Scenas Contemporaneas

By Camilo Castelo Branco

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Title: Scenas Contemporaneas

Author: Camilo Castelo-Branco

Release Date: October 26, 2007 [EBook #23203]

Language: Portuguese


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SCENAS CONTEMPORANEAS.




SCENAS CONTEMPORANEAS

POR

CAMILLO CASTELLO-BRANCO.

2.^a EDIÇÃO.

PORTO:
EM CASA DE CRUZ COUTINHO--EDITOR,
Rua dos Caldeireiros n.^{os} 18 e 20.
1862.




Porto--TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA, _Rua da Cancella
Velha n.^o 62._




MORRER POR CAPRICHO.


I.


Os meus amigos, de certo, não sabem o que é caçar coelhos na neve?

Não admira.

Imaginem-se em qualquer aldêa, nas visinhanças do Marão. Olhem em redor
de si, e contemplem o quadro que os viajantes na Suissa lhes descrevem
todos os dias, supposto que nunca sahissem da sua terra.

A primeira impressão que recebem é a do assombro. Leguas em roda, nem na
terra nem no céo, se descobre uma crista de rochedo, a frança d'uma
arvore, a dobra d'uma nuvem, que não seja branca, alvissima, desde um
horisonte a outro horisonte.

E, depois, ha ahi em toda essa natureza amortalhada um silencio funebre.
Não cantam as aves, não balam os cordeiros, não silva o buzio de
pegureiro, não soam nas quebradas as campainhas da arreata de machos.

Se ouvis um rugido assobiado ao qual respondem outros, não vos afasteis
para longe da casa d'onde presenceaes, com o coração confrangido, esta
scena. É uma alcatéa de lobos, que descem famintos da serra, e serão
capazes de vos hirem buscar á cozinha, onde naturalmente tiritaes de
frio, sentados ao pé do tóro de carvalho.

Faço-vos esta recommendação porque sois uns homens afeminados, que nunca
sahistes dos salões, dos botequins, dos theatros, e das praças. Aposto
que se desseis de face com um lobo, de garras arqueadas, e fauces
inflammadas, antes que o lobo vos désse o cordial abraço da fome, já vós
tinheis perdida a sensibilidade, e consciencia da vida, e até o direito
que todo o homem tem de matar não só o seu semelhante, mas até um lobo,
em justa defeza!

Se eu podesse contar com o vosso animo, aconselhar-vos-hia, que em uma
d'essas manhãs de neve, com meio covado de altura nos terrenos chãos,
tomasseis um cajado, e, com duas finas cadellas de coelho, fosseis dar
na serra um passeio d'algumas horas.

O peor que podia succeder-vos era o desvio do caminho, que só com muita
pratica se acerta, e, quando mal vos precatasseis, resvalar n'um abysmo
de neve, onde nem as orelhas de fóra dissessem ao passageiro que um
moço, a todos os respeitos excellente, fôra alli absorvido por um
sorvete dos que a natureza offerece aos amantes de refrescos, com menos
economia que o _Guichard_.

Afóra este inconveniente, ainda ha o dos lobos, que muitas vezes tomam
conta das nossas cadellas, devoram-nas com uma perfeição e rapidez
fabulosas, e, quando Deus quer, fazem dos nossos corpos um supplemento
nutritivo ás nossas cadellas, deixando-nos a alma por muito grande
obsequio.

O terceiro percalço, affecto á caça do coelho na neve, aconteceu-me a
mim, ultimo dos mortaes, em 26 de Dezembro de 1844.

É o que tereis a bondade de procurar saber no capitulo seguinte.


II.


Fui convidado por alguns amigos a acompanhal-os á serra, porque o sol
refrangia-se em scintillas na neve, que parecia desfazer-se em laminas
de prata.

Fui muito contente da consideração que se me dava, como caçador, porque,
em verdade vos digo, atirei com certeiro olho a perdizes e galinholas.
Se nunca matei nenhuma, o que tambem é verdade, deve-se á pessima
polvora das nossas fabricas. Em compensação, matei muito melro e tordo
nas serdeiras, e consegui matar de noite uma coruja, africa que muitos
caçadores famosos de certo não fizeram. Eu fui um grande homem antes de
escrever folhetins! Deus perdôe a quem me torceu a vocação! Eu podia, a
estas horas, ser um habil corredor de lebres, e assim tornei-me a lebre
dos galgos sociaes.

Estes galgos sociaes, meu leitor, se tu és um d'elles, permitte-me
dizer-te que tens o faro muito descaçado, e que eu hei-de saltar por
cima de ti, quando cuidares que me abocas. Se não és galgo, sensato
amigo, aqui rasgo o diploma de tolo, que te concedi, sem te levar
direitos de mercê.

Agora, vai entrar a historia direitinha até ao fim.


III.


Subimos á esplanada da serra. Eramos seis. Dividimo-nos em tres grupos,
e combinamos em nos darmos signaes com tiros no caso de nos perdermos
encobertos pelo nevoeiro, que poderia de improviso esconder-nos os
cabeços das serras, unicas balizas que nos serviam de guia.

Assim combinados, cada grupo, com dous cães, seguiu as pégadas dos
coelhos impressas de fresco na neve. Eram muitos, e morriam á pancada,
porque os pobresinhos alapados debaixo das urzes, se fugiam, eram logo
mordidos pelos cães; se esperavam eram apanhados á mão. Alguns, mais
previdentes, tinham emigrado para as fundas colheitas, formadas pelas
sinuosidades interiores dos penedos agglomerados. A estes perseguia-os o
furão, que eu levava no meu cacifo, desalapava-os, e os cães, farejando
as avenidas da colheita, recebiam-os nos dentes, sacudiam-nos com o
rancor do instincto, e atiravam-nos mortos aos nossos pés.

Andamos assim uma hora, tão entretidos, tão esquecidos do mundo, que
nunca tão distrahida hora eu tive na minha vida, a não ser aquellas em
que durmo, e sonho que hei-de tornar áquelles meus dias de candura,
depois de lidar muito com a innocencia d'estas angelicas creaturas, que
vestiriam, por innocentes, como Adão e Eva, se a serpente lhes não
dissesse que andavam indecentes.

Ao cabo d'essa hora, toldou-se o ar, e cahiu uma segunda camada de neve.

O meu companheiro quiz logo voltar sobre os seus vestigios, porque
(dizia elle) d'aqui a minutos as nossas pégadas estarão cobertas, e não
saberemos caminhar para o nascente nem para o poente.

--Eu, por ora, não vou--lhe disse eu.

--Porque?

--Estou bem aqui. Acho muita poesia n'este quadro. Imagino que esta
chuva de neve se transforma em chuva de fogo... Este nevoeiro, que rola
em ondas aos nossos pés, e sobre a nossa cabeça, afigura-se-me o fumo do
grande incendio no juizo final! Olha... não te parece que o vento
espalha já as cinzas d'uma grande cidade! Não vês Sodoma lá em baixo
vomitando columnas de fumo?...

--Eu não vejo nada... Acho de muito mau gosto as tuas visões... vamos
embora...

--Vai tu... e quando encontrares os nossos companheiros, dá um tiro, que
eu lá vou ter. Estou bem aqui; não me mudo por cousa nenhuma.

--Até logo.


IV.


E eu continuei a vêr as minhas visões.

Parece-me que, por esses tempos, fui poeta, muito poeta, em elevações
d'alma para cousas de imaginação, que não era esta fria imaginação, que
tenho hoje.

Absorvido no meu quadro do juizo final, que só uma phantasia abrasada
poderia dar-me, transfigurando a neve em fogo, ouvi um tiro, e não fiz
caso. Ouvi segundo, e senti um piedoso desdem por aquelles homens, prosa
vil, que não tiravam partido do grandioso panorama, que a mão liberal da
natureza desenrolava diante de meus olhos absortos.

Não sabeis que o nevoeiro embriaga?

É uma verdade. A cabeça enfraquece; nos ouvidos ha um zunido, que vos
faz perder o rumo. Sentis uma sensação desagradavel, semelhante á do
giro penoso em que a indigestão do vinho vos traz a cabeça vertiginosa.

Foi o que eu senti, quando me furtei ás minhas contemplações improprias
do tempo e do lugar.

Ergui-me, e não sabia já designar a direcção que levára o meu
companheiro, nem o ponto onde se deram os tiros. Desfechei a minha
clavina, mas a humidade inutilisára a escorva. Os cães, que poderiam
ensinar-me o caminho, tinham seguido o meu companheiro. Não desanimei.

Tal direcção pareceu-me que deveria ser a melhor, e segui-a. O nevoeiro
deixava-me vêr apenas o espaço que pisava. Atravessei a lombada da
serra, e comecei a descer. Escorreguei muitas vezes nos algares da
encosta, e senti a neve pela cintura. Gastei duas horas, tres, quatro,
descendo, descendo, sem encontrar uma povoação. Conheci que estava
perdido. A neve augmentava. A noite aproximava-se, e nem um symptoma de
vida! Então, sim; tive medo, e imaginei que a minha sepultura, sem
solemnidade alguma, deveria encontral-a brevemente no estomago d'algum
lobo.

E, de mais a mais, eu tinha fome.

Todos os provimentos, que eu levava na minha rede, eram um pedaço de
brôa para o meu furão. Reparti-o entre nós. O animalsinho comeu com
appetite, e pilhando-se solto, como o seu officio era desemlapar
coelhos, entrou na primeira lura que viu, e fez saltar fóra um gato
bravo, que espirrava diabolicamente por cima dos tojos coroados de neve.

Nunca me esqueceram os espirros d'este gato bravo!

Continuei o meu caminho, sem esperanças de encontrar pousada.

Escureceu.

Encostei-me, desalentado, a um castanheiro, e fiz da minha pobre cabeça
uma cabeça academica.

Pensei muito, estabeleci varios raciocinios, que conspiraram em
provar-me, que, perto d'alli, devia existir uma povoação, por isso que
os castanheiros, campos, e paredes eram indicios de aldêa proxima.
N'este comenos, ouvi um mugido de boi, e em seguida uma sineta, que
tocava ás «Ave-Marias.»

Aquellas tres badaladas ergueram a Deus o meu espirito reconhecido. Orei
com a devoção dos dezoito annos. Não vos digo mais nada a este respeito,
porque me não entenderieis. Sois excellentes pessoas para devorar um
romance em dez volumes; mas não lerieis, sem abrir tres vezes a bocca,
uma pagina de sentimentos embalsamados do aroma do céo, que o poeta não
deve nunca profanar, misturando-os a frioleiras d'uma historia, ao
alcance de todas as capacidades.

Eu creio que entre vós ha entendimentos muito finos, paladares muito
apurados no sabor do bello, corações muito brandos para emoções suaves.
Creio que sim; mas o melhor é fazer de conta que os não ha.


V.


Minutos depois, achava-me n'uma povoação, onde nunca estivera. Encontrei
uma velha que castigava um porco, rebelde á invocação de sua ama, com
uma roca.

Perguntei-lhe que povo era aquelle.

--Alpedrinha--disse ella.

Ora, Alpedrinha distava duas leguas e meia de minha casa. Era necessario
pernoitar alli. Perguntei á dita velha onde morava o parocho. Mostrou-me
a casa. Pedi gasalhado ao reverendo, que n'esse momento voltava da
igreja. Disse-me que subisse. Quiz saber quem eu era, e tratou-me
delicadamente, quando lhe citei um medico, pessoa de minha familia.

O snr. padre Joaquim era um padre admiravel. Tinha maneiras da côrte.
Vestia com muita limpeza. Fallava com prodigiosa correcção, e offerecia
aos seus hospedes aguardente e biscoutos, tudo do melhor, e servido em
bons crystaes e polida salva de prata.

Momentos depois que eu chegára, apeou á porta do meu sympathico
sacerdote um cavalleiro, ainda moço, muito pallido e magro, com chapéo
hespanhol, faxa vermelha, e botas d'agua.

Era um estudante de Coimbra, que voltava doente para sua casa, e
costumava pernoitar em Alpedrinha, com aquella familia.

A primeira pergunta do academico foi esta:

--Como está a snr.^a D. Amelia?

--O mesmo...--respondeu padre Joaquim.

--E seu mano? Tem vindo a casa?

--Não senhor: desde que foi delegado para * * *, ha tres mezes, não
voltou....

Eu estava ancioso por conhecer a snr.^a D. Amelia, porque até ao momento
em que o estudante chegou, suppunha eu que toda a familia do parocho se
limitaria a alguma ama, e alguns pequenitos, que, de ordinario, são
afilhados do padre. Depois das perguntas do meu illustre companheiro de
hospedagem, fiquei sabendo que n'aquella casa existia uma snr.^a D.
Amelia, e um senhor delegado de * * *.

Padre Joaquim contou ao academico as minhas aventuras de caçador;
disse-lhe que me tinha achado muito fino (referia-se naturalmente á
magresa), e fez a apologia dos meus olhos, que, naturalmente, revelavam
uma extraordinaria esperteza, espiritualisados pelo espirito de vinho,
que o sacerdote me injectou nas veias marasmadas pelo frio.

Conversei com o academico. Perguntei-lhe muitas cousas de Coimbra:
quantos canellões soffria um calouro; o calculo aproximado dos puxões de
orelhas; a solemnidade indecente de certo vaso na cabeça.... &c. &c.

O academico respondia-me com muito agrado, e offerecia-se para meu
protector em Coimbra, no anno seguinte, que devia ser o da minha
partida.


VI.


--Snr. Valladares--disse o padre ao estudante--minha cunhada ergueu-se
da cama para vir comprimental-o...

--É uma grande consideração, que eu lhe não mereço; mas a delicadeza da
snr.^a D. Amelia é sempre um severo preceito que ella se impõe.

Fallou bem.

N'isto, entrou uma senhora, com um ar de tanta nobreza, que me pareceu
uma cousa nova. Eu não conhecia assim nenhuma. Era alta, muito magra no
rosto, mas muito bella nos olhos, nos labios, nos cabellos, em tudo se
via tanta formosura, tanto donaire, um senhoril tão estreme do vulgo,
que eu, creança e poeta, senti-me tão acanhado como o mais boçal dos
pastores de cabras d'aquella freguezia.

--Como passou, snr. Valladares?--perguntou ella com voz tremula,
tossindo a cada palavra, e aconchegando da face a golla de veludo da sua
capa.

--Sempre doente, minha senhora... Por não poder mais, recolho-me a
casa...

--Eu bem lhe disse que não fosse... v. s.^a teimou, agora já sabe que os
conselhos d'uma mulher não são sempre pieguices...

--E os de v. exc.^a nunca poderão sêl-o... E a snr.^a D. Amelia como
está?

--D'este modo que vê... Tossindo sempre, sempre mal, sem descanço d'este
lado, que me parece que já não vive, se não para matar o resto de vida
que tenho...

D. Amelia indicava o coração.

--Porque não dá um passeio até Lisboa?--tornou o academico.

--Isso lhe tenho eu dito todos os dias--atalhou o padre.

--De que me serve Lisboa?

--São ares patrios, minha senhora. Talvez o contacto do coração com as
suas amigas de collegio...

--Eu já não tenho coração para contacto com amigas nem inimigas, snr.
Valladares...

--O que v. exc.^a tem é uma ardentissima imaginação, alma de poeta, que
só tem a sensibilidade do que é triste, e não sabe tirar recursos da
esperança...

--Esperança!...--murmurou ella com um triste sorriso, e voltando-se para
mim, perguntou-me:

--Já sei que este senhor esteve em risco de passar uma noite divertida
com os lobos...

--É verdade, minha senhora; mas a Providencia encaminhou-me ao paraizo,
depois de me ter mostrado o inferno.

--Ora ahi tem uma resposta d'um moço, que seria pena comerem-no os
lobos!...--disse o padre, desafiando um gracioso sorriso de Amelia.

--Ha-de dizer ao seu parente medico que me salve da sepultura assim como
nós esta noite o salvaremos de ser victima dos lobos--disse-me ella,
apertando affectuosamente a mão de Valladares, em despedida, porque a
tosse exasperava-se cada vez mais.

Esta rapida apparição impressionou-me muito. Queria fazer mil perguntas;
mas eu não tinha a quem. O padre e o estudante fallaram em assumptos,
que me não interessavam nada. O que eu queria era a vida, a historia, os
soffrimentos, a poesia d'aquella mulher. Eu tinha lido, dias antes, não
sei que romance, onde vira uma mulher assim...

Appareceu um taboleiro com a cêa. O abbade fez o prato de D. Amelia. Era
uma aza de gallinha, que elle mesmo lhe serviu.

Valladares tambem comeu do pucaro da doente. Eu, com o abbade, entramos
corajosamente n'um coelho guisado, cuja retaguarda cortamos com um
excellente caldo verde, e lourejantes castanhas assadas com manteiga.

No fim, demos graças a Deus.

O padre, segundo o seu costume, foi sentar-se á cabeceira de sua
cunhada. Eu e Valladares entramos n'um quarto commum.


VII.


O academico tinha uma physionomia franca e insinuante. Conversava comigo
sem desdenhosa superioridade. Familiarisamo-nos depressa, como dous
futuros companheiros de casa em Coimbra.

Eu fui um grande fallador, n'aquella idade, em que pensava menos. O meu
recente amigo sympathisou com a minha garrula eloquencia, e dava signaes
de desenfado, quando naturalmente devêra querer dormir, depois de uma
fatigante jornada, em dia de neve.

Eu não era rapaz que, por delicadeza, calasse a minha curiosidade a
respeito de D. Amelia.

--O senhor faz-me o favor de me dizer uma cousa?--disse eu.

--Que é? quantas horas são?... são 10... quer dormir?

--Não, senhor: queria saber quem é esta snr.^a D. Amelia?

--É cunhada do padre, e casada com um sujeito, delegado em * * *.

--Isso já eu sabia... pouco mais ou menos.

--Então sabe tanto como eu...

--Mas é d'aqui d'esta aldêa esta senhora? Creio que ouvi dizer que era
de Lisboa.

--É verdade... nasceu em Lisboa...

--E como veio parar aqui n'este matagal? Naturalmente perdeu-se, como
eu, na serra, por causa da neve, e veio cá bater, e cá ficou! Pois eu
dou-lhe a minha palavra de honra, que apenas vir luzir o buraco,
retiro-me sem mais ceremonias d'este delicioso covil de cabras.

O meu amigo ria-se. Estava disposto a achar-me graça, e o leitor póde
tambem rir-se, se lhe aprouver.

E acrescentou ao sorriso:

--Parece-lhe impossivel que a tal senhora viesse de Lisboa para aqui sem
ser impellida por um acaso?

--De certo... Já não admira que ella tenha tosse de tisica... O que me
espanta é ella viver, se cá está desde hontem!... Quando veio ella?

--Ha dous annos.

--Então é eterna... ou santa. Hei-de dizer que encontrei esta martyr a
uma minha tia, que é capaz de jurar que a viu fazer milagres...

--O menino é sarcastico! Se o não visse tão inclinado a rir-se de cousas
serias, contava-lhe uma historia triste...

--E eu gosto muito de historias tristes... Verá que me não rio, quando
me dizem alguma cousa que me toque o sentimento. A minha familia
chama-me poeta; os visinhos chamam-me tolo; não sei bem o que sou; mas o
que não sou é insensivel... Vê... já não tenho vontade de gracejar...
Conte-me agora a historia, que eu prometto contar-lhe outra que me fez
chorar, porque é uma passagem tão infeliz, que, se eu fizesse novellas,
escrevia uma.

--Talvez as escreva no futuro...

--Eu?... Deixe-se d'isso... O meu mestre de logica diz que eu sou um
alarve, e o de rhetoria já me mandou ser aprendiz de alfaiate... Não
tenho habilidade nenhuma. O meu gosto é lêr os sonetos do abbade de
Jazente, e as quintilhas do Nicolau Tolentino. Não sei mais nada, nem
quero saber... Vamos á historia, sim?

--Então aproxime-se de mim, que eu quero fallar baixo. Mas, antes de
mais nada, promette não contar a ninguem o que vou dizer-lhe?

--Pois é segredo!

--É.

--Prometto...

--Pois ahi vai.


VIII.


--Esta senhora viveu em Lisboa até aos dezeseis annos. Hoje o mais que
póde ter são vinte e dous.

--Só?! Eu calculava trinta e tantos _bons_, como diz minha tia, quando
quer fazer todas as pessoas mais velhas que ella.

--Pois deixemos lá sua tia, que deve ser, pouco mais ou menos, como
todas as tias... Vamos com a nossa historia, e depressa, senão adormeço,
e o meu curioso amigo perde a occasião de saber quem é a snr.^a D.
Amelia...

--Isso de modo nenhum--atalhei eu com sobresalto--Prometto não
interromper a historia.

--Pois bem. O pai d'esta senhora morreu em Lisboa, e o conselho de
familia deliberou que a orphã viesse para a provincia, onde tinha tios,
e o seu patrimonio em quintas.

Quando appareceu em * * *, os rapazes fizeram-lhe montaria, e disputaram
a primazia no namoro. D. Amelia não aceitava, nem repellia a côrte de
nenhum. Tinha o mesmo riso para todos, e fallava a todos com a mesma
delicadeza.

Havia alli um rapaz que não frequentava a sociedade de Amelia, porque
não frequentava sociedade nenhuma. Fôra educado em Genova, viera de lá
aos quinze annos, vivera no Porto até aos vinte e cinco, e quando
recolheu á provincia, d'onde sahira de tres annos, com a sua familia que
emigrára em 1828, ninguem o conhecia, e elle mesmo não queria conhecer
ninguem.

Chamavam-lhe celebre, exquisito, excentrico, orgulhoso, impostor, e não
sei que muitas outras lisonjas do charco de certos espiritos, que não
podem sahir da pequena esphera de lama, que a natureza lhes deu por
homenagem.

D. Amelia viu este rapaz n'um cemiterio: leu um epitaphio que elle
mandára abrir na sepultura de seu pai que o deixára em Genova no
collegio, e viera morrer em 1836 á patria: comprimentou-o de passagem,
respondendo a um distincto cortejo do melancolico poeta; e parece que,
desde esse encontro, Amelia transfigurou-se para todos os homens, deu
que pensar á sua familia, queria todos os dias visitar o cemiterio, e
retirava quasi sempre mais triste, porque muito raras vezes encontrou
alli o invisivel extravagante da opinião publica.

--Como se chamava elle? Eu conheço alguns rapazes de * * * que foram
meus condiscipulos em logica.

--Não é nenhum dos seus condiscipulos. Já lhe disse que este sujeito
veio do Porto para a provincia, com vinte e tantos annos pelo menos. O
seu appellido é Côrte-Real, conhece?

--Nada, não conheço; mas ouço fallar todos os dias n'esse rapaz.

--Que ouve dizer?

--Que está em Lisboa, doudo, no hospital...

--O senhor afiança-me isso? Ha que tempo endoudeceu?

--Ha dous ou tres mezes...

--Quem lh'o disse?

--Um medico, meu parente, que o mandou conduzir para a enfermaria dos
doudos.

O academico fez-me signal de silencio, e mandou-me ouvir.

--Não ouve?--disse elle.

--Ouço... é alguem que soluça...

--É ella...

--D. Amelia?

--Sim... Ouviu a nossa conversa... Tem ouvidos de tisica...

--É admiravel!... Pois o quarto d'ella não é longe d'este?

--Passam-se tres quartos, mas os repartimentos são de tabique, e eu não
me lembrei de tal... Calemo-nos...

--E a historia?... Falle mais baixo, que ella não ouvirá mais nada...

--Agora, é impossivel... Aquelles soluços transtornaram-me a cabeça...
Deite-se, e ámanhã fallaremos antes de nos despedirmos...


IX.


Á cabeceira do meu leito, estava um volume das _Viagens de Cyro_, e o
quinto volume d'uma _Miscellanea curiosa e proveitosa_, onde encontrei
uma longa poesia a _D. Ignez de Castro_, que me fez dormir até ás 8
horas da manhã.

O meu companheiro, quando abri os olhos, estava sentado na cama, e
escrevendo nas paginas d'uma carteira.

--O senhor está a fazer versos?--perguntei eu.

--Adevinhou.

--Faz favor de recitar, se não é segredo!

--Recito: olhe lá se entende:

    _Eras um anjo? Se o eras
    Que torvo facho do inferno
    Te queimou as azas? Diz:
    Porque, tão cedo, infeliz
    Cahes no abysmo eterno_!... ETERNO!

--Entendeu?

--Não, senhor.

--Veja se entende agora:

    _Eras pura, quando lagrimas
    Tu me déste, e me pediste...
    Tu choraste aqui, choravas...
    Mas porque? prophetisavas
    Este abysmo em que cahiste?_

--Entendeu?

--Nada... Ora diga-me os versos tem alguma cousa com a historia que
ficou suspensa?

--Não, senhor; pertencem a outra, que nasceu aqui n'esta casa, e que é
toda minha...

--Esta casa parece-me uma casa de novella... Estou a vêr se aqui arranjo
tambem alguma historia para contar a minha tia, que está resando o
quadragesimo responso a Santo Antonio por minha causa, se é que já me
não resou por alma... Então o senhor não conta ao menos a primeira
historia completa?

--Hei-de contar.

--Quando? Eu vou-me embora logo.

--Não vai. Já aqui esteve o padre, e disse que não sahiriamos d'aqui
hoje, porque augmentou de noite a neve.

--Deixal-a; mas a minha familia, se eu não appareço, nem dou parte de
mim, julga-me morto, e é capaz de me fazer officio de corpo ausente.

--Não se assuste, que o padre hontem á noite mesmo fez partir para a sua
aldêa um criado com a certeza de que o senhor ficava vivo, e mais o seu
furão.

--A proposito, sabe se já dariam de almoçar ao meu furão.

--É natural que sim... Ahi vem o snr. abbade; perguntemos-lhe... Snr.
padre Joaquim, pergunta alli o nosso amigo se o furão ja almoçou.

--Comeu quatro ovos, e está agora brincando com minha cunhada, que é
muito amiga de bichos.

--E como passou ella?--perguntou Valladares.

--Penso que melhor... Ergueu-se muito cedo: a creada disse que a vira
chorar toda a noite; mas agora fui, com grande espanto meu, encontral-a
com o furão no regaço, a sorrir-se como quem é muito creança e muito
feliz... Sabe o senhor que...

Não sei bem o que o padre disse ao ouvido do estudante. Desconfio, pela
resposta, que o resto do segredo era o receio de que ella endoudecesse.

Tudo isto, apurava-me o desejo de saber o que era a demencia de
Côrte-Real, e a tisica de Amelia.


X.


Almoçamos.

D. Amelia esteve comnosco alguns minutos, ouvindo não sei que palavras a
meia voz, do meu amigo, inintelligiveis para mim, supposto que ahi se
fallasse duas ou tres vezes n'uma D. Miquelina. Tudo mysterios!

O padre foi dizer missa. D. Amelia foi com elle. Fiquei com Valladares,
tremendo de frio, ao pé d'uma bacia de brazas. O attencioso levita teve
a delicadeza de nos não convidar a participarmos da sua missa, que
n'aquelle dia, com tal frio, faria hereges espiritos devotos.

--Ahi vai agora a continuação da historia--disse o academico, engulindo
o fumo de quatro cigarros successivos--A familia d'esta senhora é muito
realista, muito fanatica, arde em odio contra os impios, que são todos,
menos os sectarios de D. Miguel, e alguns, senão todos, de D. Sebastião.
A familia de Côrte-Real é ultra-liberal, odeia os realistas com aquelle
odio saturado na emigração, e não admitte honra, intelligencia, nem
merecimento em homem que não fosse capaz de cortar as orelhas a um
miguelista, se elle estiver por isso. Já vê que as duas familias
detestam-se. De parte a parte no momento em que as relações de Amelia
com Côrte-Real fossem percebidas, imagine o meu amigo que não hiria!

--Então elles namoravam-se?

--Pois eu não lhe disse já que sim?

--Não, senhor: disse-me que Amelia passeava repetidas vezes no cemiterio
para vêl-o, mas que não o via muitas vezes. Eu queria saber como se
encontraram... porque... desejo saber como é que a gente póde sahir d'um
encontro d'esses!... Não ha muito que me vi entalado com um d'esses
encontros... Eu tinha o recado na ponta da lingua, e, quando vi a
mocetona, que não era cousa de atarantar um estudante de logica,
pegou-se-me a lingua ao céo da bocca, como diz não sei que poeta... _vox
faucibus hoesit_... Que lhe disse elle quando a viu?

--Isso é que eu não sei, porque não ouvi. O que sei é que se fallavam
por cartas, e entretiveram assim relações seis mezes. Por fim,
descobre-se o namoro. Côrte-Real fallava da rua para a janella com
Amelia: um tio d'ella é avisado; espera-o no pateo, com a porta fechada,
e, quando elle principia a dizer bellas cousas, o tal bruto abre a
porta, e descarrega-lhe quatro bordoadas, que o pozeram fóra do combate.
No dia seguinte, mandou-lhe a casa a capa, o chapéo, e uma clavina, que
fôra tres vezes batida á queima roupa do tal varredor de feiras.

--E depois?

--D. Amelia, duas horas depois, foi mandada entrar n'uma liteira, e
conduzida a casa d'este padre.

--Para que?

--Para ninguem saber o seu destino, em quanto vinha de Lisboa, onde ella
tinha o conselho de familia, uma ordem para ser recolhida a um convento.

--E Côrte-Real que fez?

--Curou as feridas da cabeça, e indagou o destino de Amelia. Como o não
soube, cahiu n'uma melancolia profunda, teve accessos de loucura, e,
pelo que o senhor me disse, está hoje no hospital de Rilhafolles.

--E Amelia casou-se?

--Pois no casamento é que está o interessante da historia.

Quinze dias depois da sua vinda para aqui, chegou de Coimbra o irmão do
padre. Parece que sentiu por Amelia o que era muito natural que
sentisse. Amou-a, mas não ousou declarar-se, porque sabia os
precedentes, que a trouxeram a esta casa. Ella, por si, tractava-o com a
fria delicadeza da indifferença, até ao momento, em que recebeu de uma
sua tia a noticia de que viera ordem do conselho de familia para ser
conduzida a Lisboa, e lá recolhida em um convento.

Lida a carta, Amelia offereceu-se como esposa do bacharel. O imprudente
sem mais nem menos, aceitou a offerta. Alcançou do arcebispo dispensa de
banhos e consentimento do tutor: o irmão, sem consultar a philosophia, a
religião, e a consciencia, casou-os. Na tarde do dia das bodas, chegou a
liteira que devia levar a orphã a Lisboa. Amelia apresentou-se a seu tio
com um desdenhoso sorriso, e disse: «Não tenho duvida nenhuma em hir
para Lisboa, e para um convento, mas é necessario que meu marido vá
comigo.»

--Seu marido!--exclamou o tio estupefacto.

--Meu marido... aqui lh'o apresento.


XII.


--Dias depois, esta victima dos seus caprichos, cahiu doente. O medico
capitulou-lhe a enfermidade de tisica no primeiro grau. O marido
arrependeu-se muito cedo. Ella não se arrependeu, porque sabia que dava
um passo que devia matal-a. E, com effeito, está alli... está morta...

...Ahi vem ella e o padre... Fallemos d'outra cousa...
...........................................................................
...........................................................................


CONCLUSÃO.


Um anno depois, em Coimbra, dizia-me Valladares:

--Olha que tive carta do abbade de Alpedrinha. D. Amelia morreu, e as
suas ultimas palavras ao marido foram estas: MORRO POR CAPRICHO.




UMA PAIXÃO BEM EMPREGADA.




UMA PAIXÃO BEM EMPREGADA.


I.


O meu amigo Valladares, em uma tarde formosa, passeando comigo no
_Penedo da Saudade_, sentou-se, accendeu um cigarro com perfeição
academica, abriu a carteira, e recitou-me os versos, que, um anno antes,
me recitára em Alpedrinha.

--Lembras-te?--disse elle.

--Perfeitamente. Prometteste contar-me então uma historia.

--Vou cumprir a promessa.

--E disseste que o teu conto prendia muito com aquella casa.

--Disse, e vaes vêr porque. Olha que eu não vou fazer estilo. Prepara-te
para uma narração simples, e clara. Não pertenço á escóla dos nossos
lapidarios de palavras, que nos dizem em estilo de Corneille as scenas
comicas de Moliere. A minha historia, se tal nome lhe cabe, é uma
tragedia com muitas scenas de farça. Ainda que me não vejas rir, tens a
liberdade da gargalhada. Ahi vai:

Em 1843 fui á feira do Santo Antonio a Villa-Real. Encontrei ahi uma
familia que mora uma legua distante de minha casa. Compunha-se d'uma
senhora idosa, que era mãi d'um cavalheiro, e este cavalheiro era pai
d'uma bonita mulher, que teria dezoito annos. Gostei d'ella, ou antes
confirmei a sympathia que ella me tinha presa desde que a vi, pela
primeira vez, dous annos antes, n'umas ferias grandes. Não lhe disse
quasi nada. Eu era rapaz de dezoito annos, e, aos dezoito annos, um moço
d'aldêa tem o coração acanhado, e córa facilmente, quando encontra os
olhos d'uma mulher, supposto que os veja constantemente em sonhos. A
rapariga chamava-se Miquelina; isto não faz ao caso; mas sempre te digo
que nunca suppuz poder pronunciar este nome sem lagrimas... O que é o
tempo!...

Combinamos partir juntos de Villa-Real. Não recordo na minha vida um dia
mais feliz do que o dia da nossa partida! A familiaridade animava-me a
dizer algumas palavras d'aquellas que nunca exprimem senão a sombra do
sentimento. Miquelina corava, mas nem por isso sustinha as redeas do
cavallo para esperar a avó e o pai, que vinham alguns passos distantes.

Teriamos andado legua e meia, quando o macho em que vinha montada a
velha tomou susto d'um tiro, que se deu ao lado da estrada, recuou, e
deu em terra com a pobre senhora. Acudimos todos.

Encontramos-lhe uma fractura profunda na cabeça, e uma perna quebrada.
Perguntamos se d'alli perto haveria uma casa onde nos recolhessemos.
Encaminharam-nos a Alpedrinha, e a casa era a do padre onde me
encontraste.

O acolhimento que nos deram foi excellente. Encontrei ahi o irmão do
abbade que era meu contemporaneo em Coimbra. Os facultativos disseram
que era impossivel continuar jornada, e ahi ficamos vinte dias.

N'este espaço de tempo, sonhei a felicidade, por que hoje sei que não
existe a realidade d'esses sonhos. Fui muito feliz, senti-me poeta,
idealisei á sombra de Miquelina cousas e pessoas que nunca tiveram senão
materia vilissima para as aspirações do poeta. Em fim, meu caro, cheguei
a recuperar a fé perdida nas cousas da Providencia, porque me parecia
impossivel tanta felicidade sem consentimento especial da Providencia.

Disse a Miquelina tudo que humanamente póde dizer-se. Traduzi-lhe em
palavras os extasis, que as não tinham. Interessei-a na comprehensão da
minha alma, e arranquei-lhe uma palavra, que mil vezes lhe morrera nos
labios, como queimada pelo ardor do pejo. Quando ella me disse «amo-o»
se não endoudeci de contentamento, é porque a disposição do meu cerebro
é invulneravel aos golpes da demencia. Hoje rio-me d'isto, e tu, se te
não ris, agouro-te que não poderás dizer o mesmo a respeito da tua
cabeça, passados alguns annos.

--Porque?

--Porque das duas uma: ou doudo, ou cynico. Tomar a serio a sociedade é
endoudecer. Viver com ella em boa paz é escarnecel-a. Ou doudo ou
cynico. Não enlouqueci; mas depravei-me. Este escarneo, que
indistinctamente voto a tudo, é a negação da piedade para todas as dôres
nobres, e a do odio para todos os prazeres infames. Não me espanta nada.
Aperto a mão do mais corrupto, e a do mais virtuoso com a mesma graça.
Recebo todos os desaforos como factos consumados. Não dou dez reis pela
virtude dos missionarios do Japão, nem daria cinco de volta se elles me
trocassem a sua fé pela minha illustrada impiedade. Eu e elles somos
bons, ou maus: como quizerem. Eu acho que todos somos excellentes filhos
de Deus, e Deus, que nos conserva, lá sabe a razão porque o faz...

--Tu não sentes o que dizes...

--Estás a brincar comigo!... Pois não sinto o que digo?! Tu não vês o
que está dentro d'este homem, nem pódes ainda ajustar á face do cadaver
a mascara que o retrate...

--Mas é possivel ser-se o que tu és?!

--Se é!... Se me não tivesses interrompido, já sabias a razão porque o
sou... Nada de interrupções... Se começo a divagar, digo diabruras,
perco-me em abstracções, que te hão-de parecer pretenciosas, e lá vai a
historia...

--Palavra, que não te interrompo...

--Quando sahimos de Alpedrinha, as minhas intimidades com Miquelina eram
já suspeitas ao pai, que não se entremettia paternalmente no negocio.
Sabes que eu tenho uma soffrivel casa, e Miquelina não era muito mais
rica. Era possivel, e até vantajoso um casamento. Murmurou-se n'este
assumpto em casa do padre, e eu fui consultado por elle.

Isto arrefeceu-me um pouco. Não queria que me viessem tão cedo direitos
ao materialismo. A pequena, porém, não tinha culpa. Eram cousas da
velha, que quebrára a perna, mas ficára com a alma inteira para seguir o
recto caminho, a logica implacavel do namoro, banhos, casamento, filhos,
aborrecimento, barrete de dormir, catarrho, cangalhas no nariz, e
rheumatismo.

Eu amava verdadeiramente Miquelina. Instado pelas perguntas do officioso
abbade, respondi que me casaria um anno depois, porque não queria dar
tal passo sem o consentimento d'um tio, que fôra receber ao Brazil uma
herança, que viria augmentar consideravelmente a minha casa.

Ficamos n'isto.

Tres vezes por semana, durante os dous mezes de ferias, visitei
Miquelina, e revalidei os meus votos, porque esta paixão não era das que
fogem quanto mais faceis se aproximam. A minha Beatriz parecia-me boa de
coração, ajuizada de cabeça, fina de espirito, e em quanto á cara, ao
corpo, e ao donaire... dir-te-hei que as seducções eram tantas, e tão a
proposito que nunca tive occasião de me sentir de uma illusão
desvanecida. Vim para Coimbra. A nossa despedida foi pathetica.
Beijei-lhe a testa pela primeira vez. Comprimi-a ao coração com o
enthusiasmo do primeiro abraço. Recebi da sua mão tremula, como prenda,
o lenço com que enxugára as lagrimas, e retirei-me com o coração
partido, mas vaidoso de esperanças, que a saudade me dourava no meu
lindo futuro.

Logo que aqui cheguei, escrevi-lhe. Imagina o que eu lhe diria! Eram
vinte folhas de papel, escriptas em todas as estalagens onde pernoitei,
e fechadas com uma especie de hymno de lagrimas, em que se me foi tudo o
que a minha alma podia dar de superior áquillo que todos os homens sabem
dizer n'uma carta de namoro.

Respondeu-me. A sua carta era simples, mas os toques eram verdadeiros...
pareciam-no... via-se alli a mulher que escreve a primeira carta, o
coração timido que balbucia os sons d'uma selvagem innocencia, que é a
felicidade do homem que primeiro os tira do coração d'uma virgem.

Tres mezes assim. Tres mezes d'uma vida phantastica. Ancias insaciaveis
das suas cartas. Tristezas dôces quando me faltavam n'um correio. Zangas
sem odio, se o coração de tão longe a criminava de ingrata. Tres mezes
assim... e no fim de tres mezes... adevinha o que aconteceu...

--Eu sei cá... morreu?

--Não.

--Veio cá ter comtigo?

--Não.

--Abandonou-te?

--Abandonou.

--Isso é incrivel!

--Acredita. Agora adevinha por quem eu fui preferido.

--Eu só te conheço a ti na tua terra...

--Imaginas que algum dandy a requestou de modo que a fragil creatura
succumbiu ás seducções invenciveis?

--Só assim.

--Ora adeus! Tu não adevinhas, porque não sabes nada de mulheres...

--Foi o pai que a forçou a casar-se com algum brasileiro muito rico?...

--Tambem não...

--Diz lá isso, que estou impaciente...

--Pois lá vai: a minha querida Miquelina, o meu anjo que corava se o meu
halito lhe roçava nas faces, a minha pudibunda Virginia que recebeu o
meu primeiro beijo a tremer, a minha mimosa sensitiva que parecia
resequir-se á mingoa dos meus carinhos... sempre queres que te diga?

--Pois então?

--A minha promettida esposa... fugiu com um... digo?

--Acaba, homem!

--Com um lacaio da casa!... Ólá! não fiques assim atordoado! Rite, como
eu...

--Isto é inconcebivel!... E depois?

--Depois... que queres que eu te diga?

--Que fim teve essa mulher?

--Foi agarrada por ordem do pai, e o lacaio morreu arcabusado
summariamente para não dar que fazer á justiça.

--E ella... vive?

--Creio que sim.

--Na companhia da familia?

--Não... Tu não me disseste que viras no Porto... Fiquemos aqui...

--Isso de modo nenhum... Has-de concluir...

--Pois sim... que importa!... Não me disseste que viste no Porto uma
meretriz que revelava uma boa educação, e não queria dizer d'onde era,
nem como viera áquella vida?...

--Disse... mas não se chamava Miquelina...

--Isso não faz nada ao caso... Rosa, ou Miquelina, é a mesma... é a
minha promettida esposa, é o anjo dos meus primeiros amores, é a pomba
alvissima da innocencia que encontrei em Alpedrinha... É ella...
Basta... É noite... Vou fazer monte, e depois, se te quizeres embriagar
comigo, vamos ao _Paço do Conde_, e beberemos á saude da exc.^{ma}
Miquelina Alpoim e Malafaia, victima d'uma paixão pelo infeliz lacaio,
que desceu ao tumulo... das illustres victimas. Já sabes como se faz um
cynico? A esses parvos, que por ahi andam a gaguejar um scepticismo que
cheira a cueiros, dá-lhe com uma palmatoria.

E não tornou a fallar-me n'esta mulher.




DE ABYSMO EM ABYSMO.


Eu é que não podia satisfazer a minha curiosidade com a descosida
revelação de Valladares.

Muitas vezes acalorei a questão do cynismo, applicando-a a Miquelina;
mas este nome enfurecia-o de tal modo, que as nossas relações estiveram
a romper-se, e reataram-se com a condição de eu nunca lhe tocar
ligeiramente em semelhante assumpto.

Sujeitei-me; mas, na primeira occasião prosperada pelo acaso, alcancei
esclarecimentos, que illucidam a degradação da pobre mulher.

Em 1848, Miquelina vivia ainda no Porto. A sua vida já a sabem. Como
veio ella tão abaixo?

Foi assim:

Alguns dias depois da fuga vergonhosa com o defunto lacaio, Miquelina
foi conduzida a Lisboa. A avó, que pôde sobreviver ao golpe, quiz salvar
a neta da colera do filho. Este ausentára-se para Chaves, no momento em
que a filha entrára em casa. De lá, escrevendo á mãi, dizia-lhe que
désse á infame algum destino, porque, em quanto a sua presença
envergonhasse aquella casa, nunca elle tornaria alli.

D'aquella familia estava em Lisboa um magistrado, tio materno de
Miquelina. Foi este o encarregado de recebêl-a durante alguns mezes na
sua casa.

Não se passaram muitos dias, sem que Miquelina revelasse os seus
instinctos. Namorava escandalosamente um homem, sem nome, que
frequentava as janellas d'um alfaiate, que morava em frente.

O magistrado suspeitou, e prohibiu-lhe o uso das janellas. O homem, que,
por força, havia de ter um nome, e poderia muito bem chamar-se José
Maria, não era tão escasso de meios que não comprasse um creado da casa.
O creado era o intermedio da correspondencia, menos da ultima carta,
surprehendida pelo magistrado. Esta carta authorisava José Maria a
empregar a força judicial para tirar de casa Miquelina. N'esse mesmo
dia, a perigosa «donzella» foi mudada para casa de um general, cunhado
de seu tio.

