Scenas da Foz

By Camilo Castelo Branco

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Title: Scenas da Foz

Author: Camilo Castelo Branco

Release Date: March 11, 2009 [EBook #28310]

Language: Portuguese


*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK SCENAS DA FOZ ***




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                          SCENAS DA FOZ

                               POR

                      CAMILLO CASTELLO BRANCO.




                          SOLEMNIA VERBA.

                     ULTIMA PALAVRA DA SCIENCIA.

                 O X DE TODOS OS PROBLEMAS DO CORAÇÃO.

          OBRA IMPORTANTISSIMA PARA TODOS OS SEXOS, MASCULINO,
                         FEMININO, E NEUTRO,
                E ESPECIALMENTE PARA AS COZINHEIRAS.

                 EM DOZE VOLUMES; SENDO O PRIMEIRO:


                          SCENAS DA FOZ

                               POR

                           JOÃO JUNIOR.

    SOCIO DA PHILARMONICA, E IRMÃO DA ORDEM TERCEIRA DE S. FRANCISCO.

                            2.ª EDIÇÃO.


                               PORTO:
                  EM CASA DE CRUZ COUTINHO--EDITOR,
                 Rua dos Caldeireiros, n.os 18 e 20.

                               1860.


         PORTO--TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA,

                       Largo do Laranjal n.º 4.




JUIZO CRITICO.

(DA PRIMEIRA EDIÇÃO.)


Li, como editor, e reli, como critico, as SCENAS DA FOZ do snr. _João
Junior_. Declaro que encontrei uma serie de scenas, que tanto podiam ser
de S. João da Foz como de Freixo-de-Espada-á-Cinta. Entretanto, os
quadros comicos são desenhados com um pouco mais sal que um artigo de
fundo. Os episodios funebres estão escriptos em estylo de cavallo de
carruagem, como dizia _Voltaire_.

Outro sim declaro, que não vi neste livro doutrina, palavra, phrase, ou
virgula, que destoe dos maus costumes da época em que é escripta. Como
cousa offerecida á humanidade, a offerenda é digna da deusa e do
sacerdote.

Porto 2 de Junho de 1857.

                                                 O EDITOR,

                                          _Camillo Castello Branco._




DEDICATORIA.


Á ESPECIE HUMANA INCLUSIVE OS BARÕES.

Senhora! O sacerdocio da imprensa, cuja invenção se deve a um agiota do
seculo XIV,[1] é a mais augusta das funcções, depois da «Arte de
cozinha». Ocioso seria provar esta atrevida proposição, quando os
exemplos saltam como camarões em terra secca. A rotundidade dos
abdomens, e a estupidez prodigiosa dos proprietarios dos ditos, senhora,
é a mais persuasiva prova de que a culinaria tem sobre a imprensa a
primasia disputada por alguns sandeus que se deixaram morrer de fome,
embebecidos, no paradoxo da sciencia.

Sem embargo, porém, desta verdade, que palpita como um aneurysma, eu não
posso deixar de reconhecer as grandes vantagens que podem provir a v.
exc.ª da mirifica invenção dos typos.

Senhora! eu sou um desses poucos bipedes que reagem, por instincto,
contra os quadrupedes que gratuitamente se dizem meus irmãos. Saturado
de estudos longos e substanciosos sobre a alveitaria, tenho querido
organisar um _Manual de pharmacia_, dedicado ao utilissimo curativo de
alguns desses meus irmãos, que me ameaçam as tibias, quando a dôr do
alifafe moral os faz pinotear desencabrestadamente.

Neste intuito, cuja extensão eu deixo á penetração de v. exc.ª,
confeiçoei algumas receitas, que puz em systema pathologico,
subordinadas a bases symptomatologicas, palavra grande que v. exc.ª
soletrará de seu vagar.

Senhora! A hygiene moral, depois de Broussais, tem feito progressos que
demandam um compendio novo, e uma diversa iniciativa no systema de
applical-os com aproveitamento.

O romance, senhora, é a mais proficua das pharmacias, porque neste
laboratorio douram-se as pilulas com maravilhosa limpesa. O romance,
caldeado na forja onde Voltaire assacalou as armas com que feriu no
coração o «ridiculo» de v. exc.ª, n'aquella época, será, se me não
engana o muito amor da humanidade, um sodorifero por meio do qual
faremos transpirar as muitas fezes que v. exc.ª traz no sangue, e das
quaes se originam muitos miasmas de febre da pouca vergonha, para a qual
não ha quarentena possivel, nem conselho de saude, por ventura o mais
necessitado, na presente conjunctura, de ser esfregado com as baêtas da
zombaria.

Pelo que: considerando maduramente quão proveitosa devia ser a v. exc.ª
a divulgação de trabalhos que o zelo da minha especie me impoz, ouso
recorrer á egide da sua protecção, offertando-lhe o primeiro da serie de
livros que vou atirar á humanidade.

Senhora! Fiquemos aqui, se lhe parece.

     [1] Preparo uma dissertação a este respeito.




                           SCENAS DA FOZ.

                           LIVRO PRIMEIRO.

                          A SORTE EM PRETO.


I.

Em 1825, morava na travessa do Caramujo, em S. João da Foz, uma familia
de Amarante, que viera a banhos, e constava dos seguintes membros:

Pantaleão de Cernache Tello Aboim de Lencastre Maldonado e Sousa Pinto
de Penha e Almeida. Sua mulher, D. Amalia Victoria Rui da Nobrega
Andrade Vasconcellos Tinoco dos Amaraes. Sua filha, Hermenigilda Clara,
com todos os appellidos paternos, e cinco de sua mãi. Duas criadas
graves. Uma cozinheira, casada com o lacaio. Um escudeiro preto. Um
gallego adjuncto á cavallariça. Dous cães de lobo; e, finalmente, uma
cadellinha atravessada de cão d'agua e galga.

Eu, João Junior; que estas cousas ponho em escriptura para memoria
eterna, morava na rua de Cima de Villa, e da minha janella vi muitas
vezes na sua o snr. Pantaleão, homem côr de lagosta cozida, com
cabelleira azulada pela acção do tempo, olhos refegados com debrum
escarlate, papeira ampla como a dos _cretins_ nos Alpes, e nariz
poliédro como uma castanha do Maranhão.

A snr.ª D. Amalia, se bem me recordo, era uma serpente. Orelhas, nariz,
queixo, e todos os districtos da cara (nesse tempo eram comarcas) era
tudo aguçado e verrugoso, como uma mólhada de nabos velhos, em que as
fitas amarellas da touca representassem a rama das nabiças.

A menina Hermenigilda tinha cara de seraphim de côro d'aldeia: gorda e
vermelha, cheia de vida estupida, olhos grandes como bogalhos, dentes
anarchicos mas brancos como o seu nedio pescoço, braço rico de tecidos
cellulares, rendilhado de tumidas veias vermelhas, onde borbulhava o
sangue cruorico de felicissimas digestões de cabeça de porco com feijão
branco.

Os servos não me lembra bem como tinham a cara, excepto uma das criadas
graves, que diziam ser filha bastarda d'um frade bernardo, irmão do snr.
Pantaleão. Eu fiz tres dias descabellado namoro a esta rapariga, que
tinha setenta e seis pollegadas. Ao quarto, vi-lhe um calcanhar aberto
como ouriço velho, e desanimei.

De quem me recordo muito é do escudeiro preto, que tinha a cara mais
velhaca da raça de Ismael. Assobiava com perfeição a _Marìa Caxuxa_, e
jogava a marrada magistralmente com o gallego, supplementar aos machos
da liteira, deixando-o quasi sempre estatellado no chão em fórma de
meia-lua. E muitas vezes vi eu com estes olhos invejosos a menina
Hermenigilda a brincar com o preto na sala, onde eu podia devassar estes
innocentes brinquedos. O gosto d'ella era puxar-lhe a carapinha, e o
gosto d'elle era, ao que parece, dar-lhe surras, que terminavam sempre
quando a mãi, ou o pai, ou alguma das criadas appareciam no limiar da
porta da sala.

Um meu amigo visitava esta familia, e d'ella soube eu que o snr.
Pantaleão era senhor de casa vinculada, e a snr.ª D. Amalia tambem era
morgada, e a snr.ª D Hermenigilda, por consequencia, uma opulenta
herdeira. Soube mais que o snr. Pantaleão remontava a sua fidalguia a
uma personagem importante na dynastia goda, e não me recordo bem se era
Athanaulfo, ou Roderico.

A genealogia da mulher diziam lá em casa que era a mais antiga da velha
Lusitania, e contavam maravilhas de seus avós na India, e na Amarante. A
herdeira, por segunda e inevitavel consequencia, tinha nas veias doze
canadas bem medidas de sangue gothico, e por isso, a architectura
externa fazia lembrar Orense ou S. Thiago de Compostella.

Entre os rapazes meus conhecidos da provincia, o meu inseparavel
companheiro dos passeios a Carreiros era um mancebo de trinta annos, que
tem hoje os seus sessenta e um, e está litteralmente escangalhado, como
eu que o digo. Então era elle esbelto, e galhardo, amigo de mulheres
novas e vinho velho, como Byron, que elle vira no theatro de S. Carlos
em 1813, e affirmava que bebeu com elle uma garrafa de aguardente de
canna no _Nicóla_, botiquineiro do Rocio. Parece-me pêta, porque Byron,
se emborcasse uma botelha de aguardente em Portugal, não nos chamava
_barbaros_. Paiz onde um inglez se embebedar, será sempre um paiz
civilisado.

Como quer que seja, o meu amigo provinciano era homem do _grande mundo_.
Chamava-se Bento de Castro da Gama, e não sei que mais. Era natural de
Cabeceiras de Basto, filho segundo da casa denominada do _Olho-vivo_,
não sei porque derivação.

Seus pais mandaram-no estudar latim e logica no seminario de Braga.
Bento corrompia o porteiro, e sahia de noite, a provar que a logica,
sendo a arte de bem pensar, não exime um fraco mortal de pensar o peor
que é possivel. D'essas envestidas nocturnas á moral, resultou um
escandalo em casa d'um chapelleiro da _Senhora á branca_, e o seductor
teve de fugir do seminario, onde estava debaixo de olho, pendurando-se
para a rua nos lençoes.

Contava elle que o pai lhe abanara as orelhas, em quanto a mãi lhe
preparava algumas tigellinhas de gelêa de mão de vacca, para o
indemnisar das succulentas bochechas que deixara no seminario,
emmagrecidas sobre o Novo Methodo do Pereira; e o desabrido Genuense.

A casa paterna era estreito horisonte para o nosso amigo. Uma bella
manhã fugiu de casa, veio ao Porto, e assentou praça em infanteria. O
pai, sabendo-o, mandou-lhe os documentos para se habilitar a cadete, e
estabeleceu-lhe avultada pensão para se habilitar a exercer todas as
travessuras e maroteiras de que o seu caracter era susceptivel. Em seis
mezes de praça estivera tres na cadeia, por causa de varios sôcos com
que mimoseou os sargentos do corpo. Pediu a baixa, deram-lh'a
promptamente, e recolheu a casa, onde não encontrou já vivo o pai.

Pouco depois, morreu a mãi. Bento de Castro pediu por conta da sua boa
legitima alguns mil cruzados, foi gastal-os em Lisboa o melhor que pôde,
e tornou para casa, onde o irmão morgado o recebeu de braços abertos.

N'esse tempo é que eu o conheci na Foz, onde viera pela primeira vez a
banhos, em 1825. Relacionei-me com elle na caça das gaivotas, e
convivemos alguns mezes na sua casa de Cabeceiras de Basto. Passavamos
ahi excellentes tardes no convento de Refojos, onde elle tinha tres
tios, que eram santos varões, doutos, e alegres. Ahi conhecemos José
Pacheco d'Andrade, morgado de uma casa illustre, que nos ensinou a jogar
o pau, como bom mestre que era! Na feira do Arco vimol-o nós uma vez
varrer a feira com admiravel limpeza! Saltava como um gamo, e apanhava
pela cernelha com uma bordoada o mais lesto jogador de Barroso! Fui
amigo d'este homem e vi-o morrer vinte annos depois n'um palheiro onde
mendigando, pedira gasalhado. O que o levou a este extremo é uma
historia muito longa, e que já vi fugitivamente esboçada nos versos de
não sei que livro.

Pergunta o leitor o que tem isto com as Scenas da Foz?

Se me começam com perguntas, estamos mal aviados! Um homem na minha
idade, com a reputação feita, escreve as cousas como ellas lhe
escorregam dos bicos da penna. Nem acizelo o estylo, nem torneio o
pensamento, nem traço plano. Não me apoquentem. Lá vamos á Foz.


II.

O meu amigo Bento de Castro veio, uma noite, de Mathosinhos, de casa do
Brito, onde perdera, á banca portugueza, vinte moedas, um cavallo, um
relogio, dous anneis com brilhante, e ficára a dever outro tanto. Ás 2
horas, bateu-me á porta, sentou-se na minha cama, e começou assim um
pathetico discurso:

«Tenho dado cabo de mais de ametade da minha legitima. Não tardará o dia
em que meu irmão me dê de comer como se dá uma esmola. O jogo tem sido o
meu abysmo. Perco o dinheiro e perco a vergonha, quando o azar me é
contrario. Hoje, vendi cavallo, relogio, anneis, e tudo: cheguei a pedir
dinheiro ao moço de farda da casa onde joguei. Quando vinha para cá,
alli no castello do Queijo, tive vontade de atirar ao mar com esta vida
diabolica!... Se o não fiz, outra vez será. É no que ha-de parar este
negro fado que me traz a pontapés da desgraça... Não me dirás tu que
hei-de eu fazer para ser o que tu és?

--E que achas tu que eu sou?--perguntei eu, porque não sabia ainda então
o que era. «És homem de juizo. Tens ha dez annos um cavallo velho e
magro, uma casinhola na provincia que te rende doze carros de pão e
quinze pipas de vinho verde, uma sobrecasaca preta com os cotovellos
rapados, e vives feliz.

--Muito feliz.

«Pois ahi está! E eu, com quarenta mil reis mensaes de rendimento, tenho
gasto metade do capital, e desconfio que devo a outra metade.

--Pois se queres ser homem de juizo, deixa cossar-se o teu casaco nos
cotovellos, limita o teu luxo de equitação a um cavallo digno de ser
cantado pelo Manoel Duarte Ferrão, faz de conta que colhes doze carros
de pão e quinze pipas de vinho verde e serás feliz.

«É tarde, meu caro João Junior, é tarde. Creei necessidades que não
posso matar sem que ellas me matem. Preciso dinheiro, venha elle d'onde
vier.

--De mim, de certo não vai, meu amigo. Bem sabes que o pão e o vinho
este anno não deram nada. Desde Março d'este anno, em que morreu o rei,
parece que desappareceu de Portugal o estomago mais consumidor que
tinhamos. Tu não tentaste ainda a fortuna pelo lado do casamento?

«Ainda não. Tem-me lembrado algumas vezes essa asneira salvadora; mas,
sou tão infeliz, que desconfio de tornar-me ridiculo, se o tentar.

--Ridiculo é esse susto. A experiencia ainda te não amadureceu quanto é
necessario para viver neste mundo. Ridiculo só conheço um homem neste
planeta: é o que não tem dinheiro. As tentativas, que se fazem para
alcançal-o, são sempre sérias, heroicas, e até épicas. Se fizeres namoro
a uma rapariga rica, riem-se de ti os zombeteiros candidatos á rapariga,
mas esse riso só póde ser penoso se a mulher te não indemnisar com o
sorriso d'ella. A questão é _To be or not to be_: ser ou não ser amado.
Sirvo-me deste fragmento de Shakspeare por que não está ainda estafado
pelos folhetinistas.

«_Folhetinistas_! que são _folhetinistas_?

--Folhetinistas são uns pataratas que hão-de vir d'aqui a vinte annos,
trazidos em uma nuvem de gazetas. Ainda a tresandar ao fartum dos
coeiros, virão para a imprensa com seu cabedal de erudição empalmado nos
romances de certo Dumas, que tem hoje quinze annos, e será então o
primeiro corruptor da litteratura em França. Saberão menos latim do que
tu quando saltaste pela janella do seminario de Braga, e dirão que o
latim é uma cataplasma que mata a originalidade nativa, e a natividade
original, e não sei que outras sandices usadas na linguagem delles
pataratas. A respeito de logica e rhetorica dirão que antes do diluvio
já estavam banidas das escólas mais illustradas. Hão-de provar que o
talento não precisa desses causticos para ressumar a materia do
espirito, e, provando-o, dirão tolices em que ficará salvo o Genuense e
o Quintilliano, dos quaes tanto nos fallaram os teus tios frades de
Refojos. Fallarão muito em linguas druidica, celtica, indica, sanscrito,
e dirão dellas cousas maravilhosas que terão o superior merecimento de
não serem ditas em portuguez. Ora, pois, fica tu sabendo que os
folhetinistas serão...

«Não me importa saber o que serão os folhetinistas, o que eu quero é
saber o que serei d'hoje a vinte annos.

--Serás folhetinista, visto que te não vejo com habilitações para seres
cousa alguma. Se te parece, vai aprendendo de teu vagar a tocar guitarra
para depois poderes fallar com criterio das primas-donas, e dos
contraltos, e dos bassos, e deste Curti que hoje está creando uma
reputação no Porto, e eu espero ouvir d'hoje a trinta annos com o mesmo
timbre, o mesmo volume de voz, e a mesma precisão de notas graves em
_sibmol_.

«Que diabo de embrulhada é essa? Homem, falla-me direito. Que me dizes
tu á tentativa d'um casamento rico?

--Digo-te que conheço grandes alarves que tentaram e prosperaram. Quando
um homem se diz: «hei-de casar rico, apesar de todos os contratempos»
casa rico. O primeiro passo a dar é convencer-se de que a vergonha é uma
excrescencia que nos magôa, e deve ser amputada da consciencia como quem
corta um callo. O segundo é procurar a mulher, através de todas as
torpesas, como o mineiro procura o ouro através do saibro e dos charcos
lodacentos que lhe regorgitam debaixo dos pés. O terceiro é levar com a
porta na cara, e ficar com a cara voltada para outra porta. O quarto é
teimar. O quinto é teimar. O sexto...

«É teimar. Tenho entendido. Mãos á empreza. Cobrei espirito novo. Dentro
d'um anno hei-de estar casado com mulher rica, bonita, intelligente,
virtuosa...

--Alto lá! isso é muita cousa. Assim tambem o Bocage a queria, mas
disseram-lhe que não... Rica? d'accordo: isso é possivel. Intelligente?
Deixa-te d'isso: mulher intelligente não se deixa engodar por
especuladores matrimoniaes: é-lhe mais facil ceder ao coração toda a
liberdade dos seus desejos os menos puros, do que algemar-se com
grilhões que ella parte facilmente no momento em que a razão illustrada
lhe diga: «Entre ti e o homem são iguaes os direitos...» Formosa?
Pieguice e contrasenso. Mulher formosa é sempre a mesma cousa, e aos
olhos do marido perde pouco e pouco o prestigio da belleza. Mulher feia,
pela continuação da convivencia, perde pouco e pouco a fealdade, e chega
a parecer bonita. E deves saber que mulheres feias teem inspirado
paixões ardentissimas. Dizem que ha uma compensação de graças ocultas as
quaes fazem ganhar raizes no coração do homem. Eu não sei se é no
coração, se no figado: o que posso asseverar-te é que tenho visto
mulheres formosas apagarem muitos incendios, e as feias atearem-nos.
Dido, Helena, e Cleopatra dizem que foram lindas mulheres, por terem
apaixonado Eneas, Paris, e Antonio. O que de certo se não sabe é se eram
feias. Verdadeiramente feio, meu amigo, é o diabo, como diz a ama de
leite dos teus sobrinhos. Em quanto a virtuosa, meu caro Bento, a esse
respeito tinhamos muito que dizer, se eu não tivesse somno. A virtude é
o escolho de muitas posições sociaes. Felizmente que ella vai em
decadencia, e por isso veremos, de hoje a trinta annos, muitas posições
brilhantes com um pé no pescoço da virtude. Virtude é uma sociedade
mercantil, em que a maior parte dos empresarios se sustentam á custa da
pequena parte que se conserva fiel aos estatutos.

Fóra com a palavra; e se promettes aspal-a do teu programma de
casamento, indico-te uma mulher.

«Qual?!

--A minha visinha Hermenigilda, filha do Pantaleão.

«Pois achas que está no caso?

--Muito no caso.

«Sei que é rica, não é feia, é estupida, é fidalga; mas... em quanto a
virtude, não sei por que ella perca no teu conceito, para que eu deva
aspar a palavra do meu programma!

--É que eu desconfio do preto!

«Do preto?! que preto?

--Fallaremos ámanhã. Agora quero dormir.

Bento de Castro sahiu, e eu, voltando-me para o outro lado, sonhei com o
preto.

..........................................................................

Suaves recordações da mocidade, sêde a cebola destes olhos que já não
podem chorar!


III.

No dia seguinte, fui obrigado pelo meu amigo a praticar o escandalo de
acordar ao meio dia e vinte e sete minutos.

Queria elle ser esclarecido sobre palavras enigmaticas, que eu proferira
a respeito do preto.

«Não valia a pena--disse eu--perturbares o meu somno da manhã por
similhante insignificancia. A historia do preto é a mais innocente das
historias. Não sei se o moleque conhece o Othello de Shakspeare. É certo
que o Othello era preto, e sentiu a mais negra das paixões por uma
branca. Não sei tambem se a filha de Brabante lhe puxava a elle a
carapinha como faz a filha do snr. Pantaleão ao dito preto. Em todo o
caso ha muito a recear do espirito de imitação, porque o plagiato do
amor é de todos os plagiatos o mais nocivo. Por imitação, ama-se, por
imitação, deshonra-se, por imitação, casa-se, por imitação, suicida-se.
Quem sabe se a snr.ª D. Hermenigilda para imitar Desdemona, introduziu o
preto no coração?

--Estás a mangar!--respondeu o meu amigo Bento--Póde lá dar-se
similhante asneira!

«Dão-se asneiras maiores, meu caro, muito maiores. Eu tenho uma prima...
dás licença que te conte a historia de minha prima?

--Se não fôr muito estirada...

«Laconica o mais possivel. Minha prima Rosa foi a mulher mais bonita de
Villarinho de Cotas, Canellas, Sinfães, e povos circumvisinhos. Tinha um
bom patrimonio, e foi muito pertendida. Regeitou propostas de vantajosos
casamentos, e resistiu ás minhas tentações, quando eu era um homem
perigoso em casa de primas. Uma bella manhã a priminha desapparece de
casa. Partem emissarios para todas as partes do mundo em cata della, e
depois de varejarem e farejarem todas as casas suspeitas, todas as
igrejas onde o mysticismo a poderia ter em extasis, e até um poço onde
uma allucinação a poderia ter precipitado... depois de muitas
diligencias, e lagrimas, e gritos, e informações, minha prima
apparece... imagina lá aonde?

--Eu sei cá!...

«N'um lagar d'uma quinta sua, escondida atraz d'uma pipa, no mais puro
arrobamento do amor com...--meus illustres avós! perdoai-me a
revelação!--com um dos gallegos que tinham vindo á vindima. E que pedaço
de gallego!

--Que se seguiu? mataram o bruto?

«Qual matar o bruto! O bruto tinha um direito sagrado á sua existencia.
Minha prima foi interrogada pelo irmão, seu tutor, e respondeu que havia
de casar com o gallego.

--E casou?

«Casou, e vestiu-o de casaco, e botas de cano alto, e chapéo de sêda, e,
o que mais é, meu primo gallego parecia depois um hespanhol. Se o vires
hoje, não dirás o pessimo texto que está n'aquella encadernação.

--E ella ama-o?!

«Essa admiração é sufficientemente parva! Ama-o como o amou sempre, bebe
a felicidade dos labios delle, pendura-se-lhe, em delirios de ternura,
das largas espaduas, aperta ao coração a cabeça amante do conjuge
inseparavel, não receia uma deslealdade, desconhece o ciume, produz o
mais mechanicamente que se póde, rapazões robustos, vermelhos, e gordos
como teixugos; em fim, para te dizer tudo d'uma vez, minha prima está
gorda, come tanto como elle, e faz as suas digestões na suave beatitude
da mulher ditosa, com os olhos postos no marido. Faltava-me dizer-te que
esta creatura angelica, antes de ser encontrada no lagar, era d'um
melindre d'orgãos, e d'uma susceptibilidade de emoções, que fazia
receiar muito pela sua vida.

Lia novellas de La-Calprenéde, Genlis, e Radcliffe. Chorava enternecida,
fitava no céo os olhos lacrimosos, pendia a fronte, contristada, tomava
parte nas dôres das suas heroinas, e muitas vezes me disse que a cópia
do seu modêlo, a realisação das suas esperanças, estava no céo. Como
diabo desceu do céo cá para baixo o gallego, isso é que eu não sei. Eu
vivia persuadido de que o céo não importava aquelle genero.

Seja o que fôr, esta historia vem apêlo para exemplificar um dos muitos
casos em que a boa philosophia nos ensina que um preto é um rival
temivel. Posso enganar-me, nem ouso aventar uma calumnia; porém, a minha
visinha não dá ares de quem procura no céo a realização das suas
esperanças; e, se procura, quem me diz a mim que o preto não desceu de
lá pelo mesmo alcatruz que pôz cá em baixo o gallego? Que me dizes tu a
isto?

--Eu digo que não quero saber mais nada da tua visinha, e deixo-a ao
preto em boa paz.

«Não vou para ahi. Suspeitas não fazem prova.

--Mas o que tens tu visto?

«A pequena a brincar com o preto.

--De que modo?

«Jogam os cantinhos sem intervenção d'um terceiro: invenção rara que se
deve á estrategia do amor, assim como o xadrez se deve á estrategia
militar.

--E que mais fazem?

«A bagatela de se darem surras. Ella arrepella-o, elle dá-lhe duas
palmadas bem sonoras, no mesmo local onde o patrão lhe dá a elle os
pontapés. O preto perfila-se, a innocente menina vem para a janella, e a
moral domestica folga do resultado. Já vês que não ha aqui bastante
motivo para renunciar uma conquista de dez mil cruzados de renda, e uma
mulher que promette estar contente dando-lhe o comer ás horas, e tres
duzias de gallinhas para tratar... Das duas uma: ou a mulher ama o
preto, e não te acceita a côrte, ou não ama o preto, e acceita. Que
perdes tu na tentativa?

--Dizes bem, eu não perco nada. Como não tenho melhor cousa em que
esperdice o tempo... E como hei-de eu apresentar-me?

«Apresenta-te ahi na minha janella, e faz-lhe saber, sem grandes
rodeios, que estás ferido.

--Será demasiada liberdade...

«Deixa-te d'isso; demasiada liberdade acho eu que é a do preto. Certas
mulheres só entendem o que se lhe diz; e em quanto a mim, a nossa
visinha é d'aquellas que nem o que se lhe diz entende. Clareza no
pensamento e na phrase. Imagina que fallas com a filha d'um teu caseiro.
Põe o teu codigo de civilidade ao pé do Genuense e do Quintiliano. Nada
de logica, nem de rhetorica. Os principiantes do amor cuidam que é da
tarifa devorarem no silencio, antes de se revelarem, as melhores phrases
que tinham para convencer. Grande contrasenso. Parecem-se com os
caçadores novatos, que atiram á perdiz quando ella vai muito longe do
alcance do chumbo. Fia-te em mim, Castro. A mulher que principia a amar
tem oito dias de alienação moral. O espirito anda-lhe á solta, e um
habil caçador apanha-lh'o, e depois... como sabes do teu Genuense, a
alma é uma substancia acommodada para governar o corpo. Pilhada a alma,
o corpo, sem governo, é uma nau desmastreada, sem leme, á mercê das
ondas.

Espera... ouço-a fallar... Olha...

Ella lá está na janella.


IV.

O meu amigo chegou á janella, e tossiu a tosse especial dos namorados de
1826, que era uma tosse secca, como a do ultimo periodo da tysica
laryngéa. Hermenigilda acudiu ao reclamo catarrhoso, e viu risonha a
cara do meu amigo Castro, que realmente era um perfeito homem. Retirou
depressa os olhos, mas depressa obedeceu com elles ao magnetismo das
olhadellas do visinho. Eu cá da minha alcova, por entre os farrapões das
cortinas amarellas, estava presenceando o introito comico do acto mais
solemne da vida dos povos, que era o casamento então, e hoje são as
eleições.

O meu amigo não se despegava do peitoril da janella. A pequena ia e
vinha; olhava-o, como a disfarce, lá do fundo da sala, e trazia sempre
um terço do olho esquerdo compromettido.

Castro manifestava com o nariz o seu contentamento, empenhando-o na
victoria. Assoando-se, trombeteava o som menos amoroso possivel. O
nariz, considerado porta-voz do coração, ecco da poesia intima,
interprete da linguagem muda da ternura, exerce a mais nobre das missões
corporeas, e attinge um elevado grau de perfectibilidade nazal, depois
do outro, mais elevado ainda, de espiraculo de defluxo, e absorvente de
simonte.

Fui almoçar, e deixei o meu amigo na janella. Quando voltei, estava elle
radioso de gloria.

«Então?--disse-lhe eu--quantos graus acima de zero marca o thermometro
da visinha?

--Está pegado o namoro.

«Eu vi tudo.

--Mas não viste o melhor. Offereci-lhe uma carta. Ella primeiro disse
que não...

«Que não sabia lêr?

--Não, homem: disse que não acceitava. Instei, e, por fim, deu signal
affirmativo com a cabeça, e fugiu da janella.

«Oh! é tocante essa fuga! o que faz o pudor! A virginal menina não pôde
mostrar a fronte á luz do sol, depois d'uma fraqueza a que a paixão a
compelliu!

--Tu estás caçoando!

«Forte scisma a tua! Não póde a gente vestir as suas idéas com as pompas
da linguagem! Ora vamos, Bento. É preciso escrever á pequena.

--É um grande embaraço. Não sei como se escreve a esta mulher. Será
muito estupida?

«Parece-me que é, e, nesta hypothese, escreve-lhe uma carta muito tola.
Queres tu ser o secretario? Eu entro no teu coração e fallo por ti.

--Valeu! nota lá a carta.

«Senta-te, e escreve.

Eu accendi um cigarro, sentei-me de cocoras sobre a minha cama, entrei
em espirito no espirito do meu amigo, e dictei a seguinte carta, que
offereço como norma aos amadores das Hermenigildas:

                                                     «Meu adorado Bem.

«Com o coração em viva brasa, lanço mão da penna tremula para expôr á
vossa compaixão o triste sudario da minha alma.

«Os vossos olhos são settas do deus implacavel, que não perdôa a rei nem
a vassallos, que abranda o coração da panthera de Java, e enternece as
melodias do rouxinol do salgueiro.

«Ferido neste coração, que é vosso, tenho direito a pedir-vos balsamo
para a chaga que vossos olhos me rasgaram no peito.

«Ingrata serieis, amada Hermenigilda, se mostrasseis indifferentes á
dôr, os olhos que tamanha dôr causaram! Não! é impossivel que nesse
peito de alabastro, ninho dos prazeres, se aninhe a vibora da
ingratidão!

«No vosso angelico sorriso, ó cara amada, pousou a minha felicidade,
que, ha muito, busco, por toda a parte, como andorinha que perdeu o
trilho aerio da sua patria, e ficou erma e só na região das neves...»

--Ella não entende isto!--exclamou o meu amigo!

«É justamente o que nos convém. Se ella entendesse isto, faria da carta
dous papelotes, e mandava-te á fava. Continúa:

«Eu sou como o viajante nos desertos da Mezopotamia, ardente de sede,
pedindo a cada miragem uma gotta de agua, e bebendo candeias accesas nos
raios do sol oriental!

--Isto parece-me asneira!--replicou o amanuense--_Bebendo candeias!_
Viu-se já um similhante disparate!

«Pois tu queres que ella te entenda, ou não?

--Quero que entenda: é boa a pergunta!

«Pois se tu lhe disseres que bebias no deserto linguas de fogo em logar
de candeias accesas, entender-te-ha ella melhor? Candeias sabe ella
perfeitamente o que são; e linguas, em quanto a mim, só conhece a de
porco e a de vacca. Se me pões contraditas ao libello, recolho a
inspiração, e deixo-te nas trevas. Escreve lá:

«Nos meus sonhos...

_Entre parenthesis._ Este estylo hoje é rançoso, e qualquer caixeiro o
escreve sobre o mostrador, entre uma ceira de figos de comadre e tres
achas de pau campeche; n'aquelle tempo, porém, em 1826, era necessario
ter um talento creador para espetar a phrase na região do sublime. Eu
fui um dos apostolos deste estylo; e glorio-me de ter feito escóla.
Vieram depois os imitadores, sem critica nem gosto, e asnearam de modo
que venceram o passo que vai do sublime ao ridiculo.

«Escreve lá, Bento de Castro.

«Nos meus sonhos, tenho visto muitas vezes uma visão vestida de nuvens
coradas de luz, calçada de estrellas, coroada com o arco iris, sentada
na lua, com o sol engastado no peito, e o globo terraqueo a seus pés.
Ereis vós, Hermenigilda! Apenas vos vi, reconheci-vos como o molosso
reconhece o dono, e a rola o ninho, e a lebre a cama, e a truta a
acolheita.

«Vêr-vos, e não amar-vos, seria morrer de vêr-vos; e amar-vos sem
vêr-vos, só eu pude; e que faria eu depois ao vêr-vos, senão amar-vos!?

--Acaba depressa com isto!--interrompeu o meu amigo--Vêr-vos, não
vêr-vos, amar-vos, e vêr-vos, e não amar-vos... que diabo de embrulhada
é esta!?

«Tu és um tolo!--redargui eu--Está explicado o segredo da tua nullidade
perante as mulheres. Tens trinta annos, e todas as tuas conquistas
reduzem-se á filha do chapelleiro de Braga. Podias ter um nome em
Portugal, se ao teu patrimonio, quasi dissipado, e á tua excellente
figura, quasi em decadencia, juntasses um pouco de estylo. Todo a
conquistador deve ter um arsenal bem fornecido de bombas phraseologicas.
A idéa não é que persuade uma mulher, é a palavra. O que tu chamas
_embrulhada_, meu patavina, é o melhor que se póde dizer quando não ha
nada que se diga.

--Suppomos---replicou elle--que esta mulher não me entende?

«Certo disso estou eu.

--O que se segue é não me responder, porque receia que eu me ria da sua
ignorancia.

«É justamente o que te convem, tolo.

--Que me convem!

«Sim; convem-te que não responda, porque não respondendo, falla-te. Que
lucras tu com a correspondencia epistolar desta mulher?

--Parece-me que pensas bem!... Tu és um grande homem! Ora anda lá, diz
mais alguma asneira.

«Onde estavamos nós?

--Estavamos no _vêr-vos e não vêr-vos, amar-vos e não amar-vos_...

«Ah! já sei... põe lá:

«Cesar foi, viu, e venceu. Eu vim, vi, e fui vencido! Maravilhosa
coincidencia de constrastes, Hermenigilda querida!

«Mas é tão dôce ser escravo, subdito e fiel vassallo vosso! Quereis vós
ser a rainha desta alma? Governai-a com o vosso sceptro de amor;
subjeitai-a aos decretos e leis regias dos vossos soberanos olhos; regei
esta monarchia com o absolutismo despotico da vossa augusta vontade.

«Se não quereis responder-me, senhora, dai-me n'um sorriso o signal de
que acceitaes preito e homenagem do vosso mais humilde feudatario,

                                            _Bento de Castro da Gama._»

O meu amigo, a meu pedido, fechou a carta em coração, e postou-se na
janella. Hermenigilda appareceu. A carta foi-lhe mostrada; ella fez
menção de recebel-a. Castro sahiu, roçou-se pela porta, lançou-a no
pateo, e tornou para a minha janella.

Hermenigilda não apparecia: estava naturalmente estudando os
jeroglificos druidicos da carta.

O preto, porém, veio á sala, e fez uma careta medonha ao meu amigo.


V.

A careta do preto fez pensar o meu amigo tão seriamente que desde logo
resolveu imprimir-lhe em qualquer parte quatro pontapés homericos.

Eu combati o projecto com a logica da prudencia, fazendo vêr ao
pundonoroso Castro que a careta do preto era uma dessas innocentes
caretas que a natureza patusca ensinava aos macacos. Convencido
zoologicamente da aproximação das duas especies, visto que a careta era
de instincto, o amante fogoso de Hermenigilda prometteu levantar de
sobre a cabeça do negro, não direi a espada de Damocles, mas a bota de
montar com espora de prateleira, seu calçado favorito.

Mais do que as minhas razões, a presença da visinha aquietou os impetos
cavalheirosos do meu amigo. Eu puz-me á espreita. Vinha jubilosa, com
cara de paschoas, um ar de alegria lôrpa, e a expressão mais
significativa de que não entendêra palavra da carta arripiada.

Castro, sem ser acanhado, parecia um tolo, sorrindo com ella.

«Pergunta-lhe se responde» disse-lhe eu cá de dentro.

O meu amigo esperou o ensejo d'uma olhadura, fez menção de escrever na
palma da mão esquerda, tregeitou com a cabeça uma pergunta, e ella de lá
respondeu que não. Castro fez um bico de ternura dolorida, encolheu os
hombros em ar de paciencia, e vestiu o semblante com uma visagem
melancolicamente sandia.

«Pergunta-lhe se falla» tornei eu cá do meu centro de operações.

--Podeis fallar-me?--disse elle, improvisando com as mãos um ridiculo
porta-voz.

Ella fez-se desentendida, e o meu amigo levantou nota e meia á pergunta:

--Se podeis fallar-me...

Hermenigilda não respondeu ainda, e Castro ia de certo interrogal-a com
toda a franqueza dos seus pulmões, quando viu, lá ao fundo da salêta,
reluzirem os olhos do preto, como duas carochas em carvoeira. Como se
não podesse supportar o magnetismo hediondo d'aquelles olhos,
recolheu-se para dentro, murmurando:

--Eu quebro a cara ao preto! La está o patife a espreitar-me.

Eu estava de pachorra para tranquillisar a raiva do meu brioso amigo.
Fiz-lhe vêr que os grandes triumphos custavam grandes heroismos de
paciencia. Lembrei-lhe Annibal agatinhando as agruras dos Alpes; Colombo
jogando o sopapo com a tripulação; Bonaparte comendo farinha de pau no
deserto das piramides, etc. O meu amigo succumbiu perante os exemplos da
historia, e resolveu tolerar com paciencia todas as caretas do preto.

«A ti o que te convem--disse-lhe eu--é relacionares-te com o Pantaleão.
Tu não conheces o Miguel das Infuzas?

--Quem é o Miguel das Infuzas?

«É um fidalgo do Porto, grande genealogico.

--Não conheço na nobliarchia portugueza esse appellido _Infuzas_.

«Tambem eu não; mas o appellido é acquisição feita pelo tal Miguel.
Chamam-lhe o _das Infuzas_, porque elle, amador das artes, viu duas
pequenas infuzas de prata n'uma ceia explendida dada ao general do
Porto, e quando a occasião lhe foi propicia acondicionou-as o melhor que
pôde nas algibeiras da casaca. Passado tempo, o proprietario das
infelizes lobrigou-as em casa d'um usurario, e sabendo que o erudito
genealogico as pozera no prego, divulgou o feito do illustre neto dos
Teives e Couceiros e Moscosos. D'ahi em diante, a classe media associou
as infuzas aos appellidos deslumbrantes do fidalgo, que continua a
esmerilhar na genealogia do proximo um casamento desigual de quinto ou
sexto avô, para, nos seus momentos de soberba aristocratica, mostrar aos
primos uma nodoa na arvore deste ou d'aquelle que ousa chamar-lhe primo.

«Aqui tens o maior amigo de Pantaleão. Eu não posso apresentar-te porque
não pertenço á roda, como sabes; mas tu que és irmão de morgado,
procura-o com o fim de esclareceres uma duvida sobre o teu oitavo avô.
Logo que fallares em oitavo avô, o homem manda-te sentar, e pergunta-te
onde estás hospedado.

--E que diabo hei-de eu dizer-lhe do meu oitavo avô?!

«Inventa qualquer toleima... por exemplo: queres saber se teu oitavo avô
instituiu uma capellania; queres saber se teu oitavo avô casou com a
segunda ou terceira filha dos senhores de Panoias; queres saber se o teu
oitavo avô foi casado com a tua oitava avó. Ha trinta mil cousas a saber
d'um oitavo avô, pois não ha!

--Mas eu sei cá quem foi o meu oitavo avô?

«Isso elle t'o dirá. É capaz de te descobrir um joanete que elle tinha
no pé esquerdo. Conseguido o primeiro passo, pergunta-lhe se uma senhora
da tua familia é exacto ter casado, ha 327 annos, na casa de Villar de
Gaivotas, d'onde elle se diz muito parente. Consegue que elle te chame
primo, e eu corto ambas as orelhas, se tu não casares com Hermenigilda,
apesar de todas as caretas do preto.

--Tu nunca fallas serio, João! Devéras entendes que eu falle ao homem?

«Hoje, se é possivel. Isto são favas contadas. O Miguel das Infuzas vem
jantar, todos os domingos, com o primo Pantaleão, e tu és apresentado no
proximo domingo.

Castro foi á janella dispensar um sorriso a Hermenigilda.

Com grande espanto meu, a rubra menina, sem ser provocada a fallar,
disse, affectando muito receio de ser ouvida:

«Posso fallar-vos daqui da janella, depois que meu pai e minha mãi
estiverem deitados.

--A que horas?

«Ás nove.

--Ás nove!?--replicou elle maravilhado.

«Sim, sim,» tornou ella, e desappareceu.

--Isto vai bem!--exclamou Castro--Mas ás nove horas! tão cedo!

«Teu futuro sogro, meu amigo, segundo me disse a creada dos calcanhares
gretados, come o seu caldo requentado ás sete horas, arrota até ás oito,
deita-se ás oito e um quarto, adormece ás oito e meia, e ás nove é uma
massa bruta, inerte, inamovivel. Bom é que vás sabendo o programa do teu
futuro em casa do fidalgo d'Amarante. Ás oito horas has-de estar no
thalamo conjugal com o barrete de retroz por cima das orelhas, e ás nove
has-de resonar o mais estupidamente possivel, fazendo um dueto com tua
mulher.

