Vamiré: Romance dos tempos primitivos

By aîné J.-H. Rosny

The Project Gutenberg EBook of Vamiré, by J. H. Rosny

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org


Title: Vamiré
       Romance dos tempos primitivos

Author: J. H. Rosny

Translator: Cândido de Figueiredo

Release Date: June 24, 2009 [EBook #29213]

Language: Portuguese


*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK VAMIRÉ ***




Produced by M. Silva





      Notas de transcrição:

      Este texto é uma transcrição do original de 1905, tendo-se
      actualizado a grafia para a variante europeia da língua
      portuguesa (pré-acordo ortográfico de 1990).

      Foram corrigidos alguns erros tipográficos evidentes.




                                  VAMIRÉ

                        ROMANCE DOS TEMPOS PRIMITIVOS

                          Traduzido de J. H. Rosny

                                    POR

                           CÂNDIDO DE FIGUEIREDO




                                  LISBOA
                             LIVRARIA EDITORA
                           VIÚVA TAVARES CARDOSO
                           5, Largo do Camões, 6
                                   1905



                                  VAMIRÉ

                        ROMANCE DOS TEMPOS PRIMITIVOS




              Porto--TIP. DE A. J. DA SILVA TEIXEIRA, SUCESSORA.
                          Rua da Cancela Velha, 70





                                  VAMIRÉ

                        ROMANCE DOS TEMPOS PRIMITIVOS

                          Traduzido de J. H. Rosny

                                    POR

                           CÂNDIDO DE FIGUEIREDO




                                  LISBOA
                             LIVRARIA EDITORA
                           VIÚVA TAVARES CARDOSO
                           5, Largo do Camões, 6
                                   1905




PALAVRAS DO TRADUTOR


Há dez ou doze anos, li numa Revista estrangeira uma extraordinária
narrativa romântica, que o seu autor, o sr. J. H. Rosny, intitulava
_Vamiré_.

Referia-se a narrativa aos tempos primitivos da humanidade, e atestava
tão raros predicados de artista e tão vasto conhecimento da pré-história
natural, que senti a tentação de a verter para a nossa língua.

Não obstante a dificuldade de uma versão exacta do romance, procurei
remover ou atenuar essa dificuldade, e estampei alguns capítulos na
imprensa periódica desse tempo, verificando que o conceito de
apreciadores competentes autorizava o conceito que a obra me inspirava.

Decorreram alguns anos e, relendo o meu desambicioso trabalho, ainda
entendi que valia a pena reduzi-lo a livro, não pela tradução em si, mas
pelos predicados essenciais da obra do sr. J. H. Rosny.

Já aludi à dificuldade da tradução, e lealmente confesso que mais de uma
vez hesitei sobre se devia pôr de lado o meu tentame, para não
desrespeitar a _estilização_ do autor, ou se devia acatar estritamente a
ousada originalidade da forma, ou se me cumpriria conciliar essa
originalidade com as exigências normais do idioma português.

Com efeito, a prosa do sr. J. H. Rosny, no _Vamiré_, abunda em vocábulos
que, se não foram criados pelo autor, são, pelo menos, estranhos aos
léxicos correntes da língua francesa; a adjectivação é, por vezes, de um
arrojo, que deve ter feito calafrios à Academia Francesa; e o
pensamento, de longe em longe, aperta-se em sínteses tão cerradas, que
não ressalta facilmente a olhos desprevenidos.

Mas todas estas qualidades se relacionam, até certo ponto, com o
estranho cenário que o _Vamiré_ nos desenrola, com os cambiantes
misteriosos da linguagem nascente, e com a vaga psicologia do homem
primitivo. De maneira que poderá capitular-se de beleza o que, a
revezes, se antolhe obscuridade e nimio arrojo ao leitor vulgar.

E, assim, eu próprio, seduzido porventura pelo brilho encantador da
concepção do sr. Rosny, e pelo esplendor imprevisto da sua linguagem,
reproduzi formas, que eu relegaria de trabalhos originais meus, mas que
são características de um grande talento insubmisso, que se espraia,
poderoso e intemerato, nas estepes e florestas do mundo pré-histórico.

Os puristas absolver-me-ão pois de uma ou outra condescendência com
brilhantes ousadias, e os leitores de romances terão neste livro um
salutar correctivo à romançada piegas, que entulha as livrarias, e
desvela as noites da mocidade ingénua.

Lisboa, 1 de Janeiro de 1905.

                                                         _C. de F._




VAMIRÉ

ROMANCE DOS TEMPOS PRIMITIVOS




I

Guerra nocturna


Foi há vinte mil anos.

O pólo Norte defrontava com uma estrela da constelação do _Cisne_.

Nas planícies da Europa, ia extinguir-se o mamute, as grandes feras
emigravam para o pais da Luz; a rena fugia para o setentrião. O
auroco[1], o uro[2], o veado apascentavam-se na erva das florestas e das
planícies. O urso colosso, muitos tempos antes, havia já passado além da
região das cavernas.

    [1] Espécie de uro. Os franceses chamam-lhe _auroche_, palavra
    alemã, de _auer_, planície, e _ochs_, boi. (_N. do trad._).

    [2] Espécie de boi selvagem. (_N. do trad._).

Os homens da Europa, os grandes dolicocéfalos[3], achavam-se então
disseminados desde o Báltico ao Mediterrâneo, desde o Ocidente ao
Oriente. Habitantes das cavernas, mais relacionados que os seus avós da
idade da pedra, mas sempre nómadas, a sua indústria elevava-se, a sua
arte era graciosa. Esboços traçados a buril fraco, tímidos mas fiéis,
representavam a luta do cérebro no encalço do sonho, contra a
brutalidade dos apetites. Séculos depois, com a invasão asiática, a arte
decairá, e o gracioso tipo daquela indústria só reaparecerá ao cabo de
longos períodos.

    [3] Homens de crânio oval. (_N. do trad._).

Era no Oriente meridional, na estação em que as plantas abotoam.

A noite ia em dois terços. Na claridade cinzenta de um grande vale,
reboavam as vozes dos animais carnívoros. Nos intervalos de silêncio, um
rio cantava a vida dos fluidos, a eufonia das ondas. Os amieiros e os
álamos respondiam em murmúrios, em harmonias intermitentes. A estrela
_Vénus_ engastava-se no Levante. A teoria das constelações imortais
descortinava-se entre as nuvens erradias; _Altaír_, _Vega_, a _Carreta_
rodeavam lentamente a _Polar_ do _Cisne_.

Em quanto a vida palpitava nas trevas, feroz ou apavorada, arrojada às
festas e às batalhas do amor ou da alimentação, veio juntar-se-lhe um
pensamento. À beira do rio, no pontal de uma rocha solitária, um vulto
ressaiu da caverna dos homens, e ficou imóvel, taciturno, atento,
olhando a revezes a estrela do Levante. Algum devaneio, algum esboço de
estética astral, menos raro entre estes avoengos da arte do que em
muitas populações históricas, preocupava o madrugador. O vigor e a
felicidade palpitavam nas suas veias; o hálito da noite perfumava-lhe o
rosto; e ele, na plena consciência da sua força, fruía, intemerato, os
murmúrios e a calmaria da natureza virgem.

Entrementes, por baixo da estrela _Vénus_, transpareceu um pequenino
clarão. O alfange da lua apontou, os seus raios estenderam-se pelo rio e
pelas árvores, entremeados de longas sombras. O homem exibiu então as
suas formas de corpulento caçador, de ombros cobertos de uma pele de
uro. O seu rosto pálido, pintado com traços de minio, era largo, sob um
crânio alongado e resistente. A sua zagaia, de ponta córnea,
projectava-lhe no corpo sombras em ziguezague; e na sua mão direita
firmava-se uma enorme clava de carvalho.

Ao estirarem-se os raios lunares, a paisagem entrou numa existência
menos selvagem. Nos amieiros, havia frémito de asas dos elitros brancos;
na planície, nesgas entreabertas de paraíso; em todas as coisas uma
palpitação sensível; tímidos protestos contra os pavores da sombra.

O homem, fatigado da imobilidade, caminhava ao longo do rio, com o passo
cauteloso de quem procura presa. A quinhentos cúbitos, parou, à
espreita, de zagaia firme, na altura da testa. Pela orla de um bosquete
de bordos, aproximou-se um vulto ágil, um grande veado de dez pontas.

O caçador hesitou; mas a sua tribo devia estar muito provida de caça,
porque o animal, sem ser perseguido, foi-se afastando, projectadas sobre
a claridade avermelhada as pernas delgadas, a cabeça repuxada para trás,
todo o gracioso organismo em carreira.

--Lô! Lô!--disse o caçador, num movimento de simpatia.

O instinto predizia-lhe a aproximação de inimigo feroz, algum potente
felino, que andaria caçando. Efectivamente, meio minuto depois, surgiu
da banda de além da rocha dos trogloditas um leopardo, aos pulos,
ligeiro como um raio. O homem preparou a zagaia e a clava, atento, de
nariculas latejantes e nervos inquietos. O leopardo atravessou o rio
como uma porção de escuma, e imergiu nas sombras da perspectiva. E
todavia o delicado ouvido do caçador ainda, durante alguns minutos,
percebeu os passos da fera sobre a terra mole.

--Lô! Lô!--repetiu ele, levemente comovido, numa atitude de provocação
grandiosa.

Decorreram minutos. As pontas da lua tornavam-se mais nítidas; pequenos
animais agitavam levemente as moitas da ribanceira; grandes batráquios
coaxavam sobre as plantas fluviais.

O homem libou a simples voluptuosidade de viver ante a magnificência das
grandes águas, a mesclada difusão dos claros e dos escuros; depois,
afastou-se de novo, à escuta, de olhos afeitos às penumbras, espreitando
as ciladas da noite.

--Hoi?--murmurou ele interrogativamente, refugiando-se na sombra de um
moitedo.

Um rumor de galope, vago ao principio, aproximava-se, evidenciava-se. O
veado reapareceu, tão rápido mas menos exacto na direitura da carreira,
suando, de respiração alta, ofegante. A cinquenta passos, o leopardo,
sem fadiga, gracioso, já triunfante.

O homem admirava, desgostoso, a pronta vitória do carnívoro, com um
desejo crescente de intervir, quando sobreveio uma peripécia terrível.
Lá em baixo, à orla da moita de bordos, em pleno luar, ressaía um vulto
maciço, em que, pelo rugido cavo, pelo salto de vinte cúbitos, e pela
farta crina, o homem reconheceu a quase soberana fera,--o leão.

O pobre veado, desorientado pela surpresa, deu uma volta precipitada e
desastrosa, retrocedeu, e achou-se logo sob as garras cortantes do
leopardo.

Luta rápida, sangrenta; o arranco do veado agonizante; e o leopardo,
sobressaltado, ficou imóvel: o leão aproximava-se tranquilamente. A
trinta passos, estacou, com um bramido, sem preparar assalto. O leopardo
quaternário, corpulento, hesitou, furioso de se lhe ter malogrado o
esforço, e pensando em aventurar-se a combater. Mas a voz do dominador,
agora mais alta, reboou pelo vale, dando sinal de ataque, e o leopardo
cedeu, afastando-se vagarosamente, de cabeça voltada para o tirano, com
um miar de raiva e de humilhação. O outro despedaçava o veado; devorava,
a grandes pedaços, a presa roubada, sem pensar no vencido, que
prosseguia na retirada, devassando a penumbra com os seus olhos de
oiro-esmeralda.

O homem, a quem a vizinhança do leão aconselhava prudência,
aconchegava-se cautelosamente no seu abrigo frondoso, mas sem terror,
disposto para qualquer aventura.

Depois de alguns instantes de deglutição furiosa, o leão interrompeu-se:
perturbação, dúvidas, transpareceram em todo o seu aspecto, no tremor da
juba, no espreitar angustioso. De repente, com a força de uma convicção,
tomou o veado, deitou-o para as costas e pôs-se em fuga. Teria andado
quatrocentos cúbitos, quando junto a orla, onde ele tinha aparecido,
surgiu um animal monstruoso. Intermediário ao leão e ao tigre no aspecto
e na forma, mas mais colossal, soberano das florestas e planícies, era o
símbolo da força, erecto, sob a vaporosa claridade. O homem tremeu,
abalado no intimo das suas entranhas.

Após ligeira pausa debaixo dos freixos, o animal prosseguiu na caça.
Devastador como um ciclone, abrindo caminho sem esforço, perseguia o
leão em fuga para o Oeste, enquanto o leopardo, parando, contemplava a
cena. Os dois vultos foram desaparecendo, e o homem pensou em deixar o
seu retiro porque o leopardo o inquietava pouco, quando a cena se
complicou: o leão regressava obliquamente, por ter achado algum
obstáculo, pântano ou fosso.

O homem sorriu, chasqueando o leão, por não ter calculado melhor a fuga,
e retraiu-se para o seu esconderijo, porque os dois colossais
antagonistas vinham na direcção dele. Como era natural, retardado pelo
desvio e pelo peso do veado, o fugitivo perdia terreno.

Que fazer? O caçador estendeu a vista em torno de si: para alcançar
algum choupo era mister galgar duzentos cúbitos e, além disso, o
espeleu[4] trepava às árvores. Quanto à rocha dos trogloditas, ficava
ainda a uma distância dez vezes maior. Preferiu sujeitar-se à ventura.

    [4] Corpulento animal felino dos tempos pré-históricos, _felis
    spelaca_.

A sua hesitação foi rápida.

Em dois minutos, as feras atingiam a beira do seu retiro. Ali, o leão,
vendo que a fuga era inútil, deixou cair o veado, e esperou. Foi um
momento de tréguas, uma suspensão como a de há pouco, quando o leopardo
segurava a presa. Em volta, o silêncio, a hora da anunciação, a hora em
que os nocturnos vão dormir e os diurnos renascem para a luz. Claridades
de sonho, cimos de árvores embebendo-se em algodoamentos pálidos,
guarnições de graminias lanceoladas meneando-se ao sopro hesitante do
Poente, e, por toda a parte, o vago, o confuso, a emboscada da natureza,
feita de fronteiras arborescentes, de clareiras, de faixas cetinosas de
céu.

Lá em cima, os astros despertos, o salmo da eterna vida.

Sobre um montículo, o espeleu recortava na claridade lunar o seu perfil
altivo de dominador, a crina pendente sobre uma peladura mosqueada de
pantera, a testa chata, as maxilas proeminentes,--rei outrora da Europa
cheleana, em decadência hoje, reduzida a estreitas faixas de território.
Mais abaixo, o leão, de respiração rouca, a pesada garra assente sobre o
veado, hesitante em face do colosso, como pouco antes o leopardo diante
dele, uma fosforescência nas suas pupilas, mesclada de receio e cólera.
Na penumbra, já familiarizado com o drama, o homem.

Um rugido surdo se espraiou; o espeleu sacudiu a crina e começou a
descer. O leão, em recuo, de dentes descobertos, largou por dois
segundos a presa; depois, desesperado, estimulado pelo orgulho, voltou
com um rugido mais estrepitoso que o do seu adversário, e assentou de
novo a garra no veado.

Queria dizer que aceitava o combate. O espeleu não obstante a sua força
prodigiosa, não respondeu logo. Parado, acuado, examinava o leão,
calculava-lhe a força e a agilidade. O outro, com a altivez da sua raça,
conserva-se de pé, de cabeça erguida. Novo rugido do agressor, uma
réplica retumbante do leão, e achavam-se a um salto de distância.

--Lô! Lô!--murmurou o homem.

O espeleu transpôs a distância, a sua garra monstruosa levantou-se ante
as unhas do inimigo. Por dois segundos, a pata ruiva e a pata mosqueada
defrontaram-se num armistício final. Depois, o ataque, uma confusão de
crinas e maxilas, bramidos ferozes, enquanto o sangue escorria.

Ao principio, o leão dobrou-se, sob o tremendo assalto. Desembaraçado em
seguida, fez um salto transversal, atacou de flanco e a batalha
tornou-se indecisa, amortecido o arrojo do espeleu. De repente, o
frenesim dos organismos, a agitação dos músculos de bronze, a indecisão
de esforços malogrados, o revoltear das crinas ao clarão da lua, um
despegar de carnes igual às palpitações de uma onda no mar, a escuma das
goelas e a fosforescência das pupilas fulvas, bramidos semelhantes ao
restrugir das tempestades nas franças dos carvalhos...

Finalmente, o leão, ferido por um golpe terrível, caiu, rolando; e o
espeleu, como um raio, atirou-se sobre ele e começou a rasgar-lhe o
ventre.

Debateu-se o leão, rugindo medonhamente. Conseguiu porém levantar-se
ainda, de entranhas pendentes e juba ensanguentada. Compreendendo não só
a impossibilidade de fugir, senão também que o outro não se apiedaria
dele, fez rosto sem fraqueza, e reentrou no combate com tal fúria, que,
durante minutos, o espeleu não pôde dominá-lo.

Mas o desenlace aproximava-se, as forças do vencido decresciam
rapidamente: dominado de novo, deitado em terra, veio o suplicio, o
encarniçamento do mais forte, as vísceras do leão arrancadas, os seus
ossos partidos entre arpéus poderosíssimos, a sua face triturada e
disforme..., e os rugidos da agonia, repercutidos através do horizonte,
cada vez mais roucos, mais débeis, transmudados logo em suspiros, em
estertores, em tremor de vértebras... Enfim, uma convulsão de garganta,
um arranco lamentoso, e o soberano animal expirava.

O espeleu encarniçou-se no cadáver, na carne ainda vibrante, com a
voluptuosidade da vingança e o receio de uma ressurreição. Por fim,
assegurando-se de que era infundado o receio, repeliu desdenhosamente o
cadáver, celebrou com um rugido o seu triunfo e o seu repto às
penumbras, com as espáduas e tórax sangrando de largas chagas.

Rompia a manhã. Ao fundo do horizonte, uma viva filtração de prata, o
arco da lua esmaecendo, evaporando-se.

O espeleu, depois de lamber as feridas, sentiu que a fome voltava, e
caminhou para a carcaça do veado. Cansado, muito distante do covil,
procurou um retiro, onde pudesse comer, à sombra. A moita próxima, em
que se abrigava o caçador, atraiu o seu olhar, e cuidou de arrastar para
ali a sua presa.

Entrementes, fascinado pela magnificência do combate, o homem
contemplava ainda o vencedor, quando viu que ele se dirigia para a
moita.

Um estremecimento de espanto e de terror lhe percorreu o corpo, sem lhe
tirar o instinto da luta e do cálculo.

Pensou que, depois de tal combate, e ávido de descanso e de alimento, o
espeleu não o inquietaria naquele retiro.

Entretanto, não tinha disso a certeza; recordava as lendas dos velhos,
referidas em noites veladas, o ódio do espeleu contra os homens. O
grande felino, raro já, em decadência contínua, parecia ter o instinto
do papel dos primatas para a extinção do homem, e satisfazia o seu
rancor desordenado, sempre que se lhe deparava um individuo solitário.

Ao tumultuarem-lhe no cérebro estas lembranças, o homem hesitava sobre o
que, em caso de ataque, seria preferível: se o abrigo, se a planície
rasa. Aquele amorteceria o ímpeto da fera; a planície tornava mais fácil
o tiro da zagaia e os golpes de clava.

A hesitação não podia durar muito: o espeleu começava a afastar a
folhagem da moita. Decidida rapidamente a escolha, o homem deu um salto,
e saiu por um atalho, em ângulo recto com a linha que o monstro seguia.

Ao agitarem-se os ramos, o espeleu inquietou-se, rodeou a moita, e,
vendo surgir um vulto humano, rugiu. Ante esta ameaça, desvanecida
qualquer tergiversação, o caçador, de músculos ágeis e destros, ergueu a
zagaia e apontou. A arma vibrou, seguiu direita o seu caminho e foi
cravar-se no pescoço do felino.

--Eô! Eô!--gritou o homem, brandindo a clava com ambas as mãos.

Depois, tornou-se imóvel, firme, belo gigante, herói das idades de luta,
de olhar lúcido.

O espeleu avançou, calculando o salto. O homem, com uma destreza
maravilhosa, fez um movimento obliquo, deixou passar o monstro, a sua
clava desceu como um martelo formidável, e estalaram vértebras. Um
rugido estrangulado de pranto, a queda, a imobilidade imediata do
colosso; e o homem repetiu vitorioso o seu grito de guerra:

--Eô! Eô!

Continuava todavia na defensiva, temendo a repetição do ataque,
contemplando a fera, os seus grandes olhos amarelos, abertos, as suas
garras do comprimento de meio cúbito, os seus músculos enormes, as suas
goelas escancaradas e ainda cheias do sangue do leão e do veado, todo
aquele admirável organismo bélico, de ventre pálido, sob a pelagem
amarela, mosqueada de negro...

Mas estava bem morto o espeleu, e já não tornaria a encher de pavor as
trevas.

O homem sentiu no peito um grande bem-estar, uma plenitude de orgulho
dulcíssimo, uma dilatação de personalidade, de vida, de confiança em si,
que o pôs nervoso e contemplativo, ante as flores que a aurora
iluminava.

As musicas e a brisa da manhã ergueram-se ao mesmo tempo no horizonte.
Os animais diurnos foram abrindo as suas pupilas, as aves pipilaram de
encantadas, voltando-se para o Levante, entumecidas as suas pequenas
cornamusas. Sob transparente névoa, o rio parecia de estanho levemente
embaciado; depois, mergulharam nele os esplendores do vapor e nele se
reflectiu um mundo de formas e matizes. Os cimos dos grandes choupos e
das pequenas graminias da planície estremeceram, ao mesmo hálito quente
de vida. O sol já se elevava acima da floresta distante, e os seus raios
estiravam-se pelo vale, entremeados de sombras de árvores delgadas e
intermináveis. O homem estendia os braços, numa religiosidade vaga, sem
culto determinado, compreendendo a força e a eternidade do sol, e o
efémero da sua personalidade. Depois, teve um grito, o seu grito de
triunfo:

--Eô! Eô!--

E, à borda da caverna, apareceram os homens.




II

A horda


Aos sorrisos da manhã, quando a aragem afagava, regeneradora e
voluptuosa, o rio e a planície, os tições da primeira refeição
extinguiam-se à beira da caverna dos homens.

A árvore-sepulcro[5] de cem cúbitos de alto, estendia os seus braços,
cheios de esqueletos pálidos, de trogloditas extintos. Ao frouxo embate
da viração, o ossário aéreo emitia cânticos suspirosos, eufonias
silábicas; e um velho, apoiando o tronco em os calcanhares, punha os
olhos présbitos em tais ou tais crânios que surgiam de entre as sombras
ramusculares, reconstruía mentalmente os anais de tal ou tal caçador
glorioso, de tal ou tal companheiro da mocidade, devorado pelo nada.

    [5] Refere-se o autor à árvore, que os nómadas escolhiam, para nela
    dependurar os esqueletos dos seus mortos. (_N. do trad._).

A horda de Pzanns, espalhada, ressentia-se do encanto daquela hora. As
crianças saltavam pelo campo, até à fronteira das águas; entre os
salgueiros, misteriosamente, alguma rapariga semi-nua avivava a sua
frescura e os seus enfeites, enlaçava as ondas fulvas dos seus cabelos;
os homens compraziam-se em projectos de caça ou de trabalho, quase todos
corpulentos e musculosos, de crânios alongados e cheios de energias
belicosas. Em tigelinhas de sílex, alguns guerreiros moíam e misturavam
o minio vermelho com medula de uro, e pintavam o rosto e o peito com um
fino pincel de fibras: parábolas mal-feitas, fios entre-cruzados, vagas
representações do natural, pequenos anéis, traços irradiantes. Outros
prendiam aos joelhos, ao pescoço, à testa, aos pés, ornatos bárbaros,
pingentes de caninos furados à nascença, (dentes de leão, de lobo, de
urso, de auroco, de veado), vértebras de peixe, cristais com reflexos de
ametista, seixos gravados, e a miúda joalharia marinha: a
porcelana-lúrida, lapas, litorinas.

A horda representava uma humanidade já propensa ao ideal, industriosa e
artista, caçadora mas não belicosa, que aceitava o mistério das coisas
sem ter ainda conhecido culto, dominada apenas por vagos simbolismos.
Eram filhos da grande raça dolicocéfala, dominadora da Europa
quaternária, vivendo em paz, de horda para horda, estranhos à degradação
da escravatura; caracterizava-os uma nobreza rude, uma grandeza e uma
bondade que não mais se encontrarão no decurso da neolítica[6]. Eram
largos os seus campos e tão ricos de alimentos, que ainda não surgira o
instinto de apropriação directa nem sombra de astúcia vil. Os condutores
de tribo, sem autoridade efectiva, livremente escolhidos e seguidos, por
virtude da sua seriedade e experiência, ainda não haviam entronizado o
despotismo. Unicamente as questões de amor e rivalidade manchavam,
algumas vezes, a terra com o sangue de homem, derramado por homem...

    [6] Segundo período da idade de pedra, chamado também idade da
    pedra-polida.

Terminada a refeição e dispostos os enfeites, começou o trabalho das
mulheres e dos homens que não entravam na caça desse dia. Ah! desde o
sílex de Thenay[7], desde o taciturno antropopiteco, agora que no seio
da fauna ia surgir o antepassado cheleano, quantas fronteiras
ultrapassadas, dentro do universo cerebral!--divisão do trabalho,
tradição de utensílios, soberania da natureza, organismo multiplicador
das forças humanas, esboços artísticos...

    [7] Os sílex de Thenay são os primeiros e os mais grosseiros
    vestígios da indústria humana, atribuídos a uma espécie de
    homem-macaco ou antropopiteco, precursor do nosso antepassado da
    época cheleana.

Com delicada agulha, muitos cosiam pelicas, depois de abrir nelas
pequenos orifícios com um punção de pedra; outros, com polidor e
raspadeiras trabalhavam em peles frescas; alguns, em bancos de pedra ou
de madeira, ao ar livre, martelavam, afiavam as machadas, as facas, as
serras, os burís. O corte, fazendo saltar pequenas estilhas, e feito com
uma destreza e paciência admiráveis, deixava aparecer, lentamente, as
lâminas e as pontas, e mui raramente o artista deixava de descobrir as
direcções convenientes à percussão, familiarizado com a matéria, dotado
da previsão que se adquire com a longa prática. Tarefa mais delicada
ainda, contornavam outros as pontas, os anzóis, os arpéus de osso e
corno, munindo-se de utensílios finos e perfeitos, tais que a humanidade
não poderá excedê-los, senão em passando da pedra para o metal.

Sobretudo a agulha revelava uma engenhosa indústria: esquirolas
arredondadas por meio de sílex denteado e com entalho; polidura e
alisamento com grés fino; escavação do fundo na ponta curva, com uma
lentidão calculada, com mil perigos de se partir a obra.

Em quanto os trabalhos começavam, um grupo de caçadores reunia-se junto
da caverna.

Ao rochedo mais alto subiu um moço, de olhar penetrante, a explorar as
perspectivas. À sua esquerda, sob reflexos de ametista embaciada, frouxa
e vaga, a floresta esbatia-se no horizonte, prolongando-se até o rio. Em
frente, os valeiros, as quebradas das estepes, a ondulação suave dos
outeiros, oásis semelhantes a nenúfares num pântano, o espelho sinuoso
das águas fecundas. Atrás, perdida na poeira da tíbia claridade das
nuvens, a região das montanhas; e por toda a parte perfis diminutos de
animais pascendo em planícies: o caçador contou uma horda de cavalos e
um rebanho de uros. Com uma voz atroadora, anunciou-os aos seus
companheiros, traçando com o dedo a direcção da caça. Àquele aviso,
todos tomaram as armas: o arco, o arpéu, a zagaia, a clava. Depois, no
momento da partida, a velho chefe, lançando um olhar em roda, bradou:

--Vamiré!--

Então, no portal das grutas, apareceu o moço que vencera o espeleu.
Hesitou entre o desejo de prosseguir na preparação da manta que talhara
na pele do monstro e que começara na véspera, e o desejo da caça.
Decidiu-o a mocidade, a atracção dos vales rejuvenescidos, as
exclamações dos seus companheiros. Reentrou na caverna, e reapareceu
logo, armado de arco e clava, e o bando pôs-se em marcha para o Norte.
Cheios de vivacidade ao principio, excitados os cérebros bárbaros pela
marcha e pelas belezas matinais, foram-se tornando depois silenciosos.

