Amor de Salvação

By Camilo Castelo Branco

The Project Gutenberg EBook of Amor de Salvação, by Camilo Castelo Branco

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org


Title: Amor de Salvação

Author: Camilo Castelo Branco

Release Date: October 21, 2008 [EBook #26988]

Language: Portuguese


*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK AMOR DE SALVAÇÃO ***




Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed
Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This book was
produced from scanned images of public domain material
from the Google Print project.)






AMOR DE SALVAÇÃO




AMOR DE SALVAÇÃO

POR

CAMILLO CASTELLO-BRANCO

        A heavy price must all pay who thus err,
        In some shape; let none think to fly the danger,
        For soon or late Love is his own avenger.

                                BYRON--_Don Juan, c. IV. est. 73_.


        L'amour n'a point de moyen terme: ou il perd, ou il sauve.

                                        V. HUGO--_Les Misérables_.




PORTO
EM CASA DA VIUVA MORÉ--EDITORA
PRAÇA DE D. PEDRO
A mesma casa em Coimbra, rua da Calçada.
Casa de Commissões em Paris, 2bis, rua d'Arcole.
1864


PORTO--TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA

Cancella Velha, 62




A JOSÉ GOMES MONTEIRO


                                                             _Meu amigo_

_Peço licença para inscrever o seu nome na primeira pagina d'este livro.
Esta fica sendo para mim a mais prestante da obra. As outras são
futilidades; por que lagrimas e alegrias de romance é tudo futil._

_No Minho, em 1864._

                                               _Camillo Castello-Branco._




OBSERVAÇÃO


O leitor folhêa duzentas paginas d'este livro, e o amor de felicidade e
bom exemplo não se lhe depara, ou vagamente lhe preluz. Tres partes do
romance narram desventuras do amor de desgraça e mau exemplo. A critica,
superintendente em materia de titulos de obras, querendo abater-se a
esquadrinhar a legitimidade do titulo d'esta, póde embicar, e
ponderar--que o amor puro, o amor de salvação vem tarde para desvanecer
as impressões do amor impuro, do amor infesto.

Respondo humilimamente:

Amor de salvação, em muitos casos obscuros, é o amor que excrucia e
deshonra. Então é que o senso intimo amostra ao coração a sua ignominia
e miseria. A consciencia regenera-se, e o coração, rehabilitado,
avigora-se para o amor impolluto e honroso. Assim é que as enseadas
serenas estão para além das vagas montuosas, que lá cospem o naufrago
aferrado á sua tabua. Sem o impulso da tormenta, o naufrago pereceria no
mar alto. Foi a tempestade que o salvou.

Além de que a felicidade, como historia, escreve-se em poucas paginas; é
idyllio de curto folego: no sentir intraduzivel da consciencia é que
ella encerra epopeas infinitas;--em quanto que a desgraça não demarca
balizas á experiencia nem á imaginação.

Para o amor maldito, duzentas paginas: para o amor de salvação as poucas
restantes do livro. Volume, que descrevesse um amor de bem-aventuranças
terrenas, seria uma fabula.

                                                                O AUTHOR.




AMOR DE SALVAÇÃO


I

Estava claro o céo, tepido o ar, e as bouças e montados floridos. O mez
era o de Dezembro, de 1863, em vespera do Natal.

A gente das cidades pergunta-me em que paiz do mundo florecem, em
Dezembro, bouças e montados.

Respondo que é em Portugal, no perpetuo jardim do mundo, no Minho, onde
os inventores de deuses teriam ideado as suas theogonias, se não
existisse a Grecia. No Minho, ao menos, se buscariam aguas lympidas para
Castalias e Hipocrenes. No Minho, a Cythéra para a mãe dos amores. Nos
arvoredos d'esta região de sonhos, de poemas, e rumores de conversarem
espiritos, é que os satyros, as dryades e os sylvanos sahiriam a
cardumes dos troncos e regatos: que tudo aqui parece estar dizendo que a
natureza tem segredos defesos ao vulgo, e como a entreabrirem-se á
phantasia de poetas.

Mas que flôres... quer o leitor saber que flôres vestem os calvos e
denegridos serros do Minho, em Portugal. São flôres a festões, cachos de
corolas amarellas, viçosas, e aveludadas como as dos arbustos cultivados
em jardins: é a florescencia dos tojaes, plantas repulsivas por seus
espinhos, alegres de sua perpetua verdura, unicas a enfeitarem a terra
quando a restante natureza vegetal amarellece, definha, e morre. E
d'esse privilegio como que o agreste arbusto se está gozando
soberbamente; pois que vos amostra as suas pinhas de flôres, e com os
inflexiveis espinhos vos defende o despojal-o d'ellas.

E n'aquelle dia 24 de Dezembro de 1863 andava eu no Minho, por aquella
corda de chans e outeiros, que abrangem quatro leguas entre Santo
Thyrso, Famelicão e Guimarães.

Eu, homem sem familia, sem mão amiga n'este mundo, ha trinta annos
sósinho, sem reminiscencias de caricias maternaes, bem-quisto apenas
d'uns cães, que pareciam amar-me com a clausula de eu os sustentar e
agasalhar; eu, que, n'aquelle tão festivo dia da nossa terra, não tinha
colmado onde me esperasse um amigo pobre para me dar entre os seus um
lugar no escabello, nem parente abastado, que de mim se alembrasse á
hora dos brindes com generosos vinhos em lucidos crystaes, eu, vendo-me
com lagrimas em minha sombra, assim me fôra a contemplar a felicidade
alheia pelas chans e outeiros do devoto Minho.

Eu caminhava a pé, guiando-me ao sabor da imaginativa idéa, que se
deleitava em vestir de folhagem a arvore nua, e tristemente inclinada
sobre o colmado do casalejo. Parava em frente de cada choupana, e
meditava, e escutava o rumor das vozes que lá dentro, ou no ressaio da
horta, se misturavam em dizeres alegres ou cantilenas allusivas ao
nascimento do Deus-menino. Diante dos portões gradeados do proprietario
rico é que eu não parava, nem meditava. Se lá dentro de suas salas iam
alegrias, como em casa do jornaleiro, não sei: o certo era que as
paredes da habitação opulenta não deixavam sahir uma nota para o hymno
geral de graças e jubilo com que a pobreza saudava o Emancipador dos
desherdados, o Senhor dos mundos, nascido e gasalhado nas palhinhas de
um presepio.

O sol, desnublado de vapores, como nas tardes serenas de Julho,
oscillava nas montanhas do poente, e azulejava as grimpas dos
pinheiraes, d'onde eu, a contemplal-o, me esquecera da distancia a que
me alongára da casa hospedeira d'aquella noite. Transmontado o sol,
desceu das cumiadas um toldo pardacento a desdobrar-se pelos plainos, a
confundir-se no fumo das aldêas, a identificar-se com o escuro dos
arvoredos. Fez-se um silencio progressivo e rapido em redor de mim.
Começava a noite sem bafejo de vento. Nem já a rama dos pinhaes
rumorejava aquelle seu saudoso sonido, que se me figura sempre a
inarticulada toada de mui remontadas e remotissimas vozes de mundos que
giram nas profundezas do espaço.

Tirei-me do meu enleio contemplador, e retrocedi pelo mal sabido atalho,
antes que a cerração completa me tolhesse de enxergar ao longe o alvejar
da casa, entre dous outeiros. Não valeu a precaução. Ás abas do
declivoso montado, eram muitos os caminhos a cruzarem-se. Segui um á
sorte; e, como prova de que a sorte nem em escolha de caminhos deixou de
ser-me sempre boa, segui o peor e o mais transviado de todos. Por volta
de sete horas, depois de dobrar uns serros inhabitados, achei-me n'uma
póvoa, onde me disseram que eu, por aquelle caminho, chegaria mais cedo
a Roma que ao local onde me destinava.

A pessoa, que respondeu assim á minha pergunta, fallou-me d'uma janella
envidraçada, e acrescentou:

--O senhor, se não sabe o caminho, como de facto não sabe, pelo tino é
incapaz de acertar. O que eu posso fazer é mandar alguem ensinal-o; mas,
se não é força ir hoje, pernoite n'esta casa, e amanhã irá. Verdade é
que, n'esta noite, custa muito a ficar em casa estranha; porém...

--Todas as casas são estranhas para mim...--respondi eu.

--Pois então, aceite esta que se lhe offerece da melhor vontade. O
portão está aberto. Lá vou abaixo recebel-o.

Entrei n'um vasto pateo, contornado de arcadas semelhantes ás da
claustra monastica. Logo em seguida, o hospitaleiro senhor do magnifico
edificio sahiu do escuro da arcaria, e disse-me antes de me vêr de
perto:

--Eu já sei quem recebo em minha casa, e o meu hospede, se tiver memoria
dos seus relacionados de ha quinze annos, tambem me vai conhecer.

--Pela voz ainda não--disse eu, encarando-o, sem vislumbres de vaga
recordação.

--Alli temos luz--replicou elle--Muito velho e desfigurado devo estar,
se nem á candêa me reconhecer vossê!...

Examinei-o á luz attentamente; e, como nem assim me acudisse á memoria
semelhança de tal homem, retorqui:

--O senhor talvez esteja enganado commigo. É provavel que nos vejamos
agora pela primeira vez.

--Então qual de nós é o romancista? Vossê que os anda a procurar, ou eu
que estou manso, quieto, e estupido em minha casa? Quererá vossê ir
dizer em alguma novella que encontrou n'um recanto do Minho um
visionario chamado Affonso de Teive...

--Affonso de Teive!--exclamei eu--Affonso de Teive... o senhor?! Essas
barbas... essa nutrição...

--E estes oculos...--atalhou elle.

--É verdade... esses oculos...

--E estes tamancos!...

--Pois, devéras, o senhor é Affonso de Teive... tu és Affonso... aquelle
que tinha em Lisboa...

--Uma casa no Campo Grande, e uma parelha de hanoverianas, e um
phaetonte, e uma berlinda, e cavallos arabes, e paixões ideaes, e muitas
paixões sem faisca de idéa... Sou eu! É este homem gordo, intonso, de
oculos, de tamancos, este lavrador, que aqui vês, possuidor d'um
thesouro que os reis do universo disputam ha dezenove seculos uns aos
outros, e as nações disputam aos reis, e os individuos disputam ás
nações, e cada individuo disputa e destroe em si proprio e com as suas
proprias mãos: sabes que thesouro eu possuo, homem?

--A paz?

--A felicidade.

--Isso é uma historia!--atalhei eu--Pois tu achaste a felicidade?... e
tu és realmente Affonso de Teive?... E estes dous pequenos?--perguntei
eu, quando vi dous meninos entre seis e oito annos a correrem em
direitura d'elle--são teus filhos de certo...

--São, e lá em cima não ouves o tropel que fazem os outros seis?

--Pois tens oito filhos?

--Espero o nono brevemente.

--E és...

Retive a palavra. Ia eu perguntar-lhe grosseiramente se elle era feliz
com oito filhos; pergunta desculpavel ao Affonso, que eu conhecera desde
1845 até 1851.

Eu tinha visto Affonso de Teive, em Coimbra, n'aquella primeira época,
matriculado no curso philosophico. Pertencia ao circulo de litteratos,
creadores da _Revista Academica_ e _Trovador_; e tambem, nas horas
furtadas ás palestras litterarias--quasi sempre controversias ácerca da
primazia de Lamartine ou Victor Hugo--pertencia á grande tribu dos
_trossistas_, gente arruadora e desatinada, para quem as saudosas
tradições do famigerado José Lobo não tinham ainda esquecido. Esta
dualidade em Affonso de Teive era uma distincção, que o tornava menos
agradavel aos litteratos circumspectos, e menos estimavel tambem aos
camaradas das assuadas e motins nocturnos. Affonso era poeta n'um genero
galhofeiro, quando queria; e dedilhava o alaude das elegias, se lhe dava
para lastimar-se, ou carpir saudades imaginarias de mulheres, suas
amadas, fugidas d'este lamacento globo para os plainos balsamicos do
céo. É o que me parecera a mim. Tinha dias de escrever jaculatorias em
verso, que dariam fama a um eremita da Thebaida; n'outros dias,
satyrisava a religião, os dogmas, e a propria divindade com os apódos e
dialectica d'um desbragado discipulo de Voltaire. E o mais para assombro
é que elle parecia sentir no coração o ascetismo de hoje, e a impiedade
de ámanhã: agora, iria de poz o pallio da extrema-uncção murmurando as
preces do povo, que não se peja de orar em publico e alta voz; e logo
bem poderia succeder que, encontrando o mesmo prestito, não levasse a
mão á fronte para tirar o gôrro. A um homem assim dotado de tão
contradictorios espiritos, facil seria agourar-lhe grandissimos
dissabores no trajecto da existencia: para os semelhantes d'aquelle
funesto modêlo, as estradas communs da humanidade não conduzem a paragem
nenhuma certa; nem o coração nem o espirito aceitam leis immutaveis; a
moral é um facto, cujas condições deve e póde infringir aquelle a quem
ellas não aproveitam; em summa, Affonso de Teive dava a prever um
desgraçado, a menos que em sua indole não sobreviesse uma das raras
revoluções, que inopinadamente transfiguram o homem moral, se não é o
abalo da mesma desgraça que opera esses prodigiosos reviramentos.

Tal conheci em 1845 em Coimbra o meu hospedeiro minhoto de 1863.

Encontrei-o, depois, no Porto em 1848.

Achei-lhe a mudança que influem os salões nos espiritos, para assim
dizer, incultos da cortezania e graciosidade de que em geral carecem os
mancebos sahidos dos cursos escolares.

Affonso de Teive tinha fama de rico. Escutei o que diziam os almotacés
dos haveres de cada sujeito admittido á sociedade portuense--pessoas,
que á vista do zelo com que indagam os minimos valores do sujeito,
parecem habilitar-se para mordomisarem os bens de quem chega--e ouvi que
Affonso era natural do Minho, filho unico já orphão de pae, e senhor de
sua casa, estimada em cento e cincoenta mil cruzados. Em quanto a
costumes, dizia-se que o rapaz era dado ao namôro, borboleteava por
diversos camarotes do theatro de S. João, assoprava zelos e raivas entre
umas tantas senhoras nos bailes, e pouco mais digno de censura. De
escandalos, não rosnava cousa importante a opinião publica. A mocidade
do Porto, por despeito, ou por outro qualquer sentimento igualmente
natural que desculpavel, é que, no intento de deprimir o Tenorio do
Minho, divulgava, como quem diz muito secretamente a cousa, que varios
maridos andavam enganados com Affonso de Teive; porém, como acontecia
que os maridos indigitados se satyrisavam uns aos outros, observando e
censurando cada um a demasiada confiança do outro, é hoje cousa
difficilima de tirar a limpo se algum dos maridos se enganava, ou se
todos se enganavam, ou se não se enganava nenhum. Se o leitor considera
que seria curioso esquadrinhar o caso, eu de mim entendo que a
humanidade não ganha com isso nada, e por tanto n'este, e em muitos
outros artigos advenientes de moral duvidosa, ponho, e porei ponto,
quando não seja preciso á contextura d'este romance desvelar factos
censuraveis.

Affonso sahiu do Porto n'aquelle mesmo anno de 1848, com destino a
França, segundo uns, e á Turquia, segundo outros. Os d'esta opinião
diziam que elle, convencido de que tinha uma cara oriental, ia para
terra onde podesse vestir-se de modo que o rosto lhe sahisse melhor do
que entre uma gravata de laçarias portentosas e um canudo de felpo
lustroso. E certo era que o typo physionomico do cavalheiro minhoto era
sobremaneira arabe, por causa do nariz fino, dos olhos coruscantes, da
tez azeitonada, do espesso bigode negro, e do comprimento e magresa do
rosto. Se ajuntarmos a este composto de venturosas e aventureiras
feições o estar elle sempre fumegando por cachimbo turco, dir-se-ha que
os turcos é que propriamente, lá na sua terra, o andavam imitando a
elle.

Se foi á Turquia, é de presumir que rivalidades com o sultão, ou--peor
ainda--tentativas de invasão ao harem o obrigaram a voltar a Portugal,
onde os direitos de cada homem e de cada mulher estão muito mais
razoavelmente definidos e garantidos. A verdade é que eu, no fim do anno
seguinte, encontrei Affonso de Teive em Lisboa, cavalgando um donoso
alazão ao lado de uma amazona, cujo mursello fazia admiraveis gentilezas
de picaria. Deu-se este encontro no Campo Grande, n'uma tarde de
corridas equestres. Alguem cuidaria que a soberba cavalleira, d'uma
formosura invejavel na Circassia, devia de ser a esposa raptada d'algum
_gran-visir_; pessoas, porém, melhor informadas, disseram-me que a
esvelta dama era portugueza de lei, portugueza do Minho, dos arrabaldes
de Braga, onde os reaes sensualistas do Islam mandariam subornar as suas
sultanas, se soubessem que n'estas regiões as mulheres, que, por acaso,
sahem feias das mãos da natureza, aprendem a ser bonitas com as flôres.
Releve-se este orientalismo a quem está tratando de cousas asiaticas
como a cara de Affonso, e o garbo peregrino de Palmyra.

Palmyra me disseram que se chamava a gentil creatura.

Posto que eu, em Coimbra e no Porto, me houvesse relacionado algum tanto
intimamente com Affonso de Teive, ainda assim, azado o ensejo de
perguntar-lhe promenores d'aquella conquista--_conquista_ se diz
vulgarmente do que devêra mais de siso chamar-se, fartas vezes,
_derrota_--nada indaguei, visto que elle, com insolito resguardo, se
absteve de me dar ansa a esgaravatar-lhe cousas particulares da
vida--_particulares_, dissemos, para sustentar á palavra a fama que o
diccionario faz correr; sendo aliás de toda a evidencia que não ha ahi
cousa mais nua, mais publica e assoalhada que tudo quanto se chamam
_particularidades da vida privada_, mormente quando o divulgarem-se
torna e redunda em philaucia d'uns tolos celebres, que seriam
invejaveis, se as proprias corôas, com que cingem as frontes, lhes não
dessem muito que doer com os espinhos escondidos--quero dizer em estylo
espalmado: se as proprias mulheres, que lhes dão os triumphos, não
fossem os instrumentos com que a justiça infinita inflige aos
vangloriosos o castigo infernal do seu orgulho.

Foi-me preciso escutar os boatos correntes á conta da mulher que Affonso
de Teive me não apresentou. Observei que ninguem a julgava honestamente,
e assim mesmo ninguem lhe dava um epitheto indecoroso. A civilisação
beneficia assim as mulheres que não podem adjectivar-se publicamente
virtuosas, nem mesmo quando visitam com a esmola a mansarda do doente
desvalido. N'esta especialidade, o jornalismo comporta-se louvavelmente.
Quando um localista pregoa o donativo de alguns lençoes que opulenta
matrona, por variar prazeres d'alma, já cançada dos transitorios gozos
d'outra especie, mandou a um asylo de lazaros, e diz que a humanidade
abençôa a virtuosa senhora, não nos havemos de entalar com este decreto
de virtude: a humanidade manda que o engulamos. O localista tem razão: é
bom que a palavra _virtude_ sirva de piedoso visco á liberalidade de
pessoas, que desejam alguma vez, ao lerem-se _virtuosas_, experimentar a
satisfação de se verem ir á posteridade na secção do noticiario.

O _noticiario_! Ninguem, que me conste, aprofundou ainda o que esta
palavra encerra em si de humanitario! S. Paulo, todos os evangelistas,
as catecheses derramadas de angulo a angulo da terra, em materia de
caridade, não se avantajaram á missão do noticiario.

Se eu não tivesse de convicção minha que as acções meritorias dos gabos
do mundo, quando disparam em proveito geral, não podem desmerecer no
juizo divino, havia de cuidar que a mão, aberta em fontes caudaes de
ouro vertido, como balsamo, sobre as chagas sociaes, bateria ás portas
da região pavorosa, onde o peccado da soberba, alliado da vaidade,
soffre a condemnação prescripta nos codigos de todas as religiões. A
vaidade levanta o palacio em que se acolhem os desamparados d'um tecto
de palha e d'uma enxerga de folha. A vaidade doura-lhe os frontaes do
asylo, atapéta-lhe os porticos, ventila-lhe por janellas de luxuosa
alvenaria os dormitorios, tudo lhe magnifica e opulenta em pedra e
estofo: tudo lhe dá em desconto das dôres da velhice alanceada de
enfermidades; tudo, excepto o pão da alma, a doutrina da paciencia, a
communhão santissima, que refaz o espirito quando o corpo desfallece.
Tudo lhe dá, excepto um padre, um interprete do Christo, que dê vida de
amor ao seio traspassado, e palavra de pae aos labios roixos d'aquelle
crucificado, que lá do fundo do dormitorio contempla inertemente o
deslaçar-se fibra a fibra d'aquelles corpos, alli postos como prêsa
disputada, por mais alguns dias, á aniquilação...

--E não é isto o maximo quilate da beneficencia?

Que hei-de eu responder ao leitor illustrado, que me interrompe, assim
de golpe, um discurso que lhe havia de mortificar o folego, pelo menos?!

Peço-lhe que me deixe contar-lhe em cincoenta linhas, pouco mais ou
menos, como eu vi, n'uma terra d'estes reinos, crear-se, e prosperar um
asylo de pobres.

D. Elvira era uma dama casada, que não tinha por seu marido aquelle amor
que dá ao peito da boa esposa arnez de aço contra as frechas de um
cupido estranho. O marido, nimiamente confiado em seus direitos,
descuidou-se. Aqui está um mal enorme d'onde vamos vêr brotar uma
enchente de beneficios á humanidade. O paradoxo demonstra-se d'este
theor:

D. Elvira, desconfiada dos seus servos e servas, tomou como medianeira
dos seus illicitos amores, uma octogenaria, que tinha quatro irmãos
velhos, um marido velho, duas cunhadas velhas, e cinco sobrinhos velhos,
todos mais ou menos glutões que ella, e alguns muito mais ociosos e
patifes. D. Elvira occorreu por algum tempo ás precisões de toda esta
tribu de immoraes, em obsequio á interventora indispensavel. Uma vez, D.
Elvira orçou as despezas annuaes d'esta peccaminosa obrigação, e pasmou
do seu desperdicio. As avultadas esmolas, de mais a mais, eram secretas,
porque o descobrirem-se daria rasto á suspeita. Na terra havia dous
jornaes, e nenhum lhe tinha ainda chamado virtuosa, ao passo que a sua
presumida rival D. Benedicta por mais d'uma vez tinha sido abençoada
pelas gazetas; em nome do genero humano, em virtude de ter mandado aos
presos os sobejos d'um jantar dado no dia natalicio do marido, a quem
ella estimava tanto como a mim, quando souber que eu duvidei grandemente
da virtude que os jornaes lhe deram. D. Elvira despeitada, um dia que o
marido entrára d'ouvir o tocante sermão de um missionario ácerca de
caridade, commoveu-se, e prégou tambem sobre a mesma virtude theologal.
O marido maravilhou-se, enterneceu-se, e ouviu com lagrimas a proposta
da fundação d'um abrigo de velhos e velhas desamparados, com as
economias da esposa. Discutido o programma, escolhido o edificio,
orçadas as obras de pedra e madeira, chegou a noticia ás gazetas. No dia
seguinte, ambos os jornaes da terra retiraram os seus artigos de fundo
para darem a circumstanciada noticia do caritativo instituto da
virtuosissima senhora D. Elvira. Ambos os periodicos, á compita, lhe
deram estes regalados e maviosos nomes: Pomba de beneficencia; anjo da
caridade; sacerdotisa da lei de Jesus; mãe dos pobres; balsamo dos
afflictos; esteio da decrepidez; lampada do Evangelho!

Lampada não gostou ella que lhe chamassem, porque já a sua rival D.
Benedicta costumava, não sabemos bem porque, chamar-lhe lampadario;
seria talvez porque D. Elvira usava muito de vidrilhos na cabeça, os
quaes brilhavam e scintillavam á maneira de lustre. Seria isso; mas D.
Elvira aceitou os outros nomes com muita satisfação, e com grande faina,
em menos de tres semanas, recolheu os doze velhos que estavam no segredo
da sua caridade. O asylo tinha capacidade para vinte e quatro. Oito dias
depois o numero estava preenchido.

E vai depois D. Benedicta, ciosa da popularidade que a sua rival
vingára, combina-se com o marido, e delinea um outro asylo com
capacidade para quarenta e oito velhos. Os jornaes que tinham gasto com
a outra senhora os adjectivos, substantivos, e pronomes, empregaram em
honra de D. Benedicta as interjeições. O artigo d'um começava por _Ah!_
o artigo do outro jornal por _Oh!_ Fundou-se o asylo de D. Benedicta.
Como na terra não havia tanto velho, alguns marmanjolas de trinta annos,
inimigos do trabalho, ou encanecidos nas cadêas, apresentaram certidão
de idade de sessenta, e esconderam a sua bargantisse sob as azas
caritativas de D. Benedicta, a quem as gazetas chamavam _a santa_!

Aconteceu que passados quatro annos D. Elvira mudasse de residencia para
outro mundo, onde os necrologistas disseram que ella ia receber a palma
do triumpho. A caridade do viuvo esfriou, e veio a um accordo com o
marido da _santa_. Transformaram-se n'um os dous asylos, já abundantes
de esmolas d'outras senhoras virtuosas, e assim chegou este humanissimo
estabelecimento a um grau de prosperidade que não deixa nada a desejar,
segundo asseveram as gazetas da terra.

Agora queira o meu leitor curvar-se um pouquinho, e contemplar a raiz
d'esta arvore evangelica, que braceja tão ridentes frondes e tantos
fructos de benção! Veja que herpes, que podridão, que bicharia lá vai!

E com este episodio respondi á sua pergunta; e peço perdão de ter
ultrapassado as cincoenta linhas promettidas.


II

Sinceramente não sei corrigir-me do vicio das divagações. Ha quem
defenda e demonstre que o romance philosophico deve ser assim alinhavado
a exemplo de Balzac, Sainte-Beuve, Stael, etc. Na Alemanha então
dizem-me que as novellas são tractados de metaphysica. Se as minhas
derramadas e extraviadas divagações fossem ao menos metaphysica! Ser eu,
sem dar tino de mim, um escriptor subtil, imperceptivel, impertinente,
medonho, e, acima de tudo, serio! _Escriptor serio!_ quando se agarra a
fama pelas orelhas, e a gente a obriga a dar pregão da nossa seriedade
de escriptor, a gloria vai procurar os nossos livros serios ás estantes
dos livreiros, e lá se fica a conversar delicias com as brochuras
immoveis, em quanto a traça não dá n'elles e n'ella.

O universo, e a humanidade principalmente ganha muito com os romances
serios: exceptuam-se da humanidade os editores. Um meu amigo publicou
seis volumes de novellas de costumes moraes a ponto de toda a gente
dizer que não haviam taes costumes em Portugal. Recebeu muito abraço
d'umas pessoas que tinham ouvido contar que o meu amigo aconselhava aos
filhos a obediencia aos paes, aos proximos o mutuo amor, e á humanidade
o temor de Deus. As seis novellas eram glossas aos dez mandamentos.
Esperava-se a regeneração das velhas virtudes portuguezas, logo que o
espirito publico se balsamificasse da uncção dos seis livros. Volvidos
porém, uns dous annos, as estatisticas iam delatando em augmento a
criminalidade publica. Espanto no meu amigo author, e desanimação
melancolica nos editores! Não obstante, a gente grave continuava a dizer
que o meu amigo, continuando a escrever por aquelle theor e geito,
endireitaria o mundo. Os editores, porém, observando que o mundo se
entortava cada vez mais para elles, recommendaram ao escriptor moralista
que vendesse a elles romances, e a quem quizesse os sermões. Ora, deu-se
o caso de que este meu amigo era eu em pessoa.

Apesar dos baixios em que foram a pique os meus livros serios, teimo em
ir n'este rumo, discorrendo opportunamente ácerca das grandes cousas e
dos grandes factos como se viu do anterior capitulo.

Volvendo a concluir as reminiscencias que tenho do antigo Affonso de
Teive, resta-me ajuntar que o deixei em Lisboa no anno de 1851, e vim
para o Minho onde me disseram quem era Palmyra, fallando eu em Affonso
de Teive a um cavalheiro de Braga.

Em primeiro lugar, Palmyra tinha outro nome na sua terra. Fôra educada
n'um convento; sahira do convento para casar com o filho do seu tutor,
moço idiota e abominavel; e sahira de sua casa para a de Affonso de
Teive, o qual por um acaso a vira nos arvoredos do Senhor do Monte, e de
se verem á mesma hora em que ambos, embellesados no rumorejar d'arvores
e fontes, pediam ao céo, ella o homem, e elle a mulher do seu destino,
resultou amarem-se tanto que logo d'alli protestaram tacitamente immolar
aos deuses infernaes o marido idiota--destino miserrimo que não
descrimina entre idiotas e atilados. Estas informações sahiram-me com o
tempo inexactas em muitos accidentes.

Não adiantou mais nada o cavalheiro bracharense; e isto já não era pouco
para o meu espanto.

N'essa mesma época, occasionou-se-me conhecer o marido de Theodora,
melhorada em Palmyra. Andava elle na feira do S. Braz em Landim, a
tantos de Fevereiro, comprando bois, e vendendo cevados. Não lhe vi no
semblante leve sombra de dissabor, nem osso descarnado. Vi que elle
comia á tripa fôrra um chorumento jantar de carnes frias, em que
predominavam as galhinaceas. Á sua direita estava uma mocetona
espadauda, escarlate, alta de peitos, e refractaria a toda a idéa de
amor fino.

Disseram-me que esta moça apreciára devidamente o coração rejeitado por
Theodora, e assava com perfeição as louras galinhas de que o marido
abandonado hauria vigor com que resistia briosamente á sua desgraça. Vi
tudo isto; e fiquei satisfeito. A gente folga de vêr assim remediadas as
enfermidades da natureza. Quando em casos analogos, não ha victima nem
algoz, e os personagens se acommodam na livre pratica da liberdade dos
cultos, bem que o vicio não deixe de ser vicio, é comtudo consolador
observarmos que uma certa philosophia é a melhor orthopedia para os
aleijões de nascença de que a torta humanidade coxêa ha dezenove
seculos.

É o que eu sabia e mais nada.

Como Affonso cahiu em esquecimento, nunca me deu para perguntar que
feito era d'elle. As minhas desventuras não me davam ferias para farejar
as alheias. Se alguma vez me passou pela idéa a esposa infiel do
feirante de bois e cevados, imaginei-a reconciliada com o marido, e
assim duramente castigada pela Providencia. Em quanto ao seductor,
apostaria que elle, depois de ter desbaratado a casa, andava por Lisboa
obscuramente solicitando um lugar de amanuense de secretaria ou
aspirante de alfandega, se é que não tinha ido para o Brazil, com o seu
diploma de bacharel em philosophia, colleccionar conchas por conta
d'algum muzeu de historia natural.

Agora vê o leitor o meu assombro justificado! É inquestionavelmente este
homem gordo, de barbas intonsas, oculos, e tamancos o Affonso de Teive
da Palmyra de Lisboa.

Elle aqui vai subindo as escadas, que nos levam á primeira sala. Cá
estão em redor d'elle e de mim os oito filhos, que fazem bulha como
trinta e dous. Creio que estou no pateo d'um mestre-escóla á sahida
d'aula. Dous d'estes ferozes meninos tiram-me da mão o guarda-sol,
abrem-n'o e fecham-n'o repetidas vezes, arremettendo contra os irmãos,
que se defendem espancando a murros as varas da umbrella que gemem e
entortam. Affonso gosta de vêr aquillo, e eu finjo tambem que não
desgosto, nem receio de ser esfarrapado por aquelles innocentes.

Passamos ao seguinte repartimento da casa: era a sala de visitas,
mobilada de alfaias antigas, cadeiras encouradas com chapas reluzentes,
grandes bancas de pau santo, com gavetas atauxiadas de frisos metallicos
e de marfim.

--A decoração diz com as minhas barbas!--reflectiu o risonho Affonso.
Aqui é tudo portuguez--acrescentou, mandando inutilmente calar a
gritaria dos meninos que, a meu vêr, legitimavam a raiva infanticida do
Herodes--Até a linguagem é portugueza de lei: olha que estou fallando
vernaculamente, meu amigo. Ha quatorze annos que tu me convidavas
urbanamente a não insultar os Lucenas e os Sousas com as minhas
francezias. Vem vêr a minha livraria; se não queres primeiramente vêr
minha mulher.

--Tenho muita honra e satisfação em ser apresentado a tua
senhora--atalhei eu.

--Joaquim!--disse Affonso ao filho mais velho--Vai vêr onde está tua
mãe; se estiver na cozinha, diz-lhe que temos cá um hospede, que não
exige vestido de sêda. Que appareça como estiver.

O menino sahiu aos saltos de cegonha, e Affonso ajuntou:

--Minha mulher é um anjo, cujas azas brancas se não mancham na felugem
da cozinha. Eu gosto que ella por lá se entretenha, se não bate-me
n'estes bregeiros, que, como vês, são dignissimos de grossa pancadaria;
mas eu amo estes diabinhos, que zombam de mim, e aturo-os, por que a
dizer-te a verdade já me dóe a cabeça quando não ouço esta algazarra. E
tu gostas de rapazes?

--Gosto muito, acho muito galantes os teus meninos; mas se me dás
licença, dir-te-hei que em doenças de enxaquêca, o teu remedio não seria
tão efficaz nas minhas como nas tuas.

--Bem sei--atalhou Affonso--Falta-te cabeça de progenitor, falta-te
ouvido de pae que converte em musica no coração estes berreiros, que nem
no inferno se poderiam receber como orchestra.

Não se fez esperar a esposa de Affonso.

Era uma senhora para senão descrever em romances, e para admirar-se
entre seus filhos.

É muito difficil e requer engenho grande tirar as semelhanças d'uma
mulher, que se apresenta simples, modesta, e, logo á primeira vista,
impropria de novella.

--Aqui está, e te apresento, minha mulher--disse Affonso, e tomou-lhe
dos braços a creança mais nova, que lhe saltára ao pescoço, apenas a
vira entrar na sala.

A esposa de Affonso de Teive respondeu acanhadamente ao meu palavroso
comprimento, e tomou nos braços outro filho, que marinhava pelas costas
da cadeira, e mostrava a cabeça sobre o alto espaldar de couro.

Como se não ageitava outra especie de conversação, fallei nos meninos,
gabando-lhes a formosura e a esperteza. Affonso, que parecia não querer
outra cousa, começou a contar-me anedoctas das suas creanças
enthusiasticamente, algumas medianamente engraçadas, e outras que eu não
pude ouvir, á conta da bulha que os pequenos faziam em volta da mãe. No
entanto, fiz reparo n'ella.

A senhora teria trinta e oito annos, e formosura, por força natural, já
decadente. Trajava roupas largas, talhadas sem esmêro, de droga
ordinaria; a belleza das fórmas corporaes, denunciava-se apesar do trajo
descuidado. Semblante assignalado de tanta doçura e bondade não sei que
o haja. Poderia chamar-se tristeza de santa áquelle mavioso rosto
pallido, quebrantado, e não sei que de scismador; a expressão, porém,
dos olhos brandos, do sorriso quasi imperceptivel, do collo um pouco
inclinado em postura humilde, eram n'ella a alegria exuberante de santa
sim, mas santa como esposa, santa como mãe, santidade de coração e alma
repartidos entre Deus, esposo e filhos.

Pouquissimas palavras lhe ouvi na meia hora que se deteve comnosco.
Conheci-lhe a inquietação cuidadosa no relancear d'olhos ao marido.

--Bem sei, disse elle. Vai, vai, que estás a pensar nas rabanadas e nos
mexidos.

E ella, sorrindo, disse:

--Ainda me não apresentaste ao teu amigo como uma soffrivel interprete
da arte de cozinha.

--Interprete!--exclamou elle--Tu és mais! Tu inventaste a sciencia da
cozinha, que é muito mais sublime que arte. A tua modestia é que te não
deixa vir á luz do mundo, d'este mundo cujas aspirações confluem todas
para a gastronomia, com um tractado, que, ao mesmo tempo, me désse
orgulho de ser teu marido, a quem tu deves esta vida retirada, sem a
qual te faltaria espaço e remanso para as tuas especulações, em
resultado do que vamos hoje cear as mais ambroziacas rabanadas que ainda
os deuses coaram em suas celestiaes gargantas. A aldêa, meu bom
amigo--continuou Affonso voltando-se para mim com solemne e galhofeira
seriedade--a aldêa dispensa ao espirito investigador um curso completo
de sciencias. A poesia do estomago, esta mais que todas poesia
humanitaria, não se dá nas cidades; lá come-se materialmente; aqui dá-se
ao espirito a presidencia em todas as materias assimilaveis. Estou com o
nosso admiravel Castilho n'estas memorandas palavras: «Longe de mim
negar puerilmente ás cidades suas vantagens sociaes; digo só que para a
poesia se não fizeram ellas; e que, se n'essa fragua algum engenho
poetico resiste, se ahi canta, nunca ha-de ser tanto, nem tão bom, nem
tão innocente, nem tão perfumado, como seria sem duvida nos campos.» E a
poesia que é?--acudiu Affonso cortando-me o riso com que eu celebrava o
desconchavo da citação--o que é a poesia se não aquelle estado diáphano
e sublimado da alma, que se está engolfando e gozando n'um envolucro
sadio, depurado de ruins vapores, e puro de toda a exhalação crassa d'um
estomago derrancado, azedo, e intumecido? Pois has-de tu saber que um
estomago limpo é a fonte de todo saber; e que a sciencia constructora
dos selectos alimentos do sangue é a que mais de perto se relaciona e
ata com a arte de exprimir cadentemente os affectos da alma--Logo...

A esposa tinha sahido quando esta abstrusa parlenda ia em meio, com
ameaças de longo fôlego.

Eu estava ouvindo, como quem sonha, Affonso de Teive. Andavam já a
formigar-me suspeitas de que o homem estava o seu tanto ou quanto
embrutecido na aldêa; e posto que a defeza do paradoxal consorcio entre
estomago e poesia viesse absolvida por um sorriso faceto, nem assim me
descapacitei de que o espirito de Affonso havia soffrido profundas
commoções que de todo em todo o transfiguraram, ou lhe transfiguraram os
objectos do mundo exterior. Eu não podia convencer-me de que a
felicidade alterasse d'aquelle modo o genio e maneiras d'um homem, que
eu jámais ouvira preconisar as regalias do estomago. Crêr que o
bem-estar da alma procedia d'uma brutificação d'ella mesma, e que o
encontrar esse bem obrigava a desatar-se a gente da convivencia de
sujeitos policiados, de mulheres inspiradoras, e das magnificencias da
arte, em fim, de tudo que todos buscam sofregamente, parecia-me
absurdesa, e falsificação no caracter de Affonso de Teive.

Preparei-me, pois, para devassar o secreto reviramento que transformou
em poucos annos o espirito menos propenso que eu vira á paz dos campos,
e ao absoluto apartamento da sociedade.

Estava a cêa na mesa. Que enorme cêa comemos, e que estrondoso ruido
fizeram os meninos!


III

No dia seguinte, ao domingo de festa que eu passei com Affonso,
reapparecera o sol magnifico da vespera.

Affonso de Teive mandou apparelhar um ordinario garrano, o qual, no
dizer do dono, era um luxo nas suas cavallariças, visto que Affonso
raras vezes sahia para além dos muros da sua quinta. Da residencia do
reitor veio de emprestimo uma egua apparelhada de albardão, e estribos
de pau que pareciam alqueires. Depois de almoço cavalgamos,
embrenhamo-nos por uns quinchôsos pedregosos, e sahimos á estrada entre
Guimarães e Famelicão. Estava destinado um passeio de duas leguas. A
egua abbacial era tão firme no piso, que eu dei de mão ás redeas, formei
d'um estribo o travesseiro, e deitei-me no albardão, para admirar
horisontalmente a natureza, maneira de vêr que eu recommendo aos
curiosos que ainda não viram assim a natureza. Ao meu lado ia Affonso de
Teive, corcovado sobre o pescoço do garrano, que não obedecia á redea
nem á espora: era preciso fallar-lhe rijo, ou espertal-o á paulada. E
Affonso ria-se.

--Quem te viu e quem te vê, Affonso de Teive!--exclamei eu--Quem te viu
em Lisboa n'aquelle cavallo preto, que levantava ferozmente as patas,
como para te cuspir á calçada, e as abaixava humildemente e a tremer, se
tu lhe murmuravas uma palavra. Quem te viu ao lado d'aquella Palmyra...

Mal proferi esta palavra, Affonso cravou-me os olhos subito abrazeados
do antigo fogo. Fingiu que sorria, querendo esconder a mutação de rosto.
Voltou a face para onde eu não podia vêr-lh'a; e, passados alguns
segundos, murmurou:

--Lá se foi a alegria do nosso passeio.

--Porque?!--acudi eu--perdôa-me, se involuntariamente feri a tua
sensibilidade... Eu cuidei que entre ti e o teu passado estava um abysmo
incomprehensivel aos olhos da tua saudade... Pensei que ao homem feliz
eram indifferentes as recordações dos bons e dos ruins tempos da
mocidade.

Affonso deteve-se a encarar-me, e disse de golpe:

--Tu ignoras a minha vida desde 1850?

--Juro-te que não sei nada da tua vida, respondi.

