Historia alegre de Portugal: leitura para o povo e para as escolas

By Chagas

Project Gutenberg's Historia alegre de Portugal, by Manuel Pinheiro Chagas

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Title: Historia alegre de Portugal
       leitura para o povo e para as escolas

Author: Manuel Pinheiro Chagas

Release Date: July 13, 2009 [EBook #29394]

Language: Portuguese


*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK HISTORIA ALEGRE DE PORTUGAL ***




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                        HISTORIA ALEGRE DE PORTUGAL




                              HISTORIA ALEGRE

                                    DE

                                 PORTUGAL

                   LEITURA PARA O POVO E PARA AS ESCOLAS

                                    POR

                            M. PINHEIRO CHAGAS




                           DAVID CORAZZI--EDITOR
                         EMPREZA HORAS ROMANTICAS
                      Lisboa--Rua da Atalaya--40 a 52
                                    1880




Ao Ill.mo e Ex.mo Sr.

CONSELHEIRO

MIGUEL MARTINS DANTAS

Ministro de Portugal em Londres




                                            Ill.mo e Ex.mo Am.o e Sr.

Ha dois ou tres annos, desejando eu obter de Inglaterra um livro que
fôra citado no parlamento por um deputado da opposição ao ministerio
Beaconsfield, dirigi-me a v. ex.ª, meu collega na Academia,
perguntando-lhe se seria possivel alcançal-o. A resposta de v. ex.ª não
se fez esperar. Enviou-me o livro pedido, que obtivera com summa
difficuldade, e juntamente com elle quantos documentos officiaes se
referiam á questão da escravatura, questão de que esse livro se
occupava, e que então me captivava mais particularmente a attenção. Foi
mais longe ainda a amabilidade de v. ex.ª; enviou-me um livrinho
francez, de que eu não tinha conhecimento, intitulado _Entretiens
populaires sur l'histoire de France_, perguntando-me se não seria
possivel fazer, com relação á historia portugueza, um livro n'esse
genero.

Li o livro e achei-o encantador. Tempos depois, encontrei-me com v. ex.ª
em Lisboa, e disse-lhe que ía tentar o emprehendimento a que v. ex.ª me
incitára, e pedi-lhe licença para lhe dedicar o livro, que fosse o
fructo d'essa tentativa. É o que faço agora. Como v. ex.ª verá, o plano
da _Historia alegre de Portugal_ é diversissimo do dos _Entretiens
populaires sur l'histoire de France_, mas a _Historia alegre_ vae
escripta tambem no tom faceto, folgazão, singelo e popular que achei
original, picante e util no livro francez que v. ex.ª me recommendava.

Folgo de ter ensejo de mostrar publicamente a minha gratidão a v. ex.ª
pelas provas de estima e de consideração que me dispensou n'esta e
n'outras occasiões, e o alto apreço em que tenho o talento e o saber
do escriptor distinctissimo, que renovou completamente, com os seus
_Faux Don Sébastien_, o estudo de uma época interessante da historia
portugueza, que nos deu emfim n'esse primoroso livro um estudo
profundamente moderno, um estudo, como Gachard os sabe fazer, de um dos
episodios mais curiosos e mais romanescos da nossa vida nacional.

                                                           De v. ex.ª

Cruz Quebrada, 25 de outubro de 1880.

                                                   Att.o v.or e ob.o

                                                   _Pinheiro Chagas_.




INTRODUCÇÃO


O sr. João Martins, mais conhecido pelo nome de João da Agualva, porque
morava na pequena aldeia d'este nome, que fica entre Bellas e o Cacem
n'um sitio árido e feio, fôra mestre de instrucção primaria numa das
freguezias do concelho de Cintra. Conseguira a sua aposentação, e viera
para a sua aldeia natal amanhar umas terras que ali possuia, e cujo
rendimento o impedira já de morrer de fome nos tempos, em que o Estado
lhe pagava munificentemente os noventa mil réis annuaes, com que
remunerava n'essa época os primeiros guias do homem nos ásperos caminhos
da instrucção. Mas o João da Agualva era homem de uma illustração
excepcional. Convivera muito tempo com o prior de Monte-lavar, padre
instruido que emprestára ao bom do professor os livros da sua
limitada bibliotheca; em Bellas tambem se relacionára com um engenheiro
francez, empregado nas obras de agua de Valle de Lobos, de Broco e de
Valle de Figueira, o qual tomára gosto em desenvolver o espirito
intelligente e ávido de saber do velho professor. Apezar d'isto vivia
modestamente na sua pobre casa, lidando com os saloios que o tratavam
com verdadeiro respeito, e tinham por elle um affecto em que entrava um
pouco de veneração.

Era no inverno, e o João da Agualva estava passando a noite em casa de
uma boa velha, a tia Margarida, viuva de um caseiro do marquez de
Bellas, e mãe do Francisco Artilheiro, que, depois de ter servido cinco
annos em artilheria, como indicava o seu sobre-nome, viera para Bellas
ajudar a mãe a cuidar de umas leiras de terra, que a velhinha herdára do
marido. Um grupo de saloios de Bellas e das aldeias proximas, sabendo
que o João da Agualva viera para ali seroar, tinham vindo tambem,
desejosos de ouvir algumas das historias que o velho ás vezes contava e
que entretinham agradavelmente a noite. N'essa occasião, porém, o
professor estava macambusio, e, quando o velho Bartholomeu, irmão da tia
Margarida, que era dos que mais gostavam de o ouvir, lhe pediu que
contasse alguma das suas historias, o bom do João da Agualva abanou
negativamente a cabeça.

--Não estou hoje com disposição para historias da carochinha,
disse elle, e sabem vocês? Tenho andado a matutar n'uma cousa. Não é uma
vergonha que vocês saibam de cór as alteiadas historias de cousas que
nunca succederam, nem podiam succeder, e não saibam ao mesmo tempo nem o
que foram seus paes nem os seus avós, nem o que fizeram, nem como elles
viveram, nem o que succedeu n'esta boa terra de Portugal, que nós todos
regamos com o nosso suor, que hoje nada vale, mas que deu brado no mundo
pelas façanhas que os nossos praticaram?

--Tomára eu saber tudo isso, sr. João da Agualva, disse o Manuel da
Idanha, rapazote de cara esperta, moço de lavoura do sr. Garignan, o
antigo dono de collegio, que hoje reside na aldeia da Idanha, a cousa de
quinhentos metros de Bellas, tomára eu saber tudo isso, mas como ha de
ser!? É verdade que, graças a Deus, sei ler e escrever, e lá o patrão
emprestou-me uma vez uns livros de historia que eu lhe pedi, mas, mal os
comecei a ler, deu-me o somno. Diziam á gente os nomes dos reis e os
filhos que tinham tido, e as batalhas que tinham ganho, e mais umas
lenga-lengas de que não percebi patavina. Ora, sr. João da Agualva, eu,
para dormir, graças a Deus, ainda não preciso de ler historia.

--Mas que diriam vocês, tornou o velho professor, se eu, n'estes nossos
serões, lhes contasse, em vez de contos de fadas, e de historias de
Carlos Magno, a historia do que succedeu em Portugal? Talvez vocês
me entendessem, quer-me parecer que se não aborreceriam muito, e,
em todo o caso, se se enfastiassem, diziam-m'o francamente, e eu não
continuava, porque lá para massador é que não sirvo.

--Ah! sr. João, exclamou o Manuel da Idanha, isso é que era um regalo!

Os outros não disseram palavra, e o João, que os percebeu, riu-se para
dentro, e fingiu-se desentendido.

--Pois então, vá feito, eu hoje estou cançado, porque já fui a pé ao
Sabugo tratar da compra de um boi, mas amanhã é domingo. Venham vocês á
noite aqui para casa da tia Margarida, e eu começarei a minha historia.

No domingo á noite ninguem faltou; mas, se vieram, foi pelo respeito que
tinham ao João da Agualva, não porque esperassem divertir-se muito. O
Bartholomeu já abria a bôca ainda antes do João da Agualva principiar.
Mas o João chegou-se mais para o lume, porque a noite estava fria a
valer, sorriu-se, e principiou como o leitor verá no capitulo immediato.




PRIMEIRO SERÃO

O que era Portugal.--Os seus primeiros habitantes.--As colonias
estrangeiras.--Os phenicios.--Os gregos.--Os carthaginezes.--Os
romanos.--Viriato.--Sertorio.


--Meus amigos, começou o João da Agualva, é de saber que esta terra em
que nós vivemos nem sempre foi Portugal, e, se alguem se lembrasse de
fallar, aqui ha cousa de uns tres ou quatro mil annos ou mesmo só de mil
annos, em Portugal e em portuguezes, havia de ver como todos ficavam
embasbacados sem perceber patavina. Isto lá para os antigos era tudo
Hespanha, desde os cocurutos dos Pyrinéus, que são uns montes que
separam a Hespanha da França, até essas aguas do mar que cercam por
todos os lados a nossa terra, mais a dos hespanhoes, e até por estar
este pedação de terra cercado de agua por toda a parte, menos pela banda
dos Pyrinéus, é que se chama a isto _peninsula_, que quer dizer uma
cousa que é quasi uma ilha, mas que o não vem a ser de todo.

--Bem sei, bem sei! peninsula é onde houve uma guerra em que entrou meu
avô! exclamou o fallador do Manuel da Idanha.

--Mette a viola no sacco, Manuel, quem muito falla pouco acerta. Lá
chegaremos á guerra da peninsula. Roma e Pavia não se fez n'um dia.

--Pois então, vá lá vocemecê contando a sua historia.

--Como eu ía dizendo, esta peninsula, a que se chama Hespanha e
Portugal, era então só Hespanha. Hespanhoes éramos nós todos...

--Menos eu! acudiu o Bartholomeu, levantando-se todo furioso, hespanhol
é que nunca fui, nem sou, nem serei. Vae aqui tudo raso, se...

--Espera, homem de Deus! Que tem que tudo isto fosse hespanhol se nunca
mais o ha de ser? Tambem a Hespanha, e a França, e a Inglaterra, e a
Italia, e a Grecia, e o Egypto foi tudo imperio romano, e vae lá dizer
agora a essas nações todas que se sujeitem ao mesmo governo! Tambem a
França d'antes se chamava Gallia e estendia-se pela Belgica fóra, e mais
pela Suissa, e, se o Gambetta, ou quem é que governa lá na França,
quizesse por isso empolgar a Suissa e a Belgica, ía ahi em toda a Europa
uma berraria de seiscentos demonios.

--Pois sim, resmungou o Bartholomeu sentando-se de mau humor, mas não me
digam a mim que eu fui hespanhol.

--Ora, meus amigos, quem foram os que primeiro moraram cá n'este canto
de terra é que ninguem sabe. Seriam uns iberos, que fallavam uma lingua
arrevesada, assim a modo similhante á que fallam hoje os hespanhoes das
Vascongadas que nem o demo entende? Isso é que lhes não posso dizer. O
que sei é que, quando a Hespanha começou a ser conhecida, havia aqui uma
sucia de povos que era uma cousa por demais, turdetanos para um lado,
celtiberos para outro, ilergetas para aqui, bastetanos para acolá.
Estava até ámanhã a dizer-lhes nomes estramboticos, se não preferisse
fallar-lhes só nos nossos avós, cá nos que moraram na nossa terra.

--Isso é que é! bradaram todos em côro.

--Pois muito bem! Saibam vocês que não era um povo só. No Algarve e n'um
pedaço do Alemtejo havia os _cuneenses_, no resto do Alemtejo, na
Estremadura e na Beira moravam os lusitanos, e lá para cima para o
Douro, para o Minho e mais para Traz-os-Montes moravam os gallegos.

--Os gallegos! exclamou o irritavel Bartholomeu, veja lá como falla, sr.
João da Agualva, olhe que o pae de minha mulher veiu de Traz-os-Montes,
e meus sogro não era nenhum gallego, ouviu?

--Valha-te Deus, Bartholomeu, então tu cuidas que os gallegos andam
todos com o barril ás costas, e são todos uns grosseirões como os
aguadeiros dos chafarizes de Lisboa? Pois digo-te, e depois t'o
mostrarei, que de todos os povos lá das Hespanhas foram os gallegos os
que mais depressa se poliram. Mas, cala-te bôca, não vá o carro adiante
dos bois, e, como tu não queres ser genro de um gallego, sempre te direi
que os que moravam para cá do Minho não eram da mesma casta que os de
lá. Os nossos chamavam-se _Bracharos_ e os gallegos da Galliza
chamavam-se _Lucenses_.

--Ainda bem! murmurou o Bartholomeu, isso de _Bracharos_ até parece que
dá idéa de _Braga_.

--E é verdade que dá, sr. Bartholomeu, lavre lá dois tentos.

Todos se riram, e o João da Agualva continuou:

--Mas não imaginem que os nossos antepassados eram assim como nós, que
viviam em cidades, villas e aldeias, que andavam vestidos dos pés até á
cabeça, que tinham espingardas para a caça e para a guerra. Qual
carapuça! Eram uns selvagens, uns lapuzes. As armas eram lanças de
cobre, e o amante pedregulho, mais uns dardos e uma especie de escudo
para se defenderem; fato pouco havia, cabello comprido como o das
mulheres, que atavam com uma fita quando tinham de ir para a guerra.
As mulheres é que tinham os seus enfeites e os seus bordados, os seus
vestidos compridos, etc.

--Pois já se vê que lá as meninas nunca podem passar sem arrebiques!
disse o Zé Caneira, relanceando um olhar malicioso para a boa tia
Margarida que fiava na sua roca ao pé da lareira.

--Melhor para ellas, ouviu! redarguiu a velha. Que pena que não vivesses
n'esse tempo para atares os cabellos com uma fita, quando fosses para a
guerra!

Como o Zé Caneira era calvo, uma gargalhada geral acolheu a observação
da tia Margarida.

--Em comidas não eram muito requintados, de carne de cabra é que elles
principalmente se alimentavam, e o seu pão era cousa de pouca
substancia. Bebiam agua, dormiam no chão, os seus barcos eram de couro,
matavam gente em sacrificio aos seus deuses, quando tinham algum doente
punham-n'o á beira da estrada, quem fazia algum roubo ou outro crime
grave era apedrejado. Não passavam de ser uns selvagens. Então que
querem? nem os homens nem os povos nascem ensinados. Todos começam
assim. Valentes eram elles, isso sim, valentes como touros. Tiveram
occasião de a mostrar, porque esta nossa terra foi na antiguidade uma
espécie de California.

Por muito tempo ninguem soube d'ella, e os navios da gente civilisada
que vivia lá para o Oriente nunca passavam para cá do estreito de
Gibraltar, até que um dia passaram os phenicios, gente atrevida, que
queriam metter o nariz em toda a parte, e que sobretudo procuravam
terras novas para commerciar. Acharam que lhes convinham a Andaluzia e o
Algarve, e aqui fundaram algumas colonias, sendo Cadiz a principal. Como
tinhamos por cá muitas minas de ouro, e os homens deram sempre o
cavaquinho por este metal, estavam os phenicios nas suas sete quintas.
Ao mesmo tempo outro povo civilisado do Oriente, os gregos, vieram na
piugada dos phenicios, mas esses estabeleceram-se principalmente na
Hespanha do lado de lá, onde hoje é a Catalunha, e o Aragão e Valencia,
etc.

Os indigenas de cá não se deram mal com os phenicios, emquanto elles se
limitaram a trocar as suas fazendas pelo nosso ouro e outras producções,
mas, quando viram que os taes estrangeiros começavam a fazer casa,
acabaram com o negocio, foram aos gaditanos e deram-lhes uma tareia real.

--Foi bem feito! observou Bartholomeu.

--Mas os phenicios, que estavam muito longe da sua terra, chamaram em
seu soccorro os carthaginezes, que eram tambem uns phenicios, quer dizer
tinham assim com os phenicios o mesmo parentesco que os brazileiros têem
comnosco. Ora os cartagineses viviam aqui mais proximo, ali na Africa,
ao pé de Tunis, não muito longe de Argel.

--Argel! exclamou o Francisco Artilheiro, já lá estive.

--Já lá estiveste?

--Já, sim senhor. Quando eu andava ao serviço, e que fui para a India, o
vapor que me levou arribou a Argel. É uma bonita terra.

--Já vês que não fica muito longe. Carthago era mais para o lado de lá.
Vieram pois os carthaginezes em soccorro dos phenicios, mas gostaram da
terra, pozeram fóra os que vinham soccorrer, e á força de bordoada,
porque bons guerreiros eram elles, sujeitaram ao seu poder tudo.

--Mas então, tornou o Francisco Artilheiro, vocemecê diz que os nossos
eram tão valentes?...

--Ora, que outro me fizesse essa pergunta, vá, mas tu que foste militar!
Quem vence é quem tem disciplina. Por mais valentes que os homens sejam,
em combatendo sem ordem, um por aqui, outro por ali, um regimento bem
formado dá logo cabo d'elles.

--Isso é verdade.

--Estavam os carthaginezes senhores da Hespanha, e, como tinham posto
fóra os phenicios, queriam tambem pôr fóra os gregos, quando estes se
lembraram de pedir o soccorro dos romanos, que andavam ha muito tempo de
rixa velha com os carthaginezes, e que eram dos povos mais pimpões
d'aquelle tempo.

--Vieram então os romanos? perguntou o Francisco Artilheiro que
estava seguindo com interesse a narrativa.

--Não tiveram tempo de vir, porque um tal Annibal, rapasote dos seus
vinte e cinco annos, e que dizem até que era filho de uma lusitana,
succedendo no commando dos carthaginezes a seu pae Amilcar, não esperou
que elles viessem, correu a Sagunto, uma das taes colonias gregas,
tomou-a e queimou-a, e depois sae da Hespanha, atravessa os montes
Pyrinéus e mais os montes Alpes, que parecia que tinha mesmo o diabo no
corpo, bate os romanos aqui, derrota-os acolá, escangalha-os mais alem,
e ás duas por tres, se continua assim de vento em popa, era uma vez
Roma. Porém, os romanos, que eram tambem levadinhos da breca, nunca
desanimaram, e, apesar de estarem de corda na garganta, tiveram artes de
mandar para cá um exercito, de fórma que, emquanto Annibal saía por uma
porta, entravam os romanos por outra. O atrevimento ía-lhes saíndo caro,
isso é verdade, mas a fortuna virou, e o que é certo é que d'ahi a pouco
tempo não havia nem um carthaginez na peninsula, e estavam os romanos
senhores de tudo isto.

--Então os povos de cá estavam a olhar ao signal? perguntou Bartholomeu.

--Ora ahi é que bate o ponto. Effectivamente, os povos cá das Hespanhas
acharam assim exquisito que os carthaginezes e os romanos andassem a
dispor d'elles, sem ao menos lhes perguntar a sua opinião, de fórma que,
quando os romanos, julgando-se senhores da Hespanha, começaram a
espreguiçar-se, os differentes povos da peninsula disseram-lhes d'esta
maneira: «Ora esperem lá, senhores romanos, que nós somos duros para
colchões!»

--Ah! boa rapasiada! observou, esfregando as mãos, o Francisco Artilheiro.

--Começou a pancadaria, e o povo que andou sempre na frente foram cá os
nossos lusitanos, principalmente os serranos do Herminio (que era assim
que se chamava d'antes a serra da Estrella). Não eram os romanos capazes
de metter dente cá para este lado, até que uma vez um dos seus generaes,
chamado Sergio Galba, apanhou os lusitanos á traição, e fez n'elles uma
mortandade de que poucos escaparam.

--Ah! grande patife! exclamou o Manoel da Idanha.

--Isso era, mas alem de patife era tolo, porque isto de excitar muito dá
maus resultados. Os lusitanos, que escaparam, ficaram como uma bicha.
Ora um d'elles era um pastor chamado Viriato, homem decidido e esperto,
que disse para os seus patricios: Façam vocês o que eu mandar, e deixem
os romanos comigo. Assim foi, juntaram-se á roda de Viriato, e, quando
appareceu um exercito romano commandado pelo consul Vetilio, o nosso
homem, que era das bandas de Vizeu, esconde n'uma emboscada uma parte da
sua gente, e com o resto põe-se a fazer fosquinhas aos romanos,
parecendo a modo medroso. O consul percebe que elle está assim com seu
susto, e diz lá de si para si: «Vaes apanhar uma surra mestra.» Corre
sobre elle, Viriato faz tres meia volta, e, pernas para que te quero,
elle ahi vae. O consul Vetilio desata a correr atraz de Viriato, e
vae-se mesmo metter na boca do lobo. Era uma vez um exercito romano.
Depois de Vetilio vem outro e outro, e elle sempre zás, pásada de crear
bicho. Em Roma havia terror, diziam que o luzitano lhes dava mais que
fazer que o proprio Annibal. Em Hespanha então era um enthusiasmo por
ahi alem. Se Viriato já nem se contentava em estar nas montanhas,
entrava pelos povoados romanos, levantava contribuições, revolucionava
os povos, era um vivo demonio, e cada novo exercito, que por cá
apparecia, não lhes digo nada, sumia-se n'um abrir e fechar de olhos,
até que emfim o consul Scipião apanha lá dois patifes que Viriato
mandára para tratar de um negocio, e tantas endrominas lhes metteu na
cabeça, e tantas promessas lhes fez que elles, quando voltaram para onde
estava o seu chefe, apanharam-n'o a dormir e mataram-n'o.

--Oh! que grandes malvados! exclamou Bartholomeu.

--E assim acabou esse homem que foi o que se póde chamar um homemzarrão!
Ó senhores, eu sou um pateta, que não percebo nada d'estas cousas, mas,
quando me ponho a pensar n'este Viriato, quando me lembro que era apenas
um pobre pastor de cabras, um selvagem que não entendia nada de guerras,
nem de manobras, nem de legiões para aqui, nem de centuriões para ahi, e
que, apezar disso, em defeza da sua terra, fez andar os romanos em papos
de aranha, e atarantou aquella poderosa Roma que mettia medo a todos,
quando me lembro que elle era filho d'esta boa terra; que hoje se chama
Portugal, ah! c'o a breca, sinto assim uns arripios pela espinha, e
parece que é até uma vergonha para o paiz não se lhe ter levantado uma
estatua de um tamanho por ahi alem, no alto da serra da Estrella, que
aquillo é que se podia chamar a sentinella da nossa independencia.

E o bom do João da Agualva, no impeto do seu enthusiasmo, cerrava os
punhos; faiscavam-lhe os olhos, e dava mostras de querer elle mesmo ir
pôr nos fraguedos da serra da Estrella a estatua do seu heroe.

--Tem rasão, tem, observou o Bartholomeu, lá que o tal Viriato foi um
homem de truz, isso foi.

--A morte de Viriato, como podem imaginar, continuou o João da Agualva,
deixou ficar os lusitanos um pouco atrapalhados, mas continuaram a
defender-se, e os romanos viram uma bruxa com elles. Póde-se dizer que
só Roma foi senhora da Lusitania, quando não ficaram nas nossas
montanhas senão as mulheres e as creanças. Mas as creanças fizeram-se
homens, e os homens estavam mortos por jogar as cristas com os romanos.
Não tardou a apparecer-lhes uma boa occasião.

--Vamos lá a ver isso! exclamou o Bartholomeu, com um orgulho patriotico.

--É de saber que em Roma havia umas guerras civis, tal qual como nós
tivemos cá por muito tempo em Portugal, assim umas cousas á moda da
_Maria da Fonte_ ou da guerra dos dois irmãos. Um fulano Sylla e um
sicrano Mario andaram á pancadaria um com o outro, até que venceu um
d'elles que foi Sylla. Era homem de cabellinho na venta este Sylla, e,
apenas se viu no poleiro, começou a chacinar nos que eram do partido
contrario, de fórma que parecia que não queria deixar vivo nem um só. Os
amigos de Mario trataram de se escapulir, e um d'elles, homem
desembaraçado, chamado Sertorio, safou-se cá para Hespanha, para os
lados do Oriente. Ahi, n'um instante, revolucionou tudo, arranjou um
exercito, mas os generaes de Sylla espatifaram-lh'o, e o amigo Sertorio
tingou-se para a Africa. Souberam os lusitanos do caso, e disseram
comsigo: «Este maganão é que nos faz conta.» Mettem-se uns poucos n'um
barco, vão ali a Marrocos, por onde o Sertorio andava aos paus;
offerecem-lhe o vir commandal-os. Sertorio saltou logo para dentro do
barco, e d'ahi a pouco estavam os lusitanos em campo com Sertorio á frente.

Este, porém, não era, como Viriato, um pastor de cabras, era homem
civilisado, sabendo tudo o que se sabia no seu tempo, e que tratou de
arranjar cá nas nossas terras uma especie de Roma. Pareceu-lhe que Evora
servia para o caso, estabeleceu-se ali, e, como o tinham acompanhado
muitos romanos, conseguiu perfeitamente o seu fim.

Que o Sertorio era uma grande cabeça, isso é que não tem duvida! Não só
poz o sal na moleirinha dos seus patricios que se quizeram metter com
elle, mas costumou os lusitanos a ser gente civilisada, e a imitar os
romanos em tudo, de fórma que Viriato, se resuscitasse, não os
reconhecia. E a final de contas, vejam como as cousas são! Este Sertorio
deu lambada nos romanos por um sarilho! pois ninguem fez mais serviços a
Roma do que elle! Introduziu aqui as artes, os usos e os costumes de
Roma! de fórma que, depois, os nossos começaram a ter menos repugnancia
aos estrangeiros, a confundir-se com elles. Isto de fallar a mesma
lingua, de ter os mesmos habitos, sempre é uma grande cousa! Sertorio
foi assassinado, assassinado tambem por um traidor, um patricio d'elle,
um tal Perpenna! Pois senhores, quando morreu, já isto por cá era
tão romano como a propria Roma; de fórma que nunca mais houve revoltas,
e os lusitanos como o resto dos habitantes de Hespanha, á excepção dos
vasconsos que sempre foram mettidos comsigo, e nunca se deram com os
visinhos, os lusitanos ficaram fazendo parte do grande imperio que vinha
do Mar Negro ao Oceano Atlantico, e da bôca do Rheno até á foz do
Guadalquivir, e ainda mais para baixo, do outro lado do estreito.

E com isto os não enfado mais, meus amigos, a Margarida já acabou a sua
estriga, a luz do candieiro está assim a modo aos upas como quem se quer
ir embora, e então domingo á noite continuaremos com esta conversa,
visto que vocês parece que vão gostando.

--Ora se gostamos, sr. João de Agualva! bradaram todos em côro. Venha
depressa o domingo para ouvirmos o resto.

E despedindo-se de Margarida, e de João, retiraram-se para as suas
casas.




SEGUNDO SERÃO

Cesar e os montanhezes do Herminio.--O imperio romano.--O
christianismo.--Os barbaros.--Suevos, alanos e visigodos.--Os mouros.--O
reino das Asturias.--O reino de Leão.--Portucale.--Os condados de
Portugal e de Coimbra.


--Meus amigos, começou o João da Agualva, apenas todos fizeram roda no
domingo immediato, e que a boa da tia Margarida, depois de carregar a
sua roca, principiou a fazer girar o fuso nos seus dedos ageis, deixámos
no outro dia os bons dos nossos lusitanos, depois da morte de Sertorio,
costumados já á civilisação romana, e fallando o latim como se tivesse
sido sempre a sua lingua, gostando de dar as suas passeatas até Roma, e
provavelmente chamando barbaros aos que se lembravam com saudades dos
tempos de Viriato. Nas serras continuavam a refilar o dente aos senhores
do mundo, e o proprio Cesar, que veio a ser depois um grande homem,
estreiou-se nas guerras, tendo cá na Lusitania os seus dares e tomares
com os montanhezes do Herminio, que vieram diante d'elle em rota batida
até aqui ás proximidades de Peniche, pouco mais ou menos, e que, quando
deram de cara com o mar, não estiveram lá com meias medidas, metteram-se
n'umas jangadas, e foram merendar ás Berlengas, deitando a lingua de
fóra ao sr. Cesar, que se foi embora de queixo caído. Mas isso eram
barulhos lá de quando em quando. A verdade é que a Lusitania estava
sendo devéras romana, e então, quando lá em Roma á republica succederam
os imperadores, nem mais se pensou em independencias, nem meias
independencias. As cidades com os nomes romanos ferviam por ahi, as
estradas militares cortavam o paiz, e uma pessoa podia ir de Lisboa até
Roma sem perguntar a ninguem. Hoje diz-se: quem tem bôca vae a Roma.
Pois n'aquelle tempo, e com as estradas militares, bastava ter pés e
olhos, ía-se lá direito como um fuso.

--Havia caminho de ferro? perguntou o Zé Caneira embasbacado.

--Qual caminho de ferro, bruto! Teu avô ainda nem sabia que vinha isso a
ser, e já tu querias que o teu trigesimo ou quadragesimo avô andasse de
wagon! Não senhor, eram estradas ordinarias, mas feitas com todo o
cuidado e limpeza, e que, partindo de Roma, íam ter aos pontos mais
distantes do imperio! Lá que os taes romanos eram um grande povo,
isso eram!

--Pois sim! mas regalaram-se de levar tapona cá na nossa terra,
interrompeu o Bartholomeu.

