O sangue

By Camilo Castelo Branco

The Project Gutenberg eBook of O sangue, by Camillo Castelo Branco

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Title: O sangue

Author: Camillo Castelo Branco

Release Date: April 28, 2023 [eBook #70664]

Language: Portuguese

Produced by: The Online Distributed Proofreading Team at
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*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK O SANGUE ***





                          COLLECÇÃO ECONOMICA

               Volumes de in-16.º, de 240 a 320 paginas

                    ROMANCES DOS MELHORES AUCTORES

              A 100 réis o volume (pelo correio 120 réis)


Eis os titulos dos ultimos volumes publicados:

  N.º 21--Forte como a morte, por Guy de Maupassant.
  * N.º 22--A alma de Pedro, de J. Ohnet.
  N.º 23--Camilla, de Guérin-Ginisty.
  N.º 24--Trahida, de Maxime Paz.
  N.º 25--Sua Magestade o Amor, por A. Belot.
  N.º 26--Magdalena Férat, por Emilio Zola.
  N.º 27--Os Reis no exilio, por A. Daudet.
  N.º 28--Divida de odio, por Jorge Ohnet.
  N.º 29--Mentiras, por Paul Bourget.
  N.º 30--Marinheiro, por Pierre Loti.
  N.º 31--A montanha do Diabo, por Eugenio Sue.
  N.º 32--A Evangelista, por A. Daudet.
  * N.º 33--Aranha Vermelha, por R. de Pont Jest.
  N.ºˢ 34 e 35--Odio antigo, por Jorge Ohnet.
  N.º 36--Parisienses!... romance, por H. Davenel.
  N.º 37--Ao entardecer!... rom., por Iveling Ramband.
  N.º 38--A confissão de Carolina, romance.
  N.º 39--Um casamento no mosteiro, por Alfredo Assolland.
  N.º 40--Os Parias, original de Francisco da Rocha Martins.
  N.º 41--O abbade de Favières, romance, por J. Ohnet.
  N.º 42--A agonia de uma alma, romance, por Ossip Fchubin.
  N.º 43--Memorias d’um burro, por Madame Ségur.
  N.º 44--A nihilista, por Catulle Mendés.
  N.º 45--O grande Industrial, por George Ohnet.
  N.º 46--Morta d’amor, por Albert Delpit.
  N.º 47--João Sbogar, por Carlos Nadier.
  N.º 48--Viagem sentimental, por Sterne.
  N.º 49--O milhão do tio Raclot, por Emile Richebourg.
  N.º 50--A confissão de um rapaz do seculo, por Musset.
  N.º 51--O romance de um principe, por Pierre de Lano.
  N.º 52--O castello de Lourps, por J. K. Huysmans.
  N.º 53--Amor de Miss, por J. Blain.
  N.º 54--A sogra, por Dubut de Laforest.
  N.º 55--Colomba, por Próspero Merimée.
  N.º 56--Katia, pelo Conde Leon Tolstoï.
  N.º 57--Alma simples, por Dostoiewsky.
  N.º 58--Duplo amor, por J. H. Rosny.
  N.º 59--Contos fantasticos, por Hoffmann.
  N.º 60--A princeza Maria, por Lermontoff, traducção de Alberto de
   Oliveira.
  N.º 61--Rosa de maio, por Armand Silvestre.
  N.º 62--Manon Lescaut, pelo Abbade Prevost.
  N.º 63--O romance do homem amarello, (costumes chinezes), pelo General
   Tcheng-Ki-Tong.
  N.º 64--A dama das violetas, (imitação), por F. Guimarães Fonseca.
  N.ºˢ 65 e 66--Nemrod & C.ª, por J. Ohnet, traducção de Luiz Cardoso.
  N.º 67--Prisma de amor, por Paul Bonhome.

Os vol. com este signal * estão esgotados mas vão ser reimpressos.




                    Collecção ANTONIO MARIA PEREIRA

                   VULGARISAÇÃO DOS MELHORES LIVROS

                                  DAS

                LITTERATURAS PORTUGUESA E ESTRANGEIRAS

            Romances, Contos, Viajens, Historia, etc., etc.

Volumes in-8.º de 160 a 200 paginas, em corpo 8 ou 10, excellente
edição, em optimo papel.

Preço de cada volume 200 réis brochado, ou 300 réis elegantemente
encadernado em percalina.

Para as provincias accresce o porte do correio, 20 réis cada vol.

Eis os titulos dos ultimos volumes publicados:


  N.ºˢ 20 e 21--=A Irmã da Caridade=, por Emilio Castellar, traducção
   de L. Q. Chaves.
  N.º 22--=Migalhas de historia portugueza=, por P. Chagas.
  N.º 23--=A Cruz de brilhantes=, por A. Campos.
  N.º 24--=Contos=, por Affonso Botelho.
  N.º 25--=Contos phantasticos=, por Theophílo Braga.
  N.º 26--=O mysterio da estrada de Cintra=, por Eça de Queiroz e
   Ramalho Ortigão.
  N.º 27--=O naufragio de Vicente Sodré=, romance historico de Pinheiro
   Chagas.
  N.º 28--=Vida airada=, por Alfredo Mesquita.
  N.º 29--=O Bacharel Ramires=, por Candido de Figueiredo.
  N.ºˢ 30 e 31--=Amor á antiga=, romance de Caïel.
  N.º 32--=As Netas do Padre Eterno=, por Alberto Pimentel.
  N.º 33--=Contos=, por Pedro Ivo.
  N.º 34--=O correio de Lyão=, por Pierre Zaccone.
  N.º 35--=Vida de Lisboa=, por Alberto Pimentel.
  N.º 36--=Historias de Frades=, por Lino d’Assumpção.
  N.º 37--=Obras primas=, por Chateaubriand.
  N.º 38--=O Exilado=, romance historico, por Mauricia C. de Figueiredo.
  N.º 39--=Poema da Mocidade=, por Pinheiro Chagas.
  N.ºˢ 40 e 41--=A vida em Lisboa=, por Julio Cesar Machado.
  N.ºˢ 42 e 43--=Espelho de Portuguêses=, por Alberto Pimentel.
  N.º 44--=A Fada d’Auteuil=, por Ponson du Terrail, traducção de
   Pinheiro Chagas.
  N.º 45--=A volta do Chiado=, por Beldemonio (Eduardo de Barros Lobo).
  N.º 46--=Séca e Méca=, por Lino d’Assumpção.
  N.º 47--=Ninho de guincho=, por Alberto Pimentel.
  N.º 48--=Vasco=, por Arthur Lobo d’Avila.
  N.º 49--=Leituras ao serão=, por Antonio Xavier Rodrigues Cordeiro.
  N.º 50--=Luz coada por ferros=, por D. Anna Augusta Placido.
  N.º 51--=A flôr secca=, por M. Pinheiro Chagas.
  N.º 52--=Relampagos=, por Armando Ribeiro.
  N.º 53--=Historias Rusticas=, por Virgilio Varzea.
  N.º 54--=Figuras Humanas=, por Alberto Pimentel.
  N.º 55--=Dolorosa=, por Francisco Acebal, traducção de Caïel.
  N.º 56--=Memorias de um Fura-vidas=, por Alfredo Mesquita.
  N.º 57--=Dramas da Côrte=, por Alberto de Castro.
  N.º 58--=Os Mosqueteiros d’Africa=, por J. da S. Mendes Leal.
  N.º 59--=A divorciada=, por José Augusto Vieira.
  N.º 60--=Phototypias do Minho=, por José Augusto Vieira.




                                 OBRAS

                                   DE

                        CAMILLO CASTELLO BRANCO

                             EDIÇÃO POPULAR

                                  LIX

                                O SANGUE




                          VOLUMES PUBLICADOS


  N.º 1--Coisas espantosas.
  N.º 2--As tres irmans.
  N.º 3--A engeitada.
  N.º 4--Doze casamentos felizes.
  N.º 5--O esqueleto.
  N.º 6--O bem e o mal.
  N.º 7--O senhor do Paço de Ninães.
  N.º 8--Anathema.
  N.º 9--A mulher fatal.
  N.º 10--Cavar em ruinas.
  N.ºˢ 11 e 12--Correspondencia epistolar.
  N.º 13--Divindade de Jesus.
  N.º 14--A doida do Candal.
  N.º 15--Duas horas de leitura.
  N.º 16--Fanny.
  N.ºˢ 17, 18 e 19--Novellas do Minho.
  N.ºˢ 20 e 21--Horas de paz.
  N.º 22--Agulha em palheiro.
  N.º 23--O olho de vidro.
  N.º 24--Annos de prosa.
  N.º 25--Os brilhantes do brasileiro.
  N.º 26--A bruxa do Monte-Cordova.
  N.º 27--Carlota Angela.
  N.º 28--Quatro horas innocentes.
  N.º 29--As virtudes antigas--Um poeta portuguez ... rico!
  N.º 30--A filha do Doutor Negro.
  N.º 31--Estrellas propicias.
  N.º 32--A filha do regicida.
  N.ºˢ 33 e 34--O demonio do ouro.
  N.º 35--O regicida.
  N.º 36--A filha do arcediago.
  N.º 37--A neta do arcediago.
  N.º 38--Delictos da Mocidade.
  N.º 39--Onde está a felicidade?
  N.º 40--Um homem de brios.
  N.º 41--Memorias de Guilherme do Amaral.
  N.ºˢ 42, 43 e 44--Mysterios de Lisboa.
  N.ºˢ 45 e 46--Livro negro de padre Diniz.
  N.ºˢ 47 e 48--O Judeu.
  N.º 49--Duas épocas da vida.
  N.º 50--Estrellas funestas.
  N.º 51--Lagrimas abençoadas.
  N.º 52--Lucta de gigantes.
  N.ºˢ 53 e 54--Memorias do carcere.
  N.º 55--Mysterios de Fafe.
  N.º 56--Coração, cabeça e estomago.
  N.º 57--O que fazem mulheres.
  N.º 58--O retrato de Ricardina.
  N.º 59--O sangue.
  N.º 60--O santo da montanha.




                       _CAMILLO CASTELLO BRANCO_


                                O SANGUE

                                ROMANCE

                    [Illustration: TERCEIRA EDIÇÃO]


                                  1907

                     PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA
      Livraria editora e Officinas Typographica e de Encadernação
                        Movidas a electricidade
                         _Rua Augusta--44 a 54_
                                 LISBOA




                                  1907

                OFFICINAS TYPOGRAPHICA E DE ENCADERNAÇÃO

                        Movidas a electricidade
                   Da Parceria Antonio Maria Pereira
              _Rua Augusta, 44, 46 e 48, 1.º e 2.º andar_

                                 LISBOA




                              INTRODUCÇÃO


--Como tu estás conservado, homem!

Exclamou, n’um d’estes dias, o meu amigo Antonio Joaquim, encarando
comigo, na revolta d’uma esquina.

--Nem pés de gallinha, nem calvo, nem bigode grisalho, os dentes
todos!--proseguiu elle, encruzando os braços sobre a placida cornija do
abdomen.

«Nem sequer duzentos kilos de toicinho, envolucro sujo com que a
natureza veste os seus filhos maiores de quarenta annos, para que
o alfaiate não possa jámais embonecal-os com as graças seductoras
d’um tisico sorvido pelos vampiros do amor!... És invejavel! Pois
convence-te de que és velho!

--Vinte annos ha que eu me convenci, amigo Antonio. Passados mais
alguns, morri. Hoje, o que vês n’este arcaboiço, é uma alma insepulta
e penada que se offerece penitente e docil ás tuas injurias. Não
espremas, comtudo, a esponja, meu amigo. Sabe que todas as passadas,
que dou, vão na vereda escabrosa do meu calvario...

--Devo prevenir-te que não venho disposto para fazer via-sacra--atalhou
o meu velho amigo.--Se vaes até ao calvario, faz lá recommendações ao
mau ladrão, e diz-lhe que, se florescesse em Portugal, mil oitocentos
e trinta e cinco annos depois, seria visconde de Gestas, visto que
elle se chamava _Gestas_. Diz tambem a Dimas, ao bom ladrão, que os do
nosso tempo todos são bons como elle, e por isso todos se salvam. E, se
quizeres questionar com algum dos apostolos, caso lá os topes, diz-lhes
que, presentemente, a gente graúda, á imitação de Christo, considera
os bons ladrões dignos do céo; e que, desde o facto algum tanto
reparavel de ser perdoado um salteador com prejuizo de terceiro, todos
os salteadores «de sobrado alto», como lhes chama a _Arte de furtar_,
são, sobre perdoados, honrados,--o que até certo ponto é christianismo
progressivo.

--Então, como te vae?--atalhei eu, cortando a insulsa calumnia apontada
ao brioso peito de muitos dos meus melhores amigos.

--Vae-me bem, não vês? Tenho esta grande barriga em que está sepultado
o melhor do meu _eu_ subjectivo, e tenho gôta n’este joanete do pé
direito. Tu, pelos modos, és alma penada, e eu sou alma despennada, que
é peor. Tu ainda sobes ao calvario e respiras ar desafogado, em quanto
eu a custo me desatasco da lama. Em summa, estou velho...

--E rico?

--Tambem.

--E feliz?

--Feliz como um cerdo amarrado com uma corrente de ouro. Tu não sabes
ainda o que é a felicidade da pobreza, homem! Não soubeste ainda abrir
o thesouro em que a Providencia divina te remetteu o arnez impenetravel
aos golpes da desgraça...

--Não sei... Terei eu lá em casa isso?!

--Tens, ingrato, se tens!... É o trabalho.

--Ah!

--Esse _ah!_ é alvar. O trabalho é como aquelle anjo que em fórma de
pomba pairava sobre a face de Santo Adelino adormecido, para que os
raios do sol não lhe acordassem os sentidos e a consciencia da dôr. O
trabalho é um absintho celestial, que suavemente embriaga e entorpece
as faculdades cognoscitivas atormentadoras do infeliz ocioso. O
trabalho é a compensação da pobreza...

--E a riqueza que é? uma calamidade que dispensa a pomba de Santo
Adelino ... não é?

--Se alguem ha ahi, até certa idade, verdadeiramente feliz por ella,--o
que não creio--a riqueza é um abutre cruelissimo que principia a
espicaçar o rico, assim que o espelho, e a dispesia, e as insomnias, e
a indifferença das novas, e a consideração das velhas, e o commedimento
dos rapazes em sua presença se conjuram para lhe dizer: «envelheces».
Aqui tens o verdugo, que dá o laço ahi pelos quarenta e cinco annos,
e aperta e arrocha, até aos setenta, até aos oitenta, prolongando-lhe
o supplicio, ao apuro de lhe fazer invocar a morte, execrar o ouro,
amaldiçoar os homens e blasfemar de Deus.

--E que me dizes do pobre que, na tal idade das insomnias e dispepsias,
carece de saude para o trabalho e do trabalho para o pão de seus
filhos?...

--Eu te digo...

--Podes responder d’uma assentada a outra pequena duvida: se será
mais infeliz o rico enfermo rodeado de filhos fartos, do que o pobre
alanciado de suas dôres e dos olhos supplicativos de sua familia?

--Ahi vens tu com o estilo!... Se entras a commover-me, cessa o nosso
debate que é todo philosophico e ouro puro de Droz, de Franklin e
d’outros moralistas...

--Que moralisavam os desgraçados lá d’entre as cortinas adamascadas
dos seus gabinetes, tapetados de alcatifas de tres pêllos... Se elles
fossem os desvalidos, quem lhes ensinaria a moral da paciencia?

--Socrates, Philo, Jesus Christo, João Jacques Rousseau...

--Que sacrilega camaradagem!... Rousseau havia de ensinar os paes
pobres a engeitar os filhos... Meu caro Antonio Joaquim, rico sei
eu que estás; mas a tua philosophia não é a peça mais valiosa que
possues. Eu não sei o que póde ensinar-me Socrates nem Philo. De
Christo sei tres palavras em latim e espero que no outro mundo os
anjos m’as decifrem. _Beati qui lugent_ «felizes os que choram»
disse o amigo dos pobres. Como ninguem o tinha dito, nem escripto,
nem pensado, a interferencia da divindade na desprezada condição dos
infelizes começou na hora em que foram ditas as palavras «felizes os
que choram». E quem as disse não podia ser mero homem... Em summa, se
queres consolar algum engeitado da devassa fortuna, não lhe reprezes
as lagrimas com o dique da philosophia; deixa-o chorar. Lá estão as
estrellas que saem fóra do céo para levarem ao seu creador a relação
das agonias que gemem de noite não vistas nem escutadas de alguem.

--Estás comigo...

--Mas não estou com o teu Rousseau.

--O meu Rousseau... não lhe chames meu, que eu não o tenho nem o li;
citei-t’o por me parecer incrivel que o não tivesses lido, andando elle
nos alforges de todos os fisicos que ungem de unguentos a lepra da
humanidade. Pois tu imaginas que eu leio coisa nenhuma? Faz-me justiça,
se queres que eu admire as tuas novellas sem as lêr... A proposito
de novellas, lembrei-me ha dias de ti, n’um lance que me pareceu
original...

--Um lance original!...--atalhei eu.--Coisa que dê um livro original!?

--Um livro? isso não sei; mas, se é verdade o que ouvi dizer de ti...

--Que ouviste dizer de mim?...

--Franqueza! Tu não te offendes, nem eu sei se é louvor, se offensa a
censura: ouvi dizer que fazias dez livros originaes de uma idéa sem
originalidade nenhuma. Isto é verdade?

--Parece-me que sim... Eu tenho calculado que a Providencia me concedeu
dez idéas: foi prodiga comigo. Estas idéas repartidas por cincoenta
volumes conferem com a conta da censura. Vaes tu dar-me uma idéa
original: tenho que explorar no restante da vida... Então que foi?

--Não é historia que se conte na rua. Vem jantar comigo. Tu ainda
comes? Ás almas insepultas é concedido errar, em volta da lagôa estigia
d’uma terrina de sôpa do «hotel Francfort»? Não ha inconveniencia em
que as almas penadas assimilem alguns bocados de boi assado? Se não
ha, vem, puro espirito! Jantarás comigo alguns dias; e no ultimo, ao
troar a trombeta clangorosa, os teus ossos, melhormente vestidos,
não irão perfurando a encontrões as carnes dos que merreram gordos e
apopleticos. Vens?

--Vou. Posso desde já dizer ao meu editor que descobri a idéa numero
onze? E que a descobri na transparencia da tua cabeça?

--Isso não. Se por ahi desconfiam que tenho terço de idéa, minam-me os
creditos. Deixa-me fruir a reputação que me faz insuspeito á confiança
de pessoas com quem tenho negocios. A besta é coisa superiormente
importante, desde que S. João, o apocaliptico, viu uma corpulentissima.
Todas as bestas, mais ou menos aparentadas com a do vidente de Pathmos,
trazem boa sina comsigo. Pelo menos, emquanto eu tiver que vender e
comprar faz-me a mercê de me não vilipendiar com a denuncia de que eu
te dei uma idéa... Lembra-te dos desgostos que me iam dando as tuas
VINTE HORAS DE LITEIRA. Foi preciso que o teu livro esquecesse para
que eu recobrasse os creditos fallidos.

--E esqueceu já o meu livro?!

--Ora!... se esqueceu!... quando eu voltei ao Porto, quinze dias depois
da publicação, apenas se lembrava d’elle consternadamente a empreza
editora. Vamos jantar.

O repasto do hotel Francfort foi leve.

Quem come francezmente cria alma; corpo é que não.

Aquelle magro môlho em que boiam cascas farináceas não entulha os
ductos da intellectualidade. A viscera vital por excellencia não
escoiceia o visinho de cima como succede nos casos em que o esôfago
arfa sacudido pelo estomago repleto de fibrina. O coração agita-se
docemente quando o novo chilo se está elaborando.

Respeitado nos seus altos camarins e não azoado com o estridor dos
dentes e das funcções digestivas, o espirito exercita-se em pleno gôso
de suas faculdades.

A alimentação franceza póde levar á dispepsia, sem duvida; porém, o
que no homem ha digno da maior estima e merecedor de toda a cautela,
a alma, essa asseguro eu que não tem senão um passo a dar entre a
cosinha franceza e a idealisação germanica. Se os jejuns espiritavam
os cenobitas de Isthria até entreverem Deus por um postigo do céo,
as aguas aromaticas das caçoulas do «hotel Francfort» subtilisaram o
espirito do meu amigo Antonio Joaquim a uns altos devaneamentos, que me
não pareciam d’elle nem dos seus annos.

Fallava-me da nossa mocidade como quem perdêra com ella muitas coisas
bellas e irreparaveis. Elle, que não tinha perdido senão o direito que
todo o homem tem a fazer uma dada somma de tolices! Elle que, entre o
berço e o thalamo, apenas teve tempo de crescer, engrossar e depôr no
regaço de sua esposa um coração cheio de casta ignorancia das coisas
boas e más d’este mundo!...

Que saudades do passado eram pois as d’elle? Seriam as dos prazeres
não experimentados na idade competente, e dos quaes o coração vasio
lhe estava agora, no declive da vida, a pedir contas? Assim como
a demasiada cautela da dieta enfraquece o estomago e o predispõe
á anemia e á enfermidade, porventura, guardadas as distancias que
topograficamente não são grandes, ao coração minguado de alimentos
fortes virão afinal as doenças resultantes da inactividade violenta a
que o forçaram preceitos ou circumstancias?

Parece-me que sim.

De qualquer das maneiras, Antonio Joaquim, discorrendo tristemente
sobre a brevidade da vida, e o reflorir da alma, quando o fogo da
cabeça já não derrete a neve eminente de quarenta e tantos invernos,
fez-me dó e ao mesmo passo desafiou-me a chorar com elle: situação
ridicula que sustentamos por espaço de meia hora.

Elle adivinhava o que perdêra; e eu sabia o que tinha perdido; elle
anhelava imagens lucidas que tardiamente se lhe espelhavam na alma; e
eu tocava em mortalhas que se desfaziam em cinzas.

Estas angustias eram entremeadas com alguns tragos ardentes de cognac,
que mais me accendia no peito rebates de saudade de um tempo em que o
absinto me era doce e refrigerante como a orchata e capilé d’estes meus
caducos dias emplasmados em linhaça e refrigerados com soda-wather.

As lagrimas estancaram-se. E eu, para divertir o animo da inconsolavel
tristeza, perguntei ao meu amigo:

--E a idéa original que me prometteste?

--Vou dar-t’a. O prefacio foi longo, mas ajustado ao assumpto. Fallei
da nossa mocidade, porque a historia principia então. Ha vinte e dois
annos que eu te conheci no theatro de S. João. Lembras-te?

--Muito. Quem fez as apresentações foi um meu contemporaneo, que vinha
de Coimbra comigo. Chamava-se...

--Nicoláo d’Almeida; vinha com o acto do 4.º anno.

--Ainda vive?

--Vive morto.

--Como? Vive morto?!

--Lá chegaremos... Representava-se a _Degolação dos Innocentes_, e era
um domingo de tarde...

--Bem me lembro--atalhei eu.

--Estás certo d’aquelle pedaço de omoplata de carneiro que caiu sobre
ti d’um camarote de 3.ª ordem?

--Se estou!

--Muito folgo que te lembres. O Nicoláo apanhou-a do chão n’um lenço
que levantou pelas pontas, e convidou-nos a seguil-o ao camarote onde
o cordeiro, tambem innocente, soffrêra as consequencias da degolação.
Recordas?

--Mal. Ajuda a minha memoria que se está deliciando n’essas recordações
liricas.

--Fomos e vimos uma familia de varios Herodes, descarnando as costellas
da victima com um ranger de dentes bastante a justificar que ainda
temos que farte sangue e queixos hellenicamente ruidosos, d’aquelles
que Homero cantou. No camarote estavam, á primeira luz, varios sujeitos
gordos e mulheres de condigno bojo que representavam em geral e cada
qual em particular um curral de carneiros assados e digeridos. As
esposas e filhas e irmãs, ou o que eram d’aquelles antropófagos, tinham
as mantilhas penduradas dos cabides, dando ao interior do camarote um
aspecto lugubre de ágape gentilica onde as victimas sacrificadas fossem
logo comidas. Um dos sacrificadores, que parecia o mais auctorisado
por ter em punho a cabeça meio descascada do cordeiro, suspendeu-se no
lanço de a levar aos dentes engatilhados, e, arrotando, regougou:

«Os senhores que querem?!»

Nicoláo fez uma grave mesura, estendeu o braço para dentro com o lenço
pendurado e respondeu solemnemente:

--Foi d’este camarote, sem duvida, que uma das senhoras deixou cahir a
parte respectiva do bôdo?

--Do bode??--perguntou o chefe dos cannibaes, forçando com um arranco
interior a descida do bocado que lhe entopia os gorgomilos.

--Do bode,--tornou Nicoláo--se vossa senhoria quer que seja bode,
carneiro, porco-espinho ou como é que deva chamar-se o animal comido e
ex-proprietario d’esta pá.

--Foi o Felizardo que deixou cair...--disse uma creatura femeal,
relançando a vista repreensiva sobre o sujeito que se chamava Felizardo.

No entanto, o nosso amigo, com ademans de quem entrega uma luva que
alguma formosa senhora lhe deixou feliz e acintemente cair ao alcance
da mão, acercou-se d’uma das trez senhoras esphericas, e deu ares de
lh’a querer depositar no regaço, largando trez pontas do lenço.

--Ai, credo!--exclamou a velha sacudindo as mãos e encolhendo contra o
tabique a parte proeminente da região umbilical, expressões que deves
empregar, se escreveres a historia, por que o termo do uso commum é
d’aquelles que tresandam a theatro anatomico. Lembras-te d’isto?

--Como se o estivesse vendo--confirmei eu alanciado de saudades.--Até
me recordo de uma bellissima rapariga que estava n’esse camarote.

--Bem sei eu por quê... Era ella uma das formosuras que ficam impressas
na alma, atravez de annos e seculos, como as virgens de Urbino ou as
outras imagens menos virgens de Ticiano. Que sabes tu d’essa mulher que
viste ha vinte e dois annos?

--Nada: creio que nunca mais a encontrei... decerto não. Apenas me
lembro de que Nicoláo d’Almeida me escreveu para a provincia, dias
depois do episodio do carneiro, e me dizia que estava apaixonado pela
mulher divina que comia carneiro. Não dei peso á linguagem chula da
noticia, nem tornei a vêr Nicoláo d’Almeida. Alguem me disse depois que
elle vivia relegado no seu solar do Alto Minho, e que não concluíra
a formatura. Ha mais de quinze annos que ninguem me fallou d’elle.
Agora me dizes tu que o Nicoláo vive morto... Coitado! Queria ainda
vel-o n’esse estado extravagante!... Começo a crer que me dás uma idéa
original...

--Lá chegaremos... O caso é que te recordas bem da menina que se
escondia entre as mulheres gordas com uma andorinha entre trez peruas?

--Sim.

--Pois então ahi tens um dos personagens componentes da idéa original
que te offereço.

--Quem? a tal?! Aquella familia como _original_ podia figurar nas
exposições fotograficas; mas considerada _idéa_ não me daria para
um capitulo. Pelo que vejo, a idéa offerecida com tão magnanimo
desinteresse é a pá descarnada do carneiro!...

--Principia ahi pontualmente. Olha que começos teve uma tragedia
obscura!... Continuemos as reminiscencias de 1845. Nicoláo, ao dar de
rosto na mulher que se retraía de ser vista, quedou-se dois segundos
a a contemplal-a, perdeu o engraçado atrevimento, e saíu do camarote
canhestramente como se fosse corrido. Quando desciamos a platéa, disse
elle: «Eu vi aquella mulher em Caminha ha anno e meio; e, desde que a
vi, outra imagem não pude mais vêr em meus sonhos, nem encontrei mulher
que m’a fizesse esquecer. Aquella é a minha inevitavel fatalidade!»

--D’isso é que eu de todo me não recordo.

--Talvez lh’o não ouvisses. Entramos á platéa. Nicoláo nunca mais
desfitou a vista do camarote da 3.ª, sem que visse a linda cabeça de
Thomazia (chamava-se Thomazia) por entre os volumosos commensaes.
Saimos ao vestibulo, concluida a tramoia de Herodes, e esperamos que
ella descesse. Tu já tinhas saído no intervallo do 3.º acto, e por
isso não assististe a um rasgo de generosidade com que pódes fechar
originalmente a introducção do teu romance.

Chovia a odres. A familia carnivora esperava no pateo que estiasse
a chuva cada vez mais torrencial. Nicoláo d’Almeida saíu açodado
dizendo-me que o esperasse. Guiado prosperamente pelo amor, foi topar
um carroção que despejava as ultimas dez pessoas da terceira familia
em uma casa da rua de Santo Antonio. Offereceu ao carreteiro porção
fabulosa de pintos, e conduziu á porta transversal o carroção que,
debaixo das cataratas do céo, parecia a Arca Santa no trigessimo
nono dia do diluvio universal. Avisinhou-se cortezmente o bacharel
da familia que se aconchegava como rebanho que farisca lobo, e disse
voltado a um dos trez homens gordos:

--Tomo a liberdade de offerecer a vossas senhorias um carroção que os
conduza a sua casa.

--Este e o do osso...--disse uma das gordas á orelha da outra.

A menina achegou do cóllo a mantilha e baixou os olhos divinisados de
pejo.

O sujeito, a quem Nicoláo se dirigira, respondeu bem-humorado:

--Não é de desagradecer o favor, porque chove que tem diabo, e nós
moramos nas Cangostas.

O nosso amigo saíu debaixo do alpendre e disse ao boieiro: «Leva estes
senhores á rua das Cangostas.»

E, cortejando o rancho, saíu comigo pela outra porta, murmurando: «Que
mulher!»

--Bem!--exclamei eu, já temos dois não vulgares elementos para um
romance ideado originalmente; a saber: a pá d’um anho e um carroção!
Duas especies raras!

       *       *       *       *       *

Antonio Joaquim proseguiu até noite alta a historia.

Devo confessar abertamente que o enredo, confiado a compositor de
engenho affeito a immolar a verosimilhança para comprazer a dois
ou trez leitores, dava largas a fantasias originaes. Na minha
officina, por mais que a Europa se queixe, as obras hão de sair
sempre fundidas das fôrmas da verdade. Não importa que o verdadeiro
orce pelo fastidioso, e as maravilhas da invenção lhe ganhem no
stadío da popularidade. N’um paiz de gente que lê sempre, como este
em que os paes se reproduzem para ter o gosto de dar leitores á
republica litteraria, ha partidos para todas as bandeiras da milicia
intellectual. Eu, de mim, sem invejar a voga dos meus visinhos,
conto sempre com consummidores que vencem em sêde de lêr a temeraria
affoiteza dos editores. Escrevo para a gente séria. O meu partido é o
da gente séria. Tenho por mim todos os _amigos da verdade_ que assignam
as correspondencias das gazetas. Para estes e outros inéditos é que
eu vou concertar os apontamentos que hontem escrevi, ao compasso da
narrativa do meu amigo Antonio Joaquim, a quem deixo aqui estampada a
minha eterna gratidão.




                               O SANGUE




                              CAPITULO I

                               Argumento

 Fundação da rua das Cangostas, no Porto; origem dos Barros, e sua
 descendencia até ao seculo XIX. Diz-se quem comia o anho no theatro de
 S. João e outrosim quem era a menina que tolheu o espirito de Nicoláo.
 Dá-se noticia de Innocencio. Virtudes do negociante, e suas duvidas a
 respeito da liberdade. Não entende o que seja diplomacia, e representa
 o fervor constitucional dos seus contemporaneos. Como Gervasio José se
 bateu para que o não roubassem, e dá assim a razão por que se bateram
 muitos que foram liberaes depois. Lagrimas de creança. A razão por que
 os orfãosinhos não choram.


Quando os frades de S. Domingos, do Porto, no primeiro quartel do
seculo XVI offerecêram terreno da sua cerca aos portuenses que
quizessem edificar, muitos aceitaram a liberdade dos dominicanos, e
para logo se formou a rua das Cangostas. Um dos fundadores da nova
rua chamava-se Pero Barrios, judeu oriundo de Castella, e official de
tecidos de prata e ouro.

Os filhos de Pero, indecisos entre Moisés e Jesus, inclinaram-se
á religião que mais os caucionava de sustos e desfalques no seu
prosperado commercio. Seguiram pontual e ostensivamente o rito romano,
guardando em secreto os preceitos d’uma religião comesinha que ainda
hoje nos parece ser a predominante na Europa: a religião da absoluta
indifferença por todas.

D’esta arte, a familia Barros, já aporteguezado o appellido
hespanhol, fruia socegadamente os seus haveres mediante as toleraveis
incommodidades de ir, cada quaresma, confessar culpas veniaes aos
dominicos, de presentear o prior com algumas varas de galão de ouro
para guarnecer os paramentos sacerdotaes, acudir aos jubileus, aos
lausperennes, e á missa nos dias santos com fervor edificativo.

Estes trabalhos eram suaves e bons de levar comparados aos dos
contumazes e boçaes hebreus, que, por amor das tabuas da lei, se
deixavam levar de casa á mesa do santo officio, da mesa ao carcere, do
carcere á polé, da polé ao templo de Jesus misericordioso, do templo
ao tribunal civil, e d’aqui á fogueira. O filho de Jethro, por optimo
legislador e subtil embaidor que haja sido, realmente não valia tanto.

Outro Pero de Barros, bisneto do primeiro morador na rua das Cangostas,
reedificou a casa de seu bisavô, fazendo-lhe portas voltadas á rua,
feitio que a camara do seculo XVI não consentira sem pleito aos
primeiros edificadores, como se depreende de um documento ainda
archivado no cartorio municipal.[1]

[1] Veja o LIVRO 1 DAS CHAPAS, fl. 314. A camara queria perceber fôro
das casas que tivessem portas para a rua, e embargava a obra dos
esquivos ao pagamento. Os frades ganharam o pleito, fazendo levantar os
embargos e isentar os proprietarios.

Aquelle Pero de Barros era já abastado em 1700. Seus filhos levantaram
mão da tecelagem de ouro e deram-se ao commercio de estofos chamados de
Damasco. Em 1750 os netos do segundo Pero, já muito ricos, mercadejavam
em vinhos, e possuiam grandes montados no Douro que plantavam de
vinhaes, animados pelo trafego mercantil que respondêra cabalmente ás
previsões do ministro de D. José I.

No primeiro quartel d’este seculo, os Barros eram contados entre os
maiores proprietarios do Porto, e tinham largado todo o negocio,
laborando tão sómente na cultura dos seus bens de raiz.

Dizia, em 1806, João Maria de Barros, representante dos antigos e já
esquecidos israelitas de Cordova, que seu pae lhe deixára em dinheiro
de contado quinhentos mil cruzados em ouro, estipulando-lhe que esta
reserva a transmittisse intacta aos seus descendentes, com a obrigação
restricta de darem este dinheiro para a reedificação de Jerusalem,
se alguma hora os hebreus dispersos se congregassem e fintassem para
renovar a cidade de Salomão, consoante o promettido pelos seus
profetas. Este pio legado acabou na pessoa de João Maria de Barros,
em razão de lhe entrarem em casa os francezes invasores em 1808, e
descobrirem debaixo d’um leito de páo santo o cofre ferrado com o
recheio dos quinhentos mil cruzados, os quaes a esta hora constituem,
em Pariz, a opulencia de alguma duqueza, filha do soldado, que roubou a
casa da rua das Cangostas, e morreu general do imperio.

De João Maria ficaram trez filhas e trez filhos. O mais velho, Gervasio
José de Barros, casou em 1820 com uma parenta. Os outros ainda em 1846
estavam solteiros, e de crer é que já não casassem, porque todos eram
maiores de cincoenta annos, segundo me parecêram nos instantes em que
os vi no camarote do theatro de S. João.

Esta era a familia que comia o carneiro assado, em quanto os algozes de
Herodes afinavam os cutellos para a degolação dos quatorze mil meninos
da Judéa, horror que parecia não pungir grandemente o coração d’aquella
familia mais ou menos aparentada com os pequerruchos descabeçados.

No camarote, porém, estava uma formosa menina: d’essa vamos agora
esclarecer os dois leitores que ainda não adormeceram.

Um capitão de infanteria n.º 18, aquartelado em Santo Ovidio, do Porto,
teve de sua mulher uma filha em 1826.

A mãe da creancinha morreu de parto, e o capitão, com a filha ainda mal
lavada nos braços, fazia grandes clamores á beira do cadaver da esposa.

A residencia da morta era fronteira á casa de Gervasio José de Barros.
A senhora Thomazia, mulher do negociante de vinhos, ouvindo os gritos
do attribulado viuvo, atravessou a rua com suas cunhadas, e foi topar
com o espectaculo tristissimo. Queriam as boas creaturas consolar
o viuvo, offerecendo-se a cuidar da creação da menina, se elle não
tinha pessoas de familia que o fizessem com mais direito. O official,
debulhado em lagrimas, confiou a filhinha á misericordia das trez
senhoras e rogou á alma de sua mulher que pedisse a Deus as cobrisse de
bençãos e prosperidades.

Quando o cadaver saíu com lustroso saimento á custa dos Barros, passou
a creancinha para casa das bemfeitoras, e andou de cóllo para cóllo de
todos, como se fosse da familia.

Thomazia, ao oitavo dia, foi ser madrinha da menina que se chamou
tambem Thomazia; Gervasio foi o padrinho, e os irmãos vestiram opas na
cerimonia. Foi dia de festa na casa; mas nem todos exultavam. O capitão
baptisou tambem a filha com lagrimas, e não pôde engulir bocado do
farto jantar, por que via defronte a janella da alcôva onde sua mulher
expirára oito dias antes.

A este tempo, Gervasio José já tinha um filho de trez annos, chamado
Innocencio. Quem embalava o berço de Thomazia era o pequenino; mas
importava vigiar-lhe o zelo de adormecer á força a creança, porque
elle, ás vezes, dobrava-se sobre o colchãosinho da pequena, e tanto
se aconchegava para a beijar, que lhe magoava o rosto com o nariz um
tanto judaico. As sete pessoas da familia riam muito da asáfama do seu
Innocencio á volta do berço, e parece que mais estremeciam a orfanada
do amor maternal á medida que o menino se lhe ia mais afeiçoando.

O capitão Joaquim Alves Pinto, pae de Thomazia, foi desligado, no
seguinte anno de 1827, como suspeito constitucional. O negociante
levou-o para sua casa onde o agasalhou com tal alegria, que o
favorecido com a hospedagem parecia elle. Entretanto, o official
chorava secretamente a dependencia, e a quebra na carreira por onde
esperava grangear dote para sua filha. Joaquim Alves, procedente de uma
familia pobre de Monção, sentára praça em 1806, e alcançára nas bravas
luctas de então o posto d’onde repentinamente fôra desapossado.

Conjurou-se com os revolucionarios na esperança de readquirir a
patente. Foi um dos que levantaram o grito da revolta, em Aveiro,
na manhã do dia 16 de maio de 1828, associado aos cidadãos, e
officialidade de caçadores n.º 10. No mesmo dia, insurgiu-se no Porto
infanteria 6 e outros corpos de diversas armas. D’aqui até á hora em
que o _Belfast_ se fez de vela para Inglaterra carregado de generaes
e doutores, o capitão, ora esperançoso ora desalentado, exercitou a
actividade de quem estava jogando o seu futuro e o da filhinha. Chegado
o dia 3 de julho, e escondida nas brumas do oceano a náo que levava
enrolada no porão a bandeira da liberdade, Joaquim Alves queimou as
faces da filha com as lagrimas da desesperação, e pediu de joelhos, á
beira do berço onde ella dormia, e a rodeavam as senhoras lagrimosas,
que lhe amparassem a desgraçadinha que nem já tinha pae. Todos lhe
asseguraram o seu amor á menina e a certeza de que não sentiria a falta
de sua mãe, ao mesmo passo que o negociante de vinhos lhe insinuava na
algibeira um rôlo de peças, dizendo que lh’as pagaria, quando voltasse
general.

O emigrado fugiu por Galliza e seguiu a sorte dos mais affoitos e
constantes, bem que a levasse melhorada emquanto lhe durou a esmola do
seu compadre.

Foi crescendo a menina acariciada por egual com Innocencio que a
disputava aos braços da ama. Se a extremavam d’elle os corações dos
paes, as exterioridades pareciam dizer que no affecto de familia os
dois meninos eram irmãos.

De longe a longe, vinham noticias do emigrado: mas pedidos de novo
emprestimo nunca vieram. O capitão de si pouco dizia: todo o seu
lastimar-se era de saudoso da filha e da patria, para onde pedia a Deus
monção de voltar, ainda que tivesse de despir a farda sem mancha e
vestir a jaqueta de operario.

Consolavam-n’o as noticias idas do Porto. Gervasio com a sua linguagem
de ouro em bruto levava-lhe a mal que elle se queixasse da fortuna,
quando sua filha estava mimosa como se fosse irmã de Innocencio. «Saiba
vocemecê--escrevia o bonissimo homem--que Thomazia já tem dote; tanto
monta que o compadre venha general como tambor. Tenho no Douro uma
quinta que me dá quarenta e cinco pipas de feitoria, e que já cá em
casa se chama a quinta da Thomazinha. Se vocemecê precisar de dinheiro,
lá lhe irá. Faça de conta que é a filha que lh’o empresta do rendimento
da quinta, etc.»

Voltou o repatriado entre os 7:500 da heroica expedição. Correu á
rua das Cangostas com o alvoroço de quem antevia a morte na primeira
batalha e receava não ter tempo de ver a filha. A menina, linda como
os anjos que alguma vez se deixam ver n’aquella idade, tinha seis
annos. O capitão vinha roto, empoado, sujo, encanecido, com as barbas
grisalhas até meio do peito. A pequenita Thomazia, nos braços d’elle,
chorava de medo, e limpava as faces que o pae lhe humedecia de lagrimas
e arranhava com os bigodes. Alegria verdadeira, n’aquelle encontro, não
a tinha ninguem. O dono da casa, lembrado da invasão dos francezes,
enterrava o dinheiro e entrouxava as preciosidades para fugir. O
dilemma que o apertava era que, se os liberaes lhe não saqueassem a
casa, lh’a saqueariam os realistas.

--Tanto me faz a mim ser roubado por uns como por outros--dizia elle
com admiravel lucidez de intelligencia.--Quem tem alguma coisa que
perder vae-se pondo ao fresco. Pelos modos, os liberaes do Porto são
os pobres sómente; que os ricos fogem todos. Um partido de pobres não
ha de ir longe. Vocemecês, se veem todos vestidos n’este gosto, que
remedio teem senão vestir-se sem pagar?--argumentava elle com logica de
seu uso.--E quem não tem com que pagar, por mais honrado que seja, ha
de ir roubar as coisas onde ellas estiverem. Nada... Estou aqui, estou
no Douro. Mal por mal, antes me quero de bem com oitenta mil homens e
de mal com sete mil e quinhentos...

O capitão não estava para cathequisar correligionarios: a lembrança
da Belfastada tolhia-lhe as molas da eloquencia; e o coração, todo
embebecido na filha, apenas lhe dava um agro-doce de lagrimas que o bom
do Gervasio não podia avaliar n’aquella cojunctura de medo aggravado
pelo silencio do militar.

A menina, decorrida meia hora, familiarisou-se com o temeroso aspecto
do pae, e já lhe respondia breve ás perguntas carinhosas. Não obstante,
quando elle se retirou, receioso de quebrantar a disciplina, Thomazia
voltou-se para as senhoras Barros, e disse, com certa tristeza,
que seu pae era muito feio. A madrinha reprehendeu-a amorosamente,
recommendando-lhe que lhe désse muitos beijos, quando elle tornasse.

A menina obedeceu com repugnancia, respondendo friamente aos afagos do
pae, que, desde o dia seguinte, ficou hospedado em casa de Gervasio.

Mais tranquillo e animado, o capitão discursou largamente ácerca das
esperanças bem fundadas da victoria das pequenas forças do imperador
sobre o desorganisado exercito do infante. Justificou o acerto das
operações com a certeza do auxilio de Inglaterra e França, onde
diplomaticamente estava vencida a causa de D. Maria, provada a sua
legitimidade á posse do throno de D. João VI.

O negociante não percebeu completamente o que vinha a ser a victoria
da diplomacia lá fóra, e a guerra tão desegual e mal principiada cá
dentro. A juizo d’elle, seria melhor que as armas vencessem primeiro,
e a diplomacia depois. Para em summa o dizer, o rico da rua das
Cangostas esteve por um nada a perguntar se a diplomacia era alguma
rainha que promettia vir com o seu exercito bater os miguelistas de
cá, depois de destroçar os de lá. Absteve-se, porém, de revelar esta
ignorancia desculpavel em sua vida alheia da terminologia das sciencias
de governar, quando o capitão o allumiou dizendo-lhe que a diplomacia,
no caso presente, valia mais do que um bom exercito; visto que as
nações europeas, convencidas dos direitos da rainha, mandariam dinheiro
e tropa engrossar as forças dos liberaes, isentando os cidadãos
portuenses de pagarem a quem lhes defendessem as casas, fazendas e
vidas.

Sem embargo d’este jacto de luz, Gervasio José enrugou o sceptico
nariz, e murmurou:

--Assim será; mas então a diplomacia que mande quanto antes para cá
dinheiro e tropa.