De súbito, um rebanho de uros apareceu-lhes no alto de uma colina. Os
grandes herbívoros espalhavam-se em triângulo, em número de muitos
centenares, numa área de dois mil cúbitos. Os toiros, de flanco leonino,
crânio volumoso e pelo avermelhado, circulavam, a passos lentos, entre
as fêmeas e os machos tenros. Aquele rebanho enorme realizava um
esplendor de vidas tranquilas, de majestade pacifica e de força social.
À voz do condutor, (um toiro colossal, postado no ângulo mais agudo do
triângulo), os outros machos agruparam-se para o combate. Uma
inteligência selvagem,--inteligência atrofiada, entre os seus irmãos da
Ásia, por uma servidão que já existia desde muito,--tornava-os aptos
para a táctica, para a espontaneidade.

Os caçadores pararam. Encobertos por um cabeço, discutiam o plano de
ataque. A configuração do terreno e a situação das feras davam lugar a
duas alternativas: atacá-las, ao mesmo tempo, à direita e à esquerda,
aproveitando a série de outeiros transversais, ou contornar a planície,
e surgir lá de baixo, a duas léguas, de uma densa mata de figueiras
silvestres.

Depois de alguns minutos, a maioria optou pelo primeiro método, porque o
outro, embora mais produtivo em caso de bom êxito, era evidentemente
menos seguro, podendo qualquer pânico afastar os uros, antes de serem
assaltados.

O bando dos caçadores dividiu-se em dois troços, guiado um pelo velho
que empunhava um bastão de comando com esculturas, e o outro dirigido
por um colosso de idade madura.

De ambos os lados, a marcha foi organizada segundo as regras, utilizados
sabiamente os acidentes do terreno; e a horda do velho, avançando
rapidamente, aproximava-se, estava já a distância de tiro, quando o
grande uro condutor pareceu inquietar-se. Erguendo a cabeça vermelha,
constelada de luas brancas, farejou o horizonte, e ficou suspenso numa
perscrutação profunda. Depois, a sua voz ergueu-se, bela e grave, como a
voz dos leões. Os herbívoros dispersos assustaram-se, e concentraram-se.
Um minuto de duvida; um estremecimento de espinhaço; a convicção enfim
de que estava próximo o inimigo, o implacável inimigo vertical, tão
conhecido das feras; e logo o sinal de fuga, a partida inopinada da
enorme caravana, acelerando-se num trote, que fazia latejar o vale.

Renunciando o ardil, os trogloditas subiram a cadeia de outeiros que os
encobria, os mais ágeis apareceram na cumeeira; mais de dez tiros de
arco os distanciavam dos retardatários do rebanho de uros. Estes andavam
rápidos, sem estorvo dos novilhos; mas, desde o primeiro assalto dos
caçadores, era evidente que a expedição chegava ao seu terreno. Os mais
ardentes, verdadeiros bárbaros de raça vitoriosa, sem cálculo,
empenhavam-se numa luta de emulação, insensíveis à palavra dos guias. Em
poucos minutos, três de entre eles chegaram a menos da distância de um
tiro, e as frechas silvaram, um toiro caiu, outro urrou formidavelmente.

--Eô! Eô!

Partiram outras frechas. Ficou estendido um toiro e depois uma fêmea;
cinco caçadores tinham os uros ao alcance de tiro.

Então, sacrificando-se, dois dos bovídeos machos fizeram alto.
Escarvando o solo por um minuto, e fixando no espaço os grandes olhos
perturbados, arrojaram-se à luta, nobres protectores da sua raça.

Mais frechas; mais golpes profundos; mas as belicosas alimárias não
pareciam senti-los, cada vez mais próximas sempre, sempre mais ferozes.
Confiados nas pernas, os caçadores dispersaram-se, pela maior parte; mas
dois moços, entre-olhando-se, e dominados por um orgulho de valentia e
destreza, esperavam imóveis. Os outros então, facto curioso, fizeram
semicírculo.

O primeiro toiro, de cerviz baixa, e com uma velocidade terrível, correu
directamente contra o mais alto dos moços caçadores. Este, com um
movimento elegante, pôs-se de esguelha e cravou a sua lança na ilharga
do toiro.

Sangrado, o animal parecia desfalecer, mas voltou de soslaio, menos
ligeiro e mais cauteloso. Mas nem por isso evitou melhor o bote: a arma
entrou-lhe de novo nas entranhas, mais penetrante, mais cruel.

Cambaleante, ajoelhado, o uro pareceu vencido, em posição de receber o
golpe supremo.

Mas, no momento em que a lança se levantava de novo, ele ressaltou, e
com o corno esquerdo levantou o homem. Levado na parte convexa daquele
crescente e não na ponta, o guerreiro desembaraçou-se a tempo, e o seu
terceiro golpe, decisivo, em pleno coração, assegurou-lhe a vitória.

--Terann matou o grande uro,--rugiu ele.

Ao lado, a luta empenhava-se de outra forma. Quando Terann aniquilava o
seu adversário, outro toiro se arrojava contra o caçador da clava.

Postado em frente, temerário, o homem desceu a arma e julgou esmigalhar
o crânio da alimária. Mas, vindo de lado, e por um desvio de cornadura,
a pancada não sortiu todo o efeito; e o toiro, precipitando-se como um
raio, arrastava o nómada pelo espaço de dez cúbitos.

Inerme, maltratado, espezinhado, viam-se já as entranhas do desgraçado,
e ouvia-se-lhe o estalido dos ossos.

Depois o sangue jorrou: feridas enormes esburacaram o peito; e, na
perturbação dos caçadores, apenas algumas frechas soaram dos arcos,
despedidas pelos melhores archeiros. Depois ainda, como o toiro se
encarniçava no corpo do vencido, muitos arrojaram-se com grande clamor.

A monstruosa alimária não os esperou.

Convicta, talvez, de que morreria, mas desejando cair como guerreira,
marchou altivamente contra os assaltantes. Nuvens de dardos foram
embeber-se nos seus belos flancos, sem lhe sustar a velocidade, e
prontamente atingiu um novo antagonista, um velho que fugia sem
agilidade, e lançou-o por terra.

Baixando a cornadura, dispunha-se a arrebatá-lo, mas um tiro de zagaia
nas espáduas do uro salvou o homem e o flexível perfil de Terann veio
interpor-se.

--Terann! Terann!--clamaram os caçadores. Terann evitou o ataque do uro;
mas o seu segundo tiro, mal dado, roçou apenas uma omoplata.

Por sua vez, rolou pelo chão; por sua vez, viu baixarem-se as agudas e
velozes pontas da cornadura, e todos o julgaram perdido. Mas, de
repente, ágil como o salmão que sobe um rio, apareceu, de clava erguida,
Vamiré. Teve apenas tempo de retirar Terann e arrojá-lo ao acaso,
enquanto os trogloditas bradavam:

--Vamiré é forte como o mamute!--

Com um aceno, Vamiré desviou qualquer auxilio. Depois, colocando-se a
seis cúbitos do toiro, falou-lhe assim:

--Retira-te, valente..., tão digno de viver e de conservar a grande raça
dos uros, tão digno de pastar por muito tempo as boas ervas da planície.

Imóvel, o bovídeo fitava no caçador as suas largas pupilas azuladas; e
uma piedade misericordiosa segredava, na alma de Vamiré, penas por
aquela grandiosa alimária, sacrificada à fatalidade das lutas.
Entretanto, triste, já sem arrojo e com as artérias exaustas, o toiro
baixava ainda a cornadura, aguardando o ataque do homem. E Vamiré
prosseguiu:

--Não, valente..., Vamiré não tocará no grande uro vencido... Vamiré
sentiria que as planícies ficassem privadas do valente, que pode
proteger a sua raça contra o leão e o leopardo...

Dobrado sobre os joelhos, o uro parecia escutar o caçador, num sonho
dilatado e vago. Depois, a sua cabeça oscilou, um eco débil de rugido
estremeceu-lhe na garganta... O toiro prostrou-se, as suas pálpebras
entrecerraram-se, e o seu último alento exalou-se sobre as gramíneas.

Assim findou a caça, numa grave tristeza; e os cinco uros, que jaziam
dispersos na planície, haviam custado a vida a um filho dos homens,
porque se viu que Vanhab, filho de Djeb, acabava de restituir o seu ser
às coisas. E os guerreiros Pzanns ainda uma vez reconheceram a força e a
coragem do uro; mas, por um sentimento de indefinida discrição, sentiam
agora mais amargura que cólera. Associados às últimas palavras de
Vamiré, sabiam que a existência do herbívoro é necessária à dos homens;
e é por este profundo sentimento que eles, muitos milhares de anos antes
da domesticação da alimária, tinham aprendido a dispor moderadamente de
qualquer vida, salvo da dos carnívoros e parasitas, e a mostrar-se
generosos com os uros valentes, para que as hordas de veados, os
rebanhos de bovídeos e as caravanas de cavalos estivessem fortalecidas
contra as grandes feras.




III

O funeral de Vanhab


Ao cair da tarde, transformado o sol num braseiro circular, os velhos
surgiram da caverna, seguidos pela melancólica horda.

Dois guerreiros moços transportavam o cadáver de Vanhab; e o vermelho
clarão do sol poente, sobre o pálido crânio e através da caixa toráxica,
caía como um símbolo de profunda amargura, avessa a um dia primaveral,
sobre as ruínas de um moço que desaparecera para sempre no abismo das
metamorfoses.

A horda desfilou lentamente através da planície, e os lamentos surdos da
esposa e da mãe interrompiam a taciturnidade da cena.

Quando subiram a colina e chegaram à árvore-sepulcro, viu-se um velho
colocar-se ao pé de Vanhab, e todos aguardaram a sua fala, porque tinha
fama de saber falar aos outros homens.

O velho conservou-se imóvel por algum tempo, para que lhe chegassem à
memória coisas antigas, confusas sínteses adquiridas pela sua raça que,
dominada pela natureza, ainda não tinha concebido mistério algum além
das formas materiais. E falou:

--Homens... Vanhab, filho de Djeb..., nascido entre nós..., era um
caçador intrépido e um trabalhador destro. O uro, o leopardo, a hiena,
conheceram-lhe a força... Retalhou os despojos de alimárias, e deles fez
vestidos e armas... Fabricou utensílios da pedra beneficente...
Homens... Vanhab, filho de Djeb, saiu da vida..., não caçará mais, não
mais despojará a alimária, nem mais fabricará utensílios da pedra
beneficente... E porque era um companheiro fiel e prudente..., nós
deploramos Vanhab, filho de Djeb.

--Nós deploramos Vanhab, filho de Djeb,--repetiram as vozes da horda.

Depois, houve pesado silêncio, e as cabeças dos trogloditas ergueram-se
para ver subir à árvore-sepulcro um ágil caçador, que passou de ramo em
ramo, por entre os esqueletos dos avoengos. Quando chegou a um ramo
livre, suspendeu-se Vanhab, filho de Djeb, ao cordão entrançado, em cuja
extremidade pegava o trepador, e os restos do finado subiram por entre a
folhagem.

Do horizonte morno e do grande zénite manava uma languidez tão doce, um
sopro de vida tão encantador, e uma majestade tão serena, que os
companheiros de Vanhab, sua mãe e sua viuva esqueciam a dor e o terror
da morte.

O cadáver, seguro enfim, oscilou um pouco, e a horda começou a debandar
sob a penumbra do crepúsculo. Nos pontais das suaves colinas, à beira do
rio, as naturezas contemplativas viram repartir-se a luz em mil
figurações efémeras.

Dentro em pouco, debaixo da árvore, havia apenas o núcleo dos
companheiros íntimos e dos parentes.

A sombra sucedeu aos esplendores do céu. Mais um dia desapareceu nas
profundezas do passado. Mais uma noite desenrolou o manto do infinito.

Impressionados então, com imaginações embrionárias, com o pensamento da
morte e da noite associadas, os humildes pré-históricos, fiéis a Vanhab,
juntaram um sonho aos milhões de sonhos, de que nasceram os cultos, de
que nasceram as alianças do terror, do sobrenatural e da imortalidade.

Entretanto, a jovem esposa estava prostrada sobre a erva, com os cabelos
esparsos sobre as gramíneas, como as flores dos salgueiros que choram
sobre os nenúfares dos lagos; e Terann, o vencedor, amigo de Vanhab,
apiedou-se dela e sentiu estremecer o coração, porque o cabelo da mulher
era formoso e o seu pescoço arredondado e branco, à claridade final do
dia.

Terann teve então palavras doces, e ela ergueu os olhos... Ponderou que
Terann era forte entre os fortes, e sem ferocidade para as mulheres e
crianças. E, quando as trevas se cerraram, ficou um ao lado do outro,
sem movimento, sem palavras, mas sentindo raiar em si um porvir,
enquanto os lobos vagueavam na planície, e a hiena gargalhava à borda do
rio, e os grandes carnívoros sentiam dilatar-se-lhes a força.




IV

A ilhota


Vamiré, filho de Zom, não obstante a sua juventude, era o assombro da
horda dos Pzanns. Caçador experto e valente, belo de estatura e forte
como o auroco, possuía também os dons misteriosos da arte. As formas do
animal e da planta cativavam a sua imaginação.

Era daqueles que divagam sozinhos sobre as colinas e que cruzam a
floresta, ou vogam pelo rio, ou se embebem nas trevas, pelo jubilo de
surpreender as coisas secretas.

De homens tais não motejavam os dolicocéfalos da Europa, antes estimavam
profundamente Vamiré, porque sabia manejar o buril que grava no osso e
no corno, e o cinzel, e o formão que desbasta a madeira e o marfim.

Apaixonado pela sua arte, tornara-se o mais famoso dos artistas entre as
tribos que, na primavera, chegavam ao Oriente meridional.

Durante dias e semanas inteiras, saía do meio dos seus companheiros,
explorando solidões, trabalhando em algum retiro longínquo; e os
artefactos que ele trazia das suas excursões eram o espanto da sua
horda. Nem Zom seu pai, nem Namir sua mãe, se inquietavam muito com
essas ausências, porque muito fiavam da fortuna do filho.

Ora, um dia de manhã, embarcou ele, e foi, rio abaixo, na sua pequena
embarcação, que estremecia à menor ondulação das águas, cortadas pelo
remo.

À proporção que ele perdia de vista a caverna dos trogloditas, o rio era
mais largo e menos profundo, e grandes pedaços de rocha dificultavam a
navegação, vestidos de musgos e líquenes. Havia ali o hino das águas
extensas, o baixo grave da corrente, os rumores da pedra batida da água,
um encanto de ressonâncias, às vezes penedos dispostos com simetria
arquitectural em galerias abertas aos quatro ventos, nas quais soluçavam
vozes de abismo.

Até às margens virgens chegava a floresta, orlada de salgueiros frágeis,
povoada de choupos grisalhos, freixos plangentes, bétulas nos cabeços;
atrás, a população de árvores gigantes, o cosmos dos cipós e das
plântulas em briga, o mistério da natureza criadora, forças livres, a
renascença sobre o hino milenário, numa penumbra de templo e de
emboscada, onde palpita eternamente a alegria, o terror e o amor.

Vamiré largou os remos, dominado pela solenidade do espectáculo,
encantado pela vacilação das sombras das árvores sobre a água, pelo
perfume agreste da paragem, enquanto por entre varas e ervas iam
passando focinhos de herbívoros, e bandos de esturjões subiam a
corrente, roçando os penedos erráticos.

Entrementes, apareceu uma ilhota.

Vamiré pôs-se a remar, e foi amarrar a canoa numa angra, entre
salgueiros, no limite meridional da pequenina ilha. Batráquios,
galinholas, e um adem espantaram-se. Vamiré desviou a folhagem e
achou-se numa clareira, onde a terra parecia calcada e as ervas
silvestres mondadas intencionalmente.

Sorrindo ligeiramente, Vamiré meteu a mão na cavidade de um ameeiro, e
tirou de lá raspadeiras, lâminas, pontas de sílex, pedaços de osso, de
corda, de madeira de carvalho.

Ficou por um instante em contemplação diante de uma estatueta, indecisa
ainda, cuja cabeladura, testa e olhos estavam quase concluídos; e
deixou-se tomar de uma beatitude religiosa, estética:

--Estará concluída, antes da lua cheia.--

Depois, arrojou o manto, foi à canoa buscar os dentes e os ossos que
tinha levado, e, por muitos minutos, hesitou sobre se continuaria a
estatueta, ou se trabalharia em gravuras.

Tentavam-no principalmente os caninos do espeleu. Pegou neles uma e
muitas vezes. Piscando os olhos e apertando os lábios entre os
incisivos, esboçou com a ponta do buril de sílex contornos imaginários.
Depois, espalhando a vista em redor, e passeando pela ilhota, pareceu
buscar algum modelo,--árvore, ave, peixe.

Apanhou numa enseada um grande ranúnculo aquático de corola pálida, e
examinou-o atentamente.

Uma doçura inteligente, a subtileza de estar em contacto cerebral com a
natureza, uma concentração de artista, avincavam-lhe a fronte e as
pálpebras. Grandes pétalas de verniz suave, anteras tenuíssimas,
pedúnculo matizado de rosa, tudo isto ele apreciou, como amante da
forma, com a sua retina voluptuosa, mas principalmente as linhas
terminais, os contornos que o seu buril poderia reproduzir, as
fronteiras da flor.

Fixando-a no solo e escorando-a com ramúsculos, tentou restituir-lhe a
posição natural e aguçou o seu utensílio.

Finalmente, tomando um dos caninos do espeleu, e profundamente absorto,
gravemente apaixonado, começou a traçar um ligeiro perfil, um esboço do
ranúnculo.

Firme, e de bom tacto, a sua mão musculosa de atleta prestava-se ao
trabalho artístico; entreviam-se já uns traços graciosos, o
desabrochamento das pétalas, os pontos das anteras sobre as débeis
hastezinhas.

Comovido, Vamiré quedou-se, de olhos meio cerrados e lábios mais
nervosamente apertados entre os incisivos: os minutos foram bem
empregados; a flor aparecia belamente sobre o fino marfim.

O homem riu-se em voz baixa e cruzou os braços sobre o peito. Em seguida
porém, descontente de alguns traços, apagou-os com a raspadeira,
recomeçou-os, até que surgiu a contrariedade, a luta, o momento em que o
trabalho se torna pesado, eivado de cólera. Com gestos de
criança-colosso, exprobrações à matéria, descaídas de braços ao longo do
tronco, duas ou três vezes largou o buril.

Mas a obstinação da sua raça fazia-o retomar o trabalho, até que
terminou o esboço, corrigindo as linhas imperfeitas.

Cansado, então, ergueu-se, e não quis olhar mais para a sua obra.
Abatido diante da natureza, sentiu que a melancolia lhe invadia o
cérebro.

Demorou-se largamente à beira do rio. Era a grande estação fecundadora:
as águas enchiam-se de uma nuvem de animais inferiores, muitos dos quais
vinham do mar, subindo as correntes. As enchentes do equinócio haviam
cessado mais de um mês antes, e raramente se avistavam ramos e troncos
de árvores desarraigadas.

Chegou o meio dia, o grande sol, as sombras diminuídas, o ar trémulo de
calor, colunas de ar ascencionais; mas, na lentura da ilhota, debaixo
dos salgueiros e ameeiros frescos, era deliciosa aquela hora.

Além, na margem distante, mostrou-se um grande animal cornígero, em que
Vamiré reconheceu o auroco. Vamiré adiantou-se, sem pressa, até à beira
do rio ao longo de uma espécie de molhe.

O coração do caçador palpitou, à vista do enorme mamífero. Admirou-lhe a
cabeça larga, inclinada sobre o rio, as pernas altas, o peito musculoso:

--Eô! Aqui está Vamiré!... Vamiré!--gritou ele ao animal, com voz
retumbante.

O auroco levantou a cabeça, assombrado, e o nómada repetiu:

--Vamiré consente que vivas!--

O auroco, acabando de beber, afastou-se.

Vamiré tinha levado, para conservação sua, uma posta de uro, previamente
assada. Deglutiu-a, estendeu-se no chão e adormeceu.

Passado tempo, um rumor acordou-o em sobressalto. Vamiré viu fugir meia
dúzia de ratos aquáticos.

Levantou-se de um salto, estremunhado, e pensou logo na gravura
incompleta do canino. Quando a retomou, foi agradável a sua surpresa: em
vez do esboço duvidoso que ele imaginava, era um bosquejo firme, exacto,
de linhas elegantes.

Pegou no buril, aprofundou cuidadosamente os contornos; depois, fazendo
um buraco para suspensão, na raiz do dente, sorriu de alegria diante do
seu novo e belo artefacto. Apenas, por aquele dia, o seu poder criador
achava-se esgotado: tentou em vão retomar a estatueta: um enfado
invencível, uma desabilidade contínua, acompanhavam cada um dos seus
esforços.

Descoroçoado, repôs os seus materiais e os seus utensílios na cavidade
do ameeiro e ergueu a vista ao firmamento, para calcular a hora. A noite
vinha ainda longe, o sol ia a meio caminho do Poente, se bem que a
fresquidão se sentia já no prolongamento das sombras.

Os nemóceros zumbiam em colunas, e por cima da floresta iam-se formando
nuvens translucidas.

Então um aborrecimento pesou no coração do dolicocéfalo,--um
aborrecimento de saúde opulenta, de força acumulada. Esvoaçaram no seu
crânio desejos indefinidos, desejos de caça, de trabalhos perigosos, de
procriação.

Tentavam-no as regiões de além, a jusante do rio. Desconhecidas pelos da
sua raça, excitavam-lhe a curiosidade rude, audaciosa e pueril. Porque
não havia de ir vê-las? Na sua juventude intrépida, propensa a ásperos
empreendimentos, acostumada aos errores solitários, no seu cérebro de
artista, de imaginação ardente, aquele desejo engrandeceu-se,
definiu-se.

Inspeccionou então cuidadosamente as suas zagaias, a sua clava, o seu
arpéu duplamente denteado; assegurou-se de que nenhuma veia de água
ameaçava a sua canoa, e, retomando o remo, embarcou de novo.

À proporção que ele se adiantava remando, a floresta tornava-se cada vez
mais densa, as margens menos definidas, formadas de humo viscoso de
aluviões movediças, de escombros silvestres. A água, mais escura, era
também mais vagarosa; os penedos já não apareciam; velhas árvores de
mil anos erguiam-se de espaço a espaço; grandes répteis dormiam nos
promontórios; e a gritaria dos papagaios encobria os murmúrios augustos
da vida.




V

O homem das árvores


Quando a noite escureceu o rio, Vamiré percebeu que estava imensamente
longe dos confins da floresta. Assou algumas postas de um esturjão
arpoado na passagem, e, mitigada a fome, vieram-lhe à memória as lendas
vagas dos Pzanns:

--«Tah, ancião de cento e vinte Invernos e memória lúcida, narrava o
desmoronamento das montanhas. Três gerações antes de Tah, o Oriente
meridional era limitado por lagos e serras, que nem os Pzanns, nem povo
algum conhecido dos Pzanns tinham jamais transposto. Mas os fogos
subterrâneos expandiram-se, e o ventre das montanhas entreabriu-se.

«O abismo bebeu os grandes lagos. O espanto dominou os homens, e,
desenvolveu-se uma geração inteira, sem que ninguém se atrevesse a
devassar as novas regiões. Depois, Harm, o grande caçador, acompanhado
pelo pai de Tah e por moços valentes, aventurou-se aos desfiladeiros
cavados pelo cataclismo. E foi assim que se descobriram as grandes
planícies do Oriente meridional...»--

Sentado sob uma faia de franças trémulas, comovido por aquelas lendas,
Vamiré desejou ser, como Harm, um daqueles que descobrem terras
distantes.

Lembrou-se ainda de outras lendas: a história dos Pzanns aventureiros,
que, mais de cem anos antes, haviam tentado explorar a floresta, e
muitos dos quais tinham desaparecido sem deixar vestígios, e outros
tinham regressado, contando que o rio corria eternamente por entre
árvores gigantes, e que os perigos aumentavam a cada dia de viagem.

Mas nada disto desalentava o nómada. A sua curiosidade e a sua coragem
crescia a cada rumor da noite, a cada emboscada que ele entrevia nas
sombras.

Permaneceu largo tempo, sem sono debaixo da faia. Mas quando, enfim, o
cansaço lhe oprimiu o corpo, foi buscar a sua canoa e transportou-a para
a margem; depois, tendo encontrado um lugar seco, estendeu ali a pele
do espeleu e, virando a canoa, cobriu-se com ela, resguardando-se contra
surpresas muito rápidas. E, com a clava numa das mãos e a zagaia noutra,
adormeceu.

Nem nessa noite nem nas seguintes foi Vamiré atacado pelos carnívoros.
Não porque os monstros da sombra não girassem à volta da sua canoa; mas
é que nenhum tentou o assalto.

Vamiré acampava ora em ilhotas, ora nas margens silvestres. Em meio da
abundância de tudo, não lhe faltou carne nem frutos que mantivessem a
força do homem.

Mais de uma vez, diante da interminável floresta, de onde manavam grandes
ribeiras afluindo ao rio, chegou a arrepender-se da aventura, e a
tristeza tomava-lhe a alma. Pensava em que o regresso seria mais difícil
que a ida; a memória inquietava-se-lhe com a história dos que não tinham
regressado; e o coração enchia-se-lhe de saudade, ao lembrar-se de Zom e
Namir, seus geradores, e de seus irmãos e irmãs, mais novos que ele.

É verdade que Zom e Namir o tinham já esperado por outras vezes durante
dois ou três quartos de lua, e se haviam acostumado às ausências dele;
mas agora, que duração teria a viagem?

Os obstáculos acumulavam-se, especialmente as cachoeiras, que Vamiré não
podia transpor, senão levando a canoa pelas margens.

Por entre espinhais e grossas raízes que ressaíam da terra, por cima da
acidentada areia movediça, por entre répteis e feras alapadas, árdua era
a passagem; mas estes próprios obstáculos, à proporção que ele os vencia
em maior número, estimulavam-no à perseverança, pela ânsia de perigos
sem recompensa.

Um dia, despertou quando as aves findavam o hino da alvorada, quando o
orvalho escorria das árvores como chuva ligeira. Um ruído de ramagens
chamou a sua atenção. Viu avançar então um vulto cor de freixo, de
andadura oscilante, aos pulos, acocorado nas mãos posteriores; a sua
estatura excedia a da pantera. As suas quatro mãos, o seu rosto, os seus
olhos circulares, as suas orelhas delicadamente contornadas, lembraram a
Vamiré palavras de Sboz, aquele que de entre os Pzanns penetrara até
mais longe no desconhecido da floresta: naquele extraordinário ser, de
braços desmedidos e peito largo, reconheceu Vamiré o _homem das
árvores_. Estranho aos povos da Europa e quase aos da Ásia, cada período
o impelia para as regiões ardentes: cem mil anos depois do êxodo da
raça, as florestas meridionais, raras e espessas, conservavam apenas
algumas famílias solitárias.

Vamiré teve um movimento de simpatia. Levantando-se, soltou o grito de
chamar, próprio dos Pzanns. O homem das árvores parou, inquieto,
espreitando com os olhos redondos, por baixo da espessura da ramaria.

Vamiré, desviando as frondes, descobriu-o de súbito.

--Hoi!... Venturoso sejas!

O homem das árvores pôs-se em pé. Coberto de pelos penugentos, de raros
cabelos, de menor estatura que o nómada, mas mais largo de ombros,
parecia dotado de uma força extraordinária.

Vamiré admirou-lhe a fisionomia feroz, as maxilas enormes, as
sobrancelhas emaranhadas por cima das pupilas amarelas, a sua epiderme
escura e granulosa, sem que diminuísse a simpatia, o prazer de encontrar
um semelhante, depois de uma semana de solidão; e, acompanhando as
palavras com o gesto, Vamiré tornou:

--Vamiré, amigo..., amigo!

O homem das árvores rosnou, entreabrindo os beiços, certamente hesitante
sobre as intenções do outro.

O nómada, vendo a inutilidade das palavras, recorreu aos gestos, mas sem
outro resultado, senão aumentar a desconfiança do desconhecido.

Sem se importar disso, Vamiré deu alguns passos em frente; mas então, de
punhos cerrados e pupilas trémulas, o homem das árvores bateu no peito e
ameaçou o troglodita. Este irritou-se:

--Vamiré não teme o leão, nem o mamute, nem as ciladas dos homens...--

O homem das árvores rosnou outra vez, sem avançar todavia para o Pzann,
mantendo-se na defensiva.

À vista do que, Vamiré calou-se, já sem ira, e com uma curiosidade
crescente.

Os dois contemplaram-se por algum tempo.

Esta pausa pareceu inspirar alguma confiança ao homem das árvores. A sua
fisionomia desvincou-se, manifestando uma paz de herbívoro. Embora menos
analista que Vamiré, percebia também que estava na presença de um
semelhante. Vagos instintos porém, talvez recordações directas, temores
atávicos, não lhe tornavam agradável tal presença.

