

--Manda el-rei nosso amo e senhor. Obedece!

--Preciso primeiramente conhecer-vos. Em guarda, belleguins!

O pagem desnudou a fiel espada com a ligeiresa de quem d'ella se
sabia servir a tempo e horas e, recuando tres passos, aguarda com animo
frio a aggressão dos alabardeiros.

--Mãos á obra! ordena um d'elles. Faça-se por mal o que se não póde
faser por bem. Pagarás cara a temeridade, meu criancelho!

Á luz baça do corredor montantes e alabardas em poucos momentos se
disposeram a começar o seu officio.

Era vasto o corredor; mas todos conservavam as mesmas posições. O
badage, mestre consummado no jogo da espada, não deixava adiantar uma
polegada aos quatro contendores. Ninguem, resuscitando o pomposo estylo
do padre Vieira, soube ainda com mais garbo e valentia brandir a lança,
erguer a espada e fulminar o montante. Crusavam-se as armas, acachoavam
diabolicas imprecações, empregavam-se titanicos esforços para se decidir
da contenda; mas o badage parecia sustentar nas mãos de bronze a clava
de Hercules.

--Com mil demos! rugiu um dos alabardeiros ao cambalear no soalho com o
desiquilibrio de um ebrio.

--Sinto-me ferido! regougou o segundo camarada ao largar a alabarda com
desanimo de uma vez para sempre.

Eram agora sómente dous os inimigos do badage. Mas um d'elles
principalmente não affrouxava os golpes. Era de todos o mais alentado e
o mais temerario.

--Aposto que me não conheceste ainda, meu criançola!

O badage retorquiu-lhe:

--Parece-me que já nos encontramos, sicario.

--Por signal que te acompanhava um alto personagem. Bella noite aquella!

--Covarde! Eras tu quem de emboscada queria assassinar o infante Dom Luiz?

--Tens memoria, meu fidalgote. Nem mais nem menos... Olha bem para mim:
sou o teu conhecido Jacobo.

O badage retrocedeu meio passo e por dous momentos apresentou a
descoberto a arca do peito. Aproveitou este arriscado estratagema para
triunfar do seu terrivel adversario, porque Jacobo, julgando certeiro e
infallivel o golpe, resolveu apenas valer-se da vantagem de ferir o
pagem. Todavia o denodado mancebo, por meio de uma rapida manobra,
desviou o corpo e arremessa a ponta da espada em direitura do contendor.
Em um abrir e fechar de olhos rasga-lhe a carotida e completamente lhe
atravessa o pescoço de lado a lado!

Ouve-se então um clamor horrendo. Á testa de uma dusia de archeiros e
familiares do Santo Officio com ascumas e espadas acode tumultuariamente
o jesuita Simão Rodrigues, o qual, primeiro que o pagem aproveitasse
ensejo de evasão, com arrogancia o intima a render-se por ordem de
el-rei.




VIII

OS ESTAUS


Ao indio amarraram os pulsos com rijas cordas e violentamente o
conduziram dos paços de Almeirim á residencia inquisitorial do Rocio.

Aqui foi, sempre debaixo de uma orchestra de apupos, introduzido na
abobada subterranea que servia de encerro, onde lhe vestiram uma casula
ou escapulario de panno amarello com cruses de Santo André pintadas de
vermelho assim por diante como por detraz.

Era o carcere um espaçoso quadrilongo lageado de tijolos, sustentado por
vastas arcadas e com paredes lavradas de cantaria. A humidade, o
frio e todas as inclemencias da invernosa estação ali contrariavam
sobremodo todos os elementos de hygiene. Ausencia radical de mobilia, de
conforto e ambiente puro. Á propria luz do dia, que é propriedade que
Deus reparte sem restricção por todos os seres racionaes ou irracionaes,
era quasi totalmente prohibido o accesso. Para bem se descrever
precisava-se do estylo de Victor Hugo: era, em frase do grandioso poeta,
morada onde não havia ar no verão, onde não havia fogo no inverno, onde
não havia pão nem de inverno nem de verão. Morada lugubre do mysterio e
do crime, áquella especie de catacumbas romanas de proposito se
imprimira o caracter de infecta e lobrega sepultura a que faltava apenas
a terrivel inscripção do inferno do Dante: _lasciate ogni speranza!_

Tres dias successivos viveu o pagem a codeas de pão e a goles de agua
sem que lhe indicassem a sorte de supplicios que lhe cumpria padecer.
Unicamente communicava com o alcaide ou carcereiro, cerbéro de aspecto
extremamente alvar e discreto de lingua como um rochedo. Todavia o pagem
não se incommodou com o seu estranho encerro. Naturesa moldada a
todos os vaivens da fortuna, a transição da ventura para o infortunio
era quasi para elle um phenomeno insensivel. Sempre se dispunha com
animo inquebrantavel a experimentar quaesquer acontecimentos por mais
extraordinarios que fossem.

--Na verdade, monologava elle em maré de maior expansão, tem suas rasões
o procedimento de Simão Rodrigues. Confesso que a sua senhoria não era
affecto nem adstricto de maneira que podesse facilmente dispor dos meus
serviços e, juro-o pelos Vedas, não se enganou de todo o ladino jesuita.
Mas eu prometto ainda, meu padre, prometto ainda pagar-te juros e
capital na mesma moeda. Pardés que havemos de saldar contas!

Só ao entardecer do quarto dia é que foi o pagem visitado. O proprio
Simão Rodrigues lhe appareceu disfarçado nos trajos de familiar do santo
officio.

--Não ignoras, lhe disse depois de algumas palavras de comprimento, não
ignoras, meu filho, que peccados te condusiram a estes lugares. Escuso
de avisar-te que, por teu mal, és accusado, na qualidade de christão
novo, de rebelde ás praticas da religião e de Deus...

--Quando se não póde esmagar a vibora, respondeu-lhe corajosamente o
pagem, foge-se pelo menos da sua presença. Eu devera fugir para longe,
embora procurasse nas brenhas dos sertões do Mandovy a companhia das
onças e dos tigres. Mas sem cautela me deixei quedar n'este paiz de
fanatismo e de crimes. Por isso me não reconheço justiça de queixar-me.
Aqui me tens agora, bem disposto de alma e corpo a escutar as tuas
fallas e á espera dos teus castigos. Adivinho o que me espera: antes do
baraço da forca o soffrimento da masmorra, ou talvez, para mais demora
das derradeiras agonias, a tortura da fogueira...

--Estranha linguagem é essa, volveu-lhe com brandura o jesuita. De
certo, pobre mancebo, o teu cerebro não regula assisadamente. A falta de
crenças e de fé estiolara o vigor do teu espirito. Quem te manda ser tam
orgulhoso? Lembra-te que é virtude evangelica a humildade. Os humildes
serão exaltados e os orgulhosos abatidos conforme a palavra infallivel
do Evangelho.

--Meu padre, embora me chames hereje ou christão novo, aprecio as
bellesas e virtudes da religião catholica. Por ella abandonei as crenças
de meus paes e as tradições seculares da minha raça. Voluntariamente
recebi o baptismo das mãos de Antonio Criminal e desde então para sempre
se inflammou no meu espirito o amor acrisolado do Deus dos christãos. De
bom grado lidarei por toda a vida em defensão da cruz e da fé. Porém não
quero, meu padre, seguir os teus preceitos e abraçar as tuas doutrinas,
Não quero que me obrigues a pensar a teu sabor, repugnam-me todas as
peias impostas á liberdade de consciencia, abomino emfim o jugo atroz a
que a vossa oligarchia clerical reduz o espirito humano. De outro modo
bem diverso comprehendo os deveres do homem. Não basta a Deus que o
amemos sobre todas as coisas? Não basta ao rei que se seja bom cidadão?
Obedecer ás leis, dar exemplos de bons costumes, estimar a familia e
defender a patria: eis tudo!

--Fallas bem, mas não convences. Amor de Deus e obediencia ao rei não
bastam.

--Dize-me então quaes são as leis que governam o mundo. Explica-me
todos os mysterios do teu governo e da ordem inquisitorial.

--Em duas palavras se resumem, criança: _mandar e obedecer_.

--Mas a quem se obedece, meu padre? A Deus, ou aos seus missionarios na
terra? ao nosso rei, ou aos aulicos miseraveis que, usurpando-lhe o
sceptro, abusam da indole e fraquesa do rei?

--Vou mostrar-te a quem é.

A esta laconica e mysteriosa ameaça chamou o jesuita pelo silencioso
carcereiro, a quem ordenou, ainda com maior laconismo, estatelasse o
pagem no segredo.

O carcereiro puchou por uma das argolas de ferro pregadas na parede e,
mediante um alentado esforço, depressa fez sobresair uma abertura da
capacidade de tres palmos de largo e uns sete palmos de alto.

Guardando sempre o mesmo silencio, pegou do corpo do badage como se
lidasse com uma pluma de ave e, começando de lhe introduzir os pés e as
pernas, fechou-o com celeridade na mysteriosa crypta.

A nova prisão era uma especie de armario de granito cuja parte superior,
á semelhança de um enorme funil, apresentava geometricamente o desenho
de uma figura conica.

Sendo armario como parecia, abundava em estantes ou prateleiras, mas
prateleiras de gosto e feitio a darem ideia aproximada das divisões
funerarias de que se formam as capellas dos nossos cemiterios.

--Sepultam-me vivo estes sacerdotes do Senhor, pensou o pagem. Está
decidido que de aqui só se vae para o ceu ou para o inferno.

Mas o pagem, mal se lhe proporcionava ensejo de criar este lugubre
pensamento, viu escancarar-se de novo a tampa do seu sepulchro.

--Podes sair, ordena o jesuita.

--Bem ruim gracejo, meu padre. Julguei asphixiar como se fosse um perro.
Nem luz nem ar e sobretudo um cheiro, a vermes podres que deveras me
incommodava o nariz.