Depois da derrota de Souto-Redondo e da desanimação da casa Carbonell,
de Londres, o descorçoamento dos liberaes era tal, que aos mais
alentados se figurava a urgencia da capitulação, mórmente se o gabinete
de Madrid ministrasse a D. Miguel munições e gente. Gervasio José
de Barros, com a alma fria de morte e as faces amarellas de terror,
perguntava entre colerico e sarcastico ao seu hospede:

--Então, senhor Alves, e a diplomacia? Esse diabo vem ou que faz? Ora,
meus amigos, estou na tinta a respeito de diplomacias. O que eu trato
é de enfardelar outra vez e arranjar salvo-conducto. Tenha paciencia
o senhor Alves. A afilhada vae comigo. Cá não n’a deixo eu; que a não
criei para que a apanhe alguma bomba. Eu não quero saber d’isto. O
partido liberal é uma sucia de pobretes que querem arranjar-se. Fazem
muito bem; mas com o que meus avós ganharam não hão de elles medrar...

O capitão appellava da desacreditada diplomacia para o generoso animo
de seu compadre, instando-o a que não désse exemplo do egoismo e da
fuga aos seus pares na riqueza e no dever de auxiliarem humanamente
a causa de todos os opprimidos da força, da jerarchia e do dinheiro
accumulado em homens que não tinham mais alma que as suas burras de
ferro.

O negociante, assim que visse chorar a esposa, levava logo o canhão da
japona aos olhos. Lagrima da senhora Thomazia caía no coração do marido
e ungia-lh’o de caridade e amor ao proximo. Tanto pôde a linguagem do
capitão e o enternecimento da sua comadre, que logo d’alli Gervasio foi
levar um grande donativo ao thesouro para as despezas da guerra.

Desde este dia, o indifferentista em politica transformou-se n’um dos
melhores e mais liberaes defensores do Porto, animando os irresolutos
da sua plana dinheirosa a contribuirem para a salvação commum, e
assalariando os seus caseiros do Douro a virem e a trazerem comsigo
braços para a defeza da liberdade.

Ao avisinhar-se o dia de S. Miguel de 1832, derramou-se no Porto a
noticia de um ataque realista ás trincheiras todas, e logo se espalhou
a ordem do dia do general sitiante na qual litteralmente se promettia
aos soldados saque livre ás casas dos malhados.

Quem o diria? Em dia de S. Miguel, Gervasio de Barros abraçou a mulher,
o filho e as irmãs, com olhos enxutos, e saiu para a bateria do Fojo
com uma clavina ao hombro e duas pistolas nos bolços interiores d’uma
jaqueta de pelles, obrigando os dois irmãos a seguirem-n’o, com estes
brados que valem bem a melhor allocução militar de Cezar ou Bonaparte:

--Rapazes! aqui é fazer das tripas coração!

D’ahi a pouco, a esposa e irmãs do bravo saiam para os hospitaes
conduzindo trouxas de ligaduras, fios, camisas e lençoes.

Apoz onze horas de combate, Gervasio e seus irmãos voltaram na chusma
exultante dos vencedores; mas vinham tristes com o pó da batalha
empastado mais nas lagrimas que no suor. O capitão Joaquim Alves Pinto
era um dos setenta e sete officiaes prisioneiros e mortos; mas entre os
ultimos é que o negociante viu o pae de Thomazia, no Carvalhido.

Proromperam em clamores as senhoras, estreitando aos seios a pequena,
sem lhe dizerem que o pae morrêra. A menina chorava e tremia de medo,
cuidando que os soldados atacavam a casa; que todos os dias sua
madrinha a mandava rezar e pedir á Virgem que as livrasse do saque.
Corrido mais d’anno é que Thomazia teve discernimento para entender,
sem que lh’o dissessem, que seu pae não era já d’este mundo.

Poucas lagrimas verteu, e essas chorou-as por imitação, vendo molhadas
as faces das suas bemfeitoras, quando ella perguntou se o pae tinha
morrido.

Que são lagrimas aos sete annos? Além de que, Thomazia não sentia a
falta das caricias paternaes, nem a do pão, nem a do vestido.

A madrinha fez um gesto de desgosto quando a encontrou no mesmo dia a
compor a trunfa d’uma moira de farrapos.

--Coitada!--disse ella entre si!--Que seria d’ella hoje, se Deus me não
guiasse a casa da mãe, quando a morte lh’a levou! Cada vez te quero
mais, innocentinha!

E animou-a como se fosse mister applacar-lhe as afflictas saudades do
pae.

Pobres orfãos, vós não choraes em meninos, por que a vossa vez de
chorar vem depois.




                              CAPITULO II

                               Argumento

 João de Pinhel quer levar o rapaz para o Pará. Amores infantis de
 Thomazia e Innocencio. Idéas do brazileiro ácerca do casamento
 predestinado para creanças. Como a menina se fez linda, e não queria
 saber ler. Vê-se o que faz a vaidade e o que ella promette aos sete
 annos. Delicias de Gervasio José nas hortas do Reimão, onde correram
 os dias mais felizes da geração que vai acabando. Diz se que os
 peraltas do Porto exercitaram o seu tirocinio de elegancia nas
 merendas do linguado frito. Investidas dos cavalleiros portuenses
 ao coração virginal de Thomazia. Congrega-se a familia para casar
 Innocencio com ella. Vê-se que o rapaz era namoradiço, e o pae tanto
 ou que velhaco, sem desfazer na sua honradez commercial, cousa
 invulneravel no Porto. Receia o pae que o filho atire dois couces ao
 apparelho. Tendencias artisticas de Innocencio para desenhar narizes,
 e do mais que no capitulo se disser.


Quando Innocencio, filho de Gervasio, prefez doze annos, veio a
Portugal um tio seu materno, estabelecido no Pará, solteiro e rico.
Quebrantado pelas enfermidades do clima, Luiz de Pinhel, que assim
se chamava o opulento fazendeiro de cacau, promettia pouca vida aos
quarenta annos. Algumas melhoras cobrou com os ares patrios, mas a
sciencia futurou-lhe peorar e morrer, se voltasse ao Pará.

Não obstante, insistiu na ida para liquidar os seus haveres contados
por centenas de contos, e pediu instantemente a sua irmã Thomazia que
deixasse ir com elle o sobrinho Innocencio para quem estivera trinta
annos amontoando os cabedaes já agora inuteis para si.

A resistencia foi energica e indelicada; mas, ao verem que Luiz
de Pinhel desistia despeitado da benevola pretenção, convieram em
consistorio os paes e tios que se deixasse ir o menino; que tanto
montava acrescer-lhe ao seu dote de bons cincoenta contos o triplo
d’esta quantia.

--De maneira, dizia o pae, que o nosso rapaz vem a ser o homem mais
rico do Porto, e juntará a fortuna que teria, se os ladrões dos
francezes lhe não roubassem ao avô quinhentos mil cruzados, não
fallando no juro desde 1808 até hoje, que já lá vão vinte e oito annos.
Vejam vocês p’ra onde isto deitava!

O rapaz, porém, não ia de vontade para o Pará. Cada vez que a pequenina
Thomazia lhe dizia: «Então tu vaes-te embora, Innocencio?» o menino
debulhava-se em lagrimas e dizia entre arrancos que era a mãe que o
mandava. As senhoras presenciavam consternadissimas este lance, e não
podiam ter o pranto.

Um dia chamaram ellas Luiz de Pinhel para espreitar como as duas
creanças se abraçavam a soluçar. O tio condoeu-se, e disse muito
commovido:

--Agora, minha irmã, sou eu que peço, e ordeno, se fôr preciso.
Innocencio não vae. Se eu morrer, cá lhe vem dar o que fôr meu; se eu
viver, irá mais tarde, quando lhe chegar vontade de vêr mundo.

E chamando a si os pequenos disse-lhes cariciativamente:

--Brincae, meninos, brincae; que eu não te levo o teu amiguinho,
Thomazia. Lá virá tempo em que a ambição ou o amor vos apartem...

Thomazia sorriu-se e levando o irmão de parte, segredou-lhe:

--Não sabes, Luiz, que muitas vezes a gente tem pensado em os casar?
Estes já não se apartam...

--Isso é muito possivel; e, se elles vão n’este affecto, chegados
á idade, não ha mais que leval-os á egreja; que bem casados levam
elles já os corações. Mas olha, Thomazia, que não ha fiar n’estas
affeiçõesinhas. Eu conheço alguma cousa o mundo, e por isso andei
sempre por longe d’elle, e mettido cá no meu trabalho, por não saber em
que havia de gastar a vida, que bem depressa gastei... Estas creanças
que brincam, em começando a olhar seriamente uma para a outra, já
não acham gosto ás brincadeiras da meninice. Depois, cada qual trata
de procurar cousas e affeições novas, porque o coração humano é
assim. O moço não tem o coração do menino, nem o velho o coração do
moço, percebes? O que eu te quero dizer é que não vás tu por engano
casal-os muito cedo, sem elles saberem o que fazem nem o que querem.
É muito perigoso que, na idade de saberem o que são e hão de ser até
á morte, se não submettam ás obrigações para que a sua razão não foi
consultada. Entretanto, Deus os faça tão bom homem e digna mulher como
são bons e amigos em creanças.

O paraense foi-se embora com grande jubilo de Innocencio e Thomazia.
Os paes do menino tambem exultaram, ficando-lhes a certeza da herança
proxima ou remota.

Principiaram as aulas de Innocencio, e minguaram as horas da folia.
O pequeno applicava-se ao estudo, e ia ensinando a Thomazia o que
aprendia, já com certo aprumo e vaidade de preceptor. A menina
entretinha-se com mediocre prazer nas praticas do alfabeto, e ia
arguindo vocação negativa para cultivar o entendimento. Era a soberana
ordem das cousas, raras vezes desconcertada. Chovia-lhe a natureza
dons de infantil formosura, e dava-lhe ao mesmo tempo sequidões
esterilisadoras de intelligencia. Cada dia lhe abrolhava flores novas;
e cada dia lhe entibiava mais a percepção. Por maneira que a menina
já choramigava quando Innocencio lhe pedia contas da invencivel
difficuldade de soletrar.

--Deixa lá a pequena!--exclamou a madrinha compadecida.--Eu tambem não
sei ler, e graças a Deus não me tem feito falta. Uma mulher de casa não
lhe chega bem o tempo para cuidar do seu arranjo. Isso de lêr é lá para
as fidalgas que não sabem no que hão de gastar as horas. Aprende tu,
que és homem, e deixa a menina. Se ella não tem geito, para que apertas
com ella? É forte birra a tua, rapaz!

--Eu não quero que ella seja bruta!--disse Innocencio com uma
authoridade e sobrecenho irrisorio, attentos os seus doze annos.

--E que tal!--clamaram as tias em quanto a menina córava, e a mãe se
benzia, murmurando:

--Ora esta! querem vocês vêr! O rapaz já diz que não quer que ella seja
bruta! Assim nos vae chamando brutas a todas! Então tu governas em
Thomazia?--tornou a risonha senhora.--Ella é tua parente ou _adrente_?

Innocencio fez uma pirueta de educação mediocremente esmerada e saiu da
presença da mãe aos pinotes.

Ora vejam agora como a serpente da vaidade mordeu de assalto o amor
proprio da menina. Ao outro dia, pediu ao seu impertinente mestre que
lhe ensinasse a lição, estudou-a, deu de si boa conta á custa de muito
martelar na combinação litteral dos nomes bisillabos, e conseguiu em
poucos mezes livelar-se com a sciencia do pedagogo. Fez-se o prodigio
em razão de lhe ter chamado elle bruta!... Indicio de alguma coisa, a
meu vêr; se boa, se ruim, o futuro, querendo Deus, nos irá assentando
as bases para seguro juizo.

Na aprendizagem incompleta das primeiras letras consistiu a educação
litteraria de Thomazia Alves. O padrinho entendia que as quatro
operações não lhe desconvinham e a leitura de uma carta lhe podia ser
util. D’aqui em deante, nem elle sabia nem lhe constava que mulheres
podessem aprender coisa proveitosa.

Por encurtar fastios, sigamos de salto os annos de Thomazia até aos
quinze.

Eil-a bella quanto póde imaginal-a a mais artistica e ambiciosa
fantasia. Faltava, porém, alma e luz n’aquelle rosto, porque as
imperfeições, embora poetas e romancistas as esqueçam, são inevitaveis.
A estatua de certo tinha vida bastante para valer em tresdobro da
Galathea e das notorias Venus de innocente marmore; todavia, a glacial
placidez do semblante, se não fosse natural, deslustral-a-ía com umas
sombras de desvanecida e concentrada na contemplação de si mesma. Não
era; e que fosse, ainda assim daria muito que invejar ás poucas a
quem a prodigalidade do destino concedeu peregrino rosto e adoravel
alma a transluzir-lhe em olhos e sorrisos; que alteza de pensamento
e profundidade de conceitos isso não vale tanto á mulher bella como
quatro flôres do campo nos cabellos.

Thomazia ganhára fama, bem que os pregoeiros da sua formosura
escassamente a vissem nas egrejas, nas procissões, nos camarotes da 3.ª
algum domingo de tarde, e uma ou outra vez nas hortas do Reimão, onde
Gervasio José costumava desde menino ir merendar sob a folhagem das
parreiras. Se o apetite lhe faltava e o cirurgião lhe formulava oleo de
mamona, dizia elle á familia:

--Bem sei... Vamos ao Reimão merendar uns linguados com a respectiva
salada. O meu oleo de mamona é o verdasco de Basto ali tirado da pipa,
e quatro azeitonas de Sevilha.

Apesar das precauções do avisado enfermo nos lanços da preguiça de
estomago, Thomazia era vista dos peraltas que ainda em 1841 se não
pejavam de apear de seus cavallos e carruagens á porta das tavernas do
Reimão e Barros-Lima.

Se o commerciante reparasse nos seus confrades da medicina do linguado
e da azeitona, podia vêr alguns d’elles caracolando os ginetes que lhe
pateavam sonoramente a testada da sua casa nas Cangostas.

Elle, de certo não; mas a sua afilhada, menos mal servida de
reminiscencia, reconhecia trez ou quatro dos cavalleiros que uma vez
e diversas vezes tinha visto nos bucolicos festins do padrinho ou
nos festins espirituaes da madrinha mui devota do Senhor-exposto de
Bello-Monte e da Misericordia.

Isto, porém, não desluz nem mareia a candura de Thomazia. Era um acto
de memoria e mais nada; acto, porém, que não condizia com a frouxa
faculdade de reter a taboada salteada. Ha compensações; é o que é.
Ora agora, que a senhora D. Thomazia de Barros (o _dom_ começou a
honorifical-a ahi por 1840, anno em que seu marido foi da camara) que
a senhora D. Thomazia e suas cunhadas e marido não tinham sombra de
suspeita da leviandade da menina, é bem de entender, sendo tal e tão
crescente o amor que lhe davam.

Ahi por volta dos dezeseis annos da moça, a familia Barros congregou-se
em sessão, cujo memento se infere de terem descido ao escriptorio de
Gervasio. Se um caso desatado da historia podesse ser contado aqui,
sem enfado de quem lê, diriamos que Thomazinha, vendo-se só e ouvindo
estrupiada de cavallo, entreabriu as portadas da varanda, e por um
resquicio espreitou o cavalleiro até á revolta da rua para o largo de
S. Domingos. Está averiguado que elle a viu tambem com olhos satanicos;
mas ella, por sua parte, ficou illesa e quieta de coração. Quando é
que a lua, nas alturas onde os poetas lhe mandam declarações de amor,
se deu por offendida ou perdeu tanto como isto da sua proverbial
castidade? Thomazia podia pleitear isenções com a lua n’este caso e
vencel-a em muitas qualidades amaveis.

Desçamos ao escriptorio.

É proposto e não discutido o casamento de Innocencio José de Barros
com a ditosa menina. Divergem ainda assim os pareceres, no tocante ao
prazo da realisação. Os tios Jeronimo e Felizardo opinam que o rapaz
está muito novo. As tias Sebastiana e Florencia abundam n’este parecer;
mas Gervasio, bamboando trez vezes a cabeça como quem prefacía uma
revelação ponderosa, diz:

--O rapaz tem dezenove annos. Vocês cuidam que o tempo de hoje é o
nosso? Estão enganados. No meu tempo, antes dos vinte e cinco, homem
que tolejasse com mulheres, era um asno de quem as pessoas serias não
faziam cabedal. Eu tinha vinte e oito e alguns mezes, quando pensei em
procurar companheira. Isto agora é outra coisa. Voltou-se o mundo. As
mulheres estão _desaustinadas_ e os mancebos, assim que lhes pinta o
buço, ninguem tem mão n’elles...

--O nosso filho é bem comportado--atalhou a senhora D. Thomazia com
applauso do auditorio, que se mexeu nas suas cadeiras de segovia
marchetadas de botões de cobre.

--O nosso filho, repetiu com intencional surriso o orador, o nosso
filho é como os outros. Eu que lh’o digo é que o sei; e agora... vão
vocês saber que Innocencio... namora!

--S. Bento!--exclamou a senhora D. Thomazia, sobrelevando ás
interjeições dos outros ouvintes.

--Namora, sim, senhores. Pois que cuidam? Vocês não sabem que elle é
rico? não sabem que ha por ahi muita moça que pensa que ha de casar-se
rica, porque tem um palmo de cara ageitada? Não sabem--proseguiu
elle alteando a voz graduada pela inspiração propria e espanto dos
ouvintes--não sabem que assim que ahi chegam brasileiros ricos
ao Porto, são os proprios paes das raparigas casadoiras que os
mostram ás filhas e as picam para que ellas andem para deante antes
que as visinhas os apanhem? Não sabem...--continuou Gervasio José
adivinhando o quilate rhetorico do _quousque tandem_ de Cicero,
repetido com ascendente energia.--Não sabem que meu cunhado, quando
cá veio do Pará, me disse a mim que lá na America não se feiravam
tão desavergonhadamente as pretas como aqui as brancas? Se não
sabem,--concluiu o velho restaurando a respiração esbofada--saibam que
mais de seis mulheres andam na piugada de Innocencio, e de quatro que
eu conheço, não ha uma que tenha dez réis de seu, assim que eu levar
ao tribunal as lettras reformadas que cá tenho dos paes d’ellas.

D. Thomazia tinha-se benzido tantas vezes, quantas foram os triumfaes
_não sabem_. Jeronimo e Felizardo bufavam, e coçavam-se como se
quizessem arrancar á unha das cabeças d’elles idéas condignas da sua
indignação. As tias do rapaz pareciam corridas do seu sexo e espantadas
da pureza dos seus costumes.

Seguiu-se ao silencio de trez minutos esta pausada interrogação de
Gervasio:

--Que me dizem agora vocês? É tempo de o casarmos ou não?

--E quanto antes--responderam tios e tias.

--E tu que dizes, Thomazia?--tornou elle voltando-se á esposa, que
sobre-estivera silenciosa e cogitativa.

--Que hei de eu dizer?... Estava a pensar no que meu irmão me disse
quando cá veio... Homem! e se elle não gosta da nossa afilhada? Amisade
é uma coisa, amor é outra... Achas que o nosso filho, se quizesse casar
com Thomazia, andaria lá com esses namoros que dizes?...

O marido surriu-se, e, por entre os beiços velhacamente franzidos,
murmurou:

--Namorar não é casar... Vocês são mulheres, e não sabem nada do
mundo... Eu cá me entendo... O rapaz, já lhe disse, é como os outros do
seu tempo. As raparigas desafiam-n’o; elle que lhe ha de fazer?

--É não lhe dar trela!--respondeu pressurosa a senhora D. Thomazia.

--Valha-te Deus, mulher!--redarguiu o esposo, editando segunda vez
o surriso sôrna e justificativo de que o homem não resalvára a sua
innocencia da peste contemporanea--valha-te Deus! Um homem é um homem.
A culpa não n’a tem elles; são ellas. Eu cá me entendo... Se o rapaz
fosse creado com as leis e costumes de ha quarenta annos, os namoros
custavam-lhe um par de trochadas boas; mas hoje em dia não ha rei nem
roque logo que elles asneam. O mais prudente é um pae leval-os ás boas;
se não, quando um homem mal se percata, está-lhe em casa o juiz e o
escrivão com um requerimento lá de uma trocatintas que lhe tira o filho
de casa e o leva para a sua. Isso está-se vendo, e medo não me falta a
mim; por isso me tenho posto á espreita, e não faço bulha, que não vá
o rapaz atirar dois couces ao apparelho, e por aqui me sirvo. Só aqui
ha dias lhe disse: «Innocencio, tem-me lume n’esse olho: não faças
cavallada. Olha que as moças que te fazem festas, o que querem é o teu
dinheiro; mas vão erradas; que eu o que tenho, posso perdel-o; nemja
que um filho m’o leve para onde eu não quero que vá o suor de teus
avós, entendes, Innocencio?»

--E vae elle que disse?--interrompeu com alvoroço a senhora D. Thomazia.

--Nem uma nem duas; sentou-se ali áquella mesa e esteve a riscar com a
penna sobre o papel uns narizes que ainda lá hão de estar. Aqui teem
vocês o que se passou. Agora estou resolvido a dizer-lhe que é minha
vontade que elle se case com Thomazia. Se sim, bem estamos; se disser
que não... veremos.

--Se elle disser que não,--obviou a esposa bem aconselhada pelas
advertencias do mano Luiz--acabou-se; á força não quero casamentos.

Discutiram detidamente os dois conjuges e vieram afinal em que, por
suaves modos, se consultasse a vontade do moço.

A vontade da orfã não foi discutida. Discutir o coração da pobre...
para quê?!




                             CAPITULO III

                               Argumento

 Discorre o author ácerca das reticencias com singular originalidade.
 De como as duas creaturas não se amavam. Thomazia e pilhada a
 escrevinhar e ingrampa o velho. Intenta elle debalde convencer
 o filho, chamando-lhe pedaço de asno, como se não fosse plus
 quam-perfeito. O que Gervasio José entende por amoricos de caquerácá,
 e outras coisas que do capitulo melhor se verão.


Não se amavam.

Que grande milagre não se amarem!... O uso de se verem duas pessoas
entre-amadas gasta-lhes o amor. O uso de se verem as que muito se
estimaram, não lh’o deixa nascer. O imprevisto, a surpresa, o dominio
incerto e disputado, isto sim, é céo ou inferno, onde o amor rejubila
como anjo, ou se estorce em fogo de reprobo.

Não se amavam: é onde bate o ponto.

Innocencio respondeu, rodeando rethoricamente o assumpto, que era amigo
de Thomazia; mas que...

E ficou-se.

A menina, recebida a noticia que a madrinha lhe deu, disse que a sua
vontade era a dos seus bemfeitores; mas que...

E nada mais.

Adiante das reticencias ponha o leitor uma coisa insignificante chamada
«coração». As reticencias podiam dar a misteriosa origem de bastas
agonias. Onde ninguem vê nada, estão ladeiras de muitos abismos.
Ha ahi muita gente transviada na vereda que leva ao deserto sem
horisontes--deserto, onde não enfolha arvore com sombra, nem borbulha
fonte que reviva peitos sedentos de vida. Na historia d’essas almas
que já aqui levam o letreiro fatal do poeta florentino--almas sem
esperança, e, por tanto, sem amor, sem alegria, sem fé, sem Deus--na
perdição d’essas, ha um quê indescriptivel, origem fatidicamente
inescrutavel. Seria uma palavra? um acto de irreflexão cega? destino?
impulso irresistivel da bossa? Não. Foi uma frase cortada, uma expansão
sincera afogada pelo pejo, pelo respeito, pelo terror. Foram as
reticencias.

Gervasio, posto que transigisse com a insanavel gangrena da geração
nova, não abdicava da rigidez de sua authoridade paterna. Avisado
do _mas_... de seu filho, saltou logo furioso a filar a peior das
conjecturas, imaginando-o em arranjos de se fazer raptar judicialmente
por alguma das seis oppositoras ao rapaz.

Assombrou a cara de ameaças, accendeu os olhos de coriscos, fez dos
narizes respiradouro de cólera fumegante, e, esbarrando com o filho
n’um corredor, expediu do peito estes gritos:

--Estás enganado, marióla! Casar, casarás tu; mas dinheiro meu não vês
uma de _x_. Arranja mulher que te dê de comer e vestir e casa; que
eu... não sou de uns certos paes que mudam de genio quando os filhos
desobedientes lhes levam os netos...

--Mas, meu pae--atalhou Innocencio--eu não o entendo... Quem lhe disse
que eu...?

--Lérias, meu amigo! não me conte lonas! Você que respondeu a seus tios
a respeito de Thomazia? Venha cá... entre aqui dentro n’este quarto da
tia Sebastiana, que não quero que a pequena nos escute...

E, dizendo, tirou pelo filho para o quarto de sua irmã, que tinha saido
com a outra para o Lausperenne das Almas de Santa Catharina.

No lanço, porém, de empurrar a porta, soou dentro do quarto um ai
espavorido.

Era Thomazia.

--Que é isso?!--perguntou Gervasio.--Que medo tiveste, rapariga?!

--Eu estava aqui...--tartamudou a orfã, encostando-se a uma commoda,
sobre a qual estava uma folha de papel e o tinteiro da sua escripta.

--Estavas a fazer o teu traslado?

--Estava... a escrevinhar...--tartamudou a candida assucena
acerejando-se lindamente.

--Deixa lá vêr como estás adiantada...

--Ora...--tornou ella, oppondo uma atrapalhada resistencia ao velho,
que foi direito ao papel.

Innocencio desconfiaria dos inoffensivos exercicios caligraphicos
da sua discipula? Parece que sim; por que, adeantando-se á moderada
curiosidade do pae, estendeu o braço e subtraiu o papel por entre os
dois.

Thomazia ia começar um desmaio, quando a innocencia reagiu ao insulto
nervoso, recobrando-lhe a alma para sair-se bem do apêrto.

Innocencio leu alto, alternando os olhos entre ella e o pae.

_Meu caro amor do meu coração, e unico bem da minha paixão..._

--Ai!--exclamou o risonho velho.--A menina faz versos? ou isso não é da
tua cabeça?...

Thomazia respondeu com um tregeito de modestia acompanhado de tosse de
pigarro; tudo, porém, lhe realçava a graça do semblante.

O moço continuou, lendo:

_Não tenho palavras com que possa explicar-vos..._

E estacou. É que não continha mais a carta.

Innocencio atirou o papel ao chão, entortou os beiços com dois sorrisos
sarcasticos, e murmurou:

--O pae não sabe o que é isto?... Não sabe?

--Não: pois que é isso? respondeu Gervasio.

--É uma carta de namoro.

--Que é?--bradou o velho. Tu escrevias esta carta a alguem, Thomazia?!

A menina sorriu-se e disse com imperturbavel candura:

--Escrevia, sim, senhor; mas não a mandava... Eu bem sei que me não ama
a pessoa a quem eu escrevia...

--Querem vocês vêr...--atalhou Gervasio com o carão allumiado de dois
raios de esperteza e alegria interior--querem vocês vêr... Tu ainda não
percebeste, Innocencio?

--Eu, não, senhor.

--Pois não percebeste, pedaço d’asno?... A carta era para... Diz tu,
menina... Para quem era a carta?...

Thomazia olhou carinhosa para o padrinho, e balbuciou muito dengosa:

--Elle bem sabe... mas... não lhe faz conta dizer.

--Entendeste agora, rapaz?--bradou o velho victorioso e inchado de sua
soberba.

--Ora, meu pae...--replicou o incredulo fazendo um momo plebeu como a
frase--eu não engulo maranhões... Esta carta não era para mim...

--Pois p’ra quem havia de ser, bruto?--retorquiu o pae, batendo palmas
na cabeça.

A orfã, apparentando doloroso constrangimento, pediu ao padrinho
liçença para sair do quarto.

--Vae, afilhada, que eu bem sei que és uma boa menina--condescendeu o
velho.--Pena é que este rapaz não tenha o coração de teu padrinho...

Thomazia saiu de rosto abatido e braços pendentes.

--Ó alma de cantaro!--apostrophou Gervasio--pois tu acharás debaixo da
rosa do sol rapariga mais galante e que mais te encha as medidas?!

--Esta carta não era para mim...--tornou Innocencio, relendo a
parte poetica, no dizer do velho, e a oração incompleta que parecia
ser prosa.--_Não tenho palavras com que possa explicar-vos_--leu
elle.--Pois ella que me queria explicar?! Sim; que me queria explicar
ella a mim?

--Queres que eu te responda, menino?... Espera, que eu já volto.

Saiu Gervasio, tirando-lhe da mão o papel. Foi entender-se com a
afilhada, deteve-se alguns segundos, e tornou:

--Eu te desengano já, pateta. Thomazia estava para pôr adeante d’isto
que aqui está... Que diz? Deixa-me lêr: _Não tenho palavras com que
possa explicar-vos..._ ahi vae o resto: _a satisfação que recebi quando
vossa mãe me disse que nos queria ligar pelos sagrados laços do..._
não me lembra do que ella disse... é uma coisa muito fallada nas
comedias... _sagrados laços do... laços do..._

--Do himeneu?--acudiu-lhe o rapaz.

--É isso... É o que ella queria escrever, por que diz que se acovardava
de t’o dizer de cara a cara. Percebes, homem? Que estás ahi malucando?
A apostar que tens alma de não amar este serafim!! Esta creaturinha
tão linda que foi creada comtigo! Rapaz! olha bem para mim! Ouve lá,
que isto é a valer. Se a não quizeres para tua companheira, quero-a
eu para minha filha. Percebes tu? Para ella ter que comer á farta
não precisa de casar comtigo. Olha se me entendes, Innocencio. O pae
d’ella sou eu. Tu anda lá por onde quizeres, que eu... cá estou. O
filho podem levar-m’o; o dinheiro não... Cuidas que eu não sei a tua
vida? (aqui Gervasio espirrou um riso de maganão). Tenho-me calado,
por que pensava que lá essas tuas raparigas eram amoricos de cáquerácá.
A coisa é seria pelo modo... Deixas a minha afilhada lá por alguma
farropilha que te botou o anzol? Bem asno és... Tu cá virás com a cella
na barriga... Lá t’avém. Boas noites.




                              CAPITULO IV

                               Argumento

 Desengano aos fariscadores de escandalos. Como póde o engenho fazer
 o milagre de conservar personagens honestos até ao 4.º capitulo
 inclusivé. De como no Porto de ha vinte annos houve homens endiabrados
 com senhoras, e outras coisas tristes. Por que dizem que a esperança
 é verde. Entra na historia a senhora Custodia da Porciuncula, e as
 santas manhas d’ella, que foi amada de um boticario poeta. Vê-se que
 a menina gostava do enviado de S. Gonçalo de Amarante, mas não lhe
 entende o estilo. Explica a senhora Custodia o que é o rolo a suspirar
 pela rola, servindo-se do texto do boticario, que por signal se
 chamava Gregorio. Dizem-se outras coisas que tocam o coração.


Não se alegrem os pessimistas, os corvos que crocitam onde ha sómente
podridão. Cuidam que teem escandalo já no capitulo 4.º? Vem mal parados
cá para os personagens das minhas novellas, os quaes só começam a
derrancar-se do 5.º capitulo por deante.

Aquella cartinha de Thomazia era casta como os coloquios amorosos das
virgens com as estrellas, segundo poetas dizem que ellas se palram
a horas improprias e suspeitas. Eu de mim declaro que ainda não
surpreendi palestras d’essa especie: o que eu tenho visto é virgens,
mais authenticas que as onze mil da legenda, conversando, pelo alto
silencio da noite, não já com estrellas, mas com uns corpos opacos, a
espaços luminosos por effeito da luz de algum fosforo.

E Thomazia não fazia isto nem aquillo; não conhecia estrella nenhuma,
nem dava azeite nos gonzos da janella para a deshoras chover sobre o
objecto amado o maná dos favos do coração.

A carta seria coisa, por pequenissima, mal-cabida nas grandiosas
proporções d’esta historia, se eu não tivesse avesado o leitor a saber
as miudezas de tudo. Vejam se tanta candura merecia a pena de duas ou
trez paginas em 8.º!

Foi assim: Aquelle sujeito, que passou galhardamente, no seu
estrepitoso fouveiro, Cangostas acima, quando a familia Barros estava
congregada no escriptorio, era um moço bem apessoado, enlevo de olhos
incautos, e D. João Tenorio quanto cabia nas forças seductoras de
um portuense de 1843. Havi-os então de bico revôlto, fataes, menos
scientificos que Fausto, e com mais quatro diabos no corpo que o outro.
Que devastadores de corações em flôr e do mais!

Se é certo tudo o que se conta dos peraltas portuenses de ha quarenta
annos até á regeneração da moral, que data ahi de 1850 para cá, somos
todos pouco mais ou menos filhos d’elles, embora nos assignemos com
os appellidos dos maridos de nossas mães. Isto, se é verdade, bem que
não leze as leis da procreação, é deshonesto e digno de esquecimento.
Esqueça-se. Viva tanto esta lembrança como ha de viver o livro que
leva a denuncia.

Pois o cavalleiro, freguez do Reimão, e consumidor do linguado frito
das hortas do Barros Lima, era um d’aquelles açoites que traziam
espavoridos no Porto os anjos do pudor, custodios das mulheres
respectivas.

Cuidava eu que elle não tinha lobrigado Thomazia a espreital-o pela
fisga das duas portadas. Viu-a e dardejou-lhe dos olhos fulminantes uma
flecha ervada no succo da sardonica erva que faz rir o coração. Sabem
o que é rir o coração? Esta pergunta não a faço aos desgraçados nem
aos velhos meus contemporaneos. É ás loiras almas dos dezesete annos
de Thomazia. Loiras?! por que não? Quem quizer materialisar o ideal da
suprema graça ha de enlourecel-o, assemelhal-o á suprema graça real.
Pois o ouro que é senão louro? Porque chamaram verde á esperança, se
por _verde_ não quizeram figurar poetas o _pasto_ commum das almas, os
ervaçaes onde ellas se vão em sasão propria renovar sangue e pellagem?
Loura é que se pinta a esperança aos olhos dos que ainda resistem á
espessura de umas trevas negras e frias como a leiva interior das
sepulturas. Aos cegos para côres da felicidade não pergunto eu, pois,
se sabem o que seja rir o coração.

Thomazia não me responderia nem poetica nem grammaticalmente; e por
isso mesmo, se respondesse, não seria mais intelligivel nem correcta
que um d’estes bardos tirados pela fieira allemã; sublime, porém,
devia sêl-o; ou então o movimento que ella fez, levando a mão ao lado
esquerdo do seio, era dôr de estagnação de fluido, ou, mais sobre o
claro, encalhe de sangue.

Pois não disse nada a ninguem, nem á ama que a creou, nem á velha que
já tinha sido serva de seus avós.

Ora, esta velha tinha ganhado tão pela raiz a estimação das novas
amas, perfumando a casa do rosmaninho da sua virtude, que era já
tambem da familia. Andava por egrejas desde que alvorecia a manhã até
ás dez, em jejum, com os bolços atacados de biscoitos de Valongo,
importunando a côrte celestial com deprecações pela felicidade de seus
amos, asseverava ella. Entre egreja e egreja mascava alguns biscoitos
de envolta com dois _padres-nossos_, e, n’algum recanto de pateo,
desentupia-se, emborcando uma cabacinha de tão generoso vinho, que
S. Jeronimo, se lh’a vasassem á força nas mirradas goelas, daria com
a caveira na cara de quem lhe impedisse o caminho de Roma. Ao fim da
quarta missa, a tia Custodia sentia-se morrer de fraca, e ia para
casa, em jejum. Algumas vezes contava as suas visões. Se as ella não
teria!... Que visões não dá uma cabacinha enxuta!

Convém saber que a senhora Custodia não gostava de Innocencio. Tal
desaffeição ou embirra vinha de longe e até certo ponto justificada. O
rapaz, creado com mimo de filho unico, era endiabrado aos sete annos.
As tias defendiam-n’o quando a mãe o ameaçava; o pae defendia-o das
iras das tias; a mãe escondia-o no regaço quando o pae com fingida
colera o procurava onde sabia que o não encontraria. De sorte, que
o traquinas zombava de todos, e nomeadamente de Custodia, victima
obrigada e por excellencia da tirannia do rapaz.

Se a velha se estava remendando, com o dorso curvo e o nariz espremido
e entalado nas cangalhas, Innocencio pinchava-lhe ás cavalleiras,
dando-lhe de calcanhares nas ilhargas, onde ella se queixava de uma
«obstrucção» de cada lado. Outras vezes, fazia-lhe por detraz pontaria
ás cangalhas com a bengala do pae, e de subito lh’as fazia saltar,
repuxando-lhe dolorosamente os refêgos do nariz. Custodia engulia as
pragas que lhe vinham da arca do peito, visto que a mãe e tias do
menino riam da brincadeira; todavia, a raiva repremida converteu-se em
peçonha de odio, que o tempo não pôde inteiramente esvurmar do coração
da velha.

O que ella podia ter feito era resgatar-se do verdugo, deixando a casa;
mas impediam-n’a muitas razões de força, entre as quaes realçavam o
affecto que ella tinha á menina, de cuja mãe fôra já ama; depois o
pedido que lhe fizera o capitão Alves de se não apartar de sua filha
emquanto os bemfeitores lhe dessem uma tigela de caldo; finalmente, a
liberdade de ir ás suas missas, e grangear a salvação da sua alma, sem
faltar aos reparos e reboques do corpo com a argamassa dos biscoitos
ensopados nos haustos sorvidos da cabacinha, com que a fantasia se
lhe etherisava misticamente até aos tactos substanciaes infusos. E,
depois, como adicção a tantos impedimentos, a meza de Gervasio era
abundantissima, vinho a granel, cama bem enroupada, afóra estipendio
superior aos serviços da velha, que todos se cifravam em grangear a
gloria eterna de seus amos e responsar a boa saída de todos os negocios
da casa.

Isto não obstante, congraçar-se com Innocencio é que não pôde mais a
retrincada Custodia. Lanço de fallar mal d’elle a Thomazinha não o
perdia; e, desde que as tias do pequeno lhe segredaram que talvez os
dois meninos viessem a ser esposos, a velha entrou a scismar e a fazer
trezenas a varios santos para que a filha de sua ama tivesse melhor
fado que ser mulher de tão mal-creado tunante. Assim que Thomazinha
teve idade e entendimento do que era matrimonio, a velha foi-lhe
insinuando a noticia do que tinha percebido, sem todavia a desviar
de querer Innocencio para marido, caso lhe não deparassem os santos
da sua particular devoção outro noivo com riqueza e melhor genio que
o filho de Gervasio. A menina escutava a sua criada complacentemente
e denotava nenhum empenho em passar de pobre a rica, e de orfã
beneficiada a filha e herdeira dos Barros das Cangostas. Póde ser que
o muito amartellar-lhe da velha contra a malvadez de Innocencio, e por
sobre isto uma certa aversão á dependencia, pesada sempre nas condições
ingratas, predispozessem a moça ao desagrado que avultou em antipathia
chegado aos quinze annos o coração.

Andava inquieta e mais fervorosa em advogar perante os seus santos a
desconveniencia de tal casamento a senhora Custodia da Porciuncula,
na occasião em que Gervasio deliberára realisal-o, receoso dos
filtros que lhe traziam o filho ebrio de amorios de má casta e peores
consequencias.

Nas egrejas é que a solicita velha gastava as manhãs expondo
mentalmente aos seus advogados que Innocencio era um bandalho, indigno
de Thomazia; e que a filha de sua defunta ama, se elles santos
quizessem, poderia arranjar marido mais capaz, e tão rico como o outro.

A confiança que a beata Custodia punha em suas rogativas era tão
segura, que já de antemão a fé lhe dava a certeza de que, finda a
trezena a S. Gonçalo da Sé, lhe havia de apparecer signal de ter sido
ouvida.

Ao decimo quarto dia, concluida a devoção dos treze decorridos sem
novidade, saía Custodia da Sé, e ao descer do Arco da Senhora de
Vandoma para a Rua Chã, chegou-se d’ella um bem assombrado e galhardo
moço que lhe disse:

--Muito bons dias, senhora Custodia.

--Deus lhe dê os mesmos. Quem é vossa senhoria?--cortejou e perguntou a
velha, alvoroçada com o rebate de ser chegado o enviado de S. Gonçalo,
seu procurador de causas matrimoniaes em ultima estancia.

--Sou, disse elle, um rapaz que muito ama a senhora D. Thomazinha, e
venho confiar de vocemecê este segredo, pedindo-lhe que não duvide
fazer os serviços que puder á felicidade da menina a quem adoro.

--Vossa senhoria sentiu alguma coisa no coração para vir ter-se
comigo?--perguntou a risonha Custodia, querendo verificar se de feito o
gentil moço fôra tocado por S. Gonçalo d’Amarante.

--Senti, sim...--confirmou elle, bem que respondesse a uma idéa que não
era a intencional da pergunta.

--Sentiu coisa no seu interior?--tornou ella.

--Uma paixão ardente pela menina que me não deixa dormir nem comer.

--Desde quando foi isso? lembra-se?...

--Desde que a vi no Reimão, e depois que a tornei a ver no theatro...

--Mas aqui ha coisa de duas semanas que tem vossa senhoria sentido lá
dentro do seu coração?

O rapaz não achou bem escorreito o inquerito e quedou-se a olhar muito
a fito nos olhos inquietos da velha, e a repetir:

--Aqui ha coisa de duas semanas?...

--Sim... pergunto eu se foi ha duas semanas que vossa senhoria formou
tenção de casar com a minha menina?

--Se formei tenção...?--titubeou elle.

--Pois então?--volveu Custodia desconfiada do ar perplexo do
casquilho.--Vossa senhoria o que quer, não é casar com a senhora D.
Thomazinha?!

--Com toda a certeza...--acudiu o taful vergastando a perna direita com
o chicotinho, e ferrando os dentes n’um sorriso de motejo.

--Está bom; mas queria eu saber cá por certas razões se vossa senhoria
essa vontade que tem de casar com a menina lhe veio ha coisa de treze
dias para cá.

--Sim, eu... ha muito que gósto da senhora D. Thomazinha; mas... a
tenção de casar... é como vocemecê diz... foi... ha quantos dias?

--Ha treze para cá.

--Justamente: ha treze para cá...

--Então posso ir agradecer ao meu S. Gonçalo...--acudiu com
enthusiastico fervor a velha.--E como é a sua graça de vossa senhoria?

Proferiu o moço um nome com dois appellidos que n’aquelle tempo
significavam uma familia das mais enriquecidas no commercio. Custodia
esbugalhou os olhos inchados da alegria que lhe sobejava do riso, e
exclamou:

--Que bonito noivo vae ter a filha da minha ama!... Não caibo na
pelle!... Vossa senhoria, ainda que eu seja confiada, ha de ser tão
rico ou mais que o Innocencio do senhor Gervasio das Cangostas...

--Não sei; mas por que me faz essa pergunta?

--Cá me entendo.

--Tambem eu a entendo, senhora... senhora...

--Custodia da Porciuncula, sua criada por muitos annos e bons.

--Vem a dizer a senhora Custodia que o filho do Gervasio quer casar com
a senhora D. Thomazia...

--É o pae, pelos modos, que trabalha para amanhar isso; mas a pequena
não assigna, é por’ora...; e, se Deus quizer, o marido d’ella ha de ser
vossa senhoria, ou S. Gonçalo não tem poder nenhum...--disse Custodia
com a pia intenção de estimular o capricho do santo empenhado.

--Pois bem--replicou o interlocutor, anediando a rosca da luzente
e calamistrada cabelleira que lhe assentava nas espaduas.--Faz-me
vocemecê o favor de entregar uma carta á menina?

--Pois isso nem dado nem de graça; lá fallar-lhe, isso, não lh’o posso
arranjar; mas escrever-lhe, não ha remedio, p’ra se entenderem; e eu
aqui estou p’ra levar a carta.

--Aqui a tem--disse o «elegante». (Alcunhavam-se n’aquelle tempo de
_elegantes_ os sujeitos ferozes de que saíram depois mais parvuos e
derrancados os modernos _janotas_.)

--Pois já a trazia feita?!--clamou a senhora Custodia com a sincera
exultação de quem via em tudo S. Gonçalo e se via a si com a efficacia
de suas recommendações.

E ao tempo que recebia a carta sentiu uma substancia mais fresca e
solida do que o papel em contacto com os seus dedos.

--Isto que é?--perguntou ella, sem pôr os olhos sobre o objecto
estranho.

--Faça-me o favor de receber estas tres mexicanas para rapé--disse
urbanamente o moço.

--Nemja eu... não, senhor... queira servir-se de me perdoar; mas eu
não ando n’isto por interesse... Tome lá, que eu não pego n’este
dinheiro...

--Então, faz-me essa desfeita, senhora Custodia?!--redarguiu elle.

--Tenha paciencia...--insistiu a briosa velha. Não sou da casta de
muitas criadas que eu cá sei. Isto que faço... sabe por que o faço?
sabe por que eu levo a carta á menina?... É por que m’o manda quem
póde... vem do céo este destino... o que eu quero é vêl-a feliz á filha
da senhora que eu criei aos meus peitos, e heide olhar pela sorte
d’ella em quanto viver. O que eu queria era ir d’este mundo depois de a
deixar bem casada, para poder dizer lá no céo á mãesinha d’ella: «a sua
filha lá ficou feliz a resar por nós ambas».

