The Project Gutenberg EBook of Voltareis ó Christo?, by Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: Voltareis ó Christo? Author: Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco Release Date: June 19, 2008 [EBook #25844] Language: Portuguese *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK VOLTAREIS Ó CHRISTO? *** Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images of public domain material from Google Book Search) VOLTAREIS Ó CHRISTO? Porto Imprensa Portugueza Bom Jardim, 181 VOLTAREIS, Ó CHRISTO? narrativa por CAMILLO CASTELLO BRANCO Porto Viuva Moré--Editora Praça de D. Pedro 1871 Um dos meus companheiros de jornada para Villa do Conde era sacerdote idoso, de mui agradavel semblante e maviosa tristeza no olhar, contemplativo. Os outros passageiros, gente alegre e agitada pelo trabalho intimo d'uma digestão rija, conversavam bestialmente a respeito do meu amado e honrado amigo José Cardoso Vieira de Castro. Sem intervir nas suas disputações, escutava-os o padre attento e melancolico. E, compadecido até ás lagrimas do formidavel infortunio que entretinha, entre chascos e insultos, aquella villanagem, eu encarava no taciturno clerigo, e dizia entre mim: «que pensará este ancião do desgraçado môço! Por que ampara elle a fronte á mão convulsa, e despede um gemido de apparente compaixão? Quem será que lh'a inspira? Ella que morreu, ou elle que tem deante de si um arrancar da vida com agonias, cujo praso está nos segredos da morte?» Apeamos em Moreira. Segui por debaixo das ramarias seculares que aformosentam a magestosa avenida da quinta dos Vieiras de Castro, na qual o meu amigo residira dous annos com sua esposa. Eu ia olhando para as arvores que elle amava, e cuidando que via despegar-se-lhes a folhagem que inverdecêra quando no seio d'aquelle incomparavel martyr de seu pundonor cahiram os gêlos d'um inverno sem fim. Observei que o padre me seguia a passo lento, e com o lance vago de olhos, aquelle vêr atravez de lagrimas, o scismar triste que os infelizes adivinham. Esperei-o. Elle abeirou-se de mim e cortejou-me, tratando-me pelo meu nome. Perguntou-me se n'aquella casa morára algum tempo o sobrinho do seu condiscipulo e amigo, o ministro de estado Antonio Manoel Lopes Vieira de Castro. Respondi: «Aqui viveu os mais encantados dias de sua vida.» E, volvidos alguns segundos, prosegui animado pelo aspeito contemplativo do sacerdote: «Esta grande casa avulta-se-me como o tumulo da felicidade d'elle. Quando d'aqui sahiram as duas almas, Vieira de Castro já não era feliz. Elle tinha a intelligencia tão alta como o coração, e devia sentir-se ferido do profetico terror de vêr cahir do pedestal do anjo a mulher que vestira da luz explendida do seu amor e de toda a poesia da sua juventude. Vieira de Castro, nos mezes que viveu aqui, damnificou a sua hombridade de homem. Como vivia absorvido em apaixonada contemplação, e do céo e da soledade se lhe augmentavam os enlevos da vida intima, o amor sopesou-lhe todas as faculdades, robustecendo-lhe a da soberba de ser amado de quem todas as mais paixões lhe pisava aos pés. A querida de sua alma não o viu descer de tão alto, até ajoelhar-se diante d'ella. Os homens d'aquella tempera, quando se arrependem de ter ajoelhado, erguem-se n'um impeto de dignidade, e quebram o idolo». O padre fitou-me com olhar de intelligencia e commiseração. Detivemo-nos silenciosos e encostados á gradaria do portal; depois voltamos para a estação onde nos esperava a _Diligencia_. N'este intervalo, o ancião encarou-me com tristeza e disse: «Encontrei uma vez um homem de quem ouvi palavras terriveis e absurdas contra a sociedade. Eu não podia comprehender que lampejasse luz de rasão n'aquelle homem... Reprobo diante de Deus creio eu que elle haja sido; mas integerrimo juiz dos costumes do seu tempo... isso foi elle, desgraçadamente... Quinze annos depois, as calamidades de Vieira de Castro dilucidaram-me a escureza enigmatica do