A Filha do Arcediago

By Camilo Castelo Branco

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Title: A Filha do Arcediago
       Terceira Edição

Author: Camilo Castelo Branco

Release Date: November 29, 2008 [EBook #27364]

Language: Portuguese


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A FILHA DO ARCEDIAGO

FILHA DO ARCEDIAGO

POR

CAMILLO CASTELLO BRANCO

TERCEIRA EDIÇÃO

PORTO
EM CASA DE CRUZ COUTINHO--EDITOR
18 E 20--CALDEIREIROS--18 E 20
1868

PORTO--TYPOGRAPHIA DO JORNAL DO PORTO rua Ferreira Borges, 31




Leitores! Se ha verdade sobre a terra, é o romance, que eu tenho a honra
de offerecer ás vossas horas de desenfado.

Se sois como eu, em cousas de romances (que no resto, Deus vos livre, a
vós, ou Deus me livre a mim) gostareis de povoar a imaginação de scenas,
que se viram, que se realisaram, e deixaram de si vestigios, que fazem
chorar, e fazem rir. Esta dualidade, que caracterisa todas as cousas
d'este globo, onde somos inquilinos por mercê de Deus, é de per si um
infallivel symptoma de que o meu romance é o unico verdadeiro.

Eu sou um homem, que sabe tudo e muitas outras cousas. Não espreito a
vida do meu proximo, nem ando pelos salões atraz d'uma ideia, que possa
estender-se por um volume de trezentas paginas, que, depois, vil espião,
venho vender-vos por 480 reis. Isso, nunca.

Tudo isto que eu sei, e muito mais que espero saber, é-me contado por
uma respeitavel senhora, que não vai ao theatro, nem aos cavallinhos, e
que tem necessidades organicas, mas todas honestas, e, entre muitas, é
predominada pela necessidade de fallar onze horas em cada dez. Desde que
tive a ventura de conhecel-a, não invejo a sorte de ninguem, porque vivo
debaixo das mesmas telhas com esta boa senhora, e posso satisfazer a
mais imperiosa necessidade da minha organisação, que é estar calado. É
que não podemos fallar ambos ao mesmo tempo.

E, depois, a sua conversação, escassa d'arrebiques, e despretenciosa,
abunda em riquezas naturaes, em thesouros impagaveis para o escriptor
publico, em estudos sociaes adquiridos no testemunho de factos da vida,
que não vieram ás locaes do jornalismo, porque a imprensa, ha poucos
annos que denuncia os casamentos, os obitos, e os suicidios.

Ingrato seria eu, se não significasse aqui, com toda a cordialidade de
que sou susceptivel, o meu reconhecimento á dita pessoa, que promette
elevar-me á importancia de escriptor veridico, n'um genero em que todos
os meus collegas mentem sempre.

No momento infausto em que os sêllos do tumulo me fecharem este livro do
passado, obliterar-se-ha a fecunda veia de romancista, d'onde tenho
havido uma barata immortalidade para mim, e para a minha collaboradora.

O publico, maravilhado da minha esterilidade, dirá então que os meus
romances eram d'ella; e um nome, hoje obscuro, será exhumado do
esquecimento para quinhoar da gloria dos escriptores-fêmeas d'esta nossa
terra tão escassa--ainda bem--d'esse contra-senso.




A FILHA DO ARCEDIAGO




CAPITULO I


Em 1815, um dos mais abastados mercadores de pannos da rua das Flores na
cidade do Porto, era o senhor Antonio José da Silva. E a 23 d'agosto, do
mesmo anno, o negociante da rua das Flores que mais suava, e bufava
afflicto com a calma, era o mesmo senhor Antonio José da Silva. O senhor
Antonio, como os seus caixeiros o chamavam, tinha razão para suar. As
bochechas balofas e tremulas, dilatadas pelo calor do estio,
ressumavam-lhe um succo oleoso, que descia em rêgos pelos tres rofêgos
da barba, e vinha adherir a camisa ás duas grandes esponjas, que
formavam os seios cabelludos do nosso amigo attribulado.

O senhor Silva inquieto, e resfollegando como um hippopótamo, passeava
no seu escriptorio. O seu traje era muito simples: andava de cuecas, e
alpercatas de estôpa com sola de cortiça. Este vestido, com quanto
singelissimo, e o primeiro talvez que se seguiu ao que trajou Adão no
Paraizo, dava-lhe ares d'um sátyro voluptuosamente gordo.

O negociante representava cincoenta e cinco annos, bem conservados. No
ôlho direito tinha muita vida; o esquerdo, porém, n'esta occasião tinha
um tersolho, e inflammado, de mais a mais, pelo calor.

Além do dito, o senhor Silva estava soffrendo um segundo tersolho no
espirito. Era uma paixão, uma paixão d'alma, a mocidade na velhice, essa
ancia impotente d'um coração, que quer romper os tecidos atrophiados de
cincoenta e cinco annos para dar quatro pulos em pleno ar.

Quem era a victima d'esta paixão impetuosa? Uma menina de quinze annos,
que a leitora enjoada das indecentes cuecas do senhor Silva, póde vêr,
no segundo andar d'esta mesma casa, sentada a costurar na varanda, com
uma gata malteza no regaço, e um papagaio ao lado, que lhe depenica os
sapatos de cordovão.

É uma bonita menina, para quem gosta d'um rosto oval, olhos azues, leite
e rosas na face, labios acerejados e pequenos, dentes como perolas,
olhar alegre e penetrante. Conversa com o papagaio, e o metal da sua voz
tem aquelle timbre sonoro e puro, que nos faz jurar na belleza de quem
falla, sem lhe vermos as feições. O papagaio salta-lhe á mão, e esta mão
é pequena, dedos longos, rosados nas extremidades, transparentes como o
collo de sua dona, onde o proprio Lucifer de Gautier choraria uma
segunda lagrima, por se vêr impossibilitado de armar ás boas mulheres
(quando é de suppôr que lhe não vão lá ter as peores...)

Concordemos em que Rosa Guilhermina era uma bonita moça, e desculparemos
a paixão fatal do infeliz negociante, que, no andar de baixo, está
fumegando por todos os orificios, e distillando por todos os póros.

Como veio esta menina para a casa do negociante?

Da seguinte maneira:

Quatro annos antes, o arcediago de Barroso, padre Leonardo Taveira,
amigo velho do senhor Silva, em expansiva conversa com o seu amigo, n'um
domingo de tarde, nas hortas de Campanhã (onde semanalmente saturavam as
respectivas massas adiposas com o excellente vinho verde de Cabeceiras
de Basto), quatro annos antes, vinha eu dizendo, fallava assim, com o
seu amigo, o rubicundo arcediago:

--Sabes tu, Silva, que me está dando bastante cuidado o futuro de Rosa!

--Deixa-te disso. Não tens tu, em minha mão, um bom patrimonio que lhe
dês?! Acho que vinte mil cruzados, afóra o juro de cinco por cento, ha
dez annos, capitalisado no proprio, a vencer até que ella faça os vinte
e cinco, acho eu que é um dote de lhe tirar o chapéo.

--Bom dote é; mas isso não é o que me dá cuidado. O que eu queria para
minha filha é um bom marido...

--Ó homem, já tratas disso!? Que idade tem a tua filha?

--Tem onze annos; d'aqui a três é mulher, e póde talhar futuros por sua
conta e risco. É o que eu não quero. A pequena está em mestra-de-dentro;
mas isto de mestras ensinam a cozer e a bordar, mas não sabem adivinhar
o coração d'uma rapariga, que... emfim, Silva, vou ser franco comtigo...

--Diz, padre Leonardo...

--Que é filha de tal pae e de tal mãe... Eu tenho sido o que tu sabes...

--Isso lá é verdade... tu tens sido levadinho da breca com o gado de
contrabando...

--E a mãe, se queres que te diga a verdade, tinha uma perfeita
embocadura...

--Diz-m'o a mim, Leonardo! Era uma namoradeira dos quatro costados...
Mas, emfim, está casada, e já não é a mesma.

--Caro me custou o casamento...

--Isso custou! O que tu déste ao francez p'ra montar a loja de livros,
ainda que não rendesse senão a sete por cento, podia hoje montar a
reis... deixa vêr... quatro vezes sete vinte e oito, vão dous, com cinco
cifras, faz... faz...

--Aguas passadas... não fallemos n'isso. Agora o que me importa é a
rapariga, já que fiz a asneira de a procurar na roda... Tira-me o somno,
Silva! Lembra-me ás vezes que esta pequena ha de ser a disciplina com
que hei de ser castigado por muitas asneiras que fiz...

--Isso lá é verdade. Diz o dictado: «Onde se fazem, ahi se pagam.» Já
vem dos velhos a experiencia... Sabes tu que mais? Casa a rapariga assim
que ella pozer as ventas no ar a contar os ventos. Não lhe dês tempo a
namoricos. Janella fechada, e marido entre mãos, era o systema de minha
mãe, que Deus haja, e minhas irmãs não deram desgosto á sua familia.

--Tens razão, Antonio; mas quando o diabo está atraz da porta, não vale
nada fechar a janella... Olha lá... Queres tu casar com a minha Rosa?

--Homem, essa!... tu serás o espirito ruim que me appareces em corpo
d'homem? Não vês que tenho cincoenta feitos, e que nunca me deu na
cabeça a asneira de me casar?

--Alguma vez ha de ser a primeira...

--Isso lá é verdade; mas cada qual mede-se com as suas forças, e eu já
não estou homem para tropelias. O que eu quero é comer bem, é beber-lhe
melhor. Isto de creanças, casadas com velhos, não provam bem...

--Estás enganado com o mau exemplo da tua visinha Anna...

--Que pôz na cabeça do marido um chinó, porque elle era calvo... e eu
não estou menos calvo que o pobre João Pereira, que deu com o negocio em
pantana, por causa da mulher...

--Não meças tudo pela mesma rasa, Antonio. A pequena é docil, tem um
genio de pomba, vai para onde a levam, e será uma boa esposa. Ponto é
pilhal-a nos cueiros... Tu sabes melhor que eu o dote que ella tem...

--Não fallemos em dote, Leonardo... Eu, se casar com a tua filha, tanto
se me dá que ella tenha um como dous... A cousa não é essa... O peor é o
resto.

--Que resto?

--Eu te darei a resposta ámanhã.

Continuaram fallando largamente sobre o assumpto, em que o senhor Silva,
tres vezes, citou o chinó do seu visinho João Pereira.

No dia seguinte, o arcediago de Barroso encontrou o seu amigo
meditativo.

--Pensas ainda, Antonio?

--Estava pensando no nosso negocio. Isto de mulheres deve a gente
suppôl-as sempre mercadoria avariada... Mas, diz-me cá, a tua filha só
tem onze annos...

--Só, e d'aqui a dous tem treze...

--Se a cousa se arranjasse, não podia ser senão d'aqui a dous annos.

--De certo.

--Pois, então, fallaremos.

--Não que é preciso decidir-se a cousa já.

--Porquê?

--Se disseres que sim, a pequena ha de vir para tua casa já; quero que
seja educada por tua irmã, e que se afaça comtigo, para te ganhar
amizade, e o amor depois virá.

--Qual amor, nem qual carapuça! Ella póde lá ganhar-me amor!... Eu cá de
mim, se casar, o que quero é uma herdeira, porque tenho para ahi uns
sobrinhos, que se penteam muito, e que não querem estar ao mostrador a
medir covados de panno. Ha de me custar se elles vierem metter a mão no
que me custou a ganhar com honra e trabalho. Um d'elles metteu-se-lhe na
cabeça ir a Coimbra estudar para doutor!... Que tal está o catavento!
Meus paes foram lavradores, eu sou negociante, e quem houver de ficar
com a minha casa ha de vir para aqui. Quando penso n'isto, Leonardo,
parece-me que me fazia conta casar!... E, se eu tivesse um filho!...
isso então, digo-te que era ouro sobre azul! Se não fosse o medo, que
tenho ás bôcas do mundo, não engeitava aquelle rapagão da Thereza...

--É verdade, que fizestes á Thereza?

--Puz-lhe um estabelecimento de castanhas assadas na Ribeira. O diabo da
moça piscava o ôlho ao caixeiro, e pul-a fóra de casa. Eu cá poucas
vergonhas de portas a dentro não as quero.

--Tens razão; mas isso do filho é cousa muito natural...

--Ah! é verdade; isto do filho acho eu que é cousa muita natural; mas
dizias tu que á Rosinha...

--Viria para a tua companhia, e aos treze annos, ou mais cedo, com
licença do bispo, casas com ella...

--Homem... isto é uma carta tirada da baralha... Está dito, se a cousa
não dér de si, caso com a tua filha.

--Se a cousa não dér de si... dizes tu; que quer isso dizer?

--Sim, se não houver entrementes cousa que desarranje a minha saúde ou a
d'ella...

--Está visto, não é preciso tirar isso como condição.

Rosa Guilhermina veio para casa do senhor Antonio José da Silva.

O noivo predestinado affeiçoou-se á pequena com toda a effusão paterna.
Prodigalisava-lhe carinhos, que a menina recebia com indifferente
innocencia, mas com certo aborrecimento intimo, e até nojo da sua grande
cara, cujas belfas eram vermelhas como duas folhas de parra de moscatel,
no outono.

Feitos os treze annos de Rosa, o negociante sentiu abrirem-se-lhe as
valvulas do coração para lhe verterem nas veias um sangue mais quente.
Não era um fino amor o seu; mas era um amor que lhe afinava a voz
melodiosa de meiguices, que a pequena recebia sempre com tregeitos de
enfastiada.

A affeição não correspondida reagiu.

O coração, atufado pelos tecidos cellulares, do obeso amante, esperneou
nas cavidades do peito respectivo, e veio á superfície dos
acontecimentos com o ideal d'um Antony, com os ciumes d'um Othello, e
com a paixão escandecida d'um Mamfredo de cuecas, como tivemos o
dissabor de vêl-o no principio d'este capitulo.




CAPITULO II


Na tão indecente como attribulada situação, em que deixamos o senhor
Antonio, veio encontral-o o padre Leonardo Taveira, que voltava de resar
vesperas no côro da Cathedral.

O cálido negociante resfollegava como um tubarão, e improvisava uma
ventoinha de meia fralda da camisa. Cada vez mais indecente! Valha-nos
Deus, leitores, que muito amargo é o dizer a verdade inteira! Ha
momentos em que o escriptor publico se vê forçado a córar. Se me
visseis, n'este instante, julgar-me-ieis d'uma candura infantil.

O arcediago, porém, não se mostrou surprendido da attitude tragicamente
afflictiva do seu amigo. Cálido tambem, despiu a loba, arremessou o
cabeção, descalçou os sapatos de fivela, e refocillou os amplos pés
vermelhos nos propicios chinelos do escarlate mercador de pannos.

--Fostes a minha desgraça!-regougou o senhor Antonio, abanando o
ventilador com a mão esquerda, e enxugando com a toalha de mãos os
humidos torcicollos do pescoço.

--Fui a tua desgraça! Pois que é?-replicou o beneficiado, tapando com o
indicador da mão direita uma das ventas, para chilrear na esquerda uma
solemne pitada.

--Que é? ainda m'o perguntas? É a tua filha que me faz de fel e vinagre!
É uma ingrata que se me ri nas barbas, quando eu lhe faço meiguices!

--Ora deixa estar, que o remedio não está em Roma. Eu já te disse que
sou pae, e tenho direitos sobre minha filha. Queres ou não queres casar
com ella, Antonio?

--Perguntas-m'o agora que já não sei por onde me anda a cabeça!... Dava
trinta mil cruzados, e queria que a tua filha gostasse de mim! Isto
parece que foi inguiço, que me fizeram!...

--Eu te quebrarei o inguiço...

--Não sei como. A pequena, seja lá pelo que fôr, não me póde vêr, ha um
anno para cá. Aqui anda dente de coelho... Não sei, mas desconfio que
ella namora o filho do João Retrozeiro, que me está sempre a lêr por
detraz dos vidros.

--Devéras?

--Parece-me que sim. A minha Angelica já o desconfiou, e ralhou-lhe. A
senhora Rosinha levantou a cabeça, e disse que não dava satisfações a
ninguem.

--Ah! ella disse isso? Ora deixa-me com ella...

--Ouviste, Leonardo? não quero que lhe ralhes. É muito creança, e póde
ser que minha irmã se enganasse. Serão escrupulos de Angelica, que me
defumou com herva sancta e trevo nove vezes para me quebrar o feitiço em
que me tinha a criada Thereza. É uma pateta mulher. Não lhe digas nada
por ora a tal respeito. Aconselha-a que case comigo, e que me tenha
amor, que eu prometto dar-lhe todo o ouro e vestidos que ella quizer.
Hei de até leval-a ás comedias italianas, e não haverá fidalga que lhe
bote a barra adiante em aceios.

Já vêem, pela energia da expressão, que dôr tão sublime não devia ser a
que assim se exprimia por jactos de calorosa eloquencia! O senhor
Antonio José da Silva, superior á sua classe, sentia-se arrojadamente
grande pela angustia d'uma repulsa. Trinta mil cruzados déra elle pelo
amor de Rosa Guilhermina! Promettia leval-a ás comedias! Galardoava o
seu amor com vestidos que fizessem morder de inveja as fidalgas do
Porto! Eu quizera que Rosa lhe exigisse uma carruagem. Se o senhor
Antonio accedesse ao extravagante pedido, então, leitores seria eu o
primeiro a pedir uma data gloriosa, um cantinho, na historia da
civilisação da rua das Flores, para o senhor Antonio José.

A nada, porém, se movera a esquiva donzella.

O arcediago, commovido pela exclamação do seu futuro genro, subiu ao
segundo andar, e procurou, meio-colerico, a filha rebelde, que ensinava
o papagaio a dizer: _é o rei que vai á caça_.

--Á caça andava eu de ti...--disse affavelmente o pae, chegando uma
cadeira para junto de sua filha tambem risonha, que lhe beijava a mão.

--Ah! eu não sabia... Tenho estado aqui toda a tarde a trabalhar,
sósinha.

--A senhora Angelica não tem estado ao pé de ti?

--Não, meu pae. Creio que foi visitar o SS. Sacramento.

--Mas ella ainda é tua amiga como sempre foi...

--Eu sei cá... parece-me que não.

--Algum motivo lhe déste, Rosa...

--Eu? nenhum.

--Que disseste hoje ao senhor Antonio?

--Não me lembro... A que respeito?

--A respeito do teu casamento.

--Não fallemos n'isso, meu pae... Sou muito nova, não quero casar.

--_Não quero!_ isso é cousa que se diga a um pae?

--Vmc.e não ha de querer a minha desgraça... Eu não posso ser feliz
casando com o senhor Antonio... Antes quero ser criada de servir, ou
trabalhar para viver...

--Rosa, não sejas creança. Olha que tu, casada com este homem, és muito
rica, satisfazes todas as tuas vontades.

--Antes quero ser pobre... Tenho repugnancia em chamar meu marido a um
homem que eu poderia estimar como avô... Não posso, é impossivel, meu
pae. Mais facil me será morrer, que casar com elle.

--Visto isso, resistes á vontade de teu pae!

--Bem me custa; mas o pae ha de ter pena de mim; não ha de querer que eu
seja desgraçada toda a minha vida.

--Não quero, não; e por isso mesmo é que te mando casar com o senhor
Antonio José da Silva.

--Mate-me, se quizer; mas obrigar-me a casar, isso não.

--Das duas uma: ou casar, ou entrar já no recolhimento das orphãs em S.
Lazaro.

--Entrarei no recolhimento, vou para onde o pae quizer que eu vá, até
serei carmelita, se fôr da sua vontade.

Esta pertinaz resolução espantou o arcediago, e convenceu-o de que sua
filha estava innocente das suspeitas de Angelica, beata crendeira em
encantamentos, inguiços, e lobishomens. Se a pequena tivesse namoro com
o filho do João Retrozeiro, de certo não acceitaria com tanta presença
de espirito a condicional do recolhimento. Assim o pensava o licenciado,
que tinha muita experiencia do mundo, e essa muito cara, a julgar pelas
cifras que accumulou o negociante, orçando as despezas do casamento da
mãe de Rosa.

Teimoso, e esperançado nas boas maneiras, entrou em negociações
amigaveis com a menina. Pintou-lhe o melhor que pôde a vantagem de ser
brevemente uma viuva rica, e a liberdade que teria então de escolher um
marido mais galhardo. Repetiu a seducção dos vestidos, e dos diamantes;
encareceu as delicias do theatro; soprou-lhe a vaidade, imaginando-a
invejada pelas mulheres de todos os negociantes do Porto; emfim, por não
fechar o discurso sem uma immoralidade, com palavras equivocas,
dissertou pouco christãmente ácerca dos deveres da mulher casada.

Rosa insistiu na recusa. O padre irou-se outra vez; deixou cahir a
caixa, no excesso da indignação; verteu no peito da camisa quatro pingas
de rapé; escumou pelos cantos da bôca; pizou uma perna ao papagaio;
entalou o rabo da gata, que saltou, bufando, para o peitoril da varanda;
e acabou por dizer, em voz cavernosa, que Rosa, no dia seguinte, sem
mais delongas, seria fechada no recolhimento de S. Lazaro, para não vêr
sol nem lua.

O senhor Silva ouvira os ultimos berros, e zangou-se contra o padre. O
seu amor não lhe consentia um ultraje a Rosa, apesar de ingrata. Em
cuecas, e com a camisa em ventilador subia a escada; mas, a meio
caminho, olhou para si, e viu, na sua consciencia, que não estava
decente. Tornou atraz a enfiar as pantalonas de linho, quando o
arcediago descia com a cara côr de lagosta, e os olhos turgidos e
encarniçados como dois medronhos bravos.

--Não fazes senão asneiras, Leonardo--disse o negociante, impando com a
difficuldade de enfiar a côxa roliça nas pantalonas, que queria vestir
ás avessas, no auge da atrapalhação.

--Eu não faço asneiras. Sou pae, e quero ser obedecido.

--Que vaes tu fazer?

--Ámanhã ha de entrar no recolhimento por força.

--Deixa-te d'isso; não afflijas a rapariga por minha causa. Eu não
consinto...

--Não preciso do teu consentimento. O caso agora é comigo, não é
comtigo. Veremos quem vence.

--Então não ha outro remedio, Leonardo?

--Nenhum. Está de pedra e cal. Não quer casar por bem nem por mal. Diz
que tem repugnancia em ser tua mulher.

--Sim?!-atalhou o senhor Silva atrozmente ferido na sua vaidade--pois,
n'esse caso, faz o que quizeres, e tira-m'a quanto antes de casa.

--Olha cá, Antonio... Eu parece-me que a pequena, em se vendo fechada no
recolhimento, onde não conhece ninguem, nem tem janella para a rua,
mudará de vontade, e quererá casar...

--Comigo? Isso nunca! Deus me livre! _Má mez_ para ella! Lembras-te do
chinó do meu visinho?

--Ora deixa-te d'isso, meu amigo. Nem todos os maridos são calvos... nem
todas as mulheres fazem marrafas. Dá tempo ao tempo. Quem lida com
mulheres, lida com o diabo. É preciso atural-as. Sabes lá o que eu tenho
soffrido com ellas?

--Eu é que não estou para brincadeiras... Estava muito socegado, ha tres
annos; para que vieste tu inquietar-me com o negocio, que me propozeste
em Campanhã? Guarda a tua filha, que eu morrerei solteiro.

O senhor Antonio José da Silva, dizendo isto, melhor avisado, bebia uma
limonada, e o arcediago de Barroso calçava os sapatos de fivela.

N'este momento entrava a senhora Angelica, de mantilha, e camandulas de
pau preto pendentes nas mãos, que trazia sobre o seio em postura
beatifica.

--D'onde vens, Angelica?-perguntou o irmão.

A beata resmungou, e subiu para o segundo andar.

Espionemos d'onde vinha a senhora Angelica.




CAPITULO III


Que Rosa Guilhermina estava, mais ou menos, possessa de feitiços, era um
evangelho para a senhora Angelica. Que a filha do peccado, como a beata
lhe chamava, seduzida pelo demonio, namorasse o filho do retrozeiro,
isso é que não era liquido.

Para os feitiços deixára Deus na terra pessoas virtuosas, mulheres
sabias, que os desmanchavam; e para adivinhar o coração da pequena bem
sabia a irmã do senhor Antonio que o remedio não estava longe.

A senhora Angelica ouvira a conversação do seu Antonio com Rosa
Guilhermina, na manhã do dia em que se passaram as scenas ridiculamente
funebres do capitulo anterior. Cousas ouviu ella que a obrigaram a
benzer-se tres vezes, e queimar arruda no seu quarto, e no da pequena.
Parece que a timida sexagenaria receava que o espirito mau, que vexava
Rosa, viesse, por variar, entreter-se com o seu corpo immaculado.

Feitas as abluções, e comido o jantar, que benzeu tres vezes, e devorou
com as pernas em cruz, receosa d'um ataque subterraneo do demonio,
compoz a coca da mantilha, armou-se do rosario abençoado por Gregorio
XVI, prendeu duas figas e um chispo de veado na alça do collête, e
sahiu.

Da rua das Flores a Miragaya dava saltinhos como uma franga com as azas
cortadas. Ao pé da antiga casa da Companhia, n'uma porta baixa de casa
terrea, bateu a senhora Angelica. A porta foi aberta por uma velha
inqualificavel, indefinivel, mistura de todos os animaes repulsivos
desde a santopeia até á cegonha. Era a senhora Escolastica, benzedeira,
adivinha, mulher sabia, que praticava com o invisivel por meio da
peneira e das cartas.

--Venha com Deus, devota de Nosso Senhor. Já sei ao que vem.

--Já? Louvado seja Deus!

--A Rosinha não quer casar.

--Nem á mão de Deus padre... Aqui anda feitiço. Queria que vmc.e me
dissesse se o filho do retrozeiro, que se chama José, será o manfarrico
que faz doudejar a cabeça da rapariga.

--Vamos a isso--disse a senhora Escolastica, carregando duas vezes de
simonte a venta esquerda, que parecia um mexilhão aberto, e folheando um
surrado baralho de cartas.

A senhora Escolastica benzeu-se, e pronunciou a seguinte oração, pondo
as cartas em quatro montes, benzidas tambem:

«_S. Cypriano, bispo e arcebispo fostes, sete annos no mar andastes, na
vossa divina graça vos sustentastes, sete sortes pela vossa divina
esposa botastes, no fim vos declarastes. Declarai-me aqui se a Rosinha
anda de namoro com o José, filho do retrozeiro._»

E, depois, voltando-se, com ar sibillyno e tragico, para Angelica:

--Rosa é a dama de ouros; o José é o rei de ouros. Aqui sahe Rosa com o
sete de espadas, que é uma paixão d'alma. Aqui está o José voltado para
ella de corpo e pensamento, que é o valete de ouros. Sahe-lhe aqui outro
homem, que é seu irmão; mas ella vira-lhe as costas, e dá-lhe más
palavras, que é o cinco de espadas. No meio disto sahe-lhe aqui
lagrimas, que é o cinco de copas, e a espadilha o affirma. Seu irmão
aqui está com o sete de copas, que quer dizer comidas e bebidas, e ella
vira-se para o sete de paus, que é um gosto grande, e o seis de paus
pela porta da rua. Aqui está a dama de espadas, que é uma mulher de má
língua por causa d'uns dinheiros grandes, que é o dous d'ouros, vê? ella
ámanhã sahe por caminhos; aqui está o dous de espadas, e aqui está o az
d'ouros, que é a igreja, e o quatro de paus que é a tumba... valha-me
Deus!...

A senhora Angelica, côr de cidra, benzeu-se. Dito isto, a senhora
Escolastica repetiu a miraculosa operação, e descobriu uma _novidade_.
Novidade é uma carreira de cartas sem figuras. A novidade era a
confirmação do quatro de paus, e um certo az de copas, cuja significação
a benzedeira disse ao ouvido de Angelica, que fez uma carêta, e
persignou-se. Carêta aquella, discreta leitora, que eu tambem fiz quando
me contaram esta pavorosa historia.

Feito isto, as cartas foram substituidas pela peneira.

A senhora Escolastica, versada nos dous ramos de sortilegio, pôz de
perfil a peneira, e metteu-lhe um Senhor crucificado, umas contas, e
tres vintens em prata. Depois cravou em um dos lados os bicos de uma
thesoura fechada, e outra thesoura do outro lado. Feito isto, com
grandes tregeitos, e grave attenção da senhora Angelica, que murmurava o
credo em cruz, disse a benzedeira:

«_Peneira, tu que peneiras? Pão para toda a christandade. Pelo poder de
Deus peço-te que me digas se a Rosinha ha de casar com o senhor Antonio;
se tiver de casar, vira-te para a direita, e senão vira-te para a
esquerda._»--A peneira oscillou alguns segundos, e ficou voltada para a
esquerda.

A pobre Angelica deixou pender o beiço inferior, que, ha quatro annos,
lhe tocava na ponta do nariz! Estava profundamente triste e aterrada! O
seu ôlho esquerdo fallou da abundancia do coração. Uma lagrima, côr de
agua-pé, rolou-lhe perguiçosa nas verrugas da face.

--Sabe o que mais, senhora Angelica?--disse Escolastica, commovida, e
atufando a pitada na fossa anfractuosa da venta direita--sabe que
mais?... vamos _prender_ a rapariga.

--Isso será cousa de escrupulo, e eu tenho medo que Deus me castigue.

--Agora castiga... Ha de ensinar ao seu irmão esta oração: «_S. Marcos
te marque, S. Manso te amanse, os quatro Evangelistas te batam á porta
do teu coração, Sanctissima Trindade te confirme na minha vontade, para
que nem na cama, nem na mesa, nem no lar, sem mim, não possas estar, rir
e fallar, e já, e já, e já com todo o pacto._»--Esta oração ha de seu
irmão dizel-a, e quando disser _com todo o pacto_ ha de dar tres vezes
com o pé direito no chão. Passados nove dias, em que eu hei de rezar a
novena das almas, e ouvir as vozes, appareça vmc.e por cá, e veremos se
é preciso trazer roupa d'ella para a defumarmos nos quatro cantos com o
fogareiro de S. Cypriano.

A senhora Angelica deu por bem empregados os seus dous patacões, e
passou o resto da tarde a rezar os versos de S. Gregorio, e a novena de
Sancta Apolinaria, em _S. João_, onde estava, n'esse dia, que era sexta
feira, exposto o Sanctissimo.

Ora aqui está d'onde vinha a irmã do senhor Antonio José da Silva.

Dobrada a mantilha, e a saia de durante, a senhora Angelica desceu a
procurar seu irmão, e, farejando os cantos da sala, viu que ninguem lhe
testemunhava a tremenda revelação, que ia fazer-lhe.

--Então já sabes o que acontece?-perguntou elle, emborcando o segundo
pucaro de limonada.

--Que foi, meu Antoninho?

--A Rosa vai-se, ámanhã, embora.

--Vai! Louvado seja Deus!... bem m'o disse a Escolastica!...

--Quem é a Escolastica?!

--É cá uma mulher, muito temente a Deus, que vê o que se passa na
alma...

--Deixa-te de crendices... não creias em maranhões...

--Credo! não digas tal, Antonio, que não vá Deus castigar-te, e ella
sabel-o... Se tu soubesses o que ella me disse...

--Não sei, nem quero saber... Has de sempre ter essa mania! Pergunta ao
padre Leonardo por isso, e verás a rizada que elle te dá...

--Bem me importa a mim a risada do padre Leonardo!... Não... aquelle não
é cá dos meus!... Padres com filhas... não quero ir com elles nem para o
céo... Sabes tu que o tal arcediago me parece jacobino!... Deus me
valha, se pecco... Cala-te, bôca...

A devota mulher, incapaz de infamar, dava uma sonora palmada nos labios,
quando apostrophou a bôca falladora, e lhe impôz silencio, que mais
eloquente que a bôca, segundo diz o poeta latino, fallou assim:

--Tenho cá minhas aquellas com este padre!... Elle não diz missa, nem
préga a quaresma, nem vai ás via-sacras, como o padre Aniceto, meu
confessor, e o padre Benedicto dos Carmelitas, que reza os exorcismos.
Deus me acuda--continuou ella em voz alta--mas não tenho fé com padres
que tem filhas, e casam as mães com outros, de mais a mais com um
pelitrão da França, que é hereje, e jacobino na alma e no corpo...

--Cala-te lá, que estás ahi a dizer parvoíces. O padre Leonardo é um
homem honrado, que não vai ás via-sacras, mas tem temor de Deus. Lá, se
deu a sua escorregadella, em bom panno cahe uma nodoa. E, se elle não
fosse um bom pae, não obrigava a filha a entrar, ámanhã, no recolhimento
de S. Lazaro.

--Que me dizes, Antonio da minha alma? Pois a Rosa vai para o
recolhimento?

--Vai, podéra não!...

--Bem o disse a serva de Deus! Ai! que tudo nos vai sahindo como a
benzedeira o disse... O az d'ouros, lá estava o az d'ouros, Antonio! Não
tornes a fazer pouco dos adivinhamentos. Tudo m'o disse ella, e muitas
cousas mais... Abençoados dois patacões!

--Ó mulher, tu pareces-me tôla! A impostora da velha podia lá saber
isto! Botou-se a adivinhar!

--Ó Antonio, tu não me pareces catholico!... Sancto nome de Jesus! Pois,
sem aquella de Deus, sabe lá ninguem futurar o que te ha de acontecer?
Não sejas assim, meu bom irmão. Lembra-te dos inguiços que te fez
Thereza (Deus lhe perdôe, se já morreu), aquella desavergonhada que
tinha levado as tuas cuecas da roupa suja para as benzer uma feiticeira
da rua Chã, e se não fosse a devotinha Escolastica ainda hoje terias o
demonio á perna, Deus me perdôe!...

--Vai-te d'ahi, que a Thereza não tinha demonio nenhum...

--Não tinha não... Pois não lhe viste a abstrucção de ventre, que ella
trouxe, e só com as rezas da Escolastica é que o berzebum a deixou a
ella, e a ti? Valha-te o Senhor!... Diz-me com quem andas, dir-te-hei as
manhas, que tens.

--Está bom... Vamos tratar de cear, que são nove horas.

--Está a Anna a segar o caldo... Antes d'isso quero dizer-te duas
palavras.

--Diz lá.

--Mas não has de fazer modos de incredulo. Tu queres que a Rosinha case
comtigo?

--Eu não.

--Não!... Minha mãe Maria Sanctissima!... Se eu te entendo...

--Quero que ella tenha por mim affeição de dentro... Contra vontade, não
quero ninguem.

--Pois se eu te ensinar o modo de fazeres com que ella te tenha affeição
de dentro?

--Vai bugiar! Tu cada vez estás mais tonta!

--Estou! pois olha que não é de velha.

--Isso não; mas já podias saber mais do mundo com sessenta e nove
annos... És mais velha que eu quatorze.

--Então? achas que estou tonta como a velhinha tia Brizida, que já fez
noventa e dous?

--Não sei... Sabes que mais? Mette um salpicão no pucaro, e leve
berzebum as paixões, e quem com ellas engorda.

--Olha cá, Antonio... Não te quero assim... Pareces-me mesmo nos modos
com os chichisbeos que vão ao theatro, e á missa das dez a S. Bento, por
causa das freiras, que, Deus me perdôe, podem bem com a sanctidade que
teem!... Andam sempre alli pelas grades aquellas namoradeiras, que nem
me parecem religiosas, e esposas do Cordeiro immaculado, e fallam da
vida do proximo!... Valham-me as cinco chagas, e a benta cruz.

--Vai pôr a mesa, mulher, e olha lá o que essa rapariga está a fazer,
que eu vejo d'aqui o filho do retrozeiro á janella...

--Ah! vês? Não que ella faz-lhe amor de cá...

--Tu viste?

--Disse-m'o a Escolastica.

--Que leve a breca a tua Escolastica, que o meu gosto era dar-lhe com o
covado no costado...

--Sancto nome! Tu que dizes, homem? Aqui cahe raio. Pede perdão á
servinha de Deus, senão as palavras não te aproveitam...

--Que palavras?

--As palavras que hão de fazer com que a Rosa ande atraz de ti como a
linha atraz da agulha. O caso é ter fé. Se as disseres, tu verás,
Antonio!...

--São palavras para lhe dizer a ella?

--Não... Assim que a vires, has de dizer no teu coração...

--Cala-te ahi...

--Não me calo... tenho até escrupulo de me calar... Hei-de dizer-t'as.
Ouve lá: «_S. Marcos te marque, S. Manso te amanse, os quatro
Evangelistas te batam á porta do teu coração, a Sanctissima Trindade te
confirme na minha vontade... e_... espera lá... deixa vêr se me
lembra... ah! já sei... _para que nem na cama, nem no lar, sem mim, não
possas estar, rir e fallar, e já, e já, e já com todo o pacto._» Quando
disseres isto, deves assim bater com o pé no chão uma, duas e tres
vezes...

Á terceira, a senhora Angelica pilhou debaixo do pé o rabo desgraçado da
gata, que soltou um doloroso grito, e vingou a affronta enterrando a
unha no joanete esquerdo de sua ama. Angelica soltou um brado fremente
de angustia. A gata rosnava, com o pello hirto, n'um canto da sala, e o
senhor Antonio bascolejava com as nedias mandibulas uma gargalhada
sincera.




CAPITULO IV


O salpicão fumegava na mesa, rodeado de ervilhas ensopadas. Ao lado, as
tigelas do bem adubado caldo, opulento de gorda ôlha, ressumavam um
cheiro appetitoso, que ludibriava o paladar dos rapazes da loja, aos
quaes era só permittido o cheiro.

Angelica fôra chamar Rosinha para a mesa, emquanto seu irmão espostejava
as talhadas pingues do paio de Lamego. A arrufada menina não quiz cear,
e, para esquivar-se ás instancias da velha pertinaz, declarou-se
incommodada da cabeça, cobrindo-a com o lençol.

O negociante engatilhava a cara em ar de despeito, e ensaiava as
palpebras roliças n'uma postura sombria, que desse da sua dôr a alta
ideia, que os queixos desmentiam, cevando-se na carne de porco, e nas
ervilhas aromaticas.

Certo de que a ingrata filha do arcediago não vinha á mesa, o senhor
Silva inutilisou a cara funebre, deu largas á testa franzida
tyrannamente, e mascou, rugindo como os deuses d'Homero, a ceia
substanciosa.

Angelica, da sua parte, comeu bem, e revesou no caldo, que, segundo
ella, podiam comel-o os anjos. Deu graças a Deus, e a todos os sanctos
do seu conhecimento, que eram todos, e alguns duvidosos, emquanto seu
irmão, a cada _padre-nosso_, desafogava um arrôto, que podéra, sem
hyperbole, chamar-se um urro.

O ultimo, e mais estridulo, soltou-o no seu quarto, onde, emfim, aquella
alma atormentada, e o estomago revolto deviam dar-se _rendez-vous_ em
grato somno de sete horas.

A senhora Angelica, reservando para o dia seguinte um novo ataque á
incredulidade de seu irmão, entrou, no seu quarto, a rezar a novena das
almas, que lhe fôra imposta pela devota Escolastica, e que não acabou
conscienciosamente porque adormeceu no meio da reza, enxotando, com
palavras de esconjuro, o demonio do somno, seu tentador implacavel. A
ultima apostrophe confundiu-se com o resonar profundo de seu irmão. O
resonar de ambos, dueto horrivel, acordava os eccos funebres da casa.
Dormiam todos, excepto Rosa.

Rosa não dormia, porque apurava o ouvido a cada quarto, que badalava o
relogio de S. Domingos.

Faltava o ultimo para as dez, quando a promettida esposa do negociante
enfiou o vestido, saltou fóra da cama, abriu cautelosamente a janella,
em que batia o luar, traiçoeiro confidente dos amantes nocturnos, que
apenas podem sorrir de dia, e só nas trevas, deixam voar o
coração-morcego.

Na janella fronteira estava um vulto, e na rua solitaria não se viam os
malditos grupos; innovação inutil da _guarda municipal_, que nos dá a
entender que os ladrões augmentaram com a civilisação, posto que os
jornaes diariamente nos aturdam com o catalogo dos roubos.

Em 1815 podia-se namorar honestamente d'uma janella para a outra, na rua
das Flores, sem que uma patrulha insolente parasse debaixo para
testemunhar a vida intima dos que lhe pagam. Podia cochichar delicias a
donzella recatada da trapeira para a rua, sem que o amador extatico ao
som maviosissimo d'aquella voz, receasse o _retire-se!_ brutal do
janizaro. Podia, finalmente, segurar-se o gancho d'uma escada de corda
no terceiro andar, subir impavidamente, conversar duas horas sobre
varios assumptos honestos, e descer, sem o receio de encontrar cortada a
rectaguarda por um selvagem armado á nossa custa, que nos conduz ao
corpo da guarda a digerir a substancia da deliciosa entrevista.

Bemaventurados, pois, os que namoraram em 1815.

Mas não tenham a impiedade, leitoras honestas, de suppôr que a
mencionada escada de corda engatou o gancho na reputação de Rosa. Não,
senhoras. A filha do beneficiado ignorava esse invento da intelligencia
humana, essa corrente electrica, que aproxima dous corações, a escada de
corda, emfim, que nunca ninguem imaginou tivesse electricidade, mas que
eu, amante da minha patria e das glorias d'esta terra, declaro á
academia real das sciencias, que a tem, e lhe offereço a descoberta como
digna das suas ponderosas lucubrações.

Mais ponderosos ainda eram os motivos porque a virtuosa Rosinha déra
signal ao José Bento, filho do retrozeiro, para fallar-lhe áquella hora,
acto que, publicado, faria jejuar a senhora Angelica dous annos, a pão e
agua, e faria crescer a agua, sem o pão, na bôca de muitos caixeiros das
lojas visinhas, que a essas horas resonavam como conegos em matinas.

Era a segunda vez que a predestinada mulher do senhor Silva se
abalançava ao crime infando de tagarellar da janella, a horas mortas,
para a janella fronteira.

José Bento era um moço de quinze annos, muito envergonhado, e tão
inutil, na opinião publica, que sua familia resolveu fazel-o frade loio.
Tinha dezeseis annos, e estudava latim, com grande pasmo do mestre, que
durante quatro annos, não podéra conseguir ensinar-lhe os rudimentos da
arte, sem que elle discipulo lhe désse quatro asneiras em troca de cada
regra. No seu genero era um prodigio! Não obstante, para loio o que lhe
faltava era a idade, que sciencia tinha elle de sobejo para repartir na
communidade.

O que elle tinha, além da sciencia, era uma melancolia sympathica,
contemplativa, e romanesca. José Bento, se fosse dos nossos amigos de
botequim, passaria hoje por um espirito atormentado, um mancebo devorado
por illusões, um sceptico de coração crivado de angustias, e
conseguiria, não fallando, pertencer á seita dos Szafis da feira da
ladra.

Não lhe faltava a testa espaçosa da tarifa. Um todo-nada de navalha nas
raizes capilares da fronte seria bastante para nos dar uma testa
artistica, em que os sectarios de Spurzen, veriam o genio, e o
respeitavel publico a toleima.

Ora aqui está quem era o namoro da senhora Rosa Guilhermina, que vai
fallar com a voz commovida, vibrante, e melodiosa.

--Senhor José...

--Aqui estou, senhora Rosinha... Não me vê?

--Vejo... agora vejo...

--Como passou?

--Bem; e vmc.e passou bem?

--Tenho estado hoje muito doente.

--Sim? de quê, senhor José?

--Tem-me doído muito a barriga.

--Será do calor...

--Acho que sim; veio cá o cirurgião, e mandou-me tomar banhos
_semicuplos_...

--Deus queira que lhe façam bem. Então já sabe que me vou embora d'esta
casa?

--Vai? para onde vai, senhora Rosinha?

--Para o recolhimento de S. Lazaro.

--Pr'amor de quê?

--Porque meu pae teima em querer casar-me com o senhor Antonio, e eu...

--Valha-o a maleita! Pois elle quer casal-a á força com um velho assim?

--Ora ahi está; e eu não quero...

--Faz vmc.e muito bem. Eu tambem, ainda que a filha d'um rei quizesse
casar comigo, emquanto vmc.e me lembrasse, mais facil seria atirar-me
d'esta janella para baixo á rua, que casar com ella.

--Forte teima de homem! Ainda hoje lhe disse que era capaz de metter o
fuso da senhora Angelica por um ouvido, se me quizessem obrigar a tal
casamento...

--Então vmc.e decerto vai para o recolhimento?

--Antes quero isso, antes quero ser freira.

--Então, sempre lhe digo, que vou para os Loios, se a menina se mette
freira...

--Eu não sei o que acontecerá... Póde ser que meu pae, em vendo que eu
não mudo de vontade, me tire do recolhimento.

--Isso é verdade, e, se assim fôr, n'esse caso não quero ser frade, nem
que meu pae me desherde.

--O peor é que nos não tornamos a vêr...

--Não? E é verdade que não. Lá nas orphãs diz que não ha janellas.

--Não ha, não; mas, se podéssemos escrever-nos...

--Isso sim; se podéssemos escrever-nos era bem bom; mas vmc.e , em se
pilhando lá a brincar com as outras raparigas, esquece-se de mim.

--Não esqueço, não. Estou affeita a vêl-o ha mais d'um anno, e tarde me
esquecerá...

--Se vmc.e soubesse o amor que lhe tenho!... Ha quatro noites a fio, que
sonho comsigo, e nem posso estudar a lição, nem tenho vontade de comer.
Já minha mãe hoje disse: este rapaz teve alguma olhadella má. Mal diria
eu que vmc.e sahia d'essa casa!... Pois olhe... a senhora Rosinha a
sahir, e eu tambem.

--Para onde vai?

--Vou para o Passos estudar latim. Meu pae quer que eu esteja dentro do
collegio para aprender mais depressa, e eu até aqui dizia que não,
porque tinha saudades de si, mas agora não se me importa de deixar esta
casa.

--E onde mora o mestre?

--Na viella da Cancella Velha.

--Pois se eu arranjar por quem lhe escreva, lá mando.

--Então não se esqueça.

--Adeusinho.

--Adeusinho, estimarei que tenha saude.

........................................................................

As janellas fecharam-se, e a lua no céo velou o rosto de negro, como
contristada da agonia lacerante d'estes dous infelizes! Essas phrases
plangentes traziam o quilate d'uma lucta atormentada que lá ia dentro
nos dous corações! A leitora sensivel, com as lagrimas nos olhos, e a
palpitação accelerada, espera, anciosa, o desfecho d'este lance, que
ficará aqui insculpido para modelo eterno das paixões impetuosas.

José Bento prostrou-se no leito do soffrimento, gemendo... com dôres de
barriga, e variam as opiniões ácerca de uma lagrima que lhe tremia n'um
ôlho, emquanto o outro conjugava o verbo _Laudo_, _as_, _are_, que lhe
custára, no dia anterior, um elastico puxão d'orelhas.

A minha opinião é que a lagrima era de pura saudade. Sériamente
fallando, não sejamos injustos, expondo á irrisão a phrase singela do
pobre rapaz. O que elle sentia então, se eu podésse sentil-o agora,
escreveria tres volumes em quarto, que o leitor me compraria, e a minha
reputação de piegas amoroso estava feita.

O filho do senhor João Retrozeiro, que Deus haja, era grosso de casca,
mas tinha dentro de si bellas cousas, exceptuando a dôr de barriga, que
o incommodou a ponto de levantar-se, e pedir á mãe que lhe mandasse dar
o _semicuplo_, receitado pelo cirurgião.

A extremosa mãe saltou em fralda do leito conjugal, rezando o responso
de Sancto Antonio, applicado aos banhos, accendeu o lume, aqueceu a
agua, e agasalhou seu filho na bacia, que, á parte, a posição que não
era bonita, lamentou ahi de cócoras profundamente a sua sorte.

E Rosa?

Rosa, coitadinha, perguntava á sua consciencia se o amor era aquillo que
José Bento lhe dissera. Parecida com a mãe, segundo o pae dizia, o
instincto segredava-lhe cousas novas, que o visinho não sabia
decifrar-lhe. A seu pesar, porém, a pequena chorava com saudades do
rapaz.

Felizmente adormeceu, pedindo a Sancta Barbara, sua advogada, que a
livrasse do velho, assim como, pela sua muita virtude, se podéra livrar
do impio Diocleciano (reminiscencias do ultimo sermão, que prégara fr.
Miguel dos Antoninhos, na Misericordia, dias antes).

Em virtude do que, dormiu pacificamente, viu em sonhos o José Bento,
queixando-se da barriga, e acordou de madrugada, quando a magra mão de
Angelica a chamava para o oratorio, em que se rezava tudo que havia
escripto sobre a materia.

Ao almoço, o senhor Antonio José da Silva aproveitava a edição de cara
que não pôde dar á luz na ceia, por falta de concorrencia da parte
interessada no espectaculo hediondo. Estava, portanto, mais feio que
nunca o senhor Antonio. Durante o almoço de café com leite, e biscoutos
de Avintes, nem uma palavra trovejou das belfas tumidas o desditoso
amante. Rosa comia sem vontade, e Angelica sopeteava deliciosamente as
suas sôpas, aboboradas em leite quente, porque os seus quatro dentes não
eram para graças.

Findo o almoço, appareceu o arcediago Leonardo Taveira, que comeu tres
biscoutos, indispensavel lastro para um copo de vinho, e pequena
refeição para quem vinha de rezar quatro psalmos, em lingua barbara, no
côro da Sé.

Reanimado de eloquencia propria do pae e do levita, o arcediago chamou
sua filha á parte, e recapitulou, á ultima hora, as admoestações do dia
anterior. Recalcitrou a desobediente rapariga. Fumegaram as pandas
ventas do sacerdote. Volitaram-lhe das ditas caroços de rapé, como as
frechas dos thracios contra Jupiter, e sacudiu da profana lingua um
feixe de raios de maldição: _Vibrata jaculatur fulmine lingua_, como
depois dizia o guardião dos gracianos, fr. Antonio do Menino Deus, a
quem elle contava o accesso.

O seu discurso, que não vale a pena de especial menção, terminou por
intimar a Rosa a immediata sahida d'aquella casa. Entretanto, o padre
Leonardo foi buscar a ordem de entrada no recolhimento. Quando veio,
Angelica pendurou-se-lhe ao pescoço, em risco de lhe enterrar o fio
cortante da barba no queixo d'elle. Supplicava-lhe a piedosa mulher que
lhe deixasse a filha mais nove dias, e, ao cabo d'elles, promettia
dar-lh'a alliviada.

--Alliviada!--exclamou o pae, arfando as azas do nariz--minha filha
alliviada!...

--Pois então...? quer que lhe diga uma cousa ao ouvido?... venha cá...

O padre media Rosa da cabeça aos pés, mas o ponto fixo d'esse olhar não
era de certo nos pés nem na cabeça... Angelica acenava-lhe, e elle não
podia attendel-a, porque parece que a cara da filha denunciava um crime
inaudito... Era precisa coragem. O arcediago deu o ouvido direito á
velha:

--O senhor reverendo arcediago não sabe o que aconteceu a sua filha?

--Não!... diga, depressa, que arrebento...

--Tenha paciencia... Todo o mal que Deus permitte é para desconto de
nossos peccados...

--Diga, senhora Angelica, que me faz doudo...

--Não se afflija, senhor arcediago... o mal é do demonio, e o bem de
Deus...

--Oh mulher, por quem é não me demore n'esta horrivel suspeita...

--Pois ainda não adivinhou?

--Não, com mil pragas...

--Credo! vossa reverendissima está atrigado!...

--Sancto nome de Deus, que mulher!... Que tem minha filha?... responda,
senão vou arrebental-a...

--Arrebental-a! Deus nos acuda... Sua filha não tem culpa... a culpa é
d'aquelle seductor do inferno, Deus me perdôe...

--Seductor!... um seductor!... quem foi o infame?... que é o que me diz,
senhora Angelica?!

--Que é o que lhe digo? É que sua filha tem o _esprito_ ruim no corpo! O
seductor é o demonio.

Padre Leonardo Taveira, com quanto pacifico, sentiu vontade de partir
d'um murro o craneo, quasi nú, da senhora Angelica. Depois, soltou um
frouxo de riso que borrifou a face da velha. A gargalhada foi tão longa
e estridorosa, que Angelica julgou o arcediago possesso d'outro demonio.




CAPITULO V


O senhor Antonio, emquanto Rosa se vestia, sumiu-se para esconder a
commoção da despedida aos olhos insensiveis da ingrata. Angelica
procurou-o para convencel-o de pronunciar á ultima hora, o esconjuro de
Escolastica. Não o viu, e teve de acompanhar lagrimosa a menina ao
recolhimento, onde seu pae fôra adiante lêr o programma, que devia
executar-se na reclusão da pensionista D. Rosa Guilhermina Taveira. Onde
se tinha sumido o noivo despresado? Estava defronte, na loja de João
Retrozeiro, que tivera medo do aspecto, raivosamente opilado, do seu
visinho, quando entrára.

--Senhor João--disse elle, arquejando, e revirando nas orbitas os olhos,
que o ciume arrancara á sua estupida immobilidade--senhor João! eu gosto
de viver bem com os meus visinhos; moro, ha cincoenta annos, n'esta rua,
sou um honrado homem, que nunca deu desgosto aos seus visinhos...

--Diga-m'o a mim, senhor Antonio! pois que é que lhe aconteceu?--disse o
pavido retrozeiro, tirando as cangalhas, e depondo uma borla de torçal
em que o imaginoso artista phantasiava uns berloques, que deviam
distinguil-o na especialidade das borlas--Acaso, senhor Antonio, se
desaveio com alguem?

--Eu nunca fiz tagatés ás filhas, nem ás irmãs dos meus visinhos.
Ninguem dirá que me viu espetar os olhos nas familias alheias. Sou um
homem honrado.

--Quem nega tudo isso, senhor Antonio?

--Tanto se me dá que vmc.e tenha cá uma mulher como duas...

--Isso não é verdade, e perdoará, visinho. Eu não tenha cá em casa senão
a minha mulher... Quem lhe disse que eu tinha cá duas mulheres?

--Não sei se tem duas, nem quatro. O que sei é que vmc.e tem um filho
muito mariola.

--Vmc.e está enganado! O meu filho é um rapaz muito accommodado que
estuda para loio, e não tem nada que lhe digam.

--O seu filho é um mariola, já lh'o disse.

--Pois o meu José que lhe fez?

--O seu José anda-me cá a fazer gatimanhos á filha do senhor arcediago,
que por amor d'elle vai ser posta fóra da minha casa. Não quero poucas
vergonhas de portas a dentro, é o meu systema.

--Que me diz, senhor Antonio? Pois o meu José...

--É o que lhe digo, senhor João. Eu sou um homem honrado, e dos annos
que tenho ninguem me viu desinquietar as minhas visinhas. Vmc.e não é
bom pae. Um logista que tem filhos, fal-os ir trabalhar na loja.

--O meu José estuda para frade, por isso é que não vem para aqui...

--Qual frade, nem meio frade!... Deixemo-nos de frades. Ponha-o a
sapateiro, ou alfaiate, que é o mais proprio. Eu tenho sobrinhos, e não
os mando aprender latim; e vcm.e, que tem aqui dous arrateis de retroz,
e quatro varas de mastro, já quer ordenar um filho...

--Que lhe importa a vmc.e a minha vida?

--E o seu filho que lhe importa as pessoas de minha casa? Se eu fosse
outro homem, mandava-lhe estender as orelhas por um caixeiro...

--Isso lá mais devagar, senhor Antonio! Quem castiga o meu rapaz sou
eu... Se o seu caixeiro lhe puxasse as orelhas, não havia de ter frio
nas d'elle. É o que lhe digo! Eu sou pacifico, e cortez com quem é
cortez. Eu chamo o meu filho, e veremos como é essa pendencia, que vmc.e
traz.

O senhor João, já com a mostarda no nariz, chamou José, que vinha
descendo, e resmungando: _imperativo do verbo laudo, as, are,
laudabundum, ou laudatote_. _Presente do indicativo, Laudaturus._

Contentíssimo das suas reminiscencias, e livre da dôr de barriga, José
Bento ficou surprezo na presença do rival, e enfiou de susto. A edição
da cara paterna não era mais nitida que a do negociante.

--Vem cá, José. O senhor Antonio queixa-se de que tu fazes tregeitos
para a menina do senhor arcediago, isto é verdade?

José, chofrado pelo improviso, gaguejou a resposta, que mais tarde sahiu
energica, e eloquente.

--É verdade, ou não?--replicou o pae.

--Ágora é...

--É, sim, senhor. Não me desminta, seu estudante de borra!--trovejou o
negociante, formando instinctivamente com as mãos dous gordos murros.

--Não é preciso berrar tanto, senhor Antonio!... A minha casa não é
pateo de convento. Se quer que fallemos, vamos lá para dentro.

--Faz favor de entrar.

Antonio José acceitou o convite, e proseguiu na apostrophe:

--Eu que lh'o digo, é porque o sei. Vossê esteve esta noite fallando com
Rosa! Esteve ou não esteve?

--Estiveste, rapaz?

--Eu, não, senhor.

--Como é isso?--continuou o pae--se o meu filho esteve toda a noite a
gritar com dôres de barriga, e por signal que a minha Anna andou toda a
noite na cosinha a aquecer agua para banhos? Quer que eu chame a minha
Anna, senhor Antonio?

--Não me importa o que diz a sua Anna.

--Isso... mais devagar! A minha Anna é tão honrada e verdadeira como a
senhora Angelica, e póde pedir messas ás mais honradas.

--Que tens tu, Joãosinho?--grasniu de cima a senhora Anna, mettendo a
cabeça pelo alçapão.

--Olha lá, mulher... O nosso rapaz que teve a noite passada?

--Dôres de barriga.

--Vê, senhor Antonio!... Tudo que me veio dizer é mentira...

--Não se diz isso a um homem honrado, como eu!... O seu filho esteve ás
dez horas a conversar com Rosa; eu que lh'o digo, é porque o sei de bom
canal...

--Quem lh'o disse? onde está esse canal?

--Quer sabel-o? Foi certa pessoa que á mesma hora estava para conversar
com essa indigna mulher do João Pereira.

--De qual João Pereira? Aqui ha dous na visinhança.

--Do João Pereira, calvo, que traz chinó.

--Que dizes tu a isto, José?

--Digo que estive com dôres de barriga, e por signal que tomei chá
d'herva cidreira.

--Vê, senhor Antonio? Vmc.e é um homem honrado, mas enganaram-n'o.

--Não me enganaram. Eu de portas a dentro não quero poucas vergonhas: é
o meu systema.

--Enganaram, sim, senhor--chiou de cima a senhora Anna.

--Quer apostar uma moeda contra dez?

--Aposto o que vmc.e quizer! O meu filho é um exemplo dos bons rapazes.
É filho d'um bom pae.

--E d'uma boa mãe--accrescêntou a senhora Anna.

--Não tem a quem sahir mau--confirmou o retrozeiro.

--Pois eu digo-lhe--exclamou o mercador de pannos com grande chuveiro de
perdigotos--digo-lhe eu que seu filho é um tratante, e que vmc.e é
outro, se o não castigar.

--Olhe lá como falla, ouviu?--disse a mãe do futuro loio, já perfilada,
em baixo, ao lado de seu marido, que era a carne da sua carne, e o osso
do seu osso.

--É isto que lhe digo. Pela arvore se conhece o fructo. Se vmc.e fosse
um homem de conhecimentos, e não viesse aqui para esta rua de tamancos e
barrete vermelho daria outra educação aos seus filhos.

--E vmc.e d'onde veio?--interpellou a senhora Anna, fechando os punhos
na cintura, e dando-se, pelo vermelhão da cólera, a figura d'uma bilha
de barro--Não me dirá a sua linhagem, senhor Antonio da tia Catharina,
que eu conheci na Ponte-Nova fazendo camizas de estôpa para os
embarcadiços! Olhe o fidalgo, que nos vem fallar em tamancos! Que me
dizem a isto? Lembre-se que sua avó vendeu tripas na viella da
Madeira...

--Cale-se ahi que vossê é uma regateira; eu não fallo comsigo.

--A minha mulher, regateira?

--Eu, regateira?

--Ponha côbro na lingua.

--Se não, topa com a fôrma do seu pé...

--Sahe a racha ao pau--interrompeu o rival de José Bento, que não dizia
palavra--vmc.e ha de sempre mostrar que vendeu hortaliça no largo das
Freiras. É a filha da Canastreira, e basta.

--E sua irmã, a beata que traz cilicios depois de velha, quem é, não me
dirá?

--Não falle em minha irmã, ouviu?

--E vmc.e para que falla em minha mãe?

--Porque, se vossê tivesse vergonha não estava aqui a crear este
mandrião...

--Faço eu muito bem, que é meu filho, e filho do meu marido, com quem
sou casada á face de Deus e do altar, na igreja da Victoria... E sua
irmã porque não cria os d'ella?

--Qual minha irmã?

--Sua irmã Angelica.

--Vossê está bebeda logo de manhã?

--Bebedo será elle, e mais quem o veste. Pois que cuida? Acha que a
gente se calava por não ter tanto? Se tem muito, coma duas vezes, nós
comeremos uma, porque não desfructamos os rendimentos da legitima das
filhas dos padres.

