Carlota Angela

By Camilo Castelo Branco

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Title: Carlota Angela

Author: Camilo Castelo Branco

Release Date: July 10, 2008 [EBook #26025]

Language: Portuguese


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CARLOTA ANGELA


CARLOTA ANGELA

Romance Original

Por

CAMILLO CASTELLO BRANCO


Terceira Edição


PORTO

Em casa de A. R. da Cruz Coutinho--Editor

Rua dos Caldeireiros, 18 e 20

1874


Typographia do Jornal Do Porto

Rua Ferreira Borges, 31




CARLOTA ANGELA




I

     Se a natureza formou uma bella creatura, não póde a fortuna
     precipital-a n'um incendio?

                                Shakspeare. (_Como vós o amaes._)

     Cette douce ivresse de l'âme devait être troublée.

                                      Balzac. (_Albert Savarus._)


Norberto de Meirelles e sua mulher D. Rosalia Sampayo, ricos
proprietarios, moradores, em 1806, na rua das Taipas, da cidade do
Porto, viam crescer prodigiosamente os seus cabedaes, e, com elles, uma
filha unica, tão encantadora para os paes como a riqueza com que a iam
enfeitando para seduzir o mais medrado capitalista da terra.

Tolerem-me a singeleza com que se começa a narrativa.

Eu tinha á minha disposição quatro exordios bonitos, que escrevi em
quatro tiras, e rejeitei com desdem.

Era assim o primeiro:

«Diz-me tu, amor, que magos philtros insinuaste no coração da virgem de
olhos negros, que lêda e melancolica, lagrimosa e risonha, te está
enamorando na lua, d'onde lhe sorris em noites calmas de estio, na
floresta, onde lhe cicias palavras nunca ouvidas, na fonte, onde lhe
murmuras a tua linguagem do céo? Que ambrozia inebriante déste á
doudinha que, tão requestada e alheada de brinquedos pueris, se vae, só
e destemida, a buscar-te, por entre myrtos e rosaes, perseguindo-te como
lasciva borboleta de flor em flor, sobre alfombras de verdura, por onde
volitam lucidos phalenos?»

Segundo exordio:

«Á viração da tarde tremulava ligeiramente a folhagem do renque de
alamos que cintavam uma pintoresca vivenda do Candal. Um repuxo de
crystallina limpha trepidava na cascata com soidoso rumor, donosa
musica, ao som da qual se espertam amores em peito virgem, e adormecem
mágoas em coração atribulado. Morbidamente recostada sobre um banco de
cortiça, por onde trepava um jasmineiro em flor, via-se, como engolfada
em alegrias intimas das que o rosto esconde ao invejar de estranhos, uma
graciosissima donzella... etc.»

Terceiro:

«Onde vae este gentil mancebo, tão á pressa e offegante pela calada da
noite, subindo a collina do Candal, em cujo tôpo alveja uma casa, onde
elle parece mandar adiante o coração em cada suspiro que o cansaço lhe
tira do peito arquejante? Que visão alvissima, que fada ou sylpho é esse
que desliza, rapido e volatil, por entre os alamos, e vem ao peitoril do
muro, como a anciada Hero, restaurar o vigor do extenuado Leandro?...
etc.»

Quarto, e ultimo exordio:

«Vou contar-vos uma historia que verifiquei nas fieis narrações de mais
de vinte pessoas vivas. Ides ver até que ponto os paes podem infelicitar
os filhos; até que ponto a missão augusta do segundo creador póde ser
fementida e insidiosa; até que ponto o amor paternal é amor, e d'onde
começa a ser deshumanidade. Se alguma confiança devo ter na justiça
congenial do coração humano, espero carear graça e indulgencia para uma
filha que se rebella primeiro contra um pae, depois contra o falso deus
que lhe impozeram como verdugo de mais alta e temerosa categoria,
arbitro e claviculario das sempiternas moradas do inferno... etc.»

Ahi está o que eu tinha escripto. Tudo rejeitei, contra a opinião de um
congresso de homens de delicado gosto, que votaram por qualquer dos
quatro preludios, chasqueando-me a simpleza com que escrevi o quinto,
acanhado e pêco como historieta sem nervo, nem imaginação.

E, portanto, desde já me desquito com os leitores se no decurso d'este
romance me apodarem de insulso e desimaginoso.

VERDADE, NATURALIDADE, E FIDELIDADE

é a minha divisa, e sel-o-ha emquanto este globo se não reconstruir á
feição do disparate com que uns o alindam e outros o desfeiam.

Quem desde já sentir azias de bôca, deixe isto, e desenfastie-se com as
conservas irritantes da França, e até das nacionaes, que tambem as
temos, curtidas em vasilhas, francezas. Embora travem á hervilhaca, é o
que temos, e o que nos dão os Watteis dos fricassés litterarios, em
menoscabo do classico cozinhado de Domingos Rodrigues.

Atemos o fio, e a graça de Deus nos assista, para que a benevolencia do
leitor se compraza com o alinho desaffectado e lhano d'este conto.

A filha unica de Norberto de Meirelles e D. Rosalia Sampayo chamava-se
Carlota Angela, e tinha dezesete annos, em 1806.

Não era formosa; mas exquisitamente engraçada sim.

Norberto, filho de lavradores transmontanos, era campezino, rustico, e
desageitado; Rosalia, com quanto procedente de progenie já cidadã desde
seu avô, havia muito ainda que desbastar, e quatro gerações não tinham
adelgaçado nada a raça originaria de Covas de Barroso.

Ora, a vergontea de troncos ou cepos taes não podia sair de compleição
tão fina e delicada, como se usa liberalmente com as heroinas dos
romances.

As feições de Carlota eram sêccas e trigueiras; mas a magreza não era de
debilidade ou doença. O ligeiro toque de escarlate nas faces era a
transparencia de sangue rico de toda a seiva dos dezesete annos. Tinha
uma bonita fronte, e abundantes cabellos pretos, que ella enfeitava sem
esmêro, mas com desalinhada graça, conservando-os, até essa idade, em
tres tranças, que um laço de setim encarnado prendia na cintura em duas
roscas. Á custa de importantes admoestações da mãe, Carlota reformou o
penteado, em conformidade com a moda, que era ennastrar trancinhas de
cabellos em dois grandes corações que ladeavam a cabeça, desde o vertice
até ás orelhas, com matiz de lacinhos de varias côres: bonita cousa,
antes da restauração das troixas contemporaneas, restauração, digo,
porque as malas, no cucuruto da cabeça, começavam a decair do gosto em
1806.

O que fazia engraçadissima Carlota eram as espessas sobrancelhas, que
formavam apenas um crescente das duas arcadas ciliares: tão
imperceptivel era a cisura que as estremava na base do nariz. Bem sabem
que olhos costumam ser os que reinam sob tão magnifico docel: grandes, e
negros, entre longas pestanas que, ao mais ligeiro languir das
palpebras, se ajustavam n'um amortecer de tanta volupia, que mais não
podia ser, sem feitiçaria!

Ainda não sei descrever narizes, e por narizes comecei a pintar. O de
Carlota era irregular, talvez, ao contrario dos narizes de passaporte:
era um nariz adunco, longo de mais para aquelle rosto; mas esta
incongruencia, impressionando aos que a viam pela primeira vez, á
segunda, não havia que desdenhar-lhe. Singular e desusada era a bôca.
Cada commissura ou canto dos labios terminava em dois vincos, um
subindo, outro descendo, mas tão pronunciados, que pareciam um
permanente riso sardonico, um não sei quê que fazia desconfiar as
pessoas menos habituadas á sua convivencia.

Carlota era alta e gentil. Não se affectava para ser garbosa, que lhe
sobejava graça e donaire nos naturaes meneios. O braço era incorrecto,
fornido de mais em carnes, e de pelle trigueira; a mão longa e magra; e
o pé proporcional á corpulenta haste.

Já agora, diga-se o porquê do cuidadoso recato em que a filha do snr.
Norberto de Meirelles tinha os braços; não era a grossura do pulso, nem
a pujança carnosa do ante-braço; era uma espessa camada de buço,
lanugem, ou cabello, que a frenetica menina cerceava desde os quatorze
annos, á tesoura, porque as amigas e parentas a aperreavam, chamando-lhe
«pelluda».

Basta de materia: fica-se sabendo que não se trata de uma mulher
formosa; deram-se, porém, os traços principaes de Carlota, e são esses
os que, na maioria dos casos, fascinam, apaixonam e enlouquecem o homem
de trinta annos, gasto de queimar incenso ás bellezas correctas, a cuja
desanimação de commum accordo se chama «lindeza».

Vejamol-a espiritualmente.

Carlota Angela foi creada com descuidado mimo. Seus paes reviam-se
n'ella, desculpavam-lhe todas as perrices, e fariam-a incorregivel, se a
natureza se não corregisse a si propria.

Aos quinze annos, a folgazã menina mudou para triste; de garrula e
traquina que era, fez-se taciturna e indolente. Maneiras de senhora,
conversações com pessoas de idade, onde estavam moças; entremetter-se em
cousas domesticas, a que a não chamavam; desligar-se das companheiras do
collegio, desdenhando a frivolidade de seus passatempos: tal foi a
reforma repentina de Carlota Angela.

Alegravam-se-os paes, felicitando-se por a não terem contrariado em
pequena, contra as admoestações dos parentes, entre os quaes havia um
tio materno, de cuja calva ella mudava o chinó para a cabeça de um gato
maltez, ou em cujos oculos ella bafejava para lh'os embaciar. Esta
victima, no auge da sua angustia prognosticara aos paes de Carlota
grandes dissabores, consequencias funestas da liberdade que davam á
condição ferina da moça.

Depois da mudança inesperada, Norberto e Rosalia, todos os dias, diziam
ao homem dos oculos:

--Vê como se enganou? Ahi a tem agora mais ajuizada e mansa que as
meninas creadas debaixo da disciplina e da palmatoria...

--Veremos...--redarguiu o velho advogado--veremos quando ella tiver uma
vontade opposta á vossa qual das duas é a que vence.

--Vontade opposta á nossa!--replicava Norberto--Isso havia de ter que
ver! Como acha o mano que ella se possa oppor á nossa vontade?

--Facilmente; e para não ir mais longe, ides vós ter uma occasião de a
experimentar.

--Qual?--atalharam ambos.

--Eu vos digo; mas, se Carlota entrar emquanto eu fallo d'ella, fica
para ámanhã o que hoje vos não disser.

--Carlota está no seu quarto a ler, e não vem cá tão cêdo--disse
Rosalia.--Podes fallar á vontade, Joaquim.

--Quando me notastes a mudança rapida de Carlota, fiquei mais admirado
que vós. Entrei a scismar até que ponto se podia aceitar a naturalidade
da transfiguração moral, e vim a suspeitar que a causa estava na
natureza, mas fóra da natureza de Carlota. Ora, eu sei mais do mundo que
vós, haveis de conceder-me isto, e vós tendes mais boa fé que eu: fica
uma cousa pela outra, e acho que a vossa é bem mais agradavel á vida que
a minha.

Sabeis o que me lembrou? Se Carlota estaria namorada.

--Olha que lembrança!--atalhou D. Rosalia.

--Essa é das suas, doutor!--disse Norberto--Está a sonhar... deixe-se
d'isso.

--Seria sonho;--disse o doutor severamente--mas já ágora deixem-me
contar o sonho até ao fim, e guardem para o remate as admirações. N'esta
suspeita, comecei a limpar os oculos para examinar as caras masculinas
que entravam aqui, e não achei alguma duvidosa. As vossas relações são
pouquissimas, e n'essas não ha alguem que possa despertar no coração de
Carlota um sentimento novo. Continuei as minhas averiguações fóra de
casa. Fui ás poucas casas onde vós ieis; segui todos os olhares de
Carlota, e achei-os sempre indistinctos e indifferentes. Descorçoei um
pouco; mas não desisti.

Um dia do anno passado, estavamos nós no Candal, e passeiava eu e ella
sósinhos na estrada. Dizia-me a pequena que tinha lido umas novellas de
cavallarias, de que gostara muito, posto que não acreditasse nas
historias. Contou-me algumas passagens de _Paulo e Virginia_ e de
_Menandro e Laurentina ou os amantes extremosos_, que vós não sabeis o
que é, mas lembrados estareis de me perguntardes se eram livros de boa
moral. Notei que a moça, quando me fallava no amor das damas e
cavalleiros, empregava mais vivacidade do que convinha a uma menina
innocente de sentimentos amorosos. Fiz-lhe algumas perguntas com
intenção de a surprender; mas ella jogava commigo tão habilmente, que
venceria a partida, se eu não tivesse cincoenta e cinco annos, e não
tirasse da habil escapula o mesmo que tiraria, se ella se deixase
apanhar.

N'outro dia estavamos nós sentados no mirante, conversando em cousas que
me não lembram, e vimos apparecer no alto da estrada um cavalleiro.
Olhei casualmente para Carlota, e vi-a córada, e inquieta. Disfarcei o
reparo, e vi-a erguer-se e voltar as costas para o cavalleiro, dando
alguns passos com certo ar de indifferença, e tornou logo, girando entre
os dedos uma flor que cortara.

O cavalleiro passou e cortejou-me: era meu conhecido. Esperei que ella
me perguntasse quem era; nem uma palavra. Perguntei se o conhecia,
ergueu os hombros, e fez com os beiços um gesto, que parecia dizer: «não
sei, nem me importa saber».

N'outro dia, fui eu ao Candal, e no alto das Regadas ouvi tropel de
cavallo, que me seguia, subindo a calçada. Escondi-me na esquina de uma
travessa, e vi passar o cavalleiro: era o mesmo da cortezia. Fui-o
seguindo de longe; e, ao chegar á collina d'onde se avista o mirante,
vi, primeiro, Carlota debruçada sobre o parapeito da varanda, e, depois,
o cavalleiro parado debaixo do mirante.

--Credo!--exclamou D. Rosalia, erguendo-se branca como cêra.

--E esteve até agora calado com isso!--disse Norberto, erguendo-se
tambem.

--Nada de espantos!--respondeu o bacharel, sem se descompor na cadeira,
onde se refestellava, fallando com a sua costumada solemnidade
oratoria.--Logo se diz quem é o homem; mas ha de aqui fazer-se o que eu
aconselhar, senão desconfio muito que minha irmã experimente mais cêdo
do que espera a vontade de Carlota.

Escondi-me alguns segundos, e appareci no momento em que vossa filha
entregava um ramo ao cavalleiro.

Ella deu fé de mim, e sumiu-se; e elle seguiu a estrada, depois que me
viu. Carlota recebeu-me com a certeza de que eu era sufficientemente
cego para a não ter visto: não deu o menor indicio de susto. Convidei-a,
como sempre, a passeiar no jardim, e disse-lhe: «Quando houver alguma
novidade na tua vida, has de contar-m'a, menina. Se ella te parecer tão
agradavel, que a queiras só para ti, não cuides que lhe diminues o
valor, dizendo-m'a. O coração de teu tio ha de sentir o bem do que for
bom para o teu. Ora, conversemos: diz-me lá, Carlota, se sentes alguma
inclinação que não sentias ha um anno, quando os meus oculos e o meu
chinó eram o teu regalo.

--Eu não, meu tio... sinto o que sentia--respondeu ella; mas a
innocencia protestou contra a mentira, mostrando-se no rosto: córou e
gaguejou de um modo que me fez pena e contentamento. Quando assim se
córa, o coração está puro.

Para acudir á vossa impaciencia, dir-vos-hei, em resumo, que obriguei
suavemente Carlota a confessar-me que amava Francisco Salter de
Mendonça.

Já sabeis quem é.

--Eu não!--disse D. Rosalia. E voltando-se para o marido:--E tu?

--Conheço de vista,--respondeu Norberto--é um militar, creio eu...

--Francisco Salter de Mendonça--continuou o doutor Joaquim Antonio de
Sampayo, sorvendo uma pitada pela venta direita, e comprimindo a outra
com o dedo indicador da mão esquerda--é um tenente da brigada real de
marinha, é natural de Lisboa, e está aqui ha dois annos a bordo do
brigue _Audaz_. É um moço que vive do seu soldo, e está por ahi
relacionado com os rapazes nobres da cidade. É o que posso informar
ácerca de Mendonça.

Agora vou responder á pergunta de Norberto. Admirou-se de eu estar
calado com isto? Calei-me, porque receiava muito que alguma imprudencia
vossa irritasse o amor de Carlota. Calei-me, esperando que Mendonça
fosse chamado a Lisboa, e nos deixasse o campo livre para
despersuadirmos Carlota. Ainda assim, fiz tenção de vos avisar, logo que
julgasse necessario empregar medidas promptas. Eu sei que o rapaz
tenciona vir pedir-vos Carlota, e sei tambem que em poder de um meu
collega está um requerimento d'ella para ser tirada por justiça no caso
de que negueis o vosso consentimento.

--Santo nome de Deus! valha-me nossa Senhora!--exclamou, com as mãos na
cabeça, D. Rosalia, emquanto seu marido resfolegava arquejante,
passeiando acceleradamente na sala.

--Não comecem a fazer doudices!--tornou o doutor--Se gritam, se põem
fogo de mais ao pucaro, entorna-se tudo. Aqui ha de fazer-se o que eu
disser; mas mudemos de conversa, que ahi vem Carlota.




II

     Os tigres são menos sanhudos contra o homem que o proprio homem.

                                   Phocion. (_Instrucção a Aristias._)

     Les parents en effet ont cela de admirable, et je parle des
     meilleurs, que vous ne pourrez jamais, ni par plainte, ni par
     raison, leur faire comprendre qu'il vient un moment où l'oiseau
     essaie ses ailes et quitte son nid; qu'ils n'ont d'autre mission
     que de faire et d'elever leur petits jusqu'á l'âge où ils quittent
     le nid.

                                 Alphonse Karr. (_Sous les Tilleuls._)


Quaes fossem os conselhos do ornamento dos auditorios portuenses,
teremos occasião de avalial-o opportunamente.

Oito dias depois de planisada a conspiração contra os amores reservados
de Carlota Angela, foi procurado Norberto de Meirelles pelo tenente de
marinha.

Francisco Salter de Mendonça era um rapaz da boa sociedade de Lisboa, um
dos mais distinctos alumnos do collegio de marinha, reformado pelo
intelligente ministro Martinho de Mello e Castro. Tinha dotes corporaes
que o distinguiam, e virtudes que os seus amigos avaliavam como raras.

Amava com verdade Carlota Angela, posto que, no principio, o ser ella
filha unica de um abastado commerciante encarecesse mais o galanteio.
Sentiu, depois, que o seu amor se purgara da ignominia do calculo, até
preferir que fosse pobre Carlota, para que, pobre, se igualasse a elle.
Longo tempo a cortejara sem revelar-lhe as intenções honestas do namoro,
esperando que fosse ella a que o auctorisasse a pedil-a a seus paes.
Certeza tinha elle de que lh'a negavam, porque então, como hoje, um
noivo era pesado na balança do negociante rico, e o contrapeso do
coração não fazia oscillar o fiel. Pedil-a sem predispor o auxilio da
lei invocado por Carlota, nunca Mendonça quizera até ao momento em que
ella prometteu fugir de casa, se seu pae não consentisse.

Traçado o plano, Mendonça, como dissemos, procurou Norberto de
Meirelles, e foi urbanamente recebido. Disse o motivo da sua visita, e
não divisou na physionomia do ricasso o menor signal de espanto, nem
sequer surpreza. Acabou de fallar, e ouviu, com estranho jubilo, a
seguinte resposta:

--Se minha filha é contente com o marido que se lhe offerece, eu não me
opponho a que ella seja sua esposa. Ella que o ama, é que v. s.ª é
digno d'ella.

--Espero--atalhou Mendonça--merecer a v. s.ª o conceito que mereci á
snr.ª D. Carlota.

Norberto não soube responder convenientemente a isto, porque dissera
parte do que o doutor lhe ensinara nas poucas palavras com que embriagou
o radioso genro, e, receioso de que lhe esquecesse o resto, continuou:

--Fique v. s.ª na certeza de que a vontade de minha filha é a minha;
tenho, porém, a pedir-lhe um favor que v. s.ª não recusará ao pae de
Carlota.

--Oh! senhor! que me pedirá v. s.ª, que eu não receba como ordens da
pessoa que prézo desde já como pae?!

--Minha filha faz annos de hoje a um mez, e eu muito desejava que ella
festejasse na minha companhia os seus dezesete annos, ainda solteira.

--Pois não, snr. Meirelles! Exija v. s.ª de mim todos os sacrificios
que se podem humanamente fazer, que eu nunca pagarei o regosijo d'este
momento decisivo para a felicidade de toda a minha vida.

--E v. s.ª--proseguiu o fiel repetidor do bacharel, contentissimo de
não ter trocado uma só palavra, apesar das interrupções do
interlocutor--poderá, se assim lhe aprouver, honrar com a sua presença
os annos de Carlota, que se festejam, ha dezeseis annos, na minha quinta
do Candal.

Esgotara-se o peculio. Norberto fez menção de erguer-se. Salter notou a
grosseria; mas desculpou-a ao pae de Carlota. Retirou-se acompanhado até
ao pateo, honra que tres vezes recusara, mas, á quarta, o negociante
disse que ia para o escriptorio _tratar da labutação dos arrozes que
estavam á descarga_. Isto é que era legitimamente d'elle.

Carlota, emquanto a visita esteve, não obstante o grande espaço que a
distanciava da sala, apurava o ouvido na extrema de um corredor por onde
poderia embuzinar a voz do pae, se elle a engrossasse, como costumava,
nos agastamentos.

Ouvindo rumor de passos na saída, correu ao seu quarto, e sentiu-se
desanimada para receber a visita colerica do pae. Até então dera-lhe o
amor afouteza para responder ás iras paternaes; e a risonha esperança de
permanecer poucas horas em casa, depois da expulsão de Mendonça,
afigurava-se-lhe agora uma tenção criminosa. Era o mêdo que a
transtornava assim; logo, porém, que o sobresalto se desvanecesse, viria
a reacção do amor restituir-lhe o vigor de um proposito, cuja firmeza as
ameaças do pae não abalariam.

Pouco depois, Carlota foi chamada ao quarto da mãe, e achou-a
prazenteira e jovial. O pae entrou após ella, e fingiu o mais lhano e
caricioso semblante. Carlota estava espantada, e não podia crer o que
via.

--Diz-me cá, menina,--disse Norberto--já sabes... ora se sabes!...

--O que, papá?

--Faz-te tolinha, minha serigaita! Arranjaste um marido, sem dizer agua
vae, assim do pé p'ra mão como quem se casa por sua conta e risco...

Carlota baixou os olhos com humildade. Norberto perdeu um pouco do seu
caracter artificial, e proseguiu:

--Ora, sempre tenho uma filha como se quer! Posso-me gabar!... Nem eu
nem tua mãe valemos nada, Carlota! Vê-se um troca-tintas, e não ha mais
que dizer-lhe: Se quer casar commigo, estou aqui ás suas ordens; vá
pedir-me a meu pae, e diga-lhe que me dê o dote que elle me ganhou a
trabalhar trinta annos. Isso é bonito, Carlota?

D. Rosalia pizara rijamente o pé do marido, e conseguira recordar-lhe a
traça combinada com o doutor. Carlota começava a sentir a reacção, ia
erguendo a cabeça abatida para repellir a grosseira invectiva do pae,
quando este, com velhaca subtileza, mudou para brando aspecto a severa
carranca, e proseguiu:

--Emfim, quem casa és tu; o mal e o bem para ti o fazes. Se queres casar
com esse rapaz, casa. Eu disse-lhe o que um bom pae deve dizer.
Consenti, com tanto que a vontade de minha filha seja essa. Que dizes a
isto, Carlota? Estás decidida a casar com o tal snr. Mendonça?

--Visto que meu pae não se oppõe á minha vontade...

--E, se eu não quizesse, casavas do mesmo modo?... Diz lá!

--Se o pae não quizesse, eu havia de pedir-lhe tanto que me deixasse ser
feliz, que o meu bom pae... consentiria...

--Lá isso é verdade...--replicou o negociante, obedecendo á terceira
pizadella da irmã do bacharel--eu o que quero é a tua felicidade... Bem
sabes que sou teu amigo como ninguem, ainda que te pareça que lá o teu
namorado te quer mais que eu... É boa asneira a das raparigas, que
trocam pae e mãe pelo primeiro perna-fina que lhe empisca o olho ao
dote!... (_Quarta pizadella de Rosalia, e mutação de cara e diapasão de
voz em Norberto._) Está dito! Casarás com o homem; mas já agora hão-se
de festejar os teus dezesete annos em casa. Eu já lhe disse a elle que
esperasse um mez, e depois arranja-se isso, e está acabado o negocio. O
rapaz, pelos modos, é pobre; mas o teu dote, se Deus quizer, chegará
para tudo. Estás contente, Carlota?

--Oh meu querido pae!--exclamou ella, beijando-lhe afervoradamente a
mão--eu sabia que era muito meu amigo; mas não esperava tanto da sua boa
alma. Fui má filha em ter guardado este segredo; perdôem-me, por quem
são; é que eu tremia só da ideia de os desgostar, não podendo suffocar o
amor que lhe tenho... a elle...

--Não chores, Carlota, que não tens por que chorar...--disse D. Rosalia.

--Eu choro de contentamento, minha mãe, por ver que a minha ventura é
possivel sem desgostar meus paes... Sou a mulher mais feliz da terra.
Queria que toda a gente soubesse agora os bons paes que o Senhor me deu.
Tomara eu ver o tio Joaquim para o despersuadir de um mau juizo que elle
fazia do meu querido pae, quando, faz agora um anno, me disse que eu não
alcançaria o seu consentimento para casar com Francisco de Mendonça; e
tambem queria abraçal-o, porque respeitou a minha paixão, e nunca mais
me contradisse.

A alegria dava a Carlota uma ousadia enthusiastica, que espantava
Norberto, e tinha semi-aberta a bôca de Rosalia.

--Se a minha mãe conhecesse a nobre alma d'elle!--proseguiu ella--havia
de amal-o tambem.

--Eu?... ora essa! tu és maluca!--atalhou Rosalia, comprehendendo á
lettra a palavra _amal-o_.

--_Maluca!_ porque, minha mãe?

--Pois tu disseste ahi que eu havia de amar o tal homem!

--Pois se elle tem um coração tão bem formado! Esteve mais de um anno
sem me dizer que queria ser meu esposo, para que eu não pensasse que
elle namorava a minha riqueza. Foi preciso dizer-lhe eu que a minha
maior ambição n'este mundo era fazel-o senhor do meu coração para toda a
vida. Quando eu disse isto, até chorava de alegria elle!...

--Está bom, está bom, estamos decididos--disse Norberto, receiando que
os diques da ira se esboroassem.--Logo que o tio doutor venha de Lisboa
trata-se d'isto. Ámanhã vamos para o Candal. Lá é escusado andar com
fallatorios do mirante para a estrada. Cá não se usa as noivas andarem a
namoriscar á surdina. Já se sabe que elle ha de ser teu marido; o tio
doutor quando vier, ha de convidal-o para nossa casa, e então
conversarão á sua vontade.

Norberto saíu com as faces incendiadas, como se a raiva abafada
respirasse por ellas. D. Rosalia, porém, menos firme no fingimento,
apenas o marido saiu, começou a pingar dos olhos umas lagrimas baças e
granulosas como camarinhas.

Carlota acudiu a enxugar-lh'as com meiguice, consolando-a com a
esperança de viverem sempre juntos, como até então. Rosalia, se a boa fé
nos não engana, chorava com pena da filha, por ver que todo aquelle
contentamento se havia de mudar em amargura, se não falhasse o
estratagema do doutor.

Deixal-a chorar, que o seio de Carlota parece alargar-se ao pulsar
vehemente do coração. Essa immensa alegria, que lhe deram, leal ou
traiçoeira, ha de produzir a bemaventurança ou o inferno d'aquella
familia.

Carlota tem a alma briosa e amante de mais para transigir com a
perfidia.

A obediencia filial, mascara de corrupção com que algumas donzellas se
disfarçam para abjurarem sem pejo ligações _inconvenientes_, é uma
«virtude» dos nossos dias, importada... da America. Em 1806 não havia
d'isso cá.




III

    Tu me matas, meu pae! Quem tal pensara?
    Eu beijo a mão que o golpe me prepara.

                         Marqueza de Alorna.


A traça do bacharel Joaquim Antonio de Sampayo era afastar Mendonça de
Portugal, repentinamente.

Aconselhara elle a mentira, para evitar o escandalo de um rapto, ou a
saida judiciaria de Carlota.

Ausentar Mendonça para alguma das colonias, ou para os estados
barbarescos, sob pretexto de guerra á pirataria, que infestava então o
Mediterraneo; e prolongar essa ausencia até dissuadir Carlota,
cortando-lhe os meios de se escreverem, era a trapaça do habil
jurisconsulto. Norberto, pasmado de tamanho ardil, fez tão estremado
conceito do doutor que, no expandir-se da sua admiração, exclamou:

--Ó cunhado! vossê é homem de todos os diabos! Quem sabe, sabe!

--Mas, Norberto,--disse o doutor--sabe que sem dinheiro nada se faz?

--Saque o que quizer, cunhado!

--Eu tenho talvez de comprar muito caro o pretexto para a saída de
Mendonça. Não sei se me verei a braços com os protectores e parentes
d'elle na côrte, e as nossas armas são o dinheiro.

--Pois é dizer o que quer. O doutor leva ordem franca; não poupe
dinheiro, e ponha-me o homem fóra da nação.

Assim armado com o invencivel dinheiro, o tio de Carlota Angela chegou a
Lisboa, em fins de 1806, levando cartas de apresentação para o ministro
da marinha, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, para D. Catharina Balsemão, e
para o intendente geral da policia, Diogo Ignacio de Pina Manique.

A materia que então mais se discutia era a demencia do principe regente,
causada por soffrimentos dos que tornam ridiculo um marido, ainda que o
motivo seja mais para compaixão que riso. Fallava-se na morte violenta
de José Anastacio, em Mafra, empeçonhado por ter sido o espia e delator
da conspiração urdida contra o principe, em Arroios, n'uma casa da
condessa de Alorna, que emigrara para Inglaterra, descoberta a
conjuração. Os rumores surdos contra os pedreiros-livres indicavam os
individuos suspeitos, mórmente depois que o escriptor publico Hippolyto
da Costa fugira dos carceres da inquisição, que lhe foram abertos pelo
braço poderoso da maçonaria. Hippolyto, auctor, depois, do _Correio
Braziliense_, devia a liberdade á embriaguez dos guardas e á astucia
d'elle; convinha, porém, ao governo simular-se assustado do poder da
maçonaria para encruar contra os suspeitos a sanha da plebe. É, porém,
certo que a maçonaria, em Portugal, entrara em 1797, com os emigrados
francezes, e podera a muito custo implantar-se n'uma pequena sociedade
ou loja denominada _Fortaleza_, quasi desconhecida e despercebida até
1806. Só depois que o ministro do reino entregou á inquisição um
pedreiro-livre, e o impio fugiu do carcere do Rocio, levando nos canos
das botas os «Regimentos da Inquisição» reformados pelo marquez de
Pombal, dos quaes publicou, em ar de zombaria, curiosos extractos no
jornal que, depois, redigiu em Londres--só depois desses nescios mêdos e
estupidas perseguições do governo, sempre providenciaes para acordar os
povos do lethargo, é que a sociedade maçonica em Portugal se radicou,
floresceu, e deu fructos bons e maus. (Os de hoje apodrecem todos antes
de madurar.)

A questão dos pedreiros-livres revirou os projectos do bacharel
portuense. Nova ideia lhe acudiu, quando principiava a mortifical-o o
receio de não poder supplantar um frade benedictino bem aparentado, que
se dizia ser pae de Francisco Salter de Mendonça. Essa ideia era
denunciar o tenente de marinha como encarregado de fundar no Porto uma
loja maçonica, para o que tratava de intimidade com Jeronymo José
Rodrigues, arcediago de Barroso, o primeiro liberal que teve a cidade
eterna, antes de pregoar-se a liberdade em Portugal.

Francisco Salter de Mendonça conhecia o arcediago, era sua visita,
sympathisava com as suas doutrinas politicas, e deixara-se eivar do
espirito de vaga novidade que os principios de liberalismo balbuciavam
ainda então confusamente. Não era, todavia, pedreiro-livre, porque
venerava o frade que o adiantara na carreira das armas, e queria cumprir
o juramento que fizera, nas mãos do monge, de jámais se associar á seita
dos inimigos de Deus, com quanto conhecesse a inepcia dos pharisaicos
amigos do altar.

O tio de Carlota apresentou-se a D. Catharina de Balsemão, ouviu-lhe
dois sonetos, applaudiu-lh'os até chorar de terno enthusiasmo, e disse,
depois, o fim a que ia. Pintou com negras côres o roer profundo do
cancro da maçonaria no seio da sociedade; lastimou a inevitavel quéda
dos fóros e prerogativas da classe nobre, se a média se incorporasse
para desarreigar a arvore de seculos; disse que a maçonaria fizera
Silla, e Robespierre, e Bonaparte; ajuntou outras muitas tolices em
linguagem garrafal, até incendiar a combustivel D. Catharina, que logo
alli lhe deu carta de mui especial recommendação para Manique.

O intendente ouviu com attenção e mêdo o bacharel. Soube que Francisco
Salter de Mendonça, mancommunado com o arcediago de Barroso e outros,
tratava de fundar uma loja maçonica no Porto, convencendo os timidos
«com a sua eloquencia revolucionaria, e promettendo aos illusos a
restauração dos direitos dos povos, victimados que fossem os reis e os
grandes. Acrescentava o bacharel que Salter de Mendonça traduzia e
espalhava os escriptos mais incendiarios dos revolucionarios francezes
em 1791, e propalava que Portugal não podia ser feliz sem mandar um rei
de companhia a Luiz XVI.

Manique estava tranzido! O orador, electrisado com o pasmo do ouvinte,
entrara na sua hora feliz. As imagens mais ensanguentadas, as metaphoras
mais patibulares, os tropos mais coriscantes acudiam-lhe com trovejante
iracundia. Digna de melhor destino, a furia oratoria do lettrado do
Porto conseguira mais que o desejado. Manique susteve-lhe a torrente,
promettendo providencias promptas, e acabou por lhe pedir que ficasse na
intendencia exercendo o logar do ajudante, assassinado em Mafra, José
Anastacio.

Aqui é que o bacharel se achou superior a si mesmo, e deu um mental
adeus ao safado tostão dos conselhos, que raros clientes lhe levavam, no
Porto, ao seu obscuro escriptorio da rua de Santa Catharina.

Confiado na sua estrella, o nomeado ajudante do intendente geral da
policia perguntou ao chefe o que tencionava s. exc.ª fazer a Francisco
Salter. Manique respondeu que o faria conduzir preso a Lisboa, e do
Limoeiro passaria para a inquisição.

--Se v. exc.ª me permitte uma reflexão...--disse o bacharel.

--Diga lá, que eu respeito muito o seu parecer.

--Com o devido respeito e humildade que se deve aos atilados juizos de
v. exc.ª, peço licença para observar que convem obrar com mansidão e
parcimonia, para impedir que uma seita perseguida faça proselytos. Eu
vou, com o maior respeito, lembrar a v. exc.ª trinta e tantos casos da
historia, dos quaes se vê quão imprudente e perigoso é empregar o
cauterio á borbulha que muitas vezes resolve sem medicamento, e quasi
sempre lavra quando a fazem sangrar. Começarei primeiro pela seita
lutherana, a qual seita lutherana...

--Tem a bondade de não exemplificar...--atalhou o intendente, que
detestava cordialmente as novidades tanto em politica como em
historia--Que entende o senhor que se deve fazer? Desprezar? Deixar
rebentar o volcão? Então de que me servem as tristes novas que me
trouxe?!

--Desprezar, não, exc.mo snr.! Que faz o habil agricultor ao galho
sêcco da sua arvore? Corta-o, separa-o das vergonteas vivazes, mas não o
lança á estrada, para que o passageiro o leve como cousa sem dono, nem o
desfaz com o machado como objecto sem utilidade. Leva-o para casa,
lança-o na lareira, e aquece-se a elle. Façamos a applicação: Francisco
Salter é o membro contaminado e damninho: cumpre decepal-o, para que não
empeçonhe os outros; cumpre aproveital-o, a fim de que os inimigos da
ordem se não aproveitem d'elle; cumpre empregal-o em serviço da patria;
mas seja onde as suas tendencias revolucionarias não catechisem
incautos. Mendonça é tenente; promova-se a capitão, e (permitta-me v.
exc.ª o arrojo de dar o meu parecer com a franqueza propria de um
portuguez, homem de bem) seja sem perda de tempo enviado como
commandante do primeiro vaso que sair para o Brazil, dispondo de modo a
sua expedição, que elle só volte á metrópole passados annos. Esta é a
minha humilde opinião.

O bacharel concluiu, dobrando o pescoço até bater com a barba no peito.
Manique redarguiu debilmente em opposição aos principios fabianos do
bacharel. Sampayo replicou, pedindo sempre mil perdões da audacia, e
alfim superou o chefe, fortalecendo-se com a difficuldade de provar a
denuncia, visto que as testimunhas presenciaes das arengas
revolucionarias de Mendonça não jurariam contra elle.

N'esse dia expediu-se ordem para recolher a Lisboa o tenente da corveta
_Audaz_, Francisco Salter de Mendonça, no praso de oito dias.
Aprestou-se um brigue, que devia, dois dias depois da chegada do
official, fazer-se á vela para o Rio de Janeiro, capitaneado por Salter,
promovido a capitão.

O ajudante do intendente geral da policia, escrevendo a seu cunhado
Norberto de Meirelles, dizia:

«_Tenho luctado com enormes difficuldades. Saquei seis mil cruzados, e
venci as primeiras; as outras hão de vencer-se... etc._»

D'onde se infere que o agente de Norberto de Meirelles estimara em seis
mil cruzados as duas arripiadas arengas á celebre poetiza e ao
intendente geral da policia.




IV

            _Salada_

        ¡Ai! ¡no me dejes nunca!

            _Aden_

                ¿Yo dejarte?
    ¿Y para qué, y porque?! tu mi querida!
    ¿Ni como, aunc quisiera abandonarte
    Juntos tu y yo lanzados en la vida?

           Espronceda. (_El diablo mundo._)


Fazia tristeza e saudade a formosa lua de uma noite de agosto n'aquelles
olorosos jardins do Candal.