--Quem vae á guerra dá e leva, respondeu o João da Agualva, e a final
quem vence é quem mais sabe. Se os romanos venceram, não foi nem porque
tinham mais força, nem porque eram mais valentes, foi porque sabiam
mais. Tu verás ao depois. Olha que isto cá no mundo não se leva a poder
de bordoada. Queres um exemplo? Ora ahi tens tu o mundo todo romano. O
imperador está em Roma, e tudo governa. N'isto sáem da Judéa uns homens
de bordão na mão, e de pés descalços, que começam a prégar por esse
mundo, a dizer que Deus veiu á terra, que foi crucificado, que disse que
todos os homens eram iguaes, senhores e escravos e grandes e pequenos,
que a gente deve amar não só os seus amigos, mas tambem os seus
inimigos, que ha mais alegria no céu pela volta de um peccador, que se
arrepende, do que pela entrada de noventa e nove justos, e outras cousas
assim que embasbacavam todos, e vae os imperadores romanos começaram a
scismar que esta gente, que lhes fazia mal, que desorganisava tudo, e
botam a chacinar n'esses sujeitos que se diziam christãos, e a
queimal-os, e a deital-os ás feras, e a martyrisal-os, e quanto mais os
desbastavam mais elles cresciam, e tanto e tanto que lhes não digo
nada. Ás duas por tres o mundo romano tinha sido conquistado, sem pau
nem pedra, por esses soldados de Christo. Ora aqui tens tu como quem
vence nem sempre é a força bruta.

--Essa agora é mais fina! accudiu o Manuel da Idanha. Esses, se
venceram, é porque eram os santos apostolos, e porque prégavam a palavra
de Deus.

--Pois assim é, Manuel, dizes tu muito bem, mas é que isto que se chama
civilisação não é tambem senão a palavra de Deus. A civilisação é o que
concorre para nos fazer melhores, mais dignos de ser homens. Umas vezes
prégam-n'a os santos, outras vezes são os sabios, e ás vezes tambem são
os soldados, porque Deus de todos os meios se serve para chegar aos seus
fins. E é assim que o instrumento d'isto a que eu chamo civilisação umas
vezes é o livro, outras vezes a cruz, e outras vezes a espada.

Os bons dos saloios ouviam boqui-abertos estas cousas todas, que só o
Manuel da Idanha parecia perceber um bocadinho, por isso o João da
Agualva, que não queria perder a attenção do auditorio, apressou-se a
continuar:

--Isto quer dizer, meus amigos, que foi por este tempo que principiou a
prégar-se no mundo a nossa santa religião, e foi cá a nossa terra uma
das primeiras que se converteram. Dizem até que veiu aqui o proprio
apostolo S. Thiago, mas isso estou que são lérias; o que é certo, porém,
é que ainda quasi não havia bispos por esse mundo de Christo, e já Braga
era bispado, tanto assim que se chama ao arcebispo de Braga arcebispo
primaz das Hespanhas, porque foi o primeiro que na Hespanha houve.

Mas, entretanto, meus amigos, grandes cousas se passavam pelo mundo.
Fóra dos limites do imperio, do lado de lá do Rheno, do lado de lá do
Danubio, havia povos que Roma não conseguira conquistar: gente selvagem
como os luzitanos do tempo do Viriato; valentes como elles, e ao mesmo
tempo gente inquieta que não parava n'um sitio e que não podia viver
quasi senão de caça e de rapina. Tinham os romanos um trabalhão em os
conter, mas, quando o imperio começou a fraquear, porque aquillo estava
já sendo uma choldra, quando as legiões, que é como quem hoje diria as
divisões e as brigadas, começaram cada uma a apregoar um imperador pela
sua banda, desabam todos aquelles meus amigos sobre o imperio, e foi
como quem diz uma verdadeira inundação. Ahi pelos annos quatrocentos e
tantos caíram em cima de Hespanha, vindos das bandas dos Pyrenéus, nada
menos de tres povos, os Alanos, os Suevos e os Vandalos. Nós, só á nossa
parte, tivemos dois que tomaram conta de tudo isto, que foram os
suevos e os alanos. Mas aquillo! as florestas de alem do Danubio e do
Rheno parece que se não fartavam de despejar povos que se empurravam uns
aos outros. Atraz d'estes tres povos vieram os visigodos que expulsaram
os outros e ficaram senhores da Hespanha toda. Mas agora ahi têem vocês
como nem sempre quem vence é quem conquista. Julgam por acaso que se
fallou na Hespanha o visigodo, e que as leis visigothicas é que
governaram, e que a religião dos visigodos é que triumphou? Qual
carapuça! os vencidos é que conquistaram os vencedores e deram-lhes a
sua lingua, as suas leis e a sua religião. Porque? porque os mais
civilisados eram os vencidos, e quem mais sabe é quem triumpha.

--Mas então, a final de contas, perguntou o Manuel da Idanha, sempre
isto ficou sendo romano?

--Não, rapaz, não é assim. Ora dize-me uma cousa, quando tu deitas sal e
carne para dentro de uma pouca de agua, o que é que fica? é agua, é
carne ou é sal?

--Essa agora é mais fina, não fica nem uma coisa nem outra, o que fica é
caldo.

--Ora pois ahi tens tu: a agua eram os lusitanos, os romanos foram o
sal, e os visigodos a carne, e de tudo isso saíu uma cousa nova, um povo
novo, este caldo que depois veio a chamar-se portuguez, que é no fundo
lusitano, como o caldo é agua, e a que Roma deu o sal que foi a
idéa, e os visigodos a carne que foi a força.

Acharam graça á comparação os bons dos saloios e o João da Agualva
proseguiu d'esta maneira:

--Mas as cousas não ficaram por aqui, porque no anno de 756 appareceu de
repente em Hespanha gente nova. Eram os mouros. Esses, em vez de vir do
norte, vinham do sul. Seguiam uma religião nova, a de Mafoma. Não eram
uns selvagens, como tinham sido os visigodos. Traziam uma civilisação, e
das mais apuradas. Por isso a lucta que se travou foi medonha:
civilisação contra civilisação, Jesus contra Mafoma. Primeiro venceram
os mouros. Na batalha do Guadalete foram os visigodos vencidos, e morto
o seu rei Rodrigo. Em pouco tempo tinham os mouros tomado toda a
Hespanha. A nossa terra lá foi tambem para elles. Só nos montes das
Asturias, que são levados de quantos diabos ha, um punhado de visigodos
continuou a resistir, commandados por um tal Pelayo, que foi o primeiro
rei das Asturias. Metteram-se os mouros com elle, levaram para o seu
tabaco. Deixaram-n'o lá estar no seu reino, que era como quem diz um
ninho de aguia, encarapitado no cucuruto das montanhas, e c'o a breca,
parece-me que uma aguia c'o as azas estendidas fazia-lhe sombra a elle
todo. A pouco e pouco foi augmentando. Agora tomava-se uma cidade,
logo outra; a grão e grão, diz o proverbio, enche a gallinha o papo.
D'ahi a duzentos annos já os visigodos tinham tirado aos mouros terras
bastantes para formar não só um reino, mas uns poucos. A moda que havia
de se dividir o reino pelos filhos de um rei que ía para o outro mundo,
dava este resultado. Deixemos, porém, isso, e vamos a saber o que era
feito de nós.

--Isso é que é, acudiu o Bartholomeu, os hespanhoes que tratem de si.

--Pois nós faziamos parte do reino que se chamou reino de Leão; quando
digo nós, quero dizer de Coimbra para cima, porque, entre Coimbra e
Lisboa, umas vezes era-se mouro e outras vezes christão, mas de Lisboa
para baixo não havia duvida nenhuma, era tudo moirama.

--Mas então, vamos a saber, isto era já Portugal ou não era Portugal?
perguntou o Zé Caneira.

--Ora com que tu vens! Sabes o que era Portugal? Era, para assim dizer,
o Minho. Havia Portugal e havia o condado de Coimbra. Portugal
chamava-se assim porque na foz do Douro havia uma terra que se chamava
_Cale_, que depois se mudou em Gaya, e vae defronte mesmo á beira do
rio, começou a levantar-se outra terra que se chamou _Portus Cale_ ou
_Porto de Cale_. Esta terra é o que se chama hoje simplesmente _Porto_,
e o nome de _Porto de Cale_, que se foi mudando em Portugal, dava-se
a tudo o que ficava para o norte do Douro. E aqui está, meus amigos,
como Portugal deve o seu nome ao Porto, exactamente como depois lhe veio
a dever a liberdade.

--E então Coimbra já não era Portugal?

--Não, rapaz. Coimbra era outro condado, tambem christão, mas que tinha
existencia sobre si. Ora o que lhes digo, meus amigos, é que a corneta
do destacamento que chegou hoje está já a tocar a recolher, que são
horas de se ir chegando cada um para suas casas, e que no proximo
domingo continuaremos a nossa historia.




TERCEIRO SERÃO

D. Affonso VI de Leão.--O conde D. Henrique.--D. Thereza.--O conde de
Trava.--Batalha de S. Mamede.--Egas Moniz.--Fundação da monarchia.--D.
Affonso Henriques.--Os cruzados.--D. Sancho I.--D. Affonso II.--D.
Sancho II.--D. Affonso III.


--Viram vocês, meus amigos, tornou o João de Agualva, no domingo
immediato, que o Portugal de agora, ahi pelo anno mil, pouco mais ou
menos estava, do Mondego para baixo, quasi todo em poder dos mouros, e
do Mondego para cima distribuido em dois condados, um que se chamava de
Portugal, que era como quem diz do Porto, e o outro que se chamava de
Coimbra, e ambos estes condados faziam parte do reino de Leão, onde
governava um rei de cabellinho na venta, chamado o sr. D. Affonso VI.
Ora, como D. Affonso VI tinha sempre guerra com os mouros, e como n'esse
tempo o grande pratinho para um principe ou para um fidalgo, era jogar
as cristas com elles, tanto que os íam buscar a casa de seiscentos
diabos, só para lhes dar tapona, aconteceu que dois francezes, chamados
um Henrique e outro Raymundo, ambos primos, e ambos da casa de Borgonha,
em vez de ir á Palestina, vieram aqui a Hespanha, que lhes ficava mais
ao pé da porta, pedir para dar tambem as suas garfadas nos de Mafoma.
Não havia duvida, a mesa estava sempre posta e podiam servir-se á
vontade. Deram bordoada de crear bicho, e o D. Affonso VI, que viu que
eram uns valentões, e que lhe podiam prestar para muito, casou-os com
duas filhas que tinha, uma legitima filha do matrimonio, e outra cousas
e tal etc. A primeira chamava-se Urraca e foi para o Raymundo, a segunda
chamava-se Tareja ou Thereza, e dizem até que era uma rapariga de truz,
para o Henrique. Ora ao primeiro, como era casado com a legitima, deu
elle o governo de toda a parte do reino, que ficava á borda do mar,
desde os altos da Galliza até ás proximidades do Tejo, e a D. Henrique
deu especialmente os condados de Portugal e de Coimbra, ficando sempre
sujeito ao primo. Ha quem diga que Portugal veiu como dote de D. Tareja!
Tó carocho! N'esse tempo nem os paes davam dotes ás filhas, os que
queriam casar com ellas é que ainda davam alguma cousa.

--E acho isso muito bem entendido! exclamou vivamente o Zé Caneira, que
tinha uma filha casadoira.

--Pois sim! redarguiu sorrindo o João da Agualva. O que é certo é que a
moda não pegou. D. Henrique, porém, ficou sendo vassallo de Affonso VI,
e empenhou-se em alargar os seus dominios, dando pancadaria nos mouros.
Muito cedo deixou de ser sujeito a seu primo, e teve a sua capital em
Guimarães, que por isso se chama o _berço da monarchia_. Mas este D.
Henrique parece que tinha bicho carpinteiro, foi á Palestina, como se
não tivesse por cá mouros com fartura, e, quando o sogro morreu deixando
o throno á cunhada D. Urraca, que já então era viuva, o bom do conde
metteu-se em todos os barulhos que lá íam por Hespanha, para ver se
apanhava mais alguma cousa para si. Qual carapuça! não apanhou nada, e
ía perdendo muito, porque os mouros, que se viram á larga, começaram a
fazer-se finos, e já subiam por ahi acima, como quem estava com desejo
de se espreguiçar o seu pedaço nos montes verdes de Coimbra.

No meio d'esta azafama toda, morreu em 1114 o honrado conde deixando uma
viuva muito frescalhota ainda, e um filho pequeno que teria os seus tres
annos, e se chamava Affonso Henriques, que é o mesmo que se dissesse
Affonso filho de Henrique, assim como Sanches queria dizer filho de
Sancho, Fernandes filho de Fernando, e Martins filho de Martim.

--Ora essa! exclamou um que até ahi estivera silencioso, aqui estou eu
que me chamo Antonio Martins, e mais meu pae chamava-se José.

--Pois isto que eu digo, tornou João, era n'aquelle tempo, depois os
nomes ficaram, mas já sem se lhes saber a significação, como acontece a
muitas outras cousas.

A mãe de D. Affonso Henriques, que era uma mulher bonita e
desembaraçada, continuou a andar por cercos e batalhas, sempre a ver se
isto cá em Portugal ficava independente, e, emquanto ella assim
procedeu, correu tudo bem; mas isto de mulheres sempre são mulheres--não
se zangue, tia Margarida--e D. Thereza lá teve o seu fatacaz por um
conde gallego, Fernão Peres de Trava, que d'ahi a pouco era quem punha e
dispunha em Portugal. Não agradava isso muito aos nossos fidalgos, e
menos ao rapazelho, que era levadinho da bréca, esperto como um alho,
valente como seu pae, e que fôra de mais a mais educado por um fidalgo
ás direitas, um tal Egas Moniz, portuguez dos quatro costados. Já se vê
que o aio não lhe ensinou a revoltar-se contra sua mãe, e até devo dizer
que são verdadeiras patranhas muitas das cousas que a esse respeito se
contam. Por exemplo, diz-se que o rapazote andava ás bulhas com a mãe, e
que o rei de Leão, D. Affonso VII, viera em soccorro da tia contra o
primo. Peta! D. Affonso VII veiu a Portugal, é verdade, mas foi para
obrigar a infanta-rainha (assim lhe chamavam) e o filho e os fidalgos e
todo o povo a reconhecer a sua suzerania. Apanhou o rapaz em Guimarães,
cercou-o, e pôl-o deveras em talas. Egas Moniz foi ter com elle, e
disse-lhe que se fosse embora e que lhe empenhava a sua palavra que a
sua suzerania seria reconhecida. Affonso VII assim o fez, e partiu d'ali
contra D. Thereza, que essa reconheceu-o immediatamente por seu senhor e
suzerano. Mas D. Affonso Henriques, livre do primo, pediu á mãe que
fizesse favor de lhe dar o governo a elle, que sempre era mais portuguez
que o conde de Trava. Este disse á rainha que não tivesse cuidado, que
elle iria dar uma duzia de palmatoadas no pequeno. Foram boas as
palmatoadas! Em S. Mamede, ao pé de Guimarães, e no anno de 1128, o
conde gallego levou uma esfrega, e teve de se pôr a andar, levando
comsigo D. Thereza. De fórma que nem D. Affonso Henriques prendeu a mãe,
nem fez cousa que se parecesse com isso. Quiz apenas governar, porque
tinha o direito de o fazer, e porque os barões portuguezes estavam
fartos de aturar o gallego. E a vassallagem que promettera a D. Affonso
VII? Boa vae ella! Mesmo agora D. Affonso Henriques pozera fóra o
gallego para se sujeitar ao de Leão! Nem se pensou em tal. Mas Egas
Moniz tinha dado a sua palavra, e não queria que um patife de um
estrangeiro dissesse que havia portuguezes desleaes. Não contou nada
ao seu querido discipulo, e foi até dos primeiros a aconselhar que se
mantivesse a independencia, mas agarrou em si, na mulher e nos filhos, e
foram todos de corda ao pescoço ter com o rei de Leão, e dizer-lhe:
«Para resgatar a minha palavra, só tenho a minha cabeça e a dos meus!
Ellas aqui estão!» O rei ficou assombrado d'este acto de lealdade e
mandou-os embora com palavras de muito louvor.

--Homem! isso agora parece-me asneira! acudiu o Zé. Que diabo de culpa
tinha elle que esse D. Affonso Henriques não fizesse o que promettera?

--Nenhuma, bem sei! mas elle é que ficára por fiador. Outro seria que
dissesse: Eu quiz, mas não pude. Elle foi mais franco e disse: Não pude
e não quiz. O interesse da nação oppunha-se a isso, mas a minha vida ha
de resgatar a minha palavra, e não se fundará n'uma deslealdade a nova
monarchia.

--Aquillo é que eram homens! murmurou o Manuel da Idanha.

--Espera que tu vaes ver o que era um homem. Este Affonso Henriques
digo-te que foi mesmo fadado para fundador de reino. Não parava um
instante. No principio do governo, andou sempre á bulha com o primo, e
com os gallegos, e tudo era ver se passava o Minho; mas um bello dia
olhou para o sul, e percebeu que para ali é que havia muito que fazer.
Os mouros começavam a dar signal de si, e a romper de novo por ali
acima. Em 1139, Affonso Henriques vae só n'uma galopada até ao Alemtejo,
derrota os mouros em Ourique, e volta para casa. A respeito de Ourique
tem havido mosquitos por cordas. Diz-se que appareceu Nosso Senhor a D.
Affonso, que este foi ali acclamado rei pelos soldados, que aquillo foi
uma batalha formidavel, etc. Eu cá não me metto n'essas cousas. Que
Nosso Senhor Jesus Christo apparecesse crucificado a D. Affonso
Henriques, é muito possivel, Deus póde fazer estes milagres, sempre que
lhe aprouver, e milagre de Deus foi a nossa historia toda. Sem a ajuda
de Nosso Senhor mal podia este pequeno povo fazer o que fez. Que a
batalha fosse muito importante, não me parece, pelo menos não teve
consequencias; ficou tudo como d'antes, e o que se não póde dizer é que
o quartel general fosse em Abrantes, porque a Abrantes ainda nós não
tinhamos chegado; que os soldados se lembrassem de acclamar D. Affonso
Henriques rei n'essa occasião tambem me parece historia. Sou capaz de
apostar que rei já lhe chamavam ha muito tempo, como chamavam rainha á
mãe; de mais a mais, esse titulo de rei, que affirmava mais a nossa
independencia, onde se deveria dar era n'uma batalha contra os leonezes,
mas n'uma batalha contra os mouros, que tanto se importavam que Portugal
fosse independente, como que fosse vassallo de Leão, a quem tanto
convinha que Affonso Henriques fosse rei como que fosse conde, não
se percebe. Diz-se tambem que foi nas côrtes de Lamego que o titulo se
confirmou. Ora adeus! Côrtes com clero, nobreza e povo ainda cá se não
faziam. E de mais, quem diz isso parece que imagina que n'aquelle tempo
se passavam as cousas como agora, e que isto de fazer rei um conde
soberano era negocio que se não podia praticar sem grandes ceremonias e
ajuntamentos. Boas noites, meus amigos. Oiçam vocês o que succedia!
Morria o rei de Leão, por exemplo, e dividia os estados pelos filhos, e
aqui ficava sendo um rei da Galliza, o outro rei de Leão e o outro de
Castella. E depois juntavam-se os estados, e já não havia reinos nem em
Galliza, nem em Castella, depois tornavam-se a separar, e assim andavam,
sem maior massada. D. Affonso Henriques fizera-se independente, era o
essencial, depois começaram a chamal-o rei, e rei se ficou chamando. O
que elle fez, como era espertalhão, para garantir a conservação do
reino, foi declarar-se vassallo do papa, e mandar-lhe pagar um pequeno
tributo, para que o pontifice lhe valesse. A manha não era má; n'aquelle
tempo quem tinha por si a côrte de Roma tinha tudo.

Mas o caso não era chamar-se uma pessoa rei, era ter um reino que
merecesse o nome, e esse Portugalsito, que vinha apenas do Minho até ao
Mondego, para fallar a verdade, não parecia lá um grande reino. E
vae D. Affonso Henriques disse então com os seus botões: Toca a
alargal-o! Ora o que faz um de vocês quando se vê com uma terrola para
seu grangeio? Cospe nas mãos, agarra na enchada, começa a fossar o chão,
e ali está desde pela manhã até á noite. D. Affonso Henriques fez o
mesmo, cuspio nas manoplas, arrancou do montante, e elle ahi vae para a
faina em que andou desde pela manhã até á noite, quer dizer, desde que
lhe apontou o buço até que a morte pregou com elle na sepultura. O
montante era a sua enchada, rapazes, e, a cada enchadada, saía do chão
sarraceno agora Santarem, depois Lisboa. Ah! meus amigos, que vida!
Aquillo era um lidar continuado! Elle casou com uma princeza de Saboya,
a sr.ª D. Mafalda, mas estou em dizer que não foram muitas as noites em
que dormio muito bem aconchegado com ella nos seus paços de Coimbra.
Alta noite lá ía elle tomar Santarem, de surpreza, e outra vez
constava-lhe que ía uma gente do norte fazer guerra aos mouros na
Palestina, para defender contra elles o sepulchro de Christo, e vae D.
Affonso Henriques ía logo á beira-mar ter com os homens, e pedir-lhes
que descançassem aqui um pedaço, e que o ajudassem ao mesmo tempo na sua
tarefa de todos os dias. Elles não se fizeram rogar, desembarcaram, e
d'ahi a pouco estava Lisboa no poder dos nossos. Muitos d'elles por cá
ficaram, porque D. Affonso Henriques deu-lhes terras, e até ha por
ahi povoações que ainda se chamam com os nomes d'elles, por exemplo
Villa Franca, que é como quem diz villa dos Francos, etc.

--Então os de Villa Franca são estrangeiros? perguntou o Manuel da Idanha.

--Qual carapuça, homem! Tu não te lembras da minha comparação do caldo?
Não é sal, nem agua, nem carne; mas tem carne, agua e sal. A carne eram
os godos, a agua os luzitanos e os romanos o sal; pois tambem no caldo
se deita ás vezes o seu raminho de hortelã ou de segurelha, que sempre
lhe dá assim um sabor mais cousas, tal, etc., pois esses raminhos de
segurelha e de hortelã foram os estrangeiros, que aqui vieram a Portugal
e por cá se deixaram ficar. Vieram tambem contribuir para fazer o nosso
bom caldo portuguez.

--É bem achado, sim senhor, observou a tia Margarida.

--Pois assim mesmo é que é. Ora já vocês vêem que o pobre do D. Affonso
não podia estar muito tempo socegado. Hoje tomava Cintra, amanhã Mafra,
no outro dia Palmella, no outro Abrantes! Era um vivodemonio. Os mouros
com elle andavam n'um sarilho. Por isso tambem tinham-lhe tomado um
medo! Fallarem-lhes no Ibn-Errik, assim lhe chamavam elles na sua
lingua, como quem diz _filho de Henrique_, fallarem-lhes em Ibn-Errik,
era o mesmo que fallarem-lhes no diabo. E que gente que elle tinha!
homens como um Gonçalo Mendes da Maia, o Lidador, que morreu combatendo,
e mais andava já pelos noventa annos, e um que tomou Evora, Giraldo sem
Pavor, e outro que tomou Beja, cada qual por sua conta e risco. Gente
levadinha da bréca, isso é que é fallar a verdade.

Mas, emfim, meus amigos, ainda que se diz «pedra movediça não cria
bolor», sempre dá o caruncho n'uma pessoa, por mais que ella se mexa e
trabalhe. D. Affonso envelheceu, mas antes d'isso já deitára um filho
que era o seu retrato, valente como elle, e homem de grande talento, D.
Sancho, que foi depois rei. Podia morrer descançado D. Affonso
Henriques, deixava a sua espada em boas mãos e a sua corôa em boa
cabeça. E com essa consolação morreu em 1185 el-rei D. Affonso
Henriques, depois de ter não só tornado o reino independente, mas de o
ter alargado até ao meio do Alemtejo, e principalmente de ter tomado
Lisboa que era, como diz o outro, a menina dos olhos dos arabes, a
cidade sem a qual não se podia fazer cá para estas bandas cousa que
geito tivesse. Ah! meus amigos, se algum de vocês fôr alguma vez a
Coimbra, e entrar na igreja de Santa Cruz, suba até á capella mór, e
olhe para os dois tumulos que ali se vêem, pergunte qual é o de D.
Affonso Henriques, e depois ajoelhe diante d'elles, porque, com
seiscentos diabos, se nós hoje não somos para ahi uns gallegos e uns
andaluzes, se démos que fallar no mundo, e praticámos cousas que fazem
com que uma pessoa tenha orgulho de se chamar portuguez, oh! com a
bréca, é a elle que o devemos, porque, como lá diz o outro, de pequenino
se torce o pepino», e este reino de Portugal era bem pequerrucho ainda,
quando esse homem de ferro levou a sua vida inteira a costumal-o a fazer
cousas grandes.

E o bom do João da Agualva limpou o suor, que lhe escorria pela testa
com o enthusiasmo que o inflammava. Os seus companheiros escutavam-n'o
silenciosos, e já não faziam interrupções nem observações. Estavam
deveras interessados com a narrativa.

--Meus amigos, continuou o João da Agualva, no governo como na lavoura
ha tempo para tudo, agora cava-se e depois semea-se. Primeiro compra-se
a terra e depois é que se amanha. Pois assim foi em Portugal; D. Affonso
Henriques ou D. Affonso I conquistára, D. Sancho tratou de povoar. Por
isso a historia chamou _conquistador_ ao primeiro e _povoador_ ao
segundo; e olhem que isso não quer dizer que D. Sancho não fosse tambem
um guerreiro de truz. Tó carocho! Já na vida do pae elle dera que
fallar. Apenas o pae morreu, começou elle a namorar uma terra do
Algarve, que hoje está bem decaída, mas que n'esse tempo era, por assim
dizer, a Lisboa lá do sul--Silves. Não se lhe mettia dente, porém,
com facilidade. Para ir lá por terra, era custoso como o demonio, para
ir por mar, é de saber, meus rapazes, que o sr. D. Sancho I ainda não se
lembrára de comprar nem a fragata _D. Fernando_, nem esse navio com que
andam por ahi sempre os jornaes aos tombos, e a que uns chamam o
_Pimpão_ e os outros o _Vasco da Gama_.

Uma gargalhada geral mostrou que os bons dos ouvintes tinham apanhado
facilmente o chiste do jovial anachronismo do narrador.

--Mas, meus amigos, isto de Portugal ficar no caminho da Palestina para
os christãos que vinham lá das terras do norte, foi uma verdadeira
pechincha. Descançavam aqui e sempre havia por cá algum biquinho de
obra. Foi o que succedeu tambem d'esta vez. D. Sancho apanhou uma frota
de cruzados...

--Novos? perguntou o Zé.

--Novos eram elles, que não costumavam vir para a guerra os carecas como
tu; mas é de saber que se chamavam cruzados aos christãos que tinham ido
tirar o sepulchro de Christo das mãos dos infieis, e que depois o
defendiam. D. Sancho apanhou pois uma frota de cruzados, e disse-lhes
d'esta maneira:

«--Vocemecês é que me podiam fazer um favor.

«--Se estiver na nossa mão!...

«--Lá isso está. É simplesmente acompanhar-me ali a baixo a Silves,
e ajudar-me a intimar mandado de despejo aos mouros que lá estão dentro.
Eu fico com a cidade, e os senhores levam as riquezas que se apanharem.

«--Vá de feição.

E foi. Tomou-se Silves, tanto mais que lhes ficava na estrada, e não
tinham de torcer caminho. Mas D. Sancho não poude continuar com essas
funçanatas, porque os mouros cá da peninsula, que começavam a estar
assim esmorecidos, receberam de repente uns reforços da Moirama, e...
não lhes digo nada, vieram outra vez por ahi acima que parecia que
tornava a haver invasão. Foi uma torrente que levou tudo adiante de si.
O Tejo tornou a ser a fronteira de Portugal, e apenas no Alemtejo uma
terra ou outra surgia ainda, como uma ilha, com a bandeira portugueza,
d'entre as ondas da mourisma. Então D. Sancho pensou que primeiro que
tudo era necessario tratar do que era seu, e começou n'uma lida
abençoada: elle mandou vir gente do norte da Europa para povoar os
nossos campos desertos, elle edificou, elle fez castellos, elle cuidou
emfim de tudo, e não se esqueceu tambem de mostrar aos bispos que tinha
muita contemplação por elles, emquanto se limitavam ás suas rezas, mas
que lhes não permittia metter o nariz assim de muito perto nos negocios
do estado. A final, este bom rei morreu, menos velho que o pae, em 1212.
Tinha sido casado com uma princeza chamada D. Dulce, filha do conde
de Barcelona. De fórma que aqui temos pois já duas rainhas de Portugal,
D. Mafalda e D. Dulce.

O filho mais velho de D. Sancho, que veiu a ser rei depois d'elle, não
se parecia muito, valha a verdade, nem com o pae, nem com o avô, mas
olhem que nem por isso foi menos util cá ao nosso paiz. É o que eu digo.
Cada qual tem a sua tarefa. Uns cavam, outros semeam, outros põem fóra
os pardaes e arrancam o joio, que podem dar cabo da ceara. Foi esta a
tarefa de D. Affonso II. Ora vêem perfeitamente que, se este Portugal
tão pequeno se começasse a dividir, pedaço para aqui, pedaço para acolá,
ía-se tudo quanto Martha fiou. D. Sancho, que tivera uma sucia de
filhos, pensára mais em os deixar bem arranjados do que em assegurar a
conservação do reino. Por isso no testamento era umas mãos rotas. Esta e
aquella villa para o senhor infante fulano, esta e aquella cidade para
sicrano, e terras para este, e terras para aquelle. D. Affonso II
arrebitou a venta, e disse d'este modo: Então vamos a saber, e eu com
que fico? E ahi começa á bulha com as irmãs e com os fidalgos. Andava
tudo em polvorosa com elle. Os fidalgos, por exemplo, tinham recebido de
D. Affonso e de D. Sancho esta ou aquella terra, mas íam-se fazendo
finos, e por sua conta e risco íam apanhando mais alguma, os frades
então nunca chegaram á cabeceira de um moribundo que não apanhassem
algumas terras de bom rendimento. Isto assim não póde ser, berrava D.
Affonso II, ás duas por tres fico a olhar ao signal. E elle ahi vae por
essas provincias fóra, a obrigar os fidalgos a pôr para ali os titulos
das suas propriedades, declarando que não valiam senão os que elle
confirmasse, e foi a isso que se chamou _confirmação_. Ao mesmo tempo
prohibia ás corporações religiosas que tivessem mais terras do que as
que tinham. Emquanto ao testamento de D. Sancho I, cumpriu só o que lhe
parecia bom, e, como as irmãs refilassem, houve pancadaria a menos de real.

