Ao de Leve

By Brito Camacho

The Project Gutenberg EBook of Ao de Leve, by Manuel de Brito Camacho

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Title: Ao de Leve

Author: Manuel de Brito Camacho

Release Date: January 15, 2011 [EBook #34963]

Language: Portuguese


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Produced by Pedro Saborano






AO DE LEVE




    _Composto e impresso na Imprensa_
    _de Manuel Lucas Torres_
    _Rua do Diario de Noticias, 93_




BRITO CAMACHO


_Ao de leve_




1913
Livraria Editora
GUIMARÃES & C.ª
68, Rua do Mundo, 70
LISBOA



      *      *      *      *      *

    _O estudante que hontem, no Rocio, foi attingido por uma bala na
    cabeça, já falleceu._

            (Dos jornaes).


Como não havia de adoral-o, se era seu filho unico!

Para mais, elle era o retrato vivo do pae, com todas as qualidades e
todos os defeitos--se um filho póde ter defeitos para a mãe que o
estremece!

Ficára com elle nos braços, viuva pela maior das fatalidades, quando
ainda não tinham seccado de todo as flores de laranjeira que lhe tinham
posto no cabello no dia do seu casamento, e nas suas faces havia ainda
um pouco do rubor intenso com que as haviam tingido os beijos loucos que
elle lhe dera, já seu marido, ao voltarem da Egreja.

Annos e annos chorára a sua viuvez, e mesmo quando o filho lhe extendia
os bracitos gordos, muito risonho, as suas lagrimas não estancavam. Mas
o sau pranto já não era só de dor; a desgraça ainda lhe escaldava a
garganta com soluços que lhe vinham do coração, mas já lhe nimbava a
alma a promessa d'uma felicidade remota. No filho via o marido--era como
se dentro de um tumulo assistisse ao esplendor d'uma aurora.

Se não havia de adoral-o, a pobre mãe!

Quando elle lhe saiu de casa para continuar os estudos, pareceu-lhe que
ficava viuva pela segunda vez. As suas cartas mitigariam a sua saudade,
e ella havia de lel-as com tamanha devoção, evocal-o com tanto amor, que
a leitura seria afinal uma conversa entre ambos, elle a enxugar-lhe os
olhos com beijos, e ella a lavar-lhe as faces com lagrimas.

Já então elle era quasi um homem, alto e desempenado, uma pennugem leve
prenunciando um bigode negro, que seria talvez farto e provocador como o
do pae. Muito estudioso, e, ao mesmo tempo, muito intelligente, contava
as distincções pelos exames, nunca se rebaixando a esmolar uma
protecção, mantendo sempre perante os mestres uma attitude que, nem por
ser respeitosa, deixava de ser altiva. Ainda n'isso elle era como o pae,
orgulhoso sem presumpção, delicado sem maneirismos, altivo sem arrogancias.

Como não havia de adoral-o!

Surprehendia-se a fazer projectos de vida em commum, quando elle
acabasse os estudos, e fosse, para aqui ou para além, exercer a sua
profissão. Já a deixariam livre os negocios da sua casa, que a retinham
agora separada d'elle, a contar o tempo pelo seu amor, e a achar os
mezes infinitamente mais compridos do que dizem os kalendarios.

Talvez elle um dia casasse; mas nem assim o deixaria, humilde na casa
alheia, fazendo-se util, sendo prestimosa, realizando quantos milagres
fossem precisos para se tornar indispensavel. Pois se elle era a unica
razão da sua vida, como poderia alguem roubar-lh'o sem ao mesmo tempo a
matar?

Recebia as suas cartas em dias certos, e nunca elle deixára de lhe
escrever com a mais rigorosa pontualidade. Ás vezes eram apenas quatro
linhas, meia duzia de palavras que ella humedecia com os olhos, para as
enxugar com os labios.

Como não havia de adoral-o, a pobre mãe, se elle era o seu filho unico,
para mais o retrato vivo do pae, com todas as suas qualidades e
defeitos--defeitos que para ella eram qualidades!

Ora succedeu que n'aquelle dia, estando como de costume á espera do
carteiro, viu que elle passava pela sua porta, sem entrar. Era lá
possivel não ter carta? Provavelmente confundira-a no maço, e só daria
por ella finda a distribuição. Viria então entregar-lh'a.

Passou uma hora, passaram duas horas, passou uma eternidade, e o
carteiro não voltou.

Estaria doente? Ter-lhe-ia acontecido alguma desgraça?

Distrahidamente, quasi sem intenção, pega n'um jornal. O coração deu-lhe
um salto dentro do peito, como se a um leão dentro de uma jaula lhe
enterrassem nas carnes uma choupa em braza.

Houvera tiros, houvera espadeiradas, como n'uma batalha. Do campo tinham
retirado muitos feridos, tendo lá ficado alguns mortos.

Foi lendo, lendo tudo, devorando as columnas do jornal, á procura d'um
nome, na ancia d'um condemnado á pena ultima, que um indulto póde salvar.

Esse nome lá estava. Ferido com uma bala na cabeça, fôra levado ao
hospital, onde os medicos verificaram o obito.

Não chorou, não soluçou, não gemeu, anniquilada por completo.

Quando voltou á consciencia da realidade, ainda tinha nas mãos o jornal.

Serena e tragica, como se debruçada sobre uma sepultura visse lá dentro
o proprio coração; tragica e dolorida como se lhe pezasse n'alma todo o
soffrimento humano; morta para o amor, abrazada em odio:

--Mataram o meu pobre filho! Maldito seja para sempre, na sua
descendencia, o miseravel assassino!

Como não havia de adoral-o, a pobre mãe, se elle era o seu filho unico!




      *      *      *      *      *

    _Se fores um dia ao mar,_
    _Que a fortuna te não deixe;_
    _Bota a rede e vae-te embora,_
    _--Quanto mais burro mais peixe._


Fôra creado de medico, e como a Natureza o dotára com bastante
intelligencia e um notavel espirito de observação, aprendeu mil coisas
com o doutor, a ponto de se julgar apto a fazer o que elle fazia. Depois
chocava-o aquella subalternidade de moço de consultorio, as pessoas que
entravam nem reparando n'elle, e algumas que n'elle reparavam tratando-o
sem cortesia. Farto d'aquelle viver, reconhecendo-se talhado para mais
altos destinos, um dia pediu contas ao patrão, e abalou sem dizer para
onde.

Mezes passados, enchia a cidade a fama de um doutor novo, que fazia
verdadeiros milagres, havendo quem affiançasse que dera vista... a uns
poucos de aleijados, e cegára uma meia duzia de coxos. Por acaso o
doutor topou o milagrante collega na rua, e reconheceu n'elle o seu
velho creado, muito correcto, muito bem posto, tal qual um intrujão com
diploma. Ao outro dia, era um domingo, foi procural-o ao consultorio,
curioso de saber como aquillo era feito. No largo, junto ao adro da
Egreja, havia uma extraordinaria multidão.

--Quantas pessoas calcula o dr. que estejam além?

--Uns milhares.

--E quantas d'essas lhe parece que serão intelligentes?

--Algumas duzias.

--Pois essas formam a sua clientella; o resto pertence-me.

Vinha isto a proposito... a proposito... Ah! sim; a proposito da tiragem
do jornal, que o administrador acha pequena.




      *      *      *      *      *

    _A necessidade de equilibrar o orçamento póde obrigar o governo a
    impôr sacrificios aos funccionarios._

            (Dos jornaes).


Era manso como um cordeiro, e leal como um velho amigo.

O general montava raras vezes; mas ia todos os dias visitar o seu
_Turco_, limpar-lhe a mangedoira, pentear-lhe a crina, passar-lhe a mão
pelo lombo, n'uma caricia que o animal agradecia, olhando-o com ternura.

Ás vezes, a caminho do tanque, encabritava-se com o impedido, dando
saltos, como se quizesse fugir pelos campos fóra, no goso d'uma
liberdade que não conhecia, mas que adivinhava.

Lá em baixo, na varzea, as eguas pastavam tranquillamente; e os poldros,
virgens de toda a domesticidade, pulavam como cabritos, mettendo a
cabeça entre as mãos, e logo desatando n'uma correria doida, bebendo os
ventos, o pescoço muito extendido, o focinho alto, as narinas muito
abertas, respirando com estrondo. E era então que elle se encabritava
com o impedido, firmando-se nas patas trazeiras, dando grandes sacões
inuteis, porque a arreata era firme, e a mão que a segurava era forte.

Que bom devia ser a liberdade!

Por certo o tratavam bem; mas aborrecia-lhe aquella vida ociosa do
quartel, todos os dias a mesma coisa--comendo e bebendo por toques de
clarim, n'um automatismo de machina, com uma regularidade pendular. Mas
era manso como um cordeiro, leal como um velho amigo,--uma creança faria
d'elle o que quizesse. Ora succedeu que um dia foram dizer ao general
que o seu _Turco_ tinha rebentado o impedido com uma parelha de coices.
Não acreditou, mas entrando na cavallariça, viu o pobre diabo extendido,
soffrendo horrivelmente.

--Tu que fizeste ao cavallo!

--Nada, meu general.

--É mentira. Eu conheço-o muito bem. Que lhe fizeste?

--Saberá V. Ex.ª que elle estava a comer a ração, e vou eu, por
brincadeira, mexi-lhe na barriga.

--Pois ahi está. Não se mexe na barriga de quem come.

Era um grande philosopho, o general.




      *      *      *      *      *

    _Uma sogra nem de barro á porta._


Andava elle pelo Algarve a tratar de negocios, quando o chamaram a
Lisboa, por telegramma, com a maxima urgencia. Não lhe diziam do que se
tratava; mas, como era o medico quem lhe telegraphava, ficou n'um susto
de morte, calculando que ou a mulher ou o filho se encontrasse
gravemente doente. Pouco habituado a ser feliz, imaginou logo o peor.

O primeiro comboio partia d'alli a doze horas e, como ainda pudesse
servir-se do telegrapho, correu a pedir informações. Disseram-lhe que
era a sogra que adoecera no mesmo dia em que elle deixára Lisboa, e que
a doença se aggravava de momento para momento, receando-se um desenlace
fatal. N'um grande ah! de allivio e satisfação, como precisava de
assignar uma escriptura dahi a tres dias, foi-se deixando ficar, pedindo
que o informassem, por via telegraphica e postal, dos progressos da doença.

Receava elle, pouco habituado a ser feliz, que a doença não fosse em
progresso, e por isso queria receber noticias amiudadas, se fosse
possivel a toda a hora. A doente peorava a olhos vistos, e dizia o
medico que a pneumonia degenerava em typho, sendo possivel que houvesse
meningite á mistura. Elle tinha uma enorme confiança no doutor, que já
lhe assistira á morte de toda a familia, e a quem elle conservára o
partido, não para o tratar a elle, á mulher ou ao filho, mas tão sómente
para a sogra. Rematados os seus negocios, metteu-se no primeiro comboio,
com o coração aos baques, como quem aguarda uma sentença. Descia o
medico a escada, quando elle a subia esbodegado, e com bagas de suor
perlando-lhe a vasta fronte.

--... Vi-a morta, meu caro amigo. Lancei mão de todos os soccorros, e
posso dar-lhe a boa nova de que passou todo o perigo. A crise fez-se
hoje mesmo, e agora é só questão de tempo.

Subiu o resto das escadas a cambalear, como um ebrio, e atirando-se para
cima do sophá que havia na sala de entrada, n'um abandono de quem se vê
irremediavelmente ludibriado:

--E eu que tinha tanta confiança n'esta besta do doutor!...




      *      *      *      *      *

    _A policia, ajudada pela guarda municipal, fartou-se de espancar os
    cidadãos pacificos, realizando muitas prisões._

            (Dos jornaes).


A estrada, larga e poeirenta, passava junto á porta sempre aberta do
jardim, marginada de choupos e eucalyptos.

Toda a gente das aldeias proximas por alli fazia caminho, no giro da
vida ordinaria, homens, mulheres e creanças, alguns descalços, e outros
rotos, a maior parte sem pau nem pedra, gente pacifica como bois de
trabalho, muito pacifica e muito humilde.

Aos domingos, nos dias santos, quando havia festa n'alguma egreja do
sitio, por alli passavam ranchos de moças garridas, em cabello, cantando
e rindo, cada qual pelo braço do seu namorado, parando aqui e além, aos
abraços e beijos, como numa kermesse flamenga.

Pois era n'esses dias que o Pandorga, locatario do jardim, quasi
escondido por detraz de uma parede de buxo, atirava os cães para a
estrada, açulando-os ás canelas de quem passava. _Csi, csi_, e
arregalava o olho, guardado no seu esconderijo, rindo muito, sem fazer
barulho, quando os cães rasgavam as saias das raparigas ou as calças dos
homens, e muito mais quando lhe appareciam de rojo, após a lucta,
levando ainda nos dentes boccados de carne em sangue.

Ora succedeu que um dia havia festa alli perto; como o Pandorga açulasse
os cães--_csi, csi_--contra um bando alegre de camponezes, rapazes e
raparigas que iam passando a cantar, pacificos como bois de trabalho,
ouviu-se um estalo sêcco, como um rebentar de escorva, e o baque d'um
corpo que cae, lá adeante, por detraz da parede de buxo. Soube-se depois
que tinha morrido o Pandorga, e os cães nunca mais assaltaram as gentes
que passavam pela estrada, larga e poeirenta, e de quando em quando
paravam, abraçando-se e beijando-se, como n'uma kermesse de Rubens.




      *      *      *      *      *

    _Hontem, na praça de touros, houve uma ligeira manifestação de
    desagrado á Familia Real. O rei não assistia ao espectaculo._

            (Dos jornaes).


Falava-se muito das suas valentias, embora ninguem citasse d'elle uma
façanha authentica, com testemunhas de vista. Era volumoso, e d'ahi
concluiam que era forte; era gabarola; muita gente acreditava que elle
tivesse nos musculos tanta força como na lingua. Contava elle que d'uma
vez matára um boi com um sôco, e n'um dia em que passava rente a um
acampamento de ciganos, armados de cacetes e espingardas, como
percebesse que lhe faziam troça, desatou aos pontapés a toda aquella
malta, pregando com o mais atrevido no alto d'uma azinheira que estava
longe d'alli uns poucos de metros.

Os que melhor o conheciam, mofavam das suas farroncas; mas não faltava
quem acreditasse nas proezas de Ferrabraz, intrepido até ao sacrificio
da vida, sem lhe bulir um cabello. Ora succedeu que um dia, vindo com a
familia a caminho do arraial, n'uma aldeia da visinhança, alguem o
preveniu de que se preparava uma emboscada, lá adeante, n'um cotovêlo da
estrada antes de chegar á ribeira. E vae elle então, muito volumoso,
pallido como se todo o sangue lhe refluisse ao coração, os cabellos em
pé, como se visse deante de si a guela escancarada d'um leão com fome,
apalpa-se como quem procura alguma coisa, e batendo no hombro da
companheira:

--Vão lá andando, vão lá andando, que eu não me demoro; esqueceram-me os
charutos.

Não voltou, está bem de ver, e no outro dia, quando lhe contaram o
succedido, ameaçou o céu e a terra, espumando como um javali ferido.

--Se lá estivesse, rachava-os.

E pregou tamanho murro no cinzeiro de barro, que o fez em boccadinhos.




      *      *      *      *      *

    _Hontem o sr. Marquez de Soveral teve com El-Rei uma conferencia de
    duas horas._

            (Dos jornaes).


--Franqueza, franquezinha, ó coiso, essa historia da intervenção...

--Era pela certa. Hoje a politica é só de interesses, quem governa é a
finança.

--Bem sei, governa a finança; mas olha que isso de intervir sem mais nem
menos em negocios por assim dizer caseiros...

--Peço perdão; mas não se trata d'um negocio caseiro, nem mesmo d'um
negocio exclusivamente nacional.

--Hom'essa! Queres então dizer...

--Quero dizer que em torno d'este negocio se formou uma atmosphera de
interesses internacionaes...

--Olha que não tens publico, e essas lerias, cá para mim...

--Cumpro o dever que me impõe a minha posição, e testemunho assim,
dizendo a verdade inteira, sem restricções, a minha sympathia pessoal...

--Sim, senhor, és um artista. Vocês, os diplomatas, são como os homens
de theatro--mesmo quando estão fóra do palco, representam.

--Julgava-me com direito a maior consideração da parte...

--Tambem eu julgava que me tivesses na conta de menos tolo. Não me
conheces d'hoje nem d'hontem, para saberes que ninguem me faz o ninho
atraz da orelha.

--O que? Pois...

--Qual historia!... Acreditei todas as lerias que me impingiste, com uma
seriedade á altura das tuas prosapias...

--Não o fiz por menos respeito; o uso das formulas...