O general era solteiro, homem de cincoenta e tantos annos bem
conservados, admirador das boas mulheres, e vigoroso ainda para não
desmentir o culto, quando se lhe pedissem provas praticas das theorias
um pouco irrisorias na sua idade.

Tinha comsigo duas irmãs, mais novas, que, _mutatis mutandis_,
professavam as idêas do irmão.

Dito isto, vê-se que a casa, onde Miquelina foi reclusa, era um viveiro
de moral.

Foi bem recebida, e até muito bem aconselhada. As irmãs do general
fallavam muito da virtude, e da honra. Quem as não conhecesse,
acrescentaria duas martyres ineditas ás onze mil virgens conhecidas, de
que Byron duvidou, e eu não me sinto muito propenso a acreditar, nem o
meu amigo Valladares.

O José Maria não sei que fim levou. Seria algum d'esses quatro que em
1845 se precipitaram dos «Arcos das Aguas-livres!?» Se foi, não andou
bem, porque fez as cousas de modo que ninguem falla d'elle. Os
_Werthers_ sabem escolher as occasiões, senão... é melhor deixarem-se
morrer de tedio, que é a morte que me espera a mim, e a ti, leitor, no
fim d'este livro, se não morreres no meio.

O general namorou Miquelina. Namorando-a, seduziu-a. Seduzindo-a,
abriu-lhe a outra meia porta da corrupção.

Porque foi assim que as cousas se passaram:

Miquelina affeiçoou-se ao general, como se affeiçoára a Valladares, ao
lacaio, e ao José Maria. Trazia o cunho da perdição! Era uma d'estas
desgraçadas que a gente vê cahir, cahir, cahir a despeito de todos os
estorvos! Que Deus, ou que demonio imprime o movimento n'estas machinas,
sem coração nem cabeça? Não se sabe! A verdade é que eu sinto vontade de
chorar essas victimas cegas d'um destino barbaro, e tenho furias de
blasphemo quando me dizem que Deus se entremette nas cousas d'este
mundo... Vamos adiante, senão atiro a penna fóra, e rasgo o papel...

Ora já vedes que o general era um devasso, e a pobre menina deve
merecer-vos uma pouca de compaixão, se eu vos afianço que o amou, até ao
ciume.

Disseram-lhe um dia que uma mulher de capote e lenço entrára no quarto
do general, que era ao rez da rua. Miquelina estava doente de cama.
Ergueu-se com febre, vestiu-se precipitadamente, desceu as escadas
cambaleando de fraqueza, escutou á porta do traidor, e ouviu risadas, e
palavras obscenas.

Era noite, quando isto se passava.

As irmãs do general deram pela falta da hospeda, e desceram a procurar o
irmão. Miquelina, quando as sentiu, na incerteza do que devia
responder-lhes, fugiu. Fugindo, achou-se n'uma rua que não conhecia,
atravessou umas poucas, chegou a uma praça onde encontrou umas mulheres
esfarrapadas que a tractaram por tu, e fugiu até deparar as escadas
d'uma igreja, onde um soldado lhe veio dizer palavras desconhecidas.

Fugiu ainda; mas a desgraça corria a par d'ella.

O frio da noite, e a febre do coração aniquilaram-na. Sentou-se n'um
portal, e desmaiou. Uma patrulha deu-lhe com a ponta do pé, e a
desgraçada não respondeu. Tomaram-na como bebeda, e foram seu caminho.

Outra patrulha sacudiu-lhe a cabeça pelos cabellos. Miquelina gemeu,
abriu os olhos, e pediu erguendo as mãos que a deixassem morrer. Estava
perto do hospital de S. José. Os soldados pediram soccorro ao proximo
corpo da guarda, e mandaram-na para lá.

No hospital, deram-lhe uma cama na enfermaria... não sabemos que
enfermaria; mas parece que o facultativo, na visita de manhã, mandou
retirar a mulher para um quarto particular, pago á sua custa.

Que foi o que ella disse ao medico? Nada. Seria n'elle um arrojo de
caridade? Não. «Pois não tens uma palavra boa para explicar uma acção
nobre?» Nobilissimos leitores, deixai-me suppôr que sois melhores
pessoas que o medico. O que elle queria era uma creada, com as feições
de Miquelina. As despezas da cura, além de ficarem encontradas no seu
ordenado, seriam pequenas. Uma febre benigna não resistiria ao
tratamento de oito dias.

Mas, ao setimo, Miquelina fugiu do hospital, favorecida pela enfermeira,
em cuja casa foi residir.

Desde esse dia, chamou-se Rosa.
...........................................................................
...........................................................................

--Que bonita rapariga é aquella que está em casa da A * * * na calçada
do Duque?

--É uma rapariga da provincia, pela pronuncia: chama-se Rosa, mas não
diz d'onde é, nem quem a trouxe alli.

--Parece bem educada!

--Parece... e não é desbocada... Não tem ainda a consciencia do seu
officio... É necessario que perverta a linguagem, se quizer
celebrisar-se...

--De quem fallam vossês?--disse um terceiro, que, na Praça do Rocio,
veio associar-se ao grupo.

--D'aquella Rosa, que tu denominaste um _cherubim precipitado_ na tua
poesia.

--E é...

--É!... pois tu sabes a vida d'ella?

--Sei...

--Contas?

--Não...

Este terceiro era Valladares.

Teve elle coragem de vêl-a face a face?

Não teve: entrou alli com uma mascara na terça feira de Entrudo.

Conheceu-o ella? Conheceu: porque no dia immediato desappareceu de
Lisboa.

É por isso que eu a vi no Porto em 1848...
...........................................................................

O general é hoje conde. O menos torpe dos florões da sua corôa é este...
Foi _honrado e hospitaleiro_!...

Valladares embriaga-se todos os dias, e não póde assim viver muitos
mais, porque já não sente no paladar o acido do cognac.

E Miquelina?

Ha mais de seis annos que os estudantes da escóla medico-cirurgica do
Porto a retalharam fibra a fibra com os seus escalpellos observadores.

Já vêdes que morreu no hospital, e foi em pedaços atirada ao monturo da
santa casa, depois de se prestar, como cadaver, ás lucubrações da
anatomia.

Podeis não acreditar tudo, ou parte d'isto... Olhai, porém, que vos não
dei aqui a verdade descarnada como ella é no conto melindroso, que vos
contei. Escondi-vos metade.




AVENTURAS D'UM BOTICARIO D'ALDÊA.




AVENTURAS D'UM BOTICARIO D'ALDÊA.


O snr. Manoel Pires, pharmaceutico approvado por outro pharmaceutico que
não foi approvado em parte nenhuma, estabeleceu a sua botica n'uma aldêa
do concelho de Carrazedo de Monte Negro. O seu laboratorio chimico era
um fogareiro e uma retorta de vidro, emendada no collo por um cylindro
de lata. A sua livraria era o _Medico lusitano_, in folio; uma
Pharmacopeia, edição de 1700; e um pequeno volume intitulado--_Segredos
da natureza_. Os lotes, que eram seis, continham garrafões de barro
vidrado, atapulhados de hervas, que tinham o merecimento chronologico de
serem contemporaneas dos garrafões. Afóra isto, não sei que liquidos
verdes e amarellos e azues variegavam um dos lotes, que, pelos modos,
continha os remedios heroicos, como oleo de amendoas dôces, extracto
d'amoras, solimão, e oleo de mamona.

Com tantos elementos não admirava nada que o snr. Manoel Pires fosse um
sabio, não digo consumado, mas superior á intelligencia d'alguns
cirurgiões d'aquella redondeza.

Apenas estabelecido, este filho bastardo de Hypocrates honrou as cinzas
de seu pai fazendo a cura radical d'uma espinhela cahida na pessoa da
snr.^a Therezinha da Fonte. Este triumpho da pharmacia sobre a espinhela
elevou o snr. Pires, não direi até ás columnas do _Zacuto_, mas até onde
podiam leval-o as suas aspirações de mestre Manoel Pires, como
respeitosamente lhe chamavam os seus numerosos freguezes.

Um segundo triumpho veio consolidar a reputação adquirida no primeiro. A
cura d'uma _ostrução_, que eu não sei o que é, e outra d'umas
almorreimas renitentes, não deixou nada a desejar por aquelles
arredores.

O snr. Manoel Pires soube tirar partido dos dotes que a Providencia lhe
cedêra. Relacionou-se com o parocho, com o regedor, com o juiz de paz, e
associou-se assim a um triumvirato, que decidia dos destinos da
freguezia. E o que elles não fizessem dez leguas em redor ninguem o
faria. Uma vez ouvi eu dizer ao tio Antonio da Pôça que o sobredito juiz
de paz se correspondia com os _governos_ de Lisboa. Não posso abonar na
sua integra a verdade do dito; mas não será sem fundamento a cousa,
attendendo á importancia d'um juiz de paz, quando se tracta de fazer um
deputado.

O boticario era uma figura incapaz das honras anatomicas do romance.
Tinha a cara vermelha como um molho de beterrabas. Os rofegos das
bochechas cahiam-lhe em fórma de sanefas sobre os collarinhos engommados
com pós de batata.

As ventas eram dous vulcões que resfolegavam lavas de simonte; e, não
sei porque analogia estupenda, os dentes acavallados simulavam uma
Herculanum em miniatura, um destroço de pilastras e ogivas e capiteis.

Como quer que fosse, o snr. Manoel Pires, aos quarenta annos, contava
quarenta conquistas das melhores raparigas da freguezia. E, honra lhe
seja feita, não deu nunca pasto nos soalheiros, nem consta que désse o
menor escandalo. Lá como elle fazia as cousas, e a felicidade dos seus
triumphos, vai o leitor ajuizar, se, em desconto dos seus peccados,
quizer lêr uma pagina altamente dramatica da biographia do nosso amigo.

Manoel Pires foi chamado um dia para curar uma dôr de _reins_ na pessoa
da tia Maria do Eiró. Não é necessario dizer que a molestia obedeceu. Na
mesma casa curou da _triz_ o tio João, e por fim talhou o _bicho_ com
perfeição e felicidade á Mariquinhas, rapariga d'uma vez, e cousa de pôr
a cara a um lado a mais de quatro _Antonys_ de sócos que lhe andavam por
lá a regougar palavras de ternura.

O leitor não saberá o que é talhar o bicho, e eu, realmente lhe digo,
que não consultei o diccionario das sciencias medicas. Fiquemos com a
nossa ignorancia; e eu faço sinceros votos porque nos não seja preciso
nunca talhar o bicho.

O caso é que o mestre Manoel Pires fallou ao coração da rapariga, e
fez-lhe vibrar todas as cordas da viola de alma. Não sei se a moçoila
viu archanjos, serafins, e brizas, e raios de lua a pratear lagos
d'anil. O que eu sei é que a boa da rapariga achava que eram pouco os
olhos da cara para vêr o snr. Manoel Pires, que, diga-se a verdade, não
era sceptico, nem carpia tristezas por deshoras ao som do murmurar
saudoso do sujo regato que lhe passava á porta.

Felizmente para elle, o dono da casa foi atacado d'um _estalecidio_ que
lhe cahiu nos bofes, segundo a opinião do boticario, e a cura demorada
d'esta séria enfermidade proporcionou aos ternos amantes occasiões
ditosas de se trocarem palavrinhas de pôrem o coração em maré-cheia de
poesia chula.

O dialogo, que mais concorreu para a solução final, foi
incontestavelmente o seguinte:

Elle.--O deus Cupido fez dos olhos de vm.^{ce} duas settas, que
trespassaram o meu coração.

Ella.--E as palavras de vm.^{ce}, como o outro que diz, são palavrinhas
de mel a que não _regeste_ meu sensivel peito.

Elle.--Eu bem queria dizer a vm.^{ce} as ternuras do meu coração, e as
congeminencias do meu pensamento. Vm.^{ce} é mais bonita que Venus, e
Cupido é o deus do amor que me derrete aos pés de vm.^{ce}

Ella.--Pois se vm.^{ce} me tem amor para o bom fim o deve ter, que quem
mal anda mal acaba, como o outro que diz.

Elle.--O fim para que eu fallei a vm.^{ce} só eu o sei; e a troco d'esse
negocio faz mingoa fallarmos outra vez.

Ella.--Quando vm.^{ce} quizer, e Deus o faça para bem, que lá eu
querer-lhe isso quero eu, assim Deus me ajude, e o bicho me torne se
assim não é. Uma rapariga que tem seus _cretos_ não deve de perdel-os, e
vm.^{ce} bem entende as cousas que é sabio e homem de cabeça, por muitos
annos e bês.

Elle.--E vm.^{ce} que os conte. Ora pois; o que se ha-de fazer ao tarde
faça-se ao cedo. Se vm.^{ce} me der duas palavrinhas esta noite, ouvirá
da minha bocca as affectiveis ternuras do meu amante coração, onde o
deus Cupido cravou as mais duras settas.

Ella.--Pois se vm.^{ce} promette de ter toda áquella de... sim, dizia
eu, se vm.^{ce} promette de ter toda áquella... sim... como diz lá o
ditado...

Elle.--Pelo deus Cupido lhe prometto a vm.^{ce} de lhe não pôr a minha
mão, nem palavra lhe direi que seja escontra a honra de vm.^{ce}.

A resistencia da rapariga era impossivel! Quando a eloquencia, assim
inspirada do intimo da alma, regorgita em jorros nos labios d'um amante,
é certo o triumpho. O amor é realmente o galvanismo dos estupidos,
d'esses cadaveres moraes, que se levantam do tumulo da intelligencia, e
cantam lerias n'um alamiré celeste! Não nos recordamos de ter lido em
romances francezes um dialogo tão fertil d'imagens, tão vibrante de
affectos, tão digno, em fim, de ser copiado na carteira d'estes obtusos
amadores das salas, para os quaes não ha assumpto, se lhes falharem as
reminiscencias do borda d'agua.

Manoel Pires retirou-se com os acicates do seu deus Cupido cravados
n'alma, e foi, a toda a pressa, aviar duas tisanas, e quatro causticos
para a numerosa clinica que o esperava. Sem exageração, este
pharmaceutico era uma pilula de Holloway viva! Resumia todas as virtudes
da revalenta arabica. Logo que o anjo da guarda,[1] não podesse salvar o
enfermo das aggressões mephiticas do espirito mau, Manoel Pires, anjo
sublime do charlatanismo, com dedo inspirado, apontava a enfermidade,
quer na bocca do _estamago_, quer nos _bofes_ quer nos _miolos_! Este
homem despresava a nomenclatura de Bichat, de Soares Franco, e de tantos
outros creadores de nomes barbaros que não fazem nada á saude do
cidadão. Honra lhe seja feita!

O nosso homem, aviadas as receitas, tirou do bolso uma cousa enorme de
cobre defumado; levantou as camadas de metal, que guardavam não sei que
pythonissa magica, e, por fim de contas, era um relogio, cujo involucro
suppria á farta uma bacia de semicupios.

Eram 8 horas. Na aldêa é esta a hora dos amantes. Manoel Pires enfiou as
suas meias de lã até á cintura, calçou os sapatos confidentes de mil
emprezas semelhantes, dobrou galhardamente o seu pau de carvalho ferrado
de amarello, e partiu.

Ás 8 e um quarto, estava Manoel Pires no quinteiro da Mariquinhas,
esperando-a, com a anciedade propria da sua organisação nervosa. Maus
fados quizeram que n'aquella noite, e a taes horas, andasse fóra de casa
o tio João do Eiró. A rapariga entendeu que devia esconder em casa o seu
boticario, em quanto o pai não recolhesse. Quiz primeiro sumil-o na
córte das vaccas, mas lembrou-se que o pai, antes de deitar-se,
costumava hir afagar a sua vacca castanha, pela qual na feira dos 8
rejeitára sete moedas e um quarto! Metteu-o, depois, na loja da egua,
mas a bestinha, egoista e ciumosa da manjadoura, não comprehendeu que o
snr. Manoel Pires era um racional, e jogou-lhe uma parelha de couces,
que por um tris o não remetteu á galeria posthuma dos pharmaceuticos
illustres. Introduziu-o no curral dos carneiros, mas a entrada do
infeliz amante foi recebida com uma escaramuça de marradas, como se um
lobo cerval os surprehendesse. Ultimamente, Mariquinhas, melhor avisada,
levou o seu paciente amante para a cozinha, levantou um alçapão, fêl-o
descer uma escada, e, quando descia mansamente o fatal alçapão, entrava
o pai.

--Que fazes tu ahi, rapariga?--bradou elle.

Mariquinhas atrapalhou-se, e coçou a cabeça com ambas as mãos.

Deve saber-se que o tio João desconfiava que a filha, quando podia, lhe
roubava das caixas o seu sacco de milho, que vendia para comprar, á
surrelfa, o seu cordãosinho de ouro.

Na loja, onde o boticario desceu, estavam as caixas do milho, e não ha
nada mais natural que a irritação do velho, quando apanhou a rapariga em
flagrante delicto.

--Onde está a chave d'este alçapão, rapariga? interpellou o tio João no
mesmo diapasão.

--A chave tem-na vm.^{ce}

O homem entrou no seu quarto, proximo da cozinha, e veio com a chave,
resmungando:

--Ora deixa-te estar, que não has-de cá tornar po'lo vêso, minha cabra
de não sei que diga!

Fechou o alçapão, e foi-se deitar.

A loja não tinha outra sahida. O boticario, por tanto, achava-se n'uma
posição falsa, diz o leitor. Elle sabia lá o que eram posições falsas! O
que elle fez primeiro foi apalpar. Encontrou uma caixa, e disse lá
comsigo: «no chão não me deito eu.» Continuou fleugmaticamente a fazer o
seu juizo critico do local em que se achava, e esbarrou com o nariz n'um
presunto. Não obstante, o snr. Manoel Pires tirou uma segunda conclusão:
«de fome não morro eu.» Mais adiante esbarrou n'uma pipa, e teve a
pachorra de lhe tocar com os nós dos dedos para vêr se estava cheia. E o
caso é que estava! Manoel Pires era um onagro de felicidade! «Deixa
correr o mundo!...» disse elle, e estirou-se francamente sobre a caixa á
espera d'um somno regalado.

Passára-se uma hora, e o boticario, começando a pensar seriamente na sua
situação, teve momentos de Napoleão na ilha de Santa Helena! Applicou o
ouvido, e nem um sussurro ouviu na cozinha. Sentiu frio, por que em
Dezembro não é facil aquecer o corpo no fogão do amor. Deu alguns passos
maquinaes, buscando uma sahida qualquer, e encontrou um albardão.
«Valha-nos ao menos isto,» disse elle, e pegou do albardão, collocou-o
convenientemente sobre si, e tornou-se a deitar.

Agora fallemos das colicas de Mariquinhas.

Como sabem, o pai deitou-se, e a rapariga recolheu-se ao seu quarto, já
que não posso dizer ao seu palheiro. Alma de pedreneira, ferida pelo
fuzil do amor, a moçoila não atinava com a maneira de pôr no olho da rua
o seu querido pharmaceutico. Inspirada pelo derradeiro esforço da sua
dôr sublime, lembrou-se de pôr em execução um plano digno de melhor
sorte.

O pai resonava profundamente, Maria, pé ante pé, entrou-lhe no quarto e
sahiu com as calças, em cujo bolso estava a chave. Judith não sahiu mais
contente da tenda de Holofernes!

Abriu o alçapão com subtileza, mas, no momento em que o levantava, os
gonzos rangeram, e o lavrador, que sonhava com um sacco de milho que lhe
emigrava das tulhas, saltou abaixo da cama, gritando: «ó rapariga!»

Não se diz, em linguagem portugueza, sem um conhecimento profundo dos
classicos, a atrapalhação da cachôpa! O tio João procurou as calças, e
não as achou, mas o caso urgia. Mesmo em camisa (_proh pudor!_) saltou
do quarto para a cozinha, já quando a filha se esgueirava, escada
abaixo, para o quinteiro.

O tio João, contra todas as leis da decencia, foi atraz de sua filha, e
filou-a pelo gasnete:

--O que hias tu fazer á loja, Maria?

--Raios me parta (disse ella a chorar) se eu hia á caixa do pão ou dos
feijões!

--Então a que hias tu lá, diabo?

--Assim me Deus salve, em como lhe não tirei nem um graeiro da caixa...

O tio João sentiu frio, e reconheceu que a brisa gelada da noite lhe
soprava nas pernas. Tornou para a cozinha, e foi direito ao alçapão;
mas... ai d'elle!... o alçapão estava aberto, e o honrado chefe de
familia resvalou com todo o peso da sua bestialidade até á loja.

Manoel Pires soltou um urro de surpreza, que já não foi ouvido pelo João
do Eiró, que desmaiára.

Maria, ainda no quinteiro em postura de Dido lastimosa, ouviu um ruido,
mas suppoz que era o cahir do alçapão. Atravessou a cozinha,
amaldiçoando a sua sorte, e metteu-se no seu quarto a pensar no
desenlace d'aquella tragedia.

A tia Maria do Eiró, acordando, não achou na cama o seu velho, e sentiu
ciumes, pela primeira vez na sua vida. Chamou com voz do intimo, tres
vezes, o seu João, e como ninguem lhe respondesse, a mulher começou a
vestir-se, enfiando responsos a Santo Antonio, de mistura com não sei
quantas pragas, que ella rogava ao sumidouro das suas sócas.

E a filha, cosida com as mantas, nem uma palavra!

A tia Maria accendeu a candêa, e foi direita á cozinha, que era o ponto
convergente de todas as operações d'aquelle drama. Viu o alçapão aberto,
e não tinha ainda reconcentrado em si todo o horror d'aquella
fatalidade, quando ouviu um gemido surdo que vinha lá debaixo. A pobre
mulher lembrou-se que estava roubada! Abre a janella e grita
desentoadamente «aqui d'el-rei ladrões!» A visinhança alarmou-se, e
pouco depois os 60 fogos d'aquella aldêa agglomeravam-se no quinteiro do
tio João do Eiró.

Os mais destemidos rapazes da aldêa desceram á loja, e encontraram o
pobre velho com a cabeça aberta por dous lados, e não sei quantas
costellas desmanchadas. Reinou o silencio do mysterio! Ninguem
conjecturava a causa d'aquelle estranho successo, quando um dos que
farejavam os recantos da loja, descobre um pé por debaixo d'um albardão!
Levantou-se uma gritaria infernal: até que o mais resoluto, afastando o
albardão, soltou um brado terrivel d'espanto:

--O senhor mestre Manoel Pires!

Hão-de ter visto nos dramas descabellados um encapotado, que é
necessariamente um rei, mostrar a cara, e petrificar uma sucia de
perseguidores, que o atacam. Pois tal foi o effeito que o boticario
produziu na chusma de valentões de fouce roçadoura, que o cercavam.

O tio João, tornando a si, foi direito ao boticario para agradecer-lhe a
promptidão com que viera cural-o. Mas a tia Maria poz tudo em pratos
límpos: contou tudo a seu marido, que a escutava com cara de parvo,
segundo convinha em semelhante conflicto.

Mestre Manoel Pires hia ser apregoado ladrão, por que a sua importancia,
passado o momento da surpreza, começava a soffrer uma grande baixa na
opinião dos lavradores.

Mas o seu caracter repellia tamanha affronta! A hora solemne d'uma
honrosa satisfação estava chegada. O pharmaceutico, superando com a sua
voz o ruido da turba conspirada, disse:

--Chamem cá a Mariquinhas que essa é que sabe do negocio como elle é.

O Pedro da Eira, apaixonado de Mariquinhas, vendo, com olhos d'amante, o
segredo da cousa, quiz logo alli partir a cabeça do seu rival.

--Oh su alma do diabo!... exclamou elle.

Contiveram-no. O snr. João do Eiró chamou a filha. A pobre rapariga era
uma cascata de lagrimas. Veio a muito custo, cuidando que era então a
_sua fim_, como ella depois disse.

A sua apparição impoz ás multidões um respeitavel silencio.

Mestre Manoel Pires fallou assim, com ar de inspirado, e o braço direito
em attitude prophetica:

--Esta rapariga é minha mulher, se m'a derem. Eu vim aqui a troco
d'ella. Em bom panno cahe uma nodoa. Mal remediado é mal acabado. Ámanhã
se Deus quizer lêem-se os banhos, e não ha nada mais a fazer aqui!

A Mariquinhas ficou com cara de tola, e não cabia n'um sino. Os paes,
d'esses não se falla. Mestre Manoel era o casamento mais vantajoso da
freguezia. Endireitou as costellas ao sogro, bebeu á saude da boa
companhia, e casou com grande prestito, onde não faltou o juiz de paz,
que teve de mais a mais o prazer de pendurar n'esse fausto dia o habito
de Christo na casaca. Nas bodas celebres para sempre, nos annaes de
Carrazedo de Monte-Negro, comeram-se dez cabritos assados com o
competente arroz de forno.

Já lá vão cinco annos.

Mestre Manoel Pires espera ser deputado com um governo apreciador do
verdadeiro talento; e a senhora Mariquinhas Pires já este anno veio a
banhos de mar, e viu por ahi baronezas, que lhe despertaram o louvavel
desejo de o ser.

E ha-de ser, se Deus quizer.




COUSAS QUE SÓ EU SEI.




COUSAS QUE SÓ EU SEI.


I.


Na ultima noite do carnaval, que foi justamente aos 8 dias do mez de
Fevereiro, do corrente anno[2] pelas 9 horas e meia da noite entrava no
theatro de S. João, d'esta heroica, e muito nobre e sempre leal cidade,
um dominó de setim.

Déra elle os dous primeiros passos no pavimento da platêa, quando um
outro dominó de velludo preto veio collocar-se-lhe frente a frente,
n'uma contemplação immovel.

O primeiro demorou-se um pouco a medir as alturas do seu admirador, e
virou-lhe as costas com indifferença natural.

O segundo, momentos depois, apparecia ao lado do primeiro, com a mesma
attenção, com a mesma penetração de vista.

D'esta vez o dominó-setim aventurou uma pergunta n'aquelle desgracioso
falsete, que todos nós conhecemos:

--Não quer mais do que isso?

--Do _qu'isso_!...--respondeu um mascara que passava por casualidade,
esganiçando-se n'uma risada que raspava o tympano.--_Olha do
qu'isso!_... Já vejo que és pulha!...

E retirou-se repetindo--_do qu'isso... do qu'isso..._

Mas o dominó-setim não soffreu, ao que parecia, a menor contrariedade
com este charivari. E o dominó-velludo nem se quer acompanhou com os
olhos o imprudente que viera embaraçar-lhe uma resposta digna da
pergunta, fosse ella qual fosse.

O _setim_ (fique assim conhecido para evitarmos palavras, e tempo que é
um preciosissimo cabedal) o _setim_, d'esta vez, encarou com mais alguma
reflexão o _velludo_. Conjecturou supposições fugitivas, que se
destruiam mutuamente. O _velludo_ era forçosamente uma mulher. A
pequenez do corpo, cuja flexibilidade o dominó não encobria; a
delicadeza da mão, que protestava contra o ardil mentiroso d'uma luva
larga; a ponta de verniz, que um descuido, no lançar do pé, denunciára
debaixo da fimbria do velludo, este complexo de attributos, quasi nunca
reunidos em um homem, captaram as serias attenções do outro, que,
incontestavelmente, era um homem.

--Quem quer que sejas, (disse o setim) não te gabo o gosto! Tomára eu
saber o que vês em mim, que tanta impressão te faz!

--Nada--respondeu o velludo.

--Então, deixa-me, ou diz-me alguma cousa ainda que seja uma semsaboria,
mais eloquente que o teu silencio.

--Não te quero embrutecer. Sei que tens muito espirito, e seria um crime
de leso-carnaval, se te dissesse alguma d'essas graças salobras, capazes
de fazer calar para todo o sempre um Demosthenes de dominó.

O _setim_ mudou de opinião a respeito do seu perseguidor. E não admira
que o recebesse com rudeza no principio, porque, em Portugal, um dominó
em corpo de mulher, que passeia «sosinha» n'um theatro, permitte umas
suspeitas que não abonam as virtudes do dominó, nem lisongeam a vaidade
de quem lhe recebe o conhecimento. Mas a mulher em quem recahe
semelhante hypothese não conhece Demosthenes, nem diz _leso-carnaval_,
nem aguça a phrase com o adjectivo _salobras_.

O setim arrependeu-se da aspereza com que recebera os attenciosos
olhares d'aquella incognita, que principiava a fazer-se valer como tudo
aquillo que apenas se conhece por uma face boa. O _setim_ juraria, pelo
menos, que aquella mulher não era estupida. E, seja dito sem tenção
offensiva, já não era insignificante a descoberta, porque é mais facil
descobrir um mundo novo que uma mulher illustrada. É mais facil ser
Christovão Colombo que Emilio Girardin.

O _setim_, ouvida a resposta do _velludo_, offereceu-lhe o braço, e
gostou da boa vontade com que lhe foi recebido.

--Conheço (diz elle), que o teu contacto me espiritualisa, bello
dominó...

--_Bello_, me chamas tu!... É realmente uma leviandade que te não faz
honra!... Se eu levantasse esta sanefa de sêda, que me faz bonita,
ficavas como aquelle poeta hespanhol que soltou uma exclamação de terror
na presença d'um nariz... que nariz não seria, santo Deus!... Não sabes
essa historia?

--Não, meu anjo!

--_Meu anjo!_... que graça! Pois eu t'a conto. Como o poeta se chama não
sei, nem me importa. Imagina tu que és um poeta, phantastico como
Lamartine, vulcanico como Byron, sonhador como Mac-Pherson, e voluptuoso
como Voltaire aos 60 annos. Imagina que o tedio d'esta vida chilra que
se vive no Porto te obrigou a deixar no teu quarto a pythonissa
descabellada das tuas inspirações, e vieste por aqui dentro a procurar
um passatempo n'estes passatempos alvares d'um baile de carnaval.
Imagina que encontravas uma mulher extraordinaria de espirito, um anjo
de eloquencia, um demonio de epygramma, em fim, uma d'estas creações
miraculosas que fazem rebentar uma chamma improvisa no coração mais de
gêlo, e de lama, e de toucinho sem nervo. Ris? Achas nova a expressão,
não é assim? Um coração de toucinho parece-te uma offensa ao bom senso
anatomico, não é verdade? Pois, meu caro dominó; ha corações de toucinho
estreme. São os corações, que reçumam oleo em certas caras estupidas...
por exemplo... olha este homem redondo, que aqui está, com as palpebras
em quatro refêgos, com os olhos vermelhos como os d'um coelho morto, com
o queixo inferior pendente, e o labio escarlate e vidrado como o bordo
d'uma pingadeira, orvalhada de banha de porco... Esta cara não te parece
um grande rijão? Não crês que este baboso tenha um coração de toucinho?

--Creio, creio; mas falla mais baixo que o desgraçado está a gemer
debaixo do teu escalpello...

--És tolo, meu cavalheiro! Elle entende-me lá!... É verdade, ahi vai a
historia do hespanhol, que tenho que fazer...

--Então queres deixar-me?

--E tu?... queres que eu te deixe?

--Palavra d'honra que não! se me deixas, retiro-me...

--És muito amavel, meu querido Carlos...

--Conheces-me?!

--Essa pergunta é ociosa. Não és tu _Carlos_!

--Já fallaste comigo na tua voz natural?

--Não; mas começo a fallar agora.

E com effeito fallou. Carlos ouviu um som de voz sonora, metallica, e
insinuante. Cada palavra d'aquelles labios mysteriosos sahia vibrante e
afinada como a nota d'uma tecla. Tinha aquelle não-sei-que, que só se
escuta nas salas, onde fallam mulheres distinctas, mulheres que obrigam
a gente a prestar fé aos privilegios, ás prerogativas, aos dons muito
peculiares da aristocracia do sangue. Todavia, Carlos não se recordava
de ter ouvido semelhante voz, nem semelhante linguagem.

«Uma aventura de romance!» dizia elle lá comsigo, em quanto o
dominó-velludo, conjecturando o enleio em que pozera o seu enthusiasta
companheiro, continuava a fazer gala do mysterio, que é de todas as
alfaias aquella que mais alinda a mulher! Se ellas podessem andar sempre
de dominó! Quantas mediocridades em intelligencia rivalisariam com Jorge
Sand! Quantas physionomias infelizes viveriam com a fama da mulher de
Abdel-Kader!

--Então quem sou eu?--proseguiu ella--não me dirás?... Não dizes... pois
então, tu és Carlos, e eu sou Carlota... fiquemos n'isto, sim?

--Em quanto eu não souber o teu nome, deixa-me chamar-te «anjo.»

--Como quizeres; mas sinto dizer-te que não és nada original! _Anjo!_...
é um appellido tão safado como _Ferreira_, _Silva_, _Sousa_, _Costa_...
et cetera. Não vale a pena questionarmos: baptisa-me á tua vontade.
Ficarei sendo o teu «anjo de entrudo!» E a historia?... Imagina que te
possuias d'um amor impetuoso por essa mulher, que phantasiaste linda, e
insensivelmente lhe curvaste o joelho, pedindo-lhe uma esperança, um
sorriso affectuoso através da mascara, um aperto convulsivo de mão, uma
promessa, ao menos, de se mostrar um, dous, tres annos depois. E essa
mulher, cada vez mais sublime, cada vez mais litterata, cada vez mais
radiosa, protesta eloquentemente contra as tuas instancias,
declarando-se muita feia, indecentissima de nariz, horrivel até, e, como
tal, pesa-lhe na consciencia matar as tuas candidas illusões, levantando
a mascara. Tu que a não crês, instas, supplicas, abrasas-te n'um ideal,
que toca as extremas do ridiculo, e estás capaz de lhe dizer que te
abolas o craneo com um tiro de pistola, se ella não levanta a cortina
d'aquelle mysterio que te dilacera uma por uma as fibras do coração.
Chamas-lhe Beatriz, Laura, Fornarina, Natercia, e ella diz-te que se
chama Custodia, ou Genoveva para te aguar a poesia d'esses nomes, que,
na minha humilde opinião, são completamente fabulosos. O dominó quer
fugir-te ardilosamente, e tu não lhe deixas um passo livre, nem um dito
espirituoso a outro, nem um lançar d'olhos para os mascaras, que a fixam
como quem sabe que está alli uma rainha, envolta n'aquelle manto negro.
Por fim, a tua perseguição é tal, que a desconhecida Desdemona finge
assustar-se, e sahe comtigo ao salão do theatro para levantar a mascara.
Arfa-te o coração na anciedade d'uma esperança: sentes o jubilo do cego
de nascimento, que vai vêr o sol; estremeces como a creança a quem vão
dar um bonito, que ella não viu ainda, mas imagina ser quanto o seu
coração infantil ambiciona n'este mundo... Ergue-se a mascara!...
Horror!... vês um nariz... um nariz-pleonasmo, um nariz homerico, um
nariz maior que o do duque de Choiseul, onde cabiam tres jesuitas a
cavallo!... Recúas!... sentes despregar-se-te o coração das entranhas,
córas de vergonha, e foges desabridamente...

--Tudo isso é muito natural.

--Pois não ha nada mais artificial, meu caro senhor. Eu lhe conto o
resto, que é o mais interessante para um mancebo que faz do nariz d'uma
mulher o thermometro de avaliar-lhe a temperatura do coração. Imagina,
meu joven Carlos, que sahiste do theatro depois, e entraste na _Aguia
d'Ouro_ a comer ostras, segundo o costume dos elegantes do Porto. E
quando, pensavas, ainda aterrado, na aventura do nariz, te apparecia
fatidico dominó, e se assentava ao teu lado, silencioso e immovel, como
a larva das tuas asneiras, cuja memoria procuravas delir na imaginação
com os vapores do vinho... Perturba-se-te a digestão, e sentes
contracções no estomago, que te ameaçam com o vomito. A massa enorme
d'aquelle nariz figura-se-te no prato em que tens a ostra, e já não
pódes levar á bocca um bocado do teu appetitoso manjar sem um fragmento
d'aquelle fatal nariz á mistura. Queres transigir com o silencio do
dominó; mas não pódes. A inexoravel mulher aproxima-se de ti, e tu, com
um sorriso cruelmente sarcastico, pedes-lhe que te não entorne com o
nariz o copo de vinho. Achas isto natural, Carlos?

--Ha ahi crueldade de mais... O poeta devia ser mais generoso com a
desgraça, porque a missão do poeta é a indulgencia não só para as
grandes affrontas, mas até para os grandes narizes.

--Será; mas o poeta, que transgrediu a sublime missão da generosidade
para com as mulheres feias, vai ser punido. Imagina que aquella mulher,
pungida pelo sarcasmo, levanta a mascara. O poeta ergue-se, e vai fugir
com grande escandalo do dono da casa, que naturalmente tem a sorte do
boticario de Nicolau Tolentino. Mas... vingança do céo!... aquella
mulher ao levantar a mascara arranca do rosto um nariz postiço, e deixa
vêr a mais formosa cara que o céo alumia ha seis mil annos! O hespanhol
quer ajoelhar áquella dulcissima visão de um sonho, mas a nobre andaluza
repelle-o com um gesto, onde o despreso está associado á dignidade mais
senhoril.


II.


Carlos scismava na applicação da anedocta, quando o dominó lhe disse,
adivinhando-lhe o pensamento:

--Não creias que eu seja mulher de nariz de cera, nem me supponhas capaz
de assombrar-te com a minha fealdade. A minha modestia não vai tão
longe... Mas, meu pacientissimo amigo, ha em mim um defeito peor que um
nariz enorme: não é physico nem moral; é um defeito repulsivo e
repellente: é uma cousa que eu não sei exprimir-te com a linguagem do
inferno, que é a unica e mais eloquente que eu sei fallar, quando me
lembro que sou assim defeituosa!

--És um enigma!...--atalhou Carlos, embaraçado, e convencido de que
encontrára um typo maior que os moldes tacanhos da vida romanesca em
Portugal.

--Sou, sou!...--acudiu ella com rapidez--sou aos meus proprios olhos um
dominó, um continuado carnaval de lagrimas... Está bom! não quero
tristezas... Se me tocas na tecla do sentimentalismo, deixo-te. Eu não
vim aqui fazer papel de dama dolorida. Soube que estavas aqui,
procurei-te, esperei-te mesmo com anciedade, porque sei que és
espirituoso, e podias, sem prejuizo da tua dignidade, ajudar-me a passar
algumas horas de illusão. Fóra d'aqui, tu ficas sendo Carlos, e eu serei
sempre uma incognita muito grata ao seu companheiro. Agora acompanha-me:
vamos ao camarote 10 da 2.^a ordem. Conheces aquella familia?

--Não.

--É uma gente da provincia. Não digas tu nada; deixa-me fallar a mim, e
verás que não passas mal... É muito orgulho, não achas?

--Não acho, não, minha querida; mas eu antes queria não desperdiçar
estas horas porque fogem. Tu vaes fallar, mas não é comigo. Sabes que
tenho ciumes de ti?

--Sei que tens ciumes de mim... Sabes tu que eu tenho um profundo
conhecimento do coração humano? Já vês que não sou a mulher que
imaginas, ou quererias que eu fosse. Não comeces a desvanecer-te com uma
conquista esperançosa. Faz calar o teu amor proprio, e emprega a tua
vaidade em bloquear com ternuras calculadas uma innocente a quem possas
fazer feliz, em quanto a enganas...

--Julgas, por tanto, que te minto!...

--Não julgo, não. Se mentes a alguem é a ti proprio: bem vês que não te
creio... Tempo perdido! Anda, vem comigo, se não...

--Senão... o que?

--Senão... olha...

E a melindrosa desconhecida largou-lhe o braço com delicadeza, e
retirara-se, apertando-lhe a mão.

Carlos, sinceramente commovido, apertou aquella mão, com o frenesi
apaixonado de um homem que quer suster a fuga da mulher por quem se
mataria.

--Não--exclamou elle com enthusiasmo--não me fujas, porque me levas a
esperança mais bella que o meu coração concebeu. Deixa-me adorar-te, sem
te conhecer!... Não levantes nunca esse véo... mas deixa-me vêr a face
da tua alma, que deve ser a realidade d'um sonho de vinte e sete
annos...

--Estás dramatico, meu poeta! Eu sinto realmente a minha pobreza de
palavras garrafaes... Queria ser uma vestal d'estilo fervente para
sustentar o fogo sagrado do dialogo... O monologo deve cançar-te, e a
tragedia desde Sophocles até nós não póde dispensar uma segunda
pessoa...

--És um prodigio...

--De litteratura grega, não é verdade? Inda sei muitas outras cousas da
Grecia. A Lais tambem era muito versada, e repetia as rapsodias gregas
com um garbo sublime; mas a Lais era... sabes tu o que ella era?... E
serei eu o mesmo? Já vês que a litteratura não é symptoma de virtudes
dignas da tua affeição...

Tinham chegado ao camarote na 2.^a ordem. O dominó-velludo bateu, e a
porta foi, como devia ser aberta.

A familia, que occupava o camarote, compunha-se de muitas pessoas, sem
typo, vulgarissimas, e prosaicas de mais para captarem a attenção d'um
leitor avesso a trivialidades. Todavia, estava ahi uma mulher que valia
um mundo, ou cousa maior que o mundo--o coração d'um poeta.

As rosas purpurinas dos vinte annos tinham-lhes sido crestadas pelo
halito abrasado dos salões. A placidez extemporanea d'uma vida agitada,
via-se-lhe no rosto protestando não contra os prazeres, mas contra a
debilidade d'um sexo, que não póde acompanhar com a materia as evoluções
desenfreadas do espirito. Mas que olhos! mas que vida! que electricidade
no frenesi d'aquellas feições! que projecção de uma sombra azulada lhe
descia das palpebras! Era uma mulher, em cujo rosto transluzia a
soberba, talvez demasiada, da sua superioridade.

O dominó-velludo estendeu-lhe a mão, e chamou-lhe Laura.

Seria Laura? É certo que ella estremeceu, e recuou a mão repentinamente
como se uma vibora lh'a tivesse mordido.

Aquella palavra symbolisava um mysterio dilacerante: era a senha de uma
grande lucta em que a pobre senhora devia sahir escorrendo sangue.

--Laura--repetiu o dominó--não me apertas a mão? Deixa-me ao menos
sentar-me perto... muito perto de ti... sim?

O homem, que mais proximo estava de Laura, afastou-se urbanamente para
deixar aproximar um mascara, que denunciara o sexo pela voz, e a
distincção pela mão.

E Carlos nunca mais despregou os olhos d'aquella mulher, que revelava a
cada instante um pensamento nas variadas physionomias com que queria
disfarçar a sua angustia intima.

A desconhecida fez signal a Carlos para que se aproximasse. Carlos,
enleado nos embaraços naturaes d'aquella situação toda para elle
enygmatica, recusava cumprir as imperiosas determinações d'uma mulher
que parecia calcar todos os melindres. Os quatro ou cinco homens, que
pareciam familiares de Laura, não deram muita importancia aos dominós.
Conjecturaram, primeiro, e quando suppozeram que tinham conhecido as
visitas, deixaram em plena liberdade as duas mulheres que se fallavam de
perto como duas amigas intimas. O cavalheiro passou por um tal Eduardo,
e a desconhecida tiveram-n'a por uma D. Antonia.

Laura humedecia os labios com a lingua. As surprezas pungentes produzem
uma febre, e aquecem o mais bem calculado sangue frio. A incognita,
profundamente conhecedora da situação da sua victima, fallou ao ouvido
de Carlos:

--Estuda-me aquella physionomia. Eu não estou em circumstancias de ser
Max... Soffro demasiado para contar as pulsações d'este coração. Se te
sentires condoido d'esta mulher, tem compaixão de mim, que sou mais
desgraçada que ella.

E voltando-se para Laura:

--Procuro, ha quatro annos, uma occasião de prestar homenagem á tua
conquista. Deus, que é Deus, não despreza os incensos do verme da terra,
nem esconde á vista dos homens a sua fronte magestosa n'um manto de
estrellas. Tu, Laura, que és mulher, embora os homens te chamem anjo,
não despresarás vaidosa a homenagem d'uma pobre creatura, que vem depôr
a teus pés o obulo sincero da sua adoração.

