Novelas do Minho

By Camilo Castelo Branco

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Title: Novelas do Minho

Author: Camilo Castelo Branco

Release Date: May 9, 2007 [EBook #21406]

Language: Portuguese


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OBRAS DE CAMILLO CASTELLO BRANCO

_Novellas do Minho_


Volume I

SEGUNDA EDIÇÃO


LISBOA
Parceria ANTONIO MARIA PEREIRA
LIVRARIA-EDITORA
_Rua Augusta, 50, 52 e 54_
1903




OBRAS DE CAMILLO CASTELLO BRANCO

EDIÇÃO POPULAR

XVII

NOVELLAS DO MINHO




VOLUMES PUBLICADOS


I--Coisas espantosas.
II--As tres irmans.
III--A engeitada.
IV--Doze casamentos felizes.
V--O esqueleto.
VI--O bem e o mal.
VII--O senhor do Paço de Ninães.
VIII--Anathema.
IX--A mulher fatal.
X--Cavar em ruinas
XI  }
    } Correspondencia epistolar.
XII }
XIII--Divindade de Jesus.
XIV--A doida do Candal.
XV--Duas horas de leitura.
XVI--Fanny.
XVII  }
XVIII } Novellas do Minho.
XIX   }




CAMILLO CASTELLO BRANCO


NOVELLAS DO MINHO


SEGUNDA EDIÇÃO


LISBOA
Parceria ANTONIO MARIA PEREIRA
LIVRARIA EDITORA
_Rua Augusta, 50, 52 e 54_
1903




LISBOA
Officinas Typographica e de Encadernação
Movidas a vapor
_Rua dos Correeiros, 70 e 72, 1.^o_
1903




I

GRACEJOS QUE MATAM


     Isto de querer ter graça e de fazer rir os outros anda por boa
     gente no dia de hoje.

     Theatro de Manoel de Figueiredo. Censores do theatro, T. VI, pag.
     36





Ao Dr. Thomaz de Carvalho




*GRACEJOS QUE MATAM*

Ordinariamente, chamam-se á franceza--_espirituosos_--uns sugeitos
dotados de genio motejador, applaudidos com a gargalhada, e aborrecidos
áquelles mesmos que os applaudem. São os caricaturistas da graciosidade.

O «espirituoso», á moderna, abrange os variados officios que, antes da
nacionalisação d'aquelle extrangeirismo, pertenciam parcialmente aos
seguintes personagens, uns de caza, outros importados:

Chocarreiro--tregeiteador--arlequim--palhaço--proxinella--polichinello--
--maninêllo--truão--jogral--goliardo--histrião--farcista--farçola--végete--
--bobo--pierrot--momo--bufão--folião, etc.

Esta riqueza de synonimia denota que o _bobo_ medieval bracejou na
peninsula iberica vergonteas e enxertias em tanta copia que foi preciso
dar nome ás especies.

Ora, o «espirituoso» tem de todas. A antiga _jogralidade_, que era
mestér vil, acendrada nos secretos crizoes do progresso social, chegou a
nós afidalgada em «espirito», e com o fôro maior de faculdade poderosa,
caustica, implacavel.

Ainda assim o estreme _espirito_ portuguez, por mais que o afiem e
agucem, é sempre rombo e lerdo: não se emancipa da velha escola das
farças: é _chalaça_.

Ha poucos mezes, falleceu em Lisboa um «espirituoso» que andou trinta ou
quarenta annos a passear a sua reputação entre o Chiado e o Rocio. As
gazetas, ao mesmo passo que nos inculcavam o defunto como pessoa que
vivêra aventurosamente uns setenta annos tingidos com primoroso pincel,
descontavam n'estes defeitos a sua immensa graça, e reproduziram nova
edição melhorada das suas anecdotas.

Averiguado o «espirito» do homem em coisas burlescas de que fez
mercancia na feira politica, liquida-se, quando muito, um folião que
desbragava a penna e desembestava asselvajadamente o insulto. Por este,
que não deixou nome sobre-vivente para vinte quatro horas--nem o terá
aqui--orça a maioria dos jograes que tenho visto, nos ultimos trinta
annos, esburgar o osso da facção que lhes alquilla o engenho detrahidor,
e acabarem antes da geração que os galardoou com a moeda falsa das
rizadas.

O satyrico de sala e botequim é mais funesto e menos trivial que o
politico; mais funesto por que vulnéra melindres--coisa que o callôso
peito da politica não tem nem finge; menos trivial, porque o chiste de
Sterne, de Byron, de Voltaire, do padre Isla, de Heine e Boerne não
apégou aqui, nem se adelgaça á feição da nossa indole, bem accentuada
nas chocarrices plebeas de Gil Vicente e Antonio José.

É mais funesto, repito; por que me occorre hoje, regressando das Caldas
de Vizella, uma historia funestissima de que só eu posso lembrar me.
Duas chalaças terçadas entre dois amigos, cavaram sepulturas de vidas e
honras. Se as novellas podessem ensinar alguma coisa, corrigindo
aleijões da alma, eu pediria aos gracejadores que lessem isto; e, nas
occasiões em que a lingua lhes descabe na bocca, engrossada pela
opilação da dicacidade, a refreassem com os dentes.

       *       *       *       *       *

Era em 1851.

Apresso me a declarar que, no tocante a nomes e localidades, desfigurei
tudo, salvo generalidades vagas e o logar em que principia a narrativa.
O que menos monta na exactidão da historia é o que ahi se illide. Nomear
pessoas e terras seria denunciar inutilmente um crime. O criminoso está
diante do Juiz inappellavel, e seus filhos innocentes respeitam-lhe a
memoria.


Era, pois, em 1851, aos 15 de junho, nas Caldas de Vizella.

Entre os salgueiros que enverdecem uma ilhêta acima da ponte, que hoje
chamam «velha», á hora de sesta, emboscaram-se sete pessoas que
preferiam aquelle frescor acre do arvoredo, golpeado por meandros do
rio, ao cheiro sulphuroso e até sulphydrico da «Lameira».

O grupo compunha-se de pessoas de diversas procedencias:

D. Helena da Penha, chamada na sua terra a _Morgada velha_. Cincoenta e
tantos annos, viuva do capitão-mór de Athey, educada em convento,
murmurando da educação e dos costumes do claustro, d'onde sahira com
incertos conhecimentos do cathecismo, e alguma instrucção em bisca
sueca, e no _Feliz independente_ do padre Theodoro d'Almeida. Excellente
senhora que se conteve viuva desde os trinta e dois annos viçosos e
temperados sanguinamente para não dar padrasto á filha unica.

D. Irene, a _Morgada nova_, vinte e sete annos, galante, mais menina que
a sua idade, cheia de denguices, amimada, acriançando-se em tregeitos e
dizeres, descompondo os artificios pueris com uns ares de desgarro e
desinvoltura--em bom sentido, aliás.

Decerto já observou, leitor, em senhoras de provincia um desembaraço
bronco, um remecherem-se e bacharellarem despropositadamente,--desaires
resultantes de lhes haverem dito que o pejo e o acanhamento são indicios
de educação aldeã. Estes despêjos improvisados sem delicadeza nem
natural, quando topam diversa sociedade em praias ou caldas, dão-lhes
ares do que não são, e abrem margem a suspeitas indecorosas; por que
ellas, com taes artes, conseguem desornar-se dos commedimentos do pudor.

D. Irene era assim. Depois veremos o que ella era mais compridamente.

Direi agora dos cinco sugeitos do grupo.

O abbade de Santa Eulalia, passante da meia idade, pagão em litteratura,
mestre de latim no seu concelho de Cabeceiras. Citava Virgilio
apropositadamente. Quando alguem se dizia regalado com a frescura do
salgueiral, declamava um trecho das _Églogas_ em que havia _sálices_. Ao
sentar-se na corcova do tronco retorcido de um amieiro, exclamava
sempre, sibilando as delicias do meio-grosso: _sub tegmine_. Tinha
rheumatismo e contava muitos cazos milagrosos d'aquellas aguas, e outros
cazos de amores que alli passaram, quando elle acompanhava sua mãe, no
tempo em que as senhoras de Cabeceiras de Basto por la faziam (dizia
elle) o seu _S. Miguel_ d'amor. Em _cavaco_ de homens, gretava-lhe a
indole, e declarava-se o personagem ou protogonista dos cazos
attribuidos a terceira pessoa em prezença das morgadas. Honestava com
citações de Ovidio (_Ars amandi-passim_) a lubricidade dos peccados da
sua juventude: e dizia com uncção de velhaco: _Delicta juventutis meoe_,
suspirando. Ás vezes, encontrando senhoras sertanejas de Basto,
acotovelava o companheiro de passeio, e murmurava: «Aqui vem uma das
taes»--_Uma das taes_ vinha a ser uma das suas amadas, de 1825, a
sylphide que elle havia ensinado a dançar o minuete e a gavota com
outras prendas, e não dava agora, no pizar coixo e na gordura fôfa, o
minimo vislumbre de ter sido sylphidica e bastante leveira para o gingar
picado da gavota. «Está como eu» dizia o abbade.

      .............................
      Mudado como eu, como ella,
      Que a vejo sem conhecêl-a!...

Cantava Garrett de uma das suas estrellas cadentes. O abbade, ao menos,
conhecia-as, embora enrocadas em tecido adiposo, e remoçava-as na sua
imaginação saudosa, alindando-as com o colorido escarlate da paixão. Bom
e discreto conversador, se a materia obrigava á seriedade: philosopho
ecletico, alegre, rijo de estomago, cabralista por amor da ordem, e
herege, por que negava que o Espirito-Santo concorresse ao Concilio
Tridentino. Em sciencias ecclesiasticas, ignorantissimo por livre
vontade e voto deliberado. Eis o abbade de Santa Eulalia.

Alvaro de Abreu, da estirpe dos Abreus de Regalados, filho segundo da
caza e Honra de S. Gens, em Refojos de Basto, bacharel em direito, vinte
e nove annos, compacto de carnes, barbaçudo, cara plebea, esbatida nas
proeminencias malares, testa descantoada e pilosa até aos arcos das
sobrancelhas. Annel de ouro com armas: em campo vermelho cinco azas de
ouro sanguineas nas cortaduras postas em sautor; timbre, uma aza
identica. As mesmas armas na cigarreira de prata, e nos botões dos
punhos, e na amethysta dos berloques antigos, pendentes em _châtelaine_
do coz das calças. Tinha cavallo, e lacaio fardado de azul com
guarnições escarlates, botas de picaria com prateleira e espora amarella
encorreada de branco. Era intelligente como a maioria dos bachareis
formados, e talvez mais. Em Coimbra, dado que não versejasse, era da
roda do Couto Monteiro, do Luiz de Bessa Correia, do João de Lemos, do
brazileiro Gonçalves Dias, do Lima poeta e de Evaristo Basto. Recitava
sentimentalmente ás morgadas os soláos dos irmãos Serpas; e as parodias
do Bessa e Couto Monteiro.

      Cabula minha pachorrenta e gorda
      Quem d'entre as folhas te espremeu dos livros!

Ou então, o cazo da castellan que desafogava saudades

      ........................
      tangendo no mandolim,
      e a chorar dizia assim:
      «_ó fado que foste fado,
      ó fado que já não és_!

Cito de memoria, pouco fiel n'estas coisas conspicuas.

Da convivencia d'aquelles rapazes ficou lhe um verniz epigrammatico.
Flagellava os padres do seu sitio com chalaças, era mais fino nos
remoques ao cirurgião, e fizera mudar de terra o boticario, com quem se
inimisára inexoravelmente desde que elle, por causa d'umas eleições
municipaes, solemnisadas a arrocho, o doestou, no _Periodico dos
Pobres_, de _atheu_ e _carbonario_. Ainda havia carbonarios e atheus
n'aquelle tempo. Hoje ha mais fé... e petroleo.

Alvaro d'Abreu tinha a saude athletica e vermelha que eu desejo aos meus
leitores. Viera a Caldas porque ali namorara, no anno anterior, a
morgada nova, sua prima em quarto gráo; visitou-a em Athey nas festas de
Natal e Paschoa, e combinou então encontrarem-se em Vizella.

Outro:

João Pacheco, do Arco de Baulhe, morgado de Valle-Escuro. Um gentil
rapaz de vinte e quatro annos, educado em Lisboa, onde tinha nascido,
quando seu pae commandava uma brigada realista. Era orfão desde 1832.
Aos vinte annos emancipara-se, e retirou se para a provincia, onde
possuia fartos bens e tias solteiras que muito lhe queriam, e o
indemnisaram dos mimos que não gosara na infancia.

Asseveravam-lhe as tias que elle descendia de Duarte Pacheco Pereira--o
_Achilles lusitano_...

--Que morreu no hospital...--atalhava o moço.

--A infamia a quem toca...--emendava a sr.^a D. Izabel Pacheco, freira
benedictina bastante instruida.

E, abrindo os _Lusiadas_, apontada dois versos em que Luiz de Camões
vingava Duarte Pacheco da injuriosa ingratidão de D. Manuel:

Isto fazem os reis cuja vontade
Manda mais que a justiça e que a verdade

João Pacheco sorria-se.

A freira azedava com o desdem do sobrinho, e repetia-lhe a ode pyndarica
de Antonio Diniz, consagrada a seu avô. Era, porém, quasi ridiculo o
enthusiasmo antigo da filha de S. Bento, declamando com teatral
gesticulação a farfalhuda estrophe:

                  Cem paráos torveados
      D'onde por bocas mil brota Mavorte
                  Entre horrorosos brados,
      Em fogo, em fumo, em sangue envolta a morte,
      Zargunchos, frechas, que em choveiros vôam;
      Elephantas bramindo a terra atrôam;
      Neptuno da batalha ao som horrendo
                  No fundo mar se espanta;

Nos eixos muda a terra está tremendo,
Mas nada o grande coração quebranta.

--O que eu collijo d'esses versos--dizia o soda transportada senhora--é
que o bravo Duarte Pacheco espatifou muito indio, fez espadanar muito
sangue de povos que defendiam o seu lar, e nunca vieram aqui attacar o
nosso. Ora, a providencia castigou o _Achilles lusitano_, baixando o a
tragar na barra dos desvalidos a miseria do rei de Calecut, arrojado por
elle do throno á indigencia.

Com poucos mais traços, está bosquejado o perfil ideal de João Pacheco.
Completal-o-hão os successos occorrentes n'esta historia.

A sexta pessoa do grupo, que povoava o cinceiral do Vizella, era um dos
_Saint-Preux_ portuenses, o modelo acabado da belleza varonil, já
passante dos trinta e cinco annos, cançado, mas fingindo que amava
sempre porque era deveras querido. Não sei se elle, á imitação do
marselhez Luiz Gauffredi, pactuara com o diabo dar-lhe a alma em troca
das mulheres que soprasse; o que sei é que as damas que elle quiz,
sopradas ou não, amaram-no.[1] Parte d'essas estava nas Caldas a abrir o
appetite enfarado ou a diluir os empaches da nutrição rija. As meninas
anemicas e chloroticas dos trovistas da cidade, em 1851, pertenciam
ainda á embryologia; assim como os bardos, que actualmente lhes receitam
boi e vinho do Porto, fermentavam no ventre da Idea... com _i_ grande.

José de Almeida, o _Don Juan_ do Porto, bem que reconhecesse os amavios
corporeos da morgada de Athey, chegara á idade em que o espirito,
ganhando entojo ás carnalidades, entra a namorar-se da belleza moral.
Almeida zombava dos tregeitos, do palavriado, das relamborias denguices
de Irene. Quem o attrahia áquelle grupo era João Pacheco; e quem
attrahia João Pacheco era o abbade de Santa Eulalia com o engôdo das
anecdotas, com a sympathia das bôas tolices, e a prodigiosa arte de
exorcisar a tentação do suicidio das pessoas que penam em Vizella quinze
dias de junho. José de Almeida me dizia a mim...

A mim?... a um homem muito diverso que ha vinte e quatro annos tinha o
meu nome, e esse tal era o ultimo do grupo.

       *       *       *       *       *

Dizia João Pacheco a José de Almeida uma vez:

--Este Abreu, se não tivesse cartas de bacharel, seria um homem regular;
porém, como não advoga, nem faz leis, nem as interpreta, quer á força
mostrar que a formatura lhe deu alguma distincção. _Faz espirito_. Traz
sempre comsigo as pilherias requentadas que forrageou em Coimbra, e não
perde lanço de as desfechar contra o abbade ou contra mim, se D. Irene
lh'as pode victoriar com o sorriso parvoeirão. Eu já lhe disse que os
seus gracejos incommodavam o abbade e me não lisongeavam a mim. Se não
se emendar, um dia jogo-lhe um remoque desagradavel, e amordaço-o na
presença da menina.

Isto dissera João Pacheco n'aquelle dia em que o grupo, á hora da sesta,
se embrenhou no salgueiral.

N'esta occasião, Alvaro d'Abreu refinara no sestro da mordacidade. O
coração tem crises de embriaguez e sobre-excitações sanguineas que
refluem ás bossas craneanas. A morgada naturalmente deixara-se apertar
suavemente nas pôlpas do antebraço e correspondera á pressão voluptuosa.
O bacharel, a meu ver, esponjava as suas chalaças da abundancia do
coração. Eu tambem tive dóze na sua liberalidade. Estava eu a intalhar
um _M_ na casca de um amieiro. Era inicial de uma das cinco _Marias_ que
eu amava.

--Esse _M_, disse elle galhofando, pode significar uma celebrada
exclamação vociferada por Cambronne em Waterloo.

--_Prove_ a exclamação historica--interveio José de Almeida, vingando-me
com aquelle riso percuciente d'elle.

Todos perceberam, salvante as damas, que não conheciam os aromas da
historia de França.

--Que horas são?--perguntou enfastiada a morgada Irene.

--Cinco--responderam todos, abrindo os relogios, excepto João Pacheco.

--Singular caso!--disse elle--tenho este relogio ha doze annos: é a
primeira vez que pára, tendo corda. Se o ar sulphurico de Vizella tiver
sobre o dono a influencia que tem sobre o relogio, serei obrigado a
parar; e parar, diz não sei quem, é morrer.

--Mas é que tu precizas de _corda_...--remoqueou Alvaro.

--De _corda_ precizo; de _carrasco_ é que não, contando
comtigo--redarguiu Pacheco.

--Apanhe aquelle pião á unha, sr. doutor!--exclamou o abbade de Santa
Eulalia.

As duas morgadas riram-se com bastante intelligencia; e o José de
Almeida, golphando tres novêllos de fumo da pipa do cachimbo turco,
regougou:

--Bem boa! bem boa! essa vou escrevel-a...

E tirou a carteira.

Alvaro de Abreu enfiou. As damas fitavam-no de modo que o esporeavam a
desforrar-se. O rizo vingativo do abbade torturava o; e, por fim, o
silencio de todos era um commum vexame: sentia-se mortificada a gente.

D. Helena da Penha ergueu-se do seu frouxel de junco e relva, dizendo:

--Vamos dar um passeio na ponte.

       *       *       *       *       *

Todos se debruçaram no parapeito da ponte, menos Alvaro de Abreu, que se
retirou á entrada, pretextando o que quer que fosse.

--O doutor ficou entupido!--disse o abbade--Foi uma embarrilação bem
merecida... Onde se dão ahi se apanham. Cuidava elle que todos nós
eramos espolinhadoiro do seu _espirito_!... Sempre com o dedo no gatilho
da graçola! Uma graça atura-se; mas estar sempre com o dente mordaz
arreganhado, isso é proprio dos botequins, em camaradagem de estudantes
e banaboias.

--Tem razão, sr. abbade--obtemperou D. Helena--mas, a fallar o que é
verdade, o sr. Pacheco respondeu muito forte.

--Acceito a reprehensão de v. ex.^a--volveu urbanamente o
cavalheiro--mas peço licença para não me arrepender. Quem me considera
talhado para a _corda_, não se offenda se eu o reputo digno de exercitar
o instrumento da forca.

D. Irene exclamou:

--Credo!

Era a expressão espontanea do horror á palavra _forca_.

E, espivitando a lingua, continuou saracoteando se:

--Não gosto d'essas coisas... Estou nervosa... O Alvaro ia pallido e
tremulo... Vejam lá se fazem algum desaguizado por causa d'uma graça...
Vamos embora, mamã! Estou muito nervosa... veja...

E offerecia o pulso ao abbade.

--Tem febre?--perguntou a mãe alvoraçada ao abbade.

--Está agitadinha,--confirmou o abbade, envesgando para nós os olhos
zarolhos de velhacaria--Quer palpar, sr. João Pacheco?

--Não percebo de pulso--disse o convidado.

--Com licença...--interveio José de Almeida--Eu vejo--E, tateando o
pulso de Irene com o relogio aberto, disse:--Cem pulsações por minuto.
Isto não é febre... é amor, minha senhora...

--Boa!--disse a menina retirando a mão--o sr. Almeida tem lembranças! O
amor sente-se no coração, não é no pulso.

--O pulso é o denunciante do coração--retrucou o portuense.--O amor é o
sangue mais apressado.

--Faltava-me ouvir essa!--notou D. Helena jubilosa por ver que a menina
já sorria.

--Em boa sciencia é aquillo que diz o sr. Almeida--confirmou o
abbade--Effectivamente, o amor accelera a circulação do sangue.

--Aqui tem o voto de pessoa experiente--disse Almeida.

--Está feito...--assentiu o abbade dando á cabeça trez ligeiras
demonstrações de consentimento.

--É muito prendado não tem duvida...--volveu ironicamente a viuva do
capitão-mór de Athey.--Ora, tenham juizo!

--Que remedio, senão tel-o, minha senhora!--redarguiu o clerigo
pagão--satyro velho não topa dryadas nas florestas.

--Quê?!--perguntou a senhora que desconhecia os escandalos mythologicos.

--Queria eu dizer, excellentissima senhora! que o juizo em mim, velho de
cincoenta annos, não se recommenda, lastima-se.

--Como estás, menina?--perguntou D. Irene á filha.

--Sobresaltada... Tenho medo de alguma desordem... O primo Alvaro tem
tão máo genio...

E fez varias visagens.

--Agradeço a sua compaixão, minha senhora--occorreu João Pacheco;--mas
peço-lhe que empregue a sua sensibilidade mais opportunamente.

       *       *       *       *       *

Ao impardecer da tarde, José de Almeida foi procurado na pharmacia da
Lameira, onde então florescia um boticario que parecia immortal pelas
sandices originaes--e ninguem já hoje se lembra d'elle! Este paiz não é
para ninguem; desenganêmo-nos.

Era João Pacheco a chamal-o de parte para lhe dizer:

--Acabo de ser procurado por dois sugeitos de Braga, que se dizem
padrinhos do desafio a que sou reptado por parte do Abreu. Respondi-lhes
que eu enviaria pessoa com quem se entendessem.

--Estou ás tuas ordens--condescendeu promptamente Almeida, que era
padrinho vitalicio de todos os duellos d'aquelle tempo na sua briosa
cidade.--Que arma escolhes? sabre? florete? pistola?...

--Mais devagar--atalhou o morgado de Val-Escuro--O Abreu não joga arma
nenhuma. O meu mestre de tiro foi o marquez de Niza; de sabre foi o
Chico Bellas, e de florete o Petit. Sei pouco; mas sei mais que Alvaro.
Se lhe acceito o duello, vou seguro da minha superioridade, e, pouco
mais ou menos, não sahirei do campo com a consciencia mais tranquilla
que um homicida. Vai tu, se me queres obsequiar, dizer isto aos
padrinhos.

José de Almeida voltou á noite.

--O Abreu teima em bater se--disse elle--Quer duello de morte, pistolas
carregadas e desfechadas á ponta de lenço.

--Vai declarar aos padrinhos que acceito--deliberou serenamente João
Pacheco.

--Estás doido?!

--Faze o que te digo.

--Escolhe outra testemunha, em quanto eu vou avisar o regedor--returquiu
sorrindo José de Almeida--eu cuidei que eras um rapaz valente e
prudente. Não te batias, ha pouco, por que as tuas vantagens repugnavam
ao cavalheirismo; e acceitas o combate, dada a igualdade que pode dar-se
entre dois assassinos estupidamente ferozes!

Pacheco ria-se: e Almeida discorria rasoavelmente.

--Faze o que te digo--repetiu o morgado--Pois tu, creança, persuades-te
que o Abreu deseja bater-se em taes condições? Os covardes tem fantasias
d'essas em quanto o desafio procede nas incruentas conferencias dos
parlamentarios. Assevera tu ao Alvaro que eu acceitei o combate á ponta
de lenço; e espera o desfêcho.

--Mas suppõe que elle sustenta a palavra!...

--Sustentarei a minha;--e, batendo-lhe no hombro, accrescentou:--Vai
socegado. O homem tem mais amor á vida que á honra. Ouviste? Se elle
propozer o duello á ponta... de lingua, declara loque não acceito.

Os bracharenses, ouvindo a resposta do Almeida, ficaram embaçados e
atonitos. O mais cordato, com o louvavel intento de economisar sangue
illustre, ponderou que era uma desgraça matarem-se dois cavalheiros da
primeira nobreza do Minho, e aventou o seguinte:

--Se João Pacheco lhe desse uma satisfação na presença das pessoas que
ouviram a injuria...

--Satisfação... como?--inquiriu o Almeido--Dizer-lhe que não o reputa
_carrasco_? A emenda é peor que o soneto. Não proponho isso. Deixal-os
matarem-se! Morrem gloriosamente. Tanto faz morrer de calculos na bexiga
como de uma bala no coração. João Pacheco já teve em Lisboa e Madrid
quatro duellos de morte, e está vivo.

--Parece-me isso extraordinario!--observou maravilhado o braguez,
suppondo que no duello de morte era obrigatorio morrer.

--Não ha nada extraordinario. O estylo estatuido no _Codigo da Honra_ é
que as pistolas, uma sevada de polvora e pelouro, e a outra simplesmente
de polvora, sejam sorteadas. Pacheco teve sempre a sorte por si. Mas o
nosso caso é outro. Morrem ambos irremediavelmente.

--E nós? que hade ser de nós?--atalhou sobresaltado o filho da outr'ora
circumspecta Braga.

--Nós?--respondeu Almeida--praticaremos a rara virtude de nos não
matarmos. Os senhores fogem para a sua terra e eu para a minha. É o que
legisla o _Codigo da Honra_. As testemunhas não podendo depôr ácerca da
honra dos afilhados mortos, safam-se a unhas de cavallo. O restante da
tragedia pertence ao coveiro.

Um dos padrinhos fez menção de lavar as mãos e disse:

--Eu cá da mim...

--É Pilatos n'este negocio?--perguntou o portuense.

--E dois--respondeu tambem o outro, recordando e recitando tres
passagens pezadas de um livro do conselheiro Rodrigues de Bastos a
respeito de desafios.

--Em que ficamos?--rematou José de Almeida--deixe lá o sermão.

--Vamos fallar com o Abreu: e ou elle desiste de se bater, ou nós
declinamos a missão.

--Pois não se demorem, que João Pacheco já está escrevendo as suas
disposições testamentarias.

       *       *       *       *       *

Com quanto a bravura não fosse o predicado mais proeminente do amador de
Irene, deu-se n'elle um phenomeno de heroismo que pertence aos milagres
do amor. A nova, que os pallidos agentes lhe levaram, apenas o
desfalleceu por instantes. A imagem da prima foi-lhe como a visão de
Pallas aos guerreiros da Grecia de Homero, acoroçoando-lhe alentos sobre
naturaes á sua indole.

--Pois morreremos!--exclamou elle com ar de Leonidas no desfiladeiro das
Thermopylas.

--Resolves então morrer?--perguntou um dos padrinhos.

--Que remedio?!

--Arranja outras testemunhas...--intimou o segundo padrinho--Nós temos
deliberado abrir mão d'esta asneira. Se te batesses por um motivo serio,
_verbi gratia_, se o Pacheco te deshonrasse uma irmã ou coisa
semelhante, ou te chamasse algum nome injurioso, ladrão, _verbi gratia_,
então estariamos ao teu lado, e até seriamos os primeiros a defender-te
com as armas na mão; ora agora matar-se um homem a troco de uma chalaça
que não vale dois caracoes, isso é a bestialidade maior que pode
praticar um homem, se não está doido furioso! Lá que tu, _verbi
gratia_...

--Não dês mais razões--atalhou Alvaro de Abreu--Procurarei outros
padrinhos...

Altercaram até ás dez e meia da noite. Um dos dois bracharenses, que
argumentava valentemente com o recheio do _verbi gratia_, repetiu as
sans doutrinas do conselheiro Rodrigues de Bastos, peorando-as na
linguagem. O certo foi que a pertinacia do sensato amigo vingou abalar o
animo renitente do Abreu, a ponto de lhe incutir por um lado da alma o
raciocinio e pelo outro lado o medo.

Entretanto, no quartel do morgado de Val-Escuro occorriam cazos
notaveis. José de Almeida, encontrando ás onze horas da noite o abbade
de Santa Eulalia, que vinha de fazer a partida de voltarete á morgada de
Athey, disse-lhe ao ouvido:

--Os homens matam-se amanhã ao romper da aurora. O sol quando nascer...
verá dois cadaveres.

O abbade não duvidou. A catadura do portuense tinha os assombros da
catastrophe.

--Jesus, santo nome!--exclamou o padre--Eu vou avisar o regedor, se me
dá licença; e quer dê quer não, o meu dever é evitar tal desgraça.

--Não evita nada, abbade. O regedor só pode prendêl-os no conflicto de
transgredirem a lei. Quem sabe o logar onde elles vão matar-se!?

O abbade apertou o passo, retrocedendo para caza de D. Helena. Entrou
offegante e roxo. Assoprava as palavras e embebia no lenço vermelho as
bagas de suor que lhe bolhavam na testa. Referiu o que soubera de José
de Almeida. Irene, que estava ceando bifes de cebolada, foi logo atacada
de hysterismo, e a mãe arrotava nas ancias spasmodicas do flato. Outro
padre que ali estava, capellão e administrador da casa de Athey, pegou a
declamar contra a relaxação do paiz, desde 33 para cá.

--Sr.^a morgada!--alvitrou o abbade atalhando a objurgatoria politica do
outro--aqui perto de nós mora o sr. João Pacheco. Se v. ex.^a quer,
vamos lá. É impossivel que este cavalheiro resista ás reflexões de uma
senhora que elle tanto venera!...

--É já--assentiu D. Helena cobrindo-se com o chale, e recommendando ao
capellão que fizesse companhia á menina.

Quando entraram, havia conferencia entre os padrinhos de Alvaro e José
de Almeida. João Pacheco, segundo o estylo, não era prezente; mas,
contra o estylo, em taes andanças, estava a dormir. Foi chamado para
receber a visita da sr.^a morgada. Espertou estrouvinhado, e foi á
salêta onde a senhora dialogava anciadamente com Almeida e com os
outros, á cerca do desafio. O portuense havia já annunciado que as
condições mortiferas do duello estavam modificadas. Abreu, coagido pelos
padrinhos, prescindira de morrer, e propunha o combate nos termos
communs.

Afim de applacar as agonias flatulentas da viuva, Pacheco asseverou-lhe
que não haveria ferimento de perigo. Quanto a recuzar-se ao desafio,
consoante a dama rogava, allegou que a sua dignidade lh'o prohibia.
Redarguiu a consternada senhora que ia pedir a seu primo Alvaro que
desistisse do duello.

--Se elle desistir--observou Pacheco--tem v. ex.^a conseguido o seu bom
intento; mas colloca o seu parente em má posição perante os cavalheiros
em quem confiou a desafronta da sua imaginaria deshonra. Vá descançada,
minha senhora. O seu futuro genro não soffrerá mutilação de especie
alguma. O nosso combate será um simulacro de esgrima, uma especie de
gymnastica de sala com espadas sem ponta nem gume.

       *       *       *       *       *

Ao repontar da manhã, atravessamos o Vizella por umas alpondras sobre as
quaes se encurvam hoje os arcos da Ponta nova. Trinavam ainda os
rouxinoes nas margens frondosas do rio, e ao longe assobiavam melros e
grasnavam as pêgas nos pinheiraes. A corrente murmurosa trapejava nas
franças dos amieiros debruçados á flôr da agua. D'ahi ladeamos o banho
do _Mourisco_, á volta do qual estavam umas mulheres aldeans
espulgando-se nos seios com um despejo digno da innocencia da Arcadia.
Os homens respectivos escodeavam as callosidades calcáneas ou
attarracavam tachas nos tamancos. Depois subimos uma charneca declivosa
por onde hoje se alarga e complana a estrada de Penafiel, e entramos em
uma encosta de tojeiras e sargaçaes. Carregamos á esquerda, fraldejando
o outeiro por sobre o bravío, e emboscamo-nos por boiças de carvalheiras
até encontrarmos uma clareira chan e menos accidentada.

--É aqui--disse Almeida aos padrinhos de Alvaro.

Os combatentes despiram as quinzenas e os colletes.

Os pulsos de Alvaro negrejavam cabelludos e quadrados, de uns que o povo
diz que _tem só uma cana_, como signal de rijeza inquebrantavel: os
dedos eram pennugentos e trigueiros, com as unhas sujas. As mãos de João
Pacheco eram magras, translucidas e depauperadas do bom sangue que tinge
a epiderme. O que me deu a mim alento e esperança na victoria de
Pacheco, foi o sereno e risonho aspeito do moço, e a confiança na arte
que neutralisa os impetos da força.

Rompeu o combate á voz de João de Almeida. Alvaro de Abreu--cazo
singular!--fechou os olhos, e floreou a espada em sarilho tal que o
adversario lhe cedeu terreno, aparando-lhe uns botes, e esquivando o
embate dos outros. Eu seguia anciado aquelle vertiginoso redemoinho do
aço que lampejava, e o tinído asperrimo das laminas. João Pacheco
bradou:

--Páre la!

Alvaro estacou, provavelmente cuidando que o adversario estava ferido.

--Este homem--disse o outro ás testemunhas--fêcha os olhos, não se
defende, e eu involuntariamente posso matal-o!

--Se me permitte uma reflexão,--interpoz-se Almeida dirigindo se a
Alvaro de Abreu--o sr. está enganado com o seu systema de esgrimir ás
cegas. Como hade ver a espada do seu contendor?

--Não sei jogar espada--respondeu elle--Faço o que sei e posso.

--Vejo que pode: mas o que sabe é perigoso--contestou Almeida--V. S.^a
era ja cadaver, se o quizesse o sr. Pacheco. Bata como quizer, mas veja
o que faz: abra os olhos.

--Parece-me acertado--obtemperou um braguez com assentimento do outro.

Recuaram ao ponto designado no terreno. Rompeu Alvaro no mesmo estylo de
_pancada de cego_, mas com os olhos coruscantes e esbugalhados. João
Pacheco fez-lhe um golpe dos primorosos da arte, o _coup de manchette_,
no antebraço, sobre os tendões que inserem no pulso, com dexteridade e
limpeza dignas das artes bem fazejas. Estava desarmado o possante Abreu.
O discipulo do Chico Bellas honrára o mestre.[2]

       *       *       *       *       *

João Pacheco almoçou com José de Almeida para, em seguida, se recolher á
sua casa do Arco. Percebia-se-lhe um aborrecimento penoso do successo.
Confessou que tinha vergonha de ter ferido um homem que desconhecia o
jogo das armas e fechava covardemente os olhos. Retirava-se para evitar
o espectaculo em que havia de exhibir se logo que a triste façanha se
divulgasse.

Acompanhamol-o até Guimarães. Aqui nos disse elle:

--Não vos admireis, se um dia vos constar que fui assassinado á traição.
O rancor do Abreu hade respirar seja por onde fôr. Na familia
antepassada deste homem ha crimes que dariam materia para um romance
sanguinario. Os proprios parentes dizem que o pae de Alvaro matára o
irmão para lhe succeder no vinculo, e matára um cunhado para administrar
e desfalcar a caza da irmã. Era capitão-mór e amordaçava as suspeitas.
Este filho herdou-lhe a indole; mas, aquecido ao sol de outra
civilisação e mais cultivado que o pai, supura-lhe a peçonha na lingua.
Não o temo a elle; mas devo acautelar-me dos facinorosos que acoita em
sua casa, como se prevalecessem ao novo systema as antigas _Honras_ dos
paços senhoriaes.

Quando voltamos de Guimarães, Alvaro de Abreu passeava na estrada, de
braço ao peito, com as primas e com o abbade de St.^a Eulalia.

--Iamos agora mesmo visital-o, sr. Abreu--disse José de Almeida--Ainda
bem que o encontramos excellentemente disposto.

--Estou bom--respondeu seccamente.

--Fêl-a bonita o sr. Pacheco!...--invectivou D. Helena.

--Ainda hade topar quem lhe abata as basofias...--accrescentou a filha,
chibatando com o guarda sol um festão de madre-sylva.

--Minhas senhoras--contrariou solemnemente José de Almeida--o sr. João
Pacheco procedeu com extremado cavalheirismo.

--Muito cavalheiro! pois não!--replicou D. Irene sarcasticamente com uns
esgares lôrpas.

--Com toda a certeza, muito cavalheiro--insistiu o portuense.--Aqui está
o sr. Alvaro de Abreu que me não desmente.

O invocado respondeu grunhindo:

--_Hum_.

E Almeida proseguiu:

--Se V. Ex.^{as}, minhas senhoras, não negassem a honradez generosissima
de João Pacheco, eu teria a conscienciosa obrigação de appellidar infame
quem lh'a duvidasse. Assim, pedindo venia a V. Ex.^{as} para não dar
pezo á sua opinião em materias tão alheias do seu juizo, sustento que é
um biltre quem negar o cavalheirismo de João Pacheco na pendencia que
teve esta manhã com o sr. Alvaro de Abreu.

E, fitando-o, esperava resposta, que não logrou.

--Acabou-se!--interveio o abbade--com aguas passadas não móem moinhos...

--Diz bem, sr. abbade--applaudiu a morgada velha.--Não se falle mais
n'isso.

--O que eu sei--ajunctou Irene--é que, no anno passado, gosamos em
Vizella dois mezes deliciosos; e este anno veio aquelle sr. Pacheco lá
de Lisboa perturbar a nossa alegria com as suas prendas de jogador de
espada.