--E d'essa mulher, que chamaste Palmyra?

--Nada sei, senão que...

--Diz o que sabes... que hesitação é a tua?

--Apenas soube que era casada, que sahira d'aqui para Lisboa comtigo, e
mais nada. As pessoas, a quem perguntei por ti eram os teus velhos
amigos, que encolhiam os hombros, e diziam: «quem sabe lá.» Desde 1856
que te esqueci completamente. Argue, se quizeres, a minha desmemoriada
amizade; mas a verdade é esta. Eu sou, pouco mais ou menos como todos os
teus amigos.

Asserenou-se o aspecto de Affonso de Teive, e fomos indo silenciosos,
até apearmos em Guimarães na estalagem da Joanninha, que está n'este
mundo a competir em graças, limpeza, e poesia com a Joanninha de
Almeida-Garrett nas _Viagens_.

Jantamos, sahimos a vêr a terra, que eu nunca vira em Dezembro,
enxergamos á luz crepuscular umas famosas damas da velha cidade que
resistiam ao frio da tarde, encostadas aos peitoris das suas janellas;
entrevimos galantissimos olhos d'outras através das rotulas, que ainda
agora nos estão contando virtudes d'outras eras, virtudes, que
precisavam de rotulas, como as bellas flôres exoticas precisam de
estufa.

Voltamos á estalagem, tomamos chá, e uns pastelinhos que hão-de ir
futuro além relembrando o mavioso nome da snr.ª Joanninha. Depois
pedimos duas camas n'um quarto, e tivemos a satisfação de vêr que nos
davam um quarto com cinco camas, ou cousa assim.

--Ha dez annos--disse Affonso--é esta a primeira vez que durmo fóra de
minha casa. Acho-me só e estranho. Penso que estou a mil leguas de minha
mulher e dos meus filhos.

--Eu vou mandar apparelhar as cavalgaduras--disse eu--e vamos embora que
está magnifica a noite.

--Não--redarguiu Affonso--que preciso estar a sós comtigo, uma noite.
Debaixo das telhas que cobrem minha mulher os meus labios não proferem o
nome de outra. Ella já sabe que eu fico em Guimarães. Fallarei, e tu
ouvirás, ou dormirás. Fallarei do homem que conheceste em 1851, para
explicar o homem de 1863. Has-de vêr que lamaçaes atravessei, que
resacas affrontei, como eu me bati de peito com as puas de ferro da
desgraça, para chegar ao abrigo onde me encontraste. Não pasmarás então
da minha velhice precoce: ser-te-ha assombro a minha vida. Se és
infeliz, consolar-te-has. Se o não és, recearás sel-o.

A noite, como sabem, era de Dezembro.

Ás onze horas consummiu-se de todo a vella. Affonso de Teive continuou a
fallar ás escuras. Ao rasgar da manhã, abrimos as portadas, e Affonso
fallava ainda.


IV

No principio d'este anno de 1864, sahi de Ruivães, onde, por espaço de
oito dias, me escondi á minha estrella funesta--a vigilantissima
desgraça, que eu ia esquecendo. No termo d'este praso, estranhei o
socego das minhas noites, faltou-me a mão do demonio que me arregaçava
com dedos de fogo as palpebras quebrantadas de somno, e fui á procura
d'elle.

Deixei o meu amigo na cumiada do outeiro, visinho de casa, com sua
esposa e filhos. As ultimas palavras d'elle foram: «quando tiveres o
livro escripto, deixa-me gozar a não vulgar satisfação de me vêr
personagem, e heroe d'um romance, que me promette uma immortalidade...»

--De quinze dias--interrompi eu.

Não longe da obscura paragem de Affonso de Teive, á margem do córrego
chamado Péle, riacho, que, pela primeira vez, é revelado ao mundo em
letra redonda, assentei eu a minha tenda nómada. A minha tenda são uns
vinte volumes, um tinteiro de ferro, e um cabo de penna de osso, que me
deram n'outro ponto do mundo, onde ha quatro annos assentára tambem a
minha tenda,--ponto do mundo que por um singular acaso implicava ao meu
sestro vagabundo: era no anno do Senhor de 1860, nos carceres da Relação
do Porto, o menos conveniente dos paradeiros para homem de gostos
impermanentes em objecto de aposentadoria. Isto, sem embargo, não
impedia que esta minha tão querida penna, tão amiga confidente
d'aquellas trezentas e oitenta noites--de Janeiro todas, que lá a dentro
dos congelados firmamentos de pedra, reina perpetuo inverno, e giam as
abobadas, não sei se lagrimas, se sangue, se agua represada nos poros do
granito,--não impedia, vinha eu dizendo, que a minha penna, com o seu
incansavel fremir sobre o papel, me aligeirasse as noites, e aos assomos
da alvorada, me convidasse para a banca do trabalho, que foi o meu altar
de graças ao Senhor, e o confessionario onde abri minha alma ao
perscrutar do anjo providencial que me dava a uncção dos athletas e dos
grandes desgraçados, para mais affrontosos e excruciadores supplicios.

Os meus vinte volumes, e o meu tinteiro de ferro, estão hoje sob o tecto
gasalhoso d'uma alma que eu n'outras eras encontrei na minha. Não sei ha
que seculos isto foi, nem que congerie de abysmos nos separam para
sempre. Parei aqui, por que ainda aqui, a tempos, se me figura rediviva
a imagem do passado, ainda aquella alma se me hospeda no coração em
instantes de sonhos do céo, ainda a pedra tumular das affeições, cahidas
á voragem infernal do desengano, está pendida sobre a derradeira: que a
saudade é ainda um affecto, um excelso amor, o melhor amor e o mais
incorruptivel que o passado nos herda.

A casa, onde vivo, rodeam-na pinhaes gementes, que sob qualquer lufada
desferem suas harpas. Este incessante soido é a linguagem da noite que
me falla: parece-me que é voz d'além-mundo, um como borborinho que
referve longe ás portas da eternidade. Se eu não amasse de preferencia o
socego do tumulo, amaria o rumor d'estas arvores, o murmurio do córrego
onde vou cada tarde vêr a folhinha secca derivar na onda limpida; amaria
o pobre presbyterio, que ha trezentos annos acolhe em seu seio de pedra
bruta as gerações pacificas, ditosas, e incultas d'estes selvagens
felizes que tão illuminadamente amaram e serviram o seu Creador. Amaria
tudo; mas amo muito mais a morte.

Aqui, se Deus se amerciar de mim, embargando o passo ao anjo
exterminador, que continuo me assaltêa os aditos do meu eden de quinze
dias, aqui escreverei, com quanta fidelidade a memoria me suggerir, a
narrativa que Affonso de Teive me fez.

Seis mezes ha que se fez noite do meu espirito. Por arrebatados impetos
de quem quer furtar-se ás garras de um imaginario dragão, tenho fugido
para defronte do meu tinteiro de ferro, e avocado as graciosas imagens,
filhas do céo, que, nos dias da mocidade fremente de más paixões, me
refrigeravam a fronte, e disputavam ao encanto do mal, psalmeando-me o
hymno de amor ao trabalho. O perdimento d'esse amor foi a suprema
provação, a forja ardentissima em que minha alma foi lançada á
voracidade d'um fogo depurante. Mas, no interior, por tudo em que
sombreava a negrura do coração, eram tudo trevas, frio, lethargia,
esquecimento.

Não sei de que futuro abril do meu porvir me veio esta manhã um bafejo
aromatico de flôres, umas ondulações de luz, que me pareciam as da minha
juventude. Tudo me visitou como em mãos do fugace archanjo do
contentamento. Passou o nuncio mysterioso, passou depressa, mas o meu
espirito ergueu-se alvoroçado a saudar o sol de Deus, do Deus immenso
que na immensidade dos seus mundos ainda guardará para mim um quinhão de
alegrias parcas e modestas, as que unicamente podem dar consciencia
repousada, prelibações de bem-aventurança, e honrada alliança com os
homens.

Penso que estou escrevendo as tuas palavras, ó meu amigo, redemido a
lagrimas, a ultrages, e a desapêgo do mundo. O clarão, que hoje alumiou
a minha alvorada, seria por ventura um reflexo das tuas alegrias. Ha
dias me disseste:

«Sabes tu o que é ter um Deus, que nos escuta, que nos reprova, que nos
louva, que nos povôa o espaço onde a alma insaciavel do homem encontra
um vazio horrendo, uma respiração afflictiva?» Querias tu dizer-me que
orasse? A ti o confesso em grandes enchentes de consolação, e ao mundo o
confessarei sem o impio rubor dos miseraveis que perderiam sua alma
antes que a irreligiosidade os escarnecesse: OREI, meu amigo; porque,
n'um dos mais apertados trances de tua vida, quando m'o acabavas de
contar, interrompi o teu silencio, perguntando:

--E que fizeste depois?

E tu respondeste-me:

--Depois, OREI.


V

Affonso de Teive estudava, ha hoje vinte annos, em Braga, os elementos
preparatorios para o curso universitario, quando viu Theodora, conhecida
pela morgadinha da Fervença. Era ella então menina de quatorze annos.
Affonso tinha dezesete.

As mães d'estes dous meninos, entre-vistos e amados com o innocente
attractivo do beijo aerio na flôr a desatar-se e a enrubecer na tige,
tinham sido condiscipulas na educação d'um convento. Apartaram-se para
serem esposas, com promessa de se continuarem a amar em seus filhos, se
a sorte lh'os désse com vocação para se unirem. Votos de virgens ainda,
feitos com as faces purpureadas do calor do coração, que as levava
contentes aos seus novos destinos.

A mãe de Theodora igualou em fidelidade da palavra promettida a mãe de
Affonso. Uma tristeza, porém, a desconsolava, e cada dia se espessava
mais a escuridade em seu espirito: sentia-se morrer, aos trinta e tres
annos, de enfermidade de peito, e deixava Theodora em annos verdes,
solteira ainda, á mercê e alvedrio de tutores.

Na ultima phase de sua vida, foi ella a Braga com sua filha, de
proposito a encontrarem-se com o moço predestinado a esposo, já
esquecido, talvez, dos primeiros annos em que se haviam conhecido
creanças. O vêr com que alegria elles se reconheceram, e saudaram, como
avesinhas pousadas em uma mesma fronde ao mesmo arrebol da manhã,
melhorou temporariamente a enferma; porém, a muito rogada vontade do
Senhor não lhe concedeu os dous annos de vida pedidos para a effectuação
do casamento. Segredos do céo previdentissimo; que, a não o serem, estes
rogos de mãe, em favor da virgem, que vai ficar sosinha no mundo, com os
seus dous inimigos--innocencia e formosura--taes rogos baldados, e
indeferidos em Deus, induziriam a argumentar contra a mediação do
Creador nas miserias que creou.

Apenas fallecida sua mãe, Theodora foi recolhida ao convento das
Ursulinas, por deliberação d'um tio paterno, constituido espontaneamente
tutor da orphan.

Affonso, aconselhado pelo coração e por sua mãe, visitava a educanda,
disfarçando as frequentes visitas com a innocente mentira de parentesco.

Theodora, com dous mezes de convento, desenvolveu-se e grangeou sciencia
da vida que não alcançaria em dous annos de aldêa, da sua solitaria
aldêa, onde tinha apenas aves, flôres, e estrellas a segredarem-lhe
iniciações para amor. No convento, as prelecções eram menos vagas, e
mais acommodadas á capacidade das educandas. É certo que as mestras não
leccionavam ternuras; mas o zelo, com que ellas vedavam o pomo, dava a
desconfiar que as precautas religiosas lhes tinham saboreado o travor; a
não ser que o desdenhavam á mingua de dentes incisivos com que entrassem
na casca d'aquelle execravel e tão convidativo fructo de Pentápolis.

Com menos de quinze annos, Theodora completou o exterior de suas graças,
e o interior do seu espirito. A belleza sabia ella já quantas invejas
lhe ganhava entre as condiscipulas, quantas intrigas, quantas
reprehensões da mestra, á conta do muito enfeitar-se e remirar-se ao
espelho. Não importava. A morgadinha da Fervença gostava de ser bella,
de ser invejada, e perseguida das inimigas, com condição e resalva de
ser admirada pelos galanteadores das suas perseguidoras. Em quanto ao
espirito, o saber precoce de grades a dentro igualou-a, se não antes
avantajou-a muito ao estudantinho de Ruivães que, contra toda a natureza
e arte, em colloquio amoroso ficava muito áquem de Theodora, e sahia do
locutorio admirado da esperteza palavrosa da morgadinha.

Estas delicias do palratorio, porém, foram repentinamente suspensas.

O tio e tutor de Theodora, sabedor dos amorinhos, que as religiosas,
contra o seu costume, tomaram entre dentes, impoz a sua jurisdicção
tutelar. A educanda reagiu sem proveito, e Affonso desafogou em lagrimas
a sua saudade.

A velha fidalga de Ruivães, avisada pelo filho afflicto, foi a Braga
consolal-o, e d'alli partiu a casa do tutor, a lembrar-lhe o consorcio
de Affonso e Theodora, desde muito pactuado entre ella e a sua defuncta
amiga. O tutor replicou, dando como nullos taes arranjos, em quanto os
meninos não estivessem em idade de os ratificar.

Affonso esmorecera em dolorosa lethargia, ao passo que Theodora pensava
em fugir do convento. O instincto de associação, irrecusavel em empresa
tão arriscada, deu-lhe a conhecer a unica pessoa capaz de auxilial-a.

Estava nas Ursulinas uma menina de Traz-os-Montes, de familia distincta,
e costumes tambem distinctos em natureza depravada. Entrára alli como em
prisão; não obstante, como o anjo das trevas nunca desampara as suas
dilectas, lá mesmo lhe espiritou traças de poder entender-se com quem
quer que foi que a viera seguindo desde a hora em que a familia a
desterrára. E que traças de infando successo, que revelação affrontadora
da humanidade vai hoje eetampar-se n'esta pagina!

A menina transmontana abrindo á flôr dos labios o sorriso condolente
d'um anjo de candura, assellou com um beijo no rosto da sua recente
amiga o pacto de se coadjuvarem contra a tyrannia de paes e tutores.

E posta, desde logo, em discussão a materia, quiz a morgadinha da
Fervença, sem mais rodeios, saber de que modo poderia fugir do convento.
Libana achou arrojado o intento da fuga, e desesperado sem razão, quando
se podia melhorar de sorte, sem correr o risco de ser presa e reposta no
convento para nunca mais vêr sol nem lua. Contou ella, para exemplificar
o perigo da fuga, a desgraça acontecida n'aquelle mesmo convento, uns
trinta annos antes. Era a longa historia d'uma senhora, reclusa alli por
violencia, que cuidando salvar-se pelos encanamentos subterreos dos
escoadouros do mosteiro, morrera asphyxiada; e quando as freiras, a
familia e as justiças a julgavam foragida no estrangeiro, um operario
occupado da limpeza dos vallos, encontrou um cadaver quasi esphacelado,
mas ainda reconhecivel pelos trajos. Semelhante historia, contada e
ouvida n'aquella casa sempre com horror, fez sorrir a morgadinha, e
tirou-lhe do peito virginal esta observação: «Tendo eu de morrer na
immundicie dos canos, antes me deixaria morrer entre a immundicie das
freiras. Lá em quanto aos aromas enjoativos, tanto faz estar lá em baixo
como cá em cima.» A resposta foi mais estirada e espirituosa no seu
genero; mas assumptos d'esta grossura só podem tratal-os curiosamente
engenhos claros e eminentes como o poeta dos _Miseraveis_, que poetisa
os escoadouros de Paris com o mesmo acume de estylo com que fallaria dos
jardins perpetuamente olorosos do Elysio.

Resolvida a sobre-estar do plano da fugida, Theodora travou-se de mui
intima amizade com Libana, e formavam a sós um partido, que se fazia
respeitar pela audacia da lingua, e soberba de sua prosapia e abundancia
de meios. N'este conloio entrava uma servente de fóra e uma criada de
dentro, mediante as quaes Affonso de Teive recebia cartas de Theodora, e
um cavalheirote imberbe de Traz-os-Montes, primo de Libana, recebia as
cartas de sua prima.

N'uma tarde de Agosto, sahiram as duas meninas a tomarem a fresca na
cêrca. Com o geito scismador e melancolico em que iam, dirieis que eram
as duas graças a procurarem a terceira, que lhes fugira enamorada
d'alguma divindade incognita. Quem as visse, áquella hora, depurativa
das fezes de maus pensamentos e más palavras, havia de cuidar que o seu
dialogo, todo ferventes arrobos e cantares ao empyreo, versava sobre os
céos de Santa Thereza de Jesus, ou semelhantes devaneios do espirito
embebecido no foco luminoso dos bem-aventurados.

Agora se recostam ellas n'um escabello de cortiça, cujo espaldar lhe
formam almofadas de fofas murtas, matizadas da flôr do maracujá. Perto
d'ellas trepida uma fonte; no tanque, onde a lua já principia a
espelhar-se, coaxam as rans; a viração cicia nas ramas do pomar; zumbem
os insectos, espanejando-se ao frescor da tardinha. As duas candidas
meninas, enleadas na poesia do quadro, realçam-no e completam-o.

Ouçamos a musica d'aquelles seraphins.

Dizia Theodora:

--Se me eu pilhasse fóra d'aqui!... N'estas tardes tão bonitas, havia de
ser tão bom andar eu a passear com o meu Affonso!... Queimado morra o
meu tutor e mais o filho! Se não fosse aquelle bruto, não estava eu
engradada! Ó Libana, tu não farás com que nos escapemos d'este inferno!
Olha... lá está a madre porteira a espreitar-nos da grade do canto!...

Libana voltou desabridamente as costas á madre porteira, e acudiu
n'estes termos aos anhelantes desejos da sua amiga:

--Olha, Lóló, não te zangues. A gente, a final, ha-de sahir d'aqui,
muito a tempo de gozar a vida. Se não formos tolas, podemos ir gozando
mais do que temos feito. Queres tu saber o que me diz o meu Alfredo?
Queres vêr quanto elle me ama? que sacrificio quer fazer por amor de
mim? Olha, eu não quiz dizer-te o que me elle pediu na carta de hoje,
com medo que tu me aconselhasses a não ceder; mas cedo, filha, cedo que
a paixão não tem leis. Pede-me para vir ser minha criada.

--Tua criada!--exclamou Theodora.

--Minha criada; pois então?--replicou Libana, abaixando o tom de voz,
abafada pelo frouxo do riso--Não ha nada mais facil. O meu Alfredo tem
cara de mulher, e não tem ainda barba. Diz elle que se veste á moda das
raparigas da minha terra, que me procura com uma carta fingida de minha
mãe a pedir-me que receba a portadora como criada; cá no convento
ninguem póde impedir-me que eu a receba; a gente hade ter todo o cuidado
que se não descubra o logro; e... tu... que me dizes, Lóló!

Theodora acudiu com o rosto chammejante de alegria:

--Olha lá, Lili, o meu Affonso tambem tem cara de mulher, pois não
tem?!... Se elle viesse tambem para minha criada era tão bom!

--O peor é que elle é conhecido, por ter cá vindo muitas vezes--observou
Libana--O meu Alfredo é que só veio aqui no principio uma vez, e ninguem
o conhece... Não vamos nós botar tudo a perder, Loló!

--Que pena!--exclamou a morgadinha com os olhos no céo e a mão direita
sobre o coração latejante--Que pena que o meu Affonso não venha tambem
para cá!... Ó Libaninha, vê se inventas alguma cousa, se não a tua amiga
morre de tristeza!...

E, dizendo, escondeu o rosto, aljofrado de quatro lagrimas, no seio da
amiga.

Que lagrimas! D'onde veio ou para onde foi o anjo da innocencia, quando
um peito virgem tem d'aquellas lagrimas, e uns olhos, que ainda não
viram os hediondos espectaculos da farça do mundo, podem choral-as!

Fechou-se a noite. Já a sineta havia chamado as duas meninas rebeldes ao
primeiro e segundo aviso. Ergueram-se, deram-se o braço, e foram, na
cella de Theodora, continuar o recendente colloquio do jardim.

Theodora, a não poder ser feliz, exultava com as venturas da sua amiga.
Animou-a á temeridade de receber o atrevido rapazola de Tras-os-Montes,
idolatra d'um personagem de romance, unico que em sua vida lêra, o
_Lovelace_, de quem se propunha imitar o entrajamento de mulher. O tolo!
Ainda bem que as asneiras, copiadas dos romances, costumam ter, na vida
real, umas sahidas muito desgraçadas ou irrisorias! Ainda bem, para
desdouro dos livros desmoralisadores, e luzimento d'outros livros de san
moral, que só fazem mal ao publicador que os não vende.

Este Alfredo, que vivia occulto nas cercanias de Braga, applaudido por
Libana em seu projecto, foi á sua terra preparar os vestidos, e
ensaiar-se em tregeitos mulheris.

Libana tinha uns irmãos, oriundos do mesmo tronco de pae e mãe, os quaes
pelos modos, não tinham de que espantar-se do descomedimento e desatino
da filha e irman; d'onde vinha o serem elles grandemente avelhacados,
astustos, e espiões das tramoias de Alfredo.

A villa era pequena e de soalheiro. Correu logo por algumas boccas, até
aos ouvidos dos interessados, o estar-se fazendo roupinhas e saiotes, e
outros atafaes de mulher, afeiçoados ao corpo de Alfredo. Sem detença,
um dos irmãos de Libana sahiu para Braga; o outro ficou d'atalaia aos
movimentos do imitador de Lovelace. O que se escondera em Braga foi
avisado a tempo que Alfredo vinha de jornada. Uma engenhosa combinação
com as authoridades lançou a rede tão a ponto que o infeliz foi
capturado na portaria das Ursulinas, vestido de camponeza transmontana,
e d'alli, entre baionetas, e escoltado de rapazio, percorreu todas as
estações judiciarias desde o regedor até ás caricias do carcereiro.

As religiosas, conscias do escandalo, requereram ao prelado bracharense
a expulsão da reclusa que deshonrava o convento e contaminava de sua
desmoralisação as outras meninas. Foi, portanto, Libana entregue a seu
irmão, que a levou para casa. Esperava-se geralmente que esta donzella,
agourada para estremados desastres, tivesse um fim de exemplo a mulheres
desgarradas do trilho da virtude. Os prognosticos da opinião publica
erraram, como se ha-de vêr n'um futuro livro.

A gente não sabe ainda bem como este mundo está feito.


VI

O escandalo, que felizmente abortou á portaria do convento, poz de
sobre-rolda os paes de familia, que tinham meninas a educar nas
Ursulinas, e deu ás insomnes freiras um sexto sentido de observação.
Dentro do mosteiro reinava a opinião de que Theodora tinha bastante
capacidade para tomar criada, conforme o gorado systema de Libana. Além
d'isto, depois da expulsão da transmontana, a morgadinha, em vez de
quebrar de orgulho e reportar-se, enfuriou-se mais, e sahia com
invectivas e chacotas ás freiras velhas, clamando a vozes descompostas
que a mandassem embora, se lhes não servia assim. A communidade
offendida e esgotada de paciencia, consultado o tutor da educanda,
assumiu o uso ou o abuso dos antigos poderes monasticos, e encerrou-a no
seu quarto, com ameaças de a fecharem no tronco. Theodora esmoreceu
diante da força mixta das freiras e dos padres capellaens, que
promettiam supprir com o pulso a inefficacia da eloquencia persuasiva.

Vagamente informado da situação da sua amada, Affonso de Teive foi á
portaria do convento, no heroico proposito de ir arrancar a victima de
sobre as aras da theocracia despotica. A porteira, senhora de oculos e
de muita virtude, offereceu peito de martyr ás injurias impias do
acriançado amante. Porém, como quer que o acaso alli encaminhasse um
cabo de policia, quando Affonso gesticulava e vociferava um menos mau
improviso contra os conventos, o cabo, com as mãos atadas na cabeça,
correu ao regedor, e este acudiu no supremo lance, já quando o
allucinado alumno de rhetorica, estrondeava na porta valentes murros,
chamando Theodora a clamorosos gritos.

Travado pelos braços pujantes das authoridades, Affonso não pôde
resistir á surpreza do assalto. Escabujou e esbraveou em quanto as
forças da raiva o aqueceram; a final cahiu exanime nos braços da lei,
balbuciando ainda «Theodora!» Estava a instaurar-se-lhe processo, quando
a fidalga de Ruivães chegou a desfazer com a sua respeitavel presença, e
auxilio dos mais importantes cavalheiros de Braga, a criminalidade
pueril do filho.

Affonso, levado por sua mãe, foi para casa, deliberado a deixar-se
morrer. Cahiu de cama, e tresvariou em febres de mau caracter. Todavia,
os cuidados maternaes, cooperados pela robusta natureza dos dezeseis
annos, salvaram-no. Os olhos, durante a morosa convalescença,
choraram-lhe de continuo; os sonhos eram-lhe ainda supplicios de que
despertava em brados e soluços; não obstante, a cura do amor, que chora,
é certa: ferida de coração, onde possa chegar o agro e adstringente de
uma lagrima, cicatriza cedo ou tarde. Amores incuraveis são os que
desabafam em rancorosas explosões.

A parentela do illustre pimpolho, alvorotada pelas lastimas da fidalga,
reunira-se em conselho, e alvidrára que Affonso de Teive fosse completar
os estudos preparatorios em Lisboa, hospedando-se em casa d'um seu tio
desembargador. O moço obedeceu ás exhortações e rogos de sua mãe, depois
que a extremosa senhora lhe prometteu e asseverou que, a despeito de
tudo e de todos, Theodora, no praso de um anno, seria sua esposa.

Os parentes embicaram, resmoneando que o morgadio da Fervença o era só
em nome, sem vinculo, nem fôro em ascendente conhecido. Contra estas
razões se insurgiu Affonso em termos que fariam a illustração
democratica d'um botequineiro antes de ser cavalleiro do habito de
Christo. A fidalga, mais ufana de proceder do tronco dos primitivos
christãos, iguaes entre si e iguaes ante Deus, que vaidosa de
aparentar-se com os Pinheiros de Barcellos, e os Corrêas e Lacerdas da
Honra de Farelaens, votou com seu filho, dizendo «que na casa de Ruivães
sobejava a fidalguia e faltava a felicidade.»

Foi Affonso para Lisboa com o capellão. O tio desembargador gasalhou-o
nos braços, e as primas, filhas do bondoso magistrado, á mingua d'um
irmão, começaram logo a dizer que Deus lhes dera um, e, como tal, o não
deixariam voltar mais, sem ellas, á provincia.

Pouco montam tantas caricias para o contentamento de Affonso. Ralam-no
saudades, emmagrecem-no os jejuns, amarellece-o a tristeza. Nas aulas é
mau estudante; no circulo dos condiscipulos é um automato que ri por
comprazer, e vai sem saber que vai para onde o impellem; em casa com as
primas é um aborrecido, que nem ao menos as acha bonitas, nem scisma
sequer em adivinhar as charadas metricas, e logogriphos figurados, em
que todas são eximias, e sobre modo impertinentes.

A senhora de Ruivães recebe de todos os correios instantes cartas de
Affonso accelerando as diligencias para o casamento. A consternada mãe
já por terceiras pessoas mandou sondar as difficuldades que importa
combater. De Braga dizem-lhe que Theodora já sahiu do encerramento da
cella, e tem o convento todo por homenagem, salvo o palratorio e a
cêrca. Ajuntam as informações que o tutor da morgada frequenta
semanalmente o convento, e algumas vezes vai com elle um filho, rapaz de
figura absurda, com uma gravata vermelha, capaz de seduzir uma nação de
pretos, e uma casaca archeologica, de cabeção tão copioso que parecia
enrolar um capote.

A descripção poderia ser acoimada de desgraciosa; mas de hyperbole não.

Este sujeito chama-se Eleuterio Romão dos Santos, por ser filho de
Eleuteria Joaquina, e de Romão dos Santos, tutor de Theodora, lavrador
abastado, visinho do mosteiro de Tibães.

Eleuterio tem vinte e dous annos; quiz aprender a lêr com seu tio padre
Hilario; mas a natureza oppoz-se-lhe, logo que elle, apoz um anno de
canceira, entrou a soletrar palavras de tres syllabas. Vencido pela
natureza, padre Hilario desistiu, visto que lhe era vedado arejar o
cerebro do sobrinho por uma fresta aberta a machado.

O filho unico de Romão dos Santos recebeu em upas de alegria a noticia
da sua incapacidade para soletrar nomes de tres syllabas. No dia
seguinte, o pae mandou-o á feira dos nove com uma junta de bois. O rapaz
effectuou a venda dos bois com tamanha astucia e vantagem que logo
d'alli se deu a conhecer a sua vocação. Uma segunda mercancia
robusteceu-lhe o credito, que outras vieram confirmando, até que Romão
deu ordem illimitada de dinheiro a Eleuterio para poder negociar em
bezerros e vitellas.

Estava o rapaz n'este auge de glorificação propria, e inveja dos
visinhos, quando falleceu a mãe de Theodora. A orphan, apenas sua mãe
cerrou olhos, foi conduzida para casa de Romão, seu tio paterno. A
criança ia lagrimosa e carecida de meiguices e consolações de alguma
senhora, que lhe fallasse a linguagem polida á qual estava afeita. Em
casa de Romão havia sómente a snr.ª Eleuteria Joaquina, creatura chan,
que, a cada soluço da sobrinha, dizia quasi sempre:

--Não chores, pequena; que a morte é portêllo que todos temos de passar.

E, para não dizer sempre o mesmo, variava d'este theor:

--Isto, como o outro que diz, é hoje tu, amanhã eu.

Eleuterio, porém, menos versado em lugares communs de pezames aldéãos,
querendo consolar sua prima, tirou estas palavras do peito:

--Senhora prima, olhe que o chorar faz mal ás meninas dos olhos.
Deixe-se de estar a suspirar, que não lhe dá remedio. Agora o mais
acertado é divertir-se pelas feiras. Vem ahi a de Villa Nova de
Famelicão, onde eu levo vinte e duas juntas de bezerros. Se a snr.ª
prima quizer, vamos comprar de meias algum gado, e deixe cá isso á minha
vigilancia, que eu, dentro d'um anno, prometto dar-lhe dinheiro de ganho
com que ha-de comprar um grilhão de duzentos mil réis, e umas arrecadas
de lhe chegarem aos hombros. O mais quem morreu morreu, é ditado dos
velhos.

--Quem morreu é rezar-lhe por alma--atalhou com má grammatica, mas com
piedosa intenção, o tio padre Hilario.

Theodora estava a rebentar de raiva, quando Eleuterio recolheu ao bucho
das cruas sandices outras muitas que já lhe ferviam nos gorgomilos.

Ahi está uma amostra de Eleuterio Romão dos Santos.

O conselho de familia deliberou o ingresso da orphan nas Ursulinas. A
menina acolheu agradavelmente a noticia, por se desentalar assim da
oppressão do primo alvar, e da tia, mais boçal do que racionalmente se
deve permittir á bondade de uma pessoa qualquer.

Logo que a mãe de Theodora morreu, o tio, que lhe conhecia o valor dos
bens, lançou contas ao futuro, e deu como realisavel um casamento, que
vinha a ligar as duas casas maiores da freguezia. Custou-lhe a ceder que
a pupilla se lhe distanciasse de casa; mas os votos dos outros membros
venceram, fundados na precisão de educar a menina, que fôra creada com
mestras, e de todo estranha á vida agricola.

Entretanto, Romão predispoz o filho a cuidar seriamente no _bonito
arranjo, que lhe sahia a talho de fouce_: estylo figurado e pittoresco
em que são inventivos os nossos camponezes, e em que Romão primava
sempre que tinha entre mãos algum _bonito arranjo_, o qual vinha a ser
sempre um arranjo feio para o proximo.

Eleuterio, ao principio, disse que a prima lhe parecia um arenque.
Fundava o desdenhoso a sua critica na magreza delicada e cortezan de
Theodora. Entre os galans da estôfa de Eleuterio mulher de encher olho
queria-se vermelhaça, alta de peitos, ancha de quadris, roliça e grossa
de pulsos, com os queixos tumidos de gargalhadas estridulas, e as
facecias equivocas, e os estribilhos patuscos sempre engatilhados nos
beiços grossos e oleáceos. Theodora era o envez de tudo isto.

Faz pena vir aqui a ponto o descrevel-a, quando o contraste lhe fica tão
de perto.

Theodora, aos dezeseis annos, era um modêlo acabado de formosura, como
raras se vos deparam nas raças patricias, que o concurso de
circumstancias, umas espirituaes, outras physiologicas, aprimoraram. A
pallidez era n'ella o principal caracteristico das bellezas de eleição,
á escolha de olhos onde parece que os nervos opticos vem da alma, e não
do cerebro a tecerem a retina. A mulher pallida é a que vem cantada em
poemas e estremada em romances: ora, quando a poesia e prosa conspiram a
dar a realesa do amar e padecer á mulher pallida, havemos de curvar-lhe
o joelho, na certeza de que ella se fará amante e martyr, por amor do
poema e do romance, ainda mesmo que a natureza lhe tenha temperado o
coração d'aço. Póde ser que semelhante clausula, no decurso d'este
livro, acuda á retentiva do leitor.

Relumbravam no alvor das faces de Theodora olhos negros, não vivos,
antes morbidos, como se a queda das longas palpebras, iriadas de veias
azuladas, lhes vedasse o raio de luz em cheio que rebrilha, aquece, e
regira os globos visuaes. Do nariz diremos que, n'esta feição, a mais
rebelde aos desvelos da natureza, tão extremada se mostrára ella, que
bastante lhe fôra aquella perfeição para desmentir os que a taxam de
desprimorosa. Em labios, não sei se me valha das figuras antigas--rosas
e coraes, romans e carmim--se me avenha com esta verdade prompta e
fluentissima que d'um traço copia como o pincel, e d'uma phrase exprime
tudo, como em phrases de Castilho: «era um osculo perpetuo de
innocencia.» Como isto sahe bem na musica da expressão; e que bello
seria o mundo, se as boccas formosas estivessem sempre absorvidas no
osculo perpetuo da innocencia! Ó Theodora, se tu então morresses, o teu
rosto trasladado em marfim, ainda agora nos seria a imagem dos labios
nunca despregados do beijo d'algum anjo, resabiado ainda da
voluptuosidade dos anjos mal-avindos com o candor celestial. Mas tu
cresceste, e deformaste-te, ó chrysalida! A tua essencia de céo vaporou
para lá no alar-se de alguma virgem, irman tua, que o Senhor chamou na
ante-manhã do primeiro dia nebuloso de sua vida; e o que de ti ficou foi
a formosura e a desgraça da mulher.

Mas, afóra a essencia pura do céo, que esvelta, que peregrina mulher cá
se ficou a ostentar as galas mundanas, esse opulento nada que desaba do
altar da nossa idolatria a um roer surdo de vermes e podridão!

Esta ultima palavra tolhe-me de continuar a descrever Theodora.
Esmoreceram-me os espiritos. Cahi da minha phantasia na lagôa fétida da
verdade. Achei-me como ás margens d'uma sepultura regélida do giar d'uma
noite de Dezembro. Parou-me o sangue no pulso, inteiriçaram-se-me os
dedos, e a penna desprende-se. Assobia o nordeste pelas arestas dos
jazigos, e remexe e sacode de sobre esta pedra umas corôas humidas de
orvalho, crystallizado em lagrimas; são corôas de perpetuas sagradas á
formosura, que se julgou immorredoura, á sexta hora do seu breve dia. Lá
vão as corôas no bulcão do vento; lá vão esgalhadas as frondes do chorão
e do cypreste; lá vai tudo; a memoria dos vivos lá se foge tambem d'esta
sepultura: tudo foi; só tu ficaste, ó Cruz!


VII

Belleza absoluta, de têlhas abaixo, ha uma só, que é a da mulher
formosa; e, na variada manifestação de belleza em diversidade de typos,
ha uma superior formosura, que constitue o bello universal, o bello que
prende e leva todos os olhos. A mulher, assim dotada, tanto impressiona
o espirito educado na visão e admiração das maravilhas da natureza e
arte, como o espirito desculto de toda a compostura e discernimento.
Dá-se o exemplo d'esta cousa formulada em these abstrusa na embriagadora
influição dos olhos de Theodora no animo selvagem de Eleuterio. A menina
de quatorze annos, que o lerdo vaqueiro comparava a um arenque,
appareceu-lhe aos dezeseis na grade do convento, e atordoou-o. O moço,
querendo exprimir ao pae a sensação recebida n'aquella hora, disse com
expansiva naturalidade:

--Quando ella me espetava os olhos, havia de dizer que a minha alma
estava fóra do corpo! Eu queria dizer-lhe alguma cousa, e a lingua
grudava-se-me ao céo da bocca. Quem me dera ser rei, e que ella fosse
uma pastora de cabras!

Se a linguagem fosse mais joeirada de plebeismos, a concisão da idéa
poderia attribuir-se a Shakspeare. A mais crystallina agua é a que
rebenta de penhascos ermos: assim, de espiritos selvaticos, resaltam por
vezes umas idéas limpidas, d'uma sensibilidade original, que faz pensar.

Romão ficou contente da resposta, decorou-a, e assim a pespegou a
Theodora. A menina, vesada á linguagem mais florida ou mais delicada de
Affonso, riu interiormente dos termos rusticos do primo, e de fóra
compoz o gesto para fingir que o não entendera. O tutor, porém,
instinctivo avaliador do capital do tempo, sem saber que os economistas
inglezes chamavam ao tempo capital, repetiu, já dilucidando-as, as
palavras de Eleuterio, aproando o discurso ao ditoso remanso do
casamento, que elle, na sua locução figurativa, denominava um _lindo
arranjo_.

A morgadinha ouviu anciada o tio, e respondeu com um ataque de nervos,
que era já o terceiro que a insultava; sympathica doença em meninas
pallidas, se é o amor contrariado que lhes desmancha o apparelho
nervoso. Theodora soluçava agudos gemidos, que iam reboando pelos
dormitorios. Acudiram algumas freiras, e transferiram-na á sua cella. A
prelada foi á grade averiguar do accidente, e sahiu convencida de que a
orphan era uma douda, a quem Libana, de impudíca memoria, ensinára a
fingir ataques nervosos. Romão dos Santos sahíra do convento no
proposito de consultar um egresso do Carmo sobre os tregeitos e feitios
que vira em sua sobrinha, para applicar-se-lhe a reza purgativa de
demonios, se o frade entendesse que ella os tinha no corpo. O zeloso e
invencivel demonifugo foi ao convento, avistou-se com a suspeita
energumena, mandou ás freiras que depozessem ácêrca das malfeitorias
attribuidas ao espirito immundo, e retirou-se capacitado de que a
morgada da Fervença estava possessa d'uma legião de travessos e
intrigantes diabinhos que usam, contra todo o natural, aninhar-se entre
religiosas, não as poupando mesmo, quando ellas tomassem o expediente
salvador do conhecido gallego da fabula de Almeida Garrett. Era
illustrado o egresso.

No entretanto, soubera Theodora que Affonso de Teive fôra para Lisboa.
Esta partida azedou-lhe a vaidade, sem embargo de ter sabido a
destemperada arremettida que elle fizera contra a porteira, e as
vergonhas e trabalhos que lhe ia custando ao pobre moço aquella façanha.
Porém, ninguem lhe dissera que dôres o pozeram á borda da sepultura, que
saudades o crucificavam em Lisboa, e que vans solicitações fazia a mãe
de Affonso para assegurar á filha da sua defunta amiga a certa
realisação do casamento.

Sobreveio ao despeito o enojo crescente, que mortificava a reclusa,
sempre espiada, e perseguida de velhas conselheiras, que tomaram á sua
conta salval-a. Ao despeito e ao enojo, acresceu o visital-a com mais
frequencia, e um pouco melhorado de figura, seu primo Eleuterio.
D'antes, a cabeça exterior do moço era horrida, toda escadeada da
tesoura habil em tosquiar rezes, tufada de grenhas, com umas rêpas
caracoladas sobre as orelhas, e aquelle todo lustroso de azeite. Depois,
appareceu Eleuterio com o cabello cortado á escovinha, e os caracoes
banidos. Depoz a casaca no gavetão-museu da familia, e envergou uma
judia, como se usava então, com matizes e florões nas costas, e borlas
de apertar no pescoço. A pantalona continuava-se em polaina até á ponta
do pé, e abotoava sobre meio palmo do artelho com botões de
madre-perola. Além d'isto, o pae deu-lhe o relogio avoengo, que, no
continente e conteudo de caixas sobrepostas, parecia a baixella d'uma
familia, desde a tina do banho até á bacia do lavatorio. Os berloques
d'este thesouro, que não regulava ha quarenta annos, eram placas de
differentes pedras, e sinetes periformes de tal tamanho, que pareciam
armas de defeza.

Theodora custou-lhe a reconhecer o primo Eleuterio, afóra mãos e pés,
que nenhuns outros podiam confundir-se com os d'elle, a despeito mesmo
das torturas em que os trazia entalados. O rapaz tinha conquistado de
sua prima uma admiração comparativa: era já grande salto dado para
dentro do coração da menina.