Custodia estava enxugando os olhos, em quanto o elegante chicotava
a ponta da bota de verniz, e remirava a costura da pantalona até á
polaina com o desvanecimento de lhe ajustar a primor o talhe.

Ditas algumas poucas palavras de despedida e convenção de se entreverem
volvidos dois dias, separaram-se.

A velha ainda foi á Sé agradecer a S. Gonçalo com effusão de alma
convencida do milagre. Depois, em casa, apropositado o ensejo, segredou
a Thomazia os successos decorridos, e concluiu entregando-lhe a carta
do sujeito que havia de passar na rua ás quatro da tarde.

Thomazia inferiu logo quem lhe escrevia, segundo os signaes que deu
Custodia. Devia de ser o cavalleiro costumado na rua.

--Elle tem melenas pretas e um bigodinho retorcido?--perguntava
Thomazia com alvoroço.

--Tem, sim, menina.

--E a modo de trigueiro, a olhar assim por debaixo do chapéo?

--É isso, é isso mesmo.

--E muito fino da cintura, com a mão pequenina?

--Tal e qual. Que lhe parece, minha filha? Gosta d’elle?

--Sim... eu...

--Pois ahi tem o que hade ser seu marido.

--Ora!... Quem sabe?...

--Quem sabe!--respondeu severamente Custodia, pondo um braço ao alto, e
um dedo apontado.--Quem sabe?! O meu S. Gonçalo d’Amarante é que sabe,
e, por intercessão do glorioso santo, Deus é que o quer.

Thomazia abriu a carta. A lettra era ingleza, garrafal e elegante de
hastes, enquadrada em cercadura de flores que enramavam frecheiros
Cupidos. Custodia cavalgou os oculos para se pasmar de um coração
ferido em ninho de folhagem, sobre a qual duas calhandras ou
passarinhos parecidos, asseteados tambem do amor, davam mostras de se
estarem beijando com os amorosos bicos.

--Vejam vocês! que graça teem estes bonecos!--dizia a senhora Custodia,
jogando com a cabeça e oculos para apanhar em cheio o raio visual.--E
este menino tão gordo!--proseguiu ella pondo o dedo arroixado de um
unheiro sobre a cara jubilosa de Cupido.--Isto não póde ser o menino
Jesus, por que tem aqui uma cestinha á bandoleira. Será São Joãosinho?

--Nada, não é--corrigiu a menina.--Isto é o Amor.

--O amor?!--interrogou com absorta ignorancia a senhora Custodia da
Porciuncula.--Este rapazinho assim era pêllo é o amor?...

--Foi o Innocencio que me ensinou a conhecer o retrato de Cupido.
Chama-se Cupido tambem.

--Ah! isso póde ser; que eu, quando era moça, bem me lembra de ouvir
cantar o boticario da minha terra umas modinhas á guitarra, onde dizia
lá o verso:

    Maldito seja o cupido
    Que cravou no peito meu
    A setra que não penetra,
    Marilia no peito teu.

--Já hoje se não cantam d’estas modinhas!--continuou em tom de lastima
a velha, tirando os oculos.--Agora o que se ouve por ahi é umas
senhoras a dar uns guinchos que parece que estão com as dôres de parto.
Pelos modos cantam á moda italiana...

--Vamos agora ver a carta?--atalhou Thomazia.

--Vá lá.

Começou a menina deletreando correntiamente o fraseado. A velha abria
os olhos á proporção da bocca, por onde ella dava signaes de querer
engulir a indigesta intelligencia das expressões. Thomazia ia lendo
monotonamente e ladeando a vista d’uma linha para a outra á espera
de topar palavra em que tomasse o fôlego e sentisse a satisfação de
entender a idéa do namorado estilista. Chegou a anhelada passagem.
A seguinte frase ajustou-se-lhe ao entendimento esclarecido pelo
coração: «Suspiro por vós como o rôlo que geme na arvore solitaria
pela rolinha amada.»

--Ai!--suspirou Thomazia.--Vês o que elle diz, Custodia?

--Elle que diz?--perguntou a velha.--Má mez p’ra mim, se eu entendi
pataca! Ha uns modos de dizer á moderna que parece latim! E a menina já
sabe isso que ahi diz o que é que diz?

--Algumas palavras não as entendo; mas outras sim. Pois tu não entendes
isto? Diz elle que suspira por mim...

--Sim, isso entendi eu; mas...

--Que suspira por mim como o rôlo...

--O rôlo?!

--Sim; o rôlo que geme pela rolinha...

--Ah! já, já, já!--exclamou a velha, batendo palmadas nas cabeças
perfurantes dos joelhos.--O boticario tambem cantava esse verso á
guitarra. Deixe-me vêr se me alembra... ha de alembrar...

    O rôlo quer a rolinha
    E a gemer chama por ella;
    O pombo quer a pombinha;
    Só tu me despresas, bella!

--E depois dizia--proseguiu a senhora Custodia com juvenil enthusiasmo:

    Invejo a sorte do rôlo,
    E do pombo a sorte invejo;
    Santas leis da natureza,
    Não falteis ao meu desejo.

--Ai! que tempo! que tempo!... Tivesse eu cabeça, que bem podia a esta
hora ser a dona da botica!... Morria por mim o pobre do Gregorio...
Sim, o Gregorio--disse ella baixando o tom da voz á feição de nota
explicativa entre-parenthesis--o Gregorio era o boticario, que me
botava estes versos e muitos que me hão de lembrar!... Fui tôla... na
cabeça me deu... Ai! homens, homens!

Uma lagrima borbulhando no canto interno do olho direito de Custodia da
Porciuncula attesta que, n’aquelle momento, se desdobram scenas tristes
deante de sua alma. Respeitemos a secreta angustia que ainda póde
espremer-lhe uma lagrima do coração mirradinho. Um lance desgraçado
de sua vida nos basta para conjecturar que passava por ella o suão
infernal de um amor desditoso. Aquella mulher, quarenta e dois annos
antes, acceítára a creação de um filho estranho, tendo atirado o seu
á roda dos expostos. Quantas agonias de arrependimento e saudade
n’aquella lagrima!

--Vamos lá... leia o mais, menina--disse ella com vehemencia limpando
os olhos, e sacudindo os braços como se quizesse afugentar as imagens
mortificativas.

D. Thomazia foi lendo até final, sem encontrar frase que lhe
lisongeasse a percepção. A linguagem era cada vez mais repolhuda, e
entremeada de vocabulos exdruxulos e de tal compridez, que a menina
partia-os a meio para arejar os bofes. Confessou ella ingenuamente que
não tinha estudos para entender os dizeres do sujeito; sem embargo, o
coração interpretou aquelles adoraveis enigmas.

--O que elle diz é que me ama; isso lá, diz!--asseverou Thomazia.

--E que quer casar com a menina? vem isso lá?--perguntou atiladamente
Custodia.--Sim; é preciso saber-se se diz que a ama para o bom fim.

--Pois não ouviste que elle escreve...

--O quê? que escreve?

--Que suspira pela rolinha amada...--observou Thomazia relendo o trecho
predilecto.

--Mas isso que diz da rolinha não é cá o que eu quero saber.
Deixemo-nos de rolinhas. Falla ahi em casar? Eu não ouvi...

--Casar? sim... eu, _casar_, não achei cá.

--Pois então, menina--decidiu severamente a velha--se não achou, não
responda sem que elle diga pelo claro o que quer. Que eu--modificou a
senhora Custodia--estou certa de que o mancebo quer casar; mas, pelo
sim, pelo não, quero tudo em pratos limpos. Ora com isso de rôlos e
rolinhas não temos feito nada. Eu já não sou d’hoje nem d’hontem. O
mundo está cada vez mais diabo, Deus me perdôe. Os meliantes já não
eram poucos no meu tempo... que fará agora, que a religião está na
espinha! Emfim, depois de ámanhã hei de ir onde a elle, e bem sei o que
lhe hei de dizer.

Parecia querer a menina advogar o texto sibillino da carta, allegando
que a sua falta de sabedoria a não deixava entender os pontos onde a
pessoa lhe propunha o casamento. Correu d’olhos outra vez a carta a
vêr se, pelo menos, encontrava a palavra _himeneu_, erudição que a
pratica das comedias lhe havia ministrado, e depois lhe serviu, como
se disse, na mentira a Gervasio. O que prova, ao mesmo tempo, que a
erudição é boa e má.

_Himeneu_ era vocabulo de que os estilistas de 1844 já se não serviam.
Não estava na carta esta velharia tão necessaria a Thomazia, n’um lanço
em que o seu espirito podia confundir a ignorancia e ruim suspeita de
Custodia. Ficou triste a moça; mas não duvidosa das intenções honestas
do seu amador, mormente, se, consoante a fé vacillante da velha, lh’o
tinha suggerido S. Gonçalo--intervenção em que a menina não punha a
maior confiança.

Como quer que fosse, Custodia, passados dois dias, foi em cata do
programmatico noivo, e disse-lhe que fizesse outra carta que se
entendesse, e pozesse claro o sentido do namoro.

O elegante não se riu interiormente da ignorancia da Thomazia, porque,
bem averiguado o caso, não era redacção d’elle a carta, nem elle,
dizendo verdade, se tinha avantajado á innocente da rua das Cangostas
em percebel-a. O interprete de seu coração tinha sido um poeta,
prosador biblico, precursor temporão d’estes teutonicos de hoje em
dia, cujo progresso os distancía tanto do lirismo de 1844, que já os
espalhafatos d’aquelle tempo nos parecem agora comparativamente chãos
como a carta d’amores de uma costureira.

O rico mancebo que encommendava os rascunhos aos seus amanuenses,
sem lhes graduar o calibre intellectual das mulheres, e, pelo commum,
se não déra mal com o genero farfalhudo, pediu copia sem pautar o
espirito da pessoa, trasladou-a com esmerada caligraphia, convicto de
que os corações amados desnecessitam entender a rethorica dos corações
amantes. Advertido agora pela honesta alcaiote d’estes amores mal
estreados por causa do luxo da lingua (que _para tudo serve e presta_,
como diz Rodrigues Lobo, e até para tolos é dadivosa) foi o joven logo
d’ali escrever outra carta com o estilo de casa, bom, espalmado, optimo
para o effeito de que o entendessem.

Á leitura da segunda carta, Custodia batia as palmas e exclamava,
abafando o esganiçado enthusiasmo:

--Agora, agora! Isso percebo eu, menina!

Thomazia tambem percebia tudo, tirante as sandices que podiam ser
sómente inventariadas por pessoas de espirito culto. No mais, não
faltava á declaração um ar de sincera estupidez, solapando o bestial
intento de seduzir a moça.

Agora fica já conhecido o sujeito a quem a menina das Cangostas estava
respondendo.




                              CAPITULO V

                               Argumento

 Innocencio espreita e apanha a menina. Diz-se o que era o babeiro do
 amor. Cacareja elle uma risada sinistra. Como o cavallo do elegante
 collaborou no amor subitamente accendido no peito de Innocencio.
 Terrores de Thomazia. Custodia dá-lhe espirito, promettendo tolher
 a lingua do joven. Quem era João José da Costa Guimarães. Como ella
 alimpou os olhos enxutos e logrou segunda vez Gervasio. Intervem
 Custodia no lance solemne de se estar Innocencio roendo as unhas sem
 acabar de resolver-se a casar. Cita um apophtegma do boticario. É mal
 recebida a authoridade metrica no auditorio. Recolhe-se Gervasio e
 mais o filho a um armazem de geropiga, onde lhe diz o que melhor se
 verá adiante. Como um homem precisa ser mais entendido que o burro de
 Buridan.


Innocencio não enguliu, como elle dizia, o maranhão: riu-se da boa fé
paternal e espantou-se da astucia da rapariga.

Por volta das quatro horas da tarde, estava elle, á porta da rua,
fogueando o seu charuto, ás escondidas do pae, e resfolegando soffrego
as fumaças, com a voluptuosidade de rapaz que fuma ás furtadellas.
N’este comenos, passou, em upas e corcovos de fogoso ginete, o enviado
de S. Gonçalo, com os olhos disfarçados no parapeito da janella onde
Thomazia costumava sair já nada esquiva. Innocencio retraíu-se para
o escuro do pateo, e deu tento de rangerem em cima as portadas da
janella. Espreitou de esconso o cavalleiro, e viu-o meio-voltado sobre
o sellim, com esbelto meneio, revirar um olho á janella e surrir,
correndo pelo bigode um lenço branco. O lenço branco, n’aquelle tempo,
era ainda o babeiro do tenro amor, a bandeira do coração em batalha de
ternos dardos.

Passou o galhardo picador, e Innocencio, pulando ao meio da rua, deu de
cara com Thomazia ainda embevecida na figuração ideal do gentil rapaz,
com os olhos postos no cunhal da casa onde se lhe desfizera a visão.

O filho de Gervasio cacarejou uma risada rispida e melodramatica
como de actor garraio. A orfã olhou despavorida, e viu Innocencio a
trincar o charuto, debaixo da aba do chapéo carregado sobre o nariz,
coruscando-lhe das pupilas umas áscuas de raiva não vulgar.

Fez pé atraz a menina, e sumiu-se com o seu pejo e medo. Innocencio
voltou para o pateo, acendeu outro charuto, e começou a passear
freneticamente no lagêdo, scismando sem atinar com o alvitre mais
adequado á sua refervente indignação.

Estranhava-se o rapaz! Poucas horas antes, a quasi certeza de que
Thomazia escrevia a outro, levemente lhe agastára a vaidade; e agora,
o vêl-a acudir ao reclamo do mais famigerado galã do Porto, e o
cuidar que era aquelle o encuberto amor da rapariga, isto sómente lhe
atanazava o peito de raladores ciumes! Comparava-se com o outro em
gentileza e agrados. Raivava convicto da sua inferioridade; porque
o seu rival cavalgava guapamente, era bem parecido, galeava pelos
figurinos, tinha uns ares soberbos de quem despreza invejosos, entrava
na roda dos provincianos fidalgos, e, de mais a mais, rico.

Vejam de que paixão ruim nasceu o amor de Innocencio! Foi a inveja que
lh’o esporeou! Isto não admira. Não é bem sujo e fetido o adubo em que
se aquece a raiz de um assetinado lirio? De detritos podres não surdem
e avoejam insectos de azas iriadas de ouro e azul?

A orfã agachou-se a tremer á beira de Custodia e disse-lhe anciada:

--O Innocencio viu-me na janella... Agora ahi vem elle acusar-me ao
padrinho... Que ha de ser de mim, Custodinha?

--Não, que a menina negue--acudiu a velha destemida.--Negue, que eu vou
responsal-a, e tolhel-o a elle, que hade querer fallar e não poder.

A serva de Deus recolheu-se, apanhou entre os joelhos a cara, e
quedou-se orando n’aquella postura pouco reverenciosa e quasi indecente.

No entanto, a rapariga, offegante de medo, subia e descia de mansinho
as escadas que levavam da agua-furtada, onde era o quarto da velha,
ao segundo andar. De cada vez que voltava, ia á beira de Custodia, e
segredava-lhe:

--Não ouço nada.

--Deixe-me cá...--resmuneou a creatura, que continuava de bôrco os
seus arranjos com os espiritos superiores.

Corrido um quarto de hora sem que Innocencio fizesse rumor, a velha
alçou a cabeça, e disse com modesto aprumo:

--Está tolhido! Os meus santos não se cançam de ouvir a peccadora. Devo
uma novena ao meu padre Santo Antonio.

Acabadas de proferir estas palavras, reboou desde o patamar do
escriptorio a vozeira de Gervasio José, chamando Thomazia.

Estremeceu a menina; e a velha ficou por momentos descrida de ter bem
tolhido a lingua de Innocencio.

--Ai! e agora?!--exclamava Thomazia.

--Vá lá, vá lá; faça-se de novas, e negue, que eu cá fico a rezar... E
não se me ponha lá a choramingar... ouviu? Noivo tem a menina...

--Então, digo-lhe ao padrinho que tenho noivo?... acho que o melhor é
ser verdadeira, não é, Custodia?...

--Não diga nada por ora, que em fim...

Gervasio vinha já subindo as escaleiras, quando a moça descia com a
mais serena compostura de semblante, dizendo:

--Aqui vou, meu padrinho...

--A senhora não ouviu chamal-a ha pedaço?--perguntou desabridamente o
velho.

--Não ouvi...

--Essa é boa! onde estava vocemecê?

--Na trapeira a dar agua aos manjaricões.

--_Hum..._--regougou Gervasio, medindo-a com olhar carrancudo.

--O padrinho está zangado?--atalhou affavelmente Thomazia.

--Venha cá ao meu escriptorio: temos que fallar...--E accrescentou
abaixando a voz:--Estou pasmado...

--De que, meu padrinho?!

Entraram no escriptorio. Thomazia viu as costas de Innocencio que
estava olhando para o saguão atravez da vidraça.

--Com que então...--disse Gervasio, bamboando a cabeça--com que então...

A moça esperava o resto, serenamente encarada, com as mãos nos
bolcinhos do avental.

--Afinal de contas...--proseguiu o entalado velho, saltando do exordio
ao final de contas.--Que me dizes tu a isto, Thomazia?...

--A isto quê, meu padrinho?! Eu não sei por que vocemecê me está
tratando assim...

--Não sabes?!--bradou Gervasio--não sabes?... Com que então... aquella
carta era para o meu filho?... era para o meu filho que tu estavas
escrevendo a cartinha, sim?

--Era, sim, senhor.

--Não minta!--entreveio Innocencio; rodando sobre os engonços dos
calcanhares com a presteza de um manequim. Não minta! A senhora não
foi, ha bocado, á janella, quando passava a cavallo o João José da
Costa Guimarães?

--Quem é esse?--acudiu a menina com assombrada innocencia--eu conheço
lá o Guimarães!...

--Não conhece aquelle rapaz que ia a surrir-se para cima, e a
assoar-se a um lenço branco?--replicou o moço--Não sabe quem é o Costa
Guimarães?!... Ora adeus!...

--Eu tinha aberto a janella--voltou Thomazia triste, mas
socegada--porque... estive por traz dos vidros a ver se...--E
suspendendo-se por dois segundos, continuou com mais calor.--Eu direi a
meu padrinho o que estava fazendo, e a razão por que fui á janella.

--Então, diz lá...--sobreveio Gervasio.

--Hade ser só a meu padrinho...

--Vae lá p’ra cima, Innocencio--disse o pae ao rapaz.

Saiu Innocencio com os olhos abatidos e as mãos nos bolços da judia.
Levava ares de tolo, e todavia doia-lhe o coração deveras. Gervasio fez
um gesto de cara para deante e cabeça para traz, significando á menina
que fallasse.

--Eu, padrinho, estava atraz das vidraças a ver se o Innocencio saía.
Quasi sempre o vou espreitar de modo que elle o não saiba, para que não
pense que eu lhe quero bem por que elle é rico. Hoje estava eu á espera
que saisse; esperei, esperei muito tempo; e cuidando que elle estava á
porta da rua a olhar para a Maraquinhas Gomes, abri a janella, quando
ia a passar o tal homem a cavallo, que eu não sei se é Guimarães, se
que diacho é. Vae n’isto, o Innocencinho foi p’ro meio da rua, e poz-se
a olhar para mim muito carrancudo. Eu pensava que a zanga d’elle era
por eu o andar espreitando; e vae elle de que se hade lembrar? vem
dizer ao padrinho que eu estava a namorar o outro. Coisa assim!...

Thomazia tirou um lencinho da algibeira, e levou-o aos olhos para que
Gervasio lh’os não visse enxutos.

A cara do velho alargou-se dilatada pelo calorico da alegria; é preciso
a fisica para explicar os movimentos das caras onde não ha metafisica
nenhuma. Tem não sei que aspeito alvar o contentamento das almas boas.
O de Gervasio José de Barros jubilava tão grandemente e tão convencido
da innocencia da afilhada, que não se satisfez com menos de abraçar a
orfã e exclamar:

--Ó menina, perdôa ao meu filho, que é um asno!... Anda aquelle bólas
com a cabeça tão desarranjada, que se tu lhe não dás juizo com o
casamento, eu qualquer hora pego d’elle e mando-o comer no Brazil o pão
que o diabo amaçou. Mas o que o Innocencio quer, filha, é que tu gostes
d’elle, e mal sabe o patarata que tu lhe queres tanto... Gostas do meu
filho, deveras, rapariga?

--Sim... eu...; mas... elle... como é rico, e tem muito quem o
queira... e eu sou pobre... por isso...

--Asneiras, menina, asneiras! Quem é rico sou eu, não é elle, entendes,
Thomazia? Eu é que tenho alguma coisa, riqueza não digo, por que ha
quem tenha mais; mas ganhado com mais honra, não. Ora agora, o meu
filho por emquanto é tão rico como tu; e ao futuro, se me andar fóra
dos eixos, póde ficar a ver o sete-estrello, entendes?... Eu já te
disse que...

--Mas se elle casar com outra menina rica...--interrompeu Thomazia.

--E d’ahi?

--Não lhe faltarão senhoras do agrado do padrinho...

--Não me dês leis, menina. O que me convem sei eu... Não quero cá a
menina rica... Quero-te a ti, por que te estimo como filha; quasi me
nasceste nos braços; e prometti á alma de teu pae olhar tanto por ti,
como se fosses irmã do meu Innocencio. São dois filhos que eu tenho.
Se elle te não quizesse, Thomazia, sabes o que acontecia? pelo menos
metade do que eu tenho havia de ser teu; isso lá nem a justiça nem o
bersabú t’o tiravam. Se elle casar comtigo, como de feito, fica-vos
tudo; não tendes partilhas que fazer, e fica-vos bastante, graças a
Deus, e louvores a quem m’o deixou sem pragas de orfãos e viuvas.

Thomazia não se enterneceu até ás lagrimas; mas ficou tanto ou quanto
commovida por sentimento de gratidão ao amor paternal do velho.
Figurou-se-lhe ver a imagem do pae, ainda não delida totalmente da sua
memoria, arguindo-lhe com severidade a perfidia com que respondia á
generosa alma do seu bemfeitor. Sem intervenção do venerando fantasma
de seu pae, sobrava para magoal-a a vergonha espontanea que sobreleva
os malissimos instinctos.

O regosijado Gervasio José saiu ao pateo e chamou o filho, e a mulher,
e as irmãs, sentindo não ser usual invocar os visinhos para quinhoarem
da alegria de um coração bonissimo. Innocencio foi o ultimo que desceu.

--Venham cá!--exclamou o velho com as bochechas rosadas e cheias de
riso.--Anda cá tu, meu filho, que és um lorpazito como eu fui quando
amava tua mãe, e como hão de ser teus filhos e netos até ao fim do
mundo _peronia secla seclorium_. Ouve lá, menino. Olha que a Thomazia
foi á janella para te ver; e tu, que trazes a cabeça lá por cascos de
rôlhas, cuidaste que ella ia ver o outro. Menina, conta ahi tu como
foi a coisa a este teu noivo, que está ali com um nariz de palmo a
olhar p’ró chão e com a vista de esguelha! Não me estejas a olhar-me
p’rá pequena com esse olhar de porco, Innocencio! Vaes mal com esse
sistema... Pagar amor com ingratidão nem os cães. Menina, diz ahi tu
como foi que...

Thomazinha, sem erguer o collo da pudica inclinação em que o tinha,
murmurou mui constrangida:

--Já contei ao padrinho... Se elle não quer acreditar, deixal-o. O
que eu faço d’aqui em deante é não tornar á janella, e acabam-se as
desconfianças...

--Como as desconfianças se acabam sei eu,--emendou D. Thomazia.--O que
se hade fazer ao tarde faça-se ao cedo.

--Dizes bem, mulher!--obtemperou o marido.--Hade isto ficar decidido
aqui hoje.--E voltado solemnemente ao filho, continuou:--Innocencio,
queres receber por tua esposa esta menina?

Deteve o rapaz a resposta, roendo a unha do dedo pollegar, e revirando
de soslaio os olhos a Thomazia.

--Então?--bradou o pae--comes os dedos ou respondes?

--Ella que diga...--murmurou Innocencio, passando a roer nas unhas da
outra mão.

--Afilhada!--apostrofou o velho guardando os mesmos tom e postura
graves.--Queres casar com meu filho?

A menina corria a orla do avental retorcendo as franjas de retroz uma
por uma com os seus alvissimos dedos.

--Responde, Thomazia!--tornou Gervasio dando aos hombros com
impaciencia.

--O padrinho bem sabe a minha vontade... Eu estou por tudo... mas...

--Mas quê...--abreviou o velho desconfiado das reticencias.

--Se elle me não ama depois... O padrinho bem sabe que o Innocencinho
nunca me disse se eu queria casar com elle... Tem lá outros namoros de
meninas ricas... e eu sou uma pobre orfã... Se depois se arrepender...

--Que dizes áquillo, Innocencio?--tornou Gervasio.

--Eu...

--Sim, tu! pois com quem diabo fallo eu!

--Ó Gervasio!--atalhou a irmã Sebastiana--não tens precisão de fallar
no porco-sujo!...

--Pois que querem vocês?--explicou o velho.--Um homem perde a
paciencia! Está ali aquelle focinhudo a roer os cascos, e não acaba de
desembuchar o que lá tem dentro!

--Responde a teu pae, menino!--interpoz-se D. Thomazia.--Ou sim, ou
não. Contra vontade não quero que te cases...

--Isso é assim!--atalhou um novo personagem n’esta poetica e
fidelissima scena de familia.

Era a senhora Custodia da Porciuncula que assomava no limiar do
escriptorio com as calmandulas enroscadas no pulso.

--Peço licença... Ninguem me cá chamou; os meus santos é que me
trouxeram...--disse ella.

Abriram-lhe passagem com agradavel sombra as trez senhoras em quanto a
menina desabafava o animo, encarando na sua confidente.

--A senhora D. Thomazia tem razão--proseguiu Custodia, inclinando
profundamente a cabeça deante da consorte de Gervasio.--Casar, se o
coração não puxa, é mau arranjo. Sempre me ha de lembrar o verso em que
o boticario dizia:

    Menina, casar sem gosto
    Por fazer vontade alheia
    É cair no inferno em vida,
    Remar contra a maré cheia.

Innocencio careteou uma visagem de anojado do tom enfatico e talvez
ridiculo com que a senhora Custodia usava citar os aforismos liricos do
boticario. A velha deu tento do desdem do moço, e calou-se de subito,
relançando-lhe a vista azedada.

--Deixemo-nos agora lá do verso do boticario--disse o pae de Innocencio
egualando-se ao filho no descaroado desamor a poetas, mormente quando
se discutia uma coisa séria. Não venha cá a Custodia dar sentenças, que
o negocio hade arranjar-se sem o seu voto, se Deus quizer...

--Senhor Gervasio--replicou a velha--se Deus quizer, sim; mas se Deus
não quizer, não...

--Deixa fallar a mulhersinha, Gervasio,--interveio a esposa,--deixa-a
fallar, que é mulher experimentada.

--Será, será; o diabo o negue...--acudiu o burguez maliciando o dito
casto da mulher.

--Anjo bento!--murmurou a senhora D. Florencia--ahi vens tu outra vez
com o cão tinhoso!

--Sabeis vós que mais?--redarguiu Gervasio--ide á fava! Estou a
mandal-as todas p’ra riba, e fico sósinho com os pequenos... Que estás
ahi a resmungar, Custodia?... Diz lá o que quizeres... Achas que a
filha de teus amos vae mal casada com o meu filho?

--É consoante, senhor Gervasio. Se elles gostam um do outro, muito que
bem; se não gostam, tanto faz ser rica como pobre; contentes é que
elles hão de viver, quando eu fôr rainha. Não é isto nem aquillo...
Estes meninos, cá segundo entendo, não estão talhados p’ra se casarem.
O senhor Innocencinho não gosta da senhora D. Thomazinha.

--Quem t’o disse?!--bradou Gervasio.

--Ora, quem m’o disse! Basta vêl-o. Se elle gostasse d’ella, estava
aqui agora aquella menina á espera que elle se resolva? Então já lh’o
elle tinha dito, e acabavam estas caramunhas de parte a parte... Emfim,
senhor Gervasio, queira perdoar o meu atrevimento, mas a minha opinião
é que os deixe estar solteiros. O seu filho não lhe faltam noivas; e á
menina, se Deus quizer, não lhe hão de faltar noivos. O melhor dote que
ella pode ter é a sua virtude e a carinha de santa que tem.

Gervasio roçava as costas das mãos uma na outra e bufava, voltando
a parte posterior de sua pessoa á sã filosofia de Custodia. As trez
senhoras, convictas de que a velha era servida de favores do alto e
sempre mais ou menos inspirada, attentavam religiosamente no que ella
dizia. A menina desafogava-se da oppressão, respirando pelo desabafo da
criada. Innocencio guardava um silencio que tanto podia considerar-se
summo siso como supina toleima.

Quebrados os impetos da colera, Gervasio José abriu uma porta de
entrada para um armazem de geropigas, e disse ao filho:

--Anda comigo, rapaz.

Entrados ao armazem, fechou o velho a porta, e rompeu assim de vizeira
com Innocencio:

--Queres casar ou não? Gostas da rapariga ou não gostas? Diz lá o
que quizeres, que eu não t’o levo a mal. Se vês que te não agrada o
casamento, dil-o p’r ahi á bocca cheia. Cá ás costas não quero culpas.
Queres a moça ou não queres?

N’este lance, o rapaz viu trez bonitas raparigas: uma era a visinha
Mariquinhas Gomes, que tocava piano; outra, era a Felismina da rua das
Flores, que lhe tinha dado amendoas, na Misericordia, em quinta feira
santa, ao pé da pia; a terceira era a Rosinha da Praça Nova, que lhe
pisára um pé, estando elle a jogar o quino em casa da mesma menina, a
mais presada das trez. Por tanto eram trez provas de ternura que lhe
lancetavam o coração n’aquelle momento. Trez meninas, aliás quatro com
Thomazia, que lhe embaraçavam a escolha, obrigando-o a ter mais engenho
que o pensador e historico burro de Buridan.

N’esta oscillação, demorou-se o que bastou para o pae concluir assim
terminantemente:

--Está visto... Não queres a rapariga... Acabou-se; não fallemos mais
n’isto. Vamos embora.

--Olhe cá, meu pae...--susteve Innocencio.

--Que é?

--Eu queria dizer-lhe uma coisa...

--Então?

--Peço quinze dias de espera.

--P’ra quê? P’ra te decidires? Deixemo-nos de historias. Se o coração
t’o não pede, acabou-se. Tanto faz scismar no caso como estar a dormir.
Arrumou-se a pendencia. Nada perdido. Vou tratar de casar a pequena
com um dos meus sobrinhos de Villa-Flor. O que eu não quero é têl-a
solteira em casa; que isto de mulheres, ás duas por trez, desandam, e
ninguem tem mão n’ellas. Acabou-se. Vamos embora.

A determinação de Gervasio era sincera. Póde ser que um misterioso
relampago, n’aquella hora, lhe aclarasse, em confuso, o porvir
desditoso de tal enlace. O certo é que a vontade de unir o filho á orfã
se lhe varreu de todo.




                              CAPITULO VI

                               Argumento

 E vae eu disse e vae elle disse. O grande tratante que era João José
 da Costa Guimarães. Operações da Providencia. Custodia pragueja como
 uma vivandeira. Como a menina se foi consolando. Costa Guimarães fica
 sendo na alma de Thomazia a figuração de um sapo. Reconsiderações de
 Custodia, e o coração de rôla da innocente. A velha pensa em embruxar
 Innocencio. Reminiscencias do farmaceutico amado. Esconjuros de sal
 virgem e salgação de Innocencio. Como o rei de ouros saiu de corpo e
 pensamento com a dama do mesmo naipe. O rapaz não póde já comer os
 pés de bacoro, eguaria predilecta. Pede-lhe Thomazia duas melancias.
 Lampejo de espirito d’elle. Gritos indicativos de que um homem está
 perdido.


--Menina--dizia Custodia á orfã, passados dois dias--não vê os meus
olhos?

--Estão vermelhos...

--É de chorar... Tanto resei, e a final... historias. Deus me perdôe,
se pecco; não é o Guimarães quem a hade levar á egreja.

--Ah!--suspirou Thomazia. Então que disse elle?

--Tenho muito que lhe contar, filha do meu coração... Eu dei-lhe a
carta á esquina da viella dos Gatos! Elle leu-a logo, por que eu lhe
disse que a menina queria resposta. Futurou-se-me que o dianho do
homem cobria a cara com o papel para se rir ás escondidas! Depois,
poz-se a fechar a carta e não me dizia nada.--Que heide eu dizer á
menina?--disse eu; e vae elle disse: «Que lhe hade dizer? eu sei cá!» e
vae eu disse:--Pois a menina não lhe diz ahi que a vá pedir já, se quer
casar com ella?--E vae elle disse: «Sim, ella diz isso; mas eu...»--E
vae eu disse: «Mas eu quê? então o senhor que cuida? Cuida que isto são
brincadeiras?--E vae elle disse: «Ainda estou muito novo; se me casar
hade ser lá p’ró diante». E vae eu... Em fim, assim que ouvi isto,
parece que o coração se me despegou por aqui abaixo. Fui-me metter na
egreja de S. Bento, e estive lá a chorar, que já nem via o padre. D’ali
a pouco...

--Ai!--gemeu Thomazia.

--Deixe dizer o mais, e não se afflija que homens não faltam, menina.
D’ali a pouco fui ouvir outra missinha aos Congregados, e quando saía
para ir resar aos Clerigos vi o tal Guimarães á porta de um botequim
que está nos baixos dos frades, sim dos frades que lá estavam quando
havia religião, e estava elle no meio de outros a ler um papel, e os
outros a dar gargalhadas.--Querem vocês ver, disse eu cá comigo, que
o berzabum do patife está a mostrar a carta da minha Thomazinha? Vou
espreitar... E fui muito escorcemelada com a parede, e metti-me n’uma
porta, d’onde ouvia tudo. Meu dito, meu feito! Era a carta da menina...

--Ai!--espeitorou a anciada moça, pondo as mãos lindas sobre o alto
seio que parecia beijal-as ao levantar-se nos arquejantes éstos.--Era a
minha carta?!--exclamou ainda Thomazia, levando as mãos ao rosto.

--Era, era, filha; mas não chore, que os ditos da menina, não n’a
envergonham.

--E que diziam os outros?

--Olhe, quando o bregeiro lia aquillo que dizia: _Dizei-me se quereis
já, já unirse-vos a mim pelos sagrados laços de..._ de que era que a
menina dizia lá?... do _jubileu_ ou coisa assim... os outros até davam
saltos a rir-se, e dizia um:--Oh! que burra!--e outro berrava: «Eu
quero ver essa mulher das Cangostas; dá-me essa seresma por piedade,
Guimarães!»... a chamarem-lhe seresma aquelles canalhas! Ai, menina! As
lagrimas saltaram-me como punhos!...

Thomazia menos ferida no coração do que na vaidade--não já de redactora
de cartas, senão de mulher que a si mesma se via digna de respeito no
seu amor--chorou agora tão sincera e amargamente, quanto dois dias
antes fingira lagrimas deante do padrinho. As operações da Providencia!

Custodia continuou:

--Não chore, meu anginho, não chore, que me parte de meio a meio o
coração!

--E tu a dizer-me--soluçou a orfã--que os santos te tinham mandado o
meu noivo... Se não fosse isso, eu não caía em lhe escrever...

--Tem razão, tem razão: mas que quer, menina? A gente engana-se. Cuidei
que as minhas orações valiam alguma coisa... Paciencia... Deus sabe
melhor o que faz do que nós o que pedimos. Que leve a breca o homem e
má peste o tolha! Tantos diabos o apanhem como bagadas me cairam por
esta cara!...

A menina estava mais desabafada. De tão superficial amor, assim
ultrajado, qualquer outra senhora, mais bem compleicionada, declinaria
facilmente ao odio. Odio é que ella sentia ao villão que lhe expozera
á zombaria o estilo da carta. Ainda ha de nascer a mulher que perdôe
insulto de tal porte; que a diffamação da honra é menos affrontosa do
que o escarneo de uma carta em que vae o coração. Portanto, a imagem
de João José da Costa Guimarães, no espirito de Thomazia, fazia a
impressão de um sapo, e mais nada.

Custodia da Porciuncula, assim que a menina se amostrou mais socegada,
fallou-lhe assim:

--Ora, diga-me cá, anginho... Que lhe parece o Innocencio? Elle gostará
da menina ou não?

--Eu sei cá!... por quê?

--Não que isto é uma pergunta... Está-me a parecer que o rapaz lhe quer
bem, e que... bem me entende... lá como casamento não era desarranjo,
acho eu. Já lhe disse que o arrenego, e tomára eu ver a menina casada
com outro; mas, se elle fosse bom marido, rico é elle; e, pelo que
vejo, não ha que fiar em ninguem, para a gente andar á cata d’outro. Eu
cá nas minhas aquellas de santos já me não fio, Deus me perdôe... Sabe
que mais, senhora D. Thomazia?... Entende-me?

--Sim; mas... tu não viste que o padrinho desde antes de hontem não me
disse mais nada?

Como a innocente percebeu a velha! Muito longe de repugnar-lhe o
conselho, offereceu logo razões impeditivas de realisar-se! Coração de
rôla!

Era verdade. Gervasio nada mais lhe tinha dito, desde que saíra com
o filho do armazem da geropiga; e Innocencio apenas se avistára
com ella ás horas de jantar ou ceia. Que os olhares se encontravam
rapidos como dois relampagos afusilados de polos fronteiros, isso era
tambem verdade. Tanto os paes como os tios de Innocencio festejavam
particularmente estes bons indicios de ainda verem coroadas as suas
esperanças, por effeito de uma reciproca e espontanea rebentação de
amor nas duas almas a um tempo.

A’quella consideração da orfã, obviou Custodia:

--Isso lá do padrinho não lhe dizer nada tanto faz como coisa nenhuma,
filha. O caso é o rapaz; o rapaz é que é preciso prendel-o.

--Ahi vens tu com as tuas prisões e telhiços!--atalhou Thomazia.--Eu
não tenho fé com essas endróminas.

--Não tem?--garganteou a velha rindo sêccamente.--A menina é muito
nova...

--Então por que não prendeste aquelle malvado do Costa Guimarães?

--Por que o não prendi?

--Sim.

--Deus lá o sabe... Cá eu nas minhas orações não chamo demonios, é
santos, entende? e os santinhos, se me não ouviram, é por que bem
sabiam a rôlha que era o tal patife. Dê graças a Deus, menina! Foi bom
que isto acontecesse antes de lhe entrar o amor de raiz, por que já lá
dizia o verso do boticario:

    Costilia, se me não amas...

Costilia, dizia elle que era Custodia... Eu não sei...--explicou a
velha, e proseguiu mudando o tom chão da nota para o declamatorio:

    Costilia, se me não amas,
    Diz-m’o ao cedo e não ao tarde;
    O fogo apaga-se ao cedo,
    Nemja quando ha muito arde.

Pois é como é, meu serafim do céu... Não nos lembre mais o demonio
do homem, e vamos cá ao que serve. A menina deixe-me manobrar, e lá
pela sua parte não faça nada; isto é, quando o Innocencio olhar para
a senhora D. Thomazinha, olhe tambem; se elle lhe fallar, falle-lhe;
se elle não fallar, não falle. E deixe-o andar; que o rapaz ha de
ganhar-lhe paixão. Oh se ha de!... eu que lh’o digo...

--Mas eu não gosto d’elle...--interrompeu a moça, fazendo uma visagem
de fastio.

--Ora vamos lá, vamos lá; o rapaz não é mal-ageitado; e, de mais
d’isso, os homens todos são uns... E a riqueza, menina?--aqui levantou
de ponto a voz e arregaçou as palpebras, entumecendo os olhos de
emfase--E a riqueza? A menina sabe lá quanto esta gente tem de seu?!
Quando eu vim crear a sua mãesinha, ha mais de quarenta annos, ouvi
muitas vezes dizer a seu avô que os antigos d’este Gervasio eram judeus
que mediam ás razas ouro em pó... Lá me custa, isso é verdade, que a
menina se case com homem de raça judia; mas tanto o pae como o avô de
Innocencio foram baptisados, e as senhoras essas são boas christãs. O
rapaz, quando era pequeno, ainda ás sextas feiras lhe fervia o sangue;
mas agora, eu tenho pedido ao Senhor que o faça bom, e hade fazer.
Tome tento, menina; ande-me com o lume no olho, não deixe fugir a
occasião, que isto de homens, são assim--disse Custodia, fazendo no ar
um gatimenho com a mão descarnada.--Casar, e quanto antes, que não vá
algum d’aquelles diabos da Praça-Nova dizer ao Innocencio que a menina
mandou a carta.

--É verdade!--exclamou Thomazia transida já do receio de se lhe frustar
o casamento que, pouco ha, desdenhára.

--Não se assuste... O Innocencio ámanhã vae p’ró Douro ver as vinhas
de mando do pae, e só volta d’aqui a oito dias. Em quanto vae e volta
ninguem já se lembra de nada.

Estavam a soar as badaladas do meio dia. Custodia disse a Thomazia que
a deixasse sósinha, por que assim se fazia necessario.

Foi a velha á cosinha e colheu da saleira um punhado de sal. Fechou-se
na agua-furtada, e pulverisou o sal n’um caco. Depois, accendeu uns
gravatos de alecrim, e esperou que batesse o meio dia n’outra torre.
Ao primeiro toque, tirou uma boa pitada de sal, lançou-a á lavareda
do alecrim e ciciou estas palavras debruçada sobre a vaporação da
fogueirinha: _Eu te salgo, Innocencio; eu te resalgo e torno a resalgar
para que não possas comer, dormir, fallar, nem socegar, sem com a
Thomasinha casar._

Seguiram-se mais duas pitadas de sal virgem e dois esconjuros no mesmo
estilo.

Concluida a operação magica, acocorou-se a beata, sorveu duas vezes
de simonte, ageitou o regaço, montou as cangalhas, e botou as cartas.
Saiam-lhe dispostas as figuras do baralho tão de molde com o desejo
que, á terceira vez, a sibilla ganiu um ai de puro jubilo, estremecendo
sobre a tripode do capacho em que se amezendára. O rei de oiros, que
era Innocencio, calhava sempre de _corpo e pensamento_ com a dama do
mesmo naipe, que era Thomazia. Por isso ella ganiu com uma expressão
torva, sobre-humana e como de vocalisação infernal; pois não ha duvidar
que ha o que quer que seja satanico na cartomancia, quando as mãos
escarnadas e roixas das profetisas cruzam sobre o baralho aquellas
bençãos e murmuram umas vozes esconjuratorias que a mim, homem d’este
seculo e progressista, me já tem feito arripiar as fibras intimas e
riçar os cabellos.

Entretanto, estava jantando a menina. A cadeira de Innocencio
defrontava com a sua. Reparou ella que o rapaz comia pouco, sem embargo
de lhe estar a mãe avitualhando o prato com uns pés de sevado, iguaria
dilecta do filho. Deu fé, além d’isso, de que elle lhe esguelhava a
miudo os olhos, perfilando o rosto para a não encarar de fito.

--Ámanhã a estas horas onde estarás tu, meu filho?--perguntou a mãe já
com tristeza da presentida saudade.

--Estou no rio Douro--respondeu altivamente Innocencio com semblante
acabrunhado.

--Estás Entre-ambos-os-rios--disse Gervasio.--Não se esqueçam de lhe
metter duas gallinhas no alforge. Deixa-te lá estar oito dias, e não
venhas senão depois de bem desfolhadas as vinhas. Manda-me lavar os
toneis, e olha se me aproveitam o sarro. Agora não te vás lá pôr a
malucar; que tu não me trazes essa cabeça escorreita!...

--Deixa o menino!--atalhou a senhora D. Thomazia.

--O menino!--murmurou desdenhoso o pae--menino de vinte e dois annos!

Innocencio assoprou do fundo peito um suspiro demorado como o de
borracha de vento que se esvasa vagarosamente. A menina levantou os
olhos ao rosto do moço e surpresou os d’elle a fugirem do encontro.

Findo o repasto, e dadas graças a Deus, Thomazia foi chamar Custodia
para vir jantar, e contou-lhe em breve o que passára na mesa. Custodia
grasnou um riso protervo de brucha e disse:

--Deixe-o comigo.

Á ceia, no aspecto de Innocencio reluzia a inquietação interior.
A mesma abstinencia e taciturnidade do jantar. Por mais que a mãe
desvellada o desafiasse a fallar, não havia tirar-lhe frase que não
fosse desconsolada e sêcca. Levantados da mesa, despediram-se todos
d’elle porque Innocencio tinha de madrugar. Thomazia abeirou-se do
triste moço, e deu-lhe um abraço, que elle recebeu com estranho
estremecimento.

--Manda-me duas melancias da quinta, sim, Innocencio?--disse a menina
compungida.

--Pois, sim...--murmurou elle, sentindo cair-lhe sobre o coração um
cesto de melancias.