José de Almeida sorriu-se com o mais caracteristico gesto de mofa,
abaixou a cabeça sem se descobrir, e retirou-se sacudindo a calça com o
chicote de baleia.

Montado no cavallo de que apeara, quando avistou o grupo, disse-me rubro
de colera:

--Aquella mulher fez-me acreditar que é possivel dar-se um pontapé na
parte posterior do merinaque de uma senhora.

       *       *       *       *       *

Quando, por fins de junho, sahimos de Vizella, mexericava-se que um
rapaz do Porto, oriundo de familia ingleza, e celebrado por vinte e sete
fraques que estadeava com os respectivos coletes, fôra visto, á
claridade da lua cheia, cochixar com Irene, elle no quinchôso e ella no
muro do quintal.

Em fins de julho, José de Almeida, no encalço d'uma liteira portadora de
certo objecto amado, voltou a Vizella, e observou uns aleijões
psycologicos na enfermidade chronica, chamada o sexo pelas senhoras de
Basto.

A saber:

Irene, admittida aos saráos e passeios das illustres familias da Torre
da Marca, Machados Pindellas, Guedes da Costa, Alentem, Infias e Paço de
Sousa, ouvira motejar de Alvaro, á conta do desafio, por causa das
grutescas arremettidas de esgrima pelo systema obsoleto da _cabra cega_.
Alguns fidalgos, ás vezes, no meio das salas, sem se resguardarem da
morgadinha, fechavam os olhos e terçavam as bengalas com attitudes
farcistas. As gargalhadas atroavam, e Irene disfarçava o despeito,
perguntando ás visinhas que brinquedo era aquelle. Afinal teve uma
sincera amiga que lhe explicou o libretto d'aquellas pantomimas,
mettendo a rizo o Abreu.

Coincidiu então a chegada do sujeito dos vinte e sete fraques a Vizella,
galhardeando em prendas de sala, e _savoir vivre_ com mulheres, mui
distinctamente. De feito, Jacques Smith, educado em Londres, enfarinhado
nos ademanes francezes, enfronhado em vaidades de fidalgo que tinha os
ossos do seu patriarcha saxonio na Palestina, elegante e quasi
intelligente, formava de tudo isto, reunido aos vinte e sete fraques e
respectivos coletes, uma personalidade capaz de sensibilisar damas no
uso de caldas e amor.

A frescura montezinha da filha do capitão-mór de Athey, a garridice um
tanto canhestra, os seus saltos de ovelha espantadiça, e o fluido do
olhar que ella derramava remirando-o de esconso, escandeceram Smith. Era
atrevido como todos os sujeitos de cerebêllo grande, onde demora a bossa
da _amatividade_. A lua cheia de junho e julho viu coisas que a poesia
costuma idear nas varandas das Julietas, e que a prosa espreita em
qualquer horta de couve gallega por entre festões de abobora-menina.

O bacharel Abreu não viu tanto como a casta lua; mas farejou. O rival
tinha o prestigio que esmaga com a superioridade. O coração do homem
trahido abysma-se a chorar na consciencia que diz: «Eu valho menos que o
meu rival». Enfureceu-se, e vozeou rusticidades á prima, que lh'as
escutou como quem as recebe impassivelmente com a condição de prejurar.
Não se desculpou nem carpiu. Aborrecia-o, porque era irrisorio desde o
duello, e porque estava perdida d'amor, fulminada por Jacques Smith, bom
typo da perfeição viril, tirante as escrofulas cicatrizadas no pescoço.

Alvaro de Abreu foi para a sua aldeia. Jacques voltou em principios de
agosto, com José de Almeida, para a praia da Foz.

Perguntando-lhe Almeida se a morgadinha de Athey passára á historia,
respondeu:

--Pois então!

--Era uma rapariga fresca...--tornou o outro.

--Sim, fresca e indigesta como a melancia.

       *       *       *       *       *

Em uma gazeta do Porto, de 15 de novembro do mesmo anno de 1851, lia-se
esta correspondencia datada no Arco:

     _Esta villa soffreu a perda irreparavel de um cavalheiro consummado
     em toda a extensão da palavra e representante de uma familia,
     talvez a mais illustre das provincias do norte, pois entre os seus
     avoengos se conta o grande e immortal Duarte Pacheco Pereira, por
     antonomasia o «Achilles lusitano», e o «Leão dos mares».

     Hontem de manhã sahira o sr. João Pacheco a visitar uma sua prima
     em Refojos de Basto, onde passou o dia até ás 4 horas da tarde. O
     cavallo em que montava era um pôtro não educado ainda, e comprado
     nas manadas hespanholas que vieram à feira de S. Miguel. Os seus
     amigos, posto que João Pacheco fosse optimo cavalleiro, muitas
     vezes lhe observaram que os caminhos precipitosos destas aldeias
     eram improprios para ensinar pôtros. Fiado, porém, na destreza do
     pulso e firmeza de joelhos, o temerario cavalleiro rompia por esses
     algares e barrocaes com um denôdo digno de melhor emprego.
     Realizaram-se funestissimamente as previsões dos seus amigos.

     Ao luzco-fuzco entrou pelo portão da caza de Val-Escuro o pôtro sem
     o cavalleiro, com as redeas e bridões despedaçados. O mesmo foi
     levantar-se na caza um clamor a que todos os visinhos acudiram.
     João Pacheco era extremosamente amado por trez tias, respeitaveis
     senhoras, que não viam outra coisa n'este mundo. Amigos e creados,
     sahimos todos pelo caminho de Refojos; e a meia legua de distancia,
     em um barrocal fundo e lamacento (espectaculo doloroso!)
     encontramos o cadaver de João Pacheco, de bruços, com as mãos
     submersas no lamaçal, e sem gotta de sangue que denunciasse o orgão
     ferido. Como era já escuro, e o cadaver só podia levantar se depois
     do exame judiciario, ali ficamos alguns amigos até ao dia guardando
     os despojos de tão nobre moço, desastradamente morto na flor da
     vida! O cirurgião examinou-o, e apenas lhe encontrou o craneo
     amolgado, sem extravasação de liquidos, excepto dois fios de sangue
     que derivavam do nariz. Presume-se com bom fundamento que o cavallo
     o cuspira contra uma rocha angulosa que forma um dos vallados da
     barroca; por que tambem na palma da mão direita mostra contusões
     resultantes de se amparar contra as escarpas do penhasco. Não pode
     attribuir-se esta catastrophe a outra causa que não seja a queda.
     Se fosse homicidio, seriam outros os vestigios de ferimentos; alem
     de que, João Pacheco era bem-quisto, honestissimo, respeitador da
     honra das familias, não obstante haver sido creado e educado em
     Lisboa. Alem de rico, era um gentil moço; pois não consta que
     deitasse a perder alguma d'essas centenas de moças pobres que se
     consideram felizes quando os fidalgos as levam á vereda da
     deshonra.

     Nós, os seus amigos, choral-o-hemos em quanto as suas virtudes
     lembrarem como exemplo a filhos e a cidadãos. Que descance na
     perpetua morada da virtude o tão chorado mancebo; e peça ao
     Altissimo resignação para as suas inconsolaveis tias_!...

Quando li compungido esta correspondencia lembraram-me as palavras de
Pacheco, na ultima hora em que o vi: _Não vos admireis, se um dia vos
constar que fui assassinado á traição_. Communiquei a minha desconfiança
a José de Almeida.

--Palpita-me que foi assassinado pelo Abreu!--concordou o meu amigo, e
accrescentou:--Escrevo hoje ao abbade de St.^a Eulalia, citando-lhe as
palavras de João Pacheco, e pedindo os pormenores do desastre.

O abbade respondeu que eram infundadas as nossas desconfianças: por
quanto, no dia 11, em que João Pacheco perecêra, estava Alvaro de Abreu
na feira de S. Martinho em Penafiel com elle abbade e com as senhoras
morgadas de Athey; e que por signal n'esse dia perdêra o Abreu cento e
tantas moedas de ouro ao monte, á vista de dezenas de pessoas que nunca
o tinham visto jogar...

E rematava a carta d'este theor:

     _Os namorados fizeram as pazes. A pequena veio das Caldas muito
     coada de côres e com grandes... olheiras.--(ia a escrever
     «orelhas») Nos primeiros dias, enfanicava-se a cada passo, e dava
     uns ais romanticos como as damas de Basto de 1825_. Infandum...
     renovare dolorem. _Depois, a mãe, que tambem é matreira de 1825,
     escreveu ao Abreu dizendo-lhe que sua filha era victima da
     ingratidão d'elle. Aquella «lua cheia» de Vizella, de que V. S.^a
     me fallava, não foi ouvida a tal respeito. Ora o Abreu quer me
     parecer que sabia pouco menos que a referida Tetis, e que o janota
     luso-britannico de que reza a chronica escandalosa das thermas
     romanas no corrente anno, 1890, da era de Cezar. Porém como o
     patrimonio d'elle é magro, e as fazendas de Athey são de encher (e
     de fechar) o olho, V. S.^a verá que, a final, a morgadinha, embora
     não tenha que desatar a cinta virginal, apanha marido, parente,
     fidalgo e bacharel. Se, depois, as costellas lh'o pagarão, isso não
     é da minha conta. Lá se avenham; mas melhor será que elle se
     resigne, e feche os olhos como no duello, por quanto saco com honra
     e proveito é raro, ou não o ha, se o anexim é tão verdadeiro,
     quanto eu sou de V. S.^a amigo e venerador_, Abbade Silva.

       *       *       *       *       *

No anno seguinte, a floresta de amieiros do Vizella já não deu sombra e
frescura a nenhum dos seus hospedes do anno anterior.

A José de Almeida e a mim figurou-se-nos que as frondas do salgueiral
afestoavam um tumulo. Doeu-nos pungentissima a saudade de João Pacheco.
Nunca mais alli voltámos.

Estavam nas Caldas a morgada velha e o abbade de Santa Eulalia.

Irene e seu marido Alvaro de Abreu esperavam-se mais tarde.

Esperava-os D. Helena; mas o abbade secretamente nos disse que D. Irene
nem o marido tornariam a Vizella em dias de sua vida. Segredou-nos que a
morgadinha, ao oitavo dia de cazada, tentara fugir para a mãe...

--Oh!--exclamou Almeida--ao oitavo dia! que lua de mel!

--A meu ver--piscou o abbade entortando a bocca disformemente--esta lua
de mel recebia a luz reflexa d'aquell'outra _lua-cheia_ aqui das Caldas,
tão sua conhecida, sr. Almeida...

--Maganão! o abbade é o calendario de todas as luas que alumiam ha
trinta annos os amores nocturnos de Vizella...

--O que o sr. não sabe é que o marido lhe bate ás cegas...

--Sim? Agora vejo que o homem, no duello, obedecia ao costume.

--E, quando sahe, fecha-a n'um quarto de cantaria que lá chamam a
«torre,» e até dos creados a zela!

--Que amor, e que conceito ella lhe merece!--disse Almeida com a seccura
ironica do seu genio quando as situações demandavam piedade.

--Eu vi-a ha quinze dias na egreja de Refojos. Que mudança! Está
escaveirada, sem atavios, o desalinho da desgraça... Fez-me compaixão! O
marido estava á beira d'ella; não pude se quer dizer-lhe que fugisse.

--Mas a mãe... assim a deixa desprotegida?

--A mãe definha-se; e não sabe tudo o que ella soffre, porque a filha
não se queixa...

--Não intendo essa resignação!--objectou Almeida.

--Intendo-a eu. Irene era descompassadamente estupida a respeito de
certas coizas...

--A respeito de todas, pensava eu--emendou o portuense.

--Cuidou que o matrimonio era o concerto de certos aleijões com que fôra
d'aqui de Vizella.

--Fez do marido algebrista, percebo.

--É isso; mas o bacharel tem lá os seus _Provarás_...

--De cacête, eim?

--E a mulher tem medo que o marido peça contas á sogra dos desatinos da
filha.

--As meninas que em taes condições se casam, não temem as mães, abbade.
Casou ella livremente?

--Com toda a liberdade, e contra a vontade da mãe. Tanto assim que a
velha, prevendo que o Abreu seria máo esposo, entregou-lhe simplesmente
o que era do pai da noiva: setenta mil cruzados em propriedades. A casa
vale o trezdobro. Foi velhacaria muito louvavel: por que dizia ella:--se
o marido a maltratar, ameaço-o com a privação do meu dote, que é
privilegiado e izento da meação da caza--É o que ella está ensaiando: já
annunciou a venda de duas quintas. Veremos como elle se porta...

--Por essas duas quintas fechará o genro os olhos ao passado e ao
futuro. Elle bem sabia que Irene o despresou pelo Jacques Smith. Que
alentado canalha salpicado de brazões? Não posso despersuadir-me que foi
elle o assassino do infeliz Pacheco...

--Juro que não foi: já o defendi.

--Então, mandou-o matar.

--Isso é uma hypothese sem nenhum fundamento. No cadaver de João Pacheco
não havia signal de ferro, nem de tiro, nem contusões de pancadas. Foi
queda do cavallo, que era bravo. Não dê vulto a essa suspeita aleivosa.

       *       *       *       *       *

Joeirando as minhas reminiscencias de coisas relativas a Irene,
referidas pelo abbade em cartas a José de Almeida, apuro o seguinte, na
correnteza dos annos de 1853 a 1855:

Sem impedimento dos dissabores conjugaes, Irene deu á luz o seu primeiro
filho, e, mediante o praso restricto para o phenomeno da geração, provou
a sua fecundidade com segundo rapaz robusto. D'onde se deprehende que
elle a não espancava incessantemente.

Irene vivia mais desopprimida desde que o marido reatara com uma
raparigaça barrozan a mancebia interrompida pelo cazamento. Elle
pernoitava fóra noites seguidas, e não soffria em caza a menor
inquietação com ciumes.

Durante o primeiro anno, raro dia passava que a não atanazasse com
perguntas cruamente tôrpes ácerca de Jacques Smith. Depois, parecia
esquecido ou reconciliado, se não era antes o receio de que a mulher lhe
fugisse e a sogra alienasse as quintas.

No meado de 1855, a morgada velha falleceu nos braços da filha,
recommendando-lhe que recorresse nas suas afflicções ao abbade de Santa
Eulalia. Desde este dia, recrudesceram em Alvaro de Abreu os desprezos,
as injurias e até a diffamação da mulher. Aos seus parentes, que o
arguiam de devasso, respondia que lhe era mister aturdir uma deshonra
com outras: e, pondo em miudos a phraze amphibologica, delatava a
fragilidade ante-matrimonial de sua mulher e parenta.

Apertada pelos insultos face a face, Irene disse-lhe um dia:

--Se eu tivesse um irmão que pegasse n'uma espada, vossê não me
offenderia assim...

--Se vossê tivesse um irmão que pegasse d'uma espada, e me ferisse com
ella, iria para onde foi um homem que uma vez me feriu...

Irene não percebeu o sentido latente da replica; mas referiu ao abbade a
passagem, digna de ponderação.

--Quem sabe--dizia elle comsigo--se José de Almeida acertou quanto á
morte de João Pacheco...

Os criminosos asilados sob as telhas de Alvaro de Abreu favoreciam a
suspeita: entre outros somenos na tuba da fama, avultavam o _José
Pequeno_ da Lixa, e _José do Telhado_, que o neto dos senhores de
Regalados sentava á sua meza, quando Irene ficava no quarto. Entrou em
averiguações o abbade, e soube que os dois salteadores, quando João
Pacheco morreu, estavam na caza dos Abreus de Refojos, jogando a
esquineta com os creados.

Como quer que fosse, o abbade entrou-se de mêdo bem intendido, quando
Irene lhe pediu que a protegesse e resgatasse da escravidão em que
vivia.

--Este homem, se eu me intrometto nos disturbios de sua caza, é capaz de
mandar um dos seus scelerados apunhalar-me!--conjecturava elle
racionalmente.

Não obstante, indagava com cautella o modo de libertar Irene pelo
divorcio, ou pela fuga para mosteiro ou casa de familia honesta. As
familias honestas recuzavam-se a receber a esposa diffamada pelo marido;
as menos honestas esquivavam-se a desavenças com Alvaro de Abreu,
respeitando mais os hospedes que o hospedeiro. Os donos das casas
endinheiradas dormiam tranquillamente, em quanto o amigo do _José do
Telhado_ e _José Pequeno_ lhes não retirasse a sua estima.

E, n'aquelle tempo, havia governadores civis, administradores de
concelho, regedores, cabos de policia, etc. Esta corporação de
funccionarios não prendia ladrões: fazia deputados.

       *       *       *       *       *

Irene instava com urgentes rogos. Dizia desatinos ao abbade. Traçava
planos vulgares; mas de escandalo estrondoso. Fugiria para o Porto onde
estava um homem que ella amava: iria pedir-lhe o amparo do amante ou a
vingança do cavalheiro. Tinha lido o _Palmeirim de Inglaterra_; mas não
conhecia o _Cavalleiro da triste figura_. O abbade recommendava-lhe
juizo e paciencia: e cuidava mais fervorosamente em salval-a do amante
que do marido. Fallava-lhe dos filhos. A commoção era mediocre. As mães
que desafogam as suas angustias, ajoelhando á beira de um berço, estão
salvas. Irene carecia da virtude redemptora das esposas, que fazem os
seus anginhos intercessores com a justiça divina. Era criminosa. O
marido cuspia-lhe uma injuria, e ella abaixava o rosto indelevelmente
manchado. Um dos esteios da honra quebrara-o a moça solteira em Vizella:
restava-lhe outro--o da sinceridade com o noivo aborrecido: quebrou-o
tambem. Se a sorte lhe deparasse marido tão amante quanto generoso, a
regeneração fal-a-hia o esquecimento do erro, e o segundo baptismo da
alma seria a uncção das lagrimas nas faces cariciosas dos filhos. Havia
uma chaga a cicatrizar na consciencia de Irene: não lh'a leniram com o
balsamo do amor ou da caridade: exulceraram-lh'a a ferroadas de inuteis
vituperios. As mulheres assim, quando não se engolpham no tremedal, ou
são feias como o peccado, ou predestinadas como santa Pelagia e santa
Maria Egypsiaca.

O abbade de Santa Eulalia solicitou a protecção de um prelado, seu
parente, a favor da desditosa Irene. Conseguiu-se a entrada da esposa
fugitiva no convento de Santa Clara de Coimbra. O abbade avisou-a,
guiando-a no passo da fuga. Irene deveria sahir para uma das suas
quintas de Cerva, onde costumava ir no outomno, e fugir de lá com duas
pessoas da confiança do abbade. Acceitou alegremente a proposta; porém,
dias depois que se transferira á quinta d'onde devia fugir, com effeito
fugiu: mas não eram confidentes do abbade as pessoas que lhe protegiam a
retirada pela serra de Marão em direitura ao Porto.

A mulher de Alvaro de Abreu escondeu-se nos arrabaldes d'aquella cidade,
no _Bom-Successo_, em uma _casa-chalet_, telhada e ladrilhada de
asphalto negro á ingleza, com stores impenetraveis, e á volta um
silencio sepulcral a ouvir--permitta se-me a expressão--os suspirosos
murmurios que lá dentro se atabafavam nas alcatifas e nos cortinados.

Aquella casinha abarracada era o _chalet_ de Jacques Smith, o homem dos
vinte e sete fraques para quem a frescura da melancia era indigesta.

Não é natural que a esposa fugitiva fizesse por alli escala para o
cubiculo de Santa Clara.

       *       *       *       *       *

Avisado Alvaro de Abreu que sua mulher desapparecera da quinta de Cerva,
deixando os filhos com recommendação ás amas que os entregassem ao pae,
não se affligiu desesperadamente. Sabia que Irene suspirava pelo
convento, e que o abbade, confidente d'ella, era o agente d'esse plano.
Procurou o abbade na sua residencia, e perguntou-lhe, carranqueando,
onde estava a doida.

--Não sei, sr. Abreu.

--Não mangue commigo, abbade... Em qual convento está Irene? O sr.
tratou disso, foi a Braga, fallou ao deão, etc.

--Sem duvida; mas a sr.^a D. Irene, quando foi procurada para entrar no
convento de Santa Clara de Coimbra, já tinha sahido da quinta.

--Não me conte lerias, abbade!--retorquiu sarcasticamente o bacharel--Eu
estou a ler-lhe na alma. Irene vai requerer o divorcio, guiada pelos
seus conselhos.

--Não é verdade, sr. Abreu--atalhou o abbade.

--Não me desminta. Que interesse tem o sr. pastor de almas em insinuar a
desordem no seio de uma familia?

--Já disse a v. sr.^a...

--O sr. é tolo! Parece que não tem amôr á pelle... Repare no que lhe
digo: se a justiça, a requerimento de Irene, me inquietar, quem paga as
custas é o sr. abbade de Santa Eulalia. Fica avisado.

--Mas... sr. Abreu... juro-lhe pela sagrada hostia...

--Não me fio em hostias!... Padres! corja de marôtos! cuidam que estamos
ainda nas trevas do absolutismo!... Fica avisado, entende-me?

E sahiu tinindo rijo com as esporas no pavimento e dando estalos com o
chicote.

O abbade era uma congestão de pavor, com o espirito estrictamente
necessario para cogitar em transferir-se a outra abbadia.

N'esses dias de sobresalto, escrevêra elle a José de Almeida,
contando-lhe _as suas colicas_ em linguagem piccaresca. Mais egoista que
caritativo, dava ao diabo do inferno a tonta da Irene, e perguntava onde
iria parar aquella extravagante.

_Quanto a mim_--aventava o solerte abbade--_a mulher está ahi no Porto,
sob a protecção da bandeira ingleza, em quanto eu cá estou debaixo do
cacete portuguez do marido. Ella muitas vezes me disse que tinha ahi
paladino. Procure-a v. s.^a; e, se tiver modo de lhe transmittir os meus
cumprimentos pela bestialidade que fez, peça-lhe que não demande o
marido, visto que as custas já eu fui citado para as pagar em moeda de
costella. Entretanto, diligenceio escapulir-me d'aqui. Está vaga uma boa
abbadia no Alto-Minho. Vou requerer a mudança, esperançado no valimento
de v. s.^a. O deputado do circulo hade fazer-me guerra, porque eu laboro
nas fileiras da Rainha e Carta, e votei contra elle; mas, repito, conto
com v. s.^a e com o José Bernardo. Não me desconviria n'esta occasião um
canonicato em Braga, e já m'o offereceram os srs. Cabraes em 1850: hoje
torço a orelha... Ah! femeaço, femeaço! Quando a politica me agourava
uma mitra, as mulheres far-me-hiam regeitar o chapeu de cardeal.
Mulheres, peores que o diabo, diz o Ecclesiastes. Devia de estar velho
quem disse isto... Finalmente, agora, em remate de cantiga, vem essa
doida da Irene perturbar o meu repouso!... Quem me mandou a mim
endireitar tuertos, se ella já estava retorcida!? etc._

José de Almeida, contando com a fatuidade de Jacques Smith, mostrou-lhe
a carta do abbade, e perguntou-lhe se elle podia informal-o.

Smith riu á farta das graçolas do padre, encaracolou as guias do bigode,
estirou trez vezes os braços com sacudida elegancia, assentou a gola do
fraque decimo nono, fez meia volta sobre o tacões, enclavinhou os dedos
alisando os vincos das luvas, e fallou d'esta arte:

--Eu te digo. É uma pobre rapariga. Deixei-a, como sabes. Escreveu-me
sempre. Respondi-lhe de vez emquando. Quiz fugir á mãe. Pediu-me que a
fosse esperar a Guimarães. Dissuadi-a de tal parvoice. Desesperou-se,
quando soube que eu fôra para Pariz, e casou-se por despeito. Que
estupidez! uma mulher com duzentos contos! Cheguei de Pariz, e encontrei
uma carta de Irene, escripta na vespera do casamento. Era um _adeus_ com
raiva e lagrimas. Dizia que não lhe importavam as consequencias...--que
se o marido a matasse, Deus me pediria contas. Compadeceu-me esta
tolice! Passados dois annos, escreveu-me uma historia deploravel de
dores intimas. É victima do amor que me teve. O marido mata-a
lentamente, e atormenta-a com o meu nome. Respondi-lhe em nome supposto,
com pezar, com dó, com saudade, queres que te diga? amando-a!...
Caprichos do coração... Primeiramente, aconselhei-a a que se separasse
do bruto; depois approvei o refugio do convento; por fim, quando ella me
disse: «vou suicidar-me», fui buscal-a. Andei cavalheiramente?

--Com toda a certeza. A ter ella de se matar, fizeste bem. Salvaste-a da
morte e das penas eternas que esperam os suicidas--applaudiu Almeida,
casquinando frouxos de riso que eram uma satanica belleza na physionomia
d'elle.

--Estás a gracejar?--volveu o outro com aprumo entre inglez e portuense.

--Pois tu fallas tão funebre que eu deva ouvir-te com as lagrimas nos
olhos? Rio-me dos adverbios que eu e tu usamos n'estes cazos.
_Cavalheiramente_! Fôste buscal-a _cavalheiramente_! E, se tivesses
cazado com ella, na occasião em que a comparavas á melancia fresca e
indigesta, com que adverbio celebrarias a tua acção?...

--Cazar!... por que não cazas tu?

--Isso é outra questão...

--É a mesma: por que não cazas tu com...

E recenceou meia duzia de nomes tão respeitaveis presentemente que só
cada um de per si bastaria para desbotar o pudor das Porcias e
Cornelias.

José de Almeida, em verdade, no terreno da morigeração, estava
deslocado. Mudou sensatamente de rumo; e, voltando ao ponto, disse:

--Que queres que eu responda ao abbade?

--Dize-lhe que D. Irene está commigo; e que o diga ao marido, se isso
convier á sua defeza. Quanto a demandas, que não se assuste o selvagem
nem o abbade.

Fez uma pirueta congenial, acenou ao jockey, sentou-se de um pulo no
coxim do _mail-coach_, e silvou a pita do pingalim na crina dos alasões,
que sahiram corveteando.

--Ahi vai um perfeito feliz!--dizia a mocidade portuense verminada de
invejas.

Seria um pouco mais feliz que um mendicante sadío, se não tivesse um
aneurisma a arfar-lhe no coração. Compensações.

       *       *       *       *       *

O abbade, recebendo a resposta do portuense, procurou Alvaro de Abreu, e
disse-lhe:

--Lamento a desgraça de que não tenho a minima culpa. A sr.^a D. Irene
está... onde a levou a fatalidade. Se V. S.^a me admitte um conselho,
não se divulgue tal desgraça.

E, contando-lhe com melindrosos rodeios que D. Irene vivia com Jacques
Smith, offereceu-se para intervir no remedio d'este escandalo.

--Como?--interpellou Alvaro iradamente.

--Meditarei no modo de a encaminhar ao convento.

Abreu ringiu os dentes e rosnou:

--O senhor, se não fosse uma besta, seria um canalha que vem aqui
avisar-me da infamia d'essa mulher!...

--Oh senhor!--exclamou o abbade conturbado do impeto do fidalgo--Pois eu
venho participar-lhe...

--O que? que vem o sr. participar-me? que estou deshonrado? Ora ponha-se
no meio da rua antes que o despeje pela janella! Quem perdeu, quem
prostituiu essa devassa foram os seus conselhos...

O abbade limpava o suor, e gaguejava.

--Rua!--bradou Alvaro--e mude de terra, quando não... faço-o esfollar.
Vossê teve quinhão nas devassidões da mãe: que lhe importa a devassidão
da filha?

Era uma seva calumnia, propalada por Alvaro de Abreu, e acceite pela
opinião publica. O abbade então chorou, ergueu a fronte com arrogancia,
e bradou:

--O sr. infama as honradas cinzas de sua sogra! Eu não posso vingal-a,
mas Deus nos vingará, a ella e a mim!

--Fora, hypocrita! rua!

O padre sahiu aturdido. Zuniam-lhe os ouvidos, e congestionava-se-lhe o
sangue na cabeça.

E, desde esta hora,--dizia elle--nunca mais teve saude nem descanso.
Apagou-se-lhe a clareza e serena satisfação da vida. Fechou a aula de
latim. Insulou-se da convivencia dos amigos. Tinha cincoenta e seis
annos. A philosophia socratica não bastava a robustecer-lh'os contra os
abalos da religião de Jesus. Entrou-lhe no espirito a memoria severa do
seu passado licencioso. Pezares, abafados pela duvida, exulceraram-se em
remorsos. Era o assombro dos freguezes. O relampago da fé abrazara-o.
Fez-se missionario, e, no pulpito, desentranhava a invencivel e
penetrante eloquencia das lagrimas.

Acaso vi o nome d'esse padre na lista de missionarios que uma gazeta
injuriava. Communiquei o espantoso achado a José de Almeida.

O meu amigo escreveu-lhe. Na volta do correio, a resposta dizia assim:
_O desgraçado, a quem escreveis, morreu. Subsiste um penitente a
rogar-vos de mãos postas que, antes do inverno da vida, offereçais a
Deus as vossas lagrimas em desconto das que fizeste chorar_.

--Que celebreira!--disse Almeida.--Quem havia de esperar isto d'um padre
tão patusco!

E mais nada.--_Celebreira_! Que desabrimento com umas ingentes dôres,
dobradamente deploraveis, se são quimeras!

Eu, de mim, comprehendi aquella transformação, porque decifrara os
segredos d'ella em minha alma. Aos vinte e um annos estudara eu
theologia, com o proposito de ir missionar entre os vituperados da
loucura da Cruz. Recahi, propellido pela zombaria do mundo; mas aprendi
a não zombar.

       *       *       *       *       *

Por aquelle tempo, um cavalheiro de Basto, o sr. Paulino Teixeira
Botelho, murava um terreno lavradio que nos annos anteriores fazia parte
da feira de S. Miguel, em Refojos. A politica de campanario introduzira
a sua garra n'esta contenda de propriedade. O povo, acirrado pelos
adversarios politicos do sr. Paulino Teixeira, ameaçara derribar o muro
e invadir a propriedade a ferro e fogo. O proprietario, forte do seu
direito, e bravo de seu natural, acceitou a luva, aguerrilhou creados e
cazeiros, e avisou as authoridades que tomaria sobre si o desempenho dos
deveres que incumbiam aos fiscaes da segurança publica.

Os amotinados eram, pela maior parte, jornaleiros, soldados com baixa, a
ralé infima das aldeias, poucos lavradores e alguns cazeiros de cazas
afidalgadas. Entre estes, sobrepujavam na investida e na bravura da
excitação um Manoel Fialho, que havia sido lacaio de Alvaro de Abreu, e
áquelle tempo era seu feitor em duas quintas nas margens do Tamega. Fôra
elle quem arremettera primeiro ao muro, e aperrara um bacamarte ao peito
de um creado da casa aggredida.

Rompeu a espingardaria, menos trovejada que o alarido da multidão. As
balas zuniam na ramagem dos castanhaes. Milhares de pessoas, de envolta
com o gado espavorido, despejavam a feira. O povo inerme açodava com o
alarido os combatentes. Dos de fora, alguns cahiam feridos, outros
baqueavam sob os muros derruidos.

O mais pimpão, Manoel Fialho, cahira atravessado por um pelouro do peito
ás costas. Acudiram a levantal-o do chão lamacento alguns dos seus
sequases.

--Quero confessar-me!--rouquejava elle.--Levem-me onde esteja um
padre!... depressa que morro!

Olharam em redor, e viram um sacerdote que, de mãos postas, sem receio
das balas que lhe sibilavam perto, pedia ao povo que se retirasse.

--Além está o sr. abbade de Santa Eulalia!--exclamou um dos amparadores
do agonisante.

Outro correu a dar lhe parte de que estava alli um feitor do fidalgo de
Refojos mortalmente ferido que se queria confessar.

--Trazei-m'o depressa, eu o espero n'esta primeira casa...--disse o
abbade.

O moribundo, nos braços de dois homens, entrou para um quarto onde o
esperava o confessor. A confissão e a vida duraram-lhe dez minutos.

       *       *       *       *       *

Alvaro de Abreu, quando, ao fim da tarde, lhe disseram que Manuel
Fialho, antes de expirar, pedira um confessor, e morrera nos braços do
abbade de Santa Eulalia, accusou nas alterações de côr e fixidez dos
olhos alvoroço afflictivo.

Os dois filhinhos, conduzidos pela dispenseira, iam beijar a mão do pae
para se deitarem. Alvaro quedou-se entre elles, prostrado em uma
cadeira, abstrahido, emquanto as creanças lhe contavam a batalha da
feira, imitando a troada dos tiros com a bocca, e a estrategia com umas
manobras infantilmente graciosas. A dispenseira, cuidando que o pae se
entretinha com os pequenos, retirou-se admirada. Era raro deter-se
Alvaro cinco minutos com os filhos; e, quando elles se demoravam,
afastava-os desabridamente.

N'este comenos, annunciou-se o abbade de Santa Eulalia.

Abreu levantou-se de golpe, fincou na cabeça os dedos engriphados, e
resmoneou:

--É certo...

O creado, que dera o annuncio, esperava a resposta.

--Que entre!... e leva estas creanças...--disse Alvaro.

O creado foi á sala de espera, e fez signal ao abbade que entrasse pela
porta da direita.

--Deixe ir commigo os meninos--disse o abbade, tomando-lh'os cada um em
sua mão.

As creanças, pondo no rosto caricioso do velho os seus grandes olhos,
iam alegremente, saltando sobre um pé, e floreando as suas espingardas
de cana fabricadas expressamente para darem aos creados um simulacro do
tiroteio d'aquelle dia.

--Com licença. Louvado seja nosso Senhor Jesus Christo--saudou o abbade
á entrada da sala introduzindo as creanças.

--Entre!--disse o fidalgo.

O missionario, entrado á salla, fechou a porta, e disse:

--As creanças podem entrar por que são anjos, e não entendem as nossas
palavras. Em nome d'ellas, tenho de pedir: e ellas pedirão commigo.

Alvaro de Abreu escutava-o em pé, immovel, hirto. O abbade mal o
divisava na quasi escuridão da vasta quadra, assombrada de castanheiros
seculares.

--Sr. Alvaro de Abreu,--proseguiu o abbade com a voz tremente--ouvi de
confissão, em artigo de morte, Manuel Fialho, o homem que matou João
Pacheco, com a pancada de um mangual na cabeça, e á traição, na _Barroca
das duas fontes_, ao anoitecer do dia 11 de novembro de 1851. Este homem
só comprehendeu e temeu a justiça divina quando se sentiu varado por uma
bala. Eu venho rogar a V. S.^a que comprehenda e tema a justiça divina
manifestada na morte violenta de seu creado Manuel Fialho, homicida do
innocente João Pacheco. Não lhe direi que se tema da justiça humana, por
que o unico homem que podia accusal-o é morto; e eu não o accusarei na
terra; porém, se Deus chamar a minha alma a depôr no tribunal divino,
direi que de mãos postas e na presença de seus filhinhos, lhe pedi que
se curvasse pela contricção e pela penitencia aos pés de Jesus Christo
misericordioso.

E ajoelhou aos pés de Alvaro com as creancinhas adiante de si.

--Levante-se, sr. abbade!--balbuciou o marido de Irene, erguendo-o nos
braços--Eu sou um miseravel, sou indigno da sua estima... Perdoe-me as
injustiças que lhe fiz...

--Não tenho que perdoar... Adeus, anjinhos--disse o padre beijando as
creanças--Ide ver-me algumas vezes á residencia, que eu vos ensinarei a
orar a Deus por vosso pae e... por vossa mãe.

--A mamã? onde está?--perguntou o menino mais velho que tinha quatro
annos.

O abbade passou o canhão da batina pelos olhos, e sahiu.

A voz lamentosa do padre soou no dezerto, as lagrimas cahiram sobre o
penhasco esteril.

Alvaro desdava as roscas da serpente do remorso sem grande esforço: era
atheu. Bazofiára sempre de _racionalista_; mas da sua razão era excluido
Deus. Acreditava, tal qual vez, nas vantagens sociaes da virtude, e nos
perigos do crime; mas para alem da torrente negra da morte não acceitava
se quer a discussão absurda.

Apalpava-o agora duramente a desgraça. Havia um homem que podia
accusal-o de assassino covarde; tinha uma esposa adultera que passeava
ao grande sol das praias e das praças o seu escandalo; rareavam á volta
d'elle os cavalheiros considerados; acanalhavam-no os scelerados que se
acolhiam ás suas quintas; as authoridades judiciarias, açuladas pela
imprensa, aguilhoavam os regedores a assaltarem-lhe as cazas.
Perderam-lhe o respeito, e até nos periodicos o amalgamavam com os
hospedes, invocando os manes dos condes de Regalados.

Convulsionavam-no phrenesis, exasperos que ninguem mitigava com o amor
ou com os linimentos da amisade. Os risos das creanças irritavam-lhe a
mysantropia. Era-lhe impossivel a quietação, e baldado o paliativo das
deleitações brutaes.

Deliberou viajar. Não podia vender quintas sem o consenso da mulher.
Hypothecou-as com enormes uzuras. Embolçou dinheiro á farta para
demoradas viagens, e sahiu, entregando os filhos a uma cunhada, esposa
do irmão morgado.

Desde 1857 a 1861 triumphou a vida nas principaes cidades da Europa.
Conheceu todos os salões e todos os antros. Viu a devassidão no
espavento das pompas do Louvre, onde as duquezas apresilhavam diamantes
nos bicos dos peitos, e remirou-se nos grandes espelhos dos bordeis em
que as mulheres, nuas como as bacantes, se espreguiçavam sobre diwans,
com os seios aljofrados de perolas, e os cabellos aromatisados de
grinaldas de jasmim. Em Veneza, Milão, Pariz, Londres, Madrid, em todas
as cidades capitaes comprava um _daumont_, dois cavallos, e uma mulher
das mais cotadas: ás vezes, comprava duas mulheres e quatro cavallos.
Chamavam-lhe _conde_, por que nos seus trens fizera pintar a corôa dos
Abreus, condes do Pico de Regalados.