Era meia noite, e a viração do mar bafejava mansamente as copas dos
arvoredos, que circuitavam a sombria casa de Norberto de Meirelles, o
qual, a essa hora, resonava mais alto que todos os sêres vivos da
natureza em roda.

De mansinho rodou a porta que abria para o jardim. Um vulto deslizou por
entre os myrtos e japoneiras, até ganhar o mirante erguido n'um angulo
do jardim.

--Esperaste muito?--disse ella a Francisco Salter, que lhe saira de sob
a ramagem sombria dos chorões debruçados no muro--Tem paciencia, meu
amigo. Minha mãe deitou-se ha meia hora; não sei que ar de inquieta
alegria ella tinha hoje, que lhe não chegava o somno...

--Seria tão viva a alegria d'ella, como é viva a amargura que me não
deixara dormir a mim?

--Amargura! Que tens, Francisco?

--Não te fallou por mim o meu bilhete d'esta tarde?

--O teu bilhete?... não... Dizias-me que era indispensavel fallares-me
hoje... Não traduzi amargura n'isto... Cuidei que era uma saudade feliz
e serena como a minha...

--Oh! não, minha querida, é uma saudade que me despedaça... é a saudade
que...

--Como?! que linguagem é essa, Francisco! Não me tens agora aqui?! não
sou eu tua para sempre?!

--Sei que serás, Carlota, sei... mas eu preciso que chores commigo para
me ser menos amarga a minha dor... É forçoso que nos separemos por
alguns dias... mezes... annos...

--Jesus! que nos separemos?! Onde vaes tu?

--Sou chamado immediatamente a Lisboa.

--A Lisboa!... para que és tu chamado a Lisboa, Francisco?

--Não sei... é uma ordem terminante do ministro.

--Oh meu Deus!... que lembrança terrivel!--exclamou com vehemencia
Carlota--É impossivel! é impossivel!

--Impossivel o que?

--Nem te quero dizer a horrivel ideia que tive agora...

--Diz, Carlota... vejamos se se encontram duas ideias horriveis.

--Pois tambem suspeitas?... que te lembra, meu amigo?... diz, diz, se
tambem julgas possivel...

--Tambem suspeito que a ida de teu tio a Lisboa...

--Sim, sim, é isso que me lembrou; mas não creias, porque meu tio é um
bom homem. Ha muito que elle dizia que iria a Lisboa requerer um
emprego. É ao que foi; mas... é verdade que...

--Não receies atormentar-me, Carlota; diz tudo que te faz desconfiar...

--É que hoje recebeu-se carta de meu tio, conheci a lettra do
sobrescripto, quiz abril-a innocentemente, e meu pae tirou-me a carta da
mão com grande sobresalto, dizendo que não era boa creação ler as cartas
de outro. Eu disse-lhe que era uma curiosidade filha do desejo de saber
como meu tio passava; e o pae voltou-me as costas, e eu bem vi que elle
estava muito inquieto... mas...

--Duvidas ainda, Carlota, que teu tio foi agenciar a minha saida do
Porto! Duvidas que não foi traiçoeiro o consentimento de teu pae, sem ao
menos me perguntar que familia ou haveres são os meus?

--Isso é horrivel, meu amigo! não me convenças d'essa traição, que me
matas! Elles não podem separar-nos, não! O que a morte póde fazer não o
farão elles. Juro-t'o pela minha alma e por tudo quanto ha sagrado...

--Não jures, Carlota; eu sei o que és para mim; vale mais essa tua
afflicção, que todos os juramentos. Por quem és, não chores assim, meu
querido anjo. Aqui o terrivel mal que nos ameaça é a saudade, a
incerteza não. Se a nossa ventura vier mais tarde do que esperavamos,
resignemo-nos, vençamos a desgraça com a esperança. Teu pae porque será
contra mim? porque eu sou pobre? pois bem, Carlota, irás pobre para a
companhia de teu marido. O meu pão chega para ti, e bastará para mim a
felicidade de t'o alcançar á custa de honrado trabalho. Não aceitaremos
uma moeda de cobre dos cofres de teu pae... Bem basta que esse dinheiro
tenha sido o nosso algoz para o não querermos comnosco. Pobre é que eu
te quero, e, se teu pae me não diz tão depressa que eras minha, ouviria
da minha bôca uma renuncia formal do teu grande dote... Coragem, minha
amiga. Eu vou a Lisboa, conheço logo a causa da minha chamada, desfaço
as intrigas, se ellas lá me esperam, empenho em nosso favor amigos e
parentes, que tenho alguns valiosos ao pé dos ministros. Voltarei para
convencer teu pae de que eu reputei verdadeira a sua palavra, e me
envergonhei por elle, suppondo necessario chamar a lei em nossa ajuda.
Entrarei em tua casa, e dir-te-hei: Vem ser minha esposa! E tu sairás,
pois não, minha Carlota?

--Sim, sim, sairei; e por que não ha de ser já?!

--Já?!

--Sim, leva-me comtigo; não me deixes entregue a esta gente que me quer
matar. Coméço a odial-os, e não poderei mais vel-os sem rancor. Leva-me,
Francisco... Aceita-me assim pobre, e verás que te levo a maior riqueza
d'este mundo, um coração onde eu tenho o segredo de fazer a nossa
felicidade na pobreza. Não me respondes?

--Queria responder-te de joelhos, Carlota! Tu és um anjo, és um bem que
eu não mereço a Deus, e receio desagradar-lhe se faço soffrer teus paes,
que, de certo, te devem amar muito, e cuidam que te fazem bem,
separando-te de mim. Eu se fosse pae, e pae de uma filha assim,
dal-a-hia ao primeiro que m'a viesse pedir, sem me mostrar virtudes
dignas d'ella? Não diria a esse homem perfidamente que sim, para depois
praticar a villania de o afastar, matando-lhe o coração a punhaladas
traiçoeiras... não mostraria ao amante de minha filha o céo, para depois
o despenhar no inferno; mas... custar-me-hia muito a dizer-lhe: Ahi te
dou o thesouro que tive no coração dezesete annos, que guardei para me
dar alegria nas amarguras da velhice... leva-o, e deixa-me só com a
minha saudade irremediavel!... Não, Carlota, é cêdo ainda para dares a
teus paes esse desgosto. O teu amor ensina-me a ser nobre. Ha um amor
que faz tyrannos e crueis; mas esse amor não é o meu. Sou generoso para
todo o mundo, e para os teus mais que para outrem. Ninguem dirá que
calculei com os cem mil cruzados de teu pae, quando eu tiver uma casa
que te offereça, á hora do dia, na presença de quantos quizerem ver como
um homem pobre serve um pobre jantar a sua mulher. Fica, minha querida
Carlota, fica em tua casa. Nós exageramos o infortunio. É proprio do
muito amor que nos temos; mas saibamos empregar as armas da razão para
vencer uma desgraça imaginária. Vou a Lisboa, ouço o que me querem,
volto com licença aqui, apresento-me a teu pae no dia dos teus annos, e
no seguinte venho pedir-lhe o cumprimento da sua palavra. Á palavra
_não_, encontro-te ao meu lado... e depois, venham todas as potencias do
inferno contra nós.

--Francisco!--murmurou Carlota, despeitada--tu não me amas... porque não
receias perder-me.

--Perdôo-te a injustiça, Carlota... Diz o que te não vem do coração,
diz, minha amiga, que eu até das injurias, se de ti me vierem, tirarei
provas de que me amas muito, e crês que te amo. Ha dois annos a amar-te
assim! Ha dois annos a respeitar-te como irmã, acarinhando-te como
esposa! Ha dois annos a viver de uma esperança, que só ás tuas palavras
se afoutou a dizer que existia! O homem que assim pensou não podia hoje
aceitar a tua fuga, sem tu me dizeres que é preciso roubar-te para te
merecer. Oh! isso nunca tu m'o dirás, anjo do céo, porque então pouco
apreço daria eu á alma que não tem a intrepidez de dizer «sou livre».

Carlota soluçava com a face apoiada na pilastra da varanda, e os olhos
fitos no céo. O aperto de coração que a suffocava era mais que o
exprimivel e imaginavel. Essas angustias soffrem-se; mas não deixam
reminiscencias aos que as devoraram. São como as agonias do naufragado,
que não preenchera ainda a conta dos seus dias, e quiz em vão contar aos
que o salvaram a suprema afflicção do afogamento. Para as torturas de um
adeus, entre duas almas animadas por um só espiraculo de vida, sei eu
que ha na lingua humana uma palavra, uma só: INFERNO. Isso é peior que o
morrer, porque na morte ha o esquecer graduado por cada estalar de fio
que nos atava aos poucos bens d'este mundo: ha o extremo dom do arbitro
das vidas--a resignação sem lucta, o luzir da estrella esperançosa que
se ergue detraz do tumulo, o recordar-se dos anceios para Deus, quando
as brilhantes illusões da terra se convertiam n'um como tenue vapor de
incenso que nos prendia aos olhos lagrimosos até o vermos entrar no céo.

Mas o adeus de Carlota Angela a Francisco de Mendonça!... Essas
derradeiras palavras, que já não eram mais que um longo gemido,
convulso, suffocado, a cada impeto dos dois corações que rasgavam os
peitos para se juntarem!........................................

Linda expirava a noite. Raiava a aurora, empallidecendo as estrellas.
Uma aureola de frouxa luz cintava os horizontes. Na extrema orla do mar
enrubesciam-se as aguas, e calava-se o rumorejar da vaga, como para
ouvir o hymno matinal dos madrugadores alados.

Era um formoso amanhecer aquelle! Tão donoso, tão alegre, tão radiante
tudo, só tu, Carlota, com os olhos na collina onde viste o derradeiro
adeus do amante, e a mão no seio como a suster a vida que te foge,
perguntas á tua razão se tamanha angustia não é um sonho! Acorda,
martyr, que o teu dia de desgraça amanheceu, e será longo!




V

    Sai se o vulto de meu corpo
        Mas ei non.
    Cá ós çocos vos fica morto
        O coraçon.

            Egas Moniz Coelho. (?)

     ... Si notre affection est traversée; si elle rencontre des
     obstacles, elle réagit, et cette réaction, impétueuse, convulsive,
     comme celle de tout ressort agitée et comprimée, nous porte á des
     mouvemens desordonnés, par conséquent accompagnés de souffrance.
     Notre affection, alors, devient _passion_. Et comme les obstacles
     qui l'irritent ne peuvent jamais être placés que par les intérêts
     d'autres personnes, elle nous anime d'une violente _haine_ contre
     ces personnes si offensives, si importunes; elle change notre
     douceur en brusquerie, notre générosité en sentimens odieux.

                               Azais. (_Précis du systême universel._)


Francisco Salter foi, n'aquelle mesmo dia, ao Candal offerecer a
Norberto de Meirelles os seus serviços em Lisboa, onde era chamado
pressurosamente.

O negociante não tinha pratica ou habilidade bastante para simular no
rosto a surpreza ou o descontentamento da inesperada ausencia do genro
apalavrado. Manifestou, em toda a expressiva estupidez com que a
providencia dos grosseiros velhacos lhe dotara a physionomia, a alegria
damnada que lhe não cabia no bojo do peito. Mendonça evidenciou as suas
suspeitas, e arrependeu-se de não ter convertido em peçonha toda aquella
alegria, aceitando a fuga de Carlota, horas antes.

--Desejava despedir-me das senhoras--disse Mendonça.

--Minha mulher--tartamudeou o negociante--foi á missa, e mais a menina,
a uma capellinha á Bandeira, senão com todo o gosto...

Mendonça, quando entrara o portão da quinta, vira Carlota através de uma
vidraça. Carlota, pé ante pé, viera, a occultas da mãe, avisinhar-se da
sala, com o sentido de, caso o pae a não chamasse, entrar na sala onde
Mendonça estava, como de passagem para outra, e fingir-se surprendida do
encontro.

Foi o que ella fez ao tempo em que o negociante acabava de improvisar
uma missa na capella da Bandeira.

--Ai!--exclamou ella--estavam aqui!...

--Acabava eu de pedir licença ao snr. Meirelles--disse Mendonça,
sorrindo ironicamente--para offerecer a v. s.ª e a sua mãe o meu
prestimo em Lisboa, para onde parto hoje ás quatro horas da tarde.

O arrozeiro, em pé, com os braços estendidos ao longo dos flancos
abdominaes, abria e fechava as mãos, como um idiota: não sabia fazer
outra gesticulação mais parva, quando a sua inepcia fosse tal que se lhe
fechassem todas as evasivas de uma posição falsa.

--O snr. Norberto--proseguiu Francisco Salter, cedendo ao prazer de
affrontar a mentira do villão diante da propria filha--disse-me que v.
s.ª e sua mãe estavam na Bandeira ouvindo missa, e eu... retirava-me...

Carlota encarou o velho, e viu um tregeitar de olhos, que a obrigou a
baixar os d'ella, por vergonha de si e de seu pae. Salter teve dó de
ambos, e mudou de conversação.

--Não sei que motivos imprevistos me chamam a Lisboa; talvez as ameaças
de uma nova invasão hespanhola, ou bem póde ser que se tema um
definitivo assalto da França...

--Pois virão cá esses herejes de Napoleão?!--exclamou o negociante, já
transfigurado pelo susto dos francezes, mal incomparavelmente maior,
que destruiu o vexame em que o deixou a apparição da filha.

--Póde ser que venham, snr. Norberto, responder ao desafio que lhes
mandamos pelos nossos soldados do Roussillon, quando a França liquidava
as suas contas com a Hespanha.

Norberto não o entendeu; mas redarguiu:

--Se elles cá vem, é contar que não deixam nada; diz que mettem a saque
tudo quanto topam, pois não mettem?

--É possivel; mas v. s.ª previna-se, escondendo o seu precioso aqui no
Candal, por exemplo, onde de certo os francezes não virão. Ahi está o
inconveniente de ser rico. Já o snr. Norberto está a soffrer com o mêdo
de que o obriguem a uma contribuição...

--Se lhe parece.... o caso não é para menos: quem não tem nada, tanto se
lhe dá como se lhe deu; mas quem lhe custou a ganhar o que tem, pouco ou
muito, quer paz e socego.

--Não se aterre antes de tempo, snr. Norberto,--replicou Mendonça,
sorrindo a Carlota--quando os francezes invadissem Portugal, eu ajudaria
a v. s.ª a defender o que é seu, não só como esposo de sua filha, mas
tambem como seu amigo.

--Isso lá...--regougou o mercieiro--muito obrigado, não me despeço do
favor: mas o senhor é militar, e quando isso for não lhe ha de faltar
por lá que fazer, na guerra do mar.

--Assim aconteceria--tornou Mendonça, enterrando lentamente o estillete
observador--se eu não tencionasse pedir a minha baixa do serviço, para
evitar que as revoluções perturbem a felicidade de minha mulher e a
minha.

--Então que modo de vida queria o senhor ter, se casasse com a minha
Carlota?

--Outro qualquer mais permanente, mais descansado; negociante, por
exemplo.

--E que é dos fundos?

--Fundos?

--Sim, o casco do negocio?

--O casco!... a que chama v. s.ª casco?

--Casco é o cabedal para começar.

--Meu sogro dar-me-hia...

--Dinheiro?! meu amiguinho, está quasi todo empregado em torrões; e eu,
emquanto vivo, não dou nada.

--Mais uma razão--replicou Mendonça, condoido do vexame de Carlota, e
seguro, mais que seguro, do villão caracter do arrozeiro--mais uma razão
para v. s.ª não receiar a invasão dos francezes... Agora tem
logar--proseguiu elle, mudando de ironico para circumspecto e grave--uma
observação que me esqueceu ha dias, quando tive a ventura de pedir-lhe a
snr.ª D. Carlota. Eu, snr. Norberto, pedi sua filha, simplesmente sua
filha; não pedi dinheiro, nem pedirei jámais. Eu conto com recursos
proprios para que ella não sinta falta de commodidades que deixou em
casa de seus paes. O meu patrimonio é a patente que tenho e as bem
fundadas esperanças de me augmentar n'esta carreira. Não me julgue v.
s.ª atido ao dote de sua filha, nem cuide que me affligi com a ameaça
de nada lhe dar emquanto vivo. Póde o snr. Norberto gastar, ou augmentar
o que tem, que sua filha não esperará a morte do pae para poder comprar
mais um vestido. Faça, portanto, justiça ás minhas intenções, e
conceda-me que eu dê liberdade a algumas ideias que me estão inquietando
e magoando.

V. s.ª não procedeu lealmente commigo, quando me deu, sem reparo, sua
filha. Rogo á snr.ª D. Carlota me consinta este desabafo, porque a
clareza, n'este momento, é necessaria a todos nós, e o amor e o decoro
costumam, nas almas nobres, soffrer juntos, quando um d'elles é
offendido... e agora são ambos.

--Eu não entendo o que v. s.ª ahi está a dizer--atalhou Norberto
conscienciosamente.

--O snr. Mendonça...--acudiu Carlota; mas o pejo embargou-lhe a voz.

--Eu queria dizer ao snr. Norberto de Meirelles--tornou Mendonça--que
fez v. s.ª mal em dar uma palavra de que se quer desquitar por meios
menos honestos, e á custa talvez da minha liberdade. A ida de seu
cunhado á capital, e a ordem de eu ir, sem perda de tempo, a Lisboa,
escondem uma trama que eu espero desenredar em oito dias. Se o snr.
Norberto e seu cunhado julgaram que uma intriga basta para aniquilar um
amor de dois annos, uma união de toda a vida já abençoada por Deus, que
vê a pureza das minhas ambições, enganaram-se! Retardar não é destruir.
Eu confio tanto no generoso coração da snr.ª D. Carlota como em mim
proprio; e só o muito amor me podia dar a mim esta franqueza com que
fallo, e a ella a indulgencia com que me ouve accusar o proceder injusto
de seu pae.

--O senhor está a insultar-me!--exclamou Norberto--e demais a mais em
minha casa!

--Eu não insulto, senhor, queixo-me de ter sido ultrajado, e reconheço,
n'esse desabrimento, que é certissima a perfidia com que fui enganado.
Retiro-me, para que v. s.ª não me offenda terceira vez, dizendo-me que
o insulto.

--Pois o melhor é isso--redarguiu Norberto.--O senhor pensava que me
levava á valentona? Eu tambem tenho amigos, e sei o que hei de fazer!...

--Que ha de fazer o pae?--disse Carlota com altivez--O pae não póde
fazer nada.

--Que dizes tu, Carlota?!--trovejou Norberto.

--Digo que não ha forças humanas que me privem de casar com este senhor.
O pae governa no seu dinheiro, e nós nada lhe pedimos. O snr. Mendonça,
se quizesse ser menos generoso com meu pae, estaria já casado commigo,
porque eu o auctorisei a tirar-me de casa por justiça.

Norberto, como todas as indoles abjectas, caira no miseravel da sua
atonia, sob a fulminante coragem de Carlota. Francisco Salter
aproximou-se d'ella, tomou-lhe a mão, como se estivessem sós, e
murmurou:

--A virtude, que Carlota chamou generosidade, continúa. Vou a Lisboa,
porque sou militar, e transgrido a honra e dever não me apresentando.

Mendonça despediu-se de Carlota Angela, que chorava, e de Norberto de
Meirelles, que limpava com o canhão da japona de cotim o suor da brunida
testa.

D. Rosalia faltara a este conflicto, porque, atarefada na cozinha com a
liquidação dos legumes vendidos na manhã d'aquelle dia, não dera fé de
entrar Mendonça.

Carlota Angela, apenas sósinha com seu pae, voltou-lhes as costas, e
saiu da sala.

Norberto ficara de tal modo aturdido com o desembaraço da filha, que
parecia temel-a. Procurou a mulher, e contou-lhe, como elle podia, o
succedido. D. Rosalia benzeu-se tres vezes, e tres vezes levou os braços
em arco á altura da cabeça, acção favorita da grossa matrona, quando
queria exprimir o supremo espanto.

Animando-se mutuamente, entraram no quarto de Carlota, e gritaram ambos
ao mesmo tempo:

--Filha ingrata! nós te amaldiçoamos!

--Para sempre!--disse a solo o snr. Norberto.

--Para sempre!--repetiu D. Rosalia.

--Amaldiçoada!--bradaram em dueto.

--E por que me amaldiçoam?--disse Carlota--que crimes são os meus?

--Ainda perguntas?!--respondeu Norberto, opilando olhos, bochechas,
nariz, e tudo o mais susceptivel de opilação na sua elastica
physionomia--Pois não tiveste o atrevimento de me dizer ainda agora que
eu não podia fazer nada?

--Disse, sim, senhor; disse, porque ha só um meio de me prohibir o
casamento com a pessoa a quem o pae me deu: é matarem-me.

--Isso diz-se a teu pae, rapariga?---bradou a mãe.

--A verdade diz-se aos paes; mentir-lhes é que é crime. Para que hei de
eu dizer que faço a vontade a meu pae, se não sou capaz de cumprir a
minha palavra? Logo que Mendonça voltar de Lisboa, se elle me não
procurar, procuro-o eu. Se elle me quizesse com a mira no dote, faria
todas as diligencias por que me dotassem, ou morreria de paixão por me
não dotarem; felizmente, o homem que Deus me destina é a mim que me ama,
e não ao dinheiro de meus paes; para ser sua mulher basta-me o coração;
pois bem, fique o dinheiro a meu pae, e seja o coração para o homem que
não exige de mim outros thesouros.

Norberto olhava Rosalia, Rosalia olhava Norberto, grotescamente
pasmados. Estranha era para elles a linguagem, o enthusiasmo, a
altiveza, as attitudes de Carlota. Queriam contradictal-a com os
argumentos triviaes de um casamento rico; mas a migalha de bom senso que
tinham ambos, bastava a convencel-os da inutilidade de similhantes
razões. Queriam leval-a pelo terror; mas com tanto mimo a tinham deixado
emancipar-se desde creança, que não sabiam agora com que gestos, com que
palavras, exprimir o agastamento, a admoestação irada, a soberania
paternal.

O coração de Rosalia era bom, e seria ella a protectora do casamento, se
a não tolhessem os prejuizos de classe. A mulher de Norberto cuidava, em
boa consciencia, que sua filha não podia ser feliz, casando sem o
precedente de escripturas de doação, sem a concorrencia de doadores bem
ricos e bem estupidos por parte do noivo. Por mais que ella quizesse
descobrir no official de marinha os encantos que seduziram sua filha, a
tapada creatura o que encontrava era motivo para pasmar cada vez mais.

--Um engarilho de bigode como um chibo...--dizia ella a Carlota, depois
que Norberto se retirara com mêdo de ceder á indignação, que o
enfurecia--um pechibeque que não tem terra, nem leira, nem ramo de
figueira, ó rapariga, que feitiço te fez aquelle patavina? Ha por ahi
tanto rapaz bem azado, com negocio estabelecido, e creditos... se
querias casar, por que o não tinhas dito, que já se tinha escolhido a
flor dos rapazes do Porto? Está ahi o filho do Antonio José da Silva, e
do Joaquim José Guimarães, que por entre os dentes deram a entender a
teu pae que te queriam, e ainda estão solteiros, não tens mais que
fallar... Ó mulher! isso foi enguirimanço do demonio! Por que não casas
tu com um dos outros?

--Perde o tempo, minha mãe--disse Carlota com firmeza.--Esses homens
aborreço-os; o mundo tem para mim um só homem; não vejo, nem quero ver
outro: é Francisco de Mendonça, porque sou d'elle, considero-me já sua
mulher, e...

--Tu que dizes, Carlota!?--bradou apavorada D. Rosalia--És já mulher
d'elle? Pois tu... Credo! tu estás ahi a dizer blasphemias... Ó
desgraçada, pois tu...

--Eu quê! o que está ahi a mãe a fazer uns espantos que não sei a que
vem? Se me julgou culpada de alguma acção indigna de mim, é mais uma
injustiça que faz ao homem que amo. Tenha a segurança de que Mendonça
não me humilha; pelo contrario, eleva-me, ama-me bastante, e é bastante
virtuoso para não querer que a minha consciencia me accuse de alguma
fraqueza.

Oh! ninguem sabe comprehender, como quem ama, uma nobre alma! Tenho eu,
e elle tambem tem a infelicidade de sermos avaliados por pessoas que
adoram o dinheiro sobre todas as cousas, e crêem que fóra do dinheiro
não ha virtudes nem contentamentos. Ó minha mãe, foi uma desgraça
darem-me uma educação differente da que receberam meus paes. Eu vejo as
cousas e as pessoas de um modo diverso. Olho para a riqueza como para um
obstaculo á minha ventura, e não posso deixar de aborrecel-a...

Bem vejo que minha mãe se admira d'esta linguagem, creia que não é falta
de respeito, nem confiança nas minhas fracas forças; é animo que me dá
um amor puro, e digno de mim; é uma força de que eu preciso para
convencer meus paes de que privar-me de casar com Mendonça é o mesmo que
matar-me!

Minha mãe não quer que eu morra, e ha de proteger-me, ha de amollecer o
duro coração de meu pae, ha de lembrar-lhe que o consentimento dado não
póde ser negado sem deshonra para elle, e grandes torturas para mim.
Seja por mim, minha querida mãe, seja boa como tem sido sempre. Tenha dó
da sua filha unica, da filha que nunca lhe desobedeceu, e, se hoje
desobedece, deve ser muito dolorosa a violencia que lhe querem fazer...

Carlota Angela soluçava no seio de D. Rosalia, cujos vasos lacrimaes se
romperam copiosamente.

Eram de bom agouro as lagrimas da enternecida mãe.

As difficuldades, que ella oppunha, eram vencidas por novas supplicas de
Carlota. D. Rosalia acabara por prometter, com o seu silencio, vencer a
resistencia do marido.

Norberto saíra entretanto para o Porto, e fora ao paço do bispo prevenir
a magistratura ecclesiastica contra as diligencias de Francisco Salter
de Mendonça. Alguem o aconselhou que fizesse entrar sua filha n'um
convento, para obviar ao rapto, visto que, dado o passo da fuga, o mais
airoso e honesto era remediar a deshonra irreparavel sem o casamento.

D. Rosalia Sampayo tinha uma irmã freira benedictina, no Porto, senhora
muito reformada, muito rezadeira, e havida em conta de predestinada, lá
dentro, e de religiosa illustrada entre as pessoas das suas relações.

Carlota Angela visitava-a miudas vezes, e entretinha-se longas horas na
grade, e até alguns dias dentro do mosteiro, onde sua tia lhe ensinava
muitas devoções mirificamente salutares, com as quaes Carlota saía
convencida de que, fazendo-as um mez, ganharia indulgencias bastantes
para remir das penas do purgatorio toda a christandade.

A madre Rufina, sem desagradar ao seu director espiritual, frade
carmelita de poucas lettras e muitas virtudes, era uma tolerante
senhora, a quem Carlota confessara a sua inclinação ao official de
marinha, resultando-lhe d'ahi ter de rezar, por conselho da tia, mais
algumas devoções para que a Virgem lhe inspirasse o melhor destino
n'este mundo.

Carlota dizia-lhe que o seu apaixonado era pobre. Madre Rufina replicava
que pobre era quem não tinha a graça de Deus. Carlota redarguiu que
talvez os paes não a dessem a um rapaz sem dote. A benedictina appellava
para a vontade do Altissimo, que fazia tudo pelo melhor. Ora, Carlota
Angela, melhor ou peior avisada, entendia que Deus, na maxima parte dos
actos humanos, e nomeadamente nos casamentos, não punha nem dispunha.
Isto será menos orthodoxo; mas é necessario impor á responsabilidade do
homem, ou do diabo, cousas que por ahi ha que não parecem de Deus.

Norberto de Meirelles foi do paço do bispo ao convento de S. Bento da
Avè Maria, e fez chamar sua cunhada. Contou a desordem em que se achava
sua casa, foi eloquente no seu genero, desafogou a ira abafada em
presença da filha, e terminou dizendo que, o mais tardar no dia
seguinte, Carlota havia de entrar no convento, onde estaria até se lhe
varrer a mania de casar com o tal Pedro-malas-artes.

A madre Rufina respondeu que na casa do Senhor não se recebia ninguem
introduzido á força; que sua sobrinha não estava no caso de aceitar com
prazer o recolher-se a um convento, quando o seu coração propendia e
ligava a outros amores. E concluiu, aconselhando a seu cunhado prudencia
e caridade com as inclinações de Carlota, que, se não eram convenientes
aos olhos do mundo, tambem não eram peccadoras aos olhos de Deus.

E, em resposta ás impertinentes réplicas de Norberto de Meirelles, a
digna esposa do Senhor prometteu chamar sua sobrinha, relatar-lhe as
mágoas de seu pae, tentar demovel-a do seu proposito, e pedir muito,
primeiro, a Maria Santissima que tocasse o coração de Carlota com a
resolução mais conducente ao caminho da virtude n'este mundo, que é o da
salvação no outro.

Norberto saiu pouco contrito, e notou que sua cunhada gosava uma
reputação usurpada. O homem achava aquelles principios irreconciliaveis
com a santidade de que D. Rosalia fazia o panegyrico, todos os dias. Não
obstante, a irritação moderou-se-lhe, na esperança de que, em ultimo
refugio, seu cunhado doutor faria em Lisboa, com o dinheiro, o que a
violencia não conseguisse cá.

A freira pediu ao capellão do mosteiro que lhe acompanhasse sua
sobrinha; e teve com ella o seguinte dialogo, quasi textual dos
apontamentos de Carlota Angela, que devemos á confidencia de uma sua
amiga, de quem logo fallaremos:

--Teu pae, menina, esteve aqui hontem, e fez-me pena. Pediu-me que te
despersuadisse do amor a...

--Pediu-lhe um impossivel, minha tia--interrompeu Carlota.

--Nada é impossivel a Deus, minha sobrinha.

--Deus escuta-se na consciencia, e a consciencia não me condemna o
coração.

--Mas que te diz ella sobre os deveres de uma filha?

--Diz que tenho satisfeito a todos aquelles em que correspondo aos
deveres de pae.

--Não sejas tão absoluta nas tuas respostas, Carlota. A desobediencia é
um crime.

--E o suicidio, minha tia?

--O suicidio é o maior dos crimes, porque é o desprezo do divino remedio
nas dores passageiras d'esta vida.

--Pois creia que obedecer é morrer; se obedeço, se retiro o meu amor...
retirar, meu Deus! eu disse uma loucura! eu não posso retirar o meu amor
a Francisco; o mais que posso é mentir; mas essa mentira custa-me a
morte... é o suicidio, e mais ainda... é um assassinio, porque eu mato o
homem que me é tudo n'esta vida...

Carlota rompeu n'um alto soluçar de lagrimas, que fez chorar a
religiosa.

--É escusado--disse esta, após um longo intervallo de silencio, cortado
de suspiros--é escusado combater a tua paixão. Eu pedi tanto ao Senhor,
em communidade, com algumas santinhas d'esta casa, que te mudasse a
tenção, que já agora não posso duvidar que o céo abençôa a tua união com
esse mancebo. Já não te reprehendo, nem dissuado, minha sobrinha.
Faremos com tua mãe o que não podérmos fazer com o espirito teimoso de
teu pae. Enternece-a com as tuas lagrimas, menina; esperta-lhe a
compaixão de que está cheio um coração maternal.

--Já o consegui; minha mãe chorou commigo, e prometteu alcançar de meu
pae o consentimento que elle já tinha dado.

--Já tinha dado?! a quem?

--A Francisco Salter, quando me foi pedir.

--E depois? desdisse-se!...

--Quando consentiu, foi para dar tempo a meu tio de nos urdir uma
traição. Francisco partiu hontem para Lisboa, chamado a toda a pressa. O
plano é talvez demoral-o lá; mas de que serve a má fé de meu pae, e as
astucias de meu tio? Cá está o meu coração para vencer tudo. Cêdo ou
tarde, Francisco voltará, e depois... e depois, se tanto for necessario,
fujo de casa.

--Santo nome de Jesus! não digas tal desatino, que offendes a Deus. O
teu amor, se tal fizesses, deixaria de ser um sentimento honesto, minha
sobrinha. Ha nódoas que nunca se lavam, e intenções boas que deixam
sempre uma face má voltada para os juizos severos do mundo. Já agora,
filha, esgota todo o teu calix de fel para que se não diga que achaste
doçura no crime. Eu entrei de vinte e dois annos n'esta casa, estou cá
ha vinte e seis, e ainda me recordo do que era o mundo lá de fóra, e o
que lá não aprendi ensinaram-me cá pessoas que entraram para aqui
sangrando ainda das chagas que receberam lá.

Carlota, eu hoje não te fallo a linguagem que me ouviste até aos
quatorze annos. Conheço o teu coração, e acompanhei-lhe o
desenvolvimento mais de perto que teus paes. Tua mãe não te podia
entender, porque tua mãe saiu aos quinze annos da companhia de um tio
abbade para casar com um homem capaz de lhe abafar a intelligencia, se
ella a tivesse. Teu pae é um honrado commerciante, tem sabido augmentar
os seus haveres com a mira de te deixar muito rica, e não entende nada
de coração.

Já vês, minha querida sobrinha, que teus paes ignoram a sua culpa, e não
fazem mais do que julgam ser o melhor para a tua felicidade. Não os
desgostes emquanto for compativel a obediencia com os affectos
invenciveis da tua alma. Teu pae quer que te recolhas a este convento.
Se vieres, se quizeres vir para a minha companhia, não preciso dizer-te
que as tuas acções hão de ser aferidas pelos deveres de uma menina
recolhida n'esta casa. D'aqui diligenciaremos o teu casamento com esse
sujeito; mas as nossas diligencias hão de cooperar todas sobre o animo
de teu pae, até obtermos o consentimento, esquecendo-nos de que elle
procedeu mal, negando o que uma vez tinha concedido. Agora, pensa,
Carlota.

--Tenho pensado.

--Queres, ou não queres entrar no convento?

--Quero sim, minha tia; hoje mesmo, se é possivel.

--É, que eu tenho ainda licença para tu poderes entrar; mas é preciso
que teu pae o saiba.

Carlota Angela desceu acceleradamente as escadas que conduziam da grade
para a portaria. Ia banhada de lagrimas. Ao abrir-se a porta, com o seu
tristonho ranger nos gonzos, Carlota estremeceu, e apoiou a face, como
esvaîda, no cunhal do muro.

--Vem, menina,--disse do interior a madre Rufina.

Carlota Angela pôz o pé no limiar, e exclamou, estendendo os braços para
a madre porteira:

--Disse-me agora o coração que era para sempre!... Que é isto que eu
sinto, meu Deus!

--Se é Deus que t'o faz sentir, minha sobrinha, louvemol-o todas pelo
bello presagio que te inspirou.

A porta fechou-se. Carlota, rodeada de freiras, e nos braços de todas,
soltou um ai que parecia um grito desentranhado do coração.




VI

    Qui amans egens ingressus est princeps in amoris vias,
    Superavit oerumnis is suis oerumnas Herculis.

                                         Plauto. (_Persa._)

     O demonio da ambição...

                         A. Herculano. (_Monge de Cister._)


Francisco Salter de Mendonça, logo que chegou a Lisboa, procurou o
ministro da marinha, e encontrou-o, contra as suas presumpções, bem
encarado e affavel.

D. Rodrigo de Sousa Coutinho era um astuto politico, sabia conhecer os
parvos pavores do intendente geral da policia, e amava bastante a pasta
para contrariar as suggestões do principe regente, que tremia dos
pedreiros-livres, quando não tremia das conspirações da filha de Carlos
IV.

Ainda assim, o ministro, protector affeiçoado de Salter de Mendonça, e
particular amigo do frade progenitor, que valia muito com Mellos e
Ficalhos, houve-se astutamente na recepção do official de marinha,
mostrando-lhe a ordem do dia, em que era promovido a capitão-tenente, e
dando-lhe os emboras da escolha acertada que o principe regente fizera
dos seus talentos e energia, para, com mais dois officiaes, o enviar ao
Brazil a correr com o apresto de uma esquadra, que as prevenções da
guerra demandavam.

Este gracioso acolhimento desfez, ao primeiro intuito, as suspeitas de
Mendonça. A intriga era incompativel com a mercê do posto, e a honraria
do encargo. A reflexão, porém, sobreveio ao juizo da primeira impressão,
e Salter, recordando o que se passara no Candal, creu de novo que o
bacharel promovera o seu desterro, simulada com a mascara do favor.


A nova de ter sido adjunto ao intendente Manique o tio de Carlota Angela
revalidou a desconfiança.

Mendonça apresentou-se ao ministro, e pediu licença para tornar ao
Porto, onde o chamavam compromissos, do coração em que a sua palavra de
honra se achava empenhada. D. Rodrigo objectou com a necessidade urgente
da partida no praso fixo de quatro dias; discorreu profusamente ácerca
da primazia dos deveres de portuguez em confronto com os particulares do
coração; e encareceu o azedume com que sua alteza, o principe regente»
veria posporem-se negocios do estado ás allianças amorosas de um subdito
que lhe merecera tão relevante prova de real confiança.

Instava, por outra parte, o frade benedictino, e a parentella illustre
do frade, vaticinando ao capitão-tenente um almirantado em poucos annos
de serviço.

Para estes prophetas de glorias ensurdecera Mendonça.

O coração accusava-o de ingrato e vil, se a cabeça se deixava
instantaneamente desvairar com as vanglorias da fama. A imagem chorosa
de Carlota Angela apparecia-lhe como um estimulo de honra, se o fraco
espirito humano inclinava ouvidos aos embaimentos da consideração, do
renome, e dos altos destinos a que o conduzia uma boa estrella.

Mendonça, quando as felicitações de amigos e invejosos pareciam já
galardoal-o das bizarrias previstas, meditava rejeitar não só o novo
posto e a commissão mais valiosa que elle, mas tambem a patente que já
tinha. O tempo urgia, e os aprestos para a saída acceleravam-se com
extraordinaria diligencia. O capitão da real brigada deliberou pedir a
sua baixa, ou, caso lh'a negassem, dar parte de doente. N'este proposito
estava, quando recebeu uma carta de Carlota Angela, datada no convento
de S. Bento da Avè Maria.