Custodia appareceu tambem para despedir-se, e deu ao moço uns bentinhos
da Senhora do Rosario, compendiando n’um discurso apropositado as
virtudes da nómina, e fechando a pia allocução com estas palavras:

--Cá ficamos todos a resar pelo menino. Não lhe hade succeder mal
nenhum. As orações d’este anginho hão de guardal-o.

E, dizendo, apontava para Thomazinha, que abaixou os olhos.

Innocencio surriu-se, e disse:

--Hei de mandar-lhe as duas melancias que ella pediu.

Declaro que tenho noticia de poucos ditos com tanta graça e tão
pouco desvanecimento! _Hei de mandar-lhe as duas melancias que ella
pediu..._ Isto é bom, quando a pequena inclinava o pescoço em geito de
magoada! E para que vejam que o moço açabarcára n’aquelle só dizer
todo o espirito que a natureza dera proporcionalmente á familia, basta
saber-se que ninguem atinou com a dolorosa ironia do surriso e das
palavras.

Ao repontar do dia, Innocencio entrava no barco-da-carreira. Soavam as
trez pancadas das Ave Marias em S. Francisco. Ao mesmo tempo, Custodia,
com o saioto pelos hombros, e um olho ainda tapado d’exalações
nocturnas, lançava a terceira pitada de sal virgem na fogueira do
alecrim, e dizia: _Eu te salgo, Innocencio; eu te resalgo e torno a
resalgar, para que não possas comer, dormir, fallar, nem socegar, sem
com a Thomazinha casar._

E Innocencio, sentado á prôa do barco, olhava para as trapeiras da rua
das Cangostas, e dizia entre si:

--Como diabo estou eu amando tanto esta Thomazia!...

Quando o coração se desentranha em gritos, assim eloquentes, está
perdido um homem.




                             CAPITULO VII

                               Argumento

 Descreve-se Innocencio, consoante as tradições. Como elle se carteava
 com a Mariquinhas e com a Rosa. Libertinagem do mancebo, desde
 as luvas côr de figado até ao quino do botequim da rua de Santo
 Antonio, e outras devassidões. O palacio de cristal e D. Ignez de
 Castro em 1868. Um passeio a _vol d’oiseau_ pelo espirito e coração
 de Innocencio José de Barros. Explica-se a ida d’elle para o Douro.
 Porta-se bem, e não póde comer, rio acima. Apostrófa Thomazia, e
 declama quatro versos dos _Ciumes do Bardo_. Espanta-se o gentio do
 barco da carreira, e elle assobia para disfarçar. Custodia continua a
 salgal-o, e elle cada vez mais insipido.


Ainda não é tarde para dizer de Innocencio o que pude averiguar das
tradições guardadas por muitos que o conheceram, no anno de 1843 em que
vão correndo os successos d’esta exemplar historia.

Era de sua pessoa bem ageitado o filho de Gervasio José de Barros.
Largo de aspaduas. Entroncado e rijo. Trigueiro, côr de bom sangue.
Olhos negros, grandes e um tanto pasmados. Nariz denunciante da raça,
judaico, longo, adunco e transparente. Nariz de Judas Escariotes
chamava-lhe Custodia, quando elle lhe macerava os perigalhos das ventas
d’ella com a bengala do pae. Mãos e pés guardavam proporcional e
harmonicamente um tamanho que fazia impressão. Não lhe vinha de Israel
a superabundancia das extremidades: aquillo haviam-n’o ganhado seus
avós na peninsula hispanica, onde as tribus dispersas e acurvadas por
trabalhos rudes engrossaram os musculos e estiraram os tendões de pés
e mãos. Isto não é regra. Se o fosse, a terra natal de Innocencio
correria o risco de ser considerada uma conquista de hebreos.

Tenho dito da pessoa material; agora vejamol-o em espirito.

Passava por não ter nenhum na roda dos seus conhecimentos. Era
taciturno e desconfiado. Sobejava-lhe instrucção para se fazer
ouvir; porque notava em silencio algumas parvoiçadas alheias. Lia
correntiamente, não envergonhava a ortografia; e a grammatica
perdoava-lhe as offensas, por entender que elle nem a conhecia de nome.

Nem era necessario para se entender com algumas meninas. Desde os
dezoito annos que se carteava ora com a Mariquinhas Gomes, ora com a
Rosinha da Praça Nova. Os epistolarios d’estes amorios em flor acabaram
em papelotes. Este destino foi o mesmo que rachar-se a urna onde
estiveram os aromas do amor virginal de Innocencio. Vaporaram-se.

Aos vinte annos, o representante de Pero Barrios teve seis mezes de
vida dissoluta. Comprava todos os domingos um par de luvas côr de
figado ou côr de laranja alternadamente. Alugava cavallo ao Lopes,
pedindo sempre que lhe puzessem telim orlado de vermelho, e despedia a
chotar, a galopar, a ferir fogo por essas ruas. E não caía. O cavallo
ia-lhe entalado nos calcanhares ingentes. Era um centauro o grupo.

Vestia-se a primor da moda e consumia verniz em barda, torturando-se
com heroico stoicismo. Ninguem lhe ouvia um gemido, tendo razões para
gritar como seus avós com os pés untados de gordo sobre brasas vivas.

Gervasio não o encrepava d’estas demasias de luxo, bem que ignorasse
as cavalhadas dominicaes. Dava-lhe mezada para ir ao Tivoli, e
achava que seu filho tinha razão de querer admirar trez vezes por
semana o Grilocôcho, o Fontainhas, o Fidanza e a Grata, sujeitos que
resplandeciam na prosperidade do theatro nacional do Porto, chegada ao
seu apogeu, para depois cair até á IGNEZ DE CASTRO, representada hoje,
5 de janeiro de 1868, no _Palacio de Cristal_. O palacio faz avançar a
gente a empurrões!

Apanhemos o assumpto, passando a voar por coisas da vida e costumes
de Innocencio, assaz contraditorias do seu nome baptismal. Sobra
razão para que o consideremos empestado da peçonha que afistulava a
mocidade de ha vinte e cinco annos. O botequim da rua de Santo Antonio
era um cardume de libertinos: quem ali entrasse a tomar um capilé,
e se demorasse dez minutos, saía cinico. E Innocencio, começando a
frequentar aquella caverna com o candido intento de jogar o quino,
passou depois ao bilhar, e d’aqui ás mezas marmóreas onde a sã moral
era espostejada como cadaver combalido em amfitheatro anatomico.

Por estas razões o filho de Gervasio não tinha sentido pela orfã o
affecto dulcissimo que só florece em almas castas. Affeito a vêl-a
formosa todos os dias, nem sequer a comparava com outras. Passava por
ella como qualquer pessoa de juizo e medianamente admirativa pelas
Venus de alabastro. Lembrava-se de a conhecer e trazer ás cavalleiras
quando ella tinha dois annos. Depois viu-a crescer, desabotoar flores
que lhe não rescendiam algum perfume; nenhuma florecencia o assalteou
de improviso; todas as primaveras da Thomazia lhe pareceram uma e
mesma primavera. Esta regularidade de vida fazia implicancia ao
extraordinario que requer o amor. Fôra mister ajuntar á formosura de
Thomazia vicio ou virtude que sacudisse, de repellão subito, o espirito
adormecido de Innocencio.

Bem viram como saltou o coração no peito do rapaz, quando o galhardo
Costa Guimarães remessava o cavallo pelas Cangostas. Amor assim nascido
é o descredito de uma paixão que se gosa de ser a primeira na jerarchia
das nobres. A gentileza do picador rival e a fina raça do cavallo, as
duas coisas, produziram a instantanea irrupção da cratéra. Belleza,
innocencia, agrados e caricias honestas nunca vingariam espertar o
affecto do descuidado moço, que até áquella hora se andára narcizando
a remirar-se no espelho dos alfaiates, ajustando ás mãos rebeldes as
luvas côr de figado.

O abalo, porém, foi perdendo força, ao mesmo passo que a menina, docil
á vontade de Gervasio e incapaz de reagir senhorilmente, se prestava a
satisfazer a vaidade do cioso deixando-se desposar com elle.

Se a orfã conhecesse o jogo de scena da comedia humana, continuaria a
fomentar as suspeitas do indifferente Innocencio, indo á janella na
occasião em que as patas de cavallo denunciassem a passagem de algum
façanhudo _Saint-Preux_, terror da moral desde a Porta Nobre até ao
Poço das Patas. Então veriamos o amador um tanto velhaco de Rosinha
de Barcellos apertar com o pae para que lhe désse a posse legitima e
santificada da linda menina que os burguezes, notaveis na gineta e
nobilitados por seus cavallos, lhe andavam disputando com sensivel
vantagem.

Estamos chegados á ida de Innocencio para as quintas do paiz
vinhateiro. Foi elle quem se offereceu. O pae maravilhou-se do insolito
zelo vinicola do rapaz. Ora o caso tem explicação e misterio.

A explicação é que dois irmãos da Rosinha, interessados no casamento da
irmã, denunciaram a Innocencio que o Costa Guimarães se gabava de ter
recebido cartas de Thomazia. Cuidavam elles que este aviso impediria
o ir por diante o tal ou qual affecto com que a menina da Praça Nova
suspeitava inclinar o coração de Innocencio á sua bella hospeda.

Agora o misterio. Chama-se assim á mingua de o podermos destrinçar pelo
claro. O inintelligivel está em que o moço não accusou a orfã ao pae,
nem proferiu palavra indicativa das agonias do seu animo.

D’aqui procedeu a deliberação de ir para o Douro, apostado a
distrair-se com uns ares filosoficos de pessoa sizuda que houvesse
lido as doçuras e allivios que Zimmermann promette aos solitarios.
Como quer que fosse, tudo que eu dissesse em honra d’este rapaz seria
pouco encarecido, attentos o juizo e generosidade com que elle escondeu
do pae as leviandades de Thomazia. Assim se absteve heroicamente de
vingar-se d’ella e sair victorioso das suas suspeitas, assentando em
honestas bases a repugnancia que lhe fazia tal casamento.

Elle ahi vae Douro acima. Ao dar do meio dia, olhou de soslaio para os
alforges onde abundavam as vitualhas e disse de si para comsigo:

--Não tenho vontade de comer!... e vou em jejum!

Depois, concentrando-se em intestino mais fidalgo que o outro
relacionado com os alforges, monologou, pondo os olhos nas ribas
alcantiladas do Douro:

--Thomazia!... que diabo de feitiço me fizeste!...

E, pendendo a fronte, assentou a barba no seio, e meditou d’este feitio:

--Verdade é que eu nunca lhe disse que lhe tinha amor... Coitada!...
ella bem sabia que eu fazia a côrte á Gomes, e nunca me mostrou má
cara... Mas, se ella gostasse de mim, não m’o dizia? Dizia, sim... E
talvez não dissesse, por que tem lá a sua soberba, e não queria mostrar
que me queria bem por eu ser rico. Prompta a casar comigo estava ella,
pois não estava?! Estava... eu bem lh’o ouvi dizer a meu pae... Mas
então para que escrevia ao outro?... Seria p’ra me metter ferro?... Eu
sei cá!

E aqui acudindo-lhe á memoria uns versos que elle tinha decorado dos
_Ciumes do Bardo_, exclamou em voz soturna, bracejando com impeto não
destituido de harmonia mimica:

    Mulher! que mixto horrendo és tu na terra,
    para unir crimes taes com tantas graças?
    Que nome te convém? cruel? perjura,
    impia, blasfema, algoz, monstro dos monstros?

E calou-se.

Os barqueiros olhavam espantados para elle, e duas passageiras já
idosas tomaram-lhe medo.

Innocencio, caindo em si do rapto, quasi se viu ridiculo, e entendeu
que o disfarce era assobiar assim a modo de quem se vae divertindo
monologando passagens de Castilho e relembrando no assobio trechos de
Donizetti que elle conhecia dos realejos.

Como acima se disse, este caso passava ao meio dia em ponto. E á
mesma hora, quando as nove badaladas caíam da torre dos Clerigos, a
senhora Custodia da Porciuncula, de cocoras á beira da fogueirinha,
fazia estalejar os espirros do sal virgem, e murmurava: _Eu te salgo,
Innocencio; eu te resalgo e torno a resalgar, para que não possas
comer, dormir, fallar, nem socegar sem com a Thomazinha casar._




                             CAPITULO VIII

                               Argumento

 Como Innocencio foi enguiçado. Para onde lhe deu o vinho da colheita
 de 1817. Palestra afflictiva com o pae, que não crê em bruxêdos.
 Lastimas de D. Thomazia, e horrores das tias que julgam paradoxo um
 jejum de tres dias. Innocencio come á tripa forra, e ama á proporção.
 Discurso de Gervasio conducente ao casamento. Pudor da menina e
 pieguices amorosas do rapazola. Resolução de afogadilho. Casam-se em
 S. Nicoláo, e vão passar a «lua de mel» ao Bom Jesus do Monte, em
 Braga. Diz-se da mula e macho que os transportam e dos passarinhos que
 cantam.


Ao cabo de trez dias, Innocencio derivava em um barco de pipas na
corrente do Douro. Que trez dias d’aldeia! Trez dias de insomnia, de
dessocego, de afflicção e fastio. Repuxava-lhe a alma para o Porto
uma força irresistivel. A espora da saudade picava-lhe fibras illesas
até então. Chegado ao galarim do tedio e do desespero, furou uma pipa
da colheita de 1817 e bebeu com aquellas sedes ardentes de Musset,
de Espronceda e de outros infelizes que fizeram adegas dos corações
vasios. Mas, ah! o coração de Innocencio estava cheio do amor de
Thomazia. O vinho empoçou-se-lhe no estomago e d’aqui fumegou-lhe
para o cerebro uns delirios que rompiam em apostrofes metricas,
sacrilegamente apanhadas nos _Ciumes do Bardo_. Quantas vezes tenho
ouvido relanços d’aquelle poema servindo a paixão declamatoria de
alarves mais obstinados que Innocencio! Fazem-me lembrar onagros a
pastar nos roseiraes, quando os ouço a espumar das sujas bocas aquelles
versos de ouro!

Applacada a sesão, Innocencio correu-se de pejo da sua sombra.
Revoltou-se contra si mesmo, exclamando:

--Oh! quanto sou asno! Que vim eu fazer ao Douro?! Não podia eu estar
agora á beira de Thomazia, e livre d’estes ciumes que me...

E, dizendo, enganchou os dedos de fórma de garra, e fincou-os com força
de ventoza sobre o lado esquerdo do peito, como quem diz que os ciumes
lhe agadanhavam o coração.

Feito isto, chamou um gallego da vinha, entregou-lhe o alforge e a
mala, desceu ao caes do Pinhão, e esperou que desatracasse barco de
pipas.

Taes foram as angustias que precederam a partida e inesperado
apparecimento de Innocencio no escriptorio do pae.

--Já por aqui?!--exclamou o velho.--Que novidade trazes, Innocencio?

--Nenhuma...--respondeu o moço com tristeza.--Não pude lá estar mais
tempo... Estive a morrer...

--No rio? houve desastre?

--Não, senhor... Quero dizer que me vi tão afflicto, tão apoquentado,
que...

--Que tiveste, rapaz?--atalhou o velho alvoroçado.--Tu estás amarello,
meu filho!... Tens os olhos molhados!... Que é isso?...

--Meu pae!...--murmurou Innocencio, apanhando a cabeça com as palmas
das mãos.--Eu desconfio que me fizeram feitiçaria... Não pude comer nem
dormir trez dias!...

--Como assim?...--acudiu Gervasio despegando-lhe as mãos da
testa--então que sentes, menino?

--Sinto-me doudo d’esta cabeça... A minha razão diz-me que não ame
Thomazia, e eu não pude esquecel-a uma hora, um minuto, em quanto andei
por lá...

--Então cuidas tu que isso é bruxedo?--atalhou o pae com ridentissimo
carão.--Ó filho, isso não é o que tu cuidas; é um mal proprio da
natureza que péga em todos. Qual feitiçaria, nem qual carapuça! Nunca
os males sejam maiores... Se gostas d’ella, fazes o que deves; tambem
ella morre por ti. Ainda não ha meia hora que Thomazinha me veiu aqui
trazer esta carta para eu t’a mandar ámanhã dentro da minha pelo
correio. Aqui a tens, olha, lê-a e verás que a mocinha estava cá como
tu por lá. Esteve ahi a chorar como vides, e a dizer que tu, se a não
querias, dissesses isso e não andasses a desacredital-a.

--Eu não a desacredito!--exclamou Innocencio indignado com razão.--Pois
eu que disse?...

--Ora vamos lá... vamos lá... Tu disseste que o outro do cavallo andava
por ahi a espinotar pela rua p’r amor d’ella, e que...

Foi interrompido Gervasio pela estrondosa descida da familia que
recebêra do criado a nova de estar Innocencio no escriptorio.

A mãe e as tias penduraram-se no rapaz; e Thomazia, com os braços
abertos, esperou a sua vez para o apertar ao seio.

Deixou-se estreitar, affavel e ao mesmo tempo melancolico, o ditoso,
com uns tregeitos que seriam de tolo se não fossem antes umas
mimalhices que a boa fortuna permitte aos seus beijamins. Innocencio
fez um bico de beiços e um pendor de palpebras assim a modo de quem
quer chorar as suas penas no seio de quem lh’as deu. N’este em meio,
chegou Custodia, e encarando com os dois meninos abraçados e mudos,
bradou, batendo as mãos:

--Está feito o milagre! ouviram-me os meus santos! Eu que disse,
senhoras?--continuou ella virando-se para a mãe e tias de
Innocencio--eu não disse ás minhas amas que elles se queriam como um
casal de pombinhos? Ora ahi os teem a rever-se um no outro como dois
serafins! benza-os Deus, que tão galantes são! Tomára eu não acabar sem
ver os filhinhos d’estas duas creaturas! Vejam, vejam, como ella se faz
vermelha!...

--Está bom, está bom, Custodia--disse o alegre Gervasio--vae dizer á
cosinheira que ponha lá que comer na mesa, que o menino está a cair de
fraco.

--Bem se te vê na cara, meu filho--confirmou a mãe.--Comeste pouco por
lá?

--Ha trez dias que não come--explicou Gervasio.

--Jesus, santo nome de Jesus!--conclamaram as trez senhoras,
benzendo-se.--Ha trez dias!...

--Ó meu Innocencinho!--lamuriou D. Thomazia de Barros, saltando-lhe
outra vez ao pescoço.--Estiveste trez dias sem comer!?

O rapaz surriu-se tristemente e murmurou:

--Isso que tem?...

--Que tem?--voltou a velha lastimosa--que tem? Podia levar-te a bréca,
meu querido filho! Trez dias sem comer!...

--É a primeira que ouço!--disse D. Florencia, com as mãos juntas sobre
o promontorio da região hipogastrica.

--Trez dias!--obtemperou D. Juliana--eu não sei como elle ainda se tem
de pé! Vamos p’ra cima, vamos, Innocencinho. Anda comer.

E queriam amparal-o todas para o ajudarem a subir as escaleiras.

--Não é preciso...--disse o rapaz, desviando-as.

Era um gosto de sibarita ver o amante a funccionar com o apparelho da
mastigação, desobstruido já o canal onde o amor infeliz costuma empécer
como salamandra em cano de chafariz.

Regalavam-se todos a cada naco de paio que rodava no trago de vinho.
Não obstante, a mãe, de certo ponto em diante, pedia-lhe que não
comesse tanto, que podia dar-lhe na fraqueira. O pae contraditava a
esposa atirando-lhe para o prato colheradas de letria e ovos moles,
bradando em tom aforistico:

--Come, que a barriga é como um sacco; emquanto couber, deita-se-lhe
p’ra dentro.

Findo este repasto de Romeu, quanto era possivel ser-se na rua das
Cangostas, Gervasio, que tinha bebido de meias com o filho uma garrafa
de 1815, desatou a fallar com enthusiasmo e tal qual eloquencia. O
discurso pozera a mira em concluir ali d’uma vez para sempre o tantas
vezes mallogrado intento dos desposorios. Depressa chegou ao fito
n’estes termos idíllicos e commoventes:

--Rapariga, tu gostas do meu filho, e elle quer-te deveras. P’r’amor
de ti é que o Innocencio não comeu nem dormiu, nem parou, em quanto
não veio para a tua companhia. É amor verdadeiro. Agora, não admitto
réplicas de parte a parte. Casar, que é tempo. Casar, e acabaram-se as
historias. Casar, e... tenho dito!

A menina lobrigou por debaixo da sobrancelha o repleto noivo, cujo
coração se recostava regaladamente sobre o coxim do estomago; situação
absurda nos termos, e todavia experimentada por todos os amantes
felizes depois de um banquete em que se haja comido á portugueza,
segundo as formulas de Domingos Rodrigues. Os olhos de Innocencio
cheios de graça dardejavam aos de Thomazia um raio obliquo de ternura
com o supplemento de um sorriso entre alvar e amoroso.

Gervasio, arrebatado pelo mutuo colloquio de olhos que todos
presenciavam, levantou-se, foi ao pé da afilhada, chamou o filho, tomou
as dextras de ambos, achegou-as com patriarchal gravidade, e disse:

--Meus filhos, Deus vos abençôe! Sede felizes, como eu tenho sido com
vossa mãe.

As lagrimas das trez velhas realçaram a solemnidade das expressões
singelissimas de Gervasio, que faziam lembrar os tempos antigos.

Os noivos olhavam para o aspeito jubiloso do velho, como querendo
furtar-se á contemplação reciproca de suas pessoas. Depois, deslaçaram
as mãos, e escutaram attentos um longo discurso do pae, tendente a
demonstrar que os casamentos feitos ao tarde não provavam bem; sendo
certo--dizia elle em mais claras frases--que os vicios trazidos do
trato do mundo para o seio da familia, quando um homem se casa depois
de os ter radicado na alma, estão sempre a dar rebentos e fructos máos.

Custodia foi presente ao mavioso espectaculo. Anciava-lhe o arcaboiço
do peito em resfôlegos de alegria. Aquillo era obra d’ella, segundo
sua fé na magia do sal virgem lançado ao lume. Se devia ao diabo,
se aos santos, o rapido e feliz exito das suas obtestações, não n’o
sabia ella decidir. De qualquer das maneiras, sobravam-lhe motivos de
vaidade, e não lhe faltava tempo de reconciliar-se com Deus, á imitação
dos feiticeiros S. Anastacio e S. Gil de Santarem, dado o caso de
interferencia diabolica nos effeitos prodigiosos do sal virgem.

       *       *       *       *       *

Tiradas licenças e dispensa de banhos, no praso de dois dias,
Innocencio José de Barros e Thomazia Alves receberam as bençãos na
egreja de S. Nicoláo.

Era no mez d’agosto de 1843. O calor tornava invejavel os amores
das aves regorgeados nas sombras das frescas florestas. Innocencio,
poeta pouco mais ou menos como todos os seus visinhos, invejou as
aves dos bosques do Bom Jesus de Braga. Conhecia elle de nome a sasão
das primeiras delicias conjugaes, chamada _lua de mel_. Consultou as
inclinações bucolicas da esposa, e recebeu um alegre consenso á sua
idéa. Os velhos condescenderam.

Thomazia sentada em vistosas andilhas cilhadas no largo albardão de
uma mula, e Innocencio galhardamente encavalgado sobre um macho de
arriaria, sairam caminho de Braga, ao repontar uma tépida manhã,
festejada dos passarinhos e perfumada das madresilvas dos valles.




                              CAPITULO IX

                               Argumento

 Innocencio entedia-se de judeus e arvores. Partem os noivos para
 Monsão. Nicoláo d’Almeida em Caminha. Os tolos de 1845 menos damninhos
 que os de 1868. Ciumes de Innocencio e má creação. Recordações
 atacantes do administrador do concelho que apertou a mão de Thomazia.
 Aperta e estorcega o braço da mulher. Entram arrufados no Porto,
 depois de terem visto na «Ponte da Pedra» o Guimarães, que se porta
 como quem era. Innocencio e o macho. Thomazia desabafa com Custodia.
 Tempestade imminente formada em casa de Rosinha, que lia o «Homem dos
 trez calções». De como Leonardo queria matar Innocencio, e o que o pae
 lhe diz a este respeito.


Ao quarto dia da lua, Innocencio, sentado na «Fonte do Sátiro», por
volta do meio dia, abriu a bocca, benzeu as fauses escancaradas com o
dedo polegar--costume pio e cauto da sua familia--e disse á esposa:

--Vamos nós embora ámanhã, Thomazinha? Isto já me aborree... E a ti?

--Eu...--murmurou a senhora espriguiçando-se--tanto faz... Se queres,
vamos.

--Estou farto de ver arvores e judeus... e tu, Thomazinha?

--Sim, eu, tambem... Mas queres tu, Innocencinho? Vamos nós a Monção
ver as minhas tias, irmãs de meu pae? Prometti de lá ir visital-as...
nunca as vi... A gente que vae fazer já para casa?!

--Pois vamos lá, se queres, menina.

E, torneando o braço pelo collo mal velado da esposa, desceu com ella
por sob a abobada de folhagem onde os pintasilgos e os cerezinos os
rivalisavam no mimo do dialogo.

Ao quebrar da calma, desceram para Braga, e na madrugada seguinte
jornadearam para Monção.

Detiveram-se alguns dias em casa das irmãs do capitão Alves, e voltaram
por Caminha.

Recorde-se o leitor de ter dito Nicoláo d’Almeida ao meu amigo Antonio
Joaquim, no theatro de S. João em 1845, que, dois annos antes, vira em
Caminha e nunca mais podéra esquecer a formosa mulher que outra vez
topára agora no camarote da 3.ª ordem.

Foi então que elle a viu, e por tal maneira se lhe areou o juizo ao
vêl-a que fez azoar Innocencio.

Era, n’aquelle tempo, Nicoláo orfão, gentil, rico, fidalgo de solar
conhecido, estudante do segundo anno juridico. Tinha desoito annos.
Estroinava sem peias nem contradicção de parentes. Sobravam-lhe
usurarios valedores nas prodigalidades. Tinha tontices galantes, sendo
a menos perigosa querer finar-se de amores por alguma linda mulher
que não tinha ainda topado. Isto me contava elle em Coimbra como hoje
em dia um academico de dezoito annos vos conta gravemente as suas
meditações ácerca do influxo de Kant e Hegel na historia psicologica
do espirito humano, ou os projectos com que giza salvar Portugal da
divida externa, quando for chamado aos conselhos da corôa. Os tolos de
1845 eram menos damninhos.

Grávido d’este pensamento suicida, Nicoláo d’Almeida quando viu a loira
Thomazia, nas praias de Caminha, ao entardecer, com os olhos enamorados
do sol que se atufava nas aguas escamosas de revérberos argentinos,
cuidou que era aquella a mulher predestinada. Visinhou-se d’ella com
impeto de pessoa empurrada pelos fados, e remirou-a tão em cheio e
de vagar como se o marido não representasse coisa nenhuma ao lado da
creatura fatidica, enviada expressamente a Caminha para realisação do
seu sonho.

Innocencio encarou n’elle avincando a testa ao mesmo passo que a
esposa, perfilando o rosto, segredou ao marido:

--Que está a olhar p’ra mim o diabo do homem!...

Deu-lhe o braço o carrancudo esposo e foi para a estalagem, murmurando:

--Aquelle asno olhava-te como se te conhecesse ha muito.

--Eu nunca o vi...--disse ella.

--Não?...--perguntou Innocencio em tom de suspeita...

--Não.

--Quem sabe?! Tu...

--Eu... quê?

--Não te confessas...

--Ora vejam isto!--replicou entre agastada e dorida a senhora.--Sempre
tens manias!... Já hontem quizeste pegar comigo, quando o administrador
do concelho me apertou a mão...

--Pois elle!... Eu não gósto d’essas modernices...

--Toda a gente aperta a mão... Isso que faz?

--Não gosto: é mau costume.

--Pois tivesses-m’o dito. Para a outra vez, quando alguem me quizer
apertar a mão, escondo a minha--tornou ella amuada.

--Ai! ai! ai!--replicou o marido.--Estás muito enjoada...

--Pois eu!... Tenho agora culpa de que o homem olhasse para mim...

--Não tens; mas... aquelle modo de olhar...

N’isto deu Innocencio tino de que o seguiam de perto. Olhou e viu o
rapaz dos olhos espantadiços.

--Elle cá vem--disse o marido apertando o braço da mulher com
convulsiva raiva.

--Olha que me magôas o braço...--gemeu ella.

--Vêl-o? ahi vem!...

--Deixa-lo vir... Olha o doido do homem que me havia de empécer
agora!...

Tinham entrado na estalagem quando o secundanista retrocedeu a botar
inculcas sobre a procedencia e destino da mulher que, a seu juizo, lhe
era enviada como um acepipe dos festins de Lucrecia Borgia, um calix de
agua tufana, uma coisa que lhe caíra do céo como a tartaruga que matou
Eschilo. Os rapazes teem coisas!

Não esquadrinhou nada n’aquella noite desvelada a litografar na alma o
retrato da peregrina incognita.

No dia seguinte quando voltou a bordejar os áditos da estalagem, soube
que os passageiros, ao luzir da aurora, tinham saído em direcção ao
Porto, d’onde eram. Nicoláo d’Almeida ainda mandou pôr a cella no
cavallo e vestir o lacaio no proposito de os seguir; mas quebrantado
pela sobreexcitação cerebral da noite, sentiu-se desmaiar de forças,
e quedou-se marasmado em casa a cogitar e a remergulhar o espirito na
visão resplendente d’aquelle rosto com que Deus quizera experimentar a
continencia dos seus santos.

Se os destinos humanos não estivessem prescriptos lá em cima, ou lá
em baixo, ou onde quer que seja, a intervenção do fidalgo de Caminha
n’esta moralissima historia acabaria aqui, ou nunca deveria ter
principiado, á vista de tão chôcho e trivial remate.

Ora hão de ver que relampago fulgurava das nubelosidades do porvir e
alumiava confusamente os presagios da desconcertada fantasia de Nicoláo
d’Almeida!

       *       *       *       *       *

Os esposos chegaram ao Porto arrufados, doze dias depois que tinham
saído a chotarem jubilosamente pela rua de Santa Catharina acima.

Os agastamentos principiados em Caminha aggravaram-se na «Ponte da
Pedra», onde Innocencio viu o João José da Costa Guimarães esturdiando
com outros rapazes da sua laía debaixo dos sobreiros, não já com a
innocencia arcadica dos que comiam a fructa d’aquellas arvores, mas
antes com o desplante de moços que tinham vindo ali arejar as cabeças
aquecidas na taverna fronteira.

João José, quando divisou Thomazia, fez da cara uma comprida careta,
esbugalhou os olhos, torceu o pescoço e disse aos parceiros:

--Olha! olha!

Olharam todos. Innocencio fumegante de indiscreta raiva dava de esporas
no macho, que reagia a coices, por estar vesado a desougar-se n’aquella
estação.

--Deixe dar duas palhas ao macho que está aqui affeito!--bradava o
arrieiro.

Innocencio teimava a esporeal-o com furia, e elle a escoucear, até que
de repellão se remessou a galope pela ladeira acima, cedendo a victoria
ao rei da creação. Thomazia deteve-se á espera que a mula, mais ditosa,
mastigasse a palha. Lá no topo da encosta fez Innocencio parar o macho,
voltou-se sobre a anca e bradou:

--Então? vens ou ficas?

A senhora, para requintar em belleza, purperejára-se de pejo, por
que os rapazes, até certo ponto desculpaveis, riam sem disfarce das
cargas de espora que o das Cangostas barbaramente inflingira á victima
indirecta do seu ciume. Além d’estes incentivos, um ou dois do grupo
conheciam Thomazia e lembravam-se da carta lida na Praça-nova. Dado que
a gentileza da dama se fizesse respeitar e até perdoar os desatinos da
grammatica, nem assim vingou abafar os frouxos de riso exemplificados
pelas chalaças de Costa Guimarães que passava de estupido a torpe,
quando a violencia lhe aperfeiçoava a indole.

Estão bem entendidos os amúos dos conjuges, e mal justificados os
assomos do agastadiço Innocencio.

Os velhos sentiram logo a desavença das duas almas que tão amorosas
tinham saído. Entrou em averiguações Gervasio. O filho nada esclareceu,
porque reconhecia que não tinha bem ajuizados motivos de queixa. Mas
a esposa, assim que poude estar sósinha com Custodia, prorompeu em
soluçantes vozes:

--Este homem não se póde aturar! Fez-me de fel e vinagre desde Caminha
até ao largo da Agua-Ardente, porque viu um homem a olhar para mim, e
encontrou o tal maroto do Guimarães na «Ponte da Pedra...»

--Má raios o partam!--atalhou a benigna Custodia da Porciuncula.

--Ora vê tu que culpa tenho eu de lá estar o homem em Caminha!... Pois
fez-me desesperar e arrepender mais de cem vezes de ter casado com
elle!...

--Ora menina, ora menina!--acudiu-a velha--Não diga isso, que me parece
doidinha! Seu homem zela-a, porque o amor é assim. E a minha linda não
fazia o mesmo, se visse as outras mulheres a olhar p’ra elle?

--Que me importa?!--refutou ella.--Estou bem aviada se não hei de ir
onde me vejam! Então p’ra que me casei? que me faz ser rica? Por ahi
as meninas pobres, quando casam com os brasileiros, apparecem logo no
theatro, nos bailes da assembléa, no jardim de S. Lazaro, e em toda a
parte.

--Deixe estar, que ainda não é tarde, filha! Pois ainda casou outro
dia, e já se queixa?...

--Não, que elle já me disse que não queria saber de partidas nem de
theatros... Pois tu não sabes? Zangou-se todo por que o administrador
do concelho me apertou a mão!

--Pois esse homem apertou a mão da menina?--perguntou Custodia sobre
modo espantada.

--Apertou, que é moda agora.

--Que leve o demo essa moda e mais quem a cá trouxe! Lá n’isso teve o
seu homem juizo, e a menina não fez bem em consentir que lhe apertasse
a mão homem nenhum.

--Ai! que me pareces tonta de velhice!--redarguiu a senhora
abespinhando-se, e voltando-lhe as costas.

Custodia ficou-se a vel-a ir com tão desusada descortezia; reflectiu
alguns segundos; levantou a mão direita á altura da cabeça, com o dedo
indicador deu trez toques na testa, e espectorou um fundo suspiro
murmurando:

--Não regula bem...

Volvidos alguns minutos, Thomazia voltou a ameigar Custodia que estava
chorando a magua da desfeita. Pagou-se jovialmente a velha dos affagos
da sua menina, e deu-lhe bons conselhos, tendentes a revestil-a de
paciencia para soffrer os ciumes do esposo.

       *       *       *       *       *

Cabe aqui dar conta de uma tempestade que se está conglobando sobre a
mal-estreada ventura d’estes esposos. Muita gente cuida que as grandes
desgraças procedem de profundas causas, e não attentam que basta um
sopro de odio para accender infernos. Ha infortunios surdidos de
repente, como as viboras que sob-rojam por entre flores: e para maior
assombro é isso quando a vida é de rosas; que, nos casamentos mal
sorteados, havemos de suppor que a serpente já vem escondida na estola
do sacerdote, cujas palavras soam o terrivel _unidos para sempre_.

A Rosinha da Praça-Nova, convicta de ser amada, porque as cartas de
Innocencio lh’o asseguravam, andou muito lampeira a dizer ás suas
amigas que o Barros das Cangostas casava com ella.

A noticia vulgarisou-se levada pela inveja, parelha inseparavel
da fama. O pae de Rosa já recebia os emboras dos seus amigos, e
esquadinhava noticias para formar um calculo aproximado da «fortuna» de
Gervasio. Sessenta contos era o computo mais seguido na praça; outros
faziam-lhe cem, calculando que elle tinha uma reserva de quarenta
em sonante. Alguns, inventariando os haveres de Luiz de Pinhel, tio
materno de Innocencio, avultavam a «fortuna» a seiscentos contos.
Desfaziam outros n’este calculo, affirmando que Luiz de Pinhel tinha
filhos illegitimos de differentes negras suas escravas. Sem embargo, e
independente de heranças, o dote do promettido noivo de Rosinha era um
dos mais abalisados no Porto d’aquelle tempo.

O filho de Gervasio não se despedira de Rosa, quando saiu para o Douro.
Foi caso discutido na familia da Praça-Nova, sem comtudo insinuar
receios na menina. Mostrava ella a seu pae a ultima carta do namoro.
O pae lia solemnemente á mulher os periodos da missiva; a mulher com
visos de entendida no valor das palavras, esclarecia as passagens
obscuras; e harmonicamente decidiam que o casamento era negocio feito.
_Negocio_ era a palavra chã e ajustada a todas as situações graves da
vida.

Sem impedimento d’este accordo, Rosa, ao fim de trez dias, escreveu
a Innocencio uma carta de queixumes, notada pelo irmão, que teimava
em que a palavra _apaixonada_ se escrevia com _ch_ e não com _x_. A
menina, irritada pela obstinação do mano, foi ao seu quarto, e trouxe
triumphalmente uma brochura em punho, e mostrou a pag. 7 do _Homem dos
trez calções_, de Paulo de Kock a victoria da sua orthografia.

A carta adressada a Provesende foi recambiada para o Porto, e entregue
a Innocencio, quando elle se recolheu do Minho.

Emquanto Thomazia expandia a sua tristeza no confidente seio de
Custodia, lia o marido a carta de Rosa.

Nunca tão amoravel e terna lhe tinha escripto a saudosa menina.
As frases queixosas reviam meiguice e tristesa condescendente.
«Diverte-te, meu bem, mas não te esqueças da tua Rosa»--escrevia ella e
proseguia: «Espero ainda ir ao sitio onde estás, meu amor encantador;
e lembrar-te o tempo em que eu por ti suspirava, de ti ausente, e tão
apaixonada» (Esta palavra foi a da questão, decidida pelo traductor do
_Homem dos trez calções_).

Periodos sentimentaes, á proporção d’aquelle, pesaram por tal sorte
no coração de Innocencio, que as lagrimas lhe envidraçaram a vista.
Atirou-se para uma cadeira, fechou os punhos, e tapou os olhos. Sacudiu
a dor, levantando-se de salto, amarfanhou a carta, e metteu-a no bolso
da judia, por que ouvira o ranger das botinhas da esposa.

Thomazia não reparou n’elle. Entrou ao quarto, calçou os seus
confortaveis sapatos de tapete, e saiu para ir desabafar com a velha.

Retrocedamos. Na Praça-Nova é que se acastellam as nuvens borrascosas;
que as scenas das Cangostas de vulgares que são, mal quadram n’este
livro em que o sublime roça pelo sobrenatural.

Quem primeiro levou a casa do senhor Joaquim José de Barcellos, pae de
Rosa, a noticia do casamento de Innocencio com a orfã Thomazia, foi o
sacristão de S. Nicoláo. A authoridade era indeclinavel; ainda assim,
Joaquim José bufava com os dois punhos sobre o balcão, e bramia:

--Você que diz?! você que diz?!

O sacristão dizia que tinha alumiado com uma tocha a cerimonia do
casamento, e recebera trez pintos da mão de Gervasio.

Rosa descia á loja, n’este acto, perguntando ao pae se o correio já
tinha vindo. O indiscreto progenitor encarou na filha com um surriso
empeçonhado de injusta cólera, e regougou:

--Já veio. Aqui está...

E apontou para o sacristão, continuando:

--Diga você a esta menina o que me disse a mim.

O funccionario do templo encolheu-se e tergiversou compreendendo a
agudeza do ferro que ia remessar ao peito da menina. Rosa estava
literalmente ás aranhas, sem perceber o silencio do desconhecido
sacristão nem o surriso ferocissimo do pae.

--Então que é, papá?!--perguntou ella.

--Que é? que é?--ullulou Joaquim de Barcellos.--É que o teu noivo...
esse patife... esse ladrão... casou hoje com a rapariga que lá foi
creada em casa.

Á palavra _casou_, Rosa não exalou o _ai!_ do costume, nem o _oh!_
menos vulgar. Primeiro estremeceu, depois abriu a boca, porque ninguem
se exime da acção que exerce o espanto sobre o queixo inferior; em
seguida, rodou sobre os calcanhares vagarosamente; e por fim, foi-se
embora.

Os irmãos tinham assistido a esta calamidade de familia, ora lividos de
espanto, ora afogueados de ira.

--E agora?--exclamou Joaquim José.--Esta vergonha!... O descredito da
minha filha!...

Leonardo, o filho mais velho, o secretario da irmã, o inventor do _ch_
em _paixão_, tôrvo, sinistro, a passo mesurado acercou-se do pae e
disse-lhe com voz de tirano rouco:

--Se o pae quizer... mata-se!

--Vae-te p’ro diabo!--respondeu o velho.--Hasde sempre ser uma
cavalgadura!

--Os creditos de minha irmã...--redarguiu respeitosamente Leonardo.

--Não fosse ella tola...--retorquiu o velho.--Obrigasse-o a casar ha
mais tempo! Agora é pegar-lhe com um trapo! Ora vejam vocês que risadas
não darão os nossos visinhos! Aqui o Magalhães, quando souber isto, vae
com uma campainha por toda a parte...

--Se fôr... quebro-lhe a cara--atalhou Leonardo, enfuriando o olhar
suino e grifando as unhas.

--Cala-te ahi, lorpa!--bradou Joaquim José.--Olha que eu prendo-te nas
aguas furtadas se me dás um pio a este respeito! O que se ha de fazer
é mostrar-se a gente muito satisfeita; e, se eu vejo Rosa a chorar,
dou-lhe duas bofetadas na cara.

--Ella não chora...--interveio o filho Roque, varão prudentissimo que
estivera a malucar taciturno.

--Não? como sabes tu isso?

--Sei, porque ella não gostava d’elle nada. Se casava, era para ser
rica... as outras fazem o mesmo...

--Pois sim; mas agora? Vocês verão que homem rico não n’a quer nenhum
dos que souberem da tratantice do outro!... Raça de judeu, e basta!

N’este ponto, começaram a entrar dois amigos do logista, com as caras
de lucto. Joaquim José recebeu-os com alegre sombra, fingiu ignorar
a novidade, e dissimulou indifferença tão habilmente, que vingou
mallograr a secreta satisfação com que os «amigos» lhe davam o golpe.




                              CAPITULO X

                               Argumento

 Desafogo de Rosa com o «Ponha aqui o seu pésinho». Encontram-se no
 theatro as duas familias. O que elle sentiu quando viu Rosa tentadora
 como o peccado. Louvores do _Fayel_ exprimidos no chuveiro de lagrimas
 das velhas. Innocencio chama tola á esposa. Roque de Barcellos lancéta
 o coração de Innocencio e conta-lhe tudo com intenções damnadas.
 Gervasio acalma o filho, e diz coisas escorreitas das mulheres com o
 tino e siso de um Balzac. Innocencio a rir-se no camarote para «metter
 ferro» a Rosa. A sangoeira da tragedia que inunda de prantos a familia
 Barros. De como Gervasio presume que o traductor da peça é um sabio
 que inventou a tramoia, e decide que Fayel era da pelle do diabo.
 Torna Innocencio a estorcegar o braço da mulher á conta do Costa
 Guimarães.


A este tempo, Rosa estava tocando no piano a musica do «Ponha aqui o
seu pésinho» renovada com o apparecimento do drama «Pedro Sem», joia
literaria que ainda rebrilha no palco do _Palacio de cristal_, revesada
com _Ignez de Castro_ em quanto o progresso não abranger _Manuel Mendes
Enxundia_. Tocava, porém, de raivosa a menina.

A mãe d’ella, que já andava moirejando no enchoval, soffreu um insulto
nervoso, e passou o dia a beber chá de valeriana.

O jantar correu sombrio e taciturno, deixando apenas ouvir o mascar da
numerosa familia e caixeiros. Tudo estava perdido, afóra o estomago.

Magnanimo e inquebrantavel animo tinha aquella Rosa! Quem a visse
na representação do «Fayel» quinze dias depois, radiosa de guapas
fitas que lhe serpeavam dos opulentos cabellos por sobre os modelados
hombros, cuidaria que era ella a noiva de Innocencio de Barros, e não
aquell’outra senhora melancolica do camarote fronteiro.

Tinha sido Gervasio quem comprára o bilhete, ao outro dia da chegada do
filho, afim de espairecer o tristonho aspecto de toda a sua familia.
No camarote, estavam elle e a senhora, Thomazia e o esposo, as duas
irmãs e os dois irmãos, acamados e dispostos d’esta ordem: na frente as
duas Thomazias e Gervasio; na camada intermedia Jeronimo, Sebastiana e
Innocencio; na terceira e ultima Felizardo e Florencia.

Trajava a noiva modestamente vestido de seda sobre o escuro. Os
enfeites do cabello eram o ouro da côr d’elle. O peitilho de cambraia,
afogado, só ao perto deixava ver que era menos alvo que as espaduas
de jaspe lisas e brunidas. Se a tristeza realçasse sempre matizes de
formosura, a esposa de Innocencio José de Barros, n’aquella noite,
poderia gloriar-se de ser invejada das senhoras e lastimada dos
rapazes, por conta de tal marido.

A familia do senhor Barcellos da Praça Nova entrou mais tarde no
camarote.