Li em algures, e estou convencido d'uma verdade que sôa como paradoxo: e
é que o espirito de cada pessoa tem muito que vêr com o modo como ella
está entrajada. A intellectualidade apouca-se e confrange-se quando o
sujeito se olha em si, e se desgosta da compostura dos seus vestidos. O
desaire do espirito como que se identifica ao desaire do corpo. As idéas
sahem coxas e esconças do cerebro; a expressão tardia e canhestra
denuncia o retrahimento da alma: ha o quer que seja phenomenal que eu
tivera em conta de desvario meu, se muitos sujeitos me não tivessem
confessado semelhantes segredos de psycologia, em que o alfaiate
exercita importante alçada.

Demonstrado isto, explica-se o atavio de palavras com que Eleuterio se
sahiu no palratorio, no dia em que se mostrou desfigurado a Theodora. De
vez em quando, o moço baixava modestamente os olhos requebrados sobre os
berloques, e ao levantal-os para sua prima já nos beiços lhe borbulhava
alguma idéa bonita. Igual fortuna o bafejava, quando, acaso ou por
acinte, se via de polainas, abotoadas tanto ao justo da canella, que se
ficava algum tempo narcisando nos pés.

D'este primeiro colloquio sahiu a morgada pensativa. Algumas senhoras,
grandemente e astuciosamente admiradas, entraram na cella da menina a
perguntar-lhe se era, em verdade, seu primo Eleuterio o paralta que a
visitára. Theodora respondia que sim entre ufana e desdenhosa. As
freiras benziam-se, e exclamavam:

--Que perfeito rapaz elle se fez! Ninguem havia de dizer o que sahia
d'alli! Em Braga não passeia outro que o valha, nem quem o exceda.

--Seu primo é uma figura que dá na vista!--ajuntava a mais maliciosa das
freiras para não ficar em peccado com a sua consciencia.

Theodora, quando acordou na manhã seguinte, viu duas imagens: uma a
ennevoar-se e esvair-se como sonho que a memoria não póde já reter: era
a imagem de Affonso; outra avultou-lhe completa nos menores traços,
radiosa, animada e animadora: era a imagem de Eleuterio Romão dos
Santos.

Ergueu-se alegre, abriu a janella do seu cubiculo, aspirou o ar do céo
que nunca lhe parecera de tão lindo azul, e invejou as aves que
volitavam mui serenas gorgeando, ou regirando umas jubilosas voltas, que
á menina se figuraram as delicias da liberdade.

Amava ella Eleuterio Romão?! Não amava, disse-o ella, e eu juro nas
palavras de Theodora. O que ella amava era a liberdade; os anhelos de
sua alma anciavam sofregos um viver, que o temperamento lhe estava
pedindo a gritos, gritos que a sociedade não escuta, não acredita, e não
perdôa. O que ella via em Eleuterio era o homem já desfigurado da
repulsão primeira; o homem aceitavel como libertador de um seio que quer
encher-se de perfumes, sem se dar em servidão ao homem, que lhe vai
descancellar os adytos do mundo. Assim é que muitas mulheres tem amado
aquelles que as salvam; d'este amor, assim chamado por não haver mais
elastico epitheto que dar á cousa, é que surdem os irremediaveis
infortunios, os odios irreconciliaveis, e as affrontas que levantam as
campas, encerram algozes e victimas, e ficam ainda de pé sobre ás lousas
infamadas, pregoando o opprobrio dos filhos gerados no crime e
amaldiçoados na infamia de suas mães... Colho as vélas; que, n'este
rumo, ia varar em semsaboria encapotada em moralisação: cousa duas vezes
importuna.

Conseguira, n'este tempo, a senhora de Ruivães que uma secular das
Ursulinas entregasse uma carta á morgada, carta de esperanças, alento, e
consolações, com miudas noticias dos padecimentos do filho em Ruivães, e
das penas e receios que o desesperavam em Lisboa. Terminava a carta
promettendo á menina que, antes de cumpridos dous annos, os votos de
todos se haviam de realisar diante de Deus, com tanto que Theodora
con-servasse firmeza, coragem, e constancia.

--Dous annos!--disse entre si a morgada--Esperar dous annos n'este
purgatorio!... Se Affonso me ama, porque não ha-de vir já roubar-me
d'este carcere? Dous annos! e viveria eu aqui tanto tempo á espera de
não sei que?! Eu captiva aqui dous annos, e elle em Lisboa a
divertir-se!... Se ao menos eu o esperasse em liberdade, os dias iriam
menos arrastados; mas, privada dos prazeres que elle está gozando,
esperar um futuro talvez duvidoso... é loucura! Quem me diz a mim que
Affonso, n'este espaço tamanho de tempo, se não apaixona por outra? Se
me elle ama, como dizia, e a mãe me diz agora, quem nos impede de
casarmos já? Se somos muito novos, lá virá occasião de envelhecermos. O
que eu tenho, meu é já; ninguem m'o rouba por eu casar contra vontade do
conselho de familia... Dous annos!...

E, n'aquelle dia e nos dous seguintes, Theodora, de cinco em cinco
minutos, dizia: _Dous annos!_ e ficava meditativa, até de novo exclamar:
_Dous annos!_

Respondeu a morgada á mãe de Affonso que a sua saude se havia perdido na
oppressão e dissabores d'aquella vida, em que tão contrariada se via.
Dizia mais que a precisão de se livrar de tal captiveiro a obrigaria a
dar-se como esposa a um homem que ella não amasse. Queixava-se da
ausencia e silencio de Affonso, e citava o namorado da sua amiga Libana
como exemplo de rapazes apaixonados. Concluia desejando a Affonso todas
as venturas d'este mundo, em quanto ella se deliberava a experimentar
todas as desditas.

A virtuosa de Ruivães, lendo o final da inesperada carta, acolheu-se á
sua capella, e longo tempo esteve em joelhos pedindo á Virgem que
defendesse Theodora dos seus funestos instinctos.

E, desde aquella hora, a mãe de Affonso, com quanta delicadeza de
admoestação e brandura affectuosa pôde, desviou o filho de pensar em
Theodora como futura companheira de sua vida. Affonso pedia
instantemente explicações de tal mudança no espirito de sua mãe; e ella,
podendo responder com o mais idoneo documento, que era a propria carta
da morgada, dilatava as suas razões para mais tarde. E, ao mesmo tempo,
escrevendo a Theodora, conjurava-a a ter mão de sua imprudente mocidade,
descrevia-lhe o quasi nada que conhecia do mundo, citava-a para diante
da virtuosa memoria de sua mãe; mas não mais lhe fallou de Affonso.

A morgada não deu peso a tal omissão, nem achou rasoavel o
sentimentalismo da fidalga; irritou-se mais por lhe não responderem ao
artigo essencial de sua carta, que era apressar-se o casamento, visto
que a sua saude corria perigo.

Eleuterio, cada vez mais assiduo na grade, já tinha uma outra judia côr
de alecrim, outras pantalonas apolainadas, um collete de veludo
escarlate, e um cavallo de marca, apparelhado a primor, e obediente ao
freio para todo o genero de upas e galões. Theodora gostou d'isto, por
que um dos anhelos era a equitação: sonhara-se muitas vezes cavalgando
selim razo, trajada em amazona, com as dobras do amplo véo ondulando no
phrenesi de desapoderado galope. O cavallo--faz pejo dizel-o! foi muito
no determinar-se a morgada a responder categoricamente ás timidas
perguntas do primo Eleuterio. Assim foi. Ageitado o ensejo, a menina,
balbuciando com artificial pudor, disse que estava disposta a tomar
estado, visto que a idade lh'o permittia. Eleuterio, perplexo, de
ouvil-a, sem ousar suppor-se o noivo escolhido, sopesava o bofe direito,
cuidando que estava alli o coração; quando, porém, a prima lhe disse:

--Faço aquillo que meu tio Romão quizer... Caso com quem elle
determinar...

Eleuterio expediu um ai de desafogo, e riu-se alvarmente, esfregando as
mãos.

Por amor d'este successo vim eu a desenganar-me de que a natureza anda
muito abastardada e contrafeita no theatro e nos romances. Casos
analogos d'aquelle tenho-os visto remedados com tregeitos e exclamações
inversas da logica da natureza. No romance todos os Arthures ou
Ernestos, ao saberem que são amados, empallidecem, suam, ajoelham,
declamam, quando não podem oscular com frementes soluços a mão da mulher
amada. No theatro, em lances identicos, tenho visto desmaiar sujeitos,
que matariam a futura sogra e o proprio pae, se lhe atravancassem o
caminho da felicidade. Rir ás cascalhadas é que eu ainda não vi amante
ditoso nenhum, no instante solemne de se crêr amado. Eleuterio Romão dos
Santos é o primeiro modêlo que a natureza me offerece.

E a verdade é só uma. Ao beijo da felicidade, que endouda e transporta,
o homem, que não estoura em explosões de riso, deve de estar mui
calcinado de coração. Dramaturgos e romancistas, por via de regra, são
umas pessoas aridas, frias, e falsas, que inventam a natureza, depois
que desbarataram a sensibilidade, exagerando as generosas commoções que
receberam d'ella.

Theodora gostou medianamente dos modos de seu primo. Antes ella o queria
falsificado no molde dos romances, que a menina transmontana lhe
emprestára; mas, ainda assim, aceitou com paciencia a linguagem
desartificiosa d'aquella ingenua e bruta alma.

Aquietado do seu arrebatamento, Eleuterio Romão dos Santos fallou assim:

--Cheguei ao que desejava, graças a Deus! A pena que eu tenho é não ser
tão rico como Sansão. (O padre Hilario quizera leccional-o em sagrada
escriptura: fallou em Salomão, ao que se presume, e o rapaz, assim como
odiava o soletrar palavras de tres syllabas, deve suppôr-se que tambem
em materia de historia, preferia os individuos de duas aos de tres
syllabas.)

E continuou:

--Se eu fosse tão rico como Sansão, prima Theodora...

N'isto, como lhe não occorresse idéa nenhuma com que fechar a oração
condicional, levou a mão á testa, e roçou a epiderme com o aro d'um
robusto annel que trazia no dedo indicador. Idéa magnifica! Tirou o
annel, e lançou-o ao regaço de Theodora. Tinha o annel um grosso
topazio, engastado n'um circulo de perolas. Theodora examinou o objecto,
e enganada pela circumferencia do aro, esteve quasi a pensar que era uma
pulseira.

--Faz favor de encaixar no dedo, prima--disse Eleuterio.

--Não me serve--disse a menina.

--É que está magrinha das mãos...--replicou o moço--Pois guarde-o, e
quando engordar o porá no dedo. Lá que a prima ha-de engordar com os
ares de Tibães, isso é que não falha. Vamos a tratar da dispensa, e
acabar com isto. O que eu queria era ser tão rico como Sansão.


VIII

As filhas do desembargador Figueirôa rodeavam o primo Affonso de
agrados, de gozos familiares, e recreios, tendendo tudo a divertil-o de
sua taciturna melancolia. A senhora de Ruivães, escrevendo a seu irmão,
pedia-lhe que se descuidasse em materia de estudos, e tomasse muito a
peito a distracção do filho, qualquer que fosse o gasto que ella
houvesse de desembolsar. Os prazeres da sociedade eram temporãos ainda
para a idade de Affonso. Bailes e theatros atediavam-no só em cuidar que
havia de ir affrontar-se com centenares de mulheres entre as quaes nem
sequer em sombra se lhe offerecia, como agro alimento de saudade, a
imagem de Theodora. O pudor dos dezesete annos, a indole nada
communicativa, o receio de ser posto a riso por suas primas,
encrudesciam, na soledade silenciosa, a paixão do moço. Comprára-lhe o
tio, por ordem de sua irmã, um cavallo. Affonso recebeu a dadiva com
satisfação, por poder assim, quando lhe aprazia, alongar-se da cidade, e
refugiar-se em alguns arvoredos das quintas limitrophes de Lisboa.

O local mais attractivo do seu espirito era a quinta dos condes de
Pombeiro, em Bellas. Desde o reinado de el-rei D. Manoel que as gigantes
arvores d'aquella magestosa ancian estavam frondeando, e asylando as
gerações de aves, como para alegrarem com suas musicas, e gasalharem com
suas sombras o moço foragido do estrondear da cidade. Por alli as horas
lhe corriam placidas, contentes nunca, bem que a tristeza d'entre
arvoredos, ao murmuroso cahir d'agua em sonora bacia, seja uma
particular tristeza, que, relembrada depois, dá rebates de saudade,
saudade como a sentimos de alegrias para sempre idas com a sazão das
breves e donosas verduras da vida.

De cada vez que Affonso ia á quinta predilecta, em cada arvore nova
entalhava as letras iniciaes dos dous nomes, que elle imaginava, apesar
da distancia e dos revezes, atados para sempre com applauso de Deus.
Este pagão d'amor e por amor, á imitação de todos os amadores
visionarios, cuidava que a divindade se intromette n'estas brincadeiras
da terra, chamadas paixões, passatempo de muito folgar que, algumas
vezes, nas suas folganças e corrimaças, esbarra na sepultura aberta, e
lá se atira em corpo, deixando cá fóra a alma infernada na deshonra e na
execração. E querem os pobresinhos, com o peito aberto ao abutre de suas
chimeras, que Deus intervenha nos seus infernados brinquedos!...

E Affonso, escondido nas sombras escuras de Bellas, chorava por
Theodora, e, alteando o rosto ao céo, pedia ao Senhor que lhe visse as
lagrimas, e houvesse piedade d'ellas.

O desembargador inquietava-se com as longas ausencias do sobrinho; mas
não o contrariava. As filhas é que mais se queixavam da selvatiqueza do
primo, que se ia á aldêa a conversar com arvores e penedos, e deixava
suas primas que tanto se interessavam em divertil-o. N'estes queixumes
das gentis meninas, transparecia um mal disfarçado despeito de todas e
de cada uma. Qualquer d'ellas, a resguardo das outras, havia pensado em
ser a mais amoravelmente olhada dos olhos de Affonso, o galhardo moço,
que tantas graças tinha, como se lhe não bastasse ser rico! O amador da
orphan das Ursulinas, se podesse suspeitar que suas primas conjuravam em
disputar-lhe uns grãosinhos do incenso de Theodora, não faria menos que
odial-as. Estes escrupulos são a religião, o ascetismo dos illuminados
de amor, illuminados lhes chamarei eu em respeito do leitor maior de
trinta annos, e compaixão de mim, que ambos nós já fomos tambem
illuminados, e não é por nossa vontade que estamos agora atolados n'este
lamaçal, onde, por sobre todas as desgraças e vergonhas, ainda queremos
vêr na superficie lamacenta e torva espelharem-se as estrellas do céo da
nossa mocidade!

Affonso esperava ainda. Sua mãe mentia-lhe. Seu tio, aferrado ás
tradições de avós, devia de tramar a quebra do casamento destinado com
uma menina, apenas formosa, rica, e pura como um anjo a quizera para si.
É o que Affonso pensava do silencio da mãe, e das reflexões do velho.

Estava, uma tarde de Agosto, Affonso em Bellas. Desde o dia anterior que
não voltára a Lisboa. O tio, como elle não voltasse ao segundo dia,
metteu-se á sua carruagem, e foi procural-o, e entregar-lhe cartas
recebidas do norte. Uma era de sua mãe, outra d'um seu tio paterno,
fidalgo de Barcellos, o mais acerrimo impugnador do casamento de um
Teive Lacerda Corrêa Figueirôa, com uma mulher da Fervença, que, dizia
elle, por nome não perca.

A carta da mãe dizia simplesmente:

«Não era digna de ti, meu filho, Deus bem m'o tinha dito, e o coração
estalava-me em ancia de t'o dizer. Agora, meu filho, ou cumpre o que o
tio Fernão te pede, ou faz o que a honra te aconselhar.» E poucas mais
expressões de conforto religioso; mas insinuantes como sabem dizel-as as
mães, que nunca se temem de corar diante de seus filhos.

A carta de Fernão de Teive era mais prolixa versando quasi toda sobre o
casamento de Theodora com Eleuterio.

Parecem-me dignos de extracto uns relanços d'esta carta, que eu copiei
do original. Não parecem de fidalgo velho, e estranho ao estylo
picaresco do folhetim:

«....... Eu estava em Braga, de visita aos primos Vasconcellos do
Tanque, e acaso vi o cortejo nupcial da morgada sem morgadio.
Predominavam as eguas de albardão e rabicho na parte equestre do
prestito, que era luzido, por que os arreios brilhavam, principalmente
as barbellas. O noivo ia desencabrestado, visto que tirára bula para
isso, quando tirou dispensa do parentesco. A morgada, com cara
relamboria, levava ares fulos; e procurava as estrellas ao pino do meio
dia, pasmada de vêr que ellas não vinham á janella admiral-a. Eu,
lembrando-me que a vergontinha da Fervença esteve a querer trepar pelos
troncos de Farelães e Numães, dei louvores a Deus, e parabens aos nossos
antepassados!.............................................................
..........................................................................

«Perguntei quem eram os figurões do prestito. O meu sapateiro conhecia
quatro. Varreram-se-me da memoria os nomes, e só me lembro que levavam
cara de terem bebido em jejum á saude da noiva. O lapuz do noivo queria
montar á Marialva; mas o ginete, quando chegou á Cárcova, festejou a
suciata com quatro couces que iam apanhando os jarretes da morgada, como
amostra dos que ella ha-de levar do marido................................
..........................................................................

«Tinhas a côrte celestial a pedir por ti, Affonso! Quando te deu na
venêta ser marido de Theodora, em quanto a mim tinhas lido o folheto que
reza de uma que era formosa e sábia. Vai ás arcadas do Terreiro do Paço,
que lá a encontras pendurada no cordel do livreiro cego. Theodora por
Theodora, antes a do papel de mata-borrão, que est'outra é um borrão da
tua mocidade, que felizmente o tempo ha-de gastar.........................
..........................................................................

«Agora é tempo de te dizer que tens uma prima, e eu tenho uma filha. Se
a queres esposar, vem quando estiveres farto da capital. Está senhora, e
foi educada como as senhoras da nossa raça. Aos meus olhos de pae,
Mafalda parece-me gentil e esvelta. Em palavras é discreta como se os
cabellos, em vez de puro ouro, lh'os tivesse embranquecido a
experiencia. Em acções creio que nenhuma ainda praticou de que me não
deva honrar, e bemdizer a mãe que a educou, e o sangue illustre que lhe
fórma o coração.

«Tua mãe compraz-se na minha resolução. Vem gozar as delicias puras
d'uma mocidade bem encaminhada, e recebe a benção de teu tio

                                                     _Fernão de Teive_.»

Lidas estas cartas, Affonso levou o lenço ao suor da testa e ás
lagrimas, que lhe cahiram a quatro. O tio, já avisado do successo de
Braga, discursou largamente de pitada no dedo, e os oculos montados na
mais grave das attitudes. Affonso diz que o não ouvira longo tempo, e o
abominára depois que o ouvira.

Quizera o desembargador leval-o comsigo na traquitana; mas o moço
rebellou-se arrogantemente contra as ordens do velho, já irritado da
pertinacia do sobrinho em ficar, terceira noite, fóra de casa. Affonso
internou-se de corrida entre o arvoredo, n'um impeto de desesperação ou
loucura. O magistrado deixou-o, e foi para Lisboa, d'onde participou á
irmã o resultado das cartas, e aproveitou o ensejo para vaticinar que
Affonso ia caminho da demencia a passos de gigante.

Disse-me Affonso que, n'aquella noite, fôra ter a Mafra; e repousára, na
madrugada, encostando a cabeça a um degrau do templo. Ao nascer do sol,
quiz agitar-se em nova caminhada; mas o cavallo, prostrado de fadiga e
fome, resistiu impassivel á espora. Esta contrariedade, que faria rir o
leitor, pungiu acerbamente Affonso. A mais tragica desventura tem uma
physionomia comica, se bem lh'a procuramos. Escusavel seria o riso de
quem observasse o cavalleiro, roxo de febre e colera, esporeando os
ilhaes do esbuxado cavallo, decepado de jejuns, e correrias arabes pelos
descampados, onde seu dono acalmava as vertigens da paixão! Que funesta
sorte a do irracional que dá em poder de tal amo! O infeliz, privado do
dom da palavra, nem sequer póde questionar com o dono a supremacia da
sua racionalidade!

Em quanto o cavallo reparava as forças na manjadoura, Affonso escreveu a
sua mãe, pedindo-lhe recursos para se ausentar de Portugal, e licença
para se demorar no estrangeiro até poder regressar esquecido de
Theodora. Escreveu tambem ao tio Fernão, lastimando-se de não poder
aceitar a felicidade das mãos de sua prima Mafalda.

Feito o proposito de viajar, o phrenesi descahiu em sombria, mas serena
tristeza.

O céo negro abria-se-lhe, a instantes, em relampagos de luz. Atirava
elle com a alma ao futuro, ao vago, ao sonho indelineavel, e retrahia-se
com ella a uns rapidos assomos de alegria, que não eram senão rebates de
esperança, esperanças tão amigas dos dezoito annos! Viajar era-lhe já
uma ancia; cria-se resgatado assim das penas, e só assim que nenhum
outro lenitivo humano lhe poderia já valer.

Embebecido n'esta esperança, voltou para Lisboa, e recolheu-se
tranquillo a casa do desembargador. Ninguem fallou em Theodora. As
primas forcejavam por distrahil-o sem mostrarem proposito d'isso. O
velho proferia maximas umas de Seneca, outras d'elle ácerca das paixões;
abstendo-se, porém, de apontar o alvo onde iam bater as sentenciosas
frechas. Affonso, n'aquelles oito dias, podera recopilar maximas e
proverbios com que, no decurso de longa existencia, regesse as suas
acções, e repartisse sciencia de bem viver por todas as pessoas
transviadas do caminho direito; porém, confessa o inattento sobrinho do
apotegmatico desembargador que apenas se recorda de que eram em latim as
maximas de Seneca, e quasi latinas as do tio em virtude do estylo graudo
e philintiniano em que as compozera. O certo foi que Affonso não
aproveitou nada, nem mesmo o gosto da latinidade.

Mais vernaculo mentor lhe estava reservado, como ao diante se verá.

N'um dos dias em que Affonso estava esperando recursos para se expatriar
com a sua dôr, chegou a Lisboa a fidalga de Ruivães. Affonso, desgostoso
da surpreza, bem que as lagrimas o consolassem ao vêr sua mãe, receiou
que ella viesse apostada, com o imperio dos prantos ou da authoridade, a
demovel-o de viajar. A santa senhora, entrando-lhe na alma, sorriu
benignamente, e disse-lhe:

--Eu vim despedir-me de ti, meu filho, já que tu, antes de sahir de tua
patria, não quizeste ir abraçar tua velha mãe, e abraçal-a talvez para
nunca mais a tornares a vêr. Vim eu, sabe nosso Senhor com que fadigas
aqui cheguei. Mas sempre te devo dizer, Affonso, que eu ouvi muitas
vezes contar a tuas avós que era costume em nossa geração nunca sahirem
da patria para as guerras contra a Hespanha os militares ainda mancebos
e os generaes já encanecidos, sem irem de Lisboa ao Minho despedir-se
dos seus, e orarem em commum diante da cruz a que suas mães tinham orado
com elles tenrinhos nos braços. Este era o uso da nossa familia antiga,
meu filho, e não sei por que não ha-de continuar comnosco tão salutar
costume. Aos pés da cruz a que elles oravam, tambem eu orei comtigo em
meu seio, e lá aprendeste de minha bocca as tuas primeiras orações.
Sempre pensei que o meu nome ao menos--nome dôce de mãe que te
estremece--seria algum tanto mais em teu coração, e esse pouco bastaria
a que o meu Affonso, disposto a desterrar-se sem mais outra razão que a
sua pouca força de alma, o não havia de fazer, sem me ir dar com
anticipação o abraço, que eu lhe pediria nos ultimos instantes da vida.
Aqui estou eu, pois, meu filho, para te abençoar, e ficar pedindo a
Jesus Nosso Pae que te guie, e ampare, e restitua aos que te ficam
chorando. Em quanto a dinheiro, Affonso, tu dirás o que queres, que
prompto está. Prasa a Deus que elle te não sirva de ruina ou deshonra.

O desembargador, que estivera ouvindo esta affectuosa e branda censura,
quando a irmã concluiu, foi direito ao sobrinho, bateu-lhe no hombro com
severidade, e clamou:

--Acorda, coração de pedra!... Córa de pejo, e dôa-te o arrependimento,
filho mau!

--Meu mano--disse a senhora--o nosso Affonso não é mau filho, nem tem
acção de que deva corar. Se a tivesse, eu não seria a mãe que sou. O que
elle tem é ser infeliz; mas quem o encaminhou n'esta má vereda fui eu.

--Tu, Eulalia?! Como assim?--perguntou o desembargador interdicto.

--Eu, eu fui, quem primeiro lhe fallou em Theodora, e lhe preparou o
coração para captivar-se da filha da minha primeira amiga da mocidade.
Cuidava eu que o nascimento honrado de Theodora a dispensaria de herdar
fidalguia, para que ella fosse excellente esposa de meu filho, e digna
de o ser do filho da mais illustre mãe. Eu enganei-me, e elle foi
enganado por mim. Affonso apaixonou-se; quando lhe quizemos valer, era
tarde; tardiamente aconselhei; e meu filho, se não fosse um anjo,
poderia ter-me obrigado a discreto silencio, quando eu, pouco ha, lhe
chamei fraco.

Affonso lançou-se em pranto desfeito, aos braços de D. Eulalia; e, após
curtos instantes de offegante silencio, exclamou:

--Eu não irei viajar, se a sua vontade é essa, minha mãe. Eu tenho em
sua alma um thesouro de bens e de alegrias. Viva, minha querida mãe, o
que eu mais necessito é a sua vida!

--Graças vos dou, meu Creador e Redemptor!--clamou a senhora, muito
commovida, com as mãos postas--Grande é o poder que daes ao coração
maternal! Eu não vos merecia tanto, meu Deus! mas a vossa misericordia
não mede os merecimentos pela afflicção com que as mães vos chamam!

E, volvendo o rosto ao filho, cobriu-o de beijos, e tomou-o para o seio
com o fervor e mimo com que o acariciava na infancia.

O magistrado e as filhas solemnisavam o espectaculo chorando e rindo de
contentamento.


IX

Verei se posso repetir, sem inexactidão sensivel, o que Affonso de Teive
me contou, com seguimento aos successos descriptos.

«Nenhum rapaz dos meus annos--dizia elle--exerceria tão dolorosa
violencia sobre o seu espirito. Jurei commigo de nunca mais proferir o
nome de Theodora, e mesmo convencer minha mãe de me ter esquecido
d'ella. Eu não sabia a que porta do inferno fôra bater, sacrificando-me
puerilmente a uns pontos de dignidade, que homem nenhum de annos
experimentados conseguiu vingar. Em presença de parentes, e relações de
minha familia, atava com arames em brasa a mascara da minha agonia,
contra a qual minha propria mãe involuntariamente dardejava insultos.
Quando ella me dizia: «Estás esquecido d'aquella louca, meu filho! as
minhas orações foram ouvidas no céo» ou quando meu tio, com alegres
gargalhadas me applaudia, dizendo: «Sempre entendi que eras homem, meu
rapaz!» então a minha angustia exacerbava-se, e eu, assim que as
attenções me deixavam senhor meu, ia esconder-me a chorar, a chorar com
as mãos postas; e, muitas vezes, d'este inutil rogar á piedade divina,
erguia-me para escrever a Theodora cadernos de papel, que queimava,
antes de apagar a luz, ao entrar o sol no meu quarto. Que noites
aquellas!...

«Minha mãe deteve-se um mez em Lisboa. Adivinhei-lhe o desejo de me
trazer comsigo para a provincia; mas a obediencia não podia levar tão
longe a abnegação. Recordar estes sitios, vêr além os horisontes de
Braga, cuidar que ainda havia de encontrar, fortuitamente, Theodora, ou
alguem que me fallasse das felicidades d'ella, isto apertava-me tanto a
alma, que eu sentia em mim um desfallecimento de coragem, uma quasi
precisão de pedir a todos em altos brados que me amparassem.

«Então pensei em ir para Coimbra, onde esperava eu que mil rapazes de
todas as condições e feitios me arrancariam de mim proprio, e levariam
em suas folias, ou me habituariam o espirito ás consoladoras occupações
do estudo.

«Minha mãe accedeu promptamente á minha vontade.

«Fui para a universidade, muito escasso de preparatorios, e por isso me
matriculei em philosophia. Logo aos primeiros dias conheci que fôra um
erro confiar nas distracções juvenis de Coimbra. Alistei-me
primeiramente na roda dos moços-velhos, gente ridicula; mas d'uma
ridiculez que não distrahe ninguem. Cada um parecia que trazia dous
oraculos na cabeça: antes de expenderem os seus dogmas, punham-se á
escuta da inspiração; e, ao abrirem a bocca, a propria Minerva das
escadas latinas cuidavam elles que se apeava do sóco para escutal-os.
Zanguei d'estas creaturas infestas, e fui-me inscrever na fila dos
litteratos militantes, gente de pouco saber, de muitas maravalhas,
questionadora por necessidade de adivinhar a discutir o que não sabia da
leitura, emfim, futuras esperanças da patria, que bem sabiam que uma
diminuta sciencia, com muita ousadia, basta para attingir os pinaculos
sociaes. Tinham estes rapazes um jornal. Publiquei sem assignatura uma
das muitas poesias que eu tinha escripto nos arvoredos de Bellas, nos
tempos em que a imagem lagrimosa da reclusa das Ursulinas ia lá commigo
a ouvir a voz de Deus nas harmonias da terra. A poesia tinha a religiosa
suavidade d'um amor que se alliava aos santos enlevos do coração virgem.
Os litteratos disseram que eu imitava Lamartine, e que mesmo o traduzia
quasi litteralmente em algumas strophes. Ora, eu não tinha ainda lido
Lamartine: fui lêl-o, e corei de vergonha pelo grande poeta comparado
commigo. Em todo o caso, desgostei-me dos meus collegas por se darem uns
ares de tolice muito por ahi fóra dos limites rasoaveis. Passados tempos
dei ao jornal uma outra poesia, fremente de paixão, arrojada,
vertiginosa, escripta depois do meu desastre. Os meus collegas
avisaram-me de que a academia, lendo a minha ode, declarára que eu
traduzira Victor Hugo. Fui lêr depois Victor Hugo, e lastimei que os
soberanos do genio estivessem sujeitos ás chufas de todo o mundo, sem
excepção dos litteratos meus contemporaneos da universidade.

«Enfadado d'uns sandeus, que nem mesmo eram recreativos, bandeei-me com
os _trossistas_, iniciando-me para isso nas libações homericas da
genebra e cognac do Troni. Á primeira vez que me embriaguei, recobrando
o tino, envergonhei-me; lembrou-me minha mãe, e chorei. Não impediu isto
que me aturdisse segunda vez. Os meus socios de delirio diziam que eu,
embriagado, era um moço de boa companhia, alegre, sarcastico, ironico,
eloquente, e mesmo espirituoso. E, em verdade, das minhas perdas de
razão ficavam-me lembranças de ter visto o mundo de outra côr, e de
haver idealisado formosas chimeras douradas por novas e esplendidas
auroras d'outro amor. Comecei a sentir saudades da embriaguez quando, no
uso integro das minhas faculdades, me acommettiam os terrores da noite
infinita do meu coração, horas roubadas ao tormento dos parricidas, asco
acerbo a tudo que em volta de mim revelava alegria, odio mesmo á luz que
me amostrava os espectaculos da natureza, em que n'outro tempo a minha
alma, toda oração, toda absorvida, se evolava em effluvios de admiração
para o Altissimo.

«N'este perdimento de dignidade terminei o primeiro anno, com approvação
plena, e resolvi passar as ferias em Lisboa.

--Com approvação plena!--atalhára eu Affonso de Teive.

«Por que não?--respondeu elle--As minhas noites eram quasi todas
desveladas, depois que me recolhia fatigado das assuadas e disturbios.
Se o torpor me não adormecia, a visão de Theodora sentava-se em frente
da minha mesa, e dialogava commigo, ella no tom escarnicador da mulher
ovante da sua deshonra, e eu no accento supplicante de quem já não tem
que pedir senão piedade. A refugir d'este supplicio, ferrava com
desespero dos livros da aula, lia-os, e relia-os sem comprehendel-os;
mas, esmagado o coração sob as mãos de ferro da vontade, conseguia
entender, decorar, e expôr com clareza, uma ou outra vez, as idéas dos
compendios. Os meus creditos firmaram-se desde que me estreei
vantajosamente n'uma lição.

«Pediu-me minha mãe que a visitasse em ferias, embora me demorasse
poucos dias. Sem me negar aos seus desejos, consegui que ella fosse ao
Porto passar commigo a estação dos banhos de mar. Annuiu a santa
senhora.

«Os meus dias corriam magoados, mas serenos em Lessa da Palmeira, onde
se haviam reunido alguns parentes nossos de casas mui distantes umas das
outras. Meu tio Fernão concorreu com minha prima Mafalda, que o jovial
pae me tinha desenhado sem encarecimento. Fôra a minha companheira dos
brincos infantis. Viram-na os olhos da minha razão depois á verdadeira
luz. Era bella, e triste. A seriedade taciturna de Mafalda, se não fosse
vaidade de raça, seria um dialogar permanente com o namorado anjo da sua
innocencia. «Se eu podesse amal-a!» dizia eu a minha mãe, que se tornára
para mim, n'aquelles dias menos opprimidos, uma segunda consciencia. E
minha mãe, com a summa delicadeza da sua virtude, pedia a Mafalda que me
obrigasse a fallar, que me fizesse lêr alguns livros recreativos em voz
alta. Instado por minha prima, escolhi a leitura da _Noite do Castello
ou os Ciumes do Bardo_. Comecei a lêr pelo livro; porém, á segunda
pagina, dei de mão insensivelmente ao livro, e declamei de côr com
tamanho enthusiasmo, e com a voz tão vibrante de lagrimas, que minha mãe
rompeu em soluços, e minha prima empallideceu de assustada da minha
intimativa. Aqui tens tu um lance que eu não posso agora relembrar sem
rir! O que tudo isto me parece, visto d'aqui, do alto dos meus tamancos,
e através d'estes oculos de tres graus!

«Minha mãe impediu a continuação da leitura, e Mafalda nunca mais
desejou ouvir-me. Observei mais arrefecida, e muito menos attenciosa,
minha prima, desde aquella explosão de ciumes, por conta do poeta
Castilho. Isto inquietou-me tão de leve, que nem a vaidade me magoou.

«Estavamos em Setembro, e eu já tinha entrouxado as malas para voltar a
Coimbra. Fui despedir-me dos sitios, onde as horas me tinham sido mais
tranquillas, na soledade. Velejei n'um barquinho rio acima, e aproei á
ribanceira, d'onde se avistava o arruinado e já em parte desfigurado
conventinho de extinctos franciscanos. Á sombra d'um arco manuelino, que
havia sido a portaria do arrazado templo, meditei nos frades, no
convento, no refugio dos desamparados do mundo, nas lapides profanadas
que mãos impias arrancaram de sobre as cinzas de muitos corações,
extinctos com o segredo de sublimes torturas. Meditei, e maldisse a
civilisação, que fechára os aditos da paz, quando a guerra sacudia as
suas serpes mais inexoravel; maldisse a illustração, que aluira a
enfermaria dos empestados do vicio, quando a peste ardia mais
devoradora. A minha angustia era ainda immensa, por que eu não podia
dispensar-me de Deus, e dos homens, que apontavam o caminho de melhor
mundo.

«Descendo o rio, lá me ficavam ainda os olhos e as saudades nas
ruinarias do convento. Desembarquei na ponte, onde minha mãe me estava
esperando. Detive-me a passear com ella pelo braço, e a referir-lhe as
minhas idéas sobre os conventos. A virtuosa rejubilava-se ouvindo-me, e
dizia, em raptos de contentamento, que eu estava da mão do Senhor, e
que, apesar do mundo, havia de trilhar sempre os vestigios de meus
religiosos avós, alguns dos quaes tinham morrido martyres da fé nas
pelejas dos soldados de Christo contra os mahometanos. Ouvia eu
aprazivelmente a chronica de meus ascendentes, gloriosamente mortos na
Africa e no Oriente, quando vi ao longe, na estrada do Porto, á sahida
de Matosinhos, com direcção á ponte, uma senhora cavalgando um alentado
cavallo, ao lado d'um cavalleiro menos cuidadoso das arremettidas
garbosas do seu.

«Minha mãe assestou a luneta, e murmurou:--Valha-me Nossa Senhora dos
Remedios!... Se me não engano...

«Quem é?--atalhei eu. Minha mãe demorou a resposta. Os cavalleiros, no
entanto, avisinharam-se a galope. Antes de conhecel-a, adivinhou-a o
coração, que me repuxou á cabeça uma onda de sangue... Era Theodora,
Theodora, deslumbrante de formosura, gentil como as magnificas chimeras
do pincel inspirado, visão que me não parecia para olhos turvados de
verem as fealdades d'esta vida... Não te espante o ardor d'esta
linguagem. Eu fiz agora pé atraz vinte e quatro annos da minha vida, e
senti-me reviver n'aquelle momento... Agora, espera um pouco... Deixa-me
tomar fôlego, recordando minha mulher e meus filhinhos.


X

Affonso, passados dous minutos, continuou, demudado já o semblante da
jovialidade com que principiára.

«Theodora reconheceu-me. A turbação do meu animo era como uma vertigem,
e assim mesmo vi-lhe todos os lances de olhos, todas as linhas alteradas
d'aquelle adoravel rosto. Fitou-me. Estremeceu; vi-a estremecer na quasi
paragem convulsiva que fez o cavallo. E eu busquei o apoio do hombro de
minha mãe, e senti-me comprimido nos braços d'ella. E a magia satanica
do olhar da bella mulher empederniu-me; arrefeci; d'ahi a pouco era fogo
vivo a minha fronte; cuidava que a via ainda; e ella tinha passado. Puz
então a mão sobre o meu coração, e já lá encontrei a de minha mãe.

«Caminhamos para casa, e não trocamos palavra. Entrei no meu quarto,
lancei-me sobre a cama, abafei o rosto nas almofadas, e vinguei-me do
meu infortunio a chorar. Chorei, e senti-me desopprimido. Fui ao quarto
de minha mãe, e achei-a de joelhos orando. Quaes lagrimas me deram
allivio? seriam as d'ella ou as minhas? As d'ella, que o homem, quando
chora, desafoga uma paixão, e abafa n'outra: a do odio. Prantos que
salvam são os da dôr immerecida, os apêllos das iniquidades do mundo
para o tribunal da Providencia. E eu, quando chorava, amaldiçoava, e
pedia vingança.

«No dia seguinte, fui para Coimbra.

«Concentrei-me com a visão da ponte de Lessa. Não me deixou aquelle
adorado demonio recahir na minha miseria da embriaguez. Para que?--dizia
eu--Se tenho de voltar á razão para encontral-a com a tenaz ardente da
tortura?

«Quinze dias depois da minha chegada, abri uma carta marcada em Braga.
Oscillaram-me as pernas, e cuidei ouvir dentro do peito o despegar-se-me
o coração, uma dôr que eu não sei se é commum de todas as organisações,
dôr que eu tenho tantas vezes experimentado, que já a considero aleijão
dos vasos sanguineos. A carta era de Theodora, as linhas muito poucas, e
assim, se bem me lembro: «Foi o mau anjo da minha vida que me levou para
onde tu estavas, Affonso. Faltava-me o inferno de hoje. Não bastava o
remorso: era necessaria a fatalidade do amor, da paixão. D'aqui por
diante ha-de rasgar-me o peito a desesperação dos reprobos, que Deus
lançou de si. Arrasto-me a teus pés a pedir-te perdão. Não me amaldiçôes
tu d'hoje em diante. Se tens padecido, perdôa, e Deus te dê o triumpho
na bemaventurança; se te esqueceste, escarnece-me. Que vingança maior?
Adeus. Alegra-te, que eu desejo a morte, e ella virá salvar minha pobre
alma d'este miseravel corpo.»

«Que lucta, meu amigo! As horas d'aquelle dia e d'aquella noite foram
uma continuada alternativa de alegria douda e de excruciante agonia!
Começava a escrever-lhe, e rasgava logo as cartas, envergonhando-me
diante de minha propria consciencia. A paixão ia tocando as extremas
onde principia a perversão moral. Já me queria parecer que não era
indignidade nenhuma responder-lhe eu, quer insultando-a, quer
atirando-lhe aos pés com o meu coração infame. Ultrajal-a e adoral-a era
então a despotica necessidade da minha cabeça allucinada.

«Eu carecia de um amigo, e não tinha nenhum a quem mostrasse as secretas
dôres, que escondera de todos. Tive ancias de uma alma, que me
escutasse. Lembraram-me todos os que mais tinham convivido commigo. Sem
excepção d'um só, eram todos futeis, e incapazes de me pouparem á sua
zombaria, se me vissem chorar. Suffoquei-me, atirei-me aos braços da
minha algoz phantasia, deixei-me dilacerar pelo abutre da soberba,
soberba de não ser ridiculo em nenhuma das minhas desgraças.

«Passaram tres dias. Na minha banca estavam tres cartas fechadas, e os
fragmentos d'outras, que eu destinára a Theodora. Abri as cartas,
reli-as, tive pejo e tedio de mim, rasguei-as e fui embriagar-me.