--É como o uso do cachimbo--faz a bocca torta. Sempre me sahiste um
gajo!...

--Espero que não fique zangado...

--Peior... Essa agora não é de diplomata, é d'alarve.

--Sempre amavel!...

--Sempre justo. Mas falando agora de coisas serias. Tu achas que eu devo...

--Ora essa! Está claro que deve. Da fama ninguem o livra, e as honras
sem proveito...

--E quanto achas tu...

--Em negocio de tanta monta, nunca se pede de mais.

--Pois sim, tudo tem limites. Ahi uns duzentos contitos, mais vintem,
menos vintem... Que te parece?

--Parece-me que, pedindo essa bagatela, dá provas d'uma grande
generosidade.

--Bem se vê que não és tu quem tem de esportular as massas. Pois está
dito; faço a coisa pelos duzentos.

--É como se lhes désse a elles trezentos e vinte, o que não é barro.

--Quero ser generoso...

--Do pão do nosso compadre...

--Pois sim, canta-lhe d'essas; mas se as coisas se complicam e me põem a
viola...

--Qual põem! Chego ás vezes a imaginar que tem medo.

--Tu não me digas isso outra vez, olha que te ponho os queixos á banda.
Eu nunca tive medo. Já d'uma vez, n'uma feira, se ergueu tudo contra
mim, sem saber quem eu era, e não arredei pé, de cacete em punho, sem
ninguem pelo meu lado.

--Bem sei, bem sei; mas se amanhã houvesse qualquer coisa, em menos de
nada estavam alli os cavalinhos de pau, e tudo entraria na ordem.

--E se me puzessem a andar antes d'elles cá chegarem?

--Isso então era o diabo. Uma intervenção tardia, depois do facto
consumado... Mas é absurdo o suppôr...

--Será absurdo, será; mas, pelo sim pelo não, vou dobrar a parada. Os
gajos repontarão?

--Que tem lá que repontem?...

--Está claro. Isto é como dizia o de Braga--ou comem todos, ou ha-de
haver moralidade.




      *      *      *      *      *

    _S. M. a Rainha, acompanhada da sua dama de serviço, andou hontem
    distribuindo esmolas no bairro de Alfama, sem se dar a conhecer._

            (Dos jornaes).


Não queria que a conhecessem.

Abalava de casa, vestida como toda a gente, sem nada que pudesse chamar
as attenções de quem quer que fosse. Era uma creatura como qualquer
outra, e passava, como qualquer outra, no meio da geral indifferença. Os
que a conheciam cumprimentavam-na--bons dias, minha senhora!--e os que a
não conheciam nem sequer davam por ella. O passo meudinho, muito
apressado, como quem marcha para um certo fito, sem se importar com o
resto. Entrava aqui, entrava além, fazia o bem que podia, e nem esperava
que lhe agradecessem os miseraveis a quem extendia a mão, deixando cahir
uma esmola. Como não se sabia quem fosse, chamavam-lhe a _Caridade_.
Envelheceu muito, como toda a gente que teima em viver e morreu um dia,
encarquilhada e secca, como a maior parte das velhas. Era a _Caridade
Evangelica_.

Tempos depois, nos mesmos bairros pobres entrou de apparecer uma
creatura exotica, dando nas vistas de toda a gente, obrigando a parar
quem passava, para a fixar com attenção. O passo largo, muito lento,
como quem não tem pressa, e que quer por força dar nas vistas. Entrava
aqui, entrava além, como quem passeia um reclame, e gostava que lhe
enchessem as mãos de lagrimas agradecidas os miseraveis a quem dava
esmola. Como não se sabia quem fosse, n'um dia que ella passava, o passo
largo, muito lento, quasi rythmico, dois miseraveis que a viam passar,
como quem passeia um reclame:

--É a Dona Caridade?

--Não; é a Exploração da Miseria.




      *      *      *      *      *

    _O Principe Real faz immensos progressos nos seus estudos, causando
    a admiração dos seus professores._

            (Dos jornaes).


Era um prodigio, o garoto.

Contava a parteira que elle olhára para traz, quando nasceu piscando um
pouco os olhitos ramellosos, como quem pretende ver melhor. Aos tres
mezes, já tocava com os deditos côr de rosa nos bicos, pouco salientes,
dos peitos da ama, pondo-os em erecção, para mammar melhor. Viam todos
que era um pequeno muito talentoso, e um boccadinho brejeirote. Aos
noves mezes dizia--bolas!--e foi essa a sua primeira palavra. Comia
de tudo, antes de fazer o anno, e larachava com os creados finos,
como se fosse uma pessoa grande. Era um prodigio, o demonio do garoto,
d'uma precocidade verdadeiramente excepcional. Um familiar da casa
perguntava d'uma vez ao medico, a proposito do fedelho--_Naturalmente,
um genio, doutor?_ E o doutor, encolhendo os hombros em ar de
duvida--_Naturalmente um idiota!_

Aos cinco annos já sabia tudo--quantas pernas tem um cão, quantas
orelhas tem um burro, quantos rabos tem um gato. Era prodigioso, e cada
dia que passava como que accrescia de muitos metros aquelle talento
incommensuravel. Aos nove annos era um geometra como Euclides, era um
historiador como Tacito, era um philosopho como Platão, era um pintor
como Raphael, era um poeta como Camões, um romancista como Balzac, um
cabo de guerra como Napoleão, um estadista como o sr. Lapin. A tal ponto
lhe cresceu o genio, que já não havia espaço para o conter, a dentro das
fronteiras nacionaes.

Foi então que se reconheceu a necessidade de o mandar para longe, onde
fossem mais largos os horizontes, que os genios, como os gazes quando os
comprimem além d'um certo grau, são eminentemente explosivos.

E porque era ainda muito novinho, sem experiencia do mundo, apezar do
seu immenso talento, foi a familia com elle, e por lá ficaram
todos--para bem de todos nós.




      *      *      *      *      *

    _«É melhor tratar d'outro oficio. O jornal ha de morrer á falta de
    leitores, porque você terá geito para tudo, menos para jornalista.»_

            (Carta anonyma).


_Oh! la pauvre bête!..._

Era na verdade, um animal perfeito. De côr acastanhada, a anca alta,
largo dos peitos, uma estrella branca na testa, talvez demasiadamente
sellado, a perna delgada e nervosa, a cauda farta e comprida, era um
burro que fazia parar quem passava, admirando-o, e succedeu a mais de
uma beata, ferida de tamanha belleza e correcção, estacar no caminho das
suas devoções, e não poder reprimir nas arcas santas do peito esta
exclamação blasphema:--_Benza-o Deus, como é bonito!..._

Procopio então passava horas no enlevo do seu burro, afagando-lhe o
focinho e alisando-lhe o pello, não consentindo que sobre elle poisasse
uma mosca, ou lhe manchasse a pelle acastanhada um grãosinho de poeira.
Era uma especie de burrolatria, um culto religioso que lhe enchia a
alma, dando-lhe todas as satisfações espirituaes que resultam para um
crente da adoração do seu fetiche. E porque se lhe afigurasse que o
burro não era, como os outros burros, uma simples cavalgadura, desatou a
alimental-o com o melhor da sua mesa, dando todas as coisas boas e raras
que encontrava na sua despensa ou se confeccionavam na sua cozinha. Mas
nem o burro lhe pegava nos acepipes, nem ao menos se mostrava agradecido
aos seus disvelos e blandicias. Procopio lamentava-se da sua má sorte,
chorava a sua desdita, sempre amigo do seu burro, sempre idolatra do seu
idolo, sempre adorando o seu fetiche. E como quer que um dia,
desabafando n'um peito amigo, se queixasse da ingratidão dos burros, vae
o outro, grande philosopho, com larga experiencia da vida, aconselha-o
assim:

--A culpa é tua, Procopio, e de mais ninguem. O burro não foi feito para
comer á tua mesa, como tu não foste feito para comer á mangedoura.
Queres vel-o gordo, alegre, contente, a lamber-te as mãos reconhecido?

E como Procopio estendesse o pescoço, a beber-lhe as palavras.

--Dá-lhe palha, Procopio amigo...




      *      *      *      *      *

    _S. M. a Rainha visitou hontem o Hospital de S. José._

            (Dos jornaes).


Estava perdida...

Começava a soffrer do peito, havia annos, e como precisava de trabalhar
sempre, trabalhar sem descanço, para não vir a fome juntar-se á doença
encurtando-lhe a vida, o mal foi augmentando constantemente, aquelle
terreno sendo proprio para aquella vegetação, e as circumstancias
ajudando como n'um bom anno agricola. Que era uma constipação, tinha
dito o medico do monte-pio, n'uma visita em automovel, a trinta... réis
a consulta. O certo é que as dores augmentavam-lhe, como se tivesse o
peito mettido n'uma prensa; a tosse era funda, como se lhe viesse do
mais intimo dos pulmões; manchas de febre punham-lhe nodoas vermelhas na
cera do rosto emmagrecido, e sentia o sangue subir-lhe á bocca, em
golfadas, que a muito custo reprimia. Despediram-n'a da fabrica, incapaz
de trabalhar, e como recuasse perante a morte, uma noite, a olhar as
aguas do rio, foi á consulta no hospital, e ficou na enfermaria. Estava
tisica.

Ninguem a visitava, porque não tinha ninguem, e como fosse naturalmente
pouco communicativa, passava os dias e as noites a sentir-se morrer aos
boccados, amaldiçoando a sorte que a fizera pobre, e attribuindo á
miseria o descalabro da sua vida. Por maneira que naquelle dia, á hora
do silencio, quando acordou do seu alheiamento, e sentiu perto da sua
cama como um _frou-frou_ de sedas, muito pallida, muito magra, quasi
cadaverica, ergueu-se na cama como se a movesse uma mola, e fixando na
visitante os seus grandes olhos negros, disse-lhe como na vehemencia
d'um delirio:

--Não é verdade, minha senhora, que a sociedade é infame quando a uns dá
o superfluo, sem dar a todos o que é preciso?




      *      *      *      *      *

    _S. M. andou hontem pelos bairros pobres distribuindo esmolas no
    mais rigoroso incognito._

            (Dos jornaes).


Que frio cortante, meu Deus!

O sol é como um brazeiro apagado, que ainda conservasse luz nas
cinzas--uma luz fria e baça. O vento retalha-nos a cara, e põe nas
pobres arvores sem folhas umas tremuras de velhinho, a esconder sob os
farrapos as carnes enregeladas.

Que frio cortante. Deus do céu!

A miseria é insupportavel no inverno, porque tudo se conjuga para lhe
dar uma agudeza de expiação, um requinte de pena biblica, sem laivos de
misericordia. Não ha fogo no lar, não ha pão no armario, não ha
cobertores no leito, ás vezes nem leito ha.

Que frio cortante. Senhor!

E é então que a Opulencia desce ao antro onde agoniza o miseravel,
pondo-lhe na mão ressequida o quanto baste para illudir a fome.

Mas porque haverá no mundo esta tremenda desegualdade, se lá nos altos
céus existe uma justiça absoluta, e se existe cá em baixo uma vulgar
noção do que seja a equidade?

Que frio cortante, meu Deus!

Dá vontade de morrer, para fugir d'este inferno, e ao mesmo tempo dá
vontade de accender uma grande fogueira, a que se aqueçam todos os
desgraçados.

Se os poderosos soubessem como se soffre no inverno! Ou não tirariam
nada aos pobres, ou lhes restituiriam quanto lhes tiram, n'um desejo
sincero e grande de fazer obra meritoria.

Mas elles nem sonham, meu Deus! como é horrivel a miseria no inverno.




      *      *      *      *      *

    _SS. MM. foram muito acclamadas na estação do Rocio._

            (Dos jornaes).


--Peço desculpa a V.ª Ex.ª mas como tenho umas continhas...

--Pois sim; mas eu já lhe disse que antes do fim do mez não posso
pagar-lhe.

--É verdade que disse; mas como V. Ex.ª agora tem dinheiro...

--Qual dinheiro, nem qual carapuça! O sr. imagina que me morreu algum
tio no Brazil, que apanhei a sorte grande, ou que levei alguma banca á
gloria?

--Não senhor; não imagino nada d'isso. Mas como V. Ex.ª foi encarregado
do vivorio, acho que pode muito bem regular já as nossas contas, para eu
me não ver envergonhado com os meus credores.

--O sr. está doido, com certeza! Imagina talvez que se paga aquelle
serviço á larga, pelo menos com certa generosidade, como seria justo que
se fizesse?...

--Como isso é feito, não sei eu; o que eu sei é que ao pé de mim estava
um sujeito todo bem posto, de cartola, que deu apenas dois vivas, e
abalou muito risonho esfregando as mãos, e a dizer para o
companheiro:--_já cá cantam dois mil réis_. E toda a gente dizia por
alli que V. Ex.ª tinha recebido um conto e duzentos mil réis para
dirigir aquella manobra.

--Sim, senhor, para dirigir aquella manobra... e para pagar áquella
gente. Imagina que se dão vivas de graça? Pois engana-se redondamente.
Quem menos ganha, é quem mais grita, e ha menino que recebe as massas e
fica mudo como um peixe.

--Mas V. Ex.ª bem vê que eu já tenho esperado muito, e, se o importuno
agora, é porque me parece a occasião favoravel.

--Desfavoravel, é que ella é. Em primeiro logar, eu ainda não recebi a
téca; depois tenho que pagar á minha gente melhor que das outras vezes,
porque elles estavam falados para não se prestarem á coisa. Isto, meu
amigo, foi chão que deu vinha. N'outro tempo, um diabo que enrouquecia a
dar vivas, contentava-se com dois tostões, doze vintens, e ás vezes com
um simples habito de Christo, ou uma commenda da Conceição. Vão lá agora
acenar-lhes com isso, a vêr quantos lhe pegam!...

--De maneira que...

--De maneira que o amigo terá de esperar mais algum tempo, e como
realmente eu lhe sou grato, não quero que perca o freguez, tanto mais
que o senhor trabalha bem. Lá me tem ámanhã, a escolher a fatiota da
estação.

--Que pagará...

--Quando houver outra manifestação espontanea.

Resmungava o alfaiate, descendo a escada--Que grande pulha!

Dizia o vivographo, fechando a porta--Que grande idiota!




      *      *      *      *      *

    _Hontem a sessão teve de ser interrompida na Camara dos Deputados,
    por causa do chinfrim. O sr. José Luciano mostrou-se satisfeito._

            (Dos jornaes).


Durante muito tempo, por largos annos, o seu ar recolhido e severo deu a
muita gente a impressão d'um pensador, alheiando-se propositadamente do
mundo para melhor se engolfar nas suas cogitações. E porque nada
resultasse das suas locubrações d'espirito, assentou-se em que aquelle
vasio significava profundeza. Não era talvez um philosopho, mas era um
homem d'Estado. E assim foi trepando a escadaria ingreme da carreira
politica, sempre solemne, sempre severo, sempre recolhido, e sempre ôco.
Não havia duvida possivel--estava alli um prodigioso talento, uma
organização rara d'estadista, a que só faltava ter uma ideia e produzir
um facto. Senão quando, um irreverente que attentou n'aquella
austeridade de manequim, n'aquelle ar funebre de cypreste, n'aquella
fronte larga sem reverbero intellectual, um irreverente apontou-o á
multidão, e gritou-lhe nas bochechas--é fundamentalmente estupido!

Por maneira que outro dia, apoz aquelle chinfrim no parlamento, quando o
presidente do conselho ria, como quem se banha em agua de rosas, e a
camara inteira se põe ao fresco, dominada pelo vago presentimento de que
fizera o jogo do governo, o pobre grande homem, antecipando a amargura
dos seus desastres, encostado á parede, como quem soffre uma vertigem,
deixou cahir dos labios murchos estas palavras desconsoladas--_Parece-me
que fiz asneira!_

E, pela primeira vez na vida, reconhecendo que fizera asneira, o grande
homem se mostrou intelligente.




      *      *      *      *      *

    _A situação do rei é de cada vez mais grave. O unico remedio ainda
    possivel é a abdicação._

            (Nas entrelinhas dos jornaes).


Era uma conspirata.

Reuniam-se todas as noites fóra de portas, em casa d'um tasqueiro de boa
reputação, homem de lettras gordas, mas de principios severos, incapaz
de faltar á sua palavra, preferindo mil vezes a morte a uma vilania. De
modo que para este não havia segredos, nem para a sua companheira, uma
velhota gordunchuda que teimára em não ter filhos depois de casada,
farta de os ter em solteira. Bem entendido, o tasqueiro não tomava parte
nas discussões; mas quando elle entrava com o peixe frito e a caneca, de
chinellas, com um lenço encarnado a chupar-lhe o suor da cachaceira,
ninguem recolhia a fala ao buxo, porque se sabia que elle era incapaz de
uma traição, ou mesmo d'uma imprudencia.