D. Irene viajava simultaneamente com Jacques Smith. Uma vez, no Prado,
em Madrid, o _phaetont_ de Smith perpassou pelo _break_ de Alvaro que
boleava. Refestelavam-se nos coxins duas francezas do café-concerto.
Jacques acotovellou Irene, e disse-lhe risonho:

--Aos pares, hein? e tu a imaginal-o a semear calondros em Basto...

Irene chorava.

--Por que choras?

--Por meus filhos que não tem pae, nem mãe, e hão de ficar pobres.

Alvaro avistára a mulher, cravara-lhe os olhos indecisos, reconheceu-a,
e não tenho a certeza se lá no intimo de sua pessoa lhe chamou
_descarada_.

É natural que sim.

O _honesto_ era elle.

       *       *       *       *       *

Em 1862, um padre que administrava as quintas de Alvaro de Abreu não
achou uzurario que lhe adiantasse mais dois contos de réis que o fidalgo
pedia com urgencia. Um legitimista minhôto que visitara D. Miguel na
Allemanha propalou que vira Alvaro de Abreu em Florença muito doente,
descarnado, tossindo, com o peito retrahido, as gengives brancas e as
orelhas seccas. Os uzurarios enfiaram de pavor. Se elle morresse, a
viuva e os orphãos, alegando lesão enormissima e illegallidade dos
contractos, levantar-se-hiam com os rendimentos hypothecados das
propriedades. Alvaro esperava em Londres a lettra. O padre-mordomo
enviou-lhe algum dinheiro, desculpando os capitalistas com o boato da
sua infermidade.

Resolveu repatriar-se, a fim de restabelecer-se no Minho. A sua doença
era o corollario da libertinagem: a cachexia. Os medicos francezes
aconselharam-lhe as aguas mineraes de Cauterets nos Pyrineus. Mudou de
rumo. Era-lhe grata a esperança de voltar á patria restabelecido e gordo
para desmentir o legitimista. Bebeu as aguas sulphuricas de Cauterets,
consummou o esphacelamento dos intestinos baixos, e morreu
medicinalmente. Alem de um titular portuguez que lhe assistiu na morte,
e enviou a Portugal a noticia, ninguem, por affecto ou caridade, lhe
humedecêra os beiços na derradeira febre. Contou o titular a José de
Almeida que o tal Abreu tinha um pasmo de olhos horrendo quando
agonisava.

Veria o espectro de João Pacheco?

       *       *       *       *       *

O abbade de Santa Eulalia rezava uma missa por alma de Alvaro de Abreu,
quando D. Irene, trajada de luto rigoroso, entrou na casa de Refojos,
onde esperava encontrar os filhos. Disse-lhe o mordomo que os meninos,
por direcção do abbade, estavam a educar no collegio de Landim, oito
leguas distante. Escreveu ao missionario, pedindo-lhe que lhe levasse a
sua amisade e o seu perdão. O velho, que ella não vira nos ultimos nove
annos, era tão acabado, tão decomposto que Irene chorava, comparando-o
ao festivo e juvenil abbade que radiava alegria na casa de Athey.

--Afinal...--murmurou o padre.

--Aqui estou...--soluçou Irene.

--Quer vêr seus filhos?

--Sim...

--Vou mandal-os buscar. Cuidei d'elles, porque sua cunhada não podia
soffrêl-os; e as creancinhas amavam-me... É preciso, minha senhora,
salvar o que poder d'esta casa por amor d'estes meninos. Com ordem e
economia, se Deus me der vida, tudo se fará.

Irene apressava o inventario, resgatava as vendas illicitas, annullava
hypothecas, afanava-se em liquidar o que devia pertencer-lhe na meação
do casal e dos rendimentos absorvidos na totalidade pelo marido.

Observara-lhe o abbade que um tamanho apuro de contas iria, sem ella
querer, cercear o patrimonio dos filhos.

--Se V. Ex.^a--accrescentava elle--tenciona reduzir as suas despezas ao
viver aldeão, sobra-lhe tanto do que percebe da sua metade que talvez
possa deixar intactos os rendimentos dos orfãos.

--Tenciono ir viver no Porto...--explicou ella.

--Ah!--exclamou o abbade--com que então, minha senhora... _ainda não_?

--_Ainda não_?... o quê?

--Nem o grito da consciencia? nem o grito do exemplo? Nem a presença de
dois filhos? Bemdito seja Deus!

Este dialogo constrangido foi cortado por um servo que entregava a
correspondencia.

--Não veio carta?--perguntou ella agitada.

--Não, minha senhora, veio sómente esta folha.

Era o _Commercio do Porto_. D. Irene atirou-o sobre uma jardineira com
enfado, e encostou a face á palma da mão, carregando o sobr'olho.

O abbade chamára o menino mais novo, que tinha oito annos, e disse lhe:

--Vem cá, Manoel Philippe, lê-me aqui as noticias d'este jornal; quero
que tua mãe veja que lês correctamente.

E deu-lhe o jornal aberto. A mãe parecia estranha ou aborrecida.

O menino procurou a secção de noticias, e leu:

     OBITUARIO. _Hontem, pelas sete horas da manhã, desappareceu do
     numero dos vivos um dos mais estimados e gentis cavalheiros d'esta
     cidade. Uma aneurisma no coração arrebentou fulminantemente o sr.
     Jacques Smith, que_...

Irene levantou-se arrebatada, bradando:

--Que é? que é?

E, pegando no jornal que tremia nas mãos do menino assustado, leu as
primeiras linhas que ouvira lêr, premiu o coração asfixiado pela
angustia, rolou nas orbitas os olhos torvos sob a palpebra convulsa, e
cahiu sem alentos.

--Porque foi?!--perguntou afflicto o menino ao abbade--Ella morre?

--Não, Manoel Philippe. Isto não ha de ser nada. Tua mamã conhecia esta
pessoa que morreu, e.... teve pena.

Depois, dobrou o _Commercio do Porto_, e metteu-o na algibeira da batina
para que o filho de D. Irene d'Abreu nunca mais tornasse a lêr o nome de
Jacques Smith.

       *       *       *       *       *

Em 1871, Manuel Philippe de Abreu e seu irmão Jeronymo de Abreu e Lima,
ambos terceiranistas da universidade, vieram ás Caldas de Vizella, com
sua mãe, a sr.^a D. Irene. Esta illustre e respeitada fidalga de Athey
não contava ainda cincoenta annos, e estava hemiplegica--metade do corpo
paralytico. Era transportada em cadeira de rodas ao _Banho da bomba
forte_. Uma vez quiz ir até á _Ponte-velha_, que não vira desde 1851.
Defronte da ilhêta onde em 15 de junho d'aquelle anno Alvaro de Abreu e
João Pacheco trocaram os fataes gracejos, mandou parar a cadeira.
Quedou-se longo tempo absorvida na contemplação do salgueiral; depois,
enxugou duas lagrimas. Que lagrimas, ó leitor! Os filhos perguntaram-lhe
por que chorava; e ella, estrangulada pelos soluços, contorcia-se,
pedindo-lhes que a tirassem d'ali, que sentia já o frio da morte.

Levaram-na apressadamente para o quartel em uma das casas situadas no
local chamado o _Medico_. Ao nascer do sol do seguinte dia dobravam a
finados sinos de S. João das Caldas. A fidalga de Athey expirara nos
braços dos seus dois filhos.

Perguntei ao capellão d'esta senhora se ainda era vivo o abbade de Santa
Eulalia, muito affeiçoado á senhora fallecida.

--Não, sr. Esse santo morreu ha trez annos: a paixão da fidalga foi
tamanha que cahiu na cama; e, quando se quiz erguer, estava leza. Os
meninos ainda choram por elle.


CONCLUSÃO

Das sete pessoas que, em junho de 1851, sestiaram no cinseiral do
Vizella, vive sómente uma, que sou eu.

O conselheiro José de Almeida expirou, no inverno passado, na _Casa da
saude do medico Ferreira_, do Porto.

Na derradeira vasca do longo paroxismo, circumvagou os olhos baços á
volta de seu leito. Era irmão, era esposo e era pai. Não viu a irmã, nem
a esposa, nem o filho. Finara-se no desamparo e desamor dos indigentes a
quem a caridade dos hospitaes empresta um catre ainda quente de outro
cadaver. A sua existência havia sido um continuado festim: o que houve
formidavelmente serio na sua vida, foi a morte. Morrem assim os que não
radicaram, em annos vigorosos, a santa amizade no coração da familia.

José de Almeida não podia ter uma desvellada amiga, porque, nos seus
annos de gentilissima juventude, espesinhára as mulheres que o adoravam
com aquella cegueira mysteriosa das paixões absurdas; e, já na sasão
glacial da vida, esposara uma que o acalcanhou com o desprezo d'elle e
de sua propria infamia, quando lhe viu a epiderme arrugada e o bigode
branco.

A sociedade recebera-o e bajulara-o quando odios e invejas lhe denegriam
o nome, aureolado de aventuras amorosas. Á beira do seu leito de
infermidade esqualida, e do seu ataude sotterrado na vala commum, eram
seis os restantes dos seus centenares de amigos.

A noite era de outubro. O nordeste assobiava nas gradarias dos tumulos,
e ramalhava os cyprestes gotejantes do zimbro da tarde.

Nos camarotes tepidos do theatro lyrico, fallava-se do defunto; e
algumas senhoras idosas, refluindo vinte annos na corrente da sua vida
remançosa, olhavam para a cadeira onde então José de Almeida se
assentava. E algumas d'essas, voltando o rosto, escondiam as lagrimas
rebeldes, para não serem vistas dos maridos e das filhas.

E perdoaram-lhe.


S. Miguel de Seide, 26 de agosto de 1875.




II

O COMMENDADOR


     É tão fatalmente séria a vida que o soffrêl-a, sem misturar a
     tragedia com a comedia, seria impossivel.

    H. Heine, _Reisebilder_.




A D. Antonio da Costa




Em testemunho da regalada leitura que v. ex.^a me deu com o seu MINHO,
lhe offereço uma das novellas de cá. O Minho tem o romanesco da arvore e
o romance da familia. A paizagem suggeriu-lhe, meu caro poeta, as prozas
floridas do ridente livro. O seu estylo tem a macia luz do luar das
noites estivas, e o cadencioso murmurio das ribeiras onde o ceu
estrellado se espêlha.

O Minho lucra muito, visto assim de passagem, na imperial de uma
diligencia, lá muito no galarim do tejadilho, onde as moscas não se álem
a ferretoar-nos a testa e a sevandijar nos os beiços convulsos de
lyrismo.

Viu v. ex.^a perfeitamente o Minho por fóra: as verduras ondulando nas
pradarias, os jôrros de agua espumando na espalda dos outeiros, os
fragoêdos ás cavalleiras dos milharaes, a amendoeira a florejar ao lado
do pinheiral bravio, as ruinas do paço senhorial com os seus tapetes de
ortigas e guadalmecins de musgo ao pé da chaminé escarlate e verde do
negreiro a golphar rôllos turbinosos de fumo indicativo de pannellas
grandes e gallinhas gordas, lardeadas de chouriços. Simultaneamente,
ouviu v. ex.^a o som da buzina pastoril resonando a sua longa toada nas
gargantas da serra; viu os espantadiços rebanhos alcandorados nos
espinhaços dos montes, e os rafeiros á ourela das estradas com os
focinhos nas patas dianteiras, orelhas fitas e olhar arrogante. Reparou
de certo na pachôrra estoica do boi sevado, que parece estar
contemplando em si mesmo a metempsycose em futuro cidadão de Londres
mediante o processo do bife. Tudo isto, que é a fórma objectiva do Minho
romantico, viu v. ex.^a a fóra o mais que aformosea o seu livro, os
encarecimentos, as lisonjas, as feitiçarias da arte com que v. ex.^a
disputa primores á natureza.

Mas o que D. Antonio da Costa não teve tempo de ver e apalpar foi o
miôlo, a medula, as entranhas romanticas do Minho; quero dizer--os
costumes, o viver que por aqui palpita no povoado d'estes arvoredos onde
assobia o melro e a philomella trilla.

Ah! meu amigo! Romances, tecidos de cazos candidos e innocentes, apenas
os fazem por aqui os passaros em abril quando urdem e afôfam os seus
ninhos. O restante dos animaes não oviparos vista-m'os v. ex.^a no
Catarro ou no estabelecimento da famosa senhora Cecilia Fernandes, da
Travessa de Santa Justa, que eu lh'os farei representar ao vivo no
proprio coração do Minho--entre Fafião e S. João do Kalendario--as
scenas contemporaneas da fina _Baixa_ e peores.

A peste, que infeccionou os costumes d'estas aldeias, não sei decidir se
veio das cidades para aqui, se foi d'aqui para lá. Sá de Miranda
considerou isto tudo estragado quando viu

                  _correr pardáos
      Por Cabeceiras de Basto_.

Imagine v. ex.^a o que terá feito o esmeril do progresso a descodear e a
brunir este gentio ha tres seculos! Não faz idea, meu amigo! Até a
photographia, abarracada nas cabeças dos concelhos, tem feito collaborar
o sol e o clorureto de prata na relaxação dos costumes. Os «conversados»
permutam retratos, e beijam-se reciprocamente em papel-cartão, aguçando
o instincto da natureza bruta. Verdade é que os pastores minhotos, ha
trezentos annos, já traziam ao pescoço os retratos das pastoras pintados
em madeira, como se deprehende d'estes versos de Diogo Bernardes, o
rouxinol do _Lima_.

      Pendurei n'um salgueiro a minha lyra
      Ouvil-a ao som do vento é uma magua,
      Em logar de tanger geme e suspira.
      Marilia que _pintada n'uma tabua
      Aqui no seio trago_, tambem chora;
      Seus olhos dão-me fogo, e os meus dão-lhe agua.

Não obstante, o fôgo, que acendrava a paixão nos peitos d'aquelles
Bieitos e Melibeus das eclogas, era uma especie de lume sacro que velava
a virgindade... dos retratos pintados em tabua. Por quanto, deve v.
ex.^a lembrar-se que os pegureiros do Minho taes fornalhas faúlavam do
peito que os visinhos iam lá prover-se de lume para cozinhar a ceia,
como se collige das lastimas d'este pastor do canoro Bernardes:

      A viva chamma, aquelle intenso ardor
      Que brando sinto já pelo costume,
      De noite de si dá tal resplandor
      _Que mil pastores vem a buscar lume_.[3]

É verdadeiro e bonito. Os mestres da vernaculidade mandam que a gente
leia isto, e mais os outros lyricos seiscentistas--caldeirada de favas
classicas com as quaes o intendimento se opila e encrua; mas a lingua
cresce.

Como quer que seja, entre os retratos em tabua quaes os pintava S.
Lucas, e o retrato em photographia aperfeiçoado por Fox Talbot, mede a
distancia que ethnologicamente sepára as Nizes e Filis de Diogo
Bernardes d'estas Joannas e Thomazias que hão de florejar nas _Novellas
do Minho_.

Ouço dizer que a via-ferrea, sulcando o seio virginal d'esta provincia,
afugentou com o estridor das suas azas os pardaes, a mala-posta e a
Probidade.

É possivel. Os caixeiros do Porto, sadíos e sanguineos, com as suas
luvas amarellas, e todo o verniz, que lhes coube em sorte, nos pés,
entraram Minho dentro, e derramaram a dissolvente chalaça nas aldeias.
Por outro lado, a raça turdetana de Braga fechou pelo norte a barreira á
innocencia espavorida. A cidade santa de nossos pais e dos conegos, a
esposa de Fr. Bartholomeu dos Martyres, Braga despeitorou-se,
desnalgou-se, sofraldou as saias e mostrou a liga sobre o joelho desde
que um jornal da terra lhe chamou _segunda Pariz_. Eu não reparo na
desproporção do confronto, quando alli me vejo no _Café-Faria_, a
sentir-me arquejar em _uma das arterias do grande corpo da civilisação
chamada Europa_, como lindamente diz o sr. Vaz de Freitas na sua _Guia
do Viajante em Braga_, por seis vintens. Tudo me leva á persuasão de que
me acho na segunda Pariz, quando a _Guia_ me assevera com exactidão,
ainda não contraditada pela inveja, que Braga encerra nos seus muros
sete procuradores de cauzas, e que ahi (pag. 28) os barbeiros
_superabundam_. Fazia-se ainda pelos modos uma terceira Pariz com a
superfluidade dos barbeiros!

A cathegoria modesta, em que o jornalista afidalgou a sua terra,
justifica-se principalmente nas estalagens. Ahi, é ahi onde o viajante
se sente saturado de Pariz, a ponto de, cuidando que accorda alvoroçado
pelas campainhas electricas do Grande Hotel no _Boulevard des
Capucines_, acha-se em Braga, no hotel-Aveirense, largo dos Penêdos.
Avantajam se ainda ás hospedarias parisienses, no ponto de vista
zoologico, os hoteis da princeza do Minho. Os forasteiros dados a
pesquizas de anatomia comparada, podem, mediante uma gratificação
rasoavel, passar as suas noites em vigilias uteis estudando insectos sem
queixos e sem azas, de membros articulados, consoante a classificação de
Cuvier. Ali se lhes offerecem exemplares em barda da pulga braguez
(_Pulex bracharensis_). Convencer-se-ha que as seis pernas d'este
parazita são deseguaes, o que assim se faz mister para o salto. Não
duvidará que elle tem o bico alongado com duas cerdas, e guarnecido na
baze de dois palpos escamosos. Se reparar bem nas pulgas maiores,
dissipará suspeitas de que tem azas que realmente não tem as do _Hotel
Leão d'ouro_ nem as do _Hotel-transmontano_. Encontram-se n'estes dois
estabelecimentos larvas das mesmas, cylindricas e sem pernas. O olho
armado póde observal-as a mudarem-se em nymphas, que não são exactamente
umas de quem cantava Garret:

      As _nymphas_ invoquei do Tejo ameno
      Que em mim creassem novo engenho ardente,
      Etc.

      Cam. C. IV.

Nem as outras de quem dizia o épico:

      Caem as _nymphas_, lançam das _secretas_
      Entranhas ardentissimos suspiros...

      Lus. Cant. IX.

Verdade é que o accessorio das _secretas_, ínclusas no verso de Camões,
deixa suppor que elle quizesse fallar das _nymphas_ dos hoteis de Braga.
Que estude o caso o sr. visconde de Juromenha, e não o desampare a
Academia Real das Sciencias.

Nos hoteis de Braga, finalmente, dão-se as mãos o espavento das modernas
industrias, as refinações da decoração, a obra prima de marcenaria e
vidraria,--um luxo levantino, como em recamaras de Nababos--e sobre tudo
a hygiene expansiva de saude a dar cambalhotas na brancura virginal dos
lençoes; e á mistura com tudo isto resalta não sei que de archeologico
n'aquelles quartos! A gente, quando vae deitar-se, imagina que n'aquella
mesma cama dormiu na noite passada S. Pedro de Rates ou Gonçalo Mendes
da Maya.

Por fora das estalagens ainda ha proeminentissimas feições de Pariz em
Braga. O _Jardim_, por exemplo. V. ex.^a já esteve no jardim?
Impressionaram-no com certeza uns rumores, «ora suffocados, ora
estrepitosos» que ali se escutam nos domingos de tarde? Tambem a mim.
Não pôde soletrar em sons articulados aquelle confuso borburinho? Nem
eu. Quem explica o phenomeno, trivial nos _Champs-Elysées_ e no _parc de
Monceau_, é o já citado sr. Vaz de Freitas na sua _Guia do viajante em
Braga_, por seis vintens, pag. 41. A coisa é isto: _O chilrear das
creanças, o divanear das poetizas, o queixume somnolento dos poetas, a
conversação pezada e metalica dos proprietarios, todos estes murmurios
vagos ou alegres, suffocados ou estrepitosos_ (hîc) _enfundem uma vida
nova e excepcional ao passeio, que o tornam attrahente ou deleitoso_.
Theophilo Gauthier, o Benvenuto Celline da proza franceza, não
rendilharia com tão subtis filigrannas de phrase a explicação dos ruidos
babylonicos do _Luxemburg_. D'onde se colhe que Braga tem poetizas que
exhibem delirantemente os seus devaneios no jardim, ao mesmo tempo que
os poetas se queixam somnolentos. Pariz, tal qual. Note v. ex.^a o
contraste no sexo d'estas pessoas que bebem na Castalia: ellas
_divaneam_, apostrophando a gritos o arrebol da tarde e a brisa que
cicia e se perfuma nas cilindras; elles, cabeceando marasmados pelo opio
do _narguillé_, queixam-se somnolentos, por que não os deixam dormir as
poetisas. São homens gastos, estafados, _roués_. Sahiram do _café-Faria_
intoxicados do absyntho de Espronceda, de Nerval, de Larra e de Mussét.
Entraram no jardim com o cerebro anesthesiado, querem dormir; e ellas, á
imitação do femeaço da Thracia, projectam escalavrar aquelles Orpheus
dorminhôcos, Marcyas que ellas, filhas de Apollo, querem esfolar.
Segundo Pariz.

Ahi vê v. ex.^a a rasão dos «estrepitos» explicada na _Guia_. Pareciam
outra coisa peor.

Eu, afora isto, conheço outras analogias entre Braga e Pariz, que
estudei, sem subsidio--intendamo-nos. Ha tres mezes senti-me ali adoecer
da nevropatia, que é molestia endemica dos grandes centros de população,
onde os deleites requintam, e o fluido nervoso se desperdiça--o que
succede em Londres, em Braga, em New-York, em Pariz, quando a gente
desconhece as leis da _relatividade dos prazeres_, como diz o professor
escossez Bain. Confiando nos anti hystericos, fui comprar á botica do
sr. Pipa, na rua do Souto, um frasco de capsulas de ether-sulphurico, e
preparava-me para pagal-as com 300 rs. (um fr. e 50 cent.)--prêço
corrente no Porto--quando o praticante da pharmacia me mandou intender o
preço da droga com mais cinco tostões, e mostrou-me que o signal
arithmetico de um franco estava emendado em dois. Ainda assim,
observei-lhe que dois francos cambiados em moeda portugueza eram
quatrocentos réis. O interlocutor refutou triumphantemente a minha
objecção, allegando que em Braga dois francos eram oito tostões.

Esta physionomia da botica bracharense dá feições á terra, não da 2.^a,
mas da 1.^a Pariz. A 2.^a é a outra que os geographos ignaros nos
inculcam 1.^a. Corrija-se.

Dou de barato que as referidas poetisas do jardim consumam capsulas de
sulphur copíosamente nas suas etherisações, e que os poetas somnolentos
se despertem com ellas, não querendo usar economicamente das cocegas;
deve-se talvez ás condições especiaes das musas bracharenses o preço
superlativo dos anti-spasmodicos: assim mesmo, Pariz 2.^a não pode
arbitrariamente dobrar o valor da moeda de Pariz 1.^a, nos generos que
importa, ao mesmo passo que, no valor legal da moeda franceza, exporta
para França os seus chapeus, os seus cavaquinhos e as suas frigideiras.

Aqui tem, pois, D. Antonio da Costa, o foco do progresso que esparge
raios de luz para as aldeias septentrionaes do Minho, em quanto o Porto
alastra no sul os caixeiros contaminadores, que levam comsigo a
corrupção dos romances e as tentações do cabello unctuoso com a risca ao
meio da cabeça, lasciva como o dorso d'um gato d'Angora.

É n'este meio que eu me abalanço a esgaratujar novéllas. Ha treze annos
que apéguei por esse Minho, em cata do balsamo dos pinheiraes e das
fragrancias das almas innocentes. Diziam-me que a rusticidade era o
derradeiro baluarte da pureza, e que os lavradores do Minho, nivellados
com os saloios da Extremadura, eram os candidos pastores da Arcadia
comparados aos malandrins de Gomorrha. Um dos meus estudos, no intuito
de me habilitar para o confronto do saloio com o minhoto--da raça
sarracena com a gallega--É a historinha que lhe dedico meu nobre amigo.

De Coimbra, aos 15 de outubro de 1875.




O COMMENDADOR


PRIMEIRA PARTE

Seis de janeiro de 1832. Manhã chuvosa e frigidissima. O zimbro rufava
nas frestas envidraçadas da egreja de Santa Maria de Abbade. Ringiam as
carvalheiras varejadas pelo norte. Ao arraiar do dia, a devota dos Tres
Reis Magos, a tia Bernabé, tecedeira,--viuva do operario Bernabé, que
lhe deixára o nome e uma cabana com sua horta--ergueu-se, foi á
residencia parochial pedir a chave da egreja; e, sobraçando a bassoura
de giesta para barrer o chão, e a almotolia para prover as lampadas,
entrou no adro. Ao passar em frente da porta principal, ajoelhou,
persignou-se e orou. N'este momento, ouviu o vagir convulso e rispido de
criança. Voltou o rosto para o lado d'onde lhe parecia sahir aquelle
chôro. Não viu alguem. Espantou se.

--Jesus! santo nome de Jesus! Isto é coisa ruim!--exclamou ella,
pousando no degráo da porta a vazilha e a bassoura.

E o chorar de criança cessou.

A tia Bernabé debruçou-se na parede baixa que murava o adro, e viu entre
as grossas raizes de uma oliveira secular um embrulho de baêta azul
donde sahiu um vagido. Saltou a parede, agachou-se á raiz da arvore, e
pegou da criança, aconchegando-a do calor do peito e bafejando-a no
rosto azulado do frio. A baêta estava ensopada da chuva que escorria da
ramaria da oliveira. Tirou-lh'a apressadamente, involveu o menino no
avental, e agasalhou-o entre o seio e o farto jaqué de picotilho.
Depois, desandou para a residencia, e mandou dizer ao abbade que topára
no adro uma creança, que parecia estar a despedir.

--Pois que quer ella então?--perguntou o abbade, expondo uma parte do
nariz e metade do olho esquerdo á frialdade do ar--Que tenho eu com
isso? Que a leve a Barcellos. Aqui não ha roda de engeitados.

A criada do abbade deu o recado.

--Torne lá, sr.^a Joanna--replicou a tia Bernabé friccionando os pés
álgidos do recem-nascido com a barra da sua saia de saragôça--e diga ao
sr. padre que este menino, se morrer sem baptismo, é um anjinho do ceo
que se perde. O sr. abbade hade saber isto melhor que eu...

A creada repetiu a replica, e ajunctou:

--A tia Bernabé diz bem.--Salte d'ahi p'ra fóra, seu calaceiro!--E deu
lhe uma sonora palmada na nádega esquerda.--Um rapaz de vinte e sete
annos está ahi enteiriçado como um velho! Upa!

--Está quieta, Joanna, olha que me fazes vento!

E ella puxou-lhe pelo pé direito, que excedia o volume de tres pés; e
elle, com o outro, despedido á tôa, sacou-lhe do baixo ventre um som
tympanico de ôdre cheio.

--T'arrenego!--bradou ella, recuando com as mãos postas na parte
molestada.--Vossê atira? Tem má mânha!

--Cheguei-te?--volveu elle risonho, embiocando-se na felpuda coberta, e
encostando-se á almofada de chita que estofava o espaldar do leito.

--Que brincadeira!--queixou-se a moçoila arrufada--podia-me matar com o
couce, se me dá aqui no coração!...

E punha a mão no estomago.

--Isso não é nada, rapariga!... Olha se amúas!

--Nada, não é!... não que a barriga é minha...

--Pois tu com este frio de mil diabos, vens-me mexer na roupa, e de mais
a mais puxaste-me pelo pé do joanete que tem a frieira aberta!...

--Então dissesse-o...--tornou ella com semblante ageitado á
reconciliação--Salte d'ahi!... vá baptisar o engeitado; que, se elle
morre sem baptismo, verá que ingranzeu se levanta na freguezia. Bem
basta o que já dizem...

--Calça-me as meias de lã; mas tem cuidado que não se despegue o
emplasto da frieira.

E, em quanto a môça com geitosa meiguice lhe encanudava nas pernas
cerdosas as grossas meias alisando-lh'as ao correr da tibia, resmungava
elle:

--Quem seria a grande bebeda que engeitou a cria?

--Isso hade ser de fóra da freguezia...

--Tambem me parece... Cá não me consta... E vem-m'a cá pôr no adro!...
ah bom estadulho!...

--Fica uma coisa pela outra. As de cá tambem as levam ás outras
freguezias, quando acontece--disse Joanna.

E nomeou varias ovelhas fecundas e tinhosas, em quanto o pastor lavava a
cara no alguidar vermelho que a raparigaça lhe chegava, com a toalha no
hombro.

Ao pegar da toalha, sacudindo a cara e assoprando ruidosamente com a
sensação do frio, o abbade apertou a pôlpa da espadua á moça com ternura
felina. Este carinho confirmou as pazes. Joanna arregaçou os beiços
ridentissimos até ás orelhas, e mostrou-lhe nos dentes de brilhante
esmalte que o seu amor infinito resistira á prova do couce.

A tia Bernabé affligida, porque o menino soluçando-se esverdeava, chamou
outra vez Joanna com encarecidos rogos.

--O sr. abbade está já vestido--disse a môça sahindo á janella.--Passe
vossê por casa do tio Izidro da Fonte, e diga-lhe que vá p'ra egreja, e
deite agua na pia.

       *       *       *       *       *

O padre sahiu de casa carrancudo e bocejando. De cada vez que
escancarava as mandibulas, traçava no envazamento da boca tres cruzes
com o dedo pollegar.

A tecedeira, que o esperava no adro, abeirou-se d'elle mostrando-lhe a
cara roixa da criança. O padre olhou-a de esconso, e perguntou:

--É macho ou fêmea?

--É um menino--respondeu a viuva.

--Accenda um d'aquelles côtos--disse o abbade ao Isidro, apontando para
os sordidos castiçaes de chumbo d'um altar--A pia tem agua?

--Vem ahi o meu rapaz com o cantaro.

--Vossês são os padrinhos? O rapaz hade chamar-se Izidro, ou então
põe-se-lhe o nome do santo de hoje--observou o abbade, boquejando e
benzendo a bocca, no limiar da porta travessa onde a mulher esperava,
segundo o ritual.

--Hoje é dia dos Santos Reis--disse ella.

--É verdade--confirmou o padre, e scismou se _Reis_ seria nome ou
apellido. Não se lembrava de ter estudado esta especie.

--Os santos Reis Magos eram tres--proseguiu a tia Bernabé.

--Bem sei--acudiu o padre.

--Um chamava-se S. Belchior, outro S. Gaspar, outro S.
Balthazar--explanou a devota dos magos orientaes:--o menino póde
chamar-se Belchior, se o sr. abbade quizer.

--Eu quero tudo que vossês quizerem. Vamos a isto, que está um frio de
rachar--E, recolhendo-se á sacristia, esfregava as mãos, bufando-as com
os gazes do estomago ainda perfumados do vinho da ceia.

--Meu rico anginho, irá elle morrer na agua fria?--lamentava a boa
creatura bafejando-lhe as duas faces.

O abbade enfiou a sobrepeliz, revestiu a estola, mandou chegar o
engeitado ao baptisterio, fez um resumo do latim ceremonial, e disse:

--Vão-se á vida.

--Vou-me d'aqui ás Lagôas a vêr se a Thereza do Eido me dá o peito a
este anginho, até vêr se arranjo que algum lavrador me faça esmola de um
bocado de leite de cabra--disse a tia Bernabé.

--Então vossê não o leva á roda?--perguntou o abbade esbugalhando o
espanto nos olhos.

--Ágora levo eu á roda o meu engeitadinho! Já que Deus me não deu
filhos...

--E tem muito que lhe dar vossê?

--Em quanto eu poder fiar uma meada e tecer uma teia, dou-lhe eu o meu
caldo e o meu pão; depois, quando eu não poder, dá-m'o elle. Casa e dois
palmos de horta, graças a Deus, tenho eu, e não na devo a ninguem... O
peor é que o pequeno, se lhe não acudo, morre de fome... Ai! meu Deus!
ha cadellas mais amoraveis que algumas mães...

--Ande lá... metta-se em trabalhos...--concluiu o abbade, safando-se com
os cabeções do capote apanhados na testa.

       *       *       *       *       *

A criança vingou, espigou e sahiu robusta e menos mal encarada. Entre os
sete e onze annos apprendia a ler, e nas horas vagas enchia as canellas
do fiado ou dobava meadas.

Belchior Bernabé, (assignava-se assim com satisfação da mãe adoptiva)
deparado a algum romancista imaginoso, daria trela ao esvoaçar alto da
phantasia, quanto á sua origem. A mãe poderia ser uma fidalga de
Famalicão ou de Santo Thyrso. O pai, com toda a verosimilhança, poderia
phantasiar-se algum dos generaes do exercito realista ou liberal que,
por aquelle tempo, manobraram n'essas paragens. Com estes dois
elementos, a fidalga e o general, qualquer mediano talento, aproveitando
o accessorio das batalhas, compunha um romance de maus costumes, pelo
que respeitaria ao engeitado, e um livro historico, pelo que
interessaria á historia da restauração da Carta Constitucional e do
systema representativo. Feito isto, o pequeno lucrava muito, sabendo nós
que sua mãe era uma devassa recatada que, por noite desabrida de
janeiro, o mandou expor entre as raizes de uma arvore, em que os sevados
fossavam luras com o focinho, e o não devoraram n'aquella madrugada
porque estavam ainda cerrados nas suas possilgas. Com tanto que esta mãe
desnaturada engeitasse o filho, em respeito ao brazão e ao credito, a
creança ser-nos-hia mais sympathica, as linhas de fina casta extremal-o
hiam entre as caras boçaes da plebe, a auréola de nascimento mysterioso
banhal-o-hia então da luz de um melancolico romance. Assim é; mas eu não
sei quem fossem os pais de Belchior Bernabé. O rapaz, segundo ouvi dizer
aos que o viram criança e adulto, era feio, espêsso de cara, achamboado
de pernas. Ninguem lhe farejava o pai nem a mãe pela semelhança do
rosto: parecia-se com todas as mulheres e com todos os homens d'aquellas
freguezias, onde as caras são achatadas sem ressalto de protuberancia,
ou angulosas como as pêras de sete cotovellos.

É maravilhoso este capricho physiologico! A terra da Maya é um alfôbre
de moças bonitas, com os seios altos e alvos como pombas no ninho; os
quadris elasticos e boleados tem saliencias que vos levam captivo, e vos
levarão doido se lhes virdes as _lisas columnas_ em que a _hera_ do
verso de Camões lembra sempre...

      Desejos que como hera se enrolavam.

E lembra sempre este verso e os outros convisinhos[4] por serem os
_Lusiadas_ um poema que se lê nas escholas, e se encontra no açafate de
costura das educandas, que poderam subtrahir-se á morigeração
pestilencial dos lazaristas.

Transpostos os limites da Maya, a primeira mulher que se vos depára na
primeira freguezia do concelho de Famalicão, é feia e suja até ao asco,
escanelada, escalavrada no peito, veste-se a frizar com a desgraça da
sua má figura. E d'ahi até Braga, se vos apraz, podereis inhalar em todo
seu perfume a pura flor da castidade. Se ha terra onde possam ermar e
defecar-se de sensualismo santos tentadiços, é ali. Cada mulher é uma
figa benta de que fogem os tres inimigos da alma, principalmente o
ultimo.

       *       *       *       *       *

Belchior, ahi por maio, mez das flores, da brotoeja e d'outras
fatalidades especificas, começou a amar. Tinha desenove annos, carnadura
rubra, hombros largos, assobiava como um melro, tangia cavaquinho, e
amava a Maria Ruiva, filha do Silvestre Ruivo, o maior lavrador da
freguezia. Este amor resguardava-se como um delicto, e por isso mesmo se
escandecia e refinava até á quinta essencia da paixão que está paredes
meias do desastre. O engeitado, se se affoitasse a alardear preferencias
nas attenções de Maria Ruiva, seria espancado pelos rivaes ou por algum
dos tres padres tios da cachopa. Eram tres clerigos afamados por
façanhas de estudantes em Braga. Haviam militado nas guerrilhas da
uzurpação; terçaram de novo as armas em 1846, na carnificina de Braga;
recolheram a casa depois da morte de Mac-Donald, e diziam missas a oito
vintens para não se descassarem no officio.

Uma noite, quando um dos padres recolhia, enxergou um vulto esbatido no
escuro do murthal que formava o tapume da eira de sua casa, e lobrigou
por entre a sebe o alvejar de uma saia a fugir. Cresceu sobre o vulto
com o páo em programma de bordoada, e ouviu o estalido do pêrro de
pistola. Susteve a pancada, e perguntou:

--Quem está ahi?

--Sou o Belchior Bernabé.

--Que fazes ahi?

--Nada, sr. padre João.

--Porque te escondestes?

--Não faço mal a ninguem, sr. padre João.

--Mas engatilhaste uma arma de fogo!--e acercou-se d'elle
arremetendo.--Que queres tu d'esta casa, engeitado? Servem-te as minhas
sobrinhas...?--e atirou lhe um epitheto, que definia a natureza da mãe
incognita.

--Sr. padre João, olhe que, se me bate, eu, bem me custa, mas...
atiro-lhe. Siga o seu caminho, e deixe estar quem está quêdo e manso.

Padre João Ruivo sobraçou o marmeleiro ferrado, e murmurou:

--Tomo-te á minha conta, bréjeiro!

E passou ávante.

Ao apontar do sol, esporeou a egua para Famalicão, demorou-se com a
authoridade administrativa, com os membros da commissão districtal, com
o regedor, e sahiu alegre. Ao outro dia, na porta da egreja de Santa
Maria d'Abbade, lia-se Belchior Bernabé, engeitado, entre os mancêbos
apurados para o recrutamento.

E, entretanto, Silvestre, o pai de Maria, chamou ao sobrado da tulha
trez filhas que tinha, e disse:

--Qual foi uma de vossês que esteve esta noite na eira a conversar para
o quinchôso com o engeitado da Bernabé?

Duas responderam logo ao mesmo tempo:

--Eu não!--e accrescentaram:

--Cega eu seja d'ambos os olhos!

--Quebradas tenha eu as pernas!

--Má raios me partam!

A terceira, Maria, abaixou a cabeça, levou o avental de estopa aos
olhos, e chorou.