«Porque? porque não havia de ser eu o que seria todo o homem, abrazado
de amor, ou sequioso de vingança? Que tinha que eu, condoendo-me ou
escarnecendo-a, lhe perdoasse? Se alguem se rira de mim abandonado
d'ella, que maior victoria queria eu, senão a de fazer risivel o marido
da mulher castigada por sua mesma abjecção? Esta philosophia hedionda,
com que se pavonea a philaucia de muitos sujeitos, celebrados pela
inveja e admiração d'outros miseraveis do mesmo formato, quem me privou
de a seguir, e aproveitar n'um caso da vida, em que a minha cura não
podia esperar-se da religião, da moral, ou da volubilidade do meu
caracter? Não lhe respondi; é o que sei dizer do meu inflexivel pundonor
dos dezenove annos. Era uma feroz vingança que eu me infligia á conta do
covarde quebranto em que me deixára a apparição da mulher vil, arreiada
com as pompas da felicidade.

«O meu segundo anno de Coimbra foi um continuado suicidio. Desbaratei a
saude em toda a especie de desregramento e libertinagem. Não dei nos
olhos da academia, porque, n'aquelle anno de 1846, a fermentação da
guerra civil absorvia os espiritos alvorotados dos academicos. Fechou-se
a Universidade em Maio, quando eu, extenuado de insomnias e empeçonhado
de bebidas estimulantes, cahi de cama, com o sincero desejo e alegre
esperança de que me não levantaria mais.

«Escondi de minha mãe aquelle estado em quanto me não assalteou o
remorso de a não chamar ao meu leito, e confessar-me da vileza de alma
que me levára a destruir a minha vida por meios tão ignominosos. Foi
esta vergonha que me salvou. Pedi com ancia e lagrimas aos medicos que
me salvassem. Disseram-me que fosse para a Madeira recobrar vigor, e
viajasse depois um anno nos paizes temperados e arborisados. A meu vêr,
a sciencia queria dizer no seu receituario que eu estava em vesperas de
encetar uma viagem barreiras a dentro da eternidade.

«Confiei na juventude, na vontade de viver, e ergui-me. Sahi de Coimbra
para o Porto. Tenteei o meu espirito, animando-me a procurar as
montanhas saudosas, os meus queridos pinheiraes de Ruivães, os regatos
crystallinos, orlados de verduras em que minha mãe me via creança, a
colher boninas para lh'as entretecer nos cabellos. A minha alma amava
então estas cousas com o transporte arrobado e sereno dos tisicos: é que
o envolucro já lhe não empecia o filtrar-se n'ella o calor da luz ideal,
aquelle calmo ambiente em que se degela o sangue coalhado no coração.

«Venceu o desejo da vida. Isto que, um anno antes se me antolhou feio e
inhabitavel, aformoseou-m'o então o anhelo de viver. Até a côr do céo,
d'onde me choveram as alegrias dos dezeseis annos, me sorria e chamava.
Nem já o temor de me encontrar com Theodora pôde conter-me. Que
importava? Eu cuidei que a porção de minha essencia, captiva do amor
d'ella, se tinha caldeado e vaporado ao fogo, d'onde eu sahira
refundido, e mui estranho ao homem do outro tempo.

«Surprehendi minha mãe, sentada á sombra da carvalheira da porta,
relendo as minhas ultimas cartas, escriptas com a ternura da alma
alumiada pela alva d'um melhor dia. Ao contacto do peito da virtuosa,
senti exuberancia de saude, de alegria, e de uncção religiosa. Então me
considerei estreado em nova existencia.

«Esperava eu que se abrisse a Universidade para ir a Coimbra repetir o
segundo anno, cujas disciplinas nem sequer as tinha visto no index dos
compendios. Minha mãe dissuadia-me de voltar a Coimbra, dando como
desnecessaria a formatura a quem não havia de ganhar a vida por ella.
Eu, porém, desejava instruir-me; dava-me como necessario recolher idéas
que ao depois me aligeirassem no estudo os annos de toda a vida, que eu
designára passar na casa, onde meu pae tinha vivido a sua, com todas as
ditas da paz. Minha boa mãe transigiu. A dôce creatura, accusando-se
sempre de motora da minha desgraça, obrigára-se a expiar pela abnegação
e condescendencia. E de mais, ella temia que, alguma hora, me
reapparecesse a visão de Lessa.

«Que presentimento!

«Dias antes da minha destinada partida, fui ás Taipas despedir-me de meu
tio Fernão, que estava em Caldas. Ao entardecer sahi com minha prima
Mafalda a passear na carvalheira. Já era escuro, quando nos fizemos na
volta de casa. Ao atravessarmos a alamêda dos banhos, acercou-se de nós
um vulto de mulher rebuçado n'uma capa alvacenta. Mafalda apertou-me o
braço convulsivamente. O vulto parou em frente de nós, e disse n'um tom
ironico:--Consintam que os contemple na sua felicidade: é um prazer dos
felizes verem-se admirados.

«Reconheci a voz de Theodora. Mafalda sentiu o tremor do meu braço, e
reconheceu-a tambem de instincto.

«Desviei-me do caminho trilhado para seguir ávante. Theodora deixou
cahir a dobra da capa, em que occultava meio rosto, e disse n'um tom
arrogante:--Veja, snr. Affonso de Teive! Veja, que ainda sou formosa! O
coração está esmagado; mas a face ainda conserva as graças que poderiam
arrebatar maior alma que a sua.

«Deteve-se alguns segundos arquejante: eu ouvia-lhe o latejar do alto
seio no fremito da sêda do corpete. Depois, com um gesto de arremesso,
lançou-me aos pés um volume, e afastou-se a passo rapido.

«Levantei o objecto arremessado, e conheci que eram papeis e um objecto
de mais solidez, deviam de ser as minhas cartas. O restante que seria?!

«Mafalda ia murmurando:--Que mulher, santo Deus! que ousadia!... Eu bem
desconfiava que era ella. Quando tu estavas a dormir esta tarde, vi
passar esta mesma creatura, assim encapotada sobre um grande cavallo,
com um criado de farda. Tua mãe tinha-me dito como a vira em Lessa, e
meu pae descreveu-m'a tão pelo miudo que a adivinhei. Não t'o disse, e
pedi a Deus que te levasse depressa d'aqui...--Não receies, minha boa
prima--disse eu a Mafalda--que esta mulher na minha vida, já agora,
apenas póde ser um estorvo de tres minutos, quando eu passeio nas
Caldas--Minha prima replicou:--Não te illudas, meu primo: esta mulher é
a tua sina maldita.

«Sorri-me, e fui examinar o pacote. Eram as cartas cintadas com uma fita
preta, e d'esta fita pendia uma pequena chave; era tambem uma caixinha
de tartaruga fechada. Entendi que a chave pertencia á caixa. Abri-a, e
vi uma trança de cabellos, com tres flôres resequidas compostas entre as
madeixas, como se as estivessem enfeitando. Reconheci as tres flôres:
tinha-lh'as eu levado do jardim de minha mãe, em dia dos seus annos.

«Tirei a trança, e insensivelmente, a contemplal-a, achei que a tinha
perto dos labios. Circumvaguei os olhos, a examinar que me não vissem.
Estava sosinho, e fechado... Beijei os cabellos de Theodora, meu amigo!
Peço-te desculpa de não corar agora; consinto, porém, que, se alguma vez
escreveres esta historia, ponhas seis pontos de admiração, quando
chegares aqui, e discorras o melhor que souberes e poderes, ácerca da
miseria do bruto que chora, e beija tranças de cabellos, do bruto que ri
de seu mesmo vilipendio, do bruto, em fim, chamado _homem_. «Ia depôr as
madeixas no cofre, receioso de alguma surpreza, e então vi um papel
dobrado no fundo da caixinha. Era uma carta. Escondi-a sofregamente,
fechei os cabellos, escondi o cofre e as minhas cartas no sacco de
noite, e palpitante de commoção sahi do meu quarto, e fui respirar no
escuro d'uma varanda, onde presumia não encontrar alguem.

«Apenas sorvi um hausto de ar, que me chegou ao coração impregnado das
auras balsamicas da minha mocidade, ouvi um respirar alto e tremente.
Fui á extrema da varanda, e vi minha prima, com as faces entre as mãos,
repuxando ao seio os soluços com anciada violencia. Chamei-a
carinhosamente. Interroguei-a. Quando bem a comprehendi, não sei
dizer-te que entranhado compungimento me cortou a alma! Cahiram-me nas
mãos as lagrimas de Mafalda... Perguntei-lhe por que chorava.
Respondeu-me:--São as primeiras lagrimas: é por ti que as choro, meu
primo. Deus deixa-te perder... Não ha ninguem que te possa salvar
d'aquella mulher.--E, desprendendo-se das minhas mãos, fugiu a soluçar.

«Eu levantei olhos ao céo, e disse, em meu espirito, com terror quasi
infantil:

--Não deixeis que eu me despenhe no mesmo abysmo, d'onde a vossa
misericordia não tem querido salvar-me!

«E cuidei que o céo, se abrira á minha oração com um milagre.

«A imagem de Theodora passou ante mim; vi-a repulsiva, abjecta,
vilissima, e prostituida. Subito, n'um disco luminoso, desenhou-se-me o
vulto angelical de Mafalda, com a face em lagrimas, humilde como uma
santa, e ao mesmo tempo altiva como a virtude sem nodoa.

«Amei então minha prima; todas as estrellas do céo m'a estavam
bem-fadando para mim; todos os rumores da noite diziam commigo um hymno
ao Senhor que me descaptivára das ciladas da mulher fatal, que no
descaro mesmo de sua audacia me fascinára, e com aquelles cabellos
tecera o baraço de estrangulação da minha dignidade.

«Fui, fervoroso de ternura, em busca de minha prima. Encontrei-a á
cabeceira do leito de seu pae. Chamou-me o tio para os pés da sua cama.
Sentei-me com inquieta alegria. O velho achou-me outro em olhar, em tom
de voz, em ar de rosto. Queria saber o segredo da transformação.
Perguntava a Mafalda se o sabia. A menina sorria com aquella distincta
angustia que lacera a alma sorrindo, por que as lagrimas só servem para
exprimir os soffrimentos communs.

«Assisti ao chá de meu tio, pedi-lhe a benção, e recolhi-me ao meu
quarto. Minha prima despediu-se de mim sem me fitar no rosto. A sua
natural altivez soffria, depois que eu a surprehendêra chorando
provavelmente. Este resguardo augmentou a divinisação de Mafalda.

«Fechado na minha alcôva, abri a carta de Theodora. Está n'este masso
lacrado, ha quatorze annos. Quebre-se o lacre, por amor da
authenticidade da historia... Aqui a tens. Lê tu, em quanto eu dou folga
aos pulmões. Ha muito anno que não fallei tanto tempo!

Li a carta de Theodora, cujo traslado segue:

«Quem te disse a ti que eu tinha cahido diante de mim mesma, Affonso?

«Quando te dei eu direito de suppôr que o teu silencio, em resposta a um
grito do coração, me esmagaria os brios de mulher, que, d'um sopro, faz
saltar de suas vestes a lama do teu desprezo?

«Quando eu te appareci magnifica de dedicação, fizeste-te mesquinho tu.
As minhas lagrimas figuraram-se-te o pus d'um coração corrompido; e eram
soro do mais nobre sangue.

«Não podeste chegar com a fronte á altura da minha, e apedrejaste-m'a!

«Quem cuidas tu que és, soberbo senhor, que voltas o rosto da tua
escrava, e não sabes sequer usar a misericordia de dizer á mulher, que
te ama, que não seja infame, amando-te?!»

N'este ponto suspendi eu a leitura, tomei a respiração, e disse:

--Esta senhora tem estylo, ou eu não entendo nada de estylos! Que
interrogatorio!

«Podes rir, que eu tambem cá estou mordendo os beiços para não espirrar
uma casquinada na cara do antigo Affonso de Teive--disse o meu amigo.

--Mas o estylo--tornei eu sinceramente agradado da leitura--o estylo
aqui não póde ser a mulher: aqui, ha, pelo menos, a triple intelligencia
de tres escriptores de melenas sacudidas aos quatro ventos da
inspiração! Por Hercules! Isto sim que é mulher... e «aqui ha que vêr»
como diz o Garrett.

--E que lêr--ajuntou Affonso de Teive--continúa, se queres.

Perfilei as minhas faculdades intelligentes, e segui a leitura:

«A contas, homem de ferro, que endureceste o teu fragil barro d'outro
tempo ao fogo de baixas paixões, a contas com a mulher desprezivel!

«Que fazias tu, quando eu me estorcia de saudades de ti, e dôres do meu
captiveiro, dentro das grades das Ursulinas?

«Quando soubeste que a tyrannia me fechava a sete chaves n'uma cella, e
me media os atomos de ar, que eu respirava a furto, que fazias tu para
resgatar os quinze annos d'uma mulher que queria o sol das flôres, das
aves, dos mendigos, do ultimo verme que se arrasta e cumpre o seu
destino debaixo dos olhos de Deus?»

--Parece-me, reflecti eu, que esta senhora arredonda ambiciosamente os
periodos, meu caro Affonso; e, se me dás licença, direi que ha estylo de
mais n'este periodo!... Estou morto por te perguntar que impressão te
fazia isto ha quinze annos!...

«Lê, e no fim fallaremos--disse Affonso. E eu li:

«Não respondas. A vil, a abjecta, a desgraçada é generosa. Não
respondas. Ri, e escuta.

«Abandonada por ti, enganada, não sei por que nem com que fim, por tua
mãe, achei-me fraca para cruzar os braços, e esperar a morte. Á borda do
abysmo, vi uma tabua de salvação. Sabia que, segurando-me n'ella, as
mãos se rasgariam em chagas incuraveis. Sabia-o; mas agarrei-me á tabua
de salvação. Escutei a desgraça; que não tinha outro anjo, nem outro
demonio que me aconselhasse. Escutei-a, e aceitei o marido que ella me
deu. Perdi-me para a vida da alma; mas encontrei a vida dos olhos e dos
ouvidos, e do seio, onde me roia a serpente da soledade e do desabrigo.

«Vi arvores, vi estrellas, ouvi os canticos da terra e os amorosos
murmurios da natureza festiva. No centro do mundo era eu a unica mulher
sem mãe, sem pae, sem amigo, sem coração que se abrisse ás cinzas do
meu. Não importa. Via o sol no firmamento; e para além do sol, a
infinita luz dos que bem-disseram a mão do Senhor que, á sua vontade,
desdobra um crepe de trevas sobre os corações, que, em sua innocencia,
não ousam interrogal-o como Job!»

--De mais a mais--reflecti eu--lida nos livros sagrados!... Posso, sem
indiscrição, perguntar se a authora d'esta carta morreu ou vive
escorreitamente?

«Espera que a concatenação dos factos te elucide--respondeu Affonso.

Prosegui, lendo, com espanto maior que o meu costume, se acerto de topar
cousas escriptas por pessoas de juizo duvidoso:

«Trasbordou um dia a amargura de minha alma. Não sabia onde me levava a
vertigem. Corri leguas. As arvores, que gemiam um som, as fontes que
tinham uma voz, os trovões que estalavam do céo de bronze, as catadupas
que bramiam no despinhadeiro, tudo me dizia o teu nome. Corri as
montanhas que nos viram meninos; reconheci a fraga onde nossas mães se
sentavam; orei á cruz de pedra, que está na quebrada da serra. E não te
vi. Dous mezes te procurei, sem balbuciar o teu nome. E, quando ha um
anno te avistei encostado ao hombro de tua mãe, a voz do meu orgulho de
desgraçada disse-me: Se elle quizer que tu te percas por elle, amanhã
não terás honra, nem familia, nem marido, nem creatura sobre a terra que
te não insulte.

«E escrevi-te, Affonso! Aquelle papel era uma renunciação, aquellas
palavras queriam dizer:--Dá-me a perdição como salvamento; dá-me a
infamia como gloria; o mundo vai apedrejar-me, e eu cuidarei que elle me
acclama virtuosa; todas as devassas me julgarão indignas d'ellas; e eu,
contente da minha deshonra, estenderei benignamente a mão a todas as
miseraveis, que m'a cuspirem.

«E tu, Affonso? Como me julgaste morta para a virtude, aproximaste-te do
cadaver, pozeste-lhe sobre o peito um pé, calcaste, viste-lhe nos labios
o sangue do coração, e escarraste-lhe!

«Voltei do outro mundo. A mulher, que viste ha pouco, era um phantasma.
Os cabellos negros, que adornastes com tres flôres n'aquelles formosos
quinze annos, cahiram-te aos pés. As flôres vem aradas do fogo do
inferno. O phantasma voltou ás suas labaredas, para nunca mais te
crestar o riso dos labios com as chammas dos seus olhos. Vai tu ao céo,
e pede a Deus que me deixe adorar-te na eternidade das penas. Pede-lhe
que me dê eternidade para a expiação, e eternidade para o amor. Adeus.»

Não sei bem dizer d'onde me vieram as lagrimas. Sei que terminei a
leitura da carta, já quando os olhos mal discriminavam as letras.

Como a gente, ás vezes, chora?...

Era o estylo!


XI

Sorriu Affonso do meu melindroso sentimentalismo, retorceu
destrahidamente os longos bigodes por sobre a barba listrada de
fasciculos brancos, afogueou o seu cachimbo de barro negro, e continuou:

«Eu é que verdadeiramente chorava, quando acabei de lêr esse papel.
Ficas sabendo a impressão que em mim fez a carta de Theodora. Não ha
vergonha que eu omitta n'esta confissão geral. Sou o juiz do homem que
fui. Julguei-me e condemnei-me ao opprobrio de levantar da lama o
coração velho, e mostral-o com nausea ao enojo dos que vão passando...

--Mas eu não vejo ahi cousa indecorosa de que te
envergonhes!...--atalhei.

«Vês, pelo menos, a baixeza do meu espirito, senão antes a crassa
sandice de pensar que as accusações de Theodora estavam justificadas por
essa frandulagem de palavras sonoras, e apostrophes melo-dramaticas. O
castigo da minha miserrima estupidez virá depois... Lá chegaremos.

«Li terceira vez a carta, e abri a janella do meu quarto. O vento
ramalhava nas carvalheiras, e o céo d'aquella noite não tinha uma
estrella. Appeteci embrenhar-me na escuridão do arvoredo. Abri de manso
a porta do meu quarto, e, pé ante pé, ganhei a varanda d'onde era facil
o salto á rua. Acabava eu de saltar, quando do escuro de uma janella
contigua á varanda, me surdiu a voz de Mafalda.--Não tinhas necessidade
de saltar, primo--disse ella--Chamasses que se te abriam as portas.

«--Estás a pé ainda, minha prima?--perguntei eu, corrido da surpreza, e
algum tanto contrariado da espionagem.--Nunca me deito mais
cedo--respondeu ella com brandura--Quando as noites são assim tristes,
gosto de as vêr... Está vento, primo;--continuou retirando-se--não
estejas ahi ao ar desamparado. Boas noites.»

«E fechou rapidamente a janella.

«Encaminhei-me á alamêda dos banhos, na inepta esperança de vêr alli
vestigios de Theodora, ou não sei se ella mesma. Não sei ao que ia. É
impossivel explicar o intento que nos impelle em casos semelhantes,
quando a gente, alguns annos depois, inquire de si mesmo o sentido das
suas intenções: são actos estranhos á razão, dos quaes só póde
desculpar-se o delírio. A verdade é que eu fui á alamêda, e andei, palmo
a palmo, recordando-me do local em que ella me sahiu, e a direcção que
tomára na retirada. Sentei-me n'um dos bancos de pedra, e conjecturei se
ella teria estado alli sentada. Cerrei ouvidos a todos os rumores para
escutar o som das palavras de Theodora, que me ecoavam do intimo
coração. Atirei com a alma supplicante e desesperada áquelle céo de
bronze, negro como ella. Pedia a Deus o esquecimento da mulher, com a
vehemencia do justo atribulado que pede a corôa do triumpho.

«Levantei-me, e andei por as trevas, esbarrando nas arvores, e
refrigerando o fogo da testa e mãos nas fontes e charcos que topava. Ao
arraiar da manhã, estava eu nas raizes da Falperra. Senhoreou-me então
um somno lethargico e invencivel. Adormeci com a face encostada á raiz
d'uma arvore, e acordei, coberto de camarinhas de orvalho, ao calor dos
primeiros raios do sol. Retrocedi pela estrada das Taipas, e entrei em
casa, quando meu tio Fernão, admirado de minha falta, andava indagando
dos criados, se eu sahira de madrugada.

«Mafalda appareceu-me com o semblante pallido, os olhos raiados do muito
chorar, e o azul-violeta das olheiras carregado e distendido até
meia-face. Meu tio ligeiramente alludiu á minha falta, na presença da
filha. Sahimos da mesa de almoço, e entramos na sala, onde Mafalda
recordava as suas musicas ao piano, e, algumas vezes, se acompanhava
cantando. N'este dia, a adoravel penitente sentou-se ao piano; e, com
uma só das mãos, dedilhou umas toadas monotonas, mas celestialmente
saudosas e melancolicas. O velho acenou-me, a occultas da filha.
Segui-o; sahimos, e caminhamos a pé na direcção das ruinas de Citania. A
meio caminho estava uma casa alagada, com uns lanços de muro ainda em
pé. O velho avisinhou-se das ruinas, estendeu o braço com o indicador
apontado, e disse: Aquelles pardieiros pertenceram a teu tio-avô
Christovão de Teive. N'aquelle tempo, os homens de vida infamada, quando
os ultimos invernos lhe geavam na cabeça, e os sinos, dobrando a
finados, lhes attrahiam os olhos para a sepultura, o remorso
penetrava-os até ao amago, e estorcia-os nas roscas das suas mil
viboras, até que Deus se amerceava d'elles, e os tomava para o seu
tribunal. Teu tio-avô foi um mau desgraçado. O amor de uma mulher da
côrte entrou-lhe no coração, e apodreceu-lh'o á força de lhe derrancar o
sangue com as torturas da perfidia. O moço empestado veio para a
provincia, e sevou o seu odio em quantas victimas pôde surprehender
adormecidas no regaço do seu anjo de innocencia. Aos quarenta annos,
pesou sobre elle a maldição de Deus. Desde a raiz dos cabellos até á
raiz das unhas chagou-se-lhe o corpo de lepra. De repente, em redor
d'elle fez-se uma solidão horrenda. Desampararam-no todos. Nem os
engeitadinhos, indigitados como filhos d'elle, ousavam chegar-lhe um
pucaro de agua. Christovão de Teive tinha esta casa, aqui afastada de
visinhos, construida não sei para que fim ha tres seculos. Aqui se
encerrou e viveu quinze annos aquelle vivo amortalhado nas ulceras da
sua pelle. A sua companhia era a ama, que o amamentára, e que Deus, em
recompensa, preservou da terribilissima enfermidade. Morreu o
desamparado, legando esta casa á mulher que lhe cerrára as palpebras. A
enfermeira foi depós elle, devolvendo a casa aos herdeiros de seu amo.
Cincoenta annos depois, quando eu aqui vim, encontrei estes pardieiros.
Dos nossos parentes ninguem poz pé a dentro das soleiras, que alli
estão, onde existiram as portas...

«Deteve-se meu tio breves instantes, e concluiu:--Affonso, o divino
Mestre doutrinava com parabolas: o homem d'estes calamitosos tempos
moralisa com exemplos. Teu tio-avô começou como tu: vê tu, meu sobrinho,
se vingas um correr de vida melhor que o d'elle. Se uma mulher te
cancerou o peito, esconde-te, depura-te, faz-te bom, e depois volve ao
mundo a procurar a felicidade do coração. Em quanto esse dia de
regeneração não chegar, foge das mulheres puras. Eu tenho uma filha
unica, um thesouro que Deus me confiou. Minha filha chora por ti.
Affonso, se as lagrimas d'ella te não resgatam das presas d'uma mulher
perdida, foge, e foge hoje mesmo. Agora, silencio, Affonso...

«Na madrugada do dia seguinte, sahi das Taipas, e fui para Ruivães. Dias
depois, desisti do plano de me formar, e fui para o Porto. Sahia um
vapor para Liverpool: embarquei, e estive na Inglaterra; passei a
França; e de França fui residir na Suissa uns seis mezes. O
arrependimento de deixar minha mãe e a minha terra seguiu-me sempre.
Resolvi regressar por muitas vezes; mas, fatalmente, a primeira imagem
que eu via, voando em espirito á patria, não era a de minha mãe. Ella
sempre, Theodora sempre!

«Ao cabo de um anno de expatriação, voltei para o Porto. Dava-me então
como curado. A memoria d'ella era já fria: o pulso não se accelerava,
nem do coração me subia á cabeça um golfo ardente de sangue. Fui alegrar
minha mãe, ao lado da qual encontrei Mafalda, que lhe assistia á
convalescença d'uma perigosa enfermidade. Notei sensivel mudança no
rosto de minha prima. Os risos do anjo tinham ascendido ao céo no
perfume de suas orações. A coruscante luz d'aquelles olhos tinham-na
apagado os prantos. As madeixas cahiam-lhe soltas sem flôres, sem
ornatos, como dons de quem os esquece, ou não sabe de que elles valham
ás venturas da existencia. Porém, formosa da aureola santa da dôr sem
culpa. Que paixão me avassallou n'aquelles primeiros dias! com que
religiosidade eu beijava a mão de minha mãe aquecida pelos labios
d'ella! Recordo-me de a encontrar sosinha no pomar. Sentei-me ao lado da
mulher purissima. Tomei-lhe com subita sofreguidão os dedos que me
offereciam um pomo. Não ousei beijar-lh'os... apenas balbuciei: minha
querida irmã!... Mafalda respondeu--Deves assim chamar-me, por que eu já
me afiz a chamar minha mãe á tua, meu primo.

«A paz dos primeiros dias, aquelle suave repousar do espirito, entre as
duas carinhosas almas, que m'o distrahiam com as indiziveis doçuras da
domesticidade, durou menos de tres semanas. Ao sentir-me fatigado da
igualdade de todas as horas, angustiei-me, e cobrei horror do meu
futuro. «Que abominavel homem sou!» dizia eu no meu intimo senso,
repellindo-me a mim proprio com uma restante força de virtude--Se me
repugna o crime, por que a não esqueço? Se a não posso esquecer, para
que me devoro n'estas covardes tentativas de lhe fugir? Odeio-a, e, em
minha alma lhe exoro perdão d'este odio. Se me doe o coração saudoso
d'ella, abomino-me, e recurvo sobre mim proprio as unhas d'esta feroz
paixão.

«A fugir de mim mesmo, ia abrigar-me sob os olhos de Mafalda. Ella via
nos meus olhares a submissão imploradora, e não entendia a covarde
procedencia d'aquelle fital-a com tanta brandura. Apreciou-me
erradamente. Teve-se em conta de amada. E, quando eu mais atormentado
pelejava com a visão de Lessa e da lamêda das Caldas, Mafalda rehavia do
céo os jubilos de outros dias, e a purpura do rosto. A compadecida
amargura, com que eu a fitava, afigurava-se á ingenua menina a expressão
do amor contemplativo, como ella o sentira e escondera sempre de todos,
salvo de seu pae.

«Minha mãe, a occultas da sobrinha, perguntava-me a respeito d'ella
cousas, cujo fito estava posto no casamento. Eu respondia a verdade,
como se Deus necessitasse interrogar a minha consciencia. Mostrava
receios de ter desbaratado as flôres do coração, ao apuro de não ter já
virtudes que me fizessem um digno esposo d'ella. Minha mãe não podia
entender-me; obrigava-me suavemente a explicações, e, ouvindo-me, dizia
soluçante: «Não se quebrou ainda o fatal encantamento!... Deus te salve,
meu desgraçado filho!»

«A quarenta passos de distancia de minha casa está uma cruz de pedra
tosca, sobre uma peanha de cantaria. A esta cruz se referia Theodora, na
carta que lêste. Quando ella tinha seis annos, esteve com sua mãe uma
temporada em nossa casa, e voltou alli aos nove. Algumas vezes nossas
mães se sentaram nos degraus do cruzeiro, em quanto nós, com vergonteas
floridas de acacias e arvores de fructa, teciamos uns desageitados
festões que dependuravamos dos braços da cruz.

«Levou-me para lá o coração dez annos depois. Sentei-me na peanha da
cruz. Acaso relanceei os olhos pela pedra, que lhe formava o sôcco, e vi
letras. Reparei, e reconheci os caracteres de Theodora. Eram duas datas:
_5 de Julho de 1848_, com a assignatura inicial _T. P._ Seguia-se a
outra, em letras mais de fresco: _10 de Setembro de 1849_, com as mesmas
iniciaes, e as seguintes palavras: _Aqui veio orar a alma penada._ Eu
estava então em 15 de Setembro d'aquelle anno. Cinco dias antes, pois,
alli tinha estado Theodora.

«Recolhi-me com febre. Á celestial graça de Mafalda, que me sahiu ao
tope da escada, respondi com uma affectuosidade falsa. Importunava-me o
anjo. Eu queria então uma orgia infernal. Queria arder e palpitar no
deleite sequioso, que zomba dos deveres, e insulta o espantalho da
moral, impassivel carrasco das organisações ardentes. O aspecto mavioso
de Mafalda era uma lança que me traspassava. Fugi-lhe, e, por alguns
dias, raras horas nos encontramos.

«Voltei novamente ao cruzeiro. Do braço esquerdo da cruz pendia uma
corôa de flôres do campo; e, na base, inscripta outra data: _20 de
Setembro de 1849--Meia noite--O sol de amanhã queimará as flôres; mas o
braço da cruz redemptora permanecerá aberto para os desgraçados. T. P._

«Eu queria esconder de minha mãe estas inscripções, feitas a lapis.
Embebi um lenço em agua, e desfil-as. Hei-de agora confessar-te que a
pertinacia de Theodora, por algumas horas, me pareceu ridicula.

--Tambem a mim me está parecendo isso, ainda agora--observei eu, animado
pela confissão da pessoa, menos idonea para embicar no irrisorio
romanticismo da esposa de Eleuterio Romão dos Santos.

«Mas, proseguiu Affonso de Teive--esta judiciosa critica, no dia
seguinte, converteu-se em piedade...

--Em amor--atalhei.

«Amor, sim, amor indomavel, amor faminto de vêl-a e de ouvil-a, de
chorar com ella, de arrebatal-a ao marido, e insultar a sociedade e Deus
na posse d'ella.

«Esporeava-me este designio, quando entrei em casa. Minha prima estava
na primeira sala. Ergueu-se. Tomou-me com brandura a mão, levou-a ao
coração arquejante, e disse-me:--_Os braços da cruz redemptora estão
sempre abertos para os desgraçados._ As palavras, embora escriptas por
mão criminosa, são santas. Meu pobre Affonso, já que ella te deu a
desgraça, aceita-lhe tambem o conselho.--Beijou-me a palma da mão, e
sahiu da sala.

«Mafalda tinha visto, primeiro que eu, as palavras de Theodora.
Comprehendera o mysterio, resistira ao impeto de as tirar, e, desde
aquella hora, promettera a Deus exercitar todos os recursos de seu
coração para me acautelar das cavillações da mulher ardilosa.

«Que poderia fazer a simples creatura? O infinito das forças humanas fez
ella em meu resgate; mas muito já por noite dentro de minha vida lhe
havia de conceder o céo um pleno dominio em minha razão.

«Logo, ao outro dia, Mafalda pediu-me que sahisse com ella a um passeio
longe por esses pinhaes fóra até ao mosteiro de Landim.

«Sosinhos?--lhe perguntei--Por que não! sosinhos, com os nossos anjos da
guarda, e o coração de tua mãe comnosco, meu querido Affonso.

«Sahimos. Mafalda ia taciturna. De encontro ao meu braço direito
batia-lhe o coração com celeridade irregular. E eu sentia um enleio, uma
constricção de alma, que não atinava com os termos communs d'uma
palestra entre dous primos. No alto d'um sêrro, d'onde haviamos de
descer para umas veigas, Mafalda sentou-se, e abrangeu com os olhos
lagrimosos a redondeza dos horisontes. Perguntei-lhe que razão tinha
para chorar. Respondeu-me que a mortificava a idéa de me vêr ir talvez
para sempre do lado de minha mãe e dos parentes que me estremeciam.

«Quem te disse que eu deixo minha mãe e parentes?--redargui--Dizes-m'o
tu, se eu t'o perguntar com as mãos postas--respondeu ella, pondo as
mãos em supplica.

«Tartamudiei confusamente. As minhas palavras vinham falsificadas do
espirito. Aqueceram-se-me as faces, porque eu não estava afeito a
mentir. O coração teve quinhão d'este pejo: a meiga creatura, que me
interrogava, tinha uns ares de divinisação, que me incutiam uma especie
de escrupulo religioso.

«--Vejo que te afflijo, meu primo--interrompeu Mafalda--És ainda bom,
que não podes mentir á tua amiga. Queres ir ao teu destino... Vai,
mas... escuta-me...

«Seguiu-se um longo silencio, que ella mesma interrompeu, exclamando, em
pranto desfeito:--Não posso!... A Virgem do céo não ouviu os meus
rogos!...

«Acariciei-a com o melindre de irmão, instando-a a que fallasse.
Articulou ainda algumas palavras desatadas, faceis, porém, de se ligarem
em meu espirito prevenido. Atalhei-a muito commovido, n'estes termos:
«Deves ter directo instincto do céo, minha prima, por que a tua alma
virginal é pura de toda a falsidade, e não póde ser enganada. Sabes que
eu vou fugir, sem eu ter annunciado a nossa mãe este novo golpe. Fujo,
minha irmã, por que entre a tua celestial dedicação e as minhas
desvairadas paixões está o infinito. Tu és a creatura que ainda não
sonhou o mal, sedenta d'uma alma cheia das crenças da juventude. Vês a
minha vida, posta em assedio pelas tentativas da mulher unica do meu
amor, da mulher perdida para mim e para si propria perdida... observas
isto com teus olhos inexperientes, e pasmas do poder infernal d'esta
mulher. Oh! que Deus te livre de ainda veres o mundo, despido das vestes
que a tua candura lhe empresta! Deus te poupe a debruçares-te sobre o
abysmo d'onde se tira a luz, ao clarão da qual se observam as chagas da
sociedade. Esconde-te de mim, e de todo homem que viu o mundo;
esconde-te, anjo do paraiso, para que nenhum homem te diga o que viu. Eu
não sei como ousaria contar-te as minhas desventuras, Mafalda. A tua
linguagem perdi-a, quando sahi d'estas florestas, onde nós nos
entendiamos como as avesinhas do céo se entendem. Que hei-de eu dizer-te
hoje? Com que termos te mostrarei a minha indignidade!

«Mafalda poz-me com muita suavidade a mão na bocca, e disse:--Não digas
mais nada, meu irmão, que já disseste tudo... _A mulher unica do teu
amor_... _a mulher unica do teu amor_ é... ella!...--Os soluços
embargaram-lhe a voz. Falleceram-me a mim espiritos com que tentasse
consolal-a. Todas as palavras, sem vehemencia de dentro, seriam pallidas
e vans. Mentir, bem que eu podesse, de que serviria?... O meu silencio
era angustioso. Recriminava-me por me ter exposto áquelle dialogo...»

«Com satisfação a vi erguer-se, e dizer-me:--Voltemos, primo?... Vamos
para casa. Não percas instantes da companhia de tua mãe. Vamos...»

«N'este momento, á raiz da serra, onde ia a estrada de Landim, passava
uma mulher cavalgando a galope. Ia sósinha. Eu não a tinha visto ainda,
quando Mafalda, apontando-a com o braço tremulo disse:--_A mulher unica
do teu amor_...

«N'este instante, esqueci o anjo, que me estava alli chorando, não sei
mesmo se desejei que Deus o chamasse para a sua patria; e adorei o
demonio, que passava lá em baixo, com o véo esvoaçante, por entre nuvens
de pó, sacudidas das patas do arremessado cavallo.


XII

Cerravam-se cada dia mais espessas as trevas em volta do perplexo animo
de Affonso de Teive. A obsessão de Theodora não lhe dava treguas. Nas
circumvisinhanças de Ruivães já se fazia reparada a amazona, umas vezes
sósinha, outras seguida do lacaio, e algumas vezes ao lado do marido, a
quem ella não prestava mais attenção que ao lacaio. Affonso, em quanto a
mim, resistindo á tentação, iniciava-se para consociar-se no reino
celestial com os santos da sua familia, mortos sob o estandarte da cruz;
mas, a juizo de muita gente, muito menos benemeritos da auréola da
santidade. Morrer com o céo a abrir-se além no horisonte, ouvindo já os
hymnos dos anjos, é glorioso e exultante; porém, morrer gotejando em
lagrimas o sangue do coração, sem visões bemaventuradas, sem estimulo de
predestinado, morrer do amor de uma mulher que se arrasta submissa aos
pés do triumphador que a despreza e adora... sublime extravagancia, se
querem que lhe eu não chame santissimo martyrio!

A mãe do lastimavel moço, antes de avisada da intentada partida d'elle,
resolveu impôr-lhe o seu arbitrio de mãe com severidade. Informada por
Fernão de Teive, sabia que Theodora fazia miudas investidas ás
redondezas de Ruivães, e que Affonso não era estranho, bem que a não
houvesse encontrado, aos planos da impudente mulher. A palavra
«adulterio», no espirito de D. Eulalia, tinha uma significação de
horror, como se o crime não tivesse exemplo na humanidade, nem remorso
que o contrapesasse na balança da misericordia divina. O pavor de que um
filho seu, um descendente de santos, e, pelo menos honrados varões,
podesse dar ao mundo o escandalo de tamanha perversidade, accendeu-a em
louvavel indignação. Inesperadamente é chamado Affonso ao quarto de sua
mãe para ouvir estas pesadas e seccas palavras:

--Eu preciso de morrer em paz com o mundo, que nunca escandalisei, penso
eu, e Deus me perdôe se a minha vaidade me faz esquecer as culpas. Em
quanto viva, peço-te, como amiga, se não devo antes ordenar-te como mãe,
que me poupes á vergonha de esconder a face, quando me pedirem contas
dos sentimentos de religião e honra que te insinuei na alma. Temo que me
perguntem que fiz eu da herança, que teu pae fiou de mim para te eu ir
entregando, assim que tivesses razão para recebel-a... herança de
virtude e probidade que tu levas em principio de desbarate. Mando-te que
te retires para longe d'esta terra. Vai para Lisboa, se te agrada; ou
vai viajar, se antes queres. É bom que saibas os cabedaes que tens. A
tua casa rende seis mil cruzados: conta com elles, e com o valor das
propriedades, se, para salvação de tua honra, precisares que ellas se
vendam. Não voltes para mim sem me poderes jurar, pelas cinzas de teu
pae, que a lembrança peccaminosa de Theodora morreu em teu coração. Deus
Nosso Senhor te abençôe, filho. A minha ultima oração será rogar ao
Creador que restitua á casa onde as gerações legaram umas ás outras a
tradição de grandes serviços a Deus ligados a grandes serviços á patria:
religião, honra, e trabalho, o nobre trabalho da espada de uns, e da
sciencia d'outros. Tu sahes da trilha de teus avós, consumindo tua
mocidade em dissabores de que ninguem, senão eu, póde compadecer-se.
Vai. Se poderes, sê forte, sê homem. Se a ultima fraqueza te levar ao
ultimo crime, guarda ao menos uma parte da alma para a contrição no
remate da vida.

Nunca, até áquella hora, Affonso vira e ouvira assim sua mãe. Mesmo na
admoestação, denotára sempre o pesar com que o fazia; e para o compensar
da magoa, acudia logo com as caricias. Por causa de Theodora, as
reprehensões eram sempre disfarçadas na grave mas dôce persuasão do
conselho. Querer afastal-o de si, nem por sombra de palavra o indicára
nunca. E agora, no semblante, na rigidez da phrase, na postura do rosto,
e arrugado da testa, Affonso achou tanta mudança para espantar-se como
affligir-se.

Ia elle responder, e ella, para logo, d'um gesto de silencio, o fez
calar, dizendo:

--Não te quero ouvir: Deus que te ouça; mas vai. Cá fico eu velando os
dias d'esta menina, que teve a desventura de te amar. Consolar-nos-hemos
eu e ella, orando por ti. Ámanhã partirás. Tua mãe ordena.

Affonso, ao despedir-se de sua mãe, teve a intuição de que a não veria
mais. A maior agonia da sua vida, até áquelle momento, foi essa.
Ajoelhou-se a beijar-lhe as mãos, que molhou de lagrimas. E ella
abençoou-o serenamente, com os olhos no crucifixo do seu oratorio. Ao
lado d'elles, estava Mafalda, livida, hirta, tranzida d'um frio, que a
fazia tiritar. Não chorava. Podia comparar-se a sua atribulação á da mãe
que tambem tinha enxutos os olhos. Porém, quando Affonso lhe estendeu a
mão, e disse: «adeus!» ella, arrancou do intimo um cortante grito, e
lançou-se nos braços d'elle, debulhada em pranto.


