The Project Gutenberg EBook of A architectura religiosa na Edade Média, by Augusto Fuschini This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: A architectura religiosa na Edade Média Author: Augusto Fuschini Release Date: August 8, 2010 [EBook #33377] Language: Portuguese *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A ARCHITECHTURA RELIGIOSA *** Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) *Nota de editor:* Devido à existência de erros tipográficos neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrará a lista de erros corrigidos. Rita Farinha (Agosto 2010) A ARCHITECTURA RELIGIOSA NA EDADE-MÉDIA ENSAIOS DE HISTORIA DA ARTE A ARCHITECTURA RELIGIOSA NA EDADE-MÉDIA POR AUGUSTO FUSCHINI LISBOA IMPRENSA NACIONAL 1904 _A Minha Filha Octavia Fuschini de Lima Mayer_ INTRODUCÇÃO As noções fundamentaes do nosso espirito são absolutamente indefiniveis. Sentem-se; nada mais. Se lhe procurarmos a definição, cahiremos em simples labyrintos de palavras, consistindo, quasi sempre, em verdadeiros circulos viciosos. Tomemos, para exemplo, o espaço e o tempo, noções bem fundamentaes. O que é o espaço? É o _meio_, sem limites, onde existem em continuo movimento todos os corpos; o que equivale a dizer que o _espaço_ é o _espaço_. O que é o tempo? É a serie indefinida de momentos, durante os quaes se realisa a successão dos factos physicos e moraes; o que equivale a dizer que o _tempo_ é o _tempo_. Assim, parece que as idéas ou noções fundamentaes teem o singular caracter de ser facilmente comprehensiveis pela intelligencia humana, sem que ella tenha palavras rigorosas ou phrases perfeitas, para as definir com sufficiente clareza. Dados o espaço e o tempo, a materia e o espirito em perpetuo movimento produzem a totalidade dos factos e phenomenos physicos e moraes, constituindo o Universo, que sem as primeiras noções seria absolutamente impossivel e incomprehensivel. Pouco nos importa saber, n'este momento, se a materia e o espirito coexistem, ou se o espirito é apenas um attributo da materia, organisada segundo leis desconhecidas. Os phenomenos passam-se como se fossem distinctos; deixemos, pois, a investigação d'este problema, que aliás parece insoluvel, aos metaphysicos e aos theologos. O que podemos considerar quasi certo é que a materia em movimento nos dá as noções exactas do espaço e do tempo; e o espirito em actividade nos dá, tambem, as noções claras do bem, do bello e do justo, que são como as primeiras completamente indefiniveis na sua natureza absoluta. Quem aprecia o tempo e o espaço? Os sentidos physicos. Quem aprecia o bem, o bello e o justo? Esse _sentido_ especial e perfeitissimo, denominado consciencia, a faculdade de _julgar_ que possue a intelligencia humana. As similhanças mostram-se ainda mais intimas. As noções do espaço e do tempo são inseparaveis. A nossa intelligencia não pode conceber uma sem a outra. O bello, o bem e o justo manifestam a mesma qualidade. São noções correlativas. É certo que a complexidade dos phenomenos animicos torna esta correlação menos evidente do que a primeira, mais simples e clara pela sua origem physica; mas, discutindo bem e com profundidade qualquer facto de ordem animica, chega-se a descobrir que uma d'estas noções do nosso espirito envolve, sempre, as outras duas em maior ou menor grau. Assim, pois, poderemos, sem grande receio de errar, estabelecer tres definições: A Arte é a expressão do bello; A Moral é a expressão do bem; O Direito é a expressão da justiça. Ora, como as noções do nosso espirito se manifestam subordinadas a leis geraes, temos tres sciencias, que estudam as manifestações externas e visiveis da propria essencia do espirito humano. Eis-nos entrados no campo positivo e experimental. Um longo periodo historico prova já que o nosso espirito é successivamente perfectivel e evolutivo; não o sendo, de certo, nos principios fundamentaes, mas sim na applicação d'esses principios e na variedade infinita de combinações, que se podem fazer com as idéas, como se obtem com as notações musicaes. Se nos fosse permittido, empregariamos a seguinte expressão: a perfectibilidade é a lei fundamental do espirito humano, a evolução o seu methodo. Convém, todavia, observar, como um facto historico e psychologico, que a alma humana--digamos a palavra--não é perfeitamente livre no pensamento e na acção. Deixemos a theoria do _Livre Arbitio_ para ser definida em Concilio. Os astros, esses até, que estão sujeitos a leis immutaveis e mathematicas, soffrem perturbações nas respectivas orbitas, por influencias ainda mysteriosas algumas, outras descobertas em certos casos. Ora, sobre as leis moraes as influencias são variadissimas; por isso, o _astro espiritual_, a Idéa, caminha sempre em determinado sentido, ás vezes, com enormes desvios. O raciocinio prevê as causas d'essas grandes irregularidades e a experiencia demonstra a verdade d'essas previsões. Em relação á Arte, estas causas podem grupar-se em tres grandes categorias: 1.^a A influencia do _meio_ natural, da atmosphera physica e cosmica; 2.^a A influencia do _meio_ historico, isto é, do conjuncto de circumstancias que em dado momento constituem a atmosphera social; 3.^a A influencia do _meio_ particular de cada individuo, formado pelo proprio caracter e talento, pelas suas condições dentro da sociedade e da familia, ou pelo menos, dentro do pequeno grupo social, em que se executa o seu trabalho e se exerce a sua actividade. Teremos occasião de explicar mais tarde algumas applicações d'estes principios; mas seja-nos permittido concretisal-os um pouco mais, principalmente o primeiro. Nas leis historicas--e a Arte tem historia e leis--entre as influencias, actuando obscura e vigorosamente sobre o caracter dos povos e sobre os destinos das nações, a sciencia não conseguiu ainda definir bem a acção profunda dos elementos climatericos e geographicos sobre o espirito humano; todavia, essa influencia presente-se, ou melhor prova-se e deduz-se da diversidade das raças e dos caracteres moraes dos habitantes da terra. A forma humana, como é incontestavel, soffre a influencia d'este _meio_ externo e ás modificações d'essa forma correspondem modos de ser e intensidades differentes de intelligencia. Ora, se nas linhas geraes do nosso espirito se observa a acção dos agentes climatericos e geographicos, como a vida dos povos depende das proprias funcções intellectuaes e, pelo menos, em forte proporção o bem e o mal proveem do exercicio da intelligencia humana, não é vago presentimento mas verdade scientifica a existencia de leis, embora ainda não formuladas, que expliquem a correlação das idéas e das instituições dos povos com a climatologia e a geographia da zona habitada. Na constituição de certas noções, esta influencia deve ser profunda. A noção de Deus, o melhor manancial da Arte, e o grupo de idéas e de sentimentos, que em volta d'ella, como centro, constituem por assim dizer uma categoria do espirito humano, estão, sem duvida, n'estas condições. O exemplo é excellente. Seja qual fôr a origem da crença no sobrenatural, derive esta crença da intima essencia da alma, provenha da revelação divina, nasça da generalisação espiritual ou material das forças naturaes, funde-se na grandeza dos factos cosmicos, ou no receio dos phenomenos physicos, é indiscutivel que a essencia e a evolução da idéa de Deus e das formulas do culto externo offerecem caracteres mais ou menos harmonicos com as condições geographicas e climatericas, que lhes serviram de ambiente. O polytheismo guerreiro, honesto e nebuloso, dos povos septentrionaes da Europa e o polytheismo grego, livre e artistico, foram concebidos em _meios_ differentes. As regiões asperas e rudes do norte, onde os gelos e as tempestades, durante longo periodo do anno, difficultam a lucta pela existencia, não podiam ser habitadas pelas divindades do Olympo. O ceu puro da Grecia, a limpidez da atmosphera jámais escurecida por tempestades terriveis, a amenidade do clima, os contornos suaves dos montes, o murmurio poetico dos pequenos rios, as frescas florestas de platanos em valles abertos, o perfume de flores variadas, o sabor delicado dos fructos, em summa, as excellentes condições climatericas e geographicas da Grecia permittiram ao genio popular a creação de uma familia de divindades, em quem o amor sensual, o gôso physico e a belleza das formas traduziram admiravelmente a doçura das forças naturaes. As vagas enormes, revoltas e furiosas dos mares arcticos não podiam gerar a belleza do Eterno Feminino. Das ondas serenas do mar Egeu, coroadas de espuma branca e transparente como finissima renda, que vinham quebrar-se com suavidade sobre a areia dourada das costas do Peloponeso, nasceu o formoso corpo de Venus, a expressão ideal da belleza da forma. E, todavia, germanos e gregos eram da mesma raça, d'esses aryas brancos e louros que dos confins da Bactriana, talvez por caminhos differentes, haviam emigrado, seguindo a trajectoria do Sol, que lhes indicava propheticamente a sua grande obra, a futura civilisação da Europa. Se fizermos tambem estudos sobre raças differentes, chegaremos aos mesmos resultados. A _anthropomorphose_ da idéa de Deus é lei fundamental do espirito humano e até hoje o manancial mais rico de productos artisticos de todas as ordens. A representação physica e a definição moral da divindade derivam, sem a menor duvida, da idealisação e da generalisação das qualidades physicas e psychicas do homem. Pode haver duvida se, conforme o _Genesis_, o homem foi creado á imagem e similhança de Deus; é, porém, indiscutivel que na constituição d'este symbolo lhe demos muito da nossa forma e ainda mais do nosso espirito. Eram polytheistas as raças aryanas, segundo parece. A duvida pode nascer de que na Grecia o polytheismo pertencia ás classes populares, emquanto os sabios criam na Unidade do Espirito. Assim, Anaxagoras, Socrates e a sua escola, em que floresceram os maiores sabios, philosophos, estadistas e artistas do grande seculo de Pericles, acreditavam na unidade de Deus; eram monotheistas. Seja como fôr, é facil de comparar a forma e o espirito de Jupiter, do Monte Olympo, com os de Jehovah, do Monte Sinai, isto é, a concepção da divindade entre aryas polytheistas, os gregos, e semitas monotheistas, os hebreus. A figura sombria e magestosa de Jehovah não só era feita á imagem e similhança do caracter hebreu; mas reflectia, tambem, a grandeza melancholica da cordilheira do Libano e das montanhas da Palestina. Esse Espirito, vivendo fóra do cahos e creando a ordem entre os elementos, eternos como elle, pelo esforço da propria vontade omnisciente, ora energico e duro, ora manso e amoroso, pedindo a Abrahão o cruel sacrificio do filho e contentando-se com a offerta no templo de algumas pombas brancas, era o reflexo d'esse clima da Palestina, onde, umas vezes, furiosas tempestades electricas rasgam as calliginosas nuvens e os raios fazem explodir os rochedos, ou o _simoun_, soprando dos areiaes ardentes da Arabia, secca as plantas e prostra os homens; onde, outras vezes, os ventos frescos do Mediterraneo, fazendo voar no ceu azul bandos de nuvens brancas, levam a frescura e a vida á flora tropical riquissima das campinas da antiga Judéa. Se apreciarmos bem a natureza essencial dos factos mythologicos, que formam a biographia lendaria de Jupiter, encontraremos não o espirito ardente, sombrio e puro da divindidade hebraica, mas esse caracter leviano e sensual, que define a raça hellenica, pelo menos no ramo jonico. Foi ainda a acção do clima, que facetou os caracteres da raça; foram ainda estes caracteres, que se crystallisaram n'uma forma especial da idéa de Deus. Emquanto á influencia do _meio_ social, que poderiamos escrever que não fossem paraphrases das idéas e copias das leis positivas, que Taine expoz, com a maior lucidez de espirito e brilhantismo de estylo, na _Philosophia da arte_, depois applicada á Grecia, á Italia e aos Paizes Baixos? De facto, se o _meio_ climaterico e geographico envolve e faceta o espirito humano, o _meio_ social ou historico tem ainda mais profunda e directa influencia sobre o individuo. Assim, pode dizer-se, em rigor, que o homem existe mergulhado n'uma atmosphera moral e intellectual, da qual recebe, se nos é consentida a phrase, a alimentação animica. Ora, a acção d'esta atmosphera exerce-se tanto mais energica e activamente, quanto as manifestações intellectuaes mais dependem do mundo exterior. A sciencia pode até certo ponto dispensar o applauso das multidões; a arte, pelo contrario, exige-a, porque o seu principal fim consiste em corresponder a essa necessidade do bello, que parece ser qualidade fundamental da alma humana. Diz-se que Wronski descobriu leis mathematicas, que só poderão ser bem comprehendidas em seculos futuros. Admittamos a hypothese. Affirmaremos pela nossa parte que artista algum terá a pretensão de crear primores para as gerações futuras, sob pena de não ter admiradores actuaes, o que lhe pede o proprio espirito, e compradores, o que em regra lhe exigirão as conveniencias particulares. A regra de boa philosophia que nos aconselha a sermos _homens do nosso tempo_, é uma lei suprema para os artistas, imposta pela propria essencia da arte e pelas necessidades animicas e sociaes dos seus cultores. Assim, a influencia do _meio_ social, que se exerce sobre todas as manifestações do espirito humano, actua com maior intensidade nos de ordem esthetica. Convem, egualmente, attender á influencia do caracter individual do artista, ao seu pequeno _meio_ familiar, ao ambiente das amizades e dos odios que se forma em volta de nós sempre e mais actua sobre os grandes artistas, em regra, neurasthenicos e possessos da nevrose do genio e do talento. Taine tambem se refere a este ponto, um pouco ao de leve talvez. Sem a ousadia de o completar, citemos um exemplo curioso e caracteristico, um só para não avolumar esta modesta exposição. É sabido que no seculo XVII Sevilha foi um riquissimo centro de Arte. Na _casa de ouro_ reuniam-se, dia a dia, poetas, prosadores, pintores e esculptores, entre elles Cervantes, Quevedo, Murillo, Valdez Leal, Montañez, Herrera e muitos outros. N'esse seculo a escola hespanhola de pintura attingira o maior esplendor. Os chefes da escola sevilhana eram Murillo e Valdez Leal, que aliás é pouco conhecido fóra da peninsula a não ser pelos eruditos. Murillo era um santo homem, modesto e simples no viver, um mystico absorto no amor de Deus e da familia, artista colossal, creado e feito pelo unico esforço do seu genio e pelo amigavel auxilio de Velasquez. Valdez Leal, pelo contrario, era um genio atrabiliario, cheio de emulação ardente a roçar quasi pela inveja, ambicioso e energico, bom catholico de certo porque era perigoso não o ser no seculo XVII, principalmente em Hespanha. Genio tinha-o, não tanto como Murillo; mas o genio transparece nos seus quadros, a nosso ver principalmente no formoso quadro do _Bispo morto roido pelos vermes da morte_, uma maravilha de perspectiva, de desenho, de côr e de effeitos de luz. O caracter d'estes grandes pintores traduz-se nas suas obras. O estylo vaporoso de Murillo, o seu estylo definitivo, offerece as qualidades do seu espirito. Colorido suavissimo, contornos um pouco vagos, expressões bondosas em assumptos mysticos, dão uma impressão ideal aos seus quadros, dos quaes, se o nome se perdesse, se poderiam deduzir as qualidades do espirito do auctor. Valdez Leal tem qualidades extraordinarias, não é duro como João de Castilho, mestre commum d'elle e de Murillo, nem violento como Herrera; mas sente-se na sua pintura a influencia da vontade e o azedume do caracter. Este exemplo parece-nos ser frisante e podia ser completado com outros, até entre nós e nos tempos modernos... Expostas estas doutrinas sobre a influencia do ambiente, que envolve a evolução da Arte e actua sobre os artistas, convem observar que a acção do mundo exterior tende a diminuir com o desenrolar do progresso. É, talvez, esta uma das causas da especie de _anarchia_, que hoje se observa na producção da Arte e nos estylos dos artistas. O excesso de individualismo dá, sem duvida, liberdade e expansão aos genios; mas o genio é a excepção e a regra o talento. Podemos, pois, acceitar como demonstrado, que a Arte é evolutiva e as suas phases especiaes, os estylos, correspondem a estados do espirito humano, sob a influencia das condições particulares da natureza, da sociedade e até do proprio individuo. Appliquemos esta doutrina á Architectura, porque os seus productos, pela propria grandeza e quantidade, se conservam melhor e se perdem menos, manifestando, assim, menores soluções de continuidade. Limitaremos, por obvias razões, esta applicação á Architectura religiosa nos tempos christãos, o assumpto exclusivo d'este livro, fazendo, apenas, um breve schema. O Estylo Classico grego, modificando algumas qualidades e ganhando outras, produziu o Classico Romano. O espirito do Christianismo, no Imperio do Occidente, obtendo a liberdade e a acção social, apoderou-se do classico romano, modificou-o, segundo as necessidades religiosas e do culto, gerando o Estylo Latino. Ao mesmo tempo quasi parallelamente, o Christianismo no Imperio do Oriente, fundando-se em outros elementos, creava o Estylo Byzantino. Sob a acção do elemento barbaro, os dois estylos, caminhando para o centro da Europa, se nos é permittida a expressão, encontraram-se, harmonisaram-se, produzindo o Estylo Romanico. As modificações profundas, occorridas nas sociedades dos seculos XI, XII e XIII, transformaram o Estylo Romanico, nascendo o Estylo Ogival, que atravessou tres seculos, para a seu turno se transformar, sob a acção poderosa da Renascença. Os estylos são, pois, élos d'essa cadeia de phases architectonicas, que se estende atravez dos seculos, ligando a inspiração e o trabalho da Humanidade. Assim, a Arte é a expressão do bello, e o Estylo a forma particular d'essa expressão, em determinado periodo historico. PARTE PRIMEIRA ORIGENS DA ARCHITECTURA CHRISTÃ CAPITULO PRIMEIRO A LUCTA ENTRE O PAGANISMO E O CHRISTIANISMO O antigo espirito classico, que produzira as magnificas civilisações da Grecia e de Roma, esmorecia, como esmagado sob o peso da sua propria e grandiosa obra, quando dois elementos novos, talvez regulados pela lei suprema da conservação e do perpetuo rejuvenescimento da Humanidade, se manifestaram com profundo vigor e intensidade no seio das velhas sociedades decadentes: o Christianismo e a invasão dos barbaros. Assim, os factos historicos, as idéas e os sentimentos humanos, as instituições sociaes, a moral, a politica e a arte, se explicam pela acção reciproca e poderosa dos tres principios, o classico, o christão e o barbaro, que são as causas efficientes da edade-media e da civilisação moderna. Já no tempo de Cesar e de Augusto, os primeiros Imperadores, cuja grandeza de genio é incontestavel, a sociedade romana entrára em plena decadencia. Os vicios da antiga Republica, que os bons cidadãos e os philosophos contemporaneos não haviam podido expungir, cavaram-lhe a ruina. O Imperio correspondia, sem duvida, ás necessidades de corrigir ardentes ambições em continuas luctas, que produzem sempre a anarchia politica, e de imprimir acção energica e centralisadora á enorme expansão das conquistas; mas o Imperio trazia na propria essencia dois vicios terriveis e inevitaveis: o despotismo, a extincção completa das ultimas liberdades publicas, e a constituição militar, como poder especial independente dos cidadãos, o _militarismo_ segundo a expressão moderna. Na agonia da Republica, Catão de Utica previra o desastre. Luctara para o evitar, chegando até a apontar o homem, Julio Cesar, que devia destruir o quasi phantasma da antiga liberdade romana. O futuro Dictador, ainda muito novo, espreitava e preparava, entre os prazeres dos ricos e dos poderosos da Roma republicana, pelo amor das mulheres, pela elegancia, pelos costumes faceis e até pela lisonja, a origem da grandeza, que mais tarde encontrou no proconsulado das Gallias. Assim tambem, Napoleão, frequentando os salões politicos e litterarios do Directorio republicano, conseguiu ser nomeado general em chefe dos exercitos da Italia. Singular coincidencia entre dois homens de caracter tão parecido, dois genios innegavelmente; um procura nas Gallias, a França, outro na Italia, a Republica Romana, as origens de futuros imperios! Durante o Imperio, pelo menos nos primeiros tempos, as ambições foram enfreadas pela existencia do poder perpetuo da dictadura; mas, se algumas das antigas instituições conservaram os nomes, foram-lhes tiradas a pouco e pouco as ultimas funcções. Os fracos lampejos da liberdade republicana em breve se extinguiram na escuridão profunda do mais feroz despotismo, até hoje conhecido. O Cesar era dictador e pontifice-maximo, o soberano absoluto dos povos e o chefe espiritual das consciencias. Tambem é certo que a energia da centralisação politica e administrativa do Imperio facilitou o espirito conquistador e a conservação das conquistas, mais do que o podia fazer a esphacelada Republica; mas, como consequencia logica, estas mesmas condições favoraveis prepararam o militarismo. Os exercitos nacionaes da Republica tornaram-se as legiões cesarianas do Imperio, que lhes pagava e as dirigia, transformando-se a pouco e pouco em guardas do Imperador. Era natural e logica esta confusão entre o homem e o principio. A nação, o povo, a liberdade, os direitos dos cidadãos, tudo desapparecera encarnado na pessoa de um Cesar deificado. Os resultados eram fataes. Tiberio creou as _guardas pretorianas_ para defeza da pessoa do Imperador. Sentindo a sua força, os _pretores_ imperiaes completaram depois logicamente a doutrina e as guardas pretorianas começaram a escolher os Cesares. O despotismo e a centralisação do Imperio accentuaram, assim, as causas da decadencia da sociedade romana, dando-lhe, apenas, por algum tempo um falso aspecto de força e de grandeza. Nos ultimos annos da Republica era já, na realidade, profunda a desmoralisação das classes superiores. O ouro das depredações, feitas nas provincias conquistadas, os costumes luxuosos e dissolutos, importados com o ouro dos povos orientaes, os grandes latifundios, em que se dividia a Italia, possuidos por familias poderosas, haviam amollecido a antiga rigidez do caracter romano. São ainda hoje citadas e celebres as prodigalidades da magnificencia e do luxo de Lucullo, _questor_ da Asia. As despezas excessivas de um estado de guerra constante em regiões differentes e afastadas, a defeza de vastissimas fronteiras, já então ameaçadas em mais de um ponto, as estradas e as respectivas obras, pontes, castellos, campos entrincheirados, que constituiam a admiravel rede de communicações militares romanas dentro e fóra da Italia, as espoliações dos grandes e pequenos funccionarios, exigiam o ardor do fisco, motivavam-lhe as violencias, exercendo-se, como sempre, sobre as classes populares. Estas pessimas sementes, lançadas no campo da democracia, ainda haviam sido contrariadas durante a Republica por instituições e franquias populares. O Imperio, nivelando a sociedade abaixo de um Cesar deificado de quem tudo e todos dependiam, extinguindo as ultimas liberdades, creando uma especie de côrte de grandioso fausto, que no tempo de Elagabalo attingiu as loucuras orientaes nos costumes e no luxo, desenvolvendo por necessidade o espirito e as forças militares, accentuou estas causas de decadencia. Nos começos do Imperio, um philosopho epicurista, Petronio, deixou-nos uma face viva d'esse estado moral e social, n'uma satyra celebre e cheia de vigorosa ironia, o _Satyricon_. A religião polytheista perdera o prestigio e a força. As classes superiores professavam um epicurismo devasso, elegante e atheu. O povo, sem crenças, debatia-se na miseria politica e economica. Os mythos do polytheismo podiam interessar imaginações ardentes e poeticas; mas não consolavam desgraçados, que sobre a terra sentiam apenas, sem uma esperança, a rudeza do trabalho, as crueldades da dôr e o receio da morte. Os deuses tinham perdido o seu prestigio, porque não faziam milagres; esses deuses alegres e devassos, que acceitavam os Cesares por collegas e o deixavam, a elle, pobre povo, soffrer e morrer de fome, mais miseravel e esquecido do que as bestas das cavallariças imperiaes... A religião precisa de milagres, como a politica de grandes e espectaculosos factos, para se engrandecerem aos olhos dos simples. Esta necessidade do espirito humano mais vulgar comprehendeu-a Jesus Christo, o honesto e bom, o illuminado pela Justiça Divina, elle, que tanto lhe repugnava fazel-os. A philosophia oppunha ainda impotentes esforços ao desabar da sociedade romana; mas bem na essencia era tambem epicurista. Além d'isso, prégar a moral pelo valor da propria moral, dizer aos simples de espirito que a virtude tem em si o proprio premio, exaltar a humildade e a pobreza aos pequenos, quando os soberbos e os ricos avassalam os bens e os prazeres do mundo, é doutrina assás abstracta que só comprehendem os philosophos, embora ás vezes não a pratiquem. Seneca, no principio do Imperio, ensinava esta doutrina ao povo romano, escrevia livros elogiando a pobreza; mas o philosopho esquecia-se, apenas, de que era feliz e riquissimo. A philosophia só é uma grande força, quando o exemplo acompanha a palavra. Por esse tempo, principio do Imperio, na provincia romana da Judea, manifestou-se o Christianismo. As causas efficientes d'este esplendido e profundo movimento do espirito humano não podem ser desenvolvidas e estudadas em trabalho d'esta natureza. A egualdade entre os homens de todas as raças e condições, o amor e a fraternidade humanas enunciadas como leis supremas, a fé profunda na existencia de um Deus justo, feito á imagem e similhança da bondade e da doçura de Christo, a esperança n'uma vida eterna de felicidade e de goso, merecido premio das virtudes e boas obras sobre a terra, doce compensação dos soffrimentos d'este mundo, emfim, a essencia delicada do Christianismo desceu sobre os desgraçados, os pobres, os enfermos, os escravos, essa enorme legião de miseraveis, affagou-os, levantou-lhes as almas, como a chuva fresca e crystallina levanta as cearas resequidas por longo sol ardente. Falar aos escravos em liberdade, egualal-os aos senhores, reconhecer-lhes alma e direitos sobre a terra, embalal-os com a visão mystica de uma vida eterna, nunca o polytheismo tivera esta linguagem eloquente, nem os philosophos e os moralistas classicos haviam professado taes doutrinas. Devemos observar que a escravidão no mundo classico era um facto legitimo, consequencia logica das organisações sociaes. O cidadão livre dirigia o Estado, o escravo trabalhava e produzia. As democracias gregas e a romana, como no Oriente, professavam a divisão das castas, embora mais adoçadas. A cabeça, os braços e os pés tinham funcções hierarchicas differentes. A grandiosa estatua social repousava sobre o plintho da escravidão: se o destruissem, o colosso ruiria em pedaços. Alem d'isso, o numero de escravos em Italia, principalmente na grande e populosa Roma dos Cesares, era enorme; prisioneiros de guerra uns, outros reduzidos á escravidão hereditaria ou por varias causas, mas em grande parte da mesma raça dos senhores, ou de raças equivalentes. A escravidão moderna defendeu-se, por longo tempo, recrutando as victimas entre as raças negras ou indias da America, consideradas inferiores. O escravo do mundo antigo, recordando-se da passada liberdade, ou sentindo-se do mesmo sangue dos senhores, devia experimentar bem no fundo da alma o sentimento de revolta, que nenhuma miseria humana consegue suffocar. As grandes sublevações servis, principalmente a ultima de Spartaco, um seculo antes de Christo, confirmam estas observações. A doutrina de Christo, cheia de amor, de esperança e de bondade, era tambem de molde para suggestionar a alma da mulher, incutindo-lhe a fé e o ardor do proselytismo. O espirito feminino é um instrumento perfeito e delicado. A natureza creou as mulheres para nossas amantes e mães, as duas expressões mais finas e elevadas dos sentimentos humanos; por isso, se não lhes concedeu outros em larga escala, as notas da alma feminina são n'estes de deliciosa finura, ás vezes incomprehensivel para os homens vulgares. A mulher classica estava bem longe de ter subido ao logar elevado, que depois lhe deu o Christianismo no seio da familia. A grega vivia isolada no _gyneceo_, leve sombra do serralho dos povos orientaes. A romana subira um pouco; sendo, porem, ainda considerada sujeita ao marido, como os filhos ao patrio poder. O divorcio entre os antigos era um facto corrente e facil; ora, a mulher sente que o seu logar é na familia. O adulterio, crime horrendo para as mulheres, soffria em geral penas infamantes ou a morte. A mulher classica era, em summa, uma serva, uma filha, uma forma de propriedade do marido. O Christianismo tornava-a companheira e egual ao homem. Christo dissera que o casamento na terra se mantinha no Ceu. Jesus defendera a adultera e, um dia, glorificou a loura mulher de Magdala, envolvendo a prostituta no doce manto do seu amor, glorificando-a perante os homens e salvando-a perante Deus. O Christianismo tinha a linguagem, eloquente e expressiva, que entendem logo os simples e as mulheres. Assim, nos primeiros tempos, o florilegio christão é riquissimo em martyres femininos. A mulher morre pela religião de Christo com a fé e a resignação, diremos mais, com a vontade e a energia do homem. É um facto singular d'este bello e grandioso movimento do espirito humano. O polytheismo era a religião da forma e da belleza, cheia de mythos absurdos e incomprehensiveis, religião de culto externo, secca philosophia encarnada em symbolos obscuros. O Christianismo era a religião do espirito, replecto de doces verdades e de sentimentos adoraveis, religião de culto interno, moral clara e divina que Jesus Christo expozera com phrases singelas no bello sermão da montanha. Os prophetas hebraicos haviam dito que seria espiritual a religião do futuro e constituiria o patrimonio da humanidade; que a piedade valia mais do que o sacrificio e o conhecimento de Deus mais do que os holocaustos. Nós vemos hoje realisada a grande obra de Christo. Os prophetas viram o futuro a quarenta seculos de distancia! Assim, se explica como o Christianismo teve uma expansão enorme, apenas começou a ser evangelisado entre os povos classicos, sujeitos ao jugo do Imperio. O _meio_ estava preparado, a doutrina era excellente. Os que soffriam os males de espirito, os que padeciam as doenças da carne, os pobres, os enfermos, as victimas da sociedade classica, affluiam ás catecheses, bebendo com soffrega delicia o filtro espiritual do Verbo Eterno. A diffusão da religião christã em Roma, logo nos primeiros annos, constitue um facto assombroso na historia do proselytismo. Já no anno 64 de Christo, o grande incendio, que devorou parte importante de Roma, pôde ser attribuido á malevolencia dos adeptos das novas idéas, considerados conspiradores contra o Imperio e gente de costumes suspeitos e mysteriosos. Nero iniciou as perseguições, o que demonstra o espirito que reinava em Roma e o numero avultado de christãos, que impelliam os poderes constituidos a extinguil-os pela força e pela violencia. Os melhores imperadores romanos, assim considerados ainda hoje pelo genio politico e pelo caracter pessoal, foram os maiores perseguidores dos christãos. Trajano, Marco Aurelio, Deocleciano alargaram as perseguições pelas vastas provincias do Imperio. O sangue correu em jorros, sem distincção de edade e sexo. A lucta foi terrivel e desegual entre as idéas classicas, que então representavam a ordem, e as idéas christãs, innovações perigosas e immoraes, segundo a critica do tempo. Os primeiros tres seculos do Christianismo constituem o periodo brilhante dos martyres, cujo sangue cimentou a _pedra_, sobre a qual Jesus Christo fundára a sua Egreja. As perseguições não foram simples actos de crueldade, como o suppozeram os christãos, que depois imfamaram os imperadores, fazendo a historia a seu modo. Eram actos politicos; ora, a politica de força e de violencia confunde-se com facilidade com a violencia de odios e de crimes. Eis o que explica a furia singular e ardente dos bons imperadores romanos contra o Christianismo. O poder em exercicio é sempre conservador por natureza e essencia; deve sel-o até, entre certos limites, por deveres de responsabilidade. O Christianismo apresentava-se como uma revolução nos espiritos, a transformação radical da religião pagã em que se fundavam as sociedades classicas. A consciencia da egualdade e da liberdade humanas atacava a intima essencia do paganismo, substituia-lhe a moral, modificava-lhe a politica e feria de morte os principios da sua organisação economica. O despotismo repousa sobre a passividade dos cidadãos, precisa d'elles inertes de vontade, movendo-se como automatos sob rigida