--Cale-se ahi, sua desbocada! Vossê tem alguma cousa a dizer a minha
irmã? Encontrou-a lá por casa dos Amorins da Praça-Nova, onde vossê
arranjou com boas bullas o dote do seu casamento?

--Vmc.e é um patife--atalhou o retrozeiro, sériamente envinagrado--e se
não sahe de minha casa...

--Deixa-me responder-lhe, João... com que então eu ganhei o meu dote em
casa dos Amorins, heim! E sua irmã? e a sua irmã que reza a via-sacra, e
anda por casa das benzedeiras? Que fez ella tres mezes mettida na cella
do congregado?

--Que congregado diz vossê, sua regateirona?

--E aquelle filho do conego Silvestre, que caminho levou?

--Desavergonhada que vossê é!...

--Sou? e a sua irmã que é? uma _hypolita_... uma benzedeira, que dá pelo
amor de Deus o que não póde dar ao diabo! É uma bebeda que nunca ha de
chegar aos meus calcanhares.

Palavras não eram ditas, a senhora Anna Canastreira levava um grande
murro no alto da cabeça; murro não era dado, e o senhor Antonio sentia,
nas almofadas carnosas do cachaço, o pezo d'uma tranqueta, que o fez ir
de chofre sobre a mulher do retrozeiro, que, atordoada do murro,
resvalou por debaixo do globoso negociante, que soltou um bramido de
rhinoceronte na queda desamparada.

A detractora da senhora Angelica sentiu-se escorchar debaixo do monstro,
e cravou-lhe as unhas nas forçuras tremulas do pescoço. O retrozeiro,
para salvar a mulher asphixiada, puxava a perna homerica do negociante;
o negociante distribuia couces tão a proposito que uma canella do senhor
João recuou mal ferida da empreza arriscada. Indignado pela dôr fina do
canellão, o marido da pobre mulher atufada, com a perna disponivel,
imprimiu tres valentes ponta-pés na orbita mais a geito e provocante do
senhor Antonio, que esperneava, grunhindo como um cevado. José Bento,
como bom filho, tentava alliviar o fardo, que ameaçava o arcaboiço
descarnado de sua mãe, puxando, em vão, o despresado amante de Rosa
pelas portinholas da jaqueta de linho crú.

A salvação, porém, da senhora Anna Canastreira deve-se ás suas unhas. O
papo balôfo do senhor Antonio soffrera graves arranhaduras. Em
compensação, o ôlho direito da infamadora de sua irmã inutilisara-lh'o
elle com o cotovello perfurante.

Este conflicto durou quatro minutos, e ao quinto a senhora Anna não
tinha fôlego. A pressão que soffrera na cavidade intestinal, e na
thoracica tambem, podia ter mui funestas consequencias, se o nosso
presado amigo, o senhor Antonio José da Silva se não levantasse,
lazarado do pescoço para cima, supposto que, no vermelhão natural da sua
cara veneranda, o sangue das arranhaduras não se destacava.

A senhora Anna, continuando a infiada de epithetos, consagrados á
senhora Angelica, estava ainda sentada compondo as rêpas da desalinhada
cabeça, quando o offegante mercador de pannos, impellido pelo derradeiro
empurrão do retrozeiro, se achou na rua, onde o povo principiava a
juntar-se, chamado pelos gritos confusos dos gladiadores.

O senhor Antonio entrou no seu quarto a lavar a cara com agua e vinagre.
Perguntou por sua irmã, e o caixeiro respondeu-lhe que fôra acompanhar
Rosinha. Pensados os ferimentos, o infeliz rival de José Bento mediu em
toda a profundidade a extensão da sua dôr, e comeu dous pasteis de
Sancta Clara, que eram a vanguarda d'um copo de vinho.




CAPITULO VI


Rosa Guilhermina foi recebida com carinho pela regente, senhora de boa
educação, e incapaz de satisfazer as rigorosas recommendações do
arcediago. A pensionista era tão meiga, tão sympathica, e tão linda, que
prendeu o interesse das suas companheiras, e a amizade da regente.

Padre Leonardo recommendára que a deixassem sósinha, e a não recreassem
de modo que ella saboreasse a vida nova, que lhe era dada como castigo.
Ainda assim, as commodidades do quarto não lh'as negára elle. Rosa
encontrou aceio, suppondo que acharia um escuro cubiculo, e uma enxerga
por cama. Encontrou raparigas folgazãs, onde esperava achar velhas
rabugentas. Achou comida bem feita e abundante, onde lhe tinha dito D.
Eugenia que se jejuava todos os dias, e o melhor manjar eram papas de
farinha milha. Se não via a rua, que tinha, n'esse tempo, pouco que vêr,
a cêrca era espaçosa para brincar, e, a certas horas, as garrulas
meninas saltavam como cabras, e rasgavam os sapatos e os vestidos á sua
vontade.

Basta dizer-vos, leitoras compadecidas da namorada de José Bento, basta
dizer-vos que a reclusa não tinha tempo para pensar sériamente no
aprendiz de loio, nem, ainda no senhor Antonio José, nem na senhora
Angelica. É verdade que uma saudade dolorosa lhe assomára aos olhos em
lagrimas, que as pensionistas tractaram de enxugar-lhe com brinquedos.
Era uma saudade, que lhe aguava os prazeres inesperados do recolhimento:
era, em fim, a saudade pungentissima da sua gata malteza.

Entre todas as meninas, havia uma sua predilecta, inseparavel, visinha
de quarto, e da sua idade. Esta não era pensionista. Orphã de pae e mãe,
fôra adoptada pela Misericordia. Galhofeira por indole, tinha momentos
de entristecer-se da sua condição parasita, e custava-lhe soffrer
encargos que as pensionistas não tinham. Lembrava-se de ter sido, até
aos oito annos, educada com mimo, revoltava-se contra a religião, que
mandava resar de madrugada, e muitas vezes disse ás mestras que sua mãe
sahiria da sepultura, se soubesse que creava uma filha para viver
sujeita ás migalhas da Sancta Casa da Misericordia, que não tinha muita.
Felizmente para o senhor Diogo Leite, provedor da Sancta Casa, a mãe de
Maria Elisa, por ignorancia talvez do mau humor de sua filha, não consta
que sahisse da sepultura. E a prova é que a orphã resignou-se á sua
sorte, e parecia mais feliz desde que Rosa a preferiu como amiga ás
ricas pensionistas, que desdenhavam da preferencia pouco nobre e
desairosa para ellas.

Maria Elisa entrára para o recolhimento aos oito annos. Aos quatorze
estava mulher, e não sei por que phenomeno do instincto sabia, pouco
mais ou menos, qual era a vida cá de fóra! Se não é phenomeno, devemos
acceitar a explicação natural do facto, como nol-a dão hoje as sinceras
mães de familia, que alli foram educadas. D'antes (e agora é o mesmo) um
pae que receiava os resultados da indiscreta inclinação de sua filha já
adulta, e emancipada, pegava da filha desobediente, e fazia o que fez o
arcediago á sua. Acontecia, porém, que nem todas eram innocentes como a
filha do arcediago. As que entravam apaixonadas, o desafogo que tinham
era fallar da sua paixão em geral, e das particularidades a alguma amiga
intima, que se entretinha a scismar nos pesares da sua amiga, e achava
que os homens, se fossem cousa má, não eram chorados pelas pobres
meninas, victimas d'um deshumano pae, ou d'um barbaro tutor, como ellas
diziam em estylo da tragedia velha. N'aquella casa correu occulto o
desenvolvimento de dramas atrozes. Presenciaram-se alli despotismos,
cuja historia espanta o coração. Os que hoje encaram aquellas paredes de
branco, com persianas verdes, não imaginam que alli dentro, ha menos de
trinta annos, se bebeu um calix de fel, cujo segredo uma sepultura
lacrou. E quantos calices! quantos segredos! que revoltantes infamias á
sombra da misericordia dos homens, que se diz a expressão da
misericordia divina!...

E essas scenas presenciavam-nas meninas, que não recebiam o exemplo como
admoestação, mas arrefeciam de terror quando ouviam os gritos inuteis,
as supplicas escarnecidas, e os gemidos suffocados na garganta das que
alli morreram abafadas.

Olhai, leitores: quando assim se falla, quando não ha receio de formular
d'este modo as affirmativas, crêde que o escriptor tem as provas debaixo
dos olhos. Hei de contar-vos um segredo, que vos ha de merecer
lagrimas... Ha de ser um dia, quando um homem vivo acabar de cerrar os
olhos, que já vêem pouco n'este mundo. Escuso dizer-vos que eu poderei
cerrar primeiro os meus. N'esse caso, desde já me desobrigo da minha
promessa.

Vinha eu fallando da innocencia das meninas, e especialmente de Maria
Elisa, amiga intima de Rosa Guilhermina. Sinto dizer-vos que não era,
espiritualmente fallando, mais innocente que eu e tu, leitor desempoado,
que frequentas o theatro italiano, e bebes o teu _punch_, e fumas o teu
charuto, e consomes a tua resma de papel, mensalmente, fallando da tua
innocencia á visinha.

O que ella tinha mais que eu, e tu, leitor, era uma galante cara.

O cabello negro, em ondas, cerceado pelas pequeninas orelhas, era d'um
effeito satanico. Olhos rasgados, e negros, como as espessas pestanas;
trigueira; com todo aquelle fogo vertiginoso das mulheres trigueiras;
labios sedentos de beijos, sorrindo para o amor e para a zombaria com o
mesmo sorriso; e, mais que tudo isto, um buço, tão igual, tão
caprichosamente graduado até aos cantos dos labios, em que o maldito
seductor parecia colher um beijo para atormentar os Tantalos d'esta
iguaria...

Creio que não fazem ideia nenhuma da pequena pelo retrato que lhes dei.
Eu tambem não. Quando me pintaram a physionomia d'ella, não fiz ideia
nenhuma, e prometti desde logo communical-a ao publico tão fielmente
como eu a concebera.

Se tendes senso-commum, basta dizer-vos que Maria Elisa era trigueira
para m'a receberdes como linda, porque as não ha lindas se não são
amoldadas por aquella outra trigueirinha que o sancto rei de Jerusalem
celebrisou nos seus cantares. Olhai lá se elle, entre mil queridas que
lhe rodeavam a existencia de portas a dentro, cantou alguma outra! Pela
trigueira, mas formosa, _nigra sum sed formosa_, o sabio elanguescia
d'amor, _amore langueo_. Em nenhuma outra viu olhos de pomba, _oculi tui
columbarum_; só a ella concedeu nos seios mais limpidez que no vinho,
_pulchriora sunt ubera tua vino_, e o _pat-chouli_ da trigueirinha era
superior a todos os aromas, _et odor unguentorum tuorum super omnia
aromata_.

E como creio que nenhum de nós tenha a ridicula vaidade de ser mais
sabio que Salomão, concordemos em que o typo, que mereceu a especial
sympathia do sabio por excellencia, deve ser o eterno typo do bello.

Toda esta erudição vem confirmar que Maria Elisa era bella, porque era
trigueira. A julgal-as exteriormente, as duas meninas deviam ser dois
temperamentos oppostos. Rosa denunciava uma d'estas mulheres eternamente
cansadas, apparentemente somnambulas, arfando a cada palavra de tres
syllabas que dizem, olhando para si com ar de piedade e para os outros
com aborrecimento, rindo-se com a bôca toda, e mastigando pausadamente
uma resposta dependente d'um _sim_ ou _não_. Elisa colleava-se,
requebrava-se, desconjunctava-se, trepava ás arvores, fazia discursos
sobre a inconveniencia das mulheres velhas, sobre o despotismo da
regente, tudo em linguagem muito caracteristica, e acabava por
entristecer-se, dizendo que se sua mãe soubesse o que ella penava,
partiria a pedra do tumulo para galardoar a regente e a sub-regente cada
uma com dois sopapos.

Parece impossivel que estas duas organisações sympathisassem! Pois eram
amicissimas, viviam juntas de dia, illudiam as vigilancias dos guardas
para pernoitarem juntas, e chegaram, por estranho milagre de infusão, a
neutralisarem os temperamentos de modo que se pareciam muito uma com a
outra.

Elisa arrancára á sua amiga a revelação do motivo por que a
encarceravam. Ouviu-lhe, com seriedade comica, a odienta impertinencia
do senhor Antonio José da Silva, monstruoso amante, e n'essa noite
improvisou, no seu quarto, com o travesseiro e chapéo e jaqueta do
hortelão um Antonio José da Silva, e convidou Rosa para assistir a um
castigo exemplar. O castigo era uma carga de vassoura no mono, até se
despegar a aba esquerda do chapéo do hortelão: tudo isto com estridolas
gargalhadas de ambas, que pozeram em alarma o dormitorio.

A respeito do senhor José Bento, cuja derradeira entrevista, Rosa
fielmente contára, não nutria Elisa sentimentos mais sérios. Achava-o
tôlo, estupido, achavascado, e promettia pôr-lhe um rabo de papel, se
algum dia tivesse a fortuna de encontral-o.

E a filha do arcediago achava que a sua amiga tinha razão, porque as
historias de amores, que ella lhe contava, eram cousa mais sublime, mais
deslumbrantes, que os seus miseraveis dialogos com o filho do
retrozeiro, a quem Elisa denominava _patego_, _parrano_, _gebo_, e
outras amabilidades, como _lapardão_.

--Olha, Rosa, não contes a ninguem que foste namorada d'esse
_pazbobis_--dizia Elisa, passeando na cêrca com o braço botado por sobre
o hombro da sua amiga.--Eu tenho ouvido contar muita historia ás
raparigas que vem obrigadas para aqui. Umas são fidalgas que quizeram
casar com homens ordinarios, e outras são raparigas como eu com quem os
fidalgos não querem casar. Todas ellas contam á gente as conversas que
tinham com os namoros, e dizem cousas muito bonitas, que fazem chorar,
como as novellas da Maria Peixoto, que eu li.

--Quem é a Maria Peixoto?

--Era uma rapariga que já sahiu. Queres saber o que ella fez? Eu te
digo. Um tio metteu-a cá, porque ella queria casar-se com um plebeu,
sendo fidalga dos quatro costados, como diz a regente, que tem mais dois
costados que as outras. A Maria Peixoto quando entrou, faz agora um anno
chorou muito, e esteve á morte. Quando se levantou da doença, estava
alegre, e diziam as velhas que fôra milagre de Nossa Senhora do Rosario.
Eu estava admirada de a vêr tão contente, quando me ella disse que
queria fugir do recolhimento, e precisava fingir-se para a não vigiarem.
Um dia entrou um carro de lenha por aquella porta, e ella andava por
aqui disfarçada, e quando pilhou a porta aberta, ó pernas, p'ra que vos
quero!... A tôla, se havia de procurar o namoro, foi metter-se em casa
d'uma tia, que era tão boa como o tio, e n'esse mesmo dia trouxeram-na
cá outra vez.

--Coitadinha!... e depois? trataram-na muito mal?

--Isso sim!... Se a visses, fugias-lhe! Parecia o demonio! Com a faca da
cosinha na mão, correu atraz da regente, que se alapou no quarto, e
gritou por soccorro. Procurou todas as velhas, deu um pontapé na
sacristã, atirou de cangalhas a Lima velha, foi á porteira, e disse que
lhe cravava a faca no peito se ella lhe não abrisse a porta. A porteira
gritava como uma perúa, emquanto a Maria Peixoto lhe tirava a chave, e
abria a porta. Não te digo nada, Rosinha! Nunca mais lhe pozeram ôlho...
Da segunda vez foi mais fina. Casou-se com o tal rapaz, e mandou cá
buscar os bahus, e muitas recommendações á regente, que ainda se benze
quando se falla em Maria Peixoto... Aquillo era levadinha! E esperta?
Traduzia novellas francezas ás raparigas, e leu-me uma que fazia doer a
barriga com riso... era o _Cavalheiro de Faublás_, já lêste?

--Eu não tenho lido nada... Em casa do tal amigo de meu pae não havia
livro nenhum. O que me lá deram foram as _Horas Mariannas_ e a _Alma
Convertida_.

--Olha que brutos!... Deixa estar que te hei de contar a historia do
Cavalheiro Faublás, que é de morrer a gente com riso. A senhora regente
pôz-se um dia á escuta, quando a Maria Peixoto lia uma passagem, e disse
uma rapariga que ella estava a rir-se; mas, depois, entrou com as
cangalhas espetadas no grande nariz, perguntando que livro era aquelle.
A Peixoto disse-lhe que era a vida da Gloriosa Sancta Maria Magdalena
Virgem, e a regente disse que Sancta Maria Magdalena não era virgem.
«Então é martyr»--teimou a Peixoto--«nem martyr, nem confessora»
replicou a regente, e levou-nos o livro, que, pelos modos, lhe traduz
hoje o padre capellão, valha a verdade.

--Recolham-se, meninas, que é noite--resmungou fanhosa a regente de uma
janella.

As meninas subiram, praguejando a superiora, especialmente Maria Elisa
que recitou uma ladainha de titulos em que os menos insolentes eram
_camafeu_, _trôxa de ovos_ e _santopêa_.

Quando passavam no dormitorio, espreitaram pela fechadura de uma porta,
e fungaram com riso.

--Deixa-me vêr a mim--disse Elisa.

--Agora eu.

--Um bocadinho a mim.

--Que vês?

--É a Clemencia Lima que salta por cima d'uma fogueira de alecrim.

--E que diz ella?

--Não ouço: vê tu se ouves... Que diz ella?

--Dá um saltinho, e diz: _em louvor de Sancto Antoninho_. Agora é a
outra que salta, e diz: _em louvor de Sancto Athanazio_, e _da senhora
regente_.

--Diacho das velhas estão doudas!--segredou Maria Elisa--Vamos nós
assustal-as?

--Como?

--Assim...

O _assim_ era um empurrão na sua companheira. A porta, mal fechada, não
susteve o impeto, e Rosa foi de encontro á velha Clemencia, que dava um
terceiro pulinho em louvor de Sancta Quiteria, e do provedor da Sancta
Casa. O choque foi desastrado! Aterradas as duas irmãs, que não podiam
sustentar-se sobre a esboroada peanha de oitenta annos cada uma,
cambalearam e cahiram, guinchando de modo que a turba das raparigas
alvoroçadas veio, por assim dizer, peorar a sua situação.

Entre as que vieram estava Maria Elisa, perguntando ás pobres velhas
quem as atormentava.

--Era o demonio!--disse Clemencia.

--Em corpo e alma!--accrescentou Rita.

--Tragam agua benta, e a regra do patriarcha S. Bento--disse a regente.

--Emquanto as abluções demonifigas se faziam na cella endemoninhada,
Maria Elisa contava a Rosa o primeiro capitulo do Cavalheiro de Faublás.




CAPITULO VII


Os planos, que o arcediago incubára no seu profundo saber do coração
humano, abortaram. Sahia-lhe tudo ao envez das suas esperanças. Previra
a humildade de Rosa, depois das mortificações da reclusão; e Rosa cada
vez mais contente, agradecia ao pae, que a procurava todas as semanas, a
lembrança de a castigar com o recolhimento.

No principio, a regente era instada para augmentar as privações da
educanda; mas as privações não podiam ser dadas como supplicio a uma
menina que vivia contente, e cumpria com regularidade e promptidão as
poucas obrigações de pensionista.

O zêlo pharisaico do arcediago afrouxou, porém, com a frieza do senhor
Antonio José da Silva. A catastrophe ridicula, de que fôra victima o
esmurrado negociante em casa do João retrozeiro, modificou-lhe
consideravelmente o coração, a respeito de Rosa Guilhermina, pomo de
discordia, e causa desastrada de similhante conflicto.

O senhor Antonio soffreu, pela primeira vez, uma decepção nas suas
crenças senis. O pugilato com a senhora Anna Canastreira chamou-o á
razão, e, se não é profanar a ideia, diremos que a poesia matrimonial do
senhor Antonio fôra dilacerada pelas unhas felinas da visinha.

O pobre homem tinha vergonha do successo. Na rua das Flores não se
fallava em outra cousa. O seu visinho João Pereira, o do chinó, ria-se á
sucapa com o visinho da loja immediata, emquanto sua mulher contava á
visinha, com grande hilaridade, os famosos murros, que o ciumoso Antonio
jogára com a mãe de José, por causa da Rosa. O que ella não dizia, por
não escandalisar, e todos o sabiam, era que um seu amante fôra a forçada
testemunha do apaixonado dialogo, que os leitores, sem serem os amantes
da mulher do senhor João Pereira (se é que alguns o não foram), tambem
ouviram.

O rico negociante tinha inimigos, émulos de negocio, os peiores de
todos, que espreitavam o primeiro ensejo de o apoquentarem. Não podia
ser melhor o motivo. Algum mais odiento levou a sua vingança ao extremo
de fazer quadras ao desventurado negociante. Algumas d'essas quadras, em
verdade chistosas, chegaram á minha mão. Se não fosse o medo de aggravar
a indigestão de versos em que imagino encruado o estomago do publico,
podéra dar-lhe quatrocentos e tantos versos consagrados ao senhor
Antonio José da Silva, debaixo do titulo: CUPIDO DESDENTADO. Sem
embargo, porém, da christã generosidade que tenho com o leitor, não o
poupo ao flagello de lêr um fragmento d'esse poema, que devia ser a
causa principal do abandono a que o infeliz heroe votou a filha do
arcediago.

O dito poema é de author incognito, e o fragmento não vol-o dou como
primor de arte; é crivel, porem, que o author tivesse filhos, e os
filhos do author, apurados em raça, serão talvez os genios que hoje
prendem a nossa admiração, e engrandecem as letras patrias.

Elle ahi vai:

      Dom Cupido desdentado,
      Despresado em seus desvelos,
      Jurou, sobre os seus chinelos,
      Guerra eterna ao seu rival!

      Fumegando pelas ventas
      As tormentas do ciume,
      Todo elle é fogo, é lume,
      No solar do Retrozeiro.

      Dom Cupido desdentado,
      Desarmado, vai sem frecha
      Quer abrir, a murro, a brecha
      Do rival no coração.

      Torce os olhos, solta um urro,
      Préga um murro na maçã
      Da fanhosa castellã,
      Que se atira a elle á unha.

      Dom Cupido desdentado,
      Não vingado, cahe de chofre,
      E tal pêso a velha soffre,
      Que estourou! ó vista horrivel!

      Pobre Aonio, pobre Aonio,
      Que demonio te tentou!?
      Antes dentes ter, Antonio,
      Que não ter, e ser Cupido!

      Dom Cupido desdentado,
      Quer o fado que eu te diga,
      Que não pódes ter barriga
      Mais mal feita para Rosa!

      Come bem, morre a comer,
      Que, a meu vêr, é grande asneira
      Ter inveja do João Pereira,
      Teu visinho, ao tal chinó!

      ..........................

Et cetera.

O chinó de João Pereira fôra sempre o pensamento negro da victima do
poeta! Este sarcasmo ferira atrozmente o infeliz! A reacção devia ser
dolorosa, mas, passada a crise, o senhor Antonio sentia-se bom, porque
ao pino do meio-dia, horas de jantar, a sua paixão dominante era o
melhor dos appetites. Não tinha havido poesia, que tão util fosse ao
genero humano, até então, porque só depois vieram as poesias hygienicas,
ás quaes a humanidade está muito agradecida, principalmente a humanidade
atacada de vigilias. Afóra estas, foi aquella a poesia que melhor fructo
colheu. O senhor Antonio, desde esse dia, comeu como sempre, e dormiu
como nunca. Ao mesmo tempo que era açoutado em effigie no quarto de
Maria Elisa, o razoavel negociante apertava os vinculos, meio lassos,
que o prendiam á Thereza, com barraca de fructa na Ribeira, e entendia
de si para si que a mulher que lhe convinha era aquella.

E, tão de maus humores o encontrava o arcediago, que nem ousava
fallar-lhe em Rosa, nem, o que mais era, o convidou para o vinho verde
de Campanhã nos domingos de tarde.

Data d'ahi, portanto, a tolerancia do padre com os divertimentos da
filha. Visitava-a com melhores maneiras. Festejava Maria Elisa, que lhe
chamava padrinho, presenteava-a com vestidos similhantes aos de sua
filha, e redobrava de contentamento, sabendo que o filho do retrozeiro
era uma cousa sem importancia no voluvel coração da pequena.

Tudo corria maravilhosamente para todos, quando Rosa Guilhermina, dia de
entrudo, atirava cantaros de agua, e recebia-os agradavelmente pela
cabeça. O resultado, porém, foi uma constipação despresada, uma tosse
continuada, febre, e, na primavera seguinte, foi julgada no principio
d'uma phtysica.

O arcediago resolveu levar sua filha a ares para uma sua quinta de
Ramalde, e alcançou licença a Maria Elisa para acompanhar a sua amiga.
Sahiram, e desde esse dia, a regente, a sacristã, e todas as velhas,
especialmente as Limas, agradeciam, todas as manhãs, á Providencia o
favor de lhes afastar de casa similhante flagello.

Rosa melhorou apenas se viu em boa harmonia com seu pae, livre do
pavoroso negociante, senhora da sua vontade, rindo e brincando com a sua
amiga, amimada pelas duas criadas que o arcediago lhe dera, e decorando
cada vez melhor o romance predilecto de Maria Elisa.

No inverno proximo, as meninas vieram para a cidade, e encontraram uma
casa bem mobilada, apetrechada de tudo que mais lisongeava duas amigas
inseparaveis. Esta casa, situada á entrada da viella do Cirne, com
frente para a rua do Laranjal, ainda hoje conserva um ar campestre, que,
ha quarenta annos, era muito mais agradavel, porque a não assombravam
então os edificios do largo da Trindade.

O quintal d'esta casa communicava com o do defunto Rodrigues Passos,
professor de latim, e o leitor, se tem prestado alguma attenção ao que
se lhe diz, deve lembrar-se que José Bento, no extremoso colloquio com a
sua visinha, annunciou a sua ida para o collegio de Passos.

Rosa nem de tal se lembrava já, quando encontrou os olhos piscos do
esquecido amante espetados nos seus. Elisa, que reparou na surpreza da
sua amiga, perguntou:

--Aquelle mono conhece-te?

--Conhece... Aquelle é o filho do retrozeiro... Agora me lembro que elle
disse que vinha para a Cancella-Velha!...

--Vamos nós namoral-o?

--Deus me livre!... Tomára eu que elle me não dissesse nada... Olha o
tôlo!...

--O que nós queremos é rir-nos... Pergunta-lhe se está melhor das dôres
de barriga.

--Eu não... Deixa o pobre rapaz... Vamos embora.

O estudante, cada vez mais pasmado do silencio de Rosa, é natural que
meditasse na razão d'aquelle inesperado encontro, quando Maria Elisa,
com a maior naturalidade, lhe perguntou:

--Como está da sua barriga, senhor José?

O rapaz fez-se muito vermelho, e não respondeu palavra.

--Cala-te, Maria!--murmurou Rosa, puxando-a pelo vestido.

--Não quero calar-me. Pois eu não hei de saber como está a barriga do
teu namoro? Então vmc.e não me responde? Olhe que eu sou sua amiga, e
faço esta pergunta, porque a Rosinha tem vergonha, e pediu-me que lhe
perguntasse se está melhor.

--É mentira!--atalhou Rosa, córando--eu não disse tal... Não digas o que
não é, Mariquinhas...

--Pois então, não dirias; mas eu quero que aquelle senhor me responda.
Vmc.e é mudo?

--Não sou mudo--disse o estudante embezerrado.

--Então, falle á gente.

--E se eu não quizer?

--Se não quizer, não falle; mas é má creação tratar assim quem lhe
pergunta se está melhor da sua barriga.

--A minha barriga, graças a Deus, está boa, e vmc.e que lhe quer?

--Não quero nada... eu já lh'a pedi?

--Pensei que lhe queria alguma cousa... Eu não sou boneco de palha para
caçoadas.

--Vmc.e parece-me um mau rapaz! Quem é que o caçôa? Nem me parece um
estudante! Valha-o Deus! eu, se fosse Rosinha, não lhe tinha amor...

--Cala-te, Maria!.., Tu pareces-me tôla! Deixa o rapaz!--disse baixinho
a Elisa, forçando-a a retirar-se d'alli.

--Deixa-me caçoar com elle... Eu não te disse que lhe havia de pôr um
_rabo-leva_ de papel? Já que não posso, deixa-me rir com este gêbo, e tu
ri-te tambem.

José Bento, favorecido pelo dialogo, ia-se escapando surrateiramente,
quando Elisa o chamou:

--Psiu!... psiu!... Olhe cá!...

--Que me quer?

--Vmc.e estuda para frade?

--Que lhe importa se estudo para frade?

--É que se vmc.e fosse frade, eu queria ser frada, e haviamos de ter uma
casinha ambos e um quintalinho, e as nossas gallinhinhas, que nos haviam
de pôr os seus ovinhos, que nós haviamos de cosinhar ambinhos na nossa
cosinhinha, e depois a gente dizia a sua missinha... e depois a gente
vinha tomar o sol no seu quintalinho... e depois...

Rosa ria-se como uma perdida, quando o filho da senhora Anna
Canastreira, alongando a tromba, e franzindo o nariz, resmungou:

--Sabem que mais? vão bugiar! O meu regalo era...

--Qual era o seu regalo, ó senhor José?

--Se não fosse estar em casa do mestre... eu lhe responderia...

--Ora diga lá baixinho a sua resposta, que eu não digo nada ao mestre.

--Vá...

--Que vá, aonde? Não seja tão mausinho, senhor Josésinho do meu coração.
Vmc.e ha de ser um fradinho de pau de sabugo muito bonito... Já tem
corôa?

--Tenho um dardo que a parta.

--Olha que mau!... Senhor José, não seja assim... Tome lá uma beijoca.

O corrido estudante tinha desapparecido, não só porque se via embaraçado
em responder ás zombarias da importuna rapariga, mas porque o mestre,
ouvindo-o fallar, vinha de manso espreitar com quem era. O zeloso
professor appareceu no muro, e ainda viu as duas meninas, que se
retiravam em grandes gargalhadas. Enfurecido com a audacia do lôrpa,
como elle generosamente o intitulava, foi ter com elle explicações
acerca de tal conversa.

--Que dizias tu áquellas meninas?

--Eu, nada... Eram ellas que...

--Que... o que? que te diziam ellas?

--Ellas diziam que...

--Acaba d'ahi selvagem!

--Eu estava alli a estudar a selecta primeira, e ellas disseram-me
que...

--Estás zombando comigo?

--Perguntaram-me se eu era...

--Um burro? e tu disseste-lhe que sim.

--Não foi isso... perguntaram-me se...

--És um asno quadrado! Ouviste, lôrpa? Se te vir outra vez a fallar com
as visinhas, escangalho-te as mãos! Não tens habilidade para traduzir
_mundus á domino constitutus est_, e sabes dar tréla ás raparigas!? Ora
deixa estar que te farei a cama!...

A crise passou, e José Bento n'esse dia apenas teve, como era de
costume, um bofetão e um puxão de orelhas, por causa do imperativo
_laudandum_.

No dia immediato, as meninas não o viram; mas, no outro, Rosinha viera
adiante esperar a sua amiga para colherem rosas do Japão, quando ouviu o
som roufenho da voz conhecida de José Bento:

--Senhora Rosinha, assim é que vmc.e se porta comigo?

--Ah!... estava ahi?!...

--Pois então! cuida que eu me esqueci de si? Ficou de me escrever, e foi
como se nada!... Olhe lá como vmc.e é!

--Não pude, senhor José... e tenho a dizer-lhe que é melhor não me
fallar, que meu pae ralha-me. Faça de conta que nunca nos vimos. Aquillo
que nós dissemos foi uma brincadeira de creanças. Trate do seu estudo, e
não se embarace comigo, porque eu tenho muito medo a meu pae...

--Sempre vmc.e é... d'aquella casta! E eu a pensar em si todos os dias,
e sempre a esperar noticias suas, ha quasi um anno!... Então eu já não
sou o mesmo?

José Bento proseguia n'uma tirada eloquente contra a perfidia de Rosa,
quando o vulto austero do mestre de latim surgiu de improviso ao lado do
pallido estudante. Ao mesmo tempo, chegava Elisa, rindo muito da
surpreza, e Rosa punha os olhos no chão, e cortava machinalmente uma
rosa menos purpurina que ella.

--Chegue-se aqui!--disse o mestre ao rapaz aproximando-o do muro, que
dividia os dous quintaes--Ó meninas!

--Que quer?-perguntou Elisa.

--Os meus discipulos ensinam-se assim. Dê cá a mão, seu lôrpa!

José Bento, córado como um mólho de malaguetas, recuou diante da
palmatoria, cuja cabeça o espreitava por debaixo do capote de saragoça.

--Dê cá a mão! Vossê não obedece? Olhe que o mando pendurar n'aquella
figueira.

--Como Judas Iscariote--atalhou Elisa, fungando, e esfregando as mãos.

O infeliz déra a mão, e quatro sonoras palmatoadas lhe estouraram na
epiderme. A dôr moral devia ser grande! Rosa estava pallida, e Elisa, de
repente, séria, disse ao professor:

--Se eu fosse elle...

--Que diz lá a senhora?

--Digo que, se fosse elle...

--Que faria?

--Dava-lhe um murro no nariz.

--Em quem?

--Em vmc.e ...

--Se é senhora, não o parece...--disse o professor, encarando-a com
desprêso--Eu tratarei de saber quem é seu pae, e, se seu pae lhe não
der com umas disciplinas...

--Que me ha de fazer? dá-me palmatoadas?

--Hei de lhe mandar dar com um chinelo...

--Fóra casmurro!... Venha para cá, que lhe hei de dar um docinho...

O infiado mestre foi cevar as iras impotentes no pobre moço, que levou a
ponta-pés para o quarto.

José Bento recahiu n'uma profunda concentração. Durante o dia não comeu,
nem bebeu, nem estudou. Á meia noite ergueu-se d'um impeto similhante a
um ataque repentino de demencia. Abriu uma gaveta, e tirou um garfo. Ás
apalpadellas atravessou um corredor, e, na extremidade, abriu de
mansinho uma porta. Aproximou-se do leito onde resonava um homem, e
cravou-lhe tres vezes o garfo no pescoço. O agonisante soltou um rugido,
que só o assassino ouviu, e expirou.

Pela manhã encontraram morto o velho Manoel José d'Almeida, professor de
latim, com um garfo tinto de sangue sobre a dobra do lençol.

--José Bento desapparecera. Foi procurado em casa do João Retrozeiro, e
não o encontraram.

Horrivel acontecimento!

A lingua latina perdeu um dos seus melhores interpretes. O senhor Manoel
José de Almeida poderia ser um temperamento colerico com os seus
discipulos, mas a sciencia devia-lhe muito. Escreveu largamente sobre a
genuina interpretação do _tam libet hirsutam tibi fulci recidere
barbam_, de Ovidio. Deixou ineditos tres volumes sobre a conjuncção
copulativa, e preciosos manuscriptos sobre o adverbio _quotiesqumque_.
Era um bom catholico, e amigo dos pobres, que lhe chamavam pae. Era bom
esposo, bom pae e bom irmão; e, se não era bom cidadão, é porque os
cidadãos inventaram-se depois.

_A terra lhe seja leve!_




CAPITULO VIII


O tragico successo inquietou um pouco o espirito de Rosa; mas a sua
amiga convenceu-a de que não devia dar-se por achada em similhante
cousa. O director do collegio ignorava a causa do inaudito crime,
presenciara a sóva de pontapés com que José Bento se recolhera ao
quarto; mas suppoz que a justificada razão d'aquelle castigo fôra
qualquer asneira do rapaz na impossivel conjugação do verbo _Laudo_,
especialmente no imperativo _laudandum_.

Por conseguinte, as pequenas não tiveram de responder como causas
involuntarias daquelle sinistro, e continuaram no gôso da sua
felicidade.

O arcediago, supposto não vivesse com ellas, almoçava, e jantava com sua
filha, ceava com uma senhora viuva que lhe administrava a casa; e,
depois de ceia...

Depois de ceia, ha muita cousa a dizer a este respeito.

É sabido que Rosa Guilhermina era filha de uma tal Anna do Carmo, velha
predilecção do padre Leonardo, e por elle dotada para o honesto fim de
casar-se com um tal francez, com loja de livros na rua das Flores.

O padre não andou com toda a generosidade n'este negocio. Dado o
dinheiro, se quizesse ser honrado, devia renunciar inteiramente, a
beneficio do livreiro, a mulher de que se descartára. Magôa-nos, porém,
ter de annunciar que o arcediago era um agiota no seu genero, e pensamos
que a senhora Anna do Carmo não era mau genero para agiotagem.

A verdade é que o pae de Rosa continuava a visitar de dia o
estabelecimento do livreiro, comprava algum livro que ajuntava, na
estante, aos seus virgens irmãos, e predispunha favoravelmente com as
visitas diurnas a confiança do marido, que tinha lido Molière, e não
queria incorrer no defeito do _Cocu imaginaire_, que o leitor póde lêr,
se a consciencia o não incommóda.

A honesta esposa repellia as seducções do padre, esquivando-se a
encontros em que o usurario amante parecia convidal-a a pagar-lhe um
juro avaro do capital recebido. Dissertava-lhe amplamente sobre a
verdadeira virtude, pintava-lhe a ingratidão o mais feio dos crimes,
dissuadia-a de temores piegas que não tinham nada com a verdadeira
religião, e queria convencel-a de peneira nos olhos a respeito do
matrimonio e de muitas outras cousas.

O francez não sabia que fôra elle o amante de sua mulher.

Movido pelo interesse que as frequentes visitas do amador dos bons
livros lhe dava,--e, de mais a mais, convencido da honestidade de sua
mulher, se o padre, feio e velho, tentasse seduzil-a,--o senhor Hemerin
Pierrote (Deus lhe falle n'alma) acolheu agradavelmente o seu bom amigo,
e honrou-se muito, não só das suas visitas, mas do interesse que o
generoso padre tomava em ser o padrinho do primeiro filho de tão feliz
matrimonio.

Madama Anna Pierrote recebia com repugnancia as pontuaes visitas do
arcediago, e esta repugnancia, que seu marido lhe censurava como
inconveniente aos interesses de ambos, era uma nova razão para que o
espirito do francez estivesse tranquillo, e as suas portas sempre
francas para o generoso compadre.

Este parentesco fôra contrahido muito contra vontade da senhora Anna.
Seu marido, porém que recebera de antemão o enxoval do recem-nascido,
perguntou cheio de cólera a sua mulher, se queria algum _garçon de bone
mine_ (rapaz esbelto) para compadre. Accrescentou que, se ella fosse
fina, devia ameigar constantemente o arcediago, que era rico, e poderia
fazer o afilhado seu herdeiro. Resumiu, emfim, o seu discurso,
declarando, pelo _sacre nom de Dieu_, que o arcediago de Barroso seria
seu compadre, e mandaria n'aquella casa como na sua.

A senhora Anna, coma boa esposa, resignou-se; padre Leonardo, como bom
compadre, vinha duas vezes ao dia fazer caretas e botar a lingua de
fóra, com o pequeno nos braços; e o risonho marido, como habil e
francezissimo logrador, deixava o padre em cima ensinando a creança a
dizer papá, e vinha para a loja fazer negocio e trautear a
_Marseillese_.

A creancinha, habituada com o arcediago, apenas o via, estrebuxava no
collo da mãe, batendo as palmas, e articulando--_papá_, _papá_. O
livreiro ria-se muito contente da esperteza do pequeno, e ensinava-o a
dizer _padrinho_; e a creança, que não sabia ainda ajuntar tres
syllabas, teimava em dizer _papá_.

Mr. Hemerin estava contentissimo do filho, e da mulher tambem, porque a
repugnancia em receber o arcediago desapparecera desde certo tempo, e
sua mulher, emfim, sabia viver perfeitamente com o compadre, e já se lhe
não dava de jogar com elle a _bisca de nove_, e o _trinta-e-um_.

Correram dois annos n'esta perfeita harmonia. Os visinhos riam-se do
francez, mas a razão do riso devia ser elle o ultimo que a soubesse.

Eram notorios, na rua das Flores, os precedentes de Anna do Carmo; os
maledicentes sabiam que ella fôra amante do arcediago; o livreiro
visinho contava aos seus freguezes a immoralidade do jacobino (que
vendia melhores obras, e sortira a sua loja de tudo que se procurava) e
lamentava a queda da religião, se o senhor bispo não pozesse côbro
áquelle grande escandalo.

O demonio da intriga viera perturbar a felicidade domestica d'aquella
familia.

O pequeno Leonardo, já de dous annos, continuava a chamar papá ao padre,
com grande aprazimento do pae matrimonial. A senhora Anna mostrava a seu
marido as prendas que o compadre lhe dava. O marido mostrava a sua
mulher o córte de velludo vermelho que o compadre lhe déra. Tudo isto ia
_le mieux qui se peut_, como dizia o jubiloso livreiro, quando, abrindo
de manhã a porta, encontrou uma carta em que um seu _amigo intimo_, como
todos os amigos das cartas anonymas, lhe dizia o que se passava em sua
casa, as antigas relações de sua mulher com o padre, e o descredito
geral em que a sua honra andava nas praças publicas. Como seu _amigo
intimo_, e zeloso do seu bom nome, aconselhava o generoso espião que
pozesse o padre fóra de casa, e que mettesse a mulher no Ferro, para
assim dar uma plena satisfação ao publico escandalisado.

O discreto marido leu a carta, e vendeu com a maior presença de espirito
um _Flos-Sanctorum_ a um padre da aldeia, que se apeára d'uma égoa, no
momento em que a porta se abrira.

--Estas obras de sanctidade--disse o padre--creio eu que se vendem
pouco... A religião está por terra... Já lá vai o tempo em que os frades
escreviam obras de substancia... Os de hoje criam muito cachaço, e os
seculares são uns libertinos, que o mais que fazem é apanhar as
prebendas, os canonicatos, e os beneficios para viverem á regalada. O
exemplo devemol-o dar nós, como diz o apostolo: _Ante eas vadit, et oves
eum secuntur_... Já lá vai esse tempo. Os bons padres, e que sabem do
seu officio, vivem obscuros na aldeia, e ninguem os chama para as
dignidades da igreja; os que arruinam com a sua má vida e mau exemplo o
edificio da religião, a casa de Deus, _ædes Domini_, esses são chamados
a lamber as chagas do corpo putrido da humanidade; _canes veniebant, et
lingebant ulcera_, como diz S. Lucas no capitulo XVI.

--Então o senhor padre veio requerer algum beneficio, que lhe não deram?

--Vim, sim, senhor, vim pedir ao senhor bispo uma igreja apresentada
pela Mitra, e estou aqui ha um mez a gastar n'uma estalagem, e vou-me
embora sem ella. O bispo é... o que Deus sabe... Dizem que é um sancto,
mas barata virtude é a sua... Quando o rebanho anda tresviado, o pastor
não é lá grande cousa, como diz o livro sancto: _Nam quod ab ovibus
erratur, negligentie pastoris adscribitur_.

--Quer o senhor padre uma cousa?

--Nada, não, senhor, não quero mais livro nenhum; precisava d'este para
tirar uma duvida sobre se o apostolo Sant'Thiago veio ou não a Portugal,
e se S. Martinho de Dume foi arcebispo primaz...

--Eu não lhe perguntei se queria mais livros; disse-lhe que me lembrava
um meio de v. s.ª...

--Alto lá! Nada de _vossa senhoria_... Eu não sou d'esses modernos, que
se esquecem da humildade do divino Mestre, e querem as honras que, ha
trezentos annos, se davam ao rei... Trate-me por vmc.e

--Pois bem; se vmc.e quizesse, eu poderia arranjar-lhe um bom empenho
para o bispo.

--Sim? então quem é elle?

--Isso agora é um segredo... Veja lá vmc.e quanto dá...

--Quanto dou? isso é symonia, reprovada e condemnada com graves penas
pelo concilio tridentino. Se eu quizesse servir-me d'esse infernal
recurso, bem sei a que porta devia bater. Conheço como as minhas mãos um
vendilhão d'esses favores, que não tem vergonha nem temor de Deus, e ha
muitos annos que trafica descaradamente com os objectos sagrados da
sancta religião de Nosso Senhor Jesus Christo. É um symoniaco, um
libertino, indigno de se sentar no cabido...

--Quem é elle?

--Quem ha de ser? é o arcediago de Barroso, um homem sem religião, de
pessimos costumes, que tem vivido amancebado toda a sua vida, e que, de
mais a mais, tem o desaforo de casar uma das suas concubinas ahi não sei
com quem, e disseram-me que continua a viver adulterinamente com ella...
Fóra o adultero! Não lhe faltava senão esta!...

--E vmc.e conhece-o?

--Conheço muito bem, oxalá que não. Fomos companheiros no seminario, e
já lá prophetisei a rôlha, que viria a ser o senhor Leonardo Taveira...
Depois, via-o pelo Porto, e fui jantar a casa d'elle, e sahi
escandalisado porque teve o desavergonhamento de sentar comnosco á mesa
uma rapariga que tinha em casa...

--Sabe como ella se chamava?

--Sei, sim, senhor. Chamava-se Anna do Carmo...

--Anna do Carmo!...

--Vmc.e espanta-se? É o que eu lhe digo...

--Que figura tinha ella?

--Era uma mocetona tirada das canellas, branca, cheia do peito, com os
olhos mesmo concupiscentes como os do proprio demonio, e fallava sem
vergonha diante de mim.

--E sabe se foi essa a que elle casou?

--Dizem-me que sim, até o homem é estrangeiro, por signal, e tem não
sei que officio. Se vmc.e quizer, eu volto cá qualquer dia, e posso
saber-lhe tudo isso a preceito.

--Muito obrigado... eu não tenho interesse n'isso...

--Pois é como é. A religião está entregue a estes ministros. O arcediago
de Barroso tem muito dinheiro em casa d'um negociante da rua das Flores,
mas esse dinheiro é o preço por que elle comprou o inferno... ganhou-o
nas symonias... Lá está em cima quem o ha de julgar... E, com isto,
adeusinho até outra vez. Fique na graça de Maria Sanctissima, e passe
por cá muito bem até outra occasião, se Deus nos dér vida. Adeusinho,
sem mais.

O padre abria o alforge para metter o _Flos-Sanctorum_, quando o
arcediago lhe dava uma palmada no hombro.

--Tu por aqui, padre João Pires?

--É verdade... Então que é feito, Leonardo?

--Vamos vivendo... Já te não vejo ha muito!...

--Não ha dinheiro para vir á cidade... Os padres de _requiem_ não comem
do cabido... Lá nas aldeias o mais que se pilha é a missinha de tostão,
que não dá para hostias. Isto cá é outra cousa. Os padres do Porto são
cardeaes, menos na sabedoria, que no mais tem tudo...

--Não é tanto assim, padre João... Deus sabe como cada qual se arranja.
Então vieste comprar o teu livrinho?

--É verdade; comprei o _Flos-Sanctorum_, e sabe Deus o que me tem
custado a arranjar os tres mil e duzentos.

--Se queres mais algum, e não tens dinheiro, eu fico por ti, e tu
pagarás depois ao senhor Hemerin, que me faz o favor de ser meu amigo.

O arcediago piscou o ôlho para o livreiro, que estava encostado ao
mostrador, e o livreiro, sorriu-se d'um modo que era novo para o
arcediago.

--Nada, muito obrigado--disse o padre João Pires--eu não gosto de fazer
dividas, porque não tenho esperanças de ser conego para pagal-as
depois... Com que sim, meu caro Leonardo... Os bons tempos que nós
passamos no seminario... lembras-te?

--Se lembro!...

--Eras um bom tratante!... fugias de noite, e vinhas de madrugada
pedir-me que te ensinasse o Larraga... Boas as fizeste!... Que é feito
d'aquella rapariga do vendeiro de Campanhã que tu tiraste de casa?

--Não fallemos n'isso... Como tu te lembras d'essas rapaziadas... Esse
tempo passou...

--Pois era uma rapariga perfeita!

--E aquell'outra das Fontainhas, que tinha um pae levadinho da breca,
que te fez fugir em camisa para o seminario?

--Cala-te lá com essas cousas, João!... Isso foram bambochatas de
estudante...

--Está feito, está feito... Tu tens pago um bom tributo á mocidade... Já
tu eras padre ha muitos annos, e ainda fazias das tuas de estudante...

--Olha lá, meu caro João, se quizeres alguma cousa de mim...

--Obrigado... Eu gosto de fallar nos tempos da mocidade...

--Pois sim; mas eu tenho de estar nos Congregados ás oito horas...
Estimarei que passes muito bem.

--Olha cá, padre Leonardo... ha ahi um sugeito que te quer fallar a
respeito d'uma dispensa para casamento entre primos em segundo grau. O
pretendente dá boas luvas a quem lh'a arranjar depressa...

--Sim!... pois eu conheço um banqueiro, que vence todas as
difficuldades; mas... aqui entre nós... é preciso untar-lhe as unhas...

--Ah! maganão!... o banqueiro és tu em carne e osso!...

--Não sou, João. Acredita que não sou...

--_In verbo sacerdotis!_

--_In verbo sacerdotis_... N'essas materias melindrosas não escrupulisa
a minha consciencia. Terei algumas fraquezas, de que me accuse, do tempo
de rapaz, mas em cousas de religião o caso é muito sério.

--Com que tu tens muitos escrupulos das tuas rapaziadas, heim?

--Alguns; mas em certas idades tudo se desculpa, e Deus bem sabe que a
razão não tem a força necessaria para conter os impetos d'aquelle
novissimo do homem...

--Que não é do mundo, nem do diabo! Ora pois, Deus te conserve no sancto
arrependimento...

--Então quem é o pretendente da dispensa?...

--Isso fallaremos outra vez... Ora olha, meu querido Leonardo, não sei
se sabes que tenho cá na Sé requerimento para uma igreja.

--Nada, não sei.

--Poderás fazer com que o senhor bispo me despache?

--Homem, isso é um caso difficil... Se queres que te falle a verdade, no
paço tudo se move por dinheiro...

--E tu dás á manivella nas rodas da machina, não é assim, meu Leonardo?

--Estás a rir, João...

--Pois eu podéra chorar!... Tudo isto leva-se a rir, senão endoudecia a
gente... Ora anda lá que tu não deves só ter escrupulos das tuas
rapaziadas... A proposito de rapaziadas, que é feito da Anna do Carmo?

--Da...?

--Sim... da Anna do Carmo... aquella mocetona que morava comtigo na rua
Direita, aqui ha dez annos...

--Não sei... não me recordo... não sei de quem me fallas... adeus... até
outro dia...

--Espera homem--disse o padre inexoravel ao confuso arcediago que suava
em janeiro como o seu amigo Silva no mez de agosto, por vêr alli tão
perto o francez, que não perdia uma palavra do dialogo.--Espera... não
te confundas, que eu não quero confundir-te. Isto é conversar como
amigos... Eu já sabia que foste honrado com a rapariga, e que a casaste
com um bom dote... Uma fraqueza não desacredita ninguem... David tambem
peccou, e S. Pedro negou o mestre.

--Dizes bem, João, adeus, até outra vez...

--Então... até outra vez.

Padre João não comprehendeu a afflicção do arcediago. A ultima despedida
disse-lh'a, quando elle de repente lhe voltou as costas, por não poder
conservar-se com a cara voltada para o francez que lhe não desviava os
olhos d'ella.

Já escanchado commodamente sobre o albardão da égoa somnambula, o antigo
conhecido de Anna do Carmo, voltando-se para o livreiro, disse,
sorrindo:

--Vê que tal é o amigo? Olhe como elle se atrapalhou quando eu lhe
fallei na moça...! reparou?

--Reparei... reparei...

--O que ella merecia é que o marido d'ella lhe quebrasse o espinhaço com
uma tranca... Mas os maridos ás vezes, são tão bons como ellas...
Adeusinho...

--Passe muito bem.

Mr. Hemerin leu, segunda vez, a carta anonyma, e sahiu.

Esperem asneira. Quando mal nos percatamos, temos pela prôa um marido
brioso!

Safa!...

_Rara avis in terris_...




CAPITULO IX


O arcediago, quando fugiu bruscamente ás impertinencias vingativas do
padre João Pires, ia perdido, e não atinava com o refugio mais azado no
embaraço em que se via.

Na rua das Hortas, quando voltava do campo de Sancto Ovidio, até onde
fôra machinalmente, encontrou o marido de Anna do Carmo, que o
comprimentou com a graça costumada, e nem de leve lhe tocou nas
escandalosas revelações do profundo investigador de Sant'Thiago, e S.
Martinho de Dume.

Padre Leonardo, admirado da singeleza do francez, entendeu que as cousas
estavam no pé em que as deixára na vespera, e tranquillisou o tumulto de
vergonhas e receios que lhe traziam o coração em dolorosas piruetas.

Convencido do inesperado quão feliz resultado da extravagante scena,
veio á rua das Flores, e encontrou Anna do Carmo, ao mostrador,
espantada de que seu marido sahisse sem dar parte, nem chamal-a a ella
para a loja.

Isto fez impressão no arcediago, que teve a prudencia de calar á mãe dos
seus filhos o desgraçado encontro com o amaldiçoado padre de
Ponte-Ferreira.

Todavia, a sahida rapida do francez alguma cousa queria dizer. O atilado
arcediago reflectiu no que poderia resultar d'alli; lembrou-se, um
momento, que a sua organisação physica poderia soffrer algum abalo menos
agradavel, e, finalmente, appellando para o futuro com a intrepidez de
philosopho, esperou as consequencias.

Acabava o velho amigo de padre João Pires de fazer os seus juizos,
quando o livreiro entrou com a mesma affabilidade, com o inalteravel
sorriso d'um esposo feliz.

--Sahiste sem dizer nada?!--disse a senhora Anna.

--Foi-me necessario sahir com tal precipitação, que nem me lembrou
chamar-te.

--Pois que foi, Hemerin?

--Que havia de ser? Um engano... Vieram-me aqui dizer que o regedor das
justiças me queria mandar prender, porque eu vendia clandestinamente na
minha loja livros protestantes, e folhetos escriptos contra a religião.
Corri immediatamente a casa do regedor, e tive a fortuna de encontrar,
quando lá cheguei, o desmentido da calumnia que forjaram contra mim os
meus inimigos.

--Inda bem!...--disse a mulher.

--E se não acontecesse assim--accrescentou o arcediago com o
contentamento da boa fé--eu ainda tenho amigos para desmanchar as
traições dos seus inimigos.

--Muito obrigado, senhor compadre. Tudo está arranjado, d'esta vez. Se
elles continuarem, v. s.ª será o nosso protector, como tem sido sempre.

O arcediago almoçou com elles, e não podia deixar de felicitar-se por
ter casado a mãe de Rosa com tão boa pessoa, alma tão singela, e genio
tão estimavel a todos os respeitos. Fez muitas festas á creancinha, que
dava biscoutos ao livreiro para que os désse ao _papá_, o que o
livreiro, com paternal meiguice, cumpria, rindo-se muito da galanteria
do pequeno.

Correu o dia regularmente. O arcediago despediu-se á meia noite,
promettendo na noite seguinte pagar quatro partidas de bisca, que
perdera jogando com a senhora Anna, emquanto seu marido sahira a
encommendar de Paris a nova edição de Bossuet e Bourdaloue.

Na madrugada do seguinte dia, Hemerin levantou-se mais cedo que o
costume, e disse a sua mulher que lhe désse a chave da commoda em que
estava a sua roupa branca.

Anna quiz erguer-se para dar uma camisa a seu marido, e elle mandou-a
ficar. A mulher instou, e o francez intimou-a imperiosamente que não
sahisse.

Momentos depois, a mãe de Rosa sentiu fechar-se por fóra a porta da rua!
Ergueu-se, foi á commoda, e achou-a vasia da roupa de seu marido. Desceu
á loja, tudo estava fechado. Tornou ao seu quarto e viu um bilhete sobre
o lavatorio, com estas poucas palavras: «_És uma boa mulher, mas não me
serves. Eu não sou mau homem, mas não te sirvo. Sejamos francos, e bons
amigos. Tu ficas, e eu vou. Regala-te com o padre, e faz-lhe visitas
minhas. Se me quizeres alguma cousa e elle tambem, escrevam-me para
Paris. Adeus._»

A senhora Anna do Carmo ficou aturdida. Queria fazer alguma cousa
n'aquelle conflicto; mas que poderia ella fazer? A porta da rua, de mais
a mais, estava fechada! Se o arcediago viesse... mas o arcediago não
vinha antes das oito horas! Se arrombava as portas, o barulho dava que
fallar aos visinhos, e o escandalo era certo! Mas, se o escandalo era
certo, inevitavel, a pobre mulher lembrou-se de arrombar a porta, e
procurar seu marido; mas aonde?

N'esta irresolução, a senhora Anna ouviu as oito horas. Correu á
janella, e viu á sua porta alguns homens, um dos quaes abria a porta.
Desceu abaixo, e perguntou quem eram:

--Sou um escrivão, com os meus meirinhos.

--Que querem?

--Fazer penhora nos objectos conteúdos n'esta casa.

--Devo alguma cousa a alguem?

--Deve.

--O quê?

--O conteúdo n'esta petição, a que está junto um titulo de divida
authentico, assignado por seu marido o senhor Hemerin Pierrote.

--Mas eu não assignei.

--Vmc.e sabe escrever?

--Não, senhor.

--Por isso mesmo é que não assignou. Seu marido assignou por ambos.

--Isso é uma ladroeira! Eu grito aqui d'elrei, se me levam alguma cousa
de minha casa.

--Pois grite, que arranja com isso a ser levada tambem.

--Para onde?

--Para a cadeia, ou para o hospital de S. José.

--Que é dos louvados, senhor meirinho geral?

--Estão aqui os ensambladores.

--Pois que subam a avaliar os moveis, e chame ahi dois livreiros para
louvarem os livros.

--É um roubo que me fazem!--exclamou Anna, collocando-se adiante dos
livreiros, que vieram d'um pulo.

--Retire-se, mulher, se não mando autual-a!

--Mas quero saber a quem é que devo...

--Ao vice-consul da França.

--Eu não conheço esse homem.

--Tambem não é preciso, nem deve ter muita pena d'isso. É um homem como
os outros, pouco mais ou menos.

Entrava o arcediago com os olhos espantados, e o queixo pávidamente
descahido.

--Senhor compadre!--exclamou Anna--querem-me roubar!...

--Roubar!... Como se entende isto?!

--Deixe-a fallar--disse o escrivão.--É um mandado de penhora.

--Á ordem de quem?

--Do juiz de fóra.

--Mas quem é o credor?

--Senhor arcediago, não nos importune com as suas perguntas. Vá lá
sabel-o, se quizer. Nós cumprimos a lei, e não temos obrigação de dar
explicações a quantos passarem na rua.

--Onde está seu marido?--perguntou o padre.

--Não sei... Olhe aqui.

A senhora Anna chamou-o de parte, e contou-lhe o succedido. O arcediago
ficou tranzido.

--Que hei de eu fazer, Leonardo? Não me dirás?

--Põe a tua mantilha, pega no pequeno, e vai com a criada para minha
casa.

--E os meus arranjos?...

--Que arranjos?

--Os meus vestidos?

--Deixa os vestidos... Faz o que te digo. Não te afflijas... Has de ter
sempre que comer. Nem mais uma palavra, que não quero escandalos.

Anna do Carmo sahiu com a criada e o pequeno, que grunhia por ter sido
tirado a dormir do berço. O escrivão achou-se sósinho com os aguazis e
louvados. A livraria foi logo comprada pelo livreiro da loja visinha. Os
moveis arrematados, e ficou o escrivão com elles. As roupas comprou-as
uma adeleira. E a chave da casa foi entregue ao senhorio. Foi um dia
cheio para os visinhos!

A vingança do francez fôra uma vingança franceza; mas, de parte a parte,
concordemos em que a honra orçava os mesmos quilates. Parece que eram
dignos um do outro, e o arcediago digno de ambos, como vai vêr-se.

A mãe de Rosa vivia com o arcediago; mas tão cauta e escondida que se
não deixava vêr. Era um cuidado inutil; porque ninguem duvidava que os
braços do padre eram o refugio nato da esposa abandonada.

A immoralidade chegára aos ouvidos do bispo, que empregou os meios
brandos para chamar ao caminho da bem-aventurança aquelle Lovelace de
murça e meias vermelhas. O arcediago defendia-se como podia, e citava os
seus traiçoeiros denunciantes para que lhe provassem a calumnia infame.
Se fosse hoje, o senhor padre Leonardo Taveira teria escripto quatro
correspondencias para os periodicos, em que provocaria os maledicentes a
tirarem a mascara, ou serem convencidos de infamadores da honra alheia,
e vis calumniadores, como é do estylo.

N'aquelle tempo, porém, o infamado não tinha o respiradouro da gazeta, e
não podia andar de casa em casa apregoando a sua innocencia. Razão
porque a detracção se incorporava pouco e pouco, até ser recebida como
facto consummado.

