The Project Gutenberg EBook of Scenas da Foz, by Camilo Castelo Branco This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: Scenas da Foz Author: Camilo Castelo Branco Release Date: March 11, 2009 [EBook #28310] Language: Portuguese *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK SCENAS DA FOZ *** Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Print project.) SCENAS DA FOZ POR CAMILLO CASTELLO BRANCO. SOLEMNIA VERBA. ULTIMA PALAVRA DA SCIENCIA. O X DE TODOS OS PROBLEMAS DO CORAÇÃO. OBRA IMPORTANTISSIMA PARA TODOS OS SEXOS, MASCULINO, FEMININO, E NEUTRO, E ESPECIALMENTE PARA AS COZINHEIRAS. EM DOZE VOLUMES; SENDO O PRIMEIRO: SCENAS DA FOZ POR JOÃO JUNIOR. SOCIO DA PHILARMONICA, E IRMÃO DA ORDEM TERCEIRA DE S. FRANCISCO. 2.ª EDIÇÃO. PORTO: EM CASA DE CRUZ COUTINHO--EDITOR, Rua dos Caldeireiros, n.os 18 e 20. 1860. PORTO--TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA, Largo do Laranjal n.º 4. JUIZO CRITICO. (DA PRIMEIRA EDIÇÃO.) Li, como editor, e reli, como critico, as SCENAS DA FOZ do snr. _João Junior_. Declaro que encontrei uma serie de scenas, que tanto podiam ser de S. João da Foz como de Freixo-de-Espada-á-Cinta. Entretanto, os quadros comicos são desenhados com um pouco mais sal que um artigo de fundo. Os episodios funebres estão escriptos em estylo de cavallo de carruagem, como dizia _Voltaire_. Outro sim declaro, que não vi neste livro doutrina, palavra, phrase, ou virgula, que destoe dos maus costumes da época em que é escripta. Como cousa offerecida á humanidade, a offerenda é digna da deusa e do sacerdote. Porto 2 de Junho de 1857. O EDITOR, _Camillo Castello Branco._ DEDICATORIA. Á ESPECIE HUMANA INCLUSIVE OS BARÕES. Senhora! O sacerdocio da imprensa, cuja invenção se deve a um agiota do seculo XIV,[1] é a mais augusta das funcções, depois da «Arte de cozinha». Ocioso seria provar esta atrevida proposição, quando os exemplos saltam como camarões em terra secca. A rotundidade dos abdomens, e a estupidez prodigiosa dos proprietarios dos ditos, senhora, é a mais persuasiva prova de que a culinaria tem sobre a imprensa a primasia disputada por alguns sandeus que se deixaram morrer de fome, embebecidos, no paradoxo da sciencia. Sem embargo, porém, desta verdade, que palpita como um aneurysma, eu não posso deixar de reconhecer as grandes vantagens que podem provir a v. exc.ª da mirifica invenção dos typos. Senhora! eu sou um desses poucos bipedes que reagem, por instincto, contra os quadrupedes que gratuitamente se dizem meus irmãos. Saturado de estudos longos e substanciosos sobre a alveitaria, tenho querido organisar um _Manual de pharmacia_, dedicado ao utilissimo curativo de alguns desses meus irmãos, que me ameaçam as tibias, quando a dôr do alifafe moral os faz pinotear desencabrestadamente. Neste intuito, cuja extensão eu deixo á penetração de v. exc.ª, confeiçoei algumas receitas, que puz em systema pathologico, subordinadas a bases symptomatologicas, palavra grande que v. exc.ª soletrará de seu vagar. Senhora! A hygiene moral, depois de Broussais, tem feito progressos que demandam um compendio novo, e uma diversa iniciativa no systema de applical-os com aproveitamento. O romance, senhora, é a mais proficua das pharmacias, porque neste laboratorio douram-se as pilulas com maravilhosa limpesa. O romance, caldeado na forja onde Voltaire assacalou as armas com que feriu no coração o «ridiculo» de v. exc.ª, n'aquella época, será, se me não engana o muito amor da humanidade, um sodorifero por meio do qual faremos transpirar as muitas fezes que v. exc.ª traz no sangue, e das quaes se originam muitos miasmas de febre da pouca vergonha, para a qual não ha quarentena possivel, nem conselho de saude, por ventura o mais necessitado, na presente conjunctura, de ser esfregado com as baêtas da zombaria. Pelo que: considerando maduramente quão proveitosa devia ser a v. exc.ª a divulgação de trabalhos que o zelo da minha especie me impoz, ouso recorrer á egide da sua protecção, offertando-lhe o primeiro da serie de livros que vou atirar á humanidade. Senhora! Fiquemos aqui, se lhe parece. [1] Preparo uma dissertação a este respeito. SCENAS DA FOZ. LIVRO PRIMEIRO. A SORTE EM PRETO. I. Em 1825, morava na travessa do Caramujo, em S. João da Foz, uma familia de Amarante, que viera a banhos, e constava dos seguintes membros: Pantaleão de Cernache Tello Aboim de Lencastre Maldonado e Sousa Pinto de Penha e Almeida. Sua mulher, D. Amalia Victoria Rui da Nobrega Andrade Vasconcellos Tinoco dos Amaraes. Sua filha, Hermenigilda Clara, com todos os appellidos paternos, e cinco de sua mãi. Duas criadas graves. Uma cozinheira, casada com o lacaio. Um escudeiro preto. Um gallego adjuncto á cavallariça. Dous cães de lobo; e, finalmente, uma cadellinha atravessada de cão d'agua e galga. Eu, João Junior; que estas cousas ponho em escriptura para memoria eterna, morava na rua de Cima de Villa, e da minha janella vi muitas vezes na sua o snr. Pantaleão, homem côr de lagosta cozida, com cabelleira azulada pela acção do tempo, olhos refegados com debrum escarlate, papeira ampla como a dos _cretins_ nos Alpes, e nariz poliédro como uma castanha do Maranhão. A snr.ª D. Amalia, se bem me recordo, era uma serpente. Orelhas, nariz, queixo, e todos os districtos da cara (nesse tempo eram comarcas) era tudo aguçado e verrugoso, como uma mólhada de nabos velhos, em que as fitas amarellas da touca representassem a rama das nabiças. A menina Hermenigilda tinha cara de seraphim de côro d'aldeia: gorda e vermelha, cheia de vida estupida, olhos grandes como bogalhos, dentes anarchicos mas brancos como o seu nedio pescoço, braço rico de tecidos cellulares, rendilhado de tumidas veias vermelhas, onde borbulhava o sangue cruorico de felicissimas digestões de cabeça de porco com feijão branco. Os servos não me lembra bem como tinham a cara, excepto uma das criadas graves, que diziam ser filha bastarda d'um frade bernardo, irmão do snr. Pantaleão. Eu fiz tres dias descabellado namoro a esta rapariga, que tinha setenta e seis pollegadas. Ao quarto, vi-lhe um calcanhar aberto como ouriço velho, e desanimei. De quem me recordo muito é do escudeiro preto, que tinha a cara mais velhaca da raça de Ismael. Assobiava com perfeição a _Marìa Caxuxa_, e jogava a marrada magistralmente com o gallego, supplementar aos machos da liteira, deixando-o quasi sempre estatellado no chão em fórma de meia-lua. E muitas vezes vi eu com estes olhos invejosos a menina Hermenigilda a brincar com o preto na sala, onde eu podia devassar estes innocentes brinquedos. O gosto d'ella era puxar-lhe a carapinha, e o gosto d'elle era, ao que parece, dar-lhe surras, que terminavam sempre quando a mãi, ou o pai, ou alguma das criadas appareciam no limiar da porta da sala. Um meu amigo visitava esta familia, e d'ella soube eu que o snr. Pantaleão era senhor de casa vinculada, e a snr.ª D. Amalia tambem era morgada, e a snr.ª D Hermenigilda, por consequencia, uma opulenta herdeira. Soube mais que o snr. Pantaleão remontava a sua fidalguia a uma personagem importante na dynastia goda, e não me recordo bem se era Athanaulfo, ou Roderico. A genealogia da mulher diziam lá em casa que era a mais antiga da velha Lusitania, e contavam maravilhas de seus avós na India, e na Amarante. A herdeira, por segunda e inevitavel consequencia, tinha nas veias doze canadas bem medidas de sangue gothico, e por isso, a architectura externa fazia lembrar Orense ou S. Thiago de Compostella. Entre os rapazes meus conhecidos da provincia, o meu inseparavel companheiro dos passeios a Carreiros era um mancebo de trinta annos, que tem hoje os seus sessenta e um, e está litteralmente escangalhado, como eu que o digo. Então era elle esbelto, e galhardo, amigo de mulheres novas e vinho velho, como Byron, que elle vira no theatro de S. Carlos em 1813, e affirmava que bebeu com elle uma garrafa de aguardente de canna no _Nicóla_, botiquineiro do Rocio. Parece-me pêta, porque Byron, se emborcasse uma botelha de aguardente em Portugal, não nos chamava _barbaros_. Paiz onde um inglez se embebedar, será sempre um paiz civilisado. Como quer que seja, o meu amigo provinciano era homem do _grande mundo_. Chamava-se Bento de Castro da Gama, e não sei que mais. Era natural de Cabeceiras de Basto, filho segundo da casa denominada do _Olho-vivo_, não sei porque derivação. Seus pais mandaram-no estudar latim e logica no seminario de Braga. Bento corrompia o porteiro, e sahia de noite, a provar que a logica, sendo a arte de bem pensar, não exime um fraco mortal de pensar o peor que é possivel. D'essas envestidas nocturnas á moral, resultou um escandalo em casa d'um chapelleiro da _Senhora á branca_, e o seductor teve de fugir do seminario, onde estava debaixo de olho, pendurando-se para a rua nos lençoes. Contava elle que o pai lhe abanara as orelhas, em quanto a mãi lhe preparava algumas tigellinhas de gelêa de mão de vacca, para o indemnisar das succulentas bochechas que deixara no seminario, emmagrecidas sobre o Novo Methodo do Pereira; e o desabrido Genuense. A casa paterna era estreito horisonte para o nosso amigo. Uma bella manhã fugiu de casa, veio ao Porto, e assentou praça em infanteria. O pai, sabendo-o, mandou-lhe os documentos para se habilitar a cadete, e estabeleceu-lhe avultada pensão para se habilitar a exercer todas as travessuras e maroteiras de que o seu caracter era susceptivel. Em seis mezes de praça estivera tres na cadeia, por causa de varios sôcos com que mimoseou os sargentos do corpo. Pediu a baixa, deram-lh'a promptamente, e recolheu a casa, onde não encontrou já vivo o pai. Pouco depois, morreu a mãi. Bento de Castro pediu por conta da sua boa legitima alguns mil cruzados, foi gastal-os em Lisboa o melhor que pôde, e tornou para casa, onde o irmão morgado o recebeu de braços abertos. N'esse tempo é que eu o conheci na Foz, onde viera pela primeira vez a banhos, em 1825. Relacionei-me com elle na caça das gaivotas, e convivemos alguns mezes na sua casa de Cabeceiras de Basto. Passavamos ahi excellentes tardes no convento de Refojos, onde elle tinha tres tios, que eram santos varões, doutos, e alegres. Ahi conhecemos José Pacheco d'Andrade, morgado de uma casa illustre, que nos ensinou a jogar o pau, como bom mestre que era! Na feira do Arco vimol-o nós uma vez varrer a feira com admiravel limpeza! Saltava como um gamo, e apanhava pela cernelha com uma bordoada o mais lesto jogador de Barroso! Fui amigo d'este homem e vi-o morrer vinte annos depois n'um palheiro onde mendigando, pedira gasalhado. O que o levou a este extremo é uma historia muito longa, e que já vi fugitivamente esboçada nos versos de não sei que livro. Pergunta o leitor o que tem isto com as Scenas da Foz? Se me começam com perguntas, estamos mal aviados! Um homem na minha idade, com a reputação feita, escreve as cousas como ellas lhe escorregam dos bicos da penna. Nem acizelo o estylo, nem torneio o pensamento, nem traço plano. Não me apoquentem. Lá vamos á Foz. II. O meu amigo Bento de Castro veio, uma noite, de Mathosinhos, de casa do Brito, onde perdera, á banca portugueza, vinte moedas, um cavallo, um relogio, dous anneis com brilhante, e ficára a dever outro tanto. Ás 2 horas, bateu-me á porta, sentou-se na minha cama, e começou assim um pathetico discurso: «Tenho dado cabo de mais de ametade da minha legitima. Não tardará o dia em que meu irmão me dê de comer como se dá uma esmola. O jogo tem sido o meu abysmo. Perco o dinheiro e perco a vergonha, quando o azar me é contrario. Hoje, vendi cavallo, relogio, anneis, e tudo: cheguei a pedir dinheiro ao moço de farda da casa onde joguei. Quando vinha para cá, alli no castello do Queijo, tive vontade de atirar ao mar com esta vida diabolica!... Se o não fiz, outra vez será. É no que ha-de parar este negro fado que me traz a pontapés da desgraça... Não me dirás tu que hei-de eu fazer para ser o que tu és? --E que achas tu que eu sou?--perguntei eu, porque não sabia ainda então o que era. «És homem de juizo. Tens ha dez annos um cavallo velho e magro, uma casinhola na provincia que te rende doze carros de pão e quinze pipas de vinho verde, uma sobrecasaca preta com os cotovellos rapados, e vives feliz. --Muito feliz. «Pois ahi está! E eu, com quarenta mil reis mensaes de rendimento, tenho gasto metade do capital, e desconfio que devo a outra metade. --Pois se queres ser homem de juizo, deixa cossar-se o teu casaco nos cotovellos, limita o teu luxo de equitação a um cavallo digno de ser cantado pelo Manoel Duarte Ferrão, faz de conta que colhes doze carros de pão e quinze pipas de vinho verde e serás feliz. «É tarde, meu caro João Junior, é tarde. Creei necessidades que não posso matar sem que ellas me matem. Preciso dinheiro, venha elle d'onde vier. --De mim, de certo não vai, meu amigo. Bem sabes que o pão e o vinho este anno não deram nada. Desde Março d'este anno, em que morreu o rei, parece que desappareceu de Portugal o estomago mais consumidor que tinhamos. Tu não tentaste ainda a fortuna pelo lado do casamento? «Ainda não. Tem-me lembrado algumas vezes essa asneira salvadora; mas, sou tão infeliz, que desconfio de tornar-me ridiculo, se o tentar. --Ridiculo é esse susto. A experiencia ainda te não amadureceu quanto é necessario para viver neste mundo. Ridiculo só conheço um homem neste planeta: é o que não tem dinheiro. As tentativas, que se fazem para alcançal-o, são sempre sérias, heroicas, e até épicas. Se fizeres namoro a uma rapariga rica, riem-se de ti os zombeteiros candidatos á rapariga, mas esse riso só póde ser penoso se a mulher te não indemnisar com o sorriso d'ella. A questão é _To be or not to be_: ser ou não ser amado. Sirvo-me deste fragmento de Shakspeare por que não está ainda estafado pelos folhetinistas. «_Folhetinistas_! que são _folhetinistas_? --Folhetinistas são uns pataratas que hão-de vir d'aqui a vinte annos, trazidos em uma nuvem de gazetas. Ainda a tresandar ao fartum dos coeiros, virão para a imprensa com seu cabedal de erudição empalmado nos romances de certo Dumas, que tem hoje quinze annos, e será então o primeiro corruptor da litteratura em França. Saberão menos latim do que tu quando saltaste pela janella do seminario de Braga, e dirão que o latim é uma cataplasma que mata a originalidade nativa, e a natividade original, e não sei que outras sandices usadas na linguagem delles pataratas. A respeito de logica e rhetorica dirão que antes do diluvio já estavam banidas das escólas mais illustradas. Hão-de provar que o talento não precisa desses causticos para ressumar a materia do espirito, e, provando-o, dirão tolices em que ficará salvo o Genuense e o Quintilliano, dos quaes tanto nos fallaram os teus tios frades de Refojos. Fallarão muito em linguas druidica, celtica, indica, sanscrito, e dirão dellas cousas maravilhosas que terão o superior merecimento de não serem ditas em portuguez. Ora, pois, fica tu sabendo que os folhetinistas serão... «Não me importa saber o que serão os folhetinistas, o que eu quero é saber o que serei d'hoje a vinte annos. --Serás folhetinista, visto que te não vejo com habilitações para seres cousa alguma. Se te parece, vai aprendendo de teu vagar a tocar guitarra para depois poderes fallar com criterio das primas-donas, e dos contraltos, e dos bassos, e deste Curti que hoje está creando uma reputação no Porto, e eu espero ouvir d'hoje a trinta annos com o mesmo timbre, o mesmo volume de voz, e a mesma precisão de notas graves em _sibmol_. «Que diabo de embrulhada é essa? Homem, falla-me direito. Que me dizes tu á tentativa d'um casamento rico? --Digo-te que conheço grandes alarves que tentaram e prosperaram. Quando um homem se diz: «hei-de casar rico, apesar de todos os contratempos» casa rico. O primeiro passo a dar é convencer-se de que a vergonha é uma excrescencia que nos magôa, e deve ser amputada da consciencia como quem corta um callo. O segundo é procurar a mulher, através de todas as torpesas, como o mineiro procura o ouro através do saibro e dos charcos lodacentos que lhe regorgitam debaixo dos pés. O terceiro é levar com a porta na cara, e ficar com a cara voltada para outra porta. O quarto é teimar. O quinto é teimar. O sexto... «É teimar. Tenho entendido. Mãos á empreza. Cobrei espirito novo. Dentro d'um anno hei-de estar casado com mulher rica, bonita, intelligente, virtuosa... --Alto lá! isso é muita cousa. Assim tambem o Bocage a queria, mas disseram-lhe que não... Rica? d'accordo: isso é possivel. Intelligente? Deixa-te d'isso: mulher intelligente não se deixa engodar por especuladores matrimoniaes: é-lhe mais facil ceder ao coração toda a liberdade dos seus desejos os menos puros, do que algemar-se com grilhões que ella parte facilmente no momento em que a razão illustrada lhe diga: «Entre ti e o homem são iguaes os direitos...» Formosa? Pieguice e contrasenso. Mulher formosa é sempre a mesma cousa, e aos olhos do marido perde pouco e pouco o prestigio da belleza. Mulher feia, pela continuação da convivencia, perde pouco e pouco a fealdade, e chega a parecer bonita. E deves saber que mulheres feias teem inspirado paixões ardentissimas. Dizem que ha uma compensação de graças ocultas as quaes fazem ganhar raizes no coração do homem. Eu não sei se é no coração, se no figado: o que posso asseverar-te é que tenho visto mulheres formosas apagarem muitos incendios, e as feias atearem-nos. Dido, Helena, e Cleopatra dizem que foram lindas mulheres, por terem apaixonado Eneas, Paris, e Antonio. O que de certo se não sabe é se eram feias. Verdadeiramente feio, meu amigo, é o diabo, como diz a ama de leite dos teus sobrinhos. Em quanto a virtuosa, meu caro Bento, a esse respeito tinhamos muito que dizer, se eu não tivesse somno. A virtude é o escolho de muitas posições sociaes. Felizmente que ella vai em decadencia, e por isso veremos, de hoje a trinta annos, muitas posições brilhantes com um pé no pescoço da virtude. Virtude é uma sociedade mercantil, em que a maior parte dos empresarios se sustentam á custa da pequena parte que se conserva fiel aos estatutos. Fóra com a palavra; e se promettes aspal-a do teu programma de casamento, indico-te uma mulher. «Qual?! --A minha visinha Hermenigilda, filha do Pantaleão. «Pois achas que está no caso? --Muito no caso. «Sei que é rica, não é feia, é estupida, é fidalga; mas... em quanto a virtude, não sei por que ella perca no teu conceito, para que eu deva aspar a palavra do meu programma! --É que eu desconfio do preto! «Do preto?! que preto? --Fallaremos ámanhã. Agora quero dormir. Bento de Castro sahiu, e eu, voltando-me para o outro lado, sonhei com o preto. .......................................................................... Suaves recordações da mocidade, sêde a cebola destes olhos que já não podem chorar! III. No dia seguinte, fui obrigado pelo meu amigo a praticar o escandalo de acordar ao meio dia e vinte e sete minutos. Queria elle ser esclarecido sobre palavras enigmaticas, que eu proferira a respeito do preto. «Não valia a pena--disse eu--perturbares o meu somno da manhã por similhante insignificancia. A historia do preto é a mais innocente das historias. Não sei se o moleque conhece o Othello de Shakspeare. É certo que o Othello era preto, e sentiu a mais negra das paixões por uma branca. Não sei tambem se a filha de Brabante lhe puxava a elle a carapinha como faz a filha do snr. Pantaleão ao dito preto. Em todo o caso ha muito a recear do espirito de imitação, porque o plagiato do amor é de todos os plagiatos o mais nocivo. Por imitação, ama-se, por imitação, deshonra-se, por imitação, casa-se, por imitação, suicida-se. Quem sabe se a snr.ª D. Hermenigilda para imitar Desdemona, introduziu o preto no coração? --Estás a mangar!--respondeu o meu amigo Bento--Póde lá dar-se similhante asneira! «Dão-se asneiras maiores, meu caro, muito maiores. Eu tenho uma prima... dás licença que te conte a historia de minha prima? --Se não fôr muito estirada... «Laconica o mais possivel. Minha prima Rosa foi a mulher mais bonita de Villarinho de Cotas, Canellas, Sinfães, e povos circumvisinhos. Tinha um bom patrimonio, e foi muito pertendida. Regeitou propostas de vantajosos casamentos, e resistiu ás minhas tentações, quando eu era um homem perigoso em casa de primas. Uma bella manhã a priminha desapparece de casa. Partem emissarios para todas as partes do mundo em cata della, e depois de varejarem e farejarem todas as casas suspeitas, todas as igrejas onde o mysticismo a poderia ter em extasis, e até um poço onde uma allucinação a poderia ter precipitado... depois de muitas diligencias, e lagrimas, e gritos, e informações, minha prima apparece... imagina lá aonde? --Eu sei cá!... «N'um lagar d'uma quinta sua, escondida atraz d'uma pipa, no mais puro arrobamento do amor com...--meus illustres avós! perdoai-me a revelação!--com um dos gallegos que tinham vindo á vindima. E que pedaço de gallego! --Que se seguiu? mataram o bruto? «Qual matar o bruto! O bruto tinha um direito sagrado á sua existencia. Minha prima foi interrogada pelo irmão, seu tutor, e respondeu que havia de casar com o gallego. --E casou? «Casou, e vestiu-o de casaco, e botas de cano alto, e chapéo de sêda, e, o que mais é, meu primo gallego parecia depois um hespanhol. Se o vires hoje, não dirás o pessimo texto que está n'aquella encadernação. --E ella ama-o?! «Essa admiração é sufficientemente parva! Ama-o como o amou sempre, bebe a felicidade dos labios delle, pendura-se-lhe, em delirios de ternura, das largas espaduas, aperta ao coração a cabeça amante do conjuge inseparavel, não receia uma deslealdade, desconhece o ciume, produz o mais mechanicamente que se póde, rapazões robustos, vermelhos, e gordos como teixugos; em fim, para te dizer tudo d'uma vez, minha prima está gorda, come tanto como elle, e faz as suas digestões na suave beatitude da mulher ditosa, com os olhos postos no marido. Faltava-me dizer-te que esta creatura angelica, antes de ser encontrada no lagar, era d'um melindre d'orgãos, e d'uma susceptibilidade de emoções, que fazia receiar muito pela sua vida. Lia novellas de La-Calprenéde, Genlis, e Radcliffe. Chorava enternecida, fitava no céo os olhos lacrimosos, pendia a fronte, contristada, tomava parte nas dôres das suas heroinas, e muitas vezes me disse que a cópia do seu modêlo, a realisação das suas esperanças, estava no céo. Como diabo desceu do céo cá para baixo o gallego, isso é que eu não sei. Eu vivia persuadido de que o céo não importava aquelle genero. Seja o que fôr, esta historia vem apêlo para exemplificar um dos muitos casos em que a boa philosophia nos ensina que um preto é um rival temivel. Posso enganar-me, nem ouso aventar uma calumnia; porém, a minha visinha não dá ares de quem procura no céo a realização das suas esperanças; e, se procura, quem me diz a mim que o preto não desceu de lá pelo mesmo alcatruz que pôz cá em baixo o gallego? Que me dizes tu a isto? --Eu digo que não quero saber mais nada da tua visinha, e deixo-a ao preto em boa paz. «Não vou para ahi. Suspeitas não fazem prova. --Mas o que tens tu visto? «A pequena a brincar com o preto. --De que modo? «Jogam os cantinhos sem intervenção d'um terceiro: invenção rara que se deve á estrategia do amor, assim como o xadrez se deve á estrategia militar. --E que mais fazem? «A bagatela de se darem surras. Ella arrepella-o, elle dá-lhe duas palmadas bem sonoras, no mesmo local onde o patrão lhe dá a elle os pontapés. O preto perfila-se, a innocente menina vem para a janella, e a moral domestica folga do resultado. Já vês que não ha aqui bastante motivo para renunciar uma conquista de dez mil cruzados de renda, e uma mulher que promette estar contente dando-lhe o comer ás horas, e tres duzias de gallinhas para tratar... Das duas uma: ou a mulher ama o preto, e não te acceita a côrte, ou não ama o preto, e acceita. Que perdes tu na tentativa? --Dizes bem, eu não perco nada. Como não tenho melhor cousa em que esperdice o tempo... E como hei-de eu apresentar-me? «Apresenta-te ahi na minha janella, e faz-lhe saber, sem grandes rodeios, que estás ferido. --Será demasiada liberdade... «Deixa-te d'isso; demasiada liberdade acho eu que é a do preto. Certas mulheres só entendem o que se lhe diz; e em quanto a mim, a nossa visinha é d'aquellas que nem o que se lhe diz entende. Clareza no pensamento e na phrase. Imagina que fallas com a filha d'um teu caseiro. Põe o teu codigo de civilidade ao pé do Genuense e do Quintiliano. Nada de logica, nem de rhetorica. Os principiantes do amor cuidam que é da tarifa devorarem no silencio, antes de se revelarem, as melhores phrases que tinham para convencer. Grande contrasenso. Parecem-se com os caçadores novatos, que atiram á perdiz quando ella vai muito longe do alcance do chumbo. Fia-te em mim, Castro. A mulher que principia a amar tem oito dias de alienação moral. O espirito anda-lhe á solta, e um habil caçador apanha-lh'o, e depois... como sabes do teu Genuense, a alma é uma substancia acommodada para governar o corpo. Pilhada a alma, o corpo, sem governo, é uma nau desmastreada, sem leme, á mercê das ondas. Espera... ouço-a fallar... Olha... Ella lá está na janella. IV. O meu amigo chegou á janella, e tossiu a tosse especial dos namorados de 1826, que era uma tosse secca, como a do ultimo periodo da tysica laryngéa. Hermenigilda acudiu ao reclamo catarrhoso, e viu risonha a cara do meu amigo Castro, que realmente era um perfeito homem. Retirou depressa os olhos, mas depressa obedeceu com elles ao magnetismo das olhadellas do visinho. Eu cá da minha alcova, por entre os farrapões das cortinas amarellas, estava presenceando o introito comico do acto mais solemne da vida dos povos, que era o casamento então, e hoje são as eleições. O meu amigo não se despegava do peitoril da janella. A pequena ia e vinha; olhava-o, como a disfarce, lá do fundo da sala, e trazia sempre um terço do olho esquerdo compromettido. Castro manifestava com o nariz o seu contentamento, empenhando-o na victoria. Assoando-se, trombeteava o som menos amoroso possivel. O nariz, considerado porta-voz do coração, ecco da poesia intima, interprete da linguagem muda da ternura, exerce a mais nobre das missões corporeas, e attinge um elevado grau de perfectibilidade nazal, depois do outro, mais elevado ainda, de espiraculo de defluxo, e absorvente de simonte. Fui almoçar, e deixei o meu amigo na janella. Quando voltei, estava elle radioso de gloria. «Então?--disse-lhe eu--quantos graus acima de zero marca o thermometro da visinha? --Está pegado o namoro. «Eu vi tudo. --Mas não viste o melhor. Offereci-lhe uma carta. Ella primeiro disse que não... «Que não sabia lêr? --Não, homem: disse que não acceitava. Instei, e, por fim, deu signal affirmativo com a cabeça, e fugiu da janella. «Oh! é tocante essa fuga! o que faz o pudor! A virginal menina não pôde mostrar a fronte á luz do sol, depois d'uma fraqueza a que a paixão a compelliu! --Tu estás caçoando! «Forte scisma a tua! Não póde a gente vestir as suas idéas com as pompas da linguagem! Ora vamos, Bento. É preciso escrever á pequena. --É um grande embaraço. Não sei como se escreve a esta mulher. Será muito estupida? «Parece-me que é, e, nesta hypothese, escreve-lhe uma carta muito tola. Queres tu ser o secretario? Eu entro no teu coração e fallo por ti. --Valeu! nota lá a carta. «Senta-te, e escreve. Eu accendi um cigarro, sentei-me de cocoras sobre a minha cama, entrei em espirito no espirito do meu amigo, e dictei a seguinte carta, que offereço como norma aos amadores das Hermenigildas: «Meu adorado Bem. «Com o coração em viva brasa, lanço mão da penna tremula para expôr á vossa compaixão o triste sudario da minha alma. «Os vossos olhos são settas do deus implacavel, que não perdôa a rei nem a vassallos, que abranda o coração da panthera de Java, e enternece as melodias do rouxinol do salgueiro. «Ferido neste coração, que é vosso, tenho direito a pedir-vos balsamo para a chaga que vossos olhos me rasgaram no peito. «Ingrata serieis, amada Hermenigilda, se mostrasseis indifferentes á dôr, os olhos que tamanha dôr causaram! Não! é impossivel que nesse peito de alabastro, ninho dos prazeres, se aninhe a vibora da ingratidão! «No vosso angelico sorriso, ó cara amada, pousou a minha felicidade, que, ha muito, busco, por toda a parte, como andorinha que perdeu o trilho aerio da sua patria, e ficou erma e só na região das neves...» --Ella não entende isto!--exclamou o meu amigo! «É justamente o que nos convém. Se ella entendesse isto, faria da carta dous papelotes, e mandava-te á fava. Continúa: «Eu sou como o viajante nos desertos da Mezopotamia, ardente de sede, pedindo a cada miragem uma gotta de agua, e bebendo candeias accesas nos raios do sol oriental! --Isto parece-me asneira!--replicou o amanuense--_Bebendo candeias!_ Viu-se já um similhante disparate! «Pois tu queres que ella te entenda, ou não? --Quero que entenda: é boa a pergunta! «Pois se tu lhe disseres que bebias no deserto linguas de fogo em logar de candeias accesas, entender-te-ha ella melhor? Candeias sabe ella perfeitamente o que são; e linguas, em quanto a mim, só conhece a de porco e a de vacca. Se me pões contraditas ao libello, recolho a inspiração, e deixo-te nas trevas. Escreve lá: «Nos meus sonhos... _Entre parenthesis._ Este estylo hoje é rançoso, e qualquer caixeiro o escreve sobre o mostrador, entre uma ceira de figos de comadre e tres achas de pau campeche; n'aquelle tempo, porém, em 1826, era necessario ter um talento creador para espetar a phrase na região do sublime. Eu fui um dos apostolos deste estylo; e glorio-me de ter feito escóla. Vieram depois os imitadores, sem critica nem gosto, e asnearam de modo que venceram o passo que vai do sublime ao ridiculo. «Escreve lá, Bento de Castro. «Nos meus sonhos, tenho visto muitas vezes uma visão vestida de nuvens coradas de luz, calçada de estrellas, coroada com o arco iris, sentada na lua, com o sol engastado no peito, e o globo terraqueo a seus pés. Ereis vós, Hermenigilda! Apenas vos vi, reconheci-vos como o molosso reconhece o dono, e a rola o ninho, e a lebre a cama, e a truta a acolheita. «Vêr-vos, e não amar-vos, seria morrer de vêr-vos; e amar-vos sem vêr-vos, só eu pude; e que faria eu depois ao vêr-vos, senão amar-vos!? --Acaba depressa com isto!--interrompeu o meu amigo--Vêr-vos, não vêr-vos, amar-vos, e vêr-vos, e não amar-vos... que diabo de embrulhada é esta!? «Tu és um tolo!--redargui eu--Está explicado o segredo da tua nullidade perante as mulheres. Tens trinta annos, e todas as tuas conquistas reduzem-se á filha do chapelleiro de Braga. Podias ter um nome em Portugal, se ao teu patrimonio, quasi dissipado, e á tua excellente figura, quasi em decadencia, juntasses um pouco de estylo. Todo a conquistador deve ter um arsenal bem fornecido de bombas phraseologicas. A idéa não é que persuade uma mulher, é a palavra. O que tu chamas _embrulhada_, meu patavina, é o melhor que se póde dizer quando não ha nada que se diga. --Suppomos---replicou elle--que esta mulher não me entende? «Certo disso estou eu. --O que se segue é não me responder, porque receia que eu me ria da sua ignorancia. «É justamente o que te convem, tolo. --Que me convem! «Sim; convem-te que não responda, porque não respondendo, falla-te. Que lucras tu com a correspondencia epistolar desta mulher? --Parece-me que pensas bem!... Tu és um grande homem! Ora anda lá, diz mais alguma asneira. «Onde estavamos nós? --Estavamos no _vêr-vos e não vêr-vos, amar-vos e não amar-vos_... «Ah! já sei... põe lá: «Cesar foi, viu, e venceu. Eu vim, vi, e fui vencido! Maravilhosa coincidencia de constrastes, Hermenigilda querida! «Mas é tão dôce ser escravo, subdito e fiel vassallo vosso! Quereis vós ser a rainha desta alma? Governai-a com o vosso sceptro de amor; subjeitai-a aos decretos e leis regias dos vossos soberanos olhos; regei esta monarchia com o absolutismo despotico da vossa augusta vontade. «Se não quereis responder-me, senhora, dai-me n'um sorriso o signal de que acceitaes preito e homenagem do vosso mais humilde feudatario, _Bento de Castro da Gama._» O meu amigo, a meu pedido, fechou a carta em coração, e postou-se na janella. Hermenigilda appareceu. A carta foi-lhe mostrada; ella fez menção de recebel-a. Castro sahiu, roçou-se pela porta, lançou-a no pateo, e tornou para a minha janella. Hermenigilda não apparecia: estava naturalmente estudando os jeroglificos druidicos da carta. O preto, porém, veio á sala, e fez uma careta medonha ao meu amigo. V. A careta do preto fez pensar o meu amigo tão seriamente que desde logo resolveu imprimir-lhe em qualquer parte quatro pontapés homericos. Eu combati o projecto com a logica da prudencia, fazendo vêr ao pundonoroso Castro que a careta do preto era uma dessas innocentes caretas que a natureza patusca ensinava aos macacos. Convencido zoologicamente da aproximação das duas especies, visto que a careta era de instincto, o amante fogoso de Hermenigilda prometteu levantar de sobre a cabeça do negro, não direi a espada de Damocles, mas a bota de montar com espora de prateleira, seu calçado favorito. Mais do que as minhas razões, a presença da visinha aquietou os impetos cavalheirosos do meu amigo. Eu puz-me á espreita. Vinha jubilosa, com cara de paschoas, um ar de alegria lôrpa, e a expressão mais significativa de que não entendêra palavra da carta arripiada. Castro, sem ser acanhado, parecia um tolo, sorrindo com ella. «Pergunta-lhe se responde» disse-lhe eu cá de dentro. O meu amigo esperou o ensejo d'uma olhadura, fez menção de escrever na palma da mão esquerda, tregeitou com a cabeça uma pergunta, e ella de lá respondeu que não. Castro fez um bico de ternura dolorida, encolheu os hombros em ar de paciencia, e vestiu o semblante com uma visagem melancolicamente sandia. «Pergunta-lhe se falla» tornei eu cá do meu centro de operações. --Podeis fallar-me?--disse elle, improvisando com as mãos um ridiculo porta-voz. Ella fez-se desentendida, e o meu amigo levantou nota e meia á pergunta: --Se podeis fallar-me... Hermenigilda não respondeu ainda, e Castro ia de certo interrogal-a com toda a franqueza dos seus pulmões, quando viu, lá ao fundo da salêta, reluzirem os olhos do preto, como duas carochas em carvoeira. Como se não podesse supportar o magnetismo hediondo d'aquelles olhos, recolheu-se para dentro, murmurando: --Eu quebro a cara ao preto! La está o patife a espreitar-me. Eu estava de pachorra para tranquillisar a raiva do meu brioso amigo. Fiz-lhe vêr que os grandes triumphos custavam grandes heroismos de paciencia. Lembrei-lhe Annibal agatinhando as agruras dos Alpes; Colombo jogando o sopapo com a tripulação; Bonaparte comendo farinha de pau no deserto das piramides, etc. O meu amigo succumbiu perante os exemplos da historia, e resolveu tolerar com paciencia todas as caretas do preto. «A ti o que te convem--disse-lhe eu--é relacionares-te com o Pantaleão. Tu não conheces o Miguel das Infuzas? --Quem é o Miguel das Infuzas? «É um fidalgo do Porto, grande genealogico. --Não conheço na nobliarchia portugueza esse appellido _Infuzas_. «Tambem eu não; mas o appellido é acquisição feita pelo tal Miguel. Chamam-lhe o _das Infuzas_, porque elle, amador das artes, viu duas pequenas infuzas de prata n'uma ceia explendida dada ao general do Porto, e quando a occasião lhe foi propicia acondicionou-as o melhor que pôde nas algibeiras da casaca. Passado tempo, o proprietario das infelizes lobrigou-as em casa d'um usurario, e sabendo que o erudito genealogico as pozera no prego, divulgou o feito do illustre neto dos Teives e Couceiros e Moscosos. D'ahi em diante, a classe media associou as infuzas aos appellidos deslumbrantes do fidalgo, que continua a esmerilhar na genealogia do proximo um casamento desigual de quinto ou sexto avô, para, nos seus momentos de soberba aristocratica, mostrar aos primos uma nodoa na arvore deste ou d'aquelle que ousa chamar-lhe primo. «Aqui tens o maior amigo de Pantaleão. Eu não posso apresentar-te porque não pertenço á roda, como sabes; mas tu que és irmão de morgado, procura-o com o fim de esclareceres uma duvida sobre o teu oitavo avô. Logo que fallares em oitavo avô, o homem manda-te sentar, e pergunta-te onde estás hospedado. --E que diabo hei-de eu dizer-lhe do meu oitavo avô?! «Inventa qualquer toleima... por exemplo: queres saber se teu oitavo avô instituiu uma capellania; queres saber se teu oitavo avô casou com a segunda ou terceira filha dos senhores de Panoias; queres saber se o teu oitavo avô foi casado com a tua oitava avó. Ha trinta mil cousas a saber d'um oitavo avô, pois não ha! --Mas eu sei cá quem foi o meu oitavo avô? «Isso elle t'o dirá. É capaz de te descobrir um joanete que elle tinha no pé esquerdo. Conseguido o primeiro passo, pergunta-lhe se uma senhora da tua familia é exacto ter casado, ha 327 annos, na casa de Villar de Gaivotas, d'onde elle se diz muito parente. Consegue que elle te chame primo, e eu corto ambas as orelhas, se tu não casares com Hermenigilda, apesar de todas as caretas do preto. --Tu nunca fallas serio, João! Devéras entendes que eu falle ao homem? «Hoje, se é possivel. Isto são favas contadas. O Miguel das Infuzas vem jantar, todos os domingos, com o primo Pantaleão, e tu és apresentado no proximo domingo. Castro foi á janella dispensar um sorriso a Hermenigilda. Com grande espanto meu, a rubra menina, sem ser provocada a fallar, disse, affectando muito receio de ser ouvida: «Posso fallar-vos daqui da janella, depois que meu pai e minha mãi estiverem deitados. --A que horas? «Ás nove. --Ás nove!?--replicou elle maravilhado. «Sim, sim,» tornou ella, e desappareceu. --Isto vai bem!--exclamou Castro--Mas ás nove horas! tão cedo! «Teu futuro sogro, meu amigo, segundo me disse a creada dos calcanhares gretados, come o seu caldo requentado ás sete horas, arrota até ás oito, deita-se ás oito e um quarto, adormece ás oito e meia, e ás nove é uma massa bruta, inerte, inamovivel. Bom é que vás sabendo o programa do teu futuro em casa do fidalgo d'Amarante. Ás oito horas has-de estar no thalamo conjugal com o barrete de retroz por cima das orelhas, e ás nove has-de resonar o mais estupidamente possivel, fazendo um dueto com tua mulher. --Estás enganado!--replicou elle--Se eu casasse com ella, pensas que me ia degradar na Amarante? Isso sim! Eu quero viajar á custa de minha mulher, e dar-lhe-hei a honra de me acompanhar. Que póde viver a mãi de Hermenigilda? Dous ou tres annos, quando muito. Logo que ella se resgate da gotta, está a filha de posse d'uma excellente casa. A do pai ella virá quando vier, e virá sempre a tempo de me dourar as cadeias. Queres tu viajar comnosco? «Oh! pois não hei-de querer!? Havemos de ir a Vallongo, dia de Santo Antonio, e quando reunires ambas as casas de modo que possas cortar por largo, iremos a Vianna, á Senhora da Agonia! Que bello futuro! --És um pateta!