Elle bem sabia do que se tratava; mas fingia não saber nada,
correspondendo, com extremos de correcção, á penhorante confiança que
tinham n'elle. Tratava-se de substituir um porco por um leitão, o que
tudo vinha a dar n'uma tremenda porcaria. Mas os conspiradores
mostravam-se encarniçados na sua ideia, crendo n'ella como nas pilulas
Pink, ou no xarope da mãe Seigel. A unanimidade não era completa, e como
uma noite resolvessem não sair d'alli sem assentarem em alguma coisa de
definitivo, um d'elles lembrou que se ouvisse a opinião do tasqueiro,
homem de lettras gordas, mas de principios severos, mais intelligente do
que seria preciso para exercer a sua profissão, e discreto como um
tumulo. Por maneira que quando elle entrou, o lenço encarnado a
chupar-lhe o suor do cachaço, a travessa do peixe frito na mão esquerda,
e na direita um formidavel cangirão, espumante de vinho verde, um dos
conspiradores poz-lhe nitidamente a questão, e pediu o seu parecer:

--Eu cá, por mim, não entendo d'essas coisas; mas sempre ouvi dizer que
a racha sae ao madeiro, e meu avô, que andou nas guerras, e soffreu
primeiro por causa de D. Miguel, e soffreu depois por causa de D. Pedro,
costumava dizer á gente, quando se falava dessas coisas--creio que ha
uns reis peores do que outros; que haja melhores, não acredito.




      *      *      *      *      *

    _Diz-se que a questão politica vae ser tratada no Parlamento com
    violencia, não se poupando ataques ao Chefe de Estado._

            (Dos jornaes).


Se tivesse echo!...

Era positivamente uma obsessão; mas queria por força uma quinta que
tivesse echo, e não se importava pagar esse capricho a peso de dinheiro.
Deixára a Patria muito novo, e no Brasil, á força de trabalho e
economia, a sorte ajudando um pouco, conseguira fazer fortuna. Todas as
noites, ao fechar da loja, consultava o livro de _razão_, e como visse
que os negocios lhe corriam bem, ganhando sempre, tomava o chásinho com
torradas, entretinha-se um pouco com os garotos, e ia metter-se na cama
tranquillo e satisfeito, como um patriarcha biblico. Sonhava então com a
sua aldeia; via-se outra vez no modesto casinhoto em que nascera;
encontrava-se de novo com os rapazes da sua geração, e abalavam todos de
restolhada, a caçar os ninhos ou a roubar amoras, este sem chapéu,
aquelle sem jaqueta, e todos não lhe pesando o pé uma onça, quando o
vinheiro se apercebia do grupo, e fazia estalar a funda ou rebentar uma
escorva, no momento em que estes saltavam o vallado, para colherem uvas.
O que fazia o principal encanto de seus sonhos, era a conversa com o
echo, um echo muito perfeito que havia perto da aldeia, no sitio chamado
das Antas. Já accordado, ainda lhe parecia que tinha realmente ouvido o
echo--_quem está lá!_--e fechava os olhos, n'um esforço enorme de
concentração, parecendo-lhe que talvez assim o ouvisse ainda. E então,
principiava a obsedial-o aquella ideia do echo, que já ouvia mesmo
acordado--_quem está lá!_--victima d'uma allucinação do ouvido. Por
maneira que passados annos, voltando á sua terra, deitou-se a procurar
uma quinta que tivesse _echo_, não se importando pagar o seu capricho a
peso de dinheiro. Soube d'isso o Thomé Cantigas, e logo se poz a
instruir o velho João, um creado que já estava na casa quando elle
nascera, por maneira a funccionar d'echo quando lá fosse o brasileiro,
com quem tinha a quinta ajustada. Ora succedeu então esta coisa
curiosa:--quando o Thomé, em companhia do brasileiro, do escrivão e das
testemunhas, para verificarem o echo, gritou com toda a força dos seus
pulmões--Ó João!--o pobre diabo, escondido por detraz d'uma pedra,
ouvindo aquella voz tão sua conhecida, e sentindo acordar em si quarenta
annos de obediencia e domesticidade, o pobre diabo respondeu n'um tom
humilde--_Meu senhor!_

Imaginem agora que o rei chegava alli abaixo, perto de S. Bento,
espectral como o principe da Dinamarca, quando nas duas camaras, que
funccionam agora como dois bilhares, se joga a carambola politica, a
maior parte dos parceiros esquecendo-se de dar giz no taco, picando as
bolas ao contrario, e todos jogando pela tabella, como se não vissem a
encarnada e fosse prohibido atirar-lhe para cima... Sim, imaginem que o
rei chegava alli, sem ninguem dar por elle, e no mais acceso da
balburdia, no meio encarniçado do jogo, gritava com a sua bella voz de
barytono:--_Que é lá isso ó seus gajos?_

Quantas vozes deixariam de responder como o velho creado João, ouvindo,
lá onde estava, por detraz de uma pedra, ensaiado para o echo, a voz do
sr. Thomé, seu patrão de tantos annos?




      *      *      *      *      *

    _Vaidade das vaidades--tudo é vaidade!_


Viera ao mundo com a mania de que tudo andava torto, e lhe competia
endireitar tudo. Era assim uma especie de messianismo arte nova, que lhe
hypertrophiava a personalidade, tornando-o impertinente. Todas as
injustiças o offendiam, todas as asneiras o irritavam, pondo-lhe os
nervos em tal estado de vibração, que seria facil romperem-se. Mas ao
mesmo tempo essas injustiças que o offendiam, essas asneiras que o
irritavam, eram a propria condição da sua existencia, todo o estimulo da
sua actividade, a sua unica razão de ser. Que um bello dia entrassem as
coisas na bôa ordem, o bem tendo vencido o mal, o amor tendo vencido o
odio, a justiça tendo vencido a iniquidade, o direito tendo vencido a
força, a verdade tendo vencido a mentira, que um bello dia se realizasse
tudo isto, e elle encontrar-se-ia como homem que se desequilibrasse no
espaço, sem ponto de apoio, uma creatura que se visse sem ligações com o
Universo, isolada como n'uma ilha deserta, um ser de geração espontanea,
olhando para traz, e não adivinhando o seu passado, olhando para deante
e reconhecendo-se sem destino. Considerava-se o ser por excellencia, a
suprema vontade, a suprema intelligencia, a mais alta sabedoria, a mais
extremada virtude. Tinha um calcanhar esse gigante, como o heroe da
Iliada; mas o Páris, que pretendesse feril-o, escusava de molhar a setta
em veneno, bastava que a molhasse em lisonja, que é uma droga pouco
toxica e muito corrosiva. Succedeu-lhe um dia adoecer gravemente, e como
lhe perguntassem, _in articulo mortis_, se não receava pela salvação da
sua alma, respondeu, tartamudeando muito--_Receio que me mettam no céo.
Que tortura não será a minha se caio na mansão dos justos._

Por subscripção entre amigos, ergueram-lhe um mausoleu, coisa barata e
modesta, e fizeram-lhe gravar na frontaria, em bronze amarello, estes
dizeres biblicos:--_Vanitas vanitatum_, o que traduzido em portuguez
quer simplesmente dizer:

--_Ora bolas para tanta embofia!..._




      *      *      *      *      *

    _Parece vingar a interpretação que attribue ao sr. ministro das
    finanças a qualidade de portuguez._

            (Dos jornaes)


--Contente que nem um rato, não é verdade?

--Não sei porquê...

--Não sabe porquê? Pois você chega ao ultimo quartel da vida sem saber
de que terra é, e d'um momento para outro, sem trabalho nem canceiras,
apparece cidadão d'um paiz glorioso, e guindado ás maiores culminancias
sociaes, e ainda pergunta porque deve estar contente?

--Por certo. Não sendo d'uma patria determinada, eu podia tirar muito
proveito de todas, conforme as circumstancias.

--Mas os seus direitos...

--Perdão; os meus direitos são os meus interesses, dada a minha
qualidade de homem de negocios. Ter um certo direito, significa apenas,
no meu entender, a faculdade de realizar um certo lucro, da mesma fórma
que ter uma certa obrigação significa uma perda. A equação da vida
commercial faz-se com estes dois termos--ganhos e perdas.

--Está muito bem; mas parece-me que sob todos os pontos de vista o amigo
ganhou.

--Isso é conforme. A operação, considerada nos seus resultados
immediatos, e não olhando para além do momento actual, é de resultados
vantajosos; mas...

--Mas...

--Mas o futuro a Deus pertence, e esta naturalização definitiva póde
prejudicar-me muito, se ainda tiver necessidade de mudar de
nacionalidade mais uma vez.




      *      *      *      *      *

    _O principe D. Luis Filippe restituiu ao thesouro o dinheiro que lhe
    sobejou da viagem._

            (Dos jornaes).


Era doida pelo neto; mas, se o tivesse junto de si, n'aquelle momento,
pregava-lhe duas bofetadas.

Era aquillo um proceder de principe?

Não havia memoria, na sua familia, d'alguem ter restituido fosse o que
fosse, muito menos dinheiro.

Raivosa, sentindo-se ferida no seu orgulho de raça, mordia os beiços até
quasi sangrarem, e amarrotava nas mãos o jornal, com muita força, como
se quizesse desfazel-o. Era de entontecer aquella vergonha.

De repente acalmava-se um pouco, como se entrasse n'um banho morno.

Quem sabe?

Talvez aquillo não fosse verdade. Dizem tanta mentira os jornaes!... Ha
gazeteiro que não vacilla perante a mais baixa calumnia, muitas vezes
por interesse, algumas vezes por capricho, não raramente por maldade.

E logo mandou vir todas os jornaes d'aquelle dia, absolutamente todos,
mesmo os que ella nunca lia, por saber que sempre alguma coisa traziam
que lhe fosse desagradavel.

--Todos quantos se publicam em Lisboa, ouviste?

Pois em todos elles vinha a noticia, a vergonhosa noticia d'aquelle neto
infamante, que ficaria luzindo como uma nodoa na pureza alvissima e até
alli immaculada dos seus pergaminhos dynasticos.

Era doida pelo neto; mas se o tivesse junto de si, n'aquelle momento,
era capaz talvez de um arrebatamento criminoso, atirando-o pela janella.

Vestiu-se n'uma pressa, sem olhar para o espelho, surda ás sugestões do
seu coquetismo de carcassa. Iria procural-o, exprobar-lhe a sua baixeza,
que nem mesmo os poucos annos poderiam desculpar.

Um principe, quando se trata de honrar as tradições dos seus maiores, é
sempre de maior edade...

Pisava o primeiro degrau da escada, quando o neto subia quasi aos
saltos, como de costume, a estender-lhe os braços.

--Ias sair, avózinha?

--Ia procurar-te.

--Parece que não estás contente?

--E com razão.

Mal entraram na sala, apanhou um jornal, ao acaso, e, apontando a
noticiazinha da restituição, perguntou-lhe:

--Isto é verdade?

O garoto desatou a rir, a rir desalmadamente, a fazer-lhe cocegas.

--É então mentira?

--Se é mentira!... Na verdade, avózinha, sempre te julguei mais
intelligente. Restituir dinheiro! Sei honrar as tradições da nossa casa,
pelas quaes tenho um verdadeiro culto.

Teve um grande suspiro d'allivio, como se lhe tirassem de cima um peso
de cem arrobas. Apertou muito o neto nos braços e, tendo-o beijado
loucamente, deixou-se cair no sophá, muito quebrada, como ao sair d'uma
lucta.

E com os olhos fechados, a respiração alta, ofegante, murmurava para não
ser ouvida:

--Estupida que eu sou! O pequeno era incapaz de semelhante infamia.
Revejo n'elle toda a nobreza da raça.

E adormeceu.




      *      *      *      *      *

    _Passa hoje o primeiro anniversario deste jornal, dia propicio á
    comemoração dos que foram nossos companheiros de lucta, e hoje
    luctariam comnosco, se a morte os tivesse poupado._

            («A Lucta»).


Morrer, dormir, sonhar quem sabe!...

A fogueira crepita no meio do bosque sagrado, e o ramalhar das folhas,
cortando o silencio augusto d'uma noite de luar, é como a prece erguida
aos céus por milhares de labios virginaes.

Morrer, dormir!...

Em volta ha uma turba alegre, como se alli fosse realizar-se um ágape
festivo, os esponsaes d'uma nobre castellã com o pagem dos seus sonhos,
reluzente de pedrarias, esplendido de mocidade.

Dormir, sonhar!...

A fogueira crepita erguendo uma chamma cónica de uma regularidade
geometrica, e um fumozinho branco, muito tenue, muito esparso, é como um
boccado de gaze que alli estivesse preso á chamma, tocando-lhe sem se
inflammar.

Morrer, dormir, sonhar, quem sabe!...

E mal o cadaver pousa na fogueira, crepitante e rútila no meio do bosque
sagrado, logo sobre elle se lança aquella virgem loira e meiga, que uns
padres druidas estavam ha pouco dispondo para a viagem de que não se volta.

Quem sabe!

Se n'esses mundos longinquos, para onde dizem que vão as almas, se
conserva lembrança da vida que aqui tivemos, bem sabem vocês, queridos e
inolvidaveis mortos! que é para nós de lagrimas este dia, visto que esta
pagina é hoje um canto do cemiterio!




      *      *      *      *      *

    _A morte perdendo a foice_
    _Creu sua força desfeita._
    _Disse-lhe um medico insigne:_
    _Aqui tens esta receita._


Chamava-se Corvo, e era alfaiate.

Pouco trabalhava pelo officio, quasi sempre pelo campo, a caçar lebres
ou perdizes, lá de longe em longe mettendo-se na jolda, e só então
aventurando-se por aquelles mattos espessos, onde deixava metade da
farpela, em boccados. A sua grande paixão, a sua mania de caçador era
pelos pombos, á negaça. Abalava de casa muito cedo, o pombinho mettido
na aljabra, o farnel mettido nos bolsos, a aguilhada ao hombro, a
espingarda a tiracolo, e uma garrafinha de aguardente sem confecção, que
o frio era de rachar, por aquelles dias molhados de novembro. Chegava ao
_sitio_, circumdava os montados, n'uma extensão enorme, com a sua vista
de lynce, e toca a fazer a choça, não fossem os pombos dar-se pressa de
vir alli, apanhando-o desprevenido. Ás vezes não matava nada; outras
vezes matava quantos se _faziam_; mas sempre se divertia immenso, a
puxar a negaça e a aperrar a caçadeira, não se esquecendo nunca de
_beijar_ a garrafinha da aguardente, que valia pelo melhor dos lumes, no
desabrigo da choça, por aquelles dias gelados de novembro.

Ora succedeu que um dia, ao voltar dos pombos, chegando a casa,
subitamente, o Corvo sentiu-se mal, horrivelmente mal, gritando que lhe
accudissem. N'esse mesmo dia, áquella mesma hora, por assim dizer,
n'aquelle mesmo instante, tinha chegado o medico novo, que ainda ninguem
tinha visto. Correram a chamal-o, n'uma afflicção, que o Corvo sentia-se
morrer e gritava como um perdido. Vae o doutor, muito solicito, observa
o doente, faz uma receita, enche uma seringa e crava-a n'uma nadega do
alfaiate, que não tugiu nem mugiu.

Estava morto o pobre Corvo, velho caçador de pombos, que durante largos
annos, todas as manhãs, em dias gelados de novembro, abalava de casa
para as montanhas, a aguilhada ao hombro e o farnel nos bolsos, sem
nunca se esquecer da garrafinha d'aguardente, que valia por um bom fogo
no desabrigo da choça, encostado a um sobreiro.

O caso fez barulho na aldeia, e como alguem lamentasse a perda de tão
eximio caçador:

--Lá quanto a isso, perorou um mariola d'um barbeiro, não vejo razão
para se lamentar a gente. O nosso doutor parece ser homem de boa
pontaria. Mal disparou a seringa, logo o Corvo enrolou as azas, como se
fosse um pombo que se _fizesse_, e apanhasse a carga em cheio.




      *      *      *      *      *

    _O sr. ministro da fazenda ficou a trabalhar em sua casa._

            (Dos jornaes).


A ordem fôra terminante, e não admittia excepções; s. ex.ª não _estava_
para ninguem, absolutamente ninguem.

Andava a estudar um plano geral de reformas, e, como tivesse de ir
passar uns dias na provincia, queria deixar os seus papeis arrumados,
cada coisa no seu logar, como n'um museu ou n'uma bibliotheca.

Fôra sempre uma creatura methodica, e em grande parte o seu talento, que
ainda assim muitos negavam, era feito de trabalho e de methodo. Entrára
na politica com uma bagagem de estudante, apenas preparado para no
parlamento mandar uma representação para a mesa, e requerer que se desse
a materia por discutida, a um signal do _leader_. Mas trabalhava muito,
estudava muito, ambicioso de renome, atormentado pela obscuridade em que
vivia, mal supportando que os outros trepassem, subissem, servindo elle
proprio de degrau a bastantes creaturas mediocres.