Os conegos, que não eram mais virtuosos que elle, mostravam-se
escandalisados das torpezas do seu collega, e queriam que o prelado os
desultrajasse do odioso que reflectia na corporação. O bispo via-se
entalado entre certos compromissos que o prendiam ao arcediago, e as
instancias reiteradas do chantre, e do deão, que eram mais discretos nas
suas torpezas, porque nunca tinham cahido na immoralidade de dotar as
mães dos seus filhos para casarem.

A indignação pública urrou no paço episcopal; e o principe da igreja
receou que a mitra lhe cahisse com deshonra da cabeça, e metteu o
arcediago em processo.

Estas deploraveis scenas passavam-se, mezes depois que Rosa Guilhermina
e a sua amiga vieram de Ramalde para o Porto. Rosa observava a
inquietação de seu pae nas poucas horas que se demorava em casa.
Interrogaram-no ambas muitas vezes, e não poderam saber nunca a
afflicção que o atormentava.

O processo corria, quando o bispo deu uma audiencia secreta ao
arcediago. O fim d'essa prática d'amigo, e não de juiz, era
aconselhal-o, que fugisse immediatamente de Portugal, e que esperasse lá
fóra que a borrasca serenasse, e depois viria.

O arcediago annuiu.

Com as lagrimas nos olhos, e sua filha nos braços, revelou-lhe que uma
grande desgraça o obrigava a sahir da patria. Mandou-a entrar outra vez
no recolhimento. Estabeleceu uma pensão a Maria Elisa. Deixou outra a
Anna do Carmo, e partiu para Hespanha com todos os seus cabedaes,
excepto as quantias que o honrado negociante Antonio José da Silva
mensalmente devia repartir pelas tres, se eram só tres as pensionadas da
illustre victima de padre João Pires.

Anna do Carmo sabia que sua filha existia no convento; mas, por ordem
expressa do pae, não a procurava. Vivia com honra, e recebia
pontualmente a sua mesada.

Rosa ignorava a existencia de sua mãe, tinha de longe a longe saudades
do pae; mas isso não era forte razão para que deixasse de comprar a
melhor edição do Cavalheiro de Faublás, que traduzia perfeitamente com a
sua amiga, graças aos cuidados do pae em mandal-a aprender o francez
durante um anno que esteve na casa do Laranjal.

Mr. Hemerin vivia em Paris, e vivia perfeitamente da quantia que lhe
fora dada com a condição de cohonestar as relações da mulher com o
padre: missão aliás christã que o maldito não quiz desempenhar
christãmente, e encarou com a melhor philosophia do mundo.

O arcediago vivia em Madrid, e gastava o seu tempo n'um convento de
Therezinhas, onde lhe não faltavam delicias para o espirito, e parece
que as melhores esperanças para tudo que os philosophos teimam em dizer
que não é espirito.

Padre João Pires, esse, contentissimo de ter resolvido o problema de
Sant'Thiago, veio um dia procurar o livreiro para comprar-lhe--_El sabio
instruido de la naturaleza_,--e soube, no livreiro visinho, a
catastrophe do arcediago.

Citou quatro textos em latim ácerca da obscenidade, disse tudo o que
sabia a tal respeito, confirmou minuciosamente todos os escandalos da
vida de padre Leonardo, e foi dizer missa á Misericordia, e ouvir de
confissão a senhora Angelica, que, por um triz, ia ficando sem
absolvição, por ter murmurado da senhora Anna Canastreira, e da mulher
do João Pereira, do chinó.

O senhor Antonio José da Silva, recobrado dos dissabores por que
passára, restaurava as banhas perdidas do seu lustroso cachaço, e
continuava a suar copiosamente.

E o senhor João Retrozeiro, finalmente, lia com o maior prazer a sua
mulher as cartas de seu filho José Bento, que estava no Rio de Janeiro
ganhando duzentos mil reis como segundo caixeiro de um armazem de
molhados, onde o não forçavam a conjugar o atrocissimo verbo _laudo_.




CAPITULO X


Corria tudo fastidiosamente regular e monótono, menos para o espirito
das duas amigas, que progrediam d'um modo admiravel na sciencia das
cousas, e na theoria do mundo estudada nos livros. Todas as suas
economias de tempo e dinheiro, que lhe sobejavam á farta, empregavam-nas
em novellas francezas, que uma criada, das que serviam cá fóra, lhes
introduzia no recolhimento, com pequena commissão.

Maria Elisa se dissermos que era uma litterata, não nos fica o remorso
de ter mentido. A prova de que o era dá-se com bem pouco: basta dizer
que duvidava da efficacia da reza, e dos preceitos mais fundamentaes da
sua religião da infancia. Fallava na religião natural, e sabia de cór a
_Voz da Razão_, e a _Pavorosa illusão da Eternidade_.

Rosa Guilhermina era litterata metade e mais um terço. Não acreditava na
reza, nem nos sanctos da regente: mas tinha fé na existencia de Deus!
Não era consummada como a sua amiga, que punha todo o desvelo em
instruil-a e aperfeiçoal-a.

Era corrido um anno. As meninas entravam nos dezesete, e já não eram as
creanças zombeteiras que traquinavam na cêrca, e irritavam as velhas da
casa com travessuras.

Convencidas de que eram senhoras, revestiram-se da dignidade propria,
deram-se um ar de pensadoras, mediam as suas palavras sentenciosas,
olhavam com desdenhosa insolencia a ignorancia das companheiras,
desdenhavam o beaterio de muitas que lhes não mereciam o favor das suas
reflexões, e, com algumas, dignaram-se descer até lhes confiarem o
segredo da philosophia, o dogma sublime da razão. Se quereis em duas
palavras comprehender a illustrada extravagancia das duas meninas, sabei
que o seu quarto era intitulado por ellas: _hotel de Rembouillet_.[1]

D. Rosa recebia regularmente extremosas cartas de seu pae, que não tinha
expressões com que podésse encarecer o talento de sua filha, manifestado
nas apparatosas cartas, que lhe enviava.

A ultima, que elle lhe escrevera de Madrid, annunciava a sua proxima
vinda para Portugal. Bem informado, o arcediago sabia que as linguas
mordentes dos seus inimigos estavam cansadas, e que o processo, ao cabo
d'um anno, estava esquecido.

Depois da carta, que promettia a sua vinda, que devia abrir outra vez as
portas da clausura ás litteratas, as anciosas meninas receberam outra em
que o padre lhes dizia que, em determinado dia, viria abraçal-as, e que
fossem dispondo a sua immediata sahida para Lisboa, onde elle tencionava
estabelecer casa.

De igual theor recebeu a mãe de Rosa a fausta noticia, e cada qual não
tinha socego em preparar as suas cousas de modo que se não fizessem
esperar.

Era chegado o festivo dia. D. Rosa com a sua amiga, para não perderem
tempo, já tinham feito as suas despedidas; Anna do Carmo tinha fóra dos
bahús o indispensavel para as poucas horas de existencia no Porto; umas
e outras não sahiam da portaria ou da janella para felicitarem o amante
e o pae e o carinhoso protector, quando o senhor Antonio José da Silva
rolou a sua rotunda personagem no pateo do recolhimento.

Rosa, ao vêl-o pelo raro, recuou assustada da inesperada visita. O
negociante perguntou pela filha do arcediago de Barroso, e a porteira,
industriada pela menina, perguntou-lhe se o senhor arcediago tinha
vindo.

--O senhor arcediago--respondeu o negociante com a commoção de que era
susceptivel--o senhor arcediago... está na presença de Deus...

--Morreu?!--exclamaram as meninas.

--É verdade... Faz favor de me chamar a menina.

--Estou aqui, senhor Silva... Pois é verdade que morreu meu pae?

--Desgraçadamente... Acabo de receber um portador de Madrid... As suas
ultimas palavras, foram estas: «Eu morro... vão dizel-o á rua das
Flores, no Porto, a um negociante chamado Antonio José da Silva. Morreu
de uma apoplexia... Deus tenha a sua alma na bemaventurança...

--Isso é impossivel!...--atalhou Rosa, soluçando e chorando.

--Pois é tão certo como estarmos aqui, senhora D. Rosa... O peor é que o
grosso dinheiro que seu pae levou, sabe Deus porque mãos andará a estas
horas!...

--E eu fiquei pobre, não é assim?--atalhou a litterata, que considerava
a riqueza como o primeiro dogma dos sublimes dogmas da razão.

--Pobre... não, senhora--respondeu o negociante, enxugando uma lagrima
importuna.--A menina está perfilhada. Eu tenho a perfilhação em meu
poder. Ainda mesmo que não appareça o dinheiro, que elle levou, o seu
patrimonio vale bem quarenta a cincoenta mil cruzados. É a quinta de
Ramalde, são dous predios na cidade, e as pratas de seu pae, que estão
em minha casa, só essas valem bem seis mil cruzados, a olhos fechados. O
que é necessario é fazer-se um conselho de familia, e bom será que a
menina sáia do recolhimento para tomar conta da casa de seu pae.

Pergunta d'aqui, resposta d'acolá, convieram em que a menina sahisse,
passados tres dias, durante os quaes recebeu visitas no seu quarto, e
chorou alguns instantes sinceramente.

Maria Elisa, como philosopha e boa amiga, animou-a a resignar-se,
convencendo-a de que a morte era a condição da vida, e que as lagrimas
não resuscitavam ninguem. Rosa conveio n'isso em nome da illustração do
seu elevado espirito, e assentou em mostrar-se intrepida na dôr.

Portador da infausta nova, o negociante foi dar o tremendo golpe na
pobre esposa sem marido, e na amante sem amparo, que devia sentil-o mais
profundo. Ahi, sim: havia uma verdadeira dôr, a consciencia de
desamparo, a invalidez na quasi velhice sem refugio. Restava-lhe uma
esperança: era sua filha; mas essa filha não lhe bebera o leite, não lhe
sentira os beijos, não lhe vira as lagrimas, nunca lhe chamára mãe.

Por encurtar razões, o franco negociante foi-lhe dizendo que em seu
poder não estava dinheiro algum, e que tractasse ella de procurar o
amparo de sua filha que era a herdeira do arcediago.

Ao quarto dia, D. Rosa Guilhermina com a sua amiga occupavam a casa do
Laranjal, tomavam as antigas criadas, e consultavam-se no que deviam
fazer, ou se acceitariam as condições que algum impertinente tutor lhes
impozesse.

--Eu não posso dizer nada em tal assumpto--respondeu Elisa.--Sou
absolutamente estranha n'este objecto; não obstante, como tua amiga
intima, entendo que não deves sujeitar o teu coração ás barbaras leis
d'algum barbaro tutor.

Já vêem como era o estylo de Elisa; agora admirem o de Rosa:

--Dizes bem, minha terna amiga. Se a parca me roubou o pae, não serei
ludibrio da morte, porque vivo ainda. Não quero mais reclusão, nem o
convento para mim foi feito. Quero a liberdade, porque o meu coração é
livre. Eu e tu temos bastante philosophia para nos sabermos guiar na
estrada tortuosa do mundo. Conhecemos a sociedade pela leitura;
saberemos evitar os abysmos, renderemos os nossos corações aos ardentes
votos d'algum amor digno de nós, e viveremos juntas pelo espirito, assim
como temos vivido pela intelligencia.

Fallou bem. Tudo, que dissesse depois disto, seria uma redundancia. Não
ha nada a desejar aqui. Optima resolução, exemplar programma, e
invejavel talento!

Nomeado conselho de familia, a orphã foi consultada pelo tutor, homem
probo, escolhido pelo senhor Silva. A menina espivitada respondeu em
alto estylo, e o tutor retirou-se maravilhado da pupilla, e disse em
plena reunião dos membros do conselho de familia que ella era muito
_pronostica_, e que fallava com cabeça. Os outros membros não duvidaram
acredital-o, e consentiram em que a menina fosse entregue dos seus
rendimentos, e vivesse fóra do recolhimento.

Contentes da sua sorte, as duas litteratas, cada vez mais ricas de
sciencia, achavam já que o seu espirito não saboreava a simples nutrição
dos romances, e queriam mergulhar no oceano da sabedoria. Talhavam o seu
plano de instrucção; lastimavam a soledade em que viviam duas almas
devorando-se no proprio fogo, e sentiam a falta de uma sociedade mais
ampla que as admirasse, ou de espiritos illustrados que as conduzissem á
luminosa região das sciencias ignoradas ao seu desherdado sexo.

Tudo isto era muito bonito; a tal respeito diziam-se cousas admiraveis,
quando, no mais acalorado do projecto, D. Rosa Guilhermina Taveira
recebeu a seguinte carta:

     _«Minha filha. Ignoras talvez que a morte de teu pae deixou n'este
     mundo uma mulher desvalida. Esta mulher é tua mãe, e terá
     brevemente necessidade d'um bocado de pão. Quando esse momento
     vier, não o negues á infeliz Anna do Carmo, que irá mendigal-o á
     tua porta. Vivo na rua Direita n.º 25.»_

Esta carta, lida em sobresalto, produziu em Rosa uma sensação
inqualificavel. Elisa, queria vêr esta carta, e a sua amiga não lh'a
mostrava.

--Será namoro?!--perguntou Elisa com azedume e admiração--Diz, Rosa! tu
não me respondes? Deixa-me vêr essa mysteriosa carta! É epistola
amorosa?

--Não, minha amiga... É uma carta, que não te mostro!... Não devo
mostrar-t'a...

--Oh céos! que estranha carta é esta! Não sou eu, por ventura, a tua
amiga, a confidente dos teus segredos?

--És... mas ha segredos que se não dizem...

--Pois bem: eu calarei a minha ancia, e não farei jámais de amiga para
todos os teus cuidados, Rosa.

O portador esperava a resposta.

A filha de Anna do Carmo sahiu de ao pé da importuna confidente, tirou
da gaveta do seu tocador quatro cruzados novos, embrulhou-os em um
retalho de sêda preta, entregou-os ao portador, sem lhe dizer palavra, e
rasgou a carta.

Quando voltou, chorava Elisa, em ar de arrufada amante. Rosa, mais
tranquilla, se era possivel uma consciencia boa, depois de tão generosa
acção, serenou a susceptibilidade da sua melindrosa amiga com esta
revelação:

--Olha, querida amiga, faz comigo as pazes. Eu te digo o que se passa. A
carta, que recebi e devolvi pelo portador, era uma súpplica de uma pobre
amante de meu pae, que me pedia uma esmola. Fez-me tanta pena, que me
vestiu de luto o coração! Como pensei que era aquelle um deshonroso
segredo para meu pae, nem dizer-t'o a ti, cara amiga, eu julguei que me
era nobre. Ora aqui tens...

--E mandaste-lhe o beneficio supplicado?

--Mandei...

--Fizeste bem... Pobre mulher, abandonada, não devia achar fechadas as
portas da alma que sahiu do peito amante. Perdôa a meu resentimento,
querida Rosinha...

E com estas e outras finezas passaram uma hora, ao fim da qual voltava o
portador, que levára o dinheiro, e entregava á senhora D. Rosa
Guilhermina outra carta, acompanhando os quatro cruzados novos. A carta
dizia assim:

     «_Minha filha. A esmola é muito avultada para uma mãe. Quando eu
     tiver fome, irei pedir-te um bocadinho de pão._»

Rosa fez-se da côr do lacre, e fugiu de ao pé da sua amiga.




CAPITULO XI


Anna do Carmo, quando pensava em escrever a sua filha, dizia-lhe o
coração que a não procurasse, porque seria recebida com má vontade.
Fallava-lhe assim o coração, porque n'aquelle peito não batia o coração
de mãe.

E não.

A amante do arcediago vira, sem lagrimas, levar aquella menina do seu
ventre para os braços mercenarios de uma ama de expostos. Não estendeu
os seus, supplicando que lhe não roubassem a filha da sua alma, e da sua
deshonra. Não pediu ao pae desnaturado que lh'a désse em compensação da
renuncia, que ella fizera da sua dignidade. Não saltou, esvaída de
sangue, fóra do leito, procurando resgatar a creancinha que deveria
dar-lhe em amor de filha o premio da sua ignominia de amante.

Viu-a ir impassivel! Nunca lhe deu que pensar o destino da creança.
Nunca sentiu o remorso do infanticidio. Nunca se lembrou que a
desgraçada menina, que viu a chorar com frio e fome nas lages da rua,
poderia ser a sua filha.

Os annos correram. O arcediago lançou um olhar melancólico ao futuro.
Ambicionou uma herdeira, que fruisse o grosso cabedal que amontoava. E
lembrou-se de ter assignalado, cinco annos antes, aquella engeitada.

Procurou-a com zêlo de pae; encontrou-a entre as meninas desamparadas,
pallida de fome, e vestida de farrapos, apresentou-a a sua mãe, e sua
mãe encarou-a serenamente, deu-lhe um beijo frio, e aconselhou o pae que
a mandasse para um collegio.

Quando o pae extremoso, cheio de saudades, mandava buscar sua filha de
seis annos, com os seus lindos cabellos louros, e os seus labios
radiosos de innocentes sorrisos de gratidão, Anna do Carmo achava
enfadonhas as repetidas visitas, e zangava-se asperamente se a menina
batia com a faca no prato, ou pedia doces para dar ás suas companheiras.

Espanta-vos esta dureza d'alma? Entrai na enfermaria das que vão ser
mães, debaixo das telhas da Misericordia. Reparai n'esta, que prepara
risonhamente o cueiro e a faxa que ha de levar seu filho ao monturo dos
filhos sem mãe. Olhai aquella que jura que o seu seio não tem nutrição
para que a não obriguem a crear o seu filho. Vêde além outra, que crava
as unhas no menino, que tem ao peito, para que os dolorosos vagidos da
creança accusem a fome, e a seccura d'aquelle seio, que tem dentro morto
o coração.

«Diante d'este quadro hediondo, tenho duvidado do amor materno!
Compungido por esta verdade atroz, tenho collocado a hyena n'um grau de
sensibilidade superior á mulher!» dizia-me um illustrado professor de
medicina[2], que me expunha estes lances com as lagrimas nos olhos.

Não duvideis, pois, mães! Anna do Carmo chegaria sua filha ao seio; mas
aquelle sangue não se alvoroçava nas arterias. Tocar-lhe-ia os labios
com os seus, mas aquelle beijo fôra sempre a banal formalidade, que se
barateia por ahi em cada cara que vos saúda.

Sobejavam-lhe razões para recear o desprêso da filha. A dura experiencia
dissera-lhe que o castigo sobre a terra era infallivel.

Se aquella mulher tivesse sido a mãe d'aquella menina, sentiria um
estimulo superior impellindo-a para ella. Iria, coberta de farrapos,
lançar-se nos braços de sua filha, radiante de velludos e brilhantes.
Iria, sem pejo, na presença de todo o mundo abraçar essa filha, com a
certeza de que Rosa exclamaria na presença de todo o mundo: «Esta
desgraçada mulher é minha mãe!» Pediu que lhe escrevessem uma carta; mas
essas poucas palavras, que parecem o enigma d'uma grande dôr, nem suas
eram. Foi uma cabeça fria, e um coração estranho, que as dictou; porque,
na alma d'ella, estava a irresolução gelada, o presagio do desprêso, o
espinho da consciencia, precursor d'um grande castigo.

Quando recebeu, como resposta á sua carta, o silencio, e quatro cruzados
novos, Anna do Carmo sentiu-se assaltada pelo orgulho que não era
orgulho de mãe. Era um rancor, que reagia ao desprêso, uma altivez que
caracterisa as almas pequenas, e não essa nobre independencia, que nos
manda atirar á cara do falso bemfeitor uma esmola, quando nos não é
delicadamente dada como quitação d'uma divida.

Foi ella quem repelliu a esmola; mas não foi ella quem redigiu o bilhete
que acompanhava a remessa. Por sua vontade, aquelle bilhete devia ser um
insulto e uma ameaça; mas a pessoa que o escrevera previu que a mãe de
Rosa seria brevemente uma mendiga, e precisaria de humilhar-se a
estranhos, por ter sido soberba com sua filha.

Rosa Guilhermina meditou aquelle bilhete, e sentiu em si uma
transformação repentina.

Ha pouco ainda, teve vergonha de declarar á sua amiga que sua mãe
existia, e vinha pedir-lhe uma esmola; e agora é ella que sente a dura
precisão de revelar a Elisa todo o seu segredo.

Elisa ouviu-a, e reprehendeu-a da inconfidencia, que a não lisongeava
nada. Depois, aconselhou-a que desse uma mesada a essa pobre mulher, se
a não queria receber em casa na qualidade de mãe.

Rosa optou pela mesada, e escreveu immediatamente uma carta a sua mãe
com a direcção que lhe fôra indicada. Esta carta chegou nos assomos
freneticos de Anna do Carmo. Sahiu com a carta para que lh'a lêssem:
ouviu-a cada vez mais colerica, supposto que as phrases fossem brandas,
e carinhosas. A offerta da filha era mais uma boa mesada, que
permittisse a decencia de sua mãe. Anna tomou a carta com arremêsso,
rasgou-a, e disse á portadora:

«Diga a essa desavergonhada que não preciso de suas mesadas; e que, se
torna a mandar aqui alguem, que atiro pelas escadas abaixo quem cá
vier... Pegue lá... dê-lhe a carta rasgada.»

D. Rosa, quando ouviu similhante resposta, voltou-se para a sua amiga,
como quem pede um conselho:

--Não tens mais passo algum a dar--disse Elisa.--Mulher que assim
responde não é tua mãe: isso é uma impostora! Faz de conta que este
incidente não veio perturbar a nossa felicidade... Será tua mãe: mas só
te conhece agora, que és rica, e ella pobre. Tal mulher não é digna de
chamar-te filha!... Que lhe deves tu? O nascimento? Grande favor!... Se
teu pae não tivesse esta riqueza, que te deixou, o que serias tu? Uma
filha sem mãe, abandonada de todos, e despresivel aos olhos da propria
que te atirou ao mundo como quem atira ao chão as rosas murchas, que lhe
serviram de prazer e ornato!...

Quer fosse o estylo assoprado de Maria Elisa, quer fosse a negação
completa do coração de Rosa a essa estranha mulher, que lhe chamava
filha, o certo é que os escrupulos e temores desappareceram, e o
importuno successo não impressionou muitos dias o espirito da leviana
moça, que se demorava pouco nas mesquinharias d'este globo.

O rapido desvanecimento das ideias funebres do caso, deve-se á visita da
senhora Angelica que não veio mais cedo por ter estado ás portas da
morte com um catarrho, que lhe cahira nos bofes, como ella se explicava
subindo as escadas.

--A snr.ª D. Angelica por aqui!--disse Rosa descendo a recebel-a.

--Deixemo-nos de _dom_. Cada qual é como cada um. Eu cá sou filha de
negociante, e não quero essas trapalhadas da fidalguia. Então, como
passa a minha menina?

--Muito boa, e a snr.ª Angelica doentinha, não é assim?

--Deus louvado, vou melhor dos bofes, mas, acho que tenho aqui no
costado, salvo tal logar, um lobinho, que hei de queimar com a massa.

Elisa tinha o lenço na bôca, para suffocar o riso.

--Então, esta menina é que é a sua amiga?

--Tenho a gloria de merecer tal nome--respondeu Elisa.

--Por muitos annos e bons... Então vmc.e de quem é filha, ainda que eu
seja confiada?

--Meus paes ceifou-os a dura fouce da parca.

--A Parca? não conheço essa senhora. Sua mãe chama-se a snr.ª Parca?

--Não, senhora--atalhou Rosa, porque a sua amiga não podia responder,
suffocando com uma gargalhada.--A mãe d'esta menina, e tambem o pae,
morreram já.

--Ah! sim? pois Deus lhes falle n'alma, e elles a abençoem no céo, que é
bem galantinha... Porque não vai ser freira, minha menina?

--As almas livres não querem ferros. Umas nascem para o culto dos
templos, outras vêem o altar de Deus na natureza.

--Ella que diz?--perguntou a velha a Rosa.

--Diz que não nasceu para freira.

--Não diga isso, menina, que é peccado. Todos nascemos para o serviço de
Deus, e deve ir para carmelita, que é uma ordem muito apertada, e
ganha-se o céo, com a pobreza, e a paciencia.

--O céo ganha-se com os vôos do espirito.

--Que é? os avôs do esprito? Não creia n'isso; nas carmelitas não ha
espritos ruins... Ri-se? ora queira Deus que não chore ainda... Quem lhe
disse que andavam espritos nas carmelitas? Olha as sanctinhas!
coitadas!... É cousa que não consta é esprito nas carmelitas...

--Isso creio eu; mas por isso mesmo é que a materia me não convida. O
grande espirito é Deus.

--Jesus! que heresia! A menina parece-me douda!...

--Não é, não, snr.ª Angelica... É porque ella falla sempre em alto
estylo...

--_Estylo!_... que é isso de estylo!...

--A sua linguagem é mais sublime que a costumada entre pessoas sem
luzes.

--Sem luzes!... Eu não vos entendo, raparigas! Vmc.es aprenderam o
latim?

--Não, minha senhora--disse Elisa--a nossa lingua é portugueza, e as
nossas phrases tem o toque da superioridade, que nem todos os espiritos
alcançam!...

--E ella a dar-lhe com os espritos!... Parecem-me doudas! Quem vos
ensinou esse palavriado de latinorios e berliques-berloques que ninguem
entende? É isso o que vós aprendeis no recolhimento? Deixai-vos d'essas
tolices, e fallai como a outra gente da nossa laia.

--Da nossa?--disse Elisa--Não lisongeia a miscellanea.

--Miscellanea!... quem é a miscellanea? Eu não a entendo!... Ella que
diz, Rosa?

--Diz que as pessoas instruidas...

--Pessoas estruidas, Deus nos livre d'ellas... Olha como ella se ri!...
Esta rapariga tem aduella de menos, não tem, Rosinha?

--Tem aduella de mais... É uma senhora muito esperta, sabe francez, e
faz poesias.

--Eu a arrenego! pois ella é como os homens, que vão alli berrar debaixo
das janellas das freiras, a botar versos para cima?

--É verdade... Eu faço versos; a musa favorece-me: o Pégaso vôa comigo á
apolinea fonte, e converso com os deuses na Castallia.

--Ella parece lá d'esses reinos estrangeiros!--disse, torcendo o nariz,
a snr.ª Angelica.

--Sou lusitana, não nego a patria. Nasci nas margens do patrio Douro.

--Nasceu no Douro? Então isso como foi? Sua mãe teve-a no rio? Vinha,
talvez no barco... pobre mulhersinha!... E ella a rir-se!... Ella não
está boa!...

--Desaperta-me, Rosa, que eu arrebento--exclamou, suffocada de riso,
Elisa.

--Eu não n'o disse? Eu logo vi que ella não estava boa!... Isto é cousa
má que se lhe metteu no corpo... Dizem que o demonio ás vezes falla de
modo que só o entendem os padres. Quer a menina que eu vá chamar-lhe um
fradinho de muita virtude, para lhe lêr os inzorcismos?

--Minha alma detesta o frade.

--É frade de testa... e de cabeça... é muito sabio... Eu vou buscal-o...

A snr.ª Angelica atirava com a côca da mantilha para a cabeça, e
preparava-se para sahir em cata do frade, quando Rosa, perdida tambem
com riso, lhe acenou que não fosse.

A parvoice sinceramente estupenda estava pintada na indescriptivel
physionomia da velha.

--Sabeis que mais? não me entendo comvosco! Não sei o que pareceis! Ou
vós estaes doudas, ou a graça de Deus vos desamparou!

--Venha cá, snr.ª Angelica, fallemos sérias... Eu sou sua amiga, e Maria
Elisa tambem o é. Nenhuma de nós está vexada do espirito mau... é porque
vmc.e não nos entende, e pensa que a nossa linguagem não é do mundo dos
mortaes. Eu sou a mesma Rosa, muito sua amiga, e sinto immenso prazer em
vêl-a n'esta sua casa, e quero que venha cá muitas vezes.

--Agora já entendo o que me diz... A gente deve fallar como falla todo o
mundo. O latim é lá cousa dos prégadores, e dos doutores. Uma mulher em
sabendo a ladainha e a _Magnifica_, sabe o latim preciso para a
salvação... Com que assim, minha Rosinha... Como se dá por aqui?

--Muito bem.

--E a outra menina?

--Plenamente jubilosa.

--Ella lá torna com o berzabum dos latinorios!... Valha-a Nossa Senhora!

--Ó Maria Elisa, falla em baixo estylo... humanisa-te.

--Repugna-me. Não sei manchar a lingua de iguaria indigna.

--Que diz ella? que eu sou indigna?

--Não, senhora; diz que não póde fallar como nós.

--Pois então que esteja calada... Ó Rosinha, eu queria-lhe uma palavra
em particular.

--Pois sim; iremos para o meu quarto... eu venho já, Elisa.

--Vai... mas guarda-te do filtro da Gorgona fatal.

--Ella lá fica com os gorgues, gorgues!... má mez para ella!--murmurou a
snr.ª Angelica.




CAPITULO XII


--Ora venha cá, Rosinha...--disse a snr.ª Angelica, pendurando a
mantilha na porta, e acocorando-se n'um tapete, que ella suppoz ser
feito para isso--Sente-se ao pé de mim.

--Eu não gosto d'essa posição, que é incommodativa. Sento-me n'esta
cadeirinha.

--Pois sim; mas chegue-se bem para mim, que não quero que nos ouça a sua
amiga. Deus me perdôe, mas não engraço com os modos d'ella... Aquillo
não ha de ter bom fim... Tem muito palavriado... Ora diga-me, de que
presta aquella rapariga?

--De muito; é a minha amiga do coração; conheço-a ha dois annos;
quero-lhe como a ninguem, e basta.

--Está dito... Pelo que vejo, aqui não ha rei nem roque, e quem governa
é vmc.e, não é verdade?

--É, sim, senhora. Quem governa em minha casa sou eu.

--Pois, minha menina, precisa de quem a governe. Os tempos não vão bons
para as donzellas. Deus me perdôe se pecco, mas o diabo anda ás soltas
entre as raparigas desde que os francezes vieram lá do fim do mundo ao
Porto. No meu tempo não se ouvia dizer que uma rapariga namorava este
nem aquelle. Hoje, bem dito seja Deus, quem tiver raparigas em casa,
traga-lhe o ôlho em cima, senão, quando mal se precata, os
peralvilhos... nem pensal-o é bom!... E más linguas? isso então é um
louvar a Deus! Pois aquella grande bebeda da mulher do retrozeiro, que
mora defronte de mim, não foi dizer ao meu Antonio que eu, quando era
moça... em nome do padre, e do filho, e do espirito sancto... Cal-te
bôca... Olhe que sempre! Ninguem diga que está bem! Uma desavergonhada
assim! Estar eu mansa e quêda em minha casa, amando e servindo a Deus
como posso, e nem ja como devo, e vai senão quando aquella lingua
damnada não teve o ousio de fallar da minha conducta, que não teve nunca
tanto como isto que se lhe pozesse (_mostrando-lhe a ponta do dedo_)!
Ahi está por que Deus não manda chuva, e mandou a praga dos francezes
para nosso castigo... é por causa da Anna Canastreira, e outras que
taes... Aquella grande regateira! Atrever-se a pôr a bôca na minha
honra! E ella? A porca, que andou... Cal-te bôca... E tem aquella de
fallar em mim, que fui sempre como as estrellas, e que nunca houve na
rua quem dissesse, com verdade, que me viu piscar o ôlho ao congregado,
nem ao conego Anselmo! Inda a lingua se lhe tolha, e descanso não tenha
ella de dia nem de noite sem me pedir perdão...

--Então é isso o que precisa dizer-me, snr.ª Angelica?

--Inda não chegamos lá, Rosinha. Isto vinha a respeito de dizer que as
donzellas não estão seguras com esses melcatrefes que por ahi andam
d'oculos, e polainas, que me parecem mesmo o demonio tentador!...

--Elles tentam-na, snr.ª Angelica?

--A mim? para cá é que elles vem bem!.. Eu os arrenego! Assim que os
vejo ao longe, rezo o credo em cruz...

--E perseguem-na os peralvilhos?

--Hão de ter bom olho...! Elles só perseguem as que lhe dão trela. A
mim? isso sim... Inda não ha muito que um mariola me puxou pela
mantilha, ao sahir da Capella das Almas, e eu voltei-me para elle... não
lhe digo nada... apenas me viu, aquillo foi como se lhe désse com um
sedeiro na cara, voltou logo o focinho. Está-se a rir, Rosinha? É como
lhe digo. Os homens, em vendo má cara nas mulheres, não tenha medo que
elles se atrevam... E mais eu agora já não sou o que era... estou muito
acabada... estes malditos lobinhos, que me vem todos os annos ao
costado, fazem-me de fel e vinagre. D'antes quando eu era a flor das
donzellas, isso é que se podiam vêr os peraltas com o nariz no ar por
minha causa... Pois, olhe, viam-me com os olhos e comiam-me com a
testa... Uma rapariga quer-se honestinha; e quanto mais vamos inda peor
é. Está dito... agora vamos começar o nosso arranjo.

--O nosso arranjo?! Que arranjo temos nós, snr.ª Angelica?

--Nada de pressa... ha muito tempo para morrer... Ora vamos, Rosinha...
inda está dos mesmos humores de ha dois annos?

--Que humores? não me lembra quaes eram...

--A respeito do seu matrimonio com o meu Antonio.

--Ah! nem me lembrava essa brincadeira... Sim, minha boa senhora, ainda
estou, e estarei, resolvida a não casar com o snr. Antonio.

Maria Elisa, pé ante pé, viera collocar-se atraz de Angelica fazendo-lhe
carantonhas, que obrigaram Rosa a sentar-se de ilharga por não poder
conter o riso.

--Com que então está na mesma!... Ora, se Deus quizer, a sua cabecinha
ha de mudar. Pense bem no caso, Rosinha. Lembre-se que meu irmão não
sabe o que tem de seu. Lá, se é velho, olhe que faz dar a agua pela
barba aos novos. Não vê aquellas côres, que elle tem? Olhe que alli onde
o vê, inda tem muita força. Come-lhe bem, e está gordo como um tanho...

--Bem sei que está gordo; mas que me importa a mim a gordura de seu
irmão? Como não quero vendel-o a pêso...

--Isso não é resposta de menina honesta, Rosinha. Não se ponha a rir...
Acho que já tem as manhas da sua amiga. Foi ella que lhe disse que não
quizesse o meu Antonio? Tomára-o ella.

--Pois offereça-lh'o.

--Que se lave... Olha a labisgoia! Se meu irmão se via com aquella
tartamuda, que ninguem a entende, entisicava, meu querido irmão do meu
peito! E ella tem legitima?

--Quem, a minha amiga? é muito rica, por morte de duas tias, que são
pouco mais ou menos da sua idade, snr.ª Angelica.

--Da minha idade? Então ainda podem viver muito, e tarde virá a
legitima...

--Quantos annos tem, snr.ª Angelica?

--Quem, eu? eu lhe digo... Eu sou mais velha que o meu Antonio, que é da
idade do Joaquim Antunes, casado com a Theresinha dos Loios, e que se
lembra de ouvir dizer a sua mãe que o meu Antonio era da idade do snr.
Joaquim, e eu sou da idade da snr.ª Brizida, que dizia minha tia Aniceta
que nascera ao mesmo tempo, e se baptisára no mesmo dia com o Thimoteo,
que ninguem ha de dizer a idade que tem.

--É o mesmo que acontece a seu respeito, depois da sua conta, snr.ª
Angelica.

--Pois é verdade; eu o que tenho é estar acabada; mas meu irmão está
gordo e fero como sempre o conheci. Quizesse elle casamentos que lhe não
faltavam.

--Pois, snr.ª Angelica, sinto muito dizer-lhe que não me sinto
deliberada a casar com seu irmão, e que provavelmente ficarei solteira,
porque não tenho vocação para o casamento. Acho-me em extremo inclinada
ao celibato.

--Quem é esse Celibato? Olhe lá que não vá ser algum pandilha que lhe
quer pilhar a legitima!... Eu não conheço esse snr. Celibato... é
negociante?

--Nada; é um cadete...--disse Rosa mordendo o riso nos beiços.

--Ah! um cadete, chamado Celibato... Conheço muito bem; ouvi fallar
n'elle... é um grande tratante. Não queira esse bigorrilhas.

--Ah! que malvado! Eu não sabia que o snr. Celibato José...

--É verdade, Celibato José... já me esquecia...

--Da Cunha...

--Sim, sim... da Cunha; é o mesmo, tal e qual! Ora vê como eu lhe vali,
Rosinha?

--Agradecida, minha amiga. Detesto esse tyranno! Guardarei meu coração
para outro esponsalicio...

--Esponsalicio! parece-me que conheço esse snr. Esponsalicio...

--É um rico proprietario...

--Enganaram-na, Rosinha. Esse Esponsalicio...

--Da Costa...

--É o mesmo... louvado seja Deus, que me trouxe aqui!... Esse
Esponsalicio da Costa é um traficante, que enganou a filha d'uma minha
amiga, e que diz á bôca cheia que não quer casar com nenhuma. Não caia
em lhe receber palavra de casamento, Rosa... Deus a guarde d'essa
tentação!...

--Nenhum d'elles, pois, é digno do hymeneu?

--O Hymeneu! Apre! que são muitos. Eu tenho ouvido fallar n'essa
pessoa... Inda outro dia a mulher do João Pereira, que tem chinó, estava
a fallar mal d'elle. Não póde ser grande pessoa, porque anda mettido com
tal mulher...

--Pois bem: farei um juramento. Não casarei com o snr. Celibato!

--Bonita...

--Nem com o snr. Esponsalicio!

--Ora, pois.

--Nem com o snr. Hymeneu!

--Isso é que se chama ter a cabeça no seu logar.

--Nem com o snr. Antonio!

--Valha-a Deus, menina, valha-a Deus, que tem o passaro na mão, e
deixa-o fugir!... Case com o meu Antonio, e verá que pimpona elle a
traz!

--Fiz voto de morrer solteira. Os meus votos são infalliveis. Serei como
as Vestaes.

--As bestiaes! Deus a livre d'isso! A menina tem alma, e não póde ser
bestial...

--O mais que posso é convidar a minha amiga a receber a terna dextra do
ditoso Aonio.

--Que diz, Rosinha? Parecia-me agora a outra! Onde vos ensinaram esses
aranzeis?

--Pódes entrar Maria Elisa--disse Rosa, que não podia supportar as
caretas que a sua amiga fazia.

--Então ella ahi vem com os latinorios... Vou-me embora, com a graça de
Deus.

--Espere, senhora D. Angelica--disse Maria Elisa com burlesca
formalidade.--Muito ha, ditosa irmã do mais ditoso Adonis, que eu
suspirava por apascentar meus famintos olhos no manjar succulento das
rosadas faces do snr. Antonio José da Silva, vosso mano, e querido meu.
Vi-o uma vez. Vêl-o e amal-o foi obra d'um momento. Nunca mais meus
olhos tristes provaram os carinhosos afagos de Morpheu. De noite era
elle o meu pensamento; de dia o meu pensamento era elle; elle era de dia
e de noite o sangue das minhas veias, o fogo ardente do meu coração, o
nome mais appetitoso da minha lingua, e a lingua mais eloquente da minha
alma.

--Está douda!... Resmungou a velha, voltando-se para Rosa.

--Douda!--disse Elisa--douda d'amor! Cupido, que me varaste o coração de
ervada setta, porque não feres o coração de Antonio José?

--Está apaixonada por elle...--murmurou Rosa ao ouvido de Angelica, que
principiava a acreditar a naturalidade daquella dôr sublime.

--Será verdade, Rosinha?

--Não vê como ella soluça.

Maria Elisa retirava-se com o lenço nos olhos para esconder o riso, na
janella.

--Ella viu meu irmão?

--Viu, no pateo do recolhimento; e desde esse instante falla
constantemente no objecto dos seus votos, que é seu irmão.

--Coitadinha!... É preciso dizer-lh'o a elle, que não vá a rapariga dar
volta ao miôlo.

--Diga-lhe algumas palavras animadoras, snr.ª Angelica.

--Venha cá, minha menina; a troco d'isso não se afflija, que tudo se ha
de fazer pelo melhor, com o favor de Deus...

--Não me illuda, senhora! Não ponha mel nas bordas da taça, que tem ao
fundo o amargo absyntho! A minha paixão é incuravel como a gôta!

--Coitadinha!... por causa da paixão tem gôta! que pena! tão novinha já
com gôta.

--Com gôta, sim! eu com gôta na primavera dos meus dias!

--Pois ella costuma atacar mais no inverno...

--Com gôta na aurora da infancia, no crepusculo do amor... Com gôta
eu!... por causa de um ingrato Narciso! Miseranda Ecco!

--Então o tal Narciso que lhe fez? O Narciso é algum cirurgião que a não
soube tratar, pelos modos... Pois, minha filha, não chore. Eu vou já
d'aqui fallar com meu irmão, e veremos como se arranja isto do melhor
modo. Ponto é que não esteja cá arrumado para a Rosinha...

--Cruel rival!--disse (á parte) Elisa, com a melhor das caretas
imaginaveis.

--Injusta! Eu cedi-t'o, e os deuses sabem que sacrificio fiz cedendo a
mão do snr. Antonio!

--Bem me parecia a mim, que andava aqui alguma mastigada!... Agora vejo
eu porque não queria casar com meu irmão, snr.ª Rosinha... É uma boa
amiga da sua amiga. Deixe estar, menina, que talvez ainda sejamos
cunhadas... E, com isto, vou-me embora que são horas... adeus...

--Vá, mensageira d'amor!--disse Elisa--Propicios céos meus votos
abençoem, e os seus desvelos galardoem.

Ausente Angelica, seguiu-se uma tremenda gargalhada, em que estalaram os
espartilhos ás duas azougadas moças.




CAPITULO XIII


Dous ou tres dias depois (parece-me que foram tres: aquillo de que eu
não estou bem certo não affirmo), ás onze horas da manhã, mais minuto,
menos minuto, estava á porta da snr.ª D. Rosa Guilhermina Taveira, o
snr. Antonio José da Silva limpando o suor, e puxando para o abdomen o
coz do rebelde collête de velludo preto, que lhe marinhava em rofêgos
pelo estomago.

Arranjadas assim as cousas do seu logar, o negociante puxou a campainha,
e perguntou se podia fallar á snr.ª D. Rosa. Responderam-lhe que a
menina estava na cama curando uma constipação. Disse que queria fallar á
snr.ª D. Maria Elisa, e mandaram-no subir, o que elle fez, puxando, com
ambas as mãos, o indomavel collête, que subia a ponto de descobrir o coz
das ceroulas, as quaes rebentavam comprimidas pela arquejante barriga de
seu dono.

Esperou alguns minutos, que lhe não foram penosos, porque os aproveitou
mirando-se em um espelho de sala pendurado defronte da sua cadeira.
Conversando com a sua imagem, o snr. Antonio perguntou a si proprio se
era elle por ventura o venturoso amado que apaixonára a amiga de Rosa a
tal ponto que a virtuosa Angelica (apesar da lingua damnada da Anna
Canastreira) escrupulisava, não esgotando da sua parte todos os esforços
para que elle Antonio José annuisse, como homem e christão que era, ao
suspirado casamento.

Esta era a primeira parte do monologo do negociante. A segunda, porém,
era mais dramatica. O homem tinha pundonor como outro qualquer.
Despresado pela filha do arcediago (que Deus tenha em sua sancta gloria)
resignára-se, mas não se esquecia do ultraje immerecido. Pensára muito
na vingança; mas não sabia com que armas nobres devia vingar-se. Se elle
quizesse desforrar-se com deshonra para a sua consciencia, não lhe
faltariam occasiões como a que tivera, pouco antes, na qualidade de
amigo intimo do curador dos orphãos. Quizesse elle, e Rosa não sahiria
do recolhimento. Mas o snr. Antonio José da Silva era um homem honrado,
temente a Deus, supposto que peccador, e incapaz de vingar-se vilmente.
O desforço, que elle ambicionava, devia ser cavalheiroso, e digno de
especial menção no romance, que, trinta annos depois, devia occupar-se
da pessoa do snr. Antonio, digna, a todos os respeitos, de fazer gemer
os prélos, e dar consumo ao papel das nossas fabricas, interesse
duvidoso aos editores, e não sei que migalhas a mim, humilde apologista
de todos os Antonios, maiores que o seu seculo, e credores da
immortalidade.

Era chegada, pois, a occasião d'este appetecido desforço. O negociante
era amado, e amado pela intima amiga de Rosa, tão nova e tão gentil como
ella. Antonio José da Silva, dispensador de graças do seu munificente
coração, prodigalisaria extremos á sua amante ditosa, na presença da
despresada ingrata, que se morderia de raiva. Ostentaria caprichosamente
os seus ardores de amante e marido no sumptuoso luxo de sua mulher. Rosa
_ficaria levadinha da breca_ (esta phrase é d'elle genuina) quando não
podesse _hombrear com os calcanhares da outra_. Ora aqui está no que
pensava o snr. Antonio, durante os cinco minutos que esperou na sala,
não lhe esquecendo de conter nos seus justos limites o collête, que
parecia de borracha, porque apenas se via livre dos dedos impertinentes
de seu dono, saltava logo para o pescoço, deixando mal velado o
promontorio das regiões adjacentes, por não dizer sempre barriga, que é
uma palavra que me destôa, e fere os ouvidos pudicos do sexo por
excellencia.

No decurso de cinco minutos, que faziam as duas amigas? Estavam
perturbadas pela surpreza de similhante visita.

Nem se lembravam já da scena burlesca em que a snr.ª Angelica promettera
apiedar seu irmão a favor da delirante Elisa. A vinda inesperada
suscitou-lhes a desconfiança de que o snr. Antonio vinha colerico e
enfurecido, reprehendel-as da galhofa com que receberam sua irmã, e
talvez ameaçal-as de que, por ordem do tutor, Rosa outra vez seria
obrigada a recolher-se, e de mais a mais separar-se da sua amiga.

A filha de Anna do Carmo não estava doente. Aquelle pretexto era o susto
da desconfiança que assaltou a ambas. Ora Maria Elisa, menos timida, ou
mais desenvolta, contra a vontade de sua amiga, não duvidou receber a
visita do snr. Antonio, e preparava-se para chalacear as suas iras, se
elle não viesse ás boas, como era de suppôr, ou ao menos a vaidosa Elisa
tinha a sem-ceremonia de vaticinar.

Depois arrependeu-se de o mandar subir; e perguntava a Rosa a maneira
decente de o despedir, sem ir á sala. N'esta consulta demoraram-se os
cinco minutos, e resolveram, por fim, que seria mais discreto ouvil-o, e
amacial-o, para que o maldito as não indispozesse com o tutor de modo
que as forçassem a uma cruel separação. Elisa, inferior á sua galhofeira
coragem, entrou acanhada na sala, justamente no momento em que o snr.
Antonio dava o ultimo puxão ao collête, e limpava a terceira camada de
suor que lhe envernizava as pandas bochechas.

O negociante ergueu-se, himpando, e levou ambas as mãos ao chapéo, que
apenas levantou da cabeça meio calva.

--Ha de dar licença que me cubra--disse elle--porque venho suado, e sou
atreito a catarrhos... Aqui corre o ar de encontro áquella porta, e não
é lá das melhores cousas para quem traz os póros abertos.

--Esteja a seu bel-prazer, e queira sentar-se--disse Elisa, suspeitando
ainda que, depois do brutal cumprimento, viria a trovoada dos brutaes
insultos.

--Então a Rosinha diz que está constipada?

--Bastante enferma. A minha amiga tem uma compleição melindrosissima.

--E pouco tino tambem. Quando ella esteve comigo era uma desacautelada;
levantava-se do calor da cama, e vinha com o saioto pela cabeça
acocorar-se na varanda a brincar com a gata... Diacho da gata! era tão
amiga d'ella que não viveu muito depois que a não viu em casa! Ha
bichos, que só lhe falta a razão, que no mais parecem mais amoraveis que
as proprias creaturas com alma! A boa da gata ia-se pôr á porta do
quarto d'ella a miar _miau_, _miau_, _miau_, e, a final de contas, não
queria comer, nem beber, até que appareceu morta no telhado do
visinho...

--Misera gata! que infeliz morte!

--Pois é verdade. Isto veio a respeito de dizer que a Rosinha está
constipada. Aquillo a respeito de cabeça não regula lá grande cousa, a
fallarmos a verdade.

--É uma excellente menina, cheia de virtudes...

--Eu não digo menos d'isso; mas de cá se vai a lá. Deixe-a ter mais dous
annos, e verá onde vai dar comsigo...

--Eu creio que ella saberá conter-se nos honestos limites que lhe são
demarcados pela honra, e pelo dever.

--Pois Deus a ouça; mas duvido. Pelo que me disse minha irmã, ella traz
na cabeça umas tolices que não hão de ter boa sahida. Inda não ha tres
mezes que sahiu do recolhimento, e já conhece não sei quantos namoros.

--Isso é uma injustiça, snr. Silva. A minha amiga Rosa Guilhermina não
tem namoro algum.

--Deixe-se d'isso, não a defenda, que eu cá sei tudo. Minha irmã
fallou-me n'um tal cadete chamado Liberato, ou Celibato, ou não sei que,
e um proprietario que tem o nome arrevezado assim a modo de Apparicio...
ou Sponselicio... uma cousa assim... finalmente, oxalá que eu me engane,
mas não lhe agouro bem... Emfim, quem mal fizer a cama, mal ha de
dormir. A pena que eu tenho é ser ella filha do meu amigo arcediago, que
Deus tenha na sua presença, que já lá sabe o bem e o mal que fez... Do
mais, deixal-a lá, que o mal se o fizer, para si o faz...

--Não se afflija. A minha amiga será digna do bom pae que a morte lhe
roubou, e não deshonrará jamais as cinzas paternas.

--Pois assim seja. Ora, menina, eu não sou d'esses bigorrilhas que dizem
palavras de mel, e sabem d'esses _circumloquios_ de trapalhadas com que
enganam as moças, e, a final de contas, não dizem nada. Eu sou um homem
chão... pau é pau, e pedra é pedra. O que sente o coração a bôca o diz,
e o que a bôca não diz não sente o coração. Ora aqui está. Os homens
entendem-se pelas palavras, e eu gosto de quem não está a fazer uma
grande mastigada de palavras bonitas para dizer o que se diz em duas
palavras. Eu venho aqui de proposito fallar com a menina, porque minha
irmã Angelica foi d'aqui, ha tres dias, e disse-me certas cousas que me
buliram no coração. Pelos modos a menina disse-lhe que se lhe não dava
de casar comigo...

--Eu?!

--Não se envergonhe de ter confessado os seus affectos. Eu gosto da
franqueza, e a gente muitas vezes perde por fallar de mais e fallar de
menos. Á menina bem sei que lhe ha de custar esta conversa; mas,
deixemo-nos d'essas _bijutarias_ do costume, eu estimei muito saber que
a menina gostára de mim...

--Eu... não disse que...

--Bem sei que não disse a cousa assim... Eu sei muito bem que a menina
tem uma maneira de dizer as cousas com outras palavras mais discretas;
mas o que é verdade diz-se com clareza, e eu sei entender as cousas.

Maria Elisa não previa similhante desfecho! A surpreza annullára-lhe por
momentos o sestro chocarreiro, e a confusa moça não sabia qual dos
partidos devia adoptar, se o da seriedade, se a brincadeira. De mais a
mais, a cabeça de Rosa apparecera-lhe n'este momento, entre as duas
portadas mal cerradas, e o riso, sua feição caracteristica, luctou
cruelmente com a seriedade zombeteira, que ella queria sustentar.

--Eu, a fallar-lhe a verdade--continuou o snr. Antonio, persuadido que o
silencio de Elisa era o natural pudor dos dezesete annos--a fallar-lhe a
verdade, pela terceira vez que a vejo, não desgosto da sua pessoa.
Quando a vi na grade do recolhimento fiquei sympathisando muito com as
suas maneiras, e gostei de a ouvir fallar, porque eu não sou homem de
estudos, mas sei dar valor ás cousas, e gosto de quem saiba dizer duas
palavras.

--Ditosa mulher aquella que viver sujeita ao seu dominio! Os vôos do seu
espirito não acharão fechados os vastos horisontes do talento, nos
penosos dissabores domesticos.

--Que é? agora não percebi bem...

--Dizia eu que será uma felicidade pertencer a v. s.ª

--Felicidade... isso vai da maneira de vêr as cousas cada um. O que lhe
posso desde já prometter é que não hei de dar-lhe penas.

--A mim?... Creio que não dará...

--Póde estar certa d'isso. Eu sei como se tratam as pessoas. A gente
póde gosar a sua riqueza sem andar á compita com as grandezas dos
fidalgos. Isso é que é asneira. Os fidalgos arruinam-se, e vivem por ahi
sabe Deus como, atraz de mim e dos outros, que lhes damos a juro o nosso
dinheiro, para as mulheres gastarem em velludos, assembleias, e
theatros. Dizia o meu amigo arcediago, que quem sahe fóra da sua classe
não tem classe nenhuma. É cá uma ideia que eu aprendi de cabeça, e acho
isto bem dito: _quem sahe fóra da sua classe não tem classe nenhuma_.

--É um axioma.

--Que é?

--É um axioma, uma maxima, uma eterna verdade.

--Isso é. Um negociante é um negociante, e um fidalgo é um fidalgo.
Andam ahi de carruagens uns tres cá da minha classe, que querem hombrear
com os fidalgos, e mais hoje ou mais amanhã verão onde vai parar o
negocio.

--Pois v. s.ª abomina a carruagem?

--É cousa em que nunca andei. Parece-me que aquillo não ha de dar grande
saude ao estomago! Tombo para aqui, tombo para acolá, quem fôr nutrido
como eu ha de por força soffrer dos bofes.

--Engana-se... A agitação, causada pelo balanço da carruagem, é
saudavel.

--Devéras?! acho que não!

--Queira acreditar-me. Eu tenho lido varios authores de medicina, que
recommendam o uso da carruagem ás pessoas nutridas, como meio de evitar
as apoplexias.

--Ah! a menina leu isso nos livros?

--Sim, senhor, e como pessoa que se interessa no seu bem-estar,
recommendo-lhe o uso da carruagem.

--E o carroção não fará o mesmo effeito?

--Creio que não: o carroção é mais moroso, menos agitado, mais
impertinente nos solavancos.

--Pois eu estava resolvido a mandar fazer um carroção, porque tenho uma
junta de bois na minha quinta de Lordello, e, visto o que me diz...

--Parecia-me que v. s.ª deveria possuir carruagem, já que os bens da
fortuna lh'o permittem.

--Lá isso tenho eu para mais; mas que diriam os meus visinhos se me
vissem de carruagem? Eram capazes de me apupar os tratantes!

--Deixe-se d'isso, senhor Silva. As suas commodidades são mais
attendiveis que a critica estupida dos seus visinhos. Ora diga-me: se
casasse com uma senhora debil, que precisasse de passear de carruagem
para entreter o espirito nas delicias do campo, v. s.ª não lh'a
compraria?

--Isso comprava; ponto é que minha mulher me fosse leal, e precisasse
d'ella, porque lá, por luxo, acho que era uma asneira sustentar uma
parelha de machos, e dois criados. E não será melhor uma cadeirinha, ou
uma liteira?

--Isso é antiquissimo!... De que serve o dinheiro, se o não fazemos
servir aos nossos prazeres?

--Diz bem; mas sempre é bom a gente gastar menos do que lhe rende o
negocio.

--Concordo; mas acho justo que se engrandeça a gente tanto quanto é
possivel.

--Pois a tal respeito fallaremos mais devagar. Agora é necessario que
tratemos da nossa união. Eu estou disposto a casar com a menina, já que
sympathisamos um com outro, segundo me disse minha irmã. A menina
faz-lhe conta casar comigo?

--Acha-me digna de si?

--Eu que lhe pergunto se quer casar é porque sympathiso com a menina.

--Sabe que eu não sou rica?

--Sei que não tem nada de seu. Conheci muito bem seu pae, que era
negociante, e quebrou com honra. Eu não lhe pergunto se é rica. Rico sou
eu, e tenho de sobra para que nos não falte nada. O que eu quero é quem
governe a minha casa, e herde os meus bens por minha vontade, porque o
que tenho não quero que vá parar a sobrinhos. Se lhe serve, o que ha de
fazer-se ao tarde faça-se ao cedo. Não tenho mais nada a dizer-lhe;
pense no negocio, e responda-me breve...

--Eu responderei...

--Está dito tudo. Dê cá recados á doente, e saiba que fico sendo seu
amigo.

........................................................................

O rico mercador de pannos retirou-se. D. Rosa veio a rir-se, ao encontro
de Elisa, e, vendo-a séria, perguntou-lhe:

--Tu não te ris, Elisa?

A litterata respondeu com o silencio e a seriedade.

--Em que pensas tão trombuda?--replicou Rosa.

--Em que penso?... eu sei cá em que penso!... Acho que não penso!...

--Aposto que te serve o noivo?!

--Estás a caçoar, Rosa!


ENTRE-PARENTHESIS

Oh benemerita philosophia! quão sublimes effeitos a humanidade
experimenta da tua sisuda influencia!

Oh candida filha do talento, irmã gemea da independencia, neta de Catão,
e parenta proxima dos Catões da minha terra, oh patusca philosophia, que
sancto prestigio tu exerces nas almas, desde que Diogenes arremessou a
escudela que lhe não servia de nada!

Oh philosophia das mulheres, tu és sobre todas a melhor das
philosophias! A teu respeito poderia eu escrever este capitulo XIII, que
ficaria sendo um capitulo de abalo no espirito publico, mas, não tenho
agora vagar, nem me lembra nada que se tenha escripto a respeito da
philosophia das mulheres.

Apesar da minha ignorancia n'este ramo (unico em que não sou profundo)
tentarei, indulgentes leitores, iniciar-vos na philosophia de Maria
Elisa, que foi, honra lhe seja, a mais fervorosa sacerdotisa do culto.

Nada mais boçal, mais rude, mais soez, mais detestavel que a figura, o
abdomen, o palavriado, o suor, e o collete, do senhor Antonio José da
Silva.

D'accordo.

Nada mais repulsivo que os seus tres papos, que as compressas dos
colleirinhos reduziam a seis rofêgos, parecidos com o intestino
mesenterio do cevado, que é a mais saborosa das tripas do tal animal
(seja dito de passagem).

Nada mais displicente que os seus olhos azues, abertos a canivete, na
franja d'uma pequena testa quadrada.

Nada mais abominavel que os seus quatro dentes em anarchia, impellindo,
emparceirados com a lingua, perdigotos ás legiões, que orvalhavam, a
quatro palmos de distancia, a physionomia dos circumstantes.

Nada mais irrisorio que a supina ignorancia das suas sandices amorosas,
á mistura com anexins fastidiosamente vulgares, e momices mais ou menos
grutescas, mas sempre ridiculas ou nauseabundas. E os callos, e os
joanetes? tudo horrivel!

D'accordo.

Mas o dinheiro do senhor Antonio José da Silva! o dinheiro, atilados
leitores, vêde bem que se trata de dinheiro, dinheiro em abundancia,
placas de ouro e prata, cousas torpes e vis, confessemos que sim, mas
cousas com que se compram as carruagens, os velludos, os setins, os
jantares, os bailes, a consideração, os ouvidos, os olhos, as linguas,
as pennas, as eloquencias, com que tudo se compra inclusivamente os
romances, illustradas leitoras, e intelligentes bachareis!

O DINHEIRO!

Vós não sabeis o que são essas oito letras, que só ellas valem as vinte
e cinco do alphabeto! Vós não sabeis que eu conheço quatro, dez, trinta
alarves d'uma estupidez fabulosa que escondem n'uma luva branca a mão,
que deveria aguçar brochas, e palmilhar sapatos; que encostam aos coxins
das carruagens os lombos musculosos que a natureza affeiçoára para as
asperezas do costal; que mascaram a hediondez do vicio ignaro, o peor de
todos, com o riso alvarmente cynico de todos os homens endinheirados,
que é um riso particular.

Esses taes são tudo isso e mais alguma cousa; e eu sou o primeiro a
sorrir-lhes urbanamente, com meiguice, com mimo até, folgo que me
apertem a mão, que me chamem amigo, embora depois se riam de mim, folgo
e ennobreço-me d'essa esmola de consideração, porque, se, em minha
consciencia, reconheço que são elles os devassos, os torpes, os
ignorantes, os incorrigiveis, a minha illustrada cabeça diz-me que eu
ámanhã serei apedrejado, na praça publica, se esses taes passarem por
mim sem me cortejarem, e retirarem a sua mão da minha.

O DINHEIRO, amigos! Eu nunca me cansarei de vos lembrar esta palavra,
tres syllabas distinctas que fazem o unico deus verdadeiro d'este
paganismo ignominioso em que medram os vicios da sociedade. Tres
syllabas! trindade veneranda que representa o mytho de todas as
religiões, em cada uma das quaes o profundissimo Dupuis achou uma
trindade, e não descobriu esta, que eu tenho a honra de evangelisar-vos.

O DINHEIRO, emfim, foi o dinheiro, representado em Antonio José da Silva
que perturbou a tranquillidade descuidosa de Maria Elisa, desde o
momento fatal que a serpente, na feia figura do negociante, veio tentar
a Eva da viella do Laranjal.