disciplina, ás ordens respeitadas e não discutidas do poder supremo. É a lei da constituição do despotismo, que seguiu mais tarde Santo Ignacio de Loyolla, quando pretendeu oppor a terrivel machina de guerra, a Companhia de Jesus, aos progressos da Reforma. O Christianismo creava homens livres e conscientes; embora o seu espirito mystico tendesse infelizmente a destruir as qualidades civicas, o _civismo_ a virtude das sociedades classicas. Além d'isso, o Cesar-Imperador era o _pontifice-maximo_, poderiamos dizer o papa da religião pagã. O Christianismo atacava-o nas duas principaes origens do poder despotico, fazendo sair do marasmo e da podridão o espirito humano e matando-lhe a influencia religiosa sobre milhões de individuos. É verdade que Jesus Christo dissera: _dae a Cesar o que é de Cesar e a Deus o que é de Deus_; mas... dissera-o sorrindo... Estavam, pois, gravemente ameaçadas as grandes forças do Imperio; a segunda, a organisação religiosa, condemnada sem remedio e talvez fosse a principal. Constantino protegeu o Christianismo desde os primeiros tempos do seu reinado; mas só se baptisou alguns dias antes de morrer. O grande estrategico-politico, usando da força do Christianismo, apoiando-se n'elle, não abdicou o cargo e a importancia de _pontifice-maximo_, isto é, a influencia sobre o paganismo, senão nos ultimos momentos da sua vida. Eis como se explica a lucta tremenda entre as duas doutrinas, uma representando o mundo antigo, outra que trazia em si o germen das futuras sociedades. Admiravel manifestação da força irresistivel da verdade e da justiça! O Imperio Romano, o maior poder que até hoje viu a terra, e o paganismo, que formára tantas civilisações e creara a philosophia, a sciencia e a grande arte classicas, esses dois colossos, dispondo de tudo que tem força e valor n'este mundo, levantaram-se com impeto terrivel para esmagar o verbo simples e verdadeiro de um judeu desconhecido da Gallilea. E a força e o poder cairam vencidos pela Idéa! Jesus Christo, envolvido em pobre tunica, acompanhado de poucos discipulos, pronunciára a sentença da destruição do paganismo, quando do alto da montanha, com voz doce e suave, annunciou á Humanidade o bello preceito: _Amae a Deus sobre todas as cousas e ao proximo como a vós mesmo_. A revolução estava feita. Christo foi a encarnação da Idéa, que então correspondia ás necessidades intellectuaes e moraes da Humanidade e preparava os seus futuros destinos. Admiravel manifestação da força irresistivel da verdade e da justiça! CAPITULO SEGUNDO OS TRES PRIMEIROS SECULOS DO CHRISTIANISMO Pelas razões expostas no precedente capitulo, era muito difficil e perigosa a situação do Christianismo, nos primeiros seculos. As grandes perseguições repetiam-se, sempre com maior intensidade e crueza, sob os successivos imperadores, que, muito naturalmente, procuravam conquistar a força e a sympathia da opinião publica pagã, exigindo d'elles as violencias e as atrocidades caracteristicas das luctas religiosas. No intervallo d'estas exacerbações de odios, a desconfiança e a vigilancia insupportaveis e constantes opprimiam o gremio dos christãos, que, aliás, nos primeiros tempos devia ser constituido em geral por elementos pobres e obscuros, sem força alguma na politica e na administração do Imperio. Este estado de cousas prolongou-se desde as primeiras manifestações visiveis do Christianismo em Roma, em data impossivel de fixar, até ao reinado de Constantino, isto é, durante um periodo de mais de tres seculos. A ultima e mais formidavel perseguição foi ordenada por Diocleciano no anno 303 da éra christã. A tetrarchia, que então governava o Imperio, facilitou esta colossal e longa perseguição, estendendo-a por todas as provincias romanas, com a crueldade e o vigor que manifestam sempre as medidas extremas de salvação publica. Durante estes tres seculos terriveis, a grande maioria dos pobres e dos ignorantes, que constituia a associação christã, não tinha qualidades, nem gosto, nem tempo, para cultivar as artes, aliás já bem decadentes n'essa epoca. Perseguidos pelas auctoridades romanas, dominados por ardente proselytismo, em continuas catecheses, vivendo receiosos entre perigos e miserias, não lhes sobravam, decerto, vontade e tempo para cultivar as artes, ainda que para isso possuissem qualidades estheticas. O Christianismo era doutrina tão espiritual, fazia depender tanto a felicidade da prece e da virtude, elevando a alma a Deus e conduzindo-a ao Ceu, que as formas visiveis do bello, a plastica das artes, deviam ser consideradas inuteis, se não peccadoras, aos olhos dos crentes. O mysticismo da edade-media e a seita dos Iconoclastas estavam latentes no Christianismo nascente. Alem d'isso, os christãos perseguidos, considerados inimigos da sociedade pagã, não podiam construir templos, nem ter formas publicas de culto, imagens de Deus e dos martyres, sempre o melhor manancial da Arte, que nos seculos futuros produzirão phases artisticas de grande valor. Nem eram ricos, ao menos, para cultivar as artes, suppondo que o ardor da propaganda e o espirito da religião lhes consentissem o culto pagão da forma. A religião precisa de reunir os seus adeptos, para mutuamente avigorarem a fé e incitarem a esperança. Sem a communidade dos fieis, a religião toma o aspecto de simples philosophia, mais ou menos completa, fria, sem vigor de propaganda, porque as multidões, ligadas pela mesma idéa, teem em si o condão singular de excitar o enthusiasmo, essa embriaguez d'alma que a leva até ao sacrificio. Os christãos reuniram-se, sem duvida, desde os primeiros tempos; mas essas reuniões eram clandestinas, como as dos conspiradores dos tempos modernos. Os logares mais occultos e afastados deviam ser os preferidos. Era logico. Quando o gremio religioso cresceu, e cresceu rapidamente, não devia ser facil problema encontrar logares amplos e seguros para a communicação dos fieis e as necessidades do culto, embora nascente e simples. A estas necessidades correspondiam as _catacumbas_, vastos subterraneos que existiam em volta do centro populoso da Roma dos Cesares. A religião christã em Roma desenvolveu-se debaixo da terra, como para symbolisar a acção da Idéa Nova, que ia minando e corroendo as bases das antigas sociedades pagãs. O auctor d'este livro visitou em Roma uma das mais famosas _catacumbas_, a de S. Calixto. Percorrendo os subterraneos, lobregos e humidos labyrintos de encruzilhadas, guiado pela luz mortiça de uma lampada, sentiu na alma a poesia do passado, revelaram-se-lhe a fé e a esperança, doces e profundas, que os seus _irmãos_ em Christo, de ha dois mil annos quasi, sentiam, quando receiosos mas resolutos vinham por entradas e caminhos differentes reunir-se no sanctuario, para a admissão de neophytos e para as praticas religiosas. N'aquella atmosphera pesada e humida pareceu-lhe ouvir ainda os primitivos canticos, a historia poetica dos martyres mortos que a linguagem eloquente do espirito religioso dava aos vivos, como exemplo. Enthusiasmou-se com a fé simples e primitiva, nutriu a esperança firme e serena na desejada victoria; emfim, durante algumas horas, sentiu-se possesso, deliciosamente possesso, da energia de vontade, da pureza de sentimentos e da firmeza de crenças de um iniciado d'esses primeiros seculos do Christianismo. Galerias sinuosas e extensas de secção regular, um metro por dois metros, cruzam-se com angulos muito abertos, formando um complicado tecido de subterraneos, excavados em tufo escuro, porôso e infiltrado de agua. Nas duas paredes lateraes d'estas galerias, longas filas horisontaes de sarchophagos, sobrepostos por vezes em tres ordens, foram excavadas na rocha branda. Eram as sepulturas dos primeiros christãos. Nos tempos primitivos, provavelmente, esses sarcophagos foram fechados por lapides; mas hoje, abertos e negros á luz vacillante da lampada, essas filas extensas de buracos teem um aspecto monstruoso, infundem um sentimento de pavor e de espanto, terriveis quando no fundo de alguns se vêem ainda branquejar os ossos e as caveiras de seres, que soffreram e morreram ha quasi dois mil annos. De grandes em grandes espaços, estas galerias alargam-se, ou convergem umas poucas, formando subterraneos amplos de maior altura de abobada natural. São os sanctuarios, ou as cryptas. Nas catacumbas de S. Calixto, existe n'estas condições uma grande sala de forma rectangular, que, sem duvida, constituia o templo, para onde se descia de fóra por longa escadadaria, construida depois de Constantino, isto é, da liberdade do Christianismo. Do lado esquerdo do templo, passa se para a grande crypta de Santa Cecilia. Parece attestar que ahi foi depositado o corpo da nobre e rica dama de Roma, uma esculptura na parede representando uma mulher luxuosamente adornada. Esta crypta communica com a dos Papas, assim chamada por conter um grande numero de Pontifices do terceiro seculo da era christã. Sarcophagos de pedra de esculptura archaica conservam ainda os restos dos martyres, uns esquecidos, outros beatificados ou santificados pela Egreja. Dedalos de corredores, constituindo enormes necropoles, sobrepõem-se ás vezes em dois e tres andares e, se é verdadeira a affirmação, estendem-se nas catacumbas de S. Calixto por mais de quinze kilometros. O reconhecimento da liberdade religiosa do Christianismo tirou ás catacumbas a importancia primitiva. Transformadas em logares de veneranda tradição, conservadas, talvez, para cemiterio de alguns christãos mais afamados, as catacumbas soffreram modificações na anterior disposição. Assim, nos sitios mais importantes foram rasgados _luminarios_, que deixam passar luz de fóra, tenue e duvidosa, e _arcocelios_ que enfeitavam e cobriam sarcophagos de pedra. Estas obras parecem de caracter posterior á emancipação do Christianismo e a logica leva a crel-o. Eis, em rapidos traços, os caracteres geraes d'estes sombrios subterraneos, onde nasceu a luz brilhante do Christianismo e os grupos cada vez mais numerosos _de homens de boa vontade_ construiam os alicerces das modernas sociedades. É evidente que até ao seculo IV os christãos, sob a acção da vigilancia pagã, não podiam construir templos. A architectura christã, pelo menos, nasceu depois d'este seculo. O mesmo se póde dizer sobre a esculptura dos arcocelios e dos sarcophagos, grandes peças difficeis de trabalhar dentro das catacumbas e impossiveis de transportar de fóra, por longos corredores estreitos, sob as vistas dos agentes das perseguições, que o eram todos os adeptos e defensores do antigo polytheismo. A arte d'este tempo é ingenua. Consiste, como é de crer, em esculpturas grosseiras. A maior parte das pinturas, se muitas existiram, deve tel-as desfeito o tempo. Além d'isso, não nos parece facil distinguir hoje o que foi feito no tempo das perseguições, ou depois da liberdade do Christianismo, em que as catacumbas deviam ser consideradas logares santos e concorridos pela veneração dos fieis. Estas razões, que nos parecem fundadas, circumscreveram ainda mais a acção dos artistas christãos dos seculos primitivos. A arte n'esse tempo limitou-se a pinturas e esculpturas simples, baixos relevos ligeiros, verdadeiros traços profundos desenhando figuras informes, ou ingenuos symbolos, uns adequados do paganismo ao espirito da nova religião, outros creados, como linguagem mysteriosa, que só os iniciados podiam ler e comprehender. Assim, o peixe, symbolo de Jesus Christo, é um emblema muito espalhado nas catacumbas. Era necessario, com effeito, ser iniciado para comprehender que Ichtus, em grego o peixe, representava aos olhos dos fieis as primeiras lettras das palavras mysticas: _Jesus Christo, Filho de Deus, Salvador_. Inutil seria e prolixo, n'este ponto, descrever os symbolismos religiosos, que envolvem um ligeiro caracter de arte: a pomba e ás vezes Psyche alada, que representavam a alma; a ancora a esperança; o ramo de oliveira a paz; e tantos outros symbolos e allegorias, que ainda hoje se encontram nos costumes da Egreja e na tradição dos povos christãos. Na realidade, tudo isto não constituia verdadeira arte; muito embora nas primeiras egrejas do Estylo Latino possamos encontrar elementos trazidos das catacumbas. As cryptas dos templos lembram as das catacumbas. Os tumulos de pedra dos martyres e santos, que nas catacumbas serviam de altares, apparecem mais tarde no Estylo Latino. São usos respeitados; a tradição santifica-os, conserva-os e transforma-os. Eis ainda um exemplo da evolução da Arte. Taes eram as condições sociaes e moraes do Christianismo, antes do IV seculo. No anno 306, Constantino, filho de Constancio Chloro tetrarcha das Gallias e da Bretanha, foi proclamado imperador pelas legiões gaulezas. O grande periodo da Edade-Media vae começar em breve. O poderoso Imperador Constantino, o genial espirito do primeiro christão coroado, parece presidir a este periodo historico, em que se accentua a evolução e o poder do Christianismo, creando novas sociedades e novos estylos de Arte. Constantino era um grande homem e um profundo politico. Sem falarmos na unidade e na organisação do Imperio, que elle creou com admiravel energia e sagacidade nem sempre clementes e doces, dois actos seus demonstram-lhe o valor: a protecção concedida ao Christianismo e a escolha da situação de Byzancio, para capital do Imperio. Estes dois factos, além de influencia enorme sobre a conservação do Imperio, tiveram acção profunda e decisiva na evolução social da religião e das artes christãs. É evidente que esta evolução tinha de existir, porque, já antes do reinado de Constantino, o Christianismo, moralmente vencedor, não podia ser suffocado; mas o movimento seria diverso, talvez mais lento e de caracteres secundarios differentes. Os grandes homens não conseguem crear as opportunidades, nem modificar as causas profundas que transformam o modo de ser animico e social da humanidade; comtudo, o genio aproveita-as, imprime-lhes caracter especial, dirige-as em determinado caminho, de entre os variados de que dispõe a natureza e o espirito para se approximar indefinidamente do fim supremo, os ideaes do bem, do bello e da justiça. Constantino vira nas Gallias o caminhar rapido do Christianismo. Tinha assistido, provavelmente, aos actos de perseguição alli praticados por ordem de Deocleciano. Sentira a fé dos crentes, apreciára a energia de alma dos martyres, a valentia das mulheres que se deixavam suppliciar, sem protestos, sem choros, olhando o Ceu com esperança e cobrindo apenas os corpos, animadas d'esse pudôr do espirito que desconhecia quasi o paganismo. Para elles, martyres, a morte não era horrivel; por um lado, davam o exemplo, por outro, obtinham a liberdade da alma, que em breve ia ser feliz, vivendo para sempre no seio do doce Christo. Constantino era um genio e os genios vêem sempre no futuro. Depois, annos de morticinio não extinguiam os christãos. Parecia que a flora do Christianismo rebentava sempre mais forte e variada. A suggestão do martyrio, fundando-se na esperança, trazia novos adeptos, que appareciam por toda a parte, como nos campos cobertos de relva pullulam as boninas brancas na primavera. Constantino era politico e os politicos usam das forças vivas para os seus altos designios. A idéa e a força sempre crescente do Christianismo, que haviam levado, talvez, Diocleciano a abdicar a coroa imperial não podendo transigir com elle, eram elementos necessarios, unicos, para o sonho de Constantino, a unificação e a reorganisação do antigo Imperio Romano. Alem d'isso, Constantino era um philosopho. A idéa polytheista estava condemnada. Os verdadeiros sabios nunca haviam acreditado n'esses mythos monstruosos uns, ingenuos outros; n'essa religião, emfim, sob cuja influencia cabiam aos pedaços a politica das sociedades pagãs e a moral dos cidadãos. A doutrina christã, simples e virtuosa, o seu principio deista, a unidade do Espirito Supremo ideal dos philosophos, deviam ter um encanto poetico aos olhos do imperador, constituir uma aspiração da sua alma. Não é, pois, necessaria a revelação divina para explicar a conversão de Constantino. Em nome das perseguições feitas aos christãos, o novo imperador marcha contra seu cunhado Mazencio, o tetrarcha da Italia, derrota-o nos campos do Pó, aperta-o na retirada e, ajudado pelos christãos, levando na frente o _labarum_, com a cruz de Christo e o prophetico lemma _in hoc signo vinces_, vence-o e fal-o morrer junto dos muros de Roma. No anno seguinte, em 313, o imperador publica em Milão o Edito de Tolerancia, a aurora da liberdade para a Egreja triumphante. Dois annos depois, ataca o tetrarcha do Oriente, Licinio, sempre a titulo das perseguições exercidas contra os christãos; derrota-o em Siballis, aprisiona-o, promette-lhe a vida e manda-o matar passado tempo! A unidade politica do Imperio estava feita; faltava, apenas, a organisação administrativa. Os christãos haviam sido auxiliares do imperador; tornaram-se, pois, seus protegidos. Constantino não combatia ainda abertamente o paganismo; enfraquecia-o a pouco e pouco, enchendo os christãos de favores, mostrando por elles viva predilecção. Ora, os favores e a predilecção dos poderosos são uma ordem e um incentivo para os pequenos. O trabalho de propaganda de Constantino foi lento e efficaz. Não bastava que o Christianismo vivesse de tolerancia. Antes de ser religião do Estado, precisava tornar-se pessoa moral, possuir propriedade, o que entre os romanos era a melhor manifestação de força e de soberania. Em 321, outro Edito imperial auctorisa a Egreja a receber donativos e a possuir bens temporaes. O imperador concede, depois, privilegios aos templos da nova religião, entre elles o direito de asylo dos templos classicos; eguala os dois sacerdocios em direitos e regalias; começa até a perseguir os pagãos. Eram costumes do tempo. Para dar unidade á nova Egreja e expungir a heresia de Ario, que no terceiro seculo do Christianismo ameaçava já a tradição orthodoxa, Constantino convocou em 325 o primeiro Concilio Ecumenico, a reunião dos bispos de todas as dioceses do Imperio, em Nicea. Este concilio teve subida importancia sobre a unidade e a disciplina do Christianismo, como mais tarde a manifestou, tambem, o Concilio de Trento, iniciando a theocracia dos pontifices romanos. Deu o exemplo da definição do dogma nas reuniões da Egreja Universal; fixou a doutrina da consubstanciação do Pae e do Filho; divinisou Jesus Christo, enunciando o _Symbolo dos Apostolos_, ainda hoje o _Credo_ resado pelos christãos; finalmente, fulminou o anathema e a excommunhão sobre Ario e a sua doutrina, que negavam esta consubstanciação. O arianismo, porém, não se deu por vencido e, durante seculos, manifestou profunda influencia sobre o Christianismo, principalmente na catechese dos povos barbaros. Assim, pode dizer-se que o arianismo, preparando o espirito dos povos germanicos, é o verdadeiro germen do movimento da reforma religiosa, que nos seculos futuros dividiu o Christianismo em dois poderosos ramos, o catholico e o protestante. Constantino fizera-se christão de facto, faltava-lhe apenas o baptismo; comtudo, como esse sacramento lhe sacrificaria as funcções e a influencia de _pontifice-maximo_ do paganismo perseguido, quasi extincto mas tendo ainda proselytos, o imperador, encarnando-se no politico, deixa a prova indubitavel e solemne da conversão, para os ultimos dias da vida. O politico ainda transparece na escolha de Byzancio, reedificada e engrandecida, para capital do Imperio. Com effeito, em torno das suas vastas fronteiras, já no tempo de Constantino, uma cinta de ferro de povos barbaros cingia-se cada vez mais. Eram as ondas das invasões, que se começavam a formar e entrarão com movimento irresistivel no seculo seguinte. O genio de Constantino presentiu a proxima e inevitavel lucta, o terrivel choque dos povos do norte nas fronteiras do Imperio. A cidade de Byzancio, defendida pelo Caucaso, pelo Mar Negro e pelo profundo fosso do Bosphoro, offerecia-lhe uma posição relativamente mais segura do que Roma para capital, o cerebro e a alma dos seus vastos estados. O imperador transferiu a séde do governo para Constantinopla, no anno 330 da nossa era. Assim, o Christianismo foi reconhecido religião do Estado, official e professada pelo imperador, segundo o antigo aphorismo: _cujus regio, ejus religio_. Um novo periodo historico vae, pois, começar para a Humanidade. A politica e a moral, expressões geraes da actividade humana, manifestarão caracteres differentes do passado. O espirito do Christianismo presidirá a esta phase longa e brilhante da evolução historica, que ha de inflorar-se com a civilisação e o progresso modernos. Entre o mundo classico e o christão parece existir hoje um abysmo; todavia, na evolução do espirito não occorreu a menor solução de continuidade. As sociedades modernas ligam-se ás antigas, como a arvore se prende ao solo pelas raizes, como a planta se enxerta n'outra, de que recebe a seiva e o alimento. A arte classica e a christã parecem, tambem, distinctas, quando na realidade nasceram ambas do movimento evolutivo e ascencional do espirito humano. As differenças provéem da intima natureza das religiões, que imprimiu caracteres especiaes á expressão do bello, a Arte, nas duas sociedades. Todas as religiões se dirigem, mais ou menos directamente conforme a perfeição da doutrina e do culto, para o ideal do bem, do bello e do justo; mas procuram-n'o por differentes caminhos. O polytheismo grego e romano, pelas condições especiaes da sua formação, via esse ideal atravez da belleza da forma. O Christianismo, pelo contrario, contempla-o atravez da belleza do espirito. Os fins são identicos; apenas os meios de os attingir se manifestam differentes. A religião classica exaltava a alma, penetrando-a de doce sensualismo. O amor e o goso eram bens da vida, de que os proprios Deuses davam bons exemplos. Diogenes no seu tonel professava esta doutrina. Desprezando as vaidades do mundo, aquecia-se aos raios do sol e contemplava o bello visivel da natureza. A religião christã exalta a alma, penetrando-a de elevado espiritualismo. A vida é a estrada rude e aspera, que a alma vae subindo dolorosamente até entrar, emfim, pela porta da morte na felicidade eterna. S. Jeronymo, na sua cella humida e fria, rasgava as carnes com cilicios e açoutes para calar os sentidos. Desprezando, tambem, os bens mundanos, absorvia-se na contemplação da belleza ideal do Eterno Espirito. A applicação d'esta doutrina é facil e concludente. Na architectura, comparemos duas producções singulares em merito e belleza: o Parthenon e a Cathedral de Strasburgo. O Parthenon foi o templo mais perfeito da arte classica; a Cathedral de Strasburgo gosa da fama de ser exemplar completo do mais rico estylo da arte christã. No primeiro, todas as proporções e elementos foram estudados e combinados para attingir a harmonia e a belleza da forma; mas a expressão é fria. O monumento não diz nada ao nosso espirito. Na segunda, pelo contrario, a belleza da expressão completa a da forma. A Cathedral de Strasburgo é um poema de pedra, um cantico da religião christã. Na esculptura observa-se o mesmo. O auctor d'este livro percorreu os museus de Italia, viu nas vastas galerias do Vaticano accumuladas centenas, milhares de estatuas classicas. Nunca, nunca, até hoje, a esculptura moderna attingiu tal belleza de formas! Mas, n'essa multidão immensa de primores, não encontrou a expressão. As physionomias são de uma serenidade olympica, as attitudes magestosas, em geral, não teem movimento. A expressão não existe, até quando as condições do acto mais a exigem. A morte não tem contracções no rosto. A lucta não manifesta a furia do odio. O amor é frio e solemne. Todas as bellas estatuas teem a impassibilidade de Jupiter ou de Minerva, conforme os sexos. As excepções são rarissimas; contam-se sem difficuldade. O grupo de Laocoon e dos filhos, envolvidos pelas serpentes, as lagrimas de Niobe, chorando os filhos, são exemplares curiosos da expressão dos antigos estatuarios. Saindo dos museus classicos, encontramos em Italia por toda a parte a vida, a expressão, o movimento dos esculptores da Renascença, de que Bernini nos dá singular exemplo no extasis de Santa Thereza de Jesus, uma das mais extraordinarias estatuas produzidas pelos artistas modernos. A arte classica e a christã traduzem, pois, a essencia intima das respectivas religiões. Na primeira, predomina a forma; na segunda sobresae o espirito. Estas observações parecem-nos fundamentaes na Historia da Arte. CAPITULO TERCEIRO AS INVASÕES DOS BARBAROS O mestre de Socrates, Anaxagoras, que professou a philosophia em Athenas cinco seculos antes de Christo, ensinava aos seus discipulos este principio: _o Espirito começou pacientemente a revolução, que deve realisar-se; os seus progressos são rapidos, sel-o-ão cada vez mais_. Este espirito, sem duvida, era a lei da perfectibilidade humana, bem evidente nos seus resultados, embora enygmatica nas proprias origens. O periodo historico da Edade-Media resulta da acção reciproca das tres manifestações do espirito, representadas pelo paganismo, pelo christianismo e pelos barbaros. É a longa phase das suas luctas, das suas concessões mutuas, das suas combinações, verdadeira _endosmose_ e _exosmose_ de idéas, que termina pela constituição homogenea das sociedades modernas. A Edade-Media começou no seculo V, definida pela primeira invasão dos barbaros, germanos, hunos e alanos, e dura até á tomada de Constantinopla, em 1453, pelos turcos de Mahomet II. Estes dez seculos, sombrios e tristes, infundem ainda hoje, apesar da distancia do tempo, um sentimento vago de pavor e de melancholia, taes são os flagellos, as guerras, as miserias, como eguaes não houve n'outra quadra historica, que n'este espaço immenso, principalmente até ao seculo X, assolaram a humanidade. A acção reciproca do paganismo e do Christianismo já procurámos esboçal-a nos anteriores capitulos. Vamos referir-nos, agora, aos _barbaros_, elemento novo e activo, causa de poderosa transformação social e moral sem duvida, que vem entrar directa e profundamente na scena da historia. De entre os tres, como é de justiça, reconheçamos a hegemonia ao Christianismo. Já no tempo de Constantino hordas numerosas de _barbaros_, mais ou menos organisadas em nações, se distribuiam pelas vastas fronteiras do Imperio, desde a cordilheira do Caucaso até á embocadura do Rheno. Os hunos e os germanos constituiam a primeira zona d'estes povos, apertados entre os limites do Imperio e outras zonas de barbaros, escalonadas para o norte da Europa. Os hunos de raça mongolica occupavam as vertentes septentrionaes do Caucaso e estendiam-se para o nordeste. Os godos guarneciam a costa norte do Mar Negro e mais além, para o occidente, a margem esquerda do Danubio; os vandalos, os allemanos, os francos e frisões, depois, até á embocadura do Rheno, fechavam o circuito, cheio de perigos previstos e tremendos. De quando em quando, esta massa de innumeraveis guerreiros trasbordava em alguns pontos e passava as fronteiras romanas; comtudo, até ao seculo V o Imperio resistira. Derrotava-os, dominava-os e concedia-lhes até vastas provincias, confiando-lhes a guarda d'essas fronteiras, ameaçadas por outras hordas. A acção da diplomacia imperial completava a dos exercitos, semeando intrigas e dissensões entre as nações barbaras e os mais poderosos chefes, assoldadando generaes e guerreiros; empregando, emfim, todos os meios de intriga e de veniaga que dividem as forças do inimigo. Assim, correram os factos até ao fim do seculo IV, quando um movimento geral dos hunos, promovido por causas particulares internas, arremessou estas grandes massas nomadas e os alanos, sobre os ostrogodos e os visigodos. Os primeiros submetteram-se ao jugo dos hunos. Os visigodos vencidos entraram no Imperio do Oriente, obtendo terras a pedido de Ulphilas, bispo godo ariano. Revoltados em breve, bateram o Imperador Valente e mataram-n'o em Andrinopla. A habilidade do Imperador Theodosio dominou-os e deteve-lhes a expansão conquistadora; mas esta primeira investida deve ser considerada o facto primordial da invasão dos barbaros. Theodosio organisou o Imperio, que, durante os dezeseis annos do seu reinado, gosou tranquillidade relativa; todavia, o movimento dos hunos e dos alanos para o occidente communicou-se a todas as nações barbaras, repercutindo-se até ao Rheno. Logo no principio do seculo V os visigodos de Alarico assolaram a Italia e pozeram cêrco a Roma. Quasi a seguir, os suevos de Radagués precipitaram-se como nova onda sobre a peninsula, sendo vencidos por Stilicon, da raça vandala, ao serviço do Imperador Honorio. Os visigodos, seis annos depois, apparecem novamente e assediam Roma. O grande chefe Alarico morre, quando preparava a conquista da Sicilia. Entretanto, Attila, o famoso chefe dos hunos, marchava sobre a França. Romanos, francos e godos vencem-n'o em Arles. Attila retira sobre a Italia, devasta as regiões do Pó, desce sobre a cidade de Roma, que foi salva pelo Papa Leão o Grande. A morte de Attila dissolveu a invasão dos hunos, cuja crueldade e selvageria ficaram historicas. Outra horda de barbaros vem devastar a Italia: os vandalos de Genserico tomam e saqueiam a cidade de Roma. A esta onda segue-se outra, os herulos de Odoacro. Novo saque de Roma, novas devastações precedem a coroação do chefe herulo, como Rei da Italia. A queda do Imperio do Oriente, pela desmembração das respectivas provincias, tornou-se emfim um facto consummado. Quasi no fim do seculo V, os ostrogodos de Theodorico fecharam o primeiro periodo das invasões barbaras. Odoacro é vencido e morto. A restauração do Imperio do Occidente já não era possivel; mas Theodorico consegue reconstituir, nos antigos moldes imperiaes, um vasto dominio, comprehendendo a Italia, limitado ao oriente pelo Drina, para além o Imperio Byzantino, ao norte pelo Danubio, para além os lombardos e os gepides, e a oeste definido pelas nações dos francos, dos borguinhões e dos visigodos. Tal é em succinto o quadro, a pintura do estado de guerras e de miserias, que atravessaram os paizes e os povos do antigo Imperio Romano, reduzido no fim do seculo V ao Imperio Byzantino, no extremo oriente da Europa. A estes movimentos dos barbaros nos referiremos apenas, porque os outros, na Bretanha, na Gallia e na Hespanha, tiveram n'esse periodo pequena importancia sobre a arte christã, que na realidade nasceu em Italia e no Imperio Byzantino. Todos estes barbaros, que em ondas successivas se precipitaram sobre o Imperio do Occidente, exceptuando os hunos e os alanos, constituiam ramos da mesma raça aryana, de que os gregos e os romanos provinham tambem, descendentes mais ou menos puros e directos de emigrações remotissimas. Se as linguas d'estas nações barbaras eram, pois, entre si incomprehensiveis, embora da mesma familia, os caracteres individuaes e ethnicos apresentavam intimas analogias. Mais ou menos nomadas, as nações barbaras possuiam energico espirito bellicoso. Rudes e destemidas, embora não selvagens ou crueis, essas vastas confederações nacionaes procuravam em luctas aventurosas satisfazer o espirito guerreiro, que mais tarde singularmente manifestaram duas instituições suas: o feudalismo e a cavallaria. O polytheismo, entre ellas, tivera o mesmo caracter, antes de se converterem á heresia do arianismo. A religião manifestava entre os barbaros um espirito poetico e nebuloso, que lhe davam os _bardos_, como entre os celtas cantando hymnos, em que eram glorificados os deuses e os grandes actos dos heroes nacionaes. Foram estes bardos, que na Edade-Media deram origem aos famosos menestreis. Homens robustos, de caracter franco e aberto, leaes como companheiros, fieis aos seus chefes, estes _barbaros_, como lhes chamavam os romanos, nutriam enraizados no espirito o amor da liberdade e o respeito da propria dignidade, professando, como se diria hoje, um energico individualismo. A este amor da liberdade individual se devem attribuir em grande parte alguns factos importantes da historia, como, por exemplo, a constituição das communas e principalmente o movimento da _reforma_ religiosa, a bella e grande lucta da theocracia e da democracia christãs, em que esta ficou vencedora, a final, no seculo XVI. Assim, o caracter disciplinado, a dedicação pelos chefes, em geral escolhidos pelo valor e por altos feitos, não excluiam uma organisação social democratica, que se manifestava em reuniões periodicas de guerreiros, onde se discutiam e resolviam as questões de interesse commum da tribu. Estas qualidades singulares dos barbaros, bem oppostas ás dos romanos da decadencia, caracterisam ainda hoje as nações do norte da Europa, suas legitimas descendentes. O amor da liberdade fraccionava as nacionalidades barbaras, constituidas pela federação de pequenos estados ou tribus, onde era possivel a vida local. Communicava-lhes um certo espirito nomada, inimigo dos grandes centros; exigia-lhes uma vida separada e independente