--Então, por esse andar, os mouros deviam ter vida folgada com elle?
observou o Francisco Artilheiro.

--Lá isso é verdade, e tanto assim que, quando se tomou Alcacer do Sal,
os cruzados, que nos ajudaram, e que nunca pozeram a vista em cima do
soberano, imaginaram que era uma rainha que governava em Portugal; mas,
meus amigos, olhem que o nosso paiz não lhe deve menos por isso. Se as
infantas começam a puxar para um lado, os fidalgos a puxar para o outro,
e ainda os frades a arrancar tambem as terras, n'um abrir e fechar
d'olhos tinhamos para ahi vinte reinos, e adeus Portugal. Mas o
gordanchudo do Affonso II, apesar de se não importar para nada com
os mouros, tinha cabellinho na venta; e por isso os frades foram
prohibidos de ter mais terras, as infantas tiveram de pôr para ali as
cidades que o pae lhes tinha deixado, porque D. Affonso II disse-lhes
que a respeito de corôa em Portugal não havia senão uma, e finalmente os
fidalgos tiveram de receber d'elle as terras mas por favor e mercê real.
De fórma que, a 25 de março de 1223, quando morreu apenas com trinta e
seis annos de idade, Portugal era pequeno, mas estava todo na mão do
rei, o que já era grande façanha.

--E o filho foi pelo mesmo caminho, sr. João? perguntou o Manuel da Idanha.

--Ora, meu amigo, eu te vou dizer o que succedeu ao filho, e por aqui tu
verás se o que eu acabo de dizer não é verdade, e se não ha na historia
exemplos para tudo. O filho era creança, quando subiu ao throno, por
conseguinte foi necessario haver regencia. Chamava-se Sancho o
pequenote, Sancho II, por alcunha o _Capello_, porque em creança andara
com um capuz de frade, lá por promessa da mãe, ou cousa assim. Quem
ficou com o governo foram os ministros do pae, e, ainda que eram homens
de truz, sempre lhes faltava a auctoridade que tinha um rei. De fórma
que toda aquella nobreza e fradaria, quando se viu assim á solta, livre
da mão de ferro de D. Affonso II, começou a alvorotar-se, e os
ministros, para os terem quietos, íam dando o que elles pediam. As
infantas apanharam as cidades, os frades foram juntando terras ás que já
tinham, e parece que o rei andava umas vezes nas mãos de uns, outras
vezes nas mãos de outros. Pouco se sabe d'aquelle tempo. Ia pelo reino
todo uma confusão de seiscentos demonios. O que é certo é que, quando D.
Sancho II chegou á maioridade, estava já tão costumado a não ser rei que
não soube puxar pelos seus direitos. E não era que elle fosse fraco.
Pois não! pelo contrario! Era da raça do avô, não estava bem senão a
cavallo e com os mouros de volta. Tomou uma boa parte do Alemtejo e do
Algarve, mas fidalgos e frades esses faziam o que queriam e sobrava-lhes
tempo. Vêem vocês? Para uma pessoa governar não basta ser um valentão.
Ás vezes um porta-machado, com umas barbaças por ahi alem, anda em
bolandas nas mãos de um creançola, outras vezes uma fraca figura faz
andar um regimento ali direitinho que nem um fuso. D. Affonso não queria
nada com os mouros, o que o não impedia de governar como um homem; para
D. Sancho as batalhas eram o pão nosso de cada dia, e em Portugal todos
governavam menos elle. Cousas da vida! Como os fidalgos faziam o que
lhes dava na cabeça, e os frades tambem, e os bispos a mesma cousa,
parecia que deviam estar todos muito satisfeitos. Mas não succedia
assim. Os bispos queixavam-se dos fidalgos, estes queixavam-se dos
frades, e todos do rei, os frades porque não reprimia os bispos, os
bispos porque não tinha mão nos fidalgos, os fidalgos porque não puxava
as orelhas ao clero. Quando elle saltava nos mouros, ainda as cousas não
corriam mal. A fidalguia gostava d'aquillo, íam todos atrás do rei, e
não se pensava em mais nada. Mas, quando uma hespanholita, chamada D.
Mecia Lopes de Haro, caiu em graça ao rei, que casou com ella, e que
passou os dias a namorar os olhos pretos da rainha, lá se foi tudo
quanto Martha fiou. A desordem excedeu todos os limites, e os bispos
foram ter com o papa a fim de lhe pedirem que tirasse a corôa a D.
Sancho II. O papa, que era Innocencio IV, pulou de contente com o
pedido. Era o mesmo que virem-lhe dizer que era elle quem dava e tirava
as corôas n'este mundo, e que vinha a ser portanto o rei dos reis.
Estava em França n'esse tempo um irmão de D. Sancho II, chamado D.
Affonso, que saíra de Portugal para ir correr terras, encontrára em
França uma condessa de Bolonha, viuva, e já durazia, ao que parece, que
gostou d'elle e com elle casou, levando-lhe o condado em dote. Ora o tal
condado era uma especie de reino, sujeito ao rei de França, que n'esse
tempo era o rei santo que elles tiveram, a saber S. Luiz.

--S. Luiz rei de França, interrompeu a Margarida, é uma igreja que
fica ali para as bandas do Rocio.

--Pois é uma igreja e foi um rei, tia Margarida, respondeu o João de
Agualva, como Santa Izabel é uma igreja que fica ali para as bandas da
Estrella, o que a não impediu de ser tambem uma rainha e rainha de
Portugal.

--Isso é verdade! confirmou a tia Margarida.

--Pois então, como lhes ía dizendo, reinava S. Luiz em França, e D.
Affonso, seu vassallo, por ser conde de Bolonha, fôra com elle á guerra,
e déra provas de ser homem desembaraçado. Lembraram-se d'elle para rei,
e D. Affonso, que era ambicioso, acceitou. Os bispos e os fidalgos
disseram comsigo que um rei feito por elles havia de ser um creado que
tivessem ali no throno, e o papa entendeu tambem que aquillo era «senhor
mandar, preto obedecer». Combinou-se tudo. D. Affonso prometteu quanto
quizeram e ahi vae elle caminho de Portugal, fingindo que ía para a
Terra Santa. Desembarca e principia a guerra civil. Tambem se não sabe
muito do modo como as cousas se passaram. Parece que foi uma guerra
levada do diabo como são sempre as guerras civis, queimaram-se villas e
cidades, arrasaram-se muitas cearas, ficou muita gente na miseria, e o
pobre D. Sancho viu-se abandonado por todos, dizem até que pela mulher,
que fôra, a final de contas, o motivo de todas aquellas cousas.
Houve só um ou outro que se lhe mostrou fiel. D. Sancho teve de saír do
nosso paiz, e foi para Hespanha, onde morreu em Toledo apenas com trinta
e sete annos.

--Pobre do homem! acudiu compassiva a tia Margarida. Então que mal tinha
elle feito áquella gente toda?

--Era um rei fraco, e, como se costuma dizer, não era nem para si nem
para os outros. Até a mulher não fez caso d'elle, porque as mulheres são
assim: em estando uma pessoa embasbacada a olhar para ellas, não fazem
caso nenhum, e ás vezes de quem gostam é de quem lhes chega um _calor_
ao corpo, como o outro que diz.

--Vae-te excommungado, bradou indignada a tia Margarida. Se um homem me
batesse, eu até parece que era capaz de lhe arrancar os olhos.

--Pois sim, tia Margarida! não digo menos d'isso. Mas a rainha D. Mecia
não era do mesmo parecer, e pagou bem as pieguices de D. Sancho!... Só
de dois fidalgos se conta que se mostraram fieis ao desgraçado rei. Um
foi o alcaide de Celorico, que até dizem que fez uma partida com graça.
Estava-o cercando D. Affonso, e elle já não tinha nem uma migalha de
pão, n'isto passa uma aguia por cima da praça com uma truta no bico, e
deixa-a cair dentro da villa. O alcaide, em vez de a comer, manda-a
cosinhar muito bem, e envia-a de presente aos cercadores. D.
Affonso, vendo que na praça havia petiscos d'aquelles, entendeu de si,
para si que estava perdendo o tempo e o feitio, e foi-se embora. Póde
ser que isto seja patranha, mas o que é verdadeiro, sem tirar nem pôr, é
o caso de Martim de Freitas. Esse era alcaide de Coimbra, foi cercado
tambem, não se rendeu. Disseram-lhe que já D. Sancho morrera, e que por
conseguinte era D. Affonso o seu natural successor. Não acreditou.
Affirmaram-lhe que morrera em Toledo. Pediu para ir ver. Deram-lhe um
salvo conducto, e Martim de Freitas, mettendo na algibeira as chaves de
Coimbra, foi de passeio até Toledo. Mostraram-lhe o tumulo do rei,
mandou-o abrir; mostraram-lhe o caixão, quiz ver o corpo; e ao ver emfim
o pobre cadaver do seu rei, que assim morrera aos trinta e sete annos,
longe da sua terra e longe dos seus, ajoelhou e poz as chaves da cidade
nas mãos do rei que lh'as entregára; depois, tirou-as d'essas mãos já
frias que as não podiam segurar, e partiu para Coimbra, entregando-as ao
novo rei, que louvou muito a acção.

--E tinha rasão para isso, tornou a tia Margarida, que estava sendo
agora a interruptora, mas com o tal rei novo é que eu não engraço nada.
Olhem que irmão! Sempre tinha uns figados!

--Não era muito boa rez, não, tia Margarida, mas então n'este mundo não
são só as boas pessoas que servem. Que D. Affonso se importava tanto
com a familia como eu me importo com a familia do imperador da China, é
o que não tem questão, mas que foi um grande rei, isso tambem é verdade.

--Era fresco o tal rei, que assim fazia guerra ao irmão sem mais nem menos!

--Ha mais exemplos d'isso, tia Margarida, e não vão elles tão longe que
uma pessoa se não possa lembrar. Mas olhe que não param ahi as maldades
de D. Affonso. Tambem não fez caso da mulher, a tal condessa de Bolonha,
que nunca foi capaz de pôr pé em Portugal, e casou, em vida d'ella, com
uma filha do rei de Hespanha.

--E ainda você o gaba, sr. João? perguntou a tia Margarida. Sabe o que
eu lhe digo? Parece-me que você é tão bom como elle!

--Olhe, tia Margarida, não me rogue você nunca outra praga, que lá com
essa não me hei de eu dar mal. O que lhe disse é que o sr. D. Affonso
III foi um dos reis que fizeram mais bem ao pobre povo, e sabe vocemecê
porque? Porque era homem de cabeça, e o que succedera com elle não tinha
caído em cesto roto. Elle disse comsigo; Estes patifes d'estes fidalgos
e d'estes bispos são capazes de me fazer a mim o mesmo que fizeram a meu
irmão. Ora, eu sósinho não posso com elles. A quem me hei de encostar?
Olhou em torno de si e vio o povo, o povo em quem ninguem fallava, e que
era a final de contas quem pagava as custas dos barulhos entre os
grandes, o povo que pagava tributos a toda a gente, e que mesmo quando
vivia em seus concelhos governando-se pelos seus foraes, que eram para
assim dizer as suas leis, mesmo então era ralado pela fidalguia. E
Affonso III disse comsigo: Ora ahi está quem me serve. E desata a fazer
concelhos, e, quando reuniu côrtes que até ahi eram só de fidalgos e
padres, chamou tambem procuradores do povo, e favoreceu o mais que poude
o seu negocio, e deu-lhes socego e cousas e tal, de fórma que depois
poude dar para baixo nos prelados, que berravam pelos contractos que
tinha diabo, mas D. Affonso III, que era finorio, abanou-lhes as
orelhas. E que os papas tinham deposto não só o rei D. Sancho II, mas
tambem um imperador da Allemanha, de modo que aos chefes dos estados já
ía cheirando a chamusco, e principiaram a fazer parede contra o papa.
Assim os bispos, que levavam tapona de D. Affonso III, íam a Roma fazer
queixas ao papa, e o papa naturalmente respondia-lhes contando-lhes uma
fabula que lhes vou contar a vocês tambem.

--Conte lá sr. João da Agualva, exclamou o Manel da Idanha, ainda que
eu, a dizer a verdade, não sei lá muito bem o que venha a ser isso de
_fava_ ou _fabula_ ou o que é.

--Fabula é assim uma historia em que os animaes fallam como se fossem
gente, e pelo que elles dizem tira a gente... sim... é como diz o outro
pelos domingos se tiram os dias santos... Eu lá, a estas
explicações, não se póde dizer que seja um barra, mas em fim, em eu
contando o caso, logo vos apercebem.

--É isso mesmo, tio João, conte lá, disse o Bartholomeu.

--Uma vez as rãs foram ter com Deus Nosso Senhor e pediram-lhe um rei, e
Deus Nosso Senhor, que estava de maré, não quiz abusar das pobresinhas,
e atirou-lhes para o charco um cepo; mas o cepo não fazia nada, andava á
tona da agua, para aqui e para acolá, as rãs não lhe tinham respeito
nenhum, e saltavam n'elle, qual debaixo qual de cima, e o cepo sempre um
paz d'alma, que tanto valia terem rei como não o terem. Vae então as rãs
voltaram a Deus Nosso Senhor, e disseram-lhe d'esta maneira: Dê-nos
Vossa Divindade um rei que se veja, um rei que nos governe.--Pois então
ahi vae um rei como vocês querem, respondeu Nosso Senhor, e atirou-lhes
para o charco uma serpente, e a serpente, a primeira cousa que fez, foi
engulir as primeiras vassallas que lhe pareceram mais gordas, e depois
outras e outras, de fórma que as pobres rãs já se não atreviam nem
sequer a coaxar para que sua magestade não desse com ellas. Percebem
vocês agora porque é que o papa podia contar esta historia aos bispos
que íam ter com elle?

--Percebo eu, acudiu logo o Manel da Idanha. É que elles não
descançaram emquanto não pozeram fóra um rei que era um paz d'alma, um
cepo, o D. Sancho II, e foram buscar outro rei que era uma serpente e
que deu cabo d'elles que foi um regalo.

--Ora, tal qual, sô Manel. Com gente assim é que eu me entendo. D.
Affonso III bem se póde dizer que era uma serpente, porque as serpentes
são manhosas, e elle tinha manha a valer. Mostrou-o em tudo, até no modo
como se assenhoreou do Algarve, que era só o que faltava para Portugal
chegar ao mar pelo lado do sul. Tomou-o aos mouros, e isso foi obra de
pouco tempo; mas o rei de Castella começou a berrar que o Algarve lhe
devia pertencer a elle. D. Affonso III nunca lhe disse o contrario, mas
foi arrastando a entrega, e depois aproveitando tudo, de fórma que ás
duas por tres estava senhor do Algarve, e, quando D. Affonso III morreu,
que foi a 16 de fevereiro de 1279, estava Portugal completo e seguro, e,
visto que chegámos ao fim d'esta primeira parte, parece-me que o melhor
é irmos dormir, que para o outro domingo continuaremos.

--Mas ó sô João, disse o Manel da Idanha, já agora, faça favor, não
deixe ir a gente embora, sem nos explicar uma cousa. Vocemecê diz que o
rei, para esmurrar as ventas aos bispos mais aos fidalgos, começou a
fazer concelhos por dá cá aquella palha, e lá isso é que eu não
percebo muito bem. Então que diabo tinham os fidalgos com o haver ou o
não haver concelhos?

--Pois tem rasão, sô Manel da Idanha, e bom é que essas cousas fiquem
explicadas, porque a mim parece-me cá no meu modo de ver que o que nos
importa a nós, que somos do povo, não é tanto saber as batalhas que se
deram, e mais os reis que houve; o que nos importa é saber como é que
viviam os nossos paes, e como se governavam e cousas e tal. Ora pois,
saibam vocês que muitos dos nossos paes eram a bem dizer escravos, não
como os do tempo dos romanos que podiam ser vendidos como uns negros,
mas faziam parte das terras que cultivavam, e com ellas passavam de dono
para dono. Isto foi melhorando, e os servos passaram a ser gente livre,
mas sem ter terras suas; pagavam foros e foros pesados, os senhores das
terras eram os reis, os nobres, os bispos e os mosteiros. As terras dos
reis chamavam-se _terras da corôa_, as dos fidalgos e as da igreja
_coutos_, _honras_ e _behetrias_. Ora os fidalgos, que só tinham
obrigação de servir o rei na guerra e não pagavam mais nada, ou por
herança de seus paes, ou por doações dos reis em recompensa dos seus
serviços, íam mettendo em si o paiz todo, já se vê de embrulhada com os
padres; e os reis pouco tinham de seu, porque, demais a mais, fidalgos,
bispos e conventos apanhavam tudo quanto podiam, o que se lhes dava
e o que se lhes não dava. Por isso D. Affonso fez as taes _inquirições_,
quer dizer, obrigou todos a porem para ali os seus titulos, para se
saber se tinham as terras com direito ou sem elle, estabeleceu mais as
famosas confirmações que punham a fidalguia sempre na dependencia da
corôa, porque cada novo rei confirmava ou não confirmava as doações dos
outros, e finalmente prohibiu aos conventos que arranjassem mais terras.
E vae o povo o que fazia? Sempre que se podia livrar dos fidalgos e dos
padres por qualquer modo e feitio, formava-se um concelho. Então
continuavam a pagar tributo, e serviam nas guerras, mas não estavam
sujeitos a ninguem, governavam-se elles por si, e tinham as terras muito
suas. Ora, como os reis é que os podiam ajudar a ver-se livres da
fidalguia, chegavam-se para elles, e os reis, que tinham nos concelhos
gente que tambem ía á guerra e que lhes pagava tributos, encostavam-se
para esse lado, para terem quem lhes valesse quando os barões ou os
bispos se faziam finos. Aqui tens tu explicado pela rama como cada
concelho, que se formava, era ao mesmo tempo um asylo de liberdade para
o povo e um auxiliar para o rei contra as ameaças dos fidalgos.

--Muito obrigado, sô João da Agualva, tornou o Manel; mas sempre lhe
digo que quem não sabe é como quem não vê. Ora quem me _havera_ de dizer
que esta historia de ter uma terra, um pelourinho no meio da praça,
era de tanta vantagem cá para o povo! Pois até domingo, e tomára eu que
passasse depressa a semana porque divertimentos como este é que ha muito
tempo a gente não apanha.




QUARTO SERÃO

D. Diniz.--A universidade de Coimbra.--Os Templarios.--Santa Isabel.--D.
Afonso IV.--A batalha do Salado.--Morte de Ignez de Castro.--D. Pedro
I.--D. Fernando I.--Leonor Telles.--Estado de Portugal no fim do reinado
de D. Fernando.


--Meus amigos, principiou o João da Agualva, corriam os annos, e lá por
esse mundo de Christo íam todos abrindo os olhos. Os romanos, como lhes
disse, eram um povo que sabia o nome aos bois. Elles faziam estradas,
elles faziam edificios que ainda hoje, arruinados, deixam ficar uma
pessoa embasbacada, elles tinham escolas, o diabo! Mas, depois, vieram
os barbaros dos bosques da Allemanha e da Russia, e zas, tras, catatras,
lá se foi tudo pela agua abaixo. Por muito tempo não se pensou senão em
pancadaria. Tudo era gente rude, os reis não sabiam ler nem escrever, os
povos fallavam uma lingua assaralhopada que nem era latina, nem deixava
de o ser. Mas a pouco e pouco foram-se aclarando as cousas, foi
havendo estudos, e D. Diniz, que subiu ao throno, depois da morte de D.
Affonso III, era já um sabichão. Elle fazia os seus versos de pé
quebrado, que a gente hoje quasi que não entende, mas que eram já
escriptos n'uma lingua com termos, elle emfim vio que havia escolas por
esse mundo onde se ensinava tudo o que então se sabia, e quiz tambem ter
uma que foi a universidade de Coimbra. Depois tratou de fazer do reino
alguma cousa com geito. Já não tinha que pensar em mouros, e então
pensou na lavoura, pensou na marinha, pensou em tudo o diabo do homem!
Mandou vir capitães de navios, de Italia, para ensinarem os nossos, e
ajudou os navegantes do Porto, que sempre foram gente desembaraçada, a
crear uma especie de companhia de seguros, e não se descuidou tambem de
dar para baixo na nobreza e nos padres para elles se não fazerem finos,
e dava-lhes de modo que elles não tinham rasão de queixa, porque era
sempre com justiça. Ora, por exemplo, d'antes havia uma especie de
frades que se chamavam freires militares, que eram, como quem diz,
frades e soldados ao mesmo tempo. Em vez de fazerem voto de rezar e de
jejuar, faziam voto mas era de dar bordoada nos mouros. Havia umas
poucas de ordens n'esse gosto, a ordem dos Templarios, a de S. Thiago, a
de Aviz e outras. Ora, como é de ver, esses templarios, por exemplo, que
se fartavam de tomar terras aos mouros, com algumas haviam de ficar
para si. E depois tinham doações, emfim eram ricos a valer. O que
acontecia por cá, tambem acontecia lá por fóra. Succedeu, pois, que um
rei de França e um papa acharam excellente apanhar para si essas
riquezas todas, e acabaram com a ordem dos Templarios em toda a parte;
mas D. Diniz, que era um homem serio, não esteve pelos ajustes, e
entendeu que seria um roubo tirar aos homens o que elles tinham ganho á
custa do seu sangue, e então, como não havia de desobedecer ao papa,
abolio a ordem dos Templarios, mas passou todos os bens para outra que
pediu ao papa que creasse e a que chamou ordem de Christo.

--Ó sr. João, perguntou o Francisco Artilheiro, esse D. Diniz não era
marido da rainha Santa Isabel?

--Era sim, rapaz, e já vou fallar n'essa rainha, que foi tambem uma das
bençãos de Portugal n'esse tempo. Era filha do rei de Aragão, e bem se
póde dizer que aquella é que foi uma verdadeira santa. Pobre senhora!
Não lhe faltaram desgostos, não. Primeiro houve grande bulha entre o
marido e um cunhado, D. Affonso Sanches, que embirrou em que lhe
pertencia a corôa, apesar de ser mais novo; depois, e isso foi o peor, o
filho, que veio a ser D. Affonso IV, revoltou-se contra o pae, e porque?
Porque el-rei D. Diniz, que era frecheiro, e que se fartou de ter
filhos bastardos, parecia que olhava mais por elles do que pelos
proprios filhos do matrimonio. Imaginem o desgosto da rainha! Primeiro
porque emfim não havia de gostar muito de ver o marido sempre ao laré
com esta e com aquella a arranjar filhos por fóra de casa, e depois por
ver assim a guerra accesa entre seu marido e seu filho. E ainda por cima
o rei desconfiou que ella ía de accordo com o filho, e chegou até a
tratal-a mal, e a mandal-a saír da côrte. Pobre senhora! aquillo era o
que ali estava. Ella tudo supportou com resignação--as infidelidades e
as injustiças do marido, só o que queria era ver tudo em paz. E sempre o
conseguio. Tanto pediu, tanto chorou, que o filho e o pae vieram ás
boas. Mas d'ahi a pouco torna a haver intrigas, e o D. Affonso, que era
um vivo demonio, torna á pancadaria com o pae. Pois senhores, a batalha
estava para ser aqui ao pé de Lisboa, no Campo Grande; mas quando já
começavam á lambada, apparece no meio d'elles a boa rainha, que foi
mesmo o anjo da paz, e depois que ella appareceu ninguem mais se atreveu
a levantar uma lança. Oh! rapazes! digo-lhes que até me parece que não
era necessario que o papa a fizesse santa para que o povo a adorasse!
Pois então se aquella não fosse santa quem é que o havia de ser? Dizem
que mudava o ouro em rosas, e rosas em ouro. Isso creio eu, que aquellas
bentas mãos haviam de mudar em flores tudo em que tocassem, porque
eram, como o outro que diz, mãos puras e boas, como a aragem de maio!
Mas milagres maiores fazia ella ainda, porque as lagrimas que chorava em
segredo caíam depois sobre a cabeça do pai e do filho como orvalho de
paz e como chuva de amor! Sim! Sim! continuou o bom do João da Agualva,
com voz tremula, e meio a chorar, digam lá vocês que ella não mudava
tudo em que tocava em rosas, quando agora mesmo, que diabo! só de fallar
n'ella, parece que até as palavras na minha bôca se estão mudando em
flores!

--Ai! a minha rica Santa Isabel! exclamou a tia Margarida, pondo as
mãos, n'um enlevo. Coitadinha da minha rica santa que foi logo casada
com um homem tão mau!

--Não era mau, não senhora, tornou o João da Agualva, foi até um dos
melhores reis que nós tivemos, mas como elle ás vezes lá escorregava o
seu pedaço, e nem sempre tratou a santa como ella merecia ser tratada,
bastou isso para que o povo começasse a inventar cousas, que elle que
era um sovina, um desconfiado, um unhas de fome, e até os pintores,
quando fazem o quadro do milagre das rosas, põem-n'o com uma carantonha
de metter medo, que ninguem dirá que está ali o rei poeta, o rei a quem
chamavam o pae do povo, o rei que não quiz roubar os templarios, o rei
que fundou a universidade de Coimbra, o rei que tanto se desvelou
pelo bem do paiz! E que as injustiças, por mais pequenas que sejam,
sempre vem a pagar-se, e D. Diniz, esses peccados que teve, pagou-os bem
caro, primeiro com a revolta de seu filho, depois com a injustiça do
futuro, e agora vão vocês ver como o filho tambem pagou o que fizera ao
pae, porque em 1325 morreu el-rei D. Diniz e subiu ao throno seu filho
D. Affonso IV, a quem chamaram o Bravo.

--Ora vamos lá a ver o que fez esse senhor, disse uma voz.

--D. Affonso IV, meus amigos, tinha muito boas qualidades. Era, por
exemplo, um homem de muito bons costumes, e foi isso até que o levou a
praticar uma acção... emfim, depois fallaremos. Era homem serio, mas
arrebatado e vingativo. A primeira cousa que fez, assim que subiu ao
throno, foi vingar-se dos irmãos, por cuja causa tivera as bulhas com o
pai. D'ahi guerra. Quem acudiu? A rainha Santa Isabel.

Casou uma filha com o rei de Castella, Affonso XI. Este, que era do
feitio de D. Diniz, começou a largar a mulher e a metter-se com uma tal
D. Leonor de Gusman. D. Affonso IV, que ficára embirrando deveras com
esses arranjos depois das turras com o pai, começou a criar má vontade
ao genro, e zas, toma que te dou eu, ao primeiro pretexto que teve, ahi
começam as bulhas. Foi uma guerra de cá cá ra cá, que não prestou
para nada, mas que sempre fazia mal ao povo. No mais seguiu á risca o
exemplo do pae. Tratou do povo, teve os fidalgos muito na mão, mais os
padres tambem. E então com esses não foi lá só por causa das terras a
que deitavam a unha, foi tambem por causa dos maus costumes, porque
elles gostavam de passar vida airada e outras cousas que D. Affonso IV
lhes não levou a bem. Por isso apanharam uma vez uma rabecada, n'uma
carta que D. Affonso escreveu ao papa, que foi de ficarem de cara a uma
banda.

--Bem feito! acudiu a tia Margarida. Esse rei sim! esse é que me quadra.
Bem se vê que era filho da rainha Santa Isabel!

--Espere lá, tia Margarida, não falle antes de tempo que, como diz o
outro, até ao lavar dos cestos é vindima. Houve no reinado de D. Affonso
IV duas cousas famosas: primeiro a batalha do Salado, depois a morte de
D. Ignez de Castro.

--Foi com os hespanhoes a batalha do Salado?

--Não homem, foi dada até para os ajudar. Já lhes disse, meus amigos,
que nós desde o reinado de D. Affonso III tinhamos posto os mouros na
rua. Mas os hespanhoes ainda não tinham conseguido o mesmo, os mouros
estavam reduzidos apenas ao reino de Granada, mas sempre isso era alguma
cousa. Ora agora ali em Marrocos estava, como sabem, a moirama toda.
Imaginem que um bello dia o tal miramolim de Marrocos, ou como diabo
se chamava elle, desaba em Hespanha com o poder do mundo e junta-se ao
rei de Granada para darem cabo do rei de Castella. Era este D. Affonso
XI, genro do nosso D. Affonso IV. Aterrado com o perigo, pediu soccorro
ao sogro, apesar de estar mal com elle; mas o nosso rei, homem ajuizado,
vio que a occasião não era para dize tu direi eu, que não era só
Castella que estava em perigo, estava em perigo a Hespanha toda; se
Affonso XI levasse uma tareia e perdesse algumas provincias ficavam aqui
os mouros de raiz, e tinha de se começar outra vez a pôl-os fóra. Por
isso não esperou por mais nada, ajuntou quanta gente poude, e foi em
soccorro do genro. O nosso rei era homem de pulso, os nossos soldados
tambem eram pimpões. O soccorro não foi nada mau. Na batalha do Salado
os mouros levaram uma sova de primeira ordem, e nunca mais os de
Marrocos vieram cá metter o nariz d'este lado do mar. D. Affonso IV
voltou para a sua terra sem ter querido acceitar cousa nenhuma da grande
preza que fizeram.