--Pois arrepende-te dos teus erros. Os bens da terra não os merecem os
peccadores que a todos os momentos offendem a vontade de Deus.
Reconhecendo as leis e o dominio da nossa ordem, terás para sempre
o socego do teu corpo e a ventura do teu espirito. Os filhos de Jesus
Christo, a despeito de parecerem os ultimos pela modestia do habito, são
hoje por todas as partes do mundo os primeiros na força e no poderio. Ai
do insensato que julga encravar com um dedo a roda dos seus triunfos!
Por isso, meu filho, expulsa quanto antes do teu seio as glorias vans do
mundo secular. Em vez do gibão de velludo ou do cossolete de aço polido,
enverga o saio de estamenha e abraça o lenho sagrado de Jesus Christo.

O jesuita, deixando novamente a sós o badage, retirou-se a passo lento.

Vendo-se agora o badage n'quella solidão tremenda, por mais uma vez
relanceou as vistas em redor do carcere.

A argola puchada pelo carcereiro inflammou-lhe a imaginação e, querendo
descobrir o segredo de outras argolas identicas, adiantou-se em
direitura da parede.

Á imitação do homunculo, puchou com força. Era uma argola de ferro
carcomida pela ferrugem de alguns annos. Ella parecia ceder ao
primeiro empuxão; mas ficou segura e fixa como se a pretendesse
abalar o pulso de uma criança. Novo empuxão com maior violencia e ainda,
todavia, se não obteve mais feliz resultado.

--A questão é de geito, considerou o pagem.

Com effeito, sem exigir metade do esforço a argola cedeu á sexta ou
setima tentativa.

No bojo da parede, ainda que de fórma differente do armario de granito
onde fôra introduzido o badage, manifestou-se uma crypta de genero
egualmente lugubre. Formavam-na quatro paredes escuras de dez ou doze
palmos de largo e deseseis ou desoito palmos de altura. Nada inculcaria
de notavel a não ser uma especie de feretro levantado no centro do
pavimento. O feretro, que era fabricado de pedra tosca em harmonia com
todo o escondrijo, servia de asylo a um esqueleto de mulher. Os braços e
tronco, as pernas e a caveira ali se viam com a pelle arroxeada e os
ossos amarellecidos pelos effeitos da podridão.

O badage, pensando na sorte das malaventuradas creaturas, sentiu ainda
mais activa a prurigem da curiosidade. Não cuidando de fechar a
porta do escondrijo, lembra-se de percorrer a trechos a parede. Lançou
as mãos a segunda argola e eis que lhe apparece novo escondedouro. Não
tem sarcophagos, nem feretros, nem prateleiras, nem divisões. Menos alto
do que largo, é simplesmente uma grande caixa de pedra. No pavimento
amontoam-se braços encrusados, pernas desconjuntadas e caveiras ás
duzias. Era uma pilha putrefacta e immunda de caveiras e esqueletos
humanos: um repulsivo e fetido ossario emfim.

Nuvens de fumo espesso e acre vieram entretanto invadir pouco a pouco o
espaço do carcere. Cada vez se pronuncia mais um cheiro violento de
substancias asphixiadoras. Ficam por todo o espaço predominando esses
dous inimigos dos pulmões: o acido carbonico e o acido sulphydrico.

Esta horrivel atmosphera devia naturalmente influir nos sentidos e na
organisação do badage. Influiu. A cabeça entonteceu-lhe e, cambaleando
como um ebrio, cahiu na distancia de algumas polegadas das caveiras e
esqueletos do ossario!




IX

O CARCEREIRO


O badage irremediavelmente morreria asphixiado pela acção dos
vapores deleterios se o carcereiro, cuidando de abrir uma larga janella
situada ao fundo do calabouço, não permittisse rapido ingresso a uma
camada violenta de ar.

Abertas as portas da janella, os fluidos atmosphericos vieram
naturalmente substituir os vapores do enxofre e assim em poucos momentos
se restabeleceu nas gemonias inquisitoriaes um ambiente mais ou menos
salutar.

O badage acreditou na sua ressurreição.

--Obrigado, obrigado. Antes estourar de uma cutilada de mouro de Asamor
do que morrer abafado como um perro. Com mil brecas!

--Poupe os seus agradecimentos, resmoneou o carcereiro. Fiz apenas a
minha obrigação. Mandaram-me que o não deixasse morrer e eu obstei a que
morresse. Mandassem-me o contrario, eu o contrario teria feito sem tugir
nem mugir e vossa mercê, fóra de duvida, morreria sem remissão nem aggravo.

--Comprehendo, observa-lhe o badage, que influa mais no teu espirito a
religião do dever do que a da misericordia. Mas tambem é certo que
debaixo d'esse pello de perro austero e selvagem tens ou deves ter uma
alma. Por ventura deixarias morrer, á guisa de fera estorcida na jaula,
um pobre homem nascido e criado á semelhança de Deus?

--Desempenho á risca as ordens que me dão. Para isso me sustentam e pagam.

--Então se te dissessem--_estrangula tua irman e assassina tua mãe!_ tu,
em obediencia á malvadez do amo, julgarias cumprir com o teu dever?

--Por Deus que ninguem me obrigava a tirar a vida a meus irmãos ou a
meus paes!

--Mas supponhamos que assim acontecia...

O carcereiro experimentou uma ligeira contracção de nervos, estendeu com
gestos de ameaça terrivel os braços musculosos e regougou em bruscos
termos como se disposesse da voz do trovão:

--Eu, escravo, em caso tal arrancaria com estas garras de hyena a lingua
do meu amo!

--Não te fallece por tanto uma certa intuição do bem e do mal. Por
instincto ou rasão natural, sempre dispões de uma certa faculdade
pensante que te diz não ser infinita a orbita dos teus deveres servis.
Reconheces em summa que o universo é maior...

--Não comprehendo bem. Um desastrado carcereiro não póde saber de letras
nem sabe o que são ideias. É um cão de fila a quem disseram: _guarda
esse rebanho e no fim de cada mez receberás as gorduras de uns tantos
ossos_. O cão desempenha cada dia o seu serviço de guardar e jámais se
importa que o rebanho seja de ovelhas limpas e alfeiras ou bravias e
tinhosas. Obedece á voz de quem manda.

--Mas porque obedeces tu?

--Porque me pagam.

--Logo, obedeces a quem te paga...

--Está visto.

--Logo, o serviço está em relação com a paga: maior paga, melhor serviço.

--Naturalmente.

--Logo se eu te pagar maior quantia do que a que tu percebes como
carcereiro, depressa abandonarás a profissão de carcereiro...

--Nem mais nem menos, meu fidalgo!

--Dize-me então: quanto ganhas n'esta enxovia?

--Conta redonda: 150 crusados por anno.

--150 crusados por anno correspondem a pouco mais de 12 crusados por mez
e a menos de 200 reis por dia. Julgas que não é pouco?

--Deveras é muito pouco para quem se vê obrigado a sustentar mulher e
filhos...

--Ah, tambem tens familia?

--Quem não tem familia, meu fidalgo?

--De certo não sabes quem eu sou. Eu vivo sem paes, sem irmãos e sem
parentes. Disem que sou um christão novo! Sou talvez um apostata,
um reprobo, um paria! Vivi por longo tempo na innocencia e no socego dos
sertões. Meus paes e meus parentes nutriam-se dos cachos das palmeiras,
com todo o fervor das suas almas fasiam as suas orações no templo de
Trichandur e as tempestades da desgraça jámais varreram tanto o repouso
do seu corpo como as crenças do seu espirito. Mas um dia[13]
nos mastareus de enormes galeões appareceu arvorada a bandeira lusitana
n'esse grandioso imperio onde[14] _as plantas são fructos,
as aguas perolas e as pedras preciosas_. Esta bandeira significava o
symbolo da fé; era o labaro da paz e da fraternidade. Por isso de todas
as cidades e aldeias se receberam os companheiros de Vasco da Gama como
irmãos e amigos. Estabeleceu-se a troca dos generos, entabolaram-se
todas as transacções commerciaes, vendiam-se pelos brocados de seda e
pelos tecidos de lan ou de algodão o coral e o marfim, as perolas e o
ouro, a canella e toda a casta de especiarias. Mas, ah, depressa a
cobiça das riquesas transtornou a paz e a ventura das Indias! Em vez da
troca e dos contractos mercantis, os portugueses foram preferindo
as dadivas e a vassalagem por não desmentirem que chegavam _tam mortos
de fome como vivos de cobiça_[15]. Accendeu-se então por
toda a parte o facho da guerra e da discordia. Familias inteiras
perderam a fasenda e a liberdade, povos inteiros perderam a familia e a
existencia. Não te farei a resenha dos roubos e das violencias, dos
combates e dos incendios. Basta saberes que foi assim que eu fiquei só
no mundo: sem patria, sem dinheiro e sem amparo...

--Uum, uum! Não sei se acredite o que me diz, atalhou o carcereiro. Não
acredito de certo. Vossa mercê ou vossa senhoria é mais do que inculca
ou inculca mais do que é.

--Então que favoravel ou ruim ideia fases de mim?

--Imagino que seja algum fidalgo poderoso.

--Não sou fidalgo.

--Pelo menos algum conde...

--Enganas-te.

--Meu senhor, ninguem, sem que seja de altas hierarchias e de
singular poderio, gosa da honra de entrar aqui. Para simples peões não
foram feitas as seguras grades e as grossas paredes que sustentam estas
abobadas.

--Tens rasão. Nada sou do que dises e sou todavia muito mais que tudo isso.

--Algum marquez?

--Mais!

--Algum duque?... O snr. duque de Lencastre, o snr. duque de Bragança, o
snr. duque de Viseu?...

--Mais, muito mais!

--Acima de um duque nada conheço. São os maiores fidalgos do reino.
Ninguem acima d'elles a não ser sua altesa serenissima o senhor Dom João
III.

--Pois recorda-te bem. Ha ainda quem valha mais de que el-rei!

--Mais do que el-rei?

--Muito mais, muito mais!

--Aposto, aposto! Em nossos reinos juro e aposto que não ha quem valha
mais do que el-rei nosso amo e senhor!

--Vaes sabel-o já...

--Pois quem é, quem é?

--Alguem é.

--Mas quem?

--Simão Rodrigues!

O carcereiro poz-se a matutar por alguns momentos. Depois aventurou dous
passos ao longo do calabouço, estalejou emfim com a mão direita uma
palmada na testa e disse pausadamente:

--Na verdade o jesuita é poderoso. Vale mais em forças e poderio do que
um duque...