de pequenos senhores, avessos ao trabalho, ignorantes por indolencia não por desprezo das artes e das sciencias, só ardentes e activos na guerra, na caça e no exercicio da soberania. Sentem-se n'estes traços os futuros barões feudaes. Entregando o trabalho penoso aos escravos e ás mulheres, pelas quaes aliás professavam certo respeito, considerando-as investidas de dons propheticos, estes _barbaros_ traziam em si o germen, que, ao calor do Christianismo, devia produzir a consideração, singular e antinomica com outros costumes, e o amor mystico e respeitoso pela mulher no tempo da cavallaria. Estas virtudes, sem duvida, tinham reverso; os _barbaros_ eram irasciveis, ebrios, jogadores e libertinos; ainda n'isto se manifestavam os futuros barões feudaes. Tal era o caracter dos povos, que assolaram o Imperio do Occidente no seculo V, não falando nos hunos e nos alanos, povos de outra raça que foram um episodio na historia da Europa. Ora, estas qualidades, no exercicio da intelligencia e nas diversas manifestações sociaes, tiveram grande influencia no organismo da Edade-Media, e logicamente sobre a arte; influencia mais accentuada nos periodos romanico e ogival. Quando os barbaros tocavam a antiga civilisação romana, eram fascinados por ella. É um facto incontestavel na historia. A primeira demonstração deu-se na constituição do reino godo de Italia por Theodorico, um precursor de Carlos Magno e como elle um _barbaro_ de genio. Educado na côrte imperial de Constantinopla, apreciára o immenso valor da organisação social e do direito romanos, offuscados e desprestigiados pela pequenez dos homens. A grandeza do espirito de Theodorico avalia-se bem por um só facto, extraordinario e caracteristico. Legislando a justiça no seu vasto imperio, decretou que as questões suscitadas entre dois godos, seriam resolvidas por um godo, entre um romano e um godo por um romano, entre romanos por outro romano; assim, conclue o _barbaro: cada um terá o seu direito garantido e, apesar da differença dos juizes, uma só justiça reinará para todo o mundo_. E, todavia, os godos eram os conquistadores e os romanos os vencidos! Este espirito de justiça nascia do amor pela liberdade e do respeito pela dignidade humana, que é a sua consequencia logica. Era a manifestação esplendida do caracter fundamental da sua raça, que os _barbaros_ traziam para a caduca civilisação romana, recebendo em troca tradições de gloria, sabias instituições e um direito escripto, que ainda hoje causa a admiração do mundo moderno. Na religião, Theodorico, um sectario das doutrinas de Ario, idéa perseguida nos seus adeptos e fulminada nos concilios, mostra se tolerante. A Italia era orthodoxa e continua a professar as suas doutrinas. Os christãos elevam templos por toda a parte, gosam de inteira liberdade de culto. O _barbaro_ só vacilla um momento no fim da sua vida, como represalia ao Imperador do Oriente, que perseguia o arianismo com violencia e crueldade. O seu governo pacifico e justo restabelece a ordem, desenvolve a riqueza, fomenta o commercio interno e externo. As antigas instituições romanas são respeitadas, consultadas até. Os cargos civis são para os romanos, os militares para os godos, que assim se conservam separados como casta guerreira. O direito romano serve de base ao novo direito gothico. Emfim, a combinação das tres manifestações do Espirito, segundo a expressão de Anaxagoras, começa a dar homogeneidade a uma nova civilisação. O reinado de Theodorico é, pois, uma tentativa da fusão de principios, um relampago de luz serena e clara que irrompe do seio tenebroso dos primeiros tempos da Edade-Media. Dentro de dois seculos constituir-se-ha o Santo Imperio de Carlos Magno. PARTE SEGUNDA OS ESTYLOS CHRISTÃOS PRIMITIVOS V SECULO AO X SECULO CAPITULO PRIMEIRO ESPIRITO E CARACTERES DO ESTYLO LATINO O Christianismo saíra das catacumbas nos meiados do seculo IV. Quasi todo o seculo seguinte passara-se em invasões successivas. Hordas de barbaros precipitaram-se sobre a Italia, talando, destruindo e roubando o que umas ás outras deixavam. As perseguições religiosas haviam cessado; mas a heresia de Ario perturbava os espiritos, e as invasões accumulavam morticinios e flagellos. O trabalho não tinha socego, a agricultura abandonada decaíra, a propriedade estava ameaçada e a industria e o commercio esmoreciam, asphixiados por pesada atmosphera de fogo, de sangue e de incerteza. Não é n'estas condições da sociedade e do espirito humano que as artes se desenvolvem e florescem. O Estylo Latino, que principiára a formar-se nos meiados do seculo IV, constitui-se lentamente no seculo seguinte. A derrota do paganismo inutilisára os templos e mutilára as estatuas dos antigos deuses. Ora, parece-nos haver comprehendido na historia das religiões, que a vencedora esmaga a doutrina vencida, persegue-lhe ferozmente os adeptos e, como os antigos exercitos definiam a victoria dormindo sobre o campo da batalha, as religiões triumphantes occupam e apropriam ao seu culto os antigos templos profanados e desertos. Este principio deriva de rasões logicas e de qualidades ou defeitos da propria alma humana. O vencedor expolia o vencido; vê-se isto ainda nos tempos modernos. O espirito da nova religião sente a necessidade orgulhosa de fazer adorar o seu Deus nos mesmos recintos e altares, onde os _idolatras_ adoravam os deuses vencidos. Além d'isso, os templos inuteis offerecem, em regra, condições de construcção adequadas ás praticas religiosas; ora, em todas as religiões mais perfeitas existem usos e praticas similhantes. O vencedor não tem tempo para construir logo a principio, encontra sanctuarios em sitios escolhidos e convenientes, aproveita-os. É uma rasão. Assim, nós vemos os arabes de Hespanha aproveitarem as egrejas godas, transformando-as em mesquitas, onde o Alcorão occupa o logar da Biblia; mesquitas que, depois, se tornam templos christãos. Assim, os turcos de Mahomet II, tomando Constantinopla, fizeram de Santa Sophia e dos templos byzantinos do Oriente conquistado as suas primeiras mesquitas. O Christianismo não procedeu por esta fórma, salvo raras excepções. Em primeiro logar, porque o espirito e os ritos da nova religião eram assás differentes dos do paganismo. A expressão da arte classica não dizia bem com a essencia do culto christão. Além d'isso, os templos classicos eram pouco espaçosos. O _naos_, a cella ou sanctuario dos deuses, era pequeno; o que dava amplidão ao tempo classico, o _pro-naos_, o portico que mais ou menos envolvia o _naos_, correspondia ao culto e aos ritos pagãos; não se amoldava, porém, aos do Christianismo, cujas multidões, sempre crescentes, precisavam reunir-se amiudadas vezes para os exercicios divinos. As circumstancias desgraçadas da sociedade romana, esboçadas anteriormente, proporcionaram aos christãos os grandes edificios das _basilicas_, logares de reuniões publicas, tribunaes, mercados e bolsas de commercio e bancarias, se em referencia a esses tempos se podem empregar as ultimas expressões tão modernas. O amortecimento da actividade social e a extincção da vida politica dos cidadãos, que os chamavam aos _foros_ junto dos quaes existiam as _basilicas_, o abatimento do commercio e das industrias, emfim, as condições adversas dos seculos IV e V tornaram quasi inuteis estes enormes edificios, outr'ora correspondendo a necessidades publicas e regorgitando de cidadãos, na plena actividade de trabalho em variadas operações commerciaes. Os christãos preponderantes em Roma, logo no principio do imperio de Constantino, começaram a apropriar-se d'estes edificios do Estado, adequando-os ao culto e aos ritos da nova religião. As basilicas romanas produziram, pois, a fórma e o estylo das primeiras egrejas christãs. Sobre as respectivas disposições existiam duvidas, que a critica e a inducção procuraram resolver; assim, a reconstituição d'estes edificios parece ser hoje questão resolvida. A importancia que tiveram sobre a arte christã, a grandeza e a magnificencia dos que existem hoje, principalmente em Roma, obrigam-nos a mais desenvolvida descripção. Vitruvio deu-nos as regras principaes da construcção d'estes monumentos e esclareceu-nos sobre os seus empregos. O architecto aconselha que as basilicas sejam levantadas em sitios quentes e amenos, para facilitar a reunião dos commerciantes. Os seus fins estão, pois, definidos, pelo menos no ultimo seculo antes de Christo em que viveu o celebre architecto romano. As regras são incompletas, sem deixarem de ser tambem interessantes, porque traduzem o espirito methodico e as proporções prefixadas e tradicionaes da arte classica. A largura das basilicas, diz Vitruvio, deve ser pelo menos, o terço do seu comprimento. Adequadas ao terreno, que, se for longo, obrigará a construir _chalcidicos_ nos extremos da basilica. As columnas do pavimento terreo terão altura egual á largura dos porticos, como o architecto chama ás naves lateraes, que a seu turno devem offerecer approximadamente um terço da largura do corpo ou nave central. As columnas superiores, as das galerias sobrepostas aos porticos, serão um quarto mais baixas do que as do pavimento terreo. O parapeito, lançado entre as columnas d'estas galerias, offerecerá altura sufficiente para que as pessoas de cima não sejam vistas pelas de baixo. Por muito incompletos que pareçam, estes pormenores seriam sufficientes para dar approximada idéa dos fins e das disposições d'estes edificios classicos. [Figura: Schema de uma basilica romana] O nome de basilicas parece indicar-lhes origem na Grecia, onde provavelmente existiram construcções com fins equivalentes; comtudo, pode tambem definir-lhes a grandeza e a magnificencia, visto que a palavra grega expressa o poder real. A basilica apparece nos ultimos tempos da republica. Construida nas proximidades dos _foros_, grandes praças onde existia a tribuna dos oradores e se discutiam e resolviam os negocios publicos, a basilica parece ter sido um annexo indispensavel d'estes _foros_, recinto abrigado e coberto para occasiões de intemperie. A mais antiga em Roma, a Basilica Porcia, suppõe-se ter sido construida cêrca de duzentos annos antes de Christo. Depois, como mais importantes, contavam-se a Basilica Emilia, construida por Fulvio, a Basilica Simpronia, elevada por Tito Sempronio, _censor_ no ultimo seculo antes de Christo. Estas construcções faziam parte das dadivas, com que os politicos e os ambiciosos do tempo procuravam conquistar as boas graças do povo. Os imperadores, depois, elevaram muitas. Cesar, Trajano, e por ultimo Constantino construiram-nas em Roma. Cidades de importancia secundaria possuiam basilicas. Assim, pudémos ver ainda os restos da que existiu em Pompeia, junto do pequeno _forum_. Ora, esta cidade era, como outras, semeadas nas margens do golpho de Napoles, uma verdadeira estação de verão, provavelmente do caracter que hoje têem Nice e as povoações da Côte-d'Azur, sobre o Mediterraneo. A basilica de Pompeia constitue um excellente exemplar, porque demonstra que nas primitivas não existia ábside. No fim da nave principal, uma tribuna quadrada, avançando sobre o transepto e de altura superior á de um homem de regular estatura, constituia, decerto, o espaço reservado para o tribunal. Nas ultimas basilicas posteriormente construidas, por exemplo a de Constantino, já apparece a ábside saliente, abobadada em meia cupula, para installação dos juizes. A descripção d'esta ultima basilica dar-nos-á idéa clara da disposição interior e grandeza d'esta natureza de construcções. Media cêrca de 90 metros de comprido, por 75 metros de largo. Em geral, as basilicas offereciam consideravel superficie. Segundo o maior comprimento, eram divididas em tres naves, cortadas perpendicularmente por tres transeptos. Na extremidade dos eixos da nave e do transepto centraes existia uma ábside; no outro extremo, em face das ábsides, abriam-se as entradas, das quaes a principal dava sobre a Via-Sacra. Reunindo estes elementos, podemos figurar com grande exactidão as disposições internas das basilicas. Em geral, eram vastos edificios, constituidos por uma nave central terminada em ábside e ladeada de porticos sobrepostos em dois pavimentos, que attingiam a altura do corpo central. Este conjunto, exceptuando a ábside abobadada em meia cupula, tinha cobertura de madeira com as traves a descoberto. Nos tempos primitivos, pelo menos, o edificio cercado de porticos era accessivel por todos os pontos. Depois, as columnas periphericas foram substituidas por paredes, onde havia portas symetricas nos extremos das naves em face das ábsides. No pavimento terreo reunia-se o tribunal, occupando a ábside e o transepto annexo; os negocios commerciaes e bancarios d'aquelle tempo tratavam-se na grande nave central; nos porticos inferiores lateraes estavam os logares dos vendedores, á similhança dos _bazares_ orientaes. Os porticos superiores constituiam logar de reunião para ociosos e para os que procuravam as diversões da sociedade e da conversação. Para bem fixar os caracteres das basilicas, apresentamos um claro schema, onde todos os respectivos elementos estão expressamente desenhados. N'este schema faremos notar as disposições relativas do tribunal, constituido pela ábside, onde estacionava o juiz e o pessoal annexo, pelas cadeiras ou tribunas dos advogados, ladeando esta ábside, e finalmente pelo recinto fechado, que sem duvida devia existir para separar os negocios do tribunal dos restantes, que se tratavam tambem nas basilicas. Estes elementos são a origem de disposições especiaes nas egrejas do Estylo Latino, como adeante diremos. Emfim, diz-se que as basilicas eram de architectura simples e de modesta ornamentação. É um erro; taes edificios, dados os seus fins e a mira dos doadores e constructores, principalmente quando foram os Cesares, não podiam deixar de manifestar grandeza architectonica, embora a severa e solemne grandeza classica. A ornamentação era rica e profusa em estatuas e objectos de arte, como o foi sempre a grega e a romana. Este ultimo facto, pelo menos, é attestado pelas descripções dos historiadores. É claro que n'este ponto nos referimos ás antigas basilicas romanas e não ás que, seguindo o estylo, edificaram depois os christãos. As basilicas romanas deram, pois, origem ás primeiras egrejas do Christianismo no occidente. Parece-nos, todavia, conveniente, n'esta formação do estylo latino, distinguir dois periodos, sem lhes poder fixar datas, como aliás é sempre difficilimo nas transições artisticas: o primitivo, desde Constantino até Theodorico, em que o estylo devia ser, em regra, relativamente simples e pobre, e o segundo, sob a influencia da riquissima arte byzantina, que ia successivamente attingindo a perfeição manifestada no seculo VI, pela construcção de Santa Sophia de Constantinopla. As relações entre o occidente e oriente eram muito frequentes e activas n'aquella epoca, para que se não desse esta influencia de uma arte grandiosa e de ornamentação riquissima, sobre o Estylo Latino nascente. Nos primeiros tempos houve, sem duvida, vacillações. A consolidação da egreja deve ter influido muito na constituição do estylo. As basilicas christãs dos melhores tempos tinham fórmas definidas; obedeciam, por assim dizer, ás regras de alguns typos apurados e preferidos; por isso, é até certo ponto possivel descrever-lhes os caracteres geraes. A disposição interior das egrejas do Estylo Latino apresentava figuras differentes; a circular e a rectangular foram as mais empregadas, principalmente a ultima. Exemplos ha, tambem, do emprego combinado do circulo e do rectangulo, como se vê na egreja basilica de S. Martinho de Tours. A architectura era simples e sobria, seguindo o espirito e a fórma do estylo classico romano. A diversidade manifesta-se mais accentuada nas disposições internas, accommodadas ás necessidades do novo culto, e na ornamentação mais ou menos rica, onde exerceu decidida influencia o Estylo Byzantino, em plena florescencia no seculo VI. Figuremos, agora, uma visita a estas basilicas do Estylo Latino, fazendo um ligeiro schema dos seus caracteres principaes; observaremos, comtudo, que esta descripção _theorica_ soffre as modificações impostas pelas circumstancias, pelas disposições dos edificios apropriados e, emfim, pela imaginação e concepção artisticas, que, embora dentro das regras dos estylos, teem sempre maior ou menor liberdade de acção. Um espaçoso _atrio_, fechado por muros, ás vezes revestidos de porticos internos, dava ingresso á egreja. No fundo d'este _atrio_ quadrado, que foi origem dos adros das nossas egrejas, em frente da respectiva entrada, elevava-se o edificio do templo. A fachada era formada por tres portas e tres janellas, correspondendo aos eixos das tres naves internas. A porta central servia para os grandes ceremoniaes. Sobrepujando as portas e as janelas, um frontão pouco alto encobria o madeiramento dos telhados. N'esta disposição vê-se a ordenança classica. Em frente da egreja e encostado á fachada, um portico de columnas formava alpendre sobre as portas, logar protegido onde se abrigavam os fieis. Algumas vezes, não havia saliencia para fóra da superficie vertical da fachada, que então repousava sobre o intercolumnio externo do portico. As portas da egreja ficavam, n'este caso, precedidas de uma especie de vestibulo. Nos lados d'este portico duas fontes serviam para as abluções. N'estas fontes teem origem os baptisterios, edificios sumptuosos que mais tarde foram elevados junto das egrejas, nos atrios ou fóra d'elles, onde se praticava em grandes bacias de marmore o baptismo por immersão, usado n'aquelles tempos. Depois, a transformação dos ritos, dando caracter symbolico ao baptismo, introduziu os baptisterios no corpo das egrejas proximo da entrada. As fachadas lateraes da egreja, em regra, não tinham janelas. A parede lisa era coroada por uma cornija, repousando sobre modilhões. As janelas da fachada eram fechadas por grandes laminas de marmore, rendilhadas de pequenas aberturas circulares ou em lozangos, dando a impressão das rotulas orientaes. No interior, a egreja offerecia as caracteristicas disposições da basilica romana: tres naves, a do centro mais larga e alta, as lateraes com dois pavimentos sobrepostos, abrindo na principal, compunham a superficie coberta do edificio. Segundo o preceito primitivo da divisão dos sexos nas ceremonias religiosas, os homens occupavam a nave lateral da esquerda, as mulheres casadas a da direita e as virgens e as viuvas os pavimentos superiores d'estas naves. [Figura: ROMA. BASILICA DE S. PAULO--Fachada principal] Nos extremos das naves, em frente das portas, rasgavam-se tres ábsides; a da nave central, a mais importante, constituía o _presbyterio_ ou a _tribuna_. Nas lateraes guardavam-se os livros santos e os objectos do culto. Estas ultimas foram a origem dos _thesouros_ e das _sacristias_ das nossas egrejas. Na ábside central, a _tribuna_, em degraus de marmore dispostos em amphitheatro, sentavam-se os presbyteros; ao fundo, n'uma cadeira tambem de marmore o bispo, ou o officiante, presidia ás cerimonias religiosas. Nas basilicas romanas, como vimos, era este o logar dos juizes. Em face da tribuna, isolado, levantava-se o altar, coberto pelo _ciborio_, o _baldachino_ das basilicas modernas de Roma, vasto e alto docel sustentado por columnas, formando uma especie de pallio de marmore. O altar, em geral, era o sarcophago de um santo, o da invocação da egreja. Sobre a mesa do altar viam-se baixos relevos, o _alpha_ e o _ómega_, o _labaro_, a _palma_ do martyrio e outros symbolismos religiosos. No solo, por baixo do altar, existia um pequeno subterraneo, o _martyrio_ ou a _confissão_, contendo reliquias de santos; quando este subterraneo era vasto tomava o nome de _crypta_. Todos estes elementos nasceram das tradições do Christianismo das catacumbas. Este conjunto do altar, o _santuario_, ficava entre a tribuna e o côro, constituido por um vasto espaço quadrado, limitado por muros baixos, no extremo da nave central. Nos tres lados do côro, excepto o mais proximo do altar, bancadas de marmore em amphitheatro davam logar aos chantres e cantores. Dois _ambons_ symetricos, nos extremos do côro, ladeavam quasi o altar. Correspondiam proximamente ás tribunas dos advogados romanos e são a origem dos pulpitos. Estas disposições caracteristicas pódem observar-se ainda hoje nas antigas cathedraes hespanholas, cujos coros cortam as naves principaes. A conveniencia de extremar o publico da tribuna e do altar, fez mais tarde construir um muro, ou balaustrada perpendicular aos eixos das naves, entre o côro e o altar. Assim, ficou definido o transepto e desenhada a cruz latina das egrejas dos futuros estylos occidentaes. Os tectos eram de madeira, em geral de vigas descobertas, ás vezes de grandes caixões. A abobada não foi, nem podia ser empregada em edificios d'esta construcção. A riqueza e o luxo das egrejas do Estylo Latino manifestavam-se principalmente no interior. Os tectos eram de essencias raras, esculpidos e recamados de metaes, entre os quaes figurava o ouro. As columnas das naves, ligadas por architraves, ou por arcos de volta inteira, as paredes das naves, divididas em compartimentos por pilastras, eram construidas e revestidas de finos marmores e de porphyros. O altar e o côro principalmente offereciam ornamentação riquissima, revestidos de esculpturas onde e quando era possivel; assim como a tribuna, cuja semi-cupula representava grandes quadros biblicos em mosaico de fundo de ouro, que ás vezes se estendia a outros pontos da egreja. É evidente que esta pujante ornamentação se desenvolveu nos melhores tempos do estylo, sob a influencia do Estylo Byzantino. Sabe-se, com effeito, que os romanos empregavam com raridade o mosaico nas paredes. [Figura: ROMA, BASILICA DE S. PAULO--Fachada lateral (norte)] O pavimento das egrejas nos tempos primitivos fôra de grandes lages; depois, vieram os mosaicos de desenho fino e variado, formados de pequenos cubos de marmore branco, de esmalte e de porphyro verde e amarello, chamado _opus alexandrinus_, nome que lhe caracterisa a origem oriental. Se accrescentarmos, por simples curiosidade, por exceder a esphera da Historia da Arte, que os primitivos templos eram construidos pelo systema romano na qualidade e disposição dos materiaes, teremos dado uma succinta idéa da formação e dos caracteres do Estylo Latino, isto é, do primitivo estylo christão no occidente. Não temos, infelizmente, em Portugal um só exemplo do Estylo Latino. O nome de _basilica_, applicado a algumas das nossas egrejas, taes como a da Estrella e a de Mafra, corresponde simplesmente á expressão de grandeza e sumptuosidade, mais ou menos merecida, sem se referir a qualidades architectonicas, porque estas egrejas são de caracteristico Estylo da Renascença. Os maiores e mais bellos exemplares existentes do Estylo Latino é necessario procural-os entre as trezentas e oitenta e nove egrejas e capellas, que ornam a artistica e historica cidade de Roma! Entre as basilicas do Estylo Latino avultam as de S. João de Latrão, Santa Maria Maior, S. Paulo e S. Lourenço, as duas ultimas construidas fóra dos muros da antiga cidade. Ora, são exactamente estas ultimas que nos parecem mais caracteristicas, quer nos elementos externos, quer nas disposições internas. A Egreja de S. Paulo, fóra dos muros, constitue de facto um formoso e rico exemplar do Estylo Latino. As suas disposições geraes traduzem, com a possivel exactidão, os caracteres das basilicas romanas, anteriormente descriptas. Esta grandiosa construcção conserva ainda uma pequena parte antiga, se não primitiva, mas o restante é de epoca moderna. Diz a tradição que no local de um cemiterio, onde repousavam os restos de S. Paulo, o grande Apostolo das Gentes, o imperador Constantino mandou edificar uma primeira basilica, que depois foi restaurada e engrandecida por successivos imperadores, sendo terminada por Honorio no anno 423 da nossa era. Um grande incendio destruiu em 1827 grande parte d'esta primitiva basilica. Então, o Papa Leão XII, pedindo donativos á fé dos christãos de todo o mundo, começou a reedificação da antiga basilica; fazendo, porém, engrandecer e enriquecer os novos planos. Em 1854, o Papa Pio IX sagrou o novo e magnifico templo, do qual apresentamos os principaes elementos, como excellente definição das feições especiaes do Estylo Latino. [Figura: ROMA--Interior de S Paulo] A fachada principal é formada por um vasto portico da Ordem Corynthia, para o qual se abrem as sete portas da egreja; por detrás d'este portico eleva-se o corpo da nave central do templo. Devemos observar que nas egrejas do Estylo Latino, em regra, desappareceram as galerias superiores das basilicas romanas. Abolido o uso da separação dos sexos nas ceremonias religiosas, a conveniencia de bem illuminar as egrejas aconselhou a suppressão d'estas galerias. Assim, o corpo da nave central eleva-se sobre os corpos lateraes, recebendo luz directa e profusa de grandes janelas. A fachada principal de S. Paulo é ricamente decorada por mosaicos modernos. As portas, que abrem no bello portico, são antigas, de bronze e de excellente Estylo Byzantino. O interior da egreja offerece cinco grandes naves, formadas por quatro ordens parallelas de columnas, vinte em cada ordem. São, pois, oitenta columnas, tendo as bases e os pedestaes de marmore branco e os fustes de granito rosa polido. Sobre a cornija da nave central corre uma serie de medalhões circulares em mosaico, que representam retratos de antigos Papas. Esta grande nave é directamente illuminada por dez janelas lateraes, sendo os respectivos intervallos preenchidos por frescos, que representam scenas da vida de S. Paulo. O tecto riquissimo é feito de caixões de madeira esculpidos e dourados. O arco da capella-mór constitue, talvez, um dos elementos da primitiva basilica de Constantino. Este arco, ladeado por duas estatuas colossaes de S. Pedro e de S. Paulo, é guarnecido na parte superior por antigo mosaico, que se suppõe ser do anno 440 da nossa era. A ábside, para onde se sobe por tres degraus, tem na semi-cupula um mosaico, que se presume ser do seculo XIII. O altar, do mesmo seculo, é coberto por um ciborio, formado por quatro columnas de porphiro, que sustentam um docel de Estylo Ogival. No lado norte do transepto abrem-se, tambem, tres portas precedidas de um portico corynthio de menor importancia. A torre dos sinos, coroada de um mirante, está collocada por detrás da ábside. A Egreja de S. Lourenço, segundo a tradição tambem construida por Constantino no anno 330 da nossa era, foi modernamente restaurada por Pio IX, cujos restos mortaes n'ella repousam, e constitue egualmente um exemplar muito bom do Estylo Latino, mais modesto e severo. Na fachada, o portico é da Ordem Jonica, coberto por telhados muito inclinados e evidentes. O corpo da nave central, ornada de pinturas a fresco, não tem frontão. No interior, de cada lado, onze fortes columnas jonicas de granito rosa e de cipolino dividem o templo em tres naves, dando-lhe um aspecto de severidade e grandeza que mais realça ainda a cobertura da nave central, feita de grandes vigas descobertas, douradas e esculpidas. Esta egreja não tem na realidade um verdadeiro transepto, o que mais a approxima das fórmas tradicionaes das basilicas romanas, das quaes se afasta, por outro lado, porque a ábside termina em parede plana, guarnecida de janelas. [Figura: ROMA. BASILICA DE S. LOURENÇO] Não sendo possivel nem opportuno desenvolver descripções mais completas d'estas grandiosas e riquissimas basilicas, julgamos haver escripto e apresentado graphicamente os sufficientes elementos para bem fixar os caracteres do Estylo Latino, mais puro e rico. [Figura: ROMA--Interior da Basilica de S. Lourenço] CAPITULO SEGUNDO ESPIRITO E CARACTERES DO ESTYLO BYZANTINO Roma deixára de ser a capital do Imperio. Conservára de direito as suas antigas tradições, o seu cognome de _cidade-eterna_; de facto, a capital do Imperio já no seculo III, sob Maximiano, havia sido deslocada, para o norte. Era em Milão. Assim, foi n'esta cidade que Constantino promulgou o edito de tolerancia, de que data a liberdade do Christianismo. As extensas fronteiras e as enormes agglomerações de estados e de povos, que formavam o Imperio, exigiram, talvez, uma capital mais no centro, com sacrificio de Roma, muito afastada, quasi no meio da peninsula italica. Além d'isso, os imperadores, em geral, preferiam habitar as cidades do oriente, onde por exemplo Diocleciano residiu quasi sempre. As tendencias luxuosas e os costumes mais do que faceis dos imperadores deviam tender a approximal-os do fóco de luxo e de vida devassa, de que os satrapas médo-persas deram exemplo imitado e haviam deixado profundas tradições respeitadas. São ainda hoje proverbiaes o luxo e os costumes do oriente. Constantino, pelas razões que expozemos, edificára em Bysancio a nova capital do Imperio. A permanencia da côrte do autocrata romano no oriente foi, sem duvida, um golpe profundo na vida social e na riqueza da Italia, reduzida a um exarchado. Com o chefe supremo e a alta administração do Imperio, a pouco e pouco devem ter emigrado para Constantinopla as melhores forças vivas e os mais valiosos elementos sociaes, que tendem sempre a agrupar-se em torno do poder central. O Christianismo existia já n'aquellas provincias do Imperio; mas a acção da nova capital e do proprio imperador imprimiu-lhe necessariamente grande expansão. As mesmas causas e influencias, que no occidente haviam produzido o Estylo Latino, foram encontrar-se com outras especiaes, nascidas e desenvolvidas no oriente. Um outro estylo christão, differente do occidental, foi tambem o producto da acção reciproca d'estes elementos. A sua formação é coeva e parallela. Póde dizer-se que o espirito classico e o do Christianismo produziram simultaneamente dois estylos architectonicos: no occidente, o Latino; no oriente o Byzantino, de que nos vamos occupar. O genio romano era o reflexo, um pouco pallido na verdade, do genio hellenico. Imitou-o na religião, na sciencia e na arte, seguiu-lhe os passos nem sempre com grande felicidade. Nas manifestações da actividade social os romanos foram superiores aos gregos; mas em creações do espirito, na sciencia, na philosophia e na arte, a Grecia teve apenas em Roma um soffrivel discipulo. Os romanos, é certo, eram amadores, grandes amadores da arte, como os inglezes modernos exactamente, que a adoram, cultivando-a pouco, ou pelo menos não produzindo creações novas, comparaveis com os d'outros povos. Apenas a Grecia se tornou provincia romana, o enorme thesouro da arte hellenica foi posto a saque; Roma enriqueceu-se com tudo quanto podia ser transportado: estatuas, quadros, vasos, vieram adornar os templos, os _foros_ e os edificios publicos, povoar os palacios e as galerias dos vencedores, que assim se enriqueceram com productos artisticos, durante seculos creados e accumulados pelo trabalho e pelo genio gregos. Roma adorava a Grecia. Nero, deante do povo hellenico, quiz ser athleta e artista. O prestigio imperial provocou as acclamações; a força garantiu-lhe e facilitou-lhe a grande espoliação dos objectos artisticos. É provavel que, sujeita a _este espirito_ dos amadores romanos, a Grecia ficasse quasi desprovida de estatuas, algumas das quaes poderemos ver ainda hoje nos grandes museus da Italia. Apesar de tudo, o genio artistico grego era tão vivo e energico que se manteve sempre, durante os flagellos da conquista e das depredações romanas. Foi este genio de grandes qualidades estheticas, formado n'uma escola de excepcional grandeza, que a modesta arte latina do occidente, formada pelo classico romano e pelo Christianismo, encontrou ainda pujante e activa no imperio byzantino. Ora, esta substituição da esthetica romana pela grega constituia já uma grande vantagem para a nova evolução da Arte. Além d'isso, Constantinopla estava perto da Asia Menor e d'essas grandes provincias romanas, que comprehendiam a Mesopotamia e parte do grande imperio dos Sassanides. Esta vasta região, onde floresceram tantas civilisações antigas, confinava com a mysteriosa _Fars_, a Persia, que em guerras successivas fôra vencida pelos heroes da Grecia. Todas estas nações, a Phrygia, a Lycia, a Caria, a Lydia e sobretudo a Assyria e a Persia haviam tido uma arte mais ou menos adiantada. Esta parte da historia da arte antiga é assás obscura nas origens e nas relações reciprocas; mas estudos modernos vão demonstrando a importancia das manifestações estheticas entre estes povos orientaes. A influencia de ornamentações riquissimas e de estylos cheios de originalidade, adequados aos costumes, ás necessidades e ao clima do oriente, estendia-se principalmente para os lados do Bosphoro, o caminho que tinham seguido as invasões médo-persas. Foi a acção reciproca d'estes elementos, o classico hellenico e os estylos orientaes, que, substituindo o romano e sob o influxo do Christianismo, produziu o Estylo Byzantino. A basilica, levada do occidente por Constantino e pelos christãos do seu tempo, chegára a elevar-se na capital e nas provincias orientaes do Imperio; mas as suas fórmas especiaes, pobres e severas, não poderam por longo tempo resistir á atmosphera ardente da arte oriental. O seculo V foi, pois, o periodo da evolução rapida d'esse novo estylo christão, que o imperador Justiniano teve a gloria e o orgulho de caracterisar n'um só edificio, dos mais bellos do mundo. Os planos e a construcção de Santa Sophia de Constantinopla foram dirigidos por Anithemius, nascido em Tralles, e por Isidoro, de Mileto. Estes architectos, cuja fama ficou immorredoura como a de Ictino e Callisthenes, os constructores do Parthenon o mais bello templo do classico hellenico, eram ambos naturaes da Asia Menor, onde haviam florescido adeantadas colonias jonicas. Mileto, uma das mais famosas, pertencia á Caria, Tralles á Lycia, provincias limitrophes, das quaes a ultima tocava a Assyria e a Mesopotamia, approximando-se do Imperio dos Sassanides, a Persia. Estes dois homens de incontestavel genio foram, pois, oriundos de raças e nações, onde o espirito hellenico e o oriental tinham descoberto combinações singulares e bellas na arte da construcção, nos estylos e na ornamentação dos edificios. A construcção do templo de Justiniano, iniciada em 532, correu com tal rapidez, que em 27 de novembro de 537, dia da sua sagração, o Imperador pôde soltar esta soberba e historica expressão: _Gloria a Deus que me julgou digno de construir uma tal obra. Venci-te Salomão!