CAPITULO XIV


A pobre orphã do Recolhimento, antes de conhecer Rosa Guilhermina,
enraivecia-se de não ser pensionista para compartir das regalias das
ricas, que tinham o direito de responder com altivez ás reflexões das
mestras, e ás rabugices da velha regente.

Reprimida pela necessidade de obedecer, phantasiava extravagantes
futuros d'onde a felicidade poderia vir resgatal-a á humilhante condição
de orphã, dependente da caridade publica. Moça ainda de treze annos,
lembrava-se de muitos casamentos ricos com meninas pobres d'aquella
casa, e botava sortes e adivinhas, que todas lhe annunciavam o suspirado
casamento. Uma velha, que sabia lançar as cartas, e com a qual havia
muita fé ao recolhimento, tres vezes lhe vaticinou um vantajoso
casamento.

Relacionada com Rosa Guilhermina, a ambiciosa orphã esqueceu-se um pouco
das suas queridas esperanças, porque, desde o momento em que ganhou a
intimidade da sua amiga, dispensou a ração da casa, e viveu,
independente da misericordia, como irmã com a pensionista.

Se algumas vezes contou á companheira os seus passados sonhos de
casamento, Rosa ouviu-lh'os rindo, e pediu-lhe que nunca se lembrasse de
tal emquanto ella fosse viva, e tivesse um bocado de pão que repartir
com ella.

Ainda assim, Maria Elisa tinha assaltos de vaidade, e soffria,
lembrando-se que não podia indemnisar alguma vez as liberalidades que
recebia de Rosa.

Quando se installaram, senhoras suas, na casa do Laranjal, Elisa pensou
no seu futuro, e lembrou-se que viria tempo em que Rosa trocaria por
outros affectos os carinhos d'ella, e acharia pesado o encargo de
sustentar com tantas regalias uma estranha.

Este reservado pensamento, que ella, eminentemente philosopha, sabia
calar, dominou-a muito tempo, com bem pouco elogio para a sua idade e
para o seu caracter.

Quando veio á sala zombar de Angelica não havia n'essa caricatura de
rapariga apaixonada intenção séria, nem podia havel-a.

Quando o senhor Antonio principiou a franca exposição dos seus
sentimentos, que elle significava na melodiosa palavra «sympathia»,
Maria Elisa zombava ainda, e respondia com caretas ás caretas de Rosa.

Quando, porém, o capitalista fallou em luxo, em carruagens, em fidalgas,
e, sobre tudo, na necessidade de deixar uma herança, que não queria
deixar aos sobrinhos, a moça pobre lembrou-se das suas esperanças
desvanecidas, e dos prognosticos da velha do recolhimento, que lançava
as cartas.

E, portanto, Maria Elisa, a seu pesar, recahiu de repente na gravidade
do assumpto, e ouviu as ultimas palavras do ingenuo negociante, com a
discrição, que o caso pedia.

Aqui o que temos a admirar, se alguma cousa vale a pena da admiração, é
a philosophia tão saturada aos dezeseis annos!

A ideia philosophica, em uma mulher, começa aos vinte e cinco annos, e
acaba aos quarenta e cinco. Até aos vinte e cinco, domina a poesia, dos
quarenta e cinco para diante, se não domina a theologia, ha de
forçosamente dominar a toleima, que os vocabularios definem «tolice
grande». Isto não é maxima, que valha as de _Larochefoucauld_; mas é, no
seu tanto ou quanto, uma maxima que deve aproveitar a muita gente.

Maria Elisa, porém, fôra demasiado temporã na razão da philosophia.
Anticipou-se, é verdade; mas veremos que não abortou por vir cedo de
mais. Os grandes pensamentos tem cincoenta annos de incubação nas
entranhas da sociedade. Terão: não duvido nada; mas o maior pensamento,
que se conhece, é o de Elisa em casar com o senhor Antonio, e vingou em
cincoenta minutos.

As perguntas de Rosa mortificavam-na.

A ciumosa amiga custava-lhe a crêr similhante extravagancia; mas a
importancia grave que Maria Elisa estava dando ás perguntas zombeteiras,
que lhe eram feitas, aggravou a desconfiança de sua amiga.

Por esquivar-se ás impertinentes instancias da arrufada Rosa, a noiva,
em perspectiva, refugiou-se nas chufas ao promettido esposo, e conseguiu
dissuadir a amiga, que foi tão facil em descrêr como tinha sido em
irritar-se por um ciume extravagante.

Quando emprégo a palavra «ciume» não se persuadam que a filha do
defuncto arcediago era rival d'Elisa. Justiça lhe seja feita: D. Rosa
era rival do senhor Antonio. Como estas cousas são, não me importa a mim
sabel-o. Ha no coração de duas mulheres muito amigas puerilidades assim,
segundo me consta.

Maria Elisa pensou na aventura toda a noite.

Para neutralisar a cubiça do luxo, e da independencia, a ambiciosa
pequena afigurava-se ligada ao senhor Antonio, carnal e positivamente
como Deus o atirára a este mundo. Punha de parte o dinheiro, afastava o
crepe dourado, para vêr o cadaver em todo o horror das ulceras; mas o
demonio tentador não lhe pintava uma cousa sem lhe pintar a outra. Pelo
habito de imaginal-o familiarisou-se com elle, e já lhe não parecia tão
repulsivo. E, se declinava os lindos olhos do homem para a opulencia
embrionaria no ouro d'elle, a philosophica menina via cousas
lindissimas, e deslumbrava o coração esquivo com as liberalidades que a
cabeça lhe promettia.

E, no mais caloroso do seu delirio, via um marido velho, e uma riqueza
pósthuma a gosar, e um coração, cheio de vida, a offerecer.

Foi esta a final conclusão dos seus raciocinios, que ella não deixou
escriptos em compendio para uso dos collegios de meninas; mas que,
depois d'ella, temos visto que foram adoptados, e que fazem hoje as
delicias das educandas. Os bons príncipios teem isso comsigo.

O dia seguinte correu sem novidade.

O outro foi um dia triste para ambas as meninas.

Elisa parece que se esquivava á sua amiga. Rosa ensaiou uma pergunta
definitiva; mas não ousou proferil-a.

Ao terceiro dia, uma carta do senhor Antonio José da Silva foi causa de
grandes dissabores. O conteúdo era assim:


                                             «_Senhora D. Maria Elisa._

                                          _Porto, 24 de abril de 1818._


_«Minha senhora do meu coração e da minha particular estima. Faz hoje
tres dias que fallamos em certo negocio a respeito da nossa união. Muito
desejava eu saber, para meu governo, se v. s.ª está resolvida a dar-me a
sua mão de esposa. Estes negocios não devem demorar-se. Eu já lhe disse
o que lhe tinha a dizer. Por motivos, que á vista lhe direi, estou
deliberado a casar-me o mais breve. Soube que v. s.ª sympathisava
comigo, e eu da minha parte não desgosto da sua pessoa. Por isso, se
houver de se fazer este casamento, ha de ser já, quando não com bem
desgosto do meu coração procurarei outra que tenha as boas qualidades da
menina. Peço-lhe que responda com brevidade. Mande no seu serviço este
que é e será até á morte_

                                                           _De v. s.ª_

                                  _Attento venerador e criado obrigado,_

                                               _Antonio José da Silva._»


Está conforme o original, excepto a grammatica, a pontuação, e a
orthographia.

Maria Elisa, não podendo illudir as instancias de Rosa, sem lêr a carta,
ralatou a seu modo o conteúdo. Vejam que a vaidade não a deixava já
expor ao escarneo da sua amiga a redacção do capitalista! Por mais que a
curiosa teimasse, não conseguiu julgar do coração do seu antigo amante
pela eloquencia da carta!

Perseguida, cansada de fingir, exhausta de pretextos, Elisa disse á sua
companheira de dous annos:

--Eu amo-te muito, minha querida amiga. És a primeira e a unica pessoa a
quem consagrei a minha alma, e todos os instantes da minha existencia,
que não será longa, longe de ti; mas não posso contar com o teu apoio
toda a vida. Preciso de ser independente, como tu és, para bem avaliar
as tuas generosidades. A verdadeira e duradoira amizade firma-se na
independencia...

--Olha que me ultrajas, Elisa! Eu fiz-te nunca sentir a tua dependencia?

--Fizeste.

--Fiz! isso é uma mentira, que me escandalisa!

--Fizeste com os teus carinhos. Quanto mais procuravas esconder aos meus
proprios olhos os beneficios, que me fazias, mais os olhos do meu
coração se abriam, para vêl-os, e mais devedora me considerava aos teus
extremos. Quer Deus que eu seja o que não poderei ser de outra maneira.
Serei rica. Não digo que seja feliz; porque a ventura não a dá o ouro,
nem as lagrimas da saudade se enxugam com o dinheiro. Mas eu sou sempre
a tua amiga. Serás sempre a minha confidente. Serão reciprocas as nossas
casas, e as nossas riquezas. Viveremos tão juntas como até aqui. Terás,
mais ditosa que eu, um marido da eleição da alma. Serás venturosa, com
elle, e eu um dia... talvez... bem cedo... viuva, e rica... serei outra
vez a tua irmã, debaixo das mesmas telhas...

--Isso nunca!

--Nunca!... porquê?...

--Nunca!... Quem me não amou até hoje, virá depois offerecer-me riquezas
que despréso, e não preciso.

--Eu não virei offerecer-te riquezas, porque rica és tu. Virei outra vez
atar o fio que se vai quebrar entre os nossos corações, se é que a
separação de instantes é um laço de dous corações que se desata! Rosa,
não chores, que me comprimes o seio... Dá-me a tua mão... não sentes que
estas palpitações só tuas podem ser? Apraz-te martyrisar a tua amiga?

--Impostora!

--Impostora, eu, Rosa, e tens alma de me dizer tal? Não sentes o
remorso de tamanha offensa?

--Não! És uma ingrata, que me trocas pelo dinheiro d'um homem que eu
despréso.

--Porque és rica.

--D'um homem a quem chamavas os mais despresiveis nomes.

--Que hoje outra vez lhe dou.

--Então como podes tu sacrificar a tua vida a um ente abominavel?

--Porque não tenciono sacrificar-me... O escravo ha de ser elle.

--Não te entendo! O escravo ha de ser elle!... de que modo?

--Obrigal-o-hei a servir os meus caprichos.

--Quaes caprichos?

--Todos.

--Vaes ser uma esposa infiel?

--Não.

--Vaes ter carruagem, e vestidos ricos?

--Vou.

--E se te não dér carruagem, nem vestidos?

--Ha de dal-os.

--E se não dér?

--Divorcio-me... metade da sua riqueza é minha.

--E queres dar escandalo?

--Escandalo é ser pobre. Vejo-te hoje muito moralista.

--E tu pareces-me philosopha de mais.

--Antes isso.

--Que maneira de responder!

--É como a tua de perguntar... Não nos zanguemos, Rosinha. Sejamos boas
amigas. Aconselha-me que me case, que é a maior prova que pódes dar-me
da tua estima.

--Faz o que quizeres... és livre... Enganei-me comtigo... creei uma
vibora no meu seio.

--Isso é d'uma novella que nós lêmos ha dias. Nada de arrufos... Vamos
cear?




CAPITULO XV


RESPOSTA Á CARTA DO SENHOR ANTONIO JOSÉ DA SILVA

                                                         «_Ill.mo snr._

«_Hontem recebi a sua preciosa carta. O meu coração delirou de
contentamento, e a minha penna não póde fielmente interpretar os jubilos
do espirito._

«_Não se resiste aos seus carinhos. É-se arrastada involuntariamente para
a fascinação dos seus affectos. Deslumbra-se o entendimento, e
humilda-se o amor proprio na presença de v. s.ª_

«_Sim. Eu serei sua esposa, e satisfarei assim a mais incendiaria ambição
da minha alma. O matrimonio, porém, é de todos os passos o mais sério
passo da vida. Se resvala o pé, o casamento é o desfiladeiro, que conduz
ao tumulo. Eu mando calar a minha paixão. Faço que o cego amor emmudeça
para que a razão falle. Raciocinemos, pois, que assim é preciso._

«_V. s.ª já conhece bem o meu caracter? Creio que não. Eu não sou uma
mulher trivial. Tenho um grande coração para amar; mas o amor não é
suficiente alimento para elle. Sou ambiciosa de brilho, de ostentação,
de gloria, e não poderia fazer feliz um homem pobre, porque preciso
resplandecer aos olhos de meu marido e aos dos estranhos._

«_Este brilho, que ambiciono, não é um instrumento com que eu queira
ferir a minha honra, ou a honra de meu marido. Pelo contrario, humilde
para elle a quem devo tudo serei soberba da minha grandeza para todos os
outros. Se me quer para esposa, se me quer para dominar o seu
coração, e ser dominada no meu, é preciso que v. s.ª se comprometta, por
sua palavra de honra, a não embaraçar-me no livre gôso da riqueza que me
transmitte, desde o instante em que um eterno vinculo nos prender._

«_Eu sei que v. s.ª vive acostumado a uma mediania que não enquadra no
meu grande espirito. Não vá esse fatal habito, no futuro, transtornar a
nossa tranquillidade. Reflexione, senhor Silva, emquanto é tempo; e
responda-me quando o coração concordar com as meditadas reflexões que
tem a honra de fazer-lhe esta que é_

                                                          «_De v. s.ª_

                         «_Muito affectuosa amante, e attenta veneradora,_

                                      «_Maria Elisa Sarmento de Athaide.»_


O senhor Antonio leu tres vezes a carta e entendeu o essencial. Uma das
maiores difficuldades que zombaram da sua intelligencia foi a mais
simples das cousas: a assignatura.

--Como é (dizia elle) que ella se chama _Sarmento de Athaide_, se seu
pae era Joaquim Nunes, e sua mãe Michaela Felisberta? Isto, pelos modos,
cada qual assigna-se como quer! Pois eu hei de morrer, como nasci...

Estas sensatas reflexões foram interrompidas pela senhora Angelica.

--Já recebeste resposta, Antonio?

--Agora mesmo.

--Ora lê lá isso.

O noivo leu a carta, que sua irmã ouviu com a bôca aberta, franzindo a
testa a cada palavrão, que seu mano não entendia melhor que ella.

--Está uma carta d'uma vez!--disse a senhora Angelica, abrindo os olhos
para o lado da testa, e apanhando com os seus tres dentes, resto de
maior quantia, o beiço inferior, em signal de admiração--Isso é que é
fallar! O diacho da rapariga parece que tem cousa má! Aquillo é que é
uma cabecinha! Diz que bota sonetos, e lê pelos livros grandes dos
doutores! Ora vejam lá como a boa da pequena, sabe estas palavras, e diz
tudo que faz mesmo pasmar!... É um regalo ouvir essa carta... Ora lê lá
outra vez, meu querido Antoninho, que tens uma noiva de toda a
sabedoria!

O senhor Antonio leu quinta vez a sublime carta.

--Com effeito!--tornou a senhora Angelica--eu aposto se um doutor a
fazia melhor! A pequena parece que veio ensinada da barriga da mãe...
Cousa assim não consta!... Nunca vi nada mais bonito! Então isso que
quer dizer?

--Pois tu não entendeste?

--Assim me Deus salve que não.

--Isto quer dizer, sim... quer dizer que... é verdade, isto quer dizer,
que me tem uma grande affeição da sua alma, e que está prompta a ser
minha esposa...

--Coitadinha!... Isso já eu sabia... eu não t'o disse? Ora vê lá como as
cartas fallam verdade! Bem dizia a Escolastica de Miragaya que a igreja
te sahia brevemente... E não diz mais nada a minha cunhadinha?

--Diz que quer muito vestido, e muita... sim, diz que quer muita
grandeza para metter figas nos olhos...

--Á Rosa? bem haja ella! Eu cá tambem fazia o mesmo!... Pois olha,
Antonio, por ser cousa tua hei de dar-lhe o meu vestido de vareja branca
com lentejoulas para o casamento, e as plumas que minha madrinha me deu,
que lhe hão de ficar ás mil maravilhas. O vestido não tem mais que
pôr-lhe meias mangas, e subir a cintura para cima, que no mais está na
moda, custou-me a quatro mil reis a vara... daquella fazenda ha mais de
trinta annos que cá não vem tão boa... E que mais diz a carta? não me
manda visitas?

--Não... esqueceu-se...

--Pois, se lhe escreveres, diz-lhe da minha parte que muito estimo que
seja minha cunhada, e que havemos de ir ambas visitar o Senhor, e resar
a novena do menino Jesus dos attribulados, e muitas devoções. Diz-lhe
mais que faça por ter saude, e que peça a nossa Senhora que lhe dê muita
juizo e graça para servir a Deus... Ouviste?

--Ouvi, sim, vai pôr o jantar na mesa.

Entretanto, o senhor Antonio ficou sósinho passeando, e traduzindo para
vulgar a carta de Maria Elisa. O seu espirito, posto que d'uma
parcimonia admiravel no entendimento das cousas, custava-lhe a combinar
a cega paixão de Elisa com as calculadas condições que lhe eram
estipuladas em contracto de casamento. Todavia o negociante combinava a
carta com o que ella pessoalmente lhe fizera sentir acerca de carruagens
e assembleias, e deduzia de tudo que a rapariga queria figurar.

O senhor Antonio era rico, muito rico, mas avarento não. Nunca lhe
occorrera a ideia de gastar dinheiro em competencia com alguns seus
collegas que figuravam na roda dos fidalgos. Se desejasse deslumbral-os,
não olharia a despezas. Mas o coração não lhe pedia essas cousas, e
muito menos a carruagem, cujo balanço (dizia elle) não podia dar grande
saude aos bofes d'um homem gordo. O orgão que o senhor Antonio
respeitava mais na sua economia eram os bofes, de que se queixava pondo
a mão no estomago. Naturalmente suppunha que tinha o figado no peito.
Era um erro de anatomia desculpavel. Eu proprio, que já tive a honra de
vos dizer que sei tudo e mais alguma cousa, não tenho absoluta certeza
da collocação do figado, supposto que fui em anatomia estudante
profundo, a ponto de querer provar que o duodeno (tripa de doze
pollegadas) tinha, pelo menos, trinta e duas braças. E ainda hoje estou
n'isto, diga lá o que disser Bichat, e Soares Franco. Em consequencia do
que, tinha muita razão o senhor Antonio em recear que o balanço da
carruagem lhe prejudicasse os bofes situados no estomago. Mas a senhora
D. Maria Elisa de Sarmento Athaide lêra nos livros que a carruagem era
hygienica, e o senhor Antonio renunciára, como vimos, o pensamento do
carroção.

O jantar do senhor Antonio, n'este dia, foi rapido e pequeno, porque ao
coração refluira-lhe quasi toda a sensibilidade do estomago. O senhor
Antonio limitou-se a comer obra de arratel e meio de cozido da perna,
uma travessa de arroz com rodellas de linguiça, uma concava pelangana de
carneiro ensopado com batatas, uma tigela de chorudo caldo com sôpas que
se levantavam entumecidas quatro pollegadas acima do nivel da tigela, um
quarto de ceira de figos de comadre, alguns copos de vinho á proporção,
e mais nada. A senhora Angelica, assustada do fastio de seu irmão, pouco
mais comeu. O amor espiritualisára a organisação do nosso amigo o senhor
Antonio José. Mais tres dias d'esta quasi abstinencia de anachoreta, e o
sensivel negociante, um pouco pallido, e outro pouco meditabundo,
poderia sem favor, ser tido e havido como a preexistencia d'estes
rapazes, que nós conhecemos, e lamentamos na sua desesperação de amantes
não comprehendidos na face da terra!

--Ai! quem me dera poder-vos dizer que o senhor Antonio, á hora
melancólica do crepusculo, fixava o ôlho lagrimoso na amplidão dos céos,
espreitando o fulgor da estrellinha que o enamorava de lá!

Eu daria de graça este meu romance, se podésse, em estylo scintillante
umas vezes, e outras morbido, afiançar-vos que o senhor Antonio José da
Silva fôra poisar a sua redonda pessoa na fraga de-á-beira-mar, e ahi
com os olhos no horisonte, e os bofes arquejantes, perguntára á gaivota
gemebunda o segredo dos seus gemidos!

Não é possivel, leitores. O senhor Antonio o mais que pôde fazer, no
auge da paixão, foi comer assim. Não exijam mais d'aquelle homem, porque
d'ahi ao suicidio vai só um passo.

Antonio José da Silva, meu sympathico heroe, tu passaste sobre a terra,
e a tua geração não te comprehendeu!

Tu nasceste para estes nossos dias de angustiosa provação, de sentimento
fino, de doloroso trespasse d'uma civilisação material para o reinado do
espirito.

Se vivesses hoje, serias ordeiro, e visconde; terias ido ás camaras
fallar na cultura da cebola-albarrã, e na estrada concelheira de
Guinfões e Terras de Bouro; comerias biscoutos na assembleia portuense,
e pedirias a palavra na associação commercial, para dizeres que eras um
honrado negociante. E não ficaria aqui a tua missão grandiosa. Se
morresse algum homem, rei do talento, e creador d'uma litteratura,
serias tu o encarregado de dar a tua ideia para um monumento que
perpetuasse a gloria d'essa illustração![3]

Antonio José, vieste cedo de mais! Eu lembro-me de ti com saudades (e
mais não tive a honra de conhecer-te) todas as vezes que vejo a tua alma
cavalgando o nariz dos meus contemporaneos!

Lembro-me de ti, especialmente, quando me vejo a braços com uma paixão
séria, e não sinto cá dentro ferir-me o toque inspirador com que tu,
depois de jantar, respondias assim á carta de Maria Elisa Sarmento de
Athaide:

                                                       «_Ill.ma snr.ª_

                                         «_Porto, 27 de abril de 1818._

«_Sem tempo para mais, recebi a sua estimada cartinha, que veio muito a
proposito, porque eu já não estava bom. Vejo o que me diz, e a respeito
de tudo não tenho nada a dizer contra. Eu não sou d'esses sovinas que
são capazes de engulir, á hora da morte, o dinheiro, como certos
avarentos que eu conheço. A menina não ha de ter falta de cousa nenhuma;
ponto é que tenha juizo, e que saiba conduzir-se. O que eu tenho seu é,
e de mais ninguem. Gostei muito de a ouvir discorrer na sua carta, e
fallou bem a respeito do matrimonio. Eu gosto de quem me entenda, e, a
respeito do mais, deixe o negocio por minha conta. Logo que esteja
resolvida, botam-se os banhos, e faz-se isto depressa, que é o melhor.
Sem mais, sou_

                                                             «_De v. s.ª_

                                                «_Vosso amante do coração_,

                                                «_Antonio José da Silva._»


Maria Elisa leu sósinha, com frouxos de riso, esta carta. O estimulo do
riso cedeu ao da meditação. Momentaneamente, a melancolia ennuviou o
semblante da pensativa menina. Parece que estava sentindo vergonha ou
piedade de si. O pensamento de quebrar com uma gargalhada aquellas
relações, assaltou-a duas vezes; mas o pensamento de ter carruagem e um
bello futuro por detraz da campa de seu marido, assaltou-a tres vezes, e
venceu por um assalto, posta a sua alma a votos.

Rosa Guilhermina, desde o dia anterior, não lhe fallava. Esta demazia de
aspereza concorreu muito para a definitiva resolução do casamento,
porque o seu orgulho dizia-lhe que os amuos de Rosa eram o effeito da
dependencia. De mais a mais a colerica filha da Anna do Carmo tinha-lhe
dito que tal casamento não seria feito em sua casa. Que sahisse ella
para onde quizesse, porque, no momento em que annuisse a tal infamia,
terminavam de todo em todo as suas antigas relações. Isto foi de mais:
mas a filha da Anna do Carmo tinha uma costella de sua mãe, e essa
costella vencera, na questão, as vinte e tres de seu pae.

O portador da carta esperava a resposta.

Maria Elisa, passada uma hora de lucta, dolorosa talvez, respondeu
assim:


«_Não tenho nada que esperar. Póde dar como resolvido o nosso casamento.
Cumprirei a minha palavra, quando v. s.ª quizer. Eu recolho-me hoje
mesmo ás orphãs._»


Depois, entrou no quarto de Elisa, com os olhos rasos de lagrimas,
talvez as menos inteligiveis de todas as lagrimas de que tenho fallado:

--Rosa, acabo de decidir definitivamente o meu casamento. Cumprindo as
tuas ordens, venho despedir-me de ti.

--Estimarei que sejas feliz.

--Devo considerar acabadas as nossas relações de amizade?

--Deves.

--Menos as da gratidão, porque te sou muito devedora.

--Dou-te paga e quitação d'essa divida. Não quero mesmo ser tua credora,
porque me envergonho.

--E eu tambem... e cada vez mais. Hei de avaliar a dinheiro os teus
favores, e darei á Sancta Casa da Misericordia esse dinheiro, por tua
tenção.

--Basta! Eu não admitto escarneos! Basta de affrontas!

--Cada vez agradeço mais á Providencia a inspiração de me casar...
adeus...

Rosa Guilhermina pensou alguns minutos, arrependeu-se, e correu a
procurar a sua amiga para pedir-lhe perdão d'um accesso de cólera, filho
do amor. Já a não viu. Tinha sahido com a sua criada, e deixára um
bilhete com estas linhas:


«_Não levo os vestidos de meu uso, porque não são meus. Comprou-os com o
seu dinheiro a senhora D. Rosa Guilhermina. Deixo-os para serem
avaliados, e descontados depois no saldo das nossas contas._»


A filha de Anna do Carmo, outra vez atacada de raiva, foi aos vestidos,
e rasgou-os com mãos e dentes, praguejando.

Que taes eram as bichas!




CAPITULO XVI


Não conheço palavra que vos dê uma cabal ideia da sensação suavissima
que atravessou até ao coração os tecidos adiposos do senhor Antonio,
quando os seus olhos peccadores leram o bilhete de Maria Elisa. A ultima
linha, porém, essa que declara a entrada da noiva no recolhimento,
fendeu no peito do alvoroçado negociante um vesuvio d'amor, misturado de
orgulho, por se vêr amado d'uma donzella, que tão nobre amostra dava da
sua virtude.

Cinco minutos depois que Elisa entrára, com grande pasmo e má vontade da
regente, era procurada na portaria pelo rico negociante, muito conhecido
n'aquella casa, em virtude dos cargos importantes que tivera na Sancta
Casa da Misericordia. A pedido do senhor Antonio, a regente acompanhou a
menina á grade em que era esperada pelo mais ditoso dos mortaes.

Trocados de parte a parte os cumprimentos, o festival Antonio José da
Silva abriu assim a questão do momento:

--Senhora regente, não sei se essa menina já lhe disse que será
brevemente minha esposa.

--Nada, ainda não... E estava calada com isso? Receba os meus parabens,
minha ruimzinha, que me fez cabellos brancos com as suas travessuras...

Elisa sorriu-se, e o noivo atalhou:

--Creancices... tudo tem o seu logar. Agora ahi onde a vê é uma mulher
de tino, que sabe o que lhe convém, e não dá ouvidos a tôlas... Eu cá me
entendo... Pois, senhora, como lhe vinha dizendo, trata-se o nosso
casamento, que ha de fazer-se, querendo Deus, o mais tardar quinze
dias... Esta menina veio outra vez para aqui lá por cousas que ella
sabe, e fez ella muito bem... Com doudos nem para o céo... Eu cá me
entendo... Acho que por poucos dias não será necessario arranjar casa cá
dentro, e eu venho pedir á senhora regente o favor e obsequio de m'a ter
na sua companhia, que eu hei de saber-lhe agradecer de modo que...

--Pois não, senhor Silva!? Não só isso, mas tudo o mais que estiver ao
meu alcance... O que eu sinto é não ter um palacio para lhe offerecer;
mas a boa vontade supprirá as faltas.

--Muito agradecida, senhora regente--disse Elisa, entristecendo-se a
ponto de lhe tremerem as lagrimas nos olhos.

--Que tem, minha menina, chora, quando vai ser tão feliz?

--Nada... eu não choro...

--São saudades da sua amiga Rosa?

--Não, minha senhora... eu não tenho saudades de amiga nenhuma.

--Diz muito bem...--acudiu o jucundo negociante--Saudades são
seccuras... ora adeus! Saudades de quê? A menina, não precisa de
ninguem... Eu vou ser seu marido, e seu pae, e seu amigo. Não lhe ha de
faltar nada, e não ha de faltar quem se morda de inveja... eu cá me
entendo... Então fiquemos certos no pedido que lhe fiz?

--Já disse, e repito, senhor Silva; na minha companhia só não prometto a
esta menina o impossivel de fazer-se n'estas casas para estar bem...
Ella já sabe como é o recolhimento, e não estranhará as faltas...

--De certo não estranho, minha senhora; isto hoje parece-me mais bello
que nunca. Hei de gosar, na sua preciosa companhia, deliciosos
momentos...

--Mais deliciosos ha de ir gosal-os depois na companhia do senhor Silva,
que é um homem honrado, e que sabe dar valor ao merecimento da menina.

--Isso póde ella estar certa, que se a não tratar melhor é porque não
sei... Ora pois, senhora regente, eu queria fallar em particular com a
minha futura esposa.

--Eu retiro-me, senhor Silva. Fique na certeza de que serei como tia
d'esta menina.

--Ora, minha cara menina--disse o negociante logo que a regente sahiu--é
necessario preparar os seus arranjos para o casamento. Eu não sei lá
d'esses enfeites de noiva, senão eu seria o proprio comprador. A menina
mande chamar costureiras, e ourives, e lá essa gente que vende as
trapalhadas. Aqui deixo cem peças; sendo necessario mais, não tem senão
escrever-me um bilhete... Tambem lhe quero offerecer uma prenda, que me
não pareceu fóra de proposito: é um pente de diamantes, que lhe ha de
dizer bem com o cabello, acho eu.

--Agradecida.

--Aqui não ha que agradecer. Eu bem sei que a menina lá lhe parece que
eu sou algum unhas... Está enganada de meio a meio. Eu sou sovina com
quem me parece; mas com a que ha de ser minha mulher dou muitas graças a
Deus por ter muito que gastar com ella, assim Deus nos dê saude para o
gosar. Então que me diz?

--Digo que o pente é riquissimo, e que estou muito penhorada dos seus
generosos sentimentos para comigo.

--Não ha de quê. O que eu quero é que a menina se porte bem, e não dê
que murmurar ás linguas damnadas... Eu cá me entendo...

--Farei tudo que em mim caiba por merecer um bom conceito de toda a
gente.

--É o que se quer. Ora diga-me, qual gosta mais, de viver na aldeia ou
na cidade?

--Na cidade. Eu não gosto da aldeia; e v. s.ª gosta?

--Deixemo-nos de _senhorias_; o melhor é _tu_ cá, _tu_ lá, não lhe
parece, menina?

--Eu pedia-lhe licença para por emquanto não tomar a liberdade de lhe
dar tal tratamento. V. s.ª póde tratar-me como lhe aprouver.

--Pois então lá como quizer. Eu cá acho mais não sei que no coração se
lhe dér um _tu_.

--Pois satisfaça o seu coração, que eu tenho muita gloria em merecer-lhe
esse novo signal de estima.

--Pois então ahi vai... Com que então tu não gostas da aldeia? Estás-te
a rir? Pois olha que eu gostava da aldeia, e, desde que me disseste que
não gostavas, a fallar-te a verdadinha pura, tanto se me dá, como se me
deu. Como te vi assim a modo de poeta, pensei que gostavas de ouvir
cantar os passaros, que é a mania dos poetas, que todos fallam em
rouxinoes, e não sei em que outros passarôlos que se chamam graças, ou
garças, e zephyros, e não sei que mais ninhadas e aves, que ninguem
conhece, penso eu. Vós lá sabeis essas cousas... Olha como ella se
ri!... Eu bem sei porque tu te ris, minha cachorrinha!... Eu já sei que
tu botas sonetos...

--Eu?... que graça!... eu não sou poeta.

--Não? antes assim. Isto de ser poeta não é lá grande cousa. Pelos
modos, o miôlo dos taes patavinas não regula bem... Eu sempre tive cá
minha birra com homens que fazem d'isso. Ha de haver nove annos que fui
a Lisboa, e vi lá um poeta, chamado... assim a modo de... era um nome
estrangeirado...

--Bocage?

--Tal e qual; era o tal Bocage; estava no Rocio, á porta d'um
botequineiro, e eu passava, e disse-me um meu amigo: queres vêr o...
o... como era?

--Bocage.

--O Bocage... agora não me ha de esquecer... e vai elle olha para mim,
muito sério, e bota-me um soneto que não sei que diabo dizia, que toda a
gente se riu... Acho que o tal Borrage...

--Bocage.

--Valha a breca o tal nome, que tem que se lhe diga! Acho que elle era
tôlo, e os outros não tem mais juizo que elle... Pois muito folgo saber
que a minha esposa não é poeta... Ora diz-me: tu sabes alguma cousa cá
d'estas cousas do ar?

O senhor Antonio fez, sobre a cabeça, um gesto com as mãos, que poderia
significar uma pergunta de honestidade equivoca.

--Que são cousas do ar?

--Sim... perguntava eu se sabias alguma cousa dos planetas...

--Astronomia? Tenho lido alguma cousa.

--Então has de saber quando está para vir chuva?

--Ainda não estudei essa parte. Eu penso que a chuva vem quando os
vapores condensados na atmosphera...

--É isso mesmo... Ora diz-me uma cousa que me tem dado que pensar. Lá em
cima na lua diz que anda gente como por cá?

--Penso que não ha certeza d'esse phenomeno.

--D'esse?...

--Phenomeno...

--Se te não custa diz-me o que é isso? é algum planeta?

--Nada, não é... Phenomeno é uma maneira de existir na ordem natural das
cousas, manifestada de modo que as leis dos systemas conhecidos não
attingem a lei que rege esses actos...

--Ah! agora entendi... Olha que tu sabes mais do que um frade loio que
ahi ha muito sabio, e que teve o descôco de dizer que a terra anda á
roda!... Que te parece a cavalgadura?

--Eu acho que elle disse scientificamcnte a verdade.

--Essa é boa! Pois se a terra andasse á roda, tambem nós andavamos
sempre com os focinhos pelo chão... Deixa-te d'isso...

--É illusão sua. Ha uma razão que nos sustenta na posição direita em que
estamos.

--Bem sei que são as costas das nossas cadeiras; mas, se a terra andasse
ao redor, cahiam as cadeiras comnosco.

--Não é essa a razão... É que todos os corpos pendem para o centro da
terra... é o que se chama lei da attracção.

--Ah! agora entendi... _todos os corpos sahem do centro da terra_...

--_Sahem_, não: _pendem_.

--Sim, _pendem para a lei da attricção_... Não te rias, que toda a gente
aprende quando não teve lá esses principios o latim, e da grammatica...
Cada qual tem o seu tráfego. Eu cá na minha officina do commercio sei
como os que sabem. Lá de rhetoricas não sei nada, a verdade deve
dizer-se; mas, se Deus quizer, tu has de dizer-me como é isto cá de
cima. Eu ás vezes ponho-me a olhar para esta machina, e fico estarrecido
horas e horas a vêr o que nós somos, e como o Creador fez tudo isto para
nós.

--Para nós? Eu não sei de que nos servem as estrellas...

--Não sabes? A fallar a verdade, eu tambem não; mas ouvi dizer que as
estrellas de alguma cousa servem.

--Tambem creio que sirvam; mas para nós não lhe vejo a utilidade.

--Então os livros não resam d'isso?

--Não achei ainda uma explicação precisa.

--Pois, minha Mariquitas, estão-se fazendo horas de ir ao jantar.
Deixamos isto para outro dia, que não ha de faltar occasião de fallarmos
a respeito da sabedoria. Vê lá se queres alguma cousa...

--Não preciso de nada.

--Ámanhã é a primeira corrida de banhos... De ámanhã a quinze dias
effectua-se o negocio; e ficámos arrumados d'aqui. Adeus, menina, até
ámanhã.

O senhor Antonio sahiu, com o espirito remoçado, e a cabeça aturdida de
ideias novas sobre astronomia. Contente, como nunca, o milagre de vinte
annos de menos não daria ás suas pernas trôpegas a agilidade com que o
viram passar nas Fontainhas.

Mal elle tinha sahido, quando Rosa Guilhermina entrou no pateo, e pediu
á porteira que lhe chamasse Maria Elisa.

A resposta foi que a senhora D. Maria Elisa não recebia a visita da
senhora D. Rosa, porque não queria envergonhal-a com as suas relações.

A filha do arcediago instou, supplicou, fez empenhar a regente para que
a orphã lhe fallasse. A regente, porém, que não queria importunar a
noiva de Antonio José da Silva, antigo mesario da casa, negou-se ás
instancias da lagrimosa menina.

Dera-se um forte motivo para a recusa teimosa de Elisa. Quando ao
despedir-se do negociante, subia para a casa da regente, entregaram-lhe
no caminho um bahú e uma chave. Elisa entendeu que eram os seus
vestidos, que a attribulada amiga lhe mandava. Abriu o bahú para tirar
um chaile, e viu tudo espedaçado. A indignação coincidiu com a vinda de
Rosa, e Rosa, arrependida, correra ao Recolhimento para estorvar a
entrega do bahú.

Era impossivel a reconciliação. Á ultima impertinencia de Rosa
Guilhermina, a orgulhosa respondeu que podia já dar-lhe algum dinheiro
por conta do que lhe devia, e remetteu-lhe a sacca com as cem peças que
lhe deixára o negociante.

A filha de Anna arrojou-as ao chão, e sahiu furiosa, promettendo
vingar-se da nova villania.

Maria Elisa ficou satisfeitissima d'aquelle rasgo, e sentiu, pela
primeira vez na sua vida, que, sem dinheiro, ninguem póde ter rasgos,
nem mesmo póde contar com que romancistas futuros se entretenham da sua
pessoa.

Oh meu caro Antonio José! tu de astronomia não sabias muito; mas tinhas
d'aquella cousa que faz descer os astronomos cá para baixo!




CAPITULO XVII


--Quem é aquelle peralvilho que bate á porta da D. Rosa?

Temos namoro, se dermos ouvidos á tia Bernarda Estanqueira, que mora na
viella do Bomjardim, e que tem um ôlho na balança do simonte, e o outro,
que por signal é vêsgo, na porta da filha do arcediago.

--Que berzabum de escanellado será aquelle, que parece que traz
espartilhos! Valha-o a breca que tão tezo está! Aquillo não me parece
homem cá do Porto! Parece mesmo um comediante d'aquelles que berram umas
cantigas na casa das operas da Batalha... Ó tia Joaquina! (_a tia
Joaquina era uma visinha, que estava dobando ao sol_) vmc.e não vê acolá
aquelle ingarilho que já puxou duas vezes a sineta?

--Já vi.

--Conhece aquella avantesma que me parece mesmo o peccado?

--Conheço... ora se conheço!... Aquelle é o sobrinho do senhor Antonio
da rua das Flores, que me tem dado muito pãosinho. Quando eu ia d'antes
levar-lhe os novellos do algodão, aquelle menino era caixeirinho na
casa; mas pelos modos elle agora estuda para doutor.

--Sim? pois olhe que d'aquelle magricellas não póde sahir grande doutor!
Acho que um homem assim não tem boas as memorias, nem sustancias para
saber lá aquellas cousas da justiça... Elle lá entrou... Quer vmc.e vêr
que a delambida da rapariga anda de namoro com elle!...

--Agora!... Se fosse isso, elle não entrava assim ao pino do meio dia...
acho eu!

--Boa vai ella!... Pois vmc.e pensa que as raparigas d'agora são como as
do nosso tempo? Diz o fr. Manoel do Sancto Lenho, dos carmelitas, que já
não ha vergonha nem temor das penas do inferno!... E quer que lhe diga,
tia Joaquina? Quanto mais fidalgas, mais desavergonhadas!... Inda hontem
a minha Euzebia, que está em casa d'uma certa fidalga que vmc.e sabe tão
bem como eu, me contou que a sua ama estava com um inglez á janella a
dar-lhe beijos, e que elle lhe dava beliscões nas pernas. A minha
Euzebia deu fé d'esta pouca vergonha, sem querer; e a fidalga tambem viu
que a rapariga deu fé; e disse-lhe depois: «Euzebia, nós cá as fidalgas
podemos fazer isto que viste; e vós outras plebeas, não, porque não
tendes nada senão a vossa honrasinha.» Ora que lhe parece isto? dá mesmo
vontade de lhe responder: «Vá-se d'ahi, sua porca; se vossa excellencia
tivesse o miolo no seu logar não consentia que lhe estivesse um herege
lá do fim do mundo a beliscar as pernas, e a pôr-lhe os beiços no
cachaço!» Fora com as libertinas!

--Tem razão, tia Bernarda... a religião é cá só para as pobres. As ricas
o que querem é ir á igreja mostrar os aceios... Disse outro dia um
prégador na Victoria, que a casa de Deus estava sendo uma feira, e que
nosso Senhor pozera as _pelicanas_ fóra do templo... As _pelicanas_ são
as fidalgas... Olhe lá... aquella sumelga, que alli mora, será fidalga?

--Acho que sim. O pae era o senhor arcediago de Barroso, e a mãe ouvi
rosnar que era uma das taes _pelicanas_...

--Consta que tem muito de seu.

--Muitos bragaes, muita prata, não sei quantas moradas de casas, e uma
quinta em Paranhos... Que comer não lhe falta; mas acho que a respeito
disto (_pondo o dêdo na testa_) não regula lá grande cousa... Veio aqui
ha dias á minha loja uma mulher de mantilha, ainda frescalhona, e
perguntou-me muitas cousas a respeito da tal rapariga. Quem entrava,
quem sahia, se ella andava pela rua, se tinha muitos aceios, em fim, eu
fiquei com a pedra no sapato, e cá de mim para mim entendi que aquillo
era uma refinada alcayota. Tambem hei de saber quem tu és--disse cá com
os meus botões--e mandei, assim que ella sahiu, o meu galleguito atraz
d'ella. Veio dizer-me que morava n'um baixo da rua Direita, e que se
chamava Anna do Carmo...

--Eu sou da sua ideia... isso era de alcofeira, que vinha saber se lhe
poderia entregar alguma cartinha d'aquelle fidalgo que mora á Victoria,
e que tem o nariz apurado para as moças como gato para boches. Ha de ser
isso...

--E olhe que não era outra cousa!...

--E eu até me parece que já o vi aqui passar uma noite.

--E eu tambem... Que signaes tem elle?

--É um pacabote baixo, com a carinha côr de cereja...

--É o mesmo, que eu vi, tem carinha côr de cereja, e os olhos a modo
de...

--São azues...

--É verdade, os olhos são azues... Era o mesmo em carne e osso... E
vmc.e viu-o entrar para lá?

--Não o juro; mas acho que entrou...

--Eu tambem não juro, mas parece-me que o vi entrar...

--Então é que entrou... Que horas eram?

--Meia noite, mais quarto, menos quarto.

--Era elle... foi ha de haver quinze dias... tia Bernarda...

--Ha quinze dias... é isso mesmo... por signal...

--Que estava vmc.e no hospital, tia Joaquina, e não podia vêr o que se
passava na rua--interrompeu uma terceira, que estava fiando a um
postigo.

--Quem a chama cá?--disse a velha desmentida.

--Não posso ouvir murmurar com mentira... nem me parece catholica!

--Ora metta lá a sua religião no pucaro e coma d'ella, ouviu, sua
intromettida?

--Quem não quer ouvir não mente descaradamente.

--E que lhe importa a visinhança?

--E vmc.e que lhe importa aquella senhora que está mansa e quêda em sua
casa?

--Se come por ella, ganhe a sua vida lá como podér, e deixe conversar
quem conversa! Que lhe parece, tia Bernarda! sempre ha cada estafermo
n'este mundo!...

--Isso ha!...--disse a tia Bernarda, retirando-se para o estanco a pesar
dez reis de simonte.

--Estafermo será ella!--replicou a honesta fiadeira.

--Cale-se ahi, sua trapalhona!

--E vossê... sua lingua de trapos!

--Desavergonhada!

--Estupor!

--Bebeda!

--Pangaia!

--Feiticeira!

--Ladra!

--Ladra é vossê!

--E vossê come pela filha!

--E vossê quando casou já comia pelas suas, e tem quatro que não
conhecem os paes!

--Ladra, ladra, ladra!

--Bebeda! bebeda! bebeda!

A tia Joaquina rematou a apóstrophe, erguendo-se, e corcovando-se um
pouco com as costas para a visinha, e assentando tres palmadas que
provocaram esta resposta do postigo:

--Fóra porca! regateira! vai vender sardinhas, grandississima beberrona!

Abriu-se uma janella de Rosa, e appareceu a cabeça do sobrinho do senhor
Antonio da rua das Flores, como nol-o denunciou a desbocada Joaquina. Já
não veio a tempo. O dialogo edificante emmudecera, e o observador correu
a vidraça, dizendo:

--Não vi ninguem, minha senhora...

--É uma terrivel visinhança esta!--disse Rosa--estou anciosa pelo S.
Miguel para occupar o meu predio da rua do Almada...

--Tem razão, minha senhora; o bêco é detestavel... Tornando á nossa
conversação, disse-me v. s.ª que não conhecia meio nenhum de obstar ao
casamento d'aquelle reloucado!

--Eu, pelo menos, ignoro os sortilegios que desmancham as loucuras d'um
velho...

--Não ha meio de dissuadir a sua amiga?

--Já lhe disse que não, senhor Augusto, essa pessoa nem é minha amiga,
nem é docil para ceder a instancias de ninguem. O que ella quer é ser
rica, e a occasião que se lhe offerece agora, é a mais propicia ao
complemento das suas ambições.

--É admiravel que ella, habituada com v. s.ª, não aprendesse a nobreza
de caracter, e independencia com que a senhora D. Rosa repelliu a
fortuna de meu louco tio!

--Bem vê v. s.ª que eu, se não sou rica, herdei a independencia, e Maria
Elisa julgou pessimamente a minha alma. Suppoz-me capaz de lhe retirar a
mão generosa que a tirára da servil condição de orphã... Quer tambem ser
rica...

--V. s.ª desde creança mostrou um coração nobre. Lembra-se, ha quatro
annos, quando pedia a meu tio que me deixasse ir para Coimbra estudar?

--Lembro, perfeitamente... e elle enganava-me, dizendo-me que sim, e por
fim...

--Tinha-me traiçoeiramente preparado a minha ida para o Brazil, para se
vêr livre das exigencias de minha pobre mãe, e irmã d'elle, que lhe
pedia um subsidio para a minha formatura.

--E como pôde depois v. s.ª obter os meios para ir estudar, independente
do subsidio de seu tio?

--Com o trabalho. Como sei francez, traduzo novellas, que vendo a um
livreiro de Lisboa, e do escasso producto d'este trabalho fiz a minha
independencia. Algumas dividas contrahi, na esperança de ser um dos
herdeiros da riqueza de meu tio. Quando cheguei ao Porto, e me disseram
que esse homem casava com uma orphã, pensei que era v. s.ª a feliz ou a
infeliz destinada a essa gloria ou a esse sacrificio. Resolvi logo, em
nome de minha mãe, e em nome da nossa amizade de infancia, vir
supplicar-lhe que não tolhesse o nosso futuro, visto que v. s.ª era
rica. E vinha cheio de esperança, na certeza de movel-a em nosso favor.
Desgraçadamente enganei-me; mas, de todo o meu coração lhe digo que
estimo vêl-a livre d'um perigo tal. Com a sua formosura, com a sua
intelligencia, seria barbara a escravidão a tal velho, que o ouro, e só
o ouro fez digno de vincular uma mulher nova áquelle quasi cadaver.
Faz-me lembrar os supplicios de Mezencio!...

D'este arrazoado bem se vê que o senhor Augusto Leite, estudante do 2.º
anno juridico, traduzia novellas, e conservava alguma cousa de memoria.

Rosa, tocada no sentimentalismo, respondeu:

--Commoveu-me a sua narração, senhor Augusto! Espero acredite que me
amarguram os seus padecimentos, e déra quanto possuo para minorar-lh'os.
Eu não me esqueço de que foi v. s.ª a unica pessoa de sua familia, que
me não enjoava com os tregeitos, momices e impertinencias d'uma baixa
educação. Sua mãe, que raras vezes vi, parecia-me uma celeste creatura.
Muitas vezes me disse que tremia de me vêr n'aquella casa, porque eu era
o instrumento com que seu irmão ameaçava destruir os planos de seus
sobrinhos. Ella enganou-se, e elle tambem. Eu só posso ser escrava,
quando a escravidão me fizer rainha. Olhei sempre com enjôo para esse
velho, e por fim detestei-o... Hoje, porém, chego a lamental-o, porque
vai ser um ludibrio de sua mulher. Quem ha de vingal-o, senhor Augusto,
é Maria Elisa. A indole d'ella conheço-a eu perfeitamente. Seu tio vai
ser a fabula do povo, e a sua nova tia ha de deixar nome; mas não
deixará bens de fortuna que tirem da miseria os seus herdeiros...

--Quanto é suave ouvil-a fallar, senhora D. Rosa! Quem diria que o tenro
botão abriria do seu seio uma linda flôr, com taes perfumes!...

--Muito agradecida, senhor Augusto... Eu tenho deixado fallar o coração,
e creio que acreditará na extremosa vontade que tenho de ser
prestavel...

--V. s.ª é uma divindade. Minha mãe virá abraçal-a como abraçaria... uma
filha. Eu retiro-me com o coração embalsamado das suas palavras, e
entrei com elle atravessado de agudos punhaes. As suas expressões são
como a lyra do Orfeu, que adormecem as dôres, ou como a harpa de David
que acalentava as tribulações de Saul! (_extracto da_ LUIZA OU A CABANA
DO DESERTO_, pag. 26._) Ninguem diga que é verdadeiramente infeliz. Ha
anjos, encarregados de cobrirem de flôres os espinhos que nascem sobre a
carreira de alguns mortaes! (_este é de pag. 31, de_ SOPHIA OU A
DONZELLA HOUZARD_, e não presta para nada hoje; mas n'aquelle tempo
tinha novidade._) V. s.ª é um d'esses anjos, e eu sou o mortal que
mereceu á Providencia Divina a benefica assistencia dos seus desvelos!
(OS SYBARITAS OU OS SUBTERRANEOS DE PIOMBINO_, pag. 41._) Se os meus
labios não tem ardentes phrases, o meu coração arde em penas de serem
frios os labios! (O HEROISMO DO AMOR_, pag. 202._) Finalmente, não a
importuno mais. Dê-me v. s.ª as suas ordens. (_Isto agora é d'elle._)

--Espero que me faça muito recommendada a sua mãe, á qual offereço a
minha casa; e v. s.ª, dignando-se honrar-me com a estima que outr'ora
lhe mereci, muito me obsequeia vindo aqui passar alguns instantes de
conversação.

--Eu tenho a honra de offerecer a v. s.ª as novellas que tenho
publicado. Se fossem minhas, não me atreveria a tanto; mas, como são de
bons authores, e apenas tem de meu a incorrecta versão...

--Penhora-me muito com a sua offerta, que acceito, grata á sua mimosa
lembrança. Eu amo a leitura das novellas, e quando, nas que me offerece,
estão vestigios da sua applicação, muito mais grata me será essa
leitura.

--Serei eu o portador, se me der licença.

--Mais valiosa prenda devo reputal-a...

--Ás ordens de v. s.ª

--Muito boas tardes... Joaquim, acompanha este cavalheiro.

--Sem incómmodo, minha senhora.

--Permitta...

--Por quanto ha...

--Eu não consinto que vá só... não sabe as sahidas...

--Oh! minha senhora, é muito desvelo...

--É um dever... oh!...

--Ah! minha senhora... é muito...

--Não consinto...

--Por quem é...

--Muitos recados a sua mãe...

--Ha de presal-os infinitamente...

--Senhor Augusto...

--Senhora D. Rosa Guilhermina...

Emfim, despediram-se! Estavam bonitos! O tio e o sobrinho tocavam-se
pelos extremos.

Rosa Guilhermina olhando-se a um espelho para ajuizar do merito da sua
pessoa, momentos antes, dizia comsigo:

--Eis alli um perfeito mancebo! Ninguem dirá que é sobrinho d'aquelle
bruto! Como é sublime! Aquella linguagem toca!...

Vamos vendo que a filha do arcediago dançava facilmente quando a
linguagem tocava...

Faz ella muito bem. Está na flôr da sua idade, e Deus não lhe deu os
talentos para escondel-os na terra. O seu coração anceia um confidente;
o seu espirito ambiciona applausos, a sua alma não veio tão cheia de luz
para se esconder debaixo do meio alqueire. N'esta especialidade, raras
são as mulheres que não obedecem ao preceito do Evangelho. Se faltam a
muitos outros, é porque o homem divino, que conhecia a fragilidade da
creatura, dissera: «A carne do homem é fraca.» Ora, eu, pelos vastos
conhecimentos que tenho de anatomia, affirmo que a carne da mulher não é
mais forte.

E, por consequencia, se a senhora D. Rosa Guilhermina me dissesse:

--Vmc.e faz favor de me dizer se devo embalsamar com meus perfumes
aquelle gentil moço, que me parece um genio?

--Embalsame-o, minha senhora; perfume-o á sua vontade (lhe responderia
eu), e quando não tiver incenso, nem myrrha, sirva-se d'aquella offerta
dos tres reis, que a historia do tempo pôz em primeiro logar...




CAPITULO XVIII


Se eu bem lh'o dissesse, ella melhor o faria.

A indignação contra Elisa, n'essa tarde, cedeu o logar a novas
sensações. A litterata punha a mão sobre o peito, e dizia: «Eu tenho
aqui alguma cousa nova!»

E parece que tinha!

Lembrava-se de cinco situações, em varios romances, similhantes á sua.
Encontrava-se a cada passo com a imagem de Augusto Leite. Achava
extraordinaria a coincidencia de dous espiritos sublimes. Divinisava
aquelle encontro, lançando ás largas costas da Providencia a
predestinação de se verem creanças, e encontrarem-se na idade em que os
corações não resistem ao superior destino da sua união. Não ha nada como
a mulher espirituosa!

O futuro bacharel da sua parte não era tão metaphysico. Quando procurou
Rosa já trazia na carteira um calculo aproximado do patrimonio da sua
companheira de infancia. E depois que a ouviu, indagou as cousas de modo
que o calculo não lhe falhava em 3$200. Era um poeta da força de quatro
dromedarios em prosa villã. Tirem-lhe o francez, e ponham-lhe dezoito
arrobas de carne, terão o seu digno tio Antonio José da Silva.

Na manhã immediata a senhora D. Custodia Hermenegilda da Silva,
acompanhada de seu filho, e tres novellas vieram visitar a filha do
arcediago. O academico depôz respeitoso a offerta nas mãos (que não
chamo lindas, porque não minto) da agradecida menina.

As mil cousas da conversação, particularmente ácerca de Elisa,
resumil-as-hemos na ultima pergunta, que D. Custodia, passeando no
jardim a sós com D. Rosa, lhe fez emquanto seu filho, de proposito,
folheava os romances da poetisa.

--Porque se não casa, menina? Precisa quem administre a sua riqueza,
quem lhe sirva de companhia, e lhe mereça o seu bom coração. Casar pobre
é uma desgraça; mas na sua situação, o casamento deve ser a felicidade
de toda a vida. A tal não a aconselho eu com um homem estragado. Eu sou
um triste exemplo d'essa leviandade. Meu marido era um letrado, muito
sabio, o melhor advogado do Porto, mas o mais extravagante homem que
imaginar-se póde. Casei contra vontade de minha familia, e por isso,
quando meu marido dissipou a minha legitima e a d'elle, deixando-me por
herança este filho que tanto me tem custado a educar, meu avarento irmão
negou-me um subsidio para ajudar a formatura de seu sobrinho. Nasci em
casa rica, e tenho sempre vivido pobre. Minha irmã Angelica é uma beata
estupida, que nem irmã me quer chamar. Estas e mil outras infelicidades
me tem obrigado a amaldiçoar a hora em que casei: mas... se me lembro de
meu marido, que era um doudo infeliz, não lhe amaldiçôo a memoria.

--E se eu deparasse um homem como seu marido?

--Não dê esse passo cegamente, menina. Estude bem o caracter dos homens,
e, quando encontrar um como meu filho, case-se, que é venturosa, e dá a
ventura a um mancebo digno d'ella... Vejo-a pensativa!... Eu não lhe fiz
pergunta nenhuma, senhora D. Rosa, a que a menina deva responder com a
côr na face... Estou certa que v. s.ª, conhecendo a fundo as virtudes de
meu filho, seria a primeira a chamar-me mãe... e, se as circumstancias a
privaram de conhecer a sua, acharia em mim... Que sobresalto é esse?!
Sente-se opprimida? Foi por lhe fallar em sua mãe?... desculpe-me, que
eu não cuidei que a magoava...

--Não me magôa... Isto são reminiscencias da infancia...

--Conheceu a mãesinha?

--Mal me lembro... vi-a, sendo eu creança de seis ou sete annos...

--Ella já morreu?

--Penso... que sim...

--Que prazer não teria ella em conhecel-a tão linda, tão esperta...

--Talvez me odiasse, como me odiou...

--Pois ella...

--Não vê que me abandonou?

--Talvez violentada por circumstancias...

--Muito por sua livre vontade...

--Sim?! então era uma indigna mãe... e desculpe-me...

--De certo era... uma indigna mãe... meu pae nunca me fallou d'ella...

--Tal era a differença que elle conhecera entre mãe e filha... Ora,
pois; não soffra por tal motivo, minha menina... Quer-me para sua
mãe?...

--De certo... queria.

--Eu estou-me a rir... Esta pergunta não devia fazer-lh'a, sem que a
menina tivesse do caracter do meu Augusto um seguro conhecimento... Isso
ha de vir com o tempo; e, se o coração lhe não repugnar, acceite-o como
marido... Não é rico; mas o seu patrimonio é o amor que elle tem ao
trabalho, e o seu talento que lhe promette creditos similhantes aos de
seu pae, que tratava pouco dos seus interesses. De pae a filho vai
grande differença. Um pensava no dia presente; o outro pensa no dia
futuro... Tem sido bem grande a minha impertinencia, não é verdade?

--Pelo contrario, deleita-me a sua conversação, e captivo-me dos
carinhosos desvelos que emprega na minha ventura... Oxalá que eu nunca
desmereça no conceito da minha amiga...

--Espero que assim seja... Diz-me o coração que teremos de ser muito,
muito amigas, que viveremos unidas muitos annos, e que fallaremos com
prazer do bello dia que temos passado... Ahi vem o Augusto!... sempre
com os livros de volta...

--São as _Cartas a Sophia_ por Mirabeau... Não pensei que a senhora D.
Rosa conheceria esta obra...

--Porquê?

--Não é muito propria para leitura de meninas.

--Que tem? Se eu entendo as ideias d'esses livros, é que elles não me
dizem nada novo; e se as não entendo, nada perco da minha innocencia.

--Acaba v. s.ª de apresentar uma ideia que opéra uma completa revolução
na minha maneira de encarar as novellas! Tem razão!... Vejo que é não só
sublime, mas até rasoavel no seu systema!

--Creia que disse a verdade; e, senão, despersuada-me que eu serei
docil...

--Não a contradigo, minha senhora. Pelo contrario, sou da sua opinião.
Minha mãe, esta menina é um anjo, e tem um talento extraordinario...

--Não o creia, minha senhora.

--Não preciso que m'o diga. Meu marido soube dar-me o gosto para
apreciar o merito das pessoas. Se fiquei pobre de bens, posso
afoutamente dizer que o não fiquei de intelligencia. A senhora D. Rosa
Guilhermina é um portento. Ninguem dirá o que aqui está, sem se lhe
importar com o mundo, onde as tôlas, com algum palavriado, recebem
acclamações de espertas.

--Ai! eu não ambiciono lisonjas do mundo!... Gosto de saber, porque o
meu espirito precisa d'este alimento.

--E o seu coração?--perguntou Augusto.

Rosa baixou os olhos, e a sua linda face, côr de cereja, fez-se mais
linda.

--São horas de nos retirarmos--atalhou a irmã do negociante, que resumia
em si a finura que a natureza caprichosa não quiz regularmente
distribuir na sua numerosa e estupida familia.--Menina, dê-me um abraço.

Augusto apertou a mão de Rosa, que hesitava, não obstante as _Cartas a
Sophia_... Despediram-se com requebros e olhaduras de varios modos, e
feitiços, de parte a parte.

Seguiram-se as visitas regularmente. D. Custodia Hermenegilda acompanhava
sempre seu filho. (Seja dito para socego da opinião publica.) A
estanqueira reformou a sua opinião a favor de Rosa, e vingou-se em pedir
trinta reis de divida de simonte, que a fiadeira intromettida lhe devia.
A outra, que dobava, e cujo nome não me lembra, vingou-se da visinha,
batendo-lhe á porta alta noite. Tantas vezes repetiu a graça, que se
constipou, e constipação foi esta que a pobre mulher morreu no hospital,
declarando, á hora da morte, que nunca vira entrar de noite homem nenhum
em casa de Rosa, e que fôra a estanqueira que a mettera n'aquella
alhada: declaração que fazia para que Deus não condemnasse a sua alma,
traste, realmente, de que Deus, de bom grado, se dispensaria, e nós
tambem.