--Mais que o monarcha. O monarcha tem a corôa na cabeça e o sceptro na
dextra; mas isso tudo não passa das vans insignias da realesa. Vale
menos o manto de terciopello do que o saio de estamenha. Perante a
vontade inquebrantavel de Simão Rodrigues tudo averga e affrouxa como o
vime, se quebra e desfaz como o vidro. Elle governa o estado em nome da
igreja; em nome da religião escravisa a nobresa e o povo, essa cohorte
de hebreus sempre amaldiçoada pela igreja. Tudo lhe obedece piamente e é
el-rei o primeiro escravo que lhe obedece...

--Assim é, assim é.

--Todavia Simão Rodrigues teme e reconhece a força e as traças de alguem...

--O papa?

--Não.

--O snr. Conde da Castanheira, que vale tanto como o papa?

--Tambem não.

--Pois quem é?

--Eu!

--Vossa senhoria, meu fidalgo, sempre me parecera muito rico e muito
poderoso...

--Em verdade sou e não sou. Mas nada mais te digo. Se queres saber quem
sou, experimenta, experimenta...

--Que devo faser então?

--Deves desaferrolhar-me a porta do carcere...

--Perco o meu emprego.

--Quanto vale o teu emprego?

--Vale mais de 100 escudos.

--Terás 500 escudos, terás 1:000 escudos. Queres vender a minha
liberdade por 1:000 escudos em boas moedas de ouro?

O carcereiro esgaseou attonitamente os olhos e respondeu com firmesa:

--Por 1:000 escudos vende-se a alma ao diabo. Quero, meu fidalgo!

--Fases bem, fases bem. Estas abobadas cheiram a vermes podres e a
cadaveres queimados!

    [13] Vasco da Gama aportou ao reino de Calicut em 20 de maio de
    1499.

    [14] Conde da Ericeira. _Portug. restaurado._

    [15] D. João de Castro. Carta da India a D. João III.




X

VANTAGEM DE DOUS CONTRA UM


Preparava-se o badage para se escapulir do carcere quando o
homunculo, em attitude de lhe embargar a passagem, desfechou das suas
guelas herculeas uma estridente cascalhada de riso.

--Meu fidalgo, regougou elle, julga que eu seja de animo tam simplorio
que lhe favoreça a escapula sem primeiro arrecadar no bolso os mil
ducados promettidos por vossa senhoria? Pardés que me rio com vontade,
meu fidalgo!

--Fallas com prudencia e siso. Quem deve, paga. Eu, em troca da minha
liberdade, devo dar-te 1:000 escudos. Devo-te portanto 1:000
escudos em ouro ou prata. Mas esse dinheiro, embora seja em perolas de
Ceylão ou em ouro de Ophir, difficilmente se arrecada no bolso do gibão.

--Pois, meu fidalgo, teremos o contracto desmanchado... Demais, quasi
estou repeso do que fiz. As más acções produsem o effeito da ferrugem
nos metaes: fasem mossa na consciencia. Porventura merecem os meus amos
que os atraiçoe? Pagam pouco, é verdade. De que valem 150 crusados? De
que valem elles? Uma ninharia que não chega para a cova de um dente e
não é preciso que o dente seja de elefante. Mas emfim sempre me pagam...

--Percebo, percebo. Sabes que mais val um passaro na mão do que dous a
voar. Dá cá, toma lá. Não é isso? Pois eu vou satisfaser os teus desejos.

O badage pediu um tinteiro e sobre meia folha de papel escreveu com
letra maiscula o seguinte bilhete:

«Dona Catharina de Austria, rainha de Portugal, entregará ao portador a
quantia de mil ducados em ouro ou prata. Do cárcere da inquisição
do Rocio, aos 29 de desembro de 1553. Pedro, o pagem.»

--Toma, disse depois ao homunculo. Este bilhete vale bem o teu dinheiro.
Ficas satisfeito?

O carcereiro empolgou a meia folha de papel e com soffreguidão o
perpassa duas veses em frente dos olhos. Quando lhe cresceu tempo de o
ler, curvou a cabeça em testemunho de respeito e contrictamente resmoneou:

--Meu fidalgo, bem adivinhava eu a estirpe de vossa senhoria! Tem
relações com sua altesa serenissima Dona Catharina de Austria, um
coração de bondade como não ha outro mais protector dos pobres e dos
infelises. Que immensa gloria, que felicidade a minha em topar com tam
boa e poderosa gente! Beijo-lhe as mãos, meu rico infantão. Agora sim.
Para tudo quanto precise tem ás suas disposições o servo mais humilde e
mais dedicado. Prompto, meu amo! Logo ou ámanhan, agora e já, sempre e
sempre me disponho a servil-o. Palavra de homem honrado: quer partir já?
quer que se bote o fogo a esta casa maldita? quer que se espatife
com um cutelo a cabeça do snr. Simão Rodrigues? Eu obedeço como deve
sempre obedecer o servo, o escravo. Ordene, meu fidalgo!

--Muitas veses nos arrependemos da maxima confiança. Sou de aviso que
primeiramente recebas o premio dos teus serviços. Vai e volta depois.
Porventura não receias que te engane?

--Meu amo, replicou o alcaide ao mesmo tempo que rasgava com nobre
desinteresse o seu papel de 1:000 escudos, de hoje por diante ficarei
sempre ás ordens de vossa senhoria illustrissima. Ja pouco me importam
os meus ducados. Podemos partir quando queira, meu nobre senhor...

Ouviu-se então uma voz dissonora como a furia do vendaval.

--Não partireis! trovejou Simão Rodrigues ao assomar com passo grave no
portal do sombrio ergastulo.

Infelizmente para elle, o jesuita commettera um acto de rara
imprudencia. Vinha só. Affeito á cega obediencia de um numeroso exercito
de clerigos e alabardeiros, confiadamente se apresentou á porta do
carcere sem soldados nem sequito.

O badage e o carcereiro ficaram com o espirito indeciso. Ambos conheciam
até que ponto alcançavam a sagacidade e jurisdicção do jesuita.
Bastar-lhe-hia um gesto ou uma palavra para todos á porfia executarem
immediatamente as suas ordens. Por isso não deixava de ser melindrosa a
situação. Mas depressa o badage e o carcereiro comprehenderam a vantagem
que levavam ao jesuita: dois contra um é sempre uma vantagem.

Simão Rodrigues entrou no carcere e o homunculo adiantou-se para a
umbreira da porta. A porta era solida e perra; mas o pulso vigoroso do
homunculo fel-a girar nos gonzos sem difficuldade e logo em um abrir e
fechar de olhos lhe correu com a chave a lingueta da fechadura. Depois,
tomando a prevenção de esconder a chave no bolso das calças, foi
augmentar o grupo do jesuita e do badage.

O jesuita fallava assim:

--Pagem, quiz ganhar de el-rei o vosso perdão. Mas el-rei nosso amo não
quiz perdoar os vossos crimes e vós, convicto do crime de heresia,
no primeiro domingo do Advento padecereis como christão novo o supplicio
da fogueira. Encommendai a vossa alma a Deus...

O badage, desfechando uma risada, em bom genio redarguiu:

--Não careço do teu perdão, meu padre. Agora na minha presença deixarás
de ser o provincial Simão Rodrigues: és simplesmente um reptil, um
covarde, um malvado... Queres ainda lutar comigo? Braço a braço, esmago-te!

--Assim, assim, meu valente! Esmague-me essa vibora! jarrete-me esse
verdugo!

Apenas o carcereiro desprendera das fauces tam rudes imprecações, o
jesuita impallideceu como um cadaver. Comprehendeu o conluio; adivinhou
que se trocaram os papeis. Em vez de mandar e ser obedecido, restava a
Simão Rodrigues o papel de obedecer como escravo. Lance desesperado para
o seu orgulho!

--Estranho o vosso procedimento, desabafou emfim. Insensatos que sois!
Por ventura me faltareis á obediencia? Por acaso attentareis contra a
minha vida? A minha vida pertence á igreja e a Deus. Cautela com a
maldição de Deus!

De nada, porém, valeram os argumentos. Carcereiro e encarcerado abafaram
com um lenço a boca de Simão Rodrigues, por detraz das costas
amarraram-lhe os braços com um pedaço do sambenito despido pelo badage
e, como se faz a uma rez no matadouro, jungiram-no pela gorja a uma das
argolas do carcere.

--Vamos deixar-te agora, proferiu o badage. Ficarás ahi, filho de
Torquemada, entregue ao arrependimento e ao remorso dos teus crimes. Não
teve força nem coragem el-rei Dom João III para reprimir as tuas
ambições e castigar os teus delictos. Pois desempenho eu os deveres do
rei! Para bem do povo e desaggravo da humanidade faz-se mister que
desappareças da face do mundo e que tambem desappareça comtigo essa
ordem de viboras e de tigres que para desdita nossa introdusiste de Roma
nos reinos de Portugal. Adivinhas o que te vai succeder? Adivinhas por
acaso? Desapparecerás para sempre, Simão Rodrigues. Antes de meia
hora será o teu corpo um esqueleto e esse esqueleto se redusirá a um
punhado de cinzas!

Em seguida desprendeu dos pilares da abobada uma lanterna e com a chamma
do pavio incendiou as roupas talares do jesuita.

Começando então de atear-se uma labareda fumegante, logo os dous
companheiros a passo lesto se dirigiram para o umbral da porta e assim
sem saudades abandonaram aquella horrenda masmorra.




XI

A TAVERNA


O carcereiro e o pagem toparam-se defronte do sombrio edificio de
San Domingos por altas horas de uma noite escura como breu e sem ideias
determinadas sobre a melhor direcção que lhes convinha aproveitar.