_ De facto, nunca a riqueza da ornamentação e do culto excedeu a magnificencia de Santa Sophia, nos tempos do Imperio Byzantino. Ainda hoje, decahido e estragado pelos turcos, que lhe cobriram os marmores e os mosaicos com estuques rendilhados, onde se lêem versiculos do Alcorão, o edificio de Santa Sophia constitue o primeiro e mais admiravel monumento do Estylo Byzantino, o seu melhor exemplar, o mais perfeito e mais rico. O Estylo Byzantino, que se estendeu com enorme rapidez pelo norte da Italia e pelo sul da França, chegando até á Allemanha, não penetrou em Hespanha e muito menos em Portugal, pelo menos em edificios importantes que tenham deixado tradições ou vestigios materiaes. Para definirmos, pois, os caracteres d'este estylo, esbocemos curta descripção de Santa Sophia de Constantinopla, o seu principal monumento, que nos esclarecerá e servirá de guia, como fizemos no Estylo Latino. O exterior de Santa Sophia é simples e severo. Uma multidão de cupulas de differentes dimensões, dominadas pela grande cupula do corpo central da antiga egreja, dão-lhe um aspecto caracteristico, perfeitamente oriental, como o das cidades em climas onde a neve é desconhecida, a chuva rara e reina quasi sempre calor ardente. A impressão de solidez do edificio deprehende-se d'essas cupulas achatadas, repousando sobre paredes espessas, separadas por botareos entre os quaes se abrem pequenas janelas de volta inteira. Estamos já longe das coberturas de madeira sobre paredes delgadas do Estylo Latino e bem perto das pesadas abobadas sobre muros espessos, reforçados por botareos, do Estylo Romanico. Na gravura, que apresentamos, Santa Sophia é representada no estado actual, isto é, ladeada de quatro _minaretes_ e cercada de construcções, que as necessidades do culto do Islamismo e a selvageria artistica dos turcos teem feito encostar ao antigo monumento. [Figura: CONSTANTINOPLA--Exterior de S^{ta} Sophia] A construcção, exceptuando a pequena saliencia da ábside principal, está circumscripta n'um vasto quadrado de 77 metros de lado, como se vê da seguinte planta, limpa das excrescencias de origem turca. [Figura] A disposição interna offerece tres naves, a do centro muito larga e alta em relação ás lateraes. A cobertura d'esta nave central constitue um dos caracteres principaes da architectura byzantina. No meio d'ella desenha-se um grande quadrado de 31 metros de lado, exactamente a largura da nave, definido pelos angulos internos de quatro enormes pilares muito elevados, sobre os quaes veem apoiar-se quatro grandes arcos de volta inteira. Repousando sobre os fechos d'estes arcos, ergue-se uma cupula colossal, cujo diametro é, portanto, egual ao lado do quadrado. O espaço vasio, que ficaria comprehendido entre os quartos de circumferencia da cupula e os dos arcos sobre que ella assenta, foi cheio, formando uma superficie concava e triangular, gerada pela curvatura da cupula descendo ao longo dos arcos. Esta construcção, facilitando a passagem da figura circular da cupula para a quadrada dos pilares, constitue quatro enormes _pendentes_, que ligam a mesma cupula aos arcos, sobre que ella repousa. [Figura] Esta disposição, muito caracteristica, comprehende-se com facilidade, estudando o anterior córte, feito pelo centro da cupula e perpendicular ao eixo maior da nave central. Para o oriente e para o occidente--porque o eixo principal da egreja tem esta direcção--duas semi-cupulas firmam-se nas paredes externas e encostam-se aos arcos internos, tocando-lhes quasi o intradorso; assim fica fechada a cobertura da nave central. O templo era, pois, orientado; a luz da madrugada espalhava-se na grande nave, durante as ceremonias religiosas, em geral matutinas. Esta orientação apparece mais tarde no Estylo Romanico. Vamos, assim, fazendo desde já simples approximações. Os grandes arcos lateraes da nave principal foram cheios por paredes, onde se abrem arcadas de volta inteira sobre as columnas do primeiro e segundo pavimento das naves secundarias; por cima d'estas galerias a egreja recebe luz directa de janelas, abertas para o exterior e deitando sobre os terraços das mesmas naves, cobertas por abobadas de volta inteira. Assim, o corpo central do edificio apparece definido, mais elevado do que os collateraes, recebendo luz de fóra. Se o Estylo Latino deixou aqui reminiscencias das galerias sobrepostas para separação dos sexos, a disposição tambem faz lembrar as naves centraes mais elevadas dos templos romanicos e ogivaes. Na parede oriental, sob a semi-cupula respectiva, rasgam-se tres ábsides, das quaes a do centro, um pouco saliente do edificio, era o _sanctuario_. Na parede occidental em frente das ábsides, existem as tres portas de entrada, precedidas de um duplo _narthex_, reminiscencia do porticos dos templos classicos, adoptados tambem pelo Estylo Latino. Se a isto accrescentarmos que o edificio é profusamente illuminado por numerosas janelas de volta inteira, relativamente pequenas, existindo na base da grande cupula central uma verdadeira corôa de quarenta d'estas janelas, que lhe dão um aspecto singular de elegancia e de levesa, teremos esboçado singela descripção architectonica, que, sem confusões e incertezas segundo pensamos, dará idéa do edificio e das feições caracteristicas do Estylo Byzantino, que Santa Sophia traduz magistralmente. Sem falarmos por emquanto na ornamentação, devemos concluir que o primeiro caracter evidente d'este estylo é a cupula. Como quasi todos os elementos fundamentaes architectonicos, foi ella conhecida no mundo antigo. Constitue uma especie de cobertura, que os grandes constructores e architectos da antiguidade deviam ter descoberto quasi ao mesmo tempo, principalmente nos climas muito quentes, de longas estiagens e por isso de poucas florestas, que economicamente fornecessem madeira para construcções. Póde servir isto de exemplo para as influencias do clima sobre a construcção e d'esta sobre a arte. Assim, tambem a ogiva, por outras rasões especiaes, deve ter sido conhecida pelos bons architectos e constructores, porque os houve excellentes na mais remota antiguidade. A cupula veiu do Oriente, da Persia dizem; é natural e logico. Mas não póde existir a menor duvida em que, pelo menos, na Roma antiga foi conhecida. Ainda hoje na cidade eterna a podemos ver no Pantheon de Agrippa, transformado em egreja christã, onde por signal jazem os restos mortaes de Victor Manuel I, o unificador da Italia. O auctor d'este livro admirou esta soberba cupula, que produz espanto pela perfeição da construcção arrojada, tão excellente que resistiu á acção de dezenove seculos, porque foi edificada no imperio de Augusto. Se a cupula de Santa Sophia admira tendo o diametro de 31 metros, a do Pantheon causa assombro porque a excede em grandeza. É toda de pedra talhada e tem 43 metros de diametro; no alto, tambem a 43 metros, offerece uma grande abertura por onde o templo recebe a luz. [Figura: CONSTANTINOPLA--Interior de S.^ta Sophia] Bastaria este exemplo existente para demonstrar, aos que não ignoram o principio da evolução da arte e da sciencia de construir, que uma maravilha d'estas não póde constituir um producto esporadico n'uma civilisação. Roma conhecia este systema de construcção, porque o empregou, logo conhecia-o tambem a Grecia. É regra logica e segura. Verdade seja que o Pantheon é um templo circular, precedido de um simples portico de frontão classico; n'este caso, a cupula repousa toda sobre paredes, emquanto que em Santa Sophia firma-se sobre quatro pilares, com auxilio dos _pendentes_. Eis a caracteristica differença. D'esta fórma especial de construcção, que provavelmente foi empregada nos tempos mais remotos em Babylonia, na Assyria e na Persia, n'um ou n'outro ponto preferida por condições locaes, é que não se encontraram, até hoje, vestigios no classico romano e no hellenico. A _cupula de pendentes_ é, pois, um dos caracteres fundamentaes do Estylo Byzantino, herdado de estylos antiquissimos. Entre nós existe um exemplo d'esta cobertura, na Egreja do Sagrado Coração de Jesus, vulgarmente denominada da Estrella. A cobertura interior do cruzeiro, quadrado de cêrca de 12 metros de lado, é uma cupula d'este genero, sustentada por quatro arcos. A unica differença, aliás secundaria, consiste em que a cupula repousa sobre um corpo cylindrico, entreposto entre ella e os arcos, em cuja superficie se abrem as janellas. Em geral, as cupulas byzantinas repousavam directamente sobre os arcos sem interposição do tambor cylindrico; dizemos em geral, porque nos pareceu que esta interposição, embora pouco accentuada, se dá na egreja de S. Marcos de Veneza, sem, todavia, o podermos affirmar com plena convicção. A ornamentação de Santa Sophia era tambem caracteristica. A vontade omnipotente do Imperador, secundada pelo espirito respeitoso--iamos a escrever servil--dos funccionarios das suas vastas provincias, fez saquear os templos pagãos do oriente, como tambem se praticára no occidente, para enriquecer o novo templo, o emulo do antigo templo de Salomão. A historia relata a este respeito espantosos factos de espoliação e destruição dos antigos templos classicos de Palmyra, Pergamo, Heliopolis, Epheso e outras cidades. Ora, as depredações n'este caso exerceram-se nos thesouros immensos da arte hellenica e oriental; emquanto, no occidente, o Christianismo encontrou a mais modesta arte do classico romano. Comprehende-se, pois, a enorme differença da ornamentação das egrejas nos primeiros estylos christãos. Os mais ricos materiaes foram empregados com profusão. Marmores rarissimos e finos, o porphyro, o granito e a malachite constituiam as columnas e forravam as paredes. Por toda a parte reinava esse _luxo_ asiatico, em que a prata, o ouro e até as pedras preciosas se revesavam com os grandes mosaicos orientaes de fundo dourado ou de azul escuro, revestindo as cupulas e os pendentes de immensos quadros, contendo passagens do Novo e do Antigo Testamento, scenas reaes e symbolismos diversos, onde as figuras appareciam com desenho incorrecto, sem vida e movimento, em grupos symetricos, expressões hieraticas de uma arte crystallisada, que perdera as tradições do grande estylo e não estudava a natureza. A magnificencia dos objectos do culto attingiu proporções phantasticas em Santa Sophia. Como se o ouro não fosse bastante precioso, o altar era feito de uma singular liga de ouro, prata e perolas e pedras preciosas reduzidas a pó. As suas quatro faces, cobertas de baixos relevos byzantinos, brilhavam rica e profusamente incrustadas de perolas e gemmas de todas as especies. Este altar era coberto pelo _ciborio_ em fórma de torre, cujo docel de ouro massiço repousava sobre quatro columnas tambem de ouro e prata, entre as quaes se viam suspensas grandes espheras de ouro com a cruz grega. No interior do ciborio, pendente do docel e como pairando sobre o altar, uma pomba de ouro representava o Espirito Santo. Era a custodia, onde se guardavam as sagradas particulas. Todo este conjunto refulgia de perolas e gemmas preciosas. O _sanctuario_ fôra separado do corpo da egreja por uma alta divisoria de prata, sustentada por doze columnas de ouro. Nas grandes superficies de prata d'esta divisoria viam-se esculpidas em alto relevo figuras de santos e lavores de caracter byzantino. Quasi no centro da nave central, em frente do altar, um enorme _ambon_ de fórma circular, em recinto vedado, servia de côro para as dignidades ecclesiasticas e de tribuna para a côrte imperial. Era coberto por um docel de metaes preciosos, encimado de uma grande cruz de ouro, recamada de granadas e perolas; este docel firmava-se sobre oito columnas de marmore. De marmore e recamadas de ouro eram tambem as escadas de accesso do ambon. Nas hombreiras e nas portas do edificio havia-se prodigalisado a prata, o marmore, o marfim e o cedro. Emfim, todos os restantes objectos do culto, por mais secundarios que fossem, manifestavam riqueza deslumbrante, accusando a tendencia oriental de carregar as linhas e as fórmas estheticas com pesados ornamentos, encrustados de gemmas e metaes preciosos. Imagine-se, pois, o effeito deslumbrante de tudo isto: columnas e paredes de finissimos marmores polidos, mosaicos de fundo de ouro revestindo as abobadas das cupulas e das absides, espalhando-se pelos pendentes e pelo corpo da egreja em grandes quadros, os altares, o ambon e os objectos do culto divino recamados de pedrarias, as grades e divisorias de prata, imagine-se toda esta riqueza salomonica e oriental, rutilando á luz de 6:000 grandes lampadas de metaes preciosos ricamente cinzelados! Esta impressão extraordinaria, embora não comparavel, sentiu-a um dia o auctor d'este livro ao entrar n'uma festa religiosa, em S. Marcos de Veneza; occorrendo-lhe, n'esse momento, a bella e rigorosa phrase de Theophilo Gautier, porque a egreja, bem mais modesta em tudo do que o foi a de Santa Sophia, tinha reflexos fulvos e brilhantes, como se fosse uma _grande caverna de ouro!_ Em rapidos traços, tal foi nos primitivos tempos a Egreja de Santa Sophia de Constantinopla, ainda hoje rica e soberba apesar de saqueada pelos turcos de Mahomet II, se não pelo proprio Mahomet; egreja, transformada em mesquita, que os dignos descendentes dos conquistadores cobriram de estuques com arabescos orientaes e versiculos do Alcorão! D'esta simples e modesta noticia deprehendem-se os caracteres, ou melhor as feições do Estylo Byzantino; devemos, porém, entrar ainda n'este ponto em alguns pormenores. A fórma das egrejas byzantinas offerecia differentes disposições. Démos a de Santa Sophia, falaremos ainda de outras. Em S. Vital de Ravenna, edificio coevo de Santa Sophia, a planta offerece a figura de um octogono regular; a grande cupula central repousa sobre oito pilares internos, dispostos nos angulos do polygono, deixando entre si e as paredes da egreja uma nave octogonal. A cruz grega desenha-se nos eixos principaes dos dois corpos da egreja, o que termina na abside e o que ao meio lhe fica perpendicular. É claro que n'este caso os pendentes são pequenos e sel-o-iam successivamente, quanto mais numerosos fossem os lados do polygono. Na antiga egreja dos Santos Apostolos em Constantinopla, a nave principal, tendo em comprimento o triplo da largura, é cortada ao meio por um transepto perpendicular das mesmas dimensões. Nove cupulas de pendentes eguaes cobrem esta superficie, representando uma verdadeira cruz grega. S. Marcos de Veneza é uma imitação d'esta egreja. Sem multiplicarmos os exemplos, poderemos estabelecer como tendencia geral a maior ou menor approximação da cruz de braços eguaes, a do estylo grego. No conjunto os edificios, em geral, manifestam-se pesados, austeros e simples, pelo menos nos tempos primitivos. A cupula principal eleva-se e predomina sobre as menores e mais baixas, se estas existem, sobresaíndo na tendencia horisontal das outras coberturas. A construcção respira estabilidade e solidez. As janelas são pequenas, segundo o uso oriental, muito numerosas, de volta inteira como as portas, offerecendo ás vezes a fórma de ferradura tão usada no Estylo Arabe, que afinal teve tambem muitas das origens do byzantino no mundo oriental. O interior respira a riqueza, que manifestou em grande escala a egreja de Santa Sophia. A ornamentação é caracteristica; mas, na realidade, são as _cupulas de pendentes_, os _mosaicos_ orientaes, as _arcadas sobre columnas_, os _capiteis_, e os _arcos geminados_, que melhor definem o Estylo Byzantino, alem de outros que já descrevemos e vamos enumerar. Observaremos que um grande numero d'estes elementos, não todos, serão empregados depois nos Estylos Romanico e Ogival. Os mosaicos, de fundo de ouro ou de azul muito vivo, representam em grandes quadros, principalmente nas cupulas, nos pendentes e nas abobadas das absides, motivos sagrados ou profanos em que entram poderosos senhores, como nos de Ravenna. A arte é, porém, hierarchica, secca e fria. Em geral, o desenho manifesta singulares intenções de symetria. As personagens não têem vida e movimento; parecem, se nos consentem a expressão, multidões de manequins, dispostos em maus quadros scenicos. Este espirito byzantino da arte influiu, de certo, nos pintores e nos esculptores occidentaes, nos periodos romanico e ogival. A ornamentação profusa inspira-se nas artes do Oriente, offerecendo fórmas curiosas e originaes. Os capiteis, por exemplo, são de extrema diversidade. Massiços e pesados, quasi todos, variam de contornos: cubicos, arredondados na base, em pyramides truncadas de arestas salientes, ás vezes dois sobrepostos, como succede na egreja de Ravenna. A sua ornamentação manifesta, tambem, caracteres diversos, em que predominam perolas, galões entretecidos, rendilhados de folhas phantasticas, graciosos lavores abertos que parecem ornados de pedrarias. Ás vezes, aves e animaes de singulares aspectos, vasos e cestos, completam esta profusa ornamentação, em que foram abandonados e esquecidos o gosto e as proporções classicas. No Estylo Byzantino, a esculptura, bem como a pintura, apresentam-se decadentes, padecem quasi de eguaes defeitos. A pedra é trabalhada sem os córtes largos e profundos, que procuram o relevo pelas sombras e saliencias dos planos e dos ornamentos. Os artistas byzantinos lavravam frouxamente a pedra. Parecia empregarem mais o buril do que o escopro; foram mais gravadores de metaes do que esculptores de pedra. É evidente que todos estes caracteres byzantinos tiveram profunda influencia sobre os dos Estylo Romanico e Ogival, onde muitos apparecem, mas já tratados com outro vigor e largueza. Assim, pensamos ter dado successiva idéa do Estylo Byzantino, que o calor do Christianismo fez brotar vigoroso e esplendido do fertil solo da arte hellenica e oriental. CAPITULO TERCEIRO ACÇÃO RECIPROCA DOS DOIS ESTYLOS CHRISTÃOS PRIMITIVOS Assim, o espirito do Christianismo, reanimando as energias quasi moribundas da arte grega e oriental, e da romana, creára dois formosos estylos; correspondendo, na realidade, a expressões definidas do bello nas duas maiores civilisações, em que então se dividia a Humanidade. O Estylo Latino nascera primeiro, começando a constituir-se logo após a saída do Christianismo das Catacumbas. Abandonando a Italia, Constantino levou-o comsigo e implantou-o na sua nova capital, Constantinopla, que teve, pois, como o occidente, as suas basilicas, entre as mais importantes a dos Santos Apostolos, a de Santa Irene e a primitiva de Santa Sophia, que Justiniano dois seculos depois transformou no grande templo byzantino, descripto no capitulo anterior. No periodo de formação do Imperio do Oriente, isto é, desde Constantino até Theodosio, o Estylo Latino desenvolveu-se com maior ou menor intensidade, salvo n'essa breve tentativa reaccionaria do polytheismo vencido, que se encarnou no imperador Juliano. O Estylo Latino não tinha, porém, as qualidades exigidas pelo _meio_ grego e oriental, nem as basilicas classicas, de que elle derivava, eram muito vulgares no oriente, se algumas importantes existiam. O proprio clima não aconselhava coberturas de madeira, que o doce e temperado clima da Italia e a tradição conservaram no primitivo estylo. Como as plantas exoticas teem, em regra, vida artificial e difficil, o Estylo Latino, nascido no occidente, não encontrando no oriente condições favoraveis, estiolou-se a pouco e pouco e por fim desappareceu sob a influencia de elementos architectonicos mais poderosos, porque eram harmonicos com o _meio_ natural e social, para onde o Estylo Latino fôra transplantado. Todavia, o novo Estylo Byzantino, que ia formar-se em harmonia com esse _meio_ natural e social, não podia repudiar os elementos architectonicos fundamentaes do Estylo-Latino vencido, que não eram antinomicos com os seus e correspondiam, alem d'isso, a qualidades e exigencias do espirito christão, que, sendo origem commum de ambos, imprimira á Arte novas feições em situações differentes. De facto, não é difficil observar que o Estylo Byzantino, apesar da sua originalidade, se apropriou de alguns caracteres fundamentaes do Latino; muito embora, como em breve diremos, a fusão d'estes estylos se devesse realisar mais tarde sob a acção do elemento barbaro, que não podia deixar de manifestar profunda influencia sobre a architectura christã, visto que a teve decisiva e innegavel na constituição das sociedades medievaes. Uma observação interessante na formação do Estylo Byzantino consiste em que a sua maior obra, nunca depois excedida nem até egualada, Santa Sophia de Constantinopla, parece ter apparecido como um facto esporadico e uma creação inspirada dos architectos gregos; a verdade é, porém, que o Estylo Byzantino não fugiu á lei de todas as producções humanas, tendo uma formação lenta e evolutiva. Existem e existiram edificios, que constituem verdadeiros marcos milliarios d'esta evolução. O genio dos constructores de Santa Sophia, apenas a precipitou, dando-lhe a apparencia de uma verdadeira revolução nos estylos architectonicos. É logico suppôr que o periodo de verdadeira constituição do Estylo Byzantino deve ter começado quando Constantinopla foi declarada capital do Imperio. O desenvolvimento de uma nova phase da arte exige sempre elementos de actividade social e de riqueza, que só poderam reunir-se quando a administração geral do Imperio concentrou no oriente todas as forças creadoras, com grave sacrificio do mundo occidental. Nos principios do seculo VI, o estylo achava-se constituido, offerecendo a sua mais perfeita expressão no templo de Justiniano. O apparecimento, relativamente rapido, d'esta obra de arte tão perfeita e rica do Estylo Byzantino tinha de exercer forçosamente profunda influencia sobre a arte occidental. Não só as egrejas e as construcções byzantinas começaram logo a elevar-se nos antigos dominios do Estylo Latino e a invadir a Italia, na parte que então constituia um Exarchado do Imperio do Oriente, mas foi rapida a dispersão d'este novo estylo, principalmente no sul da Europa. Muitas causas especiaes do tempo facilitaram esta dispersão, que reinou na Italia, no sul da França e chegou até á Allemanha, as duas nações que mais tarde deviam cobrir-se de monumentos romanicos e ogivaes. As relações de todas as ordens, entre o occidente e o oriente, eram activas n'esses seculos. Commerciaes havia-as constantes, porque as grandes caravanas, que iam ao Extremo Oriente permutar mercadorias, atravessavam a extensa zona, onde florescia o Estylo Byzantino, tendo um dos seus grandes _caravansarás_ em Constantinopla. Além d'isso, o espirito religioso activava o movimento dos peregrinos occidentaes para os logares santos na Palestina, onde florescia o Estylo Byzantino, até no proprio templo do Santo Sepulchro de Jerusalem, que serviu depois de exemplar a tantos outros. As descripções, sempre um pouco imaginosas dos viajantes, adornavam o novo estylo de magnificencias e maravilhas, que segundo vimos eram bem merecidas. Estas causas, só por si explicam a influencia da ornamentação oriental sobre a arte do occidente; a acção, porém, tinha de ser mais completa. Assim, ainda durante a existencia do Imperio ostrogodo de Theodorico, no curto reinado de sua filha Amalasonte, o Estylo Byzantino começou a invadir a Italia. A Egreja de S. Vital de Ravenna, capital do reino godo, foi erecta em 534, epocha em que duravam os trabalhos de Santa Sophia. A Cathedral de Parenzo, cidade maritima da costa oriental do Adriatico, seguiu-se-lhe em 540. Como era natural, a invasão fez-se primeiro pelas grandes cidades litoraes d'este mar, em constantes relações com o mundo oriental. O facto historico culminante, que facilitou a dispersão do Estylo Byzantino, foi todavia a constituição do Exarchado em Italia. Por morte de Theodorico, sua filha Amalasonte assumiu a regencia em nome do filho Athalarico. Esta princeza herdára algumas das grandes qualidades de seu pae e entre ellas accentuadas tendencias para a civilisação classica, então representada pelo Imperio Byzantino. A morte do herdeiro da corôa entregou-lhe a herança paterna, que a nova imperatriz partilhou com Theodato, seu primo, transigindo assim com a surda irritação dos guerreiros ostrogodos. O assassinio da princeza foi o resultado da transigencia. Então, a desordem e a dissolução apoderaram-se dos estados de Theodorico. Justiniano aproveitou o ensejo, pensando em restaurar o antigo Imperio de Constantino. Belisario conquistou o sul da Italia e avançou até Ravenna, que por momentos pertenceu á corôa do oriente. As constantes intrigas da côrte byzantina sacrificaram em parte a obra do heroico general de Justiniano, que então incumbiu o persa Narsés de recomeçar a conquista. O famoso eunucho, valido do imperador, em victoriosas companhas contra os godos conseguiu vencel-os, constituindo o ducado de Italia, reduzida a provincia do Imperio Byzantino. A morte de Justiniano levou ao throno Justino II, espirito fraco, dominado pela imperatriz Sophia, que odiava o heroico eunucho Narsés. Na côrte de Constantinopla ferveram, pois, as intrigas ambiciosas contra o duque de Italia, a quem a propria imperatriz não poupava desgostos e motejos, não se atrevendo a atacar de face o poderoso exarcha e habil administrador. Uma phrase sangrenta fez trasbordar a vingança de Narsés. Dissera a imperatriz, referindo-se ironicamente ás desgraçadas qualidades physicas do duque de Italia, que _elle era um homem digno de fazer parte de um grupo de fiandeiras_. A resposta do eunucho não se fez esperar. Sentindo a morte proxima, Narsés, incitou entre os lombardos, poderosa e guerreira nação germanica que habitava a Pannonia, a idéa da conquista da Italia. Assim, elles, em 568 atravessando os Alpes, precipitaram-se sobre a peninsula, conquistando em poucos annos parte importante da região septentrional, que ainda hoje conserva o nome de Lombardia. O Imperio Byzantino, privado de grandes generaes e profundamente corroido por vicios e intrigas, conseguiu apenas detel-os na marcha para o sul; ficando a Italia dividida entre duas poderosas influencias: ao norte, o reino lombardo; ao sul, as provincias do Exarchado de Ravenna, que durou até meiados do seculo VIII, em que foi, emfim, destruido e englobado no novo reino germanico. Assim, durante dois seculos, a civilisação e a arte byzantinas estiveram em contacto directo e intimo com uma das mais intelligentes nações barbaras, das que invadiram o solo da peninsula italica. As relações entre os Chefes dos Estados tambem eram frequentes. O Imperio do Oriente tinha para os reis semi-barbaros singular prestigio, pelas tradições como legitimo representante do grande poderio romano, que aliás os seus antecessores haviam destruido, pela civilisação relativa e, emfim, pelas immensas riquezas e pelo luxo asiatico da côrte byzantina. As tradições gloriosas e as riquezas foram e hão de ser em todos os tempos motivos de admiração, de respeito e até de culto para os espiritos inferiores. Assim, muitos chefes barbaros solicitavam a nomeação de _patricios romanos_, ou acceitavam-n'a como grande honra; com effeito, foram _patricios_ Theodorico, rei da Italia, e Clovis, rei de França. Estas relações diplomaticas do tempo não deviam contribuir pouco para a propagação da influencia da arte byzantina, nas nações occidentaes da Europa. O movimento logico do ardente mysticismo christão facilitou, ainda, esta propagação em grande escala. Desde os primeiros tempos do Christianismo os seus mais ferventes e menos ignorantes proselytos deviam considerar a representação material das idéas sagradas, de Deus principalmente, quasi uma verdadeira profanação. Era a consequencia logica de doutrinas muito espiritualistas na essencia. Assim acontecera, tambem, que os chefes do povo hebreu, Moysés entre outros, haviam mais de uma vez destruido os idolos, deante dos quaes se prostrava o povo. O Mosaismo e o Islamismo, duas religiões de forte essencia espiritual, não admittiram nunca a representação material da divindade. No rigor da logica o Christianismo devia chegar, e chegou de facto, a identicas conclusões. D'aqui proveiu a famosa seita dos _Iconoclastas_, no fim do seculo V já tão poderosa que teve por chefe ou adepto, pelo menos, o Imperador Zenon. Estes _destruidores de imagens_, que as perseguiam com o terrivel furor religioso, atravessaram quasi quatro seculos no Oriente, chegando a invadir a propria Italia. No seculo VIII estes verdadeiros barbaros eram poderosos. Condemnados por Concilios regulares, embora protegidos por alguns imperadores, vieram só a extinguir-se no seculo IX. N'este periodo extenso as artes byzantinas, pelo menos a esculptura e a pintura, soffreram rudes perseguições nas suas obras, o que promoveu um exodo dos respectivos artistas para o occidente, onde a seita foi sempre menos poderosa e nociva. Emfim, as Cruzadas no fim do seculo XI levaram para o Oriente centenas de milhares de homens de relativa instrucção, que conhecendo apenas a modesta arte occidental, se extasiavam deante dos primores e da magnificencia, que iam encontrando no seu caminho, desde Constantinopla até á Palestina. Foram todas estas causas, que em varias epochas facilitaram a dispersão da arte byzantina no occidente. Assim, o Estylo Byzantino logo no seculo VI começou a espalhar-se na parte septentrional da Italia, alargando-se depois successivamente pela Lombardia. A influencia da ornamentação byzantina em mosaicos, pinturas e esculpturas, que já anteriormente se manifestára sobre o Estylo Latino e que os artistas, emigrados do oriente pelas perseguições dos iconoclastas, haviam accentuado, achou-se agora fortalecida pelos proprios edificios, cujos fundamentaes elementos architectonicos eram bem superiores em majestade, grandeza e duração aos correspondentes no primitivo estylo christão, nascido no occidente. Apesar das qualidades do seu emulo, o Estylo Latino occidental offereceu resistencia, e não foi tão facilmente vencido como no oriente. Na Italia fôra creado e se espalhára com profusão, correspondia ao _meio_ natural e social; era, emfim, o producto do genio classico romano e o representante de antigas tradições. Foi sempre singular a resistencia tenaz d'esse antigo espirito classico romano, que por longos seculos viveu sobre o solo da Italia, sem duvida conservado pela hereditariedade do sangue e pelas tradições vivas dos antigos monumentos. Assim, o Estylo Romanico não penetrou facilmente no sul de Italia e o Ogival, cuja expansão foi enorme por toda a parte, se a invadiu, teve de transigir e amoldar-se ás circumstancias. Entrou na Lombardia, elevando um dos melhores edificios em Milão; mas, a partir de Florença, onde na opinião dos proprios italianos começa a verdadeira Italia, o ogival tomou caracteres muito especiaes e transigiu com o espirito classico. O auctor d'este livro teve ensejo de apreciar bem este facto, quando percorreu aquelle paiz. Alem d'isso, o movimento artistico da Renascença terminado no seculo XVI, que representa um verdadeiro retrocesso ás origens, isto é, ás idéas e aos estylos classicos, foi preparado e realisado em Italia, exclusivamente por elementos italianos, quer fossem escriptores, quer amadores ou artistas. Assim, a grande vitalidade do espirito classico no solo da Italia foi origem de muitos factos importantes na Historia da Arte, sendo, segundo julgamos, tambem a causa da tenaz resistencia do Estylo Latino em face do poderoso invasor