As mulheres dos meus romances quasi todas são honestas pessoas, que se
casam. Só quando de todo em todo não posso falsificar a tradição em
honra das minhas heroinas é que as sacrifico ao nariz-torto das mães de
familia, que, quasi sempre, exprimem com o nariz a sua justa indignação
contra os romances em que os amantes não casam por fim.

Benignas senhoras, exultai, que a moral triumpha em todas as minhas
obras. D. Rosa Guilhermina resolve casar-se na fórma do sagrado concilio
tridentino e constituição d'este bispado com o senhor Augusto Leite. O
juiz dos orphãos concedeu a licença, e o senhor Antonio José da Silva,
embriagado da ventura propria, estimou que seu sobrinho arranjasse
mulher com dinheiro, unica esperança, que elle negociante tinha de
evitar as mendicantes perseguições de sua irmã.

Se imaginam que os noivos deviam dizer muito bonitas phrases,
enganam-se. Namoraram-se pelas novellas, e liam ambos a pergunta e a
resposta dos dialogos mais apaixonados. A senhora D. Custodia assistia a
estas leituras, e lagrimejava de ternura.

A constante presença d'esta senhora ao lado d'elles, authorisa-me a
dizer-vos que nunca as duas creaturinhas do Senhor tiveram occasião de
adiantar-se um beijo por conta do matrimonio. Eu não sei que se tenha
feito um namoro mais honesto que aquelle! É um gosto a gente
encarregar-se de archivar estes casamentos que fazem honra ao genero
humano! A intelligencia gosa, o coração consola-se, a virtude dança a
polka, e o vicio envolve a cara hedionda no seu _cache-nez_!

Oh! Bemaventurados, em duplicado, aquelles que me lerem! O futuro fará
justiça á candura das minhas intenções!




CAPITULO XIX


O NOIVADO


DRAMA EM UM ACTO


PERSONAGENS

      _D. Maria Elisa de Sarmento e Athaide._

      _Antonio José da Silva._

      _D. Angelica Athanasia da Silva._

      _João Alves Rodrigues_ }

      _Manoel José Fernandes_} Convidados.

      _Joaquim João Baptista_}

      _O snr. João Pereira_, o do chinó.

      _Um encapotado._

A scena passa-se na rua das Flores, em casa do senhor Silva. Vista de
sala decorada, segundo a época.

D. Maria Elisa, e seu marido estão sentados no canapé. Á esquerda do
senhor Antonio está sua irmã. Os convidados estão em frente do canapé,
com as costas voltadas para nós.

O relogio de S. Domingos dá meio dia. Ouvem-se as regateiras que
apregoam robalinhos na rua.


SCENA I

O SENHOR ANTONIO

(_batendo na respectiva perna_)

Meus amigos, mal diriam vmc.es que eu viesse por fim de contas a casar!
Ninguem diga d'esta agua não beberei! Um homem, emquanto anda n'este
mundo, não sabe para que veio...

O SENHOR FERNANDES

(_á parte_)

Ella t'o dirá...

O SENHOR ANTONIO

Eu não tinha, até ha pouco, na cabeça... (_sensação nos espectadores
emquanto o orador se assôa_) não tinha na cabeça a ideia de me casar,
porque, emfim, os tempos não vão muito bons para alguns maridos que eu
conheço... O nosso visinho João Pereira, do chinó, que o diga...

D. MARIA ELISA

Que historia é essa do João Pereira, em que o senhor Silva já me fallou
de passagem duas vezes?

D. ANGELICA

Ora o que ha de ser? Os nossos peccados, cunhada... É uma mulher que o
demonio tentou, Deus me perdôe, se pecco... Não gosto de murmurar... É
mesmo uma vergonha... Está vestida e calçada no inferno...

D. MARIA ELISA

Quem? Não comprehendo...

D. ANGELICA

Quem ha de ser? Ella, a birbantona, que deu a mão de esposa a um, e anda
por ahi sempre... como se diz, Antonio?

O SENHOR ANTONIO

Como se diz o quê?

D. ANGELICA

Como é que dizem os prégadores d'esse peccado?

O SENHOR ANTONIO

Não são os prégadores, é o nono mandamento.

D. ANGELICA

Pois sim; mas os prégadores chamam a essas mulheres... _indultas_...
_adultas_, ou não sei que...

O SENHOR FERNANDES

Adulteras?

D. ANGELICA

Isso mesmo... Eu uma cousa assim nunca vi na minha vida!... Em nome do
Padre, e do Filho, e do Espirito Sancto... Assim que vê um homem na rua
a olhar para ella, ás duas por tres, faz-lhe gaifonas com a gata...

D. MARIA ELISA

Com a gata?

D. ANGELICA

(_remedando com a manga do capote de castorina amellada_)

Põe-se assim com a gata no collo a bulir-lhe na cabeça...

D. MARIA ELISA

E isso que quer dizer?

D. ANGELICA

Eu sei cá? é o peccado... Acho que a gata lá tem cousa de feitiçaria,
porque os homens ficam de bôca aberta para ella!

O SENHOR FERNANDES

Acho que não é para a gata...

O SENHOR BAPTISTA

Eu tambem sou da mesma opinião... A gata não é má...

O SENHOR RODRIGUES

O peor é o gato, que a gata boa é, que caça ratos...

D. MARIA ELISA

(_á parte_)

Que cacafonias! _que a gata! que caça!_... Apre, que são muito
alarves!

O SENHOR ANTONIO

Deixemos lá isso... ella lá sabe o que faz, e cada qual guarde bem a sua
cabeça do mau pensamento de casar-se com doudas... Eu bem lh'o disse a
elle... «Olha que essa mulher não te serve... tem má pinta, e não sei,
mas ha de te dar que fazer...»


SCENA II


OS MESMOS E O SENHOR JOÃO PEREIRA

O SENHOR PEREIRA

(_entrando, sem pedir licença_)

Deus aqui, e o diabo em casa dos frades...

D. ANGELICA

(_á parte_)

Olha o inimigo!... quem o chamou cá?!

O SENHOR ANTONIO

Ora viva o meu amigo e visinho! Esteja bom, passasse muito bem, é o que
eu mais estimo. Puxe cadeira e sente-se, sem ceremonia.

O SENHOR PEREIRA

A bôda e a baptisado, diz lá o outro, não vás sem ser convidado. Eu não
estive pelas contas. Somos visinhos ha cincoenta e dous annos, e rapazes
da mesma creação. Cá entre nós não ha ceremonias. Vim dar os parabens ao
meu amigo e senhor Antonio, e vêr-lhe a sua noiva, que emquanto a mim é
esta menina...

D. MARIA ELISA

Uma sua criada.

O SENHOR PEREIRA

Criada dos anjos. Pois, minha visinha, a minha casa é logo adiante
d'esta; mettem-se duas portas de permeio; se precisar d'alguma cousa, de
mim ou da minha companheira, não tem mais que mandar.

D. MARIA ELISA

Muito agradecida ao seu favor... Queira sentar-se.

O SENHOR PEREIRA

Estou bem assim: farto de estar sentado estou eu atraz do mostrador. Com
que sim, senhor Antonio, está vmc.e cá no rol dos homens de bem...

O SENHOR ANTONIO

(_com intenção_)

É verdade... cá estou no rol dos homens de bem...

O SENHOR PEREIRA

Fez vmc.e o que devia. Não ha vida melhor que a de casado. Eu cá de mim
não tenho razão de queixa. Estou casado ha dez annos, tres mezes, e
vinte e quatro dias, e, graças a Deus, não tive ainda um desgosto!

O SENHOR FERNANDES

(_á parte_)

Este é dos taes que o sabem no fim.

O SENHOR PEREIRA

A minha sancta companheira é propriamente uma mulher de casa, e minha
amiga, que é mesmo uma cousa! Lá por eu ter mais vinte annos que ella,
isso não tira, nem põe. Não é como algumas cá da nossa rua... nós bem
sabemos quem ellas são...

O SENHOR FERNANDES

(_á parte_)

Eu só conheço a d'elle...

O SENHOR PEREIRA

Lá porque os maridos não andam espartilhados a dar, com licença... nas
canellas com as abas da casaca, gostam mais de peralvilhos!...

Arreda com ellas! Eu, se tivesse assim uma, eu não seja João, se lhe não
arrebentasse a propria barriga!... A minha Marcellina é uma rapariga,
que, se me vir afflicto, vem prantar-se ao pé de mim, e não sahe d'alli
sem que eu lhe diga que estou bom. Quando me cahiu o cabello foi ella
que me pôz este chinó na cabeça, e por ahi os tratantes metteram-me
sonetos ao chinó por debaixo da porta! Valha-os o diabo!...

D. ANGELICA

Credo! Anjo bento! vmc.e falla tantas vezes no inimigo! Não diga essa
palavra que faz arripios no costado!

O SENHOR PEREIRA

Ahi está a nossa beata com as suas _escrupulisações_. A gente não sabe
como ha de fallar diante de vmc.e A minha Marcellina, ás duas por tres,
é diabo para aqui, diabo para acolá; e, se eu lhe digo que não é bom
chamar quem está manso e quedo, ella diz que o diabo se chama diabo!...

D. ANGELICA

(_persignando-se_)

Sancto breve da marca! Cale-se lá com essas blasphemias! Sua mulher, se
tivesse juizo, não dizia isso!... Se vmc.e lhe désse com o covado pela
rabada, ella se calaria...

D. MARIA ELISA

(_á parte_)

São indecentes!... Se algum futuro author de novellas quizesse descrever
fielmente esta scena, teria de ser indecente como elles! Tomára-me eu
sósinha!

O SENHOR ANTONIO

Em que pensas tu, Mariquinhas?

D. MARIA ELISA

Ah!... eu?... não pensava em nada...

O SENHOR ANTONIO

A modo que estás triste! Aposto que estás a pensar lá n'essas cousas dos
astros?

D. MARIA ELISA

Dos astros? não... pensava... na minha sorte... (_com ironia_) que é
realmente invejavel. Estou satisfeitissima da deleitosa conversação
d'estes senhores, que são sobremaneira recreativos.

OS SENHORES BAPTISTA E RODRIGUES

Pela parte que me toca... muito obrigado...

O SENHOR FERNANDES

(_á parte_)

Pobre mulher!... e pobre homem!...

O SENHOR ANTONIO

Então, Fernandes, estás ahi tão calado!...

O SENHOR FERNANDES

Que quer que eu lhe diga?

O SENHOR ANTONIO

Quando te casas?

O SENHOR FERNANDES

Quando tiver mulher. Ainda não é tarde.

O SENHOR ANTONIO

Isso não; mas o casamento faz arranjo... Ella tem cincoenta e quatro,
mas olha que é um anno para cada conto; e tu tens os teus trinta e seis,
mas cá, segundo os meus calculos, por morte de teu pae não tens nem
trinta e seis moedas, porque elle é um gastador, e deixa-te viver lá
mettido no quarto a lêr o Carlos Magno, sem te importares do negocio...
Teu pae parece-me que não virá... vai-se demorando.

O SENHOR FERNANDES

Já lhe disse que o meu pae pede desculpa de não vir, porque se sente
incommodado da gôta... Eu vim da sua parte dar ao senhor Antonio os
parabens, e comprimentar a sua esposa a quem desejamos, tanto eu como
elle, largos annos de felicidade.

D. MARIA ELISA

Muito agradecida! (_á parte_) Este falla melhor que os outros...

O SENHOR ANTONIO

Tu sabes fazer a preceito esses discursos! Sempre é bom a gente lêr o
Carlos Magno... Eu era pequeno quando o li, e ainda me lembra esta
passagem da formosa Floripes a Roldão: «Senhor par de França! Os vossos
olhos são dous sóes que derramam raios que matam como os lampejos da
vossa durindana. Senhor cavalheiro, eu vos digo que o vosso affecto é
mais doce que o mel, e mais abrazador que as ardentes _fragas_.»

O SENHOR FERNANDES

(_sorrindo_)

Essas fragas deviam de ser boas para assar bacalhau.

D. MARIA ELISA

(_sorrindo_)

De certo...

O SENHOR ANTONIO

E outras muitas cousas que me não lembram agora.

O SENHOR FERNANDES

(_com ar sarcastico_)

É pena que vmc.e se esqueça dos bocadinhos de ouro do Carlos Magno!

O SENHOR ANTONIO

Ora diz lá tu algumas passagens...

O SENHOR FERNANDES

É impossivel, porque nunca li o Carlos Magno; mas, á falta d'essa
preciosidade litteraria, posso dizer outra qualquer passagem bonita.

O SENHOR ANTONIO

A apostar que tu não sabes orthographia?

O SENHOR FERNANDES

(_sorrindo_)

Nada, não sei.

O SENHOR ANTONIO

Pois então diz alli a minha mulher que t'a ensine...

O SENHOR FERNANDES

Far-me-ia muito particular favor.

D. MARIA ELISA

Eu?!

O SENHOR ANTONIO

Sim, tu, Mariquinhas. Ensina-lhe aquellas cousas que fazem com que a
gente não caia quando a terra anda de redor.

O SENHOR FERNANDES

E é isso que se chama orthographia?

O SENHOR ANTONIO

(_meio irritado_)

É, sim, senhor. Olha lá se queres saber mais d'essas cousas que minha
mulher!

O SENHOR FERNANDES

Deus me livre d'isso... (_sorrindo a Maria Elisa que abaixa,
envergonhada, o rosto_) Eu nem sequer sei escrever com astronomia, como
hei de saber essas leis com que se regem os astros!...

O SENHOR ANTONIO

Chama-se _lei d'attrição_... Não te rias... é o que te digo, e, senão,
ouve: ó Maricas, como se chama isto que nos faz estar de pé, assim
direitos? (_erguendo-se._)

D. MARIA ELISA

Salvo erro, creio que são as pernas.

O SENHOR ANTONIO

(_sériamente_)

Isso é verdade; mas, se a terra andasse á roda, a gente cahia para o
lado...

O SENHOR FERNANDES

Não é forçoso que caia para o lado; póde cahir para traz, ou para
diante. (_Maria Elisa ri-se._)

O SENHOR ANTONIO

Tambem não vou contra isso; mas minha mulher sabe d'uma cousa que faz
com que a gente não caia, porque todos os corpos sahem do centro da
terra... Olha ella a rir-se! Então enganavas-me, cachorra?... Ah
ruimzinha!... (_puxando-lhe uma orelha._)

O SENHOR FERNANDES

Sua senhora tem razão... Os corpos, não digo que saiam do centro da
terra, mas tendem para lá; e esta tendencia faz que não possam, embora a
terra se mova, cahir no espaço.

O SENHOR ANTONIO

Tu não sabes d'essas cousas...

O SENHOR PEREIRA, _do chinó_

Os diabos me levem se eu sei o que vossês estão a dizer!

D. ANGELICA

S. Bento! Elle ahi torna com o berzabum do inimigo ás voltas! Não se
póde estar ao pé de vmc.e !... Credo!

O SENHOR PEREIRA

Ó mulher! deixe fallar a gente!... Eu queria saber como é lá isso de
andar o mundo ao redor como se fosse uma bola! Esta gente moderna sempre
diz cousas! Eu nunca tal ouvi aos velhos! Já a minha Marcellina se mette
tambem a fallar d'essas cousas lá dos livros com o doutor Miranda, e,
pelos modos, a rapariga não é tôla de todo. Agora anda ella a congeminar
nos planetas, e levanta-se algumas vezes de noite, e vem á janella...

O SENHOR FERNANDES

Observar os astros?

O SNR. PEREIRA

Acho que sim! A mulher lá tem aquella pancada na mola, e eu deixo-a
estudar a natureza, como ella diz...

O SENHOR FERNANDES

Isso é justo. Não me sabe dizer que planeta estuda sua mulher?

O SENHOR PEREIRA

Acho que é o sete-estrello.

O SENHOR FERNANDES

Ah! sim? E que diz ella a respeito d'esse «planeta?»

O SENHOR PEREIRA

Eu sei cá o que ella diz? Está alli á janella duas horas a olhar lá para
cima, e quando se deita está fria de neve. Eu já lhe disse: ó mulher!
deixa lá essas cousas celestes aos homens que sabem da póda! Tanto faz
como nada; ella diz-me não sei que da abobada, e das _mariadas_ de
estrellas... Apostar que o senhor Fernandes não sabe que ha uma estrella
chamada _vespa_, e outra _saturnea_?

O SENHOR FERNANDES

Nada, não sabia, mas ainda venho a tempo de saber. Sua senhora é que lhe
ensina essas cousas?

O SENHOR PEREIRA

E muitas outras, que me esquecem, porque não tenho as memorias affeitas
a esses nomes inglezes e gregos. Se vmc.e quizer vêr o que é uma
cabecinha ha de fallar com minha mulher...

O SENHOR FERNANDES

Estou convencido... não é preciso mais nada... Vejo que sua senhora
estuda perfeitamente a natureza, e compensa bem a pena deitar-se fria de
neve, quando a intelligencia vai quente do fogo da sciencia. Não
concorda, senhora D. Elisa?

D. MARIA ELISA

Eu?!... não sei se...

O SENHOR FERNANDES

Pois não é da minha opinião?

D. ANGELICA

(_rabugenta_)

Não é, não, senhor! Qual natureza, nem meia natureza! Uma mulher não se
deve metter lá n'essas trampolinices! Do que ella deve tratar é de
governar a sua casa, de tratar do seu marido, e dos seus filhos, e de
encommendar a sua alminha a Deus. Nossa Senhora era a propria mãe de
Deus, e não sabia lá das sciencias, nem dos planetas! Uma mulher honrada
não vai de noite vêr á janella o sete-estrello, nem a vespa, ou o
bisouro... mau bisouro é o demonio... Deus me perdoe...

O SENHOR PEREIRA

(_pundonoroso_)

Com que vmc.e , lá porque não tem cabeça para estas cousas, quer que as
outras sejam tapadas como vmc.e ? Não é má esta! Cada qual trata de si,
e Deus de todos. Minha mulher gosta de estudar a natureza, e vmc.e gosta
de resar novenas. Quem vai contra isso?

D. ANGELICA

E ella porque não resa novenas? Acha que lhe não são precisas? Pois olhe
que... eu já vi quem precisasse de resar menos... Melhor lhe fôra
governar a sua casa, e remendar a sua roupa, e não deixar ir tudo como
vai de portas a dentro...

O SENHOR PEREIRA

Sabe que mais? trate cá do que lhe pertence, e deixe as outras! Vmc.e é
muito murmuradeira...

D. ANGELICA

Eu! murmuradeira!... Ó meu Menino Jesus! inda mais ouvirei! Ó Antonio,
já viste uma cousa assim?

O SENHOR ANTONIO

Está bom... calem-se lá com essas questões. Cada qual vive como o seu
genio lhe pede; mas olha cá, visinho, eu sempre fui teu amigo, e não
tenho papas na lingua, quando é necessario. Cá a minha opinião é que não
deves deixar vir tua mulher para a janella de noite...

O SENHOR FERNANDES

(_com ironia_)

Porque se póde constipar...

O SENHOR ANTONIO

Não é isso... é que das más linguas ninguem se livra... Se quer estudar
a natureza, ou lá o sete-estrello, ou o que é como se chama, que o faça
de dia.

O SENHOR PEREIRA

Tu és tôlo, Antonio! Pois os planetas apparecem lá de dia?! Já vejo que
não te chama Deus para este caminho!...

O SENHOR FERNANDES

O senhor João Pereira tem razão. De dia não se descobrem planetas. O
padre Theodoro d'Almeida, que escreveu muito sobre os astros, diz-me meu
pae que o vira muitas noites na trapeira dos Congregados a contemplar a
natureza.

O SENHOR PEREIRA

Vmc.e é que sabe responder, senhor Fernandes... E, de mais d'isso, eu
estou muito contente com minha mulher. Antes quero que ella se
entretenha com os planetas lá de cima, do que com certos planetas que
andam por ahi a olhar para as janellas, e que não são das melhores
cousas para viver em paz cada qual com a sua mulher. Eu não tenho até
hoje razão de queixa; oxalá que tua mulher te dê a boa vida que a minha
me tem dado...

O SENHOR ANTONIO

(_enfurecido_)

Isso agora!... salvo tal logar!...

D. ANGELICA

Longe vá o agouro, e mais não diga a bôca que tal diz...

O SENHOR ANTONIO

(_para os circumstantes_)

Que lhes parece esta?! (_para elle_) Meu amigo, sabes que mais?... Vai
muito de cá a lá...

D. ANGELICA

Ó menina, Deus a livre de tal... Minha querida nossa Senhora dos
Remedios, não permittaes que tal aconteça...

O SENHOR PEREIRA

(_formalisado_)

Que diabo dizem ahi? Se eu os percebo, sêbo! Parece que já
jantaram!--Pois minha mulher... sim, pergunto eu... minha mulher... se
faz favor de me dizer... com que então a minha Marcellina... digam para
ahi o que sabem, linguas damnadas!... Eu queria saber o que vem a ser
estas benzedellas da nossa sanctinha, e lá esses arrufos teus,
Antonio!...

O SENHOR FERNANDES

Não se irrite, senhor Pereira, que não tem razão. Vmc.e entendeu mal os
reparos da senhora D. Angelica e seu irmão. É porque o senhor Antonio
não quer que sua senhora se constipe no estudo da natureza...

O SENHOR PEREIRA

Isso agora é outra cousa... Cada qual tem o seu genio; mas vir cá
dizer-me que vai muito de cá a lá, isso tem que se lhe diga. Tanto é a
minha Marcellina como a tua companheira. Somos todos do negocio, e
deixemo-nos de fidalguias, porque todos nos conhecemos. E quem fôr mais
rico, coma duas vezes, mas não desdenhe dos outros. O que eu queria
dizer-te a respeito da conducta das mulheres é que sou teu amigo, e que
oxalá a tua mulher seja como tem sido a minha.

O SENHOR ANTONIO

(_desesperado; com as belfas tremulas_)

Isso é que eu não quero!... já te disse que não quero e que não ha de
ser!...

D. ANGELICA

E elle a dar-lhe! _má mez_ para elle!... Valha-o uma figa! Não faça
caso, cunhada...

D. MARIA ELISA

Eu sinceramente lhes digo que não sei o motivo d'esta disputa! Se me não
engano, a esposa do senhor Pereira tem vocação para a astronomia. É
louvavel esse gosto da sciencia. São raras as senhoras que se dedicam ao
trabalhoso estudo da natureza...

O SENHOR PEREIRA

(_interrompendo_)

É como diz, e viva quem sabe fallar!

D. MARIA ELISA

O senhor Antonio José da Silva diz que...

O SENHOR ANTONIO

Ó Mariquinhas, é melhor dizeres _meu marido_.

D. MARIA ELISA

Meu marido diz que não quer que eu imite a senhora D. Marcellina.

O SENHOR ANTONIO

Não quero, é tal e qual o que eu disse. Minha mulher entendeu-me logo.

D. MARIA ELISA

Pois bem, eu não a imitarei; não me levantarei de noite a observar a
atmosphera, porque realmente não quero ser martyr da sciencia. D'este
modo, está acabada a questão. O senhor Pereira consentirá, porque assim
lhe apraz, que sua senhora se levante para os seus estudos; e meu marido
usará do direito, que eu lhe concedo, de me privar que eu estude os
astros de noite.

O SENHOR PEREIRA

Fallou bem como quem é; parece mesmo a minha Marcellina que sabe dizer
cousas que é mesmo da gente ficar encantado; mas eu tenho a dizer que cá
quanto ao que eu quiz dizer, a minha birra é que se a senhora D.
Mariquinhas fôr honrada como a minha Marcellina, não precisa ser mais.

O SENHOR ANTONIO

És teimoso como um jumento! Já te disse que a minha mulher tem outros
brios, e que sabe as obrigações de mulher casada!

D. ANGELICA

E não ha de dar que fallar como algumas... emfim... cada qual metta a
mão na sua consciencia...

O SENHOR PEREIRA

(_solemne_)

Que quer dizer isso? Então vmc.e acha que minha mulher... Ora tenha
juizo, que já é bem tempo de perder o sestro da má lingua... D'estas
beatas... Deus me livre d'ellas...

D. ANGELICA

(_aguçando o queixo inferior_)

Vmc.e está mesmo a inquietar a gente... Olhe que eu!... não me puxe pela
lingua, que eu não sou boa...

O SENHOR PEREIRA

Isso sei eu... que vmc.e é levadinha de todos os diabos... diga-m'o a
mim...

D. ANGELICA

(_enfurecida_)

Sabe que mais? ninguem o cá chamou... Deixe-nos em paz...

O SENHOR PEREIRA

Vmc.e é muito mal creada... O que merecia... sei eu...

O SENHOR ANTONIO

Está bom, Angelica! cala-te, João Pereira!... Se não estás bem, vai-te
embora; eu não te chamei cá...

O SENHOR PEREIRA

O asno sou eu em vir cá fazer de homem que sabe a cortezia quando é
preciso. Olha, meu amigo, emquanto tiveres cá em casa esta senhora
Angelica, não has de ter amigo nenhum...

D. ANGELICA

Vá importar-se lá com a que tem em casa, que não tem pouco que guardar.

O SENHOR PEREIRA

A que eu lá tenho em casa tem mais honra nos calcanhares, que vmc.e na
cara. O que vmc.e queria era que eu casasse comsigo, quando casei com
ella. Como eu não estive para isso, vinga-se a fallar mal de minha
mulher.

D. ANGELICA

Olha o bezuntão!... Eu quiz lá nunca casar com elle!...

O SENHOR ANTONIO

Accommodem-se!

D. ANGELICA

Sevandija! Más maleitas te colham!

O SENHOR ANTONIO

Angelica, tapa a bôca.

D. ANGELICA

Não quero!... Pois este desavergonhado não diz que eu quiz casar com
elle! Mariola! Sempre é bem _coitadinho_!...

O SENHOR PEREIRA

D'uma pandorca assim não ha nada a estranhar. Eu tenho vergonha, sua
truquilheira, quando não havia dizer aqui quem vmc.e é...

O SENHOR ANTONIO

Quem manda aqui sou eu! Já d'aqui para fóra, João Pereira!



(_João Pereira, irritado como Ajax, leva as mãos indignadas á cabeça e
maquinalmente desloca o chinó. Ouvem-se fungadellas de sorrisos, que
exacerbam a cólera do calvo que se retira. Angelica tem o queixo n'uma
attitude perfurante. O senhor Antonio transpira na abundancia do
costume. Á lucta succede um profundo silencio, quebrado apenas pelos
gemidos convulsos da beata offendida na sua isempção de setenta annos._)


SCENA ULTIMA


OS MESMOS E UM ENCAPOTADO

ENCAPOTADO

(_no limiar da porta que communica para o interior_)

Senhora Angelica!

D. ANGELICA

Que queres tu, rapaz?

O SENHOR ANTONIO

Pois tu levantaste-te da cama a tremer maleitas, Joaquim? (_para Maria
Elisa_) Aquelle é o rapaz da loja que tem maleitas.

D. ANGELICA

Que queres tu?

O ENCAPOTADO

Eu estava a tremer as maleitas, e ouvi um grande restolho debaixo da
cama.

D. ANGELICA

Credo! que seria?

O ENCAPOTADO

Resei o credo em cruz, e fui vêr o que era...

D. ANGELICA

E que viste?!

O ENCAPOTADO

Era a gata que comia uma gallinha assada, que trago aqui, menos o
pescoço que lh'o tinha ella já comido.

(_O encapotado afasta as bandas do capote, e mostra a gallinha
effectivamente degolada!... A senhora Angelica recebe a victima da gata,
e pede a seu irmão poderes discricionarios para vingar a affronta._)

UMA VOZ

Está o jantar na mesa.




CAPITULO XX


Está, portanto, casada a senhora D. Maria Elisa de Sarmento e Athaide.
Temol-a na rua das Flores, e deixal-a lá estar. Que se embriague dos
carinhos do nosso bom amigo Antonio José. Se a riqueza satisfaz
plenamente as suas ambições, é muito rica, póde cortar por largo, tem á
sua disposição um homem capaz de tudo, menos de resignar-se com a
felicidade do seu visinho João Pereira, que Deus tenha na bemaventurança
dos pobres de espirito, que são quasi sempre os ricos de materia.

Vamos encontrar Rosa Guilhermina tambem casada com Augusto Leite. Sou o
primeiro a confessar que o meu romance está cahindo muito! Um casamento
ainda póde aturar-se no fim do romance. A gente gosta de vêr
recompensados os tormentos de dous amantes com o prosaico destino de
todos os tôlos e espertos. Ha casos, porém em que o casamento, em vez de
ser o ultimo, deve ser o primeiro martyrio das personagens de uma
novella. Quantas vezes eu leio uma, em que se me arrancam lagrimas de
compaixão por dous entes que se adoram, a despeito de mil estorvos que
lhes diluem em lagrimas os bellos olhos! Consterno-me; anceio a ultima
pagina em que vão ser coroadas por um gôso duradouro as suas agonias...
E essa ultima pagina diz-me que se casaram! «Faltava-lhes esta!» digo eu
então, arremessando com piedosa indignação o livro!

Ainda um casamento... passe! Mas dous casamentos!... É abusar dos dons
da igreja, ou romantisar o facto mais prosaico d'esta vida! Isto em mim
creio que é falta de imaginação, ou demasiado servilismo á verdade!

Se Deus me chamasse para este caminho, como dizia, a respeito do estudo
da natureza, o senhor João Pereira ao seu visinho, de certo não casava
estas mulheres, tão depressa. Acho que o melhor era trazel-as por ahi um
pouco de tempo a dar escandalos. Rosa deveria apaixonar-se por um major
de cavallaria que lhe faria o favor de a inscrever no productivo
catálogo das mães de familia. Depois o major era promovido a tenente
coronel, e ia commandar dragões de Chaves, do que resultava (que
palpitante não seria isto!) a boa da rapariga tomar duas onças de
verdete n'um copo d'agua, e morrer amaldiçoando o perfido! Que cousa tão
bonita! Hei de aproveital-a no primeiro romance que escrever, e que
desde já se assigna nas lojas do costume.

Ora, Maria Elisa, essa... que havia de ser essa?... Eu entendo que Maria
Elisa devia namorar-se d'um marquez. E vai depois este marquez tinha
casado clandestinamente com Joanna Fagundes, criada da casa. E vai
depois, constando á dita Fagundes que seu marido namorava Maria Elisa, a
espadauda moçoila n'uma bella tarde, procura-a em casa, e mette-lhe os
tampos dentro com uma cadeira. Elisa expira nos braços d'um sargento de
policia, e Joanna Fagundes deixa cahir a mantilha, exclamando:

«Eu sou a marqueza de tal!»

O leitor ficava maravilhado do successo, e contava á familia a passagem
com as lagrimas nos olhos.

Espero tambem não perder esta ideia, e o leitor terá occasião de avaliar
duas obras primas. Por emquanto, peço ao respeitavel publico que
suspenda o juizo a respeito da minha capacidade inventiva.

Já agora, porém, atemos o fio d'esta fastidiosa historia, e vejamos
quantas moralidades podem produzir dous casamentos honestos.

O secundanista de direito casou oito dias depois de seu tio, e tomou
conta da administração da casa, que recebeu do tutor de sua mulher.

Nos primeiros dias parece que leram muitos romances, e aligeiraram as
horas em deliciosas palestras sobre a _Experiencia amorosa_, e _Sophia
ou o Consorcio violentado_, romances muito lidos n'aquelle tempo.

Ao cabo de quinze dias, Augusto Leite não era certo á hora da leitura, e
vinha, meia hora depois, pretextando negocios da casa.

Ao cabo de um mez, o extremoso marido deixava sua mulher a lêr as
_Viagens de Gulliver_ a sua sogra, e elle sahia a negocios domesticos,
que lhe empatavam o tempo até ás 11 horas da noite.

Ao cabo de dous mezes, o digno apreciador da litterata, se sua mulher
lhe perguntava a razão da demora, encarregava sua mãe de responder
suavemente, porque a paciencia já lhe não dava azo para tantas
satisfações.

Findo o prazo de dous mezes, Augusto foi para Coimbra continuar a sua
formatura, e convenceu sua mulher de que não era costume as mulheres
acompanharem seus maridos ao fóco da immoralidade. Rosa ficou, portanto,
na companhia de sua sogra, que lhe enxugava as lagrimas saudosas,
pedindo-lhe que lêsse a _Joaninha, ou a Engeitada generosa_. Seu marido
escrevia-lhe todas as semanas poucas linhas, mas essas eram calidamente
amorosas. Rosa indemnisava-lh'as com longas cartas, bonitas de
linguagem, com muita meiguice em phrase pomposa, e muitas outras
galanterias a que o academico, diga-se a verdade, não dava a maior
importancia.

E vejamos porquê:

Augusto Leite tinha uma paixão unica: era o jogo; mas o jogo fôra o seu
inferno, obrigára-o a fazer uma triste figura, como hoje se diz, porque
perdia sempre. A sorte que o perseguira em solteiro não lhe era mais
propicia em casado. O estudante continuava a jogar, e a perder; mas as
perdas agora avultavam mais, e ateavam-lhe a paixão com mais ardor.

Depois do jogo, o pensamento subalterno do marido de Rosa Guilhermina
era uma tricana, rapariga do campo, fresca e rosada, que vivia com elle,
desde o primeiro anno, e que viera ao Porto durante as ferias grandes,
em que se realisára o casamento do nosso traductor de novellas. Augusto
transigiu amigavelmente com a rapariga, promettendo-lhe um cordão de
ouro de vinte mil reis, uns brincos de sete mil e duzentos, dous pares
de chinelas, umas côr de gemma d'ovo, e outras verde-gaio, afóra um
capote de castorina côr de mel. De mais a mais, obrigára-se elle a tel-a
em sua companhia, com tanto que ella não fizesse barulho.

As condições estipuladas, de parte a parte, foram cumpridas. Benedicta
vivia, sem fazer barulho, na rua do Coruche com o seu academico, e
conseguira, além dos dous pares de chinelas, um terceiro par de sapatos
de cordovão com fitas, e uma mantilha de durante com aquelle bico
escandaloso que usam as mulheres de Coimbra, que são as mulheres mais
feias que Deus nosso Senhor depositou na face da terra.

Nas ferias do Natal, Augusto Leite veio consoar com sua familia. Houve
muito beijo, muita saudade, foram á missa do gallo á Sé, comeram muitos
confeitos de chocolate, e não tiveram tempo de lêr romances. Os outros
dias correram rapidos para a carinhosa esposa. No ultimo fez certa
revelação a seu marido, com a qual elle se mostrou contentissimo, e
sentiu a innocente vaidade de ser pae.

O academico partiu, e d'aqui até aos Carvalhos foi imaginando o systema
de banca-portugueza que lhe desse a desforra de seiscentos mil reis,
perdidos até ao Natal. E tal era a certeza da desforra, que não duvidou
contrahir o emprestimo d'um conto de reis, por isso que o patrimonio de
sua mulher eram só propriedades.

O imaginado systema falhou, ou pelo menos não tinha vingado ainda,
quando o imaginoso jogador perdeu o ultimo real do conto de reis.

Revoltado contra o traiçoeiro systema, seguiu o contrario, e perdeu
tambem. As meditações incessantes no methodo de ganhar, absorveram-lhe o
espirito de modo que o estudante foi reprovado, e retirou de Coimbra,
onde dissipára seis mil cruzados, e ficára devendo dous.

No Porto eram geralmente sabidas as dissipações de Augusto Leite. Sua
mulher fôra avisada por cartas anonymas, mas o seu espirito era altivo
de mais para rastejar nas mesquinharias do dinheiro. O juiz dos orphãos
é que não era tão sublime; e, instigado por o senhor Antonio José da
Silva, resolveu intervir na ruina do patrimonio de Rosa, sujeitando-a a
uma tutela, visto que seu marido era incapaz de administrar. Augusto
Leite quiz provar que tinha muito juizo, mas parece que provou de mais,
e peccou pelo excesso. As testemunhas disseram que nunca o tinham visto
atirar pedras. Isto que devia convencer o juiz dos orphãos, o mais que
fez foi tranquillisar-lhe o espirito dos receios de ser apedrejados pelo
dissipador. Tenho á vista os autos d'este processo, e sou obrigado a
confessar que o juiz julgou em boa harmonia com Pegas, e Carvalho, e
Pereira de Mello.

Era um magistrado probo. Permittam este _entre-parenthesis_, porque o
meu fraco é chamar probos a todos os magistrados, que recebem peitas,
porque os ordenados não chegam a nada. N'este paiz, um magistrado probo
já deu esta razão em pleno parlamento, e desde esse dia todos os
magistrados são probos, e a probidade e a beca e os sapatos de fivela e
as meias de seda, a rectidão e os bofes da camisa ficam sendo insignias
de todos os magistrados.

Que é o que eu vinha dizendo? Não ha nada que me incommode tanto como
ter de lêr o que escrevo... Acho que fallava no nascimento d'uma filha
de Rosa Guilhermina... Ha de ser isso... Pois é verdade: nasceu a tal
menina, e foi baptisada com o nome de _Assucena_, da qual se ha de fazer
larga e pungentissima chronica.[4] Era uma linda creancinha, que a mãe
offerecia ao pae, mas o fraco de Augusto não eram as creanças. Apenas a
tomava dos braços de Rosa, douda de contentamento, passava-a aos braços
da avó, que, por força, queria que a pequena se parecesse com ella.

Augusto vivia triste. Os carinhos de sua mulher não bastavam a
desenrugar-lhe a testa, sempre carregada para os afagos da pobre
senhora. Passeava sósinho no quintal, e, quando a timida mulher se
aproximasse, retirava-se elle a meditar no seu quarto.

--Eu desconheço-te!...--dizia Rosa, tomando-lhe meigamente a mão
insensivel--Que tens tu, Augusto?... já me não adoras com aquelles
extremos de ha um anno? Que te fiz? Não tenho eu sido tão igual para ti?

--Tens, Rosa... Não repares na minha tristeza... Isto é organisação...

--Pois assim variam as organisações!... Grande mudança transfigurou o
teu genio!...

--Que queres!... Eu não me fiz...

--Pois sim; mas porque soffres?!

--Porque não sou um homem vil, a quem se tire infamemente a administração
d'uma casa...

--Mas tenho eu culpa de tal infamia!... Não fui eu propria fallar com o
juiz?! Não empreguei os rogos, e as lagrimas com esse barbaro que quer
governar o que é nosso?! Serei eu culpada n'essa fatalidade!...

--Não és... eu não te accuso... mas deixa-me, se não pódes remediar esta
punhalada que se deu na minha honra! Foi um ultraje cobarde, forjado nas
trevas, á sombra da lei!... Despotas!... Eu hei de vingar-me de vós, ou
a minha dignidade nunca mais erguerá a fronte diante dos homens!
(_Reminiscencias d'um romance intitulado: EMILIA DE TOURVILLE, OU OS
MEUS SETE ANNOS DE PERSEGUIÇÃO._) Feriram-me na corda mais sensivel da
minha honra! Exauthoram-me dos direitos communs, a mim, que conheço,
profundamente, as raias, que separam a demencia irresponsavel das
operações do intellecto são! (_Ideias pilhadas a dente na SCIENCIA DOS
COSTUMES._) Fallarem-me no jogo!... Privarem-me do uso da minha
fortuna, por que jogo!... Quem póde privar-me de abrir com uma alavanca
de ouro a minha propria sepultura! (_Pensamento soffrivel, roubado ao
JOGADOR, comedia de Regnard._)

--E gostas assim de jogar, meu querido Augusto? Achas prazer no jogo?

--Acho... preciso d'esta distracção; fóra do jogo não vivo...

--Pois joga...

--E o dinheiro?... que é do dinheiro? Não vês que nos dão para a nossa
subsistencia quarenta mil reis cada mez?

--Mas temos outros recursos...

--Quaes?!

--A nossa prata, que está avaliada em cinco mil cruzados... vende-a.

--Não te zangas por isso?

--Não, filho!... Eu dera a vida pela tua tranquillidade... Não é ella
tua? Se o desejavas fazer, porque o não tens feito?...

........................................................................

Dias depois, Augusto Leite vendia a prata, que tinha sido o thesouro
mais querido do arcediago de Barroso, e partira para Coimbra, combinando
as fórmas d'um novo systema de jogo.

No dia seguinte ao da sua partida, Rosa Guilhermina recebia a sua prata,
e este bilhete:

_«Não desdenhes uma lembrança da tua velha amiga. Comprei essa prata, e
quiz presentear tua filha com ella._

                                                           «_Maria Elisa._»

A prata fôra comprada pelo senhor Antonio José da Silva.




CAPITULO XXI


Já não viviam na rua das Flores os disparatados conjuges.

O senhor Antonio José, quinze dias depois de casado, fechou a sua loja
de pannos e algodões, traspassando-a. Fôra esta a primeira exigencia de
sua mulher. Tanto elle como Angelica resistiram um pouco ás razões
frivolas de Maria Elisa; mas o amor vencera, e o covado e as balanças
foram offerecidas em holocausto a hymeneu, como dizia a mulher de João
Pereira, rindo-se muito da aristocracia balôfa da sua visinha, que lhe
não dava tréla.

Fechada a loja, e liquidados os lucros, o senhor Antonio, por escolha de
sua mulher, foi viver na ultima casa que o leitor encontra na rua da
Rainha, que n'esse tempo não tinha nome. Era uma casa de quinta, com
ares apalaçados, onde a senhora Angelica se dava pessimamente com os
ratos enormes que tiveram o barbaro appetite de lhe comer a manga
esquerda do seu capote, na primeira noite, e tentaram a temeridade de
lhe roer a unha d'um dedo do pé! Inscrevemos aqui as amarguras da
senhora Angelica, porque nos impozemos a obrigação de commemorar todas
as lagrimas d'este desventurado enredo.

O senhor Antonio José da Silva comprou carruagem. Esta immoralidade
custou muitos _padre-nossos_ a sua irmã, que esperava todos os dias um
raio fulminante sobre os cavallos, que conduziam sua cunhada a passeio
pelas estradas de Braga e Guimarães, que eram n'esse tempo um pouco
melhores que hoje, porque eram de pedra, e a civilisação não tinha ainda
inventado o cascalho.

O senhor Antonio cahira na imprudencia de entrar, uma vez, na carruagem,
e viu desgraçadamente realisadas as suas previsões! Foram taes os
solavancos que soffreu aquelle globo de carne, taes entaladelas
flagellaram os seus rofêgos esponjosos, que, tres dias de cama, o nosso
bom amigo difficilmente digeria a mesquinha refeição do costume.

Maria Elisa nunca mais o convidou para o martyrio da carruagem. Era uma
excellente esposa! Conhecera profundamente que as dimensões abdominosas
de seu marido não comportavam a agitação febril do seu espirito. Ia,
portanto sósinha, emquanto seu marido cultivava uns repolhos e umas
melancias que plantára e semeára para ter em que exercitar as suas
forças musculares.

A Providencia nem sempre é justa para os bons cultores da hortaliça!
Emquanto o senhor Antonio estudava a maneira de salvar do bicho a folha
exterior do repolho; emquanto o bom cidadão classificava methodicamente
a natureza do estrume, com que deviam adubar-se os terrenos de melancia;
emquanto, finalmente, o negociante retirado legava á humanidade um
prestante serviço em horticultura, sua mulher andava por lá fazendo
cousas, que aqui vamos escrever para caução de todos os maridos, que
espreitam a toupeira no cebolinho, emquanto suas amaveis mulheres vão
comprar tarlatanas, e rendas.

O leitor, se tem attendido á melhor historia que se tem escripto n'estes
ultimos annos, ha de lembrar-se de um senhor Fernandes, que assistiu ás
bodas do senhor Antonio, e que tinha uma linguagem distincta, e umas
ironias salgadas a sabor de D. Maria Elisa de Sarmento e Athaide.

O senhor Fernandes, de trinta e tantos annos, aspecto agradavel, com
algum espirito, com muita pouca materia, amigo de livros, e mais ainda
das boas mulheres, era o maior peccador que produziu a rua das Flores.
Contra todas as leis da honra, contra o mais respeitavel dos preceitos
do decálogo, o senhor Fernandes tinha uma diabolica vocação para a
mulher do seu proximo! Cahe-me da mão a penna indignada por se vêr na
dura precisão de archivar este escandalo! Lucto, ha oito dias, com a
veracidade do ignominioso facto, que vou enunciar com as lagrimas nos
olhos, e o pudor na face. Quizera cobrir com o véo da caridade esta
ulcera; porque antevejo o doloroso vexame que involuntariamente vou
inflingir ao leitor pudibundo! Não é possivel. Sou muito amigo do
publico; esforço-me por manter a moral na temperatura em que a
encontrei; mas, como o amigo de Platão, sou mais amigo da verdade. É
necessario dizer-se ao menos metade do que sei. Benzamo-nos, pois,
primeiramente, para que Deus nos livre de maus pensamentos, e das
tentações hediondas d'este grande peccador, que a estas horas já sabe o
bem ou mal que fez!...

Fernandes (_proh pudor!_) entendeu que devia namorar Maria Elisa, a
esposa do seu visinho, a mulher do seu proximo, que é sempre um sugeito
respeitavel, ainda que seja um grande tôlo; ou um grande maroto!

Ouseiro e veseiro de similhantes impudicicias, este monstro fôra o
primeiro immoral que tentára a honestidade da senhora D. Marcellina,
esposa muito querida do senhor João Pereira, e, pelos modos, assidua
cultora dos estudos da natureza. Esses estudos quem lh'os fez appetecer
foi elle! Não queremos fazer pêso aos seus enormes peccados, mas
releve-nos a sua alma o encargo que lhe fazemos de ter sido elle o
mestre de astronomia de Marcellina. Sem os prelogomenos, que elle lhe
ensinou, nunca ella viria, alta noite, estudar o «planeta
sete-estrello»! Á sombra da sciencia, deu-se ahi uma grande immoralidade
na face da terra! O crime infando, que hoje felizmente não tem
sectarios, graças á civilisação que vai ensinando os limites dos
deveres, não só internacionaes, mas tambem inter-visinhos, o crime
infando (repetimos com os calafrios do terror na espinha dorsal); o
crime infando, finalmente, consubstanciou-se de tal arte no sangue
d'aquelle homem, que (_vox faucibus hæsit!_) não havia mulher casada,
com um palmo de cara soffrivel, que o réprobo de Deus e dos maridos não
tentasse abysmar nas profundezas do báratro perpetuo!

Mas pela litteratura tinha vindo um grande mal á senhora Marcellina, que
não é digna do _dom_, attendendo á villã fraqueza com que se deixou
embair das astucias d'aquelle grande velhaco, que já me fez suar tres
vezes, desde que estou fallando nas suas impudencias!

De mais a mais, Fernandes era inconstante nas suas affeições, e cynico
na maneira de se desquitar das fastidiosas mulheres, que o fatigavam
depressa. Esta segunda immoralidade é uma questão á parte. A nossa
missão, aliás repugnante (nunca cessaremos de lembrar ao leitor que nos
parece impossivel este crime, como o parricido aos legisladores de
Athenas!) a nossa missão é contar que o dito Fernandes tentou seduzir
Maria Elisa!

O peor não é isto! A maior das vergonhas é ter eu de dizer que Maria
Elisa, legitima representante de nossa avó, que comeu maçãs no paraizo,
cedeu á tentação, e só torceu o pudibundo nariz duas vezes (ou tres, não
me recordo bem) ás calidas manifestações d'aquelle grande desaforado,
perverso, dissoluto, scelerado, e não sei mesmo se concussionario!

Quem soubesse isto, entrava no segredo dos constantes passeios de Maria
Elisa. A sua habitual direcção era á Ponte-da-Pedra, a uma legua do
Porto, na estrada de Braga.

Ahi apeava-se da carruagem, a pretexto de descansar. Subia para a sala
da estalagem, que já n'esse tempo era as delicias dos honrados amadores
de peixe frito, e azeitona. E n'essa sala... (_digitis callemus et
aure!_... Soccorre-me, meu velho Horacio!) encontrava sempre esse homem
para o qual o meu vocabulario de indignação não tem um nome adequado! E
isto aconteceu muitas vezes, emquanto o senhor Antonio sachava os
repolhos, e mondava a hervagem das melancias, sabe Deus com que
dificuldades na curvatura da columna vertebral!

Tres mezes, seis, nove, um anno esta pouca vergonha! E o céo não tinha
raios para o impio, e o senhor Antonio não tinha n'aquelle coração um
presagio, que lhe dissesse que entre o repolho e a melancia ha alguma
cousa que deve occupar a cabeça d'um homem sensato!

A Providencia, algumas vezes, parece-se com Homero; dormita, e consente
que os Antonios Josés levem no somno a palma ao cantor de Ulysses, que
tambem dormitou emquanto Penélope fazia muitas cousas, em que se parecia
com Maria Elisa. Ora já não é pequena gloria para o senhor Antonio José
collocar-se a par de Ulysses!

Era em uma bella tarde de agosto.

Maria Elisa sahira para a Ponte-da-Pedra. O senhor Antonio ficára n'um
banho de tina, chafurdando como o proprio tubarão de barbatanas. Quando
sahiu do banho, achou-se fresco, como é natural, e resolveu dar um
passeio, e, o que mais é, surprender sua mulher, que devia ficar
contentíssima de tal surpreza.

Ao pensamento seguiu-se a execução. O senhor Antonio repartiu as suas
duas pernas-pleonasmos sobre o dorso de uma pacifica jumenta, e com a
ponta da bengala estimulou-lhe a anca de modo que era um raio por
aquella estrada fóra! E era um grupo bonito! A pequena jumenta, debaixo
do vulto magestoso do senhor Antonio, parecia consubstanciada na
organisação do seu dono! Iam contentíssimos!

--Lá está a carruagem!--disse elle, exultando, á sua jumenta, com a qual
tivera um longo colloquio, em que a submissa interlocutora não fôra
menos eloquente com o seu silencio, nem lhe quizera conceder honras de
Balaam.

Pararam á porta da estalagem. O senhor Antonio não queria fazer ruido, e
perguntou baixinho:

--Onde está a dona da carruagem?

--Está lá em cima com o primo.

--Com o primo!--exclamou elle com um som de ventriculo.

--Sim, senhor, o primo...

--Quero vêl-a...

E subia as ingremes escadas, agarrado ao corrimão.

Maria Elisa conhecera a voz. Fernandes fugira para o quintalejo
immediato, e escapára-se pelos pinhaes visinhos, sem ser visto.

O senhor Antonio estava diante de sua mulher, solemne e magestoso como
todos os maridos em similhantes apertos. Queria fallar, e parece que a
eloquencia lhe ficava estagnada nos papos do pescoço que oscillavam como
duas bexigas de porco, sopradas pelo vento. Queria profundar o abysmo da
sua situação, e a unica imagem que lhe apparecia aos olhos pávidos era
João Pereira, o do chinó!

Angustias d'estas... não tem nome na terra! Cahiu, como forçado por um
enorme murro, sobre uma cadeira. O urro, que a cadeira gemeu debaixo
d'esta avalanche de carne, acordou os eccos da estalagem.

Maria Elisa, essa, pallida e confusa na surpreza do crime surprendido,
aproximou-se de seu marido, e murmurou com meiguice:

--Que tem?...

--Que tenho?... perguntas-me o que tenho?

--Sim!... pois que fiz eu?!

--O que me fizeste?!

--Sim!... o que lhe fiz?!

--_O que lhe fiz?!_ diz ella.

--Digo... pois que lhe fiz eu para tamanha commoção?

--Tu escarneces de mim!... Que primo é esse que estava comtigo?

--Um primo!?...

--Sim, um primo... quem é esse primo, que nunca me fallaste n'elle?...
Deixa que eu chamo a estalajadeira, e ella te dirá quem é que me disse
que tu estavas aqui com um primo... Espera ahi...

O senhor Antonio dera um pulo, como um tigre, da cadeira para o meio da
sala, e tomava fôlego para chamar a estalajadeira, quando Elisa,
atordoada da surpreza, mas não de todo, correu a elle, embaraçando-o do
vergonhoso proposito.

--Não chame... que é uma vergonha...

--Então sempre é verdade, que me és infiel!... Deshonraste, Maria Elisa,
um homem a quem deves tudo!... É assim que se é mulher honrada!... Foi
para isto que me amaste, e quizeste casar comigo!... Eu endoudeço... Eu
morro!... Que dirá o mundo!...

O senhor Antonio começava-lhe a dar cuidado o que diria o mundo. N'estas
enfermidades, o temor do que o mundo dirá é sempre um symptoma
favoravel; porque o mundo cala-se depressa, e as funcções vitaes do
espirito entram no seu curso regular.

Maria Elisa não era tão esperta como eu suppunha. Ficou estupidamente
surprendida. Não teve nenhuma lembrança feliz, que obrigasse seu marido
a pedir-lhe inclusivamente perdão da calumnia injuriosa! Cahiu com
miseravel imbecilidade n'um torpor moral, indigno da sua experimentada
philosophia. Deu-lhe para amuar, e morder o labio inferior, mas não com
tanta força que espirrasse sangue. Ella sabia fazer as cousas com
prudencia; e, com quanto soffresse bastante na alma, parece que poupava
o corpo como cousa sua, e não lhe quero eu mal por isso. Uma mulher,
como eu seria se o fosse, deve fazer muito por que o corpo se não sinta
das enfermidades da alma. A alma tem muitas primaveras, e por mais
envelhecida que esteja não se vê. O corpo tem só uma, e essa está
sujeita á maldita perfeição das lentes que lhe não deixam uma ruga
precursora de decadencia sem demorada analyse.

Eu, se fosse mulher, tinha enviado para Rilhafolles muitos poetas! Havia
de reduzil-os á quinta essencia do amor, que é a demencia. Com
preferencia a todos os outros, andaria de modo que me tornasse um
curioso estudo dos scepticos. Estas feras é que eu amansaria. Se eu
conseguisse tornar-me objecto dos seus estudos physiologicos,
prometto-vos que a seita ridiculamente comica dos _cansados_, dos
_scepticos_, e dos _não comprehendidos_ acabava como as preciosas
ridiculas de Luiz XIV.

Querem saber o que eu fazia? Ahi vai... É um serviço gratuito que eu
offereço ás mulheres, embora provoque inimizades de homens, que são
realmente os entes que menos me incommodam. N'este mundo ha só duas
cousas que me affligem: são os maus charutos, e madrugadas antes de uma
hora da tarde. No mais entendo que este globo é o melhor de todos para
quem não tiver callos e rheumatismo.

Se eu fosse mulher com uma cara soffrivel, estabelecia para meu uso as
seguintes theorias:


_Solteira_

Tendo de quinze a vinte e cinco annos, dava-me ares de candida
innocencia, e singeleza patriarchal. Olharia este ou aquelle importuno,
mas só com tres partes d'um ôlho, imaginando que elle tinha quatro.
Far-me-ia passar por myope, para que ninguem reparasse no olhar
penetrante com que os myopes costumam encarar os objectos a certa
distancia. Não usaria luneta para mostrar assim que a minha vista era de
sobejo para admirar as poucas maravilhas do mundo. No theatro teria a
barba sempre apoiada na convexidade da mão, e nunca pegaria do binóculo
sem reparar que a luva retezada não tivesse rugas.

Com as lentes attestadas para a segunda ordem deixaria passear a vista,
como dizem os francezes, pelo rebanho de Epycuro, que somos nós os
miseraveis estafermos de calças.

Surprendida, retirava os olhos com indignada commoção, e perguntaria á
mamã se o vestido de D. Efigenia, ou de D. Simplicia não era de pessimo
gosto.

No final de cada acto, sahia a visitar uma amiga, e dava dous saltinhos
quando me erguesse do banco, para que a minha cintura não ficasse sempre
occulta pelo parapeito do camarote.

Acontecendo, porém, que a minha cintura lucrasse com o mysterio, não
sahia nunca sem lançar com languida graça uma pelliça pelos hombros. Nos
bailes não sei o que faria; mas o que devia fazer era não tocar nunca
n'um taboleiro, e acceitar com mostras de grande sacrificio a instada
offerta d'um fôfo, ou d'um rebuçado de chocolate. Liquidos, excepto agua
limpida, nenhum. Nos jantares tomaria duas colheres de sôpa, o pescoço
de uma rôla, ou a aza d'um frango. E isto mesmo seria vagorosamente
triturado pelos dentes preguiçosos, com ar de victima sacrificada ás
conveniencias d'uma sociedade, que tem o prosaismo de comer nas horas
vagas. Fructas, comeria uma laranja, uma amendoa torrada, e o resto do
tempo entretel-o-ia com o palito.

Como é natural que me retirasse com fome, em minha casa, nas horas
silenciosas da noite, quando a natureza já não respira, como se diz nos
primeiros capitulos de quasi todos os romances, comeria de modo que, no
outro dia, me levantasse pallida pelo effeito d'uma indigestão.

Estaria duas horas diante d'um espelho a desalinhar-me, porque o
desalinho é o mais melindroso toucador de uma mulher, que conhece
profundamente as irrisorias pieguices do homem.

Cheguei á especialidade em que eu muito queria ser mulher, pelo menos na
estação do theatro lyrico.

Se vivesse no Porto, colheria as melhores flôres da minha corôa na
estufa do real theatro de S. João, e escolheria de preferencia certos
catos reaes que eu lá conheço. Eu denomino cato real o leitor, qualquer
que elle seja, com tanto que tenha escripto algumas sandices e dito
outras tantas a respeito do scepticismo. É cato, de trapeira pelo menos
(esta classificação não é minha: pertence a um espirituoso folhetinista
que d'antes classificava catos, e actualmente elle proprio se fez cato
politico, e vive nas estufas doentias do jornalismo sério), é cato de
trapeira, dizia eu, todo aquelle que chora o eterno desalento da sua
alma despoetisada, e não desencrava a luneta indecentemente enorme da
primeira mulher, que teve o descuidoso passatempo de reparar cinco
minutos na sua pallida physionomia.

Com estes é que eu me queria encontrar, sendo mulher, e mulher
litterata, porque, do contrario, agradeço á Providencia o favor que me
fez de me atirar qual sou á torrente dos acontecimentos masculinos.

Mulher, e litterata, sacrificaria temporariamente a minha isempção a um
d'esses scepticos desgrenhados, que se balouçam na plateia como se,
insaciaveis de espirito, precisassem dar á materia todos os repellões,
que as turbas comtemplam como terremotos do talento.

Logo que eu conseguisse prender-lhe a attenção, aventuraria um d'esses
sorrisos, que me não custariam nada, sem que por isso me parecesse com
certas mulheres, que se escangalham em risadas alvares e frivolas,
mostrando a profundidade dos engastes mandibulares como quaesquer
cosinheiras nos seus colloquios amorosos com os cosinheiros respectivos.

Eu não me riria nunca; sorriria algumas vezes, e quereria que o meu
sorriso fosse recebido como formalidade da etiqueta para com os ditos
semsabores das pessoas que me rodeassem, que seriam quasi todas d'uma
fabulosa semsaboria.

A fera, domesticada no seu sanguinario scepticismo, procuraria
revelar-me dez paginas intimas da sua agonia dilacerante. Fallar-me-ia
quatro vezes do seu desalento: faria o necrologio da sua alma: citaria
Lazaro, levantando-se do tumulo á voz do Christo: e acabaria por
pedir-me que sentenciasse o seu futuro para optar entre a vida e a
morte.

O que eu faria, então, attenciosas leitoras, não sei se alguma de vós já
teve a condescendencia de o fazer. Mandava-o á meia noite apparecer
debaixo da minha janella; e, sendo no entrudo, atirava-lhe um ovo de
cheiro; sendo na semana sancta, quatro confeitos; e, no Natal, uma
tigelinha de ovos moles.

A humanidade estava vingada.

Ora aqui está o que eu faria, sendo solteira.


_Casada_

Sendo casada, eu era, com grande despeito da mulher d'um certo ministro
da fazenda do Egypto, chamado Putiphar, e da mulher do senhor Antonio
José da Silva, uma honesta mulher, de quem os mestres encartados de
necrologios diriam depois: _Era uma esposa carinhosa, o modelo das mães,
e uma senhora virtuosa a todos os respeitos_. É verdade que não é
necessario ser tanta cousa para, á sahida d'este mundo, deixar os
jornaes encarregados de dizerem ainda mais. Morram quando poderem, que
eu lhes prometto uma boa duzia de epithetos.

Eu seria não só o que me fizessem ser os constructores de necrologios e
epitaphios; mas, por minha parte, exerceria todas as virtudes
conhecidas, e muitas outras que ninguem conhece. Seria, por abreviar
moralidades, que me dão grande trabalho, e aborrecimento aos leitores,
seria tudo menos o que foi D. Maria Elisa.

O que o senhor Antonio seria, isso é que eu não sei; mas o que elle
estava sendo, em verdade vos digo, que não deve ser inveja de ninguem!

A eloquencia dolorosa, que o auxiliou no choque da surpreza, falhou-lhe.
Quiz fulminar a perjura com uma apostrophe corrosiva, e não lhe occorreu
nada a proposito. Um pensamento ignominioso esvoaçára-lhe na cabeça
febril... Teve tentações de esmagal-a contra a parede do quarto em que
esta scena attribulada corria desapercebida!