Laura não levantava os olhos do leque; mas a mão, que o sustinha,
tremia; e os olhos, que o contemplavam, pareciam absortos n'um quadro
afflictivo.

E o dominó continuou:

--Foste muito feliz, minha cara amiga! Eras digna de o ser. Colheste o
fructo abençoado da abençoada semente que o Senhor fecundou no teu
coração de pomba!... Olha, Laura, deves dar muitas graças á Providencia,
que velou os teus passos no caminho do crime. Quando devias resvalar no
abysmo da prostituição, subiste, radiante de virtudes, ao throno das
virgens. O teu anjo da guarda foi-te leal! És uma excepção a milhares de
desgraçadas, que nasceram em estofos de damasco, e cresceram em perfumes
de opulencia. E, quanto mais, minha ditosa Laura, tu nasceste nas palhas
da miseria, cresceste nos andrajos da indigencia, ainda viste com os
olhos da razão a desgraça sentada á cabeceira do teu leito... e, com
tudo, eis-te ahi rica, honrada, formosa, e soberba de encantos, com que
pódes insultar toda essa turba de mulheres, que te admiram!... Ha tanta
mulher infeliz!... Queres saber a historia d'uma?...

Laura, contorcendo-se como se fosse de espinhos a cadeira em que estava,
não tinha ainda balbuciado um monosyllabo; mas a urgente pergunta, duas
vezes repetida, do dominó, obrigou-a a responder affirmativamente com um
gesto.

--Pois bem, Laura, conversemos amigavelmente.

Um dos individuos, que estava presente, e ouvira pronunciar _Laura_,
perguntou á mulher que assim era chamada:

--Elisa, ella chama-te _Laura_?

--Não, meu pai...--respondeu Elisa, titubeando.

--Chamo Laura, chamo... e que tem lá isso, snr. visconde?--Atalhou a
incognita, com affabilidade, erguendo o falsete para ser bem ouvida.--É
um nome de carnaval, que passa com os dominós. Quarta feira de cinza
torna a filha de v. exc.^a a chamar-se Elisa.

O visconde sorriu-se, e o dominó continuou, abaixando a voz, e fallando
naturalmente:


III.


--Henriqueta...

Esta palavra foi um abalo que fez vibrar todas as fibras de Elisa. O
rosto incendiou-se-lhe d'aquelle encarnado do pudor ou da raiva. Esta
sensação violenta não podia ser desapercebida. O visconde, que parecia
estranho á conversação intima d'aquellas suppostas amigas, não o pôde
ser á agitação febril de sua filha.

--Que tens, Elisa?!--perguntou elle sobresaltado.

--Nada, meu pai... Foi um ligeiro incommodo... Estou quasi boa...

--Se queres respirar vamos ao salão, ou vamos para casa...

--Antes para casa--respondeu Elisa.

--Eu vou mandar buscar a sege--disse o visconde; e retirou-se.

--Não vás, Elisa...--disse o dominó, com uma voz imperiosa, semelhante a
uma ameaça inexoravel.--Não vás... porque, se vaes, contarei a todo o
mundo uma historia que só tu has-de saber. Este outro dominó, que tu não
conheces, é um cavalheiro: não temas a menor imprudencia.

--Não me martyrises!--disse Elisa.--Eu sou infeliz de mais, para ser
flagellada com a tua vingança... Tu és Henriqueta, não és?

--Que te importa a ti saber quem eu sou?!...

--Importa muito... Sei que és desgraçada!... Não sabia que vivias no
Porto; mas palpitou-me o coração que eras tu, apenas me chamaste Laura.

O visconde entrou afadigado, dizendo que a sege não podia tardar, e
convidando a filha para dar alguns passeios no salão do theatro. Elisa
satisfez a carinhosa anciedade do pai, dizendo que se sentia boa, e
pedindo-lhe que se demorasse até mais tarde.

--Onde julgavas tu que eu existia? No cemiterio não é assim?--perguntou
Henriqueta.

--Não: sabia que vivias, e prophetisava que devia encontrar-te... Que
historia me queres tu contar?... a tua? Essa já eu sei... imagino-a...
tens sido muito infeliz... Olha, Henriqueta... deixa-me dar-te esse
tratamento affectuoso com que nos conhecemos, com que fomos tão amigas,
alguns fugitivos dias, no tempo em que o destino nos marcava com o mesmo
stygma de infortunio...

--O mesmo... não!...--atalhou Henriqueta.

--O mesmo, sim, o mesmo... e se me forças a contradizer-te, direi que
invejo a tua sorte, seja ella qual fôr...

Elisa chorava, e Henriqueta emmudecera. Carlos estava impaciente pelo
desfecho d'esta aventura, e desejava, ao mesmo tempo, reconciliar estas
duas mulheres, e fazel-as amigas, sem saber a razão porque eram
inimigas. A belleza impõe-se á compaixão. Elisa era bella, e Carlos era
d'uma sensibilidade extremosa. Nem elle já sabia decidir-se entre
aquellas duas mulheres. A mascarada _poderia ser_, mas a outra _era_ um
anjo de sympathia e formosura. O espirito gosta do mysterio que esconde
o bello; mas decide-se pela belleza real, sem mysterio.

Henriqueta, depois de alguns minutos de silencio, durante os quaes não
era possivel avaliar-lhe o coração pela exterioridade da physionomia,
exclamou com impeto, como se despertasse d'um sonho, d'aquelles intimos
sonhos de dôr, em que a alma se reconcentra:

--Teu marido?

--Está em Londres.

--Ha quanto tempo o não viste?

--Ha dous annos.

--Abandonou-te?

--Abandonou-me.

--E tu?... abandonaste-o?

--Não concebo a pergunta...

--Ainda o amas?

--Ainda...

--Com paixão?

--Com delirio...

--Escreves-lhe?

--Não me responde... Despresa-me, e chama-me _Laura_.

--Elisa!--disse Henriqueta, com a voz tremula, e apertando-lhe a mão com
enthusiasmo nervoso--Elisa! perdôo-te... És bem mais desgraçada que eu,
porque tens um homem que pôde chamar-te Laura, e eu não tenho senão um
nome... sou Henriqueta! Adeus.

Carlos pasmou do desenlace cada vez mais embrulhado d'aquelle prologo
d'um romance. Henriqueta tomou-lhe o braço com precipitação, e sahiu do
camarote abaixando levemente a cabeça aos cavalheiros, que se davam
tractos por adivinhar o segredo d'aquella conversa.

--Não pronuncies o meu nome em voz alta, Carlos. Sou Henriqueta; mas não
me atraiçoes, se queres a minha amisade.

--Como hei-de eu atraiçoar-te, se não sei quem és? Pódes chamar-te Julia
em vez de Henriqueta, que, nem por isso te fico conhecendo mais... Tudo
mysterios! Tens-me, ha mais d'uma hora, n'um estado de tortura! Eu não
sirvo para estas emboscadas... Diz-me quem é aquella mulher...

--Não viste que é D. Elisa Pimentel, filha do visconde do Prado?

--Não a conhecia...

--Então que mais queres que eu te diga?

--Muitas outras cousas, minha ingrata. Quero que me digas quantos nomes
tem aquella Laura, que se chama Elisa. Falla-me do marido d'aquella
mulher...

--Eu te digo... O marido d'aquella mulher chama-se Vasco de Seabra...
Estás satisfeito?

--Não... Quero saber que relações tens tu com esse Vasco ou com aquella
Laura?

--Não saberás mais nada, se fores impaciente. Imponho-te mesmo um
profundo silencio a respeito do que ouviste. Á menor pergunta que me
faças, deixo-te ralado por essa curiosidade indiscreta, que te faz
parecer uma mulher de soalheiro. Eu contrahi comtigo a obrigação de te
contar a minha vida?

--Não; mas contrahiste com a minha alma a obrigação de eu me interessar
na tua vida e nos teus infortunios desde este momento.

--Obrigado, cavalheiro!--Juro-te uma sincera amisade.--Has-de ser o meu
confidente.

Estavam, outra vez, na platêa. Henriqueta aproximou-se ao quarto
camarote da primeira ordem, firmou o pé de fada na frisa, segurou-se ao
peitoril do camarote, e travou conversação com a familia que o occupava.
Carlos acompanhou-a em todos estes movimentos, e preparou-se para um
novo enygma.

Segundo o costume, as mãos de Henriqueta passaram por uma analyse
rigorosa. Não era possivel, porém, fazel-a tirar a luva da mão esquerda.

--Dominó, porque não deixas vêr este annel?--Perguntava uma senhora de
olhos negros, e vestida de negro, como uma viuva rigorosamente
enluctada.

--Que te importa o annel, minha querida Sophia!?... Fallemos de ti, aqui
em segredo. Ainda vives melancolica, como a Dido da fabula? Fica-te bem
essa côr de esquifes, mas não sustentas o caracter artistico com
perfeição. A tua tristeza é fingida, não é verdade?

--Não me offendas, dominó, que eu não te mereço essa injuria... A
desgraça nunca se finge...

--Disseste uma verdade, que é a tua condemnação. Eu, se tivesse sido
abandonada por um amante, não vinha aqui dar-me em espectaculo a um
baile de mascaras. A desgraça não se finge, é verdade; mas a saudade
esconde-se para chorar, e a vergonha não se ostenta radiosa d'esse
sorriso que te brinca nos labios... Olha, minha amiga, ha umas mulheres
que nasceram para esta época, e para estes homens. Ha outras que a
Providencia caprichosa atirou a esta geração corrompida como os
imperadores romanos atiravam os christãos ao amphitheatro dos leões.
Felizmente que tu não és das segundas, e sabes harmonisar com o teu
genio folgasão e desleixado uma hypocrisia que te vai bem n'um sophá de
pennas, onde te recostas com um perfeito conhecimento das attitudes
languidas das mulheres cançadas do Balzac. Eu, se fosse homem, amava-te
por desfastio!... És a unica mulher para quem este paiz é pequeno.
Devias conhecer o Regente, e Richelieu, e os abbades de Versailles, e as
filhas do Regente, e as Heloïsas desenvoltas dos abbades, e as aias da
duqueza do Maine... et cetera. Isto por cá é pequenissimo para as
Phryneas. Uma mulher da tua indole morre asphyxiada n'este ambiente
pesado em que o coração, nas suas expansões romanticas, encontra, quasi
sempre, a mão burgueza das conveniencias a tapar-lhe os respiradouros...
Parece que te enfadas de mim?...

--Não te enganas, dominó... Obsequeias-me se me não deres o incommodo de
te mandar retirar.

--És muito delicada, minha nobre Sophia!... Já agora, porém, deixa-me
dar-te uma idêa mais precisa d'esta mulher que te enfada, e que, apesar
das tuas injustiças, se interessa na tua sorte. Diz-me cá... Tens uma
sincera paixão, uma saudade pungente por aquelle bello capitão de
cavallaria, que te deixou, tão sosinha, com as tuas agonias de amante?

--Que te importa?...

--És cruel! Pois não ouves o tom sentimental com que te faço esta
pergunta?... Quantos annos tens?...

--Metade e outros tantos...

--A resposta não me parece tua... Aprendeste essa vulgaridade com a
filha do teu sapateiro?... Ora olha: tu tens 38 annos, a não ser
mentiroso o assento de baptismo, que se lê no cartorio da freguezia dos
Martyres em Lisboa.

Aos vinte annos amavas com ternura um tal Pedro Sepulveda. Aos vinte e
cinco, amavas com paixão, um tal Jorge Albuquerque. Aos 30, amavas com
delirio, um tal Sebastião de Meirelles. Aos 35, amavas, em Londres, com
frenesi um tal... como se chamava... não me recordo... diz-me, por
piedade o nome d'esse homem, que, se não, fica o meu discurso sem o
effeito do drama... Não dizes, má?... Ai!... eu tenho aqui a
mnemonica...

Henriqueta tirou a luva da mão esquerda, e deixou vêr um annel... Sophia
estremeceu, e córou até ás orelhas.

--Já te recordas?... Não córes, minha querida amiga... que não fica bem
ao teu caracter de mulher que conhece o mundo pela face positiva...
Deixa-me agora arredondar o periodo, como dizem os litteratos... Ora tu
que amaste desenfreadamente cinco antes do sexto homem, como queres
fingir debaixo d'esse vestido negro, um coração varado de saudades e
orphão de consolações?... Adeus, minha bella hypocrita...

Henriqueta desceu elegantemente do seu poleiro, e deu o braço a Carlos.


IV.


Eram tres horas.

Henriqueta disse que se retirava, depois de victimar com seus ligeiros,
mas pungentes gracejos, alguns d'aquelles muitos que provocam o sarcasmo
só com a presença, só com o vulto corporal, só com a semsaboria de um
remoque parvo e pretencioso. O carnaval é uma exposição annual d'estes
infelizes.

Carlos, ao vêr que Henriqueta se retirava com um segredo que tanto
irritára a sua curiosidade, instou com delicadeza, com meiguice, e até
com resentimento, pela realidade de uma esperança, que fizera a sua
felicidade de algumas horas.

--Eu não me arrependo--disse elle--de ter sido a voluntaria testemunha
de teus desforços... Ainda mesmo que me tivessem conhecido, e tu fosses
uma mulher licenciosa e depravada, não me arrependeria... Ouvi-te,
illudi-me na esperança vaidosa de conhecer-te, tive orgulho de ser o
escolhido para sentir de perto as pulsações vertiginosas do teu
coração... estou recompensado de mais... Ainda assim, Henriqueta, eu não
tenho pejo de abrir-te a minha alma, confessando-te um desejo de
conhecer-te que não posso illudir... Este desejo vaes-m'o tu convertendo
n'uma dôr; e será logo uma saudade insupportavel, que te faria compaixão
se soubesses avaliar o que é na minha alma um desejo _impossivel_. Se tu
m'o não dizes, quem me dirá o teu nome?

--Não sabes que sou Henriqueta?

--Que importa? E serás tu Henriqueta?

--Sou... juro-te que sou...

--Não basta isto... Ora diz-me... não sentes a precisão de ser-me grata?

--A que, meu cavalheiro?

--Grata ao melindre com que te tenho tractado, grata á delicadeza com
que te peço uma revelação da tua vida, e grata a este impulso invencivel
que me manda ajoelhar-te... Será nobre zombar d'um amor que
involuntariamente fizeste nascer?

--Não te illudas, Carlos--replicou Henriqueta n'um tom de seriedade,
semelhante ao de uma mãi que aconselha seu filho. O amor não é isso que
pica a tua curiosidade. As mulheres são faceis de transigir de boa fé
com a mentira, e, pobres mulheres!... succumbem muitas vezes á
eloquencia artificiosa d'um conquistador. Os homens, fartos de estudarem
as paixões na sua origem, e enfadados das rapidas illusões que elles
choram todos os dias, estão promptos sempre a declararem-se affectados
da cholera-paixão, e nunca apresentam _carta-limpa_ de scepticos. De
maneira que o sexo fragil das chimeras sois vós, creancinhas de toda a
vida, que brincaes aos trinta annos com a mulher como aos seis
brincaveis com os cavallinhos de pau, e os fradinhos de sabugo! Olha,
Carlos, eu não sou ingrata... Vou-me despedir de ti, mas hei-de
conversar comtigo ainda. Não instes; abandona-te á minha generosidade, e
verás que alguma cousa lucraste em me encontrar e em me não conhecer.
Adeus.

Carlos acompanhou-a com os olhos, e permaneceu alguns minutos n'uma
especie de idiotismo, quando a viu desapparecer á sahida do theatro. O
seu primeiro pensamento foi seguil-a; mas a prudencia lembrou-lhe que
era uma indignidade. O segundo foi empregar a intriga astuciosa até
roubar alguma revelação áquella Sophia da primeira ordem ou á Laura da
segunda. Não lhe lembraram recursos, nem eu sei quaes elles poderiam
ser. Laura e Sophia, para dissiparem completamente a esperança anciosa
de Carlos, tinham-se retirado. Era necessario esperar, era necessario
confiar n'aquella mulher extraordinaria, cujas promessas o alvoroçado
poeta traduzia em mil versões.

Carlos retirou-se, e esqueceu não sei quantas mulheres, que ainda, na
noite anterior, lhe povoaram os sonhos. Ao amanhecer, ergueu-se, e
escreveu as reminiscencias vivas da scena, quasi fabulosa, que lhe
transtornava o plano de vida.

Não houve nunca um coração tão ambicioso de futuro, tão fervente de
poesia, e tão phantastico de conjecturas! Carlos adorava seriamente
aquella mulher! Como estas adorações se afervoram com tão pouco, não sei
eu: mas que o amor é assim, vou eu jural-o, e espero que os meus amigos
me não deixem mentir.

Imaginem, por tanto, a inquietação d'aquelle grande espiritualista,
quando viu passarem, vagarosos e enfadonhos, oito dias, sem que o mais
ligeiro indicio lhe viesse confirmar a existencia de Henriqueta! Não
direi que o desesperado amante appellou para o supremo tribunal das
paixões impossiveis. O suicidio não lhe passou nunca pela imaginação; e
muito sinto que esta verdade diminua as sympathias que o meu heroe
poderia grangear. A verdade, porém, é que o apaixonado mancebo vivia
sombrio, isolava-se contra os seus habitos socialmente galhofeiros,
abominava as impertinencias de sua mãi que o consolava com anedoctas
tragicas a respeito de rapazes cegos de amor, e, emfim, soffrera a ponto
tal, que resolvera abandonar Portugal, se, no fim de quinze dias a
fatidica mulher continuasse a ludibriar a sua esperança.

Diga-se, porém, em honra e louvor da astucia humana: Carlos, resolvido a
partir, lembrou-se de pedir a um seu amigo, que, na gazetilha do
_Nacional_, dissesse, por exemplo, o seguinte:

«O snr. Carlos d'Almeida vai, no proximo paquete, para Inglaterra. S.
s.^a tenciona observar de perto a civilisação das primeiras capitaes da
Europa. O snr. Carlos d'Almeida é uma intelligencia, que, enriquecida
pela instrucção pratica da sua visita aos focos da civilisação, ha-de
voltar á sua patria com fecundo cabedal de conhecimentos em todos os
ramos das sciencias humanas. Fazemos votos porque s. s.^a se recolha em
breve ao seio dos seus numerosos amigos.»

Esta local bem podia ser que chegasse ás mãos de Henriqueta. Henriqueta
bem podia ser que conjecturasse o imperioso motivo, que obrigava o
infeliz a buscar distracções longe da patria, onde a sua paixão era
invencivel. E, depois, nada mais facil que uma carta, uma palavra, um
raio de esperança, que lhe transtornasse os seus planos.

Era esta a infallivel tenção de Carlos, quando ao decimo quarto dia lhe
foi entregue a seguinte carta:


V.


                                                 «Carlos.

«Sem offender as leis da civilidade, continuo a dar-te o tratamento do
dominó, porque, em boa verdade, eu continuo a ser para ti um dominó
moral, não é assim?

«Passaram-se quatorze dias, depois que tiveste o mau encontro d'uma
mulher, que te privou de algumas horas de deliciosa intriga. Victima da
tua delicadesa, levaste o sacrificio a ponto de te mostrares interessado
na sorte d'essa celebre desconhecida que te mortificou. Não serei eu,
generoso Carlos, ingrata a essa manifestação cavalheirosa, embora ella
seja um rasgo de artista, e não um desejo espontaneo.

«Queres saber porque tenho demorado quatorze dias este grande sacrificio
que vou fazer? É porque ainda hoje me levanto d'uma febre incessante,
que me insultou n'aquelle camarote da segunda ordem, e que, n'este
momento, parece declinar.

«Permitta Deus que seja longo o intervallo para ser longa a carta: mas
eu sinto-me tão pequena para os sacrificios grandes!... Não te quero
responsabilisar pela minha saude; mas, se o meu silencio de longos
tempos succeder a esta carta, conjectura, meu amigo, que Henriqueta
cahiu no leito, d'onde ha-de erguer-se, senão é graça que os mortos
hão-de erguer-se um dia.

«Queres apontamentos para um romance que terá o merito de ser portuguez?
Vou dar-t'os.

«Henriqueta nasceu em Lisboa. Seus paes tinham o lustre dos brazões, mas
não brilhavam nada pelo ouro. Viviam sem fausto, sem historia
contemporanea, sem bailes, e sem bilhetes de boas festas. As visitas que
Henriqueta conhecia eram, no sexo feminino, quatro velhas suas tias, e,
no masculino, quatro caseiros que vinham annualmente pagar as rendas,
com que seu pai regulava economicamente uma nobre independencia.

«O irmão de Henriqueta era um moço de talento, que grangeara uma
instrucção, enriquecida sempre pelos desvelos com que afagava a sua
paixão unica. Isolado de todo o mundo, o irmão de Henriqueta confiou a
sua irmã os segredos do seu muito saber, e formou-lhe um espirito
varonil, e inspirou-lhe uma ambição faminta de sciencia.

«Bem sabes, Carlos, que fallo de mim, e não posso, n'esta parte,
engrinaldar-me de flôres immodestas, se bem que não me faltariam depois
espinhos que me desculpassem as vaidosas flôres...

«Eu cheguei a ser o ecco fiel dos talentos de meu irmão. Nossos paes não
comprehendiam as praticas litterarias com que aligeiravamos as noites
d'inverno; e, mesmo assim, folgavam de nos ouvir, e via-se-lhes nos
olhos aquelle rir de bondoso orgulho, que tanto inflamma as vaidades da
intelligencia.

«Aos dezoito annos achei pequeno o horisonte da minha vida, e
enfastiei-me da leitura, que m'o fazia cada vez amesquinhar-se mais. Só
com a experiencia, se conhece o quanto a litteratura modifica a
organisação de uma mulher. Eu creio que a mulher, apurada na sciencia
das cousas, pensa de um modo extraordinario na sciencia das pessoas. O
prisma das suas vistas penetrantes é bello, mas as lindas cambiantes do
seu prisma são como as côres variegadas do arco iris, que annuncia
tempestade.

«Meu irmão lia-me os segredos do coração! não é facil mentir ao talento
com as hypocrisias do talento. Comprehendeu-me, e teve dó de mim.

«Meu pai morreu, e minha mãi pediu á alma de meu pai que lhe alcançasse
do Senhor uma vida longa para meu amparo. Ouviu-a Deus, porque eu vi um
milagre na rapida convalescença com que minha mãi sahiu d'uma
enfermidade de quatro annos.

«Eu vi um dia um homem no quarto de meu irmão, onde entrei como entrava
sempre sem receio de encontrar um desconhecido. Quiz retirar-me, e meu
irmão chamou-me para me apresentar, pela primeira vez na sua vida, um
homem.

«Este homem chama-se Vasco de Seabra.

«Não sei se por orgulho, se por acaso, meu irmão chamou a conversa ao
campo da litteratura. Fallava-se em romances, em dramas, em estilos, em
escólas, e não sei que outros mais assumptos ligeiros e graciosos que me
captivaram o coração e a cabeça.

«Vasco fallava bem, e revelava cousas que me não eram novas com estilo
novo. N'aquelle homem, via-se o genio aformoseado pela arte que só na
sociedade se adquire. Em meu irmão faltava-lhe o relevo de estilo, que
se lapida ao tracto dos maus e dos bons. Bem sabes Carlos, que te digo
uma verdade, sem pretenções de _bas-bleu_, que é de todas as miserias a
mais lastimosa miseria das mulheres cultivadas.

«Vasco retirou-se, e eu quizera antes que elle se não retirasse.

«Disse-me meu irmão que aquelle rapaz era uma intelligencia superior,
mas depravada pelos maus costumes. A razão porque elle viera a nossa
casa era muito simples; encarregara-o seu pai de fallar com meu irmão a
respeito da remissão d'uns fóros.

«Vasco passou n'esse dia por debaixo das minhas janellas: fixou-me,
cortejou-me, corei, e não me atrevi a seguil-o com os olhos, mas segui-o
com o coração. Que suprema miseria, Carlos! Que renuncia tão impensada
faz uma mulher da sua tranquillidade!

«Voltou um quarto d'hora depois: retirei-me, sem querer mostrar-lhe que
o percebia; fiz-me distrahida, por entre as cortinas, a contemplar a
marcha das nuvens, e das nuvens descia um olhar precipitado sobre
aquelle _indifferente_ que me fazia córar e soffrer. Viu-me,
adivinhou-me, talvez, e cortejou-me ainda. Eu vi o gesto da cortezia,
mas fingi-me, e não lhe correspondi. Foi isto um heroismo, não é
verdade? Seria; mas eu tive remorsos, apenas elle desapparecera, de o
tratar tão grosseiramente.

«Demorei-me n'estas puerilidades, meu amigo, porque não ha nada mais
grato para nós que a recordação dos ultimos instantes de ventura a que
se prendem os primeiros instantes da desgraça.

«Aquellas linhas fastidiosas são a historia da minha transfiguração. Ahi
principia a longa noite da minha vida.

«Nos dias immediatos, a horas certas, vi sempre este homem. Concebi os
perigos da minha fraqueza, e quiz ser forte. Resolvi não vêl-o mais:
revesti-me d'um orgulho digno da minha immodesta superioridade ás outras
mulheres: sustentei este caracter dous dias; e, ao terceiro, era fraca
como todas as outras.

«Eu já não podia divorciar-me da imagem d'aquelle homem, d'aquellas
nupcias infelizes, que meu coração contrahira. O meu instincto não era
mau; porque a educação tinha sido boa; e, não obstante a humildade
constante com que sempre sujeitei a minha mãi os meus innocentissimos
desejos, senti-me então, com magoa minha, rebelde, e capaz de conspirar
contra a minha familia.

«A frequente repetição dos passeios de Vasco não podia ser indifferente
a meu irmão. Fui suavemente interrogada por minha mãi, a tal respeito, e
respondi-lhe com respeito, mas sem temor. Meu irmão presentiu a
necessidade de matar aquella inclinação nascente, e expoz-me um quadro
feio dos costumes pessimos de Vasco, e o conceito publico em que era
tido o primeiro homem a quem eu tão francamente me offerecia em namoro.
Fui altiva com meu irmão, e adverti-lhe que os nossos corações não
tinham contrahido a obrigação de se consultarem.

«Meu irmão soffreu; eu tambem soffri; e, passado o momento da exaltação,
quiz cerrar a ferida que abrira n'aquelle coração, desde a infancia,
identificado com as minhas vontades.

«Este sentimento era nobre; mas o do amor era inferior. Se eu podesse
reconcial-os ambos! Não podia, nem sabia fazel-o! Uma mulher, quando
principia a sua dolorosa tarefa do amor, não sabe mentir com
apparencias, nem calcula os prejuizos que póde evitar com uma pouca de
impostura. Eu fui assim. Deixei-me hir abandonada á correnteza, da minha
inclinação; e, quando forcejei por me tornar, tranquilla, á isenção da
minha alma, não pude vencer a corrente.

«Vasco de Seabra perseguia-me: as cartas eram incessantes, e a grande
paixão que ellas exprimiam não era ainda igual á paixão que me faziam.

«Meu irmão quiz tirar-me de Lisboa, e minha mãi instava pela sahida, ou
pela minha entrada a toda a pressa nas Silesias. Informei Vasco das
intenções de minha familia.

«No mesmo dia, este homem, que me pareceu um cavalheiro digno d'outra
sociedade, entrou em minha casa, pediu-me urbanamente a minha mãi, e foi
urbanamente repellido. Eu sube-o, e torturei-me! Não sei do que seria
então capaz a minha alma offendida! Sei que foi capaz de tudo que póde
caber em forças d'uma mulher, contrariada nas ambições que nutrira,
sosinha comsigo, e conjurada a perder-se por ellas.

«Vasco irritado d'um nobre estimulo, escreveu-me, como quem me pedia a
mim a satisfação dos despresos de minha familia. Respondi-lhe que lh'a
dava plena, como elle a exigisse. Disse-me que fugisse de casa, pela
porta da deshonra, e muito cedo entraria n'ella com a minha honra
illibada. Que desgraça! n'aquelle tempo até as pompas do estilo me
seduziam!... Respondi que sim, e cumpri.

«Meu amigo Carlos. Vai longa a carta, e a paciencia é curta. Até ao
correio que vem.

                                                 _Henriqueta_.»


VI.


Carlos relêra com sofrega anciedade, a singela expansão d'uma alma que,
talvez, nunca se abrira, se a não rasgasse o espinho d'um martyrio
surdo. Henriqueta não escrevia assim uma carta a um homem, que podesse
consolal-a. Afeita a gemer no silencio, e na solidão, tornava-se como
egoista das suas dôres, e suppunha que divulgal-as era esfolhar a mais
bella flôr da sua corôa de martyr. Escreveu, porque a sua carta era um
mytho de segredo e publicidade; porque a sua afflicção não rastejava
pelos queixumes lamuriantes e triviaes d'um grande numero de mulheres,
que não choram nunca a viuvez do coração, e lastimam sempre a demora das
segundas nupcias; escreveu em fim, porque a sua dôr, sem deshonrar-se
com uma publicidade esteril, interessava um coração, esposava uma
sympathia, um soffrimento simultaneo, e, quem sabe mesmo, se uma nobre
admiração! Ha mulheres vaidosas--deixem-me assim dizer--da fidalguia do
seu soffrer. Risonhas para o mundo, é muito sublime aquella angustia
represada que só póde extravasar os sobejos do seu fel em uma carta
anonyma. Lagrimosas para si, e fechadas no circulo estreito, que a
sociedade lhes traça com o compasso inexoravel das conveniencias, essas
sim, são duas vezes anjos despenhados!

Quem podesse receber na taça de suas lagrimas algumas, que ahi se
choram, e que a opulencia material não enxuga, experimentaria
consolações d'um sabor novo. O padecimento, que se esconde, impõe o
respeito religioso do augusto mysterio d'esta religião universal,
symbolisada pelo soffrimento commum. O homem, que podesse verter uma
gota de orvalho na aridez d'algum coração, seria o sacerdote
providencial no tabernaculo d'um espirito superior, que velasse a vida
da terra para que tamanhas agonias não fossem estereis na vida do céo.
Não ha na terra mais gloriosa missão!

Carlos por tanto, sentiu-se feliz d'este orgulho santo que ennobrece a
consciencia do homem que recebe o privilegio d'uma confidencia. Esta
mulher, dizia elle, é para mim um ente quasi phantastico. Allivios quaes
são os que eu posso dar-lhe?... Nem ao menos escrever-lhe!... E ella...
em que fará consistir o seu prazer?! Deus o sabe! Quem póde explicar, e
mesmo explicar-se a singularidade d'um proceder, ás vezes, inconcebivel?
...........................................................................

No correio proximo, recebeu Carlos a segunda carta de Henriqueta:

«Que imaginaste, Carlos, depois da leitura da minha carta? Adivinhaste o
resto, com prestesa natural. Recordaste mil aventuras d'este genero, e
amoldaste a minha historia ás legitimas consequencias de todas as
aventuras. Julgaste-me abandonada pelo homem, com quem fugira, e
chamaste a isto, talvez, uma deducção contida nos principios.

«Pensaste bem, amigo, a logica da desgraça é essa, e o contrario dos
teus juizos é o que se chama sophisma, porque eu estou em pensar que a
virtude é o absurdo da logica dos factos, é a heresia da religião das
sociedades, é a aberração monstruosa das leis, que regem o destino do
mundo. Achas-me metaphysica de mais? Não te impacientes. A dôr
refugia-se nas abstracções, e encontra melhor pabulo na Loucura de
Erasmo, que nas sisudas deducções de Montesquieu.

«Minha mãi estava reservada para uma grande provação! Amparou-a Deus
n'aquelle golpe, e permittiu-lhe uma energia que não era de esperar.
Vasco de Seabra bateu ás portas de todas as igrejas de Lisboa, para me
apresentar, como sua mulher, ao cura da freguezia, e achou-as fechadas.
Eramos perseguidos, e Vasco não contava com a sua superioridade sobre
meu irmão, que lhe fizera certa e infallivel a morte, onde quer que a
fortuna lh'o deparasse.

«Fugimos de Lisboa para Hespanha. Um dia entrou Vasco, alvoroçado,
pallido, e febril d'aquella febre de medo, que, realmente, era, até
então, a unica face prosaica do meu amante. Emmulamos a toda a pressa, e
partimos para Londres. É que Vasco de Seabra vira meu irmão em Madrid.

«Vivemos em um bairro retirado de Londres. Vasco tranquillisou-se,
porque lhe afiançaram de Lisboa a volta de meu irmão, que perdera as
esperanças de encontrar-me.

«Se me perguntas como era a vida intima d'estes dous fugitivos, aos
quaes não faltava condição alguma das aventuras romanticas d'um rapto,
dir-t'a-hei em poucas linhas.

«O primeiro mez das nossas nupcias de emboscada foi um sonho, uma febre,
uma anarchia de sensações que, levadas ao extremo do goso, pareciam
tocar as raias do soffrimento. Vasco parecia-me um Deus, com as
seductoras fraquezas d'um homem; queimava-me com o seu fogo,
divinisava-me com o seu espirito; levava-me de mundo em mundo á região
dos anjos onde a vida deve ser o extasis, o arrobamento, a alienação com
que a minha alma se derramava nas sensações ardentissimas d'aquelle
homem.

«No segundo mez, Vasco de Seabra disse-me pela primeira vez «que era
muito meu amigo.» O coração pulsava-lhe vagaroso, os olhos não faiscavam
electricidade, os sorrisos eram frios... os meus beijos já os não
aqueciam n'aquelles labios! «Sinto por ti uma sincera estima.» Quando
isto se diz, depois d'um amor vertiginoso, que não sabe as phrases
triviaes, a paixão está morta. E estava...

«Depois, Carlos, fallavamos em litteratura, analysavamos as operas,
discutiamos o merito dos romances, e viviamos em academia permanente,
quando Vasco me não deixava quatro, cinco, e seis horas entregue ás
minhas innocentes recreações scientificas.

«Vasco cançara-se de mim. A consciencia affirmou-me esta verdade atroz.
Suffoquei a indignação, as lagrimas, e os gemidos. Soffri sem limites.
Abrasou-se-me na alma um inferno que me coava fogo nas vêas. Não houve
nunca mulher assim desgraçada!

«E vivemos assim dezoito mezes. A palavra «casamento» foi banida de
nossas curtas conversações... Vasco desquitava-se de compromissos, que
elle chamava parvos. Eu mesma, de bom grado, o remia de ser o meu
escravo, como elle intitulava o nescio, que se deixava algemar ás
obscuras superstições do setimo sacramento... Foi ahi que Vasco de
Seabra encontrou a Sophia que te apresentei no real theatro de S. João,
na primeira ordem.

«Comecei então a pensar em minha mãi, em meu irmão, na minha honra, na
minha infancia, na memoria deslustrada de meu pai, na tranquillidade de
minha vida até ao momento em que me atirei á lama e salpiquei com ella a
face da minha familia.

«Peguei da penna para escrever a minha mãi. Escrevera a primeira
palavra, quando comprehendi o vexame, a degradação, e a villania com que
ousava apresentar-me áquella virtuosa senhora, com a face manchada de
nodoas, contagiosas. Repelli com nobreza esta tentação, e desejei
n'aquelle instante, que minha mãi me julgasse morta.

«Em Londres viviamos n'uma hospedaria, depois que Vasco perdeu o medo a
meu irmão. Viera ahi hospedar-se uma familia portugueza. Era o visconde
do Prado, e sua mulher, e uma filha. O visconde relacionou-se com Vasco,
e a viscondessa e sua filha visitaram-me, tractando-me como irmã de
Vasco.

«Agora, Carlos, esquece-te de mim, e satisfaz a tua curiosidade na
historia d'esta gente, que já conheceste no camarote da 2.^a ordem.

«Mas não posso agora dispor de mim... Saberás, alguma vez, a razão
porque não pude continuar esta carta.

«Adeus, até outro dia,

                                                 _Henriqueta_.»


VII.


«Cumpro religiosamente as minhas promessas. Tu não avalias o sacrificio
que faço. Não importa. Como não quero captivar a tua gratidão, nem,
mesmo ainda, mover a tua piedade, basta-me a consciencia do que sou para
ti, que é (medita bem) o mais que posso ser...

«A historia... não é assim? Principia agora.

«Antonio Alves era um pobre amanuense do escriptorio de um tabellião de
Lisboa. Casou, e reuniu ao infortunio de casar a desgraça de ser pai. O
tabellião morreu, e Antonio Alves, privado dos escassos lucros de
amanuense, luctou com a fome. A mulher por um lado com a filhinha ao
collo, e elle pelo outro com as lagrimas da indigencia, conseguiram
algumas moedas, e com ellas a passagem do pobre marido para o Rio de
Janeiro.

«Foi, e deixou entregues á Providencia a mulher e a filha.

«Josepha esperava todos os dias carta de seu marido. Nem carta, nem um
indicio da sua existencia. Julgou-se viuva, vestiu-se de preto, e viveu
de esmolas, pedidas á noite na _praça do Rocio_.

«A filha chamava-se Laura, e crescera bella, não obstante as angustias
da fome, que transformam a formosura do berço.

«Aos quinze annos de Laura, já sua mãi não mendigava. A deshonra
proporcionara-lhe abundancia que uma honrosa mendicidade lhe não dera.
Laura era amante d'um rico, que cumpria fielmente com a mãi as
condicionaes estipuladas na escriptura de venda da filha.

«Um anno depois, Laura explorava outra mina. Josepha não soffria com as
vicissitudes da filha, e continuava a gosar os fins da vida á sombra de
tão fecunda arvore.

«A indigencia, e a sociedade fizeram-lhe comprehender que só ha deshonra
na fome e na nudez.

«Outro anno depois, a radiosa Laura declarou-se o premio do cavalleiro,
que mais airoso entrasse no torneio.

«Concorreram muitos gladiadores, e parece que todos foram premiados,
porque todos esgrimiam galhardamente.

«Desgraça foi para Laura, quando os melhores campeões se retiraram
fatigados da liça. Os que vieram depois eram bisonhos no jogo das armas,
e viram que a dama das justas já não valia a pena de perigosos botes de
lança, e de arreios muito custosos de pedraria e ouro.

«Pobre Laura, apeada do seu pedestal, olhou-se a um espelho, viu-se
ainda bella com vinte e cinco annos, e perguntou á sua consciencia a
baixa do preço com que corria no leilão de mulheres. A consciencia
respondeu-lhe que descesse da altura das suas ambições, que viesse para
onde a chamava a logica da sua vida, e continuaria a ser rainha n'um
reino de segunda ordem, já que a exauthoravam d'um throno que tivera na
primeira.

«Laura desceu, e encontrou uma sociedade nova. Acclamaram-na soberana,
reuniu-se uma côrte tumultuosa na ante-camara d'esta odalisca facil, e
não houve grande nem pequeno a quem se baixassem os reposteiros do
throno.

«Laura viu-se um dia abandonada. Viera uma outra disputar-lhe a sua
legitimidade. Os cortezãos voltaram-se para o sol nascente, e
apedrejaram, como os incas, o astro que se escondia para alumiar os
antipodas d'um outro mundo.

«Os antipodas d'um outro mundo eram uma sociedade inculta, sem a
intelligencia da arte, sem o culto á formosura, sem as opulencias que o
ouro cria nas altas regiões da civilisação, e, finalmente, sem algum dos
attributos, que Laura amára tanto nos mundos, onde fôra soberana duas
vezes.

«A infeliz tinha descido ao derradeiro grau de aviltamento; mas era
bella ainda. Sua mãi, enferma n'um hospital, pedia a Deus, como esmola,
a sua morte. A desgraçada foi punida.

«No hospital, viu passar sua filha diante do seu leito; pediu que a
deitassem ao pé de si; o enfermeiro riu-se; e entrou com ella n'outra
enfermaria, onde o anjo do pudor e o das lagrimas cobriam o rosto na
presença da ulcera mais esqualida, e mais lastimosa do genero humano.

«Laura principiava a sondar a profundidade do abysmo em que cahira.

«Sua mãi recordava as fomes d'outro tempo, quando sua filha, virgem
ainda, chorava e supplicava, com ella, uma esmola ao passageiro.

«As privações de então eram semelhantes, ás privações de agora, com a
differença, porém, que a Laura de hoje, deshonrada e repelida, não podia
já prometter o futuro da Laura de então.

«Agora, Carlos, vejamos o que é o mundo, e pasmemos diante das evoluções
gymnasticas dos acontecimentos.

«Apparece em Lisboa um capitalista, que chama a attenção dos
capitalistas, a consideração do governo, e, por via de regra, desafia
inimisades politicas, e invejas, que procuram o seu principio de vida
para denegrir-lhe o luzimento da sua affrontosa opulencia.

«Este homem compra uma quinta na provincia do Minho, e, mais barato
ainda, compra o titulo de visconde do Prado.

«Um jornal de Lisboa, que traz entre os dentes venenosos da politica o
pobre visconde, escreve um dia um artigo, onde se acham, entre muitas,
as seguintes allusões:

«O snr. visconde do Prado adscreveu á immoralidade do governo a
immoralidade da sua fortuna. Como ella foi adquirida, dil-o-hiam as
costas d'Africa se os sertões contassem os horrorosos dramas da
escravatura, em que o snr. visconde foi heroe.
...........................................................................

«O snr. visconde do Prado era Antonio Alves ha 26 annos, e a pobre
mulher que deixou em Portugal, com uma tenra filhinha ao collo, ninguem
dirá em que rua morreu de fome sobre as lages, ou em que agua-furtada
curtiram ambas as agonias da fome, em quanto o snr. visconde medrava
cynicamente na hydropisia do ouro, com que hoje vem arrotar moralidades
no theatro das suas infamias de esposo e de pai................

«Melhor fôra que o snr. visconde indagasse onde repousam os ossos de sua
mulher, e de sua filha, e nos pozesse ahi um padrão de marmore, que
possa attestar ao menos o remorso d'um infame contricto...

«Este insulto directo, e fundamentado, ao visconde do Prado, fez ruido
em Lisboa. As edições do jornal espalharam-se, e leram-se, e
commentaram-se com frenetica maldade.

«Ás mãos de Laura chegou este jornal. Sua mãi, ouvindo lêl-o, delirou. A
filha cuidou que sonhava; e a situação de ambas perderia muito se eu
tentasse roubar-lhe as côres vigorosas da tua imaginação.

«No dia seguinte, Josepha e Laura entravam no palacete do visconde do
Prado. O porteiro respondeu que s. exc.^a não estava ainda a pé.
Esperaram. Ás 11 horas sahia o visconde, e, ao saltar para a carruagem,
viu duas mulheres que se aproximavam. Metteu a mão ao bolso do collete,
e tirou doze vintens que lançava na mão de uma das duas mulheres. Olhou
admirado para ellas, quando viu que a esmola lhe era recusada.

«--Que querem?--interrogou elle, com soberba indignação.

«--Quero vêr meu marido que não vejo, ha 26 annos...--respondeu Josepha.

«O visconde estacou ferido d'um raio. O suor gotejava-lhe na testa em
bagas frias. Laura aproximou-se, em attitude de beijar-lhe a mão...

«--Pois que?...--interpellou o visconde.

«--Sou sua filha...--respondeu Laura com humildoso respeito.

«O visconde, aturdido e parvo, voltou as costas á carruagem, e mandou ás
duas mulheres que o seguissem.

«O resto no correio seguinte.--Adeus, Carlos.

                                                 _Henriqueta_.»


VIII.


«Carlos, tenho quasi tocado a extrema d'esta minha peregrinação. A minha
illiada está no ultimo canto. Quero dizer-te que é esta a minha
penultima carta.

«Não sou tão independente como pensava. A não serem os poetas, ninguem
gosta de contar as suas magoas ao vento. É bello dizer-se, que um gemido
nas azas da brisa vai da terra em dorido suspirar até ao côro dos anjos.
É bonito conversar com a fonte suspirosa, e contar á avesinha gemedôra
os segredos do nosso penar. Tudo isto é delicioso d'uma puerilidade
inoffensiva; mas eu, Carlos, não tenho alma para estas cousas, nem
engenho para estes artificios.