oriental. Emquanto o Estylo Byzantino realisava a invasão da Italia, durante o seculo VI, elevando as suas construcções ao lado das latinas, as leis historicas preparavam as bases das futuras constituições sociaes. O seculo V fôra o periodo das invasões na Italia, nas Gallias e na Iberia. Na Italia, que mais nos interessa porque foi no occidente o fóco da arte, viu-se passarem os visigodos de Alarico, os suévos de Rodagués, os hunos de Atila e os herulos de Odoacro, como rudes e barbaros conquistadores; mas as conquistas succediam-se, deixando ruinas e miserias, sem crearem organisações sociaes estaveis. Como verdadeiras ondas rebentavam no solo da peninsula, espraiando-se em grandes côrsos, que tão rapidamente quasi se retiravam, como se haviam formado. Apenas, os herulos de Odoacro, revoltados contra Augustulo, o ultimo imperador do occidente, por curtos annos formaram uma vacillante monarchia, destruida no fim do seculo V pelos ostrogodos de Theodorico. O proprio Imperio ostrogodo tivera ephemera duração. O genio indiscutivel do grande chefe imprimira-lhe, segundo vimos, certa unidade e brilhante grandeza; mas a fusão das raças não se déra. O conquistador era intelligente e humano, um espirito liberal e justo, civilisado na côrte de Byzancio; mas bem na essencia Theodorico ficára sempre um conquistador, confiando mais na força das armas do que na acção lenta e segura da catechese politica. Por isso, conservára os seus guerreiros isolados quanto possivel da civilisação classica, constituindo uma verdadeira casta. A morte de Theodorico foi o signal da dissolução dos seus Estados, sendo pouco depois d'ella conquistada a Italia por Belisario e Narsés, os habeis generaes de Justiniano. No seculo VI começou na realidade a constituição de nacionalidades mais fortes e duradouras. Assim, ao expirar do seculo V, organisou-se no occidente da Europa, sob o energico governo de Clovis, convertido ao Christianismo, a monarchia dos frankos, origem do Imperio de Carlos Magno e da actual França; e nos meiados do seculo VI, como já vimos, a Italia achava-se dividida em duas grandes nacionalidades, ao norte a monarchia lombarda, ao sul as provincias byzantinas do Exarchado. Os lombardos de Alboino eram, todavia, mais rudes do que os godos de Theodorico; ou, pelo menos, o chefe lombardo não possuia a malleabilidade do genio, a illustração e a grandeza de caracter do conquistador godo. Os povos vencidos foram no principio tratados com maior egoismo e crueldade. As exacções assumiram proporções violentas, porque o espirito selvagem e guerreiro das hordas lombardas não era temperado pelo caracter superior e prestigioso de Alboino. A estabilidade relativa da conquista lombarda, que durou desde 568 até 774, anno em que foi destruida por Carlos Magno, e sem duvida as qualidades intellectuaes dos novos invasores permittiram a lenta fusão da raça vencida e da vencedora. Os riquissimos terrenos da Lombardia foram de novo arroteados pelos fortes e energicos homens do norte. A abjuração do arianismo pelos vencedores, que abraçaram o Christianismo orthodoxo dos vencidos, facilitou as relações sociaes. A combinação dos sangues creou a pouco e pouco novas gerações, em que se casaram as qualidades animicas e ethnicas dos vencedores e dos vencidos, recebendo de uns o espirito da liberdade e o valor guerreiro, que haviam perdido os romanos da decadencia, de outros a cultura intellectual e moral, que não podiam possuir os barbaros do norte, por melhores que fossem as suas tendencias e disposições. A fusão das raças produziu, assim, uma sociedade mais ou menos homogenea, fundada na unidade da religião e na constituição de uma lingua commum, primeiro esboço das futuras sociedades, que deviam resultar da alliança dos tres espiritos creadores, o christão, o classico e o barbaro. A ordem e a sciencia, o commercio e a industria começaram, pois, a reflorir na Lombardia, apesar das continuas guerras que os seus habitantes sustentavam, principalmente com o Exarchado, por elles emfim destruido em meiados do seculo VIII. N'este cadinho, se nos consentem a expressão, a arte oriental e a occidental em contacto não podiam deixar de produzir uma liga especial, sob o calor de novas idéas e sentimentos, nascidos do rejuvenescimento de uma importante fracção da Humanidade. A origem do Estylo Romanico deve ser attribuida a estes factos historicos, embora n'outros pontos e n'outros seculos se dessem circumstancias similhantes, que facilitaram tambem a evolução e a dispersão d'este estylo. Assim, é certo que a constituição da monarchia franka se deve considerar no occidente o resultado equivalente da acção das leis historicas, e sabe-se que durante a dynastia merovingiana, depois da conversão de Clovis, se elevaram muitas construcções; mas os lombardos encontraram-se na posição singular e favoravel de contacto com a arte byzantina, cujos edificios e producções se elevavam nos seus proprios Estados. Esta situação especial envolve logicamente mais directa e proficua influencia na formação de novas physionomias da arte. Alem d'isso, os lombardos manifestaram-se sempre bons architectos e excellentes constructores, quer o fossem por disposições proprias de raça ou herança do sangue romano, quer o exemplo das construcções existentes lhes desenvolvessem e aperfeiçoassem estas qualidades. Assim, quando a monarchia lombarda foi destruida por Carlos Magno e reduzida a provincia do Imperio, os artistas lombardos espalharam-se pelos restantes Estados imperiaes, sendo considerados bons architectos e habeis constructores. Ainda hoje a expressão Estylo Lombardo, applicada a uma feição do romanico, attesta a grande influencia d'estes artistas n'este periodo da evolução da arte. Difficil será, sem duvida, tentar a fixação de datas, embora seculares, para os factos da genese do Estylo Romanico primario. N'estes remotos seculos por completo fallecem os documentos e os melhores, os proprios monumentos coévos, em grande parte desappareceram pela acção de longa antiguidade e de muitas e profundas catastrophes, offerecendo os que existem duvidosa classificação. É indiscutivel, todavia, que esse periodo de transição existiu, porque entre o Estylo Latino primitivo e o Romanico secundario, constituido no seculo XI, as differenças manifestam-se tão radicaes que só as pôde explicar uma longa evolução. O Estylo Byzantino, em verdade, approxima-se mais do Romanico secundario em certos caracteres fundamentaes; mas ainda entre elles as respectivas physionomias manifestam-se tão distinctas, que envolvem um longo periodo intermedio de elaboração. Como as transformações biologicas e ethnicas das raças animaes exigem gerações successivas e numerosas de verdadeiros typos intermediarios, assim, entre os estylos christãos primitivos e o Estylo Romanico secundario é logica e necessaria a existencia de um periodo de transição. Alem d'isso, a comparação dos caracteres architectonicos demonstra que o Estylo Romanico secundario comprehende os de ambos os seus antecessores, constituindo não uma simples mistura de elementos diversos, mas em verdade uma sabia e harmonica combinação, que fixou uma feição especial da arte.[1] Assim, o Estylo Romanico recebeu do Latino as disposições geraes das fachadas e os narthexs, a fórma interior das egrejas nas naves, nos transeptos e nas absides, os triforios, as cryptas, os altares, os ciborios, as tribunas e outras disposições particulares archictetonicas e ornamentaes; e do Byzantino as abobadas e as cupulas, os pilares massiços e as grossas columnas, os pesados e variados capiteis, as arcadas de volta inteira, os arcos geminados e sobretudo a variedade e riqueza da ornamentação. Quando começou a manifestar-se essa transformação, que constitue o periodo do Estylo Latino de transição, ou o Estylo Romanico primario? Em geral, as maiores creações do espirito humano, coincidem com os grandes movimentos historicos. O marasmo politico suffoca a actividade intellectual e entibia a energia da alma; escravisa e annulla o pensamento, estancando-lhe as forças creadoras; substitue os grandes ideaes pelos pequenos interesses, as nobres ambições pelo sordido egoismo; emfim, reduz o animal humano a um automato, que apenas _sente_ a necessidade e o prazer de uma vida de sensações faceis e vulgares. Assim, vivem os chinezes ha milhares de annos, adormecidos dentro de uma formula social crystallisada na sciencia, na moral e na arte. A constituição do extenso e poderoso Imperio franko de Carlos Magno, em meiados do seculo VIII, principalmente depois da conquista do Reino Lombardo, póde considerar-se o inicio provavel do Estylo Romanico primario. Este grande facto politico, um dos maiores da Historia, deu, como é sabido, profundo impulso á civilisação, e sob o aspecto da arte disseminou-a pelas vastas provincias de um vasto Imperio, habil e energicamente governado por um dos maiores espiritos, com que até hoje se inflorou a Humanidade. Foi então que os architectos e constructores lombardos, espalhando-se no occidente e no centro da Europa, encontraram, sem duvida, excellente atmosphera para desenvolver as singulares aptidões do seu talento e a profunda sciencia de longa pratica, creando novos elementos e novas combinações architectonicas, que prepararam o Estylo Romanico secundario, a phase pura e perfeita d'este estylo. Esta revolução na esthetica nasceu indiscutivelmente da acção de um novo espirito creador, sem a influencia do qual a arte no occidente teria crystallisado, permanecendo quasi invariavel por longos seculos, como succedeu no oriente ao Estylo Byzantino, que apenas gerou o Estylo Russo, cuja physionomia actual conserva ainda accentuados e caracteristicos os traços, embora orientalisados, do seu antecessor. Esse espirito innovador, que modificou a politica e a moral das antigas sociedades, esse forte e benefico movimento, que agitou e saneou o pantano do mundo classico, esse espirito revolucionario, que das montanhas da philosophia, da sciencia e da arte classicas fez brotar poderosos mananciaes de novas idéas e de novas fórmas, foi o elemento barbaro. A sua grande qualidade, o amor pela liberdade do pensamento, foi o sangue forte e generoso, que veiu dar calor e vida á cançada e anemica compleição classica. Na arte o seu trabalho de regeneração, atravessando as phases do periodo romanico, devia produzir a definitiva e magnifica concepção do mais perfeito estylo religioso conhecido, o Estylo Ogival. PARTE TERCEIRA OS ESTYLOS CHRISTÃOS DEFINITIVOS XI SECULO AO XV SECULO CAPITULO PRIMEIRO SYNTHESE SOCIAL DOS SECULOS XI E XII Quando no anno de 814 da era de Christo morreu Carlos Magno, o seu vasto Imperio, abrangendo a França, a Allemanha, parte da Austro-Hungria, a Hespanha até ao Ebro e a Italia quasi toda até ao Volturno, entrou em dissolução, tendo o destino fatal de todas as tentativas de restauração do antigo poder romano. A unidade apparente, que reinava entre raças e nações differentes, proviera do prestigio pessoal de Carlos Magno, do seu talento administrativo, da bondade do seu caracter, em summa da elevação intellectual e moral de um homem, que imprimiu ao movimento do espirito humano, tão abatido n'aquelles tempos, um vigoroso impulso, afrouxado nos seculos seguintes, mas, ainda assim, não perdido para a Humanidade. As antigas e inuteis discussões byzantinas tomaram, com effeito, novo caracter especial, constituindo a philosophia da Edade-Media, a Escholastica, que na realidade nasceu nas academias e nas escolas, creadas por Carlos Magno. Este movimento intellectual é interessantissimo, principalmente nas duas primitivas phases: a primeira sob a influencia do idealismo de Platão, subordinando a philosophia, isto é, a sciencia, á theologia; a segunda, sob a acção do realismo de Aristoteles, durante a qual a sciencia e a theologia caminham a par. O seculo XIII, como veremos, foi o da lucta mais activa entre _realistas_ e _nominalistas_, entre as influencias de Aristoteles e de Platão, lucta formidavel, nem sempre incruenta porque teve perseguidoras e martyres, sendo uma das origens da reforma religiosa do seculo XVI e do movimento philosophico e positivo das sciencias nos seculos seguintes. O Imperio de Carlos Magno constituiu, pois, um periodo curto e brilhante depois d'esse espaço obscuro e terrivel das invasões, em que tantos povos de origem differente se precipitaram sobre o esqueleto do antigo mundo romano. Sob a acção poderosa de Carlos Magno, a unidade administrativa do Imperio podia considerar-se completa. Os delegados do poder central, duques, condes, vigarios e outros funccionarios, governavam os diversos Estados, quasi reduzidos a provincias, em nome do imperador, em quem residia o poder supremo indiscutivel e respeitado. Já no tempo de Carlos Magno, comtudo, o espirito de rebellião lavrava entre estes funccionarios, cujo caracter germanico, guerreiro e independente, altivo e ambicioso do poder, os levava a pensar na hereditariedade dos cargos e na permanencia das funcções. O prestigio pessoal do imperador contrariára-lhes os designios, que tomaram vulto e animo depois da sua morte. Estas tendencias definem a origem e são a causa da organisação do _feudalismo_, constituido no seculo XIII, em que tambem se manifesta o primeiro periodo do Estylo Ogival. Os filhos e netos de Carlos Magno não lhe haviam herdado nem o prestigio nem as qualidades pessoal. Tibios e ambiciosos, em continuas guerras, enfraqueciam-se mutuamente, deixando engrossar a idéa de independencia, que sempre germinára entre os delegados imperiaes. Assim, o fraco Carlos-o-Calvo, rei de França, reconheceu aos senhores, que o eram já de facto, o direito da hereditariedade e certa independencia, na _Capitularia_ de 877, anno da sua morte, que define historicamente o começo do feudalismo. Ao mesmo tempo, nas classes sociaes inferiores, constituidas principalmente pelos vencidos e pelos pobres e trabalhadores, lavrava tambem o espirito da liberdade, animado pelo Christianismo e pelas tradições das antigas instituições romanas. A Republica excitára sempre a vida local. O Imperio, depois, restringira-a successivamente; conservando-lhe, apenas, as funcções indispensaveis para facilitar o exercicio do poder central. Esta acção, a decadencia dos costumes dos cidadãos dos ultimos tempos e as responsabilidades fiscaes dos municipios romanos, fizeram decaír as _curias_ da sua primitiva grandeza. É sabido que nos ultimos tempos do Imperio as funcções municipaes, consideradas de perigo e onerosas, não eram disputadas, como outr'ora; para obter os _curiales_, os imperadores viram-se forçados a obrigar os cidadãos a desempenharem estes cargos, com penas e multas correspondentes. O espirito communal, todavia, não se extinguira de todo nem com a depravação dos costumes romanos, nem com a conquista dos barbaros. No sul da França, por exemplo, mais livre das invasões, os antigos municipios romanos haviam-se conservado com maior ou menor pureza. Além d'isso, a tradição d'estas instituições locaes mantinha-se, e os seus principios existiam vivos, com o brilho das legislações theoricas, no antigo direito romano. É muito provavel, tambem, que o espirito de fraternidade e de solidariedade de certas classes romanas, como as dos artifices e dos operarios, tivesse atravessado o longo collapso do V ao X seculo. Pelo menos parece serem d'isto exemplo as associações _franco-maçonicas constructoras_, que tanta influencia tiveram na arte ogival e, a nosso ver, se não se filiam nas similares romanas, pelo menos derivam d'ellas, como exporemos a seu tempo, n'outro ponto d'este livro. Seja como for, julgamos que os dois principios, o _feudalismo_, nascido do espirito barbaro, e o movimento das _communas_, insufflado pelo espirito christão, sem duvida os agentes principaes da civilisação dos seculos XI ao XV, manifestaram as primeiras tentativas de evolução entre o Imperio de Carlos Magno e os começos do seculo XI, no qual na realidade começa a _Renascença,_ que se operou durante um longo periodo, com relampagos admiraveis nos seculos XIII e XVI, sobretudo sob o aspecto da arte. De facto, a Edade-Media parece dividida em dois periodos distinctos: o primeiro do seculo V ao seculo X, o das terriveis luctas entre os tres principios, o classico, o christão e o barbaro; o segundo periodo do seculo XI ao seculo XV, o da lenta combinação e fusão d'estes principios. No seculo V, a luz já quasi crepuscular do grandioso mundo classico perde-se na noute, longa e tempestuosa noute d'alguns seculos. A pallida aurora do mundo moderno começa a despontar a partir do seculo XI. Estes dois periodos são definidos por um facto historico interessante e de alguma importancia. O espirito mystico do Christianismo e as profundas miserias, soffridas pelo mundo romano logo após a victoria d'esta religião, geraram a lenda do _millenio_ periodo de mil annos durante o qual a humanidade dos vivos e os martyres e adeptos do Christianismo resuscitados gosariam, sob o proprio reinado de Jesus Christo, todas as felicidades e os maiores bens sobre a terra. O principio d'estes seculos de Justiça implicava logicamente o fim de um mundo cheio de dores e flagellos, que assim foi prefixado para o ultimo dia do seculo X. A superstição teve sempre grande presa sobre os espiritos ignorantes e fracos; julgue-se, pois, da influencia na Edade-Media d'esta prophecia, fundada em textos sagrados, tendo uma longa tradição e admittida por homens superiores, até por alguns papas. Nos fins do seculo X, a approximação d'este dia tremendo amortecera todas as expansões da actividade humana. Para que servia, com effeito, trabalhar, produzir, construir, fazer esforços, quando estava prestes o fim d'este mundo e o principio d'aquelle em que todos seriam eguaes e felizes, reinando sobre a terra a justiça e a felicidade sob o sceptro do proprio Christo?! Por isso, a historia descreve o collapso profundo e crescente, que se apoderou do mundo christão, quando se avisinhava esse dia de Juizo, tão admiravelmente traduzido pelo desconhecido poeta medieval de um dos mais bellos canticos da egreja: Dies irae, dies ille Solvent seculum in faville. N'esse dia um panico profundo envolveu todos os espiritos. As egrejas encheram-se de fieis, que esperavam a catastrophe entre prantos e rezas; ora, por uma doce ironia da natureza, a aurora do primeiro dia do seculo XI raiou esplendida. Para apreciar bem a importancia d'este facto, que hoje parece pueril, é preciso transportarmo-nos aos primitivos tempos da Edade-Media, avaliarmos a ignorancia extrema de todas as classes sociaes, com rarissimas excepções e essas escondidas principalmente nos conventos; apreciarmos, emfim, o espirito publico n'um tempo em que primava a idéa religiosa, não tendo outros competidores. A passagem do perigo imminente alliviou a alma humana, dando-lhe expansão ás faculdades creadoras e activando-lhe o exercicio do trabalho. Assim, o segundo periodo da Edade-Media é bem differente do primeiro. No seculo XI, a sociedade christã entrou n'uma evolução accentuada. O feudalismo achava-se quasi constituido. Esta nova organisação social espalhou-se pela superficie do antigo imperio de Carlos Magno. A terra, toda dividida em _feudos_, pertencia aos suzeranos; mas os _senhores_ tinham n'esses feudos quasi absolutos direitos de soberania, absorvidos a pouco e pouco aos reis, agora confinados em pequenos Estados propriamente seus. Em compensação, estes suzeranos recebiam dos feudatarios o respeito pessoal e a defeza da sua honra, auxilios prefixados em homens equipados a cargo dos mesmos feudatarios em caso de guerra e, emfim, rendas pecuniarias, ou certos impostos cobrados por conta do suzerano, que ás vezes tambem conservava o direito de justiça, funcção em geral independente dos senhores feudatarios. Esta organisação politica era, na realidade, uma federação de pequenos Estados, tendo um soberano ou imperador mais ou menos nominal. O direito reconhecido aos senhores feudaes de crearem dentro dos seus Estados novos feudos, disseminava as baronias e originava uma hierarchia de suzeranos secundarios, seculares e ecclesiasticos. Os grandes dignitarios da egreja, os bispos, eram senhores feudaes na sua diocese e suzeranos nos seus Estados. As grandes doações, feitas á egreja, haviam multiplicado o numero dos senhores feudaes ecclesiasticos, que chegaram a possuir em França e Inglaterra o quinto das terras, e o terço na Allemanha. N'esta organisação autonoma e guerreira sente-se claramente o espirito dos barbaros, que seculos antes haviam destruido o Imperio Romano. As violencias e as luctas intestinas entre estes senhores eram constantes e traduziam-lhes o caracter audacioso e cupido; o amor pelas aventuras e o desejo ardente do poder arremessavam-n'os uns sobre os outros, impondo-se reciprocamente pelo direito da força n'uma sociedade, onde eram mal reconhecidos pelos fortes e poderosos os principios do direito e os dictames da justiça. Assim, a egreja, em nome da religião, unica influencia energica sobre aquellas almas de bronze em corpos vestidos de ferro, procurou intervir, definindo com modestos resultados a _trégua de Deus_, a prohibição da lucta em certos dias da semana. Estas poderosas unidades guerreiras repousavam, como era logico, sobre a servidão das classes civis, principalmente das mais numerosas e pobres. Em verdade, o Christianismo tinha adoçado o caracter duro e barbaro da escravidão classica. No regimen feudal, a classe dos miseraveis, os _servos de gleba_, que em torno dos castellos agricultavam a terra e eram herdados como fazendo parte d'ella e sendo verdadeiros instrumentos de trabalho, tinha subido um pouco na escala da escravatura, cujos pontos culminantes se desenham no mundo classico e depois no moderno, quando se desenvolveu o infame trafico das raças de côr, consideradas inferiores ás brancas. O feudalismo, repassado pela religião christã, olhava-os como homens, sem direitos politicos e civis é certo; mas estava longe, muito longe ainda, de os considerar, como o _antigo regimen_, o das monarchias absolutas fundadas no Catholicismo, o fez depois, uma multidão de miseraveis, sem garantias, sem direitos e quasi sem familia, que os cynicos dos seculos XVII e XVIII consideraram massa _taillable, et corvéable à merci_. Assim, no segundo periodo da Edade-Media, pelo menos a grande maioria do povo--digamos a palavra--gozava de certas vantagens, que provinham dos dois espiritos em acção parallela: o germanico e o christão. A familia offerecia uma expressão mais elevada e perfeita. Na antiguidade o casamento era um contracto, na Edade-Media um sacramento, que ligava por toda a vida. O Christianismo consolidára a pedra angular das sociedades com a indissolubilidade do matrimonio. Depois, Jesus Christo encarnára-se no seio de uma mulher, a Virgem. O espirito germanico, acceitando estas doutrinas, trouxe a essa unidade da familia, onde o homem se completa, os seus caracteres de hombridade e de liberdade; o seu _ponto de honra_, emfim, que foi uma feroz creação moral do feudalismo, adoçada pelo Christianismo. Ainda foi o espirito germanico que implantou no mundo romano o julgamento pelos eguaes--pelos pares--origem do moderno jury. Na Edade-Media o imposto era admittido pelos contribuintes, o que envolvia _prévia_ consulta, nem sempre talvez respeitada, mas em summa reconhecida. A egreja, n'esse tempo ainda, conservava o principio electivo romano para as altas dignidades ecclesiasticas. Estes e outros principios temperavam um pouco a tyrannia feudal, e quasi todos elles desappareceram no regimen despotico das monarchias absolutas e da theocracia pontificia. As classes civis na Edade-Media agrupavam-se nos grandes centros, onde se mantinham as transacções e as industrias rudimentares do tempo, e nos pequenos burgos, povoações dispersas creadas naturalmente, ou facilitadas pelos senhores dos feudos, que davam guarida e protecção aos fugitivos dos feudos limitrophes; além d'isso, eram formadas por essa multidão de _servos de gleba_, que dispersos ou concentrados perto dos castellos, constituiam os verdadeiros agricultores, como os _sudras_ da India antiga. O movimento communal nascera naturalmente nos grandes centros, promovido pelas causas geraes, precedentemente apontadas. Demos n'este ponto idéa da essencia e constituição d'este movimento, em que tiveram acção importante os trabalhadores d'esse tempo, como teem nos tempos modernos os operarios industriaes na formação das futuras sociedades socialistas. A acção das associações, ou confraternidades operarias, na constituição das communas e a influencia que exerceu uma das mais poderosas, principalmente no periodo ogival, a dos _franco-maçons constructores_, obrigam-nos a abrir um parenthese para nos occuparmos das suas origens e dos seus fins. As origens provaveis estão nas associações romanas similares, ou por filiação directa e successiva, o que aliás não demonstra a historia no grande collapso do V ao X seculo, ou organisada sob a acção das tradições e das leis romanas na phase activa das construcções do primeiro e segundo periodo romanico, nos seculos XI e XII. Pelo primeiro ou pelo segundo processo, ou talvez por ambos, ninguem póde deixar de reconhecer a profunda similhança entre as duas associações: as romanas e as da Edade-Media. Já no tempo da Republica, havia em Roma um collegio de pedreiros, cuja existencia se prolongou durante o Imperio. Constituia uma verdadeira associação de classe no sentido moderno da expressão, composta de architectos, pedreiros e canteiros ligados pelos principios da confraternidade moral, mutuo auxilio e protecção ao trabalho. O Estado reconhecera-lhe a existencia. Possuia estatutos, propriedades, salas de reunião; era, emfim, uma instituição legal. No regimen interno, os associados, classificados mestres, companheiros e aprendizes, tinham assembléas deliberantes, secretarios, fundos proprios administrados por um thesoureiro, archivos, escolas, em summa, tudo que caracterisa uma poderosa associação. As praticas internas, mais ou menos secretas, empregavam symbolismos, entre os quaes figuravam as ferramentas dos respectivos officios. Esta vasta associação espalhava-se por todo o Imperio--ella, as suas lojas filiaes, ou outras associações congeneres--era privilegiada pelas leis; por exemplo, não pagava impostos. N'estas condições, abrangia uma area tão extensa que existem d'ella noticias historicas na Gallia e na Bretanha, onde provavelmente deu origem, com outras associações romanas, aos primitivos _guilds_, os antecessores dos poderosos Trade-Unions da Inglaterra moderna. Esta simples descripção, fornecida pelos escriptores romanos, manifesta similhanças tão singulares com os caracteres fundamentaes das grandes associações constructoras da _franco-maçonaria_, que pela filiação directa, o que nos parece mais plausivel, ou pela influencia da tradição, as mesmas idéas e os mesmos interesses approximaram estas classes de operarios, salvo as differenças provenientes da acção do Christianismo na Edade-Media. Dos seculos V ao X, espaço de tempo a que chamamos o primeiro periodo medieval, as miserias, as crises sociaes e a acção mystica do Christianismo haviam desenvolvido o espirito cenobitico e monastico, como necessidade da segurança e do descanço do corpo, e da paz e da liberdade do espirito. As sciencias e as artes refugiaram-se nos primeiros conventos. Em 529, por exemplo, S. Benedicto fundou a celebre ordem dos benedictinos, a cujas praticas religiosas foram impostas tambem, como obrigações scientificas, a conservação da sciencia classica e a copia dos manuscriptos. Esta ordem poderosissima, cujos trabalhos valiosos são conhecidos, espalhou-se por todo o orbe christão, constituindo grandes e historicas abbadias. Em volta d'estes conventos, que logicamente comprehendiam os architectos e os constructores dos mosteiros e dos templos, agruparam-se os operarios, organisando as primeiras associações christãs. Ora, a tradição e a essencia das grandes associaçães romanas deviam manter-se no espirito e nos archivos dos mosteiros d'esse tempo. Por esta fórma se explica a ligação, directa ou indirecta mas indiscutivel, das associações romanas e das medievaes. Assim, os primeiros traços historicos da _franco-maçonaria_ datam do seculo XI, isto é, do seculo em que se define o segundo periodo do Estylo Romanico. No seculo XIII, estas associações apparecem já independentes, com organisação completa e construindo as maiores cathedraes do Estylo Ogival. Teremos occasião de desenvolver o assumpto n'outra parte d'este livro. É indiscutivel que as corporações de artes e mesteres, embora bem rudimentares n'essa epocha, feitas á imagem e similhança das romanas, deviam constituir grandes forças revolucionarias nos primeiros movimentos communaes. A communa nasce, pois, do amor da liberdade, manifestação do espirito germanico, do principio das organisações methodicas e regulares, tradição do espirito romano, e dos sentimentos de caridade e mutuo auxilio, essencia intima do Christianismo. Em nenhum facto historico da Edade-Media se distingue mais clara e profundamente a acção parallela e harmonica das tres manifestações d'esse espirito, de que falavam as escolas de Anaxagoras e de Socrates. A communa, todavia, representava tambem a ligação dos fracos quasi inermes, contra o feudalismo guerreiro e potente. A natureza intima d'esta instituição democratica provém de todos estes principios. Os primeiros movimentos communaes accentuados datam do seculo XI, embora, como dissemos, as organisações municipaes romanas tivessem subsistido nos pontos do Imperio mais livres das invasões barbaras, por exemplo no sul da França. Nos seculos XII e XIII a organisação communal era já poderosa. Estas communhões, confederações, ou conjurações, segundo os nomes caracteristicos do tempo, haviam-se formado nos antigos centros, ou em centros novos. O seu principal fim, n'esses tempos de guerras e desastres, foi a defeza reciproca; a primeira obrigação dos cidadãos consistia em se reunirem armados, quando tocava a rebate o sino do campanario, em volta do qual se agrupava a communa, e d'onde esculcas vigilantes, noite e dia, espreitavam os perigos de subitas investidas. A organisação interna das communas nasceu logicamente d'estas agremiações primitivas, realisadas á sombra da egreja, que, ás vezes, constituia o ultimo baluarte das luctas entre os burguezes e a cavallaria feudal. Pela habilidade, pela pertinacia, aproveitando com astucia as occasiões favoraveis das luctas entre os senhores feudaes e a sua necessidade de dinheiro, as communas foram obtendo a pouco e pouco a organisação autonoma, umas livres constituindo quasi _feudos burguezes_, se nos consentem a expressão, outras sujeitas ao delegado do senhor ou do suzerano, o _preboste_; mas todas reunindo uma força respeitavel, depois aproveitada pelos senhores mais habeis para instrumento dos planos de restauração da unidade do poder real, que antecedem e preparam a formação das monarchias do direito divino. No seculo XIII as communas livres e do _prebostado_ eram numerosas e os seus direitos mais ou menos reconhecidos por contratos, entre os senhores feudaes e as agremiações burguezas. Libertadas dos antigos serviços pessoaes, tendo uma organisação administrativa independente e electiva, que envolvia, ás vezes, o direito de justiça, em qualquer caso repousando sobre o julgamento dos _pares_, livres de tributos arbitrarios substituidos por contribuições fixas, as communas manifestam n'este seculo certa unidade de organisação e os caracteres de liberdade e de vida locaes. Taes foram, descriptas na essencia e em rapidos traços, as duas forças, o feudalismo e as communas, que fizeram a historia do segundo periodo da Edade-Media. N'este meio social, se a ignorancia era profunda, as sciencias e as artes davam os primeiros passos. A Escholastica, nascida com o Imperador Carlos Magno, depois da morte de Alcuino e de Engenhard, perdera o brilho que attingira nas escolas e academias imperiaes. Revive no seculo XI, em que Abelard, celebre pelos seus amores com Heloisa, lhe imprime um vigoroso impulso, do qual resultará o grande movimento Escholastico do seculo XIII, com as figuras primaciaes de S. Thomás de Aquino, o auctor da Summula Theologica, e de Roger Bacon, o sabio universal e prophetico. Estes dois grandes homens representam duas escolas, a primeira que por evolução successiva devia produzir a theologia e a metaphysica, a segunda que originaria o methodo experimental e é a essencia positiva das sciencias modernas. No seculo XI começam tambem as guerras religiosas, o embate das grandas forças do islamismo, accumuladas ao sul da Europa, e do Christianismo, occupando o centro e o norte. A primeira lucta corpo a corpo, travada nos campos da Palestina, constituiu a Cruzada do anno de 1096. O feudalismo move-se em peso e 600:000 guerreiros reunem-se em Constantinopla, ponto de partida. As populações servis da Europa christã