O negociante, digno de melhor sorte, pagava com usura as affrontas
orgulhosas com que tentára ferir a honra do seu visinho João Pereira.

No auge da desesperação, a sua alma tornou-se esteril, a sua lingua
pegou-se aos gorgomilos, os seus labios resequiram como queimados pelos
suspiros rugidores, que lhe subiam das soturnas catacumbas do peito. Um
tremulo de sezão vibrava-lhe os musculos da face, especialmente os
bussinadores, que a maior parte dos leitores não sabe o que é, mas por
isso mesmo é que tudo o que eu disser tem um cunho de originalidade, que
o senhor Antonio não sabia dar ao seu ciume, nem sua mulher á sua
perfidia.

Esta falsa posição não podia durar muito. Se se prolonga mais cinco
minutos, eu, por mim, declaro que largava a penna, e acabava o conto
aqui. Não ha nada mais semsabor que a situação da mulher desleal
surprendida por um marido, que nem sequer arranca de dentro quatro
gritos, e reteza os braços na arripiadora postura de Orestes, insultando
os deuses! Porque não disse o senhor Antonio alguma cousa fóra do
commum?

Porque não fez estylo de marido, que é o mais mascavado de todos os
estylos? Porque não exclamou: «_Perfida mulher! hei de beber-te o
sangue, e cevar no coração as minhas iras! hei de esfolar-te para
memoria eterna! hei de mandar ao vento as tuas cinzas, e a tua alma a
Satanaz! Oh! Ah! Ah! Oh!_»

Com estas palavras já eu compunha um capitulo, porque as outras tolices
encarregava-me eu de as pôr de minha casa, e juro que um dos maridos
mais venerados e ferozes do seculo, que passa, seria o nosso amigo
Antonio, com grande desfalque de João Pereira, que, no seu genero, não
era mau.

Assim nem eu sei como hei de acabar o capitulo de modo que elle e ella
não pareçam dous volumosos parvos! Se me lembrasse d'algum romance, que
tenho lido, cousa que se parecesse com isto!... Ah!... Achei um bom
desfecho, e que tem o merito de ser o mais natural de todos.

O senhor Antonio desceu solemnemente para a rua a procurar a jumenta,
que tão grata portadora tinha sido do seu anhelante coração. A jumenta
pilhando-se solta, fugira para casa, e não sei que monologo mental ella
faria á sua liberdade.

O senhor Antonio pedira aos eccos a sua jumenta. Os sobreiros da encosta
contemplavam silenciosos a sua dôr. A lympha dos regatos era como um
arremedo cruel aos seus gemidos! Desgraça!

N'este angustioso conflicto appareceu Maria Elisa. A carruagem
aproximou-se.

--O senhor veio a pé?--perguntou ella, vendo seu marido encostado a um
pilar da ramada.

--Que lhe importa?--redarguiu o marido convulso, mettendo as mãos nos
bolsos, e puxando as calças machinalmente para cima, dando-se a grutesca
figura d'uma talha chineza.

--Porque não entra na carruagem?--replicou a carinhosa esposa,
aproximando-se meigamente do marido, que fumegava pelas ventas, como uma
fabrica de fundição.--Venha... eu lhe explicarei tudo... verá que estou
innocente, ha de arrepender-se de me tractar assim...--proseguiu ella,
com o tremor de voz, que precede as lagrimas.

--Como innocente!--murmurou o senhor Antonio, um pouco modificado nas
caretas da sua furia legitima.

--Sim... innocente... Em casa lhe contarei tudo...

--Pois póde lá ser que estejas innocente?... Tu estás a mangar
comigo!...

--Verá que não sou digna da sua cólera, e que os seus ciumes são
injustos... A affronta que fez ao meu caracter de mulher casada, tarde
ou cedo lhe fará remorsos, senhor Antonio José da Silva!...

O tragico entono d'estas palavras acobardára os espiritos briosos do
marido. O senhor Antonio julgou-se algoz d'aquella victima; e, se ella
teima, haviamos de vêl-o ajoelhar aos pés do innocente holocausto do seu
ciume, e pedir-lhe perdão.

Maria Elisa, restituo-te os teus creditos! Andaste perfeitamente, por
fim! Eu, se fosse mulher casada, com os teus costumes, faria o que tu
fizeste.

Em 1819 ninguem faria mais do que tu!

Hoje... serias d'uma simplicidade boçal.




CAPITULO XXII


A seu tempo saberemos até que ponto o senhor Antonio podia ser
civilisado por sua mulher.

Agora vamos procurar Rosa Guilhermina.

Antes de entrarmos, reparemos n'esta mulher que bateu á porta primeiro
que nós.

--Quem é?--perguntou da janella uma criada.

--Faz favor de dizer á senhora D. Rosa que está aqui uma mulher, que lhe
quer fallar.

--Que lhe quer?

--A vmc.e não lhe quero nada, é a sua ama.

--Quer pedir-lhe alguma esmola?

--Sim, senhora, queria pedir-lhe uma esmola.

--Pois para isso escusa de fallar á senhora: pegue lá... Então não
levanta do chão os dez reis?!

--Não levanto, porque lhe não pedi nada a vmc.e Já lhe disse que quero
fallar com a senhora D. Rosa.

--A senhora D. Rosa não falla a mulheres de mantilha rôta... Se quer,
queira, se não quer, ande sempre...

A janella fechou-se e a mulher da mantilha rôta sentou-se no degrau da
porta.

Pouco depois, abre-se outra vez a janella, e apparece D. Rosa!

Vêde-a, já não é a rosa purpurina d'outro tempo!... A pallidez
d'aquellas faces não é natural!... Alli, ha muita saudade do que foi, ou
muito receio do que será! Aquelle desalinho não era d'antes assim...
Rosa tinha tanto brio nos seus longos cabellos negros!... Enfeitava-os
tanto de fitas e flôres!... E agora?... Aquelle lenço branco, que lhe
apanha as tranças desgrenhadas, é tão desairoso!... Aquelle chaile, que
lhe esconde as fórmas do pescoço mais lindo ao pé dos hombros mais
artisticamente torneados, dá-lhe um aspecto tão triste de enfermeira do
hospital... Que mudança!... faz pena!... Cahiu tão depressa da haste
aquella flôr, que tinha tanta vaidade das suas petalas avelludadas, e da
fragancia dos seus aromas!... Minha pobre Rosa, que é da tua
philosophia!... De que te valeram os teus romances, se te devias amoldar
aos typos dolorosos que lá encontraste!... Ai!... porque cheguei eu a
interessar-me na tua sorte, se nunca te conheci!... Porque ha de esta
phantasia pintar-me realidades, que me fazem dôres no coração, quando as
vejo sahirem infelizes dos bicos da minha penna!... Tenho cousas de
muito creança, leitores!... Desculpai-me estas imbecilidades...

Para que vieste tu á janella, Rosa, se quasi me obrigaste com a tua
pallidez a discorrer com ternura sobre cousas que me fazem lembrar mil
outras, e tão tristes são ellas, que nem eu sei se era mais feliz não
vindo ao mundo para recordal-as, ou, ao menos, vêl-as, e esquecel-as
para sempre... Forte puerilidade!... Se me não chamam para jantar,
n'este momento, eu reduzia-me á situação piegas de verter uma lagrima...
por quem?

Uma lagrima!...

Sabeis o que é uma lagrima d'um homem!... É a perdida essencia do sangue
que nos alimentaria a existencia longos annos!....................

........................................................................

A mendiga, ouvindo abrir-se a janella, ergueu-se, voltou a face
macilenta para cima, e cortejou D. Rosa.

--Quer alguma cousa, mulher?

--Queria-lhe dar duas palavras, minha senhora.

--Então diga d'ahi.

--Eu bem queria dizer-lh'as de perto.

Rosa voltou-se para dentro, e mandou abrir a porta. A mulher subiu, e
encontrou a senhora no topo da escada, perguntando-lhe o que queria.

--Venho pedir-lhe uma esmola.

--E para isso era necessario subir? Dissesse-o da rua, que eu
mandava-lh'a lá dar.

--Uma teima assim!...--atalhou a colerica criada--Eu já lhe tinha
deitado á rua dez reis, e ella não levantou do chão a esmola... O que
vossê merecia sei eu...

--Não se zangue tanto, menina... Bem me basta a minha pobreza. Lembre-se
que não está livre de chegar ao estado em que me vê... Outras mais
ricas, e com bem melhores principios que os seus, teem tido este fim...

--De mais a mais quer dar leis!--interrompeu a cosinheira, animada pelo
silencio approvador de sua ama--Sabe que mais, minha senhora? mande-a
pôr no ôlho da rua, que, emquanto a mim, essa mulher não vem para fazer
boa obra... Eu cá vou queimar arruda...

--Tome lá...--disse Rosa Guilhermina, offerecendo-lhe um pataco.

--Seja pelo divino amor de Deus...--disse a mendiga, beijando a esmola.

--Então não se vai embora?

--Ainda não, senhora D. Rosa Guilhermina... Tenho duas palavras a
dizer-lhe muito em particular...

--Que negocios poderei eu ter comsigo?!

--Negocios nenhuns; mas Deus não deu lingua á gente para fallar só em
negocios.

--Diga o que quer mesmo ahi.

--Aqui não, porque a sua criada está ouvindo o que nós dizemos.

--E que tem isso? Eu não tenho segredos de que me esconda á minha
criada.

--Mas vai tel-os agora, e bom é que ella não saiba o que vou
communicar-lhe.

--Fóra com a alcoviteira!--exclamou a criada lá do interior--_Má mez_
para ella!... Olha o estafermo que me apparece em jejum!...

--Esta sua criada, minha senhora, é bem pouco caritativa com os
desgraçados, e v. s.ª não é melhor que ella, pelo que vejo...

--Está bom!--atalhou irada D. Rosa--Eu não admitto reflexões! Saia, que
quero mandar fechar a porta.

--Pois devéras não me quer ouvir?

--Não, já lh'o disse.

--Pois ha de ouvir-me, digo-lh'o eu.

--Se cá tivesse o criado, mandava-a pôr no meio da rua.

--E a senhora para isso precisa d'um criado? Eu sou uma pobre velha sem
forças... qualquer sôpro me faz cahir, e a menina mesma póde empurrar-me
por esta escada abaixo...

--E esta? já se viu um descaramento assim? Vossê parece-me uma mulher
sem vergonha!...

--Pois tenho muita, e principalmente agora. Sabe Deus com quanta
vergonha eu vim pedir-lhe uma esmola.

--Mas, se eu lhe dei a esmola, porque se não retira?

--Não me retiro, porque os desgraçados não se satisfazem só com pão...
precisam d'outras consolações, que a menina póde dar-me.

--Pois que quer?

--Queria que me deixasse sentar um bocadinho nas suas cadeiras... Estou
muito fatigada, falta-me já a força n'estas velhas pernas, que tanto
andam, e tão pouco caminham... Tudo me falta... até a vista; nem já a
menina me parece o que era aqui ha um anno!... Deve ter feito uma grande
mudança a sua vida!... Vejo-a tão coadinha... A menina soffre do corpo,
ou da alma?

--Que lhe importa do que eu soffro? Não soffro d'uma nem d'outra
cousa...

--Pois louvado seja Nosso Senhor!... Felizes aquelles que assim o podem
dizer... Pois veja que differença... Eu soffro de tudo...

--E que culpa tenho eu disso?

--Nenhuma, nem eu a culpo, senhora D. Rosa Guilhermina...

--Faz favor de sahir, que quero recolher-me?

--Está o almoço na mesa--disse a criada.

--Se a menina consentisse que eu tomasse uma chavena de chá comsigo...

--Comigo?... essa é boa!

--Envergonha-se d'isso? Pois olhe que não descia de quem é, porque os
pobres foram sempre os amigos, com quem Jesus Christo repartiu o seu
pão, e os seus peixes.

--Parece-me esperta de mais para pobre...

--Pois é de obrigação que todos os pobres sejam brutos! Então dá uma
chavena de chá... a sua mãe?...

--A...

--A sua mãe!

--A minha mãe!... Quem é minha mãe?

--Falle baixo que a não ouça a sua criada!... Não lhe tinha eu dito que
era bem melhor ouvir-me em particular!... Espanta-se de mais, menina?
Pois não sabia que tinha mãe? Não soube ha um anno, que ella precisava
de recorrer á sua generosidade? Não calculou, que, mais hoje ou mais
ámanhã, a sua desamparada mãe devia cobrir esta mantilha esfarrapada
para vir receber dez reis da mão de sua criada?

--Eu não a reconheço como minha mãe... Eu já colhi informações de que
minha mãe não existia... Meu pae nunca me disse que eu tivesse mãe viva!

--Deus perdôe á alma de seu pae... Não lhe quero por isso amaldiçoar a
memoria... Pois, quer me acredite, quer não, esta desgraçada mulher, que
não conhece, esta velha, que ainda não tem quarenta e quatro annos, é
sua mãe.

--Não acredito, já lh'o disse... Prove-me que é minha mãe, e eu lhe
farei aquillo que já lhe quiz fazer, se vmc.e é uma tal Anna do Carmo,
que morou na rua Direita.

--Sou uma tal Anna do Carmo, que morou na rua Direita, e agora mora no
pateo dos conventos, esperando a tigella de caldo da caridade. Bem vê
que soffri muito antes que viesse importunal-a. Não disse a ninguem que
a menina era minha filha para a não envergonhar. Lembrei-me de que sendo
eu moça e rica do muito que seu pae me dava, não gostei de que minha
pobre mãe viesse um dia procurar-me para me pedir doze vintens para
comprar uma gallinha para minha pobre irmã, que morreu de miseria depois
d'um parto... Lembrou-me o quanto eu me vexei então, e quiz poupar minha
filha a similhantes vergonhas, que só sabe o que ellas são quem passa
por ellas. Agora, se aqui vim, é porque de todo em todo já não podia
levantar-me das palhas para ir de manhã procurar a bemdita esmola no
pateo de S. Bento e de Sancta Clara. Sinto-me quasi sem vida, tenho um
aneurisma no coração, e queria vêr se morria descansada para me
reconciliar com a misericordia divina... Se não fosse isto, minha filha,
eu não vinha de certo aqui, de mais a mais, tão rota, tão magra, indigna
de me chamar sua mãe...

Rosa Guilhermina tinha soffrido um abalo, e parece que as lagrimas iam
saltar-lhe involuntariamente dos olhos. Mas a criada, que viera
collocar-se, sem ser vista, na alcova proxima da sala, adivinhando a
commoção de sua ama, resolveu salval-a das arteirices da velha, e tomou
a palavra, saltando para o meio da sala, com a mão na cintura:

--Pois v. s.ª acredita o que lhe está dizendo essa onzeneira?

--Não... eu não acredito, mas tenho pena d'ella... Coitadinha... é a
necessidade que lhe ensina estas mentiras... Quer vmc.e uma chicara de
chá?

--Não, menina, eu já não quero a sua chicara de chá. Deus Nosso Senhor
dá-me forças para que eu possa viver sem a sua esmola. O que eu queria
era morrer, abraçando-a ao meu coração, e chamando-lhe _filha_...

--Será ella douda!--atalhou a criada.

--Não sou douda, não... Não receie que eu lhe quebre as suas jarras...
Estou no meu perfeito juizo... Estejam descansadas que não farei doudice
nenhuma. Se fosse ha um anno, poderia fazel-as... Hoje, já não... A
desgraça enfraquece a gente, e apura o entendimento... Conheço muito bem
minha filha...

--E ella a dar-lhe com o _minha filha_!...--interrompeu a criada.

--Ouça-me emquanto ella se ri, menina, que o que eu vou dizer-lhe ha de
fazel-a chorar. Conheço muito bem que não tenho direito nenhum a
pedir-lhe o amor, que se deve a uma mãe... Eu quasi que a não reconheci
minha filha. Dei-a ao mundo, e o mundo assim como a fez feliz podia
fazel-a muito mais desgraçada que eu sou... N'este mesmo momento, em que
venho aqui expiar as minhas culpas, confessando-lhe que fui tão
desnaturada mãe, olhe que lhe não tenho amor, nem me offendo com o seu
desprêso. Por força assim devia ser... Se não fosse assim, eu não
acreditava na justiça de Deus!... Se a minha filha me tivesse atirado
com um pontapé á rua, eu havia de levantar-me, se podésse, para lhe
dizer: «eu te perdôo, filha de Leonardo Taveira!» Veja que bom coração
eu poderia ter-lhe dado, se tivesse, quando a expulsei de meus braços,
um presentimento de que viria uma hora em que eu precisava das suas
consolações...

D. Rosa chorava, e a propria criada sentia-se amollecer no coração.

--Entre para esta sala--disse a filha do arcediago commovida.

--Não entro, minha filha, eu vou retirar-me; disse-lhe tudo, levo o
coração mais desabafado, e creio que a não offendi... Se a magoei,
diga-m'o, que lhe quero pedir perdão.

--Entre...--balbuciou Rosa, offerecendo-lhe a mão..

--Não... já lh'o disse... aqui tem os seus dous vintens, molhados de
lagrimas, que são a usura d'este emprestimo... Dentro d'essa sala não
posso entrar como mendiga: se eu podésse visital-a, como senhora, viria
muitas vezes aqui, e talvez lhe podésse fazer serviços que a poupassem a
muitas desgraças no futuro... Assim... adeus!...

--Não consinto que se retire; quero informar-me de quem a senhora é. Se
fôr minha mãe, hei de tratal-a como quem é...

--Por ser sua mãe, não sou ninguem, minha filha... A menina não me
honra, nem me deshonra. Não tenho senão remorsos de a ter dado ao mundo,
como posso eu ter vaidade de ser sua mãe!... Fique com Maria
Sanctissima, e diga á sua criada que não é do agrado de Deus insultar
assim as pessoas infelizes... Chame-a aqui, menina, que me quero
despedir d'ella...

A criada veio, instada por D. Rosa.

--Não se afflija, moça!--disse Anna do Carmo--Não tenha pesar de me ter
offendido, que eu perdôo-lhe de todo o meu coração... Tire d'aqui uma
experiencia para todas as pessoas necessitadas... O seu zêlo por sua ama
é demasiado... Receava que eu lhe pedisse algum vestidinho velho dos que
vmc.e espera que sejam seus? Não vim a isso... E para que se lembre do
que esta velha da mantilha rôta lhe disse, quero deixar-lhe uma
lembrança de mim... Pegue lá...

--O quê?--perguntou a criada, recuando a mão.

--É uma peça de quatro mil reis, com que vmc.e póde comprar umas
arrecadas... Acceite que lh'a dá a pobre mãe de sua ama!... Não quer?...
Ora pois, Deus lhe dê muito que dar...

A ama e a criada ficaram perplexas, encarando-se estupidamente, emquanto
Anna do Carmo sahia. Quando vieram á janella para vêl-a, ia já na
extremidade do bêcco, mas á porta de D. Rosa estavam dous homens, que
conversavam apontando para a mulher da mantilha rôta.

--Não a conheceste?--dizia um.

--Eu não, nem tenho pena--respondeu o outro com desprêso.

--Pois não conheces aquella mulher?

--Não... já t'o disse...

--Pois não conheceste a fidalga, que ha tres mezes comprou a quinta dos
Engenhos, na ponte de Ramalde!

--É aquella?

--É... dou-te a minha palavra d'honra que fui eu o tabellião que lavrei
a escriptura, e contei os doze mil cruzados.

--Mas então que historia é esta!... Ella vai assim rôta!

--Eu sei cá o que é! É o que tu vês...! Eu, logo que a avistei aqui
n'este sitio, conheci-a, e ella puxou para o nariz a côca da mantilha...

--Que celebreira!... eu ainda hontem a encontrei a passear n'um jumento,
com lacaio ao lado; e até me disseram que o fidalgo das Laranjeiras
queria casar com ella.

--Tu não sabes a historia d'esta mulher?

--Eu não... ouvi dizer que fôra casada com um livreiro, aqui no Porto, e
que depois ficára rica...

--É verdade... foi casada com um livreiro; mas o livreiro não deixou
fazer o ninho atraz da orelha, e foi-se embora para a França, onde
morreu. A tal senhora parece que lhe não foi fiel, e, na ausencia do
marido, menos o foi ainda. Viveu na companhia do celebre arcediago de
Barroso, que foi mandado sahir pelo bispo, e morreu na Hespanha. O padre
era muito rico, e por muito tempo ninguem soube que fim levou o grosso
cabedal que elle lá trazia comsigo. A final, ha de haver seis mezes,
morre lá uma freira, que, á hora da morte, declarou que o tal arcediago
lhe deixára em seu poder quarenta mil cruzados em ouro, para ella fazer
entregar a Anna do Carmo, moradora não sei aonde. A freirinha, só á hora
da morte se lembrou de cumprir o legado, e o caso é que não se lembrou
mal, porque a pobre amante do arcediago estava vivendo miseravelmente
ahi na rua Direita, e quando a procuraram para lhe dizer que se
habilitasse para receber a herança, a pobre mulher já se não levantava
da cama com fome. Ora aqui tens a historia da tal riqueza...

--Mas por ahi dizem que ella é fidalga...

--Isso é uma historia á parte. Apenas a mulher appareceu rica, soube que
era fidalga, porque a fizeram fidalga á força, uns taes que moram ahi
atraz da Sé, dizendo que ella era filha bastarda da casa. Começaram a
visital-a, a hospedal-a, a chamar-lhe prima, e tem querido leval-a para
a sua companhia... Ora, ahi tens a historia da mulher da mantilha...
Quem me déra saber o que ella andaria a fazer por aqui... Eu parece-me
que ella sahiu d'esta casa...

O tabellião olhou machinalmente para a janella, e viu esconderem-se duas
cabeças: eram D. Rosa e a sua criada, que se retiravam espantadas do que
tinham ouvido. E tinham razão. Eu, por mim, tenho-me espantado com
cousas muito mais pequenas. Mas o que devéras me espantou, foi
dizerem-me que Anna do Carmo, quinze dias depois, estava casada com o
ex.mo snr. ***, fidalgo, morador atraz da Sé, e fôra, _ipso facto_,
reconhecida prima de todas as familias illustres do norte desde os
Leites até aos Albuquerques, desde os Cogominhos até aos Malafaias!




CAPITULO XXIII


O senhor Antonio José da Silva deve ter movido a compaixão interessante
das damas, e talvez o desprêso dos briosos maridos, que, no logar
d'elle, tinham pelo menos degolado suas mulheres, e lavado a sua nodoa
em sangue.

Eu lhes digo: faziam uma solemne asneira, e arrependiam-se, depois, como
o senhor Antonio (que não era menos brioso que v. exc.as e s.as ) se
arrependeu de ter superficialmente condemnado sua mulher.

D. Maria Elisa convenceu o candido marido de que effectivamente tinha um
primo, filho d'uma irmã de sua mãe, que morrera pobre, e o deixára
abandonado. Que esse infeliz primo se tinha dirigido á sua compaixão,
pedindo-lhe alguns sobejos da sua fortuna para alimentar a penosa
existencia. Que ella, como esposa e dona de casa, responsavel pelos
cabedaes de seu marido, se negára, muito tempo, a dar-lhe os supplicados
recursos; mas, por fim, taes foram as instancias, que a seu pesar, não
pôde deixar de ceder aos impulsos do coração, que lhe mandavam soccorrer
o infeliz com as migalhas da sua mesa.

O senhor Antonio chorava de piedosa ternura, quando sua mulher, cada vez
mais eloquente e philantropa, continuou:

--Com o receio de que a vinda de meu primo a esta casa suscitasse
suspeitas malevolas, disse-lhe que me esperasse algumas vezes na
Ponte-da-Pedra, e eu, indo sósinha a passeio, lhe daria o que podésse
esconder aos olhos de meu marido, sem que elle desse pela falta, que de
certo era um crime...

--Pois não fizeste bem, Mariquinhas! É o que eu te digo, e perdôa... Se
me contas o caso, era eu o primeiro a dizer-te que podias dispôr á tua
vontade do que ha n'esta casa, porque o que é teu é meu, e o que é meu é
teu.

--Pois sim; mas eu não tenho ainda um cabal conhecimento do seu
caracter. Receei que me levasse a mal esta caridade com um meu infeliz
parente, e não ousei manifestar-lhe um desejo, a que o meu bom marido
annuiria mais por delicadeza, que por vontade do coração. Agora, que
tudo se declarou, não quero que o senhor Silva se mortifique por me ter
offendido com as suas imprudentes calumnias. Faça de conta que não houve
entre nós a mais ligeira desintelligencia. Estamos quites: o senhor
fez-me uma injustiça, reputando-me desleal; e eu fiz-lhe outra,
julgando-o sôffrego da sua fortuna, e incapaz de estender a mão
bemfeitora a meu desgraçado primo!...

--Ora, pois, não nos lembremos mais disso... Eu agora o que quero é
saber onde mora esse teu primo, porque sou eu o mesmo que propriamente
lhe quero ir levar os recursos necessarios para a sua subsistencia...
Onde mora elle?

--Onde mora elle?... (Maria Elisa não esperava esta! O improviso não era
o seu forte, e viu-se na mais embaraçosa atrapalhação). Eu, se quer que
lhe diga a verdade, não sei bem onde elle mora... mas deixe passar
alguns dias, e talvez que elle aqui mande algum recado...

--Pois então logo que elle appareça, farás favor de lhe dizer que eu
quero fallar com elle... Mas tu não conheces ninguem (tornou o
suspeitoso marido depois de reflectir um momento) que saiba onde elle
mora?

--Não, senhor.

--Não?... Eu não sei o que me parece isto, a fallar-te a verdade!...
Aqui anda dente de coelho!... Pois ninguem, ninguem?

--Talvez me lembre d'uma mulher que aqui veio trazer-me uma carta
d'elle, e me disse onde elle morava... Deixe-me recordar, e depois lhe
direi...

--Pois olha lá se te lembras... Eu sempre quero vêr os focinhos ao teu
primo... Acho que a cousa assim não vai bem...

--Que é o que não vai bem?!

--Eu cá me entendo...

--Isso que quer dizer? Explique-se, senhor Silva... Nada de mais
palavras... Não está ainda satisfeito com a explicação?...

--Podia estar mais, se queres que te diga cá o que tenho no meu
interior...

--Pois não sei que lhe faça. Creia, se quizer, e, se não quizer não
creia. Vai-me fazendo subir a mostarda ao nariz!... Eu não lhe dou
direito a duvidar da minha palavra. Se cuida que lida com sua irmã,
engana-se. Tenho uma face para o amor, e outra para o odio. Sei amar, e
sei aborrecer... Entende-me, senhor?

--Mas a que vem todo esse farelorio? Que te disse eu para tanta
arrenegação?

--Parece que duvida da explicação que lhe dei do meu comportamento?!
Esse direito só o dou á minha consciencia!

--Tem a menina muita razão; mas, eu, sim, acho que... parecia-me que não
sou mau homem, nem mau marido, se tenho cá minhas comichões de conhecer
seu primo!...

--Se tem comichões, coce-se... é o que eu tenho a dizer-lhe... E de
resto, se quer esperar que meu primo appareça, espere; e se não,
procure-o até encontral-o.

D. Maria Elisa retirou-se enfronhada, e foi feliz n'esta lembrança,
porque o senhor Antonio precisava de similhante reacção para entrar nos
justos limites d'um marido exemplar, como todos os maridos que não tem
pública-fórma.

Que é pública-fórma d'um marido? Eu sei cá... Lembrou-me isto; se me
lembra, em logar de pública-fórma, dizer uma sandice mais compacta,
creiam que não era homem de a deixar no tinteiro, porque, se ha
inviolabilidade n'este mundo, é para todas as sandices que se escrevem.
D'este peccado tenho eu a dar sérias contas a Deus; mas quem de certo
não deu nenhumas, quando d'este mundo se partiu, foi aquella alma gentil
do senhor Antonio, que nunca publicou asneira nenhuma, honra lhe seja
feita! Se vivesse hoje tinha pelo menos escripto para os jornaes uma
carta, renunciando a sua candidatura, ou qualquer outra trapalhice da
barbara linguagem do systema representativo.

N'aquelles felizes tempos, as asneiras desciam á sepultura com o
individuo; e d'essa grande sementeira creio eu que nasceram as muitas
que hoje amadurecem no jornalismo, e entre as quaes peço ao publico
imparcial que classifique a minha da «pública-fórma do marido» pelo que
me declaro já summamente penhorado, como todos aquelles que se retiram
d'um baile ás cinco horas da manhã.

Por não esgotar as frioleiras de que disponho, saberão, estimaveis
leitoras (se me dão a honra de me dirigir a v. ex.as, como quem quer
divertil-as da seriedade austera das suas cogitações) que D. Maria Elisa
entrou no seu quarto, e escreveu uma longa carta ao senhor Fernandes,
contando-lhe miudamente os infaustos successos.

Na manhã do seguinte dia, a anciosa esposa recebeu a seguinte resposta:

     «_Não te afflijas. Hoje de tarde ahi vai teu primo. Falla pouco, e
     deixa-o fallar a elle._»




CAPITULO XXIV


O senhor Antonio estava sériamente amuado. Atormentava-o a dúvida, e as
suspeitas terriveis principiavam a obra maldita do arrependimento.
Comparando a sua pacifica vida de solteiro com as consequencias da vida
matrimonial, arrependia-se o brioso mercador de pannos, e considerava-se
o bode expiatorio do seu orgulho insultante com o proximo do chinó, em
circumstancias analogas.

Era isto que affligia o coração do marido de Maria Elisa, emquanto ella,
amuada tambem, se fechára no seu quarto, imaginando a comica solução que
o senhor Fernandes daria ao problematico parentesco da Ponte-da-Pedra.
Assim se entretinham aquellas duas creaturas, quando foi dito ao senhor
Antonio que estava alli um sugeito, que queria fallar-lhe, sendo
possivel.

--Que diga quem é.

O criado voltou, dizendo que era um primo da senhora D. Maria Elisa.

--Devéras?!--disse o senhor Antonio, com sobresalto, expandindo as
bochechas em ar de contentamento.

--Sim, senhor, diz que é primo da senhora.

--E quer fallar comigo?

--É o que elle disse.

--E não fallou ainda com a senhora?

--Nada; nem por ella perguntou.

--Pois que suba para a sala.

Em seguida, foi introduzido na presença do senhor Antonio um sugeito de
trinta annos, pouco mais ou menos, com uma cara trivial, um trajo usado,
e maneiras delicadas.

--Tenho a honra de cumprimental-o, senhor Silva.

--E eu a mesma. Com que então o senhor é primo de minha mulher?

--Sim, senhor: filho d'uma irmã de sua mãe.

--Estimo muito conhecel-o.

--Eu devo, sem mais delongas, dizer a v. s.ª o fim que me traz a sua
casa.

--Ora diga lá sem ceremonia, os homens são uns para os outros, e eu
estou prompto a mostrar-lhe que não sou daquelles que... emfim... diga
lá o que quer...

--Quero ser eu o proprio accusador da mão bemfeitora, que tem derramado
sobre mim alguns beneficios. É preciso que v. s.ª saiba que eu sou
pobre, e não tenho podido até hoje agenciar pelo trabalho a minha
independencia. No commercio não me acceitam, porque me acham adiantado
em idade. Emprego não me dão nenhum, porque não tenho protecções. Para
militar não sirvo, porque sou muito doente do peito, e além d'isso muito
curto de vista. Para frade tambem não sirvo, porque não tenho
patrimonio, e de mais a mais não sei latim para poder entrar nas ordens
mendicantes. Sou, pois, vadio por necessidade; não tenho de quem me
valha, a não ser d'esta minha prima, que, pelo facto de casar-se com v.
s.ª, é a unica pessoa do meu parentesco, a quem se póde pedir uma
esmola! Nas minhas tristissimas circumstancias, dirigi-me a ella, e
achei-a fria, dura de coração, e insensivel ás minhas súpplicas. Instei,
segunda e terceira vez, obrigado pela indigencia, e consegui que ella me
mandasse esperal-a, algumas vezes, na Ponte-da-Pedra, onde me daria o
pouco que podésse economisar do que seu marido lhe dava para alfinetes.
Disse-lhe eu que não duvidava fallar pessoalmente a v. s.ª, e ella
tirou-me d'isso, dizendo que não queria ser pesada a seu marido com os
seus parentes pobres. Hontem foi um dos dias em que ella me deu uma
pequena esmola, e me prometteu algum dia empenhar-se com v. s.ª para que
se me désse um logar na alfandega, ou em qualquer repartição da justiça,
em que eu podésse ganhar com honra um bocado de pão. Quando fallavamos
n'isto, ouvimos uma voz, minha prima empallideceu, dizendo-me que
fugisse, porque ouvira fallar seu marido. Eu atrapalhei-me com os sustos
de minha prima, e nem tempo tive de reflectir nas consequencias da minha
fuga. Fugi pelo quintal, e vim de volta para a estrebaria escutar o que
se passava. Quando v. s.ª sahiu com ella, reparei que vinham amuados, e
entendi que eu fôra a causa d'essa desgraçada desintelligencia entre
dous esposos que tanto se amam, segundo ella me tem dito...

--Ella disse-lhe isso?

--Sim, senhor. Quando os vi enfronhados estive por um triz a sahir da
estrebaria, e dizer quem era, porque v. s.ª não seria tão barbaro, que
maltractasse sua mulher, porque tem um primo que necessita das suas
migalhas. O receio fez-me recuar no meu plano, e vim para casa meditar
na minha triste sorte. Resolvi ter animo, e venho eu proprio accusar-me
de ter sido o perseguidor de minha prima. O que ella me tem dado é tão
pouco, senhor Silva, que eu talvez, vendendo este velho casaco e estas
calças, possa embolsal-o. Quero ficar em mangas de camisa, mas não quero
que minha prima soffra por minha causa.

--Com que então o senhor metteu-se-lhe lá na cabeça que eu cá sou homem
capaz de tractar mal minha mulher, porque lhe deu alguma cousa? Ora
adeus!... mudemos de conversa! O senhor como se chama?

--Pedro José Sarmento de Athaide.

--Já que fallou em Sarmento d'Athaide, faz favor de me dizer d'onde é
que herdaram esses appellidos?

--Eu lhe digo... Meu quarto visavô João de Lencastre e Sarmento casou
com minha quarta visavó D. Urraca de Athaide, da casa de Valladares no
Alto-Minho. Tiveram quatro filhos. O morgado casou em Pena-Ventosa com a
herdeira da muito antiga familia dos Pesicatos...

--Dos...?

--Pesicatos e Bemóes.

--Nunca ouvi fallar d'essa linhagem.

--Não admira, porque ficou toda essa familia sepultada em Lisboa, nas
ruinas do terremoto de 1755. Foi uma grande desgraça para a posteridade
do outro ramo d'este tronco illustre. O filho segundo de meu quarto
visavô fez um mau casamento com uma mulher da plebe, e os dous seus
irmãos foram frades; um morreu dom abbade em Tibães, e outro foi bispo
de Constantinopla, e chamava-se fr. Zagallo Sarmento e Athaide.

--Nunca ouvi fallar d'esse senhor bispo de... Castanhóplas!...

--Pois, senhor, eu posso mostrar-lhe que elle era irmão legitimo do meu
terceiro visavô, com documentos que param na Torre do Tombo.

--Não é preciso; eu vejo que v. s.ª falla verdade... Mas como é que o pae
de minha mulher era negociante, e não era dos de primeira ordem?

--Isso explica-se pelos casamentos desiguaes. O vinculo passou para os
parentes que temos em Macau, e já meu avô foi negociante, e teve de
riscar de seu nome os appellidos de nossos avós, porque não podia
sustental-os. Ora aqui está a triste historia dos meus ascendentes, que
mal diriam elles que seu neto Pedro José de Sarmento e Athaide
precisaria de estender a mão á caridade de estranhos!...

--Pois, senhor Pedro, não ha mal que sempre dure. O senhor fez muito mal
em não vir ter comigo logo que soube que era seu parente por infinidade.
Havia de topar um homem como se quer para o seu amigo. Não fez bem...
mas emfim tudo se remedeia... eu vou chamar sua prima, e ella dirá o que
se ha de fazer...

--Perdão... eu acho que não será bom que ella saiba que eu vim aqui,
porque me não levará a bem a liberdade que eu tomei de me dirigir a v.
s.ª, abrindo-lhe francamente o meu coração...

--Qual?... Ora o senhor então não sabe como ella é!... Verá que ha de
estimar que se declarassem d'este modo cá certas suspeitas...

--Suspeitas!... quaes?...

--Eu cá me entendo...

--Mas eu é que não entendo... A minha honra está compromettida n'essas
suspeitas... Sou pobre, mas tenho pundonor; exijo que v. s.ª, em nome da
honra, me declare quaes foram as suspeitas...

--Eu lhe digo, senhor Pedro... Eu não sabia que minha mulher tinha
primos, e, quando me disseram na estalagem que ella estava com um primo,
metteu-se-me cá uma asneira na cabeça...

--Qual asneira?

--Pensei que o tal primo era algum rufião...

--Rufião!... Eu não entendo essa linguagem!

--Quero dizer que pensei que andava por ahi algum farropilhas a
arrastar-lhe a aza!

--Então o senhor não sabe que minha prima pertence á veneranda linhagem
dos Sarmentos e Athaides, e não consta que, na genealogia dos Pesicatos
e Bemóes, se désse uma infidelidade porca e villã!... V. s.ª offendeu as
cinzas de meus avós! Em nome de meu quarto visavô, João de Lencastre e
Sarmento, e de fr. Zagallo, bispo de Constantinopla, exijo que me dê uma
satisfação!...

--Não se arrenegue assim, senhor Pedro... Um marido póde enganar-se
muitas vezes com sua mulher!

--Mas eu, neto de heroes, é que não admitto enganos taes! As suspeitas
são affrontas! V. s.ª affrontou-me na pessoa de minha prima! Insto pela
satisfação! Na França entre cavalheiros é costume disputar-se a honra á
ponta de espada. V. s.ª ha de bater-se comigo!

--Eu!... essa é que é daquella casta!... Pois eu, sem mais nem menos, hei
de agora jogar a tapona com o senhor, porque se me afigurou que minha
mulher não era tão boa como se dizia! Ora, senhor primo, deixe-se
d'isso... Eu não sei cá d'esses costumes dos francezes... Que os leve o
diabo e mais quando elles cá vieram...

--Não me importam os francezes! Importa-me a honra de meus avós,
insultada em minha prima D. Maria Elisa de Sarmento e Athaide. Senhor
Antonio! Dentro em vinte e quatro horas um de nós estará na eternidade!

--O senhor, por mais que me digam, está a mangar comigo, ou não regula
bem da cabeça!

--Com a honra não se manga, senhor negociante de pannos! Se a sua arma é
o covado, a minha é a espada, que herdei de meu vigesimo-quarto avó D.
Alarico Themudo Pesicato! É forçoso que se bata, ou então que declare á
face do céo e da terra que é um covarde. Dentro de vinte e quatro horas
virei procurar a resposta. Se não quizer bater-se, hei de sacrifical-o
aos manes de meus illustres avoengos, que do Olympo excitam a minha
coragem! Não tenho mais a dizer-lhe, senhor!

--Venha cá... isto não é modo de tractar o homem de sua prima!... Se
quer dinheiro, diga-o, e não esteja ahi a arrotar postas de pescada.

--Com que então chama o senhor a isto arrotar postas de pescada!...
Muito bem! Hei de provar-lhe que as postas do seu corpo tambem se
arrotam!... Passadas vinte e quatro horas, repito, um de nós será
cadaver!

O neto dos Pesicatos sahiu. O senhor Antonio, atordoado com a seriedade
do negocio, entrou no quarto de sua mulher.

--Que diabo de homem é este teu primo, ó Mariquinhas?

--Meu primo!... pois elle esteve cá?!

--Sahiu agora mesmo... O homem parece-me doudo!...

--Pois que fez elle?

--O que fez?... Quer que eu jogue a bordoada com elle!

--Porquê?

--Isso agora é que eu não sei!... Levou-se dos diabos por eu lhe dizer
que tive cá minhas desconfianças a teu respeito... e, ás duas por tres,
põe-se a berregar como um barqueiro, e a dizer que antes de vinte e
quatro horas um de nós havia de morrer!... Que te parece isto?

--Parece-me um sonho!... Porque me não chamou?

--Porque elle não me deu tempo... Começou a desembuchar umas trapalhadas
d'avós, e do bispo, e dos Pesi... Pesi... como se chamavam esses homens
da tua linhagem?

--Quaes homens?

--Uns fidalgos que morreram no terremoto de Lisboa?

--Eu sei cá que homens eram esses!...

--Eram os... os... Pesigatos... De que te ris? O caso não é para isso...
O tal teu primo, se é doudo, o melhor é amarrarem-n'o, e mandem-n'o para
o hospital de S. José...

--Que figura tinha elle?

--Pois tu não sabes que figura tem teu primo?

--Sei... mas... lembro-me se não seria elle...

--Elle não se chama Pedro?

--Sim... elle... chama-se... Pedro.

--Pois então ahi está... É elle mesmo... deu-me todos os signaes certos
da Ponte-da-Pedra.

--E que lhe disse?

--O homem fallou bem, a respeito de não ter meios, e fez-me cá no
coração uma certa aquella; mas, depois, parecia-me um maluco chapado, lá
com as suas valentias. É preciso saber como isto ha de ser; eu não quero
historias com elle. Manda-lhe dizer que se deixe de asneiras, se quer
ter que comer e vestir em minha casa, ouviste, Maricas?

--Pois sim; mas eu ignoro a sua residencia. Quando elle cá tornar,
chame-me, e eu verei como se remedeiam as loucuras do meu primo.

O senhor Antonio, um pouco mais socegado, relatou, pouco mais ou menos,
a sua mulher o dialogo que tivera com o descendente do bispo de
Constantinopla. Maria Elisa ouvira-o, afflicta com vontade de rir-se, e,
ao mesmo tempo, vexada de ter um marido, que se prestava assim ao
ridiculo. Era bem natural esta mortificação do amor proprio.

A conversação foi interrompida pela chegada de dous senhores, que
precisavam immediatamente fallar com o senhor Silva.

--Temos alguma!...--murmurou o negociante, e entrou na sala onde o
esperavam dous officiaes de cavallaria, de grandes bigodes, e caras de
arremetter.

--Quem são v. s.as?--perguntou o assustado dono da casa, apenas os
encarou.

--Somos embaixadores de Pedro José de Sarmento e Athaide!--respondeu um
d'elles, arqueando os braços, e levantando a caneca com orgulhoso
entono.

--Embaixadores!... e que me querem os senhores embaixadores?

--Advertil-o de que é desafiado pelo nosso amigo...

--Ora, deixem-se d'isso!...--interrompeu o senhor Antonio, fingindo que
recebia a intimação com gracejo--V. s.as estão a brincar... Queiram
mandar-se sentar.

--A nossa missão cumpre-se de pé... e v. s.ª ha de responder-nos tambem
de pé! Queira tirar o seu barrete, por que nós tambem estamos
descobertos. As formaes solemnidades d'este acto não permittem
distincções de cavalheiro para cavalheiro. Repito, senhor! Queira
descobrir-se!

--Eu estou em minha casa, posso estar como quizer.

--N'este momento a sua posição é outra. O homem desafiado não se
considera em sua casa, emquanto a sua honra não está illibada, porque o
homem deshonrado não tem casa, nem propriedade, nem direito!
Descubra-se!

O senhor Antonio tirou o barrete, e emmudeceu na presença de similhante
insolencia.

--Muito bem... Responda agora: quer bater-se em leal duello com o senhor
Pedro José de Sarmento e Athaide Pesicato?

--Não quero lá saber d'essas cousas, já lh'o disse a elle, e não me
façam azedar o estomago, senão eu mando chamar o meirinho geral, e os
senhores são catrafiados e mais elle na Relação.

--O senhor insulta-nos! Se não tivessemos piedade da sua barriga... essa
lingua seria cortada pelo gume d'esta espada!...

--Os senhores vem insultar-me a minha casa! Já no meio da rua, quando
não chamo os visinhos.

--Cale-se, monstro! quando não...

Os esturdios desembainhavam as espadas quando Maria Elisa entrou na
sala, e parou diante de seu marido, que recuava espavorido.

--Isto que quer dizer?--perguntou ella--Não respondem?... Que infamia é
esta de entrarem n'uma casa estranha insultando o dono d'ella?

Os embaixadores do imaginario primo arrefeceram nas suas comicas furias,
e não ousaram responder.

--Retirem-se d'esta casa!--disse Maria Elisa apontando-lhes a porta da
sahida.

--Minha senhora...--balbuciou um d'elles--nós somos enviados por...

--Seja por quem fôr. Vão dizer a quem os enviou, que Maria Elisa lhe
manda dizer que o seu procedimento é muito infame, e que eu muito sinto
não ser homem para poder dar a v. s.as uma resposta cabal!
Retirem-se!...

Os officiaes sahiram vexados, e o senhor Antonio estava espantado da
coragem de sua mulher.




CAPITULO XXV


O senhor Fernandes quando respondeu, em duas linhas, á carta que Maria
Elisa lhe enviara, contando-lhe os successos occorridos desde a fatal
surpreza da Ponte-da-Pedra, procurou um seu amigo, cadete de cavallaria,
e convidou-o a representar de primo para poder salvar a sua amante do
risco.

O cadete, mancebo de maus costumes, e votado engenhosamente a toda a
casta de maroteira, acceitou o papel e estudou-o com muita habilidade.
Era necessario que D. Maria Elisa o não visse para obviar aos embaraços
muito naturaes em tal surpreza. Fernandes inventára o desafio, e o
cadete inventára de improviso a historia genealogica dos Pesicatos e
Bemóes, que encaminhou ás mil maravilhas a historia do duello.

O comico, retirando contentissimo do bom exito da sua travessura, antes
de procurar Fernandes, fez obra por sua conta, divulgou a brincadeira
aos seus camaradas, que eram o tenente e alferes da companhia, e achou
n'elles dous optimos bargantes para continuarem a caricatura.

Quando a ultima scena se passava no Serio, o senhor Fernandes, na rua
das Flores, estava desesperado, porque previra que Maria Elisa levaria a
mal este excesso de escarneo a seu marido. Elle bem sabia que nenhuma
mulher consente que a desgraçada condição do marido ultrajado seja um
brinquedo para o ludibrio do homem, que fatalmente a levou a uma
fraqueza de coração.

Era tarde para remediar a imprudencia. Esperou, inventando pretextos que
o reconciliassem com Maria Elisa, no caso possivel de ter ella sido
testemunha da zombaria feita a seu marido.

Não se enganára. O cadete fora o portador da resposta enviada pelos
officiaes. Fernandes, reprovando o procedimento do seu amigo, que dava
grandes gargalhadas, e promettia contar o caso a toda a gente, escreveu
a Maria Elisa historiando o acontecimento. Era impossivel salvar-se!
Embora não tivesse elle sido o inventor do escandalo, quem expozera
Antonio José da Silva fôra de certo elle, e Maria Elisa leu a carta,
rasgou-a, e devolveu-lh'a.

Seguiram-se novas remessas de cartas, que ella nunca abriu. Deixou de
sahir de casa, para não ser encontrada. Soffreu quanto póde soffrer o
amor proprio. Não sentiu, por isso, mais interesse por seu marido;
todavia córava, muitas vezes, diante d'elle, lembrando-se que o fizera
descer tanto. Comprehendam-na, se podem! A sua consciencia estivera
tranquilla até ao momento em que foi surprendida na Ponte da Pedra! O
que lhe pesava não era a infidelidade; era o ultraje, que lhe fizeram a
ella, escarnecendo um traste de sua casa, uma cousa que a sociedade
chamava o «seu marido»!

Eu, se fosse mulher, seria isto, pouco mais ou menos, e levaria o meu
nobre resentimento ao extremo de abominar o vaidoso amante que
estabelecesse termos de comparação com meu marido.

A situação de Maria Elisa era muito especial. O senhor Antonio estava
assustado, e dava como certa a sua morte, logo que os officiaes de
cavallaria o encontrassem a geito. Ao anoitecer mandou trancar as
portas, e armar os criados, emquanto, confiado na coragem de sua mulher,
consultava os meios, que devia empregar, para judicialmente defender da
sua arriscada corpulencia os golpes de espada d'aquelle par de Damocles
que o neto de D. Alarico Themudo Pesicato lhe enviava a casa.

Maria Elisa queria serenar os sustos de seu marido; mas de que modo? Se
lhe dizia que tudo aquillo fôra uma phantasmagoria, ficava a sua honra
muito duvidosa para seu marido. Se deixava medrar o terror do infeliz, o
pobre homem succumbiria de medo, se visse em sonhos o lampejo da espada
nas proximidades da barriga provocante.

Os palliativos não valiam nada para a cura. O senhor Antonio, no auge do
medo, chegou a censurar sua mulher por ter usado palavras fortes de
mais, quando deu ordem de despejo aos militares.

Maria Elisa quando viu, ao cabo de tres dias, que seu marido tinha febre
e tremia ao menor ruido que se fazia nas escadas, sentiu escrupulos, e
accusou-se de ter concorrido para os soffrimentos do pobre homem.

Fernandes teimava em escrever-lhe, e não conseguia que as suas cartas
fossem, ao menos, abertas. O seu tormento inspirou-lhe um recurso
extremo. Pediu ao cadete que se apresentasse humildemente em casa do
negociante, pedindo-lhe perdão das asperezas do seu caracter, e
affiançando-lhe que nada viria perturbar-lhe a sua tranquillidade.

Maria Elisa estimaria este acontecimento; mas não queria lembral-o ao
seu indigno amante, porque jurára acabar taes relações.

O cadete foi representar, de boa vontade, a segunda parte da farça. O
senhor Antonio não quiz ouvil-o, sem que sua mulher estivesse escondida
no quarto proximo, para intervir, sendo necessario.

--Eu venho--disse o cadete--desarmar a sua justa indignação, senhor
Silva. Foi de mais o meu brio. Minha prima é sua mulher, e v. s.ª não
tem obrigação de responder-me pelo mau conceito que fez d'ella.
Desafiei-o: fui imprudente; mas espero merecer-lhe um generoso perdão,
visto que as minhas demasias são filhas do nobre sangue que me gira nas
veias. Retiro-me na certeza de que v. s.ª, de hora em diante, não se
lembrará mais do passado, e terá por mim a estima que se deve a qualquer
individuo, que zela a honra de nossas mulheres, tanto como nós.

O senhor Antonio ouviu-o primeiro com sobresalto, e depois com
satisfação. Tinham-lhe alliviado do coração o pêso de quatro quintaes. O
sangue girava-lhe de novo em toda a extensão do systema circulatorio; e
os frouxos, que lhe accommetteram as pernas, desappareciam, á maneira
que o primo de sua mulher lhe garantia a inviolabilidade do seu abdomen.

O senhor Antonio tinha um excellente fundo. Não era valente, mas odiento
tambem não. Deu um abraço no estroina, que recuou dous passos para o
receber com todas as formalidades d'um habil comico, e pareceu-lhe até
que o primo de sua mulher (valha a verdade) lhe déra um beijo na
bochecha direita. Não affianço isto; mas o que posso, debaixo da palavra
de honra dos meus amigos, affiançar, é que um beijo na face do senhor
Antonio, se se deu, revela um gosto estragado, um paladar torpe, e
alguma cousa de indecencia atroz na pessoa do cadete.

A verdade é que o tranquillo marido recobrou a felicidade inquietada, e
restituiu a sua mulher a plena confiança retirada por uma fatal
intermittente de ciume. Desfazia-se em satisfações, acarinhava-a a seu
modo o melhor que podia e sabia, comprou-lhe duas pulseiras de grande
custo, e uma fivela de cintura, cravejada de diamantes. Maria Elisa
acceitava os carinhos, a fivela, e as pulseiras com a mesma
indifferença.

Não era, porém, filho do estudo este desdem. A chistosa amiga de Rosa
Guilhermina vivia triste, porque vivia só. Desde que se entregára
apparentemente ao extremoso negociante, as suas horas unicas de
passageira felicidade eram as da Ponte-da-Pedra. Fernandes era um homem
de não sei que perverso talento que seduz, capacita; e chega a victimar
as proprias mulheres que teem a consciencia de que são victimas. Talento
e corrupção eram já n'aquelle tempo uma espada de dous gumes com que se
cortam os nós gordios do coração de certas mulheres. E Maria Elisa era
uma d'essas certas.

O que ella teve de mais, entre as da sua escóla, foi uma caprichosa
dignidade, que a fez esquecer num momento o amor d'um anno. Recordava-se
de Fernandes com pesar, e odio; saudade, nunca. Quando se deixara cahir
nas astuciosas ciladas, que elle lhe preparara, com o animo frio da
experiencia das Marcellinas (que pelos modos eram muitas n'esse tempo,
apesar dos frades, e da suspirada virtude de outras eras) tirára ella,
como condição, um eterno silencio a respeito de seu marido. Parece que o
galhofeiro amante epigrammou, uma vez, o abdomen do senhor Antonio, e
teve, em vez de sorriso approvador, um gesto de desprêso, que elle
reconciliou lá como pôde. O caso é que nunca mais cahiu na leviandade de
ferir a susceptibilidade de Elisa, lembrando-lhe a monstruosidade moral
e physica de seu marido.

Foi pessima lembrança aquella de enviar o cadete a representar de primo!
Maria Elisa quereria antes ser julgada, qual era, por seu marido, porque
a deshonra seria um segredo domestico, e a hilaridade publica não viria
aggravar a vergonha de ambos. Mas o remedio comico e inesperado, que o
inconsiderado Fernandes deu ao mal, era exacerbar a ferida, expondo-se
ao ar da publicidade, e ao fel do ridiculo, prompto sempre a flagellar
os maridos da escóla do senhor Antonio, que não são muitos, mas
satisfazem as necessidades de alguns celibatarios que vieram ao mundo
para chronistas dos infortunios alheios. Eu, que sou um dos que se
honram d'essa missão, não posso deixar de confessar publicamente a minha
admiração por esta senhora, digna (a todos os respeitos não direi, mas a
alguns, de certo) d'outro marido, ou d'outro amante. Qualquer que tenha
sido o seu peccado, a gente de bom coração tem pena d'ella, vendo-a,
depois dos tristes acontecimentos que historiei com sincero dó, sósinha,
entregue á escuridão da sua vida sem amor, sem luz, sem ar, alli sempre
na presença do senhor Antonio, carinhoso até á desesperação, terno até
ao aborrecimento, desvelado em extremos de meiguice tôla até dar vontade
de o mandar comer e dormir.

Isso foi que elle nunca deixou de fazer. O estomago era uma cousa á
parte na sua organisação. Eram dous Antonios n'um. O Antonio do ciume
morreria de paixão: mas o António do estomago só uma indigestão poderia
matal-o.

Sempre ao lado de sua mulher, inerte, sedentario, bufando, arquejando,
impando, o nosso amigo sentia-se cada vez mais pesado. A medicina
mandava-o passear a pé, e elle sem Maria Elisa, não dava um passo. Já
não eram suspeitas. Era a tenacidade do amor, a reloucura da velhice que
o prendia áquella mulher, como se prende a creança timida ao seio de sua
mãe.

Correram assim tres mezes. Maria Elisa, cada vez mais triste, cahiu
n'uma especie de doloroso somnambulismo. As janellas do seu quarto não
se abriam nunca. Passava as longas horas do dia e da noite, lendo sem
reflexão, e escrevendo cousas que o seu marido não entendia, mas gostava
d'ouvil-as. Eram «melancolias surdas» como ella intitulara os trinta
cadernos de papel em que as escrevera. Disseram-me que essas paginas
perdidas continham cousas bonitas, pensamentos que não pareciam de
mulher, energia de phrase, conhecimento do coração, e toque real d'uma
verdadeira dôr. O que não viram n'ellas as pessoas, que me informaram,
foi o nome de Fernandes. Parece que a imagem d'este homem fôra para
sempre banida das saudades de Maria Elisa.

Constrangida pela soledade, a antiga orphã de S. Lazaro lembrou-se com
amor da sua amiga de infancia. Queria revocal-a ao seu coração, d'onde
nunca sahira, mas seu marido odiava Rosa, fazia-se côr de carmim quando
lhe fallavam n'ella, e repetira muitas vezes que, emquanto elle fosse
vivo, a filha do arcediago não entraria em sua casa.

Maria Elisa não replicava a este odio inveterado. Tinha compaixão do
pobre homem que, desde certo tempo, vaticinava a morte. Já não comia com
o mesmo appetite. Já não accumulava com prazer as sopas na tigella do
caldo de gallinha. Sentia precisão de sentar-se, apenas se erguia, e
acordava muitas vezes de noite com os pés frios e a cabeça em braza.

A senhora Angelica, sempre a mesma devota, depois das desordens, por
causa do neto dos Pesicatos, metteu-se no seu quarto, em oração
permanente, e apenas sahia tres vezes em cada doze horas para comer,
visto que era necessario dividir a sua extatica existencia entre o
oratorio e a cosinha. Quiz, algumas vezes, intrometter-se na vida de seu
irmão, censurando a frieza de sua cunhada; mas não obstante a seriedade
do assumpto, a senhora Angelica, se fallava só dizia asneiras, o que não
succede sómente á senhora Angelica.

Consta que ella fôra uma vez ainda consultar a senhora Escolastica, a
Massarellos; mas esta mulher tinha morrido de fome, não obstante
predizer o futuro, que, parece, á primeira vista, um bom modo de vida,
depois de jornalista, que são as Escolasticas de calças e paletó do
nosso tempo.

Eu vou dizer-vos cousas pungentissimas. É com pena, realmente vos digo,
que me vejo obrigado a deixar morrer uma das creaturas mais notaveis
d'este romance. Accuso a medicina d'aquelles tempos por não ter salvado
d'um ataque apopletico o senhor Antonio José da Silva. Se fosse hoje,
este homem não teria morrido, sem que ao menos o esfolassem com quatro
duzias de ventosas, e cento e tantos causticos. Tel-o-iam salvado com
alguma d'essas medicinas, que disputam entre si a vida dos cidadãos, ao
passo que as camaras municipaes mandam alargar os cemiterios. Felizes os
que morrem hoje, que, se morrem, é porque não podiam viver mais.

O senhor Antonio deitou-se uma tarde, queixando-se de dôres de cabeça.
Metteu os pés n'um banho de mostarda; mandou pedir a sua mulher que
viesse fazer-lhe companhia, e recebeu-a morto, quando ella entrou. O
facultativo chamado sangrou-o. A veia verteu algumas gotas de sangue
negro, e fechou-se, porque as valvulas do coração estavam fechadas para
sempre.

Maria Elisa tomou a mão do cadaver, e beijou-a sem lagrimas. A senhora
Angelica veio ao quarto de seu irmão, e chorou muito, grunhiu
desentoadamente, e atordoou a visinhança com gritos. Feita esta berraria
de duas horas, comeu alguma cousa sem appetite; mas podia dizer que
tinha fome que ninguem duvidaria da sua palavra. Ao mesmo tempo, Maria
Elisa, que não gritára, nem chorára, fugindo do quarto de seu marido,
fechára-se no seu, escondera a face nas mãos, e murmurou: «Perdi um pae!
Sou orphã outra vez!»




CAPITULO XXVI


A viuva do honrado negociante, que passou da terra sem um necrologio,
escreveu a Rosa Guilhermina uma carta que era um grito supplicante á sua
amiga d'outro tempo. Pedia-lhe que viesse, porque a chamava de ao pé
d'um cadaver. Só, sem amigos, e rodeada de riquezas inuteis, appellava
para a unica pessoa capaz de avaliar a sua orphandade.

Rosa Guilhermina entrou com o portador da carta. Abraçaram-se, chorando.
Fecharam-se, para se furtarem ás formalidades estupidas das visitas
funebres, que nos vem dizer: «sinto muito» e nos obrigam a responder:
«muito obrigado.» Dous dias e duas noites quasi não tiveram um
intervallo de silencio. Soffriam ambas, soffriam muito, e já não sabiam
adubar as conversações d'aquella fina especiaria de risos, que tanto
promettiam, e em tantas lagrimas deviam converter-se depois.

--Já não somos as mesmas, Maria Elisa!--disse Rosa, abraçando a sua
amiga, que lhe inclinava o rosto pallido no hombro.

--Já não... A nossa mocidade foi um dia... Parece-me que vivo ha
muito... Tem-me lembrado a morte, como o maior beneficio que posso
esperar do céo...

--E eu tenho-a pedido tantas vezes!...

--Tambem soffres, Rosa?! Não tens um esposo amado?

--Não.

--Como não? pois não casaste por paixão?

--Casei... e depois, vi que me tinha perdido...

--Pois que? elle não te estima?

--Não... arrasta-me na sua desgraça... Meu marido é um homem perdido...
um ente sem honra, nem futuro, nem presente.

--Pois teu marido não está a formar-se em Coimbra?

--Já não trata d'isso... Meu marido é um jogador.

--Jogador!