--Estás enganado!--replicou elle--Se eu casasse com ella, pensas que me
ia degradar na Amarante? Isso sim! Eu quero viajar á custa de minha
mulher, e dar-lhe-hei a honra de me acompanhar. Que póde viver a mãi de
Hermenigilda? Dous ou tres annos, quando muito. Logo que ella se resgate
da gotta, está a filha de posse d'uma excellente casa. A do pai ella
virá quando vier, e virá sempre a tempo de me dourar as cadeias. Queres
tu viajar comnosco?

«Oh! pois não hei-de querer!? Havemos de ir a Vallongo, dia de Santo
Antonio, e quando reunires ambas as casas de modo que possas cortar por
largo, iremos a Vianna, á Senhora da Agonia! Que bello futuro!

--És um pateta!--redarguiu lisongeiramente o meu amigo.--Não se póde
fallar serio comtigo! Vamos ao caso: visto que ella me falla ás nove
horas, é escusado procurar a protecção do Miguel das Infuzas.

«Pateta és tu! Sem o Miguel das Infuzas não fazes nada. Se o teu fim
fosse seduzir Hermenigilda, convinha-te sustentar o namoro
clandestinamente, evitando relações com o pai. Mas tu queres casar, e
casar com brevidade; precisas ser admittido ao gremio da familia; dar ao
teu namoro um ar de honestidade boçal; cabecear com somno todos os dias,
meia hora ao pé da noiva; jogar a bisca de nove com tua sogra, e
representares, em fim, de palerma até ao dia em que se cruzarem
definitivamente as raças. Não deixes, portanto, de procurar o Miguel das
Infuzas. Vê o que ella te diz hoje, e ámanhã vai ao Porto saber alguma
cousa do teu oitavo avô.»

Castro foi á janella trocar com Hermenigilda dous gatimanhos alvares,
como são todos os gatimanhos preliminares d'uma grande asneira.


VI.

Ás nove horas em ponto, Bento de Castro sahiu de minha casa, e
plantou-se debaixo da janella do snr. Pantaleão. Eu apagára a luz, e
espreitava pelos buracos da cortina o introito do _rendez-vous_.
Espreitava, e escutava, não por mera curiosidade, porque não sou
curioso, mas por utilidade propria, visto que me tinha encontrado em
grandes apertos de eloquencia nos primeiros encontros com trinta e oito
mulheres.

O leitor casto--(para não ser sempre _pio_), que chegou aos cincoenta
annos sem experimentar os apuros de namorado na sua primeira entrevista,
está muito longe de imaginar o que é uma agonia séria!

Eu, João Junior, em quem a Europa reconhece um espirito superior e mais
um bocadinho, recordo hoje com vergonha a plangente figura que fiz, ha
quarenta annos, diante dos meus namoros.

A primeira mulher que amei era uma dama de alto nascimento, que tivera
bastante influencia no quartel general de lord Wellington, e jogára, por
causa d'um ajudante d'ordens do mesmo, o sopapo com uma viscondessa
celebrada, cujos dentes, que foram bellos, passaram com os meus para o
dominio da historia.

Esta dama, com os seus quarenta annos bons, era ainda formosa, e fallava
admiravelmente sobre quasi tudo, e com especialidade sobre a acção
immoral que a revolução franceza exercera, por tabella, nos salões
lisbonenses. Dizia ella, com um riso sarcastico nos finos labios, que os
inglezes vieram executar em Portugal as theorias livres da França.
Acrescentava que o fardamento dos officiaes de Beresford conseguira das
mulheres lusitanas, raça das Brites, e das Vilhenas, o que os romances
de Voltaire, não poderam fazer.

Ora vejam que tal era a primeira mulher que me trouxe pela mão o
travesso Cupido, que n'aquelle tempo estava no ministerio!

Foi aqui justamente na Foz que eu a vi, rodeada de satellites
sufficientemente parvoinhos para perderem o centro de gravidade e
cahirem no espaço infinito dos conquistadores aleijados.

Fiz-me importante aos seus olhos por lhe salvar uma cadellinha que
escorregára do _penedo d'Apollo_ ao mar. Apenas a vi em ancias, despi o
casaco, metti-me até ao peito na agua, apanhei a cadellinha, que a
ressaca levava para o mar, e, como Camões,

      Dos procellosos baixos escapado,

vim lançar no regaço da afflicta dama a cadella gemebunda.

Fui bonito, como vêem, para casa! A nobre senhora quiz recolher-me no
seu quartel, e eu, sem dar tempo a reiterados rogos, nem
agradecer-lh'os, porque os queixos faziam uma traquinada diabolica,
metti-me á cama, onde transpirei tres dias, bebi dez garrafas de tizana;
puz no peito um arnez de pez de Borgonha, e ao cabo d'uma semana fui
deixar um bilhete á exc.ma dona da cadella, que mandára saber de mim
todos os dias duas vezes.

Encontrando-me na praia, disse-me ella com muito agrado:

«Eu não me satisfaço com o seu bilhete. Sou mais ambiciosa. Quero que me
dê o gosto de ir passar alguns momentos a minha casa, onde se joga, e
ri, e conversa, depois d'um mau chá. Hoje poderei contar com a honra da
sua visita?

--Oh minha senhora!...

«Não me deixe na duvida. Meus manos querem ter o gosto de o conhecer...
(Em 1819 era assim que se dizia a um homem da minha roda. Hoje os manos
de s. exc.ª, querendo conhecer-me, procuravam-me em minha casa. Que
progresso immenso em quarenta annos!)

«Não nos falte! (proseguiu ella gesticulando seductoramente). Por me ter
feito um grande favor, não se segue que me prive d'outros.

--Oh minha senhora!...

«Um grande favor, sim! Mal sabe o amor que tenho a esta cadellinha. É
ingleza... foi-me enviada por um general britannico das minhas relações
de infancia. (_Nota_: s. exc.ª tinha recebido a cadella em 1812; tinha
ella então _trinta e dous annos_... que _infancia_! e que relações!)
Calcule o impagavel serviço que recebi...

--Oh minha senhora!

Nunca pude passar desta apostrophe palerma: _oh minha senhora!_

Que idéa fará esta mulher da minha intelligencia? perguntava eu ao outro
_eu_.

Com effeito, na noite desse dia apresentei-me em casa da exc.ma snr.ª D.
Vicencia dos Anjos Albergaria Raposo Cogominho etc.

(Parece-me que vai sahindo grande estopada a historia! Já agora, leitor,
não queiras que eu perca duas tiras de papel, escriptas debaixo da
inspiração saudosa dos tempos ridiculos!) Apenas entrei, fui rodeado de
caras desconhecidas. Vi muita velharia femea sentada a um canto da sala.
Fui lá fazer os meus comprimentos, e apenas uma se dignou bamboar um
pouco a cabeça. As outras perguntavam á dona da casa quem era eu. Este
_quem é_ ignominioso passava de bocca em bocca, já depois que D.
Vicencia dissera alto e bom som: «O snr. João Junior é o salvador
intrepido da minha cadellinha.» Ser João, e salvar cadellas não era
habilitação bastante para ser apresentado.

Deu-se-me pouca importancia; apenas o capellão me veio perguntar quem
era, d'onde era, que modo de vida tinha.

O orgulho começou a picar-me, e eu respondi que era o que fôra antes de
ser o que era. Que nascera em qualquer parte onde o acaso me fizera
nascer. Que o meu modo de vida era viver de modo que podesse rir-me dos
tolos que o acaso do nascimento fizesse mais tolos do que eu.

O capellão ficou atonito deste trocadilho insulso, e fêl-o mais parvo do
que era, revelando-o aos hospedes de D. Vicencia.

Ella, porém, viera sentar-se ao meu lado, e animou-me a eloquencia com
as liberdades da sua conversação.

Fallou-me no amor, e parecia mais bella, acalorada com o enthusiasmo
deste grande assumpto. Perguntou-me se tinha amado, e se lhe fizera a
ella o sacrificio de privar a minha amante d'alguns instantes felizes.

Respondi que apenas sahira da minha aldeia vinte dias antes, pela
primeira vez, e não sentira ainda o que era amor.

«Sim!?--atalhou ella, abrindo muito os olhos scintillantes.

--Sim, minha senhora.

«Um coração virgem! É crivel! Qual será a feliz mulher que se aqueça ás
primeiras chammas da sua alma?

Esta metaphora pareceu-me magnifica e fez-me impressão! Se lhe
respondesse, diria necessariamente uma futilidade chôcha. Calei-me, e,
se bem me recordo, córei.

Se dispensam saber o resto, não leiam o capitulo seguinte.


VII.

Pouco depois, tres morgados das margens do Tamega vieram sentar-se ao pé
de D. Vicencia, e começaram a fallar de cavallos. Discutiu-se a
pulmoeira d'uma egua ingleza, e os alifafes d'um alasão de Alter. D.
Vicencia fallou d'um urco inglez que era o mimo quadrupede do quartel
general do Beresford, e datou precisamente que em metade do seculo XVIII
florescera o tronco d'um cavallo pigarço que lhe morrera d'um aguamento
na estalagem de Vallongo.

Eu assisti estupidamente silencioso á pratica destes dignos Plutarcos de
cavallos illustres. Se quizesse dar o meu obulo para a conversação,
poderia apenas apresentar as minhas averiguações sobre quatro mataduras
d'uma egua em que viera, graças á benevolencia prestante do meu abbade.

Á meia noite, um tio de D. Vicencia, conego da sé patriarchal,
principiou a resonar a um canto da sala. A trombeta nazal do distincto
ornamento da igreja era o signal do despejo. A nobreza destes reinos
principiou a sahir, e eu, depois de quatro curvaturas, correspondidas
por quatro mesuras de alto a baixo, em que era soberanamente ridicula D.
Vicencia, fui para o meu quartel, scismar na mulher, á luz d'uma bugia.

Devo confessar que me não sahia das orelhas o ecco destas dulcissimas
palavras: «qual será a primeira mulher que aqueça as primeiras chammas
da sua alma?» Esta honra de fogareiro, concedida pelos melhores quarenta
annos que meus olhos viram, alvoroçou-me o sangue, e tirou-me a vontade
da ceia, dôce amiga que até então me embalava nos sonhos deliciosos d'um
Vitellio de meia tigella.

Vi duas vezes a mulher, em sonhos. Não sei porque, mas o sonho com a
mulher que póde amar-se, essa casta idealisação em que o material do
corpo não entra, faz que a gente accorde amando-a, revendo-a através da
nuvem esvaecida do sonho, desfigurando-a por uns contornos vaporosos,
que o leitor nunca viu, se Deus lhe fez o favor de lhe dar uma alma bem
chata, do que lhe dou os meus sinceros parabens.

Rompia a manhã no horisonte purpurino do mar, quando eu saltei do leito
da insomnia para o meio da rua. Senti que era poeta: alvoreceu-me nessa
madrugada o furor das rimas, e, sem vaidade, confesso que escrevi d'uma
enfiada vinte e tantas quadras, terminando todas por:

     Meu amante coração.

É realmente um vacuo na historia da poesia moderna em Portugal a perda
lastimavel do meu primeiro jacto metrico. Se bem me recordo, o meu poema
poderia ter uma até duas, mas tres tolices em cada verso, isso posso eu
asseverar que não aos poetas contemporaneos, que tem levado o seu
talento creador a quatro, cinco, e mais. Como quer que fosse, eu
glorio-me de ter feito obra que muitos annos depois encontrei executada,
com pequenas correcções, ao som da viola, fazendo as delicias d'um
arraial.

Com a aurora da poesia veio a primeira nuvem das decepções amargas do
poeta, e vem a ser que, estando eu persuadido que o poeta sahia do
vulgar, entrava em convivencia com os sylphos, e, _ipso facto_,
dispensava o almoço,--enganei-me redondamente. Ás nove horas e meia,
quando o coração parecia ter feito monopolio da vida dos outros orgãos,
começaram-me os intestinos a resoar uma symphonia de rugidos, que devia
ser a da abertura d'uma opera muito séria. Fui a casa, e aquietei o
motim intestinal, como os imperadores romanos aquietavam a canalha:
_panem_, mas com manteiga, que os romanos não conheceram; o _et
circenses_ traduzi-lh'o em café com leite.

Consummada esta operação mixta, achei-me poeta em duplicado. Fiz um
soneto excellente durante a digestão. Era um acrostico a _Vicencia_; mas
como Vicencia tem só oito letras, e eu precisava de quatorze, venci a
difficuldade, buscando entre os seus appellidos um com seis letras.
Encontrei _Raposo_; por consequencia--VICENCIA RAPOSO!

Era um bello soneto, que será publicado na 2.ª edição, para não alterar
a ordem delineada da 1.ª Perfilei-me na praia, eram dez horas e vinte e
cinco minutos. O coração dava-me cambalhotas no peito, quando a
vanguarda de D. Vicencia, composta de paspalhões, appareceu na calçada.
Nisto, desponta a cadellinha, que eu amava quanto é possivel amar-se uma
cadella que nos proporciona o namoro com a dona. Depois... ELLA!

Então é que foi! Eu já não sabia o que havia de fazer das mãos!
Parecia-me que a perna direita era um membro incommodativo. Os hombros
encolhiam-se-me, e os braços procuravam, entre todas, a postura mais
desengraçada! D. Vicencia cortejou-me de longe, e eu, querendo
corresponder-lhe, tirei o chapéo tanto á pressa que me ficou metade do
forro em volta da testa, como uma aureola de marroquim vermelho.
Attribulado com os sorrisos de quatro petimetres que me estavam ao lado,
quiz dar-me uma compostura geral ao corpo para os encarar com
sobresenho, e resvalou-me um pé na aresta d'uma fraga. Dobraram a risada
os peralvilhos, e eu, emparvecido, cosi-me com uma barraca, desejando
n'aquelle instante bifurcar-me na egua ulcerosa do abbade, e demandar o
patrio ninho.

Não o quiz assim a minha desventura.

D. Vicencia não testemunhára a minha segunda catastrophe, graças ao
cumprimento d'um adventicio. Quando eu me escoava subtilmente por entre
as barracas, não pude deixar de envesgar um olho miserando sobre
Vicencia. Viu-me! procurava-me com aquelle ar desdenhoso das mulheres
espertas, que parecem não querer vêr o homem que mais procuram. Ora,
Vicencia, além de esperta, tinha um uso!... Não fallemos disso!

O magnetismo d'aquelle olhar collou-me os pés á areia como os da estatua
do idiotismo! Sorriu-me com o mais amavel dos desleixos, brincando com
as borlas do seu elegante casaco, roupão, ou como é que se chamava, de
castorina côr de rato! Eu tomei a brincadeira das borlas como um acêno,
e penso que me não enganei. Este espirito sagaz é uma cousa muito velha
em mim!

Fui-me aproximando disfarçadamente. Vicencia, com mais subtil disfarce,
deixou o grupo dos senhores donatarios que regougavam as suas tolices
habituaes. Foi sentar-se solitaria ao pé d'uma barraca, e eu, tremulo de
susto, fingindo quanto pude um animo frio que mais me denunciava,
avisinhei-me com o chapéo na mão.

--Como passou a noite, snr. João Junior?--acudiu ella ao meu embaraço.

«Muito obrigado, minha senhora...--gaguejei eu.

--Passou bem, não é assim?

Creio que fiz um tregeito parvo com os beiços, no qual tregeito queria
eu significar-lhe que não passára lá grande cousa.

--Então passou mal?--tornou ella.

Uma idéa, distinctamente tola, me acudiu de improviso á mente. Julguei
do meu dever não atraiçoar o legitimo sentimento de ternura que ella
fizera nascer. Revesti-me da bravura moral que o amor inspira a todos os
patetas bisonhos, e respondi bruscamente:

«Quem sonha com o objecto amado não passa bem.»

Nos labios de Vicencia esvoaçou um riso imperceptivel. Ainda hoje me dá
muito que pensar aquelle riso! Acho, aqui para nós, que a generosa
mulher satisfez com aquelle riso ao estimulo de uma conscienciosa
gargalhada.

--Pois o senhor não me disse ainda hontem que não amava?

«É verdade, minha senhora... mas... lá vem a maré...

--Vem a maré?! (disse ella) a que horas virá ella hoje? Tanto queria
tomar banho cedo!

Imaginem, pios leitores, com que cara eu ficaria!


VIII.

--Eu não fallava na maré do mar, minha senhora...

«Ah... não? eu pensava...

--Queria eu dizer que... o coração muda d'um instante para o outro.

«Agora entendo! Ora sente-se...

E eu sentei-me, resolvido a ser homem; mas a cadeira era baixinha e eu
fiquei virtualmente sentado como um macaco. Quiz accommodar uma perna
sobre a outra; mas o meu mestre de rhetorica tinha-me dito que era
signal de má criação cruzar as pernas. Desejei n'aquelle momento
angustiado ter nascido na Laponia, ou encurtar em corpo na razão directa
da pequenez do espirito. Experimentei variadas attitudes: uma vez,
ficava-me o pé direito em aleijão; outras, o joelho esquerdo formava com
o direito o apice d'um triangulo isosceles. Resolvi, por fim, estender
uma perna, e encurvar a outra em fórma de fateixa. Isto em quanto ás
extremidades inferiores; mas a anathomia prova que o Creador tambem fez
as extremidades superiores para castigo de amantes garraios. A mão
direita andou longo tempo em busca de uma posição, desde o seio do
collete até ao joelho; por fim, metti-a na algibeira. A esquerda
inutilisei-a entre as costas e a cadeira. Definida a minha posição,
immobilisei-me nesta caricatura, como se fosse de greda. Desviei as
minhas attenções plasticas do corpo, e fiz-me todo espirito, para
destruir o mau effeito do involucro.

--Não toma banhos?--disse D. Vicencia, como se eu lhe tivesse aguado as
bellas cousas que tencionava dizer-me.

«Sim, minha senhora, já tenho vinte banhos.

--Soffre dos nervos?... É um terrivel padecimento...

«Eu tambem soffro bastante dos intestinos» atalhei eu com toda a
ingenuidade.

--Sim? Ainda ha peores enfermidades... As do coração é que não se curam.

«E v. exc.ª padece do coração?--disse eu com sincera condolencia.

--Muito...

«Algum aneurisma?

--Aneurisma moral... que é o peior de todos. O snr. João Junior ha-de
soffrel-o tambem quando chegar a sua hora.

«Por em quanto, não sinto dôres de peito, minha senhora. O meu mal é
todo de intestinos.

--O coração--tornou ella sorrindo de um modo celebre--o coração tambem é
um intestino.

«Ha-de perdoar, minha senhora; mas os intestinos estão por debaixo do
estomago. Tenho um tio cirurgião que sabe perfeitamente a anatomia, e
nunca lhe ouvi dizer que o coração era um intestino.

D. Vicencia ria desafinadamente. Eu estava um pouco enfiado e corrido
deste mau gosto de discutir ás gargalhadas.

«De que se ri v. exc.ª?»--interpellei eu, desarranjando um pouco a minha
attitude, que tanta arte me custára, e tanto me custou a restaurar.

--Eu rio-me da boa fé com que o senhor enrista a lança em defesa da
anatomia do seu tio. Eu tenho fallado em estylo allegorico. O snr. João
Junior sabe perfeitamente o que é allegoria.

«Pois não sei?--repliquei eu com ar de triumpho--_Allegoria est
tropus_... V. exc.ª sabe latim?

--Não, não sei.

«Eu traduzo: Allegoria é o tropo, por meio do qual se mostra nas
palavras uma cousa differente da que se tem no pensamento, empregando
todavia, para designar esta ultima, outra que com ella se assemelhe. Ha
duas especies de Allegoria, que são: a _total_, e a... V. exc.ª ri-se?
Cuida que eu estou a mentir?

--Não cuido; peço-lhe que não repare nos meus risos. Eu estou folgando
de ouvir um sabio...

«Sabio, não digo; mas ainda não ha tres mezes que eu estudei o meu
Quintilliano...

--E sabe-o de cór... Qual é o seu destino? tenciona ser frade?

«Não, minha senhora... Eu parece-me que não sirvo para a vida
ecclesiastica. Meu pai quer que eu seja frade Bernardo; mas eu... acho
que não se póde ser bom frade, quando se fazem versos.

--Pois o senhor é poeta?

«Tenho minha tal ou qual inclinação para isso.

--Ha-de dar-me uma amostra da sua musa. Tem algum poema escripto na Foz,
cantando o Neptuno, e as deusas do mar?

«Ainda não escrevi nada sobre Neptuno; mas se v. exc.ª ordena, farei uns
versos a esse assumpto. Hoje escrevi eu umas quadras e um soneto, que
deixei em casa.

--Deixou em casa? que pena! Não se lembra de alguns versos?

«Não, minha senhora.

--Qual foi o motivo?

«O motivo... o motivo...--gaguejei eu, esfregando os dedos da mão
esquerda na palma da mão direita--O motivo... bem sabe v. exc.ª qual
foi...

--Eu!... não sei! Talvez a bravura com que o senhor salvou a minha
cadellinha!...

«Qual cadellinha!? Ora! não fallemos n'isso... Os versos foram feitos...
a v. exc.ª

--A mim?! Dobrada razão para lh'os pedir. O que me pertence não póde ser
retido, em seu poder, sem meu consentimento. Vá já buscar os meus
versos, snr. João Junior, e leve-m'os a minha casa, sim?

Ergui-me da infernal cadeira radioso de gloria! Da praia a minha casa
não vi ninguem. Caminhava sobre flores d'um perfume embriagante. Tudo me
parecia azul-celeste. O coração dava encontrões na estreita bocêta do
peito. Cheguei a persuadir-me que estava curado dos intestinos.

Fatalidade! O extremo d'um grande prazer é um desgosto. Procurei os meus
versos que deixára sobre a banca, e não os vi. Corro á cozinha, e
interrogo uma velha, que me acompanhára de casa. Pergunto-lhe pelos meus
poemas, e ella arregala os olhos enviezados de marroquim, sem saber o
que eu procuro. Insto pelos meus papeis, e a incendiaria diz-me que, á
mingua de carqueja, accendera o fogão com uns papellitos que achára
sobre a mesa.

Senti a cruenta precisão de matar esta velha! Injectaram-se-me os olhos
de idéas assassinas. Traquinaram-me os queixos convulsivos de raiva.
Entrou em mim o _delirium tremens_... Foi a imagem de Vicencia que me
salvou... se não... ai da velha! e ai de mim tambem!

Sahi, fui-me empoleirar no penedo mais hirsuto dos Carreiros, bebi a
longos tragos a inspiração, reproduzi as idéas da poesia supplementar á
carqueja, e outras novas suggeridas por um novo ardor. Ó poder do genio!
Cento e vinte versos, repartidos em quadras, a inspiração ejaculou d'um
vomito! Escriptos a lapis, trasladei-os em papel de peso na loja d'um
tendeiro. Corri a casa de D. Vicencia. Annunciei-lhe a catastrophe da
1.ª edição, que a fez rir muito. Deixei-a lêr mentalmente a segunda, e
não ousei procurar no semblante d'ella a denuncia da sensação que lhe
faziam.

Lido o poema, D. Vicencia, séria, magestosa, e commovida, sentou-se,
fez-me sentar, por um gesto, junto de si, e murmurou estas palavras que
nunca, através de trinta annos, pude esquecer:

--O senhor fez-me rir hoje; mas os seus versos fazem-me pensar com mais
seriedade do que eu queria. O senhor é uma criança de coração,
annunciando talento e infortunio. É um innocente que fará rir, antes que
o ensinem a chorar... Agradeço os seus versos, os seus sentimentos, e o
offerecimento do seu coração.

Felizmente para mim entrou gente na sala.

O capitulo seguinte não sei se terei a coragem de escrevêl-o! Vou lêr
alguns das _Confissões de J. J. Rousseau_ para me animar.


IX.

Era em uma dessas noites em que o amor se pendura dos raios argentinos
da lua-cheia. O dorso do mar, sereno e suspiroso, scintillava em escamas
de prata. Na quebrada dos montes fronteiros, onde a lua não diffundia o
seu clarão, perpassavam luzinhas magicas, tremulas e subitaneas, que, ao
cabo de contas, vinham a ser as candeias dos lavradores que subiam do
redil para os casebres, ou desciam dos casebres para onde elles queriam,
cousa de que não faço questão.

E eu fitára os olhos no horisonte do occeano, terrivel e magestoso;
quadro indecifravel desde o cháos, provocação eterna ao orgulho do verme
chamado homem; gigante inquieto que submerge no seio, d'um sorvo apenas,
a taboinha juncada de soberbos tyrannos da terra, que lá se confundem
com a folhagem das algas, boiantes sobre a garganta dos abysmos. E o meu
espirito, desatado do poste vil chamado corpo, pairou nas alturas do
céo, voejou de mundo para mundo, librou-se na paragem luminosa das
chimeras, e desceu por fim sobre a imagem de D. Vicencia.

Eram dez horas da noite.

Sahi de minha casa, com a phantasia arrobada de delicias, e achei-me
machinalmente debaixo d'um caramanchão de faias e loureiros que
abobadavam uma janella aberta no angulo do jardim de D. Vicencia.

Os raios da lua, dardejando sobre a copa do miradouro, matisavam-na de
tremula folhagem de prata, e vinham, filtrando por entre os rotulos da
janella, mosquear a relva como a pelle da zebelina. Era muito para
ver-se tudo isto que eu, exacto retratista da natureza, vou pintando de
modo que o leitor parece-lhe que o está vendo. É o que se quer.

Sentei-me defronte desta como gruta de fadas, e imaginei o que ha mais
bello em Ossian, em Hoffmann, e nos contos orientaes, que eu, com
vergonha o confesso, não tinha visto, nem vi depois; mas, nestes ultimos
tempos, é preciso ser grande alarve para não saber tudo isto e muitas
cousas mais, lendo os folhetins dos meus amigos, sabedores de tudo,
conhecedores de todos os nomes distinctos, á excepção do Lobato, e do
Madureira, menos euphonicos que Macpherson, Goethe, Klopstock, e outros,
que elles conhecem, como eu, dos catalogos da bibliotheca _Charpentier_.

Estava eu, pois, nesta idealisação de todos os meus cinco sentidos,
divinisando aquella gruta, onde de tarde vira Vicencia com a face
voltada para o sol-poente, apoiada com geito encantador na mão eburnea.

Devo, para desarmar a critica, protestar contra o epitheto _eburnea_.
Entrou commigo a peste litteraria dos modernos torneiros de paragraphos.
Arredondar o periodo é a condição imposta pela tyrannia do gosto ao
escrevinhador laureado. Eu canto o que escrevo; e, se a toada me destoa
no tympano, desmancho a oração em partes, ajusto-as de novo, calafeto-as
de artigos, e pronomes, e conjunções, o mais afrancezadamente que posso,
e sahe-me a cousa um pouco inintelligivel, mas harmoniosa como um
clarinete de romeiro de S. Torquato de Guimarães.

_Com geito encantador na mão eburnea_: reparem que é um verso
hendecasyllabo. Quem ha ahi que arredonde melhor um periodo, sem
desnaturar a lingua, nem alastrar o verso de cunhas que resabem a
estrangeirice?

Tudo isto veio adrêde (eu traduzo: _á-propos_) para dizer que, estando
eu com os olhos embevecidos nas melenas das faias, abriu-se subitamente
a janella, e a lua deu de chapa na radiosa cara de D. Vicencia.

Viu-me, e não me conheceu: ia retirar-se quando eu, ainda absorto na
apparição, tossi o mais melicamente que pude. Vicencia deu ares de
conhecer-me. Eu, invocando todos os potentados da minha alma (não seja
sempre _potencias_) para vencer o acanhamento, murmurei:

«Sou eu...

--É o snr. João?

«É verdade, minha senhora.

--Então que faz por aqui?! versos?

«Estava a admirar a natureza, minha senhora.

--E admiravel que ella está!

«Muito admiravel, admirabilissima! muito bonita é a natureza!

--Eu tambem quiz ver o mar onde a lua se espelha tão poeticamente! Mas a
noite vai arrefecendo; e eu receio muito as constipações á beira-mar. Se
me dá licença, recolho-me...

«Pois eu ainda fico... Estou gostando muito desta encantadora noite...
Quem ama, não tem medo ás constipações...

Estas palavras proferi-as com certa entonação de despeito, e fiquei
satisfeito da minha veia epigrammatica. Vicencia, porém, redarguiu:

--O logar é incompetente para fallar d'amores. Quem nos visse aqui a
deshoras suspeitaria de nós. Nada de escandalos, snr. João Junior. Venha
cá ámanhã, e então me dirá o effeito que lhe fez o poetico espectaculo
desta formosa noite; mas... se valho alguma cousa na sua vontade,
peço-lhe que se recolha, e não queira privar-se de me ver ámanhã,
constipando-se hoje... Promette ir?

«Sim, minha senhora...

--Então, boas noites.

E fechou o rotulo, mais depressa, por sentir passos na extremidade da
travessa, que era de pouquissima passagem.

Eu permaneci quieto no meu sitio, meditando, triste, na indifferença
gélida com que fôra recebido, em hora tão romantica, tão mysteriosa!
N'isto, passou por mim um vulto. Era o homem, cujos passos a fizeram
fugir com mais presteza.

O tal vulto, ao perpassar por mim, mediu-me d'alto abaixo, afrouxando o
piso. Olhou para a janella de Vicencia, e fixou-me de novo. Deu alguns
passos, e retrocedeu... Confesso que já não estava contente!

O encapotado foi até á extremidade do bêcco, e voltou. Parou diante de
mim, e disse por debaixo do capote, em ar de tyranno de tragedia:

--Que quer vossê aqui?

«Não quero nada...--gaguejei eu.

--Pois então, mude-se.

Eu demorava um pouco a execução do mandado solemne de despejo, quando o
homem recalcitrou:

--Mude-se, ou eu o ajudo a mudar.

A ajuda, pelos modos, era uma pranchada de chanfana, que o nosso amigo
deixou vêr por debaixo da fimbria do capote. Dispensei o auxilio
offerecido, e retirei-me cozido com a parede, scismando nas bellezas
appensas a uma noite de lua cheia á beira mar.

Ao cabo da viella parei, sustido por um pensamento negro. «Será aquelle
homem um amante de Vicencia?!»

O ciume deu-me intrepidez, quero dizer--a intrepidez de parar e
esconder-me d'onde podesse espreitar a scena mais escandalosa de que o
leitor tem noticia!

A janella abriu-se. Era Vicencia... conheci-lhe a voz! Não sei o que
ella disse que fez rir o meu rival. Ouvi o soido de ferro que raspava no
peitoril da janella! eram os ganchos d'uma escada. Ouvi o som cavo do
embrulho de cordas a cahir na terra. Vi o maldito subir, coar-se pela
janella, recolher a corda... e... maldição! maldição!...

..........................................................................

E, desde essa noite nefasta, a minha fronte pendeu abatida como cabeça
de estatua que um raio fulminou.

Contei as minhas amarguras á vaga gemente, e acordei os eccos das
solidões compadecidas.

Como Fausto, como Manfredo, e como Werther, perguntei ao Creador se a
vida não era uma grande patacuada.

O demonio do suicidio segredou-me as delicias do aniquilamento.

Quiz tentar contra a minha existencia, e vacillei longo tempo na escolha
do instrumento.

Queria um genero de morte novo, maravilhoso, inaudito, e memorando!

A pistola, o punhal, o laço, a asfixia, o verdete eram já n'esse tempo
expedientes muito safados.

Em cata d'um morrer distincto, habituei-me á dôr. Vivi, se vida póde
chamar-se este mixto de funcções animaes em que predomina o almoço, o
jantar, e a ceia.

Não se conhecia então o instrumento de suicidio que a sociedade actual
inventou: O ARTIGO DE FUNDO.


X.

Eu, João Junior, não soffro os romancistas que pulam d'um capitulo para
outro, de modo que o romance tanto faz principial-o detraz para diante
como de diante para traz. Classico em toda a extensão da palavra,
respeito a arte antiga, admiro a boa ordem das _Pastoris_ de _Longus_,
do _Jumento_ de _Lucius de Patras_, e outros venerandos monumentos da
arte adulta, cuja leitura não aconselho áquelles que dormem as suas
horas, sem o recurso do láudanum. Com quanto Aristoteles, Horacio, Pope,
e Boileau não legislassem para o romance, eu, sincero venerador da arte
que ensina a fazer os primores d'arte, trabalho, quanto em mim cabe, por
introduzir no romance as tres unidades de Aristoteles. E aproveito a
occasião para certificar aos principiantes n'este esperançoso ramo de
litteratura, que é bom saber um bocado de Aristoteles, depois de ter
lido duas comedias de Scribe, a _Dama das Camelias_, e--se o
principiante fôr extremamente estudioso--o _Chatterton_, o _Bug Jargal_,
afóra a immensa erudição que vem no La Place. Com estes seis volumes,
uma capacidade mediocre abrange todas as ramificações da sciencia
humana, e póde, se um editor martyr o ajudar, aos quarenta annos, ter
produzido quarenta volumes.

Os meus quarenta annos já lá vão ha muito; mas, se Deus me der mais dez,
prometto encher o vasio que sempre deixa na terra um grande nome. É este
o primeiro livro com que brindo a humanidade; mas tão maduramente
pensado elle vai, tanto tempo o choquei, antes do parto, no utero
intellectual, que, se me não logra a vaidade, começo por onde muitos
acabam.

A logica com que os capitulos anteriores vão coordenados, a naturalidade
das transições, o alinho das fórmas em harmonia com a substancia, a
intima alliança da esthetica com a plastica, a artistica rigidez com que
os caracteres se pintam, e, sobre tudo, a pureza, a elegancia, o
atticismo, a propriedade da linguagem, portugueza de lei como os
portuguezes d'esta nossa afortunada época, tudo isso, e outras louçanias
que omitto, por preguiça, provam que eu, João Junior, conheço
Aristoteles; e, se nunca o li, maior habilidade revelo; tenho o sexto
sentido, o _illuminismo_, que tambem não sei bem o que é. Pelo que,
muito importa que o leitor saiba

    _Quem era o homem da escada de ferro, o que elle por lá fazia
    áquellas horas, e de como o author, depois de trinta annos, chora
    por D. Vicencia, e o mais que a este respeito se disser, como do
    capitulo melhor se verá._

Deveis de saber, leitores pudicos, que D. Vicencia Raposo, quando chegou
á Foz, sentiu, na presença do occeano, rejuvenescer-se o coração,
desenrugar-se-lhe a alma, e esvoaçarem-lhe de redor candidos amorinhos.
_Souvent l'onde irrite la flamme_, disse Corneille, e D. Vicencia,
aspirando o ar nitrico do mar, cobrou vigor de peito, e com o vigor novo
readquiriu as necessidades velhas, as illusões de 1801, as realidades de
1809, e até o amargo prazer de experimentar os desenganos de 1819, época
da sua fatal decadencia.

Resolvida a amar, Vicencia espartilhou-se o mais angustiosamente que
pôde, distribuiu nas faces, um pouco encortiçadas, dous escropulos de
alvaiade com outros tantos de carmim, e foi passear até Carreiros.

O primeiro homem que viu geitoso era um cadete de cavallaria, bem
apessoado, bizarro de cintura, sadio de bochechas, e lesto de maneiras,
requebros, posturas, e varias outras momices que dão nos olhos da mulher
disposta a amar.

D. Vicencia era vistosa e farfalhuda. Meneava-se tregeitando com tamanha
volupia, que eram poucos os dous olhos da cara para a vêrem! O cadete
não podia ser indifferente á provocação, e azado era elle para segurar a
fortuna pelos cabellos. Menos parvo que eu, sacou do peitilho da fardeta
o seu lenço branco, e deu ao nariz notas diplomaticas para iniciar o
namoro. Houve de parte a parte correspondencia nazal, e já n'essa tarde
o afortunado cadete foi apresentado a D. Vicencia.

Saibam desde já que o meu rival era... são lá capazes de adivinhar!...
Bento de Castro.

Depois d'aquella negregada scena do bêco, será ocioso dizer-lhes que o
meu achaque de intestinos recrudesceu; aliás, para evitar os olhos da
perfida, ter-me-hia retirado a curar o coração no abrigo dos meus
velhos, que todas as semanas me recommendavam que rezasse as minhas
contas, e não fizesse asneiras. A gravidade do mal não me deixava
assentar no albardão, apesar de doze semicupios! Era-me forçoso
testemunhar a minha derrota, assistir aos funeraes ignobeis do meu
primeiro amor.

Nunca mais fui a casa de D. Vicencia, nunca mais a vi; mas á hora em que
o mocho pia no galho do azevinho, ia eu, cheio da minha amargura,
sentar-me n'uma collina fronteira ás janellas d'ella, e d'ahi, com um
enorme oculo de papelão, conseguia lobrigal-a através das vidraças.

Se quereis saber qual era então a minha angustia, perguntai á onda
porque geme, á fonte porque murmura, e á calhandra porque pipila entre
as franças de avellanzeira! É que a minha angustia era vaga e mysteriosa
como a da onda que geme, a da fonte que murmura, como a da calhandra, e
a do calhandro, e de toda a variedade de animaes que tem bico, ou
barbatanas, ou tromba, ou labios, ou qualquer orificio respiratorio por
onde possam respirar e gemer.

Entrou em mim o demonio do ciume! Quando, pela primeira vez, se hospedou
em minha alma virgem esta paixão filha do inferno, como lhe chama
Homero, fez-se uma subita mudança na minha natureza. Eu fôra incapaz de
entalar o rabo d'um gato, e senti-me propenso a cercear as orelhas a um
homem! Levaria tres sôcos sem resistencia para não levar o quarto, com
heroismo, e achava-me animado d'esse furor das batalhas, que ceifa
louros e cabeças!

Quiz conhecer, encontrar face a face o meu rival, e, para isso, muni-me
do cabo d'uma vassoura, estive quasi a experimental-o no cavername da
velha, que me queria tolher o passo, guinchando desabridamente, e fui
postar-me debaixo da janella por onde o vulto subira.

Depois de duas noites mallogradas, á terceira apparece, entre uma hora e
duas da manhã, o nosso homem.

Aqui entre nós que ninguem nos ouve: quando o vi perto de mim, a minha
coragem pareceu-me uma cousa muito duvidosa. Deram-me caimbras nas
pernas, e senti-me mal do epygastrico! Cingi a mim quanto pude o cabo da
vassoura, para que elle não denunciasse as minhas tenções
reconsideradas, e, o mais subtilmente que é possivel, fiz uma pirueta,
preparando-me para uma retirada honrosa, quando o sujeito me corta a
vanguarda, e diz com voz soturna:

«Que diabo estava o senhor alli fazendo?!

--Nada...--regouguei eu.

«Isso não é possivel. O senhor não estava alli para me vêr passar... Não
se assuste que eu não lhe faço mal... Diga lá o que me quer.

O timbre agradavel d'estas palavras animou-me.

--Eu ao senhor não lhe quero nada.

«Ora venha cá;--tornou elle--vamos passear e conversar. O senhor
chama-se João Junior.

--Seu criado.

«Quiz namorar D. Vicencia.

--Isso lá... é conforme...

«Seja sincero. O senhor fez-lhe versos, versos que eu achei bonitos, e
conservo-os na minha carteira, porque talvez ainda me valham se me vir
apertado por alguma mulher com a mania de ser cantada em quadras. O
senhor está muito verde... Estas mulheres não se conquistam com versos,
nem se procuram no principio da vida. O snr. João é provinciano, vem lá
da sua quinta com as bucolicas do Rodrigues Lobo na cabeça; e, como não
encontrou zagalas toucadas de flores, imaginou que D. Vicencia era uma
das tres Graças em uso de banhos. Redondamente enganado, meu amiguinho.
Ora agora, façamos um convenio. Quer o senhor que eu lhe deixe livre o
campo para as suas escaramuças? Com a melhor vontade...

--Nada, muito obrigado, eu não quero saber de mais nada... O que eu
tenho a pedir-lhe é os meus versos.

«Ha-de ter paciencia; mas os seus versos acho-os muito bonitos, e não
lh'os dou. Até lhe digo mais: depois que os li, fiquei sympathisando com
o author, e tenho feito diligencias por encontral-o na praia, ou em casa
de D. Vicencia. Queria dizer-lhe que se não deixe lograr por taes
mulheres; queria ensinal-o a viver com esta gente, para o poupar aos
desgostos que eu supportei, desde que sahi de minha casa; queria, em
fim, ser seu amigo, se o senhor não tivesse n'isso antypathias que
vencer.

--Muito obrigado...--mastiguei eu, bem disposto a favor de homem tão
franco.

E voluntariamente me deixei ir pelo braço delle até sua casa. Subi, e
era dia claro quando nos separamos, amigos para sempre.

Dous annos depois, recebia elle de mim lições de _savoir-vivre_. O meu
talento precoce predominou a experiencia d'elle. Um anno de tracto
social, decifrou-me enigmas em que Bento de Castro ainda hoje sinca.

Duas palavras mais ácerca de D. Vicencia, e serão ellas sérias e tiradas
do coração n'um intervallo de negra tristeza.

A mulher devia ser velha quando não sente o coração... quando já não
ama. Vicencia amou até o fim da vida. Amargurado fim de vida devia ser o
seu! Nem já flôres desmaiadas lhe escondiam a fronte encanecida. Perdido
o brilho, amorteceram-se-lhe os olhos, franziram-se-lhe as palpebras,
encorreou-se-lhe o collo, e as mãos, que tão lindas foram, tingiu-as a
amarellidão do tempo.

E o coração ainda vivo no involucro muribundo! Era como a flamma que não
póde coar-se nos vidros embaciados da velha lampada.

Foi, por fim, motivo de irrisão e mofa, aquella mulher, que, desde os
doze até aos quarenta e cinco annos, arrancára coroas de quantas rivaes
quiz supplantar!

De todos os seus amantes, eu fui por ventura o mais nobre, e o mais
vilipendiado. Embora! Nenhum outro lhe daria o _salve_ compassivo que eu
lhe dou, depois de trinta annos.

..........................................................................

Oh vida! vida!............................................................

..........................................................................

Grandes devem ter sido as provações de quem souber tilintar os guizos do
histrião para que lhe não ouçam os gemidos!...