Sentiria ele que outrora, ao dissolver-se o período terciário, ele
ocupava a mesma escala do grande dolicocéfalo que estava em pé diante
dele? Que, por misérias e vivendas depressivas, a sua raça estava
agonizante e a do outro vitoriosa? Traria ele, gravadas na sua carne, as
dores, as revoltas, as nostalgias, os êxodos perpétuos, as campanhas
perdidas, tudo que se transmite de geração a geração, de sangue a
sangue, e cujo despertar indefinido, entressonho de vidas passadas,
ressurgidas subitamente nas fibras hereditárias, equivale à memória
directa e precisa?...

E o homem das árvores, desajeitado, continuava, embora menos
desconfiado, a espreitar Vamiré. O Pzann, deixando de gesticular, e
convencendo-se da impossibilidade de se fazer compreender, retirou-se
para a sua canoa, a fim de a pôr a flutuar.

Quando chegou ao rio, voltou-se e viu que o homem das árvores o tinha
seguido e o olhava com curiosidade.

Embarcado Vamiré, uma certa benevolência se desenhou na boca cinzenta,
sobreposta de nariz chato, do homem das árvores, que com os braços
peludos esboçou um vago gesto de amigo. Vamiré correspondeu-lhe
imediatamente, sorrindo, e desculpando ao selvagem a desconfiança.

Por muito tempo, e enquanto a débil canoa se afastava, entre o raizame
das margens deixou-se ver imóvel uma face atenta; e uma admiração pânica
e uma impressão mista e selvática como as sarças marginais, vagueavam no
cérebro do homem inferior, no crânio moroso do homem das árvores.




VI

Contra-anúncio


Mais alguns dias, e sempre a floresta! Vamiré começou a duvidar de que
ela terminasse. Porque não seria ela a fronteira do mundo?

E contudo as cachoeiras iam diminuindo. À excepção do assalto de uma
pantera, que do alto de uma árvore o atacou, e cujas entranhas ele fez
em pedaços, à excepção da tortura dos infinitamente pequenos que sem
cessar lhe perseguiam o corpo, à excepção das ameaças dos répteis,
Vamiré só tivera que vencer os obstáculos do inanimado, as ciladas da
terra pantanosa e das plantas emaranhadas das angras. Cada vez mais
hábil em adivinhar os perigos, ao simples aspecto da terra e das águas,
acostumara-se a rir de tais obstáculos, e maior altivez palpitava no seu
coração e nas suas carnes.

Ao sexagésimo dia, a vegetação começou a clarear-se. Por duas ou três
vezes se avistaram clareiras, novos recantos silvestres em que as
árvores eram mais acanhadas e mais raros os colossos seculares.

Por outros indícios ainda, pela presença de animais que preferem a
proximidade dos espaços livres, pela própria natureza do terreno, Vamiré
pôde pressentir o bom êxito da sua empresa.

Dois dias depois, haviam desaparecido as suas últimas duvidas. A margem
esquerda mostrou-lhe velhas estepes, ligeiramente arborizadas, e onde as
árvores se disseminavam muito.

Ao meio do sexagésimo oitavo dia, amarrou a canoa numa calheta
escolhida, armou-se com as zagaias e a clava, e empreendeu uma excursão
a pé, para o lado do Ocidente.

O solo era firme; as gramíneas e as plântulas predominavam, cada vez
mais, entre as árvores.

Depois de algumas horas, Vamiré chegou acima de um outeiro, de onde
avistava um amplo horizonte. Ao Norte, uma perspectiva verde, violácea,
atrigueirada, a floresta-oceano, por onde se escoavam os encantos da
luz, onde a vida se alastrava em expansões inúmeras e subtis. Ao Sul, a
inclinação das estepes, entrecortadas de oásis, a perspectiva de uma
região de caça e transito livre, o novo pais que Vamiré desejava
conhecer, e cuja aparição lhe encheu triunfalmente o peito.

Rindo consigo, pensava na surpresa dos Pzanns, na satisfação de Zom e de
Namir, quando lhes contasse a sua viagem.

Ficou extático, por muito tempo, sobre a colina. Mas o firmamento, por
cima dele, tornou-se ardente. Juntaram-se grossas nuvens, carbunculosas,
orladas de fosforescências. Um sopro angustioso, giratório, ascensional,
comprimia as plantas; os raios caíram majestosamente sobre a floresta.

Vamiré gostou da tempestade; o seu organismo absorveu a força e o
movimento dela, tão acordes com o estado da sua alma. Quando se
despenhavam as águas do céu, Vamiré desnudou os ombros e recebeu com
voluptuosidade a fresca inundação.

Calmou-se entretanto a tormenta, esfarrapados os nimbos, bebidos pela
tepidez firmamental, desfeitos pelos choques eléctricos. Apenas as
gramíneas guardavam a humidade fluvial: a terra ávida tudo absorvera.

Depois da chuva, Vamiré marchou deliciado para a paisagem. Os últimos
vestígios silvestres tinham-se desvanecido. Nada havia já, se não
estepes imensas, entrecortadas de verdes maciços.

As nuvens disseminadas desmanchavam-se em pedaços efémeros adiante do
sol, e uma ligeira sombra, de instante a instante, refrescava as
perspectivas.

Ia chegando a noite. À hora do crepúsculo, Vamiré, parou à beira de um
oásis e passou ali a noite. No outro dia, prosseguiu na marcha,
resolvido, se não sobreviesse alguma aventura, a regressar, visto como
havia descoberto o que desejava: novas terras de caça.

Pegadas de uros, de aurocos, de veados, de cavalos, convenceram-no da
fecundidade do terreno, e projectou uma grande expedição de moços
Pzanns, para o ano seguinte. Mas, ao segundo terço daquele dia, ocorreu
uma aventura importante.

Foi durante uma paragem, quando o nómada acabava de comer um par de
codornizes, caçadas durante a marcha. Abrigado sob umas figueiras
silvestres, viu aproximar-se uma mulher.

Vinha vestida de fibras vegetais, entretecidas de gramíneas da planície.

Vamiré encobria-se; a onda que nele se agitava, do coração ao cérebro,
traduzia ansiedade e satisfação.

A certeza de que ela era moça demonstrava-se não só ao simples aspecto,
à proporção que ela se aproximava, mas também pela cadência do andar e
pela flexível vacilação das ancas.

Quando ela chegou a trinta passos, viu-se que atingia apenas a
puberdade, mimosa virgem de grandes olhos, surpreendendo Vamiré pela
dissemelhança com a rapariga vulgar da Europa, de crânio alongado e
compleição robusta.

O seu rosto, um pouco redondo, pálido como as nuvens primaverais, os
seus cabelos iguais à melânia dos lagos em noites sem estrelas, a sua
cintura breve, mais comparável à circunferência dos freixos que à dos
choupos, e o porte da sua figura, e a forma dos seus lábios e da sua
fronte, e o talho das suas pálpebras, tudo lembrava a raça longínqua, a
humanidade que se engrandecera, após milhares de séculos sem contacto
com as hordas nómadas do Ocidente.

Vamiré,--da mesma forma que o herbívoro, estranho desde séculos às
regiões bravias, guarda o instinto atávico de reconhecer o grande
tigre,--Vamiré percebia a distância entre o seu organismo e o da
adolescente. Previu coisas inteiramente novas naquele recanto do mundo,
aonde o levara um capricho seu; e esta presciência do desconhecido
abalou-o. Hesitava o nómada em assaltar aquela presa de amor, e uma
horripilação atravessava-lhe as fibras, como a aproximação de uma
tempestade nos nervos de um pássaro. Mas na sua imaginação bárbara,
agitada por um sangue eléctrico e por todo o amor de Maio, a estrangeira
pareceu infinitamente apetitosa.

Filho da arte, propenso à voluptuosidade dos contrastes, sentiu-se
atraído pelos longos cílios de frouxel negro, pelo andar oscilante, pela
precisão dos contornos, pela encantadora viveza das pupilas, e
resolveu-se.

Mas, enquanto hesitava, a viandante abeirou-se do oásis. Vamiré
levantou-se de um salto, com a rapidez de um garanhão.

Sentindo rumor e voltando-se, a virgem viu chegar Vamiré. Assombrada e
gritando plangentemente, tentou fugir. Pisava as grandes ervas, correndo
ligeira, mas sem esperança de escapar ao formidável caçador, e por duas
ou três vezes procurou ladear, encobrindo-se com as moitas, tomando por
tangentes. Vamiré perseguia-a, cada vez de mais perto, retardado
simplesmente pelo prazer de ver flutuar os cabelos da fugitiva e
requebrar-se seu tenro corpo em curvas tentadoras. A virgem sentiu-o
enfim junto de si, e na cabeça o hálito do caçador.

Parou e voltou-se. Com o susto a reflectir-se nas pupilas, e o peito
turgescente sob as fibras do vestuário, ergueu os braços suplicante, em
meio de uma caudal de palavras confusas.

O nómada ficou imóvel diante dela, convencido da impossibilidade de
compreender aquela linguagem, mais rápida e mais sonora que a sua. Mas a
linguagem da natureza, o terror impresso nos lábios e nas pálpebras da
desconhecida, moveram-no à piedade. Menos vivas e mais profundas,
percorreram-lhe o organismo novas impressões, esboço de poema selvagem e
retraimento de brutalidades voluptuosas diante da ternura.

Teria ela a compreensão, o instinto sequer, do seu triunfo sobre o
grande ocidental de cabelos claros?

Menos tremula, continuou a murmurar silabas, mescladas de uma indecisa
malícia. Vamiré tentou responder, significar-lhe que não queria
fazer-lhe mal. Mas os seus gestos de estatuário eram novos para ela, que
os observava atentamente. Filha de raças não plásticas, de raças
cultuais, não compreendia senão movimentos amplos e monótonos, distantes
da natureza. Mas ainda mais que pelos gestos, pareceu surpreendida
quando Vamiré, desprendendo um dos seus enfeites de marfim, lho
ofereceu: não sem desconfiança, a virgem contemplou as linhas gravadas
na pequena lâmina,--a corrida de um uro, perseguido por uma fera,--e
pegava no artefacto em sentido contrário sem o compreender. O nómada,
sorrindo, pôs-se a indicar a direcção dos traços, a representar o
desenho por gestos, perturbando-a ainda mais.

Entretanto, os olhos e as interjeições de Vamiré iam-na tranquilizando a
pouco e pouco.

A desconhecida já sorria também. Então, cheio de alegria, Vamiré pôs-lhe
a mão no ombro. Ela recuou, voltando à desconfiança.

--Vamiré é bom!--murmurou ele.

De repente, a desconhecida, estendendo os olhos pelo horizonte, deu um
salto e bateu as mãos. Vamiré, seguindo-lhe a direcção do olhar, viu,
contrariado, aproximar-se, correndo, um grupo de homens, enquanto ela,
com um gesto, um tanto travesso, fazia sinal ao nómada para que fugisse.

Vamiré, crispando as mãos, tacteava as suas armas e contava os
sobrevindos, que eram doze, armados de grandes arcos e lanças.

Diante da impossibilidade da luta, deixou-se possuir de uma desesperação
de idílio frustrado e de orgulho ferido.

--Vamiré não tem medo,--disse ele altivamente. E, como a estrangeira se
ia afastando, seguiu-a e segurou-a por um braço. Ela debatia-se,
gritando alto. Irritado, Vamiré apertou-a contra si e levantou-a.

Aterrada por ver que era leve como uma cabrinha sobre o peito do nómada,
defendeu-se sem violência, timidamente.

Não obstante o fardo, Vamiré tomou caminho, e pôs-se a correr, com uma
velocidade surpreendente, excitado pelo grito dos que o perseguiam, e,
pelo menos nos primeiros minutos, foi ele o vitorioso.

Os que lhe iam na cola, membrudos, e de raça menos encorpada que a dele,
não pareciam perseguidores de presas, homens de jarretes de fera, como
os dolicocéfalos ocidentais.

Ágeis contudo, não cansariam tão depressa como Vamiré, a menos que este
não abandonasse o fardo. Mas ele não pensava nisso, dominado pelo seu
temperamento de lutador.

Vamiré corria para leste, para a margem onde deixara a canoa. Supondo-se
mesmo que mantivesse a sua velocidade, não poderia chegar lá antes de
metade de um dia, muito depois do crepúsculo, depois que a lua estivesse
no zénite.

Passados alguns minutos, a donzela deixou de se defender. Mulher afinal,
levada por um homem que a não tratava severamente, começou a sentir uma
vaga curiosidade, deixando descansar a cabeça e a parte superior do
peito no ombro de Vamiré.

Ao longe, na planície, via os homens da sua tribo, distinguia-lhes os
gestos. Armados de grandes arcos e lanças velozes, cobertos de mantos
tecidos com fibras de plantas e lã de animais, eram por ela confusamente
cotejados com Vamiré, vestido com a pele do espeleu e armado de clava e
zagaia; desejaria sem duvida que eles triunfassem, e contudo desejaria
também salvar a vida do seu raptador. Uns longes de vaidade, a impressão
feminina de que a violência do homem não era uma injuria, a força de
Vamiré, a atracção do desconhecido, todas estas coisas vagueavam no seu
espírito semibárbaro, não permitindo a fixidez de um desejo.

Decorreu uma hora de terrível correria, em que Vamiré aumentou sempre a
dianteira que tomara.

Mais suave, mais inclinada, a luz cobria de âmbar a planície, e a sombra
do caçador e da sua presa galopava, projectando-se imensa para leste.

Voltando-se subitamente, Vamiré não viu os perseguidores. Subiu a um
montículo e avistou-os a mais de quinhentos cúbitos. Abriu os lábios num
sorriso triunfal e gritou:

--Eô! Eô!

E, voltando-se para a virgem:

--Vamiré é o mais forte!--

Ela voltava a cabeça, ofendida por aquele sorriso e por aquele grito. O
caçador sentou-a, e ficaram em silêncio por minutos.

A respiração de Vamiré, rouca e desagradável pouco antes, foi-se
regularizando; o peito arquejava-lhe mais rítmico.

O nómada murmurou então algumas palavras. Ela abriu os olhos, e o seu
olhar encontrou o dele. O olhar de Vamiré era sereno e terno. Ela
encrespou as pálpebras, deixando ler no rosto uma temeridade feminina,
maliciosa, desdenhosa.

Vamiré inquietava-se e encantava-se com isso: achava-a assim mais
amável, e repetia, com menor convicção:

--Vamiré é o mais forte!--

Os perseguidores aproximavam-se: era necessário recomeçar a fuga.

Vamiré retomou a dianteira que levara, e pareceu então evidente que os
outros, e não ele, cansariam primeiro. Demais, os perseguidores, que até
então corriam juntos, começaram a desunir-se, e três ou quatro
apresentavam-se muito fatigados para prosseguir. Os outros
conservavam-se quase em grupo, sem que nenhum curasse de se adiantar aos
companheiros, dominado pelo misterioso da aventura e pela estatura
elevada e agilidade extraordinária do dolicocéfalo.

Ia-se entretanto extinguindo o dia. Era a hora da cor de jalde. Na
planície, um silêncio sem vibrações, uma atmosfera melancólica e fresca,
um estádio de repoiso.

Os oásis esparsos difundiam vida em torno de si; os nemóceros voavam em
altas colunas por cima das superfícies húmidas; por toda a parte
despertava um frémito eufónico, balbuciações de pássaros. Hora de
segurança e bem-estar, em que os animais diurnos não tinham que recear o
vaguear das feras, hora em que os grandes ruminantes se deitavam na
planície com uma segurança encantadora, e em que alguma coisa do viço
matinal voltava, ao cair do dia.

A corrida de Vamiré tornava-se frouxa e difícil; mas, atrás dele, a
perseguição parecia abandonada.

Na extrema do horizonte, o vulto dos archeiros fora-se esvaindo; e
debalde o caçador procurou avistá-los, subindo a um montijo. Descansou
pela segunda vez, poisando a desconhecida.

Esta, melancólica, quedou-se de pé, ao lado dele, compreendendo a
inutilidade de qualquer tentativa de fuga.

Quanto a ele, sentia-se agora muito fatigado para exprimir o seu
triunfo, e inquietava-se por ver que não poderia recomeçar a corrida.
Consolava-o contudo a ideia de que os seus perseguidores deviam estar
também extenuados.

E ficaram ambos silenciosos.

Chegava o crepúsculo. Com uma lentidão majestosa, os mundos do colorido
iam-se apagando sobre o Poente, e Vamiré estremeceu, vendo a sua
companheira inclinar-se, estender os braços para o horizonte e falar ao
disco do sol. Filho dos ocidentais não hieráticos, vagamente
supersticioso mas sem culto, não compreendia o acto da oriental e
olhava-a com curiosidade, com inquietação talvez.

Quando ela terminou, demoraram-se ainda algum tempo, até que a lua se
ergueu.

--Vem,--significou Vamiré.

Ela compreendeu o gesto e, sem resistência, marchou ao lado dele.
Depois, na solidão da noite, enquanto o lobo e o chacal começavam a
uivar sobre as estepes, ele era um apoio. A estrangeira admirava
profundamente a grande clava do caçador, lançada ao ombro e fixada por
ligaduras. Era já um principio de intimidade, de confiança, de
resignação mais calma. Mas Vamiré, cheio de cansaço, não tinha o ardor
de pouco antes, esgotado nas suas artérias o sangue de Maio, cheio de
poderosas moléculas.

Marcharam por muito tempo os dois vultos, enquanto subia a lua
pré-histórica. Começava a estepe a cobrir-se de mais numerosos oásis; as
árvores, multiplicando-se em moitedos, anunciavam a proximidade da
floresta; os raios do luar incidiam mais prateados sobre as ervas, e
Vamiré entendeu que a sua companheira devia ter fome e sono. Ele tinha
sobretudo sede.

--Descansa!--disse ele; Vamiré vai caçar.

Ela assentou-se, submissa. Era debaixo de três figueiras silvestres,
robustas e cheias do perfume da primavera. O sonho infiltrava-se por
entre as ramarias, o eterno sonho da lua e das constelações; e a filha
dos orientais entregou-lhe a sua alma confusa. Sonhando, percebia a
fragilidade do seu ser; a sua família e a sua tribo, o larário da noite,
os sacerdotes, os rebanhos de bois asiáticos, povoavam-lhe a mente e
torturavam-na até as lágrimas; mas, ali sozinha, não chegava a odiar o
homem que a roubara, antes o considerava como barreira única diante da
noite formidável.

Vamiré, na planície observava atento o horizonte. Perfis de felinos
apareciam a espaços. Muito ao longe, um cervídeo ia fugindo. Mas eis que
um lobo, de focinho erguido, se aproxima das três figueiras; quase ao
mesmo tempo, saltou assustado um animalzito, uma lebre.

Postado em linha obliqua, Vamiré esperou o ponto em que lhe ficasse mais
próxima a carreira dela; depois, a sua zagaia ergueu-se, sibilou, e o
pequeno animal rolou entre as ervas. Ao salto do caçador, o lobo fugiu e
Vamiré foi apanhar a lebre.

Esfolou-a rapidamente e suspendeu-a de uma frança. Depois, ajuntando
ramos e ervas secas, tirou de um saquete o sílex com que os
dolicocéfalos faziam lume, estendeu as fibras mais secas e fez saltar
centelhas.

Depois de algumas tentativas, a chama levantou-se, pequena ao principio,
mas avivada depois por mancheias de combustível, acertadamente
dispostas, e a lebre começou a assar-se.

A asiática, à vista do lume, inclinou-se, como fizera diante do sol
poente, e com igual melopeia de palavras.

Vamiré, impassível, acabou de assar a lebre. Depois, convidou a sua
companheira, e ambos comeram em silêncio.

A refeição foi breve. O cansaço de um e a comoção de outra não lhes
permitiam comer muito; mas atormentava-os uma viva sede: era mister
prosseguir na marcha até se achar água.

Puseram-se em marcha, e, antes de mil passos, Vamiré começou a ouvir o
murmúrio de águas e, logo após, avistou um regato, onde se
dessedentaram.

--Dormir!--deu a entender o homem.

Ela compreendeu o gesto. Perturbou-se, perscrutou Vamiré, que, à palidez
do luar, tinha um aspecto triste, abatido, nada feroz. Sentou-se então
contra um vidoeiro e, um tanto receosa ainda, entrecerrou as pálpebras,
em luta com o cansaço. A natureza dominou-a, e ela cedeu à semi-morte
quotidiana.

Sentado à beira do regato, Vamiré contemplava as facetas da água, as
retículas da vegetação, as ombreiras dos salgueiros interpostos diante
da lua.

Pelo seu cérebro vagueava um devaneio vasto e tranquilo como a noite.
Amortecido pela fadiga, toda aquela aventura se lhe esboçava em notas
lentas, profundas, eternas. A ascensão da lua, o uivo dos animais, o
murmúrio dos fluidos, os fantasmas arborescentes erguidos na planície,
pareciam conceder-lhe o tempo e o espaço. Por ter trazido consigo a
donzela, parecia-lhe sua, como a pele do espeleu, que lhe pendia dos
ombros.

Mas o firmamento começou-lhe a vacilar, as árvores iam-se transmudando
em fisionomias movediças. Por sua vez, Vamiré sentiu o ambiente pesado,
o seu ser retraído e as suas carnes cedendo ao repoiso. Deu vagamente
alguns passos por baixo do vidoeiro, segurou com a mão a veste da
adormecida e estendeu-se sobre as ervas.

Correu tempo. A lua começou a declinar e estava a menos de trinta graus
do horizonte, quando Vamiré despertou.

Com um lance de olhos, assegurou-se da presença da sua companheira e
pôs-se de pé, observando a planície. Mas nada viu de duvidoso, e
concluiu que os perseguidores tinham desistido do intento ou que a sua
fadiga, maior que a dele, os condenara ao repoiso.

Como se sentia bem disposto e com as forças restabelecidas, resolveu
aumentar ainda aquela boa disposição e pôr-se a caminho.

Restava um pedaço de lebre; partiu-o em dois e comeu um. Depois, tendo
refrescado a cabeça no regato, ficou, por alguns minutos, contemplando a
adormecida.

Estava estendida agora sobre o solo. A delicada cabeça apoiava-se no
cotovelo. O seu corpo, dobrado em ziguezague, tinha um estranho encanto,
que alvoraçava Vamiré.

Uma onda de sangue rugiu nas fontes do caçador; reaparecia nele o
instinto selvagem.

O homem abaixou-se. Mas que instinto ou que doçura poética o fez erguer,
cheio de piedade?

Incapaz de a analisar, sem que ela por isso o impressionasse menos,
acordou a sua companheira, tocando-lhe levemente. Ela ergueu-se
lentamente, assustada, estremunhada. Depois, readquirida a percepção das
coisas, ficou triste e estendeu um olhar sombrio às estepes lunares, à
queda avermelhada do astro nos abismos ocidentais. Entretanto, foi-a
invadindo uma vaga satisfação, pois que o dia se aproximava, e as suas
carnes viçosas eram uma invocação à felicidade.

De maneira que não recusou a ligeira refeição, oferecida por Vamiré, e
até, renascendo-lhe o apetite, sentiu prazer em mordiscar a coxa assada
da lebre. O caçador, encantado, admirava-lhe os dentes de lobo, a
cabeladura desprendida ao longo do pescoço; e não sei que sentimento de
maternidade se mesclava ao amor crescente do moço pré-histórico.

Furtivamente, de olhos baixos, ia-se ela acostumando à presença do
caçador, achava-o mais belo e mais robusto ainda do que na véspera, mas;
a sagrada recordação da tribo interpunha-se aos dois e enchia-a de
saudades.




VII

A perseguição


Pouco depois do alvorecer, Vamiré e a sua companheira chegaram enfim ao
rio.

A abandonada canoa lá estava ainda na moita onde ele a escondeu: teve só
que tomá-la aos ombros e pô-la a nado. Mas quando nela quis meter a
estrangeira, esta manifestou violenta repugnância. Foi quase preciso
empregar a força. Entretanto, desde que ela se viu embaraçada,
voltou-lhe a resignação, o seu fatalismo de oriental.

Vamiré, acompanhando a margem, por onde a corrente era mais branda,
pôs-se a navegar rio acima, lentamente.

Era deliciosa a hora, os raios do sol oblíquos, e toda a natureza
rejuvenescia nas estepes. Árvores mais numerosas anunciavam a
proximidade da floresta, e Vamiré esperava chegar lá, antes que o sol
estivesse a meio caminho do zénite.

Mas haveria apenas meia hora que ele pangaiava, quando teve um rebate. O
seu olhar perspicaz descobria além, na planície, uma multidão confusa de
homens ou animais. Minutos depois, não restava duvida: eram homens
parecidos aos perseguidores da véspera e provavelmente os mesmos. Graças
ao cortinado das árvores, Vamiré tinha a vantagem de que eles não
descobririam prontamente a canoa, ao passo que ele, próximo dessas
árvores, cujos intervalos lhe serviam de observatório, estava em posição
de lhes seguir os movimentos pela planície inclinada que levava ao rio.

Demais, não traziam pressa; paravam amiúde, e desde logo percebeu o
nómada que eles lhes seguiam a pista, com todas as paragens inerentes a
este modo de perseguir.

Vamiré não descobriu a impressão à sua companheira, e começou a pangaiar
com mais ardor, no intuito de atingir a floresta e desembarcar na outra
margem. Mas, após alguns minutos, a rapariga avistou por sua vez os que
a procuravam, e a sua fisionomia animou-se. Soltou uma exclamação, e,
voltando-se para o seu raptador, dirigiu-lhe um olhar suplicante e
humilde.

Vamiré baixou os olhos, comovido. Mas depois veio-lhe o despeito, uma
resolução rude, que lhe fez dizer, como na véspera:

--Vamiré é o mais forte!--

Ela conservou-se firme, indiferente na aparência, observando
obliquamente a vinda dos outros.

Vamiré calculou que, não sendo visto no momento em que eles chegassem à
margem para conhecer as condições do rio entre a vegetação que o
ladeava, hesitariam necessariamente entre três ideias: que ele teria
descido a corrente; que a teria subido; ou que teria atravessado o rio e
continuado o seu caminho para leste.

Mantendo-se a velocidade actual da canoa, seria possível chegar à ilhota
longa e estreita, coberta de arvoredo, que ele avistava mais acima, a
dois mil cúbitos. Chegando lá e voltando à direita, nada poderia ser
observado pelos perseguidores. Calculando bem as velocidades
respectivas, a sua salvação dependia de uma dezena de cúbitos.

Empenhou todas as suas forças num impulso supremo, e abeirou-se
rapidamente da ilha. Mas ao mesmo tempo chegavam os outros ao rio.

Naquele momento, foi enorme a inquietação de Vamiré: um dos asiáticos,
pondo a mão em pala sobre a testa, parecia olhar na direcção dos
fugitivos. Pela maneira como deixou cair a mão, pareceu a Vamiré que ele
nada tinha visto; mas não era menos certo que o cortinado das árvores se
tornava menos opaco para os outros e podia ser sondado por algum deles.

Felizmente a ilha estava próxima: mais algumas remadas, e Vamiré estaria
no pontal.

Mas, de repente, a sua companheira, percebendo-lhe a estratégia
desesperada, ergueu-se em pé e soltou um grito. Sem reagir, Vamiré deu
as últimas remadas, dobrou o pontal, e, à sombra, invisível, tomou terra
numa pequena calheta, e levantou-se furioso:

--Cala-te!--

A sua mão rude levantou a rapariga, sacudindo-a. Ela assustou-se,
calou-se, dominada, entregue ao seu fatalismo.

Vamiré conservou-se irritado dois minutos, com os temporais latejantes.
Depois, serenou, convencido de que o grito não chegara à margem, e
pôs-se a perscrutar a estepe.

Devidamente, ele estava de melhor partido. Os outros, lá em baixo, mais
vagarosos, mais hesitantes, chegados a uma zona, em que as pegadas de
uros se confundiam com os vestígios de Vamiré, certamente não podiam
ainda explorar o rio. Vamiré apontou-os, triunfantemente com o dedo à
oriental:

--Nunca mais te haverão..., nunca mais!--

E, obrigando-a a sentar-se de novo na canoa, retomou o remo e continuou
a costear a ilhota.

A pequena embarcação singrou silenciosamente por algum tempo. A ilha
ia-se alargando, recoberta de áspera vegetação, de árvores devoradas por
cipós. De espaço a espaço, descobriam-se sapos colossais, aves
pernaltas, palmípedes.

Através do incenso primaveral, da alegria perfumada das corolas, emanava
das sombras um bafio de humo, de madeira bolorenta, de organismos
sáurios. Aqui e ali, pontais a dobrar e plantas fluviais sobrenadando,
atravancavam a canoa. As ogivas dos ameeiros e dos freixos roçavam
Vamiré e a sua companheira; e a imagem trémula das coisas ressaltava das
águas, revestida, ao mesmo tempo, de uma graça mais discreta e de uns
revérberos vertiginosos.