--redarguiu lisongeiramente o meu amigo.--Não se póde fallar serio comtigo! Vamos ao caso: visto que ella me falla ás nove horas, é escusado procurar a protecção do Miguel das Infuzas. «Pateta és tu! Sem o Miguel das Infuzas não fazes nada. Se o teu fim fosse seduzir Hermenigilda, convinha-te sustentar o namoro clandestinamente, evitando relações com o pai. Mas tu queres casar, e casar com brevidade; precisas ser admittido ao gremio da familia; dar ao teu namoro um ar de honestidade boçal; cabecear com somno todos os dias, meia hora ao pé da noiva; jogar a bisca de nove com tua sogra, e representares, em fim, de palerma até ao dia em que se cruzarem definitivamente as raças. Não deixes, portanto, de procurar o Miguel das Infuzas. Vê o que ella te diz hoje, e ámanhã vai ao Porto saber alguma cousa do teu oitavo avô.» Castro foi á janella trocar com Hermenigilda dous gatimanhos alvares, como são todos os gatimanhos preliminares d'uma grande asneira. VI. Ás nove horas em ponto, Bento de Castro sahiu de minha casa, e plantou-se debaixo da janella do snr. Pantaleão. Eu apagára a luz, e espreitava pelos buracos da cortina o introito do _rendez-vous_. Espreitava, e escutava, não por mera curiosidade, porque não sou curioso, mas por utilidade propria, visto que me tinha encontrado em grandes apertos de eloquencia nos primeiros encontros com trinta e oito mulheres. O leitor casto--(para não ser sempre _pio_), que chegou aos cincoenta annos sem experimentar os apuros de namorado na sua primeira entrevista, está muito longe de imaginar o que é uma agonia séria! Eu, João Junior, em quem a Europa reconhece um espirito superior e mais um bocadinho, recordo hoje com vergonha a plangente figura que fiz, ha quarenta annos, diante dos meus namoros. A primeira mulher que amei era uma dama de alto nascimento, que tivera bastante influencia no quartel general de lord Wellington, e jogára, por causa d'um ajudante d'ordens do mesmo, o sopapo com uma viscondessa celebrada, cujos dentes, que foram bellos, passaram com os meus para o dominio da historia. Esta dama, com os seus quarenta annos bons, era ainda formosa, e fallava admiravelmente sobre quasi tudo, e com especialidade sobre a acção immoral que a revolução franceza exercera, por tabella, nos salões lisbonenses. Dizia ella, com um riso sarcastico nos finos labios, que os inglezes vieram executar em Portugal as theorias livres da França. Acrescentava que o fardamento dos officiaes de Beresford conseguira das mulheres lusitanas, raça das Brites, e das Vilhenas, o que os romances de Voltaire, não poderam fazer. Ora vejam que tal era a primeira mulher que me trouxe pela mão o travesso Cupido, que n'aquelle tempo estava no ministerio! Foi aqui justamente na Foz que eu a vi, rodeada de satellites sufficientemente parvoinhos para perderem o centro de gravidade e cahirem no espaço infinito dos conquistadores aleijados. Fiz-me importante aos seus olhos por lhe salvar uma cadellinha que escorregára do _penedo d'Apollo_ ao mar. Apenas a vi em ancias, despi o casaco, metti-me até ao peito na agua, apanhei a cadellinha, que a ressaca levava para o mar, e, como Camões, Dos procellosos baixos escapado, vim lançar no regaço da afflicta dama a cadella gemebunda. Fui bonito, como vêem, para casa! A nobre senhora quiz recolher-me no seu quartel, e eu, sem dar tempo a reiterados rogos, nem agradecer-lh'os, porque os queixos faziam uma traquinada diabolica, metti-me á cama, onde transpirei tres dias, bebi dez garrafas de tizana; puz no peito um arnez de pez de Borgonha, e ao cabo d'uma semana fui deixar um bilhete á exc.ma dona da cadella, que mandára saber de mim todos os dias duas vezes. Encontrando-me na praia, disse-me ella com muito agrado: «Eu não me satisfaço com o seu bilhete. Sou mais ambiciosa. Quero que me dê o gosto de ir passar alguns momentos a minha casa, onde se joga, e ri, e conversa, depois d'um mau chá. Hoje poderei contar com a honra da sua visita? --Oh minha senhora!... «Não me deixe na duvida. Meus manos querem ter o gosto de o conhecer... (Em 1819 era assim que se dizia a um homem da minha roda. Hoje os manos de s. exc.ª, querendo conhecer-me, procuravam-me em minha casa. Que progresso immenso em quarenta annos!) «Não nos falte! (proseguiu ella gesticulando seductoramente). Por me ter feito um grande favor, não se segue que me prive d'outros. --Oh minha senhora!... «Um grande favor, sim! Mal sabe o amor que tenho a esta cadellinha. É ingleza... foi-me enviada por um general britannico das minhas relações de infancia. (_Nota_: s. exc.ª tinha recebido a cadella em 1812; tinha ella então _trinta e dous annos_... que _infancia_! e que relações!) Calcule o impagavel serviço que recebi... --Oh minha senhora! Nunca pude passar desta apostrophe palerma: _oh minha senhora!_ Que idéa fará esta mulher da minha intelligencia? perguntava eu ao outro _eu_. Com effeito, na noite desse dia apresentei-me em casa da exc.ma snr.ª D. Vicencia dos Anjos Albergaria Raposo Cogominho etc. (Parece-me que vai sahindo grande estopada a historia! Já agora, leitor, não queiras que eu perca duas tiras de papel, escriptas debaixo da inspiração saudosa dos tempos ridiculos!) Apenas entrei, fui rodeado de caras desconhecidas. Vi muita velharia femea sentada a um canto da sala. Fui lá fazer os meus comprimentos, e apenas uma se dignou bamboar um pouco a cabeça. As outras perguntavam á dona da casa quem era eu. Este _quem é_ ignominioso passava de bocca em bocca, já depois que D. Vicencia dissera alto e bom som: «O snr. João Junior é o salvador intrepido da minha cadellinha.» Ser João, e salvar cadellas não era habilitação bastante para ser apresentado. Deu-se-me pouca importancia; apenas o capellão me veio perguntar quem era, d'onde era, que modo de vida tinha. O orgulho começou a picar-me, e eu respondi que era o que fôra antes de ser o que era. Que nascera em qualquer parte onde o acaso me fizera nascer. Que o meu modo de vida era viver de modo que podesse rir-me dos tolos que o acaso do nascimento fizesse mais tolos do que eu. O capellão ficou atonito deste trocadilho insulso, e fêl-o mais parvo do que era, revelando-o aos hospedes de D. Vicencia. Ella, porém, viera sentar-se ao meu lado, e animou-me a eloquencia com as liberdades da sua conversação. Fallou-me no amor, e parecia mais bella, acalorada com o enthusiasmo deste grande assumpto. Perguntou-me se tinha amado, e se lhe fizera a ella o sacrificio de privar a minha amante d'alguns instantes felizes. Respondi que apenas sahira da minha aldeia vinte dias antes, pela primeira vez, e não sentira ainda o que era amor. «Sim!?--atalhou ella, abrindo muito os olhos scintillantes. --Sim, minha senhora. «Um coração virgem! É crivel! Qual será a feliz mulher que se aqueça ás primeiras chammas da sua alma? Esta metaphora pareceu-me magnifica e fez-me impressão! Se lhe respondesse, diria necessariamente uma futilidade chôcha. Calei-me, e, se bem me recordo, córei. Se dispensam saber o resto, não leiam o capitulo seguinte. VII. Pouco depois, tres morgados das margens do Tamega vieram sentar-se ao pé de D. Vicencia, e começaram a fallar de cavallos. Discutiu-se a pulmoeira d'uma egua ingleza, e os alifafes d'um alasão de Alter. D. Vicencia fallou d'um urco inglez que era o mimo quadrupede do quartel general do Beresford, e datou precisamente que em metade do seculo XVIII florescera o tronco d'um cavallo pigarço que lhe morrera d'um aguamento na estalagem de Vallongo. Eu assisti estupidamente silencioso á pratica destes dignos Plutarcos de cavallos illustres. Se quizesse dar o meu obulo para a conversação, poderia apenas apresentar as minhas averiguações sobre quatro mataduras d'uma egua em que viera, graças á benevolencia prestante do meu abbade. Á meia noite, um tio de D. Vicencia, conego da sé patriarchal, principiou a resonar a um canto da sala. A trombeta nazal do distincto ornamento da igreja era o signal do despejo. A nobreza destes reinos principiou a sahir, e eu, depois de quatro curvaturas, correspondidas por quatro mesuras de alto a baixo, em que era soberanamente ridicula D. Vicencia, fui para o meu quartel, scismar na mulher, á luz d'uma bugia. Devo confessar que me não sahia das orelhas o ecco destas dulcissimas palavras: «qual será a primeira mulher que aqueça as primeiras chammas da sua alma?» Esta honra de fogareiro, concedida pelos melhores quarenta annos que meus olhos viram, alvoroçou-me o sangue, e tirou-me a vontade da ceia, dôce amiga que até então me embalava nos sonhos deliciosos d'um Vitellio de meia tigella. Vi duas vezes a mulher, em sonhos. Não sei porque, mas o sonho com a mulher que póde amar-se, essa casta idealisação em que o material do corpo não entra, faz que a gente accorde amando-a, revendo-a através da nuvem esvaecida do sonho, desfigurando-a por uns contornos vaporosos, que o leitor nunca viu, se Deus lhe fez o favor de lhe dar uma alma bem chata, do que lhe dou os meus sinceros parabens. Rompia a manhã no horisonte purpurino do mar, quando eu saltei do leito da insomnia para o meio da rua. Senti que era poeta: alvoreceu-me nessa madrugada o furor das rimas, e, sem vaidade, confesso que escrevi d'uma enfiada vinte e tantas quadras, terminando todas por: Meu amante coração. É realmente um vacuo na historia da poesia moderna em Portugal a perda lastimavel do meu primeiro jacto metrico. Se bem me recordo, o meu poema poderia ter uma até duas, mas tres tolices em cada verso, isso posso eu asseverar que não aos poetas contemporaneos, que tem levado o seu talento creador a quatro, cinco, e mais. Como quer que fosse, eu glorio-me de ter feito obra que muitos annos depois encontrei executada, com pequenas correcções, ao som da viola, fazendo as delicias d'um arraial. Com a aurora da poesia veio a primeira nuvem das decepções amargas do poeta, e vem a ser que, estando eu persuadido que o poeta sahia do vulgar, entrava em convivencia com os sylphos, e, _ipso facto_, dispensava o almoço,--enganei-me redondamente. Ás nove horas e meia, quando o coração parecia ter feito monopolio da vida dos outros orgãos, começaram-me os intestinos a resoar uma symphonia de rugidos, que devia ser a da abertura d'uma opera muito séria. Fui a casa, e aquietei o motim intestinal, como os imperadores romanos aquietavam a canalha: _panem_, mas com manteiga, que os romanos não conheceram; o _et circenses_ traduzi-lh'o em café com leite. Consummada esta operação mixta, achei-me poeta em duplicado. Fiz um soneto excellente durante a digestão. Era um acrostico a _Vicencia_; mas como Vicencia tem só oito letras, e eu precisava de quatorze, venci a difficuldade, buscando entre os seus appellidos um com seis letras. Encontrei _Raposo_; por consequencia--VICENCIA RAPOSO! Era um bello soneto, que será publicado na 2.ª edição, para não alterar a ordem delineada da 1.ª Perfilei-me na praia, eram dez horas e vinte e cinco minutos. O coração dava-me cambalhotas no peito, quando a vanguarda de D. Vicencia, composta de paspalhões, appareceu na calçada. Nisto, desponta a cadellinha, que eu amava quanto é possivel amar-se uma cadella que nos proporciona o namoro com a dona. Depois... ELLA! Então é que foi! Eu já não sabia o que havia de fazer das mãos! Parecia-me que a perna direita era um membro incommodativo. Os hombros encolhiam-se-me, e os braços procuravam, entre todas, a postura mais desengraçada! D. Vicencia cortejou-me de longe, e eu, querendo corresponder-lhe, tirei o chapéo tanto á pressa que me ficou metade do forro em volta da testa, como uma aureola de marroquim vermelho. Attribulado com os sorrisos de quatro petimetres que me estavam ao lado, quiz dar-me uma compostura geral ao corpo para os encarar com sobresenho, e resvalou-me um pé na aresta d'uma fraga. Dobraram a risada os peralvilhos, e eu, emparvecido, cosi-me com uma barraca, desejando n'aquelle instante bifurcar-me na egua ulcerosa do abbade, e demandar o patrio ninho. Não o quiz assim a minha desventura. D. Vicencia não testemunhára a minha segunda catastrophe, graças ao cumprimento d'um adventicio. Quando eu me escoava subtilmente por entre as barracas, não pude deixar de envesgar um olho miserando sobre Vicencia. Viu-me! procurava-me com aquelle ar desdenhoso das mulheres espertas, que parecem não querer vêr o homem que mais procuram. Ora, Vicencia, além de esperta, tinha um uso!... Não fallemos disso! O magnetismo d'aquelle olhar collou-me os pés á areia como os da estatua do idiotismo! Sorriu-me com o mais amavel dos desleixos, brincando com as borlas do seu elegante casaco, roupão, ou como é que se chamava, de castorina côr de rato! Eu tomei a brincadeira das borlas como um acêno, e penso que me não enganei. Este espirito sagaz é uma cousa muito velha em mim! Fui-me aproximando disfarçadamente. Vicencia, com mais subtil disfarce, deixou o grupo dos senhores donatarios que regougavam as suas tolices habituaes. Foi sentar-se solitaria ao pé d'uma barraca, e eu, tremulo de susto, fingindo quanto pude um animo frio que mais me denunciava, avisinhei-me com o chapéo na mão. --Como passou a noite, snr. João Junior?--acudiu ella ao meu embaraço. «Muito obrigado, minha senhora...--gaguejei eu. --Passou bem, não é assim? Creio que fiz um tregeito parvo com os beiços, no qual tregeito queria eu significar-lhe que não passára lá grande cousa. --Então passou mal?--tornou ella. Uma idéa, distinctamente tola, me acudiu de improviso á mente. Julguei do meu dever não atraiçoar o legitimo sentimento de ternura que ella fizera nascer. Revesti-me da bravura moral que o amor inspira a todos os patetas bisonhos, e respondi bruscamente: «Quem sonha com o objecto amado não passa bem.» Nos labios de Vicencia esvoaçou um riso imperceptivel. Ainda hoje me dá muito que pensar aquelle riso! Acho, aqui para nós, que a generosa mulher satisfez com aquelle riso ao estimulo de uma conscienciosa gargalhada. --Pois o senhor não me disse ainda hontem que não amava? «É verdade, minha senhora... mas... lá vem a maré... --Vem a maré?! (disse ella) a que horas virá ella hoje? Tanto queria tomar banho cedo! Imaginem, pios leitores, com que cara eu ficaria! VIII. --Eu não fallava na maré do mar, minha senhora... «Ah... não? eu pensava... --Queria eu dizer que... o coração muda d'um instante para o outro. «Agora entendo! Ora sente-se... E eu sentei-me, resolvido a ser homem; mas a cadeira era baixinha e eu fiquei virtualmente sentado como um macaco. Quiz accommodar uma perna sobre a outra; mas o meu mestre de rhetorica tinha-me dito que era signal de má criação cruzar as pernas. Desejei n'aquelle momento angustiado ter nascido na Laponia, ou encurtar em corpo na razão directa da pequenez do espirito. Experimentei variadas attitudes: uma vez, ficava-me o pé direito em aleijão; outras, o joelho esquerdo formava com o direito o apice d'um triangulo isosceles. Resolvi, por fim, estender uma perna, e encurvar a outra em fórma de fateixa. Isto em quanto ás extremidades inferiores; mas a anathomia prova que o Creador tambem fez as extremidades superiores para castigo de amantes garraios. A mão direita andou longo tempo em busca de uma posição, desde o seio do collete até ao joelho; por fim, metti-a na algibeira. A esquerda inutilisei-a entre as costas e a cadeira. Definida a minha posição, immobilisei-me nesta caricatura, como se fosse de greda. Desviei as minhas attenções plasticas do corpo, e fiz-me todo espirito, para destruir o mau effeito do involucro. --Não toma banhos?--disse D. Vicencia, como se eu lhe tivesse aguado as bellas cousas que tencionava dizer-me. «Sim, minha senhora, já tenho vinte banhos. --Soffre dos nervos?... É um terrivel padecimento... «Eu tambem soffro bastante dos intestinos» atalhei eu com toda a ingenuidade. --Sim? Ainda ha peores enfermidades... As do coração é que não se curam. «E v. exc.ª padece do coração?--disse eu com sincera condolencia. --Muito... «Algum aneurisma? --Aneurisma moral... que é o peior de todos. O snr. João Junior ha-de soffrel-o tambem quando chegar a sua hora. «Por em quanto, não sinto dôres de peito, minha senhora. O meu mal é todo de intestinos. --O coração--tornou ella sorrindo de um modo celebre--o coração tambem é um intestino. «Ha-de perdoar, minha senhora; mas os intestinos estão por debaixo do estomago. Tenho um tio cirurgião que sabe perfeitamente a anatomia, e nunca lhe ouvi dizer que o coração era um intestino. D. Vicencia ria desafinadamente. Eu estava um pouco enfiado e corrido deste mau gosto de discutir ás gargalhadas. «De que se ri v. exc.ª?»--interpellei eu, desarranjando um pouco a minha attitude, que tanta arte me custára, e tanto me custou a restaurar. --Eu rio-me da boa fé com que o senhor enrista a lança em defesa da anatomia do seu tio. Eu tenho fallado em estylo allegorico. O snr. João Junior sabe perfeitamente o que é allegoria. «Pois não sei?--repliquei eu com ar de triumpho--_Allegoria est tropus_... V. exc.ª sabe latim? --Não, não sei. «Eu traduzo: Allegoria é o tropo, por meio do qual se mostra nas palavras uma cousa differente da que se tem no pensamento, empregando todavia, para designar esta ultima, outra que com ella se assemelhe. Ha duas especies de Allegoria, que são: a _total_, e a... V. exc.ª ri-se? Cuida que eu estou a mentir? --Não cuido; peço-lhe que não repare nos meus risos. Eu estou folgando de ouvir um sabio... «Sabio, não digo; mas ainda não ha tres mezes que eu estudei o meu Quintilliano... --E sabe-o de cór... Qual é o seu destino? tenciona ser frade? «Não, minha senhora... Eu parece-me que não sirvo para a vida ecclesiastica. Meu pai quer que eu seja frade Bernardo; mas eu... acho que não se póde ser bom frade, quando se fazem versos. --Pois o senhor é poeta? «Tenho minha tal ou qual inclinação para isso. --Ha-de dar-me uma amostra da sua musa. Tem algum poema escripto na Foz, cantando o Neptuno, e as deusas do mar? «Ainda não escrevi nada sobre Neptuno; mas se v. exc.ª ordena, farei uns versos a esse assumpto. Hoje escrevi eu umas quadras e um soneto, que deixei em casa. --Deixou em casa? que pena! Não se lembra de alguns versos? «Não, minha senhora. --Qual foi o motivo? «O motivo... o motivo...--gaguejei eu, esfregando os dedos da mão esquerda na palma da mão direita--O motivo... bem sabe v. exc.ª qual foi... --Eu!... não sei! Talvez a bravura com que o senhor salvou a minha cadellinha!... «Qual cadellinha!? Ora! não fallemos n'isso... Os versos foram feitos... a v. exc.ª --A mim?! Dobrada razão para lh'os pedir. O que me pertence não póde ser retido, em seu poder, sem meu consentimento. Vá já buscar os meus versos, snr. João Junior, e leve-m'os a minha casa, sim? Ergui-me da infernal cadeira radioso de gloria! Da praia a minha casa não vi ninguem. Caminhava sobre flores d'um perfume embriagante. Tudo me parecia azul-celeste. O coração dava encontrões na estreita bocêta do peito. Cheguei a persuadir-me que estava curado dos intestinos. Fatalidade! O extremo d'um grande prazer é um desgosto. Procurei os meus versos que deixára sobre a banca, e não os vi. Corro á cozinha, e interrogo uma velha, que me acompanhára de casa. Pergunto-lhe pelos meus poemas, e ella arregala os olhos enviezados de marroquim, sem saber o que eu procuro. Insto pelos meus papeis, e a incendiaria diz-me que, á mingua de carqueja, accendera o fogão com uns papellitos que achára sobre a mesa. Senti a cruenta precisão de matar esta velha! Injectaram-se-me os olhos de idéas assassinas. Traquinaram-me os queixos convulsivos de raiva. Entrou em mim o _delirium tremens_... Foi a imagem de Vicencia que me salvou... se não... ai da velha! e ai de mim tambem! Sahi, fui-me empoleirar no penedo mais hirsuto dos Carreiros, bebi a longos tragos a inspiração, reproduzi as idéas da poesia supplementar á carqueja, e outras novas suggeridas por um novo ardor. Ó poder do genio! Cento e vinte versos, repartidos em quadras, a inspiração ejaculou d'um vomito! Escriptos a lapis, trasladei-os em papel de peso na loja d'um tendeiro. Corri a casa de D. Vicencia. Annunciei-lhe a catastrophe da 1.ª edição, que a fez rir muito. Deixei-a lêr mentalmente a segunda, e não ousei procurar no semblante d'ella a denuncia da sensação que lhe faziam. Lido o poema, D. Vicencia, séria, magestosa, e commovida, sentou-se, fez-me sentar, por um gesto, junto de si, e murmurou estas palavras que nunca, através de trinta annos, pude esquecer: --O senhor fez-me rir hoje; mas os seus versos fazem-me pensar com mais seriedade do que eu queria. O senhor é uma criança de coração, annunciando talento e infortunio. É um innocente que fará rir, antes que o ensinem a chorar... Agradeço os seus versos, os seus sentimentos, e o offerecimento do seu coração. Felizmente para mim entrou gente na sala. O capitulo seguinte não sei se terei a coragem de escrevêl-o! Vou lêr alguns das _Confissões de J. J. Rousseau_ para me animar. IX. Era em uma dessas noites em que o amor se pendura dos raios argentinos da lua-cheia. O dorso do mar, sereno e suspiroso, scintillava em escamas de prata. Na quebrada dos montes fronteiros, onde a lua não diffundia o seu clarão, perpassavam luzinhas magicas, tremulas e subitaneas, que, ao cabo de contas, vinham a ser as candeias dos lavradores que subiam do redil para os casebres, ou desciam dos casebres para onde elles queriam, cousa de que não faço questão. E eu fitára os olhos no horisonte do occeano, terrivel e magestoso; quadro indecifravel desde o cháos, provocação eterna ao orgulho do verme chamado homem; gigante inquieto que submerge no seio, d'um sorvo apenas, a taboinha juncada de soberbos tyrannos da terra, que lá se confundem com a folhagem das algas, boiantes sobre a garganta dos abysmos. E o meu espirito, desatado do poste vil chamado corpo, pairou nas alturas do céo, voejou de mundo para mundo, librou-se na paragem luminosa das chimeras, e desceu por fim sobre a imagem de D. Vicencia. Eram dez horas da noite. Sahi de minha casa, com a phantasia arrobada de delicias, e achei-me machinalmente debaixo d'um caramanchão de faias e loureiros que abobadavam uma janella aberta no angulo do jardim de D. Vicencia. Os raios da lua, dardejando sobre a copa do miradouro, matisavam-na de tremula folhagem de prata, e vinham, filtrando por entre os rotulos da janella, mosquear a relva como a pelle da zebelina. Era muito para ver-se tudo isto que eu, exacto retratista da natureza, vou pintando de modo que o leitor parece-lhe que o está vendo. É o que se quer. Sentei-me defronte desta como gruta de fadas, e imaginei o que ha mais bello em Ossian, em Hoffmann, e nos contos orientaes, que eu, com vergonha o confesso, não tinha visto, nem vi depois; mas, nestes ultimos tempos, é preciso ser grande alarve para não saber tudo isto e muitas cousas mais, lendo os folhetins dos meus amigos, sabedores de tudo, conhecedores de todos os nomes distinctos, á excepção do Lobato, e do Madureira, menos euphonicos que Macpherson, Goethe, Klopstock, e outros, que elles conhecem, como eu, dos catalogos da bibliotheca _Charpentier_. Estava eu, pois, nesta idealisação de todos os meus cinco sentidos, divinisando aquella gruta, onde de tarde vira Vicencia com a face voltada para o sol-poente, apoiada com geito encantador na mão eburnea. Devo, para desarmar a critica, protestar contra o epitheto _eburnea_. Entrou commigo a peste litteraria dos modernos torneiros de paragraphos. Arredondar o periodo é a condição imposta pela tyrannia do gosto ao escrevinhador laureado. Eu canto o que escrevo; e, se a toada me destoa no tympano, desmancho a oração em partes, ajusto-as de novo, calafeto-as de artigos, e pronomes, e conjunções, o mais afrancezadamente que posso, e sahe-me a cousa um pouco inintelligivel, mas harmoniosa como um clarinete de romeiro de S. Torquato de Guimarães. _Com geito encantador na mão eburnea_: reparem que é um verso hendecasyllabo. Quem ha ahi que arredonde melhor um periodo, sem desnaturar a lingua, nem alastrar o verso de cunhas que resabem a estrangeirice? Tudo isto veio adrêde (eu traduzo: _á-propos_) para dizer que, estando eu com os olhos embevecidos nas melenas das faias, abriu-se subitamente a janella, e a lua deu de chapa na radiosa cara de D. Vicencia. Viu-me, e não me conheceu: ia retirar-se quando eu, ainda absorto na apparição, tossi o mais melicamente que pude. Vicencia deu ares de conhecer-me. Eu, invocando todos os potentados da minha alma (não seja sempre _potencias_) para vencer o acanhamento, murmurei: «Sou eu... --É o snr. João? «É verdade, minha senhora. --Então que faz por aqui?! versos? «Estava a admirar a natureza, minha senhora. --E admiravel que ella está! «Muito admiravel, admirabilissima! muito bonita é a natureza! --Eu tambem quiz ver o mar onde a lua se espelha tão poeticamente! Mas a noite vai arrefecendo; e eu receio muito as constipações á beira-mar. Se me dá licença, recolho-me... «Pois eu ainda fico... Estou gostando muito desta encantadora noite... Quem ama, não tem medo ás constipações... Estas palavras proferi-as com certa entonação de despeito, e fiquei satisfeito da minha veia epigrammatica. Vicencia, porém, redarguiu: --O logar é incompetente para fallar d'amores. Quem nos visse aqui a deshoras suspeitaria de nós. Nada de escandalos, snr. João Junior. Venha cá ámanhã, e então me dirá o effeito que lhe fez o poetico espectaculo desta formosa noite; mas... se valho alguma cousa na sua vontade, peço-lhe que se recolha, e não queira privar-se de me ver ámanhã, constipando-se hoje... Promette ir? «Sim, minha senhora... --Então, boas noites. E fechou o rotulo, mais depressa, por sentir passos na extremidade da travessa, que era de pouquissima passagem. Eu permaneci quieto no meu sitio, meditando, triste, na indifferença gélida com que fôra recebido, em hora tão romantica, tão mysteriosa! N'isto, passou por mim um vulto. Era o homem, cujos passos a fizeram fugir com mais presteza. O tal vulto, ao perpassar por mim, mediu-me d'alto abaixo, afrouxando o piso. Olhou para a janella de Vicencia, e fixou-me de novo. Deu alguns passos, e retrocedeu... Confesso que já não estava contente! O encapotado foi até á extremidade do bêcco, e voltou. Parou diante de mim, e disse por debaixo do capote, em ar de tyranno de tragedia: --Que quer vossê aqui? «Não quero nada...--gaguejei eu. --Pois então, mude-se. Eu demorava um pouco a execução do mandado solemne de despejo, quando o homem recalcitrou: --Mude-se, ou eu o ajudo a mudar. A ajuda, pelos modos, era uma pranchada de chanfana, que o nosso amigo deixou vêr por debaixo da fimbria do capote. Dispensei o auxilio offerecido, e retirei-me cozido com a parede, scismando nas bellezas appensas a uma noite de lua cheia á beira mar. Ao cabo da viella parei, sustido por um pensamento negro. «Será aquelle homem um amante de Vicencia?!» O ciume deu-me intrepidez, quero dizer--a intrepidez de parar e esconder-me d'onde podesse espreitar a scena mais escandalosa de que o leitor tem noticia! A janella abriu-se. Era Vicencia... conheci-lhe a voz! Não sei o que ella disse que fez rir o meu rival. Ouvi o soido de ferro que raspava no peitoril da janella! eram os ganchos d'uma escada. Ouvi o som cavo do embrulho de cordas a cahir na terra. Vi o maldito subir, coar-se pela janella, recolher a corda... e... maldição! maldição!... .......................................................................... E, desde essa noite nefasta, a minha fronte pendeu abatida como cabeça de estatua que um raio fulminou. Contei as minhas amarguras á vaga gemente, e acordei os eccos das solidões compadecidas. Como Fausto, como Manfredo, e como Werther, perguntei ao Creador se a vida não era uma grande patacuada. O demonio do suicidio segredou-me as delicias do aniquilamento. Quiz tentar contra a minha existencia, e vacillei longo tempo na escolha do instrumento. Queria um genero de morte novo, maravilhoso, inaudito, e memorando! A pistola, o punhal, o laço, a asfixia, o verdete eram já n'esse tempo expedientes muito safados. Em cata d'um morrer distincto, habituei-me á dôr. Vivi, se vida póde chamar-se este mixto de funcções animaes em que predomina o almoço, o jantar, e a ceia. Não se conhecia então o instrumento de suicidio que a sociedade actual inventou: O ARTIGO DE FUNDO. X. Eu, João Junior, não soffro os romancistas que pulam d'um capitulo para outro, de modo que o romance tanto faz principial-o detraz para diante como de diante para traz. Classico em toda a extensão da palavra, respeito a arte antiga, admiro a boa ordem das _Pastoris_ de _Longus_, do _Jumento_ de _Lucius de Patras_, e outros venerandos monumentos da arte adulta, cuja leitura não aconselho áquelles que dormem as suas horas, sem o recurso do láudanum. Com quanto Aristoteles, Horacio, Pope, e Boileau não legislassem para o romance, eu, sincero venerador da arte que ensina a fazer os primores d'arte, trabalho, quanto em mim cabe, por introduzir no romance as tres unidades de Aristoteles. E aproveito a occasião para certificar aos principiantes n'este esperançoso ramo de litteratura, que é bom saber um bocado de Aristoteles, depois de ter lido duas comedias de Scribe, a _Dama das Camelias_, e--se o principiante fôr extremamente estudioso--o _Chatterton_, o _Bug Jargal_, afóra a immensa erudição que vem no La Place. Com estes seis volumes, uma capacidade mediocre abrange todas as ramificações da sciencia humana, e póde, se um editor martyr o ajudar, aos quarenta annos, ter produzido quarenta volumes. Os meus quarenta annos já lá vão ha muito; mas, se Deus me der mais dez, prometto encher o vasio que sempre deixa na terra um grande nome. É este o primeiro livro com que brindo a humanidade; mas tão maduramente pensado elle vai, tanto tempo o choquei, antes do parto, no utero intellectual, que, se me não logra a vaidade, começo por onde muitos acabam. A logica com que os capitulos anteriores vão coordenados, a naturalidade das transições, o alinho das fórmas em harmonia com a substancia, a intima alliança da esthetica com a plastica, a artistica rigidez com que os caracteres se pintam, e, sobre tudo, a pureza, a elegancia, o atticismo, a propriedade da linguagem, portugueza de lei como os portuguezes d'esta nossa afortunada época, tudo isso, e outras louçanias que omitto, por preguiça, provam que eu, João Junior, conheço Aristoteles; e, se nunca o li, maior habilidade revelo; tenho o sexto sentido, o _illuminismo_, que tambem não sei bem o que é. Pelo que, muito importa que o leitor saiba _Quem era o homem da escada de ferro, o que elle por lá fazia áquellas horas, e de como o author, depois de trinta annos, chora por D. Vicencia, e o mais que a este respeito se disser, como do capitulo melhor se verá._ Deveis de saber, leitores pudicos, que D. Vicencia Raposo, quando chegou á Foz, sentiu, na presença do occeano, rejuvenescer-se o coração, desenrugar-se-lhe a alma, e esvoaçarem-lhe de redor candidos amorinhos. _Souvent l'onde irrite la flamme_, disse Corneille, e D. Vicencia, aspirando o ar nitrico do mar, cobrou vigor de peito, e com o vigor novo readquiriu as necessidades velhas, as illusões de 1801, as realidades de 1809, e até o amargo prazer de experimentar os desenganos de 1819, época da sua fatal decadencia. Resolvida a amar, Vicencia espartilhou-se o mais angustiosamente que pôde, distribuiu nas faces, um pouco encortiçadas, dous escropulos de alvaiade com outros tantos de carmim, e foi passear até Carreiros. O primeiro homem que viu geitoso era um cadete de cavallaria, bem apessoado, bizarro de cintura, sadio de bochechas, e lesto de maneiras, requebros, posturas, e varias outras momices que dão nos olhos da mulher disposta a amar. D. Vicencia era vistosa e farfalhuda. Meneava-se tregeitando com tamanha volupia, que eram poucos os dous olhos da cara para a vêrem! O cadete não podia ser indifferente á provocação, e azado era elle para segurar a fortuna pelos cabellos. Menos parvo que eu, sacou do peitilho da fardeta o seu lenço branco, e deu ao nariz notas diplomaticas para iniciar o namoro. Houve de parte a parte correspondencia nazal, e já n'essa tarde o afortunado cadete foi apresentado a D. Vicencia. Saibam desde já que o meu rival era... são lá capazes de adivinhar!... Bento de Castro. Depois d'aquella negregada scena do bêco, será ocioso dizer-lhes que o meu achaque de intestinos recrudesceu; aliás, para evitar os olhos da perfida, ter-me-hia retirado a curar o coração no abrigo dos meus velhos, que todas as semanas me recommendavam que rezasse as minhas contas, e não fizesse asneiras. A gravidade do mal não me deixava assentar no albardão, apesar de doze semicupios! Era-me forçoso testemunhar a minha derrota, assistir aos funeraes ignobeis do meu primeiro amor. Nunca mais fui a casa de D. Vicencia, nunca mais a vi; mas á hora em que o mocho pia no galho do azevinho, ia eu, cheio da minha amargura, sentar-me n'uma collina fronteira ás janellas d'ella, e d'ahi, com um enorme oculo de papelão, conseguia lobrigal-a através das vidraças. Se quereis saber qual era então a minha angustia, perguntai á onda porque geme, á fonte porque murmura, e á calhandra porque pipila entre as franças de avellanzeira! É que a minha angustia era vaga e mysteriosa como a da onda que geme, a da fonte que murmura, como a da calhandra, e a do calhandro, e de toda a variedade de animaes que tem bico, ou barbatanas, ou tromba, ou labios, ou qualquer orificio respiratorio por onde possam respirar e gemer. Entrou em mim o demonio do ciume! Quando, pela primeira vez, se hospedou em minha alma virgem esta paixão filha do inferno, como lhe chama Homero, fez-se uma subita mudança na minha natureza. Eu fôra incapaz de entalar o rabo d'um gato, e senti-me propenso a cercear as orelhas a um homem! Levaria tres sôcos sem resistencia para não levar o quarto, com heroismo, e achava-me animado d'esse furor das batalhas, que ceifa louros e cabeças! Quiz conhecer, encontrar face a face o meu rival, e, para isso, muni-me do cabo d'uma vassoura, estive quasi a experimental-o no cavername da velha, que me queria tolher o passo, guinchando desabridamente, e fui postar-me debaixo da janella por onde o vulto subira. Depois de duas noites mallogradas, á terceira apparece, entre uma hora e duas da manhã, o nosso homem. Aqui entre nós que ninguem nos ouve: quando o vi perto de mim, a minha coragem pareceu-me uma cousa muito duvidosa. Deram-me caimbras nas pernas, e senti-me mal do epygastrico! Cingi a mim quanto pude o cabo da vassoura, para que elle não denunciasse as minhas tenções reconsideradas, e, o mais subtilmente que é possivel, fiz uma pirueta, preparando-me para uma retirada honrosa, quando o sujeito me corta a vanguarda, e diz com voz soturna: «Que diabo estava o senhor alli fazendo?! --Nada...--regouguei eu. «Isso não é possivel. O senhor não estava alli para me vêr passar... Não se assuste que eu não lhe faço mal... Diga lá o que me quer. O timbre agradavel d'estas palavras animou-me. --Eu ao senhor não lhe quero nada. «Ora venha cá;--tornou elle--vamos passear e conversar. O senhor chama-se João Junior. --Seu criado. «Quiz namorar D. Vicencia. --Isso lá... é conforme... «Seja sincero. O senhor fez-lhe versos, versos que eu achei bonitos, e conservo-os na minha carteira, porque talvez ainda me valham se me vir apertado por alguma mulher com a mania de ser cantada em quadras. O senhor está muito verde... Estas mulheres não se conquistam com versos, nem se procuram no principio da vida. O snr. João é provinciano, vem lá da sua quinta com as bucolicas do Rodrigues Lobo na cabeça; e, como não encontrou zagalas toucadas de flores, imaginou que D. Vicencia era uma das tres Graças em uso de banhos. Redondamente enganado, meu amiguinho. Ora agora, façamos um convenio. Quer o senhor que eu lhe deixe livre o campo para as suas escaramuças? Com a melhor vontade... --Nada, muito obrigado, eu não quero saber de mais nada... O que eu tenho a pedir-lhe é os meus versos. «Ha-de ter paciencia; mas os seus versos acho-os muito bonitos, e não lh'os dou. Até lhe digo mais: depois que os li, fiquei sympathisando com o author, e tenho feito diligencias por encontral-o na praia, ou em casa de D. Vicencia. Queria dizer-lhe que se não deixe lograr por taes mulheres; queria ensinal-o a viver com esta gente, para o poupar aos desgostos que eu supportei, desde que sahi de minha casa; queria, em fim, ser seu amigo, se o senhor não tivesse n'isso antypathias que vencer. --Muito obrigado...--mastiguei eu, bem disposto a favor de homem tão franco. E voluntariamente me deixei ir pelo braço delle até sua casa. Subi, e era dia claro quando nos separamos, amigos para sempre. Dous annos depois, recebia elle de mim lições de _savoir-vivre_. O meu talento precoce predominou a experiencia d'elle. Um anno de tracto social, decifrou-me enigmas em que Bento de Castro ainda hoje sinca. Duas palavras mais ácerca de D. Vicencia, e serão ellas sérias e tiradas do coração n'um intervallo de negra tristeza. A mulher devia ser velha quando não sente o coração... quando já não ama. Vicencia amou até o fim da vida. Amargurado fim de vida devia ser o seu! Nem já flôres desmaiadas lhe escondiam a fronte encanecida. Perdido o brilho, amorteceram-se-lhe os olhos, franziram-se-lhe as palpebras, encorreou-se-lhe o collo, e as mãos, que tão lindas foram, tingiu-as a amarellidão do tempo. E o coração ainda vivo no involucro muribundo! Era como a flamma que não póde coar-se nos vidros embaciados da velha lampada. Foi, por fim, motivo de irrisão e mofa, aquella mulher, que, desde os doze até aos quarenta e cinco annos, arrancára coroas de quantas rivaes quiz supplantar! De todos os seus amantes, eu fui por ventura o mais nobre, e o mais vilipendiado. Embora! Nenhum outro lhe daria o _salve_ compassivo que eu lhe dou, depois de trinta annos. .......................................................................... Oh vida! vida!............................................................ .......................................................................... Grandes devem ter sido as provações de quem souber tilintar os guizos do histrião para que lhe não ouçam os gemidos!... Chorar no coração, e rir no espirito... XI. Consta do final d'um capitulo, escripto em logar competente deste exemplar romance, que Bento de Castro sahiu de minha casa para entabolar com Hermenigilda o seu primeiro colloquio. Eu cerrei as portadas da janella, deixando apenas uma fresta onde podesse encaixilhar a orelha direita, sem denunciar a innocente espionagem. Alguns dos meus amigos, orelhudos como Midas, não poderiam fazer outro tanto com o mesmo recato. Bento foi quem primeiro teve a palavra, e disse: --É tal o prazer que me enche o coração, amada Hermenigilda, que não posso exprimir-vos quanto por vós sinto, desde o ditoso instante em que vêr-vos e adorar-vos foi obra d'um momento. O sentimento que meu terno peito nutre por vós, acaso ao vosso terá passado? ELLA. Eu passei bem, e o senhor? ELLE (_atordoado como se lhe despejassem de cima um balde_.) Como passará bem do corpo quem arde em vivas chammas de amor? ELLA. O senhor tambem sabe cantar a modinha das _vivas chammas d'amor?_ ELLE. Nada, não sei. ELLA. Minha prima Carlota canta que é um regalinho ouvil-a. Althea, mimosa Althea Me maltractas com rigor, E eu por ti ardendo sempre Em vivas chammas d'amor. Pois o senhor não sabia este soneto? EU (_mentalmente_.) É d'uma estupidez fabulosa! Ó pobre Bento, como estará a tua alma!... Haverá d'estas mulheres, passados trinta annos? Digo que não, em honra do progresso. Alguns annos mais, e _Paulo de Kock_, e _Pigault Lebrun_, e outros directores espirituaes, traduzidos em vernaculo, darão aos namoros de nossas filhas occasião de ouvirem menos tolices. Os que amarem em 1856, devem passar horas muito agradaveis! As mulheres de então, ricas de prendas espirituaes, saberão dizer _toillette_, _rendez-vous_, _petit-point_, _crochet_, _soirée_, _boucles_, _papier-satin_, _enveloppe_, e outros ornamentos de lingua com que farão a sua maior, mais fecunda, mais grulha e tagarella. Com a superabundancia do idioma, augmentarão as idêas, na razão directa. A psycologia estará no auge. Mestre Spinosa e Kant encarnarão nas costas abauladas da prole de qualquer jarreta. A mulher saberá os escaninhos da alma como a abelha os do cortiço. Não haverá uma só que possa, com acerto, chamar-se tola. Perfeita de espirito, attenderá ás imperfeições corporeas, e descontente da massa insufficiente que o grande Artifice empregou na feitura d'ella, apropriar-se-ha o algodão necessario para que o Creador soffra um quinau. A mulher, correcta e augmentada, em alma e algodão, será o luxo da natureza, a boneca das creanças-decrepitas, o ouro cendrado no cadinho das humanas miserias, o melhor pedaço de carne e osso que Deus creou, a mais flacida aba de algodão e barbas de baleia que as manufacturas celestes podiam dar-nos. ELLE (_despeitado_). Não fallemos nas cantigas de vossa prima; o que importa é saber se me tendes um affecto igual ao meu. ELLA. Isso lá... veremos. Se meu pai disser que sim... ELLE. Pois vosso pái é que vos manda amar? ELLA. O que elle diz é o que se faz. Casamentos não me faltam. Tem-me pedido muitos senhores de casa, e se elle diz que não... ELLE. Mas, eu não pergunto se quereis casar commigo. ELLA. Então?! Se não quereis casar commigo, vindes enganado. ELLE. Quero casar comvosco; mas primeiro devo experimentar... ELLA. O que? ELLE. O vosso coração. Quero ser amado antes de ser vosso marido. Que sentis por mim? ELLA. Sinto muito bem, gosto de vos vêr, e se meu pai quizesse, eu de mim tambem queria ser vossa esposa. ELLE. A minha carta que impressão vos fez? ELLA. Fez-me muita: está muito bonita; parece mesmo que é cousa de livros de historias. Tenho lá em casa, na Amarante, um livro chamado os Cantos de Trancoso, e outro chamado as Aventuras de Theofilos, ou Theofanius, ou uma palavra assim, que trazem muitos palavriados assim. ELLE (_com a voz suffocada por um vomito moral_). Boas noites, menina. ELLA. Então passe muito bem, até ámanhã, se Deus quizer. Bento de Castro entrou no meu quarto com as mãos agarradas á cabeça. Eu estava sobre a cama, marinhando com as pernas parede acima, arquejando de riso, rebentando pelas ilhargas, quando o pobre homem entrou. «Pois tu ouviste?--disse elle. --Tudo! está vingada D. Vicencia, e eu tambem. Suicida-te, meu infeliz Bento! Um homem que encontrou similhante Hermenigilda, deve morrer de tedio, de vergonha, de raiva, de odio ao genero humano em geral, e ás mulheres em particular! «Estás enganado--atalhou elle--gosto assim de vêr a estupidez no seu estado de perfeição primitiva. Andava eu morto por encontrar a mulher como ella foi no tempo em que se comiam bolotas e medronhos. Pensas que arrefeci na empreza? Não tenhas medo. É uma mulher deliciosa para um homem que quer casar-se rico, e desligar-se das obrigações que se contrahem matrimonialmente com uma mulher que tem alma. Alli onde a vês, se eu tiver a duvidosa felicidade de a obter do pai, é a unica mulher que me convém. Ha-de ser uma excellente criadora de porcos, e se eu lhe disser que saia da Amarante para viajar commigo dá-lhe um desmaio. Tomaram muitos encontrar a innocencia d'ella! Aquillo é tudo materia pura e estreme como a dá a madre natureza. Eu corto o pescoço, se ella tem resquicio de maldade! Castro continuava o elogio de Hermenigilda, quando ouviu vozear alto em casa d'ella. Fomos á janella, e vimos Pantaleão embrulhado n'um cobertor com um toco de sêbo acceso na mão, chamando Hermenigilda a grandes berros. Vimol-o chegar, e o pai perguntou-lhe o que estivera ella fazendo n'aquella janella. Hermenigilda negou, e o preto foi chamado para dizer que a ouvira estar fallando com um homem que costumava fazer-lhe acenos da janella fronteira. Pantaleão, com o cobertor a rastos, solemne como um patriarcha do Levitico, aproximou-se da filha cabisbaixa, deu-lhe um sonoro pontapé, e perguntou-lhe quem era o sujeito que fallava. A desastrada moçoila tartamudeou, e, receosa da segunda carga, disse que elle lhe tinha escripto para o bom fim. O pai disse que queria vêr a carta. Hermenigilda sahiu d'alli; Pantaleão, no accesso da colera, deixou cahir o coto de sêbo, e ficou em trevas. Não podemos vêr nem ouvir o desenlace da scena. «O peor é que a minha carta está assignada!--disse Castro. No dia seguinte, disseram-me, quando me levantei, que Pantaleão estava na janella desde o romper do dia. Fui á janella, e fiz-lhe, como costumava, a minha cortezia, posto que elle correspondia com desagrado á minha civilidade, desde que me viu fazer á moça varias bugigangas. Fitou-me com terrivel catadura, e disse: «Ó su amigo, diga lá a esse borra-botas que por ahi vem, que eu sou homem de lhe tirar a collada pelas costas, ouviu? --Ouvi perfeitamente, porque o senhor tem um excellente pulmão--disse-lhe eu, disposto a jogar insolencias com o senhor de Fregim e coutos de Riba-Tamega. «Diga-lhe lá que se tornar a desinquietar minha filha, mando-lhe moer o espinhaço. --Faz o senhor muito bem... Com que então o tal maroto desinquieta-lhe a filha! «Vossê está a mangar commigo? --Deus me defenda! Eu estou protestando contra aquelle tratante que desinquieta meninas, e faz da minha casa o palladium das suas patifarias. O direito paternal é o mais sagrado de todos os direitos. V. exc.ª tem carros de razão em quanto sustentar o decoro dos lares, e mantiver immaculada a prosapia illustrissima de que borbulhou. Pantaleão olhava para mim, alongando os beiços e franzindo a testa. Eu prosegui: --Mas, a fallar a verdade, eu não sei se v. exc.ª tem razões assaz fortes para tamanha zanga. O sujeito que namora sua filha é filho segundo de uma illustre casa de Celorico de Basto. Por _Gamas_, pertence ao venerando tronco do que dobrou o cabo das Tormentas, como consta de João de Barros, Lucena, Camões, e da historia genealogica da casa real. Por _Castros_, descende por bastardia d'um irmão d'Ignez de Castro, que veio casar a Celorico, e houve quatro filhos de D. Mecia da Gama, um dos quaes foi dom abbade em Tibães, outro foi prior-mór de Christo, o terceiro morreu em Alcacer-Kibir, e o quarto morreu em cheiro de santidade, e está inteiro. Já vê v. exc.ª que o amante de sua filha não é qualquer borra-botas, como o senhor lhe chamou, no auge da sua iracundia paternal. O que o senhor deve é indagar se é honesto o intuito d'este amor: e caso o seja, apressar o enlace matrimonial. «Eu não preciso conselhos!--bradou irado Pantaleão--Se elle quer casar com minha filha, peça-m'a, e eu lhe direi o que me parecer; mas não me ande cá a rentar pela porta. --N'esse caso--redargui eu--direi ao meu amigo o que deve fazer para captivar a benevolencia de seu illustre sogro. Elle irá pedil-a, conforme o estylo, e v. exc.ª, depois de ratificar as informações que eu tive a honra de dar-lhe ácerca da celebrada genealogia do meu amigo, consentirá que elle entre no tronco da sua familia, como o regato no oceano. Parece incrivel, mas Pantaleão encarava-me com suave aspecto. A seriedade conspicua e grave com que eu solemnisei a galhofa, achou acolhimento digno na soez capacidade do mirifico ornamento da Amarante e povos adjacentes. Dignou-se perguntar-me quem eu era. Respondi que não podia apresentar-me com appellidos benemeritos da sua estima, por isso que descendia d'uma honesta familia de lavradores, a qual havia fundadas razões para suppôr-se que descendia do primeiro homem, e não tinha outros documentos, além de suspeitas, com que provar a sua antiguidade. Pantaleão achou-me razão, e disse-me que o rei Vamba fôra lavrador, para consolar-me da minha baixa condição, acrescentando que sua magestade el-rei D. Diniz, fôra amigo dos lavradores. Era para vêr-se a pratica affectuosa em que demoramos uma boa hora, finalmente interrompida pela apparição de Bento de Castro, que vinha espantado da cordura com que nos travamos. Pedi licença para receber o meu amigo. Contei a este o acontecido, e dei-lhe os emboras do bom andamento em que, tão imprevistamente, se achava o seu consorcio. Castro, palpitando d'alegria, a primeira cousa que lhe lembrou foi que não tinha casaca para solemnisar a sua primeira visita ao pai da noiva. Remediado com a do boticario da terra, que fizera uma para assistir ás exequias de D. João VI, o meu amigo, n'esse mesmo dia, ás quatro horas da tarde, procurou Pantaleão, com o fim tres vezes honesto de lhe pedir sua filha. Quando, porém, entrava no pateo, olhou machinalmente para dentro d'um postigo d'uma casa terrea, e viu Hermenigilda sentada n'uma caixa de pau de pinho, comendo figos. Ao pé d'ella estava o preto partindo uma melancia. Horrivel mysterio! XII. Não tarda, leitor pio, leitor indulgente, leitor benevolo, leitor honesto que paga, leitor honrado que não lê de emprestimo, não tarda ahi uma enfiada de lances estupendos, que lhe arranquem interjeições de pasmo, e lhe afervorem o desejo de abraçar o author! Deixei o seu espirito em tribulações de curiosidade, no anterior capitulo, onde Hermenigilda apparece comendo figos ao pé do preto, no momento em que o meu amigo Castro ia, escada acima, pedil-a ao pai. Chamei «horrivel mysterio» ao mais natural dos actos--uma mulher a comer figos!--Dei ao acontecimento uma importancia que tem feito pensar o leitor ancioso. Vão vêr porque. O que, por ora, posso acrescentar, porém, é que Bento de Castro recuou um passo, entreteve-se alguns instantes indeciso, e, por fim, resolveu espreitar o que se passava no quarto. Ao lado da pequena fresta havia no estuque esboroado uma greta propicia. O meu amigo espreitou, e viu o seguinte, de que lavro acta para eterna memoria: 1.º Viu Hermenigilda acabar d'engolir um figo, e atirar o pé do mesmo á cara do preto. 2.º Viu o preto tregeitar uma careta festiva, e atirar á cara rúbida de Hermenigilda um bocado do coração da melancia. 3.º Viu a menina tomar do chão uma das rodellas de casca da dita melancia, e assentar com ella uma sonora sulipa na carapinha do preto. 4.º Viu o preto, com as belfas gotejando sumo, aggredir a espadua da morgada, e vingar-se imprimindo-lhe uma palmada em cheio nas ultimas vertebras lombares. 5.º Viu engadelharem-se, com grandes risadas, as innocentes creaturas, e teve a gloria de presenciar a victoria da sua amada, que atirou com o preto ao chão, e fugiu. Satisfeito d'estas cinco visões, por isso que lhe não faltaram receios d'uma sexta, setima, e oitava, o meu amigo, tranzido d'espanto, perdeu a cabeça, e se havia de subir, desceu os dous degraus que o separavam da rua, e entrou em minha casa. Contou-me as suas observações importantes, commentou-as com admiravel perspicacia, e acabou dizendo que renunciava o projecto do casamento, e me pedia encarecidamente que não divulgasse o seu louco intento, e dissesse ao pai da innocentinha que elle não queria casar. Cousa, porém, admiravel! Bento de Castro dissimulava uma zanga interior, que eu não ouso chamar ciume, porque não quero dar ao meu amigo um rival tão vilipendioso. É, porém, desgraçadamente certo que o pobre moço, vendo que eu não defendia a innocencia do espectaculo que elle vira, tentou defendêl-o, perguntando-me se aquelles brinquedos não seriam por ventura honestos e singelinhos. Eu, que sempre fui d'uma boa fé estupidamente santa, reforcei a conjectura do meu amigo, recordando-lhe umas passagens que já contei ao leitor, ácerca d'uma minha prima, que por ahi fica archivada a paginas.... «Parece-me que não devo desamparar o meu posto, sem outras provas...» disse elle. --Eu tambem entendo que não... Tu nada tens que perder, se te conservares na espectativa. «E ha uma prova mathematica que eu posso conseguir, a unica verdadeiramente que desvanece ou confirma todas as minhas suspeitas. Eu não entendi, nem averiguei o genero de mathematicas applicaveis á questão; mas o meu amigo, confiado em seu systema, resolveu continuar namoro com Hermenigilda, ainda que tivesse de abonar-se ao pai com promessa de casamento. Apenas Pantaleão sahiu a tomar banho, Hermenigilda appareceu na salêta, e disse a Castro, por acenos, que o pai lhe tinha batido por causa delle; e convidava-o a ir fallar-lhe debaixo do muro do quintal, em quanto o pai estava fóra. Castro annuiu. Quando sahia, disse-me: «Estou quasi convencido de que aquella mulher tem um grande defeito, que é ser idiota. É tão innocentemente lorpa que não conhece o desaire de brincar com o preto. Este convite é prova da sua innocencia, não achas? --Acho que sim, meu amigo. Em todo o caso não te esqueças das tuas provas mathematicas, que eu não sei o que são; mas muito estimo que ellas te aproveitem, para eu ficar sabendo que as mathematicas servem de alguma cousa. Castro demorou-se, e veio dizer-me que a mulher parecia outra: e se me não disse que a achou espirituosa, quiz que eu me persuadisse de que era possivel educar aquelle espirito. Eu combinei na idéa do meu amigo, e elle, contente do meu accordo, contou-me o que passára com ella. Disse-lhe elle que, no acto de a ir pedir a seu pai, a vira brincar na loja com o preto. Respondeu ella que o preto fôra criado com ella, vindo pequenino d'um reino onde seu tio Simão fôra governador, bispo, ou não sei que me não lembra agora, mas é de presumir que fosse bispo do Congo. Acrescentou ella que seu pai lhe dissera que, se queria casar com o sujeito que a namorava, elle não se oppunha, porque estava cabalmente informado do illustre nascimento do noivo, e até desconfiava que fosse seu parente, por casamento de D. Urraca Munhóz, celebrado em 1121, ficando assim aparentados os Gamas de Celorico com os Viegas e Themudos da Amarante, como constava dos foraes de Cima-de-Villa, Ranhados, São Gonhedo, e Galafura: do qual consorcio nasceram D. Brites, que morrêra em Arouca, dama da rainha Santa Mafalda, e sua irmã Soror Violante, que morreu santa em Lorvão d'uma indigestão de toucinho, n'aquella celebre noite em que lá pernoitou a celebre abbadessa de Holgas, D. Branca. Em consequencia do que, o meu amigo Bento de Castro resolveu não entregar n'aquelle dia a casaca ao boticario, attenta a reconsideração do seu precipitado plano, por causa de umas suspeitas tão injuriosas para a mulher que lhe sahira ao encontro na carreira da vida. Já então se diziam estas tolices. XIII. Bento de Castro foi, finalmente, pedir a mulher ao pai. Pantaleão recebeu-o com agrado, e convenceu-se de que era seu remoto parente, em virtude do tal casamento celebrado sete seculos antes. Fallou-lhe na politica do dia, e arrancou-lhe o grato manifesto dos seus principios constantemente dedicados ao movimento de 30 d'Abril de 1824. Pantaleão prorompeu em elogios a D. Carlota Joaquina, e jurou pela espada de seu nono avô, governador de Masagão, que os constitucionaes haviam envenenado o rei, dizendo que recebêra de canal puro o segredo da morte do cirurgião Aguiar, do medico barão de Alvayasere, e do cosinheiro Caetano, todos envenenados pelos malhados. Acrescentou s. exc.ª, que seu primo, marquez de Chaves, fomentava em Traz-os-Montes, de combinação com Fernando VII, a queda da carta, e a restauração do throno e do altar, dos principes christãos, e extirpação das heresias. Como prova de ser informado por infalliveis oraculos, mostrou uma carta do seu particular amigo e primo visconde de Canellas, e outra, não menos convincente, do padre Albito Buela. Bento de Castro--digamol-o sem desdouro seu--era ardente correligionario de seu futuro sogro. O meu amigo era, n'essa época, extremamente chato do intellecto, e em negocios da republica não via meia pollegada adiante do nariz. Seus tios frades, e seu irmão morgado--aliás excellentes creaturas--uns em nome da religião, outros da ordem, e todos dos seus interesses, fizeram-lhe conceber odio á liberdade, á revolução, e aos principios subversivos da sociedade proclamados em 1820, por meia duzia de estupidos como Ferreira Borges, e Fernandes Thomaz. Eu, filho do povo, e Graccho em primeira edição nessa época, tinha lido o _Contracto social_ de João Jacques, o Espirito de Helvetius, e a Gazeta de Lisboa, das quaes leituras formei o meu espirito para as luctas tremendas das liberdades patrias, ás quaes fiz serviços de tamanha transcendencia, que, depois de vinte e oito annos de sacrificios, consegui ser nomeado escrivão substituto do juiz eleito na minha terra, de cujo exercicio fui demittido por decreto de vinte e nove de... Olhem que romance este! Já viram uma cousa assim? Se me não refreio o impeto, sahia-me aqui uma correspondencia de victima dos ultimos acontecimentos, mandando suspender o juizo do respeitavel publico!... O leitor, se continua a lêr-me, dá-me provas tão vivas da sua munificencia, tolerancia, e magnanimidade, que eu faltaria aos meus mais sagrados deveres, se, depois desta historia, lhe não contasse outra muito bonita, em que o heroe do romance, depois de amaldiçoar a sociedade que o não comprehende, tem o descoco de fazer-se eleger deputado, e brilha n'uma commissão encarregada de legislar para a importação dos cereaes, e exportação dos bois! Isso é que ha-de ser um romance! E, se lhes parece, comecemo-lo já... ou querem saber no que pararam as intimas sympathias dos nossos amigos Pantaleão, e Bento de Castro? A fallar-lhes a verdade de Epaminondas, e a do amigo de Platão, dir-lhes-hei que o romance, d'aqui em diante, é curiosamente estopador. Desde que a vida sahe das regiões sublimes do ideal e entra na esphera das mundanidades villãs, o romance espiritualista, como este meu se preza de ser, descahe indispensavelmente para o caustico, torna-se d'uma moralidade bastante equivoca, e não é o mais azado guindaste para içar espiritos de quinze annos ao setimo céo de Santa Thereza de Jesus. As heroinas e até os heroes de mad. de Genlis, se se encontrassem com os meus d'aqui em diante, tapavam olhos e ouvidos. É necessario um curso regular de Parny, de Crebillon, e Pyron, uma iniciação destes fachos precursores dos luminosos dias em que vivemos, para acceitar a philosophia dos seguintes capitulos, que pertencem mais ao homem da vara de cerdos de Epicuro que ao da legião de espiritos ethereos do immortal discipulo de Socrates. Ejaculado este arroto de erudição, saibamos como Bento de Castro esmerilhou mathematicamente os escaninhos do coração de Hermenigilda. É muito para saber-se que, desde esse dia, o fidalgo de Celorico de Basto, graças a D. Urraca Munhoz, visitava todos os dias sua prima; mas vinha tomar chá a minha casa, porque Pantaleão usava apenas chá da India quando as indigestões não cediam á terceira emborcadella d'uma botija d'aguardente _ad hoc_. Em honra d'aquella cabeça de familia, diga-se que a môça andava vigiada, posto que o meu amigo captasse a confiança do sogro, e, o que mais é, as sympathias do preto. Estavamos no mez d'Agosto de 1826, e o casamento, que devia ser em Amarante, aprazaram-no para o mez de Março. Bento de Castro contava-me maravilhas da noiva. Cada dia lhe descobria na testa uma estrella boreal de intelligencia. Hermenigilda resolvêra aprender a lêr correntemente, e havia já adverbios de sete e mais syllabas que ella conseguia soletrar melhor que o pai! Eu pasmava angelicamente dos progressos da moça; e devo confessar que, ou fosse resultado de vigilias litterarias, ou predominio do espirito sobre a materia, as carnes succulentas do rosto d'ella emmagreceram de massas pingues, e a epiderme, perdendo a antiga purpura de betarraba, regenerou-se n'um desmaiado meio romantico, meio espinhela-cahida. Em virtude do que, perguntei ao meu amigo se o calculo differencial e integral, com effeito exercitava e corrigia e rectificava o espirito como geralmente se dizia, e particularmente se demonstrava na pessoa da minha visinha. Bento de Castro, solemne d'uma continencia digna de melhor sorte, respondeu-me que a virtude era um attributo dos anjos, e os anjos escapam ao olho prescrutador das mathematicas puras e das mixtas. Fiquei nessa occasião sabendo que as mathematicas podiam ser puras e mixtas; mas desconfiando sempre que as do meu amigo eram impuras. Veremos. XIV. _Em que o author, depois de averiguar profundamente as conveniencias inviolaveis, do melindre, resolve não leccionar o publico em mathematicas, embora o seu amigo Bento de Castro assim fique privado de catalogar-se na phalange dos Newtons, Leibnitz, e Descartes; de que resulta ficar o capitulo aqui esganado pela mão da moral._ XV. O romance tem cousa má! É a primeira vez que os typos perpetuam o invento escandaloso d'um titulo sem texto! Um critico francez annunciou um romance que, em logar de principiar pelo principio, começava no 2.º volume. O author, respeitador do publico, explicava o contrasenso, dizendo que os romances eram escriptos de modo que tanto fazia ao caso começar do 1.º volume para diante, como do ultimo para traz. Isto é rasoavel e persuasivo. Porém, incoherencias deste tamanho não se desculpam n'um romance pensado, philosophico, haurido das fontes do coração, da experiencia, e feito expressamente para entrar em quinhão de gloria com as «Reflexões de Phocion» com o «Manual de Epicteto» com os «Excerptos gnomicos de Seneca» com os «Caracteres de la Bruyère» excellentes repositorios de philosophia pratica, que eu hei-de lêr na primeira occasião, porque me dizem que são livros de muito interesse, que ensinam a procurar a felicidade, como agulha em palheiro, na pobreza, na humildade, e na virtude. Mestres d'esta ordem teem sempre uma vida eivada de amarguras: isso é o que eu posso desde já affirmar, sem os ter lido. Phocion soffreu morte dolorosa. Seneca, preceptor de Nero, bem sabem que desastrado remate teve de vida. Epicteto é aquelle escravo do «Thesouro de meninos» que exclama, erguendo a canella partida por uma paulada: «não vos disse eu que m'a havieis de quebrar?» D'onde infiro que os preceptores da felicidade andam sempre de candeias ás avessas com o genero humano, e muitas vezes, com a arte de engranzar capitulos de romance, de modo que a historia vá bem contada, até ao fim, que deve ser onde casa o heroe, ou a heroina morre de tuberculos, no uso de oleo de figados de bacalhau. João Junior, summamente penhorado pelas attenciosas maneiras com que os seus numerosos amigos teem recebido esta sua primogenita creatura, tem a honra de declarar ao publico, e mais senhores, que o capitulo XIV foi eliminado deste quadro de costumes porque havia n'elle frescura de idêas, phantasia de côres, debuxos copiados da natureza viva, cousas, em fim, tão verdadeiras, tão patriarchaes, tão nuas, que o seu editor, depois de montar os oculos, e sorver duas pitadas conspicuas, disse que não patrocinava com o seu nome um capitulo em que o mencionado supra contava os factos como elles tiveram a impudencia de acontecer. Em virtude do que, entrei na minha consciencia d'artista, e vim a um accordo com a moral, aspando as doze paginas mais profundamente escriptas do meu romance: doze paginas em que eu fortalecia os habitos da natureza bruta com as doutrinas lucidas dos interpretes mais abalisados dos mysterios do coração; doze paginas salpicadas d'uma erudição exemplificativa que remontava á creação do globo, para provar que o homem e a mulher, sem o intermedio do merinaque, são dous entes homogeneos, duas substancias amalgamicas, dous tomos da mesma obra, duas creaturas em fim dos nossos peccados. N'esse capitulo, naufragado no cachôpo da moral, tinha eu uma gorda nota comprovativa da minha opinião ideologica a respeito de mulheres, rica de historia antiga, em que, sabe Deus com que vigilias, entravam Salomão e Dalila, Pericles e Aspazia, Tibullo e Lesbia, Ovidio e Corina, tudo pessoas que amaram como se ama d'uma até quarenta vezes na vida, com todo o ideal arrobado dos anhelitos da adolescencia, com a fé pura, candida, e immaterial do amor de Voltaire a madame du Châtelet, do amor de Larochefoucault a madame de Lafayete, do amor da minha visinha do terceiro andar, que, ás duas horas da noite, desce, com uma caixa de lumes-promptos, a desandar a chave, que teima em chiar, apesar do azeite prévio, quando um Romeu de capote de mangas lhe assobia a cavatina do «Trovador». Tudo isto, e muitas cousas mais, vinham na nota, que prometto embetesgar na primeira cousa que escrever, ainda que seja um artigo sobre o pulgão da batata. Fortissimas razões tinha eu para teimar em publicar o meu querido capitulo XIV, visto que era elle o relatorio das miudezas que se deram antes e depois do fatal acontecimento da noite de 25 d'Agosto de 1826, acontecimento grave e complicado, cujo conhecimento seria a chave do meu romance, se o editor ultra-honesto não teimasse em affirmar que o meu romance não precisa de chave para abrir as portas da eternidade. Pedi-lhe que me deixasse, ao menos, contar o facto em estylo levantado, allegorico, metaphorico, ao alcance, apenas, das intelligencias superiores. Nem isso. Estava escripto em estylo oriental, balsamico, todo perfumarias de subtil aroma d'alma, e elle teima em dizer que a alma não tem nariz. Era assim o meu fragmento: .......................................................................... E a lua balouçava-se entre as estrellas, nas alturas do ether. E a brisa do oceano, perfumada de marisco, brincava na praia com a folhinha secca da alga. E o rouxinol do silvedo trinava a sua cavatina cadenciosa, e sacudia as plumas affagadas por um raio de lua. Porque era essa a hora augusta dos mysterios, em que nos adros das igrejas reina o terror do silencio, e nos esgalhos seccos do pinheiro assobia o noitibó, medonho de agouros; e nas aguas limpidas dos regatos cardumes de bruxas tomam semicupios e dão gargalhadas de risos maleficos e satanicos. E o homem de Celorico, sombrio e tetrico como avejão nocturno, roçou a espadua pela padieira da porta, que se abriu. Era da côr do jacintho o amiculo que lhe envolvia em largas dobras a haste melindrosa. E a viração da noite, voluptuosa e meiga, beijou-lhe a face como se quizesse disputar á da manhã o prazer de beijar mais frescas rosas. E a virgem d'alvas vestes transpoz o limiar do seu asylo, encostou a fronte incendida ao braço tremulo do senhor de sua alma, e foi! Anjo d'Amarante, porque assim te despenhas da tua angelica miryade? Flôr do Tamega, que nortada rija te desarreigou da balsa? .......................................................................... E a lua passava no céo, velada e triste, como a Niobe antiga. E o homem de Celorico, de braço dado com a virgem, como qualquer caixeiro em baile d'Asylo de mendicidade, passou de fronte alta, meditando em seu coração um crime, e adoçando nos labios a tenção damnada que lhe fallava n'alma. E a vaga longinqua resoava um som cavo e lugubre, como gemido de leão. Homem! tu és forte como o carvalho gigante da encosta; mas o raio sahiu um dia das profundesas do céo, e o tronco, affronta dos seculos, vergou a fronte, e estalou pelas raizes. .......................................................................... E a flôr, tocada por labios impuros, e aspirada com avidez sôffrega, pendeu as petalas desmaiadas, e elanguesceu no seio do maldito dos homens de Celorico. Fôra profundo e arquejante o suspirar d'aquella que as onze mil duvidosamente receberiam no seu gremio, ainda recommendada pelos jornaes! E a lua, segundo o seu costume, dava tanta importancia a estas cousas, como os dous habitantes mais felizes do globo lhe davam a ella............ etc. etc. E pouco mais continha a minha descripção em estylo oriental. É realmente demasiado respeito ás conveniencias privar-se o publico d'um fragmento assim! Não obstante, rasguei-o, protestando jámais querer editor para as minhas obras. XVI. Palavras textuaes do meu amigo Bento de Castro da Gama: «João, arrepende-te de haveres maculado a pureza de Hermenigilda com uma suspeita menos casta. --Eu! santo nome! pois fui eu que a maculei!? «Sim, tu contavas-me a historia de tua prima, quando a innocente rapariga brincava com o preto puerilmente. --Valha-te o senso commum, amigo Bento!--repliquei eu--Que terrivel significação tu déste á minha historia! Poderia eu criminar a simplêza d'um brinquedo que desde creança respeito e absolvo, porque o vejo sanccionado na minha Arte do Pereira, livro didatico, escripto para andar entre mãos da mocidade!... «Mas o que faz a Arte do Pereira ao nosso caso?! --Faz muito: pois já te esqueceu o _pueri ludunt_? os meninos brincam? e posto que lá não diga _utriusque coloris_, d'ambas as côres, infiro que ser um branco e outro preto não destróe a regra da boa latinidade. Logo que se dá nominativo e verbo, tanto faz que os meninos sejam... «Cala-te, importuno!--atalhou o meu delicioso Bento, eliminando-me da alcôfa um pão e um canto de queijo Chester.--Fica na certeza de que a minha consciencia está socegada, tranquilla... --O mesmo não pódes dizer do estomago...--acudi eu, vendo o precipicio aberto ao meu queijo que descia, ao passo que da consciencia do meu amigo subia o protesto contra as suspeitas indignas da pureza de Hermenigilda. Bento de Castro proseguiu exarando provas que me não deixaram a menor suspeita de que a noiva podia, sem que o pudôr lhe carminasse o rosto, desapertar o cinto virginal, á laia das esposadas de Lacedemonia, ou entrar na camara nupcial sem o receio da lampada nocturna, que tantos sustos deu á primeira mulher de Jacob. Estava eu, pois, admirando a infallibilidade das mathematicas, quando Pantaleão, chamando-me da sua janella, perguntou-me se o meu amigo alli estava. Bento appareceu logo, um pouco sobresaltado--bem sabia elle porque, melhor que eu--e Pantaleão, com semblante rubicundo e prazenteiro, disse-lhe que tinha grandes cousas a contar-lhe. O meu amigo foi, contente do aspecto feliz do seu futuro sogro. Era o seguinte o que elle queria. Pantaleão acabava de receber carta d'um seu irmão, official superior do regimento 24 de Bragança, noticiando-lhe a acclamação do rei absoluto, e a prisão do bispo, e o triumpho certo da religião; recommendava-lhe que sahisse immediatamente da Foz, e fosse levantar guerrilhas em Amarante, que deviam unir-se em Villa Real ás forças do primo Silveira. Pantaleão estava ebrio de patriotismo! dava vivas ao rei absoluto, e chamou a filha para tomar parte do enthusiasmo do seu esposo. «Vamos a saber, continuou elle--aqui não ha que replicar! O primo Bento vem já comnosco para cima, e vai ajudar-me a levantar os povos, e fica sendo o capitão dos vassalos fieis! Se é realista ás direitas, vá amanhar a mala, e amanhã de manhã vamos embora. Que diz a isto, primo? --Eu digo que estou prompto. Já agora a nossa sorte é commum. «Pois então, eu vou dar ordens. Pantaleão sahiu da sala, e o meu amigo, tanto quanto pude enxergar, afagava as bochechas rosadas de Hermenigilda, que entrára na sala, escarlate como a flôr da romanzeira. Não seria facil decidir se fôra mais linda antes, se depois que o pejo lhe coloriu a tez. Um amante feliz gosa delicias, saborêa prazeres celestes n'essa encantadora vergonha! Bento de Castro, inclinado para o seio d'ella, devia dizer-lhe palavras de tal doçura que a pudibunda moça, requebrando o collo de puro jaspe, parecia, como a sensitiva, encolher-se ao beijo voluptuoso da borboleta! (Como isto sahiu engraçado e arredondadinho! É a minha especialidade, leitores.) O meu amigo deu-me parte da sua sahida, cheio de contentamento. Disse-me que me avisaria a tempo de eu ir assistir ao seu matrimoniamento. Prometteu-me arranjar-me em Amarante uma mulher com uma casa soffrivel para ficarmos visinhos. Partiu no dia seguinte, e realmente deixou-me saudades, que depois de trinta annos se conservam ainda em meu coração fistulado de desgostos, cheio de fezes agras, sujo do sarro das paixões, e coberto d'uma crusta de musgo petrificado pelo gêlo dos desenganos acerbos, sendo o mais pungente de todos a certeza, a que vim, de que o homem não é, como disse Platão, um animal implume, nem a sombra d'um sonho, como disse Pindaro, nem o rei da creação, como disse Moysés, nem animal racional, como dizem alguns philosophos, que se excluem, vistas as muitas irracionalidades que escrevem. O homem, em quanto a mim, é um pedaço d'asno! A ultima palavra da sciencia acabo eu de proferil-a agora. Eu tenho lido tudo quanto está escripto a respeito do homem, e, se não fosse o pequeno embaraço de me esquecer tudo o que li, tencionava explanar, com methodo e arranjo scientifico n'este capitulo, verdades eternas de que ninguem faz caso por isso que são eternas, e tudo que é eterno não quadra ao nosso gosto voluvel, irrequieto, e caprichoso. O homem, na minha opinião, é um cabide, e mais nada. O que a mão da boa ou má fortuna dependura n'elle é que distingue a creatura de Deus entre os seus irmãos. Não ha substancia de homem: ha só fórma de homem. Ora a fórma está no involucro, desde os andrajos inçados de herpes até aos arminhos recamados de brilhantes. Ahi fica debique para os philosophos. As grandes idéas encubam cincoenta annos, disse Napoleão. Em 1907 a minha idéa estará na consciencia da posteridade. Quando se perguntar o que é o homem, responder-se-ha: é um cabide. XVII. Sigamos Bento de Castro, á frente da sua guerrilha, composta de cento e tantos homens, erguidos como um só homem ao primeiro grito, e quasi todos caseiros e foreiros de Pantaleão. Bento de Castro, radioso de gloria, entrava em Villa Real, quando o primo Silveira, a quem ia recommendado, á frente d'um destacamento de caçadores 9, proclamava o snr. D. Miguel rei absoluto. O nosso amigo coadjuvava os gritos do marquez de Chaves, quando a soldadesca, instigada pelos officiaes, prorompeu em chufas e insultos ao commandante enthusiasta. Silveira, receoso de que o prendessem, porque os officiaes gritavam «amarrem esse doudo!» deu de esporas ao cavallo, e desamparou o meu pobre Bento, que se viu em pancas. Os bravos da sua hoste, era para vêr como elles largavam os tamancos por aquellas ladeiras da Senhora de Almudena! Os gritos animadores do chefe perdiam-se entre os apupos dos soldados, que arremeçavam pedradas ignominiosas ás canellas nuas dos fugitivos. Bento achou-se só, sobre uma possante egua do seu futuro sogro, e vacillou muito tempo entre seguir o marquez de Chaves, ou as suas tropas, que desappareciam por detraz das collinas de Mondrões, caminho do Marão. Venceu a honra; e o meu amigo, a toda a brida, pôde alcançar o Silveira a uma legua distante de Villa Real, na estrada de Chaves. O marquez era estupidamente corajoso. A derrota moral que vinha de soffrer, não lhe arrefecêra o animo! Queria elle chamar ás armas o povoleu das aldêas suburbanas de Villa Real, e accommetter de noite os soldados rebeldes. Bento de Castro, envergonhado da fuga, applaudiu o alvitre, e foi o primeiro a pendurar-se na sineta d'uma capella em Banagouro, tirando por ella com o frenesi das batalhas, e pedindo ao badalo a eloquencia do punhal de Bruto. Correram ao alarma o tio Francisco do Quinchoso, o tio Thimotheo da Fraga, João do Reguengo, e Zé da Brigida dos Chãos, alferes da bicha, e cavalleiro do habito, alcançado por ter morto na serra do Mesio dous francezes em 1812. Silveira sentou-se sobre o cabeçalho d'um carro, instaurou conselho militar, e, antes de proclamar, perguntou se seria possivel arranjarem-lhe um salpicão frito com ovos, e uma garrafa de vinho. João do Reguengo apressou-se a chamar sua mulher, que substituira o meu amigo na sineta, e mandou-a amanhar uma boa fritada de salpicões e ovos. N'este comenos chega um postilhão de Villa Pouca de Aguiar com um officio para o marquez. Silveira não entendia a letra de sua mulher, e pediu a Castro que lêsse. Era a marqueza de Chaves noticiando a revolução de caçadores 7, e chamando a toda a pressa seu marido para a coadjuvar no movimento revolucionario. O marquez deu vivas á marqueza, ao bravo batalhão, ao rei absoluto, e não esperou os salpicões, nem congratulou o patriotismo do padre Bento Tamanca que acabava de sahir da capella, de cruz alçada, chamando o povo ás armas. O meu amigo teve a honra de cumprimentar a marqueza de Chaves, que veio ao encontro de seu marido, sobre um valente murzello, floreando a espada, e latindo guinchos de sedicioso enthusiasmo. A marqueza era a mulher mais feia das cinco partes do mundo. Em França denominavam-na: «o panorama da fealdade.» Tinha um aspecto só comparavel a si mesmo. Rolavam-lhe nas orbitas dous olhos vêsgos, que não eram olhos quando os incendia em viva braza o ardor da guerra. O trom das espingardas, nas refregas a que delirantemente se arremeçava, faziam n'ella o effeito do zumbido na orelha do cerdo: silvava assobios terriveis de colera, e animava os soldados, umas vezes com um «arre p'ra diante» outras vezes chamava-lhes _filhos_. «Quem é este mocetão?--perguntou ella ao marido, fitando Castro. --É ainda nosso primo, pelo que me diz o nosso primo Pantaleão da Amarante. «É valente?--replicou ella. --Desejo mostrar valor--respondeu Castro. «Sabe jogar a espada? --Fui cadete de cavallaria. «Defenda-se lá d'um sexto!