--Foste tu?--exclamou o pai; e, pegando de um engaço, ia cravar-lhe os
dentes na cabeça, quando as duas filhas lhe ferraram do pulso. O pai,
homem possante de quarenta annos, sacudiu-se a custo das prezas das
valentes raparigas, largando-lhes o engaço, e esmurraçou a outra com
tamanho impeto de raiva que Maria cahiu atordoada.

Em seguida voltou-se para as duas filhas, e disse:

--Esta mulher fica fechada aqui, entendem vossês? Se quizerem,
tragam-lhe o caldo; se não, que morra para ahi, que a levem os diabos!

E, sahindo, rodou a chave, e guardou-a na algibeira interior da véstia.

       *       *       *       *       *

A tecedeira, quando Belchior, lavado em lagrimas, lhe disse que ia ser
soldado, encostou o queixo ás mãos postas em supplica, relançou os olhos
á imagem do Bom Jesus do Monte, deteve-se instantes, e disse
serenamente:

--Não irás para soldado, meu filho. O tio Silvestre Ruivo já me
offereceu dois centos por esta casa, com a condição de me deixar morrer
n'ella. Vende-se a casa, ficas tu sem ella, mas onde quer se vive. Para
soldado não vais, Belchior. Dás o dinheiro aos governos, como fazem os
filhos dos lavradores ricos, e estás livre.

Belchior não cessava de chorar, e de vez em quando, por entre soluços,
articulava palavras que a tecedeira, um tanto surda e de todo alheia dos
amores do rapaz, não percebia.

Não chores, moço!--insistia a velha, repetindo o expediente de vender a
casa; e Belchior, por fim, obrigado a explicar-se, rompeu n'esta
exclamação:

--A Maria Ruiva está perdida e desgraçadinha!

--Credo!... tu que dizes, Belchior!?

O rapaz arrepellava-se; apanhava com as mãos a nuca, e batia com os
cotovêllos um contra o outro. Atirava-se de trambulhão sobre uma grande
caixa de castanho, e jogava de cabeça contra os joelhos com a pasmosa
elasticidade da sua afflicção. Fazia aquillo porque não sabia as phrases
que nós, os máos romancistas, costumamos emprestar a esta especie de
sujeitos.

A tia Bernabé, ora lhe pegava na cabeça, ora nos braços, dizendo-lhe as
mais carinhosas consolações. Por fim, o engeitado, erguendo-se de salto,
e olhando em redor tão sinistramente quanto cabe na rubrica de um drama
e na pupilla fulva do sr. Izidoro Sabino Ferreira na tragedia, disse com
o esbofar das angustias vertiginosas:

--Assim com'ássim... mato-me!

Aqui foi um alto soluçar da tecedeira, um desentoado chôro que alvorotou
a visinhança.

Belchior, assim que viu a casa a encher-se de gente, fugiu pela porta da
cosinha, saltou vallados, emboscou-se n'uma seara de centeio, e ahi,
estirado por terra sobre as louras gabellas, chorou copiosamente.

A tia Bernabé pedia entretanto aos visinhos que fossem atraz d'elle,
porque o seu Belchior disséra que se matava.

O engeitado deixou-se trazer como um ebrio nos braços dos visinhos; e,
chegando a casa, pediu que o deixassem deitar. Depois, ganhando
animo--que é sempre certo, esgotadas as lagrimas--contou á tia Bernabé a
sua curta historia com a Maria Ruiva, concluindo-a com uma revelação que
irriçou os cabellos da velha.

       *       *       *       *       *

N'essa mesma hora, a tecedeira sahiu cambaleando e encostada ás paredes,
em demanda do abbade.

Era ainda o mesmo que baptisára Belchior. Envelhecera e engordára.
Meditava depois de jantar no destino da sua alma, assim que o destino do
corpo lhe parecera consummado. Joanna, a das sapatadas n'aquella anca de
Hercules Farnesio, havia muito que cauterisava a consciencia chagada,
cortando o cabello e cilhando os rins peccadores com a corda nodosa dos
cilicios. O abbade tambem soffrêra um abalo rijo de contricção, a ponto
de não substituir Joanna, e calçar as meias directa e pessoalmente.
N'esta especie de amputação expontanea, não podendo crear processos de
philosophia nova, como Pedro Abélard, comia ás suas horas e profanava
com syllabadas o latim do missal. Promettia acabar bem.

A tia Bernabé referiu-lhe o que Belchior lhe confessára a respeito da
Maria Ruiva.

--Eu bem lhe disse a vossê, mulher, que se mettia em trabalhos,
lembra-se?--recordou o abbade.

--Sim, senhor, lembra... mas então? Ainda me não arrependo, se o sr.
abbade me fizer a caridade de fallar ao Silvestre, e dizer-lhe que o
melhor é, já agora, deixar casar a rapariga.

--Vossê--atalhou o padre--vossê, Bernabé, deu-lhe volta o miolo! O
Silvestre dar a filha ao engeitado!... Ora, mulher, peça a Deus juizo, e
diga a esse tratante que se vá quanto antes sentar praça, antes que lhe
deem cabo da pelle. Com que então!... O alma do diabo foi ás do cabo,
eim?

A tecedeira ouviu-o com o rosto lavado em lagrimas; e elle, solphejando
as palavras iracundas ao compasso do rufo que fazia com a caixa de prata
sobre o braço da cadeira, proseguiu:

--Forte maroto! Atrever-se a conversal-a, já era muito: mas isso que
vossê me diz, mulher, só na forca! E então... uma rapariga sem nota, que
já foi pedida pelo Francisquinho das Lamelas, que colhe oitenta carros e
vinte pipas, afora azeite!... E, vamos lá, era a melhor das irmãs, uma
mocetona!... Com que então esse patife disse-lhe mesmo que ella...
d'aqui a pouco... já não póde esconder o fructo do seu crime?

--Sim sr.--balbuciou a tia Bernabé.

--Isto só no inferno!--volveu o abbade, rebitando a ponta do nariz para
dilatar a circumferencia das ventas sobranceiras á pitada--Isto só no
inferno!...

--Valha-me Deus, sr. abbade!--replicou timidamente a tecedeira.--Então a
religião de nosso Senhor Jesus Christo não dá remedio a estas desgraças,
que tantas vezes acontecem? No melhor panno cae a nodoa. Logo que elles
se casem, está tudo remediado, pois não está?...

--Está o quê?... Então uma rapariga de boa familia, que tem tres tios
padres, e que é filha de um capitão de ordenanças, caza-se assim com um
engeitado que vossê encontrou na bouça da egreja entre o mato?...

--É verdade; mas todos somos filhos de Deus,--argumentou a tia Bernabé,
e mais longe iria na sua preleção de caridade ao pastor, quando uma
visinha a chamou á porta da rezidencia para lhe dizer que Belchior
estava prezo entre seis cabos de policia que o levavam para soldado, e
elle a mandava chamar para se despedir.

Ainda desceu precipitadamente as escaleiras a tremula velhinha; mas, a
poucos passos, cahiu de joelhos, amparou-se no vallo, e debruçou-se
desmaiada.

Entretanto, o regedor ordenava aos cabos que levassem o prezo, visto que
a tia Bernabé fôra levada sem accordo para a rezidencia. Belchior pediu
que o deixassem ir lá despedir-se de sua mãe. O regedor voltou-lhe as
costas, acenou aos cabos que marchassem.

       *       *       *       *       *

Em Famalicão deram-lhe uma guia, e enviaram-no entre seis espingardas
para Braga. Ao outro dia era soldado.

A tia Bernabé procurou-o no quartel do _Populo_ n'esse mesmo dia. Quando
o viu de cabeça tosquiada como cão morrinhoso, e colleira de couro
preta, estonteou-se-lhe o juizo e esteve a pique de cahir. O recruta,
chorando com ella nos braços, apiedou o commandante da guarda, que os
mandou entrar na casa das tarimbas. D'ahi a duas horas, tocou a corneta
a recruta. Belchior já não tinha nome. Era o 29.

--Salta d'ahi, 29!--bradou-lhe um anspeçada.

--Que é?--perguntou a tecedeira.

--Vou para o exercicio, minha mãe.

Ella viu-o marchar com os outros para o Campo do exercicio; e logo, a
meio caminho do terreno das manobras, um furriel barbaçudo e de chibata,
lhe assentou na parte sobrejacente ás pernas um pontapé instructivo.
Diga-se verdade--era o primeiro.

A tecedeira, quando isto presenceou, sahiu do campo estrangulada por
soluços, entrou na Sé, e orou largo tempo com o rosto no pavimento.
Depois, levantou-se reanimada, e foi para a sua aldeia executar o que
ficára convencionado com Belchior: vender a casa, e substituil-o.

Pregou annuncios na porta da egreja e nas arvores visinhas das estradas.
O pai de Maria Ruiva muito queria compral-a para arredondar um campo com
a horta e armar na casa terrea um estabulo de bois para embarque; porém,
receando que o seu dinheiro servisse a resgatar o soldado, consultou os
irmãos clerigos. Padre João foi a Braga _mecher os pausinhos_, disse
elle; e, voltando, socegou o irmão:

--Compra a casa, que o engeitado as correias não as bota fóra do lombo.

O lavrador tinha offerecido duzentos mil réis, quando a tecedeira não
pensava vender a casa onde nascera; mas agora, por terceira pessoa,
mandou-lhe offerecer cento e quarenta.

A desventurada velha ia ceder, pensando que vinte moedas de ouro
bastariam a resgatar o filho; n'este aperto, uma beata de freguezia
distante, e confessada do abbade, lhe propoz a compra, a fim de passar a
estação das penitencias ali á beira do seu director espiritual. Esta
mulher, que era virtuosa, foi desde logo diffamada pelos padres Ruivos á
conta do confessor que a dirigia; e o lavrador por sua parte
enraivava-se sabendo que a Bernabé vendera a casa por duzentos mil réis.
Padre João, conversando a tal respeito com o abbade, desfechou-lhe esta
ironia entre duas pitadas:

--Quando se está assim gordo, sr. abbade, é preciso _trazel-as_ para
perto...

E o pastor, exulcerado na sua candura, cascalhou uns froixos de tosse de
esgana, e gosmou:

--Se eu trouxesse para esta freguezia ovêlhas de fóra, talvez que o
padre João me deixasse em paz as do meu rebanho...

Entendiam-se.

       *       *       *       *       *

A tia Bernabé foi a Braga com o dinheiro e com um seu cunhado, que havia
sido embarcadiço, e então era calafate em Villa do Conde. Por felicidade
viera elle á terra ver os parentes; e, condoendo-se da paixão da
cunhada, se offerecera a dar em Braga os passos necessarios á baixa de
Belchior. O requerimento foi indeferido. O calafate andou por advogados
que lhe escreviam replicas inuteis. Por fim, comprehendeu que o rapaz
havia de gemer sob o pezo da vingança do lavrador. E como elle passara
quarenta annos no mar e ahi ganhára odio ás miserias da terra, tanto que
soube que o rancor era de padres e o crime do rapaz era de amores,
voltou-se para a cunhada, e disse:

--O rapaz vai d'hoje a quinze dias para o Brazil. Tu pagas-lhe a
passagem, e o resto fica por minha conta. D'aqui até Villa do Conde é
desertor; assim que sahir a barra, é livre... olha... vês aquella
andorinha? é livre como ella!

--E não hei de tornar a vél-o?!--atalhou ella chorando.

--Se não o tornares a vêr, que monta? Tens tu de fechar os olhos para
sempre ou não? qual queres tu: vêl-o aqui soldado, ou saber que elle
está no Brazil a manobrar a sua vida? Deixa-o ir. A rapariga, quando
elle chegar a Pernambuco, já lhe não lembra; e, se enjoar, então, é como
quem deita o coração pelas goelas fóra. Tu vens para Villa do Conde
commigo. Tens que comer e uma enxerga onde durmas.

       *       *       *       *       *

Em março de 1852, fez-se á vela de Villa do Conde a Barca _Conceição_.
Entre os passageiros ia o desertor. Chamava-se ahi Manuel José da Silva
Guimarães, e nunca mais ouviu proferir o seu nome.

Quando a policia deitava inculcas no concelho de Famalicão procurando a
paragem da tia Bernabé, rendia ella a alma ao seu Creador em Villa do
Conde. Vira desapparecer as vellas da barca _Conceição_, ajoelhada no
terraço do Castello. Depois, quedára-se de bruços a chorar. Levaram-a
nos braços a caza do cunhado. As lagrimas seccaram-se. Veío a febre e o
delirio. Chamou, chamou por seu filho, até que Deus a chamou a ella. Não
foi confessada nem ungida; mas morreu sancta por que vivera sanctamente.
Achara aquelle engeitadinho, creara-o, amara-o, vendêra um cordão para o
vestir geitosamente afim de o mandar á eschola, vendera as arrecadas
para lhe comprar fato novo quando foi á primeira confissão, vendêra a
casa e o thear e o leito onde morrêra sua mãe para o remir de soldado.
Padeceu grandes angustias quando soube que o filho do seu coração era
culpado na desgraça de uma rapariga honesta. Cuidou que o padre, o
prégador da caridade e da igualdade dos servos de Jesus Christo, iria
admoestar o lavrador abastado a conceder a filha para esposa do pobre.
Esta sancta cegueira da christã é de crer que Deus lh'a perdoasse. Por
fim, de virtude em virtude, e de dôr em dôr, logo que aos setenta annos
de idade viu sumir-se para sempre o seu querido engeitado, pediu a Deus
por elle, por si, e... morreu.


SEGUNDA PARTE

Vinte annos volvem-se tão depressa, que eu, n'este salto que o leitor
vai dar, não me despenderei a encher-lhe de phrases o passadiço. O
melhor é fechar os olhos e saltar.

Vinte annos! Que são vinte annos?

Nós, ainda hontem eramos rapazes, ó velhos! Este _hontem_ gastou vinte
annos a resvalar para _hoje_. Que se passou n'este lapso fugitivo de
nossa vida entre a juventude e a velhice? Nada. Temos a nosso lado
filhos homens, e netos que ámanhã serão homens: e, todavia, parece que
ainda hontem com um raio de sol e com o perfume de uma roza compunhamos
o sorriso da loira mãe d'estes homens, que está hoje velha! Ainda hontem
eramos poetas pelo amor, affoitos pela aspiração, valentes pela
mocidade. Que grandes coisas devem ter-se passado n'esse instante de
vinte annos, em quanto esperavamos outras que nunca vieram! A scismar
sempre com o futuro não o viamos passar. A final parou; e deixou-se
conhecer porque marchava pesado, tardio e triste: era a velhice. Chegou
de repente; escureceu-se-nos tudo como se as alegrias nos fulgissem do
seio de um relampago. Esta treva foi instantanea, e gastou vinte annos a
condensar-se. Que são vinte annos?

       *       *       *       *       *

Em 1872, hospedou-se no hotel de Famalicão um brazileiro a quem os seus
creados negros e brancos chamavam simplesmente o _sr. commendador_. Não
viera recommendado a algum dos barões da terra. Enviára adiante a
recommendação da parelha das orças, da caleche, dos lacaios.
Representava quarenta annos florentissimos. Basto bigode, suissa
ingleza, espesso cabello levantado em novêllos crespos que lhe
escantavam a fronte. Espaduas amplas, á proporção das pernas que se
moviam rijas e bazeadas em pés infalliveis como os alicerces das
pyramides dos pharaós. Trajava a primor, de preto, com um ar de pessoa
que passeava de tarde na estrada de Braga, com o intento de ir á noite a
_Covent-Gard_, ao _Royal Italian Opera_. Fumava sempre uns charutos que
vaporavam os aromas das recamaras das sultanas. Na meza, era de uma
elegancia frugal que desmentia a procedencia. Olhava para o bife com um
fastio tal e tamanha tristeza, que fazia lembrar Tertuliano, quando,
meditando na metempsycose, olhava para o boi cozido, e dizia: «Estarei
eu comendo meu avô?»

Com quanto nem elle nem creados declarassem os seus nomes e appellidos,
os jornaes do Porto haviam annunciado a chegada do maior capitalista de
Pellotas, o sr. Manoel José da Silva Guimarães.

Nada de bioquices com o leitor: ahi está Belchior Bernabé, o engeitado.

       *       *       *       *       *

Ao terceiro dia de hospedagem em Famalicão, o commendador cavalgou,
acompanhou-se do lacaio, e seguiu na direcção de S. Thiago d'Antas.

--Vai vêr a igreja que fizeram os moiros... Calculou outro commendador
da terra, e assim o communicou a mais dois commendadores, attribuindo
aos moiros a egreja dos cavalleiros de Rhodes.

--Hade ser isso--confirmou o mais correcto.--Este homem é magico. O
Guimarães do hotel já lhe perguntou se era nascido cá no Minho, e elle
respondeu...

--Que não tinha a certeza--concluiu o outro--Tem grande têlha!

--Hontem, na feira, estava elle a vêr vender duas juntas de bois para
embarque. Quem nas vendia era o Silvestre Ruivo...

--Bem sei, o irmão d'aquelle padre João que morreu ha tres annos de
apoplexia.

--É isso. O telhudo, que não falla com ninguem, poz-se a conversar com o
Silvestre a respeito dos bois: depois levou-o á hospedaria, e deu-lhe de
jantar. O Silvestre esteve depois commigo, e vinha espantado de vêr dois
criados de casaca, bota de verniz, gravata branca e luvas, a servir á
meza.--E em que fallaram vossês?--perguntei-lhe eu. Disse-me que o
commendador lhe perguntára coisas e tal _et coetera_ cá da provincia, e
que ficára de ir a casa d'elle vêr a córte dos bois. Magico ou não?
Olhem vossês! Vae ver os bois!

--Se fosse aqui ha dez annos atraz--disse o commendador Nunes--valia-lhe
a pena de ir ver as bezerras... Vossê ainda conheceu as Ruivas, a
Antonia e a Chica, ó sôr Leite?

--Ora, se conheci! Que fatias!...

--Que diriam vossês--volveu o sr. Nunes--se conhecessem a Maria que eu
m'alembro de ver antes de ir em o Rio... Que pimpona! Apanhou a um
engeitado...

--Já ouvi contar esse caso.

--Vossê não sabe nada, perdôe. O engeitado entrava em a escola do Zé
Batata quando eu sahia já prompto. Depois, lá tive noticias no Rio que a
moça dera em droga. Elle foi prezo para soldado e desertou; e ella nunca
mais ninguem lhe poz o olho no lombo. Uns dizem que está n'um
recolhimento de convertidas, outros dizem que está fechada, desde que
isso foi... hade haver, João Nunes, hade haver, bons vinte annos...

--Isso é que é pai de fêbras!... fez muito bem!--applaudiu o mais
devasso.

       *       *       *       *       *

Entretanto, chegava o commendador Guimarães á porta do ex-capitão de
ordenanças Silvestre Lopes, d'alcunha o _Ruivo_. Era esperado.

No patamal da escada que conduzia á vasta quadra chamada «a sala dos
padres» estava o lavrador, entre tres clerigos venerandos por sua idade:
devia contar qualquer d'elles bastantes annos sobre setenta.

O commendador deu as redeas do seu alazão ao lacaio, subiu
prazenteiramente, apertando a mão a Silvestre, e cortejando os padres.

--V. ex.^a não se perdeu nos atalhos?--perguntou o lavrador.

--Quem tem bôca vai a Roma--respondeu o commendador; e referindo-se aos
padres:

--São seus manos, sr. Lopes?

--Dois são; o outro é o sr. abbade.

O hospede encarou-o muito a fito, e perguntou:

--É abbade ha muitos annos n'esta freguezia?

--Vim para aqui parochiar em 1828, na idade de vinte e cinco annos;
tenho setenta e seis: conte lá v. ex.^a.

--Está aqui ha quarenta e quatro annos feitos--accrescentou o padre
Bento Lopes.

--Justamente,--confirmou o clerigo que baptisára Belchior, o engeitado
exposto na manhã de 6 de janeiro de 1833.

O commendador não via n'aquelle ancião um só traço do corpulento abbade.

Conversaram sobre a guerra do Paraguay, sobre a emigração dos minhotos,
sobre o estado florescente da industria e agricultura portugueza. O
lavrador, apoiando o commendador, encarecia a nossa prosperidade com
este conciso, pezado e até certo ponto bicornio argumento:

--Vejam o dinheirame que dão os bois!

Estava a meza posta no sobrado immediato, e á cabeceira da meza a
cadeira destinada ao hospede.

--V. ex.^a vem para aqui--disse o lavrador apontando lh'a com urbana
homenagem.--Ninguem mais se sentou n'essa cadeira desde que morreu nosso
irmão mais velho, padre João. Faz agora trez annos que morreu d'um
estupor...

--De apoplexia--emendou o padre Hippolito.

--Tanto faz--replicou Silvestre.--Estava a dizer missa, e cahiu redondo
no altar.

--É de crer que a sua alma estivesse preparada para esse
trance--observou o commendador em tom compungido.

--Era bom padre--disse o abbade, talhando á faca os canudos flexuosos da
sôpa de macarrão--isso era, coitado! Deus o tenha á sua vista!...

--Está aqui toda a sua familia, sr. Silvestre?--perguntou o hospede,--Se
bem me recordo, disse-me na feira de Villa Nova que tinha filhos...

--Filhos, não, meu senhor. Tenho duas filhas.

--Trez...--emendou o abbade.

--Duas!--retorquiu desabridamente o lavrador coruscando-lhe os olhos
irados.

--Ah! sim... duas... eu agora estava distrahido...--remediou o
indiscreto.

E o commendador não perdia a minima expressão das quatro physionomias.

--Tenho duas filhas,--repetiu o pai de Maria.--Uma está casada fóra com
um proprietario, já tem um filho em Braga para padre, e outro a
doutorar-se em Coimbra. A outra está em casa. Não quiz cazar, e já está
a caminhar para os trinte e sete annos. É a que governa a caza.

Este incidente passou. O commendador mostrava-se profundamente
abstrahido. Comeu pouquissimo, e quasi nada disse. Apenas, terminado o
supplicio da exposição do peru, do lombo de porco de vinho e alhos, da
perna de vitella e do leitão, pediu licença para retirar-se, pretextando
a precisão de estar cedo em Villa Nova.

O abbade acompanhou-o, porque o brazileiro mostrou desejo de ver umas
sepulturas notaveis de que certo romance dava noticia, no adro da egreja
de Santa Maria.[5]

Os outros padres quizeram ir tambem; mas o commendador dispensou-os com
delicada violencia, promettendo voltar a vêl-os mais de espaço.

O abbade, mostradas as duas campas vasias, convidou o ricasso a subir á
sua pobre rezidencia.

--Com muita satisfação, sr. abbade; sympathiso com v. s.^a, quero mesmo
grangear a sua amisade.

--Ó excellentissimo senhor! que valho eu, pobre velho, e pobre abbade da
mais pobre das abbadias!... Aqui gastei a vida, já agora quero que esta
terra, onde dormem tantos que baptisei, tantos que casei, me coma tambem
os ossos.

O padre estava lugubremente palavroso. Havia ali uma flôr de poesia
elegiaca a entreabrir-se um pouco borrifada de mau vinho do Porto.
Sentia-se expansivo.

Pensava o brazileiro em occasionar conversa ácerca do incidente,
acontecido ao jantar, sobre se eram duas ou tres as filhas do Silvestre.
Não foi preciso rodeios. O padre endireitou logo com o assumpto n'estes
termos:

--O Silvestre é bom sujeito, bom parochiano, amiguinho dos seus
interesses, isso sim; mas d'esse peccado, se o é, está o inferno cheio.
Porém, excellentissimo senhor, tem este homem um modo de pensar a
respeito da honra que se não conforma com a religião da caridade e do
perdão. V. ex.^a havia de notar a ira com que elle disse que as suas
filhas eram duas, quando eu, por descuido, disse que eram trez. Conheci
logo que andei mal, e emendei contra a minha consciencia; mas em fim, eu
estava a jantar em casa do homem, estava ali um cavalheiro respeitavel,
a civilidade mandou-me tapar a boca...

--Sim... eu notei que v. s.^a, cedendo ao numero das duas, fel-o
constrangidamente.

--Pois por isso mesmo que eu percebi que v. ex.^a notou, é que devo á
minha posição de padre esclarecer a verdade diante do sr. commendador.
Se quer ouvir a historia... mas v. ex.^a disse que tinha pressa...

--Não, senhor. Queira dizer. Tenho muito tempo...

O abbade sahiu á janella, e disse para fóra ao creado que fosse levar a
egua pela fresca ao mato. Depois, fechando o trinco da porta da saleta,
continuou, fazendo sentar o hospede em uma commoda cadeira de estôfo, e
occupando elle outra de pregaria com espaldar de moscovia.

--O Silvestre não tem duas filhas, mas tres. A mais velha, que eu
baptisei ha trinta e nove annos, chama-se Maria. Esta rapariga, aqui ha
vinte annos, andou de amores com um engeitado que por aqui se creou em
casa de uma santa creatura, que o encontrou no mato da egreja, pelo lado
de fóra das campas que v. ex.^a viu ha pouco. O diabo do rapaz desviou-a
do bom caminho e pôl-a na mais misera situação que em taes casos é
possivel. Emfim, a rapariga sentia-se mãe, quando um dos padres que já
lá está na presença de Deus, deu com elles em palestra de noite. D'ahi a
dias, o Belchior (chamava-se assim o engeitado), foi d'aqui preso para
Braga, e deitaram-lhe as correias ás costas. Passado pouco tempo, o
soldado desertou, e foi para onde estivesse seguro. Agora fallemos da
moça. O pai moêu-a bem moída de pancadaria, fechou-a no sobrado de uma
tulha, e mandava-lhe dar todos os dias duas tijellas de caldo, dois
pedaços de pão, e uma caneca d'agua. Dois ou tres mezes depois,
appareceu-me aqui um calafate de Villa do Conde, que vinha a ser cunhado
da tal Bernabé que creára o Belchior, e disse-me que sua cunhada morrera
de saudades do desertor que não podia mais voltar á patria; e que, antes
de expirar-lhe, pedira que viesse ter commigo, e me rogasse, pelo divino
amor de Deus, que fizesse eu todas as diligencias por haver á mão o
filho do seu Belchior, que elle calafate se encarregava de o levar para
Villa do Conde. A fallar a verdade, era empreitada de costa arriba
metter-me eu n'este delicado negocio com o Silvestre; mas pedi forças a
Deus e fui-me ter com elle. Contei-lhe o estado da filha, e offereci-me
para dar á creança, quando nascesse, o unico destino possivel em
harmonia com os interesses da terra e os da divina religião da caridade
de Jesus, que mandava chegarem-se a Elle as creancinhas. O homem ouviu,
praguejou, berrou que ia matar a filha; e eu então, resolvido a tudo,
disse-lhe sem temor que se elle matasse a filha iria eu accusal o de
matador de duas vidas. O homem teve medo, e concluiu afinal que a
creança me seria entregue; mas que a rapariga nunca mais veria sol nem
lua... Estou massando o sr. commendador...

--Pelo amor de Deus! estou interessadissimo n'essa triste historia...

--Tristissima, excellentissimo senhor! Eis que nasce um rapaz, e quem
assistiu ao nascimento e m'o trouxe foi uma viuva serva de Deus, minha
confessada, que vivia aqui na casa que comprára á tal Bernabé. Fui eu
que lhe pedi que merecesse a divina graça por esta obra de misericordia.
Já cá estava então em caza de uns parentes o calafate á espera do filho
de Belchior. Entreguei-lh'o, e lá foi o pequeno para Villa do Conde,
depois que o baptisei com o nome de seu pai.

--E esse menino...--atalhou o commendador arrancando a pergunta das
ancias que a debil vista do abbade não divisava.

--Eu lhe conto, meu senhor. Dois annos depois, morreu o calafate, e eis
que a creada d'elle m'o remette para aqui, dizendo que o patrão assim
lh'o ordenara, para que eu o entregasse ás irmãs e sobrinhas d'elle que
moram ahi n'uma freguezia ao pé. Chamei as taes mulheres, mostrei-lhes a
creancinha, dei-lhes o recado do calafate fallecido, e ellas responderam
que não queriam saber de historias; que tomasse o avô e a mãe conta
d'elle, que eram bem ricos. A serva de Deus que morava, como já disse a
v. ex.^a, na casa que fôra da tia Bernabé, tomou conta do engeitadinho.
Havia n'isto mysterio profundo! O pai fôra creado na mesma casa onde era
creado o filho, ambos sem pai nem mãe! Desgraçadamente, quando o pequeno
ia nos seis annos, morre a bemfeitora de morte repentina. Os parentes
sacudiram d'ali o mocinho, e o Silvestre comprou a casa, botou-a abaixo,
e fez uma córte de bois. Ali d'aquella janella póde v. ex.^a vêr a córte
onde foi a casa das duas santas mulheres. É aquella que branqueja por
entre aquelles dois carvalhos.

O commendador foi á janella, reconheceu os arredores da extincta casa da
sua infancia, enxugou as lagrimas, voltando as costas ao abbade, e
tornou a sentar-se em frente do ancião.

--Que havia eu de fazer-lhe?--proseguiu o abbade--trouxe para aqui o
pequeno, e mandei-o á escola.

--Muito bem! muito bem!--exclamou arrebatado o brazileiro--muito bem,
honrado homem!--e apertou-lhe a mão, levando-a aos labios.

O abbade retirando a mão humida de lagrimas, disse commovido:

--Fiz o meu dever, senhor! Oxalá que esta boa acção me seja descontada
nas muitas ruins que tenho na minha vida...

--E depois, o pequeno...--atalhou pressurosamente o hospede.

--O pequeno, eu lhe digo... Agora tornemos a fallar da mãe... Trez annos
e meio esteve fechada no tal carcere. Via apenas uma irmã que lhe levava
o alimento. Depois, esteve em perigo de vida, e pediu um confessor. Fui
eu o chamado á falta de outro. No acto da confissão, disse-lhe que o seu
filho estava em minha casa, e que passava por ser meu parente. Outros,
sr. commendador, diziam que elle era meu filho e da mulher que o
amparára. Perdoei aos calumniadores, para que Deus me perdôe os
escandalos que dei: era justo que me diffamassem porque eu dei azo a
isso com os desatinos da minha mocidade. Maria, quando soube que tinha
seu filho vivo, ganhou forças, quiz viver, e venceu a doença. Dizia-me
ella: «se eu viver, hei de ter alguma coisa d'esta caza, e o que eu
tiver será do meu filho; e, se eu morrer, ficará pobresinho de pedir.»
De pedir não--disse eu--porque vou mandar-lhe ansinar um officio logo
que elle chegue á idade de poder trabalhar. Perguntou-me então se eu
sabia alguma coisa do Belchior. Fóra da confissão, respondi-lhe que o
calafate muito em segredo me dissera que elle fôra para o Brazil. No
primeiro anno, o calafate recebia a miudo cartas do Belchior, que o
rapaz escrevia á mãe adoptiva, cuidando que ella estava viva. O calafate
escrevia para lá que a Bernabé tinha morrido; e o rapaz a escrever
sempre á Bernabé. A opinião do calafate era que o Belchior lá andasse
pelos sertões onde nunca lhe chegavam as cartas idas de Portugal.
Depois, o calafate morreu. O que se passou d'ahi em diante não sei. Foi
isto o que eu contei a Maria. Por fim, espalhou-se por ahi que o
Belchior tinha morrido; e eu aproveitei a noticia, quer fosse verdade
quer não, a fim de vêr se o pai da pobre moça lhe dava alguma liberdade.
Fallei n'isto ao Silvestre, e, em nome de Deus o fiz responsavel pela
privação em que a tinha da missa e dos sacramentos. Tanto lhe bati á
porta da consciencia dura, que consegui deixal-a confessar-se e ouvir
missa uma vez de trez em trez mezes. Pouco e pouco, obtive que ella
viesse á egreja de quatro em quatro semanas, e n'essas occasiões já ella
sabia que o seu filho era o menino que me ajudava á missa. Uma vez
entrou na sachristia, não estando mais ninguem na igreja; abraçou-se no
filho e desfez-se em lagrimas. Deixei-a, coitadinha! mas depois pedi-lhe
que não tornasse a fazer tal imprudencia, por que, se alguem a visse,
não tornaria a sahir do seu carcere. O rapaz, quando fez quatorze annos,
lia e escrevia correntemente. Mandei-lhe ensinar o officio que
escolhesse: quiz ser carpinteiro, para o que tinha muita habilidade.
Essa cadeira em que v. ex.^a está sentado fez-m'a elle. Veja que bonita
peça! pois ainda não tinha dado um anno ao officio quando fabricou essa
obra que parece feita no Porto!

--E está aqui n'esta freguezia o tal Belchior?--perguntou o brazileiro.

--Não, meu senhor, está trabalhando em Braga; mas vem aqui todos os
mezes ver a mãe no dia em que ella se confessa.

--Todos os mezes?

--Sim, sr., na primeira segunda feira de cada mez. D'hoje a oito dias,
se eu viver, hei de ouvil-a de confissão, e dou de jantar ao meu
Belchior.

--D'hoje a oito dias? Que prazer v. s.^a me dava, sr. abbade, meu
honrado e querido amigo, se me consentisse que eu contemplasse na sua
igreja essa martyr a rever-se no seu pobre filho! Seria possivel?

--Pois não é?! appareça v. ex.^a na segunda feira ahi pelas seis horas
da manhã, que é quando eu a confesso e lhe dou a communhão. Vê a a ella,
e vê o rapaz que é ainda quem me ajuda á missa, e ministra o jarro da
agua á mãe, depois que ella communga.

Eriçaram-se os cabellos ao commendador por uma especie de etherisação,
mescla de enthusiasmo, de arroubamento e de tristeza. Apertou ao seio as
cans do ancião, e beijou-o na fronte. O padre encarava-o com assombro, e
elle murmurava:

--A sua historia arrebatou me!... Eu sou um homem que tenho a loucura da
admiração pelas acções grandes. Se até hoje eu não acreditasse em Deus,
cahiria de joelhos a seus pés, confessando-o!

--Quem é que não acredita em Deus, meu amigo?!--perguntou o velho
enxugando as lagrimas.

       *       *       *       *       *

A segunda feira aprazada raiou com todas as pompas e musicas e perfumes
de uma aurora de julho. O commendador Guimarães chegara de Braga, por
volta da meia noite, e ordenara ao escudeiro que o chamasse ás quatro
horas da manhã. Superflua recommendação. Não dormira. Antes do alvorecer
da manhã, chamara elle os creados, e mandara apparelhar os cavallos.

Ás cinco e meia da manhã estava elle encostado a uma das campas do adro
de Sancta Maria de Abbade. A distancia, escarvavam os cavallos
insoffridos na terra barrenta de um montado calvo. O sol verberava em
uma das frestas da igreja. Os pardaes pipilavam na oliveira, n'aquella
mesma que, trinta e nove annos antes, déra, nas suas raizes recurvas á
flôr da terra, um berço empapado de chuva, áquelle homem que ali se
sentia feliz até ao extremo em que as palpitações de jubilo laceram o
coração como as farpas da agonia. As andorinhas chilreavam em redor da
cornija da igreja, e, esvoaçando-se por longos circulos, cortavam de
notas embaladas pelas ondas da luz o grande hymno, que na terra se
completa com as lagrimas dos que podem choral-as de gratidão á divina
providencia.

Elle, Belchior Bernabé, chorava essas lagrimas bemditas, contemplando a
terra onde a tecedeira pobre se ajoelhára para o levantar regelado até
ao peito, e resuscital-o com um milagre da caridade.

Ás cinco horas e trez quartos ouviu passos que soavam na trempe de ferro
que forma o limiar do adro. Correu pressuroso ao cunhal da igreja, e viu
uma mulher com um capote aconchegado da face, encaminhando-se para a
porta transversal. Simultaneamente chegava, transpondo de salto a
parêde, um rapaz de boa presença, vestido de azul, com o seu chapeo de
felpo branco na mão. O commendador parou, encostado ao cunhal. A mãe e o
filho abraçavam-se, quando deram tento d'aquelle homem estranho.

--Quem é?--perguntou Maria.

--É figurão!--disse elle--Eu vi aquelle homem em Braga com o sr. deão e
entraram no paço do sr. arcebispo. Alli abaixo na bouça estão dois
cavallos, e um creado de libré. Hão de ser d'elle...

--Queres tu ver que é um commendador que esteve em caza de teu avô faz
hoje oito dias? Tua tia viu-o, e disse-me que elle era assim de bigode e
suissas...

--Que estará elle a fazer aqui?

--Elle olha para nós?! perguntou a mãe olhando-o de travez por entre a
fresta formada pelo capote em que se encapuzava.

--Não tira os olhos da gente... e parece que está assim a modo de quem
quer perder os sentidos!

--Estará doente!... Ainda bem que ahi está o sr. abbade...

--E lá vai fallar com elle, minha mãe...

--Então é o mesmo que eu te dizia.

--Belchior!--chamou o abbade--pega lá a chave, e entrem que eu já vou.

O moço foi buscar a chave, beijou a mão ao padre, e abaixou a cabeça ao
senhor desconhecido. O commendador, com os olhos cravados n'elle,
movia-se n'um balanceado arfar de peito: era o esforço que punha em
resistir aos impetos que o impulsionavam para o filho. O carpinteiro
abriu a porta e entrou com a mãe na igreja, dizendo-lhe:

--Aquelle sujeito estava a olhar para mim de um modo que parecia querer
fallar-me...

O brazileiro, depois que respondeu ao comprimento do abbade,
perguntou-lhe:

--V. s.^a terá duvida em me ouvir de confissão...

--Com muito contentamento, sr. commendador. Quando quer v. ex.^a?

--Agora. Desejo receber a communhão juntamente com a sua confessada.

--Pois seja agora.

E dizia entre si o padre: «Este homem foi alumiado pela graça divina, e
Deus nosso Senhor escolheu o mais peccador dos seus servos para
instrumento da sua misericordia com outro peccador!»

Entravam no arco da egreja de passagem para a sacristia. O abbade
curvou-se ao ouvido de Maria que fazia oração no altar do Sanctissimo, e
disse-lhe:

--Demora te um pouquinho que eu vou confessar uma pessoa:--E, chamando
Belchior:--Vae a caza, abre o segundo gavetão da commoda, e traze a
toalha grande de rendas que está engomada, para ministrar a communhão
áquelle senhor que vou confessar.