E assim foi chegando Vamiré até meio da costa; depois, a ilha começou a
estreitar-se, a afilar-se, à feição de proa.

As águas azulejaram. Avistou-se enfim a ponta da ilha; o rio mostrou-se
largo e límpido; a floresta ostentou-se a três mil cúbitos.

O nómada entendeu que, ficando à esquerda, a interposição da
ilhota-navio o tornaria seguramente invisível, enquanto os seus inimigos
não chegassem ao ponto marginal correspondente ao centro, dado que eles
continuassem a persegui-lo. Ainda mesmo que eles passassem para a outra
margem,--caso em que o perigo seria mais próximo,--ele chegaria
provavelmente à região florestal antes de ser avistado, e ali a
dificuldade da marcha para eles dava toda a vantagem à canoa, vogando
livremente sobre as águas...




VIII

Noite na floresta


Ainda a noite! A vida imensa e minúscula; o mistério das forças; léguas
de floresta; o choque das moléculas e dos seres; o contacto interminável
da terra; o eriçar-se dos organismos imóveis, de veias frias,
estremecendo ao roçar da aragem; o divagar da fome, das angustias, dos
amores; e um astro de âmbar pálido rolando nas solidões do firmamento.

Entre musgosos montijos, Vamiré construiu provisório abrigo, coberto e
fechado por grossos ramos, entrelaçados de enrediças. Fortaleza sólida.
Se uma fera tentasse violá-la, Vamiré teria tempo de a ferir
mortalmente, pelos interstícios, com a ponta da zagaia, embebida num
veneno subtil e encabada numa haste de freixo.

Ao meio da noite, Vamiré, despertado por certo rumor, abriu os olhos e
observou. Em torno do abrigo, vagueavam lobos; uma pantera ia passando
na dúbia claridade do mato. Soaram entretanto uns gemidos roucos: Vamiré
avistou o vulto de um grande tigre, que devorava um antílope, ainda
vivo.

--Élem!--murmurou ele.

A doçura penetrou-lhe na alma, diante da braveza da noite. O nome, que
pronunciou, era o da sua companheira, nome que ele obtivera na paragem
do meio dia, quando a apertava com perguntas gesticuladas.

É a terceira noite que passam na floresta, sem que o nómada saiba se são
perseguidos ou não. A fuga fora penosa, o rio cheio de sinuosidades, a
floresta abundante de ciladas, mas tudo vencera o caçador. Àquela, hora,
as peripécias da travessia vinham-lhe à mente, de envolta com o nome da
sua companheira.

--Élem!... Vamiré é o senhor de Élem!--Contempla-a, adormecida. Débeis
ondas de luz, entremeadas de sombras, escoavam-se dos orifícios do
abrigo sobre o rosto da virgem. Vamiré palpitava diante daquele perfil
indefinido, e recompunha-lhe mentalmente os traços pálidos.

À proporção que ele vinha fugindo, à proporção que lutara por ela e
contra ela, que acumulara fadigas para a raptar, mais preciosa se lhe
tornara ainda.

O desenvolvimento da sua ternura coincidia com afectuosidades subtis,
delicadezas de sentimento, até ali desconhecidas. Se se sente rudemente
impelido a levar a aventura até ao desenlace, se deseja Élem apesar
dela, e apesar de todos os perigos, sente-se, em compensação, cheio de
piedade e de paciência.

Só a iminência de um perigo, o medo de a perder ou de morrer poderiam
devolvê-lo à brutalidade de troglodita... Demais, ela incute-lhe um
religioso temor; perturba-o com o seu silêncio, com os seus grandes
olhos, imóveis durante horas, com a sua misteriosa prosternação perante
o sol poente e o sol nascente, com as palavras que ela então profere,
lentas, monótonas, rítmicas...

Estalam ramos. Ouvem-se na clareira passos pesados; os lobos afastam-se.
Por baixo das ramarias, apoiado nas colunas redondas das suas pernas,
com as suas defesas brancas cintilando à frouxa claridade, eis o colosso
quaternário, o grande mamute da decadência. Agita-o uma certa
inquietação ou febre primaveral, um desejo de refrescar-se nas águas do
rio. Adianta-se majestosamente, e o próprio tigre recua, levando a sua
presa.

Vamiré, estremecendo, admira o enorme animal. Conserva por ele o
respeito que os velhos transmitiram, sabe que é valente e pacifico e
conhece a história melancólica da sua decadência.

--Lô! Lô!--

O mamute continua a andar; o perfil da sua larga cabeça torna-se mais
nítido na penumbra, e Vamiré distingue-lhe a crina e a pelagem, a tromba
escura que se baloiça sincronicamente, e os flancos enormes.

O animal roça o abrigo do caçador, afasta-se na direcção do rio, e
Vamiré, deitando-se, julga que pode ter uma hora de sono, e fecha as
pálpebras. As ideias chocam-se confusamente; afastam-se depois, e a
respiração igual atesta o sono, o descanso.

Abrem-se então os olhos negros da sua companheira, que se põe à escuta,
suspirando. Assalta-a uma ideia de libertação; se ela ousasse, enquanto
ele dorme, desmanchar o entrelaçamento dos ramos do abrigo e fugir para
o Ocidente, para as regiões da sua tribo?

Mas Vamiré ouviria certamente o ruído, acordaria, e ela estremece, só à
ideia do seu grito de cólera. Entretanto assoma-lhe aos lábios um
sorriso, um desvanecimento feminil e não se supõe simplesmente uma
vencida. Porque ela viu-o embaraçado e tímido, e fez recuar os apetites
do bárbaro. Tudo isto ela compreende tão bem como as filhas do homem que
hão de viver em longínquo futuro, e das quais ela possui a ciência
confusa e, ao mesmo tempo, subtil.

Por isso os seus receios são mesclados de indulgência, sem todavia poder
esquecer-se daqueles entre quem passou a infância; dos seres da sua
raça, da sua família, dos moços que falam a sua língua.

Se ela ousasse... Mas, acima da cólera de Vamiré, apavora-a a floresta
que a rodeia, abundante de meandros e carnívoros; e reconhece quanto é
fraca, sem a clava e a zagaia do raptador.




IX

O idílio nascente


Nos dias daquela fuga febril, em que o gigante loiro a arrancava ao
sono; nas paragens nocturnas, e durante a comoção das caçadas, começara
a formar-se o idílio na alma de Élem.

Em todos os seus sonhos, e através das pálpebras, surgia o cenário da
floresta e o vulto de Vamiré em movimento, enquanto as estepes natais e
as tribos pastorís se confundiam e se desvaneciam nos confusos
horizontes da memória.

Mas, quando recrescia o instinto de resistência extrema, o receio da
maternidade, o desejo de sorte menos inquieta, e quando surgia a ideia
da união dos dois, na convivência, no contacto dos corpos, mais
distantes pareciam um do outro, esquivos, concentrados.

Algumas vezes porém, as horas que ao meio do dia dominam a carne e ao
crepúsculo o pensamento, quebravam aquela indiferença.

Então, a virgem morena, amortecida ao calor da atmosfera, ou embalada
nos vagos rumores do sonho, distendia a vontade rude, poisava os olhos
nos olhos do homem, permitia um pouco de intimidade. Indispunha-a porém
contra ele uma fera que rugia, um relampaguear de tormenta, um súbito
receio dos lobos nocturnos.

Vamiré conseguiu algumas vezes que ela cantasse as melopeias, com que a
sua tribo acompanhava o trabalho. Escutava-a, encantado pela sua candura
de selvagem, seguia a cadência, embebia-se na musica de uma língua
desconhecida. Como uma criança balbuciante, repetia o canto,
inclinando-se às articulações misteriosas.

Porque ele ia aprendendo o dialecto estrangeiro, já sabia designar
objectos e vocalizar movimentos.

Por seu lado, ela interessava-se pelas armas, pelas zagaias, de que
Vamiré empregava muitas espécies;--as de bases abertas para receberem a
haste; as de pontas que se embebiam num buraco da haste; as de arpões
chatos ou de varetas; as de lâminas como punhais; as de raspadeira; mas
o que ela admirava sobretudo era a fina agulha de fundo aberto, e o fio
para coser, tirado dos tendões da rena,--coisas desconhecidas da tribo
dela, a qual, se bem que já sabia a arte de entrelaçar as folhas
vegetais, ainda empregava unicamente o furador.

E não admirava menos a escultura e a gravura, espantada da paciência, da
segurança dos entalhes, da verdade das análises. Escutava com
curiosidade Vamiré, que procurava explicar o modo de vida dos Pzanns; e
seguia a gesticulação do homem, que indicava dimensões, figurava
cerimónias, descrevia habitações.

De uma vez, quis ela informar-se da sorte das mulheres e, depois de
alguns esforços, compreendeu a repartição em famílias, sob a direcção
dos anciãos. Admirou-se muito, porque provinha das tribos monógamas em
que havia uniões periódicas com as tribos amigas, sendo os filhos
criados pelas mães, e os pais reciprocamente guarda-costas das esposas e
protectores vigilantes da prole.

Os raptos de donzelas eram habituais; pelo quê, a cólera dos orientais
não procedia do rapto de Élem, mas de que Vamiré tivesse cometido esse
rapto sem aliança prévia, e, mais ainda, essa cólera procedia da viva
aversão a uma raça longínqua.

Entretanto, Vamiré e Élem compreendiam-se mal, pela impossibilidade das
minúcias.

Na marcha, na caça, na cozinha, iam decorrendo longas horas. Viviam em
comum, tocavam-se ingenuamente, como duas crianças perdidas na floresta
imensa. Ela obedecia a todas as necessidades estratégicas, deixava-se
quase guiar, mas, a cada paragem, assumia uma atitude mesclada de temor
e galantaria.

Vamiré mantinha não sei que nobre doçura; entristecia às vezes; era rude
com as coisas, pisando os ramos de árvores, correndo contra os lobos e
as panteras; mas, para ela, não tinha a menor violência.

Quando havia uma passagem perigosa, e ele tomava nos braços a
companheira, submergia-se-lhe o coração numa onda de fogo, mas ele
conservava a humildade do leão diante da sua fêmea, uma nobreza de
bárbaro distinto. Além de que, ele sabia que nas cavernas da sua tribo
os esponsais eram precedidos de preparações e provas, que eram já uma
delicada compreensão dos transes fecundos do amor--alegrias e penas,
febres sufocadas, lutas intimas, destinadas a converter-se em grandes
batalhas da futura humanidade.

Vamiré aceitava as provas que deviam engrandecer a espécie,--a sedução
lenta, a ventura recebida aos poucos, sem triunfos grosseiros; e é por
isso principalmente que as gerações, dele procedentes, seriam gloriosas
através dos tempos.




X

Combate


Depois da alvorada, voga a canoa, por entre a frescura das margens,
sobre o rio que se alarga; alto dia, vai correndo pelo amplo intervalo
que separa as ramarias. Ao longe, algumas ilhotas formam escalão e a
imagem das árvores marginais, a sua cor escura, a vida que nelas
palpita, têm uma beleza vertiginosa.

Em torno, a floresta é como um antro escuro de mil aberturas hiantes,
toda povoada pelos rumores da vida, abrigo formidável da eterna luta,
asilo de raças contrárias, propicia às ciladas do ataque e aos redutos
da defesa, grande despensario de mantimentos, comum ao animal frugívoro
e ao carnívoro, ao réptil e à ave.

Vamiré empunha o arpão, no intuito de ferir algum peixe. Está tranquilo.
Depois das corridas dos últimos dias, a necessidade de descanso prende-o
a quaisquer entretenimentos: a Reparação das armas ou do vestuário; a
espera de caça apetitosa.

Nesta manhã, entretém-se com a pesca. Já duas vezes errou a vitima,
porque o animal das águas foge mais rapidamente na esteira do seu
hélice, do que a mão do homem se move.

Abaixa-se o arpão pela terceira vez, e Vamiré, segurando a haste, crava
a ponta aguda no flanco de um pequeno esturjão. O peixe ondula e
ressalta; as empolgueiras opõem-se à saída da arma; mas, com os saltos
eléctricos da presa, os liames estão em risco de se partir, e é mister
que Vamiré manobre habilmente, para evitar os repelões muito fortes ou
muito perpendiculares.

Vai pangaiando com a mão esquerda e impelindo a presa adiante de si, até
à borda do rio; chegado ali, crava ainda mais o arpão, levanta enfim o
esturjão ensanguentado e atira-o para a margem.

Vai preparar a refeição. Os ramos secos, as hastes herbáceas, devoradas
pelo fogo, produzem um acervo de cinzas pardas, onde se embebem pedaços
da presa, e de onde se retiram, transmudados em carne tenra e saborosa,
que Vamiré e Élem comem com apetite.

Um pouco entorpecidos pela boa refeição, estiram vagamente os olhos pela
diversidade das coisas; acham-se a bastante distância da margem, numa
clareira, ladeada de faias giganteias. Abundam as sarças, que vão
recosendo os rasgões, ali abertos por alguma catástrofe antiga, e
refazendo a integridade da floresta. Desabrocham robustas compósitas com
uma flor amarga; e crescem cardos colossais, hirsutos, farpados,
soberbos e terríveis.

Élem e Vamiré devaneiam suavemente em completa tranquilidade; mas eis
que uma frecha passa a dois palmos do Pzann. Este levanta-se, e empunha
as armas. O seu olhar adestrado descobre perfis humanos atrás dos
troncos das faias.

Aqueles perfis emergem a súbitas, e uma nuvem de frechas dilata-se no
espaço.

Naquela hora de perigo, o instinto encosta Élem ao peito de Vamiré, ao
passo que a luta se anuncia, ao passo que os inimigos, em número de
sete, se aproximam céleres. São atarracados, são os homens do Oriente,
de olhos de Érebo. Conhecem a agilidade de Vamiré e, formando leque,
caem sobre ele, por forma que lhes não possa escapar. Já os arcos estão
tendidos, as frechas envenenadas vão descrever as suas terríveis
parábolas, mas erguem-se vozes, indicando o perigo de Élem, e todas as
mãos substituem a frecha pela lança.

Vamiré encara-os altivamente, e o seu grito de guerra perturba o coração
dos mais valentes. Reconhece nos seus inimigos a raça de Élem, crânio
largo, pele trigueira, olhos escuros. Trazem tatuados os braços e a
testa, e comanda-os um velho robusto.

Vamiré empunhara a zagaia... os homens trigueiros resguardam-se com os
troncos mais próximos... Então Vamiré sobraça Élem, e vai recuando para
o rio, onde espera poder embarcar... A uma ordem do chefe, chovem as
frechas, que o Pzann desvia lestamente, acelerando a retirada.

Táctica hábil, com que os orientais se irritam, e adiantam-se três
deles. Mas a zagaia de Vamiré atravessa o mais ágil, e o Pzann solta o
riso triunfal da sua raça, entendendo que os dois sobreviventes não
terão a coragem de lutar contra ele... A sua clava gira no espaço, a
provocá-los; do seu peito hercúleo saem rugidos ferozes; o seu braço
dispõe-se ao extermínio... O chefe antevê a perda dos seus, ordena-lhes
que parem, e eles obedecem.

Um momento de tréguas. Os asiáticos coleiam por entre os espinhais,
procurando cortar a retirada de Vamiré. No cinzento das faias que
formavam polistilos obscuros, na eterna penumbra sotoposta às frágeis
padieiras de ramaria, Vamiré entrevê-os, com um olhar de melancolia
belicosa, e entretanto o sol ilumina a grande arena, o cerrado
espinhoso, de onde os orientais espiam o inimigo. Na cabeça longa do
Pzann, através da febre da luta, a impressão de um recontro
impertinente, o receio de perder Élem, e de se ver, por muito tempo,
rodeado apenas do mutismo petrificante das coisas.

Para arremessar, tem apenas o arpão. O chefe oriental quer um assalto em
massa, em que, se algum perecer, possam os demais vingá-lo.
Disseminados, para não constituírem alvo muito certo, correm sobre o
raptador... O arpão, arremessado, não faz vitimas, separando-se da haste
o chifre. Mas Vamiré descobre novo recurso num sílex ovóide, que ele
traz consigo, e serve-se dele como projéctil, ferindo o velho chefe.
Este verga-se, estóico, em luta silenciosa contra a dor. Vence-a,
levanta-se, junta-se ao bando, e no seu semblante espelha-se o
sofrimento e o ódio.

Vamiré tenta ainda fugir. Sobraça Élem, mas fraqueja. Seguem-nos as
frechas: uma ferida seria a morte... Demais, carregado com Élem, em
pequeno espaço, quase sem dianteira, será apanhado à beira do rio, antes
que a barca possa vogar ao largo. Depõe Élem, deixa-a livre. Ela porém
não se retira, cheia de ansiedade pelo Pzann. Este compreende-a, e,
levantando o pensamento a Zom, a Namir, às cavernas e às grandes
planícies, aceita o combate...

Corpo a corpo, impossibilitado o êxito das frechas, a refrega começa mal
para os orientais: uma lança é despedaçada pela clava de Vamiré; outra é
tomada por ele; e, terrível, ambidextro, faz, ao mesmo tempo, uso das
duas armas... Recuando, avançando, segundo a oportunidade, chega a
manter em respeito os cinco braquicéfalos, e fere até um deles,
ligeiramente, no peito...

Mas estas peripécias afastaram-no de Élem... vê-a em poder dos inimigos,
e adianta-se para a reaver... Fere-o de lado uma lança; corre o
sangue... Em desforra tremenda, parte o crânio de um oriental, e prostra
outro no solo, com um ombro escalavrado, enquanto com uma lançada
atravessa a coxa do chefe...

O Pzann todavia sente-se fraquejar, e todas as suas forças se congregam
na defensiva.

Élem solta doloridos clamores; os da sua raça dispõem-se para o assalto
final; e o ardor belicoso arrasta o próprio velho para junto do inimigo
ferido...

Era o fim. Vamiré procura escapar-se. A sua clava é brandida ainda uma
vez, e faz ainda uma vitima...; depois, apanha apressadamente uma lança
e um arpão, corre para o rio, salta para a canoa e três remadas
confiam-no à corrente.

Os seus adversários medem o perigo de uma luta aquática. O chefe proíbe
que tentem o perigo... Todos então empunham os arcos; mas o tiro é
inútil, porque a barca desaparece por trás de uma ilhota.




XI

Vamiré


Estendido no fundo da pequena barca, Vamiré cobria com a mão o seu
ferimento, coberto de sangue coagulado.

Havia uma hora que ele esperava uma reacção favorável para abicar na
margem, porque a perda de sangue o mantinha prostrado, num suave
meio-deliquio, em que ia perdendo a nítida concepção do seu ser. As
coisas figuravam-se-lhe pequeninas, quase imperceptíveis, ao passo que o
coração lhe vogava nas delicias de uma onda morna, asfixiante,
confrangente.

Passou afinal a crise. Com a febre, renasceu a força. O Pzann pôde
impelir a barca até à margem, desembarcou, e apanhou folhas balsâmicas e
resina para o penso da ferida. Depois, lavou a ferida na água corrente,
refrescou os lábios, e estendeu na ferida uma compressa de folhas
embebidas de resina, e, por cima, uma atadura de pele. Este penso, de
uma solidez a toda prova, permitia evaporação suficiente, e dava até
lugar à supuração. Ao cabo de oito dias, seria mister renová-lo; mas,
até lá, graças às folhas aromáticas e à resina, pouco havia que recear.

Vamiré sentiu grande alivio; a inquietação, que toda doença importa,
desapareceu, e um grande orgulho despertou, uma alegria de vencedor:
comeu e bebeu voluptuosamente, e pôs-se depois em cata da madeira
necessária para o fabrico de novas armas. De pronto adquiriu as hastes:
doze, pequenas, para zagaias, e uma, grande, para lança.

Quando trabalhava, sentiu a tentação de ter um arco e frechas, à maneira
oriental, feitas de madeira endurecida ao fogo. A banda do arco era
chata, mas larga, com um encalhe redondo, para dirigir a frecha. Vamiré
arrancou um pequeno freixo, cujas extremidades queimava, e passou depois
longas horas a desgastar o tronco, servindo-se alternadamente do fogo e
do sílex.

Era sol posto. Vamiré não concluíra o seu trabalho, e calculou que
precisava de dois dias, afora o tempo para aguçar as frechas. De forma
que, ao passo que buscava abrigo nocturno, planeava acabar primeiro a
lança, as zagaias, os arpões, para se precaver contra qualquer ataque,
aliás improvável.

Os orientais, com os seus dois mortos, com os seus feridos, entre os
quais o chefe, não pensariam logo em reabrir hostilidades; e, de facto,
dirigiam-se apressadamente para as suas estepes, levando consigo Élem.
Vamiré sorria, ao pensar que eles a não possuiriam definitivamente, e
adormeceu tarde, excitado pelos estratagemas que ele estudava para a
readquirir.

No outro dia, ao despertar, uma grande fraqueza o prendia ao solo.
Começava a cicatrização... Arrastou-se com dificuldade até à margem,
onde adormeceu, depois de se ter dessedentado, em risco de ser devorado
pelas feras.

Quando acordou, ia o sol a pino. Vamiré dessedentou-se de novo. A cabeça
ardia-lhe, as veias latejavam, as ideias eram confusas.

Compreendeu que o dia estava perdido, resignou-se, e meteu-se na barca,
junto à ribanceira. Com intervalos, em que ele ia matar a sede como
sonâmbulo, as trevas envolveram-lhe a existência, até a alvorada
próxima. Abeirou-se do Nada. Em toda noite, a sua robusta organização
agonizou nas sombras. Os períodos da crise sucediam-se como ondas de
maré. Mas, com a alvorada, chegara a calma, o sono fora vigorificante,
e, no quarto dia, Vamiré acordou com fome.

Examinou o penso. As dores haviam desaparecido. As carnes, quase unidas,
mostravam apenas um pequeno lanho. A vermelhidão desaparecia do peito. A
cabeça desanuviava-se.

Vamiré foi à procura de alimento, armado apenas de um arpão e uma lança,
as únicas armas que lhe restavam. Debaixo das árvores, naquela ocasião,
poucos recursos havia, e, além de tudo, só a emboscada era possível,
porque o ferido não teria forças para um assalto às feras.

Decorreram três horas, em que apenas se lhe depararam pequenos
carnívoros, de carne repugnante; e já a fome começava a atormentar
vivamente o estômago do caçador, quando apareceu um bando de cervas,
guiado por um belo alce, macho.

Era caça grossa e perigosa, mas tanto mais tentadora, quanto os cornos
do alce proporcionariam quanto era preciso, para pontas de lança, de
arpões e de zagaias.

Vamiré sentiu deveras, naquela hora, o não ter arco, que lhe permitisse
o ataque de longe, porque o alce costumava vingar energicamente o
morticínio das suas cervas.

O alce era um veado colossal, do tamanho dos maiores cavalos da
actualidade, e as suas pontas espalmavam-se-lhe por cima da cabeça, como
ramos de faia desfolhada; duas forquilhas primeiro, e depois um
tabuleiro guarnecido de pontas recurvas.

O troglodita, encoberto pelas ramadas, com infinitas precauções,
aproximou-se do bando; mas a distância era ainda bastante, para esperar
que arremessaria proficuamente o seu único arpão. Esperou pois.

Os animais pasciam, e saltavam, por forma que uma das cervas foi pulando
até o alcance da mão do homem. O arpão silvou, embebeu-se; um bramir de
agonia, e o animal prostrou-se, enquanto o rebanho, espantado, desfilava
pelo balsedo, deixando o alce imóvel, a devassar com os olhos a
espessura da mata.

Um minuto depois, o grande veado aproximou-se da vitima, e escarvou
nervosamente o solo, dominado, ao mesmo tempo, pelo desejo da vingança e
o receio do desconhecido.

Entrementes, a soberba e comovida atitude da fera impressionou Vamiré;
por um movimento de irreflexão e fraqueza, o caçador saiu do esconso, de
lança em riste.

O herbívoro hesitou, estirando a pupila oblonga pela melania do matagal.
Mas o homem já recuava, e o instinto da fera viu nisso uma fraqueza. A
súbitas, baixando a cabeça até o solo, atirou-se contra o bárbaro. Este
viu-a aproximar-se, suspendeu-lhe das pontas o seu pesado manto; e,
enquanto o cervo se desembaraçava do manto com um movimento formidável,
o caçador cravou-lhe a lança entre as costelas, fazendo-a entrar até o
coração.

O animal caiu, e Vamiré sentou-se, extenuado pelo esforço. A pouco
trecho porém, levantou-se, acendeu lume, e assou uma posta de cerva.

Satisfeito o apetite, assaltou-o grande tristeza: faltava-lhe Élem. E,
ausente, parecia-lhe mais preciosa ainda, com os seus olhos pretos e o
seu ar, altivo e terno a um tempo. Lembrou-se das peripécias daquela
luta, em que ela o não abandonara. O olhar dele procurou-a por entre as
sebes, e Vamiré sentiu confranger-se-lhe o coração, intoleravelmente.
Chamou-a pelo seu nome, e meditou, amargamente, nos meios de a reaver.

Hora de calma, silêncio nos bosques. O sol espelhava-se no rio, e
coava-se, por pequenas elipses, através da folhagem das balsas. As
ramarias repoisavam como grandes nuvens, e o espaço, velado pelas mais
altas frondes, entremeadas de clarões esparsos, tinha perspectivas
confusas, profundezas de abismos.

Repassado de dor e de solidão, a contemplação destas coisas abalava todo
o ser do troglodita, até o sofrimento. Ora sentia o desejo de dormir,
ora o de trabalhar; perpassava na memória o dia em que ele, nas
cavernas, esculpiu um bastão de comando, e isto lhe trouxe à ideia o
alce e as novas armas.

Provido de um sílex serreado, pôs-se a trabalhar. À noite, havia já
cortado as pontas da cabeça do alce.

Sentiu alguma febre então, porque o vaivém do braço lhe irritava o
ferimento.

Descansando, e não podendo dormir, espicaçava-o o desejo de uma
expedição, em procura de Élem. Meteu-se na barca e acompanhou a
corrente.

A noite abrigava-o em manto de trevas. O rio parecia uma voz de segredo,
baixa, murmurosa, de que apenas ressaía o rouco e triste coaxar dos
batráquios. Nas superfícies, em que se alternavam as sombras e os
reflexos, o voo do morcego perdia-se e reaparecia, incessantemente. A
faixa de céu estrelado, dilatada para cima das árvores, cavava um abismo
nas águas.

Com algumas remadas, Vamiré aproximou-se da margem, onde combatera com
os orientais; depois, deixou-se ir ao grado da corrente, abaixando-se de
maneira, que o barco pudesse parecer de longe um tronco de árvore.

Primeiro, atravessou solidões conhecidas, em que a fauna permanecia
tranquila; depois, vagos indícios que poderiam sugerir receios. Por fim,
avistou montões de pedras, que designavam túmulos; e, decorrida uma
hora, o clarão de uma fogueira denunciou-lhe a vigília dos inimigos.

Vamiré quedou-se observando, por muito tempo. Élem deveria estar deitada
defronte do brasido. Fazia sentinela um guerreiro, que, de quando em
quando, para não adormecer, erguia para o céu uma das mãos. A fogueira
projectava este movimento numa sombra enorme para além do rio.

O Pzann apertava o seu arpão, calculava a eventualidade de um ataque,
impelindo-o para a temeridade a sua febre e a sua fraqueza.

O rumor dos bosques crescia com o roçar da viração. A água iluminava-se
de uma fosforescência pálida, de um fundo de halo, em que viviam
ramagens longínquas, calhetas povoadas de caniços. O trabalho das nuvens
alterava a cada momento a superfície das águas, lançando sobre elas um
véu plúmbeo, uma luzinha trémula, ou um arroio de constelações.

Um drama conturbou a alma de Vamiré. Atrás do brasido, com os olhos
fixos na fogueira, deixou-se ver Élem.

Ah! tornar a possui-la, levá-la consigo, como noutro tempo! Mas, com o
esforço interior, reconheceu mal fechada a sua ferida, impotente o seu
braço!

Contudo, alguns dias mais, e ele teria readquirido todas as suas
energias. No entretanto, seguiria a pista, e escolheria a sua hora.

Depôs vagarosamente o arpão, empunhou o remo, e, antes de voltar à sua
última paragem, deixou-se levar pela corrente à margem oposta. Dali,
remou com prudência, lentamente ao princípio, e depois com progressiva
velocidade.

Decorrida uma hora, a barca vogava com dificuldade, se bem que Vamiré
seguisse a ribanceira. Afora o impulso da corrente, tinha de lutar com
as algas, em que se embaraçava a proa e que lhe sobrecarregavam o remo.

Estava quase resolvido a saltar para terra, quando o animou uma espécie
de canal entre os caniços.