respiram, alliviadas d'esta força tremenda, que vae a Jerusalem libertar o Santo Sepulcro. As fileiras rareadas do feudalismo facilitam a constituição communal. Alem d'isso, o movimento das Cruzadas, que dura dois seculos, activa as relações de todas as ordens com o Oriente, põe as nações occidentaes em mais directa communicação com a arte byzantina, que tanta influencia tivera já sobre o Estylo Latino, e contribue poderosamente para a riqueza e dispersão dos Estylos Romanico e Ogival. N'este pequeno quadro dos seculos XI e XII pretendemos definir o _meio social_, em que se desenvolveram os mais completos estylos da arte christã. A pintura é incompleta, mas um trabalho d'esta natureza não se presta a maiores desenvolvimentos historicos. Os necessarios fal-os-emos tratando dos Estylos Romanico e Ogival. N'este ponto, basta notar que o espirito humano teve rapida e ascensional evolução nos dois seculos XI e XII, o periodo do Estylo Romanico, e que o seculo XIII representa na historia uma phrase brilhante, um relampago da Renascença, em que principia o periodo ogival. CAPITULO SEGUNDO ESPIRITO E CARACTERES DO ESTYLO ROMANICO Os _meios_ sociaes em que se formaram os Estylos Latino e Byzantino descrevemol-os, com rapidos traços, em anteriores capitulos. Seguindo o methodo adoptado, apreciámos as circumstancias historicas em que se operou a fusão d'esses estylos e fizemos depois o quadro do estado social dos seculos XI e XII, periodos medios durante os quaes se definiram as duas feições do Estylo Romanico, o da constituição perfeita e o da transição para o Estylo Ogival. D'estes quadros, se embora curtos ficaram perfeitos, devemos tirar conclusões geraes. A fusão dos tres espiritos, o classico, o germanico e o christão, está quasi realisada. A homogeneidade do pensamento prepara a das sociedades. É a aurora do mundo moderno, que desponta ha oito seculos. São enormes os dias da historia da Humanidade; duram por longo tempo, como por myriades de seculos se contam os da historia da Natureza. O espirito da liberdade começa o seu caminho, nem sempre directo e facil mas constante e orientado, para as instituições modernas. Essa força poderosa, a liberdade do pensamento, vae engrandecer as antigas sciencias, crear outras novas e, como a arte é uma sciencia, engrandecel-a tambem em todos os ramos, refundindo a antiga esthetica, como transformou a philosophia classica. A tendencia para a ordem social produz a riqueza, a relativa instrucção desenvolve o gosto, elementos que constituem a melhor atmosphera do trabalho intellectual e da sua applicação pratica. As sciencias e as artes saem dos conventos, onde a barbarismo dos primeiros seculos as obrigára a procurar refugio. Os senhores fazem os seus votos e cumprem-n'os, elevando templos, e constróem castellos e palacios nos seus Estados. As communas nascentes edificam os seus campanarios e tambem os seus muros e fortalezas. A emulação estabelece-se. Os pequenos tyrannos até procuram salvar as almas, mercadejando com Deus e cobrindo o sangue dos assassinios e as torpezas dos actos com templos admiraveis. Sirva de exemplo a grande Cathedral de Milão, construida em 1386 por João Galeas Visconti, duque de Milão, um dos maiores malvados do seu tempo, aliás bem fertil em individualidades d'esta especie, dispersas por toda a Europa feudal. O Christianismo domina sem rival; para elle começára tambem a unidade que teve depois n'outros seculos. Chame-se Catholicismo, religião reformada ou orthodoxa grega, é sempre o mesmo espirito tendo acção identica sobre os destinos do orbe christão, que nós e os hespanhoes havemos de alargar mais tarde, descobrindo os mais longinquos confins do mundo. Este bello movimento do espirito humano, iniciado nos seculos XI e XII, avigora-se no seculo XIII, cuja atmosphera facilitou a formação do Estylo Ogival, aquelle que até hoje produziu, em menos tempo, a maior quantidade de monumentos de todas as ordens, admiraveis manifestações de grandeza e de qualidades de arte. Agora, porém, circumscrevamos os nossos raciocinios ao Estylo Romanico secundario e ao terciario, chamado de transição, porque n'elle, durante o seculo XII, se opera a passagem para o Estylo Ogival. As grandes provincias occidentaes do Imperio Romano, a Gallia, a Iberia, a Bretanha, haviam sido devastadas pelas invasões germanicas; a propria Italia, como vimos, soffrera os maiores flagellos, perdera primeiro a hegemonia e depois fôra arrancada á corôa imperial do oriente. A miseria era extrema em toda a parte. Na Italia, por exemplo, no principio do seculo VI, S. Benedicto retirava-se para Subiaco, a cem kilometros de Roma, para n'este _vasto deserto_ levar vida contemplativa e ascetica, creando depois com os adherentes, que dia a dia se agrupavam em volta d'elle, a celebre ordem dos Benedictinos. Este estado social, perigoso e incerto, e o proprio mysticismo da religião christã crearam as primeiras associações religiosas, que satisfaziam ás necessidades do espirito e á segurança e ao socego dos homens, que não andavam envolvidos nas tremendas luctas do tempo. Taes são na essencia as origens das ordens religiosas, que, a pouco e pouco, principalmente depois das Cruzadas, se organisaram regularmente. N'estas associações se refugiaram a sciencia, a philosophia e a arte, que precisam para boa cultura o socego do corpo e a tranquillidade do espirito. Algumas ordens religiosas, como as dos Benedictinos, tinham nos seus estatutos escriptos, além de regras e praticas religiosas, obrigações de caracter scientifico; ora, esta ordem teve, como é sabido, uma expansão enorme e rapida, depois da fundação, no seculo VI, do primeiro mosteiro em Monte Cassino. De facto, esta poderosa e sabia associação espalhou-se pelo occidente, dando origem a abbadias que ainda hoje teem nome na historia: em França as de Cluny e Citeaux, construidas nos seculos X e XI, na Allemanha as de Ratisbonne e Salsburg, em Inglaterra as de York e de Westminster, para não citar ainda mais outras. Tambem, nos ultimos seculos do primeiro periodo da Edade-Media até ao principio do seculo XI, se formou em Italia a associação civil dos _irmãos pontifices_, que depois se constituiu em ordem religiosa; os seus fins consistiam em construir e reparar pontes, facilitando assim o caminho das peregrinações, que se dirigiam aos logares santos e a outros pontos de veneração christã. A existencia d'estas associações religiosas exigia a construcção de grandes edificios, para a vida em communidade, e a da egreja para os exercicios divinos. Os primeiros associados em Christo foram assim, logicamente, os architectos e constructores dos proprios templos; quasi os unicos quando as miserias da sociedade se accentuaram ainda mais nos seguintes seculos. Em volta dos conventos e das egrejas em construcção, agrupavam-se os operarios, os restos das antigas associações romanas, talvez, ou pelo menos gremios nascentes que mais tarde deviam dar origem á _franco-maçonaria_. Assim, ao lado da sociedade religiosa constituia-se outra associação civil, que os proprios superiores ou abbades cultivavam pela sciencia e pela religião, organisando-as e não desdenhando a honra de fazer parte d'estas corporações de artes e officios. O movimento iconoclasta favorecia estas organisações, trazendo artistas experimentados do oriente, que no occidente procuravam o trabalho e a protecção dos conventos. Entre os grandes serviços que o Christianismo prestou á Humanidade, durante a Edade-Media, não foi este o menos importante: conservar a sciencia e a philosophia classica e desenvolver novas feições estheticas. Assim correram as cousas até ao seculo IX, quando sobreveiu a grande invasão dos normandos, que, descendo do norte, infestaram o occidente da Europa, a França e principalmente a Bretanha. Estes grandes _piratas_ do mar, que _as tempestades levavam aonde elles queriam ir_, assolavam, saqueavam e queimavam tudo na sua passagem, mais sequiosos de presa e mais brutos de sentimentos do que os proprios hunos de Atilla. A pouco e pouco, é certo, uma civilisação superior infiltrou-se-lhes no sangue e adoçou-lhes os costumes selvagens; mas os grandes males estavam feitos e era indispensavel reconstruir os edificios, as egrejas e os conventos, cujas ruinas, ainda negras do fumo dos incendios, attestavam a brutalidade dos novos invasores. Os primeiros constructores christãos tinham encontrado edificios feitos, as basilicas; apropriaram-se d'ellas, imitaram-n'as por toda a parte, saqueando as riquezas dos antigos templos classicos para as adornar. Agora, os architectos occidentaes, os frades principalmente, encontravam-se em circumstancias differentes. As necessidades do culto tinham modificado as egrejas, embora conservando-lhes a antiga feição; a estabilidade das associações religiosas manifestava outras exigencias na duração dos edificios. O tempo e os flagellos da guerra haviam esgotado os thesouros, d'onde os antigos architectos tinham tirado a ornamentação dos templos primitivos; emfim, ao novo Estylo Byzantino, espalhado e conhecido no occidente, offerecia-se campo largo e aberto, onde a sua influencia se podia exercer com grande actividade. Todas estas condições especiaes tendiam a imprimir novos caracteres ás construcções architectonicas. A solidez do edificio e a sua maior duração envolviam o problema da natureza da cobertura. Os novos constructores resolveram-n'o empregando a _abobada_, que fôra excluida das construcções primitivas do Estylo Latino e tinha sido raras vezes usada no Estylo Romanico primario. A abobada de volta inteira ou abatida era muito usada em Roma; mas os edificios escolhidos para egrejas ou para modelos dos templos do Estylo Latino, as basilicas, não a tinham, nem a comportavam, dadas as condições de estabilidade e de espessura dos muros, ou das columnas, sobre as quaes repousava a cobertura. A tradição, principalmente em materia religiosa, tem sempre grande força; por isso, as tradições da basilica foram, n'este ponto, quasi absolutamente conservadas. Além d'isso, o Estylo Byzantino empregára a cupula de construcção difficil e a abobada em arco de circumferencia, facil de construir; estamos, pois, plenamente convencidos de que o caracter fundamental do Estylo Romanico secundario, a _abobada_, foi o resultado da influencia do novo estylo oriental. Mas o systema de cobertura abobadada exige, sem discussão, maior espessura de paredes, que lhe possam sustentar o peso e resistir ás pressões lateraes; por isso, os edificios romanicos apresentam estes caracteres, pela diminuição dos vãos abertos e pelo emprego de contrafortes e botareos. Aqui, são as proprias necessidades da construcção, que levam os architectos a adoptar os processos e as fórmas do Estylo Byzantino. Emfim, logicamente, se o arco de circumferencia predomina na parte principal do edificio, a harmonia do estylo indica-o para os outros elementos, portas, janelas e arcos, assim tambem traçados no Estylo Byzantino. Os architectos latinos, acceitando a ordenação classica, preoccuparam-se pouco com os ornamentos externos; pelo contrario, a interior das basilicas deparára-se-lhes rica e era-lhes facilitada pelos excellentes materiaes e productos artisticos, com que topavam por toda a parte, restos conservados dos precedentes estylos. Os architectos romanicos trabalhavam em mais perfeita liberdade de acção; mas tinham poucos thesouros artisticos para ornamentação das egrejas. Além d'isso, a solidez dos edificios e a sua longa duração provavel convidavam-n'os a estudar e a realisar combinações estheticas, que os embellezassem no exterior. A extensão do uso dos sinos e a invenção dos relogios exigiram a construcção de elevadas torres, que muitas vezes tambem, como já vimos, satisfaziam a necessidade de defeza, ultimo baluarte da communa, ou castello do convento. Era, pois, natural que essas torres symetricas, por exigencias estheticas e do clima ornadas de agulhas ou de elevados corucheus, se tornassem elementos principaes das fachadas mais ricas e grandiosas. Por esta fórma, muito logicamente, se deduzem os caracteres fundamentaes do Estylo Romanico, devidos uns a influencias dos anteriores estylos, outros a necessidades de construcção, a novos usos e ritos e até á acção do clima, que em certas circumstancias influe sobre a escolha e emprego dos materiaes e por elles na formação dos estylos. Expostas estas idéas geraes, que a nosso ver ligam as condições do _meio_ social dos seculos XI e XII, durante os quaes o espirito humano manifestou determinada phase, com os caracteres do estylo que é a sua feição especial nesse periodo da evolução da arte, desçamos a explanações indispensaveis para melhor distinguir e apreciar o Estylo Romanico secundario, que reinou no seculo XII. É bom notar que a classificação dos estylos por seculos é um pouco arbitraria; querendo, apenas, significar que dentro d'este espaço foi construida a maioria dos principaes monumentos de determinado estylo; o que não quer dizer que alguns o não fossem antes ou depois d'esse limite. Além d'isso, entre as differentes nações, que usaram do mesmo estylo, não se manifesta elle rigorosamente nos mesmos periodos, nem até offerece perfeita unidade e similhança de caracteres, que, pelo menos nos secundarios, apresentam differenças sensiveis provenientes de varias causas, entre as quaes o clima, os materiaes de construcção e as tradições locaes se devem considerar importantes. As disposições anteriores das egrejas romanicas offerecem muitas variantes. Algumas, talvez as mais numerosas, seguem o typo tradicional das basilicas; tres naves, cortadas pelo transepto, a do centro mais ampla e prolongada pelo côro, que n'este estylo se alongou mais, constituido por um corpo recto terminado pela abside. Como vimos, no primitivo Estylo Latino a abside formava o _presbyterio_, depois seguiam-se o altar e o côro, dispostos já na nave central; nas egrejas romanicas estes tres elementos foram introduzidos na abside alongada por paredes rectilineas, espaço a que o uso deu o nome geral de côro. Proveiu este engrandecimento de necessidades do culto, da melhor separação do sanctuario em relação ao templo e do uso generalisado dos orgãos. N'esta fórma, algumas vezes as naves lateraes avançam, ladeando o côro até á curva da abside, outras vezes circumdam-n'a por completo, constituindo a _charola, ou deambulatorio_, para o qual nos ultimos tempos se abriram capellas. Infelizmente, Portugal não possue exemplar algum completo e rico d'este estylo. Os que existem são pequenos, pobres e estragados por successivas restaurações antigas que lhes deturpam as fórmas e a ornamentação: mas a Sé de Lisboa, a que nos referiremos em capitulo especial, fornece exemplo das disposições particulares do Estylo Romanico. N'este plano, o mais habitual, desenha-se com nitidez a cruz latina, formada pela nave central e pelo côro, cortados pelo transepto. Em algumas egrejas nota-se o facto singular do eixo do côro, em vez de prolongar o da nave central, inclinar-se para a direita do observador. Esta anomalia foi attribuida a defeitos de construcção descuidada, vulgar nos edificios romanicos menos importantes, ou ao symbolismo da inclinação da cabeça de Jesus Christo, quando expirou sobre a cruz. A segunda hypothese parece-nos mais provavel. Outras egrejas offerecem a disposição octogonal, imitando n'este caso as byzantinas de S. Vital de Ravenna e do Santo Sepulcro de Jerusalem, que serviu de modelo, como era natural, a muitos templos, até com identica invocação. Existe n'este genero uma egreja, que nos parece constituir excepção muito singular, e onde em cada lado do octogono interior ha uma abside: a de S. Miguel de Entraigues, em França. Emfim, a planta circular, se não abunda, tem exemplos n'este estylo. Em geral, a porta ou as tres portas de entrada defrontam com o côro; mas egrejas existem de duas absides ou córos fronteiros, isto é, tendo dois transeptos nos extremos da nave central; n'este caso as entradas são lateraes. A cobertura empregada foi a abobada, principalmente a partir dos fins do seculo XI. Em data anterior nas egrejas subsistiram em geral as coberturas de madeira; este facto é muito provavel ter-se dado nas mais pobres e em regiões ricas de florestas. Assim, pareceu-nos que parte das egrejas das nossas povoações do norte foram do Estylo Romanico secundario ou do periodo de transição, restauradas no tempo ogival e no da renascença manuelina, de que teem em geral muitissimos elementos; ora, estas egrejas tiveram sempre, dada a espessura das paredes e das arcadas das naves, cobertura de madeira. Talvez possam dar d'isto exemplo duas pequenas egrejas excellentes, a de Caminha e a de Villa do Conde. Fazemos esta affirmação com reservas, porque entre nós as restaurações, em regra, foram tão más e radicaes, que mascararam a feição anterior dos edificios; mas que tenham sido do Estylo Romanico secundario ou do terciario, a sua cobertura foi sempre de madeira. A fórma das abobadas póde reduzir-se a dois typos: o de volta inteira, ou o que resulta da penetração reciproca de cylindros ou cones de base circular, constituindo as abobadas de arestas, ou as de arco de claustro. Estas fórmas são fundamentaes nas construcções do segundo periodo romanico, porque a ogiva, quando apparece nos começos do seculo XII, caracterisa o terceiro periodo, o de transição, como veremos em breve. Tambem o Estylo Romanico tem as cryptas do latino, maiores ou menores e em geral debaixo do côro, nas egrejas mais importantes. Ainda as torres caracterisam este estylo. São relativamente pouco elevadas, massiças, ornadas de _arcaturas_, ou de arcos de volta inteira, e cobertas por agulhas de pequena altura. Umas vezes ficam separadas do corpo do edificio, como é de uso nos de Italia, outras vezes, fazendo parte d'este corpo, ou ornamentando-lhe a fachada. Algumas egrejas teem mais de uma torre, dispostas duas symetricas na fachada e uma outra sobre o cruzeiro, interiormente aberta, formando uma especie de zimborio, ou fechada pela propria abobada d'este cruzeiro. A Sé de Lisboa offereceu a primeira disposição. A terceira torre, caída pelo terramoto de 1755 e de que existem evidentes vestigios, denominava-se _torre sineira_, o que explica os seus fins especiaes, a que foram depois applicadas as grandes torres da fachada. Um elemento, que nos parece constituir um dos caracteres importantes do estylo romanico, é a existencia de galerias, mais ou menos largas, sobre as arcadas que dividem a nave central das lateraes. Estas galerias, denominadas _triforios_, de pequenos arcos simples ou trilobados, são verdadeiras reminiscencias dos porticos superiores das basilicas, onde as viuvas e as virgens assistiam isoladas ás ceremonias religiosas. O exemplo encontra-se na Sé de Lisboa, guarnecida por um triforio nas paredes da nave central e nas do transepto. A construcção moderna tem columnellos com galba e capiteis de dimensões classicas; mas nas sondagens feitas foram encontradas as verdadeiras dimensões do triforio primitivo e o seu typo accentuadamente romanico. Tambem a Sé de Coimbra tem triforio; n'esta egreja, porém, a galeria é muito larga e de fórma especial. As portas e as janelas são de volta inteira, onde, ás vezes, os _arcos geminados_ byzantinos demonstram o parentesco proximo dos dois estylos. Os supportes, os pilares, as columnas e os capiteis, fugindo a todas as proporções classicas, manifestam-se rudes e fortes. Os grandes pilares das naves, até quando já tendem a tornar-se polystylos, são grossos e curtos. A expressão de força sobrepuja n'elles a de elegancia, dando-lhes, aliás, um aspecto grandioso; umas vezes, apresentam-se quadrados e lisos, ou com columnelos nichados nos angulos; outras vezes, cylindricos ou polygonaes, revestidos de meias columnas. Esta disposição prepara os pilares polystilos, isto é, ornados de finos e elevados columnelos, do Estylo Ogival. Os capiteis apresentam variadissima ornamentação, em geral differente em todos elles, ainda que pertençam ao mesmo vão. Este facto caracteristico será explicado, quando tratarmos do Estylo Ogival. Offerecem a fórma de pyramides quadradas ou conicas, truncadas e invertidas, coroados por um simples abaco. As columnas desobedecem a todos os modulos classicos, não teem galba, apresentam-se cylindricas, em geral, ou ligeiramente conicas. As arcadas de volta inteira são formadas de varias molduras, as mais ricas ornadas de desenhos, dos quaes já encontrámos alguns no Estylo Byzantino. No interior e no exterior dos edificios romanicos, as _arcaturas_, simples ou entrelaçadas, constituem ornamentos muito vulgares e elegantes das paredes, sobre as quaes teem maior ou menor saliencia. O conjunto exterior dos edificios romanicos produz no espirito uma impressão caracteristica de força e severidade, embora tambem, ás vezes, de elegancia e riqueza. Os coroamentos elevados, em alguns edificios revestidos de ameias, sobre cornijas repousando em _macheculis_, as torres massiças e quadradas, os muros muito espessos revestidos de botareos pouco salientes, por entre os quaes se abrem as janelas, dão a estes grandes edificios um aspecto de fortificação, de que, em verdade, serviram muitas vezes nos tempos medievaes. Ao vel-os, melancholicos e sombrios, parece que a sua grande alma de pedra sente ainda as impressões dolorosas das desgraças profundas e dos horriveis flagellos, atravessados pela Humanidade durante essa triste quadra da historia. O seu caracter religioso é para muitos mais completo e elevado do que o dos edificios ogivaes; por isso, hoje o Estylo Romanico começa a ser considerado mais verdadeira expressão da arte christã do que o ogival. Citamos a opinião por curiosidade, embora com ella não estejamos muito de accordo. As fachadas romanicas variam muito, conforme a inspiração dos architectos, para que possam ser descriptas em schema desenvolvido; mas n'estas fachadas os portaes de entrada, em geral um ou tres, offerecem grande importancia. São formados de archivoltas de muitas molduras mais ou menos ornamentadas, repousando sobre capiteis e columnas da natureza anteriormente descripta. No fundo d'estes portaes de arcadas embocetadas e decrescentes, abre-se o vão da porta, offerecendo em geral um tympano de pedra, ora com baixos relevos symbolicos, ora liso ou formado de pequenos parallelipipedos. D'esta ultima disposição existe entre nós exemplo na antiga porta lateral da Sé de Lisboa, hoje restaurada. Algumas vezes o tympano era de pintura polychromica sobre fundo de ouro, systema que constitue, sem duvida, uma imitação pobre dos ricos tympanos byzantinos de mosaico, como se vêem em S. Marcos de Veneza. Por cima dos portaes, janelas da mesma disposição architectonica dão luz ás naves; a central é a origem da futura rosacea do Estylo Ogival. O _narthex_, ou galilé, dos primitivos estylos conserva-se nas condições expostas n'outro ponto d'esta memoria. A ornamentação geral é variada e caracteristica n'este estylo. Folhagens caprichosas entre phantasticos corvos e cabeças de expressões grotescas, combinações geometricas de galões recamados de perolas, zig-zags e arabescos impossiveis de definir constituem reminiscencias do Estylo Byzantino e são precursores do Estylo Ogival. Na porta lateral da Sé de Lisboa foram descobertos e restaurados dois capiteis do lado esquerdo, que nos parece envolverem uma excepção rarissima no Estylo Romanico. Na base dos capiteis, em cada um, duas pombas bem trabalhadas parece dão bicadas em cachos pendentes da folhagem. São dos mais bellos capiteis que temos visto. A pintura polychromica apresenta-se, ás vezes, nos capiteis dourados, de que existem traços evidentes na Sé de Lisboa, ou pintados, assim como os fustes das columnas, as molduras das archivoltas e certos pontos das paredes. É evidente que a abundancia e perfeição dos ornamentos dependem da edade do estylo, mais rudes e simples no primitivo, mais perfeitos e variados quando se approxima o Estylo Ogival. Assim, quasi todos os elementos principaes d'este futuro estylo se encontram, mais ou menos esboçados no romanico. Seria quasi impossivel comprehender bem os dois estylos sem os comparar, estudando-os separadamente. No Estylo Romanico, o caracter de todos os elementos é a força e a severidade: no Ogival a elegancia e a suavidade, que mascaram a força sem a diminuir, a não ser na decadencia d'este ultimo. Eis em rapidos traços os caracteres mais salientes e geraes do Estylo Romanico secundario. Em verdade, não são muito accentuados, exceptuando a abobada, por isso, o estylo talvez seja definido, ou pelo menos completada a definição, pelos caracteres ornamentaes, aliás, tambem sujeitos ás condições particulares e aos materiaes empregados nos differentes paizes. Assim, no sul da França, como na Italia, onde reinou mais accentuadamente o Estylo Byzantino, os edificios romanicos teem qualidades um pouco differentes, embora sempre subordinadas ás regras geraes e ás feições do estylo. Os do sul são mais leves e cuidados do que os do norte; na Allemanha e na Inglaterra manifestam-se mais pesados e de ornamentação mais barbara e primitiva. Em qualquer caso, a grande influencia do Estylo Byzantino, na constituição da architectura dos seculos XI e XII, manifesta-se incontestavel. O Estylo Romanico terciario--o de transição--apresenta os mesmos caracteres do secundario; comtudo um elemento não empregado no periodo anterior, o _arco em ogiva_, produz logicamente importantes modificações na disposição geral dos edificios. Este arco deve ter sido conhecido em todas as nações da antiguidade, que tiveram grandes constructores e edificios importantes. Se o não empregaram em grande escala, foi decerto porque a natureza dos respectivos estylos, com tendencias horisontaes nas linhas mais apparentes, não se adequava estheticamente ás disposições inversas do arco ogival. As investigações scientificas vão demonstrando este facto e o futuro nos dirá o que se póde ainda descobrir. O arco em ogiva tem propriedades mechanicas tão evidentes em si, tão faceis de provar pelo simples raciocinio e pela mais modesta experiencia, que seria quasi uma offensa á capacidade, aliás extraordinaria, de alguns architectos classicos suppôr que não lhes foram conhecidas e portanto que não applicaram o arco ogival, quando as condições o exigiram. Todos sabem, com effeito, os extremos cuidados de construcção, na perspectiva e na disposição dos materiaes, que os architectos classicos empregaram no Parthenon: sciencia tão profunda, demonstrada pelo moderno estudo do monumento, como depois não houve exemplo, e em que foram até attendidos os erros visuaes nas grandes linhas horisontaes e perpendiculares. Negar a estes e a outros famosos architectos perfeito conhecimento das vantagens da applicação da ogiva seria um indiscutivel absurdo. No arco em ogiva as componentes horisontaes das pressões, exercidas sobre os pilares, são menores do que no arco de volta inteira e decrescem successivamente com a maior altura da ogiva. Este theorema é tão facil que a mechanica de todos os tempos o devia ter demonstrado. As rasões pelas quaes começou a ser usado no segundo periodo romanico e depois teve geral emprego no Estylo Ogival, a que deu o nome, eis o que nos cumpre investigar como inducção interessante. É muito provavel que a solidez e a economia das construcções fossem a rasão suprema da sua adopção, sem, todavia, deixarmos de considerar as condições estheticas de edificios, como os romanicos, que iam tomando fórmas elevadas e ponteagudas, repellindo por sua natureza as grandes linhas horisontaes e as curvas continuas. As qualidades estaticas do arco em ogiva prestavam-se a diminuir a espessura das paredes, isto é, davam aos edificios egual solidez real e tornavam-n'os mais economicos, elegantes e ideaes, se nos permittem a palavra; correspondendo, assim, ao espirito essencialmente mystico e religioso que o Christianismo havia desenvolvido na Edade-Media. A ogiva apparece, pois, como elemento logico de um estylo e expressão esthetica do estado especial do espirito humano no periodo historico, que procurámos definir n'outros capitulos d'este livro. Cumpre-nos, todavia, observar que a ogiva, só por si, não caracterisa o terceiro periodo romanico. Os edificios tomam, sem duvida, um aspecto mais leve; mas a ornamentação tambem offerece transformações importantes. O trabalho é mais perfeito. Novo systema de molduras substitue em parte as primitivas, os ornamentos mais pesados apparecem rejuvescidos, outros novos são creados; emfim, a guarnição vegetal, precursora do ogival, desenvolve-se n'este periodo. Na esculptura e na pintura persiste a fórma ascetica, delgada e alta, de roupagens de pregas parallelas e apertadas, da arte byzantina. As physionomias são graves e serenas, traduzindo o extasi mystico, de quem abandona o corpo esqueletico e macerado n'este mundo e deixa voar a alma livre para a celeste beatitude do espirito; verdadeiras fórmas hieraticas e tradicionaes, e porque o são, seccas e sem movimento. Uma decoração magnifica começa a manifestar grande desenvolvimento no ultimo periodo do Estylo Romanico: os _vitraes_, as vidraças coloridas das janelas. O uso dos vidros nas egrejas parece haver começado no seculo X. É muito provavel que os vitraes ordinarios substituissem longo tempo antes as laminas de pedra rendilhada, que encontrámos no Estylo Latino. Que esses vitraes fossem depois superficialmente pintados, tambem é de crer; mas o verdadeiro vidro polychromico, com a côr fundida e incrustada na massa, não apparece senão no seculo XII, por modo incontestavel e com desenvolvida applicação, de que existem ainda alguns exemplares. Estes vitraes primitivos offerecem caracteres definidos, pelos quaes é relativamente facil conhecel-os. O tecido de chumbo, que sustenta e encastra as pequenas placas de vidro, tem malhas muito miudas, visto que n'esse tempo cada côr differente correspondia a uma só malha, sendo divididas em muitas as côres de grande superficie, por necessidade de construcção da vidraça. O fundo do quadro offerece, em geral, um mosaico azul. Na parte superior do vitral desenha-se, conforme o periodo, a ogiva ou o arco inteiro, sobrepujando pequenos quadros de scenas do Antigo e Novo Testamento ou de lendas christãs, onde as figuras, bem como alguns ornamentos, manifestam claramente a influencia da arte byzantina nas disposições, no desenho e nas roupagens. Em geral, a côr dos objectos representados não corresponde á natural, sendo as côres escolhidas mais no proposito decorativo do que no da expressão da realidade, que entre certos limites lhes deu a natureza. Esta admiravel ornamentação, cujo effeito é surprehendente, attinge a maior perfeição no Estylo Ogival; para elle, pois, reservamos mais algumas considerações. Julgamos haver dito o sufficiente para caracterisar o Estylo Romanico nos dois periodos, o secundario e terciario. Accrescentaremos, apenas, que a classificação dos edificios, principalmente nas epocas de transição de estylos limitrophes, é assumpto delicado, que exige sobretudo muita experiencia e observação de exemplares bem definidos. As idéas geraes não bastam, nem é sufficiente o estudo dos livros. É preciso pela experiencia ter apurado a critica e a sciencia, possuir um senso esthetico educado; uma cousa correspondente a essa qualidade singular que teem os grandes medicos de diagnosticar a doença, quasi adivinhando-a pela simples observação do enfermo. Além disso, é indispensavel conhecer a historia do monumento, se elle a tem escripta, aliás refazel-a com successivas investigações, estudando pedra a pedra, elemento a elemento, porque nos periodos de transição, principalmente, tudo se sobrepõe e combina por tal fórma que o enygma parece sorrir dos nossos esforços em cada canto dos monumentos. Entre nós, citaremos um exemplo: ainda hoje vacillamos sobre se a egreja de Alcobaça deve ser considerada romanica do terceiro periodo, ou já ogival. Nas arcadas do côro, mascarada por bellos intercolunmios jonicos manifesta-se o romanico, talvez do segundo periodo, depois, no corpo da egreja, as ogivas dos arcos e das abobadas casam-se com pilares ainda de caracter romanico. Restaurações successivas, feitas em largos periodos, desnorteiam o observador. Exceptuando, pois, a fachada, do feio e pesado Estylo da Renascença dos principios ou meiados do seculo XVII, parece-nos ser esta egreja um soffrivel exemplar do romanico de transição. Discutiremos este assumpto, interessante sob o aspecto da classificação architectonica dos nossos monumentos, em um dos seguintes capitulos d'este livro. CAPITULO TERCEIRO A SÉ PATRIARCHAL DE LISBOA E A SUA RESTAURAÇÃO Não pretendemos fazer uma monographia da Sé de Lisboa; nem o edificio tem valor architectonico que mereça investigações demoradas, nem ácerca d'elle existem documentos ou dados provaveis, que possam facilitar similhante trabalho. A carencia de elementos historicos, regra pelo menos nos monumentos nacionaes primitivos, não soffre