       *       *       *       *       *

O Commendador sahiu da sacristia meia hora depois, e foi ajoelhar no
primeiro degráo do altar-mór. Maria, como visse sahir o abbade e
acenar-lhe para o confessionario, ergueu-se, passou rente do
desconhecido, com os olhos no chão, e a gola do capote apanhada nas
faces.

Belchior tinha vindo com a toalha de folhos encanudados que desdobrava e
ageitava para o sagrado ministerio. Depois, entrou na sacristia com o
galheteiro, renovou a agua e o vinho, dobrou e sacudiu a toalhinha de
modo que a porção ainda não maculada servisse ao lavatorio. De vez em
quando, sahia ao limiar da sacristia, e quedava-se a olhar para o
commendador, que se conservava de joelhos, com a cabeça abaixada,
amparando a fronte nas mãos erguidas.

O abbade sahiu do confessionario a manquejar trôpego, amparando-se á
teia gradeada de um altar. O filho de Maria Ruiva foi dar-lhe o braço, e
o ancião queixava-se de dores rheumaticas nos joelhos e nos rins. A
confessada subiu até á capella-mór, e ajoelhou atraz do brazileiro,
lendo actos de contricção e a ladainha.

O abbade começára a revestir-se para ir celebrar, quando o commendador
se levantou, e de passagem para a sacristia, relançando os olhos a
Maria, pôde ver-lhe o rosto alumiado pela restea refracta do sol que
lampejava palpitante atravez da fresta, na superficie metalica de uns
tocheiros doirados. Não a conheceria, se a encontrasse. Aquelle rosto
havia sido purpurino, assetinado como as petalas das rosas humidas pelo
rosciar das formosas madrugadas. Tivera as curvas boleadas e lizas da
saude, da força, dos atritos do ar forte e do sol que enrubesce a
epiderme e colóra o sangue.

Estava magra, angulosa e livida como as santas esculpturadas sob a
inspiração do martyrio; mas esta maceração era a formosura divinal da
alma, era a sanctificação da mulher aos olhos d'aquelle homem.

Entrou na sacristia, e com tremula voz disse ao padre:

--Sr. abbade, peço-lhe que antes de subir ao altar, chame aqui a sua
confessada.

--Aqui?!--perguntou o abbade com espanto--Ella é muito acanhada...

Presumia que o commendador desejava simplesmente vêr de perto a mulher
cuja desgraçada historia o commovêra.

--Não importa--volveu o brazileiro--é urgente que ella aqui venha antes
que o sr. abbade nos dê a communhão.

--Sim?!--volveu o padre--Pois bem...

E, sahindo ao umbral da sacristia, chamou a filha de Silvestre.

Ella entrou com timidez e assombro. O filho, que suspendia ainda nas
mãos as dobras da alva que o padre estava vestindo, largou-as, deixou
pender os braços, e empedrou na expressão immovel da curiosidade.

N'este lance, o commendador apresentou ao abbade meia folha de papel
sellado, e pediu-lhe que a lesse. O padre pediu a Belchior que lhe
chegasse os oculos, pôl-os tremulamente, acercou-se de uma fresta, e,
lendo primeiro a assignatura, disse:

--É a assignatura de sua eminencia o sr. arcebispo de Braga?...
Conheço-a...

Ergueu a vista ao alto da folha, e leu:

_Concedemos ao abbade de Santa Maria d'esta nossa diocese, no concelho
de Villa Nova de Famalicão, que possa, sem previa leitura de banhos,
celebrar o sacramento do matrimonio entre os contrahentes de maior
idade_...

Aqui, o abbade estacou, abriu demasiadamente os olhos, acertou os oculos
na baze do nariz, premiu as palpebras com o dedo pollegar, repôz de novo
os oculos, e disse ao filho de Maria:

--Ó rapaz, que nomes são estes que estão n'este papel?

O carpinteiro leu: _entre os contrahentes de maior idade Belchior
Bernabé, filho de pais incognitos, e Maria Lopes, filha legitima de
Silvestre Lopes e_...

--Que é isto?--exclamou o abbade--Santo Deus! que é isto?

--Belchior Bernabé--disse o rapaz com o mais candido assombro--sou
eu!...

--Belchior Bernabé é teu pai, meu filho!--exclamou o commendador,
abraçando-o; e, ao mesmo tempo, encurvando o braço pelo collo de Maria,
puxou-a para o peito, tocou-lhe com os labios ardentes como as lagrimas
na face, e murmurou-lhe soluçante:--Aqui me tens, minha desgraçada
Maria! aqui está o pobre engeitado!...

Ella expediu um grito estridente como o da alegria dos encarcerados, dos
condemnados á eterna deshonra que viram inopinadamente golphar-lhes na
treva a luz do ceo e a rehabilitação da honra. Queria reconhecel-o,
tateando-lhe as faces; mas faltou-lhe a claridade dos olhos e a lucidez
da rasão. Ella pedia luz, pedia a Deus que a não deixasse morrer, e
desfallecia pendente do pescoço de Belchior.

       *       *       *       *       *

A felicidade de Maria era santa: custára vinte annos de affrontas
soffridas com paciencia, sem revolta contra a implacavel barbaridade do
pai, nem contra a immobilidade das forças divinas. Esperara em Deus,
esperara sempre. Dizia ella que sonhara aquillo mesmo--a vinda de
Belchior, e a restauração da sua honra.

Contava-o ella ao abbade, e ao esposo, e ao filho, á porta do templo: e
elle, o ancião, com as rugas da face luzentes de lagrimas, dizia:

--Fui eu quem vos baptisou, e quem vos casou, meus filhos. Agora,
enterrai-me vós que eu não tenho ninguem.

       *       *       *       *       *

Belchior Bernabé exigiu como dote de sua mulher o estabulo dos bois
edificado sobre os alicerces da caza onde fôra recolhido e aquecido ao
seio da tecedeira. Ali, onde foi cabana de candura e oração, está hoje
um palacete com as mesmas coisas divinas, accrescentadas pela felicidade
do amor. Vê-se de longe o palacio do commendador Belchior; e lá ao pé,
no interior do palacio, as pompas da architectura e das decorações
desapparecem deslumbradas pelo que ha de immortal nas obras humanas: a
virtude. Lá está o abbade resignatario de Santa Maria entrevado: mas
todas as manhãs é transferido da cama para a cadeira que lhe fez o seu
Belchior Junior, aquelle rapaz, que não resiste á vocação de
carpintejar, e está fabricando uma nova cadeira de rodas e molas para o
seu velhinho.

FIM




III

O CEGO DE LANDIM




_Ao Visconde de Ouguella_

Sejamos amigos como foram nossos pais, e deixemos a nossos filhos o
exemplo que recebemos




O CEGO DE LANDIM


I

Foi ha treze annos, em uma tarde calmosa de agosto, neste mesmo
escriptorio, e n'aquelle canapé, que o cego de Landim esteve sentado.
São inolvidaveis as feições do homem. Tinha cincoenta e cinco annos,
rijos como raros homens de vida contrariada se gabam aos quarenta.
Resumbrava-lhe no semblante anafado a paz e a saude da consciencia.
Tinha as espaduas largas: cabia-lhe muito ar no peito; coração e pulmões
aviventavam-se na amplidão da pleura elastica. Envidraçava as pupilas
alvacentas com vidros esfumados, postos em grandes aros de ouro. Trajava
de preto, a sobrecasaca abotoada, a calça justa, e a bota lustrosa;
apertava na mão esquerda as luvas amarrotadas e apoiava a direita no
castão de prata de uma bengala.

Eu não o conhecia quando me deram um bilhete de visita com este
nome--ANTONIO JOSÉ PINTO MONTEIRO.

Em S. Miguel de Seide, uma visita, que se fizesse preceder do seu
cartão, era a primeira.

--Quem é?--perguntei ao creado.

--É o cego de Landim.

--E esse cego quem é?

O interrogado, para me esclarecer superabundantemente, respondeu que era
o CEGO, como se se tratasse de um cego por excellencia e de historica
publicidade: Tobias, Homero, Milton, etc.

Mandei que o conduzissem ao meu escriptorio. Ouvi passos que subiam
rapidos e seguros uns doze degráos: e, no patamar da escada, esta
pergunta muito sacudida:

--Á esquerda ou á direita?

--Á esquerda--respondi, e fui recebel-o á entrada.

Estendeu-me firme dois dedos, e desfechou-me logo em estylo de
presidente de camara municipal sertaneja ás pessoas reaes, uma allocução
á minha immortalidade de romancista, lamentando que eu ainda não tivesse
em Portugal uma estatua... equestre; parece-me que elle não disse
estatua equestre. Achei-lhe rasão. Eu tambem já tinha lamentado aquillo
mesmo; porém, cumpria-me regeitar modestamente a estatua, como o duque
de Coimbra, agradecendo a virginal lembrança do sr. Pinto Monteiro.

--Tenho ouvido ler os seus livros immortaes--disse elle--Não os leio
porque sou cego.

--Completamente?--perguntei, parecendo-me incompossivel a cegueira
absoluta com a segurança da sua agilidade nos movimentos.

--Completamente cego, ha trinta e trez annos. Na flôr da idade, quando
saudava as flôres da minha vigesima segunda primavera, ceguei.

--E resignou-se...

--Se me resignei!... Morri de dôr, e resuscitei em trevas eternas... O
sol, nunca mais!

Pungia-me a compaixão. Disse-lhe consolações banaes; citei os mais
luminosos cegos antigos e recentes. Nomeei-lhe o principe da lyra
peninsular, Castilho, e elle atalhou:

--Castilho tem o genio que vê as coisas da terra e do ceu. Eu tenho as
duas cegueiras do corpo e da alma.

Achei-o eloquentemente sobrio e áttico; figurou-se-me até litterato dos
bons. Lembrei-me se elle vinha convidar-me para fundarmos um jornal em
Landim, ou se viria pedir-me para o propôr socio correspondente da
academia real das sciencias.

Discretiamos de parte a parte em variados assumptos, até que elle
explicou as suas pretenções. Tinha um litigio pendente sobre a posse
disputada de umas azenhas que lhe haviam custado tres contos de réis, e
pedia a minha valiosa preponderancia afim de que os juizes de segunda
instancia lhe fizessem justiça inteira.

Observei-lhe que a minha influencia poderia ser-lhe necessaria, se a
justiça estivesse da parte do seu contendor; por quanto, quem não tem
justiça é que pede.

--Apoiado!--interrompeu elle--A razão diz isso; mas acontece que o meu
contendor pede porque não tem justiça; ora não vão os juizes cuidar que
eu tenho mais confiança na lei do que n'elles...

Pareceu me sagaz, argucioso e um pouco germanico o cego.

Deu-me quatro memoriaes, accendeu o terceiro charuto, e ergueu-se.
Acompanhei-o até ao portão, e vi-o cavalgar com garbo quasi marialva uma
vistosa egua, passar as redeas falsas pelas outras com destreza,
esporear e partir sósinho.

       *       *       *       *       *

Ora, o cego perdeu a demanda das asenhas por que as asenhas não eram
perfeitamente d'elle, e eu não podia pedir aos desembargadores que as
tirassem ao dono e m'as dessem a mim para eu as dar ao cego.

Nunca mais o vi. Retirou-me a admiração e mais a estatua. E, cinco annos
depois, morreu.

A historia dos homens descommunaes deve começar a escrever-se á lampada
do seu tumulo. Á luz da vida tudo são miragens nas acções dos heroes e
estrabismos na contemplação dos panegyristas. É tempo de bosquejar o
perfil d'este homem esquecido, e quem quizer que o tire a vulto em
marmore mais presistente. Pretendo desmentir os aleivosos que reputam
Portugal um alfôbre de lyricos, romancistas salobros de amoríos de
aldeia, porque não temos personagens bastantemente succulentos de quem
se espremam romances em 4 volumes.


II

Nascera em Landim em 11 de dezembro de 1808.

1808! Os biographos portuguezes, se escrevem de pessoa nascida n'aquella
data ou por perto, relatam-nos derramadamente a revolução franceza a
começar em Luiz XVI, exhibem a guerra peninsular, e concluem o curso de
historia moderna ligando fatidicamente á evolução social o nascimento
d'aquelle sujeito.

No anno 1808, uma das muitas pessoas que nasceram sem pesarem um
escropulo, pelo pezo velho, na balança dos lusos destinos, foi aquelle
Antonio José Pinto Monteiro.

Seu pai barbeava em Landim com ferocidade impune. A espada de Affonso
Henriques e as navalhas d'elle tem tradições sanguinarias. Ainda hoje,
transcorridos setenta annos, os netos dos seus freguezes parece que
herdaram a sensação dos gilvazes dos avós. Em Landim falla-se d'elle
como de Torrequemada em Valhadolid. Aquelle barbeiro é uma lenda como a
de Gerião, assassinado por Hercules, e a do monstro de Rhodes cantado
por Schiller.

Antonio, o primogenito d'este esfolador, estudou primeiras lettras com
rara esperteza. Aos onze annos, era prodigio em taboada e bastardinho.
Aos doze, imitava firmas com perfeição despremiada, e vingava-se do
menospreço em que o estado o esquecia, estabelecendo correspondencias
entre pessoas que não se correspondiam, mediante as quaes, uma vez por
outra, agenciava alguns pintos.

Como talentos taes não se atabafam muito tempo debaixo do alqueire, o
rapaz soffreu algumas contuzões. Um monge benedictino de S. Tyrso
compadeceu-se do moço, em tão verdes annos perdido, á conta da sua
habilidade funesta: pagou-lhe passagem para o Brazil, porque sabia que
os ares de Sancta Cruz são como os do Eden para refazer innocentes.

Empregou-se como caixeiro no Rio. Foi estimado nos primeiros trez annos.
Estremava-se dos seus broncos patricios no dom da palavra, nas lerias
aos freguezes, nos ardis licitos do balcão, nas ladroices
consuetudinarias que affirmam a vocação pronunciada, as quaes, no calão
da optica mercantil, se chamam: «lume no olho.» Nas horas feriadas, lia
applicadamente e tangia violão. A sua especialidade litteraria era a
eloquencia tribunicia. Estudara francez para ler Mirabeau e Danton.
Enchera-se d'elles, e ensaiava republicas federalistas com os caixeiros,
pedindo cabeças de reis a uns pobres parvajolas que suspiravam apenas
por cabeças de gorazes.

Os patrões não farejaram um acabado Robespierre no caixeiro; mas, como
desconhecessem a vantagem da apotheose dos girondinos em uma loja de
molhados, expulsaram-no como republicano.

Pinto Monteiro intrommetteu-se na politica brazileira, iniciou-se na
maçonaria em 1830, fez discursos vermelhos contra o imperador e escreveu
clandestinamente. Esteve assim na fronteira do paiz promettido aos
eternos Paturots. É indeterminavel o estadîo que elle ganharia, se um
militar imperialista lhe não cortasse o rosto com um latego. Uma das
tagantadas contundiu-lhe os olhos. Pinto Monteiro cegou.


III

Reagiu ao desastre com peito de ferro. Menos rija alma ingolphara-se na
espessura da sua treva. Elle não. Pediu ao inferno luz emprestada para
entrar na vareda das suas victimas. Accendeu interiormente, no carcere
do seu espirito, a lampada do odio. A vingança leval-o-hia pela mão,
como Malvina ao cego de Macpherson. Perdoa-me a comparação, ó bardo
caledonio!--que eu já vi Marat comparado a Jesus Christo.

Quando lhe deram alta na barra da enfermaria, pediu o seu violão, sahiu
ás praças, preludiou e cantou umas trovas com arpejo triste, ás portas
dos argentarios e dos taverneiros. As trovas faziam saudades da patria,
e a musica gemia as toadas dos lunduns do Minho. Os ouvintes
contemplavam-no com dó e davam-lhe esmolas avultadas para regressar a
Portugal, ao ninho seu. Tinha elle um moço: era portuguez ilheu, alguns
annos mais novo. Levara-o a doença, a podridão do vicio á mesma
enfermaria; e a penuria e o instincto vincularam-no ao cego. Chamava-se
Amaro Fayal; mas os que lhe conheciam as prendas corrompiam-lhe o
appellido, e chamavam-lhe o Amaro _Faiante_. Pessoas escassas de
caridade indulgente diziam que a maldade do cego e os olhos do moço
completavam dois refinados maraus.

Pinto Monteiro trajava limpamente, banqueteava-se á proporção, e
dulcificava os confortos cazeiros com o amor de uma aventureira mal
prosperada como tantas que o archipelago açoriano exportava consignadas
aos Cressos da rua do Ouvidor, que pachalisavam nas chacaras da Tejuca.
Creara uma sociedade nova. Acercara de si toda a vadiagem suspeita, os
ratoneiros já marcados com o stigma da sentença, os mysteriosos,
famintos sem occupação, negros e brancos, não topados ao acaso, mas
inscriptos nos registros da policia, e afuroados pela sagacidade de
Amaro Fayal. Tinha lido as _Memorias de Vidocq_,--o celebrado chefe de
policia de Paris. Encantara-o a equidade do governo que elevara Vidocq,
o ladrão famoso, áquella magistratura: por que elle, por espaço de vinte
annos, exercitara o latrocinio e grangeara nas galés os amigos que
depois entregava á grilheta.

Pinto Monteiro organisou a bohemia que, até áquelle anno, roubando sem
methodo nem estatutos, exercitara a ladroeira d'um modo indigno de paiz
em via de civilisação. Fez-se eleger presidente por unanimidade e nomeou
seu secretario Amaro Fayal. Havia um proposito quasi heroico n'este
feito, como logo veremos. Investido d'esta presidencia incompativel com
as artes lyricas, depoz o violão, e, á semelhança do poeta latino,
immudeceu os cantares, _tacuit musa_. Sentia-se no congresso uma alma
nova, cheia de fomentos e apontada a rasgar horisontes dilatados.

Quem ouvisse discursar o presidente sociologicamente, ficaria em duvida
se furtar era sciencia ou arte. Pinto Monteiro enxertava nas suas
prelecções sobre a propriedade umas vergonteas que depois enverdeceram
com estylo melhor nas theorias de Cabet. Os malandrins mais
intelligentes, depois que o ouviram, desfizeram-se de escrupulos
incommodos, e entre si assentiram que não eram ladrões, mas simplesmente
desherdados pela sociedade madrasta, e victimas d'uma qualificação já
obsoleta. A terminologia do livro 5.^o das Ordenações em um paiz joven,
exhuberante, e que tem o sabiá e o côco, era uma anomalia.

D'esta arte organisada a quadrilha, sob a influencia auspiciosa de um
cerebro pensante, os cidadãos eram roubados mais artisticamente; na
empalmação dos relogios conhecia-se que havia ideas de physica, de
mechanica, de equilibrio, de dynamica e sciencias correlativas. Os
alumnos da reforma parecia collaborarem no _Manual do prestidigitador_
de Roret, e abandonavam como archaismo aos poderes publicos a _Arte de
furtar_ de quem quer que seja.

A sociedade prosperava a olhos vistos, posto que o prezidente não
tivesse olho nenhum:--N'esta independencia dos orgãos de relação prova a
alma a sua immortalidade. Foi então que Pinto Monteiro e o secretario,
munidos dos livros de registo e de toda a escripturação, se apresentaram
ao chefe da policia Fortunato de Brito.

Eis aqui a reputação de um homem sacrificada á extirpação do crime. Os
Codros e os Curcios, na restauração da moral publica, fazem isto.

O chefe da policia conveio nas propostas de Pinto Monteiro, que
estatuira conservar-se na confidencia dos ladrões e delatar a paragem
dos roubos quando no descobril-os redundassem á policia creditos e
interesses. O cego esclarecera Fortunato sobre a organisação do
funccionalismo policial em Paris, ensinara-lhe alvitres ignorados, e
promettia auxilial-o n'um ramo ainda mal cultivado no Brazil--a
espionagem politica.

Surtiu os previstos resultados a perfidia. Os larapios mais soezes eram
arrebanhados para a casa da correcção; mas os ladravazes mais ladinos
poupava-os o presidente para não perturbar de improviso o equililibrio
do cosmos. É necessario que haja escandalos, diz o Evangelho.

Como agente secreto de policia recebia do cofre do estado; como chefe da
«Associação dos desherdados», auferia o seu quinhão do peculio commum,
afora as forragens da presidencia, etc.

Este periodo da vida do cego durou cinco annos; as duas rendas
sobejavam-lhe á fartura do passadio; principiou Monteiro a engrossar o
peculio, quando a delator e agente ajuntou o estipendio de espião.

Voltando ás antigas camaradagens politicas, fallou nas sociedades
secretas com exacerbada virulencia; e, victima do dispotismo militar,
mostrava os olhos estoirados e baços com a dolente magestade do general
Belizario, vencedor dos hunos.

Constou ao governo que Pinto Monteiro ousára pedir um Cromwell de quem
elle cego fosse o Milton. A comparação seria modesta, se não fosse
sanguinaria. O governo brazileiro, com a subtileza propria dos cerebros
formados com tapioca e ananaz, intendeu que o pescoço do sr. D. Pedro II
era ameaçado pelo cego com a tragedia de Carlos Stuart.

A Fortunato de Brito foi ordenado que vigiasse e processasse o sedicioso
cego. Intalação! O chefe de policia foi explicar ao seu ministro que os
discursos de Pinto Monteiro eram boízes armadas a passaros bisnáos de
mais alta volateria. O conflicto remediou-se prescindindo o espião da
oratoria, e attendendo sómente a seguir o rastilho das revoluções
urdidas no Rio, para rebentarem nas provincias.

Como em meio de tanta lida ainda lhe sobrava tempo, Monteiro ensaiou por
sua conta, e sem auxilio da malta, uma reversão de propriedade, termos
adquados á sua qualidade de desherdado.

Havia morrido um carroceiro quando, avençado com o cego, experimentava a
sua fortuna em aventuras de moeda falsa, mandando abrir os cunhos no
Porto.

A cidade da Virgem tem tido filhos de raro engenho na gravura; mas os
seus concidadãos, desamoraveis com as graças do buril, crearam á volta
d'elles uma atmosphera fria de desalento, e no pedestal em que os
sonhadores, como Morghen e Bartolozzi, entreviram a gloria a
offerecer-lhes umas sopas de vaca, o menospreço publico poz-lhes a fome.
Seria bonito para o martyrologio da arte que os honrados alumnos da
Academia das bellas-artes se deixassem perecer de anemia; porém, as
poderosas reacções do estomago impulsaram-nos a acceitar o unico lavor
que se lhes offerecia: abrir cunhos de moeda. Este ramo das artes
imitativas floriu no Porto como planta indigena, a termos de haver ali
trabalhos excellentes e muito em conta. Já se conheciam os gravadores
portuenses como hoje se conhecem os capellistas da rua de Cedofeita:--_o
primeiro barateiro, o rei dos barateiros, o barateiro sem competidor_.
Faziam-se notas a 5% quando a arte estava no berço, ainda timorata;
depois, á medida que a prosperidade das emprezas internacionaes
augmentava o pedido, os bons artistas davam de mão aos brazões dos
sinetes, ás chapas dos portões e ás firmas dus anneis; e, rivalisando-se
no primor e na barateza da obra, já davam um conto de notas falsas por
dez mil reis sinceros.

Era este o preço da dezena de contos que o carroceiro mandara comprar
por intermedio de Pinto Monteiro, e não chegara a receber, atalhado pela
morte. Deixára, porém, segredado á viuva que se entendesse com o seu
amigo Monteiro, quando lhe entregassem a encommenda.

Não sei se estas notas eram parte de uns tresentos contos que por esse
tempo sahiram do Porto para o Brazil dentro da imagem do Senhor dos
Passos. Não averiguei as profanações que se deram n'essa remessa; o que
sei é que a viuva avisou o cego; e que, no mesmo dia do aviso, o chefe
da policia colhia de sobresalto a viuva, escondendo o rolo das notas
entre o guarda-infante e a parte subjacente que ella julgava intangivel
aos contactos brutos dos esbirros.

Levada a interrogatorios, foi pronunciada; mas, desde que ella entrou no
carcere, Pinto Monteiro, consternado até ás lagrimas, assistiu-lhe com a
mais desvelada bemquerença, constituindo-se seu procurador.

Esta mulher herdara a independencia. Gemeu em ferros seis annos
cumprindo a cummutação d'uma sentença que a condemnava a degredo para a
Ilha de Fernando. Essa commutação custara-lhe o restante dos seus
haveres, absorvidos pelo cego de Landim. Quando sahiu do carcere, e se
viu roubada pelo amigo de seu marido, e reduzida a mendigar, denunciou
ao chefe da policia a cumplicidade de Monteiro no negocio das notas.
Fortunato de Brito conveio que o seu agente era infame maior da marca:
mas fazia se mister que tivesse aquelle tamanho para dar pela barba á
corpolencia da corrupção. O cego de Landim gosava a inviolabilidade de
mal necessario.

A extorsão feita á viuva divulgou-se e acerbou os antigos odios contra
Pinto Monteiro. De mais a mais, elle tinha offendido o espirito dos
estatutos, que eram obra sua. Os consocios acharam irregular e menos
honesto que o seu presidente levasse o egoismo á extremidade de
reivindicar só para si direitos de propriedade commum. Toda a
propriedade alheia era d'elles todos, pelos modos. Alguns d'estes, mais
penetrantes, incutiram no phalansterio a suspeita de que o chefe tivesse
intelligencias com a policia. Um mulato de grandes brios, notavel
capoeira, e muito summario nos processos d'aquella especie, fez lampejar
o aço da sua faca e declarou que ia anavalhar o redenho do cego.

Quando esta scena tumultuaria se passava na taverna do João Valverde, na
rua do Catête, Pinto Monteiro e Amaro Fayal já estavam a bordo da galera
_Tentadora_, que velejava para o Porto.


IV

Em setembro de 1840 appareceu em Landim Pinto Monteiro e o seu chamado
guarda-livros. Acompanhava-os a açoriana, intitulada honorificamente
esposa do cego. Era uma mulher desnalgada, sardenta, ruiva, alta e
possante, com bretoejas rosaceas na testa, e um caracol de barba no
queixo inferior. Galhardeava _moírées_, calçava botas verdes, e trazia
uns merinaques que rugiam como as cavernas dos ventos.

Pinto Monteiro alugou casa em quanto reedificava outra sobre o casebre
de seus pais. O guarda-livros dizia com certo resguardo que o patrão era
muito rico. Convergiram logo das freguezias circumvisinhas bastantes
cavalheiros a visital-o, uns porque haviam sido seus condiscipulos na
escola, outros por parentesco não remoto.

O cego banqueteava os seus hospedes com iguarias incognitas apimentadas
por cosinheiras negras. Os commensaes, gente saturada de vegetaes e
milho, comiam á tripa fôrra, e levavam em si d'aquella mesa lauta raras
indigestões, muitas saudades e copia de vinhos. O cego tinha uma irmã
dez annos mais nova, que surgiu com bandós, dom e espartílhos d'entre um
balão da cunhada. Fallou-se do casamento da moça, dotada pelo irmão com
dez contos. Os morgados já corveteavam os seus pôtros por Landim, e de
longes terras vinham propostas de casamento, por intermedio de padres e
beatas. A rapariga, que eu conheci a encanecer na decadencia dos
cincenta annos, devia ter sido uma trigueira sanguinea com as mordentes
graças das sobrancelhas travadas, e negras como a pennugem do bigode.

Pinto Monteiro passava temporadas no Porto com Amaro Fayal. Era ali que
elle cumpria a mensagem a que fôra enviado pelo chefe da policia
fluminense. Viera, sob condições estipuladas, relacionar-se com os
exportadores de moeda-falsa, e estatuir, de harmonia com os
interessados, bazes organicas e auspiciosas para negocio menos precario.
O resultado, previsto pelo cego e applaudido por Fortunato de Brito, era
a policia conhecer no imperio brasileiro os cumplices dos agentes que
residiam no Porto, e, de uma vez para sempre, abranger em rede
varredoira os principaes.

Conseguira captar a confiança dos dois gravadores mais habilidosos e
conhecidos alem-mar; mas um d'elles, Coutinho, o ancião que eu vi morrer
na enfermaria da Relação em 1861, não delatou as pessoas com quem
negociava, posto que o cego lhe garantisse uma velhice abastada nos
confortos da honra. O outro artista, que morreu rico, apezar de se ter
remido da cadeia á custa de dezenas de contos, tambem não denunciou os
seus freguezes; mas convidou o cego a mercar-lhe _au rabais_ uns
cincoenta contos, resto da ultima edição.

E o cego comprou-os.

Em 1841, a hospedaria dilecta dos brazileiros de profissão (distingam-se
assim dos brazileiros do Brazil) era a do Estanislau na Batalha. Ali
havia a sem ceremonia do chinello de liga á meza-redonda; os collarinhos
arregaçados deixavam arejar as pescoceiras rorejantes de suor, que se
limpavam aos guardanapos; cada qual podia comer o arroz com a faca e o
talharim com o garfo; a laranja era descascada á unha, e os caroços das
azeitonas podiam ser cuspidos na meza, bem como as esquirolas do pernil
do porco desentalladas a palito das luras dos queixaes. E era até de
direito commum cada qual caçar de _guet-apens_ a importuna mosca na cara
e decapital-a publicamente. Estava-se ali á vontade, como nos jantares
de Peleu e Patroclo, com um grande estridor de mastigação e arrôtos.

O cego hospedava-se no _Estanislau_, e dizia ao secretario:

--Estamos com a nossa gente, Amaro amigo.

A idade, a compostura e o palavriado, com a reputação de rico, deram-lhe
na meza o logar mais auctorisado. Os brazileiros, vindos do Rio,
conheciam aquella figura; alguns sabiam que o homem se tinha arranjado
com expedientes mysteriosos; mas isto mesmo era qualidade meritoria e
relevante no commensal. Rosnava-se de moeda-falsa; até alguem teve a
ousadia de repetir o boato corrente ao guarda-livros. Amaro Fayal deu
aos hombros, sorrindo, e disse:

--A moeda-falsa é commercio como qualquer outro, com vantagens em
proporção dos riscos. Negocio execrando só conheço um: é o da
escravatura. Ha tambem uns negocios que, depois de muitos annos de
estafa, não deixam nada: esses chamam-se negocios tolos. Assevero lhes
que a riqueza do sr. Pinto Monteiro não se fez com a escravaria.

Estava lançado o dardo. Esta franqueza deu margem a discussões, nas
quaes o cego e o Fayal descobriram entre os contendores os menos
escrupulosos. Volvidos alguns dias, Pinto Monteiro tinha vendido os
cincoenta contos de notas a um brazileiro da Maya, e era encarregado de
agenciar cem contos para outros que o primeiro alliciara. N'esta
transação cobrára o cego percentagem, e pedira sociedade no quinto dos
interesses, com a clausula de dirigir no imperio a circulação da
moeda-papel. Pactuaram a viagem para julho d'aquelle anno. Pinto
Monteiro convencionou acompanhal-os, a fim de liquidar o restante dos
seus haveres, dar impulso ao negocio e vir depois descançar na patria.

Depois de uma demora de dois mezes, Pinto Monteiro recebeu no Porto a
infausta nova de que a açoriana, captiva das negaças de um hespanhol
operador da catarata, fugira com elle para a Galliza. Bacorejou-lhe ao
cego que estava roubado, e o palpite funesto realisou-se.

A quantia devia ser valiosa, por que o trahido amante suspendeu as obras
começadas e desfez contractos apalavrados de compras. Ficou na memoria
dos contemporaneos a respeito da perfida, uma palavra do cego,
significativa de sua indole:

--Se o hespanhol levasse a mulher e me não levasse o dinheiro,
penhorava-me bastante. Como me tirou as cataratas do coração, pagou-se
por suas mãos o patife!

A opinião publica de Landim irritou-se quando soube que a fugitiva era
simplesmente manceba do cego. A moral exigia que elle fosse marido, para
não se desvaliarem os quilates do escandalo.


V

No mez aprasado, Pinto Monteiro regressou ao Rio de Janeiro, acompanhado
de sua irmã D. Anna das Neves. Embarcaram no Porto com elle os amigos e
socios grangeados no hotel. O brazileiro da Maya, comprador dos
cincoenta contos, levava algumas pipas de vinho verde, e uma d'estas
vasilhas havia sido fabricada, conforme o modêlo que dera o cego, e sob
a fiscalisação de Amaro Fayal. No reverso das quatro aduelas do bojo
pregaram um quadrado de madeira com chanfradura onde invasasse o rebordo
de um caixote de flandres; a pregagem do quadrado ficava occulta debaixo
de quatro dos arcos de ferro. O caixote continha duzentos contos em
notas brazileiras, e era estanhado nas juncturas de modo que o liquido
as não penetrasse, atravez de uma grossa capa de chumbo.

Chegados ao Rio, a carregação entrou nos armazens da alfandega, e Pinto
Moreira com a sua familia hospedou-se em casa de Fortunato de Brito. Ao
apontar o dia seguinte, os passageiros delatados pelo cego eram prezos;
a pipa despejada e desfeita; e o caixote das notas conduzido ao tribunal
para se lavrar aucto. Os quatro portuguezes morreram no degredo,
perdidos os haveres que já tinham adquirido honradamente. Pinto Monteiro
recebeu dez contos de réis, os 5% estipulados e deduzidos da preza.

O leitor vai descobrindo que eu não estou escrevendo um romance. Consta
me que, no Rio, os homens que já o eram ha trinta annos, recordam estes
factos com algumas miudezas que não pude obter nem já agora inventarei.
Os meus apontamentos são exactissimos no summario das excentricidades do
cego; mas escassos dos pormenores que eu rigorosamente quizera não
omittir.

Aqui me contam elles os amores da morena filha de Landim com o chefe da
policia. Este episodio poderia ser o esmalte do meu livrinho, se em um
chefe de policia coubessem scenas de amor brazileiro, morbidas e
somnolentas, como tão languidamente as derrete o sr. J. d'Alencar. Em
paiz de tanto passarinho, tantissimas flores a recenderem cheiros
varios, cascatas e lagos, um ceo estrellado de bananas, uma linguagem a
suspirar mimices de sutaque, com isto, e com uma rêde--ou duas por causa
da moral--a bamboarem-se entre dois coqueiros, eu mettia n'ellas o chefe
da policia e a irmã do cego, um sabiá por cima, um papagaio de um lado,
um saguí do outro, e veriam que meigas moquenquices, que arrulhar de
rôlas eu não estylava d'esta penna de ferro! Mas eu não sei se me
acreditariam coisas tão perigrinas entre o virginal Fortunato, chefe da
policia, e ella, a menina Neves que já havia colhido as boninas de vinte
e nove primaveras nas florestas do seu Minho, onde a maroteira é
pre-historica.

Amores e desventuras de peor natureza nos levam a outro incidente, e ahi
veremos que Pinto Monteiro fareja todos os latibulos em que se acoite
algum crime, e não consente que a corrupção do seculo XIX ponha pé em
ramo verde no novo mundo.

Certa carioca, esposa de um João Tinoco, portuguez, fizera assassinar
com veneno o marido por um escravo: mas com tal resguardo que o
conjugicidio não escoou dos muros da chacara onde ella impunemente se
dava ás delicias de Agrippina. Isto de chamar Agrippina á viuva de João
Tinoco é excesso de erudição. Ella não tinha idéa nenhuma de ser posta
em parallelo historico com a envenenadora de Claudio; o que ella queria
era que a deixassem gostar as alegrias da viuvez de um marido que
entrara em casa de seu pae como aguadeiro; e, exaltado a esposo, a
quizera forçar a fidelidades incombinaveis com o clima, desenvolvendo de
mais a mais um excedente de calorico na esposa com o atricto do murro
portuguez de lei.

Tinoco tivera um caixeiro que expulsara quando lhe descobriu capacidade
para o adulterio, segundo informações de um marçano que vira piscarem-se
reciprocamente os olhos direitos á sinhá e o caixeiro. Eis o fio que
conduz o cego até ao thalamo infamado e d'ahi á campa do inulto João
Tinoco. O assassinado tinha irmãos abastados no Rio. Pinto Monteiro
revela-lhes que seu mano morrera de morte violenta, e, coberto de
lagrimas, não podendo mostrar os intestinos dilacerados de Tinoco, como
Antonio a tunica de Cesar, põe as mãos convulsas no ventre, e exclama:

--Despedaçaram-lhe as entranhas as agonias do arsenico! etc.

Fez terror.

Rugem vingança os irmãos; o cego dá vulto ás difficuldades das provas
judiciarias; franqueiam-lhe dinheiro sem conta, e um grande premio, se a
prova se fizer.

Vejam os profundos segredos do ceu! Os crimes obscuros quasi nunca é a
lampada da virtude que os descortina; são sempre os cerdos que fossam e
tiram á tona dos lamaceiros as podridões submersas.

Pinto Monteiro fez surdir á flôr da terra as podridões de Tinoco, e a
toxicologia declarou que o homem morrera envenenado pela massa de Frei
Cosme. Não vá o leitor cuidar que entra na novella um frade que
manipulava massas homicidas. Não, senhor. A _massa de Frei Cosme_ é uma
farinha saturada de arsenico.

A viuva não pôde defender-se, desde que a negra confessou que envenenára
o amo em um timbal de borrachos, por ordem da senhora. Degradaram por
toda a vida a ré convicta, privando-a dos bens herdados do esposo. Com a
chacara preciosa foi galardoada a benemerita sollicitude de Pinto
Monteiro--o vingador de Tinoco e da Moral, que eu sempre escreverei com
o M maior que eu podér.

Fortunato de Brito, o chefe da policia, foi demittido por este tempo.
Antonio José Pinto Monteiro resolveu repatriar-se. A denuncia dos
moedeiros açulara-lhe muitos e poderosos mastins. A imprensa brazileira
insultava a colonia portugueza pelo facto do crime e pelo facto do
delator. A equidade foi estranha aos odios e injurias que golpearam
Monteiro. Não lhe descontaram na perfidia as vantagens commerciaes que
derivaram d'ella. Cessára o panico e o terror imminente de um cataclismo
no credito e nas casas bancarias. A policia, allumiada pelo cego, sabia
as veredas que em Portugal conduziam aos balancés. A gente honesta, e, o
commercio honrado rejubilavam com a traição de Pinto Monteiro; mas,
atidos ao velho proloquio onde não reluz faúla de philosophia pratica,
execravam o homem que levara ás plagas do degredo os salteadores da
probidade incauta.