Carlota contava-lhe miudamente os successos que a levaram ao convento; o
patrocinio que encontrara em sua tia, as esperanças que esta lhe dava de
docilisar a pertinacia do pae; o contentamento que ella sentia em
esperar no remanso d'aquelle santo asylo o esposo querido; a liberdade
que estava gosando alli de pensar no seu anjo, alli, onde ninguem
tentava desvanecer-lh'o do coração; em resumo, Carlota dizia-lhe que
estava prevenida contra todas as borrascas, assegurando-o de que só
saíria do mosteiro para ser esposa do predilecto da sua alma. Não
ajuntaremos ao conciso extracto da longa carta as meiguices de amorosa
uncção, os enternecidos deliquios da saudade, os azedumes e dulcidão
d'esse agrodoce espinho, que rasga o seio ao mesmo tempo que o balsamo
da esperança allivia a dor, cicatrizando a chaga. Essa carta era o que
devia ser uma carta de Carlota Angela: a alma inteira, no que a alma
n'uma virgem tem de communicativo ao coração estranho, se estranho póde
dizer-se o coração amigo que se sente e escuta dentro do nosso.

Francisco Salter era formado d'este barro humano, contra o qual se tem
vociferado e estampado muita satyra.

A mais suave maledicencia, querendo poupar a natureza humana ás querelas
e libellos da philosophia rixosa, diz que o homem é um mysterio.

A theologia christã, para desencarregar o supremo artifice do desaire da
sua obra, diz que o homem é um ente degenerado da sua primitiva
puridade.

Em boa paz com theologos e philosophos, a mim se me afigura que o homem
é um composto de grandeza e pequenez, uma dualidade de gigante e pygmeu.

Mendonça tinha uma unica macula na sua excellente natureza: era a
imperfeição, era a falha do grande brilhante, que o leitor, de animo
frio e vista clara, vae ver commigo.

A carta de Carlota Angela tranquillisou-o; não disse tudo--alegrou-o,
deu-lhe um ar radioso de confiança e certeza na dedicação, que momentos
antes lhe incutia o receio da mudança.

O homem é assim.

Parece que o amor sem a desconfiança, a esperança sem a duvida, lhe dá
um socego de espirito que não quadra á sua natureza irrequieta. O pungir
de constante espinho é-lhe um necessario estimulo de vida. Se elle sáe
do coração, é forçoso que fira o orgão de outras paixões. Se o amor
prevalece á ambição de gloria ou de riquezas, satisfaça-se o amor, e a
outra paixão resultará com toda a impetuosidade do arco retezado... Não
se tirem já contra Francisco Salter conclusões que o vago d'aquellas
premissas não auctorisa.

A carta não baixou a temperatura, mas mitigou o rescaldo do amor, a
ancia da incerteza, affrontamento das conjecturas que elle formava
ácerca do destino que o irritado Norberto daria a Carlota, depois da
arrojada ameaça do Candal.

Se a levariam fóra do reino:

Se a casariam violentamente com outro:

Se a encerrariam n'um convento, incommunicavel:

Se a despersuadiriam com razões das que vencem o vulgar das mulheres,
quando o amante as não anima com a sua presença:

Se Carlota seria uma mulher vulgar, susceptivel de succumbir ás
contrariedades.

Tudo isto eram hypotheses atormentadoras; mas a carta respondia a todas.
Carlota estava a salvo da perseguição; sósinha com o seu amor, que
ninguem lhe impugnava; nutrindo-o com saudades na solidão do claustro.
Este convencimento aplacou a vertigem de Mendonça.

A ideia de pedir a baixa pareceu-lhe desnecessaria. O espaçar-se o
casamento para mais tarde afigurou-se-lhe racional e necessario aos seus
deveres de militar, e ao cumprimento dos encargos com que o principe
regente o honorificava.

E, depois, dizia n'elle o ente pensante:

«Não será bem decoroso para mim voltar do Brazil com uma posição tão
acrescida em honras, que ninguem possa notar desigualdade entre mim e a
filha do opulento commerciante?

«Como homem brioso, não deverei eu querer que a propria Carlota me
considere um homem disputado por herdeiras iguaes, ou ainda superiores a
ella?

«Os paes de Carlota, quando eu voltar habilitado para entrar no
valimento dos mais poderosos, e igualar-me a elles, não terão pejo,
vendo-me entrar em sua casa a castigal-os com pedir-lhes, segunda vez, a
filha, sem dote?»

Assim fallava o orgulho do espirito; o coração, porém, patrocinando o
anjo puro, a quem similhantes conjecturas injuriavam, tinha
arrebatamentos de tão sentida queixa, ou clamava com tamanha ternura á
consciencia incorrupta do mancebo, que, mais de uma vez, o amor saiu
victorioso, e o projecto de pedir a baixa readquiriu novos estimulos.

E os sonhos de gloria?

E os respeitos do mundo, que não eram, como hoje, restrictos ao
dinheiro?

E o cortar uma carreira, quando a aurora do seu brilhante dia raiava tão
sem nuvens?

E uma longa vida a viver só das commoções de um amor satisfeito?

E o emparelhar com os mais nobres, quando se tem um nascimento obscuro,
ou se não póde, sem desdouro, proferir o nome do pae, que inverga, não a
farda do general, mas o habito dos monges negros?

Replicava assim o orgulho reagente; e o amor supplicante exorava de
novo; a imagem melancolica de Carlota Angela espelhava-se no coração do
moço; resurgia ovante em toda a sua nobreza e isenção a amorosa alma, e
a tenção de não partir reaccendia-se mais calida e inabalavel.

Assim, pois, chegou Mendonça a submetter o seu requerimento ao despacho
do ministro.

Maior seria o pasmo de D. Rodrigo, se não julgasse o capitão da real
brigada de marinha compromettido na maçonaria, onde se pactuara que a
desobediencia implicaria pena de morte, a ferro ou a veneno como a de
José Anastacio de Figueiredo, em Mafra, á sombra das telhas reaes.

O ministro chamou o requerente a uma audiencia secreta, e disse-lhe que
não só lhe negava a baixa, mas até lhe exigia o cumprimento das ordens
regias; que seria mal visto de sua alteza o subdito que tão mal
correspondesse ao regio conceito: que seria degenerado portuguez o que,
no solemne momento de pôr peito em defeza da patria e á remuneração de
patrioticos feitos, se furtasse aos trabalhos e ás glorias: que seria
irrisorio não justificar o requerimento de baixa com mais motivos para
tamanho desconcerto que um pueril amor, que não devia passar de um
incidente de terceira ordem na vida de um homem intelligente, e fadado
para estrondosos destinos: que, finalmente, o valimento se converteria
em castigo, se elle requerente persistisse na disparatada baixa, cuja
concessão lhe grangearia o riso de uns, o odioso de outros, suspeitas
perigosas de muitos, e, mais que tudo, a mal-querença de sua alteza, que
tencionava nomeal-o major da armada, logo que servisse tres mezes no
Brazil.

O remate da allocução era a douradura da pilula. Major da armada! a
aspiração mais vantajosa de tantos, que a não realisavam na velhice!
Voltar, depois de alguns mezes, a Portugal, major da armada,
condecorado, ennobrecido, chamado aos conselhos do soberano, e talvez ao
ministerio!

Mas deixar Carlota no convento, a carinhosa Carlota, amada dois annos,
amada para sempre, votada aos sacrificios, aos desprezos, ás injurias, a
tudo, para lhe merecer a elle a renuncia de glorias que retardavam um
enlace tão suspirado!

Mendonça, na vespera da saida para o Rio de Janeiro, escreveu esta
carta:

«Vê, minha Carlota, que eu choro. A afflicção não me deixa outro
desafogo. Quando receberes esta carta, separam-nos centenares de leguas.
Eu parto ámanhã para o Brazil, obrigado pela minha condição de servo
agaloado. Deram-me o commando de um navio, e mandam-me cumprir serviços
de que eu cobraria esperanças para grandes honras, se a minha gloria
unica não fosses tu, esposa da minha alma. Quiz dar a minha baixa,
requeri, instei, negaram-m'a, e impozeram-me as leis militares. Quiz
dizer-te um adeus por algum tempo; não me consentiram delongas, porque a
corveta _Amazona_ esperava-me quasi aprestada para se fazer á vela.

«Mas eu não parto, Carlota. Comtigo fico, anjo. O meu coração ahi fica,
ahi está pulsando no teu. As lagrimas de saudade que choras, choram-as
tambem os meus olhos. Entre nós, n'esta longa distancia que nos separa,
prende-nos a mesma cadeia de dores, de afflicções, de terriveis
presentimentos. Quando te doer no coração o presagio da minha morte,
sentil-o-hei tambem eu lá, e chamarei por ti no silencio da minha alma,
n'este grito surdo da saudade, que é um despedaçar de todos os
ligamentos da vida.

«Por que choramos nós, Carlota? Invoquemos a razão desvairada pela
angustia; suppliquemos a essa filha de Deus, senão remedio, ao menos
conforto ás nossas dores. Deveremos nós chorar como choram amantes
infelizes? Eu creio que não, minha cara esposa. Se hoje nos dissessem:
«a vossa união ha de realisar-se passados seis mezes, ou ainda um anno»,
teriamos justo motivo para nos rebellarmos contra o destino, contra a
Providencia que nos aproximou tão dignos um do outro?

«Não, Carlota, porque o nosso amor não está ameaçado de alguma sinistra
casualidade que o aniquile ou arrefeça. As distancias são impossiveis
entre duas almas identificadas. Para ti no claustro, para mim na
amplidão dos mares haverá sempre o mesmo santuario de fervente amor, a
mesma acção de graças a Deus, que não quer o infortunio dos que o
confessam e chamam nas suas agonias. As nossas lagrimas ha de a
esperança enxugal-as. A esperança nos acordará dos sonhos tristes. A
saudade, que desalenta e cansa, irá ao futuro pedir sorrisos ás risonhas
imagens da nossa ventura de esposos. Oh! nós não temos razão para chorar
uma separação de alguns mezes, quando nos separamos tão confiados, como
se acabassemos de receber a benção no altar, como se, no derradeiro
abraço, sentissemos entre nossas faces o rosto de um filho.

«Que ridente imagem esta, ó Carlota! que estranho palpitar de coração eu
sinto agora! que delicias nos aguardam para o dia immorredouro da nossa
felicidade!

«Animo, minha adorada esposa! Eu careço de imaginar que tens coração
para aceitar, sem fraqueza, esta dor. Preciso alentar-me da tua coragem,
para que o auxilio da razão não esmoreça. Animei-te; mas as lagrimas não
me deixam escrever, nem a ti te deixarão entender estas palavras. Agora
se me cerra em indizivel tortura o coração. Largo a penna, desafógo em
gemidos este aperto de alma, similhante ao impossivel de comparar-se.
Não me venço. Já creio que te perdi. Accuso-me de ingrato por que não
deserto, e calco as leis, e fujo para ti, e te roubo a todo o mundo,
para mendigar comtigo uma esmola em paiz estrangeiro. Eu sou vil, sou
indigno de ti, e rasgarei esta carta, ou ler-t'a-hei de joelhos, para
que tu me perdôes tamanho crime.

«Que digo eu, meu Deus! que penso eu, e que farei da minha vida!
Impossivel, Carlota, impossivel deixar de seguir o meu destino! Agora
mesmo sou chamado á secretaria para receber as ultimas ordens. Este
calix irremediavel ha de ser tragado, ou a deshonra, a perseguição, e o
perder-te... Que horrivel palavra!

«Um juramento, Carlota! Faz-me um juramento, ajoelhada diante de um
crucifixo. Eu não o tenho aqui, mas invoco o testimunho de Deus, porque
o meu coração, quando tu proferires estas palavras, ha de ouvir-t'as, e
recolhel-as. Jura que só sairás do claustro para ser minha esposa; e, se
a morte me colher longe de ti, acabarás ahi teus dias, e nenhum ente
sobre a terra roubará á minha alma a melhor parte que lhe fica no mundo,
esperando que Deus a chame para a acolher ao infinito amor da
bemaventurança.

«Juraste, Carlota? Agora crê que o meu espirito te pediria contas d'esse
juramento, se a perfidia denegrisse a tua alma immaculada.

«Perfida!... tu!... Perdôa-me, anjo do céo, pelas lagrimas que choro,
pelas que tu choras, mais puras, mais angustiosas que as minhas!

«Adeus.....................»




VII

     Fiel é Deus, que não soffre termos mais peso do que aquelle com que
     podem os nossos, hombros. Delle se devem esperar os verdadeiros
     allivios, e nesta fé se acabam os quebrantos.

                                      Fr. Antonio das Chagas. (_Cartas._)


Carlota Angela proferira o juramento, ajoelhada diante de uma cruz;
foram, porém, d'ahi levantal-a os braços de D. Rufina, que, acudindo ao
soluçar dos gemidos, a encontrara esvaida.

Depois que a lançou á cama, a religiosa leu a carta, e disse a uma
noviça que vinha entrando:

--Quando assim se amam duas creaturas, a vontade de Deus está n'esse
amor: tudo que os homens fizerem contra elle é um sacrilegio, é um
attentado contra os designios do Altissimo.

A noviça, depositária dos segredos de Carlota, leu tambem a carta, e foi
sentar-se á cabeceira do leito, encostando ao seio a face desmaiada da
sua amiga.

Os sentidos de Carlota restauraram-se espavoridos. Tremia toda, e fitava
com spasmo e assombro o rosto lagrimoso de Dorothea.

--Chora, chora, Carlotinha--disse a noviça, dando-lhe o exemplo, e
acariciando-a com beijos.

--Se eu podesse chorar...--balbuciou Carlota, encolhendo-se em tremuras
de frio entre os braços de Dorothea.

--E, se elle morresse, não soffrerias mais, menina?!

Carlota fitou-a espantada, e disse com voz rouca pela suffocação:

--Se elle morresse... quem?... pois sabes...

--Sei; li a carta, e tua tia tambem a leu, e chorou. Eu não acho razão
bastante para succumbires assim.

--Eu não succumbo... se succumbisse, estava morta... Ainda vivo; mas,
Dorothea, eu creio que morro, e morro brevemente...

--Arrepende-te, alma de pouca fé!--disse a tia, mostrando a sua nobre
fronte de cabellos brancos, coberta com o magestoso véo negro, por entre
os cortinados do leito--Que fallas ahi em morrer, creança! Vida, muita
vida, e muita confiança em Deus, e esperança em dias melhores, é o que
te ensina esta carta, mulher sem animo. Vamos lel-a de novo: sou eu que
a leio, e veremos se o coração de uma velha sabe melhor que a moça
entender o coração de um mancebo.

D. Rufina, sorrindo com fagueira graça, abriu a carta, sentou-se na cama
de Carlota, e acompanhou a leitura com suas glosas, não deixando sem
ellas a menor phrase esperançosa.

A respiração profunda de Carlota, o convulsivo soluçar, o gemido
indomavel que lhe fugia em agudissimos ais, interromperam, muitas vezes,
a leitora. Era então que as consoladoras annotações de Rufina, e o
assentimento da noviça, redobravam de persuasiva eloquencia, capaz de
maravilhar as freiras, que suppozeram sempre estranha á linguagem das
paixões a austera religiosa.

Terminada a leitura, soror Rufina, descontente com o insensivel
resultado das suas consolações, appellou para o influxo sobrehumano da
religião.

--Venham cá ambas,--disse ella--vamos todas tres pedir de joelhos ao
Senhor, que leve e traga a porto de salvamento o nosso Francisco.

--Sim, sim!--exclamou Carlota Angela, saltando do leito, e seguindo-a
com passos vacillantes.

Ajoelharam, e oraram afervoradamente. Seria difficil estremar entre as
tres qual era d'ellas a que pedia a Deus o salvamento do amante: tal era
a devoção de todas.

--Agora respiremos!--disse, terminada a reza, a freira--Has de vel-o,
has de ser sua esposa, minha Carlota.

Nas grandes agonias, qualquer esperança exalta a crença em agouros, em
presagios, em superstições até. Carlota, pensando que sua tia recebera a
suprema graça da revelação, exclamou com alegria e transporte:

--Que foi, minha tia? Disse-lh'o Deus?

--Deus, filha, não falla a creaturas tão peccadoras e indignas como tua
tia; mas consente que se possa contar com os effeitos da sua divina
misericordia. Tudo o que se pede ao Senhor, com humildade e justiça,
consegue-se. E, assim, te repito, Carlota, que Francisco Salter voltará,
será teu marido, e tereis larga remuneração dos soffrimentos que
offerecerdes a Deus em desconto dos contentamentos que sobejam aos
felizes d'este mundo.

Estas palavras soaram tocantes e solemnes como o prophetisar da que a
communidade reverenciava assistida de graça superior. Carlota sentia
alargar-se a golilha de ferro que lhe entalava na garganta o respiro e a
falla. As lagrimas, represadas no coração, rebentaram em torrentes: e o
sangue, que se retivera suspenso, circulava de novo, rosando-lhe a
lividez cadaverica do rosto.

Estava desopprimida; e fora a esposa de Jesus misericordioso que lhe
insuflara alentos. Fora uma freira das que desafiavam o riso dos
incredulos com suas devoções, e austeras impertinencias; fora uma
mulher, das que morreram para o mundo ou o mundo matara, das que se
acolheram a Deus ou Deus tirara do seu inferno em vida, fora essa a que
tirara da cruz, onde expirara o amantissimo redemptor dos homens,
remedio de vida, e esperança para a chaga de um coração de dezesete
annos, ferido de desespêro e morte.

Assim, pois, na cella da rigida religiosa se desafogavam e consolavam
affectos dos que, fóra d'alli, no mundo tolerante e vicioso, são
julgados rebellião contra a vontade paternal, escandalo para filhas
submissas, e peccadora cegueira do coração humano!

Quam inventiva não é a caridade! quam largas bracejam as vergonteas
d'esse tronco evangelico, regado pelas lagrimas d'aquella a quem Jesus
perdoara por ter amado muito!

A desvelada noviça não deixava sósinha Carlota, um instante. Ella e
Rufina revezavam-se ao pé da pensativa menina, que parecia querer
fugir-lhes, já não para se carpir, mas para orar; que, na oração sentia
Carlota outro espirito em si, o murmurio de outros labios supplicantes,
a fervorosa crença de Mendonça inflammar-lhe a fé.

A serenidade viera com a confiança no futuro: do sobresalto, da
afflicção, pouco e pouco socegada, ficara a melancolia suave da
paciencia, essa que só Deus concede aos que á sua misericordia
recorreram na adversidade, e em sua vontade se louvaram.

D. Rosalia visitava a filha miudas vezes, o pae raras; e de breve
demora, porque o silencio de Carlota, que elle julgava desaffeição,
desanimava-o de a ver, e incommodava-o a sós com ella.

Dizia a mãe, nos primeiros tempos, que não havia tirar-lhe o sim para o
casamento; mas que ainda era cêdo para descorçoar. Dois mezes depois,
mostrou-se mais docil a pertinacia, e já elle dizia que, na volta de
Mendonça, tudo se faria pelo melhor: é que o ajudante do intendente
geral da policia, por occasião de lhe pedir mais seis mil cruzados,
explicara o saque, dizendo que esta quantia se fazia mister para crear
novos embaraços ao regresso de Salter, logo que a commissão, a que fora,
estivesse cumprida.

Decorreram quatro mezes. Os navios vindos do Rio, já com a nova da
chegada do _Amazonas_, e cartas dos tripulantes, receberam a bordo uma
visita da policia, e entregaram a correspondencia. Entre as cartas havia
uma de grande volume, subscriptada a D. Carlota Angela de Meirelles,
residente no mosteiro de S. Bento da Avè Maria, no Porto.

O bacharel Sampayo deslacrou esta carta, leu oito folhas de papel, e
lançou-as ao brazeiro, aquecendo e esfregando as mãos á lavareda. O
malvado queimara alli o traslado das mais tristes imagens, o desafogo da
mais dorida saudade que ainda apertou coração de homem! O impio não se
amiserara de tantos signaes de lagrimas em que a tinta se apagara! Que
raptos de alegria, e suspiradas consolações aquella carta, que voejava
no ar em faúlas, levaria a Carlota! Que esperanças tão bellas o perverso
queimou com a chamma d'aquelle papel!

Entretanto, Carlota, que contara os dias, e calculara, mil vezes, com
Dorothea, o primeiro em que devia receber novas de Mendonça, mandava
todos os dias de estafeta uma servente para a porta do correio,
esperando a lista, ou interrogando o carteiro. Sempre, em vão! A antiga
dor renascia em cada correio; redobrava a afflicção a cada esperança
frustrada.

Conspiravam em consolal-a Rufina e a noviça, esta com razões mais
carinhosas que persuasivas, aquella confirmando o vaticinio da
felicidade promettida. Os allivios da primeira eram sempre proficuos e
desejados; os da segunda faziam-a proromper em gemidos, que tambem eram
desabafo.

Decorreram tres mezes de afflictivas esperanças, sempre enganadoras para
todas. Nem uma carta, nem duas linhas escriptas no leito da morte!

Carlota Angela tremia de pronunciar uma desconfiança acerba que lhe
trazia o coração em agonias. Soror Rufina rogava incessantemente á
bondade divina que afastasse da sobrinha o temor que a sobresaltava a
ella. Dorothea segredava á freira os seus receios, e esta pedia-lhe
muito encarecidamente que não proferisse uma palavra sobre tal
desconfiança.

Acontecia, porém, que todas suspeitavam o mesmo; a morte de Francisco
Salter.

Carlota receiava que as suas amigas julgassem possivel ter elle morrido;
assentimento tal seria para ella uma especie de evidencia, porque tão
pouco basta para certificar suspeitas entranhadas n'um espirito que a
desgraça fez supersticioso. As outras calavam o presentimento funesto,
cuidando que a matariam.

N'este conflicto, correu no Porto a noticia da morte de Francisco Salter
de Mendonça. Ninguem sabia dizer por onde a noticia viera; os amigos,
porém, do honesto e talentoso official de marinha contavam-se que elle
morrera no Rio de Janeiro, quando a gloria o vinha buscar por uma
carreira esperançosa de grandes destinos.

A noticia chegou ao convento. Souberam-a todas, excepto Carlota Angela.

Rufina caíu doente, e Dorothea denunciava-se á infeliz menina,
evitando-a, quando mais anciosa de compaixão e carinho se sentia
impellida para ella.

As freiras olhavam a pobresinha com mais piedade que nunca; animavam-a
como se quizessem ter parte em seu coração para a salvarem pela amizade,
quando houvessem de revelar-lhe a mortal noticia. Carlota estranhava os
melancolicos olhares, os beijos e caricias de todas, a condolencia terna
com que, as mais afastadas da sua convivencia, a vinham espairecer ao
seu quarto.

Norberto de Meirelles procurara sua filha, n'esses dias em que a noticia
vogava. Soror Rufina estava de cama; recebera primeiro o recado do pae
de Carlota. Esta preparava-se para ir á grade, quando a anciada tia lhe
disse:

--Vou-te aconselhar a desobediencia, minha sobrinha, e Deus me perdôe
por sua immensa bondade. Não vás á grade. Eu tomo sobre mim a
responsabilidade de mais um peccado.

E, voltando-se para a criada, mandou dizer a Norberto que sua filha não
podia fallar-lhe; mas esperasse alguns minutos, que alguem iria em logar
d'ella.

--E por que é isso, minha tia?!--perguntou a sobrinha admirada.

--Porque sim, minha filha. Receio que elle te venha fallar...--continuou
balbuciante--em cousas desagradaveis.

E, sentando-se no leito, a febricitante religiosa, ajudada de Carlota,
vestiu-se, e foi á grade encostada a Dorothea.

--Então a pequena que tem?--perguntou Norberto.

--Está doente.

--Já lhe chegou a noticia! Que tenha paciencia. Deus tudo faz pelo
melhor...

--Tambem digo o mesmo--atalhou Rufina.--E o mano agora que lhe quer?
Consolal-a?

--Quero dizer-lhe que é preciso mudar de rumo, e tirar o sentido do
homem que morreu.

--Isso ha de dizer-se-lhe por outras palavras menos terminantes.

--Isso lá é bom p'rá mana; eu cá digo as cousas como sei.

--Pois sim; mas consinta que eu a disponha para o golpe, e depois tudo
se lhe dirá com prudencia e caridade.

--Pois ella ainda não sabe que morreu o homem?!

--Não, mano; se a noticia fosse alegre, tinha-se-lhe dito; mas eu não
acho necessario dar-se-lhe uma nova que a póde matar.

--Qual matar, nem meio matar!--replicou o brutal arrozeiro, tregeitando
com os beiços carnudos um gesto de incredulidade--Pobre de quem morre,
diz o dictado. Ainda é de bom tempo, cunhada. Isto de raparigas
namoradas, são como as viuvas: choramigam oito dias, e ficam frescas
como se não fosse nada com ellas.

--Está enganado. Pergunte a minha irmã, que tem coração de esposa e de
mãe, se isso assim é. Estou bem convencida que ella fará um diverso
juizo do soffrimento de Carlota. Emfim, mano, eu ergui-me da cama para
vir aqui, e estou a tremer de frio e febre. Conceda que eu me retire,
pedindo-lhe pelo divino amor de Deus que deixe ao meu cuidado revelar a
noticia á desgraçada Carlota. O mais difficultoso é curar depois a
ferida, se o golpe não for de morte: confio em Maria Santissima que não
será.

--Pois então adeus--tornou Norberto, puxando para as orelhas a gola do
capote de quartos.--Arranje cá isso do melhor modo, e diga-lhe que venha
cá p'ra fóra, a ver se ella se tenta com algum de tres noivos, o qual
melhor, que eu trago na mira. Se eu a quizesse casar com um morgado da
provincia, fidalgo, e senhor de casa com capella, já me fallaram para
isso; mas, a fallar a verdade, o que eu quero é homem de negocio, ou
filho de negociante com dote á vista; não faço bem, cunhada?

--O mano lá sabe o que lhe convem; mas nunca faça calculos sem contar
com a vontade de Carlota. Parece-me que lhe posso asseverar que ella não
sairá mais d'este convento. Perdeu um esposo; mas o esposo verdadeiro, o
esposo das almas angustiadas está cá dentro; é Jesus Christo, o unico
bem que ha de entrar no coração espedaçado de Carlota, e cural-o com a
esperança de encontrar na bemaventurança o primeiro que perdeu.

--Pois Carlota ha de ser freira?!--interrompeu com impetuosa grita
Norberto, derrubando a gola do capote, que era de mais na cara afogueada
pela ingrata nova.

--O mano faz um espanto--redarguiu mansamente Rufina--como se eu lhe
dissesse que sua filha havia de praticar um crime!...

--É que eu não quero!...--redarguiu elle, batendo um troante murro na
banqueta.

--O mano não quer; mas a sua vontade agora vae encontrar outra vontade
sem comparação mais poderosa: é a vontade omnipotente do Senhor, que
move os mundos e os corações. Não me disse, ha pouco, que Deus tudo
fazia pelo melhor? Pois bem, póde ser que a divina vontade quizesse para
as suas eternas nupcias a que havia de ser esposa de outro, que Deus
chamou a si.

--Veremos como isso ha de ser. Em todo o caso eu quero minha filha cá
para fóra. Não a creei para freira, tenho muito que lhe deixar.

--Tudo o que o mano tem póde varrel-o um ligeiro sôpro da desgraça.
Modere a sua soberba, que não o castigue Deus, que abate os soberbos, e
exalta os humildes. E, demais, a casa do Senhor não se abre só para as
meninas pobres. Eu deixei um grande patrimonio quando aqui entrei, e vim
achar uma riqueza incomparavelmente maior do que a que deixei: foi o
esquecimento do mundo, e o amor sempre crescente de outro melhor. Ora,
bem póde ser que sua filha se deixe namorar dos anjos, e rompa com os
amores tranzitorios d'esta vida. Em summa, o que eu lhe digo, meu
cunhado, é que minha sobrinha só póde ser salva pela religião; e eu, se
Deus me achar digna, hei de estender-lhe a mão ao abysmo onde a
lançaram, e encaminhal-a por onde eu vir que ella é menos infeliz. Não
posso mais, estou fatigada e angustiada, adeus.

Norberto de Meirelles enfiou de novo a cara oleosa na pelucia da gola,
sobraçou a enorme bengala encastoada de prata, e saíu do atrio do
mosteiro com as ventas fumegantes.




VIII

          _Didone_

    ... No mai die fiamma impura
    Feci l'are fumar per vostro scherno;
    Dunque perché congiura
    Tutto il ciel contra me, tutto l'inferno?

          _Osmida_

    Ah! pensa a te non irritar gli Dei...

          _Didone_

    Che Dei? Son nomi vani,
    Son chimere sognatte, ó ingiusti son.

                          Metastasio. (_Didone._)


Norberto de Meirelles communicou, immediatamente, ao cunhado o
acontecido com a religiosa benedictina, pedindo-lhe conselho para evitar
que a filha se fizesse freira.

O bacharel Sampayo chamou a capitulo os seus vastos expedientes de
perfidia, e conglobou-os n'um, do qual ousou afiançar ao cunhado um
exito feliz.

Chamou pessoa idonea para executal-o, e de Lisboa veio ao Porto um
individuo encarregado da seguinte missão:

Entrou, um dia, no pateo do mosteiro de S. Bento esse homem, e perguntou
na portaria, se lhe seria possivel fazer chegar ás mãos da snr.ª D.
Carlota Angela um bilhetinho de sua mãe.

A porteira respondeu affirmativamente, como era de esperar, recebeu o
bilhete, e entregou-o a Carlota, que saia do côro, onde costumava passar
as manhãs em oração.

Era este o conteúdo do bilhete:

_Uma pessoa quer fallar á snr.ª D. Carlota ácerca de Francisco Salter
de Mendonça; mas deseja estar só com ella em uma grade. A pessoa espera
resposta._

Carlota alvoroçada correu ao locutorio, e exclamou:

--Estou aqui.

O enviado do bacharel aproximou-se, e disse:

--Sou eu que a procuro, minha senhora; mas na esperança de ser demorada
a nossa pratica, pedia o favor de me fallar n'uma grade, porque este
logar é improprio para se tratarem cousas de tamanho segredo.

Carlota olhou em redor de si, viu uma criada com uma chave, e disse com
precipitação:

--Empresta-me a grade por um bocadinho? empresta, por quem é?

--Sim, minha senhora--disse a criada.

Carlota indicou ao homem de Lisboa a grade, e correu a encontral-o.

Não tinha ainda elle terminado as formalidades da cortezia, disse
Carlota impaciente:

--Elle já veio? Está em Lisboa?

Estas perguntas eram feitas a tremer. Carlota, não podendo com a
afflictiva duvida da resposta, apressou-se a interrogal-o assim,
cuidando que a certeza com que perguntava por Mendonça vivo a
desopprimia da suspeita de que elle era morto.

O homem não estava preparado para perguntas tão expeditas. Ficou
perplexo, e esta indecisão deu azo a novas perguntas:

--Traz-me cartas d'elle? dê-m'as...

--Não trago cartas, minha senhora.

--Não?!--atalhou ella com vehemencia e sobresalto.

--Não, snr.ª D. Carlota. Francisco Salter não lhe escreveria, ainda que
podesse...

--Como?! não entendo!... Não escreveria... porque?

--Se a menina serenar um pouco, tomarei a liberdade de historiar-lhe
vagarosamente a vida do homem que lhe mereceu um grande amor, digno,
permitta-me dizer-lh'o, de ser melhor applicado.

--Isso é uma calumnia! isso é mentira!--exclamou Carlota, sem pesar a
gravidade das palavras que ouvira, e das que proferira com exaltada
acrimonia.

--Eu desculpo-a das injurias que me dirige, porque avalio a surpreza
dolorosa, que lhe fazem tão horriveis novas. Queira escutar-me.

Francisco Salter saiu do Porto amando-a, como se ama aos vinte e quatro
annos, com esse amor imprevidente, superficial, e arriscado ás variantes
do coração logo que as tempestades de outras paixões se levantam,
sopradas por um casual encontro com outra mulher. Era um rapaz no comêço
de uma bella carreira, com espiritos ambiciosos, sem bens de fortuna, e
descontente da sua sorte... O desengano devia vir, logo que os olhos da
pessoa, que elle amava, deixassem de influencial-o. Chegou a Lisboa,
onde tinha valiosos amigos e parentes, e onde fora chamado para receber
uma honrosa commissão para o Brazil, com augmento na sua carreira, e
promessas seguras de grandes vantagens.

Francisco Salter de Mendonça rejeitaria a gloria, se o amor fosse de
mais rija tempera; renunciaria um almirantado, se o coração de Carlota
Angela saciasse n'elle a louvavel ambição de se fazer grande por
merecimento proprio. Obedeceu ao orgulho, e partiu para o Brazil, como a
menina sabe. Escreveu-lhe, talvez, uma carta muito saudosa, muito
lamuriante, muito esperançosa; mas... partiu.

No Brazil, foi recebido como era de esperar. Encontrei-o na melhor
sociedade, posto que a melhor sociedade de lá só se faça valiosa pelo
dinheiro. As ricas herdeiras olhavam-o como um rapaz distincto, capitão
da real brigada, bem fallante, gentil, bravo, soberbo de si, e
collocaram-o na posição de escolher.

Vejo que v. s.ª está anciada. Se a continuação da minha visita a
molesta, peço licença, e retiro-me.

--Não... não... queira dizer--balbuciou Carlota, tirando com violencia a
respiração do seio convulsivo.

--Os fumos da vaidade e os da ambição--proseguiu o porta-voz do
bacharel--ennevoaram aos olhos de Mendonça a imagem de Carlota Angela.
Eu, que fora nos primeiros dias seu confidente, sabia que a menina
existia n'este convento; recordei-lhe com pezar o indigno perjurio, e
elle respondia-me que a ausencia era o balsamo maravilhoso das chagas
que o amor fazia. Confesso que me angustiou esta baixa condição de alma!
e muito principalmente depois que vi algumas cartas de v. s.ª,
escriptas emquanto elle fazia a viagem.

Passados mezes, dois ou tres, se tanto, Mendonça dá parte aos seus
amigos de que vae tomar estado com a filha unica de um opulento
negociante, dotada com centenares de contos.

--E casou?--exclama Carlota, lançando com vertiginoso impeto as mãos ás
grades.

--Casou--respondeu o homem, friamente.

Carlota soltou um grito, que não tem outro comparavel na expressão da
angustia humana. Era o ruido agudo do estalar de todos os tecidos do
coração, do rasgarem-se todos os vasos de sangue, do embate dos pulmões
lacerados contra as paredes do peito. E, depois, os dedos recurvos nos
ferros da grade, relaxaram-se, hirtos como os de um cadaver, e o corpo
resvalou da cadeira para o chão com estrondoso baque.

O homem horrorisou-se um instante da sua obra, e recuou até á porta para
retirar-se; mas a sua missão não estava ainda cumprida. Relampagueou-lhe
uma ideia lucida. Desceu á portaria, e disse que fosse Alguem á grade,
onde se achava desmaiada a snr.ª D. Carlota.

A este tempo já a madre porteira, alarmada pelo estrondo da quéda,
entrava pressurosa na grade, e vendo Carlota no chão, chamou-a a altos
gritos. Houve grande rumor no convento, e entre as muitas pessoas que
desceram á portaria, vinham D. Rufina e a noviça.

O homem de Lisboa permanecia imperturbavel na grade, esperando que o
interrogassem, já depois que Carlota fora transportada, com frouxos
signaes de vida, ao seu quarto, acompanhada de um medico, que a fortuna
trouxera n'esse conflicto.

--Alguma das senhoras é a tia da snr.ª D. Carlota Angela?--perguntou o
homem.

--Sou eu--respondeu a pavida religiosa.

--Concede-me alguns minutos sem testimunhas?

As outras senhoras deixaram só Rufina; o delegado do bacharel proseguiu:

--Essa menina desfalleceu, quando eu lhe noticiei o casamento de
Francisco Salter de Mendonça.

--O casamento?!

--Sim, minha senhora.

--O que geralmente se diz é que morreu.

--Casou, e morreu, dias depois.

--Oh meu Deus!--clamou a freira, levando as mãos ás faces--oh meu Deus,
o que se passa debaixo de vossos olhos! Francisco de Mendonça casou!...
O senhor tem a certeza d'isso?!

--Como quem assistiu ao casamento e á morte. Esta segunda parte é que
sua sobrinha ignora, porque me não deu tempo. Agora convém que v. s.ª
lh'a diga, para que a morte sirva de perdão ao ingrato, e a ingratidão
lhe converta em quasi indifferença a morte. É assim que essa pobre
menina ha de recuperar a tranquillidade que precisa; e eu, que
espontaneamente aqui vim dar-lhe o golpe, que ninguem lhe queria dar,
com o bom proposito de curar a ferida com o proprio sangue d'ella,
retiro-me, delegando em v. s.ª o complemento da minha obra. Minha
senhora, recebo as suas ordens.

Soror Rufina surgira de uma especie de lethargo, depois que o
desconhecido saíra.

Foi ao quarto da sobrinha, e viu-a sentada no leito, com os cotovêlos
fincados nos joelhos, e o rosto entre as mãos. Saíam-lhe das palpebras
os olhos vidrentos e immoveis como os de um cadaver embalsamado. Parecia
não ver alguem, e a respiração das pessoas, que a rodeavam, nem sequer
se ouvia. O olhar de Carlota fazia terror.

A religiosa chamou-a tres vezes, como a mãe delirante chamaria sua filha
morta; o pavor, porém, d'aquelle olhar sem luz nem movimento, parecia
responder-lhe que estava morto o coração que devia ouvil-a. Rufina
abraçou-a vertiginosamente, agitando-a com desespêro: o corpo obedecia
ao impulso, com a inerte obediencia do cadaver, mas os olhos lá estavam
na sua terrivel immobilidade como que seguindo a alma que lhe fugira
arrancada pelas garras de um demonio.

--Que é isto, snr. doutor! está morta minha sobrinha?--bradou a
religiosa ao medico.

--Não está morta, minha senhora; póde estar demente.

Carlota Angela soltou um profundo grito, ergueu-se sobre os joelhos no
leito, travou das tranças com frenetico delirio, deixou caír os braços
semi-mortos, e recaíu no torpor de momentos antes.

Passado o espanto, todos os corações se derramaram alli em lagrimas. Não
sabiam ao certo que immensa angustia era aquella; mas adivinhavam-a.
Todas se voltaram para Jesus crucificado, de joelhos oraram chorando, e
a oração era a mesma em todos os espíritos:

«Se ella está demente, levae-a, Senhor!»

Aquelle estado era impossivel longo tempo. Durante vinte e quatro horas
succediam-se as syncopes, cada vez mais prolongadas e assustadoras. O
medico, descrido da acção dos antispasmodicos, aconselhou que lhe
fallassem muito na causa d'aquelle accidente, confiado na vitalidade
febril que dão as agonias moraes; e nas lagrimas consecutivas.