--E isso de D. Ignez de Castro o que foi, ó sr. João da Agualva?
perguntou a tia Margarida. Não foi essa Ignez de Castro que esteve aqui
em Bellas, que até ali na quinta do marquez ha uma arvore a que chamam
de Ignez de Castro?

--Ora adeus, tia Margarida! esteve agora em Bellas! quer dizer, eu,
como não andei com ella por toda a parte, não sei se por cá passaria
alguma vez, mas onde viveu principalmente foi em Coimbra. Era uma
hespanhola esta Ignez de Castro, linda como os amores, loura como o sol,
e com um pescoço tão bonito, que lhe chamavam o _collo de garça_. Veio
para Portugal como dama da infanta D. Constança que foi mulher do
principe D. Pedro, filho de D. Affonso IV, mas o principe parece que
gostou mais da dama que da mulher. Tristes amores foram aquelles,
rapazes! Ella tinha pelo seu Pedro um fatacaz lá de dentro, que estou em
dizer que mais gostaria ella de que elle fosse um pastor de cabras do
que filho de um rei. A princeza D. Constança morreu, e para isso não
deixaria de concorrer a paixão do marido, que, por mais que elle a
quizesse esconder, rebentava por todos os lados. Coitada da princeza!
tudo fez para arredar o marido d'aquelles mal-aventurados amores. Mas
então! vão lá fugir ao seu destino! Pediu a Ignez de Castro que fosse
madrinha de um filho que ella teve, porque n'esse tempo haver amores
entre compadre e comadre quasi que era maior peccado que havel-os entre
irmãos. Nada! aquillo era como um fogo valente que tanto mais se accende
quanto mais agua lhe deitam. Em fim, morreu a princeza, e D. Pedro e D.
Ignez ficaram á vontade, porque até ahi tinham guardado respeito á pobre
senhora. Casariam? D. Pedro assim o jurou depois, mas eu estou em
dizer que não, porque para casarem era necessaria dispensa graúda, que o
papa não daria assim sem mais nem menos e com tanto segredo como o
principe quereria. Mas, ou casassem ou não, é certo que tiveram tres
filhos, e que o principe D. Pedro não queria saber de mais nada senão da
sua loura Ignez.

D. Affonso IV não viu isso com bons olhos. Sabem como elle era. Vivia só
para a sua mulher, queria tudo em boa ordem, e não gostava d'essas
fraquezas. Os fidalgos tambem não gostavam, mas esses por outras rasões.
Tinha D. Ignez muita parentella, e diziam comsigo que, apenas D. Affonso
IV fechasse os olhos, eram os Castros que davam as cartas em Portugal.
Começaram a ferver as intrigas, e chegaram a aconselhar o rei que, visto
que não havia forças humanas que arrancassem D. Pedro á sua Ignez, o
melhor era darem cabo d'ella. D. Affonso IV torceu o nariz, mas lá por
dentro estava em braza. Ora, imaginem vocês! D. Affonso, no principio da
sua vida, tivera os maiores desgostos por causa dos bastardos de seu
pae. Tambem o tinham feito de fel e vinagre os amores de seu genro com
D. Leonor de Gusman. Morria pelo neto, um rapazinho bonito como a
aurora, que tinha de ser depois D. Fernando o Formoso. Lembrou-se das
amarguras que viriam a causar ao rapazito os filhos da amante
querida, que talvez até lhe roubassem a corôa. Subiu-lhe a mostarda ao
nariz com a teima do filho, e deu ordem aos seus tres conselheiros,
Alvaro Gonçalves, Diogo Lopes Pacheco e Pedro Coelho para que o
livrassem de D. Ignez. Ahi vão todos até Coimbra, onde estava muito
socegada a triste da rapariga. Ella, apenas suspeitou do caso, veiu com
os filhos lançar-se aos pés do rei. O pobre D. Affonso enterneceu-se,
mas os conselheiros é que viram o caso mal parado. «Se elle perdôa,
disseram comsigo, nós é que pagamos as favas.» Não esperaram que D.
Affonso resolvesse as cousas de outro modo. Foram-se á pequena, e,
emquanto o diabo esfrega um olho, ferraram com ella no outro mundo!

--Ai que malvados! bradaram todos.

--Isso eram, tornou o João da Agualva. Sim! que eu não desculpo D.
Pedro, nem a desculpo a ella. Se uma mulher, só porque gosta de um
homem, não está lá com mais ceremonias e passa a viver com elle, sem a
benção do padre, aonde irá isto parar? mas tambem matal-a sem mais nem
menos, matal-a no meio dos seus filhos, matar uma pobre menina, que não
fazia senão chorar, ah! só uns malvados eram capazes de fazer similhante
cousa. Por isso tambem, vêem vocês? D. Affonso foi um bom rei, um homem
de bons costumes, um valente, tudo quanto quizerem, mas a final de
contas perguntem ahi a um pequeno:--Quem era D, Affonso IV? Cuidam
que elle que lhes responde: Era um bom rei, isto, aquillo e
aquell'outro. Não, senhores, diz logo: Foi o rei que matou Ignez de
Castro. E como assassino é que a gente o conhece, e no seu manto real
não se vê o sangue das batalhas, vê-se mas é o sangue de Ignez! E esta?
Se a não matassem, o que dizia a historia? Foi a amante de um rei. Olhem
que gloria! E assim? Todos choram por ella, como a tia Margarida, que
está ali a limpar os olhos com a ponta do seu avental.

--E o que fez D. Pedro? perguntou o Manuel da Idanha.

--O que fez D. Pedro? Ah! com os diabos! Imaginem! Elle ainda tinha
peior genio que o pae. Apenas soube do que succedera, aquillo parecia um
leão ferido. Saltou logo para o campo em som de guerra, e D. Affonso
pagou o que fizera ao pae, porque teve tambem o filho revoltado contra
si. Correu muito sangue por esse reino, até que emfim se fez a paz, mas
D. Affonso IV pouco tempo sobreviveu, morrendo em 1359, dois annos
depois da morte de Ignez.

--Subio ao throno D. Pedro, não é verdade? perguntou com muito interesse
o Manuel da Idanha.

--É verdade que sim, e, meus amigos, então é que se viu o amor lá de
dentro que elle tinha á sua Ignez. Apenas subio ao throno, os assassinos
da Castro safaram-se para Hespanha, mas D. Pedro lá fez o seu
negocio com o rei de Castella, de fórma que apanhou os criminosos, menos
um, Diogo Lopes, que conseguiu fugir. Assim que os teve em seu poder,
fez-lhes torturas. A um mandou arrancar o coração pelo peito e a outro
pelas costas.

--Credo! exclamou a tia Margarida.

--Por isso lhe chamavam D. Pedro o Cruel, assim como tambem lhe deram o
nome de D. Pedro o Justiceiro. Justiça fez elle, porque bradava aos céus
a morte de D. Jgnez, mas uma crueldade assim é de se porem a uma pessoa
os cabellos em pé! Que mais querem? D. Pedro parece que não pensava
n'outra cousa senão na sua Ignez, elle trasladou-a, com um estadão nunca
visto, de Coimbra para Alcobaça, onde lhe mandara fazer um tumulo que
era mesmo uma lindeza. Elle declarou que tinha casado com ella, e até se
diz que a sentou, depois de morta, no throno, e mandou que todos lhe
beijassem a mão. Mas isso parece-me patranha, ainda que D. Pedro era
capaz d'essas extravagancias e de muitas mais. Porque effectivamente,
meus amigos, parece que elle tinha endoidecido com a morte de D. Ignez.
Tinha assim de repente umas furias que era livrar quem estivesse diante.
Era justiceiro, é verdade, mas fazia justiça á doida e á bruta. Outras
vezes entrava por essa Lisboa dentro a dançar, muito contente da sua
vida. Governava bem, não ha duvida, punia pelo povo, abaixava a prôa
aos bispos, conservava o reino em paz, e juntava bom dinheiro nos cofres
para uma occasião de apuros, mas era ao mesmo tempo umas mãos rotas com
os fidalgos, que tornaram a fazer-se finos, como se viu depois.

Foi em 1367 que D. Pedro morreu, e logo subiu ao throno D. Fernando, a
quem chamavam o Formoso, de bonito que era. Lá que elle tinha telha,
isso é que não padece duvida, porque nunca se viu uma ventoinha assim.
Aquillo era mesmo um gallo de torre de igreja. Primeiro deu-lhe na tonta
o querer ser rei de Castella, de mais a mais não tendo geito nenhum para
a guerra, e não gostando de batalhas. D'ahi, o que resultou? Gastou o
que tinha, levou pasada de crear bicho, e teve de fazer as pazes. Mas
vejam vocês que cabecinha! Quando fez guerra a Castella, alliou-se com o
Aragão, mandou-lhe para lá bom dinheiro, e prometteu casar com a filha
do rei, que se chamava D. Leonor. Faz as pazes com o de Castella, e, sem
se lembrar já do primeiro casamento, promette casar com a filha do rei
castelhano, que tambem se chamava Leonor. O de Aragão não fez caso,
metteu o dinheiro portuguez, que lá tinha, nas algibeiras, e nunca mais
deu contas. Mas o peor não é isso, o peor é que D. Fernando tambem não
casou com D. Leonor de Castella, porque n'este meio tempo namorou-se de
uma dama do paço, chamada D. Leonor Telles, e desposou-a! Ao menos
n'uma cousa era elle constante, é que não saía das Leonores.

Esta Leonor Telles foi o que se chama uma mulher de truz, bonita como as
que o são, manhosa como a serpente, e dando, como a nossa mãe Eva, o
cavaquinho pelo fructo prohibido. Quando casou com D. Fernando já era
casada com um D. João Lourenço da Cunha, mas lembrou-se á ultima hora de
que ainda eram parentes, e o rei arranjou do papa que desfizesse o
casamento. João Lourenço da Cunha deu graças ao céu por se ver livre da
mulher que estava para lh'a pregar mesmo na menina do olho, e D.
Fernando levou D. Leonor Telles para casa. Mas o povo é que não esteve
pelos autos e gritou e berrou e fez tumulto, tanto que el-rei safou-se
de Lisboa. Houve mosquitos por cordas por esse reino todo, e a final
acabou tudo em paz. D. Leonor ficou sendo rainha, os de Lisboa apanharam
para o seu tabaco e D. Fernando não tardou a levar a paga.

O rei de Castella achou que D. Fernando o tratara com tal ou qual
sem-ceremonia, e quiz-lhe dar uma lição de bem viver. Veio a Portugal,
chegou a Lisboa, entrou por ahi dentro, fez um estrago de seiscentos
demonios, e dava cabo da capital se D. Fernando lhe não vem pedir pazes,
que, já se vê, custaram caras. Aqui ficámos finalmente em socego, e
então D. Fernando parecia outro homem. Sabia governar aquelle rapazote,
quando as mulheres lhe não faziam andar a cabeça á roda, ou quando se
não lembrava de ter outros reinos. Era economico e arranjado. Sabia pôr
as cousas no seu logar. Foi elle que cercou Lisboa de fortificações, que
depois não serviram de pouco ao seu successor.

Mas, coitado, acertára mal, em todos os sentidos, com a tal D. Leonor
Telles, que era mesmo o demonio em pessoa; quando se enfastiou d'elle,
tomou amores com um gallego que vivia em Portugal, chamado conde
Andeiro. El-rei, entretanto, metteu-se outra vez em guerras com
Castella, e pediu auxilio aos inglezes. Oh! rapazes, que tristes tempos
foram aquelles! A vida do paço era um desaforo. Estava ali aquella
mulher, aquella... não sei que diga, a pôr na cabeça a corôa da rainha
Santa Isabel, a corôa que não podéra pôr nos seus cabellos louros a
pobre Ignez de Castro, que, apesar de todos os pezares, era mil vezes
mais capaz do que essa rainha de contrabando, que andou de um para
outro, sem vergonha de qualidade nenhuma! E ainda por cima era malvada!
vingativa! e para ella a vida de um homem valia tanto... como... a honra
do marido, que é o mais que se póde dizer!

O povo desgraçado, porque tudo se juntava. As guerras com Castella
sempre infelizes! os inglezes, como sempre, apesar de amigos, muito
peores do que se fossem inimigos. Os fidalgos de Castella, que tinham
tomado o partido de D. Fernando, tratados aqui á grande! e ainda por
cima D. Fernando sem ter filhos, e com a filha unica já casada com D.
João I de Castella. D. Fernando, apesar da sua cegueira, já ía
percebendo as cousas, e tinha lá por dentro um desgosto que o ralava.
Tambem em 1383, tendo apenas trinta e oito annos de idade, esticou a
canella, depois de um reinado que podia ter sido muito proveitoso, e que
assim foi uma desgraça para todos. E eu tambem me vou chegando para a
cama, não sem lhes dizer que houvera mudança completa no modo de viver
da nossa gente n'estes ultimos reinados. Os fidalgos tinham levado para
baixo, e estavam já em grande parte, por assim dizer, ás sopas dos reis.
Os concelhos do povo tinham-se feito fortes, e batiam o pé á fidalguia,
e ao clero, principalmente, nas côrtes, em que entravam. O resultado de
tudo isso é o que vocês hão de ver de hoje a oito dias.




QUINTO SERÃO

Interregno.--Regencia de Leonor Telles.--Morte do conde Andeiro.--O
cerco de Lisboa.--Nuno Alvares Pereira e João das Regras.--As côrtes de
Coimbra.--D. João I.--A batalha de Aljubarrota.--Os filhos de D. João
I.--Tomada de Ceuta.--Os descobrimentos.--D. Duarte.--Expedição de
Tanger.--Menoridade de D. Affonso V.--O infante D. Pedro.--Batalha de
Alfarrobeira.--Tomada das praças africanas.--Guerras com
Hespanha.--Batalha de Toro.--Ida de D. Affonso V a França.--Continuação
dos descobrimentos.


--Meus amigos, disse o João da Agualva no outro domingo, o que eu agora
vou contar ha de parecer assim a vocês grande patranha, e a todos
pareceria se não houvesse tantas provas da verdade. É caso de uma pessoa
ficar pasmada ver o que fez este paiz só, ao canto do mundo, pequeno
como é. Oiçam, pois, rapazes, com attenção. Apenas morreu el-rei D.
Fernando, tratou logo D. Leonor Telles de fazer proclamar rainha de
Portugal a sua filha D. Beatriz, que era uma pequenota casada com o rei
de Castella D. João I, e ao mesmo tempo fez-se regente. O povo, que não
queria ser castelhano, ou hespanhol como hoje diriamos, nem que o
matassem, começou a levantar-se por toda a parte. Mas o que faltava
era um chefe. Os filhos de D. Ignez de Castro andavam fugidos por fóra
de Portugal, um por isto, outro por aquillo, mas quem estava em Lisboa
era um rapaz muito sympathico, filho bastardo de el-rei D. Pedro, que
este fizera mestre de Aviz, e a quem D. Leonor Telles sempre tivera
muito odio. A elle se dirigiram. O mestre vio que não havia remedio
senão fazer o que o povo queria. Toma logo a sua resolução, vae ao paço
e mata elle mesmo o conde Andeiro, põe-se á frente do povo de Lisboa,
põe no meio da rua D. Leonor Telles, e proclama-se _defensor do reino_.
O povo toma todo, sem excepção, o seu partido, e por todas as
provincias; mas uma grande parte dos fidalgos foram para o rei de
Castella. Entre os que ficaram figurava um rapaz sympathico tambem,
valente como as armas, leal como a sua espada, amigo intimo e dedicado
do mestre de Aviz, Nuno Alvares Pereira.

Sabedor do que se passava, desce a Portugal o rei de Castella com um
exercito poderoso; mas pára deante de Lisboa já fortificada. Os
lisboetas, commandados pelo mestre de Aviz, defenderam-se como homens, e
o rei de Castella teve de se pôr na pireza; entretanto Nuno Alvares
Pereira, que estava no Alemtejo, ganhava a batalha dos Atoleiros, e
começava a estabelecer um systema de guerra que havia de dar muito de
si. Como os concelhos estavam todos com o mestre de Aviz, a força do
exercito era principalmente infanteria. Pois Nuno Alvares Pereira
aproveitou isso para ensinar os nossos a combaterem a pé. Formava uma
especie de quadrado, ou como é que se chama, com os seus soldados,
quadrado onde a cavallaria fidalga vinha sempre despedaçar-se.

--Ah! se elles calavam bayoneta, observou o Francisco Artilheiro, não
entrava lá para dentro nem um cavallaria só que fosse.

--Não calavam bayoneta, respondeu o João da Agualva, porque era cousa
que então não havia, mas fincavam as lanças no chão, e fossem lá entrar
com elles.

Acabado o cerco de Lisboa, reuniram-se os dois amigos, e foram
conquistar todas as terras de Portugal em que os fidalgos tinham
levantado a bandeira de Castella. Ao mesmo tempo reuniram-se côrtes em
Coimbra, para se escolher um rei. Ahi teve D. João I outro amigo,
advogado de mão cheia, fino como um coral, chamado João das Regras, que
foi quem lhe fez ganhar a eleição. Assim, o mestre de Aviz tinha a
felicidade de ter dois amigos particulares que o serviam
excellentemente, e cada um segundo o seu officio. Para cousas de penna e
parlenda João das Regras, para batalhas e mais bordoada correspondente
Nuno Alvares Pereira.

--Mas então as côrtes é que escolheram quem havia de ser rei? perguntou
o Manuel da Idanha.

--Tal e qual.

--E eram côrtes como as de agora? acrescentou o Bartholomeu.

--Não, senhor, havia os tres braços, como então se dizia, clero, nobreza
e povo. Os bispos e os conventos mandavam os seus escolhidos, os
fidalgos mandavam os seus e o povo tambem, quer dizer cada concelho
mandava o seu procurador. Antes de D. Affonso III, íam só os padres e os
fidalgos, depois é que o povo tambem começou a figurar n'essas festas;
mas n'estas côrtes, que se reuniram em Coimbra, como muitos fidalgos
estavam mettidos com o rei de Castella, póde-se dizer que foi o povo
quem escolheu, e que o mestre de Aviz, isto é, D. João I, foi
verdadeiramente o eleito do povo.

--E ahi lhe valeu o João das Regras? acudiu o Manoel da Idanha.

--Isso mesmo, porque lá para fallar não havia outro como elle. Mas d'ahi
a pouco tornou-se necessario fallar outra lingua, a lingua das espadas,
e n'essa, quem lia de cadeira era Nuno Alvares, que o novo rei fez logo
condestavel. Os castelhanos, que tinham ido de cara á banda, voltaram á
carga, e d'essa vez com um exercito immenso, porque o D. João I de lá
tinha resolvido acabar de todo com o D. João I de cá. Antes de vir o rei
com toda a sua fidalguia, já um corpo hespanhol tinha entrado pela Beira
dentro, mas em Trancoso levou uma tareia de primeira ordem. Não se
emendaram e disseram comsigo: Agora é que vão ser ellas. A fallar a
verdade tinham rasão. D. João I de Portugal teria, quando muito, uns
oito ou nove mil homens, D. João I de Castella não tinha menos de trinta
mil, e alem d'isso trazia comsigo peças de artilheria que era a primeira
vez que se viam em Portugal. Encontraram-se os dois exercitos em
Aljubarrota, que fica entre Alcobaça e Leiria, a 14 de agosto de 1385,
grande dia, rapazes! Eu não sei que diabo tinham os nossos, mas parece
que os animava um esforço sobrenatural. E elles não eram nenhuns
fracalhões, os castelhanos, era tudo gente valente e destemida, mas os
nossos estavam todos resolvidos a morrer ali mesmo. Depois tinham cabos
de guerra que sabiam da poda, emquanto os de lá eram valentes, e mais
nada. De lá, eram tudo fidalgos muito bem montados, com as suas espadas
a luzir ao sol; de cá, gente do povo, soldados de pé, mas que todos
queriam ser portuguezes com o seu rei que elles tinham feito, e que
tambem com elles queria vencer ou morrer. E por isso Nuno Alvares dizia:
Rapaziada, pé terra! e zás! lanças no chão, e venha para cá a fidalguia
castelhana, mais os traidores portuguezes que se uniram ao estrangeiro.
E não é dizer que não houvesse fidalgos tambem de cá. Oh! se os havia, e
dos bons e dos melhores, porque eram todos os que tinham preferido
morrer com um rei portuguez a receber do estrangeiro honras e
castellos, gente briosa e valente, e aventurosa, que combatia pelo seu
rei, e pela sua dama, e pela sua honra e pela sua patria. Tambem, não
lhes digo nada, nunca levaram os hespanhoes tão formidavel refrega. Por
muito tempo lhes ficou lembrada, e o rei, que fugio a toda a brida para
Santarem e de Santarem para a sua terra, não se podia consolar de
similhante desastre. D. João I mandou fazer, no sitio da batalha, uma
igreja e um convento maravilhoso, a igreja e o convento da Batalha, para
agradecer a Deus a sua victoria,--e rasão tinha para isso, porque foi
Deus decerto quem deu aos portuguezes o esforço e a galhardia que então
mostraram, que, eu, meus amigos, não sou dos que acreditam que Deus se
mette n'estes barulhos dos homens, mas quando um povo combate pela sua
terra, que é como quem diz quando um filho combate pela sua mãe, então,
meus amigos, ha uma cousa cá dentro em nós, que vem a ser a consciencia
a bradar-nos que Deus, que é a justiça e a bondade, ha de querer a
victoria do que é justo e do que é bom.

--E a padeira de Aljubarrota, sr. João da Agualva? perguntou o Francisco
Artilheiro.

--Deixemo-nos lá de padeiras. Eu não sou muito amigo de mulheres que se
mettem n'estas danças. A padeira era melhor que amassasse pão. Se é
verdade o que se diz, quando os castelhanos já íam de rota batida, a
padeira foi-lhes no encalço e deu cabo de sete com a pá do forno. Olhem
que grande façanha: matar quem vae fugindo! Aquillo era mulher de faca e
calhau, e eu torço sempre o nariz a essa gentinha. Vamos adiante. A
batalha de Aljubarrota decidio a sorte de Portugal. Ainda durou a guerra
muito tempo, ainda o condestavel deu nova tareia nos hespanhoes em
Valverde, mas a verdade é que estava tudo acabado. D. João I governou
então com socego, casou com uma senhora ingleza muito virtuosa e muito
boa, D. Philippa de Lencastre, teve muitos filhos que educou muito bem,
e que foram todos homens de saber e alguns d'elles grandes homens,
chamou muitas vezes as côrtes para ouvir o que ellas tinham que lhe
dizer ácerca dos negocios do Estado, e governou tão bem, que se lhe
chama, com toda a justiça, o rei da _Boa Memoria_. Já em idade
adiantada, trinta annos depois da batalha de Aljubarrota, sentiu D. João
I um appetite de tentar alguma empreza grande. Quem o metteu n'isso
foram os filhos, tudo rapazes decididos que andavam mortos por se metter
n'alguma cousa que lhes désse gloria. O que haviam de fazer? Foram-se
aos mouros. Passaram o estreito, e tomaram Ceuta que fica ali mesmo
defronte de Gibraltar. Vêem vocês? Aquillo era uma raça que não podia
estar quieta. Emquanto jogavam as cristas com os visinhos, ía tudo
bem, mas depois? Os aragonezes viravam-se para Italia, os castelhanos lá
tinham os mouros granadís, nós o que tinhamos? Os mouros de Marrocos e
as ondas do Oceano. Pois foram as ondas e os mouros que pagaram as
favas. D. João I tomou Ceuta, e D. Henrique, seu filho, deliberou tomar
o desconhecido.

--Ó sr. João, exclamou o Francisco Artilheiro, devo confessar que lá
isso é que eu não percebo muito bem.

--Pois eu te explico, rapaz. Julgava-se d'antes que do outro lado do mar
não havia cousa nenhuma, ou antes que as ondas lá para longe eram um
verdadeiro inferno ou um paraizo tambem, porque uns diziam que tudo para
alem eram ilhas de santos e jardins do céu, e outros que eram ilhas do
diabo e terras de maldição; que havia umas estatuas encantadas que não
deixavam passar ninguem, e um mar de pez que engolia os navios. Ora
vocês hão de saber que póde uma pessoa ser muito valente, e ter medo de
almas do outro mundo, e de feitiços e do diabo. Ali está o Francisco
Artilheiro, que, quando foi na expedição á Africa, se atirou ao Bonga
como gato a bofes, que é capaz de varrer uma feira, e que, se lhe
disserem que vá de noite ao palacio do marquez, lá ao corredor onde
dizem que falla a voz do Roque...

--Tarrenego! exclamou o Francisco Artilheiro, um homem é para um
homem, mas lá uma alma do outro mundo!...

--Ora ahi está! era o que acontecia aos soldados de D. João I. Com
mouros e castelhanos tudo o que quizessem, mas com as aventesmas do
mar... arreda! Pois imaginem vocês se D. Henrique não fez um milagre
conseguindo que os marinheiros do Algarve, porque elle, desde que poz o
fito em querer saber o que o mar escondia, foi-se estabelecer em Sagres,
mesmo na ponta do cabo de S. Vicente, conseguindo que os marinheiros do
Algarve se mettessem ás ondas, sem medo de phantasmas, nem de avejões. E
foram aquelles valentes, que fizeram tão grande no mundo este paiz tão
pequeno, e partiram por esses mares fóra, sem saber o que por lá havia,
e sempre a tremer da perdição da vida e da perdição da alma, e foram, e
encontraram a Madeira e encontraram os Açores, e Gil Eanes dobrou o cabo
Bojador, que era onde diziam que estavam as taes estatuas encantadas, e,
como não encontrou estatuas nenhumas, lá foi tudo atraz d'elle, e, de
repente, Portugal poude desenrolar diante do mundo um outro mundo
ignorado, a costa da Africa toda, com os seus grandes rios, os seus
bosques verdes, o seu povo de pretos, como eu vi, n'um theatro de
Lisboa, desenrolar-se diante da platéa pasmada um panno pintado com
cidades e quintas e ilhas e rios, que era de uma pessoa ficar de boca
aberta. Ah! meus amigos, podem agora não fazer caso de nós, e
podemos nós tambem dizer mal de nós mesmos, mas um povo que assim se
atreve a arcar com o que mette medo aos mais valentes, e abre aos outros
as portas de um mundo maravilhoso, é um grande povo, digam lá o que
disserem.

--E D. João I é que fez tudo isso? perguntou o Manuel da Idanha.

--Não foi elle, mas foi o filho, D. Henrique, que era um sabio, e que a
seu pae deveu a educação que recebera; e o grande rei, que salvára
Portugal do estrangeiro, teve a gloria, antes de morrer em 1433, de ver
começada essa obra que havia de tornar para sempre grande no mundo o seu
nome e o nome de Portugal.

Succedeu-lhe seu filho, D. Duarte, a quem chamaram o _Eloquente_, pelo
bem que fallava e que escrevia, porque tambem fazia livros como o rei D.
Diniz, e livros muito bem feitos. Coitado! não merecia a sorte que teve.
Os irmãos, D. Henrique e D. Fernando, quizeram continuar a obra do pae,
e foram tomar Tanger. Não o conseguiram, perderam muita gente, e para se
salvar o exercito das garras dos mouros, teve de ficar preso na Moirama
o infante D. Fernando. Para o livrar era necessario entregar Ceuta, mas
o infante D. Fernando, que bem mereceu o nome de _Santo_ que lhe
pozeram, não quiz nunca ouvir fallar em similhante cousa, e preferiu
morrer atormentado nas masmorras de Fez a consentir que dessem por elle
aos mouros uma terra, que tanto sangue nos custára. Tudo isto foram
desgostos grandes para o pobre D. Duarte, que morreu, depois de cinco
annos de reinado, em 1438, da peste que então assolou o reino, porque
não houve desgraça que n'esse tempo não acontecesse.

Succedeu-lhe um filho pequeno que tinha, e que foi D. Affonso V, e, como
D. Duarte era muito amigo da mulher, foi a ella que nomeou regente. Ora,
na verdade, tendo o pequeno uns poucos de tios que seriam todos grandes
reis, como D. Pedro, D. Henrique e mesmo D. João, dar a regencia a uma
mulher, e de mais a mais hespanhola, era tolice graúda, por isso o povo
não gostou, e as côrtes convidaram D. Pedro a tomar conta da regencia. A
rainha, que era levada da bréca, e que nunca podéra ver os cunhados, deu
pulo de corça com esta resolução, a que foi obrigada a ceder, e, com o
partido que tinha, agitou o reino de tal maneira, que D. Pedro não teve
remedio senão tomar providencias, e uma d'ellas foi tirar o filho á
rainha, porque o pequeno estava sendo nas mãos d'ella um instrumento de
revolta. A final, a rainha foi para Hespanha, mas eu estou convencido,
rapazes, que o odio que D. Affonso V sempre teve ao tio veio d'ahi. Ora
imaginem vocês! D. Affonso era uma creança n'esse tempo, agarrado á mãe
como são todas as creanças; não percebia cousa nenhuma de politica
nem de meia politica, viu-se arrancado dos braços da sua mamãsinha, que
se agarrava a elle a chorar, e arrancado por quem? Por seu tio. Depois,
quando fosse maior, podia reconhecer que o tio era o que se podia chamar
um grande homem, que lhe tinha governado o reino como ninguem seria
capaz de o governar, que era tão pouco amigo de vaidades, que nem
quizera que lhe fizessem uma estatua, mas o rancor da creança nunca se
foi embora. Pois o tio, apenas elle chegou á maioridade, logo lhe
entregou o governo, sem a mais pequena demora, e foi viver para Coimbra
com o maior socego. Apesar de tudo isso, e apesar de ser muito amigo da
mulher que era filha de D. Pedro, o rei tal odio tinha ao tio e ao sogro
que deu ouvidos a todas as intrigas dos inimigos d'elle, e
principalmente ás do primeiro duque de Bragança, seu tio tambem, filho
bastardo de D. João I; chegou o duque a levantar tropas para ir contra o
pobre D. Pedro, que, espicaçado e ralado por todas as fórmas, teve de
tratar da sua defeza. Emquanto o duque de Bragança levantava tropas por
sua conta e risco, achava o rei isso muito bem feito; apenas o infante
D. Pedro juntou alguns soldados para não atravessar esse reino ao
desamparo, logo D. Affonso V entendeu que era caso de rebeldia e
traição, e marchou contra elle. Na Alfarrobeira, ali ao pé de Alverca,
se encontraram as tropas de um e as tropas do outro. Não houve
batalha, mas travaram-se de rasões os soldados, e, quando mal se
precatavam, achou-se tudo embrulhado na bulha, e lá morreu o pobre do
infante D. Pedro, tão sabio, tão bom, tão justiceiro.