Esta victima ainda não estava inscripta no martyriologio dos grandes
lapidarios da civilisação.


VI

Os meus informadores, que mais privaram na intimidade de Pinto Monteiro,
dizem que elle, no segundo regresso a Portugal, trouxera, além de
secretario, dois filhos, que deixára no Porto a educar no collegio da
Lapa, e uma filha ainda muito na flôr da mocidade. Da mãe d'estes
meninos, que pouco ha vivia ainda nos arrabaldes do Rio de Janeiro, não
ha nada romanesco; mas bem póde ser que houvesse da parte d'ella um
profundo sentimento de dó com muitissima abnegação de si mesma; e no
coração do cego com certeza houve extremoso amor de pai. Os tigres
sempre tem, e os homens costumam ter ás vezes este sancto instincto de
amarem os filhos.

Vinte e tantos contos prefaziam os haveres de Pinto Monteiro. Concluiu
as obras principiadas, comprou terras, e dirigiu pelo tacto as
bemfeitorias que fez no predio que habitava. Ha duas horas que eu estive
a reparar, por cima do muro do jardim, na graciosa vivenda que elle
enchera de luz como se um beijo do sol de agosto podesse descondensar a
algida escuridão de seus olhos. Ali passaram alegres dias os seus
convivas sob os caramancheis das parreiras. O grande prazer de Monteiro
era dar banquetes opiparos.

Ouvia lêr as _Artes de cosinha_, conhecia Brillat-Savarin, enchia-se do
fino sentimento dos guisados; e, apontando a petuitaria aos vapores das
cassarolas, marcava quando era sobejo o cravo ou escasso o colorau.
Fazia pensar se a vista, voltando-se para o interior, penetrava nos
refêgos membranaceos o ideal do estomago! Se um cego illustre deplorava
o perdido paraiso, outro cego parecia tel-o encontrado na cosinha.

Elle, que na America posera o cauterio á ladroagem, á falsificação das
notas e ao adulterio aggravado pelo homicidio, não sabia como amordaçar
a maledicencia dos seus conterraneos, se não occupando-lhes as linguas
no trabalho da deglutição. A cada injuria que lhe chegava aos ouvidos,
mandava comprar dois leitões.

--Mano Antonio, dizem que tu entregaste os ladrões ao chefe da
policia--dizia a menina Neves.

--Dizem? pois, visto que não os posso entregar a elles, compra um peru e
dá-lh'o ámanhã com recheio.

--Mano Antonio, agora dizem que denunciaste os da moeda falsa.

--Compra anhos e capões; attasca essas linguas em podim de batata,
embola-m'os com almondegas, deita-lhes aziar de ovos em fio, afoga-lhes
os escrupulos em vinho de 1815, menina.

E, depois, tinha outra paixão que o deliciava: arranjar casamentos.

Florecem hoje em Landim alguns cazaes de pessoas ditosas que elle
ajoujou, vencendo estorvos á custa de engenhosas intrigas, e até de
liberalidades de suas abatidas posses.

A filha de um cabaneiro, que se creava por sua casa, era o passa-tempo
do cego. Chamava-se a Narciza do «Bravo»,--alcunha paterna. Até aos
treze annos andava vestida de rapaz, e media-se com os mais gaiatos a
trepar á grimpa de um pinheiro, no assalto nocturno ás cerejeiras, em
duellos á pedrada, no jogo do pao e no murro. Era virilmente bella, e
bem feita; mas os meneios adquiridos nos trajos de rapaz
desengraçavam-na vestida de mulher. Ella mesmo olhava para si com zanga
e puxava a repellões as saias esfrangalhando-se. Pinto Monteiro dava
tento destes phrenesis, ria-se muito, e contava-lhe casos de mulheres
portuguezas que batalharam incognitas, cobrindo os seios com arnez de
ferro.

Estava no plano do cego cazal-a. Narciza dizia-lhe que não pensasse em
tal, porque a primeira pirraça que o marido lhe fizesse, favas contadas,
esmurrava-lhe os focinhos. Este programma não assustou Pinto Monteiro,
visto que os focinhos ameaçados eram os do marido.

A rapariga foi pretendida extra-matrimonialmente por varios devassos de
Landim, S. Thryso, e terras circumjacentes. A virago tinha perrixil do
que morde nas linguas já embotadas; mas tambem tinha mãos nervudas e uns
dedos nodosos que se fechavam em forma de box, assim que os pimpões lhe
cantavam desafinados.

Um d'estes era um forte lavrador de Sequeirô, o Custodio da Carvalha.
Apaixonou-se com a resistencia, e fallou-lhe serio em casamento. Narciza
contou a passagem ao cego, que batia as palmas com vehemente jubilo,
exclamando:

--Ó moça, aproveita antes que o rapaz se arrependa! Olha que elle colhe
trinta carros, e é um bonacheirão... E que tal o achas de figura?

--Eu sei cá!...

--Tu gostas d'elle ou não gostas?

--Como se nunca nos vissemos.

--Então, não o conhecias ha muito tempo já?

--Nunca o vi mais gordo.

--Mas queres cazar com elle ou não?

--Tanto se me dá como se me deu; mas o padrinho diga-lhe que, se se faz
fino commigo, eu pinto ahi a manta, que elle não sabe de que freguezia
é. Eu não ponho unhas em foicinha nem sachola, ouviu? Não fui creada na
lavoira. Se elle pega a mandar-me sachar milho ou cegar herva, temo'las
armadas.

--Caza, que tu amansarás...--dizia o cego.

E cazou.

Monteiro deu-lhe magnifico enxoval, cordão, cabaças, anneis, broche;
vestiu-se de fino panno; foi padrinho do casamento, banqueteou os noivos
com muitos convidados, chamou a musica de Paiva de Ruivães, e queimou
dez duzias de bombas reaes.

O marido sentiu as fascinações que enchem de delicias o inferno dos
corações escravos. Ella manietou-o sem violencia de mau genio, com as
suas caricias de gata que desembainha as unhas brincando. Folia rija!
Romagens, quantas havia no Minho; festanças com tres clarinetes e
requinta todos os domingos na eira; a Cana verde e o Regadinho saltado
pelas maiatas mais frandunas; brodios e vinho, fasta fora. Comprou egua
de marca, vestiu-se de amazona, e ella ahi ia com o marido corcovado,
somnambulo, a chotar na mula esparavonada atraz d'ella por essas feiras
e romarias. Ás vezes, se os moleiros não despejavam depressa os caminhos
atravancados com os seus jumentos carregados de foles, verberava-os com
o chicotinho, e chamava-lhes canalhas. Em questões com os visinhos, por
causa de regas ou invasões de gado, fazia ameaças sanguinarias.
Carregava as espingardas do marido e atirava aos gaios com pontaria
infallivel. Quando soube que as senhoras do Porto usavam collete e
gravata á laia de homens, exultou, como quem vê triumphar a sua idéa, e
quiz vestir calções e botas á Frederica.

O lavrador, já no cairel do abysmo, vendidas as melhores propriedades,
quiz reagir. Viu que tinha pela frente um virago de fibras. Afroixou por
medo e por amor. O pusillanime vergava ao prestigio da força. Narcisa
offuscava-o com a rutilante belleza do demonio, disfarçado na lendaria
Dama Pé de Cabra, e n'outras damas que o leitor conhece com pés
chinezes.

Dobados dez annos de vertiginosa dissipação, o lavrador resvalou do
idiotismo á sepultura, amando ainda a mulher que vendera um lençol para
lhe comprar a ultima gallinha. E Narcisa, viuva aos vinte e oito annos,
e ainda formosa, atirou com a honra ás goelas do dragão da miseria, e
não chorou uma lagrima.

Havia uma amiga que lhe dizia palavras dolorosas, com sincero dó: era a
irmã do cego. Pobre Neves! quem te predisséra o supplicio dos teus
derradeiros annos, ligada ao destino da mulher que tu crearas com
maternal ternura!...


VII

Entretanto, o padrinho de Narcisa não escarmentava no sestro de
casamenteiro; é certo porém que similhantes casos assim funestos, não se
repetiram nas suas operações matrimoniaes. Por esse tempo, casou elle a
filha com diminuto dote, e abriu a carreira do sacerdocio a um filho,
que outras vocações depois afastaram da egreja. Os seus teres, com
judiciosa economia, seriam bastantes á decencia aldeã; porém, privar-se
da mesa farta e franca, era privar-se de amigos que lhe festejassem as
anecdotas. Pinto Monteiro, no dia em que falisse de auditorio, começaria
a morrer no abafador silencio da cellula penitenciaria.

Empobrecia rapidamente: mas dava a perceber que a philosophia de Job é a
ultima moeda com que o homem decahido compra a resignação e a gloria
eterna, _par dessus le marché_ dizia elle.

Amaro Fayal, confidente dos secretos desfalques do patrão, pensou em
retirar-se para o Brazil, visto que não tinha secretaria para
fiscalisar, nem desprendimento tamanho que acceitasse outra vez o
officio de moço de cego.

É aqui o logar de repetir litteralmente uma accusação que todos os meus
informadores, sem discrepancia, irrogam ao cego de Landim:

Um lavrador da Lamella, induzido por Pinto Monteiro, vendeu as suas
herdades por alguns contos de réis, a fim de ir negociar no Brazil e
centuplicar o seu dinheiro. Sahiu Monteiro com destino ao Rio, levando
em sua companhia o lavrador. Passados dias, apparece em Landim o cego,
fingindo-se doentissimo, e diz que o seu companheiro embarcara, e elle
retrocedera forçado pela molestia. Ora, do lavrador nunca mais houve
noticia; mas, no governo civil de Lisboa, fôra visado o passaporte de
José Pereira da Lamella, e o mesmo nome inscripto na lista dos
passageiros. Isto não obstante, o cego era accusado de haver matado em
Lisboa o lavrador, não podendo roubal-o por maneira mais suave; e a
certeza confirmou-se quando parentes que o Lamella tinha no Rio,
perguntados a tal respeito, responderam que nunca viram tal homem, nem,
depois de chamado pela imprensa de todas as provincias, apparecera.
Asseveravam, porém, que um nome similhante se lia na lista dos
passageiros desembarcados no Rio, no mesmo navio e mez em que de
Portugal se informava que elle partira.

Seria mais natural suppor que José Pereira morrera obscuramente em
alguma rossa; mas á calumnia pareceu mais romantico decidir que o cego o
matára.

--Como presumem os senhores que o cego matasse o lavrador?--perguntei.

--Não sabemos; mas o mais provavel é que o atirasse ao rio quando o bote
ia para bordo da galera.

Esta era e é a opinião corrente. Pelos modos, o cego, em pleno sol do
Tejo, na presença dos barqueiros, alijou o passageiro ao rio, e fez
remar para terra o bote com a bagagem do morto; depois, saltou no Caes
das Columnas com a mala do dinheiro debaixo do braço, e ás apalpadellas
lá se foi pacificamente caminho de Landim.

Corre parelhas em maldade e estupidez esta aleivosia, é certo; mas o
lavrador, de feito, fôra assassinado em Lisboa.

Agora, posto que tardia, ahi vem a rehabilitação de Antonio José Pinto
Monteiro.

Quem induzira o lavrador da Lamella a vender as terras foi Amaro Fayal,
offerecendo-lhe sociedade em negocio que rendia 200%. O Pereira da
Lamella era calaceiro. O trabalho agricola pezava-lhe: as suas terras,
avaliadas em cinco contos, rendiam escassamente o passadio grosseiro do
lavrador minhoto. Calculou, firmado na prova mathematica das cifras de
Amaro, que, ao fim de cinco annos, devia ter cinco contos dez vezes
multiplicados. É claro: 200%--5 vezes 10--50 contos. Vendeu as terras e
partiu com o ex-secretario do cego. Pinto Monteiro, sinceramente
affeiçoado ao seu confidente de vinte annos de varia fortuna,
acompanhou-o até ao Porto, e d'ali voltou para Landim algum tanto
enfermo, e ás pessoas que lhe perguntavam pelo Pereira da Lamella
respondia naturalmente que tinha embarcado. Dava-lhe, porém, que scismar
não estar o nome de Amaro Fayal na lista dos passageiros.

O leitor já descobriu que o assassino do lavrador foi Amaro; que o
passaporte do morto serviu para o matador; mas ignora os pormenores do
crime, e eu tambem os não sei.

Passados annos, um correspondente de gazeta escrevera o essensial da
calumnia que assacava o homicidio ao cego. O delegado de Villa Nova de
Famalicão, Soares d'Azevedo, e advogado de Pinto Monteiro em diversas
demandas, aconselhou-o que justificasse a sua innocencia n'este crime
que lhe imputavam, porque deixal-o á calumnia e á revelia era
arriscar-se a perder todos os seus pleitos. O cego, com a lucida
intuição de quem tinha longa pratica de crimes tenebrosos, explicou a
morte do lavrador, comprovando-a pelas circumstancias do passaporte,
pela omissão do nome do homicida na lista dos desembarcados no Rio, e
pela certeza que lhe deram de Amaro Fayal ter morrido poucos dias depois
que chegára, no hospital, com o roubo ainda intacto, segundo vira na
noticia dos espolios dos fallecidos. Replicou-lhe o delegado que
semelhante justificação era insufficiente: o cego redarguiu que não
tinha outra, nem essa mesma daria, se Amaro Fayal fosse vivo, por que no
seu braço se amparara vinte annos, vinte annos vira pelos olhos d'elle,
e mal remunerado o despedira, sem que o seu guarda-livros murmurasse da
mesquinhez da paga.


VIII

Em 1858 o cego, escasso de posses, escorregava na ladeira da pobreza.
Havia vendido ou hypothecado as terras. Perdera demandas valiosas:
parece que em quasi todas influiu a sua má nota a desculpar a injustiça.
Duas quintas lhe foram extorquidas com tão estranho desafôro, que é
mister acceitar-se intervenção de jurisprudencia divina para que o homem
as perdesse, pois é de crêr que as adquirisse com dinheiro deshonrado.
Dizia elle que viera encontrar em Portugal especies de ladrões
fleugmaticos e frios, que não topara nos climas quentes; e que o larapio
luso-brasileiro era francamente analphabeto e lerdo, ao passo que o
ladrão, extreme e puramente luso, era, por via de regra, além perverso,
bacharel formado. Alludia a dois adversarios jurisconsultos que eu
escondo á curiosidade do leitor, por que me sustém o pulso um quasi
religioso respeito á memoria honesta de Paiva e Pona, e tambem de Pêgas.

Com as ultimas moedas, abriu Pinto Monteiro um botequim em Famalicão,
faz hoje dezesete annos. A villa, n'esse tempo, estava na apojadura das
suas prosperidades. Choviam ali brazileiros que nem maná nos areaes da
Mesopotamia. Dos paúes alagadiços irrompiam casas de azulejos
variegados. Villa Nova era o centro da locomoção do Minho, da mercancia
agricola, da _villegiatura_ dos portuenses; mas não tinha o «café»--a
prova real da civilisação.

Pinto Monteiro contava com as leis do progresso; porém, Villa Nova que
hoje, na extrema decadencia, tem tres «cafés» com dois limões sorvados e
tres garrafas de licor de canella, em tempos florentissimos não
sustentou o botequim do cego em que havia cognac, coraçáo, chartreuse,
kermann e absintho. É porque, ha dezesete annos, o progresso material
desconhecia a precisão dos «cafés», paragens d'uns ociosos que se
putrificam, raça amollentada no sybaritismo da cerveja de quartola, com
grandes orgias de cigarros de Xabregas.

O cego apenas vendia algum capilé aos vigarios encatarroados e orchatas
aos adiposos. A ruina ia consummar-se e o botiquim fechar-se, quando
chegou á villa, e se hospedou no hotel um brazileiro doente vindo do Rio
com sua esposa. Pinto Monteiro conhecia de nome o enfermo.

Visitou-o e acompanhou-o nos desalentos da cachexia, animando-o ou
distrahindo-o com a sua variada e jovial conversação. Alvino Azevedo
affeiçoou-se-lhe a ponto de, chegado ao termo dos soffrimentos, lhe
confiar sua mulher, pedindo-lhe que a protegesse e guiasse na
administração dos seus haveres. A esposa do enfermo estava um pouco
longe da idade em que as viuvas correm perigo, se as não vigiam: tinha
setenta annos feitos, e já não conservava toda a frescura das suas
dezoito primaveras nem os dentes completos. Os dons do espirito não eram
transcendentes nem talvez bastantes para seduzirem outro marido: D.
Joanna Tecla era idiota.

O cachetico expirou nos braços do cego, despedindo-se da esposa com uma
olhadella cheia de saudades, e talvez de esperanças no paraizo de
Mafoma; em que as mulheres velhas remoçam. Ella chorou copiosamente, e
declarou que aquelle morto era o terceiro marido que lhe fugia para o
ceo. Elles tinham tido razão em fugir todos.

D. Tecla passou para casa do cego com todo o resguardo da sua pudicicia,
acompanhada pela mana Neves.

Passados os tres dias de nôjo, perguntou-lhe Pinto Monteiro se queria
voltar ao Brazil, sua patria, ou ficar em Portugal, recebendo os
rendimentos dos seus predios no Rio. A viuva respondeu que a sua posição
era muito melindrosa; que uma senhora não podia ir sósinha para tão
longe; que o mundo estava cheio de homens mal creados que mediam tudo
pela mesma raza; que não queria sujeitar-se a algum desaguisado por
essas terras de Christo; que em fim, não ia para o Brazil sem ter
familia muito honesta com quem fosse.

--Mas então, minha senhora;--redarguiu o cego--quer, entretanto que não
vai, viver sósinha em Villa Nova, ou dá nos o prazer da sua companhia?
Seu defunto esposo encarregou-me de a dirigir; eu, porém, o que farei é
conformar-me com a vontade da senhora, que já tem sufficiente idade para
saber o que lhe convem.

--Não sei nada do mundo--acudiu Tecla--Estou muito verde. O senhor é que
ha de guiar-me.

--Deus lhe dê melhor guia do que um cego, minha senhora;... mas ahi tem
a minha mana que lhe será companheira e irmã.

No dia seguinte, Monteiro fechou o botiquim com um sorriso sarcastico, e
o ar solemne e vingativo de quem fechava a porta que franqueára á
civilisação de Villa Nova. Elle vociferou que os habitantes de Famalicão
eram indignos do «Café», deu volta á chave, e foi caminho de Landim com
a hospeda e a irmã.


IX

Os dois predios que a viuva possuia na rua da Quitanda valiam quarenta
contos de réis fracos; as suas joias, dádivas de tres maridos, eram
muitas e nem todas de pedras falsas. A idade da viuva animava um quarto
marido, na hypothese de caber a esse quarto a vez de a ver fugir para o
céo a ella. O certo é que andavam já dois empregados da fazenda e outros
tantos da administração a expiarem o ensejo de lhe seduzirem a
inexperiencia, quando a viram ir impertigada n'umas andilhas, caminho de
Landim, a chotar, e a rir-se dos solavancos do macho.

Os pretendentes pegaram de gritar contra o cego, assacando-lhe o rapto e
a coacção da viuva. O juiz de direito viu-se forçado a deferir ao
requerimento de um curioso que pedia uma visita domiciliaria ao carcere
privado de D. Joanna Tecla Alves. Effectivamente a hospeda de Pinto
Monteiro foi interrogada em presença de testemuhas, se estava n'aquella
casa por sua livre vontade, não coagida nem seduzida.

Respondeu que estava muito contente, e que podia estar onde quizesse.

O juiz concordou.

Algumas cartas amorosas em papel perfumado lhe enviou o mais galan dos
funccionarios de Famalicão. Joanna Tecla relia as cartas com secretas
delicias; mas, no exterior, fingia-se de uma isenção que faria
envergonhar Arthemisa, viuva de Mausólo e as combustiveis viuvas do
Malabar. Perguntava á sua amiga Neves quem era o tolo que lhe escrevia;
e, rindo com a garridice arisca dos dezeseis annos, dizia que seria
grande pagode mangar com elle, respondendo-lhe ás cartas.

A mana do cego segredava ao irmão:

--Olha que a velha é tola, mano Antonio; trata de cortar os voadouros á
cegonha: senão, hasde vêl-a voar aos braços do quarto marido.

--O quarto marido heide ser eu!--disse o cego com uma visagem de martyr
voluntario--Heide ser eu o quarto marido--repetiu elle, tragando um copo
de rhum para ganhar alma--porque a ter de entrar n'esta casa o espectro
da miseria, é melhor que entre Joanna Tecla. Não me lembra como se
chamava um cego que dava graças a Deus porque não podia vêr um certo
tyranno; eu tambem as dou, porque não posso vêr a minha noiva.--E enchia
o copo esvasiado, mascava o charuto, e fazia com as duas pernas um curso
de geometria--Sacrifico-me a ti e a meus filhos. Vou ser o bode
expiatorio das minhas e vossas prodigalidades; mas levo a certeza de que
ella ao menos me será esposa fiel--o que é raro antes dos setenta annos.
O seu terceiro defuncto disse-me que Tecla era uma paz d'alma, bruta
sim, mas boa. Emfim, mana, sonda-m'a; vê se lhe achas vontade de casar
quarta vez.

--Tomára ella!--acudiu a irmã--Está sempre a dizer: «Isto de mulher sem
homem é como peixe fóra de agua.» Põe papelotes todas as noites, e faz
caracoes quando se ergue. Que quer isto dizer? Queres que eu lhe toque
no casamento comtigo?

--Toca; que eu começo hoje a fazer-lhe a côrte.

Na tarde d'esse dia, passeava Monteiro, debaixo da parreira do seu
quintal, pelo braço da viuva. As calhandras e os pintasilgos trilavam os
seus requebros ás margens do rio Pele. As rãs coaxavam nas pôças, e as
auras ciciavam na ramaria dos álamos. Era uma tarde de tirar amores do
olho de uma couve lombarda.

Passeavam silenciosos, quando ao longe, no pinhal do mosteiro, cantou um
cuco.

--Olhe o cuquinho a cantar!--disse ella com meiguice.

--Gosta de ouvir o cuco, sr.^a D. Tecla?--perguntou o cego.

--Eu gosto de toda a passarinhada--respondeu ella com as denguices
infantis da Lili de Goethe.

--O cuco é passaro de máo agoiro!--tornou elle--Eu, com medo de tal ave,
não quiz casar.

Tecla riu-se descompassadamente, provando que conhecia a línguagem
symbolica da ave agoureira. E o cego, n'esta entreaberta de galhofa,
beliscou-lhe a polpa do braço esquerdo.

--Ai!--exclamou ella--Isto que foi?!

--Não se ria assim das fraquezas do proximo, Joanninha!--respondeu o
cego, dando ao beliscão o ar innocente de um gracejo familiar--Eu não
quiz casar nunca porque o meu coração nunca sentíu ao perto nem ao longe
a mulher digna d'elle. Cheguei aos cincoenta e dois annos, pode-se
dizer, sem ouvir a este coração as palpitações que estou agora ouvindo.
É a primeira vez...--e estreitava-lhe o braço contra o lado esquerdo com
umas pressões trémulas--é a primeira vez que amo; porque é esta a
primeira vez que encontro a mulher, a esposa digna da minha ternura. Que
me responde, Tecla? não me responde, prenda adorada?--instava elle
sacudindo-lhe a mão com transporte.

A viuva inclinou a face para o seio, deixou-se apertar com o indolente
abandono de suas faculdades sensitivas, esteve impando como quem suspira
a custo, e murmurou:

--De vagar se vai ao longe, sr. Monteiro.


X

Aquillo foi depressa. O fervor reciproco dos noivos, e o preceito do
poeta pagão que manda não adiar os prazeres, abreviaram quanto possivel
a identificação das duas almas. O reitor, que os recebeu, era um padre
bom e jovial que até a estes noivos disse o que dizia a todos: «Eu
espero o vosso primeiro filho d'aqui a nove mezes.» A noiva entreabriu á
flor dos beiços um hypothetico sorriso de pudor; o cego, porém, ferido
na infecundidade da esposa, disse, carregando o semblante:

--N'este acto, sr. reitor, são improprias as chalaças.

O padre, querendo emendar eruditamente a inadvertencia, respondeu:

--As santas escripturas fallam de Sára...

--Eu não sou Abrahão--replicou o cego, voltando-lhe as costas.

Reverdeceram os contentamentos da meza lauta e das intimas palestras ao
fogão. D. Tecla Monteiro confessava que nunca tão felizes lhe derivaram
os dias da existencia. O cego sentia se docemente ameigado e bem, com o
rosto no regaço da esposa. Saboreava os santos aconchêgos da companheira
canonica. Recendia-lhe o ninho dos seus amores licitos um patriarchismo
anterior ao sacramento do matrimonio, é verdade, mas puro como os
conubios de Jacob e Lia, de Ruth e Booz. Ella não o idolatrava com o
maior phrenesi, mas aquecia-lhe no inverno os lençoes com botijas, e de
manhã levava-lhe uma chavena de sagú, que pessoalmente cosinhava com
todos os primores d'uma vocação especial para os mingáos.

Na venda das propriedades liquidára Monteiro menos do seu valor; mas
ainda assim não desceu de vinte contos de réis o dote da esposa. Parte
d'este capital empregou-o em uma quinta no Alto-Douro, outra parte na
reincidencia de pleitos que havia perdido, e o restante nas opulencias
da meza, e nas liberalidades com os renovados amigos. Do mesmo passo que
a opinião publica encarecia a velhacaria do cego, formava-se uma
confederação de sujeitos que lhe exploravam a perdularia generosidade.
Emprestava facilmente dinheiro, e não negava esmola, nem se desculpava
com a falta de cobres. «Tal desculpa seria boa,--dizia elle--se os
mendigos se offendessem com as pratas.» E tambem dizia: «Ninguem dá
esmolas mais ás escondidas do que eu, porque nem vejo as pessoas a quem
as dou!» Triste gracejo proferido por um cego.

Pinto Monteiro, que tanto refinára em astucias, no ultimo quartel da
vida, deixava-se enganar por qualquer velhaco montezinho. A quinta do
Alto Douro, comprada por seis contos de réis, foi uma venda fraudulenta:
a propriedade estava hypothecada á fazenda nacional, e o vendedor,
apresentando titulos falsos, recebeu o dinheiro no Porto, e fugiu. Os
convivas do cego rejubilavam a cada arremesso novo que a desfortuna lhe
dava para a pobreza, e as pessoas contemplativas observavam ás
incredulas que o enorme delinquente estava soffrendo retaliações
providenciaes. É de crer que sim.

Lance admiravel! Pinto Monteiro mantinha serenidade socratica e
imperterrita a cada lançada que lhe resvalava na rodella da philosophia.
Se a irmã ou a esposa choravam, e elle dava tento d'isso, dizia-lhes: «É
uma vergonha chorar quando a vida é tão curta! As dores são um sonho mau
de que se acorda na sepultura.»

Ao sentir desfibrar-se-lhe a corda tenaz da paciencia, digna de um
christão, emborcava garrafas de genebra, e fumava sempre até cair
marasmado pelo alcool e pela nicotina; mas, se antes da prostração, se
exaltava em desvarios de ebrio, as phrases refloreciam os raptos de
eloquencia que aos vinte e cinco annos o arrebatavam nos clubs
fluminenses. N'estas occasiões, projectava ir ao parlamento, e ensaiava
discursos tão bonitos que pareciam ser decorados no «Diario das
Camaras.» Ás vezes pedia á mulher e á irmã que lhe fizessem «ápartes»
para o picarem. A boa de D. Tecla dava-lhe para se rir, ou pedia-lhe
amorosamente que se deitasse--pedido que a gente não pode fazer a todos
os oradores parlamentares.

N'estas intermittencias, quasi sempre risonhas, se passavam os dias e
boa parte das noites n'aquella murmurosa casa de Landim. D. Tecla
desmentira os viticinios que a deploravam, esbulhada do dote e
abandonada á piedade do Azylo das velhas do Camarão. Não teve uma hora
de tristeza esta senhora; nem se quer ligeira borrasca de ciume, em sete
annos de casada, lhe nublou as suas alegrias de esposa leal. Ás setenta
e seis primaveras seguiu-se um inverno rigoroso de catarraes e gota, com
perturbações no apparelho digestivo, tympanites e colicas flatulentas. A
morte arrebatou-a em dezembro de 1861 dos braços do marido que, pela
primeira vez na sua vida, chorou.


XI

Sete annos de glacial solidão giaram sobre a alma de Pinto Monteiro. As
portas da sua casa raro se abriam. Concordemente se disse que o cego
estava pobre pela terceira vez. Era verdade: estava pobre--vendia o
restante das joias da mulher.

Ás vezes entrava n'aquella casa a Narcisa do Bravo, sentava-se á mesa
ainda abundante do padrinho, e matava a fome. A irmã do cego
debulhava-se em pranto a confrontar aquella desgraçada de rosto empolado
com esfoliações rubras á formosa noiva de Custodio da Carvalha, á gentil
amazona por amor de quem alguns fidalgos de Guimarães terçaram as suas
badines de caoutchouc na romaria de S. Torquato.

Sobre todas as famas repellentes, ganhara Narcisa, com legitimo direito,
a de ladra, e ladra á mão armada. Os mais queixosos eram os que lhe
colheram as flôres já outoniças da belleza, e a regeitaram com a
brutalidade do tedio. Narcisa sahia-lhes de rosto nas concavidades das
congostas escuras, e abocava-lhes á cara uma pistola de dois canos; e
elles, com um fingido sorriso de piedade despresadora, atiravam-lhe a
forçada esmola. Outras vezes, escalava as janellas das alcôvas
conhecidas, e entroixava os bragaes como se inventariasse o espolio de
um esposo fallecido. E temiam-na como a um scelerado disposto a vender
cara a vida, por que ella deixava entrever a coronha da pistola entre os
atacadores do collete escarlate, e, se sofraldava as saias, quando
saltava as poldras dos ribeiros, mostrava a faca de ponta atravessada na
liga. Os regedores das freguezias que ella frequentava tinham ordem de a
capturarem; mas o mêdo, predicado pacifico d'estes magistrados, era a
resalva de Narcisa.

O cego de Landim não ignorava a desastrosa sahida de sua afilhada;
conselhos, n'aquella extremidade, eram perdidos; censuras, a si proprio
as fazia o cego por que encetára a perdição d'aquella moça, tirando-a da
arribana de seu pae, para a crear nas regalias da abundancia, sem
vislumbres de religião, em plena liberdade de se viciar com as
travessuras e gaiatices que lhe festejavam. Narciza era talvez uma das
polés que torturaram o cego nas impenetraveis agonias dos seus ultimos
seis annos.

Contava um rapazinho, creado de Pinto Monteiro, que ouvira, uma vez, sua
ama dizer a Narciza que ia mandar vender dois cobertores porque não
havia dinheiro em casa; e que Narciza lhe dissera que não vendesse os
cobertores, por que ella ia vender a sua pistola por meia moeda. Não
tenho outro lance generoso que possa referir de Narciza do Bravo.

Quando este caso passou, entrava Antonio José Pinto Monteiro nos
paroxismos da morte. A 28 de novembro de 1868, pelas dez horas da manhã,
disse á irmã que lhe accendesse um cigarro, e abrisse as janellas, que
sentia grande calor e ancia. Sentou se no leito, e inspirou
consoladoramente a columna de ar frigidissimo que lhe bateu no rosto, ao
abrir da janella. Pediu uma chavena de café, e, emquanto a irmã o fazia,
Narcisa veiu para a beira do padrinho.

--Quem é?--perguntou o cego.

--Sou eu, padrinho. Está melhor?

--Vou estar melhor, filha. Isto vai acabar. Quando eu morrer, faze
companhia á minha pobre irmã...

Narcisa chorava, beijando a mão do cego, que se estorcia nas dôres da
cystite. Ao cahir da noite, a prostração, a febre, os soluços, e o frio
das extremidades diagnosticavam a gangrena. No 1.^o de dezembro, o cego
de Landim expirou reclinado ao seio de Narciza, que se sentara no leito
para o amparar nos derradeiros arrancos.

As suas ultimas palavras, no delirio que precedeu a morte, encerram toda
a moralidade d'esta biographia:

--Eu tinha tres filhos que criei com tanto amor... Que é d'elles?...

E mais nada.

Os tres filhos do cego de Landim affrontar-se-hiam com o nome de seu
pai? Para ter um peito amigo que o amparasse na agonia, foi mister que a
sociedade remessasse para dentro da alcova do moribundo uma mulher
perdida. Mas, lá ao longe, no Brazil, houve lagrimas saudosas no coração
de uma filha. Pois quando é que Deus consentiu que uma filha as não
chorasse... n'um epitaphio?


CONCLUSÃO

No cemiterio de Landim está uma sepultura com este letreiro:

                AQUI JAZ
      ANTONIO JOSÉ PINTO MONTEIRO
                 NASCEU
       A 11 DE DEZEMBRO DE 1808
                FALLECEU
        A 1 DE DEZEMBRO DE 1868

          TRIBUTO DE GRATIDÃO
           DE ETERNA SAUDADE
          QUE LHE DEDICA SUA
          INCONSOLAVEL FILHA
              GUILHERMINA

Anna das Neves ideara uma perspectiva de felicidades: viver os restantes
annos em recatada pobreza, morrer mais desamparada que o irmão, e ser
levada como quem remove um entulho ali para aquella sepultura onde se
pulverisavam os ossos execrados do cego.

Estas felicidades não as gosa quem quer.

Um dia, a justiça, perseguindo Narcisa pelo roubo de uma coberta de
fêlpo, soube que a Neves a mandara vender. A ordem de captura involveu-a
como receptadora de roubos. Invadiram-lhe judicialmente a casa, e
encontraram, para maior prova do crime, um açafate de maçãs camoezas,
dois calondros e algumas batatas que Narcisa recolhera, de colheita
aliás suspeitosa, nas lojas da casa da sua protectora. A irmã do cego
foi capturada, e, sem fiança, encarcerada na lobrega enchovia de
Famalicão. Dias depois davam-lhe a companhia de Narciza, que se
entregara á prisão, arrojando a pistola, quando lhe disseram que a Neves
estava preza. O juiz misericordioso condemnou-as a oito mezes de prisão,
dado que os jurados as sobrecarregassem de crimes benemeritos de degredo
perpetuo.

Cumprida a sentença, D. Anna das Neves Miquelina Monteiro vendeu a casa
que o irmão comprára em nome d'ella. Com o producto d'essa venda
transferiu-se, em 1872, ao Brazil, e levou comsigo Narcisa do Bravo.
Parece que não tinha outros amores n'este mundo, e desejava expirar,
como o irmão, nos braços d'ella.

E visto que não estamos dispostos a deixal-a morrer nos nossos braços, ó
leitor, parece-me caridosa coisa que a não fulminemos com a nossa
honrada raiva. Sou de opinião que sejamos inexoravelmente severos com os
desgraçados e com as desgraçadas, quando elles e ellas repellirem a
felicidade que lhes offerecermos.

S. Miguel de Seide--Julho de 1876.




IV

A MORGADA DE ROMARIZ




A

Francisco Teixeira de Queiroz

Auctor Da Comedia do Campo

POR

BENTO MORENO

Sauda com superior admiração e indelevel reconhecimento


_Camillo Castello Branco_.




A MORGADA DE ROMARIZ


I

Vi esta morgada, ha tres annos, em Braga, no theatro de S. Geraldo.
Estava em scena _Santo Antonio_, o thaumaturgo. A commoção era geral.
Tanto a morgada, como seu marido, o commendador Francisco José Alvarães,
choravam, ás vezes; e, outras vezes, riam se.

Era uma senhora de espavento, avermelhada, com as frescuras unctuosas e
joviaes dos quarenta annos sadíos, seios altos e aflantes, pulsos
roliços e averdugados pela compressão das pulseiras cravejadas de
esmeraldas e rubis.

Riu-se a morgada quando aquelle Santo Antonio do seculo XIII recitou ás
raparigas uma poesia madrigalêsca de Braz Martins,--bom homem que esteve
quasi a regenerar o theatro nacional como elle deve ser. A poesia resava
assim n'esta prosa innocente:

      _Mimosa nasce a flor e vive ainda,
      Se arrancada não foi logo ao nascer;
      Assim a virgem nasce e vive pura,
      Se o vicio não trabalha p'ra perder_.

_Et coetera_, com a mesma uncção e musica.

A morgada sorrira-se para o marido; e elle, para mostrar que tambem
percebera o chiste, formou um tubo com os beiços carregados de chalaças
mudas, e disse com atticismo velhaco:

--Versalhada...

Ora, a morgada de Romariz, lagrimando com intelligencia na proza da
oratoria, assim que algum personagem pegava de rimar, ria-se.
Persuadira-se de que a missão dos versos era como a das cocegas. A
natureza dera-lhe ao espirito aquelle feitio.

Remirei-a de esconso por sobre a espadua do esposo.

Ella bocejava nos entre-actos, até mostrar as campainhas; elle
tosquenejava, e ás vezes, espriguiçando-se, grunhia:

--Estou massado.

--Podera...--obtemperava a esposa--a comedia bonita é... mas não ha nada
como estar a gente na sua cama, Zézinho!

E dava tons lubricos ao diminutivo.

--Quem me lá dera...--volvia Alvarães deslocando as botas e dando folga
e frescôr aos pés no aprazivel _tunel_ dos canos.--O polimento
estorcéga-me os calos...--queixava-se com azedume.--Comedias... Ora
adeus! Patranhas...

--Modos de vida, homem...

E abriram juntos as boccas spasmodicas.

--Ao menos se eu viesse ceado...--dizia elle.

--Fizesses como eu...

--Não me cabia cá...--e batia com os dedos dobrados no alto ventre como
se faz ás melancias suspeitas.

--Já agora hemos de vêr a _scena da gloria_ que é o mais
bonito...--opinava a esposa.

N'este comenos, visitou-os um meu conhecido de Famalicão. Ao erguer o
panno, sahiu de lá, e entrou no meu camarote. Foi elle quem me disse o
nome das duas pessoas, accrescentando:

--Ali, onde a vê, tem romance; dá materia para dois tomos...