Assim o aconselhara; ninguem, todavia, queria encarregar-se de tão cruel
flagellação.

Soror Rufina esperara a saída das incessantes visitas, para, com o
soccorro do céo, executar o duro supplicio de Carlota. O coração
dizia-lhe que tal expediente seria um tormento inutil; mas o medico
ajuntara ao conselho razões que a convenceram.

A sós, Carlota fitou-a com uma turvação de olhar, que deu quebranto á
resolução da freira.

--Se ella está demente, de que serve este triste remedio?!--dizia soror
Rufina--Eu vou verter-lhe fel na chaga do coração, e nem posso ao menos
contar com a intelligencia d'ella para lhe faltar á razão! Se Deus a
chamasse a si, que maior felicidade lhe poderia eu desejar! Minha
filha!--murmurou ella, aconchegando-a ao seio--Tu não me conheces? Sou a
tua boa tia, a melhor das tuas amigas. A tua dor me dóe tambem, Carlota.
É preciso que nos consolemos uma á outra. Diz-me uma palavra só,
anjinho... Conheces a tua tia, menina?

--Se conheço!...--disse com meigo sorriso, Carlota, abraçando-a pelo
pescoço. Rufina estremeceu de alegria, comprimindo com transporte o seio
da sobrinha ao seu, e cobrindo-lhe de lagrimas e beijos a face.

--E és a minha querida filha, pois não és?--proseguiu a freira--É de mim
que esperas allivios d'esta agonia, e amor para toda a vida? Aceitas as
consolações de tua tia, crendo que é ella o instrumento de que a
misericordia de um Deus piedoso se serve?

--Não me falle em Deus!--bradou com impetuosa violencia Carlota Angela.

Rufina tremeu e empallideceu como assombrada de um raio.

--Está douda a infeliz!--disse ella--Agora sim, creio que não ha
valer-lhe! Ó Mãe Santissima, ó Senhor dos Afflictos, levae esta alma
para vós... não consintaes que os labios digam blasphemias, que o
espirito d'esta virtuosa creatura não sente.

--Não me falle em Deus!--repetiu Carlota, esgazeando sinistramente os
olhos--Não ha Deus, nem justiça, nem misericordia. Ha inferno n'este
mundo para os innocentes, para os que, fugindo ao odio humano, se
acolhem ao amparo divino.

--Jesus!--atalhou a religiosa--Que palavras são essas, filha!?

--Eu não merecia esta morte, minha tia. Que fiz eu para morrer assim
desesperada de achar a remuneração de tamanha perfidia?! Abandonada,
esquecida por elle... Que horror!

Carlota Angela tapava o rosto, e arquejava, fugindo impetuosa aos braços
da freira.

--Que horror!--continuava ella, apertando as fontes com as mãos, e
tirando com violencia pela respiração--Trahida por Francisco!... Todo
este amor, a amor de toda a minha vida, calcado, desprezado, ao mesmo
tempo que eu o ia alimentando com lagrimas diante d'aquella cruz, onde
eu cuidei que se encontrava compaixão!...

--E encontra, minha filha; e ainda agora das chagas de Jesus Christo
está correndo o balsamo que te ha de curar, Carlota!

--Curar-me!... A tia não sabe o que eu soffro, não conheceu esta dor,
não sabe que desesperada vae ser a minha agonia! Eu tenho a morte já na
garganta. Era preciso que eu perdesse o juizo para se crer que ha Deus.
Morrer assim, e sentir a causa da morte... isto é mais que
barbaridade... o demonio não póde tanto, e um Deus não consentiria
padecimento tamanho... Oh!... quem me apressasse a morte... quem me
désse um veneno... quem me arrancasse do coração esta agonia!... Oh meu
Deus!...--bradou ella, estendendo os braços para o crucifixo.

Soror Rufina correu a tomar a cruz de sobre a commoda, e aproximou-lh'a.
Carlota cravou-lhe os olhos, um momento humedecidos de lagrimas, e
lançou-a de si com um violento gesto de repulsão.

--É mentira tudo isso!--exclamava ella, agitando as mãos com frenesi,
como se a tia teimasse em dar-lhe a cruz--É mentira tudo! não ha Deus,
não ha nada a que uma desgraçada, como eu, possa recorrer! Deus não
consentiria que houvesse um perverso tal como esse homem, nenhuma
miseravel como eu...

--E, se souberes que foi castigado o perverso que te faz soffrer tanto,
Carlota, crês que ha justiça de Deus?

--Castigado!... não ha n'este mundo castigo para tamanha ingratidão...
Elle é feliz a esta hora, nos braços de outra, com os carinhos de outra
mulher, e eu... aqui, nas agonias da morte, sem poder saber que tempo
hão de durar!... Meu Deus, eu morro arrependida de vos ter negado, se me
levardes já...--E tomando a cruz, que beijava fervorosamente,
proseguiu:--Levae-me, Senhor... tirae-me d'este inferno, ou fazei que eu
endoudeça! Se eu sou grande peccadora, dae-me as penas eternas da outra
vida, se lá não ha memoria das amarguras d'este mundo! Dae-me o outro
inferno por este, e eu darei sempre louvores á vossa misericordia!...
Não me escuta!--bradou Carlota com desesperada indignação, querendo
arremessar a cruz.

--Filha!

--Deixe-me acabar, minha tia... Eu não quero esperanças...
esperanças!... em que? Não quero consolações de ninguem... A maldade
d'aquelle homem não me deixa já crer no amor de ninguem... Fujam todos
de mim, que eu sou uma mulher amaldiçoada, sem ter offendido uma só
pessoa... É a maldição de meu pae que chegou ao céo. Fui enganada, tinha
fé n'aquelle homem, estou assim penando, porque o acreditei... É um
castigo maior que o meu delicto! Deus devia perdoar á pobre mulher de
dezoito annos, e castigar o traidor por quem me perdi...

--E castigou.

--Como?

--Chamando-o a contas.

--Diga, diga, minha tia... que é? chamando-o a contas!... pois elle...

--Morreu... pouco tempo depois que perjurou, Carlota. Agora crês que ha
Deus?... crês na justiça divina?

Carlota não ouvia. Os olhos pasmaram, como se a paralysia os ferisse de
subito. Os labios ficaram semiabertos, como se por elles perpassasse a
derradeira expiração. Os braços decairam com mortal quebranto.

A freira abraçara-a, sustendo a cruz entre os dois seios, e invocando
Jesus, e Carlota.

Dorothea entrara, ouvindo os gritos de Rufina. Subira ao leito, clamando
agudos ais, porque julgara morta Carlota.

--Vá ver se está algum medico dentro--disse Rufina.--Mandem-o chamar, a
toda a pressa, se não estiver. Chamem tambem o capellão... Parece-me que
a matei, cuidando que a salvava.

Dorothea saíra, levando o alvoroço e o terror, pelos dormitorios, onde
eccoavam os seus altos gemidos. Soror Rufina, desalentada, enfraquecida
de espirito, e de fé, como aquelles santos de quem o Senhor se queixou,
disse, lavada em lagrimas:

--Meu Deus! são terriveis os vossos juizos, e terriveis as vossas
intenções! Quando a innocencia assim padece, como castigareis o crime?

Fora como o morder da vibora entranhada o pungir de alma que vibrou em
dolorosissimo tremor o corpo todo da religiosa. Era a consciencia, que
recebia em si o fel da injuria que os labios cuspiram; mas não passara
d'elles. A apavorada freira, livida como o sacrilego aterrado pelo
remorso, ouviu um murmurio, que lhe recrudesceu o pavor. Era Carlota que
lhe dizia:

--Oremos pela alma do infeliz.

Correu ao leito, correram as religiosas que entraram com Dorothea. Viram
Carlota Angela com as mãos erguidas, e a face coberta de lagrimas.
Ergueram tambem as mãos, choraram tambem, ajoelharam, vendo Rufina de
joelhos.

--É um Padre nosso e uma Avè Maria por alma de Francisco--balbuciou
Carlota, soluçando, com inexprimivel afflicção.

O medico entrava n'esse conflicto, e presenciando as lagrimas de
Carlota, fez um gesto afirmativo. Dorothea interrogou-o com anciado
olhar. O medico, entreabrindo ligeiramente os labios com um sorriso,
queria dizer:

--Está salva.




IX

    Mon Dieu! comme il est difficile
    De courre avec de l'argent!

                                  Théophile de Veau.

    Trocando com vontade pouco experta,
    Por incerta fortuna esta mais certa.

         C. Pereira de Castro. (_Lisboa edificada._)


Francisco Salter de Mendonça, de Lisboa ao Rio de Janeiro escrevera um
diario, em que mais se accusava a si de ingrato que aos seus cavillosos
protectores de crueis. A saudade era encruada pelo arrependimento.

Ao passo que o horizonte da patria se perdia nas orlas do mar, o
atribulado mancebo já não sentia da esperança o conforto que o alentava
no instante da partida. Afigurava-se-lhe um sonho horroroso estar elle
tão longe, cada vez mais longe, de Carlota Angela. Ideiava e desfiava
todas as consequencias que podia trazer a sua formal rejeição do encargo
e da patente.

«Se me prendessem,--escrevera elle no diario--que maior prova podia eu
dar a Carlota de que a minha liberdade, longe d'ella, seria o meu
supremo captiveiro?

«Preso debaixo do céo em que ella vive, teria a liberdade de
escrever-lhe, de animal-a, de a ver talvez um dia chegar lacrimosa aos
ferros do meu carcere, e encher-m'o de quantas alegrias podem elevar uma
alma nobre sobre astucias de miseraveis tyrannos.

«Seria grande mágoa para ella a minha prisão, a minha baixa, a minha
quéda irremediavel no principio da vida? Oh! de certo era; mas essa dor
desvanecel-a-hia a convicção de ser tão amada, tão preterida á gloria, á
honra e aos sorrisos da fortuna!

«Por que não lhe dei eu o nobre orgulho de me sacrificar, de me abater
aos olhos de todo o mundo, com tanto que me engrandecesse aos olhos
d'ella, d'ella, para quem eu queria honras, glorias, corôas, mundos,
tudo grande, tudo sublime, e tudo pequeno em confronto do coração que
lhe dei?!

«E, depois, a minha prisão seria de pouco tempo, porque os meus parentes
são poderosos, e o dinheiro do pae de Carlota exhaurir-se-hia ao mesmo
tempo que o coração de sua filha seria mil vezes multiplicado em apêgo,
em gratidão, em ternura, e coragem para affrontar commigo os obstaculos.

«Mas nem talvez eu chegasse a ser preso. Julgar-me-hia o governo em
demasia castigado com a baixa, com a desconsideração e com o desprezo.
Toda a gente me olharia como se olha um homem pobre, e de mais a mais
rebelde ao serviço da patria. Que importava isso? Carlota Angela seria o
meu talisman; as riquezas brotariam de seu coração inesgotavel; todos me
invejariam ao pé d'ella; apontar-nos-hiam como modelos de affeição, e de
honra na affeição, que tão rara se encontra. Com o tempo, eu seria
chamado a merecer o premio de calcar a intriga, e o nosso pão na
opulencia não seria mais doce que o pão da pobreza.

«Que fiz eu, homem vil, homem sem alma?

«Mascarei-me com as palavras «honra e dever», e estou deshonrado perante
Carlota! Impuz-lhe um juramento de morrer minha escrava, fiz que ella me
adjudicasse a sua vida, apontei-lhe o claustro como seu eterno carcere,
e não tive valor para me deixar perseguir por amor d'ella!

«Ó coração duro, que assim te deshonraste com tão baixo egoismo!

«Tu choravas, quando lhe escreveste um adeus, mas essas lagrimas pôde
enxugal-as a razão, tão villã como tu! Mentias n'esse pranto, abjecto,
avarento, que te sentiste sobresalteado de orgulho e alegria, quando as
dragonas de major da armada te deslumbraram a duas mil leguas distantes
de Carlota.

«Não sou digno de mais a ver, sem córar de vergonha, não! Se ella me não
escrever, se rasgar e pizar e cuspir as minhas cartas, eu devo ter o
cynismo de tragar a affronta, já que tive a villania de a merecer.»

A estas paginas da consciencia opprimida, succediam-se outras de
lagrimosa ternura. Nunca a saudade se exprimira com mais contrição de
alma, com mais doridos afagos á imagem querida que os recebe chorosa,
com devaneios de mais poesia amarga, d'essa que só sabem desentranhar do
coração os que sentem voluptuosa dor em despedaçal-o.

Francisco Salter atravessara o Atlantico sem um amigo, sem um ouvido
attento onde contasse, com attrição de penitente, as saudades e
pungimentos que o laceravam.

Eram bellas as noites, era de magia o céo estrellado, as luas-cheias no
mar parece que recolhem de mais perto, n'aquella vasta solidão, as
confidencias do amante, dando-se como espelho, para que, a milhares de
leguas, a contemplativa amada veja n'ella os olhos do que a pranteia.

Mendonça, porém, angustiava-se mais com esse espectaculo, só donoso de
extasis, e dulcissimo de espirituaes colloquios para amantes felizes.

E escreveu assim:

«O desgraçado não supporta as alegrias dos homens, nem as da natureza.
Se a sua alma está de luto, cubra-se de negro tudo que o cerca. Se sulca
os mares, refervam as vagas batidas pelo látego da tormenta; forre-se de
nuvens torvas o céo, rebôem em turbilhões, prenhes de coriscos; rua o
ultimo mastro lascado pelo raio, e espumem contra a derradeira táboa do
naufragado as fauces do dragão que abre um abysmo em cada resfôlego.

«O amanhecer não tem cantares, nem a tarde murmurios, nem a solidão
arroubamentos para esse que a natureza repelliu de si, como leproso,
chagado no coração, contagioso de pestilencial desesperança.

«Eu subi ha pouco á tolda, e vi a lua, que oito dias antes me vira no
Candal, ao pé de Carlota. Não pude fital-a. Os meus olhos caíram sobre o
dorso do mar, bem perto do navio, onde não chegava a refulgencia da lua.
Alli estive fascinado, n'aquelle ponto negro. Similhava-se-me a um
tumulo, e o fremir da onda quebrada na quilha soava-me como um gemido de
mulher que eu lançasse áquelle abysmo...

«E fugi, meu Deus, fugi, porque me não déstes um raio de esperança.

«Ó Carlota, Carlota, matar-te-hia eu?!»

Este fragmento de uma pagina, transcripto ao acaso, sirva para avaliar
que afflictivo tranzito lhe foram os cincoenta dias de viagem.

No desembarque, Francisco Salter de Mendonça sentiu vergar o corpo ás
commoções da alma. Adoeceu, e, na ardor da febre, escreveu a Carlota
essa longa carta com que o bacharel Sampayo espertou o lume do seu
fogão. Eram estas as ultimas linhas da carta:

      *      *      *      *      *

«Se eu morrer, minha querida Carlota, ouso d'aqui já pedir-te o meu
perdão. A memoria de um morto é sagrada. Todas as ingratidões e
villanias desapparecem com o miseravel corpo que os vermes desfazem.
Fica a alma no seio de Deus, ou fóra do céo. Se Deus acolher a minha, de
lá te chamarei; se me repellir este espirito, purificado no fogo da
saudade, errarei em torno de ti, pedindo-te perdão, porque tu és a unica
pessoa que eu offendi n'este mundo. A offensa, minha amiga, está
expiada. Tenho soffrido penas sobrenaturaes. Achei doçura e suavidade no
supplicio, emquanto me considerei algoz da tua felicidade, infame
vendilhão que te troquei por alguns punhados de ouro. Depois, porém, que
expelli em lagrimas a peçonha do coração, ouso dizer a Deus que este
flagello é de mais... esta quéda na sepultura, aberta no caminho de
palmas que eu de lá vira, é um acto da Providencia que assimilha um
escarneo. Não tenho forças nem vista para mais, Carlota. Compaixão, anjo
do céo! Amor... não t'o mereço: seria duplicada infamia pedil-o agora.
Adeus.»

Após uma longa enfermidade, Mendonça esperava alvoroçado o paquebote que
fazia regulares viagens entre Portugal e o Brazil.

O coração afiançava-lhe uma carta, muitas cartas de Carlota; umas
accusando-o, outras absolvendo-o.

O paquebote chegou. Salter teve muitas cartas. Examinou os
sobrescriptos, primeiro com o rosto incendido pelo giro alvorotado do
sangue; depois, á maneira que estremava as cartas, sobreveio o desmaio,
a pallidez do susto; e finalmente o turvamento, a prostração, o cair
alquebrado sobre uma cadeira, com os dedos recurvados na fronte, que
revia suores frios.

Aquietada a angustia, depois de enfurecidos impetos, Salter quiz
escrever, arrojou a penna, e levou as mãos á fronte, como a segurar uma
ideia consoladora.

--Vou a Portugal!--murmurou elle--fujo, deserto, perco-me, mas vou a
Portugal. Carlota está morta, ou atraiçoou-me!

Este projecto foi-lhe um desafôgo n'aquelle dia. Nenhum estorvo se lhe
avultava insuperavel. O governador chamara-o para lhe communicar as
ordens que recebera do governo e entregar-lhe officios do almirantado.
Dava-se pressa do reino ao capitão da real brigada em executar os
trabalhos commettidos, visto que Portugal ia ser compellido a reunir-se
com Napoleão na causa do continente. Era um prognostico da indecorosa
subserviencia com que, alguns mezes depois, a côrte portugueza rompeu
com Inglaterra, para, decorridos poucos dias, lhe pedir auxilio na
vilipendiosa e impolitica fuga.

Não invejamos a gloria do historiador portuguez d'esse tempo, pelas
nauseas e vergonhas que lhe ha de custar a narração exacta do
envilecimento a que descera a terra do marquez de Pombal. Se não fosse o
receio de enjoar o leitor, que lê um romance, cansado de ler livros com
ideias, escrevia agora aqui uns threnos plangentes sobre a patria de D.
João I e D. Manoel. Ainda me tolhe outro mêdo, e vem a ser o de me ver a
braços com difficuldades na resposta aos que me perguntarem se a patria
de D. Fernando I e Affonso VI valia mais em dignidade, primor, e
independencia que a do marido de D. Carlota Joaquina. Questões são estas
que desentoam aphonicamente da indole d'esta escriptura, mais que todas
sujeita a fazer-se ridicula, se dá ares de ser obra de quem sorve uma
conspicua pitada, para julgar depois os reis e os povos.

O que se quer é saber no que pararam os projectos de Francisco Salter de
Mendonça; se desertou, se morreu, ou transigiu com a desgraça.

Nenhuma das hypotheses.

No dia seguinte ao da intencionada fuga, o amante de Carlota Angela foi
visitado por um individuo, que disse ser natural do Porto, e ir liquidar
uma herança no Rio de Janeiro.

Mendonça acolheu-o com alegria, suppondo-o portador de carta de Carlota.
Disse o portuense que viera alli dar-lhe uma nova, talvez desagradavel
ao principio, mas estimavel, quando a reflexão desvanecesse os effeitos
da má noticia.

--Que é?--atalhou Mendonça--Estou preparado para o que for.

--Eu conheço Norberto de Meirelles, sou negociante como elle, e sei
todos os passos da sua vida. Soube que v. s.ª lhe pedira a filha em
casamento; soube que lh'a prometteu, para evitar que ella saísse
judicialmente; e tambem soube que elle roeu a corda, como costuma em
muitos outros contractos, quando o doutor Sampayo lhe participou de
Lisboa que v. s.ª era mandado para aqui. É isto verdade, ou não?

--É, pelo menos assim o creio; mas antes de mais nada, queira
responder-me a uma pergunta, para eu o ouvir com socego: D. Carlota
vive?

--Vive, e vive feliz, pois não vive!

--Feliz!... diz o senhor...

--Eu que o digo é porque o sei... Mulheres, meu amigo, mulheres! V. s.ª
espanta-se? Bem se vê que está ainda muito verde, e não conhece o
mundo... Longe da vista, longe do coração. As raparigas d'agora são como
as ventoinhas. Palavriado, e mais palavriado; novellas e mais novellas;
crendices e papagaices; e de tino e juizo nem para mandar cantar um
cego.

--Eu não entendo essa mistura de anexins com que o senhor está
retardando a nova que me traz. Tem a bondade de se explicar com a
possivel clareza?

--Lá vou, snr. Francisco Salter de Mendonça, lá vou; mas será bom que se
previna, se ainda me não adivinhou... A filha do tal snr. Norberto
confirma o dictado de que de ruim arvore, nunca bom fructo.

--Quer dizer que...--interrompeu, coriscando fogo dos olhos, o impetuoso
mancebo.

--O senhor vejo que se enfada... Estou arrependido de cá vir com
similhante...

--Com similhante commissão?!--concluiu Mendonça, erguendo-se em attitude
ameaçadora.

--Commissão!--gaguejou o interlocutor com sensiveis signaes de
surprendido.

--Sim!... diga o resto, quero ouvir o resto; mas depressa.

--V. s.ª está fóra de si!--tornou o atrapalhado homem, lançando a mão
ao chapéo e á bengala--Eu não vim aqui offendel-o, e v. s.ª recebe-me
de um modo que eu não mereço... N'esse caso retiro-me.

Mendonça, sofreando a cólera, tomou-lhe da mão urbanamente o chapéo, e
obrigou-o com branda coacção a sentar-se.

--Desculpe-me este desatino. O senhor, se alguma vez amou, deve
passar-me por esta escandecencia propria de um rapaz ardente, com o
coração ainda intacto d'essas punhaladas que, muito repetidas, chegam a
matar a sensibilidade. Estou de animo frio para escutal-o. Queira v.
s.ª continuar.

--Eu...--disse o portuense, disfarçando ineptamente o sobresalto--eu...
se aqui vim, foi para o desenganar... e mais nada...

--Pois muito lhe agradecerei o desengano, quando o senhor me disser o
engano.

--Pois não adivinhou ainda? O senhor é esperto, segundo ouvi dizer, e já
ha muito que devia entender que a tal menina não o amava.

--Entendi agora--disse serenamente Mendonça com habil artificio.--Mas,
como prova v. s.ª isso?

--Como provo?

--Sim, como prova? Eu creio tanto no amor de Carlota Angela, quanto
reputo v. s.ª um calumniador emquanto me não provar essa espantosa
novidade.

--As provas, n'este caso...

--São difficeis, bem o sei; mas o senhor ha de poder dizer-me: Carlota
não o ama, porque deu esta ou aquella prova de o não amar.

--A prova acho eu que é bastante dizer-lhe que ella, a esta hora, está
casada com outro.

--Essa é realmente a suprema das provas possiveis; mas, se lhe não
custa, conte-me os promenores d'esse casamento. Quem se diz tão
intimamente informado da vida de Norberto de Meirelles deve elucidar
melhor as cousas. Quem é o noivo de Carlota?

--O noivo...--tartamudeou o homem, enfiando de novo.

--É do Porto?

--Sim, senhor, é do Porto.

--Como se chama?

--Chama-se... esquece-me agora... v. s.ª de certo não conhece, ainda
que eu lh'o diga... é um rapaz do commercio, que mora....

--Sim, onde mora? Diga-me a rua, que eu o auxiliarei na recordação do
nome, porque sei os nomes de todos os pretendentes de Carlota. Mora na
rua de?...

--Na rua... de... ora que cabeça esta!... O senhor atrapalhou-me de tal
modo que me fez perder...

--Até a memoria das ruas! é original essa perda! Diga-me mais,
entretanto que lhe não lembra: Onde estava Carlota, quando o senhor saíu
do Porto?

--Onde havia de estar?... Estava em casa... e tinha estado no
convento...

--No convento de...

--No convento, sim, no convento de...

--Tambem perdeu a memoria dos conventos! Descanse, senhor portuense,
tome fôlego, e tranquillise-se, porque receio d'aqui a pouco, que nem do
Porto se lembre. Fallemos de outro assumpto. Como está Norberto de
Meirelles?

--Está bom, não ha mal que lhe chegue...

--Aquelle homem é rijo, sendo tão magro!

--Isso é verdade!

--E sempre tão pallido!

--Parece um defunto.

--Vejo que o senhor até perdeu a memoria do seu amigo Norberto!
Conhece-lhe os intimos segredos domesticos; mas não se recorda que elle
é gordo e vermelho! Estou maravilhado do muito que me conta! E D.
Rosalia continúa a cantar com aquella angelica voz que nós lhe
conhecemos?

O noticiador estava tolhido de mêdo. A esta ultima pergunta fez uma cara
de apiedar as feras. Salter cruzara os braços sobre o peito, cravara os
olhos nos olhos esgazeados do infeliz agente do bacharel Sampayo, e
mandara-o sentar. Á segunda vez, a offerta da cadeira era pouco urbana:
Mendonça pozera-lhe a mão no hombro direito, carregando com força
bastante para aterrar o ensoado hospede, que se julgara em perigo. Este
susto converteu-se em convicção de pancadaria certa, quando Salter
correu a lingueta da chave.

--O senhor treme como todos os miseraveis alugados para uma acção
infame. Não trema--disse Mendonça--que eu não lhe faço mal. Se o não fiz
saltar por aquella janella, quando proferiu com menos respeito o nome de
D. Carlota Angela, agora de certo o acompanharei até á porta da rua.

Mas conte-me a sua vida. Essa presença é inculcadora. O seu trajar é
limpo, e a natureza deu-lhe cara de homem de bem. Que officio tem o
senhor? Vive d'estas emprezas?

Responda com desabafo. Quem o mandou aqui trazer a noticia d'esse
casamento?

--V. s.ª... eu... obrigado pela necessidade...

--Diga; desengasgue-se d'esse nó de vergonha que tem na garganta. O
senhor está entalado! Ora vamos: dizia o senhor--forçado pela
necessidade...

--Deixei-me seduzir por um homem, que me mandou... aqui...

--Esse homem é Joaquim Antonio de Sampayo.

--O mesmo é verdade, é esse...

--Designadamente para o fim de me avisar que a snr.ª D. Carlota casava?

--Sim, senhor.

--E não o ensaiou para representar melhor o seu papel?... O senhor
executou miseravelmente a commissão do seu mandatario, e precisa de uma
leve correcção, para que ninguem mais se fie na sua destreza. O senhor
tem aqui papel e tinteiro. Escreva ahi, com clareza e verdade, o
programma que lhe deu o bacharel Joaquim Antonio de Sampayo.

--V. s.ª quer-me perder!... eu sou empregado na intendencia...

--E receia perder o emprego? Homens do seu quilate não se deslocam por
tão pouco. O senhor é um homem necessario ao Estado, e hoje mais que
nunca ao ajudante da intendencia, porque é depositario de um segredo que
o infamaria muito. Ora ande lá; escreva. Como se chama? deixe-me ver o
visto do seu passaporte.

O miserando biltre tirou do bolso uma carteira, e estendeu o braço
tremulo a Mendonça, que proseguiu, relanceando um olhar ao passaporte, e
outro furtivo ao hospede:

--Escreva lá: _Declaro eu Luiz José Godinho..._

A penna não escreve?!

O pallido Godinho é que não escrevia; e, se picara o papel muitas vezes
com o bico da penna, fora o tremor do pulso.

O silencio de Mendonça, esperando a tarda resposta, dera tempo a Godinho
para meditar um lance dos que a desesperação suscitam, quando ha a optar
entre dois perigos certos.

Francisco Salter, senhor de si, e ainda mais do cobarde animo do homem,
não se arreceiava do impetuoso salto que elle deu fóra da cadeira,
lançando mão da grossa bengala.

--Deixe-me sair, quando não, atravesso-o com este estoque!--exclamou o
transfigurado Godinho, desembainhando o longo ferro, e apontando-o ao
ventre de Mendonça.

O que susteve o official de marinha firme no seu posto, foi mais o
espanto que a bravura.

--Então?--bradou o amanuense da policia, livido e tartamudo como se
fosse elle o ameaçado--Abre-me a porta, ou não abre? Olhe que eu passo-o
de um lado ao outro!

Francisco Salter afastara-se; Godinho correra á porta, vendo
desapparecer o adversario; rodara a chave com feliz exito; galgava o
corredor que o devia levar á escada; mas na extremidade d'esse corredor
havia uma porta que se abriu: Godinho estacou um momento diante de
Mendonça, recuou o braço armado para impellir uma estocada porém a ponta
de um faim a duas pollegadas do peito, restaurou-lhe o juizo prudencial,
que perdera, um instante. Restava-lhe um expediente, talvez o mais legal
e propicio de quantos tinha: gritou aqui de el-rei que o matavam, a
berros de possesso, tres vezes, sem tomar fôlego.

--Cala-te, miseravel, que ninguem te mata!--disse Mendonça.

A força accumulara-se-lhe nos pulmões: era um gritar de homem que
estrebuxa quasi esganado.

--Vae escrever o que me disseste, canalha, e depois retira-te em paz.

--Aqui de el-rei que me matam!

--Então salta d'aquella janella abaixo, e diz ao bacharel Sampayo que te
recompense a fractura das pernas!

--Aqui de el-rei que me matam!

Mendonça, repuxando-o pela gola da casaca, arrojou-o para a escada, e
assentou-lhe com o salto da bota um rijo impulso no costado. Godinho
galgou oito degraus com destreza de funambulo, mas do oitavo para baixo
faltou-lhe o equilibrio, e resvalou de costas até ao patamar. Ahi, quiz
erguer-se; mas os musculos intercostaes desobedeceram á velocidade do
espirito. O primeiro amanuense da intendencia soffrera desagradavel
reforma na disposição das costellas: sem embargo, Azais notaria ahi uma
nova compensação: as cordas vocaes augmentaram de rigidez; os aqui de
el-reis eram cada vez mais estridentes.

Os visinhos e passageiros acudiram em tropel. Godinho pedia que o
levantassem e conduzissem a casa do conde dos Arcos, de quem era
hospede.

Hospede do capitão-general!

Isto inquietou Mendonça e desenvolveu a inergia caridosa dos
circumstantes. Qual d'elles mais carinhoso e diligente em saber a
offensa para depôr contra o offensor, porfiavam em conduzil-o nos
braços. Godinho dizia apenas, comprimindo as costellas, rebeldes ao
arquejar doloroso do diaphragma, que puxava por ellas:

--Sejam muito boas testimunhas que o snr. Francisco Salter de Mendonça
me quiz matar, em sua propria casa!

Conduziram-o uns, e ficaram outros, em grupo, á porta de Mendonça, e
defronte das janellas, contando aos que passavam a tentativa de
assassinio perpetrada pelo official de marinha.

Luiz José Godinho trouxera da intendencia carta de apresentação ao conde
dos Arcos, e outras confidenciaes, sobre negocios do Estado. O
governador hospedara-o com distincção, julgando-o digno da hospedagem
pela confiança que apparentava merecer a Manique, e conhecimento, que
tinha, da causa mysteriosa por que Francisco Salter devia, a todo o
custo, ser retido no Rio de Janeiro, sob qualquer pretexto.

Uma hora depois d'este successo, cujas consequencias não surprenderam o
imprudente moço, o capitão da real brigada foi chamado á presença do
governador, e interrogado ácerca dos motivos que lhe dera Luiz José
Godinho para tamanha ferocidade, em sua propria casa, que deve ser asylo
sagrado até para inimigos, quando se é cavalheiro. Mendonça, enfadado
pelo ar supercilioso do interrogatorio, respondeu que fosse inquirido em
sua presença o offendido, que era essa a praxe da lei.

O governador espinhou-se, e mandou recolher á cadeia o official, para
ser entregue aos juizes do crime.

Francisco Salter de Mendonça não grangeara amigos nem protectores no Rio
de Janeiro. O seu viver fora intimo e só, fóra do serviço. Entretinha-o,
na soledade, a amargura.

A justiça ouviu com sobrecenho a defeza do joven official, e achou a
justificação inferior ao delicto. Godinho negava ter confessado o
embuste para que viera commissionado pelo ajudante do intendente geral
da policia. Os magistrados, porém, convictos de que o offendido era
pessoa bemquista de Manique, patrono de alguns, e amigo de outros,
negaram ao preso, em ultimo recurso, o direito de se defender de um
estoque.

Mendonça escreveu para o reino; mas Godinho voltara, são e correcto das
costellas, no paquebote em que vinham as cartas: quem as viu e queimou
foi o bacharel Sampayo.

A situação do amante de Carlota Angela era extremamente infeliz.

Ao cabo de quatro mezes de carcere, sem novas do reino, nem absolvição
da culpa, perdera o animo e a esperança.

Já lhe não era lenitivo o escrever no seu diario, porque a dor, ao
encadeiar-se na desesperação, seu derradeiro elo, quebrou no coração as
cordas onde soava o gemido.

Depois veio a furia, que contorce e despedaça, o impotente raivar contra
os homens e contra Deus, a tentação do suicidio, combatida pela imagem
de Carlota, mas de novo irritada, a cada navio que chegava, sem uma nova
d'ella.

Mendonça tinha um amigo. Era um escravo alugado que o servia, um negro
que lhe passava os alimentos, e chorava encostado aos ferros, porque não
sabia consolal-o.

Era o preto quem lhe trazia as cartas dos amigos do reino, ignorantes da
sua prisão, e implorava aos juizes a liberdade do preso; alcançando
apenas para si repellões desprezadores e, muitas vezes vergoadas de
chibata sobre as lagrimas.

O escravo offerecera-se a Mendonça para vir a Portugal com cartas. Esta
vinda seria uma fuga, porque o dono do preto, sem um deposito
equivalente ao valor da cousa, não consentiria a sua saida, e Mendonça,
desprovido de meios para a sua subsistencia, não podia garantir com
dinheiro a volta do escravo...

Conspirava tudo contra o desamparado moço. O proprietario do negro,
receioso de perder o aluguer, visto que Mendonça lhe não pagara um mez,
chamou a si o escravo. Francisco vendeu o que podia merecer o preço
mensal do seu unico amigo, e continuou a ver, perto de si, aquelles
olhos reluzentes de lagrimas, lagrimas que lhe faziam bem ao coração,
porque o mais desgraçado dos homens é o que não tem sequer por si o
olhar compadecido de um cão.

Entretanto o escravo ideiara o arrojo de vir a Portugal, fugindo.

Trabalhava na difficil execução d'essa traça, quando a escuna
_Guerra-voador_ chegou ao Rio de Janeiro com a nova de que o principe
regente saíra de Portugal para estabelecer a côrte n'aquelle porto.

Foi o escravo quem primeiro levou esta nova ao carcere.

Francisco Salter apertou a mão do negro e disse:

--Seremos ambos livres, meu amigo.




X

     Não ha coração sem amor; ou seja a Deus ou seja ao mundo, ha de
     amar quem tem coração.

                          Fr. Antonio das Chagas. (_Obras espirituaes._)

     Vêde agora se ainda persistis em vossa pretenção, porque, se este
     modo de viver vos não contentar, tendes liberdade para ficardes no
     estado em que até agora vivestes.

                        (_Ceremonial da congregação dos monges negros._)


E Carlota Angela?

Não dorme ainda o suspirado somno da morte sob a lagem humilde do
claustro. Vive a vida que faz compaixão, e, nas pessoas que amam, excita
o piedoso desejo de a verem alar-se para um mundo melhor.

Creram-a moribunda em frequentes accessos: Rufina, Dorothea, e todas as
religiosas de S. Bento lhe deram o beijo da despedida, na face
cadaverica, muitas vezes. Se, por instantes, tibio clarão de vida lhe
retingia o rosto, é que a labareda da febre ahi vinha emprestar-lhe uma
reanimação convulsa, á qual succedia o esvaîmento, com o suor frio do
traspasse.

As orações eram contínuas. A communidade ia do quarto de Carlota para o
côro, e do côro tornava ao quarto em ancias e esperanças que o fervor da
oração lhe dera.

De uma vez, encontraram-a tranquilla, risonha e desopprimida. Uma a uma,
Carlota chamou-as á beira do leito, apertando-lhes a mão, e murmurando
uma palavra inintelligivel.

Ás que choravam pedia que a não lastimassem, porque ella estava
consolada com a esperança de descansar. Ás mais idosas, e veneraveis por
sua santa vida, supplicava que a protegessem com os seus merecimentos,
pedindo ao Senhor que lhe descontasse nas da outra as penas d'esta vida.

Perguntava pela mãe, mas, se lhe fallavam do pae, se lhe diziam que elle
vinha todos os dias saber d'ella, Carlota franzia a testa, e dava sustos
de crescimento febril.

Soror Rufina esperava que ella lhe fallasse de Francisco Salter;
Dorothea, a carinhosa noviça, aventurava algumas palavras allusivas;
Carlota, porém, nunca permittiu á primeira, com o seu silencio, proferir
tal nome; e á segunda, debulhando-se em lagrimas, fazia com a mão um
signal de não poder ouvil-a.

Uma tarde, as duas meninas passeiavam no pomar: era a primeira vez que a
filha de Norberto de Meirelles saía do seu quarto.

--Quando professas tu, menina?--disse Carlota.

--D'aqui a tres mezes.

--Já? Vens a ser freira, mais velha do que eu nove mezes; mas ainda
temos tres mezes de companheiras de noviciado.

--Pois queres professar, Carlota?!

--Quero, Dorothea, quero; se me não valesse essa esperança, estava
morta. Já agora, o que me resta n'este mundo é o bem de me julgar perto
de outro: d'aqui até lá, quero estar vestida com a minha mortalha,
pedindo ao Senhor que... dê o céo...

Carlota, entalada por subitos soluços, não proseguiu.

--Diz, minha amiga... tu não me dizes tudo--acudiu Dorothea, abraçando-a
com estremecido amor--ias fallar n'elle?... por que foges de me dizer
que ainda o amas no céo?!

--Fugia de t'o dizer, Dorothea, porque o teu coração não póde avaliar
que amor era este que perdôa a um ingrato, e daria a vida para o
restituir ao amor de outra infeliz que o amou e o perdeu como eu o amei
e perdi. Mais desgraçada que eu ha uma só pessoa: é a mulher que o
adorava; e mais desgraçado que ella e que eu, é elle, o infeliz, a quem
tão pouco tempo o Senhor deixou gosar a mulher que o mereceu mais digna
do que eu fui, e não teria, talvez, um pae que a aviltasse aos olhos
d'elle.

--Como o teu coração é bom, Carlota!