Rosa pendurou a capa sem desfitar os olhos de Thomazia. Sentou-se,
segredou, surrindo-se, aos irmãos a visinhança que tinham, e, sacudidas
as crinas de fitas, travou do binoculo e encarou no brasileiro
Andraens, que a comprimentou da platéa, curvando-se quanto a barriga
lhe outorgou. Não ha para que fallar mais n’este brasileiro Andraens.
Veiu aqui para desmentir o fanqueiro da Praça Nova, receioso de que lhe
faltassem brasileiros á filha.

Innocencio viu Rosa. Palpitou-lhe o coração como saco aneurismatico.
Lancetavam-lh’o saudades, saudades como ellas são e pungem quando o
_nunca mais_ vem com ellas. Nunca lhe parecéra bonita senão então a
Rosinha. Uns modos acanhados de innocencia boçal que d’antes tivera
a moça, transfiguraram-se em meneios graciosamente desenvoltos,
sem desaire de pouco senhoris, um certo desembaraço afidalgado que
Innocencio via nas damas de raça, e desejaria ver nas raparigas da sua
roda. Tendencias ao sublime, não vulgares em sujeitos da sua laia.

Como estivesse inquieto, o esposo de Thomazia saiu do camarote e
passeou nos corredores. O pae, assim que o pano se levantou, saiu a
chamar o filho.

Entrava Innocencio no camarote, quando a personagem chamada IZAURE
dizia a FAYEL:

 Ah! já não amas a infeliz consorte?

N’este lanço, a loura esposa voltou o rosto e olhou intencionalmente
para o marido, que tinha já os olhos cravados no camarote de Rosa.

Thomazia seguiu o suspeito lanço de vista, surriu-se, e baixou a
cabeça, encostando-a á mão direita.

D’ahi a pouco as senhoras D. Florencia e Sebastiana choravam lagrimas
como punhos. É que Izaure, de joelhos deante do furioso Fayel,
exclamava:

    Ah! prostrada a teus pés, digna-te ouvir-me.
    Tem compaixão, Senhor, da afflicta esposa! etc.

Poucas scenas deixaram de ser victoriadas pelas lagrimas da familia
Barros, exceptuado Gervasio; que esse, quando Fayel vociferava ameaças
de morte contra a esposa, dizia:

--O homem é levadinho de todos os diabos!

Findo o primeiro acto, perguntou D. Thomazia ao marido se tinha gostado.

--Gostei...--respondeu seccamente Innocencio.

--E ouviste o que elles disseram?

--Ouvi, que estava perto.

--Cuidei que não...--disse-lhe ella ao ouvido.--A tua comedia esta
noite é a Rosinha...

--És tola...--replicou brandamente o esposo.--Que me importa cá a mim a
mulher!...

--E a mim importava-me menos o homem de Caminha...--voltou Thomazia.

Este breve dialogo correu sem attenção da familia, que se occupava em
ponderações relativas aos casos tristes do acto 1.º

Innocencio foi fumar para o vestibulo.

Roque, o irmão discreto de Rosa, visinhou-se d’elle com bom semblante,
apertou-lhe a mão, e deu-lhe os emboras do seu casamento.

Innocencio tartamudeava, humilhando-se com conscienciosa vergonha á
superioridade do outro que devia ser o corrido.

--Sempre fui teu amigo desde a escola--disse Roque--e hei de sêl-o até
á morte.

--Tambem eu fui sempre teu.... tartamelou Innocencio, pedindo-lhe o
cigarro para accender o charuto.

--Lá com o que faz a minha familia não me importo. Se estiverem de mal
comtigo, deixal-os estar. Pois hei de querer-te mal porque não casaste
com minha irmã Rosa? Não... Fizeste o que te pediu o coração, e...

--Foi meu pae...--atalhou Innocencio abemolando piedosamente a voz.

--Eu logo vi que foi teu pae: que tu por tua vontade não casavas
com quem casaste. Isso mesmo disse eu á minha familia... Parece que
adivinhava! Quando me affirmaram que casaste por namoro, gritei sempre
que era mentira; ou então não sabias quem ella era...

--Ella quem?

--A senhora D. Thomazia, acho que é Thomazia a mulher.

É; mas então... dizes tu... que eu não sabia quem ella era?

--Sim, não sabias...

--Sabia muito bem. O pae d’ella era um capitão que morreu no cêrco, e a
mãe uma senhora que morou sempre defronte da minha casa, e era filha de
um negociante fallido com honra, depois dos francezes.

--Não digo o que tu pensas, meu amigo. A minha idéa é outra.

--Sim, tu disseste que eu não sabia quem era Thomazia--insistiu
Innocencio com a voz alterada.--Que vem isso a ser?

--Já que m’o perguntas com esse fogo, sempre te vou explicar o meu
pensamento. Tu és um rapaz de caracter e brios. Diz-me cá: se te
avisassem de que a menina com quem querias casar andava escrevendo
cartas a uns e a outros, casavas com ella?

--Não; mas...?

--E se te contassem que um dos seus namorados vinha ler as cartas
d’ella na Praça Nova, no meio de uma roda de lordes de luva branca,
para que elles rissem até romper pelas ilhargas, casavas com ella? Sim,
pergunto eu...

--Não, já t’o disse; mas que tem isso com minha mulher?

--Que tem? essa é boa! tem tudo; porque tua mulher é que escrevia
cartas ao Costa Guimarães, que tu conheces perfeitamente, não conheces?

--Sim...

--E elle, ali á esquina da Praça Nova, que o vi eu com estes dois,
esteve a ler em alta voz uma carta, em que ella por signal dizia
tolices de palmo e meio, e eram as gargalhadas tantas que até parava a
gentalha espantada. Aqui tens agora por que eu te dizia que...

--Tu juras pela vida de teu pae que não mentes, Roque?--exclamou
Innocencio trespassado de dôr que só vilissimas almas ousariam motejar.

--Juro pela vida de meu pae que não minto, e que sustento o que digo
deante do Costa Guimarães, e deante da tua criada Custodia que era a
confidente da correspondencia.

Innocencio encostou-se á parede, livido e tremulo, com os olhos
encarniçados e fitos no rosto do denunciante, jubiloso de sua vingança.

Depois, impetuosamente, saiu do seu torpor, e disse convulso:

--E que ganhaste em vir contar isso, tu?

--Não ganhei nada... nem te peço paga nenhuma. Isto veio a proposito de
eu te ter sempre defendido, quando ouço dizer que tu bem sabias quem
tua mulher tinha sido em solteira.

Innocencio rompeu de roldão por entre o povo apinhado no atrio e saiu,
sem redarguir, ao irmão de Rosa.

Chegou a meio do largo da Batalha e retrocedeu. Entrou outra vez no
camarote, quando corria já na ultima scena o acto 2.º la desfigurado.
O pae tirou-o fóra pela lapella do casaco, e obrigou-o ora suave, ora
asperamente a contar-lhe a conversação com Roque. Ouviu-o retraindo
os assomos da ira, esteve-se a scismar rematado o conto, e disse
placidamente ao filho attribulado:

--Innocencio, não tomes a peito isso que póde ser mentira, e, se o não
fôr, tambem não é crime que te envergonhe. Thomazia fez uma acção má em
escrever ao Guimarães; mas olha que na idade d’ella essas coisas não
tem aquella nenhuma. Todas namoram, todas escrevem e a gente não póde
pedir-lhes contas do que fizeram antes de serem nossas mulheres. Tua
mãe, quando me escreveu a mim, já tinha escripto a outro; e ha muitas
senhoras honradas que escreveram a uma duzia d’elles ao mesmo tempo.
Mau é terem ellas quem lhes leve as cartinhas...

--É verdade!--atalhou o filho.--E Custodia? que me diz vocemecê á
desaforada da Custodia! aquella beata que ouve trez missas!...

--A Custodia, meu filho, está cá por minha conta... Agora o que te peço
é que venhas para o camarote, que não te mostres d’avessas com tua
mulher, que te rias para ella de modo que lá os Barcellos te vejam...
Pois tu não entendes que o bregeiro do Roque o que quiz foi metter-te
a garrocha e fazer-te saltar? Esta hora estão elles lá muito regalados
de verem que saiste do camarote, e ámanhã vão espalhar que tu bateste
na mulher... Vem, Innocencio, vem, que Thomazia está innocente. Cartas
escrevem-n’as todas. Ora olha cá o que te eu digo. A Rosa não te
escrevia?

--Sim, senhor.

--E a Gomes? tambem. E a Luiza Leite? tambem. E a Emilia Fernandes?
tambem. E as outras trapalhonas que andavam á pilha da tua fortuna?
Todas te escreviam. Eu sabia a tua vida hora por hora. Olha cá o que te
eu digo agora: essas raparigas, que te escreveram, ficaram deshonradas
por isso?

--Não, senhor.

--E, se ellas casarem, os maridos ficam deshonrados por que tu te
carteaste com ellas? Não; não ficam. Ficam ou não?

--Não, senhor.

--Então que estás tu ahi a malucar? Cuidei que tinhas outra
cabeça, homem! Eu, se fosse a ti, e o Roque me viesse cá com essas
trampolinices, dizia-lhe: «Ora, meu amigo de Peniche, vá dizer a sua
irmã que metta a viola no saco, e que vá cavar pés de burro.» E, se lhe
não dissesse isto, dava-lhe dois pares de murros á portugueza, que elle
havia de ter que contar ao sarrafaçana do pae, que está levado de dez
milhões de diabos por que não poude metter-me em casa a lambisgoia da
filha. Arre, ladrões, vão ganhal-o!

E, dizendo, levou o filho pelo braço, recommendando-lhe que entrasse a
rir-se, muito satisfeito no camarote.

E, de feito, Innocencio entrou a rir-se no camarote, com a mais infeliz
cara que imaginaram Gavarni e Molière. O rir d’elle era uma dilatação
lateral de bochechas, e o vertice da lingua apontado aos dentes. São
tão poucos os infortunios sem um reverso ridiculo!

Perguntou-lhe Thomazia onde tinha estado.

--Andei a conversar com os amigos--respondeu elle meigamente, sem
desmanchar o apparelho do riso.

--Não viste o segundo acto que era tão bonito!--tornou ella.

--Ai, filho!--confirmou a mãe--sempre aqui temos chorado!...

--Eu cuidei que perdia os sentidos!--abundou D. Florencia, em quanto D.
Sebastiana enxugava ainda os residuos das lagrimas estancadas nas rugas.

Corrido o pano para o terceiro acto, Innocencio sentou-se á beira
de sua mulher, fallando-lhe com fervoroso interesse e geitos muito
acariciativos, em coisas que era natural dizerem-se sisuda e gravemente.

Estava como admirada Thomazia. Aquelles modos causavam-lhe certa
estranheza e desconfiança; porque não eram usuaes nem naturaes em seu
marido. Além de quê, a senhora desejava seguir o entrecho da tragedia,
e elle a cada instante, com a bocca cheia de riso, lhe cortava a
attenção com algum dito de tão desengraçado espirito que propriamente
Thomazia o achava parvo.

Decorreram assim dois actos.

A familia Barcellos espreitava, simulando indifferença, os movimentos
do camarote. A vista de Innocencio, apurada pela raiva, tudo via de
soslaio. Quanto mais o espreitavam assim elle requintava em ternura com
sua mulher, chegando á demasia de lhe estar brincando com as guarnições
do decote.

Na penultima scena do 5.º acto, pediu-lhe Thomazia que a deixasse ouvir
a falla de _Gabriella_, apontando para o cadaver de _Cuci_.

As trez velhas, chegado o drama a este abuso da sensibilidade humana,
já não choravam sómente, gemiam gemidos de tal arrancar do seio, que
Thomazia mal poude ouvir os derradeiros versos de Gabriella que gritava
assim pela bocca da Grata:

    Sim, meus votos recebe, sombra amada;
    Por teus manes ensanguentados juro
    Um amor te prometto, que escarneça
    De seus furores. Não, já te não temo!
    A minha mesma dôr me arranca a vida.

Ora, como Fayel corresse então sobre a mulher, e a matasse com um
punhal, Gervasio não teve mão de si que não murmurasse em tom indignado:

--Era da pelle do diabo o homem!

Vae, depois, Fayel mata-se tambem. São já trez os cadaveres em ruma.
O terror abafa a respiração do auditorio, emquanto a razão não emerge
do seu lethargo para applaudir e vozear pelos artistas. A esposa e
irmãs continuam a soluçar entaladas, puxando a custo a respiração dos
gorgomillos.

Gervasio reveste-se da sua dignidade critica e diz:

--Vossês são tolas! Olhem que isto é tudo uma tramoia inventada pelo
sabio que fez a comedia. Levantem-se d’ahi, e vamos embora.

Innocencio deu o braço a sua mulher. As trez senhoras velhas ainda
trajavam mantilha. Desceram ao pateo, e esperaram o carroção. Esta
demora assanhou a ulcera latente de Innocencio. Thomazia sentiu um
brutal repellão que lhe torturou o braço. Olhou para o marido, e viu
que elle cravára os olhos n’um homem que, d’entre a multidão, lhe
estava espreitando para a consorte. Ella seguiu aquelle raio de luz
sinistra e viu João José da Costa Guimarães. Córou: incendeu-lhe as
faces o odio, estimulado pela vergonha.

Havia ainda muita coisa boa na alma d’aquella mulher. Córava!




                              CAPITULO XI

                               Argumento

 Innocencio resiste á ceia de pescada cosida. Injurias selvagens que
 elle dardeja á esposa. Acode Gervasio embrulhado n’um capote de trez
 cabeções. Socega o truculento. Gervasio manda sair Custodia. A velha
 faz chorar as pedras, saudosa da sua menina. Lança-se-lhe nos braços,
 e sae d’elles moribunda. Expira a velhinha. O author escreve o elogio
 da defunta, e dirige-lhe uma allocução commovente, como consta d’este
 sentimental capitulo.


No transito da Batalha á rua das Cangostas, os beiços de Innocencio
não se abriram. Entrou em casa carrancudo como um somnambulo. Não
quiz cear, com quanto a mãe, o pae e as tias lhe asseverassem que a
pescada cosida a podiam comer os anjos, de boa que estava. A esposa
escassamente comeu, e foi para o seu quarto onde o marido passeiava
rapido e assoprando.

--Que tens tu?--perguntou ella mais altiva que carinhosa.

--Tenho vergonha de ser seu marido!--respondeu com selvagem e concisa
eloquencia o aprumado Innocencio, voltando-lhe as espaçosas costas.

A senhora ficou transida de frio e assombrada largo tempo sem poder
articular a réplica.

Voltou-se rapido contra ella o marido e repetiu:

--Sim, é o que lhe digo: tenho vergonha de ser casado com a senhora!

--Por que?--murmurou ella com humildade.

--A senhora sabe-o; não me faça perguntas.

Calou-se alguns segundos e voltou com impetuosa vehemencia:

--O que a senhora quiz foi ser rica, não é assim?

--Eu...

--Sim. Não me tinha amor nenhum; mentiu-me, andou a imposturar para me
illudir...

--Não digas isso, Innocencio...--redarguiu ella energicamente; mas a
consciencia esfriou-lhe logo a reacção.

--Então isto é mentira? A carta que você me escrevia para o Douro não
era sua?

Thomazia abaixou o rosto e chorou. Em situações analogas, mulheres sem
defeza, choram. As lagrimas são supplicas n’estes lances. Se os juizes
teem boa alma e a virtude da delicadeza, rasgam o processo. Se são da
indole rustica do filho de Gervasio, enfurecem-se em dobro e vociferam.
Para esta ralé de homens faz-se mister que a mulher, bem que culpada,
relucte e rebata as accusações, simulando arrogante innocencia. Se não
ganhar o pleito, perde-o sem humilhar-se.

--Responda a isto!--bradou Innocencio.--A carta era sua... ou foi por
engano que m’a quiz mandar?... Sim... pergunto... póde ser que a tal
cartinha fosse para o Costa Guimarães.

--Logo vi...--soluçou a senhora--logo vi que a tua raiva era por estar
no theatro aquelle maldito...

--E acha você que é só por isso, eim? Acha que não tenho mais nada que
lhe bote na cara, a respeito do tal tratante? Faz de mim tão tolo que
estou aqui assim zangado porque elle olhou para a senhora!... Ora,
minha amiga, outra vida!... Sabe que mais?--e destampou a voz de subito
como trovão inesperado--Sei tudo! sei tudo, ouviu? Sei tudo e sei tudo!

Aterrou-se Thomazia. Tremiam-lhe os dentes e os labios.

Os berros do homem estrondearam na casa. Gervasio saltou da cama,
embrulhou-se n’um capote de trez cabeções, e veio bater á porta do
quarto do filho, a tempo que elle bramia:

--Escrevia-lhe a elle você e fazia-me a côrte a mim ao mesmo tempo!
Essa acção é de mulher sem honra!

--Quem é?--disse elle, suspendendo a apostrofe, e attentando a orelha á
porta em que batia o pae.

--Sou eu--disse Gervasio--vem aqui fóra.

Innocencio saiu. O pae levou-o para uma saleta na extrema do segundo
andar, e disse-lhe severamente:

--Portaste-te como um gallego. Estás ahi a berrar com tua mulher,
depois de eu te ter pedido que não fizesses caso da intriga. Isso
é feitio, rapaz? É assim que tu começas a tratar tua consorte? Que
começos de vida levas! Quando isto é no primeiro mez, que será d’aqui a
seis! Mal haja a hora em que esta rapariga veio para minha casa?...

Gervasio disse isto com dôr, e anciado do peito.

O filho teve compaixão do velho; pediu-lhe que se deitasse e dormisse,
na certeza de que elle não tornaria a questionar com Thomazia.

O pae recolheu-se ao primeiro andar, onde já estavam as duas irmãs
espavoridas perguntando á cunhada que _autemgeni_ era aquelle na alcova
de Innocencinho.

Cumpriu a promessa o irado esposo, posto que o sangue lhe engorgitasse
o coração.

Deitou-se. Thomazia passou o restante da noite sentada n’um canapé, a
chorar e a tremer de frio. Innocencio perguntou-lhe de madrugada o que
estava a fazer ali.

--Nada... respondeu a esposa.

Elle grunhiu o que quer que fosse. Já era dia, quando Thomazia se
levantou em direitura á porta no proposito de subir ás aguas-furtadas e
contar a Custodia os successos. Innocencio sentou-se de golpe na cama,
e bradou:

--Onde vae a senhora?

--Vou sair lá para dentro.

--Quer ir entender-se com a beata? Não vae. Deixe-se estar ahi.

Voltou-se a sentar-se, tremente de raiva, a medrosa senhora.

Ao nascer do sol, Gervasio José de Barros já andava na rua. Entrou no
mosteiro de Santa Clara, deteve-se meia hora a conversar com a prelada,
foi d’ali ao paço episcopal, e voltou com um papel assignado pelo
bispo.

Chegou a casa esbaforido. Mandou chamar ao escriptorio Custodia da
Porciuncula, e disse-lhe com semblante carregado:

--Custodia, não podes estar mais tempo em minha casa. Escuso de te
dizer as razões que tenho para te despedir. Não me serves...

--Então...--exclamou Custodia, erguendo as mãos em affligidissima
postura--assim se põe na rua uma velhinha de sessenta e nove annos!...

--Não vaes p’rá rua, mulher. Venho de te arranjar um encôsto no
convento de Santa Clara, onde te mandarei dar todos os mezes o
necessario para o teu passadio. Vaes para onde possas rezar e ouvir
muitas missas á tua vontade. Cá em casa é que me não serves.

--E a minha menina!--tornou Custodia, lavada em lagrimas--a minha
filhinha do meu coração... heide deixal-a!... ai! que eu morro! ai! que
eu morro!

--Não faças gritarias, mulher!--atalhou Gervasio, sustando o alarido da
consternada velha.--A tua menina ia por bom caminho, se tu continuasses
a levar e trazer cartinhas de sujeitos que tu lá sabes...

--Eu!... seja pelas almas!--interrompeu ella.

--Está bom, está bom--concluiu o negociante--não quero _plemicas_! Vae
lá tratar de arranjar a tua caixa, que d’aqui a uma hora has de ir para
o convento; e, se não quizeres ir com a boa esmola que te dou, procura
a tua vida lá por onde te fizer conta.

Custodia pediu quasi ajoelhada que a deixasse despedir da senhora D.
Thomazia.

--Sim, sim, ella está lá por cima--abreviou Gervasio, fechando-lhe a
porta na cara.

Subiu Custodia e encontrou n’um corredor a filha da senhora, creada
aos seus peitos. Lançou-se a ella, suffocada de soluços, beijando-a e
molhando-a com a torrente das lagrimas.

--Adeus, até ao dia do juizo, minha filhinha!--foram as unicas palavras
que poude proferir, porque perdeu o alento nos braços da senhora.

Thomazia sentou-se no pavimento e deitou-a no regaço, bafejando-lhe as
mãos regeladas. N’esta postura a encontrou o marido. Parou, e disse
carrancudo:

--Que historia é esta?!

A esposa não respondeu e continuou a aquecer com a fricção das suas as
mãos da criada.

Passou Innocencio adeante e chamou as tias, mandando-as conduzir
Custodia para as aguas-furtadas.

Acudiram as senhoras todas, ainda ignorantes do successo; que Gervasio
apenas tinha segredado a sua mulher que a tal santinha de Custodia era
uma desavergonhada de mão cheia.

Thomazia disse ás senhoras que a velhinha estava fria de morte.

Pegaram n’ella e conduziram-n’a ao leito. Agitaram-n’a, chamaram-n’a,
deram-lhe um pediluvio de agua espertada com mostarda, e borrifaram-lhe
a cara com vinagre. Não dava signal de vida a pobre Custodia.

D. Thomazia de Barros foi ao escriptorio dizer ao marido que a velha
parecia morta.

--Isso ha de ser fingido para não ir p’ró convento,--disse
Gervasio--mas eu vou lá vêr...

Quando Gervasio chegou acima e se abeirou do catre de Custodia, já a
velhinha tinha os olhos abertos, e circumvagava com elles espantados
por toda a gente.

--Eu não te disse que era fingimento!--segredou Gervasio á esposa.--É
matreira como o diabo a tal beata! Pois ha de ir...

N’este comenos, as palpebras de Custodia desceram outra vez; mas não
chegaram a unir-se; porque as inferiores já tinham perdido a força
vital da elevação. Estava morta: morrêra da sua fulminante agonia. Foi
a saudade que lhe desfez o coração em que não tinha mais sangue que
o das ultimas lagrimas choradas nos braços da sua ama. Não levou á
presença de Deus culpa que a excluisse da misericordia do céu. Peccou
por ignorancia e demasiada fé em S. Gonçalo e outros santos da mesma
respeitabilidade. Peccou attribuindo á magia do sal virgem o exito
de um casamento que se lhe figurou a felicidade da sua menina. Foi
medianeira nos amores de João José emquanto acreditou que o homem
trazia missão do alto quando solicitava a sua protecção. Odiou-o assim
que lhe descobriu a protervia dos planos, e voltou os seus esconjuros a
favor de Innocencio, por lhe parecer o melhor marido, á falta de outro
eleito nos conclaves dos santos, martires, doutores e apostolos do seu
conhecimento.

Descança, pois, em paz eterna na tua cova do cemiterio de S. Francisco,
pobre Custodia da Porciuncula! Dorme até que a trombeta chame ás
alvoradas do dia eterno a tua alma. E, se n’essa occasião este meu
livro sobreviver, como espero, ao renovado cháos, pede ao teu anjo da
guarda que junte este capitulo ao autos do teu processo, e eu terei
tambem o duplo prazer de ter concorrido para a tua salvação, e de ser
citado no valle de Josaphat.




                             CAPITULO XII

                               Argumento

 Odio entranhado de D. Thomazia ao marido. Novas libertinagens de
 Innocencio. Segredos do thalamo contados com exemplar melindre
 e não vulgar habilidade. O virginal enthusiasmo das senhoras D.
 Sebastiana e Florencia. Os pagodes nocturnos do devasso. Morre
 Luiz de Pinhel, e Innocencio vae ao Pará. Admoestações epistolares
 do pae. O filho commove-se, mas Thomazia não n’o ajuda. De como a
 rethorica de Innocencio estava nos pés do mesmo. Vae-se o marido e
 ella passa soffrivelmente. Renascem as franciscanadas do Reimão e
 do theatro. Cyclo da prosperidade dramatica no Porto. A «Degolação
 dos Innocentes». Recorda-se a pá do carneiro com explicações
 supplementares.


Este sucesso enluctou o coração de todos. Thomazia, a esposa de
Innocencio, cobrou odio entranhado ao marido: odio que superava o
sentimento saudoso da morta. A Gervasio asseteavam-n’o remorsos, que
o impediam de justificar a si mesmo o violento passo de despedir a
pobresinha. As trez senhoras e os dois velhos lastimavam a defunta, e
mais ainda o morrer-se tão atormentada e sem sacramentos. Innocencio
andava a scismar e a querer divertir o animo das zargunchadas da
consciencia.

Evitava-o com invencivel repugnancia a mulher, se elle parecia querer
reconciliar-se. Sumia-se na alcova de Custodia, e desafogava n’um alto
chôro, que a sogra não ousava increpar-lhe. Como Gervasio lhe dissesse
que a velha, a não ter morrido, gosaria um descançado fim de vida no
mosteiro de Santa Clara, a opprimida senhora mandou-lhe pedir pela tia
Florencia que lhe désse no convento o encôsto destinado á criada.

O negociante injuriou a irmã portadora do recado, e foi, passado pouco
tempo, affagar Thomazia, com promessas de lhe amaciar as rudesas do
genio de seu filho: promessas que ella recebeu com desdem significativo
de que preferia ser aborrecida.

E não havia congraçarem-se os esposos. Á mesa não se encontravam com
olhos nem palavras. Innocencio demorava-se em casa o escasso tempo de
comer; e de noite recolhia-se depois que os botequins o despediam, ou a
intemperie do tempo o necessitava de abrigo. O espaçoso leito conjugal,
desde a morte de Custodia, nunca mais deu o licito calôr áquellas duas
almas em commum. Thomazia senhoreou-se do seu antigo catre, armando-o
na alcova escura contigua á saleta do seu aposento. O marido vira-o
feito, e não lh’o contrariára. Quando as irmãs lhe deram assombradas
a noticia, Gervasio não impediu, não se interpoz, cuidando que a
duplicidade das camas não significava coisa de vulto. As duas solteiras
benziam-se, chamando «modernismo» á separação, e protestando com
virginal enthusiasmo que, sendo casadas, jámais consentiriam semelhante
moda.

Por parte de Innocencio a reconciliação não foi solicitada.
Minguava-lhe amor para arrepender-se, e generosidade para perdoar a
venial aleivosia das caricias ante-nupciaes. Assim mesmo, deante da
familia esforçava-se em parecer senão amante ao menos amigo de sua
esposa. Assim, porém, que a topava a sós, desviava-se, sem perceber
que ella já de longe planeava o desvio. Tinha ella vida nocturna, que
não era contemplativa nem ralada de solitaria tristesa. Os antigos
conhecidos dos _cafés_ blasonavam de se banquetearem em festins por
noite alta com parceiras condignas, sob a presidencia bisarra e liberal
de Innocencio José de Barros. Gervasio não foi dos ultimos avisados da
prodiga libertinagem do filho. Repreendeu-o, sem azedume, receioso de
que o filho lhe replicasse: «Deixasse-me estar solteiro». Era fraco e
pouco menos de estupido, além de delinquente, Gervasio José de Barros.
Delinquira insinuando a violencia no tom de auctoridade paternal e
coadjuvando a deslealdade de Thomazia. Estava pagando.

E dobaram-se assim trezentos dias e noites, quasi um anno, sem que
Thomazia podesse relembrar dia ou noute em que não chorasse.

Em janeiro de 1845 recebeu Gervasio a nova de ter fallecido no Pará
seu cunhado Luiz de Pinhel. O informador acrescentava que o maximo da
herança coubera aos filhos legitimados do rico fazendeiro; isso não
impedira, porém, que o finado se lembrasse de sua irmã Thomazia, a quem
deixára trinta contos de réis fortes. Pedia o noticiador habilitação
e poderes para liquidar, se Gervasio não quizesse antes enviar
directamente procurador que agenciasse a facilima cobrança.

--Deixe-me ir, meu pae! deixe-me ir a mim!--exclamou Innocencio.--Vou
eu ao Pará, se me derem a procuração. Deixem-me ir, que me fazem um
grande bem. Preciso sair do Porto por algum tempo. Ha muito que eu
andava para pedir a meu pae que me deixasse ir ao Pará ver o tio...

Gervasio meditou, e disse:

--Pois prepara-te e vae... Queres levar tua mulher?

--Não, senhor--respondeu prompta e seccamente.--Se eu vivesse feliz,
não buscaria modos de me apartar d’ella por algum tempo.

--Pois vae sósinho, filho, vae; mas tem pena da pobre rapariga. Não a
trates mal agora que te retiras. Pede-te isto um velho pae que talvez
não tornes a ver...

--Qual não? acudiu Innocencio--o mais tardar d’aqui a seis mezes estou
aqui. Em quanto vou e venho, cançam-se de fallar de mim os canalhas dos
Barcellos que me trazem entre os dentes...

--Pois vae, filho, vae, e Deus te traga com mais juizo do que levas...
Agora sempre te direi que tens andado muito mal procedido por essa
cidade. Os velhos do meu tempo dizem-me que estás perdido! Ainda não
ha oito dias que foste visto na «Pedra Salgada» com uma corja de
bebados e ladras a suciar. Chorei, e não te disse nada. Fallo n’isto
agora--continuou o velho embargado a cada palavra pelos soluços--porque
se eu morrer, quero que saibas e te lembres das afflicções que me
causaste.

--Meu pae...--atalhou commovido Innocencio, abraçando o velho.--Se
vocemecê quer, não vou.

--Vae, vae! antes por lá que por cá te deites a perder de todo. Eu cá
fico a proteger a coitadita de tua mulher, que eu desgracei, pensando
que a fazia feliz. Se o pae d’ella não tivesse morrido, a pobresinha da
moça não estaria para ali mettida no seu quarto sempre a chorar, sem
ter culpa que merecesse tal castigo.

--Se chora é porque quer--contrariou Innocencio.--Que mal lhe faço?

--Ora que mal lhe fazes!... Está bom, está bom; não questionemos,
filho. Trata de te preparar, e sae no primeiro navio, que eu vou
habilitar tua mãe, e arranjar-te os papeis. O que meu cunhado
deixou, teu é. Vae cobral-o, e faz o que quizeres d’elle. Gasta-o em
extravagancias; que tua mulher hade sempre ter o necessario para a
vida. Eu não fui buscar esta menina para a fazer tua escrava. Essas
contas não m’as hade pedir a alma de seus pães... isso não, que eu sou
homem honrado.

       *       *       *       *       *

Innocencio, algum tanto amollecido pelo pae a favor de Thomazia, adoçou
a severidade do rosto, e foi dizer á esposa que ia ao Pará receber a
parte da herança de seu tio.

Thomazia fitou-o com quanta serenidade de semblante podia melhor
traduzir a nenhuma importancia da inesperada noticia. Muito fez ella
em não deixar transluzir o contentamento que lhe illuminou a escuridão
da alma.

Innocencio reparou na placidez de sua mulher, e avincou a testa.

--Não dizes nada?!--proseguiu.

--Que queres que te diga?

--Não se te importa que eu vá... Estás morta por me vêr pelas costas...

--Não...--volveu Thomazia n’um tom que substituia a mais affirmativa
resposta--se tu queres ir, que hei de eu dizer?...

Riu-se rispidamente o marido, e replicou:

--Sempre me tens um amor que nunca se viu coisa assim!

--E o teu? é um amor muito grande, não é?--redarguiu ella,
retribuindo-lhe o riso ironico.

--É o que me faltava!... estar eu a apaixonar-me por ti!... Se eu fosse
tolo!...

Thomazia curvou-se sobre a almofada da costura e continuou a trabalhar,
com os olhos embaciados e a mão tremente.

O marido saiu, depois de bater o pé rijamente no sobrado. Era uma frase
de arrebatada colera aquelle bater de pé! O vigor da cabeça não podia
sair-se com tão estrondosa objurgatoria! Os pés, n’alguns individuos,
são como a arte da rethorica para a eloquencia.

Á volta de nove dias, Innocencio José de Barros fez-se de véla para
o Pará na barca _Romeu I_. Despedira-se seccamente da esposa que
ainda teve lagrimas ao abraçal-o, e coração com palpitações que o
maravilharam. Thomazia, n’aquelle lance, presagiou que o não tornaria
a vêr. Sentiu a saudade que deixam propriamente os maridos mortos ás
viuvas que mortificaram.

Saudade, porém, foi aquella tão boa de levar, que, no breve termo de
duas semanas, a resignada consorte, se queria odiar a imagem do marido,
bastava-lhe recordar os derradeiros transes de Custodia. D’este rancor
aquinhoava bastantemente o sogro; todavia, as maneiras meigas e tristes
do velho com ella quebravam-n’a até o extremo de a enternecerem como
filha.

Restaurado o socego de Gervasio, renasceram-lhe os antigos e aprasiveis
affectos ás franciscanadas do Reimão e do theatro de tarde. A mulher
já não ia de bom animo a taes delicias; mas, para divertir o espirito
fatigado de seu homem, sacrificava-se ás digestões preguiçosas do anho
assado e do savel de escabeche.

Thomazia recusou-se moderadamente a sair de casa no primeiro mez
da ausencia do marido; mas, instada pelo sogro, condescendeu,
honestando o seu apparecimento em publico no grave envoltorio da
mantilha--deliberação que muito agradou á madrinha e mais senhoras.

Acertou de laurear-se então a scena portugueza, e nomeadamente o palco
de S. João, com a carnificina dos meninos que ameaçavam a dinastia do
rei de Jerusalem. A «Degolação dos Innocentes» vista seis vezes a fio
pela familia das Cangostas, á setima representação desentranhou ainda
novidades, peripecias e frases que arrancavam novas lagrimas e novos
raptos de admiração áquella familia.

Quando a sensibilidade, á oitava recita, estava, para assim dizer, já
moida, Gervasio animou-se a intervalar o odio á truculencia de Herodes
com alguma golosina. Discutiram pacificamente Gervasio e a mulher se
devia ser anho ou perua a victima immolada. O cordeiro era os amores,
a sensualidade gastrica do negociante, que se abonava com o exemplo do
divino Mestre e dos apostolos.

Amanharam as irmãs o anho, e deram com elle, loirejando sobre almofada
de açafroado arroz, no camarote de terceira ordem.

Então succederam as coisas referidas na _Introducção_, mas é urgente
complanar uma lacuna que se deixou para esta opportunidade.

A esposa de Innocencio acceitou com bastante pejo a porção do anho que
seu sogro lhe ministrou. Segredava-lhe certo instincto que a usança
de merendar tão succosas vitualhas n’um camarote, implicava desaire
de senhoras e risota de alguns dandis que zombeteavam dos innocentes
prazeres de seus paes.

Não obstante, acceitou por condescendencia, pedindo a um irmão do sogro
que cortasse da pá do cordeirinho offerecida um pequeno bocado.

O velho, como não atinasse a cortar com a faca pelas fibras
ligamentosas da articulação, revirou os punhos do casaco, e forcejou
por desnocar a pulso um osso do outro. No acto de estalarem as
cartilagens, saltou-lhe da mão a pá, e caiu por cima do parapeito do
camarote á platéa.

As senhoras encolheram-se de puro envergonhadas, e Thomazinha chegou a
expedir um ai. Gervasio, porém, não deu valor ao successo, e proseguiu
lascando a caveira do anho, em cata dos miolos. Esta suada operação
estava Gervasio victoriando, quando Antonio Joaquim, Nicoláo de Almeida
e eu assomamos no limiar do camarote.




                             CAPITULO XIII

                               Argumento

 A mulher fatal. Thomazia cantada nas margens do Mondego. O que
 Nicoláo era capaz de fazer e o que fez. O juizo do meu bom amigo
 Antonio Joaquim. Descreve-se o fidalgo de Caminha, e diz-se que
 ella o tinha de memoria pelos motivos que no capitulo se relatam. O
 que Thomazia fez ao outro dia. Começa o namoro como se estivesse a
 fazer crise. Anceia um confidente que o diabo lhe depara na pessoa
 de um marceneiro. Addição d’um aguadeiro á confidencia. Topicos da
 primeira carta. O singelo estilo que inspira um amor sincero. Ao fim
 de sete cartas, é dispensado o gallego e substituido por escada mais
 intelligente. Chore quem poder.


Era pois aquella a mulher fatal que Nicoláo d’Almeida tinha visto anno
e meio antes em Caminha.

Ella alli estava, a vaga imagem que a miudo lhe alumiava os sonhos e
perturbára as vigilias. Ali estava a _Estella_ que lhe tinha sido o
titulo e sagração de muitas poesias que os seus amigos liamos admirados
da frugalidade com que aquelle espirito se alimentava. Este ideal da
mulher foi o do meu tempo em Coimbra: o ideal de hoje em dia não me
lembro de o ter visto maltrapido com as meias e capas laceradas do meu
tempo. Urgia que os academicos se anafassem e lustrassem a grenha como
cosinheira em domingo, para que as ideas de Goettingue, entrajadas de
lantejoulas, se enamorassem de rapazes tão de sua feição e peso.

Como disse, o ideal de qualquer rapaz então era a mulher. _Estella_
todos tinham uma; porém, tão intangivel e fugidiça como a de Nicoláo de
Almeida, não sei que outro poeta a endeusasse com mais arrobado lirismo.

Eil-a pois a mulher fatal!

O fidalgo de Monção, no dia seguinte, disse a Antonio Joaquim:

--Que julgas tu que sou capaz de fazer por aquella mulher?

--Asneiras superiores ao meu calculo--respondeu o meu discreto amigo.

--Arrebatal-a, e estrangulal-a, se me perseguirem e eu me vir em risco
de a perder.

--Vês?--tornou Antonio--ahi está uma parvoiçada a que não chegava o
arrojo da minha imaginação! Arrebatal-a e estrangulal-a!... Não és
rapaz de meias medidas. Faltou-te, no programma, enterral-a. É preciso
enterral-a; e depois uma sangoeira de vampiro. Vaes por noute morta ao
cemiterio e sugas-lhe as arterias.

--Não podes entender-me: és bom rapaz; mas não conheço coração mais
estupido que o teu!--atalhou o academico, com um surriso em que
reçumava o despeito delicado.

--Não é estúpido, quanto cuidas--contradisse gravemente o meu atilado
amigo.--Tem um vicio que vocês alcunham de estupidez: o vicio da
virtude. Condemno com quanta sinceridade posso essa cruel brincadeira
que tu chamas fatalidade. Já me disseste que é casada a mulher.

--Que me faz isso a mim?!--obviou Nicoláo sem tergiversar na pròtervia
da refutação.--Eu sei lá o que é ser casada a mulher onde está uma alma
que me pertence?

--Então a alma da mulher de um tal Innocencio pertence-te?!

--Não zombes!

--Pois tu crês que possa sustentar-se comtigo um dialogo serio? Que
distincções estás ahi talhando entre corpo e alma!... Não me atarantes
com subtilezas. Agacha-te ao raso do meu entendimento. A mulher é
casada ou não?

--É.

--Então, deixa-a; porque não sabes quantas desgraças evitas á mulher
que amas. Deixa-a em virtude do amor que lhe tens.

Nicoláo de Almeida apertou a mão do amigo e despediu-se, concluindo:

--Não vives n’este mundo. Eu, se tivesse mulher e filhos, em vez de
andar semeando moral, estava ao pé dos meus filhos e da minha mulher.
Adeus.

Alludia á situação ridicula de bom esposo e pae, que era já então
Antonio Joaquim.

Thomazia reconheceu no camarote o moço que a seguira e indirectamente
flagellára em Caminha. Não era elle tão pouco assignalado de graças
impressivas que dezoito mezes podessem delir-lhe a imagem.

Pungia-lhe a pennugem do bigode, bem que já tivesse vinte e dois
annos. A magresa realçava-lhe a elegancia. Era pallido, negrejavam-lhe
cabellos e olhos; a pequena bocca, surrindo infantilmente, quando dizia
coisas nada innocentes, entre-mostrava o esmalte da dentadura primorosa.

Mão e pé, bem que eu os tenha em conta de attributos para rir n’um
homem quando se encarecem pela pequeneza, não desdiriam com as fórmas
da mais fidalga constructura de dama. Não sei se D. Thomazia deu tino,
em Caminha, das bonitas extremidades do seu enlevado idolatra; mas já
o leitor sabe que ella distinguira o pequenino pé de João da Costa
Guimarães, de ominosa recordação.

O certo é que se recordou de o ter visto, e recordou-se tambem de ser
aquella uma figura que lhe passava na fantasia, quando se lembrava
das primeiras contendas com seu marido. Não porque a impressão
lhe entalhasse a imagem na retina dos olhos d’alma; senão que, á
semelhança de todas as mulheres, Thomazia comprazia-se de recordar o
primeiro causador dos seus desgostos, com a certeza de que seu marido
não se enganára, considerando-o apaixonado instantaneamente d’ella.
Compensações que aligeiram o pezo da cruz do ciume nos debeis hombros
das esposas innocentes.

Não admira que Thomazia adormecesse de madrugada a ver nas trevas o
reapparecimento do extatico moço de Caminha, e a ouvir-lhe a voz
insinuante e argentina, ao envez da pronuncia gosmenta de seu marido
e parentes. Alvoreceu-lhe, apoz um dormir inquieto, a imagem do sonho
cortado pelo raio de sol que lhe tocou nas palpebras e afugentou o
somno. Levantou-se. Sentiu-se leve, nova, reflorecida ao calor da
juventude, desejosa de se mirar no espelho, a cuidar que via flores,
a imaginar-se solteira, desligada de juramentos que a maneatavam, a
conhecer que a alma batia as azas para voar longe, a gosar-se do prazer
de estar sosinha, de scismar sosinha, de não ter ninguem que soubesse
traduzir-lhe nos olhos o doce alvoroço do coração.

--Tanta coisa!--diz a leitora esquecida do que sentiu, ou ignorante do
que ainda hade sentir.

E o mais? e a satisfação com que ella depois se ria, com as trez
velhas, da graça que teve o rapaz de levar o osso! E a delicadeza de
offerecer o carroção! E a generosidade que elle teve de dar cinco
cruzados novos ao carreiro!

Este ultimo heroismo foi citado com superior enthusiasmo por D.
Florencia. O carreiro tinha revelado a Gervasio a sua fortuna, quando o
commerciante lhe quiz pagar.

E, depois, Thomazia deu tamanha elasticidade ao caso que não teve
aquella imaginosa familia outro assumpto n’aquelle dia; salvo, quando a
mãe de Innocencio expedia um suspiro, e murmurava:

--Muito se riria o nosso menino, se cá estivesse! Meu pobre filho! onde
estarás tu agora!...

As duas tias concentravam-se a resar para que Deus levasse o sobrinho
a porto de salvamento, e a esposa quedava-se calada e pensativa a
dialogar comsigo sobre o caso graciosissimo do osso.

No fim da tarde, Thomazia e a sogra, ao despegar da agulha, foram á
janella. A esposa de Innocencio olhou sem intenção para a loja de um
enxabellador que morava defronte, e reconheceu o rapaz de Caminha.
Nicoláo de Almeida examinava, escolhia e comprava cadeiras, commodas,
canapés, o que se lhe offerecia. O que elle comprava melhor, e por alto
preço, era o tempo que se detinha, á espera da incerta occasião de ver
Thomazia.

E ella, quando o avistou na quasi escuridade da loja, não disse nada á
sogra: perfilou o rosto voltado para a velha, e poz os olhos de envez
para elle.

Nicoláo quedou-se contemplativo. O marceneiro observava o enlevo, e,
contente do freguez, tinha vontade de ser interrogado ácerca da sua
visinha para ser prestavel com as suas informações. Já o bacharel sabia
o essencial. Nada perguntava: seria enxovalhar o assumpto rebaixal-o a
tal interlocutor.

No entanto, a velha saiu da janella, e a nova, retraindo-se um passo,
ficou de modo que era vista, entre as duas portadas que iam fechar-se.
Nicoláo esperou que ella desapparecesse detraz dos vidros e saiu.

--Careço de um confidente--disse elle de si comsigo no dia
immediato.--Arrisco muito; mas, se o não tiver, posso perder tudo. É
questão de vida ou morte para mim o desenlace d’isto. Dou punhados
de ouro para que ella saiba que eu heide matar-me na hora em que me
disser que me não ama. Onde irei comprar um medianeiro?

Chegava o marceneiro ao hotel do Pexe, na Feira das Caixas, com
gallegos carregados de mobilia. Nicoláo não sabia ainda para que
comprára cadeiras e canapés, tremós e commodas. Mandou arrimar as
alfaias no pateo do hotel. Chamou ao seu quarto o artista, pagou sem
glosar a somma das parcellas, entrou em conversação com o homem, e
abriu-lhe margem a contar-lhe sua vida. João Ferreira tinha duas
filhas casadas com officiaes do seu officio, e a terceira estava para
casar com um regente de um cartorio de escrivão de direito. O regente
queria que elle dotasse a filha com uma mobilia completa de sala e dois
quartos.