excepção na antiga cathedral metropolitana, cujos archivos foram em grande parte destruidos pelo incendio, que seguiu o terremoto de 1755. Assim, citamos esta egreja como simples exemplo nacional do Estylo Romanico; porque foi, sem duvida, o melhor dos edificios d'este estylo existentes em Portugal. Effectivamente, entre nós devem apenas considerar-se de relativa importancia, como monumentos romanicos, a Sé de Lisboa, a Sé Velha de Coimbra e a da Guarda, porque, se algumas outras egrejas começaram por ser d'este estylo, successivas reconstrucções e restaurações no periodo ogival e no da renascença mascararam-lhe quasi por completo as feições. Alem d'isso, são estes templos os de maiores dimensões, e excepcionalmente podemos encontrar pelo paiz alem d'elles uma ou outra pequena egreja ou capella do Estylo Romanico, mais ou menos puro. Ainda assim, dos tres modestos exemplares romanicos, que possuimos, dois, a Sé de Lisboa e a da Guarda, acham-se mais ou menos profundamente alterados por obras realisadas em differentes seculos, algumas assás barbaras. Apenas, o terceiro, a Sé Velha de Coimbra, teve nos ultimos annos conscienciosa restauração, que a repoz quanto foi possivel no estado primitivo. Pensou-se, tambem, ultimamente na Sé de Lisboa e n'este sentido alguma cousa se tem feito; mas tão profunda é a ruina d'este templo e do respectivo claustro, que a estas obras talvez melhor se deverá chamar dispendiosa reconstrucção, do que simples e economica restauração. Apesar do exposto, faremos rapido bosquejo historico ácerca da Sé Patriarchal de Lisboa; templo que, embora nunca fosse grandioso de dimensões ou rico e cuidado de estylo, deve merecer attentos trabalhos de reconstrucção e de restauração, visto que representa a primeira egreja do paiz na ordem da hierarchia ecclesiastica e é a cathedral de uma importante cidade da Europa. Sobre o solo de Lisboa, atravez dos longos seculos da sua existencia historica, têem-se succedido muitas invasões de povos de differentes raças e religiões. Sem falarmos, pois, em celtas, phenicios e carthaginezes, que mais ou menos se perdem na noute mythica dos tempos, occuparam-n'a os romanos em primeiro logar, vencidos depois pelos barbaros, alanos, suevos e visigodos, que a seu turno foram dominados pelos arabes, sendo, emfim, estes ultimos expulsos de Lisboa por D. Affonso Henriques, primeiro rei de Portugal. É evidente que n'esta longa serie de seculos, Lisboa atravessou vicissitudes e condições diversas. Foi pagã e polytheista com os romanos, christã ariana com os visigodos, professou o Islamismo com os arabes e o Christianismo orthodoxo, quando assumiu a posição de metropole do pequeno reino de Portugal. Apesar d'estes estados diversos e duradouros, Lisboa nunca foi uma cidade importante. Os romanos não eram navegadores e o seu commercio, quasi exclusivamente terrestre e oriental, não podia valorisar o excellente estuario do Tejo. Os barbaros constituiam nações rudes ainda, essencialmente guerreiras, embora já penetradas pela civilisação romana e pelos ideaes christãos. Os arabes, finalmente, mais puros e civilisados, haviam-se concentrado no sul da Hespanha, na Andaluzia e em volta de Cordova, a capital do grande Khalifado do Occidente, abandonando as regiões mais occidentaes da peninsula iberica a raças e tribus mais guerreiras e illetradas. Assim se explica a pobreza quasi absoluta de monumentos arabes na zona de Portugal, que foi habitada por esta raça, emquanto a Andaluzia está cheia de ricas construcções do Estylo do Khalifado, algumas ainda assás completas, como a mesquita de Cordova, o Alcaçar de Sevilha e o Alhambra de Granada, sem falarmos de edificios de menor importancia e de trechos e vestigios, que attestam o grau da elevada civilisação dos arabes, que povoaram aquella parte da Hespanha. A importancia da cidade de Lisboa nos periodos romano, visigodo e arabe foi sempre secundaria. A sua transformação profunda em verdadeiro emporio commercial proveiu de dois factos posteriores na Historia da Humanidade: a irradiação, para outros pontos do globo, da civilisação dos povos e das nações, dispostas ao longo das costas do Mediterraneo, onde ella se conservou durante os tempos classicos; e a descoberta do caminho maritimo da India e dos vastos continentes da America, que annullou os emporios de Marselha, Genova e Veneza, deslocando os antigos caminhos commerciaes. A grandeza um pouco ephemera de Lisboa manifesta-se nos ultimos quarteis do seculo XV e nos dois primeiros do seculo XVI. Não admira, pois, que a capital portuguesa fosse sempre tão pobre de monumentos primitivos; quando, alem d'isso, a sua precaria situação na zona dos terremotos não tendesse a destruir os poucos, que o trabalho de longos seculos penosamente accumulou na sua antiga área. Por muito secundaria que fosse, todavia, a importancia de Lisboa, romanos, godos e arabes n'ella edificaram templos, de que hoje não restam os menores vestigios, a não ser em vagas tradições, colhidas em antigos escriptos. Assim, a antiga Sé de Lisboa teria sido edificada nas proximidades, se não no proprio local, de um templo classico, substituido depois por um templo godo, a seu turno transformado em mesquita no tempo do dominio arabe. Esta tradição é mais do que plausivel, se attendermos á tendencia das religiões victoriosas em se apossarem dos templos das religiões vencidas, facto de que existem numerosos e incontestaveis exemplos em differentes epocas e em diversas nações. A este ponto interessante da Historia da Arte e das Religiões nos referimos n'outro capitulo d'este livro. A tradição, que affiança haver sido a actual Sé uma antiga mesquita arabe, é evidentemente absurda. Não só o estylo do templo é accentuadamente romanico; mas, se elle houvesse sido construido nos curtos periodos, durante os quaes os christãos occuparam Lisboa depois da conquista dos arabes, estes, voltando a dominar na cidade, teriam apropriado a egreja ao seu culto, caracterisando-a com construcções e ornamentos especiaes, de que não se encontram os menores vestigios. Seria, porém, o actual edificio da Sé de Lisboa levantado no local de uma mesquita arabe? Esta tradição parece-nos muito fundada; não suppomos, todavia, que a construcção arabe podesse ser de grande importancia. As mesquitas de Lisboa não deviam soffrer comparação com as de Toledo, Cordova, Granada e Sevilha, centros da civilisação arabe. A Cathedral de Sevilha, por exemplo, repousa sobre o local de uma grandiosa mesquita, da qual se conservam ainda hoje, junto á mesma cathedral, o espaçoso pateo, que precedia as mais consideraveis mesquitas, e a magnifica torre, um primor do Estylo do Khalifado, bem conhecida pelo nome de Giralda. Seja qual fôr o valor d'estas presumpções, a melhor opinião, fundada em argumentos de ordem historica e architectonica, consiste, segundo pensamos, em que o edificio actual se deve attribuir a D. Affonso Henriques e foi levado a effeito logo depois da conquista de Lisboa aos arabes, em outubro de 1147. Devia ser rapida a construcção. A simplicidade architectonica e a pobreza de ornamentação, que manifesta a parte primitiva do edificio, não exigiram, de certo, planos muito estudados e completos, nem a propria construcção foi muito cuidada quer na escolha, quer na disposição dos materiaes. Forçoso é confessal-o, embora destôe um pouco dos louvores hyperbolicos de alguns escriptores nacionaes: o edificio da Sé de Lisboa é de acanhadas proporções, de muito pobre estylo e de construcção bastante ordinaria. Sendo muito provavel que as obras começassem logo após a conquista, não é facil determinar a respectiva duração. O conego Vieira da Silva, em memoria annotada por D. Francisco de S. Luiz, Cardeal Patriarcha em meiados do seculo XIX, deduz, de varios documentos e de investigações proprias, que a primeira constituição do Cabido da Sé de Lisboa data do anno de 1150. Estaria o primitivo templo acabado n'esse anno, ou pelo menos achar-se-ia já muito adeantado e proximo do seu fim? Não custa a acredital-o. Em tres annos não seria grande difficuldade elevar edificio d'esta natureza; principalmente se tivermos em attenção que a silharia n'elle empregada foi, sem duvida, explorada em pedreiras muito proximas das respectivas obras. Uma observação interessante devemos fazer n'esta altura: o primeiro bispo de Lisboa, capital de Portugal, foi o inglez Gilberto. Ora, em Inglaterra floresceu o Estylo Romanico, a que pertence a parte primitiva da Sé Patriarchal. Depois da sua fundação, o primitivo edificio soffreu muitas reconstrucções, restaurações e alargamentos, dos quaes alguns motivados pelas necessidades do culto e outros provenientes da falta de alojamentos internos para o numeroso pessoal, que exigem a guarda e os serviços religiosos de uma cathedral. As barbaridades artisticas e de construcção, que por estas razões se praticaram, seriam inacreditaveis, se grande parte d'ellas não fossem directamente observadas pelo auctor d'este livro e algumas não existissem ainda, attestando o mau gosto, a ignorancia e o desprezo pelos monumentos e pelas tradições, que ás vezes caracterisa o espirito nacional desde os tempos mais remotos até aos nossos dias. Seguindo a planta da Sé no seu estado actual, isto é, na data em que escrevemos este livro, é fácil formar clara idéa do plano primitivo da velha egreja de D. Affonso Henriques e das principaes transformações, que ella soffreu durante sete seculos e meio; por isso, chamamos a attenção do leitor para a respectiva planta, observando-lhe que os seus differentes tons correspondem a periodos distinctos da construcção. A primitiva egreja foi de Estylo Romanico do melhor periodo--o secundario--que em geral floresceu no occidente e no centro da Europa no seculo XI. Quando se levantava a Sé de Lisboa, em meiados do seculo XII, já o Estylo Romanico em geral attingira o periodo terciario, preparando a transição para o Estylo Ogival. Este relativo atrazo não deve, comtudo, causar surpreza; póde considerar-se quasi regra geral na evolução da arte portuguesa em relação á das restantes nações centraes da Europa. Apesar de coberta de horriveis estuques, que a mascaram ridiculamente de Estylo Classico, e das reconstrucções ogivaes posteriores, não encontrámos durante o estudo minucioso, que temos feito d'esta construcção, um só elemento, que possa contrariar a sua classificação no Estylo Romanico secundario. A planta primitiva era elegante. A nave central, o transepto e capella-mór formavam uma cruz latina. As naves lateraes avançavam, envolvendo a capella mór, isto é, formavam _deambulatorio_, ou _charola_. Não é muito frequente esta disposição no Estylo Romanico secundario; mas, evidentemente, a disposição da planta exige-a como condição indispensavel e de elegancia. Alem d'isso, se não é possivel demonstrar directamente a existencia da charola romanica na Sé de Lisboa, na egreja de Alcobaça, sua coéva, a existencia prova-se pelas fortes columnas e arcadas da capella-mór, que abriam, sem a menor duvida, para uma primitiva charola romanica. Não nos parece nada provavel que a charola romanica da Sé tivesse capellas; como não as tinha talvez tambem a primitiva de Alcobaça. N'uma e n'outra egreja, estas capellas provéem de restaurações ou reconstrucções ogivaes. [Figura: Planta da SÉ DE LISBOA--Estado actual] Occupando os espaços onde hoje estão as capellas do Santissimo e a de S. Vicente, que abrem para os dois extremos do transepto, existiam provavelmente a sacristia e o thesouro. A estes elementos se reduzia a planta da Sé primitiva, porque o claustro e todos os edificios annexos são de construcção posterior. Escusado será observar que a supposição da existencia de cinco naves na antiga cathedral resulta do erro grosseiro de tomar certos edificios annexos, de que falaremos mais tarde, por naves extremas, hypothese que a simples inspecção da planta não admittiria com a menor probabilidade, quando a existencia das primitivas janelas e da porta, hoje restaurada, da fachada lateral-norte não fosse indiscutivel prova de que a egreja nunca teve mais de tres naves. A fachada primitiva era formada, como a actual, por duas torres quadradas, massiças e revestidas de fortes botareos. Entre estas torres corria a parte da fachada, correspondente ao côro. A disposição das linhas geraes não foi, pois, alterada pelas restaurações, que aliás estragaram o estylo; com effeito, as torres foram, sem duvida, coroadas de agulhas e as horriveis janelas quadradas n'ellas abertas substituiram, não se póde bem avaliar por que razões, as bellas janelas geminadas romanicas, que ultimamente foram restauradas na torre-norte. As agulhas ou corucheus primitivos, em nossa opinião, não tiveram a detestavel fórma, com que apparecem em gravuras e azulejos posteriores ao seculo XV; naturalmente destruidas por algum terramoto--talvez o de 1384--foram restauradas sob a fórma de elevadas torres quadradas, de muito menor superficie do que a das torres inferiores e cobertas por telhados vulgares de quatro aguas! A parte central da fachada, comprehendida entre as duas torres, tambem não podia ser em nada parecida com a existente. A rosacea devia existir, bem como o grande arco, dando accesso ao portal da egreja; mas toda esta parte actual é de construcção posterior e do frio e decadente Estylo da Renascença, no seu peor periodo. Tem-se attribuido as janelas quadradas da fachada, a mesquinha rosacea e o bruto e feio arco do vestibulo á grande restauração, depois do terramoto de 1755; é um erro. Uma gravura franceza do tempo, mostrando o estado das ruinas da egreja depois do terramoto, prova que tudo isto existia antes d'esta catastrophe. Assim, nós suppomos, com o maior fundamento, que todos estes absurdos elementos, bem como o ridiculo coroamento das torres são obras coévas da sacristia, encostada á fachada lateral-sul da primitiva egreja, datando tudo dos começos do seculo XVIII, talvez do reinado de D. João V. [Figura: Ruinas da SÉ de LISBOA--Terramoto de 1755] Alem d'isso, as torres soffreram restaurações em differentes epocas; a do norte no periodo ogival e depois na renascença manuelina; a do sul foi quasi toda reconstruida depois do terremoto de 1755. N'uma e n'outra, as grandes janelas primitivas foram transformadas em sineiras, fim que primitivamente não tiveram, porque os sinos occupavam uma elevada torre, construida sobre o cruzeiro, que desabou tambem pelo terremoto de 1755. Fundados n'estes raciocinios, elaborámos o projeto de restauração da fachada, que melhor nos parece traduzir a physionomia especial do Estylo Romanico da velha egreja. Embora essa fachada não seja grandiosa em dimensões e rica em ornamentação, julgamos traduzir a severa solemnidade do estylo e o aspecto de força, que nunca perderam as grandes e massiças torres da Sé, apesar de torturadas por absurdas restaurações e coroadas por platibandas ridiculas, repousando sobre cornijas classicas. O interior da primitiva egreja deduz-se da respectiva planta, esclarecendo-a com algumas observações, colhidas em investigações directas e sondagens feitas no actual edificio. A nave central, a capella mór e o transepto, offerecendo quasi a mesma largura, eram cobertas por abobada de volta inteira, nascendo a egual altura; nos quatro arcos do cruzeiro repousava uma grande torre quadrada no exterior, que se elevava muito para cima d'estas abobadas. No interior da egreja esta torre tomava a fórma de um octogono regular, firmando-se em pendentes as paredes, correspondendo aos angulos biselados do quadrado exterior. Em cada uma das faces d'este octogono, rasgava-se uma janela muito alta e estreita, que illuminava a cupula coberta por abobada, gerada pela intersecção de quatro semi-cylindros, lançados entre as faces oppostas do prisma octogonal, isto é, por uma abobada de oito arestas. Esta abobada da cupula formava o primeiro pavimento da torre, que para cima offerecia no exterior duas ordens sobrepostas de sineiras, tres em cada ordem e em cada face. Segundo a nossa opinião, esta torre não tinha senão um andar, a que fazia pavimento a abobada da cupula. Não nos parece que a espessura dos muros, ainda existentes na base, permittisse a sobreposição de tres abobadas, sendo possivel até que a cobertura da torre fosse de madeira revestida de telhado. Voltando ao interior da egreja, observaremos que esta disposição particular da cupula octogonal devia ser de excellente effeito architectonico. As naves lateraes tinham as abobadas muito menos elevadas do que a da nave central; mas esta disposição não permittiu o rasgamento de janelas, que directamente illuminassem esta nave, porque por cima das segundas naves foram construidas galerias de egual largura, cujas abobadas em pouco ficavam inferiores á da nave central, não deixando espaço para rasgamento de janelas do _clerestory_. Nas paredes da nave central, por cima dos arcos que dividiam as naves, e nas do transepto, corria ao longo da egreja, com excepção da capella mór, um estreito triforio, em communicação directa com as galerias, que acabamos de apontar. [Figura: SÉ PATRIARCHAL DE LISBOA--Restauração da fachada principal] Todas estas disposições foram depois mais ou menos alteradas; assim, por exemplo, no triforio a restauração não só modificou as dimensões como empregou columnas com galba e capiteis classicos! As paredes cobertas por estuques horriveis, fingindo marmore de varias côres, subsistem na actual egreja. Feixes de grossas columnas romanicas sustentavam os arcos de volta inteira, que dividem as tres naves; mas toda esta parte do edificio está _excellentemente_ mascarada com columnas corynthias, tendo capiteis de madeira, fustes de gêsso e bases de marmore verdadeiro combinado com madeira, tudo, excepto os marmores, imitando tambem marmore! Assim, é impossivel fazer hoje clara idéa d'estes elementos, que o maior idiotismo imaginavel de restauradores em cidade civilisada conseguiu estragar, com grande perda de tempo e dispendio de dinheiro! A primitiva capella-mór era mais pequena do que a actual de construcção mais moderna, como o indica o tom mais leve da planta; devia ser formada de grandes arcos de volta inteira, repousando sobre fortes columnas romanicas e abrindo na charola. Apesar da tradição corrente e escripta, que affirma haver na Sé de Lisboa grandes subterraneos, não deparámos ainda com elles nas sondagens e investigações realisadas. Até podemos quasi concluir que, pelo menos, nem existe uma crypta importante; reduzindo-se tudo a pequenas capellas sepulcraes subterraneas, ou carneiros escavados muito depois da data da construcção do edificio[2]. A illuminação do primitivo templo foi assás perfeita. A nave central recebia luz da rosacea da fachada principal; as segundas naves de janelas e portas abertas nas fachadas lateraes, que vamos descrever; o transepto das rosaceas, rasgadas nos seus dois extremos, não existindo, é claro, as feias janelas rectangulares, que actualmente por baixo d'estas rosaceas abrem para o triforio; finalmente, a capella-mór era illuminada pelas grandes janelas da charola e directamente por outras superiores ao terraço da mesma charola. Alem d'isso, a cupula central com as suas oito janelas devia, tambem, contribuir para derramar bastante claridade no interior do templo. Foram todas estas aberturas fechadas por vitraes coloridos? Não nos parece. Na epoca da construcção, os verdadeiros vitraes coloridos eram muito raros, nem ella foi rica e cuidada. Vê-se que D. Affonso Henriques tinha mais fé religiosa do que dinheiro. No periodo do maior emprego dos vitraes, nos seculos XIII, XIV e XV, não é muito provavel que o gosto artistico nacional exigisse este complemento esthetico. Haja vista os martyrios, que inflingiram ao pobre edificio romanico! As fachadas lateraes eram muito simples. A partir das torres, acima descriptas, a muralha, tendo a altura das naves lateraes e das galerias sobrepostas a estas naves, apresentava-se dividida por botareos pouco salientes, em cujos intervallos se abriam seis janelas todas de volta inteira; as mais baixas e proximas do solo eram grandes, alargando para dentro; por cima d'estas existiam outras muito menores, rasgadas quasi em estreita fresta. Umas e outras illuminavam as segundas naves. Em terceira linha superior seis janelas abriam para as galerias, sobrepostas ás naves lateraes. No terceiro vão entre os botareos, a contar da torre, pelo menos na fachada-norte, a janela inferior era substituida por uma porta, que foi nos primitivos tempos resguardada por um vasto alpendre, coberto por telhado. Esta porta foi ultimamente restaurada. É muito provavel que na fachada lateral-sul se désse egual disposição; mas essa porta, se existiu, foi inutilisada pela construcção da nova sacristia. Nos lados do transepto viam-se apenas as janelas superiores. Em face da fachada principal, e terminando em frente das portas lateraes, devia existir um adro, cujos tijolos podémos ainda ver em escavações praticadas junto do monumento. Eis a descripção summaria da antiga Sé de D. Affonso Henriques. Não era de certo nem grande nem rica; mas, indiscutivelmente, o seu todo devia manifestar os caracteres do Estylo Romanico, a força e a severidade, sem excluir certa elegancia, que ainda hoje se póde notar nos elementos primitivos, embora suffocados e esmagados por estuques, construcções absurdas, umas já desapparecidas, outras que será impossivel eliminar. Oxalá os restauradores de todos os tempos tivessem procurado conservar ao edificio as feições primitivas, porque n'esse caso Lisboa teria um monumento de Estylo Romanico secundario de certo valor. Assim, nós, as gerações actuaes, temos obrigação de fazer desapparecer pelo menos as vergonhosas excrescencias, restaurando a parte restauravel do edificio, como adeante explicaremos. Bem cedo começaram as construcções annexas a prejudicar a esthetica do primitivo templo. Vamos seguir as principaes por ordem de relativa antiguidade. Logo pouco depois da egreja ter sido terminada, foi _no rigor da palavra_ encostada no angulo formado pela fachada lateral-norte e pelo transepto a primeira d'estas construcções, consistindo n'um recinto coberto por abobada de volta inteira, que inutilisou duas janelas inferiores da nave. Este recinto, cujo terraço ficava inferior ás mais elevadas janelas da fachada, abria para o exterior em toda a dimensão da sua secção; não tendo mais janela ou abertura alguma. Todas estas observações podem ser ainda verificadas em elementos existentes. Qual seria o fim d'este annexo? Difficil será descobril-o. É possivel que fosse um _narthex_, ou galilé lateral, aberto mais tarde, talvez um logar de refugio para peregrinos ou viandantes. Sobre este ponto poderá, apenas, fazer-se alguma luz, quando a eliminação dos estuques, que revestem interiormente este recinto e a parte correspondente da egreja, deixar ver se existem alguns vestigios de antigas portas para o transepto ou para a nave lateral-norte. Depois d'esta epoca, sobre o recinto anteriormente descripto, levantou-se uma grande sala abobadada, em que a ogiva se accentua ja bem claramente. Esta sala, não tendo egualmente janelas na sua frente-norte, era illuminada por uma grande janela ogival, em parte cega, rasgada na parede, que repousa sobre o grande arco do supposto _narthex_. As duas janelas mais elevadas do edificio principal, que ficaram inutilisadas por esta construcção, acham-se tapadas por tal fórma que, segundo pensamos, não póde existir a menor duvida em não haverem jámais dado communicação da primitiva Sé para a referida sala; apenas se póde admittir, embora a achassemos tambem murada, que esta communicação se fazia por uma janela do transepto, transformada em porta para o triforio. Estas disposições, tanto a do recinto inferior como a da sala sobreposta, comprehender-se-ão claramente, notando na planta a segunda intensidade do tom escuro. Assim, temos uma sala de importantes dimensões apenas ligada com o interior da egreja pela acanhada galeria do triforio, que a seu turno é servido por uma pessima e estreitissima escada de caracol, encastrada no botareo do transepto! Qual foi o fim d'esta sala? O problema, porém, complica-se ainda mais. Uma terceira construcção, tendo dois andares correspondentes aos dois pavimentos existentes, veiu encostar-se ás duas precedentes. Devemos observar que propositadamente temos escripto a palavra _encostar_, porque na realidade os successivos constructores nem se deram ao trabalho de travar reciprocamente os edificios; encostando-os, apenas, uns aos outros, o que permitte que em determinados casos seja possivel ver claridade atravez das separações. O pavimento inferior d'este novo annexo tinha de certo ligação com a egreja, havendo sido transformada a janela da nave em porta, que ainda actualmente existe; mas no pavimento superior as cousas passam-se por fórma differente. A janela ogival da sala anteriormente descripta foi transformada em porta, que serve os dois compartimentos; porém, a janela da Sé, inutilisada pela nova construcção, essa, encontramo-la nós murada como as duas outras precedentes; e quando a abrimos, por necessidades de serviço e aproveitamento de local, ficámos convencidos, pela perfeição do espesso massiço de silharia e de alvenaria, de que o tapamento era, sem duvida, antiquissimo, se não contemporaneo d'esta inexplicavel construcção. Assim, como ainda se póde ver, existem duas salas, illuminadas por duas altas frestas, que apenas communicavam com o interior da egreja por duas estreitas escadas de caracol: a primeira, já indicada, a do triforio, a segunda encastrada n'uma especie de botareo, que faz parte da ultima construcção. Que fins podia ter esta disposição mysteriosa dos dois importantes recintos? Debalde temos pensado no problema e investigado as pedras, a fim de ver se nos revelam o segredo; em vão temos consultado os eruditos. Apenas, alguem suggeriu a idéa de que, tendo as antigas cathedraes o _direito de asylo_, isto é, de tornar inviolaveis os perseguidos pelas justiças ordinarias, talvez as salas, tão bem defendidas e mysteriosas, se podessem relacionar com esse direito de protecção. Ahi deixamos posto o problema, que talvez investigações e sondagens mais completas possam mais tarde resolver. Das tres construcções, que acabamos de descrever e apreciar, a primeira deve datar dos fins do seculo XII e a ultima dos fins do seculo XIII. Eis tudo quanto nos parece ser licito affirmar ácerca da edade d'estes edificios, annexados á primitiva Sé. Como se deprehende da planta, estas construcções approximaram-se successivamente da porta lateral-norte, que ainda nos fins do seculo XIII abria directamente para a rua, ou terrado d'este lado da Sé. Que esta porta, como dissemos, tinha alpendre coberto de telhado, provam-n'o os vestigios, ainda existentes na fachada do ultimo dos mencionados annexos. No anno de 1324 falleceu em Lisboa Bartholomeu Joannes, rico mercador de fidalga linhagem franceza, como parece demonstrarem-n'o os brazões e as flores de liz do seu tumulo, deixando em testamento legado especial para ser erecta na Sé de Lisboa uma capella, onde jazessem os seus restos mortaes e os das pessoas, que por elle fossem indicadas. Esta disposição testamentaria originou uma quarta construcção, a de uma elegante capella do Estylo Ogival francez, que foi encostada á fachada lateral-norte, occupando o espaço de duas janelas a partir da torre. N'estas condições, a porta lateral ficaria encravada, entre as construcções primitivas e a da nova capella; por isso, substituindo o antigo alpendre, o espaço da porta foi coberto por uma abobada. Esta especie de vestibulo abre sobre a rua por um grande arco ogival. Taes são os edificios, que em successivos seculos foram encostados á fachada lateral-norte da primitiva Sé, mascarando-a por completo. É claro que em qualquer projecto de restauração ninguem poderá pensar sequer em repôr o edificio nas condições primitivas; muito embora todos estejamos de accordo em que teria sido muito preferivel ter evitado estes acrescentamentos, que lhe prejudicaram a unidade do estylo. Além d'isso, a capella de S. Bartholomeu, apesar da sua pequenez, é um excellente exemplar do ogival secundario. Assim, no projecto de restauração d'esta fachada, attendemos a todos os edificios, aproveitando-os o melhor possivel. Ainda no seculo XIV, em 1344, um forte terremoto destruiu ou pelo menos arruinou a primitiva capella-mór romanica. A reconstrucção realisou-se, alterando as dimensões d'esta parte da egreja e empregando o Estylo Ogival. As capellas, que guarnecem a nova charola, e o claustro, que não existiam anteriormente, datam da mesma reconstrucção. Depois, entre esta grande restauração e a que resultou do terremoto de 1755, devem ter-se realisado muitas outras de secundaria importancia e principalmente as obras, que estragaram o edificio. Assim, por exemplo, as janelas quadradas das torres, substituindo as lindas janelas geminadas primitivas, a rosacea, as sacadas e o arco do frontispicio, bem como o edificio da sacristia e da sala capitular, que mascarou grande parte da fachada lateral-sul, parece-nos datarem dos começos do seculo XVIII, pelas qualidades do estylo; sendo, portanto, anteriores ao terremoto de 1755, como o prova a gravura das ruinas, a que já nos referimos. Devem pertencer tambem a este periodo as construcções dos vergonhosos pardieiros de todas as ordens, especies e fins, que mascaravam completamente a fachada lateral-norte, subindo até elevada altura entre os botareos da respectiva torre, e a inutilisação da bella porta lateral e do respectivo vestibulo, substituidos por uma horrivel porta, rasgada na capella de Bartholomeu Joannes. O terremoto de 1 de novembro de 1755, finalmente, produziu profundas ruinas na egreja e no claustro da Sé. Metade da torre do sul desabou, bem como a torre sineira que veiu esmagar a abobada da nave central e a da capella-mór. A memoria da parte principal d'estas ruinas foi conservada n'uma gravura franceza do tempo, que nos pareceu interessante reproduzir. Durante muitos annos estas ruinas permaneceram no meio da cidade, até que em 1767 começaram as grandes obras de reconstrucção. Teria sido esta a occasião azada para a restauração completa da Sé, não na sua fórma primitiva, que já não seria possivel renovar; ao menos, porém, nos Estylos Romanico e Ogival que se ligaram intimamente em varios pontos do edificio. As tendencias da epoca, que já começavam a condemnar estes bellos estylos como _barbaros_ e _gothicos_, a insciencia dos restauradores, a pressa e talvez a carencia de dinheiro deram os resultados, que ainda podemos ver. A abobada da nave central foi simulada em madeira e estuque, abrindo se-lhe medonhos oculos para melhor illuminar a egreja. Na capella-mór procedeu-se por fórma parecida. A egreja foi por toda a parte coberta de espessas camadas de estuque pintado, mascarando os velhos elementos romanicos e ogivaes com elementos classicos absurdos e desordenados. Assim, se o edificio da Sé, olhado exteriormente, causava a impressão, principalmente na fachada lateral-norte, de uma sobreposição de casebres, visto no interior, produz a desagradavel surpreza de uma miseria, que pretende ostentar riqueza, e de um cahos de fórmas disparatadas e deselegantes, que resultam da desharmonica combinação das linhas principaes dos estylos christãos mais perfeitos com elementos classicos, exigindo linhas geraes differentes[3]. Depois de termos dado succinta idéa, porque outra não comportam os quadros d'este livro, do primitivo estylo da Sé Patriarchal de Lisboa e das modificações mais importantes, que este edificio soffreu atravez dos sete seculos da sua existencia, em curtos periodos diremos as nossas opiniões ácerca da respectiva restauração, de que ultimamente fomos incumbidos e tentamos executar com os melhores criterios estheticos. Embora a Sé de Lisboa, nem pelas suas dimensões nem pela grandeza do estylo, possa ser considerada importante monumento romanico, no estado primitivo, como acabamos de observar, não deixava de manifestar algum valor architectonico. Restaurações successivas e barbaridades de construcção em seculos differentes reduziram-n'o ao estado lastimoso, em que se conservou por longos annos e em parte se encontra ainda n'este momento. A reconstrucção e restauração mais ou menos radical do antigo monumento é, portanto, quasi um dever de patriotismo. Pensar em lhe dar a feição primitiva, apurando o Estylo Romanico secundario em que foi construido, seria uma verdadeira loucura; no conjunto do edificio os elementos ogivaes são mais importantes do que os romanicos e, em regra, acham-se em melhor estado de conservação. A restauração, a nosso ver, deve começar pelas fachadas. A principal póde, sem duvida, assumir novamente a sua expressão romanica, manifestando certa grandeza, se as suas torres forem convenientemente coroadas de agulhas e substituida a parte central, entre as duas torres. Esta obra é indispensavel e uma das primeiras que deve ser