--Bom? quem sabe! desgraçado, sim, ou diz antes, Dorothea, que já não é
coração; só sinto a minha alma, só sinto este desejo do céo; recordo
quanto amei, quanto soffri, e tudo aceito, e o mais que soffrer, com o
contentamento de uma penitente.

--Pois verás que ainda havemos de ter dias de alegria, Carlota!
Adopta-me como tua irmã; viveremos tão queridas e juntas, fallaremos
tanto do que sentirmos triste ou agradavel, que chegaremos a gosar a
existencia...

--Não penses isso, minha amiga... Eu não quero dar-te quinhão das minhas
amarguras. O meu curto viver ha de ser muito oppressivo para as pessoas
que me estimarem. Muitas vezes te fugirei, porque o chorar de uma
infeliz, como eu, precisa ser desafogado, sósinho, e aos pés de Deus.
Alegria? jámais, jámais, Dorothea... Bemdito seja o Senhor, que me dá
esta casa para acostumar a minha alma a adoral-o, e me deu aqui exemplos
de virtude, sem os quaes, fóra do convento, tinha-me tirado a vida n'um
d'aquelles frenesis de que tremo com a lembrança.

Estas palavras foram ditas com serena melancolia; porém decorrido breve
intervallo de silencio, Carlota rompeu em gemidos, lançando-se ao seio
de Dorothea.

--Que tens, Carlota? Ainda agora estavas tão socegada!...

--O que em cinco mezes se tem passado!--soluçou ella--Morto! é possivel
que elle já não viva!... que eu esteja aqui, eu, meu Deus, eu que o
adorava até á perdição! e pôde elle abandonar-me, esquecer-se da pobre
Carlota! Isto não póde ser, Dorothea!... eu nunca o vi morto nos meus
delirios, nunca, nunca o vi senão como na ultima vez que lhe fallei,
jurando-me um amor eterno... Será isto uma falsidade? Será meu pae que
prefere matar-me!? Diz, Dorothea, não te parece muito possivel esta
crueldade!

--Póde ser, Carlota!... quem sabe?! Olha, filha, tudo se ha de saber com
o tempo... Tem esperança, sim?

--Nenhuma!--replicou ella, caíndo da instantanea exaltação--não tenho
esperança nenhuma! Se elle vivesse escrevia-me. É certo, é horrivelmente
certo que não vive, que me desamparou, que foi castigado com a morte por
ter assassinado uma amiga que se perderia por elle... Está tudo acabado,
tudo, meu Deus, menos este peso de vida com que já não posso...

Carlota Angela recolheu-se taciturna ao seu quarto, e escreveu a sua mãe
uma breve carta, em que lhe pedia o consentimento de seus paes, e as
licenças necessarias para entrar no noviciado.

D. Rosalia quiz procurar Carlota; Norberto de Meirelles, receiando que
sua mulher deixasse escapar algum ligeiro indicio de viver Francisco
Salter, encarregou-se da resposta. Estas suspeitas fundavam-se nas
querelas continuadas em que andavam, por causa de Carlota. D. Rosalia,
algumas vezes, reprovara o zelo de seu irmão, e dureza do marido,
mórmente depois que a freira lhe vaticinara a morte de Carlota.
Norberto, escarnecendo, com lerdo desdem, o prognostico, impunha
grosseiramente a D. Rosalia o calar-se, até ver em que paravam os taes
fanicos da rapariga.

Depois, porém, que a viu convalescer, o arrozeiro chasqueava os
vaticinios da cunhada, e aceitava de melhor vontade a proposta da filha,
na esperança de a curar da loucura, durante o anno do noviciado, com os
recursos que o cunhado doutor promettia espiritar-lhe, consoante o
andamento do tempo, bom para tudo.

Antes, porém, de diligenciar o contracto do noviciado para a filha,
Norberto de Meirelles mandou-a chamar, e Carlota, admoestada brandamente
por soror Rufina, obedeceu.

--Vamos a ver, menina, que mania é essa de seres freira?--disse elle.

--Isto não é mania, meu pae, é aceitar com reconhecimento a consolação
unica, e a melhor que Deus me dá n'este mundo, com esperanças de outro
melhor.

--Beatices que te metteu na cabeça tua tia... Deixa-te d'isso, Carlota;
o convento é para quem é. Nunca te vi inclinação para este modo de
vida...

--A religião não é modo de vida, meu pae, é regra de vida.

--Não me dês sentenças, menina. Eu bem sei o que digo. Olha que isto
aqui é para sempre. Se professares, não tens remedio, ainda que te
arrependas; é d'aqui p'ra Christo.

--Pois d'aqui para Christo é que eu quero ir, meu pae. Saiba que é
inutil contradizer-me. A força que eu sinto em mim para ser freira é
invencivel. Não me tolha a alegria, se é alegria este santo desejo de
vestir o habito. Os obstaculos podem mortificar-me, mas não mudam o meu
proposito. É escusado embaraçar-me. Offereci-me ao Senhor, quando cuidei
de morrer de dor, pedindo-lhe allivios; senti-os, o Senhor apiedou-se de
mim; é que a misericordia divina me aceita do modo que eu mais digna me
posso fazer de morrer em paz.

--Isto passa-te, Carlota. Como tens de ser noviça um anno, veremos como
se te reviram as ideias.

--Pois sim, meu pae; se eu me não achar com forças de servir a Deus,
dir-lh'o-hei, e sairei do convento.

--É o mais certo, e verás como te ha de parecer bom isto cá de fóra. Tu
és bonita, és rica, és prendada, podes casar...

--Meu pae! por quem é não continue...

--Então que tem isso? Já cá te disseram que o casar é crime? Boa vae
ella! Ainda ha seis mezes que estavas n'outras ideias...

--Se o pae faz gosto em atormentar-me, diga o que lhe parecer, que eu
escuto-o; mas se me tornar a procurar, eu não venho aqui...

--Isso é modo de fallar a teu pae, Carlota! Cá dentro ensina-se a dizer
isso a quem te creou, e trabalha para ti ha trinta annos? Cuidadinho
commigo, menina! Eu tanto tenho de bom como de mau. Se tua tia cuida que
eu sou um mono de palha, engana-se...

--Que mal lhe fez minha tia?

--Que me fez?! Encheu-te essa cabeça de teias de aranha, lá com as suas
arengas do beaterio, e deu-te auso a responderes com poderio a teu pae!

--Eu não o offendi...--atalhou ella, chorando--Pedi-lhe que não fizesse
sangrar uma ferida de que estive á morte... Quem for meu amigo, ha de
querer que eu ache allivio em alguma cousa; se a religião m'o dá,
deixem-me ser freira, e não me fallem em casamentos impossiveis. Ora
aqui está o que eu supplico a meu pae; se isto o offende, perdôe-me; e
se é offendel-o não vir á grade para ouvir palavras que me amarguram,
virei todas as vezes que o pae quizer.

--Está bom; basta de chorar. Vae-se tratar dos arranjos para o teu
noviciado. Deus lhe ponha a virtude, e te guie para o que for melhor. Eu
ainda espero ter-te commigo, alegre e folgazã como eras antes de
conhecer esse homem que...

--Meu pae!

Carlota Angela erguera-se sobresaltada, e Norberto estacou, sopeando a
ira que lhe espertara a vehemencia, um pouco soberba, da filha. A ira
degenerou em um sorriso, cuja versão não acho no meu elucidario de
sorrisos sandios.

O arrozeiro, receioso de _esbarrondar-se_, como elle depois dizia a D.
Rosalia, saiu da grade, onde a filha permaneceu longo tempo enxugando as
lagrimas, para simular socegado o semblante.

Um mez depois, entrava Carlota Angela, com a mestra de noviças e a
cantora, no côro, onde se reunira a communidade.

A dona abbadessa empunhando o bago, insignia magestosa da prelazia,
estava no tôpo das duas alas de religiosas, solemnes e magnificas com
suas roçagantes cogúlas. O clarão tremente dos cirios banhava o recinto
de baço esplendor e sombras magestosas.

A tres passos distantes da prelada, que lhe sorria com maternal caricia,
Carlota prostrou-se com a face em; terra.

A humildade com que fizera a reverencia, o subito rompimento das
lagrimas, que a noviça não podera represar, a voz compungida da prelada,
proferindo o _quid petis_, e o soluço tremido de Carlota, respondendo
_misericordiam_... «a misericordia de Deus e a vossa», a terrivel
magestade do silencio, durante as genuflexões da noviça; todos estes
actos, impressivos de religiosa melancolia, tocaram o coração das
religiosas a ponto de correrem lagrimas por todas as faces, no momento
em que a prelada, commovida como todas, disse a Carlota, ainda ajoelhada
ante si: _Surge_, «levanta-te».

A noviça voltou-se com as duas religiosas para o altar-mór, enxugou as
lagrimas emquanto fazia as reverencias do ceremonial, ajoelhou de novo
aos pés da prelada, que proferiu uma breve pratica ácerca das
gravissimas obrigações que a noviça contrahia com o promettido esposo.
Carlota ouviu-a com as mãos erguidas, sem levantar os olhos para o rosto
venerando da abbadessa, onde a graça, ternura e o sorriso da bondade
eram um como suave encarecimento ás virtudes que aconselhava, e estimulo
para merecer no céo o galardão de as praticar.

Carlota lançou de si o sumptuoso vestido, e os enfeites da cabeça. Longa
e farta trança de cabellos negros se desenrolou até á cintura. Uma
freira tomou a tesoura, e de dois golpes lhe cerceou a trança, que depôz
em uma bandeja. A mestra de noviças cingiu-lhe a touca branca, e a
prelada lançou-lhe aos hombros o habito ou mantilha. Carlota, durante
este acto, parecia não sentir, não perceber a profunda e dolorosissima
significação que elle deve ter para a mulher expulsa dos prazeres do
mundo, onde todas as suas esperanças foram cruelmente desmentidas.

Estavam de joelhos todas as religiosas, ella, entre a mestra e a
prelada. As cantoras entoaram o hymno: _Veni, creator spiritus_. Era um
canto melancolico acompanhado a orgão; um mystico e lagrimoso offertorio
da alma atribulada ao supremo consolador das angustias. Cantada a
primeira estrophe, ergueram-se todas, excepto a noviça. Seguiram-se os
versiculos e orações entoadas no côro e no altar-mór. A mestra de
noviciado dissera a Carlota que se levantasse, terminada a ceremonia; a
noviça, porém, continuava ajoelhada com as mãos entrelaçadas sobre o
peito. Recommendaram-lhe de novo que se erguesse, vendo que ella
estremecia, como se já não podesse sustentar a violencia da posição.
Carlota não se erguia, até que lhe deram a mão, e encontraram frias de
neve as d'ella. Fizeram vão esforço para levantal-a, algumas freiras que
a rodearam. Carlota não respondia, apenas respirava; quiz obedecer ao
impulso que lhe davam para erguer-se, mas á pallidez, ao turvamento da
vista, seguiu-se o desmaio.

Soror Rufina, Dorothea, e as outras ergueram o alarido do susto. Na
igreja estava a mãe de Carlota, escondida na sua mantilha, chorando,
recitando Padre-nossos machinalmente, e promettendo a Deus confessar-se
da sua culpa, se era culpa ter occultado a sua filha o engano que o tio
doutor lhe urdira, arranjado com o pae.

Quando, porém, os ais do côro chegaram aos seus ouvidos, com as
exclamações afflictas de Rufina, D. Rosalia saíu da teia de um altar,
veio ás grades do côro de baixo, e rompeu em brados desentoados,
chamando a filha. O capellão-mór, vestido de sobrepeliz, estola e
pluvial, veio lembrar á lamuriante senhora, que a sua gritaria não era
propria da casa de Deus. D. Rosalia replicou, menos commedida, que
queria cá fóra sua filha, viva ou morta. E n'esta altercação estiveram
ella e os capellães, recreando uns e fazendo chorar outros dos
circumstantes, até que soror Rufina e outras freiras vieram á grade do
côro aquietar a mãe de Carlota, dizendo-lhe que o incommodo fôra um
passageiro desmaio.

E assim fora, felizmente.

Carlota voltou a si, quando a mãe gritava. Os brados fizeram-a sair do
côro vacillante e alvoroçada. Quizeram encaminhal-a á cella; mas Carlota
sabia que era costume ir a noviça, finalisada a ceremonia, visitar as
doentes.

Foi; e ás mais enfermas pedia que, se o Senhor as chamasse brevemente,
rogassem a Deus que a levasse para si.




XI

     Pois ainda não ouvistes de seu valor o maior encomio.

                José de Sousa (o cego). (_Obras posthumas._)

     Vereis amor da patria... etc.

                                Camões. (_Lusiadas._)


Junot, a marchas forçadas, esperançoso ainda de obstar á saida da
familia real, ia sobre Lisboa. A regencia desnorteou com a imbecilidade
rara de que era dotada; a classe média, presumindo a tyrannia proxima,
ainda quiz debalde oppôr um dique á invasão; mas a populaça, sedenta de
anarchia, onde sevar temporariamente os vis instinctos, remoinhava,
alegre e enthusiastica, rugindo como o tigre que fareja o sangue.

Joaquim Antonio de Sampayo foi, n'essa época, a preexistencia dos
grandes homens, das summidades estadistas dos ultimos vinte annos.
Avaliando quanto difficil seria acertar com o caminho seguro na
encruzilhada das perspectivas politicas, não preferiu algum, e
aceitou-os todos como conducentes á prosperidade, quando a fortuna,
filha da velhacaria, vem, de puro namorada, emendar as asneiras do seu
predilecto.

Sampayo lamentava com Manique o desamparo em que ficara o reino pela
impolitica e precipitada fuga do principe regente. Incriminava com os
fidalgos a cobardia de similhante desaire para o paiz dos Pachecos e
Albuquerques. Ouvia com acquiescencia os murmurios da nobreza contra a
dynastia bragantina, murmurios timidos, que mais tarde se formularam
n'uma vilipendiosa petição, requerendo ao usurpador um rei da sua
escolha, e nomeadamente o general Junot, que comprara consciencias tão
degeneradas como a do conde da Ega, e do bispo do Porto, Antonio.

Com a classe média, Sampayo bociferava contra os francezes, e promettia
sacrificar nas hecatombas da patria a sua ultima pinga de nobre,
generoso e patriotico sangue. Todavia, exhausto o fôlego das imprecações
retumbantes, e accendida a flamma do heroismo nos peitos burguezes que
se apinhavam nas praças, Sampayo, passando da iracundia ao reflectido
exame das circumstancias, dizia que a sublevação popular seria um
desatino sem proveito, um sacrificio de vidas e fazendas intempestivo e
inglorio para as quinas lusitanas. Sobre isto, vinham os conselhos de
homem que privava no segredo dos destinos de Portugal, conselhos de
paciencia, de resignação, e, mais que tudo, de maxima prudencia na
entrada de Junot.

Relacionado com a plebe, em razão do seu ministerio na intendencia geral
da policia, o antigo advogado da rua de Santa Catharina insinuava-se nos
grupos desordeiros e respondia com impertigamento de oraculo ás
perguntas desconchavadas que lhe faziam. Napoleão, dizia elle que não
era o impio que se dizia. Napoleão, e os seus generaes, não saqueavam as
igrejas, nem arrombavam as portas dos conventos de freiras, nem
violentavam a virtude das donzellas, nem attentavam contra a liberdade
do povo. Pelo contrario--continuava elle, baixando cada vez mais a voz,
e relanceando o olho observador por sobre as physionomias suspeitas que
chegavam de novo--pelo contrario, Napoleão queria mudar a face das
cousas em favor das classes opprimidas, chamando o povo á partilha dos
regalos e direitos que a classe nobre lhes viera usurpando pouco e pouco
através dos seculos. Dito isto, o povo rompia em vivas a Napoleão, e
acclamava general o doutor Sampayo, que se esgueirava surrateiramente
pela primeira brecha que a agitação lhe proporcionasse.

D'alli, ia á intendencia dizer a Manique o fermento que azedava os
rasteiros instinctos da canalha. Alvitrava o emprego da força armada
para dispersar os bandos, com prudencia; e, compungido de patriotica
lastima, deplorava o indiscreto arbitrio dos palacianos que aconselharam
ao principe uma fuga tão calamitosa no instante em que o prestigio da
nacionalidade estava na presença do soberano.

Fora nomeada uma deputação para cumprimentar Junot. Além dos
expressamente enviados pela regencia, Joaquim Antonio de Sampayo
associou-se na deputação com alguns particulares, que se davam pressa em
depôr aos pés do invasor a porção infame do paiz que elles
representavam.

O ajudante do intendente arremedava a lingua franceza, e fazia-se
entender melhor que o deputado da regencia, o tenente-general Martinho
de Sousa e Albuquerque.

Junot, em Sacavem, chamou Sampayo a uma conferencia particular, e
informou-se de cousas que a deputação não elucidava por astucia, ou por
ignorancia da lingua. O certo é que o general francez, maravilhado do
bonapartista, ou da torpeza do informador, julgou-o necessario,
agradeceu-lhe com um aperto de mão os serviços prestados ao reformador
da Europa, e prometteu-lhe acrescental-o, quanto em si coubesse, em
honras e fazenda.

Chegados a Lisboa, as proclamações que circulavam entre a populaça eram
de Sampayo. N'ellas se aquietava o espirito publico, dizendo-se que o
excellentissimo senhor Andoche Junot, heroe de Toulon e de Nazareth, era
o emissario da paz, da ordem, e da prosperidade portugueza; que a
propriedade era sagrada para o exercito do imperador da França; que a
virtude das virgens, e das menos suspeitas d'esse respeitavel estado,
era inviolavel; que ninguem fugisse de suas casas, nem viesse para a rua
fazer assuadas, algazarras, ou outras que taes manifestações de desordem
e descontentamento.

O bacharel Sampayo ajudara, na vespera do embarque da familia real, a
encaixotar as pratas da patriarchal, que deviam acompanhar os reaes
emigrados. A celeridade, porém, do embarque, fez que os quatorze carros
de preciosos objectos ficassem no caes de Belem, e voltassem, com grande
jubilo do cabido, a serem armazenados na sacristia da igreja. Sampayo,
emquanto se encaixavam as riquissimas bandejas, castiçaes, corôas,
lampadas, etc., resistira heroicamente aos assaltos da ladroice, que lhe
estavam segredando o modo de empalmar algumas peças miudas de
preciosissimo trabalho. Pôde sopear a tentação; mas não via, sem grande
mágoa, confiar-se aos caprichos do oceano uma carga tão valiosa. Um tal
ou qual allivio o desopprimiu da sua pena, quando viu ficarem em terra
os carros, e voltarem depois a despejarem a prata sob o tecto protector
da sua igreja. Sampayo, a proposito d'isso, asseverou ás freiras de
Santa Anna, onde almoçava todos os dias, que andava alli milagre
n'aquella reconducção! Não acreditava elle, porém, que o milagre fosse
perfeito e averiguado, emquanto um bom quinhão d'aquella prata não
entrasse em casa d'elle. Convencido do «trabalha, que eu te ajudarei», o
bacharel concorreu quanto em si cabia para que o milagre se completasse.

O processo não deixa de ser engenhoso: «engenho» é a palavra com que a
civilisação, ainda então embryonaria, substituiu a palavra «ladroeira»
dos costumes, das biographias, e das acções humanas, que, por força do
progresso, hão de ir perdendo a nomenclatura aspera e illogica que lhe
davam os gothicos moralistas de carcomida memoria.

O engenhoso Sampayo (diga-se assim de um homem que merece o respeito que
se presta aos contemporaneos, apesar do seu atrazo de meio seculo), o
engenhoso bacharel pediu uma audiencia particular a Junot, e
denunciou-lhe a existencia de quarenta caixões de prata na igreja
patriarchal.

Junot chamou seu cunhado, que por signal se chamava Jufre, e
commetteu-lhe o encargo de sequestrar a prata, associado ao serviçal e
benemerito denunciante.

Os dois, com alguns operarios de confiança de Sampayo, entraram na
igreja, fecharam-se cautelosamente, e arrombaram os caixões, excepto
dois, que não foram inventariados, ou o denunciante se encarregou de os
inventariar em sua casa, para onde foram transportados, ao escurecer.

Completou-se d'esta arte o milagre, que Sampayo, em beatifico extasi,
agradeceu toda a noite, contemplando uma a uma as formosas e corpulentas
peças que tencionava fundir em baixella de seu serviço, quando melhores
dias de ordem e tranquillidade fossem concedidos ao desgraçado Portugal,
que elle continuava a prantear com as freirinhas de Santa Anna.

Dera-se, entretanto, o costumado reviramento na opinião da plebe.

Junot não sabia, não podia, nem devia esconder as suas intenções
usurpadoras.

A bandeira franceza fora arvorada no castello de S. Jorge. As armas
reaes do arsenal foram picadas. Do parapeito do seu camarote abaixo,
Junot desenrolara as aguias vencedoras. As costas populares, n'uma
desordem do Terreiro do Paço, tinham sido apalpadas pelas cronhas
francezas. Nove portuguezes tinham sido espingardeados nas Caldas.

Dissolvida, em summa, a regencia, fora inaugurado o governo de Napoleão.

A populaça, portanto, bramia, e sobretudo, porque a sua força era nulla,
o seu poder desprezado, a sua fome e sêde cada vez mais insaciavel pela
careza dos generos. Havia um só meio de entreter-lhe as sanhas, ou
captar-lhe as sympathias: era quebrar os poucos esteios da ordem,
defendidos ainda pelas armas francezas, era facilitar o saque por meio
da anarchia.

A plebe, quando lobrigava Sampayo, cercava-o, pedindo-lhe conta das
promessas que elle fizera. O expedito bacharel desfazia-se dos
importunos, recommendando-lhes paciencia, e esperança nos serenos dias
que se haviam de seguir á crise indispensavel n'uma instituição de
principios novos, creada expressamente para o bem geral.

O povo ouvia-o com escarneo, e apupava-o, quando elle abria com os
hombros passagem para escapar-se.

Uma vez, porém, passava o bacharel na rua da Amendoeira, onde, por esses
tempos, se arruava a escoria das meretrizes, e se abandoavam os
condignos hospedes. Conheceram-o, e fizeram-lhe assuada.

Um gaiato de maus figados, instigado pela celeuma, saltou ao costado do
bacharel, e enterrou-lhe, com retumbante penantada, o chapéo até aos
queixos. A gargalhada publica victoriou o garoto, incitando-o a maiores
emprezas, e aguçando o estimulo dos emulos. Outro gaiato, cioso dos
applausos, capeava-o pela frente com um lenço vermelho de uma meretriz,
emquanto um terceiro, um quarto e um quinto lhe achatavam o chapéo, que
já não podia restaurar o antigo prumo. Uma alcouceira lançava-lhe ao
tiracollo uma restea esbrugada de alhos, emquanto outra lhe mettia na
portinhola da casaca, uma couve lombarda. Esta por um tubo de lata lhe
assoprava feijões á cara, emquanto outra lhe pendurava um rabo-leva de
papel na casaca, ou lhe esguichava fetidas aspersões com a seringa
carnavalesca.

Sampayo gritava por soccorro. Alguns soldados portuguezes e hespanhoes,
que por alli estanciavam, mantinham a neutralidade, ou riam á socapa do
infeliz gêbo. O bacharel, vendo passar uma guarda de soldados francezes,
bradou ao commandante, dizendo-lhe em francez que era victima da
canalha, porque adorava Napoleão.

O francez varejou com a espada as costas dos gaiatos; porém, as
rameiras, o povo, os gaiatos, animados pelos soldados portuguezes e
hespanhoes, fizeram menção de apedrejar os francezes. Travou-se uma
sanguinolenta desordem, á qual Sampayo deveu a evasiva.

A cólera não lhe deu respiro, até entrar no palacio de Junot. Queixou-se
amargamente, dizendo que os amigos da França eram as primeiras victimas
dos inimigos do imperador, n'um paiz de que Junot brevemente seria o
monarcha.

O governador de Portugal enviou Sampayo ao intendente geral da policia
Lagarde, com especial recommendação, e poderes discricionarios.

Dos soldados portuguezes, alguns foram lançados na enxovia, outros
deportados, e as meretrizes da rua da Amendoeira, rua Suja, e
immediatas, depois de rapadas á navalha, e vergastadas no pateo da
intendencia, foram desterradas para o Alemtejo.

Parece-nos opportuna n'este logar essa pagina ridicula da biographia de
um homem, que merecia ter mais ampla chronica, em vista do tragico
desfecho que no proximo capitulo se dirá.




XII

     Nous en avons les preuves irrécusables sous nos propres yeux.

                                      Volney. (_Leçons d'Histoire._)

     Eis-aqui como o diabo os leva para o inferno sem appellação nem
     aggravo.

                  S. S. da S. e Silva. (_Governo do mundo em secco._)


Junot recebera do imperador a graça de duque de Abrantes. Felicitaram-o
as corporações civis e militares, e muitos particulares da alta nobreza,
mercancia que o francez fizera sem blandicias nem razões de Estado
persuasivas. A consciencia d'estes miseraveis transigira com o renegar
tradições, nome, patria, pudor, e honra, logo que as palavras
«contribuição e confisco» os ameaçou de expiarem na dureza das nobres
privações a repleção estomacal de seculos. O conde da Ega, Ayres de
Saldanha, o bispo do Porto, o principal Miranda, e outros que mais
avultam na veniaga torpe, são uma parcella no rebanho das ovelhas
tinhosas, immoladas na sua dignidade aos pés do soldado aventureiro, que
lhes cuspira na cara o preço das almas, e nas quinas portuguezas a
affronta d'elles.

Emquanto estes, envilecidos como nunca fora nação usurpada, pediam a
Napoleão um rei francez, e nomeadamente Junot I para a terra de D. João
I e D. Manoel; emquanto os fidalgos de sangue phenicio, carthaginez,
suevo e godo, sem mescla do judaico, requeriam a Junot os empregos
desamparados por outros fidalgos, que acompanharam o regente para o
Brazil, aterrados de pavor, e, como elle, acocorados ao pé das velhas
açafatas de D. Maria I; quem eram os portuguezes de consciencia e
esforço n'esta nação desmembrada, n'esta metropole de tamanha parte do
mundo, offerecida pelos netos dos que a conquistaram a um soldado
francez?

Alguns ergueram a fronte, sem o ferrete da venda, por entre a turba dos
nobres, que a devassidão herdada enfraquecera e deixara caír no tremedal
d'onde o historiador severo ha de buscal-os para os inscrever no livro
dos paroxismos vergonhosos da raça de piratas, que pouco tempo logrou o
fructo dos seus flagicios.

Esses, que levantaram o rosto sem mancha, para saudar no throno
reerguido o degenerado neto do Mestre da Aviz, eram uma classe menos
timida que a do vulgacho, a mais quieta na sua obscuridade, a que fora,
nos dois ultimos seculos, pouco e pouco espoliada dos seus antigos fóros
municipaes, a classe média, emfim, cuja importancia na cidade
delimitava-se a engrossar a veia da thesouro.

Foram esses homens, robustos de seiva e espiritos nacionaes, os unicos
que se concatenaram em reacção, surda e tenacissima na oppressão, contra
os tyrannos; foram esses os tributarios liberaes de fazenda e sangue á
restauração duvidosa do throno, que lhes pediu, depois, com que reparar
o antigo fausto; foram, para tudo dizer de um traço, foram elles os que
nunca esmoreceram no resgate da terra captiva do Encelado, que quizera
abarcar o mundo entre as duas extremidades da sua espada invencivel,
salpicada com o sangue de nações poderosas.

O bacharel Joaquim Antonio de Sampayo (é de quem o leitor supercilioso
quer que se lhe falle, e da melhor vontade me dispensa de reflexões
impertinentes, que me manda pôr de conserva para quando escrever um
livro serio, grave, e reflectido, que ninguem ha de comprar): o bacharel
Joaquim Antonio de Sampayo vestiu-se á côrte, de chapéo armado, espadim,
meia de seda, e fivelas de prata. Disseram que estas fivelas tinham
pertencido a um santo da patriarchal: isto parece-nos calumnia.
Folheamos, e esgaravatamos o agiologio europeu, e não deparamos santo
contemporaneo das fivelas. O historiador veridico rejeita, como Tacito
na biographia dos grandes scelerados de Roma, as toardas de phantasia
para infamar caracteres onde sobejam crimes provados para a execração
universal. Desculpem a intumecencia do estylo, que a materia não é tanto
de sóco, como á primeira vista parece.

O duque de Abrantes recebeu affavelmente o bacharel, e, na presença dos
fidalgos, que estendiam já a mão soberba ao ajudante do ex-intendente
Manique, entregou-lhe a nomeação de juiz para um tribunal especial
militar, creado no Porto por decreto de 9 de maio de 1808.

O fim ostensivo d'esta alçada era punir os perturbadores da segurança
publica, nos variados delictos que a legislação do reino não previra.

A sentença d'este tribunal era executada no praso de vinte e quatro
horas, sem revista ou appellação.

O bacharel agradecido caiu de joelhos aos pés do duque de Abrantes, que
se dignou levantal-o pela gola da casaca; os copos do faim, porém,
travando-se na fivela do calção, rasgaram-lhe a meia na barriga da
perna, abrindo fenda por onde regorgitou uma almofada supplementar á
tibia descarnada e cortante do atravancado palerma. Riu Junot, e os
fidalgos riram tambem. Sampayo, ligeiramente corrido, arrancou o musculo
de algodão, escorchou-o entre a mão nervuda, e pediu licença para ir
remediar os estragos do espadim, que, no dizer mansinho do conde da Ega
ao fidalgo immediato, só nas pernas postiças do seu dono faria tamanho
estrago.

O juiz do tribunal militar partiu, no dia immediato, para o Porto, onde
era preciso refrear os animos indomados dos portuenses.

Norberto de Meirelles contou de novo a seu cunhado o já dito em longa
carta, que Sampayo não lera, ácerca do noviciado de Carlota.

--Tudo se ha de remediar, que temos muito tempo--disse o bacharel.--Em
ultimo caso, nunca ella ha de alcançar licença regia para a profissão.
Agora, do que se trata, é de me pôres a bom recado estes dois caixões de
prata, que me foram confiados por um meu amigo que emigrou com o
principe para o Brazil. Cuidado com isso, que estão ahi alguns contos de
réis, e eu fiz responsavel a minha honra á entrega d'estes caixões, logo
que o meu amigo volte com o favor de uma amnistia, que trato de lhe
alcançar do meu particularissimo amigo duque de Abrantes.

--E que me diz o doutor a respeito do snr. Junot?--disse Norberto de
Meirelles--Pelos modos, ouvi dizer que elle já está despachado rei de
Portugal!

--Isso tem seus fundamentos, cunhado. Eu e os meus amigos conde da Ega e
Ayres de Saldanha trabalhamos para a sua acclamação.

--Então o cunhado é amigo d'esses governos lá da côrte? Com effeito
sempre lhe digo que o que o doutor não fizer, não o faz o deanho.
Aquella de fazer ir o pintalegrete pela barra fóra, custou carita, mas
fez-se... Andou por oito mil cruzados que eu lhe mandei, doutor!

--E acha muito? Não foi o seu dinheiro que fez o milagre, foi a minha
influencia. Não sei se sabe que Francisco Salter de Mendonça mexia na
côrte os pausinhos, e esteve por um triz a passar por cima do seu
dinheiro e da minha influencia, e vir ao Porto tirar Carlota
judicialmente!...

--Eu o arrenego! Se o berzabum morresse por lá, grande cousa era! Estou
a arreceiar que elle volte antes d'ella professar.

--Não receie, Norberto. O principe não volta mais a Portugal, e o tal
marinha cá estou eu para lhe tolher o desembarque. Cartas d'elle, está
tudo prevenido para que não chegue alguma ás mãos de Carlota, e a esta
hora está elle convencido de que ella casou.

--Homem, essa!... ó doutor, dou-lhe a minha palavra que estou pasmado da
sua agencia! O cunhado é capaz de fazer com que ella esqueça o homem, e
torne para a minha companhia! Faça isso, que lhe dou uma mula arreiada
de novo para o cunhado dar os seus passeios ao Candal.

--Nada de susto, mano. Vossê não sabe o que são mulheres. A rapariga tem
venêtas e caprichos; o acertado é deixal-a barafustar, e ella virá cá
ter ao caminho das outras. De paixão ninguem morre; e, no convento, isso
então digo-lhe eu que nunca se viu. Mulheres juntas dão tanto aos
taramelos em cousas de amor, que lançam o amor pela bôca fóra, em logar
dos figados. Deixe-a lá estar á vontade, e dê-lhe a entender que o seu
maior gosto n'este mundo é vel-a freira. Nada de contradizel-a. Mulheres
e creanças amuadas é deixal-as renhir. Se vossês começam a carpil-a,
então não fico pelo resto.

--Então o doutor não vae lá tirar-lhe a tolice do miolo?!

--Não, senhor, não vou, é escusado lá ir, e se for é para lhe dizer que
muito me agrada a sua resolução, e, ao mesmo tempo, elogiar com finura a
liberdade do mundo, e pintar-lhe com côres tristes o jugo do convento.
Assim é que se levam as mulheres, snr. Norberto, e, se ellas teem a
soberba de Carlota, então nada de disputar. A astucia manda dizer com
ellas, até as fazer passar á contradicção, porque a harmonia é
impossivel em indoles orgulhosas.

--Oh doutor! o senhor tem uma labia que revira a gente! Homem, eu estou
a dar-lhe razão! Parece-me que o melhor é isso! Está dito! deixemol-a lá
com a mania, e diga-se-lhe que faz muito bem. Vou dizer tudo isso á
minha Rosalia; mas, antes que me esqueça, cunhado, esta cousa de governo
está segura?

--Segurissima.

--É que eu tenho alguns valores, que queria acautelar para o que désse e
viesse.

--Não tenha susto; mas tanto faz ter o seu dinheiro na burra, como
debaixo da terra. Sabe o que ha de fazer? Pegue no seu dinheiro, e nos
meus caixões de prata, e vá enterral-os na adêga do Candal. Eu tenho
mais mêdo á canalha nacional que aos soldados de Napoleão. Quando correu
na capital que s. exc.ª o snr. governador ia dar a Lisboa a saque,
saíram para as praças as turbas da gentalha portugueza, esperando a hora
do assalto. D'estes é que eu tenho mêdo, e por isso sou de parecer que
se acautele o nosso precioso, com summa prudencia. O Candal é bom sitio,
porque fica arredado da estrada. Ponto está que o mano encarregue o
serviço de enterrar os caixões a pessoa fiel, que não denuncie o
escondedouro.

--Não me fio em ninguem, cunhado. Quem ha de enterrar esse todo-nada de
dinheiro que por ahi está, e mais os caixotes de prata, hei de ser eu,
se Deus quizer.

Assentiram n'isto, e, logo no dia immediato, Norberto de Meirelles pôz
mãos á obra, com o auxilio de sua mulher e cunhado. Fez-se o transporte
para o Candal com disfarce. Os caixões sairam de noite, e os
conductores, depondo-os no quinteirão da quinta, não poderiam malsinar o
local do enterro, se alguma vez, feitos com os salteadores, tentassem
esquadrinhal-o.

Norberto de Meirelles, auxiliado por D. Rosalia e o proprietario das
pratas da patriarchal, enterrou os caixotes debaixo da dorna do lagar, e
ficou assim desaffrontado dos sustos que lhe traziam o animo opprimido,
desde que Francisco Salter de Mendonça lhe presagiara um possivel
assalto ao seu dinheiro.

Sampayo, atarefado com o julgamento dos réos processados no tribunal de
que elle era juiz inconfidente, só teve ensejo de visitar Carlota, um
mez depois da sua chegada. Encontrou-a na grade com a mãe, que de
proposito preparara este encontro, porque sua filha houvera mostrado
repugnancia em receber a visita do tio.

O bacharel, conforme com os seus ardis, expostos ao cunhado, começou por
louvar e abençoar a acertada resolução de sua sobrinha, exaltando os
merecimentos de uma boa religiosa, e aconselhando-a com sãs doutrinas
preventivas contra as tentações do demonio, acerrimo inimigo dos votos
claustraes.

Carlota ouviu-o com aprazimento, e D. Rosalia com enfado. A boa senhora
não comprehendia a esperteza de seu irmão, e confrontando-a com a
estupidez de seu marido, dava tanto pela bondade de um como pela do
outro. Foi-lhe á mão com as suas razões cem vezes repetidas á filha.
Chorou copiosamente, pedindo ao irmão que desvanecesse a tenção de
Carlota; e a esta, com ternas supplicas, implorava que saísse do
convento, se não queria cêdo ficar sem mãe.

Carlota respondeu que a perda de sua mãe lhe seria muito sensivel; mas
que estava deliberada a aceitar todas as mortificações que o Senhor lhe
mandasse, com tanto que podesse offerecer o coração espedaçado ajoelhada
no altar, onde jurara votos de eterno sacrificio.

Joaquim Antonio de Sampayo, piscando o olho á irmã, louvava de novo a
devoção de Carlota, e citava-lhe, como para acorçoal-a, quatro exemplos
de santidade no convento de Santa Anna de Lisboa, onde elle almoçava, e
contava os milagres da prata da patriarchal, salvo o ultimo.

Carlota, saíndo da grade, foi pedir a Deus perdão do odio que tinha a
seu tio. Soror Rufina, confidente d'esta ruim paixão, orou com ella, e
penitenciou-a com o preceito duro de escrever a seu tio uma carta, em
que lhe agradecesse, com humildade e amor, os paternaes conselhos que
lhe dera, e o applauso com que a ajudava a defender-se das instancias de
seus paes.

O bacharel, maravilhado d'esta carta, modificou a sua opinião a respeito
da sobrinha, e planisou uma nova traça para despersuadil-a. Qual ella
fosse, não sabemos nós, porque não houve tempo para executal-a.

Sampayo exerceu as funcções do juizado quatro mezes, e foi despachado
juiz de fóra para uma pingue comarca do Minho. A causa d'esta mudança,
ingrata ao despachado, explicou-a elle como grandemente honrosa para si,
dizendo que a moderação das suas sentenças desagradara ao governo. O
governo, porém, dizia que o venal juiz riscava das denuncias os nomes
que representavam réos dinheirosos, de quem recebia, com maior ou menor
recato, avultosas quantias.

Partiu para a sua comarca o juiz de fóra, recommendando ao cunhado que
vigiasse os caixotes da prata, cujo descaminho viria a ser causa da sua
deshonra. Por essa occasião, entregou-lhe um caixãosinho supplementar
aos outros, que constava de uma duzia ou pouco mais de contos de réis,
de seus ordenados e propinas, e mercês dos beneficios que fizera
caridosamente aos réos absolvidos no terrivel tribunal.