Chorar no coração, e rir no espirito...


XI.

Consta do final d'um capitulo, escripto em logar competente deste
exemplar romance, que Bento de Castro sahiu de minha casa para entabolar
com Hermenigilda o seu primeiro colloquio.

Eu cerrei as portadas da janella, deixando apenas uma fresta onde
podesse encaixilhar a orelha direita, sem denunciar a innocente
espionagem. Alguns dos meus amigos, orelhudos como Midas, não poderiam
fazer outro tanto com o mesmo recato.

Bento foi quem primeiro teve a palavra, e disse:

--É tal o prazer que me enche o coração, amada Hermenigilda, que não
posso exprimir-vos quanto por vós sinto, desde o ditoso instante em que
vêr-vos e adorar-vos foi obra d'um momento. O sentimento que meu terno
peito nutre por vós, acaso ao vosso terá passado?

ELLA.

Eu passei bem, e o senhor?

ELLE (_atordoado como se lhe despejassem de cima um balde_.)

Como passará bem do corpo quem arde em vivas chammas de amor?

ELLA.

O senhor tambem sabe cantar a modinha das _vivas chammas d'amor?_

ELLE.

Nada, não sei.

ELLA.

Minha prima Carlota canta que é um regalinho ouvil-a.

    Althea, mimosa Althea
    Me maltractas com rigor,
    E eu por ti ardendo sempre
    Em vivas chammas d'amor.

Pois o senhor não sabia este soneto?

EU (_mentalmente_.)

É d'uma estupidez fabulosa! Ó pobre Bento, como estará a tua alma!...
Haverá d'estas mulheres, passados trinta annos? Digo que não, em honra
do progresso. Alguns annos mais, e _Paulo de Kock_, e _Pigault Lebrun_,
e outros directores espirituaes, traduzidos em vernaculo, darão aos
namoros de nossas filhas occasião de ouvirem menos tolices. Os que
amarem em 1856, devem passar horas muito agradaveis! As mulheres de
então, ricas de prendas espirituaes, saberão dizer _toillette_,
_rendez-vous_, _petit-point_, _crochet_, _soirée_, _boucles_,
_papier-satin_, _enveloppe_, e outros ornamentos de lingua com que farão
a sua maior, mais fecunda, mais grulha e tagarella. Com a
superabundancia do idioma, augmentarão as idêas, na razão directa. A
psycologia estará no auge. Mestre Spinosa e Kant encarnarão nas costas
abauladas da prole de qualquer jarreta. A mulher saberá os escaninhos da
alma como a abelha os do cortiço. Não haverá uma só que possa, com
acerto, chamar-se tola. Perfeita de espirito, attenderá ás imperfeições
corporeas, e descontente da massa insufficiente que o grande Artifice
empregou na feitura d'ella, apropriar-se-ha o algodão necessario para
que o Creador soffra um quinau. A mulher, correcta e augmentada, em alma
e algodão, será o luxo da natureza, a boneca das creanças-decrepitas, o
ouro cendrado no cadinho das humanas miserias, o melhor pedaço de carne
e osso que Deus creou, a mais flacida aba de algodão e barbas de baleia
que as manufacturas celestes podiam dar-nos.

ELLE (_despeitado_).

Não fallemos nas cantigas de vossa prima; o que importa é saber se me
tendes um affecto igual ao meu.

ELLA.

Isso lá... veremos. Se meu pai disser que sim...

ELLE.

Pois vosso pái é que vos manda amar?

ELLA.

O que elle diz é o que se faz. Casamentos não me faltam. Tem-me pedido
muitos senhores de casa, e se elle diz que não...

ELLE.

Mas, eu não pergunto se quereis casar commigo.

ELLA.

Então?! Se não quereis casar commigo, vindes enganado.

ELLE.

Quero casar comvosco; mas primeiro devo experimentar...

ELLA.

O que?

ELLE.

O vosso coração. Quero ser amado antes de ser vosso marido. Que sentis
por mim?

ELLA.

Sinto muito bem, gosto de vos vêr, e se meu pai quizesse, eu de mim
tambem queria ser vossa esposa.

ELLE.

A minha carta que impressão vos fez?

ELLA.

Fez-me muita: está muito bonita; parece mesmo que é cousa de livros de
historias. Tenho lá em casa, na Amarante, um livro chamado os Cantos de
Trancoso, e outro chamado as Aventuras de Theofilos, ou Theofanius, ou
uma palavra assim, que trazem muitos palavriados assim.

ELLE (_com a voz suffocada por um vomito moral_).

Boas noites, menina.

ELLA.

Então passe muito bem, até ámanhã, se Deus quizer.

Bento de Castro entrou no meu quarto com as mãos agarradas á cabeça. Eu
estava sobre a cama, marinhando com as pernas parede acima, arquejando
de riso, rebentando pelas ilhargas, quando o pobre homem entrou.

«Pois tu ouviste?--disse elle.

--Tudo! está vingada D. Vicencia, e eu tambem. Suicida-te, meu infeliz
Bento! Um homem que encontrou similhante Hermenigilda, deve morrer de
tedio, de vergonha, de raiva, de odio ao genero humano em geral, e ás
mulheres em particular!

«Estás enganado--atalhou elle--gosto assim de vêr a estupidez no seu
estado de perfeição primitiva. Andava eu morto por encontrar a mulher
como ella foi no tempo em que se comiam bolotas e medronhos. Pensas que
arrefeci na empreza? Não tenhas medo. É uma mulher deliciosa para um
homem que quer casar-se rico, e desligar-se das obrigações que se
contrahem matrimonialmente com uma mulher que tem alma. Alli onde a vês,
se eu tiver a duvidosa felicidade de a obter do pai, é a unica mulher
que me convém. Ha-de ser uma excellente criadora de porcos, e se eu lhe
disser que saia da Amarante para viajar commigo dá-lhe um desmaio.
Tomaram muitos encontrar a innocencia d'ella! Aquillo é tudo materia
pura e estreme como a dá a madre natureza. Eu corto o pescoço, se ella
tem resquicio de maldade!

Castro continuava o elogio de Hermenigilda, quando ouviu vozear alto em
casa d'ella. Fomos á janella, e vimos Pantaleão embrulhado n'um cobertor
com um toco de sêbo acceso na mão, chamando Hermenigilda a grandes
berros. Vimol-o chegar, e o pai perguntou-lhe o que estivera ella
fazendo n'aquella janella. Hermenigilda negou, e o preto foi chamado
para dizer que a ouvira estar fallando com um homem que costumava
fazer-lhe acenos da janella fronteira.

Pantaleão, com o cobertor a rastos, solemne como um patriarcha do
Levitico, aproximou-se da filha cabisbaixa, deu-lhe um sonoro pontapé, e
perguntou-lhe quem era o sujeito que fallava. A desastrada moçoila
tartamudeou, e, receosa da segunda carga, disse que elle lhe tinha
escripto para o bom fim. O pai disse que queria vêr a carta.
Hermenigilda sahiu d'alli; Pantaleão, no accesso da colera, deixou cahir
o coto de sêbo, e ficou em trevas.

Não podemos vêr nem ouvir o desenlace da scena.

«O peor é que a minha carta está assignada!--disse Castro.

No dia seguinte, disseram-me, quando me levantei, que Pantaleão estava
na janella desde o romper do dia.

Fui á janella, e fiz-lhe, como costumava, a minha cortezia, posto que
elle correspondia com desagrado á minha civilidade, desde que me viu
fazer á moça varias bugigangas.

Fitou-me com terrivel catadura, e disse:

«Ó su amigo, diga lá a esse borra-botas que por ahi vem, que eu sou
homem de lhe tirar a collada pelas costas, ouviu?

--Ouvi perfeitamente, porque o senhor tem um excellente
pulmão--disse-lhe eu, disposto a jogar insolencias com o senhor de
Fregim e coutos de Riba-Tamega.

«Diga-lhe lá que se tornar a desinquietar minha filha, mando-lhe moer o
espinhaço.

--Faz o senhor muito bem... Com que então o tal maroto desinquieta-lhe a
filha!

«Vossê está a mangar commigo?

--Deus me defenda! Eu estou protestando contra aquelle tratante que
desinquieta meninas, e faz da minha casa o palladium das suas
patifarias. O direito paternal é o mais sagrado de todos os direitos. V.
exc.ª tem carros de razão em quanto sustentar o decoro dos lares, e
mantiver immaculada a prosapia illustrissima de que borbulhou.

Pantaleão olhava para mim, alongando os beiços e franzindo a testa. Eu
prosegui:

--Mas, a fallar a verdade, eu não sei se v. exc.ª tem razões assaz
fortes para tamanha zanga. O sujeito que namora sua filha é filho
segundo de uma illustre casa de Celorico de Basto. Por _Gamas_, pertence
ao venerando tronco do que dobrou o cabo das Tormentas, como consta de
João de Barros, Lucena, Camões, e da historia genealogica da casa real.
Por _Castros_, descende por bastardia d'um irmão d'Ignez de Castro, que
veio casar a Celorico, e houve quatro filhos de D. Mecia da Gama, um dos
quaes foi dom abbade em Tibães, outro foi prior-mór de Christo, o
terceiro morreu em Alcacer-Kibir, e o quarto morreu em cheiro de
santidade, e está inteiro. Já vê v. exc.ª que o amante de sua filha não
é qualquer borra-botas, como o senhor lhe chamou, no auge da sua
iracundia paternal. O que o senhor deve é indagar se é honesto o intuito
d'este amor: e caso o seja, apressar o enlace matrimonial.

«Eu não preciso conselhos!--bradou irado Pantaleão--Se elle quer casar
com minha filha, peça-m'a, e eu lhe direi o que me parecer; mas não me
ande cá a rentar pela porta.

--N'esse caso--redargui eu--direi ao meu amigo o que deve fazer para
captivar a benevolencia de seu illustre sogro. Elle irá pedil-a,
conforme o estylo, e v. exc.ª, depois de ratificar as informações que eu
tive a honra de dar-lhe ácerca da celebrada genealogia do meu amigo,
consentirá que elle entre no tronco da sua familia, como o regato no
oceano.

Parece incrivel, mas Pantaleão encarava-me com suave aspecto. A
seriedade conspicua e grave com que eu solemnisei a galhofa, achou
acolhimento digno na soez capacidade do mirifico ornamento da Amarante e
povos adjacentes. Dignou-se perguntar-me quem eu era. Respondi que não
podia apresentar-me com appellidos benemeritos da sua estima, por isso
que descendia d'uma honesta familia de lavradores, a qual havia fundadas
razões para suppôr-se que descendia do primeiro homem, e não tinha
outros documentos, além de suspeitas, com que provar a sua antiguidade.

Pantaleão achou-me razão, e disse-me que o rei Vamba fôra lavrador, para
consolar-me da minha baixa condição, acrescentando que sua magestade
el-rei D. Diniz, fôra amigo dos lavradores.

Era para vêr-se a pratica affectuosa em que demoramos uma boa hora,
finalmente interrompida pela apparição de Bento de Castro, que vinha
espantado da cordura com que nos travamos.

Pedi licença para receber o meu amigo. Contei a este o acontecido, e
dei-lhe os emboras do bom andamento em que, tão imprevistamente, se
achava o seu consorcio.

Castro, palpitando d'alegria, a primeira cousa que lhe lembrou foi que
não tinha casaca para solemnisar a sua primeira visita ao pai da noiva.
Remediado com a do boticario da terra, que fizera uma para assistir ás
exequias de D. João VI, o meu amigo, n'esse mesmo dia, ás quatro horas
da tarde, procurou Pantaleão, com o fim tres vezes honesto de lhe pedir
sua filha.

Quando, porém, entrava no pateo, olhou machinalmente para dentro d'um
postigo d'uma casa terrea, e viu Hermenigilda sentada n'uma caixa de pau
de pinho, comendo figos. Ao pé d'ella estava o preto partindo uma
melancia.

Horrivel mysterio!


XII.

Não tarda, leitor pio, leitor indulgente, leitor benevolo, leitor
honesto que paga, leitor honrado que não lê de emprestimo, não tarda ahi
uma enfiada de lances estupendos, que lhe arranquem interjeições de
pasmo, e lhe afervorem o desejo de abraçar o author!

Deixei o seu espirito em tribulações de curiosidade, no anterior
capitulo, onde Hermenigilda apparece comendo figos ao pé do preto, no
momento em que o meu amigo Castro ia, escada acima, pedil-a ao pai.
Chamei «horrivel mysterio» ao mais natural dos actos--uma mulher a comer
figos!--Dei ao acontecimento uma importancia que tem feito pensar o
leitor ancioso. Vão vêr porque. O que, por ora, posso acrescentar,
porém, é que Bento de Castro recuou um passo, entreteve-se alguns
instantes indeciso, e, por fim, resolveu espreitar o que se passava no
quarto.

Ao lado da pequena fresta havia no estuque esboroado uma greta propicia.
O meu amigo espreitou, e viu o seguinte, de que lavro acta para eterna
memoria:

1.º Viu Hermenigilda acabar d'engolir um figo, e atirar o pé do mesmo á
cara do preto.

2.º Viu o preto tregeitar uma careta festiva, e atirar á cara rúbida de
Hermenigilda um bocado do coração da melancia.

3.º Viu a menina tomar do chão uma das rodellas de casca da dita
melancia, e assentar com ella uma sonora sulipa na carapinha do preto.

4.º Viu o preto, com as belfas gotejando sumo, aggredir a espadua da
morgada, e vingar-se imprimindo-lhe uma palmada em cheio nas ultimas
vertebras lombares.

5.º Viu engadelharem-se, com grandes risadas, as innocentes creaturas, e
teve a gloria de presenciar a victoria da sua amada, que atirou com o
preto ao chão, e fugiu.

Satisfeito d'estas cinco visões, por isso que lhe não faltaram receios
d'uma sexta, setima, e oitava, o meu amigo, tranzido d'espanto, perdeu a
cabeça, e se havia de subir, desceu os dous degraus que o separavam da
rua, e entrou em minha casa.

Contou-me as suas observações importantes, commentou-as com admiravel
perspicacia, e acabou dizendo que renunciava o projecto do casamento, e
me pedia encarecidamente que não divulgasse o seu louco intento, e
dissesse ao pai da innocentinha que elle não queria casar.

Cousa, porém, admiravel! Bento de Castro dissimulava uma zanga interior,
que eu não ouso chamar ciume, porque não quero dar ao meu amigo um rival
tão vilipendioso. É, porém, desgraçadamente certo que o pobre moço,
vendo que eu não defendia a innocencia do espectaculo que elle vira,
tentou defendêl-o, perguntando-me se aquelles brinquedos não seriam por
ventura honestos e singelinhos. Eu, que sempre fui d'uma boa fé
estupidamente santa, reforcei a conjectura do meu amigo, recordando-lhe
umas passagens que já contei ao leitor, ácerca d'uma minha prima, que
por ahi fica archivada a paginas....

«Parece-me que não devo desamparar o meu posto, sem outras provas...»
disse elle.

--Eu tambem entendo que não... Tu nada tens que perder, se te
conservares na espectativa.

«E ha uma prova mathematica que eu posso conseguir, a unica
verdadeiramente que desvanece ou confirma todas as minhas suspeitas.

Eu não entendi, nem averiguei o genero de mathematicas applicaveis á
questão; mas o meu amigo, confiado em seu systema, resolveu continuar
namoro com Hermenigilda, ainda que tivesse de abonar-se ao pai com
promessa de casamento.

Apenas Pantaleão sahiu a tomar banho, Hermenigilda appareceu na salêta,
e disse a Castro, por acenos, que o pai lhe tinha batido por causa
delle; e convidava-o a ir fallar-lhe debaixo do muro do quintal, em
quanto o pai estava fóra.

Castro annuiu. Quando sahia, disse-me:

«Estou quasi convencido de que aquella mulher tem um grande defeito, que
é ser idiota. É tão innocentemente lorpa que não conhece o desaire de
brincar com o preto. Este convite é prova da sua innocencia, não achas?

--Acho que sim, meu amigo. Em todo o caso não te esqueças das tuas
provas mathematicas, que eu não sei o que são; mas muito estimo que
ellas te aproveitem, para eu ficar sabendo que as mathematicas servem de
alguma cousa.

Castro demorou-se, e veio dizer-me que a mulher parecia outra: e se me
não disse que a achou espirituosa, quiz que eu me persuadisse de que era
possivel educar aquelle espirito.

Eu combinei na idéa do meu amigo, e elle, contente do meu accordo,
contou-me o que passára com ella. Disse-lhe elle que, no acto de a ir
pedir a seu pai, a vira brincar na loja com o preto. Respondeu ella que
o preto fôra criado com ella, vindo pequenino d'um reino onde seu tio
Simão fôra governador, bispo, ou não sei que me não lembra agora, mas é
de presumir que fosse bispo do Congo. Acrescentou ella que seu pai lhe
dissera que, se queria casar com o sujeito que a namorava, elle não se
oppunha, porque estava cabalmente informado do illustre nascimento do
noivo, e até desconfiava que fosse seu parente, por casamento de D.
Urraca Munhóz, celebrado em 1121, ficando assim aparentados os Gamas de
Celorico com os Viegas e Themudos da Amarante, como constava dos foraes
de Cima-de-Villa, Ranhados, São Gonhedo, e Galafura: do qual consorcio
nasceram D. Brites, que morrêra em Arouca, dama da rainha Santa Mafalda,
e sua irmã Soror Violante, que morreu santa em Lorvão d'uma indigestão
de toucinho, n'aquella celebre noite em que lá pernoitou a celebre
abbadessa de Holgas, D. Branca. Em consequencia do que, o meu amigo
Bento de Castro resolveu não entregar n'aquelle dia a casaca ao
boticario, attenta a reconsideração do seu precipitado plano, por causa
de umas suspeitas tão injuriosas para a mulher que lhe sahira ao
encontro na carreira da vida.

Já então se diziam estas tolices.


XIII.

Bento de Castro foi, finalmente, pedir a mulher ao pai. Pantaleão
recebeu-o com agrado, e convenceu-se de que era seu remoto parente, em
virtude do tal casamento celebrado sete seculos antes. Fallou-lhe na
politica do dia, e arrancou-lhe o grato manifesto dos seus principios
constantemente dedicados ao movimento de 30 d'Abril de 1824. Pantaleão
prorompeu em elogios a D. Carlota Joaquina, e jurou pela espada de seu
nono avô, governador de Masagão, que os constitucionaes haviam
envenenado o rei, dizendo que recebêra de canal puro o segredo da morte
do cirurgião Aguiar, do medico barão de Alvayasere, e do cosinheiro
Caetano, todos envenenados pelos malhados. Acrescentou s. exc.ª, que seu
primo, marquez de Chaves, fomentava em Traz-os-Montes, de combinação com
Fernando VII, a queda da carta, e a restauração do throno e do altar,
dos principes christãos, e extirpação das heresias. Como prova de ser
informado por infalliveis oraculos, mostrou uma carta do seu particular
amigo e primo visconde de Canellas, e outra, não menos convincente, do
padre Albito Buela.

Bento de Castro--digamol-o sem desdouro seu--era ardente correligionario
de seu futuro sogro. O meu amigo era, n'essa época, extremamente chato
do intellecto, e em negocios da republica não via meia pollegada adiante
do nariz. Seus tios frades, e seu irmão morgado--aliás excellentes
creaturas--uns em nome da religião, outros da ordem, e todos dos seus
interesses, fizeram-lhe conceber odio á liberdade, á revolução, e aos
principios subversivos da sociedade proclamados em 1820, por meia duzia
de estupidos como Ferreira Borges, e Fernandes Thomaz.

Eu, filho do povo, e Graccho em primeira edição nessa época, tinha lido
o _Contracto social_ de João Jacques, o Espirito de Helvetius, e a
Gazeta de Lisboa, das quaes leituras formei o meu espirito para as
luctas tremendas das liberdades patrias, ás quaes fiz serviços de
tamanha transcendencia, que, depois de vinte e oito annos de
sacrificios, consegui ser nomeado escrivão substituto do juiz eleito na
minha terra, de cujo exercicio fui demittido por decreto de vinte e nove
de... Olhem que romance este! Já viram uma cousa assim? Se me não
refreio o impeto, sahia-me aqui uma correspondencia de victima dos
ultimos acontecimentos, mandando suspender o juizo do respeitavel
publico!... O leitor, se continua a lêr-me, dá-me provas tão vivas da
sua munificencia, tolerancia, e magnanimidade, que eu faltaria aos meus
mais sagrados deveres, se, depois desta historia, lhe não contasse outra
muito bonita, em que o heroe do romance, depois de amaldiçoar a
sociedade que o não comprehende, tem o descoco de fazer-se eleger
deputado, e brilha n'uma commissão encarregada de legislar para a
importação dos cereaes, e exportação dos bois! Isso é que ha-de ser um
romance! E, se lhes parece, comecemo-lo já... ou querem saber no que
pararam as intimas sympathias dos nossos amigos Pantaleão, e Bento de
Castro?

A fallar-lhes a verdade de Epaminondas, e a do amigo de Platão,
dir-lhes-hei que o romance, d'aqui em diante, é curiosamente estopador.
Desde que a vida sahe das regiões sublimes do ideal e entra na esphera
das mundanidades villãs, o romance espiritualista, como este meu se
preza de ser, descahe indispensavelmente para o caustico, torna-se d'uma
moralidade bastante equivoca, e não é o mais azado guindaste para içar
espiritos de quinze annos ao setimo céo de Santa Thereza de Jesus. As
heroinas e até os heroes de mad. de Genlis, se se encontrassem com os
meus d'aqui em diante, tapavam olhos e ouvidos. É necessario um curso
regular de Parny, de Crebillon, e Pyron, uma iniciação destes fachos
precursores dos luminosos dias em que vivemos, para acceitar a
philosophia dos seguintes capitulos, que pertencem mais ao homem da vara
de cerdos de Epicuro que ao da legião de espiritos ethereos do immortal
discipulo de Socrates.

Ejaculado este arroto de erudição, saibamos como Bento de Castro
esmerilhou mathematicamente os escaninhos do coração de Hermenigilda.

É muito para saber-se que, desde esse dia, o fidalgo de Celorico de
Basto, graças a D. Urraca Munhoz, visitava todos os dias sua prima; mas
vinha tomar chá a minha casa, porque Pantaleão usava apenas chá da India
quando as indigestões não cediam á terceira emborcadella d'uma botija
d'aguardente _ad hoc_.

Em honra d'aquella cabeça de familia, diga-se que a môça andava vigiada,
posto que o meu amigo captasse a confiança do sogro, e, o que mais é, as
sympathias do preto.

Estavamos no mez d'Agosto de 1826, e o casamento, que devia ser em
Amarante, aprazaram-no para o mez de Março.

Bento de Castro contava-me maravilhas da noiva. Cada dia lhe descobria
na testa uma estrella boreal de intelligencia. Hermenigilda resolvêra
aprender a lêr correntemente, e havia já adverbios de sete e mais
syllabas que ella conseguia soletrar melhor que o pai! Eu pasmava
angelicamente dos progressos da moça; e devo confessar que, ou fosse
resultado de vigilias litterarias, ou predominio do espirito sobre a
materia, as carnes succulentas do rosto d'ella emmagreceram de massas
pingues, e a epiderme, perdendo a antiga purpura de betarraba,
regenerou-se n'um desmaiado meio romantico, meio espinhela-cahida.

Em virtude do que, perguntei ao meu amigo se o calculo differencial e
integral, com effeito exercitava e corrigia e rectificava o espirito
como geralmente se dizia, e particularmente se demonstrava na pessoa da
minha visinha.

Bento de Castro, solemne d'uma continencia digna de melhor sorte,
respondeu-me que a virtude era um attributo dos anjos, e os anjos
escapam ao olho prescrutador das mathematicas puras e das mixtas. Fiquei
nessa occasião sabendo que as mathematicas podiam ser puras e mixtas;
mas desconfiando sempre que as do meu amigo eram impuras.

Veremos.


XIV.

_Em que o author, depois de averiguar profundamente as conveniencias
    inviolaveis, do melindre, resolve não leccionar o publico
       em mathematicas, embora o seu amigo Bento de Castro
         assim fique privado de catalogar-se na phalange
             dos Newtons, Leibnitz, e Descartes; de
                  que resulta ficar o capitulo
                     aqui esganado pela mão
                             da moral._


XV.

O romance tem cousa má!

É a primeira vez que os typos perpetuam o invento escandaloso d'um
titulo sem texto! Um critico francez annunciou um romance que, em logar
de principiar pelo principio, começava no 2.º volume. O author,
respeitador do publico, explicava o contrasenso, dizendo que os romances
eram escriptos de modo que tanto fazia ao caso começar do 1.º volume
para diante, como do ultimo para traz.

Isto é rasoavel e persuasivo. Porém, incoherencias deste tamanho não se
desculpam n'um romance pensado, philosophico, haurido das fontes do
coração, da experiencia, e feito expressamente para entrar em quinhão de
gloria com as «Reflexões de Phocion» com o «Manual de Epicteto» com os
«Excerptos gnomicos de Seneca» com os «Caracteres de la Bruyère»
excellentes repositorios de philosophia pratica, que eu hei-de lêr na
primeira occasião, porque me dizem que são livros de muito interesse,
que ensinam a procurar a felicidade, como agulha em palheiro, na
pobreza, na humildade, e na virtude. Mestres d'esta ordem teem sempre
uma vida eivada de amarguras: isso é o que eu posso desde já affirmar,
sem os ter lido. Phocion soffreu morte dolorosa. Seneca, preceptor de
Nero, bem sabem que desastrado remate teve de vida. Epicteto é aquelle
escravo do «Thesouro de meninos» que exclama, erguendo a canella partida
por uma paulada: «não vos disse eu que m'a havieis de quebrar?» D'onde
infiro que os preceptores da felicidade andam sempre de candeias ás
avessas com o genero humano, e muitas vezes, com a arte de engranzar
capitulos de romance, de modo que a historia vá bem contada, até ao fim,
que deve ser onde casa o heroe, ou a heroina morre de tuberculos, no uso
de oleo de figados de bacalhau.

João Junior, summamente penhorado pelas attenciosas maneiras com que os
seus numerosos amigos teem recebido esta sua primogenita creatura, tem a
honra de declarar ao publico, e mais senhores, que o capitulo XIV foi
eliminado deste quadro de costumes porque havia n'elle frescura de
idêas, phantasia de côres, debuxos copiados da natureza viva, cousas, em
fim, tão verdadeiras, tão patriarchaes, tão nuas, que o seu editor,
depois de montar os oculos, e sorver duas pitadas conspicuas, disse que
não patrocinava com o seu nome um capitulo em que o mencionado supra
contava os factos como elles tiveram a impudencia de acontecer.

Em virtude do que, entrei na minha consciencia d'artista, e vim a um
accordo com a moral, aspando as doze paginas mais profundamente
escriptas do meu romance: doze paginas em que eu fortalecia os habitos
da natureza bruta com as doutrinas lucidas dos interpretes mais
abalisados dos mysterios do coração; doze paginas salpicadas d'uma
erudição exemplificativa que remontava á creação do globo, para provar
que o homem e a mulher, sem o intermedio do merinaque, são dous entes
homogeneos, duas substancias amalgamicas, dous tomos da mesma obra, duas
creaturas em fim dos nossos peccados. N'esse capitulo, naufragado no
cachôpo da moral, tinha eu uma gorda nota comprovativa da minha opinião
ideologica a respeito de mulheres, rica de historia antiga, em que, sabe
Deus com que vigilias, entravam Salomão e Dalila, Pericles e Aspazia,
Tibullo e Lesbia, Ovidio e Corina, tudo pessoas que amaram como se ama
d'uma até quarenta vezes na vida, com todo o ideal arrobado dos
anhelitos da adolescencia, com a fé pura, candida, e immaterial do amor
de Voltaire a madame du Châtelet, do amor de Larochefoucault a madame de
Lafayete, do amor da minha visinha do terceiro andar, que, ás duas horas
da noite, desce, com uma caixa de lumes-promptos, a desandar a chave,
que teima em chiar, apesar do azeite prévio, quando um Romeu de capote
de mangas lhe assobia a cavatina do «Trovador». Tudo isto, e muitas
cousas mais, vinham na nota, que prometto embetesgar na primeira cousa
que escrever, ainda que seja um artigo sobre o pulgão da batata.

Fortissimas razões tinha eu para teimar em publicar o meu querido
capitulo XIV, visto que era elle o relatorio das miudezas que se deram
antes e depois do fatal acontecimento da noite de 25 d'Agosto de 1826,
acontecimento grave e complicado, cujo conhecimento seria a chave do meu
romance, se o editor ultra-honesto não teimasse em affirmar que o meu
romance não precisa de chave para abrir as portas da eternidade.
Pedi-lhe que me deixasse, ao menos, contar o facto em estylo levantado,
allegorico, metaphorico, ao alcance, apenas, das intelligencias
superiores. Nem isso. Estava escripto em estylo oriental, balsamico,
todo perfumarias de subtil aroma d'alma, e elle teima em dizer que a
alma não tem nariz.

Era assim o meu fragmento:

..........................................................................

E a lua balouçava-se entre as estrellas, nas alturas do ether.

E a brisa do oceano, perfumada de marisco, brincava na praia com a
folhinha secca da alga.

E o rouxinol do silvedo trinava a sua cavatina cadenciosa, e sacudia as
plumas affagadas por um raio de lua.

Porque era essa a hora augusta dos mysterios, em que nos adros das
igrejas reina o terror do silencio, e nos esgalhos seccos do pinheiro
assobia o noitibó, medonho de agouros; e nas aguas limpidas dos regatos
cardumes de bruxas tomam semicupios e dão gargalhadas de risos maleficos
e satanicos.

E o homem de Celorico, sombrio e tetrico como avejão nocturno, roçou a
espadua pela padieira da porta, que se abriu.

Era da côr do jacintho o amiculo que lhe envolvia em largas dobras a
haste melindrosa.

E a viração da noite, voluptuosa e meiga, beijou-lhe a face como se
quizesse disputar á da manhã o prazer de beijar mais frescas rosas.

E a virgem d'alvas vestes transpoz o limiar do seu asylo, encostou a
fronte incendida ao braço tremulo do senhor de sua alma, e foi!

Anjo d'Amarante, porque assim te despenhas da tua angelica miryade?

Flôr do Tamega, que nortada rija te desarreigou da balsa?

..........................................................................

E a lua passava no céo, velada e triste, como a Niobe antiga.

E o homem de Celorico, de braço dado com a virgem, como qualquer
caixeiro em baile d'Asylo de mendicidade, passou de fronte alta,
meditando em seu coração um crime, e adoçando nos labios a tenção
damnada que lhe fallava n'alma.

E a vaga longinqua resoava um som cavo e lugubre, como gemido de leão.

Homem! tu és forte como o carvalho gigante da encosta; mas o raio sahiu
um dia das profundesas do céo, e o tronco, affronta dos seculos, vergou
a fronte, e estalou pelas raizes.

..........................................................................

E a flôr, tocada por labios impuros, e aspirada com avidez sôffrega,
pendeu as petalas desmaiadas, e elanguesceu no seio do maldito dos
homens de Celorico.

Fôra profundo e arquejante o suspirar d'aquella que as onze mil
duvidosamente receberiam no seu gremio, ainda recommendada pelos
jornaes!

E a lua, segundo o seu costume, dava tanta importancia a estas cousas,
como os dous habitantes mais felizes do globo lhe davam a ella............
etc. etc.

E pouco mais continha a minha descripção em estylo oriental.

É realmente demasiado respeito ás conveniencias privar-se o publico d'um
fragmento assim! Não obstante, rasguei-o, protestando jámais querer
editor para as minhas obras.


XVI.

Palavras textuaes do meu amigo Bento de Castro da Gama:

«João, arrepende-te de haveres maculado a pureza de Hermenigilda com uma
suspeita menos casta.

--Eu! santo nome! pois fui eu que a maculei!?

«Sim, tu contavas-me a historia de tua prima, quando a innocente
rapariga brincava com o preto puerilmente.

--Valha-te o senso commum, amigo Bento!--repliquei eu--Que terrivel
significação tu déste á minha historia! Poderia eu criminar a simplêza
d'um brinquedo que desde creança respeito e absolvo, porque o vejo
sanccionado na minha Arte do Pereira, livro didatico, escripto para
andar entre mãos da mocidade!...

«Mas o que faz a Arte do Pereira ao nosso caso?!

--Faz muito: pois já te esqueceu o _pueri ludunt_? os meninos brincam? e
posto que lá não diga _utriusque coloris_, d'ambas as côres, infiro que
ser um branco e outro preto não destróe a regra da boa latinidade. Logo
que se dá nominativo e verbo, tanto faz que os meninos sejam...

«Cala-te, importuno!--atalhou o meu delicioso Bento, eliminando-me da
alcôfa um pão e um canto de queijo Chester.--Fica na certeza de que a
minha consciencia está socegada, tranquilla...

--O mesmo não pódes dizer do estomago...--acudi eu, vendo o precipicio
aberto ao meu queijo que descia, ao passo que da consciencia do meu
amigo subia o protesto contra as suspeitas indignas da pureza de
Hermenigilda.

Bento de Castro proseguiu exarando provas que me não deixaram a menor
suspeita de que a noiva podia, sem que o pudôr lhe carminasse o rosto,
desapertar o cinto virginal, á laia das esposadas de Lacedemonia, ou
entrar na camara nupcial sem o receio da lampada nocturna, que tantos
sustos deu á primeira mulher de Jacob.

Estava eu, pois, admirando a infallibilidade das mathematicas, quando
Pantaleão, chamando-me da sua janella, perguntou-me se o meu amigo alli
estava. Bento appareceu logo, um pouco sobresaltado--bem sabia elle
porque, melhor que eu--e Pantaleão, com semblante rubicundo e
prazenteiro, disse-lhe que tinha grandes cousas a contar-lhe.

O meu amigo foi, contente do aspecto feliz do seu futuro sogro. Era o
seguinte o que elle queria.

Pantaleão acabava de receber carta d'um seu irmão, official superior do
regimento 24 de Bragança, noticiando-lhe a acclamação do rei absoluto, e
a prisão do bispo, e o triumpho certo da religião; recommendava-lhe que
sahisse immediatamente da Foz, e fosse levantar guerrilhas em Amarante,
que deviam unir-se em Villa Real ás forças do primo Silveira.

Pantaleão estava ebrio de patriotismo! dava vivas ao rei absoluto, e
chamou a filha para tomar parte do enthusiasmo do seu esposo.

«Vamos a saber, continuou elle--aqui não ha que replicar! O primo Bento
vem já comnosco para cima, e vai ajudar-me a levantar os povos, e fica
sendo o capitão dos vassalos fieis! Se é realista ás direitas, vá
amanhar a mala, e amanhã de manhã vamos embora. Que diz a isto, primo?

--Eu digo que estou prompto. Já agora a nossa sorte é commum.

«Pois então, eu vou dar ordens.

Pantaleão sahiu da sala, e o meu amigo, tanto quanto pude enxergar,
afagava as bochechas rosadas de Hermenigilda, que entrára na sala,
escarlate como a flôr da romanzeira. Não seria facil decidir se fôra
mais linda antes, se depois que o pejo lhe coloriu a tez.

Um amante feliz gosa delicias, saborêa prazeres celestes n'essa
encantadora vergonha! Bento de Castro, inclinado para o seio d'ella,
devia dizer-lhe palavras de tal doçura que a pudibunda moça, requebrando
o collo de puro jaspe, parecia, como a sensitiva, encolher-se ao beijo
voluptuoso da borboleta! (Como isto sahiu engraçado e arredondadinho! É
a minha especialidade, leitores.)

O meu amigo deu-me parte da sua sahida, cheio de contentamento. Disse-me
que me avisaria a tempo de eu ir assistir ao seu matrimoniamento.
Prometteu-me arranjar-me em Amarante uma mulher com uma casa soffrivel
para ficarmos visinhos. Partiu no dia seguinte, e realmente deixou-me
saudades, que depois de trinta annos se conservam ainda em meu coração
fistulado de desgostos, cheio de fezes agras, sujo do sarro das paixões,
e coberto d'uma crusta de musgo petrificado pelo gêlo dos desenganos
acerbos, sendo o mais pungente de todos a certeza, a que vim, de que o
homem não é, como disse Platão, um animal implume, nem a sombra d'um
sonho, como disse Pindaro, nem o rei da creação, como disse Moysés, nem
animal racional, como dizem alguns philosophos, que se excluem, vistas
as muitas irracionalidades que escrevem. O homem, em quanto a mim, é um
pedaço d'asno! A ultima palavra da sciencia acabo eu de proferil-a
agora.

Eu tenho lido tudo quanto está escripto a respeito do homem, e, se não
fosse o pequeno embaraço de me esquecer tudo o que li, tencionava
explanar, com methodo e arranjo scientifico n'este capitulo, verdades
eternas de que ninguem faz caso por isso que são eternas, e tudo que é
eterno não quadra ao nosso gosto voluvel, irrequieto, e caprichoso.

O homem, na minha opinião, é um cabide, e mais nada. O que a mão da boa
ou má fortuna dependura n'elle é que distingue a creatura de Deus entre
os seus irmãos. Não ha substancia de homem: ha só fórma de homem. Ora a
fórma está no involucro, desde os andrajos inçados de herpes até aos
arminhos recamados de brilhantes.

Ahi fica debique para os philosophos. As grandes idéas encubam cincoenta
annos, disse Napoleão. Em 1907 a minha idéa estará na consciencia da
posteridade.

Quando se perguntar o que é o homem, responder-se-ha: é um cabide.


XVII.

Sigamos Bento de Castro, á frente da sua guerrilha, composta de cento e
tantos homens, erguidos como um só homem ao primeiro grito, e quasi
todos caseiros e foreiros de Pantaleão.

Bento de Castro, radioso de gloria, entrava em Villa Real, quando o
primo Silveira, a quem ia recommendado, á frente d'um destacamento de
caçadores 9, proclamava o snr. D. Miguel rei absoluto. O nosso amigo
coadjuvava os gritos do marquez de Chaves, quando a soldadesca,
instigada pelos officiaes, prorompeu em chufas e insultos ao commandante
enthusiasta.

Silveira, receoso de que o prendessem, porque os officiaes gritavam
«amarrem esse doudo!» deu de esporas ao cavallo, e desamparou o meu
pobre Bento, que se viu em pancas. Os bravos da sua hoste, era para vêr
como elles largavam os tamancos por aquellas ladeiras da Senhora de
Almudena! Os gritos animadores do chefe perdiam-se entre os apupos dos
soldados, que arremeçavam pedradas ignominiosas ás canellas nuas dos
fugitivos.

Bento achou-se só, sobre uma possante egua do seu futuro sogro, e
vacillou muito tempo entre seguir o marquez de Chaves, ou as suas
tropas, que desappareciam por detraz das collinas de Mondrões, caminho
do Marão.

Venceu a honra; e o meu amigo, a toda a brida, pôde alcançar o Silveira
a uma legua distante de Villa Real, na estrada de Chaves.

O marquez era estupidamente corajoso. A derrota moral que vinha de
soffrer, não lhe arrefecêra o animo!

Queria elle chamar ás armas o povoleu das aldêas suburbanas de Villa
Real, e accommetter de noite os soldados rebeldes. Bento de Castro,
envergonhado da fuga, applaudiu o alvitre, e foi o primeiro a
pendurar-se na sineta d'uma capella em Banagouro, tirando por ella com o
frenesi das batalhas, e pedindo ao badalo a eloquencia do punhal de
Bruto.

Correram ao alarma o tio Francisco do Quinchoso, o tio Thimotheo da
Fraga, João do Reguengo, e Zé da Brigida dos Chãos, alferes da bicha, e
cavalleiro do habito, alcançado por ter morto na serra do Mesio dous
francezes em 1812.

Silveira sentou-se sobre o cabeçalho d'um carro, instaurou conselho
militar, e, antes de proclamar, perguntou se seria possivel
arranjarem-lhe um salpicão frito com ovos, e uma garrafa de vinho. João
do Reguengo apressou-se a chamar sua mulher, que substituira o meu amigo
na sineta, e mandou-a amanhar uma boa fritada de salpicões e ovos.

N'este comenos chega um postilhão de Villa Pouca de Aguiar com um
officio para o marquez. Silveira não entendia a letra de sua mulher, e
pediu a Castro que lêsse. Era a marqueza de Chaves noticiando a
revolução de caçadores 7, e chamando a toda a pressa seu marido para a
coadjuvar no movimento revolucionario. O marquez deu vivas á marqueza,
ao bravo batalhão, ao rei absoluto, e não esperou os salpicões, nem
congratulou o patriotismo do padre Bento Tamanca que acabava de sahir da
capella, de cruz alçada, chamando o povo ás armas.

O meu amigo teve a honra de cumprimentar a marqueza de Chaves, que veio
ao encontro de seu marido, sobre um valente murzello, floreando a
espada, e latindo guinchos de sedicioso enthusiasmo.

A marqueza era a mulher mais feia das cinco partes do mundo. Em França
denominavam-na: «o panorama da fealdade.» Tinha um aspecto só comparavel
a si mesmo. Rolavam-lhe nas orbitas dous olhos vêsgos, que não eram
olhos quando os incendia em viva braza o ardor da guerra. O trom das
espingardas, nas refregas a que delirantemente se arremeçava, faziam
n'ella o effeito do zumbido na orelha do cerdo: silvava assobios
terriveis de colera, e animava os soldados, umas vezes com um «arre p'ra
diante» outras vezes chamava-lhes _filhos_.

«Quem é este mocetão?--perguntou ella ao marido, fitando Castro.

--É ainda nosso primo, pelo que me diz o nosso primo Pantaleão da
Amarante.

«É valente?--replicou ella.

--Desejo mostrar valor--respondeu Castro.

«Sabe jogar a espada?

--Fui cadete de cavallaria.

«Defenda-se lá d'um sexto!--disse a marqueza, e recocheteou com o
cavallo para entrar em combate.