Quem ouvir isto, ha de dizer que D. Affonso V era um malvado, pois não
era; cabeça de vento sim, nunca houve outra igual! Sympathico e bondoso,
um mãos-rotas, principalmente para os fidalgos que apanhavam d'elle
quanto queriam, enthusiasmava-se todo por cousas que já não importavam a
ninguem, e quiz até fazer uma cruzada contra os turcos. Os outros
principes christãos não estiveram pelos autos, e vae elle então
voltou-se contra os mouros da Africa, e é certo que juntou a Ceuta as
praças de Tanger, Arzilla e Alcacer Ceguer. Por isso lhe chamaram o
_Africano_. Emfim, bom seria que nunca tivesse pensado n'outra cousa,
mas deu-lhe na veneta querer tambem ser rei de Hespanha, e, quando lá
houve grande bulha para se saber quem havia de succeder ao rei que
morrera, se havia de ser D. Isabel que era irmã, se D. Joanna que era
filha, o nosso D. Affonso, apezar de já não ser novo, casou com esta,
que vinha a ser tambem sua sobrinha, ao passo que D. Fernando de Aragão
casava com a outra. D'ahi veio uma guerra levada dos demonios; mas, a
final, D. Affonso deu a batalha de Toro, que ficou indecisa, mas foi o
mesmo que se a perdesse, porque não poude continuar a guerra. De que
se ha de lembrar então o nosso D. Affonso V? De ir em pessoa pedir
soccorro ao rei Luiz XI de França, que era o mais manhoso de todos os
principes, e que não fazia nada sem interesse. Luiz XI andou a cassoar
com elle, até que D. Affonso V mandou dizer ao filho, que ficára a
governar o reino, que subisse ao throno, porque elle abdicava, e ía para
a Terra Santa; mas depois muda de tenções, e, quando já ninguem o
esperava, apparece em Portugal. O filho é que não quiz saber de mais
nada; entregou-lhe logo a corôa, que D. Affonso acceitou, morrendo
quatro annos depois, em 1431.

--Ó sr. João, interrompeu o Bartholomeu, e essa historia de descobrir
terras novas tinha parado?

--Qual tinha parado, homem! Emquanto D. Henrique viveu, e só expirou em
1460, quando já D. Affonso V era homem, não pensou n'outra cousa; todos
os annos se ía descobrindo mais alguma porção da Africa, e já não havia
quem acreditasse em carapetões de estatuas. Os portuguezes, o que faziam
era sempre seguir para baixo, até ver se topavam com a India, ou então
se davam com um rei que diziam que era christão, e a quem chamavam o
Prestes João das Indias.

--E quem era esse rei? perguntou o Manuel.

--Eu depois lhes digo, rapazes, agora não me fallem á mão. O que é certo
é que estava já descoberta uma boa porção da Africa, e já por lá se
fazia muito bom negocio, tanto que D. Affonso V, que andava embrulhado
com outras cousas, e que não podia cuidar dos descobrimentos como o tio,
arrendou o commercio da costa da Mina a um tal Fernão Gomes, com a
condição d'elle continuar a descobrir terras. Felizmente, quem ía subir
ao throno era um rei de outra laia, que tinha lume no olho, e que havia
de levar as cousas pelo rumo que devia de ser, para gloria do nosso paiz.

Foi D. João II esse rei, e com rasão lhe chamaram o principe perfeito,
porque não houve nenhum que entendesse tão bem do seu officio; mas,
antes de fallar n'elle, meus amigos, deixem-me vocês explicar-lhes o que
é que se tinha passado no tempo d'esses tres primeiros reis da dynastia
que se chamou de Aviz.

Viram vocês como os reis se encostaram ao povo para dar cabo da nobreza
e do clero, e como lhe deram força para que os fidalgos e padres se não
fizessem finos. Por isso tambem se póde dizer que foi o povo quem fez
rei D. João I, e este nunca se esqueceu d'isso. Comtudo, padres e
fidalgos, continuavam a ser muito poderosos, e, se D. Duarte, com a lei
chamada mental, e o infante D. Pedro lhes tinham dado para baixo, D.
Affonso V quasi que desfizera tudo, porque com elle não havia parente
pobre, dava aos fidalgos o que elles queriam, e com rasão dizia o
filho que seu pae o deixára rei das estradas de Portugal, o que, valha a
verdade, não devia ser um grande reino. Ora agora acontecia tambem o
seguinte: é que o povo, nas côrtes, estava sendo mais um servo do rei do
que outra cousa. Já não podia dizer aos reis: «Toma lá, dá cá.» Já não
era cada concelho que mandava um procurador, juntavam-se uns poucos de
procuradores para mandar um deputado a que chamavam definidor, e o rei
sempre os podia ter mais na sua mão do que á turbamulta dos antigos
procuradores. Alem d'isso, os doutores, o que aprendiam nas escolas eram
as leis de Roma, o direito romano, e ahi o que se dizia era que o rei
podia fazer o que quizesse. O que resultava? Resultava que o clero e a
nobreza haviam de levar para baixo, mas que o povo depois... esperasse
pela pancada. É o que vocês saberão para o domingo que vem, porque a tia
Margarida está a caír com somno, e eu não quero que digam de mim, como
de alguns prégadores, que sou bom para quem anda com falta de dormir.




SEXTO SERÃO

D. João II.--As côrtes de Évora.--Morte do duque de Bragança.--Morte do
duque de Vizeu.--Continuação dos descobrimentos.--O cabo da Boa
Esperança.--Christovão Colombo.--Entrada dos judeus.--Morte do principe
D. Affonso.--D. Manuel.--Descobrimento da India e do Brazil.--Os
conquistadores da India.--Fernão de Magalhães.--D. João III.--A
inquisição e os jesuitas.--Decadencia do nosso dominio na India.--D.
Sebastião.--A batalha de Alcacer-Kibir.--D. Henrique, o cardeal-rei.--A
successão do throno.--D. Antonio, prior do Crato.--Batalha de
Alcantara.--Perda da independencia:--Causas da decadencia de Portugal.


--Estou morto por saber, porque é que chamaram a D. João II o principe
perfeito, principiou o Manuel da Idanha no domingo immediato, quando
estiveram todos sentados á roda da lareira, porque, emfim, vocemecê já
nos fallou n'uns poucos de reis de quem se não póde dizer mal: D. Diniz,
por exemplo, D. João I, etc.

--Eu te digo, rapaz, é porque não houve nenhum que percebesse tão bem o
seu tempo, nem soubesse tão bem como é que se governa. Era homem de
cabellinho na venta, mas só dava cabo de quem lhe fazia transtornar os
seus planos, era valente como os que o são, mas, depois de ser rei,
nunca mais foi á guerra. Calculava tudo, combinava tudo, e, como
quem joga bem a bisca, sabia de cór os trunfos, e o que queria era
marcar bons pontos, désse lá por onde désse. Subiu ao throno, na firme
resolução de acabar com os privilegios da nobreza e do clero. Para isso,
como de costume, serviu-se do povo. Chamou côrtes a Evora, ahi
entendeu-se com os procuradores do povo para elles se queixarem dos
fidalgos. Então o rei põe-se no seu logar, e toca a deitar abaixo
privilegios. Se vocês querem ver o que é berraria! O primeiro que se
levantou foi o duque de Bragança, e esse então metteu-se com os
castelhanos. D. João II não esteve com ceremonias, mandou-lhe cortar a
cabeça. O duque de Vizeu, seu proprio primo e cunhado, fez-se tambem
chefe de conspiração. O mesmo rei deu cabo d'elle com uma boa punhalada,
e depois foi tudo raso com o diabo do homem. Prendia uns, desterrava
outros, mandava matar este, confiscava os bens áquelle... um inferno.

--Então por isso é que era principe perfeito? perguntou a tia Margarida
indignada.

--Ó mulhersinha, espere lá. Diz o proverbio: cada terra com seu uso,
cada roca com seu fuso. Pois eu digo tambem: cada tempo com os seus
costumes. O tempo d'elle não era como o nosso. Hoje matar um homem é,
com rasão, uma cousa por ahi alem. N'aquelle tempo parecia a todos
perfeitamente natural que se castigassem com a morte, mesmo á
punhalada, todas as conspirações. Ora D. João II só escapou por milagre
a muitas que houve contra elle.

Mas D. João II não era homem que se assustasse. Estreiara-se em Arzilla,
ao lado de seu pae, e logo mostrára um grande esforço; na refrega de
Toro, em Hespanha, foi elle quem ganhou a batalha pelo seu lado,
emquanto o pae a perdia pelo outro. Nas conspirações, que se faziam
contra elle, mostrou sempre uma coragem por ahi alem, mas tambem não
perdoava nenhuma. E tanto fez, tanto fez, que a final todas as cabeças
se abaixaram, e quem ficou governando a valer e devéras foi elle.

Eu não lhes digo, rapazes, que approvo todas aquellas crueldades, e que
acho bonito que D. João II matasse sem dó nem piedade até os parentes.
Conheço que era preciso ter cabellos no coração para fazer o que elle
fez, mas que querem vocês? É sina que nunca se fizeram as grandes
mudanças politicas sem correr muito sangue. Dizia aquelle engenheiro
francez, que aqui esteve em Bellas na obra da agua, quando ás vezes se
punha a conversar commigo: «João, não se faz omeleta sem se quebrar
ovos.» E dizia bem. Aquillo entre D. João II e a nobreza era guerra de
morte. Atiravam á cabeça; eu bem sei que era mais bonito perdoar. Mas,
meus amigos, perdoar aos seus inimigos só o fez Nosso Senhor Jesus
Christo, e isso bastava para que todos conhecessem que elle era Deus
e não homem.

Em todo o caso, rapazes, sempre lhes quero confessar que, para gostar
deveras de D. João II, preciso de desviar os olhos d'aquella sangueira
toda, e ver o que elle fez por outro lado. Ah! que rei aquelle, rapazes!
Nos descobrimentos foi um segundo infante D. Henrique, porque não foi só
dizer aos pilotos: «Vão vocês andando por ahi abaixo, e quando toparem a
India mandem cá um recado.» Não, senhores! Agarrou em dois judeus que
eram homens de sabença, e mandou-os por terra ao Egypto, para que fossem
do Egypto ver se topavam a India e se sabiam como é que se podia lá ir
ter por mar. Foram estes Pedro da Covilhã e Affonso de Paiva. Ao mesmo
tempo não deixára de mandar navios pela Africa abaixo. Um sujeito,
chamado Bartholomeu Dias, tanto andou, tanto andou sempre com a terra á
esquerda, até que um bello dia, por mais que tocasse á esquerda, não via
senão agua: «Mau, disse elle comsigo, o diabo da costa virou de rumo.»
Vira elle tambem e dá com a terra que ía para cima em vez de ir para
baixo como até ahi. «Eu cheguei ao fim da Africa, disse comsigo o
Bartholomeu Dias, eu passei algum cabo sem dar por isso.» E, já todo
contente, queria ir seguindo para diante a ver onde iria dar comsigo.
Mas a marinhagem estava cançada e quiz por força voltar para traz.
Não houve remedio, e á volta effectivamente deram com o tal cabo que
vinha a ser a ponta da Africa, e apanharam tantos temporaes que
Bartholomeu Dias chamou a esse cabo, cabo Tormentorio; mas, quando
chegou a Lisboa e contou a D. João II o que succedera, este, que logo
percebeu que estava dado o grande passo na descoberta da India, não quiz
para tamanha descoberta um nome de mau agouro, e mudou ao cabo
Tormentorio o nome em cabo da Boa Esperança, como quem diz: Agora sim,
agora é que me parece que vamos por estrada direita.

Ora hão de vocês saber, rapazes, que por esta occasião vivia em Portugal
um sujeito genovez chamado Christovão Colombo, que era homem entendido
em cousas de mar, e que se occupava tambem muito de descobrimentos de
terras e tal etc. Foi até por isso que elle veio para Portugal, porque
isto aqui era a forja, onde, para assim dizer, se fabricavam terras
novas, e todos os que se enthusiasmavam com essas cousas vinham para cá
assoprar aos folles. Christovão Colombo estivera na Madeira, ouvira
fallar em signaes de terra para os lados do pôr do sol, e começára a
embirrar que, indo atraz do sol, havia de esbarrar com a India. Fallou
n'isso a D. João II, este consultou os sabios, e os sabios desataram a
rir. Colombo então foi-se embora e começou a offerecer os seus serviços
a quem lhe désse uma casca de noz; acceitou-os a Hespanha, depois de
massar muito o pobre do homem. Christovão Colombo partiu seguindo sempre
para o occidente, e a final deu com uma terra povoada de selvagens, que
vinha a ser nem mais nem menos do que a America, emfim um mundo inteiro
muito maior que a Europa toda. Ora, tudo isso podia ter vindo para nós,
e não nos fazia mal nenhum, se D. João II não cáe na asneira de não
acreditar no Colombo, que todos sabiam que era um homem esperto, e de
lhe não querer dar dois ou tres navios para tentar a sua descoberta,
elle que tinha navios a rodo por esses portos todos!

--Sim! lá isso! acudiu o Manuel da Idanha coçando na cabeça. Vocemecê
diz que o homem era tão espertalhão, mas essa parece-me de cabo de
esquadra!

--Achas, meu palerma? Diz um proverbio: Quem adivinha vae para a
casinha. E eu já te mostro que outro qualquer, no caso de D. João II,
fazia o mesmo. Tu imaginas que Christovão Colombo chegou ao pé de D.
João II e lhe disse: Saiba Vossa Alteza (que então ainda se não dava
magestade aos reis) saiba Vossa Alteza que ali defronte dos Açores está
um paiz muito rico, onde ha muito ouro, e muita prata e muitos
diamantes, e, se Vossa Alteza quizer, eu chego ali n'um instante e cá
lh'o trago? Estás tu muito enganado. O proprio Colombo nem sabia que
havia ali similhante paiz. Toda a sua mania era que, sendo a terra
redonda, e n'isso tinha elle rasão, indo uma pessoa para o occidente,
havia de dar volta e chegar ao oriente. Mas o que elle não sabia é que a
terra era tão grande como lhe saíu; e, se não lhe apparece a America, o
homem via-se grego, e ainda tinha de comer muito pão antes de arribar,
onde elle queria ir, tanto que provavelmente não levava no porão farinha
que lhe chegasse. Ora agora, pensem vocês tambem, rapazes, no seguinte:
Havia um bom par de annos que Portugal andava a teimar em seguir pela
Africa abaixo á procura da India. Teimou, teimou, até que a final chegou
ao fim da Africa, e percebeu que a terra seguia para cima, e ía com toda
a certeza parar á India. E é exactamente quando se consegue o que se
procurava havia tanto tempo, quando se descobre o cabo da Boa Esperança,
quando se tem a certeza de que se encontrou o caminho da India, que vem
um sujeito ter com o rei de Portugal, que está todo alegre com a
descoberta, e dizer-lhe: Faça favor de apagar tudo isso, e de começar
outra vez a procurar a India por outro lado. O rei, é claro, mandou-o
pentear macacos. Ora agora confesso tambem que se não põe assim no meio
da rua um homem como Christovão Colombo. Procurar a India pelo occidente
não impedia que se continuasse a procurar pelo caminho que até ahi se
seguira, e nós já tinhamos topado tanta terra que não esperavamos,
que não era cousa do outro mundo que fossem mais duas caravellas a Deus
e á ventura ver o que o mar dava de si.

Emfim não se fez isso; os hespanhoes ficaram com a America, e
principiaram ao desafio comnosco n'isso de descobrimentos, tanto que foi
necessario que o papa dividisse entre elles os novos mundos ao meio,
dizendo: Para aqui descobrem os hespanhoes, e para aqui descobrem os
portuguezes, o que fazia com que um rei de França dissesse depois: Ora
sempre eu queria ver o artigo do testamento do pai Adão que deixou a
terra aos hespanhoes e aos portuguezes!

Todos se riram, e o João da Agualva continuou:

--Muito mais provas de juizo deu el-rei D. João II, e felizes seriamos
nós se os reis que se seguiram fossem como elle. Na Africa, tratou de
chamar a si os pretos, de os mandar baptisar, mas ás boas, e de fazer
por ali fortalezas para se assenhorear do commercio. Na Europa então
houve uma cousa que mostra que elle sabia ser rei. Os soberanos de
Hespanha, todos devotos, mandaram pôr fóra do seu paiz os judeus, que
eram, como foram sempre, uma raça trabalhadeira e esperta, que se
enriquecia e ía enriquecendo a terra onde vivia. Mas a rainha de
Hespanha, lá por beaterios tolos, não os quiz consentir no seu reino, e
intimou-lhes mandado de despejo. Sempre quero que vocês me digam
porque? Porque tinham crucificado Jesus Christo? Mas isso foram uns
malandrins de Jerusalem, e nem os filhos tinham culpa do que os paes
fizeram, e até os paes de muitos d'elles talvez nem em Jerusalem
estivessem n'esse tempo. Porque não acreditavam na religião christã? O
peor era para elles. Pois se não se póde salvar quem não for christão,
no outro mundo torceriam a orelha, e não era necessario já n'este mundo
ir-lhes torcendo pescoço. Porque não comiam toucinho? Tanto melhor para
os bons christãos, que sempre ficava mais barata a carne de porco. Mas
fossem lá dizer estas cousas n'aquelle tempo aos reis catholicos! Corria
uma pessoa risco de ir parar a uma fogueira. D. João II riu-se da
devoção dos visinhos, recebeu os judeus na sua terra, e tirou proveito
do caso, obrigando-os, em troca do asylo que lhes dava, a pagar-lhe um
bom tributo. Elles estavam com a corda na garganta, pagaram com lingua
de palmo, ainda que isso lhes havia de custar, porque sempre foram
sovinas. Mas, como diz o outro, para judeu, judeu e meio.

--Olhe lá, ó sr. João de Agualva, e então quem diz que a inquisição cá
em Portugal queimava os judeus? perguntou o Manuel da Idanha.

--Lá chegaremos, sr. Manuel da Idanha, lá chegaremos. Não ha só muitas
Marias na terra, ha tambem muitos Joões, e nós então tivemos seis,
cada um do seu feitio.

Tudo se paga, meus amigos, e um homem póde ser principe perfeito; quando
ultraja a lei de Deus, derramando o sangue de seus irmãos, ha de o pagar
com lagrimas que tambem são sangue ás vezes. Tinha D. João II um filho
chamado Affonso, a quem queria como ás meninas dos seus olhos. Casára
com a filha dos reis de Hespanha, e as festas com que se celebrou o
casamento tinham sido das mais pomposas. Morreu, e morreu de um
desastre. Quem pôde imaginar a dôr d'aquelle pae! Chorou esse homem de
ferro, que tantas lagrimas tambem fizera derramar, chorou lagrimas de
sangue, do sangue do seu coração, e, lá nas horas mortas da noite,
quando estivesse sósinho a pensar no filho, havia de ver muitas vezes os
espectros d'aquelles que matára sem ter piedade da orphandade de seus
filhos, como Deus não tivera tambem compaixão da orphandade da sua alma.
Morreu quatro annos depois, em 1495, sem poder deixar a corôa a um filho
seu, porque debalde quizera legitimar um bastardo que tinha, e assim,
altos juizos de Deus! quem lhe havia de succeder, e não é só isso, quem
havia de colher para si a gloria de realisar a conquista da India, que
D. João II tão cuidadosamente preparava? Um irmão d'aquelle duque de
Vizeu, que elle assassinára, D. Manuel, o _Afortunado_.

Afortunado ou Venturoso lhe chamou a historia, e com rasão, porque não
teve senão bamburrice, o que não quer dizer que fosse um palerma, e que
não tivesse mesmo bastante tino, mas fazia tanta differença de D. João
II como uma larangeira de um carvalho. Encontrou a papinha feita.
Estavam preparados os navios para a descoberta da India, poz á frente
d'elles Vasco da Gama, e em 1497 chegava Vasco da Gama á India, que era
o paiz mais rico d'esse tempo. Mandou atraz d'elle Pedro Alvares Cabral,
este chega-se mais para o occidente do que devia ser, e esbarra com o
Brazil em 1500; bom! Põe ambos de parte, que lá ingrato como aquelle não
havia nenhum, e manda para a India uma esquadra, onde ía Duarte Pacheco,
homem que parece mesmo um d'aquelles sujeitos da antiguidade, que eram
meios homens, meios deuses, e de quem se contam muitas patranhas, que
foram excedidas pelas verdades d'este nosso patricio. Querem vocês
saber? Na India havia muitos reis, como ainda hoje ha, apesar que estão
agora todos sujeitos aos inglezes. Vasco da Gama tinha chegado a uma
terra chamada Calicut, onde residiam muitos mouros, que eram quem fazia
n'esse tempo o negocio todo da India. Viram a bolsa em perigo, e não
descançaram emquanto não pozeram ao rei de Calicut de mal com os
portuguezes. Palavra puxa palavra, elle matou-nos um homem, apanhou uma
lição mestra, e de vingança em vingança ficámos inimigos para
sempre. Mas havia outro rei, o rei de Cochim, que era e foi sempre nosso
amigo. D'ahi, barulho entre os dois. Como o rei de Calicut era muito
mais poderoso, esperou que não estivessem lá navios nossos, e, sabendo
que tinha ficado apenas Duarte Pacheco e mais uns cincoenta portuguezes,
disse comsigo: «Agora é que tu m'as pagas.» E arranjou um exercito
forte, e marchou contra o pobre rei, nosso amigo. Os soldados de Cochim
tinham medo que se pellavam, e fugiam que era um louvar a Deus; mas
Duarte Pacheco, mais os seus cincoenta homens, com a sua habilidade e a
sua valentia, conseguiu tomar o passo ao de Calicut, e dar-lhe tareias
monumentaes. Ó rapazes, pois uma pessoa não se hade ás vezes ufanar de
ser portuguez? Quando é que se viu uma cousa assim? Meia duzia de gatos
bastaram para dar cabo de exercitos immensos! Eu bem sei que era a
disciplina, que eram as armas, que era tambem a fraqueza d'aquelles
bananas, que o sol da India faz uns mollengas, mas era necessario que
fossem de aço e de ferro, em vez de ser de carne e osso, esses valentes
que assim viam, sem descorar, marchar contra elles um exercito
formidavel! Era necessario que se tivessem disposto a morrer para não
deixarem que fosse pisada aos pés a bandeira de Portugal! E, a final de
contas, por muito molles que os outros fossem, sempre eram mil
contra um, e, com certeza, nenhum dos nossos pensava que saíria com
vida de similhante combate. Depois acções d'essas eram mais faceis, não
só porque os nossos já tinham tomado confiança em si, e sentiam-se
capazes de levar aos pontapés quantos indios houvesse na India, mas
tambem porque elles tinham-nos tomado medo; mas isso tudo a quem o
devemos senão a Duarte Pacheco? Pois, meus amigos, imaginam vocês que
Duarte Pacheco foi feito governador da India, ou teve algum titulo, ou
alguma recompensa grande? Qual carapuça! D. Manuel nem mais pensou
n'elle, e era tão feliz que logo encontrou para ser primeiro vice-rei da
India um homem como D. Francisco de Almeida, que em toda a parte do
mundo seria digno de exercer os primeiros logares.

Com effeito, D. Manuel, que primeiro quizera apenas que os seus seus
navios viessem carregados de mercadorias da India, que depois cá se
vendiam na Europa, entendeu que devia tomar raizes, e encarregou D.
Francisco de Almeida de governar os portuguezes que por lá estivessem,
fundando ao mesmo tempo fortalezas. D. Francisco de Almeida entendia,
porém, e não deixava de ter rasão, que Portugal era um paiz muito
pequeno para estar assim a mandar soldados para a India, e o que elle
queria era ser senhor do mar para que ninguem mais ali podesse fazer
negocio. Emquanto só teve os indios pela prôa íam as cousas bem,
mas os turcos, que viam diminuir os seus rendimentos com o novo caminho
das Indias, começaram a metter-se na dança, e os turcos não eram tropa
fandanga, eram gente de quem tremia a Europa. Tambem, quando se
encontraram primeiro com os portuguezes, levaram a melhor e até mataram
um filho de D. Francisco de Almeida, que o vice-rei adorava. Foi a sua
perdição, porque D. Francisco de Almeida não descançou emquanto não
vingou a morte do seu estremecido Lourenço. Os turcos levaram uma sova
de primeira qualidade, e na India ficou-se sabendo de uma vez para
sempre que casta de homens eram os portuguezes.

Pois, rapazes, parecia que d'esta vez D. Manuel se daria por muito feliz
em ter no Oriente um homem como D. Francisco de Almeida, que tinha posto
os indios a pão e laranja, e dado uma esfrega tal nos turcos que se não
atreveram por muito tempo a tornar á India. Enganam-se. Apenas acabou o
seu tempo, foi chamado a Portugal, e naturalmente el-rei nem pensaria
mais n'elle, ainda que não tivesse morrido no caminho. Mas continuava a
ser tão feliz que encontrou, para substituir D. Francisco de Almeida, um
homem que ainda valia mais do que elle, porque era o grande Affonso de
Albuquerque. Ah! meus amigos, apparecem de vez em quando no mundo uns
homens, que são capazes de revolver a terra, como os Napoleões e
outros assim, Affonso de Albuquerque foi um d'esses.

A respeito das cousas da India não pensava como D. Francisco de Almeida,
mas não era porque visse as cousas de outro modo, era porque achára
maneira de as concertar. Sim, elle bem sabia que Portugal não podia
estar a encher a India de soldados, mas o que elle queria era que os
Indios se misturassem com os portuguezes, e, para o conseguir, ao passo
que era cruel com os mouros, com os indios era tão bom e tão justo que,
depois da sua morte, íam elles resar ao seu tumulo, como quem vae resar
ao tumulo de um santo. Escolheu elle tres pontos, em que estabeleceu,
para assim dizer, os seus quarteis generaes, e todos muito bem
escolhidos: Ormuz, ao pé da Persia; Goa, no meio da India; Malaca, para
os lados da China e das ilhas a que se chamava das Especiarias ou das
Molucas. Primeiro tomou Goa, depois Malaca que tinha dente de coelho,
porque os malaios são levadinhos da bréca, depois Ormuz, e, quando
acabou de fazer tudo isto, estava já demittido, e sabendo que ía ser
nomeado para o seu logar o seu peor inimigo! Morreu com esse desgosto.

Tambem d'essa vez tinha-se acabado o fornecimento de grandes homens, e
os dois ultimos governadores da India, no tempo de D. Manuel, não foram
lá grande cousa, mas tambem não estragaram nada. Aquillo então ía
n'um sino. Os portuguezes espalhavam-se por toda a parte, de um lado
chegavam á China, do outro á Persia, do outro ás Molucas, do outro a
Cambaya. Tinham fortalezas por toda a parte; elles recebiam a boa
canella de Ceylão, o bom cravo das Molucas, a boa pimenta da India, os
bons cavallos da Persia, as sedas da China, o incenso da Arabia, os
diamantes de Golconda, e traziam estas riquezas todas para a Europa e
vinham aqui a Lisboa, que estava sempre cheia de navios, os hollandezes
e os inglezes comprar tudo isto para o vender por esse mundo. Do Brazil
não se fazia caso porque nem valia a pena; na Africa sempre se íam
tomando praças, que era para n'aquellas constantes guerras com os mouros
se exercitar a fidalguia, que depois fazia o diabo a quatro na India.
Emfim, quando D. Manuel mandou ao papa uma embaixada com presentes
vindos de todas as suas conquistas, Roma ficou embasbacada, e não se
fallava em todo esse mundo senão na grandeza de Portugal. Bons tempos,
meus amigos, mas que duraram pouco!

No reino, D. Manuel logo mostrou que, se não era tolo, tambem não tinha
o entendimento de D. João II. Poz fóra os judeus; é verdade que depois,
quando em Lisboa o povo fez uma matança nos que tinham ficado a titulo
de se terem convertido, mostrou-se muito zangado e castigou a cidade.
Grande não foi elle, mas viu-se cercado de gente que o fez grande,
e teve a esperteza de os saber conhecer. Depois, punha-os de parte com a
maior facilidade, mas atinava com elles; só não percebeu o que podia
esperar de Fernão de Magalhães, que, zangando-se com uma picardia que
lhe fez, passou para Hespanha, e assim nos deixou ficar sem a gloria de
termos sido nós os primeiros que deram volta ao mundo, como fizeram os
hespanhoes commandados pelo tal Fernão de Magalhães, porque isso,
n'aquelle tempo, não havia por esses mares uma onda que não marulhasse
em portuguez...