Dispensam-nos de boa vontade a historia sabida dos decorridos successos
que expulsaram os francezes do territorio portuguez. É certo que o juiz
de fóra de ***, Joaquim Antonio de Sampayo, ingrata creatura de Junot,
pôz luminarias quando soube que o exercito francez recuava ao exercito
alliado. Proclamou aos povos comarcãos, chamando ás armas, e incitando
os frades a que prégassem o odio contra Napoleão, e promettessem
indulgencia plenaria, e salvação segura a todos os que morressem na
defeza do seu legitimo principe, e dos augustos fóros da religião
catholica-apostolica-romana.

O bispo do Porto, presidente da junta, e renegado como elle, sympathisou
com as manhas do juiz de fóra, e nomeou-o, provisoriamente, corregedor
da comarca onde estava servindo.

Entra, porém, o general Soult as mal defezas raias do reino, e chega a
Braga a artilheria de Laborde. Sampayo medita seriamente na sua
situação, e, apasiguando os animos das turbas com discursos ácerca da
inutilidade da resistencia, resolve ir ao encontro do general Lorge, que
marchava contra a villa onde elle exercia a suprema auctoridade.

Diz-lhe que intimas relações o prenderam a Junot e Lagarde, exulta com a
volta dos francezes, e faz accender o resto das torcidas das luminarias
á entrada do general francez. As guerrilhas, porém, queriam resistir, e
os chefes emprasavam o corregedor para lhes dar conta da sua apostasia,
mais tarde. Sampayo, arreceiando-se d'aquelles caudilhos, denunciou os
principaes ao seu hospede Lorge, e fez que dois fossem espingardeados
diante da sua aposentadoria, simulando, ao mesmo tempo, amargo pezar de
acontecimento tão funesto.

Retirou o general para occupar outro ponto; mas a pedido do corregedor,
deixou uma numerosa guarnição á terra.

O general Botelho estanciava nas immediações da villa, e investiu com o
presidio, que fugira rechaçado e mal ferido do encontro. Sampayo queria
fugir com elle, sobre o Porto, para onde convergiam os differentes
chefes do exercito invasor. Demorou-se, porém, um quarto de hora,
carregando os bahús da sua bagagem, onde avultavam preciosidades que
soubera esbulhar á comarca sob os mil pretextos faceis ao seu engenho.

Esta demora foi-lhe fatal. Era tarde para fugir. Reflectiu um instante,
em lance tão apertado, e saíu a lume com uma ideia, da qual esperava a
sua salvação.

Mandou tocar immediatamente os sinos das igrejas, foi elle proprio,
bradando vivas ao principe, espertar o animo perplexo dos moradores da
terra, e recrutar garotos para repicarem os sinos.

Este expediente era já um destino da desesperação, uma loucura, que
devia ter o resultado que teve. Joaquim Antonio de Sampayo viu-se
rodeado de povo, e este povo pedia a cabeça do corregedor, sobrelevando
á vozeria os gritos da parentela dos caudilhos que tinham sido
espingardeados á ordem do general Lorge.

O chefe das forças portuguezas occorreu n'este momento afflictivo. O
corregedor ajoelhou de mãos erguidas, pedindo-lhe a salvação.

Um do povo, que parecia ser o mais auctorisado, contrariou as supplicas
do corregedor, contando ao general as façanhas. Botelho ouviu com
attenção, e exclamou com serenidade:

--Enforquem-o já, que é o mais seguro.

Mais de um leitor maior de sessenta annos está recordando, n'este
momento, a cabeça de comarca, na provincia do Minho, onde foi enforcado
um corregedor.

Se se lembra, saiba que o fatal triangulo foi erguido para Joaquim
Antonio de Sampayo. Ahi perneou esse homem de grandes espiritos, que
veio cedo de mais para morrer ministro de Estado.

Rezemos-lhe por alma, mas duvide-se do aproveitamento dos suffragios. É
de fé que o thaumaturgo das pratas da patriarchal caiu da forca ao
inferno, onde o tortura a desesperação de ver como cá em cima andam
nedios e honrados alguns que o sobrepujaram em amor da patria, amor do
proximo, e abnegação do alheio.

Joaquim Antonio de Sampayo nascera em 5 de janeiro de 1752. Trapaceara o
direito e a justiça por espaço de trinta annos, nos auditorios do Porto.
Entrara com fortuna próspera na carreira das honras aos cincoenta e seis
annos.

Revelara, ainda que tardio, um espirito sobre-excellente para
engrandecer-se, e reflectir na sua familia as honras merecidas á custa
de infamias necessarias para se ser alguma cousa n'uma terra, onde
Duarte Pacheco e Camões tiveram fome. Mal tinha dado os primeiros passos
propicios, atalhou-o uma morte feia aos 23 de março de 1809.

Piamente cremos que os santos da patriarchal de Lisboa, esbulhados de
seus adornos, lhe urdiram este affrontoso traspasse.

Como quer que seja, homens taes, diz uma epigraphe d'este capitulo, que
os leva o diabo. Levará, não duvido; mas, se lanço os olhos em redor de
mim, afigura-se-me que o diabo leva uns, e traz outros.




XIII

     La justicia de Dios espantosa...

           Quevedo. (_El sueño del Inferno._)


O noviciado de Carlota Angela terminara em abril de 1808. As licenças
impetradas para a profissão não foram concedidas, porque a
desorganisação em que se achavam as repartições governativas era
impedimento a que se deferissem requerimentos que não importavam ao bem
immediato do Estado.

Norberto de Meirelles folgava com a demora da licença, e o cunhado lá da
comarca onde lhe cortaram a previdente cabeça, socegara-o com a certeza
de que em Lisboa estavam prevenidas as cousas para que a noviça
requeresse sempre em vão a licença indispensavel.

Carlota não se impacientava com as delongas, nem se queixava de seu pae
ou tio: com tanto que a não arrancassem ao claustro, noviça ou professa,
o seu coração estava com o mesmo apêgo entranhado no suave sacrificio á
religião dos infelizes.

Quando a noticia da feia morte de seu tio lhe chegou, levada pela
aterrada mãe, Carlota perdoou-lhe, nos labios e no coração, o mal que
lhe fizera, compensando-lh'o com incessantes suffragios, da virtude dos
quaes, em alma tão apodrentada de velhacadas e perfidias, é licito
duvidar.

Norberto de Meirelles, n'este desgosto de familia, mostrou o grande
porte de seu animo, insufflando em sua mulher espirituaes doutrinas de
paciencia e conforto na vontade do Altissimo. Á socapa, porém, o
arrozeiro esfregava as mãos com jubiloso frenesi, bem sabia elle pelo
quê. Se D. Rosalia lhe perguntava que destino se devia dar aos dois
caixotes de prata, que não eram de seu irmão, Norberto dizia-lhe que
calasse o bico, e não désse á lingua ácerca de taes caixotes, que
ninguem sabia de quem eram. Os escrupulos entravam na consciencia de D.
Rosalia; o alheio dizia ella que chorava pelo seu dono. A este e outros
anexins de sã moral replicava Norberto que se alguma vez apparecesse o
dono dos caixões, munido das necessarias provas de ser o dono d'elles,
seria entregue do deposito.

Entretanto que o dono não vinha, o herdeiro do bacharel fechou-se na
adêga da granja do Candal, e exhumou os thesouros enterrados para
conhecer do conteúdo dos caixões. Este exame dizia elle á timida
consorte que era preciso para, munido de um rol, peça por peça, obrigar
o dono a dar uma relação exacta dos objectos.

Tentação diabolica fora aquella! Norberto, vendo a rica baixella do
culto divino contida no primeiro caixão que abriu, tão encantado ficou
do bem lavrado das corôas, dos resplendores, dos calices, das ambulas,
dos thuribulos, das lampadas, das bandejas, e dos ex-votos, tão
encantado, tão edificado, tão preso áquelles mysticos ornatos do templo
do Deus-vivo, que logo alli prometteu á sua consciencia guardar e
venerar aquelles sagrados objectos, de modo que mãos impias de
francezes, de portuguezes afrancezados, e ainda as do dono nunca os
profanassem. Este protesto entendia-se com o primeiro caixão: o segundo
antes de ser aberto, havia o negociante tenção de restituil-o, se o
recheio não fosse tão veneravel e digno da sua devota guarda.

Ora o segundo caixão não era menos tentador: nem mais nem menos os doze
apostolos de prata maciça, com as suas barbas venerabundas a incutirem
seraphico temor e amor! Norberto alçou nos braços um dos apostolos, não
tanto para fazer-lhe oração mental, como para calcular-lhe o peso, e,
aproximadamente, ajuizou doze arrateis, os quaes, multiplicados por
doze, davam cento e quarenta e quatro arrateis de prata. Entendeu
piedosamente o arrozeiro que o segundo caixão era thesouro não menos
credor dos seus desvelos que o primeiro, em razão de conter as imagens
dos doze primeiros santos da religião christã, e n'este presupposto de
bom juizo resolveu recommendar á sua vigilancia a guarda de tão augustas
imagens, que talvez providencialmente vieram enterrar-se na sua adêga,
para se esconderem á perseguição de Bonaparte, bem como os christãos
primitivos se escondiam nas catacumbas para fugirem á perseguição dos
Neros e Trajanos.

A escrupulosa irmã do defuncto bacharel não assistira á exhumação dos
caixões; mas, sabendo dos doze apóstolos, tal ancia lhe entrou de os
ver, que não houve remedio senão desenterral-os de novo.

D. Rosalia ficou encantada dos aspectos magestosos de S. Pedro e S.
Thiago. Quiz que seu marido rezasse emparceirado com ella uma
jaculatoria aos dois santos em particular, e a todos em geral. Norberto
annuiu com a mais fervente uncção, e edificou sua mulher, propondo a
repetição das ditas jaculatorias, para que os bemaventurados discipulos
do divino mestre não permittissem que mãos sacrilegas dos francezes
tocassem nas suas devotas imagens. Lembrou logo alli a snr.ª D. Rosalia
que, passada a guerra, se não apparecesse o dono d'aquelles objectos, se
havia de fazer uma capella na quinta do Candal, para que os santinhos
fossem adorados por toda a gente. Concordou o arrozeiro, enterrando-os
outra vez, e recommendando a sua mulher, que não dissesse a ninguem que
a sua adêga estava tendo as honras de cenaculo.

Estas scenas passavam-se oito dias antes da invasão dos francezes no
Porto.

Á noticia da aproximação de Soult nas trincheiras, Norberto de Meirelles
fechou a casa da rua das Taipas, e foi para o Candal.

D. Carlota Angela, com sua tia e a noviça Dorothea saíram do convento
para o mosteiro de Arouca. D. Rosalia instara para que a seguissem; mas
Carlota vencera a vontade condescendente de sua tia, com lagrimas e
rogos para que não aceitasse asylo que não fosse o de outro mosteiro
menos susceptivel de ser assaltado pelos francezes.

O exercito invasor derramou-se pelo Porto, no cevo do saque e da
carnagem. As portas da casa da rua das Taipas, malsinada aos francezes
como bem recheiada, não resistiram ao machado. Pouco lá havia que
saciasse a cubiça dos salteadores. O denunciante esteve em perigo de ser
acutilado, por lhes ter feito perder tempo em arrombar as portas para
saque tão mesquinho. Ora, o denunciante era um visinho de Norberto, seu
inimigo, e capaz de dar um olho para que arrancassem os dois ao
arrozeiro. Disse elle aos francezes que o seguissem além do rio, e elle
lhes promettia boa presa, porque as immensas riquezas do negociante
deviam estar na quinta.

Seguiram-o os francezes, promettendo-lhe repartir com elle da presa, ou
tirar-lhe a alma e os figados, se os enganasse, ou levasse a alguma
emboscada.

Ao avisinharem-se do Candal, deram rebate as espias de Norberto de
Meirelles. Calou-lhe na alma o mêdo, que amarellece a cara de gemma de
ovo, tapa os respiros do pulmão e promove a desordem dos intestinos
todos. D. Rosalia caíu de cocoras, e entrou a bater os queixos como em
maleitas, e a resmungar fragmentos da Salvè-rainha e do Padre-nosso.
Dois criados da quinta, que, momentos antes, tinham estado renovando a
escorva das clavinas, e apostando a qual d'elles mataria mais francezes,
apenas avistaram os penachos de dez ou doze d'aquelles, que, segundo os
seus projectos homicidas, deviam ser levados a murro, deram a fugir por
aquelles pinhaes, como envergonhados de se baterem com tão poucos
francezes. Chamava-os com desesperados berros Norberto, emquanto elles
podiam ouvil-o; mas não houve gritos nem promessas que os volvessem ao
posto da honra.

O negociante travou do braço da mulher, para que o seguisse, fiando a
salvação na fuga. D. Rosalia ainda se ergueu; mas vacillaram-lhe as
pernas frouxas, e recaíu, dizendo que morria, e queria alli morrer. O
arrozeiro cuidou que a movia, assustando-a com a ideia de que os
francezes a matariam, se ella não confessasse o escondrijo do dinheiro.
A pobre mulher, petrificada de terror, não respondia a taes estimulos, e
recalcitrava na pertinacia de se deixar matar.

Emquanto ella murmurava um acto de contrição, preparando-se para morrer
o mais catholicamente que podesse, Norberto de Meirelles seguiu a pista
dos criados, pela porta travessa da quinta, com o intuito de alarmar a
freguezia, tocando a rebate a sineta da proxima capella.

Os francezes arrombaram a primeira porta, e outras menos robustas, até
entrarem no quarto onde estava D. Rosalia de mãos erguidas, pedindo
misericordia. Um da malta, com o rosto coberto por um lenço, disse-lhe
em claro e chão portuguez que lhe não fariam mal a ella nem ao marido,
se lhe dissesse onde estava escondido o dinheiro. D. Rosalia respondeu
que não sabia. A um signal convencionado do interprete, dois refles
ameaçadores ladearam o pescoço da moribunda senhora. O homem da cara
coberta admoestou-a de novo, pedindo aos francezes que suspendessem a
morte por alguns momentos. Rosalia, revalidando tres vezes a condição de
que não matariam seu homem, disse que o dinheiro estava enterrado na
adêga; mas que tambem lá estavam dois caixões de prata, e esses pedia
que não levassem, porque não eram d'ella. Feito o juramento de
respeitarem, não os caixões, mas a vida dos depositarios, levaram em
braços D. Rosalia á adêga, para a fazerem apontar o local onde convinha
cavar.

Meia hora depois, corriam contra a quinta de Norberto de Meirelles, mais
de duzentos homens da freguezia, reunidos pelo toque guerreiro da
sineta, afóra os fugitivos do Porto, que tinham atravessado a ponte,
horas antes de lhe serem abertos os alçapões. Quando entraram na casa,
com grandes alaridos e descargas, encontraram D. Rosalia á porta da
adêga, prostrada n'um desmaio. Norberto adivinhou o successo horroroso.
Entrou, foi direito ao tonel protector do escondrijo, achou a terra
revolvida, levou as mãos á cabeça, soltou um grito cavernoso, e foi
bater com as costas nos tampos sonoros do tonel. «Roubado! roubado!»
exclamava elle, emquanto a multidão compadecida se derramava pelos
aditos da quinta, procurando os francezes, e outros tratavam de
restituir á vida a mulher do negociante, que parecia morta.

Ao mesmo tempo, embarcavam os francezes, com a opima presa, defronte de
Miragaya. No meio do rio, combinaram entre si desfazer-se do
denunciante, que os importunava lembrando-lhes a promessa de um quinhão
do roubo. A execução foi rapida como o plano. O portuguez foi arrojado
ao rio com algumas pancadas na cabeça; mergulhou, veio á tona da agua,
fincando-se na quilha do barco, á maneira de rémora, pendurou-se n'um
dos bordos, os francezes convergiram para o ponto, os caixões
escorregaram para esse lado, o barco inclinou-se tanto, e o barqueiro
com tal arte ajudou á catastrophe, que se virou o barco: francezes e
caixões tudo se sumiu nos abysmos, salvando-se, apenas, o barqueiro, por
ser grande nadador, e merecer salvar-se como instrumento que foi da
justiça providencial.

Não sabemos ao certo quantos contos de réis o Douro sepultou nos seus
reconcavos. Mais de cem, afóra o dinheiro e caixões do bacharel Sampayo,
se calcula a perda. Os haveres de Norberto de Meirelles estavam todos
alli. Restava-lhe, apenas, a granja do Candal e a casa da rua das
Taipas; mas, o arrozeiro, no mez immediato, tinha que pagar letras, que
os portadores, fiados na segurança do aceitante, não haviam apresentado
no dia do seu vencimento, rogando-lhe, por favor, o conservar em seu
poder os pagamentos até se restabelecer a ordem no giro commercial.

Era, pois, desgraçadissima a posição do pae de Carlota Angela. Via-se
pobre, e sentia-se desfallecido e velho para reconquistar o producto do
trabalho e da astucia, nem sempre legitima, de quarenta annos. Ainda
mesmo que amigos e credores o ajudassem, como de feito ajudariam, esse
balsamo não fecharia a chaga. A pena do seu dinheiro era uma angustia
infernal, que as palavras animadoras da christã e resignada esposa não
alliviavam.

--Deus o deu, Deus o tirou, Norberto,--dizia ella, convidando-o pela
religião á paciencia.

--Vae-te d'aqui com as tuas beatices!--respondia elle--Estamos pobres
por tua causa. Se fosses uma mulher amiga de teu marido e de tua filha,
não dizias onde estava o meu dinheiro, o meu dinheiro, o dinheiro da
minha alma!

E, exclamando assim com vozes que derretiam o coração, chorava como uma
creança o pobre homem, arrepellando as suissas e os cabellos.

Atalhava Rosalia:

--Não te mortifiques, Norbertinho. Eu se disse onde estava o dinheiro
foi para te salvar a ti, porque o tal homem da cara coberta disse-me que
tu estavas preso, e te matariam se eu não dissesse onde estava o
dinheiro.

--Deixasses matar; antes isso, do que ficar assim... sem nada!

--Ainda temos com que viver, meu amigo. Se eramos ricos, as nossas
despezas poucas eram. Faz de conta, Norberto, que o dinheiro está
enterrado onde estava; tanto nos serve elle debaixo da terra, como na
mão dos francezes. Sabes o que se ha de fazer? Tornemos a trabalhar como
quando nos casamos. Para comer e vestir como até aqui sempre hemos de
ter. Aos credores dá-se-lhe alguma cousa do que se deve, e vae-se
pagando o resto aos poucos. A nossa Carlota quer ser freira, e o dote
pequeno é. Eu lh'o arranjarei com as economias que poder fazer. Tenho
algumas joias que se vendem, e pouco faltará para o dote de Carlota. Não
achas que tenho razão, Norbertinho? Ora vamos, tem paciencia, e agradece
ao Senhor em nos ter deixado a vida.

--De que diabo me serve a vida! ah! o meu dinheiro, o dinheiro da minha
alma, que tanto me custou! Agora é que os outros me hão de pôr o pé no
pescoço. Como não estarão contentes os invejosos! Foram elles que me
roubaram. Esse homem que trazia o lenço pela cara era algum dos nossos
visinhos, que não podia ver como eu ia medrando! Estou roubado!
levaram-me o meu dinheiro, a minha vida, o meu suor, a minha alma. Agora
matem-me, com trinta milhões de diabos! Quero morrer, antes que me vejam
pobre! vou partir esta cabeça n'uma pedra, e tu fica para ahi a pedir
uma esmola, já que disseste onde estava tudo quanto tinhamos.

N'estas e n'outras lamentações, em que a blasphemia não faltava nunca,
curtiu, no Candal, a empeçonhada existencia o miserando arrozeiro,
durante tres semanas, até que lhe pegou uma febre, e uns frenesis de
energumeno, que o pozeram ás portas do inferno. Salvaram-o algumas
tisanas, e os confortos de dois ou tres amigos compadecidos que, rogados
por D. Rosalia, lhe foram dar esperanças de rehaver com capitaes
emprestados, senão tanto quanto perdera, ao menos mais que o necessario
para viver com decencia e satisfação. A convalescença foi morosa, e
arriscada com recaídas, procedentes de vertigens que advinham depois dos
prantos pelo seu dinheiro.

Voltando ao Porto, logo que o exercito francez saíu, fez uma honrosa
concordata com os seus credores, e retomou as redeas do seu mester,
ajudado pelos amigos e desvelos da mulher, que toda era energia,
actividade, e carinho para fazer esquecer a pobreza a seu marido,
preoccupando-o com a esperança de enriquecer outra vez.

N'aquelle tempo, porém, esta cousa a que hoje, em francez, se chama
_fortuna_, não se alcançava com a rapidez de agora. A perda do proveito
de quarenta annos lidados na vida commercial eram necessarios outros
quarenta annos para restaural-a. Por isso que o caminho de ferro era uma
utopia, e a celeridade do fio electrico um ideal dos contrasensos
impossiveis, a maquina de fazer dinheiro era um mytho, em que se
acreditava porque a moeda corrente era fundida e cunhada; mas nenhum
particular julgava possivel fazer em sua casa dinheiro.

A posição de Norberto era, portanto, relativamente má. Descorçoado para
as labutações do negocio, sufficientemente obtuso para chegar por
devezas e atalhos á estrada que os outros palmilham tarde e a más horas,
o negociante decaído lá sentia em si roer a desconfiança de que não
havia para elle mais readquirir a centena de contos, que tão perto
d'elle estavam encalhados entre as fendas de alguma rocha.

Esta descrença entibiava-lhe o animo, infundindo-lhe uma melancolia
taciturna e lethargica, d'onde não havia nada que o podésse divertir.

Carlota Angela, recolhida ao seu suspirado mosteiro, soube da desgraça
de sua familia. Ergueu as mãos ao Senhor, pedindo-lhe que alliviasse as
mágoas de seus paes, e lhes désse, em troca da riqueza perdida, a
esperança de maior felicidade no céo.

Quando D. Rosalia disse ao marido qual era a supplica incessante de
Carlota, Norberto respondeu:

--Ora! qual céo, nem meio céo! Diz-lhe que peça a Deus que me dê
dinheiro.




XIV

    Que ansias, que deseos,
    Que trabajos, conxogas, e sudores!...

                P. Pedro de Salles. (_Emblemas._)


Quando o corregedor Joaquim Antonio de Sampayo foi suppliciado, o
general Botelho mandou examinar os papeis do jacobino com a esperança de
encontrar algum que justificasse a violenta morte do magistrado, no caso
de lhe serem pedidas contas do estranho feito.

As leis militares não permittiam tal excesso, quando os réos não eram
encontrados com armas na mão defendendo os invasores.

No quartel general de Botelho andava um ajudante de ordens que fora
condiscipulo e amigo de Francisco Salter de Mendonça no collegio
militar. Foi esse o encarregado de examinar os papeis.

Mal tinha revolvido alguns massos de cartas sem importancia, e officios
de serviço publico, uns assignados pelo governador do reino, outros pela
junta governativa, louvando todos a energia e zelo do magistrado, quando
reparou n'um rolo de papeis atados todos com uma guita, sendo a capa
exterior um sobrescripto que dizia: _Ao ill.mo snr. Francisco Salter de
Mendonça.--Rio de Janeiro._

O examinador, espantado de encontrar o nome do seu amigo entre papeis do
defuncto jacobino, receiou que algumas intelligencias desgraçadas e
deshonrosas para Francisco Salter podessem existir com os clubs
revolucionarios. Antes que alguem entrasse no escriptorio, o ajudante de
ordens do general Botelho escondeu o masso de papeis, e ancioso de
curiosidade, não tardou a examinal-os o mais escondidamente que pôde.

Viu uma, outra, e outra até vinte e tantas cartas assignadas por Carlota
Angela. Outras tantas, se mais não eram, assignadas por Francisco
Salter. Quem era esta Carlota Angela? interrogava-se o confuso leitor
das lagrimosas cartas. Como viera esta correspondencia dar á mão do
corregedor de ***? Qual seria o valor occulto de uns papeis que tão
estranhos pareciam ao funccionalismo do magistrado?

O ajudante de ordens, logo que o exercito invasor desalojou do Porto,
foi ao mosteiro de S. Bento da Avè Maria procurar Carlota Angela para
esquadrinhar o mysterio da correspondencia. Não encontrou alguem que o
informasse: no mosteiro tinham apenas ficado uma freira demente, e duas
criadas entrévadas, que apenas souberam dizer que a noviça Carlota
Angela fugira com sua tia para um convento da provincia.

Proseguia em inuteis averiguações o curioso militar, quando a junta
provisoria o nomeou para ir ao Rio de Janeiro dar parte das occorrencias
da infausta invasão, e da derrota fabulosa que os francezes iam
soffrendo na retirada.

O emissario aceitou da melhor vontade a enviatura, esperançoso de
encontrar no Rio de Janeiro o seu amigo da mocidade Francisco Salter de
Mendonça.

Apenas desembarcou, o primeiro official de marinha que lhe saiu ao
encontro foi Salter. Logo alli se aprasaram para uma conferencia de
alguma importancia, depois de entregues ao governo as participações do
reino.

--Que ha de commum entre ti, e um tal Joaquim Antonio de Sampayo, que
foi enforcado no Minho?

--Enforcado!

--Sim, garroteado por jacobino, traidor ao rei e á patria e á santa
religião, como lá se diz. Conhecial-o?

--Perfeitamente. Esse homem era tio de uma mulher que me obriga a
desertar ámanhã, para ir procural-a no Porto.

--Se o teu fim é saber onde ella está, posso dar-te algumas informações.

--Conheces Carlota Angela?!--interrompeu alvorotado o capitão de
marinha.

--Conheço pelas amarguradas cartas que te escrevia.

--Cartas! Quaes?! Eu não recebi cartas algumas de Carlota.

--Se as não recebeste, podes lel-as agora, porque eu sou o portador de
duas duzias d'ellas, que fazem chorar as pedras.

--Como te vieram essas cartas á mão? Dá-m'as.

--Lá vamos; mas primeiro quero que me expliques como estas cartas foram
á mão do tal corregedor enforcado.

--Isso é uma historia longa e atroz. Dá-me as cartas, que eu tudo te
explicarei depois.

--Pois sim: ahi vão as cartas da Carlotinha, mas tenho no outro bolso
outras tantas escriptas á tua dama.

--Por quem?

--Por um nosso condiscipulo do collegio militar, que, segundo se
deprehende do ardor da linguagem, deve amal-a como um louco.

--Quem é elle?

--Um terrivel paralta, que saíu da patria deixando por lá nos mosteiros
noviças apaixonadas.

--Quem? depressa... diz-me o nome d'esse homem.

--Francisco Salter de Mendonça é como elle assigna as lamuriantes
epistolas: eil-as aqui.

Tu me dirás agora se o corregedor era o teu alcayote para a dolorida
noviça.

Salter devorava as palavras da primeira carta de Carlota, sem entender
as ideias. De uma passava a outra, examinando nem elle sabia o quê. O
sangue subiu-lhe á flor do rosto, inflammando-lhe as pupillas
irrequietas. Era uma d'essas alegrias que chegam a doer em seu frenesi.
Ao rubor succedeu a pallidez subita, e o suor da vertigem. Não lhe cabia
o coração no peito, nem bastava ao afogo dos pulmões o ar que aspirava a
profundos haustos. Soltou uma exclamação puxada do intimo da alma, um ai
desafogado, vibrante, e das entranhas como se lhe desentalassem a
garganta quando o laço o fazia já estrebuxar em arrancos de morte.

O condiscipulo estava pasmado d'este conflicto, e tanto se lhe afigurou
respeitavel o jubilo ou a agonia de Salter, que não ousou interromper a
scena muda d'aquelle lance. Salter lançou-se-lhe aos braços, chorando
como uma creança, e proferindo afogadas exclamações, que pareciam os
gemidos que faz soltar uma dor physica incomportavel.

--Então isto é muito mais valioso do que eu suppunha!--disse o ajudante
de ordens--Que feliz eu sou, se vim tirar-te de alguma duvida
tormentosa.

--Trouxeste-me a esperança, a vida, o céo. Estas cartas são d'ella, da
minha esposa.

--Tua esposa? Pois Carlota Angela não é uma noviça?

--Não; é apenas uma secular no mosteiro de S. Bento.

--Não foi isso o que me disseram no convento.

--Pois o que te disseram?!

--Procurei-a para ver se ella me aclarava o mysterio d'essas cartas.
Disse-me uma criada que todas as religiosas tinham fugido aos francezes,
e a noviça Carlota Angela fugira com sua tia freira.

--A noviça! Isso é impossivel!

--Será; mas foi isto o que se me repetiu fóra do convento. Casualmente
me encontrei n'uma casa onde se fallava no grande roubo feito pelos
francezes a um tal Meirelles, rico negociante do Porto, que ficara
pobre. Alguem disse que esse Meirelles era o pae de uma noviça creança,
que já tinha acabado o tempo do noviciado, e se chamava Carlota Angela.
Quiz inquirir mais particularidades que me explicassem as tuas relações
com a tal menina, e nada colhi. Propunha-me procurar directamente
informações do negociante, quando fui encarregado da commissão que
trouxe. Aqui tens o que sei, e o que não sei has de tu sabel-o explicar
melhor do que eu.

--Sei tudo!--exclamou com força e precipitação Mendonça--Sei tudo...
Ámanhã vou para Portugal. Já pedi licença, e não m'a deram. Não importa.
Deserto. Julguem-me como quizerem; condemnem-me, arcabuzem-me, mas que
eu veja Carlota antes de morrer. Esta mulher é tudo quanto eu tenho na
vida. Se eu não morrer por ella, se me não sacrificar na honra, em tudo
quanto ha mais sagrado na vida, sou um infame sem rehabilitação perante
Deus e a minha consciencia. Se ella está morta, fui eu que a matei, não
foi o malvado que me roubou estas cartas, e privou a desgraçada Carlota
de ver as minhas. Já comprehendes o segredo d'estas cartas? Esse homem
que mataram, solicitou o meu desterro, para obstar ao meu casamento com
a sobrinha. Interceptou a nossa correspondencia com o fim de matar
n'ella o amor com a certeza da ingratidão. Foi elle quem me enviou aqui
um homem com a noticia de que ella se tinha casado. Eu esforço-me ha
seis mezes em vão para conseguir licença de ir a Portugal salvar este
anjo, e curar-me da desesperação que me tem levado ao extremo do
suicidio muitas vezes. Agora creio que perdi Carlota. Quando chegar ao
Porto estará ella já professa. Não importa. Quero vel-a, quero que ella
me veja morrer braçado aos ferros que a separam de mim para sempre. Esta
minha agonia não tem igual n'este mundo, meu amigo. Separam-me duas mil
leguas da mulher que eu poderia salvar, se a visse n'este momento. Por
que a não procuraste tu? por que lhe não mostraste estas cartas, que nos
salvariam ambos? Podias ter-nos feito um bem, que eu te agradeceria de
joelhos, e ella endoudeceria de jubilo... Paciencia... já agora
devorarei todas as torturas da duvida com menos angustia. Ainda tenho
uma esperança... Disseste-me que o pae de Carlota estava pobre. Talvez
que não possa dar-lhe o dote para a profissão, talvez que uma doença
retarde esse terrivel acontecimento. Talvez que Deus se compadeça de nós
ambos, e lhe inspire a esperança de tornar-me a ver. Nunca tive tanta
confiança na misericordia divina. É impossivel que Deus veja com
indifferença o terrivel resultado da profissão. Eu vou arrancal-a do
altar, vou disputal-a a Deus, vou amaldiçoar a religião cruenta que
receber uma mulher que me pertence por um juramento mais sagrado que
todos os votos do claustro.

Não cansou ainda aqui o fôlego da estirada declamação. Salter fallou
horas, e o amigo escutou-o com admiravel paciencia, até que pôde
admoestal-o que não fugisse, nem saísse do Brazil sem licença. Nem ao
menos conseguiu com as mais atiladas razões retardar um dia a deserção.
Já o amigo se offerecia para pedir ao principe regente a licença,
trocando por ella a commenda da torre e espada com que sua magestade o
agraciara, ao ouvir-lhe as novidades prósperas do reino. Salter
rejeitava conselhos e favores. O brigue saía no dia immediato, e não
estava ainda marcada a saída de outro navio. Negarem-lhe a licença era
já um capricho, senão antes uma desconfiança fomentada pelo bacharel
Sampayo. Ao lado do ministro havia alguem que lhe insinuava a suspeita
de ser Mendonça um forçado vassallo do principe, e um jacobino que
Manique soubera desterrar a tempo.

O governo não dera ao capitão de marinha satisfação alguma pelos
arbitrios do capitão-general, durante o tempo que estivera preso. O mais
que fez foi dar-lhe liberdade, reprehendendo-o por ter feito justiça com
suas proprias mãos, sobre um homem que viera ao Rio em commissão de
confiança.

Salter tragou em silencio o novo vilipendio, e protestou, não só
desertar, mas alistar-se no exercito francez, e atirar-se como
desesperado aos braços da morte, na primeira batalha que lhe deparasse a
sua negra fortuna.

Eram, pois, baldadas todas as reflexões do ajudante de ordens.

A bordo do brigue inglez havia ordem para receber um marinheiro
portuguez, e um preto marinheiro tambem. Ao anoitecer d'esse dia
Francisco Salter de Mendonça, e o escravo que lhe assistiu durante a
prisão, vestidos de marinheiros, foram recebidos no brigue. Na manhã do
dia immediato, quando o ajudante de ordens, ancioso de alegria,
procurava Salter para lhe entregar a licença que o principe assignara,
contra as suggestões do ministro, o vaso inglez já tinha saído.

O solicitador da licença foi dizer ao principe que o capitão da armada
não poderá vir beijar a mão de sua magestade antes de sair, porque o
brigue já tinha levantado ancora, quando a licença chegou.

Este expediente fez que Francisco Salter não fosse julgado desertor,
posto que as averiguações feitas pelo ministro contrariassem o
depoimento do generoso amigo, que ficara destruindo a intriga.

O romance deixa de ser impertinente e aborrecido. Vamos entrar nas
scenas tristes e sombrias.




XV

    Crescei, mágoas, crescei, e crescei, dores;
    Quebrai o vagaroso e triste fio
    Que alonga a cruel Parca...

                          Ferreira. (_Eleg. 5.ª_)


As freiras dispersas recolheram ao seu convento da Avè Maria, um mez
depois da entrada do exercito anglo-luso no Porto.

Carlota Angela acompanhara sua tia, com quanto jubilo podia caber-lhe no
ambito da alma. Considerando a grandeza das penas que a flagellavam, só
á religião deve conceder-se o mystico poder de allivios, e alegrias para
a pobre, que tão infeliz era, e mais infeliz seria, se não tivesse a
táboa da religião em naufragio tão procelloso.

Apenas entrou no convento, quiz ver seus paes, dizendo que talvez elles,
na desgraça, precisassem de que lhes fallasse a linguagem da paciencia,
e da esperança nas riquezas do céo. D. Rosalia, foi chorar ao pé da
filha, e retirou-se consolada. Norberto de Meirelles contou-lhe tres
vezes a horrivel historia do roubo, e chorou outras tantas lagrimas como
punhos. Acudia Carlota com as uncções piedosas da paciencia,
promettendo-lhe alcançar de Deus com orações e penitencias a
prosperidade do negocio que seu pae recomeçara. O arrozeiro dava como
impossivel a restauração dos haveres perdidos, e afiançava que não
viveria muito tempo, porque a paixão do seu peculio, adquirido com tanta
honra e trabalho, o levaria á cova. No tocante ao auxilio que os santos
podiam dar-lhe para repôr o seu commercio no antigo pé, Norberto era um
iconoclasta requintado; não fiava nada dos santos, nem das jaculatorias,
antiphonas, e responsos de sua filha.

Teimoso e cabeçudo como um philosopho, argumentava contra a religião,
allegando em favor da sua heratica parvidade que se houvesse céo e
inferno não estava elle arrozeiro sem o seu peculio, porque tinha sido
sempre bom christão, e fora roubado por hereges.

Este argumento não é de certo o mais stolido que se tem envidado contra
a religião christã, por parte da philosophia; d'onde se conclue que
detraz de qualquer balcão se póde erguer um Ario, um Luthero, um
Calvino, um Voltaire de tamancos, e arrojar ao seio da sociedade uma
bomba recheiada de argumentos incendiarios como aquelle.

Assim como nós não sabemos que responder de repente ao atheismo de
Norberto de Meirelles, Carlota Angela não se nos avantajava em
promptidão de dialectica theologica, do que resultou sair o pae duas ou
tres vezes, da grade incredulo como entrara.

Uma vez lhe disse elle que perdesse a esperança de ser freira, porque
não tinha dote, nem pedia emprestados cinco mil cruzados para empatar
n'um modo de vida que não rendia sequer o juro da lei.

Carlota sabia de mais as circumstancias de seu pae, quando esta esperada
revelação lhe foi feita. Serena e carinhosa, como sempre o fora, desde
que a desgraça entrara em sua casa, respondeu-lhe que não tivesse elle
cuidado com a sua profissão, porque a prelada a recebia pela prenda da
musica, em que ella estudava continuamente, e a tia Rufina lhe fazia as
pequenas despezas necessarias para a profissão.

Estavam as cousas n'este pé, quando Antonio José da Silva, mercador de
pannos que foi na rua das Flores, pessoa a todos os respeitos digna de
larga chronica (como de feito a teve na Filha do arcediago) e um dos
maiores credores de Norberto, se apresentou pedindo em casamento Carlota
Angela, estipulando as seguintes clausulas:

1.ª Pagaria todas as dividas do sogro, e adiantaria dez contos de réis
para casco de novo negocio, a juro de quatro e meio por cento.

2.ª Compraria a quinta do Candal, já traspassada para pagamento de
dividas, e daria o usofructo d'ella a seus sogros, reservando para si a
hortaliça necessaria ao consumo da casa, dois gigos de maçã camoeza, dez
alqueires de feijão branco, e os pastios necessarios para quatro
cevados.

_Item._ Daria aos paes de Carlota paga e quitação das quantias que lhe
estivessem devendo no acto de se lavrarem as escripturas de casamento.

_Item._ Sua mulher iria viver na rua das Flores, e não tornaria a ir aos
_balancés_ por onde costumava andar em solteira, nem trajaria vestidos
como as fidalgas, nem andaria de corpo bem feito sem mantilha, quando
fosse á missa, ou désse, aos domingos de tarde, um passeio até Campanhã,
ou Valbom.