Era certo que por longos momentos não podiam ali permanecer sem o risco
de serem percebidos e presos. Mas, em conjuncturas de indecisão, quem se
lembra de acodir convenientemente pela propria segurança? Viam-se em
liberdade e esse unico bem lhes parecia a suprema fortuna. A largos
sorvos aspiravam as emanações puras da noite e com as vistas
abrangiam o espaço immenso onde volitam os astros. Pisavam aquelle chão
por cem veses trilhado pelas doloridas plantas das victimas
inquisitoriaes. Por ali passaram em companhia do carrasco e dos
defensores da cruz algumas dusias de martyres envolvidos na samarra e
cobertos das terriveis carochas sarapintadas de chammas e demonios. Mas,
ainda assim, que feliz differença se se comparava a sombria praça de San
Domingos com as estreitas e miasmaticas gemonias onde o corpo se
esquartejava no excesso das torturas e a consciencia desfallecia á
mingoa do ambiente da liberdade? Entretanto os dous foragidos, como
julgando-se proximos de um foco de miasmas e de peste, reconheciam a
necessidade instinctiva de se desviarem para longe. Não tinham pensado
ainda na escolha do refugio. Lisboa, essa decantada sultana de marmore e
granito a não invejar bellesas a Stambul, era cidade grandiosa e
opulenta, era então, como a soube descrever um dos mais sympathicos
engenhos da moderna geração, a «perola das cidades do mundo, a Phryné
das capitaes da Europa, a terra do luxo, dos praseres, das
ostentações e das grandesas.»[16] Não lhe faltavam palacios
nem choupanas, igrejas nem tavernas. Mas o olho dos activos
inquisidores, Argos da peor especie conhecida, com tanta facilidade se
estendia aos santuarios de Christo como sobre os santuarios das
familias. Nada aos filhos de Loyola e aos discipulos de Torquemada lhes
era vedado nem recondito: o seu fim predilecto e a sua ambição natural
eram avassallar o mundo, eram enroscar-se como serpente gigantesca,
desde as raises ao vertice da ramada, na arvore do universo!

Por fim os miseros foragidos tomaram uma subita deliberação.
Dirigiram-se para o palacio hospitaleiro de Violante Gomes.

Apesar do prolongado e tardio da noite, ainda a formosa dama não se
entregara aos dominios do somno. Entretinha-se a desferir da sua harpa
de ebano e marfim alguns ligeiros acordes repassados de ternura e
melancolia.

A principio sobresaltou-se e estremeceu com a presença dos
estranhos hospedes; mas logo com um sorriso feiticeiro de meiguice e
suavidade se dirigiu ao indio:

--Por acaso, meu esforçado amigo, tendes algumas aventuras mais?

--Aventuras sérias, respondeu o badage com signaes de desanimo e tristesa.

--Não percebeis quanto sinto os vossos desgostos. Mas a culpa não será
vossa? Porque não gosaes a vida em socego, sem vos importarem os
negocios do estado e os interesses alheios? Vós, os homens, tendes todos
o espirito mordido pelo sarcopto das ambições. Nada vos contenta.

--O destino assim é. Arrasta o nosso espirito para o bem ou para o mal
do mesmo modo que succede a uma lasca de taboa ou a um pedaço de cortiça
dominado pelas ondas do mar. Fica-me porém a consolação de que nunca a
minha consciencia se encaminhou para o mal.

Inesperadamente sentiu-se um alteroso arruido. Algum serio acontecimento
se passava no largo do Rocio. Nem mais nem menos: o palacio de Violante
Gomes fora assediado por uma turba sediciosa e infrene de
alabardeiros e familiares do Santo Officio.

Não era agradavel nem segura a posição dos foragidos das gemonias
inquisitoriaes. Escapar, seria negocio difficil. Combater, seria
temeridade com todos os visos de loucura. Sem embargo o indio não
desanimou nem tremeu.

--Senhora, disse para Violante Gomes, os vossos hospedes são incommodos
e perigosos. Por isso vos disemos adeus até melhor occasião. Vamos ao
encontro dos inimigos...

--Loucos! acodiu a esbelta dama. Deixai as escadas e vinde por este
sitio. Segui-me depressa!

Violante Gomes, allumiada por um castiçal de prata, adiantou-se por um
corredor estreito, subiu os degraus de umas escadas mais estreitas ainda
e chegou ao recanto de uma saleta desguarnecida.

--Já, já! Apressai-vos a abrir essa janella. Deita para os telhados
visinhos e, tres ou quatro varas além, podeis escapulir-vos com
segurança. Não afianço que não haja perigo...

--Podemos cair dos telhados á rua como dous gatos ou dous perros, então
regougou pela primeira vez o ex-carcereiro. Mas nada de sustos.
D'entre dous perigos escolhe-se o menor.

Alguns momentos depois a janella tornara-se a fechar e Violante Gomes
desceu com animo desassocegado aos primeiros aposentos.

O borborinho e a algasarra não affrouxavam. Pareciam o preludio de uma
d'essas tremendas tempestades que se chamam revoluções populares.

--Abram a porta, abram a porta!

A estes rugidos de panthera ninguem respondia do palacio. As voses
proseguiam entretanto:

--Abram, senão arromba-se!

--Arrombe-se a porta!

--Á ordem de el-rei! Manda el-rei!

--Abram! abram, sôs fidalgos!

Como a porta não cedesse á intimação, as coronhadas principiaram de
desempenhar o seu papel destruidor. Grito infernal, desacato immenso!

De longe a longe uma voz robusta e vibrante forcejava por dominar a
gritaria.

--Basta, basta! bociferava..

Esforços baldados, porém. O barulho, em vez de esmorecer, augmentava
pouco a pouco. Scenas de sangue e horror iam começar ainda.

Entretanto os evasores dos ergastulos inquisitoriaes conseguiram chegar
ao meio da rua da Bitesga e ali resolveram parar á porta da taverna de
um parente do carcereiro.

Em derredor de comprida e nodoenta banca de pinho bebiam, gesticulavam e
rosnavam em selvatica liberdade uns quinze homens de esqualida catadura
e trajos andrajosos que logo á primeira vista se consideravam relé de
virtudes duvidosas.

Ainda mais seis ou oito colossos de eguaes trajos e costumes resonavam a
fartos folegos aos recantos da baiuca, uns acocorados indolentemente no
chão e outros encostados sem a minima ceremonia a escabellos e tamboretes.

Se aquella turba esqualida não denunciava um covil de feras, certamente
não parecia um grupo de seres humanos. Eram homens todavia; mas
homenzarrões de côr macilenta, voz cavernosa e cabeça guedelhuda e
cerdosa como de juba de leão.

--Leve o diacho, rugia um d'elles, que leve o diacho tanto a zurrapa
como quem nol-a vende. Esse filho da breca jamais nos deu cousa com
geito. O vinho... que peste! O vinho é sempre do peor e do mais caro
como se o vendesse a mastins da igualha d'esse bisneto de Judas.

--Pois andas mal, pedaço de asno, acodiu segundo bebedor dirigindo-se do
mesmo modo ao taverneiro. Se te não emendas e não cobras tento, nós
ensinamos-te deveras. A freguesia, meu lorpa, deixa-te ás moscas o
presepio...

--Por isso, redarguiu de mau humor o dono da taverna, não me ha de
ferver o miolo. Fregueses como tu, Chico, ou tambem como tu, Miguel
Farçante, juro que os tomara ver a cem leguas do bairro. Sempre traseis
os bolsos mais cheios de sarna e cotão que de chelpa. De calotes estou
eu farto dês que vos aturo.

--Cala-te ahi, volveu-lhe o bebedor Miguel Farçante. Bem sabes que não
sou de genio talhado para lerias...

--Puf, meu valentão das dusias! Lerias tuas é que pouco me importam. O
que mais quero é que me paguem e tu, se herdasses a vergonha dos
homens honrados, não me punhas mais as patas de portas a dentro.

--Uum, uum! Pois isso vai assim, grande lorpa! Toma lá pela injuria...

Logo na face cadaverica do vendeiro estalou uma punhada gigantesca. O
vendeiro quedara a principio silencioso e soffredor como uma estatua;
mas depois com a ligeiresa de um tigre pegou pelo bojo de um cangirão
quasi cheio de vinho e, ministrando-lhe a força de um punho de Sansão,
em um apice o arremessou á cabeça do aggressor. O barro quebrou-se em
pedaços e dous jorros de sangue borbulharam da testa em que elle bateu.

Immediatamente, em guisa de campo de batalha, se estremaram dous
partidos. Em todas as mãos luziam aos reflexos das candeias facas e
punhaes. Metade dos fregueses predispunha-se para a defesa e outra
metade para a investida.

--Vaes levar a tua conta, meliante!

--O vendeiro teve rasão...

--Rasão vamos ver quem a teve! Trocaram-se estas rudes ameaças em
um abrir e fechar de olhos. Eram o preludio de uma contenda furiosa
entre dusia e meia de ebrios e malvados, homunculos sem consciencia do
bem e do mal, tam lestos em derramarem o sangue das veias de seus irmãos
como em beberem até aos bordos um cangirão dos saborosos liquidos
extrahidos das parras do Seixal.

Foi então que o ex-carcereiro e o badage reconheceram a necessidade de
entrar na taverna.

--Meus rapases, fallou-lhes o badage, não estamos em maré de bulhas e
rixas com amigos. O valor e a coragem podem experimentar-se em outra
liça. Quereis mostrar-me agora que sois valentes, meus rapases?

--Topa-nos ás ordens, fidalgo! Mas primeiro deixe-nos dar uma tosquia a
taverneiros desaforados.

O vendeiro estava já bem seguro pela gola da jaqueta. Miguel, querendo
vingar-se da ferida, ergueu o braço musculoso e ia sem clemencia
descarregar-lhe sobre o peito a lamina do seu punhal. Mas o golpe
falhou. O badage segurou com força extraordinaria o braço que
sustentava o punhal.

Então o barulho arrefeceu e aquella corja de ebrios, baixando as facas e
os punhaes, pediu e celebrou tregoas.

--Disei-me pois, dirigiu-se-lhes novamente o badage, se quereis ou não
quereis provar o vosso valor e a vossa força. Preciso do serviço dos
vossos braços, meus rapases.

--Fidalgo, responderam logo, diga lá o que nos quer.

--Toca a beber primeiro, volveu o badage. Quem paga é a minha bolsa.
Venha lá do melhor e do mais caro: Seixal ou Caparica do mais velho.

O vendeiro apresentou seguidamente seis garrafas cobertas de pó e foi
despejando as primeiras duas no bojudo cangirão.