homem, que me tinha parecido um peito de ferro a desbordar de crueldade. E, momentos depois, ajuntou: «Como V. está em Villa do Conde, disponha de duas horas inuteis, e vá á Povoa, onde tomo banhos, se quiser ouvir uma historia em que apparece esclarecido o absurdo pela infernal luz que lhe derramou a catastrophe d'esse grande coração. Não fallaremos d'elle senão a sós. Eu creio que no seio de Vieira de Castro as angustias são tantas, que já lá não podem entrar os insultos d'esta sociedade... que escarnece o marido tolerante, e roça a esponja do fel pelos labios do homem que acceita o degredo--as mil dores do morrer para a patria e familia--com a condição de lhe não duvidarem da honra. Fui. E o padre fallou assim: I Congela-se-me o coração de terror quando este relance pavoroso da minha vida me lembra. Já lá vão quinze annos. Ainda agora ha noites em que a visão me sobresalta, e sempre o meu espirito se estremece com o mesmo confrangimento. Ha quinze annos que eu pastoreava uma vigararia em Traz-os-montes. Em um dia de dezembro de 1855 sahi da minha residencia com destino a ir consoar nos dias festivos do Natal com um abbade, meu companheiro da Universidade, o qual residia oito leguas distante. Como os caminhos eram pessimos e mal sabidos do meu creado, perdemo-nos na cerração do nevoeiro, e chegamos tarde a um córrego, cujo pontilhão a enchente havia alagado. O unico váo possivel estava legua e meia afastado. Era ao fim do dia: seriam quatro horas e meia; mas a noite fechára-se subita, quando as nuvens se conglobaram ao poente, e uma neblina pardacenta rolou dos fragoedos das empinadas serras. Retrocedemos assustados. O meu creado tinha visto de passagem, por entre as brumas, alvejar uma casa grande com aspecto senhorial de torres e ameias. Distava-nos d'alli obra de meia legua. Ganhamos a custo a lomba da serra, onde chegamos com noite fechada. D'aqui enxergamos luzes trementes ao travez de vidraças, e ouvimos o latir de cães. Apeei, e desci amparado no braço do creado, cujo coração palpitava de medo, não já de ladrões nem de feras; senão de fantasmas e lobis-homens, que, no crêr e dizer d'elle, eram vulgares por aquelles despenhos e selvas de castanheiros. Consoante a minha philosophia me foi acudindo inspirativa, combati as crenças do meu pobre Manoel, cujo excellente espirito foi cedendo passo a passo á rasão omnipotente, por modo que a final incommodava-o mais a perspectiva do frio e fome que o pavor dos fantasmas e lobis-homens. Eu, n'este receio, não lhe levava vantagem em fortaleza de espirito. Figurava-se-me calamidade superior ás minhas forças o ter de pernoitar sobre um chão alagado, e sob o pavilhão de céo tão inclemente. N'esta conjectura, ouvimos o ladrar dos cães á nossa esquerda. Á primeira vereda que topamos, na direcção do consolativo signal de povoado, nos encaminhamos por barrocas lamacentas até entestarmos com um largo portão de quinta. Manoel aldravou com quanta força lhe déra o contentamento, e esperamos, não sem receio de que os molossos da quinta remettessem contra nós de sobre os estrepes que vedavam o alto muro. Do parapeito do mirante surgiu um vulto a perguntar-nos o que queriamos. Respondi que era um padre, perdido no caminho de Mirandella, e pedia ao dono d'aquella casa a caridade de me agazalhar e ao meu creado por aquella noute. Passado largo espaço, voltou o interrogador, que nos abriu o portão depois de haver acorrentado os cães, e nos metteu á cara uma alanterna de furta-fogo, deixando vêr debaixo de cada braço uma pistola de alcance. Aquietado pela confiança que lhe incutiu a minha cara pacifica, e a tão pacifica quanto estupida do meu Manoel, o creado caminhou serenamente diante de nós. Perguntei-lhe como se chamava o dono da casa. Disse-me o nome do fidalgo, e acrescentou que a fidalga estava a morrer ethica. --N'esse caso--tornei eu--queira dizer ao snr. barão que eu não quero causar-lhe o menor constrangimento na situação triste em que está. Basta que S. Ex.