Estes artigos depôl-os sobre a mesa Antonio José da Silva, em seguida á
proposta de casamento, a que Norberto, embrutecido pela fortuna de
similhante proposta, respondeu logo que o negocio se havia de arranjar.

E sem perda de tempo, entrou o arrozeiro no pateo de S. Bento com uma
cara tão festiva e gozosa, que deu nos olhos á madre porteira.

Mandou chamar a filha, e rompeu assim o dialogo, com assomos de boçal
jucundidade:

--Estamos outra vez ricos, rapariga!

--Ricos?!

--Sim, ricos! alegra-te, Carlota.

--Pois que foi, meu pae? Appareceu-lhe o seu dinheiro?

--Quem dera isso! É cá outra cousa, menina! Estamos ricos, porque tu
vaes ser muito rica.

--Eu!? De que maneira?

--O Antonio da rua das Flores pediu-te em casamento.

Carlota engasgou-se, quando soltava uma palavra ou exclamação
imperceptivel.

--Não conheces o Antonio José da Silva? Aquelle rapaz que está podre de
rico? aquelle que herdou a casa do patrão, aqui ha tres annos? Ora essa!
não conheces?!

--Não conheço, nem quero conhecer, meu pae.

--Tu que dizes, Carlota!? Pois tu não queres casar com elle?!

--Não, senhor.

--Ó pobretaina de uma figa! pois tu vês que não tens nada, que teus paes
estão pobres como Job, e não queres valer aos auctores de teus dias?

--Não, meu pae, eu dou a minha vida aos auctores d'ella, se a quizerem;
mas o coração, que já dei a Deus, não póde ser de mais alguem. O pae não
é tão innocente como parece. Devia suppôr que a minha resposta era esta.
Quando entrei n'esta casa, disse-lhe francamente as minhas tenções. Como
ellas não estavam dependentes dos thesouros de meu pae, a perda d'esses
thesouros não as alterou na minima cousa. Sou a mesma que era, e
brevemente serei o que já não posso deixar de ser: uma freira pobre sem
precisão de ser rica, com muito mais do que me é necessario para ir
amparando a minha curta vida no serviço de Deus, e na penitencia dos
meus peccados, e dos peccados alheios.

--Não quero sermões, com mil diabos! vociferou o arrozeiro, batendo um
retumbante punhado sobre a banqueta--Não venho ouvir prédicas! És minha
filha, e has de fazer o que eu quizer. Não te dou o consentimento para
seres freira!

--Paciencia: sel-o-hei na intenção; mas não sairei do convento.

--Has de sair por justiça.

--Morta, póde ser.

--Viva, e muito viva, eu t'o juro por esta luz que nos alumia!

--Não jure, pae, que se engana. Ninguem será capaz de me arrancar com
vida para fóra d'esta casa. Quando eu não tiver forças com que me
agarrar a estes ferros, nada se me dá que me levem para fóra, porque a
minha alma já terá subido d'aqui á presença de Deus.

--Conta-me lônas, que eu te ensinarei. Filha maldita, que viste teu pae
pobre e desgraçado, e não lhe valeste! Filha cruel, eu te amaldiçôo em
nome do Padre, e do Filho, e do Espirito Santo. _Amen._

--Meu Deus!--exclamou Carlota--Ó meu pae, não profira similhantes
palavras! Não augmente a triste vida que eu tenho. Eu lhe prometto de
trabalhar toda a minha vida para que em sua casa nunca haja a menor
privação. Pedirei esmolas ás senhoras religiosas ricas, para lhe mandar,
meu pae. Não me amaldiçôe, que eu não lhe mereço esse castigo, nem é
possivel que Deus consinta que a sua maldição seja valiosa. Pelas chagas
de Christo, arrependa-se d'essas amargas palavras que disse...

A pobre menina, banhada em lagrimas, supplicava ainda de joelhos, quando
Norberto de Meirelles saíu da grade esbaforido, resfolegando vapores do
interior vulcanico do peito.

Ao passar por Antonio José da Silva, que o esperava á porta da loja, na
rua das Flores, disse-lhe:

--Nada feito.

--Venha cá, snr. Norberto, conte lá isso. Com que então não é o mel p'ra
bôca do asno; aqui calha melhor dizer _da asna_, digo bem, snr.
Norberto?

--V. m. é pouco cortez, snr. Antonio. Se vamos a pôr as cousas no
direito, ninguem póde ser asno sem sua licença. Lá por que a minha filha
me desobedece não dou ousio a v. m. de lhe chamar nomes, que é o mesmo
que chamarm'os a mim. Se é rico, snr. Antonio, eu tambem já o fui, e não
tratava ninguem de asno, porque aprendi a cortezia com as pessoas de bem
com quem sempre tratei.

--Não se enfade, homem,--replicou o irmão da snr.ª Angelica
(honrosamente mencionada na Filha do arcediago) pondo-lhe as mãos
vermelhas, como dois mólhos de rábanos, sobre os hombros--não vá a
Vallongo por tão pouco, snr. Norberto. Isto que eu lhe disse foi assim
um modo de fallar, sem aquella de injuriar a sua filha, nem a v. m., que
tem os figados, como lá diz o dictado, muito ao pé da bôca. Entre cá,
sente-se, desabafe, e veja se quer tomar um copo do da instituição da
Companhia, e uma cavaca de Arouca pare lhe dar animo.

--Obrigado; não quero nada; passe v. m. muito bem, e rasgue quando
quizer o tal papelucho das condições que me deu... Aqui o tem. Emquanto
ao que lhe devo, se v. m. não quizer esperar que eu lhe possa pagar,
mande tomar conta do que eu tiver, e fica d'aqui já arrumada esta
pendencia.

--Espere, homem, que ainda não chegaram as cousas a esse ponto. Eu quero
fallar com a sua filha, e mau é se ella me não dá o sim. Uma cousa é ir,
outra mandar.

--Não faz nada, snr. Antonio, digo-lh'o eu. A rapariga não falla como
nós, e tem lá na cabeça um palavriado da breca, que não sei onde ella o
foi aprender. Dizia-me o meu cunhado doutor (Deus lhe falle n'alma), que
a cabeça de Carlota era um vulcão. V. m. sabe o que é um vulcão?

--_Vulcão_, pelos modos, é... é o mesmo que _balcão_...

--Bem no digo eu! Vulcão é uma cousa de lume que sáe debaixo da terra.

--Ah!--interrompeu o snr. Antonio, abrindo a bôca como em testimunho da
sua admiração--Já entendo... Quer dizer que ella tem grandes fumaças de
ser bonita!... Olha o milagre! bonita é, mas ha-as por ahi tão bonitas
como ella, que tomaram que eu as quizesse. Emfim, eu sempre lá quero ir,
dê no que der. Assim como assim, nada se perde. O que for soará.
Appareça por aqui ámanhã, snr. Norberto.

Afoutado por tão estupida esperança, Antonio José da Silva teve a
audacia de procurar Carlota Angela. Vae ler-se o texto d'esta visita,
porque foi ella uma das maiores affrontas que a desgraça fez á pobre
menina. Todas as outras, confrontadas com esta, eram favores da fortuna.

O snr. Antonio ignorava a pratica dos conventos, ao tocante a
locutorios. Quando o introduziram, pela primeira vez de sua vida, em uma
grade, o alapuzado moço achou-se affrontado com a vista dos ferros.
Carlota appareceu com sua tia, meia hora depois que a esperavam. Esse
espaço de tempo fora necessario á freira para convencer a sobrinha de
que não era civil nem bonito deixar de receber a visita, qualquer que
fosse a intenção da pessoa que a visitava.

--Bons dias, minhas senhoras--disse Antonio, avançando e recuando, tres
vezes, uma assaralhopada cortezia.--Não me conhecem?

--Já soubemos que era o snr. Antonio José da Silva que procurava minha
sobrinha--disse soror Rufina.

--Já sabem ao que vim, pelos modos.

--Ignoramos.

--Venho a troco do que se passou com o snr. Norberto.

--Parece impossivel!--acudiu Carlota--Eu creio que disse claramente a
meu pae o que é escusado repetir ao snr. Silva.

--A menina ha de fazer favor de me ouvir um bocadinho, se não tem muito
que fazer.

--Pois não! queira fallar--disse Rufina.

--Eu sympathiso com a snr.ª D. Carlotinha desde que a vi nas endoenças
da Misericordia faz agora cinco annos. Já então me deu na venêta de a
pedir ao snr. seu pae; mas rosnava-se por ahi que a menina não gostava
de rapazes do negocio, e tinha lá suas tendencias para a farda. Metti a
falla no bucho, e esperei até ver no que paravam as cousas. Depois
aconteceu em sua casa a desgraça d'aquelle grande roubo, o snr. Norberto
ficou mal arranjado de fortuna, e eu, como o outro que diz, fiquei sendo
o mesmo homem a respeito da menina. Fui pedil-a a seu pae em casamento,
e elle ficou a pular de contente, porque, a fallar-lhe a verdade, não é
por me gabar, mas seu pae não endireita mais a cabeça se eu não casar
com a menina. Em primeiro logar, rasgo as letras que se vencem contra o
snr. Norberto no mez que vem, depois empresto-lhe quasi sem juro o
capital necessario para elle montar o negocio no pé em que estava antes
da quebra; depois, arremato a quinta do Candal em nome da snr.ª D.
Carlotinha, porque já ouvi dizer que a menina gosta muito da aldeia, e
eu tambem não desgosto, porque lá cômo muito melhor, e as aguas são mais
leves. Pois é verdade: eu venho para este fim. Agora veja lá a menina o
que decide. Se quer ser minha esposa, trato de arranjar os papeis,
botam-se os banhos, e vamos a isto. Então que diz?

--Já respondi a meu pae--disse, com mal disfarçada cólera, Carlota
Angela.--Não me queixo do snr. por aqui vir com similhante fim; creio
que meu pae, por delicadeza, lhe não diria sem rebuço a minha resposta.
Eu não caso com o snr. Silva, nem com alguem. Resolvi ser religiosa. O
meu tempo de noviciado acabou. Estou esperando a licença regia para
professar.

--Deixe-se de asneiras--atalhou Antonio José, soltando um boçal frouxo
de riso que indignou Rufina e enojou Carlota--Pois a menina quer-se vir
aqui metter n'esta espelunca, podendo ser rica e viver regaladamente
como pouca gente! Tenha juizo, creaturinha! Isto de convento é bom para
quem não tem, como o outro que diz, um marido que lhe dê tudo o que for
necessario para o augmento da sua pessoa, e que a traga nas pontinhas.

Carlota erguera-se para sair. Rufina seguira o exemplo da sobrinha.
Antonio José da Silva permanecera refestellado na cadeira, até que se
ergueu, forçado pela silenciosa mesura das duas senhoras, exclamando:

--Então que diz?!

--Minha sobrinha já respondeu ao snr. Antonio--disse a freira
affavelmente.

--Com que então, nada feito?--redarguiu o lêrdo aspirante ao matrimonio,
que, dez annos depois, lhe empeçonhou a existencia, segundo reza a
chronica já citada, da qual entendemos que a leitora deve prover-se, se
a zanga que lhe faz o bronco mercador de pannos requer uma vingança
superior ao delicto--Pois sabe que mais, snr.ª D. Carlota?--proseguiu,
erguendo-se, com modos colericos, e brutalmente canhotos--Eu entendo o
que isso é, e bem sei por que a menina anda a fingir que quer ser freira
p'ra dar tempo a que elle volte lá do Brazil.

--Elle! quem?!--exclamou Carlota com assomos de indignação, que o só
olhar da tia sofreou.

--Faça-se de novas! pois não sabe quem?! o da marinha, aquelle que lhe
caiu lá no gôto, porque trazia a cintura arrochada no fardalhão, que
sabe Deus a quem elle o ficou devendo, quando foi para Lisboa...

Carlota Angela saiu precipitadamente da grade; soror Rufina ficou para
explicar ao sandeu a descortezia da sobrinha; aconteceu, porém, que elle
não se julgou affrontado pelo impeto da saida.

--Snr. Antonio--disse a freira--v. m. está ahi fallando n'uma pessoa que
morreu. Minha sobrinha não espera alguem.

--Eu não sabia que elle morreu! Isso agora é outro caso... Acho que fiz
uma asneira em lembral-o á pobre moça! Faça favor de lhe dizer que me
desculpe. Ora olhem quem havia de dizer que o tal rapaz dera á casca lá
no Brazil! Pois eu cuidava que ella estava, como diz lá o outro,
encantada por elle, como a doninha com o sapo. Ainda bem que ella lhe
não caíu nas mãos, porque pelos modos o homem era jacobino, e melhor foi
assim, não lhe parece, senhora Madre?

A freira não pôde deixar de sorrir ao titulo de _Madre_ que pela
primeira vez lhe fora dado.

--An?--tornou elle--está-se a rir?! então que quer dizer lá essa
risadita?! Isto parece-me casa de doudos, por mais que me digam.

--Não deve aqui voltar, snr. Antonio,--replicou a freira com muita
brandura e graça--porque seria pena que o seu juizo perigasse n'esta
casa de doudos.

--E olhe que a fallar a verdade já me lembrou isso, e essa cousa que a
senhora Madre acaba de propôr não me cáe em cesto roto. Isso leva agua
no bico. A senhora Madre lá lhe parece que a sua sobrinha é capaz de me
fazer dar volta ó miôlo? Não tenha pena do rapaz, que eu tambem a não
tenho! (O snr. Antonio José da Silva tinha por esse tempo os seus
quarenta annos.) Quem chegou á idade adultera (emende _adulta_) sem dar
com as ventas no sedeiro, tambem já não cáe na arriola de se apaixonar
por quem lhe não sabe agradecer os affectos do seu peito; é como lhe
digo, senhora Madre, e póde dizel-o tal e qual á sua sobrinha, que não
vá ella cuidar que eu perco a vontade de comer. De tolas como ella está
cheio o Porto. Tomara eu boa vontade de casar, que mulheres andam-se-me
a metter pelos olhos com um palmo de cara soffrivel, e bons dotes...
cuida que não, senhora freira!?

--Cuido que sim, snr. Antonio,--disse com a mais comica paciencia soror
Rufina--cuido que v. m. merece uma menina de merecimentos muito
superiores aos da minha pobre sobrinha. Se ella o não sabe avaliar ao
justo, é porque está inclinada para a religião, onde nem todas as
pessoas são doudas, snr. Antonio. Vá v. m. na graça de Deus, escolha
entre tantas meninas que se lhe offerecem a melhor, e seja muito feliz.
As minhas obrigações não consentem que eu me demore.

--Sempre lhe quero dizer mais uma palavra, se está para isso, snr.ª
Madre.

--Com tanto que seja breve...

--Olhe lá... A senhora quer fazer um contracto commigo?

--Um contracto! Nós as religiosas não podemos fazer contractos, nem
supponho que genero de contracto possamos fazer.

--Eu lhe digo. Se a senhora fizer com que sua sobrinha queira casar
commigo, eu obrigo-me a dar á senhora cem mil réis cada anno emquanto a
snr.ª Madre for viva...

--Emquanto eu for viva?--atalhou a freira, sustendo com difficuldade o
impeto do riso.

--Sim, senhora--tem cem mil réis em metal, pagos no principio do anno,
emquanto a senhora for viva.

--Não aceito.

--Então quanto quer? diga lá, que me pilha em boa maré!

--Se me dá os cem mil réis por mais alguns annos...

--Que é? não entendo isso.

--V. m. diz que me dá cem mil réis annuaes; mas tira a condição de m'os
não dar logo que eu morra, não é assim?

--Podera não! Dou-lh'os emquanto a snr.ª Madre for viva.

--Pois eu quero que m'os continue a pagar por mais alguns annos.

--A senhora por mais que me digam está a mangar commigo! Então é douda
ou não é?! E o caso é que já pegou á moça a toleima...

Soror Rufina arquejava em gargalhadas indomitas, quando o lôrpa lhe
dirigia os ultimos insultos.

Não podendo mais sustentar-se na grade, a freira deixou o mercador a
resmungar, e lançou-se a rir nos braços de Carlota, que a esperava
chorando.

Acabou-se o ignobil episodio de Antonio José da Silva.

Aos que não conhecem esta raça inextinguivel no Porto, aos que reputam
desnaturada a linguagem que o romancista saccou da lingua d'este
Antonio, emprasamos para que estudem, e observem, hoje, n'este anno de
1858, já passado quasi meio seculo, os Antonios existentes, se é
possivel encontrar-se um Antonio assim que não seja um lustre da nobreza
coeva do gaz e do telegrapho electrico.




XVI

     Quem quizer saber quantos são ao todo os filhos de Adão, conte
     primeiro quantos são os afflictos e atribulados.

                                       Bernardes. (_Nova Floresta_.)


A filha de Norberto de Meirelles esperava em vão que sua mãe com
supplicas incessantes alcançasse do marido o dote para a profissão. O
negociante poderia com algum sacrificio acceder ás instancias de D.
Rosalia; mas a pertinacia de Carlota em rejeitar a proposta de Antonio
José da Silva irritou-o de tal modo, que não houve convencel-o a
aceitar, a titulo de emprestimo, a dadiva do patrimonio que os paes da
noviça Dorothea queriam dar á intima amiga de sua filha. Ia mais por
diante a brutalidade do arrozeiro, negando-lhe o consentimento. Ora,
contra esta tyrannia nova, entre as tyrannias de paes crueis e barbaros
tutores, como se diz nos romances não menos barbaros e crueis, contra
esta nova tyrannia trabalhavam na côrte pessoas empenhadas a favor da
noviça por intervenção de algumas freiras.

Obtida a licença regia, graças á pouca actividade de Norberto, e talvez
á diversão em que o traziam os cuidados e afflicções de pagar as letras
do snr. Antonio José da rua das Flores, Carlota Angela soube que seria
freira sem dote, freira de prenda, como se chamam as meninas que tocam
ou cantam, e dão a sua habilidade como equivalente de patrimonio.

Foi um dia de jubilo no mosteiro de S. Bento da Avè Maria o da chegada
da licença. A profissão de Carlota era uma festa, em que todas as
freiras tomavam parte. Os fartos meios, que lhes sobejavam, permittiam
solemnisar com todas as galas e magestade o acto augusto, que a noviça
anciava, chorando de alegria, e esperando com susto, como se temesse
algum imprevisto obstaculo á sua felicidade. Chegou o fausto dia.

Se entendem que não é impertinencia descriptiva debuxar á pressa os
promenores da profissão de uma religiosa benedictina, acompanharemos
Carlota Angela desde que a mestra, avisada pelo dobre do sino, a foi
buscar da casa do noviciado para o côro. A noviça ajoelhou aos pés da
prelada, proferindo as palavras do rito, que são uma supplica de
misericordia a Deus e á abbadessa, que a interroga ácerca do que
pretende. Entre as mãos de Carlota estava a regra do patriarcha S.
Bento, e n'essa postura devota e humilhada profere os votos. Á grade do
côro, onde se passa esta scena quasi silenciosa, chega um sacerdote com
a cruz processional entre dois candelabros, e após elle os paramentos.

A noviça cantou com a voz tremida a carta da sua profissão. As ultimas
palavras mais as dissereis gemidos desatados de uma suffocante angustia.
Lida a carta, o som melancolico do orgão parecia chorar com ella, cuja
voz, em terceto com a da cantora e da mestra de noviças, entoou, tres
vezes, o seguinte verso:

_Suscipe, Domine, secundum eloquium tuum, et vivam, et non confundas me
ab expectatione mea._

Carlota foi ajoelhar ante o altar da Virgem, e depôz no respaldo do
altar a carta da profissão. O côro cantava, entretanto, um _Gloria_ de
tristissima toada.

D'alli, foi ao meio do côro a professante, e ajoelhou sobre uma alcatifa
entre quatro candelabros; ajoelharam todos, e entoaram uma ladainha,
acompanhada a orgão, e instrumental.

As freiras assistentes ergueram nos braços a noviça, emquanto se cantava
o _Veni, creator Spiritus_, invocação de tanta religiosidade e
compunção, que as lagrimas saltaram a um tempo de todos os olhos.

Carlota foi prostrar-se diante da abbadessa, que a despiu, ao passo que
a trança dos cabellos era deposta n'uma salva de prata. Cingiram-lhe
depois a touca e o véo, que o celebrante aspergira e incensara, e
ajoelharam com ella. «Recebe, donzella, o véo sagrado--disse a
abbadessa, impondo-lh'o na cabeça--para que chegues sem mácula ao
tribunal de nosso Senhor Jesus Christo, ao qual se dobram os joelhos no
céo, na terra, e no inferno por toda a eternidade.» Sobre o hombro
direito lhe collocaram em seguida umas disciplinas, acompanhando a acção
com estas palavras: «Recebe, ó cara irmã, as armas da tua milicia».

O celebrante entoou uma oração, durante a qual as lagrimas da
professante manavam copiosamente sobre as mãos de soror Rufina, que lhe
amparava o rosto.

A prelada proferia as ultimas palavras da benção final, o orgão
acompanhava _Benedictio Dei Patris_, esse hymno de acção de graças, que
os anjos parecia sublimarem em accordes de celestial melodia, quando
entrou na igreja um mancebo com tal impeto, que se fez reparado ás
pessoas por entre as quaes rompeu com precipitada vehemencia.

--Já professou?--perguntou o individuo machinalmente a um rosto
conhecido que proferira o seu nome,

--Agora mesmo.

--Professa!--exclamou Francisco Salter de Mendonça, correndo para as
grades do côro--Professa! Tudo perdido, tudo perdido!

Encostado aos ferros do côro, com a fronte banhada de suor frio, e a luz
dos olhos turvada, Francisco Salter estava já amparado entre os braços
das pessoas que o reconheceram.

Fez-se um grande reboliço na igreja. A multidão agglomerava-se em redor
do official de marinha, sem poder averiguar a causa dos gemidos que se
ouviam no côro.

Não eram de Carlota Angela esses gemidos. A infeliz dirieis que
adivinhou a entrada de Salter na igreja, porque, erguendo-se de repente,
antes que a prelada pronunciasse as ultimas palavras da benção final,
correu á grade, soltou um ai suffocado, como se outro não podésse já
soltar do coração expirante, e caiu desmaiada nos braços de algumas
freiras, que lhe tinham seguido o movimento arrebatado.

Soror Carlota foi transportada á sua cella, sem sentidos. Francisco
Salter de Mendonça recobrou alento e razão, quando se viu espectaculo de
tanta gente, e pediu licença para sair.

A serenidade que de repente lhe assomou ao rosto causava novo espanto
aos amigos ou conhecidos que se empenhavam em o levar d'alli. Entre
esses havia um que tinha o segredo d'aquella grande desventura, e lhe
pediu mui encarecidamente que o acompanhasse para sua casa. Mendonça
rejeitou com tranquilla urbanidade os offerecimentos, e parecia surdo ás
consolações. O sorriso contrafeito, com que desmentia as lagrimas que
lhe aguavam os olhos, presagiava alguma grande desgraça. Um suicidio foi
o receio das pessoas a quem o mysterioso acontecimento foi de bôca em
bôca revelado.

Por fim, Mendonça desopprimido do concurso que o rodeava ainda no adro
da igreja, entrou no pateo do mosteiro, foi com sereno aspecto á
portaria, e pediu á madre porteira o favor de o annunciar á senhora
religiosa que acabava de professar. Concorreram algumas freiras a ouvir
este recado, e todas á uma balbuciaram não sabemos que palavras de
consolação religiosa que Francisco Salter parecia não ouvir.

Immovel permanecia elle, esperando a apparição de Carlota, quando lhe
indicaram a grade onde elle devia esperar que lhe fallassem.

--É a snr.ª D. Carlota Angela que eu procuro--disse elle com
imperturbavel firmeza.

--Pois suba para a grade, que o estão lá esperando.

--Mas quem é que me espera, senhoras?

--Alguem é...--responderam as freiras.

--Quem eu procuro, e com quem preciso fallar, é a senhora que professou
ha pouco. Não conheço mais alguem n'esta casa.

--Pois queira subir...--disse o padre capellão do mosteiro, que n'este
momento viera collocar-se ao pé de Francisco Salter--Eu acompanho v.
s.ª á grade onde o esperam--continuou o padre, dando-lhe o braço, e
guiando-o automaticamente para a grade, onde o estavam esperando.

Mendonça encontrou na grade uma freira desconhecida: era soror Rufina.

--Creio que não lhe será desagradavel--disse ella--encontrar uma tia de
Carlota.

--Quizera antes, minha senhora, encontrar sua sobrinha.

--É impossivel; minha sobrinha não dá accordo de si, nem dará tão cêdo.
V. s.ª devia presumir isto mesmo, antes que lh'o dissessem.

--Por que, minha senhora?!

--Porque minha pobre sobrinha o julgava morto, todas nós as amigas da
infeliz o julgavamos como ella: eu mesmo agradeço a Deus as forças que
me dispensa para poder vir a esta grade rogar de mãos erguidas ao snr.
Mendonça que não diga á desgraçada uma palavra que a póde matar; não lhe
lance em rosto a falta de palavra, que seria affrontal-a e dar-lhe o
ultimo empurrão para a sepultura.

--E disse eu já que vinha lançar em rosto a Carlota alguma falta? Não
venho, minha senhora, não. Eu vim a querer enxugar-lhe as lagrimas que a
minha apparição lhe fez chorar.

--Carlota por ora não póde chorar, snr. Mendonça. Para tamanha dor não
ha tal desafôgo por emquanto, e Deus sabe se alguma vez o haverá... Eu
não conto já com a vida de minha sobrinha. Vamos ser n'este convento
testimunhas de uma agonia muito atribulada. Deus lh'a dê curta, ou me
leve a mim primeiro, por misericordia. Duas horas antes, snr. Mendonça,
têl-a-hia talvez matado de alegria com a sua presença. Assim, matou-a,
ha de matal-a de pena, de desespero, de dores infernaes, que não hão de
obedecer aos confortos da religião.

--Que são confortos da religião?!--interrompeu Mendonça, carregando o
sobre-olho com a turvação da blasphemia.

--Aterra-me essa pergunta, snr. Mendonça!

--Não se aterre, minha senhora: responda-me antes a uma pergunta: o Deus
que ha de consolar Carlota é o mesmo que viu impassivel até este momento
a minha desgraça e a d'ella?

--Altos juizos do Senhor! Por quem é não lhe falle essa linguagem á
pobre Carlota! Ajude-a a supportar o peso da sua dor, com os olhos
postos no céo. A impiedade não serve de nada, snr. Mendonça. A
respiração da blasphemia traz para o interior do coração o fogo do
desespero. Se a vir succumbida, dê-lhe animo para a paciencia, venha
aqui todos os dias, dê-lhe a felicidade que a religião dos infelizes não
condemna; amigo, seja o irmão extremoso da minha pobre sobrinha.
Prometta-me isto, que eu vou prevenil-a pouco e pouco, até que ella
possa encaral-o com firmeza e confiança. Se a accusar de inconstante,
snr. Mendonça, olhe que a calumnia cruelmente. Ha de saber da bôca de
Carlota que dois annos de martyrio ella tem amargurado n'este convento.

--Sei, senhora.

--Que desenganos, que torturas, que repetidas luctas com a desesperação,
e que ferventes supplicas ella fazia a Deus para que a levasse, desde
que lhe deram como certa a sua morte!

--Tudo sei, minha senhora. Já vê que a não posso condemnar. Eu venho
pedir-lhe consolações, venho aprender a paciencia, venho pedir-lhe
coragem para não tentar contra a minha vida.

--Peça, peça, e verá que a minha santa sobrinha lhe ensina a consolação
do soffrimento, o bálsamo divino da paciencia, e o segredo de achar a
alegria na vida que tão desgraçada lhe parece. Hoje não, snr. Mendonça;
Carlota a esta hora precisa de que a animem, se é que Deus não quer que
este golpe seja o ultimo no debil fio da sua existencia. Eu vou para
junto d'ella, parece-me que a estou ouvindo pronunciar o seu nome, e eu
corro a dizer-lhe que encontrei no snr. Mendonça o irmão, o amigo
carinhoso da nossa Carlota. Deixa-me dizer-lhe isto, snr. Mendonça?

--Diga, diga, que é preciso salvarmol-a, ainda mesmo que ella me não
torne a ver.

--Por que não ha de ella tornar a vel-o?! Então quer que a infeliz morra
atormentada? Tenha compaixão de nós, snr. Mendonça! Outra freira d'esta
casa talvez lhe pedisse que não voltasse aqui mais. Eu, pelo contrario,
lhe rogo que venha todos os dias, que seja testimunha de todas as
lagrimas salvadoras que ella chorar, que lhe prometta uma affeição pura
sem manchar a santidade das obrigações religiosas de Carlota. Pois a
amizade immaculada não é o reflexo do amor divino? O Altissimo não
condemna o coração de minha sobrinha, cheio de um amor que ha de entrar
com a alma na bemaventurança. Eu tenho presenciado n'esta casa affeições
de muitos annos, de longas vidas dedicadas ao amor do coração, sem
comtudo macularem a religiosidade dos deveres. Todo o mundo tem
obrigação de respeitar o amor de minha sobrinha ao homem que ella chorou
dois annos, chorava ainda no instante em que lhe appareceu. Venha, snr.
Mendonça, venha aqui todos os dias, e verá como o tempo amacia os
espinhos que o mortificam. Ha de chegar a esquecer-se das dores que
soffre n'este momento, e a sentir as lagrimas de uma amizade santa e
pura.

O dialogo foi cortado por uma pressurosa chamada a soror Rufina. Carlota
recuperando os sentidos, chamava Francisco Salter de Mendonça, e
forcejava por evadir-se dos braços que a sustinham. Algumas religiosas
estavam passadas de religioso terror, vendo-a, ainda vestida com os
hábitos da profissão, invocar tão afflicta e descomposta o nome profano
de um homem que, no entender das servas de Deus, devia considerar-se de
direito morto, quando o não estivesse de facto. Algumas escrupulisaram
de assistirem ao debate da professa nos braços das mais novas, e
congregaram-se na cella da escrivã para decidirem que o demonio entrara
no corpo de Carlota. O voto da mais auctorisada era que se chamasse o
capellão para exorcismar a energumena. Outra acrescentava que, no caso
infausto de contumacia diabolica, seria util e piedoso dar parte do
successo ao bispo, para que este obrigasse Francisco Salter a sair do
Porto, como perturbador d'aquella casa.

Entretanto, soror Rufina, chamada da grade, onde deixara Mendonça
esperando saber o estado de Carlota, pedira ás amigas menos escrupulosas
de sua sobrinha que a deixassem só com ella.

--Francisco desejava ver-te--disse Rufina.--Logo que tenhas força e
vontade irás ver o que é um amigo do coração, um anjo de paz que Deus te
envia, assegurando-te que a felicidade do espirito não destroe a
felicidade do claustro, que a esposa do Senhor póde ser a irmã estremosa
do homem a quem amou.

Carlota cravava os seus grandes olhos no rosto risonho da tia, como se
não comprehendesse. A freira continuou:

--Esperavas que Mendonça te viesse lançar em rosto a tua impersistencia,
minha filha? Não, Carlota. Mendonça sabe tudo. Diz que vem procurar as
tuas consolações, a fim de não tentar contra a propria vida. Vês tu,
menina, que sublime encargo Deus te confia no momento em que as tuas
angustias tocam o extremo? Tens de amparar a vida do nobre moço, de lhe
dares consolações...

--Eu, meu Deusl eu consolal-o!--exclamou Carlota, arrancando
impetuosamente o véo--Ha uma só consolação possivel para nós.
Annullem-me os votos que fiz. Não posso ser freira, não quero ser
freira. Deus sabe que fui atraiçoada, que professei, porque me mentiram,
e eu não minto a Deus. Minha querida tia, eu sou agora mais desgraçada
que nunca. Morro impenitente, se me não dizem que é possivel annullar um
juramento falso que me obrigaram a dar.

--Carlota! tu não comprehendes a felicidade n'este mundo sem o crime?

--Crime! qual foi o meu crime? que fiz eu para merecer este castigo?
Onde está Deus, que me não amparou antes d'este desgraçado passo que dei
hoje, e me não mata agora, se não posso remedial-o?

--Isso é uma blasphemia, filha! o demonio da tentação não quer deixar-te
gosar as alegrias puras que Deus te permitte.

--Alegrias, minha tia! Pois cuida que se engana assim a afflicção?
Alegrias para mim, que estou condemnada a um carcere perpetuo, que hei
de ver sempre entre mim e o esposo da minha alma uma barreira de ferro,
que nem posso sequer esperar que elle venha recolher o meu ultimo
suspiro?! Vel-o todos os dias... oh! esse é o mais horrivel de quantos
padecimentos podia antever a minha imaginação! Antes acabar no
desespero, sem vel-o! Antes morrer aqui abafada sem que elle seja a
desgraçada testimunha das minhas agonias! Que hei de eu dizer-lhe, ou
que ha de elle dizer-me a mim? Se elle me pedir contas dos meus
juramentos, se me lançar na rosto a minha falta de fé, se me perguntar
como pude eu sobreviver á certeza de que elle tinha morrido, que hei de
eu responder?

--Diz-lhe que vestiste o habito de eterna viuvez, que escolheste a vida
mais pura, para que as orações por alma d'elle fossem mais gratas ao
Senhor. Diz-lhe antes que escolheste o mais longo paroxismo de uma morte
atribulada; que podeste acreditar que elle violara o seu juramento;
conta-lhe tudo quanto a traição inventou em teu damno; diz-lhe que ainda
convencida de que elle morrera, depois de atraiçoar-te, lhe perdoaste, e
caíste de joelhos aos pés da cruz, pedindo á misericordia infinita que
lhe perdoasse o perjurio. Que mulher houve n'este mundo tão forte da sua
innocencia como tu para poder apresentar-se com o rosto immaculado na
presença do homem que lhe vem pedir contas? Qual é o teu crime, infeliz?
Não te disseram a ti que Francisco esposara outra mulher no Rio de
Janeiro? Não te affirmaram que elle morrera depois? O silencio de dois
annos não estava sempre confirmando o cruel desengano das tuas
esperanças? Quem te ha de accusar, Carlota?

--Elle, minha tia. Eu tinha obrigação de não acreditar a calumnia! Eu
fui mais vil e miseravel que os infames que urdiram a minha desgraça!
Não tenho animo de lhe apparecer, não sei como possa defender-se a minha
fraqueza, nem quero defender-me, porque sou eu a que me accuso de
indigna do perdão d'este homem, que eu fiz tão infeliz... Ha um só
remedio, minha tia... Se m'o não dão, nem quero mais vel-o, nem prometto
respeitar a religião que nos manda supportar com paciencia o peso da
vida... e que vida, meu Deus!... que vida de inferno me seria esta, se
eu não podesse arrancar do coração esta braza viva que me está
atormentando!

--Pois que queres tu, Carlota! Valha-me a Virgem Santissima! que se ha
de fazer, infeliz creatura?

--Annullem-me os votos, deixem-me ir lançar aos pés de quem póde
restituir-me a minha liberdade. Não posso ser freira, declaro bem alto
para que todos me ouçam n'esta casa, e me desculpem do mal que eu fizer;
não posso ser freira, sem dar grandes escandalos, sem insultar a virtude
das pessoas que me rodeiam, sem amaldiçoar a hora em que professei, e a
religião que me manda morrer sem desabafo.

--Carlota! pelo amor de Deus!--exclamou soror Rufina, tapando-lhe a
bôca, e abraçando-a com convulsivo terror. Teme o castigo do céo, minha
filha. Arrepende-te d'essas blasphemias, e Deus não permittirá que tu
comeces a expial-as n'este mundo com a deshonra... Tu não sabes o que
disseste, Carlota. Foi a desesperação que a fez assim fallar, minha Mãe
Santissima; não consintaes que ella seja castigada! Alcançae de vosso
Filho um bocadinho de refrigerio para esta desgraçada que a dor
enlouqueceu.

A freira continuou uma supplica assim afflictiva diante da imagem da Mãe
de Deus. Carlota Angela correra impetuosamente para o mais escuro da
casa, e lá prorompera, sósinha, em prantos, que não eram de contrição,
nem sequer de desafôgo á sua grande angustia. Apertavam-a ainda os
frenesis da desesperação enraivecida e impia. Rebatia com gestos
furiosos as timidas consolações da tia e da meiga Dorothea, cujas
palavras mais suavemente lhe deviam fallar ao coração, se a quasi
demencia a não tivesse assaltado com vertigens de quarto em quarto de
hora.

Francisco Salter recebeu, ainda na grade, a triste informação do estado
de Carlota. Perguntou elle a soror Rufina, se teria duvida em
entregar-lhe uma carta. A freira hesitou emquanto Mendonça lhe não disse
que a carta seria um lenitivo para Carlota, e talvez um balsamo de
completa cura.

Qual deva ser a efficacia d'esse balsamo infere-se da carta que se copia
textualmente no capitulo immediato.




XVII

     Dans le monde tout est confondu. Les juges ne sont plus que des
     bourreaux, qui offrent des victimes humaines á ce Dieu mensonger
     qu'on appelle le Droit et la Justice. L'homme sans foi devient un
     sage et le sage une dupe. Le héros qui donne sa vie pour la vérité
     n'est qu'un malheureux fou, qui s'est sacrifié pour une chimère.
     Qu'il meure désespéré sur les pavés sanglants, objet de
     l'indifférence de Dieu et de la raillerie des hommes!

                                            Jules Simon. (_Le Devoir._)


«Carlota.

«O destino esmaga-nos, se succumbirmos. Coragem, intrepidez de
desesperados, é a nossa salvação... A sociedade pôz-nos um pé sobre o
peito: o coração geme nas agonias da morte violenta; mas não morrerá.
Affrontemos os assassinos. Vamos direitos ao encontro da infamia. A
nossa vingança é viver. A nossa vingança é enxugar as lagrimas, e
suffocar os gemidos. A nossa vingança é fazer a sociedade responsavel
perante a sua propria consciencia do crime que ella propria ha de
condemnar, depois que nos queimou na alma o germen da virtude.