O badage pegou da vasilha e dispôz-se a offerecel-a a cada um dos
homunculos. Cada cangirão mal chegava para quatro bebedores, mas á
medida que se esvasiava não se esquecia o taverneiro de o reencher até
aos bordos.

Todos beberam á vontade em menos de meio quarto de hora e como o
badage tivesse pressa de lhes aproveitar os serviços tratou de
conduzil-os em direitura do Rocio.

--Adeus e obrigado, disse para o taverneiro. Ahi tens um ducado de ouro
de lei. Guarda-o em paga do teu vinho.

--Obrigado lhe digo eu, fidalgo. A despesa está paga. Não aceito o
dinheiro de vossa senhoria e ainda lhe fico devedor de muito mais.

--O taverneiro é generoso, é generoso! conclamou a maioria dos fregueses.

Preparavam-se todos para sair quando se lhes dirige ainda o taverneiro:

--Mas para onde vades assim, papalvos?

--Nós te diremos depois para onde vamos, retrucou o ex-carcereiro. Quem
fôr peco e desanimoso que fique para ahi como um perro. Pela nossa banda
queremos só gente de animo decidido e braço alentado.

--Bofé que ninguem dirá que o taverneiro da Bitesga foi algum dia peco!
Mas ouvi rosnar por ahi que era preciso combater e brigar. Se a coisa é
séria, unicamente facas e punhaes são armas de pouca monta.

--Fallas com a prudencia de Dom Vasco da Gama, apoiou o indio. Mas não
temos horas a perder e, na falta de outras armaduras, todas as que se
encontram á mão nos parecem de boa tempera.

--Serão. Mas devem concordar que as ha bem melhores de tempera e de
alcance. Uma espada alcança mais longe do que um punhal e os pelouros de
um bacamarte vão mais longe ainda...

--É certo. Mas onde ha por ahi perto algum arsenal?

--Um fiel vassallo de sua altesa serenissima deve estar sempre bem
apercebido e armado. Esperem um bocado, esperem que eu venho já.

Subiu o taverneiro ao primeiro andar da escura baiuca e momentos depois
se apresentou no meio dos seus fregueses com um braçado respeitavel de
bacamartes e de pistolas e machados, ascunhas e espadas. Para
complemento da collecção de armaduras de que falla o cantor dos
_Lusiadas_ faltavam ainda

    _Os_ arneses e peitos relusentes,
    Malhas finas e laminas seguras,
    Escudos de pinturas differentes,

mas certamente sobejavam

    Pelouros, espingardas de aço puras,
    Arcos e sagittiferas aljavas,
    Partasanas agudas, chuças bravas.

--Para meia dusia de amigos, regougou o taverneiro, aqui temos pão e
queijo. Escolham á vontade...

Ficaram logo apercebidos e apetrechados seis ou oito dos mais robustos e
decididos. O numero restante julgou-se egualmente bem armado com os seus
punhaes de fina lamina e as suas facas de ponta cuidadosamente afiada.

--Agora, ordena o badage, cuidemos da partida. Alma alegre e caras á
frente. Vamos combater nada mais e nada menos que os serventes e
soldados do Santo Officio...

--Do Santo Officio! exclamaram com espanto.

Houve um momento de indecisão. Aquella palavra terrivel incutiu deveras
o terror nos espiritos mais varonis e affrouxava de medo o braço
mais possante. O tribunal do Santo Officio ou da _Santa Casa_, segundo o
conceito de um escriptor, comparava-se então pouco mais ou menos com a
arca de Noé, observando-se unicamente a differença de que os animaes que
entraram na arca sairam como tinham entrado e de todos os que eram
encerrados nos carceres da inquisição se viam sair mansos como cordeiros
aquelles que á entrada tinham a crueldade dos lobos e a feresa dos leões!

--Vejo, rosnou o ex-carcereiro, que não sois homens para empresas
serias. Tanto medo para nada! Eu, que servi por alguns annos essa corja
de inquisidores, confesso-vos que não recuo nem me arreceio.

--Aqui ninguem confessa medo! interferiu o vendeiro com heroica
resolução. A vida é uma ninharia e a mim tanto se me dá morrer hoje na
praça como ámanhan na cama. Vamos ou não vamos, rapases?

Momentos mais tarde a baiuca ficou permanecendo silenciosa e vasia.

    [16] Arnaldo Gama. _O segredo do abbade._




XII

REFERTA DE TIGRES E LEÕES


Este arrojado troço de feras humanas premunidas com lanças e
espadões, ascunhas e alabardas, facas e mosquetes investiu no Rocio com
rude e selvagem ousia contra a infrene multidão. Ia travar-se agora uma
luta de tigres e leões.

Nem a surpresa nem o medo conseguiram afugentar as mulheres ou as
crianças. As mulheres gritavam e rugiam como pantheras, as crianças, em
corridas vertiginosas arremessavam pedras e calhaus, os velhos sentiam
refluir-lhes o sangue da juventude e serviam para animar os brios
dos mais novos. Uma destemida populaça e uma horda fanatica de soldados
lidavam e combatiam, como em liça de musulmanos contra christãos, com
egual coragem e com o mesmo furor.

Decorreram breves minutos e já se via, como na manhã seguinte de uma
noite de batalha, o chão alastrado de corpos ensanguentados e
moribundos. Mais de quinze cadaveres, não memorando a desastrada
hecatombe dos feridos e contusos, eram já os tristes despojos e as
victimas infelises da contenda.

O ruge-ruge, a voseria, a confusão e as cutiladas pareciam todavia cada
vez mais longe do seu fecho. Mas, predispondo-se a restabelecer o
socego, um personagem de altivo porte e animo resoluto á semelhança dos
paladinos da idade media, rompeu com bravura por entre o populacho e a
soldadesca proferindo em voz sonora: _basta, basta!_

Depressa foi reconhecido o campeão e, sendo-lhe franqueada a passagem
com todas as demonstrações de respeito, ergueu-se o grito geral
de--_viva sua altesa! viva o senhor infante!_

O infante Dom Luiz desembuçou a capa de veludo, mostrou ao povo o seu
rosto sympathico e com serenidade lhe fallou assim:

--Ordem, ordem! El-rei deseja e estima a vida dos seus vassallos. Não
quer que elles vertam o seu sangue de tal sorte. Cobrai tento e socego,
meus amigos!

Entretanto um dos mais inquietos e terriveis contendores foi pouco a
pouco recuando com a espada em punho até se aproximar do infante. Não
recuava de susto ou por impulsos de fraquesa, que nunca o seu espirito
fôra abalado pelo medo nem os nervos do seu braço jámais affrouxaram nas
conjuncturas do perigo.

--Debalde gastaes a paciencia e o tempo, lhe segreda. Esta corja infrene
e rebelde que nem de filhos de Satanaz, decerto vos não obedece nem
respeita.

Não lhe sobejou ensejo de alongar o discurso. Um troço de aggressores
armados de alabardas e espadas, de picos e ascunhas investiu contra elle
ao grito diabolico de--_morram os hereges, morram os traidores!_

--Morram, morram os judeus e os hereges! conclamaram logo de todas as
partes.

O infante, desnudando a espada, enrostou com a massa dos aggressores.
Elles porém, demovidos pelo respeito e pela estima que todos professavam
pelo irmão de el-rei, suspenderam o passo.

--Ousareis porventura, lhes disse, erguer armas contra o irmão de el-rei?

--Não queremos offender vossa altesa, responderam do meio dos
aggressores. Queremos só esse herege e esse criminoso que ahi está. Esse
buscamos, buscamos esse só.

--Que me quereis então? proferiu com sobrecenho e desassombro aquelle
que indigitavam.

--A vossa cabeça. A vossa cabeça de traidor para a ponta das nossas
lanças e o vosso corpo de herege para a fogueira do Santo Officio.

--Rapases, retorquiu o infante com asedume, a el-rei sómente incumbe o
castigo. Não vos é dado justiçar por vossas mãos. Se ha ahi algum
criminoso, os juises de el-rei o tem de punir segundo as leis e usos do
reino.

--Diz bem o senhor infante, concordaram alguns dos representantes da
populaça.

--Ide-vos em boa paz então. Restabeleça-se a ordem e haja por toda a
parte socego.

--Mas quem nos responde pelo herege? Quem nos responde por elle?

A estas interrogações dos mais exigentes, accrescentaram ainda algumas
voses:

--Sem castigo não deve ficar. É de justiça, é de justiça que seja punido...

--Será feita justiça, retorquiu o infante. Prometto-vos debaixo de minha
palavra de Prior do Crato e, o que não vale menos, de leal cavalleiro,
que o levarei á presença de el-rei para que se faça justiça rigorosa.

Seguidamente pela Bitesga e outras ruas dispersou-se pouco a pouco a
sediciosa turba. O infante Dom Luiz acompanhado pelo badage, esses
meteram pela rua da Palha em direcção aos paços da Ribeira.

--Decerto cumprirá vossa altesa a sua palavra? inquire o badage a meio
do caminho.

--Sinto, meu amigo, que me reservasses o officio de carcereiro. Mas
confio que meu irmão e senhor não deixará de vos tratar bem.

--Alimenta vossa altesa mais esperanças do que as que eu nutro. Do animo
generoso de el-rei pouco espero. Desconfio que precisa a guela d'aquelle
serenissimo sapo de mais uma doninha...




XIII

O LEITO DA DOR


As festas e os folgares não se interrompiam nos alegres paços da
Ribeira. Comtudo não havia remedios nem divertimentos que
restabelecessem a saude do joven herdeiro da coroa.

A maior parte dos dias passava-os elle de cama. Acommettera-o grave
enfermidade. Queixava-se continuamente de dores de entranhas e
revoluções de estomago. Emmagrecia a olhos vistos e a cada hora mais se
lhe pronunciava a debilidade do corpo.

Á sciencia medica os symptomas e o caracter do mal não despertavam
todavia os minimos cuidados. Effeitos do fastio e consequencias de
debilidade, eis a opinião uniforme de todos os Esculapios e Galenos da
côrte. Mas é certo que sua altesa peorava de dia para dia. Pouco a pouco
encovavam-se-lhe os olhos, entesavam-se-lhe os dedos, empallideciam-lhe
as faces, afilava-se-lhe o nariz, destingiam-se-lhe os beiços e
enfraqueciam emfim todas as carnes e todos os musculos.