ª nos mande recolher, que nós sahiremos cedo sem perturbar o seu socêgo. Entrei para um salão cujas alfaias eram quatro escabellos de páo com grandes armas pintadas no alteroso espaldar. D'ahi a pouco, fui levado a outra sala mobilada á antiga com cadeiras de coiro marchetadas de pregaria amarella, á mistura com uns tremós dourados e artezoados do reinado de D. João V, segundo me quiz parecer. Das paredes pendiam nove retratos de homens, em que predominavam clerigos mitrados, e dos dois que vestiam farda agaloada com habito de Christo um dizia o letreiro que tinha sido capitão-mór. N'esta contemplação me interrompeu o fidalgo. Era homem de alta e direita estatura: figurava quarenta annos; tinha barbas grisalhas e grandes; ampla testa, e olhos rasgados e negros, impressivos, penetrantes, assustadores. De mim confesso que o fitava a medo, não sei porquê. Interrogou-me gravemente sobre o ponto d'onde vinha e para onde ia. Respondi como cumpria dilatando difusamente as respostas e circumstanciando-as para d'este modo captar a benevolencia do fidalgo que parecia escutar-me distrahido. D'ahi a pouco disse dentro uma voz que estava a ceia na mêza. O senhor ergueu-se, levantou um reposteiro, e obrigou-me a precedêl-o na entrada com gentil ademan de cortezão. A meza era espaçosa de mais para quarenta talheres; mas tinha só dois. Sentei-me na cadeira que me foi indicada, e comi com a sem-cerimonia muito conhecida dos descortezes e dos famintos. Durante a ceia substancial, occorreu-me perguntar-lhe pelo estado de sua esposa; todavia, conteve-me a inopportunidade da occasião, e o receio de me demasiar em inquirir de senhora que eu não conhecia, não me sendo semelhante pergunta auctorisada pelo silencio do barão. Finda a ceia, segui-o ao longo de um corredor, e entrei no quarto que me elle indicou, dizendo: --Não se deite já que eu preciso talvez do snr. para um acto proprio da sua profissão. E desandou. Fiquei a scismar, e suggeriu-se-me logo o pensamento de que eu seria chamado a ouvir de confissão a senhora inferma. Esperei duas horas, durante as quaes rezei as minhas rezas. Voltou o taciturno fidalgo, e disse laconicamente: --Ha aqui uma mulher doente que se quer confessar. «Estou prompto a ouvil-a--respondi espantado da seccura d'aquellas palavras tão desamoraveis com respeito a uma esposa doente. --Siga o creado que o está esperando no corredor--tornou elle. Sahi ao corredor. O creado que me estava esperando era o mais mal encarado homem que ainda vi na minha vida. Afusilavam-lhe os olhos como brazas. A testa, unico espaço alumiado d'aquella cara barbaçuda, sulcavam-na não sei se cicatrizes, se ulcerações da morphea. A corpulencia era agigantada, e o carregar do sobrôlho batia no coração d'um homem como o subito coriscar dos olhos de um tigre que rebenta d'entre os carrascaes d'um deserto. Os pintores christãos nunca souberam bosquejar Lucifer, porque semelhante homem jámais deu nos olhos de artista, que desejasse fazer bem conhecida a plastica do diabo com feitio de gente. Segui-o com calafrios, superiores á minha rasão que me aconselhava tranquillidade. Hoje, volvidos quinze annos, conto isto com certo sorriso de facil coragem; mas, nos primeiros tempos, aquelle vulto andava terrivelmente associado ao quadro negro que vou tentar descrever. II O medonho guia mostrou-me a porta de um quarto, e resmuneou: --Levante o fecho, e entre. Á primeira vista o que pude extremar das trevas era um clarão azulado, como de lamparina baça, cuja claridade se esvaecia logo absorvida pela escura algidez da alcova. Avisinhei-me a passos tremulos da lampada, e distingui um leito, e na almofada do leito um vulto. Fixei o que me parecia ser um rosto de creança, e pude entrever um semblante de mulher, com os olhos cravados em mim, olhos que vasquejavam os derradeiros clarões, olhos como devem de ser os dos spectros que surgem subitaneos nas trevas aos perversos que negam Deus e temem os espectros. --Approxime-se, snr. A moribunda sou eu--disse ella com voz rouca, mas serena. «Deus permittirá que V. Ex.