Um bello dia, quasi sem elle proprio saber como nem como não,
fizeram-n'o ministro. E logo pensou n'uma larga reforma de serviços,
remediando muitas insufficiencias, preenchendo muitas lacunas, pondo
cobro a muitos escandalos.

Lá quanto a honestidade, reconheciam-n'a os proprios inimigos.

Colligira todos os elementos de que necessitava para a sua obra
reformadora, e resolveu aproveitar aquelle dia para os classificar, em
termos de servir-se d'elles com a maior facilidade e proveito.

Estava inteiramente absorvido n'essa tarefa, quando lhe apareceu junto
da mesa um continuo, muito vermelho, muito atrapalhado, a revirar o
_bonet_ na mão, a querer falar, e não se atrevendo a abrir a bocca.

--Que ha?

--Um senhor que deseja falar a v. ex.ª

--Então eu não lhe disse que não estava para ninguem?

--É verdade, mas elle disse-me que se matava alli mesmo, á porta, se v.
ex.ª não o recebesse.

Mandou entrar immediatamente.

--É você?...

--Sou eu. Sabe que o Chico está irremediavelmente perdido?

--O quê?

--Talvez não dure 48 horas.

--Coitado! E a familia?...

--Ora ahi está. É por causa da familia que eu cá venho.

--Mas que posso eu fazer?

--Uma coisa muito simples--um adeantamento.

--Mas se elle está a morrer!...

--Por isso mesmo. Desconta pelo terço do ordenado emquanto viver.

--E depois de morto?

--Continua a descontar... no outro mundo.

E assim se fez.--Era uma bagatela de dez contos redondos.




      *      *      *      *      *

    _O sr. D. Carlos manda para o Salon dois quadros._

            (Dos jornaes).


Era dia de assignatura.

Como de costume, na sala de espera, emquanto não chegava a hora, uns
fumavam estendidos em sophás de molas doces, e outros falavam de coisas
varias,--as occorrencias banaes da vespera, ou os successos provaveis do
dia seguinte. Pelas janellas, abertas de par em par, entrava uma aragem
fresca e quasi perfumada, tanto as flôres do jardim embalsamavam o
aposento n'aquelle dia lindo.

Avistava-se ao longe o rio, d'aguas tranquillas, e lá para além da
barra, empennachado de fumo, um navio cortava as aguas, sem estremeções,
deixando atraz de si, como uma passadeira de rendas, um largo traço de
espuma. N'isto abre-se uma porta ao fundo, e um homem apparece, de
casaca, trazendo debaixo do braço, muito enrolado em papeis, qualquer
coisa que logo se adivinhava ser um quadro com a respectiva moldura.

Os que fumavam, estendidos em sophás de molas dôces, ergueram-se a
cumprimentar, quasi envergonhados do seu _á vontade_, como n'um casino,
e os que estavam á janella olhando para o rio, d'águas tranquillas,
notando como corria leve um vapor que sahia a barra, empennachado de
fumo, esses deixaram-se ficar onde estavam, baixando ligeiramente a
cabeça, com cerimonia, nenhum d'elles sabendo quem era aquelle senhor.

--Não sei se incommodo v. exas...

--Ora essa! Por forma nenhuma.

--V. ex.ª é...

--O pintor da casa.

E logo poz em cima da mesa, procurando posição conforme a luz, duas
telasinhas de meio metro, ricamente emmolduradas, uma reproduzindo um
trecho de paysagem alemtejana, n'um entardecer d'agosto, e outra
representando uma commissão de sardinhas vindo cumprimentar um goraz,
pelos seus trabalhos maritimos.

--E V. ex.ª traz isto...

--São os meus decretos; trago-os á assignatura.




      *      *      *      *      *

    _O sr_. _D. Carlos tambem hontem não assistiu á tourada no Campo
    Pequeno._

            (Dos jornaes).


--Está aqui tudo?

--Creio que não falta nada.

Poz a mala em cima d'uma cadeira, para não estar a dobrar-se muitas
vezes, e foi tirando peça por peça. D'ahi a pouco estava inteiramente
transfigurado. As suissas assentavam-lhe na perfeição, e os oculos de
ouro, com vidros sem grau, transformaram-lhe de tal modo a physionomia,
que ninguem, mesmo dos seus familiares, o conheceria sob aquelle
disfarce. As calças é que lhe ficavam um boccadinho justas nas pernas, e
o collete, se fosse um tudo nada mais comprido, dir-se-ia ter sido feito
para elle--por medida e com prova. Pegou na bengala, de castão de prata,
poz na cabeça um Panamá, quebrado na frente, e carregou no botão d'uma
campainha electrica.

--Se não soubesse...

--De primeira ordem, não é verdade?

--Uma transfiguração á Rocambole.

--Obrigado pelo cumprimento; mas como tu é que me escolheste a farpela...

--Limitei-me a cumprir fielmente as indicações recebidas.

--De modo que não haverá perigo...

--Absolutamente impossivel conhecel-o, disfarçado como está.

--Pois olha, já que entrei n'este caminho, quero fazer a coisa completa.
Has de comprar-me um bilhete de sol.

Quando entrou na praça, ainda as cortesias não tinham começado. Arranjou
um logar ao pé da musica, e poz-se a fumar um cigarro ainda por
disfarce. Á hora marcada, com uma pontualidade fóra do costume, a função
principiou. Estava interessado, contente e ancioso, como se pela
primeira vez assistisse a um espectaculo ardentemente desejado.
Surprehendia-se a gritar com toda a força, quando o _sol_ inteiro
gritava e ainda teve o chapéu na mão, para o atirar ao redondel,
enthusiasmadissimo com um _cambio_.

No intervallo, como não sahisse o visinho da direita, pedindo-lhe fogo,
entrou a dar-lhe conversa.

--Vê-se que o amigo é amador.

--Como poucos. Isto é um divertimento real.

--Lá isso real...

--Pois sim... Mas o rei vem aqui muitas vezes?...

--Vinha muitas vezes, é o que você quer dizer...

--E agora já não vem?

--Acho que cortou a coleta.

--Elle, afinal, tudo aborrece.

--Ora ahi está. E foi exactamente por ver que aborrecia, que elle deixou
de apparecer. Sabe o amigo uma coisa? Tenho estado a reparar que você se
parece...

Não acabou a phrase. Já o outro se tinha levantado, a fingir que alguem
o chamava.

D'ahi a pouco, no mesmo quarto em que mudára de farpela, dava-se a um
trabalho de mil demonios para se desembaraçar das calças, muito justas
nas pernas.

--Ninguem desconfiou, é claro?

--É claro que desconfiaram. Um gajo que estava sentado ao pé de mim, se
me não safo tão depressa...

--E disse-lhe alguma inconveniencia?

--Lá bem inconveniencia...

--O melhor, para outra vez...

--O melhor para a outra vez, é não ir lá. Corto definitivamente a coleta.

--E a _quadrilha_?

--Lá isso fica como estava.

E atirando com as suissas para cima da cama, a meia voz com despreso:

--Isto é que é uma cambada!...




      *      *      *      *      *

    _O sr. João Franco acompanhou o Principe Real á festa das creanças,
    e pronunciou alli um grande discurso._

            (Dos jornaes).


--Muito interessante a festa, não é verdade?

--Sim, foi interessante.

--Muitas creanças, muitas flores, um dia lindo de sol... Aposto que
estava a saltar-te o pé para o meio do rancho, rindo e brincando como
todos, como se fossem todos do mesmo collegio?

--Tu estás doida, avósinha? Comprehendo muito bem os deveres do meu
cargo, e em nenhuma situação me esqueço de quem sou, e do que represento.

--Bravo, meu filho! gosto de te ouvir falar assim, porque isso me prova
que serás um dia o representante illustre dos teus illustres antepassados.

--Assim o espero.

--Assim o creio. E falaste ás creanças?

--Não, avósinha. Ninguem me disse para lhes falar, nem eu sabia o que
havia de dizer-lhes.

--Por certo, não sabias; mas se isso fosse uma razão para não falar,
muita gente estaria calada n'este paiz de palradores. Quem falou então?

--Houve só um discurso...

--Sim, está claro, falou s. ex.ª. E o que disse?

--Para te falar com franqueza, avósinha, eu pouco ouvi do que elle
disse. Mesmo na minha frente estava um garoto vestido de marinheiro,
muito interessante, que passou todo o tempo a fazer cocegas no pescoço
de uma senhora muito gorda, de nariz abatatado, que estava adiante
d'elle, na fila immediata. De cada vez que o rapazinho lhe passava um
canudinho de papel, muito delgado, pela pennugem do cachaço, atraz das
orelhas, a velha fazia umas caretas muito exquisitas, aflicta, com medo
de perder a linha em momento tão solemne. Não imaginas como era
divertida a velhota. Divertida e estupida, porque nunca desconfiou do
garoto, que se encolhia todo para não desatar ás gargalhadas. De modo
que...

--De modo que não ouviste o discurso de s. ex.ª.

--Não ouvi tudo, é certo; mas alguma coisa ouvi. Por exemplo, ouvi-lhe
dizer que n'outros tempos os povos eram dos reis, e que hoje os reis são
dos povos. Que quer dizer isto, avósinha?

--Quer dizer, meu filho, que n'outro tempo, os creados recebiam ordens
dos patrões, e cumpriam-n'as; hoje os patrões recebem ordens dos
creados, e cumprem-n'as.

--Credo! Mas isso é o fim do mundo.

--Pede a Deus que não seja o fim da dynastia.




      *      *      *      *      *

    _O enterro de hontem foi uma extraordinaria affirmação da força do
    partido republicano em Lisboa._

            (Dos jornaes).


Estava inquieto, n'uma ancia por noticias, quando lhe foram dizer que
estava o jantar na mesa.

Que teria havido!

Por certo o cortejo seria numeroso, mas aprazia-lhe acreditar que a
manifestação, embora significativa, não fosse de molde a tornar ainda
mais evidente o desprestigio do seu nome, já bastante desprestigiado.
Esquecia-se de comer, e não despregava os olhos da porta, esperando
vel-o apparecer a cada momento, portador da boa nova, dando-lhe a
segurança de que era já outra a atmosphera da cidade, onde elle poderia
respirar com desafogo, quando quizesse, farto de correrias fóra de
portas, a monte como os leprosos na antiguidade, e como os criminosos
ainda hoje, quando puderam fugir á justiça.

Que teria havido!

Todos lhe notavam a preoccupação na physionomia transtornada, e todos
sabiam o que lhe dava origem, a verdadeira causa daquelle mal-estar. De
modo que o jantar ia correndo silencioso, quasi funebre, ninguem se
atrevendo a arriscar uma palavra banal, o mais leve dito que pudesse
desafiar o mau humor do pobre tomate recheiado. Fazia dó, mas ao mesmo
tempo mettia medo, como se fosse um obuz carregado de grosserias, que
uma creança maldosa pretendesse descarregar contra um homem delicado.
Parecia aquella ceia da Lucrecia Borgia, em Ferrara, descripta por
Victor Hugo.

De repente, abre-se a porta, e um reposteiro annuncia o homem. Estava-se
nas fructas.

--Então?...

--Muito maior do que seria licito esperar. A cidade inteira, póde
dizer-se, tomou parte na manifestação, grandiosa como nenhuma outra,
d'essas que andam na memoria dos homens.

--De modo que o prestigio d'essa creatura...

--Peço desculpa; o que atravessou a cidade, por entre alas compactas de
povo, seguido de milhares de pessoas, não foi o cadaver d'um homem...

--Foi então?...

--Foi o prestigio d'uma ideia.


Ficou por instantes suspenso, como se lhe fugisse o espirito para uma
região de trevas. Logo voltou a si, como quem acorda d'um mau sonho, e
acabando de descascar uma laranja, voltando-se para o peniculario que
lhe ficava mais perto:

--Olha lá, ó marquez, dize aos teus collegas da cozinha que não deitem
fóra estas cascas.

No outro dia annunciava-se uma crise em todos os jornaes.




      *      *      *      *      *

    _O rei, que hontem devia presidir ao conselho de ministros, partiu
    para Biarritz, onde se encontra sua noiva._

            (Telegramma de Madrid).


Pois se elle tem vinte annos!..

Queriam então vel-o amarrado ao throno, recebendo conselheiros e
ministros, aturando reposteiros e mordomos, quando a noiva está alli, a
algumas horas apenas da capital, chamando-o com insistencia de quem nada
póde e tudo offerece porque tudo espera receber em troca.

Pois se elle tem vinte annos apenas!...

Talvez que no seu sangue toda a podridão d'uma raça; mas a mocidade é
uma especie de azougue, capaz de fazer erguer um morto, dando-lhe uma
vida ephemera.

Pois se elle é tão novo!...

Queriam então prendel-o alli, n'aquelle deserto de Madrid, aturando
conselheiros e ministros, gente da burocracia e bugigangas heraldicas,
quando ella está a poucas horas da capital, talvez a alongar os olhos na
direcção da Hespanha, na esperança de vel-o surgir na sua frente,
radiante de mocidade.

Pois se elle tem vinte annos apenas!...

E estranham então vel-o partir como um foguete, abandonando as redeas do
governo, doido d'amor como um Quichote real, para ir colher em Biarritz
as promessas d'uma felicidade sem limites prelibando uma ventura sonhada.

Pois se elle é tão novo!...

Depois ella é tão bella!...




      *      *      *      *      *

    _Amanhã, anniversario da rainha Maria Pia, não haverá recepção no
Paço._

            (Dos jornaes).


--Venho dizer-te adeus...

--Para onde vaes?

--Para o mar. Na terça feira cá estou, para te dar os parabens.
Imaginavas que ia esquecer-me do teu anniversario?

--É verdade, o meu anniversario... Nem me lembrava.

Emquanto elle accendia um charuto, olhando distrahidamente uma
illustração ingleza, deixava ella pender a cabeça sobre o collo mirrado,
e evocava um tempo muito remoto, tão remoto que lhe parecia agora, na
desolação da sua viuvez, mais phantastico do que real.

O seu anniversario!

O throno era pequeno para a sua magestade, mas, em summa, sempre era um
throno e ella nascera para reinar. Na sua cabelleira loira, como a das
virgens de Raphael, o diadema régio tinha scintillações estranhas e
coruscantes, que ainda assim pareciam pallidas em comparação dos seus
olhares, em que havia toda a ardencia do sol dos tropicos, e toda a
limpidez do crystal da rocha.

Tambem ella reinára!

Outros imperantes se tinham curvado na sua presença, e milhares de
cortezãos tinham solicitado a esmola d'um sorriso ou d'um olhar, que
ella nem sempre lhes concedia, muito altiva, muito sobranceira, no
throno, julgando-se muito perto do Olympo, e fóra do throno vendo-se
muito acima da humanidade vulgar.

O seu anniversario!

Fechava os olhos para tornar mais intensa a evocação, e logo via o
desfile do immenso e luzido cortejo--os diplomatas com os seus
fardamentos ricos, bordados a oiro; os ministros com as suas librés de
luxo, salpicadas de veneras; os bravos militares suffocando impetos
guerreiros, n'uma attitude de respeitosa fidelidade, e o numero infinito
de fidalgos e fidalgas dobrando o joelho no primeiro degrau do throno e
babujando-lhe a mão aristocratica com a saliva do cortezanismo mais
rasteiro e mais falso.

O seu anniversario!

De repente, e como se reatasse uma conversa interrompida pousando o
charuto sobre o cinzeiro de prata, e tomando-lhe entre as mãos a face
apergaminhada, n'uma caricia muito terna:

--Não, fica certa que não me esqueço dos teus annos, e verás como sou
gentil...

--Sim, não te esqueças. E pois que desejas mostrar-te gentil para
commigo, mais uma vez, poupa-me ao desejo e á baixeza de receber os teus
creados de pasta.

E não houve recepção.




      *      *      *      *      *

    _Amanhã tem logar a abertura do congresso republicano no Porto.
    Espera-se que o sr. D. Carlos assista hoje á tourada, no Campo
Pequeno._

            (Dos jornaes.)


--Está doente?...

--Pelo contrario, nunca me senti com tanta saude como agora. De certo,
se estivesse doente, era natural que fizesse chamar um medico, e não o
presidente...

--Sem duvida; mas chamado tanto á pressa, com a maxima urgencia...

--É que na verdade o caso é urgente. Não adivinhas do que se trata?

--Por mais voltas que dê á imaginação...

--Não vale a pena dar-lhe grandes voltas, porque pode transtornar-se.
Sabes que dia é amanhã?

--É domingo.

--E sabes que ha tourada no Campo Pequeno?

--Como não sou aficionado...