Nada o entretinha nem consolava. Até os seus dilectos livros e os seus
estimados trovadores lhe enfastiavam agora. Já não dava apreço ás
quintilhas de Francisco de Sá, á _Diana_ de Souto Mayor nem aos autos de
Gil Vicente. Consumia todo o seu tempo em suspiros e lamentações. Á
proporção que lhe desfalleciam as forças do corpo, iam-lhe fugindo do
espirito a coragem, a resignação e a paciencia.

Scena enternecedora em verdade era vel-o carpir as desditas da sua
mocidade quando a esposa delicada e nervosa o procurava alentar com o
balsamo das esperanças e dos carinhos! Era o seu anjo tutelar a fiel e
amoravel esposa. Jamais lhe abandonou o leito da dor e todos seus
thesouros de ternura com elle os gastava generosamente. Nunca seios de
mulher compartilharam assim das amarguras alheias.

A alcova e os aposentos do principe ficavam no segundo andar dos paços
regios. Ali de canto a canto reinava um luxo oriental nas rendas e nas
tapeçarias, em todos os ornamentos e em toda a mobilia. Mas de que
valiam esses brocados e essas riquesas? Faltava ali uma coisa vulgar: a
alegria. A saude não se póde comprar com ouro e sem o dom precioso da
saude não existem as alegrias domesticas, os risos da existencia.

El-rei seu pai, talvez porque o excesso da sua augusta sensibilidade lhe
não permittia espectaculos de tristesa, raras visitas se dignava
faser-lhe. Em compensação a rainha sua mãe todas as manhans se lhe
dirigia á cabeceira do leito e a todas as horas mandava perguntar por
suas damas se o principe melhorava.

Pela saude do joven principe todas as damas, fidalgos e poetas da corte
simultaneamente se interessavam. Muitas noites estava a sua alcova
liberalmente cheia de amigos e aduladores. Como se não julgava de
gravidade a molestia, facilitava-se a honra da entrada a todas as
pessoas do tracto e das relações do paço.

Vai correndo o dia dous de janeiro de 1554 e são quasi dez horas da
manhan. Sua altesa parece dormir a somno solto e na sala contigua estão
esperando que estremunhe e acorde duas dusias de poetas e fidalgos, de
damas e criados. As damas chamam-se Dona Francisca de Aragão, Dona
Catharina de Athayde e Dona Leonor Mascarenhas. Os poetas, contando os
de maior nota, são Dom Manoel de Portugal, João Rodrigues de Sá, Frei
Paulo da Cruz, Dom Simão da Silveira, João Lopes Leitão, Jorge Souto
Mayor e Antonio Ribeiro Chiado.

Conversam uns com os outros em voz desanimada e confrangida. A todos
parece faltar assumpto e liberdade. Está reinando certamente um quarto
de hora de monotonia. Mas eis que entra ainda um homemzinho magro e
pletorico, de barbas louras e cabellos compridos. Tem o nariz afilado,
os olhos vivos e as faces pallidas. A boca mostra-a de exiguas
dimensões, mas, segundo a fama que em Lisboa corria, no comprimento
da lingua ninguem se lhe avantajava.

Vem todo aparaltado e nedio com sua gargantilha encanudada e seus punhos
de alvas rendas. Traz na mão esquerda um chapeu de feltro enfeitado com
sua pluma branca. Dos hombros pende-lhe um farto capirote de panno
preto. Calção e gibão foram talhados de veludo verde. As meias eram de
fina seda cor de carne.

--Seja bem vindo vossa mercê, meu illustre coripheu da _Castalidum turba_!

A esta jovial saudação de Souto Mayor o recem-chegado estendeu a dextra
e apertou com extremos de delicadesa a robusta mão do cantor da _Diana_.

Todos os outros cavalheiros procedem por sua vez a eguaes manifestações
de amisade e seguidamente se dirige o recem-chegado para a alcova do
principe. Depressa porém reapparece na ante-camara.

--Está descançando no regaço de Morpheu, murmurou elle com um sorriso
prasenteiro.

--É certo que sua altesa está a dormir, confirma prosaicamente a
celebrada e formosa Natercia. Mas por isso não nos ha de deixar o
nosso amigo Pedro Caminha. Estou anciosa por ouvir as suas poesias, meu
caro Apollo.

--A musa tem andado constipada, minha gentil Galatea.

--Os numes não se constipam, acode o faceto Chiado.

--Não o deixamos partir sem nos recitar algum poema, accrescenta Dona
Francisca de Aragão.

--Assim rogam tanto! Estou plebeamente envergonhado por não traser peça
de valor; mas não sei se lhes mostre...

--Mostre, mostre, senhor Caminha! rogaram com alegria tres voses de
guelas feminis.

--Mas que lhes hei de eu mostrar, pobre versificador de eglogas e elegias!

--Quer mote?

--Metem-me em trabalhos, metem-me em trabalhos de Hercules; mas venha de
lá...

--Deixemo-nos de mote, replica Souto Mayor. Ouvi diser que é maravilhoso
o ultimo parto do engenho de vossa mercê. Recite-o antes vossa mercê.

--Votos, pedimos votos! regougam a um tempo dous divergentes cavalheiros.

Entretanto uma das travessas damas atreve-se a introdusir os ageis dedos
no bolso do collete de Pedro Caminha e logo com expansivo contentamento
desembrulha uma pequenina folha de papel amarrotado.

--Eureka! exclamou ella com enthusiasmo.

--Leia lá, senhora Dona Francisca.

--Eu leio, eu leio!

Pegou Pedro Caminha no precioso autographo[17] e com entono
magestatico se dispoz a recitar:

    Muitas veses meus versos me pediste
    Que t'os mostrasse e nunca te mostrei;
    Em não pedir-te os teus, se bem sentiste,
    Entenderias porque t'os neguei:
    Da paga me temi; se a não tivera
    Muitas veses meus versos já te lera.

Subito rubor purpurea as faces de Souto Mayor. Julga que elle mesmo fôra
o alvo do epigramma e vai certamente dar o troco em egual moeda
quando o auctor do _Olyssipo_ requer explicações.

--Diga-nos vossa mercê, acodiu Jorge Ferreira, que allusões cavillosas
são essas as do seu epigramma, senhor Caminha?

Caminha virou nas mãos a folha de papel e em voz mais elevada continua
de ler:

    Um tem dois olhos e com vista clara,
    Outro um só tem e esse co'a vista estreita.
    Diz este áquelle: «Amigo, eu apostara
    A qual de nós tem vista mais perfeita?»
    Quem houvera que a si não se enganara
    Como o outro que enganado a aposta aceita?
    Diz-lhe este: «Vê que vejo mais que ti,
    Pois dois olhos te vejo, um só tu a mi!»

--Bravo, excellente! exclamara João Rodrigues de Sá quando comprehendeu
que os epigrammas se dirigiam a esse misero poeta que valia mais que
todos elles porque se chamava Luiz de Camões e porque era talvez o
primeiro, o ultimo, o maior portuguez do seculo deseseis.

--Deveras excellente! Excedeis Horacio e Marcial, meu illustre e
grandioso vate! com estudado sorriso e com excesso de lisonjaria
acrescentou ainda Jorge de Souto Mayor.

A este pomposo elogio immediatamente replica o padre-mestre dos epigrammas:

--Agradeço as vossas finesas, meu Petrarcha. Um frouxo de tosse fez por
esta occasião acorrer as damas ao quarto do principe.

Acordara sua altesa com a indiscreta algasarra e a meio corpo se erguera
sobre os macios travesseiros do leito. Parecia mais alliviado da
enfermidade, mais jovial do olhar e menos cadaverico do gesto.

--Vossa altesa dormiu bem? pergunta-lhe Dom Jorge de Moura
aconchegando-se do leito.

--Sinto-me com mais animo e parece-me que vou melhorando...

--Não tardará que vossa altesa esteja restabelecido. Isso não ha de ser
nada, querendo Deus.

--Assim espero que aconteça; mas não sei, meu amigo, não sei o que sinto
nem o que padeço. Ha tantos dias na cama sem forças nem saude!

--Disem os medicos que não passam de debilidade os achaques de vossa
altesa...

--Os medicos sabem tudo, sabem tudo... Só não sabem dar-me cura!

Abriu-se o reposteiro da alcova e a comprimentar o principe entrou agora
a colmea dos admiradores do poeta Caminha.

    [17] Veja-se a _Vida de Camões_, por Theoph. Braga.




XIV

EFFEITOS DO VENENO


Respeitosamente foi comprimentado o herdeiro da coroa por todos os
poetas e cortesãos que de improviso assaltaram a alcova. Mas o joven Dom
João não se encontrava em maré de paciencia para aturar importunidades e
por isso a numerosa colmea dos nobres aduladores cuidou logo de se
despedir.

A alcova permaneceu deserta; mas soou depressa o estalido de uma secreta
mola e a um dos cantos sahiu vagarosamente por uma porta escondida na
parede o aventuroso pagem.

--Bom pagem, fallou-lhe o principe decorridos alguns momentos,
sinto que me vão affrouxando o animo e a paciencia. O badage
aproximou-se do leito.

--São effeitos da doença, respondeu pausadamente.

--Disem-me todos que isto nada é. Todos me enganam... Só tu me dises que
estou doente... Sabes que doença padeço?

--Sei, meu principe.

--Que doença é?

--Francisco Lopes que vos responda, senhor.

--Não és sincero. Tambem tu me enganas, pagem.

--Receio declarar-vos a verdade.

--Tenho coragem para a ouvir. Falla, falla...

--Vós todos, principes e monarchas, só tendes abertos os ouvidos á
adulação e á mentira. A verdade é amarga e severa. Seria para as vossas
organisaçoes anemicas e sedentarias um eleboro violento em demasia. Mas
podesseis comprehender as bellesas e vantagens da verdade que seria mais
tranquilla a vossa consciencia e mais duradoura a vossa saude. Então
saberieis ler no livro mysterioso do destino os deveres que vos
determina a Providencia. Serieis então os amigos e os protectores do
povo...