ª esteja menos doente do que cuida--balbuciei com uma especie de terror secreto, presentimento d'alma que já se doía antecipadamente da magua que se lhe ia reflectir do singular e immenso supplicio d'aquella mulher. --Falle baixo que nos escutam--voltou ella ciciando as palavras, e esbugalhando os olhos para a porta. «Escutar-nos!--repliquei com assombro--É impossivel! Eu fui aqui enviado para ouvil-a de confissão, minha senhora... --Bem sei; mas isso não importa... Quero que me ouça; mas muito baixinho... Vou contar-lhe a minha vida como a Deus; mas não me confesso como a um padre... É a um homem que ha de ter pena de mim, depois de me ouvir; e me ha de fazer um serviço que lhe pede uma agonisante, que crê em Deus; mas não pode crer na religião feita por homens que tem a semelhança do algoz que me mata. Isto dizia ella de afogadilho e febril, mas com abafações e ancias augmentadas pelo medo de ser escutada. «Mas não é em confissão que a senhora me quer revelar as culpas que lhe pezam na consciencia?!--perguntei. --Não, snr.; eu não creio na confissão. Do mal que fiz estou perdoada; tenho soffrido todas as torturas d'este mundo; se as ha no outro, nenhuma póde assustar-me. O meu dever seria combater a incredulidade d'esta senhora com os solidos argumentos de que dispõe a theologia contra mais poderosos adversarios; abstive-me, porém, de exacerbar o animo affligido da inferma por me parecer extemporanea a discussão e recear que o tempo escasseasse ao triumpho, nem sempre prompto, dos bons principios. Não obstante, repliquei, no intento de encaminhal-a á piedade: «Se V. Ex.ª não quer confessar-se, diga-me que serviço posso fazer-lhe em beneficio da sua alma... --Vá vêr se alguem nos escuta...--insistiu ella, apontando para a porta com a mão descarnada. Fui com repugnancia, figurando-se-me que a minha posição no gremio d'esta familia sinistra ia assumindo certa gravidade e um ar de mysterio mais ou menos arriscado. Abri cautelosamente a porta, olhei ao longo do corredor, e nada vi; salvo lá ao cabo um lampeão a tremer baloiçado pelas esfusiadas de vento que assobiava no tecto. Fechei a porta, asseverando á enferma que ninguem nos escutava. Ella então sentou-se com violento impeto no leito, aconchegou do pescoço, que transpirava, a côlcha da cama, bebeu alguns tragos de agua, e balbuciou com anciosas suspensões: --Casaram-me ha seis annos com este homem que me mata. Eu amava outro homem, que não teve coração nem honra que me salvasse de tamanho verdugo. Meu pae sacrificou-me, cuidando que me felicitava. O homem que eu amava deixou-me sacrificar, porque não tinha peito que supportasse o peso de uma mulher pobre. Vim de Lisboa, onde o dono d'esta casa era deputado. Vim; e, ao cabo de alguns mezes, meu marido arrependera-se de se ter enganado, cuidando que uma mulher simplesmente formosa, mas sem amor, poderia encher-lhe as ambições, e dar-lhe o contentamento que ella não tinha. Saciou-se, enojou-se, aborreceu-me. Não me deu rivaes, por que só quem ama se sente ultrajada pelas infidelidades. Eu não conheci rivaes: conheci apenas mulheres que n'esta casa valiam e mandavam mais do que eu. Voltou á camara meu marido. Aqui fiquei, não obstante lhe pedir com muitas lagrimas que me deixasse ir vêr meu pae, e meus dous irmãos que tinham vindo da Africa, onde haviam estado alguns annos negociando. Meu marido demorou-se anno e meio em Lisboa. N'este longo intervalo chorei muito, e só deixei de chorar, quando... quando me vinguei. Comprehende-me? «Quando se vingou? como se vingou V. Ex.ª?!