--Não sabias? Pois ficas sabendo agora. Ha tourada, e trabalha o
Fuentes. Quer isto dizer que será uma tarde cheia. Como os typos estão
lá para o norte, a palrar, eu resolvi ir aos touros ámanhã.

--Isso não pode ser! Eu não posso tomar a responsabilidade...

--Tomo-a eu, deixa lá. Em não apparecendo os cabecilhas, a arraia miuda
não abre bico!

--Ahi é que está o engano. Aquella gente não se move por cordelinhos;
pensa pela sua cabeça; tem iniciativa propria, e procede como lhe parece
melhor.

--E tu imaginas que hei de passar n'isto a vida inteira?

--A vida inteira, não; mas por ora tem de ser assim.

--E se eu não quizer que seja assim?

--Se não quizer que seja assim...

--Como será então?

--Então... será peior!




      *      *      *      *      *

    _O teu amor e uma cabana!_


Fôra uma loucura aquelle amor.

Tinham-se encontrado na Figueira, estava ella a banhos, e elle fôra alli
de visita a uns parentes da Bairrada, que não via desde annos. Como se
andassem pelo mundo á procura um do outro, apenas se viram uma manhã, na
Praia, amaram-se doidamente, e foi milagre que não desatassem logo a
tagarelar, tu cá, tu lá, e tomassem banho juntos.

Á noite, no Casino, a indispensavel apresentação, e logo se seguiu um
_pas de quatre_, em que os dois eram eximios. Marchou aquillo tão
depressa, que já eram noivos quando regressaram ao Porto, onde ella
tinha os paes e elle o emprego, um modesto emprego de despachante, que
lhe rendia vinte mil réis por mez.

Todas as noites ia falar-lhe, já recebido como da familia e sempre a
encontrava encostada a uma pequenina mesa quadrada, um livro de versos
na mão esquerda, marcando a pagina com o dedo, e em toda a sua gracil
pessoinha um ar de alheiamento e de sonho, que o fazia estacar á entrada
da sala, n'um extase de devoto.

--Que languidez, Virgem Santa!

Casaram, está bem de ver, e foram padrinhos aquelles parentes da
Bairrada, que elle tinha ido visitar á Figueira, onde ella estava a
banhos. Ninguem a ensinára a trabalhar, e como elle só tinha o seu
ordenado de despachante, uns vinte mil réis por mez, era impossivel
metter creada, de modo que andava tudo desarrumado, a comida era mal
feita, nunca estava prompta a horas, e quando uma rabanada de vento
entrava pela janella, era como redemoinho correndo ao longo d'uma
estrada poeirenta. Mas todas as noites, quando recolhia, farto de cuspir
no café, ia encontral-a, como n'outro tempo, encostada a uma pequenina
mesa quadrada, um livro de versos na mão esquerda, marcando a pagina com
o dedo. E ao vel-a assim descuidada n'um grande ar de alheiamento e de
sonho, toda a sua gracil pessoinha como que envolvida n'uma atmosphera
de languidez quasi morbida, estacava á entrada da sala, como n'outro
tempo, murmurando por entre dentes:

--Que desmazelo, meu Deus!




      *      *      *      *      *

    _Dio del oro, del mundo signor._


Noite de festa.

Tinham-se vendido todos os logares, e ninguem dispensava o seu bilhete
como se fosse um decimo de loteria, com probabilidades conhecidas de
sair n'elle a sorte grande.

--Compra-se uma cadeira!

--Ha quem venda uma geral ou camarote?

Eram vozes clamando no deserto... d'uma multidão compacta, junto ao
_guichet_, todos sabendo que não entrariam, mas ninguem tendo a coragem
de se ir embora.--Quem sabe? Uma familia que se enlutou á ultima hora, e
manda vender o seu camarote; um honrado negociante que precisou de
abalar para o Alemtejo, e manda vender o seu _fauteuil_.

Era noite de festa.

Havia flores por toda a parte; colchas ricas pendiam dos camarotes, em
todas as ordens, de modo que a sala tinha assim, por virtude d'aquella
polychromia bizarra, um aspecto singularmente phantastico, em que se
perdiam os olhos, n'um encanto. Mulheres ricamente vestidas, largamente
decotadas, eram como fructos de carne em papel de seda, e formavam uma
galeria de bustos sem egual, em que tivessem collaborado todos os
esculptores de genio.

Era noite de festa.

Quando se ergueu o panno, sobre as ultimas notas da orchestra, pareceu
que um jogo habil de espelhos transferira ao palco aquellas flôres
magnificas que havia por toda a parte, aquellas colchas ricas que
pendiam dos camarotes, n'uma polychromia bizarra, no meio da qual se
destacavam bustos admiraveis de mulheres, como se fossem outros tantos
peccados irresistiveis, servidos em papel de seda pelo demo tentador.

No segundo acto, quando Ella appareceu, foi como se uma corrente
electrica, mysteriosa e divina, percorresse toda a sala, visto como
todos se levantaram, n'um movimento egual e isochrono, para a mais
amoravel e sincera ovação de que possa haver registo.

Muito fria, muito pallida, as lagrimas gelando-se-lhe a meio das faces
apergaminhadas, um sorriso apagando-se-lhe nos labios resequidos, avança
para agradecer, n'um automatismo quasi de somnambula, e logo recua,
soltando um grito, deixando-se cahir, ao desamparo, n'um _divan_, que
para alli tinham posto.

Estava morta.

No escriptorio, verificando o producto da récita, n'aquella noite
festiva em que havia flores por toda a parte, e, entre colchas d'uma
polychromia bizarra bustos esculturaes de mulheres eram como grandes
fructos de carne servidos em papel de seda, o emprezario commentava:

--Que raio de sorte! Já estavam passados todos os bilhetes para ámanhã!




      *      *      *      *      *

    _Quando o cortejo se dirigia da Egreja para o Palacio uma bomba foi
    atirada d'uma janella, fazendo grandes estragos. Os reis nada
    soffreram._

            (Dos jornaes, em telegramma de Madrid).


Emfim!

Acabavam de ligar-se para sempre, ella radiante de belleza, elle
radiante de felicidade, os dois sonhando mil cousas loucas, n'uma
ebriedade d'amor que os punha fóra do mundo real.

--Querida Eugenia!

--Querido Affonso!

Parecia-lhes pequeno o templo, para conter a sua ventura, e aquella
multidão que os rodeava, fixando-os com muita insistencia, tinha assim
os ares de quem espreita com inveja, e se compraz em ser incommodo. Por
maneira que ao chegarem ao adro, ella radiante de belleza, elle radiante
de mocidade, respiraram com muita força, e teriam caido nos braços um do
outro, ebrios de amor, se um grito de saudação, reboando pelos ares, não
os chamasse á realidade!

Já no trem, por ahi fóra, marchando lentamente, como n'uma procissão, os
ouvidos cerrados a tudo que não fosse o encanto dos seus proprios gestos
intencionaes, elles architectavam mil coisas loucas na sua mente
escandecida, e como que prelibavam o infinito prazer d'uma posse
ardentemente desejada.

N'isto ouve-se uma explosão horrivel, e um grito formidavel de terror
sae de milhares de boccas, n'um unisono perfeito. É um momento de
confusão indescriptivel, e nem se ouvem os gemidos dos que sofrem, nem
se dá pelas convulsões dos que agonisam, porque a attenção dos que não
fugiram concentra-se totalmente n'aquellas duas creanças--ella radiante
de belleza, elle radiante de mocidade, os dois ainda ha pouco sonhando
mil coisas loucas, n'uma ebriedade d'amor, que os punha fóra do mundo real.

Estavam salvos.

A commoção fôra extraordinaria, sendo milagre que um estilhaço de bomba
não tivesse reduzido aquelle idilio esponsalicio a um noivado de
sepulcro--como se não fosse abominavel atirar para o nada uma existencia
que alvorece.

--_Yo te probaré hoy que soy digna de ser tu mujer._

Fôra realmente extraordinaria a commoção, de modo que já no leito, sob a
luz muito baça, muito tenue d'uma lampada ao centro da alcova, tendo
ainda nos ouvidos o estrondo d'uma bomba que rebenta, e como que vendo
alli, no isolamento d'aquelle ninho, creaturas que estremecem nos
paroxismos de uma morte irremediavel, elle que mostrára uma coragem
estoica no meio do perigo, recommendando a todos _calma, mucha calma! No
ha pasado nada_, elle sente-se agora d'uma fraqueza infantil, quasi
covarde, anniquilado como se entrára n'uma lucta com cyclopes. E então
muito calmo, muito resignado, como quem acceita os fados, mordendo-lhe
os beiços que ella estendia n'uma momice cheia de graça:

--_Yo te probaré mañana que soy digno de ser tu marido._

E foi como se na virgindade d'aquelle leito repousassem duas creanças
gemeas.




      *      *      *      *      *

    _O governo resolveu supprimir todas as gratificações por serviços
    extraordinarios._

            (Dos jornaes).


Iam alli implorar a protecção de S. Ex.ª.

--De que se trata então?

--Somos tres chefes de familia, tres honrados servidores do Estado que
vimos...

--Está bem; mas o que desejam?

--Como V. Ex.ª sabe, acabaram as gratificações, e aquelle de nós tres
que mais ganha não chega a ganhar trinta mil réis mensaes, sujeitos a
descontos.

--Perfeitamente; mas os senhores são empregados...

--Saberá V. Ex.ª que da Alfandega.

--Ora é isso mesmo, da Alfandega. Eu não posso augmentar-lhes o
ordenado, e como a verba das gratificações foi supprimida.

--Se V. Ex.ª dá licença...

--Como a verba das gratificações foi supprimida, e não depende de mim
restaural-a...

--Se V. Ex.ª quizesse ter a bondade de se interessar por nós, mesmo sem
nos augmentarem os ordenados e sem restabelecerem as gratificações...

--A accumulação de serviços equivale a uma gratificação...

--Queira V. Ex.ª desculpar, mas tudo se arranjaria facilmente se o sr.
conselheiro quizesse ter a bondade de nos tomar sob a sua protecção...

--É que não vejo maneira...

--O que nós pedimos é muito pouco, e não é preciso tiral-o ao Estado, ou
a quem quer que seja.

--Em summa, o que é que os senhores desejam?

--Nós desejávamos ser nomeados... gatos da Alfandega.

--Gatos da Alfandega?!!...

--É verdade, sr. conselheiro, gatos da Alfandega. Isso daria uns 9$000
réis por mez, a cada um, o que seria uma ajudasinha para a renda da casa.

--Os senhores vieram aqui para se divertirem commigo?

--Ó sr. conselheiro, pelo amor de Deus! Nós viemos aqui implorar a
valiosissima protecção de V. Ex.ª, juramol-o pela bôa saude das nossas
mulheres e dos nossos filhos...

--Gatos da Alfandega! Mas então os senhores perderam o juizo?

--Não, senhor conselheiro; o que nós perdemos foi a gratificação.

--Ou anda tudo doido, ou eu não sei onde tenho a cabeça. Mas o que vem a
ser isso de gatos de Alfandega?

--Saberá V. Ex.ª que havendo milhões de ratos na Alfandega, sem respeito
nenhum pelas mercadorias que alli se acham depositadas, e havendo todos
os dias reclamações por causa dos prejuizos que estes causam, foi creada
a corporação dos _Gatos da Alfandega_, para a sustentação da qual ha uma
verba de proximamente trinta mil réis por mez.

--Está bem; mas se essa verba é para sustentação dos gatos...

--Desculpe V. Ex.ª; mas se esses empregados cumprem rigorosamente o seu
dever, apanhando os ratos, não precisam que os sustentem, porque
arranjam elles proprios os seus sustentos; e se alli estão só para
receberem o ordenado, deixando os ratos em liberdade, não é justo que se
gaste com elles um dinheirão, ao passo que honrados chefes de familia...

--Pois está bem; vou informar-me do caso e prometto-lhes interessar-me
pelos senhores.

--Muito obrigado, sr. conselheiro, muito agradecido a V. Ex.ª

Tinham dito a verdade os honrados chefes de familia, e porque o
conselheiro não era homem que faltasse á sua promessa, foram os tres
nomeados gatos da Alfandega, como poderiam ser nomeados secretarios do
ministro, ou revisores do caminho de ferro.

Os verdadeiros gatos emigraram, e uma commissão de ratos foi
cumprimentar os tres honrados chefes de familia, quando viram as
nomeações no _Diario do Governo_.




      *      *      *      *      *

    _Deve se ao sr. Casimiro José de Lima, director da casa da moeda, o
    monumento a Souza Martins, erecto no Campo de Sant'Anna._

            (Dos jornaes).


Eram congressistas.

Desemboccaram no Campo de Sant'Anna, vindo da Carreira dos Cavallos, e
como se approximassem da estatua, a alguns passos de distancia, pararam
de repente, em geito de quem examina com interesse. Um do grupo, o mais
velho, typo acabado de sabio allemão, genero Topsius, de sobrecasaca e
oculos d'ouro, erguendo ligeiramente o chapéu, n'um cumprimento
respeitoso, em que havia muito de admiração, exclama com grande
convencimento:--_Schön! Schr schön!_ E logo os outros todos, em unisono,
como se fosse um echo alli proximo, possuidos d'aquelle arroubamento
esthetico, que é vulgar nos homens da Allemanha, exclamaram
tambem!--_Schr schön!_ O mais velho, erguendo os oculos d'ouro para a
testa ampla, como a querer illuminar o pensamento, feita uma ligeira
reverencia á estatua immovel explicou:--Ribeiro Sanches... Foi um medico
notavel do seculo dezoito, um sabio do mais alto valor. Formado em
Coimbra, graduado em Salamanca, visitou successivamente os hospitaes de
Londres, Marselha, Toulon, Montpellier e Paris. Estudou com
Boerhaave--todos se descobriram--em Leyder, durante tres annos, e a tal
ponto se impoz á estima e á consideração do Mestre, que d'ahi a pouco
tendo-lhe pedido a imperatriz da Russia a indicação de tres grandes
medicos, que fossem exercer cargo de professor em Moscow, o primeiro
nome que lhe accudiu foi o de Ribeiro Sanches. Medico dos exercitos
imperiaes, fez a campanha da Polonia, em 1735, e ainda n'essa qualidade
andou pelo Paiz dos Tartaros, sobre os quaes fez estudos de
anthropologia, que muito aproveitaram ao sabio francez Buffon--e todos
se descobriram de novo.--Viveu em Paris, com muitas difficuldades,
sempre estudando, sempre cultivando a sciencia, produzindo trabalhos
valiosos sobre economia, historia e medicina.

Formára a sua intelligencia no estudo de Bacon e Descartes, e temperou o
seu caracter pelos conselhos de Montaigne.

Accusado de judaismo, não podia vir a Portugal, e os livros que para cá
mandava eram uma especie de contrabando, que o marquez de Pombal fez
passar como sendo d'um phantastico dr. João Mendes Sachetti.

A Imperatriz Catharina II, da Russia, grata por a haver curado d'uma
doença grave, era ella princeza, estabeleceu-lhe uma mezada sufficiente,
quando elle se viu na capital da França, a braços com a miseria.

E assim pôde viver e publicar o seu _Methodo de estudar a medicina_, e
um tratado de _Conservação da saude_ dos povos, e outros muitos
trabalhos de valia, que lhe marcaram logar distincto entre os sabios do
seu tempo. Um grande sabio! _Ein gross gelehrt! Viel berühmht!_--E todos
em unisono, como se fosse um echo ali perto:--_Viel berühmht!_

Ia a passar uma mulhersinha, typo de mulher que esfrega, e como os visse
embasbacados, approximou-se do grupo:

--É o Sousa Martins, os senhores haviam de conhecer. Quem mandou alli
pôr isto, foi o sr. Casimiro da Casa da Moeda--talvez os senhores tenham
ouvido falar.

Pois não conheciam um, nem tinham ouvido falar do outro, aquellas
cavalgaduras!




      *      *      *      *      *

    _Hontem a policia deitou a mão a um gatuno de onze annos, que roubou
    um pão n'uma padaria da Baixa._

            (Dos jornaes).


Tinha roubado um pão.