--disse a marqueza, e recocheteou com o cavallo para entrar em combate. Bento não ousou levar mão á espada; mas ella instou, fazendo parar o estado maior, que se compunha d'alguns capitães móres, e meia duzia de mancebos das principaes familias d'aquelles sitios. Castro obedeceu com repugnancia. A marqueza fez agilmente quatro botes, e, ao quinto, o meu desastrado amigo tinha uma solemne pranchada no pescoço, que foi motivo para que a marqueza, triumphante, especie, de Jeanne d'Arc, mais digna d'um Voltaire zombeteiro do que fôra a outra, mostrasse quatro ordens de dentes cahoticos, cariados, esqualidos, impossiveis! Os espectadores felicitaram-na pela sua destreza, e, o caso é que o ditoso Castro, por se deixar bater, recebeu da marqueza, com a lição d'esgrima, provas inequivocas da satanica sympathia da mestra. Tropa e guerrilhas acampadas em Villa Pouca d'Aguiar seguiram a estrada da fronteira, e internaram-se em Hespanha. Antes, porém, de sahirem, subiu ao pulpito da igreja parochial o padre Alvito Buela, e trovejou uma obra prima da eloquencia dos Chrysostomos e Athanasios, em que levou á evidencia quanto era grato a Deus cortar as orelhas aos jacobinos de 1820, herpes venenosas que fermentaram no sangue putrido de Gomes Freire. Os revoltosos entraram em Hespanha com a marqueza á frente; e o inepto consorte d'esta amazona recebeu, por intervenção de D. Carlota Joaquina, abundante numerario para manter o animo perplexo dos desertores. Os soldados, quando o soldo se demorava, costumavam cantar esta copla: Com dinheiro, pão, e vinho Sustenta-se o Miguelzinho, Sem dinheiro, vinho, e pão Sustenta-se a Constituição. A _Megera_ de Queluz, como então os malhados denominavam a viuva de D. João VI, informada pela marqueza de Chaves, a quem ella chamava a sua _Jeanne d'Arc_, igualando o filho dilecto a Carlos VII, empenhava-se até ao extremo da usura para espalhar a mãos largas o preço porque tão caras ficaram á nação as refregas dos Silveiras, dos Varzeas, e dos Canellas.[2] O Silveira era doudo pela banca portugueza; e o meu amigo Bento de Castro, destro burlista n'este ramo dos conhecimentos humanos, empalmou em poucos dias ao marquez e aos fidalgos do quartel general uns seis mil cruzados com que resolveu ir viajar, se o _deus_ d'Ourique não favorecesse a causa do marquez de Chaves. Os revoltosos foram protegidos em Hespanha, e receberam armas, e auxilio de forças, para repassarem as fronteiras. Chegaram á Amarante em 15 de Dezembro, e foram repellidos ahi pelo brigadeiro Claudino. Em quanto, porém, se dava a sangrenta batalha, o meu intrepido Bento estava em casa do nosso amigo Pantaleão, no gôso da mais agradavel fogueira, e do mais saboroso lombo de porco, e da mais fresca moçoila que ainda viram estes olhos que a terra ha-de comer. Ahi se demorou um mez, por causa da convalescença da egua, e foi depois unir-se a Braga ao marquez de Chaves. O marquez d'Angeja sahiu do Porto na pista dos rebeldes, que se entrincheiraram na ponte do Prado, com duas peças d'artilheria. O conde de Villa Flor ataca a ponte, desaloja o inimigo, mata-lhe algumas duzias de homens, e persegue-o até á Ponte da Barca, onde soffre uma desesperada resistencia. Villa Flor dispersa, por fim, á baioneta callada, a divisão do Silveira, mata-lhe trezentos homens, e, entre os mortos, fica moribundo o meu amigo Bento de Castro, com duas baionetadas, salvo seja, no costado. Recolhido a casa d'um lavrador, foi caritativamente tratado, e de lá me escreveu contando-me as suas desventuras, e pedindo-me que as noticiasse a Pantaleão, visto que duas vezes lhe escrevera, e não houvera resposta. Fui á Amarante, e soube que o pai de Hermenigilda, desgostoso da funesta sorte das armas fieis, cahira doente de gôta sciatica, e retirára com a familia para uma quinta de Baião, onde não podiam chegar as cartas porque os malhados lh'as interceptavam no correio da Amarante. Fui a Baião, e, lendo a carta ao attribulado velho, fil-o chorar, e praguejar. Logo alli prometteu á Senhora da Rocha levantar-lhe um nicho no portão da quinta, se seu futuro genro tornasse sãosinho e escorreito para a sua companhia. Pediu-me com grande instancia que o acompanhasse da Ponte da Barca até sua casa, logo que elle se restabelecesse. Hermenigilda não me pareceu muito afflicta com a triste nova. Quando eu apeei no pateo, vi-a debaixo d'uma larangeira, apanhando no regaço laranjas que o preto, agatinhado na arvore, lhe lançava, e ella comia de cocoras. Dei-lhe, receiando algum desmaio, um ligeiro indicio da desventura do seu Bento, e ella abriu os olhos com a mais estupida impassibilidade, e disse: «Coitado d'elle! Melhor fôra que não andasse por lá a jogar a tapona com esses herejes!» Á vista d'isto, a minha vontade era escrever ao meu amigo, e dizer-lhe que seria ignobil o seu enlace com tão estupida creatura. Reservei, para mais tarde, poupal-o a tamanho infortunio, e disse-lhe que Pantaleão o receberia em sua casa como pai, se elle preferia a sua convivencia á de sua familia. Bento respondeu-me que tencionava convalescer em casa de seu irmão, e passados tres mezes iria definitivamente casar-se, porque havia para isso razões fortissimas. Estas fortissimas razões, leitor amigo, começou Hermenigilda a sentil-as, quatro mezes depois que sahiu da Foz. Eram as razões do amor immenso, amor que lhe inturgescia o coração, ampliando-lhe a cavidade thoracica, estendendo-se até ás regiões contiguas, e augmentando-lhe a grossura dos tecidos no local em que as hydropesias, oriundas do amor, perdem grande parte do morbus com o casamento, especie de cura homoeopatica. Na certeza de que ninguem me entendeu, dou graças á minha esperteza, e continuo a merecer a confiança dos pais de familia. [2] D. Carlota Joaquina morreu devendo ao conde da Povoa 40 contos; igual quantia a Antonio Esteves da Costa; 20 contos a João Paulo Cordeiro; 40 contos a José Antonio Gomes Ribeiro; e igual quantia a João Antonio d'Almeida. A usura d'estes capitaes pagou-a o thesouro, e as graças em titulos e commendas. D. Carlota era economica até á avareza nos gastos domesticos. Os seus rendimentos da casa da rainha, e outros muitos, sob diversas denominações, eram enormes. Consumiu tudo em tramar guerras civis de que foi alma. Nos ultimos annos da sua vida, tão abstrahida estava no fito das revoluções, que nem da sua propria limpeza curava. O seu trage caseiro era um gibão de chita, e uma fota de musselina na cabeça. Acocorada entre as beatas suas amigas, era costume seu cantar muitas vezes esta quadra: En porfias soy manchega, Y en malicia soy gitana; Mis intentos y mis planes No se me quitan del alma. XVIII. Tudo nos leva a crer que não tarda ahi o desenlace d'este conto. A moral publica, ciosa das suas prerogativas, e dos deveres em que estamos para com ella, nós, os fabricantes de historias, contos, lendas, fabullarios, soláus, e varias outras feições do folhetim--a moral publica, dizia eu, quer que um romance acabe bem. Acabar bem é triumphar a virtude, punir o crime, incitando o coração do leitor á pratica do bem, e ao horror do mal. N'este romance, se tal nome é bem cabido n'uma biographia de personagens ainda vivas, excepto Pantaleão, não ha nada que seduza corações inexpertos, trajando o vicio de gallas seductoras, depravando o paladar com o uso do absyntho das paixões licenciosas. Aqui é tudo posto no seu logar, o vicio apresenta-se maltrapido, ascoso, lazarento de lepra, e parecido com o diabo, de quem é filho. A virtude, vestida com singelas louçanias, enamora as boas almas, amamentando-as no doce favo de seus seios, dulcificando-lhes os nectarios da candida flôr da virgindade, segredando-lhes em fim as delicias juvenis e puras de que tão farto e nedio trazia o coração de Hermenigilda, e outras creaturas da mesma tempera. SCENAS DA FOZ é um livro d'ouro. Peço licença para dar ácerca da minha obra o meu juizo independente, recto, desataviado de encomios immerecidos, e depurado de emulação mesquinha. O author é quem mais convincente testemunho póde dar da sua obra. Os nossos primeiros litteratos, desde 1830 até 1840, excepto A. Herculano--que escreve sempre com a mira posta na posteridade, e crê, como deve crer, na perpetua florencia da sua reputação--excepto esse, os nossos primeiros litteratos, para se pouparem ás avaliações incompletas das suas obras, escreviam elles as criticas. Os elogios appareciam ao mesmo tempo em quatro gazetas; e tão bem escriptos eram, tão portugueza e elegante a phrase, tão bonito para ver-se o guindaste que topetava com as nuvens a nomeada da obra, que, se os artigos fossem assignados, o thuribulario crear-se-hia uma reputação capaz de correr parelhas com a do idolo. Crearam-se assim muitas nomeadas, que, depois, o consenso universal consolidou; e, se os authores não tivessem o direito congenito de escrever e julgar, muitos dos nomes gloriosos de Portugal estariam hoje nos limbos da velha academia. Seja permittido a João Junior crear-se uma reputação tambem. O meu romance é a historia do coração humano. É um miudo exame das vicissitudes do espirito, e algumas vezes da materia. É o telescopio que alcança os astros do universo moral. É uma amalgama de historia, de philosophia racional e moral, de geographia e physiologia, a retina finalmente do grande olho da sciencia, que apanha n'um ponto os raios luminosos de todos os conhecimentos humanos. É esta a opinião do leitor illustrado, e tambem a minha. Sei que tenho detractores, belliscados da inveja, outros brutalmente soêzes, e outros hypocritamente pudibundos. Os primeiros dizem que o meu romance é uma trapalhice, sem nexo, sem logica, sem verosimilhança, nem idéa fundamental, ou nucleo philosophico. São uns pataratas. Outros, os segundos, acham que o conto está cheio de palavras estrangeiras, e não é tão bonito como as _historias proveitosas_ do Trancoso de que fallava Hermenigilda a Bento de Castro. Estes fazem-me pena. Os terceiros censuram as licenciosidades de phrase, a desnudez dos vicios, a descautella com que a parte carnal do idealismo humano se mostra aos olhos das leitoras incautas, menores de cincoenta e seis annos. Guardai-vos destes moralistas, pais de familias! Duas velhas já me disseram que eu sou pouco escrupuloso em revelar fraquezas que, postas em letra redonda, affligem a virtude, ou desvendam a innocencia. Valha-me Deus! Porque nos andamos nós a enganar uns aos outros com meia duzia de palavras convencionaes? _Alphonse Karr_ não conhece creanças; o que nós chamamos creanças chama elle _mulheres pequeninas_. A civilisação tem alterado muito o valor intrinseco de certas palavras antiquissimas, como, _verbi gratia_, pudôr, honra, amisade, amor, patriotismo, innocencia, e as demais que o leitor sabe. Eu creio na _innocencia_ das mulheres como synonimo de _pureza_; mas de _simplicidade_, não. O conhecimento precoce dos segredos mais rebuçados da vida é um segundo instincto com que vieram á luz as mulheres do seculo XIX. Eu tenho pedido aos pais que me deixem estudar, no collo, as suas filhas de oito annos, e tiro de seus caprichos pueris inducções que me levam á illusão de que tenho no meu collo as mulheres pequeninas do author de _Les Femmes_. Certo d'isto, experiente e feito nestas dissecações na alma, zango-me quando as meninas-velhas se picam nos espinhos da verdade--e mais se doem do pungir do espinho que já se lhes não esconde em flores... Lembram-me então aquelles versos de Béranger: Prudes, qui ne criez plus Lorsqu'on vous viole, Pourquoi prendre un air confus A chaque parole? Não obrigueis o romancista a escrever os fastos do coração como os chronistas escreviam a biographia dos reis. A historia está dispensada de ser caritativa. Antes querer, com as fraquezas do proximo, inflammar a phantasia com deslastres inexequiveis, do que premunir a razão contra as realidades; querer ignorar o mal verdadeiro, e ir com ancia através de oito volumes buscar o desfecho d'um romance, que extravasa a medida do mal possivel, é renunciar á verdade, perverter o gosto e a razão, crear um mundo que não existe, arriscar-se a todos os desatinos da excentricidade. O meu romance não fará mal a alguem, não concitará o fogo d'alguma paixão perigosa, não arrastará victimas ao abysmo, cavado por uma idéa, e coberto de flores pelas seducções do estylo, e sophismas d'uma irreligiosa philosophia. Não farei, como madame de Stael, pretenciosas Corinas, nem Oswalds melancolicamente piegas. Não verterei nas almas o nectar libidinoso do _Sophá_ de Crébillon. Não farei mulheres tão gárrulas, tão bacharelas, tão fortes da sua philosophia como a Heloisa de Rousseau; e ao cabo de contas, tão flexiveis, tão dadas aos lapsos da humanidade, como qualquer costureira que não leu o Plutarcho, nem o Tasso. Não direi, como Goethe, aos infelizes que se matem; e, se fôr necessario, provarei que Werther foi um tolo, se existiu; Gilbert, Malefilatre, Labras, Moreau, Escousse, Leopold Robert, Larra, Gerard e Nerval, Jorge Arthur[3], não foram mais espertos que o seu modêlo. O meu romance, em fim, aconselha a todo o mundo que coma e beba e durma o melhor que podér. Protesta contra as paixões sérias, e quer que a humanidade se submetta pouco mais ou menos aos artigos dos estatutos dados pelo Creador a todas as alimarias do universo. Detesta a philosophia que faz os homens maiores ou mais pequenos do que elles são. Abomina os escriptores que precisam enganal-os para engrandecel-os. Sejamos do tamanho que nos deu o primeiro barro: não nos persuadamos que o barro d'uns foi amassado em agua choca, e o d'outros em Champagne. As paixões são de todos; uns cahem n'um tremedal, outros n'um diwan de molas estofadas. Todos cahimos. Cahiu David e Sardanapalo, cahiu Cleopatra e Margarida de Cortona; depois da queda de Hermenigilda, nascida e baptisada em Amarante, não ha nada seguro n'este mundo. O leitor póde passar em claro este capitulo XVIII, que não diz nada importante. O que vem é de certo o melhor de todos. [3] Jorge Arthur é um nome portuguez. Suicidou-se em Janeiro de 1849, no Porto, precipitando-se da ponte-pensil sobre o Douro. Tem um monumento no cemiterio do _Repouso_, com o seguinte epitaphio que não diz nada: Saudade perennal, geme, e avalia Thesouro de que é cofre a sepultura. Estou escrevendo sobre uma pasta que era a d'elle, e tenho aqui um sinete com duas iniciaes: a sua, e a da mulher que lhe inspirava o amor... da morte. Era um moço de trinta e tantos annos. Tinha talento, e publicou poesias, propheticas do seu destino. Teve muitas elegias; foi muito sentida pelos rimadores a sua morte. Estou-o vendo quando o tiraram, já lacerado, da agua. Era de noite. Eu tinha um archote que lhe projectava no rosto um clarão medonho. Desabotoaram-lhe o casaco; entre o colete e a camisa tinha um boné de velludo preto bordado a matiz. Era uma prenda que não podia legar... XIX. Não se me desbotaram da memoria, com o envelhecer de mais de trinta annos, as cores vivissimas d'um quadro que o leitor vai contemplar. As palavras que então se disseram, ainda as ouço; os mais ligeiros gestos, as miudezas menos reparaveis de tal scena, ainda as vejo. Ai! quem me déra nesse tempo! É o caso: Pantaleão foi uma vez visitado por sua prima D. Mafalda, filha segunda da mui illustre casa dos Maldonados e Leites, de Cabeça de Veado, que tinha seis bispos na familia, todos fecundos, vindo, por consequencia, D. Mafalda a ser quarta neta de um filho sacrilego do ultimo bispo, o qual casou na dita casa de Cabeça de Veado, como consta da Chorographia de Carvalho, e da Historia Genealogica da Casa Real, e, mais miudamente, nas Nobliarchias ineditas de Alão de Moraes, no appellido «Maldonado». Pois, senhores, esta D. Mafalda, vindo visitar a perna gotosa de seu primo, reparou na nutrição de Hermenigilda, e fez uma carêta de pessoa que sabe de sciencia certa o que são legitimas nutrições, e quando o alargamento dos tecidos, accumulados n'uma região, com detrimento d'outras, é uma pseudo-gordura. Convicta pela experiencia dos seus annos productivos, D. Mafalda entrou em averiguações, e soube de seu primo que Hermenigilda ia brevemente casar-se com um illustre cavalheiro de Celorico de Basto. Contou-lhe o comêço, e o progresso das relações, excepto o que elle, ainda que quizesse, não poderia contar em estylo oriental. Iniciada com estes comêços, a velha fidalga chamou sua sobrinha a contas, fechando-se com ella na casa dos presuntos. «Com que então--disse a velha--tu vaes casar, e não me davas parte?! --O pai, assim comássim, diz que a tia havia de cá vir... «E gostas muito do teu noivo? --Podéra não! Tomára eu já que elle viesse. «Tambem eu queria que elle viesse em quanto eu cá estou para os deixar casados... Mas, diz-me cá, menina, tu fizeste uma grande loucura em te deixares vencer pela tua paixão... --Agora fiz! pois eu não havia d'amar com paixão céga meu marido? «Há cegueiras de cegueiras, Hermenigilda... Ora imagina tu que elle era um malvado que não tornava cá, e te deixava nesse estado? --Pois eu que tenho? disse Hermenigilda muito sobresaltada, descendo machinalmente os olhos sobre o corpo de delicto, ou delicto do corpo, como quizerem. «É isso, é isso, menina; não preciso dizer-te mais nada. Agora o remedio é apressar o casamento antes que teu pai vá para Amarante. Aqui ninguem vos visita; mas lá, que vergonha para a nossa familia! É a primeira que acontece na nossa linhagem!... Pois tu...--continuou a velha inexoravel, em quanto Hermenigilda fazia torcidas nas pontas do lenço do pescoço--pois tu cahiste nas fraquezas em que cahem as mulheres da baixa plebe?! Não te lembraste, nessa hora aziaga, que eras filha do fidalgo mais antigo d'Entre Douro e Minho? --O amor quando é de raiz...--balbuciou a pobre menina, purpuriada como a fèbra do presunto que lhe estava ao pé disputando o carmim. «Qual raiz nem meia raiz! Se teu pai--exclamou com violencia D. Mafalda--te tivesse mandado aprender commigo a ser uma senhora digna dos appellidos que tens, não cahirias nessa deshonra, que faz estremecer os ossos de teus ascendentes na propria campa! O que dirão os nossos primos da Carraça, e de Ranhados, e Lamas d'Orelhão, sabendo que tu fizeste similhante affronta á nossa jerarchia? D. Mafalda sahiu arrebatada, e no vivo impeto encalhou n'um torno da caranguejola onde estavam penduradas as brôas d'unto, que longo tempo ficaram badalando. Hermenigilda sahiu cabisbaixa, a procurar a tia para lhe pedir que não dissesse ao pai o mal que o seu _amor de raizes_ lhe fizera. Era tarde, porém. D. Mafalda, exprobrando amargamente a seu primo, a descautella, e liberdade com que educara a herdeira do seu nome, acabou por dizer-lhe que era urgentissimo o casamento, o mais depressa possivel, a fim de sanar o mais estrondoso escandalo que se tinha dado em nove seculos d'uma honradez a toda a prova na sua linhagem. Pantaleão, atordoado pelas invectivas, só depois de ouvir a cousa clara como ella era para todos, é que sahiu do torpor, e fez menção de pegar d'um bacamarte para arcabusar a filha. D. Mafalda susteve-lhe o rancoroso assômo, e pouco e pouco persuadiu-o de que o couce seria mais mortal que a queda. Disse-lhe que escrevesse a Bento de Castro para que immediatamente viesse esposar sua filha. Pantaleão preferiu escrever-me a mim chamando-me a Baião, onde cheguei cinco dias depois desta pathetica scena, que, de certo arrancou lagrimas aos que as podem ainda chorar por motivos de amargurada poesia. Eu ainda hoje as vêrto caudaes nas rugas da tez, quando me lembro a postura afflicta de Pantaleão no momento em que entrei no seu quarto. Estava de cocoras sobre a cama, lendo a gazeta de Lisboa, e vociferando pragas contra o Saldanha, em quanto o preto tirava os carrapatos d'uma cadella perdigueira que tinha a cabeça na travesseira do amo. O venerando ancião, quando me viu, mandou sahir o preto, e fallou assim: «Snr. João, saberá que o seu amigo Bento de Castro é nada menos que um bregeiro! --Como?! V. exc.ª dá similhante titulo a um cavalheiro que vai ser seu genro? «É um bregeiro, e se não, faz favor de olhar para minha filha. --Não entendo! Ja tive o gosto de a comprimentar, e ella nada me disse. «Repare-lhe n'aquellas ilhargas, snr. João! --Nas ilhargas! que quer isso dizer?! «Quer dizer que a minha filha, snr. João, ha-de casar-se já, senão o seu amigo é mandado para o inferno. --Pois, nesse caso... eu escrevo ao meu amigo...--repliquei eu, sentindo tambem nas ilhargas alguma cousa que poderia fazer-me rebentar na compressão do riso. Pantaleão, no auge da sua colera, saltou fóra do leito, e trilhou a cauda da cadella, que soltou um ganido funebre. Proseguiu em raiventas apostrophes a Bento de Castro. Accommodou-se um pouco por eu lhe prometter ir pessoalmente fallar-lhe a Celorico, e terminou por sentar-se, outra vez, na cama aparando com uma navalha de barba a callosidade de um enorme joanete do pé esquerdo. XX. Fui a Celorico, e descrevi o mais patheticamente que pude a scena lagrimosa que presenceara em casa de Pantaleão. O meu honrado amigo não hesitou, um momento, obedecer aos preceitos do dever. Disse-me que desde muito seria marido de Hermenigilda, se a má fortuna da guerra lhe não tolhesse o uso do corpo, pelos ferimentos graves que recebêra, e a morosa convalescença que lhe custaram. Acrescentou o meu brioso amigo que, obrigado a uma quasi solidão de quatro mezes, reflectira maduramente no que lhe convinha, e podera convencer-se de que o casamento com uma mulher supportavel de espirito, excellente de materia, e rica, era a posição que mais quadrava á sua alma, já desenganada das loucas illusões da mocidade. Com quanto o seu amor a Hermenigilda não fosse muito--disse elle--isso não importava, porque o amor-habito viria com o tempo encher o vacuo das grandes paixões. Louvei, como moralista e humanitario, tão acertado expediente, tão ajuizada philosophia, e fallamos largamente em planos de Bento de Castro, fundados sobre os haveres da noiva. É certo que uma imaginação creadora tanto póde erguer castellos no ar como em Amarante. N'um dos proximos dias, sahimos de Celorico, e viemos pernoitar a Baião, onde eramos esperados por um extraordinario successo. Quando chegamos, disse-nos o preto que a menina estava doente, berregando muito. Appareceu-nos D. Mafalda, e disse-me ao ouvido duas palavras, que eu communiquei ao meu amigo. Pantaleão sahiu do seu quarto, e apenas lobrigou Bento de Castro, que parecia ter-se commovido com a minha revelação, antes de mais nada, exclamou: «Não esperava isto d'um fidalgo, que ainda é meu parente, snr. Bento! V. s.ª portou-se muito mal, e não é digno de ser meu genro!» D. Mafalda, prevenida para serenar a colera de seu primo, acudiu aos berros, e disse com senhoril gravidade: --O mal feito não se remedeia, primo Pantaleão. Do que se tracta agora é de chamar cirurgiões, que a menina está muito doente. O snr. Bento está aqui para remediar o mal que fez. «De certo, minha senhora--murmurou o meu amigo. --Pois então--acudiu Pantaleão--trate-se já do casamento. «Já?! não é possivel!--redarguiu D. Mafalda--A menina está... pois tu não sabes como ella está?! --E então que tem lá isso?!--replicou o fidalgo--Chama-se ahi o abbade ao quarto, dizem-se as duas palavras, e arruma-se o negocio d'uma vez. «Eu estou prompto a obedecer-lhe--disse Bento;--mas eu muito queria que a minha noiva não estivesse a soffrer no momento mais feliz da nossa existencia. Se ella estivesse perigosa, em tão triste caso, de certo seria eu o primeiro a lembrar o cumprimento da minha palavra; mas, se por em quanto não ha receio, por que não ha-de o nosso casamento espaçar-se para um dia mais alegre? --Eu acho que diz muito bem, snr. Bento de Castro...--disse D. Mafalda. Pantaleão cedeu ás razões do genro, e ás minhas, que tiveram sempre uma tal ou qual preponderancia na opinião dos parvos. Serenou-se a tempestade, e Pantaleão, d'ahi a pouco, estava extasiado ouvindo da bocca eloquente de seu primo as proesas de Silveira, e as esperanças seguras da queda da constituição. D. Mafalda veio dizer a Bento que a menina, sabendo que elle tinha chegado, ficara em grande alvoroço de alegria, e pedira que lh'o levassem ao quarto, se isso não parecesse mal. Castro foi ao quarto de Hermenigilda. Parece que lhe deu algumas palavras animadoras e ouviu algumas queixas sentidas da sua demora, e da sua ingratidão. O momento, porém, era improprio para arguições e defezas. Hermenigilda estava pagando á natureza o doloroso preço dos gosos maternaes. Bento sahiu com semblante melancolico, e propoz-me um passeio no pinhal visinho. «Sabes tu, João, (disse-me elle com poetica ternura) que começo desde já a sentir o amor paternal? Agora conheço que os prazeres singelos da vida domestica são os unicos de que posso recobrar a minha felicidade perdida. --Pois, parabens, meu caro Bento! «Ha nada mais poetico--proseguiu elle, cada vez mais commovido--que o espectaculo dos soffrimentos da mulher amada, no momento em que se lhe desprende do seio o thesouro d'amor que será inexhaurivel de prazeres para mim?! --Oh! isso é arrebatadamente poetico! Eu pedirei sempre aos santos da minha particular devoção que me não dêem o prazer desse espectaculo; mas se um dia eu vier a ser pai, parece-me que hei-de ser um grande pai, e trarei sempre o meu gordo pequeno bifurcado no pescoço... «Não podes imaginar o jubilo que me enche o peito...--atalhou o meu amigo, que parecia não ter ouvido os doces prognosticos da minha paternidade--Quem diria que eu viria a ser isto que sou?! Posso hoje esperar metade da minha existencia menos infeliz que a outra. Se Hermenigilda não é a mulher que possa corresponder bem ás precisões da minha alma, o vacuo será preenchido com o amor de meus filhos. Se fôr menina o primogenito, hei-de mandal-a educar em Inglaterra; quero provar que se póde ser uma rica herdeira sem ser estupida. Se fôr um rapaz, oh! então... tu não imaginas o que ha-de ser meu filho! A pratica demorou-se uma hora nestas pieguices, que o leitor, se é pai de certo perdoa ao meu amigo. Ia alta a noite, e a brisa fria do norte, cantando nos pinhaes, fazia-me nas orelhas uma sensação desagradavel. Pedi ao contemplativo Castro que fôssemos continuar as doces _réveries_ no nosso quarto. Estavamos ainda a pé, duas horas depois. De instante, a instante, chegava-nos o ecco d'um gemido agudo. Eu sahia, de vez em quando, a informar-me, e voltava sempre com boas esperanças para o meu amigo. Assistiam ao acto solemnissimo d'um primogenito, um medico de Rezende, um cirurgião das Caldas d'Arêgos, uma parteira de Canavezes, e D. Mafalda, que parecia mais experiente que todos os outros. Já de madrugada, passeava eu n'um sobrado proximo do quarto em que Hermenigilda acabava de ter o seu feliz successo, como dizem os jornaes, quando annunciam á Europa o nascimento d'um menino gordo, robusto, filho de tal ou tal commendador, que nunca produz, em regra, meninos enfesadinhos. Tratei de perguntar o sexo do recem-nascido á primeira pessoa que sahiu do quarto: era D. Mafalda. Cousa extraordinaria! A velha fidalga sahiu como assombrada; e á pergunta que lhe fiz, respondeu: «Isto é da gente se benzer!» --Que diz v. exc.ª, minha senhora?--repliquei eu--É menino ou menina? «Eu sei cá... Santo nome de Deus!--balbuciou ella. Sabem o que então me lembrou, não podendo atinar com o spasmo de D. Mafalda? Se o recem-nascido seria um pequenino centauro, uma aberração da natureza, um monstro, um hermaphrodita! Instei com anciedade nas minhas perguntas, e imaginei que D. Mafalda estava douda, quando me disse que o nascido era rapaz, mas... «Mas o que, minha senhora, queira acabar... --Mas é preto!--disse ella, escondendo o rosto nas mãos. Bento de Castro appareceu n'este momento. Contempla a estupefacção de nós ambos. Pergunta se Hermenigilda está perigosa. Eu fico perplexo; mas o vilipendio do meu pobre amigo vexa-me, punge-me, indigna-me até ao fundo d'alma. Tomo-lhe o braço, tiro-o para o patim da casa, e digo-lhe: --Manda sellar immediatamente os nossos cavallos. «Pois que é?! --Já, já, é necessario sahir já d'aqui... «Por quem és, explica-te, João. --E eu pela tua honra te supplico que me não interrogues mais. Vamos apparelhar os cavallos. Bento de Castro seguiu-me como um somnambulo. Viu-me, na immobilidade do idiotismo, sellar as cavalgaduras. E quando eu lhe disse: «monta!» não se moveu. Era indispensavel tiral-o d'aquelle torpôr. Cobrei animo, e disse-lhe: «Estás disposto a adoptar o filho de Hermenigilda?... --Se elle é meu filho...--murmurou elle. «Qual teu filho?! vamos! monta a cavallo! --Pois de quem?! Tu queres enlouquecer-me! N'este instante uma criada dizia d'uma janella para o quinteiro a uma filha da caseira: «Nasceu um menino. E a caseira respondia: --Que seja para boa sorte. «E a SORTE EM PRETO é a melhor...--murmurei eu, segurando o estribo do cavallo de Bento. O infeliz comprehendeu-me. Não sei como dizer o que vi na cara de Castro. Partimos. EPILOGO. O preto levou sumiço. Eu creio que o esganaram, e enterraram no entulho d'uma mina, que está á esquerda, como quem sahe da porta da cozinha. Quem o esganou não sei, e eu sou muito escrupuloso em aventar supposições de tamanha responsabilidade. O filho do preto levou-o a parteira de Canavezes, e não se sabe o fim que lhe deram. Pantaleão morreu. Hermenigilda casou com o morgado de Costoias, e é hoje uma das mais respeitaveis senhoras da Amarante. Bento de Castro da Gama já foi tres vezes deputado pelo Minho, e está muito gordo. Eu vou vivendo, como Deus é servido, pasmado do muito que tenho visto. FIM DO LIVRO PRIMEIRO. LIVRO SEGUNDO. DINHEIRO. LIVRO SEGUNDO. DINHEIRO. I. Em 1835, a 22 d'Agosto, ás 7 horas da tarde, pouco mais ou menos, passeava eu, com a imaginação pelos mundos ideaes de Platão, e os pés sobre o terreno saibroso de um cerrado pinhal, no sitio do _Pastelleiro_, nos suburbios de S. João da Foz. Distrahidamente, de vez em quando, passeava a vista pelas cinco janellas hermeticamente fechadas d'uma casa de campo, pintada de fresco a ocre. Impressionava-me o silencio funebre que rodeava aquella casa, e d'essa impressão, metade poesia e metade curiosidade, nasceu-me o desejo de saber quem morava alli. Perto da noite, vi abrir-se uma das cinco janellas, e divisei um vulto de mulher, que se demorou alguns instantes olhando para o lado do mar. Ahi começa a phantasia a fazer-me travessuras! Receoso d'afugental-a, parei para que ella me não ouvisse os passos. O ar mysterioso de tudo aquillo, a hora, o sitio, e sobre tudo esta minha cabeça fertil de crendices visionarias, fizeram-me crêr que tal mulher apparecera então para não ser vista d'alguem, e fugiria se alguem a visse. Não me enganei. N'um lanço d'olhos, a amante do crepusculo lobrigou-me entre os pinheiros, e sahiu em sobresalto da janella. «Aquella mulher é necessariamente um romance completo!» disse eu commigo mesmo, e imaginei traça de tornar a vêl-a sem ser visto n'aquella noite. Sahi do pinhal, entrei na estrada que conduz á Foz, retrocedi, através d'uma charneca, e entrei outra vez no pinhal de modo que o ruido dos meus passos se perdesse na grilharia dos grillos e cigarras. A mulher da casa amarella estava outra vez olhando para o occidente, com a face encostada á palma da mão. D'ahi a pouco escureceu de modo que eu podia pouco avistal-a. Permaneci muito tempo immovel, encostado a um pinheiro, com os olhos cravados n'aquelle vulto, que eu estava amando, sem conhecer-lhe as feições. Os primeiros fulgores da lua, que se revia no seio do mar, vestiram-lhe o rosto d'um esplendor alvacento: julgal-a-hieis uma estatua de marmore na solidão silenciosa d'uma cidade assolada. Soaram onze horas no relogio parochial de Lordello. Que saudosa tristeza a d'aquelles sons em hora de tanta poesia! Que estimulo para um coração de cera flexivel a todos os caprichos da phantasia, qual era o meu, por esses tempos! Onze horas, e eu ainda alli fascinado por aquella mulher, que me não via, que nunca me vira, e eu não veria jámais! Não se riam da criança que eu era então. Tinham passado trinta annos por mim, mais ou menos tempestuosos, e o coração estava ainda viçoso, florido e esperançoso de fructos que por fim apodreceram antes de sazonarem. Era aquella a idade das paixões sérias, reflectidas, consideradas. São essas as paixões que lançam raizes, regadas por lagrimas, ao fundo do seio, d'onde só a mão da morte, quasi sempre prematura, póde desarreigal-as. E por isso aquella mulher do _Pastelleiro_ entrára em minha alma, vaga de tres mezes, porque houvera ahi na face da terra uma virgem reféce e treda que se vendera a um paparreta rico, vindo não sei d'onde, com anneis de brilhantes em todos os dedos das mãos, e joanetes enormes em todos os dedos dos pés... que pés, meu querido padre Santo Antonio! não eram pés; eram miniaturas da Roma das sete collinas gravadas em couro! Estive muito doente n'essa occasião. Dei sérios cuidados aos meus numerosos amigos, e recobrei lentamente a saude á custa de muita papa de linhaça e oleo d'amendoas doces. Assim atraiçoado, vilipendiado, ferido no meu amor, no meu orgulho de sabio, nas minhas aspirações de poeta, resolvêra abandonar o céo onde a perfida, nos braços d'um marido indecente, respirava o ar balsamico das flôres que eu cultivára para ella no seu proprio jardim. Viera á Foz fortalecer os nervos frouxos, contar ao oceano as minhas agonias, chorar com a lamentosa Alcione, e apiedar os mexilhões. N'este estado d'alma era perigoso provocar as sensações do amor. A chaga era d'aquellas que se curam homoeopathicamente, e eu de certo não conheço argumento que mais aproveite ao systema de Hahnemann. Os que dizem que a homoeopathia é a medicina que abrange ambos os dominios, o da materia e o do espirito, definiram-na de modo que só a má fé poderá ridiculisal-a, não lhe reconhecendo a efficacia em enfermidades d'alma tão graves como era então a minha. As mulheres são essencialmente homoeopathicas, e basta que ellas o sejam para que o novo apostolado se consolide. Ninguem como ellas se cura tão depressa das molestias d'alma por suppuração d'amor. Eu creio que as valvulas no coração da mulher não são simplesmente peças mechanicas da circulação sanguinea. Em breve tenciono dar á luz um livro de physiologia, em que prometto provar que o coração feminino tem uma valvula por onde sahe um amor, e outra que simultaneamente se abre á entrada d'outro. Com estas duas valvulas e um pouco d'impudor, fórma-se a mulher á laia d'aquella que me trahiu. Acabem as divagações. Ouvi ainda baterem as doze horas, sem poder furtar-me á prisão magica d'aquella mulher. Afigurou-se-me que ella se movera da attitude melancolica em que estivera tres horas. Não me enganei. Ouvi o ranger da porta no interior da casa, e um clarão subito illuminou o quarto. O vulto magestoso da mulher sobresahiu no horisonte de luz, em pé, com as costas voltadas para fóra. Escutei, apenas, o murmurio d'algumas palavras que duas pessoas trocavam, e pareceu-me, pelos ademanes, que a mysteriosa tambem fallára. A luz demorou-se dous minutos, se muito. Com a escuridade, a minha visão amada voltou á sua posição, na janella. Eu, espero que me creiam, estava idealmente tolo por tudo que via, e imaginava. Não pararam aqui as visões estupendas. D'ahi a pouco escondeu-se a lua. Da parte do mar soprava uma aragem que rumorejava nas ramas dos pinheiros um som soturno, que parecia o ecco da vaga longinqua. A frouxa claridade das estrellas dava aos montes magestade mais impressiva, um colorido mais triste, um encanto de mais para a minha alma, alli captiva do espectaculo mais grandioso que o acaso podia deparar a um espirito de poeta de força maior. Maravilha! Uma voz angelica, trémula como um longo gemido, mas melodiosa como o suspirar de brisa por entre flores, e o murmurar de fontinha no cristal da taça, uma voz que ainda hoje me entra no tympano da alma, uma voz que nunca mais sahiu da memoria do meu coração... foi a voz que ouvi... era ella cantando, era o anjo que segredava ás estrellas as magoas do seu exilio, era a fada que invocava as magicas apparições da noite, era o espirito aerio, como o não sonharam Wieland, Hoffmann, nem Goethe, a descer das regiões ethereas para encher a terra das harmonias santas que foram a linguagem humana antes da queda da primeira mulher. Extatico, alheado, eu não podia recolher ao coração, ao mesmo tempo, a letra e o canto. O hymno, variado de modulações divinas, talvez improvisado, musica para mim d'uma arrebatadora originalidade, continuava. Habituado ao spasmo da primeira sensação, tentei distinguir as palavras, e apenas pude recolher dous versos com ligação. Dai esmola d'amor á desgraçada, Ó anjos, que o meu anjo tendes lá. Houve uma longa suspensão. Os olhos da minha alma viram aquella mulher enxugando as lagrimas. Soou ainda outra vez a melodia triste, cada vez mais triste, mais trémula, mais ferida dos tons, ora brandos de adoravel melancolia, ora frementes como gritos abafados. Por fim, faltava a tristeza augusta do silencio da noite para proferir as ultimas notas d'aquella aria no gemido das selvas, no cicio da folhagem, no susurro das correntes, e no manso espriguiçar da onda sobre as algas dos rochedos. Calou-se o canto. Fugiu-me a visão. Fechou-se a janella. E eu pendi a cabeça triste sobre o seio, e perguntei aos espiritos da noite se não era aquella a mulher dos meus sonhos de trinta annos. A natureza ouviu-me em silencio. Porque não ha-de a natureza responder ás perguntas dos tolos que ella faz?! II. No qual tempo, tocava eu viola franceza, com alguma graça, e a minha mania creadora era compôr trovas elegiacas, ao sabor da minha amargura, e cantal-as acompanhadas de arpejos melancolicos. A minha voz, era um soffrivel _baritono sfogato_. Principiei cantando lições da semana santa, a duas vozes. Aprendi, depois, o cantochão, cheguei a cantar n'uma missa de cinco vozes em côro d'aldeia, e com estes rudimentos consegui tirar da viola franceza harmonicos de que ainda hoje se falla em S. Gonhedo, e Trabanca de Panellas. Era pois, lugubre o meu cantar como o do captivo de Israel, saudoso das margens do seu rio. E, na noite seguinte á da minha visão, eu fui sentar-me entre os pinheiros, com a harpa das angustias debaixo do braço, esperando a hora desejada em que os espiritos desciam a pousar nos labios daquella espiritual mulher. Presenciei o mesmo espectaculo da noite anterior: a mesma attitude, a mesma luz, e á mesma hora o canto funebre e as palavras dulcissimas de tristeza. Eu tambem fui poeta, e improvisava, na exuberancia do amor, endeixas sentidas, que nunca pude reproduzir com animo frio sobre uma tira de papel. A fada acabava de cantar os dous versos tão lindos: Dai esmola d'amor á desgraçada, Ó anjos, que o meu anjo tendes lá. E eu feri as cordas do meu alaúde nos tons mais lugubres d'um preludio, e cantei: Neste ermo, triste, e só, e abandonada Quem desta alma o gemer escutará? Dai esmola d'amor á desgraçada, Ó anjos, que o meu anjo tendes lá. A mulher estava de pé; erguera-se com impeto; buscara nas trevas o mysterio d'aquella surpresa. E eu continuei, tremendo com o receio de a ver: São horas mortas; vem, ó meiga fada, E um beijo para o céo leva de cá. Dai esmola d'amor á desgraçada, Ó anjos, que o meu anjo tendes lá. Ella estava immovel, ainda; e eu sentia a fronte calcinada ao fogo do estro. O _Deus_, _ecce Deus_ do famoso poeta, experimentei-o então. Tumultuavam-me n'alma os pensamentos radiosos. As cordas da cithara, febris como eu soltavam vertiginosas harmonias em melancolica toada. Era a hora das expansões e eu prosegui: Teu canto amargo ouvi, sombra adorada! Meu hymno, triste, como o teu dirá: Dai esmola d'amor á desgraçada, Ó anjos, que o seu anjo tendes lá. Á ultima palavra desta quadra, sumiu-se a visão; mas a janella ficou aberta. Decorreu uma longa hora. As orlas do mar arraiavam-se da luz da aurora. A flôr da giesta, as margaritas do prado, e a candida florescencia da urze recebiam nas suas urnas o aljofar do céo. E a janella ainda aberta. Aclarou-se a manhã: eu não despregava os olhos anciosos da janella vasia, da escuridão interior da casa. Na perplexidade de sahir do saudoso sitio, vi desenhar-se no fundo escuro um vulto vestido de branco, vaporoso como as tenues nuvens do oriente que se rarefaziam ás primeiras lufadas do sol que ia nascer. Ver-me-ia ella? Oh! de certo viu! O coração bateu-me no peito. Lancei-lhe um olhar de quem dá um adeus e pede uma piedosa saudade. Atravessei os pinhaes por longos desvios da estrada; entrei no meu quartel, onde tudo me parecia negro e indigno de mim. Que dia aquelle! Que côr tão linda a da atmosphera! que azul tão encantador o do mar! Como todas as mulheres me pareceram feias, e todos os homens importunos! Ó amor, fonte caudal de ephemeras alegrias, quando tornarás a orvalhar esta alma arida! III. O sol deitara-se no seu leito de purpura, quando eu entrei no pinhal do Pastelleiro. A anciedade não me deixava esperar a noite. As janellas estavam fechadas. O amor nascente é tão melindroso, pueril, e timido, que receia desagradar até com o pensamento ao idolo da sua concentrada adoração. Eu temia destruir o meu tal ou qual prestigio apparecendo de dia áquella mulher, que poderia adorar-me no silencio da noite, na hora das lagrimas, em presença das estrellas. Mas o amor arrebatado tem affoutesas que tiram animo da mesma timidez. A mulher não apparecia. O crepusculo da tarde vinha descendo das cumiadas das serras. Eu não podia reprimir a ancia do coração: precisava vêl-a, e dizer-lhe, no silencio da surpresa, que amor de vida ou morte ella me inspirava. Rodeei a pequena quinta da casa amarella. Achei, ao longe, uma pequena porta, que abria para um matagal. Buli tremendo no ferrolho, e a porta deixou-se abrir. Dei um passo vacillante dentro da quinta, e vi a fachada trazeira da casa, uma longa varanda de pedra, e duas mulheres, uma sentada, a lêr, outra fiando. Reconheci-a! era ella a que lia. As pernas senti-as tremer frouxas e como vergando ao peso do tronco. O sangue em lume subiu-me em borbotões ás fontes, quiz esconder-me, e não pude. O latido d'um cão denunciou-me aos olhos da mulher que fiava. Não sei o que ambas se disseram. É certo que a velha, sustendo o rodopio do fuso, perguntou-me, em sinistro falsete, quem procurava eu. Engasguei-me, tartamudeando não sei que desculpa. A velha redarguiu, em quanto a moça, já de pé, cravando-me os olhos immoveis, parecia increpar-me a audacia de profanar o seu santuario. Respondi: --Não procuro alguem; andava passeando, e cuidando que não incommodava, entrei por aquella porta com intenção de vêr esta quinta. «Então vocemece--tornou a velha--está a banhos? --Sim, senhora--respondi eu com muita meiguice, abençoando a curiosidade de todas as mulheres, e particularmente a d'aquella que me proporcionava uma demora justificada. «A quinta tem pouco que admirar... (disse a filha dos meus sonhos). Mas, tal qual é, está ás suas ordens.