Impeliu para ali a barca e, durante alguns minutos, navegou com
facilidade; mas, em seguida, cerrou-se o canal com longas plantas
aquáticas.

Com a esperança de achar águas livres a pouca distância, o Pzann desviou
o obstáculo, e entrou.

Salvo curtos intervalos, os pântanos cobertos de lentilhas, os caniços,
as algas, os juncos, continuaram a travar-lhe o andamento, a ponto de
que um extremo cansaço se apoderou do homem, e este teve de estender-se
por algum tempo no fundo da sua piroga.

Ia adiantada a noite. O zénite empalidecia aos prenuncios da alvorada; e
erguia-se da espessura o canto dos galos silvestres. O ligeiro rumorejar
da folhagem, o chapinhar de uma lontra, o eterno murmúrio do rio,
entremeado de notas claras, eram os únicos ruídos daquela solidão. As
coisas pareciam emergir em bruma pardacenta, meio-transparente; apenas,
da outra banda do rio, se avistava a orla negra da floresta, entre as
águas e o céu.

Vamiré ergueu-se. Sentia extraordinário entorpecimento, que o convidava
ao sono. Teve pressa de achar o fundeadoiro, e calculou a distância da
margem. Pareceu-lhe considerável, até porque a vegetação aquática se
tornava cada vez mais espessa.

Chegou a pensar em desistir de fundear e adormecer na canoa; mas, a
qualquer movimento, poderia voltar-se a embarcação, e o ferimento ainda
não permitia o gesto largo do nadador.

Resignado, prosseguiu, ajudando-se com o remo, ensanguentando as mãos
nas folhas cortantes dos caniços, empurrando a frágil embarcação,
parando de espaço a espaço, fatigado, nervoso.

Rompia a manhã, e tudo pareceu pálido ao homem extenuado: as águas, o
céu, a floresta. O grande rio saía de um horizonte de cinza, e em cinza
se alongava ainda.

A ribanceira enfim! Vamiré desembarcava. Desviando as hastes mais altas,
avistou uma pantera em briga com um mamute, ainda novo. O pequeno
herbívoro, coitado, debalde tentava desviar com a tromba o seu
adversário. Avistava-se ao longe a corrida impetuosa da fêmea, em
socorro da sua progénie; e o grito do macho entre os caniçais anunciava
que se dirigia a nado para a margem. Mas a pantera, de um salto, ficou
sobre o dorso do pequeno elefante; já penetrava com as garras o espesso
coiro, e dirigia os dentes para o ventre da presa, quando interveio o
compassivo nómada. Soltou um grito de guerra, arremessou o arpão e
caminhou para o felino.

O arpão fizera apenas sangue na pele mosqueada. A pantera recuou,
rugindo, quando surgiu a cabeça enorme do mamute macho. Quase ao mesmo
tempo, apareceu a fêmea.

Então a pantera refugiou-se na selva, e os enormes proboscidios,
pendulando as suas trombas, afastaram-se.

Vamiré viu-os desaparecer ao longe, radiante de alegria e ufano da sua
coragem. Depois, tomou a piroga aos ombros, internou-se na mata, e
empregou as suas últimas forças em apanhar alguns ramos, para consolidar
o seu abrigo sob a piroga.

Cansado, trôpego, começava a cravar na terra, junto de uma árvore, os
ramos mais apropriados àquele fim, mas teve de interromper essa tarefa:
dominou-o um entorpecimento mais forte, e, quando procurava sentar-se,
caiu prostrado pelo sono.




XII

O mamute


Era uma clareira entre faias, carvalhos e olmos. Crescia ali a tabua e o
joio, de mistura com ranúnculos, cardos frocosos e urtigas dióicas.

Sob os gladíolos da erva, nas folhas, nas flores, nas hastes, nas
raízes, havia o mundo dos insectos, esboço material do futuro mundo do
homem, praticando a física, a química, as industrias do utensílio e do
ácido, criando a broca, a verruma, a serra, a espátula, a fieira, a
escavação na pele, a perfuração com cáusticos, as galerias de mina, a
habitação social, a sineta do escafandro, a espada, a armadura, a luz, a
seda, o tecido, a cera, o açúcar, o mel.

A madrugada achava-os trabalhando. Nos primeiros alvores, voluteava a
grande mosca madaleneana, traçando ângulos; a vespa explorava corolas;
agitavam-se, com as suas asas aveludadas, enormes piérides; voltavam do
rio nuvens de mosquitos, a abrigar-se nas folhas; as formigas, em
legiões, transportavam pulgões, estames, grãos, os despojos das
minúsculas batalhas da vida; a cicindela, de emboscada, espreitava uma
presa; o necróforo, com as suas extremidades palidamente orladas,
procurava a carcaça, em que devia pôr os ovos; o fura-pau batia com a
tromba na casca dos olmos; o grilo, fatigado das suas vibrações,
adormecia; as forfículas embebiam as suas pinças no fundo das corolas;
e, semelhante ao tigre, o grande cárabo sobre o escaravelho.

Amodorrado o homem, a floresta parecia inquieta. A zona limitada pela
outiva, pela visão, pelos penetrantes perfumes dos exploradores de
troncos e ramadas, tudo começou a decrescer, pouco a pouco, à volta do
rei bípede: os narizes microscópicos, as sensíveis trompas auditivas, as
pérolas negras de olhos salientes, as longas barbas-antenas,
perscrutaram as essências, que emanavam do homem, e conheceram a sua
própria fraqueza. Apareceram ratos, atraídos pelas correias untadas de
tutano; depois, eram as cabeças curiosas dos arganazes e esquilos,
espiados pelo grande lince quaternário, das pôlas das altas ramarias.

Decorreram horas. O sol banhou a clareira. A corrente da vida engrossou
com os raios solares, com os turbilhões de moscas que traçavam o seu voo
enigmático, com os zângões, com as abelhas, mais rápidas e mais sonoras,
com o enxamear das aves à sombra do moitedo.

No entretanto, uma hiena, baldada a sua digressão nocturna, claudicava
esfaimada entre os espinhais. A sua pituitária reconheceu o odor humano,
entre o do coiro e o do unto. Aproximou-se. Os ratos debandaram; e a
necrófaga, sem sair do seu esconso, compreendeu que o homem não estava
morto. A esperança fe-la alapardar-se na sombra, numa semi-sonolência.

A luz continuava a coar-se, em fios cetineos, através dos interstícios
das ramagens; a sombra atingiu o seu mínimo, e depois foi aumentando.

Vamiré dormia ainda, espreitado pela hiena. As aves iam-se calando; as
grandes árvores emudeciam; a formiga trepava aos gladíolos da erva; o
besoiro segurava-se na haste franzina das flores, curvando-a; as moscas
zumbiam doidamente, e bandos de cabritos monteses partiam as plantas, na
sua carreira veloz.

Pelas duas horas depois do meio dia, o fétido da hiena deu no faro de
chacais, que se abeiravam do mato, onde ela se agachara. Por seu turno,
emboscaram-se também na espessura, e a sua comoção de glutões, os seus
gritos sinistros, desvendaram aos corvos a perspectiva de um opulento
repasto.

Os corvos chegaram crocitando; com as asas negras escureceram por um
pouco a clareira, e depois empoleiraram-se numa faia. A quatro mil
metros de altura, três abutres reconheceram a comoção dos corvos, e
caíram vertiginosamente sobre uma árvore vizinha.

Enquanto Vamiré dormia, os carnívoros gizavam o seu plano, desejando os
nocturnos que chegasse a noite, e temendo os diurnos que findasse o dia.
A hesitação mantinha-os quietos e de atalaia; depois, os chacais
afastaram-se mais da hiena; o pânico dispersou, por um momento, os
abutres. Nada prevaleceu contra os corvos, que se reuniam aos centos, e
que, com a afiada tesoira do seu bico, se aprestavam para o ataque.

Abriram eles o espectáculo: graves e cómicos nos ramos da sua faia,
começaram por uma espécie de dança, avançando para a extremidade dos
poleiros, até que um deles caísse; este esvoaçava por um pouco,
crocitava furiosamente e voltava a reunir-se à fila.

O jogo e os gritos espantaram os nocturnos; e quando, numa nuvem, com o
ruído do granizo em floresta, os palreiros baixaram sobre o homem, a
hiena escafedeu-se, e o medo invadiu os chacais.

Os corvos, entretanto, iam andando, como míopes, astutos e grotescos, de
terríveis mandíbulas que simulavam um grande nariz, e de corpo ondeado
de azul-escuro.

A dois metros de Vamiré, hesitaram. Deixaram de crocitar; e os mais
velhos formaram conciliábulo, em vozes baixas, como gorgolejos,
alternados de saltos.

Um movimento do Pzann determinou a debandada. Os corvos voltaram para os
ramos.

Pausa. Ouve-se rir a hiena e chorarem os chacais. Restabelecido o
silêncio, a asa dos abutres soou pesadamente e as três aves de rapina
baixaram sobre o solo. Os pescoços nus emergiam firmes de um colar de
guarnição branca, e a cabeça longa, de um cinzento pálido, parecia a
cabeça de um mamífero inofensivo, camelo, canguru, antílope.

Quedaram por muito tempo, como sentinelas imóveis. Os ângulos do número
apareciam nas espáduas altas e pontiagudas; o colo parecia jorrar do
peito, e as asas eram mantos, guarnecidos de uma bela franja clara de
penas rudes. De raça forte, a envergadura do seu voo ia até oito pés; as
suas garras potentes, ávidas em remexer carnes mortas, aferravam presas
animadas, nas horas de fome...

Ponderariam eles a agonia do homem, o resto da energia dos seus músculos
soberanos, o seu peito arquejante, a sua cabeça de uro?

Estavam silenciosos, mas os caninos famélicos, cansados de esperar,
deslizaram pelo mato. Então, os corvos retomaram o seu lugar, com ruído;
os chacais, assombrados, pararam; e o abutre mais velho caminhou para a
cabeça loira de Vamiré.

A cabeleira, esparsa nas faces, velava um tanto os olhos; o grande
bigode fulvo estremecia ao passar do hálito febril; uma espécie de riso
provocante soerguia o lábio, entre a resignada tranquilidade dos vincos
da boca.

O ombro seminu parecia de pedra polida; os cabos retorcidos do tríceps
denunciavam o poema das fibras em milhares de feixes, subordinados às
mesmas funções; e o pêlo do espeleu encobria o tronco, em que pulsava o
coração agitado.

A floresta realizava, em silêncio, o seu trabalho de cidade colossal. A
vida, repleta, dormitava nos fojos, nos ninhos, e até nas galerias dos
insectos.

Os corvos, interessados no procedimento do abutre, portavam-se com
discrição; os chacais, bocejando, fechavam os olhos deslumbrados; e a
hiena escarvava o solo com as patas dianteiras. Ouviam-se pequenos
ruídos, indecisos cantos, o cair de frutos maduros,--como difuso
tiquetaque do relógio das coisas.

Entrementes, o abutre olhava, através do interstício da cabeleira de
Vamiré, a pálpebra semi-cerrada, que deixava entrever a esclerótica.

Arrancar os olhos é o instinto da ave de rapina: o abutre decidiu-se ao
assalto. Aproximou-se lentamente. Então, os seus companheiros chegaram
também, e um deles pôs a garra no ombro nu.

A mão de Vamiré, inconscientemente, acudiu ao ponto ameaçado, caindo
sobre a asa da ave; esta ripostou com uma bicada no pulso.

O ferimento despertou no homem as faculdades defensivas: como num sonho,
os seus punhos de atleta acharam o pescoço de abutre... As garras
aduncas fincaram-se, por dois minutos, na pele do espeleu; depois, veio
a asfixia e a morte, antes que os dedos de Vamiré largassem a presa.

As asas dos sobreviventes feriram o ar; os seus vultos ergueram-se até
as cimas das árvores. Ali, hesitaram por um momento, e, saindo por uma
larga abertura, desapareceram.

O grande nómada, depois daquele incidente, recaiu na sua letargia. Tinha
a aparência de um cadáver, e os corvos delegaram dez, de entre si, para
se esclarecer. Os outros celebraram conferência, em que as vozes
entre-cortadas respondiam a sons roucos, fundindo-se depois estes e
aquelas.

Os dez verificaram que a grande presa era perigosa; mas, como os
tentasse o cadáver do abutre, trataram de o explorar.

O homem conservava esse cadáver na sua mão crispada. Com minuciosa
circunspecção, deram volta ao animal, e atacaram-lhe o colo nu: abriram
brecha, as tesoiras aprofundaram-na e, dentro em pouco, nas mãos de
Vamiré estava apenas a cabeça do abutre. Depois, num esforço comum, os
corvos levaram a presa para alguma distância.

Os chacais acharam favorável o ensejo. Ganindo e uivando, foram-se
chegando, com um ruído semelhante ao de um aguaceiro na folhagem.

Os dez corvos ergueram voo, com um _croaa_ furioso. Mas, reunidos aos
outros, caíram aos centos sobre o espinhaço dos carnívoros, que
prontamente fugiram, perante a imprevista agressão.

O bando negro ficou senhor do campo de batalha, e começou a devorar o
abutre.

A hiena deixara de fugir. As exigências do estômago impeliam-na para a
audácia. Embora altiva ainda, a sua raça ia decaindo, perdendo
sucessivamente a índole ofensiva. Já estávamos longe do monstro daquele
género, de maquerodo, que, com os seus caninos de dupla lâmina, do
tamanho de um côvado, agredia os proboscídeos. Talvez que a grande
hiena, nesse tempo, arrastasse ainda para as cavernas herbívoros
palpitantes; mas esta, hiena mosqueada, não obstante possuir caninos e
molares, os mais sólidos na animalidade daquela época, e capazes de
partir o fémur de um auroco, limitava-se a preferir a carne morta, ou
atacava, em suas galerias os pequenos fossadores, a toupeira, o arganaz.

Adiantou-se lentamente, baixando-se como um animal que rasteja, e
estendendo a cabeça a farejar o homem, cada vez mais inquieta.

A um salto de distância, calculou, e fixou o pescoço, planeando o
assalto do cão e do lobo: a estrangulação...

Mas, toda nervosa, e raspando o colo, não se atreveu.

Enquanto ela hesitava, reacendia-se a luta, entre os chacais e os
corvos. Os caninos fizeram uma sortida e, durante um desvio do
adversário, puderam conquistar os restos do abutre. Magra refeição, sem
duvida! De olhos vivos, pestanejando sob a acção da luz, trincavam os
ossos do volátil, com ar de precaução.

Despertado o apetite, pensaram na grande presa. A hiena não se opôs, e
até parecia que de ambos os lados se estimulava a audácia. Os risos e os
uivos cruzavam-se com as corridas, os saltos de lado, e a exibição
sugestiva das dentaduras.

As moitas entreabriram-se com fragor, o mato partiu-se com um rumor de
tempestade, e apareceu um mamute, de fronte bojuda e de quinze pés de
altura.

Gostou da clareira, parou, balanceou a sua enorme corpulência,
arrancando com a tromba algumas ervas, num capricho de colosso pueril, e
deitou-se: gozou a semi-sonolência dos grandes animais, perpassou-lhe na
mente o devaneio, o inesgotável fluxo das formas e dos movimentos que
durante o dia lhe haviam impressionado a retina.

A hiena e os chacais, alapardados no esconso da vegetação próxima,
recuaram de pronto. Um animal indolente, pesado, desajeitado, rompia
vagarosamente do matagal e exibia-se em toda a luz: um urso.

O mamute, tranquilo, viu-o chegar. O plantígrado parou, consultando o
proboscídeo. Despertado no seu fojo, à beira-rio, atraíra-o o barulho
dos chacais; e, para o repasto do dia, contava agora com o homem
estendido, esperando a neutralidade do grande elefante, porque sabia
quanto este era pacifico, fora das épocas do amor.

Este cálculo pareceu acertado desde logo, pois que o elefante se ergueu
e começou a andar, afastando-se; mas, a dez metros do homem, atentou
nele, virou a tromba na direcção de Vamiré, aproximou-se, farejou,
olhou. E, mugindo ameaçador, apresentou as suas defesas ao urso. Este
sentiu a cólera funda, cega e obstinada da sua raça. Grunhiu, pôs-se de
pé, atrás de um choupo, e a mímica das suas patas e o ricto do seu beiço
exprimiram sede de represálias.

Com a tromba erguida em semicírculo, as defesas tocando no solo, com o
seu corpo gigantesco potentemente especado, o elefante esperou...

Eram dois poderosos animais. O urso mostrava os braços peludos, armados
de garras colossais, os seus caninos, a sua musculosa maxila. Podia, de
pé, agarrar e sufocar. A sua pele espessa, oscilante, não o embaraçava
na luta contra as feras, como o leopardo e até o leão; o peso ajudava-o,
e os seus gestos vagarosos eram de uma exactidão terrível.

Mas a força do mamute era incomparável. Os seus pequenos olhos, ao invés
dos do urso, viam perfeitamente; a sua admirável tromba excedia, na
agilidade e nos músculos, o braço do antropóide; as suas defesas
recurvadas, do comprimento de dez côvados, jogavam e perfuravam como os
cornos do auroco. Todo o seu corpo, em cima das quatro colunas das
pernas, e sob o pêlo arruivascado e a abundante e negra crina mediana,
mostrava-se a destreza e a facilidade de se voltar. Na floresta, na
planície, nos desfiladeiros, em toda a parte, era ele o vitorioso senhor
herbívoro, relíquia dos colossos de tromba, do período terciário, o
_dinotério_, o _elefante meridional_, o _elefante antigo_.

O hipopótamo, o rinoceronte e ele representavam, todos três, o escol da
era tapiriana, a monstruosa fauna alimentada do glúten da planta, o
triunfo das grandes corporaturas e dos grossos músculos, o triunfo da
paz armada, a coiraça, as pontas, as defesas, a tromba, contra a sanha
dos carnívoros, a agilidade de locomotores, os caninos e garras de aço.

Perante o plantígrado míope, o proboscídeo foi o primeiro em deixar a
expectativa. Naquele crânio, banhado de ondas de sangue, a embriaguez do
furor toca, muitas vezes, as raias da loucura. O mamute soltou um mugido
formidável e arrojou-se. A árvore salvou o urso, podendo este subir por
ela até grande altura. O outro, com a espádua, fez agitar o tronco da
grande árvore, e o urso, para não ser atirado ao solo, teve de
socorrer-se das suas garras de três polegadas, cravadas na casca do
choupo.

Mas o elefante insistiu, e, de repente, o urso caiu-lhe sobre o dorso.
Os dentes do urso fixaram-se em a nuca do elefante, e as garras junto às
orelhas. Mas o paquiderme sacudiu-se, como um animal que sai da água, e,
com um formidável impulso da tromba, fez cair o inimigo, que rebolou na
erva. Depois, apanhou-o com a tromba, colocou-o sobre as defesas,
ergueu-o, e atirou-o para cima de um silvado; e como o gigantesco animal
se dirigisse ainda para o inimigo, este levantou-se, fugindo com
dificuldade.

Misericordioso, o herbívoro aceitava este desenlace, e já se ia
afastando, quando o urso reapareceu, atirando-se, às cegas, contra a
tromba, arranhando-a e mordendo-a cruelmente.

O mamute, com um mugido de dor, dobrou o jarrete e abanou a cabeça. Com
este movimento, o plantígrado perdeu o equilíbrio e caiu entre as
defesas. A tromba segurou-o ali; depois o marfim enorme entrou-lhe no
ventre, e, depois ainda, as grossas colunas do paquiderme esmagaram-lhe
a caixa toráxica, e o urso exalou o seu derradeiro grunhido.

Por alguns segundos, o mamute encarniçou-se furioso nos despojos da
vitima; e, em seguida, arremessou o cadáver para longe da clareira. E a
hiena e os chacais tiveram que comer.

Satisfeita a sua vingança, o proboscídeo voltou para junto do homem.
Farejou-o novamente e, colocando-se a alguns côvados de distância, mugiu
longamente. A fêmea apareceu com a cria; e ficaram todos três em volta
de Vamiré.

Era quase noite agora. A grande mosca azul pré-histórica procurava o
abrigo da folhagem; os nemóceros partiam em nuvens para as águas; o
grilo recomeçava a sua vibrante arieta; as formigas transportavam a
última colheita para os seus celeiros subterrâneos; a larva da cicindela
dormia no fundo do seu poço; os necróforos lidavam no enterramento de um
cadáver de arganaz; o chilrear da passarada esmorecia nas ramarias; e os
corvos tinham levantado voo. Os raios difusos, mais rubros, mais
escuros, fixavam-se nas extremidades da grama e da tabua; depois,
escureciam mais, deixando apenas, aquém e além, algumas palhetas claras.
Mas da erva ressaía ainda uma fosforescência, e os graves mamutes
recebiam nas pupilas serenas estas últimas luminosidades, enquanto de
entre o bosque saía o clamor sinistro dos chacais, e o rir da hiena,
enfartada da carne do urso pardo.

Caíram enfim as trevas, estendendo o seu misterioso véu na floresta e no
rio; no mato brilhavam pirilampos; perseguidas pelo morcego, esvoaçavam
falenas, de asas lanuginosas; a coruja suspirou no côncavo dos
carvalhos; e ouviu-se a voz das feras, proclamando as suas carnificinas
triunfais.

Mais de um leopardo, mais de uma alcateia de lobos, aspirou os eflúvios
do homem estendido; mas nenhum ousou perturbar a invencível família do
grande mamute peludo, de cabeça bojuda.

Até às quatro horas depois do alvorecer, estiveram de atalaia. Vamiré
saiu então do seu longo entorpecimento, refrescado e fortificado, como
de um banho fluvial em dias calmosos.

Pôs-se em pé. Distendeu os braços e o peito, e notou, de relance, a
partida dos proboscídeos.

Esta partida relacionava-se, na sua mente, com a aventura da manhã
anterior, e teve para os mamutes palavras de boas-vindas, embora não
soubesse quanto lhes devia. Soube-o depois, quando descobriu o cadáver
do urso, com os ossos partidos; e o seu coração comoveu-se vivamente.




XIII

Entre os orientais


Decorridos cinco dias de enfadonha marcha, com amiudadas paragens,
notavam-se grandes melhoras nos feridos orientais. Na paragem do sexto
dia, adquiriram a esperança de tornar a ver o acampamento da tribo,
antes de finda a incipiente lunação.

Entre os primeiros que se punham a pé, o chefe não soltava uma queixa.
Suportava o ferimento do ombro como velho robusto e estóico, cujos
sofrimentos parciais não influíam no organismo geral. De manhã e à
noite, passava em revista a sua gente, tratava o seu ferimento e os dos
seus homens, aplicava drogas conhecidas para se evitar a inflamação, e
pronunciava palavras mais benéficas que o bálsamo.

Durante o dia, silenciosa e torva, Élem acompanhava o bando; mas, de
noite, acordava frequentemente, recordava-se e chorava. À sua alma de
primitiva faltava o grande nómada, de face clara, docemente enérgica,
ombros largos e músculos de ferro. E os ímpetos dele, as expansões
alegres, a superioridade intelectual, o olhar azul, a preocupação da
arte e do trabalho, tudo agitava a sua carne viçosa, impelindo as
afinidades de raça para propícios cruzamentos. Suspirava de amor,
enquanto as horas decorriam, e pensava em evadir-se, pelo receio de ser
sacrificada por seus irmãos.

Começavam já a carregar o semblante, com os louvores que ela tributava
ao Pzann, quando a interrogavam. Apenas o chefe, observador reflexivo,
adoptava um inquérito tranquilo; e ouvia com interesse os pormenores
acerca da força, da agilidade e, mais ainda, da indústria e da arte do
homem fulvo, e acerca dos costumes da região longínqua. Os seus ódios,
que a idade acalmara, engolfaram-no no encantado enigma. Sentia que não
tivesse sido aprisionado o grande homem loiro, porque talvez este
soubesse até onde se estendia a floresta, de onde vinha o rio, e onde a
terra tocava no céu.

De costumes mais selvagens, menos artistas que os grandes dolicocéfalos
das planícies do Ocidente, os orientais haviam aceitado desde o
principio as jerarquias sagradas. Nas férteis regiões do Levante,
alimentavam o devanear monótono e imóvel do pastor. Era mais perfeita a
sua organização social; mas aquelas raças não tinham o destino das raças
plásticas, aventureiras, laboriosas e individualistas da Europa.

Nómadas e caçadores, os orientais exploravam já o vegetal, preparavam
massas farináceas com diversos grãos, aumentando assim a sua
estabilidade. As colheitas de feno permitiam-lhes sustentar alguns
rebanhos de cavalos e de bois asiáticos, contidos dentro de cerrados,
porque o animal, pouco domesticado ainda, esquivava-se a aplicações
metódicas, e apenas servia para alimentação do homem.

Tudo isto, e a fertilidade das suas terras, tornava as incursões dos
braquicéfalos da Ásia menos extensas que as dos dolicocéfalos da Europa.
Nas suas florestas, uma fauna de transição vivia onde já se encontravam
espécies emigradas do Ocidente, raras variedades de bugios, chacais,
gamos misturados com os animais das estepes frias,--mamute, urso, hiena,
auroco, uro, boi almiscarado. Na época do regelo, começava o êxodo dos
bugios, dos chacais, dos gamos, para os grandes bosques meridionais;
atraía-os o verão.

Nas savanas de leste, os asiáticos haviam-se aliado com o cão, cujas
vivendas se dilatavam, e que, menos vencido que o antropóide, dispunha
de disciplina e de inteligência, lutava como o homem contra as grandes
feras, e ajudava-o a caçar o uro ou o chacal, sob a condição de
compartilhar os despojos.

À semelhança do homem, os cães haviam compreendido o benefício da
sociabilidade, formavam assembleias deliberativas, organizavam exércitos
masculinos, tinham chefes encanecidos pelo roçar dos tempos... Nas
idades lendárias, foram o inimigo terrível da raça nascente. Já o pai do
neandertal lacerava a face do leão e domava o dinotério de defesas
invertidas; já a terra estremecia sob os passos vagarosos de um
entre-sonhador da génese civilizadora, esboçada nos mundos do insecto, e
ainda o cão defendia o seu império. E quem poderia prever o desfecho,
visto que o antropopiteco se restringia aos agrupamentos familiares, à
primitiva horda, enquanto o outro confederava as suas tribos, ampliava a
pátria, levantava exércitos, fortificava as suas cidades e educava seus
filhos!

Os velhos encanecidos, sabedoria das tribos nómadas, sopeavam o instinto
da ferocidade, cheios de emulação no ensino dos conhecimentos, cheios do
mistério das coisas, aventurando explicações rudimentares sobre as fases
da lua, sobre o curso das estrelas.

Devia-se-lhes a aliança com os cães, e estimulavam as tentativas de
domesticação, com respeito aos insectos, às aves, ao uro, ao cavalo, ao
urso, ao lobo. Ocupava isto capitulo extenso em seus anais.

Conheciam o capricho dos animais, e sabiam que, se alguns cedem à força,
outros preferem a morte à violência.

Iam a consideráveis distâncias ver as tribos das chuvas, onde o
feiticeiro Nadda criava abelhas; a tribo da lua, onde os guerreiros
moços cavalgavam poldros; a tribo do trovão, onde três ursos viviam com
os homens.

Em meio de tais recordações, o chefe oriental sentia crescer o despeito
de não ter conhecido Vamiré. Quanto seria para desejar a paz com aqueles
gigantes loiros, laboriosos e ousados! Os dois afastados povos, postos
em comunhão através da distância, teriam ampliado o património do homem.
Explorar-se-iam paragens desconhecidas: seria descerrado o grande
abismo, conhecer-se-ia a região dos elefantes cornígeros; ver-se-ia a
serpente monstruosa, tudo que a lenda referia, havia séculos.

Protegeu Élem. Não só proibiu qualquer violência contra ela, mas até lhe
dispensou inteira liberdade de acção. De dia e de noite, consentia que
ela vagueasse a seu grado, adiantando-se ou atrasando-se na marcha, e
reprimia de tal maneira o azedume dos seus homens, que não aventuravam
uma observação.

Élem reconhecia a generosidade do velho chefe. Com o decorrer dos dias,
a sua mágoa amadurecia, como um fruto ao sol do Estio. Solitária, erguia
os braços para o Invisível, orava, suplicava. Os seus olhos exploravam
atentos o rio, o rio amigo, em que a barca do Pzann a trouxe durante
semanas. O aspecto das plantas aquáticas, dos nevoeiros errantes,
inebriava-a, sufocava-a. Uma sede mortal, um profundo instinto de
sobrevivência, sangue rubro e ardente, prestes a jorrar das veias, um
sentimento de insubmissão e de capricho, tudo isto, que inda hoje é o
perigo dos nossos amores, a perturbava e a tornava mortalmente amante e
desesperada.