«Vou contando as minhas penas a um homem, que não póde zombar de minhas
lagrimas, sem trahir a generosidade do seu coração, e a sensibilidade do
talento Sabes qual é o meu egoismo, o meu estipendio n'este trabalho,
n'esta franqueza d'alma, que ninguem te póde disputar como unico em
merecêl-a? Eu te digo. Quero uma carta tua, dirigida a Angelica
Michaela. Diz-me o que a tua alma te disse; não tenhas pejo em
denuncial-a; associa-te um momento á minha dôr, e dize-me o que farias
se tivesses sido Henriqueta.

«Aqui tens o prologo d'esta carta: agora vamos espreitar o lance
extraordinario d'aquelle encontro, em que deixamos o visconde e a...
como hei-de chamar-lhe?... a viscondessa, e sua exc.^{ma} filha D.
Laura.

«--Pois é possivel existires?--perguntava o visconde, sinceramente
admirado, a sua mulher.

«--Pois não me conheces, Antonio?--respondia ella com estupida
naturalidade.

«--Tinham-me dito que morreras...--tornou elle com desazada
hypocrisia--tinham-me dito, ha dezesete annos, que tu e a nossa filha
tinheis sido victimas da cholera-morbus...

«--Felizmente que lhe mentiram--interrompeu Laura com affectada
meiguice.--Nós é que lhe tinhamos resado por alma, e nunca deixamos de
pronunciar o seu nome sem saudosas lagrimas.

«--Como tendes vivido?--perguntou o visconde.

«--Pobre, mas honradamente--respondeu Josepha, dando-se uns ares
austeros, e pondo os olhos em branco, como quem invoca o céo por
testemunha.

«--Ainda bem!--tornou o visconde--mas que modo de vida tem sido o vosso?

«--O trabalho, meu querido Antonio, o trabalho de nossa filha tem sido o
amparo da sua honra, e da minha velhice. Tu abandonaste-nos com tamanha
crueldade!... Que mal te fizemos nós?

«--Nenhum, mas não vos disse eu que vos considerava mortas?--respondeu o
visconde a sua mulher, que tivera a habilidade de arrancar duas
volumosas lagrimas, tanto a proposito.

«--O passado, passado--disse Laura, afagando carinhosamente as mãos
paternas, e dando-se uns ares de innocencia capazes de illudir S. Simão
Stylita.--Quer o pai saber (proseguiu ella com sentimento) qual tem sido
a minha vida? Olhe, meu pai, não se envergonhe da posição social em que
encontra sua filha... Tenho sido modista, tenho trabalhado
incessantemente... tenho luctado com as tentações da penuria, e tenho
feito consistir em minhas lagrimas o meu triumpho...

«--Bem, minha filha--interrompeu o visconde com sincera
contrição--esqueçamos o passado.... D'hora em diante será a abundancia a
premio da tua virtude... Ora diz-me: o mundo sabe que tu és minha
filha?... disseste a alguem que eu era teu marido, Josepha?

«--Não, meu pai.--Não meu Antoninho.--Responderam ambas, como se
tivessem previsto e calculado as perguntas e as respostas.

«--Pois bem--continuou o visconde--vamos a conciliar com o mundo as
nossas posições presentes, passadas e futuras. D'hora ávante, Laura, és
minha filha, és filha do visconde do Prado, e não pódes chamar-te Laura.
Serás Elisa, comprehendes-me? é necessario que te chames Elisa...

«--Sim, meu pai... eu serei Elisa--atalhou a _innocente modista_ com
impetuosa alegria.

«--É necessario abandonar Lisboa--proseguiu o visconde.

«--Sim, sim, meu pai... vivamos num sertão... quero gosar, sosinha, na
presença de Deus a felicidade de ter pai...

«--Não hiremos para um sertão... vamos para Londres; mas...
attendam-me... é preciso que ninguem as veja, n'estes primeiros annos,
principalmente em Lisboa... A minha posição actual é muito melindrosa.
Tenho muitos inimigos, muitos invejosos, muitos infames, que procuram
perder-me no conceito que pude comprar com o meu dinheiro. Estou farto
de Lisboa; partiremos no primeiro paquete... Josepha, repara em ti, e vê
que és a viscondessa do Prado. Elisa, a tua educação foi desgraçadamente
mesquinha para te poderes mostrar qual eu quero que sejas na alta
sociedade. Voltaremos um dia, e terás então supprido com a educação
pratica a rudeza que indispensavelmente tens.

«Não progrido, n'este dialogo, Carlos. O programma do visconde foi
rigorosamente cumprido.

«Aqui tens os precedentes que prepararam o meu encontro, em Londres, com
esta familia. Vasco de Seabra, quando viu, pela primeira vez, a filha do
visconde atravessar um corredor do hotel, fixou-a com pasmo, e veio
dizer-me que acabava de vêr, elegantemente trajada, uma mulher que
conhecera em Lisboa, chamada Laura. Acrescentou varias circumstancias da
vida d'esta mulher, e acabou por mostrar vivos desejos de saber o tolo
opulento, a quem tal mulher estava associada.

«Vasco pediu a lista dos hospedes, e viu que os unicos portuguezes eram
Vasco de Seabra e _sua irmã_, e o visconde do Prado, a sua mulher, e sua
filha D. Elisa Pimentel.

«Redobrou o seu pasmo, e chegou a convencer-se d'uma illusão.

«No seguinte dia, o visconde encontrou-se com Vasco, e alegrou-se de ter
encontrado um patricio, que lhe explicasse aquelles gritos barbaros dos
serventes do hotel, que lhe davam agua por vinho. Vasco não duvidou em
ser interprete do visconde, com tanto que as suas luzes em lingua
ingleza podessem chegar ao escondrijo d'onde nunca mais vira sahir a
supposta Laura.

«Correram as cousas á medida do seu desejo. Na noite d'esse dia, fomos
convidados para tomar chá, na saleta do visconde. Eu hesitei, sem saber
ainda se Laura seria familiar do visconde. Vasco, porém, despreveniu-me
d'este temor, afiançando-me que se tinha illudido com a semelhança das
duas mulheres.

«Fui. Elisa pareceu-me uma menina bem educada. Nunca o artificio tirou
maior partido das maneiras adquiridas em habitos libertinos. Elisa era a
mulher de côrte, com os ademans fascinadores dos salões, onde a
immoralidade do coração passeia de braço dado com a illustração do
espirito. O som da palavra, a escolha da phrase, a compostura airosa da
mimica, o tom sublime em que as suas idêas eram voluptuosamente lançadas
na torrente de uma conversação animada, tudo isto me fez crêr que Laura
era a primeira mulher que eu tinha encontrado, talhada á feição do meu
espirito.

«Quando agora pergunto á minha consciencia como estas transições se
fazem, descreio da educação, lamento os annos consumidos no cultivo da
intelligencia, e chego a persuadir-me que a escóla da devassidão é a
ante-camara por onde mais facil se entra no mundo da graça e da
civilisação.

«Perdôa-me o absurdo, Carlos; mas ha mysterios na vida, que só pelo
absurdo se explicam.

                                                 _Henriqueta_.»


IX.


«Li a tua carta, Carlos, com os olhos cheios de lagrimas, e o coração de
reconhecimento. Não esperava tanto da tua sensibilidade. Fiz-te a
injustiça de te julgar infeccionado d'este marasmo de egoismo que
entorpece o espirito, e calcina o coração. E, de mais, suppunha-te
insensivel pelo facto de seres intelligente. Eis-aqui um disparate, que
eu não ousaria balbuciar na presença do mundo. O que vale é que as
minhas cartas não serão lidas pelas mediocridades, que se acham em
concilio permanente para condemnar, em nome de não sei que tolas
conveniencias, as heresias do genio.

«Deixa-me dizer-te francamente o juizo que eu fórmo do homem
transcendente em genio, em estro, em fogo, em originalidade, finalmente
em tudo isso que se inveja, que se ama, e que se detesta, muitas vezes.

«O homem de talento é sempre um mau homem. Alguns conheço eu que o mundo
proclama virtuosos, e sabios. Deixal-os proclamar. O talento não é a
sabedoria. Sabedoria é o trabalho incessante do espirito sobre a
sciencia. O talento é a vibração convulsiva do espirito, a originalidade
inventiva e rebelde á authoridade, a viagem extatica pelas regiões
incognitas da idêa. Santo Agostinho, Fenelon, Madame de Stael, e Bentham
são sabedorias. Luthero, Ninon de Lenclós, Voltaire e Byron são
talentos. Compara as vicissitudes d'essas duas mulheres, e os serviços
prestados á humanidade por esses homens, e terás encontrado o
antagonismo social em que luctam o talento com a sabedoria.

«Porque é mau o homem de talento? Essa bella flôr porque tem no seio um
espinho envenenado? Essa esplendida taça de brilhantes e ouro porque é
que contem o fel, que abrasa os labios de quem a toca?

«Aqui tens um thema para trabalhos superiores á cabeça d'uma mulher,
ainda mesmo reforçada por duas duzias de cabeças academicas!

«Lembra-me ouvir dizer a um doudo que soffria por ter talento. Pedi-lhe
as circumstancias do seu martyrio sublime, e respondeu-me o seguinte com
a mais profunda convicção, e a mais tocante solemnidade philosophica: Os
talentos são raros, e os estupidos são muitos. Os estupidos guerream
barbaramente o talento: são os vandalos do mundo espiritual. O talento
não tem partido n'esta peleja desigual. Foge, dispara na retirada um
tiroteio de sarcasmos pungentes, e, por fim, isola-se, segrega-se do
contacto do mundo, e curte em silencio aquelle fel de vingança, que,
mais cedo ou mais tarde, cospe na cara d'algum inimigo, que encontra
desviado do corpo do exercito.

«Ahi tem--acrescentou elle--a razão porque o homem de talento é perigoso
na sociedade. O odio inspira-lhe a eloquencia da traição. A mulher, que
lhe ouve o astucioso hymno das suas apaixonadas lamurias, acredita-o,
abandona-se, perde-se, e retira-se, por fim, gritando contra o seu
algoz, e pedindo á sociedade que grite com ella.

«Agora, diz-me tu, Carlos, até que ponto devemos acreditar este doudo.
Eu por mim não me satisfaço com o seu systema, todavia sinto-me propensa
a aperfeiçoar o prisma do doudo, até encontrar as côres inalteraveis do
juizo.

«Seja o que fôr, eu creio que és uma excepção e não soffra com isto a
tua modestia. A tua carta fez-me chorar, e acredito que soffrias,
escrevendo-a. Has-de continuar a visitar-me espiritualmente na minha
Thebaida, sem cilicios, sim?

«Agora conclua-se a historia, que leva seus visos de folhetim
philosophico, moral, social, e não sei que mais por ahi se diz, que não
vale nada.

«Contrahi amisade com a filha do visconde do Prado. Não era ella, porém,
tão intima, que me levasse a declarar-lhe que Vasco de Seabra não era
meu irmão. Por elle me fôra imposto, como preceito, o segredo de nossas
relações. Bem longe estava eu de comprehender este zelo de virtuosa
honestidade, quando a mão d'um demonio me tirou a venda dos olhos.

«Vasco amava Laura!! Eu puz dous pontos de admiração, mas acredita que
foi uma urgencia rhetorica, uma composição artistica, que me obrigou a
admirar-me, escrevendo, de cousas que me não admiram, pensando.

«Que é o que levou tão depressa este homem a aborrecer-me, pobre mulher,
que despresei o mundo, e me despresei a mim propria para satisfazer-lhe
o capricho d'alguns mezes? Foi uma miseria que ainda hoje me envergonha,
supposto que esta vergonha devesse ser um reflexo das faces d'elle...
Vasco amava a filha do visconde do Prado, a _Laura_ d'alguns mezes
antes, porque a Elisa d'hoje era a herdeira de não sei quantos centos de
contos de reis.

«Devo envergonhar-me de ter amado este homem, nao é verdade, Carlos? Não
devo soffrer um instante a perda d'um miseravel, que eu vejo d'aqui com
uma grilheta d'ouro algemada a uma perna, tapando em vão os ouvidos para
não ouvir-lhe o ruido... a sentença do forçado que o segue até ao fim
d'uma existencia farta de opprobrio, e celebre de infamias!

«E não soffro, Carlos! Tenho aqui no seio uma ulcera que não tem cura...
choro, porque é intensa a dôr que ella me causa... mas, olha, não tenho
lagrimas que não sejam remorsos... não tenho remorsos que não sejam
picados pela affronta que fiz a minha mãi, e a meu irmão... Não me doe o
meu proprio aviltamento, não! Se em minha alma cabe algum enthusiasmo,
algum desejo, é o enthusiasmo da penitencia, é o desejo de
torturar-me...

«Fugi tanto da historia, meu Deus!... Desculpa estes desvios, meu
paciente amigo!... Eu queria correr muito sobre o que me falta, e hei-de
conseguil-o, porque não posso parar, e temo de me converter em estatua,
como a mulher de Loth, quando olho com attenção para o meu passado...

«O visconde do Prado convidou Vasco de Seabra a ser seu genro. Vasco não
sei como recebeu o convite; o que eu sei é que os vinculos d'estas
relações estreitaram-se muito, e Elisa, desde esse dia, expandiu-se
comigo em intimidades do seu passado, todas mentirosas. Estas
intimidades eram o prologo d'outra que tu avaliarás. Foi ella a propria
que me disse que esperava ainda poder chamar-me irmã! Isto é uma
atrocidade sublime, Carlos! Diante d'essa dôr calam-se todas as agonias
possiveis! O insulto não podia ser mais despedaçador! O punhal não podia
entrar mais dentro no virtuoso coração da pobre amante de Vasco de
Seabra!... Agora, sim, que eu quero a tua admiração, meu amigo! Tenho
direito á tua compaixão, se não pódes estremecer de enthusiasmo diante
do heroismo d'uma martyr! Ouvi este annuncio dilacerante!... Senti
fugir-me o entendimento... aquella mulher suffocou-me a voz na
garganta... horrorisei-me não sei se d'ella, se d'elle, se de mim... Nem
uma lagrima!... acreditei-me douda... Senti-me estupida d'aquelle
idiotismo pungente que faz chorar os estranhos, que nos vêem nos labios
um sorriso de imbecilidade...

«Elisa parece que recuou aterrada da expressão da minha physionomia...
Fez-me não sei que perguntas... não me lembro mesmo se aquella mulher
permaneceu diante de mim... Basta!... não posso prolongar esta
situação...

«Na tarde d'esse mesmo dia, chamei uma creada da hospedaria. Pedi-lhe
que me vendesse algumas joias de pouco valor que eu possuia; eram
minhas; minhas não... eram um roubo que eu fiz a minha mãi.

«Na manhã do dia seguinte, quando Vasco, depois de almoço, visitava o
visconde do Prado, escrevi estas linhas:

«Vasco de Seabra não póde gloriar-se de ter deshonrado Henriqueta de
Lencastre. Esta mulher sentia-se digna d'uma corôa de virgem, virgem do
coração, virgem na sua honra, quando abandonava um villão, que não pôde
infectar da sua infamia o coração da mulher, que arrastou ao abysmo da
sua lama, sem lhe salpicar a cara. Foi a Providencia que a salvou!»

«Deixei este escripto sobre as luvas de Vasco, e fui á estação dos
caminhos de ferro.

«Dous dias depois entrava n'um paquete.

«Ao vêr a minha patria, cobri o rosto com as mãos, e chorei... Era a
vergonha e o remorso. Diante do Porto senti uma inspiração do céo.
Saltei n'uma catraia, e pouco depois achava-me n'esta terra, sem um
conhecimento, sem um apoio, e sem subsistencia para muitos dias.

«Entrei em casa d'uma modista, e pedi obra. Não m'a negou. Aluguei uma
agua-furtada, onde trabalho ha quatro annos; onde, ha quatro annos,
comprimo bem aos rins, segundo a linguagem antiga, os cilicios do meu
remorso.

«Minha mãi e meu irmão vivem. Julgam-me morta, e eu peço a Deus que não
haja um indicio da minha vida. Sê-me tu fiel, meu generoso amigo, não me
denuncies, pela tua honra, e pela sorte de tuas irmãs.

«Tu sabes o resto. Ouviste, no theatro, Elisa. Foi ella a que disse que
seu marido a abandonára, chamando-lhe _Laura_. Aquella está punida...

«Sophia... (lembras-te de Sophia?) essa é uma pequena aventura, que
aproveitei para tornar menos insipidas aquellas horas, em que me
acompanhaste... Foi uma rival que não honra ninguem... uma _Laura_ com
os respeitos publicos, e as considerações que se barateiam a corpos
ulcerosos, com tanto que se vistam de veludos matizados. Ainda eu era
feliz, quando o infame amante d'essa mulher me dava aquelle annel, que
viste, como oblação de sacrificio que me fazia d'uma rival...

«Escreve-me.

«Has-de ouvir-me no proximo carnaval.

«Por ultimo, Carlos, deixa-me fazer-te uma pergunta:

«Não me achas mais defeituosa que o nariz d'aquella andaluza da
historia, que te contei?

                                                 _Henriqueta_.»


X.


É natural a exaltação de Carlos, depois de erguido o véo, em que se
escondiam os mysterios de Henriqueta. Alma apaixonada pela poesia do
bello, e pela poesia da desgraça, Carlos não teve nunca impressão na
vida, que mais lhe incendiasse uma paixão!

As cartas a Angela Michaela eram o desafogo do seu amor sem esperança.
Os mais ferventes extasis da sua alma de poeta, imprimiu-os n'aquellas
cartas escriptas, debaixo de uma impressão, que lhe roubava a
tranquilidade do somno, e o refugio d'outros affectos.

Henriqueta respondera concisamente ás explosões d'um delirio, que nem
sequer a fazia tremer pelo seu futuro. Henriqueta não podia amar.
Arrancaram-lhe pela raiz a flôr do coração. Esterilisaram-lhe a arvore
dos bellos fructos, e envenenaram-lhe de sarcasmo e ironia os instinctos
do carinho brando, que acompanham a mulher até á sepultura.

Carlos não podia supportar uma repulsa nobre. Persuadira-se que havia um
estalão moral para todas. Confiava no seu ascendente, em não sei que
mulheres, entre as quaes lhe não fôra penoso nunca fixar o dia do seu
triumpho.

Homens assim, quando encontram um estorvo, apaixonam-se seriamente. O
amor-proprio, angustiado nos apertos d'uma impossibilidade invencivel,
adquire uma nova feição, e converte-se em paixão, como as paixões
primeiras, que nos sopram a tempestade no limpido lago da adolescencia.

Carlos, em ultimo recurso, precisava saber onde morava Henriqueta. No
lance extremo d'um desafogo, hiria elle, audacioso, humilhar-se aos pés
d'aquella mulher, que a não poder amal-o, choraria com elle ao menos.

Estas preciosas futilidades escaldavam-lhe a imaginação, quando lhe
occorreu a astuciosa lembrança de surprehender a morada de Henriqueta
surprehendendo a pessoa que no correio lhe tirava as cartas,
subscriptadas a Angela Michaela.

Conseguido o compromettimento d'um empregado do correio, Carlos empregou
n'esta missão um vigia insuspeito.

No dia de correio, uma velha, mal trajada, pediu a carta n.^o 628. O que
a entregou fez um signal a um homem, que passeava no corredor, e este
homem seguiu de longe a velha até ao campo de Santo Ovidio. Feliz das
vantagens, que lucrára em tal commissão, correu a encontrar-se com
Carlos. É ocioso descrever a precipitação com que o enamorado mancebo,
espiritualisado por algumas libras, correu á indicada casa. Em honra de
Carlos, é necessario dizer que aquellas libras representavam a
eloquencia com que elle tentaria mover a velha em seu favor, por isso
que, á vista das informações que tivera da pobreza da casa, concluiu que
não era alli a residencia de Henriqueta.

Acertou.

A confidente de Henriqueta fechava a porta da sua baiuca, quando Carlos
se aproximou, e muito urbanamente lhe pediu licença para dizer-lhe duas
palavras.

A velha, que não podia receiar alguma aggressão traiçoeira aos seus
virtuosos oitenta annos, franqueou os umbraes da sua possilga, e prestou
ao seu hospede a cadeira unica do seu camarim de tecto de vigas, e
pavimento de lages.

Carlos principiou como devia o seu ataque. Lembrado da chave com que
Bernardes manda fechar os sonetos, applicou-a á abertura da prosa, e
conheceu de prompto as vantagens de ser classico, quando convém. A
velha, quando viu cahir no regaço duas libras, sentiu o que nunca
sentira a mais carinhosa das mães, com dous filhinhos no collo.
Luziram-lhe os olhos, e dançaram-lhe os nervos em todas as evoluções dos
seus vinte e cinco annos.

Feito isto, Carlos precisou a sua missão nos seguintes termos:

«Esse pequeno donativo, que lhe faço, ha-de ser repetido, se vm.^{ce} me
fizer um grande serviço, que póde fazer-me. Vm.^{ce} recebeu, ha pouco,
uma carta, e vai entregal-a a uma pessoa, cuja felicidade está nas
minhas mãos. Estou certo que vm.^{ce} não ha-de querer occultar-me a
morada d'essa senhora, e prival-a de ser feliz. O serviço que tenho a
pedir-lhe, e a pagar-lhe bem, é este; póde fazer-m'o?

A fragil mulher, que não se sentia bastante heroina para hir de encontro
á legenda, que D. João V. fez gravar nos cruzados, deixou-se vencer, com
mais algumas reflexões e denunciou o santo asylo das lagrimas de
Henriqueta, segunda vez atraiçoada por uma mulher, fragil á tentação do
ouro, que lhe roubára um amante, e vem agora devassar-lhe o seu sagrado
refugio.

Poucas horas depois, Carlos entrava em uma casa da _rua dos Pelames_,
subia a um terceiro andar, e batia a uma porta, que lhe não foi aberta.
Esperou. Momentos depois, subia um rapaz com uma caixa de chapéo de
senhora: bateu; perguntaram de dentro quem era, o rapaz fallou, e a
porta foi immediatamente aberta.

Henriqueta estava sem dominó na presença de Carlos.

Foi sublime esta apparição. A mulher, que Carlos viu, não saberemos nós
pintal-a. Era o original d'essas esplendidas illuminuras, que o pincel
do seculo XVI fazia saltar da téla, e consagrava a Deus, denominando-as
Magdalena, Maria Egypsiaca, e Margarida de Corthona.

O homem é fraco, e sente-se mesquinho perante a magestade da belleza!
Carlos sentiu-se dobrar nos joelhos; e a primeira palavra, que balbuciou
foi «perdão!»

Henriqueta não pôde receber com a firmesa, que devia suppor-se-lhe, uma
tal surpreza. Sentou-se e limpou o suor que lhe correra de improviso
todo o corpo.

A coragem de Carlos desmereceu do muito em que elle a tinha. Succumbiu,
e nem, ao menos lhe deixou o dom dos lugares communs. Silenciosos,
olhavam-se com uma simplicidade infantil, indigna de ambos. Henriqueta
revolvia no pensamento a industria com que o seu segredo fôra violado.
Carlos invocava ao coração palavras que o salvassem d'aquella crise, que
o materialisava por ter tocado o extremo do espiritualismo.

Não nos faremos cargo de satisfazer as despoticas exigencias do leitor,
que pede contas das interjeições, e das reticencias d'um dialogo.

O que podemos garantir-lhe, debaixo da nossa palavra de folhetinista, é
que a musa das lamentações desceu á invocação de Carlos, que, por fim,
desenvolveu toda a eloquencia da paixão. Henriqueta ouviu-o com a
seriedade com que uma rainha absoluta escuta um ministro da fazenda, que
lhe conta os chatissismos e massudos negocios das finanças.

Sorria-se, ás vezes, e respondia com um resaibo de magoa e de
resentimento, que matava, no nascedouro, os transportes do seu infeliz
amante.

As suas ultimas palavras, essas sim, são dignas de se archivarem para
escarmento d'aquelles que se julgam herdeiros dos raios de Jupiter
Olympico, quando se empavonam de fulminar as mulheres, que tiveram a
desventura de se queimarem, como as mariposas, no lume electrico de seus
olhos. Foram estas as suas palavras:

«Snr. Carlos! Até hoje os nossos espiritos viveram ligados por umas
nupcias, que eu pensei não perturbarem a nossa cara tranquillidade, nem
escandalisarem a caprichosa opinião publica. D'hora em diante, um
solemne divorcio entre os nossos espiritos. Estou punida de mais. Fui
fraca e talvez má, em prender-lhe a sua attenção n'um baile mascarado.
Perdoe-me, que sou, por isso, mais desgraçada do que pensa. Seja meu
amigo. Não me envenene esta santa obscuridade, este circulo estreito da
minha vida, em que a mão de Deus tem derramado algumas flôres. Se não
póde avaliar o travo das minhas lagrimas, respeite cavalheiramente uma
mulher, que lhe pede com as mãos erguidas o favor, a piedade de a deixar
sósinha com o segredo da sua deshonra; que eu prometto nunca mais
alargar a minha alma n'estas revelações, que morreriam comigo, se eu
podesse suspeitar que attrahia com ellas a minha desgraça...»

Henriqueta continuava, quando Carlos, com lagrimas d'uma dôr sincera,
lhe pedia ao menos a sua estima, e lhe entregava as suas cartas, debaixo
do sagrado juramento de nunca mais a procurar.

Henriqueta, enthusiasmada pelo pathetico d'esta nobre rogativa, apertou
anciosamente a mão de Carlos, e despediram-se....
...........................................................................
...........................................................................

E nunca mais se viram.

Mas o leitor tem direito a saber mais alguma cousa.

Carlos, um mez depois, partiu para Lisboa, colheu as necessarias
informações, e entrou em casa da mãi de Henriqueta. Uma senhora, vestida
de lucto, e encostada a duas creadas, veio encontral-o n'uma sala.

--Não tenho a honra de conhecer...--disse a mãi de Henriqueta.

--Sou um amigo...

--De meu filho?!...--interrompeu ella--Vem-me dar parte do triste
acontecimento?... Eu já o sei!... Meu filho é um assassino!...

E prerompeu n'um choro, que a não deixava articular palavras.

--O filho de v. exc.^a assassino!... interpellou Carlos.

--Sim... sim... pois não sabe que elle matou em Londres o seductor da
minha desgraçada filha?!... da minha filha... assassinada por elle...

--Assassinada, sim, mas só na sua honra--atalhou Carlos.

--Pois minha filha vive!... Henriqueta vive!... Oh meu Deus, meu Deus,
eu vos agradeço!...

A pobre senhora ajoelhou, as creadas ajoelharam com ella, e Carlos
sentiu um calefrio nervoso, e uma exaltação religiosa, que quasi o
fizeram ajoelhar com aquelle grupo de mulheres, cobertas de lagrimas....
...........................................................................

Dias depois, Henriqueta era procurada no seu terceiro andar, por seu
irmão, e choravam ambos abraçados com toda a expansão d'uma dôr
represada.

Houve ahi um drama de agonias grandiosas, que a linguagem do homem não
saberá descrever nunca.

Henriqueta abraçou sua mãi, e entrou n'um convento onde pede
incessantemente a Deus a salvação de Vasco de Seabra.

Carlos é o intimo amigo d'esta familia, e conta este lance da sua vida
como um heroismo digno d'outras épocas.

Laura, viuva de quatro mezes, contrahe segundas nupcias, e vive feliz
com o seu segundo marido, digno d'ella.

Acabou o conto.




DINHEIRO! DINHEIRO!




Contaram-me, ha poucas horas, um episodio da extraordinaria vida d'um
homem, que apenas hoje conta vinte e cinco annos. Quem elle é não o
direi eu, ainda que me façam... eu sei cá!? bacharel! Eu bem sei que não
posso encarecer-me com este segredo, porque ha ahi uma boa duzia de
pessoas que o sabem, por triste experiencia, mais miudamente que eu.

Mas o que é mais bonito, e não sei mesmo se mais romantico, é que eu
conheço pelo menos quatro primas-donas, afóra as comprimarias, d'esta
partitura, que negam com toda a energia dos seus brios o importante
papel que desempenharam.

Deixal-as negar, que eu tambem não digo quem ellas são, ainda que me
deem o habito de Christo.

Outra cousa:

O muito veridico archivista dos factos, que vão lêr-se, pediu-me, por
tudo quanto ha sagrado no folhetim, que não divulgasse, nem por sombras,
o seu nome.

Não o direi nunca, ainda que me façam... barão!

E está dito tudo.

Agora, gentis leitoras e eruditos leitores, começa o romance, em nome da
moralidade, do decoro e dos interesses materiaes...




DINHEIRO! DINHEIRO!


I.


Foi assim que principiou o meu illustre amigo:

--Alli onde o vês é um embryão de romances desgrenhados...

Referia-se a um rapaz que passava por debaixo das minhas janellas. Era
uma boa figura, visto pelas costas; mas de frente não se podia
contemplar-lhe o rosto sem recuar... não de medo, mas d'um não sei que
desabrido e repulsivo. E não era feio. Eu por mim, custou-me muito a
sustentar cara firme quando elle me fitava com aquelles olhos negros e
magneticos. Fazia-me medo, palavra d'honra! Depois afiz-me áquella
petulancia d'olhar, áquelle carregado provocante da sobrancelha, e,
graças a Deus, já me não custa tanto.

Ora ahi está, sem grave impertinencia, traçado corporalmente o snr.
Alvaro de Sousa, que passava na minha rua.

--Com que então (disse eu) é um embryão de romances aquelle senhor?! Bem
me parecia a mim que a vida d'aquelle homem não devia ser symetrica,
pausada, e prosaicamente chata como a minha! Eu nem se quer lhe sei de
nada! Ando cá tão fóra das barreiras da sociedade, e dos dramas
contemporaneos... que nem ao menos sei se a mazurka está no quinto grau
da refinação, ou se as polkas cederam o terreno á restauração do minuete
da côrte... Que miseria!

--Não perdes nada, meu caro. Olha que a verdadeira miseria está
escondida no manto de lentejoulas com que esta sociedade desdentada e
trôpega se encobre. E, se não, deixa-me lêr-te uma pagina da vida de
Alvaro de Sousa, e verás como se vive por lá...

Como sabes, aquelle rapaz é da plebe, e aspirou sempre a ser da
fidalguia. O homem não podia tragar esta desigualdade de gosos imposta
pela desigualdade do dinheiro. Sem dinheiro, e sem avós, Alvaro
achava-se aos vinte annos n'este mundo sem saber o fim para que viera,
nem a fileira social em que devia perfilar-se.

--Pois não ha tantos officios?--interrompi eu.

--Essa pergunta não me parece tua! Pois tu querias sentar n'uma tripeça
um homem de intelligencia?

--Que duvida! Os sapateiros de Lisboa não tem um jornal? Alvaro de Sousa
seria um habil redactor do _jornal dos sapateiros_.

--Estás zombando!

--Palavra de honra, que não zombo! Tu sabes lá porque horisontes vai
ampliar-se o espirito da arte? Sabes se a tripeça terá uma plastica e
uma esthetica! Sabes se a bota de canhão terá um bello ideal? Sabes se a
tomba e a intercospia terão uma philosophia? Sabes se as mathematicas
virão, com a sua geometria applicada á bota, regular as dimensões do
salto? Sabes se a dynamica será a ultima expressão do pino? E não achas
aqui n'este complexo de sciencias um succolento pabulo para um sapateiro
talentoso, para um sapateiro-Newton, para um sapateiro-Girardin?

--Tenho entendido que não queres a historia do homem... Façamos
treguas... Eu dou-te o diploma de espirituoso, e tu fechas a torneira ao
espirito por algum tempo... Guarda esse cabedal, que desperdiças, para
os teus folhetins. Farás rir um fidalgo de raça, embora o seu quinto avô
fizesse borzeguins para a tua quinta avó. Farás indignar o sapateiro,
teu irmão pelo sangue, pelo osso, e pela carne, e teu irmão pela arte,
porque, em fim, eu não sei se a sociedade dispensa mais depressa os teus
folhetins que as botas...

E eu vi que o meu amigo tinha razão, e dei-lhe plena liberdade de
historiar o episodio de Alvaro de Sousa, que continúa assim:

--Alvaro, á custa de muitos vexames e affrontas conseguiu relacionar-se
em algumas casas, onde compareciam algumas das primeiras mulheres. Eram
talvez estas as notabilidades, as sacerdotisas de iniciação para os
noviços que entravam no faustuoso templo das vestaes em quinta mão.

O rapaz foi mais adiante nas suas ambições.

O coração pedia-lhe alimento, o espirito pedia-lhe amor, as aspirações
anceavam-lhe um ideal, e o altivo mancebo entendeu que aquellas mulheres
deviam comprehendel-o no coração, no espirito, e nas aspirações.

Era, realmente, exigir muito, no anno do Senhor de 1849!

A primeira declaração, que balbuciou, teve em troca um sorrir de
despreso. Aventurou uma segunda centelha da lava, que o escaldava, por
dentro, e achou de gêlo todas aquellas mulheres. E não era isto só.
Escarneciam-no. Lastimavam-lhe a mania das declarações; e algumas
galhofeiras senhoras reuniram-se, uma noite de baile, para lhe dizerem
que, todas juntas, hiam devotamente cumprir uma novena a Santo Anastacio
para que o servinho de Deus o livrasse d'aquella hydrophobia amorosa. É
onde podia levar-se o insulto!

Alvaro de Sousa entrou no amago da sua consciencia, como n'um abysmo sem
luz, n'um segredo de torturas, e despedaçou um a um os sentimentos
generosos com que entrára n'este mundo ingrato.

_Pobre!_ esta maldita palavra, estigma de reprovação, era o seu demonio
das vigilias e dos sonhos!

Como o supersticioso, que recua espavorido á larva imaginaria do seu
crime, Alvaro de Sousa fugia dos homens, como se elles, juizes
implacaveis, devessem sentencial-o no crime da sua pobresa.

Mas um coração altivo de impotente orgulho não podia transigir com estas
leis barbaras da sociedade, que amputam no coração do pobre os mais
augustos sentimentos da sua vitalidade.

Ha uma apparente reconciliação entre a affronta e a pobresa: é a
reconciliação do odio: é um pacto de vingança, sellado pelas lagrimas do
affrontado; é uma letra de usura avara de desforço, a vencer-se, sem
praso fixo, mas a vencer-se um dia.

Esta fôra a reconciliação de Alvaro de Sousa com as _generosas_ mulheres
da sua affeição.

--Ellas, naturalmente, riam-se, se elle lhes désse parte d'essa
reconciliação...

--Riram muito. Alguem lhes disse: «Aquelle pobre rapaz, que sentia
freneticamente as suas paixões, fugiu da sociedade, e devora, na solidão
do seu quarto, um rancor profundo...--A mim:--interrompeu uma
d'ellas--Que pena! Oh Theresinha, não é uma verdadeira calamidade o odio
d'aquelle rapaz?--Ai! Maria da Luz! que triste futuro nos espera...»

E chasqueavam assim o seu _ridiculo_ inimigo, perguntando aos amigos
d'elle em que dia finalmente as hostilidades se romperiam.

Isto ninguem o dizia a Alvaro, porque entre o odio e a vingança
impossivel, nas almas fortes, está o suicidio.

--_Nas almas fortes!_ (atalhei eu com gravidade philosophica). Então não
sei eu o que são «almas fortes!» Cobardes chamo eu aquelles que
desesperam. A suprema das miserias humanas é a vingança reservada por
causa d'amores despresados. O tal Alvaro de Sousa será muito romanesco,
mas tambem é um grande tolo. Com que direito queria elle impôr-se ao
amor d'essas mulheres? «Despresaram-no porque era pobre» respondes tu. E
se o despresassem porque era feio? Achas que a pobresa tenha muitas
seducções? E porque não foi Alvaro de Sousa amar uma peixeira que as ha
bem bonitas? Se a sua alma de poeta aspirava a um _ideal olympico e
metaphysicamente imponderavel_ porque foi elle procurar o seu ideal nas
mulheres carnalmente vestidas de tafetás e veludos? A mulher ordinaria,
virgem na alma, sem a depravação das Aspasias que o repudiaram, não lhe
seria mais interessante pela candura, pela innocencia, e pelo angelico
scismar dos singelos devaneios? Eu não posso soffrer estes Werters
caricatos que appellam para o suicidio, quando a mulher dos seus sonhos
não póde altear-se ás delicadas concepções da sua alma! Vai a vêr-se a
mulher em que elles empregam todo o seu cabedal de sentimentalismo, e
depara-se uma estragada de espirito, abastardada nos instinctos, incapaz
de conceber a generosidade, gelada para as suaves impressões d'uma
amisade honesta, e finalmente uma Ninon sem o _espirito_ da franceza,
mas opulenta como ella de _materia_. Repito: porque não vão estes
impostores queimar o incenso das suas angelicas adorações aos pés d'uma
donzellinha d'olhos timidos, e faces purpurinas? Não é tão bello
surprehender o pejo da innocencia!? Não ha tanta poesia n'aquellas
lagrimas de um primeiro amor que desconfia da sombra de uma mulher, que
passa ao longe do seu Medro! Não ha ahi tantas Angelicas obscuras,
tantas Virginias, segregadas dos salões das Phryneas? Emfim, meu
sentimental historiador de paixões desgrenhadas, eu não posso sentir
comtigo as desventuras do snr. Alvaro. Quero ouvil-as, porque emfim,
escrevo folhetins, e minto quasi sempre para encher um espaço de papel.
Póde ser que digas alguma cousa que valha a pena de captar a attenção
d'este publico portuense, que lê constantemente, e, á falta de romances,
por não poder emendar o costume de lêr sempre, começa a mastigar
profundas lucubrações sobre a doença das vinhas.--Ora, diz lá.


II.


O meu amigo continuou:

--Alvaro reconcentrou-se em uma tal misanthropia, que nem ao menos os
intimos amigos recebia em casa. Dir-se-hia que aquella vida estava a
levedar-se do amargo fermento de rancor que as mulheres lhe levaram á
alma. Eu vi-o uma vez. Parecia um Smarra, um magico, uma cousa d'um
outro mundo, onde os homens conversam com as larvas. Morava no quarto o
terror. A sombra da aza da morte empanava aquelle rosto, d'onde a vivesa
e o lume fugira, deixando como vestigios, as rugas cadavericas d'uma
lenta agonia.

--Devia ser um demonio! Cuidei que uns figurões assim eram privilegio
dos romances!... E os cabellos? naturalmente arripiados como os do
Asaverus, de Orestes, ou de qualquer outro estafermo, não é verdade?

--O que tu quizeres... O caso é que eu julguei-o demente, ou, pelo
menos, desgraçado, que não sei se é menos, por toda a vida.

Agora, levanta-se o pano do segundo acto.

Uma bella manhã, sahe um homem d'um navio com quatro bahús atraz de si.
Este homem procurou a morada de um seu irmão; este irmão, que tinha
morrido, era o pai de Alvaro. O tio de Alvaro, por consequencia, era um
rico brasileiro, que acabava de manifestar seiscentos contos.

Alvaro recebeu-o com sinistra rudeza. O snr. Manoel da Silva abraçou seu
sobrinho, chorando a morte de seu irmão, que era muito semelhante com
seu sobrinho. Deu graças á Providencia por encontrar um herdeiro do seu
ouro e do seu sangue; e, deixa-me assim dizer sem offensa da
metaphysica, insufflou uma alma nova n'aquella casa, uma alma muito
grande, maior que a alma universal de Platão! só comparavel á alma que
faz girar um sangue azul nas veias d'um merceeiro.

Alvaro, quando de improviso se viu rico, partiu a pedra do seu tumulo, e
respirou o ar dos vivos. Os olhos faiscaram-lhe um novo lume. Os labios
vibraram-lhe uma eloquencia nova. O coração bateu-lhe pulsações d'um
orgulho expansivo. O corpo endireitou-se na linha vertical que a
Providencia geometrica marcou a todos os que podem parodiar Luiz XIV, e
dizer: o dinheiro sou eu!

O brasileiro não era abdominoso nem vermelho das bochechas. Era um homem
regular, com sentimentos de homem não bestealisado pelo ouro.

Achando uma casa pobre, enriqueceu-a, ampliou-a, abriu-lhe os flancos, e
deu-lhe as fórmas arrogantes d'um palacete. Um tylburi, uma carruagem, e
duas parelhas de eguas hanoverianas harmonisaram o fausto d'aquella
magica metamorphose.

E tudo era feito a bel-prazer de Alvaro. O tio authorisara-o para tudo,
menos para casar-se, porque detestava as mulheres.

Elle lá sabia o porque, e, se eu o souber um dia, conta com um folhetim.

--Muito obrigado; não me despeço do favor.

--Agora vaes tu conhecer a astucia da intelligencia, que não prescinde,
na riqueza, da vingança premeditada no infortunio.

Alvaro de Sousa não ostentou, como era de esperar, as suas eguas, a sua
carruagem, e os seus lacaios de verde e prata. Viveu, dous mezes, ao
fogão, conversando com o tio, e conquistou-lhe assim um conceito de
grave sisudez, e uma plena confiança.

Na primavera, Alvaro appareceu com as flôres, e, agradavel como ellas,
grangeou amisades, que não tinha...

--Necessariamente... Olha que novidade me dás!... É melhor dizer...
_comprou amisades, que não tinha_...

--Não posso assim dizer absolutamente. Alvaro, em quanto pobre, era
desabridamente orgulhoso, e desconfiado... Um olhar de través
irritava-o, e uma palavra equivoca enfurecia-o. Era como os que soffrem
rheumatismo agudo, que não consentem uma mosca no travesseiro. E a
pobresa, seja dito em proveito da pathologia, é o rheumatismo agudissimo
da humanidade...

Depois de rico, parece que a sua grandeza estava na consciencia d'ella.
O dinheiro tornou-o affavel, carinhoso, sollicito em procurar as
relações dos que lhe eram muito inferiores, e até d'aquelles que
repellira na infelicidade. É realmente um phenomeno, mas tu sabes que eu
não te minto.

--E as mulheres que faziam?

--As mulheres? Agora vamos nós lá... Isso é uma historia muito
complicada...

--Quaes são as que figuram?

--Vamos por partes. A mulher, que, primeiro, o repelliu foi a Maria da
Luz. Esta mulher é casada, e era solteira, mas solteira de trinta e
tantos annos, quando Alvaro a requestou. Não sei porque, Maria da Luz,
era a preferida no odio, talvez porque sendo a primeira a repellil-o,
desairou-o, para todas as outras... Não sei.

Alvaro foi com seu tio pagar uma visita ao marido d'esta mulher, porque
a influencia do brasileiro em certos homens do poder obrigara aquelle a
captar-lhe a benevolencia para conservar certos proventos, que estavam
muito em perigo.

O sobrinho começou a jogar com a influencia do tio. Quiz lêr-lhe o seu
programma de vingança, mas achou que era cedo, ou immoral. Calou-se e
esperou.

Na visita, que fizeram, Maria da Luz veio á sala, e quiz sustentar a
dignidade matrimonial, com os artificios d'uma etiqueta safada. Alvaro
ria-se por dentro, mas fingia-se parvo por fóra. Dava-se uns ares de
esquecido, e apertava a mão da sua victima com a cordialidade d'um bom
homem. E Maria da Luz espantou-se.

Passaram-se alguns mezes. Alvaro, que participava da influencia do tio
nos destinos da patria, reconcentrou toda a sua energia em realisar
desgraçadamente os terrores do marido de Maria da Luz. Quando menos se
esperava, este homem é demittido, e obrigado pela fazenda a um saldo de
contas que o empobrecia. O brasileiro, que n'este tempo já era visconde
de Sousa, quiz salval-o, mas encontrou em seu sobrinho um violento
accusador das immoralidades d'aquelle mau funccionario, cuja deshonra
reflectia na face de quem o protegesse. As instancias redobradas
encontraram frio o visconde, que, por fim, declarou que não intervinha
em certos negocios que delegara em seu sobrinho, mais conhecedor das
conveniencias do paiz, e da moralidade dos funccionarios. Com este
fragmento de _artigo do fundo_, foi despedido o marido da Luz, cujo
decahir para o abysmo de miseria era rapido como a facilidade com que
subira.