--Picarescos? Não me servem... Eu quero philosophia: os meus leitores
querem philosophia, percebe o senhor?

--É o que ella tem mais que dar.

--Ora essa!... O senhor sabe que ella tem isso? Queira apresentar-me...

--Deus me defenda... Eu disse á morgada que vossê era romancista...

--E ella que disse?

--Riu-se.

--Riu-se!? É boa... E o marido...

--O marido disse: Arreda!


II

Vejamos a philosophia que elles tem.

Melhor que uma estirada narrativa, desfigurada talvez pela imaginação do
informador, li um processo que o sujeito me emprestou. Correra o pleito
entre partes que litigavam em materia de casamento. Figurava uma
donzella depositada judicialmente. O pai da nubente impugna, e allega
que o pretendente a sua filha é um birbante de vilissima relé. O noivo,
contrariando, expõe que o pai da sua futura e de origem tão canalha que,
apezar de ser fidalgo da casa real, é filho de um salteador de estradas,
_como é publico e notorio_, dizia o noivo, e accrescentava: «que não
havia ainda vinte annos que o seu contendor exercitára o officio de
fogueteiro em Villa Nova de Famalicão.» N'este conflicto, a depositada
trancára o pleito vergonhoso acceitando outro marido que o pai lhe
inculcou. A menina questionada era aquella morgada de Romariz, e o
marido o commendador Alvarães.

Quanto a philosophia, este acontecimento pareceu-me assaz chôcho; eu
pelo menos não lh'a encontrei, por mais que virasse do carnaz os
personagens do processo. Louvei o procedimento da moça injuriada na
pessoa do seu progenitor; mas o fermento de tal philosophia não me dava
para levedar massa de cincoenta paginas. Abri mão do assumpto, e
larguei-o ás imaginações florentissimas da minha patria. Porém,
transcorridos dois annos, em um livro impresso em 1815, li uns nomes que
tinha visto nos autos escandalosos. Examinei de novo o processo, e
trasladei certas passagens que, alinhavadas a outras do referido livro,
deram esta novella em que, por felicidade do leitor e minha, não ha
philosophia nenhuma, que eu saiba.


III

Quando Villa Nova de Famalicão era um burgo de cem visinhos com um juiz
pedaneo, sahiu d'ali para a côrte, em 1744, um rapaz de quinze annos,
que principiára com seu pai officio de pedreiro. Assignava-se Antonio da
Costa Araujo, escrevia limpamente e era esperto. Chamara-o a Lisboa um
tio, mercador de pannos, estabelecido na Rua dos Escudeiros, que até ao
terremoto de 1755 occupava parte do terreno hoje comprehendido na rua
Augusta. Mathias da Costa Araujo, irmão do pedreiro, engraçou tanto com
o sobrinho que, apezar dos poucos meios, mandou-o ás aulas dos jesuitas
no pateo de Santo Antão, afim de o habilitar para clerigo, contra a
propensão mercantil do moço. Mathias havia sido infeliz no commercio, e
dizia que era máo modo de vida aquelle em que a prosperidade se
desavinha da honra.

No 1.^o de novembro de 1755, o constrangido destino do estudante
transtornou-lh'o a catastrophe em que seu tio pereceu debaixo da abobada
da egreja de S. Julião, onde assistia ás missas dos fieis defuntos. Os
seus medianos haveres armazenados devorou-lh'os todos o incendio. Ficou
portanto em desamparo grande o estudante, e cuidou de amanhar sua vida,
deixando arder sem saudade a grammatica latina do padre Alvares com os
cartapacios correlativos.

Nicolau Jorge, mercador abastado, visinho e amigo do defuncto Mathias,
condoido do sobrinho, chamou-o, ouviu-o discorrer a respeito da especie
de mercadoria em que mais seguro negocio deveria tentar-se na crise do
terremoto, e, applaudindo o, emprestou-lhe duzentas moedas de ouro.
Leiloavam-se então, nas ruas e praças, fazendas avariadas por agua e
fogo. Antonio da Costa Araujo arrematou por preço infimo fardos
equivalentes ao seu avultado capital, pagando-os no mesmo acto com
grande espanto do desembargador Torcilles, presidente das arrematações.
Estabeleceu-se Costa Araujo no Campo de Santa Anna, e ganhou, no
primeiro anno, com estas fazendas avariadas, doze mil crusados.[6]
Volvidos seis annos, era um dos mercadores mais opulentos da côrte;
morava no primeiro quarteirão da rua Augusta, á esquerda, indo do Rocio,
e era geralmente conhecido pela alcunha de _Joia_. Tinha camarote
effectivo na opera, banqueteava personagens de alta condição, recebia
nos seus armazens a mais luzida sociedade de Lisboa com fidalga
cortezia: chamava «joias» ás damas, e d'ahi lhe pegou a elle a
alcunha desmaliciosa. Confluia ao seu balcão a flôr da cidade, por que
ninguem o excedia na fina escolha dos atavios, no primor do gosto e em
probidade de contractos. «Ali vinham--diz o coronel Francisco de
Figueiredo--comprar-se os enxovaes para os grandes casamentos, o
vestuario para todas as grandes funcções, de que houve muitas,
entrando n'este numero os casamentos dos nossos soberanos, nascimentos
de principes, os dias de annos de toda a real familia, e os trez dias
das funcções da inauguração da estatua equestre do sr. rei D. José, o
1.^o de tão gloriosa memoria.»

Costa Araujo não compellia os devedores a pagarem-lhe judicialmente; que
o infortunio dos que não podiam gosar a honra e o prazer da pontualidade
fazia-lhe dó. Quiz o marquez de Pombal nobilital-o como fizera a outros
commerciantes, mais para abater a fidalguia historica do que para
levantar a burguezia industriosa. O _Joia_ nunca pediu nem acceitou
distincções. Foi toda a vida mercador, sempre ao balcão, ou encostado á
hombreira da porta como hoje o não faria um caixeiro com a cabeça cheia
de socialismo e oleo de amendoas dôces.

Á volta dos sessenta annos, Antonio da Costa Araujo enfermou de
paralysia. Era solteiro. Chamou para sua companhia um irmão que tinha na
terra natal, pedreiro como seu pae, e que nunca deixara de trabalhar,
posto que o irmão rico lhe désse boa mezada, sem todavia lhe aconselhar
officio menos grosseiro, por intender que são muitos os pedreiros
felizes e pouquissimos os grandes do mundo que a inveja dos pequenos não
perturbe.

O paralytico fez testamento em que repartiu o seu capital por diversos
amigos, e deixou a seu irmão Bento da Costa tres mil peças de 7$500
réis.

Fallecido o _Joia_, appareceu em Famalicão Bento pedreiro, envergando um
tabardo velho de briche, que exhibia com visagens consternadas, dizendo
que não herdára outra cousa do irmão, o qual, tudo gastára e morrera
pobre. O pedreiro, suppondo que o acreditavam, era boçal á proporção de
avarento; faltava-lhe a velhaca finura que hoje em dia illustra os
minhotos. Verdade é que não havia ainda gazetas que assoalhassem as
verbas testamentarias; mas a noticia da herança de Bento chegára a
Famalicão primeiro do que elle. Cincoenta e seis mil crusados e tanto!
Quem poderia herdar secretamente riqueza tamanha n'um tempo em que
bazofeava por Lisboa um argentario a quem chamavam _O tresentos mil
crusados_, por que elle, vindo do Brazil, manifestára aquella colossal e
quasi fabulosa quantia! Cem contos de réis, hoje em dia, é quasi uma
vergonha possuil-os; e quem não fingir que tem essa somma quadruplicada,
é um homem que, se souber governar-se com muito prumo, poderá talvez
dispensar se de ser recolhido a um asylo de mendicidade.

O pedreiro era viuvo, vivia só, e tinha um filho soldado de artilheria
do regimento do Porto, aquartelado em Valença. Quando a noticia chegou
ao quartel, o rapaz, insano de alegria, desertou, confiado na herança.
Entupiram-n'o, porém, o espanto e a consternação, quando encontrou o pai
á orla da estrada a brocar uma penedia por conta de um lavrador.
Recobrado do assombro, perguntou-lhe se não herdára tres mil peças de
ouro. O velho poz os olhos espavoridos no céo, abanou a cabeça como os
personagens da Iliada, desfechou contra o filho um esgar desabrido, e
bradou:

--Tres mil peças!? tres mil diabos que te levem a ti e mais a quem
levantou essa aleivosia! O que eu herdei foi um reguingote de saragoça
já no fio. Se o queres, vai buscal-o, que elle lá está pendurado n'um
gancho... Com que então, Joaquim, vinhas ao cheiro das peças?

--Vinha pedir-lhe, senhor pai--respondeu o moço com tristeza e
respeito--que me livre de soldado, porque já não posso com o serviço.
Estou doente, e preciso mudar de vida.

--Trabalha, faze como eu, que tambem não posso, e estou aqui a furar
este calhau. Quizeste ser soldado... lá t'avém.

--Senhor pai, olhe que eu sahi da praça sem licença... sou desertor...

--Não me digas isso segunda vez, que te _regeito_ esta broca á
cabeça![7]

--Faz-me vossemecê uma esmola--replicou serenamente Joaquim--que eu
antes quero a morte que as chibatadas... Sabe que mais, senhor
pai?--proseguiu o desertor limpando o suor e as lagrimas--ou vossemecê
me livra, ou eu vou juntar-me á quadrilha que anda na Terra Negra.

--Capaz d'isso és tu, alma do diabo! Sai-me da vista dos olhos que eu já
te não enxergo, ladrão!

E, arrojando a broca e o maço pelo respaldo do penedo, sentou-se com os
cotovellos fincados nas pernas, e scismou alguns segundos com a cara
tapada pelas mãos esfoliadas e negras de terra.

O filho esperava, indeciso entre o odio e a compaixão. Se cogitava que o
pai herdára as tres mil peças, e o deixava optar ente a chibata e a
malta de ladrões, Joaquim sentia-se tremer de raiva; se, porém, a
herança era uma invenção, o ar afflicto do velho sujo, roto e quebrado
de trabalho, compungia-o.

N'esta vacillação, ergueu o pedreiro o rosto menos descomposto, e disse:

--Vai para casa que eu vou d'aqui fallar com teu padrinho... Ahi tens a
chave; procura as peças e leva-as, que eu dou-t'as...

Esta zombeteira liberalidade incutiu logo em Francisco duvidas da
herança. Entrou em casa e examinou toda aquella antiga e conhecida
pobreza. Na lareira, entre cinzas, a panella de barro desbeiçada, e duas
tijellas na trempe; o escabello corroido de caruncho, e a espaços
espumado de gorduras lustrosas: o catre de bancos, e a enxerga rota e
arripiada de palhiço: a candeia de ferro inganchada na parede; por
baixo, pingada de sail, uma banca de pau santo com pés torneados, mas
com as roscas esborcinadas, e gavetas de pinho em bruto com puxadores de
corda. Sobre a miseria dos trastes, o lixo, a sordicia que o filho do
pedreiro nunca assim vira, por que sua mãe ainda vivia, quando elle
assentara praça. Aos pés da cama havia uma rima de cascabulho, grabatos
de lenha, ferramentas quebradas, rodilhas e cacos. Em uma furquilha de
quatro esgalhos pregada na trave mestra, pendia, coberto da fuligem da
lareira, o albornoz poído que o irmão do _Joia_ dizia ter herdado.

O desertor sentou-se na arca de pinho, contemplou aquella indigencia, e
pensou comsigo:

--Acho que me mentiram... Meu pae não herdou nada... D'antes ainda
n'esta casa havia uns lençoes lavados e pão á farta, quando recebiamos
todos os mezes a moeda que o tio nos dava... E agora que ha de ser de
mim?... Estou perdido!...

N'este comenos, assomou ao limiar da porta um visinho, que vira entrar o
soldado.

--Estás por aqui, Joaquim Faisca?!--perguntou o Luiz Meirinho.

Convém saber que o filho de Bento ganhára alcunha de _Faisca_, desde que
mostrou aos dezoito annos extraordinaria destreza em ferir lume no
phosphoro dos ossos dos adversarios. O outro chamava-se o _Meirinho_,
porque o havia sido do corregedor de Barcellos, e na opinião publica
passára de quadrilheiro da justiça a capitão da quadrilha que infestava
a Terra Negra. Continuava o officio, diziam alguns, ganhando na carreira
dois postos de accesso.

--Vieste com licença?--perguntou o Luiz Meirinho.

--Não, senhor. Pedi-a, e não m'a deram--respondeu Joaquim, com o
proposito de se acolher ao valimento do visinho, se o pai lhe não
acudisse.--Eu estou doente do peito, e não posso com esta vida de
soldado. Ouvi lá dizer que meu pae estava muito rico com a herança de
meu tio. Desertei, cuidando que elle me livraria com dinheiro; mas agora
mesmo o topei no Vinhal a quebrar pedra, e elle me disse que herdára um
albornoz velho que ali está.

--E tu acreditaste?--atalhou o outro velhacamente.

--Á vista da miseria em que eu encontro esta casa...

--Pois fica sabendo que teu pae herdou tres mil peças. Sabes quanto
fazem tres mil peças?... Cincoenta e seis mil e tantos crusados. Sabe
toda a gente da villa que teu pae está riquissimo. Posso mostrar-te a
copia do testamento. Teu pai é um miseravel, é a vergonha dos homens!
Mata-se á fome, come duas tigellas de caldo por dia, e diz mal do irmão,
porque lhe deixou um albornoz cossado, quando toda a gente sabe que o
deixou rico...

--E o dinheiro?--acudiu Joaquim circumvagando os olhos pelos cantos da
casa e da lareira.

--Dizem uns que o deixára em Lisboa a render, e outros querem que elle o
tenha enterrado ahi n'esse chiqueiro; mas a minha opinião é que teu pae,
se trouxe o dinheiro, não o tem em casa. Metteu-o debaixo d'alguma fraga
ahi da serra por onde elle anda sempre a quebrar pedra.

--E que heide eu fazer, se elle me não livrar?--perguntou Joaquim.

--Eu sei lá, rapaz! Se o teu livramento depende do dinheiro de teu pai,
não quizera eu estar-te na pelle! Levas as chibatadas da lei tão certo
como eu quizera valer-te e não posso. Conheço-te desde rapazito, e nunca
me hade esquecer que vai agora em dez annos, na romaria das Cruzes de
Barcellos, me acudiste n'um aperto, e quebraste tres cabeças em quanto
eu quebrei duas. Olha, Faisca, se te vires em apuros, procura-me;
livrar-te de desertor, isso não posso eu; mas das chibatadas e da farda
eu te livrarei...

--Como?

--Isso são contos largos... Ahi vem teu pai ao fundo da rua. Vou-me
embora, que não posso encarar aquelle sordido avarento! Se eu soubesse
que elle tinha o dinheiro no bucho, tirava-lh'o pelas guelas, e
dava-t'o, rapaz!


IV

O pedreiro ainda vira o visinho a safar-se da sua testada.

--Que fazia aqui o Luiz Meirinho?--perguntou elle carranqueando.

--Nada: conversavamos...

--Eu cá á minha porta não quero coversas com ladrões, ouviste?

--Ladrões!... O Luiz não me consta... que...

--Passa tu na Terra Negra com dinheiro de modo que elle t'o bispe, e lá
verás quem é o Meirinho. Hade haver tres annos que deixou o officio que
rendia pouco; e, desde que não tem officio, comprou casa, tem
cavalgadura, trata-se á regalona, come carne do açougue, e bebe do da
companhia. E eu, que trabalho ha bons quarenta annos, custa-me a amanhar
para uns feijões, e bebo agua da fonte.

--O sr. pai assim o quer...--atalhou Joaquim entre receoso e
risonho--Perca o amor ás peças...

--E tu a dar-lhe!...--volveu iracundo o pedreiro--Já te disse que as
procures!... Não herdei nada! não herdei nada!--e berrava convulsionado
freneticamente, sacudindo os braços.

--Não grite assim que não faz mingua barregar!--atalhou o filho--A gente
está conversando... ás boas... ein?

No aspecto do Faisca resumbravam sentimentos pouco filiaes. A ironia
franzia-lhe os cantos dos beiços, ao mesmo tempo que a ira lhe avincava
a testa. No ar com que se sentara na arca, dobrando o corpo e bamboando
as pernas em gingações de tarimba, denotava quebra de respeito, e
disposição a questionar faceiramente com o velho.

--Com que então...--proseguiu Joaquim--Vossemecê não herdou tres mil
peças?

--Não!--bradou o pai--Não! com mil diabos (Deus me perdôe), não!

--E se eu lhe mostrar a copia do testamento...--volveu Joaquim
esbolhando os olhos, abrindo a bocca, e pondo fóra a lingua em todo o
seu comprimento--Que me diz vossemecê, sr. pai? se eu lhe mostrasse a
copia do...

--Tu acho que vieste cá para dar cabo de mim!--interrompeu
Bento, desentalando-se da sua afflicção por aquella estupida
replica--Amaldiçoado sejas tu!...--E, com os dentes cerrados, e as
mãos na cabeça, ia e vinha da lareira para a porta, considerando-se o
mais desgraçado homem que Deus criara.

--Sr. pai!--continuou mansamente o filho--isto não vai a matar. Tome
fôlego, e escute o seu Joaquim. Lembre-se que não tem outro filho a quem
deixar os seus cincoenta e seis mil cruzados...

--Olha o diabo!--regougava o velho.

--O que eu lhe peço pouco monta. Livre-me de soldado, e dê-me alguma
coisa para eu casar com a Rosa de S. Martinho. O pai d'ella decerto m'a
dá, se eu levar mil crusados. Vou ser lavrador, terei saude e alegria, e
nunca mais lhe peço nada, sr. pai.

Joaquim, desde que proferira o nome de Rosa de S. Martinho, mudára de
tom e gestos. Os olhos imploravam, e a voz tinha as modulações do
respeito. O seu amor de dez annos, golpeado de saudades, quebrara-lhe os
pulsos. Se o pai n'aquelle instante abrisse no rosto uma tenue claridade
de esperança, Joaquim acabaria a supplica de joelhos.

--Mil cruzados!--resmuneava o pedreiro--onde queres tu que eu os vá
roubar?

Esta interrogação varreu do semblante do Faisca os signaes da boa
reacção.

--Eu não quero que os vá roubar, valha-me Deus!--respondeu Joaquim--Mas,
a fallar verdade, quem tem tres mil peças de seu tambem pode ser ladrão
da felicidade de um filho que ainda lhe não custou seis vintens desde
que pode trabalhar... Olhe, sr. pai, repare bem no que vou dizer-lhe...
Eu para a Praça não torno. Sou desertor.

--Venho de casa de teu padrinho--acudiu o pai menos tôrvo--o sr. coronel
Lobo da Igreja dá-te uma carta para o commandante, e diz que tudo se
hade arranjar.

--Não torno para o quartel, já lhe disse. Estou doente, preciso mudar de
vida.

--Que te leve a breca... Não quero saber de contos. Lá t'avem. Dinheiro
não tenho; só se queres que eu venda a casa, e me vá depois pedir um
eido nos palheiros dos lavradores á beira dos cães.

--Está bom--concluiu Joaquim erguendo-se e espreguiçando-se--vou ouvir a
opinião do Luiz Meirinho, que d'um modo ou d'outro prometteu livrar-me
da farda e da chibata...

--Vaes fallar com o Meirinho para isso, ó alma perdida?

--Pois então? Aquelle é amigo do seu amigo, e, se me fôr necessario
dinheiro...

--Ensina-te a roubal-o...

--E elle que sabe onde o ha...--respondeu Joaquim bocejando, e fazendo
tres signaes da cruz na bocca escancarada.

--Eu te deito a minha maldição!--bradou o velho com solemnidade bastante
para a scena final d'um acto; porém insufficiente para abalar o 32 da
7.^a companhia do regimento de artilheria do Porto.

O Faisca sorriu, e murmurou:

--Vossemecê parece que tem mais maldições que pintos... Pois eu cá vou
com a sua maldição, e depois... veremos se ella nos impece a ambos.

Bento, ao pular-lhe o coração em saltos de ruim presagio, ainda deu tres
passos para chamar o filho, e avençar-se com elle mediante a quantia
necessaria ao livramento; mas a imagem de um pote de ferro cheio de
peças bateu-lhe rija no peito. Quedou-se como empedrado a olhar para a
soleira da janella de peitoril, cujas portadas quatro travessas de
castanho esfumado immobilisavam.


V

Poucos dias depois, o juiz de fóra de Barcellos incumbia ao ordinario do
julgado de Vermuim a prisão do desertor Joaquim da Costa Araujo,
d'alcunha o _Faisca_. A gente mais grada de Famalicão, convencida da
riqueza do avarento sem entranhas, advogou a favor do infeliz moço,
rodeando o pedreiro com rogos e até com insultos e ameaças. O pedreiro,
assustado, foi ter-se com seu compadre o coronel Lobo da Igreja Velha;
e, bem aconselhado pelo fidalgo, cujo credor era, deu o dinheiro
necessario para abafar o processo militar, comprar a baixa e substituir
a praça no regimento.

Em seguida, quando se viu esbulhado das economias que amealhara antes de
herdar as trez mil peças, entrou-se de tamanha paixão--espicassaram-no
tantas saudades do seu dinheiro, que morreria abafado, se não
desafogasse no odio ao filho. As vinte e quatro moedas de oiro que lhe
custara a liberdade de Joaquim, representavam fomes e sêdes,
desconfortos de frio em noites de inverno, muitos suores em dias de
estio no trabalho da serra a horas de sesta. E lembrava-se com bastante
remorso que sua mulher padecera sem cirurgião e morrera sem botica, e
fôra indigentemente enterrada, tudo isto assim desgraçado e infame,
porque elle não quizera bolir n'aquellas vinte e quatro moedas.

No entanto, Joaquim, bem que muito grato ao pai, não se mostrou tão
penhorado que prescindisse de o julgar obrigado a dar-lhe modo de vida.
O velho mostrou-lhe um ferro de monte, um pico, um camartello, e
disse-lhe:

--Se queres modo de vida, segue o meu. Anda d'ahi brocar uma fraga, e
saberás quanto me custaram a ganhar as minhas vinte e quatro...--E,
ficando entallado, esfregava os olhos debruados de rôxo com o encodeado
canhão da jaqueta.

O filho não se compadecia d'aquellas lagrimas; antes se sentia bravejar
de condição com remoques e até com odio á avareza do pai. Máo foi
convencer-se Joaquim da herança, e suppor que o velho podia morrer sem
testamento nem declaração do escondrijo do thesouro.

Debalde lhe espiava os movimentos, os olhares, as caminhadas no monte,
afim de farejar a lota das tres mil peças. Bento d'Araujo ia
frequentemente quebrar esteios de pedra nos penhascaes de Vermuim e
vendia-os aos lavradores para especar parreiras. As desconfianças do
filho seguiam o velho entre fragoedos, chamados o _Castello_; e o pai,
que se julgou espreitado, alegrava-se secretamente, e não se mostrava
offendido.

Entretanto, continuára Joaquim a sua velha affeição a Rosa de S.
Martinho; e, confiando que a fama da riqueza do pedreiro seria bastante
a que o abastado lavrador, esperançado na herança, lhe cedesse a filha,
pediu-a affoitamente; mas o pai de Rosa tinha mediana confiança em
_sapatos de defuncto_, e disse que só daria sua filha, se o noivo
trouxesse mil cruzados em dinheiro ou terras. O moço namorado abriu de
novo o seu peito ao pai, que parecia apertar os cordões da bolsa á
medida que o coração do rapaz se abria. Joaquim, bem aconselhado pelo
seu amor, soccorreu-se do padrinho, o coronel da Igreja Velha,
pedindo-lhe que movesse o velho a dotal-o.

Era o fidalgo a unica pessoa que exercia influencia em Bento de Araujo,
e tamanha que podera arrancar-lhe alguns mil crusados a juros, sob
juramento de não dizer a alguem que lh'os devia. Mandou-o chamar, e
aconselhou-o a que désse dote a Joaquim. Avultou lhe as funestas
consequencias da sua teimosia em querer passar por pobre, quando toda a
gente estava convencida do contrario; pintou-lhe os perigos em que elle
punha o filho sem officio que o salvasse da camaradagem de vadios
suspeitos com quem patuscava nas tavernas da Lagoncinha e outros logares
infamados. A final, como o velho insistisse desaforadamente em dizer que
não tinha senão o dinheiro que seu compadre lhe devia, o coronel rendeu
o com esta honrada deliberação:

--Pois bem: tudo se arranja, querendo Deus e tu. Devo-te tres mil
crusados; não t'os posso pagar, em quanto algum dos meus filhos não
trouxer esposa com dote; mas irei tirar quatrocentos mil réis a juro em
alguma Confraria, e esse dinheiro vaes tu dal-o a teu filho para casar
com a rapariga, que é de boa gente, e hade ter dobrado ou mais do que
elle tem.

As ultimas palavras de Bento, n'esta pendencia, definem cabalmente a sua
natureza. Quando o compadre lhe disse:

--Tu virás de hoje a oito dias receber os quatrocentos mil réis para os
dares ao teu Joaquim no acto da escriptura de casamento--Bento acudiu
impetuosamente:

--Eu não quero vêr o meu dinheiro! Arranje v. s.^a cá isso, de modo que
eu não veja o meu dinheiro!...

Elle sabia que, no acto da contagem dos mil crusados, seria capaz de
agarrar a sacca e fugir com ella do escriptorio do tabellião.

Assim mesmo, o pedreiro, se tinha muitas maldades de avarento, possuia
tambem algumas bellas qualidades de pae; e uma, digna de bastante
memoria, é que, tendo elle em casa arsenico para matar os ratos, não o
administrou ao filho.


VI

Joaquim de Araujo entrára na vida por má porta. Oito annos de caserna
bastariam a degenerar-lhe as boas qualidades: mas, com certeza, o
_Faisca_ já tinha ganho esta alcunha á custa de turbulencias, quando
assentou praça, e não se regenerára, como é de suppôr, no officio de
soldado.

A sua nova posição de lavrador não lhe quadrava; a pesada rabiça do
arado dava-lhe engulhos ao estomago, quando a sacudia do rêgo aberto
para romper outro; o cabo da enxada empolava-lhe as mãos; de çafaras não
sabia nada; ignorava todo o trafego da lavoira; e, em vez de aprender,
como queriam a mulher e o sogro, ia bandarrear por feiras, quatro vezes
por semana, na sua egua rabona, de pau de choupa debaixo da perna, mão
direita á cinta, chapeu braguez na nuca, e besta travada que não havia
outra d'aquella andadura.

Ás impertinencias do sogro respondia que não precisava labutar sujamente
na terra, porque seu pai tinha o melhor de cincoenta mil crusados em
peças; e aos queixumes da mulher amante e ciosa voltava as costas
enfastiado. O lavrador de S. Martinho, a fim de se desfaser do genro,
repartiu a casa por tres filhos, resalvou uma pequena reserva, deu em
terras o dote estipulado a Rosa, e mandou-os viver onde quizessem.

A libertinagem do Faisca foi até onde os dois mil e tantos crusados da
mulher chegaram; e, n'aquelle tempo, quem os desbaratasse em seis annos
alcançava a reputação dos que em nossos dias derivam á miseria sobre
ondas do ouro. Antes de conhecer as primeiras necessidades, Rosa morreu
na flor da idade, deixando um filho de seis annos entregue ao avô,
porque o marido havia muitos mezes que demorava pela Galliza, amaltado
com jogadores de esquineta, seus antigos camaradas, uns com baixa,
outros desertores.

O filho de Rosa breve tempo viveu da caridade do avô, que falleceu pouco
depois. Quando Joaquim de Araujo voltou a S. Martinho por saber que
estava viuvo, encontrou o menino de sete annos esfarrapado, sem amparo
de parentes, a esmolar o pão e o gasalhado dos visinhos, por que seu pai
não tinha casa propria, e todo o patrimonio de sua mãe estava vendido.
Quem recolhera o rapazinho era um fogueteiro, o mais remoto e desprezado
parente de sua mãe. O pequeno ajudava-o a afeiçoar as canas e encher os
canudos para os foguetes com bastante geito e disposição para o officio.
Perguntara-lhe o pai porque não fôra procurar o avô a Famalicão. O
fogueteiro respondeu que lá fôra com elle quando a mãe morreu; mas que o
avô dissera que estava tambem muito pobre, e apenas lhe déra estopa para
umas calças, e um chapeu de Braga mais rapado que a escudela d'um cão.
Lembrou-se Joaquim do padrinho; mas a morte cortara-lhe esse recurso.
Foi ter-se com o filho successor na casa, a vêr se quereria protegel-o
como seu pai. O fidalgo da Igreja recebeu-o com furiosas declamações
contra o Bento pedreiro, a quem chamava ladrão, por que lhe pedia dois
mil crusados e juros que o pai lhe ficara devendo.

N'este tempo, o irmão do honrado Joia já não podia trabalhar. Passava os
dias sentado ao sol no degrau da porta, e dava alguns chorados vintens
por semana a uma visinha que lhe levava as couves e a broa. N'esta
situação o achou o filho, quando voltou da Corunha, trajando á
castelhana, mas delatando na jaqueta safada e suja a miseria que o
trazia á porta do pai. Pediu-lhe dinheiro com supplicante brandura, com
muitos actos de arrependimento e promessas de reformação de costumes.

--Se poderes reformar os teus costumes, fazes bem; eu é que não posso
desfazer-me em dinheiro--dizia o velho.--Tudo o que eu tinha estava na
mão de teu padrinho: elle morreu, e o ladrão do filho não me paga.

--O que o padrinho lhe devia--disse Joaquim--são dois mil crusados; mas
vossemecê herdou cincoenta e tantos...

--Não sei o que herdei--replicou o pedreiro--tudo o que eu tinha dei-o a
guardar ao coronel, Deus lhe falle n'alma, e tudo lá ficou.

--O meu padrinho não era capaz de o roubar, senhor pai! Vossemecê está
mettendo a sua alma nas mãos do diabo! Ha de morrer para ahi como um
mendigo, e o seu dinheiro ha de ajudal-o a cahir nas profundas do
inferno!...

No calor da discussão figurou-se ao velho que o filho seria capaz de
praticar alguma violencia. Teve medo--o medo que devia ser-lhe uma
agonia fulminante, se o goso de sentir-se rico não prevalecesse ás
angustias de recear-se em perigo na presença do filho. Abriu com as mãos
tremulas a arca, tirou um pé de meia, atado pelo calcanhar com uma
guita, deu-o ao filho, e disse-lhe com voz cortada de soluços:

--É tudo quanto tenho. Recebi hontem esses vinte crusados novos dos
esteios que vendi. Se queres dar-me metade, dá; se não queres, leva
tudo.

Joaquim quedou-se alguns minutos a olhar para o pai com piedoso aspecto;
e, depois de pensar na repartição dos pintos, ouvindo filialmente a
consciencia e a razão, deliberou... não repartir nada. Sahiu com mais
duas maldições tacitas, e foi relatar o caso ao Luiz Meirinho.

N'este tempo, o antigo aguazil do corregedor de Barcellos andava muito
acautellado das justiças da comarca. A sua reputação de salteador de
estradas estava feita; mas as provas que legalisassem a captura eram
insufficientes. Os latrocinios de encruzilhada amiudavam-se na
Terra-Negra, na Lagoncinha, e nas serras distantes do Ladario e Labruja.
Algumas casas afamadas de dinheirosas eram assaltadas por quadrilhas que
venciam pelo numero a resistencia; e, quando esses roubos estrondeavam,
Luiz Meirinho e outros sujeitos da sua familiaridade nunca estavam em
Famalicão ou nas aldeias circumvisinhas. Era sabido que as maltas se
reuniam em um grupo de cabanas n'uma cafurna de pinheiros chamados os
_Ribeiraes_, não longe da vetusta egreja dos templarios de S. Thiago de
Antas. Ainda hoje estão em pé, mas ninguem as habita, essas choupanas
execradas pela tradição de serem ahi enterrados os ladrões que voltavam
mortalmente feridos dos seus assaltos.

Como quer que fosse, a maledicencia não calumniava Luiz Meirinho, nem
elle por modestia escondeu do Faisca a superior cathegoria de capitão de
ladrões a que o promovêra a voz publica.

Joaquim ouviu estas confidencias intimas sem pavor nem se quer
estranheza. A esquineta era-lhe bastante iniciação para ser admittido
aos mysterios da Terra-Negra. O Meirinho encareceu-lhe as vantagens, e
desfez nos perigos do officio. Principiando pelo argumento mais
insinuante a favor dos ladrões, offereceu-lhe de uma grande sacca
dinheiro que elle affiançava ter adquirido sem escandalo nem effusão de
sangue. Uma das suas regras de bem-viver era (dizia elle ao Faisca)
matar sómente em ultima necessidade: talvez a «justa defeza» que a lei
indulta. Romulo, o salteador que fundou Roma, não exhibia idéas mais
benignas.

A grangearia de um bravo para a jolda foi facil. O Faisca, em uma das
proximas noutes, foi apresentado na estalagem da Lagoncinha aos seus
irmãos d'armas, e achou-se em melhor sociedade do que elle previra.
Condecoravam a cáfila alguns sujeitos que pareciam andar n'aquella vida
aventurosa por amor das impressões rijas: eram artistas, como hoje
diriamos. Filhos segundos de casas honradas e coutadas desde os reis da
primeira dynastia, recrutas foragidos, desertores, jornaleiros,
individuos barbaçudos vindos de longes terras, facinorosos escapulidos
das cadeias ou dos degredos, gentes varias, como se vê mas todos
alegres, chalaceadores, bem-quistos nas aldeias por onde residiam
temporariamente, liberaes nas tavernas com conhecidos e desconhecidos,
armados até aos dentes, e, segundo a excellente maxima do capitão,
matando sómente em ultima necessidade. A malta, por espirito de
imitação, chamava-se _Companhia do olho vivo_. Florecera outra, com
egual denominação, na côrte, capitaneada por José Nicós Lisboa Corte
Real. Quarenta annos antes haviam sido inforcados os mais graduados da
companhia, salvante o capitão, por que era protegido pelo infante D.
Antonio, tio de el-rei D. José I. Um dos mais novos d'essa horda de
ladrões, que teve um periodo de esplendor, fugindo á perseguição, ainda
funccionou na malta do Minho, á qual legou o saudoso nome da outra.

A «Companhia do olho vivo» não prosperou no anno em que o filho de Bento
de Araujo se alistou. O terror afastára os passageiros dinheirosos do
transito por serras infamadas, e os proprietarios das povoações
sertanejas mudaram para as villas e cidades as suas residencias.

No programma de Luiz Meirinho estava desde muito inscripto Bento de
Araujo; mas, como ainda ha pessoas de bem, ao capitão repugnava-lhe
propor em conselho que se planeasse o expediente maís plausivel na
exhumação das tres mil peças do pai do Faisca. Os socios mantinham entre
si estes decoros, o que não succede em todas as companhias com estatutos
legalisados.

Entretanto, como a necessidade apertava, e á noticia do Faisca chegara a
má nova de que seu pai, acariciado por uns sobrinhos de Gondifellos,
tratava de se passar para a companhia d'elles, o capitão, forte de
rasões aconselhadas pela prudencia e applaudidas por Joaquim, poz em
discussão a materia, quando ao modo de obrigar o pedreiro a confessar a
lura do thesouro. O Faisca tirou a salvo, porém, que o haviam de
dispensar de assistir ao assalto, por que, em fim, o homem... sempre era
seu pai, e o sangue gritava. Ninguem se riu na assembléa da
sentimentalidade d'aquelle filho: é que as ideias grandes e fundas
abalam toda a casta de alma. Foi apoiado calorosamente Joaquim, e até
abraçado por um socio de Felgueiras, processado por parricida.


VII

N'aquelle tempo, Famalicão, ás nove horas de uma noite de novembro,
negrejava silenciosa e rodeada de pinheiraes e carvalheiras. Aquelles
palacetes brazonados com seus titulares campeam hoje onde então
rebalsavam extensos nateiros de lama, a espaços habitados por
cabaneiros. A quadrilha de Luiz Meirinho podia manobrar sem temor e
desassombradamente no centro da villa como nas Rodas do Marão.

Em uma d'essas noites, o chefe, com uma duzia de escolhidos, entrou na
Congosta de Enxiras, onde morava Bento de Araujo. Elle, com mais dois,
acercaram-se da porta; os outros, postaram se de atalaias nas
extremidades da viella.

O pedreiro estava ainda sentado á lareira. Desde que lhe disseram que o
filho pernoitava ás vezes em casa do Meirinho, velava até ser dia claro.
O receio de ser assaltado era tamanho que já tres vezes, em noites
tempestuosas, gritára á d'el-rei. Os visinhos, á primeira, acudiram
vozeando das janellas com invulneravel intrepidez, e viram d'essa feita
que um porco vadio, attrahido talvez pelo cheiro de possilga, foçava
contra a porta de Bento. Depois, ainda que elle gritasse, ninguem se
mexia, attribuindo a porco as aggressões incommodas ao avarento.

Foi o que aconteceu n'aquella noite de novembro. O pedreiro sentiu o
abeirar-se gente da sua porta, e deu tento do raspar de ferro entre a
hombreira e o batente. Gritou; mas parecia já gritar com os colmilhos
apertados. A lingua da fechadura estalou, e a porta foi diante de dois
possantes hombros tão rapidamente que os homens, como duas catapultas,
entraram de roldão, e só pararam filando-se á garganta do velho
empedrado. Por entre elles, e á luz do canhoto que flammejava, o
pedreiro viu lampejar o aço de uma navalha, e ouviu, atravez dos lenços
com que os hospedes cobriam as caras, uma voz disfarçada:

--Se grita, vossê morre aqui já. Se quer viver, entregue as tres mil
peças que herdou, e ande depressa. Não nos conte lerias, nem faça
lamurias. É decidir: o dinheiro ou a vida.

Bento erguera as mãos supplicantes, e pedira soluçante que o não
matassem.

--Onde estão as tres mil peças?--perguntou o Meirinho.