Ao sétimo dia porém, chegou um momento de calma. Através das brumas da
alvorada, Élem julgou avistar entre os caniçais a barca de Vamiré.
Estava longe, não distinguia bem, mas, com toda a sua energia de
primitiva, convenceu-se da presença do Pzann.

Muitas vezes, durante a marcha, teve tentações de se extraviar a bater
mato, a quedar-se nas ribanceiras. Distraída e meditabunda, quando
chegou a hora do sono, não pôde dormir, e os seus olhos semicerrados
devassavam as trevas.




XIV

Reconquista


Ora, enquanto o bando dormia, de noite, o velho chefe lia na fogueira o
evolar desordenado da vida dos ramos; fogueira que se desatava em
numerosos seres subtis e coloridos, impulsiva e crepitante, matizada de
fino azul, de amarelo claro, de purpura; rasteira sobre as cinzas, de
vibrações rápidas, alta e ondulante sobre os ramos, esparsa na extrema
do fumo, que, a revezes, se iluminava e se rasgava; fogueira, de onde
surgiam mil quimeras, grutas, florestas, grandes lagos rutilantes, um
mundo transitório, ateado ou apagado por sopros desconhecidos, mundo que
se exaltava e se acalmava e se tornava mais furioso, dominado e
terrível, devorador de florestas, subjugado pela mão de uma criança.

E o oriental dizia:

--Salve, fogo, mais belo que a água, tua inimiga, suave para a terra,
que tu fecundas, suave para o homem, que tuas caricias aquentam.--

E pareceu meditar profundamente. Talvez ele pressentisse então a grande
maravilha do futuro, a era da metalurgia. Já o calor fundia partículas
de terra ou de pedra, e na cinza se deparavam pequenas barras
solidificadas. E guardavam-se com desvelo estas lágrimas de metal.
Havia-as de diversas cores: amarelas, pardas, brancas. Batendo-as com
uma pedra, davam-lhes formas diversas, ou as partiam em lâminas; mas
estas lâminas eram frágeis, flexíveis ou quebradiças, e ninguém supunha
ainda que estivesse ali o competidor da pedra, do osso, do chifre.

--O fogo corre em nossas veias,--murmurou o velho, voltando ao seu
misticismo;--e por isso é que a nossa boca expele fumo, como um brasido
em que se deita água.--

Respirou voluptuosamente, ufano daquela ideia, e, ao contemplar a noite,
dilatava-se-lhe o coração.

O clarão da fogueira amortecia as estrelas zenitais; mas tremeluziam
numerosas e pequeninas no horizonte do rio.

--O fogo da lua, o das estrelas, é um fogo frio como o olhar dos
homens...--

Calou-se. O ruído nocturno dos sarçais parecia mais frouxo. Muito ao
longe, bramia um leão, e a sua bela voz guerreira parecia emergir das
cavidades abissais, ou ser eco de montanha, desmedidamente poderosa e
grave.

Não corria uma aragem. Sobre a claridade do rio, espalmavam-se aqui e
além as manchas de vegetação, e as sombras coavam angustias na alma.

O velho sentiu a impressão de tudo isto. Ergueu-se. A fogueira iluminou
toda a sua forte corporatura.

Pareceu inquietar-se de ver que Élem tinha os olhos abertos, e aplicou o
ouvido.

Um ligeiro ruído, como de animal que rasteja, vinha da escuridão da
selva; logo após, agitou-se o mato, e ouviu-se um pequeno choque, como
de uma pedra contra outra.

--A pé!--bradou ele, de arco tenso na direcção do ponto suspeito.

Uma frecha rompeu do matagal, roçando a cabeça do chefe; e ainda os
orientais estavam meio estendidos, e já Vamiré, de um salto, se achava
junto da fogueira.

Por seu turno, o velho despediu uma frecha, mas esta perdeu-se, passando
à esquerda do Pzann.

Vamiré, de clava erguida, ia esmagar o seu único adversário, quando Élem
interveio, suplicante. Imediatamente, o grande nómada dirigiu-se aos
homens estendidos e, num gesto, significou-lhes claramente que mataria o
primeiro agressor.

Reconhecendo-se vencidos, os orientais aguardavam as ordens de Vamiré. O
velho olhava sem receio para o intruso, e fez sinal aos seus, para que
sossegassem.

--Fala, e não prefiras a violência à justiça.--Vamiré compreendeu que
podia ditar as suas condições, e, com a sua mímica, indicou que desejava
Élem.

--Vai!--disse o velho a Élem.--Mas porque levas, à força, uma rapariga
das nossas tribos? Funda-se o teu sangue com o nosso, e reúna a paz os
filhos da Luz com os homens das regiões desconhecidas.--

Élem pegou na mão de Vamiré e conduziu-o, com palavras doces, para junto
do chefe. O Pzann deixou-se conduzir, cativado pela voz austera e nobre
do oriental; mas, atrás de si, os orientais levantaram-se
inopinadamente, com um clamor entusiástico.

Vamiré acreditou numa perfídia, segurou Élem e começou a fugir. A alguma
distância, nas trevas, parou.

--Velho burlador,--clamou ele,--a tua voz canta a paz, mas o teu
espírito quer a guerra. Vamiré despreza-te.--

Entrementes, armava o arco e apontava. Élem interpôs-se novamente. A
frecha, desviada, internou-se nas trevas. Os outros armavam-se então;
mas Vamiré desapareceu, enquanto o chefe, consternado, impedia a
perseguição:

--Não marcheis para a morte... Ele não compreendeu as minhas palavras, e
os vossos gritos assustaram-no!

A fogueira recebeu novo combustível; e, enquanto ela se ateava clara, os
orientais tornaram a deitar-se, desgostosos daquela cena, em que a
ingenuidade de se julgarem compreendidos inutilizava a prudência do
chefe.




XV

Reforços


A alvorada difundia-se por cima da floresta, e o velho permanecia ainda
indeciso. Além de tudo, era impossível lutar com segurança contra o
homem fulvo; a sua força, consideravelmente superior, dificultaria um
combate franco; e a sua prudência inutilizaria qualquer cilada. Pedir
auxilio a tribos, que demoravam longe, a algumas semanas de caminho,
impossível. Reconhecer primeiro o território inimigo, e levar lá depois
um exército? Mas não surgiriam obstáculos invencíveis? E a floresta
teria limites?

As orações e os ritos cantavam-lhe longamente na alma. O seu olhar
buscou a chave do enigma nos pálidos lampejos das achas, nos arabescos
da ramaria. Mas não disse uma palavra: a sabedoria das tribos exige que
o chefe prudente opere, sem fazer hesitar a caprichosa inexperiência da
gente moça.

Tomou as suas armas; estudou a direcção da sombra; observou o voar de
certas aves, e levou consigo os companheiros.

Todos reconheceram, logo, que marchavam para o Sul. Desse lado,
estendiam-se, até o sopé de altas colinas, grandes planícies estéreis, a
que se aventuravam raros exploradores; era o território dos cães. Um
pouco mais para o Levante, com seis paradas de um dia, poderiam chegar
às tribos amigas.

Os moços admiravam-se, mas nada diziam.

Decorreu o dia, interrompido de breves paragens, e manteve-se a
orientação até à noite.

A noitada foi áspera. Uma chuva torrencial caiu sobre a floresta, quatro
horas antes de amanhecer. Apagou-se o lume, e os corpos tiritavam
encharcados.

Foi mester construir um abrigo e, quando prosseguiram na marcha, era
manhã clara.

Os quatro homens marchavam em silêncio. Uma espécie de ferocidade
emanava das coisas: a chuva fustigava as ramadas; a terra prendia os pés
na lamacenta argila; o vaguear das feras nos moitedos era ameaça
terrível; os lobos, em alcateia distante, começavam de seguir os
orientais, na previsão de carnagem; as serpentes multiplicavam-se,
sinistramente estendidas nos braços das árvores.

O receio do Inverno estimulava o apetite: foi preciso disputar aos lobos
uma presa já morta.

A nostalgia das cabanas e das grutas insinuou-se no peito dos orientais,
que se sentiram invadidos pelo devaneio e pelos encantos do lar. Só o
velho, impenetrável, curvava a cabeça às contrariedades, aceitando a
sorte adversa.

Principalmente a segunda noite foi frigidissima. Felizmente, descobriram
uma larga clareira, à borda da qual chegaram a acender uma fogueira de
folhas secas.

De manhã cedo, puseram-se a caminho; e o musgo das árvores, e o voo de
certas aves na direcção das planícies, foram-lhes orientação bastante.
Mas esta era já menos segura, e impunha-lhes numerosas paragens. Os
novos entreolhavam-se furtivamente, sombriamente, e voltavam-se amiúde
para Leste. Pelas oito horas, começaram a trocar palavras em voz baixa,
e parecia que os animava um fermento de revolta.

O velho todavia continuava a marchar, altivo e robusto. Sucedia-lhe
pensar alto, gravemente, e rir, até, com uma espécie de entusiasmo.
Sagaz, como podia sê-lo um primitivo, dir-se-ia que tinha vista longa e
dupla, e uma voz reveladora no seu intimo.

O sol, ao meio dia, rasgou as nuvens. Da terra ergueu-se uma névoa, com
um cheiro morno, suavíssimo. O velho estendeu as mãos, dirigiu orações
ao astro, e depois voltou-se para os seus companheiros:

--Quem há que tenha o direito de se esquivar à obediência? Se o Conselho
quer a tua cabana, deves-lhe a tua cabana; se quer o teu braço,
deves-lhe o teu braço; se quer a tua vida, deves-lhe a tua vida. Não sou
eu, entre nós, apesar da idade, o mais forte e o mais discreto? Os
vossos cabelos ainda não branquejam, e os Espíritos não vos falam ainda.
Abatei o vosso orgulho, ou grandes males vos advirão!--

O arrependimento e o terror encheram então a alma dos novos; e estes,
prosternados, reconheceram, mais uma vez, a autoridade da experiência.

O chefe anunciou-lhes que depois do crepúsculo chegariam às raias; o que
foi confirmado pela presença dos grandes quadrúpedes migradores, amigos
das planícies.

Reapareceu a confiança e a esperança, não obstante a chuva, e o negrume
da floresta, em que vagueavam mais numerosas as feras nocturnas. Seis
lobos pereceram sob as frechas ervadas; os outros dispersaram-se; o
homem pareceu retomar o seu ceptro.

Mas as cataratas jorravam mais copiosamente; um vento impetuoso sacudiu
as árvores; as feras, inquietas, irromperam da sombra; a situação dos
homens tornou-se lamentável.

Os lobos tornaram a agrupar-se; no esconso da mata, tornou-se mais vivo
o rir das grandes hienas. A aproximação da noite duplicou os ruídos de
hostilidade, o odioso clamor das feras.

Os orientais largaram a passo forçado. Atrás deles, ofegava a respiração
dos lobos, e a rajada do vento atirava-lhes aos olhos folhas mortas.

As pálpebras da noite fecharam-se rápidas em meio do temporal. O chefe
parou então.

O lobo, de pupilas fosforescentes, fechava adiante o seu círculo, e
uivava, de beiços erguidos sobre os agudos caninos.

Havia poucas frechas, e o lume era impossível. Era forçoso resignarem-se
os orientais a marchar de noite, com infinitas precauções. Demais, a
raia era a salvação.

Lentamente, mantendo os lobos em respeito com tiros de zagaia, os
asiáticos prosseguiram na marcha...

À terceira hora de trevas, a nona depois do meio-dia, avistaram a aberta
que dava para a planície.

O chefe ia na retaguarda, cheio de resistência nas suas fibras
ressequidas, espantando sempre a desordenada horda dos lobos, mas
prestes a sucumbir.

Aos vitoriosos clamores dos homens responderam latidos a distância. Os
lobos uivaram angustiosamente; depois, ouviu-se um agitar de mato, e
passarem por ele centenares de corpos invisíveis, ladridos raivosos e a
debandada dos lobos, a sua fuga, em meio de murmúrios de raiva e gritos
de matança e de agonia.

Tranquilos então, os orientais chegaram à orla da floresta, onde os
cães aliados, e dirigidos por um chefe, aguardavam os seus amigos.




XVI

A chuva


Aproximava-se o período diluviano do Estio, que todos os anos vinha
ensombrar o céu quaternário. O vento arrefecia então, o frio matava,
muitas vezes, a flor ou o fruto no ramo, e grandes fomes sucessivas
exterminavam os frugívoros. Transbordavam rios e ribeiros; e o homem,
encerrado na gruta da região alta, aprovisionado, hibernava, passando as
horas a fabricar utensílios e armas.

Vamiré, prevendo aqueles dias nefastos, remava todo o dia. Élem,
submissa, dominada, ajudava-o. A carne de élafo assado servia para a
alimentação; e acresciam frutos silvestres, raízes tenras, ovos tirados
dos ninhos serôdios.

Vamiré velava ternamente por Élem; e as noites, que eles passavam nas
margens do rio, trescalavam a poesia imensa das infâncias.

Abrigavam-se perfeitamente contra o ímpeto da chuva; a barca, sustentada
por quatro espeques, servia de tecto; a pele do espeleu tapava o lado do
vento; e grandes ramos pendiam da barca, de todos os lados.

Foi naqueles dias que o grande nómada do Ocidente se tornou esposo da
filha dos países desconhecidos...

O ruído da chuva, o fragor da floresta açoitada pelo vendaval, isto, de
per si, já falava de invernia e do prazer do refugio.

As primeiras friagens confirmaram o prognóstico. Vamiré, desagasalhado
em favor de Élem, tiritava ao sopro do nordeste prematuro. Teve de
gastar a manhã inteira do dia seguinte, em descobrir algum animal
felpudo; e, de emboscada, surpreendeu um urso, atravessando-lhe o
coração com a zagaia.

O cérebro do animal, misturado com o cerebelo e a medula de uma rena,
serviu para untar a pele, previamente esfregada e desembaraçada da
gordura e dos tendões.

Desde então, puderam ambos estar quentes, durante o sono. Élem,
encantada do conforto, ria docemente, com uma confiança infinita. Mas
Vamiré mantinha a preocupação das grandes chuvas próximas, durante as
quais a floresta era inabitável. As feras, mais agressivas então, as
hordas de lobos perigosamente esfomeados, iam amplificar a luta nos
bosques. Em combates contínuos, as armas partir-se-iam. Era preciso
estacionar, durante semanas, em alguma gruta, para renovar arpões e
zagaias, para conjurar os perigos nocturnos de um acampamento volante e
as torrenciais chuvadas ao ar livre.

Por menos suave que fosse o inicio do período diluviano, Vamiré poderá
chegar às grutas em fins de Julho, sob a condição de se apressar e de
não perder tempo. Não se desprecatou; e, desde a aurora ao crepúsculo, a
sua mão vigorosa fazia andar a piroga. Infelizmente, à barca sobrevieram
avarias, e foi preciso despender três dias em reparos.

Por fim, a barca foi de novo lançada à água. O rio, com a enchente,
tomava a cor do barro, e transbordava já para as margens mais baixas. A
corrente, além disso, opunha-se; era preciso ir junto da terra; grandes
troncos flutuavam ameaçadores, e algas terríveis emaranhavam as suas
meadas.

Élem passava grande parte do dia, envolta na pele felpuda, e amodorrada
pela monotonia da água corrente. O repasto era a sua principal ocupação.
Amarrava-se então a barca em qualquer calheta. Graças à provisão de
folhas secas em lugar coberto, o lume era suficiente para acabar de
assar uma posta de élafo, um palmípede, um peixe arpoado em viagem.

O clima seco e frio dos tempos madaleneanos nas estepes da Europa, posto
que moderado no Oriente meridional, comportava todavia o súbito regresso
do frio antes do equinócio do Outono. Este facto ocasionava emigrações
parciais de símios, de gamos, de chacais, de roedores, de aves
palmípedes e pernaltas. O antropóide recuava então para o trópico,
enquanto as hordas do mamute chegavam mais numerosas, e os pais do
elefante indiano, os filhos do grande _Anticus_ de Chelles desciam das
montanhas.

Vamiré fazia parar, às vezes, a piroga, se um bando de gamos ou de
chacais chegava, em marcha, à beira do rio; mas o que verdadeiramente o
apaixonava era o êxodo dos macacos, que, desfilando, e saltando de
ilhota para ilhota, passavam à outra margem. Cabriolavam, clamorosos,
aos centos, baloiçando-se, saltando a vinte côvados, apanhando de novo
um ramo de árvore, suspendendo-se e prosseguindo aos saltos. A face
deles tinha trejeitos, que pareciam determinados por ideias. Tinham
gestos inteiramente humanos, coçando a cabeça, catando-se, assentados,
descascando frutos com os dedos e com os dentes. As suas orelhas bem
caireladas, os seus olhos de visão recta, a finura, a inteligência dos
seus movimentos, encantavam extremamente Vamiré.

Sucedeu que uma fêmea, furiosa, atirou um filhito para o caniçal.
Debalde gemeu ferido o pequeno macaco: os outros pareceram não cuidar em
não avolumar a sua coluna com um inválido. Comovido, o grande nómada
correu a apanhar o pequerrucho. Encontrou-o gemendo, de mãos estendidas
no peito. Agasalhado, alimentado de frutos, o animalzito tornou-se
estimável: gostava de dormir no colo de Élem, de se encarrapitar no
ombro de Vamiré, beber água na mão dele, de se arrufar com a sua própria
imagem na face do rio; e nada satisfazia o coração de Vamiré, como o ver
o macaquito, inquieto, caprichoso, brincão.

Seria aquilo uma raça de homens anões?

Consultou Élem a este respeito, e soube que a linguagem deles era
desconhecida, e que viviam como animais. Entretanto, Élem falou-lhe do
homem das árvores, construtor de cabanas, e Vamiré recordou-se do ente
de olhos de âmbar, cabelos raros e corpo peludo, que encontrara outrora.

Um dia, à hora em que o vermelho indeciso, tremulando em fundo claro,
anuncia o desaparecimento do astro soberano, Élem soltou um grito, e o
Pzann suspendeu o remo. Na margem direita, apareciam homens. Eram de
baixa estatura, curvados, e em seu rosto estereotipava-se uma fealdade
triste e humilde. Armados apenas da antiga clava; e os seus cabelos,
dispostos em pequenos anéis, desciam-lhes até o queixo.

--São os _comedores de vermes_,--murmurou Élem, contrariada.--No Estio,
entram nas florestas e sustentam-se de bichos moles, contidos nas
conchas; no tempo das chuvas, descem para a beira-mar, e nenhuma tribo
sagrada tolera a sua vizinhança.

Vamiré, com interesse febril, observava os vermívoros. Tinham
proeminente a maxila; a testa descia levemente até os enormes
sobrecenhos arqueados; o cerebelo, desmedido, parecia pesar-lhes; não
tinham os rins arqueados, e, marchando, apoiavam-se na clava.

Durante algum tempo, procuraram raízes e frutos de pevide entre as
plantas aquáticas, e todos depunham a sua colheita, num monte, diante do
chefe. O montão era já considerável, porque eles, pelo caminho, haviam
já empilhado moluscos univalves, tubérculos, folhas hortenses.

Ao cair da tarde, agruparam-se em volta do chefe, que equitativamente
distribuiu por eles os mantimentos.

--Conhecem a justiça!--murmurou Vamiré, satisfeito.

Depois, vendo que eles acendiam lume, cedeu ao impulso do seu coração, e
dirigiu para eles a piroga, com gestos de fraternidade.

Impressionaram-se, ao principio; mas o pequeno número dos adventícios
tranquilizou-os.

Silenciosos e graves, contemplavam o grande nómada e a sua companheira.
A estatura do homem, desconhecida no Oriente, assombrou-os; mas via-se
que simpatizavam com ele, ao passo que visivelmente desconfiavam de
Élem, em quem reconheciam o tipo dos mais ferozes perseguidores dos
vermívoros.

Entre estes não havia mulheres: as mulheres, em hordas confusas,
seguiam-nos de muito longe. A primavera reunia os sexos em paragens
tradicionais; depois, o bando masculino abandonava o bando das fêmeas
durante o Estio, o Outono e o Inverno.

Eram como vencidos, os vermívoros. Saídos cedo da matriz antropomorfa do
período terciário, lançados nas vias _externas_ do humano pela adopção
de armas, de métodos de sociabilidade, já muito distanciados do processo
animal, para que nele reentrassem sem fraquejar, tinham perdido, em
frente do vigoroso quaternário, a esperança orgânica, esta força
singular que abandona o velho tipo do Vermelho perante o Árico.

Demais, relegados nas estepes áridas ou na profundeza das florestas,
fracos, mal armados para a caça da ligeira fauna silvestre, descambavam
progressivamente na fitofagia, adestrados em descobrir os tubérculos que
há debaixo da terra, em conhecer as hastes e raízes comestíveis, fazendo
provisões de pevides de melancias, de grãos de helianto, gulosos de
moluscos, passando o Inverno nas costas do Cáspio ou do Mar-Negro, onde
se alimentavam de pesca rudimentar.

Uma bondade, um instinto adorável, tornava a vida do individuo preciosa
para a comunidade. As partilhas eram reguladas pela mais estrita
igualdade, e cada qual tinha a maior dedicação em salvar o companheiro
da garra das feras. Por isso, eram ainda senhores do leão, do urso, do
leopardo e até do antropóide; mas tinham medo enorme dos braquicéfalos,
caçadores das estepes fecundas: é que tinham visto perecer milhares dos
seus, sob os golpes das frechas e zagaias.

Nunca se aproximavam dos acampamentos inimigos, a menos de seis dias de
marcha, e até evitavam os grupos insulados.

Vamiré cativou-os pelo seu riso ingénuo, e pela generosidade com que
lhes ofereceu alimentos da sua barca: postas de élafo e de esturjão,
ovos de adem. Também estas provisões foram repartidas, com gáudio do
Pzann. Este, brindando o chefe com uma pele de raposa, todo se tomou de
surpresa, quando viu que a pele era gravemente retalhada e distribuído
um pedaço a cada um do bando.

O seu riso franco, e a sua tentativa de fazer compreender o absurdo
daquela prática, sugeriram alguma desconfiança aos vermívoros; e
manifesto ainda era o terror que Élem lhes inspirava, e o desgosto dela;
a ponto que Vamiré, mau grado seu, decidiu separar-se deles.

Reembarcou pois. Já a distância, escondido pelos caniçais, fixou
longamente a vista, com exclamações em voz baixa; os comedores de
vermes, activando as suas fogueiras, agrupavam-se à roda delas; e,
depois de construírem com ramos uma ligeira choupana, em que o chefe se
recolheu, acocoraram-se sobre os calcanhares, ao ar livre, com a cara
entre os joelhos, as mãos na cabeça, e assim adormeceram.

O Pzann sentiu então grande piedade para com a sorte dos seus irmãos
inferiores. Ao amarrar a barca, passava em seus lábios um murmúrio de
tristeza. Mostrou-se sombrio, à refeição da noite, e adormeceu tarde.

Acordou antes da aurora, e observou a partida dos vermívoros. Viu-os
atravessarem o rio a nado, e desaparecerem ao nascente. Quando já os não
via, suspirou melancolicamente, acordou a sua companheira, e desamarrou
a piroga.

Quatro dias decorreram no labor da viagem. Em a noite do quarto,
desencadeou-se uma furiosa tempestade, que derrubou árvores
ruidosamente, levantou no rio enormes vagas e fez tremer toda a
floresta.

Abrigado numa lapa, Vamiré dormiu, resignado e tranquilo. Élem passou a
noite em suplicas, orando ao Desconhecido.

O furacão sibilava, insinuando-se nos sarçais, e curvava as altas
ramarias, onde se perdiam clamores em som confuso.

A tempestade declinou de madrugada. O dia amanheceu suave, as nuvens
deixaram passar réstias de sol, e a floresta ressurgiu para uma vida
húmida e tépida.

O rio, barrento, largo, engrossado e tranquilo, carreava os despojos da
batalha da véspera.

Começava a descida para o mar dos peixes que sobem aos rios, e que iam
passando em chusmas, adelgaçados, extenuados pelo trabalho da
fecundação.

Élem, fatigada, dormia; Vamiré, de bom humor, remava para a pátria
longínqua.

Em horas monótonas, a ideia do espaço a transpor, a vertigem da
andadura, adormentava o cérebro do Pzann. Vamiré já não era senão uma
vontade tensa, um organismo mergulhado no sono dos fluidos, a água, o
ar; o marulho daquela e o infinito afago deste entorpeciam as suas
carnes, imobilizavam a sua memória sobre algumas palavras, sobre a
imagem de seu pai, de sua mãe, do seu valente irmão Guni ou da sua
irmãzita, que saltava como uma cabra montesa; mas não chegava a realizar
o esforço que relaciona as coisas e as faz falar.

Mas à sexta hora depois do meio-dia, deu-se um incidente inquietador,
que atraiu toda a atenção do grande nómada.




XVII

Os aliados


Animais corredores, ligeiros,--élafos, gamos, elãos,--chegavam
espavoridos ao rio e atravessavam-no. Formavam bandos consideráveis,
dominados do pânico herbívoro. O seu número ia crescendo com o declinar
do dia, e com eles se misturavam cavalos e alguns uros.

Vamiré, espantado, baldadamente procurava uma causa simples daquela
extraordinária fuga: incêndio, emigração...

Interrompia o remar, e Élem murmurava esconjurações.

E o galope dos animais ia-se acelerando. Aos cervídeos, aos bovídeos,
aos cavalos, juntaram-se lobos, chacais, raposas. O ruído do mato
patenteou a corrida de animais menores,--lebres, doninhas, fuinhas e
lontras. Apareceram enfim carnívoros,--ágeis panteras e ursos de marcha
pesada. Ao longe, os macacos clamavam alarma, como sentinelas
escrupulosas, e o seu clamor atravessava, como um furacão, as altas
ramadas, transpunha o rio e difundia-se nas regiões desconhecidas.

Anunciava-se formosa a noite: nenhum sinal de tempestade, nenhum sintoma
de perturbação atmosférica. Mas, como um prodígio misterioso, a fuga das
feras despertava no intimo do homem e da mulher os mais sinistros
presságios.

Todas as vozes, na serenidade do crepúsculo, vibravam de um medo enorme,
e espalhavam o contágio do terror... Vamiré entrevia, não o receio do
animal perante a natureza, mas o receio dos seres perante outros seres,
o êxodo das raças vencidas, o desalento de uma espécie perante a espécie
dominadora.

Era mister entretanto precaução contra a extraordinária ameaça, e
segurança contra o perigo de ser esmagado pela cega corrida de
herbívoros, que prosseguia nas trevas.

Vamiré avistou, a meio do rio, uma ilhota, em que cresciam freixos.
Dirigiu para lá a embarcação, e acendeu pequenas fogueiras, pondo-se
assim a salvo de ataque directo e em posição excelente para observar
tudo.

Depois da refeição, nem ele nem a companheira pensaram em dormir.

Rio abaixo e rio acima, findara a corrida dos animais. Uns
aventuravam-se contra a corrente, outros seguiam-na; e este curioso
movimento tinha a singularidade curiosa de se efectuar nas duas
direcções, em sentido inverso, como se os animais que seguiam para cima
e os que seguiam para baixo procurassem fugir da zona florestal, que
terminava quase em frente da ilhota.




XVIII

Os vermívoros


Os comedores de vermes marchavam na direcção do grande-lago. Ainda que
tristes em geral, à sua exploração não era estranha uma certa satisfação
no inicio das paragens. Espalhavam-se então, e, como a colheita da manhã
era individual, tinham exclamações a cada bom achado, e mostravam
puerilmente o que colhiam, túbaras, caracóis, raízes doces de
umbelíferas, frutos agridoces...

Sob os longos e negros topetes, com a sua cara proeminente, a disposição
daqueles topetes sobre o rosto tornava-os mais parecidos a qualquer cão
do que a um antropóide. Os seus braços curtos, o seu peito em quilha, o
indeciso ganido do seu rir, completavam a semelhança.

Demais, entre as tribos braquicéfalas corria a lenda, de que tinha
existido ou devia existir no extremo Oriente uma raça de homem-cão,
aniquilada a pouco e pouco pelos verdadeiros homens, pelos filhos do
animal, das águas, únicos e legítimos possuidores da Estepe e da
Floresta, do Rio e dos Grandes-Lagos.

E assim, ou folgando entre os vastos arvoredos, ou perseguindo-se
através dos matagais, de ventre em forma de odre cheio, de dorso curvo,
marchando muitas vezes a quatro patas, conservavam a instintiva
orientação que guia os animais emigradores.

A linguagem, reduzida a alguns sons, exprimia o medo, a alegria, a fome,
a sede. Quanto ao mais, serviam-se da mímica animal, e ainda da
comunicação oculta, da transmissão simpática do terror ou da ira.