--Sim, jogador de profissão... Gastou quanto podia gastar do meu
patrimonio... O pouco que possuo para a minha subsistencia e de minha
filha, tira-m'o com violencia. Foi riscado da universidade, veio ao
Porto vender aquella prata, que tu déste a minha filha, depois de a
comprares a meu marido, e foi para Lisboa, sempre acompanhado d'uma
mulher ordinaria, que viveu na minha companhia quinze dias, e ousou dar
ordens das minhas portas a dentro. Ha cinco mezes que não tenho,
noticias d'elle. Nem ao menos me pergunta por sua filha. Sei que vive,
porque, no fim de cada mez, se apresenta em minha casa uma ordem
assignada por elle para eu pagar quasi tudo que o juiz dos orphãos
arbitrou para o sustento da minha familia... Aqui tens a minha vida...
Estou pobre... Maria Elisa!...

--Tu não estás pobre, Rosa! Não me falles assim, que me fazes chorar! Tu
não estás pobre... Eu preciso que te esqueças de todo o nosso passado,
para entrares de novo no coração de Elisa... Queres ser minha? Eu estou
viuva, e viuva tambem tu estás... O teu coração não é já d'esse homem...
É da tua filha, e meu; a tua filha é minha e tua, sim?... Não chores...
Troquemos entre tres as nossas affeições todas... Vivamos n'uma só
vontade... Foge para os meus braços, que não tem no mundo ninguem que os
queira, a não seres tu... Faz-me outra vez sorrir para a vida, que
n'estes ultimos dous annos me tem sido tão negra... tão negra... Rosa!
Faz que a minha riqueza me seja uma cousa agradavel... Dá-lhe algum
prestimo... Só tu podes, se vieres ser outra vez minha irmã, explicar-me
a razão por que eu queria ser rica... Era para isto, era, minha querida
amiga, era para nos fazermos felizes tres creaturas... eu, tu, e a nossa
menina... Vai buscal-a... Vai... Não me digas que não... que me matas...
Essa mesada que tens dá-a a teu marido... Que jogue, que se deshonre,
mas foge-lhe tu, que não tens ainda uma nódoa na tua vida... Vem
ensinar-me a ser boa, e honrada, porque eu tenho sido...

--O quê?... que tens tu sido?...

--Uma desgraçada...

--Tambem eu... que culpa temos nós?!

--Eu?... muita!... Calemo-nos, Rosa... Olha aquelles sinos pezam-me
sobre o coração... Tenho mêdo d'aquelles sons... Se meu marido tivesse
sido n'esta vida um homem, como eu deveria ter encontrado um, eu
pensaria que aquelle dobre era a voz d'elle que me accusava da
eternidade... Ai!... tu ignoras a minha vida? Parece impossivel!...
Nunca ouviste fallar de mim como se falla d'uma infame mulher?

--Nunca...

--Pois pergunta ao mundo o que eu fui... Não, não perguntes nada...
Ignora tudo. O meu coração para ti está puro... Restituo-t'o como t'o
roubei, ou tu o lançaste de ti para fóra... Não te importem os meus
defeitos... Foi um sonho horrivel! Acordei nos teus braços... quero aqui
viver... Deixas-me esquecer aqui do muito que tenho soffrido?...........

........................................................................

Rosa Guilhermina recebia com lagrimas as meias confidencias de D. Maria
Elisa, quando lhe disseram que seu marido a procurava, por saber que
ella estava alli.

A surpreza brutificou-a.

Maria Elisa mandou subir Augusto Leite, e reanimou a sua amiga do
lethargo em que a deixou esta apparição tão pouco desejada. Fôra preciso
muito para que a pobre senhora aborrecesse seu marido.

Não bastariam para isso as dissipações que elle fizera do seu
patrimonio. A mulher perdôa sempre os desperdicios de seu marido, com
tanto que elles não envolvam uma affronta ao seu amor proprio, servindo
de preço aos amores alheios que se vendem.

Não fôra, pois, o jogo que arruinara a felicidade de Rosa. Foi o descaro
insultuoso com que Augusto, na sua penultima vinda ao Porto, lhe
introduzira em casa a tricana das chinelas amarellas, mulher insolente
que, authorisada pelo amante, ousara esbulhar os bragaes da casa,
deixando a sua dona só os indispensaveis.

Estes vexames nunca se perdôam. A esposa, assim ultrajada, póde
soffrel-os calada como martyr, mas não poderá nunca reservar um resto de
affeição ao homem, que a humilhou assim.

Rosa entrou na sala em que era esperada. Quando deu de face com seu
marido, que não vira nos ultimos seis mezes, desconheceu-o e recuou.
Trazia a barba toda, que lhe augmentava a magreza cadaverica do rosto.
Vestia uma velha sobre-casaca, de panno desbotado, encodeada na golla, e
farpáda na botoadura. Os seus olhos pisados, mas ainda penetrantes do
brilho da desesperação, fixavam Rosa com ar ameaçador.

Cruzando os braços com a importancia tragica d'um marido de tragedia,
que vem, de longes terras, pedir contas a sua mulher, Augusto Leite
disse, aproximando-se:

--Parece que me não conheces, Rosa?

--Vens tão mudado do que eras!... não admira que te não conhecesse,
Augusto!

--Pois sou eu mesmo... Vejo que não sentes grande prazer com a minha
visita...

--Não te esperava... Como ha seis mezes me não escreves...

--Entendeste que não havia nada commum entre nós... Pois, minha amiga,
sou teu marido, apesar de ambos nós...

--Sinto muito que o sejas a teu pesar... Eramos ambos bem mais felizes,
se o não fosses.

--Parece-te? a mim tambem; mas já agora o remedio é seres minha mulher,
e eu teu marido...

--Fallas-me d'um modo que me fazes gelar o coração!... Que te fiz eu
para me tratares assim?

--Eu sei cá o que me fizeste!... não me fizeste nada... Penso que me
tornaste mais desgraçado do que eu era...

--Vejo que sim; mas não era essa a minha intenção.. Eu quiz fazer-te
feliz; se o não consegui, é porque não pude, nem tu me disseste o que eu
devia fazer para a tua felicidade...

--O que me perdeu foi o teu dinheiro...

--Não tive culpa, Augusto...

--Eu, se fosse sempre pobre, não me illudia com as esperanças do teu
patrimonio, e trabalharia, estudaria para chegar a ser homem...

--Que hei de eu fazer-te, Augusto!... Eu nunca te aconselhei que
arruinasses o que te dei; se soubesse que o meu dinheiro te fazia
infeliz, lançal-o-ia ao mar para me casar pobre comtigo... Mas, se eu
fosse pobre, de certo me não quererias...

--Não sei, não me importa saber, todas as conjecturas agora são
estupidas...

--Perdôa as minhas conjecturas... Eu d'antes era espirituosa, segundo tu
dizias, que eu nunca o acreditei... Agora sou estupida, é porque a
desgraça embrutece...

--Nada de ironias... Sabes que estou pobrissimo?

--Não sabia; mas acredito que o estás.

--Pódes avaliar a minha situação?

--Posso; porque eu tambem estou pobrissima.

--Menos que eu...

--Mais que tu... Tenho uma filha que sustento, e cheguei á extrema dôr
de querer comprar-lhe um vestido, e tive de vender um meu, para que a
minha filha te não envergonhasse... Avalias tu agora a minha situação?

--Diz ao teu tutor que te entregue o que tens, e tu administrarás...

--Já lh'o suppliquei muitas vezes. Não me concede cinco reis além da
mesada que me arbitraram... Não posso conseguir nada... Emprega tu os
meios, que eu concedo-te tudo; e, se não podéres alcançar mais do que
eu, desde já te cedo toda a minha mesada, e eu e minha filha
recorreremos á caridade da minha amiga Maria Elisa.

--Não quero caridades de ninguem: quero aquillo que é meu, quando não
enterro uma faca no coração do tutor...

--Cala-te, Augusto, que me pareces demente!

--É porque eu realmente estou louco... Preciso sahir d'esta desgraçada
vida em que me vejo... Quero dinheiro, Rosa, quando não vou com um
bacamarte para as estradas...

--Augusto!--exclamou ella, tirando-lhe a mão do cabo do punhal, que
empunhára instinctivamente no bolso interior do casaco.

--Tu não sabes onde a desgraça é capaz de me levar... A sociedade fez-me
assim... Se perdi muito dinheiro, perdi o que era meu; não roubei nada a
ninguem; e a sociedade infame despresou-me, chamou-me homem perdido, e
cuspiu-me na cara, porque eu empobreci... Vi-me abandonado, e tornei-me
criminoso... Estou cumplice n'um roubo, e, se dentro de tres dias, não
dér um conto de reis, sou prêso, e degradado, ou pendurado n'uma forca.

--Oh meu Deus, que vergonha!...--disse Rosa, cahindo n'uma cadeira, e
escondendo o rosto entre as mãos.

--Nada de exclamações... Esse remedio não me presta de nada... Visto que
tens uma amiga rica do que era de meu tio, pede-lhe este dinheiro, se me
queres salvar... Não me respondes?

--Augusto!... eu não posso responder-te já... Deixa-me possuir bastante
do meu infortunio, para perder a vergonha...

--Isto não soffre delongas... Quero a resposta já...

--A resposta dou-lh'a eu--disse Maria Elisa, que apparecera de
improviso.

Augusto cortejou-a ligeiramente, e Rosa ergueu-se tremula, e sentou-se
logo, porque lhe faltavam forças para acolher-se ao seio da sua amiga.

Maria Elisa veio ter com ella, abraçou-a, deu-lhe um beijo, e levou-a
comsigo para dentro. Voltando-se para Augusto, disse:

--Queira demorar-se, que eu volto já.

Augusto Leite sentiu um abalo que faria parecel-o louco a alguem que o
visse. Não era loucura. Era o contentamento de se vêr possuidor d'um
conto de reis, com o qual contava já. Era a esperança de transportar-se
com elle a Hespanha a tentar a fortuna, visto que não poderia tornar a
Lisboa, onde o perseguiam por crime de roubo de uns brilhantes, cujo
valor perdera em menos de tres horas. Esta ideia salvadora produziu-lhe
uma febre de loucura passageira. Encarou-se n'um espelho, e viu-se como
um idiota, penteando as barbas com os dedos. Retesou os braços,
espreguiçando-se, e murmurou por entre os dentes quasi cerrados: «ha um
demonio, que me protege! Respeito-o mais que os sanctos, e hei de
mostrar-lhe que sou agradecido...»

Maria Elisa voltou. Sentou-se no canapé, e fez signal a Augusto,
offerecendo-lhe uma cadeira:

--Senhor Augusto, v. s.ª vai receber da minha mão uma quantia de
dinheiro, que me não pertence, nem a sua mulher. É uma generosidade de
sua filha, de que eu sou interprete...

--De minha filha?!

--Sim, senhor. Eu dei a quantia que vou confiar-lhe a sua filha, e
fiquei sendo sua administradora. Quando ella estiver em estado de
recebel-a, v. s.ª lh'a entregará. São tres contos de reis em notas. É um
deposito sagrado que lhe confio. Espero que v. s.ª procure reconquistar
a sua honra, e não lhe faltarão recursos para um dia entregar a sua
filha esta quantia augmentada...

Augusto, balbuciante de prazer, não avistando d'um relance toda a
extensão do seu futuro, murmurou:

--Eu farei por ser um digno depositario do dinheiro de minha familia.

--Agora, senhor, tenho a pedir-lhe um favor em nome d'ella.

--Qual?... a viuva de meu tio manda, não pede...

--A viuva de seu tio nem manda, nem pede nada. Repito-lhe que sou
absolutamente estranha a esta troca de favores que faz o pae com sua
filha. O que em nome d'essa menina lhe peço, é que consinta que ella e
sua mãe vivam na minha companhia.

--É muita honra para mim, minha senhora. Eu vou fazer uma pequena viagem
por causa de certos interesses, e durante a minha ausencia não posso
confiar a mais valiosa protecção minha mulher e minha filha.

--Vai viajar?... Sua senhora já o sabe?

--Ainda lh'o não disse.

--Pois então... não lh'o diga... Salvo se tem motivos fortes para
dizer-lh'o...

--Não tenho alguns... Era simplesmente despedir-me...

--N'esse caso, eu encarrego-me de fazel-a sciente do seu adeus, e v. s.ª
de qualquer paiz lhe escreverá...

--Minha senhora... dispõe do meu quasi inutil prestimo?

--Empregue-o, que tem muito, em ser um digno marido da minha amiga, e um
digno pae da menina que adopto como minha sobrinha. Além dos vinculos de
parentesco que o prendiam a meu marido, ha outros mais consistentes que
são os da amizade, que consagro a sua mãe.

........................................................................

Augusto Leite retirou-se. Maria Elisa, com o coração alvoroçado de
prazer, foi abraçar Rosa, e exclamou, com quanto amor podia empregar na
soffreguidão d'um beijo: «És minha para toda a vida!»




CAPITULO XXVII


Sigamos Augusto Leite, emquanto sua mulher e filha dão a Maria Elisa a
felicidade, que ella lhes remunera com afagos.

O jogador, febril de contentamento, entrou em sua casa, no Laranjal,
disse algumas palavras a sua mãe, e mandou preparar a inseparavel
moçoila, que o acompanhava, na boa e má fortuna, havia quatro annos.

Sahiu, e comprou uma jaqueta de pelles, uma faxa de sêda escarlate,
chapéo de guizos, um par de pistolas, um cobrejão, e dous cavallos de
baixo preço.

Duas horas depois, a rapariga, encadernada n'umas andilhas, passava na
Ramada-Alta, estrada de Vianna, e Augusto Leite, com pau de chôpa
debaixo da perna, esporeando o cavallo, á laia de cigano, caminhava a
par com ella.

N'esse dia foram dormir a Casal de Pedro, e viram lá umas pulgas, cujas
netas eu encontrei trinta annos depois, pulgas enormes e ferozes, que
arrastam as meias dos passageiros, depois que lhes exhaurem as arterias
d'um sangue azedado pelo maldito vinho, que a estalajadeira vos
ministra, perguntando-vos se sabeis alguma mézinha para matar as
_bichas_ dos pequenos.

Pernoitei ahi uma vez na minha vida. Comprehendi, no quarto que me
deram, os supplicios do christão primitivo atirado ao circo. «Christão
ás pulgas!» deveria ser, no imperio romano, um grito de prazer para o
paganismo sanguinario, como o fatal «Christão ás feras!»

Era alta noite, e eu não podia transigir, dormindo, amigavelmente com a
ferocidade dos insectos, se é que não podemos chamar cetaceos áquellas
pulgas, de horrivel recordação. No sobrado immediato ao da possilga em
que eu me contorcia nas vascas d'uma agonia de novo genero, rosnavam uma
boa duzia de gallegas, que vinham da terra a visitarem os respectivos
gallegos residentes no Porto.

Descompunham-se em raivosas apostrophes por causa das mantas, que
algumas d'ellas monopolisavam com grave escandalo e frialdade das
outras. Dos improperios passaram a vias de facto. Socaram-se,
esgadanharam-se, revolveram-se, creio eu, como uma matilha de cadellas,
e vieram de encontrão á porta do meu quarto, que não resistiu ao choque,
e deixou entrar aquelle embrulho indecifravel de gorgonas em fralda de
camisa, que me pareciam, á luz mortiça da véla, executarem uma dança
macabra, uma mazurka de demonios!

Eu levantei-me em pé sobre o catre de pau castanho, pintado de amarello,
e presenciei com os cabellos erriçados o desfecho d'aquella tremenda
lucta. O dono da estalagem, e o meu criado vieram protocolisar a
desordem, distribuindo alguns murros indistinctamente, de que resultou a
fuga desordenada das gallegas, para o seu arraial, ficando considerado o
meu quarto campo neutro.

N'esse mesmo quarto, ás duas horas da noite, tambem o senhor Augusto
Leite recebeu uma inesperada visita; mas não de gallegas em guerra crua.
Eram oito soldados de cavallaria, commandados por aquelle esturdio
cadete, que o leitor conhece, e reforçados por alguns meirinhos do
corregedor, e um especial enviado do regedor das justiças.

Já soubemos que Augusto Leite roubára em Lisboa uns brilhantes. A razão
por que os roubara deu-a Prudon depois: os brilhantes eram propriedade
da condessa de ***, e a propriedade era um roubo.

Como se introduziu Augusto Leite em casa da condessa de ***? Não é bem
liquido, e eu não quero inventar, porque não tenho necessidade de
deslustrar a veracidade do meu conto por amor d'um incidente de pouca
monta. Disseram uns que Augusto Leite era amante da condessa; outros
affirmam que o academico, expulso da universidade, se valera d'um seu
condiscipulo, primo d'essa senhora, para ser protegido por ella na sua
admissão á academia. Eu, de mim, para não duvidar de nenhuma das
explicações, acredito-as ambas, e não offendo os diversos opinantes.

O que devem todos acreditar é que Augusto Leite dispensou á condessa o
trabalho de pôr o seu collar e pulseiras de brilhantes em um dia d'annos
d'uma sua prima. As suspeitas recahiram em todos os domesticos, menos em
Augusto Leite. No dia seguinte corria em Lisboa, que um academico,
visita frequente da condessa de ***, tinha perdido, em menos de tres
horas, trinta mil cruzados em casa do barão de Quintella. Os curiosos
averiguaram o manancial possivel d'este dinheiro, e souberam que um
judeu na rua dos Fanqueiros comprára na vespera por trinta mil cruzados
uns brilhantes. A condessa, com authoridade judicial, fez que o judeu
apresentasse os brilhantes comprados. Reconhecidos, apossou-se d'elles
sem mais formalidade. O judeu gritou contra a extorsão, perguntando se
reviviam os tempos nefastos de D. João III; offereceu-se voluntariamente
para a fogueira; e a tudo isto, que realmente era pathetico, o
procurador da condessa respondeu: _res ubicumque est sui domini est_.

O judeu não ficou sabendo latim, mas conheceu varios artigos da nossa
legislação, e aproveitou-se d'aquelle que o authorisava a perseguir o
ladrão.

Augusto Leite entrou em casa da condessa, quando ella voltava de
reconhecer os seus diamantes. Um criado presenciou que ella algumas
palavras lhe dissera, e o seu protegido respondeu a ellas, voltando as
costas para nunca mais tornar. Os maledicentes quizeram inferir da
generosidade da condessa, que o avisou, consequencias desfavoraveis para
a honra d'ella. Como quer que fosse, Augusto fugiu de Lisboa, a pé, sem
dinheiro, sem bagagem, com uma mulher ao lado, e assim vagou quatro
mezes, não sabemos por onde, até que o vimos entrar em casa da viuva de
Antonio José da Silva.

Tornemos agora a Casal de Pedro.

O enviado do regedor das justiças bateu á porta da estalagem, e
perguntou que passageiros pernoitavam alli.

--Dous almocreves, o recoveiro de Vianna, um passageiro do Porto, com
sua mulher, e um criado.

--Abra lá a porta--disse com a costumada intimativa o executor da lei.

Abertas as portas, os meirinhos encaminharam-se para o quarto do
passageiro. Augusto Leite ouvira as perguntas. Saltára fóra da cama para
fugir, mas não conhecia um palmo da casa fóra do seu quarto. Antonia
Brites, companheira dos seus trabalhos, lembrou-se d'alguns sanctos, que
conhecera na infancia, e incommodou-os com as suas orações. O antigo
traductor de novellas não lêra cousa que lhe servisse de modelo para
similhante conflicto. Quiz precipitar-se da janella, mas viu na rua os
cavallos em linha. Recuou diante d'um sacrificio inutil, e appellou para
os extremos.

Os meirinhos entraram, e viram uma mulher de joelhos com as mãos
erguidas, e um homem de semblante feroz com duas pistolas aperradas.

O estalajadeiro, que caminhava na frente com a candeia, fez dous passos
á rectaguarda, e declarou-se neutral. Os meirinhos, que tinham á vida o
amor suficiente para viverem oitenta annos mais, não foram mais adiante
que o prudente estalajadeiro. Augusto conservou-se na postura
ameaçadora, fuzilando dos olhos um clarão mais vivido que a candeia
tremula do petrificado taverneiro.

Um dos meirinhos, emquanto os outros voltavam as costas, veio á rua, e
disse que o homem não era para graças. O cadete apeou, e subiu com dous
soldados. Foi á porta do quarto, e encontrou o athleta na sua
immobilidade sinistra. Deu-lhe voz de prêso, e viu que o ladrão era
surdo, ou rebelde á lei.

--O melhor é botar-lhe as unhas--murmurou um soldado.

--Agarra-o, _trinta e quatro_!--disse o cadete.

O _trinta e quatro_ entrou no quarto, e, quando lançava mão aos copos da
espada, sentiu um corpo duro bater-lhe na testa. Descarregou ainda um
golpe, e foi de bruços atraz da espada que bateu no sobrado. Estava
morto.

O camarada do _trinta e quatro_ correu em defeza do seu companheiro.
Descarregou duas cutiladas na cabeça de Augusto; mas, á terceira, sentiu
fraquear-lhe o braço, e veio recuando, cahir, com uma bala no coração,
aos pés do cadete.

Os outros soldados tinham subido, e atropellavam-se á entrada do quarto.
Augusto Leite, coberto de sangue, defendia-se debilmente com a chôpa,
que vencia o alcance das espadas. Os soldados, arrefecidos pelo aspecto
dos dous camaradas mortos, não ousavam affrontar o aço da chôpa, que
algumas vezes sentiram resvalar-lhe na farda, deixando-lhe na pelle um
ligeiro ardor, que depois se exacerbava com a humidade do sangue.

O cadete, envergonhado da cobardia dos seus, diante d'um só homem,
entendeu que salvava a sua honra, desfechando uma clavina no peito de
Augusto Leite. Ao desfechal-a viu interpôr-se-lhe um vulto. Era Antonia
Brites, que vinha pedir-lhe de joelhos que não matasse Augusto. Não
chegou a pronunciar a primeira palavra. Recebeu a bala, que havia de
matar o marido de Rosa, e cahiu pedindo confissão. Deus lhe levaria em
desconto das suas culpas o bom desejo de reconciliar-se com o céo,
porque fechou os olhos antes de vêr o padre.

Augusto, impellido pelo instincto da vida, saltou da janella ao
quinteiro com tal destreza, que as espadas não poderam tocar-lhe. O
quinteiro estava deserto de homens, e os cavallos soltos entretinham a
fome no tojo. A comitiva correu atropelladamente a impedir a fuga.
Quando chegaram ao quinteiro, meirinhos e soldados, qual d'elles mais
corajoso, o que viram foi um cavallo de menos, e na calçada fronteira as
faiscas das ferraduras do que fugia. Alguns soldados quizeram montar;
mas os cavallos assustados pelo salto de Augusto ao meio d'elles, não
deixavam estribar, e jogavam de garupa com mau resultado para o meirinho
geral, que perdeu ahi os tres unicos dentes que possuia.

--Já se não pilha!...--disse o cadete.

--Agora é vêl-o ir--accrescentou um soldado.

--Vamos ao quarto tomar-lhe conta das malas--disse o enviado do regedor
das justiças.

Entraram no quarto. Abriram uma pequena mala de couro, e umas bolsas de
hollandilha onde encontraram alguma roupa branca. Dinheiro, nem cinco
reis. A volumosa carteira com tres contos menos duzentos mil reis, que o
sobrinho do senhor Antonio José da Silva gastara em cavallos e pistolas,
e fato, levava-a elle no bolso da jaqueta de pelles.

De madrugada os executores da lei voltavam para o Porto, com os dous
cavallos de Augusto Leite.

Os tres cadaveres foram enterrados no adro da igreja parochial, porque o
vigario duvidou sepultal-os em sagrado, visto que não traziam signal de
christãos, como cruz, nominas, bentinhos, veronicas ou outro qualquer
distinctivo da fé catholica.


_Relação das pessoas que já morreram n'este romance_


O mestre de latim                                          1

A senhora Escolastica                                      1

O arcediago                                                1

Uma velha da viella do Cirne, cujo nome me não lembra      1

O senhor Antonio José da Silva                             1

Antonia Brites, amante de Augusto Leite                    1

Dous soldados de cavallaria                                2

            Somma total                                    8

Continuarão a morrer convenientemente.




CAPITULO XXVIII


Augusto Leite quando chegou á Barca do Lago ia a pé. O cavallo cahira
rebentado, e o cavalleiro desviou-se da estrada para curar os ferimentos
que recebera na cabeça. Não lhe era difficil viver seguro em casa d'um
lavrador, que foi largamente indemnisado do hospitaleiro acolhimento que
deu ao passageiro, que, segundo elle, tinha cara de pessoa de bem.
Vendeu-lhe a sua egua, encaminhou-o por atalhos seguros da vigilancia
dos aguazis, e levou-o á fronteira de Hespanha, curado das feridas, e
salvo de encontros importunos. Ahi, foi facil ao foragido comprar um
passaporte, que o levou a Madrid com o pseudonimo de D. Fernando Godinho
Pereira Forjaz.

Chegado a Madrid, cortou as barbas, vestiu-se de trajes sérios,
apresentou-se como viajante, relacionou-se com a facilidade habitual em
Hespanha, e entrou como portuguez distincto nas primeiras casas da
capital. Encontrou ahi fidalgos portuguezes, que o não conheciam; mas
respeitavam-no pelos appellidos, e não se recusavam a chamar-lhe primo,
visto que os Pereiras Forjazes eram ramificação do heraldico tronco dos
condes da Feira.

Augusto Leite jogou, e augmentou consideravelmente os seus haveres. Em
alguns mezes alcançára uma publicidade que lhe não convinha. O seu nome
era repetido de mais nos salões. As suas conquistas amorosas excitavam
invejas e reservas vingativas que poderiam perdel-o. Augusto resolveu
abandonar Hespanha, e procurar na sociedade mais ampla de Paris viver
bem, sem excitar curiosidades funestas.

Em Paris deu-se como hespanhol, e era conhecido por D. Affonso Vilhegas.
Fallava correntemente o hespanhol, associára-se a uma partida de
jogadores da sua patria adoptiva, e engrandecera o seu peculio, que já
subia a vinte contos de reis. O dinheiro de Maria Elisa fôra abençoado!

Não tivera, até então, alguma noticia de sua mulher. Não lhe convinha
solicital-a, porque podia ser descoberta a sua residencia. O coração
tambem lh'a não pedia.

Passeava uma tarde nos _boulevards_, e viu um homem, que lhe não era de
todo estranho, e reparava muito n'elle. Perguntou-lhe, em francez, se
era hespanhol.

--Sou portuguez--respondeu o cavalheiro.

--Estimo muito... Eu gosto dos portuguezes. Viajei alguns mezes na sua
terra, e sympathisei com as mulheres, que são quasi todas gordas e
vermelhas. Eu gosto muito das mulheres vermelhas e gordas.

--Tem razão... mas, pela pronuncia, parece-me hespanhol, e as mulheres
da Hespanha não são inferiores ás de Portugal. Não tem razão de invejar
a minha patria... Que cidades conhece em Portugal?

--Conheço as que lá ha que mereçam esse nome... Lisboa e Porto.

--Esteve no Porto? É uma bonita cidade, não é?

--É muito interessante. A gente de dia faz horas para se deitar ao
escurecer. Não ha nada melhor. Come-se e dorme-se com a mais perfeita
tranquillidade de espirito. E na semana sancta vêem-se as mulheres,
quando passam as procissões.

--Conheceu alguma no Porto?

--Apenas uma. Como fui recommendado a um negociante chamado Antonio José
da Silva, tive occasião de vêr de passagem uma bonita rapariga, que
fallava em estylo de Corneille.

--Pois conheceu essa senhora?!

--Perfeitamente. Que é feito d'ella? É feliz?

--Penso que não. A sua fortuna está perdida. É por causa d'ella que eu
vim a França.

--Sim? é notavel a coincidencia!... Pois senhor, veja se eu posso
servir-lhe de alguma cousa com o meu pouco valimento... Que desastre foi
esse! O tal negociante passava por ser um homem rico...

--E era. O negociante morreu ha dez mezes. A viuva liquidou a sua
fortuna, que valia bem duzentos mil cruzados. Entrou com ella em uma
casa commercial franceza, que tinha representantes em Lisboa. Esta casa
acaba de fallir, e o dinheiro de Maria Elisa está perdido, segundo
creio.

--Coitada...! fica pobre por consequencia...

--Pobrissima...

--E tem filhos?

--Não, senhor.

--Nem familia?

--Tem em sua companhia uma amiga e a filha d'essa desgraçada senhora,
que tambem foi rica, e está reduzida a nada...

--Tambem tinha os seus bens de fortuna na casa commercial que falliu?

--Não, senhor... foi o marido que a reduziu a esse estado deploravel...

--Pobres senhoras!... Estou-me interessando em que não sejam tão
infelizes como o senhor as pinta...

--Pois não digo metade das desgraças que as esperam.

--E o marido d'essa amiga da viuva... naturalmente é um perdido que lhes
não póde valer de nada?...

--Esse homem morreu... ou ha todas as probabilidades para o julgar
morto... Parece que o mataram, quando o prendiam por ladrão...

--Era ladrão? Oh diabo! então foi bem feito matarem-no!

--Roubára em Lisboa uns brilhantes que vendera a um judeu. O judeu
perseguiu-o, e quando soube que sua mulher possuia algumas propriedades,
de que fruia os rendimentos, provou o roubo, e penhorou-lh'as todas... A
viuva do negociante, que o senhor conheceu, não lhe dava tempo a scismar
nos seus infortunios; mas agora a situação d'ambas é desgraçadamente
igual.

--E o seu procedimento?

--O mais exemplar. Maria Elisa vai retirar-se a um convento, e é natural
que a outra viuva a acompanhe.

--Então o senhor que veio fazer a Paris?

--Vim tentar o ultimo esforço; mas inutilisei despezas e trabalho. Pedi
que se indemnisasse a viuva da massa fallida; mas o tribunal do
commercio não deferiu ao meu requerimento.

--Quando parte o senhor para o Porto?

--Ámanhã deixo Paris, e vou embarcar a Toulon.

--Póde ser portador d'uma encommenda para a viuva de Antonio José da
Silva?

--Com muito boa vontade.

--Tenha a bondade de acompanhar-me.

Augusto Leite subiu ao hotel, onde residia, emquanto o procurador de D.
Maria Elisa o esperava. Demorou-se alguns minutos, e entraram juntos em
uma casa commercial ingleza. Sacou uma ordem de mil e quinhentas libras
sobre o Porto, entregues á ordem de D. Maria Elisa, e entregou-a com uma
carta ao procurador, accrescentando:

--Diga a essa senhora, que não desça da sua dignidade, nem abandone as
pessoas que levantou da miseria. Eu terei cuidado de velar pela sua
sorte.

O procurador, aturdido como é natural, desejou n'aquelle momento vencer
como n'um vôo de espirito a distancia, que o separava de Maria Elisa.
Aventurou algumas perguntas ao generoso hespanhol; mas não conseguiu
elucidar-se mais do que tinha sido.

Augusto Leite entrou no seu quarto, e disse á sua imagem representada no
espelho: «Meu amigo, quando te vi, ha oito mezes, rir de contentamento
no espelho de Maria Elisa, tinhas um riso bem differente d'esse que te
vejo agora. Acredito que o prazer de uma boa acção é o unico prazer sem
mistura de dôr. É a primeira acção boa que praticas, meu caro Augusto!
Se te habituasses a ser honrado assim muitas vezes, naturalmente cahias
desamparado na rua. Esconde agora a face da honra, e faz uso da outra,
porque uma só cara não presta para nada. Visto que tomas a teu cargo
aquellas mulheres, precisas de ser pessoa de bem uma vez cada anno. A
virtude, nos homens da tua fortuna, deve ser como os intervallos lucidos
da loucura. Se vaes dizer á sociedade que te dê os meios para
sustentares tua pobre mulher e tua filha, a sociedade manda-te
trabalhar. Pois então, D. Affonso Vilhegas, trabalha antes que ella te
mande. Dos trabalhos procura o mais rendoso. Como não tens grande força
muscular, faz que o teu officio esteja mais dependente do espirito.»

Este dialogo, com o seu _unico amigo_, foi interrompido por uma
personagem, que apeára d'uma sege e mandára adiante o seu nome: era o
visconde de Bellarmin.

--Meu caro visconde, vieste encontrar-me a conversar comigo.

--É necessario que te retires de Paris immediatamente.

--Porquê?

--O governo suspeita que tu és um enviado do partido monachal de
Hespanha, que combinas com o de França uma reacção. Ha ordem de prisão
para ti.

--Não julguei que era uma pessoa tão importante. Tenho gloria de ser
prêso como homem temivel a duas nações. Ainda agora me lembro que posso
ser um grande homem. Quem sabe se me está reservada a corôa de Fernando
VII!

--Não zombes, Vilhegas... Foge, quanto antes, de Paris. Aqui tens
passaporte para Portugal.

--Não vou para Portugal. Alcança-me um passaporte para Hespanha, e
perdôo-te as mil libras que hontem perdeste. Olha lá... Dou-te outras
mil se dizes no passaporte, que eu sou um missionario hespanhol, que
volto do Japão. Acceitas?

--Acceito... Vou buscar-t'o. Mas tu não tens cara de missionario.

--Eu respondo pela cara, e, se não, sabes quem venda uma? Os vossos
ministros devem ter algumas disponiveis!... Vês como eu já vou pendendo
para a linguagem dos estadistas?... Nunca me lembrou, que podia ser o
grande homem, que vou ser!... Onde quer está um Napoleão incubado!...
Avia-te...

Duas horas depois, Augusto Leite, com uma pequena trouxa, um habito
franciscano, a face amarellecida por não sabemos que tinturas
finissimas, caminhava a pé para um porto de mar, onde devia embarcar
para Cadiz.

Vai-se tornando interessante o romance. Já era tempo!

O frade franciscano Benito das Cinco Chagas, dias depois, desembarcava
em Cadiz, onde as côrtes se refugiaram com Fernando VII, que estava
prêso, a pretexto de demencia, por não ter sanccionado a constituição.

Augusto Leite apresentou-se nos congressos monachaes, e offereceu, como
fanatico pelas prerogativas reaes, e inimigo encarniçado da França, o
seu apoio, e o seu braço, sendo necessario.

Tal fôra a sua enthusiasta eloquencia, que os chefes da reacção, sem
discutirem a pessoa, abraçaram-no, victoriaram-no, e confiaram-lhe o
segredo dos seus planos, acclamando-o unanimemente seu secretario.

Era necessario fallar ao rei, que os liberaes retinham com sentinella á
vista. Empreza difficilima! Foi pedido o parecer do frade missionario,
em quem os fanaticos reconheciam o providencial redemptor de Hespanha.
Antes que elle abrisse a bôca, já todos sabiam que a sua palavra seria a
salvação, e as suas ordens immediatamente executadas.

Augusto entrou no congresso, envolto no seu habito. Não respiravam os
circumstantes. Fixavam-se todos os olhos nos labios do moço frade,
quando elle, antes de pronunciar uma palavra, deixou cahir o habito, e
deixou vêr um fardamento completo de general francez.

As escarlates physionomias dos conspiradores empallideceram, murmurando
um prolongado _ah_!

--Não me julguem algum magico--disse Augusto Leite, sorrindo
bondosamente.--Sou um frade, que renega por momentos o seu habito, para
vestil-o um dia, com a consciencia de ter servido a Hespanha,
fortalecendo-lhe a sua independencia, e defendendo-a das impias
aggressões da França. É necessario fallar a Fernando VII. Eu irei
apresentar-me ás côrtes, e direi que sou um enviado do duque de
Angouleme, que, a estas horas, bate ás portas de Madrid. Direi que o meu
fim é capacitar o rei a acceitar a constituição, e serei conduzido pelos
interessados ao pé do monarcha.

--E depois?--exclamaram algumas vozes.

--Depois da minha conferencia a sós com o rei, retirar-me-hei dizendo ás
côrtes que Fernando VII está doudo, e não concebeu as minhas razões. As
côrtes, que por força precisam que o seu rei seja doudo, reputar-me-hão
d'uma intelligencia muito fina, ou d'uma astucia tão cavillosa como a
sua. Fernando VII, uma hora depois que eu me retire, dirá ao seu medico
que sente uma forte dôr de cabeça; duas horas depois sentirá uma
convulsão, e cahirá...

--Morto?!

--Apparentemente morto. O medico virá dizer ás côrtes que o rei morreu
d'uma apoplexia fulminante. Far-se-hão os funeraes. O cadaver será
transportado para o palacio municipal. Tres horas depois que o julgarem
morto, o rei resuscitará, e, á frente do exercito fiel, dirá: «A
Providencia restituiu ao povo hespanhol o seu monarcha!»

Os venerandos frades sacudiram a cabeça em ar de pasmo. A alguns
afigurou-se-lhes que o seu irmão era o proprio diabo, que vestira o
habito do serafico S. Francisco, sobre a farda de jacobino, que elle
era, desde que o Senhor o expulsou do céo. Os mais circumspectos,
encarando-o com o respeito da superstição, por isso que o reputavam
embaixador d'um poder sobrenatural, não ousaram interrompel-o no extenso
discurso, que não publicamos na sua integra, porque na sala do
conciliabulo não estiveram tachigraphos, que nos transmittissem o
discurso completo.

O que sabemos é que Augusto Leite n'esse dia apresentou-se ás côrtes,
pedindo consentimento para fallar ao rei como enviado do duque de
Angouleme, commandante do exercito francez.

Perguntado pelos meios que empregára para chegar desconhecido até Cadiz,
respondeu que embarcára n'um porto da França, com passaporte que
apresentou, passado a frei Benito das Cinco Chagas. As côrtes
acreditaram o enviado, e permittiram-lhe a entrada no carcere de
Fernando VII.

O rei, quando lhe foi annunciado um emissario francez, declarou que o
não recebia, sem ter ao seu lado uma peça de calibre 40, com morrão
accêso. Esta dificuldade é que o marido de Rosa Guilhermina não previra.
Redobraram as instancias inutilmente durante tres dias, ao cabo dos
quaes o duque de Angouleme, defronte de Cadiz, bombardeava a cidade.

Augusto Leite, empregando a corrupção por meio do ouro, fez saber ao rei
que o enviado francez era um partidario do congresso sacerdotal, que
vinha offerecer á Sua Magestade valiosos serviços para a sua fuga do
poder das côrtes.

O rei recebeu-o perplexo; mas brevemente se confiou aos planos do futuro
arcebispo de Toledo, graça que desde logo lhe confirmou com a sua real
palavra.

Augusto Leite agradeceu com reverente effusão a graça, e offerecia ao
rei a beberagem que devia paralysar-lhe a vida apparentemente, quando se
ouviram exteriormente gritos que annunciavam a fuga do exercito
hespanhol, e o desembarque do duque de Angouleme.

O populacho dava _morras_ aos membros das côrtes; e os partidarios da
constituição, que não sabiam as intenções pacificas da França, luctavam
desesperadamente contra o povo, e contra o exercito victorioso.

Augusto Leite, persuadido de que era já desnecessaria a realisação dos
seus planos para a soltura do rei, não lhe ministrou o liquido, e dava
graças á estupida fortuna que o collocára ao lado de Fernando VII, no
momento da sua liberdade.

Um membro das côrtes, que odiava o rei, e julgava perdida a causa, e
cortada infallivelmente a sua cabeça um momento depois, resolveu um
d'esses attentados sanguinarios, que são o caracter do povo hespanhol
nas crises revolucionarias, resolveu o regicidio.

Entrou no carcere, armado d'um punhal. Foi direito á camara do rei. O
primeiro que se lhe antepôz foi o supposto official francez. Recuou
diante de duas pistolas; mas um instante. Refez-se da coragem da
desesperação, e aggrediu o timido rei, que se refugiara atraz de
Augusto. O bem provado athleta de Casal de Pedro desfechou-lhe uma
pistola no peito: mas não pôde esquivar-se a uma punhalada no coração.
Travaram por alguns minutos uma lucta feroz, e cahiram ambos estendidos.

O que recebera uma bala no peito podia viver ainda hoje, se, no dia
immediato, não fosse arrancado á enfermaria militar para padecer morte
de garrotilho, com alguns dos seus collegas. Mas, ao mesmo tempo,
Augusto Leite, que sentira mais dentro a ponta do punhal, era enterrado
com grandes honras por ter defendido, á custa da propria, a vida do seu
rei.

O que ninguem sabia dizer ao certo era a naturalidade do corajoso
defensor de Fernando VII. Os frades queriam-no para o catalogo dos
martyres franciscanos; mas um francez do estado maior do duque de
Angouleme dizia que aquelle homem vivera algum tempo em Paris, onde se
intitulava D. Affonso Vilhegas. O que tal disse, tinha razão sobeja para
sabel-o, porque era o visconde de Bellarmin, que vendera o passaporte de
frade ao seu amigo por mil libras.

Ora pois, d'este sugeito estamos nós livres. Podemos dizer que morreu
bem. Espero que este meu romance, só de per si, conduza á eternidade
individuos sufficientes para chamarem a attenção devota dos pios
leitores em dia de fieis, defuntos.




CAPITULO XXIX


Maria Elisa, com Rosa Guilhermina, e a filha viviam na casa do Sério,
unica propriedade que poderam salvar da fatal quebra do negociante
francez e do sequestro do judeu. O dinheiro, que lhes fôra enviado de
Paris, melhorára a condição precaria das afflictas senhoras, que se viam
na dura precisão de entrarem n'um convento como criadas de freiras.

Calcularam d'onde poderia vir-lhe aquelle dinheiro, e abençoaram Augusto
Leite, que parecia entrar, ao cabo de tantos desatinos, na estrada da
honra. Calaram o segredo, receando que perseguissem o assassino dos dous
soldados em Casal de Pedro, e esperaram que o tempo o rehabilitasse para
tornar a Portugal.

Passou um anno, sem novas de Augusto. Resolveram mandar a Paris o
procurador que fallára com o generoso hespanhol. Foi. Procurou-o na
mesma casa, e soube que esse homem se retirára de França um anno antes.

Disseram-lhe que existia em Paris um general, que conhecera muito D.
Affonso Vilhegas. O procurador encontrou esse general que era o visconde
de Bellarmin, e soube que o supposto hespanhol morrera em Cadiz.

Esta nova matou todas as esperanças das pobres senhoras. Pobres outra
vez! Choraram muito, como é natural, e resolveram abraçar a baixa
profissão de criadas de convento.

Mas eram bellas ainda. A desgraça, ao passar por ellas, nem lhes
desbotára o viço da formosura, nem lhes arrefecera de todo o coração.
Viuvas ambas, embora pobres, quantos anciariam por esposal-as, se ellas
viessem ao mundo com o seu sorriso de seducção?

Rosa tinha visto, em cinco mezes successivos, todos os dias, á mesma
hora, um cavalleiro que passava, com os olhos pregados na janella do seu
quarto, onde ella, na hora das saudades, á luz crepuscular, costumava
sentar-se com sua filha nos braços.

Em uma d'essas tardes, vira que o cavalleiro parava, e dissera para cima
palavras que ella não entendeu, nem quiz entender. Restirára-se a contar
á sua amiga a aventura estranha, e promettera nunca mais, a tal hora,
dar azo aos atrevimentos do senhor Alvaro de Sousa, que assim se chamava
o fidalgo enamorado.

No dia seguinte, é certo que não veio á janella; mas, por entre as
cortinas mal cerradas, teve a fraqueza de espreital-o. O fidalgo, que
não deu por isso, parou um momento, e disse ella á sua amiga que o vira
suspirar. Se isto é verdade, o senhor Alvaro de Sousa, emquanto a mim,
era poeta. Os poetas fazem monopolio dos suspiros, mas, honra lhes seja
feita, não encarecem o genero; barateiam-no de modo que não ha
consumidora que tenha razão de queixa.

E eu creio sinceramente que Rosa Guilhermina, se lhe não dava em troca
um suspiro, nem por isso se affligia da violencia com que o illustre
representante dos Sousas lhe remettia os seus anhelitos amorosos.

Hão de acreditar-me que o mancebo era um bello mancebo. Ainda hoje me
fallam d'elle como a joia das formosuras masculinas do Porto. Era uma
dama, segundo me dizem as senhoras de cincoenta annos. Tinha
intelligencia, qualidade que o exceptuava da regra geral que regulava o
entendimento opaco de seus nobres primos. Era filho segundo; mas rico, e
generoso, e dado a prazeres que lhe não arruinavam a bolsa nem a saude.
Vinha a ser, emfim, um perfeito homem o que se apaixonára sériamente
pela esquiva viuva de Augusto Leite.

Alvaro de Sousa, contrariado pela apparente frieza de Rosa, sentiu-se
vexado no seu amor proprio, e impoz-se orgulhosamente um fidalgo
desprêso por tal mulher, indigna de honrar-se com o seu amor. Isto foi
ao meio dia; mas, ás quatro horas, o soberbo moço anafava cuidadosamente
os cabellos, para não ser suprendido, em desalinho, no Sério.

N'essa tarde encontrou Rosa Guilhermina passeando, na alameda da Lapa,
com a amiga, e a filhinha que brincava com um cão de regaço. O cãosinho,
que não estava para brinquedos, encolheu a cauda, e fugiu á ama, na
direcção da casa. As senhoras chamavam-lhe _Joli_, que era, por esse
tempo, o nome favorito de todos os cães; mas o rebelde quadrupede não
olhava para traz.

Alvaro esporeou o cavallo, cortou a vanguarda do cão, apeou-se
gentilmente, apanhou o bichinho, que se agachava com medo, tomou-o no
collo, e foi conduzil-o ás damas, que receberam a attenciosa delicadeza
com o rubor na face.

O leitor deve ter observado que estas damas perderam o antigo estylo. Já
não fallam a guindada linguagem das novellas, nem curam de aprimorar as
ideias, enfeitando-as d'aquelles arrebiques e galanterias que eu espero
ainda encontrar na mulher, que Deus me destina, e que ha de fazer de mim
um respeitavel marido.

N'outro tempo, Alvaro de Sousa seria recebido com quatro metáphoras, e
vêr-se-ia na precisão de incommodar a mythologia para responder-lhes.
Agora, já não. A idade, o soffrimento, a experiencia, e o temor do
futuro abatera no raso da linguagem humana aquellas almas perdidas nas
maravilhas aereas. Fallavam como nós, importavam-se pouco dos livros,
sentiam-se muito decahidas no espirito, e concordavam conscienciosamente
que tinham sido embrutecidas pela desgraça.

E se não vejam:

--Agradecemos muito a sua delicadeza--disse Maria Elisa, recebendo o
cãosinho (não tenho a certeza se era cadelinha) das mãos de Alvaro.

--Só este irracional--disse Alvaro, mastigando a fineza--deixaria de
obedecer ás ordens de suas amas. Assim mesmo peço que não seja
castigado... Se elle tivesse entendimento, o remorso de ter sido
desobediente seria bastante castigo.

--Muito agradecidas ás lisonjas de v. exc.ª--atalhou Maria Elisa,
emquanto Rosa se fingia distrahida sacudindo a terra das saias da
menina.

--Não é lisonja, minhas senhoras. O que eu digo é o menos que se póde
dizer, e espero acreditem que não sei dizer tudo que sinto. Aquella
senhora parece aborrecer-se da minha presença...

--Não, senhor--disse Rosa.--A presença de v. exc.ª não aborrece... É
porque estava sacudindo a terra dos vestidos de minha filha...

--Que é linda como sua mãe... Que annos tem?

--Quasi cinco.

--Em tão tenra idade é admiravel a esperteza d'esta creança!... Venha
cá, minha menina... como se chama?

--Assucena--disse a creança.

--Que lindo nome!... Uma _rosa_ devia produzir uma _assucena_... É minha
amiga?

--Sou.

--É? Já tenho uma pessoa que seja minha amiga!... Sou mais feliz do que
pensava... Quer ir a minha casa?

--Quero.

--Pois hei de mandal-a buscar um dia. Minha mãe gosta muito de
creanças... V. exc.ª dá-me licença que ella vá?

--Pois não! É muita honra...

--N'esse caso, amanhã, se me permitte...

--Quando aprouver a v. exc.ª

Ora aqui está como começou o namoro. No dia seguinte, Alvaro de Sousa
veio de carruagem buscar a menina, subiu á sala, como era natural, e não
viu Rosa que se fechára no seu quarto banhada em lagrimas. Quiz saber a
causa de tal soffrimento, e disse Maria Elisa que a sua amiga tivera
noticia de estar viuva.

--Viuva a reputava eu, ha muito!--atalhou Alvaro.

--Não o era... Convinha que esse boato corresse...

O fidalgo deu a entender que sabia a razão d'esse boato, e retirou-se
sem _Assucena_, que não podia, durante o lucto, sahir de ao pé de sua
mãe. Á tarde, Alvaro veio fazer a D. Rosa a visita de pezames, e
offerecer o seu prestimo.

Na tarde do dia seguinte repetiu a visita, e passou a noite.

Nos dias immediatos entrava com familiaridade. O ferreiro que morava
defronte disse ao sapateiro visinho que o tal fidalgo não se lhe dava de
recolher as duas frangas perdidas do rebanho. Este ferreiro tinha algum
espirito. Se vivesse hoje, de certo não era ferreiro; escreveria
folhetins, ao passo que o seu visinho sapateiro, homem lido no Bandarra
e Carlos-Magno, amanharia substanciosos artigos de fundo. O fidalgo,
esse, se vivesse hoje, faria o mesmo que fez então, e que ha de fazer-se
no seculo XX. Eu, por mim, se fosse contemporaneo do mestre ferreiro,
não escrevia romances. A estas horas (são sete e meia da tarde) estava
eu rezando vesperas em algum côro de frades carmelitas, para que tenho
uma vocação imperiosa.

Agora, leitores, o meu trabalho termina aqui. As cartas, que ides lêr,
confiou-m'as a pessoa, que me contou esta historia. São textuaes. Podem
vêr-se em minha casa, desde o meio dia até ás quatro horas da tarde.
Quem as escreve é um pintor, que teve nome no Porto, e pouco tempo
furtou á desgraça para cultivar a arte. Quem as recebe é uma senhora,
que ainda vive.


CARTA I

                                               _22 de setembro de 1824_

Minha estimavel amiga:

Não posso ser indiferente ao interesse, que v. exc.ª tem na minha
felicidade. Na soledade em que me vejo, as suas cartas são a unica
indemnisação que tenho das compridas horas de uma vida sósinha, escura,
e despovoada de todas as bellezas, se é que algumas a existencia póde
ter para mim.

Votei-me ao amor da arte, porque eu tinha precisão de viver para alguma
cousa; mas a arte não me galardôa a minha dedicação. Do seio da tela
tenho arrancado imagens, que são a reminiscencia d'aquella mulher que me
fugiu dos braços para os braços do tumulo.

Aqui tem, minha amiga, como a arte recompensa os meus desvelos! Pede-me
lagrimas, e não m'as paga com a esperança de crear por ella um nome,
como o de muitos desgraçados que se immortalisaram nos quadros, em que
verteram muitas.

Eu não sou egoista dos meus padecimentos. Tenho querido encontrar a
felicidade que a minha extremosa amiga me vaticina. Tenho procurado essa
segunda mulher com o reflexo luminoso da primeira, que me deixou rodeado
de trevas, e saudades. Alguma vez, abandono o meu quarto, e corro,
anhelante de não sei que esperança embriagadora, atraz d'essa visão
impossivel. Sabe o que eu encontro sempre? A fachada do templo de S.
Francisco. Lá dentro dorme o somno eterno a nossa amiga, sempre chorada!
Se posso entrar, ajoelho, chamo-a a testemunhar as minhas ancias, e
retiro-me d'alli gelado pela dúvida, gelado como a pedra que a separa
dos vivos, gelado como o cadaver, que se move impellido por não sei que
mão fatal que me não deixa resvalar no meu abysmo!

Sou bem desgraçado, não é assim? Muito! Este meu viver é alguma cousa
mais dilacerante que a dôr. Não tenho a esperança consoladora, que a
Providencia manda sentar-se no limiar de todos os infelizes. Vejo d'aqui
todos os pontos em que devo passar na minha longa viagem para o nada. O
presente conta-me o futuro. O que vem não receio que seja peor que o que
é. Ha uma cruel monotonia n'esta angustia de todas as horas!

V. exc.ª comprehende-me? Creio que sim! O infortunio illumina o
entendimento. Para o que soffreu não ha mysterios de dôr no coração do
estranho. A minha amiga tem soffrido muito. Perdeu, ha pouco, um esposo
querido. Já depois beijou os labios frios d'uma unica filha que ficára
fallando com a innocencia da saudade a linguagem singela e carinhosa de
seu pae. Ainda assim, invejo-lhe o poder que tem de prestar consolações
á amargura dos outros. Eu, hoje, não saberia consolar ninguem.

Minha amiga, dê-me a sua estima, que eu não tenho mais nada. Em
remuneração, dou-lhe a verdade da minha alma, que é um thesouro, raras
vezes, concedido.

                                                           De v. exc.ª

                                                      Verdadeiro amigo,

                                                               _Paulo_.


II

                                                       _30 de setembro_

Palpita-me com sobresalto o coração. Preciso escrever-lhe emquanto me
dura esta febre, que está sendo a minha felicidade! _Felicidade_! com
que ousadia pueril escrevi semelhante palavra! Já é desejar muito
possuil-a! Bem se vê que sou um homem sem presentimento nenhum alegre,
sem nenhum direito á felicidade. Um pequeno lance na minha vida
transtorna-me a cabeça; e, comtudo, estes lances, creio eu que são
frequentes, e desapercebidos, na vida de qualquer outro, mediocremente
feliz.

Hontem fui procurado por Alvaro de Sousa, que uma vez encontrei em casa
de v. exc.ª Impressionou-me um ente estranho, no meu quarto, fechado
para todo o mundo. Chamou-me «amigo» e esta palavra banal fez-me sorrir,
pronunciada por um homem, que eu apenas conhecia, e que tão distante
está da minha obscura classe!...

Disse-me que possuia um quadro meu, era que uma virgem, mais formosa que
as de Raphael, era pintada no extasis de responder a sua mãe que a
chamava do céo. Eu já sabia que v. exc.ª lhe tinha dado este quadro.
Entendi, quando o soube, que não devia magoar-me; mas quizera, antes,
que os profanos na religião do martyrio ignorassem o author daquella
pintura. Não me receba isto como queixume. É a innocente sensibilidade
de quem, pelo muito soffrimento, chegou talvez aos escrupulos
injustos...

Perguntou-me se eu continuava a pintar. Respondi-lhe a verdade, que
nunca veio desfigurada do meu coração. Disse-lhe que sim. Pediu-me, como
especial favor, que retratasse uma mulher. Hesitei um momento; mas tive
pejo de me negar. Annui, e na tarde de hontem, acompanhei-o ao Sério, a
casa da viuva d'um negociante que, penso eu, se chamou Antonio José da
Silva, e creio mesmo que v. exc.ª me fallou, ha tempos, n'esse homem,
contando-me as aventuras d'uma tal Anna do Carmo, casada com seu primo
de traz da Sé.

Em casa d'essa viuva está uma senhora, viuva tambem. Ha tres annos que a
vi casada com um tal Augusto Leite, que deixou uma triste celebridade. A
nossa chorada amiga fôra companheira d'ella nas orphãs em S. Lazaro, e
contou-me cousas que lhe não eram muito favoraveis á sua indole de
menina.

Quando a vi casada com um homem perdido, imaginei que a semelhança dos
genios aproximára dous entes, que deviam encontrar-se. Comtudo, a
Rosinha, como lhe chamava Helena, pareceu-me triste. Soube depois que
era realmente infeliz, e nunca mais tornei a vêl-a.

Vi-a hontem, sentada diante de mim, com o sereno aspecto do prazer no
rosto, um pouco macerado, mas radiante ainda d'aquelle brilho de certas
bellezas que não se apaga nunca. Quiz adivinhar-lhe o coração nos olhos,
e estes olhos, languidos de ternura, vi que se fechavam n'um espasmo
delicioso a cada olhar de Alvaro de Sousa. Entristeci-me daquillo,
porque me lembraram as mulheres do grande mundo, os typos de magestosa
immoralidade, que dificultosamente se aclimatam em Portugal, onde não
chegou ainda a cultura e o despejo da França

Eu disse-lhe que não podia prescindir dos seus olhos por algumas horas.
Sentia-me com disposição para zombar da belleza, que tinha a vaidade de
reproduzir-se para, dez annos depois, encontrar, no logar das rosas, as
rugas da velhice, no vívido scintillar dos olhos o amortecimento do
cansaço.

Principiei o retrato. Alvaro de Sousa entretinha nos braços uma pequena
creança a quem chamavam Assucena. É filha de Rosa. Conheci-a pela
semelhança com sua mãe; mas não sei o que ha na physionomia da pequena,
que prophetisa fatalidades! Serei eu supersticioso?

Emquanto esboçava os contornos, perguntei-lhe se conhecera Helena
Christina, nas orphãs. Disse-me que sim, e que chorára, quando teve a
noticia da sua morte, por causa d'uma paixão que cegamente tributára a
um homem, que não era da sua condição.

Que homem era esse?--perguntei-lhe eu--Era o filho d'um
advogado.--Pensei que a condição do advogado era nobre, repliquei eu.--É
nobre; mas a d'um general é muito mais nobre, e Helena era filha d'um
general.

Não pude continuar o retrato. A palheta tremia-me no braço, e o pincel
traçava linhas confusas. Pedi licença para retirar-me, e deixei Alvaro
enleado da minha improvisada sahida.

Passei uma noite cruelissima. Levantei-me para escrever a v. exc.ª
Cuidei que esta carta me seria um desabafo; mas a suffocação augmenta.
Para que me disse aquella mulher que eu fui a causa da morte de Helena?
Penso que o fui. Accuso-me d'esse crime; porque não posso accusar meu
pae, que devera ser general, e não advogado.

Como é a sociedade, senhora! É impossivel que a Providencia não
abandonasse o homem, depois de o ter creado! Se o espirito de Deus
presidisse á organisação do genero humano, ninguem viria dizer-me: «A
tua condição social collocou um tumulo entre ti e a filha de um
general!»

E é a isto que eu chamei _a minha felicidade_! É um novo crime! Aquella
mulher confirmou a certeza que eu tinha de ter sido amado por Helena até
lhe merecer o sacrificio da vida. Será isto um egoismo barbaro?

Adeus, minha boa amiga.

                                                           De v. exc.ª

                                                      Amigo do coração,

                                                               _Paulo_.


III

                                                         _12 d'outubro_

Tive hontem o desgosto de não encontrar em casa v. exc.ª Procurei-a
porque tinha muitas ideias a revelar-lhe, mas tão desordenadas, que
receei não poder escrevel-as. A bondade, com que a minha paciente amiga
costuma attender os desvarios d'este forte coração e d'esta debil
cabeça, seria mais uma vez tolerante comigo.

Não a encontrando, resolvo escrever-lhe, e v. exc.ª verá n'esta carta o
tumulto de sensações que se me atropellam na alma, ha dez dias.

Instado por Alvaro de Sousa, fui recomeçar o retrato da viuva. Era-me
preciso, para não passar por doudo, remediar de qualquer maneira a
precipitação com que sahi d'aquella casa. Não me occorreu algum
pretexto. Adoptei o silencio como explicação, e não dei uma palavra que
suscitasse recordações do dia anterior.

Reparei com animo frio na physionomia de Rosa. É uma d'estas mulheres
que o mundo chama bellas, e eu creio que o são. Sem uns traços de
soffrimento, que lhe assombram os olhos, não seria tão bella. Tem um
olhar humilde, como quem pede compaixão. Não sei que transparente brilho
de lagrimas lhe empana os olhos. As palpebras, como cansadas de se
abrirem diante do infortunio, pendem amortecidas. Se não ha estudo
n'esta attitude caracteristica, o olhar de Rosa póde exprimir muito
amor, ou muito fastio.

Muito amor, talvez... é mais natural. Alvaro de Sousa, constantemente
embebido na contemplação d'esta mulher, não a deixa um instante sósinha.
Muitas vezes a viuva do negociante vem á sala trocar algumas palavras
com Alvaro, e não consegue divertir-lhe os olhos da sua amiga. Não pude
comprehendel-os. Achei demasiada precaução no amante, e alguma frieza,
se não era pudor, em Rosa. As perguntas carinhosas, que elle lhe faz,
são correspondidas com meiguice nos labios; mas a phrase vem sêcca do
coração. Reparei n'isto, e parece que o pincel, que traçava as feições
de Rosa, copiava tambem a physionomia moral de ambos.

Á primeira secção vieram ao panno os traços formosos da viuva. Alvaro
abraçou-me com frenesi; e ella parece que encarou tristemente aquelle
jubilo, que me pareceu pueril. É que aos vinte annos é assim o amor. A
felicidade embriaga os que não provam o fel nas primeiras libações da
infancia.

No dia seguinte fui continuar o retrato.

Alvaro de Sousa não tinha chegado ainda. Rosa pareceu-me mais alegre, e
recebeu-me com um sorriso de graça e confiança. Antes de sentar-se
perguntou-me que razão tivera eu para retirar-me, na primeira vez que
alli fôra, d'um modo que a deixára cuidadosa. Pedi-lhe que me não
interrogasse. Rosa, sem offensa ao meu pedido, fallou de Helena,
recordando a conversa que precedera a minha sahida. Era uma delicada
maneira de interrogar-me. Eu creio que me desfigurei. Reparou ella que
eu estava pallido e tremulo. Assucena, que por não sei que infantil
capricho me subira para o collo, disse que eu tinha uma lagrima nos
olhos. Rosa aproximou-se, e, apertando-me a mão, com um ar de bondade, e
um desembaraço de que eu não seria capaz, disse que me conhecia, e
pediu-me perdão de ter ferido o filho do advogado, que adorára a filha
do general.