--As tres mil peças?!--gaguejou o velho como tolamente espantado de que
lhe perguntassem por tres mil peças não tendo elle de seu tres moedas de
seis vintens.

--Mate-se este diabo!--accrescentou o Meirinho--e vamos levantar o
soalho.

--Eu não tenho aqui o dinheiro, meus senhores...--acudiu o pedreiro
desfeito em lagrimas.

--Então, onde o tem vossê?

--Enterrei-o debaixo de uma fraga...

--Perto d'aqui? Avie-se.

--Não, senhor, muito perto não é. São tres quartos de legua... em
Vermuim.

--Bem--concluiu o capitão.--Salte para diante de nós, e venha
desenterrar o dinheiro. Mexa-se!

O homem sentiu certos alivios n'esta mudança de situação como se expor a
vida, salvando o dinheiro, lhe fosse uma consideravel melhoría de
fortuna.

A malta, precedida do velho, embrenhou-se nos matos, atravessou o
outeiro que toca nas faldas da serra de Vermuim, e por S. Cosme do Valle
trepou ao espinhaço de penhascos que lá chamam o _castello_.

--Vossê não vá afflicto--dizia-lhe o Meirinho--por que hade ter o seu
quinhão com que pode viver regaladamente. O necessario não se lhe tira;
nós o que queremos é o que lhe sobeja. Somos honrados ou não, seu
velhote?

E dava-lhe palmadas nos hombros.

--Sim, senhor--dizia o Bento, e recolhia-se a scismar na situação
perigosa em que se via, e no modo de a esconjurar.

--Ande depressinha--tornava o chefe empurrando-o brandamente.

--Será bom ajudal-o com alguns pontapés--alvitrava outro, receando que a
manhã lhes viesse tolher a empreza.

Chegados ao cabeço da serra, espigado de rochas, disse o Meirinho:

--Cá estamos. Onde é a fraga?

--Não enxergo bem... Só quando fôr dia é que eu conheço o
sitio--respondeu Bento.

--Temol-as arranjadas...--tornou o Meirinho com um sorriso agoureiro de
más coisas.--Ó Freiamunde, petisca lume, e faze ahi um archote de
codêços para este tio ver onde está o arame.

--Parece-me que o melhor seria alumial-o com a luz da
polvora...--observou Freiamunde, bebendo alguns tragos de aguardente de
uma cabaça que trazia a tiracollo.--Quer lá, capitão? Se lhe parece, dou
dois goles ao velho como se faz aos perús...

--Tio Bento--insistiu Luiz Meirinho--vossê acha a pedra ou não acha? O
dinheiro ficará enterrado; mas vossê tambem fica de papo ao ar á espera
que o enterrem. Veja lá no que ficamos; lembre-se que está tratando com
homens de palavra.

No entretanto, um da companhia petiscara fogo, e communicara o lume da
mecha á manada de fetos sêccos apanhados de baixo de uma rocha que
figurava um dolmen.

--Ali tem luz que farte--disse Luiz.--Veja lá agora qual é a pedra, tio
Bento.

--Parece-me que é aquella...--respondeu elle a tiritar, já convencido de
que estava chegado ás ultimas.

--Parece-lhe ou é?--insistiu raivoso o Meirinho.--Ande. Mostre lá o
sitio. Ó Zé Landim, se fôr preciso desenterrar o morto serve-te da tua
faca. Patrão, estamos ás suas ordens, diga onde quer que se cave; a cova
ha de fazer-se ou para sahir o dinheiro ou para entrar vossê.

Bento cahira sobre os joelhos como ferido de subita apoplexia, e começou
a gaguejar uns sons inintelligiveis.

--Este alma de dez diabos que está a mastigar?--disse Freiamunde.

N'este momento, o pai de Joaquim cahiu de borco, batendo com a face na
pedra; e, quando dois homens o levantaram de repellão e o viram á luz
dos fetos, estava morto.

Este incidente nem levemente impressionou aquelles homens fortes.
Ninguem fez a minima reflexão ácerca do lance em theatro tão lugubre. Os
mais preoccupados bebiam aguardente a froixo, dizendo que o homem
morrera de frio. Nem uma ideia philosophica, nem sequer um dito
elegiaco! Luiz Meirinho discorreu brevemente sobre a certeza de que o
morto os tirára de casa para os desviar do logar onde tinha o dinheiro.
Decidiu que se aproveitasse o restante da noite, indo a casa revolver a
terra quanto se podesse; e, no caso de lá não apparecer o dinheiro,
viriam na seguinte noite escavar debaixo da rocha, no castello.

Assim se fez. Bento de Araujo ficou deitado de costas sobre uma moita de
codeços, com os braços hirtos e abertos em cruz, os punhos cerrados, e
os olhos envidraçados de lagrimas. Ao alvorecer do dia, uma nuvem
pardacenta, que ondolava pela crista da serra, rasgou-se em saraivada
glacial, que lhe batia no rosto e saltava pelo peito nú e descarnado.
Chovera e nevara depois, durante muitos dias. Nenhum pastor subira com o
rebanho áquellas cumiadas, sempre escondidas na negridão da nevoa, e
perigosas se o lobo uiva faminto.

Quando o tempo estiou, quem denunciára o cadaver já disforme no rosto
fôra uma revoada de corvos que crucitavam pairando sobre os restos do
seu banquete disputado ás feras.


VIII

Contava-se assim o caso em Famalicão.

Que o Bento de Araujo, receando os ladrões seus visinhos, desenterrara
as suas riquezas que tinha debaixo da lareira, e indo escondel-as nos
montados de Vermuim, em uma noite de grande invernia, morrera tolhido
pelo frio e traspassado da neve. Fundavam-se os d'esta versão em que a
pedra da lareira estava deslocada, e no seu logar uma cova funda; e
debaixo dos bancos da cama outra escavação, e no entulho uns cacos de
panella, onde com certeza estava porção do thesouro, e a outra porção
debaixo da lareira.

Outro boato:

Que a malta da Terra-Negra assaltára o pedreiro, roubara-o, matara-o, e
levara o cadaver ao castello de Vermuim. Não se dava a rasão d'este
sahimento a tres quartos de legua; mas tambem não era necessaria a
logica para explicar tal coisa.

A versão, porém, mais popular e que tinha o suffragio das pessoas mais
rasoaveis, era que o Joaquim assassinára o pai na serra, quando o velho
voltava do seu trabalho de brocar pedra; e, depois, deixando-o morto,
viera a casa desenterrar o dinheiro. Em confirmação do boato,
allegava-se o facto de elle ter apparecido em Famalicão a procurar o
pai, e a indagar dos visinhos se tinham dado conta do arrombamento da
casa--isto no dia em que o pai já estava morto.

A voz publica forçou a auctoridade a prender o Faisca; mas, na noite
seguinte á da prisão, algumas duzias de homens armados arrombaram a
cadeia de Famalicão, e tiraram de ferros o innocente.

Esta fuga completou a ruina de Joaquim de Araujo. Acreditou-se
geralmente no roubo e no parricidio. As aldeias do julgado de Vermuim,
com Famalicão á frente, deram montaria á quadrilha da Terra-Negra, com o
reforço militar de Guimarães e Braga. A malta dispersou, mortos alguns
dos mais audazes; e os dispersos engrossaram, na Povoa de Lanhoso, a
celebrada quadrilha que tem a sua historia em um livro dignamente
esquecido.[8]

O filho de Bento pedreiro morreu em 1809 no Carvalho-d'Este, defendendo
a patria da invasão franceza commandada por Soult. Bateu se com o
heroismo do suicida, ao cabo de desoito annos de salteador, arrostando a
todos os perigos, mas fugindo a que o filassem vivo, por que tinha
grande horror á forca. Afinal, inscreveram-no entre os valorosos
defensores da nossa autonomia, e o seu cadaver foi mais acatado que o do
general Bernardim Freire, assassinado por outros patriotas da laia do
Faisca.


IX

Hão de lebrar-se que Joaquim de Araujo tinha um filho, que aprendera em
S. Martinho do Valle o officio de fogueteiro com o parente de sua mãe.

Aos vinte e seis annos, quando seu pae acabou, estava elle ainda na
companhia do velho bemfeitor e mestre, ganhando alegremente o seu pão.
Fallecido o parente, alguem lhe disse que elle tinha em Villa Nova de
Famalicão a casa, boa ou má, de seu avô, que ninguem lhe podia disputar.

Facilmente se habilitou herdeiro de Bento de Araujo e tomou posse do
casebre, deshabitado desde 1790. Ás vezes os mendigos, nas noites
quentes, levantavam a aldraba, que era um cavaco de castanho, e
albergavam-se no sobrado podre, contando casos horrendos que ali
passaram--o parricidio e o roubo. As covas estavam ainda abertas, e o
desentulho em monticulos de redor.

Silvestre de S. Martinho, o filho do Faisca, não usava dos paternos
appellidos: do pai aproveitára sómente a casa, transigindo com a honra o
necessario sem prejuizo seu.

Apossado da casa, deu-lhe um geito para poder habital-a, e pendurou meia
duzia de foguetes e bombas reaes á porta. Era habilidoso, principalmente
para as bonecas de polvora. Gabava-se de haver inventado o barbeiro a
amolar navalhas na roda, e levára á perfeição da indecencia a velha que
despedia contra a cara combustivel do barbeiro um repucho de chispas
pela parte posterior, tudo com uma graça portugueza que era um estoirar
de riso o arraial!

Corria-lhe bem a vida, e já tinha casado com uma rapariga dura e
trabalhadeira, quando o descuido de um aprendiz, na ausencia dos
patrões, deixou pegar o lume em um feixe de bombas. Houve explosão que
sacudiu em estilhas o tecto da casa, e abrasou todas as madeiras. Quando
Silvestre voltou com a mulher da romagem da Santa Eufemia, nas terras da
Maya, encontrou quatro paredes denegridas, e o interior da casa a
fumegar, cheio da brilhante claridade da lua. O aprendiz, carbonizado,
estava já na cova.

Tiveram compaixão do pobre fogueteiro os villanovenses. Diziam-lhe que
contruisse uma cabana com as esmolas que lhe iam tirar pela freguezia;
mas que a fizesse n'outra parte, por que n'aquella casa, onde um filho
matára seu pai para o roubar, pezava a maldição de Deus. Um visinho
comprava-lhe o terreno da casa amaldiçoada para accrescentar á sua; mas
deixava-lhe a pedra que era boa para o fogueteiro edificar n'outra
parte. Silvestre acceitou, convencido de que o sangue de seu avô
funestára para sempre aquelle theatro do grande crime.

Recebido o terreno de esmola, principiou Silvestre a demolir as paredes
da casa queimada. Fazia elle este serviço, com ajuda da mulher, em
quanto o carreteiro ia carreando a pedra.

Ás tres da tarde de um sabbado, o carreteiro, consoante o costume,
despegara do serviço; mas Silvestre e a mulher continuaram a desfazer o
ultimo lance de parede que lhe restava, com o fim de na proxima segunda
feira acabarem o trabalho da demolição. Observára o fogueteiro que este
lado da parede quadrilatera era mais grossa um palmo que os outros que
formavam o recinto, reintrando para o interior o excedente da grossura.
Estava coberta de pasta de barro e caleada como as outras. Divisava-se
ainda no barro gretado o risco traçado pelo atrito de qualquer corpo que
se encostára á cal ainda fresca.

Por esta raspadura, conjecturou Silvestre que ali devia estar o banco da
cama do avô, até porque ouvira dizer que parte do thesouro estivera
enterrado debaixo da cama; e elle, quando tomara posse da casa, ainda
vira a cova aberta, dois palmos distante d'aquella parede.

--A pedra aqui é mais larga--disse o fogueteiro á mulher.

--Agora é!--emendou ella--o que a faz parecer mais larga é a camada de
barro; se não, olha.

E começou a picar ao longo da parede com a extremidade aguda da
alavanca, e o barro, esboroando-se e desacamando a pedaços, deixava
descobrir a superficie da pedra que não era mais grossa que a outra.

--Dizes bem, é isso--approvou o marido.--Vamos apeando a parede por esse
lado, que o barro elle se despegará.

E, dizendo, pegou d'outra alavanca e começou a derribar as capas da
parede, em quanto a mulher, para não estar com as mãos debaixo dos
braços, ia descaliçar a camada barrenta. Quando atirava rijamente com a
ponta da alavanca á parede, notou que o ferro batera e se cravara em
páo.

--Aqui ha madeira--disse ella.

--É alguma cascaria que tinha mão no barro--explicou Silvestre.

A mulher repetiu os golpes em diversos pontos na circumferencia de dois
palmos, e tirou sempre o mesmo som.

--Parece que bate em vão...--notou ella.

--O quê?!--acudiu o marido, descendo do andaime em que trabalhava.--Bate
em vão! que dizes tu?!

--É o que te eu digo... Olha... Ouves?

--Ó mulher!--exclamou elle, cravando-lhe os olhos cheios de palpites que
a lingua não ousava formular.

E como n'esse comenos passasse gente, e parasse a olhar para as ruinas,
o fogueteiro fez um tregeito á mulher, que ella intendeu, calando-se.

--Ajunta a ferramenta, Maria, e vamos embora que já mal se
enxerga--disse elle.

--Lá vai a casa do Bento pedreiro, Deus lhe falle n'alma!--disse o mais
ancião dos curiosos.--Que dinheirão aqui esteve n'este pardieiro!
Cincoenta e seis mil cruzados! Era o homem mais rico da villa e seu
termo, e tanta necessidade passava aquelle alma do diabo, Deus lhe
perdôe, para a final o dinheiro ser repartido pela quadrilha do Luiz
Meirinho, que tambem o levou berzabum com duas balas que lhe metteram na
barriga ali á ponte de S. Thiago!

--São fadarios, tio Simeão!...--disse Silvestre.

--Vossê podia a esta hora estar rico como um porco, se tivesse outra
casta de pai...--tornou o velho.

--Assim é; mas não o quiz Deus. Desgraças...

--Ora faça vossê de conta que tinha achado ahi o dinheirame do seu avô!

--Ainda venho a tempo!...

--Pois sim; mas faça de conta que o topava! Vossê que fazia, ó sôr
Silvestre?

--Eu sei cá, tio Simeão!

--Foguetes é que vossê não fazia mais! aposto dobrado contra singelo!

--Não fallemos n'isso... Foguetes é que eu heide fazer toda a minha
vida, e Deus me dê saude para os fazer.

--Amen; mas vossê, se se pilhava com as tres mil peças, mettia a villa
toda n'um chinello, e pintava ahi o diabo a quatro!

--Está enganado! não pintava nada... Comprava uns bemzinhos, e havia de
trabalhar n'elles, como trabalho nos foguetes.

--Vem d'ahi, homem--disse Maria já aborrecida das impertinentes
perguntas do Simeão que, encostado á sachola, parecia jubilar nas
pachorrentas hypotheses, e nas delicias de cossar uma perna com a outra
alternadamente.

Simeão foi seu caminho com os outros; e o fogueteiro e a mulher seguiram
para casa; mas, assim que as portas e janellas se fecharam na rua, ahi
estavam elles outra vez sobre o cascalho, raspando com ferramentas pouco
ruidosas a parede no espaço em que o som do vacuo respondia ao toque do
ferro.

No termo de curta fadiga, tinham descoberto uma superficie liza de
madeira, invasada na parede como a portada de um postigo. Facilmente
desencaixilharam a tabua do invasamento de pedra, por que não tinha
dobradiças nem outra firmeza além da que lhe dava a espessa camada de
barro. Silvestre introduziu a mão, e topou um corpo frio.

--Que achas?--perguntou Maria offegante com as mãos postas.

--É uma panella de ferro...--balbuciou elle.--Ó mulher!... tem mão em
mim, que não sei o que me dá pela cabeça!...

--Nossa Senhora!--exclamou ella--Nossa Senhora!...

E, em vez de ter mão no homem, metteu ambos os braços até achar a
panella, em quanto Silvestre abria e fechava a bocca em tregeitos de tão
estupida felicidade, que só a suprema desgraça os poderá fazer iguaes.

N'isto, a rija mocetona arrancava da lura o peso enorme de ouro; e,
cahindo de cocoras com o pote no regaço, exclamou suffocada:

--Ai Jesus! que eu morro de alegria!...

Sivestre apertava o ventre com as mãos. Esta postura não é ridicula nem
inverosimil para os que sabem que os intestinos quasi nunca são
estranhos ás commoções grandes.

Aos primeiros assomos da seguinte aurora, a parede estava arrazada. Os
visinhos ouviram o ruido da assolação, e cuidaram que a derribára um
pegão de vento.

Mas, na proxima semana, a obra da casa nova parára. O fogueteiro dizia
aos seus bemfeitores que ia mudar de terra, e talvez mudar de vida


X

Por esse tempo, um fidalgo da côrte de D. João VI mandou vender as suas
vastas propriedades na provincia do Minho. Nos arrabaldes de Barcellos
demorava a principal das quintas, que havia sido paço senhorial.
Chamava-se a _Honra de Romariz_, e já fôra dote de D. Genébra
Trocozende, no seculo XII, casada com D. Fafes Romarigues, filho de D.
Egas, que gerara D. Fuas, e tão copiosa e compridamente se geraram uns
dos outros que a final degeneraram na pessoa do fidalgo que mandou
vender a casa solarenga, para cruzar ricamente uma dançarina sobre os
leões rompantes do seu escudo.

Chamava-se Silvestre de S. Martinho o comprador, que contara na mesa do
tabellião de Barcellos vinte e cinco mil cruzados em peças de 7$500
réis. Quantos casaes e leiras o filho de Joaquim Faisca poude comprar á
volta da Honra de Romariz incorporou-as no cinto de muralha que foi
alargando a termos de arredondar a mais vasta e formosa vivenda do
coração do Minho.

Em 1826, quando Silvestre já desesperava da fecundidade da esposa, em
annos bastante serodios, deu-lhe ella uma menina que se chamou
Felizarda. Aos oito annos, a moça, filha unica, e conhecida pela
morgadinha de Romariz, já bastante espigada e gorda, levava folgada
infancia. Aos dezoito annos, compozeram-se-lhe as feições com
proeminencias grandes, mas esbeltas. A fertilidade do peito dizia com a
curva tumescente das espaduas. Felizarda tinha uns archejos de cansaço
que lhe alindavam o carmim do bom sangue.

Um bacharel formado, que aspirava de longe os olores d'esta flôr de
gira-sol, queixando-se da demora que ella posera em chegar a uma
festividade de igreja, fez-lhe o seguinte improviso, depois de trabalhar
tres dias a rima:


      _Eu, que sou fogo, não tardo,
      ella, que é gelo, é que tarda,
      Se eu, que amo, feliz ardo,
      Felizarda feliz arda_.

Ella deu pulos a rir como se tivesse a critica de mad. Girardin.

Por esse tempo, 1846, Silvestre de S. Martinho estava muito rico, mas
muitissimo aborrecido na diluente ociosidade de tantos annos. Ás vezes,
mandava comprar polvora bombardeira, furava canudos, apertava-os com
guita alcatroada, e fazia foguetes para se distrahir. Felizarda,
bastante entretida com a arte, pedia á mãe que lhe ensinasse a fazer
valverdes e bichinhas de rabear.

A sr.^a D. Maria, excellente matrona e mãe, não se enfastiava, como o
esposo, por que moirejava sempre na casa e na quinta, fiava ou dobava
nas noites grandes com as creadas á lareira, e envergonhava os servos
calaceiros batendo as meadas no lavadouro, ou padejando as broas na
cosinha.

Mas o marido que, tirante as diversões pyrotechnicas, não fazia nada,
andava dispeptico e clorotico, quando teve de optar entre fogueteiro e
politico.

Era no tempo da patulea. Silvestre manifestara-se progressista nas
bellicosas eleições de 1845 em Barcellos, e sentiu-se invadido pela
paixão sociologica por causa do canibalismo dos fuzilamentos de
Alvarães. No anno seguinte, influiu no movimento de maio, e manteve-se
nas idéas avançadas até outubro em que os agentes da junta do Porto lhe
embargaram no Largo da Aguardente, duas cavalgaduras que iam á praia da
Foz buscar a mulher e a filha. N'este conflicto, oscillou politicamente
entre os irmãos Passos que amamentavam a republica nos seios dessorados
da liberdade cachetica, e o padre Casimiro José Vieira, o _Defensor das
Cinco Chagas_, que proclamava D. Miguel I no Bom Jesus do Monte.

Alliciaram-no ao seu partido alguns sectarios da realeza absoluta, que
viam desde a ponte de Barcellos a politica europea, e traçavam com as
bengallas no Campo das Cruzes as evoluções militares e triumphaes dos
exercitos russos. Silvestre não subia n'estas comprehensões tão alto
como os seus foguetes de tres respostas, mas intendia que, tendo as
coisas de dar volta, não lhe seria máu adoptar o partido vencedor.
Offereceu dinheiro ao doutor Candido de Anêlhe e ao advogado Francisco
Jeronimo para se enviar á _Lua_.[9]

Á sua generosidade respondeu magnanimamente a assembléa realista,
condecorando o com a commenda de S. Miguel da Ala. Elle já era Rosa
cruz, graduado na hoje extincta viella da Neta, por José Passos.
Abriu-se um pleito de liberalidades entre Silvestre e a cabeça visivel
de el-rei absoluto. Boa porção das peças intactas do defunctissimo
_Joia_ passaram para o cinturão do aventureiro escocez Macdonnell, e
depois para os burnaes dos soldados de caçadores que o espingardearam em
Sabroso. Ó fados do dinheiro! Que estremeções não daria na cova o
cadaver do Bento pedreiro, se os corvos e os lobos o não tivessem comido
na serra!

Extinctas as facções politicas, Silvestre, por insinuações da mulher,
entrou a desconfiar que era tolo, e que o sr. D. Miguel não o conhecia.
Retirou-se da politica, cheio de desenganos, e ridiculo. Os
funccionarios administrativos e judiciaes de Barcellos zombavam d'elle,
e no _Pereodico dos Pobres_, um _Amigo da verdade_ escreveu que o
Silvestre de Romariz, no auge da sua dor, fabricava _foguetes de
lagrimas_. Allusão perfurante que elle soletrou na folha.

A respeito de soletrar, a morgada recebia cartas de um amanuense da
camara de Barcellos; mas só abriu sete que ajuntára quando uma
costureira lh'as leu. Felizarda creara-se sem lettras, e vivia, a
respeito de litteratura, como as raparigas gregas antes de Cadmo, filho
de Agenor, introduzir na Grecia o alphabeto phenicio; mas, em
compensação, tinha muita flôr nativa e fresca de acres aromas n'aquelle
afflante seio, e folgava de ouvir trovas de chula e desafios de cantares
em que ás vezes a phrase estava pedindo a intervenção da policia.

Direi do amanuense da camara municipal de Barcellos.

Era um sugeito que perlustrara as regiões da sciencia por toda a
extensão do _Manual Encyclopedico_ do sr. Emilio Achylles de Monteverde.
Era author de charadas impressas. Só a _Felizarda_ 6. Tinha este moço,
José Hypolito de nome, immensa fé na briza, no paul, na junça, e no
archanjo da poesia de 1840. Os duendes das suas visões nocturnas nas
margens do Cavado sangravam-no. Era melancolico e magro como um galgo
doente. A sua paixão grande, não fallando na falta de dinheiro, era
Felizarda. Ganhava tres tostões na escrivaninha da camara, e
devoravam-no aspirações a ter cavallo e carrinho. Entretanto, andava
pelas casas a recitar a poesia de Palmeirim:

      _Que poeta que não era
      Da linda Ignez o cantor_;

ou da Lua de Londres, o

      _É noite; o astro saudoso
      Rompe a custo o plumbeo ceo_, etc.

E chorava quando os versos toavam funebres.

Felizarda não parecia talhada (sem calemburgo) para este homem; elle,
porém, talhara-se para ella. Far-se-hia boi, como Jupiter, para
arrebatal-a, bem que os seus instinctos volateis o levassem para cysne,
se Felisarda tivesse, além dos proprios, os instinctos um tanto bestiaes
de Leda.

Escreveu-lhe sete missivas profuzas e tristes como os sete peccados
mortaes. A costureira que as leu debulhava-se em lagrimas, e decorava
periodos para responder ás cartas de um furriel do 13 de infanteria.
Felisarda ouvia aquellas coisas com a attenção de uma rã que imerge á
flôr do lago os olhos espantadiços e escuta um rouxinol. Como as prosas
levavam recheio de quadras, assim que a morgada dava tento da rima,
espirrava um froixo de riso, tal qual como no lyrismo de Santo Antonio,
no theatro de S. Geraldo. Tinha aquelle aleijão! Era--quem sabe?--a
preexistencia d'esta enorme gargalhada que hoje atabafa os golphos da
poesia subjectiva.

A costureira interpretou a, e respondeu, vestindo a ideia de Felizarda,
com palavras innocentes, mas facinorosas em orthographia. O amanuense
amava-a deveras: leu a carta, em que era chamado _Bem_ da menina com
_V_; e, dando os pezames ao seu Monteverde, fez votos de educar
Felizarda nas quatro partes da grammatica, se um dia conjugassem o verbo
_amar_, que só é verdadeiramente regular quando o matrimonio o defeca.

Trocaram-se cartas assiduas. Felizarda começava a ser um pouco séria,
pouzeira e semsaborona. Amava. Entre a psyche e a _outra_ abriram-se as
valvulas de communicação. Tinha morbidezas de Ophelia e indigestões por
falta de exercicio. Não sahia do mirante que olhava para o caminho do
carro. José Hypolito passava por ali aos sabbados de tarde; e, se a
solidão era absoluta, perguntava-lhe como passou. E Julieta, debruçada
sobre o barandim do miradouro, com a face rubra e o seio ondulante,
dizia-lhe que passou bem.

Nas cartas, fallou lhe em matrimonio, o amanuense. Ella respondeu que
sim. José Hipolito, esporeado pelo amor, abalançou-se á interpreza de
que os amigos o dissuadiam. Pediu-a ao pai, e arrependeu-se. Silvestre
perguntou-lhe quem era e quanto tinha. Ouvida a resposta, disse
gesticulando um esgar de desprezo:

--Ora adeus... O senhor, se não é tolo, parece-o.

Despediu-o apontando-lhe para a porta. Depois, chamou a filha e
perguntou:

--Que diabo é isto? onde conheceste o pelintra que te veio pedir para
mulher?

Ella contou ingenuamente o caso, mostrou as cartas, confessou quem lh'as
lia, quem lhes respondia, e concluiu:

--Assim como assim, já agora quero casar com elle.

O pai expediu berros cortados de interjeições brutas. A filha fugiu, a
soluçar, e não appareceu ao jantar nem á ceia.

E a mãe, a mulher laboriosa que nunca pensára nas soberbías implacaveis
da riqueza, dizia ao marido:

--Se ella gosta do rapaz, deixa-a casar... Bem me prégava meu pai que
não casasse comtigo porque tu eras filho de quem eras. E d'ahi? Casei e
nunca me arrependi.

--Queres dizer na tua que dê a minha filha com oitenta mil cruzados a um
troca-tintas que não tem casa nem leira nem...

--Tem-no ella, homem. A riqueza chega para os dois. Trata de saber se
elle é bom rapaz; e, se fôr, deixa-a cazar que tem vinte annos.


XI

José Hipolito creára protectores esperançados no bom exito da tentativa.
Os inimigos politicos de Silvestre de Romariz coadjuvaram-no a tiral a
judicialmente.

O juiz prestou se a interrogar a morgada, visto que ella não podia
requerer por seu pulso. Suppridas legalmente as formalidades, Felizarda
foi depositada em Barcellos, no seio da familia Alvaraens.

Trava-se então a lucta nos tribunaes. O pretensor, mal dirigido pelo seu
advogado, responde com retaliações pungentissimas a insultos que o
argentario lhe dirige ao seu nascimento obscuro e á sua pobreza. A pugna
passara a ser um assanhado pugilato dos dois causidicos.

Um dos membros da familia Alvarães era moço, chamava-se Jose Francisco,
e estudava o quinto anno de latim a ver se aprendia o necessario para
conego da collegiada barcellense. Tinha quatro reprovações
conscienciosas em Braga; mas ao quinto anno já distinguia o verbo do
complemento objectivo, e traduzia com poucos erros a Ladainha.

A familia Alvarães era antiga e abastada; contava muitos frades
bernardos na prosapia, e um governador em uma praça da Azia, d'onde
trouxera navios de especiarias que formaram o casco da riqueza. A casa
tinha pedra d'armas, e uma liteira brazonada que antigamente ia a
Alcobaça buscar os frades a rusticar nas pescarias do Cavado, e a encher
as roscas da caluga balofas pela inercia do claustro.

José Francisco, o estudante, era sanguineo, nedio, com as maçãs do rosto
vermelhas, e os olhos enfronhados nas palpebras somnolentas. Felizarda,
a noiva depositada, pareceu-lhe bem, ao passo que o amanuense da camara
lhe era um antipathico bandalho, desde que em plena praça o enxovalhára
perguntando-lhe, no terceiro anno de latim, o accusativo de _Asinus_.
Oppozera-se José Francisco á recepção da morgada para haver de casar com
José Hypolito, filho do Manuel Colchoeiro; mas força maior obrigara os
Alvarães a protegerem o amanuense.

Ás vezes, o futuro conego pasmava-se a contemplar Felizarda, e sentia em
si as suaves dôres da natureza em parto do primeiro amor. Se ella, a
morgada, olhava para elle a fito, produzia-lhe no rosto o effeito do sol
que aponta em dia de calma--avermelhava-o até aos globulos das orelhas;
e José cossava-se a disfarçar, ou esbofeteava as moscas que lhe
passeavam sobre a epiderme oleosa, e faziam titilações incommodas nas
fossas nazaes.

A morgada achava-o bonito, e dizia ás irmãs que era pena fazerem-no
padre. José, quando soube isto, creou umas esperanças que o
tresnoitavam, e tinha as sentimentalidades doloridas de Jocelin, e d'um
ou outro clerigo de Barcellos que deixava vingar-se a natureza.

Procuràva José Francisco Alvarães modos de conversar com Silvestre de
Romariz, e contava-lhe o que a filha dizia a respeito do Hypolito.
Levava á depositada cartas do pai, e lia-lh'as ás escondidas da familia.
O amanuense suspeitara-o, e tratava de remover o deposito, allegando
subornos que a lei não facultava.

Ora, n'aquellas confidentes leituras, estabelecera se intimidade
bastante entre a morgada e o interprete das lastimas de seu pai. D'uma
vez que Felizarda enxugava as lagrimas, ouvindo ler o adeus que o pai
enfermo lhe enviava, José Francisco, transportado n'um rapto
inconsciente de enthusiasmo, pegou-lhe da mão e disse com ternissima
meiguice:

--Não case contra vontade de seu pai... Tenha pena d'elle, que está tão
acabadinho...

A morgada poz-se a torcer e a destorcer o seu lenço branco, e a lamber
uma lagrima que lhe pruía no beiço superior; mas não respondeu.

Alvarães foi contar isto ao velho. Silvestre pegou do processo que o seu
advogado lhe enviara, e disse-lhe:

--Faça-me o sr. Josésinho o favor de levar estes autos, e ler a minha
filha o que o tal patife, que quer ser seu marido, aqui diz de seu pai;
leia-lhe isto, e veja o que ella diz.

O leitor já sabe, por eu lh'o haver dito nas primeiras paginas d'este
livrinho, que o indiscreto amanuense consentira que se escrevesse que o
pai de Silvestre fôra salteador de estradas, e que o pai de Felizarda
exercitara o baixo mester de fogueteiro em Famalicão.

Tudo isto era expendido na tréplica de José Hypolito com grande lardo de
zombarias e sarcasmos em estylo piccaresco. A morgada ouviu ler as
injurias entoadas com vehemencia por Jose Francisco, que as declamou
como se estivesse traduzindo um periodo de Eutropio.

Concluida a leitura, Felizarda, antes que o leitor a interrogasse com os
olhos, exclamou:

--Quero ir para casa de meu pai, e hade ser já. O Josésinho vai commigo.
Mande dizer a meu pai que me mande a burra.

José foi dar parte á familia da subita resolução da morgada; o
depositario foi dar parte ao juiz, e o juiz respondeu que a lei não
podia empecer á vontade da depositada. Quando estas altercações chegaram
á noticia de José Hypolito, a filha de Silvestre ia já caminho de casa,
acompanhada pelo estudante e pelas irmãs.

O pai e a mãe receberam-na nos braços, offegantes de jubilo, a
pedir-lhes perdão da sua doudice. Silvestre abraçava José Francisco
Alvarães, chamando-lhe o salvador da sua filha e da sua honra. A santa
mãe de Felizarda olhava para o estudante com os olhos cheios de riso, e
dizia:

--Não queira ser padre, sr. Josésinho... Olhe que o meu homem já disse
que se vossa senhoria quizesse a nossa rapariga, que lh'a dava, e eu
tambem.

José olhou estupefacto para o velho; Silvestre intendeu o espanto, e
disse-lhe:

--Não olhe para mim, que eu não sou o que caso; olhe para a minha filha,
e veja o que ella diz. Felizarda, queres casar com o sr. José Francisco?

--Se o pai quizer... tambem eu.--E escondeu o rosto no seio da mãe com
umas visagens que pareciam de entremez; mas que eram da maior
naturalidade.

As irmãs de José Francisco rodearam-na e beijaram-na soffregamente, em
quanto o noivo, alumiado por aquelle improviso e inesperado lampejo de
felicidade, achou no coração estas phrazes que balbuciou, abeirando-se
da morgada:

--Se a menina casasse com o outro, eu acho que morria de paixão, e mais
nunca lh'o disse.


CONCLUSÃO

Quando os vi em Braga, no theatro de S. Geraldo, estavam casados havia
já vinte e cinco annos. Na casa de Romariz, durante essa temporada,
apenas pezaram dias funestos, quando se fecharam as sepulturas de
Silvestre e sua mulher.

José Francisco Alvareães era um modelo raro de continencia conjugal. Em
Portugal só se conhecem dois exemplares: el-rei D. Affonso IV e elle. As
diversões da vida, convencionalmente chamadas prazeres, não perturbaram
a suave monotonia de Romaris. D. Felizarda apenas conhecia na arte
dramatica o «Santo Antonio» de Braz Martins, e a «Degolação dos
innocentes» por onde entrou na vida infame de Herodes. As noites de
dezembro aligeiravam-se em Romariz a dormir. Ceavam e digeriam
serenamente. Ao pé de um bom estomago coexistiu sempre uma boa alma.
Acordavam alegres, para continuar as funcções animaes. Viviam para
credito da physiologia: eram duas pessoas que se adoravam e faziam
reciprocamente o seu chylo em um só orgão. Tinham um coração, um figado,
e um pancreas para os dois. N'esta vida vegetal havia ternuras
cupidineas como as das cylindras e acacias florecentes; e, quando
extravasavam da orbita physiologica, jogavam a bisca de trez; mas
ordinariamente entretinham-se mais com o burro.

De S. Miguel de Seide--julho de 1876.


FIM




Notas:

[1] Meu caro doutor Thomaz de Carvalho, lembra-se d'elle ha oito annos,
no _Hotel Gibraltar_, já encanecido, mas tão galhardo velho que o
invejavam os moços?

[2] «Chico Bellas» era D. Francisco de Castello Branco, irmão do conde
de Pombeiro. Foi official de cavallaria, teve vida de amores aventurosa
e altissima, morreu em 1862 cancerado, podre de embriaguez e de
devassidão. Conheci-o, em 1861, idiota, a babar-se, e a pedir um pataco
para genebra. Os seus nobilissimos parentes não poderam nada contra o
destino d'este homem, que exercitara o magisterio na esgrima, na gineta
e na galanteria bruta e... feliz!

[3] Ecloga III do _Lima_.

[4] Cant. 2.^o est. XXXVI.

[5] Alludia á novella intitulada o Senhor do Paço de Ninães.

[6] Vou condensando estas noticias colhidas em um livro do coronel
Francisco de Figueiredo, escriptor coevo dos successos. É um tomo que
fórma o 14.^o da obra intitulada _Theatro de Manuel de Figueiredo_. Este
livro raro, malissimamente escripto, é precioso repositorio dos costumes
portuguezes do decimo oitavo seculo. A proposito do negociante Araujo,
informem-se os curiosos desde pag. 632 até 640.

[7] Em provincia nenhuma, salvante o Minho, ouvi ainda empregar este
verbo _regeitar_ (de _rejicere_) como quem diz _arremessar_. Arma que
fere de arremesso, em bom portuguez, chamou-se antigamente _regeito_. O
povo usa o verbo que é excellente e onomathopaico. Os minhotos, que
fizeram exame de bachareis, e de instrucção primaria (o que é mais
difficil), riem-se quando o gentio analphabeto diz: «_regeitou-lhe_ uma
pedra.»

[8] _O Demonio do ouro_.

[9] Os realistas usavam nas suas correspondencias termos convencionaes.
_Lua_ era o general em chefe Macdonnell. Este general, quando foi batido
pelo conde de Casal em Braga, deixou ali um volumoso diccionario
manuscripto, curiosamente elaborado pelos realistas de algum vulto
lexicologico, com bastantes documentos que hoje estão esquecidos, e mais
tarde a historia não saberá onde procural-os. N'este diccionario
cryptographico os vocabulos mais engenhosamente disfarçados são estes:

_Inimigos_--BESTAS.

_Inimigos em movimento_--BESTAS DESINQUIETAS.

_Inimigos em marcha contra nós_--BESTAS DE JORNADA.

Os liberaes, se interceptassem a correspondencia, não suspeitariam
decerto que os miguelistas chamassem aos seus adversarios--_bestas_.

Leia-se a _carta dirigida ao cavalheiro José Hume, membro do parlamento
sobre o ultimo debate havido na camara dos communs a respeito dos
negocios de Portugal_ etc. Lisboa, 1847.

O traductor e annotador anonymo d'esta obra, a mais noticiosa que temos
da revolução chamada da _Maria da Fonte_, foi Antonio Pereira dos Reis,
notavel escriptor politico, fallecido em 1850.






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both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

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or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
https://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at https://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit https://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including including checks, online payments and credit card
donations.  To donate, please visit: https://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     https://www.gutenberg.org

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including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
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