Bento não ousou levar mão á espada; mas ella instou, fazendo parar o
estado maior, que se compunha d'alguns capitães móres, e meia duzia de
mancebos das principaes familias d'aquelles sitios. Castro obedeceu com
repugnancia. A marqueza fez agilmente quatro botes, e, ao quinto, o meu
desastrado amigo tinha uma solemne pranchada no pescoço, que foi motivo
para que a marqueza, triumphante, especie, de Jeanne d'Arc, mais digna
d'um Voltaire zombeteiro do que fôra a outra, mostrasse quatro ordens de
dentes cahoticos, cariados, esqualidos, impossiveis! Os espectadores
felicitaram-na pela sua destreza, e, o caso é que o ditoso Castro, por
se deixar bater, recebeu da marqueza, com a lição d'esgrima, provas
inequivocas da satanica sympathia da mestra.

Tropa e guerrilhas acampadas em Villa Pouca d'Aguiar seguiram a estrada
da fronteira, e internaram-se em Hespanha. Antes, porém, de sahirem,
subiu ao pulpito da igreja parochial o padre Alvito Buela, e trovejou
uma obra prima da eloquencia dos Chrysostomos e Athanasios, em que levou
á evidencia quanto era grato a Deus cortar as orelhas aos jacobinos de
1820, herpes venenosas que fermentaram no sangue putrido de Gomes
Freire.

Os revoltosos entraram em Hespanha com a marqueza á frente; e o inepto
consorte d'esta amazona recebeu, por intervenção de D. Carlota Joaquina,
abundante numerario para manter o animo perplexo dos desertores. Os
soldados, quando o soldo se demorava, costumavam cantar esta copla:

    Com dinheiro, pão, e vinho
    Sustenta-se o Miguelzinho,
    Sem dinheiro, vinho, e pão
    Sustenta-se a Constituição.

A _Megera_ de Queluz, como então os malhados denominavam a viuva de D.
João VI, informada pela marqueza de Chaves, a quem ella chamava a sua
_Jeanne d'Arc_, igualando o filho dilecto a Carlos VII, empenhava-se até
ao extremo da usura para espalhar a mãos largas o preço porque tão caras
ficaram á nação as refregas dos Silveiras, dos Varzeas, e dos
Canellas.[2]

O Silveira era doudo pela banca portugueza; e o meu amigo Bento de
Castro, destro burlista n'este ramo dos conhecimentos humanos, empalmou
em poucos dias ao marquez e aos fidalgos do quartel general uns seis mil
cruzados com que resolveu ir viajar, se o _deus_ d'Ourique não
favorecesse a causa do marquez de Chaves.

Os revoltosos foram protegidos em Hespanha, e receberam armas, e auxilio
de forças, para repassarem as fronteiras.

Chegaram á Amarante em 15 de Dezembro, e foram repellidos ahi pelo
brigadeiro Claudino.

Em quanto, porém, se dava a sangrenta batalha, o meu intrepido Bento
estava em casa do nosso amigo Pantaleão, no gôso da mais agradavel
fogueira, e do mais saboroso lombo de porco, e da mais fresca moçoila
que ainda viram estes olhos que a terra ha-de comer. Ahi se demorou um
mez, por causa da convalescença da egua, e foi depois unir-se a Braga ao
marquez de Chaves. O marquez d'Angeja sahiu do Porto na pista dos
rebeldes, que se entrincheiraram na ponte do Prado, com duas peças
d'artilheria. O conde de Villa Flor ataca a ponte, desaloja o inimigo,
mata-lhe algumas duzias de homens, e persegue-o até á Ponte da Barca,
onde soffre uma desesperada resistencia. Villa Flor dispersa, por fim, á
baioneta callada, a divisão do Silveira, mata-lhe trezentos homens, e,
entre os mortos, fica moribundo o meu amigo Bento de Castro, com duas
baionetadas, salvo seja, no costado.

Recolhido a casa d'um lavrador, foi caritativamente tratado, e de lá me
escreveu contando-me as suas desventuras, e pedindo-me que as noticiasse
a Pantaleão, visto que duas vezes lhe escrevera, e não houvera resposta.

Fui á Amarante, e soube que o pai de Hermenigilda, desgostoso da funesta
sorte das armas fieis, cahira doente de gôta sciatica, e retirára com a
familia para uma quinta de Baião, onde não podiam chegar as cartas
porque os malhados lh'as interceptavam no correio da Amarante.

Fui a Baião, e, lendo a carta ao attribulado velho, fil-o chorar, e
praguejar. Logo alli prometteu á Senhora da Rocha levantar-lhe um nicho
no portão da quinta, se seu futuro genro tornasse sãosinho e escorreito
para a sua companhia. Pediu-me com grande instancia que o acompanhasse
da Ponte da Barca até sua casa, logo que elle se restabelecesse.

Hermenigilda não me pareceu muito afflicta com a triste nova. Quando eu
apeei no pateo, vi-a debaixo d'uma larangeira, apanhando no regaço
laranjas que o preto, agatinhado na arvore, lhe lançava, e ella comia de
cocoras. Dei-lhe, receiando algum desmaio, um ligeiro indicio da
desventura do seu Bento, e ella abriu os olhos com a mais estupida
impassibilidade, e disse:

«Coitado d'elle! Melhor fôra que não andasse por lá a jogar a tapona com
esses herejes!»

Á vista d'isto, a minha vontade era escrever ao meu amigo, e dizer-lhe
que seria ignobil o seu enlace com tão estupida creatura. Reservei, para
mais tarde, poupal-o a tamanho infortunio, e disse-lhe que Pantaleão o
receberia em sua casa como pai, se elle preferia a sua convivencia á de
sua familia.

Bento respondeu-me que tencionava convalescer em casa de seu irmão, e
passados tres mezes iria definitivamente casar-se, porque havia para
isso razões fortissimas.

Estas fortissimas razões, leitor amigo, começou Hermenigilda a
sentil-as, quatro mezes depois que sahiu da Foz.

Eram as razões do amor immenso, amor que lhe inturgescia o coração,
ampliando-lhe a cavidade thoracica, estendendo-se até ás regiões
contiguas, e augmentando-lhe a grossura dos tecidos no local em que as
hydropesias, oriundas do amor, perdem grande parte do morbus com o
casamento, especie de cura homoeopatica.

Na certeza de que ninguem me entendeu, dou graças á minha esperteza, e
continuo a merecer a confiança dos pais de familia.

     [2] D. Carlota Joaquina morreu devendo ao conde da Povoa 40 contos;
     igual quantia a Antonio Esteves da Costa; 20 contos a João Paulo
     Cordeiro; 40 contos a José Antonio Gomes Ribeiro; e igual quantia a
     João Antonio d'Almeida. A usura d'estes capitaes pagou-a o
     thesouro, e as graças em titulos e commendas. D. Carlota era
     economica até á avareza nos gastos domesticos. Os seus rendimentos
     da casa da rainha, e outros muitos, sob diversas denominações, eram
     enormes. Consumiu tudo em tramar guerras civis de que foi alma. Nos
     ultimos annos da sua vida, tão abstrahida estava no fito das
     revoluções, que nem da sua propria limpeza curava. O seu trage
     caseiro era um gibão de chita, e uma fota de musselina na cabeça.
     Acocorada entre as beatas suas amigas, era costume seu cantar
     muitas vezes esta quadra:

        En porfias soy manchega,
        Y en malicia soy gitana;
        Mis intentos y mis planes
        No se me quitan del alma.


XVIII.

Tudo nos leva a crer que não tarda ahi o desenlace d'este conto. A moral
publica, ciosa das suas prerogativas, e dos deveres em que estamos para
com ella, nós, os fabricantes de historias, contos, lendas, fabullarios,
soláus, e varias outras feições do folhetim--a moral publica, dizia eu,
quer que um romance acabe bem. Acabar bem é triumphar a virtude, punir o
crime, incitando o coração do leitor á pratica do bem, e ao horror do
mal. N'este romance, se tal nome é bem cabido n'uma biographia de
personagens ainda vivas, excepto Pantaleão, não ha nada que seduza
corações inexpertos, trajando o vicio de gallas seductoras, depravando o
paladar com o uso do absyntho das paixões licenciosas. Aqui é tudo posto
no seu logar, o vicio apresenta-se maltrapido, ascoso, lazarento de
lepra, e parecido com o diabo, de quem é filho. A virtude, vestida com
singelas louçanias, enamora as boas almas, amamentando-as no doce favo
de seus seios, dulcificando-lhes os nectarios da candida flôr da
virgindade, segredando-lhes em fim as delicias juvenis e puras de que
tão farto e nedio trazia o coração de Hermenigilda, e outras creaturas
da mesma tempera.

SCENAS DA FOZ é um livro d'ouro. Peço licença para dar ácerca da minha
obra o meu juizo independente, recto, desataviado de encomios
immerecidos, e depurado de emulação mesquinha. O author é quem mais
convincente testemunho póde dar da sua obra. Os nossos primeiros
litteratos, desde 1830 até 1840, excepto A. Herculano--que escreve
sempre com a mira posta na posteridade, e crê, como deve crer, na
perpetua florencia da sua reputação--excepto esse, os nossos primeiros
litteratos, para se pouparem ás avaliações incompletas das suas obras,
escreviam elles as criticas. Os elogios appareciam ao mesmo tempo em
quatro gazetas; e tão bem escriptos eram, tão portugueza e elegante a
phrase, tão bonito para ver-se o guindaste que topetava com as nuvens a
nomeada da obra, que, se os artigos fossem assignados, o thuribulario
crear-se-hia uma reputação capaz de correr parelhas com a do idolo.
Crearam-se assim muitas nomeadas, que, depois, o consenso universal
consolidou; e, se os authores não tivessem o direito congenito de
escrever e julgar, muitos dos nomes gloriosos de Portugal estariam hoje
nos limbos da velha academia.

Seja permittido a João Junior crear-se uma reputação tambem. O meu
romance é a historia do coração humano. É um miudo exame das
vicissitudes do espirito, e algumas vezes da materia. É o telescopio que
alcança os astros do universo moral. É uma amalgama de historia, de
philosophia racional e moral, de geographia e physiologia, a retina
finalmente do grande olho da sciencia, que apanha n'um ponto os raios
luminosos de todos os conhecimentos humanos. É esta a opinião do leitor
illustrado, e tambem a minha.

Sei que tenho detractores, belliscados da inveja, outros brutalmente
soêzes, e outros hypocritamente pudibundos. Os primeiros dizem que o meu
romance é uma trapalhice, sem nexo, sem logica, sem verosimilhança, nem
idéa fundamental, ou nucleo philosophico. São uns pataratas.

Outros, os segundos, acham que o conto está cheio de palavras
estrangeiras, e não é tão bonito como as _historias proveitosas_ do
Trancoso de que fallava Hermenigilda a Bento de Castro. Estes fazem-me
pena.

Os terceiros censuram as licenciosidades de phrase, a desnudez dos
vicios, a descautella com que a parte carnal do idealismo humano se
mostra aos olhos das leitoras incautas, menores de cincoenta e seis
annos. Guardai-vos destes moralistas, pais de familias!

Duas velhas já me disseram que eu sou pouco escrupuloso em revelar
fraquezas que, postas em letra redonda, affligem a virtude, ou desvendam
a innocencia. Valha-me Deus! Porque nos andamos nós a enganar uns aos
outros com meia duzia de palavras convencionaes? _Alphonse Karr_ não
conhece creanças; o que nós chamamos creanças chama elle _mulheres
pequeninas_. A civilisação tem alterado muito o valor intrinseco de
certas palavras antiquissimas, como, _verbi gratia_, pudôr, honra,
amisade, amor, patriotismo, innocencia, e as demais que o leitor sabe.
Eu creio na _innocencia_ das mulheres como synonimo de _pureza_; mas de
_simplicidade_, não. O conhecimento precoce dos segredos mais rebuçados
da vida é um segundo instincto com que vieram á luz as mulheres do
seculo XIX. Eu tenho pedido aos pais que me deixem estudar, no collo, as
suas filhas de oito annos, e tiro de seus caprichos pueris inducções que
me levam á illusão de que tenho no meu collo as mulheres pequeninas do
author de _Les Femmes_.

Certo d'isto, experiente e feito nestas dissecações na alma, zango-me
quando as meninas-velhas se picam nos espinhos da verdade--e mais se
doem do pungir do espinho que já se lhes não esconde em flores...
Lembram-me então aquelles versos de Béranger:


    Prudes, qui ne criez plus
        Lorsqu'on vous viole,
    Pourquoi prendre un air confus
        A chaque parole?

Não obrigueis o romancista a escrever os fastos do coração como os
chronistas escreviam a biographia dos reis. A historia está dispensada
de ser caritativa.

Antes querer, com as fraquezas do proximo, inflammar a phantasia com
deslastres inexequiveis, do que premunir a razão contra as realidades;
querer ignorar o mal verdadeiro, e ir com ancia através de oito volumes
buscar o desfecho d'um romance, que extravasa a medida do mal possivel,
é renunciar á verdade, perverter o gosto e a razão, crear um mundo que
não existe, arriscar-se a todos os desatinos da excentricidade.

O meu romance não fará mal a alguem, não concitará o fogo d'alguma
paixão perigosa, não arrastará victimas ao abysmo, cavado por uma idéa,
e coberto de flores pelas seducções do estylo, e sophismas d'uma
irreligiosa philosophia.

Não farei, como madame de Stael, pretenciosas Corinas, nem Oswalds
melancolicamente piegas.

Não verterei nas almas o nectar libidinoso do _Sophá_ de Crébillon.

Não farei mulheres tão gárrulas, tão bacharelas, tão fortes da sua
philosophia como a Heloisa de Rousseau; e ao cabo de contas, tão
flexiveis, tão dadas aos lapsos da humanidade, como qualquer costureira
que não leu o Plutarcho, nem o Tasso.

Não direi, como Goethe, aos infelizes que se matem; e, se fôr
necessario, provarei que Werther foi um tolo, se existiu; Gilbert,
Malefilatre, Labras, Moreau, Escousse, Leopold Robert, Larra, Gerard e
Nerval, Jorge Arthur[3], não foram mais espertos que o seu modêlo.

O meu romance, em fim, aconselha a todo o mundo que coma e beba e durma
o melhor que podér. Protesta contra as paixões sérias, e quer que a
humanidade se submetta pouco mais ou menos aos artigos dos estatutos
dados pelo Creador a todas as alimarias do universo. Detesta a
philosophia que faz os homens maiores ou mais pequenos do que elles são.
Abomina os escriptores que precisam enganal-os para engrandecel-os.
Sejamos do tamanho que nos deu o primeiro barro: não nos persuadamos que
o barro d'uns foi amassado em agua choca, e o d'outros em Champagne. As
paixões são de todos; uns cahem n'um tremedal, outros n'um diwan de
molas estofadas. Todos cahimos. Cahiu David e Sardanapalo, cahiu
Cleopatra e Margarida de Cortona; depois da queda de Hermenigilda,
nascida e baptisada em Amarante, não ha nada seguro n'este mundo.

O leitor póde passar em claro este capitulo XVIII, que não diz nada
importante. O que vem é de certo o melhor de todos.

     [3] Jorge Arthur é um nome portuguez. Suicidou-se em Janeiro de
     1849, no Porto, precipitando-se da ponte-pensil sobre o Douro. Tem
     um monumento no cemiterio do _Repouso_, com o seguinte epitaphio
     que não diz nada:

        Saudade perennal, geme, e avalia
        Thesouro de que é cofre a sepultura.

     Estou escrevendo sobre uma pasta que era a d'elle, e tenho aqui um
     sinete com duas iniciaes: a sua, e a da mulher que lhe inspirava o
     amor... da morte. Era um moço de trinta e tantos annos. Tinha
     talento, e publicou poesias, propheticas do seu destino. Teve
     muitas elegias; foi muito sentida pelos rimadores a sua morte.
     Estou-o vendo quando o tiraram, já lacerado, da agua. Era de noite.
     Eu tinha um archote que lhe projectava no rosto um clarão medonho.
     Desabotoaram-lhe o casaco; entre o colete e a camisa tinha um boné
     de velludo preto bordado a matiz. Era uma prenda que não podia
     legar...


XIX.

Não se me desbotaram da memoria, com o envelhecer de mais de trinta
annos, as cores vivissimas d'um quadro que o leitor vai contemplar. As
palavras que então se disseram, ainda as ouço; os mais ligeiros gestos,
as miudezas menos reparaveis de tal scena, ainda as vejo. Ai! quem me
déra nesse tempo! É o caso:

Pantaleão foi uma vez visitado por sua prima D. Mafalda, filha segunda
da mui illustre casa dos Maldonados e Leites, de Cabeça de Veado, que
tinha seis bispos na familia, todos fecundos, vindo, por consequencia,
D. Mafalda a ser quarta neta de um filho sacrilego do ultimo bispo, o
qual casou na dita casa de Cabeça de Veado, como consta da Chorographia
de Carvalho, e da Historia Genealogica da Casa Real, e, mais miudamente,
nas Nobliarchias ineditas de Alão de Moraes, no appellido «Maldonado».

Pois, senhores, esta D. Mafalda, vindo visitar a perna gotosa de seu
primo, reparou na nutrição de Hermenigilda, e fez uma carêta de pessoa
que sabe de sciencia certa o que são legitimas nutrições, e quando o
alargamento dos tecidos, accumulados n'uma região, com detrimento
d'outras, é uma pseudo-gordura.

Convicta pela experiencia dos seus annos productivos, D. Mafalda entrou
em averiguações, e soube de seu primo que Hermenigilda ia brevemente
casar-se com um illustre cavalheiro de Celorico de Basto. Contou-lhe o
comêço, e o progresso das relações, excepto o que elle, ainda que
quizesse, não poderia contar em estylo oriental.

Iniciada com estes comêços, a velha fidalga chamou sua sobrinha a
contas, fechando-se com ella na casa dos presuntos.

«Com que então--disse a velha--tu vaes casar, e não me davas parte?!

--O pai, assim comássim, diz que a tia havia de cá vir...

«E gostas muito do teu noivo?

--Podéra não! Tomára eu já que elle viesse.

«Tambem eu queria que elle viesse em quanto eu cá estou para os deixar
casados... Mas, diz-me cá, menina, tu fizeste uma grande loucura em te
deixares vencer pela tua paixão...

--Agora fiz! pois eu não havia d'amar com paixão céga meu marido?

«Há cegueiras de cegueiras, Hermenigilda... Ora imagina tu que elle era
um malvado que não tornava cá, e te deixava nesse estado?

--Pois eu que tenho? disse Hermenigilda muito sobresaltada, descendo
machinalmente os olhos sobre o corpo de delicto, ou delicto do corpo,
como quizerem.

«É isso, é isso, menina; não preciso dizer-te mais nada. Agora o remedio
é apressar o casamento antes que teu pai vá para Amarante. Aqui ninguem
vos visita; mas lá, que vergonha para a nossa familia! É a primeira que
acontece na nossa linhagem!... Pois tu...--continuou a velha inexoravel,
em quanto Hermenigilda fazia torcidas nas pontas do lenço do
pescoço--pois tu cahiste nas fraquezas em que cahem as mulheres da baixa
plebe?! Não te lembraste, nessa hora aziaga, que eras filha do fidalgo
mais antigo d'Entre Douro e Minho?

--O amor quando é de raiz...--balbuciou a pobre menina, purpuriada como
a fèbra do presunto que lhe estava ao pé disputando o carmim.

«Qual raiz nem meia raiz! Se teu pai--exclamou com violencia D.
Mafalda--te tivesse mandado aprender commigo a ser uma senhora digna dos
appellidos que tens, não cahirias nessa deshonra, que faz estremecer os
ossos de teus ascendentes na propria campa! O que dirão os nossos primos
da Carraça, e de Ranhados, e Lamas d'Orelhão, sabendo que tu fizeste
similhante affronta á nossa jerarchia?

D. Mafalda sahiu arrebatada, e no vivo impeto encalhou n'um torno da
caranguejola onde estavam penduradas as brôas d'unto, que longo tempo
ficaram badalando. Hermenigilda sahiu cabisbaixa, a procurar a tia para
lhe pedir que não dissesse ao pai o mal que o seu _amor de raizes_ lhe
fizera.

Era tarde, porém. D. Mafalda, exprobrando amargamente a seu primo, a
descautella, e liberdade com que educara a herdeira do seu nome, acabou
por dizer-lhe que era urgentissimo o casamento, o mais depressa
possivel, a fim de sanar o mais estrondoso escandalo que se tinha dado
em nove seculos d'uma honradez a toda a prova na sua linhagem.

Pantaleão, atordoado pelas invectivas, só depois de ouvir a cousa clara
como ella era para todos, é que sahiu do torpor, e fez menção de pegar
d'um bacamarte para arcabusar a filha.

D. Mafalda susteve-lhe o rancoroso assômo, e pouco e pouco persuadiu-o
de que o couce seria mais mortal que a queda. Disse-lhe que escrevesse a
Bento de Castro para que immediatamente viesse esposar sua filha.
Pantaleão preferiu escrever-me a mim chamando-me a Baião, onde cheguei
cinco dias depois desta pathetica scena, que, de certo arrancou lagrimas
aos que as podem ainda chorar por motivos de amargurada poesia.

Eu ainda hoje as vêrto caudaes nas rugas da tez, quando me lembro a
postura afflicta de Pantaleão no momento em que entrei no seu quarto.
Estava de cocoras sobre a cama, lendo a gazeta de Lisboa, e vociferando
pragas contra o Saldanha, em quanto o preto tirava os carrapatos d'uma
cadella perdigueira que tinha a cabeça na travesseira do amo.

O venerando ancião, quando me viu, mandou sahir o preto, e fallou assim:

«Snr. João, saberá que o seu amigo Bento de Castro é nada menos que um
bregeiro!

--Como?! V. exc.ª dá similhante titulo a um cavalheiro que vai ser seu
genro?

«É um bregeiro, e se não, faz favor de olhar para minha filha.

--Não entendo! Ja tive o gosto de a comprimentar, e ella nada me disse.

«Repare-lhe n'aquellas ilhargas, snr. João!

--Nas ilhargas! que quer isso dizer?!

«Quer dizer que a minha filha, snr. João, ha-de casar-se já, senão o seu
amigo é mandado para o inferno.

--Pois, nesse caso... eu escrevo ao meu amigo...--repliquei eu, sentindo
tambem nas ilhargas alguma cousa que poderia fazer-me rebentar na
compressão do riso.

Pantaleão, no auge da sua colera, saltou fóra do leito, e trilhou a
cauda da cadella, que soltou um ganido funebre. Proseguiu em raiventas
apostrophes a Bento de Castro. Accommodou-se um pouco por eu lhe
prometter ir pessoalmente fallar-lhe a Celorico, e terminou por
sentar-se, outra vez, na cama aparando com uma navalha de barba a
callosidade de um enorme joanete do pé esquerdo.


XX.

Fui a Celorico, e descrevi o mais patheticamente que pude a scena
lagrimosa que presenceara em casa de Pantaleão. O meu honrado amigo não
hesitou, um momento, obedecer aos preceitos do dever. Disse-me que desde
muito seria marido de Hermenigilda, se a má fortuna da guerra lhe não
tolhesse o uso do corpo, pelos ferimentos graves que recebêra, e a
morosa convalescença que lhe custaram. Acrescentou o meu brioso amigo
que, obrigado a uma quasi solidão de quatro mezes, reflectira
maduramente no que lhe convinha, e podera convencer-se de que o
casamento com uma mulher supportavel de espirito, excellente de materia,
e rica, era a posição que mais quadrava á sua alma, já desenganada das
loucas illusões da mocidade. Com quanto o seu amor a Hermenigilda não
fosse muito--disse elle--isso não importava, porque o amor-habito viria
com o tempo encher o vacuo das grandes paixões. Louvei, como moralista e
humanitario, tão acertado expediente, tão ajuizada philosophia, e
fallamos largamente em planos de Bento de Castro, fundados sobre os
haveres da noiva. É certo que uma imaginação creadora tanto póde erguer
castellos no ar como em Amarante.

N'um dos proximos dias, sahimos de Celorico, e viemos pernoitar a Baião,
onde eramos esperados por um extraordinario successo.

Quando chegamos, disse-nos o preto que a menina estava doente,
berregando muito. Appareceu-nos D. Mafalda, e disse-me ao ouvido duas
palavras, que eu communiquei ao meu amigo.

Pantaleão sahiu do seu quarto, e apenas lobrigou Bento de Castro, que
parecia ter-se commovido com a minha revelação, antes de mais nada,
exclamou:

«Não esperava isto d'um fidalgo, que ainda é meu parente, snr. Bento! V.
s.ª portou-se muito mal, e não é digno de ser meu genro!»

D. Mafalda, prevenida para serenar a colera de seu primo, acudiu aos
berros, e disse com senhoril gravidade:

--O mal feito não se remedeia, primo Pantaleão. Do que se tracta agora é
de chamar cirurgiões, que a menina está muito doente. O snr. Bento está
aqui para remediar o mal que fez.

«De certo, minha senhora--murmurou o meu amigo.

--Pois então--acudiu Pantaleão--trate-se já do casamento.

«Já?! não é possivel!--redarguiu D. Mafalda--A menina está... pois tu
não sabes como ella está?!

--E então que tem lá isso?!--replicou o fidalgo--Chama-se ahi o abbade
ao quarto, dizem-se as duas palavras, e arruma-se o negocio d'uma vez.

«Eu estou prompto a obedecer-lhe--disse Bento;--mas eu muito queria que
a minha noiva não estivesse a soffrer no momento mais feliz da nossa
existencia. Se ella estivesse perigosa, em tão triste caso, de certo
seria eu o primeiro a lembrar o cumprimento da minha palavra; mas, se
por em quanto não ha receio, por que não ha-de o nosso casamento
espaçar-se para um dia mais alegre?

--Eu acho que diz muito bem, snr. Bento de Castro...--disse D. Mafalda.

Pantaleão cedeu ás razões do genro, e ás minhas, que tiveram sempre uma
tal ou qual preponderancia na opinião dos parvos. Serenou-se a
tempestade, e Pantaleão, d'ahi a pouco, estava extasiado ouvindo da
bocca eloquente de seu primo as proesas de Silveira, e as esperanças
seguras da queda da constituição.

D. Mafalda veio dizer a Bento que a menina, sabendo que elle tinha
chegado, ficara em grande alvoroço de alegria, e pedira que lh'o
levassem ao quarto, se isso não parecesse mal.

Castro foi ao quarto de Hermenigilda. Parece que lhe deu algumas
palavras animadoras e ouviu algumas queixas sentidas da sua demora, e da
sua ingratidão. O momento, porém, era improprio para arguições e
defezas. Hermenigilda estava pagando á natureza o doloroso preço dos
gosos maternaes. Bento sahiu com semblante melancolico, e propoz-me um
passeio no pinhal visinho.

«Sabes tu, João, (disse-me elle com poetica ternura) que começo desde já
a sentir o amor paternal?

Agora conheço que os prazeres singelos da vida domestica são os unicos
de que posso recobrar a minha felicidade perdida.

--Pois, parabens, meu caro Bento!

«Ha nada mais poetico--proseguiu elle, cada vez mais commovido--que o
espectaculo dos soffrimentos da mulher amada, no momento em que se lhe
desprende do seio o thesouro d'amor que será inexhaurivel de prazeres
para mim?!

--Oh! isso é arrebatadamente poetico! Eu pedirei sempre aos santos da
minha particular devoção que me não dêem o prazer desse espectaculo; mas
se um dia eu vier a ser pai, parece-me que hei-de ser um grande pai, e
trarei sempre o meu gordo pequeno bifurcado no pescoço...

«Não podes imaginar o jubilo que me enche o peito...--atalhou o meu
amigo, que parecia não ter ouvido os doces prognosticos da minha
paternidade--Quem diria que eu viria a ser isto que sou?! Posso hoje
esperar metade da minha existencia menos infeliz que a outra. Se
Hermenigilda não é a mulher que possa corresponder bem ás precisões da
minha alma, o vacuo será preenchido com o amor de meus filhos. Se fôr
menina o primogenito, hei-de mandal-a educar em Inglaterra; quero provar
que se póde ser uma rica herdeira sem ser estupida. Se fôr um rapaz, oh!
então... tu não imaginas o que ha-de ser meu filho!

A pratica demorou-se uma hora nestas pieguices, que o leitor, se é pai
de certo perdoa ao meu amigo.

Ia alta a noite, e a brisa fria do norte, cantando nos pinhaes, fazia-me
nas orelhas uma sensação desagradavel. Pedi ao contemplativo Castro que
fôssemos continuar as doces _réveries_ no nosso quarto.

Estavamos ainda a pé, duas horas depois. De instante, a instante,
chegava-nos o ecco d'um gemido agudo. Eu sahia, de vez em quando, a
informar-me, e voltava sempre com boas esperanças para o meu amigo.
Assistiam ao acto solemnissimo d'um primogenito, um medico de Rezende,
um cirurgião das Caldas d'Arêgos, uma parteira de Canavezes, e D.
Mafalda, que parecia mais experiente que todos os outros.

Já de madrugada, passeava eu n'um sobrado proximo do quarto em que
Hermenigilda acabava de ter o seu feliz successo, como dizem os jornaes,
quando annunciam á Europa o nascimento d'um menino gordo, robusto, filho
de tal ou tal commendador, que nunca produz, em regra, meninos
enfesadinhos.

Tratei de perguntar o sexo do recem-nascido á primeira pessoa que sahiu
do quarto: era D. Mafalda. Cousa extraordinaria! A velha fidalga sahiu
como assombrada; e á pergunta que lhe fiz, respondeu: «Isto é da gente
se benzer!»

--Que diz v. exc.ª, minha senhora?--repliquei eu--É menino ou menina?

«Eu sei cá... Santo nome de Deus!--balbuciou ella.

Sabem o que então me lembrou, não podendo atinar com o spasmo de D.
Mafalda? Se o recem-nascido seria um pequenino centauro, uma aberração
da natureza, um monstro, um hermaphrodita! Instei com anciedade nas
minhas perguntas, e imaginei que D. Mafalda estava douda, quando me
disse que o nascido era rapaz, mas...

«Mas o que, minha senhora, queira acabar...

--Mas é preto!--disse ella, escondendo o rosto nas mãos.

Bento de Castro appareceu n'este momento. Contempla a estupefacção de
nós ambos. Pergunta se Hermenigilda está perigosa. Eu fico perplexo; mas
o vilipendio do meu pobre amigo vexa-me, punge-me, indigna-me até ao
fundo d'alma.

Tomo-lhe o braço, tiro-o para o patim da casa, e digo-lhe:

--Manda sellar immediatamente os nossos cavallos.

«Pois que é?!

--Já, já, é necessario sahir já d'aqui...

«Por quem és, explica-te, João.

--E eu pela tua honra te supplico que me não interrogues mais. Vamos
apparelhar os cavallos.

Bento de Castro seguiu-me como um somnambulo. Viu-me, na immobilidade do
idiotismo, sellar as cavalgaduras. E quando eu lhe disse: «monta!» não
se moveu. Era indispensavel tiral-o d'aquelle torpôr. Cobrei animo, e
disse-lhe:

«Estás disposto a adoptar o filho de Hermenigilda?...

--Se elle é meu filho...--murmurou elle.

«Qual teu filho?! vamos! monta a cavallo!

--Pois de quem?! Tu queres enlouquecer-me!

N'este instante uma criada dizia d'uma janella para o quinteiro a uma
filha da caseira:

«Nasceu um menino.

E a caseira respondia:

--Que seja para boa sorte.

«E a SORTE EM PRETO é a melhor...--murmurei eu, segurando o estribo do
cavallo de Bento.

O infeliz comprehendeu-me. Não sei como dizer o que vi na cara de
Castro. Partimos.


EPILOGO.

O preto levou sumiço. Eu creio que o esganaram, e enterraram no entulho
d'uma mina, que está á esquerda, como quem sahe da porta da cozinha.
Quem o esganou não sei, e eu sou muito escrupuloso em aventar
supposições de tamanha responsabilidade. O filho do preto levou-o a
parteira de Canavezes, e não se sabe o fim que lhe deram. Pantaleão
morreu.

Hermenigilda casou com o morgado de Costoias, e é hoje uma das mais
respeitaveis senhoras da Amarante. Bento de Castro da Gama já foi tres
vezes deputado pelo Minho, e está muito gordo. Eu vou vivendo, como Deus
é servido, pasmado do muito que tenho visto.


FIM DO LIVRO PRIMEIRO.




                          LIVRO SEGUNDO.


                            DINHEIRO.




LIVRO SEGUNDO.


DINHEIRO.


I.

Em 1835, a 22 d'Agosto, ás 7 horas da tarde, pouco mais ou menos,
passeava eu, com a imaginação pelos mundos ideaes de Platão, e os pés
sobre o terreno saibroso de um cerrado pinhal, no sitio do
_Pastelleiro_, nos suburbios de S. João da Foz.

Distrahidamente, de vez em quando, passeava a vista pelas cinco janellas
hermeticamente fechadas d'uma casa de campo, pintada de fresco a ocre.
Impressionava-me o silencio funebre que rodeava aquella casa, e d'essa
impressão, metade poesia e metade curiosidade, nasceu-me o desejo de
saber quem morava alli.

Perto da noite, vi abrir-se uma das cinco janellas, e divisei um vulto
de mulher, que se demorou alguns instantes olhando para o lado do mar.
Ahi começa a phantasia a fazer-me travessuras!

Receoso d'afugental-a, parei para que ella me não ouvisse os passos. O
ar mysterioso de tudo aquillo, a hora, o sitio, e sobre tudo esta minha
cabeça fertil de crendices visionarias, fizeram-me crêr que tal mulher
apparecera então para não ser vista d'alguem, e fugiria se alguem a
visse.

Não me enganei. N'um lanço d'olhos, a amante do crepusculo lobrigou-me
entre os pinheiros, e sahiu em sobresalto da janella.

«Aquella mulher é necessariamente um romance completo!» disse eu commigo
mesmo, e imaginei traça de tornar a vêl-a sem ser visto n'aquella noite.
Sahi do pinhal, entrei na estrada que conduz á Foz, retrocedi, através
d'uma charneca, e entrei outra vez no pinhal de modo que o ruido dos
meus passos se perdesse na grilharia dos grillos e cigarras.

A mulher da casa amarella estava outra vez olhando para o occidente, com
a face encostada á palma da mão. D'ahi a pouco escureceu de modo que eu
podia pouco avistal-a.

Permaneci muito tempo immovel, encostado a um pinheiro, com os olhos
cravados n'aquelle vulto, que eu estava amando, sem conhecer-lhe as
feições. Os primeiros fulgores da lua, que se revia no seio do mar,
vestiram-lhe o rosto d'um esplendor alvacento: julgal-a-hieis uma
estatua de marmore na solidão silenciosa d'uma cidade assolada.

Soaram onze horas no relogio parochial de Lordello. Que saudosa tristeza
a d'aquelles sons em hora de tanta poesia! Que estimulo para um coração
de cera flexivel a todos os caprichos da phantasia, qual era o meu, por
esses tempos!

Onze horas, e eu ainda alli fascinado por aquella mulher, que me não
via, que nunca me vira, e eu não veria jámais!

Não se riam da criança que eu era então. Tinham passado trinta annos por
mim, mais ou menos tempestuosos, e o coração estava ainda viçoso,
florido e esperançoso de fructos que por fim apodreceram antes de
sazonarem.

Era aquella a idade das paixões sérias, reflectidas, consideradas. São
essas as paixões que lançam raizes, regadas por lagrimas, ao fundo do
seio, d'onde só a mão da morte, quasi sempre prematura, póde
desarreigal-as.

E por isso aquella mulher do _Pastelleiro_ entrára em minha alma, vaga
de tres mezes, porque houvera ahi na face da terra uma virgem reféce e
treda que se vendera a um paparreta rico, vindo não sei d'onde, com
anneis de brilhantes em todos os dedos das mãos, e joanetes enormes em
todos os dedos dos pés... que pés, meu querido padre Santo Antonio! não
eram pés; eram miniaturas da Roma das sete collinas gravadas em couro!

Estive muito doente n'essa occasião. Dei sérios cuidados aos meus
numerosos amigos, e recobrei lentamente a saude á custa de muita papa de
linhaça e oleo d'amendoas doces.

Assim atraiçoado, vilipendiado, ferido no meu amor, no meu orgulho de
sabio, nas minhas aspirações de poeta, resolvêra abandonar o céo onde a
perfida, nos braços d'um marido indecente, respirava o ar balsamico das
flôres que eu cultivára para ella no seu proprio jardim. Viera á Foz
fortalecer os nervos frouxos, contar ao oceano as minhas agonias, chorar
com a lamentosa Alcione, e apiedar os mexilhões.

N'este estado d'alma era perigoso provocar as sensações do amor. A chaga
era d'aquellas que se curam homoeopathicamente, e eu de certo não
conheço argumento que mais aproveite ao systema de Hahnemann. Os que
dizem que a homoeopathia é a medicina que abrange ambos os dominios, o
da materia e o do espirito, definiram-na de modo que só a má fé poderá
ridiculisal-a, não lhe reconhecendo a efficacia em enfermidades d'alma
tão graves como era então a minha. As mulheres são essencialmente
homoeopathicas, e basta que ellas o sejam para que o novo apostolado
se consolide. Ninguem como ellas se cura tão depressa das molestias
d'alma por suppuração d'amor. Eu creio que as valvulas no coração da
mulher não são simplesmente peças mechanicas da circulação sanguinea. Em
breve tenciono dar á luz um livro de physiologia, em que prometto provar
que o coração feminino tem uma valvula por onde sahe um amor, e outra
que simultaneamente se abre á entrada d'outro. Com estas duas valvulas e
um pouco d'impudor, fórma-se a mulher á laia d'aquella que me trahiu.

Acabem as divagações.

Ouvi ainda baterem as doze horas, sem poder furtar-me á prisão magica
d'aquella mulher. Afigurou-se-me que ella se movera da attitude
melancolica em que estivera tres horas. Não me enganei. Ouvi o ranger da
porta no interior da casa, e um clarão subito illuminou o quarto. O
vulto magestoso da mulher sobresahiu no horisonte de luz, em pé, com as
costas voltadas para fóra. Escutei, apenas, o murmurio d'algumas
palavras que duas pessoas trocavam, e pareceu-me, pelos ademanes, que a
mysteriosa tambem fallára. A luz demorou-se dous minutos, se muito. Com
a escuridade, a minha visão amada voltou á sua posição, na janella. Eu,
espero que me creiam, estava idealmente tolo por tudo que via, e
imaginava.

Não pararam aqui as visões estupendas.

D'ahi a pouco escondeu-se a lua. Da parte do mar soprava uma aragem que
rumorejava nas ramas dos pinheiros um som soturno, que parecia o ecco da
vaga longinqua. A frouxa claridade das estrellas dava aos montes
magestade mais impressiva, um colorido mais triste, um encanto de mais
para a minha alma, alli captiva do espectaculo mais grandioso que o
acaso podia deparar a um espirito de poeta de força maior.

Maravilha!

Uma voz angelica, trémula como um longo gemido, mas melodiosa como o
suspirar de brisa por entre flores, e o murmurar de fontinha no cristal
da taça, uma voz que ainda hoje me entra no tympano da alma, uma voz que
nunca mais sahiu da memoria do meu coração... foi a voz que ouvi... era
ella cantando, era o anjo que segredava ás estrellas as magoas do seu
exilio, era a fada que invocava as magicas apparições da noite, era o
espirito aerio, como o não sonharam Wieland, Hoffmann, nem Goethe, a
descer das regiões ethereas para encher a terra das harmonias santas que
foram a linguagem humana antes da queda da primeira mulher.

Extatico, alheado, eu não podia recolher ao coração, ao mesmo tempo, a
letra e o canto. O hymno, variado de modulações divinas, talvez
improvisado, musica para mim d'uma arrebatadora originalidade,
continuava. Habituado ao spasmo da primeira sensação, tentei distinguir
as palavras, e apenas pude recolher dous versos com ligação.

    Dai esmola d'amor á desgraçada,
    Ó anjos, que o meu anjo tendes lá.

Houve uma longa suspensão. Os olhos da minha alma viram aquella mulher
enxugando as lagrimas. Soou ainda outra vez a melodia triste, cada vez
mais triste, mais trémula, mais ferida dos tons, ora brandos de adoravel
melancolia, ora frementes como gritos abafados. Por fim, faltava a
tristeza augusta do silencio da noite para proferir as ultimas notas
d'aquella aria no gemido das selvas, no cicio da folhagem, no susurro
das correntes, e no manso espriguiçar da onda sobre as algas dos
rochedos.

Calou-se o canto. Fugiu-me a visão. Fechou-se a janella. E eu pendi a
cabeça triste sobre o seio, e perguntei aos espiritos da noite se não
era aquella a mulher dos meus sonhos de trinta annos.

A natureza ouviu-me em silencio.

Porque não ha-de a natureza responder ás perguntas dos tolos que ella
faz?!


II.

No qual tempo, tocava eu viola franceza, com alguma graça, e a minha
mania creadora era compôr trovas elegiacas, ao sabor da minha amargura,
e cantal-as acompanhadas de arpejos melancolicos. A minha voz, era um
soffrivel _baritono sfogato_. Principiei cantando lições da semana
santa, a duas vozes. Aprendi, depois, o cantochão, cheguei a cantar
n'uma missa de cinco vozes em côro d'aldeia, e com estes rudimentos
consegui tirar da viola franceza harmonicos de que ainda hoje se falla
em S. Gonhedo, e Trabanca de Panellas.

Era pois, lugubre o meu cantar como o do captivo de Israel, saudoso das
margens do seu rio.

E, na noite seguinte á da minha visão, eu fui sentar-me entre os
pinheiros, com a harpa das angustias debaixo do braço, esperando a hora
desejada em que os espiritos desciam a pousar nos labios daquella
espiritual mulher.

Presenciei o mesmo espectaculo da noite anterior: a mesma attitude, a
mesma luz, e á mesma hora o canto funebre e as palavras dulcissimas de
tristeza.

Eu tambem fui poeta, e improvisava, na exuberancia do amor, endeixas
sentidas, que nunca pude reproduzir com animo frio sobre uma tira de
papel. A fada acabava de cantar os dous versos tão lindos:

    Dai esmola d'amor á desgraçada,
    Ó anjos, que o meu anjo tendes lá.

E eu feri as cordas do meu alaúde nos tons mais lugubres d'um preludio,
e cantei:

    Neste ermo, triste, e só, e abandonada
    Quem desta alma o gemer escutará?
    Dai esmola d'amor á desgraçada,
    Ó anjos, que o meu anjo tendes lá.