XIII

Foi Affonso de Teive para Lisboa. Como ia desgostoso e intratavel,
rejeitou a aposentadoria em casa do tio desembargador. Mobilou casa no
bairro de Buenos-Ayres, na menos frequentada das ruas. Desligou-se do
trato das relações adquiridas em casa do magistrado, e evitou novos
conhecimentos. Vestiu de livros as paredes do seu gabinete, propondo-se
o recreio do estudo, e o trabalho mesmo da composição, sem o intento de
fazer-se conhecido no mundo litterario. Em quanto o espirito se lhe
entreteve nos apetrechos de casa e aconchegos de quem tencionava viver
n'ella os dias e as noites, curtos intervallos de magoa o assoberbaram;
assim, porém, que o bulicio cessou, e os tapetes das elegantes salas não
davam rumor de um passo, e Affonso, sentado á sua banca de estudo, ouvia
apenas as cadencias do pendulo do relogio, condensaram-se-lhe em volta
do espirito as nuvens torvas, que se haviam rarefeito, bafejadas pela
aragem da esperança, e nunca tão compressora o sopesou a mão da
tristeza. Os livros atediavam-no; o escrever acendia-lhe o espirito a um
grau penoso de excitação. Todos os seus manuscriptos fragmentarios ou
desatados, que eu vi treze annos volvidos, accusavam uma obstinada
paixão da qual o poeta hauria argumentos contra a Providencia que o
desamparára, na batalha comsigo mesmo.

Aos vinte e dous annos, aceitar longo tempo e voluntariamente um jugo de
vida assim, é virtude imaginaria. Para outras civilisações, lá estava o
deserto do anachoreta, e a Palestina do cruzado: um e outro se deixavam
devorar das angustias do ermo, ou cortar do ferro islamita; e lá iam
encontrar-se no céo, a cobrarem o seu patrimonio de alegrias infindas,
ganhado a troco d'uma hora de orgulho satisfeito--que mais não é o
contentamento d'esta breve fugida que fazemos do ventre á sepultura.
N'estes tempos, porém, a tanta luz, a tanto estrondo, em tamanho
desentranhar-se a terra em novos enfeites de si propria, agora que o céo
se deixa contemplar, já não como paragem de futuras vidas, senão como
estrellado involtorio d'este globo cujas delicias nos foram dadas em
desconto do breve tempo que as saboreamos; agora, em summa, que o viver
sem gozar é um triste, senão estupido, preludio da morte, em redor da
sepultura, que loucura é esta de Affonso de Teive que não rompe mundo a
dentro, com seis mil cruzados de renda, vinte e dous annos, bizarria de
fidalgo, e physionomia dotada de graças attractivas de todos os olhos?

Era necessario que a sociedade culta delegasse um dos seus ornamentos a
intimar Affonso de Teive para comparecer, réo de lesa-illustração, á
barra do seculo XIX. O enviado, escolhido a ponto, foi, como por acaso,
encontrar Affonso na matta da Penha-Verde em Cintra, onde o tinham
chamado saudades das suas arvores de Ruivães.

D. José de Noronha, sugeito de trinta annos, filho segundo d'uma casa
titular de Lisboa, cursára alguns estudos da Universidade, contemporaneo
de Affonso. Pertencia á tribu dos _trossistas_, e gozava as honras de
caudilho nos disturbios, e maiores honras ainda de primeiro estomago em
digestão de vinho. Contava-se que D. José de Noronha bebia por um pipo
de almude, quando não tinha á mão o alguidar, taça ordinaria das suas
libações. Este facto, presenciado com assombro e inveja, avantajou-o em
consideração aos socios da taberna, e conferiu-lhe voto deliberativo em
todas as barganterias nocturnas. Affonso de Teive, algum tempo associado
aos tonantes, declinou da sua estima o illustre companheiro, indistincto
dos outros em sua opinião. Separados pela mudança de costumes, raras
vezes se viam, e mais raras se tratavam. D. José cognominava de renegado
o fugitivo socio, e divulgava que o miseravel nunca bebera uma garrafa
de genebra, sem se embriagar. Equivalia esta denuncia a uma grave
deshonra.

Abandonada a carreira dos estudos, por força de successivas reprovações,
D. José foi para a familia, que o recebeu sem espanto do mau exito, nem
mesmo pesar. O fidalgo libertino tinha bom patrimonio materno, e um pae,
cujo desregramento de vida absolvia os desatinos do filho. A sociedade
recebeu-o prazenteiramente, deu-lhe a primeira linha na cohorte dos
elegantes, e victoriou-o com alguns tropheus de conquistas, comminadas
no codigo penal, e gloriosas nos salões. D. José absteve-se da ebriedade
em publico, é isso verdade; mas indemnisou-se em vicios, que seriam
muito mais nocivos á humanidade, se as maiorias compartissem dos
ultrages afflictivos, que vão na intimidade obscura, e mesmo na publica
exposição das familias. Não vem isto para dizer que todas as familias
ultrajadas se afflijam. Em Lisboa, principalmente, as excepções são
tantas, que suaria o topete quem quizesse achar a regra. Lá, haveis de
encontrar muito d'uma cousa chamada «philosophia», sciencia, que foi
necessario inventar-se, á medida que umas certas virtudes de portas a
dentro deram em saltar pelas janellas, e voar por ahi fóra, não sei para
onde, naturalmente para a India, onde as viuvas se queimam em
demonstração de fidelidade aos maridos defunctos. Ha-de ser isso.

Affonso de Teive reconheceu D. José, que sahiu d'um rancho de senhoras a
comprimental-o. Eram cousas diversissimas vêl-o em Coimbra, ou alli em
Cintra ao lado das senhoras _da primeira distincção_, como lá se diz, e
quasi sempre em rigorosa verdade, omittindo-se a qualidade distinctiva.
O menos preço em que o fidalgo do Minho tivera o de Lisboa,
desvaneceu-se logo. A compostura, o trajo, a seriedade, os ademanes,
aquillo tudo, digamol-o assim, aromatizado do palacio e côrte, demudou a
má opinião de Affonso em estima attenciosa e quasi amigavel.

Em breves termos, se disseram mutuamente as suas residencias,
convencionando-se logo em se encontrarem e conviverem a miudo. D. José
de Noronha, como da terra, foi o primeiro a visitar Affonso.
Frequentaram-se assiduamente, e chegaram a termos de se hospedarem á
vez, e ás temporadas de tres dias, nas casas um do outro.

Claro é: Affonso contou suas penas, com sincera expansão, ao amigo. Era
o primeiro estranho a ouvir-lh'as. Mostrou-lhe as cartas de Theodora,
encarecendo-lhe a belleza, superior mesmo ao genio revelado na escripta.
Nada menos que genio o meu pobre Affonso descobrira nas cartas da esposa
de Eleuterio Romão. D. José de Noronha, por sua parte, passava do
espanto ao assombro a cada periodo interrogativo da famosa missiva, que
me fez rir e chorar--caso unico na minha vida extraordinaria.

--E tu podeste, Affonso--disse D. José--podeste resistir a esta
mulher?!... És aleijado, ou tens peito de rocha, ou cheiras a santo!
Abre-me bem os refolhos do teu espirito. Esclarece-me este phenomeno. É
certo que nunca respondeste a esta mulher, nem a procuraste?

--É certo--respondeu Affonso, quasi envergonhado da confissão.

--Ó pobre Joseph! ó mallograda Hiempsal! Conheces bem a Hiempsal... a
esposa do ministro de Pharaó! Quantas capas tencionas assim deixar em
lindas mãos?... Ai de ti, Affonso de Teive, que, a final, sahirás do
mundo sem capa, e coberto de lama!... Tu não sabes que estás em 1850, e
que tens de alijar a carga de dous seculos, se não quizeres ir a pique,
varar no ridiculo inexoravel com os homens da tua fortuna e da tua
figura. Origines ficticios, que nem sequer resalvam com o estudo dos
attributos divinos a sua ignorancia dos attributos humanos... Pobre
Theodora... a formosa mulher, que se rojava a teus pés, quando tu, por
brio mesmo de tua vaidade ferida, devias ter ido beijar-lhe os cabellos,
e não arrancar-lh'os. Pobre menina, casada com um homem chamado
Eleuterio... que mais?

--Eleuterio Romão dos Santos--disse Affonso, sorrindo no tom imitante do
dizer galhofeiro do amigo.

--Eleuterio Romão!... Eu não sei--proseguiu D. José--se amaria a esposa
de um homem chamado Eleuterio!... Mas, nas condições de cara e estylo em
que está Theodora, amaria, quer-me parecer que amaria, Affonso,
obrigando-a a promover o chrysma do conjuge... Fallemos serios, serios
como rapazes, que tem o estricto dever de não serem palermas, do
contrario seremos victimas de todos os Eleuterios. É necessario que
escrevas a essa mulher; isso não te priva de escreveres a outras muitas,
visto que estás aqui a ares, e tens ainda a balda de escrever
meditações... Que ratão és tu, Affonso! Eu, em Coimbra, achava-te uma
graça! Quando tu publicavas no «Trovador» umas lamurias lamartinianas,
que davam idéa de seres um desgraçado, que vivias das brizas do claro
Mondego, e tu, meu patarata, em quanto fazias chorar as meninas com os
versos, emborcavas torrentes de cognac por uma catadupa esponjosa que
muitas vezes receei que me apeasses do meu pedestal!... Patusco!...
Fallemos agora serios. Escreve á Theodora, se tens algum resto de
pudor... Não me digas que estás soffrendo por ella, que deixaste por
ella tua mãe, que renunciaste ao amor de um anjo por causa d'ella... Não
me digas tal, que eu nem posso admirar-te a virtude nem a parvoice. A
virtude seria medir o espaço que separa a tua alma do coração atraiçoado
de Theodora, e interpor n'esse espaço trinta mulheres, com tanto que te
não privasses da companhia de tua mãe, nem lhe désses desgostos muito
menores que este. Devias adorar tua prima porque era um anjo, e devias
desejar a outra porque era um demonio. Que fizeste tu quando ella casou?
Choraste, e com tamanho aggravo dos teus brios que consentiste que o
mundo te visse chorar, a ti, rapaz de vinte annos, gentil, e rico!
Pondera bem n'esta vilipendiosa calamidade, meu caro Affonso. Salta
sobre dez annos de tua existencia para diante, e diz-me que nojo te
ha-de fazer este Affonso, quando o Affonso de 1860 achar que tem o mesmo
nome, e quasi a mesma figura!...

E continuou por largo espaço n'este sentido.

Escutava o filho de Eulalia o discurso de D. José, lardeado de facecias,
e, por vezes, attendivel por umas razões que se lhe cravavam fundas no
espirito. As réplicas sahiam-lhe frouxas e mesmo timoratas. Já elle se
temia de responder cousa de fazer rir o amigo. Violentava sua condição
para o igualar na licença da idéa, e por vezes, no desbragado da phrase.
Sentia-se por dentro reabrir em nova primavera de alegrias para muitos
amores, que se haviam de destruir uns aos outros, a bem do coração
desprendido salutarmente de todos. A sua casa de Buenos-Ayres
aborreceu-a por afastada do mundo, boa tão sómente para tolos infelizes
que fiam do anjo da soledade o despenarem-se, chorando. Mudou residencia
para o centro de Lisboa, entre os salões e os theatros, entre o reboliço
dos botequins e concurso dos passeios. Entrou em tudo. As primeiras
impressões enjoaram-no; mas, á beira d'elle, estava D. José de Noronha,
rodeado dos próceres da bizarria, todos aporfiados em tosquiarem um
dromedario provinciano, que se escondêra em Buenos-Ayres a delir em
prantos uma paixão callosa, trazida lá das serranias minhotas. Ora,
Affonso de Teive antes queria renegar da virtude, que já muito a medo
lhe segredava os seus antigos dictames, que expor-ser á irrisão de
pessoas d'aquelle quilate. É verdade que ás vezes duas imagens
lagrimosas se lhe antepunham: a mãe, e Mafalda. Affonso
desconstrangia-se das visões importunas, e a si se accusava de pueril
visionario, não emancipado ainda das crendices do poeta inexperto da
prosa necessaria á vida.

Escrever, porém, a Theodora, não vingaram as suggestões de D. José. Por
ventura, outras mulheres superiormente bellas, e agradecidas ás suas
contemplações, o traziam preoccupado e algum tanto esquecido da morgada
da Fervença.

Mas, um dia, Affonso, n'uma roda de mancebos a quem dava de almoçar,
recebeu esta carta de Theodora:

«Compadeceu-se o Senhor. Passou o furacão. Tenho a cabeça fria da beira
da sepultura, d'onde me ergui. Aqui estou em pé diante do mundo. Sinto o
peso do coração morto no seio; mas vivo eu, Affonso. Meus labios já não
amaldiçoam, minhas mãos estão postas, meus olhos não choram. O cadaver
ergueu-se na immobilidade da estatua do sepulcro. Agora não me temas,
não me fujas. Pára ahi onde estás, que as tuas alegrias devem de ser
muito falsas, se a voz d'uma pobre mulher póde perturbal-as. Olha... se
eu hoje te visse, qual foste, ao pé de mim, anjo da minha infancia,
abraçava-te. Se me dissesses que a tua innocencia se baqueára á voragem
das paixões, repellia-te. Eu amo a creança de ha cinco annos, e detesto
o homem de hoje.

«Asserena-te, pois. Esta carta que mal póde fazer-te, Affonso? Não me
respondas; mas lê. Á mulher perdida relanceou o Christo um olhar de
commiseração e ouviu-a. E eu, se visse passar o Christo, rodeado de
infelizes, havia de ajoelhar e dizer-lhe: «Senhor! Senhor! é uma
desgraçada que vos ajoelha e não uma perdida. Infamias uma só não tenho
que a justiça da terra me condemne. Estou acorrentada a um dever
immoral, tenho querido espedaçal-o, mas estou pura. _Dever immoral_...
por que não, Senhor! Vós vistes que eu era innocente; minha mãe e meu
pae estavam comvosco.

«Abafaram-me n'uma jaula; eu queria amar-vos fóra dos violentos ferros,
deixei-me matar diante da vossa imagem por um sacerdote do vosso culto.
O vosso sacerdote, Senhor Deus da Justiça, praticou uma immoralidade,
levantando sobre as faculdades d'esta alma esmagadas o patibulo do meu
coração. Foi immoral o dever, que me legislaram em vosso nome, Senhor. E
eu, sem vociferar contra o mundo, que me arroxêa a gonilha no pescoço, a
vós ajoelho, Deus dos reprobos das alegrias d'este mundo, exorando-vos
que me deis um amigo.

«É o que eu diria ao Deus da adultera e da Magdalena, Affonso. E o
Senhor piedoso havia de ouvir-me, e de tua alma, fulminada pela
inspirativa misericordia do Justo dos justos, sahiria um gemido piedoso
por a mulher desamparada. Sê meu amigo!»

Recusava-se Affonso a deixar vêr a carta: era, porém, uma descortezia
sonegal-a, entre moços, que francamente haviam alli relatado á
competencia, as façanhas amorosas dos ultimos quinze dias.

--Homem indigno da nossa estima!--exclamava D. José de Noronha--Grande
cynico! podes tu negar aos teus amigos dous minutos do innocente prazer
de ouvirem o estylo d'uma Sevigné provinciana, que, para ser mulher de
época, só lhe falta affeiçoar-se a um homem que lhe rasgue os horisontes
d'um destino esplendido!? Venha a carta!

--A carta! a carta!--exclamaram todos, empunhando os copos.

--Um brinde á formosa das montanhas!--bradou D. José.

--Depois de lida a epistola!--emendou um commensal.

--Antes e depois!--redarguiu o proponente do brinde, e ajuntou:--Á saude
de Theodora, bella e espirituosa, amada e amantissima, pura quanto póde
sêl-o a mulher que nos braços d'um marido reserva para o homem amado a
virgindade do coração!

--Á saude de Theodora--conclamaram todos, exceptuando Affonso, cujo
aspecto arguia tristeza.

Seguiu-se um brinde enthusiastico ao ditoso Affonso, que sobrepunha a
formosa minhota a quantas lisboetas de tez e olhos arabes lhe tinham
offerecido a alma n'um sorriso.

Affonso agradeceu, com gesto de mal dissimulado dissabor.

Reiteraram os convivas o pedido da carta. Affonso hesitava ainda. O mais
ebrio d'aquella mocidade patricia, representante dos mais illustres
appellidos da época heroica de Portugal, ousou tomar a carta de sobre a
mesa, e abril-a com estrondosos applausos dos outros. Affonso de Teive
estendeu impetuosamente o braço, e tirou a carta da mão do hospede.

--Isso é um insulto a todos!--exclamou D. José de Noronha.

--Não é insulto--replicou o de Ruivães--é preito a todas as mulheres, e
com especialidade ás desgraçadas.

Disse, e incendiou o papel na chamma do castiçal em que acendiam os
charutos.

O tom amargo d'aquellas palavras commoveu os convivas, que, por bom
acerto, se encontraram todos de indole sentimental, quando as vaporações
alcoolicas lhes ennublavam a porção intellectual, que era n'elles
diminuta, como de direito heraldico. D. José, compondo o rosto d'uns
vislumbres de rectidão e bom discurso, perorou ácerca da probidade de
Affonso, e, em nome dos communs amigos, agradeceu a lição, e levantou
novo brinde ao hospedeiro moço que tão digno era da estima dos homens
como da confiança das mulheres.

      *      *      *      *      *

Este capitulo não dispensa uma nota illustrativa, respondendo
temporanmente á critica illustrada que me perguntar como pude eu pôr em
traslado uma carta queimada á luz do castiçal, minutos depois que
Affonso a lêra? É por que o rascunho d'esta carta, escripta com
entrelinhas, emendas, e borrões, escripta por Theodora, estava ainda em
poder de Affonso de Teive em Dezembro do anno proximo passado.
Opportunamente se dirá como Affonso de Teive se apossou do rascunho.
Então a critica verá que poucas cousas succedem na vida tão
naturalmente.

Relevem-me estas demasias de escrupulo: que eu difficilmente consentirei
que a má fé me apanhe em flagrante inverosimilhança.

Assim é que eu quizera que se escrevesse a historia patria, com este
timbre e rigor de verdade. Por mingoa de desvelos analogos na
averiguação dos factos historicos é que nós ainda não sabemos bem
quantos filhos bastardos fizeram os nossos monarchas: falha que desluz
algum tanto o panegyrico das virtudes dos reis portuguezes. Aprendam os
historiadores.


XIV

No mesmo dia, um deputado chegado do Minho, entregou a Affonso uma carta
de sua mãe, incluindo outra de Mafalda. A senhora de Ruivães felicitava
o filho por saber que elle procurava os passatempos da capital,
admoestando-o a que procedesse honradamente no gozo dos prazeres, para
que elles se não derrancassem em flagellos da consciencia, e infamia.
Mafalda, em poucas linhas, pedia-lhe que se não esquecesse d'ella, e
fosse fiel á promessa de estimal-a como irmã.

O deputado bracharense era sujeito que sabia as cousas para as dizer, e
saltava a quatro pés por cima d'isto que chamam delicadeza em assumptos
de coração.

Pelo que, o expansivo deputado fallou assim a Affonso:

--Ainda me lembro de v. exc.ª, quando rapazola estudava rhetorica em
Braga. Está certo de ser agarrado pelo regedor, quando foi ás Ursulinas
atacar as freiras? Pois fui eu quem, a pedido de sua mãe, lhe vali no
processo instaurado.

--Não sabia--atalhou Affonso--Aproveito a opportunidade para agradecer a
v. exc.ª...

--Não tem de que. Mas, com effeito--volveu o deputado, a rir de
esperto--olhe v. exc.ª o que fazem mulheres... ou mulherinhas... por que
a final a morgadinha da Fervença acanalhou-se até ir casar com um bruto
de Tibães... Soube isto v. exc.ª?

--Perfeitamente. Era impossivel que eu o não soubesse...--respondeu
attentamente Affonso.

--Eu conheço Eleuterio Romão dos Santos--continuou o informador--O homem
torce as grandes orelhas que tem, por que ella tem-lhe feito dar a agua
pela barbella. V. exc.ª ha-de saber isto...

--Não sei senão que Theodora é mulher de Eleuterio.

--Então eu lhe conto. A rapariga tem figados, e ninguem o dirá vendo
aquella lesma, que parece feita de manjar branco. Assim que entrou em
casa, e se viu com o sogro Romão e com a sogra Eleuteria deu ao diabo a
cardada, poz-se nas suas tamancas, e mobilou as suas salas e os seus
quartos á moderna. O Eleuterio quiz reguingar-lhe; mas ella, ás
primeiras testilhas, fallou em divorcio, ou cousa peor ainda, que era,
pelos modos, fugir de casa, e procurar v. exc.ª O marido poz as mãos na
cabeça, quando ouviu fallar em divorcio. A fortuna alli é quasi toda de
Theodora. Se ella se levantasse com o seu casal, o velhaco do tio, que
preparou semelhante desgraça de casamento, dava um estouro. Começaram a
fazer-lhe todas as vontades á moça. Para que lhe ha-de ella dar? Imagine
lá v. exc.ª para que lhe deu na veneta?

--Eu sei cá...--disse anhelante de curiosidade Affonso.

--Fez-se doutora!... Mandou comprar dous carros de livros ao Porto;
fechou-se no seu escriptorio, que parecia uma livraria de convento, e
começou a lêr de noite e de dia. Lá de dia passe; mas de noite, dava
isso que pensar a Eleuterio casado á face da igreja, e dono da mulher
pelos seus justos cabaes. Passado tempo, deu-lhe outra mania: fez-se
cavalleira, e rompia a galope pelo campo de Santa Anna em Braga, a
levantar poeira que parecia um esquadrão de cavallaria! Não parou ainda
aqui o desarranjo d'aquella cabeça! Tomou lacaio, deu-lhe libré avivada
de vermelho, e andava por essas estradas do Minho com o lacaio em
correrias de douda. Uma hora viam-na em Landim, outr'ora em Santo
Thyrso, depois em Lessa de Palmeira... Que novidades lhe estou
contando!...--concluiu sorrindo o narrador.

--E do procedimento d'ella que se dizia?--atalhou Affonso, vivamente
empenhado nas revelações do chanissimo legislador.

--Do procedimento d'ella a que respeito?--perguntou o deputado, com
suspeitoso sorriso.

--Amantes, quero dizer se a opinião publica lhe dava amantes.

--Eu lhe digo: quando v. exc.ª estava em Lessa com sua mãe, e a morgada
lá foi com o marido, alguem disse que o marido era um simplorio. Ora
isto parece-me que alguma cousa queria dizer...

O deputado espirrou uma risada de finura velhaca, e ajuntou:

--Depois, quando v. exc.ª esteve em Ruivães uma temporada, e Theodora
sahia para aquelles lados, já todo o bicho careta dizia que o adulterio
estava provado por todos os artigos do codigo, e por mais alguns que
esqueceram aos corpos legisladores.

Aqui deu o representante de Braga uma segunda risada, expressiva de
agudeza muito mais faceta. Affonso sorriu-se, e deixou-o esvasiar a
pojadura da verbosidade chula.

--Não se falla por lá de mais ninguem que eu saiba--tornou o
deputado--Mas o marido! aquelle palerma, que lhe não vai á mão, e a
deixa andar em filistrias de cavallo e lacaio, faz-me pena, sinceramente
lh'o digo, por que houve alguem que me affirmou que a mulher, quando
está fechada na livraria, não o admitte á sua presença, e até me
disseram que ella passa toda a noite a consultar os seus livros! Logo:
aquelle marido está n'uma posição critica, matrimonialmente fallando.
Parece-lhe isso, snr. Affonso?

Aqui expediu o sujeito terceira risada, que tinha idéa occulta, a meu
vêr, inconciliavel com o comedimento desejavel n'uma pessoa grave... de
mais a mais deputado a côrtes!

--E como está ella?--perguntou Affonso--Ainda é bonita?

--Agora é que ella está completa. Encheu muito de hombros, e tudo á
proporção. Está muito alta, e esvelta, que parece ingleza. E o garbo com
que ella sacode um cavallo... V. exc.ª está a mangar commigo?--perguntou
de subito o deputado, após um instante de reflexivo silencio?

--Se estou a mangar com v. exc.ª?! que pergunta!

--Sim! pois o snr. Affonso vem-me perguntar a mim se ella está bonita?!
Quem sabe melhor que v. exc.ª como ella está?!... Ora, meu amigo, vá
contar essas historias aos da Lourinhã. Cá para mim vem barrado!

--Dou-lhe palavra de honra--redarguiu Affonso--que a minha pergunta foi
sincera. Eu vi Theodora; mas tão de relance, que não pude reparar-lhe
nas feições.

--A sua palavra de honra tem para mim o peso d'um Evangelho,--tornou
gravemente o cavalheiro de Braga.--Pois, senhor, o mundo está enganado.
A voz geral dá v. exc.ª como amante de Theodora. Eu não me atrevia a
dizer-lh'o tanto ás escancaras; porém, chegadas as cousas a este ponto,
fique sabendo que ninguem acredita na sua innocencia, excepto o
Eleuterio, que é muito bom homem.

É escusado dizer que o individuo riu de novo, esfregou as mãos, e
exclamou abruptamente aguilhoado pelo instincto oratorio:

--Ainda ha quem case! Ainda ha victimas que espontaneamente se offereçam
no altar das mulheres! Chegamos a um tempo em que ninguem póde
sinceramente dizer que conhece seu pae. Os assentos dos baptismos estão
todos falsificados. Os mandamentos da lei de Deus, o nono sobre todos,
vai ser tirado do cathecismo. Vem ahi um tempo em que o artigo da lei
santa ha-de ser assim reformado: «Não desejarás a tua mulher para não
incommodar os direitos do proximo!» Onde irá isto assim parar, snr.
Affonso de Teive?

O deputado entre serio e risonho, prolongou por tres quartos de hora, em
estylo declamativo, um aranzel de lugares-communs, entremeado de
pilherias, com referencia á degeneração da sociedade, no capitulo
casamento. Affonso achava picante de grosso sal a iracundia comica do
legislador, e estimulava-lhe a veia. A final o deputado, contente de si,
foi para S. Bento, mais que muito persuadido de ser elle o predestinado
para levantar voz no parlamento decretando a moralisação das familias.

Affonso ficou pensativo. As revelações lisongeavam-no. O odioso do
caracter de Theodora desvaneceu-lh'o a impressão já magestosa, já
condolente do viver da morgada. Uma sublime desgraçada!--dizia elle
comsigo--Uma sublime desgraçada, que, ligada a mim, seria a mais sublime
das creaturas!

E, trabalhado por esta idéa que pertinazmente lhe martellou no animo,
Affonso de Teive arrependeu-se de ter queimado a carta recebida na manhã
d'aquelle dia. Queria relêl-a, mettêl-a a beijos na retentiva do
coração!

Á noite foi ao theatro, e entreteve-se largo tempo com D. José de
Noronha. Versou a pratica sobre o aceitar benignamente os
acommettimentos de Theodora. D. José mostrava-se já enfastiado da
imbecilidade moral do seu amigo, e, por tanto lhe pedia, que de todo em
todo esquecesse a mulher, e se portasse como rapaz de certa ordem; ou
obedecesse ao coração, aceitando a felicidade das mãos fosse de quem
fosse.

N'esta mesma noite, o moço, vencido a final pela irresistivel
necessidade de ser semelhante a todos os homens, escreveu uma estirada
carta. Principiava nas recordações da infancia de ambos: devia de ser
alta e amoravel poesia, como o coração a trasborda, se d'um ponto negro
da vida os olhos rompem as trevas, e vão lá ao longe remergulhar-se no
pelago da luz, que mais não ha-de raiar em nossos dias. Tristeza mais
que todas magoativa!

Depois, memorava os dias de amor, desabrochado já o seio em plena
florescencia, com os seus desejos balbuciados em phrases todas alma e
enleio, dulcissima linguagem, que era ainda a das chimeras pueris, mal
desvanecidas no trajecto da infancia á adolescencia. Poesia ainda, flôr
sempre lustrosa e verdejante, porque a sua tige está continuo a medrar
em lagrimas, d'onde paixão nenhuma hedionda dos vindouros tempos lhe
ha-de extirpar a raiz.

Seguia-se o recordar as dôres atrozes do abandono d'ella, quando o moço
em Lisboa e Ruivães, duas vezes se atirára aos braços da morte,
aceitando o inferno, se o lembrar-se o condemnado da mulher que amou na
terra, não era lá o maximo tormento.

A final, após os queixumes, subia-lhe do coração aos olhos n'uma lagrima
o perdão. Perdão e amor: que não ha ahi, em alma humana, perdoar
ingratidões sem beijar a mão que nos alanceou. Esquecer, sim; mas
esquecer é desprezo, não é perdão.

Escripta e fechada a carta, sobreesteve Affonso no remettêl-a. Acaso
iria ella, sem desvio, ás mãos de Theodora? As injustas suspeitas não
poderiam ter Eleuterio de sobre-aviso? E, de mais, reatadas as ligações
de estima, iria Affonso, contra a vontade de sua mãe, para casa, e
sustentaria alli o cortejo á mulher casada?

Estes quesitos fallavam á razão; porém, a pobresinha da razão, estava já
escondida na consciencia, e a consciencia ensurdecera com a guisalhada
do baile carnavalesco em que seu dono a mandára estudar os costumes do
seu tempo.

Foi a carta com direcção a Braga. Era dia de feira quando ella chegou ao
correio: estava alli o marido de Theodora vendendo cereaes. Foi á lista
postal vêr se seu pae tinha carta de parentes do Brazil; e, como não se
entendia bem com os nomes maiores de tres syllabas, pediu que lhe lessem
a lista inteira. Quando o obsequioso leitor chegou a _Theodora Palmyra
Villar de Sousa_, exclamou Eleuterio:

--É a minha mulher! Ha-de ser carta do livreiro.

Convem saber que a morgada se entendia directamente com os seus
livreiros fornecedores.

Eleuterio foi tirar a carta, e deu-lhe nos olhos, afóra o lustre do
sobre-escripto, o lacre azul fechado com armas, e, mais que tudo, a
marca de Lisboa.

Não me atrevo a compôr o soliloquio de Eleuterio Romão. Sei que elle
andava com a carta ás voltas, entre mãos, e ás vezes esfregava entre
dous dedos o papel, como se pelo tacto podesse inferir do contheudo.
Estava com elle o regedor da sua freguezia, o mesmo que lêra a lista, e
lhe lia na alma agora.

--Que estás a malucar, Eleuterio?--disse elle--A modo que essa carta te
deu no gôto!...

--A fallar a verdade--respondeu o marido de Theodora--esta letra não na
conheço, nem estas armas reaes!... Minha mulher não conhece ninguem em
Lisboa, e estas letras, compadre, parece que rezam Lisboa.

--É como diz: _Lisboa_, sem tirar nem pôr. E então?... achas que ella...

--Estão-me a dar guinadas de abrir isto!... Que dizes tu, compadre?

--Eu cá, se fosse commigo, já a carta estava aberta. Mulher minha a ter
cartas, sem eu saber de quem!... Deus me defenda!

Palavras mal eram ditas, que Eleuterio quebrou o lacre, e passou a carta
ao regedor, dizendo:

--Lê lá... ella é tamanha! parece uma sentença!... Vamos vêr isso, que
eu já me não sinto escorreito.

O regedor tomou o manuscripto de oito paginas entre as mãos, poz-se em
attitude abrindo as pernas em circumflexo, tossiu, tomou folego, deu
crena de saliva aos beiços, e leu engasgadamente: «D'onde vem esta
celestial harmonia, que a minha alma ouviu, quando o céo me bafejava a
infancia, e as delicias todas da existencia me eram prenunciadas nos
sonhos?...»

O regedor revirou os olhos pasmados a Eleuterio, e disse:

--Tu percebeste isto, compadre?

--Assim me Deus salve, que não percebi palavra,--respondeu Eleuterio
Romão esbugalhando os olhos sobre a escripta cabalistica.

--Portuguez acho que é!--tornou o regedor, consultando a opinião do
compadre.

--Isso é, lá portuguez é... Ora torna a dizer.

O leitor repetiu, e disse:

--Falla aqui em _alma_, e _sonhos_, e _delicias_. Sabes que mais? Isto,
seja lá o que fôr, não me cheira bem!... Aqui, Deus me perdôe, ha
maroteira d'aquella casta!... Deixa-me vêr mais um bocado a vêr se pesco
alguma cousa. E, continuando, leu:

«Sonhos de anjo, alumiados pela imagem lucida da filha da minha alma!
volvei, volvei, orvalhai a flôr requeimada, dai uma lufada de primavera
ao meu coração regelado pelos frios d'esta infinda noite... Oh minhas
donosissimas chimeras!...»

--E agora entendeste?--voltou o regedor--eu estou como a Felicia
d'Abrantes, peor que d'antes. Isto se não é latim, é o diabo por elle!

--Queres tu que se pergunte a alguem!?--acudiu Eleuterio--A gente ha-de
achar quem lhe explique isto cá em Braga... Falla-se ahi a um padre que
eu conheço, ao capellão das Ursulinas.

--Dizes bem... Tu não has-de ir para casa sem tirar isto a limpo...
Queres tu vêr que ahi vem o homem que nos explica o negocio?--perguntou
o magistrado administrativo--É meu compadre Fernão de Fonte Boa.

Era Fernão de Teive, conhecido por de Fonte-Boa, por ser lá o seu
morgadio. Com o velho fidalgo vinha Mafalda, apoiada no braço d'elle,
com doentio aspecto.

O regedor descobriu de longe a cabeça, e sahiu ao encontro de Fernão,
que o recebeu com o agrado dos antigos fidalgos.

--Que é feito de ti, compadre, que te não vejo ha cem annos?--disse o
velho--Desde que te fizeram regedor, acho que não cuidas senão em
fabricar deputados, e comer os salpicões dos recrutas passados pela
malha! Anda lá, meu homem, que em tempos melhores havias de ganhar o
posto de capitão-mór, que geito para comer os saudosos lombos tens tu.
Então que é feito, rapaz? quem é aquell'outro? Se me não engano, é o
Eleuterio do Romão.

--Para servir a v. exc.ª--disse Eleuterio com tres mesuras de cabeça
exageradas--Sou eu para servir a v. exc.ª

Fernão inclinou um olhar ironico sobre o hombro da filha, e disse com um
mal represo frouxo de riso:

--Aqui tens o marido da morgadinha da Fervença.

Mafalda escassamente lançou um olhar ao sujeito, e baixou os olhos com
gesto de notavel commoção.

E o regedor tirando a carta da algibeira, disse:

--Eu queria consultar o meu excellentissimo compadre a troco d'uma carta
que nem eu nem meu compadre Eleuterio entendemos. A gente, como o outro
que diz, o que sabe é de lavoura, e mal assigna o seu nome. O caso é
este: aqui o compadre achou no correio esta carta p'rá mulher. Teve lá
seus arrepios, e abriu-a. Começamos a lêr, mas nem p'ra traz nem p'ra
diante. As palavras parecem portuguezas, acho eu; mas nós não sabemos o
que ellas rezam. Se o senhor compadre fizesse favor de lêr isto...

Fernão de Teive ia a tomar a carta já aberta da mão do regedor, quando
sentiu extraordinario peso no braço esquerdo, olhou em sobresalto, e viu
Mafalda a desmaiar, com o rosto banhado de suor. Chamou-a, e ella,
expedindo uns agudos soluços, quiz em vão pendurar-se do pescoço do pae.
Tomou-a o velho nos braços com tremente anciedade, e transportou-a para
dentro de uma loja, pedindo a brados um facultativo.

O regedor e Eleuterio seguiram Fernão, afflictos do successo. Na mão do
regedor estava ainda a carta. O velho, sem atinar com o motivo do
accidente, olhou machinalmente para o papel, e teve um repellão
intuitivo, sem ainda o comprehender.

Tirou com desabrimento a carta da mão do compadre, examinou-a pela
luneta, leu as primeiras linhas, desviou os olhos, meditou, lançou de
arremesso o papel ao chão, e disse:

--Deixem-me... não sei o que é... Vão-se embora...

Os homens iam sahir, quando elle os chamou com phrenesi, pediu a carta,
e desfêl-a em pedacinhos, exclamando:

--Isto não é nada, nada vale, podem ir com Deus.

Eleuterio estava assombrado, e o compadre abria e fechava a bocca em
signal do seu espanto e compaixão. Em boa fé, o regedor acreditou
atacado de demencia o velho, ao vêr a filha em trances de morte.
Afastaram-se em consultas, dando cada qual sua razão do caso, bem que
Eleuterio ia mediocremente satisfeito da rasgadura da carta.

Quando recobrou o alento, Mafalda levou as mãos ao rosto do pae, e
murmurou mui carinhosa:

--Perdôe-me, por quem é! Perdôe esta fraqueza da sua infeliz filha!

--Pobre anjo--balbuciou o velho--Que has-de tu fazer-lhe? Deus mandou-te
aquelle desengano... Recebe-o tu, reportada e humilde, de suas divinas
mãos. Precisavas d'isto, para em fim te convenceres.

Mafalda pediu ao pae que a levasse ao primeiro templo aberto. Ajoelhou
ao altar do Senhor dos afflictos, chorou, e viu as lagrimas do velho
ajoelhado á beira de ella. Ergueu-se com pacifico semblante e disse:

--Estou melhor, meu pae. Deus não falta aos infelizes sem culpa, nem
mesmo aos culpados... Tambem orei pelo primo Affonso.

--Eu não orei--disse o pae--mas rasguei o documento de sua infamia.


XV

Affonso de Teive contava os dias, e, no ultimo dia, a hora e instantes
em que devia receber carta de Theodora. Esperou uma semana em alvoroço,
e já, ao decimo dia a mallograda esperança o atormentava. A incerteza da
recepção alliviava-o por momentos; outros, porém, sobrevinham em que
elle se considerava desconsiderado pela caprichosa ou vingativa mulher.
O mais graduado oraculo do seu conselho, D. José de Noronha,
racionalmente, opinava que a mulher, authora de taes cartas, por força
devia responder; e do silencio concluia que se transviára a resposta
enviada. Chegou a confirmação d'esta hypothese, na seguinte pergunta de
Theodora:

«Instantemente rogo que no primeiro correio, me digas se me escreveste.
Sobejam-me razões para conjectural-o. Estou em ancias. Esta incerteza
martyrisa-me mais que o teu desprezo. Responde-me depressa. Dirige a tua
resposta--pedida com lagrimas--para Barcellos. Calculo o dia em que ella
deve alli estar. Irei pessoalmente recebel-a. T. P.»

Lida a pergunta, Affonso abancou para responder. Posta a primeira
palavra, ergueu-se de salto. Chamou o criado da cavalhariça. Mandou
pençar os cavallos para jornada longa. Sentou-se a escrever a D. José de
Noronha. Cuidou seguidamente dos aprestos para a partida; e, duas horas
antes da sahida do correio, galopava na estrada do Porto. A meia jornada
fraquearam os cavallos. Affonso fez remonta em Coimbra, sem discutir o
preço das novas cavalgaduras, e chegou a Barcellos duas horas primeiro
que o correio.

Quando apeou na estalagem de Barcellinhos, encostou a cabeça esvaida á
borda d'um leito, e adormeceu. Rompia a manhã. A mim me contou elle que,
dormindo uma hora, acordára tranzido do horror de um sonho. Vira
Theodora em trajos de bacchante, revolteando umas walsas lubricas, e
atirando-se ebria, e torpe de impudicicia, aos braços d'um homem. Era um
sonho; mas, ao despertar, Affonso sentia abrir-se-lhe o coração a golpes
de arrependimento. A prostração era invencivel: adormeceu outra vez, e
sonhou que via sua mãe agonizante nos braços de Mafalda. Acordou
espavorido; ergueu-se arrancando a mãos freneticas aquella imagem da
fronte; o arrependimento era já lançada de remorso. Abriu o relogio: viu
que era ainda tempo de fugir... Diz elle que fugiria... ai! eu não creio
que elle fugisse, não! Chamára o criado para arreiar os cavallos... eis
que, ao cimo da rua sôa tropel de ferraduras, e faz-se rapida paragem á
porta da estalagem. Affonso descora, vai de encontro ás vidraças, e vê
apear a morgada.

O quarto d'elle era contiguo á sala commum. Já Affonso lhe ouvia os
passos escada acima, e logo a voz ordenando ao lacaio que amantasse os
cavallos e fosse receber as suas ordens. Foi elle manso e manso
espreitar pela fechadura. Respirava em arquejos ao visinhar-se da porta.
Curvou-se, inspirando sofrego o ar que lhe sahia a sacões do peito.
Viu-a. Estava com o braço esquerdo encostado á mesa central da sala, e a
face reclinada para a mão. Com a direita chibatava, como alheada do que
fazia, o pó acamado no roçagante vestido de casimira verde escuro. Verde
era o véo do chapéo, que, momentos depois, ella tirou com um rapido
movimento, e rojou ao longo da mesa. Levou ambas as mãos ás fontes,
afastando os anneis dos cabellos, que se encaracolavam rosto abaixo até
ás espaduas. Demorou-se momentos n'aquella postura. Ergueu-se
impaciente, e passeou d'um a outro lado da casa, vibrando o chicote, e
tirando com força pelo trancelim d'ouro do relogio. Volveu a sentar-se,
com o rosto voltado em cheio contra a porta, d'onde Affonso a observava.
«Poucos traços lhe vi então das feições menineiras com que a deixára--me
disse elle--Da menina admiravel o que ella ainda tinha era o ar
angelico; mas a belleza da mulher deslumbrava as reminiscencias da
creança.»

Venceu Affonso os impetos que o empuxavam para abrir a porta. Esperou,
sem saber o que: esperava o desencantamento, esperava o dom da palavra
retrahido ao coração.