--perguntei. --Vinguei-me... mas foi a paixão que me deu forças... Houve um homem que teve por mim um grande amor e um grande dó. Amei-o. Luctei. Pedi a Deus que me ajudasse, que me fortalecesse. Pedi á alma de minha honrada mãe que me amparasse... pedi a meu marido que me deixasse ir para si ou para a companhia de meu pae... Nem Deus, nem minha mãe, nem meu marido me valeram... Succumbi... A minha culpa foi cega. Confiei-me d'uma creada que tinha chorado comigo. Fui atraiçoada. Meu marido teve denuncia da minha queda, e appareceu aqui inesperadamente. Nada me disse. Tratou-me com a mesma frieza, com o mesmo despreso. Não estranhei. O homem, que eu amava, era ainda parente d'elle e estudava em Coimbra. Tinha coração cheio de ancias e desejos da morte. Comprehendeu este infeliz que meu marido desconfiava. Quiz fugir comigo para Hespanha, e eu resisti, mais por amor d'elle que do meu credito. O meu cumplice não podia com o encargo, e iria viver ou morrer miseravelmente em paiz estranho. Passados dias, deixei de ter noticias d'elle. Imaginei-o já em Coimbra, posto que não fosse tempo de aulas. Correram trez mezes. Nova nenhuma. A criada que me fallava d'elle, recebido o premio da traição, tinha fingido que sua familia a chamava. Só então ouvi dizer a outra criada que o parente de meu marido desapparecêra sem dizer a ninguem o seu destino; e que a familia d'elle vivia consternada com tal successo, enviando a toda a parte indagações inuteis. Seis mezes depois que meu marido voltára de Lisboa, soube eu que se estava preparando este quarto por sua ordem. Vim vêr as obras, e perguntei-lhe para que era o armario estreito que se estava fazendo n'esta parede e para que eram as grades na janella. Meu marido respondeu: «Sabel-o-ha brevemente.» Concluidas as obras, vi que a minha cama era para aqui mudada, com tudo que me pertencia. Uma noite, meu marido conduziu-me a este quarto. Fechou-se por dentro e disse-me: «A senhora entra aqui d'onde nunca mais sahirá; e para não estar sósinha, aqui lhe deixo uma adoravel companhia com quem póde conversar á sua vontade.» E, dizendo isto, abriu aquelle armario, e apontou para um esqueleto, dizendo: «Aqui tem o seu amante. Abrace-se n'elle até ficar reduzida ao estado em que lh'o offereço para que o possa gosar com toda a liberdade.» Eu cahi por terra sem sentidos--proseguiu ella, limpando as lagrimas, e aspirando com força--Quando voltei á vida, cuidei que sahia d'um sonho. Ouvi dar meia noute. Era tudo escuridão n'este quarto. Apalpei á volta de mim. Não conheci onde estava. Continuei apalpando. Pousei as mãos n'uma coisa fria e aspera que estremeceu. Recuei horrorisada... Eram ossos... eram as costellas do esqueleto. Então acordei... então me fugiu outra vez a rasão com um grito do peito dilacerado. Cahi outra vez para diante com a face de encontro aos ossos frios, horrivelmente frios...-- E ella estralejava com os dentes convulsos, e apertava a roupa no pescoço. Apoz longo espaço, proseguiu: --Ao romper do dia, abri uma janella com o proposito de me suicidar. Dei com a face nas grades. Lancei-me á porta que estava fechada por fóra, e gritei por soccorro. Abriu-se. Vi um creado com um aspecto ameaçador, impondo-me silencio. Este creado era um criminoso que meu marido acolhêra para o salvar da justiça que o perseguia. Era esse mesmo que o trouxe aqui ha pouco. É o unico ente vivo que eu vejo ha dois annos duas vezes por dia, quando me traz alimentos. Foi elle quem matou e espedaçou aquelle infeliz... E, dizendo, apontava para o armario do esqueleto. Continuou: --Eu quiz suicidar-me pela fome. Não pude. Quando as agonias da morte começavam, eu lançava-me vertiginosamente sobre a comida, e devorava-a sem a consciencia do que fazia. D'outra vez consegui com um garfo romper uma veia; mas o sangue estancou; senti ancias mortaes; envelheci; desfigurei-me, segundo o que sinto, se palpo o meu rosto; que eu ha dois annos me não vi n'um espelho... Não consegui morrer. Voltei-me para Deus com rogos, com desesperadas supplicas. Orei muito, chorei muito, e obtive um grande beneficio. Cahi n'um desalento, n'uma somnolencia de moribunda que durou não sei se dias se annos. Depois, quiz levantar-me d'este leito, e já não