A mulher estava de pé; erguera-se com impeto; buscara nas trevas o
mysterio d'aquella surpresa. E eu continuei, tremendo com o receio de a
ver:

    São horas mortas; vem, ó meiga fada,
    E um beijo para o céo leva de cá.
    Dai esmola d'amor á desgraçada,
    Ó anjos, que o meu anjo tendes lá.

Ella estava immovel, ainda; e eu sentia a fronte calcinada ao fogo do
estro. O _Deus_, _ecce Deus_ do famoso poeta, experimentei-o então.
Tumultuavam-me n'alma os pensamentos radiosos. As cordas da cithara,
febris como eu soltavam vertiginosas harmonias em melancolica toada. Era
a hora das expansões e eu prosegui:

    Teu canto amargo ouvi, sombra adorada!
    Meu hymno, triste, como o teu dirá:
    Dai esmola d'amor á desgraçada,
    Ó anjos, que o seu anjo tendes lá.

Á ultima palavra desta quadra, sumiu-se a visão; mas a janella ficou
aberta. Decorreu uma longa hora. As orlas do mar arraiavam-se da luz da
aurora. A flôr da giesta, as margaritas do prado, e a candida
florescencia da urze recebiam nas suas urnas o aljofar do céo.

E a janella ainda aberta.

Aclarou-se a manhã: eu não despregava os olhos anciosos da janella
vasia, da escuridão interior da casa. Na perplexidade de sahir do
saudoso sitio, vi desenhar-se no fundo escuro um vulto vestido de
branco, vaporoso como as tenues nuvens do oriente que se rarefaziam ás
primeiras lufadas do sol que ia nascer.

Ver-me-ia ella?

Oh! de certo viu! O coração bateu-me no peito. Lancei-lhe um olhar de
quem dá um adeus e pede uma piedosa saudade. Atravessei os pinhaes por
longos desvios da estrada; entrei no meu quartel, onde tudo me parecia
negro e indigno de mim.

Que dia aquelle! Que côr tão linda a da atmosphera! que azul tão
encantador o do mar!

Como todas as mulheres me pareceram feias, e todos os homens importunos!

Ó amor, fonte caudal de ephemeras alegrias, quando tornarás a orvalhar
esta alma arida!


III.

O sol deitara-se no seu leito de purpura, quando eu entrei no pinhal do
Pastelleiro. A anciedade não me deixava esperar a noite. As janellas
estavam fechadas. O amor nascente é tão melindroso, pueril, e timido,
que receia desagradar até com o pensamento ao idolo da sua concentrada
adoração. Eu temia destruir o meu tal ou qual prestigio apparecendo de
dia áquella mulher, que poderia adorar-me no silencio da noite, na hora
das lagrimas, em presença das estrellas.

Mas o amor arrebatado tem affoutesas que tiram animo da mesma timidez.

A mulher não apparecia. O crepusculo da tarde vinha descendo das
cumiadas das serras. Eu não podia reprimir a ancia do coração: precisava
vêl-a, e dizer-lhe, no silencio da surpresa, que amor de vida ou morte
ella me inspirava.

Rodeei a pequena quinta da casa amarella. Achei, ao longe, uma pequena
porta, que abria para um matagal. Buli tremendo no ferrolho, e a porta
deixou-se abrir. Dei um passo vacillante dentro da quinta, e vi a
fachada trazeira da casa, uma longa varanda de pedra, e duas mulheres,
uma sentada, a lêr, outra fiando. Reconheci-a! era ella a que lia. As
pernas senti-as tremer frouxas e como vergando ao peso do tronco. O
sangue em lume subiu-me em borbotões ás fontes, quiz esconder-me, e não
pude. O latido d'um cão denunciou-me aos olhos da mulher que fiava. Não
sei o que ambas se disseram. É certo que a velha, sustendo o rodopio do
fuso, perguntou-me, em sinistro falsete, quem procurava eu.

Engasguei-me, tartamudeando não sei que desculpa. A velha redarguiu, em
quanto a moça, já de pé, cravando-me os olhos immoveis, parecia
increpar-me a audacia de profanar o seu santuario.

Respondi:

--Não procuro alguem; andava passeando, e cuidando que não incommodava,
entrei por aquella porta com intenção de vêr esta quinta.

«Então vocemece--tornou a velha--está a banhos?

--Sim, senhora--respondi eu com muita meiguice, abençoando a curiosidade
de todas as mulheres, e particularmente a d'aquella que me proporcionava
uma demora justificada.

«A quinta tem pouco que admirar... (disse a filha dos meus sonhos). Mas,
tal qual é, está ás suas ordens.--

Leitor, se tóma rapé, sôrva uma pitada, e dê-me attenção, que eu não
lh'a dispenso na mais insignificante virgula do que vai lêr.

A mulher que acaba de fallar, com um timbre de voz só comparavel ao seu
canto, era um milagre de formosura, como eu a entendo, como eu a tinha
sonhado, como eu a tinha organisado das bellesas dispersas em quantas
mulheres bellas encontrára.

Eram negros os cabellos, ornamentos dignos d'uma fronte larga.

Negras as sobrancelhas, ajuntando-se na base do nariz mais fino e
transparente que inventaram os pinceis famosos que, de seculo em seculo,
apparecem para completar as formosuras que a natureza nos dá
incorrectas.

Olhos da côr dos cabellos, rasgados, nem morbidos nem vertiginosos,
menos serenos que a limpidez do lago, e mais amortecidos que o vulgar
dos olhos negros.

Pallida, muito pallida, sem mancha de rubôr, sem beta d'outra luz que
não seja a que os brandões mortuarios reflectem no crepe da eça.

Era magra de faces, sem que se lhe vissem as proeminencias malares,
especie de balisas que se levantam naturalmente onde acaba a formosura.

Devia ser muito delicada e breve a construcção ossea d'aquella mulher,
que no melindroso das fórmas exteriores, mostrava ser apenas o involucro
material d'um grande espirito.

A pequenina bocca era assombrada por um buço aveludado, que sobresahia a
custo do fundo pallido em que parecêra plantal-o n'um beijo o amor das
voluptuosidades, filhas do coração, e desconhecidas á sensualidade
grosseira.

Airosa, no primor da estatuaria, as largas vestes casavam ás fórmas as
caprichosas ondulações, de modo que as bellezas occultas pareciam
desafiar a imaginação mais fertil para vencel-a com a realidade.

Estes fugitivos traços ficaram-me indeleveis na memoria. Creio que o
leitor mais imaginoso não creará com elles no mundo dos phantasmas a
sombra sequer da minha heroina. O pincel cahiria desanimado na presença
della; que fará a penna, sempre desobediente ás vagas expressões da
alma! Não sei pintal-a d'outro modo. Tenho-a ha tantos annos ao pé de
mim, sempre no logar da minha sombra, rindo e chorando commigo,
entoando-me sempre em voz sepulchral os dous fatidicos versos:

    Dai esmola d'amor á desgraçada,
    Ó anjos, que o meu anjo tendes lá.

Sempre a voz, sempre a imagem, em tudo, por toda a parte, e não sei
descrevêl-a, nunca pude arrancal-a da palheta dos artistas mais lucidos,
d'aquelles que comprehenderam o aspecto melancolico de Camões, e o
adivinharam, d'aquelles que idealisam a formosura correcta,
respingando-a nas Heloisas, nas Leonores, nas Fornarinas! Ai! o meu
ideal foi deste mundo, e a arte não póde restituir-m'o!

O que és tu, sciencia humana! Pintor, subtilisa a tua alma com a lucidez
magnetica, e dá-me o retracto d'aquella mulher, que eu dou-te a
immortalidade morrendo abraçado ao teu milagre, á tua segunda creação!....
..........................................................................

Não soube responder ao offerecimento de... Como se chamava aquella
mulher? Vamos sabêl-o. D'alli perto, está uma camponeza segando herva.
Vou fallar com esta mulher, de modo que me não vejam da varanda; receio
magoal-a, se ella suspeita da minha indiscreta curiosidade... Ainda bem
que não sou visto.

«Pertence áquella familia que mora alli?» perguntei eu.

--Não, senhor; sou caseira d'esta quinta, e aquella familia alugou esta
casa pelo S. João.

«D'onde é a tal familia, póde dizer-me?

--Não lhe sei dizer. Parece-me que são lá de cima da provincia. Quem
alugou a casa foi um senhor que veio cá sósinho, e não tornou a
apparecer.

«Seria marido d'ella?» interrompi com sobresalto.

--Não tinha geito d'isso; e se fosse marido, a criada fallava-me d'elle.

«E que diz a criada?!

--Pouco mais de nada; e eu, como não sou intromettida, tambem não
pergunto. Elles vivem na sua casa, e eu vivo na minha.

«E como se chama a tal senhora?

--É a snr.ª D. Felismina, e a criada é Thereza.

«E ella não toma banhos?

--Nunca sahe de casa de dia; algumas vezes sahe de noite, mas não passa
do pinhal, ou vai até lá abaixo áquella moita de carvalhos.

«Desculpe-me tanta pergunta, e em paga do seu bom modo ha-de ter a
bondade de acceitar-me uma pequena quantia para um lenço.

A mulher, maravilhada, acceitou não sei que, de que a amabilidade do
rosto immediatamente se resentiu. Devo confessar que a minha
generosidade foi tão interesseira quanto a seguinte pergunta vai
denuncial-a:

«V. m. vai áquella casa?

--Só lá vou á tarde buscar a lavagem para os cevados.

«E quem lhe faz os recados?

--Vem todas as manhãs um homem do Porto trazer-lhe as compras; pouco se
demora, e sahe sem vêr a senhora. Foi elle que me disse que nunca a
vira, nem sabia quem era; mas que seu amo o mandava todos os dias trazer
o mantimento, com ordem de não fallar a ninguem. Em quanto a
mim--concluiu a informadora, pondo á cabeça o cesto da herva--em quanto
a mim, anda aqui mandinga, por mais que me digam.--

Disse adeus á mulher, e voltei pela mesma direcção até á pequena porta.
Não vi Felismina, nem a criada.

Era quasi noite. A minha existencia phantastica ia recomeçar.


IV.

Do poente desennovellavam-se rôlos de nuvens pardacentas que se
acastellaram sobranceiras á Foz. Pouco a pouco, distenderam-se pela
superficie do céo, formando uma abobada de chumbo, onde não luzia a
crispação de uma estrella. Estava, pois, medonha a noite, e os urros do
oceano vinham de longe a gemer na praia um lugubre lamento. Cruzavam-se
de norte a sul successivos relampagos, e o trovão bramia do nascente,
menos retumbante que o mugido das vagas. As franças dos pinheiros
ramalhavam com impetuosas sacudidellas d'uma nortada supita.

E eu, immovel e sereno como o archanjo das tempestades, contemplava este
espectaculo grandioso, nos visos do Pastelleiro. De vez em quando
observava a massa escura da casa de Felismina. Pareciam-me fechadas as
janellas. Pobre cantora d'amarguras, não era aquelle o seu lindo céo,
povoado d'estrellas, que lh'as ouviam! A brisa, que bebia dos labios
d'ella as endeixas tristes, indo-se pelos valles a dizel-as aos eccos,
fugira espavorida ao açoute do bulcão do mar. Talvez que a timida
senhora, de joelhos com a aterrada Thereza, estivesse resando a
_Magnificat_ e jaculatorias a Santa Barbara! Alli, sósinha, na crista de
um monte, tão visinha dos raios, cercada de trovões, transida de
pavôr... não a verei hoje!

Assim pensava eu, resolvido a não esperar o aguaceiro da nuvem prenhe
que, sobranceira a mim, superava em negrura as outras.

Antes, porém, de deixar o saudoso sitio, quiz satisfazer a um desejo
pueril, a uma d'essas criancices ditosas de que o coração se emancipa
quando os cabellos alvejam, ou a alma amadurece temporamente,--o que é
peor ainda... Fui ao pé da casa, muito ao pé, quasi rente com a parede,
e... á luz d'um relampago... vi-a! vi-a... era ella, debruçada no
peitoril da janella!

Outro relampago... Estava ainda! não me fugiu, não se moveu, tinha os
olhos mergulhados nas trevas onde me vira.

Cahiam as primeiras gottas de chuva, e eu não as sentia. O que eu queria
era relampagos; queria o facho sulfureo da tempestade; queria a erupção
d'uma cratera; queria o incendio do mundo para vêl-a, maior do que a
minha imaginação a creára, maior que o terror d'aquelle quadro!

E a chuva cahia a torrentes. Eu recebi-a impassivel, inabalavel, na
face, erguida para a janella, d'onde as trevas já não podiam roubar-me
os traços d'ella. N'isto, pareceu-me ouvir a sua voz. O estrepito da
chuva do furacão, e dos trovões não me deixavam entendel-a. Pensei que
fôra um engano. Ai! não era, não!

«Póde abrir--disse ella--esse portal grande, e recolher-se da chuva.

--Não a sinto, minha senhora--balbuciei eu.

«É impossivel que não esteja muito molhado! Recolha-se que a chuva não
pára tão cedo--tornou ella.

--As tempestades do coração não deixam ao corpo sentir as da natureza...

«Como?!--interrompeu ella.

Eu repeti, com medo, as mesmas palavras. Tinha razão para temer.
Felismina sahiu da janella, e eu ouvi o descer vagaroso da vidraça.

Estava eu, pois, molhado como um frango que sahiu d'um tanque. A agua
encaleirava-se-me pelos canos das botas. Catarata humana, sacudi as
jubas, limpei a cara a um lenço que a molhou ainda mais; e, perdida a
esperança de tornar a vêl-a, fui para minha casa, estripando charcos, e
scismando nas imprudentes palavras com que me denunciára.

Tive uma noite d'insomnia, e um catarrho cujas consequencias ainda hoje
sinto. Tomei apenas alguns xaropes de figos e ameixas. Transpirei
suffocado entre seis cobertores; não fiz caso d'uma dôr tibio-tarsica,
aurora do rheumatismo que hoje me tolhe, (aprendei, mancebos incautos!)
e, no dia seguinte, apenas um bello sol mosqueou de betas douradas as
costas carunchosas do meu leito de pinho, saltei de cuécas para o
sobrado, e meditei de cócaras, no que devia fazer.

A minha tratadeira (pessoa velha, já mencionada no LIVRO PRIMEIRO, a
folhas...) veio encontrar-me n'esta attitude, senão romantica, ao menos
desambiciosa.

«Credo!---exclamou ella--o senhor está de menores! isso é feitio! Olha
que preparo!

--Não fuja, tia Poncia--disse-lhe eu, meditativo e funebre como o
fidalgo manchêgo, depois da aventura dos ôdres--Venha cá, tia Poncia,
que eu preciso das suas consolações.

«Valha-o Deus!--tornou ella--Suou tres camisas, e pranta-se no meio do
soalho com o _cadable_ ao ar!

--Diz bem, tia Poncia, isto já não é senão um cadaver, lançado á margem,
exposto aos corvos e abutres das paixões carnivoras.

«Que está ahi a _alanzoar_ o snr. João? Se eu o percebo, cebo! Ora vá-se
vestir, ande-me depressa, que está o café prompto, e toca a comer p'ra
arrijar.

--Comer, tia Poncia...! O que é comer, sobre a face da terra, quando a
vida vegetal paralisou! O meu alimento é o absyntho das lagrimas. Sou o
Ugolino da fome do espirito, o Tantalo, o Promotheu devorado pelo abutre
incessante.

«Que bruto está o snr. João ahi a dizer? A apostar que lhe fizeram
alguma os brutos cá da Foz! Eu sempre tive zanga a esta gente! Está tudo
caro pela hora da morte! O carniceiro manda-lhe a gente pedir carne da
cernelha, e o berzabum de não sei que diga manda rabada, e quando Deus
quer é cada osso que te parto! A lenha isso então é uma ladroeira que
clama justiça ao céo! Quatro gravatos que não dão para aquecer uma agua
é um patacão. Má breca os tolha!

--Accommode-se lá, tia Poncia. Eu não fallo n'isso. V. m. é mulher
experiente, e ha-de aconselhar-me a respeito de certa cousa... Chegue-me
cá aquellas pantalonas, e fallaremos.

«Ora diga lá... bacoreja-me que temos patavinice de namoricos. Ora
queira Deus que não esteja por ahi alguma como a Vicencia do outro anno
que lhe pôz o sal na moleira...

--Ora olhe, tia Poncia... ha uma mulher que não pertence a este mundo.

«Coitadinha! rezemos-lhe por alma! foi por ella que tocaram hontem os
sinos a defuntos?

--Não me córte o discurso. Esta mulher vive...

«Ah! sim? inda bem, inda bem!

--E V. m. a dar-lhe! Ouça, e falle quando dever responder. Esta mulher
vive n'uma casa aqui perto da Foz; tem comsigo uma criada; não tem homem
nenhum: não apparece de dia, só se vê de noite a fallar com as
estrellas...

«Anjo bento! isso é bruxêdo! Cruzes, canhoto! Terá ella fadario?

--Fadario tem V. m. de toleima, tia Poncia! Vive commigo ha tantos
annos, e parece que está cada vez mais tonta!

«Quem? eu! tonta eu, porque lhe digo as verdades, snr. João! Eu não lhe
disse que a Vicencia era uma trapalhona, que lhe dava volta ao miôlo!?
Diga, snr. Joãosinho, quando V. m. andava atraz da filha do letrado, com
a beiça cahida, não lhe disse eu que a rapariga, ás duas por tres, se
lhe apparecesse marido com chelpa era como se nunca nos vissemos!? E
agora queria que eu lhe dissesse mundos e fundos d'uma feiticeira que só
apparece de noite a dizer anzonices ao sete-estrello!? Deixa-me benzer,
e Deus me tenha da sua mão, e mais a V. m. que o vi nascer e desde que
anda por cá á sua vontade arranja sempre bruxêdo que o tolhe. Sabe que
mais, snr. João? Coma e beba e tome os seus banhos, que é ó que veio; o
mais leve o diabo, Deus me perdôe, as mulheres, e quando houver de casar
arranje filha de lavrador que saiba amanhar a vida, e não olhe para
estas fuinhas da cidade que parecem mesmo o peccado!

Tia Poncia disse muitas outras cousas razoaveis. Exhaurida a torrente,
foi buscar o café, e pediu-me que pendurasse no pescoço uma figa de
azeviche, e uma conta que fôra tocada no corpo do martyr S.
Cyprianno--tudo para vencer os sortilegios da bruxa, contra quem a minha
pobre Poncia, durante o almoço, proferiu um discurso, intermeado de
orações _ad rem_.


V.

Fui, nas tres noites immediatas, ao pinhal do Pastelleiro, esperei a
apparição até ás onze horas, mas nenhuma das janellas se abriu jámais!
Pude, uma vez, encontrar a caseira: perguntei-lhe se a senhora se
retirára, ou estava doente, respondeu-me que a tinha visto na varanda
todas as tardes, acrescentando que a porta travessa, por onde eu entrára
na quinta, uma tarde, fôra trancada por ordem da snr.ª D. Felismina.
Esta providencia apertou-me o coração, e feriu a susceptibilidade do meu
amor-proprio.

Á quarta noite, demorei-me até depois da uma hora, suppondo que
Felismina appareceria mais tarde, certa de não ser importunada no seu
colloquio amoroso com as estrellas. Eu queria dizer-lhe que me perdoasse
o atrevimento de ter sido indiscreta testemunha dos seus extasis:
pedir-lhe-hia que não se privasse desse poetico prazer, porque eu não
viria alli mais, ainda que essa privação me custasse torturas de
saudade. O coração offendido tem destas generosidades. É sempre a fabula
das uvas e da raposa... Nessa quarta noite, pois, seria hora e meia,
quando tres vultos, vindos do lado de Lordello, passaram defronte da
casa de Felismina, e fallaram baixo entre si. Abafei a respiração para
me não denunciar, e senti o prazer de encontrar as minhas pistolas que
machinalmente mettera nas algibeiras. Os vultos eram homens de jaqueta,
e chapéo desabado. Um d'elles trazia uma escada de mão, e os outros
pareceram-me armados de paus.

Em quanto elles observavam, cosidos com a parede, a segurança das
portas, avisinhei-me eu da estrada, e colloquei-me, sem ser sentido, a
distancia d'um tiro de pistola. Vi pôr a escada a uma columnata do
patim, que formava para o caminho uma pequena varanda. Vi um dos tres
marinhar lestamente por ella; porém, resvalou da aresta do balaustre, e
viria abaixo com o homem, se os companheiros a não sustentassem a prumo.
Não obstante, este movimento fez rumor, e uma das janellas foi
subitamente aberta.

Eu estava em ancias por saber se estes homens eram ladrões. Felismina
deu-me a certeza da minha suspeita, e inspirou-me arrojos de bravura.
Apenas ella appareceu na janella, e bradou: «Thereza, Thereza, chama o
caseiro!» eu saltei d'um pulo á estrada, e disparei sobre o grupo uma
pistola. O resultado do tiro foi maravilhoso! Os ratoneiros davam saltos
de corça por aquella estrada fóra, deixando a escada, e uma fouce
encavada n'um pau.

Em casa de Felismina ia grande reboliço. Ouviam-se os grasnidos de
Thereza, os latidos dos cães, e os gritos ameaçadores do caseiro. Ella,
porém, não sahira da janella, presenceando a fuga dos salteadores.

Radioso de heroismo, fui debaixo da janella de Felismina, e disse-lhe:

«Não se assuste, minha senhora; eram tres miseraveis ladrões que fugiram
a um homem só.»

A este tempo, abriu-se a porta-de-carro, e o caseiro appareceu em
fralda, com um bacamarte engatilhado. Vendo-me, veio direito a mim na
melhor disposição de m'o despejar na cabeça, quando Felismina bradou:
«Os ladrões já fugiram; foi esse senhor que os fez fugir.»

O bravo em fralda poz a arma em descanço. A mulher, com o saiote
vermelho pelos hombros, reconheceu-me, e disse para a janella: «Este
senhor é aquelle que andou outro dia na quinta.» O silencio de Felismina
provava que ella não carecia d'esta novidade.

Contei então o que presenciara do pinhal visinho. O caseiro
interrompeu-me grosseiramente, perguntando-me o que fazia eu por alli
áquella hora. Tartamudeei na resposta. Felismina, porém, atalhou,
pedindo-me que não fizesse caso da rustica pergunta do caseiro. O boçal
desfez-se em satisfações, e instou para que eu bebesse uma pinga
d'aguardente porque estava fria a noite. Não respondi ao offerecimento,
que fez rir Felismina; despedi-me com palavras muito delicadas da
senhora; soceguei o animo aterrado de Thereza; e fui para minha casa,
cheio de gloria, d'alegria, e de esperanças. A gloria era uma tolice:
sou eu o primeiro a confessal-a; mas as esperanças alegres fundavam-se
na opinião elevada que Felismina faria de mim. Não era só defendel-a dos
salteadores; era estar alli, defronte da sua janella, ás duas horas da
noite, como guarda vigilante da sua tranquillidade, com os olhos fitos
na cupula celeste que a cobria, expiando a imprudencia de lhe haver dito
algumas palavras apaixonadas. Isto devia impressional-a.

Contei, em casa, esta aventura á minha Poncia, que me esperava ainda a
pé. Aqui é que foi o benzer-se e tregeitar de mulher sábia em agouros e
feitiços. Quiz-me convencer de que tudo aquillo eram artimanhas da
bruxa; e saltou-me ao pescoço para vêr se eu tinha a figa de azeviche.
Não a encontrando, chamou-me herege, e não me deixou sem eu pendurar o
bento guizo no pescoço. Deitando-me, pareceu-me que o ar do quarto
estava impregnado d'um cheiro acre, que era mais forte na cama. Erguendo
o travesseiro, encontrei um mólho d'arruda, e um alho que tem na Flora
popular, um adjectivo desgraçado. Eram exorcismos da tia Poncia, que
tinha em menos conta o nariz quando se tractava de curar a alma d'um
possesso de bruxedos. Atirei o deposito de hervanario á rua, e consegui
adormecer embalado pelas minhas esperanças.

No dia seguinte, seriam onze horas, estava eu na praia, esperando a
maré, quando vi Thereza, procurando alguem entre os grupos. Palpitou-me
o coração! Serei eu quem ella procura?... Sahi-lhe como por acaso ao
encontro, e ella, que mal me vira na quinta, olhando-me perplexa,
parecia esperar que eu a conhecesse. Dei-lhe um ar de riso, Thereza
fez-me signal que a seguisse. Parou na praia dos Inglezes, olhou em
redor com desconfiança, e disse-me:

«Aquella senhora manda-lhe agradecer muito o que V... fez esta noite; e
pede-lhe que faça o favor de lhe dizer que a porta travessa da quinta
foi fechada porque não havia remedio senão fechal-a.»

Eu fiquei-me a olhar para a velha, pasmado da segunda parte do recado!
Thereza, sempre sobresaltada, ia retirar-se sem resposta, quando eu,
caminhando com ella, lhe disse:

--A porta da quinta foi fechada para eu lá não entrar?

«Foi, sim, senhor, porque... não lhe posso dizer mais nada. A senhora o
que quer é que V... saiba que por vontade d'ella não foi que a porta se
fechou; em fim, ha cousas que se não podem dizer. A snr.ª D. Felismina
custou-lhe bastante a mandar fechar a porta; mas, se se soubesse....
Adeusinho, meu senhor... que tenho medo que me conheçam.--»

Não esperou resposta.

Fiz mil conjecturas, e nenhuma só que se aproximasse da verdade. Desafio
o leitor mais esperto para que anteveja a solução deste problema.


VI.

O segredo picava-me a curiosidade; todavia, o coração era o que menos
treguas dava á minha ancia.

Ao escurecer desse mesmo dia passei no Pastelleiro. Vi, de relance,
Felismina através da vidraça. Levei ainda a mão ao chapéo para
cortejal-a; mas ella não esperou a cortezia. Estanciei nas visinhanças
d'aquelle sitio, até alta noite; e só depois das onze horas pude vencer
a resistencia magnetica que me lá prendia.

Passando, outra vez, defronte da casa, vi uma janella corrida, e um
vulto n'ella. Eu passava tão subtilmente que Felismina só me viu quando
eu estava em frente d'ella. O encontro fôra uma surpreza para mim.
Muitas cousas imaginára eu dizer-lhe, encontrando-a; mas esqueceram-me
todas. Parecera-me facil e até natural perguntar-lhe a causa de me ser
prohibida delicadamente a entrada na quinta; achava do meu dever, depois
do recado pela criada, examinar o que fizera eu para merecer similhante
prohibição; porém, chegado o ensejo feliz de saber tudo, pareceu-me
atrevimento dirigir-lhe a palavra sem ella m'a consentir.

A perplexidade durou alguns minutos, e Felismina esperava que eu me
sahisse d'ella d'um modo muito contrario. Nada lhe disse, segui o meu
caminho, e confesso que me sentia tremer. O coração tem cousas!...

O arrependimento veio logo com a reflexão. Retrocedi por outro caminho,
e entrei no pinhal. Estava ainda aberta a janella; mas desoccupada.
Esperei muito tempo, animando-me a fallar-lhe, quando ella tornasse.
Avistei dous vultos, e senti despegar-se-me o coração do peito. Não
podia distinguir se um d'elles era homem; e receava, aproximando-me,
causar-lhe desgosto, se por desgraça ao pé d'ella estivesse um amante.

Que desafogo senti eu, quando conheci a voz gosmenta da criada! Escutei,
e ouvi-as fallarem de ladrões. Thereza dizia que se não salvava se
estivesse alli muito tempo, e promettia um arratel de cêra á Senhora da
Luz, se os ladrões não tornassem a assaltar a casa. Acrescentou ella:
«Se não fosse aquelle destemido rapaz, a estas horas estavamos nós
feitas em pedaços, sem confissão, nem sacramentos.»

Felismina fallava tão baixo, que toda a minha attenção foi baldada. Por
fim, disse a criada: «Menina, não esteja muito tempo ao relento da
noite. Eu vou-me deitar, que passei em branco a outra noite; se sentir
alguma cousa, chame, que eu acordo logo, se Deus quizer, e o meu padre
Santo Antonio, que nos tenha da sua benta mão.»

Felismina sahiu com a criada, e o quarto illuminou-se de repente. Era a
primeira vez que eu via tanta luz áquella hora. Conjecturei que a timida
senhora, receando outra assaltada, quizera com a luz obstal-a. Eu
contemplava-a a ella, que atravessava passando, por diante da luz, com
ligeiros passos. Achava-me resolvido a fallar-lhe, fosse qual fosse o
exito. Acerquei-me da casa, para encurtar á minha timidez o tempo da
reflexão. É verdade que me não occorria uma só das bellas idéas com que
de dia compozera o meu exordio; porém, atido ao improviso do coração,
iria esperando que ella, com uma só palavra, esperançosa ou
desanimadora, me sangrasse a veia da eloquencia.

Effectivamente, apenas Felismina surgiu na janella, estava eu seis
passos distante. Diga-se a verdade: formigaram-me umas caimbras nas
pernas, e estive, vai não vai, a rodar sobre os calcanhares, e fugir
antes de ser conhecido! Li, ha pouco tempo, em um romance de Alphonse
Karr, uma imagem que pinta exactissimamente a minha situação n'aquelle
instante. Um tal _Estevão_, em presença d'uma tal _Magdalena_, não
podendo vencer o susto do primeiro encontro, _faz um esforço como um
homem que fecha os olhos para saltar um fôsso_. É bem dito isto; não se
diz melhor o arrebatado movimento que eu fiz para chegar debaixo da
janella onde Felismina, immovel, parecia esperar-me como se tivesse a
certeza da minha ida.

«Boas noites, minha senhora» disse eu: era o mais frivolo que podia
dizer, depois d'uma investida tão vehemente.

--Boas noites--murmurou ella com voz abafada e tremula.

«V. exc.ª conhece-me?--tornei eu, querendo dar á pergunta um tom
melodioso, que o meu sobresalto tornava rispido e sêcco.

--Parece-me que é a pessoa que hontem...

«Sim, minha senhora, sou a pessoa que hontem teve a felicidade de estar
perto desta casa... quando foi necessario livrar v. exc.ª d'um susto...

--Devo-lhe um grande favor--atalhou ella, não menos agitada que eu--e
por isso mesmo é que hoje mandei a minha criada...

«Eu não pude entender a sua criada, minha senhora; e espero que v. exc.ª
me diga se eu devo pedir-lhe perdão...

--De que?!

«Da imprudencia que fiz entrando sem licença na quinta...

--A causa do meu recado não foi a sua imprudencia, foi, é, e será
sempre... a minha desventura... Tem V. a bondade de espreitar á
fechadura do portão, que não vão andar pelo quinteiro os caseiros...
Seria uma desgraça, se o vissem, ou escutassem...

Espreitei, e não vi nem ouvi signal de gente. Tornando, Felismina
acabava de apagar a luz, e estava já na janella.

Mal sabem que prazer me deu o ar de mysterio que ella dava assim á nossa
entrevista nocturna! O amor, quanto mais recatado, mais amor. Ama-se
mais n'um colloquio, por noites de completa negridão, que á luz das
serpentinas dos bailes, e ao clarão d'um bico de gaz, que, nestes tempos
malditos da poesia, vos dá á cara do namoro do primeiro andar uma côr
sulphurea e phantasticamente prosaica.

Não faço agora ácerca do gaz uma dissertação, porque me sinto abalado
pela memoria das seguintes palavras que a mysteriosa mulher me disse,
logo que eu voltei de espionar o quinteiro:

--O senhor de certo me não conhece...

«Não, minha senhora: apenas sei o seu nome; todavia, se me deixasse
dizer como eu a conheço...

--Queira dizer...

«Conheço-a como se conhece a mulher que se ama ha muitos annos; como se
conhece a omnipotencia de Deus sem se conhecer a sua essencia divina;
como se confessa a existencia dos anjos, sem nunca se terem mostrado aos
homens na sua fórma celestial; como se conhece a possibilidade de
encontrar a perfeita ventura, sem nunca a ter experimentado; como se
conhece, pela luz que derrama, a existencia do sol, sem poder fital-o
nas alturas do céo.»

Ainda disse muitas outras maneiras de conhecer sem conhecer; porém, não
disse todas quantas sabia, e quantas estudára em casa (penso que foi no
_Renegado_ de Arlincourt não estou bem certo), e lhe teria dito se ella
me não interrompesse com vehemencia:

--Bem se vê que não me conhece pela maneira que me falla...

«Como?! explique-se por quem é, snr.ª D. Felismina!

--_Felismina!_ (disse ella, sorrindo) Cada vez me convenço mais de que
me não conhece... Sabe que me chamo Felismina, porque lh'o disse a
caseira, não é verdade?

«Sim, minha senhora.

--Pois bom é que não saiba mais que o meu nome...

«E não devo esperar outra revelação da sua boa alma? Não sou eu já o
depositario d'alguns segredos que v. exc.ª confia das estrellas? A
mulher que pedia aos anjos o anjo que elles lá tem...

--Não me surprehende...--tornou ella vivamente commovida--Eu sei que me
ouviu; ouvi tambem os seus versos; pareceu-me um sonho tudo o que
n'aquella noite aconteceu. Se eu tivesse a certesa de que o homem que
cantava era tão infeliz como eu sou, e vertia lagrimas de tão dolorosa
saudade como as eu chorava então...

«Que faria a esse homem?

--Fizera-o meu confidente; dera-lhe o mais que posso dar-lhe: a minha
fé... a amisade santa dos infelizes áquelles que se compadecem... Não
queira saber quem sou; essa sua esteril curiosidade o mais que póde é
trazer-me desgostos novos, e eu mal posso soffrer o peso dos que tenho
sobre o meu coração para jámais se alliviarem...

«E o coração não lhe diz que eu serei um homem digno das suas
confidencias? e que, em troca, poderei fazer-lhe quantos serviços, até
com risco da existencia, podem ser feitos a uma pessoa que soffre?

--Nada póde. O circulo de ferro em que a minha vida está apertada, não
póde ser quebrado por humanas forças. Podendo eu mover a sua compaixão,
dar-lhe-hia grandes penas, por não poder valer-me. O coração diz-me que
fallo com uma alma nobre e generosa; é o coração que lhe falla com tanta
franquesa e simplicidade. Tambem eu estou conversando com V. como se o
conhecesse, ha muito. Isto parece providencial; mas não vá a minha sina
fatal enganar-me.

«Enganal-a...--interrompi eu, com exaltado resentimento.

--Enganar-me, sim, não se offenda, que não tem razão para isso. Eu posso
julgar muito natural e innocente este curto conhecimento que temos; e
d'aqui seguirem-se grandes desgostos, como se elles fossem a expiação
d'um crime... Deixe-me pedir-lhe um favor, sim?... o senhor promette não
voltar aqui?

«Se prometto não voltar aqui?!» respondi eu, aturdido da voz segura com
que a pergunta me era feita.

--Sim, senhor: é necessario que acabem neste instante as nossas curtas
relações. V. vai convencido de que encontrou uma mulher muito infeliz;
eu fico tambem convencida de que encontrei um cavalheiro muito generoso.
Não podemos ser nada um para o outro; e tão grande é a dôr que eu sinto
desta certesa... que, por compaixão de mim propria, não quero
habituar-me á sua voz.

«Só por compaixão de si mesma?--atalhei eu, sinceramente commovido--Não
será antes pena de mim?

--De que? Se algum de nós ha-de soffrer... serei eu, pobre mulher, que
não tenho distracções, e de qualquer pequena saudade faço uma grande
dôr... tal é o condão da minha desgraçada sensibilidade.

«E não podemos ser nada um para o outro... disse v. exc.ª... Nem sequer
_irmãos_?

--Deus sabe que precisão eu tenho d'um amigo... quantas vezes eu lhe
peço uma alma sensivel, como premio do muito que tenho penado, muda e
virtuosa... Desculpe-me esta fraquesa; será temeridade dizer tão
afoutamente que a minha virtude é o unico esteio em que me amparo...
Creia-me, se poder.

«E porque não hei-de eu crêl-a, minha senhora? que fez v. exc.ª para que
eu desconfie da sua virtude? Julgo-a infeliz, déra a minha vida para
suavisar as penas da sua; presumo que a sua existencia aqui, tão erma da
vida que se ama na sua idade, deve ser o desfecho d'um lance muito
desventuroso. Podesse eu entrar no segredo do seu desgosto, snr.ª D.
Felismina, e pediria á Providencia os dons que me faltassem para lhe
acudir.

--Não póde, não póde...--interrompeu ella soluçando--O mais que póde é
compadecer-se.

«E não é a compaixão um lenitivo?

--É, nem eu já agora tenho direito a outras consolações; porém, não
imagina os resultados tristes que póde dar esta nossa innocente
entrevista, se fôr muitas vezes repetida. Creia que sou vigiada, e serei
martyrisada se alguma vez se descobrir a sua vinda. Vá comprehendendo o
melindre da minha infelicidade...

«E por ventura, já me fiz suspeito aos olhos d'alguem?

--Creio que não. A estas horas estaria eu amargamente punida do meu
delicto... Creia que sobre o meu seio está suspenso um punhal ameaçador.

«Como?!--interroguei eu, sentindo pela espinha dorsal os calafrios da
bravura, e não sei que outros calafrios, metade de Amadis de Gaula, e
metade de D. Quixote de la Mancha.--Como?! pois ha, para vergonha da
minha especie, um braço de homem que ouse levantar um punhal sobre uma
victima tão resignada!

--Falle baixo, senhor... Tenho mêdo que o escutem... Repare que não haja
luz n'uma casa que está ao fundo do quinteirão. Quem sabe se os caseiros
estão comprados? Veja, veja.

Eu fui vêr, não vi luz, mas ouvi um arruido singular. Eram umas pancadas
rispidas e sêccas como o embate de duas taboas. Demorei-me na
averiguação, e Felismina perguntou-me assustada se via alguma cousa. Vim
dizer-lhe o que ouvia, e ella quiz logo fechar a janella, sem
estabelecer ao menos uma hypothese ácerca da extraordinaria bulha.
Pedi-lhe que suspendesse o seu juizo por instantes, tornei ao posto de
observação, e voltei tranquillo por ter descoberto que o estrupido
estranho era a simples brincadeira de duas cabras, que se divertiam a
marrarem-se reciprocamente ao clarão da lua: recreio sobre-modo poetico
para duas cabras prosaicas e estupidas como dizem que ellas são.

A entrevista, leitores pios, demorou-se até ás tres horas da manhã.
Banhavam-se as montanhas da frouxa luz do crepusculo, chilravam os
passarinhos por aquelles silvedos e restolhos, quando Felismina, a
disputar bellezas com a matinal estrella, sympathicamente pallida e como
elanguescida do beijar incessante das brizas nocturnas, murmurou, em
harmonia com o hymno festival dos passarinhos, estas palavras, que eu
escrevera aqui em musica, se esta typographia tivesse colcheias e fuzas
e sustenidos, e as outras garatujas tão necessarias a quem imprime
romances cuja linguagem é a pura e genuina do coração. Foram estas as
suas palavras:

--É dia; e agora peço-lhe eu que se retire. Leve a certeza de que me
deixa saudades, e tantas que só poderei consolal-as, vendo-o muitas
vezes; mas não posso acceitar esta consolação. Seja meu amigo, sim? não
me sacrifique, por quem é. Eu não sou d'aquellas mulheres que lhe querem
persuadir que o amam muito, e, comtudo, incapazes de sacrificarem o seu
bem-estar ao seu amor, pedem-lhe que respeite as suas posições, e não as
colloque em desagrado do mundo. Se lhe digo que me não sacrifique, é
porque o sacrificio seria inutil, e a pena injusta seria igual á pena
d'um grande crime. Que lucra V. fazendo-me soffrer maiores afflicções? É
preciso que eu lhe conte a minha vida; sem isso, tudo o que eu lhe digo
deve parecer-lhe uma invenção de novella, um ar de mysterio com que
muita gente quer armar á admiração. Ha-de saber a minha vida, se
primeiro me jurar pela sua honra, e pelo bem das pessoas que mais préza,
nunca, em quanto eu viva fôr, proferir uma só palavra das que eu lhe
confiar. Não sei que sentimento de irmã é este que V. me inspira! Nunca
esperei encontrar uma amiga a quem dissesse «aprende a soffrer commigo.»
Menos ainda esperei encontrar um homem, quasi estranho, a quem dissesse,
sem reserva, o resumo dos padecimentos de tres annos... Ámanhã, depois
da meia noite, encontra-me aqui. Se quizer, venha, meu amigo; mas de
tarde não passe aqui, porque eu receio toda a gente, menos a minha boa
criada, que me viu nascer, e respeita as minhas acções, porque me julga
incapaz de as praticar indignas de mim. Adeus.--

Ora aqui têem como a cousa se passou, tal e qual.

Entrei no quartel com o coração tumido de romances. Olhei-me d'alto a
baixo, por uma intuscepção peculiar dos grandes tolos, e vi-me grande,
extraordinario, e fadado para grandes lances.

Chamado ao sanctuario dos segredos d'aquella mulher, eu não podia
estremar a confiança do amor. De que natureza seriam esses segredos? Que
Felismina era victima, isso estava provado. Cumpria-me resuscitar os
brios cavalleirosos que o ominoso romance de Miguel Cervantes matára com
a zombaria? Cumpria-me offerecer o meu braço, debil instrumento d'uma
alma forte, á opprimida emparedada do Pastelleiro? Taes interrogações me
fiz durante o dia, contemplativo sempre, sempre poeta scismador, não
obstante as interrupções da minha Poncia, que vendo o meu fastio ao
jantar, obrigou-me a tomar um chá de fel da terra para limpar o
estomago.

Poncia era uma creatura de singular chateza. Fallar-lhe nesse amor
vulcanico, que ella trocava em mal de estomago, era forçal-a a
esconjuros e benzedellas que me aguavam toda a poesia da expansão.
Quando eu lhe disse que havia uma mulher, suffocada sob a pressão d'um
tyranno, escondendo as lagrimas para não irritar a colera do seu
verdugo, Poncia, depois de sorver uma pitada de esturrinho, exclamou:

«Sabe V. m. o que essa rapariga ha-de fazer? que reze uma novena ás
almas, e prometta uma romaria á Senhora da Guia, para que a guie bem; e
o snr. João deixe-se de palanfrorios; não se metta na vida alheia, e
tracte de comer bem e tomar os seus banhos em paz, que é o mais
acertado.