-- Leitor, se tóma rapé, sôrva uma pitada, e dê-me attenção, que eu não lh'a dispenso na mais insignificante virgula do que vai lêr. A mulher que acaba de fallar, com um timbre de voz só comparavel ao seu canto, era um milagre de formosura, como eu a entendo, como eu a tinha sonhado, como eu a tinha organisado das bellesas dispersas em quantas mulheres bellas encontrára. Eram negros os cabellos, ornamentos dignos d'uma fronte larga. Negras as sobrancelhas, ajuntando-se na base do nariz mais fino e transparente que inventaram os pinceis famosos que, de seculo em seculo, apparecem para completar as formosuras que a natureza nos dá incorrectas. Olhos da côr dos cabellos, rasgados, nem morbidos nem vertiginosos, menos serenos que a limpidez do lago, e mais amortecidos que o vulgar dos olhos negros. Pallida, muito pallida, sem mancha de rubôr, sem beta d'outra luz que não seja a que os brandões mortuarios reflectem no crepe da eça. Era magra de faces, sem que se lhe vissem as proeminencias malares, especie de balisas que se levantam naturalmente onde acaba a formosura. Devia ser muito delicada e breve a construcção ossea d'aquella mulher, que no melindroso das fórmas exteriores, mostrava ser apenas o involucro material d'um grande espirito. A pequenina bocca era assombrada por um buço aveludado, que sobresahia a custo do fundo pallido em que parecêra plantal-o n'um beijo o amor das voluptuosidades, filhas do coração, e desconhecidas á sensualidade grosseira. Airosa, no primor da estatuaria, as largas vestes casavam ás fórmas as caprichosas ondulações, de modo que as bellezas occultas pareciam desafiar a imaginação mais fertil para vencel-a com a realidade. Estes fugitivos traços ficaram-me indeleveis na memoria. Creio que o leitor mais imaginoso não creará com elles no mundo dos phantasmas a sombra sequer da minha heroina. O pincel cahiria desanimado na presença della; que fará a penna, sempre desobediente ás vagas expressões da alma! Não sei pintal-a d'outro modo. Tenho-a ha tantos annos ao pé de mim, sempre no logar da minha sombra, rindo e chorando commigo, entoando-me sempre em voz sepulchral os dous fatidicos versos: Dai esmola d'amor á desgraçada, Ó anjos, que o meu anjo tendes lá. Sempre a voz, sempre a imagem, em tudo, por toda a parte, e não sei descrevêl-a, nunca pude arrancal-a da palheta dos artistas mais lucidos, d'aquelles que comprehenderam o aspecto melancolico de Camões, e o adivinharam, d'aquelles que idealisam a formosura correcta, respingando-a nas Heloisas, nas Leonores, nas Fornarinas! Ai! o meu ideal foi deste mundo, e a arte não póde restituir-m'o! O que és tu, sciencia humana! Pintor, subtilisa a tua alma com a lucidez magnetica, e dá-me o retracto d'aquella mulher, que eu dou-te a immortalidade morrendo abraçado ao teu milagre, á tua segunda creação!.... .......................................................................... Não soube responder ao offerecimento de... Como se chamava aquella mulher? Vamos sabêl-o. D'alli perto, está uma camponeza segando herva. Vou fallar com esta mulher, de modo que me não vejam da varanda; receio magoal-a, se ella suspeita da minha indiscreta curiosidade... Ainda bem que não sou visto. «Pertence áquella familia que mora alli?» perguntei eu. --Não, senhor; sou caseira d'esta quinta, e aquella familia alugou esta casa pelo S. João. «D'onde é a tal familia, póde dizer-me? --Não lhe sei dizer. Parece-me que são lá de cima da provincia. Quem alugou a casa foi um senhor que veio cá sósinho, e não tornou a apparecer. «Seria marido d'ella?» interrompi com sobresalto. --Não tinha geito d'isso; e se fosse marido, a criada fallava-me d'elle. «E que diz a criada?! --Pouco mais de nada; e eu, como não sou intromettida, tambem não pergunto. Elles vivem na sua casa, e eu vivo na minha. «E como se chama a tal senhora? --É a snr.ª D. Felismina, e a criada é Thereza. «E ella não toma banhos? --Nunca sahe de casa de dia; algumas vezes sahe de noite, mas não passa do pinhal, ou vai até lá abaixo áquella moita de carvalhos. «Desculpe-me tanta pergunta, e em paga do seu bom modo ha-de ter a bondade de acceitar-me uma pequena quantia para um lenço. A mulher, maravilhada, acceitou não sei que, de que a amabilidade do rosto immediatamente se resentiu. Devo confessar que a minha generosidade foi tão interesseira quanto a seguinte pergunta vai denuncial-a: «V. m. vai áquella casa? --Só lá vou á tarde buscar a lavagem para os cevados. «E quem lhe faz os recados? --Vem todas as manhãs um homem do Porto trazer-lhe as compras; pouco se demora, e sahe sem vêr a senhora. Foi elle que me disse que nunca a vira, nem sabia quem era; mas que seu amo o mandava todos os dias trazer o mantimento, com ordem de não fallar a ninguem. Em quanto a mim--concluiu a informadora, pondo á cabeça o cesto da herva--em quanto a mim, anda aqui mandinga, por mais que me digam.-- Disse adeus á mulher, e voltei pela mesma direcção até á pequena porta. Não vi Felismina, nem a criada. Era quasi noite. A minha existencia phantastica ia recomeçar. IV. Do poente desennovellavam-se rôlos de nuvens pardacentas que se acastellaram sobranceiras á Foz. Pouco a pouco, distenderam-se pela superficie do céo, formando uma abobada de chumbo, onde não luzia a crispação de uma estrella. Estava, pois, medonha a noite, e os urros do oceano vinham de longe a gemer na praia um lugubre lamento. Cruzavam-se de norte a sul successivos relampagos, e o trovão bramia do nascente, menos retumbante que o mugido das vagas. As franças dos pinheiros ramalhavam com impetuosas sacudidellas d'uma nortada supita. E eu, immovel e sereno como o archanjo das tempestades, contemplava este espectaculo grandioso, nos visos do Pastelleiro. De vez em quando observava a massa escura da casa de Felismina. Pareciam-me fechadas as janellas. Pobre cantora d'amarguras, não era aquelle o seu lindo céo, povoado d'estrellas, que lh'as ouviam! A brisa, que bebia dos labios d'ella as endeixas tristes, indo-se pelos valles a dizel-as aos eccos, fugira espavorida ao açoute do bulcão do mar. Talvez que a timida senhora, de joelhos com a aterrada Thereza, estivesse resando a _Magnificat_ e jaculatorias a Santa Barbara! Alli, sósinha, na crista de um monte, tão visinha dos raios, cercada de trovões, transida de pavôr... não a verei hoje! Assim pensava eu, resolvido a não esperar o aguaceiro da nuvem prenhe que, sobranceira a mim, superava em negrura as outras. Antes, porém, de deixar o saudoso sitio, quiz satisfazer a um desejo pueril, a uma d'essas criancices ditosas de que o coração se emancipa quando os cabellos alvejam, ou a alma amadurece temporamente,--o que é peor ainda... Fui ao pé da casa, muito ao pé, quasi rente com a parede, e... á luz d'um relampago... vi-a! vi-a... era ella, debruçada no peitoril da janella! Outro relampago... Estava ainda! não me fugiu, não se moveu, tinha os olhos mergulhados nas trevas onde me vira. Cahiam as primeiras gottas de chuva, e eu não as sentia. O que eu queria era relampagos; queria o facho sulfureo da tempestade; queria a erupção d'uma cratera; queria o incendio do mundo para vêl-a, maior do que a minha imaginação a creára, maior que o terror d'aquelle quadro! E a chuva cahia a torrentes. Eu recebi-a impassivel, inabalavel, na face, erguida para a janella, d'onde as trevas já não podiam roubar-me os traços d'ella. N'isto, pareceu-me ouvir a sua voz. O estrepito da chuva do furacão, e dos trovões não me deixavam entendel-a. Pensei que fôra um engano. Ai! não era, não! «Póde abrir--disse ella--esse portal grande, e recolher-se da chuva. --Não a sinto, minha senhora--balbuciei eu. «É impossivel que não esteja muito molhado! Recolha-se que a chuva não pára tão cedo--tornou ella. --As tempestades do coração não deixam ao corpo sentir as da natureza... «Como?!--interrompeu ella. Eu repeti, com medo, as mesmas palavras. Tinha razão para temer. Felismina sahiu da janella, e eu ouvi o descer vagaroso da vidraça. Estava eu, pois, molhado como um frango que sahiu d'um tanque. A agua encaleirava-se-me pelos canos das botas. Catarata humana, sacudi as jubas, limpei a cara a um lenço que a molhou ainda mais; e, perdida a esperança de tornar a vêl-a, fui para minha casa, estripando charcos, e scismando nas imprudentes palavras com que me denunciára. Tive uma noite d'insomnia, e um catarrho cujas consequencias ainda hoje sinto. Tomei apenas alguns xaropes de figos e ameixas. Transpirei suffocado entre seis cobertores; não fiz caso d'uma dôr tibio-tarsica, aurora do rheumatismo que hoje me tolhe, (aprendei, mancebos incautos!) e, no dia seguinte, apenas um bello sol mosqueou de betas douradas as costas carunchosas do meu leito de pinho, saltei de cuécas para o sobrado, e meditei de cócaras, no que devia fazer. A minha tratadeira (pessoa velha, já mencionada no LIVRO PRIMEIRO, a folhas...) veio encontrar-me n'esta attitude, senão romantica, ao menos desambiciosa. «Credo!---exclamou ella--o senhor está de menores! isso é feitio! Olha que preparo! --Não fuja, tia Poncia--disse-lhe eu, meditativo e funebre como o fidalgo manchêgo, depois da aventura dos ôdres--Venha cá, tia Poncia, que eu preciso das suas consolações. «Valha-o Deus!--tornou ella--Suou tres camisas, e pranta-se no meio do soalho com o _cadable_ ao ar! --Diz bem, tia Poncia, isto já não é senão um cadaver, lançado á margem, exposto aos corvos e abutres das paixões carnivoras. «Que está ahi a _alanzoar_ o snr. João? Se eu o percebo, cebo! Ora vá-se vestir, ande-me depressa, que está o café prompto, e toca a comer p'ra arrijar. --Comer, tia Poncia...! O que é comer, sobre a face da terra, quando a vida vegetal paralisou! O meu alimento é o absyntho das lagrimas. Sou o Ugolino da fome do espirito, o Tantalo, o Promotheu devorado pelo abutre incessante. «Que bruto está o snr. João ahi a dizer? A apostar que lhe fizeram alguma os brutos cá da Foz! Eu sempre tive zanga a esta gente! Está tudo caro pela hora da morte! O carniceiro manda-lhe a gente pedir carne da cernelha, e o berzabum de não sei que diga manda rabada, e quando Deus quer é cada osso que te parto! A lenha isso então é uma ladroeira que clama justiça ao céo! Quatro gravatos que não dão para aquecer uma agua é um patacão. Má breca os tolha! --Accommode-se lá, tia Poncia. Eu não fallo n'isso. V. m. é mulher experiente, e ha-de aconselhar-me a respeito de certa cousa... Chegue-me cá aquellas pantalonas, e fallaremos. «Ora diga lá... bacoreja-me que temos patavinice de namoricos. Ora queira Deus que não esteja por ahi alguma como a Vicencia do outro anno que lhe pôz o sal na moleira... --Ora olhe, tia Poncia... ha uma mulher que não pertence a este mundo. «Coitadinha! rezemos-lhe por alma! foi por ella que tocaram hontem os sinos a defuntos? --Não me córte o discurso. Esta mulher vive... «Ah! sim? inda bem, inda bem! --E V. m. a dar-lhe! Ouça, e falle quando dever responder. Esta mulher vive n'uma casa aqui perto da Foz; tem comsigo uma criada; não tem homem nenhum: não apparece de dia, só se vê de noite a fallar com as estrellas... «Anjo bento! isso é bruxêdo! Cruzes, canhoto! Terá ella fadario? --Fadario tem V. m. de toleima, tia Poncia! Vive commigo ha tantos annos, e parece que está cada vez mais tonta! «Quem? eu! tonta eu, porque lhe digo as verdades, snr. João! Eu não lhe disse que a Vicencia era uma trapalhona, que lhe dava volta ao miôlo!? Diga, snr. Joãosinho, quando V. m. andava atraz da filha do letrado, com a beiça cahida, não lhe disse eu que a rapariga, ás duas por tres, se lhe apparecesse marido com chelpa era como se nunca nos vissemos!? E agora queria que eu lhe dissesse mundos e fundos d'uma feiticeira que só apparece de noite a dizer anzonices ao sete-estrello!? Deixa-me benzer, e Deus me tenha da sua mão, e mais a V. m. que o vi nascer e desde que anda por cá á sua vontade arranja sempre bruxêdo que o tolhe. Sabe que mais, snr. João? Coma e beba e tome os seus banhos, que é ó que veio; o mais leve o diabo, Deus me perdôe, as mulheres, e quando houver de casar arranje filha de lavrador que saiba amanhar a vida, e não olhe para estas fuinhas da cidade que parecem mesmo o peccado! Tia Poncia disse muitas outras cousas razoaveis. Exhaurida a torrente, foi buscar o café, e pediu-me que pendurasse no pescoço uma figa de azeviche, e uma conta que fôra tocada no corpo do martyr S. Cyprianno--tudo para vencer os sortilegios da bruxa, contra quem a minha pobre Poncia, durante o almoço, proferiu um discurso, intermeado de orações _ad rem_. V. Fui, nas tres noites immediatas, ao pinhal do Pastelleiro, esperei a apparição até ás onze horas, mas nenhuma das janellas se abriu jámais! Pude, uma vez, encontrar a caseira: perguntei-lhe se a senhora se retirára, ou estava doente, respondeu-me que a tinha visto na varanda todas as tardes, acrescentando que a porta travessa, por onde eu entrára na quinta, uma tarde, fôra trancada por ordem da snr.ª D. Felismina. Esta providencia apertou-me o coração, e feriu a susceptibilidade do meu amor-proprio. Á quarta noite, demorei-me até depois da uma hora, suppondo que Felismina appareceria mais tarde, certa de não ser importunada no seu colloquio amoroso com as estrellas. Eu queria dizer-lhe que me perdoasse o atrevimento de ter sido indiscreta testemunha dos seus extasis: pedir-lhe-hia que não se privasse desse poetico prazer, porque eu não viria alli mais, ainda que essa privação me custasse torturas de saudade. O coração offendido tem destas generosidades. É sempre a fabula das uvas e da raposa... Nessa quarta noite, pois, seria hora e meia, quando tres vultos, vindos do lado de Lordello, passaram defronte da casa de Felismina, e fallaram baixo entre si. Abafei a respiração para me não denunciar, e senti o prazer de encontrar as minhas pistolas que machinalmente mettera nas algibeiras. Os vultos eram homens de jaqueta, e chapéo desabado. Um d'elles trazia uma escada de mão, e os outros pareceram-me armados de paus. Em quanto elles observavam, cosidos com a parede, a segurança das portas, avisinhei-me eu da estrada, e colloquei-me, sem ser sentido, a distancia d'um tiro de pistola. Vi pôr a escada a uma columnata do patim, que formava para o caminho uma pequena varanda. Vi um dos tres marinhar lestamente por ella; porém, resvalou da aresta do balaustre, e viria abaixo com o homem, se os companheiros a não sustentassem a prumo. Não obstante, este movimento fez rumor, e uma das janellas foi subitamente aberta. Eu estava em ancias por saber se estes homens eram ladrões. Felismina deu-me a certeza da minha suspeita, e inspirou-me arrojos de bravura. Apenas ella appareceu na janella, e bradou: «Thereza, Thereza, chama o caseiro!» eu saltei d'um pulo á estrada, e disparei sobre o grupo uma pistola. O resultado do tiro foi maravilhoso! Os ratoneiros davam saltos de corça por aquella estrada fóra, deixando a escada, e uma fouce encavada n'um pau. Em casa de Felismina ia grande reboliço. Ouviam-se os grasnidos de Thereza, os latidos dos cães, e os gritos ameaçadores do caseiro. Ella, porém, não sahira da janella, presenceando a fuga dos salteadores. Radioso de heroismo, fui debaixo da janella de Felismina, e disse-lhe: «Não se assuste, minha senhora; eram tres miseraveis ladrões que fugiram a um homem só.» A este tempo, abriu-se a porta-de-carro, e o caseiro appareceu em fralda, com um bacamarte engatilhado. Vendo-me, veio direito a mim na melhor disposição de m'o despejar na cabeça, quando Felismina bradou: «Os ladrões já fugiram; foi esse senhor que os fez fugir.» O bravo em fralda poz a arma em descanço. A mulher, com o saiote vermelho pelos hombros, reconheceu-me, e disse para a janella: «Este senhor é aquelle que andou outro dia na quinta.» O silencio de Felismina provava que ella não carecia d'esta novidade. Contei então o que presenciara do pinhal visinho. O caseiro interrompeu-me grosseiramente, perguntando-me o que fazia eu por alli áquella hora. Tartamudeei na resposta. Felismina, porém, atalhou, pedindo-me que não fizesse caso da rustica pergunta do caseiro. O boçal desfez-se em satisfações, e instou para que eu bebesse uma pinga d'aguardente porque estava fria a noite. Não respondi ao offerecimento, que fez rir Felismina; despedi-me com palavras muito delicadas da senhora; soceguei o animo aterrado de Thereza; e fui para minha casa, cheio de gloria, d'alegria, e de esperanças. A gloria era uma tolice: sou eu o primeiro a confessal-a; mas as esperanças alegres fundavam-se na opinião elevada que Felismina faria de mim. Não era só defendel-a dos salteadores; era estar alli, defronte da sua janella, ás duas horas da noite, como guarda vigilante da sua tranquillidade, com os olhos fitos na cupula celeste que a cobria, expiando a imprudencia de lhe haver dito algumas palavras apaixonadas. Isto devia impressional-a. Contei, em casa, esta aventura á minha Poncia, que me esperava ainda a pé. Aqui é que foi o benzer-se e tregeitar de mulher sábia em agouros e feitiços. Quiz-me convencer de que tudo aquillo eram artimanhas da bruxa; e saltou-me ao pescoço para vêr se eu tinha a figa de azeviche. Não a encontrando, chamou-me herege, e não me deixou sem eu pendurar o bento guizo no pescoço. Deitando-me, pareceu-me que o ar do quarto estava impregnado d'um cheiro acre, que era mais forte na cama. Erguendo o travesseiro, encontrei um mólho d'arruda, e um alho que tem na Flora popular, um adjectivo desgraçado. Eram exorcismos da tia Poncia, que tinha em menos conta o nariz quando se tractava de curar a alma d'um possesso de bruxedos. Atirei o deposito de hervanario á rua, e consegui adormecer embalado pelas minhas esperanças. No dia seguinte, seriam onze horas, estava eu na praia, esperando a maré, quando vi Thereza, procurando alguem entre os grupos. Palpitou-me o coração! Serei eu quem ella procura?... Sahi-lhe como por acaso ao encontro, e ella, que mal me vira na quinta, olhando-me perplexa, parecia esperar que eu a conhecesse. Dei-lhe um ar de riso, Thereza fez-me signal que a seguisse. Parou na praia dos Inglezes, olhou em redor com desconfiança, e disse-me: «Aquella senhora manda-lhe agradecer muito o que V... fez esta noite; e pede-lhe que faça o favor de lhe dizer que a porta travessa da quinta foi fechada porque não havia remedio senão fechal-a.» Eu fiquei-me a olhar para a velha, pasmado da segunda parte do recado! Thereza, sempre sobresaltada, ia retirar-se sem resposta, quando eu, caminhando com ella, lhe disse: --A porta da quinta foi fechada para eu lá não entrar? «Foi, sim, senhor, porque... não lhe posso dizer mais nada. A senhora o que quer é que V... saiba que por vontade d'ella não foi que a porta se fechou; em fim, ha cousas que se não podem dizer. A snr.ª D. Felismina custou-lhe bastante a mandar fechar a porta; mas, se se soubesse.... Adeusinho, meu senhor... que tenho medo que me conheçam.--» Não esperou resposta. Fiz mil conjecturas, e nenhuma só que se aproximasse da verdade. Desafio o leitor mais esperto para que anteveja a solução deste problema. VI. O segredo picava-me a curiosidade; todavia, o coração era o que menos treguas dava á minha ancia. Ao escurecer desse mesmo dia passei no Pastelleiro. Vi, de relance, Felismina através da vidraça. Levei ainda a mão ao chapéo para cortejal-a; mas ella não esperou a cortezia. Estanciei nas visinhanças d'aquelle sitio, até alta noite; e só depois das onze horas pude vencer a resistencia magnetica que me lá prendia. Passando, outra vez, defronte da casa, vi uma janella corrida, e um vulto n'ella. Eu passava tão subtilmente que Felismina só me viu quando eu estava em frente d'ella. O encontro fôra uma surpreza para mim. Muitas cousas imaginára eu dizer-lhe, encontrando-a; mas esqueceram-me todas. Parecera-me facil e até natural perguntar-lhe a causa de me ser prohibida delicadamente a entrada na quinta; achava do meu dever, depois do recado pela criada, examinar o que fizera eu para merecer similhante prohibição; porém, chegado o ensejo feliz de saber tudo, pareceu-me atrevimento dirigir-lhe a palavra sem ella m'a consentir. A perplexidade durou alguns minutos, e Felismina esperava que eu me sahisse d'ella d'um modo muito contrario. Nada lhe disse, segui o meu caminho, e confesso que me sentia tremer. O coração tem cousas!... O arrependimento veio logo com a reflexão. Retrocedi por outro caminho, e entrei no pinhal. Estava ainda aberta a janella; mas desoccupada. Esperei muito tempo, animando-me a fallar-lhe, quando ella tornasse. Avistei dous vultos, e senti despegar-se-me o coração do peito. Não podia distinguir se um d'elles era homem; e receava, aproximando-me, causar-lhe desgosto, se por desgraça ao pé d'ella estivesse um amante. Que desafogo senti eu, quando conheci a voz gosmenta da criada! Escutei, e ouvi-as fallarem de ladrões. Thereza dizia que se não salvava se estivesse alli muito tempo, e promettia um arratel de cêra á Senhora da Luz, se os ladrões não tornassem a assaltar a casa. Acrescentou ella: «Se não fosse aquelle destemido rapaz, a estas horas estavamos nós feitas em pedaços, sem confissão, nem sacramentos.» Felismina fallava tão baixo, que toda a minha attenção foi baldada. Por fim, disse a criada: «Menina, não esteja muito tempo ao relento da noite. Eu vou-me deitar, que passei em branco a outra noite; se sentir alguma cousa, chame, que eu acordo logo, se Deus quizer, e o meu padre Santo Antonio, que nos tenha da sua benta mão.» Felismina sahiu com a criada, e o quarto illuminou-se de repente. Era a primeira vez que eu via tanta luz áquella hora. Conjecturei que a timida senhora, receando outra assaltada, quizera com a luz obstal-a. Eu contemplava-a a ella, que atravessava passando, por diante da luz, com ligeiros passos. Achava-me resolvido a fallar-lhe, fosse qual fosse o exito. Acerquei-me da casa, para encurtar á minha timidez o tempo da reflexão. É verdade que me não occorria uma só das bellas idéas com que de dia compozera o meu exordio; porém, atido ao improviso do coração, iria esperando que ella, com uma só palavra, esperançosa ou desanimadora, me sangrasse a veia da eloquencia. Effectivamente, apenas Felismina surgiu na janella, estava eu seis passos distante. Diga-se a verdade: formigaram-me umas caimbras nas pernas, e estive, vai não vai, a rodar sobre os calcanhares, e fugir antes de ser conhecido! Li, ha pouco tempo, em um romance de Alphonse Karr, uma imagem que pinta exactissimamente a minha situação n'aquelle instante. Um tal _Estevão_, em presença d'uma tal _Magdalena_, não podendo vencer o susto do primeiro encontro, _faz um esforço como um homem que fecha os olhos para saltar um fôsso_. É bem dito isto; não se diz melhor o arrebatado movimento que eu fiz para chegar debaixo da janella onde Felismina, immovel, parecia esperar-me como se tivesse a certeza da minha ida. «Boas noites, minha senhora» disse eu: era o mais frivolo que podia dizer, depois d'uma investida tão vehemente. --Boas noites--murmurou ella com voz abafada e tremula. «V. exc.ª conhece-me?--tornei eu, querendo dar á pergunta um tom melodioso, que o meu sobresalto tornava rispido e sêcco. --Parece-me que é a pessoa que hontem... «Sim, minha senhora, sou a pessoa que hontem teve a felicidade de estar perto desta casa... quando foi necessario livrar v. exc.ª d'um susto... --Devo-lhe um grande favor--atalhou ella, não menos agitada que eu--e por isso mesmo é que hoje mandei a minha criada... «Eu não pude entender a sua criada, minha senhora; e espero que v. exc.ª me diga se eu devo pedir-lhe perdão... --De que?! «Da imprudencia que fiz entrando sem licença na quinta... --A causa do meu recado não foi a sua imprudencia, foi, é, e será sempre... a minha desventura... Tem V. a bondade de espreitar á fechadura do portão, que não vão andar pelo quinteiro os caseiros... Seria uma desgraça, se o vissem, ou escutassem... Espreitei, e não vi nem ouvi signal de gente. Tornando, Felismina acabava de apagar a luz, e estava já na janella. Mal sabem que prazer me deu o ar de mysterio que ella dava assim á nossa entrevista nocturna! O amor, quanto mais recatado, mais amor. Ama-se mais n'um colloquio, por noites de completa negridão, que á luz das serpentinas dos bailes, e ao clarão d'um bico de gaz, que, nestes tempos malditos da poesia, vos dá á cara do namoro do primeiro andar uma côr sulphurea e phantasticamente prosaica. Não faço agora ácerca do gaz uma dissertação, porque me sinto abalado pela memoria das seguintes palavras que a mysteriosa mulher me disse, logo que eu voltei de espionar o quinteiro: --O senhor de certo me não conhece... «Não, minha senhora: apenas sei o seu nome; todavia, se me deixasse dizer como eu a conheço... --Queira dizer... «Conheço-a como se conhece a mulher que se ama ha muitos annos; como se conhece a omnipotencia de Deus sem se conhecer a sua essencia divina; como se confessa a existencia dos anjos, sem nunca se terem mostrado aos homens na sua fórma celestial; como se conhece a possibilidade de encontrar a perfeita ventura, sem nunca a ter experimentado; como se conhece, pela luz que derrama, a existencia do sol, sem poder fital-o nas alturas do céo.» Ainda disse muitas outras maneiras de conhecer sem conhecer; porém, não disse todas quantas sabia, e quantas estudára em casa (penso que foi no _Renegado_ de Arlincourt não estou bem certo), e lhe teria dito se ella me não interrompesse com vehemencia: --Bem se vê que não me conhece pela maneira que me falla... «Como?! explique-se por quem é, snr.ª D. Felismina! --_Felismina!_ (disse ella, sorrindo) Cada vez me convenço mais de que me não conhece... Sabe que me chamo Felismina, porque lh'o disse a caseira, não é verdade? «Sim, minha senhora. --Pois bom é que não saiba mais que o meu nome... «E não devo esperar outra revelação da sua boa alma? Não sou eu já o depositario d'alguns segredos que v. exc.ª confia das estrellas? A mulher que pedia aos anjos o anjo que elles lá tem... --Não me surprehende...--tornou ella vivamente commovida--Eu sei que me ouviu; ouvi tambem os seus versos; pareceu-me um sonho tudo o que n'aquella noite aconteceu. Se eu tivesse a certesa de que o homem que cantava era tão infeliz como eu sou, e vertia lagrimas de tão dolorosa saudade como as eu chorava então... «Que faria a esse homem? --Fizera-o meu confidente; dera-lhe o mais que posso dar-lhe: a minha fé... a amisade santa dos infelizes áquelles que se compadecem... Não queira saber quem sou; essa sua esteril curiosidade o mais que póde é trazer-me desgostos novos, e eu mal posso soffrer o peso dos que tenho sobre o meu coração para jámais se alliviarem... «E o coração não lhe diz que eu serei um homem digno das suas confidencias? e que, em troca, poderei fazer-lhe quantos serviços, até com risco da existencia, podem ser feitos a uma pessoa que soffre? --Nada póde. O circulo de ferro em que a minha vida está apertada, não póde ser quebrado por humanas forças. Podendo eu mover a sua compaixão, dar-lhe-hia grandes penas, por não poder valer-me. O coração diz-me que fallo com uma alma nobre e generosa; é o coração que lhe falla com tanta franquesa e simplicidade. Tambem eu estou conversando com V. como se o conhecesse, ha muito. Isto parece providencial; mas não vá a minha sina fatal enganar-me. «Enganal-a...--interrompi eu, com exaltado resentimento. --Enganar-me, sim, não se offenda, que não tem razão para isso. Eu posso julgar muito natural e innocente este curto conhecimento que temos; e d'aqui seguirem-se grandes desgostos, como se elles fossem a expiação d'um crime... Deixe-me pedir-lhe um favor, sim?... o senhor promette não voltar aqui? «Se prometto não voltar aqui?!» respondi eu, aturdido da voz segura com que a pergunta me era feita. --Sim, senhor: é necessario que acabem neste instante as nossas curtas relações. V. vai convencido de que encontrou uma mulher muito infeliz; eu fico tambem convencida de que encontrei um cavalheiro muito generoso. Não podemos ser nada um para o outro; e tão grande é a dôr que eu sinto desta certesa... que, por compaixão de mim propria, não quero habituar-me á sua voz. «Só por compaixão de si mesma?--atalhei eu, sinceramente commovido--Não será antes pena de mim? --De que? Se algum de nós ha-de soffrer... serei eu, pobre mulher, que não tenho distracções, e de qualquer pequena saudade faço uma grande dôr... tal é o condão da minha desgraçada sensibilidade. «E não podemos ser nada um para o outro... disse v. exc.ª... Nem sequer _irmãos_? --Deus sabe que precisão eu tenho d'um amigo... quantas vezes eu lhe peço uma alma sensivel, como premio do muito que tenho penado, muda e virtuosa... Desculpe-me esta fraquesa; será temeridade dizer tão afoutamente que a minha virtude é o unico esteio em que me amparo... Creia-me, se poder. «E porque não hei-de eu crêl-a, minha senhora? que fez v. exc.ª para que eu desconfie da sua virtude? Julgo-a infeliz, déra a minha vida para suavisar as penas da sua; presumo que a sua existencia aqui, tão erma da vida que se ama na sua idade, deve ser o desfecho d'um lance muito desventuroso. Podesse eu entrar no segredo do seu desgosto, snr.ª D. Felismina, e pediria á Providencia os dons que me faltassem para lhe acudir. --Não póde, não póde...--interrompeu ella soluçando--O mais que póde é compadecer-se. «E não é a compaixão um lenitivo? --É, nem eu já agora tenho direito a outras consolações; porém, não imagina os resultados tristes que póde dar esta nossa innocente entrevista, se fôr muitas vezes repetida. Creia que sou vigiada, e serei martyrisada se alguma vez se descobrir a sua vinda. Vá comprehendendo o melindre da minha infelicidade... «E por ventura, já me fiz suspeito aos olhos d'alguem? --Creio que não. A estas horas estaria eu amargamente punida do meu delicto... Creia que sobre o meu seio está suspenso um punhal ameaçador. «Como?!--interroguei eu, sentindo pela espinha dorsal os calafrios da bravura, e não sei que outros calafrios, metade de Amadis de Gaula, e metade de D. Quixote de la Mancha.--Como?! pois ha, para vergonha da minha especie, um braço de homem que ouse levantar um punhal sobre uma victima tão resignada! --Falle baixo, senhor... Tenho mêdo que o escutem... Repare que não haja luz n'uma casa que está ao fundo do quinteirão. Quem sabe se os caseiros estão comprados? Veja, veja. Eu fui vêr, não vi luz, mas ouvi um arruido singular. Eram umas pancadas rispidas e sêccas como o embate de duas taboas. Demorei-me na averiguação, e Felismina perguntou-me assustada se via alguma cousa. Vim dizer-lhe o que ouvia, e ella quiz logo fechar a janella, sem estabelecer ao menos uma hypothese ácerca da extraordinaria bulha. Pedi-lhe que suspendesse o seu juizo por instantes, tornei ao posto de observação, e voltei tranquillo por ter descoberto que o estrupido estranho era a simples brincadeira de duas cabras, que se divertiam a marrarem-se reciprocamente ao clarão da lua: recreio sobre-modo poetico para duas cabras prosaicas e estupidas como dizem que ellas são. A entrevista, leitores pios, demorou-se até ás tres horas da manhã. Banhavam-se as montanhas da frouxa luz do crepusculo, chilravam os passarinhos por aquelles silvedos e restolhos, quando Felismina, a disputar bellezas com a matinal estrella, sympathicamente pallida e como elanguescida do beijar incessante das brizas nocturnas, murmurou, em harmonia com o hymno festival dos passarinhos, estas palavras, que eu escrevera aqui em musica, se esta typographia tivesse colcheias e fuzas e sustenidos, e as outras garatujas tão necessarias a quem imprime romances cuja linguagem é a pura e genuina do coração. Foram estas as suas palavras: --É dia; e agora peço-lhe eu que se retire. Leve a certeza de que me deixa saudades, e tantas que só poderei consolal-as, vendo-o muitas vezes; mas não posso acceitar esta consolação. Seja meu amigo, sim? não me sacrifique, por quem é. Eu não sou d'aquellas mulheres que lhe querem persuadir que o amam muito, e, comtudo, incapazes de sacrificarem o seu bem-estar ao seu amor, pedem-lhe que respeite as suas posições, e não as colloque em desagrado do mundo. Se lhe digo que me não sacrifique, é porque o sacrificio seria inutil, e a pena injusta seria igual á pena d'um grande crime. Que lucra V. fazendo-me soffrer maiores afflicções? É preciso que eu lhe conte a minha vida; sem isso, tudo o que eu lhe digo deve parecer-lhe uma invenção de novella, um ar de mysterio com que muita gente quer armar á admiração. Ha-de saber a minha vida, se primeiro me jurar pela sua honra, e pelo bem das pessoas que mais préza, nunca, em quanto eu viva fôr, proferir uma só palavra das que eu lhe confiar. Não sei que sentimento de irmã é este que V. me inspira! Nunca esperei encontrar uma amiga a quem dissesse «aprende a soffrer commigo.» Menos ainda esperei encontrar um homem, quasi estranho, a quem dissesse, sem reserva, o resumo dos padecimentos de tres annos... Ámanhã, depois da meia noite, encontra-me aqui. Se quizer, venha, meu amigo; mas de tarde não passe aqui, porque eu receio toda a gente, menos a minha boa criada, que me viu nascer, e respeita as minhas acções, porque me julga incapaz de as praticar indignas de mim. Adeus.-- Ora aqui têem como a cousa se passou, tal e qual. Entrei no quartel com o coração tumido de romances. Olhei-me d'alto a baixo, por uma intuscepção peculiar dos grandes tolos, e vi-me grande, extraordinario, e fadado para grandes lances. Chamado ao sanctuario dos segredos d'aquella mulher, eu não podia estremar a confiança do amor. De que natureza seriam esses segredos? Que Felismina era victima, isso estava provado. Cumpria-me resuscitar os brios cavalleirosos que o ominoso romance de Miguel Cervantes matára com a zombaria? Cumpria-me offerecer o meu braço, debil instrumento d'uma alma forte, á opprimida emparedada do Pastelleiro? Taes interrogações me fiz durante o dia, contemplativo sempre, sempre poeta scismador, não obstante as interrupções da minha Poncia, que vendo o meu fastio ao jantar, obrigou-me a tomar um chá de fel da terra para limpar o estomago. Poncia era uma creatura de singular chateza. Fallar-lhe nesse amor vulcanico, que ella trocava em mal de estomago, era forçal-a a esconjuros e benzedellas que me aguavam toda a poesia da expansão. Quando eu lhe disse que havia uma mulher, suffocada sob a pressão d'um tyranno, escondendo as lagrimas para não irritar a colera do seu verdugo, Poncia, depois de sorver uma pitada de esturrinho, exclamou: «Sabe V. m. o que essa rapariga ha-de fazer? que reze uma novena ás almas, e prometta uma romaria á Senhora da Guia, para que a guie bem; e o snr. João deixe-se de palanfrorios; não se metta na vida alheia, e tracte de comer bem e tomar os seus banhos em paz, que é o mais acertado. Dito isto, sentou-se de cocoras, e poz-se a torcer linhas. VII. Trato de afivelar já uma mordaça á maledicencia. Muita gente cuida que o meu namoro com a mysteriosa senhora do Pastelleiro ha-de ser um conto muito bonito, em que eu hei-de dizer cousas muito galantes, em que ella ha-de fazer tregeitos de pudicicia, até que finalmente acabemos ambos por nos adaptarmos ás formulas vulgares d'uma rotineira paixão das que morrem no inverno, se nascem no verão ao pé d'um pinhal, cuja poesia não resiste ás primeiras nortadas de Outubro. Agora tomem fôlego que o periodo é uma especie de machina pneumatica. Pois saberão que não tive namoro com a snr.