A mãe dissera-lhe que fosse pedir esmola, havia muitas horas sem comer,
e elle abalára por essas ruas, descalço e rôto, extendendo a mão a toda
a gente. Entrava nos cafés, e ninguem lhe dava nada; entrava pelas
lojas, descalço e rôto, e os caixeiros enxotavam-n'o como se fosse um
cão. _Dá-me cincoreisinhos, meu senhor?_

Ninguem lhe dava nada, e todos o maltratavam, chegando um policia a
deitar-lhe a unha para o levar para a Correcção. Infatigavel, entrando
agora n'um café, onde os freguezes nem ouviam o seu estribilho--_dá-me
cincoreisinhos, meu senhor?_--entrando além n'uma loja, d'onde os
caixeiros o enxotavam como um cão sem dono, já tinha percorrido a cidade
inteira, extendendo a mão a toda a gente, e toda a gente olhando para
elle com desprezo ou com enfado, e ninguem se compadecendo da sua
miseria. E, comtudo, era nada, que elle pedia a toda a gente que
passava, extendendo a mão suplicante.--_Dá-me cincoreisinhos, meu senhor?_

Cançado, cheio de fome, ahi volta elle a casa, onde a mãe o aguardava,
n'uma afflicção, chumbada ao leito, havia muitas horas sem comer. Uma
senhora muito bem vestida, com brilhantes, carruagem brazonada, quasi
encalhando n'elle á porta d'uma Egreja, estendeu-lhe a mão enluvada, e
deixou cahir na sua mãosita suja, sem olhar para elle, os cincoreisinhos
que elle andava a pedir correndo a cidade inteira, extendendo a mão a
toda a gente que passava, entrando nos cafés, onde os freguezes eram
surdos ao seu pedido, e entrando nas lojas, descalço e rôto, e d'onde os
caixeiros o enxotavam, como um cão vadio.

Talvez não fosse de proposito, mas os cincoreisinhos telintaram nas
pedras da calçada, emquanto a senhora que lh'os dera, muito bem vestida,
genuflectia á porta do templo, e cortava o rosto fresco e moreno com o
signal da cruz.

Foi então que o garoto deu com os olhos n'um cesto de verga, á porta
d'uma padaria, cheio de pão alvo e fresco.

Alli perto estava a mãe, chumbada ao leito, sofrendo horrivelmente,
noites e noites sem dormir, havia muitas horas sem comer. Quasi nem teve
tempo de acommodar o pão debaixo do braço, escondendo-o com uns
frangalhos da jaqueta. O padeiro grita, o garoto foge, a policia
apanha-o, e a multidão horroriza-se deante d'aquelle ladrão de onze
annos, que tinha a mãe alli perto, n'uma pocilga, chumbada ao leito,
soffrendo horrivelmente, noites e noites sem dormir, havia muitas horas
sem comer.

Na esquadra, mettido no segredo, como um facinora, o garoto dá o nome e
a morada; mas o terror nem o deixa desafogar em lagrimas--vejam o
cynismo do malandro!--e a vergonha faz-lhe esconder a cara--admirem a
astucia do patife!

O policia, que foi prevenir a familia, ao outro dia, encontrou extendido
no leito, ainda quente, o cadaver d'uma mulher nova, muito sêcca, muito
mirrada, o ar de quem passou largo tempo chumbada ao leito, ainda
quente, soffrendo horrivelmente, muitas horas sem comer, muitas noites
sem dormir.

Já não lhe puderam dizer que era um ladrão o seu filho, aquelle garoto
descalço e esfrangalhado, que percorrera a cidade inteira, incommodando
toda a gente--_dá-me cincoreisinhos, meu senhor?_




      *      *      *      *      *

    _O rei podia impôr-se por um acto de abnegação e patriotismo,
    acceitando a Republica._

            (D'um jornal republicano).


Era um povosinho pacato, que moirejava nas suas terras, sempre alegre,
sempre satisfeito, sem recordações tristes do passado, sem apprehensões
pelo futuro.

Enlevava-se na contemplação do mar, quando elle era sereno, e como se
esquecesse então, os olhos pregados na sua superficie espelhenta e lisa,
os ladrões aproveitavam-se daquella especie de somno hypnotico para lhe
aligeirarem os bolsos.

Bem se importava elle com isso! Tirava da terra, quasi sem esforço, tudo
quanto lhe era necessario, e ainda lhe ficava muito tempo para se
enlevar como um sabeista, na contemplação dos astros, de dia piscando os
olhos aos raios d'um sol que não queima, de noite como a querer
enchel-os d'um luar que adormenta.

Era feliz.

Os outros invejavam aquella tranquillidade paradisiaca, alguns milhões
de bananas governados consoante a rima, e com um rei côr de laranja.

Succedeu, porém, que um dia, no meio d'aquelle povo pacato que moirejava
nas suas terras, sempre alegre, sempre satisfeito, sem recordações
tristes do passado, sem apprehensões pelo futuro, caiu uma semente de
revolta, que logo germinou e fortificou, avassallando todos os
espiritos. Áquella gente pacifica repugnavam os actos violentos, e só
comprehendia que se derramasse sangue para fazer cabidela, ou então para
evitar congestões, quando assim o entendesse a medicina.

Mas havia o rei...

Foi então que um patriota, inspirado como um propheta antigo, teve uma
ideia genial, um pensamento sublime--convidar o rei a adherir.
Elimina-se o rei e cria-se um cidadão, exclamava com muita eloquencia,
pondo arrepios de commoção na espinha de todos os ouvintes.

S. M. adheriu.

Como todos os bons cidadãos quizeram sacrificar-se na presidencia da
Republica, houve necessidade de não crear essa funcção, e isso se fez
por consenso unanime, cada um não querendo para os outros o que não
poderia haver para si.

Alvitrou-se a anarchia, mas como viesse a reconhecer-se, ao cabo de
longa discussão, que no relogio do tempo ainda não tinha soado essa hora
suprema d'amor e de justiça, tratou-se de eleger um governo, como nas
outras republicas.

Um velho de aspecto venerando, com um saber só de experiencias feito,
propoz que na constituição do governo entrassem elementos novos e aguns
dos antigos homens de governo, já com pratica de negocios publicos.

--Os cidadãos que approvam esta proposta ergam as duas mãos.

Como se visse no ar uma floresta de mãos:

--Approvada por unanimidade.

Logo uma voz se ergue, fazendo-se ouvir em toda a vasta assembléa:

--Eu voto contra. No governo só deve entrar gente nova.

O homem que assim falava protestando com energia, era o cidadão que fôra
rei, o que deu logar a esta observação do presidente.

--Mas o cidadão, quando era monarcha...

--Pois sim, quando era monarcha; mas agora sou contribuinte...




      *      *      *      *      *

    _Parece que S. M. a Rainha não acompanhará El-Rei na sua proxima
    viagem._


--Confessa que te era mais agradavel ir só...

--A falar a verdade...

--Ao menos és franco, e a franqueza não passa por ser qualidade vulgar
na tua nobilissima familia.

--Falas-me da minha familia n'um tom de superioridade e desdem, como se
descendesses d'alguma d'essas divindades soberbas, de que estão cheias
as mythologias antigas. A esse respeito, minha filha, talvez seja melhor
não adeantarmos conversa. Ha um anexim portuguez que resa assim;--_disse
o tacho á certã, tira-te para lá não me tisnes._

--Não conheço o calão dos toureiros...

--Nem eu a giria dos jesuitas.

--Ao menos podias ser delicado com uma senhora.

--Por certo se essa senhora quizesse ser delicada commigo.

--Nunca eu tivesse aqui posto os pés.

--Inteiramente d'accordo. Tinha sido magnifico para os dois.

--Se não fossem os filhos e...

--Bem sei; se não fosse isto de pairar no alto, estar acima dos outros...

--_Je m'en fiche de..._

--Temos calão boulevardiano?

--Se um dia perderes o logar, podes ir para Marrocos: o sultão, supponho
eu, não terá ciumes de ti.

--Nem tu saudades minhas.

--Se te parece!...

--Apezar de todos os pezares, minha filha, tu ainda me podias dar um
prazer enorme, uma satisfação infinita.

--Deixando-te ir em liberdade?

--Não; deixando-me... viuvo.




      *      *      *      *      *

    _No congresso medico do Porto, o dr. Eduardo d'Abreu apresentou um
    velho de 109 annos._

            (Dos jornaes).


--Vou dar a palavra ao illustre congressista, nosso collega, que
apresentará á assembléa o homem mais velho do mundo.


Quando o presidente acabou de pronunciar estas palavras, fez-se na sala,
até então rumorosa, o silencio dos momentos augustos. Um congressista
avançou para junto da mesa da presidencia, acompanhado d'um velhote
rabitezo, de peitilhos bordados, endomingado como para a desobriga. Era
o homem mais velho do mundo, como dissera o presidente. Nascido no
seculo dezoito, atravessára todo o seculo dezenove, e alli estava muito
fresco, bem disposto, nas felizes disposições de acompanhar o seculo
vinte até por ahi adeante sem cansaço de maior. Estavam alli cento e
nove annos, bonita somma feita com parcelas de tres seculos, muito
deseguaes em valor.

Tão bem conservado o velhinho!

Dir-se-ia que adormecera quando ia a entrar na velhice, ao cabo de uma
florente mocidade, e a dormir deixára de fazer annos, o bom velhote. Por
certo aquella alma nunca fôra batida das tormentas, não experimentara
nunca as grandes alegrias nem as grandes contrariedades, porque umas e
outras consomem como o fogo, abbreviam a existencia,--diluindo-a em
risos ou afogando-a em lagrimas.

Tão bem conservado, o velhinho!

Ha rugas na sua face; mas ellas são apenas as dobras avelludadas dos
lagos adormecidos, d'uma paz magestosa e inalteravel.

Os olhares de todos aquelles medicos convergiam para o bom do velho,
muito rabitezo, com os seus peitilhos bordados á moda de 1820--a unica
coisa limpa que resta das grandes aspirações d'aquella epoca, explicou o
congressista que apresentava o phenomeno. Parecia uma evocação, um
phantasma que surgisse da noite dos tempos para contar historias
tragicas. Mas havia tanta candura no seu olhar curioso! tanta alegria
infantil no seu riso mal contido, como se tivesse vergonha de não se
mostrar grave alli, no meio de tantos senhores! Aquella seriedade tinha
o ar de uma meninice robusta e florida.

Tão bem conservado, o velhinho! Parecia vender saude...

Um dos congressistas, clinico de larga nomeada, approximando-se do velhote:

--E de saude, que tal?

--Ó meu senhor, graças a Deus...

--Mas nunca esteve doente?

--Uma vez, ainda era novo, ahi por volta dos setenta annos.

--E tomou muitos remedios?

--Lá quanto a isso... não tomei nenhum. Eu sempre tive muito amor á vida.

Tão bem conservado, o velhinho!...




      *      *      *      *      *

    _Hontem, em conferencia dos delegados, foi resolvido querellar
    d'alguns jornaes._

            (Dos jornaes).


A sessão estava marcada para as onze. O ultimo que entrou, saudando os
dois que já lá estavam, teve esta observação maliciosa:

--A justiça é pontual!...

--E algumas vezes... justa, accrescentaram os collegas.

Cada qual desembaraçou-se do sobretudo, pôz em cima da mesa um masso de
jornaes, e assentou-se.

--Ha que fazer?

--Pela parte que me toca...

O que assim falou, ergueu os oculos para a testa, abriu um dos jornaes
que tinha na sua frente, e leu pausadamente:--_É fóra de duvida que o
nosso Monarcha é dos imperantes mais honestos e mais intelligentes não
só da Europa, mas de todo o mundo._

Pousou o jornal sobre a mesa, deixou cair os oculos para os olhos, e
attentou nos collegas, á espera.

--E depois? O collega com certeza não pretende querellar d'esse
jornalista, com certeza monarchico...

--Engana-se o collega redondamente. Pretendo querellar a passagem do
jornal, que acabo de ler, porque a encontro incursa no artigo...

--Mas isso não tem pés nem cabeça, collega. Quereria então que amanhã se
dissese que este augusto tribunal querellára d'um jornalista por ter
elle escripto que o monarcha é honesto, é intelligente, dos mais
honestos e intelligentes que o sol cobre?...

--É como acaba de dizer.

--Mas isso é uma loucura!...

--Um pouco mais pequena do que lhe parece. Estamos aqui para cumprir a
lei, e a lei, n'este ponto, é clara.

--O que faria então o collega se o jornalista tem escripto que o
monarcha é destituido de intelligencia e honestidade?

--O que faria? Querellava-o com fundamento no artigo...

--Mas é então o caso de ser preso por ter cão...

--Não é nada d'isso. É o caso da lei prevenir as duas hypotheses--a da
calumnia e a da troça.

Concordaram os tres em que eram de troça as palavras incriminadas, e
assim fundamentaram a sua petição de querella. Nunca mais, desde então,
os jornalistas se atreveram a escrever aquillo a serio.




      *      *      *      *      *

    _O sr. Teixeira d'Abreu foi hontem cumprimentado por uma commissão
    de Juizes, que o procurou no seu ministerio._

            (Dos jornaes).


Era uma commissão de juizes da provincia, que vinha apresentar os seus
cumprimentos a s. ex.ª.

Ageitou o laço da gravata, kaiserizou um pouco os bigodes, pousou a mão
direita, levemente espalmada, sobre a pasta de marroquim, deixou cair o
braço esquerdo ao longo do corpo, muito á vontade, e disse ao continuo
que mandasse entrar.

--Vimos apresentar a v. ex.ª as nossas homenagens, felicitando-o pela
justa e merecida distincção que acaba de lhe ser feita.

Muito grave, tendo ouvido aquella pequena fala como se fosse um acto de
vassalagem por parte de rebeldes submettidos, pausadamente como quem
mede as palavras:

--Agradeço as felicitações que me dirigem, e tomo-as como partindo de
toda a magistratura, aqui representada por v. exas.

Ordenou que se sentassem, n'um gesto brando e attencioso, e elle proprio
sentou-se, com muita solemnidade, não fosse desmanchar a _pose_ que
estudára de vespera para actos officiaes.

E explicou:

--Desejo fazer obra util, que vinque a minha passagem pelos conselhos da
corôa. O complexo de medidas que tenciono apresentar, subordinadas umas
ás outras como partes integrantes d'um todo harmonico, constituirá o que
eu chamo _A reforma da bola_.

--A reforma...

--Da bola. Não fazem ideia do que seja? Não admira; trata-se d'uma coisa
inteiramente nova. Já na Universidade iniciei o meu plano reformador,
embora n'outro campo, e com o melhor resultado.

--Se V. ex.ª...

--É simples. Em vez de chamar á lição pela caderneta, chamava pelo saco
das bolas. Numero tal? Era o que dava a sorte. Assim os rapazes,
receando cada qual que saisse a bola do seu numero, estudavam todos a
sebenta. É engenhoso não é verdade?

--Sem duvida. Qualquer que não tivesse o immenso talento de v. ex.ª
consideraria que os rapazes, esperando cada qual que não saisse a bola
do seu numero, nenhum pegaria na sebenta.

--Pois ahi está. A bola, applicada ás coisas da justiça, espero que dará
os melhores resultados. Assim, por exemplo, tratando-se da collocação de
juizes e delegados... A cada comarca corresponde uma bola. Estão a
ver?... Acaba o favoritismo; torna-se impossivel a perseguição ou a
empenhoca.

--É maravilhoso!

--Pois não é?... E ao mesmo tempo é simples. Espero que a minha passagem
pelos conselhos da corôa, curta ou demorada que seja, não resulte
improficua para os sagrados interesses da justiça e dos seus agentes.

Ergueu-se gravemente, e premiu o botão electrico. Logo appareceu o
continuo, que acompanhou até á escada aquella commissão de juizes, que
tinham ido apresentar os seus cumprimentos a s. ex.ª.

Já na Arcada, olhando uns para os outros, como que interrogando-se:

--Com que então, a bola?

--Redonda e de escaravelho, levada as arrecuas até ao gabinete negro.




      *      *      *      *      *

    _O illustre deputado F. fez hontem um grande discurso, muito
    caloroso e muito espontaneo, sendo no final cumprimentado por quasi
    todos os seus collegas._

            (Dos jornaes).


Passou por alli e entrou.

Era um espectaculo novo para elle, uma sessão parlamentar. Vinha a
Lisboa, muitas vezes, estando as Camaras abertas, mas em geral tinha
muito que fazer, e não podia demorar-se por fóra de casa.

O cavallo engorda só com a vista do dono, e elle sabia bem como o seu
emmagrecia, isto é, como lhe corriam mal os negocios quando se ausentava
por certo tempo. Mas uma vez não são vezes e elle poderia fazer á sua
curiosidade o sacrificio das suas commodidades. Em vez de partir no
comboio da tarde, que era rapido, partiria no comboio da noite, muito
ronceiro, parando em todas as estações, e só chegando á sua terra a uma
hora bastante incommoda, de madrugada.

Entrou, e dirigindo-se ao primeiro porteiro que viu, entregou-lhe um
cartão de visita para o deputado do seu circulo, pedindo uma entrada,
para a galeria do presidente. Tinham-lhe dito que era d'alli que melhor
poderia disfructar o espectaculo. S. ex.ª mandou o bilhete de admissão,
e pedia desculpa de não vir, porque estava conversando com o ministro a
respeito d'um melhoramento que tinha pedido lá para o circulo, a ponte
de alvenaria sobre a ribeira, que no inverno, chovendo muito, estorvava
a passagem de carros.