--Em portuguez porque? perguntou o Francisco Artilheiro. Eu nunca
percebi o que ellas diziam.

--Então é que têem a cabeça tão dura como tu, porque foi sempre o
portuguez a primeira lingua que ouviram, e até lá para a terra dos
bacalhaus, para o norte, onde faz um frio de rachar, lá mesmo foi Gaspar
Cortereal que primeiro descobriu a Terra Nova. Emfim, meus amigos,
depois de ter casado tres vezes, e sempre com princezas hespanholas,
morreu em 1521 el-rei D. Manuel, e, verdade verdade, com elle se póde
dizer que morreu a grandeza de Portugal.

Succedeu-lhe o filho D. João III, que era o beato mais beato que tem
vindo a este mundo. D. Manuel já lá tinha as suas manias, mas, como eu
lhes contei, quando os de Lisboa desataram a matar os judeus, ou
antes os christaos novos, deu-lhes com o _basta_. D. João III, esse, não
descançou emquanto não metteu em Portugal a inquisição. O papa não
queria, fazia-se rogado, e D. João III é que insistiu com elle para
apanhar essa prenda. Chegou a gastar rios de dinheiro para o conseguir!!
Ora, realmente, metter cá um tribunal que, apenas um sujeito se esquecia
de ir á missa, ferrava com elle na cadeia, quando não era na fogueira,
só lembrava a D. João III. Até os estrangeiros fugiam, e então o resto
dos judeus, que ainda por cá havia, e que por amor á nossa terra se
tinham feito christãos, com medo da inquisição, se foram safando logo
que poderam. E, não contente com isso, introduziu tambem a companhia de
Jesus, que era uma ordem nova de frades mais disciplinados que um
regimento, e que tinham jurado ser elles que haviam de governar o mundo.
Ora, lá para prégar aos herejes, e aos gentios da India, e aos selvagens
do Brazil, eram muito bons, porque não recuavam nem diante da morte, e
houve jesuitas, como S. Francisco Xavier, que não ficaram a dever nada
aos doze apostolos; mas em Portugal mettiam-se em toda a parte: elles
ensinavam, elles confessavam, e estou em dizer que não podia ser bom. Eu
não sou contra os padres, nem contra a religião, pelo contrario, mas
tambem não se hão de metter em tudo. Ora vejam vocês como havia de
viver um dos nossos avós d'esses tempos! Os jesuitas a apertarem-lhe o
freio, e ao mais pequeno desmando, zás, fogueira da inquisição com elle.
Até se fizeram macambuzios os pobres homens, que eram até ahi gente
alegre. Não se podia escrever cousa nenhuma, que não viessem logo os
jesuitas: Corte-se isto porque parece contra a religião, não se
represente aquillo porque se faz troça a um frade, e porque torna e
porque deixa. O que é certo, meu amigos, é que, emquanto lá por fóra se
andava para diante, e se faziam invenções, e se estudava, nós não
passavamos da cepa torta, e o mal que isso fez vão vocês vêl-o.

Na India parecia que ía tudo muito bem, mas via-se que não podia durar
muito. Valentes eram os nossos, mas, em vez de fazerem o que Albuquerque
queria, em vez de accommodarem os Indios, e de se porem ás boas com
elles, não senhor, faziam crueldades que era uma cousa por demais, e o
que queriam era apanhar dinheiro. Passavam o tempo, ora em guerra com o
rei de Calicut, ora com o rei de Cambaya, ora com o rei de Achem, ora
com o rei de Bintam, ora com o rei de Kandy, ora com todos ao mesmo
tempo. Isto não era vida. Obravam prodigios de valor, isso é verdade,
como por exemplo nos dois cercos de Diu, em que Antonio da Silveira e D.
João de Mascarenhas se defenderam de um modo maravilhoso, mas, á força
de dar cutiladas, o braço ía cançando, e o paiz estava esfalfado.
Não havia nem um instante de socego. Se apparecia um governador como D.
João de Castro, o da Penha Verde de Cintra, que era honradissimo e
justiceiro, os outros não pensavam senão em roubar. Já se pegavam uns
com os outros, como fez Lopo Vaz de Sampaio com Pedro Mascarenhas, e
quando D. João III, o Piedoso, como lhe chamaram os frades, morreu em
1557, todos previam que isto ía para baixo. O filho mais velho de D.
João III morrera ainda em vida do pae, e quem lhe succedeu foi um neto,
creança de cinco annos, que tinha o nome de D. Sebastião. Ficou regente
a avó, senhora de bastante juizo, que governou bem, mas que em 1562 teve
de ceder a regencia ao cunhado, o cardeal D. Henrique, todo dominado
pelos jesuitas, e que cercou de padres o principe. O que resultou d'ahi?
Resultou que D. Sebastião, que gostava de guerras e batalhas, fez-se ao
mesmo tempo beato. Parecia um d'aquelles antigos frades militares, que
tinham concorrido tanto para expulsar os mouros de Portugal. Não quiz
casar, e até fugia das mulheres. Não pensava senão em dar cabo dos
mouros. Ora, se nós que já tinhamos tanto trabalho para nos sustentarmos
na India, que fôramos obrigados a largar umas poucas de praças na
Africa, que tinhamos precisado de um grande esforço para salvar Mazagão,
cercada pelos mouros, nos mettiamos em grandes guerras com elles,
aonde iria isto parar! Pois foi o que succedeu. Na India o trabalho era
cada vez maior; um governador, chamado D. Constantino de Bragança,
parente da casa real, fizera por lá grandes cousas, mas pouco tempo
depois juntavam-se quasi todos os reis da India e vinham sobre nós. O
que nos valeu foi termos um novo Affonso de Albuquerque, um general de
mão cheia, D. Luiz de Athayde, que a tudo acudiu e tudo salvou; mas
vocês bem vêem que isto não podia continuar assim. Quando as cousas
estavam n'este bonito estado, quando nós tinhamos ás costas a India, o
Brazil para que D. João III principiára a olhar, onde precisávamos de
nos defender contra os aventureiros francezes que achavam a terra a seu
gosto, de que se ha de lembrar el-rei D. Sebastião? De ir conquistar
Marrocos! Eu já tenho ouvido dizer que mais valia termos conquistado
Marrocos, que nos ficava á porta, do que irmos á India que ficava tão
longe. Pois sim, mas o que era necessario era escolher. Ou uma cousa ou
outra. Mas D. Sebastião, com aquella embrulhada, que elle tinha na
cabeça, de idéas religiosas e de idéas guerreiras, não attendia a cousa
nenhuma, nem fazia calculos nenhuns. O que elle queria era dar lambada
nos mouros, e, apesar dos conselhos de toda a gente, levanta um pequeno
exercito, e para o levantar custou-lhe, porque já não havia braços
no paiz... co'a breca, que elles não chegavam para tudo! e abala-se
para a Africa a pretexto de ir soccorrer um principe mouro que tinha
sido expulso do throno por seu tio!

Ah! meus amigos, aquillo era mesmo um doido que ali ía. A gente gosta de
ver um rapaz que tem o sangue na guelra, e que se atira para diante,
embora faça asneira, mas é que D. Sebastião estava perfeitamente maluco.
Era maluquice a empreza, foi maluquice o modo como a preparou, foi
maluquice o modo como a dirigiu. Parecia que Deus, por umas poucas de
vezes, o quizera salvar, e elle sempre a atirar comsigo de cabeça para
baixo. Emfim, no dia 4 de agosto de 1578, deu-se a batalha á moda de
seiscentos diabos, porque nem houve commando, nem houve nada. D.
Sebastião atirou-se aos mouros e não quiz saber de exercito, nem de
cousa nenhuma. Emquanto poude dar cutilada, deu. A flor da fidalguia
portugueza ali morreu, a que não morreu ficou prisioneira. Os soldados
fugiram, uns por aqui outros por ali, e, quando a noticia chegou ao
reino, imaginem que afflicção! Não se perdera só um rei, perdera-se a
corôa, porque não havia herdeiros, e quem subiu ao throno foi o velho
cardeal D. Henrique, tio avô do fallecido, que nunca fôra esperto e que
estava então meio apatetado. Ainda houve quem dissesse que D. Sebastião
não morrera, porque ninguem o vira caír morto, e o cadaver que
appareceu, e que se disse que era d'elle, estava tão desfigurado que se
não podia conhecer. Assim lá ficou D. Henrique a governar, mas para que?
Todos sabiam que a corôa era herança que não tardava. Quem a havia de
apanhar? Quem tinha direito verdadeiro era a duqueza de Bragança, por
ser filha de um irmão de D. João III, D. Duarte; quem era mais
sympathico ao povo era D. Antonio, filho bastardo de outro irmão de D.
João III, D. Luiz; quem tinha mais força era D. Filippe II, rei de
Hespanha, filho de uma irmã de D. João III, D. Isabel. Ainda havia
outros que se diziam herdeiros, mas entre aquelles tres é que a lucta
era séria. Ferviam as intrigas. D. Filippe tinha em Portugal um
embaixador, e até por signal era portuguez, D. Christovão de Moura, que
comprava todos quantos se queriam vender, e bem parvos eram os que não
íam ao mercado. As côrtes, chamadas por D. Henrique para decidir a
questão, estavam já tão pouco costumadas a metter o seu bedelho n'essas
questões, que disseram ao rei que decidisse como quizesse, apesar de
berrar muito contra isso um portuguez ás direitas, procurador de Lisboa,
e que se chamava Phebo Moniz. O rei não decidiu cousa alguma. Morreu em
1580, e deixou o quartel general em Abrantes, tudo como d'antes. Nomeou
governadores do reino uns sujeitos que se tinham já vendido aos
hespanhoes, e que de certo íam escolher D. Filippe II. Mas, como se
demorassem, este não esteve para os aturar, e mandou-nos cá um exercito
commandado pelo duque de Alba. Vendo os hespanhoes, o povo virou-se para
D. Antonio, prior do Crato e bastardo do infante D. Luiz, e acclamou-o
rei. Valente era elle, mas não era mais nada. Quiz resistir aos
hespanhoes com um punhado de gente que nunca pegára em armas. Batido em
Alcantara, ás portas de Lisboa, depois de algumas horas de combate,
fugiu para o Minho, por onde andou escondido, até que poude safar-se
para o estrangeiro. Filippe II entrou socegadamente em Lisboa, e era uma
vez a independencia de Portugal.

--O que! estavamos hespanhoes? perguntou furioso o Bartholomeu.

--Estavamos hespanhoes, sim, meu amigo, e eu te vou explicar como é que
tinhamos chegado a isso em tão pouco tempo. Em primeiro logar, creio que
já sabem que D. João II abaixára a prôa de todo á nobreza, e d'ahi por
diante os fidalgos ficaram sendo simplesmente criados do paço. O povo
ajudára o rei a fazer essa obra necessaria, mas o rei, apenas se viu
servido, deu-lhe para baixo, e el-rei D. Manuel começou a dizer que os
foraes, que eram as leis por que se governavam os concelhos, não estavam
muito claros, e para os aclarar, reformou-os, quer dizer, deu cabo
d'elles. Em côrtes já se não fallava senão de longe a longe. D'antes,
pelo menos, para se lançarem tributos novos, sempre se reuniam as
côrtes. D. Manuel não quiz que ellas se incommodassem por tão pouco, e,
para lhes poupar trabalho, começou elle a deitar os tributos por sua
conta. Ora isto é muito bom, emquanto as cousas vão correndo bem. O rei
tem ali o seu povo manso como um leão domesticado, com as unhas cortadas
e os dentes limados, mas, quando vem as occasiões, o povo mette o
rabinho nas pernas e não tuge nem muge. Para mais ajuda, a inquisição
concorria para terem todos pouca vontade de se mexer. Os jesuitas, que
tanto podiam fazer pela influencia que possuiam, não se importaram para
nada com isso. Frades como elles eram, muito ligados entre si, e muito
escravos do seu geral que estava em Roma, não tinham patria, a sua
patria era a Companhia. Depois, vocês bem vêem que o reino não podia
deixar de estar sem forças. Era um saír de gente todos os annos para a
Africa, para a India, para o Brazil, que era uma cousa por demais. No
meio de tantas riquezas o paiz achava-se pobre. Havia muita gente rica e
vadia, mas não havia lavoura, não havia fabricas, não havia nada, o
dinheiro entrava por um lado para saír pelo outro. Demais a mais tudo
era pandiga rasgada. Os portuguezes vinham do Oriente descançar das suas
fadigas. Tinham escravos para o serviço, passavam os dias na amante
vadiagem. Não ha cousa que mais deite a perder os homens. Por isso
D. Filippe e o seu embaixador Christovão de Moura encontraram tudo podre.

Hão de vocês dizer: Pois então, só porque um rei morreu, e só porque se
perdeu um exercito, que não era grande cousa, perdeu-se Portugal? É
assim mesmo. Faltou o rei, faltou tudo, porque o povo nem já sabia de
si, e as côrtes, quando não havia quem mandasse alguma cousa, nem sabiam
o que haviam de fazer. Soldados portuguezes, os bons, estavam na India,
e não bastavam; os que tinham voltado não pensavam senão na pandiga.
Tudo estava alluido na nação portugueza, veio o empurrão de
Alcacer-Kibir, foi tudo abaixo, e eu, meus amigos, não vou para baixo,
vou para cima que são horas de me ir chegando ao pouso. Domingo
continuaremos, porque já agora havemos de acabar, que lá dizer que eu
tenho muita vontade de lhes contar a historia do que se passou no tempo
dos Filippes, isso não tenho. Então é que Portugal perdeu a esperança de
se levantar.




SETIMO SERÃO

Portugal durante o dominio hespanhol.--Filippe I.--Os falsos D.
Sebastião.--Ultimos esforços do prior do Crato.--Os inglezes e
hollandezes no ultramar.--A invencivel armada.--D. Filippe II.--Perda e
restauração da Bahia.--Filippe III.--O conde-duque de Olivares e os
privilegios das provincias.--Perda de Pernambuco.--Tumultos de Evora.--O
duque de Bragança.--A conspiração dos fidalgos.--Revolução de 1 de
dezembro de 1640.


--Meus amigos, disse o João da Agualva no domingo immediato, demorei-me
e o resultado foi apanhar uma constipação, que ainda mal me deixa
fallar. Não quiz comtudo deixar de vir para se não perder este bom
costume dos domingos, mas pouco tempo me demoro, e não farei mais do que
contar-lhes a historia do que passou Portugal com o dominio dos hespanhoes.

Se nós ao menos tivessemos passado para uma nação forte, com vida e com
sangue, alguma cousa lucrariamos, mas a Hespanha estava peor do que nós.
Parecia muito poderosa por fóra, mas só havia podridão lá dentro. Depois
andava em guerra com a Europa toda, e n'essa guerra nos embrulhou
para nossa desgraça.

Apesar dos pesares, não cuidem vocês que tudo foram rosas para o nosso
rei Filippe I, que era em Hespanha Filippe II. Elle veio com pésinhos de
lã, prometteu respeitar as liberdades portuguezas, nunca nos dar por
governadores senão portuguezes ou principes da familia real, jurou
quanto quizeram, mas o povo não andava satisfeito, e, como não tinha a
quem se encostar, pensava em D. Sebastião, o _Desejado_, como lhe
chamam. Assim que apparecia um homem que tinha alguma parecença com o
rei fallecido, diziam logo que era elle, de fórma que os hespanhoes
estavam sempre em sobresalto. Por isso o rei de Penamacor e o rei da
Ericeira, uns pobres homens que o povo embirrou em querer que fosse cada
um d'elles D. Sebastião, e que tomaram o caso a serio, provocaram os
seus tumultos, sendo os da Ericeira um poucochinho graves. Passados
tempos, ainda appareceram lá fora, em Hespanha e em Italia, dois homens
que diziam ser D. Sebastião, e que lograram muita gente, mas esses eram
verdadeiros intrujões que nem mesmo pensavam senão em comer á
barba-longa, á custa dos freguezes. O tal amor ao D. Sebastião foi-se
pegando a ponto que começou a formar-se uma seita que ainda ha pouco
tempo durava, a seita dos sebastianistas, que acreditavam que D.
Sebastião havia de apparecer n'um dia de nevoeiro para governar em
Portugal. Eu ainda conheci um sebastianista.

--E eu tambem, acudiu o Bartholomeu.

--Já vêem que não minto. Mas d'esse D. Sebastião não ha de vir mal ao
mundo, nem bem que é o peor. D. Antonio tambem trabalhava pela sua
banda, e, como a ilha Terceira o acclamára rei, foi-se lá metter e
arranjou soccorro de França, mas os hespanhoes bateram a esquadra
franceza, e tomaram a ilha. Depois arranjou soccorros da rainha de
Inglaterra, que mandou uma esquadra a Lisboa, mas os inglezes foram
repellidos, e D. Antonio, descoroçoado de todo, foi morrer a Paris em 1595.

Mas querem vocês ver o que nós ganhámos com o estar juntos á Hespanha?
Foi termos á perna os inglezes e os hollandezes, que principiaram a
sacudir-nos da India, e que então aos nossos navios faziam guerra
mortal. Ia tudo pela agua abaixo, e, para mais desventura, Filippe
lembra-se de mandar contra a Inglaterra uma esquadra immensa, a que
chamou «a invencivel armada», e que saíu do porto de Lisboa. A armada
perdeu-se e lá se foram os nossos melhores navios. Filippe morria em
1598, e succedia-lhe Filippe II aqui e III em Hespanha. Se as cousas
tinham ido mal até ahi, então foram peor. A Hespanha ía a Deus e á
ventura, e nós atraz d'ella. O governo hespanhol, que mal cuidava de si,
não cuidava nada de nós. Os inglezes e os hollandezes tomavam-nos
quasi tudo o que tinhamos na India, e estes ultimos tambem se mettiam no
Brazil comnosco. Grandes façanhas ainda se faziam, é verdade, e da
Bahia, por exemplo, foram os hollandezes expulsos, mas, quando Filippe
II morreu em 1621, já o nosso poder não era nem a sombra do que tinha sido.

Succedeu-lhe Filippe III, e esse tinha um primeiro ministro chamado
conde-duque de Olivares, que imaginou que havia de acabar com os
privilegios das provincias, principalmente com os de Portugal. Não
pensava n'outra cousa, de fórma que deixava ir as colonias, e no Brazil
já os hollandezes tinham tomado raizes, e estavam senhores de
Pernambuco. Mas os portuguezes começaram a achar a brincadeira pesada e
a refilar ao Olivares. Em 1637 rebentou uma revolta em Evora, foi logo
apagada, mas com muito sangue. Peor para o caso. Os fidalgos, que
andavam tambem damnados, principiavam a conversar com o duque de
Bragança, D. João, e a apalpal-o para ver se elle quereria a corôa. O
duque não dizia nem que sim, nem que não. Mas n'isto a Catalunha, que
tambem não perdoava ao Olivares a sem-ceremonia com que elle lhe queria
tirar os seus antigos privilegios, revolta-se. Boa occasião! Os
fidalgos, em Lisboa, sentiam-se cada vez mais dispostos a mandar os
hespanhoes para o diabo. O Olivares não fazia senão desesperal-os e
atiçal-os. Tinha-lhes dado por governador a duqueza de Mantua, e para
secretario do governo um portuguez, Miguel de Vasconcellos, que era mais
damnado contra os seus patricios do que se fosse hespanhol. Emquanto
deixava perder as colonias portuguezas, Olivares levava os nossos
fidalgos e os nossos soldados para as guerras de Flandres e da
Catalunha. Lembra-se emfim de dar ordem ao duque de Bragança para que vá
para Madrid. Então é que já se não podia estar com pannos quentes. Os
fidalgos dizem ao duque de Bragança: Ou acceita a corôa, ou nós pomo-nos
em republica. O duque, a final, disse que sim. Com a bréca! aquillo foi
um momento. Era um punhado de homens, os que andavam assim a conspirar;
elles não sabiam se podiam contar com o povo, nem se não podiam,
conspiravam ás claras, que parece que em Lisboa todos sabiam da
conspiração menos os hespanhoes; reuniam-se umas vezes em casa de João
Pinto Ribeiro, outras vezes em casa de D. Antão de Almada, no jardim. No
dia 1 de dezembro de 1640 saem todos para o meio da rua. Eram quarenta,
pouco mais ou menos. Chegam ao paço, matam o Miguel de Vasconcellos,
agarram na duqueza de Mantua e fecham-n'a á chave, desarmam a guarda,
abrem as janellas, e dizem a quem ía passando: Viva o duque de Bragança,
rei de Portugal! viva o sr. D. João IV! O povo diz-lhes cá de baixo:
Viva! e viva, e viva! e eram uma vez os hespanhoes, e d'ahi a
pedaço estava tudo tão socegado como se não tivesse havido cousa
nenhuma, e os hespanhoes tinham desapparecido; e aqui têem vocês como se
faz uma revolução quando ella está na vontade de todos. Digo-lhes,
rapazes, que este dia 1 de dezembro consola uma pessoa. Parecia que o
paiz não tinha feito senão acordar de um pesadello. Aquillo foi só
saltar da cama abaixo, e elle ahi estava de pé, todo pimpão como em
outros tempos. E sabem vocês porque isto foi? É porque as nações são
como as espadas, onde enrijam é na bigorna.




OITAVO SERÃO

Unanimidade da revolução.--Preparativos de resistencia.--Organisação
militar do paiz.--As allianças.--Relações de Portugal com
a Hollanda.--Restauração de Pernambuco e de Angola, e perda
de Ceylão.--Conspirações contra D. João IV.--Guerra da
Restauração.--Batalhas de Montijo e de Telena.--D. Affonso VI.--A sua
educação e a sua indole.--Regencia da rainha D. Luiza.--Antonio
Conti.--O conde de Castello Melhor.--Continuação da guerra.--Cerco de
Badajoz.--Batalha das Linhas de Elvas.--Paz entre a Hespanha e a
França.--Campanhas de D. João de Austria.--Schomberg.--Victorias do
Ameixial, Castello Rodrigo e Montes Claros.--Planos do conde de Castello
Melhor.--Intrigas do Paço.--Casamento, desthronamento e divorcio
vergonhoso de D. Affonso VI.--Regencia do infante D. Pedro.--Casamento
com a cunhada.--Tratado de Methwen.--Guerra da successão de
Hespanha.--D. João V.--As minas do Brazil.--Desperdicios, beaterio e
immoralidades.


--Meus amigos, principiou no outro domingo o João da Agualva, e já
ninguem o interrompia, tal era o interesse com que todos seguiam a sua
narrativa; o que succedeu na capital, succedeu no reino todo. Aquillo
foi chegar a noticia do que se passava em Lisboa, e de um momento para o
outro desappareciam os hespanhoes, e tornava tudo a ser Portugal.
Poupámos-lhes muita despeza em correios, porque logo souberam pelo
primeiro que Lisboa se tinha revoltado, que tinha vencido, que reinava
em Portugal D. João IV, e que a Hespanha, do Minho para baixo e do
Caya para o occidente, já não possuia nem um palmo de terra. Querem
vocês saber como o conde-duque de Olivares deu a noticia ao patrão? Foi
d'esta maneira:--Dou os parabens a Vossa Magestade; acabam de lhe entrar
uns poucos de milhões no bolso.--Como assim? perguntou o rei que estava
a jogar, e que não desgostaria de que lhe saisse d'essa maneira a sorte
grande de Hespanha.--Porque o duque de Bragança, tornou o ministro,
acaba de se revoltar, e de se fazer rei de Portugal, e, como temos de
lhe tirar os bens e de lhe cortar a cabeça, fica Vossa Magestade mais
rico. O rei não gostou muito d'esse modo de enriquecer, e ainda olhou
para os parceiros a ver se algum lhe dava quatro vintens pela herança.
Nenhum caíu n'essa.

Isso era muito bom, mas Portugal é que não vivia de cantigas. A Hespanha
era então ainda maior do que hoje é, e, se ella nos caísse em cima,
estavamos promptos. De que precisavamos nós? De dinheiro, de soldados e
de allianças. Tratou-se logo de tudo. Dinheiro votaram as côrtes quanto
se quiz; para arranjar soldados fez-se uma obra fina que nunca ninguem
até ahi tinha feito, e que foi pôr toda a gente em armas. E como?
dividiu-se o reino em tres linhas; a primeira de soldados, que se
chamavam pagos, a segunda de milicianos, e a terceira, que era a dos
velhotes, de ordenanças. Uns íam á guerra, os outros ajudavam-nos
em sendo preciso, saíndo, o menos que podesse ser, dos seus sitios, e
finalmente os ultimos defendiam as suas terras, porque isso, atraz de um
muro, todos fazem figura. Digo-lhes, rapazes, que aquillo é que foi uma
idéa, e olhem que não nos serviu só então, tambem na guerra da peninsula
foi o que nos valeu, e, aqui para nós, não me parece que fizessem muito
bem em deitar abaixo aquella historia. Estava já tudo costumado, e
quando vinha uma guerra, saltava toda a gente para o meio da rua; e
olhem que isto de estar um homem dentro de casa, de espingarda na mão,
dá que fazer aos mais pintados. E logo se viu.

Emquanto a allianças tambem não faltaram; é verdade que não serviram de
muito, porque cada um cuidava de si. A França, prompta, o que ella
queria era abaixar a prôa á Hespanha, mas, como tambem lá andava em
guerra com os hespanhoes, o mais que fez foi consentir que arranjassemos
officiaes francezes pelo nosso dinheiro; a Inglaterra, a mesma cousa,
muita festa para a festa, mas andava embrulhada em guerras civís, não
mandou para cá nem um navio. Então a Hollanda ainda foi peor, isso...
recebeu o nosso embaixador de braços abertos, poz luminarias, achou que
tinhamos feito muito bem, mas, quando o embaixador lhe disse: «Então
agora que estamos amigos, venham para cá as nossas colonias, que
são nossas e não dos hespanhoes», a Hollanda exclamou: «As colonias! ah!
sim! nós somos tão amigos d'ellas! Estão já acostumadas comnosco! até
tinhamos pena de as deixar». E acrescentava o embaixador: «Mas então,
c'os diabos, ao menos não nos tomem mais nenhuma».--«Não tomamos, dizia
a Hollanda, isso nunca. Ora agora sabem vocês? as colonias são como as
cerejas. O caso é apanhar uma». Ah! elle é isso! disseram os portuguezes
comsigo, pois então vamos a ellas. E, zás, rebenta uma revolta em
Pernambuco, e os brazileiros a berrarem: Viva D. João IV! A Hollanda
chamou o nosso embaixador: «Então que diabo é isso? nós somos amigos e
fazem-nos uma partida d'estas!»--«Patifes! dizia o embaixador. Aquillo é
do sol! esquenta-lhes a cabeça, e dão por paus e por pedras. Mas, aqui
para nós, se elles dizem: Viva D. João IV, não havemos de lhes ir dizer:
Morra D. João IV! Não nos ficava bem.»--«Pois sim, mas digam-lhes que
estejam quietos.»--«Pois isso dizemos nós.» E D. João IV mandava para lá
armas e officiaes, e dizia-lhes: «Ahi vae isso, que é para vocês estarem
quietos.» E em poucos annos estavamos senhores de Pernambuco, e os
hollandezes na rua.

D'ahi a tempos, Salvador Correia de Sá ía a Angola e punha fóra os
hollandezes que nos tinham tomado esse reino.--«Então isto que vem a
ser? bradaram os hollandezes, então os senhores vão de proposito do
Brazil a Angola para nos sacudir!»--«Quem é que fez isso?» perguntava o
embaixador.--«Salvador Correia de Sá.»--«Sim! pois estejam vocês
descançados, que lhe vamos já perguntar pelo correio, que diabo de
lembrança foi essa. Em vindo resposta cá lh'a mandamos. E a proposito,
sr.ª Hollanda, vocês tomaram-nos Ceylão?»--«Tomámos Ceylão, mas que
defeza! Antonio de Sousa Coutinho defendeu-se maravilhosamente. Os
nossos generaes são todos accordes que nunca encontraram resistencia tão
desesperada! Quando escreverem para lá, mandem os nossos parabens ao sr.
Antonio de Sousa Coutinho e recommendações aos amigos.»

E era assim que nós estávamos com a Hollanda: abraços na Europa e
lambada lá por fóra.

Houve só duas côrtes que não quizeram nunca reconhecer a independencia
de Portugal; uma foi a côrte de Roma que estava toda nas mãos dos
hespanhoes, e a outra a da Allemanha, cujo imperador era da mesma
familia que a do rei Filippe. E fizeram-nos transtorno: a primeira
porque estávamos assim a modo excommungados, a segunda por uma patifaria
que praticou o imperador, mandando prender sem mais nem menos o principe
D. Duarte de Bragança, irmão de D. João IV, que andava por lá na guerra
contra os turcos, e que tanta conta nos faria em Portugal. Morreu
na cadeia o pobre rapaz por causa de nós e da traição do tal imperador.

Em Portugal, ao principio, tinha ido tudo bem, mas, assim que passou
aquelle primeiro fogo, houve muitos que começaram a pensar no caso e que
disseram comsigo: «Isto foi uma grande asneira. Vem ahi os hespanhoes e
dão cabo de todos nós. O melhor é pormos as costas no seguro, e, antes
que elles venham ter comnosco, vamos nós ao encontro d'elles, que sempre
apanharemos alguma cousa.» E n'isto desatam a conspirar contra D. João
IV. Foram castigados cruelmente. Morreram muitos com a cabeça cortada, e
mais nem todos eram culpados. Mas que querem vocês? A mania de D. João
IV era que o não tomariam a sério como rei em Madrid, emquanto não
mandasse cortar a cabeça a alguem.