Dito isto, sentou-se de cocoras, e poz-se a torcer linhas.


VII.


Trato de afivelar já uma mordaça á maledicencia. Muita gente cuida que o
meu namoro com a mysteriosa senhora do Pastelleiro ha-de ser um conto
muito bonito, em que eu hei-de dizer cousas muito galantes, em que ella
ha-de fazer tregeitos de pudicicia, até que finalmente acabemos ambos
por nos adaptarmos ás formulas vulgares d'uma rotineira paixão das que
morrem no inverno, se nascem no verão ao pé d'um pinhal, cuja poesia não
resiste ás primeiras nortadas de Outubro. Agora tomem fôlego que o
periodo é uma especie de machina pneumatica.

Pois saberão que não tive namoro com a snr.ª dona... ia dizer Felismina;
mas a mulher chamava-se Leocadia. A razão do pseudonimo virá em seu
tempo. Por hora, saiba-se a figura que eu fiz, a figura que ambos
fizemos. E o leitor, duro d'alma, o leitor-leão que retorce o bigode e
enruga a fronte encarando com visos de tyranno todas as mulheres, suas
imaginarias victimas--esse, que a maior parte das vezes é um pobre
homem, não leia isto porque de certo não aprenderá aqui a receita com
que se fascinam as mulheres.

Declaro, pois, que não namorei a snr.ª D. Leocadia, moradora no logar do
Pastelleiro, suburbios de S. João da Foz, em 1828.

Declaro, outro sim, que nunca lhe disse cousa que duvida faça á virtuosa
commemoração de sua memoria, nem consta que as más linguas sujassem a
reputação desta senhora.

D. Leocadia contou-me a sua vida, e, desde o preambulo de tão triste
historia, confesso que senti abalar-se-me a alma de commoções que não
eram isto vulgarmente chamado amor dos homens. Conheci que não estava no
seio d'ella coração que podesse ser meu. Grande coração ella tinha; mas
o amor de que extravasava era o amor espiritual dos anjos, o perfume
continuo d'uma adoração, que não podia deixar cahir neste chão maldito
um só bago de incenso. Depois de ouvil-a uma hora, sem ousar
interrompêl-a, comecei a sentir não sei que terror de ter tentado
disputar a alma d'aquella mulher a um homem que dormia o somno eterno,
cujo espirito, porém, dizia ella, adejava entre nós, quando proferiamos
o seu nome.

Eu fui sempre criança n'isto de superstições. O ether para mim foi
sempre, e ha-de sêl-o sempre, um infinito vacuo que os olhos d'alma
contemplam cheio de espiritos. As almas das pessoas que amei, que
estimei, que vi partirem-se d'aqui successivamente deixando em redor de
mim o ermo do desterro, a insulação medonha do estrangeiro em solo de
barbaros--essas almas revoam nas florestas, deslisam-se-me nos cabellos
que o terror encrespa, gemem aos meus ouvidos como o suspiro do mar
dormente... essas almas... perdoem-me a divagação... Eu cuidava agora
que estava a escrever no meu album uma de muitas paginas que virão algum
dia confirmar posthumamente a minha reputação de grande piegas, ou de
grande pateta, legado unico que preestabelece e assegura a boa paz entre
os meus herdeiros.

Vinha eu dizendo, pois, que a vida de Leocadia foi uma triste vida. Vou
contal-a; saibam, porém, que D. Leocadia morreu já. Este preliminar
aviso é necessario para muitos effeitos, sendo o mais valioso ter-lhe eu
promettido a ella sigillo de confissão durante a sua vida. Então,
pensava eu ir primeiro a descançar das minhas fadigas; esperal-a a ella
rodeada d'anjos lá, cortando a immensidão do céo, no dia do seu resgate.
Enganei-me. Leocadia fugiu na idade em que os olhos descem a procurar na
terra os vinculos que nol-a podem fazer querida. Voou deste baixo
repositorio de escorias para a limpida estancia da sua patria; e eu,
velho e enfermo, ralado de saudades do coração que consumi, vestida a
alma dos andrajos que troquei pelas galas d'uma poesia que só eu tive, e
toda a gente porfiou em destruir-me, eu, mytho d'outras eras, esphinge
posta em altar de lama n'um templo de vendilhões torpissimos, eu,
finalmente, fiquei por cá, quinze annos depois d'ella, sem poder atinar
com a intenção providencial que por aqui me traz entregue aos baldões
d'um destino, que umas vezes me parece cruel, e outras patusco.

Ahi vai agora o conto:

Leocadia nascêra em uma notavel villa de Traz-os-Montes. Seu pai era
official de cavallaria, e senhor d'uma casa mediocre. De Bragança
passára para Lisboa a commandar um regimento, e levára comsigo sua filha
de nove annos já sem mãi. A menina entrou n'um collegio, onde esteve até
aos dezenove annos. Sahiu para a companhia de seu pai reformado em
coronel, e completou a sua educação na convivencia de algumas poucas
familias exemplares.

Leocadia, ainda no collegio, maravilhava-se de sentir no peito uma ancia
como se não fosse o ar bastante para encher-lhe um vacuo oppressivo. Bem
conhecia ella que a sua queixa era um singular achaque dos que o
instincto ensina a curar. As mestras, que a viam scismadora a
esconder-se entre as murtas e as tilias do jardim, graças á experiencia,
entendiam melhor a molestia da discipula do que entenderam a sua dos
dezenove annos.

Nesta anciedade vaga, sahiu Leocadia do collegio, entrou na roda de
pessoas bem procedidas, e viu que os dous sexos se misturavam nas salas,
e conversavam sem desaire, muito a beneplacito da sã moral. Um dos dous
sexos causou-lhe uma estranheza em que as faces davam o signal,
rosando-se, pintando-se da mimosa purpura que, rara, em nossos dias,
reçuma em rosto de dezenove annos, por uma razão que o leitor sabe, e
mais eu.

O sexo, porém, que mais a constrangia (sempre a natureza tem cousas!)
era, quer m'o creiam quer não, o sexo que mais gratas scismas lhe dava
nas suas contemplações, sósinha.

Havia ahi na sua roda um rapaz, tão acanhado como ella, o que menos
palavras lhe dizia, e essas palavras custavam-lhe tanto ao pobre do
moço, e tão frivolas eram, que, se os olhos não dissessem mais que elle,
Leocadia julgar-se-hia entre todas a mais indifferente ao timido
Vasco--chamava-se elle Vasco, se bem me recordo.

Amou-o ella: é o que não soffre duvida; e elle amou-a, como...
deixemo-nos de metaphoras--amou-a como hão-de vêr que elle o prova,
depois.

O tal Vasco era pessoa de bem; quero dizer que tinha duas costellas, ou
tres, parece-me que eram tres as costellas nobres que elle tinha. Não
obstante, como as acções do Banco eram menos que as costellas nobres, o
meu pobre Vasco andava por alli entre aquella gente, e ninguem dava fé
se elle entrava ou sahia, excepto Leocadia, que o não perdia da vista
dos olhos, e da outra vista do coração, de maior alcance ainda, se o
coração não é myope, ou zarolho, peior mil vezes.

Corações zarolhos, dou-lhes a minha palavra d'honra que os conheço até
pelo cheiro. Descobriu-se ultimamente a operação do estrabismo para
elles. É infallivel, nas mulheres que vieram com esse aleijão a este
mundo. Havemos de fallar a este respeito no oitavo volume desta
edificativa obra.

Bom coração era o de Leocadia, coitadinha! Umas senhoras velhas, dando
no segredo dos olhares que os dous se cambiavam com certa finura que o
amor astucioso ensina, as taes velhas solteironas foram dizendo á menina
que o rapazinho era bello moço e de boa familia; mas a respeito de
haveres não tinha nada. Conclusão de velhas: «deixe-se a menina de
gastar o seu tempo mal, porque a mocidade anda a galope, e quando a
gente mal se precata, deixou perder a occasião de arranjar noivo
conveniente, e acha-se velha.»

Esta linguagem corruptora, hedionda, asquerosa, doutrina que prostitue a
mulher, que a enfeita para se expôr em leilão torpe, esta linguagem fez
córar Leocadia.

Vasco cobrou animo com a familiaridade, e gaguejou o prologo d'uma
declaração amorosa. Leocadia, que lhe havia adivinhado o segredo
aprasivelmente, acceitou-o, corando e sorrindo de modo que nunca foi tão
linda como então, nem houve sorriso e pudôr que tanto alindassem um
rosto innocente.

Reanimado pelo bom acolhimento, o nosso Vasco, pouco e pouco, deu
liberdade ao coração, e disse quanto podia; mas quanto sentia, isso não
se consegue aos dezoito annos. Escreviam-se todos os dias, davam-se
reciprocamente uma edição diaria do seu amor em duas ou mais folhas de
papel, e, depois da vigesima carta, escreviam o prospecto do seu futuro,
com a riquesa de imaginação usual de todos os prospectos.

Deviam ser formosissimas as perspectivas do magico amor d'aquellas
almas, ambas poetas, innocentes ambas, desferindo na corda virgem do
mesmo som o primeiro hymno de saudação á vida, cheia de nova luz,
especie de bem-aventurança ephémera posta entre o dormir da razão na
infancia, e o despertar desse terrivel dom na adolescencia! Bellas
deviam ser essas esperanças, por que o pensamento de ambos era
sanctificarem pelo casamento a sua identificação n'uma só alma, irem
ambos n'essa alma unica habitar uma casinha campestre, rodeada de
arvores, onde os passarinhos tivessem as suas luas-de-mel, e os seus
ninhos, e os seus filhinhos pipilantes. Queriam ao pé dessa casinha uma
fonte, derivando em fios de prata por sobre a relva as suas aguas, e
nessa relva havia de pastar um cordeirinho branco, malhado de preto, com
um laço escarlate no pescoço, o qual cordeirinho andaria sempre atraz de
Leocadia, e daria cabeçadas no cão de Vasco, que havia de ser um cão do
Monte de S. Bernardo, que se enroscaria (o cão) aos pés de sua ama,
lambendo-lhe a ponta do sapato de carneira côr de flôr de alecrim.

Que vida, que esperanças tão bonitas! Nas manhãs de estio, quando o
pintasilgo, o pisco, a calhandra, o cochicho, e toda a orchestra dos
musicos do bosque, dessem a alvorada d'um bello dia, Vasco e Leocadia,
espriguiçando-se ainda de deliciosas insomnias, sahiriam para o ar
livre, sorveriam abraçados o primeiro halito da atmosphera, perfumado de
alecrim e rosmaninho, revesar-se-hiam em ir á fontinha buscar
burrifadores de limpida agua, regariam os canteiros, as balsas, os
vasos; e depois, botariam milho ás gallinhas, enxotariam a gata que se
encarapitou n'um ramo de romanzeira para agadanhar um passarito que
ensaia os primeiros vôos; depois, chamariam o cão e o cordeirinho, iriam
para ao pé do rumorejar da fonte. Vasco leria os seus poetas italianos,
o seu querido Petrarcha, e Leocadia, chorosa pelo tão mal recompensado
amor do infeliz poeta, abraçaria o seu, tambem fadado das musas,
exclamando: «que nos vejam do céo esses desgraçados amantes que não
acharam cá em baixo o nosso paraizo.»

Isto é bonito, digamos a verdade; e mais ainda se não disse tudo.

Em quanto ao almoço, jantar, e ceia, e merenda nos dias grandes, (cá
estou ao vosso alcance, sisudos leitores, que estaveis a adormecer no
periodo anterior) em quanto a esses solemnissimos actos da vida ides por
força vascolejar nas mandibulas a mais regalada das gargalhadas, que
ainda estoirou de vossos alegres queixos! Deveis de saber que os pobres
amantes projectavam estes grandes melhoramentos na sua vida como por cá
se projectam os melhoramentos materiaes do paiz, isto é: não cuidavam da
receita, nem do orçamento, nem do _deficit_, nem... eu sei cá como se
chamam essas cousas que por ahi dizem os que sabem lá da salvação do
paiz! O que eu sei é que este par de creaturas bemaventuradas, com
quanto fossem muito anteriores ás importantes applicações do magnetismo,
attribuiram ao magnetismo propriedades que os modernos ainda não
sonharam, tendo sonhado quanto ha de tolice sub-lunar. Entenderam elles,
pois, que o magnetismo era uma substancia nutritiva como vacca e arroz,
como _roast-beef_ e almondegas, como esparregado e pudim de batata! Que
parece esta sandice ao leitor circumspecto, que tem o seu estomago na
devida consideração, e crê que isto de poesia e poetas, de idealismo e
espiritualismo, são o que realmente são: _indróminas_? Pois é verdade,
como lhe vinha contando, amigo, senhor meu, cuidavam elles que o trivial
e velhissimo facto de se amarem os separaria dessa lei commum, lei
estupida por isso mesmo que é para todos, praxe, tão velha como o amor,
de attender ás justas reclamações deste ser intimo que faz os grandes
estadistas, os eximios patriotas, os jornalistas preclaros, e
particularmente os homens gordos: quero dizer--o estomago,
viscera-rainha, orgão dos orgãos, potencia sempre discutida, sob um
pseudonimo qualquer, no discurso do throno, aganipe das locaes mais
chorudas do jornalismo, irmão gemeo da soberania do talento, o estomago,
oito letras a cujo serviço estão as outras dezeseis, porção, em fim, do
homem notavel, que mais se lhe venera, por isso que a chegada de uma
summidade a qualquer terra é logo celebrada por tres, quatro, cinco
jantares em que uma concava terrina de sôpa e uma pyramide de boi assado
substituem os presentes d'ouro e pedrarias com que na antiguidade se
regalavam os adventicios de longes terras.

Era preciso todo este palavriado para saber-se que Leocadia e Vasco não
scismavam com o que haviam de entreter o fogo sagrado d'essa mola por
excellencia do machinismo humano. Dar-se-hia por injuriado o coração, se
o torpe raciocinio lhes argumentasse _á priori_ com as villãs
necessidades da materia, cousa de que elles tinham apenas a necessaria
para se amarem.

Não pensava, porém, assim, o snr. Gervasio Leite, pai de Leocadia, nem a
snr.ª D. Fortunata Proença, madrasta da mesma menina, casada tambem em
segundas nupcias com o militar, e mãi d'um rapaz estragado, senhor d'uma
boa casa no Alem-Téjo de que sua mãi era uso-fructueira.

D. Fortunata, casando com o coronel, promettêra-lhe empregar a sua
authoridade maternal sobre o filho para que elle, ultimada a sua
formatura na Universidade, casasse com Leocadia. Este casamento
assegurava á enteada, se não um digno esposo, ao menos uma boa casa, e,
a todo o tempo, um dote que ella poderia levantar, se os maus costumes
do marido fossem incorregiveis.


VIII.

O coronel, informado dos amores da filha por suspeitas da madrasta,
resolveu curar heroicamente a enfermidade moral da menina. Francisco de
Proença, que estava a completar a formatura, annuira á proposta da mãi,
conhecendo apenas de vista a noiva, e as necessarias dispensas estavam
já em poder do coronel.

Leocadia foi chamada ao quarto de seu pai, e recebeu a noticia do seu
proximo casamento. Fez-se escarlate, faltou-lhe o ar, e nem se quer pôde
balbuciar uma supplica a seu pai. Passados os momentos da offegante
surpreza, Leocadia, cobrando animo do ar compassivo do coronel, ousou
dizer que já não podia dispôr do seu coração, porque amava outro homem.

O militar riu-se da infantil pieguice de sua filha, achando que não
valia a pena zangar-se por uma criancice sem consequencias. A menina
tomou o riso por carinho paternal, e lançou-se de joelhos aos pés do
pai, suffocada pelas lagrimas que lhe sahiam do coração agradecido e
venturoso.

--Então que é isso? (disse o coronel, tomando-a nos braços, e sentando-a
ao pé de si) Cuidas tu, criança, que eu sou tão criança como tu? Achas
que eu deixarei á tua vontade inexperiente a escolha do destino da minha
querida filha? Essa é boa! Eu riu-me d'esse amor patetinha que tens ao
Vasco da Cunha, tão tôlo como tu, e que não sabe melhor do que tu o
futuro que vos esperava. Olha, Leocadia, não se póde ser pobre n'esta
sociedade. A nossa casa é muito pequena, bem o sabes; e Vasco é um filho
segundo, sem habilitações para modo de vida algum. Estes fidalgos cuidam
que ser fidalgo é uma profissão. Os filhos segundos, se lhes faltam as
sopas do primogenito, não servem para nada, não tem em si recursos para
subsistirem fidalgamente, e julgar-se-hiam réos de leso-brazão se
pedissem uma occupação plebêa. Meus irmãos, Leocadia, foram para o
Brazil, logo que a razão lhes disse que a pequena casa onde viviam era
minha. Trabalharam como se nascessem do populacho, e estão ricos,
riquissimos, e serão mais fidalgos na sua patria, se voltarem, do que o
eram quando de cá sahiram. Quem saberá melhor o que te convém do que eu,
minha filha? Sei em que tempo estamos, e quero deixar-te preparada para
um tempo que ha-de vir, muito peior que este. Espero ainda vêr em minha
vida desapparecer o rendimento da Commenda que faz a nossa casa mediana;
ido esse, o resto bem sabes o que é. Se casas com esse rapaz, que não
tem nada, quem vos sustentará? Eu não poderei, nem, se podesse,
quereria. Para que reconheças quanto me tenho a ti sacrificado,
lembra-te que por teu bem casei com esta senhora que te quer como a
filha. A condição de casares com Francisco, acceite por ella, explica o
meu casamento n'esta idade, em que ainda choro saudades de tua mãi, cuja
memoria me não deixou jámais encarar com bons olhos outra mulher. Depois
d'isto, dir-me-has se eu não devo esperar que tu espontaneamente
acceites a sorte que eu te preparei. Serias má filha, se recusasses; e
eu seria um pai muito infeliz, se me desobedecesses. Nunca o imaginei;
e, tão firme estava na união das nossas vontades, que sem te consultar,
pedi as dispensas necessarias para o teu casamento com o meu enteado.
Enganar-me-hia eu, Leocadia?

A menina soluçava com os labios collados na mão do pai, cobrindo-lh'a de
lagrimas. O coronel apertou-a ao seio com amor, e tinha os olhos
aguados. D'aquelle modo Leocadia fazia a seu pai o sacrificio do seu
coração, o maior de todos, porque o menor era de certo a vida.

--Não respondes, filha?--dizia o coronel, levantando-lhe a face que ella
escondia no seio do pai.

«Já respondi...» balbuciou ella.

--O que? que respondeste, Leocadia?

«Farei o que fôr da sua vontade, meu pai...

--És a minha Leocadia...--disse elle com apaixonada meiguice--Reconheço
a filha da minha chorada mulher... Agora, fallemos nos teus amores com
Vasco... Senta-te, menina. Diz-me cá: ha que tempos andam vossês com
essa brincadeira?

«Brincadeira... não era brincadeira, meu pai... Nós amamo-nos muito...
ha dous mezes.

--Já ha dous mezes? Está feito! mas eu não tenho dado fé... Como se
entendiam vossês? fallavam ás escondidas, ou...

«Nunca fallámos ás escondidas...

--Então, escreviam-se, sim?

«Sim, senhor.

--E as vossas tenções?

«Eram sentar elle praça, e, quando fosse official, pedir-me ao pai.

«Está bom... E porque me não fallaste d'esse teu namôro?... Diz, filha,
tu guardavas de mim o segredo; é signal de que a tua consciencia não o
approvava como digno de contar-se a um pai...

--Foi porque algumas senhoras, que deram fé logo no principio, me
disseram que eu não fazia bem em gostar de Vasco, porque elle não era
rico, e eu só devia gostar de pessoas que tivessem um grande dote. Se
não fosse isto, eu seria a primeira a dizer ao pai...

--Está bom, filha. Agora é necessario que tu escrevas, e lhe digas que
teu pai deseja fallar com elle.

«O pai!?

--Sim, menina. Quero eu fallar-lhe, porque, se até aqui o estimava pelas
suas qualidades, e por elle ser filho de quem é, mais o estimo hoje por
elle ser amigo de minha filha. Ingrato e villão seria eu se lhe quizesse
mal porque minha filha o impressionou, inspirando-lhe a resolução de
seguir uma carreira até ganhar a subsistencia d'ella. Poucos ou nenhuns
pais assim pensam, bem o sei; mas eu, que devo a Deus uma filha docil,
não quero esquecer-me de que sou o seu primeiro amigo pelo coração, e o
seu primeiro conselheiro pelo dever. Vasco, depois de ouvir-me, ha-de
transigir com as tuas circumstancias e com as d'elle. Ficará amando-nos
ambos, e ficaremos todos amigos, de modo que jámais elle possa
queixar-se da ingratidão de uma filha grata e submissa a seu pai.

Leocadia beijou-lhe a mão, e retirou-se, obedecendo a um gesto do
coronel. O velho militar ficou enxugando uma teimosa lagrima que lhe
cahira sobre o bigode, no momento em que a filha, sahindo do quarto,
desentalava a dôr oppressiva do seio por um ai.

Na tarde desse dia, Vasco recebia um bilhete de Leocadia, assim conciso:
«Meu pai quer fallar hoje ao amigo de sua filha. _Leocadia._»

Que surprehendente, e que mysterioso bilhete! O pobre moço não podia
imaginar o meio-termo entre a completa ventura, e absoluta desgraça.
Faltava-lhe o animo, e o desembaraço para apresentar-se, á ventura,
diante do pai de Leocadia.

Não ir, porém, seria desobedecer ao homem que respeitava como pai, e
ennegrecer aos olhos d'ella a candura das suas intenções.

Foi; e o leitor, se é curioso, póde espreitar commigo a scena que vai
passar-se na sala do coronel.


IX.

Vasco entrou na sala, encolhido, como se o frio o arrepiasse. Não viu
alguem, e parou, ao segundo passo, com as mãos juntas na aba do chapéo,
e os olhos fitos na porta por onde havia de entrar o coronel.

A porta abriu-se, e Vasco estremeceu. O pai de Leocadia, com a mão
direita estendida ao hospede, e com a outra indicando-lhe o canapé,
entrou, affavelmente encarado, como Vasco o não vira nunca.

«Sente-se aqui, snr. Vasco, e conversemos como dous rapazes, ou como
dous homens velhos--disse o coronel, apertando um cigarro, e offerecendo
outro ao mancebo.--Já toma o seu cigarrito? A apostar que sim?

--Não senhor, não fumo.

«Pois admira! Este sujo prazer de soldados e marinheiros começa a ter
boa hospedagem nas classes mais limpas da nossa sociedade. Por ahi, a
mocidade, apenas deixa o guizo que lhe deu a ama de leite, pega do
cigarro, e aprende logo a resfolegar o fumo pelo nariz. É o tom, dizem
elles, desde 1820 para cá. Parece-me que esta geração sahida do ovo, e a
outra que está no chôco, hão-de ser, meu caro senhor, uma cousa assim a
modo de nabal espigado. Não sei se me entende: quero dizer que a seiva
forte de nossos pais, em vez de medrar as vergonteas, produzindo flores
e fructos, cada cousa em tempo proprio, dará fructos temporãos,
bichosos, desses que passam sem termo medio do verde ao podre. Não acha?

--Ha-de haver, como sempre, o bom e o mau, penso eu--disse modestamente
o moço.

«E pensa bem para a sua idade. Os vicios são de todas as épocas, mas o
do cigarro é muito moderno entre nós, ha-de confessar!

Vasco sorriu involuntariamente á visagem comica do coronel, de proposito
arranjada para se ajustar á solemnidade com que sorvia, deliciando-se,
um d'aquelles sadios e gordos cigarros da herva santa de 1828, que não
era de certo a herva satanica do contracto de 1857, congresso de
Borgias, que envenenam a gente, reservando só para elles as explendidas
orgias dos outros...

«Está o meu caro snr. Vasco da Cunha morto por saber--disse Gervasio
Leite--o que é que eu lhe quero. Lá vou já. Minha filha Leocadia...

Vasco fez-se vermelho, côr de rosa, amarello, branco de marmore, tudo em
menos tempo do que o necessario para articular as cinco syllabas desse
nome.

«Minha filha Leocadia--proseguiu o militar accendendo terceiro cigarro
na ponta do segundo--tinha lá um segredo no coração, mas não segredo
para o snr. Vasco; era-o só para mim, porque os pais parecem-se ás vezes
muito com os maridos em serem os ultimos informados do que lhes toca
pela roupa. Este ruim vêso da humanidade é que é muito mais antigo que o
cigarro.

O orador riu-se com militar modestia do seu gracejo; Vasco, porém, não
tinha recuperado ainda o animo frio para saborear o chiste do equivoco,
ou parecêra-lhe grosseiro de mais o confronto do segredo santo da filha
com o perfido da adultera.

Gervasio Leite, satisfeito com um aceno affirmativo do interlocutor,
continuou:

«Disseram-me que minha filha e o snr. Vasco se amavam. Não estranhei a
cousa: achei-a mais humana e natural que o contrario disso, por duas
razões respeitaveis e persuasivas ambas: Leocadia é rapariga, o senhor é
rapaz, ambos sahidos do collegio, cegos ambos, conduzidos por outro
cego, valha a verdade, que dizem ser cego o snr. Cupido, e eu quero que
elle seja mais do que cego... em quanto a mim é surdo, por que não ouve
razões, é cego por que não vê precipicios, é mudo por que só tem lingua
para fallar a linguagem que não está nos diccionarios, nem póde
applicar-se a estes objectos da vida real que se veem, e apalpam, e
sentem, como, por exemplo, o vestir, o calçar, o ignobil cortejo da
realesa despotica do estomago, e outras miserias adjunctas. Deixe-me
cortar a direito, snr. Vasco, e dizer as cousas como eu sei. Isto resabe
ao meu genero de estudos: formei-me em mathematica, e affiz-me a estudar
a vida como se estuda uma raiz, problemas sobre problemas, e para todos
o mesmo X, dinheiro, sempre dinheiro, com mil diabos!... desculpe-me
esta rhetorica de tarimba.

Quando, pois, me disseram que minha filha amava o snr. Vasco, o neto do
meu general na guerra peninsular, e o filho do meu camarada no quartel
do general Beresford, tive sincera pena de ambos! Não entende, não. É
necessario ter cabellos brancos, e mais brancos ainda os cabellos da
alma, para conciliar duas idêas contrarias: ter compaixão de duas
pessoas que se julgam felizes unindo-se. Ora eu me explico, e, quando
não entender o meu vocabulario cá debaixo do mundo real, falle.

A minha casa é insignificantissima. Posso dizer que o rendimento d'ella,
junto ao meu soldo, difficilmente tem chegado para a educação de
Leocadia. Minha filha é pobre.

--Oh senhor!--interrompeu Vasco agitadamente, e susteve-se.

«Diga, diga, o que ia dizer.

--Eu... não perguntei a v. exc.ª o que sua filha tinha.

«Isso está claro. Quem é que se lembra de perguntar o que tem a mulher
que se ama? O amor, meu amigo, recordo-me ainda do que elle é. Eu tambem
amei uma mulher, casei, e, só depois de tres mezes de casado, é que me
levantei uma bella manhã com a idéa de saber o que ella tinha. Soube que
tinha umas leiras que renderiam, em anno de boa colheita, cincoenta mil
reis, o maximo. Confessar-lhe-hei que não fiquei contente, por uma razão
das mais racionaes que eu conheço. Minha mulher precisava vestir-se para
apparecer n'um baile em Lisboa, e a minha gaveta estava ferida da
esterilidade de Sara. Desde esse dia, meu caro snr. Vasco, quiz-me
parecer que a minha situação de solteiro era melhor que a de casado.
Entraram commigo receios de collocar minha mulher n'um posto inferior
áquelle em que a encontrara na casa paterna, e as minhas doces chimeras
de noivo fugiram como um bando de andorinhas quando as primeiras
nortadas lhe embaraçam o vôo. Nunca minha mulher conheceu a tristeza que
me descoroçoava por dentro, isso é verdade; mas o que lhe valeu para
viver e morrer feliz foi eu ajuntar á delicadeza com que sempre a
tractei, algumas dividas que ainda estou pagando hoje.

Morreu minha mulher... attenda agora, snr. Vasco: morreu minha mulher; e
eu, com quarenta e cinco annos d'idade, ralado por desgostos de todos os
generos e feitios, herdava da mãi de minha filha o maior de todos: essa
criança sem mãi, filha d'um major quasi pobre. Educal-a, ainda eu
poderia; mas legar-lhe um patrimonio, como é preciso que uma senhora o
tenha, para poder escolher um marido, não podia. Um pai, que ambiciona
avaramente para seus filhos o bem-estar que elle não quer para si, é
desculpavel, é victima do seu amor de pai. Sacrifiquei-me, snr. Vasco; e
sabe como? Sacrifiquei-me como pai nenhum. Casei-me com uma mulher
aborrecida, por que essa viuva, mais velha do que eu, tinha um filho,
herdeiro de um grande casal, e além de todas as probabilidades
favoraveis ao meu pensamento, estipulamos, eu e ella, a condição de que
Leocadia seria mulher do meu enteado.»

Vasco ergueu-se com sobresalto; encostou-se ao espaldar d'uma cadeira,
branco de neve, tremulo, que até os cabellos se lhe irriçavam, pasmando
os olhos nos olhos do coronel, que se erguêra tambem.

«Então, snr. Vasco, isso que é?--disse Gervasio, tomando-lhe
affectuosamente a mão--Sente-se. Eu sou seu amigo; tempo virá em que
faça justiça ao pai da mulher que será sempre sua amiga. É preciso que
sejamos tres no sacrificio.

--Qual sacrificio?--balbuciou Vasco.

«É preciso que o snr. Vasco, bem longe de contrariar os meus planos,
seja o meu auxiliar para encaminharmos Leocadia ao destino que lhe
tracei, convencendo-se um e outro de que serão infelizes,
desobedecendo-me.

Vasco levou o lenço aos olhos. Era o chorar sem pejo dos dezoito annos.
Vencendo os soluços, que forcejava por esconder no lenço, disse com
intimativa:

--Eu obedeço, senhor... Creio que poderei obedecer.


X.

E, quando o coronel parecia ter muito que lhe dizer, Vasco sahiu da
sala, e desceu tão precipitadamente as escadas, que não voltou a cabeça
para agradecer ao dono da casa a consideração de acompanhal-o fóra da
sala.

No pateo encontrou o afflicto moço o aguadeiro que diariamente lhe
levava as cartas de Leocadia. Estava o prestante gallego sentado no
barril, examinando os pregos dos sapatos, e calculando talvez os
emolumentos que cobrára da sua posição importantemente diplomatica entre
dous corações rendidos.

Quando viu Vasco, calçou o collossal sapato, sacou dos abysmos
interiores da jaqueta uma carta que entregou ao nosso amigo, atirou com
o barril para o hombro, e não esperou resposta.

Vasco rompeu ainda a obreia para lêr a carta, mas susteve-o o receio de
ser visto por algum familiar do coronel. Escondeu-a e desviou-se para um
canto do pateo a limpar as lagrimas, que rebentavam, cada vez mais
copiosas, debaixo da pressão do lenço.

«Que dirá esta carta?»--perguntava elle ao seu coração--«Será o adeus de
Leocadia?... Saberia ella para que me chamou a sua casa?...»

Tirou-a ainda outra vez do bolso, resolvido a lêl-a, quando entrou no
pateo um criado, e em seguida um cavalleiro, esporeando o cavallo, com
grande tropel. Era Francisco de Proença que chegava de Coimbra. Vasco
não o vira nunca; mas pelo trajar de jaqueta de guizos, barrete á
campina, e bota branca de canhão alto, conheceu o enteado do coronel, em
que Leocadia lhe fallára algumas vezes, porque sua madrasta lhe estava
sempre elogiando o talento, e encarecendo o grande morgadio.

Francisco de Proença viu um rapaz de casaca preta arrumado para um lado,
e cortejou-o de passagem. O coronel descêra quasi até ao pateo para
receber nos braços o enteado, e ainda viu sahir Vasco. Quiz perguntar ao
recem-chegado se encontrára alli sósinho o cavalheiro da casaca preta;
porém, lembrou-se de que a pergunta provocaria outras. A este tempo
descia com grande alvoroço a mãi de Francisco, com os braços abertos; e
o rapaz, depois de beijado e abraçado, deu o braço á mãi, que estava
gorda de mais para enthusiasmo tão buliçoso.

D'ahi a pouco, lia Vasco, fechado no seu quarto, este bilhete:

«Em quanto fallas com meu pai, escrevo-te duas linhas. Já sabes que
desgraça nos ameaça. Querem separar-nos, meu Vasco. Todas as nossas
bellas esperanças não podemos deixar que nol-as matem assim. Respeito a
vontade de meu pai; mas o juramento que fiz de amar-te eternamente é
superior a tudo. Sou mais tua do que de mim propria, meu querido Vasco.
Cuidei que poderia morrer sem desgostar meu pai; não posso; porque me
lembro que te mato. Vê o que queres que eu faça. Não podemos esperar que
o tempo destrua os planos de meu pai e minha madrasta, que só hontem me
foram ditos. Hoje espera-se de Coimbra o tal homem. Decide, meu amigo.
Em ultimo recurso, eu fujo de casa para ti; e depois... o que Deus
quizer. Não seremos tão infelizes como meu pai diz, não achas, Vasco?
Diz-me que não; dá-me animo para lhe desobedecer. Não sei se te
demorarás pouco tempo com meu pai: vou dizer ao gallego, que te espere
com esta carta.

                                                               Tua L.»

Quando Leocadia (ahi vão reflexões philosophicas) me mostrou, entre
outras, esta carta, pasmei, como a gente pasma, até certa idade, das
maravilhas que se fazem no coração das raparigas! Aqui ha trinta annos,
se me dissessem que uma donzellinha, a cheirar ainda ao esturrinho das
mestras dos collegios de então, namorada pela primeira vez, pouco ou
nada lida em novellas, e menos ainda experimentada nos romances ineditos
de portas a dentro, se me dissessem que essa tal, contrariada pelo pai
nas suas virginaes affeições, escrevera similhante carta ao namoro, eu
não acreditaria, sem vêr a carta reconhecida pelo signal publico e razo
d'um tabellião de provada moralidade.

Pois não parece incrivel?

Hoje que não ha anomalias para mim, que tudo se me afigura aleijões da
alma--porque esta geração veio realmente estropeada e canhota do
espirito--hoje, a menina iniciada no amor, embora creada e educada ao ar
sereno e puro do collegio, comparo-a eu á rôla creada na gaiola, que
nunca esvoaçou, nem sabe a serventia das suas azas, está contente do
espaço, e da abundancia que tem, não sente o captiveiro... e, se, por
descuido, deixaes aberta a porta da gaiola, a boa da rolinha mette
primeiro a cabeça ao ar livre, sacode as pennas das azas virgens,
desfere um vôo rasgado, sobe, sobe, e adeus!

«Era o instincto!» dizia um philosopho pasmado para uma ave que lhe
fugira. Pelo instincto é que eu, philosopho de toda a passarinhada,
explico tambem, a respeito de mulheres, este bater de azas em que ellas
se vão do ninho para as altas regiões dos açores e dos milhafres, onde,
quando o diabo quer, dão grande banquete ás aves de rapina que são
tantas como os nossos peccados, por esses céos d'anil, onde os poetas
imaginam colonias de amantes felizes.

Isto é hoje, que só me falta conhecer a vigesima-quarta variedade que
Deus formou d'uma costella homogénea:--mas, ha vinte e oito annos,
quando Leocadia me mostrou a carta escripta a Vasco, olhei-a com ar
palerma, e disse-lhe:

«V. exc.ª, quando escreveu esta carta, comprehendia bem toda a extensão
da loucura que fazia, entregando-se assim á descripção d'outra criança,
sem casa, sem vida, sem habilitações para o trabalho?

--Então o senhor não sabe o que é uma paixão!...

«É que eu cuidava, minha querida irmã...

Entre-parenthesis: Um destes dias, um meu amigo, contando-lhe eu
seriamente a intimidade limpa e immaculada que contrahira com duas ou
tres pessoas ás quaes eu chamava irmãs, disse-me, sorrindo, que tinha
dezesete irmãs assim. O meu amigo pertence á geração nova, em que estas
fraternidades não tem provado bem, porque, ordinariamente, os
parentescos complicam-se de modo que não é facil saber-se quando se é
tio, ou outra cousa ainda mais respeitavel. O mundo está virado! No meu
tempo amava a gente, por exemplo, uma destas almas que hoje se chamam
_não-comprehendidas_ na terra, ou porque entre ellas e outras de eleição
paternal e intervenção ecclesiastica não havia analogia de gostos, ou
porque as posições sociaes não permittiam um enlace, ou, finalmente,
porque era preciso fallar no amor d'um terceiro que devia lentamente
desalojar-se--em qualquer dos casos essas pessoas inscreviam-se no
catalogo dos parentescos honestos, e ficavam irmãos toda a vida. Eu hoje
conheço netos das minhas irmãs de então, e glorio-me de ser tio-avô de
creanças muito gordinhas, que puxam ás avós as rêpas escassas das
tranças d'ebano e ouro dos meus bons tempos...

As _irmãs_ de hoje...--diz muito bem o meu amigo--arranjam-se ás
dezesete; e a maior prova de ser o titulo já ridiculo é que a sociedade
não as reputa incestuosas...

As _não-comprehendidas_ contam em estylo lamuriante o vasio das suas
almas a confidentes denominados _irmãos_, em momentos de expansiva
familiaridade. O typo que sonharam, a imagem que as anceia, está fóra
d'este mundo, respira o ar balsamico dos jardins celestiaes, é um anjo.
Ora, acontece quasi sempre uma cousa muito racional: o _irmão_
apresenta-se com procuração bastante do _anjo_, com poderes
_in-solidum_. Passado algum tempo, esquece-se o constituinte, e fica o
procurador escandalosamente encartado no usu-fructo do dominio e acção
d'uma propriedade, que (aqui entre nós) os anjos não quereriam, nem eu,
só pela decima, os cinco por cento, e os mais impostos annexos ao
merinaque.

A gravidade d'estas reflexões veio para prevenir os leitores mal
intencionados contra o abuso que por ahi se faz d'um parentesco de
circumstancia. Irmão, mais que irmão, fui eu de Leocadia. Esse titulo,
que ella me deu, conservo-o como um legitimo vinculo, mais que legitimo,
talvez sanctificado pela angustia de ambos... e doer-me-hia que o
sorriso parvo ou mau da suspeita correspondesse á melancolica saudade
com que vou recordando palavras da minha pobre irmã.

Atem agora o fio partido do dialogo.

«É que eu cuidava, minha querida irmã--disse eu--que o amor na sua
idade, e com a sua innocencia, ignorava certos desenlaces que elle tem
humanos de mais, rasteiramente humanos...

--Que quer dizer?

«Pensava eu que uma menina, na sua posição recatada, não seria capaz de
conceber o pensamento da fuga da casa paterna! Vasco propozera-lhe
alguma vez esse acto?

--Nunca, e eu mesma tive esta idéa quando me vi presa á vontade de meu
pai, e fraca, miseravelmente fraca para resistir-lhe. Se bem me recordo,
estava eu chorando no meu quarto, quando de repente me lembrei da fuga.
Não senti aquecer-se-me o rosto de pêjo, porque me pareceu natural a
acção de fugir á desgraça. O pesar da desobediencia, esse sim,
mortificou-me; porém, entre o remorso e a paixão, a lucta decidiu-se
pelo amor.

«E a idéa do seu descredito?

--Eu sabia lá então o que era descredito! O meu irmão não sabe o que se
passa no coração puro. Terá experimentado muito; mas deixe-me dizer-lhe
que as suas analyses tem sido feitas sobre corações muito
experimentados. Uma mulher receia o descredito só depois que sabe a
maneira como elle se alcança. Eu não sabia nada, meu amigo. Se me
dissessem que eu corria risco de ser coberta de infamia por fugir para
Vasco, rir-me-hia, ou pasmaria do absurdo. Se me dissessem que Vasco era
capaz de abrir-me os olhos para eu vêr o abysmo em que me lançára
cégamente, quem m'o dissesse tomal-o-hia por um demonio mau que zombava
da minha ternura, e injuriava o meu Vasco. Uma rapariga innocente guarda
tão santas no coração as idéas do bem, que não póde crêr-se victima
jámais do homem a quem se entrega com amor, com mil vontades de o fazer
feliz, com as veias abertas para lhe dar o seu sangue, contente da sua
pureza para o galardoar com ella, anciosa por sacrificar-lhe a vida, e
ficar ainda na obrigação de maiores sacrificios. O meu descredito, diz o
senhor! As que fallam no seu descredito, se tem de rebater a instancia
de sacrificios, essas são as que querem estar bem com a sociedade,
conhecem-na, fazem parte d'ella, e lançaram já muitas favas pretas
contra o credito de algumas infelizes, cujo amor as levou á abnegação
dos diplomas de virtude, que a sociedade dá ás que sabem embuçar-se no
manto da hypocrisia, ou mascarar o escandalo de qualquer modo.

Eu estava de bocca aberta. Gostava tanto de ouvil-a, que não a
interrompi. Discorreu meia hora boa neste assumpto, e disse maravilhas,
que eu tive o descôco sandeu de alcunhar de romanticismo. Então não se
dizia romanticismo, mas ás mulheres, que fallavam muito e bem,
chamavam-lhes os alvares, pais dos que hoje vegetam, _pispontadas_, ou
_pronosticas_.

Não obstante, que sentir tão fino era o desta senhora! Que verdades tão
axiomaticas a dôr, a desgraça, a reclusão, o entranhar-se em si propria,
lhe tinha ensinado! Se esta mulher traspassasse em lagrimas ao papel o
livro intimo, que o dedo do infortunio lhe folheára no coração, qual das
minhas leitoras não faria esse livro o seu director espiritual, nestes
calamitosos tempos em que não basta a alma que Deus lhe deu para
luctarem com a materia que as traz abarbadas, e fóra do seu espiritual
elemento!