ª dona... ia dizer Felismina; mas a mulher chamava-se Leocadia. A razão do pseudonimo virá em seu tempo. Por hora, saiba-se a figura que eu fiz, a figura que ambos fizemos. E o leitor, duro d'alma, o leitor-leão que retorce o bigode e enruga a fronte encarando com visos de tyranno todas as mulheres, suas imaginarias victimas--esse, que a maior parte das vezes é um pobre homem, não leia isto porque de certo não aprenderá aqui a receita com que se fascinam as mulheres. Declaro, pois, que não namorei a snr.ª D. Leocadia, moradora no logar do Pastelleiro, suburbios de S. João da Foz, em 1828. Declaro, outro sim, que nunca lhe disse cousa que duvida faça á virtuosa commemoração de sua memoria, nem consta que as más linguas sujassem a reputação desta senhora. D. Leocadia contou-me a sua vida, e, desde o preambulo de tão triste historia, confesso que senti abalar-se-me a alma de commoções que não eram isto vulgarmente chamado amor dos homens. Conheci que não estava no seio d'ella coração que podesse ser meu. Grande coração ella tinha; mas o amor de que extravasava era o amor espiritual dos anjos, o perfume continuo d'uma adoração, que não podia deixar cahir neste chão maldito um só bago de incenso. Depois de ouvil-a uma hora, sem ousar interrompêl-a, comecei a sentir não sei que terror de ter tentado disputar a alma d'aquella mulher a um homem que dormia o somno eterno, cujo espirito, porém, dizia ella, adejava entre nós, quando proferiamos o seu nome. Eu fui sempre criança n'isto de superstições. O ether para mim foi sempre, e ha-de sêl-o sempre, um infinito vacuo que os olhos d'alma contemplam cheio de espiritos. As almas das pessoas que amei, que estimei, que vi partirem-se d'aqui successivamente deixando em redor de mim o ermo do desterro, a insulação medonha do estrangeiro em solo de barbaros--essas almas revoam nas florestas, deslisam-se-me nos cabellos que o terror encrespa, gemem aos meus ouvidos como o suspiro do mar dormente... essas almas... perdoem-me a divagação... Eu cuidava agora que estava a escrever no meu album uma de muitas paginas que virão algum dia confirmar posthumamente a minha reputação de grande piegas, ou de grande pateta, legado unico que preestabelece e assegura a boa paz entre os meus herdeiros. Vinha eu dizendo, pois, que a vida de Leocadia foi uma triste vida. Vou contal-a; saibam, porém, que D. Leocadia morreu já. Este preliminar aviso é necessario para muitos effeitos, sendo o mais valioso ter-lhe eu promettido a ella sigillo de confissão durante a sua vida. Então, pensava eu ir primeiro a descançar das minhas fadigas; esperal-a a ella rodeada d'anjos lá, cortando a immensidão do céo, no dia do seu resgate. Enganei-me. Leocadia fugiu na idade em que os olhos descem a procurar na terra os vinculos que nol-a podem fazer querida. Voou deste baixo repositorio de escorias para a limpida estancia da sua patria; e eu, velho e enfermo, ralado de saudades do coração que consumi, vestida a alma dos andrajos que troquei pelas galas d'uma poesia que só eu tive, e toda a gente porfiou em destruir-me, eu, mytho d'outras eras, esphinge posta em altar de lama n'um templo de vendilhões torpissimos, eu, finalmente, fiquei por cá, quinze annos depois d'ella, sem poder atinar com a intenção providencial que por aqui me traz entregue aos baldões d'um destino, que umas vezes me parece cruel, e outras patusco. Ahi vai agora o conto: Leocadia nascêra em uma notavel villa de Traz-os-Montes. Seu pai era official de cavallaria, e senhor d'uma casa mediocre. De Bragança passára para Lisboa a commandar um regimento, e levára comsigo sua filha de nove annos já sem mãi. A menina entrou n'um collegio, onde esteve até aos dezenove annos. Sahiu para a companhia de seu pai reformado em coronel, e completou a sua educação na convivencia de algumas poucas familias exemplares. Leocadia, ainda no collegio, maravilhava-se de sentir no peito uma ancia como se não fosse o ar bastante para encher-lhe um vacuo oppressivo. Bem conhecia ella que a sua queixa era um singular achaque dos que o instincto ensina a curar. As mestras, que a viam scismadora a esconder-se entre as murtas e as tilias do jardim, graças á experiencia, entendiam melhor a molestia da discipula do que entenderam a sua dos dezenove annos. Nesta anciedade vaga, sahiu Leocadia do collegio, entrou na roda de pessoas bem procedidas, e viu que os dous sexos se misturavam nas salas, e conversavam sem desaire, muito a beneplacito da sã moral. Um dos dous sexos causou-lhe uma estranheza em que as faces davam o signal, rosando-se, pintando-se da mimosa purpura que, rara, em nossos dias, reçuma em rosto de dezenove annos, por uma razão que o leitor sabe, e mais eu. O sexo, porém, que mais a constrangia (sempre a natureza tem cousas!) era, quer m'o creiam quer não, o sexo que mais gratas scismas lhe dava nas suas contemplações, sósinha. Havia ahi na sua roda um rapaz, tão acanhado como ella, o que menos palavras lhe dizia, e essas palavras custavam-lhe tanto ao pobre do moço, e tão frivolas eram, que, se os olhos não dissessem mais que elle, Leocadia julgar-se-hia entre todas a mais indifferente ao timido Vasco--chamava-se elle Vasco, se bem me recordo. Amou-o ella: é o que não soffre duvida; e elle amou-a, como... deixemo-nos de metaphoras--amou-a como hão-de vêr que elle o prova, depois. O tal Vasco era pessoa de bem; quero dizer que tinha duas costellas, ou tres, parece-me que eram tres as costellas nobres que elle tinha. Não obstante, como as acções do Banco eram menos que as costellas nobres, o meu pobre Vasco andava por alli entre aquella gente, e ninguem dava fé se elle entrava ou sahia, excepto Leocadia, que o não perdia da vista dos olhos, e da outra vista do coração, de maior alcance ainda, se o coração não é myope, ou zarolho, peior mil vezes. Corações zarolhos, dou-lhes a minha palavra d'honra que os conheço até pelo cheiro. Descobriu-se ultimamente a operação do estrabismo para elles. É infallivel, nas mulheres que vieram com esse aleijão a este mundo. Havemos de fallar a este respeito no oitavo volume desta edificativa obra. Bom coração era o de Leocadia, coitadinha! Umas senhoras velhas, dando no segredo dos olhares que os dous se cambiavam com certa finura que o amor astucioso ensina, as taes velhas solteironas foram dizendo á menina que o rapazinho era bello moço e de boa familia; mas a respeito de haveres não tinha nada. Conclusão de velhas: «deixe-se a menina de gastar o seu tempo mal, porque a mocidade anda a galope, e quando a gente mal se precata, deixou perder a occasião de arranjar noivo conveniente, e acha-se velha.» Esta linguagem corruptora, hedionda, asquerosa, doutrina que prostitue a mulher, que a enfeita para se expôr em leilão torpe, esta linguagem fez córar Leocadia. Vasco cobrou animo com a familiaridade, e gaguejou o prologo d'uma declaração amorosa. Leocadia, que lhe havia adivinhado o segredo aprasivelmente, acceitou-o, corando e sorrindo de modo que nunca foi tão linda como então, nem houve sorriso e pudôr que tanto alindassem um rosto innocente. Reanimado pelo bom acolhimento, o nosso Vasco, pouco e pouco, deu liberdade ao coração, e disse quanto podia; mas quanto sentia, isso não se consegue aos dezoito annos. Escreviam-se todos os dias, davam-se reciprocamente uma edição diaria do seu amor em duas ou mais folhas de papel, e, depois da vigesima carta, escreviam o prospecto do seu futuro, com a riquesa de imaginação usual de todos os prospectos. Deviam ser formosissimas as perspectivas do magico amor d'aquellas almas, ambas poetas, innocentes ambas, desferindo na corda virgem do mesmo som o primeiro hymno de saudação á vida, cheia de nova luz, especie de bem-aventurança ephémera posta entre o dormir da razão na infancia, e o despertar desse terrivel dom na adolescencia! Bellas deviam ser essas esperanças, por que o pensamento de ambos era sanctificarem pelo casamento a sua identificação n'uma só alma, irem ambos n'essa alma unica habitar uma casinha campestre, rodeada de arvores, onde os passarinhos tivessem as suas luas-de-mel, e os seus ninhos, e os seus filhinhos pipilantes. Queriam ao pé dessa casinha uma fonte, derivando em fios de prata por sobre a relva as suas aguas, e nessa relva havia de pastar um cordeirinho branco, malhado de preto, com um laço escarlate no pescoço, o qual cordeirinho andaria sempre atraz de Leocadia, e daria cabeçadas no cão de Vasco, que havia de ser um cão do Monte de S. Bernardo, que se enroscaria (o cão) aos pés de sua ama, lambendo-lhe a ponta do sapato de carneira côr de flôr de alecrim. Que vida, que esperanças tão bonitas! Nas manhãs de estio, quando o pintasilgo, o pisco, a calhandra, o cochicho, e toda a orchestra dos musicos do bosque, dessem a alvorada d'um bello dia, Vasco e Leocadia, espriguiçando-se ainda de deliciosas insomnias, sahiriam para o ar livre, sorveriam abraçados o primeiro halito da atmosphera, perfumado de alecrim e rosmaninho, revesar-se-hiam em ir á fontinha buscar burrifadores de limpida agua, regariam os canteiros, as balsas, os vasos; e depois, botariam milho ás gallinhas, enxotariam a gata que se encarapitou n'um ramo de romanzeira para agadanhar um passarito que ensaia os primeiros vôos; depois, chamariam o cão e o cordeirinho, iriam para ao pé do rumorejar da fonte. Vasco leria os seus poetas italianos, o seu querido Petrarcha, e Leocadia, chorosa pelo tão mal recompensado amor do infeliz poeta, abraçaria o seu, tambem fadado das musas, exclamando: «que nos vejam do céo esses desgraçados amantes que não acharam cá em baixo o nosso paraizo.» Isto é bonito, digamos a verdade; e mais ainda se não disse tudo. Em quanto ao almoço, jantar, e ceia, e merenda nos dias grandes, (cá estou ao vosso alcance, sisudos leitores, que estaveis a adormecer no periodo anterior) em quanto a esses solemnissimos actos da vida ides por força vascolejar nas mandibulas a mais regalada das gargalhadas, que ainda estoirou de vossos alegres queixos! Deveis de saber que os pobres amantes projectavam estes grandes melhoramentos na sua vida como por cá se projectam os melhoramentos materiaes do paiz, isto é: não cuidavam da receita, nem do orçamento, nem do _deficit_, nem... eu sei cá como se chamam essas cousas que por ahi dizem os que sabem lá da salvação do paiz! O que eu sei é que este par de creaturas bemaventuradas, com quanto fossem muito anteriores ás importantes applicações do magnetismo, attribuiram ao magnetismo propriedades que os modernos ainda não sonharam, tendo sonhado quanto ha de tolice sub-lunar. Entenderam elles, pois, que o magnetismo era uma substancia nutritiva como vacca e arroz, como _roast-beef_ e almondegas, como esparregado e pudim de batata! Que parece esta sandice ao leitor circumspecto, que tem o seu estomago na devida consideração, e crê que isto de poesia e poetas, de idealismo e espiritualismo, são o que realmente são: _indróminas_? Pois é verdade, como lhe vinha contando, amigo, senhor meu, cuidavam elles que o trivial e velhissimo facto de se amarem os separaria dessa lei commum, lei estupida por isso mesmo que é para todos, praxe, tão velha como o amor, de attender ás justas reclamações deste ser intimo que faz os grandes estadistas, os eximios patriotas, os jornalistas preclaros, e particularmente os homens gordos: quero dizer--o estomago, viscera-rainha, orgão dos orgãos, potencia sempre discutida, sob um pseudonimo qualquer, no discurso do throno, aganipe das locaes mais chorudas do jornalismo, irmão gemeo da soberania do talento, o estomago, oito letras a cujo serviço estão as outras dezeseis, porção, em fim, do homem notavel, que mais se lhe venera, por isso que a chegada de uma summidade a qualquer terra é logo celebrada por tres, quatro, cinco jantares em que uma concava terrina de sôpa e uma pyramide de boi assado substituem os presentes d'ouro e pedrarias com que na antiguidade se regalavam os adventicios de longes terras. Era preciso todo este palavriado para saber-se que Leocadia e Vasco não scismavam com o que haviam de entreter o fogo sagrado d'essa mola por excellencia do machinismo humano. Dar-se-hia por injuriado o coração, se o torpe raciocinio lhes argumentasse _á priori_ com as villãs necessidades da materia, cousa de que elles tinham apenas a necessaria para se amarem. Não pensava, porém, assim, o snr. Gervasio Leite, pai de Leocadia, nem a snr.ª D. Fortunata Proença, madrasta da mesma menina, casada tambem em segundas nupcias com o militar, e mãi d'um rapaz estragado, senhor d'uma boa casa no Alem-Téjo de que sua mãi era uso-fructueira. D. Fortunata, casando com o coronel, promettêra-lhe empregar a sua authoridade maternal sobre o filho para que elle, ultimada a sua formatura na Universidade, casasse com Leocadia. Este casamento assegurava á enteada, se não um digno esposo, ao menos uma boa casa, e, a todo o tempo, um dote que ella poderia levantar, se os maus costumes do marido fossem incorregiveis. VIII. O coronel, informado dos amores da filha por suspeitas da madrasta, resolveu curar heroicamente a enfermidade moral da menina. Francisco de Proença, que estava a completar a formatura, annuira á proposta da mãi, conhecendo apenas de vista a noiva, e as necessarias dispensas estavam já em poder do coronel. Leocadia foi chamada ao quarto de seu pai, e recebeu a noticia do seu proximo casamento. Fez-se escarlate, faltou-lhe o ar, e nem se quer pôde balbuciar uma supplica a seu pai. Passados os momentos da offegante surpreza, Leocadia, cobrando animo do ar compassivo do coronel, ousou dizer que já não podia dispôr do seu coração, porque amava outro homem. O militar riu-se da infantil pieguice de sua filha, achando que não valia a pena zangar-se por uma criancice sem consequencias. A menina tomou o riso por carinho paternal, e lançou-se de joelhos aos pés do pai, suffocada pelas lagrimas que lhe sahiam do coração agradecido e venturoso. --Então que é isso? (disse o coronel, tomando-a nos braços, e sentando-a ao pé de si) Cuidas tu, criança, que eu sou tão criança como tu? Achas que eu deixarei á tua vontade inexperiente a escolha do destino da minha querida filha? Essa é boa! Eu riu-me d'esse amor patetinha que tens ao Vasco da Cunha, tão tôlo como tu, e que não sabe melhor do que tu o futuro que vos esperava. Olha, Leocadia, não se póde ser pobre n'esta sociedade. A nossa casa é muito pequena, bem o sabes; e Vasco é um filho segundo, sem habilitações para modo de vida algum. Estes fidalgos cuidam que ser fidalgo é uma profissão. Os filhos segundos, se lhes faltam as sopas do primogenito, não servem para nada, não tem em si recursos para subsistirem fidalgamente, e julgar-se-hiam réos de leso-brazão se pedissem uma occupação plebêa. Meus irmãos, Leocadia, foram para o Brazil, logo que a razão lhes disse que a pequena casa onde viviam era minha. Trabalharam como se nascessem do populacho, e estão ricos, riquissimos, e serão mais fidalgos na sua patria, se voltarem, do que o eram quando de cá sahiram. Quem saberá melhor o que te convém do que eu, minha filha? Sei em que tempo estamos, e quero deixar-te preparada para um tempo que ha-de vir, muito peior que este. Espero ainda vêr em minha vida desapparecer o rendimento da Commenda que faz a nossa casa mediana; ido esse, o resto bem sabes o que é. Se casas com esse rapaz, que não tem nada, quem vos sustentará? Eu não poderei, nem, se podesse, quereria. Para que reconheças quanto me tenho a ti sacrificado, lembra-te que por teu bem casei com esta senhora que te quer como a filha. A condição de casares com Francisco, acceite por ella, explica o meu casamento n'esta idade, em que ainda choro saudades de tua mãi, cuja memoria me não deixou jámais encarar com bons olhos outra mulher. Depois d'isto, dir-me-has se eu não devo esperar que tu espontaneamente acceites a sorte que eu te preparei. Serias má filha, se recusasses; e eu seria um pai muito infeliz, se me desobedecesses. Nunca o imaginei; e, tão firme estava na união das nossas vontades, que sem te consultar, pedi as dispensas necessarias para o teu casamento com o meu enteado. Enganar-me-hia eu, Leocadia? A menina soluçava com os labios collados na mão do pai, cobrindo-lh'a de lagrimas. O coronel apertou-a ao seio com amor, e tinha os olhos aguados. D'aquelle modo Leocadia fazia a seu pai o sacrificio do seu coração, o maior de todos, porque o menor era de certo a vida. --Não respondes, filha?--dizia o coronel, levantando-lhe a face que ella escondia no seio do pai. «Já respondi...» balbuciou ella. --O que? que respondeste, Leocadia? «Farei o que fôr da sua vontade, meu pai... --És a minha Leocadia...--disse elle com apaixonada meiguice--Reconheço a filha da minha chorada mulher... Agora, fallemos nos teus amores com Vasco... Senta-te, menina. Diz-me cá: ha que tempos andam vossês com essa brincadeira? «Brincadeira... não era brincadeira, meu pai... Nós amamo-nos muito... ha dous mezes. --Já ha dous mezes? Está feito! mas eu não tenho dado fé... Como se entendiam vossês? fallavam ás escondidas, ou... «Nunca fallámos ás escondidas... --Então, escreviam-se, sim? «Sim, senhor. --E as vossas tenções? «Eram sentar elle praça, e, quando fosse official, pedir-me ao pai. «Está bom... E porque me não fallaste d'esse teu namôro?... Diz, filha, tu guardavas de mim o segredo; é signal de que a tua consciencia não o approvava como digno de contar-se a um pai... --Foi porque algumas senhoras, que deram fé logo no principio, me disseram que eu não fazia bem em gostar de Vasco, porque elle não era rico, e eu só devia gostar de pessoas que tivessem um grande dote. Se não fosse isto, eu seria a primeira a dizer ao pai... --Está bom, filha. Agora é necessario que tu escrevas, e lhe digas que teu pai deseja fallar com elle. «O pai!? --Sim, menina. Quero eu fallar-lhe, porque, se até aqui o estimava pelas suas qualidades, e por elle ser filho de quem é, mais o estimo hoje por elle ser amigo de minha filha. Ingrato e villão seria eu se lhe quizesse mal porque minha filha o impressionou, inspirando-lhe a resolução de seguir uma carreira até ganhar a subsistencia d'ella. Poucos ou nenhuns pais assim pensam, bem o sei; mas eu, que devo a Deus uma filha docil, não quero esquecer-me de que sou o seu primeiro amigo pelo coração, e o seu primeiro conselheiro pelo dever. Vasco, depois de ouvir-me, ha-de transigir com as tuas circumstancias e com as d'elle. Ficará amando-nos ambos, e ficaremos todos amigos, de modo que jámais elle possa queixar-se da ingratidão de uma filha grata e submissa a seu pai. Leocadia beijou-lhe a mão, e retirou-se, obedecendo a um gesto do coronel. O velho militar ficou enxugando uma teimosa lagrima que lhe cahira sobre o bigode, no momento em que a filha, sahindo do quarto, desentalava a dôr oppressiva do seio por um ai. Na tarde desse dia, Vasco recebia um bilhete de Leocadia, assim conciso: «Meu pai quer fallar hoje ao amigo de sua filha. _Leocadia._» Que surprehendente, e que mysterioso bilhete! O pobre moço não podia imaginar o meio-termo entre a completa ventura, e absoluta desgraça. Faltava-lhe o animo, e o desembaraço para apresentar-se, á ventura, diante do pai de Leocadia. Não ir, porém, seria desobedecer ao homem que respeitava como pai, e ennegrecer aos olhos d'ella a candura das suas intenções. Foi; e o leitor, se é curioso, póde espreitar commigo a scena que vai passar-se na sala do coronel. IX. Vasco entrou na sala, encolhido, como se o frio o arrepiasse. Não viu alguem, e parou, ao segundo passo, com as mãos juntas na aba do chapéo, e os olhos fitos na porta por onde havia de entrar o coronel. A porta abriu-se, e Vasco estremeceu. O pai de Leocadia, com a mão direita estendida ao hospede, e com a outra indicando-lhe o canapé, entrou, affavelmente encarado, como Vasco o não vira nunca. «Sente-se aqui, snr. Vasco, e conversemos como dous rapazes, ou como dous homens velhos--disse o coronel, apertando um cigarro, e offerecendo outro ao mancebo.--Já toma o seu cigarrito? A apostar que sim? --Não senhor, não fumo. «Pois admira! Este sujo prazer de soldados e marinheiros começa a ter boa hospedagem nas classes mais limpas da nossa sociedade. Por ahi, a mocidade, apenas deixa o guizo que lhe deu a ama de leite, pega do cigarro, e aprende logo a resfolegar o fumo pelo nariz. É o tom, dizem elles, desde 1820 para cá. Parece-me que esta geração sahida do ovo, e a outra que está no chôco, hão-de ser, meu caro senhor, uma cousa assim a modo de nabal espigado. Não sei se me entende: quero dizer que a seiva forte de nossos pais, em vez de medrar as vergonteas, produzindo flores e fructos, cada cousa em tempo proprio, dará fructos temporãos, bichosos, desses que passam sem termo medio do verde ao podre. Não acha? --Ha-de haver, como sempre, o bom e o mau, penso eu--disse modestamente o moço. «E pensa bem para a sua idade. Os vicios são de todas as épocas, mas o do cigarro é muito moderno entre nós, ha-de confessar! Vasco sorriu involuntariamente á visagem comica do coronel, de proposito arranjada para se ajustar á solemnidade com que sorvia, deliciando-se, um d'aquelles sadios e gordos cigarros da herva santa de 1828, que não era de certo a herva satanica do contracto de 1857, congresso de Borgias, que envenenam a gente, reservando só para elles as explendidas orgias dos outros... «Está o meu caro snr. Vasco da Cunha morto por saber--disse Gervasio Leite--o que é que eu lhe quero. Lá vou já. Minha filha Leocadia... Vasco fez-se vermelho, côr de rosa, amarello, branco de marmore, tudo em menos tempo do que o necessario para articular as cinco syllabas desse nome. «Minha filha Leocadia--proseguiu o militar accendendo terceiro cigarro na ponta do segundo--tinha lá um segredo no coração, mas não segredo para o snr. Vasco; era-o só para mim, porque os pais parecem-se ás vezes muito com os maridos em serem os ultimos informados do que lhes toca pela roupa. Este ruim vêso da humanidade é que é muito mais antigo que o cigarro. O orador riu-se com militar modestia do seu gracejo; Vasco, porém, não tinha recuperado ainda o animo frio para saborear o chiste do equivoco, ou parecêra-lhe grosseiro de mais o confronto do segredo santo da filha com o perfido da adultera. Gervasio Leite, satisfeito com um aceno affirmativo do interlocutor, continuou: «Disseram-me que minha filha e o snr. Vasco se amavam. Não estranhei a cousa: achei-a mais humana e natural que o contrario disso, por duas razões respeitaveis e persuasivas ambas: Leocadia é rapariga, o senhor é rapaz, ambos sahidos do collegio, cegos ambos, conduzidos por outro cego, valha a verdade, que dizem ser cego o snr. Cupido, e eu quero que elle seja mais do que cego... em quanto a mim é surdo, por que não ouve razões, é cego por que não vê precipicios, é mudo por que só tem lingua para fallar a linguagem que não está nos diccionarios, nem póde applicar-se a estes objectos da vida real que se veem, e apalpam, e sentem, como, por exemplo, o vestir, o calçar, o ignobil cortejo da realesa despotica do estomago, e outras miserias adjunctas. Deixe-me cortar a direito, snr. Vasco, e dizer as cousas como eu sei. Isto resabe ao meu genero de estudos: formei-me em mathematica, e affiz-me a estudar a vida como se estuda uma raiz, problemas sobre problemas, e para todos o mesmo X, dinheiro, sempre dinheiro, com mil diabos!... desculpe-me esta rhetorica de tarimba. Quando, pois, me disseram que minha filha amava o snr. Vasco, o neto do meu general na guerra peninsular, e o filho do meu camarada no quartel do general Beresford, tive sincera pena de ambos! Não entende, não. É necessario ter cabellos brancos, e mais brancos ainda os cabellos da alma, para conciliar duas idêas contrarias: ter compaixão de duas pessoas que se julgam felizes unindo-se. Ora eu me explico, e, quando não entender o meu vocabulario cá debaixo do mundo real, falle. A minha casa é insignificantissima. Posso dizer que o rendimento d'ella, junto ao meu soldo, difficilmente tem chegado para a educação de Leocadia. Minha filha é pobre. --Oh senhor!--interrompeu Vasco agitadamente, e susteve-se. «Diga, diga, o que ia dizer. --Eu... não perguntei a v. exc.ª o que sua filha tinha. «Isso está claro. Quem é que se lembra de perguntar o que tem a mulher que se ama? O amor, meu amigo, recordo-me ainda do que elle é. Eu tambem amei uma mulher, casei, e, só depois de tres mezes de casado, é que me levantei uma bella manhã com a idéa de saber o que ella tinha. Soube que tinha umas leiras que renderiam, em anno de boa colheita, cincoenta mil reis, o maximo. Confessar-lhe-hei que não fiquei contente, por uma razão das mais racionaes que eu conheço. Minha mulher precisava vestir-se para apparecer n'um baile em Lisboa, e a minha gaveta estava ferida da esterilidade de Sara. Desde esse dia, meu caro snr. Vasco, quiz-me parecer que a minha situação de solteiro era melhor que a de casado. Entraram commigo receios de collocar minha mulher n'um posto inferior áquelle em que a encontrara na casa paterna, e as minhas doces chimeras de noivo fugiram como um bando de andorinhas quando as primeiras nortadas lhe embaraçam o vôo. Nunca minha mulher conheceu a tristeza que me descoroçoava por dentro, isso é verdade; mas o que lhe valeu para viver e morrer feliz foi eu ajuntar á delicadeza com que sempre a tractei, algumas dividas que ainda estou pagando hoje. Morreu minha mulher... attenda agora, snr. Vasco: morreu minha mulher; e eu, com quarenta e cinco annos d'idade, ralado por desgostos de todos os generos e feitios, herdava da mãi de minha filha o maior de todos: essa criança sem mãi, filha d'um major quasi pobre. Educal-a, ainda eu poderia; mas legar-lhe um patrimonio, como é preciso que uma senhora o tenha, para poder escolher um marido, não podia. Um pai, que ambiciona avaramente para seus filhos o bem-estar que elle não quer para si, é desculpavel, é victima do seu amor de pai. Sacrifiquei-me, snr. Vasco; e sabe como? Sacrifiquei-me como pai nenhum. Casei-me com uma mulher aborrecida, por que essa viuva, mais velha do que eu, tinha um filho, herdeiro de um grande casal, e além de todas as probabilidades favoraveis ao meu pensamento, estipulamos, eu e ella, a condição de que Leocadia seria mulher do meu enteado.» Vasco ergueu-se com sobresalto; encostou-se ao espaldar d'uma cadeira, branco de neve, tremulo, que até os cabellos se lhe irriçavam, pasmando os olhos nos olhos do coronel, que se erguêra tambem. «Então, snr. Vasco, isso que é?--disse Gervasio, tomando-lhe affectuosamente a mão--Sente-se. Eu sou seu amigo; tempo virá em que faça justiça ao pai da mulher que será sempre sua amiga. É preciso que sejamos tres no sacrificio. --Qual sacrificio?--balbuciou Vasco. «É preciso que o snr. Vasco, bem longe de contrariar os meus planos, seja o meu auxiliar para encaminharmos Leocadia ao destino que lhe tracei, convencendo-se um e outro de que serão infelizes, desobedecendo-me. Vasco levou o lenço aos olhos. Era o chorar sem pejo dos dezoito annos. Vencendo os soluços, que forcejava por esconder no lenço, disse com intimativa: --Eu obedeço, senhor... Creio que poderei obedecer. X. E, quando o coronel parecia ter muito que lhe dizer, Vasco sahiu da sala, e desceu tão precipitadamente as escadas, que não voltou a cabeça para agradecer ao dono da casa a consideração de acompanhal-o fóra da sala. No pateo encontrou o afflicto moço o aguadeiro que diariamente lhe levava as cartas de Leocadia. Estava o prestante gallego sentado no barril, examinando os pregos dos sapatos, e calculando talvez os emolumentos que cobrára da sua posição importantemente diplomatica entre dous corações rendidos. Quando viu Vasco, calçou o collossal sapato, sacou dos abysmos interiores da jaqueta uma carta que entregou ao nosso amigo, atirou com o barril para o hombro, e não esperou resposta. Vasco rompeu ainda a obreia para lêr a carta, mas susteve-o o receio de ser visto por algum familiar do coronel. Escondeu-a e desviou-se para um canto do pateo a limpar as lagrimas, que rebentavam, cada vez mais copiosas, debaixo da pressão do lenço. «Que dirá esta carta?»--perguntava elle ao seu coração--«Será o adeus de Leocadia?... Saberia ella para que me chamou a sua casa?...» Tirou-a ainda outra vez do bolso, resolvido a lêl-a, quando entrou no pateo um criado, e em seguida um cavalleiro, esporeando o cavallo, com grande tropel. Era Francisco de Proença que chegava de Coimbra. Vasco não o vira nunca; mas pelo trajar de jaqueta de guizos, barrete á campina, e bota branca de canhão alto, conheceu o enteado do coronel, em que Leocadia lhe fallára algumas vezes, porque sua madrasta lhe estava sempre elogiando o talento, e encarecendo o grande morgadio. Francisco de Proença viu um rapaz de casaca preta arrumado para um lado, e cortejou-o de passagem. O coronel descêra quasi até ao pateo para receber nos braços o enteado, e ainda viu sahir Vasco. Quiz perguntar ao recem-chegado se encontrára alli sósinho o cavalheiro da casaca preta; porém, lembrou-se de que a pergunta provocaria outras. A este tempo descia com grande alvoroço a mãi de Francisco, com os braços abertos; e o rapaz, depois de beijado e abraçado, deu o braço á mãi, que estava gorda de mais para enthusiasmo tão buliçoso. D'ahi a pouco, lia Vasco, fechado no seu quarto, este bilhete: «Em quanto fallas com meu pai, escrevo-te duas linhas. Já sabes que desgraça nos ameaça. Querem separar-nos, meu Vasco. Todas as nossas bellas esperanças não podemos deixar que nol-as matem assim. Respeito a vontade de meu pai; mas o juramento que fiz de amar-te eternamente é superior a tudo. Sou mais tua do que de mim propria, meu querido Vasco. Cuidei que poderia morrer sem desgostar meu pai; não posso; porque me lembro que te mato. Vê o que queres que eu faça. Não podemos esperar que o tempo destrua os planos de meu pai e minha madrasta, que só hontem me foram ditos. Hoje espera-se de Coimbra o tal homem. Decide, meu amigo. Em ultimo recurso, eu fujo de casa para ti; e depois... o que Deus quizer. Não seremos tão infelizes como meu pai diz, não achas, Vasco? Diz-me que não; dá-me animo para lhe desobedecer. Não sei se te demorarás pouco tempo com meu pai: vou dizer ao gallego, que te espere com esta carta. Tua L.» Quando Leocadia (ahi vão reflexões philosophicas) me mostrou, entre outras, esta carta, pasmei, como a gente pasma, até certa idade, das maravilhas que se fazem no coração das raparigas! Aqui ha trinta annos, se me dissessem que uma donzellinha, a cheirar ainda ao esturrinho das mestras dos collegios de então, namorada pela primeira vez, pouco ou nada lida em novellas, e menos ainda experimentada nos romances ineditos de portas a dentro, se me dissessem que essa tal, contrariada pelo pai nas suas virginaes affeições, escrevera similhante carta ao namoro, eu não acreditaria, sem vêr a carta reconhecida pelo signal publico e razo d'um tabellião de provada moralidade. Pois não parece incrivel? Hoje que não ha anomalias para mim, que tudo se me afigura aleijões da alma--porque esta geração veio realmente estropeada e canhota do espirito--hoje, a menina iniciada no amor, embora creada e educada ao ar sereno e puro do collegio, comparo-a eu á rôla creada na gaiola, que nunca esvoaçou, nem sabe a serventia das suas azas, está contente do espaço, e da abundancia que tem, não sente o captiveiro... e, se, por descuido, deixaes aberta a porta da gaiola, a boa da rolinha mette primeiro a cabeça ao ar livre, sacode as pennas das azas virgens, desfere um vôo rasgado, sobe, sobe, e adeus! «Era o instincto!» dizia um philosopho pasmado para uma ave que lhe fugira. Pelo instincto é que eu, philosopho de toda a passarinhada, explico tambem, a respeito de mulheres, este bater de azas em que ellas se vão do ninho para as altas regiões dos açores e dos milhafres, onde, quando o diabo quer, dão grande banquete ás aves de rapina que são tantas como os nossos peccados, por esses céos d'anil, onde os poetas imaginam colonias de amantes felizes. Isto é hoje, que só me falta conhecer a vigesima-quarta variedade que Deus formou d'uma costella homogénea:--mas, ha vinte e oito annos, quando Leocadia me mostrou a carta escripta a Vasco, olhei-a com ar palerma, e disse-lhe: «V. exc.ª, quando escreveu esta carta, comprehendia bem toda a extensão da loucura que fazia, entregando-se assim á descripção d'outra criança, sem casa, sem vida, sem habilitações para o trabalho? --Então o senhor não sabe o que é uma paixão!... «É que eu cuidava, minha querida irmã... Entre-parenthesis: Um destes dias, um meu amigo, contando-lhe eu seriamente a intimidade limpa e immaculada que contrahira com duas ou tres pessoas ás quaes eu chamava irmãs, disse-me, sorrindo, que tinha dezesete irmãs assim. O meu amigo pertence á geração nova, em que estas fraternidades não tem provado bem, porque, ordinariamente, os parentescos complicam-se de modo que não é facil saber-se quando se é tio, ou outra cousa ainda mais respeitavel. O mundo está virado! No meu tempo amava a gente, por exemplo, uma destas almas que hoje se chamam _não-comprehendidas_ na terra, ou porque entre ellas e outras de eleição paternal e intervenção ecclesiastica não havia analogia de gostos, ou porque as posições sociaes não permittiam um enlace, ou, finalmente, porque era preciso fallar no amor d'um terceiro que devia lentamente desalojar-se--em qualquer dos casos essas pessoas inscreviam-se no catalogo dos parentescos honestos, e ficavam irmãos toda a vida. Eu hoje conheço netos das minhas irmãs de então, e glorio-me de ser tio-avô de creanças muito gordinhas, que puxam ás avós as rêpas escassas das tranças d'ebano e ouro dos meus bons tempos... As _irmãs_ de hoje...