Acabava de ler-se a acta, quando elle se installou no seu logar. Um
deputado já velho, com oculos, mandou para a mesa uns papeis, requerendo
que fossem publicados no _Diario_, e um dos ministros declarou-se
habilitado a responder á interpelação que lhe tinha annunciado, na
vespera, um illustre deputado da maioria.

Pareceu-lhe aquillo pouco interessante, e já quasi se arrependia de ter
alli ido, quando o presidente, não havendo mais quem pedisse a palavra,
declarou que se ia entrar na ordem do dia. E logo a seguir:

--Tem a palavra o sr....

Era o seu deputado que tinha a palavra. Não pensou mais em ir-se embora,
está bem de ver, e como o homem tivesse a palavra forte e o gesto largo,
prendeu-lhe a attenção desde o começo. A Camara estava um pouco
distraida, cada qual cochichando com o seu visinho, mas elle tinha a
impressão que o discurso era bem alinhavado, talvez um pouco vulgar nos
conceitos, mas bastante correcto na forma, e deduzido com certa logica e
habilidade. Quando faltavam apenas cinco minutos para se encerrar a
sessão, o presidente, interrompendo o orador, perguntou-lhe se desejaria
ficar com a palavra reservada.

--Vou concluir, sr. presidente; os cinco minutos de que ainda disponho,
chegam muito bem para o que me falta dizer.

Quando acabou, muitos deputados foram cumprimental-o, alguns
apertando-lhe a mão com muita força e outros abraçando-o com
enternecimento.

Esperou-o ao pé do elevador, e mal o viu estendeu-lhe as duas mãos:

--Muito bem! muito bem!

Elle então explicou, modestamente, que não contava usar da palavra,
n'aquella sessão, e que por isso não se tinha preparado.

--Foi o que acudiu na ocasião; para a outra vez será melhor.

Já fóra do edificio das Côrtes, atravessando o largo, um rapaz de blusa
azul, com uns papeis nas mãos, approximou-se d'elles.

--Que deseja?

--São as provas do discurso; v. ex.ª manda-as á typographia, ou quer que
vá buscal-as?




      *      *      *      *      *

    _A continuarem as coisas assim, aos republicanos bastará um pouco de
    audacia para fazerem a Republica._

            (Dos jornaes monarchicos).


Era um pego largo, pouco fundo, com moitas de juncos pelas barreiras que
se esboroavam a cada instante. De cada vez que caia um pequeno torrão,
acudiam do fundo peixes em cardume, alguns doirados, outros de prata.
Andavam á roda do pego uns homens graves, sem instrumentos de pesca,
varando os peixes com olhares de fogo--olhares de guloso ou de avaro.

Bem se importavam os peixes que elles os olhassem assim, com uma
insolencia quasi dolorosa, se lá da camada funda em que andavam
apercebiam-se do minimo gesto que elles fizessem, estendendo a mão, e
logo mergulhavam mais, pondo-se inteiramente a salvo.

Alli perto, debaixo d'uma arvore frondosa, andavam creanças a brincar.

Como as chamassem, n'um prompto, correram para junto daquelles homens
graves que andavam á roda do pego, devorando com os olhos aquelles
peixes de oiro e prata, que se viam lá em baixo, na transparencia da
agua, e de quando em quando vindo á superficie, quando das barreiras
caia um pequeno torrão, que os atraía em vez de os espantar.

--Ganha um vintem cada um, se atirarem para o pego muita poeira e muita
lama.

Os pequenos olharam uns para os outros, como que interrogando-se, e logo
desataram a correr, por alli fóra, rindo ás gargalhadas, deixando
estupefactos aquelles homens graves que estavam havia muito namorando os
peixes, varando-os com olhares de fogo--olhares de guloso ou de avaro.

Já a distancia, para além da arvore debaixo da qual ha pouco brincavam,
estacaram todos ao mesmo tempo, como se obedecessem a uma voz de
commando. O mais ladino, apontando na direcção do pego, com um grande ar
de superioridade desdenhosa:

--Queriam pescar nas aguas turvas, os gajos...

E todos riram á gargalhada.




      *      *      *      *      *

    _Toda tu és formosa, amiga minha, e em ti não ha mancha._

            (Cantico dos Canticos).


Que os seus labios toquem os meus labios, dando-me o osculo da sua
bocca, e as minhas mãos toquem os seus peitos, fragrantes como os
balsamos mais preciosos...

Bem me importa que ella seja trigueira, se foi o sol que lhe mudou a côr
beijando-a doidamente n'um dia em que ella andava pelas encostas,
apascentando os gados, esbelta como a açucena...

Hei de fundir os meus desejos loucos no fogo dos seus olhos negros, para
afogar n'uma gargalheira d'ouro o seu pescoço de rola.

Ella é a flor do campo, o lirio immaculado dos valles, olorosa como o
nardo, rescendendo como um ramalhete de açafrão que alguem tivesse
collocado entre as suas pomas virgens, appetitosas como um cacho de
Chypre, de bagos humidos e frescos.

Não a acordem no seu thalamo de flores, que ella assim é linda como a
Sulamita, cujo coração vela emquanto ella dorme, e na volupia do seu
sonho, perfumado de todas as essencias do Libano, percebe a voz do seu
amado, que lhe bate á porta, a escorrer-lhe do cabello em anneis todo o
orvalho da noite.

Os seus labios são como uma fita de escarlate, mal cobrindo os seus
dentes de marfim, e as maçãs do seu rosto, como romã partida, accendem
fome de beijos nos proprios cedros do Libano.

Que airosos são os seus passos, e que harmonioso é o seu talhe,
similhante ás palmeiras do deserto, em torno das quaes esvoaçam pombas
nitentes como frocos de espuma, que o vento erguesse do mar quando as
ondas saltam como cabritos do monte, procurando as folhas verdes!

Não lhe perturbeis o somno, linda como é adormecida, o leito em que
repousa tendo o olor de um canteiro de plantas aromaticas, onde floresce
o nardo e o açafrão, o cinamomo e a mirrha.

Bem me importa que ella seja trigueira, se foi o sol que lhe queimou as
faces, beijando-a doidamente, n'um dia em que a apanhou no campo,
esbelta como as açucenas...




      *      *      *      *      *

    _Ci git Piron, qui fut vien!..._


Accumulava com o emprego burocratico... de não fazer nada, o encargo
social... de dizer mal de todos e de tudo. Assim o tempo não lhe chegava
para ir aqui e além, apparecendo em toda a parte, informando-se da
ultima novidade, e commentando o ultimo escandalo. Estava convencido de
que nascera com immensas aptidões, um enorme talento de escriptor, um
profundo genio d'artista, e que tudo isso lhe fôra roubado, ainda no
berço, uma noite, estava elle a dormir e a sonhar--um lindo sonho côr de
rosa, que punha estremecimentos rithmicos nas suas carninhas de leite.
Teria sido um philosopho como Littré, um esculptor como Miguel Angelo,
um historiador como Mommsen, um critico como Taine, um poeta como Victor
Hugo, um pintor como Rubens, um romancista como Balzac, se lhe não
tivessem roubado em pequeno as immensas aptidões com que o dotára a
Natureza.

Quando se punha a escrever, emperrava-lhe a penna ao cabo de poucas
linhas, e não havia maneira, por mais que torturasse os miolos, de
lançar ao papel uma ideia. Quando se punha a fazer pintura,
escorregava-lhe o pincel borrando a lona, e succedia então que tendo
feito o desenho para uma rosa, lhe saia inevitavelmente uma couve-flôr.
Uma unica vez conseguiu levar a cabo uma esculptura; mas succedeu que
tendo modelado no barro um cupidinho alado, quando o passou ao gesso se
encontrou com um kanguru. Vinham-lhe então raivas tremendas, um odio
enorme aos que tinham um nome, aos que faziam livros ou faziam estatuas,
affirmando de qualquer forma uma competencia superior--o talento, que
não é commum, ou o genio que ainda é mais raro. Era a impotencia gerando
a inveja; era a inveja transmudando-se em odio.

Um dia morreu e, como não tivesse amigos, quasi ninguem o acompanhou ao
cemiterio. Quando iam a descel-o á cova na sua mortalha de pobre, um
bohemio que alli chegou, informando-se de quem era, disse:

--Deviam fazer-lhe a cova redonda... A ultima morada d'um nulo, deve ter
a fórma d'um zero.




      *      *      *      *      *

    _S. M. tem recebido milhares de cartas, bilhetes e telegrammas,
    felicitando-o pelo mallogro do projectado movimento revolucionario._

            (Dos jornaes).


Estendeu o braço e premiu o botão electrico, que ficava um pouco ao lado
da secretaria.

--Pareceu-me ouvir chamar...

--Chamei, sim. Vieram cartas, bilhetes, telegrammas, não é verdade?

--E todos elles...

--Todos elles dizem a mesma coisa. Até parece que foram expedidos pela
mesma pessoa ou então...

--Ou então foram redigidos segundo uma formula combinada, não é isso?

--Exactamente, segundo uma formula combinada.

--E já os colleccionaste, conforme te disse?

--De certo. Á medida que chegavam ia...

--Está bem. Traze aquelles que sabes e mette-os além, n'aquella caixa.

--N'aquella caixa?

--Sim, n'aquella caixa. Vou lel-os de monoculo.


Eram algumas duzias de telegrammas, vindos d'aqui e d'além, uns do norte
outros do sul, todos com muitas felicitações, muitos protestos de
respeito, de estima e dedicação. Parecia, na verdade, que tinham sido
redigidos segundo uma formula combinada, tão eguaes eram os seus dizeres.


--Prompto, já lá estão.

--Olha, põe-lhes em cima aquelle folheteco que está além, n'aquelle
_étagère_, de capa verde...

--Mas é a Carta...

--Pois já se vê que é. Anda, põe-a lá, e raspa-te.


D'ahi por um quarto d'hora, pouco mais ou menos, sentado á secretaria,
na descuidosa negligencia d'um nababo feliz, a mordicar um charuto
fortemente aromatico, estendeu o braço e premiu o botão electrico.

--Não sei se é a mim que...

--É com o que está de serviço ao bispote.

--Então sou eu.

--Despeja aquella caixa.




      *      *      *      *      *

    _A alma das creanças que morrem sem baptismo não entra no céo._

            (Crendices populares).


No dia seguinte era o baptizado.

Havia mais d'uma hora que estava a devoral-o com os olhos, debruçada
sobre a canastrinha de verga em que elle dormia, envolto em rendas,
muito harmonioso na minusculidade das suas formas--como se fosse uma
esculpturazinha de Donatello, copiada de frei Angelico, em um vago
presentimento da Renascença.

Ella propria o enfaixaria, subtilizando os dedos leves, ao calçar-lhe os
sapatinhos de seda, não fosse magoar-lhe as carninhas tenras, d'uma
rijeza de fructa verde e sadia. Não iria com elle á Egreja, fraca ainda
como se sentia; mas já recommendára á parteira que o não entregasse a
ninguem, nem mesmo ao padre, receosa de que mãos pesadas tomassem
aquelle fardozinho ligeiro, que era a melhor fibra do seu coração,
animada do mais puro effluvio da sua alma. Sem saber como, entrou a
philosophar sobre o baptizado, o santo sacramento do baptismo como
ensinam os livros sagrados.

Seria então um peccador, o seu filhinho.

Quantas creanças por esse mundo além, morrem sem baptismo, quasi ao
nascer, pequeninos botões de rosa, que não chegam a abrir, porque a
aragem soprou mais forte e os lançou por terra!... O espirito d'estes
anjinhos irá então soffrer as torturas do purgatorio, espiando uma culpa
que não tinham, purificando-se de um mal que não fizeram?

Se o seu filho morresse perderia a crença em Deus, e se pudesse
acreditar que a alma das creanças, mortas antes de baptizadas não
ascende directa e immediatamente á vista do Altissimo, radiosa como um
olhar da Virgem Mãe, negaria a justiça divina, muito peor que a dos
homens...

Mas então o santo sacramento do baptismo nada mais será que uma mentira?...

... Envolto em rendas, a dormir na sua canastrinha, o petiz estremeceu,
e ella ficou suspensa na corrente dos seus pensamentos, enlevada na
contemplação d'aquella esculptura minuscula, de formas harmoniosas, que
dir-se-ia modelada por Donatello, a copiar Frei Angelico, n'um vago
presentimento da Renascença.

No dia seguinte lá foi o petiz a baptizar.




      *      *      *      *      *

    _Um rapaz da Beira, allegando que o pae é pobre, furou a greve, pelo
    que foi espancado á porta ferrea._

            (Dos jornaes).


Nunca fôra á escola.

Os filhos da gente pobre não teem o direito de ser creanças, e os paes
d'elle eram pobresinhos. Aos sete annos já era um valor, em linguagem de
economistas. Fazia dó ver o garotito queimando os musculos tenrinhos
n'um trabalho com que não podia. Mas os paes d'elle eram tão pobres!...

Quando entrou nas sortes, já era orphão de mãe, e como tirasse um numero
alto, o mais alto que havia na urna, livrou-se de ir servir o rei,
deixando o seu velhote quasi cego e inteiramente tropego a viver da
caridade publica. Por aquelles sitios não havia trabalhador como elle,
sempre a lidar com a terra, de semana trabalhando para os outros, nos
domingos trabalhando para si. Não bebia nem fumava, todos os seus ganhos
eram para sustentar a casa, onde não faltava nada, a não ser a alegria.
Como não ha-de ser triste o lar onde não explude um riso de mulher, onde
não ha petizes que ponham tudo fóra dos seus logares, n'uma adoravel
desenvoltura... Casou, e pareceu-lhe que tinha ido buscar á Egreja mais
força, mais energia, mais saude. Quando lhe nasceu o primeiro filho, que
foi tambem o ultimo, já o pae tinha acabado de morrer, pobre velho cego
e tropego, que um delgado fio prendia á vida, desde que ficára viuvo.

--Este não ha-de ser para ahi um animal como o pae, dizia apontando o
filho.

Aos seis annos mandou-o para a escola, e como o rapaz fosse intelligente
e applicado, com muita facilidade aprendeu a ler, excedendo todos os
seus condiscipulos. Ficou distincto na instrucção primaria, e como fosse
notavel a sua queda para os estudos, matriculou-se no lyceu. Vencidos os
preparatorios lá foi o pae leval-o a Coimbra, inchado como a rã da
fabula, já a remirar-se no seu doutor.

--Evite as occasiões; mas quando se encontrar n'ellas, não faça má figura.

Foi esta a unica recommendação que lhe fez, de volta á sua aldeia,
tendo-o installado na casa d'um conhecido com ordem de lhe abonarem o
que fosse preciso.

Outro dia á saida da missa, no adro da Egreja, falou-se de coisas graves
em Coimbra. Vinha nos papeis...

--Que foi?

Um dos que estavam no grupo, explicou:

--Houve lá o diabo. Sete estudantes foram expulsos, e os outros, por
camaradagem, declararam-se em greve. Mas alguns, diz o jornal,
abandonaram os companheiros e foram ás aulas. O seu rapaz...

--O meu rapaz não foi ás aulas com certeza.

Tres dias depois, como o governo mandasse fechar as escolas,
appareceu-lhe o rapaz em casa, sem ter avisado como era costume.

--Ouve lá, quantos romperam a greve?

--Poucos, talvez uns quatro ou cinco.

--Mas tu...

--Considerei os immensos sacrificios que tem feito para me dar uma
posição, e para lhe poupar...

--Sim, para me poupares alguns dias de trabalho honrado, não achaste
nada melhor que praticar a má acção de abandonar os collegas, victimas
da injustiça.


Nunca o tinham mandado á escola, mas abençoava agora a sua ignorancia,
severo nos seus principios d'honra, intransigente na sua lealdade de
camponio para com os seus irmãos da gleba, crendo na simplicidade do seu
espirito que o saber deforma o caracter.




      *      *      *      *      *

    _Deus fez as almas aos pares._

            (Da sabedoria das nações).


Tinham-se encontrado alli no ponto onde se bifurca a estrada.

O sol descahia ao longe, por traz dos montes, n'um esbraseamento de fogo
amortecido, e na charneca immensa havia tanta paz e doçura, como n'uma
cathedral augusta a horas mortas da noite.

Cançados, cheios de pó, via-se bem que tinham feito uma longa jornada
por caminhos difficeis, rasgando o fato e as carnes nas silvas e pitas
dos vallados, e magoando os pés descalços nas veredas e atalhos invios.

O sol descahia ao longe, por traz dos montes, e não se avistava um casal
na extensão quasi infinita da charneca, silenciosa como uma cathedral
augusta a horas mortas da noite.

Dir-se-ia que se procuravam sem nunca se terem visto, o acaso tendo-os
reunido alli, no ponto onde se bifurca a estrada, cançados, cheios de
pó, o fato rasgado, e as carnes feridas, como se tivessem atravessado um
bosque selvagem, sob a ameaça d'um perigo. Pois que a sorte os reunia...