Os velhos, sem ferocidade, eram os guias. Dois deles comandavam uma
vanguarda de batedores; outro, o mais velho, fechava a marcha. Quando
atravessavam os fojos das grandes feras, os chefes, com um grito agudo,
reuniam a coorte; e, então de clava pronta, não se pode imaginar que
solidariedade corajosa os impelia a investir sem temor contra o urso ou
o leopardo.

Depois do meio-dia, reuniam as provisões comuns, as que serviam para o
repasto da noite, antes de adormecer. Cada um ali depunha a sua colheita
individual, sem lhe tocar com os dentes.

Feita a divisão, junto de um regato ou de uma fonte, comiam e bebiam
sobriamente, e todos adormeciam, fatigados do seu trabalho diário, com
sonhos tão vagos, como os do leão ou do lobo, que rosnam dormindo.

Marchavam. A floresta húmida espalhava sobre eles a sua sombra. Graves e
pueris, a sua atenção desviava-se constantemente, acendia-se o seu pobre
riso e apagava-se, como os fogos que flutuam nos pântanos; e a sua vida
expandia-se em ligeiras comoções, em esboços de ideias, em artifícios de
quem amamenta um aborto, em lineamentos de memória e previsão.
Lavasse-lhes a chuva os crânios duros, açoitasse-lhes o vento as nucas
com varas de frio, fizessem-lhes os espinhos sangrar os pés,
perfurassem-lhes a epiderme milhares de parasitas, eles tudo aceitavam.
Acumulava-se-lhes no cérebro uma herança inteira de resignação.

Depois que o homem de braços longos chegou através dos tempos, tinham
deixado de progredir: conservavam-se. Nada mais havia para eles. A terra
imensa desprezava-os; e, entrementes, a vida esgotava-lhes os meios,
endurecendo-lhes a epiderme, erguendo-lhes velos no peito, e
estendendo-lhes refegos de gordura à volta dos quadris.

Mas o circulo das raças rivais ia-se-lhes sempre fechando adiante, e o
pobre homem antigo tinha de durar menos que as feras carniceiras, porque
estava desarmado pela longa crise de transição, em que as forças
musculares se reduzem e se transformam, na luta contra as adaptações que
o cérebro realiza no mundo exterior.

Na penumbra dos arvoredos, tinham companheiros de êxodo, aos quais se
haviam desacostumado de fazer mal: numerosos bandos de gamos e chacais,
dirigindo-se para o Sul, ou o tugir dos roedores, que se encaminhavam
para o Poente. Saudavam com um longo clamor o pacifico barrito do
elefante oriental, o buzinar dos pequenos cavalos de boca papuda, cujas
hordas militares cruzavam as suas.

Na noite do segundo dia da sua viagem, o chefe dormia na sua choupana de
ramos, a fogueira nocturna ia-se apagando, e os tardígrados, acocorados,
encolhiam-se com o frio, quando o grito do vigia pôs todos a pé.

A palavra, que significava o leão, trocou-se entre eles, e um grande
terror lhes fez bater os queixos. O chefe agrupou os mais corajosos, e
todos se reuniram, de clava erguida.

O pavoroso vulto do leão entrou no âmbito, frouxamente iluminado pela
fogueira que se extinguia, e estacou, por um minuto, diante dos clamores
belicosos dos homens.

Mas, ou porque tivesse escasseado a caça, ou porque preferisse a carne
dos primatas à dos outros animais, abaixou-se, arremessou-se com um
salto prodigioso, e caiu sobre a horda. Esta havia recuado, abrindo
espaço, segundo uma táctica milenária, e mais de cinquenta clavas
desceram sobre o crânio, sobre o focinho, sobre os olhos, sobre o
espinhaço da fera.

O leão defendeu-se, levantou-se, e com três lances de garras prostrou
quatro adversários. Os outros, estimulados à luta, tornaram-se mais
audaciosos, atacaram o focinho ensanguentado; e o hércules do grupo, com
uma pancada, partiu uma das pernas dianteiras do animal, ao passo que
mais dez pancadas paralisavam as pernas traseiras.

Vencido, o leão procurou fugir, mas os vermívoros, tornando-se ferozes,
não lho consentiram. Arrojaram-se todos contra ele; e, enquanto uns o
seguravam, procuravam outros estrangulá-lo. Não o conseguiram logo, e
receberam golpes terríveis; mas, afinal, tendo o chefe enterrado a clava
na goela aberta, o leão entrou de estertorar; e então, ferozes e
vingativos, todos acabaram com ele.

Viu-se que dois companheiros expiravam e cinco estavam gravemente
feridos. Os mortos, longamente pranteados, foram depositados no fetal, e
os feridos foram desveladamente tratados. De manhã, quando prosseguiram
na marcha, os mais feridos foram levados em braços.

Os tardígrados, não obstante as suas perdas, ufanavam-se de, mais uma
vez, haver dado lição severa ao seu temível antagonista, e erguiam
galhardamente a clava, mutuando gestos de triunfo e confiança.

A floresta agora parecia-lhes melhor. Os seus pés descalços pulavam
ligeiros pelo caminho, a sua estatura aprumava-se quase, e os seus
pobres olhos de deserdados pareciam brilhar.

É certo que, perante a simples possibilidade da vitória, uma expansão de
seiva lhes teria dilatado o crânio; mas as vitórias restringiam-se ao
animal: como uma pressão material, como uma ligadura das artérias, como
uma degenerescência dos pulmões, o medo dos braquicéfalos acanhava-os,
imobilizava-os; aniquilava-os, até de longe. E, assim, o circulo das
suas ideias era tão limitado como o da sua vivenda, ou porque não
ousavam pensar no que não podiam realizar, ou porque não podiam pensar
no que não tinham realizado.

Desde a fresca alvorada até um terço da manhã, não houve incidente na
marcha. No agradável arvoredo, só havia animais inocentes. O sol tornava
tépido o humo das clareiras, e os seus raios penetravam na espessura. A
tal ponto a vida se expandia, que eles se puseram a cantar.

Por volta do meio-dia, a vanguarda de quinze homens recuou vivamente.

Achavam-se num azinhal interminável. Todos se alimentavam de trufas.
Abundavam os javalis, fugindo adiante dos emigradores; e, por cima das
trufeiras, esvoaçavam legiões de moscas gulosas.

Marchando, parando para escavar, a vanguarda avistara uma fêmea de
antropóides.

Era raro que os antropóides atacassem os vermívoros, sobretudo quando
estes não levavam mulheres no seu bando; pelo contrário, uma espécie de
confraternidade animava o grande macaco, e os tardígrados já nele tinham
tido um precioso auxiliar contra o urso e os felinos.

Formou-se conselho, e resolveu-se destacar um pequeno grupo, que fosse
assegurar as suas pacificas intenções ao homem das árvores.

Aquele grupo, devidamente vigiado, atraiu a atenção dos antropóides, com
gritos de alegria e sinais de benevolência.

Surpreendidos a principio, os antropóides pareceram logo reconhecer
aliados, e assim o mostraram, gesticulando com gravidade, e avançando
lentamente.

Minutos depois, estavam reunidas as duas hordas. Os vermívoros
ofereceram aos antropóides uma refeição de túbaras, pevides e folhas
tenras. Os homens das árvores aceitaram estas coisas com prazer, porque
o seu regime alimentício era idêntico ao dos tardígrados.

As duas raças deserdadas ficaram depois em silencio, por muito tempo. A
sua natureza parecia comportar um fundo comum de melancolia; e a
melancolia do grande macaco parecia mais pesada que a do tardígrado,
como se fosse proporcional ao vigor dos músculos e à largura do peito.
De maneira que o homem foi o primeiro a rir, a brincar, enquanto o
macaco permanecia grave e meditabundo. Mas um deles pareceu
impressionar-se com uma recordação longínqua, despertada pela analogia
das circunstâncias. Entrou em laboriosas explicações. Os tardígrados,
inclinados, escutavam-no, sem chegar a compreendê-lo; mas a recordação
pareceu germinar noutros antropóides, que se juntaram ao primeiro; a
confusão porém era cada vez maior, até que um deles se lembrou de
apanhar uns ramos secos e indicar o movimento de uma chama.

Os vermívoros viram então que os antropóides se referiam ao lume; e,
cheio de orgulho, o chefe tirou de dois pedaços de pau seco o fogo
necessário.

Quando se fez a chama e se difundiram as línguas amarelas, entre volutas
azuladas, os homens das árvores ficaram, por um momento, receosos e
assombrados, enquanto os tardígrados riam de boa vontade.

Era a comunhão dulcíssima de parias nas fronteiras da animalidade; um
prazer reciproco em se compreenderem; e como que uma curiosidade do
Espírito das coisas em conhecer os progressos por ele realizados na
disposição da matéria.

Separaram-se como amigos,--os tardígrados avançando para o Oriente, os
antropóides dirigindo-se para o Sul,--depois da troca de presentes: o
homem deu clavas ao macaco; e o macaco deu ao homem ovos tirados dos
mais altos ninhos.

E havia apenas três horas que a separação se dera, quando os vermívoros
viram os primeiros sintomas da fuga dos animais, que ao depois tanto
inquietou Vamiré. Primeiro, viam-se os hóspedes vulgares daquela região,
élafos, javalis, e por isso não se impressionaram muito os tardígrados;
mas horas depois, avistavam-se, como companheiros de êxodo, os gamos,
refluindo em bandos consideráveis.

E então os vermívoros, tomados igualmente de pânico, retrocederam
também.




XIX

Na ilhota


Na expectativa de extraordinário acontecimento, Élem e Vamiré
conversavam.

Agora, já o Pzann podia compreender e exprimir as ideias fundamentais da
linguagem dos braquicéfalos. Julgava oportuno interrogar a filha do
Oriente; mas, nas suas reminiscências, nada ela encontrava, que
esclarecesse a situação. No seu crânio supersticioso perpassavam apenas
as antigas lendas do _Animal das águas_, expulsando das florestas todos
os seres animados, a fim de investir o homem na posse delas. Os animais
foram salvos pelo _Elefante cornígero_, que reina em as montanhas; e a
_Serpente_, rival do _Animal das águas_ e inimiga do homem, opôs-lhe o
ser imundo que se alimenta de vermes, e a quem as tribos sagradas
aniquilarão...

Estas coisas falavam pouco ao espírito do nómada e até o indignavam.
Acaso o homem não vive de carne? e que seria das florestas e planícies,
sem animais?

Depois, Vamiré não podia imaginar um animal invisível. As suas duvidas
abalavam as crenças de Élem, a qual, todavia, continuava a murmurar as
suas orações, e a resguardar-se a si e ao seu amante, com práticas
religiosas; e o mesmo faria até a hora da morte, e porventura até
depois, se o destino lhe concedesse filhos, porque as coisas místicas,
embora nasçam lentamente, são como o pigmento da carne ou a forma dos
crânios, que só o tempo transforma e aniquila.

Inclinados sobre o rio, aguardavam a noite, que vinha chegando. O clarão
do Crepúsculo era vívido e roxo a um tempo, duplicado pelo reflexo. Sob
aquele clarão, a margem parecia muito distante, semelhando, sobre a
floresta, uma fronteira alvorescente em face das sombras eternas; na
margem, moviam-se animais fugitivos, os seus corpos escuros limitados
por traços de luz, os espinhaços roliços ou sinuosos, lisos ou eriçados,
as cabeças delicadas e longas, ou largas e volumosas, as armas
pontiagudas do élafo, a vasta fronte do gamo, a crina ondeante do
cavalo, o tronco flexível e serpentiforme da lontra, o dorso corcovado
do urso...

Quando a noite se ia cerrar enfim, e as árvores e o rio se engolfavam
lentamente na sombra, houve uma suspensão. Cada vez mais raros, já se
não viam senão animais vagarosos, insectívoros ou carnívoros vermiformes
que fugiam de uma vivenda próxima. Vamiré e Élem redobraram a atenção, e
perceberam um rumor muito distante, semelhante ao uivo dos lobos ou ao
lamento dos chacais.

Quase ao mesmo tempo, avistou-se na margem um bando considerável de
_comedores de vermes_. Mostravam-se fatigados, recurvados, cobertos de
lama e de sangue. Transportavam em braços grande número de feridos, e,
diante da impossibilidade de transpor com estes últimos o rio,
quedavam-se amargurados. Vigias de retaguarda surgiam da espessura a
cada instante, com gestos de alarma, mas ninguém tugia, ninguém pensava
em atravessar o rio sem os feridos, e muitos dispunham estoicamente as
suas clavas para uma luta extrema, quando Vamiré saltou para a sua
piroga, dirigindo-se para eles.

O bando, que ele encontrara quatro dias antes, reconheceu o gigante
loiro e manifestou alegria. Os outros, prostrados de fadiga,
estupefactos, viram chegar aquele homem.

Vamiré chegou à margem, e fez sinal para que transportassem dois
inválidos para a canoa. Os que se recordavam dele obedeceram; os demais
confiaram-se passivamente à ventura.

Vamiré fez uma quinzena de travessias, e todos os feridos se acharam na
ilhota; os outros alcançaram-na a nado.

Vamiré facultou-lhes as suas provisões. A tiros de frecha, matou três
gamos fugitivos e um pequeno cavalo de focinho papudo. Os _comedores de
vermes_, tranquilizados, iam buscar as presas e esfolavam-nos
rapidamente, sob as indicações do grande nómada.

Vamiré desvelou-se por eles, consternado pelo desgosto de Élem; tratou
dos feridos zelosamente, indicou a cada um lugar de dormida, porque os
vermívoros, depois da refeição, caíram logo no sono; e foi juntar-se à
sua companheira, que estava em observação na outra extremidade da
ilhota.

Conversaram em voz baixa. Élem propôs que subissem o rio, naquela mesma
noite; mas Vamiré opôs à proposta que o temporal da véspera avolumara o
rio, que arrastava troncos de árvores, perigosos para a canoa; e também
ponderou que os _comedores de vermes_ estavam debaixo de sua protecção.

Élem resignou-se, e tomou lugar no barco, comodamente abrigada por uma
pele de urso. Quanto a ele, ficou de vela, alimentando o lume, acabando
de esfolar as presas e de as partir em quartos, que ele punha logo a
assar, para os conservar bem.

As trevas envolviam tudo, e mal se distinguiam as margens.

De quando em quando, Vamiré aplicava o ouvido. O vago rumor de pouco
antes tornava-se agora mais distinto, já da esquerda, já da direita. Às
vezes parecia extinguir-se, mas depois ouvia-se, sempre mais próximo.

A viração dava linguagem às folhas, a chama das fogueiras reflectia-se
na água; a intervalos, o mergulho de um corpo e o ofegar do nadador:
depois, o silêncio e a solidão, debaixo de um formoso céu constelado,
sem luar.

Finalmente, à orla da floresta, assomou um perfil humano, movendo-se
indistintamente na sombra; e quase ao mesmo tempo viu-se uma ondulação
rasteira, como formada de centenares de corpos em bando; e ouviu-se um
estrépito de tempestade, o reboar de latidos multiplicados pelos ecos,
um transbordar de vida e de alvoroto, quebrando o silêncio das trevas.

Élem, desvairada, correu para junto de Vamiré, e segredou-lhe uma
palavra desconhecida do Pzann, tendo distinguido a voz do cão das
grandes planícies estéreis.

Os _comedores de vermes_ despertaram também, e, ao clarão da fogueira,
procuravam o nómada. Este, com gravidade e altivez, procurava devassar a
sombra e conhecer a ameaça que fazia tremer Élem e os tardígrados.

Durante a sua marcha lentíssima, os _comedores de vermes_ tinham sido
atacados pelos cães. O animal, todavia, respeitava ordinariamente o
homem antigo, cujos bandos emigrantes atravessavam as vivendas caninas.
Mas, por muitas vezes, os asiáticos tinham-se servido dos seus aliados
quadrúpedes para atacar as tribos errantes; e, com receio de um ataque
deste género, os _comedores de vermes_ tinham retrocedido de pronto.

Retrocedendo, encontraram outros bandos de irmãos, de maneira que o seu
número se elevava a muitos centenares.

Defendiam-se entretanto com energia, e chegavam quase sempre a repelir o
seu terrível inimigo, quando, a meio dia do rio, depois de uma longa
paragem, foram novamente assaltados.

O número dos seus adversários ia crescendo sempre, e por isso sofreram,
neste último encontro, perdas consideráveis. Demais, convencidos, pela
marcha lenta do quadrúpede, que os asiáticos o guiavam, precipitaram a
sua retirada.

Chegando à beira do rio, carregados de feridos, e horrorosamente
fatigados, já não esperavam senão a morte, quando Vamiré os salvou...

Surpreendidos no sono pelo grito do cão, reuniram-se ao grande nómada,
como ao seu protector único. Este convocou os chefes, e designou-lhes
lugar de combate nas ribanceiras da ilhota, encarregando-os de formar os
seus grupos. Como instruções, apenas levantou acima da cabeça uma das
antigas clavas, baixando-a sobre um inimigo imaginário. Este movimento
foi perfeitamente compreendido, e todos se encheram de coragem, animados
pelo belicoso aspecto do Pzann, pelos seus belos olhos que chispavam
altivez, pelo seu arcaboiço, dilatado nas previsões da luta.

Vamiré fez reavivar as fogueiras, e foi pôr-se de atalaia.

A margem oposta pouco tempo se conservou escura, pois a iluminou
rapidamente uma grande fogueira.

Nesse momento, a alguma distância da fogueira, quase na estrema do
espaço iluminado, Vamiré avistou o cão.

Élem apontava-lho com insistência, pronunciava-lhe o nome, referia-lhe a
ferocidade quando conduzido pelo homem, a sua organização em vivendas, a
sua aliança com os braquicéfalos.

O Pzann escutava-a atentamente.

O clarão da fogueira, menos enfumarado, banhava de claridade o
quadrúpede; e, ao vê-lo mais semelhante à hiena do que ao lobo, com a
sua larga mandíbula, a sua alta corpulência, a sua flexibilidade, Vamiré
compreendeu que ele devia ser um perigoso adversário.

Desviou-se porém a sua atenção, porque, adiante da fogueira, se interpôs
um vulto humano, e uma voz ressoava em meio do grande silêncio e sobre
as águas do rio.

Vamiré e Élem reconheceram a voz do chefe oriental. Élem dizia:

--Homem das regiões desconhecidas, escuta a voz daquele, cujos cabelos
são brancos, e a quem fala, na solidão, o espírito do saber. As minhas
palavras significam paz. Aliados com o cão, poderíamos encarar a guerra
sem receio. Que poderias tu, homem das nascentes do rio, contra as
inumeráveis legiões do animal, auxiliado de frechas e braços humanos?
Aceita a paz. Mutuemos o sangue de nossas veias.--

Com a ajuda de Élem, Vamiré compreendeu-lhe as palavras. Voltando para a
sua clareira, aceitou-as, gritando:

--Velho, o Pzann te saúda. Ouviu a filha da tua tribo, e está pronto a
mutuar o próprio sangue com o teu. Afasta o animal, e salvem-se os
comedores de vermes!--

Na margem oposta, os três moços haviam-se reunido, e o grupo dos
braquicéfalos animou-se.

Não podiam fraternizar com os filhos da Serpente. O velho tendia para a
clemência; mas um dos moços, fanático exaltado, pregou a vontade
implacável do _Animal das águas_, a lei das tribos sagradas; e todos,
repassados de desgosto e ódio, pareciam convencidos.

O chefe voltou-se de novo e clamou:

--Porque é que o homem irmão toma o partido do ser imundo? É melhor
deixar essa presa ao cão.--

Mas Vamiré indignou-se:

--O Pzann não ousaria aparecer entre os outros Pzanns, se abandonasse os
seus aliados; o Pzann quer a paz, mas quere-a para todos que estão com
ele.--

Formaram os orientais novo conciliábulo, e todos os moços, mais
desejosos de uma vitória do que de uma solução pacífica, tendiam para a
guerra.

O chefe não se atreveu a opor-se abertamente, mas referiu-se à coragem
de Vamiré, à glória de uma expedição para as bandas do Norte depois do
Inverno, à necessidade de estar em paz com os povos longínquos.

Dois dos moços pareciam convencidos, ao passo que o fanático baixava os
olhos, obstinado. Aproximou-se, até, da margem, e, apontando a frecha
ervada a um dos vermívoros:

--O Conselho diz: nunca a tua frecha hesite em ferir o imundo!--

E a frecha descrevia a sua parábola mortal, ferindo o tardígrado num
ombro.

O doloroso grito do homem foi acompanhado de um grito colérico do homem
loiro, e de um rumor de censura, entre os orientais.

--Homem,--clamou o velho,--perdoa a exaltação de um sangue muito novo!--

Mas Vamiré, cheio de indignação, replicou:

--O meu sangue também é novo, e não perdoaria a perfídia!--

Armou o arco, e a sua frecha atravessou o peito do agressor.

Depois, correu para junto do tardígrado ferido. Os companheiros chupavam
o sangue da ferida, extraindo assim o veneno. Vamiré buscou um antídoto,
folhas alcalinas, cuja seiva ele espremeu na ferida aberta, em que
depois as estendeu.

No campo dos orientais, o velho tratava do ferido. Este persistia em
soltar injurias contra os comedores de vermes; e todos estavam
indignados, porque o nómada ferira um homem, para vingar uma criatura
ignóbil.




XX

Assalto à ilhota


Prolongaram-se as tréguas.

Os orientais recuaram a sua fogueira para o abrigo do matagal. Os cães
estavam invisíveis, mas os seus uivos trovejavam na espessura.

Os _comedores de vermes_ recaíam no sono, à parte alguns velhos mais
resistentes.

Vamiré fortificava o retiro de Élem com grossas ramadas e preparava as
suas armas. O fumo das fogueiras flutuava sobre a água, entre clarões
purpúreos.

Não se ouviu mais uma palavra de paz. Parecia que de ambos os lados se
faziam preparativos para uma luta próxima.

Vamiré trabalhava e velava.

De uma vez, pareceu-lhe avistar um oriental que, a pouca distância da
água, se erguia, desaparecendo depois no mato. De outra vez, um bando de
cães veio beber ao rio; mas nada anunciava uma investida. Julgou
portanto que o chefe oriental aguardaria a manhã, e recomeçaria as
negociações.

Acabava de depor a seu lado a décima segunda frecha, untada de veneno,
quando notou um rápido movimento e o formigar de muitos vultos na
margem.

--_Eô! Eô!_--gritou ele, enquanto os tardígrados arrancavam do sono os
companheiros.

Lá adiante, impetuosos, os cães mergulhavam e nadavam, aos milhares, de
olhos fosforescentes em suas cabeças húmidas e luzidias, fazendo, com a
sua imersão, erguer o nível das águas nas costas da ilhota. Silenciosos
e terríveis, nadavam intrepidamente, sob a saraivada de pedras, ossos e
achas, com que eram acolhidos.

Vamiré, verificando que entre eles não havia nenhum homem, depôs o arco
e empunhou a clava.

Élem, armada de uma lança, poderia defender o seu abrigo.

Os tardígrados, animados pelo Pzann, mostravam-se enérgicos, postados em
pequenos grupos, de costas para o centro, com espaço livre para
manejarem os seus bastões.

Antes que tocassem terra, os cães foram atacados tão vigorosamente, que
recuaram para fora de alcance. Mas de pronto se dividiram em duas fortes
colunas, uma das quais singrou para o ponto mal fortificado da ilha,
defendido por Vamiré, enquanto a outra retomava directamente a ofensiva.

A precipitação dos tardígrados em auxiliar o seu salvador poderia tornar
eficaz aquela táctica dos agressores. Mas Vamiré repeliu energicamente o
reforço, e obrigou cada um a reocupar o seu posto.

Apenas a coluna, contra ele dirigida, tocou em terra, a carnificina do
Pzann espalhou nela o terror.

A sua alta corporatura, a sua clava enorme, a sua formidável destreza em
despedaçar crânios, a agilidade dos seus movimentos, a sua voz
autoritária, soberbamente humana, tudo isto pareceu produzir nos animais
uma impressão como que supersticiosa.

Cheios de pânico, latindo desordenados, foram recuando.

Entrementes, a segunda coluna conseguira invadir a ilhota, sem
desconcertar todavia a táctica dos _comedores de vermes_, sempre
reunidos em grupos, e defendendo-se sem desanimo.

Do lado dos cães, as perdas eram consideráveis, e os tardígrados
contavam uma vintena dos seus, postos fora de combate.

O animal sentia-se vencido, quando algumas frechas ervadas, partindo da
margem, fizeram duas vítimas. Produziu isso um certo terror, e os grupos
da costa aproximaram-se do centro. Os cães redobraram o seu furor, e, a
pouco trecho, era terrível o número dos feridos humanos.

No entretanto Vamiré, depois da sua vitória, notara que os asiáticos
despediam frechas, quase a descoberto, de trás dos arbustos. Por seu
turno, tendido o arco, despediu algumas frechas.

Os orientais tiveram que se retirar para trás de grandes troncos, de onde
os seus tiros eram muito incertos; e contentavam-se em açular os seus
aliados quadrúpedes, os quais, respondendo-lhes com latidos formidáveis,
assaltaram com mais vigor os seus adversários. A situação agravava-se,
tanto mais que a coluna, repelida por Vamiré, tinha entrado pela outra
extremidade da ilhota, levando reforço.

O pobre tardígrado viu-se perdido, e o seu grito de guerra tornou-se
plangente como um gemido de agonia.

Mas o grande nómada do Ocidente levava-lhe já o auxílio do seu braço, e
a sua clava abria caminho por entre crânios e espinhaços despedaçados.
De todos os lados, o animal, inquieto, aterrorizado, reconhecia naquela
voz e naquela força a força e a voz das raças vitoriosas, por forma que
os tardígrados retomavam coragem, e os cães, repelidos para a água,
voltavam ao campo dos asiáticos.

Uma ebriedade de vitória inflamava os olhos dos _comedores de vermes_.
Voltando-se para o homem loiro, cantaram a melopeia do triunfo, a que
Vamiré correspondeu com um belicoso clamor.

Na outra margem, à beira das florestas seculares, resoava o latir
furioso dos cães e as maldições dos homens do Oriente.

Decorreu a noite naquele tumultuar terrível, repercutido pelos ecos, e
em que os dois bandos inimigos exaltavam o seu valor não vencido e
prenuncio de novos combates.

Os tardígrados trataram acuradamente dos seus feridos, e, para maior
segurança, foram colocá-los perto do sitio, em que Vamiré acampava com
Élem. Dos cães, postos fora de combate, desembaraçaram-se os
tardígrados, lançando-os à água, em que alguns acabavam de morrer, ao
passo que outros, ao grado da corrente, chegavam à outra margem.

Vamiré fora ter com a sua companheira. Cheia ainda do desgosto que lhe
causavam os _comedores de vermes_, Élem permanecera no seu abrigo, sem
necessidade de se defender.

Vamiré falava-lhe da vitória, do número das vitimas, da ferocidade dos
assaltantes, da probabilidade de novos recontros; e ela escutava-o,
pensativa e triste por aquele incidente, fazendo votos pelo advento de
uma paz imediata.

Manifestava a esperança de que as negociações se retomariam de
madrugada, e o nómada aprovava, mas esquivava-se a quaisquer concessões,
relativamente aos tardígrados.

Fatigada, Élem adormeceu por fim. A maior parte dos vermívoros também
dormia. Vamiré velava sempre.




XXI

A derrota


Foi decorrendo a noite. A ronda dos astros atravessava as calmas
profundezas do rio; uivavam cães feridos; as fogueiras dos orientais
ardiam por trás das ramadas, iluminando os braços negros e contorcidos
do arvoredo e as densas e flexíveis cumeeiras da floresta.

Vamiré aproximou-se do rio, e ali se quedou alguns instantes, como para
dar ensejo a palavras de conciliação. Mas teve de se furtar a uma frecha
que vibrou.

Vibraram outras frechas, que, descrevendo vigorosas parábolas, iam quase
todas cair inofensivas no meio da ilhota.

O Pzann guardou-as, satisfeito de ver que se iam esgotando as munições
contrarias; mas os orientais, compreendendo logo a inutilidade daquele
tiroteio, suspenderam-no, e, com gritos e açulamentos, fizeram
reaparecer os cães, formigando na margem e latindo furiosamente.

Um vago perfil humano se desenhou entre os cães, acocorando-se logo;
outro perfil apareceu na ribanceira, em observação; e depois uma voz
humana, irrompendo do rio, denunciou um nadador.

E daqui concluiu Vamiré que, desta feita, os asiáticos acompanhariam a
expedição.

Em tais condições, o assalto era grave.