pude. Comecei a pedir a Deus a morte, e a sentil-a avisinhar-se pela mão da divina caridade. Ha de haver trez horas que entrou aqui o confidente do meu carrasco perguntando-me se me queria confessar. Fiquei espantada da religião d'estes algozes, e respondi que sim; mas o que eu queria, snr. padre--ajuntou ella estendendo para mim impetuosamente os braços--era pedir-lhe que depois da minha morte, faça saber a meus irmãos este miseravel fim que eu tive, para que elles me vinguem... Acabava a infeliz de proferir estas palavras em voz mais desafogada, quando a porta que eu havia fechado por dentro se abriu impellida por um valente encontro. III Era o marido. Faiscavam-lhe ascuas de rancor os olhos injectados. Crispavam-se-lhe os beiços retrahidos. A colera engasgava-o a ponto de tartamudear estas vozes ejaculadas a trancos: --Seus irmãos que venham cá e eu lhes contarei a vida da sua honrada irmã! E ella cobriu os olhos com as mãos, e resvalou para dentro da roupa, como se desejasse cahir na sepultura. Eu caminhei placidamente para aquelle homem terrivel, abeirei-me d'elle que me fitava com sobranceria, ajoelhei e disse-lhe com a voz tremente de lagrimas: --Perdôe-lhe. Deixe-a morrer em paz. Deixe-a experimentar os beneficios da sua compaixão para implorar confiadamente os da misericordia divina. Encarou-me d'um modo indefinivel. Sahiu do quarto, e, já fóra, murmurou seccamente: «O snr. padre recolha-se ao seu quarto. Relancei um derradeiro olhar para o leito: não a vi; mas ouvia o soluçar alto e cavernoso do peito que se esphacellava. Mal entrei ao quarto onde havia de pernoitar, rebentaram-me as lagrimas copiosas. Levantei a Deus o espirito repassado de terror e compaixão, pedindo-lhe que despenasse a penitente, ou radiasse luz de commiseração em tão carniceiras entranhas. N'este lance entrou elle, assentou a mão direita sobre o meu hombro, e disse: «Aquella mulher vociferou uma infamia digna da sua deshonra, se quiz desculpar o seu crime com as infidelidades de que me accusa. A mulher que se vinga do marido, prostituindo-se, cavou a sepultura, e espera que a sociedade ou o marido a sepultem. Eu não a matei. Encarreguei o esqueleto do homem, que a deshonrou, da missão de a ir matando lentamente. Olhe que eu amei aquella mulher. Não a seduzi, não a illudi, não a fascinei, nem a disputei a outro. Pedi-a a seu pae. Elle consultou-a, ou fingiu que a consultava, como quer que fosse, esta mulher veio risonha para os meus braços; chamou-se com orgulho a baroneza de ***; mentiu-me cem vezes accusando-me de ingrato ao seu coração que me estremecia. Afinal, esta mulher crê ainda imperfeita a sua vingança, e na hora extrema invoca os irmãos para que a vinguem. De quê? de que hão de vingal-a os irmãos? De eu lhe haver matado o amante? Que me responde a sua christã philosophia? --Que o terror que V. Ex.ª me incute não me deixa atinar com palavras que o commovam...--Balbuciei. «Mas responda, snr.! --Respondo ajoelhando novamente a supplicar-lhe o perdão da culpada. «Não posso!--bradou elle--Ha dois annos que não sahi de dia d'esta casa, receando que todos saibam da minha deshonra. Não posso perdoar-lhe sem que a providencia me desopprima do vexame do meu opprobio! --Seria generosidade havel-a matado...--interrompi. «Bem sei--redarguiu elle--bem sei. Ella soffria cinco minutos de castigo, e eu ficava soffrendo uma vida inteira de vergonha. Eram supplicios incomparaveis! Alem de que, se eu a houvesse esmagado debaixo do pêso da minha affrontosa desgraça, o mundo sanctifical-a-ia, lavando-lhe com hypocritas lagrimas os ferretes da cara para que se attendesse sómente ás manchas de sangue nas minhas mãos de assassino... Comprehende isto, padre? Conhece bem a sociedade em que toda a infamia é uma convenção, e toda a honra de marido que se desaffronta ha de luctar depois com a deshonra irritada dos maridos esporeados pelo zelo devassissimo das esposas? Conhece o mundo como Christo o encontrou ha 1855 annos? Sabe o que veio fazer Jesus Christo á terra? --Morrer pela redempção dos que o mataram, snr. «Não o percebo!