«És freira, Carlota Angela. Forçaram-te a violar a palavra jurada, cujo
cumprimento vinha pedir. Disseram-te que eu te atraiçoara e morrera.
Tinhas obrigação de defender a minha honra, emquanto eu não viesse da
sepultura pedir-te perdão da perfidia. Não te condemno, nem sequer me
queixo. Entre a perversidade dos que te rodearam e a tua innocencia, a
lucta era desigual. Fraqueaste, porque a desgraça exigia que eu bebesse
o ultimo trago do meu calix. Eu não podia deixar de ser infeliz até á
extrema d'este inferno. Aqui deve ser o termo final da minha
condemnação. Não se póde ir mais além. Suicidar-me seria desmentir a
fortaleza com que tenho arrostado a desventura até hoje. Chorar comtigo,
devorar em silencio um dia e outro dia, na escuridade da desesperação, o
resto de duas vidas tão miseraveis como as nossas, seria escolher a
peior das mortes, o paroxismo prolongado, sem desafôgo nas crenças, sem
refugio na esperança de outro mundo.

«Não creio, nem espero nada além d'esta vida, Carlota.

«Se te sentes arrebatada para a grandeza do Creador, repara na miseria
das creaturas. D'este asqueroso lamaçal de sangue e lagrimas, para onde
nos empurrou a mão humana, como queres tu que o espirito possa
levantar-se para Deus?! Não ha justiça na terra, nem providencia no céo.
O summo bem é um sonho dos corações opprimidos, quando a oppressão não
estala os ultimos filamentos da fé, quando a angustia não é tamanha que
cerre todos os respiradouros da alma. Se ha Deus, a sua inercia, á vista
das atrocidades que soffremos, é igual á indifferença, á impotencia, ao
nada. Nas minhas e nas tuas dores, a justiça eterna permaneceu
insensivel, como se temesse ou approvasse a infamia dos homens.

«Não baixou do céo um anjo que te dissesse:

«Aquelle que te ama, vive em torturas, arcou já triumphante com a morte,
esmagará por fim o preconceito da honra, e virá buscar-te. Não dês a
Deus um coração que não podes dar. Não jures ante o altar um voto que
implica a morte do homem que a estas horas, sobre o mar, me está pedindo
que te dê forças para o soffrimento, que te illumine com um clarão de
esperança, que te povôe os sonhos com a imagem d'elle.»

«Fallou-te assim um anjo, Carlota? Não. Em redor de ti estava o terror
do desconforto, o silencio da desesperação, o desamparo, e as piedosas
lamentações de algumas almas boas que te mostravam o céo, porque a vida
se te havia convertido em inferno.

«Eu gemi n'um carcere longos mezes. Visitou-me a fome, a sêde, o frenesi
da loucura, o terrivel _nunca mais_, essas duas palavras malditas que
encerram todo o fel das amarguras humanas. E, no tumultuar de tantas
penas injustas, nunca a justiça divina me disse que esperasse o dia do
resgate, a corôa do martyrio immerecido, a vista da mulher chorada que
me vinha consolar nos instantes do lethargo, e fazer suave a pedra em
que eu encostava a cabeça abrasada. Nunca. Gemi no desamparo, como o
malfeitor repulsivo, que a sociedade lançou de si maldito, e maldito de
Deus nem sequer podia esperar a purificação do remorso.

«Que mal fizeras tu, pobre mulher? Por que te mortificaram os homens, e
como consentiu um Deus justiceiro o tormento que te deram?

«Que mal fizera eu, homem de consciencia pura, que passei os annos da
minha mocidade estudando os raros exemplos de virtude que me encantavam
o coração?

«Padecemos, porque fomos escravos da honra, Carlota Angela.

«Se eu passasse por cima dos respeitos humanos, terias sido minha
amante, serias hoje minha esposa, e a sociedade apontar-nos-hia como
modelo de amor fiel e devotado a todos os sacrificios. Faltou a culpa,
para que a fortuna nos não ludibriasse. Era necessario o crime para
sermos hoje felizes. A virtude o que é?

«A minha honra reduziu-me a isto que eu sou. Sacrifiquei-te aos deveres
que a minha probidade me impunha, e fiz-te a desgraçada que hoje és.

«Quero salvar-te, Carlota, e quero que me salves.

«Apparece-me, filha da minha alma; vem ouvir-me, porque a nossa época de
felicidade começa hoje. Não ha para nós n'este mundo mais que nós
mesmos. Tudo que se oppozer ao destino que vamos seguir, é mentira, é
perfidia, é uma nova traição que te armam, Carlota.

«Sorri á esperança, martyr! Irradie em volta de ti o sol de esperança
que me está abrilhantando o futuro. O coração delira-me de alegria no
peito, onde não cabe. Agora conheço que me pertences, que te não perdi,
que és mais minha por um direito de torturas, que valem mais que todos
os juramentos. Sacode as algemas que a hypocrisia te encadeiou nos
pulsos. Deixa voar o coração, que um voto sacrilego ou impostor te
assellou ao nada da uma esperança estupida ou fementida. És livre,
Carlota. A tua alma não podia obedecer ás suggestões de malvados, porque
era minha.

«Agora te digo que venho pedir contas do teu juramento.

«Carlota Angela, estou aqui! Pertences-me.»

A freira acabava de ler esta carta, e correra á grade, onde a esperava
Mendonça.

Não dizem os nossos apontamentos o que se passou na grade. Se
escrevessemos de imaginação, dava-se aqui um dialogo plangente, travado
de exclamações, umas de expansão maviosa, outras de frenesi insano. O
mais natural, na situação dos dois infelizes, é chorarem longo tempo
silenciosos. Devia a sua dor ser uma das que suffocam e entalam na
garganta o gemido. A desesperação mataria n'elles o jubilo de se verem:
a freira não poderia dizer a Mendonça: «sou tua». N'aquellas grades,
duras e inflexiveis como o «cumpra-se» terrivel do destino, estava
escripto o impossivel. Entalal-as, espedaçal-as, só a mão sacrilega do
crime poderia. Carlota ha de rasgar o véo, ha de calcar o habito, ha de
passar por cima da sua virtude, da sua religião, do seu esposo
celestial, se quizer dizer a Mendonça: «sou tua».

Devia, pois, ser melancolico além do exprimivel o que ahi se passou
n'essa grade; triste, e desgraçado direi, a julgal-o pelas
consequencias, que se vão descrever, com um certo pezar em que esperamos
tomem os leitores o seu quinhão de pena, se não todos, ao menos aquelles
que não dão nada pela felicidade da terra, quando ella implica offensa
ao Senhor do céo.

Se as calamidades que promanarem d'esse encontro não forem das que matam
os agentes da sua propria desgraça, e, ao mesmo tempo, escandalisam a
moral, a quem ha de a moral condemnar? em que ponto d'esta escabrosa
senda da vida quereis que se levante o signal de aviso para acautelar os
ignorantes do abysmo que as flores escondem?

Nao sabemos, não o sabem os que teem a experiencia das quédas, e vão
caíndo sempre no golfão, para onde os allicia com blandicias uma
attracção satanica. Estamos fartos até ao tedio de ouvir dizer que o
homem é bom, que o homem é mau. O homem não é bom nem mau de seu
natural: é aquillo que o fazem ser; é o que realmente deve ser n'este
mundo, segundo a organisação d'este mundo, organisação viciosa,
aleijada, falsa, peccaminosa, quer o defeito começasse no paraizo
terreal, quer nos multiplicados infernos que as idades se foram
inventando através das civilisações.

O leitor tem o juizo necessario para se não dar á canceira de
interpretar essas linhas assim com assomos de dogmaticas. Este romance
pecca por acaso em divagações philosophicas, e n'isso está cifrado o
merito não vulgar de um livro que sustenta o caracter singelo e lhano
desde a primeira pagina, para que aos mais myopes se não esconda a luz
debaixo do alqueire.

Reparou soror Rufina em sua sobrinha, na volta da grade; achou-a serena
de mais, risonha até; um lampejo de alegria interior que lhe reaccendia
nos olhos a luz que as lagrimas haviam apagado. A velha freira, já
apalpada por infortunios de amor, não conjecturou d'aquella inesperada
alegria tão innocentemente como Carlota cuidava. O temor que a
sobresaltou presagiava a verdade, mas tão desgraçada era a verdade, que
a freira antes quiz desmentir o proprio presentimento, do que interrogar
a sobrinha, innocente talvez.

--Como vens alegre, Carlota!--disse ella.

--Fiquei mais desopprimida, minha tia; o muito chorar faz bem... estou
muito melhor, e agora espero vencer o infortunio.

--Com que armas, filha?

--Com que armas?... Com as da resignação... A maldade, a guerra que o
mundo faz a fracas mulheres como eu, só com a paciencia se sustenta.

--E Mendonça aconselhou-te a resignação?--disse a freira com suspeitoso
intento.

--Elle? tomara o infeliz quem lhe ensinasse o remedio das suas
afflicções... Nenhum de nós é forte; somos ambos por igual desgraçados e
fracos para luctar com as perfidias que nos fazem, ou que nos fizeram. O
remedio unico é gemer até á morte, dar á sociedade o regalo de nos
esmagar, soffrer-lhe na garganta o pé com evangelica submissão.
Entende-o assim, minha tia?

--Que modo de perguntar é esse, Carlota?! Eu estranho-te...

--Estranha-me!? Pois queria que eu voltasse da grade mais afflicta do
que fui?

--Não; esperava que as tuas palavras fossem mais sinceras, filha.

--Pois não são?!

--Ha ironia n'esse elogio que fazes á tua paciencia. O coração de uma
mulher não é assim. Concilias-te muito depressa com o sacrificio. A
virtude não se alcança assim tão rapida, e essa paciencia, que te
impões, é a virtude suprema. Não, Carlota, não. Tu... Tremo dizer-t'o...

--Diga, minha tia.

--Tu, filha, meditas um desatino.

--Um desatino!...

--Sim, Carlota; tu intentas fugir do convento--disse a freira com pavor.

--Não, tia...--balbuciou a trémula religiosa, mudando subitamente do
semblante sereno para os gestos alvoroçados da surpreza, do mêdo,
reflexivos da agitação interior que fizera n'ella o ar assombrado da
tia.

--Não balbucies, desgraçada. O teu rosto está confessando o desvario do
coração. Diz com animo, filha, confia á tua amiga essa resolução
funesta, que não executarás, sem que as minhas lagrimas te demovam de
tal desgraça. Oh! não faças tal, infeliz, que te deshonras para o mundo,
e te perdes para Deus.

--Minha tia!--exclamou Carlota, abraçando-a, e soluçando palavras
inarticuladas.

--É pois certo?--tornou a freira.

--É certo, minha tia, é certo que ou Deus me mata, ou eu fujo.

--Jesus! Maria Santissima! Que dizes, Carlota!

--Não posso desdizer-me, minha querida tia. Eu sou do homem que amo. Não
vejo nada n'este mundo senão elle, e as suas lagrimas. Mas as suas
lagrimas são-me menos preciosas que a vida de Francisco. Soffreu muito o
meu desgraçado amigo, soffreu muito; é preciso que eu o indemnise com a
minha reputação, com a vida, com os soffrimentos de todas as pessoas que
me estimam. Eu hei de ser menos infeliz, e elle será feliz quanto se
póde ser...

--Á custa de um crime... Carlota!

--De um crime que é o resultado de muitas infamias urdidas contra a
nossa felicidade. É um crime só o nosso, um só; Deus perdôa, e, se não
perdôa, aceito o inferno, se ha inferno, aceito...

--Cala-te, desgraçada, que insultas a religião; cala-te ahi, que
enlouqueceste, Carlota, e Deus bem sabe que a tua razão desvaria!

--Não, minha tia. Eu sinto-me no meu perfeito juizo: a desesperação
enlouquecia-me de antes algumas vezes; mas a esperança restituiu-me hoje
o vigor da minha antiga razão; com a differença que de antes
assustal-a-hiam os juizos do mundo, que a subornavam, e hoje a minha
razão vê tudo como tudo é, sente-se livre, e capaz de destruir todos os
obstaculos que uma falsa piedade me pozer.

--Mas tu não és já senhora de tuas acções, Carlota!--bradou a tia com
azedume.

--Sou. Emancipou-me o infortunio. Se me cortarem todos os meios da fuga,
resta-me o recurso do suicidio; apparecerei morta no pateo do convento.

Soror Rufina ficou tranzida. Carlota contemplou-a com pezar n'aquelle
quietismo terrivel. Estava a pobre senhora com a face apoiada sobre os
joelhos, e as mãos erguidas. A filha de Norberto quiz divertil-a da
lethargia; mas a gélida face da freira parecia de pedra, apenas as
lagrimas borbulhavam incessantes nas mãos da sobrinha.

Ao lado, porém, da consternada anciã estava a imagem de Francisco
Salter. Carlota queria consolar, promettendo o impossivel; mas o coração
recusava-se á mentira.

A freira benedictina promettera fugir n'aquelle dia. Se não soubera
esconder a traição, tambem não seria capaz de revogal-a, ou differil-a
para mais tarde.




XVIII

     _Venite ad me omnes qui laboratis, et onerati estis, et ego
     reficiam vos._

                                                   Jesus Christo.


Soror Rufina comprehendeu mal a exaltação de Carlota. No conceito da
ingenua religiosa, sua sobrinha, posto que tentada pelo espirito das
trevas a dar um passo de desesperada, um passo do altar para o abysmo,
do limbo de esperanças celestiaes para o inferno das eternas dores, não
chegaria a deixar-se vencer, caíria contrita aos pés da cruz antes de
infamar-se e infamar o mosteiro com a fuga.

Carlota, por sua parte, não desmentiu a conjectura da freira, por isso
que, por espaço de dois dias, esteve reclusa na sua cella, orando e
chorando, quasi sempre sósinha, porque tanto a Cecilia como a Rufina
pedia que a deixassem desafogar a sua angustia a sós com a imagem do
Senhor, sua consolação extrema e unica.

Não podemos, porém, asseverar que as lagrimas e orações fossem o
constante exercicio da freira benedictina. Duas ou tres cartas, que
Francisco Salter de Mendonça recebeu, foram de certo escriptas em
intervallos pouco edificantes d'esses dois dias, se devemos, do que
aconteceu ao terceiro dia, avaliar o conteúdo d'ellas.

Ás tres horas da madrugada d'esse terceiro dia, que era o setimo do mez
de setembro de 1811, Francisco Salter de Mendonça estava já desde a meia
noite, encostado ao muro da cêrca do mosteiro, n'aquelle angulo que
confina com a ultima casa da rua do Loureiro, hoje bem conhecida pela
«Estalagem do Cantinho». Não averiguamos como elle conseguiu do
locatario d'essa casa, que devia ser um sujeito de maus costumes,
licença para engatinhar através do telhado, até alcançar o muro na parte
onde é facil o salto para a cêrca.

Ao dar das tres horas no campanario do mosteiro, branquejou rente com o
angulo do muro, que fórma a especie de fortim de ameias sobranceira á
Porta de Carros, um vulto que desceu ao pomar, e ahi se sumiu por alguns
minutos á vista do anciado Francisco Salter.

Era Carlota Angela, a professa benedictina, que fugira do thalamo do
divino esposo, e a cada passo que dava comprimia no peito o coração que
o phantasma do seu crime apavorava. Os minutos que se demorou no pomar,
cerrado, por cuja copa o clarão da lua, já desmaiado pelos alvores
matutinos, se coava, traçando sombras movediças, foram uma demora
causada por uma syncope.

Francisco Salter, suspeitando isto mesmo, ou receiando o arrependimento,
saltou o muro, deixando içada a escada de corda por onde Carlota devia
subir, e foi direito ao pomar. A freira soltou um grito de terror quando
viu ao pé de si um vulto. Salter proferiu o nome d'ella com amorosa
angustia.

Mendonça tremia.

Não ha coragem de homem que vença a commoção d'estes lances. O silencio
religioso que reinava alli; os trajos da religiosa, ainda os mesmos com
que horas antes assistira á sua ultima oração em communidade, excepto a
touca e o escapulario; esse intimo abalo com que a Providencia se
denuncia nos corações mais endurecidos pela negação da falsa consciencia
do irreligioso; e, sobretudo, a lucta de todos esses sentimentos com a
paixão imperiosa, e o plano irrevogavel d'esses dois infelizes, fora,
talvez, a causa do quebranto, e quasi desfalecimento de espirito em que
ficou Mendonça ao apertar nos braços, pela primeira vez, Carlota Angela.

--Não posso!--exclamou ella--não posso dar um passo... Começo a sentir o
castigo do céo... Receio morrer aqui.

--Não morrerás, Carlota...--acudiu Mendonça, apertando-a ao seio com
vehemente ternura misturada de supersticioso sobresalto--Deus só castiga
o crime das que abjuram os votos que faz o coração. Vem, Carlota, mais
alguns passos, pouco nos falta já; d'aqui a momentos verás fugir esse
terror, que me está opprimindo tambem a mim. Vem, amiga da minha alma...

--Não posso, Francisco... não posso...--tornou ella, soluçando,
pendurando-se-lhe dos hombros com afflictivo modo, e olhando em redor
com a vista assombrada de visões medonhas--Vae tu, que eu torno para o
meu supplicio... Vae, meu amigo, que não póde haver felicidade sem Deus.
Não queiras ser cumplice do meu crime, porque o has de expiar commigo. O
melhor, na minha desgraça, é morrer, Francisco; morrer martyr, morrer
digna de pedir ao Senhor por ti...

Francisco Salter balbuciava apenas monosyllabos. As palavras da freira
calaram-lhe na alma um spasmo atribulado. Carlota sentia-o tremer como
ella, ou mais ainda: o seu terror augmentava, com o silencio de
Mendonça, com aquella especie de assentimento que elle dava aos
presagios d'ella.

Por um momento se afigurou ao amante da religiosa que a desgraça era
inevitavel. Calara-se o coração. Era o espirito religioso que
sobrepujava o animo robusto do capitão de marinha. Tinham-o, talvez,
debilitado os infortunios. Fizera-o, talvez, supersticioso a desgraça,
se não quereis que possa chamar-se influxo providencial este mêdo. Por
que não dizemos antes que a desgraça o fizera crente? Por que não
estaria entre ambos o anjo do Senhor, o anjo Custodio que pedira ao
Altissimo um raio da sua divina graça com que alumiar, a dois corações
que se despenhavam, a profundeza do abysmo?

Carlota parecia banhada d'esse raio celestial, quando se lançou aos pés
de Mendonça de mãos erguidas, orando, póde dizer-se, orando assim:

--Não me leves d'aqui, meu amigo. Não me queiras fóra do amparo divino
que me deu esperanças de te encontrar no céo. Guardemos para lá os
nossos amores felizes, amores bemaventurados por uma eternidade. Temos
merecido tanto com os nossos martyrios, Francisco... deviamos de ser tão
caros á piedade de Deus... não sejamos agora indignos da sua
misericordia, e crueis para comnosco... A minha vida será curta no
convento, e fóra do convento. Deixa-me morrer aqui; serás menos infeliz.
Eu não me importa a deshonra do mundo: a infamação não poderia matar-me;
mas, lá fóra, espera-me uma dor maior que todas, a do remorso, a da
contrição impossivel sem a emenda.

Carlota proseguiu soluçando no seio do amante palavras inarticuladas, ás
quaes responderam por fim as lagrimas copiosas de Mendonça, as primeiras
que elle chorava doces e suavissimas, quaes se o Senhor lh'as désse como
prelibação aprazivel das alegrias que sua alma teria em galardão do
sacrificio.

Era já quasi dia claro, quando a freira benedictina, encostada ao braço
de Mendonça, foi sentar-se no degrau da porta por onde uma hora antes
saíra com a resolução de não mais entrar. Ahi, d'esse abraço derradeiro
que se deram silenciosos, arquejantes, convulsivos, não saberemos dizer
qual fosse a infinita angustia.

É certo que Francisco Salter, ao desapertal-a dos braços estremecidos em
que ella proferia n'um gemido o ultimo adeus, cruzou os braços e disse:

--Vae, Carlota, que eu não posso disputar-te a Deus. Vae, filha da minha
alma, que eu alimentei com lagrimas, que eu mereci a preço dos tormentos
que nenhum homem supportou, para finalmente te ceder a um phantasma que
me diz que não pódes ser minha. Recorda-te... olha para mim, Carlota, e
assombra-te da grandeza da minha angustia e da minha paciencia. O homem
que tanto padeceu para merecer-te, vae, sem ti, procurar a morte do
corpo onde Deus quer que ella o espere depois da morte da alma, do
assassinio lento de um coração que se teria salvado se ha tres annos te
arrancasse aos braços de teu pae. Fui demasiadamente honrado para este
mundo e para esta sociedade. Não quiz respirar este ar corrompido em que
vivem os felizes... devia morrer. Por fim, devias ser tu a que me
apontasses o teu remorso como estorvo a pertenceres-me. Fica, minha
amiga, com a tranquillidade do teu espirito. Por ti soffri muito; mas
não era o teu soffrimento o premio que eu vinha pedir-te agora. Quiz
dar-te a felicidade, e cuidei que t'a dava. Quiz levar-te commigo aos
pés do representante do Eterno na terra, para lhe supplicarmos que
houvesse de Deus perdão para ti, que não poderas ser o que a desgraça te
aconselhara que fosses. Diz-te o coração que o teu crime não póde ter
reparação: é Deus que t'o segreda, Carlota, e eu não ouso argumentar
contra as inspirações que te baixam do céo. Vae, pois, esposa de
Christo, vae para o teu santuario, e chora-me ahi, chora-me emquanto eu
viver; depois, ora por mim, porque a minha alma só as tuas orações podem
purifical-a, e erguel-a á presença do divino Juiz. Adeus, Carlota.

A freira, do limiar da porta estendera ainda os braços para Mendonça,
exclamando:

--Vem cá, Francisco, vem cá... escuta-me, por piedade!

--Carlota! Carlota!--disse uma voz, que os fizera estremecer a ambos.

Era soror Rufina, que surgira no angulo do muro, entre as ameias que
cercam o terraço por onde a freira conseguira evadir-se.

Francisco Salter de Mendonça, admiravel de dignidade, retrocedeu,
aproximou-se de Rufina, baixou ligeiramente a cabeça, e tomando Carlota
pela mão, disse:

--Deus sabe que ella é cada vez mais digna d'elle. Assista com piedade
ás agonias d'este anjo. Sua sobrinha, senhora, veio aqui buscar coragem
para a morte, e ensinar-me a morrer com honra. A vida honrada já ella
m'a tinha ensinado: faltava-me a morte, que devia ser de desesperança
impia, se esta santa me ensinasse o segredo de expirar abençoando a
desgraça.

Foram as ultimas palavras de Salter, palavras que a joven freira já não
ouvira, porque os braços de sua tia lhe estavam sendo amparo na perda
dos sentidos.




XIX

     As religiões no meio do seculo, são como as ilhas no meio do mar,
     que ás vezes por invasões do mesmo mar se vão comendo, e
     soçobrando, e padecem suas injurias da visinhança deste poderoso
     adversario. Mas se nas ilhas ha tempestades, que será no coração
     dos mares? Oh! alegrem-se as ilhas, e multipliquem-se! que ainda
     com a communicação tão visinha dos mares, estão muito mais firmes
     e seguras que elles.

                                     P. Manoel Bernardes. (_Floresta._)


Decorreram alguns mezes, tres seriam, depois do terrivel combate
d'aquellas duas grandes almas comsigo mesmas.

Os succedimentos d'este lapso de tempo chegaram ao meu conhecimento
contados de diversas maneiras.

Dizem informações do mosteiro, que a religiosa Carlota Angela,
recobrando o vigor que o susto religioso lhe quebrantara, tentou de novo
evadir-se, n'um impeto de delirio, pela porta de serventia dos carros
que abre para o largo de S. Bento: tentação diabolica de que a
energumena pôde salvar-se por intercessão do patriarcha, o qual n'esse
momento lhe empeceu a fuga com o baculo, que a cegou com sua vivida
refulgencia. Isto, pelos modos, não está bem averiguado, nem
canonicamente se encampa, como milagre, á crendice dos leitores.

Outras informações mais racionaes dizem que Francisco Salter de Mendonça
fora, no decurso d'esses tres mezes, com pontualidade quotidiana ao
mosteiro, onde passava horas e horas na grade, com Carlota Angela, e com
sua tia, algumas vezes.

A tradição, porém, mais corrente, e sustentada por pessoas coevas de
grande auctoridade, é que Francisco Salter não voltara ao convento
depois d'aquella fuga mallograda, senão anno e meio mais tarde, já
vestido com o habito da ordem benedictina.

Foi-me, portanto, necessario pedir informações a um conventual de frei
Francisco da Soledade, que assim se chamou na religião o capitão de
marinha. Queria eu que me contasse qual foi o viver d'esse desventurado
no mosteiro; que assombrosas pelejas se deram n'aquelle seio, antes que
o habito o amortalhasse; quantas vezes a luz da graça divina alumiou o
coração blasphemo do noviço; quantas vezes a mão glacial da morte lhe
esfriou na fronte os estos afogueados da desesperação.

Colleccionei das vagas lembranças do egresso que fora seu companheiro de
noviciado em Tibães, as seguintes miudezas, que apenas satisfizeram a
minha curiosidade:

Francisco Salter apparecera na manhã do dia seguinte áquella noite do
anterior capitulo, no mosteiro de S. Bento da Victoria pedindo ao dom
abbade que o admittisse a noviciado. Mendonça era alli conhecido como
sobrinho do afamado monge, que ajuntava ao lustre do nascimento e ao das
lettras a santidade sufficiente para que o mundo lhe perdoasse uma
velleidade de moço, da qual velleidade procedera Francisco Salter.

O abbade acolhera-o de bom animo, suspeitando, porém, passageiro
desgosto de coração. Teve-o em sua casa alguns dias, esperando o
conselho do tempo, até que, senhor das mágoas do mancebo, acreditou na
firmeza da resolução e na efficacia do balsamo.

Decorrido um mez de prova, Francisco foi fazer noviciado para a casa de
Tibães, e ahi é que o meu informador o tratou com intimidade mediana,
porque o noviço vivia tão taciturno e triste, que os seus companheiros,
por pena, o não importunavam com frivolos allivios.

Sem embargo da pouca convivencia, notou o egresso que as noites do
noviço deviam de ser atribuladas, porque nunca de manhã lhe vira os
olhos sem raios de sangue, e como que ainda crystallinos dos residuos de
lagrimas regeladas pelo frio das manhãs.

Observara elle mais que, nas obrigações do côro, Francisco era pontual,
mas os seus labios, nem sequer murmuravam as orações do breviario. E,
posto que para os companheiros houvesse censuras do mestre por motivos
identicos, Francisco nunca fora reprehendido, nem ainda procurado na
cella, se alguma vez faltava ao côro. D'isto inferiam os demais noviços
que o seu companheiro trouxera do Porto especiaes recommendações do dom
abbade.

Acrescenta que Francisco, ás horas em que os noviços passeiavam na
cêrca, não saía do seu cubiculo, ou ia sentar-se no claustro lendo a
_Imitação de Christo_, livro que nunca lhe esquecia; ou lia um por um os
singelos epitaphios das lagens que formam o pavimento do claustro.

Notava-se que durante um anno o mysterioso noviço apenas recebera uma
carta do dom abbade, em que lhe era dada a nova de que todos os seus
papeis estavam legalisados canonicamente para poder professar, concluido
que fosse o tempo do noviciado.

N'este pouco se resume o que pude alcançar do egresso indifferente ou
desmemoriado.

Quem nos dirá, pois, as angustias do amante de Carlota Angela? O
coração.

Consultemos o coração aquelles que o tivermos.

Revivamos algum tormento da alma, se o tivemos na vida, e teremos
inducções remotas do que seria aquelle demorado paroxismo, aquelle lento
suicidar-se em presença de homens que não lhe entendiam as lagrimas, nem
saberiam nem poderiam enxugar-lh'as, se as entendessem.

A imagem de Carlota devia de estar sempre entre elle e o Christo. A luz
da graça divina devia de ser muitas vezes deslumbrada pelo reflexo da
labareda que o abrasava no intimo.

A phrase blasphema prenderia muitas vezes á consolação do Kempis. As
mãos convulsas deviam travar do habito para rasgal-o sobre o seio onde
batia o coração amante, do bravo, do homem de amor e batalhas, do que a
sociedade fizera atheu, antes que a desgraça fizesse religioso.

E, se assim não acontecia, abençoada seja a religião de Jesus, que tanto
póde! Abençoadas sejam as angustias, que levam pela mão o filho da
desventura ao pé de uma cruz, e o hasteam n'ella como holocausto, que se
consola por saber que ha um Deus compassivo a vel-o em suas torturas.

É o que necessitam os grandes infelizes, e esse olhar misericordioso do
Senhor, que reanima e salva do inferno dos homens aquelle que os homens
desampararam mutilado em todos os affectos, espedaçado em todas as
cordas do coração, que não coube na terra, repellido da communhão dos
innocentes prazeres d'esta vida, condemnado a expiar no flagicio da sua
dor immerecida as culpas que os grandes perversos não expiam, á vista de
suas victimas.

Se, pois, Francisco Salter caía de joelhos, paciente e consolado, aos
pés do crucificado, abençoada seja a religião de Jesus, que tanto póde!

Desde o dia em que frei Francisco da Soledade professou, a freira
benedictina recebeu regularmente novas d'elle, escriptas de Tibães, onde
o frade prolongou a sua residencia.

Faziam-lhe saudades os sitios onde tanto chorou.

Aviventara com a sua angustia as arvores seculares, os penhascos, e as
cruzes que lhe ouviram os gemidos.

Essas existencias insensiveis viviam-lhe na alma, e custava-lhe o
desprender-se d'ellas.

O coração affeiçôa-se aos logares onde soffreu ou gosou, quando o goso
não é crime, nem o soffrimento a desesperação da alma corrompida. As
alegrias do impio, e as tristezas do perverso, essas não deixam traços
indeleveis de suavissima saudade ou branda mágoa no coração.

Frei Francisco sabia que morrera para o mundo, e o ermo de S. Martinho
de Tibães era-lhe um sepulchro grato, uma lousa amiga sua, já polida dos
prantos d'elle. Impetos ainda de coração mal domado o impelliam para
Carlota. Mas quem era n'este mundo a professa benedictina? Era um
cadaver como elle, uma existencia passada, uma vaga imagem que esvoaçava
entre a cruz e o monge, e parava um momento para lhe verter nas mãos
erguidas uma lagrima.

Que importavam as visões da noite, esse fitar de olhos lagrimosos na
lua, e nas estrellas, nas nuvens encapelladas, e no clarão do relampago?

Que valia ao pobre coração do frade estrebuxar ainda nas agonias do
amor, no paroxismo horrivel d'esse suicidio de tantas vidas?

Que conforto lhe seria baixar do céo os olhos sobre si, e ver-se
amortalhado?

Não recorramos ao milagre para explicarmos a tranquillidade do espirito
que de repente abjura o mundo, e se lança desesperado ás misericordias
divinas.

Terrivel deve de ser o preço da tranquillidade, quando não é a morte que
a traz. A morte, sim: essa será sempre a bem-vinda dos desgraçados,
porque Deus lhe fez de gêlo a mão que ella põe no seio abrasado do
afflicto.

As cartas de Carlota Angela eram um adeus repetido ao seu amigo, um
convite festival para a eternidade. Nem uma só reminiscencia do passado
escurecia a linguagem lucida da prophetisa que descrevia as alegrias do
céo. Era tudo porvir, tudo paragens do vôo que ella ia desferir da
margem da sepultura para além. Dos seus soffrimentos nada lhe dizia: os
da alma abençoava-os, os do corpo chamava-lhes o doce pungimento dos
espinhos da sua corôa gloriosa.

Soror Rufina, amiga do monge benedictino, escrevia-lhe menos enlevada em
extasis. Fallando-lhe da sobrinha, contava-lhe os rapidos progressos de
uma tisica irremediavel, e da paciencia christã com que ella via
aproximar-se o termo de suas dores. A ultima carta que lhe escreveu,
revelava-lhe o desejo que sua sobrinha mostrara de ver o seu amigo, o
seu esposo celestial, uma vez, uma só vez antes de morrer.

Frei Francisco mediu as suas forças, e pediu a Deus que lhe aniquilasse
as que elle sentia para encarar Carlota, se eram peccaminosas.

Seis mezes depois de professo, o monge foi ao Porto, e recolheu-se ao
mosteiro de S. Bento da Victoria. D'ahi consultou soror Rufina sobre a
sua ida ao convento, porque entrara n'elle o presagio de que a infeliz
succumbiria ao vel-o desfigurado, encanecido, e triste como o espectro
de uma felicidade morta, que os vermes roazes da desventura tornaram
pavorosa.

Rufina sondou sua sobrinha, e Carlota, antes de responder, sentiu uma
convulsão estranha, que lhe fez espirrar do seio borbotões de sangue.
Passada a crise, que julgaram derradeira, Carlota disse anciosamente que
aceitava a visita do seu irmão, e quanto mais depressa, mais grata lhe
seria.

Cuidavam as amigas da moribunda que similhante impressão lhe seria
salutar.

Os medicos, com a sua costumada innocencia, conjecturavam que a presença
do monge faria uma grande revolução nos elementos desorganisados da vida
de Carlota, e agouravam a possibilidade de uma cura por meios todos
moraes.

N'esta esperança, que fazia sorrir a freira, frei Francisco foi avisado
para encontrar Carlota n'uma grade.

Espectaculo indescriptivel!

Frei Francisco entrara na grade onde dezoito mezes antes concertara a
fuga de Carlota. Alli se trocaram, em phrases cortadas de suspiros,
queixumes contra o destino; porém, as esperanças deslumbrantes acudiam
logo com as promessas de uma vida cheia de prazeres, prazeres embora
criminosos no tribunal dos homens, porém perdoaveis, talvez, aos olhos
de Deus. D'alli saíra Francisco Salter de Mendonça, o capitão de
marinha, com o coração fremente de aspirações, e até de soberba por ter
calcado, ao cabo de tantas desventuras, a inexoravel desgraça.

Oh! quão mudado agora! Como elle se estava examinando diante do seu
passado! O que se passaria n'aquella alma, e n'aquella fronte inclinada
para as mãos cruzadas sobre o seio! Porque não deu o Senhor duas
lagrimas áquelle infeliz!

Carlota Angela appareceu, encostada ao braço de sua tia. O monge
erguera-se, e voltado para ellas baixara a cabeça, e não mais erguera do
chão os olhos. Encostando uma das mãos á banqueta da grade, sentia-se o
tremor d'este movel sob a pressão convulsa. Apenas a madre Rufina
proferira alguns monosyllabos, Carlota fitara os olhos lucidos de um
brilho sinistro no habito do monge, e, voltando-os, silenciosa, para sua
tia, parecia perguntar-lhe se era aquelle Francisco Salter.

--Francisco!--balbuciou ella.

O frade estremeceu a esta voz, e encarou a freira.

--Francisco!--repetiu ella com a voz quasi desfallecida--és tu?

--Não vol-o disse, minha irmã, que me não conhecerieis?--disse o
benedictino com um violento sorriso.

--Conheço, conheço...--tornou ella, sentando-se, ou caíndo na cadeira
aonde a tia se esforçara em sental-a.--Era assim que eu o via nos meus
delirios, irmão da minha alma. Cá o sentia no coração morrendo assim...
Faltava-me ouvir este som de finados que me está cortando os ultimos
fios... É por mim, ou por ti, Francisco?... por ambos...

De feito, soava um dobre a finados na torre do mosteiro. Expirara
momentos antes uma religiosa d'aquella casa, a quem Carlota pedira que
intercedesse ao Senhor por ella, a fim de que a chamasse a si antes que
se apagassem os cirios do funeral da agonisante. Esta fizera um gesto
affirmativo, e expirara com os olhos fitos na freira.

Carlota proferira aquellas palavras, e pedira uma gotta de agua.
Emquanto soror Rufina descera á portaria a buscal-a, a freira introduziu
a custo o braço pela grade e disse:

--Francisco! dá-me a tua mão.

O monge tomou a mão de Carlota, e, ao apertal-a, sentiu a frialdade
humida da mão de um cadaver. A posição da religiosa era violenta, com o
peito encostado aos ferros, e a tosse suffocava-a. Frei Francisco fez
esforço para afastar o braço, mas debalde. Aquella mão apertava como a
do naufrago em trances de morte. Um frouxo de tosse salpicou de sangue o
braço do monge, e em seguida, já quando Rufina entrava na grade com o
copo, a mão de Carlota decaíu com o braço ao longo da grade, a fronte
pendeu para as costas da cadeira, o outro braço já se não ergueu para
tomar o copo da agua que lhe roçava os labios humidos de sangue.

--Minha filha!--exclamou a atribulada freira. Carlota descerrou as
palpebras, relanceou a vista quasi apagada para o monge, e fechou-as de
novo, murmurando:

--Ouviu-me Deus!

Rufina soltou um ai vibrante, e caiu de joelhos aos pés da sobrinha.

Frei Francisco ajoelhou tambem, e disse com terrivel serenidade:

--Oremos por ella. Meu Deus! recebei a martyr em vosso seio!




CONCLUSÃO


Cinco annos depois, vivia ainda no mosteiro de S. Martinho de Tibães
frei Francisco da Soledade.

Os leitores de mais rija e invulneravel organisação admiram-se de que
tal homem podesse viver tanto.

A mim custar-me-hia tambem a crel-o, se m'o não fizessem acreditar pela
data da lousa que vi na claustra d'aquelle mosteiro, com os meus
proprios olhos.

Viveu cinco annos para purificar-se e fazer-se digno da esposa que o
esperava no céo.

Quereis saber a purificação qual foi?

Norberto de Meirelles e sua mulher, quando a filha expirava, luctavam
com as extremas perseguições da fortuna infausta.

Mezes depois, estavam pobres, pobres até á indigencia.

Frei Francisco chamou estes infelizes para a visinhança do mosteiro, e
dava-lhes tres partes do seu pão. A communidade, quando conheceu tamanha
virtude, repartia tambem do seu por elles. A mãe de Carlota expirou nos
braços do monge, o velho sobreviveu-lhe um anno, e expirou quinze dias
antes de frei Francisco.

Francisco Salter saíu d'este mundo, quando já não tinha a quem perdoar
em nome de Carlota Angela.

Vêde-me do céo a mim, e a todos os infelizes, almas bemaventuradas!

Não foi a minha imaginação que vos creou! Logo que eu me senti soffrer
em vós, a vossa passagem na terra deixou vestigios.

FIM.





End of the Project Gutenberg EBook of Carlota Angela, by Camilo Castelo Branco

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both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

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effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
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or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
https://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at https://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit https://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including including checks, online payments and credit card
donations.  To donate, please visit: https://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


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