Pois em primeiro logar visse bem a quem matava, e em segundo logar eu
sempre ouvi que os reis, quando são mais reis, é quando perdôam. E, alem
d'isso, os hespanhoes quando tomaram a sério D. João IV não foi quando
elle mandou cortar a cabeça a fidalgos portuguezes, mas quando os
soldados portuguezes lhes começaram a esfregar as costas a elles.

Lá que os taes conspiradores tinham rasão em estar com medo, isso
tinham, porque parecia mesmo impossivel que Portugal resistisse.
Tambem o que nos valeu foi a asneira dos hespanhoes, que nos primeiros
dois annos não fizeram senão dar um rebate falso a uma praça, atacar
outra, escaramuçar aqui, disparar uns tiros alem. Parecia que estavam
incumbidos por D. João IV de fazer andar os nossos soldados na recruta.
Em 1644 é que, pela primeira vez, fizeram assim movimento mais serio,
mas já tinhamos então soldados velhos, commandados por um bom general,
Mathias de Albuquerque, e os amigos hespanhoes levaram a primeira sova
mesmo lá na sua terra, em Montijo; em 1646 nova batalha em Telena, mas
n'essa perdemos nós mais do que lucrámos, ainda que os hespanhoes com
isso nada ganharam tambem, porque voltaram á costumeira antiga. Emfim,
para encurtar rasões, quando D. João IV morreu, em 1656, estavamos havia
dezeseis annos n'aquella brincadeira, hoje íamos nós á Hespanha e
apanhavamos gado, ámanhã vinham elles cá e levavam-nos o nosso. Mas quem
lucrava com isso? Éramos nós, porque os nossos milicianos, e as nossas
ordenanças íam-se costumando á guerra, e cada vez este bocadinho de
Portugal se ía tornando para a Hespanha mais duro de roer.

Em 1656 morreu pois D. João IV, como eu lhes disse, e succedeu-lhe seu
filho D. Affonso VI, a quem chamaram o _Victorioso_, como chamaram a
D. João IV o _Restaurador_, mas emfim a este com mais um bocadinho
de rasão.

D. Affonso VI não era o filho mais velho, mas o mais velho, um rapazito
que dava esperanças, Theodosio, morrera em 1653. D. Affonso VI fôra
desde creança muito doente, nunca podéra aprender cousa nenhuma e tivera
uma educação muito descuidada. O seu gosto era brincar com os garotos
que íam para debaixo das janellas do paço, e, quando foi homem, andava
em pandigas pela cidade, com uma roda de facinoras que faziam tudo o que
queriam á sombra d'elle, a ponto que até havia mortes nas ruas de
Lisboa! Como ainda era pequeno quando seu pae morreu, ficou regendo o
reino sua mãe D. Luiza de Gusmão, uma hespanhola muito decidida, que
diziam até que fôra quem mais concorrera para o marido acceitar a corôa.
A regente lá foi governando com acerto, emquanto o rapazote andava ao
laré com um tal Antonio Conti, que lhe soubera conquistar a amisade. A
rainha um dia pegou n'esse Antonio Conti, e ferrou com elle desterrado
no Brazil. Ó diabo que tal fizeste! o pequeno zanga-se, e, quando o
conde de Castello Melhor lhe disse que era bom que começasse a governar
por si, porque tinha já chegado á maioridade, D. Affonso, para pregar
pirraça á mãe, acceitou; eu não louvo o conde de Castello Melhor por ter
aconselhado esta acção, mas a verdade é que D. Affonso VI já estava
em idade de governar, e que, se não podia dirigir os negocios, sempre
era melhor que por elle os dirigisse um homem como o conde de Castello
Melhor, que tinha uma excellente cachimonia, do que a rainha, que,
apezar de ser esperta, sempre era senhora, e por isso menos capaz de
governar o reino em tempo de guerra.

Bem conheço que D. Affonso VI era um mau rei, que não tinha juizo, que
se entregava a divertimentos indecentes e até criminosos, mas uma
qualidade tinha elle, percebia perfeitamente que não sabia cuidar do
reino, e deixava o Castello Melhor fazer tudo quanto queria. Ora o
Castello Melhor era uma das melhores cabeças que têem governado o nosso
paiz, como vocês vão ver, porque é bom que saibam o que se passára na
guerra.

Logo depois da morte de D. João IV, um general portuguez, João Mendes de
Vasconcellos, fizera grande asneira. Vendo que os hespanhoes andavam só
a fazer fosquinhas, disse comsigo: Não nos hão de conquistar, e havemos
de ser nós que os conquistaremos a elles. Junta um exercito magnifico, e
vae cercar Badajoz. Ainda ali ganhámos uma batalha, que foi a do Forte
de S. Miguel, mas a final tivemos de levantar o cerco, depois de
havermos perdido inutilmente a flor dos nossos soldados. Ora o que
succedeu? Foi que, no anno seguinte, quer dizer em 1659, os hespanhoes,
picados com o nosso atrevimento, saíram da sua pachorra, juntaram
um exercito formidavel commandado pelo proprio ministro do rei, D. Luiz
de Haro, vieram sobre Portugal e cercaram Elvas. A cousa esteve
phosphorica, porque os nossos melhores soldados tinham ficado estendidos
diante de Badajoz, e andava isto por cá muito desarranjado. Mas para
alguma cousa haviam de servir os dezenove annos de guerra. Em primeiro
logar Elvas, governada por D. Sancho Manuel que foi depois conde de
Villa Flor, defendeu-se admiravelmente, em segundo logar o conde de
Cantanhede, depois marquez de Marialva, como não tinha outra gente,
reuniu um exercito quasi todo de milicianos e saltou nos hespanhoes que
cercavam Elvas. Foi no dia 14 de janeiro de 1659 que se deu a batalha,
conhecida pelo nome de batalha das linhas de Elvas, e nunca os
hespanhoes apanharam tamanha pilota. Os prisioneiros foram aos milhares,
artilheria, bagagens, tudo nos caío nas mãos, e o proprio D. Luiz de
Haro escapou-se por um fio. Tambem nunca mais nos perdoou aquella sova,
e, quando n'esse mesmo anno foi fazer a paz com a França, deu aos
francezes tudo quanto elles quizeram, só com uma condição--a de se não
fallar em Portugal. Era patifaria graúda do ministro francez, um padre,
um tal cardeal Mazarino, porque as tareias que davamos nos hespanhoes
tinham feito muita conta aos francezes. Mas o Mazarino foi
apanhando o que poude, e pouco lhe importou mandar-nos á fava.

Vêem vocês a situação em que ficámos. Quando começámos a guerra com a
Hespanha, estava ella em guerra tambem com quasi toda a Europa, o que
não era mau para nós. Em 1648 fez a paz com muitas nações, e isso não
foi lá muito bom, porém, como a França continuava em guerra, e essa só
por si dava mais que fazer á Hespanha do que todas as outras juntas,
ainda a cousa não ía mal; mas agora? A França fazia a paz, quasi que se
alliava com os hespanhoes, porque o rei de França, Luiz XIV, casava com
uma princeza hespanhola, e nós é que ficavamos em campo, com a Hespanha
ás costas. Ella ainda esteve dois annos a apalpar-nos, mas em 1662
rompeu o fogo com alma. Poz um dos seus melhores generaes, D. João de
Austria, filho bastardo do rei, á frente dos seus exercitos, e caíu em
cima de nós com todo o seu peso.

Ora foi exactamente em 1662 que entrou no poder o conde de Castello
Melhor, e foi sobre elle que desabou esse temporal desfeito. Nunca
Portugal se vira em tão maus lençoes. D. João de Austria tomava praças
sobre praças, e na campanha do anno immediato, 1663, quasi que chegava
ás portas de Lisboa. Mas o ministro fizera o diabo, parece que até das
pedras tinha feito soldados. Depois, como Mazarino era um finorio, que
não desgostava de jogar com pau de dois bicos, ao passo que
contentava a Hespanha, mandava-nos para cá os officiaes que podia, entre
elles o conde de Schomberg, que era um general de mão cheia. Não
commandou nunca em chefe, porque os nossos não gostavam, e tinham rasão,
que elles já haviam dado provas de que não precisavam de tutores; mas
foi um excellente conselheiro. O que é certo, meus amigos, é que, em
tres annos successivos, em que os hespanhoes fizeram todos os esforços
para dar cabo de nós, levaram tres sovas mestras; a primeira deu-lh'a em
1663 o conde de Villa Flor na batalha do Ameixial, a segunda em 1664
Pedro Jacques de Magalhães na batalha de Castello Rodrigo, a terceira em
1665 na batalha de Montes Claros o marquez de Marialva. D'ahi por diante
nunca os hespanhoes levantaram cabeça, e não pensaram mais em tomar
conta outra vez de Portugal.

Ora o conde de Castello Melhor tinha uma grande idéa; dizia elle
comsigo: os hespanhoes levaram tanta pancadaria, que, se fazemos a paz
com elles, ficando nós simplesmente com o que tinhamos ao principio,
póde-se dizer que fomos logrados. Demais a mais Portugal é pequeno, a
Hespanha é grande; em qualquer bulha que tivermos estamos de mau
partido. É necessario fazer Portugal maior e a Hespanha mais pequena. E
toda a sua tineta era obrigar os hespanhoes a dar-nos a Galliza. E
o que fazia elle então? Encostava-se a Luiz XIV, rei de França, que
andava namorando umas provincias hespanholas lá de Flandres. Casava D.
Affonso VI com uma princeza franceza, e dizia comsigo: Mais dia menos
dia, Luiz XIV pega-se com a Hespanha. Nós vamos com elle. A Hespanha
leva para o seu tabaco a valer. Elle fica com as provincias que quizer,
até com a Flandres toda, se isso lhe fizer conta, e nós com a Galliza, e
com mais alguma cousa se podér ser.

--E era bem pensado, sr. João da Agualva, observou o Bartholomeu, porque
é que não havia de ser nossa a Galliza?

--Tens rasão, e já vês que, se nós tivessemos a Galliza tambem, não
estavamos sempre com medo de ser engulidos pelos visinhos. Mas que
queres tu? Entretanto íam grandes intrigas no paço. A rainha, que era
uma princeza toda _liró_ e toda costumada ás janotices da côrte de Luiz
XIV, achando-se casada com um homem que só se dava bem com moços de
cavallariça, e que de mais a mais era tão doente que nem marido podia
ser, principiou a desgostar-se, e ao mesmo tempo a agradar-se do infante
D. Pedro, rapaz desempennado, que tambem não desgostava da francezita.
Pensaram em se juntar e governar o paiz. Principiaram as intrigas. Tanto
fizeram que conseguiram pôr fóra o conde de Castello Melhor.
Desamparado, o pobre D. Affonso VI não tardou a ser expulso do
throno, e até o descasaram, coitado! Foi necessario para isso um
processo que é uma vergonha, e realmente não posso perceber como foi que
uma rainha se deixou assim andar nas bôcas do mundo!... Emfim, o que é
certo é que desterraram o pobre D. Affonso VI, mandando-o para a ilha
Terceira; prenderam-n'o depois em Cintra, onde morreu, e a rainha casou
com o cunhado, e este ficou a governar o reino. Eu já lhes disse,
rapazes, que bem conheço os defeitos de D. Affonso VI; mas o pobre
homem, que era mesmo uma creança, que se não importava para nada com a
politica, que tivera a fortuna de acertar com um bom ministro que
governava por elle e governava bem, não merecia que lhe fizessem
similhante entrega! Mette dó, porque elle nem sabia defender-se, andava
ali como o menino nas mãos das bruxas.

E o irmão, que lhe tirára a corôa, e que lhe tirára a mulher, nem ao
menos lhe dava a sua liberdade, nem lhe consentia que espairecesse.
Tinha-o preso n'um quarto em Cintra, e ali o deixou morrer de
aborrecimento e de desgosto, a elle que nunca fizera mal a ninguem senão
com as suas tolas rapaziadas!

Emfim, passemos adiante! O que é certo é que isto succedeu em 1667, e
logo no anno seguinte de 1668 fazia-se a paz com a Hespanha, sem lucro
nenhum para nós, porque nem ao menos apanhavamos a praça africana
de Ceuta, que era tão nossa, por causa da qual morreu no captiveiro o
infante santo, e que em 1640 não conseguira livrar-se dos hespanhoes.

Tanto se empenhára em governar o reino o sr. D. Pedro II, que desde 1667
até 1683, anno em que morreu D. Affonso VI, só tomou o titulo de
regente, e a final de contas não fez senão tolices. Demais a mais
algumas cousas boas que deixou fazer, logo as desmanchou. Um ministro
que elle teve, o conde da Ericeira, quiz ver se fundava fabricas em
Portugal, mas em 1703 um tratado com a Inglaterra, conhecido pelo nome
de tratado de Methwen, que este era o nome do embaixador que o assignou,
deu cabo da nossa industria. Conservou-se em paz, tanto que lhe deram o
nome de _Pacifico_, e vae no fim do seu reinado mette-se sem mais nem
menos na guerra da successão de Hespanha, favorecendo D. Carlos da casa
de Austria contra D. Filippe da casa de Bourbon. Como tinhamos então um
excellente general, que era o marquez das Minas, deu-nos este o gostinho
de entrar victorioso em Madrid, e de proclamar ali D. Carlos rei de
Hespanha; mas esse gostinho não tardámos a amargal-o, porque, morrendo
D. Pedro II no dia 1 de dezembro de 1706, logo no dia 25 de abril de
1707 era o marquez das Minas batido na batalha de Almanza com graves
perdas para nós, tanto que até ao fim da guerra póde-se dizer que
nunca mais levantámos cabeça.

Subio ao throno D. João V, e eu, para lhes dizer a verdade, o que não
posso perceber é como ha historiadores que gabam aquelle rei. Cá para
mim foi um dos peores que nós tivemos. Possuia algumas qualidades que
não eram de todo más, era porém o mesmo que se as não tivesse, porque
não pensava senão no beaterio, e em obras grandes e magnificas, que a
maior parte das vezes para nada serviam. Logo por desgraça foi n'esse
reinado que começaram a render rios e rios de dinheiro as minas do
Brazil, e tudo era pouco para o rei que não cuidava senão de si e nada
do reino. Por exemplo, achou-se embrulhado com a Hespanha e com a França
n'uma guerra que no seu tempo não foi senão desastrosa. Uns corsarios
francezes deram-nos cabo do Rio de Janeiro e levaram-nos umas riquezas
espantosas. Pois não encontrou aquelle homem uns poucos de navios para
saltarem tambem nas colonias francezas, ou para protegerem as nossas!
Emfim! se os não tinhamos, paciencia! Mas d'ahi a pouco saíu de Lisboa
uma excellente esquadra em soccorro do papa, commandada pelo conde do
Rio Grande, esquadra que foi bater os turcos no cabo Matapan! Ora vejam
se ha um patarata assim! Annos depois, por causa de uns insultos feitos
em Madrid ao nosso embaixador, está para rebentar a guerra com a
Hespanha. Fazem-se preparativos, e vê-se que não temos nem exercito, nem
marinha. De que tratou logo D. João V? De comprar armamento? Qual
historia! De mandar fazer em Paris, para si, uma barraca de campanha
muito rica, e tão luxuosa que toda a gente a ía ver!!

Não tinhamos estradas, não tinhamos rios canalisados, não tinhamos
desentulhados os portos, não tinhamos nada do que nos era necessario,
mas tinhamos aquella monstruosidade do convento de Mafra que custou 120
milhões de cruzados, que não serve para cousa nenhuma, e que nem ao
menos é bonito. Dizem que gostava muito de imitar Luiz XIV, mas o que me
dizia o engenheiro francez que esteve aqui em Bellas, é que Luiz XIV
mandava ir sabios para França, dava pensões aos sabios estrangeiros, e
este o que dava era dinheiro para igrejas, e o que mandava vir era de
Roma bullas e capellas. Dizem que nunca deixou ás nações estrangeiras
pôr pé em ramo verde comnosco. Quem lhe valeu para isso foram os
diplomatas que teve, que nunca em Portugal os houve tão bons, e tambem o
ser tão orgulhoso que ía aos ares só com a idéa de que mangavam com elle.

Mas no mais não me fallem em D. João V, que até me sobe o sangue á
cabeça. Pois vocês conhecem cousa que mais indigne do que ir um homem
ali para Lisboa, no campo da Lã, ver os inquisidores queimarem
gente de bem, ou porque não gostavam de toucinho, ou porque nem sempre
íam á missa, e depois montar a cavallo, para se metter em Odivellas na
cella de uma freira e passar ali a noite? Eu digo que me chega a parecer
nem sei o que uma malvadez assim.

Morreu em 1750 esse rei que não fez nada bom em Portugal, a não ser as
Aguas-Livres. Pouco mais dinheiro gastou que se podesse dizer que fosse
bem gasto. E digo-lhes que, se vocês olharem para o paiz, até lhes ha de
fazer pena. A nobreza já não se compunha senão simplesmente de criados
do paço, o clero immenso e corrompido enchia o reino com os seus padres
e os seus conventos, e conservava o povo n'uma ignorancia completa, o
povo, miseravel, vadio, ou emigrava para o Brazil, ou pedia esmola ás
portarias dos conventos, ou sentava-se ao sol. Tinhamos chegado ao mais
baixo a que podiamos chegar. Felizmente, quando uma nação desce a tal
ponto, sempre apparece alguem que a levante e esse, eu, para o outro
domingo, lhes direi quem foi. Por hoje basta. Quando fallo no sr. D.
João V, o _Magnifico_, e penso no mal que elle fez ao paiz, fico sempre
macambusio, e então o melhor é ir-me deitar.




NONO SERÃO

D. José I.--As transformações sociaes.--O marquez de Pombal
e a revolução.--Terramoto de 1 de novembro de 1755.--As
grandes reformas de Sebastião de Carvalho.--Expulsão dos
jesuitas.--Reforma da universidade.--Reorganisação do
exercito.--Agricultura.--Industria.--Inquisição.--Christãos novos e
christãos velhos.--Politica estrangeira.--Energia com Roma e com
Inglaterra.--Reconstrucção de Lisboa.--Estatua de D. José.--Attentado
contra o rei.--Supplicio dos Tavoras.--D. Maria I.--Reacção contra as
medidas do marquez de Pombal.--Processo do grande ministro.--Pina
Manique, Francisco de Almada.--Martinho de Mello.--Loucura da
rainha.--Regencia do principe D. João.--A republica franceza.--Campanha
do Roussillon.--Campanha de 1801.--Napoleão e o tratado de
Fontainebleau.--Fuga da familia real para o Brazil.--Guerra
peninsular.--Congresso de Vienna.--D. João VI.--Conspiração de
1817.--Revolta de Pernambuco.--Revolução de 1820.


Hão de vocês notar, rapazes, observou o João da Agualva mal todos se
sentaram no domingo seguinte em torno da lareira, que, em estando para
haver uma grande mudança na sorte dos homens, parece que todos, sem o
querer e sem o saber, trabalham para essa mudança, desejando fazer
muitas vezes exactamente o contrario. Por exemplo, lembram-se vocês que
ali por 1500 é que os reis se fizeram senhores absolutos, porque
acabaram com os privilegios da nobreza, e com os foraes do povo.
Quem é que contribuiu para isso? O povo, que ajudou o rei a dar
cabo dos nobres. Agora encaminha-se tudo para a liberdade e para a
igualdade, e quem é que no nosso paiz vae concorrer mais para similhante
cousa? O marquez de Pombal. Dir-me-hão vocês: Então o marquez de Pombal
era algum liberalão por ahi alem como os de vinte? Qual historia! Era um
tyranno e dos mais ferozes que nunca houve, mas, sem o querer e sem o
saber, ninguem mais do que elle trabalhou pela liberdade.

Em primeiro logar hão de vocês saber que o rei D. José, que subiu ao
throno por morte de seu pae D. João V, quasi que nem conhecia o marquez
de Pombal, que já era homem dos seus cincoenta annos, e que tinha andado
por fóra como embaixador, ora em Londres, ora em Vienna de Austria, onde
casára com a filha de um figurão austriaco. Quem metteu empenhos para
que elle fosse ministro foi a mãe de D. José, D. Marianna se chamava
ella, archiduqueza de Austria, e por isso amiga da mulher do marquez,
que então se chamava simplesmente Sebastião José de Carvalho e Mello.
Era um ministro como os outros, e o rei não fazia mais caso d'elle do
que fazia dos seus collegas, quando de repente acontece uma grande
desgraça em Lisboa, que veio a ser o terramoto do dia 1 de novembro de
1755. A cidade foi quasi toda a terra, morreram muitas mil pessoas,
outras ficaram a pedir esmola, e sobretudo reinava um terror
tamanho que ninguem sabia o que havia de fazer nem para onde se havia de
virar. O Sebastião de Carvalho não perdeu a tramontana. Toma elle a
direcção de tudo, arranja sustento, enforca ás portas da cidade quantos
ladrões apanha, porque isso então era uma praga, trata do desentulho, e
logo em seguida de reconstruir a cidade, isto com uma actividade, com um
desembaraço, com um acerto, que D. José disse comsigo: Temos homem!
D'ahi por diante quem governou foi elle, e é de uma pessoa pasmar ver o
que fez. Até ahi os governos, para fallar a verdade, em quem menos
pensavam era no povo e no paiz. O dinheiro do estado não servia senão
para elles fazerem o que lhes agradava, e por felizes se podiam dar os
povos quando lhes dava o capricho para cousas uteis. Sebastião José de
Carvalho e Mello tratou do paiz e mais nada. Ora de que é que o paiz
precisava?

Precisava, primeiro que tudo, de acabar com as despezas no gosto das que
fazia el-rei D. João V, que era umas mãos rotas com fidalgos e com igrejas.

Precisava de poder pensar e estudar, sem ser sempre debaixo da
palmatoria dos frades e dos jesuitas.

Precisava de acabar com a inquisição, porque era uma vergonha que ainda
se queimasse gente em Portugal só porque não ía á missa.

Precisava de ter exercito e de ter marinha.

Precisava de ter industria.

Precisava de ter lavoura.

E nada d'isto elle tinha.

Sebastião de Carvalho via estas cousas e disse comsigo: Mãos á obra. Ora
digam-me vocês: Quando chegam a uma quintarola que compraram e vêem tudo
estragado: os pardaes a darem cabo da fructa, as cearas a morrerem á
sede, a terra fraca por falta de estrume, as hervas ruins a afogarem o
trigo, o que é que fazem? Arregaçam as mangas e dizem: Vamos a isto. E
sacham as hervas, sem dó nem piedade, e saltam ao tiro nos pardaes até
os pôrem fóra, e deitam estrume na terra, e levam a agua da rega para as
cearas, e levantam os muros arrasados, e enxotam os porcos que lhes
vinham fossar nas batatas, e sacodem as gallinhas que lhes depinicavam
tudo, e até vocês se riam se os accusassem de crueldade porque matavam
os pardaes, ou porque arrancavam e deitavam fóra as hervas ruins.

Pois Sebastião José de Carvalho e Mello tratou Portugal exactamente como
vocês tratariam a tal quintarola. Olhou para tudo e disse comsigo: Eh!
com os diabos, como isto está. No paço ha um bando de pardaes que dá
cabo da melhor fructa dos pomares da nação. Toca a enxotar os pardaes,
e, como os pardaes refilaram, saltou ao tiro n'elles. As cearas da
intelligencia, que tambem são trigo porque dão o pão do espirito, não
podiam medrar porque os affogava por toda a parte o joio do jesuitismo.
Toca a sachar os jesuitas. Os muros da quinta estavam arrasados, quer
dizer, estavam as fronteiras a descoberto, e em vez de haver fortes o
que havia era igrejas, e elle mandou fazer o forte da Graça em Elvas, e
poz o exercito a direito, mandando vir para isso um militar estrangeiro,
o principe de Lippe, que era da escola de um rei da Prussia que foi o
primeiro militar do seu tempo. Não havia lavoura nem havia industria,
porque ninguem lhe dava a protecção da rega e do adubo, e Pombal deu-lhe
tudo isso á moda do seu tempo, que elle tambem não podia adivinhar o que
hoje se sabe. Elle reformou os estudos e a universidade, elle fundou
companhias e fabricas, elle partiu os dentes á inquisição, elle poz fóra
os jesuitas, elle tirou a censura dos livros aos padres, elle acabou com
distincções de christãos-novos e christãos-velhos, e na India e no
Brazil acabou tambem com todas as tolices das raças, elle arreganhou os
dentes a Roma, e soube pôr o papa no seu logar, elle bateu o pé á
Hespanha, elle fez-se respeitar da Inglaterra, elle acabou com os
morgados pequenos que só faziam mal á lavoura, elle não deixou que
entrassem para padres e frades todos quantos o queriam ser, porque, se
as cousas continuassem assim, ás duas por tres não havia senão
cabeças rapadas em Portugal, emfim, meus amigos, é de uma pessoa pasmar
ver que aquelle diabo de homem, que ao mesmo tempo fazia de Lisboa uma
cidade nova e levantava uma estatua ao seu rei no Terreiro do Paço, em
tudo poz a mão, tudo melhorou, tudo reformou, tudo arranjou, e póde-se
dizer que virou a nação de dentro para fóra. Já se vê que fez tudo isto
com o «posso, quero e mando.» Mas a quem é que prestou verdadeiros
serviços? Foi á liberdade, porque tirou o povo da miseria e da
ignorancia em que vivia, porque o livrou de ter os jesuitas por tutores,
e assim o animou a cuidar dos seus direitos, e o preparou para um bello
dia reclamar a liberdade. Foi cruel, bem sei, não digo menos d'isso.
Tratou os homens como se fossem pardaes, e praticou mesmo barbaridades
escusadas; mas que diabo! não sei que sina é esta: reforma graúda sem
muito sangue parece que não ha modo de se fazer; uma vez são os
reformadores que derramam o seu proprio sangue, e então é que a reforma
vem de Deus, como acontece com o christianismo; outras vezes os
reformadores derramam o sangue dos outros, e então é que a reforma vem
dos homens, como aconteceu com a revolução franceza; porque lá isso de
regar as arvores do bem com o sangue das nossas proprias veias, Deus é
que o ensina, que os homens só por si não são capazes de chegar a
tanto.

--Ó sr. João, exclamou o Bartholomeu, mas parece-me que tenho ouvido
dizer que os Tavoras, o duque de Aveiro e os mais fidalgos soffreram
tormentos do diabo ali na praça de Belem. Ora, ainda que fosse
necessario dar cabo d'elles, acho que não era preciso atormental-os, e
que o marquez de Pombal tinha na verdade cabellos no coração.

--Não digo menos d'isso, Bartholomeu, mas ouve lá uma cousa: tu sabes
porque é que os fidalgos foram executados, não sabes? Foi por darem uns
tiros no rei. Elles queriam livrar-se do ministro, o rei não largava o
ministro, cada vez se lhe agarrava mais, como depois mostrou, fazendo-o
conde de Oeiras e marquez de Pombal, e então lembraram-se de dar cabo de
D. José. Ora sabes tu como fôra castigado em França, pouco tempo antes,
um homem que tinha querido matar o rei Luiz XV? Foi posto a tormentos,
depois nas feridas abertas deitaram-lhe chumbo a ferver, e a final
ataram-n'o aos rabos de quatro cavallos, e esquartejaram-n'o. E comtudo
ninguem diz que Luiz XV tivesse cabellos no coração. As cousas faziam-se
assim no seu tempo, não foi o marquez de Pombal que as inventou.

Hão de vocês dizer: Este diabo gaba sempre as tyrannias por toda a
parte. Já defendeu D. João II, agora defende o marquez de Pombal. Eu não
as louvo, rapazes. Se vivesse n'esses tempos e podesse, havia de berrar
contra ellas; mas cá de longe, vendo as cousas com socego, digo que
ninguem é perfeito, e que todos os homens têem, como dizia o tal
engenheiro francez que esteve em Bellas, os defeitos das suas
qualidades. Ali está o Francisco Artilheiro que foi soldado: havia de
ter servido com muitos coroneis. Encontrou algum que fosse teso a valer
e que ao mesmo tempo desatasse a chorar, no tempo das varadas, quando
tinha de mandar chibatar algum soldado? Não póde ser. Estes pimpões que
quebram todos os abusos, que põem um joelho de ferro em cima de todas as
revoltas, fazem aos homens o mesmo que fazem ás cousas, e o dever de
quem depois conta a historia é perceber isso tudo, e não estar a berrar
contra aquelles que fizeram serviços ao seu paiz, só porque nem sempre
paravam onde seria melhor que tivessem parado.

Mas vamos nós ao resto da historia que d'aqui a pouco já as noites são
mais pequenas, e mal chega o tempo para dormir a quem tem de se levantar
com o sol. D. José morreu em 1777, e, apenas elle fechou os olhos,
rebentou o odio que havia contra o grande ministro; ninguem quiz lá
pensar no bem que elle tinha feito, e todos clamaram contra as suas
crueldades. Demais a mais quem succedia a D. José era sua filha a rainha
D. Maria I, muito beata, embirrando muito com o marquez, porque
desconfiava que elle quizera fazer passar o throno para o filho
d'ella, um rapazito muito esperto, chamado D. José; e então o rei a
morrer hoje e o ministro a ser demittido ámanhã. Não houve picardia que
lhe não fizessem. Mandaram-n'o para a sua quinta do Pombal, e, estando
elle já doente e amargurado, moeram-n'o com perguntas porque lhe armaram
um processo. Se podessem desfazer tudo o que elle fizera, desfaziam, mas
a final só soltaram os presos, porque emquanto ao mais tiveram medo de
dar bordoada no finado rei, que a final de contas respondia pelos actos
do ministro, porque elle é que assignava as ordens. Tiraram o retrato do
marquez da memoria do Terreiro do Paço, qué só em 1834 se tornou a pôr
como era justo; em vez do retrato pozeram as armas de Lisboa que são um
navio á véla, e foi então que o marquez de Pombal disse, ao saber do
caso: Ai! Portugal que vaes a véla!