--exclamou elle com um formidavel brado, e sahiu do quarto... Eu não pude adormecer. Parecia-me ouvir um gemido longo confundido com o sibillo do nordeste no entravamento da casa. Rezei muito por ella. Ao alvorejar da manhã, vi um creado que perpassava no corredor. Perguntei-lhe a que horas se erguia o fidalgo. Respondeu-me que se havia deitado um quarto de hora antes. Pedi-lhe que mandasse o meu criado sahir do seu quarto, e fizesse ao dono da casa os meus comprimentos com os mais ardentes protestos de eterna gratidão. Despedi-me assombrado d'aquella casa, onde se respirava um acre nauseativo de cadaveres. Ardia-me o peito e a cabeça por tal sorte que eu não sentia a chuva glacial d'aquella manhã de 24 de dezembro de 1855. Fecho a minha historia com a pedra que cobriu o cadaver da baroneza de ***. No dia 27 de dezembro me disseram uns pastores convisinhos que a fidalga morrêra á hora em que as familias honradas e felizes se ajunctavam para receberem as bençãos dos seus anciãos, e commemorarem com sanctos jubilos o nascimento do divino Redemptor. Agora dir-lhe-hei qual era o paradoxo, que tal se me figurou ha quinze annos. Aquelle cruelissimo homem tinha-me dito: _Se eu a houvesse esmagado debaixo do pezo da minha affrontosa desgraça, o mundo sanctifical-a-ia lavando-lhe com hypocritas lagrimas os ferretes da cara, para que se attendesse sómente ás manchas de sangue nas minhas mãos de assassino._ Ora eu entendi a profunda verdade d'esta clausula depois que Vieira de Castro, ao cahir agonisante sobre a terra onde tem de vasquejar largos annos, matou a esposa, porque a cingia apaixonadamente nos braços da sua alma. Morreu-lhe o coração. Ella não teria morrido, se o infeliz a podesse arrancar de lá antes de cahir. Concluida a narrativa, o sacerdote deteve-se olhando contra o mar que mugia funebremente nos fragoedos socavados. Depois, levantando para o céo os olhos humidos e as mãos trementes, disse: «Meu Deus, enviae segunda vez á terra o vosso divino Filho! Esta negridão gentilica é peor que a de ha dois mil annos. N'aquelle tempo esperava-se; nas entranhas sociaes estremecia o presentimento d'um regenerador... Hoje em dia, nada, nada, ó altissima Providencia! Nada! Mas... voltareis, ó Christo? E proseguiu, corridos instantes: --Que haverá já agora n'esta vida que possa levantar a alma do seu amigo? «O esteio da dignidade. Conheci-o quando os horisontes da vida se lhe prefiguravam e realisavam em risonhas prosperidades. O destino, como forçado pelo talento, ajoelhava-lhe. Não o admirei então, senão por que felicidade e genio pareciam dar-se as mãos e concertar-se no plano de o exalçaram onde raro em Portugal subiram grande espirito e grande coração. Hoje cerram-se contra elle injurias e trevas. A luz do seu honrado infortunio é um reverberar sinistro d'uma estrella funesta, cuja claridade lhe banhará a sepultura por esse viver das gerações além. A posteridade de seus irmãos irá ahi retemperar sentimentos de pundonor; e os descendentes de meus filhos cuidarão que me vêem absorto entre elles defronte das cinzas de Vieira de Castro. Vae-se-lhe a vida diluida em lagrimas de sangue. Vae. Mas a pagina que deixa dirá que a onda da corrupção quando chegou até elle, desfez-se-lhe aos pés. Se a onda lhe revolveu e abriu a terra da sepultura, aqui ou em Africa, não importa. Prouvera a Deus que elle não chorasse a felicidade que lhe mataram! Sobre quem mandará Deus que caiam as lagrimas que Vieira de Castro ha de chorar por sua mãe e irmãos? No dia em que elle sahir para Africa, as almas compassivas irão ás egrejas pedir ao Altissimo que alumie o seio do degradado com um raio de misericordioso alento... Deixal-o ir. Deixal-o esconder-se dos olhos d'esta aviltante piedade que deixou de o apedrejar quando o viu perdido. Loura creança que eu vi, ha vinte annos, alumiada