Entrou o lacaio que ella mandou logo ao correio com um bilhete alli
escripto a lapis. Desde este momento, Affonso já sabia o que esperava:
queria vêl-a affligida com a falta da carta. No intervallo, Theodora
chamou o criado da hospedaria, e pediu café. O criado, ouvidas as
ordens, dirigiu-se ao quarto de Affonso: este viu-o, e afastou-se.
Aberta a porta subtilmente, perguntou o criado se s. exc.ª queria
almoçar. Affonso respondeu com um aceno negativo. Fechada a porta,
perguntou Theodora:

--Quem é que está n'aquelle quarto?

--Não sei, fidalga--respondeu o moço.

Affonso repoz-se á fechadura.

Chegou o lacaio.

--Trazes?--exclamou ella como assustada.

--Não ha, minha senhora.

--Não?!--bradou ella batendo o pé--É impossivel! É impossivel! Deve lá
estar uma carta!...

--Saberá v. exc.ª que eu li a lista primeiro, depois fui dentro
perguntar ao homem que dá as cartas--disse o lacaio, e sahiu.

--Inferno!--clamou ella estorcegando os dedos que estalavam nas
articulações.--Maldita eu seja, que tão aviltada me tornei!

Sentou-se a arfar, e a chorar, e logo depois levantou os pulsos
comprimindo as fontes.

Pôz depois as mãos enclavinhadas junto dos labios, encostou a barba ao
pollex da mão esquerda, abaixou a cabeça, e meditou.

Entrava o criado com a bandeja. Theodora, estremecendo como atemorisada,
relanceou os olhos sobre o criado, e disse-lhe com desabrimento:

--Deixe ficar. Cá me sirvo. O lacaio que almoce, e apparelhe.

N'este momento Affonso abriu a porta, e disse com a voz convulsa:

--Um passageiro pede uma chavena do café de v. exc.ª

O leitor já sabe por todos os romances, por todos os dramas, e por todos
os actos da vida real, semelhantes, muito ou pouco, a este, o que
Theodora fez. Um _ah!_ ou dous, é o nariz de cêra para todas as
surprezas, fabricado desde Homero, ou mais de longe. Adão, quando viu
Eva, devia dizer: _ah!_ A Eva, quando viu a serpente, se não fugiu eu
vou jurar, sem menoscabo do historiador Moises, que mais ou menos
nervosa, exclamou _ah!_ A interjeição é coeva do homem, que nasceu cheio
de espantos.

Espanto, porém, igual ao da morgada, se o houve, foi o meu, quando
Affonso me disse que Theodora não expediu do seio interjeição nenhuma,
nem _ah!_, sequer.

--Pois que?!--perguntei eu com a respiração abafada--Que disse ella?!

--Levantou as mãos, ajuntou-as sobre o seio, postas em oração; depois,
cahiu em joelhos, ia cahir, quando eu, ajoelhado tambem, a recebi, a
desfallecer.

--Não disse nada, por tanto!... E desfalleceu sinceramente?

--Fazes-me essa pergunta como quem conheceu a mulher...--respondeu
Affonso--Asseveras-me que te estão contando factos ignorados?

--Pois eu podia saber o que se passou na estalagem de
Barcellinhos?!--repliquei--Eu ignoro d'essa mulher tudo, menos o que
toda a gente sabia. Vi Palmyra em Lisboa comtigo... mas, se tu crês que
um homem, acostumado a fazer romances, é uma especie de naturalista, que
só com um osso recompõe um animal desconhecido, admitte-me que eu tenha
adivinhado a alma inteira de Theodora com os poucos, mas caracteristicos
traços que me deste do seu caracter. Authorisado, pois, pela tua
pergunta, afouto-me a dizer que o desmaio da amazona foi menos de
theatral, por que nem sequer foi precedido da inevitavel interjeição.
Assim que me disseste, Affonso, que ella não desentranhou do intimo seio
um estridulo _ah!_ entendi que Theodora era mais artificial que o
proprio artificio, mais theatral que o mesmo theatro.

--A narrativa--redarguiu Affonso de Teive--vai perdendo a seriedade que
demandava o caso. Cansaço ou enojo, dir-te-hei que me sinto já
constrangido n'estas memorias. Acho-me um pouco identificado com a minha
vida passada; repassei o Lethes interposto, e olho com saudades para as
margens que deixei. Se, como diz o Dante, nada ha ahi mais triste que
recordar na miseria os tempos felizes, é, pelo menos nauseabundo
recordar em tempos felizes vergonhosas miserias. Todavia, como já agora,
inexoravel romancista, me não dispensas o remate d'este longo prologo do
capitulo final do meu livro--livro que eu chamaria _Amor de
Salvação_--concluirei a historia, e irei depois purificar meus labios no
rosto de meus filhos.

--Theodora--continuou Affonso--quando quiz abrir os olhos, arrancou-se
dos meus braços, exclamando:--Repelle-me, que eu sou indigna de ti.
Agora reconheço a minha miseria, agora que te vejo, ó Affonso, ó anjo da
minha infancia, que eu deixei fugir para o seio da mulher digna, da
mulher pura, da creatura perfeita para quem tu nasceste!...

--Ha ahi muito estylo--interrompi--A mulher compunha! Vê-se que leu e
aproveitou. O deputado de Braga é que tinha olho de D. João de Maraña
para as mulheres de letras. E depois?

--Eu venci o espaço que ella deixára recuando e abracei-a. N'este
movimento, senti nas faces o contacto dos caracoes desfeitos. Osculei-a
na fronte...

--Gosto--atalhei--do comedimento honesto da palavra... _Osculei-a_...
sim, senhor... Assim é que um pae de oito filhos conta a historia dos
seus beijos. E ella tambem te osculou?

--Sofregamente, doudamente, segurando-me a face pelos cabellos.

--Isso tambem é de rigor theatral. A mulher conhecia a scena!--perdôa as
interrupções. De proposito as faço para te dar azo a inspirares fôlego
novo, visto que já te afadiga o conto. E vai depois...

--Rebentou-me a bolhões do peito a eloquencia da paixão. Era uma alma
virgem que se abria. Abria-se um thesouro intacto, d'onde nem sequer
tirára uma palavra para mentir a outra mulher. Ella entrecortava-me,
sorvendo-me as expressões nos labios, ou abafando-m'as no seio
palpitante e ardente como o arquejar estuoso do vulcão. Este lance
febril, de minutos no viver de meu espirito, absorvêra uma hora, segundo
a vida do tempo...

--E depois--acudi eu--começaram a tratar de assumptos circumspectos com
discreta serenidade.

--Contou-me ella que o marido, com ar de _tyranno tolo_...

--A phrase é d'ella, _tyranno tolo_?--perguntei.

--É. Desgostar-me-hia o tom zombeteiro com que me ella fallava do pobre
homem, se eu não estivesse...

--Corrompido--conclui--Querias dizer isto?

--Era isso verdadeiramente. Dizia, pois, ella que o marido lhe fallava
em correspondencias de Lisboa, mordendo o beiço, ou esgaravatando nos
pavilhões dos ouvidos, costume d'elle, quando os ciumes lhe faziam
prurido nas orelhas.

--Disse-t'o assim ella?--interrompi com a mais ingenua irritação.

--Disse-m'o assim, com pouca differença, mezes depois, quando eu estava
mais corrompido que ella para provocal-a ás originalidades da sua veia
sarcastica: do que me confesso em opprobrio meu. Delineamos o nosso
futuro. Foi ella quem o programmou. Iriamos para longe. Propuz Lisboa,
ou Madrid, ou Paris. Quiz Lisboa, no intento de requerer divorcio. A
fuga teria execução antes de oito dias. Eu ficaria em Barcellos,
disfarçado, occulto, durante o dia. Á meia noite apearia a um oitavo de
legua de Tibães. Theodora estaria no seu gabinete de estudo, e as
vidraças coariam a luz da sua lampada, companheira das lucubrações
intellectuaes, insuspeitas ao marido. Referendado o programma e
rubricado com um osculo (repara, que não me descomponho) ouvi estropeada
de cavallo na rua. Momentos depois...

--Querem vêr que chega Eleuterio!--atalhei com alvoroço e alegria
parvoa, senão cruel.

--Eleuterio Romão dos Santos, em pessoa, tropeando nas escadas que
subiam para a sala, onde nós estavamos tranquillos como Paulo e Virginia
(perdoai-me santas almas a comparação!) nos rochedos de S. Domingos!
Agora tu, Caliope, me ensina a contar o successo estranho!... Eleuterio
viu ainda o desencadearem-se os braços de Theodora do meu pescoço.
Parou, estacou, empederniu-se, estupidificou-se no limiar da porta.

--E Theodora? narra-me da esposa surprehendida; que fez ella?--perguntei
com inquieto empenho.

--Theodora, pendidos os braços, fitou Eleuterio com sobranceria, deu
dous passos, postou-se diante de mim, e disse, voltada para o marido:

--Que me quer? A minha alma é livre.

--Esperava outra cousa eu! Isso parece-me estupidamente immoral. É caso
novo e feio esse! E tu, que fizeste tu?

--Nada.

--Dos tres é quem andaste melhor. Parabens! E elle, o marido, que fez
depois? que respondeu á Panthasilea?

--Respondeu que lhe ia dar cabo da casta, e tirou uma luzente podôa de
dous gumes do bolso interior da judia.

--Uma podôa! Outra novidade! E arremetteu com ella?

--Quando elle sacou do ferro, passei para a frente de Theodora.

--Desarmado?

--Desarmado: as pistolas estavam no meu quarto. Mas a Panthasilea
virgiliana, como tu apropriadamente a denominas, repelliu-me com um
braço, e mostrou na extremidade do outro uma pistola abocada ao peito do
marido.

--Novidade terceira!--acudi eu, quasi suspeitoso da logração do
conto--Tu não estás inventando, Affonso?

--É inepta a pergunta; mas perdoavel. Não invento, meu amigo. Conto
verdades que me entristecem. Recordar-me agora do gesto consternado do
marido d'ella, punge-me devéras. Tremia-lhe o ferro na mão ameaçadora, e
já o rosto se lhe estava banhando em lagrimas. Desceu o braço
quebrantado por agonia mais lacerante que a ira, e fitou em mim os olhos
chammejantes. De mim, relanceou-os á mulher; e, desafogando a custo as
palavras, disse:

--Castigada te veja eu, e Deus me vingue!

--Não esperava eu que elle dissesse isso. Ha concisão e angustia suprema
n'esse appellar a Deus--reflecti eu condoido, não obstando têl-o visto,
como fica escripto, no arraial de S. Braz de Landim, annos antes, em
geito de muita felicidade, e grande frescura de animo e coração--E
continuei no meu impertinente interrogatorio, tendo em vista que o
leitor fosse bem informado:--Eleuterio, depois, sahiu, ou que fez?

--Chorou, embebeu as lagrimas no lenço, e disse: «Eu não te obriguei a
ser minha mulher. Se casaste foi por que quizeste. Se tinhas outra
inclinação, não dissesses a meu pae que me querias.»

--Que impressão fizeram em ti essas palavras tão simples e
sinceras?--perguntei.

--Má impressão!--respondeu Affonso de Teive--pessima impressão! Desviei
involuntariamente os olhos d'ella: a razão sahiu por momentos do seu
chiqueiro, e teve dó da alienação da minha pobre alma. Eleuterio, por
ultimo, rematou assim: «Não tenho mulher. Vou para minha casa, e vai tu
para a tua.» E sahiu. Theodora voltou-se para mim, atirando a pistola
sobre a mesa, e disse: «Estou livre. Aqui me tens, Affonso. Aqui está a
tua Palmyra, com o virgem coração que lhe conheceste, mais valioso do
que era, mais depurado dos instinctos maus, graças aos trabalhos que me
angustiaram a vida. Queres-me assim, Affonso?...

--Abraçaste-a fervorosamente, convulsamente--interrompi eu.

--Não: disse-lhe com uma falsa graça no rosto:--quero-te assim:
partiremos hoje mesmo para Lisboa. «E os meus fatos, as minhas
joias?--perguntou ella--Tenho brilhantes que eram de minha
mãe.»--Deixa-os. Terás brilhantes, se elles forem precisos á tua
felicidade--«A minha felicidade!--exclamou Theodora, ajoelhando-se-me de
mãos postas--a minha felicidade é uma choça comtigo, no ermo, no
isolamento de todos os prazeres da sociedade»--Ergui-a com amor.
Tocou-me o contraste d'aquella humildade com a arrogancia da resistencia
ao marido.

--A esta procella de commoções violentas, seguiu-se um intervallo de
silencio morno, concentração por ventura dolorosa em que os nossos
olhares mutuamente se interrogavam. Eu via minha santa mãe, e a
purissima imagem de minha prima. Theodora não sei o que via: póde ser
que estivesse lendo a pagina negra do seu destino, voltada pela mão do
Senhor. Eu de mim esforçava o contentamento no rosto: os olhos viam-na
embellezados; o ambiente escaldante que ella aquecia com o seu halito
coava-me lume até ás medullas dos ossos; mas o formidavel grito da moral
repercutia-me no senso intimo da minha queda. Desgraçadas e atrozes
ligações as que principiam assim! É que a sentença da justiça divina foi
já lavrada.

Theodora abriu a janella da sala e aspirou com força; encostou-se ao
peitoril, com os olhos cravados nos cabeços da serra da Tranqueira.

--Em que meditas, Palmyra?--perguntei-lhe eu.

--Em minha mãe, que era virtuosa como a tua--respondeu ella.

Esta dôr nobre, tão singelamente revelada, fez-me bem ao coração.
Commoveu-me aquelle dizer de _mulher_, no tom da maviosa feminilidade
que sôa tão brando e compadecedor nas almas de rija tempera, como era a
minha. Fallamos de nossas mães, e com tantas caricias de expressão
saudosa, que terminamos, beijando um do outro os olhos cheios de
lagrimas.

No mesmo dia, por volta da tarde, sahimos caminho de Lisboa.


XVI

Volvido um mez sobre os successos descriptos, Affonso de Teive e
Palmyra--que nunca mais se chamou Theodora--viviam n'um palacete ao
Campo Grande, por ser entrada a sazão estiva.

O interior esplendido da casa sobreexcedia o exterior magestoso. Nas
cavalhariças escarvavam, arrifavam e relinchavam os cavallos de trem e
de passeio. No pateo, os lacaios limpavam e bruniam os arreios, e as
equipagens. Sentia-se o respirar da felicidade, como escondida das
invejas do mundo, n'aquelle magnifico aposento. O dono d'ella gozava-se
da fama de opulento fidalgo do Minho; porém, o thesouro, que a publica
admiração mais lhe encarecia, era Palmyra.

Frequentavam a casa de Affonso de Teive alguns dos amigos, que D. José
de Noronha lhe dera, moços da primeira fidalguia. Ao verem a mulher, por
quem Affonso desprezava todas, acharam e disseram, sem lisonja, que elle
tinha soffrido e amado pouco. A espectativa de D. José fôra
surprehendida pelo excedente d'uma formosura, graça e talento, não
imaginados. Estes gabos, porém, proferidos a medo na presença d'ella,
eram tão respeitosos e aferidos no padrão do melindre palaciano, que
Affonso de Teive, nem por sonhos, aventou a possibilidade d'uma intenção
desleal do amigo. Palmyra, por sua parte, quando os seus hospedes e
convivas, no mais accêso dos brindes em lautos banquetes, lhe
balanceavam o incensorio dos louvores, baixava os olhos, inclinava a
cabeça, e mostrava aceitar resignada o incenso, em obsequio aos
thuribularios.

Era aquella a atmosphera inebriante dos anhelos da morgada da Fervença.
Lembranças de sua vida conjugal em Tibães afastava-as com repulsão.

A imagem de Eleuterio fazia-lhe vergonha de si mesma. Tornou-se
desnecessaria a leitura ao recreio das suas noites. Preferia, á falta de
theatros, passear a cavallo ao clarão da lua, ladeada de Affonso e de D.
José de Noronha, a mais intima e feliz testemunha dos prazeres de
Affonso. Tinham noitadas de estenderem a Cintra os seus passeios, ora
serenos e contemplativos, ora em correria vertiginosa, á vontade e
capricho de Palmyra, cujo cavallo negro ella denominára...

--Eleuterio?!--perguntei eu, cuidando que adivinhára, quando o meu amigo
chegou a esta altura da historia.

--Não, nem tanto...--respondeu Affonso--chamava-lhe _Lucifer_.

--Que desprezo do monarcha do inferno! Parece-me que Palmyra não tinha
virtudes para zombar assim do personagem que provavelmente lhe ha-de
pedir eternas contas da nomenclatura do quadrupede!

Vamos no proseguimento d'esta celestial felicidade, em que o inferno
apenas lembrava em virtude do nome do cavallo.

No termo de um anno, Affonso de Teive tinha escripto, a largos prasos,
pouquissimas cartas a sua mãe. N'outro relanço viria mais bem cabido o
fallar-se da virtuosa senhora e da angelical Mafalda. A promiscuidade
faz-me susto de vituperal-as. Mas é preciso dizer que D. Eulalia, em
cumprimento da sua promessa, remettia ao filho as quantias avultosas que
elle exigia, e o producto d'uma quinta de sua legitima paterna, logo que
Affonso lh'o determinou. Fernão de Teive comprára a quinta
clandestinamente por intervenção do seu mordomo. O ouro entrava em
torrentes n'aquella voragem, d'onde retornava em carruagens, em
baixellas, em festins, em sêdas e brilhantes, em apostas soberbas no
jogo, em extravagancias de soada fama, em emprestimos aos commensaes. No
decurso dos doze mezes, apenas Fernão de Teive mandou um triste _memento
homo_ ao reboliço d'aquelles jubilos. Eram estas palavras unicamente:
«Lembra-te, Affonso, de teu tio-avô Christovão de Teive.» Affonso sorriu
e perguntou a Palmyra se lhe via signaes de lepra. A jovial creatura,
informada da intencional allusão, cascalhou umas risadas de que muito se
compraziam os ouvidos do amante, as quaes, no dizer de D. José de
Noronha, tinham uma alegria contagiosa, que faziam bem aos infelizes.
Affonso não respondeu ao velho de Fonte-Boa; mas, n'uma hora de solidão
em seu particular gabinete, sommou as parcellas hauridas de sua casa, e
espantou-se; calculou a quantia necessaria para vinte annos de vida, e
descobriu que no fim de dez annos devia estar morto, para não pedir
esmola aos parentes. Levantou-se pensativo d'esta operação arithmetica;
sahiu do gabinete; e encontrou Palmyra a lembrar-lhe a conveniencia de
arrematar um camarote de S. Carlos, que estava a lanços. Affonso
respondeu tristemente: «Pois sim.» Palmyra não viu linha alguma
extraordinaria no rosto do amante: beijou-lhe os olhos, e disse: «És um
anjo!»

Desde aquelle fatal dia dos calculos sobre as despezas de vinte annos,
Affonso scismava a miudo nos dez que restrictamente lhe offereciam os
seus presumptivos cabedaes, contando já com o fallecimento da mãe.
«Infame clausula dos meus calculos!» dizia elle com os olhos a reverem
lagrimas de remordente remorso, treze annos depois.

Palmyra, a final, deu tento da melancolia de Affonso; e ainda antes de
consultar-lhe a causa, perguntou se a não amava já. O interrogatorio
affligiu o moço. Reconheceu que faltavam n'aquella mulher as sérias
qualidades de espirito para lhe escutar o motivo de suas abstracções, em
meio dos favores da fortuna.

Manifestou Palmyra o seu insoffrido orgulho. Similou um recolhimento de
amargura cavillosa. Pranteou-se, perguntando ao céo, em attitude
tragica, se a expiação começava tão cedo. Affonso acariciou-a, já
condoido d'ella, e revelou, com desdem de seus proprios temores, a causa
mesquinha d'elles. Palmyra observou-lhe que a fortuna d'ella, a sua
parte, excedia o valor de vinte e cinco contos, e propoz-lhe requerer-se
divorcio, desde logo. O bizarro moço recusou a proposta, ajoelhando em
espirito, á generosa offerta de Palmyra.

Passou a nuvem. Requintaram os gozos e as despezas. Projectaram-se
passeios ao estrangeiro. D. José de Noronha era grande parte e
conselheiro n'estes prospectos de recrescente felicidade. Lembrou
Palmyra a semana santa em Sevilha. Foram a Sevilha, detiveram-se por
Hespanha dous mezes até presentirem uns longes de fastio. Voltaram a
Lisboa no ante-gosto de planeadas excursões á Italia. Affonso de Teive
entrou no seu escriptorio, em busca de cartas, e abriu primeiro uma das
duas de Mafalda, antes que Palmyra o surprehendesse a lêl-as. Rezava
assim a primeira:

«Meu primo. A nossa mãesinha está muito adoentada, e causa receios ao
medico de Braga, que vem aqui todos os dias. Não me authorisou a
chamar-te; mas eu, depois de consultar meu pae, resolvi participar-te
isto, e pedir-te que venhas vêr esta santa. Ella não cessa de chorar e
rogar a Deus por nós. Vem pedir-lhe que, ao sahir d'este desterro,
continue a pedir no céo por ti, por mim, e por todos os infelizes. Tua
prima, _Mafalda_.»

Era datada esta carta em 6 de Abril de 1852.

A outra, datada em 18 do mesmo mez, continha o seguinte:

«Meu primo. Acaba de expirar tua mãe. São cinco horas da manhã.
Morreu-me nos braços. Dava tres horas o relogio, quando ella disse que
havia de expirar quando raiasse o dia. Assim foi. Fallou de ti até á
ultima, e ordenou-me que te mandasse uma carta, que ella escreveu no
segundo dia de sua enfermidade. Admirei que não me respondesses ao menos
á que eu te escrevi então. Deus sabe o que vai na tua vida. A santa lá
está no céo: ella conseguirá o que fôr melhor para ti, em conformidade
com os decretos do Altissimo. Aqui está meu pae a cuidar n'estes tristes
preparativos para o enterro. Já dobram os sinos. Não me deixam escrever
as lagrimas. Adeus, Affonso. Tua prima, _Mafalda_.»

Affonso, concluida a leitura d'esta segunda carta, bradou: «Meu Deus,
meu Deus!» e cahiu de joelhos, escondendo a face nos estofos d'uma
othomana.

Acudiu Palmyra aos gritos. Affonso ergueu-se, com as mãos no rosto, e,
abafando os soluços, pôde dizer: «Morreu minha mãe!»

--Chora, no meu seio--disse ella commovida--chora, meu querido filho!
Tens ainda este grande coração que te abriga na tua angustia.

Estas palavras alancearam mais a alma do meu amigo. Pareceram-lhe um
sacrilegio, uma injuria á memoria da mulher, cuja vida fôra uma enchente
de virtudes. «O coração da adultera a dar abrigo á dôr de um filho!» Era
a consciencia que assim lhe gritava, não era ainda o tedio. Era, talvez,
a repugnancia de se encostar ao seio da mulher por amor de quem deixára
morrer sua mãe, esquecida, desprezada mesmo, lembrada algumas vezes como
senhora mieira da casa, cujo herdeiro elle era.

Affonso pediu a Palmyra que o deixasse sosinho. Ferida em sua vaidade,
considerando-se inutil em consolar o homem fraco, o homem debulhado em
lagrimas, Palmyra cruzou os braços e abanou a cabeça. O atribulado moço
não vira aquelle gesto; mas ouvira as palavras que o denunciavam:

--Não basta o amor da mulher amante para consolar as saudades de uma
mãe. Eu tambem a tinha, quando te amava, e abriguei-me no teu coração.
Que differença!...

Affonso irou-se; mas abafou a colera n'um gesto de impaciencia. Palmyra
comprehendeu-o, retirou-se, lançando os olhos ás duas cartas, que
estavam abertas. Encostou-se á mesa, e leu-as sem lhes pôr mão. Lidas,
sorriu-se, remexeu ainda na lingua uma ironia infame, não ousou
proferil-a, e sahiu. É que a mulher impura muitas vezes espumára o pus
do cancro do orgulho, que a roia, na face immaculada de Mafalda, que o
moço indiscreto algumas vezes, com fatuidade, relembrava como desgraçada
na sua amoravel dedicação.

Assim que Palmyra sahiu, Affonso, a tremer calefrios, deslacrou a carta
de sua mãe. Dizia assim:

«Meu filho. Muito ha que eu peço a Deus que me despene. Já me cançava a
vida com tão aturado padecer, e nenhuma esperança de remedio.

«Agora espero que a misericordia do Senhor me attenda; e, se me diz
verdade o coração, é chegada a hora de eu escrever umas linhas, que te
serão mandadas quando eu tiver passado.

«Bem sabes tu, meu filho, que eu, cheia de terror do teu peccado, voltei
para Deus a minha afflicção, e nenhuma palavra de censura te escrevi. O
que eu podia fazer para livrar-te estava inutilmente feito. Era tardio
tudo que fizesse depois. A infeliz creatura estava já comtigo. Ninguem
sem ordem do céo poderia remil-a de sua perdição. Á minha presença veio
o desgraçado marido de Theodora pedir-me que te movesse a influir no
animo de sua mulher o recolher-se n'um mosteiro. Consultei primeiro a
vontade divina, e depois a razão humana. As minhas orações, se podessem
com Deus alguma cousa, lá iriam ter á tua alma em abalo de consciencia.
O Senhor não quiz. As pessoas a quem pedi voto sobre escrever-te,
segundo o pedido do homem de Theodora, todas me disseram que eu ia
abaixar a minha dignidade n'um requerimento vão e desconforme á natureza
da tua desgraça. Abaixar a minha dignidade não me custava nem humilhava;
mas, sem esperança de te mover com as minhas pobres razões, antes quiz
orar, e orar sempre a quem tudo podia.

«Bem sabes, meu filho, que eu, nem mesmo ao remetter-te n'um anno o
rendimento de quatro, afóra o producto da quinta vendida, nada te disse
respeito á causa dos teus desperdicios, promettedora de tua inevitavel
pobreza.

«Conheci que eu, em tua vida, já nem sequer valia para amiga, muito
menos devia esperar respeitos e amor á minha authoridade de mãe. Disse
commigo que era irremediavel a tua desgraça, e esmoreci de todo em todo.

«Mandou o Senhor para o meu lado tua virtuosa prima. Choramos ambas; mas
o anjinho, mesmo em prantos, consolava a pobre que lhe via a alma em
grandissimas mortificações.

«Agora, meu filho sempre querido, é tempo de te abençoar, de te perdoar
as dôres que me déste, e rogar-te que me vejas aos pés do Altissimo, se
a sua misericordia me descontar as agonias nas muitas culpas de minha
vida. Não te mortifique o pezar de me haver deixado morrer, sem que a
tua vida se lavasse, pelo arrependimento, do deshonroso crime que a
disforma. A todo o tempo, se sentires o voluntario brado da consciencia,
escuta-o, remedea-te, e foge de ti mesmo para te encontrares na justiça
benigna do perdoador de crimes iguaes. Eu serei então em espirito
comtigo para te ajudar a reformar o teu animo, e alentar em teus
desfallecimentos.

«Dos desbarates e perdimento dos teus haveres, faz muito por salvar ao
menos esta casa onde nasceste, e a quinta que te dará abundante pão na
velhice, se Deus t'a der, como tempo de merecer o céo. Aqui nasceu teu
pae, e muitas gerações de santas e honradas pessoas. Salva esta casa,
que tens n'ella a sepultura de teus paes e avós.

«Se alguma vez voltares aqui, e tua prima fôr viva, estima-a, em paga
dos carinhos que lhe fico devendo, e do beijo de filha, que ella me
ha-de dar, quando eu expirar em seu seio. Aqui te lança sua derradeira
benção a tua boa mãe, _Eulalia_.»


XVII

Encerrou-se Affonso por espaço de oito dias, inconsolavel aos afagos de
Palmyra. Os amigos, seus socios de vida viciosa e soberba de sua culpa,
e contubernaes logrativos das dissipações, enfureciam-lhe o tormento do
remorso. Furtava-se á vista d'elles, fechando-se, quando vinham, com o
semblante composto de falso compadecimento, lembrar ao amigo, em lucto
de oito dias, que um homem de razão clara tinha obrigação de ser
superior a soffrimentos communs e naturalissimos, taes como a morte de
uma mãe. Palmyra ia ao salão receber os pezames, e combinava-se com os
cavalheiros admirados da pusillanimidade de Affonso. «Eu soffro
muito--dizia ella a D. José de Noronha alquebrando o rosto em
desconfortada pena--ao vêr que a minha solicitude consoladora nada póde
com Affonso. O coração da mulher, que renunciou á satisfação do dever, e
se immolou aos caprichos transitorios d'um homem, deve tambem renunciar
o poderio de desviar d'uma sepultura os olhos d'elle. Assim se é
castigada, quando se é culpada como eu.» A taes razões, proferidas com
os olhos no tecto, respondia D. José de Noronha:--Eu hei-de acreditar
que Affonso deixou de amar apaixonadamente v. exc.ª, quando elle se
confessar um monstro, e a honra fôr banida d'este mundo. Eu só
comprehendo o esquecimento da honra, quando é preciso sacrifical-a a uma
senhora como v. exc.ª Ainda bem que ha uma só, para se não abjurarem os
deveres sociaes.--Ora, o estylo de Affonso--digamol-o de corrida--era
muito mais lhano e correntio.

O filho de Eulalia, passado o primeiro mez de lucto, disse com suaves
maneiras a Palmyra que o seu animo estava passando por estranho
reviramento, no tocante a prazeres falsos do mundo;--que resolvia
diminuir as suas relações e as suas superfluidades;--que tencionava
occupar algumas horas na leitura, em que felizmente Palmyra o
acompanharia, revivendo a sua esquecida affeição aos livros;--que
aceitava como inspiração de sua santa mãe o desapegar-se de regalos
vãos, deleites de mera vaidade, que perdem seu sabor ainda antes de se
acabarem: finalmente, concluiu Affonso: «Vivamos como amantes que
dispensam serem admirados para serem venturosos.»

Palmyra sorriu, e disse:

--Bem sei... bem sei, Affonso.

--Que sabes tu? perguntou brandamente o moço--Diz o que sabes, minha
amiga.

--Comprehendo a mola occulta do teu novo programma de vida... É o
cansaço... Já me chamas _tua amiga_. A mulher, que ama, quando lhe dão
tal nome, sabe que é cousa de pouca monta para quem lh'o dá. Falla-me
claro: sentes o entojo de impressões novas? As cartas de tua prima é que
levantaram em teu espirito essas poeiras de tardia virtude? Nada de
refólhos, Affonso. A minha opinião é que nenhum de nós se constranja. As
pêas, impostas mesmo pelo dever, são um infortunio muito meu conhecido.
Fazes-me pena, se o experimentas. Amas tua prima, Affonso?

--Não amo minha prima--respondeu serena e pacientemente o moço--Se
amasse Mafalda, de certo não estaria ao lado de Palmyra. Estimo-a como
irmão; respeito-a religiosamente hoje, por saber que o ultimo alento de
minha mãe o recebeu ella nos labios... Porém, que tens tu com minha
prima? Que injustas referencias são essas que continuamente lhe estás
apontando? Que mal te fez a triste menina, que vive e morrerá sem outro
prazer senão o da sua virtude mal remunerada n'este mundo?...

--Virtude!...--interrompeu Palmyra franzindo os labios no sorriso da
ironia injuriosa--Sempre a virtude de tua prima em campo para contrastar
naturalmente os meus vicios!... Pouquissima generosidade é a tua
Affonso!... Terei eu de ouvir ainda de tua bocca o libello e a
condemnação das minhas culpas?! Póde ser, póde ser, e eu, envelhecida
pela experiencia de poucas semanas, não terei de que espantar-me.

--Offendem-me as tuas injustiças--redarguiu Affonso soffreando a
impaciencia--Que direito te dou para tanto?

--Direito? queres, por acaso, dizer-me que estou em tua casa?!

--Essa pergunta é aviltante, Palmyra!... Onde está a tua intelligencia,
a tua critica, e propriamente a tua vaidade?--redarguiu Affonso de
Teive--Desconheço-te, estás a descer sem impulso estranho...

--A descer da tua consideração?--acudiu ella resabiada.

--Quem o duvída? A mulher de alma nunca faz semelhantes perguntas a um
homem como Affonso de Teive. Queria eu dizer que não te dava direito, ou
causa a offender-me.

--Bem!--tornou ella amaciada a voz com falso accordo--Aceito a
explicação. Perdôemo-nos reciprocamente, e sejamos... sejamos...
_amigos_, sim?

--Como tu feriste ironicamente a palavra _amigos_!...

--É que me não tôa bem nos ouvidos do coração--replicou Palmyra risonha,
chegando a face aos labios do moço, que a beijaram friamente.

--Em quanto ao teu novo traçado de vida--volveu ella--queres que se
cumpra, em rigor, como está ordenado, sim?

--_Ordenado_, não é o termo proprio--Consulto-te, expuz em breve as
minhas razões; mas se te despraz...

--Apraz-me tudo que te contenta, meu Affonso. De hoje em diante
reformam-se os nossos costumes. Vendem-se os trens? trespassa-se o
camarote? vamos habitar uma casa modesta... Queres, Affonso? Tambem eu.

Não escapou a Affonso o tom ironico de taes perguntas. Cahiu em si de
repente, e viu-se em começos de castigo. Apagaram-se muitas luzes do
altar em que elle tinha o bello barro idolatrado. Fugiram-lhe para sobre
o tumulo de sua mãe os olhos d'alma, e viram Mafalda de joelhos na lagem
da capella com a face apoiada no marmore do jazigo. As luzes restantes
do altar ficaram para lhe amostrar o odioso da mulher de Eleuterio.

Ás perguntas retrincadas não respondeu Affonso... Ergueu-se, e sahiu do
seu quarto. Refugiou-se no mais recondito do palacio, para chorar a
salvo do opprobrioso sorriso de Palmyra. Depois, voltou ao seu
escriptorio, e escreveu a Mafalda esta carta, significativa de mudança
temporaria, senão fundamental, em seu espirito:

«Prima Mafalda. Vai ao pé do tumulo de minha mãe, e repete-lhe as
palavras d'esta carta. A justiça de Deus esmaga-me. Sou eu que vergo
debaixo do fardo de affronta que levantei da lama com minhas proprias
mãos. O arrependimento dos desvarios da mocidade não costuma atalhar tão
cedo a carreira dos grandes desgraçados. Fere-me Deus tão cedo! é por
que me quer desatar d'este jugo de infamia. Auxiliem-me as orações de
minha mãe, que eu sou fraco. Venham golpes de desengano, bem pungentes,
para que se faça o dia da razão em minha vida. A aurora d'este dia já
aponta; mas o meu coração ainda está envolvido em trevas, e cheio de
amargura. Santas devem ser as tuas orações, Mafalda. Eu dobro o joelho
ante a memoria de nossa mãe, ouso invocar a sua intercessão no céo; sei
que a alma bemaventurada não repelle o mau filho que a crucificou nos
ultimos annos, quando me ella pedia seio onde encostar as suas cans.
Mafalda, anjo solitario, que vês com os olhos puros as estrellas da
nossa infancia, ora por mim, dá-me a tua piedade, que nenhuma outra me
dá este mundo. Escreve-me, diz ao teu veneravel pae que me escreva.
Lembra-lhe os pardieiros das Taipas... Diz-lhe que o neto de Christovão
de Teive sente já no coração o corroer das ulceras que carcomeram a
pelle do emparedado. Amai-me ambos, defendei-me de mim proprio, que o
esteio da religião não póde com o peso de meus desatinos. Teu primo,
_Affonso_.»

Mandou Affonso lançar a carta na caixa postal. Um quarto de hora depois,
entrava Palmyra, fremente de raiva, com a carta aberta, exclamando:

--Isto é uma grande miseria, e uma grande infamia, snr. Affonso de
Teive! A minha dignidade vem pedir que esta affrontosa carta seja
reformada.

Affonso lançou mão da carta, e recuou horrorisado da villania de
Palmyra. Seccou-se-lhe a garganta e labios ao queimar d'um halito de
colera que lhe calcinava o peito. Não pôde fallar. Sahiu do quarto,
chamando a brados o criado a quem incumbira a remessa da carta. Já não
era criado de Affonso o miseravel que vendera o sigillo de seu amo pelo
ouro d'elle mesmo: fugira bem remunerado. No entanto Palmyra esbravejava
de sala em sala, soltando gritos pavorosos. Affonso, congestionadas as
fontes de sangue, e o coração em arrancos no peito, fincava os dedos nas
carnes da face, tapando os ouvidos para não ouvir os clamores da mulher
cuja furia recrescia á proporção do desprezo com que os proprios criados
lh'a escutavam.

Affonso de Teive sahiu aforrado como quem foge; foi lançar a carta por
sua mão; divagou horas no mais desfrequentado dos arvoredos do Campo
Grande. Ahi sentiu orvalhos do céo esfriar-lhe o afôgo da febre. Olhou
ao céo com mãos erguidas, e disse: «oh minha mãe!» Ao cahir da noite,
voltou a casa, e viu no pateo o _gig_ de D. José de Noronha. O seu
lacaio particular, antigo criado de sua mãe, acercou-se cautelosamente
d'elle, e disse-lhe:

--Fidalgo, não se afflija... Tenha animo, fidalgo, e não deixe fazer o
ninho atraz da orelha.

O chulo da phrase offendeu-o, e a intenção mysteriosa ainda mais.

--Que queres dizer, animal?--perguntou Affonso.

O criado coçou-se fechando os olhos, e respondeu:

--Lá em cima está o snr. D. José de Noronha.

--Que tem isso? não o tens aqui visto tantas vezes? Responde.

--Tenho, tenho, e Deus sabe se cá por dentro me não tem dado guinadas de
lhe partir na cabeça o _gig_.

--Por que? Vem cá... Entra n'esta loja commigo... Falla claro!--dizia
Affonso com suffocativa vehemencia--Que desconfias tu de D. José?

--Desconfio, fidalgo, que a snr.ª D. Palmyra não é fiel a v. exc.ª

--Mentes! mentes!--bradou Affonso--Prova-m'o, senão mato-te.

--Não ha-de matar, se Deus quizer, senhor morgado--volveu
tranquillamente o Tranqueira, nome que merece lembrado.--Faz favor de
tomar ar, e ouvir com socego. Estes negocios não vão assim de
afogadilho. Dê tempo ao tempo.

--Não é tempo ao tempo, é já, já, immediatamente. Diz o que sabes,
Tranqueira, que se me fende a cabeça.

--Fidalgo, ahi vai o que sei. O criado que fugiu esta manhã, sem que eu
lhe podesse pôr os dez mandamentos, foi cá mettido pelo lacaio da
senhora, e era lá muito collaço d'ella. Uns dias por outros, pisgava-se
do serviço o rapaz, e andava por lá quatro horas. Antes de hontem,
tirei-me dos meus cuidados, e fui-lhe na pista muito á socapa. Levei-o
d'olho até á rua de Santa Barbora, e lá esgueirou-se-me. Querem vossês
vêr que o diabo as arranja? disse eu cá c'os meus botões. Estará elle
mettido em casa do D. José de Noronha? Meu dito meu feito! D'ahi a menos
de tres credos sahia o malandro de casa do tal supplicante, e vinha anda
que anda por alli fóra. Sahi-lhe eu d'uma travessa, e disse: «Tu d'onde
vens, Antonio?» O patife engasgou-se, e nem p'ra traz nem p'ra diante.
Tate! disse eu, aqui ha tratantada. Se elle fosse a cousa boa dizia-o.
Puz-me a considerar no que havia de fazer. Eu se lhe digo que o vi sahir
de casa de D. José, espanto a caça, e fico por mentiroso, dizendo o que
vi a meu amo! Que hei-de eu fazer? Embucho o que sei; tomo á minha conta
espreitar a ama...--a ama! que a leve o diabo, que quem me paga é o
fidalgo!--espreito e se pilho a melgueira em termos, esbarronda-se o
negocio, e meu amo dá cabo d'este ladrão que o veio deshonrar a sua
casa.

Affonso, além da voz do Tranqueira, ouvia um zunido e fisgadas dentro do
craneo, como se lá se contorcesse e mordesse o cerebro um enxame de
vespas.

O criado continuou:

--Antes de hontem á noite appareceu aqui o D. José. Fui em palmilhas
atraz d'elle. Vi-o entrar na sala do tapete azul, e retirei-me assim que
vi v. exc.ª entrar tambem com a senhora. Desde então não tornou cá senão
agora; mas como lá está com elle outro amigo, acho que não tem duvida, e
por isso vim para aqui esperar o fidalgo. Aqui está o que eu sei, meu
amo. Bote lá as suas contas, e deixe-me dar uma carga de lenha ao tal
menino, se fôr preciso.

Affonso poz a mão direita sobre o hombro do Tranqueira, e disse:

--Obrigado, teu amo agradece-te os cuidados que tens com a sua honra.
Recommendo-te que não digas uma palavra a tal respeito. Ouves,
Tranqueira?

--Então isto fica em agua de bacalhau?--perguntou o criado, abrindo e
fechando as mãos.

--Já disse: nem uma palavra. Os teus cuidados agora passam para mim.

--Bem me fio eu n'isso!--murmurou o lacaio na ausencia do amo.

Affonso entrou no seu quarto; viu-se a um espelho: esperou que o rubor
da excitação se descorasse, compoz o semblante, e passou á sala onde
estavam Palmyra, D. José de Noronha, e um particular amigo d'este.