--diz muito bem o meu amigo--arranjam-se ás dezesete; e a maior prova de ser o titulo já ridiculo é que a sociedade não as reputa incestuosas... As _não-comprehendidas_ contam em estylo lamuriante o vasio das suas almas a confidentes denominados _irmãos_, em momentos de expansiva familiaridade. O typo que sonharam, a imagem que as anceia, está fóra d'este mundo, respira o ar balsamico dos jardins celestiaes, é um anjo. Ora, acontece quasi sempre uma cousa muito racional: o _irmão_ apresenta-se com procuração bastante do _anjo_, com poderes _in-solidum_. Passado algum tempo, esquece-se o constituinte, e fica o procurador escandalosamente encartado no usu-fructo do dominio e acção d'uma propriedade, que (aqui entre nós) os anjos não quereriam, nem eu, só pela decima, os cinco por cento, e os mais impostos annexos ao merinaque. A gravidade d'estas reflexões veio para prevenir os leitores mal intencionados contra o abuso que por ahi se faz d'um parentesco de circumstancia. Irmão, mais que irmão, fui eu de Leocadia. Esse titulo, que ella me deu, conservo-o como um legitimo vinculo, mais que legitimo, talvez sanctificado pela angustia de ambos... e doer-me-hia que o sorriso parvo ou mau da suspeita correspondesse á melancolica saudade com que vou recordando palavras da minha pobre irmã. Atem agora o fio partido do dialogo. «É que eu cuidava, minha querida irmã--disse eu--que o amor na sua idade, e com a sua innocencia, ignorava certos desenlaces que elle tem humanos de mais, rasteiramente humanos... --Que quer dizer? «Pensava eu que uma menina, na sua posição recatada, não seria capaz de conceber o pensamento da fuga da casa paterna! Vasco propozera-lhe alguma vez esse acto? --Nunca, e eu mesma tive esta idéa quando me vi presa á vontade de meu pai, e fraca, miseravelmente fraca para resistir-lhe. Se bem me recordo, estava eu chorando no meu quarto, quando de repente me lembrei da fuga. Não senti aquecer-se-me o rosto de pêjo, porque me pareceu natural a acção de fugir á desgraça. O pesar da desobediencia, esse sim, mortificou-me; porém, entre o remorso e a paixão, a lucta decidiu-se pelo amor. «E a idéa do seu descredito? --Eu sabia lá então o que era descredito! O meu irmão não sabe o que se passa no coração puro. Terá experimentado muito; mas deixe-me dizer-lhe que as suas analyses tem sido feitas sobre corações muito experimentados. Uma mulher receia o descredito só depois que sabe a maneira como elle se alcança. Eu não sabia nada, meu amigo. Se me dissessem que eu corria risco de ser coberta de infamia por fugir para Vasco, rir-me-hia, ou pasmaria do absurdo. Se me dissessem que Vasco era capaz de abrir-me os olhos para eu vêr o abysmo em que me lançára cégamente, quem m'o dissesse tomal-o-hia por um demonio mau que zombava da minha ternura, e injuriava o meu Vasco. Uma rapariga innocente guarda tão santas no coração as idéas do bem, que não póde crêr-se victima jámais do homem a quem se entrega com amor, com mil vontades de o fazer feliz, com as veias abertas para lhe dar o seu sangue, contente da sua pureza para o galardoar com ella, anciosa por sacrificar-lhe a vida, e ficar ainda na obrigação de maiores sacrificios. O meu descredito, diz o senhor! As que fallam no seu descredito, se tem de rebater a instancia de sacrificios, essas são as que querem estar bem com a sociedade, conhecem-na, fazem parte d'ella, e lançaram já muitas favas pretas contra o credito de algumas infelizes, cujo amor as levou á abnegação dos diplomas de virtude, que a sociedade dá ás que sabem embuçar-se no manto da hypocrisia, ou mascarar o escandalo de qualquer modo. Eu estava de bocca aberta. Gostava tanto de ouvil-a, que não a interrompi. Discorreu meia hora boa neste assumpto, e disse maravilhas, que eu tive o descôco sandeu de alcunhar de romanticismo. Então não se dizia romanticismo, mas ás mulheres, que fallavam muito e bem, chamavam-lhes os alvares, pais dos que hoje vegetam, _pispontadas_, ou _pronosticas_. Não obstante, que sentir tão fino era o desta senhora! Que verdades tão axiomaticas a dôr, a desgraça, a reclusão, o entranhar-se em si propria, lhe tinha ensinado! Se esta mulher traspassasse em lagrimas ao papel o livro intimo, que o dedo do infortunio lhe folheára no coração, qual das minhas leitoras não faria esse livro o seu director espiritual, nestes calamitosos tempos em que não basta a alma que Deus lhe deu para luctarem com a materia que as traz abarbadas, e fóra do seu espiritual elemento! Cá estou outra vez encanhotado pela bruxaria das reflexões philosophicas! Resignem-se christãmente, leitores sensiveis. Não posso ser superior a este bacharellar de homem entendido na sciencia das almas dos outros, porque, lisamente o digo, da minha não entendo nada, e já agora morrerei com esta sphinge cá dentro não sei aonde. Vinha eu, pois, contando que Vasco lêra a carta de Leocadia tantas vezes quantas o leitor quizer, que eu não sei quantas foram, nem elle. É certo que as primeiras leituras fêl-as com os olhos scintillantes de alegria; e as ultimas com uma fonte de lagrimas a cahir-lhe no papel. Quer-se a razão da alegria e a das lagrimas. Pois sim. Vasco dera-se como perdida a mulher, o amor, a vida da sua alma. Sahira perturbado da entrevista com o coronel. De lá a sua casa lembrou-lhe o suicidio, o meio mais prompto de sacudir a farpa do coração. Convencido de que era irremediavel o perdêl-a, abriu a carta, leu-a, encontrou o remedio, alvoroçou-se, teve febre, delirou de felicidade, creu-se doudo: eis-aqui a alegria, a radiação da alma no semblante, o volver á existencia, o apegar-se á prancha de salvação segura, quando a garganta da morte estava aberta. Depois, a razão, essa vibora idolatrada, cravou-lhe de subito o dente mortal no coração, o sangue refluiu-lhe todo alli, á purpura do jubilo succedeu o pallor do desalento, e o chammejar do enthusiasmo apagaram-no as lagrimas. Que lhe disse, pois, a razão, essa divindade tão cantada, essa mestra da vida, essa filha do céo, que cahiu de lá á terra pela mesma razão que Lucifer cahiu? A razão disse-lhe que Leocadia, entregue á sua providencia, não teria um telhado que a cobrisse, porque em casa de Vasco dominava a razão da virtude que não acceitaria uma filha familia fugitiva, se ella não tinha um patrimonio, que absolvesse um filho segundo de tamanha immoralidade. Disse-lhe mais a razão que elle filho segundo, sem arte nem officio, nem ao menos poderia repartir com a pobre menina um prato de feijões adquiridos pelo seu trabalho. Disse-lhe mais a consoladora razão que Leocadia fugitiva seria perseguida por seu pai, conspurcada pela opinião publica, e fechada na cella d'um convento como leprosa de que todas fugiriam receosas de se contaminarem. Foi o que lhe disse a razão do mundo, formada pelo mundo, adaptada ás conveniencias vigentes da sociedade, austera para uns, tolerante para outros, draconiana para os desvalidos, venal para os poderosos. Vasco ergueu-se do lethargo em que o deixára a briga das duas sensações contrarias. Tomou a penna, e escreveu as seguintes linhas: «Deus não quer a nossa união, Leocadia. Perdeu-se tudo. Isto é tão atroz que parece impossivel. É verdade, Leocadia, é verdade que se abriu hoje a minha sepultura. Esperava morrer cêdo, mas tão depressa não queria. Vivia de esperanças, e agora é tudo negro diante de mim. Venha a morte, e seja já. Não sei o que te digo. Estou sem alma, nem forças. O que me dizes é impossivel. Eu não tenho um bocado de pão certo para cada dia. Contava com o meu trabalho no futuro; mas agora desfalleci de braço e de animo. Dous desgraçados é muito. Ninguem se compadeceria de nós. Perseguir-nos-hiam todos. Casa, Leocadia, casa com esse homem, mas espera alguns dias; eu quero morrer, e hei-de morrer antes. Faz-me este beneficio. Deixa-me dizer-te adeus, com a certeza de que me pódes chorar sósinha sem testemunhas, sem um... esposo que te diga: «escrava do meu ouro, porque choras?» Leocadia, eu previ sempre a desgraça, mas não assim. Isto é muito; e para estas agonias é que a morte sahiu das mãos de Deus. O Senhor te faça feliz, e a minha memoria te seja sempre saudosa e compassiva. «_Vasco._» Acabára elle de fechar a carta, e sentiu um esvaimento de cabeça. Escondeu a face entre as mãos, porque o voltear dos objectos lhe causava a agonia do vomito. Um frouxo de tosse lhe sahiu do peito com dôr aguda e calafrios. Quiz respirar, e espirrou dos labios uma lufada de sangue que salpicou a carta. Lançou-se com impeto ao ar da janella, e viu na rua o aguadeiro que esperava a resposta. Desceu as escadas encostado ao corrimão, entregou a carta, quiz retroceder, e não pôde. Sentou-se n'um degrau, susteve o sangue no lenço, encostou a face á cantaria, e murmurou: «Se Deus quizesse que fosse já?...» --O que?!--perguntou uma voz perto d'elle. Era a mãi, que descia para sahir. --O que, meu filho?!--repetiu ella. «A morte.» A sobresaltada senhora tomou-o nos braços, soltando vozes de afflicção. Vasco pediu-lhe silencio, subiu com a mãi esforçando-se por occultar o sangue, entraram ambos no quarto d'ella; e, duas horas depois, quem os espreitasse veria o filho abraçado aos joelhos da mãi, exclamando: «Salvou-me! Salvou-o?! como?! Esperem. XI. Saiba-se o que tão extraordinariamente fizera respirar Vasco daquelle aperto d'alma, que não podia desafogar-se, sem que a mão bemdita de mãi lhe alargasse as angustias que a comprimiam. Entraram ambos, como disse, no quarto d'ella. Vasco, antes de responder ás perguntas amoraveis de sua mãi, encostou-lhe, como criança amimada, a cabeça ao hombro, e soluçou, chorando copiosamente. «Que é isto, meu Vasco?!--instou a impaciente senhora--Bem me parecia a mim que a tua melancolia vaticinava desgraça!... Falla filho... Neste momento, Vasco levou o lenço aos labios para esconder o sangue que espirrava da tosse suffocante. A mãi, vendo o lenço tinto de sangue fresco, soltou um grito. «Este sangue é teu, meu pobre filho?! exclamou ella. --Isso que importa, minha mãi?...--disse Vasco, sentindo diminuir a violencia da sua dôr, ao passo que o rosto da mãi dava signaes de afflicção e pasmo. «Que importa!?...--tornou ella, juntando as lagrimas ao sangue de seu filho, e cahindo quasi desanimada n'uma cadeira--Importa a minha morte, Vasco!... --Mas eu sou feliz, morrendo. Tenha pena de mim, se eu continuar a viver. Deus acceitará na sua presença um filho que nunca desgostou sua mãi, nem aos de fóra causou damno sabendo que o causava. «Jesus!--interrompeu a mãi arrependida da sua exaltação--estás-me matando com a serenidade das tuas palavras! E porque has-de tu morrer, meu pobre menino? Cuidas que não tem cura lançar sangue? Tem, meu filho, tem. Teu pai viveu assim trinta annos, e tuas manas, que Deus levou, se tomassem os meus conselhos, se não fossem as imprudencias dos bailes, recuperavam a saude... Choras por te vêres tão cedo ás portas da morte? Tens razão, meu querido filho; mas não te assustes; verás que o sangue cessa; vamos aos ares do campo; o que tu precisas é descanço. Não leias mais, pelo amor de Deus; não recebas o ar fresco da noite; não tornes a comer fóra d'horas, nem andes a passear no teu quarto até ser dia. Promettes isto tudo á tua afflicta mãi? --Sim, minha senhora, prometto tudo. «Com que desalento me respondes, Vasco. Esse teu sorriso é muito triste... antes quero vêr-te chorar. --E eu tambem queria chorar... tambem!... «Tu escondes-me o teu coração, Vasco. Tive agora um raio de luz... Dizes-me tudo, filho? --Tudo... tudo, minha santa amiga, ainda que m'o não pergunte. «A mim disseram-me que a filha do coronal Gervasio te trazia enganado... --Por quem é, minha mãi!--atalhou elle com as faces instantemente abrazadas--Leocadia é incapaz de me trazer enganado! Quem tal lhe disse, calumniou-a cruelmente... «Pois antes assim, meu filho: mas sempre é certo que vos amaveis? --Sim... é desgraçadamente certo que nos amavamos. «Não te afflijas, Vasco... Eu hei-de dizer o que ouvi. Disseram-me que ella estava destinada para um filho da madrasta. --Destinaram-na, minha mãi... Que culpa tem a infeliz de que vendessem o seu coração? Ella não sabia que estava vendida. Cuidou que podia amar-me, e por fim... «Diz, Vasco... prohibiram-na de fallar-te? --Vai ser casada, disseram-lh'o hontem... «E ella acceita?... --Se acceita!... a morte das mãos de Deus, como eu lh'a peço. Ha-de ser entregue ao marido como um corpo sem alma, um cadaver... O coração é meu, morre commigo... Vou bem pago de tudo que soffri e hei-de soffrer... que, já agora, pouco será; mas o que tenho curtido calado, e docil á desgraça, foi muito, minha querida mãi, só Deus sabe o que foi. A minha Leocadia morre... e então verá se ella não era digna d'este amor que me mata. «Jesus! tanto fallar de morte, filho! Fallemos da vida; procuremos remedio, que o ha-de haver. --Nenhum. «Pois nenhum?! ella já está casada?! --Não está; mas o mesmo é estar casada, ou sêl-o ámanhã ou depois. «Olha, filho, lembra-me ir fallar ao coronel... --Sou pobre, minha mãi... Poderá v. exc.ª dizer ao coronel que me dá um bom patrimonio? «Não, infelizmente, não; aqui é tudo d'um só, tu bem o sabes... essa dôr cá a tenho como um espinho cravado no coração. O meu melhor filho, o anjo que nunca me deu um pesar, não tem nada, e nada póde haver do amor de sua mãi!... Que barbaras leis, justo céo! O que os homens fazem! De todos os filhos que rodeam, á hora da morte, o leito de sua mãi, só um é rico, os outros... ficam á mercê do seu proprio trabalho, ou das sopas do irmão, que é sempre o mais ingrato... Vasco obstou á continuação dos soluços que embargavam estas palavras, com meiguice, tirando-lhe as mãos da face. «Isso agora a que vem! Não chore, que me faz mal. Eu não desejo a riqueza de meu irmão mais velho; queria alcançar uma mediania pelo meu trabalho, porque bem pouco me bastava a mim, e a ella, e a minha mãi, se Deus nos ajuntasse todos... Agora, nada desejo, porque sou de mais n'este mundo; houve uma força superior que destruiu a minha felicidade; não acharei outra... que faço eu agora aqui?!... --Espera, filho... se eu dissesse ao coronel... «O que, minha mãi?! --Que sua filha viria para nossa casa como tua esposa... «Está a querer tirar á força do seu coração esperanças para me dar... não estando ellas lá, minha mãi! É irremediavel... Não nos deixemos enganar, porque a realidade negra está perto de nós. É tarde para pensar nos meios de mudar a vontade do pai de Leocadia. O homem rico a quem a deram, já está com ella. Chegou hoje, e ella ainda hontem soube que não era senhora da sua alma. O coronel chamou-me, e disse-me: «faça que minha filha me obedeça; ajude-me a encaminhal-a ao destino que lhe dei; lembre-se que eu me sacrifiquei a uma mulher aborrecida, para assegurar a minha filha um futuro, casando-a com o meu enteado.» «E tu, filho... --Recebi o raio na cabeça, e sahi com o receio de cahir morto aos pés do homem que confiava a sorte de sua filha á minha generosidade. Isto parece-me um sonho... Quando eu me convencer completamente que perdi a minha Leocadia, morro n'esse instante. E que espero eu agora, meu Deus! A mãi de Vasco, com a barba apoiada na palma da mão direita, contemplava seu filho a olhos enxutos. Calara-se elle; e longo tempo silenciosa, e como em spasmo, ainda ella o contemplava. Por fim, ergue-se, vai com impeto ao pé de Vasco, aperta-lhe a mão com força, e diz: «Acredita, filho, o que te diz uma mulher que conhece o coração das outras: Leocadia não é digna d'esse amor; Leocadia não te ama. Vasco ergueu-se d'um pulo, vibrou ainda as primeiras syllabas d'uma palavra dura, levou a mão á fronte que revia um suor subito, e disse com pausa e brandura: --Minha mãi, peça perdão a Deus de ter injuriado uma martyr. E as lagrimas rebentaram ao mesmo tempo dos olhos de ambos. A solemnidade triste com que elle se queixára da injusta opinião, feriu o seio da mãi. «Pois sim, meu filho, eu peço perdão a Deus de ter calumniado a tua amiga; e pedir-lhe-hei tambem que me tire d'este mundo se não posso valer-vos a ambos, meus queridos filhos. Vasco, arrebatado pela compunção d'estas ultimas palavras, beijou com fervor a mão da lagrimosa senhora, que o tomou para o seio, e o beijou na face. «Nosso Senhor, e a Virgem Santissima--dizia ella, quasi ao ouvido de Vasco, como quem acarinha uma criança--hão-de dar-te uma esposa que seja o retrato das virtudes de Leocadia, meu filho. São poucos n'este mundo os corações bons; mas a Providencia faz que esses corações se encontrem. Ha-de vir um procurar-te, Vasco; e, quando elle vier, teremos ambos prevenido tudo, para que tu possas ter uma esposa sem dote. Eu começo desde hoje a pedir para ti um emprego digno do teu nascimento. Empenharei todas as minhas relações, todos os nossos parentes, com a regente, para tu seres bem collocado, sim, meu filho? --Não, minha senhora, não. V. exc.ª disse-me que iriamos para o campo; vamos quanto antes; parece-me que hei-de acabar lá mais tranquillamente. Veja quanto eu estou sendo infeliz! A unica esperança que me afaga, é a idéa de morrer n'um leito d'onde veja arvores, e céo, e flores. O tempo agora está bello para acabar assim... «Oh filho, que me estás despedaçando o coração... --Pois não fallemos em morrer... Olhe, mãi, diz-me uma cousa? «Que é, Vasco? --Porque duvidava ha pouco do amor de Leocadia? Que disse eu, ou que fez ella que désse causa á injusta suspeita de minha mãi? «Eu respondo, meu filho. Parecia-me que ella recebeu com frieza a noticia d'ir ser casada com um homem que não amava. O que tu estás soffrendo, é o que ella deveria soffrer, depois d'essa cruel violencia que o pai lhe fez. A paixão costuma mostrar-se d'outro modo, delira, é capaz de mil desatinos, em quanto dura a surpreza que Leocadia devia de receber. E que fez ella, meu filho? Que te disse ella, depois que o pai lhe disse: «não pódes ser esposa de Vasco, porque Vasco é pobre; sel-o-has d'um outro homem, que eu te destinei, sem consultar a tua vontade.» Que fez ella? --O que fez ella?--respondeu Vasco, desafogando sob o peso das accusações, que a mãi queria alliviar com a entonação branda da voz--O que fez ella?... Minha mãi... o que faria a senhora nas circumstancias de Leocadia? «Se amasse com a paixão ardente com que amei teu pai... das duas uma: morreria fulminada logo alli, ou... --Diga, diga, minha mãi, que eu preciso avaliar pelo seu coração o amor de Leocadia. «Direi, Vasco, direi o que mãi nenhuma deve dizer; mas o que eu faria, não morrendo logo alli, meu filho, era... desobedecer á tyrannia, fugir á violencia d'uma desgraça perpetua, seguir o destino prospero ou desgraçado do homem que me merecesse o sacrificio da minha reputação, da minha vida, de tudo!» A mãi de Vasco teria quarenta e cinco annos. A luz dos trinta irradiou-se-lhe no semblante. Dir-se-hia que o coração, rejuvenescido das forças que a viuvez e os dissabores domesticos alquebraram, revivera alguns minutos, apressando o giro do sangue que lá estivera estanque por falta d'estimulos. Vasco, fitava maravilhado a animação d'aquelle rosto, onde nunca vira o viço da adolescencia, porque, desde menino, vira n'elle sempre lagrimas. «Porque a mulher que ama--continuou ella, erguendo intencionalmente os olhos para o retracto de seu marido--porque a mulher que ama como eu amei teu pai, Vasco, faz o que fez tua mãi. Foge do convento onde a aferrolharam, e vai sósinha através cincoenta leguas procurar um militar que nesse tempo apenas cingia uma banda de alferes, e não tinha mais recursos para si e para mim que o seu soldo. Eu era filha unica, devia ser uma rica herdeira; e, comtudo, soffri necessidades durante dez annos. E sabes tu como eu acceitava das mãos de Deus a minha sorte? Cheia de alegria, seguindo teu pai na bagagem do exercito, pela França, pela Russia, com teu irmão mais velho deitado n'um berço de vêrga. Quando a força da lei me fez succeder na minha legitima, dir-te-hei, filho, que não senti melhorar a minha felicidade intima. Não era o dinheiro que a fazia, não; maior contentamento tinha quando via as feridas de teu pai remuneradas de patente em patente, até ser eu que, por minhas proprias mãos, lhe puz as dragonas de general, tendo elle apenas trinta e nove annos. Alli o tens a ouvir-nos, meu filho. Parece que lhe estou vendo ainda os olhos rasos de lagrimas de felicidade com que elle tantas vezes me contemplava. Repara filho... Trémula da commoção, que devia terminar pelo chorar angustioso da saudade, a arrebatada senhora conduziu seu filho pela mão ao pé do retracto. Tinha melancolica bellesa aquelle grupo! Ella, apontando para o retracto, com o braço erguido e convulsivo, dizia: «Aquelle homem deve estar na presença de Deus. Foi para todo o mundo o que foi para mim. As suas vistas devem estar postas no teu destino, Vasco. Entrega a tua sorte á sua protecção; pede-lhe, commigo, que implore ao Senhor o descanço do teu espirito, e o esquecimento da mulher que não é para ti o que tua mãi foi para elle. --Não posso fazer similhante supplica...--interrompeu Vasco. «Não podes, filho? por que não podes? --Rogar assim era mentir a Deus. Leocadia é para mim o que minha mãi foi para o homem que a fez desobedecer á vontade de seu pai. E, tirando do bolso a carta de Leocadia, apresentou-a aberta a sua mãi. Subiu de novo á face da viuva o ardor que as lagrimas começavam a desmaiar. Leu e re-leu a carta; dobrou-a vagarosamente; fitou um olhar supplicante no retracto, declinou-o para um crucifixo; permaneceu silenciosa em oração, talvez; entregou a carta a Vasco, e disse-lhe com energia: «Pois diz-lhe que venha... Vai buscar tua esposa para o quarto de tua mãi, vai, meu filho. É tua mãi que t'o diz. Vasco, todo tremulo, só immovel nos olhos, estendia os braços para ella como se precisasse abraçal-a, para convencer-se de que não era phantastica a visão de sua mãi. Neste momento, batem á porta do quarto; a mãi de Vasco recusa abrir, e dizem-lhe que está alli uma carta que deve ser immediatamente entregue ao menino. É ella que recebe a carta, e a entrega ao filho: Vasco reconhece o sinete, e diz a sua mãi que a leia. Continha isto: «Matas-me, Vasco. Se me não tiras d'aqui esta noite, amanhã suicido-me. És a causa da minha morte. Pelas chagas de Christo, diz-me que me salvas deste inferno. Responde-me já, já. _Leocadia._» «Eu vou responder, meu filho--disse a viuva, correndo á escrivaninha. Vasco estava arquejante com a fronte reclinada sobre o travesseiro de sua mãi. Ella voltou, e leu o seguinte bilhete: «Minha filha. Hoje ás 11 horas da noite está uma sege defronte do convento de Sant'Anna, a cincoenta passos da sua porta. Nessa sege espera-a a mãi de Vasco, e sua mãi extremosa _Maria Maldonado._» Foi então que Vasco se lançou aos pés de sua mãi, exclamando: «Salvou-me! XII. Leocadia narrou-me assim o proseguimento da sua historia: «Quando vi uma letra desconhecida, em resposta ao meu bilhete, fiquei passada de mêdo, e parece que a luz dos olhos se me toldára. Custou-me a lêr o nome da assignatura, que maior susto me incutiu. «A mãi de Vasco roubou-me a minha carta» foi logo a idéa que me assaltou. Refiz-me de coragem para lêr uma reprehensão... e que espanto, que alegria a minha ao passo que devorava aquellas palavras queridas! As lagrimas cahiam no papel duas a duas. Eu estava louca de prazer. Ajoelhei, agradecendo ao céo a inspiração que mandára á mãi do meu Vasco. A fuga, protegida por uma senhora de tanta virtude, parecia-me um passo digno de louvor. Congratulei-me até da minha idéa, e suppuz que o espirito de minha mãi, a quem eu pedira remedio, m'a tivesse suggerido da sua bemaventurança. «Eu não podia esconder o meu contentamento. Meu pai, que me deixára a chorar, voltando, reparou na repentina mudança, porque os meus olhos inquietos e ardentes seguiam a bella imagem da vida, que voejava diante de mim, chamando-me para um futuro que os meus labios abençoavam com um sorriso. «Minha madrasta, agourando o que mais lhe convinha desta alegria, pensava que duas ou tres palavras que seu filho me dirigira, ao jantar, operaram estranha mudança em mim. «Francisco de Proença enganado por sua mãi, e mais ainda pelo seu orgulho, julgou que o milagre da mudança se devia a essas palavras aborrecidas que me dera. Como quizesse convencer-se e convencer sua mãi e convencer-me a mim do poder fascinante da sua lingua, fallou muito, penso que contou muitas anedoctas de estudantes de Coimbra, e com tal affectação o fazia que me causava tedio, posto que eu, apenas por cortezia, dissimulava escutal-o. Eu estava d'alma e coração embebecida na minha fuga, e não tirava os olhos da assustada agulha do relogio. «Meu pai disse algumas vozes baixas a minha madrasta, e entre estas ouvi proferir a palavra «theatro.» Foi uma nuvem negra que escureceu toda a alegria da minha alma. Notou-se em mim a repentina transfiguração; e Francisco de Proença, que estava conversando commigo, perguntou-me se me sentia incommodada, chamando a attenção de meu pai. Expliquei o descóramento por uma vertigem costumada, e pedi licença para entrar no meu quarto. «Ahi, d'onde pouco antes sahira douda de jubilo, entrei afflictissima. A ida ao theatro vinha baldar os nossos planos. Estava a anoitecer e eu não tinha por quem avisar Vasco. Os criados de casa tinham a confiança de meu pai, e as criadas a da minha madrasta. Entre estas, porém, havia uma que se mostrava minha amiga. Foi essa a que mandaram para ao pé de mim, logo que minha madrasta me deixou deitada n'um canapé recommendando-me, logo que o incommodo me passasse, me fosse vestindo para irmos a S. Carlos. A minha angustia não me deixou reflectir. Eu disse á criada que estava muito attribulada, e só ella podia valer-me. Pedia-lhe que chegasse ella n'um instante a levar-me um escripto a D. Maria Maldonado, sem que ninguem de casa o soubesse. A criada respondeu-me que sim sem hesitação, e viu-me tirar d'entre os colchões uma escrivaninha. Escrevi algumas linhas apressadas, e ella sahiu, dando-me um beijo de Judas, quando eu, lavada em lagrimas de gratidão, lhe dava um abraço de infeliz soccorrida em extremos de afflicção. «Principiei a vestir-me, applicando o ouvido aos passos da criada, que eu esperava anciosamente. Passou-se uma hora, e ella sem chegar. Sahi do meu quarto, perguntei a outra criada por ella: disse-me que estava na cama com uma dôr de cabeça. «N'isto appareceu meu pai, e disse-me com ar mais grave que o seu costume: --Menina, vamos, que está sua madrasta já na sege. «Eu pretextei uma falta para entrar no meu quarto. O que eu queria era de fugida perguntar á criada se entregára o bilhete; meu pai, porém, acompanhou-me até ao meu quarto, viu-me pegar d'um lenço, e não me deixou sosinha um instante até me deixar na sege, onde depois entrou Francisco de Proença. «Meu pai disse que iria a pé, e só mais tarde, porque tinha de fazer uma inspecção ao quartel. «Que anciedade a minha até entrar no camarote! De lá procurei na platea Vasco. Se elle estivesse, ficava eu tranquilla: era signal de ter recebido o meu bilhete. Não estava, nem entrou jámais! Jesus! como me era custoso esconder as lagrimas e o alvorôço! Que horas de inferno aquellas! Logo que entrou em minha alma a suspeita de ter sido atraiçoada, tive a tentação de sahir do camarote, sob qualquer pretexto, e fugir. «Meu pai entrou ás onze horas e meia. Estava a findar o espectaculo. Procurei ver-lhe a alma nos olhos. Pareceu-me socegado, e sem reserva. «Fomos para casa. Vi a pé todas as criadas, menos a portadora do bilhete. Reviveram as minhas suspeitas. Entendi que a infame não tinha animo de confrontar-se commigo, depois da traição. «Procurei entre os colchões a escrivaninha. Lá estava tudo como eu o deixára, e ao pé os massos das cartas de Vasco. «Não me deitei. Estive toda a noite accumulando conjecturas, qual d'ellas mais desgraçada. Cheguei a abrir subtilmente a porta do meu quarto, para ir á cama da criada. Fui palpando ao longo d'um corredor; mas a porta que determinava este corredor, e nunca se fechara, encontrei-a fechada! Então, sim, comprehendi que meu pai soubera tudo; e d'ahi em diante estudei a maneira de fugir de dia. A ancia facilitava-me o passo. Resolvi sahir disfarçada com um capote de criada, até encontrar um rapaz que me ensinasse as ruas. N'esta esperança desafogou o meu coração. Esperei o dia; e, logo que senti passos, pedi que me abrissem a porta do corredor. Respondeu-me um criado que ia procurar a chave; e voltou, dizendo que a devia ter o snr. coronel porque ninguem dava noticia d'ella. «Senti-me capaz de tudo. Tive odio a meu pai nesse momento, odio foi esse que o tempo não conseguiu desvanecer em minha alma. É que desde esse dia tenho chorado sempre, e o meu odio nutre-se de lagrimas... Senti até o desejo de matar a criada, que me atraiçoara. Desconhecia-me! Vi-me casualmente a um espelho, e os meus olhos tinham um fulgor sinistro, os meus labios pareciam crestados pelas palavras de maldição que passaram n'elles contra o meu tyranno. «Abri a janella do meu quarto, com a intenção de fugir por ella. Morreria, se o tentasse. Recuei diante da idéa da morte sem justificação aos olhos de Vasco e de sua mãi, que me chamara _sua filha querida_. Lancei-me aos pés da Virgem, que fôra de minha mãi, e ergui-me sem esperança, sem o allivio que Deus concede aos que supplicam a sua misericordia. «Eram nove horas da manhã quando se abriu a porta, e entrou meu pai. «Não escondi as lagrimas, e elle, fingiu que as não via. --Leocadia, disse elle, vem ahi o almoço. Depois de almoçar, veste-te que vamos passar o dia a uma quinta de Campolide. «Meu pai!...» murmurei eu. --Que queres tu Leocadia?--disse elle com um ar de fria seriedade que me gelou as palavras, e sahiu. «Vesti-me, fazendo sahir o taboleiro do almoço. Minha madrasta entrou no meu quarto, com affectado sobresalto, perguntando-me por que não almoçava. Disse que não podia, e ella retirou-se, passando-me a mão pela face, e dizendo com abominavel meiguice: juizinho, minha filha, juizinho. «Indignou-me este carinho hypocrita como um insulto. Perguntei-lhe com altivez o que queria dizer a sua recommendação, e ella, carregando o sobr'olho, replicou: A culpa tem quem a quer fazer feliz, sua pobre soberba. «A raiva não me deixou articular senão sons inintelligiveis. Minha madrasta sahira com impeto, resmungando palavras, que eu não entendi. «Vieram dizer-me que esperava a sege. Sahi do meu quarto com a tenção de procurar de relance a criada; mas, ao cabo do corredor, estava meu pai, lançando-me um olhar severo. «Entrei n'uma sege com minha madrasta. Meu pai entrou n'outra com Proença. «Atravessamos Lisboa sem trocarmos uma palavra. «Apeamos no portão de uma quinta. Proença offereceu-me o braço, e perguntou-me que soffrimento era o meu que se denunciava no rubor dos olhos. Eu ia responder-lhe, com franqueza cruel, contando-lhe a minha vida em relação a elle, quando meu pai nos impoz silencio com a sua presença. «Passeamos uma hora entre os arvoredos da quinta. Ahi não lhe sei dizer que desesperada saudade me golpeava a pedaços o coração! No ruido da folhagem parecia-me ouvir o chorar gemente do meu Vasco. O fallar de Proença, e as risadas estupidas de minha madrasta, davam aos meus ouvidos o som infernal d'uma ironia de demonios á minha angustia. «Queria-me esconder sosinha por aquellas murtas; mas a comitiva amaldiçoada seguia-me constantemente, e as attenções delicadas de Proença provocavam-me sempre uma visagem de desdem. «Com elle só quizera eu estar para dizer-lhe que o aborrecia; porém, não nos deixavam juntos, porque meu pai receava isso mesmo. «Estive um instante sosinha á beira d'um tanque. Meu pai veio ahi encontrar-me a chorar. Sentou-se ao meu lado, e disse-me affavelmente, tomando-me a mão: --Leocadia, conspiraste contra teu pai. Cuspiste com feia ingratidão na face do amigo que tudo te sacrificou, e até a sua liberdade vendeu a preço do teu bem-estar. Antes de hontem, fallei-te como amigo, esquecendo que era pai. Cuidei que tocára o teu coração, e abençoei o céo por me ter dado um anjo d'amor onde eu poderia ter encontrado uma filha rebelde. A tua docilidade encheu-me de orgulho e alegria, orgulho por ter tal filha, e alegria por vêr tão galardoados os meus sacrificios. Deixáste o meu espirito em paz com as suas tenções. Vi que se realisava o bello futuro que eu planisara para ti, e tamanha confiança puz na tua razão, que eu iria jurar que ninguem teve uma filha mais virtuosa. Enganaste-me, Leocadia, ou eu me enganei com o teu silencio. A vibora, que eu creára no seio, e acabava de afagar, mordeu-me cruelmente, ferindo-me talvez de morte. Em quanto eu velava a tua felicidade, tramavas tu a minha deshonra e a tua... Não me interrompas... é teu pai que falla e te impõe silencio, Leocadia. Premeditavas a tua fugida; trocavas teu pai, que conheces ha dezoito annos, pelo homem que viste hontem; trocavas a tua invejada reputação pela fama que segue á mulher que deixa no limiar da casa paterna abandonada os diplomas da sua virtude. Estás já deshonrada por intenção, filha; mas eu, desgraçado pai, serei ainda a tabua de salvação para ti. Fiz a accusação. Agora vou condemnar-te: estás perdoada; beija a mão do teu juiz, porque a justiça d'um pai tem em si o reflexo da misericordia de Deus. «Estas palavras tinham-me sob o peso d'uma fascinação dolorosissima. Levei machinalmente aos labios a mão que se me offerecia, e banhei-a de lagrimas. E eu não podia fallar, suffocada por soluços. Fazia-me compaixão o olhar aguado de meu pai; porém... não saberei dizer que terrivel qualidade de sentimentos luctavam em minha alma!... Entre a cabeça e o coração havia uma barreira insuperavel. O coração regeitava o amoroso perdão d'um pai despotico. A cabeça curvava-se diante da magestade das suas cãs, e mais ainda dos seus queixumes. Quando, porém, nesse instante, não senti extinguir-se o odio que me abrasára na manhã desse dia, é porque elle seria eterno, é porque o meu amor a Vasco era immenso, superior ao instincto filial, aos vinculos de sangue, e até á minha propria reputação. «Não respondi. Cruzei as mãos na face, e não sei que tempo meu pai esperou a resposta. Elle tinha sahido de ao pé de mim, e voltou com um ramo de flores. «Aqui tens, minha filha--disse elle--o ramo de paz entre nós. Ha-de haver dez annos que te dei um ramo neste mesmo sitio. Foi quando vieste da provincia para entrares no collegio. Olha esse olmo que está atraz de ti e lá verás uma inicial e uma data. Já então scismei aqui muito no teu futuro. Prometti a mim mesmo trazer-te aqui, já senhora, para te mostrar essa data, que marca uma hora das horas attribuladas que só um pai, extremoso e pobre, sabe comprehender. Mal diria eu então que a minha segunda visita a este logar seria solemnisada pelas lagrimas de ambos nós! Repara que eu tambem choro, Leocadia. «Ergui os olhos timidos para meu pai, e não pude conter-me. O resentimento calou-se um instante. Abracei-o com devoção, e, nesse instante... só o via a elle, só sentia por elle... a imagem de Vasco fugira por não poder vencer as cãs d'um velho soldado chorando...» .......................................................................... Neste momento, Leocadia suspendeu-se. A sua physionomia macilenta e descarnada pendeu para o seio. Uma lagrima das que vem ferventes do coração desceu-lhe na aridez da face, e sumiu-se logo como fio d'agua em terreno afogueado. E eu, que nem hoje ainda posso, com animo frio, contar uma vida que me hão-de receber como chimera, chorava tambem. XIII. O coronel, com palavras meigas, animára a filha a perguntar-lhe se o pai a violentava a casar com Francisco de Proença. A isto respondeu o pai, mudando de tom: «Eu, até aqui, empreguei todos os esforços da razão para convencer-te de que a docilidade ao querer d'um pai, que deseja dar-te um futuro certo, não é violencia, é juizo. Ora, se tu, minha filha, queres mudar o nome ás cousas, a obrigação d'um pai é ouvir a sua vontade experiente, e cerrar severamente os ouvidos ao querer irreflectido d'uma criança. Se ha um Deus, que julgue as tolerancias d'um pai com os caprichos d'uma filha, grandes contas eu daria, Leocadia, consentindo-te o alvedrio da escolha entre Vasco da Cunha e Francisco de Proença. Não quero o remorso de tamanha culpa, porque te amo muito, e muito preso a minha dignidade, e a minha palavra. Proença sabe que é teu noivo. Fui eu que lh'o disse, e basta. «Sou honrado, minha filha; e, como não tenho outra herança a legar-te, faço quanto posso por te deixar em posição de a receberes, e guardares, como eu a recebi e guardei. Á mulher pobre é mais difficultoso manter-se no decoro. Os appellidos de teu pai nada valerão, se os não fizeres resplandecer nesse invejado posto de honra, que se esteia nos bens da fortuna. «A virtude pobre é uma virtude obscura, que, nestes tempos de egoismo e pompa, se a não soffrea a rédea da religião, troca de bom grado os seus fóros de honra ignorada pela ostentação brilhante do vicio. O que eu tenho querido é rodear-te dos bens passageiros e miseraveis que o vulgo venera para que as tuas virtudes deem assim nos olhos das pessoas que não são vulgo. «Eu não sou d'aquelles pais, que aconselham a desobediencia aos filhos alheios, e lhes dão um logar na sua sege, cuidando que assim os poupam á deshonra e ao crime... Maria Maldonado... «Leocadia estremeceu, erguendo piedosamente os olhos para o coronel. Nesse olhar, disse ella que implorára o respeito de seu pai ao amor d'aquella mãi. «Maria Maldonado--proseguiu elle entendendo o olhar da filha--parece que renegou da virtude que foi até hontem a conselheira de todas as suas acções. Praticou um feito que a desabona, embora seu filho, por ser criança, tenha ido chorar no seio d'ella, como menino amuado pelas travessuras dos irmãos. «Leocadia, suffocada pelos soluços, apiedou o pai, que não teve animo de continuar. Dando-lhe o braço, passeou com ella, e as poucas palavras que lhe disse eram brandamente conciliadoras. Levou-a para longe da madrasta, cuja aproximação a fizera empallidecer. Pediu-lhe que se esforçasse por não denunciar a scena violenta que se dera entre elles. Leocadia fez quanto podem humanas forças. Mentiu ás averiguações de Proença com um sorriso, que tanto podia ser timidez, como ironia. Gervasio foi prodigo de carinhos a sua filha durante aquelle dia, e lançava um olhar de revez a sua mulher, quando esta, ferida de reflexo no amor proprio de seu filho notava a frieza com que Leocadia lhe acolhia os ditos arguciosos. Agora me ensina tu, ó musa, o que o coronel Gervasio disse a Maria Maldonado. Ás dez horas e meia entrou D. Maria na sua sege, e disse a seu filho, teimoso em acompanhal-a de longe, que a não seguisse. Juntamente com ella, entrou o capellão da casa, padre velho, que resmungára longo tempo contra a crueza de o não deixarem deitar ás nove horas, por causa d'uma expedição em que elle não fôra consultado. Eram trezentos passos da casa de Vasco á do coronel. D. Maria fez parar a sege defronte do mosteiro de Santa Anna, e foi com o padre collocar-se poucos passos distante da casa de Leocadia. Esperaram um quarto de hora, sem ouvirem rumor nas portas da casa. Precisamente ao soarem onze horas, um vulto se avisinhou de D. Maria, e ousou metter-lhe a cara, que ella procurava esconder nas costas do padre atrapalhado. «Não se esconda, snr.ª Dona... (disse o coronel) Não pronunciarei o seu nome, minha senhora, porque ouço sempre com reverencia pronunciar o nome de seu defunto marido, e não quero que possa alguem saber que a mulher do meu general está parada n'uma rua de Lisboa ás onze horas da noite. D. Maria estava em tremuras, como se a surprehendessem n'um crime. As palavras do coronel tinham só o tom urbano a neutralisar-lhes o agro da ironia, e o virulento da reprehensão. O padre estava naturalmente de bocca aberta, como quem diz «eu não dei para isto prego nem estopa.» Não lhe occorria idéa alguma á attribulada senhora, quando o coronel, offerecendo-lhe o braço, disse: «Não a convido a entrar em minha casa, snr.ª D. Maria, porque em minha casa não está senhora alguma. Se v. exc.ª, porém, me permitte acompanhal-a á sua, ou seguir a sua sege, receberei a honra de lhe dizer duas palavras. --Aceito o offerecimento...--disse D. Maria reanimada pela confiança que pôz no dom persuasivo das suas palavras sobre a vontade pertinaz do coronel. Na sege não cabiam tres pessoas. O coronel disse que iria a pé. O padre parecia, por seu silencio, consentir em ir como viera; D. Maria, porém, disse ao padre que cedesse o seu logar. O capellão sorveu uma pitada de simonte, puxou para as orelhas a gola do seu capote de castorina parda, e lá foi de seu vagar, ruminando philosophicamente aquella diabrura. Poucas palavras deram um ao outro, na sege. Quando esta parou, ouviram-se passos velozes saltando as escadas. O coronel apeára para dar a mão a D. Maria. Vasco surgia no limiar do portão justamente no instante que sua mãi entrava pelo braço do coronel. O nosso amigo recuou estupefacto, e soltou uma interjeição de espanto, que tanto podia ser _ah!_ como _oh!_ como _ui!_ Gervasio levou a mão ao boné, e disse risonho: «Boas noites, snr. Vasco... Acha-me, talvez, muito barbado para noiva?! D. Maria apertou-lhe o braço, murmurando: --Não zombe do infortunio, snr. Gervasio... Eu tenho direito a esperar a continuação da sua delicadeza... «É um direito de que eu a não privarei, minha senhora. Serei delicado com o filho como o fui com a mãi... Por isso mesmo, rogo a v. exc.ª que mande seu filho assistir ás duas palavras que devo dizer-lhe. --Vem, filho...--murmurou D. Maria, ao mesmo tempo que o coronel estendia affectuosamente a mão a Vasco, bastante pundonoroso para regeital-a. «Recusa?!--disse o pai de Leocadia, franzindo a testa com sobranceria militar. --Então, Vasco?!--acudiu D. Maria, movendo o filho a curvar-se com humildade diante do coronel. «Quer que subamos, snr.ª D. Maria, ou mesmo aqui me escuta?--disse Gervasio com mal disfarçado azedume. --Não, senhor, subamos. Vens comnosco, Vasco? «Se minha mãi ordena... --Ordeno, sim. Já na sala de espera, o coronel, dispensando entrar na immediata, fallou assim: «Eu disse com cordial sinceridade ao snr. Vasco, em minha casa, que minha filha, pelo facto de ser minha filha, não podia ser sua mulher. Não lh'o disse com esta rudeza, porque o sentimento que seu filho dedica a Leocadia é respeitavel, em quanto está dentro dos limites que a honra prescreve a cavalheiros que se abonam de appellidos, synonimos da honra e da probidade. «O snr. Vasco sahiu de minha casa promettendo-me não desmerecer da opinião em que o tive. Maravilhou-me a coragem da virtude em annos tão verdes! Pareceu-me vêr n'este pequeno corpo a grande alma do bravo que lhe deu o nascimento. «Pesa-me dizer que me enganei, e o snr. Vasco deve esconder a face envergonhada diante de mim, e cortar essa mão que ainda agora hesitou apertar a minha, que lhe offereci com demasiada generosidade, ou pouco brio. Se o pundonor devesse aconselhar a algum de nós o despreso, o despresivel de certo não seria eu, porque o enganado, o atraiçoado não é v. exc.