pelas ultimas alegrias da fugitiva infancia, prouvera a Deus que o sepulcro de teu pae se te abrisse então. Os embriões das tuas alegrias da juventude esmagou-os a pedra que desceu sobre o seio onde se perderam os thesouros que haviam de completar a felicidade da tua alma. O teu coração, aos desoito annos, abafava em si as amarguras da soledade, retrahia-se em devorantes desejos do amor de familia, a paixão santa, unica e profunda que eu te conheci. Quem imaginou que tu choraste amarissimas lagrimas n'aquella tua casa triste que demora solitaria entre duas serras? No mais verde dos annos, abalisaste os teus anhelos juvenís entre umas arvores que teus avós plantaram; e alli, sósinho, esperaste que a Providencia te deixasse reflorir uma primavera na alma. O teu formidavel espirito reagiu contra a mais crua sorte que ainda fadou uns vinte annos relegados d'esse gosar commum que permitte a cada homem sentir o alvorejar dos affectos e as musicas do céo que embalam a alma para sonhar venturas. Tu não as sonhaste quando o coração desbordava de seiva para renascer de suas mesmas cinzas, se a perfidia o cancerou com a sua peçonha. Um dia, já tarde, amaste pela primeira vez, quando te deu de rosto e te cegou a luz funesta que desce do céo com os anjos despenhados. Quando baixaste a face até ao chão onde ajoelhavas em adoração de creança que beija os labios de sua mãe, em adoração de pae que aconchega no seio as mãos de sua filha, sentiste que a deshonra te cravava as garras, e te desentranhava do peito a alma, e t'a expunha em pelourinho infame aos insultos dos que passavam. Tu não podias ajustar ás faces a mascara que te offereciam as mãos infames da tolerancia. Ao teu rosto não podiam sahir as lagrimas faceis das almas vulgares por que era sangue, era a vida toda que te haviam arrancado. E tu premeditaste!.. Oh! não premeditaste nada, infeliz! Quem contará as horas, os periodos de infernal duração que passaram na tua vida? Curvaste-te sobre o teu abysmo; e ali quedaste empedrado até que resvalaste nas fauces da voragem. No teu baque levaste comtigo um cadaver que te abrira o golphão com as mãos ainda quentes dos teus beijos. Não premeditaste nada, infeliz. Cada minuto que ia passando estalava-te uma fibra da alma, queimava-te uma particula do cerebro, escaldava-te em veneno dilacerante cada lagrima que te refluia dos olhos. Não era somente a honra perdida que te excruciava; era a mulher idolatrada que ainda vivia e já te pezava morta no coração. Ao passo que a mão de ferro da desgraça te batia no seio, tu ias acordando ao estrondo horrivel. Cada instante era o precursor de novas trevas que se iam condensando, era o bago da areia que ia cahindo, era uma esperança derruindo depoz outra, era o ir-se toda a alma espedaçada até esvasiar-se o peito de lagrimas, e encher-se de rancor inexoravel, espicassado pela deshonra e ingratidão. Oh! tu não premeditaste nada, infeliz! Os que delinquiram premeditando, não dizem á justiça humana: «Aqui estou! condemna-me!» FIM. End of the Project Gutenberg EBook of Voltareis ó Christo?, by Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK VOLTAREIS Ó CHRISTO? *** ***** This file should be named 25844-8.txt or 25844-8.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: https://www.gutenberg.org/2/5/8/4/25844/ Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images of public domain material from Google Book Search) Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. 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Redistribution is subject to the trademark license, especially commercial redistribution. *** START: FULL LICENSE *** THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase "Project Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg-tm License (available with this file or online at https://gutenberg.org/license). Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. 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