Maria da Luz comprehendeu a vingança, e achou-a vil.

--Realmente era...

--Mas não ha vinganças nobres, creio eu. A mulher, que eu principio a
chamar pobre, fechára os seus salões, e não esperou que os alheios se
lhe fechassem. A tristeza sentára-se nos sophás d'aquellas salas
desertas, onde viria brevemente sentar-se o escrivão da penhora. A
desgraça, ainda assim, não lhe aniquilava a soberba. Julgava ella que,
humilhando-se a Alvaro, encontraria uma protecção, mas tambem uma
ignominia. O marido, que cahira primeiro na sua miseria, perdeu,
primeiro, a dignidade. Excitou-a para que escrevesse a Alvaro, e
encontrou-a sempre negativa.

E Alvaro respirava com sofreguidão um momento que devia chegar.

Ao mesmo tempo, desenvolvia-se o plano d'outra vingança. Thereza da Cruz
era a segunda victima de Alvaro. Esta não podia ser ferida nos
interesses materiaes. Era rica das suas propriedades. Era solteira, e
amava profundamente um homem casado.

Este homem era delirantemente amado por sua mulher, e presava-a, senão
posso dizer que a adorava. Thereza da Cruz fascinava-lhe a cabeça
d'aquelle amor-appetite que Stendhal judiciosamente distingue do
amor-paixão. Mas Thereza da Cruz detestava a virtuosa esposa do seu
amante, com toda a raiva d'um ciume reconcentrado.

E Alvaro sabia-o.

Era-lhe necessario quebrar aquellas ligações com estrondo e deshonra
para Thereza da Cruz.

O que elle fez é uma ignominia, é, porém uma vingança que medrara em fel
durante tres annos de torturas suffocadas.

Alvaro obteve uma carta da mulher do amante de Thereza da Cruz, escripta
a uma sua amiga.

O dinheiro proporcionou-lhe um falsificador de letra, perfeito na sua
perversa habilidade.

Mandou-lhe escrever algumas cartas amorosas pelo molde d'aquella letra.
E não deixou uma ligeira duvida sobre o genero de relações que a
prendiam a um homem, que se não nomeava.

Estas cartas enviadas a Thereza da Cruz, foram incluidas n'uma anonyma,
que dizia assim:

                                                 «Minha querida amiga.

«Sei que detestas Miquelina, e que procuras perdêl-a no conceito do
marido, para conquistares plenamente uma alma digna de ti. Queres
castigar o orgulho d'essa hypocrita que lamenta a nossa _prostituição_?
Ahi tens essas cartas, que eu pude obter d'um amante, que a despresou
por mim. Tira as têas d'aranha dos olhos d'esse piegas, e faz-lhe vêr
que sua mulher não é melhor que tu: porque tu és livre, e ella é casada.
Saberás o meu nome, no primeiro baile onde nos reunirmos.

                                                 Tua amiga d'alma.»

D. Thereza, recebendo estes cartas, sentiu uma alegria infernal. Daria
por ellas a reputação de honrada, se a tivesse.

Por fatalidade, o amante, na noite d'aquelle dia tratou-a com
indifferença. A orgulhosa, enraivecida d'um tedio que não podia
supportar, esforçou-se por chamar a conversação a respeito de mulheres
casadas, e avançou a proposição de que não havia uma na primeira roda,
que não fosse adultera. O amante protestou colericamente contra o
absoluto da proposição. Defendeu sua mulher com ares de Collatino, e
exprobrou acremente a maledicencia da insolente.

A indignação ferveu: trocaram-se epithetos ultrajantes. D. Thereza foi
uma eloquente regateira, e o seu apaixonado repetiu as phrases mais
peculiares da tarimba. Por fim, D. Thereza, chegado o momento dramatico,
apresentou-lhe as suppostas cartas da esposa.

O homem abriu-as com frenesi: reconheceu a letra e sahiu como um vexado
pelo demonio.

D. Thereza da Cruz, sentiu, pela primeira vez, um momento de completa
felicidade em sua vida!...

--E depois?


III.


--Depois, o furioso entrou na camara de sua mulher, e encontro-a velando
o somno de um filhinho, que tinha no berço. Perguntou-lhe o marido o que
ella fazia a pé á uma hora da noite. Miquelina respondeu que o esperava
para lhe servir a cêa, por isso que as creadas, fatigadas de trabalho,
não podiam esperar que seu amo se recolhesse, alta noite, para
repousarem.

O marido recebeu com um sorriso feroz esta resposta digna de uma senhora
virtuosa, e sentou-se junto d'ella. Tocado da faisca electrica de
tyranno de melodrama, enturvou os olhos, franziu a testa, arrancou a voz
dos subterraneos do pulmão, e fallou assim, com uma carta aberta:
«Conhece esta letra, senhora?»--É minha, penso eu--respondeu ella com
promptidão.--«Já sabe naturalmente que carta é esta.»--Não sei... será
escripta á Antoninha? ou á prima Angela? eu não escrevo a mais
ninguem.--«A mais ninguem, infame!... a senhora não escreve a mais
ninguem?»--Juro que não, juro que não... deixa-me vêr essa carta, Luiz,
deixa-me vêl-a, eu t'o peço pela boa sorte da nossa filhinha.--«Veja.»

Miquelina leu estas duas linhas da carta: _Dous dias é uma ausencia
insupportavel!... Vem, meu anjo, faz que a minha vida tenha algumas
flôres_...

Não continuou. Prerompeu em palavras inarticuladas. Eram os gritos da
desesperação! A surpreza transtornara-lhe o espirito, até converter-lhe
o dom da palavra em alarido selvagem. Parecia douda. O proprio marido
retirou aterrado diante d'aquella angustia sublime. Houve em casa um
motim, um tropel de creados, que se olhavam estupidamente. Miquelina,
exhausta de forças, e convencida da realidade daquella infame allusão,
desmaiou. Seu marido tateou-lhe o pulso e o coração. Reconheceu que
havia alli uma dôr legitima. Ficou estupidamente perplexo, e fazia dó
n'esta duvida afflictiva. Mas a innocencia, filha da justiça de Deus,
devia triumphar.

Miquelina foi logo entregue aos cuidados da medicina. Julgaram-na
subindo a gradação d'uma demencia, e Luiz d'Abreu aterrou-se seriamente.

Ás dez horas do dia seguinte, Luiz d'Abreu recebia a seguinte
carta:--«Deves possuir quatro cartas, que te foram dadas por Thereza da
Cruz. São quatro documentos inqualificaveis da infamia d'essa mulher.
Tua virtuosa senhora escrevera uma carta a sua prima Angela. Thereza da
Cruz pôde obter essa carta, de que se serviu para fazer imitar a letra
da que ella chama sua rival. Remetto a carta de que ella se serviu. Tua
senhora é innocente como os anjos. Pede-lhe perdão, se lhe já lançaste
em rosto a calumnia forjada pela ignobil mulher a que vives associado.
Se apesar de tudo, tiveres a impudencia de continuar relações com
Thereza da Cruz, hei-de eu, com os teus amigos, apregoar a baixeza do
teu caracter para engrandecer a nobreza de tua deploravel esposa.

                                                 _Um teu amigo_.»


Luiz d'Abreu entrou na camara de sua mulher. Estavam com ella dous
medicos e duas creadas. Miquelina estremeceu ao vêl-o. Mal sabia ella
que esse homem hia ajoelhar-se na sua presença! Eram tocantes as
lagrimas que elle chorava, ajoelhado, balbuciando palavras
inintelligiveis. Miquelina ergueu a face para testemunhar aquella nova
surpreza. Os circumstantes quinhoavam do enthusiasmo d'aquella scena,
sem a comprehenderem.

«Peço perdão a minha virtuosa mulher! (exclamou elle) perdão d'uma
affronta, d'uma calumnia, que a reduziu a esta situação... Na presença
de todo o mundo eu quizera que ella me perdoasse...»--Sim, sim,--bradou
ella com enthusiasmo febril--eu perdôo-te de toda a minha alma, Luiz, de
todo o meu coração, meu esposo querido!...

Luiz d'Abreu ergueu-se, chorou sobre a mão que beijava, e foi feliz,
verdadeiramente feliz, n'aquella hora solemne da sua vida.

Foram muito sensiveis os progressos nas melhoras de Miquelina.

Na tarde d'esse dia, Abreu, com o mais carinhoso bilhete, pediu uma
entrevista, á meia noite, a Thereza da Cruz. Foi-lhe concedida.

Ao dar da meia noite estava Luiz d'Abreu encostado á porta que devia
ser-lhe aberta por Thereza da Cruz. Abriu-se a porta. Abreu tomou
aquella mulher pelos cabellos, arrastou-a para o meio da rua, e, sem
dizer-lhe um monosyllabo, encheu-lhe o corpo dos vergões d'um chicote.
Thereza supportara as primeiras chicotadas com o silencio da vergonha;
mas quando a dôr physica dominou a moral, gritou. Abreu retirou a passo
rapido. Thereza fugia, quando um segundo homem lhe lançou a mão. Ella
reconheceu-o, e pediu que a deixasse. «Não, minha senhora,--replicou o
seu conhecido--eu não posso consentir que v. exc.^a seja assim
desfeiteada na rua como uma mulher de alcouce...»--Deixe-me, deixe-me...
por piedade, snr. Alvaro de Sousa!

E debatia-se entre as mãos de Alvaro como atacada de gota coral.

Aproximou-se a patrulha. Lançou mão de ambos, e perguntou a D. Thereza
se aquelle homem a insultara. D. Thereza respondeu que não, que ninguem
a insultara. Alvaro, que nem zombando mentia, desmentiu a sua velha
_amiga_, dizendo que elle a vira chicoteada cruelmente por um homem, que
fugira; e que o mais que a tal respeito podia dizer era que esta senhora
morava n'aquella casa, era uma respeitavel fidalga, e chamava-se D.
Thereza da Cruz. A patrulha não prescindiu d'estas informações
ratificadas por s. exc.^a Perguntou-lhe o nome do aggressor, e ella
respondeu que o não dizia.

Imagina, meu amigo folhetinista, a colica despedaçadora em que a pobre
mulher se viu! A patrulha não queria largal-a; mas Alvaro de Sousa
capitulou por uma libra com as imperiosas exigencias da guarda
municipal, e conseguiu a liberdade da pobre mulher.

E, ao despedir-se de D. Thereza, fel-a parar um momento, para dizer-lhe
com a mais fleumatica placidez: «Minha querida senhora! Eu comprei com
uma libra a satisfação de pagar a v. exc.^a a menor parte d'um grande
serviço que lhe devo... Eu não pude esquecer-me nunca de que v. exc.^a
com algumas amigas suas, cumpriram uma novena a Santo Anastacio, para
que o servinho de Deus alcançasse curar-me da hydrophobia do amor, que
me atacou... Tenha v. exc.^a uma noite feliz.»

E retirou-se. Thereza da Cruz não respondeu uma palavra.

Alvaro de Sousa estava vingado.

--Tens mentido com a mais soberana presença de espirito!--atalhei eu.

--Não minto, juro-te que não minto...

Estás muito em occasião de verificar estes factos... Deseja conseguir a
verdade, que has-de conseguil-a.[3]

E eu acreditei-o; e ámanhã acreditarei tambem que qualquer destemido
despejou um bacamarte nos intestinos do seu anjo...

--O rigor da chronologia--proseguiu o implacavel noticiador--exige que
eu te conte agora a vingança de Maria da Luz.

A hora da miseria extrema tinha soado. Os bens de raiz confiscou-os a
fazenda: os moveis estava designado o dia de leilão em que deviam ser
vendidos.

O marido de Maria da Luz, que por nome não perca, soubera que sua mulher
ridiculisara as pretenções de Alvaro de Sousa n'aquelles dias de
vergonhosa pobreza. Bem conhecia elle a indignidade a que tentava forçar
sua mulher, instigando-a a que se valesse do prestimo d'um homem que
tinha fortes razões de aborrecel-a. Todavia, Alvaro gosava de um tal
conceito de nobreza de coração, e sensibilidade d'alma que qualquer
marido, mais escrupuloso ainda, não duvidaria instar, na hora critica
d'uma penhora, pela humildade da sua supposta Lucrecia.

Maria da Luz, por fim, conveio na pessima situação em que se achavam os
negocios de seu marido. A fome avisinhava-se, e a deshonra é menos negra
que a fome, segundo a opinião d'alguns moralistas entendidos n'estas
côres.

Alvaro de Sousa recebeu uma carta de Maria da Luz, em que lhe era pedido
o emprestimo de doze mil cruzados, pagaveis em doze annos.

O cavalheiro respondeu que a obrigação onde eram estipulados doze annos
seria reformada pelo praso de duas horas......

Maria da Luz comprehendeu-o. O primeiro abalo, que sentiu no coração,
foi a raiva: o segundo foi a vergonha: o terceiro foi a negociação com
as condições do titulo reformado, conforme a vontade do credor.

E respondeu affirmativamente, com a sagrada condição d'um segredo
inviolavel para seu marido.

E Alvaro de Sousa enviou doze mil cruzados ao marido de Maria da Luz,
com esta carta:

                                                 «Meu caro senhor.

«Conforme á negociação que acabo de fazer com sua senhora, remetto doze
mil cruzados. Da inclusa carta da exc.^{ma} snr.^a D. Maria da Luz, verá
v. s.^a que este contracto é bilateral, e a parte que eu tenho n'elle em
vantagem minha é a renuncia que a dita senhora me faz d'uma propriedade
que eu não sei se está hypothecada a v. s.^a Supposto me devessem ter
sido dados estes esclarecimentos antes da remessa do dinheiro, eu não
tenho duvida em sujeitar-me a qualquer outra transacção que possamos
ambos amigavelmente fazer, visto que, d'hora em diante, nos devemos
ambos considerar com mais ou menos jus á mesma propriedade. E, como eu
tenha resolvido cedêl-a em beneficio de meu lacaio, v. s.^a não terá
duvida em consideral-o com os direitos que eu possuia.

                                         De v. s.^a attento venerador

                                                 _Alvaro de Sousa_.»


--E depois?--interrompi com anciedade.

--Depois...... tu vaes dizer que eu te minto!...

--Não digo... palavra d'honra!

--Depois, o codilhado foi Alvaro de Sousa, porque o marido da Maria da
Luz empregou convenientemente os doze mil cruzados e vive perfeitamente
com sua mulher.

--Mas Alvaro de Sousa? nunca mais se importou com ella?

--Nunca mais. A consciencia diz-lhe que está vingado.

--E das outras?

--Das outras... vingou-se sem ruido... Tomou d'ellas uma vingança que
não póde ser romantisada por ser muito simples.

O meu amigo viu passar uma mulher, e foi atraz d'ella.

Eu escrevi tudo isto com as reminiscencias vivissimas do dialogo.

Querem saber onde tudo isto aconteceu?

Agora é que v. exc.^{as} vão ficar surprehendidas...

Foi em Pekim!

Salvei a moral publica!

Cante-se o hymno!




A CAVEIRA.




PROLOGO.


Quem disser que em Traz-os-Montes não ha romances, é capaz de dizer que
a lua não tem habitantes, e as alfandegas ratos.

A provincia de Traz-os-Montes é um sertão desconhecido, um retalho de
Portugal segregado da civilisação; mas não deixa por isso de ter uma
chronica de tradições barbaras, que virá archivar-se em folhetins,
quando os caminhos de ferro, construidos pelos capitalistas da
Ovelhinha, aproximarem o contacto das intelligencias com as florestas
virgens d'aquella região polar.

Esse dia amanhecerá bem cedo. A aurora da civilisação madrugou para
todos. A viabilidade discute-se á lareira. Mais d'um juiz das almas se
extasia nas vastas theorias do caminho de ferro. O regedor de parochia
rural, auxiliado pelo cura, apostolisam no adro, aos domingos, a theoria
do augmento do salario pela facilidade dos transportes. Ha lavradores
que addicionaram á leitura do Borda d'Agua as prelecções escriptas de
economia politica do snr. dr. Carneiro. Alguns esperam concorrer ao
mercado de Sevilha com cereaes e repolhos nas proximas colheitas. O
enthusiasmo é universal. A expansão fervente dos interesses materiaes, a
febre eloquente da viabilidade, os traços profundos e rasgados, com que
as intelligencias financeiras fixam cathegoricamente o dia supremo da
nossa prosperidade, não são já um exclusivo da mocidade jornalistica.

O meu collega Ricardo Guimarães, que salta de noite em cuecas, fóra da
cama, sonhando-se impellido por um wagon, doudeja de jubilo ao vêr-se
comprehendido, no seu ardente apostolado, desde Monção até ao Cabo da
Roca. Lateja-lhe o enthusiasmo nas bossas frontaes, cada vez que o
alvião do operario rasga no seio da terra o tumulo do carroção ignobil!
(Isto era escripto em 1853...)

A mocidade é assim. A força creadora do talento ha-de supprir a
debilidade do thesouro. Onde os capitalistas não chegaram, hirá o artigo
de fundo, palpitante de vida, como um ouragan invencivel, desaterrar a
aterrar com as forças magneticas do genio, com a magia imperiosa dos
periodos arredondados artisticamente.

E, por tanto, a provincia de Traz-os-Montes vai ser aquecida pelas
irradiações do foco civilisador. Um dia, os povos do Marão, agrupados
nas cristas das serranias, verão lá em baixo passar o traço negro do
carril; e cuidarão que um demonio, na cauda d'um raio, lhe talou as
campinas, no dia tremendo das vinganças do Senhor!

Mais tarde, os pavidos moradores da Campeam, illustrados pela leitura
repentina, e pelos artigos de fundo, virão, de sócos e coroça, nas azas
do carril, applaudir os cavallinhos, saborear um ponche no Guichard, e
influir seriamente no futuro da empreza lyrica.

Então, sim! Mondroens, Villarinho de Cotas, e Canellas terão uma
associação industrial, uma caixa filial, um gabinete de leitura, e um
centro promotor das classes laboriosas. O cavador, na hora da sesta
lerá, na vinha, de barriga ao ar, o _Tymes_, e Benjamin Constant. O
proprietario, entregue ás subtilezas economicas, que distinguem o
cabedal da renda, andará em guerra littetaria com o seu visinho da
aldeia proxima, por causa d'uma falsa interpretação aos sophismas de
Bastiat. N'esse dia, serão banidos os estupidos da face da terra. O
proletariado, filho da estupidez, não virá coberto de farrapos pedir um
bocado de pão, no banquete social, por conta do futuro fomento. Pouco
ha-de viver quem não vir tudo isto.

Será então chegado o momento solemne de pedir á provincia do norte a
historia do seu passado. Serão exploradas então as minas de poesia,
entulhadas pelo obscurantismo de longos seculos. Acontecerá muitas vezes
encontrar-se um sóco onde se esperava um borzeguim de castellan. O
leitor pedirá uma heroica lucta de dous infanções armados da fidalga
espada, e verá duas fouces roçadouras decidirem um pleito de apaixonado
melindre.

Mas não será em tudo assim a chronica obscura da provincia, onde vivi
alguns annos, e em poucos dias colhi apontamentos para longos trabalhos
de muito proveito esthetico, plastico, artistico, e não sei mesmo se
cubico, anomalo, e hybrido.

A historia, que vou contar, com innocentissima lealdade, póde ser
confirmada ainda por duas ou tres testemunhas, que, pelo menos, viviam,
ha cinco annos. Fallo assim com orgulhosa authoridade, porque tenho
direito a ser acreditado em romances, que tem a honra de assentarem
n'uma sincera base.

A mentira no romance é uma nodoa, que nausêa o publico illustrado.
Alexandre Dumas, escrevendo um romance intitulado _Martim de Freitas_,
obrigou este heroe a desembarcar em Mafra, nomeou-o alcaide do castello
da Horta, e fez nascer D. Sancho II na Palestina, onde foi baptisado por
um tal monsieur d'Evora, arcebispo de Leiria! É uma cornucopia de
asneiras este litterato, fallando de Portugal.

O publico tem direitos sagrados, e é realmente ultrajar-lh'os, querel-o
capacitar de que Mafra é um porto de mar, e Leiria uma cidade
archiepiscopal, e monsieur d'Evora cidadão portuguez.

Comprehenda-se a missão do romancista. O romance, a viabilidade, e o
fluido transmutativo são a tripeça em que está sentada a civilisação.
Quebrar-lhe um dos pés é dar com ella em terra.




A CAVEIRA.


I.


Morreu, ha seis annos, em Villa Real, um velho de oitenta e oito annos.
Chamava-se D. João de Noronha, e habitava uma casa pequena, mas decorada
de grande brazão d'armas, e não sei quantas ameias modeladas pelos
pilares das açoteas mouriscas. O leitor, que, por louvavel curiosidade,
quizer, de perto, capacitar-se da fidelidade architectonica d'esta casa,
vá a Villa Real, e na _rua do Cabo da Villa_, pergunte pela casa de D.
João de Noronha. Não terá de que maravilhar-se, a não ser da sisuda
gravidade, e rigorosa certeza com que o author lhe conta historias
interessantissimas.

Algumas palavras a respeito d'este D. João de Noronha.

O _dom_ é quasi sempre, entre portuguezes, indicação de fidalguia
remota; mas em D. João de Noronha era uma irrisão para o povo, e uma
ignominia affrontosa aos fidalgos da terra. E a razão é esta:

Ha cento e vinte annos que viveu em Villa Real uma senhora D. Paula
Coronel e Noronha, protectora d'um tal Antonio da Silva, sapateiro da
casa.

Este homem era desordeiro e valentão. Em rixas com um freguez por causa
d'umas tombas, matou-o desastradamente. A justiça apanhou-o, e
condemnou-o a pena ultima.

D. Paula exhaurira os grandes recursos da sua influencia, sem conseguir
salvar da forca o seu afilhado. Avaliem-se, porém, os extremos de D.
Paula pelo condemnado, e attenda-se á época em que os grandiosos
esforços d'uma fidalga são anciosamente empenhados na salvação d'um
arrastado verme da plebe.

D. Paula, em ultimo recurso, declara que o sapateiro é filho bastardo de
seu irmão, e como tal o perfilha. Desde que esta adopção foi consignada
no livro dos alvarás de perfilhamentos, Antonio Coronel de Noronha está
salvo da forca. O processo atravessa novos tramites; e a lei, esmagada
sob o rebolo transformado em pedra d'armas condemna o réo a cinco annos
de degredo para Castro-Marim.

O nobre exilado, um anno depois, morreu de uma indigestão de figos do
Algarve; e, honra lhe seja feita, á hora da morte, declarou que vivera
sapateiro e christão, e como sapateiro pedia perdão aos homens, e como
christão a Deus porque muito queria salvar-se.

Seu irmão Francisco, mestre ferreiro, morreu ferreiro, porque não quiz
partilhar das honras heraldicas de seu irmão, que, pelos modos, não eram
muito lisongeiras para a memoria de sua mãi.

Este ferreiro deixou um filho, chamado João, e uma fortuna avultada,
adquirida na bigorna.

João, orphão aos quinze annos, quiz ordenar-se; mas o amor tolheu-lhe as
vocações ardentes do sacerdocio.

Por aquelles tempos a sociedade estava retalhada em classes. João da
Silva invejava o acaso d'um nascimento, e desesperava-se na impotencia
de associar-se dous appellidos euphonicos, que o guindassem á região dos
homens superiores em raça aos outros homens, como o onagro de Sevilha
superior em raça ao onagro de Cacilhas.

Zombavam cruelmente d'elle, quando lhe disseram que se encabeçasse na
linhagem, embora bastarda, de seu tio, que morrera legalmente inscripto
no livro dos costados a folhas 1473.

João da Silva foi conscienciosamente fidalgo desde esse instante. Tirou
uma certidão, hypothecou metade da sua fortuna ao fôro, e consegui-o.
Não diremos ao certo quem foi o concussionario d'aquelles tempos, que
lhe recebeu os dous mil cruzados do pergaminho. As urgencias do estado
de hoje eram litteralmente as urgencias do estomago dos chancelleres
móres do reino.

A fidalguia protestou silenciosa contra tão grave injuria. Fechou os
seus salões ao adepto insolente, que ousára assignar-se D. João de
Noronha, e mandára insculpir na fachada d'uma casa ameiada as armas dos
Noronhas, É tradição em Villa Real que os Pintos Coelhos, representados
hoje por José Antonio Teixeira Coelho de Mello Pinto da Mesquita,
mandaram borrifar de sangue as armas de D. João de Noronha. Nada fez
recuar o proposito do filho do ferreiro. Os tempos correram, mas os
odios ao pobre homem não se extinguiram. Digno d'estes tempos, D. João,
seria hoje affavelmente recebido pela velha nobreza, com tanto que as
differenças no azul do sangue fossem saldadas com o amarello do ouro.

Conheci este homem, e tractei-o muito de perto. Era eu bem creança, e
respeitava as loucuras d'aquelle velho, com a mais sisuda tolerancia.
Quando o vi, aos oitenta e seis annos, casar-se com uma donzella (oitava
maravilha!) de oitenta e nove, cingi-me com aquelle par conjugal, e quiz
ouvir-lhe os colloquios amorosos, as expansões delirantes, as ternuras
idealissimas. Não pude; e o leitor perdeu muito com isso, que eu não era
homem de privar d'um capitulo precioso a _Physiologia do Casamento_ de
Balzac.

O vento das tempestades da vida impelliu-me de Villa Real para outra
linha no mappa-mundi das minhas observações; e o meu caro D. João morreu
poucos dias depois de sua mulher, e é de crêr que, abraçados em
frenetica paixão, renascessem, viçosos e frescos como Paulo e Virginia,
em mundos novos, e novas constellações. Assim seja!

Como vinha dizendo, leitor attencioso, quando eu tive a honra de ser
admittido ao tracto intimo de D. João de Noronha, reparei n'uma caveira,
contida em uma redoma de vidro, com pedestal de pau preto, enviezado de
arabescos de marfim.

Esta redoma pousava em uma mesa torneada em bilros de custoso lavor.
Reparei, outrosim, que em certo dia do anno um véo funebre cobria
aquella redoma. Este dia era quinta feira santa. Não concebi que relação
podesse existir entre aquella caveira e a paixão de Jesus Christo não
ousava, porém, interrogar-lhe o profundo mysterio.

Entrava eu uma vez, sem fazer-me annunciar, na sala da redoma, e
encontrei D. João ajoelhado com austero fervor na presença da caveira.
Voltou-se de repente sentindo-me os passos, e eu não pude recuar sem ser
conhecido. Vi-lhe lagrimas; eram magestosas, e eu juro que muitos dos
meus leitores de coração petrificado chorariam, se vissem a sincera
angustia d'aquelle rosto venerando.

--Venha cá--me disse elle--que eu não tenho vergonha de chorar;
Choram-se na decrepitude os risos da mocidade. Entra-se no tumulo a
chorar como se entra na vida.

Vi-me embaraçado em responder-lhe. Eu não tinha aprendido estas palavras
artificiosas, com que fingimos um quinhão de sentimento impostor. Então
senti e chorei. Hoje... eu sei cá! faria uma nenia em prosa de muita
melodia, e citara-lhe não sei quantos velhos, que a historia diz que
choraram desde Belisario até ao abbade de Chateneuf.

--Sente-se aqui ao pé d'esta reliquia--proseguiu o consternado
ancião.--Devo-lhe um lavor muito delicado: nunca o senhor me perguntou o
segredo d'este craneo. Eu gosto de quem respeita a dôr alheia. Quero
pagar-lhe essa fineza invocando do tumulo do meu coração o mysterio, que
aqui está sepultado ha sessenta annos. Se eu me calar, no correr da
minha historia, respeite o meu silencio... É que não poderei... Talvez
possa... O coração... dizem que manda aos labios muito do seu fel,
quando os labios lhe pedem as amarguradas reminiscencias d'uma grande
desgraça... Será assim? Eu não sei... vel-o-hemos.

Ora attenda-me, meu amigo. A innocencia deve alegrar-se com a historia,
onde figura um anjo. Hei-de fallar-lhe de Lucifer tambem... Seja o anjo
para o recreio; e o Lucifer para a experiencia... Um velho é um livro.
Eu vou abrir-me... quero dar-lhe a leitura de minha alma, hoje, que,
ámanhã, talvez a pedra rasa d'uma sepultura nem ao menos lhe diga que eu
durmo alli o suspirado somno do infeliz...


II.


D. João de Noronha, sentado de modo que encostava o cotovello á mesa da
redoma, principiou a historia do seu segredo, em tom de profunda
commoção:

«Tinha eu vinte annos... ha que tempo isto vai!... ha sessenta e oito
annos que eu estudava latim no convento de S. Francisco. Era minha
tenção ordenar-me. Meu pai grangeara-me uma fortuna, que me estimulou
ambições de subir na posição social. Quiz ser padre, e era-o, se
nascesse na igreja lutherana, onde o padre não soffre a cruelissima
amputação da vida da alma, em commercio com o mundo.

Quando encontrei uma mulher, que me imprimiu nos sonhos a sua imagem,
perdi o imperio da vontade, e as fervorosas vocações do sacerdocio.
Adorei uma d'essas bellas mulheres, que trazem comsigo uma sina de
desgraças, um contagio de desastres, e a perpetuidade d'uma chaga,
aberta no coração com um ferro em brasa.

Esta mulher, por quem me fizera nobre, por quem me sentira ambicioso
d'um fausto, que a sociedade me ultrajou com justos motivos, por quem,
finalmente, me fizera estupido... atraiçoou-me.

No meu tempo o amor era uma corôa de espinhos. Então apaixonava-se um
homem, e sentia-se perdido para a sua liberdade, e escravo de uma
angustia interminavel. Eu, por mim, senti-me ultrajado por uma traição
incrivel, e não pude, ainda assim, estalar as algemas ignobeis que me
prendiam á deshonra d'um abandono injustificavel.

Ajoelhei aos pés de Martha. Pedi-lhe a pouca ventura que me roubára
cruelmente... pedi-lhe a dignidade do homem que por ella se
despresára... encontrei-a morta para mim, e vencida por uma paixão, que
devia matal-a! Tive então dó d'aquella flôr, que se desfolhava na
madrugada da sua primavera? O meu amor era grande e generoso! Pedi-lhe
que fosse minha irmã, minha amiga... Nem isso!... nem se quer me aceitou
um conselho de pai na hora em que mais precisa lhe fosse uma protecção
que a salvasse da deshonra, a que se tinha cegamente abandonado.

Eu valia menos que Pedro de Mesquita.

Este homem era official de cavallaria. Nascêra illustre; conquistara-se
uma opinião de heroe; batera-se ardidamente como um leão nas ultimas
batalhas. Era aqui apontado em Villa Real; como o primeiro homem nos
triumphos difficeis do amor.

E não o lisongeavam! O homem, que obrigára Martha a despresar-me, devia
ser tudo isso.

Era muito linda esta mulher! Diziam-no as emulações, os odios, e as
intrigas, que a sua formosura causára entre pretendentes, que não
queriam ceder a prioridade do merito a nenhum.

Um dos mais poderosos era Heitor Corrêa, cadete de cavallaria e filho
segundo de uma nobre casa d'esta villa, que não tenho necessidade de
mencionar-lhe.

Não obstante Heitor Corrêa era repellido, porque Pedro de Mesquita não
tinha concessões a esperar para ser mais amado que outro qualquer.

Martha arrancára, como Luzia, os bellos olhos, se assim podesse afastar
de si os perseguidores que a tornavam suspeita ao homem que tão caro
devia ser-lhe. E era.

Estes dous homens odiavam-se rancorosamente, e procuravam á porfia um
ensejo em que podessem travar as espadas. Corrêa confiava demasiado em
si. Mesquita sobejava-lhe a certeza de superar o debil adversario.

O momento ambicionado chegou.

Era quinta feira santa.

Martha assistia ao officio da paixão na igreja de S. Francisco.

Heitor Corrêa antecipára-se a occupar o mais proximo, lugar de Martha.
Pedro de Mesquita viera depois, e mordera colericamente o beiço
inferior. Martha tremeu e chorou. Quiz sahir; não a deixaram as
multidões espessas. Heitor Corrêa comprehendeu-a, e indignou-se. Era
muito despreso para a altivez do seu caracter.

Terminára o officio. O povo evacuou o templo. Martha sumiu-se nas
turbas. Dous homens apenas, como duas estatuas, se fixavam sós, e
immoveis, na nave da igreja.

Sahiram, simultaneamente. Encontraram-se no adro. Trocaram poucas e
rapidas palavras, e desembainharam os fains.

Pedro de Mesquita ostentava no rosto a superioridade de mestre. Heitor
chammejava a colera, a vingança, o capricho, e por ventura o desejo de
matar, ou morrer.

Esta scena passava-se na presença de mil pessoas. As beatas benziam-se
horrorisadas; e os mancebos estorciam-se no frenesi de espedaçarem o
forasteiro Mesquita, cuja superioridade sobre o seu patricio era
indubitavel, e perigosa.

Perigosa, não; porque o valente era generoso. Heitor não tinha já um
botão na farda, quando Pedro de Mesquita, despresando demasiadamente a
defesa, se sentiu ferido ligeiramente no braço esquerdo.

A scena tornou-se cruel! O orgulhoso não podia conciliar com aquelle
sangue a sua generosidade. Heitor foi mortalmente ferido, e cahiu
banhado em sangue. Alguem correu sobre Mesquita, gritando contra o
assassino. Mesquita esperou com bravura! Não houve mão que lhe tocasse.


III.


Heitor Corrêa, reanimado pelos alentos da desesperação, ergueu-se, e
esgrimiu ainda o florete com braço impotente. Mesquita, ferido n'um
braço, afastou-lhe os botes, com admiravel presença de espirito.

O duello em Villa Real era uma cousa nova. O facto, em um dia tal,
redobrava de escandalo. Não se atravessavam as multidões espessas, que
reprovavam ruidosamente um tamanho desacato. A causa do seu espanto não
era a moral ultrajada, nem a perda voluntaria da vida. Dava-se como
razão suprema de tal algazarra estar exposto o Santissimo Sacramento,
quando dous homens se cortavam a ferro frio.

As authoridades, conscias do acontecimento, deram ordens immediatas de
captura. Estas ordens não podiam ser cumpridas por meirinhos; e não
houve desgraçadamente authoridade militar que capturasse os duelistas.

Heitor Corrêa, exhausto de forças, perdidas no sangue, que os recursos
da cirurgia não estancára, desmaiou, e deu symptomas de morto. O alferes
de cavallaria, ligeiramente ferido no braço, curava-se n'uma botica,
affectando um ar de placidez que indignava as turbas, tumultuosas na
rua. D'entre ellas sahiam gritos terriveis de «morra!» Os que assim
gritavam diziam que estava exposto o Santissimo Sacramento; e, por
tanto, não podiam deixar de matar o impio que desacatára, em quinta
feira santa, a solemnidade da paixão de Christo. Como elles saciavam a
sede de sangue com o fervor beatifico das suas crenças, explicam-no
milhares de factos semelhantes que acompanham sempre a edificante
historia dos muito austeros authores da integridade religiosa, tanto em
Roma, como em Constantinopla.

Fernando Corrêa, irmão de Heitor, estava á janella quando viu entrar seu
irmão nos braços de dous soldados. Desceu ao atrio, e interrogou o
facto. Contaram-lhe, com as mais irritantes circumstancias, o
acontecimento.

Fernando, sem attender a supplicas da familia, e de amigos prudentes,
sahiu de casa, tal qual estava, embrulhado n'um capote. Mas, debaixo
d'este capote, levava um bacamarte.

Quando chegou á entrada da _rua do Jogo da Bolla_, viu um grupo de povo,
que parecia vedar a sahida d'uma botica. Lá dentro estava Pedro de
Mesquita, a quem faltára a coragem para affrontar a força bruta da
populaça.

Em frente d'essa botica morava a infeliz Martha, a attribulada amante
d'aquelle homem, que alli estava ameaçado das iras da plebe, tigre
desenfreado da licença, n'aquelles dias de escravidão, logo que um acaso
lhe alargasse um pouco as algemas.

Fernando Corrêa abriu uma clareira entre a multidão. Descobriram-se
todos, exclamando: «Chega o fidalgo! deixem passar o fidalgo.»

E o fidalgo entrou, perguntando quem era o assassino de seu irmão.

--Assassino... não!...--respondeu o alferes.--Fui eu quem o feri, e
honro-me de ser ferido pelo cavalheiro com quem me bati.

Fernando Corrêa, estupido como fatalmente são os que podem contar muitos
avós robustos de musculos, e nenhum de vigor intellectual, não
comprehendeu a delicadesa d'aquella resposta. O que elle praticou é um
acto de barbaridade, que envergonha a especie humana. Recuou um passo
atraz, aperrou o bacamarte, e despejou-lh'o, á queima roupa, no peito.

Foi horrivel, senhor! Foi esse um lance, que eu tenho aqui diante de
meus olhos, noite e dia, porque n'esse instante ouvi um grito de
arripiar as carnes. Era Martha que cahira, com a face na lage da
janella, fulminada pela angustia mais atroz, e mais inconcebivel dos
tormentos possiveis n'esta vida.

Voltaram-se todos para aquella janella, e viram-me... a mim, que subira,
alentado pela coragem da minha dôr, as escadas d'aquella casa, e
levantára da janella a pobre menina que julguei morta. Olhei em redor de
mim... não vi ninguem, excepto uma creada que chorava, perplexa, sem
atinar com o que devia fazer. A familia, a essa hora, na igreja da
_Misericordia_, orava, talvez, á Virgem protectora das virgens...

Fernando, consummado o assassinio, sahiu galhardamente por entre as
turbas que saudavam o nobre algoz. A paralysia do terror gelára os
poucos que lhe reprovavam a infamia. Ninguem ousou, sequer, lembrar-lhe
que aquelle sangue lhe tingia os pergaminhos!

O nobre amante de Martha foi conduzido ao quartel. O seu ultimo lance
d'olhos n'esta vida, viram-no todos fixar-se na janella da infeliz.
Depois... fechou-os, e fechou-os para sempre.

Passada uma hora, Fernando Corrêa, montado n'uma possante mula, e
seguido d'um creado, e dous bacamartes, passava em _Almodena_, caminho
de Lisboa. E, para que esta circumstancia me não esqueça, dir-lhe-hei
que, um mez depois, o assassino, impune pelo privilegio dos seus
pergaminhos, entrava em Villa Real, com um alvará de real mercê que o
isentava de responder pela morte de Pedro de Mesquita.

O povo, desde esse dia, vergava respeitosamente a cabeça ao fidalgo, que
passava soberbo por entre aquelles que lhe liam na face a altivez do
assassino, que zombára da lei.

Heitor Corrêa... esse foi enterrado no mesmo dia em que os sinos
dobraram por alma de Pedro de Mesquita.


IV.


É necessario fallarmos de Martha... É a luz unica d'este quadro negro...
Nem a historia valia a pena de ser ouvida, se não tivesse um heroismo de
virtude para a admiração, e uma santa para o culto das almas nobres, e
apaixonadas pelo sublime do martyrio.

Por ventura, póde o senhor comprehender a situação d'um homem, que tem
desmaiada nos braços aquella por quem fôra atraiçoado...? Não é bastante
comprehender isto: é necessario compenetrar-se mais da minha situação...

Martha illudira-me... ou illudira-se; Martha despresara-me com cynismo
indigno da sua idade; Martha escarnecera as loucuras que me sacrificaram
a ella; Martha desmaiara, adivinhando a morte do meu rival...
Comprehende por ventura agora o tormento indefinivel da minha
situação?... Não comprehende, porque se eu lhe disser que n'aquelle
trance original o meu sentimento era a piedade... se eu lhe disser que
dera a minha vida pela do rival assassinado, com tanto que Martha não
fosse assim desgraçada... o senhor, por certo, não concebe este
phenomeno, este sacrificio... esta monstruosidade de resignação... Quem
sabe!... a sociedade capitular-me-hia de imbecil, e o meu amigo, por
muito favor, concedera-me a celebridade dos tolos inoffensivos, não é
assim?»

Não lhe respondi; mas aqui me puno, confessando que D. João me
adivinhára. Córei, de certo, quando fui surprehendido no segredo dos
meus juizos. Nada menos lisongeiro que o meu silencio para o pobre
velho! Era de certo um pungente assentimento á sua conjectura! A dôr é
generosa, e cala as affrontas. Reconheço hoje que ultrajei aquelle
grande sacrificio, que comprehendo agora. Se não receasse mesclar com a
gravidade melancolica d'esta narrativa um anexim popular e graciosamente
philosophico, diria que o diabo não quiz nada com rapazes, e D. João de
Noronha, de certo, não era mais privilegiado que Lucifer para tirar de
mim melhor partido.

D. João proseguiu:

«A familia de Martha veio encontrar-me, com ella nos braços. A mãi, que
prophetisára, em seus virtuosos presentimentos, a desgraça da filha,
apertou-a contra o seio, cobriu-a de lagrimas, e acordou-a d'aquelle
lethargo, com afflictivos gemidos.

Martha abriu os olhos; mas nunca mais descerrou os labios. Esperavamos
anciosos que a sua angustia respirasse pelas lagrimas. Não chorou uma
só. Em quanto os sinos dobravam a finados pela alma dos dous amantes,
Martha estremecia, mas não posso dizer-lhe como era aquelle tremor... A
corda d'um instrumento ferida, e deixada ao impulso da vibração
estremece assim.

No fim de tres dias extinguiu-se o soffrimento, por que a vimos pender
serenamente a cabeça nos braços de sua mãi. Felicitamos-nos pelo repouso
da infeliz. Imaginamos que ella devia acordar mais tranquilla, ou, pelo
menos, mais desabafada d'aquella agonia que lhe suffocava não só os
gemidos, mas até a respiração. Esperamos... mas quem não esperava era o
medico, que, ao retirar-se, deixou dito que não era Christo para
restituir a filha á viuva de Nahim.

Estava morta, por tanto... e morta sem balbuciar uma palavra! Como se
morre assim? Dizem que a morte é a aniquilação da materia... mas aquelle
anjo morreu dentro em si, antes que os symptomas da destruição nos
revelassem o rapido dilacerar d'aquella morte! Quem dirá que aquella
mulher soffreu no corpo? Ninguem! A alma, só a alma, este ser immortal
que foge do mundo, onde a vida do amor lhe falta; a alma, reconcentrada
no seu mysterio de dôres inconcebiveis, reluctando por estalar as
algemas que a prendem ao cavallete do corpo... a alma, e só a alma, meu
amigo, consummou aquelle trance de incomportavel inferno, e passou ao
mundo da penitencia ou da gloria...

Agora principia a minha scena n'esta tragedia... É só minha, e só eu a
comprehendo... mas hei-de contar-lh'a. Acompanhei á igreja de S.
Francisco o cadaver de Martha. Fui o ultimo que se retirou de ao pé da
sepultura; e fui o primeiro que todos os dias, em tres annos
successivos, lhe ajoelhou na pedra que eu não queria fosse a nossa
eterna separação.

Empreguei os meios para obrigar o coveiro a não tocar n'aquella
sepultura durante tres annos.

Findo este praso, venci com dinheiro a repugnancia do coveiro, e a pedra
que cobria os ossos de Martha foi levantada.

Era meia noite, e perpassavam em redor de mim as larvas do terror,
agitadas pelo lampejar tremulo das lampadas, suspensas no altar do
Santissimo Sacramento.

O coveiro, afeito a lidar com os mortos, tremia, e largava machinalmente
a enxada com que afastava as camadas da terra.

Não posso dizer-lhe até que ponto fui enganado pelas larvas que a
desvairada phantasia, ou a mysteriosa realidade revocou em volta de
mim... Estou quasi jurando-lhe que a vi... a ella... como nos dias da
sua esplendida formosura illuminada pelo resplendor da sua innocencia,
purpureada do pejo com que a candura se rende ao imperio dos
instinctos... Era ella, quando, nos primeiros tempos da nossa infancia,
me offerecia de seu coração a parte que não podia dar a sua mãi, e a
seus irmãos... Era ella, quando me perguntava o segredo d'aquella
attracção irresistivel, que a arrastava para mim, que a entristecia sem
motivo, que a fazia ambicionar uma riqueza imaginaria, que a fazia
sonhar umas delicias que sua mãi lhe não explicava nem realisava com os
seus carinhos... Foi assim que eu a vi, em quanto o ecco da enxada, que
feria o seio da sepultura, reboava nas naves da igreja... Gelava-se-me
de terror o pensamento... a phantasia esfriava-se ao roçar pela mortalha
d'aquelles ossos, e eu sentia-me morto em metade da vida, quando a terra
sacudida da enxada me vinha cahir aos pés.