Lastimava-se o pae de não poder dispender-se em mais duzentos mil réis,
importancia dos trastes. Nicoláo de Almeida poz-lhe a mão no hombro e
disse:

--Senhor João Ferreira, a mobilia de sua filha está no pateo d’este
hotel. Faço-lhe presente d’ella: mande-a buscar, que me dá n’isso muita
satisfação.

--Pois vossa excellencia...--tartamudeou o artista.

--Disse. Mande-a buscar. Se não for bastante; e á vontade do seu futuro
genro, augmente-a por minha conta.

O marceneiro quiz beijar-lhe a mão e abraçar-lhe os joelhos.

--Então vossa excellencia não precisava dos trastes..?--exclamou elle,
fitando-o penetrantemente, como se lhe dissésse: «já entendo...»

--Não: digo-lhe, sem receio de que me denuncie, que não precisava dos
moveis. Fui a sua casa para ver a senhora que móra de fronte...

--A mulher do Barros...--atalhou o artista surrindo--olhe que eu tambem
o desconfiei...Não, que belleza assim!...

Nicoláo carregou sobrôlho á profanação, e João Ferreira estacou,
suspeitando que se adeantára de mais.

--Vocemecê--disse o fidalgo de Caminha reanimando o interlocutor--pode
fazer-me um serviço grande, sem o maior incommodo?

--O que vossa excellencia quizer e eu puder.

--Consegue que algum criado ou criada d’essa senhora lhe entregue uma
carta?

Reflectiu dois segundos o pae da futura esposa do regente de cartorio,
e disse:

--Está vossa excellencia servido. A carta hade entregar-lh’a o
aguadeiro.

--A quem vocemecê dará esta recompensa.--E tirou um guinéo da bolça de
prata.

--Isto dá p’ra dez vezes...--disse o marceneiro alargando as ridentes
bochechas.

--Não, senhor: ordeno que seja a primeira gratificação de quem entregar
a carta.

Estava já escripta. Fôra o dulcissimo lavor e fructo da noite
desvelada. Eram dez paginas em 4.º grande. Uma biographia escripta com
a sublimidade singela que todas as almas percebem, maiormente as almas
amantes ou propensas ao amor.

Ao outro dia, ás dez horas da manhã, D. Thomazia (que presentimento!)
como ouvisse os passos do aguadeiro, saíu ao mainel da escada para lhe
encommendar que comprasse na loja do Antonio das Alminhas uma caixa de
agulhas n.º 7. O gallego sacou de entre o collete e a camisa a carta
embrulhada n’uma gaseta, e entregou-lh’a tregeitando com os olhos o
misterio clandestino do acto.

--Que é?!--disse a senhora.

O aguadeiro sacudiu a cabeça, fechando um olho, como quem diz que não
eram necessarias nem opportunas as explicações.

Thomazia, com as pernas tremulas e o coração em saltos, fechou-se no
seu quarto e leu.

Topicos essenciaes da carta: A sêde d’amor que abrasava desde a
primeira mocidade a alma de um rapaz para quem todas as mulheres
conhecidas se figuravam o ludibrio das suas esperanças. O encontro
nas ribas do mar, em Caminha. A saudade e a desesperação de a tornar
a ver. As noites solitarias de Coimbra e as lagrimas com que elle
pedia a Deus a segunda visão do anjo, embora o fulminasse a desgraça
no restante da sua vida. A reapparição no theatro. O recrudescer do
amor com o proposito inabalavel de se matar, e esperal-a no céo. As
mais pungitivas paginas, porém, eram as da narrativa da sua mocidade,
sem pae nem mãe aos seis annos, rico dos bens inuteis d’este mundo,
e mendigo dos carinhos de uma alma que lhe ensinasse os nomes e
sentimentos sagrados da familia, as ternuras da intimidade. Aqui,
Thomazia não teve as lagrimas. Compreendeu aquella orfandade, e chorou
por seus paes, como se dias antes tivesse visto sair os dois esquifes.

O abalo fôra profundo. Amava-o. Desde que alimpou os olhos para poder
ler a ultima pagina da carta, amava-o, renascia, via ali um amigo sem
ver ainda o amante, não sabia nem queria entender a sua posição social,
não tinha marido nem deveres: era mulher, era uma alma sósinha, a quem
tanto montava alar-se para o céo como descer ao abismo.

Não fio que estas frases lhe adejassem no espirito; mas o conceito,
a interpretação do seu delicioso devaneio, depois de relida a carta,
cifrava n’aquillo.

Respondeu sem medo nem consultar vocabularios. Poucas linhas, e essas,
por milagre do amor, quasi correctas. «Vivo muito infeliz--escrevia
ella.--Não tenho alegria nenhuma, senão quando leio esta carta que me
faz chorar. Não ter pae nem mãe é a maior pobreza d’este mundo. Agora é
que eu sei quanto perdi, por que as suas palavras o explicam de um modo
tão verdadeiro, como eu poderia dizer, se soubesse escrever. Peço-lhe
que me continue a dar o prazer das suas cartas, em quanto alguma
desgraça me não privar de as receber. Sou tão sua amiga como uma irmã
que não tem mais ninguem. Seja meu amigo.»

Passados quinze dias, Gervasio José de Barros e um irmão com as duas
irmãs foram fazer a vindima ás quintas do Pinhão. Motivou uma leve
enfermidade da velha D. Thomazia, ficar no Porto o restante da familia.

N’este tempo, o aguadeiro sentira sete vezes a satisfação de trocar uma
carta por outra. Entreviam-se a miudo, sem escandalo dos visinhos. A
residencia de Nicoláo, durante o dia, era no segundo andar da casa do
marceneiro. João Ferreira pagava exuberantemente a dadiva dos trastes,
e outras que tornavam a noiva do cartorario cada dia mais rica de
seducções á cobiça do seu amado.

O jantar do hospede vinha do hotel com o resguardo conveniente para não
suggerir desconfianças. O marceneiro e a filha engordavam a ôlho, de
feição que os seios da moça, já de seu natural entumecidos, ganhavam
volume que promettia uma ubérrima creadora de filhos, e regalo de
lubricos devaneios ao amor licito do regente do tabellionato.

De noite, Nicoláo de Almeida saia embuçado, e recolhia-se ao hotel de
Pexe a inventariar os jubilos do dia.

Mas succedeu uma vez que o inventariante dos jubilos diurnos em vez
de encaminhar-se para o hotel, ao dar da meia noite, cingiu-se com
a parede da casa fronteira, esperou minutos, abriu-se subtilmente a
janella do 1.º andar, içou-se sem leve rumor uma corda por uma guita, e
um homem pela corda, e a corda seguiu o homem, e fechou-se a janella.

O marceneiro fechou então vagarosamente a sua porta, esfregou as mãos
satisfatoriamente e disse:

--Foi muito bem!

Era o jubilo artistico de ter tecido a corda e entravado os ganchos, e
disposto as travessas em boas proporções, que foi um gosto ver Nicoláo
de Almeida marinhar á janella sem dar de si, nem levemente torcer-se a
escada.




                             CAPITULO XIV

                               Argumento

Invocação ao anjo do pudor.


Anjo do pudor, embrulha a cabeça nas tuas azas!

Libra-te nas regiões ethéreas onde ainda existe a virtude dos passaros.

Não vás, no tribunal da justiça divina, offerecer libello contra a
peccadora da rua das Cangostas.

Anjo do pudor, não te vingues n’ella das desfeitas que recebes desde
Bethsabé.

Muitas sei eu que te esbofetearam, ó anjo, e praticam a villanaz
hipocrisia de nos querer embair que ainda estás com ellas.

Vae dizer ao supremo juiz que ponha os olhos da sua ira nas que
farçanteam no tablado do mundo cobrindo a nudez das Faustinas com a
tunica pudica das Porcias.

Repara, ó doce amigo das santas--nem Cortonas, nem Egipciacas, nem
Magdalenas--repara, anjo do pudor, que umas de quem tu fugiste, mais
enjoado que lagrimoso, dispensam a tua fiscalisação, e cospem injurias
n’outras, cujas faces, tu, uma vez por outra, ainda aqueces.

E tu consentes que ellas blasonem e digam que és tu quem lhes volta o
rosto das que desamparaste.

Não refines o travor do calix a umas que deram o coração ao remorso,
depois que as tuas alegrias se lhes desluziram da consciencia.

Vae, anjo do pudor, embióca-te nas tuas azas, diz ás matronas honestas
do reino celestial que não contem com Thomazia; mas não vás tu
fazer grandes escarcéos lá em cima, que ha de ahi estar muita alma
circumspecta que te diga: «Ora vamos! não berres tanto, que estão aqui
muitas senhoras a quem estás offendendo por tabella.»

E mais te digo, anjo do meu maior acatamento, que não ha de ti cá em
baixo a necessidade que presumpçosamente cuidas.

A tua fugida não faz revoluções nem abala os eixos sociaes. Ninguem
dá tento da tua ausencia, quando saes de uma casa com a cara velada,
e ao mesmo passo entra a fortuna com a cornucopia. Os próceres do
nosso esterquilinio, quando saltam das suas berlindas ao peristilo das
Lesbias, não perguntam se tu estás lá dentro.

Os moralistas tambem lá vão, e dizem entre si que tu és bonito, em
quanto a impudicicia, carminando a cara que tu purpurejavas com o
reflexo das tuas azas, os faz acreditar que apenas és necessario ás
meninas de dez annos para que não digam ás mamãs, deante de gente de
fóra, que hão de casar e ter filhinhos.

Vê tu, anjo do pudor, que, d’aqui a pouco, escassamente serás invocado
pelos romancistas, e contado pelos dedos nas rimas dos poetas, por que
acertaste de rimar com muita coisa.

Emfim, meu sensivel anjo, sê equitativo para ser justo. Atira-me abaixo
do pedestal as devassas que te bigodeiam; e, depois, querella de
Thomazia das Cangostas. _Fiat justitia._




                              CAPITULO XV

                               Argumento

 Noticias do Pará. Sequidão de Innocencio. Acommisera-se o velho da
 nora, que não se dá d’isso. Thomazia realça em epistolografia, fazendo
 suspeitar o sogro de que anda ali cachimonia de maior cunho. Opinião
 de Innocencio ácerca de viajar. Estuda francez, e vae ver mundo.
 Encontra em França a neta de uns gentis-homens da Picardia, a qual
 neta vae ver mundo com elle.


Passados trez mezes, sequentes ao embarque de Innocencio, vieram cartas
do Pará.

O cobrador da herança noticiava que estava empossado dos trinta contos.
Vituperava a memoria do tio, criminando-o da torpeza de deixar quatro
mulatos assignando-se com seus apellidos, e herdeiros de mais de um
milhão em moeda fraca. Vexava-se de ser coherdeiro com tal negralhada,
e noticiava que ia partir para o Rio de Janeiro.

A Thomazia escrevia meia duzia de linhas, consagradas ao boletim da sua
saude e ao desejo de que a consorte passasse sem novidade.

--Cá vou passando... disse ella entre si, quando Gervasio notava n’um
lance de olhos á mulher a sequidão das palavras do filho. Tinha o
velho dó sincero da sua afilhada.

--Escreve-lhe, Thomazinha,--dizia Gervasio--escreve-lhe que eu lhe
direi que isto não é carta que se mande a uma esposa! Estragaram-me
aquelle rapaz os vadios do Porto, os comedores, os mariolas dos
botiquins! Escreve-lhe uma cartinha amorosa, sim, minha filha?

--Pois, sim, meu pae;--disse ella mui de mimo e dolorida--mas, se elle
me despresa, é peior estar eu a impaciental-o com as minhas cartas...

--Não, senhora; escreve-lhe como te digo, p’ra dizer cá com a minha
carta.

Que prodigio de fantasia operou Thomazia para poder alinhar um quarto
de papel inglez com umas frases assim a modo de saudosas com ares de
amorinhos!

O velho leu-as, e obedeceu ao impulso de espanto, exclamando:

--Ó menina, isto não é da tua cachimonia! parece-me copiado do «Feliz
Independente» que tua mãe me leu no Douro ha mais de vinte annos! Tu já
leste a historia do «Feliz Independente»?!

--Não, senhor.

--Pois olha, ninguem hade dizer que este palavriado é teu! O Innocencio
vae ficar banzado, quando lá vir estes ditos!

--Ora!... o pae está a mangar comigo!...

--Agora estou! Palavra! tu dizes aqui coisas que parecem dos periodicos!

Gervasio foi ler a carta á esposa. A santa senhora pagou o seu tributo
de lagrimas, quando a leitura chegou á seguinte passagem: _Já que não
tenho o teu amor nem a tua amizade, dou graças aos ceos por que me
não levaram o amor de tua santa mãe e de teu santo pae. Alguma coisa
me havia de dar a Divindade Celeste a quem peço que te dê saude e
satisfação..._

Thomazia, se tivesse capacidade para imitar estilos, poderia dar de si,
no genero epistolar, coisa melhor; que o mestre era excellente e as
lições, quer escriptas, quer oraes, muito amiudadas. Sem embargo, os
progressos não correspondiam á frequencia do pedagogo, cuja linguagem
era assim correcta que sublime. Thomazia aprendia sómente o que podem
entender e saber as faculdades do coração. O estilo do coração, se
algum elle tem, a meu ver, é de todos o mais desatado e avesso da boa
prosodia. As suas flores são beijos quando não são lagrimas. D’estas
segundas não tinha ainda Thomazia experiencia: dos outros, não affirmo
nem nego. Não vi.

Mez e meio depois, vieram novas cartas de Innocencio datadas do Rio
de Janeiro. A mesma friesa com a esposa, e muitos affectos ao pae,
desfechando com pedir-lhe licença para ir do Rio a Inglaterra, e ver as
cidades principaes da Europa, antes de recolher-se a Portugal. Allegava
o sujeito uma razão que, a juizo d’elle, rebatia quaesquer obstaculos.
_Quem vê mundo, escrevia elle, aprende tudo quanto ha sem ler livros.
As viagens dão muita experiencia dos homens._

Posto isto aforisticamente, continuava: _Estou a aprender dois dedos
de idioma francez_: (a palavra _idioma_ entalou os gorgomilos
intellectuaes de Gervasio) _o francez é preciso saber-se para não fazer
má figura. Logo que possa andar por lá de modo que eu me faça entender,
vou vêr mundo, isto é, se vocemecê e minha mãe não se opposerem, o que
não espero da sua amizade paternal e maternal._

--Estás um bom trapólas!--disse em soliloquio o bom velho.--Que irá
elle fazer agora por esse mundo de Christo?! Pilhou-se c’os trinta
contos, e não vem p’ra casa sem dar com elles em Pantana! Deixal-o!
Cavalladas por cavalladas, antes as faça longe da minha vista.

Mostrou-lhe Thomazia a sua carta, dizendo:

--Aqui tem, padrinho; veja que modo de me escrever! Diz que tem saude e
que me deseja a mesma.

--Tem paciencia, filha...--respondeu o velho consoladoramente,
pondo-lhe a mão no rosto.--Elle cá virá, quando se cançar de ser
máo e ingrato. Agora me pede licença para ir viajar... Olha tu que
asneira!... E eu não sei o que heide responder-lhe...

--Se elle quer ir... acudiu Thomazia, e susteve o restante da idéa,
receiosa de inspirar desconfiança da sua indifferença; e, tornando logo
sobre si, emendou:--Se elle quer ir, é por que não tem saudades de
mim... O que eu admiro é que as não tenha de seus paes, que lhe querem
tanto...

--Valha-me Deus!--voltou o compadecido velho.--Olha que estás
enganada; meu filho quer-te bem; mas foi de cá zangado com o diabo dos
Barcellos...

--E eu tenho culpa?!

--Está feito, está feito, menina... aquillo de escreveres ao outro não
foi grande coisa... Um homem, que gosta de uma mulher, não leva a bem
que os outros andem a dizer que ella tambem gostou d’elles. O rapaz
ficou varado, e custou-lhe a engolir o vexame. Fizeste mal, Thomazia;
mas... emfim o passado passado. Agora o que se quer é paciencia, e
esperar que elle venha á razão. A carta que lhe escreveste ainda agora
estará a chegar-lhe á mão. Verás como elle muda de idéas logo que a
receber. E o que tu hasde fazer, filha, é arrumar-lhe já com outra. O
_Silencio_ sae ámanhã para o Rio Grande do Sul e faz escala pelo Rio.
Escreve-lhe hoje que eu vou já fazer o mesmo.

Novas e redobradas maravilhas de espirito! A carta de Thomazia, se
não recendia saudades, ia menos mal engenhada com umas melancolias
queixosas, mas logo dulcificadas por balsamos de resignação.

Gervasio gostou muito, e segunda vez espremeu os lacrimaes da esposa.

Em quanto não chega este mimo d’alma exemplar de paciencia ao Rio,
vejamos as saudades que a primeira carta commove no peito do esposo.
Estava elle conjugando o verbo _parler_, quando lhe entregaram a
correspondencia da Europa. Lida a carta do pae, leu a da mulher, e
releu a do pae. Entristeceu-se e compadeceu-se. Era a primeira vez que
mansamente, e em tom de amorosa, Thomazia se queixava do seu desamor.
Seguiram-se uns pruridos de saudade n’alma, e logo o apparecimento
ideal da formosura de Thomazia, com uns encantos renovados, como se
aquella imagem lhe tivesse esquecido, e renascesse mais bella para lhe
captivar a um tempo a alma e a razão até alli desvairadas.

Por um fio que mudou o designio de ir em cata da experiencia do mundo;
mas poderam muito a retel-o no proposito feito os estudos progressivos
da lingua franceza, e o anceio de aprender tudo quanto havia, sem ler
livros.

Quando recebeu as segundas cartas, quarenta dias depois, tinha já
enfardado para seguir no primeiro vapor inglez. Leu as novas, mas
brandas queixas da esposa; sentiu-se bem com a crença de ser amado, e
projectou desde logo não se demorar mais de trez mezes na sua visita ás
capitaes da Europa.

Foge-nos agora o tempo sem paragem de acontecimentos que prestem á
essencial narrativa. Decorridos quatro mezes, Innocencio José de Barros
estava em Florença, e não estava sósinho. A creatura interessante,
que o acompanhava, era no hotel conhecida por _madame Barros_ e _el
signor de Barros_ gosava creditos de opulento hespanhol. Madame
Barros era franceza, carinhosa, corrigia-lhe com infinita graça os
erros de linguagem, e formava-lhe com os labios nos d’elle frases
puro parisienses. Innocencio estava um homem acceitavel em qualquer
sala e muito conversavel, de fóra parte a compostura pessoal, que
toda se devia ao gosto delicado da franceza em materia de trajar. A
civilisadora d’aquelle bruto em ruins tempos, tinha sido officiala de
alfaiate, e n’outros peores, commensal de estudantes no _quartier
latin_. Mas mr. de Barros não contava isto aos seus conhecidos de
Florença. No dizer e crer d’elle, Jacqueline Beaulieu de Rastignac era
victima de um seductor que a raptou no _chateau_ de seus paes, fidalgos
picardos de primeira raça.

Dias depois, encontrámos Innocencio na Suissa, procurando as reliquias
da casa de João Jacques Rousseau em Genebra. Quem metteria no cerebro
d’aquelle homem um desejo tão significativo de craneo cultivado? Fôra a
descendente dos fidalgos picardos. Jacqueline tinha ouvido discutir o
filosofo nas palestras litterarias dos seus commensaes, antes da quarta
garrafa de Bordeaux.

Por maneira que, n’este saltar de terra em terra, Innocencio não
recebia cartas da esposa nem do pae. Umas estavam retidas em Pariz,
outras em Bruxellas, outras em Milão, outras em Veneza.

Se elle houvesse recebido de seu pae uma escripta em abril de 1846, e
retida em Londres, onde nunca estivera, encontraria a circumstanciada
noticia do que vae contar-se no seguinte capitulo.




                             CAPITULO XVI

                               Argumento

 Coisas serias. Agonias moraes misturadas com as do enjôo, por causa
 da dualidade entumescente identificada á corporatura interna tendente
 a distender as circumferencias objectivas da pessoa retró declarada.
 Aggrava-se a seriedade do capitulo, pelas sobreditas razões. Prova-se
 que o enfanticidio inculca o nobre sentimento da vergonha do mundo, e
 que o mundo é injusto com as mães criminosas. Dá-se um premio a quem
 entender Thomazia, e outro a quem explicar o reviramento espiritual
 de Innocencio. Narra-se o encontro d’elle com Jacqueline Beaulieu de
 Rastignac. Como ella era velhaca. Pavores na casa das Cangostas, onde
 não apparecia carta de Innocencio. Thomazia dá pulos de contente,
 sem embargo da duplicidade grave da sua consubstanciação, fallando
 delicadamente. Descortinam pesquizas a lura do amante embebido em
 filtros da franceza. A perfida joga-lhe duas ironias, e prega-lhe nas
 faces dois beijos fementidos, coisa piedosa de contar-se.


Que atormentada alma a de Thomazia!

Que peleja entre a idéa de matar-se e a de perder o homem que lhe era
toda a sua vida!

Matar-se! Que fraqueza tão incongruente com a robustez da culpa!

Então o vicio não quebra e anniquilla os impulsos da vergonha que
atiram a mulher aos braços da morte voluntaria!?

Ha coragem para o suicidio, quando não houve força para resistir ao
crime?

Theses para fôlegos grandes.

Vamos ao caso; e o leitor, se me quer honrar com a sua collaboração,
moralise.

Assim que Thomazia teve razão efficaz para se considerar mãe, caiu em
joelhos aos pés de Nicoláo d’Almeida supplicando-lhe que a livrasse de
tão clara prova do seu crime.

Nicoláo levantou-a nos braços convulsos de meiguice, e deixou fallar o
coração:

--Estás salva; foge comigo!

E ella, cobrindo o rosto com as mãos, exclamou suffocada pelo medo de
ser ouvida:

--Oh! que vergonha! que perdida me vejo!... Não me digas que fuja,
porque eu nunca pensei em poder dar semelhante passo. Ó Nicoláo, eu o
que te peço é... não sei dizer-t’o... não posso, que me faz horror esta
idéa...

--Adivinho-te--interrompeu elle com amargura--e não te posso crer?...
Tu querias matar o meu filho?

Thomazia arquejava sem ousar responder.

--Pedes-me a mim que seja eu o algoz do meu filho, de um filho teu,
querida da minha alma?... Cuidas que te hade pezar menos o remorso de
matricida que a vergonha da fuga! Onde está o teu amor e o teu coração,
filha!

--Mas se elle vier...?--atalhou ella.

--Teu marido?

--Sim.

--Não te encontrará; por que elle nunca mais ha de ver-te, nunca mais
ha de sentir a tua respiração, ouviste? Isto é infernal!--disse elle
com desesperada concentração--pois esta mulher ainda quer parecer pura
aos olhos de tal homem!... Então que sou eu? que poder tenho na tua
vida?

Thomazia punha as mãos, e clamava:

--Perdoa-me! perdoa-me! que eu... estou doida!... não sei, não sei
o que hei de fazer... Olha, Nicoláo, eu queria vêr-me livre d’este
apêrto... Isto não póde ser! Fugir, meu Deus? que dirão meus padrinhos,
que me amavam tanto!... que dirá toda a gente...? Jesus, valei-me!...
Meu amor!--proseguiu ella acarinhando-o.--Nós não precisamos de
filhos para ser felizes, pois não? Que tinha que me livrasses d’esta
afflicção, dando-me qualquer coisa... Eu sei que ha meios de se
conseguir, se tu quizeres. Isto por ora não é nada que possa sentir
dôres, pois não? Então que tem que eu possa ser tua, sem me perder de
todo, sem causar esta vergonha a meus sogros que são uns santos...

--Mas...--obviou Nicoláo.--Ainda que elles te vejam assim e saibam o
teu estado, não cuidam que és mãe de um neto d’elles...? Por ventura
sabiam elles o divorcio occulto em que tu vivias ha mezes com teu
marido?

--Não sei se o sabem; mas creio que não...

--Então?

--E elle? quando o pae lh’o mandar dizer?

Nicoláo não achou redarguição rasoavel.

--Vês?--sobreveiu Thomazia.--Vês? não tens que responder-me.

--Tenho!--acudiu elle.--Foge! que te hei de eu mais dizer, minha filha!
eu, que te amo tanto, não sei, não posso valer-te de outro modo...

--Pois, sim--tornou ella mansamente contendo-lhe os transportes
perigosos, no silencio da noite--pois, sim; esperemos... quando eu
já não puder evitar a desgraça... quando vir que sou sem remedio
descoberta e perdida, então fugirei para ti...

--Mas que importa, que lucras em esperar a desgraça extrema?!...

--Póde ser que isto não vá ao fim... que Deus escute os meus rogos... e
que eu me veja livre, antes que ninguem desconfie.

       *       *       *       *       *

Nicoláo d’Almeida saíu tão affligido quanto espantado da reluctancia
de Thomazia. Não a entendia; porque não pudera ainda confrontar duas
mulheres amadas, quatro, vinte mulheres sublimes, infames, castas no
vicio, almas dissolutas em envolucro immaculado, esmagando a força
da consciencia propria e acovardadas deante da maledicencia de uma
visinha; arrojando-se affrontadoras contra a sociedade e succumbindo
imbelles e pueris á condemnação de si mesmas; temendo a justiça do
inferno nas venialidades e desprezando o juizo da providencia nos
crimes enormes; rindo no cairel do abismo e chorando se lhe empecem
dissabores passageiros.

Que tinha Thomazia de tudo isto? A consciencia inconciliavel com os
delictos do coração; a fraqueza do raciocinio egual á imbecilidade com
que prevaricára. Não seria antes aquillo tudo uma estupidez congenial?
Que hade a gente pensar de um opprobrio que se mostra e não se esconde,
justamente para que o não vejam? Emfim, Thomazia era o que ella de si
diz no dialogo. Explicou-se cabalmente. Fugir seria dar o testemunho
da sua deshonra; mas ficar, para quê? Esperava que os signaes da
maternidade se desvanecessem? Era isso. Então que era ella afinal?
Mulher.

       *       *       *       *       *

Innocencio escreveu de Plymouth á familia, annunciando a sua chegada;
mandava que lhe dirigissem a primeira carta para Londres, tendo, como
vimos, indicado Veneza, quando saia do Rio. E, quando o pae lhe dizia
que mandasse receber em Veneza uma carta, já elle estava em Pariz,
esquecido ou descuidado da que devia estar em Londres. Como aquella
cabeça se refez! Trinta contos de réis e uma sêde febril de gosar
deram-lhe os modos e espiritos de um rapaz creado em delicias, amante
do bello, inquieto, nervoso, sempre faminto e sempre resaciado como os
grandes genios!

Não tem historia o encontro e enlace com Jacqueline Beaulieu de
Rastignac em Pariz. É coisa simplicissima e trivial. A neta dos
gentis-homens picardos tinha uma balança na mão, e pesava dois
corações: um de quem quer que fosse; o outro do illustre portuguez
viajante. Ora, o portuguez, como visse ouro fio e indecisas as conchas,
atirou com alguns punhados de ouro á sua, e fez levantar a outra á cara
do concorrente. Porém, constou ao vencedor que o rival buscava azo de o
desfeitear. Innocencio conservava ainda a virtude da prudencia: saiu de
Pariz para a Belgica, e d’aqui para Italia.

De feição que por lá andavam perdidas as cartas da familia, e elle
d’essa perda de todo ponto resignado.

Averiguemos agora o desvio que levaram as cartas de Innocencio para
a sua familia. Gervasio, desde que o filho chegou á Europa, uma tão
sómente recebeu, sendo pelo menos seis, ainda assim, as que o distraido
viajante lhe escreveu no espaço de trez mezes de delirante amor.

A franceza sabia que mr. de Barros era casado. Referira-lhe elle
expansivamente sua vida, fazendo-se lastimar como forçado da galé de
um matrimonio constrangido. Confidenciou-lhe o divorcio em que vivia
sob as mesmas telhas, com a odiada consorte, dando como impracticavel o
reconciliarem-se.

Entrou-se a ociosa _lorette_ da curiosidade, até certo ponto util,
de devassar a correspondencia do amante. N’este delicto, a seu ver
innocente, lhe ia a ella muito: se o divorcio era sincero, cumpria-lhe
reter as bridas ao fausto e ao gosto de ver terras, acommodando-se
á vontade do homem para lhe não incutir suspeitas de o querer
desbalisar e arruinar com o vulgarissimo desplante das suas collegas;
se o divorcio eram meros arrufos de passagem, urgia-lhe estar de
sobre-rolda com a mercadoria do seu coração para não perder o lanço
de leiloal-a a tempo. Além d’isto, convinha-lhe outro sim inferir da
correspondencia a verdade das jactancias de Innocencio quanto a bens de
fortuna. Cedulas, luizes e libras tinha elle a rôdo, e bem lh’os via
ella; mas carecia de certificar-se da abundancia do manancial.

Gizado o plano, executou-o no primeiro ensejo.

Comprado pela franceza, o criado, portador da carta, entregou-lh’a.
Na do pae ia incluida outra de cincoenta palavras para a esposa. Sem
impedimento, porém, da sovinaria dos vocabulos, vinte d’elles pelo
menos eram de esposo que fingia ter saudades e tal qual pesar de as não
ter sentido ha mais tempo.

«Lá para o futuro--escrevia elle a Thomazia--hei de tornar a estas
terras e tu has de vir tambem para vêr o que é bonito. Se não fossem as
saudades que tenho de ti, andava contente por cá.»

A franceza surriu-se perversamente e disse entre si:

--Olha que divorcio!... Que lérias me tem cantado o tal sujeito!... Eu
me acautelarei...

A carta a Gervasio era mais extensa, e nada explicava respeito
a riqueza; todavia, como não solicitava nova remessa, nem dava
explicações do capital esbanjado, sobravam provas de haver ainda
bastante que dispender com certa independencia do pae.

Jacqueline queimou as cartas, e não deixou sair ao rosto denuncia de
estar vigilante sobre as acções do fementido Innocencio.

As subsequentes cartas, escriptas de Italia, seguiram egual fado.
Observou, porém, a franceza que as frases suaves de mr. de Barros para
a esposa iam esfriando á medida que os dias e as noites discorriam,
revesadas por delicias da natureza e da arte, entre os dois camaradas
de viagem. Isto dava-lhe a ella uma idéa vantajosa da sua pessoa e bem
fundada soberba de ir conquistando uma alma menos má.

Quem passava dias amargosissimos era Gervasio José de Barros e sua
mulher.

Trez mezes sem carta do filho, nem novas indirectas da existencia
d’elle!

Thomazia escondia-se da sogra por não poder acompanhal-a nas lagrimas,
nem estar sinceramente ajoelhada deante do oratorio a requerer a divina
protecção para seu marido.

--O meu filho morreu!--exclamava a consternada velha D. Thomazia,
abraçando-se á afilhada--morreu, minha menina!... Se estivesse vivo,
quando teu padrinho lhe disse que tu estavas no teu quinto mez, o meu
filho vinha logo para casa!...

E voltava-se outra vez para Deus, cuidando que a nora cooperava nos
seus afflictivos rogos, ao tempo que a esposa do chorado Innocencio
ia esconder-se no seu quarto para beber a tragos as delicias de
imaginar-se viuva e desapressada das angustias do medo e da vergonha.

Não ha ahi dizer o desafogo d’aquelle pleito da supposta viuva! Cada
vez que o sogro vinha da rua, suado de andar pelos consulados a
solicitar de diversos paizes novas do filho morto ou vivo, Thomazia
ageitava o mais amargurado rosto que podia, e, saindo ao velho, de
braços estendidos e respiradouros arquejantes, perguntava-lhe que novas
tinha.

Gervasio rompia em pranto desfeito, esmurraçava os pulsos um contra
outro na impaciencia da sua dôr, e gemia:

--Não sei nada!... Estás sem marido, e eu sem o meu filho! Estou
resolvido a ir eu mesmo em cata d’elle por esse mundo fóra!

Acudia então a esposa, tirando do peito gritos pavorosos:

--Não te deixo ir, meu Gervasio, não! Se vaes, por lá acabas tambem,
marido do meu coração! Se elle vive, Deus o encaminhará; se morreu, não
ha remedio, e cedo ou tarde nos virá a certeza para lhe cuidarmos da
alma!...

Sobrevieram no entanto aggravantes noticias de muitos naufragios, e
desastres nos caminhos de ferro, durante os trez mezes ultimos. Nada
mais possivel que ser Innocencio uma das obscuras victimas contadas ás
centenas, sem ter deixado signal nem documento da sua naturalidade para
os competentes avisos.

Todos aceitavam, ainda assim, o caso funesto como supposição; salvo
Thomazia, que o defendia como coisa certa, quando Nicoláo d’Almeida
lh’o impugnava, imaginando o conflicto de apparecer-lhe o marido
inesperadamente em casa.

As averiguações do ministro dos negocios estrangeiros conseguiram,
depois de um mez de inculcas, bem dirigidas pelo representante
portuguez em Pariz, descobrir a residencia de um chavalier de Barros
em Milão. Para esta cidade enviou o ministro portuguez as necessarias
perguntas, e colheu que o hespanhol chamado Barros já tinha saido
com passaporte em direcção á Sardenha. Proseguiu o activo indagador
na piugada do inquieto viajante, e vingou fazer chegar a Turim uma
participação, informando Innocencio José de Barros do cuidado em que
estavam seus paes em Portugal com a falta de suas noticias. Esta
participação, recebida pela franceza, não chegou a vêl-a Innocencio,
nem duas cartas de Gervasio que lhe iam inclusas, uma encontrada em
Londres, outra dirigida a Pariz. Mademoiselle Jacqueline Beaulieu
de Rastignac respondeu incontinente que _as suas cartas se tinham
desencaminhado, mas que ia immediatamente assegurar a seus paes que
vivia e tinha saude_. Escreveu e assignou: _Innocencio José de Barros._

Espantou-se o homem quando voltou a casa, que a franceza lhe fizesse
esta pergunta n’um tom de chança:

--Diz-me cá: estás bem certo de que vivias com tua mulher tão
castamente como se conta de certos santos casados com certas santas?

--Isso que quer dizer?

--Quer dizer o que as palavras explicam--tornou ella modificando para
melhor o modo zombeteiro.

--Torna a perguntar--volveu elle.

--Tua mulher, se hoje tivesse um filho...?

--O quê?!--atalhou Innocencio, fitando-a de frecha com os olhos
coruscantes.

--O filho podia chamar-te pae?

--Não!--exclamou elle.--E por que perguntas isso?

--Ahi estás tu fóra de ti!--acudiu a franceza, tão outra e sisuda
de semblante, que parecia não ter tido mais intenção que dizer uma
tolice.--Quiz experimentar, se é certo o que me tens dito. Agora
acredito que fallas verdade, meu Barros.

E, com dois beijos calorosos, renasceram nas faces de Innocencio as
boas côres, esmaecidas n’um instante de pundonor insurgido.




                             CAPITULO XVII

                               Argumento

 Apanha a franceza um murro portuguez de lei. O esmurraçador vae
 comprar leques, e quando volta não acha a creatura socada. Dão-lhe uma
 carta, em que elle aprende miudezas do fenomeno da gestação, em que
 o pae o considera agente de primeira ordem. Fervem-lhe os miolos, e
 corre a vingar-se: Adoece no Havre de febre cerebral, e está perigoso.
 Chegam noticias ao Porto. Scenas pateticas. Thomazia, no auge da
 atarantação, perde os sentidos, e dá á luz um menino de oito mezes,
 em resultado do susto, que costuma aperfeiçoar obstetricamente e
 fenomenalmente estas coisas. Dois infernos ambos elles mais peores,
 como dizia o negro dos dois senhores que tinha tido.


Quinze dias corridos, um viajante inglez que estadeava equipagens e
librés, viu a franceza no theatro Scala de Milão, e perguntou entre
dois bocejos quem era aquella creatura de olhos piscos e sobrancelha
negra.

Deteve-se a resposta em quanto os informadores desvelados andaram
escudrinhando nos hoteis a procedencia da ditosa que se endeusára a um
raio visual do ricasso bretão.

Innocencio dera trez vezes de olhos com o binoculo do inglez apontado
ao seu camarote, e raciocinou que não era elle de si objecto para
attenções tão pertinazes. Antes do acto 3.º convidou a franceza a sair;
mas a rebelde rejeitou o convite, desculpando-se com o amor da musica.
Ia cantar a Ferlotti a romanza da Favorita: _Ó mio Fernando_. O galã
portuense trincou o beiço com desamor e raiva tal, que apertaria mais
brando o dente iracundo no coração de Jacqueline.

Concluida a opera, sairam amuados e desavieram-se em casa pela primeira
vez. A franceza descomediu-se em remoques e desabrimentos. Innocencio
amava das entranhas aquella mulher que lh’as cancerára. Do muito amar
ao injuriar por ciumes, medeia meio passo: o bater está linhas adeante.
A franceza apanhou um revez de mão portuense que corresponde ao murro
de um ciclope. Empinou-se a parisiense deante do homem da rua das
Cangostas, e disse-lhe:

--Ámanhã pagarei as despezas que fizer n’este hotel.

Innocencio caiu em si, e logo em joelhos, exclamando:

--Tem piedade de mim, que estou doido de ciumes. Amo-te! amo-te!
Ouve-me, Jacqueline! se me não ouves, mato-te e mato-me!

Esta concisão denotava tenções sinistras. A franceza teve-lhe medo,
e aquietou-o. Mas não chorou, como as mulheres ultrajadas, quando
perdoam. Devia de ter levado outros murros aquella dama, ou a traça da
vingança estava armada.

Quando Innocencio foi para o almoço com a alma e estomago livres de
peso, já a risonha e indulgente commensal tinha um misterioso annuncio
da criada que a servia. Fallára-lhe de um conde de certo condado
inglez, que se pronunciava com cinco _ff_, incompativeis com a doce
lingua millaneza. E mais nada podera dizer-lhe.

Innocencio não se desabeirou n’aquelle dia da franceza. Agora a estava
elle amando em tresdobro. Dizia-lhe coisas que não pareciam suas.
Passava de tolo a eloquente, como se Amor e Minerva, n’aquelle dia, se
revezassem a senhorear-lhe o espirito que até então andára sempre nas
divindades da ralé celestial.

E ella voltava-lhe em surrisos as caricias, e dissimulava o enojo
impaciente com as momices do coração magoado.

Sobre tarde, Innocencio deteve-se com o mestre de dança, e Jacqueline
com a criada.

Coração, figados, baço, e tudo de Innocencio funccionava normalmente no
dia seguinte.

A franceza pediu-lhe um leque de sandalo. Saiu o jubiloso amante a
comprar leques de varios feitios.

Voltou com o folego apressurado. Entrou á ante-camara do seu quarto.
Não viu o seu enlevo d’olhos. Procurou-a entre os cortinados do leito.
Foi á sala do piano. Interrogou os criados. Ninguem lhe daria novas, se
a criada do toucador da madame Barros, lhe não dissesse:

--Madame saiu, levou seus bahús, e deixou esta carta para vossa
excellencia.

A carta, envolucro de outra, dizia:

_Sem tempo para mais, adeus. Murros vá dal-os em sua mulher. E é tempo
de ir. A carta inclusa dá-lhe uma noticia que o deve apressar a ir
receber nos braços o pimpolho. Se é verdade o que me disse da sua casta
união, tanto peor para o senhor. Lá se avenham.--Jacqueline B. de
Rastignac._

Leu Innocencio a carta do pae, que resava assim:

 «Vou-te dar uma grande alegria. Como dizes que vaes para Veneza,
 mando-te para lá esta carta, por via do vice-consul italiano. Saberás
 que tua mulher nos deu o maior cuidado, e pensámos que ella tinha
 grande mal interior; por que andava muito amarella e chupada da
 cara que parecia uma castanha sêcca. A gente perguntava-lhe o que
 ella tinha, e nada de novo. Queixava-se de enxaquecas, e comia como
 um passarinho. Depois passou-lhe aquelle fastio e pegou a comer
 melhor, mas andava triste como a noite, sempre a matutar e a chorar
 pelos cantos. Até que um dia, tua mãe veio ter comigo e disse-me:--Ó
 Gervasio, eu desconfio que ella não sabe o que tem; mas olha que o meu
 olho não mente: a rapariga traz menino na géra. Repara-lhe p’ráquelles
 encontros!--Tu que me dizes, mulher? Isso era uma felicidade para
 todos! O Innocencio se souber isso vem logo p’ra casa, não te parece?

 «Vae ella, depois, foi ter-se com tua mulher, é disse-lhe a sua
 desconfiança. Tua esposa começou a negar, e dar as suas razões; mas
 tua mãe protestou que não se enganava, e para o que mandou chamar o
 mestre da escola de cirurgia, o Sinval, que a examinou e disse que
 estava de cinco ou seis mezes. De cinco lhe disse eu que não podia
 ser, porque tu tinhas ido para o Pará ha seis. Então é de seis, disse
 elle; mas digam-lhe que não ande tão espartilhada.

 «A gente ficou alegre como tu podes imaginar; mas ella sempre triste,
 que não te digo nada!! Acho que está com medo de morrer, e não ha
 forças que lhe dêem animo. De maneira, que cá pelas nossas contas
 d’aqui a quatro mezes deve apparecer o que fôr: oxalá que seja um
 rapazito.

 «Terás tu a má condição de não vir para a tua casa antes d’esse tempo?
 Falta-me ver isso, meu filho!!!!! Não dês que fallar ao mundo n’este
 caso, que é de ficar mal para todo o sempre um homem. Logo que esta
 recebas, deixa-te de pagodes, e vem a toda a pressa para lhe dar
 animo; que ella está como uma tumba. Pede-te tua mãe que compres por
 lá um enxoval rico por conta d’ella; porque já sabes que os padrinhos
 somos nós, etc., etc.»

Quando chegou por aqui, Innocencio mal enxergava os caracteres.
Zumbiam-lhe vespas na cabeça, ferroando-lhe os miolos. Lavaredas
internas queimavam-n’o desde o diafrágma até aos beiços. O tremor
das pernas fêl-o sentar-se de pancada n’uma _voltaire_, como se o
derrubassem com uma catapulta jogada ao peito. Cravára no tecto os
olhos betados de sangue. Nem amor nem odio á franceza lhe braseava o
espirito extraviado. Varrêra-se-lhe de todo da lembrança a mulher a
quem, horas antes, promettêra a mão de marido, se um dia enviuvasse,
e lhe ella guardasse lealdade. Não a via sequer em imagem; mas, se a
visse, tangivel, laceravel e capaz de afogar-se no proprio sangue,
iria espedaçal-a a dentadas: porque a infame lhe retardára apunhalar a
adultera.

Apunhalal-a, sim! esta era a idéa que lhe revia sangue nos olhos e
rangia nos dentes.

Levantou-se de golpe como tigre assaltado de surpreza. Correu ao
quarto, chamou criados, emmalou e alugou carruagem com frequentes mudas
para França.

Quando chegou a Pariz, doze dias depois, entrou na via-ferrea para
o Havre, pressurando-se em ir a tempo de embarcar no «paquebot» que
navegava para Portugal. Porém, quando chegou, ao fim de cinco dias de
insomnias, de fraqueza á mingua de alimento, de sobre-excitação febril,
e impaciencia devorante, caiu de todo quebrado e incapaz de se mover
do hotel até ao navio. O medico examinou-o e saiu esperançado da cura,
obstando-lhe ao intento de se fazer levar para bordo em braços.

Obedeceu o enfermo, e pediu que lhe enviassem para o pae esta breve
carta: _Ha poucos dias que recebi a que me escreveu para Londres,
dando-me parte dos prazeres que lá tem. Não me demorei onde estava; mas
cheguei tão doente ao Havre, que fico na cama. Dezoito dias mais tardar
é o que poderei estar por aqui. Lá vou tambem dar um terno abraço em
minha mulher. Não posso mais. Seu filho muito do coração, Innocencio._

O barco havia saído quando o doente se arrepelava, exclamando:

--Eu dava dez contos por áquella carta!... Estou doido! Que asneira eu
fiz! Agora foge ella á minha vingança em lendo a carta! Que inferno
este!...

E, bramindo, sacudia a roupa, e saltava do leito, afugentando o
enfermeiro que imaginava tel-as com um mentecapto. Venciam-n’o com
força e carinhos. Levavam-n’o ao leito. Ministravam-lhe os remedios.
Todavia, as febres exasperavam-se, e os simptomas do tifo não se
escondiam aos olhos do medico, salvo se os da congestão cerebral se
offereciam mais caracteristicos.

Sigamos a carta que lhe acerbou as angustias. Qualquer que fosse o
motivo das delongas na participação do representante portuguez em
Pariz, aconteceu que o ministro dos estrangeiros mandava transmittir
para o Porto o aviso de viver o filho de Gervasio José de Barros, ao
mesmo passo que o velho era surpreendido pela carta do filho.

Pobre pae! quando reconheceu a letra, expediu grandes gritos cortados
pela suffocação da alegria e perdeu os sentidos, casquinando umas
esfusiadas de riso nervoso.

As senhoras vieram assim encontral-o nos ultimos degráos, amparado nos
braços do criado. Vinha entre ellas tambem Thomazia, secretamente e
a um tempo abalada de prazer e de medo, cuidando que eram de agonia
aquelles gritos.