Cá estou outra vez encanhotado pela bruxaria das reflexões
philosophicas! Resignem-se christãmente, leitores sensiveis. Não posso
ser superior a este bacharellar de homem entendido na sciencia das almas
dos outros, porque, lisamente o digo, da minha não entendo nada, e já
agora morrerei com esta sphinge cá dentro não sei aonde.

Vinha eu, pois, contando que Vasco lêra a carta de Leocadia tantas vezes
quantas o leitor quizer, que eu não sei quantas foram, nem elle. É certo
que as primeiras leituras fêl-as com os olhos scintillantes de alegria;
e as ultimas com uma fonte de lagrimas a cahir-lhe no papel.

Quer-se a razão da alegria e a das lagrimas. Pois sim.

Vasco dera-se como perdida a mulher, o amor, a vida da sua alma. Sahira
perturbado da entrevista com o coronel. De lá a sua casa lembrou-lhe o
suicidio, o meio mais prompto de sacudir a farpa do coração. Convencido
de que era irremediavel o perdêl-a, abriu a carta, leu-a, encontrou o
remedio, alvoroçou-se, teve febre, delirou de felicidade, creu-se doudo:
eis-aqui a alegria, a radiação da alma no semblante, o volver á
existencia, o apegar-se á prancha de salvação segura, quando a garganta
da morte estava aberta.

Depois, a razão, essa vibora idolatrada, cravou-lhe de subito o dente
mortal no coração, o sangue refluiu-lhe todo alli, á purpura do jubilo
succedeu o pallor do desalento, e o chammejar do enthusiasmo apagaram-no
as lagrimas.

Que lhe disse, pois, a razão, essa divindade tão cantada, essa mestra da
vida, essa filha do céo, que cahiu de lá á terra pela mesma razão que
Lucifer cahiu? A razão disse-lhe que Leocadia, entregue á sua
providencia, não teria um telhado que a cobrisse, porque em casa de
Vasco dominava a razão da virtude que não acceitaria uma filha familia
fugitiva, se ella não tinha um patrimonio, que absolvesse um filho
segundo de tamanha immoralidade. Disse-lhe mais a razão que elle filho
segundo, sem arte nem officio, nem ao menos poderia repartir com a pobre
menina um prato de feijões adquiridos pelo seu trabalho. Disse-lhe mais
a consoladora razão que Leocadia fugitiva seria perseguida por seu pai,
conspurcada pela opinião publica, e fechada na cella d'um convento como
leprosa de que todas fugiriam receosas de se contaminarem. Foi o que lhe
disse a razão do mundo, formada pelo mundo, adaptada ás conveniencias
vigentes da sociedade, austera para uns, tolerante para outros,
draconiana para os desvalidos, venal para os poderosos.

Vasco ergueu-se do lethargo em que o deixára a briga das duas sensações
contrarias.

Tomou a penna, e escreveu as seguintes linhas:

«Deus não quer a nossa união, Leocadia. Perdeu-se tudo. Isto é tão atroz
que parece impossivel. É verdade, Leocadia, é verdade que se abriu hoje
a minha sepultura. Esperava morrer cêdo, mas tão depressa não queria.
Vivia de esperanças, e agora é tudo negro diante de mim. Venha a morte,
e seja já. Não sei o que te digo. Estou sem alma, nem forças. O que me
dizes é impossivel. Eu não tenho um bocado de pão certo para cada dia.
Contava com o meu trabalho no futuro; mas agora desfalleci de braço e de
animo. Dous desgraçados é muito. Ninguem se compadeceria de nós.
Perseguir-nos-hiam todos. Casa, Leocadia, casa com esse homem, mas
espera alguns dias; eu quero morrer, e hei-de morrer antes. Faz-me este
beneficio. Deixa-me dizer-te adeus, com a certeza de que me pódes chorar
sósinha sem testemunhas, sem um... esposo que te diga: «escrava do meu
ouro, porque choras?» Leocadia, eu previ sempre a desgraça, mas não
assim. Isto é muito; e para estas agonias é que a morte sahiu das mãos
de Deus. O Senhor te faça feliz, e a minha memoria te seja sempre
saudosa e compassiva.

                                                             «_Vasco._»

Acabára elle de fechar a carta, e sentiu um esvaimento de cabeça.
Escondeu a face entre as mãos, porque o voltear dos objectos lhe causava
a agonia do vomito. Um frouxo de tosse lhe sahiu do peito com dôr aguda
e calafrios. Quiz respirar, e espirrou dos labios uma lufada de sangue
que salpicou a carta. Lançou-se com impeto ao ar da janella, e viu na
rua o aguadeiro que esperava a resposta. Desceu as escadas encostado ao
corrimão, entregou a carta, quiz retroceder, e não pôde. Sentou-se n'um
degrau, susteve o sangue no lenço, encostou a face á cantaria, e
murmurou:

«Se Deus quizesse que fosse já?...»

--O que?!--perguntou uma voz perto d'elle.

Era a mãi, que descia para sahir.

--O que, meu filho?!--repetiu ella.

«A morte.»

A sobresaltada senhora tomou-o nos braços, soltando vozes de afflicção.
Vasco pediu-lhe silencio, subiu com a mãi esforçando-se por occultar o
sangue, entraram ambos no quarto d'ella; e, duas horas depois, quem os
espreitasse veria o filho abraçado aos joelhos da mãi, exclamando:

«Salvou-me!

Salvou-o?! como?!

Esperem.


XI.

Saiba-se o que tão extraordinariamente fizera respirar Vasco daquelle
aperto d'alma, que não podia desafogar-se, sem que a mão bemdita de mãi
lhe alargasse as angustias que a comprimiam.

Entraram ambos, como disse, no quarto d'ella. Vasco, antes de responder
ás perguntas amoraveis de sua mãi, encostou-lhe, como criança amimada, a
cabeça ao hombro, e soluçou, chorando copiosamente.

«Que é isto, meu Vasco?!--instou a impaciente senhora--Bem me parecia a
mim que a tua melancolia vaticinava desgraça!... Falla filho...

Neste momento, Vasco levou o lenço aos labios para esconder o sangue que
espirrava da tosse suffocante. A mãi, vendo o lenço tinto de sangue
fresco, soltou um grito.

«Este sangue é teu, meu pobre filho?! exclamou ella.

--Isso que importa, minha mãi?...--disse Vasco, sentindo diminuir a
violencia da sua dôr, ao passo que o rosto da mãi dava signaes de
afflicção e pasmo.

«Que importa!?...--tornou ella, juntando as lagrimas ao sangue de seu
filho, e cahindo quasi desanimada n'uma cadeira--Importa a minha morte,
Vasco!...

--Mas eu sou feliz, morrendo. Tenha pena de mim, se eu continuar a
viver. Deus acceitará na sua presença um filho que nunca desgostou sua
mãi, nem aos de fóra causou damno sabendo que o causava.

«Jesus!--interrompeu a mãi arrependida da sua exaltação--estás-me
matando com a serenidade das tuas palavras! E porque has-de tu morrer,
meu pobre menino? Cuidas que não tem cura lançar sangue? Tem, meu filho,
tem. Teu pai viveu assim trinta annos, e tuas manas, que Deus levou, se
tomassem os meus conselhos, se não fossem as imprudencias dos bailes,
recuperavam a saude... Choras por te vêres tão cedo ás portas da morte?
Tens razão, meu querido filho; mas não te assustes; verás que o sangue
cessa; vamos aos ares do campo; o que tu precisas é descanço. Não leias
mais, pelo amor de Deus; não recebas o ar fresco da noite; não tornes a
comer fóra d'horas, nem andes a passear no teu quarto até ser dia.
Promettes isto tudo á tua afflicta mãi?

--Sim, minha senhora, prometto tudo.

«Com que desalento me respondes, Vasco. Esse teu sorriso é muito
triste... antes quero vêr-te chorar.

--E eu tambem queria chorar... tambem!...

«Tu escondes-me o teu coração, Vasco. Tive agora um raio de luz...
Dizes-me tudo, filho?

--Tudo... tudo, minha santa amiga, ainda que m'o não pergunte.

«A mim disseram-me que a filha do coronal Gervasio te trazia enganado...

--Por quem é, minha mãi!--atalhou elle com as faces instantemente
abrazadas--Leocadia é incapaz de me trazer enganado! Quem tal lhe disse,
calumniou-a cruelmente...

«Pois antes assim, meu filho: mas sempre é certo que vos amaveis?

--Sim... é desgraçadamente certo que nos amavamos.

«Não te afflijas, Vasco... Eu hei-de dizer o que ouvi. Disseram-me que
ella estava destinada para um filho da madrasta.

--Destinaram-na, minha mãi... Que culpa tem a infeliz de que vendessem o
seu coração? Ella não sabia que estava vendida. Cuidou que podia
amar-me, e por fim...

«Diz, Vasco... prohibiram-na de fallar-te?

--Vai ser casada, disseram-lh'o hontem...

«E ella acceita?...

--Se acceita!... a morte das mãos de Deus, como eu lh'a peço. Ha-de ser
entregue ao marido como um corpo sem alma, um cadaver... O coração é
meu, morre commigo... Vou bem pago de tudo que soffri e hei-de
soffrer... que, já agora, pouco será; mas o que tenho curtido calado, e
docil á desgraça, foi muito, minha querida mãi, só Deus sabe o que foi.
A minha Leocadia morre... e então verá se ella não era digna d'este amor
que me mata.

«Jesus! tanto fallar de morte, filho! Fallemos da vida; procuremos
remedio, que o ha-de haver.

--Nenhum.

«Pois nenhum?! ella já está casada?!

--Não está; mas o mesmo é estar casada, ou sêl-o ámanhã ou depois.

«Olha, filho, lembra-me ir fallar ao coronel...

--Sou pobre, minha mãi... Poderá v. exc.ª dizer ao coronel que me dá um
bom patrimonio?

«Não, infelizmente, não; aqui é tudo d'um só, tu bem o sabes... essa dôr
cá a tenho como um espinho cravado no coração. O meu melhor filho, o
anjo que nunca me deu um pesar, não tem nada, e nada póde haver do amor
de sua mãi!... Que barbaras leis, justo céo! O que os homens fazem! De
todos os filhos que rodeam, á hora da morte, o leito de sua mãi, só um é
rico, os outros... ficam á mercê do seu proprio trabalho, ou das sopas
do irmão, que é sempre o mais ingrato...

Vasco obstou á continuação dos soluços que embargavam estas palavras,
com meiguice, tirando-lhe as mãos da face.

«Isso agora a que vem! Não chore, que me faz mal. Eu não desejo a
riqueza de meu irmão mais velho; queria alcançar uma mediania pelo meu
trabalho, porque bem pouco me bastava a mim, e a ella, e a minha mãi, se
Deus nos ajuntasse todos... Agora, nada desejo, porque sou de mais
n'este mundo; houve uma força superior que destruiu a minha felicidade;
não acharei outra... que faço eu agora aqui?!...

--Espera, filho... se eu dissesse ao coronel...

«O que, minha mãi?!

--Que sua filha viria para nossa casa como tua esposa...

«Está a querer tirar á força do seu coração esperanças para me dar...
não estando ellas lá, minha mãi! É irremediavel... Não nos deixemos
enganar, porque a realidade negra está perto de nós. É tarde para pensar
nos meios de mudar a vontade do pai de Leocadia. O homem rico a quem a
deram, já está com ella. Chegou hoje, e ella ainda hontem soube que não
era senhora da sua alma. O coronel chamou-me, e disse-me: «faça que
minha filha me obedeça; ajude-me a encaminhal-a ao destino que lhe dei;
lembre-se que eu me sacrifiquei a uma mulher aborrecida, para assegurar
a minha filha um futuro, casando-a com o meu enteado.»

«E tu, filho...

--Recebi o raio na cabeça, e sahi com o receio de cahir morto aos pés do
homem que confiava a sorte de sua filha á minha generosidade. Isto
parece-me um sonho... Quando eu me convencer completamente que perdi a
minha Leocadia, morro n'esse instante. E que espero eu agora, meu Deus!

A mãi de Vasco, com a barba apoiada na palma da mão direita, contemplava
seu filho a olhos enxutos. Calara-se elle; e longo tempo silenciosa, e
como em spasmo, ainda ella o contemplava. Por fim, ergue-se, vai com
impeto ao pé de Vasco, aperta-lhe a mão com força, e diz:

«Acredita, filho, o que te diz uma mulher que conhece o coração das
outras: Leocadia não é digna d'esse amor; Leocadia não te ama.

Vasco ergueu-se d'um pulo, vibrou ainda as primeiras syllabas d'uma
palavra dura, levou a mão á fronte que revia um suor subito, e disse com
pausa e brandura:

--Minha mãi, peça perdão a Deus de ter injuriado uma martyr.

E as lagrimas rebentaram ao mesmo tempo dos olhos de ambos. A
solemnidade triste com que elle se queixára da injusta opinião, feriu o
seio da mãi.

«Pois sim, meu filho, eu peço perdão a Deus de ter calumniado a tua
amiga; e pedir-lhe-hei tambem que me tire d'este mundo se não posso
valer-vos a ambos, meus queridos filhos.

Vasco, arrebatado pela compunção d'estas ultimas palavras, beijou com
fervor a mão da lagrimosa senhora, que o tomou para o seio, e o beijou
na face.

«Nosso Senhor, e a Virgem Santissima--dizia ella, quasi ao ouvido de
Vasco, como quem acarinha uma criança--hão-de dar-te uma esposa que seja
o retrato das virtudes de Leocadia, meu filho. São poucos n'este mundo
os corações bons; mas a Providencia faz que esses corações se encontrem.
Ha-de vir um procurar-te, Vasco; e, quando elle vier, teremos ambos
prevenido tudo, para que tu possas ter uma esposa sem dote. Eu começo
desde hoje a pedir para ti um emprego digno do teu nascimento.
Empenharei todas as minhas relações, todos os nossos parentes, com a
regente, para tu seres bem collocado, sim, meu filho?

--Não, minha senhora, não. V. exc.ª disse-me que iriamos para o campo;
vamos quanto antes; parece-me que hei-de acabar lá mais tranquillamente.
Veja quanto eu estou sendo infeliz! A unica esperança que me afaga, é a
idéa de morrer n'um leito d'onde veja arvores, e céo, e flores. O tempo
agora está bello para acabar assim...

«Oh filho, que me estás despedaçando o coração...

--Pois não fallemos em morrer... Olhe, mãi, diz-me uma cousa?

«Que é, Vasco?

--Porque duvidava ha pouco do amor de Leocadia? Que disse eu, ou que fez
ella que désse causa á injusta suspeita de minha mãi?

«Eu respondo, meu filho. Parecia-me que ella recebeu com frieza a
noticia d'ir ser casada com um homem que não amava. O que tu estás
soffrendo, é o que ella deveria soffrer, depois d'essa cruel violencia
que o pai lhe fez. A paixão costuma mostrar-se d'outro modo, delira, é
capaz de mil desatinos, em quanto dura a surpreza que Leocadia devia de
receber. E que fez ella, meu filho? Que te disse ella, depois que o pai
lhe disse: «não pódes ser esposa de Vasco, porque Vasco é pobre;
sel-o-has d'um outro homem, que eu te destinei, sem consultar a tua
vontade.» Que fez ella?

--O que fez ella?--respondeu Vasco, desafogando sob o peso das
accusações, que a mãi queria alliviar com a entonação branda da voz--O
que fez ella?... Minha mãi... o que faria a senhora nas circumstancias
de Leocadia?

«Se amasse com a paixão ardente com que amei teu pai... das duas uma:
morreria fulminada logo alli, ou...

--Diga, diga, minha mãi, que eu preciso avaliar pelo seu coração o amor
de Leocadia.

«Direi, Vasco, direi o que mãi nenhuma deve dizer; mas o que eu faria,
não morrendo logo alli, meu filho, era... desobedecer á tyrannia, fugir
á violencia d'uma desgraça perpetua, seguir o destino prospero ou
desgraçado do homem que me merecesse o sacrificio da minha reputação, da
minha vida, de tudo!»

A mãi de Vasco teria quarenta e cinco annos. A luz dos trinta
irradiou-se-lhe no semblante. Dir-se-hia que o coração, rejuvenescido
das forças que a viuvez e os dissabores domesticos alquebraram, revivera
alguns minutos, apressando o giro do sangue que lá estivera estanque por
falta d'estimulos. Vasco, fitava maravilhado a animação d'aquelle rosto,
onde nunca vira o viço da adolescencia, porque, desde menino, vira
n'elle sempre lagrimas.

«Porque a mulher que ama--continuou ella, erguendo intencionalmente os
olhos para o retracto de seu marido--porque a mulher que ama como eu
amei teu pai, Vasco, faz o que fez tua mãi. Foge do convento onde a
aferrolharam, e vai sósinha através cincoenta leguas procurar um militar
que nesse tempo apenas cingia uma banda de alferes, e não tinha mais
recursos para si e para mim que o seu soldo. Eu era filha unica, devia
ser uma rica herdeira; e, comtudo, soffri necessidades durante dez
annos. E sabes tu como eu acceitava das mãos de Deus a minha sorte?
Cheia de alegria, seguindo teu pai na bagagem do exercito, pela França,
pela Russia, com teu irmão mais velho deitado n'um berço de vêrga.
Quando a força da lei me fez succeder na minha legitima, dir-te-hei,
filho, que não senti melhorar a minha felicidade intima. Não era o
dinheiro que a fazia, não; maior contentamento tinha quando via as
feridas de teu pai remuneradas de patente em patente, até ser eu que,
por minhas proprias mãos, lhe puz as dragonas de general, tendo elle
apenas trinta e nove annos. Alli o tens a ouvir-nos, meu filho. Parece
que lhe estou vendo ainda os olhos rasos de lagrimas de felicidade com
que elle tantas vezes me contemplava. Repara filho...

Trémula da commoção, que devia terminar pelo chorar angustioso da
saudade, a arrebatada senhora conduziu seu filho pela mão ao pé do
retracto.

Tinha melancolica bellesa aquelle grupo! Ella, apontando para o
retracto, com o braço erguido e convulsivo, dizia:

«Aquelle homem deve estar na presença de Deus. Foi para todo o mundo o
que foi para mim. As suas vistas devem estar postas no teu destino,
Vasco. Entrega a tua sorte á sua protecção; pede-lhe, commigo, que
implore ao Senhor o descanço do teu espirito, e o esquecimento da mulher
que não é para ti o que tua mãi foi para elle.

--Não posso fazer similhante supplica...--interrompeu Vasco.

«Não podes, filho? por que não podes?

--Rogar assim era mentir a Deus. Leocadia é para mim o que minha mãi foi
para o homem que a fez desobedecer á vontade de seu pai.

E, tirando do bolso a carta de Leocadia, apresentou-a aberta a sua mãi.

Subiu de novo á face da viuva o ardor que as lagrimas começavam a
desmaiar. Leu e re-leu a carta; dobrou-a vagarosamente; fitou um olhar
supplicante no retracto, declinou-o para um crucifixo; permaneceu
silenciosa em oração, talvez; entregou a carta a Vasco, e disse-lhe com
energia:

«Pois diz-lhe que venha... Vai buscar tua esposa para o quarto de tua
mãi, vai, meu filho. É tua mãi que t'o diz.

Vasco, todo tremulo, só immovel nos olhos, estendia os braços para ella
como se precisasse abraçal-a, para convencer-se de que não era
phantastica a visão de sua mãi.

Neste momento, batem á porta do quarto; a mãi de Vasco recusa abrir, e
dizem-lhe que está alli uma carta que deve ser immediatamente entregue
ao menino.

É ella que recebe a carta, e a entrega ao filho: Vasco reconhece o
sinete, e diz a sua mãi que a leia.

Continha isto:

«Matas-me, Vasco. Se me não tiras d'aqui esta noite, amanhã suicido-me.
És a causa da minha morte. Pelas chagas de Christo, diz-me que me salvas
deste inferno. Responde-me já, já.

                                                            _Leocadia._»

«Eu vou responder, meu filho--disse a viuva, correndo á escrivaninha.
Vasco estava arquejante com a fronte reclinada sobre o travesseiro de
sua mãi.

Ella voltou, e leu o seguinte bilhete:

«Minha filha. Hoje ás 11 horas da noite está uma sege defronte do
convento de Sant'Anna, a cincoenta passos da sua porta. Nessa sege
espera-a a mãi de Vasco, e sua mãi extremosa

                                               _Maria Maldonado._»

Foi então que Vasco se lançou aos pés de sua mãi, exclamando:

«Salvou-me!


XII.

Leocadia narrou-me assim o proseguimento da sua historia:

«Quando vi uma letra desconhecida, em resposta ao meu bilhete, fiquei
passada de mêdo, e parece que a luz dos olhos se me toldára. Custou-me a
lêr o nome da assignatura, que maior susto me incutiu. «A mãi de Vasco
roubou-me a minha carta» foi logo a idéa que me assaltou. Refiz-me de
coragem para lêr uma reprehensão... e que espanto, que alegria a minha
ao passo que devorava aquellas palavras queridas! As lagrimas cahiam no
papel duas a duas. Eu estava louca de prazer. Ajoelhei, agradecendo ao
céo a inspiração que mandára á mãi do meu Vasco. A fuga, protegida por
uma senhora de tanta virtude, parecia-me um passo digno de louvor.
Congratulei-me até da minha idéa, e suppuz que o espirito de minha mãi,
a quem eu pedira remedio, m'a tivesse suggerido da sua bemaventurança.

«Eu não podia esconder o meu contentamento. Meu pai, que me deixára a
chorar, voltando, reparou na repentina mudança, porque os meus olhos
inquietos e ardentes seguiam a bella imagem da vida, que voejava diante
de mim, chamando-me para um futuro que os meus labios abençoavam com um
sorriso.

«Minha madrasta, agourando o que mais lhe convinha desta alegria,
pensava que duas ou tres palavras que seu filho me dirigira, ao jantar,
operaram estranha mudança em mim.

«Francisco de Proença enganado por sua mãi, e mais ainda pelo seu
orgulho, julgou que o milagre da mudança se devia a essas palavras
aborrecidas que me dera. Como quizesse convencer-se e convencer sua mãi
e convencer-me a mim do poder fascinante da sua lingua, fallou muito,
penso que contou muitas anedoctas de estudantes de Coimbra, e com tal
affectação o fazia que me causava tedio, posto que eu, apenas por
cortezia, dissimulava escutal-o. Eu estava d'alma e coração embebecida
na minha fuga, e não tirava os olhos da assustada agulha do relogio.

«Meu pai disse algumas vozes baixas a minha madrasta, e entre estas ouvi
proferir a palavra «theatro.» Foi uma nuvem negra que escureceu toda a
alegria da minha alma. Notou-se em mim a repentina transfiguração; e
Francisco de Proença, que estava conversando commigo, perguntou-me se me
sentia incommodada, chamando a attenção de meu pai. Expliquei o
descóramento por uma vertigem costumada, e pedi licença para entrar no
meu quarto.

«Ahi, d'onde pouco antes sahira douda de jubilo, entrei afflictissima. A
ida ao theatro vinha baldar os nossos planos. Estava a anoitecer e eu
não tinha por quem avisar Vasco. Os criados de casa tinham a confiança
de meu pai, e as criadas a da minha madrasta. Entre estas, porém, havia
uma que se mostrava minha amiga. Foi essa a que mandaram para ao pé de
mim, logo que minha madrasta me deixou deitada n'um canapé
recommendando-me, logo que o incommodo me passasse, me fosse vestindo
para irmos a S. Carlos. A minha angustia não me deixou reflectir. Eu
disse á criada que estava muito attribulada, e só ella podia valer-me.
Pedia-lhe que chegasse ella n'um instante a levar-me um escripto a D.
Maria Maldonado, sem que ninguem de casa o soubesse. A criada
respondeu-me que sim sem hesitação, e viu-me tirar d'entre os colchões
uma escrivaninha. Escrevi algumas linhas apressadas, e ella sahiu,
dando-me um beijo de Judas, quando eu, lavada em lagrimas de gratidão,
lhe dava um abraço de infeliz soccorrida em extremos de afflicção.

«Principiei a vestir-me, applicando o ouvido aos passos da criada, que
eu esperava anciosamente. Passou-se uma hora, e ella sem chegar. Sahi do
meu quarto, perguntei a outra criada por ella: disse-me que estava na
cama com uma dôr de cabeça.

«N'isto appareceu meu pai, e disse-me com ar mais grave que o seu
costume:

--Menina, vamos, que está sua madrasta já na sege.

«Eu pretextei uma falta para entrar no meu quarto. O que eu queria era
de fugida perguntar á criada se entregára o bilhete; meu pai, porém,
acompanhou-me até ao meu quarto, viu-me pegar d'um lenço, e não me
deixou sosinha um instante até me deixar na sege, onde depois entrou
Francisco de Proença.

«Meu pai disse que iria a pé, e só mais tarde, porque tinha de fazer uma
inspecção ao quartel.

«Que anciedade a minha até entrar no camarote! De lá procurei na platea
Vasco. Se elle estivesse, ficava eu tranquilla: era signal de ter
recebido o meu bilhete. Não estava, nem entrou jámais! Jesus! como me
era custoso esconder as lagrimas e o alvorôço! Que horas de inferno
aquellas! Logo que entrou em minha alma a suspeita de ter sido
atraiçoada, tive a tentação de sahir do camarote, sob qualquer pretexto,
e fugir.

«Meu pai entrou ás onze horas e meia. Estava a findar o espectaculo.
Procurei ver-lhe a alma nos olhos. Pareceu-me socegado, e sem reserva.

«Fomos para casa. Vi a pé todas as criadas, menos a portadora do
bilhete. Reviveram as minhas suspeitas. Entendi que a infame não tinha
animo de confrontar-se commigo, depois da traição.

«Procurei entre os colchões a escrivaninha. Lá estava tudo como eu o
deixára, e ao pé os massos das cartas de Vasco.

«Não me deitei. Estive toda a noite accumulando conjecturas, qual
d'ellas mais desgraçada. Cheguei a abrir subtilmente a porta do meu
quarto, para ir á cama da criada. Fui palpando ao longo d'um corredor;
mas a porta que determinava este corredor, e nunca se fechara,
encontrei-a fechada! Então, sim, comprehendi que meu pai soubera tudo; e
d'ahi em diante estudei a maneira de fugir de dia. A ancia facilitava-me
o passo. Resolvi sahir disfarçada com um capote de criada, até encontrar
um rapaz que me ensinasse as ruas. N'esta esperança desafogou o meu
coração. Esperei o dia; e, logo que senti passos, pedi que me abrissem a
porta do corredor. Respondeu-me um criado que ia procurar a chave; e
voltou, dizendo que a devia ter o snr. coronel porque ninguem dava
noticia d'ella.

«Senti-me capaz de tudo. Tive odio a meu pai nesse momento, odio foi
esse que o tempo não conseguiu desvanecer em minha alma. É que desde
esse dia tenho chorado sempre, e o meu odio nutre-se de lagrimas...
Senti até o desejo de matar a criada, que me atraiçoara. Desconhecia-me!
Vi-me casualmente a um espelho, e os meus olhos tinham um fulgor
sinistro, os meus labios pareciam crestados pelas palavras de maldição
que passaram n'elles contra o meu tyranno.

«Abri a janella do meu quarto, com a intenção de fugir por ella.
Morreria, se o tentasse. Recuei diante da idéa da morte sem justificação
aos olhos de Vasco e de sua mãi, que me chamara _sua filha querida_.
Lancei-me aos pés da Virgem, que fôra de minha mãi, e ergui-me sem
esperança, sem o allivio que Deus concede aos que supplicam a sua
misericordia.

«Eram nove horas da manhã quando se abriu a porta, e entrou meu pai.

«Não escondi as lagrimas, e elle, fingiu que as não via.

--Leocadia, disse elle, vem ahi o almoço. Depois de almoçar, veste-te
que vamos passar o dia a uma quinta de Campolide.

«Meu pai!...» murmurei eu.

--Que queres tu Leocadia?--disse elle com um ar de fria seriedade que me
gelou as palavras, e sahiu.

«Vesti-me, fazendo sahir o taboleiro do almoço. Minha madrasta entrou no
meu quarto, com affectado sobresalto, perguntando-me por que não
almoçava. Disse que não podia, e ella retirou-se, passando-me a mão pela
face, e dizendo com abominavel meiguice: juizinho, minha filha,
juizinho.

«Indignou-me este carinho hypocrita como um insulto. Perguntei-lhe com
altivez o que queria dizer a sua recommendação, e ella, carregando o
sobr'olho, replicou: A culpa tem quem a quer fazer feliz, sua pobre
soberba.

«A raiva não me deixou articular senão sons inintelligiveis. Minha
madrasta sahira com impeto, resmungando palavras, que eu não entendi.

«Vieram dizer-me que esperava a sege. Sahi do meu quarto com a tenção de
procurar de relance a criada; mas, ao cabo do corredor, estava meu pai,
lançando-me um olhar severo.

«Entrei n'uma sege com minha madrasta. Meu pai entrou n'outra com
Proença.

«Atravessamos Lisboa sem trocarmos uma palavra.

«Apeamos no portão de uma quinta. Proença offereceu-me o braço, e
perguntou-me que soffrimento era o meu que se denunciava no rubor dos
olhos. Eu ia responder-lhe, com franqueza cruel, contando-lhe a minha
vida em relação a elle, quando meu pai nos impoz silencio com a sua
presença.

«Passeamos uma hora entre os arvoredos da quinta. Ahi não lhe sei dizer
que desesperada saudade me golpeava a pedaços o coração! No ruido da
folhagem parecia-me ouvir o chorar gemente do meu Vasco. O fallar de
Proença, e as risadas estupidas de minha madrasta, davam aos meus
ouvidos o som infernal d'uma ironia de demonios á minha angustia.

«Queria-me esconder sosinha por aquellas murtas; mas a comitiva
amaldiçoada seguia-me constantemente, e as attenções delicadas de
Proença provocavam-me sempre uma visagem de desdem.

«Com elle só quizera eu estar para dizer-lhe que o aborrecia; porém, não
nos deixavam juntos, porque meu pai receava isso mesmo.

«Estive um instante sosinha á beira d'um tanque. Meu pai veio ahi
encontrar-me a chorar. Sentou-se ao meu lado, e disse-me affavelmente,
tomando-me a mão:

--Leocadia, conspiraste contra teu pai. Cuspiste com feia ingratidão na
face do amigo que tudo te sacrificou, e até a sua liberdade vendeu a
preço do teu bem-estar. Antes de hontem, fallei-te como amigo,
esquecendo que era pai. Cuidei que tocára o teu coração, e abençoei o
céo por me ter dado um anjo d'amor onde eu poderia ter encontrado uma
filha rebelde. A tua docilidade encheu-me de orgulho e alegria, orgulho
por ter tal filha, e alegria por vêr tão galardoados os meus
sacrificios. Deixáste o meu espirito em paz com as suas tenções. Vi que
se realisava o bello futuro que eu planisara para ti, e tamanha
confiança puz na tua razão, que eu iria jurar que ninguem teve uma filha
mais virtuosa. Enganaste-me, Leocadia, ou eu me enganei com o teu
silencio. A vibora, que eu creára no seio, e acabava de afagar,
mordeu-me cruelmente, ferindo-me talvez de morte. Em quanto eu velava a
tua felicidade, tramavas tu a minha deshonra e a tua... Não me
interrompas... é teu pai que falla e te impõe silencio, Leocadia.
Premeditavas a tua fugida; trocavas teu pai, que conheces ha dezoito
annos, pelo homem que viste hontem; trocavas a tua invejada reputação
pela fama que segue á mulher que deixa no limiar da casa paterna
abandonada os diplomas da sua virtude. Estás já deshonrada por intenção,
filha; mas eu, desgraçado pai, serei ainda a tabua de salvação para ti.
Fiz a accusação. Agora vou condemnar-te: estás perdoada; beija a mão do
teu juiz, porque a justiça d'um pai tem em si o reflexo da misericordia
de Deus.

«Estas palavras tinham-me sob o peso d'uma fascinação dolorosissima.
Levei machinalmente aos labios a mão que se me offerecia, e banhei-a de
lagrimas. E eu não podia fallar, suffocada por soluços. Fazia-me
compaixão o olhar aguado de meu pai; porém... não saberei dizer que
terrivel qualidade de sentimentos luctavam em minha alma!... Entre a
cabeça e o coração havia uma barreira insuperavel. O coração regeitava o
amoroso perdão d'um pai despotico. A cabeça curvava-se diante da
magestade das suas cãs, e mais ainda dos seus queixumes. Quando, porém,
nesse instante, não senti extinguir-se o odio que me abrasára na manhã
desse dia, é porque elle seria eterno, é porque o meu amor a Vasco era
immenso, superior ao instincto filial, aos vinculos de sangue, e até á
minha propria reputação.

«Não respondi. Cruzei as mãos na face, e não sei que tempo meu pai
esperou a resposta. Elle tinha sahido de ao pé de mim, e voltou com um
ramo de flores.

«Aqui tens, minha filha--disse elle--o ramo de paz entre nós. Ha-de
haver dez annos que te dei um ramo neste mesmo sitio. Foi quando vieste
da provincia para entrares no collegio. Olha esse olmo que está atraz de
ti e lá verás uma inicial e uma data. Já então scismei aqui muito no teu
futuro. Prometti a mim mesmo trazer-te aqui, já senhora, para te mostrar
essa data, que marca uma hora das horas attribuladas que só um pai,
extremoso e pobre, sabe comprehender. Mal diria eu então que a minha
segunda visita a este logar seria solemnisada pelas lagrimas de ambos
nós! Repara que eu tambem choro, Leocadia.

«Ergui os olhos timidos para meu pai, e não pude conter-me. O
resentimento calou-se um instante. Abracei-o com devoção, e, nesse
instante... só o via a elle, só sentia por elle... a imagem de Vasco
fugira por não poder vencer as cãs d'um velho soldado chorando...»

..........................................................................

Neste momento, Leocadia suspendeu-se. A sua physionomia macilenta e
descarnada pendeu para o seio. Uma lagrima das que vem ferventes do
coração desceu-lhe na aridez da face, e sumiu-se logo como fio d'agua em
terreno afogueado.

E eu, que nem hoje ainda posso, com animo frio, contar uma vida que me
hão-de receber como chimera, chorava tambem.


XIII.

O coronel, com palavras meigas, animára a filha a perguntar-lhe se o pai
a violentava a casar com Francisco de Proença.

A isto respondeu o pai, mudando de tom:

«Eu, até aqui, empreguei todos os esforços da razão para convencer-te de
que a docilidade ao querer d'um pai, que deseja dar-te um futuro certo,
não é violencia, é juizo. Ora, se tu, minha filha, queres mudar o nome
ás cousas, a obrigação d'um pai é ouvir a sua vontade experiente, e
cerrar severamente os ouvidos ao querer irreflectido d'uma criança. Se
ha um Deus, que julgue as tolerancias d'um pai com os caprichos d'uma
filha, grandes contas eu daria, Leocadia, consentindo-te o alvedrio da
escolha entre Vasco da Cunha e Francisco de Proença. Não quero o remorso
de tamanha culpa, porque te amo muito, e muito preso a minha dignidade,
e a minha palavra. Proença sabe que é teu noivo. Fui eu que lh'o disse,
e basta.

«Sou honrado, minha filha; e, como não tenho outra herança a legar-te,
faço quanto posso por te deixar em posição de a receberes, e guardares,
como eu a recebi e guardei. Á mulher pobre é mais difficultoso manter-se
no decoro. Os appellidos de teu pai nada valerão, se os não fizeres
resplandecer nesse invejado posto de honra, que se esteia nos bens da
fortuna.

«A virtude pobre é uma virtude obscura, que, nestes tempos de egoismo e
pompa, se a não soffrea a rédea da religião, troca de bom grado os seus
fóros de honra ignorada pela ostentação brilhante do vicio. O que eu
tenho querido é rodear-te dos bens passageiros e miseraveis que o vulgo
venera para que as tuas virtudes deem assim nos olhos das pessoas que
não são vulgo.

«Eu não sou d'aquelles pais, que aconselham a desobediencia aos filhos
alheios, e lhes dão um logar na sua sege, cuidando que assim os poupam á
deshonra e ao crime... Maria Maldonado...

«Leocadia estremeceu, erguendo piedosamente os olhos para o coronel.
Nesse olhar, disse ella que implorára o respeito de seu pai ao amor
d'aquella mãi.

«Maria Maldonado--proseguiu elle entendendo o olhar da filha--parece que
renegou da virtude que foi até hontem a conselheira de todas as suas
acções. Praticou um feito que a desabona, embora seu filho, por ser
criança, tenha ido chorar no seio d'ella, como menino amuado pelas
travessuras dos irmãos.

«Leocadia, suffocada pelos soluços, apiedou o pai, que não teve animo de
continuar. Dando-lhe o braço, passeou com ella, e as poucas palavras que
lhe disse eram brandamente conciliadoras. Levou-a para longe da
madrasta, cuja aproximação a fizera empallidecer. Pediu-lhe que se
esforçasse por não denunciar a scena violenta que se dera entre elles.
Leocadia fez quanto podem humanas forças. Mentiu ás averiguações de
Proença com um sorriso, que tanto podia ser timidez, como ironia.
Gervasio foi prodigo de carinhos a sua filha durante aquelle dia, e
lançava um olhar de revez a sua mulher, quando esta, ferida de reflexo
no amor proprio de seu filho notava a frieza com que Leocadia lhe
acolhia os ditos arguciosos.

Agora me ensina tu, ó musa, o que o coronel Gervasio disse a Maria
Maldonado.

Ás dez horas e meia entrou D. Maria na sua sege, e disse a seu filho,
teimoso em acompanhal-a de longe, que a não seguisse.

Juntamente com ella, entrou o capellão da casa, padre velho, que
resmungára longo tempo contra a crueza de o não deixarem deitar ás nove
horas, por causa d'uma expedição em que elle não fôra consultado.

Eram trezentos passos da casa de Vasco á do coronel. D. Maria fez parar
a sege defronte do mosteiro de Santa Anna, e foi com o padre collocar-se
poucos passos distante da casa de Leocadia.

Esperaram um quarto de hora, sem ouvirem rumor nas portas da casa.
Precisamente ao soarem onze horas, um vulto se avisinhou de D. Maria, e
ousou metter-lhe a cara, que ella procurava esconder nas costas do padre
atrapalhado.

«Não se esconda, snr.ª Dona... (disse o coronel) Não pronunciarei o seu
nome, minha senhora, porque ouço sempre com reverencia pronunciar o nome
de seu defunto marido, e não quero que possa alguem saber que a mulher
do meu general está parada n'uma rua de Lisboa ás onze horas da noite.

D. Maria estava em tremuras, como se a surprehendessem n'um crime. As
palavras do coronel tinham só o tom urbano a neutralisar-lhes o agro da
ironia, e o virulento da reprehensão. O padre estava naturalmente de
bocca aberta, como quem diz «eu não dei para isto prego nem estopa.» Não
lhe occorria idéa alguma á attribulada senhora, quando o coronel,
offerecendo-lhe o braço, disse:

«Não a convido a entrar em minha casa, snr.ª D. Maria, porque em minha
casa não está senhora alguma. Se v. exc.ª, porém, me permitte
acompanhal-a á sua, ou seguir a sua sege, receberei a honra de lhe dizer
duas palavras.

--Aceito o offerecimento...--disse D. Maria reanimada pela confiança que
pôz no dom persuasivo das suas palavras sobre a vontade pertinaz do
coronel.

Na sege não cabiam tres pessoas. O coronel disse que iria a pé. O padre
parecia, por seu silencio, consentir em ir como viera; D. Maria, porém,
disse ao padre que cedesse o seu logar.

O capellão sorveu uma pitada de simonte, puxou para as orelhas a gola do
seu capote de castorina parda, e lá foi de seu vagar, ruminando
philosophicamente aquella diabrura.

Poucas palavras deram um ao outro, na sege. Quando esta parou,
ouviram-se passos velozes saltando as escadas. O coronel apeára para dar
a mão a D. Maria. Vasco surgia no limiar do portão justamente no
instante que sua mãi entrava pelo braço do coronel.

O nosso amigo recuou estupefacto, e soltou uma interjeição de espanto,
que tanto podia ser _ah!_ como _oh!_ como _ui!_

Gervasio levou a mão ao boné, e disse risonho:

«Boas noites, snr. Vasco... Acha-me, talvez, muito barbado para noiva?!

D. Maria apertou-lhe o braço, murmurando:

--Não zombe do infortunio, snr. Gervasio... Eu tenho direito a esperar a
continuação da sua delicadeza...

«É um direito de que eu a não privarei, minha senhora. Serei delicado
com o filho como o fui com a mãi... Por isso mesmo, rogo a v. exc.ª que
mande seu filho assistir ás duas palavras que devo dizer-lhe.

--Vem, filho...--murmurou D. Maria, ao mesmo tempo que o coronel
estendia affectuosamente a mão a Vasco, bastante pundonoroso para
regeital-a.

«Recusa?!--disse o pai de Leocadia, franzindo a testa com sobranceria
militar.

--Então, Vasco?!--acudiu D. Maria, movendo o filho a curvar-se com
humildade diante do coronel.

«Quer que subamos, snr.ª D. Maria, ou mesmo aqui me escuta?--disse
Gervasio com mal disfarçado azedume.

--Não, senhor, subamos. Vens comnosco, Vasco?

«Se minha mãi ordena...

--Ordeno, sim.

Já na sala de espera, o coronel, dispensando entrar na immediata, fallou
assim:

«Eu disse com cordial sinceridade ao snr. Vasco, em minha casa, que
minha filha, pelo facto de ser minha filha, não podia ser sua mulher.
Não lh'o disse com esta rudeza, porque o sentimento que seu filho dedica
a Leocadia é respeitavel, em quanto está dentro dos limites que a honra
prescreve a cavalheiros que se abonam de appellidos, synonimos da honra
e da probidade.

«O snr. Vasco sahiu de minha casa promettendo-me não desmerecer da
opinião em que o tive. Maravilhou-me a coragem da virtude em annos tão
verdes! Pareceu-me vêr n'este pequeno corpo a grande alma do bravo que
lhe deu o nascimento.

«Pesa-me dizer que me enganei, e o snr. Vasco deve esconder a face
envergonhada diante de mim, e cortar essa mão que ainda agora hesitou
apertar a minha, que lhe offereci com demasiada generosidade, ou pouco
brio. Se o pundonor devesse aconselhar a algum de nós o despreso, o
despresivel de certo não seria eu, porque o enganado, o atraiçoado não é
v. exc.ª, snr. Vasco da Cunha.