E depois... as larvas, que a razão não podia espavorir, tornavam a
cingir-se com os pilares da nave, a pendurar-se nas grades do côro, a
tremularem por entre os cortinados dos altares, e a esvoaçarem na
abobada do templo como nuvens escuras, espedaçadas pela tempestade.

Erguera-se do tumulo para ajoelhar, a meus pés... tinha a face lacerada
pelos vermes. E era bella ainda... Devo ser sincero, meu amigo... É
impossivel que a imaginação me mentisse... Ouvi-lhe a sua voz... senti o
frio das suas mãos... ergui-a de meus pés... perdoei-lhe... chorei com
ella...

A voz d'um homem chamou a minha alma á realidade acerba d'aquella scena,
que se me figurava um sacrilegio, uma profanação.

Era o coveiro, que me dizia: «a enxada já topou com os ossos.»

Esta nova, communicada friamente pelo coveiro, alvoroçou-me, e coou-me
nas veias não sei que terror semelhante ao do sacrilego, que não tem
ainda bastante barbarisada a alma pelo crime, e vacilla, horrorisado de
si proprio, quando atira ao pavimento do altar as hostias contidas no
calix, que rouba.

Aquelles ossos, aquelle meu thesouro, ambicionado ha tres annos, tinham
agora para mim uma superstição, um cunho sagrado, que me fazia na alma
não sei que pesar semelhante ao remorso.

Cheguei ainda a proferir a primeira palavra do coração, que se
arrependera. Quiz deixar intactas aquellas cinzas. Luctei comigo para
vencer um excesso de medo, um abuso, talvez, da imaginação. Não pude;
mas não pude tambem retirar-me sem uma reliquia, um ser sem alma, uma
recordação para as lagrimas, e uma gloria só minha n'este mundo... a
gloria de possuir na morte uma companhia que tivesse sido incentivo de
lagrimas, já que não pude conseguir como companheira na vida essa
preciosa existencia, que me espera ha sessenta e seis annos na
eternidade.

Eis-aqui a reliquia, a testemunha immovel, terrivel, e silenciosa dos
longos soffrimentos d'um homem, que atravessou uma longa existencia, sem
conciliar com os prazeres do mundo a eterna viuvez da sua alma!

Eis-aqui a caveira de Martha que eu revisto a cada instante das feições
com que a vi partir d'este mundo. Ha alli n'aquellas orbitas uns olhos
que me vêem... olhos mais penetrantes que os da vida, porque, nos sonhos
angustiosos d'esta paixão desastrada, eu vejo sempre esta caveira,
animada umas vezes do gracioso riso da innocencia, outras vezes das
contorsões freneticas da desesperação... Ha alli n'aquelles ossos, onde
os labios articulavam hymnos dos anjos, uns labios que, a cada instante,
me balbuciam um perdão... E tenho momentos de inferno nas minhas
dolorosas contemplações, aqui diante d'esta redoma... Ás vezes juraria
que essa caveira estremece em convulsões rancorosas contra mim,
balbuciando o nome do homem, que a levou comsigo á sepultura!...
Então... sinto-me demente, porque tenho ciumes do nada... ciumes d'estas
cinzas esquecidas no mundo... ciumes da memoria d'outras cinzas, que, ha
tres quartos de seculo, esperam o dia final... É lamentavel a situação
d'este pobre velho, que não pôde roubar-se a uma agonia, das que o mundo
reputa chimeras, não é assim?

Deixe-me agora dizer-lhe o meu segredo, que esse ainda eu lh'o não
disse, nem lh'o diria, se lhe não acreditasse umas lagrimas que lhe vejo
nos olhos.

Eu creio em Deus, como creio na vida. Creio na vida como creio na dôr. O
que eu não creio é na morte. A morte é uma palavra convencional, com que
os homens explicam a passagem de sobre a terra para o seio d'uma nova
existencia. A immortalidade é uma idêa abstracta de tudo que é
comprehensivel aos homens. O homem não explica a immortalidade, em
quanto não sobe um grau na escala dos seres intelligentes. Veja se me
comprehende... Ha uma escala de seres que principia na materia bruta, e
termina nos espiritos. As funcções do espirito, sem fórmas corporeas,
pertencem á creatura, superior ao homem. Ora, o homem não explica essas
funcções, que devem ser a sua futura existencia, pela mesma razão que o
animal, inferior ao homem, não comprehende as funcções do pensamento
aperfeiçoadas, mas não perfeitas, no homem. Todos os seres, por tanto,
vão subindo na escala da intelligencia. Todos se transfiguram de fórma
em fórma até deixarem na terra o involucro da materia, e vagarem nos
espaços incognitos como vagam os espiritos. É lá em cima, nas
proximidades do grande mysterio, ao clarão da eterna luz, que se lê o
livro de Deus. É nas regiões, que a minha alma adivinha, que eu devo
sentir pelo orgão espiritual em que recebi a interminavel impressão de
agonia, que foi na terra a minha lenta peregrinação. O amor ardente e
sublime não é um attributo do espirito? Aquelle que muito ama, e muito
devorado morre de paixões grandes e ideaes, não é um propheta da vida
futura, uma preexistencia do futuro amor? A não ser o amor, qual será a
existencia do espirito?

Conheço que o fatiguei... Pois, em verdade, lhe digo que quiz elevar o
seu espirito á altura das minhas grandes doutrinas, do meu querido
segredo. Quiz convencel-o, não digo bem, quiz enthusiasmal-o por essa
eternidade em que ahi se falla, despida de affectos, de poesia, de
esperanças, e... deixe-me dizer-lhe... indigna de Deus e dos homens...

Meu amigo, ha na minha vida um oasis. Tenho exaltações de jubilo, aqui,
n'este quarto, onde conto, ha perto de setenta annos, os minutos da
minha existencia. Este goso é a minha convicção na immortalidade... É a
minha esperança, confirmada pela meditação e pela sciencia, de que
hei-de encontrar essa alma, que tem vindo aqui revelar-me os segredos do
céo...

Basta... Seja digno da minha confidencia... Não diga ás turbas de Villa
Real os segredos de D. João de Noronha. Aqui escarnecem-se os que
soffrem, logo que não soffrem pelas más colheitas do vinho, ou pela
barateza dos cereaes. Não falle a linguagem dos espiritos, onde a
materia organisada dispõe do machinismo da bocca para lhe dar uma
gargalhada em resposta.»

D. João de Noronha despediu-me.

Desde esse dia foram mais da alma e da intelligencia as nossas
communicações. Aprendi com elle a sciencia do espiritualismo. Se depois
me materialisei, é porque a faisca d'aquelle genio não me tinha abrasado
mais que a superficie da materia. O espirito tem a força dos
imponderaveis. A força da materia póde muito bem calcular-se pela força
dos vapores... _tantos cavallos_.

Pergunta-me uma senhora de critica muito fina:

--Como se explica o casamento de D. João de Noronha aos 86 annos de
idade, com uma donzella sua contemporanea?!

--De uma maneira muito simples. As nupcias de D. João não podem
considerar-se physicas nem moraes. «Absurdo!--replica a espirituosa
dama.» Está enganada, minha senhora. D. João tinha uma pequena fortuna,
e queria deixal-a a uma creada, que o servira desveladamente toda a sua
vida. D. João encarava philosophicamente as formulas sacramentaes do
casamento. Achava-o utilissimo como carimbo de contracto civil. Casou-se
para recompensar uma creada que lhe consolou muitas lagrimas, e lhe
enxugou nas faces mortas as ultimas que elle chorou. Era digna do
sacrificio. Poucos dias supportou a viuvez.

--E a caveira?--perguntou ainda a amavel syndica dos meus romances.

--A caveira deve estar confundida nos ossos de D. João de Noronha. A
viuva cumpriu religiosamente as suas ordens: envolveu-a na mesma
mortalha.




UMA PRAGA ROGADA NAS ESCADAS DA FORCA.




UMA PRAGA ROGADA NAS ESCADAS DA FORCA.


Este romance não devera chamar-se «romance.» Desde que esta palavra é o
atilho onde se enfeixam as mentirosas invenções do escriptor
phantastico, não ha historia verdadeira que possa, como tal,
recommendar-se com aquelle titulo.

Estes acontecimentos, expostos aqui, segundo o formulario romantico, e
affeiçoados ás leis do estilo romantico, são verdades que não deram
brado, nem se gravaram na memoria da geração que as viu e as não
comprehendeu.

Na vida moral da sociedade ha phenomenos cuja causa ninguem estuda. No
drama da familia ha lances que são do dominio do publico, e o publico
não póde, ainda que o tente, explical-os. Nas attribuições
individualissimas do homem ha phases extraordinarias de soffrimento, que
esta sociedade de entranhas crueis lhe recrimina, reputando-lh'as
effeitos necessarios das causas, consequencias do crime voluntario.

A sociedade, a familia e o homem expiam incessantemente a culpa do
homem, da familia, e da sociedade. Opera-se uma continua redempção do
genero humano. O homem é, desde o seu principio, a victima da culpa com
o labio collocado no calix da agonia.

A vida sobre a terra é uma interminavel expiação. Eu pago pelos crimes
de meu pai, meus filhos expiarão meus crimes, e o ultimo ser vivo da
animalidade intelligente será o holocausto do primeiro homem criminoso.

É forçoso recorrer ao inconcebivel, ao sobre-natural, ao mysticismo da
providencia occulta para comprehender o que vulgarmente se diz
«fatalidade.»

Na historia, que vai ser lida, é tão sensivel esta necessidade, tão
aterrado se sente o espirito diante d'um facto consummado, que eu não
tive escrupulo religioso ou philosophico em subordinar um encadeamento
de infortunios d'uma familia á _praga rogada nas escadas da forca_.


I.


Bernardo da Silva era um filho bastardo de um nobre de Vizeu. Do ventre
materno passou á roda dos expostos, e d'ahi aos cuidados d'uma pobre
mulher d'aldêa.

Aos dez annos não conhecia pai; e sua mãi, mulher do povo, arrastada
sobre a lama da plebe toda a sua vida, morrera com o segredo do _nobre_,
que se dignára descer até ella para honral-a com deshonra.

Bernardo, aos dez annos, era aprendiz de alfaiate, e de todos os seus
companheiros era elle o mais despresado, porque tambem era o mais
preguiçoso.

O rapaz vivia triste como se a idade lhe permittisse comprehender a dôr
immensa d'um grande desastre. Lá dentro n'aquelle coração infantil
fallava uma prophecia funebre. Com os olhos sempre extaticos no
horisonte negro do seu futuro, o pobre moço não tinha uma hora livre
para o trabalho. Muitas vezes uma bofetada acordava-o d'aquelle
lethargo; e o braço, que estava suspenso com a agulha, continuava a
tarefa molhada de lagrimas.

Aos 13 annos era ainda um aprendiz de alfaiate, repellido d'este para
aquelle mestre, desacreditado em todos, e inutilmente espancado por
todos. Chamavam-no incorrigivel, e elle mesmo conheceu que o era.

Abandonou a agulha, e foi servir em casa de Francisco de Lucena. Era
ahi, como em toda a parte, coconhecido pelo «Bernardo _Engeitado_.»
Nunca ninguem se lembrou de reputal-o filho _d'alguem_: nem Lucena se
lembrou, alguma vez, de que um de seus muitos filhos, atirados á roda,
poderia ser seu lacaio.

Bernardo era creado de taboa.


II.


Este officio era-lhe mais generoso que o de alfaiate. Tinha muitas horas
livres para a sua melancolia, e muitos escondrijos no amplo palacio de
seu amo para refugiar-se d'uma sociedade que elle detestava sem saber
porque.

Este viver excepcional n'aquella classe galhofeira, esturdia, e
estragada, excitou a curiosidade dos seus companheiros, e, depois, a dos
amos. Aquelles chasqueavam-nos com desabrimento: estes admiravam-no por
compaixão.

Bernardo chorava sem motivo. Sorria-se com violencia. Era humilde com um
não sei que de estranha delicadesa. Destacava-se da sua classe com um ar
orgulhoso, mas não calculado. Cumpria as suas muitas obrigações, e
ninguem sabia quando as cumpria. Estas qualidades, rarissimas vezes
encontradas n'um lacaio, tornavam-no assumpto de estudo para os amos que
principiavam a interessar-se na analyse d'aquelle obscuro engeitado.

Guardadas as inauferiveis distancias que separam o senhor do servo, os
fidalgos souberam que Bernardo desejava muito saber lêr, e gastava a
maior parte da noite soletrando o abecedario, e decorando as lições que
o mordomo da casa lhe dava nas horas de desenfado.

Qualquer que fosse o impulso que a isso o levou, é certo que o amo, por
um nobre impulso, permittiu que o rapaz fosse a uma escóla, e para isso
alliviou-o dos encargos de moço de taboa, e levou-o á jerarchia de
escudeiro do menino mais velho.


III.


Um anno depois, Bernardo fizera admiraveis progressos. Lia com
intelligencia do que lia; escrevia com acerto, e aprêndera só comsigo a
grammatica portugueza, visto que seus amos lhe não tinham permittido
esta segunda parte dos seus estudos. Seria um caprichoso luxo permittir
ao servo sciencia que os amos não tinham! O muito illustre Francisco de
Lucena não daria o menor dos seus galgos pela vasta sciencia do Lobato.
E, talvez, tivesse razão.

Em casa de fidalgos d'esta bitóla, quando um creado adquire a confiança
dos amos, ha sempre para isso uma de duas razões. Ou o creado, devasso
como elles, encobre astuciosamente as devassidões dos amos; ou se torna
estimavel pelo zelo honroso com que procura encobrir-lh'as, já que não
póde reprehender-lh'as.

Bernardo estava na segunda razão. Os filhos de Lucena eram livres e
desmoralisados a não poder ser mais. Quizeram captar a benevolencia do
servo, não para aconselhal-os, que não desciam elles a isso, mas para
acompanhal-os em emprezas difficeis, d'aquellas em que o braço do plebeu
é muitas vezes a salvação das costas do fidalgo.

Não o conseguiram nunca; mas tambem não tiveram de arrepender-se da
confiança d'esse convite. Bernardo exercia uma influencia admiravel
sobre os nobres libertinos. Era a superioridade da intelligencia.
Ouviam-no, e maravilhavam-se do acerto das suas idêas, e da linguagem
escolhida com que o engeitado se sahia! O facto de ser engeitado era em
Bernardo, talvez, um motivo de superstição n'aquella casa. Se elle fosse
reconhecido filho d'algum _borra-botas_, como em linguagem nobliarchica
se chama um plebeu, de certo lhe não dariam a importancia de o
considerarem pela intelligencia. Mas o mysterio, a possibilidade de ser
vergontea infeliz d'um tronco illustre, cingiam-lhe a fronte d'uma
aureola entre nuvens, que poderia talvez, mais tarde, dissipar-se, e
deixar na plenitude da sua luz aquelle fructo do amor criminoso d'alguma
raça nobilissima, mais ou menos aparentada com os Lucenas!

Tudo isto era possivel; mas o que elles julgariam, entretanto,
impossivel, é o que vai lêr-se.


IV.


A familia que Bernardo servia compunha-se de pai, mãi, tres filhos, e
uma filha, de todos os irmãos a mais nova. Por então contava quinze
annos. Era bonita, mas pobre. Os morgados não a pediam; os filhos
segundos tambem não; e a sensivel menina precisava amar, porque o seu
coração era da tempera d'aquelles que não sabem conceber sómente o amor
com a condicional do casamento.

Eulalia não tinha a mais superficial tintura de instrucção, e por isso
não podemos, em boa fé, chamar-lhe romantica. Não era janelleira, nem
rapinhava da papeleira dos irmãos o perfumado papel setim para deposito
de semsaborias amorosas, e por isso não podemos chamar-lhe douda.

Era uma mulher, e n'isto está dito tudo.

Este Bernardo é que realmente se parecia muito com os nossos poetas de
aspirações ferventes e meditações profundas. Mas não era impostor, nem
romanticamente parvo. O rapaz tinha uma alma como poucas, e uma tristesa
inconsolavel como nenhuma. «A minha organisação--dizia elle--é um
aborto, uma enfermidade incuravel.»

Eulalia sympathisava com aquella tristesa, e com a figura do rapaz.
Achava-lhe traços de semelhança com seus irmãos, e via n'elle o que ella
chamava «cara de pessoa de bem.» E, com quanto eu deteste esta maneira
de classificar as caras, porque não conheço as «caras de pessoas de mal»
tenho-me visto em circumstancias forçadas de dizer o mesmo, porque ha
n'este val de lagrimas umas caras que não exprimem bem nem mal, e essas
são as peiores caras.

Bernardo não se lembrou nunca de fazer sentir á cozinheira da casa, e
menos se lembraria de accender o fogo do amor no illustre coração d'uma
Lucena, com quem em toda a sua vida fallára tres vezes.

Eulalia passou da dôce sympathia ao amor abrasado, e do amor abrasado á
paixão violenta. Por mais finos e eloquentes olhares que a fogosa menina
lançou ao escudeiro, o escudeiro ou não dava por elles, ou explicava-os
de qualquer modo, com tanto que não ousasse ensoberbecer-se d'aquelle
affecto disparatado. E Eulalia desesperava-se!


V.


Francisco de Lucena espreitava a opportunidade de empurrar a filha para
fóra de casa. Aspirou, primeiro, aos morgados; mas encontrou-os pouco
apreciadores de formosura e fidalguia. Recorreu, depois, aos burguezes
ricos, e encontrou um negociante d'alto bôrdo, que recebeu a proposta
com affabilidade e trabalhou desde logo em levar a fim um casamento que
permittia aos filhos de seu filho appellidarem-se Lucenas.

O pai annunciou á filha o seu rico futuro, e encontrou-a fria.
Apresentou-lhe o noivo, e viu-a enjoada. O noivo, porém, era um rapaz de
fina educação, d'alguma intelligencia, de brios que o ouro lhe
estimulava, e de orgulho superior á sua classe, porque, ha 50 annos, a
classe commercial era muito humilde, supposto já trabalhasse para esta
época de barões commerciaes, que, digam lá o que disserem, é o mais
palpitante triumpho da democracia. Para me não metter em graves questões
sociaes, entenda-se que D. Eulalia repelliu a felicidade que seu pai lhe
annunciára com tanto jubilo, e declarou-se sentimental, por tempo de
quinze dias, fechada no seu quarto, sem querer vêr sol nem lua.

Mas o pai apoquentava-a, sempre que podia, pintando-lhe a mesquinhez do
seu futuro, e a pobresa de sua legitima, que orçaria talvez por tres mil
cruzados. E era isto verdade.


VI.


E o peor era que o tal João Leite, noivo repellido, ficou amando
desesperadamente D. Eulalia. Ferido no seu amor proprio, e envergonhado
de tão má estreia, instava com Francisco de Lucena, lançando-lhe em
rosto a imprudencia com que viera roubal-o á sua tranquilidade, não
podendo contar com a obediencia de sua filha. Esta maneira de accusar
vexava Francisco de Lucena, porque era pôr em duvida o seu poder
paternal, e chamar-lhe fraco, imputação que elle odiava ainda mesmo que
se tratasse de vencer a repugnancia de uma fraca menina.

Redobravam as mortificações, e Eulalia, immovel como o seu infeliz amor,
offerecia-se de bom grado á vingança paternal, mas dizia, em linguagem
tragica, que só reduzida a cadaver passaria para a posse do tal
miseravel, que não tinha vergonha de perseguir uma mulher que o
despresava. O pai realisou o dito popular: «casar, ou metter freira.»
Eulalia optou pelo segundo, e os preparativos para entrar no convento
principiaram.

O amor faz a mulher varonil. Temos visto almas de lama apresentarem uma
energia corajosa, quando o tonico do amor lhes vibra as cordas
embrionarias d'um coração, que parece arfar de improviso ao repentino
choque, ao rapto da paixão violenta.

Nas vesperas da sua entrada no mosteiro, Eulalia escreveu tres cartas.
Uma a seu pai. Dizia-lhe que amára um só homem e viveria d'esse amor
desgraçado toda a sua vida.

Outra ao escudeiro. Dizia-lhe que tivesse compaixão d'ella, e chorasse
uma lagrima em troca das que ella chorára, e choraria até á morte.

Outra ao seu implacavel pretendente. Dizia-lhe que o amaldiçoava com
todo o odio do seu coração. Que lhe atirára á cara com um _não_, e nem
assim o envergonhára de continuar a perseguir uma mulher.

Esta correspondencia conservou-a Eulalia até ao momento em que transpoz
o limiar do convento. O seu primeiro acto foi dar-lhe o destino
competente. Depois, chorou, chorou, e attrahiu em volta de si os
carinhos da communidade que a mortificava com as suas frias consolações.


VII.


Francisco de Lucena recebeu com espanto semelhante carta.

Bernardo da Silva embruteceu-se ao lêr a sua.

João Leite deu quatro murros n'uma mesa, e sentiu-se suspenso no ar por
uma legião de demonios raivosos.

Cada um fez seu papel; mas todos tres reunidos deviam formar um grupo
digno da melhor caricatura inédita!

Francisco de Lucena correu ao locutorio do mosteiro, e fez alli
apparecer imperiosamente a filha.

Quiz forçal-a a declarar o nome do homem que a preoccupára até a fazer
má filha. Não lhe arrancou a menor revelação. Foi por outro caminho para
chegar ao seu fim. Fez-se sentimental; lamentou, como bom pai, as
paixões invenciveis d'uma filha que se présa com extremo carinho; contou
historias análogas, que acabavam todas por casamentos desiguaes, mas nem
por isso menos venturosos. Pediu a sua filha o nome d'esse homem que a
impressionára, e fez-lhe ante-gostar a possibilidade de casar-se, se não
viesse d'alli uma absoluta deshonra para a sua familia.

O amor fez heroes, mas tambem faz patetas. Eulalia desceu da sua altiva
energia ao raso da toleima. Declarou o nome... o nome de quem? o nome,
sem nome, do engeitado, do aprendiz de alfaiate, do lacaio, do
escudeiro!...

Que horror!

Nunca se viu um solavanco mais desamparado que o salto de tigre que
Francisco de Lucena deu contra a grade que o separava da filha! Por
Deus! que a esgana se lhe chega! A pobre menina, arripiada como quem vê
um lobo com as fauces vermelhas, e as unhas recurvas, foge pelo
dormitorio, e fecha-se no quarto.


VIII.


Lucena correu a casa com os olhos injectados de fogo. Precisava d'uma
victima! Encontrou no caminho João Leite, mas este não podia
justificadamente ser sua victima. João Leite mostra-lhe a carta que
recebêra de Eulalia. Isto foi exacerbal-o. «Não se lhe dê de ser
repellido por essa infame,--lhe disse elle--Eu vou provar-lhe que sou
pai!... Essa mulher amava um escudeiro... um lacaio... um
_engeitado_...»

Entrando em casa, procurou o «engeitado.» Encontrou-o ainda
estupidamente absorvido na meditação d'aquella carta. A entrada rapida
que fez no quarto não deu tempo a que Bernardo escondesse a carta que
tinha aberta nas mãos tremulas. Lucena arrancou-lh'a com uma convulsão
de raiva superior á furia d'um demente. Passou-a pelos olhos, e, sem
articular um som, lançou mão d'uma cadeira, e, á segunda pancada,
Bernardo tinha a face coberta de sangue. Era um sangue innocente que
reclamava justiça. Era um sangue innocente que pedia a intervenção de
Deus. A justiça, filha legitima do céo, virá mais tarde salpicar
d'aquelle sangue a face de quem o derramava.

Bernardo, ferido, e pisado de successivas pancadas, não pronunciára uma
só palavra durante este infernal martyrio. Impellido por pontapés, foi
lançado fóra da porta do quarto. As forças faltaram-lhe. O sangue corria
a jôrros. Esvaiu-se-lhe a cabeça, e cahiu.

O fidalgo chamou dous creados, e mandou pôr aquelle homem fóra da porta.
Era ao anoitecer. O engeitado foi arremessado á rua. Quando recuperou os
sentidos, achou-se frio. Ergueu-se. Olhou com os olhos da alma para a
sua consciencia, e sentiu pela primeira vez vontade de sorrir da sua
desgraça pelos labios molhados de fel.

E riu-se. Era um sorriso semelhante ao dos anjos. As almas que podem
sorrir assim são as que Deus elege para a santidade da bemaventurança.


IX.


Bernardo procurou um refugio em casa de uma mulher pobre que o tractára
sempre com amor, matando-lhe a fome, quando a aprendizagem de alfaiate
lhe não valia o pão de cada dia. Esta mulher fôra ama da roda no tempo
em que Bernardo lá fôra lançado. Suppunha ella que talvez o tivesse
alimentado ao seu seio por algumas horas, e esta só conjectura
attrahia-a para elle com instincto maternal.

O engeitado curou-se dos leves ferimentos, e pediu a Deus que lhe
inspirasse um destino. Esperou.

Em Vizeu fallava-se muito d'este successo, divulgado por Francisco de
Lucena, e por João Leite.

Bernardo era procurado para ser punido; e quem mais diligencias fazia
para isso era o juiz de fóra Paulo Botelho.

O honrado moço, quando se viu na penosa situação de agenciar a sua vida,
por não poder sahir da pobre casa em que vivia, impellido pela sua
innocencia, procurou o juiz de fóra, e expoz-lhe com a mais eloquente
naturalidade a injustiça com que fôra maltratado e com que estava sendo
perseguido.

Paulo Botelho quiz espancal-o com um chicote por ter tido a audacia de
entrar em sua casa sem ferros aos pés. Olhou em redor de si procurando
um aguazil para fazel-o prender traiçoeiramente; mas o generoso mancebo,
adivinhando-lhe as intenções, disse que não precisava fingir-se; que
elle dava a sua palavra de honra de não retirar da casa em que estava
vivendo, e que mandasse sua senhoria captural-o quando quizesse. O juiz
riu-se da _palavra d'honra_ na bocca d'um creado de servir, e mandou-o
embora, por não ter a proposito um meirinho.

Bernardo encontrou ao retirar-se, nas escadas do ministro, João Leite,
que apeava d'uma liteira, segundo o uso dos nobres, comprado pelo ouro
do burguez opulento.

João Leite fixou-o com ar de soberano despreso, e perguntou-lhe:

--És tu o lacaio de Francisco de Lucena?

--Fui o lacaio do snr. Francisco de Lucena--respondeu Bernardo com
dignidade.

--E tens o atrevimento de apparecer entre pessoas de bem?

Bernardo suffocou uma resposta amarga, e fez uma continencia respeitosa
para retirar-se.

--Vem cá, miseravel!--tornou João Leite--tu és o amante da filha do teu
amo?

--Respeitei-a muito, por ser a filha de meu amo, em quanto o servi. Hoje
respeito-a, porque lhe não conheço a menor falta que a deshonre!

--Nem ao menos a deshonra de receber as tuas affeições, lacaio?

--Eu não lh'as offereci nunca, senhor.

--Offereceu-t'as ella, sevandija?

--Não, senhor.

--Mas ella escrevia-te...

--Sem ser criminosa, por isso...

--Então achas que não é crime escrever a um bandalho?

--Será, se v. s.^a o quer...

--Tenho pena de seres um reptil que faz nojo esmagar com a solla da
bota! Se tivesses um nome...

--Tenho um caracter, senhor!

Bernardo respondeu com altivez; João Leite riu-se com despreso, e
olhando-o da cabeça aos pés, replicou:

--Tu sabes que não podes ter caracter, engeitado!?

--Então, terei um braço...

--Um braço!--atalhou o fidalgo em projecto, imprimindo-lhe um valente
pontapé, que o fez descer tres escadas maquinalmente.

Bernardo assumira toda a dignidade do homem de coração ultrajado. João
Leite achou-se comprimido entre os braços do _sevandija_ que elle
suppunha fugir ao primeiro pontapé para evitar o segundo.

Quiz desfazer-se, de prompto, d'este empecilho, e não pôde, porque os
pés falsearam-lhe, e as costas bateram-lhe com todo o peso sobre os
degraus de pedra. Tirou rapido de um punhal, e roçou com elle duas vezes
sobre o braço direito de Bernardo, que o desarmou, no acto em que uma
terceira punhalada lhe resvalára no peito. O engeitado sentiu-se ferido:
vacillou um instante na resolução que se debatia entre o homicidio e o
perdão. Venceu o primeiro. Aquelle punhal tinto de sangue innocente,
pela segunda vez, derramado, entrou no coração de João Leite, e matou-o.

Isto foi obra d'alguns segundos. João Leite gritára nas convulsões da
morte; acudiram os creados, e encontraram Bernardo da Silva, de braços
cruzados ao pé do cadaver, que vibrava nos seus derradeiros
estorcimentos.

Paulo Botelho tambem acudiu. Primeiro recuou aterrado: depois gritou
«matem esse homem!» E vendo que ninguem de prompto lhe aceitava o
diploma de assassino, mandou-o carregar de ferros.

Bernardo caminhou para o carcere, com a fronte altiva, com nobreza de
passo, com serenidade de consciencia e maneiras d'um principe, segundo a
linguagem popular dos que o viram.


X.


Foi processado. Paulo Botelho desenvolveu uma espantosa energia no
andamento d'esta causa crime. Erguia-se todos, os dias, sofrego da
escrever uma sentença de forca.

Os depoimentos eram todos contrarios ao infeliz. Um só homem protegeu
esse preso; sabia-se que era um ancião que lhe levava umas sopas
diariamente, e palavras consoladoras de esperança sem esperança.

Eulalia, sabendo estes acontecimentos até á vespera do dia em que o
escudeiro devia ser condemnado, requereu que queria ser ouvida em juizo.
Não lhe admitiram o seu depoimento. A pobre menina, inspirada da
eloquencia do martyrio, entrou um dia no côro, quando a communidade
orava, e invocou o testemunho de Jesus Christo, exclamando, de modo que
a escutasse o povo que estava na igreja:

«Declaro que esse infeliz homem, que vai morrer, depois de martyrisado
por meu pai, e apunhalado por um homem que eu despresei, declaro diante
de Deus e dos homens, que esse infeliz nunca me disse uma palavra só
para que eu o amasse. Fui eu que o amei, fui eu que lhe escrevi, quando
entrei n'este mosteiro, fui eu que o fiz desgraçado, mas em recompensa
hei-de amal-o toda a minha vida, e hei-de unir-me a elle na presença de
Deus!» Era uma demencia!

Foi grande o assombro dos que a ouviram. O ecco d'este grito chegou aos
ouvidos de Paulo Botelho, que estava presente; mas a sua alma fôra
cerrada pela mão corrupta do ouro. O povo murmurava, e dizia que não
havia de ser enforcado o escudeiro.

Pobre povo, n'aquelles dias, se tentasse tirar das mãos d'um juiz o seu
instrumento inauferivel, o carrasco!


XI.


Bernardo foi condemnado á pena ultima; Ergueu-se uma forca nas
proximidades do delicto, entre a casa do juiz, e a de Francisco de
Lucena.

Eulalia exaltára-se no martyrio até causar receios de loucura.
Inspiravam-se de uma dôr de morte as exclamações pungentes que soltava a
cada ruido que ouvia semelhante ao arranco retrahido d'um justiçado. O
espectaculo da forca era a sua idêa fixa, desde o momento que uma
religiosa imprudente lhe annunciou o destino de Bernardo da Silva.

A infeliz, na madrugada do dia da execução, fugiu da cella com os
cabellos em desordem, com as faces chammejantes de febre, com os olhos
embriagados de delirio, e com o coração a estalar-lhe de uma dôr que a
endoudecia.

Chegando á portaria não houveram forças humanas que a contivessem. Os
ferrolhos cederam ao impulso d'uma fraca mulher, forte da sua
desesperação; e esta virgem, com habitos de noviça, e bella, na sua
agonia, como um corpo epileptico que se levanta amortalhado do esquife,
corria por entre as multidões que principiavam a agglomerar-se para
testemunharem o desconjuntar dos ossos do pescoço d'um padecente entre
as mãos do carrasco, seu irmão, ambos filhos do mesmo Deus, ambos
remidos pelo sangue do mesmo Christo.

Viram-na as multidões passar; muitos a conheceram: alguns pronunciaram o
seu nome, mas aquella pomba, ferida de morte, era um cadaver que se
movia impellido pelo choque da pilha galvanica.

Erguera-se um alarido na cidade. As turbas corriam na direcção da
infeliz, a quem chamavam douda; mas não ousou alguem embargar o passo
áquella mulher que parecia fascinar com a magestade da sua demencia.

Os que a seguiam esperavam vêl-a entrar em casa de seu pai.
Enganaram-se. Eulalia subiu as escadas de Paulo Botelho, e entrou no
salão onde fôra lavrada a sentença de cadafalso para Bernardo da Silva.

Paulo Botelho estremeceu na cadeira, quando viu aquelle alvejar de uma
larva, ajoelhada nos degraus da tribuna.

Deu-se um profundo silencio de alguns minutos.

Eulalia já não podia coordenar as idêas que poucos dias antes clamára no
côro. O sorriso da loucura, o gemido suffocante, uma lagrima embebida
logo no ardor das faces, e algumas palavras entaladas, e apenas
intelligiveis, eram alternativas que a tornaram mais lastimavel durante
alguns minutos.

A mulher e tres filhas de Paulo Botelho, que a viram entrar, correram ao
tribunal, e quizeram arrastal-a d'alli. Era impossivel. A estatua
parecia chumbada sobre o seu tumulo.

A familia do juiz julgou conveniente empregar o insulto como solução.
Fallavam do justiçado com certa nauzea, que ellas suppozeram ser o
balsamo para a ferida mortal de Eulalia. Paulo Botelho, coadjuvando as
razões da sua familia, cobria de improperios affrontosos o homem que,
pouco depois, havia de perdoar as injurias com a cabeça no laço da
forca.

A exaltação afflictiva de Eulalia tinha tocado o ponto culminante da
morte, ou da alienação irremediavel.

--Innocente! Innocente!--eram os gritos unicos, as derradeiras palavras
que os labios d'aquella mulher tinham de proferir.


XII.


N'este momento entrou um homem que redobrou o espanto. Era Pedro Leite,
pai de João Leite.

Este homem fez signal de querer fallar. Attenderam-no todos com
religioso respeito.

As suas palavras foram estas:

--Perdôo ao assassino de meu filho! O sangue d'esse homem cahirá sobre a
minha face! Matou defendendo-se d'um aggressor infame! Senhor juiz de
fóra, requeiro a suspensão da execução da sentença. Eu sou parte, e
declaro innocente o réo!

Seguiram-se minutos d'uma estupefacção natural. Eulalia voltou os olhos
para o homem que fallára, quiz arrastar-se de joelhos aos pés d'elle;
não pôde; a impressão devia matal-a, ou resuscital-a... desmaiou a meio
caminho.

O juiz era o algoz moral creado pelo ouro, assim como o carrasco physico
fôra creado pela lei. Não podia eximir-se a pegar do cutello, e seguir
seu caminho.

--É tarde!--respondeu elle.

--Não é tarde!--replicou Pedro Leite, e continuou com solemne
exaltação:--Tarde, senhor juiz, é depois que o tribunal do mundo se
fecha atraz d'aquelle que vai entrar no tribunal de Deus! Tarde, é
quando um juiz de entranhas ferozes se apresenta no banco dos réos
condemnados com a face borrifada de sangue innocente!

--Basta!--exclamou Paulo Botelho com authoridade!

--Pois sim... basta! mas, abaixo de Deus, invoco o testemunho das
pessoas que me escutam. Declaro que lavo as mãos d'este sangue innocente
que vai ser derramado!

O povo murmurou com acanhamento, com a consciencia cobarde da sua
nullidade, mas balbuciou não sei que palavras que irritaram o juiz.

--Não se trata só de punir o assassino de João Leite!--exclamou o
juiz--trata-se de castigar a affronta que recebeu um nobre, feita por um
lacaio que ousou levantar olhos de amante para sua filha!

--Não, não!--gritou Eulalia, erguendo-se com impeto, com as mãos postas,
e cahindo outra vez sobre os joelhos.

O cynico já não tinha coragem para tanto! Soára a hora do ultimo mandato
ao carcereiro. Expirára o ultimo instante de oratorio.

--Cumpra-se a lei!

Disse o juiz, e fez menção de retirarem-se as ondas de povo que tinham
concorrido em tropel, chamadas pelos gritos de Eulalia, e pelo perdão
publico de Pedro Leite.

Eulalia foi conduzida em braços para o interior da habitação do juiz.


XIII.


A procissão onde a impudencia collocára um Christo, o Deus da caridade,
nas mãos d'um padecente, que hia ser esganado!... a procissão, onde se
via um homem de tunica branca, um algoz de cutello e alcofa, alguns
sacerdotes d'um Deus misericordioso!... a procissão descia terrivel de
repulsiva solemnidade para o açougue d'aquella rêz! A tumba da
misericordia fechava aquella orgia de sangue! Era um insulto a Deus! o
cadaver d'um homem atirado á face do Creador! um escarneo satanico á
intelligencia, e ao coração da humanidade!

O prestito parou na praça do sacrificio.

Bernardo com os olhos fitos no céo via nascer a risonha aurora da
eternidade. Sorriam-lhe os anjos, e a justiça de Deus mostrava-lhe o seu
regaço. A morte do justo era um crepusculo de nova existencia a
alumiar-lhe o rosto. Inspirava devoção aquelle seu santo sorrir para o
seio do céo que se lhe abria! Trazia nas mãos a imagem do Redemptor; mas
lá em cima via elle o Espirito Creador, a grande alma, onde se refugiam
as almas dispersas na face d'este mundo, e perseguidas pelo demonio da
ira, e da vingança, eternamente encarnado no homem, a quem a sociedade
entregou o azorrague da flagellação do virtuoso.

Bernardo caminhava a passo firme para a escada da forca. Estavam
contrahidas as respirações. Um gemido, menos suffocado, podia ser ouvido
por quinze mil almas que vieram a contemplar aquelle apparelho de morte,
segundo a lei, _formulada pelas inspirações do Evangelho_! pelo codigo
dos perdões! pelos preceitos do Filho de Deus que morrêra, perdoando!


XIV.


Através da multidão abriu-se uma clareira para deixar passar um homem,
que devia representar um principal papel n'aquelle festim da lei.

Convergiram todas as attenções para aquelle ponto.

Era Pedro Leite--ainda o pregoeiro da innocencia de Bernardo, com a face
cadaverica das longas noites que chorára sobre o tumulo de seu filho
unico.

Quem disse a este homem que Bernardo da Silva era um innocente?

Que força occulta o arrasta a abençoar nas escadas da forca o assassino
de seu filho?

Phenomenos occultos da Providencia! A voz de Deus, soando pelos labios
do mysterio! Explicai-me as operações de Deus, e eu vos explicarei a
inspiração sobrenatural que obriga a balbuciarem o perdão os labios, que
beijaram morto um filho estremecido...

Pedro Leite aproximou-se do justiçado. Ninguem lhe embaraçou o passo.

Cheio de magestade, de poesia funebre, e de santo terror, fallou assim:

«Eu venho pedir o seu perdão á beira do patibulo. Fui eu que o arrastei
até ao tribunal em que foi condemnado; mas não sou eu que o arrasto
aqui. Bradei em favor da sua innocencia. Pedi, ha momentos, a suspensão
d'este acto, em que a minha dôr será mais... muito mais prolongada que a
sua. Não me ouviram: impozeram-me silencio, e mandaram-me sahir do
sanctuario da lei, que resfolegava sangue pela bocca do seu sacerdote.

Venho pedir o seu perdão nas escadas da forca, e vasar o fel, que me
devora a consciencia, na consciencia do juiz implacavel que pede a sua
cabeça a altos gritos!»

Ouviu-se um prolongado murmurio. Era a onda popular que refervia sopeada
entre as rochas da sua impotencia moral, n'aquelles dias, em que o
sangue d'um plebeu continuava a operação regeneradora do sangue de Jesus
Christo.

Bernardo ouviu com presença de espirito a exclamação de Pedro Leite.

«Eu lhe perdôo!»

Foram as suas palavras unicas.

Choraram-se então muitas lagrimas. A piedade teve uma explosão, que as
cronhas dos soldados reprimiram. As turbas queriam rasgar o quadrado
para arrancarem da morte um santo. Este conflicto foi serenado por outro
mais sublime. Ouviu-se uma voz. Viu-se um homem que sobresahia entre as
molas populares. Era o velho, protector unico de Bernardo da Silva,
durante a sua prisão. Poucos o conheciam.

Foram estas as suas palavras:

«Nobre senhor Francisco de Lucena! vem vêr teu filho que morre
enforcado! Nobre senhor Francisco de Lucena! vem vêr o filho da mulher
que deshonraste, como é nobre nas escadas da forca! Nobre senhor
Francisco de Lucena! vem vêr teu filho, o filho de minha filha, que
borrifa os teus pergaminhos com o teu sangue illustre!»

E calou-se. Calaram-se todos. E aquelle homem lá estava erguido como o
anjo dos tumulos á espera que Deus mande quebrar a lousa d'uma mulher
que ahi falta n'esse trance afflictivo!

Essa mulher morrêra, deshonrada, suffocada pela mão da ignominia, a que
a soberania fidalga de Francisco de Lucena a abandonára.

Esse ancião era o pai d'essa mulher, unico que recebêra em seus braços o
filho da deshonra, unico sabedor d'aquella existencia, que acompanhou
sempre, porque lhe marcára um braço com uma cruz. Desde o ventre á
forca, de longe, desconhecido, com o segredo da deshonra de sua filha
abafado no coração, este homem seguira os vestigios do neto, sem
declaral-o nunca, porque um appellido illustre não o salvava a elle
d'uma _illustre_ ignominia.

Que impressão fez este homem nas turbas? A do espanto. Mas, momentos
depois, chamavam-lhe Doudo. Por ordem do juiz de fóra hia ser preso o
demente. Aproximou-se a justiça d'el-rei. «É doudo...!» dizia o meirinho
ao lançar-lhe a mão.

«_Não é doudo_... é MORTO... » responderam algumas vozes.

Morto, sim!


XV.


Hia consummar-se aquelle enredo de peripecias terriveis.

Bernardo poz o pé direito na ultima prancha da forca. Voltou-se para o
povo. Brilhou-lhe na face o clarão d'um outro mundo. A sua voz era
melodiosa como o cantico do anjo da morte suavissima: mas n'aquelle todo
via-se a terrivel magestade do anjo do dia final. As suas ultimas
palavras foram estas:

«Ouvide a praga d'um padecente, rogada nas escadas da forca: Que a
justiça de Deus se cumpra na presença dos homens!»
...........................................................................
...........................................................................

O povo voltou o rosto do aspecto hediondo d'uma face injectada de sangue
negro. Outros viram-lhe uma onda de luz cingindo a fronte. N'esse
momento ajoelharam muitos justos pedindo ao espirito do justiçado a sua
protecção na presença de Deus!


CONCLUSÃO.


Passaram quinze dias.

Eulalia de Lucena recuperára o juizo, e entrára no mosteiro. Um anno
depois, professára. A sua vida foram tres annos de adoração extatica.
Ouviram-na murmurar palavras celestes, como em dialogo. Dizia-se que um
anjo devia apparecer-lhe n'aquelles arrobamentos. Chamavam-lhe santa, e
adoraram-na morta.

Passados quatro annos, Francisco de Lucena, sempre afastado de sua filha
pela mão do remorso, morreu de repente no mesmo local em que fôra
hasteada a forca.

Simão Botelho, filho de Paulo Botelho, déra um tiro em seu pai. O pai
quiz sentencial-o: deu-lhe sentença de forca, que depois lhe foi
commutada em degredo perpetuo. Apenas desembarcou em Cabo Verde,
abriu-se-lhe uma sepultura.