O enfermo escutava pela primeira vez tam dura e irreverente linguagem;
mas, como se tivesse o espirito fascinado pelo canto de uma sereia, não
ousava interrompel-a.

Com mais valentia de voz o badage proseguiu:

--Abençoados os monarchas que são os amigos e protectores do povo!
Abençoados sejam! Mas a maioria d'elles entrega-se noite e dia ao
turbilhão vertiginoso dos praseres e das orgias em menoscabo dos
interesses publicos e em prejuiso da ventura das nações. Não é grande o
numero dos monarchas, por mais ricos e poderosos que sejam, que morrem
com a consciencia de haverem feito a felicidade dos seus vassallos.
Parece que teem os olhos vendados para o bem...

--Cala-te, que és injusto e severo. Que mal te fez meu pai ou tenho
feito eu para seres assim tam rigoroso de palavras?

--Sois christão e mostraes ignorancia da leitura do Evangelho. Pois
sabei que pelas culpas dos paes respondem os filhos até á quinta
geração...

--Eu sei o que disem as escripturas santas; mas de que mal e de que
peccados accusas meu pai?

--Rio-me da vossa innocencia, meu principe. Por ventura ignoraes os
descreditos e vexames que todos vamos soffrendo cada dia? Quantos
desacertos e que torturas se não commettem ao sabor de Simão Rodrigues e
só por interesse do tribunal da inquisição? Bastará o _Santo Officio_
para causar maiores damnos do que a peste e mais opprobrio do que a
forca. Nas mãos dos seus ministros flammeja o cutelo do carrasco, que é
o mesmo que o estilete do assassino. Confisca-se a propriedade,
assassina-se o fidalgo, rouba-se com a riquesa a honra alheia e
queima-se nas labaredas da fogueira o servo da gleba para que se accenda
mais uma lampada no altar da tirannia e se fortifique ainda com mais uma
columna o templo da igreja!

--Não blasfemes assim, hereje. Lembra-te que fallas diante de um
principe de sangue.

--Principes e monarchas não os respeito nem acato senão pelo
esplendor das suas virtudes. Onde está o rol das vossas virtudes? Foi
benefica a missão de que vos encarregou o Deus que sempre tendes á flor
dos labios e a que nunca ergueu altares o vosso coração. Deus mandou-vos
amar o proximo. Devieis ser o auxilio e não o latego do povo. Mas vós,
que tendes para tudo ministros e conselheiros, só os não tendes para vos
aconselharem a minorar os infortunios do pobre e obrigarem a repartir
com as crianças que padecem fome as iguarias superfluas dos lautos e
magnificos banquetes...

--Não te quero ouvir mais, não te quero ouvir mais. Lembra-te que ainda
te posso punir e esmagar, villão!

--Tendes o poder e a riquesa, herdeiro do throno de Portugal. Sei que
sempre a vossos pés se rojaram desenas e dusias de cortesãos ambiciosos,
cortesãos que se habituam a procurar o esplendor das gemmas preciosas
das coroas regias para encobrirem a baixesa da sua consciencia e a lepra
do seu espirito. Sei que todos os vossos caprichos e devaneios, embora
custem milhares de crusados, serão satisfeitos mais depressa, do
que se enxuga o pranto do desvalido que, relado pela fome, se vê
estrebuchando na enxerga pestilenta da miseria... Mas vejo tambem que se
offusca o nimbo da vossa gloria e declina a estrella da vossa grandesa!
Em vez de ser de perolas e rubis, será logo de terra e de cinzas a vossa
coroa. Depressa se desfará em pó o vosso sceptro e, em vez de recamarem
o vosso corpo o ouropel e os avellorios do throno, será entregue o vosso
corpo aos vermes e á podridão do sepulchro!

--Basta, basta! São de fogo as tuas palavras. Sinto que me requeimam as
entranhas, pagem!

N'este comenos entrou Francisco Lopes a satisfaser a sua visita ordinaria.

O medico aproximou-se do principe, ausculta-lhe o peito com a maior
observação e em seguida com todo o cuidado lhe tatea o pulso.

Não proferiu um monosyllabo e jámais denunciou pelas impressões do rosto
ou por outros quaesquer signaes exteriores a gravidade ou as melhoras do
enfermo.

Sempre com a mesma austeridade aproximou-se de um dos angulos da
alcova, recurvou-se de vagar sobre uma elegante mesa de jacarandá,
serviu-se de uma penna de pato collocada ao longo de um precioso
tinteiro de prata e com rapidez formula em meia folha de papel o recipe
do costume.

Em seguida o medico ergueu com dous dedos a receita, baixou com gesto
comprimentador a cabeça em direcção do leito e logo com inalteravel
silencio transpoz os umbraes da porta.

No centro da sala contigua esperava-o uma pessoa vestida completamente
de roupas negras que ninguem mais era senão o jesuita Simão Rodrigues.

A meia voz segredou-lhe o medico:

--Está moribundo. Está sem vida. Morre antes de meia hora.

O jesuita laconicamente accrescentou:

--_Requiescat in pace!_

Entretanto não abandonara o badage o leito do principe. Ninguem mais se
conservava ali. Talvez porque se quisesse poupar a organisação debil do
principe ás fadigas das conversações e ao constrangimento das visitas,
ou então por que o quadro pavoroso da morte não é espectaculo que
deleite as vistas e atraia a presença dos cortesãos.

O espirito de sua altesa estorcia-se nos derradeiros paroxismos. Poucos
momentos de vida lhe restavam já e que severos momentos de tortura não
deviam de ser aquelles! Affligiam-no contorsões horrendas; o fogo
violento de um vulcão abrasava-lhe as entranhas; os musculos e tendões
dos braços pareciam fios de arame agitados por uma descarga electrica.

Elle todavia prestava segura e ininterrompida attenção ás palavras
mysteriosas do badage. Sobresaltava-se, contorcia-se, desesperava-se
como se lhe ardessem as carnes no brasido infernal de uma fornalha; mas
ainda nutria alentos e voz para de quando em quando diser ao badage:

--Contai-me tudo, contai-me tudo o que sabeis...

O badage continuou a revelar-lhe:

--Vou por fim denunciar-vos tudo o que sei. É caso incrivel, mas é
verdade. Foi crime horrendo, mas aconteceu. Está soffrendo vossa
altesa os effeitos do veneno e é el-rei, acredite-me vossa altesa,
é el-rei Dom João III a causa da sua morte!

A tam inesperada e tremenda revelação o corpo do principe contorceu-se
com maior violencia. Quiz erguer-se do leito, gritar logo por soccorro e
despedaçar as carnes com as unhas como se o dominassem os instinctos de
um abutre. Porém a alcova nupcial tornara-se depressa a habitação
lugubre da morte. Agora a voz e as forças abandonaram de vez o corpo
franzino do principe. Era elle apenas um cadaver!




XV

O PERDÃO


Com o espirito entregue aos dominios de uma vaga melancolia desceu
seguidamente o badage ao primeiro andar dos Paços da Ribeira, onde, ao
derredor de uma luxuosa banca pejada de papeis, meia dusia dos mais
altos personagens se debatiam em calorosa conversação nos aposentos
particulares de el-rei.

O badage, predispondo-se a colher o fio da conversação, cautelosamente
applicou o ouvido ao ralo da porta dos regios aposentos.

--É mister, continuava de expor ao monarcha o beato provincial, um
tremendo e exemplar castigo. Aquelle herege não póde ser absolvido
nem perdoado. Sabeis, senhor, até onde alcançam o grau dos seus crimes,
o excesso das suas heresias, o numero dos seus peccados?

--Já me contaste, meu padre, o que por desfortuna vos aconteceu.
Confesso que foi horrivel a vossa posição. Atrever-se aquelle herege a
martyrisar-vos com o fogo! Presumo que não foram os vossos tormentos
inferiores aos de San Lourenço, o martyr das grelhas.

--Pela minha parte lhe perdôo tudo. Encontro-me salvo e livre de perigo.
Agora só me resta esquecer de boamente o mal que me fez. Mas os
desacatos á religião catholica, as offensas dirigidas a Deus...

--Perdoae-lhe vós, observou a rainha, que Deus tudo perdoa como pai de
misericordia.

--Vejo que minha presada esposa, accrescenta o monarcha, se interessa
generosamente pelo seu pagem. Cá de mim não tenho resentimentos nem
gostei nunca de vindictas. Em boa fé, meu padre, vos declaro que tudo
esqueço. Mas que diseis, Simão Rodrigues? De vós depende o perdão ou o
castigo!

Dispunha-se a retorquir o provincial quando o badage se apresenta de
improviso.

--Recuso, disse com firmesa, todo o perdão e todo o favor. Simão
Rodrigues, Simão Rodrigues, sois vós que precisaes da graça de el-rei!

--Não comprehendo bem o teu orgulho, meu amigo! acodiu o nobre Duque de
Beja.

--É o orgulho de quem estima e defende uma boa causa: a causa do povo.

--O povo, sempre o povo! exclama com asedume o terrivel jesuita.
Dize-me: que entendes tu por essa massa enorme e infrene, esse corpo sem
entendimento nem consciencia que apedreja hoje o idolo da vespera, essa
cabeça desvairada que nunca soube comprehender as doçuras da paz nem
respeitar as glorias de Deus?