«Adiante: e não se estorça, escutando-me, snr.ª D. Maria: eu estou de
certo contando a v. exc.ª uma novidade.

--Duvido que meu filho...--interrompeu a pobre mãi.

«Duvida que seu filho?...

--Promettesse a v. exc.ª renunciar ao amor de sua filha...

«Eu não disse tal. Quiz dizer que o filho de v. exc.ª me prometteu
desviar as suas attenções de minha filha, de modo que ella não
conspirasse contra a minha vontade. Snr. Vasco, isto é exacto?

Vasco não respondeu: lançou a sua mãi um olhar de tortura intima, um
olhar que pedia um pretexto para elle sahir d'alli. O que se passava no
coração do infeliz moço não sei contal-o. Inferno?... inferno, sim, que
nenhuma religião inventou ainda, devia de ser!

Se o examinassem de perto, vêr-lhe-hiam coberta a fronte d'um glacial
suor. Todo elle tremia como sacudido pelos embates que o coração lhe
dava no peito. Uma só idéa, synthese horrivel de todas, o predominava
então: o desejo de morrer logo alli.

A infeliz mãi comprehendeu tudo, viu tudo, sentiu tudo!

Pediu licença ao coronel, ergueu-se, tomou a mão do filho, e disse-lhe:

--Vai para o teu quarto, Vasco. Eu não me demoro aqui... lá vou ter já.

Vasco sahiu, curvando ligeiramente a cabeça, quando passava diante do
coronel.

«Pobre criança!...» disse comsigo o pai de Leocadia; e nestas palavras
dissera tudo o que nós poderiamos dizer e sentir em largos commentarios.

Pobre criança, sim, que não soube erguer a fronte, embora marcada com o
stygma da deslealdade, e dizer ao seu accusador e juiz: «mentes» Pobre
criança, que não sahiu d'alli a procurar duas testemunhas, que, no dia
seguinte, o vissem morrer ás mãos do coronel, ou cravar um florete no
seio onde se embalara Leocadia! Pobre criança, que succumbiu, como
succumbe a honra ferida pelo remorso, á reprehensão do tyranno que lhe
vem diante de sua mãi, lançar em rosto a ignominia da perfidia!

Ausente Vasco, D. Maria voltando-se com senhoril altivez para o coronel
disse:

--Pouco mais terá que me dizer, creio eu.

«Pouco mais, minha senhora; mas esse pouco é importante.

--Se é uma censura ao meu procedimento, digne-se omittil-a, por que sou
eu a propria que me censuro.

«Então, snr.ª D. Maria, disse tudo. Faltava-me perguntar-lhe se posso
viver em paz com a minha familia. Visto, porém, que v. exc.ª se
reprehende pela parte inconveniente que tomou nos amores do snr. Vasco,
posso retirar-me com a certeza de que fica suspensa a sua
correspondencia com a minha filha.

--A minha? interrompeu ella.

«A de v. exc.ª, queria eu dizer.

--E eu digo a v. exc.ª--replicou D. Maria sensivelmente agastada--que
sou mulher, e não posso dar ás suas ironias uma resposta condigna.

O coronel soltou um frouxo de riso, cuja intenção é difficil entender.
Era um destes risos _subjectivos_, (concedam o epytheto) cuja imagem
está dentro da pessoa que ri.

D. Maria, enraivecida pela desconsideração, interrogava-o com um olhar
soberbo. O coronel, erguendo do pavimento a espada, e sobraçando-a,
inclinou profundamente a cabeça, recuou até á porta, e disse:

«Muito boas noites, minha senhora.»

Ora aqui está o que se passou, até que o coronel entrou no camarote.


XIV.

Quinze dias depois ha um convite para casa do coronel: janta-se, e
dança-se; festeja-se o casamento da sympathica Leocadia com o morgado de
Sinfães, Francisco de Proença.

Alto lá, senhor romancista! Não se escreve assim um romance. Vossê assim
desacredita-se, e ámanhã não tem quem o leia. Quando a gente cuida que
está no melhor do romance, o bom do homem, mette-se em duas semanas n'um
carril a vapor, e vêl-o ahi vai levado com a historia no sacco de noite,
de maneira que uma pessoa, que lhe faz o favor de o lêr, pedindo o livro
emprestado, fica sem saber o que fez Leocadia, o que fez Vasco, o que
fez a mãi, a madrasta, o noivo, o que fizeram todos, durante quinze
dias! Isto é uma escandalosa empalmação!

Senhoras e senhores meus, v. exc.as de certo conhecem muitas meninas na
posição de Leocadia. Posição trivialissima, aliás. É uma pobre rapariga
a amar um homem pobre; mas tem um pai a querer casal-a com um homem
rico. Chora, arrepella-se, promette matar-se, se a morte não vier
espontaneamente. O pai teima, o homem rico teima, o homem pobre não póde
teimar, ainda que queira. Por fim, a menina faz a vontade ao pai, ao
noivo rico, á sociedade torpe, casa e dança por comprazer no dia em que
casa, e almoça com pouco appetite, no dia seguinte, com mais algum no
outro dia, e assim successivamente, até engordar. Isto é muito simples,
e muito rotineiro, não é verdade?

É. Então de que se espantam, se eu lhes digo que uma mulher, de carne e
osso como v. exc.as, fez o que v. exc.as fizeram, viram fazer, ou farão?

Alto lá! tambem eu digo. A minha pobre Leocadia, se hoje vivesse, e
lesse essa pagina infanda que ahi fica, cobril-a-hia de lagrimas de
remorso por me haver feito seu confidente. Perdôa-me, minha santa amiga!
Eu tive-te um instante suspensa por uma hypothese cruel sobre o charco
em que patinham muitas georgianas de chinellos, que por ahi se vendem
para o harem de sujos pachás, que ao passarem a linha, lavaram a cara
dos ferretes de sangue com que sahiram do açougue humano.

Se eu fizesse uma criminosa omissão de tuas lagrimas, o mesmo seria
pisal-as, Leocadia.

Se eu te rebaixasse a transigires com o dinheiro de teu marido,
mascarando-te com a obediencia filial, daria comtigo regalo e galardão a
estas mulheres de almoeda, que, na alma, não valem mais que as de
Babylonia, e no corpo não valem tanto.

Não, espirito que me vês da tua gloria, eu contarei as tuas lagrimas; e,
se não rasgo as paginas que escrevi, estremal-as-hei por um traço negro
das que tu me segredaste nas fugitivas noites em que este gemer do mar,
que ouço agora, vinha casar um murmurio melancolico á tua narração.


XV.

Leocadia era vigiada por toda a familia. Triste, sombria, e taciturna,
causava suspeitas ao coronel, que postára militarmente o auxiliar, de
sentinella, no pateo, de dia e de noite.

Quasi sempre no seu quarto, Leocadia meditava fugir. Não achava, porém,
o exito feliz dos seus planos. A fuga pela porta, unica evasiva que
tinha, era impossivel. Desanimada, toda a sua valentia moral reservou-a
para dizer «não quero» logo que seu pai a mandasse vestir-se para ir
receber a benção nupcial. Firme neste proposito, esperava, com coragem e
juramento de morrer, a hora da lucta horrivel, a formal desobediencia,
todas as torturas que podesse inflingir-lhe o pai irritado.

Tinham decorrido dous dias depois do passeio a Campolide, quando uma
antiga criada, que já o fôra da primeira mulher de Gervasio, voltou da
provincia, onde fôra visitar os seus parentes. Esta criada era aquella
Thereza, que eu vi na Foz.

A situação de Leocadia melhorou, porque Thereza chorava com ella,
aconselhando-lhe ao mesmo tempo obediencia a seu pai. O coronel, tambem
amigo da velha criada, pedia-lhe que desvanecesse com suavidade do
coração de sua filha uma paixão que fazia a infelicidade de todos.

Thereza não podia tanto. Conheceu as intenções da menina, e disse-as ao
coronel, affirmando-lhe que ella se deixaria matar, mas casar, não.

Depois de cinco dias de desgostos para o pobre pai, e de irritações
orgulhosas da madrasta, e suspeitas más de Francisco de Proença, e
continuadas lagrimas e reclusão de Leocadia, o coronel queixou-se de
violentas dores de cabeça, e febre.

Apenas se recolheu á cama, Leocadia foi sentar-se á cabeceira do seu
leito. Quando os medicos disseram que se declarava uma febre maligna, o
sobresalto operou uma subita mudança nas maneiras de Leocadia.

O sentimento desvaneceu-se. Quantas caricias uma boa filha tem no
coração todas ella empregou para adoçar as amarguras do pai enfermo.

O coronel queixou-se de serem desgostos moraes, causados por ella, os
que o tinham levado áquelle extremo. Leocadia lançou-se aos braços
febris de seu pai, pedindo-lhe perdão, e voltou-se a Nossa Senhora,
promettendo sacrificar-se ao homem que lhe destinavam se seu pai
recuperasse a saude. O coronel não ouvira o voto, mas adivinhou o
silencio de sua filha.

Ao setimo dia a febre recrudesceu. Eram curtos os intervallos da lucidez
que o delirio lhe consentia. N'um d'esses intervallos, o enfermo chamou
sua filha, e disse aos assistentes que se retirassem.

Pungentes palavras foram estas:

«Leocadia, creio que morro. Deixo-te, minha filha, n'um mundo que não
conheces. Parto, e tu ficas só. Quando eu fechar os olhos, fecharam-se
para sempre os unicos olhos que te viam com amor. Ficas sem parentes. De
tua mãi, ninguem já vive. De teu pai, tens dous tios no Brazil, que te
não conhecem. Que farás tu, filha, quando me levantarem morto desta
cama?

--Meu pai!--exclamou Leocadia com vehemente afflicção--meu querido pai,
não pense que morre...

«Morro, filha, morro; e, se a minha agonia fôr trabalhosa, é o coração
que se despedaça, separando-se de ti... Sem ti, morria tranquillamente.
Estou cançado, porque nunca soube o que era a felicidade nesta vida; a
da outra... a da outra, meu Deus, vós sabereis se eu a mereci com a
paciencia... Leocadia, queres que eu acabe em paz, que eu expire
abençoando-te?

--Sim, sim, meu pai... quero que viva, abençoando-me!--bradou ella,
beijando-lhe as mãos afogueadas.

«Então, filha, cumpre a minha vontade. Liga-te a esse homem que te ha-de
estimar, porque eu lh'o pedirei á minha ultima hora. Tu has-de ser feliz
com elle; has-de olhal-o sempre como o amigo que teu pai moribundo te
escolheu. Se elle te der algum motivo de soffrimento, quem os não tem
neste mundo?! Se soffreres, offerece-me as tuas dores e eu virei em
espirito agradecer-te o sacrificio. Serás então consolada, filha, pela
memoria de teu pai, que pensava fazer-te venturosa, embora se enganasse.
Responde-me, Leocadia... Casas com Francisco de Proença?

Leocadia tirou das entranhas um gemido, um soluço suffocante, e com elle
uma palavra que parecia a ultima da vida que vai n'ella:

--Sim...--disse ella.

O coronel, vencendo a fraqueza com grande esforço, pôde ainda sentar-se
no leito, alongando os braços para ella. A filha sustentava no hombro a
cabeça esvahida do enfermo, e refrigerava-lhe com lagrimas a mão
convulsa.

Seguiram-se minutos de silencio. Ouvia-se apenas o soluçar de ambos.

O coronel desprendeu-se dos braços da filha, e pendeu a cabeça para o
travesseiro. O sangue batia-lhe vertiginoso nas frontes. As palpebras
cerraram-se. Phrases interrompidas sahiam-lhe dentre os labios seccos e
quasi immoveis. Leocadia, assustada, chamou gente. A madrasta, vendo o
lethargo do marido, voltou-se para a enteada e disse com rancor:

«Quem mata meu marido é a senhora!

Veja a que estado o reduziu! É uma parricida snr.ª D. Leocadia!

Ha-de dar terriveis contas a Deus de ter arrastado seu pai á
sepultura... É uma filha amaldiçoada!»

Leocadia, não teve animo para responder-lhe. Pôz os olhos em seu pai, e
disse-lhe em seu coração: «Vós bem sabeis que não é verdade o que ella
diz!» e sahiu, apertando a cabeça com as mãos.

A medicina cobriu de causticos o doente. Os tormentos deram-lhe com a
irritabilidade uma vida de emprestimo. Dous dias se seguiram de
esperanças, porque o delirio era menos frequente, e alguns instantes de
dormir tranquillo vieram reparar-lhe as forças.

O coronel chamou a filha, tendo ao pé de si Francisco de Proença, e sua
mãi.

Á cabeceira d'elle estava um crucifixo e duas luzes. Eram os
preparatorios para o recebimento da extrema-uncção. O enfermo pedira um
confessor, que se achava já no quarto.

«Aproxima-te desta cruz, Leocadia--disse elle com energia--snr.
Francisco de Proença, eu entrego-lhe, minha filha. Comprehende o senhor
a valia deste thesouro que lhe entrego? Sabe como eu queria que o senhor
amasse esta creatura?

--Amal-a-hei quanto se póde amar nesta vida... disse Proença, sentindo
eriçarem-se-lhe os cabellos, commovido pela religiosidade do acto.

«Minha filha, ajoelha diante de Deus que nos escuta, e pede-lhe que faça
duraveis os bons sentimentos no coração de teu esposo, e que te faça a
ti sempre digna d'elles.

Leocadia ajoelhou, e Francisco de Proença, arrebatado pelo bello funebre
do lance, ajoelhou a par com ella.

E oravam todos mudamente. O coronel tinha as mãos erguidas. O padre
confessor, quebrou o silencio, erguendo-se, e tomando as mãos de
Leocadia.

«Estão accesas as luzes do altar.

A menina prepare-se, que eu quero ter o jubilo de ser o ministro deste
sacramento! Que união de tão bom agouro... Vamos, filhos.»

O frade graciano enchia a poesia santa do grupo!

Leocadia sahiu com sua madrasta.

Parecia somnambula. Julgal-a-hieis sem idéa, sem vontade, sem
consciencia do que fazia. Vestiram-na. Entrou n'uma sege, achou-se
ajoelhada no arco d'uma igreja, respondeu umas palavras que lhe
ensinaram, e viu-se sosinha com um homem, na sege, onde viera com sua
madrasta.

Conduziram-na ao quarto de seu pai. A vida então sahiu do lethargo.
Leocadia achou abertos os braços paternaes para recebêl-a. Lançou-se a
elles chorando, soluçando, arquejante, abafada por uma agonia, cuja
intensidade ella não pôde explicar-me. O que me disse, para eu alcançar
com os olhos d'alma a sombra da sua dôr, foi que, abraçando o pai na
volta da igreja, se lhe figurara a imagem moribunda de Vasco, fitando-a
com um olhar piedoso, em que parecia dizer-lhe: «perdoo-te a morte,
Leocadia.»

..........................................................................

O coronel sobreviveu quatro dias aos desposorios de sua filha.

O festim de nupcias foi um funeral.

A noticia do casamento foram as cartas de enterro.

A noiva despiu o vestido branco para se envolver no de crepe que nunca
mais despiu.


XVI.

O pinhal do _Pastelleiro_ rumorejava brandamente, assoprado pelo ar da
noite. O mar era uma immensa bacia d'aguas mortas. A lua mosqueava-lhe o
dorso em escamas lucidas. O archanjo da poesia com o seu cortejo de
chimeras volateis, brincava na alamêda das fontes murmurosas, gemia com
o piar tristonho das aves queridas da noite, e sentava-se na peanha dos
cruzeiros, que a projecção da luz assombrava no chão.

Eu estava profundamente melancolico. E ao pé de mim viera sentar-se
Leocadia, na pedra bruta, que ainda hoje vereis, servindo de tranqueira
a uma cancella fronteira da casa.

Acabára eu de ouvir o quadro que apenas esbocei no anterior capitulo.

A narradora calara-se, e eu não ousára quebrar o seu religioso silencio.

Eu bem vira que as suas palavras derradeiras eram um como tremulo
gemido. Sentira vibrarem-lhe afflictivamente as fibras do coração, como
se as ferisse a realidade dos successos que a gentil martyr recordava.

E, por isso, o meu silencio era a expressão da pena, o pasmo em que nos
deixa um espectaculo lugubre. Eu tinha em mim todas aquellas imagens,
descriptas por ella como quem as entalhára com fogo no coração. Via o
altar do tremendo sacrificio, via o leito do agonisante. As feições do
coronel, apanhadas pelo regêlo do trespasse, essas, que eu nunca vira,
todas se me desenharam na imaginação, sempre fertil de creações
funebres. Ao pé de mim estava a heroina desta tragedia, ainda formosa,
ainda opulenta de encantos, flôr orvalhada das lagrimas do céo para onde
ella mandava continuamente o seu perfume.

Que mulher é esta que eu encontrei na terra, para apertarmos as mãos
n'um adeus para sempre?

Que attribulada expiação a da minha alma que só póde chorar as penas
d'ella!

Não póde amar-me, não; eu sei que não póde, e offertar-lhe o meu amor
seria injuriar a sua saudade!

Para que te encontrei eu, santa!

Estas ultimas palavras fugiram-me, como a revelação d'um sonho. Leocadia
tocou-me ligeiramente no hombro, e disse:

«Que é? Não sei o que disse...

--Nada dizia--repliquei eu--Sonhava, minha querida irmã, sonhava. Sabe,
minha amiga? Está-me pesando a vida. Não sei o que ha-de ser de mim...
quando a perder. Abençoada seja a mão da morte, que baixou a apanhar de
entre os felizes do mundo os que vieram com o condão da minha
desventura.

«Porque, meu amigo?!

--Porque entre nós ha só de commum a confidencia d'algumas horas, a
confidencia que não modera os impetos d'um desgraçado amor...

«Oh! não diga, não diga isso outra vez...--atalhou Leocadia pondo-me a
mão nos labios--Tenha pena de mim... Chame-me sua irmã, senão
arrependo-me, sinto o primeiro remorso da minha vida...

Beijei-lhe a mão, e murmurei:

--Até ámanhã.

«Sim? até ámanhã? quem sabe se nos veremos! De um momento para o outro
posso ser mudada... E eu queria, meu irmão, queria acabar hoje a minha
historia. Não sei que presagio me diz que não teremos outra noite
assim... Mais alguns minutos... diz-se depressa o que falta... Quer?

--Diga, diga, Leocadia; mas faça um juramento.

«Juramento! qual?

--Qualquer que seja o seu destino, se tiver vida, se tiver um instante
seu, lembre-se de seu irmão, escreva-lhe uma palavra, uma só «vivo» só
isto... jura?

«Prometto, meu amigo, e não faltarei... E se lhe disser «morro» é que
Deus me chamou para ao pé de Vasco...

--Sim, sim, falle-me desse infeliz que a chama, desse amigo que a minha
imaginação contrahiu... Morreu, sim?... e que morte!...

«Eu quasi que o vi morrer.

--Viu?! É horrivel, meu Deus!

«Foi assim. Oito dias depois da morte de meu pai, Francisco de Proença
perguntou-me se eu queria ir para o campo. Entreguei-me á sua vontade.
Minha madrasta desejava sahir de Lisboa, para desafogar da sua saudade.
Fomos para uma quinta entre Cintra e Collares.

«Estavamos ahi havia um mez. Thereza, a meu pedido, escrevêra para
Lisboa a quem a informasse de Vasco. Disseram-lhe que elle e a mãi
estavam a ares em uma das quintas. Eu pedia por elle a Nossa Senhora
todos os dias, muitas vezes, e com immensa fé.

«Uma tarde, Francisco de Proença fôra á caça, e eu fui com Thereza
passear para a banda de Collares. Havia no caminho uma azinheira, um
sitio que respirava saudade, entrei por alli dentro, e fui ter a um
portão de quinta, que tinha uma grande arvore. Sentei-me áquella sombra,
vendo cahir as folhas, e comparando-as á queda de tantas, de todas as
minhas esperanças. Estava assim absorvida, bebendo as doçuras do meu
fel, quando o portão se abriu. Estremeci... Era um padre que sahia... o
padre capellão de D. Maria Maldonado!

«Elle fixou-me com espanto, e apenas me cortejou; esteve um pouco a
olhar-me, e disse:

--A menina não é a snr.ª D. Leocadia?

«Sou, sim, senhor.

--Então que faz por estes sitios?! disse elle admirado.

«Vim a passeio... Moro n'uma quinta perto d'aqui.

--Pois se quer entrar, eu dou parte á snr.ª D. Maria.

«Como!?--exclamei eu--a snr.ª D. Maria Maldonado?!

--Sim, minha senhora, está aqui com o snr. Vasco--disse-me elle--e o
snr. Vasco vai dar contas a Deus brevemente.

«Meu Deus! eu não posso lembrar-me do que então disse ou fiz. Entrei
n'uma tremura de susto, de terror, de não sei que tormento novo para
mim. Conheci que me fugia o entendimento, e a vista. Queria tirar-me
d'alli, e não podia; ainda pedi a mão a Thereza, e já não pude dar
passada. Desfalleci nos braços d'ella.

«Voltando á vida, que a justiça de Deus não quiz levar-me, achei-me
sentada n'um banco de pedra, n'um jardim. Ao pé de mim estava D. Maria.
Fiz um esforço por ajoelhar-me aos pés d'ella. Susteve-me; e chorava,
meu Deus, como chorava a pobre senhora!

«É a vontade de Deus... disse-lhe eu, que aqui me trouxe. Queria vêl-o,
minha querida mãi, diga-lhe que a mão do Senhor me conduziu aqui para
receber o seu perdão... Mas eu não sou culpada... Meu pai estava a
expirar... Morreria atormentado...» Ai... eu não sei o que disse, entre
gemidos... D. Maria olhava-me com ar de compaixão, e consultava os olhos
do padre. Este acenava negativamente. Não queria que eu visse Vasco... E
eu estava de joelhos aos pés de D. Maria, quando ouvi proferir o meu
nome, n'um grito. Olhei... era Vasco, abrindo uma vidraça. Era elle,
livido como um espectro vestido de branco, com os olhos abrasados de
delirio... A janella cahiu, Vasco desappareceu, e o padre subiu a correr
umas escadas, em quanto D. Maria sustinha o meu arrebatamento.
«Deixe-me, deixe-me vêl-o!» rogava eu, allucinada, louca de paixão,
capaz de matar-me alli, se me não deixassem ir!

«Ao cimo da escadaria, o padre encontrou-se com Vasco. Não o conteve;
desceram ambos atropelladamente. E o meu infeliz anjo exclamou: «Vieste
para mim, minha esposa?... Eu esperava-te, esperava-te, como se espera a
salvação.»

«E eu rompi n'um choro que era sentir-me morrer. O desgraçado não sabia
que eu estava casada!

--Falla, falla!--gritava elle--vens ser minha esposa? fugiste a teu pai?
esse tyranno teve compaixão de nós?--Cala-te, meu filho!--exclamava D.
Maria... Estás enganado! «Enganado! pois esta não é a minha esposa?!»

«O padre tomou-o pelo braço, e exclamou:

--Não, não é sua esposa... é esposa d'outro que seu pai lhe destinou!--

«Vasco soltou um terrivel grito, levou as mãos á face, e foi cahir nos
braços de sua mãi... «Matai-me, meu Deus!» exclamou elle.

«Agora--proseguiu Leocadia arfando convulsivamente--peço-lhe eu que vá,
meu amigo, não posso continuar... Estou doente... Adeus... Se eu não
podér fallar-lhe, ha-de lêr o resto da minha historia.»

Leocadia entrou encostada ao meu braço em sua casa. Eu fiquei alli não
sei que tempo entorpecido. Quando me retirei, alvorecia a manhã.


XVII.

O CARACTER DE FRANCISCO DE PROENÇA.

É preciso virmos procural-o aos nossos ultimos annos.

Em 1828 o homem não era ainda feito á similhança do typo, que mais o
encantára, no romance.

Depois de 1834, é que as bibliothecas de novellas entraram por aqui
dentro a fecundar este chão bravio, como extravasantes do Nilo.

Era necessario ser-se excentrico, desde o ventre materno, para ser
romantico em 1828.

Francisco de Proença representa a vanguarda dos descabellados em
Portugal.

Desde criança, merecêra pelas suas escaramuças sanguinarias aos coelhos,
o cognome de «Attila de coelheira.»

Em Coimbra, chamavam-lhe o _chevalier sans peur et sans reproche_.

A sua principal mania era o brasão. Estava apparentado com as primeiras
casas da monarchia, por um tal Egas, filho de Mem, neto de Fuas, e
bisneto de Ruy que acompanhára D. Henrique a Cárquere, a cumprir um voto
d'uma perna torcida.

Depois, e em consequencia d'esta mania, tinha um requinte de brios que
lhe custou muito puxão d'orelha.

Desafiava a espadão todo o mundo, e quiz mandar um cartel a um doutor
octogenario que o reprovou em mathematica.

Na primeira carta a um namoro que tivera assignava-se o _commendador
Francisco de Proença_. A menina riu-se, e o fidalgo, no adro d'uma
igreja, perguntou-lhe se os trabalhos da cozinha a não deixaram
responder.

Tinha destas cousas.

Os seus bens de fortuna não eram o que elle precisava que fossem para
sustentar o seu orgulho.

Aceitou a mão da filha de seu padrasto, porque a paixão o acolheu de
subito. Leocadia, com o seu desdém, pisára-lhe a soberba. Proença foi
vencido pelo desprezo.

Sua mãi, de mais a mais, dissera-lhe que Leocadia era a presumptiva
herdeira de dous tios millionarios que tinha na America.

O _dinheiro commercial_ não lisongeava o fidalgo; todavia, esta
repugnancia pôde vencel-a o amor.

Casou, e não se póde dizer se tractou bem ou mal sua esposa. Estas
differenças são as mulheres que as notam, e Leocadia recebia com tedio
disfarçado as amabilidades de seu marido.

Para o não detestar, tinha sempre entre si e elle a imagem de seu pai
moribundo, e o crucifixo do juramento.

Leocadia habituára-se a viver fóra do seu corpo... A alma voava livre
onde a chamava a saudade; a materia era a victima sacrificada. Deste
modo, affazer-se-hia ao captiveiro, sem sondar a indole d'um homem que a
chamava sua.

O traço, porém, mais caracteristico da indole romanesca de Francisco de
Proença, vai descobril-o um infeliz acontecimento.

Quando Leocadia sahia, encostada ao braço do capellão, o portal da
quinta dos Maldonados, Francisco de Proença, vindo da caça, atravessava
a azinhaga, assobiando aos perdigueiros.

Leocadia presente-o, e quer esconder-se; mas era tarde. Proença pára
estupefacto, e Leocadia pára tambem. O fidalgo, que não conhecia o
padre, interroga-o:

«Quem é o senhor?! Como se acha aqui a senhora?!

O padre tartamudeou:

--Eu sou capellão d'esta casa.

«Que casa é essa?

--De uma minha amiga--balbuciou Leocadia.

«É admiravel que eu não conheça as amigas da senhora! Como se chama essa
amiga?

O padre, aterrado pelo olhar soberano de Proença, disse:

--É a snr.ª D. Maria Maldonado.

O cavalheiro fixou attentamente sua mulher. Leocadia não levantava os
olhos do chão. A surpreza reduziu-a ao silencio, que confessa o crime, e
é já em si um principio de penitencia.

«Vamos, senhora!--disse Proença.

Decorreram tres dias, sem que Leocadia visse seu marido. Procurou-o,
deliberada a convencêl-o da sua innocencia com a sincera historia do seu
amor áquelle homem. Proença soubera tudo de sua mãi, e furtava-se ao
encontro com sua mulher.

Ao quarto dia, Leocadia foi avisada, da parte de seu marido, que
preparasse o seu bahú para viajar, com elle, no dia seguinte. Ella pediu
uma entrevista a Francisco de Proença. Respondeu-se-lhe que lá fóra
teriam sobejas occasiões. Replicou a infeliz que não podia, que estava
muito doente. Disse-se-lhe que em toda a parte havia uma sepultura.

A comitiva dos viajantes era unicamente Thereza. Esta criada convinha ás
intenções do marido.

Desembarcaram na Madeira. Durante a passagem, Leocadia nunca pôde
prender a attenção de seu marido dous segundos.

Quinze dias depois do desembarque, Francisco de Proença apresenta-se,
pela primeira vez, em rigoroso lucto diante de sua mulher.

--Quem lhe morreu?!--perguntou ella.

«A senhora!

--Como?! está delirando!

«Quem morreu foi minha mulher--» tornou elle com uma visagem
ridiculamente tragica.

--Pois se morri, eu vou morrer--disse ella com angelica mansidão--o
Senhor receba a minha alma.

«A sua alma condemnada ha-de continuar a existir n'um corpo impuro.

--Não quero entender a injuria--disse ella com firmeza--Antes a morte.

«Morreu para mim; mas ha-de viver para o remorso. Eu sou viuvo, senhora.
Em Portugal ha-de saber-se que eu sou viuvo. A que foi mulher de
Francisco de Proença, terá de hoje em diante outro nome. A senhora
jámais dirá que eu sou seu marido: o punhal está sobre o seu seio
esperando que essa palavra lhe passe os labios. Dou-lhe a vida, porque
vejo o coronel moribundo que me supplica este heroismo...

--E eu não aceito a graça--interrompeu Leocadia...

«Pois então, ha-de supportal-a como castigo. A senhora tem uma mesada,
para viver onde queira, com tanto que a sua companhia unica seja essa
criada que foi de sua mãi. Tenho a generosidade de conceder-lh'a; mas,
senhora, repare que eu vou mostrar em Portugal a certidão do seu obito.
No dia em que me desmentir, matei-a!

Leocadia pendeu a cabeça para o seio, e murmurou, sem lagrimas:

--Como quizer, senhor. Agora deixe-me em paz.

«Ainda não. Na provincia de Traz-os-Montes tenho um casal, situado entre
quatro montanhas: Quer habital-o?

--Sou sua escrava, senhor.

«Sabe que de hora em diante perdeu o nome que tinha?

--O que quizer, mas não posso ouvil-o.

«Nem eu vêl-a mais; porque minha mulher morreu!»

E retirou-se, solemne e sonoro nos passos, como a estatua de D. João
Tenorio.

Aqui está o que se chama um homem romantico e uma mulher desgraçada.


XVIII.

Se bem me lembro, já disse que Leocadia é o nome que a mulher de
Francisco de Proença adoptou, desde a scena do anterior capitulo.

No decurso do romance, conservei esse nome, e já agora conserva-lo-hei
até final. Podéra ter-lhe dado pseudonimo; mas tão leal quero ser á
verdade, que, a não poder, por melindre e respeito, dizer o seu
verdadeiro nome, escrupulisei na invenção de outro.

Leocadia, pois, sahiu da Madeira para Lisboa. No mesmo navio viera
Francisco de Proença, que, em todo o tempo da viagem, não deu signal de
ser ao menos relação de Leocadia. Sahiram para o Porto no primeiro
hiate. D'aqui, D. Leocadia e Thereza foram para a provincia. O morgado
de Sinfães appareceu-lhe na despedida. Terriveis e de eterna condemnação
foram as suas palavras: «Vá, sombra da mulher morta! vá, e veja sempre
diante de si o punhal, que lhe espera nos labios uma palavra só... o meu
nome, o nome de seu marido viuvo!»

A desgraçada quiz ajoelhar-se aos pés do seu verdugo. Proença repelliu-a
com um tregeito de escarneo e asco.

Leocadia foi viver no casal de seu marido. Era uma habitação mal
reparada, sumida entre quatro montanhas.

Apenas chegou, foi recebida respeitosamente por um caseiro, que a
reputava irmã bastarda, ou rapariga das affeições de seu amo solteiro.
Leocadia perguntou a este homem porque estava a pedra de armas coberta
de negro: respondeu o caseiro, se ella ignorava que tivesse morrido a
esposa do fidalgo! Leocadia abraçou-se á criada, chorando, e disse: «É
verdade... essa desgraçada morreu...»

O caseiro reparou n'isto, e disse á mulher que havia o quer que era de
historia nos modos da senhora que viera lá de por ahi abaixo.

Leocadia entrou na cama, que lhe mostraram, e disse a Thereza que a sua
ultima paragem antes da sepultura era alli.

Foi um chorar d'ambas de cortar o coração aos caseiros, que as
escutavam.

Era rapido o deperecer de Leocadia. Não se erguia do leito, e pedia a
Deus um paroxismo curto. O caseiro communicava para o Porto ao patrão o
estado da senhora. Não recebia resposta.

Um dia, porém, appareceu na aldêa um homem que procurava D. Leocadia,
com ordem de Francisco de Proença. Este homem diz ser medico. Examina a
enferma, e diz-lhe que, por ordem da pessoa que alli a domina, deve
immediatamente entrar n'uma liteira com a sua criada; e acompanhal-o.
Leocadia, quasi exanime, obedece, sem saber a quem, nem para que fim.

A liteira, depois de sete dias de jornada, parou no alto de S. João da
Foz, no sitio do Pastelleiro, onde eu, João Junior, encontrei Leocadia
para ouvir de seus labios convulsos de gemidos essa historia triste, que
eu tive a impiedade de conspurcar com algumas facecias de estragado
gosto.

O que ella me não contou é o que me disse Thereza, alguns annos depois,
quando sua ama já era defunta, e o acaso m'a deparou n'um recolhimento,
em uma villa de Traz-os-Montes.

Attendam agora, que ahi vai pendurar-se o romance no prégo philosophico
com que o intitulei: DINHEIRO. Vai-se tractar de dinheiro, leitoras
espirituosas; prestem-me a sua benevola attenção.

Uma tarde passava eu no Pastelleiro; sahiu-me ao encontro a caseira da
quinta, e deu-me a triste nova de ter sahido, na madrugada d'aquelle
dia, a senhora para não tornar. Um homem novo, acrescentou a caseira,
viera buscal-a, e descera com ella pelo braço a escada, fallando-lhe com
muito bom modo. Agora vou fallar de mim um pouco.

Eu fiquei esthetica e plasticamente parvo!

Quem seria o homem?! O marido, de certo, não, porque o marido, até ao
dia em que falláramos, estava viuvo, e não tratava de resuscitar a
mulher. Seria a historia lamuriante uma logração á minha boa fé?! Seria
ella uma visionaria, uma douda, ou, peor que tudo, uma destas mulheres
desabusadas que mangam dos poetas da minha força?

É impossivel! Leocadia deve ser necessariamente um anjo! É o marido que
a arrasta pelos cabellos ao cepo do martyrio. Alguem lhe disse que eu
vinha aqui, e o malvado não comprehendeu que eu era o sacerdote da mais
santa das amisades.

E, no afôgo da minha saudade, embrenhei-me por aquella bouça que lá
verdeja ao fundo, enchi meu coração de tenebrosas angustias, e pedi aos
meus olhos o chorar do desafôgo.

Inutil, inutil foi o meu rogar, porque a minha dôr era como o encravar
do estilete que não sangra; eu tinha dentro o brazido do deserto, sem
gotta de pranto; era uma contricção de matar, uma abafação em que os
pulmões, batendo contra o coração, pareciam espedaçar-se.

E porque? É que eu amava muito aquella martyr, muito, com o amor tres
vezes immaculado do poeta. Não esperava d'alli senão a religiosa
affeição da victima paciente ao consolador que dera a sua vida inteira
por um dia de ventura para ella. Mais nada; porém, este pouco é o ar, o
tempo, a luz, a bemaventurança do desgraçado que encontrou na terra uma
mulher como Leocadia, e uma paixão como a minha.

Tu viste, saudosa Poncia, que pranto ardente arou as minhas faces, no
estio da existencia!

Nos tectos cavernosos do meu quartel reboaram longo tempo os eccos dos
meus soluços.

Os meus dentes cerraram-se, como os do condemnado nas trévas inferiores,
e tres dias e tres noites a minha lingua não encanou o bolo alimenticio.

A restea do sol de Setembro, mosqueando o taboado carunchoso do meu
quarto, vinha pallida como a luz betuminosa dos infernos dantescos.

A brisa da tarde nunca mais se retouçou louçã pelas corollas das boninas
tremulas.

Negra como a minha saudade, era negra a tunica funeraria de que a
natureza se vestiu.

Diz tu, ó Poncia, se me viste comer ou beber durante oito dias, contados
da data em que a minha alma se despegou d'aquella alma gentil que se
partiu do Pastelleiro.

É verdade que passados esses oito dias, obedeci ao despotismo da
natureza vegetativa, e ás instancias impertinentes da minha consternada
Poncia.

O resultado foi sinistro: sobre uma paixão calamitosa uma indigestão
pertinaz!

Convalesci com jejuns dignos d'um S. Simão Stelita, e depois... amei
perdidamente uma tal Catharina... Isto é outra historia, que ha-de vir
depois. Os meus continuados amores tem sido para mim um systema de
medicina, por que diz o grande poeta:

    Que o veneno espalhado pelas vêas
    Curam-no ás vezes asperas triagas.

Eu curo-me sempre assim. Em 1828 era eu mais homoeopatha que o proprio
Hahnemann.


XIX.

Agora vai explicar-se tudo, e acaba-se o conto.

É o caso:

Lembre-se o leitor que o coronel Gervasio tinha dous irmãos ricos no
Brazil, ambos solteiros. Estes homens negociavam em brilhantes, e, na
ultima das suas excursões ao centro do imperio, foram assassinados por
salteadores, deixando um grande capital sem testamento.

Do Rio de Janeiro vieram logo averiguadores a Portugal para comprarem a
opulenta herança. Souberam em Lisboa que os herdeiros proximos, o
coronel, ou sua filha, tinham morrido sem successão.

Francisco de Proença estava então no Porto, e mais d'um amigo lhe
repetiu os pesames da fatal viuvez, que o privava d'alguns milhões.

Aqui está o nosso homem em embaraços de uma terrivel originalidade, ao
passo que uma chusma de parentes remotos de sua mulher se habilitam
pressurosamente!

A resurreição de Leocadia será possivel? A herança compensará a zombaria
com que a sociedade vai entrar no segredo dos seus ridiculos brios?

Não foi longo o interrogatorio que o tragico viuvo se fez. Feito o
escrutinio, os votos a favor da resurreição tinham a maioria. Proença
resolveu arrancar sua mulher dos limbos, e para isso mandou á provincia
o medico e a liteira.

Leocadia, como vimos, é conduzida ao Pastelleiro, e espera ahi tres
mezes a primeira visita de seu marido, depois de ter assignado algumas
procurações, cuja significação ella não entendeu. Francisco de Proença
fôra a Lisboa tractar de habilitar sua mulher.

Julgaram-no doudo porque a morte da filha do coronel era caso decidido
para as relações de ambos; e como o viuvo teimava em affirmar que era
casado, protestando apresentar sua mulher viva em presença de
testemunhas que a conhecessem de vista, a opinião da justiça foi que
viesse a Lisboa a supposta defunta, e ao mesmo tempo se averiguasse na
ilha da Madeira se alli, em tal mez, d'aquelle anno de 1828, fallecera a
mulher de Francisco de Proença.

O estranho successo foi estimulo de estrondosas gargalhadas na capital.
Havia grande ancia de conhecer o milagroso parvo, cujas anedoctas de
Coimbra reviveram com salgadas ampliações.

Os mais sisudos commentadores do estranho caso queriam, por amor da
moralidade, que se devassasse o tumulo de Leocadia, e dissesse ella,
visto que resuscitou, que morte fôra aquella de sete mezes, onde
estivera, e de que supplicios viéra resgatal-a a herança de seus tios.

O thaumaturgo não ousava apparecer na orda das suas relações. Ninguem,
se o conhecia, podia encaral-o com os labios seriamente fechados. O
apupado marido da mulher redeviva queria explicar a algum dos mais
impertinentes averiguadores do mysterio, aquella especie de catalepsia
de sete mezes, e então dizia:

«Pensei que fôra deslealmente deshonrado por minha mulher. O meu coração
cobriu-se de lucto, o punhal vingativo pedia o sangue da perfida, mas o
meu espirito era nobre de mais para sanccionar o assassinio d'uma debil
mulher. Quiz matal-a moralmente, e dei-a por morta moralmente para mim.
Fiz-lhe graça da existencia, para que o remorso lento me vingasse.
Vesti-me de lucto, disse que minha mulher morrêra; e, se alguem me
perguntasse particularidades da sua morte, eu responderia que uma campa
a separava de mim. O que hoje faz rir a sociedade seria então recebido
como um rasgo de heroismo na desgraça. Os maridos atraiçoados achariam
em fim a condigna penitencia da perfidia.

--Mas...--alguem lhe disse--tua mulher estava innocente?

A esta pergunta indiscreta Francisco de Proença titubeava, e não sabia
se lhe convinha decidir-se pela absoluta innocencia de Leocadia.

Lá se aveio como pôde com os importunos, até que um dia appareceu com
sua mulher resuscitada, e encartada no nome e appellidos que teve quando
foi viva.

A presença desta pobre senhora foi, só em si, uma accusação contra seu
marido. A desgraçada, quando lhe perguntaram, diante de testemunhas, se
era mulher de Francisco de Proença, respondeu:

«Dizem que sou.»

--E a senhora não diz o mesmo?

«Eu sou viuva» tornou ella.

--Então qual dos senhores é viuvo? É original a mania d'ambos--replicou
o jurisperito, rindo com os circumstantes, em quanto as lagrimas da
herdeira millionaria lhe desciam na face purpurina de pejo.

..........................................................................

Não me souberam contar o resto.

O que eu sei é que cinco mezes depois recebi uma carta datada em
Londres.

Resava assim:

«Prometti-lhe uma palavra: ella ahi vai: E MORRO. Chore-me.»

                                                        _Leocadia._

Em 1834 Francisco de Proença veio a Portugal. Viajára seis annos, e
vinha casado, em segundas nupcias, ou terceiras, dizia alguem com a
filha d'um correeiro de Manchester.

Está vivo, e velho como eu.

Acabou-se a historia.


FIM.





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Foundation as set forth in Section 3 below.

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effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
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that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need, are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
http://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at http://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit http://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including checks, online payments and credit card donations.
To donate, please visit: http://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     http://www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
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