Paulo Botelho, desembargador aposentado, dez annos depois, morria á
vigesima quinta punhalada que recebêra, por não dar exactas informações
d'um peculio de cincoenta mil cruzados que guardava em uma quinta nas
visinhanças de Villa Real.

A mulher de Paulo Botelho morria douda no hospital de S. José um anno
depois.

Restavam tres filhas de Paulo Botelho.

Foram devassas até ao escandalo de serem arrastadas a um recolhimento
por expresso mandado regio.

Uma appareceu morta n'um aqueducto por onde procurára evadir-se.

Outra casou com um homem que a retalhou de martyrios.

A terceira enforcou-se no batente de uma porta.

A Justiça de Deus Cumpriu-se na Presença dos Homens.

A praga do justiçado nas escadas da forca teve o seu complemento do
genero de morte que a ultima pessoa d'aquella familia se déra.

Forca por forca.
...........................................................................

Tendes a curiosidade das averiguações? Procurai em alguns cartorios de
Vizeu a sentença pronunciada entre 1776 e 1780.


REMATE.


Não sou contumaz, nem me ufano de relapsia.

De tudo que disse me desdigo, se algum inquisidor intoleravel deparar
ahi heresia, contra-senso, atrevimento ou cousa que duvida faça contra
Plutus, unico deus da unica religião cujo codigo penal me intimida.

Ha cousas incriveis n'este volume? É que eu, e os meus amigos
litteratos, poetas, jornalistas, e até redactores encartados de
necrologios sabemos passagens que arripiam carnes e cabellos. Se o siso
commum as não adopta, é que os chronistas do tempo formam, á parte, um
_status in statu_, cousa inintelligivel aos que não sabem latim, por
grande fortuna sua.

N'este synhedrim ha uma moral, estragada se o quizerem, mas os
evangelistas, que a propagam são Catões, com tanto que os não obriguem a
inquietar a sadia tranquillidade dos intestinos. Aqui, não se sacrifica
um dedo a uma pisadella, porque não vale a pena.

É necessario escrever, visto que ha leitores.

Eu, e os meus correligionarios, se até hoje não temos irradiado sobre a
humanidade ondas de luz, é porque a humanidade precisava ser,
primeiramente, operada na catarata. O luzeiro da civilisação aqueceu,
não ha muito, a concha em que, por aqui, se escondiam muitos molluscos
moraes, que vão sahindo agora a espanejar-se ao sol.

Não quero dizer que os molluscos passassem a articulados. Póde muito bem
ser que o leitor, ou leitora sejam ainda legitimos molluscos; mas a
excepção deploravel não claudica a generalidade. E, por tanto:

Eu, e os meus amigos, mencionados acima, considerando que a candeia não
deve estar muito tempo debaixo do alqueire, nem os talentos (dinheiro)
soterrados vencem juros: e tendo nós outro sim, em muito afan e desvelo
desaffrontar a litteratura patria de injurias com que estrangeiros e
nacionaes a desconceituam, desairando-a como pobre de romances, pela sua
incapacidade inventiva--o que não só é malicia, mas até aleivosia:
resolvemos escrever romances em que figurassem muitas pessoas nossas
conhecidas, e outras, que viremos a conhecer no decurso d'esta meritoria
tarefa.

Pelo que, a mim, humilde entre os humildes apostolos d'esta idêa lucida,
coube o quinhão de trabalho, que a posteridade me devolverá em gabos e
applausos, e o futuro Plutarcho dos homens illustres d'esta freguezia de
Cedofeita, em que tenho a honra de morar, não deixará de consignar nos
fastos gloriosos.

Disse.




PATHOLOGIA DO CASAMENTO.


DEDICATORIA.


                                          _Exc.^{ma} snr.^a D. Fulana._


Conceda-me v. exc.^a a gloria de offerecer-lhe um quadro d'esta galeria.
Vai lêr um drama intitulado Pathologia do Casamento.

_Pathologia_, minha querida snr.^a D. Fulana, é uma palavra grega,
composta de _pathos_, doença, e _logos_, tractado. Quer, por tanto,
dizer _molestias do casamento_.

Balzac escreveu a «_physiologia_»; outro, que me não vem á memoria,
escreveu «_anatomia do coração_»; faltava uma «_pathologia_» que
apparece agora, e, mais tarde, se me não faltar a vista intellectual,
que já sinto muito cançada, escreverei a «_Pharmacia do casamento_» que
hei-de dedicar a uma outra D. Fulana, que eu cá sei.

V. exc.^a é uma senhora fina, que, além de ter a cabeça no seu lugar,
apresenta muitas vezes lume no olho. Sympathiso com o seu talento, e
talvez casasse com a snr.^a D. Fulana, se tivesse a certeza de podermos
entreter o nosso tempo traduzindo os trinta e sete livros de Plinio, e
os trinta e cinco _De Linguâ Latinâ_ de Terencio Varro, que Deus tem em
sua santa gloria.

Penso que v. exc.^a não estaria por isto. O seu espirito tem calefrios
de enthusiasmo, e eu, a fallar-lhe a verdade na sua nudez patriarchal,
devo dizer-lhe que tenho dentro do peito uma mumia, que poderia valer
alguma cousa nas ruinas de Memphis, mas não vale nada no cavername
ossudo d'este seu creado.

Eu preciso d'uma mulher d'oculos, e pitada constante nos dedos. Quero
que ella me falle dos Heraclidas, das Saturnaes de Macrobio, de Creta e
de Lacedemonia, da Beocia e Epaminondas.

Eu não sei se v. exc.^a sabe alguma cousa d'isto; mas desconfio que não.
Falla-me muito em Victor Hugo, e na _Petite Fadete_ de George Sand. Já a
encontrei a lêr _les Liaisons Dangereuses_, e a _Manon Lescaut_.
Palpita-me que a snr.^a D. Fulana tem na cabeça muita somma de têas de
aranha, e não serei eu a vassoura da limpeza.

Não obstante, respeito-a, admiro-a até ao ponto de lhe offerecer a minha
«_Pathologia do Casamento_.»

Digne-se v. exc.^a acolhel-a no regaço da sua benevolencia, e dê-me
occasiões de mostrar-lhe que sou

                                                 De v. exc.^a

o ultimo creado, e o primeiro dos seus admiradores,

                                            _Camillo Castello Branco_.


PERSONAGENS.


D. Leocadia                  18  annos.
D. Julia                     20    »
A Viscondessa de Valbom      45    »
Jorge da Silveira            30    »
Alvaro de Castro             32    »
Eduardo Leite                30    »
O Visconde de Valbom         50    »

_Damas, cavalheiros, e creados_. (Podem ter a idade que quizerem).

A scena dizem que se passou no Porto; mas o author não impõe, Mafoma
dramatico, a crença a ninguem. Cada qual fique no que lhe parecer; mas,
se, effectivamente, os personagens existem, tenham paciencia.




PATHOLOGIA DO CASAMENTO.




ACTO I.


DECORAÇÃO.


     _Uma saleta contigua a um salão de baile, separada por largas
     portadas de vidro, através das quaes se vêem perpassar, em passeio,
     damas e cavalheiros_.


SCENA I.

     Julia, _e_ Leocadia, _entrando, como fatigadas, sentam-se n'um
     sophá._ Julia _tira da cabeça uma grinalda de flôres brancas, que
     arremessa com desdem sobre o sophá_.


Julia.--Afflige-me tudo!... Tomára-me eu na minha liberdade, Leocadia!
Não goso nada... Tanta luz parece um insulto á escuridão da minha
alma... Queria-me sosinha...

Leocadia.--Não tens paciencia nenhuma, Julia!... Que é o que te afflige
assim?

Julia.--Que é!... É aquelle homem... Sempre aquelle homem!... não ha
nada que o desengane...

Leocadia.--Nem as palavras?!

Julia.--Eu sei!... nem as palavras, talvez...

Leocadia.--Porque não és franca?! Eu, de mim, na tua posição, tinha-lhe
dito: «não me persiga!» É o que eu já disse a Eduardo...

Julia.--Eu não sei dizer isso... Acho que é aviltar demasiadamente um
homem... Pois tão estupido é elle, que precisa uma franqueza tão
impropria d'uma senhora? Tenho feito tudo que póde desenganar um
homem... Teima, persegue-me, flagella-me... é insupportavel!... Ainda ha
pouco, entre mim e Jorge...

Leocadia (_sobresaltada_).--E Jorge!...

Julia.--Que modo é esse!? Jorge interessa-te!?

Leocadia.--E a ti?

Julia.--A mim?... Pois não sabes...

Leocadia.--O que?... não sabia... Elle ama-te?

Julia.--Tem-m'o dito...

Leocadia.--Elle!... tem t'o dito... Jorge!...

Julia.--E tambem a ti?... Falla depressa...

Leocadia (_contrafeita_).--Não... a mim... não... mas a ti... sim?

Julia.--Penso que sim... mas esse descorar... Leocadia!...

Leocadia.--Fui eu que me enganei... Pensava...

Julia.--Talvez te não enganasses... Que te disse elle?

Leocadia.--Nada... Vamos nós á sala?...

Julia.--Já?!... Eu não vou já... Vai tu, se queres...

Leocadia.--Que é o que me querias dizer?... Disseste que entre ti e
Jorge...

Julia.--Estava uma cadeira de vago... Alvaro vinha occupal-a, e eu
ergui-me de repente, e occupei-a primeiro...

Leocadia.--E Alvaro... nem assim...

Julia.--Me comprehendeu... Sentou-se na immediata, e disse não sei que
frioleira...

Leocadia.--Se tu és tão amavel!...

Julia.--Ai!... tu queres imital-o?! É o que elle me diz cem vezes em
cada baile...

Leocadia.--Uma verdade, por muito repetida, nunca perde o merecimento...

Julia.--Que maneira de fallar!... Quem me dera adivinhar-te! Tu amas
Jorge!...

Leocadia.--Não, menina... Eu não amo ninguem...

Julia.--Ninguem?! nem a tua Julia?

Leocadia.--A minha Julia não póde repartir o seu coração... Não quero
entrar em partilha com Jorge... O peor quinhão seria para mim, porque
não ha nada superior a elle... Ficas?

Julia.--Fico a scismar... Vem cá, Leocadia... sê franca, senão... não
sou tua amiga... Jorge será um impostor?...

Leocadia.--Perguntasm'o a mim!? Eu não sei...

Julia.--Terá tido a mesma linguagem para ambas?

Leocadia.--Disse que te amava?... A mim... não me disse nada...

Julia.--Então és tu que o amas?

Leocadia.--Não... Olha, minha amiga, faz de conta que eu ouvi com
perfeita indifferença a tua revelação... Até logo... Ai!... diz-me cá...
O teu namoro é antigo... ou começou aqui?

Julia.--Com Jorge? É muito moderno... Tem um mez... É uma creança, mas
já foi baptisado com lagrimas...

Leocadia.--Já? Pois afaga-o muito na alma... Sê muito feliz.... que eu,
se te não felicitei mais cedo, é porque o não sabia... Vou lá dentro...
Minha mãi deve reparar n'esta ausencia...

Julia.--Não me deixes agora que ahi vem Alvaro... É insupportavel!

Leocadia.--Ora!... que mal te faz o homem?!... Eu volto já... Olha...
diz-lhe que amas Jorge... é impossivel que elle queira sustentar a
competencia... (_Sahe_).


SCENA II.

Julia _e_ Alvaro.


Alvaro.--Está incommodada, snr.^a D. Julia?

Julia.--Não, senhor.

Alvaro.--Então está aborrecida...

Julia.--De certo...

Alvaro.--Menos, quando ao seu lado um certo cavalheiro de luneta...

Julia.--Ah! o senhor vem pedir-me satisfações? É engraçada a
liberdade!...

Alvaro.--Não lhe peço satisfações... Se as minhas palavras foram
indiscretas, seja generosa, perdoando-m'as.

Julia.--Muitos perdões me tem pedido, snr. Alvaro!... A minha
generosidade com v. s.^a chega já a parecer-se...

Alvaro.--Com a virtude d'uma santa?

Julia.--Não queria dizer isso...

Alvaro.--Queria dizer que chega a parecer-se...

Julia.--Com um excesso de imbecil paciencia.

Alvaro.--Isso é muito forte!... Eu não lhe mereço tanto! Nunca lhe disse
affrontas...

Julia.--Com que direito ha-de dizerm'as?

Alvaro.--Não tenho nenhum? absolutamente nenhum?

Julia.--De certo, nenhum...

Alvaro.--A paixão cega o entendimento...

Julia.--Não é minha a culpa...

Alvaro.--É toda...

Julia.--Toda?... pois eu authorisei-o? Disse-lhe alguma vez que o amava?

Alvaro.--Nunca m'o disse... porque...

Julia.--Porque o não sentia... Que mais lhe posso dizer agora?

Alvaro.--Depois d'isso, mais nada. (_Retira-se_).

Julia.--Foi preciso isto... Ainda bem!... (_Ouve-se a musica d'uma
polka_. _Julia enfeita-se ao espelho com a grinalda, e sahe_).


SCENA III.

Jorge _e_ Eduardo.


Jorge.--Tu vaes ser verdadeiro, Eduardo?

Eduardo.--Como Epaminondas Thebano, que nem zombando mentia. Não me
lembra d'outro estafermo antigo que fallasse verdade...

Jorge.--Tu tens algumas intelligencias com Leocadia?

Eduardo.--Diz-me cá, Jorge, póde fumar-se aqui?

Jorge.--Não... se queres vamos á sala debaixo...

Eduardo.--Não posso, que tenho a sexta quadrilha com Leocadia... Diz lá
o que queres...

Jorge.--Perguntei-te se amavas Leocadia.

Eduardo.--Gosto muito d'ella... Depois d'um bom charuto, é o meu sonho
dourado.

Jorge.--E ella...

Eduardo.--Gosta de mim? não sei bem ainda... Perguntei-lh'o ainda agora
pela vigesima vez... Disse-me que sim, e é a primeira vez que m'o diz...
Se mente, lá se avenha com a sua consciencia...

Jorge.--E é a primeira vez que te disse que sim?

Eduardo.--A primeira, palavra d'honra, Jorge!

Jorge.--E que conclues d'ahi?

Eduardo.--Concluo que não gostou até hoje.

Jorge.--E não conclues mais nada?

Eduardo.--Nem quero.

Jorge.--Não suppões que ella amasse, até este momento, outro homem?

Eduardo.--Não só supponho; mas até acredito... Nada de emboscadas...
Essa diplomacia parece-me uma velhacaria rançosa... Sei que amas
Leocadia, ou, se a não amas, que a amaste já... Eu não tenho nada com o
passado, nem com o futuro... A minha grande questão é a actualidade. São
arrufos? Deixal-os ser: aqui estou eu para encher as lacunas, e tenho
n'isso muita honra... Nunca me importou saber que tentos lavravas no
coração da pequena. Vi-te fazer de Cesar, e eu fiz de Fabio. Agora, cada
um de nós segue o seu systema... E até logo... Acho que não te queres
bater...

Jorge.--Eu não me bato por estimulos tão pouco despertadores do brio...

Eduardo.--Fazes tu muito bem... Eu tambem zango de duellos,
principalmente por causa de mulheres... que comem _sandwichs_, e bebem
limonadas... Falla-me logo... (_Sahe_).


SCENA IV.

Jorge _e depois_ Julia.


Jorge.--Eu tinha previsto tudo... Era necessario renunciar uma das
duas...

Julia.--Procurava-o...

Jorge.--Sim?... que é, Julia?

Julia.--Diga-me: poderei confiar a Leocadia o segredo do nosso amor?...
Vacilla?... responda!...

Jorge.--Tem precisão de confidentes?

Julia (_sorrindo_).--Tenho, porque me não cabe a felicidade no
coração... Posso?...

Jorge.--E é forçoso que seja Leocadia?!

Julia.--É... preferi-a entre todas as minhas amigas... Que embaraços são
esses?!

Jorge.--Entendo que não deve revelar a ninguem o nosso amor.

Julia.--Sim?... porque m'o não disse?... Já agora, perdeu-se a sua
discrição... Eu disse tudo...

Jorge.--A quem?

Julia.--A Leocadia...

Jorge (_á parte_).--Está explicado o enigma!...

Julia.--Nada de monologos... falle comigo... Ora, snr. Jorge... que
necessidade tinhamos nós de corarmos um na presença do outro!?

Jorge.--Eu não córo... A côr d'este rosto só póde alteral-a uma infamia.

Julia.--Dê o nome que lhe aprouver ao seu acto, que eu não lhe conheço
outro... V. s.^a feriu-me, e cicatrizou-me a ferida... São boas todas as
affrontas que nos despertam a sensibilidade da honra... A lembrança do
ultraje ha-de fazer que eu esqueça a causa depressa... Fez bem... Deixou
cahir a mascara muito a tempo... (_Retira-se_).

Jorge.--Escute-me, Julia... (_Vai sentar-se no sophá_).


SCENA V.

Jorge, _e_ Eduardo, _dando o braço a_ Leocadia.


Eduardo.--Será isto um sonho?... Se o é, deixe-me sonhar uma hora, sim?

Leocadia (_sorrindo_).--Tambem ha sonhos de que se acorda com a face
cheia de lagrimas...

Eduardo (_para Jorge_).--Ainda aqui!... (_Leocadia estremece_).

Jorge.--Ainda aqui... não estou mal... Tem dançado muito, minha senhora?

Leocadia.--Principiei agora...

Jorge.--Pois ainda tem muito tempo de gosar... São tres horas... Nunca
lhe esqueça que foi ás tres horas...

Leocadia.--Não o comprehendo, snr. Jorge... Que tenho eu com as tres
horas do seu relogio?

Jorge.--Não se finja simples como donzellinha que sahiu hontem do
collegio...

Leocadia.--Antes uma fingida innocencia que uma descarada impostura.

Jorge.--Não entendo.

Eduardo.--Os senhores dizem que não se entendem, e eu de certo não os
entendo melhor. Não façam ceremonia de mim. Queiram explicar-se de modo
que eu possa reconcilial-os.

Jorge.--Reconciliar-nos!... Não estamos divorciados... O que me prende a
esta senhora são os respeitos e considerações que se lhe devem. Em
quanto ella se não desviar da carreira d'um nobre procedimento, as
nossas relações não soffrem quebra...

Eduardo.--Pois n'esse caso, meu caro Jorge, serás sempre o respeitador
d'esta senhora, porque os anjos não se precipitam desde que um, ha
muitos annos, teve o mau gosto de se precipitar do céo.

Jorge (_sorrindo_).--Snr.^a D. Leocadia...... snr.^a D. Leocadia!...
(_Retira-se_).


SCENA VI.

Eduardo _e_ Leocadia.


Eduardo.--Fallemos seriamente, minha senhora. V. exc.^a n'um momento de
ciume, dignou-se empregar-me no seu serviço como instrumento de barro,
que se quebra, feito o serviço, não é verdade?

Ora ande lá... não perca o animo, supposto que o escarlate do pejo não
lhe fica mal... acho-a muito mais bella... Parece-me que adivinho o
segredo... V. exc.^a encontrou em flagrante delicto de ternura o
sensivel Jorge com a sensivel Julia... Ferida na sua vaidade, quer
vingar-se, e eu represento n'este negocio o _tertius_ sem o _gaudet_.
Perdoará o latim... quiz dizer que represento n'este negocio uma triste
figura... Já não é a primeira vez... Não se inquiete, que eu tambem me
não incommodo... Tire de mim o partido que quizer...

Leocadia.--Snr. Eduardo... não devia fallar-me assim... Essas palavras
são tão repassadas de ironia...

Eduardo.--É o meu genio... Sou um Democrito pequenino, porque tambem são
ridiculamente pequenas as cousas que me fazem rir... Ahi vem uma que me
arranca do profundo da consciencia uma legitima gargalhada.

Leocadia.--Que é?

Eduardo.--É a sua amiga Julia pelo braço de Alvaro, em intima
conversação... Não acha tudo isto tão comico?


SCENA VII.

Leocadia, Eduardo, Julia _e_ Alvaro.


Eduardo (_para Alvaro, sorrindo_).--Os reis da noite somos nós, snr.
Alvaro... Logo despimos a purpura de reis de comedia, e fumamos um
pessimo cigarro do contracto...

Alvaro.--Não entendo a finura do epigramma.

Eduardo.--Então, é mais feliz do que eu suppunha... Póde contar com o
reino do céo... Deveras não entende?

Alvaro.--Não, e dispenso as explicações officiosas do meu amigo...

Eduardo (_rindo_).--Espero que á solemnidade do estilo, se não siga um
cartel de desafio...

Leocadia.--Que linguagem!... É bem galhofeiro o seu caracter, snr.
Eduardo!

Eduardo.--Muito galhofeiro, minha rica senhora... E alli o do meu amigo
é sombrio como o d'um encapotado de drama em cinco actos.

Alvaro.--A verdade é que nos não parecemos...

Eduardo.--Felizmente para o senhor ou para mim... Mas na singelesa do
coração, na temperatura do amor, ha-de permittir que sejamos parecidos
como Pylades com Orestes...

Alvaro.--Não temos semelhança nenhuma... Eu não posso brincar com as
paixões...

Eduardo (_áparte, a Leocadia_).--É da força de trinta Paulos; mas a
Virginia que o escuta, só com os olhos, d'aqui a pouco remette-o ao
catalogo dos Othellos em quarta mão. (_Alvaro e Julia retiram-se_).
Espero que não se baterá comigo, snr. Alvaro... Não respondeu!...
Aquelle silencio não quer dizer nada; mas, quem não conhecer o homem,
ha-de suppor que a cratera vai rebentar... Quer sentar-se, minha
senhora?...

Leocadia.--Sim... um momento... Ahi vem Jorge.

Eduardo.--Ah!... V. exc.^a estremece!... Muito me ama! (_rindo_). É
d'uma ingenuidade mythologica!...


SCENA VIII.

Leocadia, Eduardo _e_ Jorge.


Jorge.--Eduardo, preciso roubar-te um instante a essa senhora... tens a
bondade!

Eduardo.--Ah! sim... esta senhora não vai de certo queixar-se á policia
pelo roubo...

Jorge (_a sós_).--Fazes um sacrificio deixando-me cinco minutos com
ella?

Eduardo.--Sacrificio... nenhum; mas a decencia pede que eu não esteja
aqui servindo de sentinella á vista a um teu namoro... Ai!... espera...
eu dirijo-me a estas duas almas penadas, que ahi vem... Vou
comprimental-as, e tu, como penetrante abutre, desce o vôo sobre a
presa... (_Comprimenta duas damas, vestidas de branco, em quanto Jorge
vai sentar-se ao lado de Leocadia_). Parecem-me dous anjos, minhas
senhoras. São duas virgens de Taurida, que fazem lembrar as alvissimas
virtudes de Ephigenia... (_As damas, que elle acompanha, com gaifonas
cortezãs, retiram-se sorrindo_).


SCENA IX.

Jorge _e_ Leocadia.


Jorge.--Que caprichos são estes, Leocadia?

Leocadia.--Caprichos!... O sentimento d'uma offensa é um capricho?!

Jorge.--Qual é a offensa? Uma leviandade de Julia?

Leocadia.--A leviandade foi minha, que não quiz imital-a a ella e a
muitas, que sabem pisar os homens aos pés antes de lhes darem a mão para
que se levantem. Eu dei-lhe a minha alma sem reserva... Fiz do meu amor
um sagrado mysterio com medo que m'o profanassem. Violentei-me a
olhal-o, em publico, com indifferença, para que ninguem me invejasse.
Eram estes os seus conselhos, Jorge... Hoje é que eu comprehendo a
horrivel significação d'este plano. O senhor precisava do segredo para
agradar a muitas victimas illudidas com um só lance de olhos... Creia
que tenho tanta pena de mim como de Julia...

Jorge.--Olha, Leocadia... se o meu crime foi grande, a tua vingança
excede-o... Não me pareces o anjo resignado que eu imaginei... O que eu
acabo de fazer foi uma experiencia na tua alma... O resultado foi
infeliz! Nunca previ que consentirias ao teu coração um arrojo
vingativo, indigno de ti...

Leocadia.--Que fiz eu?

Jorge.--Que fizestes tu?... É boa a pergunta!... Procuraste n'esse salão
o homem mais desacreditado, o espirito mais corrompido, o cynico mais
orgulhoso de o ser, e disseste-lhe que o amavas, sorriste angelicamente
ás suas phrases ironicas, e nivelaste-me com elle, apresentando-m'o como
rival!... Eu... rival de Eduardo!...

Leocadia (_com vivacidade_).--Como rival... nunca! Elle não podia ser
seu rival... porque eu não tenho dous corações.... Fui imprudente...
confesso que fui; mas não pude mais... a punhalada feriu-me de repente,
não me deu tempo de pensar... disse-lhe não sei quê dos labios, mas o
coração aborrece-o, porque eu não posso amar alguem com mais virtudes do
que tu... pouco me importa que tu sejas tão cynico, tão desmoralisado
como Eduardo... Oh! Deus queira que me não ouvissem... Ahi vem Julia...
Eu retiro-me... A mãi está com os olhos fixos em mim... (_Menção de
sahir_).


SCENA X.

Alvaro , Julia _e_ Jorge.


Julia (_passando por Leocadia_).--Muitos parabens, minha amiga...

Leocadia.--De que?

Julia.--Transigiste amigavelmente?...

Leocadia.--Não sei que dizes...

Julia (_ironica_).--Innocentinha... (_Leocadia sahe_. _Passam alguns
grupos de homens e senhoras_).

Alvaro (_que não vê Jorge_).--Jorge não é homem talhado para o seu
coração...

Julia.--Falle baixo, que elle está muito perto... Mas não se cale...
diga alguma cousa.

Alvaro.--É necessario ter o coração puro de amores viciosos para
conceber a sublime candura do seu...

Julia.--Hei-de morrer sem ser comprehendida...

Alvaro.--Não nasceria eu para comprehendêl-a?

Julia.--Ai! não... a minha alma é um abysmo, onde se esconde o anjo do
bem, e a serpente do mal... Tenho na mesma intensidade transportes
d'amor e odio...

Alvaro.--Qual lhe mereço?...

Julia.--Quer-me sincera? uma verdadeira estima de irmã...

Alvaro.--Só?

Jorge (_sem erguer-se do sophá_).--Ó snr. Alvaro!... Que tal acha a
eloquencia d'esta senhora?

Alvaro.--A pergunta é celebre; todavia, responderei: a eloquencia d'esta
senhora é excellente...

Jorge.--E v. exc.^a, snr.^a D. Julia, que tal acha a eloquencia
d'aquelle senhor?

Julia.--Eu sou menos generosa que este cavalheiro: não lhe respondo.

Jorge.--Responda, responda, que v. exc.^a não é responsavel pelo que
diz...

Alvaro.--Eu não posso consentir que se affronte assim uma senhora!...


SCENA XI.

_Os mesmos e_ Eduardo, _que vem passando com uma dama pelo braço, e
pára._


Jorge.--Pois senão póde, resigne-se...

Alvaro.--Tenho a optar por outro expediente antes da resignação...

Eduardo.--Naturalmente quer bater-se... Eu sou de opinião que os meus
amigos devem cortar-se reciprocamente os pescoços ás 4 horas da tarde...

Jorge (_sorrindo_).--Fecha lá as torneiras ao espirito, Eduardo. Aqui
falla-se seriamente... Não vês que aquelle senhor está formalisado?

Eduardo.--Pois o senhor está formalisado? e v. exc.^a (_para Julia_)
tambem está formalisada? e a menina (_para a que tem no braço_) tambem
se formalisa?... Eu de mim, declaro-me formalisado sem saber porque.
Formalisem-se todos, desde o dono da casa até ao creado da campainha.
Isto deve acabar por hir cada um para sua casa, porque são quasi quatro
horas... não acha?

Alvaro.--Se me dá licença...

Eduardo.--A respeito de licenças, isso não é comigo: é com o dono da
casa... Que queria o meu amigo? quer duvidar de que a snr.^a D. Julia é
a rainha das mais formosas? (_Com escarneo_).

Alvaro.--Snr. Eduardo, as suas zombarias são intempestivas!... Entre
cavalheiros é d'uso adoptar-se a linguagem seria e digna d'um salão...

Eduardo.--O meu caro senhor está funebre como um mestre de cantochão...
Fallou muito bem; mas eu é que não me sinto disposto a manter a
reputação de eloquente ás quatro horas da manhã... Se me querem vêr
dormir, fallem-me em cousas serias... Diga-me cá... já tomou chocolate?

Julia (_desprendendo-se do braço_).--Dê-me licença... Minha mana
chama-me...

Alvaro.--Eu acompanho-a, minha senhora... (_Vão sahir_).

Jorge.--Minha bella menina, estamos quites... D'hoje em diante cada um
de nós caminha para o seu polo diverso...

Julia.--São indifferentes os seus passos... Caminhe para onde lhe
aprouver, snr. Jorge... (_Sahe_).

Eduardo.--Disse que caminhasses para onde te approuvesse... Eu de mim
vou para casa... Queres vir?... É verdade... que é da transparente
creatura, que eu tinha no braço? Evaporou-se?... Deixal-a... (_Atira-se
ao sophá_). Ai que somno!... Em que pensas tu?... (_Entra um creado com
chavenas de chocolate_). Isso que é? Venha cá... É chocolate... Vm.^{ce}
não terá a habilidade de converter isto em vinho do Porto?...

Creado.--Não, senhor...

Eduardo.--Então vm.^{ce}, pelo que diz na sua, é um grande idiota.
(_Toma duas chavenas da bandeja_). Póde retirar-se... Aquelle senhor
está fazendo versos... (_O creado sahe_). Ó Jorge, não tens no coração
um reservatorio onde caiba uma chavena de excellente chocolate?

Jorge.--Adeus... retiro-me...

Eduardo.--Alto lá!... Eu preciso saber em que lei devo viver...
Reconsideraste a respeito de Leocadia? Quem é que a ama, sou eu, ou és
tu?

Jorge.--Fallas d'ella com tão pouco respeito!...

Eduardo.--De quem? de s. exc.^a!?... Pois eu disse alguma cousa que
possa chamar-se grosseira?

Jorge.--Leocadia não é uma apolice que se passe com o mesmo valor de mão
em mão...

Eduardo.--Justamente o peor que ella tem é não ser apolice, nem ao menos
acção da empreza do caminho de ferro de leste...

Jorge.--Estás estragado!...

Eduardo.--Do estomago? Palavra d'honra que sim! As taes sandwichs são
indigestas como um artigo de fundo... Mas do espirito estou optimo...
Ella ahi vem... Queres ficar só com ella?... Eu vou entreter Julia...
Que mais queres da minha docilidade? Um homem que faz isto não está de
todo estragado...


SCENA XII.

Jorge _e_ Leocadia.


Leocadia.--Vou sahir, Jorge... Dê-me uma só palavra, que me salve...

Jorge.--Que queres que eu te diga, Leocadia?... Ámanhã vou consultar a
vontade de teu pai... Queres assim tão breve o desenlace das tuas
affeições?

Leocadia.--É muita felicidade, meu Deus. Eu não merecia tanto... E
Julia!... Coitadinha!... quanto não soffrerá ella!...

Jorge.--Que tenho eu com Julia!... Poderia amal-a com a paixão violenta
d'uma febre... mas estimal-a com a serena amisade que te dedico,
Leocadia, isso nunca...

Leocadia (_reparando_).--Ai!... minha mãi... não me deixa um instante...
Adeus...


SCENA XIII.

_Os mesmos e_ Julia, _e depois_, Eduardo _e_ Alvaro.


Julia.--Espera, menina (_para Leocadia que se retira_)... São só duas
palavras... Snr Jorge... V. s.^a, não é digno d'ella, nem de mim, que
valho menos que ella... Não te felicito pela reconciliação, minha
querida amiga... D'este a Eduardo, que a sociedade chama cynico, não vai
distancia que tu não vejas desapparecer vinte e quatro horas depois de
casada... São tudo Eduardos...

Eduardo.--Que é isso de Eduardos? Ainda falta este... Trata-se de levar
ao capitolio os Eduardos, minha senhora? N'esse caso peço que não sejam
exceptuados os Alvaros. (_Para Alvaro que entra_).

Venha cá, meu amigo... Á vista d'este quadro, confesse que fizemos
tristissimas figuras... Aquelle senhor (_apontando Jorge_) fez monopolio
de dous corações, que nós tivemos o imbecil heroismo de conquistar ás
tres horas da noite... Sabe que mais? Olhemos para ellas, e digamos como
a raposa: «Estão verdes!» Pois não convém n'isto?

Vozes dentro.--Vamos meninas! São quatro horas.

Eduardo.--Nenhum dos senhores se quer bater pelo que vejo!... Boas
noites... Minhas senhoras...

Vozes.--O ultimo _cotillon_, o ultimo.

Eduardo (_para a viscondessa de Valbom que entra_).--O ultimo
_cotillon_, minha senhora, se não tem par... (_Retiram-se todos os
outros_).

Viscondessa.--Eu não danço senão quadrilhas.

Eduardo.--Faz v. exc.^a muito bem... Tem dançado muitas?

Viscondessa.--_Un peu_... _un peu_.

Eduardo.--Ah! V. exc.^a falla francez! Ha quantos annos aprendeu, minha
amavel senhora? Antigamente ensinava-se um francez muito solido... Hoje
é tudo pela superficie...

Viscondessa.--É verdade; mas as bases d'uma verdadeira instrucção são os
solidos rudimentos.

Eduardo.--Muito bem, minha senhora... O seu coração deve ser tão
sensivel como a sua cabeça é illustrada.

Viscondessa.--O meu coração está morto.

Eduardo.--Deveras!... Quem fará o milagre de o chamar á vida?... Eu de
certo não ousaria tão difficil empresa...

Viscondessa.--V. s.^a zomba?...

Eduardo.--Não zombo, porque não sei zombar com o amor...

Viscondessa.--Falle baixo que ahi vem meu marido...

Eduardo (_para o marido que entra_).--Snr. visconde!... estavamos
fallando na guerra da Crimea.

Visconde.--Vai por lá o diabo... Eu acho que os alliados não mettem o
nariz em Sebastopol.

Viscondessa.--Pelo menos em quanto a Austria e Prussia não expedirem
forças que suppram a mortandade dos inglezes...

Visconde.--E que me diz o senhor á exportação dos bois? Cessa ou não
cessa?

Eduardo.--A respeito de bois, não sei nada... (_reparando para fóra_)
Ahi vem tudo... Que é isto!... uma senhora desmaiada?


SCENA XIV.

_Os mesmos, e_ Julia _desmaiada nos braços de algumas damas._


Vozes.--Que seria?

Coitadinha...

Tragam agua...

Eduardo.--Fumo de charuto não é mau...

Visconde.--Faz favor de lhe botar um pouco de fumo pelas ventas?...

Eduardo (_accendendo o charuto_).--Lá vou... lá vou, snr. visconde.

Vozes.--Não é preciso...

Julia.--É Jorge!... Jorge é o responsavel da minha vida...

Vozes.--Ah!...

Eduardo.--É uma maneira bonita de terminar um acto! Está tudo com a
bocca aberta... e eu tambem! (_Abrindo a bocca_).

CORRE O PANO.



ACTO II.

     _A scena é na Foz, justamente na praia dos Inglezes. Senhoras e
     homens tomando banhos; outros, entrando nas barracas, horrivelmente
     desfigurados, ou, antes, taes quaes a natureza os fez. Sobre os
     penedos, pinhas de povo que pasmam diante dos ensaios do
     salva-vidas. Estes podem dizer o que quizerem a tal respeito. O
     author dá carta branca ao actor para que diga centenares de
     parvoices: póde até discorrer sobre o dropp se lhe aprouver; mas o
     melhor é calar-se_.


SCENA I.

_Afóra estes entes nullos_, Jorge _e_ Leocadia _sentados em cadeiras_.


Leocadia (_fazendo SS com o guarda-sol na areia_).--Estás tão sombrio,
Jorge!

Jorge (_fazendo TT na areia com a chibata_).--Estou optimamente.
(_Ouvem-se guinchos muito sympathicos das senhoras, que patinham no
banho_. _Alguns homens urram_).

Leocadia.--Parece que te aborrece a Foz!...

Jorge.--Nada me aborrece... Estou bem em toda a parte...

Leocadia.--Niguem o ha-de dizer... Todas as minhas amigas me perguntam o
que tens...

Jorge.--Diz-lhes que se não incommodem...

Leocadia.--Hão-de suppor que a tua amisade para comigo foi uma illusão
desvanecida pelo casamento...

Jorge.--A opinião é livre... Supponham o que quizerem.

Leocadia.--Mas não consideras que eu soffro muito se ellas imaginam tal?

Jorge.--Não me lembrava essa especie... Isso é amor proprio...

Leocadia.--Não é amor proprio... é _dôr_ do coração...

Jorge.--Será algum aneurisma?

Leocadia.--É uma zombaria bem cruel!... Estranho-te, Jorge.

Jorge.--Tambem eu me estranho... Não achas que é melhor estarmos
calados?

Leocadia.--Calar-me-hei...

Jorge.--E fazes bem... Estes dialogos terminam sempre mal... A
necessidade da variar a conversação é a tisica das grandes paixões...
Uma phrase repetida aborrece, por mais bonita que seja... Nós podiamos
ter sempre cousas novas a dizer, se não tivessemos gastado a inspiração
em quatro mezes de casados. Dissemos tudo... definimos tudo que nos
rodeava, e agora sentimos a dura necessidade de nos definirmos a nós...
É onde está o mal.... Tu queres que eu te repita o que te disse ha cinco
mezes, e eu zango de repetições... Não sei fazer phrases como tu fazes
punhos de camizas... Exhauri-me... Agora é necessario esperar uma nova
colheita do terreno que já deu fructo. Essas lagrimas vem muito a
proposito... (_Erguendo-se e espreguiçando-se_). Ai! que vida!...
(_Reparando_). Olá, Eduardo!... por cá?


SCENA II.

_Os mesmos, e_ Eduardo.


Eduardo.--É verdade... Como passou, minha senhora?

Leocadia (_disfarçando as lagrimas_).--Muito bem... agradecida... Está
bom?

Eduardo.--Como sempre... Tenho uma saude insupportavel!... Não sou capaz
de arranjar uma dôr de cabeça, para me dar certos ares romanticos. Vejo
por ahi muitos mancebos, alquebrados no frescor da vida, e, em quanto a
mim, são infelizes creaturas que soffrem dos callos... Já tomou banho,
minha senhora?

Leocadia.--Não tomo banho hoje. Constipei-me hontem.

Eduardo (_para Jorge_).--E tu?

Jorge.--Vou tractar d'isso... Ficas por aqui?

Eduardo.--Vamos nós conversar, minha senhora... Eu hoje sinto-me com
disposição para dizer cousas muito philosophicas... (_Jorge sahe_).


SCENA III.

Leocadia _e_ Eduardo.


Leocadia.--V. s.^a tem sempre um humor tão alegre...

Eduardo.--Será isto idiotismo? Já me lembrou se eu seria tão doudo como
por ahi me julgam!

Leocadia.--Quem o julga doudo?!

Eduardo.--É toda essa sociedade...

Leocadia.--Doudo... não!... Dizem que v. s.^a não tem persistencia em
cousa nenhuma; e escarnece tudo...

Eduardo.--Em quanto á persistencia, é falso o que dizem, minha senhora,
e sinto que v. exc.^a, tão distincta do commum, queira ser o ecco das
opiniões vulgares da rançosa sociedade... Não sou inconstante...

Leocadia.--A quem diz isso? Pois não sei eu a sua vida!... Só namoros,
tenho-lhe conhecido cincoenta.

Eduardo.--Serão mais, talvez; mas... que namoros!... V. exc.^a não se
recorda de que foi meu namoro vinte minutos no baile do barão de Valbom?
(_Leocadia abaixa os olhos_). Pois os taes cincoenta namoros foram todos
assim... Não sou constante, porque não encontrei ainda uma mulher, que
possa adorar-se seriamente. Não ha paixão que o ridiculo não mate. As
minhas tem todas soffrido morte de gargalhada.

Leocadia.--Pois não amou nunca seriamente?

Eduardo.--Eu lhe digo, minha senhora... amei... Vou contar-lhe a minha
vida; mas só lhe digo os argumentos dos capitulos que são tres.
_Capitulo_ 1.^o Conta-se que Eduardo Leite amou diabolicamente uma
mulher, aos dezeseis annos, e fez tantas loucuras por ella, que, não
tendo mais que fazer, quiz suicidar-se com pós dos ratos, e foi uma tia
que lhe valeu com um copo de azeite... Pois v. exc.^a ri-se das minhas
desgraças!... E eu suppunha que a fazia chorar!... Estou como certo
dramaturgo que endoudeceu porque a platéa se riu justamente no pedaço
mais triste da tragedia!...

Leocadia.--É que v. s.^a dá um colorido comico ás scenas mais tristes...

Eduardo.--_Capitulo_ 2.^o No qual se diz que o dito Eduardo Leite fez
tristissima figura, vociferando injurias contra as mulheres,
emmagrecendo na razão inversa da hydropesia do scepticismo, e passeando
de noite nas Fontainhas, perguntando ás estrellas pela mulher dos seus
sonhos, e bebendo agua no chafariz para refrigerar o vulcão, que lhe
queimava as entranhas. Dizem-se outras muitas cousas tristes a este
respeito, como por exemplo um duello que elle teve com o seu rival, de
que lhe resultou estar quinze dias de cama, com uma bala mettida n'um
hombro. Que lhe parece o segundo capitulo?

Leocadia (_sorrindo_).--É funebre; mas faz-lhe muita honra...

Eduardo.--Estou por isso... É uma honra muito grande...

Leocadia.--Pois não é? ser ferido em duello por causa d'uma senhora!...
Quem seria a ditosa?

Eduardo.--Era a filha do meu sapateiro, minha senhora...

Leocadia (_com seriedade_).--Não diga tal... V. s.^a não se fascinava
por tal mulher!...

Eduardo.--Pois fascinei-me... Era linda como a edição mais nitida, que
sahiu da typographia celeste. Nos seus olhos espelhava-se a candura, e
dos labios fugiam-lhe espiritos d'azas scintillantes, como não vi em
nenhuns, excepto nos de v. exc.^a...

Leocadia.--Dispenso a comparação...

Eduardo.--E faz bem, minha senhora!... Ella por fim, cahiu do ministerio
a que eu a levantei, e tornou-se uma gorda matrona casada com um gordo
bate-folha, que é a minha vergonha porque teve a petulancia de luctar
comigo, e vencer-me...

Leocadia.--E foi esse que teve o duello com v. s.^a?

Eduardo.--Nada... foi uma segunda victima, que ainda hoje faz quadras a
uma certa visão que lhe appareceu no amanhecer da vida... E esta visão é
a sobredita filha do meu sapateiro...

Leocadia.--A sua vida é um poema epico... E o terceiro capitulo?

Eduardo.--É verdade, o terceiro capitulo... O terceiro capitulo... é
isto... É este riso, esta zombaria, esta conscienciosa abnegação de mim
mesmo... é a resignada docilidade com que me prestei a ser o instrumento
de v. exc.^a para ferir a vaidade de seu marido... Queira
desculpar-me... Entristeci-a? O passado, passado... Quer v. exc.^a que
eu lhe escolha duas conchinhas? (_Procurando na areia_). Aqui está uma
bem bonita... (_Reparando_). Ahi vem a sua amiga Julia...

Leocadia (_sobresaltada_).--Ai!... vem?...

Eduardo.--Como se dá ella com o marido, sabe dizer-me?

Leocadia.--Não sei.. penso que não é feliz...


SCENA IV.

Leocadia, Julia, _e_ Eduardo.


Julia.--Snr. Eduardo, se me concedesse alguns instantes com a minha
amiga...

Eduardo.--Pois não, minha senhora... (_Sahe_).