Sem perda de tempo, despertou toda a sua gente. Armou com arpões de
pontas fixas e de zagaias seis velhos mais sagazes, anexou, para seu
uso, uma lança à sua clava, e pôs-se de atalaia em bom lugar.

Os cães acabavam de se atirar à água. Seguidamente, a presença do homem
revelou-se em nova táctica: formaram-se três colunas; uma seguiu para a
frente; outra para o pontal, onde estava Élem; e a terceira, deixando-se
ir ao grado da corrente, rodeou a ilha, para a assaltar por trás.

Então Vamiré, para concentrar a defesa, fez evacuar o pontal oposto
àquele em que se achava, e fez guarnecer o outro lado da ilhota,
organizando tudo de forma, que toda a gente se agrupasse com ele, sendo
necessário.

Depois, enristando a lança, aguardou.

Os orientais não se viam. O seu plano devia ser o dirigir o ataque,
intervindo nele apenas no momento decisivo, e, para isso, nada melhor do
que estar na retaguarda. Tinham provavelmente mascarado os rostos, para
melhor se confundirem entre as cabeças dos cães.

A dez metros da ilha, as colunas da frente estacaram contra a corrente,
aguardando um sinal do bando que fora por trás da ilha. Quando chegou o
sinal, todas as forças atacaram a um tempo.

Parecia que aumentara a coragem dos cães. Luziam-lhes os dentes e o
fósforo azulado dos seus olhos rasgava as trevas.

Antes de assentar o pé em terra, sofreram, como antes, consideráveis
perdas; mas, desde que lá chegaram, muitos tardígrados das primeiras
filas pereceram estrangulados; a heróica defesa dos outros, postos fora
de combate centenares de cães, salvou-os do desbarato, e a luta seguiu
curso regular, com fortuna vária.

Ao princípio, dando pela ausência do Pzann, dois orientais haviam-se
adiantado e, primeiro a tiros de frecha, e depois com ligeiras lanças,
sustentaram o ataque.

O contacto dos inimigos aterrorizara os _comedores de vermes_, que
certamente se não salvariam da derrota, se os seis velhos, armados de
arpões e zagaias não aguardassem corajosamente os asiáticos. Estes,
envolvidos num círculo ameaçador, compreenderam a imprudência de
arrostar armas ervadas, e debandaram em retirada, não intervindo na luta
senão com brados e alguns tiros de frecha em momentos oportunos.

Do lado de Vamiré, os cães, açulados pelas vozes distantes, tinham
efectuado a invasão.

Vamiré não os esperou; marchou contra eles com tal vigor, a sua clava e
a sua lança fizeram tão numerosas vitimas, que os animais aguentaram
apenas o primeiro embate e fugiram, deixando a descoberto um oriental,
armado simplesmente de uma zagaia.

Vamiré, com uma pancada, partiu a frágil haste da arma inimiga, e,
segurando o homem pela nuca, lançou-o aturdido no chão, manietou-o,
deu-o a guardar a Élem, e correu a socorrer os seus aliados.

Estes lutavam bizarramente. Mas as hordas caninas, sempre renovadas,
estimuladas pela voz dos asiáticos, encarniçavam-se e era de recear que
aos homens chegasse a hora fatal do cansaço.

Ao grito de guerra, soltado por Vamiré, os cães recuaram, mas retomaram
o assalto, porque os orientais, da espessura da floresta, dirigiam mais
activamente a batalha, e recebiam a aproximação de Vamiré com basto
tiroteio de frechas.

Os seis velhos, armados de arpões e lanças delgadas, agruparam-se de
novo, fazendo rosto ao inimigo, prontos em auxiliar a estratégia do
nómada. Este, na frente, procurou aproximar-se dos asiáticos, mas não o
conseguiu, porque os animais se opuseram firmes, não obstante os
estragos que neles produzia a clava.

Demais, sobreveio um incidente, que poderia trazer desastrosas
consequências: os _comedores de vermes_, que defendiam as traseiras da
ilhota, refluíram para a frente, produzindo um princípio de pânico, que
tornou indispensável a presença de Vamiré.

A peleja travava-se nas trevas. Os orientais, sempre que podiam;
disseminavam as fogueiras, para estimular a coragem dos cães. Os
tardígrados deixavam os lugares sombrios, e acercavam-se dos seus
brasidos, que eles alimentavam cuidadosamente. Gemiam ali numerosos
feridos, fechando com a mão ferimentos terríveis. Geralmente, tinham
mordidas as pantorrilhas e as coxas, ao passo que os mortos patenteavam
gargantas rasgadas, ventres estripados.

A purpura de sangue avivava-se ao clarão vermelho das fogueiras, e os
gritos de guerra mesclavam-se às agonias do estertor, ao clamor das
vidas que se extinguiam, como os latidos do animal se mesclavam à
enrouquecida respiração dos homens.

Do esconso das moitas, a horda dos cães emergia incessantemente para a
luz. Encarniçados com os gritos agudos dos orientais, que reboavam
naquela confusão, sacrificavam-se, aos centos, mas invadiam, mordiam,
aterrorizavam.

Os _comedores de vermes_, já impressionados pelo contacto dos homens das
grandes estepes, e cuja coragem era apenas mantida pela presença de
Vamiré, viam, além de tudo, aproximar-se-lhes o cansaço, sentiam os seus
braços menos lestos em erguer a clava, e tendiam a concentrar-se em
grupos numerosos.

Vamiré compreendeu a situação. Num impulso terrível, arremessou-se de
repente para a vanguarda, obrigando os cães a recuar. Depois, fez sinal
aos velhos, armados de arpões e zagaias, para que se lhe juntassem.

Eles obedeceram, imitando-os os mais vigorosos de entre os demais.

Este pequeno grupo, desde então, sustentou firme todo o peso do assalto,
enquanto os demais trucidavam os cães que mais se haviam internado, e
conseguiam repelir os ataques de flanco.

Finalmente, o Pzann, durante uma trégua curta, fez compreender que era
mester alimentar as fogueiras extensamente, e, a pouco trecho, uma rampa
de braseiros protegia o núcleo principal dos seus homens. As chamas
elevaram-se, invadiram ervas secas, mato, macissos, e queimaram
arbustos, de forma que, resguardados por tal barreira, Vamiré e a sua
gente puderam tomar alento.

Os cães tomaram-se de assombro, e os orientais, conhecedores dos
costumes do animal, resolveram ladear a barreira. Para isso, era preciso
passar pelo pontal da ilhota, porque os flancos do inimigo eram
protegidos por espessa vegetação, em que as forças disseminadas
fraquejariam.

Vamiré, prevendo aquele movimento, destacou mais de trezentos
tardígrados para os principais desfiladeiros, procurando estes por
indicação dele, acender ali fogueiras, com brandões que levavam e que
cobriam de ramos secos; mas não lograram esse intuito, antes da chegada
dos cães.

Frouxo ao principio, o ataque do quadrúpede tornou-se formidável com a
aproximação dos asiáticos. Muitos _comedores de vermes_, fatigadissimos,
largavam o bastão, e defendiam-se com pés e mãos, com dentes e garras.
Facto curioso, os cães, primeiro, inquietaram-se com aquele novo
processo; mas, pouco a pouco, tiraram dele vantagem, devida
principalmente ao número, que lhes permitia opor três ou quatro dos seus
a cada um dos homens.

Neste ensejo, Élem veio ter com Vamiré, e as suas palavras pareciam mais
eficazes que as armas. Reconhecendo nela a raça amiga, os cães estavam
evidentemente desbaratados; e foi necessária a intervenção dos
orientais, para que o animal voltasse à carga.

Na refrega, duas frechas varreram a cabeça e o ombro de Vamiré; e depois
vibrou uma zagaia que atravessou o peito de um tardígrado, ao lado do
Pzann.

Percebendo que o alvejavam do recesso dos matagais, e que não poderia
livrar-se dos cães, se não chegasse a pôr os orientais em debandada,
Vamiré, depois de ter novamente agrupado os tardígrados e recomendado a
Élem que se abrigasse, embrenhou-se no mato.

Orientou-se pela voz dos asiáticos, e, em poucos minutos, achou-se perto
deles, rodeados de cães prestes a atirar-se. Eram forças folgadas, como
de reserva para as eventualidades.

Estes animais farejaram Vamiré e denunciaram-no. Mas ele, de um salto,
pô-los em desordem com a sua clava, e caiu sobre os orientais, um velho
e um moço, que fugiram, disparando uma zagaia e largando as frechas. O
Pzann alcançou-os, e levantou a clava, a qual caiu no vácuo, porque os
outros, lestos como uma pantera, evitaram a morte. Com a pancada no
solo, partiu-se a clava, e com uma só punhada, Vamiré prostrou o mais
novo dos seus inimigos; o velho apontou-lhe a zagaia, e cruzaram-se os
olhares de ambos.

--Bem,--disse Vamiré,--eu sei que és bom, e não desejo tirar-te a
vida.--

O chefe não respondeu, e continuou a recuar, sempre de zagaia apontada,
até que viu erguer-se o seu companheiro. Fugiu então. Mas o Pzann
desatou a correr, alcançou os orientais, obrigou-os a voltar à
ribanceira, arremessou o mais novo ao rio, tirou a zagaia ao velho e
obrigou-o também a deitar-se a nado.

Com o afastamento dos homens, os cães latiram amarguradamente. A
desordem estendeu-se às matilhas distantes, Vamiré interveio, soltando
clamores de vitória. Animados, os tardígrados tomaram a ofensiva; as
matilhas recuaram desordenadas, e depois desbaratadas.

O Pzann e os seus aliados ficavam senhores da ilhota.

Morrera um milhar de cães, e os asiáticos eram apenas dois!




XXII

O incêndio


Ardia a ilhota.

O vento impelia as labaredas, por forma que era perigoso acampar no
pontal, onde se achava o abrigo de Élem.

Tinham-se apinhado ali os tardígrados, e ali curavam dos seus doentes.

A rapariga, comovida pela coragem daquela pobre gente e pelos serviços
que tinham prestado a Vamiré, sopeara a sua repugnância, e ajudava a
tratar os feridos.

Naquelas tristes fisionomias, acabrunhadas de fadiga, perpassava uma
expressão de alegria, como o ondear de um tanque, ao verem passar Vamiré
ou a sua companheira.

Muitos tinham adormecido, na sua posição habitual, e, através do pesado
sono, faziam reviver o pesadelo da peleja; soltavam gritos, rosnavam,
erguiam de entre os braços o rosto frenético, estendiam a grossa maxila.

Vamiré encontrara o oriental cativo. Depois de perseverantes mas inúteis
esforços para partir os seus liames, o desgraçado, rebolando, chegara à
beira do rio, na intenção de se deitar à água, e chegar à outra margem.
Fê-lo hesitar porém a violência da corrente e quis ao menos partir as
correias que lhe ligavam as pernas, mas não pôde realizar esse intento,
antes da chegada do Pzann.

As labaredas subiam, penetrando as trevas. O voo das aves, que se
aninhavam nas elevadas cimas do arvoredo, cruzava os clarões; as
estrelas desapareciam atrás das volutas da fumarada, claras na base,
esbranquiçadas depois, sombreadas como nuvens, esburacadas de
perspectivas, profundas como abismos.

Sob a acção do vento, aquilo seguia um rumo, alongava-se em grandes nós
ondulados, abaixava-se, palpitava como coisas vivas, e, nas fases de
extinção, produzia o terrível aspecto da queda de grandes rochedos, de
uma espessa chuva de cinza, de uma sólida condensação das trevas.

Dardejantes, as línguas de fogo ressurgiam purpureadas, ufanas de
vencer. Nas suas contorções, levavam a crepitação das fibras secas, as
explosões das seivas aquecidas, e, da sua cumeada, deixavam cair
centelhas abundantes, um tanto frouxas, como pequenas gotas de saliva,
como orvalho de uma cólera que se esvai comprimida.

No espelho das águas, tudo se conjugava: as labaredas simétricas e
ondeadas, as nuvens de fumo, e as faúlhas fictícias, associando-se à
queda das faúlhas reais.

Quando a rápida fúria dos gases em ignição abandonava um moitedo,
levando consigo os finos estofos do vapor, a ramaria esboçava as folhas
de um livro mágico, animadas de estranhos hálitos, franzindo-se a
qualquer bafejo da viração, e como atravessadas por ondulações, ora
luminosas, ora obscuras.

Nas espessuras mais densas, o incêndio alimentava-se, rasteiro, lento,
carregado, por baixo de frocos de fumo húmido; depois, crepitava,
rompia, arrojava-se, mordia as pequenas franças, as folhas correadas,
flamejava sobre as ervas secas, lambia demoradamente as grandes árvores,
e, inopinadamente, difundia-se em feixes desacordes, última expansão das
suas forças.

Do seu acampamento, atrás das moitas, os asiáticos viam arder a ilhota.

A sua situação não era lisonjeira. Debalde procuraram levar os cães a
terceiro assalto. Estavam sem armas, à excepção das do ferido, as quais
cumpria reservar para defesa extrema.

Demais, inquietos quanto ao destino do companheiro desaparecido, e na
perspectiva de se verem abandonados pelos cães, os mais novos julgavam
próximo o seu aniquilamento, e lastimavam o não se haverem confiado à
prudência do chefe. Este, fatalista, cheio de resignação, não dizia
nada, inclinado para a fogueira, de semblante anuviado de tristezas.

Os outros falaram-lhe humildemente sobre o seu desbarato e sobre a
necessidade de acordo com o inimigo.

O velho ouviu-os, guardou silêncio por muito tempo, e depois falou:

--Rapazes, o bom conselho, transmitido de pais a filhos, manda que se
proponha a paz no princípio da guerra, enquanto as hostes são vigorosas
e os destinos incertos, não podendo a proposta significar humilhação;
mas ensina que na hora da derrota, é preciso morrer, para que não caiam
sobre o vencido os sarcasmos do vencedor. Na hora da paz, queríeis vós a
guerra, na hora da guerra quereis a paz. Possível é que o nosso inimigo,
em que tudo revela tino e coragem, prefira a certeza de uma conciliação
aos acasos de um combate final. Talvez o incêndio o force a abandonar a
ilha, e, se ele entender que deve falar, falará. Aliás, cumpre que nos
preparemos para a vitória, para a morte ou para a fuga.--

A aurora tingia de lilás pálido o oriente. O incêndio, mais intenso e
como receoso de que o dia lhe atenuasse os esplendores, saltava aos
píncaros do arvoredo em labaredas mais altas, mugia como um rebanho de
búfalos atacados por feras, ou crepitava, seco e cruel, em pequenos
estalidos, em pequenos gritos, como bandos ruidosos de gafanhotos
destruidores das gramíneas, como legiões ácidas de formigas em marcha
contra os casais. Os seus claros hélices de réptil cingiam os grandes
troncos, e atingiam as folhas, encarquilhadas desde logo, devoradas
depois, e que se baloiçavam chamejantes à brisa matinal, como borboletas
de luz, como enxames de vespas em desordem.

O calor era enorme. Inquietos e sonolentos, os tardígrados iam recuando
sempre para a extrema ponta da ilha.

Vamiré, pensativo, contemplava o incêndio. Tinha em lugar seguro a canoa
e as armas. Élem dormia no seu abrigo. O saguim, despertando ao ruído e
à claridade, agarrava-se às ramarias.

Entrementes, com o destroço dos grandes ramos, lambidos pelo incêndio,
as labaredas avultavam mais, descrevendo estreitas curvas, que se
avivavam caindo, e que, no ar, pareciam leves e vaporosas, mas que, ao
tocar no solo, crepitavam asperamente, jorrando cóleras de centelhas.

O Pzann desligara os pés do oriental e interrompera o sono de Élem, para
que esta lhe servisse de interprete:

--Pergunta a teu irmão,--disse-lhe ele,--se não julga que chegou a hora
de se fazer paz.

--A morte,--disse o asiático,--não me assustaria.

--Sei que és valente,--disse Vamiré;--mas não é um fraco aquele que se
salva, salvando seus irmãos.

--Os meus não foram vencidos!

--Não,--disse o Pzann,--mas são apenas dois, e os cães aprenderam a
temer-nos.--

Seguiu-se longa pausa, durante a qual o asiático meditava.

A alvorada subira um grau.

A cor do lilás passara à da turquesa e uma semiclaridade aquosa se
estendia por todo o horizonte do rio; e, nesse horizonte, as árvores, o
céu, as ribanceiras acusavam uma frescura extrema, em confronto com a
vibrante sequidão do incêndio.

O Pzann sentiu desejos de prosseguir na sua viagem pela face verde das
águas, de continuar a subir o grande rio, e a ver as suas florestas, as
largas desembocaduras de ribeiras, as suas penedias, ouvir o rugido das
cascatas, o leve rumor das pequenas quedas de água, observar a
correnteza dos rápidos, a sombra dos pequenos canais povoados de
mouchões, a claridade dos extensos álveos...

No entretanto, as chamas completavam o seu assamento feroz, palidejando
com a luz nascente, agitadas em línguas monstruosas, ou disseminadas em
delicados tecidos, aderentes às retículas dos pequenos ramos.

Ao longe, no esconso das florestas, ouvia-se o ladrido dos cães em caça,
o que arrancou o oriental à sua meditação. Viu que Vamiré percebera a
ausência dos cães e a facilidade de um acto de força no campo inimigo.

--Que queres tu de mim?--perguntou ele ao Pzann.

--Que fales a teus irmãos--respondeu este.

O oriental ergueu-se, e, acompanhado de Vamiré e Élem, caminhou até a
beira da ilha, e soltou a voz de chamamento, conhecida das tribos:

--Ré-á, ré-á!--

O chefe braquicéfalo saiu então do mato, acompanhado pelo moço válido:

--O nosso irmão está cativo do homem das regiões desconhecidas?

--Está cativo.

--Vem pedir-nos auxilio ou vingança?

--Não; o homem do montante do rio pede paz.

--Desligue ele pois as tuas mãos, porque é justo que fales dessas coisas
como homem livre.--

O oriental transmitiu a Vamiré o desejo do velho.

O Pzann hesitou, por um instante, com o receio de uma traição. Depois,
sem dizer uma palavra, desatou os laços.

O cativo não se mexeu, limitando-se gravemente a erguer os braços acima
da cabeça.




XXIII

Regresso


Pelas gargantas das ilhotas e à sombra de árvores, por extensos e
alumiados canais, a barca ia singrando contra a corrente, que as
chuvadas entumeciam. E, enquanto Élem e o saguim brincavam ou dormiam na
barca, Vamiré remava sempre.

Firmara-se a paz com os orientais. Os cães tinham regressado às áridas
savanas da beira das florestas; e o misero tardígrado terminara o seu
êxodo para o Grande Lago.

Os asiáticos abriram as veias dos braços, e o seu sangue mesclou-se com
o de Vamiré. Em nome das sagradas tribos, o velho enjeitou todas as
ideias de guerra, e Vamiré falou de paz, em nome dos grandes nómadas
ocidentais.

Na primavera do ano seguinte, na terceira lua depois do equinócio, os
Pzanns enviarão trinta caçadores, escolhidos entre os mais intrépidos,
tendo a Vamiré por chefe, e aqueles homens virão buscar outros tantos
aliados, dirigidos pelo prudente velho.

Quer o vento encrespasse as águas, quer as crivasse a chuva, cobrindo-as
de pequenas bolhas saltitantes, a canoa vogava sempre para o Norte,
desde a alvorada ao lusco-fusco. O bramir dos cervos, o barrir do
mamute, o rugir dos leões, saudavam a passagem da frágil barca e o homem
adversário. E ela vogava, vogava, pelas gargantas das ilhotas, à sombra
das árvores, e pelos grandes canais alumiados.

E Vamiré pensava nos _comedores de vermes_, na profunda tristeza deles à
hora da separação, nos seus broncos semblantes, no vago latir das suas
risadas, e dos seus queixumes, na gratidão infinita dos seus olhares e
na dificuldade com que eles, demorando-se junto de Vamiré, se resolveram
a partir.

Do alto de um pequeno outeiro, despediu-se deles com um grito de
amizade, a que corresponderam com a humilde melopeia da marcha. Firmes
na união fraternal, que era o que os mantinha de pé em face do
antropóide e das grandes feras, transportavam consigo os seus feridos.

Pelas gargantas das ilhotas, pelos vastos canais alumiados, as semanas
sucederam a semanas, algumas vezes o sol dardejava os seus ardentes
afagos, ou soprava o nordeste, açoite invernal, ou caíam lufadas
impiedosas. Era mester então procurar abrigo nas calhetas, em cavernas
propicias, e perder dias inteiros, até melhorar o tempo.

Mas Vamiré tinha o peito cheio de grande orgulho, porque vencera as
ciladas da natureza, a agressão dos animais ferozes, e o ardiloso ataque
dos homens. Parecia-lhe tornar a ouvir, nos lararios nocturnos, o velho
Tá, de cento e vinte Invernos, narrando o esboroar das montanhas, o
escancarar do solo, a absorção dos grandes lagos em fauces de abismos.

Sentia-se maior que Harme. A história da sua viagem, referida pelos
anciãos, faria palpitar o coração dos moços: surpresas do rio,
perversidade dos répteis, ferocidade das feras, homens das árvores,
regiões novas, homens tardígrados, comedores de vermes, Élem... E os
velhos acrescentariam que devia ter sido necessária uma vontade
invencível, para dominar a nostalgia, o horror das imensas solidões!

Ainda os sorrisos do céu, e os rudes aguaceiros, o rio verde ou lodoso,
a corrente mais impetuosa, rápidos e catadupas, e sempre a barca,
empenhada no regresso, com Élem folgando ou dormindo e Vamiré manejando
o remo...

Sentiam-se próximas as chuvas, as infinitas chuvas. A tribo, refugiada
nas cavernas da alta região, não deixaria as savanas do Oriente
meridional, antes de meado outono, e Vamiré tornaria a ver seus pais Zom
e Namir, seus valentes irmãos, e sua irmãzinha, que saltava como cabra
montesa. E apresentaria aos velhos, humildemente, a esposa que ele
levava de longe.

Pelas gargantas das ilhotas, à sombra de árvores, e pelos extensos
canais desensombrados, no declinar do período madalenico, quando o pólo
do Setentrião gravitava para o luzeiro do Cisne...




Índice

                                  Pag.
    PALAVRAS DO TRADUTOR             v
        I. Guerra nocturna           1
       II. A horda                  13
      III. O funeral de Vanhab      25
       IV. A ilhota                 29
        V. O homem das árvores      37
       VI. Contra-anúncio           41
      VII. A perseguição            59
     VIII. Noite na floresta        65
       IX. O idílio nascente        69
        X. Combate                  73
       XI. Vamiré                   79
      XII. O mamute                 89
     XIII. Entre os orientais      103
      XIV. Reconquista             109
       XV. Reforços                113
      XVI. A chuva                 119
     XVII. Os aliados              129
    XVIII. Os vermívoros           133
      XIX. Na ilhota               141
       XX. Assalto à ilhota        151
      XXI. A derrota               157
     XXII. O incêndio              165
    XXIII. Regresso                173





End of the Project Gutenberg EBook of Vamiré, by J. H. Rosny

*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK VAMIRÉ ***

***** This file should be named 29213-8.txt or 29213-8.zip *****
This and all associated files of various formats will be found in:
        https://www.gutenberg.org/2/9/2/1/29213/

Produced by M. Silva

Updated editions will replace the previous one--the old editions
will be renamed.

Creating the works from public domain print editions means that no
one owns a United States copyright in these works, so the Foundation
(and you!) can copy and distribute it in the United States without
permission and without paying copyright royalties.  Special rules,
set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to
copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to
protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark.  Project
Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you
charge for the eBooks, unless you receive specific permission.  If you
do not charge anything for copies of this eBook, complying with the
rules is very easy.  You may use this eBook for nearly any purpose
such as creation of derivative works, reports, performances and
research.  They may be modified and printed and given away--you may do
practically ANYTHING with public domain eBooks.  Redistribution is
subject to the trademark license, especially commercial
redistribution.



*** START: FULL LICENSE ***

THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE
PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK

To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free
distribution of electronic works, by using or distributing this work
(or any other work associated in any way with the phrase "Project
Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project
Gutenberg-tm License (available with this file or online at
https://gutenberg.org/license).


Section 1.  General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm
electronic works

1.A.  By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm
electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to
and accept all the terms of this license and intellectual property
(trademark/copyright) agreement.  If you do not agree to abide by all
the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy
all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession.
If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project
Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the
terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or
entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8.

1.B.  "Project Gutenberg" is a registered trademark.  It may only be
used on or associated in any way with an electronic work by people who
agree to be bound by the terms of this agreement.  There are a few
things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
even without complying with the full terms of this agreement.  See
paragraph 1.C below.  There are a lot of things you can do with Project
Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
works.  See paragraph 1.E below.

1.C.  The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
Gutenberg-tm electronic works.  Nearly all the individual works in the
collection are in the public domain in the United States.  If an
individual work is in the public domain in the United States and you are
located in the United States, we do not claim a right to prevent you from
copying, distributing, performing, displaying or creating derivative
works based on the work as long as all references to Project Gutenberg
are removed.  Of course, we hope that you will support the Project
Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by
freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of
this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with
the work.  You can easily comply with the terms of this agreement by
keeping this work in the same format with its attached full Project
Gutenberg-tm License when you share it without charge with others.

1.D.  The copyright laws of the place where you are located also govern
what you can do with this work.  Copyright laws in most countries are in
a constant state of change.  If you are outside the United States, check
the laws of your country in addition to the terms of this agreement
before downloading, copying, displaying, performing, distributing or
creating derivative works based on this work or any other Project
Gutenberg-tm work.  The Foundation makes no representations concerning
the copyright status of any work in any country outside the United
States.

1.E.  Unless you have removed all references to Project Gutenberg:

1.E.1.  The following sentence, with active links to, or other immediate
access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently
whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the
phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project
Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed,
copied or distributed:

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org

1.E.2.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived
from the public domain (does not contain a notice indicating that it is
posted with permission of the copyright holder), the work can be copied
and distributed to anyone in the United States without paying any fees
or charges.  If you are redistributing or providing access to a work
with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the
work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1
through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the
Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or
1.E.9.

1.E.3.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted
with the permission of the copyright holder, your use and distribution
must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional
terms imposed by the copyright holder.  Additional terms will be linked
to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the
permission of the copyright holder found at the beginning of this work.

1.E.4.  Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm
License terms from this work, or any files containing a part of this
work or any other work associated with Project Gutenberg-tm.

1.E.5.  Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this
electronic work, or any part of this electronic work, without
prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with
active links or immediate access to the full terms of the Project
Gutenberg-tm License.

1.E.6.  You may convert to and distribute this work in any binary,
compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any
word processing or hypertext form.  However, if you provide access to or
distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than
"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version
posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org),
you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a
copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon
request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other
form.  Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm
License as specified in paragraph 1.E.1.

1.E.7.  Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works
unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.

1.E.8.  You may charge a reasonable fee for copies of or providing
access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided
that

- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
     the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
     you already use to calculate your applicable taxes.  The fee is
     owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
     has agreed to donate royalties under this paragraph to the
     Project Gutenberg Literary Archive Foundation.  Royalty payments
     must be paid within 60 days following each date on which you
     prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax
     returns.  Royalty payments should be clearly marked as such and
     sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
     address specified in Section 4, "Information about donations to
     the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."

- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies
     you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
     does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm
     License.  You must require such a user to return or
     destroy all copies of the works possessed in a physical medium
     and discontinue all use of and all access to other copies of
     Project Gutenberg-tm works.

- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any
     money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
     electronic work is discovered and reported to you within 90 days
     of receipt of the work.

- You comply with all other terms of this agreement for free
     distribution of Project Gutenberg-tm works.

1.E.9.  If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
electronic work or group of works on different terms than are set
forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

1.F.1.  Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection.  Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or
corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual
property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by
your equipment.

1.F.2.  LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right
of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all
liability to you for damages, costs and expenses, including legal
fees.  YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
PROVIDED IN PARAGRAPH F3.  YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
DAMAGE.

1.F.3.  LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a
defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can
receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a
written explanation to the person you received the work from.  If you
received the work on a physical medium, you must return the medium with
your written explanation.  The person or entity that provided you with
the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a
refund.  If you received the work electronically, the person or entity
providing it to you may choose to give you a second opportunity to
receive the work electronically in lieu of a refund.  If the second copy
is also defective, you may demand a refund in writing without further
opportunities to fix the problem.

1.F.4.  Except for the limited right of replacement or refund set forth
in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.

1.F.5.  Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
the applicable state law.  The invalidity or unenforceability of any
provision of this agreement shall not void the remaining provisions.

1.F.6.  INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
https://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at https://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit https://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including including checks, online payments and credit card
donations.  To donate, please visit: https://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     https://www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.