Gervasio sentiu desabafar-se-lhe o alento, assim que ouviu
aproximarem-se almas com quem podesse repartir do peso esmagador do seu
jubilo.

--Está vivo nosso filho!--bradou elle.--Está vivo teu marido, afilhada!
Aqui está uma carta! aqui está! vêde-a! Graças, meu Deus, graças!

--Graças, meu Deus!--conclamaram as trez senhoras e os trez velhos
ajoelhando todos no degráo.

Thomazia, porém, permanecia quêda, empedrada, livida, esgaseando os
olhos turvos. Assim se esteve n’aquelle alheamento, olhando tudo sem
ver mais que a figuração do marido, por espaço bastante notavel, que
todos levantaram para ella os olhos perplexos. N’este conflicto,
faltavam-lhe os joelhos, entrou em convulsões, e, soltando um gemido,
caiu nos braços da sogra e do padrinho, que a viam cambalear.

--Olhem o que faz a alegria!--clamou o velho.--Levem-n’a para cima,
coitadinha! levem-n’a com geito, que isto passa logo... Eu vou ler a
carta para vossês todos ouvirem ao pé da cama da nossa pobre filha.

--O peior é se este sobresalto lhe faz mal á creancinha!--disse D.
Thomazia.

--Não hade fazer, se Deus quizer!--contrariou Gervasio, seguindo o
grupo em cujo centro ia a esposa sem sentidos, amparada nos braços de
todos.

Defumaram-n’a com alfazema e ungiram-lhe as fontes de vinagre.
Descerrou as palpebras de sobre os espantados olhos. Viu muita gente a
rir-se e a chorar de alegria, e já o sogro com a carta aberta, dizendo:

--Escuta lá, filha, escuta o que diz o teu homem. Diz pouco por que
está doentinho; mas é bastante para ficarmos doidos de alegria. Ouve,
menina.

Leu. Thomazia fazia ranjer o leito com as tremuras.

--Vês?--proseguiu Gervasio.--Olha como elle está contente, menina!

--Mas está doentinho!--accudiu a mãe.--Queira Deus que a doença seja
leve.

--Hade ser, se Deus quizer!

--Ó manas--tornou D. Thomazia--vamos já pedir a Nosso Senhor que lhe dê
saude. Vinde para o oratorio.

--Eu não posso ir...--murmurou a esposa de Innocencio, erguendo
custosamente a cabeça.

--Pois não venhas, filha, não. Aqui fica teu pae a conversar comtigo
emquanto nós vamos resar. Cá pediremos tambem em teu nome, Thomazinha;
e mais tu podes resar d’ahi tambem, que Deus Nosso Senhor está em toda
a parte onde se procura.

--Ó rapariga!--continuou Gervasio, assim que as senhoras sairam--a nós
a alegria deu-nos de bota abaixo! Eu tambem perdi a tramontana; e, se
lá não está o gallego, dou com a cabeça no corrimão, que a parto! Não
que elle!... Ó menina, eu parece que estou areado do juizo! Pois inda
torno a ver meu filho!... Que me dizes?

--Deus o queira...--murmurou Thomazia, dizendo no fundo do seu coração:
«Matai-me, Senhor, matai-me, e condemnai-me ao inferno para sempre!»

--Tu estás a modo de triste, afilhada!--sobreveio o velho.--Que tens tu
que estás chorando agora?

--Chorando?--disse ella apalpando os olhos--é verdade... não sei
por que choro... é alegria... pois que hade ser, meu padrinho?... é
alegria...

--Ah! lá isso entendo eu! Olha, queres tu ver que tambem me rebentam as
lagrimas?

De feito, Gervasio chorava e alimpava os olhos ao punho da japona,
dizendo entre frouxos de riso:

--Deixal-as cair, que são as ultimas... Não torno a chorar na minha
vida. Venha meu filho, veja eu o meu netinho, e depois não ha mais nada
p’ra mim n’este mundo. Já cá deixo gente que farte para fazer honra á
minha memoria.

N’este momento, sacudiu-se em convulsas contorções D. Thomazia, e
vibrou um prolongado gemido.

--Que tens, menina?!--clamou alvoroçado o sogro.

--Ai!--repetiu ella gemebunda, estendendo os braços e batendo os dentes.

Gervasio foi chamar a mulher aceleradamente gritando que Thomazinha
estava muito mal. Acudiu a senhora com as cunhadas, e observou ao
marido, em termos caseiros, que o sobresalto da noticia poderia
antecipar a hora que não obedece sempre ao ciclo das nove luas.

Foi chamado o facultativo de maior nome em obstetetrica, ladeado de
duas famigeradas comadres.

D. Thomazia diagnosticára magistralmente o incommodo, segundo concordou
com o facultativo e as previstas assistentes.

Apoz trez horas de gritos alternados com desmaios, viu Gervasio sair
sua mulher com um menino recemnascido nos braços.

--Nasceu de oito mezes!--dizia a radiosa velha.--Está vingado e
perfeitinho!

O velho encarou na creança muito de perto; mas não ousou pôr-lhe os
beiços cubiçosos, receioso de lhe magoar as carnes tenrinhas.

Ao mesmo tempo, no segundo andar da casa do marceneiro, Nicoláo
d’Almeida, já informado de que se esperava Innocencio, e de que
o medico e parteiras tinham sido chamados á pressa, imitava na
irrequietação, no desesperar-se, nos exteriores de uma ancia
insoffrida, as torturas por que tinha passado em Milão o marido de
Thomazia.

As agonias eram diversas; e todavia não sabemos decidir em qual das
duas almas podia caber mais um gume de ferro. O marido arfava no anceio
de a matar. O amante na impossibilidade de a salvar, cuidando que
ella ia morrer. Quem optaria de prompto pelo mais suave d’estes dois
infernos?




                            CAPITULO XVIII

                               Argumento

 Que a justiça divina raras vezes defere aos criminosos que lhe
 requerem a morte. Luctas horrendissimas do coração maternal com o
 opprobrio de mulher. Considera a sciencia que Thomazia ficou areada
 do juizo. Coração de pae, resgatando o delicto de mau cidadão.
 Dizem que está Innocencio á barra. Foge a esposa, sem poder levar o
 filho. Situação para muita dôr, em que a jocosidade seria profanação
 selvagem. Afflicções que sentiram muitos, e muitissimos hão de
 sentil-as em quanto a Providencia não tirar o coração ao homem ou a
 propensão do crime ao genero humano.


Nas intercadencias de febre sobrevinda ao parto, perguntava Thomazia
quando vinha Innocencio; nos delirios, porém, palavreava desconchavos,
chamando a miudo Nicoláo. Dizia D. Sebastiana a este respeito que a
doentinha invocava S. Nicoláo milagroso.

Desconfiaram-n’a os medicos; não obstante, a soberana justiça mandou
affastar a morte d’aquella mulher que precisava ser, alguma hora,
expiação e exemplo. Mal sabem os que choram á volta de um esquife que
bom despacho Deus enviou aos que morrem quando mais lhes enverdeciam
esperanças. Suave passo é acabar quando filhos não olham para a mão
cadaverica d’onde costumavam receber o seu pão e caricias.

Levantou-se do leito aos quatorze dias Thomazia.

A sciencia medica pasmou do seu triumpho; mas confessava-se inefficaz
para debellar um torpor moral e spasmo organico em que ficára a
convalescente.

Se lhe levavam a creancinha, debulhava-se em lagrimas, e parecia
repulsal-a, voltando o rosto. Outras vezes, pedia que lh’a déssem dos
braços da ama, estreitava-lhe ao seio soffregamente o corpinho, e
soluçava.

O parecer dos facultativos era que Thomazia ficára tanto ou quanto
desconcertada de juizo; mas era de esperar que, mediante socego,
distracção e tempo, se restaurasse.

Houve, na familia, opiniões diversas, respeito ao baptismo do menino.
Uns queriam que se esperasse Innocencio, outros que se não demorasse
além de oito dias dar uma alma á creancinha. Venceria Gervasio com os
primeiros, se o pequenino sem alma, aos nove dias, não désse signaes de
pouco vivedoiro.

Baptisou-se, pois, aos dez, sendo padrinhos os avós; (o assento
baptismal dizia _avós_: não sejamos mais escrupulosos que o abbade na
propriedade dos termos.) Chamaram-lhe Pedro, em memoria de alguns seus
antepassados illustres na linhagem.

Não deram noticia do nascimento ao pae, (o assento dizia tambem que
Innocencio José de Barros era pae) visto não haver tempo de chegar a
_Havre de Grace_ a nova, antes de elle se abalar para Portugal.

Estamos em julho de 1846.

Espera-se que o paquete francez aviste a barra do Porto no dia 18.

Ao anoitecer do dia 15, Thomazia recebeu da mão do aguadeiro a terceira
carta de Nicoláo d’Almeida, escripta n’estes termos:

 «Está tudo preparado. Já tenho no hotel a ama para o menino. Assim que
 ámanhã anoitecer, sae. Espero-te aqui defronte. Logo que te vir sair,
 sigo-te, recebo o filhinho, e tu vaes indo a meu lado até á rua dos
 Inglezes onde nos espera a sege. Ámanhã mesmo partimos para Caminha.
 De lá, se nos incommodarem, iremos para Hespanha. Onde quer que
 chegarmos, encontraremos a felicidade. Ainda bem que eu não desbaratei
 a minha juventude em falsas delicias que derrancam e envelhecem a
 alma. Sinto-me pae e esposo em todo o vigor de um coração novo,
 robustecido pelo teu amor, minha graça e formosura do céo.

 «E o meu filhinho? Sabes que o vi baptisar? Olhei para elle em quanto
 as lagrimas me deixaram. Estive quasi a pedir á ama que me consentisse
 beijal-o. Que sensações me tumultuavam na alma! Aquelle sentir nascer
 um amor novo que me enchia o coração!...

 «Deixa-me abafar a saudade; que, se não, fico a escrever-te, e são
 horas de te avisar.

 «Não sei como te has de haver com tirar o menino, sem darem fé!...
 Dêem ou não, é forçoso, Thomazia! Nem mais um dia, porque me dizem que
 o paquete francez algumas vezes se antecipa quarenta e oito horas e
 mais, quando, peor ainda, não acontece sair algum extraordinario do
 Havre.

 «Eu só descançarei, quando puder abraçar os meus dois queridos amores,
 e pedir então a Deus que nos perdôe, se não é possivel santificar a
 nossa união. Espera, minha filha; que o nosso anjinho ha de pedir por
 nós.»

Estava Thomazia cogitando modos como, no dia seguinte á mesma hora,
havia de fugir com o filho, quando se levantou um subito ruido de
muitas vozes no escriptorio, onde o sogro ainda estava.

Thomazia expediu um grito e quasi perdeu o alento, cuidando que chegára
o marido.

Encostada á parede, foi-se acercando da escada, e debruçou-se no
corrimão. Era a tempo que Gervasio e dois amigos vinham subindo, e as
trez senhoras e os outros velhos iam descendo. O velho exclamava:

--Ahi está o paquete defronte da barra. Pediu lancha para pôr em terra
passageiros. Está ahi o nosso Innocencio! Vão dizel-o a Thomazia, que
nós partimos já para a Foz; mas olhem lá como lh’o dizem, que não vá
dar alguma coisa na pequena. Preparem a ceia.

--Mas será elle?!--atalhou a esposa.

--Pois quem hade ser?! certificou Gervasio--É elle, não póde deixar de
ser elle... Até logo, nós cá vamos encontral-o ao caminho.

Entraram as trez senhoras ao quarto de Thomazia e fizeram pé atraz de
puro espavoridas. A esposa de Innocencio guinava de uma parede para
outra com as mãos apertadas nas fontes, despedindo gritos em que se
conheciam mal articuladas as palavras «meu filho!»

--Jesus, santo nome de Jesus!--clamava a sogra--Ó menina, que tens
tu? Olha que vem ahi teu marido, filha!...--E, voltada ás cunhadas,
continuava:--Querem as manas ver que ella endoideceu!

N’este acto, rompeu Thomazia por entre ellas e desceu ao primeiro andar
a procurar o filho.

--O meu filho?--dizia ella em altos clamores--o meu filho?

--A ama saiu com elle á tardinha; mas não tarda ahi--respondeu a
madrinha tremente e assombrada.

--Quero o meu filho!--rebradava Thomazia, indo bater á porta do quarto
da ama.

--Menina, não está ahi a ama! já te disse que ella foi dar ao Pedrinho
o ar da fresca, e volta logo. Ó Virgem Mãe de Deus! pelas chagas de
vosso Filho, fazei que ella não perca o juizo!

E ajoelhára de mãos erguidas com as cunhadas a velha angustiadissima.

Em quanto ellas ciciavam fervorosas orações, Thomazia desceu as escadas
como quem se precipita.

--Onde vae ella?!--gritou D. Sebastiana.

E desceram todas tão depressa, quanto a idade e a nutrição lhes
consentia.

Quando chegaram ao pateo, já não entreviram Thomazia na escuridade da
estreita rua, e proromperam chamando-a a brados.

Ajuntaram-se os transeuntes ouvindo as lastimas, com quanto pesar
podiam, por não entenderem a fundo a causa dos gritos. Queriam elles ir
logo de porta em porta relatar o escandalo; mas as senhoras vexavam-se
de dizer que Thomazia fugira doida pela rua fóra.

A este tempo, a mulher de Innocencio, no 2.º andar da casa do
marceneiro, arquejava anciadissima nos braços de Nicoláo d’Almeida.

--O meu filho!--exclamava ella.--Vae buscar o meu filho, antes que
chegue Innocencio, que póde matar-m’o!... O teu filho, Nicoláo!...
Corre lá... tira-o aos braços da ama... traz-m’o, que se não vês-me
aqui morrer de dôr!

Estes rogos eram desarrasoados, depois d’ella já ter dito que, no
lance da fuga, o menino estava fóra de casa. Além de quê, Nicoláo
acovardava-se de romper a multidão que pejava o pateo de Gervasio, e
ir arrancar uma creança aos braços da ama no seio de numerosa familia.
Absteve-se pois de obedecer ás supplicas de Thomazia, abafou a propria
angustia e disse-lhe:

--Primeiro que tudo, sair d’aqui.

--E o meu filho?--acudiu ella.

--Trata-se da tua segurança agora. Não percamos tudo por amor da
creança...

--E se elle a mata...?

--Não ha ferocidade tamanha em coração de homem nenhum... A occasião
não permitte questões, Thomazia!... É sair... e já pela porta do
quintal que vae dar á cerca de S. Domingos.

N’isto, avisou a filha do marceneiro que ia entrando muita gente para
casa de Gervasio.

--Depressa...--disse Nicoláo, tirando pelo braço a inerte mãe de Pedro.

Minutos depois, subiam as escadas da Esnoga. Ella ia soluçando, e elle
apanhava as lagrimas no lenço.

Ao assomarem debaixo do paredão da Victoria, abraçaram-se em reciproco
impeto, exclamando:

--O nosso filho!




                             CAPITULO XIX

                               Argumento

 João Ferreira vae na piugada dos fugitivos levando a nova da viuvez a
 D. Thomazia. A viuva fica satisfeita ao que parece. Noite de pezames
 na casa das Cangostas. Revelações do commendador Batalha, negociante
 probo e honesto da Praça do Porto. O que elle diz de Thomazia, e o
 que os outros dizem d’elle e da mulher. Sucia de patifes e burros.
 Gervasio declara que não tem nada de seu, por temer que a nora o
 queira roubar. Suspendem-se-lhe as lagrimas na repreza do odio.
 Abraça-se á mulher, quando as visitas o deixam e desafoga a sua dôr
 por maneira consternadora. E do mais que consta o capitulo abaixo
 declarado.


Meia hora depois, João Ferreira, o devotado marceneiro, chegou esbofado
ao hotel do Pexe, endireitou aos aposentos de Nicoláo d’Almeida; e como
o não visse no quarto, perguntou afflicto ao criado:

--O fidalgo de Caminha?

--Chegou aqui, mandou apparelhar os cavallos e partiu.

--Para onde!

--Não sei.

--Iria para Caminha?

--Não sei.

O artista pediu ao dono do hotel que lhe alugasse cavallo para ir levar
uma urgente noticia ao fidalgo; mandou recado á filha, e partiu na
piugada de Nicoláo, caminho de Villa do Conde.

Ao abrir da manhã, avistou além de Casal de Pedro os dois cavalleiros,
que reconheceu pela libré do lacaio. Nicoláo ouviu brados á
rectaguarda. Parou, deixou avisinhar o cavalleiro que batia as pernas á
espora fita, e reconheceu o marceneiro.

--Que ha?--perguntou Almeida, a distancia.

--Que ha? morreu o senhor Innocencio.

--Como?!--volveu Nicoláo, em quanto a viuva, a tremer sobre as
andilhas, abafa o respirar para não perder uma sillaba das palavras de
João Ferreira.

--Lembra-se vossa excellencia quando a minha filha disse que ia
entrando muita gente para casa da senhora D. Thomazinha?

--Sim.

--Eram negociantes que acompanhavam o senhor Gervasio, onde vinham
dois que desembarcaram e trouxeram a noticia de ter morrido na
França o senhor Innocencio. Assim que vossa excellencia saiu e mais
a senhora, d’ali a pouco, fecharam-se as janellas. Eu disse logo
á minha companheira: «Ó mulher, aquillo é novidade! pois com este
calor fecham já as janellas!»--«Que queres tu? (disse ella). Se te
parece!... Fugiu-lhe a nora, elles não sabem d’ella... estão a gritar,
e fecham as janellas por isso.» «Não (disse eu) ali ha coisa de maior!»
Tirei-me dos meus cuidados e desci á rua. Cheguei-me a uns senhores
que estavam á porta do senhor Gervasio, e perguntei se havia alguma
novidade.--Morreu no Havre (acho que disse isto) o Innocencio de
Barros. N’isto vinha saindo um sujeito, e disse aos que estavam: «Vocês
não sabem? A mulher do Innocencio fugiu esta noute. Vae lá em cima uma
barafunda de gritos que nem o diabo se entende! As velhas estão todas
desmaiadas; o Gervasio está n’um pasmo mortal. Desgraça d’este calibre,
nunca eu vi!»--Puz-me á espreita a ver o mais que diziam uns que vinham
e outros que iam, e contavam a mesma coisa. Só houve um que disse: «Se
querem saber onde está a mulher de Innocencio, procurem-n’a no hotel
do Pexe, que móra lá o brejeiro (vossa excellencia hade perdoar) que
lhe andava por aqui a raspar a asa. Eu bem n’o disse, mas ninguem fez
caso. Melhor fizera eu, se tivesse avisado o Gervasio.» «Não, que a
esse respeito (disse outro d’ali, que por signal era o commendador
Batalha) a esse respeito eu lhe conto: não ha muito que eu estava aqui
na visinhança mettido n’um pateo á meia noute e um quarto, pouco mais
ou menos, e vi botar uma escada de corda a esta janella, e subir um
homem, e metter-se lá para dentro, e mais a corda.»--«E você calou-se
com isso?--Veio d’alli outro.--«Calei-me, respondeu o Batalha, porque
não sou o almotacé das honras alheias; cada qual que guarde a sua casa.»

Eu assim que ouvi isto, meu fidalgo, despedi por ali arriba, que não
sei como não botei os fidalgos pela bocca fóra... Depois, foi um raio
por essa estrada fóra catrapós, que trago aqui o garrano a dar as
ultimas. Aqui tem vossa excellencia o que ha. Sirvo para amigo ou não?

--É um bom, e não sei se o meu unico amigo, senhor Ferreira--disse
Nicoláo, apertando-lhe a mão.

--Não ouviu dizer nada do meu filhinho?--perguntou a viuva.

--Não, minha senhora. Ninguem lá fallou no menino.

--E agora? que fazes, Nicoláo?--tornou ella, voltando-se para o pae de
seu filho.

--Tudo estava salvo, se não foges... murmurou o de Caminha muito
concentrado.

--Mas posso agora ir... acudiu ella.

--Segundo desatino--obstou Nicoláo.--Estás prohibida de deliberar,
minha filha--proseguiu o moço em tom de suave preceito.--Senhor
Ferreira, siga-nos para Villa do Conde: lá pensaremos. Não ha razões
para precipitar qualquer resolução. Estás viuva, estás livre, Thomazia.
O teu filho has de reclamal-o: ninguem tem mais direito do que tu a
possuil-o. Agora estão as leis por ti. Socega. É uma questão de pouco
tempo.

Deixal-a expandir agora a sua silenciosa alegria. Aquillo sim, que
é tragar liberdade a sorvos deliciosos. Se ali não fossem duas
testemunhas dos seus transportes, Thomazia pediria a Nicoláo que a
deixasse desafogar em gritos de exultação bem aconchegada do seio
d’elle. O filhinho é d’ella: disse-lh’o tão sobre o seguro o pae! É
seu: dentro em pouco, poderá despir-lhe o lucto; e, quando elle souber
proferir a palavra _pae_, ninguem lhe dirá _morreu_! Que lhe faz a
ella que a riqueza de Gervasio não seja para seu filho? O pae é tão
rico, é tão brioso, que não ha de querer que o seu menino se appellide
_Barros_ para succeder na herança de algumas duzias de contos!
Fluctuando de idéa em idéa, disputada por uma á alegria da outra, de
vez em quando foge-lhe um suspiro desafogado por entre surrisos que lhe
desbordam do seio.

Nicoláo, porém, vae triste: sente cair-lhe e queimar-lhe sobre o
coração uma torrente de lagrimas; relucta por tirar a consciencia
de sob o peso d’um cadaver. Quer elle imaginar que a sua misteriosa
amargura são parvulesas de poeta, e de amador novel que ainda não
tem abroquellado o peito para rebater os golpes do remorso. Quer e
succumbe. Vae pois mais amargurado do que virera até ao momento em que
lhe disseram: Caminha a passo; não fujas; que o marido d’essa mulher é
morto; e o deshonrado pae que ficou a choral-o é um ancião.

       *       *       *       *       *

Ai! e como o deploravel velho chorava, apertando ao seio a creancinha,
n’aquella hora!

--Não tens pae nem mãe!--exclamava elle com a eloquencia nascida a
subitas das ingentisssimas agonias.--Como ella te deixou, anjinho,
entregue a uns velhos que não podem viver muito!...

E o commendador Batalha, que não o desamparára em todo o curso da
noite, dizia-lhe:

--Deixal-a ir: nunca este menino saiba que teve tal mãe! E guarde-se
de que essa infame lhe entre a sua porta. Ella hoje é capaz de vir
buscar o filho e chamar-se senhora da fortuna que hade ser d’elle e da
que lhe cabe.

--Ella!--exclamou de salto o velho--ella pôr mão em dinheiro do meu
filho e do meu neto!... Isso é mais facil eu ajuntar o valor de tudo
que tenho n’esta casa, e pôr-lhe o fogo! Sou capaz de o fazer... E de
mais--proseguiu Gervasio subitamente inspirado e mais energico para que
todos ouvissem--não tenho nada de meu. Tudo o que ahi está é os dotes
de meus irmãos e irmãs. Não tenho nada que dar a essa mulher...

--Mas que ingrata!--dizia D. Thomazia, na saleta visinha, entre
soluços, á esposa do commendador Batalha--que ingrata aquella!...
Trazel-a eu pobresinha, creal-a, dar-lhe o meu filho... o meu querido
filho... que eu não torno a ver...--e lançava-se por terra, ferindo
o rosto nas cadeiras, e escabujando nos braços das cunhadas, que mal
podiam acudir aos transes alheios.

--Eu já soube esta noite lá fóra quem era o tal desaforado--dizia o
commendador ao auditorio funebre, que de vez em quando intermittia no
estilo elegiaco algumas diatribes politicas a José Passos e outros
propugnadores da revolução de maio d’aquelle anno--bem sei quem elle
era... e agora me arrepello de não ter avisado este pobre chefe de
familia; que eu bem o vi subir pela escada de corda...

--Havia de ser--disse o negociante Abreu ao ouvido do negociante
Leite--havia de ser quando elle se preparava para subir pela escada de
páo, e não de córda, para o quarto da mulher do Simão Lopes que mora
trez portas abaixo do lado de lá.

--Pois era isso...--confirmou o negociante Leite--eu já de lá o vi
sair de madrugada, e ás dez horas encontrei-o no escriptorio do Simão
a dizer que o mundo estava desmoralisado, e que sabia de trez infames
mulheres casadas que traziam nas praças e nos cafés a honra dos seus
maridos ás vaias dos folhetinistas e d’outros calafrios d’esta laia.

--Pois aquillo é um tratante!... Olha, olha, como elle se explica.

--Estes malvados--proseguia o commendador Batalha, batendo murros nas
proprias pernas--estes malvados que desviam do seu dever as senhoras
honestas, e cavam a ruina domestica das familias, deviam ser mortos
a tiro como cães damnados. E ellas então? eu, todos sabem que sou
casado. Graças aos céos, topei mulher que me deixa andar com a cara
descoberta...

--Aquillo é mentira--disse o negociante Abreu ao ouvido do negociante
Leite.

--Ora diz-m’o a mim!--segredou o outro.--A casa d’elle ninguem sobe
com escada de corda, por que a estrada para o coração da mulher é
pela trapeira, ha mais de doze annos. Bem sabes que o Raimundo Braga,
visinho d’ella...

--Se sei!... Deixa-m’o ouvir.

O commendador saltára do assumpto, por que um dos auditores tinha
escarrado, querendo chamar com tão indecente signal a attenção de Leite
e d’Abreu.

--Faz o senhor Gervasio o que deve em não consentir que essa
mulher perdida lhe entre em casa, nem leve o pequeno--proseguiu o
commendador, solicitando com os circumvagantes olhos o apoio do
auditorio.--Segure-se, e quanto antes, meu amigo. Estamos aqui todos
promptos para tudo que fôr necessario. Não sei se o troca-tintas do
seductor tem de seu; mas acho que pouco terá. É d’estes cavalheirotes
de aldeia que colhem cem rasas de milho, e vendem quatro arvores quando
vem ao Porto. Se é o que eu penso, elle hade querer comer d’ella, e não
tarda por ahi a justiça a vir intimal-o para inventario.

--A mim?--atalhou Gervasio--está bem servida a justiça comigo! Já
disse que não tenho nada de meu. Devo a cada um de quatro irmãos que
ahi estão dez mil crusados de dote afóra os juros. As quintas do Douro
estão captivas dos dotes, e mais esta casa. O vinho que por ahi está
nos armazens já o vendi. Estou sem nada, logo que pagar o que devo.

--Faz muito bem!--obtemperou radiosamente o commendador--assim é que se
ensinam os bigorrilhas e as... e as... adulteras.

--Não sabe o nome da mulher d’elle...--cochichou Abreu á orelha de
Leite.

--É mais burro que honrado--addicionou o outro.

       *       *       *       *       *

Esta farça funebre de pesames, cuja exactidão carecia de mais espaço
e relêvo, passava assim n’um lance de supremo infortunio. As lagrimas
intermitentes de Gervasio tinham perdido toda a sua pungitiva uncção.
Quem ali fosse para compenetrar-se do funeral espectaculo de um velho,
chorando um filho morto e simultaneamente infamado, sairia rindo ou
amaldiçoando quem tão vilissima tempera deu ao homem.

Quando Gervasio, ao raiar do sol, sentiu pesar-lhe a cabeça carecida
de repouso e a recostou para os braços cruzados sobre o peito, os
hospedes evacuaram de mansinho a sala, queixando-se todos de enxaqueca,
e convidando-se para ir tomar chocolate ao botequim da rua de Santo
Antonio.

Gervasio sentiu que uns braços o achegavam do seio e uma face branda
lhe animava as cãs. Olhou, e viu sua mulher, que lhe dizia:

--Ó meu pobre homem, se nos deixassem chorar sósinhos...

Abraçaram-se estremecidamente. As primeiras lagrimas de desafogo foram
aquellas.




                              CAPITULO XX

                               Argumento

 De como a formosa viuva se embalava nas serenas aguas do Minho, e
 o que diziam a respeito de varias coisas os ditosissimos amantes.
 Requerimentos, embargos, accordãos e outros feitos das justiças
 d’estes reinos. Gervasio escapa-se com o neto. Nicoláo de Almeida
 prova de um modo vulgar e sabido que a sociedade devia chamar-se
 uma porcaria, se a palavra não fosse plebea e repugnante a ouvidos
 cerimoniosos. O commendador Batalha depois que revessou do bucho a
 ucharia encruada. As jornalistas pregoam as virtudes de Thomazia, com
 outras tolices ao mesmo respeito.


D. Thomazia, a viuva, e Nicoláo de Almeida deliciavam-se campestremente
nas inspirativas margens do rio Minho.

Vestia de crepe a formosa. Era-lhe realce o escuro. Trajada de côres
festivas, a alma saía-lhe ao rosto a dar reflexos de alegria aos lutos.

Nicoláo remava no batel, por baixo de um docel de salgueiros. Os
remos trapeavam cadentes, de uma ourela para outra do rio. Cada vez
que aproavam a terra e abicavam por entre os bosquesinhos espelhados
n’agua, saíam da frescura os rouxinões esvoaçados, e iam mais longe
emboscar-se n’algum amieiral, onde a lua bem sabia que era esperada dos
seus cantores nocturnos.

--És feliz?--perguntou-lhe Nicoláo secretamente vaidoso de abrir
thesouros de felicidade para aquella mulher.

--Não...--murmurou ella surrindo-lhe meiguices de quem pede perdão do
aggravo.--Falta-me o nosso filho.

--Não te basta a certeza de que elle hade vir?

--E a saudade? e o medo que m’o tirem ou o façam desapparecer?...

--Não ganhavam com isso nada.

--Mas se meu padrinho cuidar que elle é seu neto?...

--Nem assim lhe assiste o direito de t’o negar.

--Mas quem sabe se o Innocencio deixou alguma declaração...

--De que o filho não era d’elle?

--Sim...

--Mais forte rasão para que t’o não queiram, e comecem desde já um
processo a provar a illegitimidade do filho adulterino. Seja como fôr,
minha filha, lá tens optimo procurador no Porto. Póde ser que a esta
hora o nosso anginho venha esvoaçando para nós. Teu sogro hade achar-te
louvavel o procedimento, porque não pedes herança, nem sequer as tuas
joias. Pedes o filho e renuncias a ter quinhão dos bens de teu marido.

--E se elles m’o não entregarem?

--Vou eu buscal-o. Entrarei á presença de Gervasio, e direi: «Este
menino é meu filho. Não tem d’esta casa uma tabua nem um farrapo. Gosem
tranquillos os seus bens de fortuna, que esta creança, quando fôr
homem, nem sequer ha de saber que sua mãe foi casada com um chamado
Innocencio.»

--E tu ias dizer isso?--atalhou exultantemente a viuva.

--Com toda a certeza, se o escandalo fôr necessario.

--Não ha de ser... Elles dão-me a creancinha.

       *       *       *       *       *

O procurador de D. Thomazia apresentou ao juiz o requerimento da sua
constituinte, pedindo a entrega do filho. Deferiu o juiz. Gervasio
José de Barros saiu com embargos ao despacho. Allegava o porte
immoral da viuva que não podia ser boa educadora do filho. Desfiavam
os artigos a historia das adulteras invasões do amante por escada de
corda, consoante as referira o commendador Batalha. As testemunhas de
vista eram já sobejas para justificar o crime, e pelo conseguinte a
devassidão da viuva, concubinaria de Nicoláo d’Almeida. Accrescentava o
libello que Innocencio José de Barros morrêra de paixão e vergonha.

Foram acceitos os embargos.

O procurador aggravou: não teve provimento.

A conjuração contra Thomazia subia das praças aos tribunaes. Os juizes
da Relação, no seu accordão, ajustavam á aggravante o epitheto de
«infame».

Nicoláo d’Almeida, informado do despacho da causa em segunda instancia,
auctorisou o procurador a declarar em nome da sua constituinte que o
filho de Thomazia não era filho de Innocencio.

O agente de causas foi retido pelo pudor de sua propria pessoa.
Respondeu que regeitava a procuração, e difficilmente encontraria
advogado que assignasse a original e de nenhum modo desculpavel
declaração.

Os amigos do fidalgo admoestaram-n’o a que não expozesse o nome de
D. Thomazia, se a presava tanto como era de presumir; que semelhante
requerimento sobrepujava o cumulo do despejo; que, embora o mundo a
considerasse criminosa, não fosse ella dobrar a fealdade da sua culpa,
revelando segredos que a livelariam hombro por hombro das mulheres
derrancadas até onde já não resta sentimento de vergonha.

Caiu em si Nicoláo, e voltou o espirito para a urdidura de traça
heroica e summaria. Cogitava em raptar a creança.

Decorreram quinze dias de plano, em que entrava o marceneiro,
auctorisado a segurar á ama do menino uma avultada independencia.

Outros quinze dias espiou João Ferreira os passos da ama. Não a viu. As
janellas de Gervasio nunca mais se abriram, e as portas meio cerradas
escassamente deixavam passar as visitas frequentes, os bons amigos do
negociante que lhe alvidravam alienar fraudulentamente os seus haveres
e mudar de paiz.

Os mais cordatos asseguravam-lhe que o direito de Thomazia á posse do
filho fôra denegado iniquamente, visto que nenhum processo a espoliára
dos direitos maternos: precaviam-n’o, pois, contra as novas tentativas
d’ella, assim que o odio geral se desvanecesse e a lei funccionasse
mais desassombrada.

Temeu o velho e abraçou o alvitre.

Deu os dotes a seus irmãos, segurados nos bens rusticos e urbanos.
Liquidou as especies commerciaes, embolçou o maximo dos seus haveres
em dinheiro, lavrou titulos capciosos para legalisar as vendas, e saiu
furtivamente para Inglaterra com a esposa, e o seu Pedro nos braços da
ama.

Raros amigos lhe souberam o destino.

Chegou a nova a Caminha, levada pelo marceneiro. Nicoláo chorou
amargamente. Aquelle extremoso amor de pae entranhára-lh’o assim a
Providencia para castigo. São inescrutaveis e invisiveis os caminhos
por onde baixam do céo as flechas que trespassam as almas. Até succede
exasperarem-se em ardor de inferno sentimentos sacratissimos! Vejam
onde as chammas começaram a queimar: no coração de pae! tão sublime
affecto convertido em lança penetrante!

Thomazia soffreu menos. Levantou clamores de apiedar feras, caiu sem
accôrdo nos braços de Nicoláo; mas soffreu menos. Volvidos mezes,
quando ella estiver esquecida do filho, Nicoláo d’Almeida, que apenas
vira a creança no baptisterio, enxugará as lagrimas cada vez que vir um
menino nos braços de seu pae.

Agora, leitores, deixem correr os annos. A vida vae depressa. E, nos
romances, quando ella entra no trilho commum, a rapidez salva o leitor
do fastio.

Em 1847 Nicoláo d’Almeida era já pae de um menino chamado Lopo. Este
filho nasceu legitimo... A sã moral toma aqui ar.

Nasceu legitimo. Um sacerdote, com pouquissimo trabalho, duas frases
latinas e duas portuguezas, um meneio de estola, uma benção, e de
fóra os termos do ritual, duas graçolas espirituosas de sua lavra,
santificou pae, mãe e filho.

Thomazia não se debulhou em lagrimas de reconhecimento. Bastava-lhe
saber que era amada antes de ser esposa. O fidalgo tambem não
engrandeceu o quilate do seu feito. O que elle havia dado mais valioso
áquella mulher, dera-lh’o antes: a alma. O que o esposo fez de mais,
foi chamar para si os tios de Thomazia, os irmãos e irmãs do bravo
capitão Joaquim Alves, que eram pobres.

       *       *       *       *       *

Um dia, em 1849, Nicoláo d’Almeida disse a Thomazia:

--O nosso filho Pedro está em Londres.

--Ah! soubeste-o?

--Disse-mo no Porto um homem que viu Gervasio de Barros em Londres.

--E que intentas fazer, meu filho?

--Que hei de eu fazer? esperar. Não questionemos a posse da creança em
sacrificio ao teu nome. Quando elle poder entender-me, quando o sangue
lhe agitar o coração na minha presença, então lhe direi: «sou teu pae!»

Passados instantes, tomou nos braços o pequenito Lopo, mirou-o muito de
chapa, e disse, coberto de lagrimas:

--Pede a Deus que me dê o teu irmãosinho.

Thomazia cobriu o rosto com as mãos, inclinou a cabeça para o seio e
soluçou, murmurando:

--Não torno a vel-o...

--Has de ver! replicou Nicoláo com vehemencia.

Em 1850, disse o fidalgo de Caminha a sua mulher:

--Faz hoje quatro annos que o teu nome no Porto era um como ferro que
fazia golfar a posthêma da maledicencia d’aquelles peitos. Desejo que
tu conheças de perto as cavernas onde não poude chegar a lanceta do teu
nome. Ha lá dentro pus que não saiu, quando t’o cuspiram ás costas.
Prepara-te. Vamos passar dois mezes ao Porto.

--Por quem és, meu filho, não vamos...--accudiu Thomazia.

--Vamos, menina. Pois não queres conhecer as delicias da rehabilitação?
Sabes lá tu que prazer ensoberbece a gente, quando nos vemos de perto
com os detraidores de outro tempo, e então reconhecemos quanto eramos
grandes, á vista dos abjectos inimigos que tivemos?... Ir ao Porto, é
coisa que eu te peço de joelhos, se fôr necessario--concluiu Nicoláo
acariciando-a.

--Vamos, filho. Se me fizeram chorar, tu me consolarás.

--Quem te ha de fazer chorar? Vaes topar toda a gente á porfia de te
fazer rir... E has de rir.

       *       *       *       *       *

Era um palacio com quatro salões corridos, e doze janellas a jorrarem
luz e estrondosas harmonias. As carruagens, entralhando-se á porta do
palacio, despejavam commendadores relampadejantes de venéras com os
braços arqueados, onde poisavam leveiras como arveolas umas mulheres
que volitavam com suas azas de alvissimas gazes. As baronezas nutridas
pisavam ponderosamente os tapetes do vasto peristilo do palacio,
pedindo aos maridos que lhes desfizessem os refegos da saia, mas com
disfarce. Um criado com borlas e galões de ouro tirava pela sineta,
assim que ouvia o fremir das sedas no pateo. A meio da escada, descia
então o dono da casa, um mancebo de 26 annos, pallido, de olhos negros,
e surriso torvo. Inclinava-se deante das houris que iam povoar o seu
paraiso, e, recurvando os braços, as conduzia até onde estava uma
mulher loura, grave e linda. Então voltando-se ás senhoras, dizia com
palaciano entono:

--Apresento a vossas excellencias Thomazia de Almeida, minha mulher.

       *       *       *       *       *

E a profusão da ceia fez suppôr que Lucullo e Cresso e Apicio morreram
de fome.

Um conviva, quasi afogado pela onda do champagne, e opilado de aves
frias que se lhe encruavam no estomago, avençou-se com um criado para
lhe ensinar a parte da casa, onde elle podesse obedecer aos impetos
de um vomitorio involuntario: era o commendador Batalha. Despejada
a ucharia mal esmoida que lhe tomava as cavidades intestinas, sem
resalva de uma em que tivera a consciencia, foi dizer a D. Thomazia
que Gervasio José de Barros, como judeu que era, alienára indignamente
quanto tinha, posto o intento em roubal-a.

--Mas esteja vossa excellencia certa--acrescentava elle--de que seu
filho vem a herdar o melhor de oitenta contos. Se fôr preciso, eu direi
a vossa excellencia com quem foram feitos os contractos fraudulentos.

D. Thomazia não respondeu. Entreviu nos grupos o marido que a procurava
com os olhos, e rebatia, cerrando os labios, o impulso do riso.

Ao outro dia, a imprensa periodica, no esmero com que cinzelou o estilo
das noticias, bem deixava entender que escrevia para a eternidade.

Da dona da casa, diziam que associava á fidalguia das maneiras uma
tamanha gentileza e fidalgo porte que o primor das joias riquissimas
era de seus enfeites o que menos resplandecia.

Que a flôr da sociedade portuense convergira, á competencia de galas,
aos salões de suas excellencias; sendo tantas as «notabilidades» que
não sabia o redactor estremar primazias de bellezas e ainda menos de
_toilettes_.

Que a elegante esposa do excellentissimo Almeida surpreenderia com as
suas peregrinas graças a quem a não tivesse já admirado entre as mais
preclaras formosuras do Porto, onde sua excellencia tinha nascido.

Que ás cinco da manhã parecia ter começado o baile, sendo áquella hora
tal o delirio e enthusiasmo, que os pares invadiam as quatro salas,
arrebatados na febre do _cotillon_.

Que a excellentissima Thomazia d’Almeida apenas dançára duas
quadrilhas, concedendo a solicitada honra de parceira aos senhores
barão da Sola e visconde do Tijolo, que tiveram a fortuna de ouvir sua
excellencia descrever as pittorescas orlas dos rios Lima e Minho, onde
a virtuosa e abastada senhora possue riquissimas quintas.

«Suas excellencias--concluia o poeta das locaes--tencionam ainda abrir
segunda vez as suas esplendidas salas na estação invernosa. Parabens
á nata da esbelta cidade da Virgem! que só assim, na esperança de
renovados jubilos, poderemos ir mitigando as saudades da rapida noite
que hontem nos proporcionou a liberalidade e finissimo gosto d’esta
fidalga familia,» _etc._, _etc._

Nicoláo de Almeida, lido o terceiro periodico, entre frouxos de riso,
quedou-se triste e disse gravemente:

--Principia agora o nojo. Viste a sociedade, Thomazia? Estás contente
com a rehabilitaçao?

Thomazia surriu-se, beijou as mãos do esposo, e respondeu:

--De que me serve a mim isto? Tu é que me fizeste o que sou...

--E receias que estas mulheres façam de ti o que ellas são?

--Não receio... tu me defenderás, meu amor.

--Entendes pois que esta gente não póde reabilitar ninguem?... Vamos
então embora. Levemos o nosso filho para as arvores do Minho, que
este ar tem veneno que faz mal ás creanças. Está aqui o bafejo acre da
podridão interior da illustre canalha, que ha quatro annos te levaria
a pontapés das portas dos juizes, se tu viesses pedir teu filho, e o
filho fosse de teu marido, e não tivesses pão que lhe dar senão o dos
Barros das Cangostas.




                            CAPITULO ULTIMO

                               Argumento

                         Dezesete annos depois


A velhice de Gervasio José de Barros enrijou-se nos frios do norte.
Sempre laborioso e commerciante, o pae de Innocencio aparou as
pontoadas dos desgostos no forte peito encouraçado pelo amor com que
estremecia o neto.

Pedro, educado para herdeiro de um grande patrimonio, foi aos oito
annos começar a carreira dos estudos no _King’s college and School_. O
velho, ao separar-se lagrimoso d’elle, disse aos professores:

--Meu neto é muito rico: não m’o mortifiquem. Ensinem-lhe o que é
necessario saber um mancebo que tem muito de seu.

Á volta de poucos dias, sobreveio ao ancião maior agonia: morreu-lhe
a esposa; matou-a, sobre a saudade do filho e a deshonra da afilhada,
a nostalgia, o incessante lembrar-se do seu Porto, da sua rua das
Cangostas.

Têmpera de ferro era a do viuvo! Sósinho em Londres, forçado a silencio
por não ter quem o entendesse, ia para o collegio espraiar tristezas
com o neto, e atirava-se ás canceiras mercantis para arrancar-se ás
prezas da saudade.

Revigorou; mas esteve quasi a pique de ir a terra quando os amigos
portuenses lhe participaram que Thomazia, esposa de Nicoláo d’Almeida,
estava no Porto, dando bailes, onde compareciam as familias mais
graúdas do commercio e da aristocracia, sem excepção do commendador
Batalha.

--Oh! que patifes!--exclamou Gervasio.--Oh! que corja é aquillo!

E abafou o monologo, á mingua de auditorio.

Restaurou-se, porém. A raiva umas vezes faz versos, como disse o poeta
romano; outras faz saude, como Gervasio José experimentou.

Foi prateando o tempo a veneranda fronte do velho.

Em 1865 prefazia elle setenta e trez annos, e Pedro de Barros dezenove.

Completou o moço a sua educação de rico. Sobejava-lhe verniz litterario
para poder em qualquer parte do mundo fingir que não ignorava os
rudimentos da sabedoria humana. Jogava armas conspicuamente. Ganhára
premios no florete e pistola. Nadava rapido e airoso como um tritão.
Desfazia e refazia as articulações em gimnastica. Tocava harpa e piano,
lira e rebeca. Carambolava com prodigiosas quantidades; estremava-se
nos repiques e repercursões. Em gineta era um perfeito cavalleiro e
coudel. Sabia de fundamento a anatomia dos cavallos, e nada sabia da
sua.

D’esta arte sahiu do collegio para a companhia do avô.

Pediu um cavallo. O velho deu-lhe dois e carro, com lacaios e libré
a capricho. Principiava a fraqueza d’aquelle provecto cérebro de
Gervasio! Elle, que esbanjava assim os rolos das libras, é que a morte
lhe andava perto.