--O povo, proferiu o indio com enthusiastico espirito, é um instrumento
de trabalho que emprega todo o suor do seu corpo e todos os dias da sua
existencia no roçar das charnecas, no arroteamento dos latifundios, nos
perigos e labores das officinas, sobrecarregado sempre de gabellas e
desfavores, ganhando apenas os meios pecuniarios de não morrer de fome e
não conseguindo nunca abandonar a sua condição servil. É o contrario de
essa classe que se chama a nobresa e de essa oligarchia que se chama o
clero. O nobre e o padre, favorecidos por uma legislação de isenções e
privilegios, são homens livres que deixam de contribuir para as despesas
do estado, que tudo á larga possuem e que desconhecem os suores do
trabalho. Gosam e mandam a seu alvedrio... O povo, todavia, constitue a
maxima parte, a grande porção do estado. Do seu braço, das suas forças e
da sua actividade provém a riquesa publica, a defesa das monarchias ou
das republicas, a manutenção da ordem e da paz, o desenvolvimento do
commercio e das industrias. O povo é o elemento mais forte das
instituições politicas e da ordem social: o eixo e as rodas da machina
social. Seria preciso conseguintemente não despojal-o da sua
personalidade e da sua liberdade... Mas quando irromperá a fulgorosa
alvorada em que esse rebanho de ilotas ou escravos desperte ao grito
heroico e triunfal de um novo Spartaco, o libertador dos povos? Quando,
proclamado o advento da igualdade e da justiça, surgirá a epocha
redemptora em que a essa _cohorte renegada de hebreus_ se concedam pelas
prescripções de uma legislação benefica e humana os foros de cidadãos e
os direitos de homens livres, a sua alforria politica e social emfim? Eu
erguerei sempre a minha voz contra os excessos da tyrannia feudal,
inquisitorial ou real que fasem do povo uma besta de carga. O systema
pagão ainda prevalece nas hodiernas sociedades, apesar de já decorrerem
mais de quinze seculos de christianismo[18]: isto é do reinado da
igualdade, da liberdade, da fraternidade humana. Porque se não ha de
abolir este nefando systema aperfeiçoando as coisas existentes, dando ás
ideias diversa direcção, melhorando as leis e os habitos e os costumes?
Vós, provincial Simão Rodrigues, confiaes que, submettendo o povo ao
jugo da escravidão e roubando-lhe a luz do sol nas abobadas dos
carceres, conseguis a regeneração da sociedade civil e a grandesa da
igreja catholica. Mas por acaso ignoraes que a consciencia publica e o
senso universal reprovam com vehemencia as traças e ardis empregados
pelo vosso systema estacionario e fanatico, systema vergonhoso que
directamente conduz á anniquilação e ao opprobrio? As nações não podem
viver sem leis de egualdade na distribuição dos bens e dos males, dos
cargos e beneficios. Não podem os homens coexistir e prosperar sem as
vantagens de uma associação commum. Como é pois que a vossa corporação
de jesuitas ambiciona dispor de todas as forças e riquesas, de todos os
elementos de soberania e de todos os graus de despotismo? Não
comprehendeis o grande pensamento do dever--que é a lei da vida, a
grandiosa ideia do bem--que é o dever da humanidade! Conheço que debalde
cairei sem nome nem gloria como o soldado ferido no fragor dos combates.
Mas eu vos profetiso, Simão Rodrigues, eu vos profetiso que ainda um
dia, ao grito de triunfo dos meus irmãos, ha de sobre as cinzas frias do
jesuitismo e dos Cains do Santo Officio erguer-se em canticos de alegria
o altar da liberdade!

Logo Simão Rodrigues se dispunha a esfriar a impressão do democratico
discurso do badage; mas Catharina de Austria, com a fronte radiosa de
firmesa e coragem, apressou-se a diser para seu esposo:

--Não approvaes, senhor, os gentis e nobres sentimentos d'este mancebo?
Por Deus vos declaro que não conheço em nossos reinos mais generoso
fidalgo nem mais leal vassallo!

--Assim o creio, concordou o monarcha impressionado por um estranho
sentimento de generosidade. Tanto que resolvo mostrar-lhe a minha
gratidão e a minha graça. Ficas satisfeito, proseguiu ao dirigir-se
affavelmente ao badage, em aceitar a commissão com que me apraz
honrar-vos? Quero provar-vos com animo generoso que sei premiar as
virtudes e serviços dos meus vassallos...

--Senhor, atalhou com um olhar de fogo o jesuita Simão Rodrigues, por
Deus que vos não pertence premiar os herejes nem os criminosos!

--Jamais um monarcha de Portugal deixará de cumprir quanto prometteu...
Pagem! mando-vos substituir nos meus dominios da India com os
mesmos foros e jurisdicção o viso-rei Dom Affonso de Noronha.

Seguidamente fôra o badage abraçado com espontaneas manifestações de
contentamento pelo seu sincero amigo o duque de Beja.

--Fez-se justiça, fez-se justiça por fim! exclama a rainha com viva
explosão de enthusiasmo.

Experimentaram os nervos do badage uma passageira commoção, humildemente
recurvou elle pela primeira vez a sua cabeça altiva e com brandura
ajoelhou aos pés do sombrio monarcha:

--Muito agradeço a vossa altesa, lhe disse, as honrarias e os louvores;
mas consinta-me que não aceite.

--Puf! meu rapaz. Pareces bem orgulhoso e bem louco. Pois já te não
convem o viso-reinado das Indias?

Ao successor de Dom Manoel, o glorioso principe que tam respeitado e
temido fisera no Oriente o nome portuguez, retrucou o indio com
magestosa serenidade:

--Parto para as agras e florestas do meu paiz; mas deixe-me vossa
altesa partir sem honrarias nem proveito. Não me sedusem as grandesas da
vida nem os avellorios do mundo. Christão velho ou christão novo,
deveras ficarei contente com dar a Simão Rodrigues um exemplo de
modestia e uma lição de humildade!

    [18] Lamennais. _Du passé et de l'avenir du peuple._




XVI

A VINGANÇA


Foi annunciado o almoço e então suas altesas as pessoas reaes,
acompanhadas de suas senhorias os conselheiros e o celebre provincial,
poseram logo termo á audiencia.

Apenas se conservou na sala o badage.

--Talvez me chamem desassisado, scismou elle. Regeitar assim riquesas e
titulos!... Grande virtude e grande proesa, na verdade... Quem não gosta
de elevar-se e engrandecer-se, quem não deseja passar de braço erguido
por cima da cabeça dos outros, embora á custa da sua consciencia e da
sua dignidade? Todavia do meu procedimento não me arrependerei
nunca. As Indias são emporio de riquesas e eu depressa possuiria
armasens de fasendas e especiarias, cofres de joias e de barras de
ouro... Mas quem me dava todos esses bens? Porventura sua altesa
serenissima? O rei, no seu officio inalteravel de gastar, dispõe dos
haveres e dos suores do povo, a massa que produz e trabalha. De certo
deveria a minha fortuna ás generosidades do rei... Mas não és tu--a
maior, a grande porção da humanidade--que trabalhas e que produses e que
tudo vaes pagando?... Povo, das bagas do teu suor é que nascem as
perolas das coroas regias. Eu comprehendo isso, comprehendo! Havia pois
de enriquecer-me á vossa custa, meus irmãos?

O badage sentou-se na luxuosa estadella do monarcha, dobrou a cabeça
sobre os braços crusados na beira da mesa e assim por alguns momentos
permaneceu como adormecido pelo cansaço. Entregava o seu espirito á
meditação, porque logo alteou a sua cabeça esbelta e se dispoz
lentamente a escrever.

Todos os mais intimos e sinceros sentimentos do seu coração
transmittia-os agora a meia folha de papel. Estava confiando por meio
das letras alfabeticas de uma carta dirigida a Catharina de Austria os
seus fervorosos affectos e as suas saudosas despedidas.

--Amei-a com dedicação! monologava elle quando acabou de escrever. Mais
pelas prendas do seu espirito que pelas bellesas do seu corpo...
Conheci-a sempre bondosa e casta como os anjos. O orgulho, a soberba e a
impudicicia de uma rainha são vicios que jamais lhe empanaram o brilho
das suas virtudes. Não me esquecerei nunca de abençoar o seu nome e de
estremecer a sua imagem. Nobre e gentil senhora! quem soffreria os
impetos e cruesas de vosso esposo, o lobo sombrio e fanatico, se não
fossem as vossas caricias e os vossos conselhos de ovelha paciente e
delicada?

Leu a carta seguidamente, reflectiu ainda por alguns minutos e rasgou-a
em varios pedaços a final.

--Não! reconsidera com altivez. Não darei eu esta prova de fraquesa.
Coragem, coragem!... Sempre, como perola escondida na clausura da
concha, apertarei nos meus seios de alma o segredo dos meus amores. Quem
sabe se lhe causaria despreso em vez de saudade, riso em vez de compaixão?

O badage levantou-se bruscamente da estadella, correu as vistas pelas
douradas paredes da sala e dirigiu os passos para o lumiar da porta.

Aquelle palacio escaldava-lhe a cabeça como se o abrasasse a cratera de
um volcão.

Resolvera abandonal-o para sempre e já caminhava ao longo do corredor
quando um magro personagem de semblante pallido como o de um cadaver e
de vestes negras á semelhança de um fantasma o obriga a parar
improvisamente.

Em repasto da sua vingança, não se recusara Simão Rodrigues a
ensanguentar o seu punhal traiçoeiro. Elle em carne e osso, com o punhal
escondido na manga da roupeta, aguardava o pagem na penumbra solitaria
do corredor.

O pagem cahiu, com effeito, ao borbulhar do seio um jorro de sangue. Não
acodiria braço que o protegesse nem medicina que o salvasse.
Crisparam-se-lhe os dedos, arroxearam-se-lhe os beiços,
empallideceram-lhe as faces e entregou a Deus o derradeiro alento da sua
juvenil existencia depois de articular esta crudelissima ironia:

--É assim... que se vingam... os filhos de... Ignacio de... Loyola!





FIM.




    INDICE

    Algumas palavras                                               5
       I--Ciumes de um rei                                        11
      II--Os reis não costumam perdoar as offensas recebidas      23
     III--Recompensa do crime                                     35
      IV--O festim de Balthasar                                   53
       V--Orações e jejuns redimem todas as culpas                65
      VI--A caçada                                                75
     VII--A luta                                                  85
    VIII--Os estaus                                               95
      IX--O carcereiro                                           105
       X--Vantagem de dous contra um                             115
      XI--A taverna                                              123
     XII--Referta de tigres e leões                              139
    XIII--O leito da dor                                         145
     XIV--Effeitos do veneno                                     155
      XV--O perdão                                               165
     XVI--A vingança                                             175


PORTO--IMPRENSA PORTUGUEZA





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1.E.9.  If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
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both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

1.F.1.  Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
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work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
https://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at https://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit https://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including including checks, online payments and credit card
donations.  To donate, please visit: https://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


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editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
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