--Seria bom ficar aqui, ficando ambos, torturada como venho de muito
longe, sem um braço amigo a que me encoste, sem um coração amigo que por
mim palpite!...

--Juntos faremos o resto do caminho, querendo-nos muito, amando-nos
muito, cada qual rivalizando em dar ao outro a maior porção de sonho, a
maior somma de ventura!...

Por sobre a charneca immensa pairava uma paz bemdita, e a lua muito
pallida, como se fora um pingo de leite, deixára cahir uma luz frouxa e
baça--tal uma lampada mortiça no silencio d'uma cathedral augusta.


Era dia de finados.

Desde que a mulher lhe morrera, havia tres mezes, nem um só dia passava
sem que elle fosse ao cemiterio, rezar sobre a sua sepultura,
offertar-lhe flores orvalhadas de lagrimas.

Tinham-se amado tanto!

Por certo não se morre de felicidade, visto que elle não tinha morrido
no dia em que a recebera sua esposa legitima á face da santa madre
egreja, e tambem não se morre de dôr, visto elle não ter morrido no dia
em que lhe cerrou os olhos, colando-lhe os olhos ás palpebras, n'um
derradeiro beijo.

Era dia de finados, e como não quizesse dar em espectaculo a sua dôr, o
cemiterio cheio de visitantes, deixou que toda a gente saisse, já quasi
ao pôr do sol, para elle então cumprir a dolorosa missão que se impuzera
de ir todos os dias retalhar o coração, ajoelhado sobre a pedra que
cobria metade da sua alma, que era toda a sua felicidade.

Ajoelhou, chorou, rezou e quando já tinha os olhos secos de muito haver
chorado, e já não tinha o coração dorido de tanto que a dôr o tinha
feito soffrer, espalhando pela sepultura o seu braçado de flores, as
mãos postas, o chapeu debaixo do braço, os olhos erguidos ao alto,
anniquilado como se caira sobre elle a maldição de Deus, dirigiu-se para
a porta do cemiterio.

A poucos passos andados, cruza com elle um rapaz alto, vestido de negro,
com um grande ramo de flores na mão.

Parou, e sem quasi se aperceber da sua curiosidade, poz-se a seguil-o
com os olhos. O outro foi seguindo, o andar estugado, caminhando a
direito sem hesitar. Como elle fizera havia instantes, sobre a mesma
sepultura, ajoelhou, chorou, rezou e quando já não tinha mais lagrimas
para chorar, automaticamente, como se na pedra da sepultura tivesse
deixado colada a alma, dirigiu-se para a porta do cemiterio.

--Devia tel-a amado muito, para soffrer assim!

--Se amei! Daria a vida para a resuscitar, ou para ir apodrecer ao lado
d'ella, debaixo da mesma pedra.

--Era então sua mulher!..

--Era simplesmente minha amante, porque tivera a infelicidade de casar
antes de nos conhecermos.


Havia tres mezes que a mulher morrera, que nem um só dia passava sem que
elle fosse rezar sobre a sua sepultura, offertando-lhe flôres orvalhadas
de lagrimas.




      *      *      *      *      *

    _Não ha bella sem senão._


Ás vezes, quando a beijava, sentia-lhe as faces quentes dos beijos que
outro lhe dera. Parecia-lhe então absurdo, quasi inverosimil que a
Natureza fizesse tão linda uma creatura tão perfida.--Era como se alguem
mettesse lama das ruas n'uma urna de alabastro.

Tão linda!

Punha-se então a fixal-a muito, muito--como se, debruçado sobre um
abysmo, quizesse sondar um mysterio. Pareciam feitos de treva os seus
olhos luminosos! Brincava um sorriso leve nos seus labios sensuaes, em
que havia o perfume intenso das violetas e o sabor casto das rosas.

Tão linda!

Não se acredita que haja vulcões na lua, serena e pallida, ás vezes
escondendo-se por traz das nuvens, como se fosse uma mulher nua que
percebesse no espaço olhos brejeiros a fital-a.

Tão linda!

Manchava-lhe o pescoço um fio d'ouro muito delgado suspendendo um
Christo de marfim perfeito como se o fizera Donatello, vago e poetico
como se o desenhára Frei Angelico.

Tão linda!

Mas parecia-lhe, quando a beijava, que ella tinha as faces quentes dos
beijos que outro lhe dera.--As plantas venenosas nunca deviam ser
bellas, attrahindo para matar--nem as mulheres bellas deviam ser
perfidas, como se um tigre habitasse no calice branco d'um lirio, ou uma
cobra se escondesse entre as folhas d'uma rosa!

Tão linda!




      *      *      *      *      *

    _Souvent femme varie_
    _Bien fou qui s'y fie..._


--Tontinho!

--Imaginas, então, que eu poderia viver sem ti, privada dos teus beijos,
sem a loucura das tuas caricias! Arranca a planta pela raiz, e diz-lhe
depois que floresça e fructifique, que erga os braços onde não circula a
seiva, offerecendo aos reverberos d'um sol quente e luminoso as suas
folhas mirradas, d'um amarello chlorotico, que precede a morte decisiva...

--Tontinho!

--Já me afizera ás fatalidades do meu destino, e habituada a olhar nas
trevas, a cerração da minha noite parecia-me ás vezes que tinha vagos
lampejos d'aurora, as incertas claridades d'um crepusculo. Acreditei nas
tuas palavras, e logo senti quente o sangue que se me gelava nas veias,
e o coração inquieto, na desenvoltura d'um passaro que apanha a gaiola
aberta, pulsar com força desusada, no alvoroço d'uma alegria doida.

--Tontinho!

--Se te fosses, havias de levar-me comtigo, ou havias de matar-me
primeiro, desembaraçando-me d'uma vida inutil, tragica na sua dôr
recalcada, e ao mesmo tempo burlesca na sua dedicação humilde, nem
espirrando como a lama quando a pisam na rua.

--Tontinho!

Dentro do caramanchão, ao fundo do jardim, a luz branca da lua era baça,
como a flor da magnolia, e discreta como uma tia velha, ou uma _bonne_
suissa. Mal se ouvia o ramalhar das folhas, como um cicio brando e
perfumado, quando a brisa passava, na leveza imperceptivel d'uma
borboleta branca, que fosse a alma errante d'uma creancinha tisica.

Colleante, os braços nús, humedecendo os labios sêccos da febre em que
toda ella ardia, mergulhou nos seus olhos castanhos os seus grandes
olhos negros, e foi como se aquellas almas se fundissem, enlaçados
aquelles corpos no contacto mais affectuoso e mais intimo. Não teriam
ouvido o ramalhar das folhas, ainda que por alli tivesse passado algum
cyclone devastador, tudo arrasando no seu caminho...

Tontinhos!


Mezes volvidos, tendo regressado sem se fazer annunciar, mal saccudido o
pó da viagem, sentiu necessidade de ir reviver todas as venturas
passadas no logar onde as fruira.

Era uma noite de luar escasso, e tão froixamente passava a brisa, que as
folhas não boliam nas arvores, e uma borboleta, que alli abrisse as
azas, faria um grande ruido. Approximou-se do caramanchão, pé ante pé,
como se tivesse medo que acordassem todos aquelles vegetaes adormecidos,
e entrassem a gritar por soccorro, tomando-o por um ladrão ou um assassino.

Lá dentro no caramanchão, a luz da lua era baça como a flor da magnolia,
e discreta como uma velha tia, ou uma _bonne_ suissa. Pareceu-lhe que
alguem falava, muito perto d'alli, e como se approximasse mais e mais,
cautelosamente, quasi sem pisar o chão, não fosse denuncial-o o ruido
d'alguma folha sêcca, subitamente, como se fossem gotas de chumbo
fundente que lhe instillassem nos ouvidos:

--Imaginas então que eu poderia viver sem ti, privada dos teus beijos,
sem a loucura das tuas caricias! Se te fosses, havias de levar-me
comtigo, ou havias de matar-me primeiro, desembaraçando-me d'uma vida
inutil.

--Tontinho!


Quando saiu, a correr como um ladrão perseguido, ou como um doido que se
escapa, nem pensou no escandalo que causaria a sua presença alli já
noite velha, se o jardineiro o visse. E era tão grande a sua
perturbação, quasi a raiar pela loucura, que parou junto á porta, deante
d'um molho de cactos, a insultal-os, parecendo-lhe que eram creaturas
maldosas, chasqueando do seu ludibrio, em grandes risadas vermelhas.

Coitadinho!




      *      *      *      *      *

    _Os milagres não se discutem--ou se negam ou se acceitam._


Chegou á porta da Egreja no momento preciso em que o sacristão, com o
chapeo debaixo do braço, se preparava para a fechar.

Levava na mão uma almotolia d'azeite, obra d'uma canada, e explicou que
fizera aquella promessa á senhora Santa Luzia, da sua particular
devoção, no anno passado, quando estivera mal dos olhos. Deixára um
homem fazendo a sua obrigação, pagando-lhe meio dia, e, como a jornada
era comprida, não pudera chegar mais cedo. Seria um grande transtorno
ter de voltar, e só muito tarde poderia fazel-o, porque o patrão já lhe
dissera que iria para as herdades do Sado, e era natural que por lá se
conservasse até ao fim da temporada. De resto, poucos minutos lhe
chegavam para cumprir a sua promessa, e como ha viver e morrer, não
queria ser chamado á presença do Senhor sem se pôr em contas direitas
com os santinhos. Ainda no domingo passado tinha ido levar um alqueire
de trigo a Santo Antonio; por causa de um atalho de cabras que se tinha
sumido, e que elle receava que fosse parar á bocca dos lobos. Felizmente
que nem só uma cabeça se perdera, e isso fôra sem duvida um milagre do
santo, que os lobos, na charneca onde andam, são tantos como as mães.

Tanta piedade commoveu o sacristão, aliás d'uma crença muito precaria,
como quasi toda a gente que vive muito no gremio da Egreja. Dentro em
nada era sol posto, e elle tinha de ir á villa comprar mantimentos e dar
informações da mulher, havia duas semanas de cama. Disse-lhe que fosse
rezar as suas orações no altar da Santa, e que despejasse a almotolia no
potezinho de lata, com tampa de madeira, que estava na sacristia, logo á
entrada, lado direito, e que servia só para recolher o azeite das
promessas, geralmente improprio para as comidas. Que em saindo fechasse
bem a porta, e entregasse a chave á rapariguinha que lá tinha em casa,
para acompanhar a doente, quando elle precisava sair.

No dia seguinte, pela manhã, quando foi preparar a egreja para a missa
do domingo, notou que a Senhora Santa Luzia não tinha o cordão e os
brincos que lhe tinha offerecido um brasileiro, tambem doente dos
olhos--o cordão por ella o ter livrado do mal, e os brincos por o ter
livrado dos especialistas.

--Foi aquelle grandissimo ladrão!

Posta a policia em campo, d'ahi a pouco estava preso o indigitado
gatuno, que o sacristão reconheceu mal o viu.

Não negou estar na posse dos objectos que se dizia terem sido roubados,
mas jurou pela salvação da sua alma que tal roubo não commettêra. E que
só falaria na presença do sr. prior, que era um homem de muita
santidade, e d'uma grande sabedoria. Sem saber do que se tratava,
acompanhado do official de diligencias, foi o prior a casa do juiz.
Então o homemzinho explicou:--A Senhora, mal eu acabei as minhas rezas,
entrou a olhar-me com muita compaixão. Contei-lhe todas as miserias da
minha vida, e disse-lhe como aquelle azeite que alli levava para a sua
lampada, fôra tirado á bocca dos meus filhos. Quando acabei, subi os
tres degraus do altar para lhe beijar a barra do vestido. Então a
Senhora, tirando o cordão que tinha ao pescoço, e os brincos que tinha
ás orelhas, entregou-m'os com as suas bemditas mãos, dizendo que a ella
não lhe faziam falta aquellas coisas, e que eu podia, com o dinheiro que
ellas me rendessem, comprar o pão e o fato para os meus filhos.
Observei-lhe que poderiam tomar-me por ladrão, vendo-me na posse de taes
objectos, e isso seria a minha desgraça e a minha vergonha. Vae então a
Senhora respondeu-me:

--Se duvidarem da tua innocencia, invoca a autoridade do prior. Elle é
um crente sincero, e quando toda a gente negasse o milagre, elle o
affirmaria como possivel.

Na verdade o prior affirmou a possibilidade do milagre, e como não fosse
possivel demonstrar que elle não se realizára, foi mandado o homem em
paz, com os brincos e o cordão.

Dizia então o sacrista, vendo partir o penitente:

--Grandissimo ladrão!

E olhando compassivamente o prior, n'um murmurio, por entre os dentes:

--Reverendissimo burro!




      *      *      *      *      *

    _Saudade! gôsto amargo de infelizes..._

            (Garrett).


--Fizeste bem em vir...

Cançou de dizer estas palavras, e espalmando a mão no peito, ainda não
havia muito opulento e agora mirrado, absorveu o ar com muita força, a
bocca largamente aberta, como se lhe parára o coração no supremo esforço
de fazer girar mais uma onda, talvez a ultima, de sangue arterializado.

--Se soubesses como eu soffro... Brancos e delgados, muito delgados e
muito brancos, os seus labios eram duas folhas sêccas, muito ricas de
nervuras, frias como a neve dos polos. Eram botões de fogo, n'outro
tempo, os seus beijos, que só por milagre não queimavam.

--Havias de querer-me muito, se soubesses como eu soffro...

Via-se bem que soffria immenso, a febre a queimar-lhe os pulmões, um
suor frio e viscoso a babar-lhe a pelle, e um torniquete de ferro a
apertar-lhe o tronco, inexoravelmente, como n'um carcere da Inquisição.

--Havias de querer-me muito se soubesses como eu soffro; mas, havias de
querer-me ainda mais, se soubesses como eu te amo...

Na magreza do seu rosto, d'uma pallidez cadaverica, os seus grandes
olhos negros, muito encovados, guardavam tudo o que lhe restava de vida,
um sopro apenas de vida, que era um bafejo da morte. Parecia-me ás
vezes, quando se fechavam, que não tornariam a abrir-se, e punha-me
então a espreitar, na translucidez das suas palpebras, o momento preciso
em que se apagassem.

--Custa tanto morrer, sabes?...

Sentou-se no leito, a muito custo, e levando as mãos á cabeça, sem dizer
nada, poz-se a desmanchar o cabello. Um ou outro fio de prata, muito
raro, manchava as suas tranças d'ebano, que lhe desciam quasi aos
calcanhares quando as deixava cahir pelas costas.

--Vê como se envelhece depressa...

Fez dois mólhos do cabello, e tomando um em cada mão, emmoldurou com
elles o rosto, muito magro, d'uma pallidez cadaverica.

--Lembras-te?...

Pelos seus labios brancos e delgados, muito delgados e muito brancos,
perpassou um sorriso leve de creança adormecida, e nos seus olhos
negros, muito encovados, brilhou mais intensa aquella lucilação, que era
tudo o que lhe restava de vida--um sopro apenas de vida, que era um
bafejo da morte...

--Doidos que nós eramos!..

Revivi n'um minuto todo o poema do nosso amor, as loucuras d'um amor
prohibido, a que não tinha faltado a dôr cruciante das paixões extremas,
para dar ao goso uma intensidade quasi infinita. Instinctivamente, como
n'outro tempo, collei os meus labios aos seus, e nem percebi que estavam
gelados, folhas sêccas muito ricas de nervuras, frias como a neve dos
polos.

Durou o sonho toda a eternidade d'um segundo, talvez menos ainda. Mal
acordei, attentando na magreza do seu rosto, d'uma pallidez cadaverica;
vendo fechados os seus grandes olhos negros, já sem brilho na
translucidez das palpebras enrugadas, tive a impressão de me encontrar
dentro d'um jazigo, para violar uma morta.






End of the Project Gutenberg EBook of Ao de Leve, by Manuel de Brito Camacho

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electronic work or group of works on different terms than are set
forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

1.F.1.  Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection.  Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or
corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual
property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
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1.F.2.  LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right
of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all
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LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
PROVIDED IN PARAGRAPH 1.F.3.  YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
DAMAGE.

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written explanation to the person you received the work from.  If you
received the work on a physical medium, you must return the medium with
your written explanation.  The person or entity that provided you with
the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a
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opportunities to fix the problem.

1.F.4.  Except for the limited right of replacement or refund set forth
in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.

1.F.5.  Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
the applicable state law.  The invalidity or unenforceability of any
provision of this agreement shall not void the remaining provisions.

1.F.6.  INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
https://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at https://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit https://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including including checks, online payments and credit card
donations.  To donate, please visit: https://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     https://www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
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