Não respondi a este lance affectuoso. Pedi-lhe que se sentasse para
continuar o retrato. Rosa parecia mais commovida que eu. Sentou-se.
N'este momento entrou Alvaro. Cortejaram-se com algumas perguntas e
respostas triviaes, e eu, com os olhos do coração no tumulo de Helena, e
os da face na physionomia da sua companheira de recolhimento, continuei,
sem vontade nem attenção, o retrato.

No dia immediato fui concluir a obra. Rosa recebeu-me com estranha
affabilidade. Perguntou-me quantas secções faltavam. Respondi que era
aquella a ultima.

--E, depois--proseguiu ella, titubeando--não torna a esta casa?

--Tornarei todas as vezes que v. exc.ª se dignar occupar-me no seu
serviço.

--Eu desejava possuir o retrato de minha filha.

--Enviarei a v. exc.ª um habil pintor.

--Pois não quer encarregar-se d'este trabalho que eu tanto queria que
fosse seu?

--Agradeço a lisongeira fineza... Se eu tivesse o amor artistico, não
teria mais incensos a desejar para o seu culto; mas eu não posso, sem
grande sacrificio, fazer retratos. Fui surprendido, quando me prestei a
este serviço; agora, se v. exc.ª me concede recusar um sacrificio que
não é necessario ao seu bem, eu declino de mim esse trabalho, e, repito,
enviarei a v. exc.ª um retratista, que de certo não posso substituir.

--N'esse caso, prescindo do seu favor... agradecendo-lh'o muito... Não
será retratada minha filha.

--Eu receio ter sido grosseiro, minha senhora... Se v. exc.ª determina
que seja eu o retratista d'esta linda menina, recebo a sua vontade como
ordem...

--Deus me livre de sacrifical-o... Pensei que lhe não seria penoso
conversar com uma companheira de Helena, alguns instantes no dia.

--É muito penoso...

--Muito?... é admiravel!... E porquê?... Mereço-lhe a confiança de me
dizer que motivos lhe dou para não ser digna testemunha de suas
lagrimas?

--Nenhuns motivos, senhora D. Rosa... É que eu não tenho a
tranquillidade de espirito precisa para receber como um prazer as
recordações d'essa mulher que amei como não posso tornar a amar... Já vê
que deve ser-me bastante amarga a convivencia com uma pessoa, que
promette fallar-me de Helena...

--Não lhe fallarei n'ella...

--Então seria eu quem fallaria, senhora D. Rosa... Tenho-a sempre
adiante dos olhos... Não posso mandal-a afastar da minha alma, para
entreter-me em cousas futeis...

--Nem tudo é futil, senhor Paulo...

--Para mim... é. Não tenho vida que não seja uma insoffrivel saudade;
mas acho esta dôr mais nobre que tudo que me rodeia... Por ella, troco
de boamente todas as felicidades que o mundo possa traiçoeiramente
offertar-me...

--Traiçoeiramente...

--Sim... Creio que o mundo não póde offerecel-as d'outro modo... Tomára
eu ser esquecido para todos, assim como o meu nome o foi para v.
exc.ª... Preciso que me deixem, porque eu não procuro alguem. Será
forçarem-me a soffrimentos com que não posso, e contra os quaes
empregarei toda a minha coragem, chamarem-me para um mundo, onde serei
como o homem sem patria, nem affeições, nem amigos.

--Não crê na amizade?

--Não, minha senhora... Eu tinha uma grande alma, cheia de todos os
sentimentos bons; essa alma foi como um raio de luz amortecida no
prestito funebre da filha do general... Apagou-se ao pé da sepultura...
Não tinha senão essa alma...

--Nem espera resuscitar d'esse lethargo?

--Nunca mais.

--Nem emprega diligencias para isso?

--Nenhumas. Eu sei que o mundo não tem nada para mim...

--Nem o senhor Paulo tem nada que dê ao mundo?

--A compaixão para os desgraçados como eu, um sorriso de escarneo para
as felicidades d'um dia, e um adeus invejoso áquelles que morrem... Bem
vê que ainda sinto impulsos nobres no coração...

--Deseja a morte?...

--Procuro-a; mas entendo que é debil o poder das paixões nas
organisações fortes... Eu lucto, ha dous annos, face a face, com uma
dôr, que me não deixa cinco minutos de descanso, e vivo... vivo assim
com o aspecto da serenidade, e talvez com o rosado juvenil d'uma saude
perfeita... Não se morre de paixão...

--E que importaria morrer?

--Importava não sentir...

--Pois o senhor não crê n'outra vida?

--Não creio n'outra vida. Procurei acredital-a. Li tudo, estudei tudo,
porque me disseram que a incredulidade era a estupidez. A cada oraculo
da immortalidade, que consultava, a minha alma, além de incredula,
sentia a cruel precisão de escarnecer a fé dos que nos mandaram crêr.
Disseram-me que eu não cria, porque a fé era uma graça especial do
Senhor. Isto fez-me rir amargamente; mas, supersticioso pela desgraça,
pedi, invoquei, suppliquei com fervor a fé. Esperei-a. Deixe-me rir,
senhora, que este riso é um insulto bem merecido às minhas crenças... O
homem é um verme. Deus não tem nada com este grão de areia, que lançou
no oceano, a turbilhões, com a ponta d'um pé...

--Deve ser muito desgraçado...

--Não sou mais do que seria: creio, pelo contrario, que sou menos. A
immortalidade de que me servia?

--De encontrar essa mulher, que tanto amou n'este mundo...

--Isso é falso... Essa mulher, que muito amei n'este mundo, antes de
entrar no esquife, principiou a desorganisar-se. As pessoas, que estavam
em redor, diziam que era insupportavel o cheiro do cadaver... A
putrefacção, a estas horas, deve tel-a consummido... De que me servia a
immortalidade a mim, se os vermes me não restituissem a mulher que teve
um dobre a finados, uma oração mercenaria, uma lagrima do costume, e a
eternidade do _nada_, que é a verdadeira eternidade?...

--Com uma razão tão forte é impossivel que não possa vencer os seus
soffrimentos.

--Chama v. exc.ª a isto _razão forte_? É uma debilidade, minha
senhora... Forte é a razão do homem que se dá voluntariamente a
esperanças chimericas, e crenças sem critica... O forte é esse, que
vence a propria razão... Fraco sou eu, que não posso subjugar o
espirito...

--Nem com as consolações d'uma verdadeira amiga?

--O que é uma verdadeira amiga?

Fomos surprendidos por Alvaro de Sousa. Reparou no embaraço de Rosa, com
ares desconfiados. Eu recebi-lhe os cumprimentos com a frieza não
calculada dos meus habitos ordinarios. Continuei o retrato, com não sei
que placidez incomprehensivel! Senti-me melhor do coração...

Agora é que eu me sinto incapaz de continuar esta longa carta... Creio
que é longa e fastidiosa... Soffra, e tolere-m'a, minha querida senhora.

Até ámanhã.

                                                           De v. exc.ª

                                                        Dedicado amigo,

                                                               _Paulo_.


VI

                                                        _14 de outubro_

O retrato de Rosa estava concluido. Na tarde d'esse dia, Alvaro de Sousa
procurou-me, agradeceu-me o emprego que eu fizera de todos os recursos
da minha arte divina, e delicadamente deixou sobre a minha mesa um
cartuxo de dinheiro. Não sei o que continha; porque, apenas o encontrei,
depois que Alvaro se despedira, mandei entregal-o em sua casa.

Alvaro voltou no dia immediato, e instou pela razão de semelhante
precedimento. Respondi-lhe, depois de importunado, que me dispensasse s.
exc.ª de dar uma categorica explicação das minhas acções. Vi-lhe um
sorriso de desconfiança, que me fez piedade. Estive quasi a pedir-lhe a
definição do sorriso; mas não quiz culpar-me no erro, que lhe censurava
a elle. Todo o homem póde chorar ou rir quando quizer.

Decorreram tres dias, sem o menor incidente, com referencia ao retrato
da viuva. Hontem, porém, recebi a carta, que remetto a v. exc.ª, já que
me impôz a obrigação de lhe não esconder os mais secretos incidentes
d'esta minha attribulada existencia, que v. exc.ª segue, desde o berço,
minuto por minuto. Communicando-lhe essa carta, entendo que não me
deshonro. A mulher, que a escreveu, ou está deshonrada de mais para não
soffrer nos seus creditos com semelhante revelação, ou está bastante
pura para não soffrer no seu pudor, confiando-se á minha discrição, e á
de v. exc.ª

«Já não sou de mim propria quando commetto a estranha temeridade de
escrever-lhe. Separo-me das leis do meu sexo, e declaro-me muito forte
na minha fraqueza para me abandonar loucamente á vontade caprichosa d'um
sentimento, que póde deshonrar-me, mas que me absolve na consciencia.

«Escrevo-lhe, Paulo, porque não tenho esperanças de encontral-o n'esta
casa. Quero deixar cahir este véo, com que me viu, porque tenho vergonha
de parecer-lhe o que a minha razão me diz que não sou.

«Que julga de mim? Como tem avaliado o meu procedimento? Reputa-me
amante de Alvaro de Sousa? Não quero essa consideração; renuncio a tal
gloria, porque eu não sou amante de Alvaro de Sousa. Este homem entra na
minha casa, e denomina-me prima. Intitula-me prima, porque dizem que
minha mãe é casada com não sei quem que pertence á alta nobreza. Vi esta
mulher; não pude amal-a; não pude reconhecel-a; e fui com ella rude como
seria com uma pessoa estranha.

«Soube que a fortuna de meu pae a fizera elevar-se até ao ponto de
nobilitar-se. Não me fez uma ligeira impressão esta mudança. Não a
procurei nunca, e morrerei de indigencia antes de pedir-lhe uma dobra de
seus velhos tapetes para resguardar do frio minha filha.

«Alvaro de Sousa tem-se-me offerecido para estabelecer entre mim e D.
Anna do Carmo uma alliança filial. Revela um interesse extraordinario
pelo meu futuro. Dedica-me extremos de irmão e encobre com muito fina
astucia as suas intenções, se ellas são más.

«Não me importa saber quaes ellas sejam. Nada ha commum entre mim e este
cavalheiro, senão uma amizade sem consequencias, e um commercio de
frivolidades como é a troca de retratos, a que eu não ligo importancia
alguma.

«Aqui tem o que eu sou para aquelle homem. Precisava abrir-lhe assim a
minha alma, Paulo. O resto do mundo deixo-o julgar a seu bel-prazer; não
me canso até em sondar a indifferente opinião da sociedade a meu
respeito.

«A sua preciso d'ella; porque preciso da sua estima, como d'um amparo
que me anime a esperar sobre a terra a felicidade, que, em poucos dias,
vi fugir diante de meus olhos, como um sonho ditoso.

«A sympathia entre dous desgraçados deve ser abençoada por Deus. Não
fuja d'uma mulher que póde, se não dar-lhe consolações, recebel-as ao
menos. Seja meu amigo, não como foi de Helena, mas como póde sêl-o d'uma
pessoa, que desejára n'este instante ter uma sepultura ao lado d'ella.

«Não ouso pedir-lhe nada, não tenho sequer coragem de implorar-lhe duas
linhas em resposta a esta carta, que me sahiu tão ingenua do coração,
que nem quero tornar a vêl-a, para que o artificio da fria cabeça não vá
manchar a pureza natural com que a escrevi.

«Adeus, Paulo. Não desdenhe a inutil estima, que lhe offerece

                                                   _Rosa Guilhermina._»

Esta carta não me impressionou. Quasi que me não occupei senão do estylo
em que era escripta! Encontrou-me n'um momento de gélida atonia.
Tenho-os assim, e então a minha alma é dura, o meu coração paralysa, os
meus labios sorriem-se machinalmente, e eu escondo a face nas mãos para
contemplar este mysterioso mixto de sensibilidade e cynismo que
caracterisa as feições da minha indole.

O portador d'esta carta esperava uma resposta, duas horas depois. Eu não
pensei que devia responder; por isso não tive o cuidado de saber se
alguem esperava resposta. Quando me annunciaram o portador, mandei-o
subir. Perguntei-lhe se era forçoso responder; disse-me que tinha ordem
de esperar até que eu lhe désse resposta, ou dissesse que a não tinha.

Escrevi...

Não me lembra bem o quê. Penso que eram estas as ideias:

Que eu não mostrára o menor interesse em conhecer indiscretamente a
natureza das ligações que prendiam D. Rosa Guilhermina a Alvaro de
Sousa;

Que me eram tão indifferentes depois como antes, mas que muito
ingenuamente estimava que ellas fossem taes, que nunca a excellente
senhora tivesse de soffrer por ellas;

Que acceitava a offerta da sua estima, porque já não podia aspirar a
outros triumphos no coração das mulheres, que sabiam separar a amizade
do outro sentimento que a hypocrisia vestiu com os arminhos emprestados
d'uma affeição nobre;

Que, na minha posição, não podia dar-lhe mais consolações do que as
muito poucas que um homem qualquer póde offerecer no serviço de qualquer
senhora, que precisa d'um criado.

Penso que foi isto, pouco mais ou menos, o que eu escrevi. São passadas
vinte e quatro horas. Não tenho nada a accrescentar a este episodio, e
creio que terminará aqui.

Não concebo bem o que esta senhora quer de mim! Não creio n'estas
fascinações momentaneas, porque as não entendo, ou o meu coração está
muito abaixo d'esses vôos.

O que em verdade lhe digo, minha boa amiga, é que não preciso recordar
os juramentos que fiz a Helena, dous dias antes da sua morte, para
vencer a impressão que Rosa Guilhermina me poderá ter feito. É nenhuma.
Posso esperar com firmeza e animo frio a perseguição. Nem, ao menos, a
lastimo, porque a febre da imaginação ha de mitigar-se, e, quinze dias
depois, esta mulher terá por mim um sentimento de resentido orgulho que
ha de salval-a. Entende-o assim?

                                                           De v. exc.ª

                                                           Grato amigo,

                                                               _Paulo_.


V

                                                        _19 de outubro_

Retirou-se, n'este momento, de minha humilde casa o senhor Alvaro de
Sousa.

S. exc.ª é um lastimavel mancebo! Como seu primo, minha boa amiga, sinto
que elle seja o incentivo irrisorio d'esta carta.

Entrou de chapéo na cabeça na minha officina.

Vou tentar recordar o dialogo, que tivemos.

«--Venho exigir do senhor uma prompta resposta--disse elle, dobrando o
punho d'uma bengalinha com a ponta.

«--Tenha a bondade de fazer a pergunta--respondi-lhe eu, convidando-o a
assentar-se no canapé, inutilmente.

«--O senhor tem algumas intelligencias com D. Rosa Guilhermina?

«--Não respondo.

«--Quer dizer que tem?

«--Não quero dizer nada. Digo que não respondo.

«--Mas eu preciso que responda sim, ou não.

«--Pois por satisfazer ás suas exigencias imperiosas, senhor Alvaro de
Sousa, respondo ambas as palavras: _sim_ e _não_.

«--Não comprehendo...

«--Tanto peor para v. exc.ª que não póde esperar de mim outras
explicações.

«--O senhor parece ignorar a qualidade de pessoa com quem falla...

«--Poder-me-hei ter enganado, mas creio que fallo com um dos mais
distinctos cavalheiros do Porto... O senhor Alvaro de Sousa é muito
conhecido, para que eu não conheça a qualidade da sua pessoa, até pela
libré dos seus lacaios.

«--É preciso que nos entendamos.

«--Desejo-o de todo o meu coração...

«--O senhor tem algumas relações com D. Rosa?

«--Continuemos na mesma desintelligencia, senhor Alvaro... Essa pergunta
já foi respondida.

«--Mas a resposta não me satisfaz.

«--Não tenho outra, e falta-me até a paciencia para lhe offerecer, outra
vez, a que v. exc.ª não acceita.

«--Eu sinto que o senhor não seja um cavalheiro da minha classe para
responder-me á ponta da espada.

«--Dou, portanto, louvores á Providencia por me ter feito d'uma classe
diversa da dos heroes, que teem ponta de espada para os que não tem
ponta de lingua...

«--O senhor zomba de mim?!

«--Zombo.

«--E não receia as consequencias d'essa affronta á minha honra?

«--Não, senhor.

«--Estou em sua casa...

«--Que quer dizer com isso?

«--Não quero dizer nada... Encontrar-nos-hemos...

«--Senhor Alvaro de Sousa, eu tenho épocas em que difficilmente sou
encontrado, e esta parece-me que é uma. Se v. exc.ª tem urgencia de
encontrar-se comigo, sahirei hoje.»

Não me respondeu, e sahiu.

São tres horas da tarde. Vou dar um passeio.

V. exc.ª ha de permittir-me que, invocando o sagrado testemunho da nossa
amizade, eu lhe imponha o preceito de não fazer transpirar uma palavra
d'esta minha carta, a não desejar um completo rompimento nas nossas
relações.

                                                           De v. exc.ª

                                                        Humilde criado,

                                                               _Paulo_.


VI

                                                        _20 de outubro_

A carta de v. exc.ª, cheia de benevolos conselhos, e prudentes reflexões
a respeito do meu conflicto com o senhor Alvaro de Sousa, é uma nova
força que v. exc.ª quer dar ás minhas convicções na sua amizade.

Felizmente, o primo de v. exc.ª, sentindo por ventura que lhe não era
glorioso um desforço com o pintor, já teve a summa discrição e bondade
de encontrar-se comigo tres vezes, e deixar-me seguir pacificamente o
meu caminho.

Sinceramente lhe digo, minha nobre amiga, que o menos interessado,
n'esta ridicula lucta com um moço digno d'outro competidor, era de certo
eu.

Não me levava para este acto de suprema vaidade o coração. O meu mal
pensado cavalheirismo era todo da cabeça, que tenho cheia de
loucuras, e refractaria a tudo que é submissão a classes, cuja
superioridade--desculpe-me v. exc.ª--não reconheço debaixo do céo.

D'este orgulho, que eu supponho não existirá d'hoje a cem annos, porque
então os homens serão todos iguaes perante a lei, e irmãos perante Deus,
d'este orgulho resultou a facilidade com que fui hontem procurar D.
Rosa, que me pedia anciosamente uma entrevista.

Encontrei-a assustada, confiando de mais na superioridade de Alvaro, e
avaliando em menos que o seu valor real a minha frieza de animo para
arrostar as furias do seu fidalgo amante.

Sorri piedosamente para aquelles receios, aliás naturaes no coração
d'uma mulher.

Aquietei-lhe quanto pude o seu sobresalto, e acabei por pedir-lhe que
fosse grata aos extremos do gentil moço, que, por ella, se arriscava a
um encontro, cujas consequencias eram imprevistas para ambos nós. N'este
sentido, aconselhei-a com uma generosidade digna d'outros tempos.
Encareci o merecimento do senhor Alvaro, advoguei a causa d'elle com o
fervor d'amigo, estabeleci comparações entre nós que redundavam em
grandes vantagens para elle, e terminei este difficil papel, salvando a
minha posição falsa, com lhe offerecer a sincera estima de irmão.

Rosa Guilhermina não me quer para irmão. Achei-a de marmore para este
sentimento que seria em mim o mais vital de todos, o que eu hoje mais
lhe agradeceria, e o primeiro e derradeiro que eu posso offerecer a uma
mulher. Ella, não. Fallou-me do seu amor com estranho desembaraço.
Explicou-me os effeitos d'uma impressão violenta. Disse-me que só um
prompto desprêso poderia salval-a, porque tinha o amor proprio
necessario para não succumbir sem gloria, humilhando-se a um homem que a
não comprehendia. Empregou, na exposição eloquente da sua sympathia, as
melhores palavras da novella, e concluiu o seu não interrompido discurso
com lagrimas, que me pareceram mais eloquentes que a fecundidade
palavrosa.

Eu não sei o que ha de sublime, e mavioso nas lagrimas d'uma mulher.
Como se Deus lhe désse a humildade por instrumento de triumpho, eu
senti-me enfraquecer, ao mesmo tempo que recobrava toda a minha coragem,
pedindo-a á saudade de Helena, como se pede uma alegria ás recordações
do passado, que se nos foi com todas ellas.

Eu creio já ter dito a v. exc.ª que D. Rosa é uma linda mulher. Quando a
retratei, havia alli n'aquella physionomia um colorido de felicidade, um
sangue agitado que lhe vinha em estos ardentes do coração, uma viveza
robusta, que denunciava um feliz descuido de pezares.

Hontem não era assim. Rosa estava livida. Orlavam-lhe os olhos umas
manchas azuladas, que marcavam talvez a passagem de muitas lagrimas
escondidas, em longas noites de desesperação. Posto que vaidoso, eu não
me felicitei, minha cara amiga, por ter sido a causa d'esses
padecimentos. Se é por mim que elles existem, não se me dá da gloria
inutil que elles possam dar-me. Não tenho nenhuma: não me prestam de
balsamo para o coração; não me aquecem esta cabeça de gêlo; não me
deixam roubar ao passado um instante para com elle idear futuros de
impossivel felicidade.

Poderei amar esta mulher repetindo as minhas visitas? Não. A aproximação
é o divorcio das grandes paixões, que a distancia esposára. Aos pés do
homem cahe partido o prisma, quando o hálito da mulher é tão de perto
que lhe empana as côres.

E eu, de mais a mais, não desejei aproximar-me, quando a vi de longe.
Não senti este toque inesperado, esta surpreza electrica, uma só vez
recebida na existencia de cada homem.

Poderá o tempo fazer o que não fez um instante?

Não.

Dizem que existe um amor lentamente creado pelo habito, emanação da
amizade contrahida pela semelhança de vontades, resultado d'uma demorada
elaboração de dous espiritos que se consagram no mutuo sacrificio de
propensões e desejos. Não sei o que seja isto. A razão rejeita essas
candidas theorias.

Eu só creio no amor não esperado, não grangeado por sacrificios, não
calculado de dia para dia.

Se me dizem que essas paixões improvisadas n'um olhar, e n'um sorriso, e
n'um córar, são instantaneas, e ephemeras como o féto arrancado ao
embrião, com violencia, antes de tempo, eu direi que sim... que morrem
essas paixões na vida, porque ha a pedra do tumulo que desce quando Deus
a manda, mas ha a eterna saudade que nem a Providencia póde desvanecel-a
no coração, que se envolve n'um pedaço da mortalha, roubada a outro
coração, que o deixou viuvo de todas as esperanças, e gélido para todos
os confortos.

Minha paciente amiga, eu sou fastidioso com as minhas choradeiras.
Acolha-m'as com amor, que eu não tenho, sequer, em galardão de tantos
soffrimentos, o poder de as lançar ao papel de modo que consternem a
compaixão da unica pessoa que póde sentir comigo.

Estou pintando. É o meu sonho de ha dias. É Helena, quando me deu uma
rosa murcha, e me disse: «Ahi tens o meu amor: a rosa cahirá desfeita em
pó; mas a saudade ficará perpetuamente entre os vivos, como o germen
d'essa flôr.» Estas palavras repetiu-m'as no sonho. Vi-a tal qual era,
n'esse primeiro dia em que os medicos lhe disseram que désse um passeio
recreativo á ilha da Madeira. N'esse dia começou ella o seu curto
passeio em redor da sepultura!...

Adeus, minha estimavel senhora.

                                                           De v. exc.ª

                                                        Amigo dedicado,

                                                               _Paulo_.


VII

                                                        _29 de Outubro_

Tem decorrido sete dias, depois que lhe escrevi, minha boa amiga. V.
exc.ª não calculava a razão do meu silencio, quando na sua queixosa
carta de hontem arguia a minha reserva, ou indolencia.

Eu indolente, senhora! Eu que não tenho cinco minutos de repouso desde o
dia á noite! Eu, que conto os longos instantes do escurecer ao dia!

Não lhe escrevi... por vergonha!... Ha de crêr-me, senhora! não tenho
tido animo de ser eu o proprio accusador das minhas fraquezas
incomprehensiveis! Tenho esperado o intervallo lucido d'esta demencia de
seis dias, e as trevas cerram-se cada vez mais.

Que é o que se passa em minha alma? Que transfiguração se operou na
minha vida? Que brinquedo cruel é este que vem ludibriar-me no canto
esquecido em que me refugiei com as minhas desgraças?

A minha organisação está debaixo da terrivel influencia d'uma zombaria
providencial! Eu era, ha oito dias, o homem morto para o futuro; as
minhas alegrias resuscitava-as do tumulo mudo do passado; a minha vida
era uma saudade que devia cegar-me os olhos da razão com o seu brilho
sinistro, enlouquecendo-me, ou matando-me. Detestava o presente, porque
debaixo dos meus pés estava o ardor do deserto, e nos horisontes da
minha esperança... nem uma gôta d'agua que me apagasse este lume que me
queima, sem o poder de aniquilar-me. Eu era isto! A solidão era-me cara.
O tumulo de Helena povoava-se-me de anjos. A imagem d'ella, esboçada em
cada téla que me rodeia, tinha uns olhos que choravam, mas os seus
labios articulavam não sei que palavras animadoras, que me mandavam
subir com o sorriso da resignação as escadas do meu patibulo.

E esta vida acabou para mim. A imagem de Helena fugiu lagrimosa e
espavorida da solidão do meu quarto. A sepultura d'ella... é uma pedra
êrma de phantasmas para mim. Comecei por descrêr das minhas passadas
visões. Raciocinei friamente sobre a vida e a morte; sobre a belleza que
foi, e o cadaver que é; sobre o coração arquejante de amor, e o coração
minado de vermes.

Que é isto, pois? quem rasgou este véo diante de meus olhos? Que homem
sou eu hoje, ou que homem fui durante dous annos de amargura incuravel?

Entre mim e Helena... está Rosa Guilhermina! Tenho o rubor do pejo na
face, quando estas palavras me fogem do coração! Parece que a vejo
contrahir uma visagem de indignado pasmo por tal mudança! O meu caracter
apresenta-se-lhe uma inconcebivel monstruosidade! Vota-me um legitimo
desprêso, desde este momento?

Primeiro me despresei eu a mim. Primeiro olhei eu, com asco, para a
minha miseria. Antes de v. exc.ª recuar nauseada da baixa condição da
minha alma, entrei eu na minha consciencia, e vi-me torpe, ingrato,
insensivel, perjuro, e vil!

Tenho muito orgulho da minha honra; quero absolver-me d'esta deslealdade
á memoria de Helena, e não posso. Vejo que é necessario ser cynico para
me desculpar, escarnecendo as culpas que a sociedade me imputa. Não
posso, não sei sêl-o, não está na minha mão rasgar o contracto que fiz
com Helena, nos seus ultimos instantes.

Mas eu amo Rosa. Que sentimento é este? Como hei de convencer-me de que
amo esta mulher? Se isto é uma illusão, como é que se dissipam estas
chimeras?

Não sei! Lembra-me que senti uma commoção inexplicavel quando a vi
chorar! Lembra-me que a vi n'um sonho, de que acordei balbuciando o seu
nome com ternura. Lembra-me que desdenhei, acordado, a ternura do
sonho... Mas a minha alma estava inquieta. O meu quarto parecia-me
pequeno: este silencio entristecia-me... Faltava-me não sei que voz, que
som dos anjos que me tinha ferido uma corda no coração!... Ri da minha
fragilidade. Peguei d'um pincel... Disse á minha alma que lhe inspirasse
os traços de Helena... e os olhos amortecidos de Rosa resaltaram-me do
panno com duas lagrimas... Era a imagem d'ella, que se levantava de um
tumulo a dizer-me: «Aqui tens lagrimas minhas; aqui tens um coração, que
renasceu das minhas cinzas; aqui te dou a unica mulher, que póde supprir
a que não terá para ti um sorriso sobre a terra... Vê que os vermes
corroeram a minha face. Não te illuda uma esperança em outros mundos,
porque os limites da vida são a campa... Eterna é só a materia; mas a
materia que te feriu os sentidos, dissolveu-a o sôpro da desgraça...»

Contive-me durante dous dias de tribulação incessante. O coração
dizia-me que Rosa me escreveria. Li a carta que recebera com
indifferença, e passei por a minha alma todas aquellas palavras.
Achei-as sinceras... Acarinhei-as com soffreguidão... Recordei o que
ella me dissera, depois. Accusei-me de ingrato. Tive orgulho do meu
rival. Receei ter parecido um ente indigno de tamanho amor! Senti
ciumes... Queria vêl-a... Precisava de lhe esconder metade de minha
alma, revelando-lhe uma pequena parte dos meus sentimentos...

E procurei-a... Não sei o que lhe disse... Recordo-me que lhe apertei a
mão com ardor; que lhe pedi lagrimas de piedade, e coragem para não
transgredir um juramento... Penso que me não entendeu, porque me
respondeu com um sorriso, e fugiu de ao pé de mim com a face abrazada...

E, desde esse dia, escrevo-lhe a todas as horas. Não lhe mostro as
minhas cartas, porque não posso convencer-me de que o meu coração está
n'ellas... É impossivel!... Aqui ha uma fascinação!... Eu não posso ter
esquecido Helena!...

Preciso hoje da sua companhia, minha querida amiga!... Escrevi o que não
ousaria pronunciar...

                                                           De v. exc.ª

                                                           Grato amigo,

                                                               _Paulo_.


VIII

                                                        _25 de outubro_

A ingratidão é punida. Principio a expiar o perjurio. Helena vai ser
vingada por esta mulher, que, traiçoeiramente, me assaltou o coração,
quando eu me julgava de ferro para as paixões.

Rosa Guilhermina vai recuando diante de meus passos. Aproximar-me foi
gelal-a. Da tristeza profunda com que me olhava, antes da vergonhosa
quéda que dei do alto do meu orgulho, transformou-se n'um rosto
folgasão, n'um conversar futil e acreançado, n'um nem eu sei que de
motejo e zombaria que me escandalisa e envergonha.

Esta mulher quiz experimentar-se, experimentando a minha soberba.
Humilhou-se como a vibora, que se enrosca entre as urzes, para se
levantar d'um salto de que eu devia fugir atrozmente ferido no meu amor
proprio. Isto tudo é inexplicavel; mas o facto existe com horrorosa
evidencia! Essa mulher, que me provocou, ha de amanhã despresar-me...
despresa-me já hoje, e ousa dizer-me que me recebe, em attenção á
delicadeza com que a tenho tratado!

Esta fria linguagem é a mascara impostora dos caracteres, que se não
sustentam. Quando a mulher assim falla, é porque o amor, nos labios
d'ella, foi uma expressão mentirosa, que passou por lá, como a palavra
«Deus» que é seguida, na bôca do impio, pela palavra «demonio!»

É isso crivel, minha querida amiga?

Rosa será aquella mulher, que me escreveu? Não a veria eu chorar? As
lagrimas podem assim prestar-se a uma infamia? Ha mulheres que tiram
d'um coração gasto um tal proveito?

Hontem procurei-a com a resolução estupida de convidal-a a ser minha
mulher! Eu não podia já luctar com ella, nem comigo. Um dia antes,
perguntei-lhe a razão da sua frieza; respondeu-me que ella mesmo não
sabia explical-a. Disse-me que Alvaro de Sousa não frequentava a sua
casa, e accrescentou que desejava saber de mim a razão d'este
procedimento.

--De mim?!--perguntei eu.

--Sim... do senhor... Por minha parte não lhe dei a elle motivo algum de
abandonar uma casa, em que entrava como parente... O que fiz foi
interpôr as minhas supplicas com o senhor Paulo e com elle para que não
tivessem desintelligencias em que soffresse a minha reputação.

--A sua reputação é invulneravel...

--Não é tanto assim... A vinda frequente do senhor Paulo, e a ausencia
completa de Alvaro de Sousa, é motivo de murmuração na visinhança.

--Quer com isso dizer que não a sacrifique á murmuração dos visinhos?

--Escuso lembrar á sua honra esse dever. O senhor deve ser o primeiro a
lembrar-se da susceptibilidade em que estou na presença d'um mundo que
não distingue as mais honestas das mais torpes intenções...

--Está raciocinando com admiravel prudencia, senhora D. Rosa!... Quer em
summa dizer que não devo vir a sua casa...

--Não digo tanto; mas devo pedir-lhe que seja menos frequente nas suas
visitas...

Comprehendi-a...

E ergui-me d'um impeto para retirar-me. Parece que o coração se me tinha
despegado no peito. Ouvi um zunido estranho, que me fazia latejar a
cabeça em dolorosas pontadas. Era tudo escuro diante de meus olhos, e
não havia em mim sensação que me não fizesse recear uma demencia.

Sahi, e, só muitos passos longe d'aquella casa fatal, me lembrou a
retirada boçal que fizera. Como foi possivel que eu não respondesse
áquella mulher?! Que indignação, ou que nobreza d'alma foi a minha, que
me não inspirou uma palavra que a fizesse córar?! Será isto uma
devassidão moral, que supporta impassivel todas as offensas? A longa
desgraça petrificou-me? Um amor, todo sancto, todo saudade, o amor de
Helena, dous annos puro no sacrario do meu coração, fez-me cynico?

Tenho-me hoje feito estas perguntas. É um tormento não poder responder.
Não posso. Não sei o que sou, nem o que é aquella mulher!

Seria uma desgraça, um cancro incuravel na minha alma a certeza de que
ella é tão infame como se me ostenta!

Vejamos se posso absolvel-a... Oh! eu queria absolvel-a, sem deshonra
para mim, nem para ella!... De que modo?...

Ha, por ventura, uma intriga? Qual? Por quem? E com que fim?

Não sei, não posso comprehendel-a.

Disse-me ella que nunca me confessou amor! Será isto verdade? Fui eu que
me illudi? Então, aquella carta, aquella livre explicação d'um affecto
repentino... foi tudo um sonho?! Terei eu mentido a v. exc.ª? A cópia da
carta que lhe enviei, foi uma ignobil impostura?...

Como é especialmente horrivel a minha situação! Como eu, d'um lance
d'olhos, vejo todos os casos em que um homem póde suicidar-se na sua
honra cuspindo na face d'uma mulher!...

Esta situação não póde assim durar... Eu preciso ouvil-a... Ella ha de
saber colorir a sua depravação d'outro modo... Eu quero até que ella se
defenda, porque vai ahi n'essa defesa a salvação do meu amor proprio...
Que dirá?... Que terei eu que responder-lhe?

Minha boa amiga, ha uma conspiração sobrenatural contra mim... Eu
receio, hoje mais que nunca, uma demencia. Lamente o seu infeliz amigo

                                                               _Paulo_.


IX

                                                        _2 de novembro_

Tudo está perdido.

Rosa Guilhermina vai sahir do Porto. D. Anna do Carmo faz parar, ha
quatro dias, a carruagem á porta de sua filha. Alvaro de Sousa
reconciliou-as. Leia v. exc.ª essa carta, que recebo n'este momento:

«Confidente de minha amiga Rosa Guilhermina, devo dizer a v... que as
suas visitas a esta casa, emquanto ella fôr minha hospeda, são bastante
prejudiciaes á futura felicidade d'esta senhora. Sua mãe, informada das
relações que o chamam a minha casa, obriga Rosa a sahir do Porto.
Suspeito que a sua direcção não pare aqui em Portugal.

«Da parte de v..., tanto eu como ella esperamos a cavalheira prudencia,
que o seu bom caracter nos afiança. Se a ama, como devo acreditar das
cartas que lhe escreve, desvele-se em não prejudical-a. Até aqui a sua
união com a filha sem mãe, seria possivel. Hoje que D. Anna do Carmo
reconhece sua filha para eleval-a até onde o dinheiro a collocou,
declaro-lhe, com pesar meu, que serão, além de inuteis, nocivos todos os
seus esforços.

«Com sincera estima

                                                              «De V...

                                                «Veneradora affectuosa,

                                                        «_Maria Elisa_.»


Ora aqui tem, minha boa amiga, o artista em lucta com a sociedade. Ella
ahi vem pôr-me um pé, segunda vez, no pescoço! Cá sinto já a dôr
vilipendiosa, e nem sequer sei já sorrir-me, quando a soberba me estende
na face uma bofetada! É preciso ser homem, antes de tudo. Quero tirar
nobreza da minha vilania! Esta dôr moral é mais forte que a outra. Sinto
desvanecer-se o amor, e só tenho alma para compulsar as agonias d'uma
paixão incomparavelmente maior. Cerra-se uma ferida; mas creio que me
abriram outra incuravel, rasgando-me a antiga cicatriz.

Hoje preciso da vida, porque é impossivel que eu não tenha a minha hora
de vingança...

Vou sahir de Portugal... não porque me reconheça tão pusillanime que
receie aqui uma consumpção moral... Não é isto... é que debaixo d'este
céo não ha para mim um anjo bom que me auxilie n'esta peleja desigual
com o meu inseparavel demonio.

Tenho dinheiro, que me é inutil aqui. Preciso desperdiçal-o... Quero
tocar a extrema da miseria, para que a necessidade me faça artista, e o
trabalho me salve d'estes ocios despedaçadores. Não sei onde irei... nem
mesmo quero sabel-o... De qualquer parte, minha querida amiga, virá uma
minha carta pedir-lhe uma lagrima. Quando a não receber... quando o
silencio lhe afigurar que a sua amizade fez um ingrato, poderá v. exc.ª
dizer: «Aquelle desgraçado, de quem fui tão amiga, e que tanto deveu ás
minhas consolações, morreu!»

E v. exc.ª poderá então louvar a Deus, que encravou a roda do meu
infortunio. Poderá agradecer-lhe, como unica pessoa que deixarei no
mundo com o meu nome no coração, a graça da morte concedida ao talvez
primeiro homem, que não teve cinco minutos de felicidade na demorada
existencia de vinte e seis annos.

N'este momento ha em mim alguma cousa sobrenatural. Não amo Rosa
Guilhermina; mas tambem a não detesto! O que eu muito queria era o
segredo d'aquella indole, porque eu não seria acreditado se contasse a
transição do amor ao desprêso, a infame mentira que me arrancou aos
braços d'um cadaver para me lançar nos da desesperação.

Deixal-a! Quero até pedir a Deus... _a Deus!_ a desgraça, que é a mãe da
piedade! Sinto-me religioso, porque, acima d'estas torpezas, ha de
necessariamente existir um Creador, que deixou aqui a dilacerarem-se o
mal e o bem. Este Creador deve ser juiz, e eu começo a temêl-o desde
este momento... Quero, pois, pedir a Deus que proteja o futuro de Rosa
Guilhermina. Os anjos vão com ella. Esta expressão do povo é a mais
expansiva e tocante que a minha alma pode dar-lhe. A derradeira
consolação do infeliz é perdoar. Eu perdôo... Offereço o meu coração
para todos os punhaes; curvo a minha cabeça a todas as desgraças; dobro
o meu joelho a todas as violencias, e prometto de nunca mais chamar
infames os instrumentos, que obedecem á vontade superior do grande motor
da vida, e da morte, da honra, e da deshonra.

Não tenho coragem de abraçal-a, minha cara irmã. Adeus.

                                                           De v. exc.ª

                                                  Amigo de toda a vida,

                                                               _Paulo_.


X[5]

                                              _Roma, 4 d'abril de 1825_

                                                    Minha prezada amiga

Eu tinha esperanças na minha convalescença moral. O coração, aturdido
por padecimentos tumultuosos, cansado e endurecido por cicatrizes de
golpes sobre golpes, adormecera extenuado... Eu principiava agora uma
nova estação na minha vida. A insensibilidade promettia-me uma
tranquilla vegetação. Adormeceria sem lagrimas; acordaria sem
sobresaltos; veria tudo descórado em redor de mim; abriria para tudo,
que me cerca, estes olhos de estatua, sem culto para o bello, nem asco
para o repugnante.

Este ultimo baluarte sinto-o esboroar-se debaixo dos pés. Á
convalescença da alma segue-se a desorganisação da materia.

Estou doente d'uma enfermidade que eu sentia, ha annos, fermentar-se-me
no coração. Muitas vezes sentia umas palpitações extraordinarias, e
depois dores agudissimas, um suor copioso, um mal-estar physico e moral,
um mixto de aborrecimento e desesperação, que eu attribuia sempre á
inconsolavel viuvez da minha alma.

Este padecimento, nos primeiros mezes da minha viagem, diminuiu até se
extinguir. N'outro tempo, não se me dava sentir aggravar-se o mal; mas,
agora, queria vêr-me livre, queria viver muito n'este marasmo de todos
os sentidos.

Não o quiz a Providencia. Ha quinze dias que soffro muito. Dizem-me que
tenho uma aneurisma. Não sei o que é... É a morte, que me fugiu quando
eu a chamava, e me chama quando eu lhe fujo. Não posso dizer-lhe que bem
vinda seja!

Mandam-me a ares patrios... Eu não sahirei, já agora, d'aqui... Este
conselho da medicina é um futil subterfugio.

A minha doença estudo-a nos livros onde aprendem a cural-a os medicos. É
inevitavel a morte... Póde-se assim viver longos annos; mas eu, assim,
não desejo viver...

É lamuria de mais por uma cousa tão transitoria como a vida!... Eu devo
ser superior a esta pouca materia que se dissolve no dia seguinte
áquelle em que o espírito planisa mil prosperidades. Não me deve ser
penoso morrer, porque eu não tinha previsto felicidade nenhuma. O meu
futuro seria uma atonia glacial, uma sensibilidade de morte no coração,
e vida na apparencia... Viver assim, entre os homens, ou entre
cadaveres, que importa?... Morrerei resignado.

Agora posso fallar-lhe de tudo, porque tudo me é indifferente. Levanto,
hoje, a suspensão que impuz á sua bondade, minha amiga. Póde fallar-me
de Rosa. Que é feito d'essa mulher?

Incommoda-me muito o escrever. Prohibem-m'o; mas a prohibição não seria
obedecida, se a cabeça me deixasse... Sinto um desprazer semelhante á
nausea. É um esvahimento de cabeça, e uma lassidão em todo o corpo, que
só posso attenuar com o uso do opio, que me entorpece completamente.
Adeus.

                                                           De v. exc.ª

                                                      Amigo do coração,

                                                               _Paulo_.


RESPOSTA

                                             _Porto, 6 de maio de 1825_

Meu bom amigo


Eu peço a Deus que lhe sosegue a imaginação. V... suppõe-se mais doente
do que realmente está. O seu ardente espirito engana-o. Não se entregue
ao terror da morte: viva, porque esse medo é signal de que a vida ainda
lhe é cara.

Espero ainda vêl-o em Portugal, esquecido dos seus passados dissabores,
e vivendo para a felicidade de pessoas suas amigas.

Quando v... perder um falso preconceito em que tem a sociedade, verá que
o seu elevado merecimento lhe grangeia estimas, e o seu bom coração
encontrará, por ventura, outro digno d'elle.

Não quero que se lembre da morte!

Dava-me tantas esperanças de o vêr feliz, na sua penultima carta, e
agora parece que capricha em fazer-se desditoso, communicando á sua
extremosa amiga as suas tristes previsões!

Bem sabe com que amizade lhe fallo. Affiz-me a tratal-o como irmão, e
não saberia amar com mais ternura um filho. Quando perdi um esposo, na
flôr dos annos, e uma filha que elle me deixou nos braços, tambem eu,
senhor Paulo, me julguei morta para tudo. Sentei-me no leito d'onde vira
sahir o cadaver de meu marido, e esperei ahi a morte. Abracei-me ao
berço vasio de minha filha, e pedi ao Senhor a esmola de uma mesma
sepultura para tres entes que deviam ajuntar-se.

Encontrei-o ao meu lado, chorando comigo a perda de Helena, senhor
Paulo, e os seus nobres padecimentos vieram minorar os meus. V...
fallou-me do céo, da eternidade, da perpetua união das almas no seio de
Deus, e eu acreditei-o. Como as suas palavras me vinham sanctificar a
minha dôr no coração, gravei-as ahi, e a sua imagem entrou lá com ellas
para sempre.

Não sei se o amei; mas, se o amor não era aquella extremosa amizade, que
lhe consagrei, e consagro, então não sei o que é o amor.

Não era isso o que accende o ciume, porque esse não o senti eu nunca. O
seu triste episodio com Rosa contristou-me, porque desde o principio
prophetisei desventuras. Realisaram-se muito além do meu agouro.

Nunca lhe fallei assim, porque... deixe-me tambem ceder a não sei que
triste e mysteriosa inspiração... parece-me que o não verei mais... isto
é uma loucura, uma allucinação, mas o coração sente-a tão forte, que eu
não posso suspender as lagrimas... Nunca lhe fallei assim, porque v...
tem hoje vinte e sete annos, e eu trinta e sete... As desgraças não me
poderam ainda envelhecer de todo, e eu recearia enganal-o, fazendo-o
nutrir, a respeito da minha amizade, alguma falsa supposição, que me
poderia fazer muito desgraçada, ou muito feliz.

Esses receios passaram. Agora conheço que não ha commum entre nós senão
uma amizade illimitada até á honesta confiança. Nunca podia-lhe ser
outra cousa...

Fallei já muito de mim. Quer que lhe falle de Rosa?

Depois da sua partida, a filha de Anna do Carmo foi viver na companhia
de sua mãe, levando comsigo a viuva do negociante da rua das Flôres.
Encontrei-as em casa do D. Antonio de ***, e achei-as ambas bellas.

Maria Elisa trazia douda a cabeça de S*** C***, Rosa Guilhermina, um
pouco triste, recebia com indifferença o cortejo teimoso de Alvaro de
Sousa. Por causa de Maria Elisa houve pequenas miserias de salão, ciumes
senis, com que os nossos velhos se inculcam rapazes. Felizmente, não
lhes falta zêlo para não deixarem transpirar as fidalgas impudencias,
que sabem occultar nos seus solares.

Agora receba uma novidade, que não deve já ferir a sua vaidade, nem
mesmo alvoroçar o seu coração.

Rosa Guilhermina vai casar-se.

Quer saber com que neto de trinta avós?

É um neto sem avô conhecido.

Não sei se ha seis ou mais annos que Rosa Guilhermina viveu algum tempo
em casa do negociante Silva, da rua das Flôres, com quem seu pae, o
arcediago de Barroso, a quiz casar.

Rosa namorou-se ahi d'um tal José Bento, filho d'um retrozeiro. Este
lôrpa (diz Maria Elisa que o era de grande marca, e eu creio que
continúa a sêl-o) estudava latim em casa do Passos, cujo quintal partia
com o do arcediago, na travessa do Laranjal ou Bomjardim. Por causa
d'ella, e á sua vista, o rapaz foi castigado com uma palmatoria. No dia
seguinte, o mestre que o castigou, appareceu morto, e José Bento
desappareceu.

Foi para o Brazil, onde se demorou alguns annos, vendendo carnes sêccas.
Por fim, morre o patrão, e deixa-o senhor d'uma riqueza que parece
extraordinaria, pelo fausto com que se apresentou no Porto.

Ninguem se lembrava já do filho do retrozeiro, que tinha morrido. José
Bento de Magalhães e Castro, como elle se assigna, occultou algum tempo
o seu nascimento; mas, um dia, apresenta-se em casa de Anna do Carmo,
pedindo licença para vêr Rosa Guilhermina.

A viuva apparece; mas não se recordava já das feições do seu primeiro
namoro. José Bento declara-se, e offerece-se como marido de Rosa.

Não sei o que se seguiu a isto. O boato do proximo casamento correu
logo. O senhor Magalhães e Castro é recebido nas primeiras casas.
Alcançou fôro de fidalgo, e trata de edificar no Reimão um palacete com
as armas dos Castros e Magalhães. Dizem-me, que, dentro de oito dias,
Rosa será senhora de grandes bens de fortuna, e as suas carruagens serão
as melhores.

Eu quizera que v... se risse com a fina ironia de talento, e da
experiencia, como eu realmente me rio d'estas grutescas evoluções do
mundo.

Vai extensa a carta, e parte para Cadiz o hiate que deve leval-a.

Adeus, meu querido amigo. Escreva-me, dizendo que se desvaneceram os
seus terrores. Viva para a sua dedicada irmã.

                                                                   ***


XI

                                             _Roma, 28 d'abril de 1825_

Graças, minha querida amiga! A sua carta é um modelo de que deviam
servir-se os raros anjos, que receberam de Deus a divina missão de
consolar infelizes.

O meu coração sentira uma estranha alegria, duas horas antes de eu abrir
a carta de v. exc.ª Era o presentimento.

Tive uma hora de luz. Respirei o aroma de todas as flôres da vida.
Dilatava-se-me o coração. As palpitações eram impetuosas como as do
sangue, surprendido pela imagem de uma mulher, que se julga morta, e
para sempre perdida.

Era esta justamente a hora em que v. exc.ª devia assim fallar-me. Mezes
antes, esta linguagem faria a sua desgraça, que a minha está fadada
desde o seio de minha mãe.

Foi minha amiga, quanto podia sêl-o. Fui eu quem lhe esposou o seu
coração viuvo d'um esposo e d'uma filha. Eis aqui uma vaidade sancta,
que não deshonra um quasi moribundo. As suas revelações, senhora,
acolhe-as meu coração como um deposito sagrado que brevemente confiarei
ao tumulo.

A minha morte proxima não é uma chimera de imaginação ardente. Já lhe
disse que quero viver e não posso... Desfalleço, porque todos os meus
esforços são impotentes. Cravo as unhas na aresta do abysmo; mas o corpo
resvala, e a queda é infallivel.

Morro aos vinte e sete annos. Vou, envelhecido por toda a sorte de
tribulações. Resta-me saber o que é a indigencia: vai muito adiantada a
noite da vida para que a conheça. O meu dia eterno vai nascer, e a luz
matutina d'esse dia irradiou-se em volta de mim, quando as suas palavras
vieram povoar de bellas visões a solidão do meu quarto.

Foi o amor que me matou! Posso dizel-o com toda a ufania d'uma nobre
amargura: foi o amor que me matou! Esta grande alma não era para esta
sociedade. Offereci-lh'a, despresou-m'a... Lancei-lh'a aos pés...
calcaram-m'a... Fez-se-me uma villania, porque eu era muito nobre...
conheço que o era, porque tenho perdoado a todos aquelles que me
cortaram as carnes até me chegarem ao coração... Não me conheceram, e eu
não os conheci a tempo. Foi muito tarde que o mundo se me ostentou, qual
é. Eu tinha direitos a ser feliz, embora recebesse a felicidade pela
porta da deshonra. Não quiz. A minha pureza custou-me a vida, porque
fugi do mundo para a solidão a digerir o fel que me deram, e protestei
morrer antes de cuspil-o na face da sociedade.

Aconselho a infamia a todos os desgraçados, senão quizerem o martyrio.
Se forem insultados, indemnisem-se. Renunciem educação, honra, pundonor,
e dignidade, todas as vezes que a vingança depender da villania, da
deshonra, da impudencia, e do descaramento.

Desculpe-me v. exc.ª... Esqueci-me que estava escrevendo a uma senhora,
que não resolveu ainda os asquerosos problemas da infamia. A minha
cabeça é um vulcão. Não é ainda a demencia que me desvaira, mas póde
sêl-o a febre.

Ha tres dias que me não levanto. Estou quasi só. Tenho um medico alguns
minutos no dia, um frade portuguez que por aqui anda atraz da salvação
eterna, e um criado, que me serve um caldo, e não entende o que lhe
digo.

Eis-aqui a minha familia na vespera d'uma viagem infinita... Falta-me
aqui uma mulher, que me fosse esposa, mãe, ou irmã. Em Portugal, quando
estes ataques me annunciavam a morte, lembrei-me, muitas vezes, que o
meu derradeiro olhar encontraria os olhos de v. exc.ª

Aqui, será a sua imagem, o seu retrato, que me sorri, aquelle retrato
que v. exc.ª me concedeu a pedido da nossa pobre Helena...

Não posso...

Ah!... esquecia-me dizer-lhe que a historia de Rosa Guilhermina é uma
bonita farça... Fez-me sorrir; mas, no coração, lamento-a!... É uma
mulher bem trivial!...

Adeus, minha querida irmã... Será o ultimo?...

                                                               _Paulo._


«--Eis-aqui a ultima carta, que eu recebi de Paulo--disse a senhora,
que me confiou a leitura, e as cópias de todas.

«--Que sentia v. exc.ª depois que a leu?

«--O que eu senti?... Nem já me recordo... Isto passou-se ha trinta
annos; e a memoria do coração, aos sessenta e seis, está embotada; mas,
se quer um facto que lhe exprima melhor que todas as palavras o que eu
senti, bastará dizer-lhe que, dous dias depois, parti para Roma...

«--Para Roma!...

«--Admira-se!?

«--Então v. exc.ª amava Paulo...

«--Se o amava!... Não se fazem essas perguntas a uma velha. O senhor ri
de mim, se eu deixar fallar o coração, como elle, ainda ha trinta annos,
lhe responderia.

«--Eu não posso rir do que a vida tem mais grave e triste...

«--O amor!... diz bem... É bem triste recordal-o; mas o ridiculo manda
suffocar as expansões d'um coração, que não envelheceu ainda. Dizem que
os cabellos brancos são veneraveis. Se o são, e só nos patriarchas, nos
prophetas, e nos apostolos... Quer que lhe diga que amei Paulo? Pois
sim... Amei-o muito... Conheci-o, já casada; mas eu fui uma esposa com
todas as virtudes, e com a resignação para todos os sacrificios.

A filha do general *** amava Paulo.

A minha casa era o unico local onde se reuniam. Impuz-me esta violencia,
e prestei-me ao doloroso serviço de os approximar, porque precisava
matar um veneno com outro veneno.

Helena morreu, e Paulo refugiou-se a chorar comigo. Eu e o tumulo d'ella
eramos o unico passatempo da sua atormentada existencia.

Enviuvei. Encontrei-o sempre a meu lado. Sondei com muita delicadeza a
sua alma, e achei-a fria. Reconheci que era meu amigo, porque eu lhe
fallava muito de Helena. Um homem assim não podia amar-me...

«--Porque não lhe revelou a sua alma?

«--Uma mulher, se não está gasta pela libertinagem, ou não é
prodigiosamente estupida, nunca faz semelhantes revelações. Se elle me
perguntasse se eu o amava, responder-lhe-ia que não, e córaria pela
vergonha da mentira, ou pelo remorso da offensa... Dizem-me que as
mulheres de hoje são faceis n'essas delações da sua alma. Se não é a
moda que as absolve, o pudor de certo não é... Emfim, eu nunca lhe disse
que o amava, nem elle me proporcionou occasiões de dizer-lh'o.

Um anno antes de conhecer essa mulher fatal...

«--Quem? Rosa Guilhermina?

«--Sim... Um anno antes de conhecel-a, raras vezes vinha a minha casa.
Vivia muito só: dizia-me nas suas frequentes cartas, que vivia namorado
da arte, que tinha muitos retratos de Helena, e que roubava á pintura o
tempo apenas necessario para visitar-lhe, em S. Francisco, a sepultura.

Relacionado com Rosa, Paulo, sem o pensar, ultrajou-me quanto era
possivel!... O ciume devorou-me alguns dias, e eu tive momentos de
detestar o infame caracter do infeliz moço... Habituada, porém, a
dominar-me, afivelei outra vez a mascara, e recebi-o com a mesma graça
em minha casa para ouvir-lhe as expansivas apologias de Rosa
Guilhermina.

Tenho remorsos de ter sentido uma cruel alegria, quando essa mulher o
despresou...

«--Naturalmente... alguma intriga...

«--Urdida por mim?...

«--O amor, muitas vezes, obriga...

«--A praticar villezas? O amor nobre, não... Eu não urdi intrigas...
Rosa despresou-o; porque o seu caracter era o caracter de sua mãe...
Anna do Carmo nascera nas palhas, fôra amante d'um padre, fôra adultera
mulher d'um livreiro, fôra repellida de casa de sua filha, e recebera-a
por fim, nos seus salões, sem vergonha do seu passado, nem resentimento
da sua dignidade. Filha de tal mãe, não podia apreciar o amor de Paulo,
que amára uma mulher, que morrera por elle.

Ia-me esquecendo o conto... Fui a Roma; cheguei lá vinte dias depois que
recebi a carta.

«--Encontrou-o?

«--Sepultado... Morrera seis dias antes... Ao lado da sua cabeceira
estava o meu retrato... É aquelle que alli se vê.»

Reparei... Ninguem diria que esta senhora podia ter sido tão bella!

Cahiam-lhe duas a duas as lagrimas... Eu quiz divertil-a d'esta dolorosa
situação, perguntando-lhe:

«--Demorou-se em Roma?

«--Tres dias... Voltei a Portugal, depois... Deixe-me chorar, porque ha
muitos annos que não fallei a ninguem n'este homem... Quer saber o resto
d'esta historia, que faz o seu romance?... Essa senhora de que faz
menção no seu prologo, póde contar-lh'a.

«--Com menos graça que v. exc.ª...

«--Pois eu lhe digo: Rosa Guilhermina morreu, ha seis annos em Lisboa,
com o titulo de viscondessa de ***. Seu marido ainda vive... É um dos
mais ricos proprietarios do paiz...

«--E Maria Elisa?

«--Essa mulher perdeu-se... Foi amante de S*** C***, que deu escandalo
no Porto, e perturbou a tranquillidade da sua casa, e da casa das suas
amantes, que eram quasi todas casadas. Depois, como elle morresse, Maria
Elisa, que vivera na companhia de Rosa, reagiu contra os conselhos de
José Bento, e abandonou a amiga para entregar-se a uma vida dissipada
sem ao menos a colorir com as variadas tinturas da hypocrisia. Tocou o
extremo grau de miseria; mas d'esta miseria prosaica e villã, e que não
póde ser historiada n'um romance. Não era fome nem nudez. Era a negação
para todos os sentimentos d'honra. Quando desceu tão abaixo recebeu uma
boa mesada de Rosa; mas dissipou-a com amantes. Por fim envelheceu. Rosa
tinha morrido, e o visconde de ***, que a soccorrera estimulado por sua
mulher, abandonou-a inteiramente.

«--E ainda vive?

«--Morreu já depois que o senhor principiou o seu romance. Foi
justamente no dia em que sahiu o quinto folhetim na _Concordia_.

«--Morreu miseravelmente?

«--Não, senhor. Quem lhe prestou os ultimos soccorros fui eu. Não lhe
faltou uma cama, um medico, uma enfermeira, e um padre até ao seu ultimo
momento.

«--Devia ser terrivel, nos ultimos dias, o olhar d'essa mulher para o
passado!...

«--Creio que não... A desgraça desmemoria... Por não sei que favor da
Providencia, a mulher que se degrada não tem já o senso intimo da sua
dignidade perdida. Cahiu, do leito á sepultura, impassivel como a pedra
que tomba insensivelmente do alto da serra ao fundo do abysmo...

«--Esqueceu-me perguntar-lhe como viveu Rosa com José Bento...

«--Honradamente, e parece que feliz.

«--Deixou filhos?

«--Do segundo marido nenhum.

«--E aquella Assucena, que tão linda me pintaram? Deve hoje ter trinta
annos...

«--Morreu ha dous... Quer saber a vida d'essa mulher?

«--Desejava...

«--Mas tem de fazer outro volume.

«--Pois a vida de Assucena dá para tanto?

«--É um triste romance... Ha de escrevel-o, e intitulal-o: A NETA DO
ARCEDIAGO.


FIM


    [1] Foi assim chamada a assembleia de illustrações scientificas na
    França, em que avultavam a marqueza de Lafayette, Lacralpenede, M.me
    de Sevigné, Jullie de Angennes, e outras que se davam o titulo de
    _preciosas_, baptisando-se com nomenclaturas gregas, e praticando em
    linguagem privativa d'ellas. Molière, o grande espirito, que
    espancou da França o _ridiculo_ com o _ridiculo_, pôz esta gente em
    scena, nas comedias--_As Preciosas Ridiculas_, e _As Mulheres
    Sabias_. O hotel de Rembouillet não resistiu a Molière.

    [2] O já morto Joseph Gregorio Lopes da Camara Sinval.

                                    (_Nota da 2.ª edição._)

    [3] No Porto, onde nasceu Garrett, invocaram-se todos os Antonios
    Josés coevos para idearem um monumento a Garrett!... Não se fez o
    monumento; mas ficou um de vergonha na memoria dos vivos, e bom é
    que passe além. (_Nota da 2.ª edição._)

    [4] _A Neta do Arcediago_, já publicada.

                      (_Nota da 2.ª edição._)

    [5] Não interessam no romance algumas cartas, que se não publicam.
    Escriptas de Lisboa, Cadiz, Barcellona, Paris, Genova, e Milão,
    quasi todas são descripções locaes. Vê-se que Paulo, em todas ellas,
    só muito de relance, falla em, cousas passadas. Se é acinte, se
    naturalidade, não o sabemos nós. A sua amiga do Porto, diz-nos que
    tambem muito de proposito, se lhe escrevia, nem ligeiramente lhe
    fallava de Rosa. A carta, que publicamos, é a vigesima da collecção,
    escripta, segundo se vê da data, cinco mezes depois da sahida de
    Paulo.





End of Project Gutenberg's A Filha do Arcediago, by Camilo Castelo Branco

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