Bem quizera D. Maria I admittir os jesuitas outra vez, mas não podia
ser, porque o marquez de Pombal não só os expulsára de Portugal, mas
fizera uma liga contra elles em toda a Europa, e conseguira que o papa
Clemente XIV acabasse com a Ordem. Muito trabalharam os parentes dos
Tavoras para conseguir que se désse uma sentença a declarar que era peta
o que se dissera a seu respeito, e injusta a sentença que os condemnava;
mas a final não conseguiram isso, porque a rainha percebeu que,
condemnando o marquez de Pombal, a quem condemnava era ao pae.

No mais tudo andou para traz, a não ser na marinha, que teve um bom
ministro, Martinho de Mello, e n'isto de escolas que sempre se foram
desenvolvendo. Houve alem d'isso dois homens que fizeram muito bem a
Lisboa e ao Porto, a saber, o intendente da policia Pina Manique e o
corregedor do Porto Francisco de Almada. É que já se não podia deixar de
cuidar de melhoramentos; mas o que deu cabo de nós foi a birra que
tivemos em nos metter na bulha contra a republica franceza. Isso, fallar
em Portugal nas idéas novas, era o mesmo que fallar no diabo, e D. Maria
I, em vez de tratar da sua vida, seguio o caminho de D. João V. Este
ía-se metter com os turcos que lhe não faziam mal nenhum, D. Maria I
foi-se metter com a republica franceza, que estava lá tão longe e que
nada tinha com Portugal.

O que resultou d'aqui é que mandámos uma divisão ao Russilhão a ajudar
os hespanhoes, e uma esquadra a Toulon a ajudar os inglezes. A divisão
do Russilhão portou-se o que se chama bem, mas depois? A Hespanha fez a
paz com a França, e nós ficámos a olhar ao signal, a Inglaterra
mettia-nos na dança, e depois punha-se de palanque. Tivemos de andar a
pedir a paz á republica franceza, quasi de joelhos, e o Napoleão, que já
n'esse tempo começava a governar em França, e que nos tinha jurado pela
pelle, teve a habilidade de açudar a Hespanha contra nós,
resultando d'ahi a guerra de 1801. Foi uma guerra vergonhosa. Tinhamos o
exercito escangalhado, não fizemos senão levar bordoada, e, para
alcançarmos paz, tivemos de pagar bom dinheiro, e de dar aos hespanhoes
Olivença que nunca mais apanhámos. De nada nos valeram todas as
humilhações. Em 1807, Napoleão, que já era imperador, e que andava n'uma
lucta de morte com a Inglaterra, quiz que fechassemos os portos aos
nossos antigos alliados. Andámos a hesitar, até que Napoleão, que não
gostava de perder tempo, declara que a casa de Bragança deixára de
reinar, e mette-nos cá dentro um exercito commandado pelo Junot. A
familia real não teve senão tempo de fazer as malas e de partir para o
Brazil, por conselho dos inglezes. Devo-lhes dizer uma cousa: a rainha
D. Maria I endoidecera havia muito tempo, e quem governava em seu nome
como principe regente desde 1792, era o principe D. João, seu filho mais
velho, porque aquelle D. José, de quem lhes fallei, e que dava tantas
esperanças, tinha morrido em 1788.

Imaginem vocês como ficaria o povo com esta _partida_, e agora é que é o
caso de se lhe chamar _partida_.

Abandonado pela familia real, viu o Junot tomar conta do governo,
agarrar no exercito portuguez, que não tinha ordem para resistir, e
mandal-o para França servir no exercito de Napoleão, lançar
contribuições pesadas como o diabo, e emfim tratar isto como terra
conquistada. E, para maior vergonha, Junot invadira o paiz, no coração
do inverno, com meia duzia de gatos, e entrára em Lisboa á frente de
quatro soldados estropiados e esfarrapados. A vergonha de todas estas
humilhações começou a fazer ferver o sangue aos portuguezes, e um bello
dia rebentou a revolta no Porto. Foi como quem diz um rastilho de
polvora. Desde o Minho até ao Algarve, não houve terra em que se não
pegasse em armas contra os francezes. O Junot mandou as suas tropas
esmagar as revoltas, e os francezes fizeram então cousas do arco da
velha, mataram, roubaram, queimaram...

--Ah! pae do céu! exclamou a tia Margarida, eu era bem pequenina então,
havia de ter sete ou oito annos, mas lembra-me do que minha mãe me
contava. Havia um que ella chamava o _Maneta_, que isso parece que era o
diabo em pessoa.

--Era o general Loison, que não tinha um braço. Em Evora fez elle o
demonio, mas, por mais que fizessem, não conseguiam acabar com a
revolta. Era pobre gente do povo, sem armas, sem disciplina, sem chefe,
que assim se levantava contra os francezes, e estes davam-lhe para baixo
facilmente, mas a gente levava aqui em Bellas, levantava-se em Cintra,
íam os francezes a Cintra, levantavam-se os de Bellas. Demais a mais,
cada qual faz a guerra como póde. Lá em batalha não podiam os
nossos medir-se com os soldados de Napoleão. O que faziam? Davam-lhes
caça; em os apanhando separados, carga para cima d'elles. Era facada,
era paulada, era tiro de bacamarte, era o que podia ser, com os diabos!
que um povo é como uma pessoa, quando o querem pisar aos pés, defende-se
com unhas e dentes. Mas n'isto os inglezes, que andavam á tóca de ver se
podiam saír da sua ilha e desembarcar n'algum sitio onde podessem
incommodar Napoleão, assim que viram que Portugal estava revoltado,
desembarcaram aqui um exercito commandado por um sugeito chamado
Wellington, que, se não era tão bom general como Napoleão, pelo menos
parece-me que ainda seria mais feliz do que elle. O Junot, que não
passava de ser um valentão, foi batido pelos inglezes na Roliça e
Vimeiro, onde os nossos, já se vê, tambem combateram ao lado das fardas
vermelhas, que é, como vocês sabem, o uniforme inglez, e, para se safar
de Portugal, teve de capitular. É verdade que o patife apanhou uma
capitulação, que a não podia ter melhor se fosse elle que houvesse dado
a tunda nos inglezes. Levou-nos tudo o que nos tinha roubado, e nem se
fallou nos nossos soldados que lá andaram, contra vontade sua, a servir
no exercito de Napoleão.

--Ó sr. João, acudiu o Manuel da Idanha, vocemecê ha de desculpar
uma pergunta, mas parece-me que ninguem póde vir por terra de França a
Portugal, sem passar pela Hespanha, não é verdade?

--É sim, rapaz; mas que queres tu dizer com isso?

--Quero dizer que não percebo como foi que o Junot cá veio. Então os
hespanhoes deixaram-n'o passar?

--Fizeram mais alguma cousa, vieram com elle, porque n'esse tempo
estavam ainda muito manos com os francezes, tanto que repartiram entre
si Portugal como quem reparte um melão, uma talhada para este, outra
talhada para aquelle, etc. Mas o Napoleão surripiou aos hespanhoes a sua
familia real, e fez rei de Hespanha um seu irmão chamado José, de fórma
que, quando nós nos revoltámos, revoltaram-se elles tambem, e começámos
uns e outros á lambada aos francezes.

Entretanto cá se arranjára um governo; tratou elle de organisar o
exercito, que ainda era á moda de 1640, e que só precisava de um general
como o principe de Lippe para ficar uma joia. Esse general appareceu,
foi um inglez chamado Beresford, que n'um abrir e fechar de olhos poz
tudo a direito. O que é certo, meus amigos, é que na guerra da
Peninsula, que durou seis annos, os nossos soldados, combatendo ao lado
dos soldados inglezes, passavam por ser tão bons como elles e
talvez melhores. Já se vê que tinha sido necessario virem muitos
officiaes inglezes para os nossos regimentos, porque a officialidade
portugueza estava toda dispersa, uns tinham ido para França, outros para
o Brazil, e outros, diga-se a verdade, não prestavam para nada.

--Ó sr. João, dá licença que lhe faça uma pergunta? interrompeu de novo
o Manuel da Idanha.

--Faze, rapaz, podéra! Pois então para que estou eu aqui?

--Porque é que se chamou a essa guerra a guerra da Peninsula?

--Não te disse eu, rapaz, no principio d'esta conversa, que Portugal e a
Hespanha juntos formavam uma peninsula, quer dizer quasi uma ilha,
porque a cérca o mar por toda a parte menos por um lado, que é onde pega
com a França pelos Pyrenéus?

--Disse, sim senhor.

--E não te acabei de dizer que, quando nos revoltámos contra Napoleão,
revoltaram-se tambem os hespanhoes, e que desatámos uns e outros á
pancada aos francezes?

--Tambem é verdade.

--Pois então ahi tens tu: a guerra era de Hespanha e de Portugal, por
conseguinte era a guerra da Peninsula.

--Ora tambem quero fazer uma pergunta, disse a tia Margarida.

--Pois então, tia Margarida! Era o que faltava era que as mulheres não
tivessem a palavra.

--O que você precisava era de um puxão de orelhas, mas emfim lá vae a
pergunta. Eu, sempre que minha mãe fallava n'essas cousas, ouvia-lhe
dizer que os francezes eram muito maus, mas que os inglezes talvez ainda
fossem peores. Ora você diz que os inglezes vieram ajudar-nos...

--Dizia muito bem a sua mãe, tia Margarida, mas eu tambem não digo mal.
Soldados inglezes sempre foram abrutados, principalmente em estando com
o vinho. Nunca vieram a Portugal senão ajudar-nos, e nunca tambem cá
vieram que não ficasse tudo a berrar contra elles. Olhem no tempo de D.
Fernando. Parece-me que lhes contei que, vindo elles combater ao nosso
lado contra os hespanhoes, fizeram o que o demonio não fez. E, agora que
já respondi ás suas perguntas, vou continuar a minha historia.

O Junot foi posto fóra em 1808, os inglezes então viraram-se contra os
francezes que estavam na Hespanha, e metteram-se pela Galliza dentro,
mas o Soult, apanhando-os lá, deu-lhes uma tareia formidavel, e depois
veio sobre Portugal e entrou no Porto. A gente do Porto, a fugir dos
francezes, metteu-se na ponte de barcas que então havia sobre o
Douro, para passar para o outro lado; a ponte abateu e morreram milhares
de pessoas.

--Ah! bem sei! interrompeu a tia Margarida, diz que foi o dia de juizo.

--Ora se foi! os francezes pararam no Porto, mas nós e os inglezes
fomo-nos a elles d'ahi a tempo e pozemol-os fóra. O Napoleão, embirrando
com o caso, mandou um exercito commandado pelo marechal Masséna, um dos
seus melhores generaes, com ordem de atirar o Wellington ao mar; mas o
Wellington, que era homem avisado, e que não gostava de tomar banhos de
choque, aproveitára o tempo a arranjar as linhas de Torres Vedras, de
traz das quaes se metteu. O Masséna bateu com as ventas nas linhas, vio
que não podia fazer nada, foi-se embora, e nós logo atraz d'elle.

Para encurtar rasões, em quatro annos de campanha, fomos a pouco e pouco
empurrando os francezes pela Hespanha fóra, em 1814 entrámos em França
de embrulhada, e, como os russos, os austriacos e os prussianos tambem
entraram por outro lado, levando o Napoleão adiante de si, caíu aquella
caranguejola toda, o Napoleão teve de dar a sua demissão de imperador, e
nós ficámos livres dos francezes.

Dois annos depois, em 1816, morreu a rainha D. Maria I no Brazil, sem
que ninguem, por assim dizer, désse por isso. O principe regente tomou
o nome de D. João VI e continuou tudo como até ahi.

Entretanto em Portugal estava tudo descontente. O povo levantára-se
contra os francezes por sua conta e risco, e parecia-lhe historia que o
rei, que fugira, continuasse a não fazer caso nenhum d'elle.

Em Hespanha tinham-se reunido côrtes e arranjára-se uma constituição
pela qual se acabava com o poder absoluto dos reis. Em Portugal, se não
se fizera o mesmo, não fôra por falta de vontade, mas os inglezes não
deixavam. Todos percebiam, porém, que se não podia voltar á antiga, como
se não se tivesse passado cousa nenhuma no intervallo. Por outro lado a
teima do rei em ficar no Brazil já nos ía fazendo chegar a mostarda ao
nariz, tanto mais que, ao passo que havia por cá muita miseria, estava
sempre a ir dinheiro para o Brazil, e não só dinheiro mas tropa tambem,
porque D. João VI, em 1817, lembrára-se de juntar Montevideu ao Brazil,
como se o Brazil ainda fosse pequeno, aproveitando para isso a revolta
das colonias hespanholas. Emfim, a conservação de Beresford e dos
coroneis inglezes no quadro do exercito portuguez incommodava os nossos
officiaes, e descontentava a nação.

Em 1817, descobre-se ainda por cima uma conspiração liberal, dão como
implicado n'ella, com provas de cá cá rá cá, um general muito
estimado, Gomes Freire de Andrade, de quem diziam que Beresford tinha
ciumes, e enforcam-n'o. Tudo isto ía fazendo ferver o sangue aos
portuguezes, e, quando em 1820 começou a haver revoluções liberaes por
toda a parte, rebenta tambem uma revolução liberal no Porto, espalha-se
logo por todo o reino, chega a Lisboa, e pega-se ao Brazil. D. João VI é
obrigado a acceital-a, e a vir para Portugal, a mandar embora os
officiaes inglezes, e a assignar uma constituição que as côrtes fizeram;
mas os governos lá de fóra, e logo os mais poderosos, acharam perigoso
que se tornasse a fallar em liberdade e constituições, e decidiram que
viesse um exercito francez pôr a mordaça na boca aos liberaes da
Hespanha, emquanto um exercito austriaco ía fazer o mesmo aos da Italia.
Apenas cá chegou a noticia, os amigos do absolutismo, que tinham por
chefe o infante D. Miguel, segundo filho do rei, levam este para Villa
Franca, e deitam abaixo a constituição. Mas o que a fez caír não foram
elles, foram os passos dos soldados francezes que já a essas horas
andavam por Hespanha.

Entretanto o Brazil, onde ficára governando o principe D. Pedro, que era
o filho mais velho do rei, fazia-se independente. Antes d'elle tinham
feito o mesmo as colonias visinhas que pertenciam á Hespanha, e
cincoenta annos antes as que pertenciam á Inglaterra. No Brazil já
houvera duas tentativas de revolta, e ambas tinham sido afogadas em
sangue, uma em 1789, outra em 1817. A final venceram. Accusam muito D.
Pedro de se ter feito imperador do Brazil, e de se haver revoltado
contra seu pae. Elle não se revoltou, mas só podia fazer uma de duas
cousas, ou ir com os brazileiros, ou pôr-se no andar da rua. Então esses
figurões imaginavam que um paiz rico, grande e forte, está agora para
receber ordens de outro mais pequeno, ou maior que elle seja, e que fica
de mais a mais do outro lado do mar? Ora, historias da vida! e não se
queixem d'isso. É ordem das cousas. As colonias são como os filhos. A
gente educa-os, trata-os, deixa-os ir crescendo. Quando são maiores
emancipam-se. E ninguem tem que estranhar. Foi o que aconteceu com o
Brazil. Estava maior, emancipou-se. Perdemos o Brazil em 1825, em 1826
morreu D. João VI. Os seus ultimos dias foram amargurados. Tivera guerra
com o filho mais velho que se revoltára com o Brazil; estivera para ser
desthronado pelo filho mais novo, D. Miguel, que o chegára a prender na
Bemposta, e que elle depois tivera que mandar para fóra do reino; a
mulher, D. Carlota Joaquina, que estava sempre ás turras com elle, nunca
lhe déra senão desgostos. Falleceu ralado o pobre do rei, que era uma
excellente pessoa, amigo de tomar o seu rapé com socego, e que para sua
desgraça governára no tempo da revolução franceza, no tempo de
Napoleão, e no tempo da revolução de 1820. E ha de a gente acreditar no
rifão: Dá Deus o frio conforme a roupa.

E, como eu tambem estou com frio, rapazes, vou até casa á procura de
roupa, e no proximo domingo acabaremos com isto.




DECIMO SERÃO

Historia contemporanea.--D. Pedro IV.--A Carta Constitucional.--Regencia
da infanta D. Izabel Maria.--D. Miguel, rei absoluto.--Sublevação do
Porto.--Emigração.--A ilha Terceira.--O conde de Villa
Flor.--Perseguição aos liberaes.--A esquadra franceza no Tejo.--D. Pedro
IV põe-se á frente dos liberaes.--Desembarque no Mindello.--Cêrco do
Porto.--Expedição do Algarve.--Batalha do Cabo de S. Vicente.--Entrada
das tropas do duque da Terceira em Lisboa, a 24 de julho.--Cêrco de
Lisboa.--Batalhas de Asseiceira e Almoster.--Convenção de Evora
Monte.--Reinado de D. Maria II.--Revolução de Setembro.--Constituição de
1838.--Restauração da Carta.--A Maria da Fonte.--A Junta do Porto.--A
intervenção estrangeira.--A Regeneração.--Reinado de D. Pedro V.--A
febre amarella.--Reinado de D. Luiz.--Conclusão.


--Vocês percebem, meus amigos, principiou o João da Agualva, que, tendo
de lhes contar agora acontecimentos em que tomou parte muita gente que
ainda está viva e sã, e não querendo offender ninguem, não posso estar
com muitas reflexões. Quem succedeu a D. João VI foi D. Pedro IV, já
então imperador do Brazil. Este, que era um principe que percebia as
cousas, vio bem que o nosso tempo já não era tempo para
absolutismos, e antes quiz dar elle uma constituição do que ir o povo
arrancar-lh'a. Mandou portanto para Portugal a Carta, dizendo ao mesmo
tempo que abdicava em sua filha D. Maria, a qual havia de casar com seu
tio o infante D. Miguel, e, emquanto D. Miguel não voltava para
Portugal, nomeou regente a infanta D. Izabel Maria, que vocês haviam de
conhecer muito bem.

--Ora se conhecemos! morava ali em Bemfica!

--Tal qual! morreu ha cousa de tres ou quatro annos. A Carta
Constitucional ficou sendo lei do reino, apezar de algumas revoltas, mas
o infante D. Miguel, apenas chegou a Lisboa em 1828, fecha as côrtes,
atira com a Carta de pernas ao ar e faz-se proclamar rei absoluto. A
guarnição do Porto não está pelos ajustes, e revolta-se, mas tem de
fugir para Hespanha. Tudo o que eram liberaes, e que poderam safar-se,
emigraram uns para França, outros para Inglaterra. Mas o que é certo é
que o povo todo estava com D. Miguel. Porque? Como póde haver um povo
que não goste de liberdade? Vão lá explical-o! Os padres e os frades
estavam quasi todos ao lado de D. Miguel, e levavam comsigo muita gente.

Mas a ilha Terceira não esteve pelos autos, e não acceitou o
absolutismo. Apenas isso constou, correram os emigrados para essa ilha,
o conde de Villa Flor tomou conta do governo, e ali resistio ás
esquadras de D. Miguel. Este, entretanto, com o devido respeito,
fazia tolices graúdas, e a maior era perseguir os liberaes a ferro e
fogo. A forca estava sempre armada, as prisões sempre atulhadas, e os
caceteiros não deixavam ninguem socegado. Isto de fazer martyres é o
diabo. Para a arvore da liberdade não ha rega como o sangue dos seus
filhos.

Ora, além d'isso, emquanto o governo francez se mostrava pouco amigo da
liberdade, tinha D. Miguel as sympathias da França, mas depois da
revolução de 1830 aconteceu o contrario. O governo de D. Miguel caíu na
asneira de perseguir uns francezes. D'ahi resultou vir uma esquadra
franceza ao Tejo e levar os navios que ahi estavam. Ao mesmo tempo D.
Pedro, que tivera os seus dares e tomares com os brazileiros, abdicou a
corôa imperial do Brazil, e veio tomar o commando dos defensores de sua
filha. Põe-se á frente d'elles, que não eram muitos, eram 7:500,
desembarca no Mindello a 8 de julho de 1832, mette-se no Porto, e ahi
resiste mais de um anno aos soldados de D. Miguel, que eram muito
valentes, mas mal commandados. Envia ao Algarve em 1833 meia duzia de
gatos, debaixo das ordens do conde de Villa Flor, já então duque da
Terceira, n'uma pequena esquadra, que primeiro fôra commandada por um
inglez chamado Sertorius, que ainda vive, e que o estava sendo por outro
inglez chamado Napier. Este desembarca o duque da Terceira no
Algarve; depois vae-se á esquadra miguelista e derrota-a no cabo de S.
Vicente. O duque da Terceira marcha sobre Lisboa, bate na cova da
Piedade os miguelistas, commandados pelo Telles Jordão, que tinha sido
um tyranno para os presos liberaes, e que ali morreu, e entrou em Lisboa
no dia 24 de julho de 1833. D. Pedro vem para Lisboa que os miguelistas
cercam. Elle e os seus dois marechaes, duques da Terceira e de Saldanha,
obrigam os miguelistas a retirar para Santarem. Depois o duque de
Saldanha por um lado bate os miguelistas em Almoster, o duque da
Terceira por outro bate-os na Asseiceira, e D. Miguel assigna a 25 de
maio de 1834 a convenção de Evora Monte, pela qual o seu exercito
depunha as armas, e elle abandonava Portugal. Como se esperasse
unicamente o fim da sua empreza para terminar tambem a sua vida, D.
Pedro IV veiu aqui morrer a Queluz no dia 24 de setembro de 1834. Podem
para ahi pensar d'elle o que quizerem, meus amigos, mas o homem que,
tendo nascido no throno, passou a sua vida a regeitar corôas, e a
combater, como um soldado valente, pela liberdade dos povos, merece bem
as tres estatuas que no Porto, em Lisboa e no Rio de Janeiro, mostram
que, ao menos depois da sua morte, não foram ingratos com elle os
portuguezes e os brazileiros.

Succedia-lhe a senhora D. Maria II, que viveu bem pouco tempo, e
teve uma vida bem atormentada. Logo em 1836 um partido, que queria mais
liberdades que as da Carta fez a revolução de setembro, e em 1838 veiu
uma nova constituição. Contra ella se fazem muitas revoltas, até que em
janeiro de 1842 Costa Cabral, depois conde de Thomar, deita abaixo a
constituição de 1838, e põe outra vez a Carta de pé. Governou elle muito
tempo, mas, diga-se a verdade, um poucochinho á bruta. D'ahi vieram mais
revoluções, e a maior de todas que foi a da Maria da Fonte, em 1846, em
que metade do reino obedecia á Junta do Porto, e a outra metade ao
governo nomeado pela rainha. Batidos em Val-Passos, em Torres Vedras, e
no Alto do Viso, os _patuléas_, como se chamava aos partidarios da
junta, são obrigados a depor as armas pelos inglezes e pelos hespanhoes
que mandaram uns uma esquadra, os outros um exercito para restabelecerem
aqui o socego. Mas no fundo estava tudo em braza, e quando em 1851 o
duque de Saldanha se levantou contra o conde, hoje marquez de Thomar,
foi tudo atraz d'elle. Reuniram-se côrtes que introduziram umas mudanças
na Carta, e d'ahi por diante nunca mais houve revoltas de consideração.
Pegaram os governos a fazer estradas e caminhos de ferro, e lá de
partidos é que eu não entendo. Em 1853 morria a senhora D. Maria II,
considerada por todos como uma santa senhora, e uma santa mãe, e
succedeu-lhe seu filho, o senhor D. Pedro V, sendo regente nos
primeiros dois annos o senhor D. Fernando que vocês todos conhecem. O
sr. D. Pedro V era uma joia, como sabem. Quando em 1857 veio a febre
amarella a Lisboa, andou elle pelos hospitaes, a consolar os doentes, e
a dar coragem e exemplo a todos. Tambem quando em 1859 morreu a boa
rainha Estephania, sua mulher não houve portuguez que a não chorasse com
elle, e quando em 1861 morreu elle tambem quasi de repente, com os seus
dois irmãos, o senhor D. Fernando e o senhor D. João, a dôr do povo foi
tamanha que chegou a haver tumultos, porque até se desconfiava que
aquillo não fosse natural. Subio ao throno o senhor D. Luiz que hoje
reina, e aqui portanto acaba a historia. Sempre direi, com tudo, que não
são muitos os paizes por esse mundo onde os povos ainda hoje chorem
pelos reis, e que isso vem de serem os nossos tão amigos da liberdade
como são e tem sido, graças a Deus. E aqui, meus amigos, acabo a minha
tarefa; o que eu desejo, rapazes, é que vocês achem que não os massou
muito o pobre do João da Agualva, e que entendam que empregaram melhor o
seu tempo a ouvir as minhas historias, do que a beber decilitros na
taverna do Funileiro.

FIM





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Manuel Pinheiro Chagas

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1.A.  By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm
electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to
and accept all the terms of this license and intellectual property
(trademark/copyright) agreement.  If you do not agree to abide by all
the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy
all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession.
If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project
Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the
terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or
entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8.

1.B.  "Project Gutenberg" is a registered trademark.  It may only be
used on or associated in any way with an electronic work by people who
agree to be bound by the terms of this agreement.  There are a few
things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
even without complying with the full terms of this agreement.  See
paragraph 1.C below.  There are a lot of things you can do with Project
Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
works.  See paragraph 1.E below.

1.C.  The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
Gutenberg-tm electronic works.  Nearly all the individual works in the
collection are in the public domain in the United States.  If an
individual work is in the public domain in the United States and you are
located in the United States, we do not claim a right to prevent you from
copying, distributing, performing, displaying or creating derivative
works based on the work as long as all references to Project Gutenberg
are removed.  Of course, we hope that you will support the Project
Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by
freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of
this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with
the work.  You can easily comply with the terms of this agreement by
keeping this work in the same format with its attached full Project
Gutenberg-tm License when you share it without charge with others.

1.D.  The copyright laws of the place where you are located also govern
what you can do with this work.  Copyright laws in most countries are in
a constant state of change.  If you are outside the United States, check
the laws of your country in addition to the terms of this agreement
before downloading, copying, displaying, performing, distributing or
creating derivative works based on this work or any other Project
Gutenberg-tm work.  The Foundation makes no representations concerning
the copyright status of any work in any country outside the United
States.

1.E.  Unless you have removed all references to Project Gutenberg:

1.E.1.  The following sentence, with active links to, or other immediate
access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently
whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the
phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project
Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed,
copied or distributed:

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org

1.E.2.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived
from the public domain (does not contain a notice indicating that it is
posted with permission of the copyright holder), the work can be copied
and distributed to anyone in the United States without paying any fees
or charges.  If you are redistributing or providing access to a work
with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the
work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1
through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the
Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or
1.E.9.

1.E.3.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted
with the permission of the copyright holder, your use and distribution
must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional
terms imposed by the copyright holder.  Additional terms will be linked
to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the
permission of the copyright holder found at the beginning of this work.

1.E.4.  Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm
License terms from this work, or any files containing a part of this
work or any other work associated with Project Gutenberg-tm.

1.E.5.  Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this
electronic work, or any part of this electronic work, without
prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with
active links or immediate access to the full terms of the Project
Gutenberg-tm License.

1.E.6.  You may convert to and distribute this work in any binary,
compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any
word processing or hypertext form.  However, if you provide access to or
distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than
"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version
posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org),
you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a
copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon
request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other
form.  Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm
License as specified in paragraph 1.E.1.

1.E.7.  Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works
unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.

1.E.8.  You may charge a reasonable fee for copies of or providing
access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided
that

- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
     the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
     you already use to calculate your applicable taxes.  The fee is
     owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
     has agreed to donate royalties under this paragraph to the
     Project Gutenberg Literary Archive Foundation.  Royalty payments
     must be paid within 60 days following each date on which you
     prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax
     returns.  Royalty payments should be clearly marked as such and
     sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
     address specified in Section 4, "Information about donations to
     the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."

- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies
     you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
     does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm
     License.  You must require such a user to return or
     destroy all copies of the works possessed in a physical medium
     and discontinue all use of and all access to other copies of
     Project Gutenberg-tm works.

- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any
     money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
     electronic work is discovered and reported to you within 90 days
     of receipt of the work.

- You comply with all other terms of this agreement for free
     distribution of Project Gutenberg-tm works.

1.E.9.  If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
electronic work or group of works on different terms than are set
forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

1.F.1.  Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection.  Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or
corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual
property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by
your equipment.

1.F.2.  LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right
of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all
liability to you for damages, costs and expenses, including legal
fees.  YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
PROVIDED IN PARAGRAPH F3.  YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
DAMAGE.

1.F.3.  LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a
defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can
receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a
written explanation to the person you received the work from.  If you
received the work on a physical medium, you must return the medium with
your written explanation.  The person or entity that provided you with
the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a
refund.  If you received the work electronically, the person or entity
providing it to you may choose to give you a second opportunity to
receive the work electronically in lieu of a refund.  If the second copy
is also defective, you may demand a refund in writing without further
opportunities to fix the problem.

1.F.4.  Except for the limited right of replacement or refund set forth
in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.

1.F.5.  Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
the applicable state law.  The invalidity or unenforceability of any
provision of this agreement shall not void the remaining provisions.

1.F.6.  INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
https://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at https://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit https://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including including checks, online payments and credit card
donations.  To donate, please visit: https://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     https://www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.