Um dia, chamou Pedro de Barros ao seu quarto, e fallou-lhe d’este
feitio:

--Meu filho, filho do meu sempre chorado Innocencio, é chegada a
occasião de te dizer o que não sabes. Tua avó, que Deus tem, e a ama,
que te criou, disseram-te que teu pae e tua mãe tinham morrido. Teu
pae... certo é que morreu; tua mãe, não.

--Eu tenho mãe!?--exclamou Pedro, crescendo para o avô com transportado
impeto.

--Tens e não tens, Pedro. Senta-te ahi, e escuta. Morreu tua mãe para
nós, porque foi a vergonha da minha cara, e a deshonra de teu pae. O
meu caro filho, como sabes, acabou no _Havre_; e acabou estarrecido
de paixão, segundo lá mesmo me disseram no hotel onde elle expirou.
Quando a febre o fazia delirar, gritava contra tua mãe, dizendo que
morria sem a matar. Basta que eu te conte que, pedindo-lhe o confessor
que perdoasse á mulher, elle saltou furioso da cama e não quiz
confessar-se. Foi ella que matou o meu filho, foi ella, Deus o sabe!

Queres agora ver, Pedro, que alma tinha a tal féra? Olha tu. Na noite
em que esperavamos teu pae, fugiu ella para a companhia de um homem.
Quando cheguei a casa com a noticia de elle ter morrido, achei tua
santa avó, e tuas tias e tios que já lá estão em cima, a gritar como
doidos cuidando que ella se tinha ido botar ao Douro.

Saí de Portugal, quando soube que essa desalmada queria tirar-te da
minha companhia, a ver se á tua sombra me comia o suor de meus avós.
Deixei os meus negocios arranjados de modo que não ficasse coisa a que
ella deitasse as unhas. Pouco e pouco vim passando para cá a minha
fortuna e hoje estou senhor de tudo que herdei e ganhei.

--E ella onde está?--atalhou Pedro--E elle!?... Onde está o infame que
motivou a morte de meu pae?

--Casou com ella, vivem lá n’uma provincia chamada Minho. Deixal-os
estar, que os leve o diabo. Não queremos saber onde estão.

--Oh meu avô!--interrompeu o filho de Thomazia--pois meu pae não hade
ser vingado? O opprobrio d’elle não recae tambem sobre mim?

--Deixemo-nos de asneiras, rapaz. Não me comeces a tresvaliar lá com as
tuas valentias. Não quero saber d’essa gente. Tua mãe, já te disse que
morreu... Ora attende cá. Estou muito velhinho. As pernas já me estão
a pedir sepultura. É tempo de te pôr ao corrente dos negocios. Assim
que eu fechar olhos, Pedro, manda abrir o meu testamento, onde eu deixo
declarado o que se hade fazer por minha alma. Eu lá digo que não tenho
nada que deixar, porque receio que tua mãe ainda queira levantar-se com
metade da tua herança; mas tu, meu neto, ficas desde já sabendo que
n’aquelle cofre de ferro tenho toda a tua fortuna. Ali estão oitenta
contos de réis em dinheiro de contado. Guarda-os, toma posse do que
era de teu pae, vive do rendimento d’elles que te hade chegar; não
te ponhas a extravaganciar, porque podes vir a ser pobre, e muitos o
chegaram a ser com mais do que tu. Se alguma vez fôres ao Porto, pede
lá que te contem a historia de Pedro Sem, o mais rico negociante que
meu pae conheceu, e acabou pedindo. Ora pois, Pedro... Eu bem queria
deixar-te casado; mas... leve o demo tal idéa... A desgraça de teu pae
fui eu que a fiz com o endiabrado casamento d’uma rapariga que tua avó
foi buscar á miseria, e ali creámos como filha!... Deus lhe pedirá
contas...

--Que infame mulher!--murmurou o filho de D. Thomazia.

--Deixa-a lá... que o fim não hade ser bom...

--E eu sou filho de tal monstro!--volveu Pedro batendo uma rija punhada
no peito.--Eu!... filho d’essa vilissima creatura!

--Lembra-te--acudiu o ancião--que és sómente filho do meu Innocencio.
Esquece-a para sempre... Lá está em cima quem n’a hade julgar. (Pedro
soltou um cacarejo de riso nasal e arrepelou os cabellos).

--Que engrimanços estás ahi a fazer?--perguntou Gervasio.--És um
crianço! é o que tu és!... Tens vinte annos ainda por fazer. Se
Deus me der dois annos de vida, que não dá, ainda terei mão de ti;
senão, vou para o outro mundo a temer que faças destemperos por cá.
Pedro!--bradou elle energicamente--Pedro, tu não te mettas com essa
mulher! Já estou arrependido de te contar o caso...

--Não se arrependa, meu avô!... Eu tenho no coração a dignidade e os
brios de meu pae.

--É o que se quer; e não me afflijas, que estou doente, e qualquer
coisa me faz mal. Não te vivo muito tempo, filho... Seis mezes, quando
muito...

       *       *       *       *       *

Viveu menos do que esperava o pobre velho. Contava ainda com outra
primavera, e ao visinhar-se a aurora da eternidade cuidou que se lhe
iam os alentos á mingua de um caldo de gallinha. Suavissima foi a morte
que lhe chegava o seio como recôsto de descanço. Uma leve inclinação de
pescoço ao hombro de Pedro, e um suspiro de creança adormecida foi o
trespasse do leveiro espirito a quem Deus certamente não carregará com
o peso da fraudulenta pobreza.

       *       *       *       *       *

Pedro de Barros suffragou-lhe a alma, recadou as aureas entranhas do
cofre de ferro, e permaneceu em Londres por espaço de trez mezes,
colhendo de Portugal e de portuguezes certas informações.

       *       *       *       *       *

Chegou, no entanto, ás gazetas de Lisboa e Porto a noticia de ter
morrido em Londres Gervasio José de Barros. Um noticiador accrescentava
que a «fortuna» do defunto devia ser muito grande, bem que se não
désse registro nem inventario d’ella. Recuando delicadamente a coisas
acontecidas vinte annos antes, reflexionava que um neto do defunto é
quem poderia sobre o certo dizer quantas centenas de contos seu avô
deixára.

Nicoláo d’Almeida leu a noticia a sua mulher.

Thomazia pôde ainda contrabalançar a exultante esperança de ver o filho
com a tristeza de ser morto seu padrinho.

Os vinte annos intermettidos haviam-lhe dado na consciencia toques de
dôr que ella escondia do marido.

--E agora?--perguntou ella.

--E agora?--pergunto eu!--respondeu Nicoláo.

--Que fazes? Vaes procural-o?

--Se o vou procurar! que lembrança!...

--Sim... eu cuidei que tu...

--Cuidaste bem, filha; porque eu vou effectivamente procural-o... vou
vêl-o...

--E levas-me?

--Não, menina: vou ver se t’o conduzo aqui.

--O meu filho?

--Sim... por que não?! Pois tu não crês que o sangue opere a maravilha?
Tenho-te dito que o sangue tem uma voz imperiosa, e impelle o filho
para o pae irresistivelmente.

--E vaes, meu Nicoláo?

--Vou á exposição a Pariz e depois irei a Londres.

--Como hasde tu encontral-o?

--Hade ser o sangue que m’o hade mostrar.

--Ora!... eu não creio n’isso... Se o sangue valesse, não teria elle
tido uma palavra para sua mãe?

--Saberia elle que tu existias?

--É verdade... não saberia...--obtemperou a esposa.

--Está portanto deliberado. Vou a Londres. Se o vir--que heide
ver--aperto-o ao coração, e digo-lhe: «Atira á lama o dinheiro de
Gervasio de Barros; manda-o apanhar pela parentella pobre que elle hade
ter em Portugal. Vem que és filho de um homem rico; os teus appellidos
são Alves Pinto por tua mãe, e Almeida por teu pae, que sou eu.
Abraça-me, filho, que te bate no seio o coração de quem ha vinte annos
chora por ti!»

Thomazia tambem chorava de alegria e enthusiasmo maternal.

Poucos dias passados, o fidalgo de Caminha saía para Pariz.

       *       *       *       *       *

Em uma carta escripta desde Londres dizia Nicoláo d’Almeida a sua
mulher: «Pedro saiu d’aqui ha quinze dias. Não me sabem dizer para
onde. Presume-se, porém, e é natural que esteja em Pariz. Volto ámanhã
para lá...»

No dia em que D. Thomazia recebeu esta carta, apeou de uma carruagem
em Caminha um mancebo de galhardo aspecto e ademans afidalgados.
Procurou a residencia de uma familia illustre da villa. Apresentou
carta de recommendação, e perguntou onde morava Nicoláo d’Almeida.

Disseram-lhe que estava em Pariz, para onde partira um mez antes, e que
a familia se retirára a uma quinta das margens do Minho.

Perguntou Pedro de Barros se seria possivel saber-se a residencia de
Nicoláo d’Almeida em Pariz. O cavalheiro interrogado, querendo servir o
forasteiro que um amigo lhe recommendava calorosamente, encarregou-se
de mandar saber á quinta a paragem de Nicoláo. Voltou o solicito
informador com esclarecimentos dados por D. Thomazia: que seu marido se
hospedára em Pariz no _Hotel des Étrangers_, rua Vivienne, 3; mas que a
ultima carta recebida viera de Londres, onde Nicoláo d’Almeida apenas
se demoraria algumas horas.

Pedro de Barros resistiu aos rogos da familia, que lhe pedia a honra de
pernoitar em sua casa. Desandou para o Porto, e saiu na via ferrea do
mesmo dia para Lisboa, afim de alcançar o paquete francez.

       *       *       *       *       *

Nicoláo d’Almeida jantava no dia 5 de julho á mesa redonda do _Hotel
des Étrangers_, e viu em frente de si um moço de gentil compostura,
ainda imberbe, conversando com inglezes e francezes correctamente as
duas linguas, segundo quiz parecer ao portuguez, que não era hospede
em nenhuma. Prestou-lhe attenção, e ouviu dizer que vinha de Portugal.
Perguntou-lhe um italiano se era portuguez. Pedro de Barros respondeu
negativamente.

--Parabens!--disse o italiano, que era tenor.

--Parabens, porque?--perguntou Barros por sobre a espadua, alisando com
o guardanapo a penugem do buço.

--Porque portuguezes são canalha--explicou o tenor.--Estive no Porto um
inverno, n’aquella bruta terra onde não ha lettras nem artes. Ha vinho
e muitos bebedos.

--O senhor cantou no Porto em 1855?--perguntou Nicoláo d’Almeida em bom
francez, intervindo na palestra dos visinhos.

--Sim, cantei.

--Recordo-me:--tornou o portuguez--cantava pessimamente e foi pateado.
Quem o pateou não foram os bebedos do Porto. Estavam lá cavalheiros
que, nem ainda insultados por um biltre, aviltariam um tagante.

O tenor levantou-se e disse enfaticamente:

--Uma satisfação!

--Não lh’a dou--disse placidamente Nicoláo.--Pertenço aos cavalheiros
que não se medem com cantores, além de pessimos, villões.

--Eu sustento as frases d’este senhor--interpoz-se Pedro de Barros.

--E o senhor quem é?--perguntou o fidalgo de Caminha.

--Não sou tenor. Quem o senhor seja, não pergunto eu. Conheço o senhor
Nicoláo d’Almeida. Um homem da sua estofa não póde chamar villão a
outro.

--Quê?--atalhou Nicoláo enfiado.

--Explicações para occasião conveniente.

--Figura-se-me que o senhor é parvo dos que a prudencia manda
tolerar--replicou sereno e quasi recobrado o portuguez.--Estou
arrependido de me inquietar um momento com a sua pessoa.

Pedro de Barros correu os dedos pelos cabellos, surriu-se e murmurou:

--Verei se a coragem corresponde á infamia. Os assassinos da honra não
costumam arriscar senão palavras. No entanto, veremos.

--Algumas vezes arriscam sujar a luva com que dão a bofetada--retorquiu
Nicoláo d’Almeida.

Pedro de Barros levantou-se. Esperou que cincoenta commensaes se
calassem impressionados pela postura oratoria do sujeito, e disse
apontando sobre Nicoláo:

--Alli está, senhores, um infame sobre quem pesa a morte de um homem
honrado, que elle matou prostituindo-lhe sua mulher. Este ferrête,
que lhe atiro á testa, em occasião opportuna lh’o grudarei mais
sensivelmente.

Fez-se profundo silencio.

Nicoláo levantou-se por sua vez e disse:

--Aquelle miseravel ainda não fez publico o seu nome.

--Sabel-o-ha, quando quizer--respondeu Pedro de Barros.--O meu nome não
importa a estes cavalheiros. Se eu o disser, não me conhecem, nem podem
por elle ajuizar da autoridade da minha opinião a respeito do senhor
Nicoláo d’Almeida. Dentro de trez horas, estarei no quarto n.º 5 d’este
hotel. Se eu não estiver, senhores, o infame sou eu, e não elle.

O marido de Thomazia saiu.

Meia hora depois voltava com dois portuguezes, seus contemporaneos da
universidade, lisboetas da plana aristocratica.

Pouco em seguida, entrou no quarto n.º 5 Pedro de Barros com dois
francezes titulares, seus conhecidos das carreiras hippicas em Londres.

No quarto, antes de avisarem Nicoláo d’Almeida, continuaram assim a
conversação que traziam:

--Mas a mudança de nome--dizia um dos francezes--é uma irregularidade
original nos duellos!

--Compreende a minha situação, visconde--dizia Barros.--Eu sou filho
da mulher que matou meu pae com a villania do seu proceder. Este
homem arrebatou de casa minha mãe, no dia em que meus avós choravam a
morte do filho. Eu não posso dizer ao infame quem sou. É invencivel a
vergonha que tenho de que elle o saiba. O meu proposito é vingar meu
pae...

--E queres que elle morra na ignorancia de que és o vingador de teu
pae?

--Não. Hei de dizer-lh’o, se a morte lhe der tempo de m’o ouvir.

--Mas eu não achava feio que te declarasses--sobreveio o outro
amigo.--Era até bonito e novo! Um filho a vingar seu pae...

--Se eu o declarar, elle não se baterá comigo, porque sou filho da
mulher com quem elle é casado. Engulirá as affrontas, e dirá com
dissimulada covardia que não desfecha uma pistola ao peito do filho de
sua mulher. E depois? que é da minha vingança?

Os amigos assentiram com repugnancia; mas condescenderam em que Pedro
de Barros se chamasse Richard Grattan.

Abriu-se a sessão dos parlamentarios. Congregaram-se os quatro
padrinhos. Os dois portuguezes, sabido o nome do insultador, que os
francezes abonaram como pessoa de primeira distincção e riqueza,
segundo entendiam de o verem no concurso de illustres inglezes, caíram
logo na particularidade da sua missão. Os quatro vieram ao consenso
de que o combate fosse á pistola, a vinte e seis passos. Precisaram
a localidade em _Abbaye de Longchamps_, no _Bois de Boulogne_, na
madrugada do dia seguinte.

Perguntava Pedro de Barros aos seus padrinhos:

--Quem escolheu as armas?

--Elles.

--Quem marcou as distancias?

--Elles.

--Então o homem é tolo!--observou Nicoláo.

--Se não fôr mestre no tiro...---disse o visconde.

A reflexão era justa. Um ignorante da arma cederia todas as vantagens
ao perito, collocando-se a tão grande distancia.

       *       *       *       *       *

Nicoláo d’Almeida passou tranquillamente o restante da noite com os
seus amigos. Ás trez da manhã escreveu uma longa carta a seu filho
Lopo, incluindo outra para a mãe.

--Se eu morrer, o que não espero, remettam esta carta a meu
filho--recommendou elle aos padrinhos.--Tomem nota no que vou
dizer-lhes: os minhotos teem crendices e velharias que lhe estão no
sangue. Tenho uma capella em uma das quintas onde está o jazigo dos
meus antecessores desde 1515. Vossês, se isso fôr exequivel como creio
que é, mandem para lá o meu cadaver, mesmo furado por uma bala de sir
Richard Grattan.

Os lisboetas pasmavam da fria coragem do provinciano. Os quarenta e
trez annos de Nicoláo d’Almeida representavam trinta e quatro com
serodias verduras.

Condiziam n’elle os surrisos e desdem juvenil da morte com a frescura
e flexibilidade d’aquelles elegantes meneios e delicadas formas. Os
padrinhos é que em verdade representavam as pessoas arriscadas ás balas
de sir Richard Grattan.

Apontou a manhã.

--São horas--disse Nicoláo.--A madrugada está linda. Se nos derem
tempo, passearemos algum pouco no bosque de Bolonha, que ainda não vi.
Veja-se o que fôr possivel á ultima hora.

Partiram.

Esperaram cinco minutos.

Examinaram as quatro testemunhas as pistolas inglezas. Carregaram-nas.
Espacejaram as distancias. Accordaram na simultaneidade dos tiros.
Deram a voz de fogo. Cruzaram-se as balas. Sir Richard Grattan caiu
rodando ligeiramente sobre os calcanhares.

--Morto!--disse o visconde ao companheiro.--A bala penetrou-lhe na
cabeça.

--Que tiro!--disse o conde com artistica admiração, como se a cabeça do
moribundo ou do morto fosse um alvo, e mais nada.

Nicoláo d’Almeida fez uma breve mesura aos padrinhos do adversario e
entrou com os seus na sege.

O facultativo da comitiva de Pedro de Barros acercou-se, examinou e
disse:

--É mortal a ferida.

O prognostico era de acceitar; porque a bala batêra, bem que de
revez, na sutura sagital, compreendendo, afóra perda de substancia, o
pericraneo profundamente.

Pozeram-lhe uma prancheta de fios, ligaram-lhe a fronte, e
transportaram-n’o ainda com pulso á carruagem.

No mesmo dia, Nicoláo d’Almeida saiu de Pariz na via-ferrea para
Baionna, com direcção a Portugal, depois de pedir aos seus amigos que
fizessem o sacrificio de jantar no _Hotel des Étrangers_, e certificar
aos hospedes do dia anterior que o inglez acertava tão bem com as balas
como com as injurias.

       *       *       *       *       *

Appareceu inesperado em casa Nicoláo, quando a esposa lhe estava
escrevendo afflictivamente.

Um grito de alegria e logo uma torrente de lagrimas, tambem alegres,
entraram de suspeitas o marido.

--Que chorar é esse? que sabias tu de mim?!--perguntou Nicoláo quasi
supersticioso.

Referiu-lhe Thomazia que quinze dias antes lhe tinha mandado um
sujeito de Caminha perguntar em que hotel de Pariz residia o marido;
e que só, poucas horas antes, lhe tinha ido mostrar uma carta de
Lisboa apresentada por um rapaz de vinte annos pouco mais ou menos, e
que n’esta carta lêra ella as seguintes palavras: «Se o cavalheiro,
portador d’esta carta, precisar de auxilio estranho para um acto de
brioso desaffrontamento, queira ouvil-o e prestar-lh’o.»

--Que queria isto dizer, meu filho?--exclamava Thomazia.--O nosso
Lopo disse-me que o homem vinha desafiar-te. O que eu tenho soffrido,
Nicoláo! Estive ha momentos para ir com o Lopo em procura de ti...
Graças, meu Deus! Não te succedeu mal nenhum, não?

--Bem vês que estou sadío e escorreito--disse o esposo surrindo com
triste semblante mal affectado.

--Mas tu vens melancolico, e de mais a mais quando não tencionavas
vir... E o nosso filho? noticias nenhumas?

--Pois ahi tens a minha tristesa, Thomazia... Não vi o filho, e quasi
perdi as esperanças de o ver.

Era-lhe força relatar á mulher o desastre acontecido com o infeliz que
o insultára, e provavelmente devia ser o inglez vindo a Portugal. Não
podia elle rastrear os motivos do insulto nem o interesse com que a
desatinada coragem do petulante inglez se pagava. Partiu logo a Caminha
para averiguar do sujeito a quem o moço viera recommendado os signaes
e pormenores de tal apresentação. Disseram-lhe que o rapaz exprimia
custosamente a lingua portuguesa, e não proferira palavra relativa a
Nicoláo d’Almeida, tirante as necessarias para lhe saber a residencia.
Emburilhou-se-lhe ainda mais a trama das conjecturas, até que
principiou a convencer-se de que o moço era algum paladino desorientado
por vapores da idade média, ou leituras de romances de cavallarias, o
qual, ouvindo contar a Gervasio de Barros a tragedia da sua familia,
deliberára em honra da sua dama endireitar um _tuerto_, que se lhe
figurava crime de vingança digna d’elle e da posteridade.

N’estas fluctuações, recebeu uma carta de um dos seus padrinhos de
duello, escripta quarenta e oito horas depois que se tinham separado na
estação.

Resava assim:

 «Dilucidou-se o misterio. Ahi vae cousa que te deve assombrar, e me
 traz a mim espantado a pensar que ainda se fazem maravilhosos romances
 n’esta vida pratica e positiva, onde tudo parece correr com enjoativa
 regularidade.

 «Primeiramente, saberás que sir Richard Grattan ainda não acabou; mas
 não tardará.

 «Segundamente, saberás que os padrinhos d’elle acabam de contar aos
 seus amigos, e estes amigos a outros, e os outros a todo o mundo, uma
 coisa que não deixa de ser bonita; mas, apesar d’isso, te recommendo
 que não leias esta carta deante de tua senhora...»

N’este ponto Nicoláo exclamou, surrindo:

--Oh! que é isto?! Desculpa, Thomazia, que eu devo obedecer ao meu
amigo.

--Pois que é? lê, filho.

--Não... Deixa-me...

Ao proferir estas palavras, com os olhos cravados na carta, e a cabeça
a tremer como o papel nas mãos convulsas, arrancou um grito estridente,
e bradou:

--Matei meu filho!

As palavras que elle tinha lido eram estas:

 _O rapaz com quem te bateste não é inglez, nem se chama Richard. É
 portuguez, é o filho do primeiro marido de tua senhora e chama-se
 Pedro de Barros._..

--Matei meu filho!--bradou elle segunda vez.

Thomazia não lhe ouvira o segundo brado. Tinha caído nos braços de
Lopo, trespassada de frio mortal.

--Matei meu filho!--exclamou ainda Nicoláo d’Almeida.

Avermelhára-se-lhe subitaneamente o rosto. Rutilavam-se-lhe as
pupilas errantes em volta de si. Ergueram-se-lhe arriçadas as
sobrancelhas, e avincou-se-lhe a fronte em profundos sulcos. Os
beiços pareciam alligados entre si, como se os rebordos labiaes se
unissem. Contrairam-se as maxillas uma contra outra, premindo-se de
modo que davam um som asperrimo de rengir de dentes. As veias frontaes
e jugulares latejavam infladas. Depois, os spasmos dos musculos da
face completavam o horror da desfiguração. Ao contrair das pupillas
correspondia o arfar das cartilagens nasaes.

Passava a vista spasmodica pelo filho que lhe estendia os braços,
chamando-o clamorosamente, e não o via. Já a esposa, caída no
pavimento, levantava um alto pranto, e elle não ouvia. Os servos
rodeavam os seus infelizes amos, chorando e clamando, e Nicoláo
ajuntava áquella dissonancia dos gritos o stridor rispido dos dentes.

Morrêra-lhe a razão. Era a demencia que os especialistas denominam a
das _paixões spasmodicas_.

       *       *       *       *       *

E, depois, em quinze dias, aquella mulher que ainda era formosa,
envelheceu, á beira do marido.

Alta noite, quando sonhos horrentes lhe sacudiam o corpo adormecido,
mas intangivel á mão bemfeitora da morte, erguia-se e dizia á esposa:

--Thomazia, levanta-te. São horas de sair. Vou para Londres. Vou
procurar meu filho. Anda. Chama o escudeiro que me arranje as malas. Tu
choras? pois que mãe és tu? queres ou não queres teu filho?

A pobre não sabia consolar. Começava a encher a mala de camisas, e
esperava n’esta canceira que viesse a madrugada e o torpor do somno
aquietar as impaciencias, e ás vezes os frenesis violentos do alienado.

Os medicos rodeavam o enfermo; porém, Thomazia não dizia a ninguem
a origem da demencia do marido. Parecia-lhe atrocissima offensa ao
desgraçado revelar que elle matára o filho.

Que supplicio o da viuva de Innocencio José de Barros! Que castigo
tão desproporcionado! Se todas as alegrias da sua existencia de vinte
annos valiam uma só das noutes que ella passava no quarto de Nicoláo
d’Almeida!

       *       *       *       *       *

Ao decimo dia da demencia, chegou outra carta do amigo que lhe enviára
a morte na primeira.

Dizia d’este teor:

 «Milagre! Pedro de Barros está salvo. Já se lhe levantaram os
 appósitos da ferida. A substancia perdida foi reparada. Aquillo é
 cabeça á prova de bala! Com um adversario assim não ha partido! Dizem
 os medicos que um elefante não resistiria», etc.

D. Thomazia arrancou a carta das mãos a Lopo, e correu ao quarto do
marido, exclamando:

--Nicoláo, Nicoláo, não mataste o teu filho! não mataste! aqui está
a carta do teu amigo... Olha, lê, lê, meu querido amor, lê, que teu
filho está vivo! Ó mãe de Jesus Christo! valei a meu marido! Não lês,
Nicoláo? Leio eu... olha... ouve...

Nicoláo d’Almeida ouviu com apparencia de profunda attenção, voltou
as costas, entrou ao quarto de vestir, começou a reunir casacos e
pantalonas, e saiu fóra com a troixa do fato, dizendo:

--O escudeiro que me dobre esta roupa. O wagon sae ás quatro horas para
o Havre. Vou a Londres procurar meu filho.

Thomazia ajoelhava, caía de face contra o pavimento, e arrancava
gemidos convulsos.

       *       *       *       *       *

Dois mezes depois, em setembro de 1867, Lopo d’Almeida passeava no
vasto salão, que servia de casa de espera, na quinta solarenga onde
vivia-morto seu pae, e agonisante sem poder morrer sua mãe.

O mancebo, com os braços pendentes, rosto abatido, e olhos carregados
de lagrimas, dizia entre si:

--Que dezenove annos os meus! Que mocidade! Que portas se me abrem
para tão negra vida!... Nunca mais poderei ter hora de contentamento!
Heide ver meu pae envelhecer n’aquelle tormento, e a minha pobre mãe a
pedir a Deus que lhe dê vida para ainda ver a luz da razão nos olhos
d’elle!...

Interrompeu-lhe o recolhimento doloroso o surgir subito de um homem
desconhecido no patamar da escada que conduzia á sala.

Fitou-o e perguntou:

--Quem procura?

--Nicoláo d’Almeida.

--Não recebe senão os medicos. Sou filho d’elle. Represento meu pae
n’esta casa. Quem é o senhor?

--Um homem que procura os infames quando elles se escondem, ou fingem
doidos para se furtarem á responsabilidade das suas protervias.

Lopo d’Almeida mediu-o da cabeça aos pés, e respondeu:

--Não encontrou um lacaio no páteo quando entrou aqui?

--Não encontrei ninguem. Que quer dizer a pergunta?

--Que volte, e diga ao lacaio o seu nome. Depois, espere-me ahi fóra
que eu vou onde meu pae não póde ir.

--O meu nome posso atiral-o á cara de quem quer que seja, sem a
intervenção do lacaio. Sou Pedro de Barros.

Lopo contemplou-o por instantes silencioso, deu dois passos para elle,
e disse com boa sombra:

--Seja bem vindo o senhor Pedro de Barros. Está em casa de...

Conteve-se, e tornou:

--Está em casa de sua mãe.

--Não tenho mãe. Retire a injuria.

--Retirei. Agora, senhor Pedro de Barros...--E apontou-lhe para a porta.

--O senhor me disse, ha momentos, que não duvidava ir onde seu pae não
fosse.

--Antes de o conhecer. Iria bater-me com um homem chamado Richard
Grattan; com Pedro de Barros, não. Eu respeito os homicidas que
escondem o seu verdadeiro nome, julgando que os disfarça o medo do
opprobrio. Ao homem, porém, que entra em casa de sua mãe, e diz seu
nome, e revela sem cerimonia o programma de assassino, desprezo-o, e só
receio que elle me tira pelas costas.

       *       *       *       *       *

D. Thomazia tinha ouvido a voz alterada de Lopo, e chegára-se ao
reposteiro interposto ás duas salas, quando o filho proferiu as
palavras: _Ao homem, porém, que entra em casa de sua mãe..._

Escutou as restantes, julgando-se turvada de entendimento e ouvidos.
Levantou o reposteiro, e saiu á sala, com a vista desvairada e os
passos oscillantes.

Lopo foi recebel-a pela mão, apertou-a ao seio e disse-lhe:

--Vá para dentro, minha mãe, peço-lh’o com as mãos erguidas!

--Quem é este?!--perguntou ella--a quem dizias tu...? Não fallaste aqui
agora em _mãe_... e não sei quê...?

Relançou Lopo os olhos a Pedro. Figurou-se-lhe ver no rosto d’elle
uma feição extraordinaria de agitação interior. Cedeu a um impulso de
generoso enthusiasmo, e disse á mãe:

--Aquelle é Pedro... é seu filho!

Thomazia, antes de ver o filho, viu o esposo. Não proferiu um
monosillabo. Retrocedeu com desatinada velocidade. Sumiu-se nas salas
interiores. Correu ao quarto de Nicoláo. Travou-lhe do braço. Tirou-lhe
por elle a impetos freneticos. O louco deixava-se arrastar. Entrou com
elle ao salão, a tempo que Lopo, travando do braço de Pedro que fugia,
lhe bradava:

--Espere, que vae ter occasião de cravar a bala no infame que se finge
doido!

N’este conflicto, acercou-se D. Thomazia com o marido. Aproximou-se de
Pedro, que recuava, e disse-lhe:

--Olha, Nicoláo, olha... Aqui está teu filho!... Vêl-o vivo? Repara,
meu amor. Não é este o que teve o desafio em Pariz comtigo? Não é?...

Nicoláo encarava no rosto de Pedro com penetrativa fixidez; quando,
porém, Thomazia lhe espertava a gritos as reminiscencias, elle
declinava para sobre ella o olhar torvo, e estremecia como assustado
das suas exclamações.

No entretanto, a postura de Pedro de Barros--a fórma exterior, que a
interna é indefinivel--significava a ancia de evadir-se a uma situação
que lhe demudára o rancor em tortura de uma especie nunca escripta nem
imaginada. Abalo de coração parece que não sentia nenhum bom. Na cabeça
tumultuava-lhe um torvelinho de idéas que o desvairavam. Aquillo de
chamar-se seu pae aquelle homem soava-lhe como uma zombaria, se não
era antes sonho ou allucinação de ouvidos. Sentimento filial ou sequer
de piedade não lhe suscitava a mãe nenhum. Por maneira, que todos os
seus movimentos d’olhos e de espirito, segundo mostrava, era livrar-se
do espectaculo, em que talvez elle fosse capaz de ver alguma coisa
ridicula para si.

Thomazia, voltando as exclamações do marido, que saíra da sala, para o
filho, ia, n’uma explosão de ternura redobrada pela agonia de ver o
marido impassivel, lançar os braços ao pescoço de Pedro.

Haveis de crêl-o, mães, que não sabeis dos supplicios de outras;
crel-o-heis de melhor mente se já vistes repellidas as que não tiveram
hora de vida apartada dos filhos.

Pedro fez pé atraz, quando a mãe lhe dizia:

--Filho da minha alma, ajuda-me a dar vida á razão de teu pae!

O retraimento de Pedro tirou lavaredas de odio aos olhos de Lopo.

Seria sublime, se não fosse triste de contar-se que o filho segundo de
Nicoláo d’Almeida, no lanço de furtar-se o irmão aos braços da mãe,
tomou para si o corpo d’ella, apertou-a com apaixonado amor, sentiu-a
desfallecer, depôl-a sobre um canapé, abeirou-se de Pedro, e disse-lhe
acceleradamente:

--Olhe que é mentira quanto ouviu: Aquella senhora não é sua mãe.
Maldita seja ella, se alguma hora se lembrar sem vergonha das lagrimas
que chorou. Vá... Mentimos-lhe todos. Este homem não é seu pae. Quem?
elle! Aquelle santo desgraçado que endoudeceu cuidando que tinha matado
um filho!... Mentiram-lhe a elle de Pariz. Fuja, fuja... se lhe parece
que é uma enorme covardia o parricidio... Fuja, porque... o senhor
matou meus paes... e eu não quero prival-o da expiação do remorso...

Ditas estas palavras, Pedro de Barros foi repulsado rijamente para
fóra da porta. Lopo ajoelhou ao pé de sua mãe, e colou-lhe o ouvido
ao coração. Latejava. A justiça divina renovava-lhe o sangue para
que a expiação se prolongasse a termos de se provar n’aquella mulher
que as religiões, promettendo infernos além d’este mundo, foram mais
inventivas que Deus.

       *       *       *       *       *

O meu amigo Antonio Joaquim rematou assim a narrativa:

--Nicoláo d’Almeida não tem memoria nenhuma do reapparecimento do seu
adversario de Pariz. D. Thomazia todos os dias lhe conta que o filho
esteve ali na casa d’elles. É esperança que ainda não desamparou a
pobresinha restaural-o assim. Que illusão! O marido escuta, parece
reflectir accentuando com a cabeça as palavras da senhora, e passa de
ouvil-a a tão glacial indifferença, que vae para uma janella rufar nas
vidraças. Aqui tens o que presenciei na ultima visita que fiz ha oito
dias á gehenna d’estes reprobos das alegrias do mundo.

Não te sei dizer onde pára o herdeiro de Gervasio José de Barros, se te
interessa sabel-o.

Não; a mim o que mais me convinha era saber dar á tua historia um
titulo.

--Eu chamava-lhe o SANGUE.

--O sangue?! qual? o da cabeça de Pedro de Barros?

--Não: o sangue, que tem ares de titulo filosofico e assim com
presumpções de these. Porque hasde ter ouvido dizer que um filho
conhece seu pae, e o pae seu filho, por um secreto impulso do sangue.

Em confirmação d’este preconceito, que desluz muitas cabeças
illustradas, podes vir com argumentos confortativos; por exemplo:
os casos de parricidio em que os filhos assassinam os paes com
perfeitissimo conhecimento da pessoa filialmente assassinada; o caso
vulgar das mães que estrangulam as creancinhas assim que ellas, ao
sair-lhes do seio, estendem as mãosinhas para os peitos; o caso em que
os filhos, repatriados ricos ao seu paiz donde saíram com o enxoval
que custou vigilias e fomes aos paes, sentem-se inclinados a dar razão
aos barbaros que matavam os velhos como entes inuteis e incommodos.
Todos estes casos provam que o sangue é um engenhoso registro que a
Providencia implantou na economia animal, para regulamento dos nossos
deveres de familia. Demonstrado isto, corre-te obrigação de mostrar uma
coisa, já muito sabida e notoria; e vem a ser que tu e eu e os mais da
nossa especie somos os reis da creação; e que os bichos, que estremecem
seus filhos e seus paes, são bichos.

--Mas, sem embargo do titulo, qual achas tu que seja a moralidade do
romance?

--A moralidade é clara.

--A expiação de Thomazia, não é verdade?

--Homem, eu n’isto de expiações não tenho ainda formado perfeito juizo.
Conheço muitas familias que me authorisam a suppôr que a expiação é um
castigo da tolice e não do vicio.

--Homem, essa! Vão lá escrever o absurdo n’um livro que tem de melhorar
os costumes e os usos...

--E de certo melhoras. Todo o livro é um melhoramento na industria do
papel e da tipografia.

--Mas,--tornei eu farejando a moralidade do romance--não posso eu dizer
que o pae de Pedro de Barros era...?

--Era o que as nupcias demonstravam, como diz a lei romana. Era
Innocencio. O sangue de Pedro vinha a ser o dinheiro de Innocencio.
Lá está o axioma que diz: _O dinheiro é sangue_. Um filho só póde ser
filho de quem é seu pae, quando não herda oitenta contos de outro que
foi casado com sua mãe.


                                  FIM




                        J. P. OLIVEIRA MARTINS

                            OBRAS COMPLETAS


 I. Historia nacional:

 HISTORIA DA CIVILISAÇÃO IBERICA, 4.ª ed. (1897), 1 vol., br. 700 rs.
 Enc. 900.

 HISTORIA DE PORTUGAL, 6.ª ed. (1901), 2 vol., br. 1$400 rs. Enc. 1$800.

 O BRAZIL E AS COLONIAS PORTUGUEZAS, 4.ª ed. (1888), 1 vol., br. 700
 rs. Enc. 900.

 PORTUGAL CONTEMPORANEO, 3.ª ed. (1895), 2 vol., br. 2$000 rs. Enc.
 2$400.

 PORTUGAL NOS MARES, (1889), 1 vol., br. 700 rs. Enc. 900.

 CAMÕES, OS LUSIADAS E A RENASCENÇA EM PORTUGAL, (1891), 1 vol., br.
 600 rs. Enc. 800.

 NAVEGACIONES Y DESCUBRIMIENTOS DE LOS PORTUGUESES (_ed. do Ateneo de
 Madrid_, 1892), 1 vol. (não entrou no commercio.)

 A VIDA DE NUN’ALVARES, 2.ª ed. (1894), 1 vol., br. 2$000 rs. Cart.
 2$400. Enc. (folhas doiradas) 3$200.

 OS FILHOS DE D. JOÃO I, 2.ª ed., 2 vol., br. 1$400rs. Enc. 1$800 rs.

 O PRINCIPE PERFEITO, (1895), 1 vol., br. 2$000 rs. Encad., folhas
 doiradas, 3$200.


 II. Historia geral:

 ELEMENTOS DE ANTHROPOLOGIA, 4.ª ed. (1895), 1 vol., br. 700 rs. Enc.
 900.

 AS RAÇAS HUMANAS E A CIVILISAÇÃO PRIMITIVA, 2 vol., br. 1$400 rs. Enc.
 1$800 rs.

 SYSTEMA DOS MYTHOS RELIGIOSOS, 2.ª ed. (1895), 1 vol., br. 800 rs.
 Enc. 1$000.

 QUADRO DAS INSTITUIÇÕES PRIMITIVAS, 2.ª ed. (1893), 1 vol., br. 700
 rs. Enc. 900.

 O REGIME DAS RIQUEZAS, 2.ª ed. (1894), 1 vol., br. 600 rs. Enc. 800.

 HISTORIA DA REPUBLICA ROMANA, 2.ª ed., 1897, 2 vol., br. 2$000 rs.
 Enc. 2$400.

 O HELLENISMO E A CIVILISAÇÃO CHRISTÃ, 2.ª ed., 1 vol., br. 800 rs.
 Enc. 1$000 rs.

 TABOAS DE CHRONOLOGIA E GEOGRAPHIA HISTORICA, (1884), 1 vol., br.
 1$000 rs. Encadernado 1$200.


 III. Varia:

 A CIRCULAÇÃO FIDUCIARIA, 2.ª ed., 1 vol., br. 800 rs. Enc. 1$000 rs.

 A REORGANISAÇÃO DO BANCO DE PORTUGAL, _opusculo_, (1877), br. 150 rs.

 O ARTIGO «BANCO» no _Diccionario Universal Portuguez_, (1877), 1 vol.,
 br. 500 rs.

 POLITICA E ECONOMIA NACIONAL, (1885), 1 vol., br. 700 rs.

 PROJECTO DE LEI DE FOMENTO RURAL, _apresentado á camara dos deputados
 na sessão de 1887_, 1 vol., br. 300 rs.

 ELOGIO HISTORICO DE ANSELMO J. BRAAMCAMP, _ed. part._ (1886), 1 vol.
 (esgotado).

 THEOPHILO BRAGA E O CANCIONEIRO, _opusculo_, (1869), esgotado.

 O SOCIALISMO, (1872-3), 2 vol., br. 1$200. (Esgotado)

 AS ELEIÇÕES, _opusculo_, (1878), br. 200 rs.

 CARTEIRA DE UM JORNALISTA: I. _Portugal em Africa_, (1891), 1 vol.,
 br. 400 rs.

 INGLATERRA DE HOJE, CARTAS DE UM VIAJANTE, 2.ª ed., (1894), 1 vol.,
 br. 600 rs. Enc. 800.

 CARTAS PENINSULARES, (1895), 1 vol., br. 600 rs. Enc. 800 rs.


            Parceria Antonio Maria Pereira--Livraria Editora
                   Rua Augusta, 50, 52 e 54--=LISBOA=




                Obras de JOSÉ QUINTINO TRAVASSOS LOPES


=Nova grammatica elementar da lingua portugueza=, redigida segundo as
theorias modernas, e contendo quadros synopticos muito uteis, cart. 160
réis.

=Compendio de arithmetica e systema metrico=, 29.ª edição, contendo 29
gravuras e mais de 2.000 exercicios e problemas, reformado segundo os
actuaes programmas, br. 200 réis, cart. 280 réis.

=Resumo de arithmetica e systema metrico=, 5.ª edição, muito augmentada
e contendo 13 gravuras, approvado pelo antigo conselho superior de
instrucção publica, br. 100 réis, cart. 180 réis.

=Dois mil exercicios e problemas de arithmetica e systema metrico=,
abrangendo os programmas do ensino elementar e complementar, em br. 160
rs., cart. 240 rs.

=Compendio de historia patria=, 13.ª edição, reformada, e contendo no
fim uma noticia resumida dos factos principaes de cada reinado, br. 160
réis, cart. 240 réis.

=Compendio de historia sagrada=, 2.ª edição, illustrada com muitas
gravuras, approvado pelo antigo conselho superior de instrucção
publica, br. 160 réis, cart. 240 rs.

=Leituras Correntes e Intuitivas: primeiras lições sobre objectos.--1.ª
parte=, 9.ª edição, muito augmentada, ornada com gravuras e vinhetas,
dedicada ás creanças de 7 a 9 annos, br. 160 réis, cart. 240 réis; com
encad. de luxo para premios e brindes, 360 réis.

=Leituras Correntes e Intuitivas: primeiras lições sobre objectos.--2.ª
parte=, 6.ª edição, ornada com gravuras e vinhetas, dedicada ás
creanças de 10 a 12 annos, br. 160 réis, cart. 240 réis; com encad. de
luxo, para premios e brindes, 360 réis.

=Leituras Correntes e Intuitivas=, obra adoptada para o ensino official
primario, 300 réis, cart.

=Historias de animaes, sua vida, costumes, anecdotas, fabulas,
etc.--noções amenas de zoologia para creanças--lições sobre objectos=,
3 volumes, obra interessantissima, ornada com 400 gravuras e vinhetas,
br. 200 réis cada volume, cart. 280 réis; com encad. de luxo, para
premios e brindes, 400 réis.

=Os contos da avózinha=, collecção illustrada de historias, lendas,
fabulas e contos, com 300 gravuras, 3 volumes, br. 160 réis, cart. 240
réis, com encad. de luxo, para premios e brindes, 360 réis cada volume.


            Parceria Antonio Maria Pereira--Livraria-editora
                     _Rua Augusta, 50 a 54--LISBOA_




                OBRAS DE CARLOS AUGUSTO PINTO FERREIRA

       Engenheiro machinista, capitão-tenente graduado da Armada

INDISPENSAVEIS A INDUSTRIAES, OPERARIOS, ENGENHEIROS, ARCHITECTOS, ETC.


 =Engenheiro= (O) =d’algibeira=, livro portatil e utilissimo, especie
 de _vademecum_, onde se acham compendiadas grande quantidade de
 formulas e dados praticos com applicação á engenheria nos seus
 differentes ramos; 3.ª edição muito augmentada. Este livro deve ser o
 companheiro indispensavel do contra-mestre, do mestre, do architecto
 e finalmente do engenheiro; para todos tem materia util. Livrinho
 nitidamente impresso, contendo mais de 150 tabellas.--Preço 800 réis
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 =Guia do fogueiro conductor de machinas de vapor=, approvado pela
 associação dos engenheiros civis portuguezes. Livro escripto
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 classe de individuos a serem examinados. Contém 230 paginas em 8.ª
 francez, com bastantes gravuras intercaladas no texto e duas bellas
 estampas, 2.ª edição.--Preço 800 rs. br., 1$100 réis enc.

 =Guia de mechanica pratica=, precedida de noções elementares de
 arithmetica, algebra e geometria indispensaveis para facilitar a
 resolução dos diversos problemas de mechanica. Volume de 558 paginas
 em oitavo francez, nitidamente impresso, contendo mais de cem
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Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg™

Project Gutenberg™ is synonymous with the free distribution of
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computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It
exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations
from people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg™'s
goals and ensuring that the Project Gutenberg™ collection will
remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg™ and future
generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see
Sections 3 and 4 and the Foundation information page at
www.gutenberg.org

Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by
U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's business office is located at 809 North 1500 West,
Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up
to date contact information can be found at the Foundation's website
and official page at www.gutenberg.org/contact

Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg™ depends upon and cannot survive without
widespread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine-readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment. Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements. We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance. To SEND
DONATIONS or determine the status of compliance for any particular
state visit www.gutenberg.org/donate

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
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Please check the Project Gutenberg web pages for current donation
methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
ways including checks, online payments and credit card donations. To
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Section 5. General Information About Project Gutenberg™ electronic works

Professor Michael S. Hart was the originator of the Project
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facility: www.gutenberg.org

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