Palmyra, no sophá, tinha os braços em cruz sobre o seio, e a face
inclinada sobre elles. D. José de Noronha folheava sobre a jardineira as
_Mulheres de Walter-Scott_. O amigo estava sentado na poltrona contigua
ao sophá. Cortejou Affonso os dous cavalheiros, depois de estender a mão
a Palmyra, com tão demasiada ceremonia, que lhe não roçou as pontas dos
dedos. Esta acção, depois da lucta da manhã, pareceu naturalissima á
esposa de Eleuterio. Depois, achegou-se serenamente de D. José, observou
a _Flora Mac-Ivor_ do romancista escocez, concordou com D. José na
primazia da gentileza d'esta heroina, disse poucas mais palavras, e
pediu licença para recolher-se, obrigado por uma fortissima enxaqueca.
Tudo isto com um natural irreprehensivel.

Entrou Affonso no gabinete de Palmyra. Havia alli uma secretária de
mogno, com espelhos, cravejada de gavetinhas moldadas pelo feitio dos
antigos contadores. Tiradas as gavetas da primeira serie, encontravam-se
uns _falsos_ de segredo, conhecido d'elle, que fôra o primeiro possuidor
da engenhosa alfaia. Instigado pela suspeita, tirou Affonso pelos botões
da gaveta central: estava fechada, e as duas lateraes abertas. Concluiu
que a do meio segredava uma revelação. Procurou um ferro geitoso com que
fazer saltar a fechadura: serviu-lhe a ponta d'um punhal. Cedeu a fragil
lingueta, estalando. Tirou Affonso a gaveta, que continha joias: levou o
dedo ao imperceptivel botão que abria o _falso,_ e tirou dous macetes de
cartas, e uma solta. Abriu esta, e leu as primeiras linhas. Uma sombra
de duvida seria estupidez maxima. Dizia: _É preciso cuidado com o lacaio
de A. Encarou-me hontem de certa maneira... Emprega o nosso Antonio na
espionagem d'alguma suspeita. Amanhã vai commigo o D. A. M. se fôr
propicia a occasião elle sahirá a tempo. &c_.

Passou Affonso ao seu quarto para deliberar meditando. Que lance para
meditações! D'ahi a pouco ouviu o rugir das sêdas de Palmyra. Lançou-se
apressado sobre o leito, com a fronte entre as mãos.

--Estás melhor?--disse ella maviosamente.

--Não.

--Cuidei que estarias deitado. Que has-de tomar, meu filho?--Volveu
ella, inclinando-se ao rosto de Affonso--Que tomas de ceia?

--Nada.

--Estás ainda muito irado contra mim?--replicou ameigando-o.

--Deixa-me, que me custa fallar. Vai á sala, se está lá gente.

--Irei, se de nada te sirvo aqui, e de mais a mais te importuno. Ainda
lá estão aquelles maçadores... Logo voltarei a saber de ti.


XVIII

Voltou Palmyra á sala, e, momentos depois, reappareceu no quarto
d'Affonso, perguntando se D. José de Noronha e D. Antonio Mascarenhas
podiam, não incommodando, visital-o. Affonso respondeu, sem alteração,
que lhes agradecia o cuidado; mas, confiado na amiga familiaridade com
que o tratavam e eram recebidos, esperava que o deixassem estar em
silencio, a vêr se assim a dôr de cabeça se mitigava. Palmyra entrou bem
assombrada na sala, e disse a D. José: «Não ha que desconfiar. São
saudades de Mafalda, rebuçadas nas saudades da mãe.»

Entretanto, Affonso, lançando-se do leito, examinava os fulminantes das
pistolas... Seja elle o narrador d'este indescriptivel trance:

«Ao tempo em que eu revocava toda a minha reflexão para bem definir os
actos sequentes ao homicidio, senti no coração uma rija pancada, e, para
assim dizer, quasi apalpei ante meus olhos desvairados o vulto de minha
mãe. Depuz as pistolas, e ajuntei as mãos. Ainda agora me maravilha a
passagem rapida da vertigem, em que a minha honra me impunha matar o
infame, para a tranquilla consideração sobre a inefficacia do homicidio
como vingança da perfidia. Attribuo esta mudança inverosimil, segundo a
logica das paixões, a mais forte poder que o da alma humana. N'esta
suspensão, pedi ao espirito de minha mãe que me acudisse com o conselho
salvador. Não ouvi resposta alguma, nem o meu entendimento concebeu
algum designio. O que vi foi a imagem de Eleuterio, na sala da estalagem
de Barcellinhos, no momento em que, lavado em lagrimas, dizia á mulher:
«Castigada te veja eu, e Deus me vingue!»

«Eis aqui a resposta da alma bemaventurada; eis aqui as indirectas
respostas da Providencia.

«Entendi que soára para mim a hora da expiação, annunciada pela visão do
marido, cortado de angustias, superiores á minha. Faziam-se acceleradas
transformações em meu animo; todas, porém, estranhas ao primeiro intento
de matar. Lembrou-me fugir a occultas de minha casa, e esconder da
infame e do mundo a explicação da minha fuga. Acudia-me logo outra idéa
argumentando contra a miseria d'aquella. Lembrou-me propor a Theodora a
separação, reservando a razão da proposta. Não sei quantos projectos
disparatados ou irrisorios se atropellaram na minha pobre cabeça. «Serei
eu um covarde?» perguntava eu logo á minha consciencia. Vinha então
outra vez Eleuterio postar-se ante mim, e dizer á mulher que o fitava
com desprezo: «Castigada te veja eu, e Deus me vingue.»

«Desligado da menor premeditação, assalteou-me de repente uma idéa, cujo
alcance e desfecho eu não curei prever. Tirei dos bolsos as cartas de
Palmyra, encontradas no segredo da secretária, e dirigi-me á sala. Ao
sahir da porta do meu quarto vi um vulto a sumir-se na extrema do
corredor. Estuguei o passo, e o vulto parou. Era o meu criado
Tranqueira. Perguntei-lhe o que fazia alli. «Estou de plantão» respondeu
elle. Ainda agora, ou agora verdadeiramente, é que eu posso rir da
resposta e admirar o homem que a deu. Inclinou-se ao meu ouvido, e
continuou: «Como dei fé que o patrão se deitou, não quiz deixar o
negocio ao Deus dará: é o que foi.»

«Entrei na sala a passo mesurado, e quasi a subitas. Estava D. José ao
lado de Palmyra na mesma othomana. D. Antonio folheava as _Mulheres de
Walter-Scott_. Palmyra estremeceu, ao vêr-me assomar debaixo do
reposteiro. D. José, embrutecido pela surpreza, não se moveu da posição
denunciante da extrema familiaridade. Em minha presença, nunca elle se
assentára a par de Palmyra no mesmo estôfo. Voltando a si da
estupefacção de momentos, ia levantar-se, quando eu lhe disse:

«--Não se incommode, snr. D. José de Noronha. Está bem. Os meus amigos
em minha casa são os donos d'ella.

--Essas maneiras exquisitas, Affonso...--tartamudeou D. José, em quanto
Palmyra, perplexa ainda, manifestava sua duvida no abrimento da bocca e
esgazeado das faces.

«Não respondi á banal reflexão de Noronha. Voltei-me para D. Antonio, e
disse-lhe:--O snr. Mascarenhas é de mais aqui. _Se fôr propicia a
occasião, elle sahirá a tempo_--diz a carta do nosso amigo D. José. V.
exc.ª devêra já ter sahido.

«Relanceei de revez um olhar a Palmyra. Vi-a sobresaltada e livida,
agitando-se em convulsos movimentos, sem todavia se erguer do sophá. D.
José erguera-se, apoiando-se ao espaldar de uma cadeira. D. Antonio
encarava-me com ares de pavor. Eu continuei:--A figura do snr.
Mascarenhas n'este quadro é de mais. Queira sahir.

--Eu vou com D. Antonio--disse o Noronha.

«--Elle que o espere na rua--respondi, voltando levemente a cabeça sem o
encarar.

«D. Antonio tomou o chapéo com presteza, abaixou a cabeça a Palmyra, e
sahiu, cortejando-me.

«A mulher da estalagem de Barcellinhos voltou ao corpo de Theodora.
Eil-a em pé, com a serpente da soberba a enfuriar-lhe os gestos.

--Que significa isto?--exclamou ella--Acabemos esta situação sem grandes
scenas! Que vem dizer-me o snr. Affonso?

«Confessarei que me senti pequeno diante d'este cynico interrogatorio!
Que havia eu de responder á mulher, que rebatera com escarneo e
arrogancia as moderadas aggressões do marido? Com que direitos ia eu
alli, deshonrado, pedir contas de sua e minha honra, a ella que estava
perdida? E, se a infamia era commum de ambos, por que ambos eramos
criminosos, que falsos brios tinha eu por mim a inspirar-me uma resposta
digna d'aquellas perguntas? Sómente assim posso agora dar-me contas de
minha mudez de então.

«E ella, acorçoada pelo meu espantado silencio, proseguiu:--Abjurei dos
deveres da honra, perdi-me, atirei-me cegamente aos seus braços, snr.
Affonso de Teive. Satisfiz os seus caprichos, favoreci-lhe o orgulho de
ter uma odalisca no seu palacio, prestei-me a enfeitar de falsos risos o
meu semblante, mostrei-me ao mundo com o ar alegre da escrava que
idolatrava a sua servidão, em quanto o snr. Affonso, enlevado nos ideaes
amores d'uma prima...

«--Infame!--atalhei eu--Se tem de citar nomes de mulheres no seu
arrazoado, procure-as, se as conhece, nas derradeiras paragens do
vicio!... Não suje o nome de mulher alguma; toda a mulher, não cahida na
ultima abjecção, impõe respeito á amante de D. José de Noronha,
hospedada em casa de Affonso de Teive.

--Bem!--exclamou ella--a amante de D. José de Noronha agradece a
hospedagem, promette mesmo pagal-a da altura da sua independencia, e vai
sahir, impondo silencio ao insultador.

«--Pois saia--tornei eu--mas leve comsigo o esterco com que sujou a
minha casa!--e, dizendo, atirei-lhe ao rosto os macetes das cartas.

«Palmyra, como se um aspide lhe mordesse um pé, deu um salto de fera
enjaulada. D. José de Noronha tremia.

«E eu continuei, voltado contra elle:--A infamia é assim: tem esses
desmaios de covardia, que desarmam o odio, e levariam á piedade, se o
nojo não estivesse áquem da virtude da compaixão. Snr.ª D. Palmyra, aqui
tem um paladino, que a não ha-de deixar corar sem desforço diante dos
seus insultadores. Siga-o. Tem uma sege ás suas ordens, se o seu pudor
lhe não permitte entrar no carro do amante. Em quanto ao snr. D. José de
Noronha, saia, e espere-a na rua.

Palmyra fugiu da sala em arremettidas de louca. D. José sahiu com o
rosto abatido sobre o peito. E eu cahi extenuado sobre uma cadeira,
cuidando morrer alli afogado de congestão de sangue no coração. D'ahi a
momentos ouvi o gritar estridente de Palmyra, e um grande reboliço no
pateo. Quiz debalde levantár-me. As pernas tremiam-me como se todos os
nervos me estivessem golpeados.

«Abaterei agora a linguagem tragica do successo para te narrar o que se
passava no pateo.

«O Tranqueira, posto de plantão, como elle dissera, não sahiu da sala de
espera, ou do proximo corredor. Momentos antes da sahida de D. José,
descera elle ao pateo. Quando o aturdido infame ia passando, sahiu
Tranqueira do seu quarto com a lanterna do serviço das cavalhariças.
Avisinhou-se de D. José, metteu-lhe a luz á cara, e disse-lhe: «O
fidalgo, se me não engano, leva a sua pontinha de febre!... Acho-o muito
vermelho; e não será mau refrescar-lhe a cabeça. «Disse, depoz a
lanterna, sobraçou-o pela cintura, fincou-lhe a mão esquerda no gasnête,
levou-o de borco sobre a cisterna do deposito d'agua para os cavallos, e
baldeou-o dentro, exclamando: «Ha-de ir fresco, ha-de ir fresco, seu
alfacinha!» Os outros criados ainda quizeram valer-lhe; mas Tranqueira
desfizera-se do jockey de D. José, rechaçando-o com um pontapé tangido
por furia, digna de melhor adversario. O desgraçado cahira de cachapuz,
e lográra logo romper com a cabeça á flôr d'agua; mas do pescoço abaixo
ficou empoçado, sem poder marinhar aos bordos da cisterna, á mingoa de
pega onde afincar as unhas. O instincto da vida vencera o da vergonha.
D. José gritava, e o Tranqueira, dando-lhe as boas noites, fôra para a
cavalhariça arraçoar os cavallos. Os brados chegaram aos ouvidos de
Palmyra, a tempo que o jockey se erguia do pontapé que o desintestinára,
para, muito a custo, acudir ao amo. Desceu Palmyra anciada ao pateo, no
momento em que o eleito de sua alma, na bocca da cisterna, sacudia as
bicas d'agua, e tiritava estalejando as maxillas.

«Fulminou-a o ridiculo! Só o ridiculo podia sossobrar aquella alma de
tempera, feita para reagir a todos os embates. Retrocedeu do portão para
o escuro do pateo. Nem a commiseração lhe deu alentos para se aproximar
do ensopado moço. Odiou-lhe talvez a covardia n'aquella hora. Odiou-se
talvez a si propria. Não sei. Avisaram-me que ella estava prostrada, e
sem sentidos, no lagêdo do pateo. Dei ordem ás criadas que a
transportassem ao seu leito. Minutos depois, abandonei a minha casa,
levando commigo o criado que me vira nascer, o unico homem diante de
quem eu podia chorar.


XIX

«No dia seguinte, mandei de Cintra o criado a casa, informar-se dos
successos decorridos... Quererias tu... agora penso que tu desejas saber
como foi aquella minha noite... Passei-a na ida para Cintra. Quer-me
parecer que parte de minhas faculdades moraes ia atrophiada. Volteavam
em redor de minha intelligencia uns corpos, ora negros como o recesso
dos abysmos, ora igneos como as fitas dos coriscos. Nem a memoria de
minha mãe se mesclava ao revolutear das minhas concepções
desconcertadas. Era a febre, a procella do sangue encapellada na cabeça.
O criado teve o instincto de comprehender-me. Raras palavras me disse
com resposta. Algumas vezes senti-me aferrado pelo seu braço; era quando
eu ia despenhar-me do cavallo, sem dar tento da vertigem.

Contava-me elle depois que eu, a intervallos longos, expedia gritos que
lhe eriçavam os cabellos, e vociferava insultos, esporeando
freneticamente o cavallo.

Aqui tens a minha noite: não tenho outras memorias. Apenas me recordo
que aos primeiros assomos da manhã se romperam os diques das lagrimas, e
chorei por muito tempo.

O criado partiu de Cintra com ordem de colher noticias. Voltou,
entregando-me um papel aberto, que o escudeiro lhe dera, escripto por
Palmyra. Era uma declaração de divida indeterminada, ou que havia de
fixar-se pela avaliação dos objectos de seu uso, que ella, ao sahir de
minha casa, levava comsigo. Deviam ser vestidos e joias. Palmyra, por
tanto, havia sahido na manhã d'aquelle dia.

Ao entardecer, quando a tristeza cahia do céo, como um lucto de almas
não já desditosas, mas ainda arraiadas do iris da esperança,
confrangeram-se-me em dôr ineffavel as fibras do coração, dôr de saudade
voracissima, saudade de Palmyra, desejo ardente de vêl-a não sei se para
cahir-lhe de joelhos aos pés, se para escarrar-lhe no rosto. Nenhum
allivio pedido a todas as potencias de minha imaginação, pedido a Deus,
e ao amor de minha mãe, nenhum conforto experimentei. Era a
desesperação, que pensa no suicidio. Deitei-me, confiado na esperança de
cahir em lethargia de sentidos. Revolvi-me sobre espinhos em incendio
febril. Se algum instante o sopor me desfallecia, pulava-me o coração
com tamanho impeto que eu espertava convulso, atirando-me do leito
contra a janella, em agonias de estrangulado. O maximo horror das minhas
visões era ella, nos braços d'aquelle miseravel, áquella hora. As
minimas circumstancias d'um espectaculo de devassidão, as mais secretas,
e lubricas minudencias se me traçavam patentes a uma claridade infernal.
A oração, esse divino desabafo de enormes afflicções, nem esse bem me
valia um relampago de socego á alma. Começava orando, a anciedade
recrescia, a fé desamparava-me, e então sobrevinha o desprezo de Deus, a
negação da Providencia, e um feroz deleite de blasphemar. Eu amava a
mulher abysmada, a mulher prostituida! Eu, santo Deus, com instinctos
tão nobres, educação tão religiosa, e respeitos tão profundos á
dignidade! Pensava-o eu assim; dava-me eu então os epithetos usurpados á
honra!... Eu que me infatuára perante o mundo de acorrentar á minha
vaidade a mulher formosa, em cuja fronte a moral escrevera um estigma,
que eu cobria de brilhantes e flôres, cuidando que a sociedade havia de
respeital-a assim, e humilhar-se diante da minha affrontadora opulencia!
Eu, verme esmagado, ousar pedir contas a Deus da iniquidade do seu
arbitrio, e renegal-o como ente inutil ao remedio da minha desgraça!...

«Mal me entreluziu a manhã, fiz apparelhar os cavallos, e voltei para
Lisboa sem proposito feito. Durante a caminhada, o meu velho Tranqueira,
em quanto as cavalgaduras se desfadigavam, acercou-se de mim com os
olhos envidrados de lagrimas, e disse a medo: «Meu amo, vamos embora de
Lisboa; vamos para a nossa terra, que Deus e a Virgem Maria dará
remedio.» Não respondi; mas pensei. A quietação da minha aldêa
convidava-me; porém, entrando em espirito no interior da minha casa de
Ruivães, ouvia com pavor o som dos meus passos n'aquellas salas
desertas: faltava-me minha mãe alli: o anjo consolador fugira antes do
meu resgate. Acudia-me á lembrança a minha triste Mafalda, a irmã terna,
a meiguice da virgem compadecida; porém o meu coração, a porejar o
esqualor da sua hedionda chaga, rejeitava os balsamos d'um affecto
purificador.

«O tumulto das grandes cidades, com o seu engodo, attrahente da desordem
da vida, quadrava mais á minha alma sedenta de não sei que filtros de
lagrimas e sangue. Estava traçado o meu plano, quando cheguei a Lisboa.
Qualquer resolução sacode o mais paralysado espirito. Senti-me forte
para entrar em minha casa. Fui ao gabinete de Palmyra, e abri as suas
gavetas despejadas de todas as cousas d'algum valor. A minha razão
logrou um momento de lucidez: afigurou-se-me rasteira a indole de uma
mulher, que, em conflicto de tamanha vergonha, tivera animo para se
andar por suas proprias mãos enfardando vestidos e enfeites, no intento
de vestir as galas seductoras de amantes novos. Refugi como envilecido
dos aposentos de Palmyra. Fui ao meu quarto. Fiz encaixotar as minhas
roupas. Guardei a correspondencia de minha mãe e de Mafalda. Queimei os
restantes papeis, excepto as cartas de Theodora das Ursulinas. Por quê?
Nem eu sei. Queria aquellas memorias da creança que então morrera...

--«Chamei os criados, e despedi-os. Mandei fechar as portas ao meu
Tranqueira, e, n'esse mesmo dia, expedi ordens para a venda de
carruagens, cavallos, e mobilia. Alguns amigos conseguiram rastrear a
minha residencia obscura n'um hotel inglez em Buenos-Ayres.

«Procuraram-me, e eu não os recebi. A minha vaidade envergonhava-se
d'elles. Nem a despedaçadora curiosidade de saber o destino de Palmyra
pôde vencer o orgulho escarnecido.

«No fim de nove dias, recebi carta de Mafalda, respondendo á minha.
Eil-a aqui: «Ambos te queremos do coração, Affonso. Meu pae não diz a
teu respeito palavra de censura: chama-te infeliz, e mais nada. Quando
tua mãe dizia em ancias: «perdi meu filho!» o meu bom pae ajuntava
sempre: «elle virá, minha irmã, que a sua indole é boa.» Mostrei-lhe a
tua carta, e vi-o chorar; pedi-lhe que te escrevesse, e elle disse-me:
«escreve-lhe tu, com a benção de teu pae; diz-lhe que o amas sempre: eu
dou-lhe o amor da minha Mafalda, consinto que ella o ame; é o mais que
posso dar-lhe.» Estas palavras escrevo-t'as por sua ordem, e desconfio
que são inuteis para a tua felicidade. Ainda assim, em quereres a nossa
amizade, primo Affonso, nos dás grande satisfação.

«Vejo que vives muito amargurado, desde que morreu a nossa chorada mãe.
Se te mortifica o pezar de não ter vindo assistir-lhe á morte,
tranquillise-te a certeza de que ella te perdoou. Bem sabes que santinha
e que mãe ella era. Eu fui lêr á beira da sua sepultura a tua carta.
Li-a em voz alta, cortada de gemidos. Depois orei muito, e levantei-me
de ao pé d'ella tão desopprimida e satisfeita que tomei por instincto do
céo a minha alegria. Póde ser que esta carta vá encontrar-te no gozo do
allivio que eu senti então.

«Bom seria, meu primo, que tu mandasses cuidar um pouco nos negocios da
tua casa. Meu pae faz o que póde, e dirige o teu procurador; mas receia
de não zelar os teus interesses como queria por falta de saude, e pela
distancia em que vivemos de Ruivães.

«Adeus, meu querido irmão. Cuida em ser feliz, e lembra-te com amizade
da tua _Mafalda_.»

«Respondi logo a esta carta, participando a minha prima que ia sahir
para Pariz, no proposito de assentar alli a minha residencia. Expressões
affectuosas escassamente lhe disse as vulgares, as necessarias á
formalidade de relações entre primos que se estimam. É que eu via em mim
o aviltado homem que estava sendo, e de Mafalda mesmo tinha eu um certo
pejo, vaidade ainda, a vaidade do homem que se julga desapreciado aos
olhos de uma mulher, que o vê rejeitado d'outra, embora villissima,
embora repulsada da sociedade de mulheres aptas para honestamente
avaliarem o merecimento do homem desprezado. Eu não queria nem podia,
coberto de infamia por Palmyra, ir acolher-me ao amor de Mafalda. E
depois, e sobre tudo, meu amigo, bem que eu quizesse, não poderia amal-a
então como a teria amado quinze dias antes, insuspeitoso da lealdade de
Palmyra. Sabem os experimentados, poderás tu sabel-o, que é uma excepção
d'almas futeis a passagem rapida d'uma affeição a outra, quando nos pesa
o opprobrio d'uma perfidia. O coração está lanhado, a fronte não ousa
erguer-se para a mulher do amor de salvação, a dignidade geme sob um
peso de vilipendio, que cuidamos lêr nos olhares affrontadores de todo o
mundo, olhares que por vezes exprimem compaixão. Mas o que é em casos
taes a piedade, senão injuria?!

«Escrevi ao meu procurador ordenando-lhe a venda de todas as minhas
propriedades, salvando a casa e quinta de Ruivães. Na volta do correio,
avisou-me elle de que havia comprador prompto; e, poucos dias depois,
recebi ordens de pagamento de trinta mil cruzados. Com estas ordens,
vinha carta de meu tio Fernão de Teive. Dizia assim: «Tua prima está
enferma, por isso não te escreve; e eu tambem adoentado e tristonho mal
posso escrever-te. Recebemos a nova da tua mudança para Paris. Vai com
Deus, Affonso. Póde ser que a tua felicidade lá esteja. Folgo de te vêr
ir desligado da personagem que, segundo me dizem, foi a final o que era
rigoroso que fosse. Diante da mulher perdida todos os homens são iguaes.
Quereres tu o privilegio que o marido não teve, seria um absurdo do teu
orgulho. Theodora está em Braga promovendo o divorcio a fim de
levantar-se com o seu patrimonio. O Eleuterio, por intervenção de um meu
compadre, quiz que eu entrasse como ouvinte e conselheiro em suas
cousas. Aceitei o convite como quem tem pouco que fazer, e passa as suas
horas na cama a agasalhar a gôta. Sou o depositario do borrador das
cartas que ella te escrevia, seductoras em verdade, e dignas de irem á
estampa. Onde foi esta mulher aprender tanta palavra?! Estou em dizer
que anda aqui muito amor de diccionario; e os successos posteriores
levam-me a crêr que era ainda peor o amor da creatura. Aqui estou eu a
fallar comtigo á laia de rapaz! e o caso é que a dôr do calcanhar
esquerdo espalhou.

«O teu procurador avisa-me que vendeu as tuas quintas de Leiroz e
Gestal. Para te não dizer cousas tristes, e evitar que torne a dôr do
calcanhar, ponho aqui ponto. Mas sempre te direi, como irmão de tua mãe,
e teu amigo devéras, que, exhaurido o teu patrimonio, tens a minha casa.
Se eu morrer--e ainda bem!--antes d'esse dia (dia, talvez, inevitavel!)
deixarei dito a Mafalda que seja sempre o que tua mãe e eu fomos para
ti: o coração devotado sem condições. Adeus. Quando tiveres vagar,
escreve-nos de Paris--Teu tio _F. de Teive_.»

«Alegrou-me a nova da ausencia de Palmyra de Lisboa. O dragão do ciume
desencravou-me as garras do peito. Que estupida alegria! A suspensão da
perfidia que importava ao desaggravo do meu orgulho? Quão lastimaveis e
ridiculos somos, se uma vez perdemos o norte da legitima, da decente
probidade! Nenhum liame da sã moral resiste ao cancro do coração. Até o
regenerarmo-nos tem para nós um certo ar de baixeza de animo, scena de
comedia que faz rir o mundo.

«E eu, ancioso de um mundo novo, fui para França. Que cuidas tu que eu
ia procurar em França?

--O methodo mais facil de gastar os trinta mil cruzados--respondi eu.

--Não me lembravam os trinta mil cruzados: ia procurar uma mulher; ia
procurar o amor de salvação.

--E encontraste-o em França?

--Encontrei.

--Vejamos.


XX

Ao oitavo dia de residencia em Paris, Affonso de Teive não sabia que
fazer da sua pesada inercia. Fechado no quarto de um hotel, ouvia os
estrondos da Babylonia, e suspirava pelos silencios da sua aldêa.
Apresentára as cartas de cavalheiros de Lisboa na embaixada portugueza,
recebera a visita dos compatriotas distinctos em Paris, e convivera nos
primeiros dias em bailes, theatros, e jantares. Saciou-se prestes
aquella contrafeita sofreguidão de vida, e logo uma subita e glacial
atonia lhe ennegreceu os prazeres, almejados de longe, como iniciação
para outros, que inteiramente lhe obliterassem da memoria as dôres
passadas.

E, no termo de oito dias, uma consolação unica lhe restava: era o
ante-gosto de voltar á casa deserta de Ruivães, e esperar alli ao lado
do jazigo de seus paes o breve termo de sua irremediavel tristeza.

Affonso, porém, tinha vinte e quatro annos. A natureza contramina estas
renunciações intempestivas. Uns repentes impensados sacodem a alma de
sua modorra, e a sobre-excitam a desejos vagos, bem que ephemeros. A
materia não é um impassivel envoltorio de corações entorpecidos. É
preciso que a vida sensitiva se amorteça antes da actividade moral para
que as paixões mallogradas vinguem o total quebranto do homem.

Entrou Affonso na sociedade, levado pela mão da esperança, que promettia
guial-o ao pé da mulher salvadora. Mal encaminhado ia aos salões de
Paris. Os conhecedores d'aquelle «mundo» contaram-lhe as historias de
cada mulher, que tinha ares de poder salvar alguem: no geral eram
creaturas, que procuravam quem as salvasse das incertezas do futuro pelo
casamento justificado e santificado com algumas centenas de milhares de
francos. Estas eram as filhas dos generaes do imperio, as filhas dos
estadistas em começo de fortuna, as filhas dos gentis-homens cujos
appellidos contavam sua antiguidade de Carlos Magno para além. E todas
estas meninas, esperançadas em salvação, e em requesta de salvadores,
quando encaravam no vulto melancolico de Affonso de Teive, imaginavam-no
um galante moço que, ao contemplal-as, dizia magoadamente entre si: «Se
eu fosse rico!...» E ellas, olhando-o de soslaio com discreta reserva,
diziam: «Se tu fosses rico!...»

Quando Affonso tomou a peito rectificar este juizo dos seus amigos,
avisinhou-se das mais aureoladas do azul-celeste da innocencia, e
averiguou que as mais singelas á vista eram as que mais a ponto
fallavam, em termos rigorosamente arithmeticos, de fortunas
deslumbrantes, de casamentos projectados. E, se elle, com a portugueza e
bemdita poesia dos nossos amores de sala, aventurava algumas phrases de
idyllio sobreposse, as ligeirissimas creaturas ouviam-no distrahidas,
como, no theatro, ouviriam musica de Donizetti, e encheriam de melodias
a alma, em quanto assestavam o binoculo no filho do banqueiro.

Comprehendeu logo Affonso de Teive que não servia á alta sociedade
parisiense. Um forasteiro, que vai a Paris com trinta mil cruzados, e
deixa na patria uma quinta, que valeria menos de metade d'aquella
quantia improductiva, deve contar que no caminho do hotel aos theatros e
salas, aos festins e concertos, em menos de dous annos, com alguma
parcimonia nas despezas, se lhe hão-de escoar as ultimas mealhas. Os
haveres de Affonso, postos á disposição da filha do marechal do imperio
ou do marquez decahido com os Bourbons, dariam uma dezena de _toilettes_
da esposa. Esta dura verdade calou-lhe no animo, afastando-o do concurso
de mancebos, que malbaratavam cada mez fortuna sobreexcedente á d'elle.
Penoso desengano ás portas do grande mundo onde elle tencionára
retemperar o coração ao bafejo das primeiras mulheres da época, e da
França. Tinha, por tanto, que descer ás inferiores camadas, abaixo mesmo
da media. N'esta mais difficil lhe seria o escolher um rosto distincto e
uma alma no estado da innocencia do anjo: trancava-lhe as portas a
cobiça que lá vai dentro, imitando-as a elevarem-se até emparelharem com
as invejadas mulheres da classe alta. Elle, cuja razão se alumiára á luz
do facho do universo, á luz de Paris, viu-se qual era, correu-se da sua
comparativa pobreza, e refugiu dos bailes, das cêas, e dos concursos em
que o seu peculio se ia desnervando á custa de sangrias inevitaveis.

Madrugou, um dia, Affonso de Teive ambicioso de riqueza. N'esta hora, e
pelo tempo fóra de oito mezes, fez-se em seu coração um quietismo
espantoso! Descuidou-se do esmero no trajar; era-lhe já como
indifferente o reparo da mulher. Vendeu o tilbury e o cavallo. Mudou
para hotel menos dispendioso. Traçou plano de batalha á fortuna, e
entrou no jogo de fundos, onde os felizes, a um relanço de olhos da boa
fada, accumulavam enormes cabedaes, facto demonstrado por milhares de
exemplos.

Foi feliz nos ensaios timidos, e em pouco. Prosperaram-lhe outros de
maior risco. Cuidou-se bemfadado para emprezas maiores. Vieram as
alternativas, equilibrando-se. Começou Affonso a estudar seriamente os
mysterios d'aquelle jogo, com enthusiasmo e absoluto menosprezo de tudo
mais. Dizia-se elle: « refaça-se a fortuna, que depois se reconstruirá o
coração. Dinheiro, muito dinheiro, para comprar uma alma pura em Paris,
onde a raridade tornou carissimo o genero!»

Sossobrado por um revez, perde metade do seu capital. Desanima, e
esmorece em força moral. Vai a medo á barra do Potosi, e crê que está
alli um abysmo a tragar-lhe o restante, e depois a elle. Que fará
empobrecido no extremo? Venderá a casa, a quinta, a capella, e o tumulo
de sua mãe? Lembra-lhe a mãe, e invoca a alma santa a coadjuval-o na
empreza immoral. A santa infunde-lhe uma insuperavel desanimação diante
do perigo. Associa-se a jogadores felizes. Balancea-lhe a fortuna entre
pequenos desastres e pequenos lucros. Ao fim de oito mezes, a sociedade
quebra, e Affonso de Teive tem de seu algumas libras, e cincoenta que o
Tranqueira delicadamente lhe introduz na sua gaveta, os seus ordenados e
economias de muitos annos.

O criado amigo, testemunha das lagrimas e das vertigens, ousa
aconselhal-o que volte para Ruivães, e se restaure limitando-se ao
rendimento de sua casa. Affonso enfuria-se contra o criado, exclamando:
«Sabes o que é a minha casa de Ruivães? São quarenta carros de pão cada
anno»--E vinte pipas de vinho, e uma de azeite--ajuntou o criado. «Que
vale tudo isso?»--perguntou Affonso. O Tranqueira fez a conta pelos
dedos, e respondeu:--Feitas as despezas do grangeio, vale seiscentos mil
réis. «E hei-de eu viver com seiscentos mil réis por anno!--clamou
Affonso--eu! habituado ao luxo, com vinte e cinco annos, com precisão de
aturdir a minha existencia nos prazeres, que só a muito dinheiro se
encontram em toda a parte do mundo!»

O criado encolheu os hombros, e disse entre si:--Valha-nos a alma de
minha santa ama e senhora!

Medita Affonso vender o resto de seu patrimonio; e para logo lhe
occorrem estas palavras da ultima carta de sua mãe moribunda: _Dos
desbarates e perdimento dos teus haveres, faz muito por salvar ao menos
esta casa onde nasceste, e a quinta que te dará abundante pão na
velhice, se Deus t'a der como tempo de merecer o céo. Aqui nasceu teu
pae, e muitas gerações de santas e honradas pessoas. Salva esta casa,
que tens n'ella a sepultura de teus paes e avós_.

Desfallece-lhe a sacrilega coragem de negar a sua mãe o derradeiro
pedido. Mas a necessidade atroz abriga-o a desviar os olhos d'um tumulo
para enxergar não longe a indigencia em Paris, a indigencia relativa com
as galas do passado.

Estas agonias são as supremas de sua vida. Palmyra, a memoria da mulher
fatal, nem por sonhos o perturba. Apparelham-se-lhe affrontamentos
maiores. A vergonha do pobre mostra-se-lhe mais aviltante que a vergonha
de atraiçoado. Pensa, sonha, contorce-se, alenta-se, desmaia,
recobra-se, sempre a scismar na rehabilitação pelo ouro, na reparação do
seu capital; porém, de que modo, sem capital nenhum?... Salvadora
idéa!...

Escreve ao tio Fernão d'este theor:

«Perdi-me, perdi o que trouxe de Portugal, estou pobre. Eis-me mais
castigado que o padecente dos pardieiros das Taipas. Elle refugiou-se
aos quarenta annos, ainda rico do mundo. Eu tenho vinte e cinco annos, a
honra perdida, a rehabilitação impossivel, aptidão para nada, o espirito
derrancado no gozo de infames delicias: e, para sustentar esta vida
corroida da lepra, resta-me a quinta de Ruivães. Eu sei que a fome não
iria lá bater-me ás portas, sei que ainda tenho de meu o talher na sua
mesa, meu tio, mas Affonso de Teive antes de estender a mão á piedade
mesmo dos seus ha-de esconder a sua ignominia n'um d'estes comoros de
terra, onde os sepultados não tem nome. Minha mãe pediu-me que não
vendesse a casa onde está o jazigo de meus avós. Os meus avós são os de
meu tio Fernão de Teive. Aqui venho eu offerecer-lhe a minha quinta.
Compre-m'a, meu tio, que a vontade de minha mãe está cumprida. Lá fica
Mafalda, o anjo, para ajoelhar diante d'aquellas lapides sagradas.
Compre-m'a, senão eu, de mãos postas, pedirei a minha mãe que perdoe ao
reprobo, que lhe vendeu os ossos, na vespera do dia da fome. Seu
sobrinho _Affonso_.»

Fernão, lida a carta, em presença de Mafalda, abriu os braços á filha,
que parecia finar-se n'elles. Das ancias e lagrimas sahiu ella com uns
gritos afflictissimos, pedindo ao pae que valesse a Affonso, sem demora.
Fernão, carecedor de ser consolado da desgraça do sobrinho, tinha de
aquietar o alvoroço da filha, promettendo e cumprindo logo tudo que
fosse da vontade d'ella, que era tambem um dever d'elle a cumprir já com
o parente, já com a memoria de sua irmã. Foi instantaneo o contentamento
de Mafalda.

--E depois?--exclamava ella--E depois, meu pae, em se lhe acabando o
dinheiro da quinta, quem lhe acudirá?

--Nós--respondeu de alegre aspeito o pae.

--Nós?--tornou ella entre alegre e amargurada--mas não vê o que elle
diz?...

--Que diz elle, creança, que diz elle? Lê-me tu o que elle diz...

--Olhe, meu pae... _Affonso de Teive antes de estender a mão á piedade
mesmo dos seus ha-de esconder a sua ignominia num d'estes comoros de
terra onde os sepultados não tem nome._ O pae entende isto muito bem...

--Entendo; mas não me assusto. A gente ha-de pensar: primeiro, o
essencial, é mandar-lhe o dinheiro, e dizer-lhe que os tumulos de
Ruivães, e as casas, e as terras são d'elle, como até aqui.

--E aceitará?--replicou Mafalda--Tomará elle a dadiva como esmola?

--Ó mulher!--retorquiu o velho--tu estás uma argumentadora dos meus
peccados!... E o mais é que lembras com juizo essa especie!... O doudo é
capaz de rejeitar, se eu dou dinheiro e quinta! Pois bem: diga-se-lhe
que eu compro a quinta, e mande-se-lhe os quinze mil cruzados, que é o
valor da cousa. Vou ámanhã ao Porto. O dinheiro está ahi. Fico sendo o
proprietario de tres quintas de Affonso. Cá te ficam, menina. Tu,
depois, a teimares no proposito de morrer solteira, dá-lh'as, se elle
viver. Que mais quer a minha filha?

Mafalda ajoelhou a beijar-lhe as mãos. Ergueu-a o pae com muita ternura,
enxugou-lhe as lagrimas no lenço em que embebia as d'elle, e disse,
sofreando os soluços:

--Que esperas tu d'este rapaz, Mafalda? Quando virá Deus em auxilio
d'esse tão fraco e desventurado coração? Filha... estima-o; mas não o
ames assim com esse amor que te devora a mocidade! Que vinte e quatro
annos os teus tão desconsolados e estranhos ás menores alegrias de tua
idade!... E tu não cahes em ti, filha, não vês que Affonso está cada vez
mais longe de te avaliar!?

--Sei, meu pae--respondeu Mafalda com serenidade.

--E então?... sabes, e não te vences...

--Não posso vencer-me, Deus sabe que lhe tenho pedido auxilio, e nem
assim...--As lagrimas saltaram-lhe novamente, e logo os arquejos do
peito, ancioso de ar.

--Pois bem, meu amor--tornou o pae, duplicando as meiguices--Eu absolvo
a tua fraqueza, já que o Altissimo te não fortalece. Quem sabe, filha,
quem sabe os segredos do porvir? Ha milagres mais assombrosos. Póde ser
que elle ainda venha para ti com o coração purificado, e o tributo da
mocidade avaramente pago. Mais bom marido será então. Que te diz lá no
intimo a voz do teu anjo? Serei propheta, minha filha, serei?

Mafalda sorriu-se, e murmurou:

--E não podia ser assim, meu pae?! Ás vezes, sonho-o; tenho horas em que
me julgo louca, no meu contentamento sem causa, sem esperança!... Tres
cartas recebi d'elle em oito mezes, e que frias expressões! Quando eu o
considerava esquecido, por amor d'aquella creatura, é que elle me
escrevia mais amoravel; agora, que é livre, e de mais a mais infeliz,
parece que nem se quer me estima! E, ainda assim, meu pae, eu tenho
presagios, em meu coração, alegres como a sua prophecia.

--Pois então pede a Deus que me dê vida para que eu os veja
realisados... mas, filha, a realisação da prophecia, se vier, já me não
achará vivo...


XXI

Decorridos seis mezes, Fernão de Teive, perigosamente enfermo e
desenganado, dialogava assim com sua filha, ajoelhada sobre o estrado do
leito, com a face inclinada aos labios requeimados d'elle:

--Bem t'o disse eu, menina. A realisação da prophecia, se vier,
encontra-me sem vida.

--Não ha-de morrer, meu pae!--clamou Mafalda beijando-lhe a fronte.

--Não peças a Deus isso, que os meus padecimentos são incomportaveis...
Verdade é que te deixo quasi sosinha; mas ahi estão teus tios de
Barcellos que te levarão para sua companhia em quanto não poderes voltar
á casa onde morre teu pae. Não chores assim que me affliges, Mafalda...
Triste cousa que um moribundo não possa fallar aos seus com a presença
de espirito dos que esperam viver muito... E, a final, Deus sabe quem
vive e quem morre!... Póde ser que eu não vá d'esta... Pois então,
menina, que tem que conversemos placidamente?!... Bem... esse ar de
conformidade está bem ao rosto angelico de minha filha... Fallemos no
nosso Affonso... Inventa lá tu um meio de lhe mandar recursos. Se é
verdade o que soubemos por via do tio desembargador, o rapaz está mal. O
jogo dos fundos arruinou-o segunda vez, ou reduziu-o a muito pouco...