ª, snr. Vasco da Cunha. «Adiante: e não se estorça, escutando-me, snr.ª D. Maria: eu estou de certo contando a v. exc.ª uma novidade. --Duvido que meu filho...--interrompeu a pobre mãi. «Duvida que seu filho?... --Promettesse a v. exc.ª renunciar ao amor de sua filha... «Eu não disse tal. Quiz dizer que o filho de v. exc.ª me prometteu desviar as suas attenções de minha filha, de modo que ella não conspirasse contra a minha vontade. Snr. Vasco, isto é exacto? Vasco não respondeu: lançou a sua mãi um olhar de tortura intima, um olhar que pedia um pretexto para elle sahir d'alli. O que se passava no coração do infeliz moço não sei contal-o. Inferno?... inferno, sim, que nenhuma religião inventou ainda, devia de ser! Se o examinassem de perto, vêr-lhe-hiam coberta a fronte d'um glacial suor. Todo elle tremia como sacudido pelos embates que o coração lhe dava no peito. Uma só idéa, synthese horrivel de todas, o predominava então: o desejo de morrer logo alli. A infeliz mãi comprehendeu tudo, viu tudo, sentiu tudo! Pediu licença ao coronel, ergueu-se, tomou a mão do filho, e disse-lhe: --Vai para o teu quarto, Vasco. Eu não me demoro aqui... lá vou ter já. Vasco sahiu, curvando ligeiramente a cabeça, quando passava diante do coronel. «Pobre criança!...» disse comsigo o pai de Leocadia; e nestas palavras dissera tudo o que nós poderiamos dizer e sentir em largos commentarios. Pobre criança, sim, que não soube erguer a fronte, embora marcada com o stygma da deslealdade, e dizer ao seu accusador e juiz: «mentes» Pobre criança, que não sahiu d'alli a procurar duas testemunhas, que, no dia seguinte, o vissem morrer ás mãos do coronel, ou cravar um florete no seio onde se embalara Leocadia! Pobre criança, que succumbiu, como succumbe a honra ferida pelo remorso, á reprehensão do tyranno que lhe vem diante de sua mãi, lançar em rosto a ignominia da perfidia! Ausente Vasco, D. Maria voltando-se com senhoril altivez para o coronel disse: --Pouco mais terá que me dizer, creio eu. «Pouco mais, minha senhora; mas esse pouco é importante. --Se é uma censura ao meu procedimento, digne-se omittil-a, por que sou eu a propria que me censuro. «Então, snr.ª D. Maria, disse tudo. Faltava-me perguntar-lhe se posso viver em paz com a minha familia. Visto, porém, que v. exc.ª se reprehende pela parte inconveniente que tomou nos amores do snr. Vasco, posso retirar-me com a certeza de que fica suspensa a sua correspondencia com a minha filha. --A minha? interrompeu ella. «A de v. exc.ª, queria eu dizer. --E eu digo a v. exc.ª--replicou D. Maria sensivelmente agastada--que sou mulher, e não posso dar ás suas ironias uma resposta condigna. O coronel soltou um frouxo de riso, cuja intenção é difficil entender. Era um destes risos _subjectivos_, (concedam o epytheto) cuja imagem está dentro da pessoa que ri. D. Maria, enraivecida pela desconsideração, interrogava-o com um olhar soberbo. O coronel, erguendo do pavimento a espada, e sobraçando-a, inclinou profundamente a cabeça, recuou até á porta, e disse: «Muito boas noites, minha senhora.» Ora aqui está o que se passou, até que o coronel entrou no camarote. XIV. Quinze dias depois ha um convite para casa do coronel: janta-se, e dança-se; festeja-se o casamento da sympathica Leocadia com o morgado de Sinfães, Francisco de Proença. Alto lá, senhor romancista! Não se escreve assim um romance. Vossê assim desacredita-se, e ámanhã não tem quem o leia. Quando a gente cuida que está no melhor do romance, o bom do homem, mette-se em duas semanas n'um carril a vapor, e vêl-o ahi vai levado com a historia no sacco de noite, de maneira que uma pessoa, que lhe faz o favor de o lêr, pedindo o livro emprestado, fica sem saber o que fez Leocadia, o que fez Vasco, o que fez a mãi, a madrasta, o noivo, o que fizeram todos, durante quinze dias! Isto é uma escandalosa empalmação! Senhoras e senhores meus, v. exc.as de certo conhecem muitas meninas na posição de Leocadia. Posição trivialissima, aliás. É uma pobre rapariga a amar um homem pobre; mas tem um pai a querer casal-a com um homem rico. Chora, arrepella-se, promette matar-se, se a morte não vier espontaneamente. O pai teima, o homem rico teima, o homem pobre não póde teimar, ainda que queira. Por fim, a menina faz a vontade ao pai, ao noivo rico, á sociedade torpe, casa e dança por comprazer no dia em que casa, e almoça com pouco appetite, no dia seguinte, com mais algum no outro dia, e assim successivamente, até engordar. Isto é muito simples, e muito rotineiro, não é verdade? É. Então de que se espantam, se eu lhes digo que uma mulher, de carne e osso como v. exc.as, fez o que v. exc.as fizeram, viram fazer, ou farão? Alto lá! tambem eu digo. A minha pobre Leocadia, se hoje vivesse, e lesse essa pagina infanda que ahi fica, cobril-a-hia de lagrimas de remorso por me haver feito seu confidente. Perdôa-me, minha santa amiga! Eu tive-te um instante suspensa por uma hypothese cruel sobre o charco em que patinham muitas georgianas de chinellos, que por ahi se vendem para o harem de sujos pachás, que ao passarem a linha, lavaram a cara dos ferretes de sangue com que sahiram do açougue humano. Se eu fizesse uma criminosa omissão de tuas lagrimas, o mesmo seria pisal-as, Leocadia. Se eu te rebaixasse a transigires com o dinheiro de teu marido, mascarando-te com a obediencia filial, daria comtigo regalo e galardão a estas mulheres de almoeda, que, na alma, não valem mais que as de Babylonia, e no corpo não valem tanto. Não, espirito que me vês da tua gloria, eu contarei as tuas lagrimas; e, se não rasgo as paginas que escrevi, estremal-as-hei por um traço negro das que tu me segredaste nas fugitivas noites em que este gemer do mar, que ouço agora, vinha casar um murmurio melancolico á tua narração. XV. Leocadia era vigiada por toda a familia. Triste, sombria, e taciturna, causava suspeitas ao coronel, que postára militarmente o auxiliar, de sentinella, no pateo, de dia e de noite. Quasi sempre no seu quarto, Leocadia meditava fugir. Não achava, porém, o exito feliz dos seus planos. A fuga pela porta, unica evasiva que tinha, era impossivel. Desanimada, toda a sua valentia moral reservou-a para dizer «não quero» logo que seu pai a mandasse vestir-se para ir receber a benção nupcial. Firme neste proposito, esperava, com coragem e juramento de morrer, a hora da lucta horrivel, a formal desobediencia, todas as torturas que podesse inflingir-lhe o pai irritado. Tinham decorrido dous dias depois do passeio a Campolide, quando uma antiga criada, que já o fôra da primeira mulher de Gervasio, voltou da provincia, onde fôra visitar os seus parentes. Esta criada era aquella Thereza, que eu vi na Foz. A situação de Leocadia melhorou, porque Thereza chorava com ella, aconselhando-lhe ao mesmo tempo obediencia a seu pai. O coronel, tambem amigo da velha criada, pedia-lhe que desvanecesse com suavidade do coração de sua filha uma paixão que fazia a infelicidade de todos. Thereza não podia tanto. Conheceu as intenções da menina, e disse-as ao coronel, affirmando-lhe que ella se deixaria matar, mas casar, não. Depois de cinco dias de desgostos para o pobre pai, e de irritações orgulhosas da madrasta, e suspeitas más de Francisco de Proença, e continuadas lagrimas e reclusão de Leocadia, o coronel queixou-se de violentas dores de cabeça, e febre. Apenas se recolheu á cama, Leocadia foi sentar-se á cabeceira do seu leito. Quando os medicos disseram que se declarava uma febre maligna, o sobresalto operou uma subita mudança nas maneiras de Leocadia. O sentimento desvaneceu-se. Quantas caricias uma boa filha tem no coração todas ella empregou para adoçar as amarguras do pai enfermo. O coronel queixou-se de serem desgostos moraes, causados por ella, os que o tinham levado áquelle extremo. Leocadia lançou-se aos braços febris de seu pai, pedindo-lhe perdão, e voltou-se a Nossa Senhora, promettendo sacrificar-se ao homem que lhe destinavam se seu pai recuperasse a saude. O coronel não ouvira o voto, mas adivinhou o silencio de sua filha. Ao setimo dia a febre recrudesceu. Eram curtos os intervallos da lucidez que o delirio lhe consentia. N'um d'esses intervallos, o enfermo chamou sua filha, e disse aos assistentes que se retirassem. Pungentes palavras foram estas: «Leocadia, creio que morro. Deixo-te, minha filha, n'um mundo que não conheces. Parto, e tu ficas só. Quando eu fechar os olhos, fecharam-se para sempre os unicos olhos que te viam com amor. Ficas sem parentes. De tua mãi, ninguem já vive. De teu pai, tens dous tios no Brazil, que te não conhecem. Que farás tu, filha, quando me levantarem morto desta cama? --Meu pai!--exclamou Leocadia com vehemente afflicção--meu querido pai, não pense que morre... «Morro, filha, morro; e, se a minha agonia fôr trabalhosa, é o coração que se despedaça, separando-se de ti... Sem ti, morria tranquillamente. Estou cançado, porque nunca soube o que era a felicidade nesta vida; a da outra... a da outra, meu Deus, vós sabereis se eu a mereci com a paciencia... Leocadia, queres que eu acabe em paz, que eu expire abençoando-te? --Sim, sim, meu pai... quero que viva, abençoando-me!--bradou ella, beijando-lhe as mãos afogueadas. «Então, filha, cumpre a minha vontade. Liga-te a esse homem que te ha-de estimar, porque eu lh'o pedirei á minha ultima hora. Tu has-de ser feliz com elle; has-de olhal-o sempre como o amigo que teu pai moribundo te escolheu. Se elle te der algum motivo de soffrimento, quem os não tem neste mundo?! Se soffreres, offerece-me as tuas dores e eu virei em espirito agradecer-te o sacrificio. Serás então consolada, filha, pela memoria de teu pai, que pensava fazer-te venturosa, embora se enganasse. Responde-me, Leocadia... Casas com Francisco de Proença? Leocadia tirou das entranhas um gemido, um soluço suffocante, e com elle uma palavra que parecia a ultima da vida que vai n'ella: --Sim...--disse ella. O coronel, vencendo a fraqueza com grande esforço, pôde ainda sentar-se no leito, alongando os braços para ella. A filha sustentava no hombro a cabeça esvahida do enfermo, e refrigerava-lhe com lagrimas a mão convulsa. Seguiram-se minutos de silencio. Ouvia-se apenas o soluçar de ambos. O coronel desprendeu-se dos braços da filha, e pendeu a cabeça para o travesseiro. O sangue batia-lhe vertiginoso nas frontes. As palpebras cerraram-se. Phrases interrompidas sahiam-lhe dentre os labios seccos e quasi immoveis. Leocadia, assustada, chamou gente. A madrasta, vendo o lethargo do marido, voltou-se para a enteada e disse com rancor: «Quem mata meu marido é a senhora! Veja a que estado o reduziu! É uma parricida snr.ª D. Leocadia! Ha-de dar terriveis contas a Deus de ter arrastado seu pai á sepultura... É uma filha amaldiçoada!» Leocadia, não teve animo para responder-lhe. Pôz os olhos em seu pai, e disse-lhe em seu coração: «Vós bem sabeis que não é verdade o que ella diz!» e sahiu, apertando a cabeça com as mãos. A medicina cobriu de causticos o doente. Os tormentos deram-lhe com a irritabilidade uma vida de emprestimo. Dous dias se seguiram de esperanças, porque o delirio era menos frequente, e alguns instantes de dormir tranquillo vieram reparar-lhe as forças. O coronel chamou a filha, tendo ao pé de si Francisco de Proença, e sua mãi. Á cabeceira d'elle estava um crucifixo e duas luzes. Eram os preparatorios para o recebimento da extrema-uncção. O enfermo pedira um confessor, que se achava já no quarto. «Aproxima-te desta cruz, Leocadia--disse elle com energia--snr. Francisco de Proença, eu entrego-lhe, minha filha. Comprehende o senhor a valia deste thesouro que lhe entrego? Sabe como eu queria que o senhor amasse esta creatura? --Amal-a-hei quanto se póde amar nesta vida... disse Proença, sentindo eriçarem-se-lhe os cabellos, commovido pela religiosidade do acto. «Minha filha, ajoelha diante de Deus que nos escuta, e pede-lhe que faça duraveis os bons sentimentos no coração de teu esposo, e que te faça a ti sempre digna d'elles. Leocadia ajoelhou, e Francisco de Proença, arrebatado pelo bello funebre do lance, ajoelhou a par com ella. E oravam todos mudamente. O coronel tinha as mãos erguidas. O padre confessor, quebrou o silencio, erguendo-se, e tomando as mãos de Leocadia. «Estão accesas as luzes do altar. A menina prepare-se, que eu quero ter o jubilo de ser o ministro deste sacramento! Que união de tão bom agouro... Vamos, filhos.» O frade graciano enchia a poesia santa do grupo! Leocadia sahiu com sua madrasta. Parecia somnambula. Julgal-a-hieis sem idéa, sem vontade, sem consciencia do que fazia. Vestiram-na. Entrou n'uma sege, achou-se ajoelhada no arco d'uma igreja, respondeu umas palavras que lhe ensinaram, e viu-se sosinha com um homem, na sege, onde viera com sua madrasta. Conduziram-na ao quarto de seu pai. A vida então sahiu do lethargo. Leocadia achou abertos os braços paternaes para recebêl-a. Lançou-se a elles chorando, soluçando, arquejante, abafada por uma agonia, cuja intensidade ella não pôde explicar-me. O que me disse, para eu alcançar com os olhos d'alma a sombra da sua dôr, foi que, abraçando o pai na volta da igreja, se lhe figurara a imagem moribunda de Vasco, fitando-a com um olhar piedoso, em que parecia dizer-lhe: «perdoo-te a morte, Leocadia.» .......................................................................... O coronel sobreviveu quatro dias aos desposorios de sua filha. O festim de nupcias foi um funeral. A noticia do casamento foram as cartas de enterro. A noiva despiu o vestido branco para se envolver no de crepe que nunca mais despiu. XVI. O pinhal do _Pastelleiro_ rumorejava brandamente, assoprado pelo ar da noite. O mar era uma immensa bacia d'aguas mortas. A lua mosqueava-lhe o dorso em escamas lucidas. O archanjo da poesia com o seu cortejo de chimeras volateis, brincava na alamêda das fontes murmurosas, gemia com o piar tristonho das aves queridas da noite, e sentava-se na peanha dos cruzeiros, que a projecção da luz assombrava no chão. Eu estava profundamente melancolico. E ao pé de mim viera sentar-se Leocadia, na pedra bruta, que ainda hoje vereis, servindo de tranqueira a uma cancella fronteira da casa. Acabára eu de ouvir o quadro que apenas esbocei no anterior capitulo. A narradora calara-se, e eu não ousára quebrar o seu religioso silencio. Eu bem vira que as suas palavras derradeiras eram um como tremulo gemido. Sentira vibrarem-lhe afflictivamente as fibras do coração, como se as ferisse a realidade dos successos que a gentil martyr recordava. E, por isso, o meu silencio era a expressão da pena, o pasmo em que nos deixa um espectaculo lugubre. Eu tinha em mim todas aquellas imagens, descriptas por ella como quem as entalhára com fogo no coração. Via o altar do tremendo sacrificio, via o leito do agonisante. As feições do coronel, apanhadas pelo regêlo do trespasse, essas, que eu nunca vira, todas se me desenharam na imaginação, sempre fertil de creações funebres. Ao pé de mim estava a heroina desta tragedia, ainda formosa, ainda opulenta de encantos, flôr orvalhada das lagrimas do céo para onde ella mandava continuamente o seu perfume. Que mulher é esta que eu encontrei na terra, para apertarmos as mãos n'um adeus para sempre? Que attribulada expiação a da minha alma que só póde chorar as penas d'ella! Não póde amar-me, não; eu sei que não póde, e offertar-lhe o meu amor seria injuriar a sua saudade! Para que te encontrei eu, santa! Estas ultimas palavras fugiram-me, como a revelação d'um sonho. Leocadia tocou-me ligeiramente no hombro, e disse: «Que é? Não sei o que disse... --Nada dizia--repliquei eu--Sonhava, minha querida irmã, sonhava. Sabe, minha amiga? Está-me pesando a vida. Não sei o que ha-de ser de mim... quando a perder. Abençoada seja a mão da morte, que baixou a apanhar de entre os felizes do mundo os que vieram com o condão da minha desventura. «Porque, meu amigo?! --Porque entre nós ha só de commum a confidencia d'algumas horas, a confidencia que não modera os impetos d'um desgraçado amor... «Oh! não diga, não diga isso outra vez...--atalhou Leocadia pondo-me a mão nos labios--Tenha pena de mim... Chame-me sua irmã, senão arrependo-me, sinto o primeiro remorso da minha vida... Beijei-lhe a mão, e murmurei: --Até ámanhã. «Sim? até ámanhã? quem sabe se nos veremos! De um momento para o outro posso ser mudada... E eu queria, meu irmão, queria acabar hoje a minha historia. Não sei que presagio me diz que não teremos outra noite assim... Mais alguns minutos... diz-se depressa o que falta... Quer? --Diga, diga, Leocadia; mas faça um juramento. «Juramento! qual? --Qualquer que seja o seu destino, se tiver vida, se tiver um instante seu, lembre-se de seu irmão, escreva-lhe uma palavra, uma só «vivo» só isto... jura? «Prometto, meu amigo, e não faltarei... E se lhe disser «morro» é que Deus me chamou para ao pé de Vasco... --Sim, sim, falle-me desse infeliz que a chama, desse amigo que a minha imaginação contrahiu... Morreu, sim?... e que morte!... «Eu quasi que o vi morrer. --Viu?! É horrivel, meu Deus! «Foi assim. Oito dias depois da morte de meu pai, Francisco de Proença perguntou-me se eu queria ir para o campo. Entreguei-me á sua vontade. Minha madrasta desejava sahir de Lisboa, para desafogar da sua saudade. Fomos para uma quinta entre Cintra e Collares. «Estavamos ahi havia um mez. Thereza, a meu pedido, escrevêra para Lisboa a quem a informasse de Vasco. Disseram-lhe que elle e a mãi estavam a ares em uma das quintas. Eu pedia por elle a Nossa Senhora todos os dias, muitas vezes, e com immensa fé. «Uma tarde, Francisco de Proença fôra á caça, e eu fui com Thereza passear para a banda de Collares. Havia no caminho uma azinheira, um sitio que respirava saudade, entrei por alli dentro, e fui ter a um portão de quinta, que tinha uma grande arvore. Sentei-me áquella sombra, vendo cahir as folhas, e comparando-as á queda de tantas, de todas as minhas esperanças. Estava assim absorvida, bebendo as doçuras do meu fel, quando o portão se abriu. Estremeci... Era um padre que sahia... o padre capellão de D. Maria Maldonado! «Elle fixou-me com espanto, e apenas me cortejou; esteve um pouco a olhar-me, e disse: --A menina não é a snr.ª D. Leocadia? «Sou, sim, senhor. --Então que faz por estes sitios?! disse elle admirado. «Vim a passeio... Moro n'uma quinta perto d'aqui. --Pois se quer entrar, eu dou parte á snr.ª D. Maria. «Como!?--exclamei eu--a snr.ª D. Maria Maldonado?! --Sim, minha senhora, está aqui com o snr. Vasco--disse-me elle--e o snr. Vasco vai dar contas a Deus brevemente. «Meu Deus! eu não posso lembrar-me do que então disse ou fiz. Entrei n'uma tremura de susto, de terror, de não sei que tormento novo para mim. Conheci que me fugia o entendimento, e a vista. Queria tirar-me d'alli, e não podia; ainda pedi a mão a Thereza, e já não pude dar passada. Desfalleci nos braços d'ella. «Voltando á vida, que a justiça de Deus não quiz levar-me, achei-me sentada n'um banco de pedra, n'um jardim. Ao pé de mim estava D. Maria. Fiz um esforço por ajoelhar-me aos pés d'ella. Susteve-me; e chorava, meu Deus, como chorava a pobre senhora! «É a vontade de Deus... disse-lhe eu, que aqui me trouxe. Queria vêl-o, minha querida mãi, diga-lhe que a mão do Senhor me conduziu aqui para receber o seu perdão... Mas eu não sou culpada... Meu pai estava a expirar... Morreria atormentado...» Ai... eu não sei o que disse, entre gemidos... D. Maria olhava-me com ar de compaixão, e consultava os olhos do padre. Este acenava negativamente. Não queria que eu visse Vasco... E eu estava de joelhos aos pés de D. Maria, quando ouvi proferir o meu nome, n'um grito. Olhei... era Vasco, abrindo uma vidraça. Era elle, livido como um espectro vestido de branco, com os olhos abrasados de delirio... A janella cahiu, Vasco desappareceu, e o padre subiu a correr umas escadas, em quanto D. Maria sustinha o meu arrebatamento. «Deixe-me, deixe-me vêl-o!» rogava eu, allucinada, louca de paixão, capaz de matar-me alli, se me não deixassem ir! «Ao cimo da escadaria, o padre encontrou-se com Vasco. Não o conteve; desceram ambos atropelladamente. E o meu infeliz anjo exclamou: «Vieste para mim, minha esposa?... Eu esperava-te, esperava-te, como se espera a salvação.» «E eu rompi n'um choro que era sentir-me morrer. O desgraçado não sabia que eu estava casada! --Falla, falla!--gritava elle--vens ser minha esposa? fugiste a teu pai? esse tyranno teve compaixão de nós?--Cala-te, meu filho!--exclamava D. Maria... Estás enganado! «Enganado! pois esta não é a minha esposa?!» «O padre tomou-o pelo braço, e exclamou: --Não, não é sua esposa... é esposa d'outro que seu pai lhe destinou!-- «Vasco soltou um terrivel grito, levou as mãos á face, e foi cahir nos braços de sua mãi... «Matai-me, meu Deus!» exclamou elle. «Agora--proseguiu Leocadia arfando convulsivamente--peço-lhe eu que vá, meu amigo, não posso continuar... Estou doente... Adeus... Se eu não podér fallar-lhe, ha-de lêr o resto da minha historia.» Leocadia entrou encostada ao meu braço em sua casa. Eu fiquei alli não sei que tempo entorpecido. Quando me retirei, alvorecia a manhã. XVII. O CARACTER DE FRANCISCO DE PROENÇA. É preciso virmos procural-o aos nossos ultimos annos. Em 1828 o homem não era ainda feito á similhança do typo, que mais o encantára, no romance. Depois de 1834, é que as bibliothecas de novellas entraram por aqui dentro a fecundar este chão bravio, como extravasantes do Nilo. Era necessario ser-se excentrico, desde o ventre materno, para ser romantico em 1828. Francisco de Proença representa a vanguarda dos descabellados em Portugal. Desde criança, merecêra pelas suas escaramuças sanguinarias aos coelhos, o cognome de «Attila de coelheira.» Em Coimbra, chamavam-lhe o _chevalier sans peur et sans reproche_. A sua principal mania era o brasão. Estava apparentado com as primeiras casas da monarchia, por um tal Egas, filho de Mem, neto de Fuas, e bisneto de Ruy que acompanhára D. Henrique a Cárquere, a cumprir um voto d'uma perna torcida. Depois, e em consequencia d'esta mania, tinha um requinte de brios que lhe custou muito puxão d'orelha. Desafiava a espadão todo o mundo, e quiz mandar um cartel a um doutor octogenario que o reprovou em mathematica. Na primeira carta a um namoro que tivera assignava-se o _commendador Francisco de Proença_. A menina riu-se, e o fidalgo, no adro d'uma igreja, perguntou-lhe se os trabalhos da cozinha a não deixaram responder. Tinha destas cousas. Os seus bens de fortuna não eram o que elle precisava que fossem para sustentar o seu orgulho. Aceitou a mão da filha de seu padrasto, porque a paixão o acolheu de subito. Leocadia, com o seu desdém, pisára-lhe a soberba. Proença foi vencido pelo desprezo. Sua mãi, de mais a mais, dissera-lhe que Leocadia era a presumptiva herdeira de dous tios millionarios que tinha na America. O _dinheiro commercial_ não lisongeava o fidalgo; todavia, esta repugnancia pôde vencel-a o amor. Casou, e não se póde dizer se tractou bem ou mal sua esposa. Estas differenças são as mulheres que as notam, e Leocadia recebia com tedio disfarçado as amabilidades de seu marido. Para o não detestar, tinha sempre entre si e elle a imagem de seu pai moribundo, e o crucifixo do juramento. Leocadia habituára-se a viver fóra do seu corpo... A alma voava livre onde a chamava a saudade; a materia era a victima sacrificada. Deste modo, affazer-se-hia ao captiveiro, sem sondar a indole d'um homem que a chamava sua. O traço, porém, mais caracteristico da indole romanesca de Francisco de Proença, vai descobril-o um infeliz acontecimento. Quando Leocadia sahia, encostada ao braço do capellão, o portal da quinta dos Maldonados, Francisco de Proença, vindo da caça, atravessava a azinhaga, assobiando aos perdigueiros. Leocadia presente-o, e quer esconder-se; mas era tarde. Proença pára estupefacto, e Leocadia pára tambem. O fidalgo, que não conhecia o padre, interroga-o: «Quem é o senhor?! Como se acha aqui a senhora?! O padre tartamudeou: --Eu sou capellão d'esta casa. «Que casa é essa? --De uma minha amiga--balbuciou Leocadia. «É admiravel que eu não conheça as amigas da senhora! Como se chama essa amiga? O padre, aterrado pelo olhar soberano de Proença, disse: --É a snr.ª D. Maria Maldonado. O cavalheiro fixou attentamente sua mulher. Leocadia não levantava os olhos do chão. A surpreza reduziu-a ao silencio, que confessa o crime, e é já em si um principio de penitencia. «Vamos, senhora!--disse Proença. Decorreram tres dias, sem que Leocadia visse seu marido. Procurou-o, deliberada a convencêl-o da sua innocencia com a sincera historia do seu amor áquelle homem. Proença soubera tudo de sua mãi, e furtava-se ao encontro com sua mulher. Ao quarto dia, Leocadia foi avisada, da parte de seu marido, que preparasse o seu bahú para viajar, com elle, no dia seguinte. Ella pediu uma entrevista a Francisco de Proença. Respondeu-se-lhe que lá fóra teriam sobejas occasiões. Replicou a infeliz que não podia, que estava muito doente. Disse-se-lhe que em toda a parte havia uma sepultura. A comitiva dos viajantes era unicamente Thereza. Esta criada convinha ás intenções do marido. Desembarcaram na Madeira. Durante a passagem, Leocadia nunca pôde prender a attenção de seu marido dous segundos. Quinze dias depois do desembarque, Francisco de Proença apresenta-se, pela primeira vez, em rigoroso lucto diante de sua mulher. --Quem lhe morreu?!--perguntou ella. «A senhora! --Como?! está delirando! «Quem morreu foi minha mulher--» tornou elle com uma visagem ridiculamente tragica. --Pois se morri, eu vou morrer--disse ella com angelica mansidão--o Senhor receba a minha alma. «A sua alma condemnada ha-de continuar a existir n'um corpo impuro. --Não quero entender a injuria--disse ella com firmeza--Antes a morte. «Morreu para mim; mas ha-de viver para o remorso. Eu sou viuvo, senhora. Em Portugal ha-de saber-se que eu sou viuvo. A que foi mulher de Francisco de Proença, terá de hoje em diante outro nome. A senhora jámais dirá que eu sou seu marido: o punhal está sobre o seu seio esperando que essa palavra lhe passe os labios. Dou-lhe a vida, porque vejo o coronel moribundo que me supplica este heroismo... --E eu não aceito a graça--interrompeu Leocadia... «Pois então, ha-de supportal-a como castigo. A senhora tem uma mesada, para viver onde queira, com tanto que a sua companhia unica seja essa criada que foi de sua mãi. Tenho a generosidade de conceder-lh'a; mas, senhora, repare que eu vou mostrar em Portugal a certidão do seu obito. No dia em que me desmentir, matei-a! Leocadia pendeu a cabeça para o seio, e murmurou, sem lagrimas: --Como quizer, senhor. Agora deixe-me em paz. «Ainda não. Na provincia de Traz-os-Montes tenho um casal, situado entre quatro montanhas: Quer habital-o? --Sou sua escrava, senhor. «Sabe que de hora em diante perdeu o nome que tinha? --O que quizer, mas não posso ouvil-o. «Nem eu vêl-a mais; porque minha mulher morreu!» E retirou-se, solemne e sonoro nos passos, como a estatua de D. João Tenorio. Aqui está o que se chama um homem romantico e uma mulher desgraçada. XVIII. Se bem me lembro, já disse que Leocadia é o nome que a mulher de Francisco de Proença adoptou, desde a scena do anterior capitulo. No decurso do romance, conservei esse nome, e já agora conserva-lo-hei até final. Podéra ter-lhe dado pseudonimo; mas tão leal quero ser á verdade, que, a não poder, por melindre e respeito, dizer o seu verdadeiro nome, escrupulisei na invenção de outro. Leocadia, pois, sahiu da Madeira para Lisboa. No mesmo navio viera Francisco de Proença, que, em todo o tempo da viagem, não deu signal de ser ao menos relação de Leocadia. Sahiram para o Porto no primeiro hiate. D'aqui, D. Leocadia e Thereza foram para a provincia. O morgado de Sinfães appareceu-lhe na despedida. Terriveis e de eterna condemnação foram as suas palavras: «Vá, sombra da mulher morta! vá, e veja sempre diante de si o punhal, que lhe espera nos labios uma palavra só... o meu nome, o nome de seu marido viuvo!» A desgraçada quiz ajoelhar-se aos pés do seu verdugo. Proença repelliu-a com um tregeito de escarneo e asco. Leocadia foi viver no casal de seu marido. Era uma habitação mal reparada, sumida entre quatro montanhas. Apenas chegou, foi recebida respeitosamente por um caseiro, que a reputava irmã bastarda, ou rapariga das affeições de seu amo solteiro. Leocadia perguntou a este homem porque estava a pedra de armas coberta de negro: respondeu o caseiro, se ella ignorava que tivesse morrido a esposa do fidalgo! Leocadia abraçou-se á criada, chorando, e disse: «É verdade... essa desgraçada morreu...» O caseiro reparou n'isto, e disse á mulher que havia o quer que era de historia nos modos da senhora que viera lá de por ahi abaixo. Leocadia entrou na cama, que lhe mostraram, e disse a Thereza que a sua ultima paragem antes da sepultura era alli. Foi um chorar d'ambas de cortar o coração aos caseiros, que as escutavam. Era rapido o deperecer de Leocadia. Não se erguia do leito, e pedia a Deus um paroxismo curto. O caseiro communicava para o Porto ao patrão o estado da senhora. Não recebia resposta. Um dia, porém, appareceu na aldêa um homem que procurava D. Leocadia, com ordem de Francisco de Proença. Este homem diz ser medico. Examina a enferma, e diz-lhe que, por ordem da pessoa que alli a domina, deve immediatamente entrar n'uma liteira com a sua criada; e acompanhal-o. Leocadia, quasi exanime, obedece, sem saber a quem, nem para que fim. A liteira, depois de sete dias de jornada, parou no alto de S. João da Foz, no sitio do Pastelleiro, onde eu, João Junior, encontrei Leocadia para ouvir de seus labios convulsos de gemidos essa historia triste, que eu tive a impiedade de conspurcar com algumas facecias de estragado gosto. O que ella me não contou é o que me disse Thereza, alguns annos depois, quando sua ama já era defunta, e o acaso m'a deparou n'um recolhimento, em uma villa de Traz-os-Montes. Attendam agora, que ahi vai pendurar-se o romance no prégo philosophico com que o intitulei: DINHEIRO. Vai-se tractar de dinheiro, leitoras espirituosas; prestem-me a sua benevola attenção. Uma tarde passava eu no Pastelleiro; sahiu-me ao encontro a caseira da quinta, e deu-me a triste nova de ter sahido, na madrugada d'aquelle dia, a senhora para não tornar. Um homem novo, acrescentou a caseira, viera buscal-a, e descera com ella pelo braço a escada, fallando-lhe com muito bom modo. Agora vou fallar de mim um pouco. Eu fiquei esthetica e plasticamente parvo! Quem seria o homem?! O marido, de certo, não, porque o marido, até ao dia em que falláramos, estava viuvo, e não tratava de resuscitar a mulher. Seria a historia lamuriante uma logração á minha boa fé?! Seria ella uma visionaria, uma douda, ou, peor que tudo, uma destas mulheres desabusadas que mangam dos poetas da minha força? É impossivel! Leocadia deve ser necessariamente um anjo! É o marido que a arrasta pelos cabellos ao cepo do martyrio. Alguem lhe disse que eu vinha aqui, e o malvado não comprehendeu que eu era o sacerdote da mais santa das amisades. E, no afôgo da minha saudade, embrenhei-me por aquella bouça que lá verdeja ao fundo, enchi meu coração de tenebrosas angustias, e pedi aos meus olhos o chorar do desafôgo. Inutil, inutil foi o meu rogar, porque a minha dôr era como o encravar do estilete que não sangra; eu tinha dentro o brazido do deserto, sem gotta de pranto; era uma contricção de matar, uma abafação em que os pulmões, batendo contra o coração, pareciam espedaçar-se. E porque? É que eu amava muito aquella martyr, muito, com o amor tres vezes immaculado do poeta. Não esperava d'alli senão a religiosa affeição da victima paciente ao consolador que dera a sua vida inteira por um dia de ventura para ella. Mais nada; porém, este pouco é o ar, o tempo, a luz, a bemaventurança do desgraçado que encontrou na terra uma mulher como Leocadia, e uma paixão como a minha. Tu viste, saudosa Poncia, que pranto ardente arou as minhas faces, no estio da existencia! Nos tectos cavernosos do meu quartel reboaram longo tempo os eccos dos meus soluços. Os meus dentes cerraram-se, como os do condemnado nas trévas inferiores, e tres dias e tres noites a minha lingua não encanou o bolo alimenticio. A restea do sol de Setembro, mosqueando o taboado carunchoso do meu quarto, vinha pallida como a luz betuminosa dos infernos dantescos. A brisa da tarde nunca mais se retouçou louçã pelas corollas das boninas tremulas. Negra como a minha saudade, era negra a tunica funeraria de que a natureza se vestiu. Diz tu, ó Poncia, se me viste comer ou beber durante oito dias, contados da data em que a minha alma se despegou d'aquella alma gentil que se partiu do Pastelleiro. É verdade que passados esses oito dias, obedeci ao despotismo da natureza vegetativa, e ás instancias impertinentes da minha consternada Poncia. O resultado foi sinistro: sobre uma paixão calamitosa uma indigestão pertinaz! Convalesci com jejuns dignos d'um S. Simão Stelita, e depois... amei perdidamente uma tal Catharina... Isto é outra historia, que ha-de vir depois. Os meus continuados amores tem sido para mim um systema de medicina, por que diz o grande poeta: Que o veneno espalhado pelas vêas Curam-no ás vezes asperas triagas. Eu curo-me sempre assim. Em 1828 era eu mais homoeopatha que o proprio Hahnemann. XIX. Agora vai explicar-se tudo, e acaba-se o conto. É o caso: Lembre-se o leitor que o coronel Gervasio tinha dous irmãos ricos no Brazil, ambos solteiros. Estes homens negociavam em brilhantes, e, na ultima das suas excursões ao centro do imperio, foram assassinados por salteadores, deixando um grande capital sem testamento. Do Rio de Janeiro vieram logo averiguadores a Portugal para comprarem a opulenta herança. Souberam em Lisboa que os herdeiros proximos, o coronel, ou sua filha, tinham morrido sem successão. Francisco de Proença estava então no Porto, e mais d'um amigo lhe repetiu os pesames da fatal viuvez, que o privava d'alguns milhões. Aqui está o nosso homem em embaraços de uma terrivel originalidade, ao passo que uma chusma de parentes remotos de sua mulher se habilitam pressurosamente! A resurreição de Leocadia será possivel? A herança compensará a zombaria com que a sociedade vai entrar no segredo dos seus ridiculos brios? Não foi longo o interrogatorio que o tragico viuvo se fez. Feito o escrutinio, os votos a favor da resurreição tinham a maioria. Proença resolveu arrancar sua mulher dos limbos, e para isso mandou á provincia o medico e a liteira. Leocadia, como vimos, é conduzida ao Pastelleiro, e espera ahi tres mezes a primeira visita de seu marido, depois de ter assignado algumas procurações, cuja significação ella não entendeu. Francisco de Proença fôra a Lisboa tractar de habilitar sua mulher. Julgaram-no doudo porque a morte da filha do coronel era caso decidido para as relações de ambos; e como o viuvo teimava em affirmar que era casado, protestando apresentar sua mulher viva em presença de testemunhas que a conhecessem de vista, a opinião da justiça foi que viesse a Lisboa a supposta defunta, e ao mesmo tempo se averiguasse na ilha da Madeira se alli, em tal mez, d'aquelle anno de 1828, fallecera a mulher de Francisco de Proença. O estranho successo foi estimulo de estrondosas gargalhadas na capital. Havia grande ancia de conhecer o milagroso parvo, cujas anedoctas de Coimbra reviveram com salgadas ampliações. Os mais sisudos commentadores do estranho caso queriam, por amor da moralidade, que se devassasse o tumulo de Leocadia, e dissesse ella, visto que resuscitou, que morte fôra aquella de sete mezes, onde estivera, e de que supplicios viéra resgatal-a a herança de seus tios. O thaumaturgo não ousava apparecer na orda das suas relações. Ninguem, se o conhecia, podia encaral-o com os labios seriamente fechados. O apupado marido da mulher redeviva queria explicar a algum dos mais impertinentes averiguadores do mysterio, aquella especie de catalepsia de sete mezes, e então dizia: «Pensei que fôra deslealmente deshonrado por minha mulher. O meu coração cobriu-se de lucto, o punhal vingativo pedia o sangue da perfida, mas o meu espirito era nobre de mais para sanccionar o assassinio d'uma debil mulher. Quiz matal-a moralmente, e dei-a por morta moralmente para mim. Fiz-lhe graça da existencia, para que o remorso lento me vingasse. Vesti-me de lucto, disse que minha mulher morrêra; e, se alguem me perguntasse particularidades da sua morte, eu responderia que uma campa a separava de mim. O que hoje faz rir a sociedade seria então recebido como um rasgo de heroismo na desgraça. Os maridos atraiçoados achariam em fim a condigna penitencia da perfidia. --Mas...--alguem lhe disse--tua mulher estava innocente? A esta pergunta indiscreta Francisco de Proença titubeava, e não sabia se lhe convinha decidir-se pela absoluta innocencia de Leocadia. Lá se aveio como pôde com os importunos, até que um dia appareceu com sua mulher resuscitada, e encartada no nome e appellidos que teve quando foi viva. A presença desta pobre senhora foi, só em si, uma accusação contra seu marido. A desgraçada, quando lhe perguntaram, diante de testemunhas, se era mulher de Francisco de Proença, respondeu: «Dizem que sou.» --E a senhora não diz o mesmo? «Eu sou viuva» tornou ella. --Então qual dos senhores é viuvo? É original a mania d'ambos--replicou o jurisperito, rindo com os circumstantes, em quanto as lagrimas da herdeira millionaria lhe desciam na face purpurina de pejo. .......................................................................... Não me souberam contar o resto. O que eu sei é que cinco mezes depois recebi uma carta datada em Londres. Resava assim: «Prometti-lhe uma palavra: ella ahi vai: E MORRO. Chore-me.» _Leocadia._ Em 1834 Francisco de Proença veio a Portugal. Viajára seis annos, e vinha casado, em segundas nupcias, ou terceiras, dizia alguem com a filha d'um correeiro de Manchester. Está vivo, e velho como eu. Acabou-se a historia. FIM. End of the Project Gutenberg EBook of Scenas da Foz, by Camilo Castelo Branco *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK SCENAS DA FOZ *** ***** This file should be named 28310-8.txt or 28310-8.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: http://www.gutenberg.org/2/8/3/1/28310/ Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Print project.) Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. 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