Julia.--São só duas palavras... Vi entrar teu marido para a barraca, e
não nos vê... Leocadia... Eu não sou mais feliz que tu... Jorge fez-nos
desgraçadas a ambas... Tu sabes que o meu casamento com Alvaro foi um
capricho que tenho sustentado com lagrimas... Mas tu não tens culpa...
Sei que não és amada... Eu tambem o não seria... Sou ainda tua amiga...
Não poderei prestar-me nunca a ser o cutello na mão do teu algoz... ahi
tens essas cartas.

Leocadia.--Que cartas são estas?!

Julia.--São cartas, que teu marido me escreve...

Leocadia.--Meu marido!...

Julia.--Sim... mais nada... adeus... (_Sahe_).


SCENA V.

Leocadia, _e depois_ Eduardo.


Leocadia.--Vou sondando toda a profundidade do meu abysmo... Eu bem
sabia que era infeliz; mas tanto... não!...

Eduardo.--Parece-me que a sua amiga não veio dar-lhe prazer... Tão
descorada, minha senhora! Que tem?

Leocadia.--Nada, snr. Eduardo... É uma nuvem passageira... Queira dizer
a Jorge que me retirei...

Eduardo.--Eu acompanho-a...

Leocadia.--Não consinto... a minha casa é alli...

Eduardo.--Não insto, minha senhora, para não ser importuno... (_Ella
sahe, cortejando-o_).


SCENA VI.

Eduardo, _e depois a_ Viscondessa de Valbom, _com um creado de farda,
que conduz em sacco de damasco vermelho a roupa de banho_.


Eduardo (_accendendo um charuto_).--Ora aqui está o que são os môços
honestos, honrados, e bem comportados!... São estes dous maridos. Jorge
passa por um mancebo exemplar; Alvaro dizem que é o typo da bondade; e,
comtudo, vou descobrindo que as respectivas mulheres, se escrevessem
jornaes, estavam em opposição com os maridos. Os honrados são elles...
Eu é que sou o cynico!... Esta sociedade é uma grande patacuada!... Ahi
vem a viscondessa de Valbom. Não me larga desde aquelle baile...
(_Olhando sobre o hombro_). Ella cá está comigo... (_Erguendo-se_).
Minha querida senhora viscondessa, como passou v. exc.^a desde hontem?

Viscondessa.--_Passablement_. Esperei-o á noite para a partidinha, e o
maganão não nos quiz honrar com a sua visita...

Eduardo.--Urgentes negocios obrigaram-me a hir ao Porto.

Viscondessa.--Namôro... diga a verdade... namôro...

Eduardo.--Não, minha senhora. O meu coração está desde muito na terceira
secção... Não ha poder que o faça entrar na effectividade...

Viscondessa.--Ora deixe-se d'isso... Eu sei que ama... e ama uma
senhora... que... digo?

Eduardo.--Se lhe apraz...

Viscondessa.--Não direi; mas... lembre-se de que _la proprieté n'est pas
un vol_ como diz Proudhon...

Eduardo.--Eu acredito que a propriedade não seja um roubo, e por isso
mesmo não tento contra ella.

Viscondessa.--Tenta, tenta... Isso não é bonito... Se quer merecer a
minha estima, não tente partir os vinculos matrimoniaes de... eu bem
sei...

Eduardo.--E v. exc.^a acha que sou indigno da sua estima, se tentar...

Viscondessa.--Pois não? Ha cousa mais sagrada sobre a terra?! A
reputação d'uma senhora!... (_Mudando de tom_). É verdade que muitas
vezes toda a philosophia é pouca para conter os impetos do coração...
(_Mudando para o tom da honestidade_). Ainda assim, a mulher digna
reprime-se, e faz-se superior a si propria... (_Mudando de tom_). Apesar
d'isso, eu absolvo alguns erros, que muitas infelizes commettem, porque
tem a imprudencia de tentar com a ponta do pé o desfiladeiro, e por
fim...

Eduardo.--Escorregam...

Viscondessa.--Justamente...

Eduardo.--E n'esse caso...

Viscondessa.--Está a pessoa de quem fallamos...

Eduardo.--Nós não fallamos de pessoa nenhuma... Queria eu dizer que
n'esse caso não está de certo v. exc.^a

Viscondessa.--Quem sabe!... (_Á parte_). Ai! o que eu fui dizer!...

Eduardo.--Sei-o eu porque a conheço desde menino, sempre esposa
exemplar...

Viscondessa.--Desde menino, não!... pois que annos tem v. s.^a?...

Eduardo.--Trinta, minha senhora.

Viscondessa.--Trinta?!... Ha-de ser isso... Não levamos grande
differença...

Eduardo.--Queira perdoar-me, minha senhora, mas eu andava na escóla,
quando v. exc.^a deu um baile para celebrar os annos de seu filho, que
era meu condiscipulo... Ha quantos annos isto vai!

Viscondessa (_enfronhada_).--Dê-me licença que vá ao meu banho... São
horas, e a maré principia a vasar...

Eduardo.--Vasa, vasa, minha senhora... Será bom aproveitar a vasante...

Viscondessa (_á parte_).--É muito grosseiro!...

Eduardo.--Vai a resfolegar polvora pelos narizes...

D'esta vez, creio que aboli este vinculo de nova especie!... Ahi está um
dos taes cincoenta namoros de que falla Leocadia... E é por causa
d'estas... que me chamam inconstante!... Que pessimo charuto!... Gilbert
se vivesse n'este tempo suicidava-se com um d'estes canudos de acido
prussico...


SCENA VII.

Eduardo _e_ Jorge.


Jorge.--Leocadia?

Eduardo.--Já lá vai... Disse que hia para casa.

Jorge.--Dá-me lume... (_accende o charuto_). Quero dar-te um conselho,
Eduardo...

Eduardo.--Sim?!

Jorge.--Não te cases.

Eduardo (_Alvaro, sem ser visto, entra n'uma das proximas
barracas_).--Deus me livre... Sendo eu, como realmente sou um cynico,
pobre da mulher que tivesse de luctar com o meu cynismo!... O casamento
é bom para ti que és um anjo de virtude, e para Alvaro que é o typo da
sisudez... Diz-me cá, és muito feliz, não és?

Jorge.--Não. Estou cançado... Minha mulher... é uma mulher...

Eduardo.--É _uma_ mulher? Pois louva a Deus por não serem duas...
Quantas querias tu? Aposto que estás desmoralisado como um turco?!

Jorge.--Sempre galhofeiro... Agora serio... Tu que és homem de
expedientes, não me dizes como eu possa ser feliz com Leocadia?

Eduardo (_ironicamente_).--Estás a zombar! Pois o anjo de virtude vem
consultar o cynico!? Não abuses da tua superioridade, Jorge...

Jorge.--Se tu soubesses que tormentos aqui vão n'esta alma!... A paixão
allucinada que me abriu o inferno no coração!... Tenho necessidade de
respirar... Quero que tu me ouças, porque não és d'esses tartufos que
torcem o nariz á menor expansão d'um espirito atormentado!... Sabes que
amo até ao delirio uma mulher?

Eduardo.--É a tua naturalmente... Isso é muito justo...

Jorge.--Não é a minha...

Eduardo.--Pois a minha tambem não...

Jorge.--Não motejes a minha dôr... Se me não queres ouvir com seriedade,
calemo-nos...

Eduardo.--Ora diz...

Jorge.--Eu amo... Julia...

Eduardo.--A mulher de... Oh escandalo!... Falla baixo que te não ouçam
os caranguejos...

Jorge.--Não soffro o escarneo... És incapaz de comprehender um
sentimento nobre...

Eduardo (_rindo_).--Sim... esse sentimento é muito nobre... Eu é que sou
o cynico... Tens razão... estou estragado a ponto de não comprehender a
nobreza d'esse sentimento... Prega essa moral, verás o galardão que
recebes...

Jorge.--Não me importa a sociedade... Perco-me por aquella mulher... Era
ella quem eu amava... Casei com Leocadia por um capricho... mas a mulher
do meu coração era Julia...

Eduardo.--E ella... concorda?

Jorge.--Não... despresa-me... recebe as minhas cartas, e não me
responde...

Eduardo.--Mas sempre vai lendo as cartas?... Então continúa, visto que
esse sentimento é nobre... Eu é que sou o cynico...

Jorge.--E quem sabe o fim para que ella recebe as cartas?

Eduardo.--Talvez para papelotes, quando se frisa...

Jorge.--Adeus!... estás insoffrivel... Isso offende!...

Eduardo.--Pois eu sei cá para que ella recebe as cartas?

Jorge.--Talvez para mostral-as a minha mulher... e vingar-se assim...

Eduardo.--Isso póde ser... A historia antiga conta tres factos
semelhantes. O primeiro aconteceu com Dido, a respeito de Eneas; o
segundo com Fredegonda...

Jorge.--Deixa lá isso... que me importa a mim a historia?... Fazes-me um
favor?... Se fallas com ella, pódes sondal-a a meu respeito...

Eduardo.--Sondal-a?... não sei de que modo!... Tu não sabes que o marido
é meu figadal inimigo? Só se a vir por aqui destacada do osso do seu
osso... Ella ainda agora aqui esteve com D. Leocadia...

Jorge.--Com minha mulher!

Eduardo.--Sim...

Jorge.--Estou perdido!... Deu-lhe as cartas!...

Eduardo.--Daria?! Que grande immoralidade!

Jorge.--E por isso Leocadia se retirou...

Eduardo.--E olha que não hia boa... Parece-me que a estas horas já ella
admirou o estilo das tuas preciosas cartas!... Olha... queres vêr
Julia?... Ella vem para aqui... Esconde-te atraz d'essa barraca, em
quanto ella te não vê... e quando passar, falla-lhe...

Jorge (_cumpre_).--Que hei-de eu dizer-lhe?!...

Eduardo (_sorrindo_).--Vê se ella comprehende o _o teu nobre
sentimento_...

Jorge.--Ella não pára a ouvir-me... tu verás...

Eduardo.--Se não parar, anda tu com ella... (_Retira-se_).


SCENA VIII.

Jorge _e_ Julia.


Jorge.--Não tenho animo... Sou um imbecil...

Julia (_sem o vêr, sentando-se em cadeira_).--A minha querida
vingança!... Não vim só para soffrer... Alguem ha-de soffrer comigo...

Jorge (_dirigindo-se com irresolução_).--Animo!

Julia (_voltando-se de repente, e erguendo-se_).--O senhor!... (_Quer
retirar-se_).

Jorge (_sustendo-a_).--Não me fuja...

Julia.--Retire essa mão, senhor!

Jorge.--Esse enfado é muito pouco senhoril... Esta mão não mancha a sua
pureza...

Julia.--Para mim tem o horror de mão que me feriu com um punhal... O
senhor não tem dignidade nenhuma... Retire-se, que meu marido póde
vêl-o.

Jorge.--Que veja... Eu não temo seu marido...

Julia.--Pois não o tema a elle, mas respeite-me a mim, para que a sua
posição de marido seja respeitada... (_Eduardo tem vindo por entre as
barracas esconder-se atraz da mais proxima do dialogo_).

Jorge.--Eu já me não respeito na minha posição... Seu marido que tire
represalias, que eu sou indifferente a todos os ultrajes d'essa ordem.

Eduardo (_á parte_).--Eu é que sou o cynico...

Julia.--Então devo acreditar que o senhor requintou em immoralidade...

Jorge.--Acredite o que quizer... Saiba que foi uma paixão que me
perverteu... Hei-de cuspir na sociedade, visto que a não posso calcar
aos pés... Despreso todas as formalidades... Para a desesperação não ha
conveniencias a guardar...

Eduardo (_á parte_).--Eu é que sou o cynico!...

Julia.--Pois, senhor, eu entendo que as devo guardar todas... Snr.
Jorge, tenha vergonha diante da sua propria consciencia. (_Vai
retirar-se_).

Jorge (_segurando-a_).--Ha-de ouvir-me... Que destino deu ás minhas
cartas?

Julia.--Entreguei-as a sua senhora.

Jorge.--Isso foi um vil procedimento...

Julia.--Deveria antes entregal-as a meu marido?

Jorge.--Não tenho nada com seu marido, Julia... Não me cite tantas vezes
o nome de seu marido, que é de nenhuma importancia n'este objecto...


SCENA IX.

_Os mesmos e_ Alvaro _sahindo da barraca, vestido de banho_.


Julia.--Ah! meu marido...

Eduardo (_escondido_).--Isto ha-de ser bonito...

Alvaro.--Pois, snr. Jorge, eu pensei que importava alguma cousa n'este
negocio... Isto que é? Cahiram miseravelmente n'um silencio estupido!...
Julia, tu não fallas? Snr. Jorge! não fique embuchado!... O senhor
está-me dando uma importancia, que não era a do seu programma...

Jorge.--Esta situação é melhor que a não prolonguemos. V. s.^a vai
pedir-me uma satisfação... (_Julia retira-se_).

Alvaro.--Está enganado... Não tenho de que lhe pedir satisfação... Faz
v. s.^a muito bem... Não lhe desagradam os olhos d'aquella senhora, e
põe os seus meios... Tudo isto é natural... Que satisfação lhe hei-de eu
pedir!...

Eduardo (_á parte_).--Eu é que sou o cynico!

Jorge.--Acabemos, snr. Alvaro...

Alvaro.--Tranquille-se, cavalheiro... Eu ainda não disse senão metade.
Visto que o senhor gosta dos olhos de minha mulher, eu aproveito a
occasião para lhe dizer que não desgosto dos olhos da sua. Com a
differença, porém, que eu, declarando-me a v. s.^a, dou-lhe a
importancia que v. s.^a me não deu... Visto que nos encontramos no
mercado, permutaremos os olhos de nossas mulheres. O senhor fica com os
olhos da minha, e eu com os olhos da sua... Parece-me que me vai pedir
uma satisfação...

Jorge.--Não sei com que intenção me faz semelhante proposta...

Alvaro.--Com a melhor intenção do mundo... É um contracto bilateral...
sem testemunhas... Eu concedo-lhe a frequencia de minha casa para v.
s.^a estudar bem os olhos de minha mulher, e o cavalheiro franqueia-me
occasiões de estudar os olhos da sua.

Eduardo (_á parte_).--Eu é que sou o cynico!...

Jorge.--E se na sociedade se desconfia esta convenção?

Alvaro.--Deixe-se d'isso... A sociedade, deu-nos diplomas de excellentes
pessoas... Eu creio que ambos temos a finura necessaria para
desempenharmos, sem pateada, os nossos papeis... Aqui o grande plano é
que afastemos do nosso commercio Eduardo, porque esse tem a alma
sufficientemente estragada para nos adivinhar...

Eduardo (_á parte_).--Muito, obrigado!... Até este me dá diploma de
cynico!

Alvaro.--Agora, meu amigo, vou tomar banho... Hoje á noite espero-o com
sua senhora em minha casa para tomarem uma chavena de chá...
(_Apertando-lhe a mão_). _Au revoir_, meu caro senhor... (_Sahem_). Ó
banheiro!... Vamos lá, que nos foge o mar...


SCENA X.


Eduardo.--Visto que eu sou o cynico, e os virtuosos são estes, passo a
ser um pouco mais virtuoso que elles, para que elles sejam cynicos como
eu... Alguma vez hei-de atinar com a virtude... A verdadeira acho que é
a d'elles... O genero não é caro... Veremos...

CORRE O PANO.




ACTO III.


_Passa-se em casa do visconde de Valbom. Sala faustuosa: luxo sem gosto:
muita cadeira de estôfos amarellos: muito relogio: muita bugiaria de
vidro, de mistura com porcellanas de Sevres, e adornos d'ouro, sem
significação nem serventia_. _É noite_.


SCENA I.

Viscondessa de Valbom, D. Julia, Jorge, visconde de Valbom.


_Um creado com uma bandeja, recebe as chavenas do chá; e retira-se_.

Viscondessa (_a Jorge_).--A snr.^a D. Leocadia não virá?

Jorge.--É natural que venha.

Viscondessa.--Com o capellão?

Jorge.--Sim... com o capellão...

Viscondessa (_a Julia_).--O snr. Alvaro que andará a fazer?

Julia.--Naturalmente... das suas...

Visconde.--Das suas... isso que quer dizer?! Alvaro é o exemplo da
honradez personalisada...

Julia.--Agradecida a v. exc.^a, snr. visconde.

Viscondessa.--Não tem de que, menina. Seu marido é um anjo, e a
sociedade faz-lhe justiça. A reputação que elle tem grangeado é a prova
infallivel das suas virtudes. Elle, e aqui o snr. Jorge são os dous
cavalheiros mais queridos da nossa roda. Foram rapazes, sem rapaziadas.
São maridos, sem mancha, e hão-de ser sempre modêlos de probidade a
todos os respeitos.

Jorge.--Muito grato, minha senhora. Tenho empregado todos os esforços
por merecer á sociedade um bom conceito, e creio que o tenho
conseguido...

Viscondessa.--Porque o merece. Se o não merecesse, creia que o não
teria, porque a opinião publica é justiceira, e nunca se engana com os
bons, ou com os maus... Não se lembra da opinião que teve Eduardo?

Jorge.--Uma pessima opinião.

Visconde.--Oh! de certo, aquillo era um homem com uma lingua depravada,
e costumes horriveis...

Viscondessa.--Mas vejam que lhe chegou a sua hora de reflexão.
Retirou-se completamente da sociedade; viveu tres mezes encerrado
comsigo mesmo na solidão, e voltou para o mundo completamente
desfigurado. É outro homem...

Julia.--Totalmente outro.

Visconde.--Faz mesmo espantar a differença que o homem fez!...

Jorge.--É pasmosa!

Viscondessa.--As suas palavras são todas serias, medidas, e reflectidas.
Os seus modos são circumspectos, civis, e insinuantes. O seu vestir é
muito grave, muito decente, e muito sisudo... Dizem-me que dá esmolas...
tenho lido nos jornaes alguns actos de philantropia que o honram
muito... em fim, está um cavalheiro, que não deixa nada a desejar! Vejam
o que são as cousas!... Aqui ha quatro mezes, se elle me olhasse para
uma das minhas creadas, despedil-a-hia immediatamente; e hoje, se eu
tivesse uma filha, dava-lh'a com immensa satisfação...

Jorge.--Muito se lucra, quando se é honrado!...

Visconde.--Pois não! Não ha nada como a honra!

Jorge.--Oh! a honra é a salvaguarda de todas as inquietações!

Viscondessa.--Que precipicios não encontrou Eduardo em quanto se deixou
hir á mercê dos seus extravagantes desejos!...

Visconde.--Oh!... era insoffrivel!... Nunca se viu assim uma
libertinagem!...

Julia.--Ouvi fallar tão mal d'esse homem, e nunca me disseram
distinctamente os seus crimes.

Visconde.--Immensos, immensos...

Viscondessa.--Immensissimos, immensissimos...

Julia.--Mas posso eu saber algum d'elles?

Visconde.--Eu não sei de nenhum; mas dizem por ahi que são muitos...
muitos...

Julia.--E a snr.^a viscondessa sabe quaes são?

Viscondessa.--Tambem não sei; mas, na boa roda, diziam que elle era um
prodigio de immoralidade...

Julia.--E o snr. Jorge? Esse ha-de saber muitas cousas...

Jorge.--Creio que ha muitas scenas horriveis na vida d'esse homem,
todavia, eu não sei nenhuma...

Julia.--Mas vive com elle ha mais de sete annos...

Jorge.--É verdade... mas, como elle me não chamava a testemunhar os seus
desvarios, nada sei...

Julia.--O que se segue é que nenhum de nós sabe dizer em que consistiu a
depravação de Eduardo!...

Viscondessa.--A sociedade não se engana, menina. Ella que o condemnou lá
sabe os motivos porque o fez. A virtude não é nunca infamada. Veja lá se
seu marido, e aqui o snr. Jorge foram victimas da calumnia!...

Julia.--Mas eu queria que me citassem um crime de Eduardo...

Um creado--O snr. Eduardo...


SCENA II.

_Os mesmos e_ Eduardo.


(_Eduardo veste todo de preto. Maneiras muito acanhadas, dando-se uns
ares de virtude idiota. Uma cortezia a cada palavra. Recolhido sempre em
si, affectando uma imbecilidade moral, de fazer piedade_).

Viscondessa _e_ visconde.--Muito bem vindo.

Eduardo.--Como passaram vv. exc.^{as}?

Viscondessa.--Maravilhosamente... queira sentar-se.

Eduardo.--E a snr.^a D. Julia?

Julia.--Um pouco affectada dos nervos.

Eduardo.--Muito sinto, minha senhora, Deus a poupe a soffrimentos de
todo o genero... E o meu amigo Jorge... como passa?

Jorge.--Assim, assim...

Viscondessa.--Então! senta-se? (_Eduardo senta-se_).

Eduardo.--Como está tua senhora, Jorge?

Viscondessa.--Estamos á espera d'ella.

Eduardo.--E seu marido, snr.^a D. Julia?

Visconde.--Não deve tardar... (_Eduardo em ar de pensativo, esfregando
as costas das mãos_).

Viscondessa.--Elle ahi vai recahir nas suas melancolias! Não o queremos
assim! Que tem?

Eduardo.--Pesares... que vem de longe, minha senhora...

Visconde.--O passado já lá vai... Agora v. s.^a é outro homem... Toda a
gente diz que quem o viu e quem o vê...

Viscondessa.--Nada de tristezas. A virtude é sempre alegre... Ó menina,
vá tocar um bocadinho... Tenho notado que o snr. Eduardo está melhor
quando ouve tocar... Que quer que ella toque?

Eduardo.--O que s. exc.^a quizer...

Julia.--Cousas tristes?

Viscondessa.--Não, menina! Bem triste está elle!... Toque alguma cousa
do Barbeiro de Sevilha...

Julia.--Pois, sim... (_Vai tocar na sala immediata_).

Viscondessa (_a Eduardo_).--Quer que vamos á sala do piano, ou quer
gosar de longe?

Eduardo.--De longe, se v. exc.^a não manda o contrario. (_Jorge, logo
depois, segue Julia_).

Visconde.--Muito folgamos de o vêr rehabilitado na opinião publica.

Eduardo.--E estarei-o eu por ventura?

Viscondessa.--Está... Veja... n'um só mez recuperou os creditos perdidos
em tantos annos...

Eduardo.--Muito devo a Deus, porque é o contrario que costuma
acontecer... Então a snr.^a D. Julia não nós dá o prazer de a ouvirmos?
Vai-nos demorando o goso...

Visconde.--Eu vou lá... (_Sahe_).


SCENA III.

Eduardo _e a_ viscondessa.


Viscondessa (_com vivacidade_).--Vês como sahiu certo tudo o que eu te
disse? A sociedade é uma excellente pessoa.

Eduardo (_mudança de tom. Ouve-se o piano_).--Tenho notado isso... Achas
que vou bem assim?

Viscondessa.--O melhor possivel... Ponto é que te conserves...

Eduardo.--N'este pé de virtude? Já me não desmancho... E, com effeito,
dizem que sou beato, virtuoso, martyr, contricto...

Viscondessa.--Até o visconde está espantado da tua mudança...

Um creado.--A snr.^a D. Leocadia, e o snr. Alvaro. (_Sahe_).

Viscondessa.--Não sei o que me parece este grupo, a estas horas!...
Sabes que eu suspeito...

Eduardo.--Suspeitas?!... Oh!... eu não... Facilidades da innocencia!...


SCENA IV.

_Os mesmos_, D. Leocadia, _e_ Alvaro.


Viscondessa.--Tão tarde!...

Leocadia.--Foi impossivel aquietar o pequeno até agora...

Eduardo (_tornando ao tom beatifico_).--Passou bem, minha senhora?

Leocadia.--Bem...

Alvaro (_dá uma gargalhada_).

Viscondessa.--Que riso é esse?

Alvaro.--Não é nada, minha senhora... Quem toca, é minha mulher?

Viscondessa.--É sim... se quer vá á sala...

Alvaro.--Não, minha senhora. (_Senta-se trombudo a um canto da sala_).

Viscondessa (_a Leocadia_).--Que terá elle? Estranho-o!...

Leocadia.--Eu não sei... Chegou a minha casa quando eu estava para
sahir... Disse-me que me acompanhava... veio comigo sem dizer palavra...
e não sei mais nada, nem me importa...

Eduardo (_pesaroso_).--Terá dôr de dentes? São dôres dos nossos
peccados... Deus nos acuda...

Viscondessa.--Venha cá, snr. Alvaro!... O nosso bom amigo Eduardo, que é
o S. Paulo dos nossos tempos, pergunta se lhe doem os dentes... (_Alvaro
dá outra gargalhada_).

Leocadia.--Ora entendam lá aquillo!...


SCENA V.

_Os mesmos, e_ Julia, Jorge, _e o_ visconde.


Jorge (_apertando a mão de Leocadia_).--Até que finalmente...

Julia (_apertando a mão de Alvaro_).--Com effeito... demoraste-te.

Alvaro.--Negocios...

Leocadia.--O pequeno não queria adormecer... (_Alvaro dá terceira
gargalhada_).

Jorge.--Que riso é esse?

Julia.--A que vem o destempero d'essa gargalhada?...

Viscondessa.--Lá está outra vez mergulhado na sua melancolia o snr.
Eduardo!... Quer, talvez, mais musica...

Eduardo.--Se não receasse ser indiscreto, pedia a v. exc.^a aquella aria
da Norma... no acto final...

Viscondessa.--Executada por quem?

Eduardo.--Por v. exc.^a... dá-lhe uma graça particular... Não quero
offender as duas senhoras que a desempenham habilmente; mas não sei que
toque melancolico...

Viscondessa.--Pois sim... hirei... Vamos todos...

Eduardo.--Se me concedesse...

Viscondessa.--Ficar sósinho aqui?... Pois sim... fique.

Visconde.--Eu cá fico com elle...

Viscondessa.--Não, não... deixa-o... são necessidades organicas... Eu
tambem tenho d'estas tempestades moraes...

Vozes.--Pois sim... pois sim... (_Sahem_).


SCENA VI.

Eduardo, _e depois_ Julia.


Eduardo.--A gargalhada de Alvaro quer dizer muito... (_Ouve-se a aria da
Norma_).

O maldito veria alguma cousa? Se viu, lá vai a terra todo o meu edificio
de virtude... Dizem que ella é facil, eu vejo-me illaqueado n'uma rede
tal, que se me descobrem não sei por onde hei-de evadir-me... Que pena
se me não deixam ser honrado!... Tenho, só n'um mez, colhido tantas
palmas de virtude, que, passados tres, n'este andar, eu todo seria um
palmito...

Julia (_agitada_).--Eduardo...

Eduardo.--Julia...

Julia.--Pelo amor de Deus, desvanece-me d'uma suspeita que me
despedaça...

Eduardo.--Que é?!

Julia.--Tu amas Leocadia.

Eduardo.--É falso...

Julia.--Mas ella adora-te com delirio...

Eduardo.--Que culpa tenho eu?

Julia (_tomando-lhe a mão com frenesi_...)--Não me sacrifiques a ella...
a nenhuma... porque nenhuma te amará tanto...

Jorge (_ao fundo_).--Isto é espantoso!...

Eduardo.--Não vês que represento um papel hypocrita, tão contra o meu
caracter, para te não perder?

Jorge (_o mesmo_).--É incrivel!...

Julia.--Conheço tudo... meu anjo... Vou á sala... póde notar-se a minha
falta...


SCENA VII.

     Eduardo , _e depois_ Leocadia, _e depois o_ Visconde _na porta do
     fundo sem ser visto_. (_Ouve-se ainda a musica da Norma_).


Eduardo.--Tornemos á posição do benemerito Tartufo. Oh meu querido
Moliere, onde quer que estás recebe os meus agradecimentos pelo
excellente molde que me cá deixaste!

Leocadia (_impetuosamente_).--Eduardo... só duas palavras... Olha que
Alvaro viu-te sahir de minha casa...

Eduardo.--Viu?! estão explicadas as gargalhadas...

Leocadia.--Receio maus resultados... Elle é capaz de tirar qualquer
vingança... Oh meu Deus!... estou sobre um vulcão...

Eduardo.--E eu dentro d'uma tina... Deixa correr os successos... Vai,
que podem descobrir-nos...

Visconde (_á parte_).--Como se explica isto?

Leocadia.--Que has-de tu dizer se elle nos denuncia?

Eduardo.--Provo que não sou mais immoral que elle... As pretenções são
as mesmas...

Visconde.--Isto é bonito!... (_Retira-se_).

Leocadia.--Que situação a minha!...

Eduardo.--Retira-te, que podem surprehender-nos... (_Leocadia sahe_).


SCENA VIII.

Eduardo, _e depois a_ viscondessa, _e_ Alvaro _ao fundo_.


Eduardo.--Atropellam-se os acontecimentos!... Tudo isto faz persuadir
que eu tenho sido um homem verdadeiramente virtuoso! No tempo em que eu
era cynico, antes que a sociedade me chamasse regenerado, as mulheres
não andavam assim n'uma dobadoura em redor de mim! Ó benevola opinião
publica, quanto te devo!... Ahi vem outra que me não faz muita honra!...

Viscondessa.--Aproveitei um instante para estar só comtigo antes que
elles venham...

Eduardo.--Como és carinhosa!

Viscondessa.--Desconfiei que Leocadia tivesse vindo para aqui... Sabes
que tenho ciumes de todas as mulheres!...

Alvaro (_á parte_).--Que ouço!...

Eduardo.--Continuo a representar bem? A platea applaude?...

Viscondessa.--O visconde disse-me n'este momento que tinha muito que
contar-me... perguntei-lhe a que respeito... e elle de fugida pronunciou
o teu nome e de Leocadia...

Alvaro (_aparte_).--E Leocadia!...

Eduardo.--E Leocadia!... Como se entende isso?...

Viscondessa.--Não sei... Mudemos de tom que elles ahi vem...


SCENA IX.

_Os mesmos, e_ Julia, Alvaro, Jorge _e_ Leocadia.


Viscondessa (_com emphase_).--Pois não queremos uma virtude assim
melancolica... É necessario que resurja d'esse abatimento moral, snr.
Eduardo... A verdadeira felicidade está na consciencia. O seu passado
não tem a pedir contas ao seu presente... A sociedade abre-lhe o braços
como ao filho prodigo... (_Alvaro solta uma risada_).

Que riso é esse, snr. Alvaro?

Alvaro.--É um riso nervoso!...

Eduardo (_á parte_).--Mau!...

Leocadia.--Não tem razões para tanta melancolia!... É estimado
geralmente pelas suas virtudes, e merece a confiança de todas as
pessoas... (_O visconde solta uma risada_).

Que risada é essa, snr. visconde?

Visconde.--É uma risada como a d'aquelle senhor (_apontando Alvaro_). É
uma risada nervosa!

Eduardo (_á parte_).--Peor!...

Julia.--Parece que escarnecem a virtude!... Estas transfigurações moraes
custam muitas amarguras... Eu comprehendo a melancolia do snr.
Eduardo... Lembra-se do que foi, e, no prazer do que é, sente pesar de o
não ter sido desde muito... (_Jorge solta uma risada_).

Tambem o senhor se ri?

Jorge.--É uma risada como a d'aquelle senhor... (_apontando Alvaro_) é
uma risada nervosa...

Eduardo (_á parte_).--Está tudo por terra!... (_Alto_). Vejo que os meus
amigos estão muito nervosos!... Banhos de mar podem ser-lhes
proveitosos... Não acho bonito que me escarneçam... Fazem-me lembrar a
fabula do leão e do... Em fim, seja tudo em desconto das minhas
culpas!... (_Riem todos tres_).

Ora comprehendam isto!... É um abuso do riso!... Eu não lhes mereço
isso, senhores! Dizem por ahi que eu sou um honrado homem, e não se
cospe assim na honra...

Jorge (_á parte_).--Vou-lhe arrancar a mascara!...

Visconde (_á parte_).--Hypocrita!

Alvaro (_á parte_).--O impostor não passará d'hoje...

Viscondessa.--Que falsa posição é esta?

Leocadia.--Não entendo isto!

Julia.--Nem eu!

Eduardo.--Nem eu!...

Viscondessa.--Que modos são esses!... em que pensam os senhores?...

Alvaro.--Eu pensava nos recursos do talento depravado!... Senhores!... é
necessario que se acabe este comedia d'algum modo!... Aquelle senhor
(_indicando Eduardo_) é um impostor!

Eduardo.--Eu! Calumnia! infamia... quero as provas...

Alvaro.--A snr.^a D. Leocadia que as dê...

Visconde.--Justamente: a snr.^a D. Leocadia que as dê!...

Jorge.--Minha mulher!...

Leocadia.--Eu!

Eduardo.--Ella!...

Alvaro _e_ Visconde.--Sim! ella!...

Jorge.--Pois bem... cáia a mascara... Esse senhor é um infame seductor!

Eduardo.--Eu!

Viscondessa.--Elle!

Jorge, Visconde, _e_ Alvaro.--Sim, sim, elle!

Eduardo.--Provas, senhores calumniadores!

Jorge.--Provas? a snr.^a D. Julia que as dê!

Alvaro.--Minha mulher!

Julia.--Eu!

Eduardo.--Ella!

Jorge _e_ Visconde.--Sim, sim, ella!

Alvaro.--N'esse caso... rasgue-se o véo do mysterio... Todos somos
victimas da hypocrisia d'esse homem!

Visconde.--Menos eu!

Viscondessa.--Nem eu!

Eduardo.--Provas, senhores!

Alvaro.--Provas? a snr.^a viscondessa que as dê.

Visconde.--Minha mulher!

Viscondessa.--Eu!

Eduardo.--Ella!

Alvaro _e_ Jorge.--Sim, sim!

Eduardo.--Todas tres!...

Alvaro (_para Julia_).--Responde!

Jorge (_para Leocadia_).--Que dizes a isto?

O visconde (_para a viscondessa_).--Pois não te defendes?

Todas tres.--É falso!...

Eduardo (_mudando de tom_).--Eu vou defendêl-as, minhas senhoras!

Alvaro.--A snr.^a D. Leocadia não tem defeza nenhuma, porque...

Eduardo.--Silencio!

Jorge.--A snr.^a D. Julia não tem defeza nenhuma, porque...

Eduardo.--Esperem!...

Visconde.--Concordo que nenhuma d'essas tem defeza!... mas é preciso que
me provem que...

Eduardo.--Alto lá... Queiram retirar-se, minhas senhoras... É defeza a
presença das rés no tribunal que vai installar-se... Queiram
retirar-se... (_Ellas sahem_).


SCENA X.

Eduardo, Jorge, Alvaro, _e o_ Visconde.


Eduardo.--Venham cá... Os senhores não tem ouvido dizer que eu me
regenerei? Respondam, sim ou não?

Alvaro.--Qual _regenerou-se_! É um impostor!...

Eduardo.--Concordemos em que sou um impostor. Mas digam-me: a opinião
publica a meu respeito é essa?

Visconde.--Não é... porque o senhor enganou-nos.

Eduardo.--Pois, se não é, porque não respeitam os senhores a opinião
publica á qual me mandaram obedecer?

Visconde.--Já lhe disse que a opinião publica está illudida com o
senhor!

Eduardo.--E d'antes? ha quatro mezes era mais verdadeira que hoje?

Jorge.--Não quero disputas... Não respondo ao seu interrogatorio...
Quero uma satisfação immediata.

Alvaro.--E eu tambem.

Eduardo.--E o snr. visconde?

Visconde.--Veremos, depois...

Eduardo (_sorrindo_).--Acha que não vale a pena decidir já... Pois lá
hiremos... Mas, antes d'isso, queiram attender-me: os senhores, com uma
bala, em duello, podem matar-me, primeira loucura; e, se me não matam,
arruinam a minha boa reputação, que eu aprecio mais que a vida; segunda
asneira... Que lucram os senhores com isto?

Alvaro.--Nada de philosophias!... É indispensavel para a minha honra um
duello...

Jorge.--Não prescindo.

Eduardo.--Pois se não prescindem, lá vamos... Mas os primeiros que
hão-de bater-se um com o outro, são os senhores! (_Indicando Alvaro e
Jorge_).

Alvaro _e_ Jorge.--Nós?!...

Eduardo.--Os senhores...

Alvaro.--Porque?!

Eduardo.--Porque teem trabalhado reciprocamente na sua deshonra.

Jorge.--Isso é uma nova infamia!

Eduardo.--Mãos na consciencia, meus amigos! O contracto feito ha quatro
mezes na praia dos Inglezes não os exime de serem honrados!

Alvaro _e_ Jorge.--Na praia dos Inglezes!...

Eduardo.--Querem explicações?... Vejam lá o que resolvem... Querem
explicações?... Que dizem?!... Esse silencio annuncia bonança...
Aproveitemos o vento que é favoravel... Concordam em que occultemos
mutuamente as nossas miserias? Eu de mim... (_Comprime os labios com os
dedos_...) Os senhores, se -----File:
245.png---\psaborano\zurc\Manela\psaborano\luisa\---------------são
honrados como a opinião publica os apregôa, calem-se tambem...

Visconde.--Mas eu é que não entro n'esse contracto...

Eduardo.--Nem lh'o propuz... mas, v. exc.^a contando com o silencio
d'estes cavalheiros, de certo não quererá uma ignobil publicidade a
respeito de... Veja lá o que resolve...

Visconde.--Mas v. s.^a não ha-de entrar mais em minha casa...

Eduardo.--D'accordo. Amanhã embarco para a exposição de Pariz, e
tenciono viajar tres annos... Serve-lhe a condição?... O silencio
approva... Muito bem... (_Ao fundo_). Minhas senhoras! queiram
entrar!... (_As damas entram_). Vv. exc.^{as} foram julgadas
innocentissimas e absolvidas... Continuamos todos a ser excellentes
pessoas a todos os respeitos. Estes senhores, de parte a parte, pedem
perdão das calumnias sordidas com que quizeram reciprocamente manchar os
seus nomes...

Viscondessa.--Assim o suppuz!

Julia.--Assim devia acontecer!

Leocadia.--Mas eu não perdôo a quem me infamou!

Viscondessa _e_ Julia.--Nem nós!

Eduardo.--Hão-de perdoar, que são muito boas senhoras, e o perdão das
injurias é o sentimento mais nobre do coração humano... Eu retiro-me com
os meus creditos, e vv. exc.^{as} ficam com os seus... Muito boas
noites... (_Sahe_).

       *       *       *       *       *

Os outros, como é natural, ficam a olhar uns para os outros com aquellas
caras proprias de taes conflictos. O author vem fóra dizer que não ha na
comedia allusões nenhumas. A platéa retira satisfeita, e continúa a
guardar-se dos cynicos.

No dia seguinte os jornaes dizem que a comedia é immoral, e attentatoria
contra os bons costumes. Os Sganarellos mandam comprar o jornal, e
mostram-no aos compadres. O author, conscio de que o mordem, vem no
conhecimento de que os mordentes são os legitimos _Orgons_ d'este
seculo; mas, um pouco menos felizes que os d'uma grande comedia, que o
leitor, se se não recorda, ou não leu nunca, póde encontrar com o titulo
de _Tartuffe_. Se, todavia, detesta a letra redonda, estude a vida
pratica, e chegará á mais difficil das formaturas, ao _ultimatum_ da
sabedoria: «o conhecimento dos homens.» É tão facil, ao primeiro
intuito, estremar o cynico do hypocrita!... Dai-me o primeiro, que
repellis, e não me relacioneis com o segundo, que abraçaes: que eu,
profundamente grato, ficarei pedindo a Deus que vos augmente o dinheiro,
e vos conserve uma saude bem vermelha, bem gorda, para que a virtude não
seja sempre uma irrisão n'este planeta. Disse.

FIM.




INDICE.


Morrer por capricho (romance)                          5
Uma paixão bem empregada (romance)                    25
De abysmo em abysmo (romance)                         35
Aventuras d'um boticario d'aldêa (romance)            41
Cousas que só eu sei (romance)                        55
Dinheiro! dinheiro! (romance)                        109
A caveira (romance)                                  131
Uma praga rogada nas escadas da forca (romance)      155
Pathologia do casamento (drama em 3 actos)           183




Notas:

[1] Systema pathologico do snr. Borges de Castro, facultativo distincto,
na cidade do Porto, em 1853.

[2] Escripto em 1853.

[3] .......





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even without complying with the full terms of this agreement.  See
paragraph 1.C below.  There are a lot of things you can do with Project
Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
works.  See paragraph 1.E below.

1.C.  The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
Gutenberg-tm electronic works.  Nearly all the individual works in the
collection are in the public domain in the United States.  If an
individual work is in the public domain in the United States and you are
located in the United States, we do not claim a right to prevent you from
copying, distributing, performing, displaying or creating derivative
works based on the work as long as all references to Project Gutenberg
are removed.  Of course, we hope that you will support the Project
Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by
freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of
this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with
the work.  You can easily comply with the terms of this agreement by
keeping this work in the same format with its attached full Project
Gutenberg-tm License when you share it without charge with others.

1.D.  The copyright laws of the place where you are located also govern
what you can do with this work.  Copyright laws in most countries are in
a constant state of change.  If you are outside the United States, check
the laws of your country in addition to the terms of this agreement
before downloading, copying, displaying, performing, distributing or
creating derivative works based on this work or any other Project
Gutenberg-tm work.  The Foundation makes no representations concerning
the copyright status of any work in any country outside the United
States.

1.E.  Unless you have removed all references to Project Gutenberg:

1.E.1.  The following sentence, with active links to, or other immediate
access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently
whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the
phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project
Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed,
copied or distributed:

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org

1.E.2.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived
from the public domain (does not contain a notice indicating that it is
posted with permission of the copyright holder), the work can be copied
and distributed to anyone in the United States without paying any fees
or charges.  If you are redistributing or providing access to a work
with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the
work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1
through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the
Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or
1.E.9.

1.E.3.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted
with the permission of the copyright holder, your use and distribution
must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional
terms imposed by the copyright holder.  Additional terms will be linked
to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the
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1.E.4.  Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm
License terms from this work, or any files containing a part of this
work or any other work associated with Project Gutenberg-tm.

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electronic work, or any part of this electronic work, without
prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with
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Gutenberg-tm License.

1.E.6.  You may convert to and distribute this work in any binary,
compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any
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"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version
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request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other
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License as specified in paragraph 1.E.1.

1.E.7.  Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
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1.E.8.  You may charge a reasonable fee for copies of or providing
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that

- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
     the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
     you already use to calculate your applicable taxes.  The fee is
     owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
     has agreed to donate royalties under this paragraph to the
     Project Gutenberg Literary Archive Foundation.  Royalty payments
     must be paid within 60 days following each date on which you
     prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax
     returns.  Royalty payments should be clearly marked as such and
     sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
     address specified in Section 4, "Information about donations to
     the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."

- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies
     you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
     does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm
     License.  You must require such a user to return or
     destroy all copies of the works possessed in a physical medium
     and discontinue all use of and all access to other copies of
     Project Gutenberg-tm works.

- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any
     money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
     electronic work is discovered and reported to you within 90 days
     of receipt of the work.

- You comply with all other terms of this agreement for free
     distribution of Project Gutenberg-tm works.

1.E.9.  If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
electronic work or group of works on different terms than are set
forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

1.F.1.  Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection.  Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or
corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual
property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by
your equipment.

1.F.2.  LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right
of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all
liability to you for damages, costs and expenses, including legal
fees.  YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
PROVIDED IN PARAGRAPH F3.  YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
DAMAGE.

1.F.3.  LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a
defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can
receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a
written explanation to the person you received the work from.  If you
received the work on a physical medium, you must return the medium with
your written explanation.  The person or entity that provided you with
the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a
refund.  If you received the work electronically, the person or entity
providing it to you may choose to give you a second opportunity to
receive the work electronically in lieu of a refund.  If the second copy
is also defective, you may demand a refund in writing without further
opportunities to fix the problem.

1.F.4.  Except for the limited right of replacement or refund set forth
in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.

1.F.5.  Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
the applicable state law.  The invalidity or unenforceability of any
provision of this agreement shall not void the remaining provisions.

1.F.6.  INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
http://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at http://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit http://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including checks, online payments and credit card donations.
To donate, please visit: http://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     http://www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
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