--Mas as cartas ultimas--atalhou Mafalda--não fallam em negocios...

--Pois isso é o que mais me persuade da informação do tio de Lisboa. Se
Affonso prosperasse, dizia-o; elle, que se cala, é que está desgraçado.

--Oh meu Deus!--exclamou a filha--diz bem, meu pae, Affonso está
desgraçado... Não o confessa para que lhe não mandem alguma esmola os
parentes.

--Isso mesmo; e por isso mesmo pensemos em remedial-o com todo o
melindre. Não te occorre nada, filha?

--Manda-se-lhe o dinheiro, peço-lhe eu muito que o aceite... elle ha-de
condoer-se das minhas palavras...

--Não gosto d'esse meio: desapprovo a invenção. Ahi vem padre Joaquim
dar-nos aviso.

Padre Joaquim era um modêlo de padres, capellão da casa, havia trinta e
cinco annos; padre que se me ia fugindo d'este romance por um
cabellinho: o que seria novidade nos meus livros. Quando eu poder
architectar uma novella sem padre, hei-de chamar-me romancista puxado de
imaginação. O mestre dos escriptores floridos, Almeida Garrett, segundo
disse e provou, tinha o vezo dos frades. Elle, e eu, cá muito no couce
processional dos seus discipulos, havemos de fazer amar os frades, e os
padres, pelo menos os padres-capellães bem procedidos e venerandos como
padre Joaquim, capellão da casa de Fonte-Boa.

Explicou Mafalda ao padre o motivo a cujo respeito se lhe pedia aviso.

O clerigo tomou rapé, reflectiu, consolidou o seu raciocinio com outra
pitada, e disse:

--A minha opinião é que a snr.ª D. Mafalda case com o snr. Affonso.

Fernão, fraco de peito para rir, tossiu uns frouxos de riso que
desconcertaram a gravidade do reverendo. Mafalda fitou os olhos em seu
pae, receando que o esforço o estivesse mortificando.

Padre Joaquim voltando-se á menina, disse no tom de quem dá satisfação:

--Dar-se-ha caso que eu dissesse algum desproposito?... Parecia-me que
sendo os dous contrahentes primos em primeiro grau, obtida a devida
dispensa, nada mais acertado para o fim de melhorar a situação apertada
do snr. Affonso...

--Não disse desproposito nenhum, padre Joaquim--acudiu Fernão de
Teive--Pelo contrario, aventou a mais moral e desejavel das sahidas
n'estes apertos. Mas o que nós queriamos era soccorrel-o sem que ninguem
casasse.

--Parece-me isso justo e exequivel. É mandar-lhe dinheiro por pessoa
capaz--respondeu categoricamente o sacerdote.

Fernão, com prazenteiro rosto, acudiu:

--Quer o padre Joaquim ir a Paris? Não temos outra pessoa que o iguale
em capacidade.

--Irei ao fim do mundo no serviço de vv. exc.as

--E se o primo Affonso--disse Mafalda--rejeitar o dinheiro?

--Se rejeitar o dinheiro, volto com elle para casa: signal é que lhe não
é preciso.

--Se o rejeitar por ser de condição independente, e tomar como esmola o
favor do pae?--replicou Mafalda.

--N'esse caso cito-lhe os meus authores nas materias vaidade, soberba e
orgulho: e hei-de convencel-o a aceitar o dinheiro.

--Vai o padre a Paris--disse Fernão--Ámanhã parte para o Porto: lá o
dirigirão. Prepara tu, Mafalda, a bagagem do snr. padre Joaquim. Tira o
necessario para o meu enterro, e manda tudo mais, que encontrares, a
Affonso.

--Enterro!--exclamou Mafalda, escondendo o rosto no seio do pae.

Ao escurecer recrudesceram os padecimentos de Fernão de Teive. Por volta
de meia noite, com toda a luz da razão, e clareza de voz pediu os
sacramentos, e conversou até ás duas horas. Ao amanhecer dormiu um somno
quieto, e acordou afflicto. Pediu a extrema-uncção, e respondeu durante
a ceremonia as palavras rituaes em irreprehensivel latim. Depois, chamou
a filha, beijou-a, deu-lhe a beijar o crucifixo, que tinha entre mãos,
reclinou-se para o hombro d'ella, dizendo:

--Sobre este hombro expirou minha irmã... Se alguma vez vires o filho da
santa mulher dá-lhe um abraço... e tu, filha... adeus até ao céo.

Mafalda rompeu em altos clamores. Fez-lhe o pae um gesto de silencio com
os olhos.

Foi este o derradeiro gesto d'aquelles olhos, fitos já na aurora da
eternidade, e fechados para sempre sob os labios de sua filha.


XXII

Eram atrozmente verdadeiras as informações communicadas pelo
desembargador Figueirôa sobre a desfortuna de Affonso de Teive em Paris.

Os quinze mil cruzados, producto supposto da quinta de Ruivães,
enguliu-os a voragem do jogo de fundos, á qual o allucinado moço se
atirou ás cegas, contando com a vicissitude favoravel, por ter sido
infeliz nas outras.

Resolveu matar-se. Esta deliberação contrabalançou as agonias da pobreza
desesperada.--Como via a morte no leve movimento d'um gatilho, deixou de
encarar o futuro. Que lhe importava morrer pobre?! Encheu-se de coragem,
e deu graças a Deus pela fortaleza que lhe dava. Ajuntou os objectos de
ouro e pedras que reservára para aquella hora premeditada. Chamou o
criado, e disse-lhe: «Vende isso que ahi está. Creio que o valor d'essas
cousas bastará ao pagamento do que te devo em dinheiro e soldadas: se
algum resto houver a maior, leva-o para te passares á tua terra.»

--E o fidalgo onde fica?!--perguntou o Tranqueira.

--Aqui!--disse Affonso.

--Pois tambem eu, patrão! Já agora, tenha paciencia; gastei a mocidade
em sua casa; a velhice por cá a levarei n'esta endiabrada terra, como
Deus fôr servido. Guarde lá o fidalgo as suas cousas, que eu não as
quero, nem lhe pedi nada. Para eu viver, basta-me uma carroça e um
cavallo estropiado. Arranje v. exc.ª a sua vida, que eu cá me irei
arranjando.

--Cumpre as minhas ordens, Tranqueira!--replicou Affonso com fingida
severidade.

--Perdoará, snr. Affonso...--volveu o criado--É a primeira vez que lhe
desobedeço. Eu não recebo nada em quanto o não vir com outro arranjo de
vida.

--Faz o que quizeres...--redarguiu o moço, embolsando a punhados os
objectos que offerecera ao criado, na intenção de sahir para vendel-os.

Tranqueira desconfiou do intento suicida do amo. Apenas esta suspeita
lhe saltou de repente ao animo, atravessou-se á porta do quarto,
exclamando:

--O fidalgo não é homem, por mais que me digam! Ha Deus ou não ha Deus?!
Então sua mãesinha esteve a criar um menino na lei de Christo, para v.
exc.ª dar esta sahida! Pensa que eu não sei o que lá tem na cabeça? O
snr. Affonso quer dar cabo de si... Pois, ande lá por onde quizer, que
eu nem de dia nem de noite o largo mais... Matar-se, por falta de
dinheiro, um moço de vinte e cinco annos, que sabe lêr e escrever, e em
boa saude! Isso não o faz homem nenhum no seu juizo! Quem precisa
trabalha; se não é n'isto é n'aquillo. E os que perdem tudo o que tem
n'um fogo, ou no mar, matam-se? Ora, snr. Affonso, eu dos annos que
tenho ainda não topei homem tão desanimado!... Valha-o a alminha da
snr.ª D. Eulalia! Quer o fidalgo uma cousa? Eu vou vender algum d'esse
ouro que ahi tem, e vamos para Portugal. Seu tio desembargador mostra
que é seu amigo, e o snr. Fernão de Fonte-Boa morreu sempre por v. exc.ª
Não se lhe pede dinheiro nem cousa que o valha; pede-se-lhe que o
arranjem em algum emprego limpo. Trabalhar não é vergonha, é honra,
fidalgo!... Que me diz? que responde ao velho Tranqueira que o trouxe ao
collo, e aqui está de joelhos aos seus pés?

E abraçou-se-lhe aos joelhos, com os olhos inflados de lagrimas.

Affonso levantou-o nos braços trementes de grata commoção, e disse-lhe
com transporte:

--Trabalharei, meu amigo, trabalharei... Descança, que eu não me mato...
A desgraça me irá matando.

Com referencia áquellas chãs e firmes expressões do servo rustico, me
disse Affonso:

«Eu tinha lido na vespera d'aquelle dia uns livros de insinuante moral,
e consolação a desvalidos, pedindo-lhes crença que me esteiasse na
desesperada crise de homem, sem nenhum escape na cerrada negridão de sua
vida. Doutrinas e exemplos de evangelica uncção, factos tormentosissimos
de angustia e admiraveis de conformidade, desde Job até ao maior homem
do mundo na rocha de Santa Helena, nada me impressionára, nada me
demovera do suicidio. Vi uma restea de luz instantanea reflectida do
rosto de Mafalda! Pensei que era o anjo da santa melancolia a
despedir-se do precito, que o repellira. Ainda o apêgo á existencia,
exprimindo-se nas phrases positivas d'ella, me quiz mostrar a felicidade
possivel no casamento com minha prima. Afastei com tedio de mim proprio
este impudor d'alma envilecida pela desgraça. O homem rico não
reconhecera a virtude de Mafalda, senão para admiral-a; o homem
desvalido havia de ir depois pedir á virtuosa que o aceitasse como
marido!... Tive medo que outra vez me acommettesse o pensamento vil.
Dei-me então pressa em abreviar o termo da lucta! Depois d'isto, como é
possivel que as rudes palavras d'um criado me abalassem desde a
profundeza de minhas convicções ácerca da coragem do homem que se mata?
Como logrou elle o que os livros consoladores não vingaram, nem os
estimulos indecorosos a um casamento rico? Foram aquellas palavras:
_quem precisa, trabalha_, ditas pelo homem que as tirára da sua
consciencia, como se ellas lá descessem do céo, n'aquelle momento, para
me serem ditas, não pela pagina de um livro, mas pela bocca de quem as
dizia, chorando.»

Affonso de Teive, com mais coragem do que a necessaria para o suicidio,
dirigiu-se a uma casa de commercio de judeus de procedencia portugueza,
residentes em Paris. Conhecera Affonso um mancebo d'esta familia no
concurso das pessoas bem qualificadas. Procurou-o, e contou-lhe o seu
estado, offerecendo-se a trabalhar no escriptorio, segundo sua aptidão.
Os commerciantes aceitaram-o como terceiro ajudante de guarda-livros com
ordenado de dous mil francos.

Vendeu Affonso as suas joias, e alugou uma mansarda, que mobilou,
consoante a escolha de Tranqueira, pobre e limpamente. O criado comprou
um cavallo, a que elle chamava um milagre, e uma carroça, com que
trabalhava de carrejão, nas horas occupadas do amo. Ás horas
convencionadas, o Tranqueira ia buscar em marmitas um jantar economico
para ambos, todavia aceado e abundante. Affonso passava em casa as
noites, estudando a lingua ingleza para poder adiantar-se na sua
carreira, até merecer os seis mil francos de primeiro adjunto ao
guarda-livros.

Se era feliz assim?

Oh! não: nem tudo que é honroso se ha-de crêr que seja felicidade. A
degenerada natureza do homem quadra violentamente com as mudanças assim
abruptas, com as quedas de tão alto! O magnificente amante de Palmyra, o
moço blandiciado nas salas do seu palacio do Campo Grande, reclinado por
sobre coxins de sêda, inventando regalias com que desanojar a sua ociosa
saciedade, certamente não podia escrever odes á fortuna amiga, quando
sahia de escrever cifrões no escriptorio mercantil. O reportar-se tambem
não é ser feliz; é, no maximo das vezes, um martyrio consecutivo de
triumphos obscuros; porém, martyrio sempre!

E, depois, Affonso entrava futuro dentro, phantasiando mudanças,
chimeras, paradoxos, que o volvessem a uma felicidade, que elle bem nem
mal sabia definir, ou estremar do que vulgarmente se diz que ella é.
D'estas vãs e ardentes consultas ao porvir, voltava o moço ao refrigerio
do trabalho, e assim o tempo ia derivando, branqueando-lhe os cabellos,
e quebrando-lhe os espiritos.

Em Lisboa era sabida a situação de Affonso de Teive, não que elle a
contasse. Escrevia ao tio Fernão raramente, sem de leve tocar em
negocios. Respondia ás cartas d'algum raro amigo, que o julgava ainda em
circumstancias de lhe não pedir emprestimo para se resgatar de Clichy.

N'este tempo, recebeu elle novas de Palmyra, não solicitadas. Dava-lh'as
assim um dos seus commensaes de Lisboa:

«...... A mulher surgiu aqui, vinda não sei d'onde, pompeando com tanto
esplendor e mais estupidez que no teu tempo, ou melhor direi, no teu
reinado.»

«Vi-a em S. Carlos, hontem, sosinha na friza. Disseram-me, porém, que
lá, no reconcavo do camarote, estava um homem gordo, de tez abronzeada,
e vista suina. Dizem que é brazileiro do Minho, outros diziam que era o
marido envergonhado. O D. José de Noronha, desde o banho da cisterna,
nunca mais se endireitou do espinhaço, e vai a tisico irremissivelmente.
Não ha memoria d'uma catastrophe assim nos fastos dos Lovelaces patifes
d'este nosso quintal do tio Lopes. O D. Antonio de Mascarenhas
assevera-me que Palmyra nunca mais teve uma palavra de consolação para o
derreado amante. O teu criado matou estes amores com tamanha ignominia,
que já não ha ninguem que queira amar mulher em casa onde haja
cisterna... Irei dizendo o que souber da Laiz minhota.........»

Affonso leu glacialmente a carta, e não respondeu ao noticiador.

--Que sentimento fez em ti essa nova?--perguntei eu.

Affonso encolheu os hombros, e disse:

--O sentimento da piedade. Não podia ser amor, porque não ha infamia
d'alma que desça até ahi. Odio tambem não, que o odio quer vingança, e
eu dava-me já por vingado da mulher a resvalar, no plano inclinado, não
sei até que ordem de abysmos. Era piedade o que eu sentia, e tanta que,
se me viessem dizer que Palmyra, dentro de um anno, perdera a formosura,
que vendia, os bens, que herdára, e se desgraçára até á extremidade de
pedir o pão de cada dia, eu faria do meu pão dous quinhões, e um
mandar-lh'o-ia, sem insulto nem palavra recordadora do passado.

Esta foi a resposta de Affonso de Teive. Eu acreditei, porque tinha
visto o mundo, e não ha nada que eu não acredite.


XXIII

Ao escriptorio commercial, onde o meu amigo trabalhava, chegou, ao fim
da tarde, do dia 15 de Julho de 1853, um empregado da embaixada
indagando a residencia do portuguez Affonso de Teive.

Sahiu com o esclarecimento em demanda d'outro portuguez, que se
apresentára ao ministro, com importantes recommendações de Lisboa. A
nota da residencia era _rua Vivienne, 104, 5.º andar, lado esquerdo_;
quem a recebeu da mão do encarregado foi uma senhora, que a passou logo
a um sujeito de cabellos brancos, trajado de sacerdote.

O leitor não se deixa surprehender mais tarde: já sabe que a senhora é
Mafalda, e o sacerdote é o capellão padre Joaquim de S. Miguel.

Padre Joaquim entrou n'um _fiacre_ com o guia posto á sua ordem pelo
ministro portuguez. Apearam ao portão do predio; perguntaram ao porteiro
se o morador do quinto andar, lado esquerdo, estava em casa. Sahiu do
interior da loja, residencia do porteiro, o criado de Affonso, o qual,
reconhecendo padre Joaquim, lançou-se a elle de modo que o ia afogando
ao primeiro abraço.

--Ainda vives, Tranqueira?--exclamou o clerigo--E sempre com o pequenito
de Ruivães!?...

--Até á morte, snr. padre mestre!... Pois por aqui? V. s.ª por estas
terras?... Que é feito do snr. Fernão? e da fidalguinha?

--Leva-me lá acima, homem, que pelos modos temos que marinhar--atalhou o
padre.

--Ponha-se aqui ás minhas costas, que eu levo-o lá, snr. padre
Joaquim!--disse o Tranqueira, ageitando-se para ser cavalgado.

--Estás doudo de alegria, velho! Deixa-me ir por meu pé. Vossês cá no
paiz da civilisação já andam uns ás cavalleiras dos outros?... Olha
lá... não avises teu amo. Quero vêr se me elle conhece ainda.

Affonso estava escrevendo a seu tio Fernão de Teive, quando o padre
entrou.

--Veja se se lembra, snr. Affonso!--disse o capellão.

--Lembro!--clamou Affonso erguendo-se a abraçar o clerigo--Vem de
Fonte-Boa? Que faz em Paris, padre Joaquim?

--Podemos ficar a sós?--perguntou o clerigo. O Tranqueira sahiu, e o
guia, esclarecido em francez por Affonso, retirou-se.

--Eu estava a escrever a meu tio Fernão...--disse Affonso...

--No outro mundo sómente se recebem orações, e não cartas--atalhou o
padre.

--Morreu meu tio!?--exclamou o moço.

--Lá se foi para Deus aquelle justo. Pouco antes de expirar, deixou-lhe
um abraço ao snr. Affonso. A snr.ª D. Mafalda foi a depositaria do
abraço...

Affonso escondera o rosto nas mãos a soluçar.

--Elle merecia-lhe essa saudade--continuou o padre--que era muito amigo
de v. exc.ª

--Minha desgraçada prima!--exclamou Affonso--que vida vai ser a d'ella
n'aquella solidão, sem pae, sem uma alma que a estremeça!...

--Sua prima não está em casa... Está em Paris.

--Como? em Paris!... onde está Mafalda?!

--Na hospedaria, esperando que vamos. Não se demore.

Affonso desceu a trancos as precipitosas escadas, sem dar tino de que o
padre as descia apalpando com a bengala, muito de espaço, exclamando:

--Sempre será bom que pare lá no fundo para me apanhar, se eu fôr de
rôlo, ó snr. Affonso!

A anciedade do moço confundia as perguntas acceleradas de modo que o
padre, no transito do _fiacre_ ao hotel de Mafalda, nem tempo teve de
deliciar mais que tres pitadas com o sorvo chromatico do seu costume.

Direitamente deve ser Affonso quem nos descreva o encontro:

«Entrei n'uma sala, a tempo que minha prima sahia d'uma camara contigua.
Caminhamos um para o outro, lavados ambos em lagrimas. Ella fitou-me com
um gesto de assombro, e disse:--Tens cabellos brancos, Affonso!... E és
da minha idade!... Como a tua vida terá sido amarga!...

«--E tu, Mafalda, tens a formosura que te deixei; preservou-t'a a
innocencia da tua santa vida!

«--Vida de muitas dôres, Affonso...--atalhou ella--Acabou-se-me tudo...
Faltou-me o amparo de meu pae...--e encostou-se ao meu hombro,
soluçando.

«Padre Joaquim acercou-se de nós, limpando os olhos, e disse:--É chorar
de mais... eu cuidei que este encontro seria para allivio e não para
maiores penas. Basta, por agora, menina... Faltou-lhe o amparo de seu
pae; mas o de Deus é que a ninguem faltou... A snr.ª D. Mafalda está
aqui para se entender com seu primo, sobre um passo muito do agrado do
Altissimo; mas eu peço perdão a Deus em a contradizer, e continuarei
sempre a oppor-me, por que...»

«Mafalda fez-lhe um signal de silencio com implorante suavidade, e
voltando-se a mim com sereno aspecto, disse em termos balbuciantes que
desmentiam a forçada compostura do rosto:--Meu primo, a vida para mim
não promette contentamentos nenhuns. Faltou-me meu pae, e resolvi logo
entrar n'um convento; mas a inactividade dos conventos póde ser que
peorasse a minha tristeza. Ouvi dizer que está derramada pelo mundo uma
grande familia de mulheres devotadas ao remedio dos infelizes, por amor
de Deus. São as irmãs da caridade. Resolvi entrar n'este instituto; meus
paes abençoarão este modesto desejo de ser util a alguem, empregando os
annos de vida, que eu não sei nem posso consumir no desabrigo da casa
onde nasci. Agora, meu Affonso, venho pedir-te que dirijas em Paris os
meus passos para o conseguimento da minha entrada no instituto, e ao
mesmo tempo rogar-te encarecidamente, e em nome de tua santa mãe, que
aceites as tres quintas que vendeste, e de que teu bom tio era possuidor
quando morreu. Na intenção de t'as restituir foi que elle as comprou. Eu
cumpro a sua vontade, esperando que tu obedeças á vontade de meu pae.
Aceita o que teu era, meu querido Affonso, meu bom irmão; aceita, que é
meu pae e tua mãe que t'o pedem, e eu tambem com as mãos erguidas.

«Mafalda cessou de fallar, cortada a voz de soluços. Eu ajoelhei diante
d'ella, beijando-lhe as mãos, sem poder articular palavra. E ella,
abraçando-me pelo pescoço, exclamou com a meiguice infantil dos nossos
affectuosos abraços dos dez annos:--Tu fazes a vontade á tua Mafalda,
não fazes, Affonso? Posso agradecer a Deus a esmola de consolação, que
me dás?

«--Póde! exclamou padre Joaquim--póde, que o snr. Affonso não ha-de
desobedecer á vontade de seu tio! Vamos! a fidalga ainda lhe não deu o
abraço que o snr. Fernão de Teive deixou ao filho de sua santa irmã.

«Abraçou-me Mafalda. E eu apertei-a ao seio com arrebatamento, e senti a
sua face nos meus labios.

«--Agora, fallo eu--disse o clerigo--O instituto das irmãs da caridade é
um santo instituto, nenhuma duvida lhe ponho, pelo que tenho ouvido
contar dos heroismos de caridade, que as servas de S. Vicente de Paulo
praticam. Assim é; mas a conquista do céo consegue-se com a virtude, e a
virtude é uma em toda a parte, e em todas as situações. As irmãs da
caridade são bemquistas do Senhor; mas muitas almas elege o Senhor, sem
as submetter á prova dos sacrificios e abnegação do santo instituto do
servo de Deus. A snr.ª D. Eulalia, que Deus tem, era uma virtuosa, e
piamente creio que santa senhora. Pois a sua vida de esposa e mãe não
lhe tolheu que alcançasse o paraiso com muitas obras boas que fez, sem
as andar derramando pelo mundo. A mãe da snr.ª D. Mafalda foi outra
senhora casada e muito amante de seu esposo; pois, se a virtude é a
prophecia infallivel da bemaventurança, as duas virtuosas senhoras lá
estão com Deus. E agora lhes direi eu o que as santas pedem ao Senhor,
vendo assim os seus dous filhos a ouvirem o pobre padre pregar sem
encommenda do sermão. Eu lhes digo que ellas estão pedindo a Deus que os
case, que os encha de bençãos, e de filhos. Vamos! eu tambem levanto as
minhas mãos fazendo os mesmos rogos ao Senhor! Meu Deus! permitti que a
minha voz se ajunte á das santas que vos pedem a felicidade d'estes dous
filhos! Permitti que eu os veja ditosos, e que estas lagrimas de velho
m'as enxuguem elles com a sua alegria!

«Quando o sacerdote, magestoso pela postura, se voltou para nós,
latejava o meu coração na face de Mafalda; e eu inclinado sobre o rosto
pallido da virgem, murmurava estas palavras: «Sim, sim, meu Deus, ouvi
as preces de nossas mães!»

«Padre Joaquim de S. Miguel aproximou-se de nós, e disse com jovial
aspeito:--Eu não quero estar em Paris muito tempo, meninos. Vamos
embora, cuidar da dispensa, que leva algum tempo. Temos lá o outono do
Minho á nossa espera. Diga a fidalga o que determina.

«Mafalda olhou para mim com o sorriso de santa, que um esculptor
phantasiasse na contemplação e audição de anjos e harmonias do céo. O
padre acudiu logo, exclamando alegremente: «O noivo é quem decide! Snr.
Affonso, quando partimos d'esta barafunda de Paris, que me põe os miolos
a arder?...

«--Ámanhã!--respondi eu.--Ámanhã--exclamou Mafalda--Pois sim; meu
Affonso, ámanhã... Temos lá as nossas arvores... a nossa infancia...

«A nossa felicidade sem fim...--atalhei eu.




CONCLUSÃO


Entreluzia a manhã pelos resquicios e fendas das janellas do nosso
quarto na estalagem da snr.ª Joanninha de Guimarães.

Affonso de Teive disse:

«É dia: vou concluir...

--Não é necessario--atalhei--o restante sei eu.

«Mas não me prives por isso de ser eu o narrador da minha
bemaventurança. Aquella mulher que eu te apresentei, negligentemente
vestida, e amarrotada dos abraços dos seus oito filhos, é minha prima
Mafalda, a esposa de minha alma, a salvadora do meu coração, os olhos
que me vêem pelos de minha mãe, a consciencia da minha consciencia, a
redemptora das minhas alegrias infantis, a mãe dos meus oito anjos, que
minha santa mãe me enviou do céo.

«Ha dez annos que eu vejo amanhecer os meus dias como as aves, cantando
o Senhor, e adorando-o como os cenobitas.

«Minha mulher, ao abrir-me os thesouros de sua alma, revelou-me tambem
os thesouros da fé, as delicias da religião, e a taça inexhaurivel dos
sabores da caridade.

«Mafalda desapparece-me ás vezes com os filhos mais velhos: eu vou
procural-a fóra de casa com os mais novos nos braços, e descubro a
piedosa valedora no cardenho de algum jornaleiro, á cabeceira das palhas
nuas do enfermo, ao qual ella foi levar a cobertura, e o alimento.
Outras vezes, são os meus filhos, que levam o seu fatinho velho ás
creanças, que estalejam de frio, sobre o lagedo d'uma cozinha sem lume.

«Se alguma hora fallei como marido austero a minha mulher, a dôce
creatura respondeu-me com um sorriso; os meus queixumes são sempre
causados pela pertinacia d'ella em entender no governo da casa com um
zelo convisinho da mortificação. Mafalda é rica; mas tem uma maxima
indestructivel: «poupar para os pobres.»

«Ha dez annos que vivo em Ruivães. N'este longo espaço, apenas tenho
acompanhado minha mulher a observar a cultura das suas quintas, que ella
teima em chamar minhas. Mafalda tem vagas idéas do que é um baile, e eu
pude esquecer as idéas que tinha. Dizem que a convivencia de annos entre
esposos, que muito se amam, traz comsigo de seu natural uns silencios
significativos do esfriamento das almas. Eu não sei o que seja esse
arrefecer. O céo e a terra estão continuamente abertos ante meus olhos:
de cada vez que os contemplo, a cada alvorecer, e fim da tarde, os
maravilhosos poemas dão-me sempre a lêr uma pagina nova, e Mafalda
traduz mais prompta que eu os gerogliphicos da Divindade. Fallamos de
Deus e dos filhos; contemplamos o boi que nos encara soberbo, a avesinha
gemente que pipila; a fonte que suspira, e a catadupa do ribeiro que
ruge. A natureza é a terceira voz dos nossos colloquios, umas vezes
amor, outras vezes sciencia, e sempre admiração e perfumes ao Eterno,
que nos encheu de delicias, e inflorou o caminho da velhice.

«Eccos do mundo nenhum chega ao nosso ermo. A mim, os homens que me
viram, consideram-me morto uns, outros por ventura me lastimam
embrutecido entre os meus fraguedos. Tive cartas a que não respondi; fui
procurado por ociosos, a quem recebi na minha sala de visitas, com uma
ceremonia que os afugentou. Affligiam-me as testemunhas do meu
vilipendio, e temia que ellas proferissem um nome, que soaria como
blasphemia no santuario da minha familia.

«Aspei todos os vestigios que podessem recordar Theodora. Entre os
papeis do meu tio Fernão, n'uma gaveta secreta, encontrei o copiador das
cartas d'ella. Minha mulher surprehendeu-me n'este descobrimento, viu e
comprehendeu, sorriu-se, e disse: «Meu pae nunca me deixou vêr isto, bem
que eu soubesse da existencia d'este livro. Triste sorte a d'esta
senhora! Mal diria a mãe que tão virtuosamente a educou!» Unicas
palavras que Mafalda proferiu com referencia a Palmyra!

«Aqui tens a minha vida, a vida dos dous homens, que na curta passagem
de quarenta annos, tocaram as duas extremas do infortunio pela deshonra,
e da felicidade pela virtude. Uma mulher me perdeu; outra mulher me
salvou. A salvadora está alli n'aquelle ermo, glorificando a herança,
que minha mãe lhe legou: o anjo desceu a tomar o lugar da santa: a um
tempo se abriu o céo á padecente que subiu, e á redemptora que baixou no
raio da gloria d'ella. A mulher de perdição não sei que destino teve...»

--Pois ignoras o destino de Palmyra?--interrompi eu, desconsolado como
todo o romancista, que desadora invenções.

--Como queres tu que eu saiba o destino de Palmyra?!--Replicou Affonso
de Teive.--Quem ha-de vir contar-me a Ruivães os desastres que lá vão no
seio apodrentado da sociedade!... Mas, se te rala a curiosidade de saber
em que lamaçaes a deves encontrar, lança a tua espionagem, diz, alto e
bom som, que a fama te confiou a tuba pregoeira dos escandalos, e não
faltará quem te illumine e esclareça. Do viver da mulher virtuosa é que
baldamente procurarás noticias: dá-se a virtude n'uma obscuridade, que
chega a incommodar a attenção dos que observam como cousa curiosa de
vêr-se.

--Pois não me despeço--redargui--de me ir por ahi fóra no encalço de
Palmyra, e mal d'ella, se a não topo, que morrerá sem lêr a sua
biographia, desastre commum, mas immerecido, das mulheres da sua
especie. Quantos romances, e dramas, e cantatas ahi pejam as livrarias
sobre Ninon, e Marion, e Manon Lescaut? As Aspasias e Phrineas tiveram
por si os historiadores e os poetas gregos. Os Catullos e Ovidios
eternisaram Lesbias e Corinnas. Menos affrontadores da moral, os
romancistas e poetas coevos nossos deificam as Gautiers, e fazem que as
familias honestas chorem por ellas nas paginas dos livros e nas tabuas
dos palcos. Palmyra ha-de ter um livro, ou eu não escrevo mais nenhum
depois do teu... Dá-me agora noticias do Tranqueira. Que é feito do
Tranqueira?

--Está lá em casa a esta hora com um pequeno a cavallo em cada hombro, e
outro enganchado na barriga. Tranqueira não é meu criado. Lá em casa os
meus filhos conhecem-no pelo _amigo velho_. Tem o seu quarto no interior
dos melhores aposentos. Chama-se elle a si feitor; mas o que elle
feitorisa é o seu rheumatismo, e vive a picar rolo de tabaco para
cachimbar ao sol. Comprou um pinhal, e negoceia em lenha e madeiras.
Quando recebe algumas libras, vai até Braga visitar uns parentes pobres,
dá-lhe metade, e vem para casa carregado de frigideiras, que me estragam
o estomago dos rapazes. Se algum dos meus caseiros o faz zangar nas
contas, em que elle quer ser sempre ouvido, ou no grangeio das terras,
de que elle não percebe nada, mas quer ser consultado sempre, costuma
elle estirar os braços tremulos, e dizer: «O que tu precisas é um banho
de cisterna.» Imagina o Tranqueira que a sua especial vocação é dar
banhos de cisterna.

--E o padre Joaquim de S. Miguel morreu?

--Tenho a satisfação de te dizer que o meu padre Joaquim está vivo e
vividouro. Não o vistes lá em casa por que foi para o Alto-Minho consoar
com a familia, tributo que elle pagou sempre; mas nunca vai que não se
despeça a chorar, e nunca vem que nós o não recebamos com grande
alvoroço de alegria. É o mestre dos meus pequenos; mas os travessos
escondem-lhe a tabaqueira e os oculos de modo que as lições cahem em
pedra árida, e o padre já diz que considera perdidos dez annos de vida
n'aquelle ensino. Que mais queres saber?

--Se poderei dormir duas horas em tua casa, respondi eu.

--Vamos partir.

--E os teus meninos costumam deixar dormir a gente de dia? Vingarão
elles em mim a falta do padre? Previne-me.

Partimos.

A distancia de um oitavo de legua do paraiso restaurado do meu amigo,
enxergamos D. Mafalda e os filhos, e o Tranqueira com dous ao collo, e
outros dous pendurados das algibeiras da japona. Ao avistarem-nos, os
rapazes irromperam n'uma grilharia barbara, que repercutia nas quebradas
dos outeiros:

--Cá vou preparando a cabeça de progenitor e ouvidos paternaes, disse
eu--Seriam excellentes anjos aquelles pequerruchos, se tivessem larynges
mais accommodadas ao apparelho auditivo do genero humano!

--São os meus filhos--exclamou Affonso--É minha mulher! Alli tenho tudo,
o capital, o juro, e a usura da felicidade que desbaratei. Alli me
esperou minha mãe dous annos, e eu não voltei. Ainda assim, a virtuosa
orou sempre. O jazigo estava fechado, o leito da santa vazio; mas o céo
fôra o mais alto ponto onde ella voára para vêr de lá a minha perdição.
Alli voltei salvo pelo amor. Achei ainda as flôres que eram d'ella; das
primeiras adornei os cabellos de minha mulher; das que me deu a
primavera seguinte engrinaldei o berço do meu primeiro filho. Parece que
em cada reflorecencia, vem minha mãe coroar o novo anjo, que minha
mulher lhe offerece como a intercessora com o Altissimo. Oh meu amigo!
de envolta com a felicidade, a religião! Sabes tu o que é ter um Deus,
que nos escuta, que nos reprova, que nos louva, que nos povôa o espaço
onde a alma insaciavel do homem encontra um vazio horrendo, uma
respiração afflictiva!....................................................
..........................................................................

Aproximamo-nos do formoso grupo. Apeei; fui cortejar a mulher do amor de
salvação, e disse-lhe commovido, e creio mesmo que lagrimoso:

--Ao cabo de dez annos de felicidade não interrompida, minha senhora,
chegou um homem a casa de v. exc.ª com o funesto contagio da sua má
estrella! Fui eu quem primeiro ousou usurpar-lhe a convivencia do seu
esposo por uma noite. Deus sabe se a saudosa prima de Affonso de Teive
cerrou olhos n'esta infinda noite de Dezembro!...

--Tambem eu não!--atalhou Affonso sorrindo--tambem eu não!

--Não importa, minha senhora--tornei eu--Seu marido velava; mas que
saborosa vigilia! Contou-me suas desgraças para que eu podesse
cabalmente ajuizar da felicidade perenne, que v. exc.ª, depositária dos
infinitos bens do Senhor, lhe preparou com santas lagrimas, e lhe está
dando com santas alegrias. Eu cuidava que o contentamento de uma hora,
n'este mundo, era uma usurpação feita ao céo!... Agora sei que ha sobre
a terra um homem feliz, feliz ha dez annos, feliz para uma longa
existencia. Este gozo, que nem contado pelos evangelistas eu
acreditaria, sei agora que existe, abaixo do reino dos justos, entre os
homens, no mundo de 1863, no AMOR DE SALVAÇÃO!

Mafalda abaixou levemente a cabeça com gracioso acanhamento, e disse:

--Não sou eu sosinha a felicitar meu primo: são as orações de nossas
mães, e o amor angelico dos nossos filhinhos.


FIM





End of Project Gutenberg's Amor de Salvação, by Camilo Castelo Branco

*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK AMOR DE SALVAÇÃO ***

***** This file should be named 26988-8.txt or 26988-8.zip *****
This and all associated files of various formats will be found in:
        http://www.gutenberg.org/2/6/9/8/26988/

Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed
Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This book was
produced from scanned images of public domain material
from the Google Print project.)


Updated editions will replace the previous one--the old editions
will be renamed.

Creating the works from public domain print editions means that no
one owns a United States copyright in these works, so the Foundation
(and you!) can copy and distribute it in the United States without
permission and without paying copyright royalties.  Special rules,
set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to
copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to
protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark.  Project
Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you
charge for the eBooks, unless you receive specific permission.  If you
do not charge anything for copies of this eBook, complying with the
rules is very easy.  You may use this eBook for nearly any purpose
such as creation of derivative works, reports, performances and
research.  They may be modified and printed and given away--you may do
practically ANYTHING with public domain eBooks.  Redistribution is
subject to the trademark license, especially commercial
redistribution.



*** START: FULL LICENSE ***

THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE
PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK

To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free
distribution of electronic works, by using or distributing this work
(or any other work associated in any way with the phrase "Project
Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project
Gutenberg-tm License (available with this file or online at
http://gutenberg.org/license).


Section 1.  General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm
electronic works

1.A.  By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm
electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to
and accept all the terms of this license and intellectual property
(trademark/copyright) agreement.  If you do not agree to abide by all
the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy
all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession.
If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project
Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the
terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or
entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8.

1.B.  "Project Gutenberg" is a registered trademark.  It may only be
used on or associated in any way with an electronic work by people who
agree to be bound by the terms of this agreement.  There are a few
things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
even without complying with the full terms of this agreement.  See
paragraph 1.C below.  There are a lot of things you can do with Project
Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
works.  See paragraph 1.E below.

1.C.  The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
Gutenberg-tm electronic works.  Nearly all the individual works in the
collection are in the public domain in the United States.  If an
individual work is in the public domain in the United States and you are
located in the United States, we do not claim a right to prevent you from
copying, distributing, performing, displaying or creating derivative
works based on the work as long as all references to Project Gutenberg
are removed.  Of course, we hope that you will support the Project
Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by
freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of
this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with
the work.  You can easily comply with the terms of this agreement by
keeping this work in the same format with its attached full Project
Gutenberg-tm License when you share it without charge with others.

1.D.  The copyright laws of the place where you are located also govern
what you can do with this work.  Copyright laws in most countries are in
a constant state of change.  If you are outside the United States, check
the laws of your country in addition to the terms of this agreement
before downloading, copying, displaying, performing, distributing or
creating derivative works based on this work or any other Project
Gutenberg-tm work.  The Foundation makes no representations concerning
the copyright status of any work in any country outside the United
States.

1.E.  Unless you have removed all references to Project Gutenberg:

1.E.1.  The following sentence, with active links to, or other immediate
access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently
whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the
phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project
Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed,
copied or distributed:

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org

1.E.2.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived
from the public domain (does not contain a notice indicating that it is
posted with permission of the copyright holder), the work can be copied
and distributed to anyone in the United States without paying any fees
or charges.  If you are redistributing or providing access to a work
with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the
work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1
through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the
Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or
1.E.9.

1.E.3.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted
with the permission of the copyright holder, your use and distribution
must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional
terms imposed by the copyright holder.  Additional terms will be linked
to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the
permission of the copyright holder found at the beginning of this work.

1.E.4.  Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm
License terms from this work, or any files containing a part of this
work or any other work associated with Project Gutenberg-tm.

1.E.5.  Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this
electronic work, or any part of this electronic work, without
prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with
active links or immediate access to the full terms of the Project
Gutenberg-tm License.

1.E.6.  You may convert to and distribute this work in any binary,
compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any
word processing or hypertext form.  However, if you provide access to or
distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than
"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version
posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org),
you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a
copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon
request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other
form.  Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm
License as specified in paragraph 1.E.1.

1.E.7.  Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works
unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.

1.E.8.  You may charge a reasonable fee for copies of or providing
access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided
that

- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
     the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
     you already use to calculate your applicable taxes.  The fee is
     owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
     has agreed to donate royalties under this paragraph to the
     Project Gutenberg Literary Archive Foundation.  Royalty payments
     must be paid within 60 days following each date on which you
     prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax
     returns.  Royalty payments should be clearly marked as such and
     sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
     address specified in Section 4, "Information about donations to
     the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."

- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies
     you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
     does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm
     License.  You must require such a user to return or
     destroy all copies of the works possessed in a physical medium
     and discontinue all use of and all access to other copies of
     Project Gutenberg-tm works.

- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any
     money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
     electronic work is discovered and reported to you within 90 days
     of receipt of the work.

- You comply with all other terms of this agreement for free
     distribution of Project Gutenberg-tm works.

1.E.9.  If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
electronic work or group of works on different terms than are set
forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

1.F.1.  Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection.  Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or
corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual
property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by
your equipment.

1.F.2.  LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right
of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all
liability to you for damages, costs and expenses, including legal
fees.  YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
PROVIDED IN PARAGRAPH F3.  YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
DAMAGE.

1.F.3.  LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a
defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can
receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a
written explanation to the person you received the work from.  If you
received the work on a physical medium, you must return the medium with
your written explanation.  The person or entity that provided you with
the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a
refund.  If you received the work electronically, the person or entity
providing it to you may choose to give you a second opportunity to
receive the work electronically in lieu of a refund.  If the second copy
is also defective, you may demand a refund in writing without further
opportunities to fix the problem.

1.F.4.  Except for the limited right of replacement or refund set forth
in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.

1.F.5.  Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
the applicable state law.  The invalidity or unenforceability of any
provision of this agreement shall not void the remaining provisions.

1.F.6.  INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
http://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at http://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit http://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including checks, online payments and credit card donations.
To donate, please visit: http://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     http://www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.