realisada. [Figura: SÉ PATRIARCHAL DE LISBOA--Restauração da fachada lateral-norte] A fachada lateral-norte ficará sempre uma juxtaposição de edificios; mas a indiscutivel belleza da Capella de Bartholomeu Joannes desculpará até certo ponto esta agglomeração de estylos. Pelo que respeita á fachada-sul, não haverá remedio senão conservar o annexo onde estão a sacristia e a sala capitular, melhorando o seu frio e pobre Estylo da Renascença. O claustro e as respectivas capellas são obras de restauração facil, embora dispendiosa, attendendo ao estado de profunda ruina em que se encontram. O claustro não tem, na realidade, grande valor architectonico; mas para elle abre uma vasta sala de elevada abobada artezonada, que primitivamente devia ser muito bella. Diz-se que n'esta sala foi instituida a primeira Misericordia nacional. Mais tarde, talvez em principios do seculo XVIII, foi transformada em capella no Estylo da Renascença, onde abundavam os mosaicos florentinos no arco, nas paredes da abside e no altar. Suppomos que esta capella foi primitivamente a _sala capitular_. Realisadas todas estas restaurações, a parte interior da egreja tem de ser completamente reedificada, aproveitando-se apenas as fundações dos pilares das arcarias das naves e as paredes exteriores. Não só as abobadas da nave central e da capella-mór não existem, sendo simuladas em madeira e estuques, mas, os proprios pilares, ou feixes de columnas, e as arcadas sobrepostas estão fendidos por tal fórma que não supportariam o peso de verdadeiras abobadas. Além d'isso, as abobadas das naves lateraes são de tijolo e provavelmente substituiram as primitivas de silharia. É natural que a restauração exterior do templo leve, mais cedo ou mais tarde, a esta importante obra de reedificação interna da egreja, porque outra não se deve tentar, por improficua e dispendiosissima. Em todo o caso já seria um adeantado passo acabar a restauração externa da velha egreja de D. Affonso Henriques, que deve considerar-se um verdadeiro monumento da epoca, recordando a constituição e a independencia da Nação Portuguesa. CAPITULO QUARTO SYNTHESE SOCIAL DO SECULO XIII Traçar um quadro do seculo XIII, dando-lhe a verdadeira expressão social, scientifica e esthetica, é materia difficil, principalmente nos limites estreitos d'este livro; todavia, por nos parecer indispensavel, conforme o methodo adoptado, tentaremos este trabalho em modestas proporções. O seculo XIII foi incontestavelmente o mais brilhante da Edade-Media; concentra e dá unidade, por assim dizer, aos trabalhos do pensamento humano, realisados nos anteriores seculos, prepara os thesouros de sciencia e de philosophia, que produziram a renascença artistica e litteraria do seculo XVI, a philosophica do seculo XVII e, emfim, os grandes movimentos sociaes e politicos dos seculos seguintes. A organisação das monarchias feudaes, como a tentámos descrever n'outros capitulos, estava completa no começo do seculo XIII; em verdade, até começava a resvalar para a dissolução, que se operou no fim do seculo XV e de que foram principaes agentes em França Luiz XI, em Inglaterra Henrique VII, o fundador da dynastia dos Tudors. As grandes guerras religiosas para libertação do solo sagrado de Jerusalem, que aliás nunca foi perfeitamente livre e christão, foram a grande obra das monarchias feudaes, desde os fins do seculo XI aos do seculo XIII. Este grande esforço do feudalismo accumulou as causas da propria decadencia; como as organisações vigorosas se enfraquecem pelo excesso de trabalho. Prégadas pelos proprios Papas ou animadas por elles, as Cruzadas tinham levado ao oriente, durante dois seculos, milhões de homens das nações occidentaes. A melhor cavallaria feudal, durante este longo periodo, havia deixado no caminho de Jerusalem parte das riquezas, e as vidas nos campos das batalhas ou dizimadas pela peste. Este enorme fluxo e refluxo de homens ligara intimamente as relações entre os dois extremos da Europa, trazendo para o occidente novos elementos de uma civilisação mais adeantada, novas idéas e processos; activando, emfim, as reciprocas transacções commerciaes, de que foram poderosos centros Genova, Marselha e Veneza. Os grandes senhores arruinavam-se, sustentando longinquo e dispendioso estado de guerra, emquanto a burguezia se enriquecia no commercio pacifico e as classes populares repousavam e trabalhavam, livres de grande numero dos pequenos tyrannos. A exaltação do espirito religioso, excitado pelas santas Cruzadas, approximara as nações e dentro d'ellas as respectivas classes. N'esta atmosphera favoravel, a liberdade ganhava vigor na vida local das communas, cujas revoltas eram mais faceis e mais baratas as compras de direitos civicos a senhores, que careciam de dinheiro para as enormes despezas da guerra e satisfação de um luxo exagerado, que traziam sempre inveterado nos costumes, quantos tocavam sequer de leve as civilisações orientaes. Assim, no seculo XIII baixava o sol do feudalismo e começava a raiar a aurora d'essa energica vida communal, que nas mãos de suzeranos habeis devia servir mais tarde de poderoso instrumento para reduzir os barões feudaes, livres e turbulentos, a vassallos, subordinados e pacificos, e a pouco e pouco a simples cortezãos, servis e lisonjeiros, que apenas ostentavam nas antecamaras reaes honorificos titulos de antigos apanagios e nomes de gloriosos antecessores. No seculo XIII a egreja adquirira indiscutivel preponderancia sobre o orbe christão, a Europa. Pela religião e pelo respeito tradicional, o Papado impozera-se aos grandes e aos pequenos; era o arbitro supremo entre os principes, perseguia-os como revoltosos e criminosos sobre os proprios thronos e, sendo preciso, separava-os do povo pela interdicção dos Estados, ou pela excommunhão dos rebeldes. Desde os fins do seculo XI, o poder temporal do Papa tornara-se um facto consummado. O antigo bispo de Roma já usava em volta da tiára a primeira corôa da soberania terrestre, que o punha ao lado dos reis christãos, cuja consciencia elle dominava pelo espirito da religião. Senhor quasi absoluto, depois da _querela das investiduras_, d'essa machina immensa que se chama hierarchia ecclesiastica, levando a acção poderosa até ás consciencias mais humildes e obscuras, no seculo XIII, o Papa era o primeiro poder da Europa. Assim, o Papado fôra o espirito das Cruzadas e o feudalismo o seu braço armado, que na lucta gastou as forças e perdeu quasi os bens, herdados em grande parte pela egreja, cujas enormes riquezas não satisfizeram nunca as suas ambições colossaes. A atmosphera de liberdade, embora fraca, que se formou no seculo XIII, deixára florescer, emfim, a cultura das artes e da sciencia. Grandes discussões philosophicas enchem o seculo. Promove-as a theologia. Os profundos dialecticos e os sabios pertencem em regra ás Ordens Religiosas, é certo; mas nos sombrios claustros penetrára a luz de fóra. A Escholastica n'esse periodo tomou uma feição nova e caracteristica, que trazia em si os germens da liberdade do pensamento. A philosophia da Edade-Media offerece, com effeito, tres periodos differentes; no primeiro, a theologia subordina a sciencia; no segundo, estes dois principios caminham a par, depois dividem-se, seguindo rumos divergentes. No segundo periodo, durante o seculo XIII, os talentos mais elevados e cultos travam renhidas luctas de palavras e de escriptos, nem sempre incruentas; uns são pelo _realismo_ de Alberto, o grande doutor, e do seu genial discipulo Thomaz de Aquino, outros pelo _nominalismo_ de Duns Scott, o doutor subtil. O discipulo excedeu o mestre. Santo Thomaz de Aquino foi o chefe da eschola, que definiu os principaes dogmas da egreja e preparou a constituição definitiva do Catholicismo, no concilio de Trento. O _nominalismo_, fundado sobre as doutrinas de Aristoteles, desenvolvia as bases da sciencia; o methodo da observação e da experiencia recomeçava o seu caminho, interrompido por longos seculos. No seculo XIII viveu o franciscano Roger Bacon, que só por si define uma eschola e illustra um seculo. Philosopho, astrologo e alchimista, cujo saber immenso nas azas do genio chega a saír fóra dos limites do seu tempo, Bacon descobre, ou pelo menos prevê factos e verdades, que hão de manifestar-se nos seculos seguintes. Arnaldo de Villanova, outro profundo sabio do seculo, medico e alchimista, discute a metaphysica escholastica e combate-a á luz dos principios da sciencia ainda vacillante e incerta, mas procurando já firmar-se nas bases do positivismo moderno. A sua vigorosa critica não se atemorisa ante os perigos de atacar os erros da eschola philosophica triumphante nas doutrinas de um dos maiores sabios e casuistas do tempo. «Que importa, escreve o grande luctador, que Alberto, o grande doutor, affirme que as folhas de salva lançadas n'uma fonte fazem sobrevir a tempestade? _Lancemos folhas de salva n'uma fonte e vejamos se a tempestade sobrevem_». A revolta do livre pensamento attinge o dogmatismo da Escholastica orthodoxa, a essencia do methodo experimental está claramente definida n'esta ironica e simples phrase. Arnaldo de Villanova é um precursor, como Roger Bacon e os escholasticos revolucionarios nominalistas, d'esse methodo, que ha de produzir a sciencia moderna e por meio d'ella o espantoso progresso do seculo XIX. N'estes primeiros movimentos revolucionarios do _nominalismo_ sentem-se já energicas aspirações da liberdade do pensamento. As suas doutrinas são a semente, que, ao calor do estudo, das luctas, e pela acção do tempo, ha de produzir, por ininterrupta evolução, a reforma religiosa do seculo XVI e a philosophia do seculo seguinte. Os adeptos do _nominalismo_ são perseguidos e as doutrinas consideradas heterodoxas; mas, como correspondem a necessidades organicas do espirito humano, se os martyres ficam desconhecidos, as suas idéas preparam o futuro. Os primeiros luctadores contra o poder de Roma, Arnaldo de Brescia, discipulo de Abelard o _nominalista_, em Italia, Pedro de Vaux em França, Lollard e Wiclef em Inglaterra, são os precursores de João Huss e depois de Luthero, Melancton, Calvino, Zwinglio e Knox, os fundadores victoriosos da _reforma religiosa_ do seculo XVI. No seculo XIII, a esthetica experimenta, tambem, uma acção profunda. Um dos maiores genios, de entre os que têem engrandecido a Humanidade, o florentino Dante Allighieri, cujas feições energicas e tragicas nos conservou o pincel de Giotto, aperfeiçoa, se não cria litterariamente a primeira e mais bella das linguas latinas, a italiana, em que teve como discipulos e commentadores Petrarcha e Boccacio. Genio colossal, fortalecido por sciencia profunda e inspirado por grandes sentimentos, attingindo a febre da paixão, Dante revoluciona a poesia e quebra os velhos moldes dos poetas da decadencia. A sua prodigiosa lyra, tendo todas as cordas desde a sublime epopeia até ao delicado lyrismo, produz o mais gigantesco poema, creado pela intelligencia humana, a Divina Comedia, onde o poeta se revela sabio, theologo, historiador do seu tempo, ás vezes apaixonado e injusto, se quizerem, mas sempre supremo artista. Dante, talvez a figura principal do seculo XIII, a quem os seculos seguintes não fizeram perder ainda na poesia a posição culminante, é a mais pura e clara expressão d'esse espirito classico, sempre vivo no solo da grande Italia. A liberdade do pensamento, como nova e rica seiva, inflora no poeta esse vivido espirito, impellindo-o para fóra da esphera humana e levando-o a procurar no Inferno, no Purgatorio e no Paraiso, symbolos da metaphysica theologica, um campo infinito, onde podiam exercer-se intelligencia e phantasia tão excepcionaes. As outras bellas-artes, excepto a musica para a qual não chegára ainda o momento historico, bem mais tarde manifestado, principalmente em fins do seculo XVIII e no seculo XIX, offerecem um caracteristico movimento correspondente. Até ao seculo XIII, a influencia do espirito byzantino mantivera-se preponderante, sobretudo na pintura e na esculptura, aliás ainda subordinadas á architectura, de que constituiam artes auxiliares e complementares. Ora, as artes do oriente, como vimos, haviam ficado estacionarias, crystallisando em fórmas hieraticas e convencionaes. A inspiração e a liberdade dos pintores e dos esculptores foram esterilisadas por esse immovel e hybrido espirito oriental. Os artistas copiavam-se successiva e reciprocamente, procurando amoldar a espontaneidade do proprio talento a antigas e consagradas formulas, a que as tradições religiosas contribuiam para dar quasi força de dogmas. Foi ainda a Italia, que deu os primeiros gritos, sacudindo essa lethargia; foi ainda o espirito classico, reanimado pela liberdade do pensamento, que despedaçou a rede dos formalismos tradicionaes e da ignorancia technica, que envolvia e suffocava a inspiração dos pintores e esculptores. Esta reacção inicia-a Cimabué, libertando-se dos liames das escolas byzantinas. Giotto, seu discipulo, pintor, esculptor e architecto, segundo o uso e as necessidades do tempo, opéra a revolução. A correcção do desenho e o rigor do colorido, a expressão e a vida, isto é, a verdade na arte que só nasce do estudo da natureza, são o resultado d'essa outra victoria do espirito humano. Os dois primeiros mestres italianos do seculo XIII ficam sendo na historia os precursores da grande arte da renascença, poderoso movimento que tambem a Italia quasi exclusivamente realisará nos fins do seculo XV e durante o seculo XVI, no grande periodo em que floresceram homens como Leonardo de Vinci, Raphael Sanzio e Miguel Angelo Buonaroti. A architectura e as artes secundarias annexas saem dos conventos, vindo expor novos productos e novas creações á luz da liberdade nascente. Já não são as grandes communidades religiosas, que monopolisam as construcções, crystallisando-as um pouco e enviando de convento para convento os architectos mais famosos e os planos mais completos. A esthetica, como a sciencia, manifesta energica expansão. A arte revoluciona-se e liberta-se. Nas communas constituem-se grandes corporações de artes e officios. As associações de architectos e de operarios de todas as ordens, que nos seculos precedentes trabalhavam sob a direcção monastica, esse resto dos gremios romanos, ou formados á sua imagem, emancipam-se, libertam-se do jugo ecclesiastico nas producções artisticas, tomando definitivo caracter civil, embora subordinadas e protegidas pelo espirito religioso, que imperou sempre durante toda a Edade-Media. São, com effeito, as corporações _franco-maçonicas_ que vão construir muitos, se não todos os edificios ogivaes mais grandiosos e celebres. Houve-as em Inglaterra, tendo um dos centros principaes em York. Foram incontestavelmente os _free-stones-masons_, que elevaram um dos grandes monumentos ogivaes inglezes, a cathedral de York. Teve-as a Allemanha, com o principal centro em Strasburgo, onde Erwing Steinbach construiu a grande e formosa cathedral, um dos primeiros monumentos do Estylo Ogival, que serviu de exemplo a tantos outros e cuja fama deu á loja-mestra a supremacia sobre quasi todos os centros principaes allemães e ao seu presidente o grão-mestrado supremo. Existiram em França, onde predominou a loja-mestra de Paris, construindo as grandes cathedraes de Amiens, Reims e outras, Notre-Dame e a Saint-Chapelle em Paris. Encontravam-se, emfim, na propria Italia, onde aliás o Estylo Ogival experimentou energicas reacções classicas, principalmente ao sul. Foram os _magistri comacini_, que, sem a menor duvida, construiram o colosso ogival, a cathedral de Milão. Como estas associações tiveram grande influencia sobre a formação e a dispersão do Estylo Ogival, parece-nos conveniente entrar em alguns pormenores ácerca da sua organisação no seculo XIII, visto que das respectivas origens provaveis e evolução constituinte já falámos em precedentes capitulos. Não póde existir, a nosso ver, a menor duvida em que estas corporações _franco-maçonicas_, que se estendiam pela França, Allemanha e Inglaterra, chegando pelo menos ao norte da Italia, tinham entre si intimas relações, offerecendo um caracter internacional bem definido. Esta affirmação resulta não só da propria natureza das associações de mutuo auxilio e de defeza dos interesses dos respectivos associados; mas é, ainda, demonstrada pela essencia e tradição das associações _franco-maçonicas politicas_, em que as primeiras se transformaram, durante os seculos XVI e XVII. A grande unidade do Estylo Ogival e a sua rapida dispersão nas zonas, aliás extensas, em que floresceu, devem ser attribuidas em grande parte ás relações muito apertadas entre as corporações maçonicas do mesmo paiz e assás intimas entre as de nações differentes. Em 1459, por exemplo, a assembléa capitular de muitas lojas allemãs, reunida em Strasburgo, reconheceu como grão-mestre o presidente da loja-mestra d'esta cidade. Mais do que provavel nos parece que em França e em Inglaterra se procedesse por identica fórma; é a consequencia logica dos fins d'estas associações de trabalho e de soccorro mutuo. Alem d'isso, as deslocações dos associados de uns para outros paizes, em procura de trabalho ou por outras quaesquer causas, só por si constituiriam, n'esse tempo de construcções muito activas, constantes relações internacionaes, quando não existissem outras officiaes e regulares, como é assás provavel. O operario associado em viagem encontrava, naturalmente, a protecção e o apoio das associações do mesmo genero, formadas em outros paizes. Este facto dava-se com as associações romanas e corresponde á tendencia internacional das poderosas associações operarias. Assim, na Edade-Media o trabalho teve uma organisação muita extensa e protectora, que a moderna Internacional tentou debalde realisar no ultimo quartel do seculo XIX. A constituição interna d'estas sociedades _franco-maçonicas_ é, como a sua historia, assás obscura. Visto que fixavam os proprios salarios dos differentes trabalhadores, parece-nos logico que estas associações se ligassem por simples contractos pessoaes, ou porventura em muitos casos por contractos de empreitadas parciaes ou geraes, como se pratica nos modernos tempos. Evidentemente, estas presumpções fundam-se apenas na logica e no principio de que em todas as epocas a eguaes necessidades corresponderam, sempre, instituições e processos analogos ou equivalentes. Deve notar-se que estas associações foram muito protegidas durante a Edade-Media. Altas personagens civis e ecclesiasticas faziam d'ellas parte como _socios honorarios_, no periodo da sua maior grandeza. Foi até a existencia numerosa d'estes elementos estranhos ao trabalho, que, depois da decadencia e transformação do Estylo Ogival, facilitou a conversão das associações primitivas em corporações politicas, conservando os symbolismos dos officios, os provaveis signaes de reconhecimento, as praticas secretas e o espirito internacional, protector e caridoso, da maçonaria moderna, que foi nos ultimos seculos um instrumento poderoso de movimentos sociaes. É natural que as lojas-mestras dirigissem as obras de varios edificios, elevados na sua respectiva esphera de acção; sabe-se, como a partir dos meiados do seculo XIII, as construcções ogivaes tomaram grande incremento. Sendo assim, a elaboração dos planos seria a tarefa dos maiores e mais habeis architectos e, por logica divisão do trabalho, as particularidades caberiam ao pessoal technico, que por ordem hierarchica se ia seguindo, classificado pela competencia e pelo merito. Esta hypothese é corroborada pelo espirito disciplinado e methodico, que constitue a melhor garantia de producções completas e perfeitas em obras collossaes. Esta divisão do trabalho devia chegar ao ultimo extremo. Assim, sabe-se que as construcções eram dirigidas por um mestre ou architecto, escolhido provavelmente em harmonia com a grandeza da obra, sob cujas ordens turmas de dez homens trabalhavam, dirigidos a seu turno por um mestre pedreiro. Esta organisação explica a grandeza da concepção dos planos, a analogia, quasi similhança, que manifestam muitos dos seus elementos e, emfim, a extrema diversidade da ornamentação no mesmo edificio. Póde notar-se, por exemplo, que as altas agulhas de Zurich, Vienna, Colonia e Landshut offerecem reminiscencias muito accentuadas das de Strasburgo. A extrema variedade de ornamentação, a diversidade dos capiteis, no mesmo edificio numerosissimos e poucas vezes repetidos, esses symbolismos grotescos uns, pornographicos outros, espalhados nos capiteis e constituindo algumas gargulas, não podem ser explicados senão pela extrema liberdade de acção dos esculptores e lavrantes de pedra, mais numerosos e inferiores. Este uso caracteristico, já mencionado no Estylo Romanico, conservou-se depois ainda nos paizes, como o nosso, onde a _franco-maçonaria_ teve, quando muito, residencia accidental. Isto exposto, o perfil do seculo XIII póde desenhar-se em poucas palavras. O pensamento humano, activo e energico, procura conquistar a liberdade na esphera moral e politica. O feudalismo perde lentamente as forças e empobrece. Pelo contrario, a burguezia progride, accumula riquezas pelo commercio e pela industria, e trabalha. As communas multiplicam-se e florescem. N'este estado social, um poder predomina, o Papado e a hierarchia ecclesiastica, pela intelligencia e illustração, pelo prestigio da religião sobre as consciencias e pelo poderio de riquezas immensas. As futuras reacções da _reforma_ estão ainda embryonarias e latentes. A sciencia busca despir as faixas da theologia e da metaphysica, approximando-se lentamente do methodo experimental, que ha de ser o poderoso instrumento da rapida e prodigiosa evolução social e scientifica dos seculos XVIII e XIX. Tambem a arte, conforme a propria essencia, _observa_ e _experimenta_, retemperando-se no estudo da Natureza. Em summa, a liberdade hesitante bruxoleia ainda; mas os tenues raios de luz são sufficientes para dissipar as sombras medievaes, deixando ver o caminho do futuro e os direitos da Humanidade. Eis como comprehendemos a synthese do brilhante seculo XIII. CAPITULO QUINTO ESPIRITO E CARACTERES DO ESTYLO OGIVAL A formação do Estylo Ogival resulta logicamente do _meio_ social do seculo XIII. A phase da evolução da arte corresponde-lhe com rigor. É o espirito do seculo que toma fórma nas pedras dos monumentos, descobrindo novas combinações de antigos elementos, empregando-os com mais arrojo e inspiração esthetica, mais sciencia e experiencia de construcção. Assim, na realidade o Estylo Ogival é a floração esplendida do romanico, aberta á luz e ao calor do sol nascente da liberdade do pensamento. Onde se manifestou primeiro o Estylo Ogival? É impossivel fixal-o. Os seus productos, mais ou menos originaes, elevam-se por toda a parte, onde o _meio_ foi identico; como certas plantas nascem em sólos afastados, quando são de natureza similhante. É certo, todavia, que se desenvolve e progride com maior rapidez, principalmente entre as nações onde teve mais tarde maior preponderancia a _reforma religiosa_, vencedora na Allemanha e em Inglaterra, em França vencida após longas e tenazes luctas: mas deixando sempre um permanente fermento religioso. Na Hespanha, em Portugal e na Italia, onde a Inquisição e a Companhia de Jesus esmagaram a _reforma_ logo á nascença, o caminho do novo estylo manifesta-se, pelo contrario, mais penoso e lento. N'aquelles paizes, que hão de ser o foco das futuras luctas da religião, entre o dogma e a disciplina de um lado e do outro a liberdade do pensamento e da interpretração da Biblia, a dispersão do ogival foi rapida e fecunda. Os reis, os pequenos senhores feudaes seculares e ecclesiasticos, as communas e as ordens religiosas, numerosas e ricas depois das Cruzadas, rivalisavam em construcções grandiosas, espalhavam-n'as por toda a parte com piedade religiosa, onde havia tambem muita emulação humana. Assim, por exemplo, resolvendo a construcção da grande Cathedral de Sevilha, o respectivo Cabido escrevia: «construamos obra tão grandiosa e magnifica que os vindouros possam dizer que estavamos loucos». As associações _franco-maçonicas_, fornecendo um exercito de constructores desde os architectos até aos mais simples operarios, facilitavam este grande movimento, imprimindo-lhe a rapidez e a unidade de feições, que anteriormente notámos. Recordando n'este ponto o que escrevemos ácerca da abobada e das consequencias logicas do respectivo emprego, bem como as doutrinas expostas no mesmo sentido sobre o arco ogival, procuremos agora definir os caracteres do Estylo Ogival, que aliás se ligam intimamente com os do romanico terciario. O arco em ogiva, diminuindo muito os impulsos horisontaes sobre os supportes, permittia dar-lhes menos espessura, fossem pilares ou paredes. A elevação dos edificios, dando-lhes incontestavelmente elegancia e nobreza, foi a consequencia necessaria do emprego d'este arco. Os architectos ogivaes aperfeiçoaram o systema, empregando as _abobadas artezonadas_, ou de nervuras, d'onde decorreram modificações importantes na arte da construcção dos edificios. É este, sem duvida, o caracter mais importante do Estylo Ogival. Figuremos por um instante que da abobada da nave central da Egreja da Batalha, bem conhecida de todos, tiravamos a silharia encastrada entre os artezões, como o parenchyma das folhas vegetaes enche os meandros das nervuras salientes. Da folha ficaria uma fina renda de estreitas malhas, da abobada um grande arcabouço de arcos ogivaes parallelos sobre pilares correspondentes, formando successivos tramos quadrados eguaes. Outros arcos em ogiva, perpendiculares entre si e cortando-se nos fechos, ligariam de angulo para angulo os quatro pilares do tramo. Emfim, uma nervura recta ao longo do eixo da nave pareceria dar rigidez e estabilidade ao systema, encadeando os vertices dos arcos parallelos e perpendiculares. Se a figura foi exposta com alguma clareza, comprehender-se-á com pequeno esforço de intelligencia o systema das abobadas ogivaes. Tudo consiste, em summa, no artificio de descarregar, o mais possivel, as pressões verticaes e os impulsos horisontaes da abobada sobre os pilares. Em theoria tambem a silharia entre os pilares poderia desapparecer, deixando um pavilhão aberto, uma especie de esqueleto formado pelos pilares, reforçados por arcobotantes, e pelos arcos, constituindo as nervuras ou artesões das abobadas. As conclusões logicas d'este systema de construcção são de extrema evidencia. As pressões verticaes e os impulsos horisontaes dos arcos determinam certa espessura aos pilares. As primeiras não podéram ser supprimidas; mas os impulsos horisontaes foram diminuidos pela fórma ogival da curva e podem ainda, ser, contrariados pelo lado de fóra por botareos salientes, e pela ligação d'estes botareos a outros exteriores por meio de arcobotantes. Assim por este modo, um edificio ogival pode ser _theoricamente_ reduzido a um esqueleto de pedra, como as casas de Lisboa representam um esqueleto de madeira, antes de preenchidos os intervallos com a alvenaria das paredes e de fechada a cobertura dos tectos. É evidente que este systema da construcção ogival permitte o facil rasgamento de grandes vãos abertos, portas, janelas e rosaceas, entre os intervallos dos botareos e dos arcobotantes; por isso, ao contrario do romanico, o Estylo Ogival abunda n'estes elementos, multiplicando as janelas e as rosaceas para illuminar as grandes naves e os transeptos, que attingem alturas muito elevadas em relação á respectiva largura, ás vezes, alturas relativas enormes, como succede na Egreja da Batalha. Pretender dar mais clareza a uma exposição d'esta ordem, sem desenhos ou modelos, seria caír em diffusão de palavras, que mais complicaria ainda o assumpto. É, pois, contraproducente tental-o. A imaginação do leitor, impellida por estes traços, preencherá as lacunas. Expostas estas generalidades, inutil será entrar em divagações sobre o emprego da ogiva, o que aliás já fizemos succintamente no segundo periodo do Estylo Romanico. A ogiva foi conhecida e empregada muito antes do estylo a que deu o nome, é facto incontestavel. Não conhecido nem empregado era o systema das abobadas, tal como o havemos descripto. Eis qual foi a verdadeira creação dos architectos ogivaes. Em verdade, este systema ainda póde considerar-se a conclusão logica e scientifica do emprego da ogiva e das suas respectivas qualidades estheticas e mechanicas. O arco de volta inteira podia, com effeito, ter sido applicado ao systema com alguns resultados, sómente implicando grande sacrificio da elegancia e da majestade do edificio. Parece-nos, pois, um verdadeiro circulo vicioso investigar, se o arco em ogiva deu origem ao novo systema de abobadas, se este systema exigiu a fórma quebrada do arco. Emquanto a nós, se houvesse vantagem em fixar opinião sobre este ponto, admittiriamos, como mais natural e logica, a primeira hypothese. O Estylo Ogival manifesta uma duração de tres seculos. Vimol-o nascer com o feudalismo na decadencia, durará durante a agonia d'esta instituição e desapparecerá com ella, transformando-se em novo estylo. Está definitivamente formado a partir dos meiados do seculo XIII, constituindo o primeiro periodo. As construcções d'este periodo são harmonicas e regulares, mas a sua feição é ainda um pouco fria e severa. No seculo XIV adquire feições mais elegantes e distinctas. N'este segundo periodo, que os architectos denominaram _radiante_, devido a disposições caracteristicas de certos elementos de construcção e ornamentação, os edificios são mais puros e alegres, mais elevados e finos, emfim mais ideaes, d'esse espirito que principiou a manifestar-se no seculo anterior. No seculo XV e nos começos do XVI o Estylo Ogival attinge elevado grau de elegancia, ás vezes exagerada. N'este terceiro periodo, os elementos verticaes tendem a tomar grandes proporções, a ornamentação manifesta-se riquissima e caprichosa, os coroamentos enchem-se de agulhas e de pinaculos, uma floresta de corocheos elevados e ponteagudos dá aos edificios phantastico aspecto, causando a impressão caracteristica de chammas, principalmente quando illuminados pelos raios do sol poente. D'esta impressão proveiu, de certo, o ser conhecido este periodo pela designação de Estylo Ogival _flammejante_, ou _florido_. Taes são os periodos, que offerece a evolução do novo estylo; devendo, porém, notar-se n'este ponto o que dissemos ácerca da classificação um pouco empirica por seculos. A passagem dos estylos faz-se sempre evolutivamente, sendo impossivel marcar-lhes limites rigorosos e bem definidos. No interior as egrejas ogivaes manifestam excepcional grandeza e elegancia, provindo da elevação dos pilares polystilos e da profundidade das abobadas, ricamente artezonadas, com fechos ornados de bocetes. Numerosas janelas e rosaceas, tendo vitraes polychromicos, inundam o templo de luz doce e poetica. O mysticismo sombrio e severo das egrejas romanicas, a profunda melancholia que produzem no espirito, transforma-se nas ogivaes em alegre e suave sentimento religioso. A egreja romanica traduz a profunda tristeza e o desalento da Edade-Media, principalmente nos primeiros seculos; a sua expressão é lugubre, quasi sinistra, como a do espirito monastico que lhe deu origem. Ha n'ella a impressão desoladora de uma vida rude e cruel, d'onde a alma procura fugir para o socego eterno. A egreja ogival produz sensações differentes. Respira-se ali a vida livre e activa, supremo bem sobre a terra, seguida depois pela felicidade eterna, cuja esperança irisada illumina o espirito, como os raios do sol, atravessando as grandes vidraças coloridas, inudam de luz suave e avelludada as naves do templo. Nas disposições internas a egreja ogival soffreu algumas modificações importantes. A cruz latina já havia sido por vezes abandonada ou alterada no Estylo Romanico, muito embora, tanto n'este estylo como no ogival, deva ser considerada fórma fundamental e preferida. Pelas necessidades do culto, sempre crescente em riqueza, os coros ogivaes tomaram proporções maiores em relação ás naves. A _charola_, quando existe, é ornada de capellas, a correspondente ao eixo central da egreja mais elevada e comprida, dedicada ao culto da Virgem. As capellas ao longo das naves lateraes não se encontram ainda no primeiro periodo ogival; mas apparecem no fim do segundo, no seculo XIV. Em algumas egrejas observa-se a inclinação do eixo do côro em relação ao da nave principal, desvio que citámos e apreciámos no Estylo Romanico de transição. A planta circular e a polygonal manifestam-se, tambem, como no estylo precedente. Em certas egrejas as absides são prismaticas ou desappareccm, sendo substituidas por paredes planas em que se abrem grandes janelas. É evidente ser impossivel abranger em curta synthese as disposições, variaveis em muitos elementos, das plantas das egrejas ogivaes, que se contam por centenas, se não por milhares em todo o orbe christão. Uma idéa geral, embora, pouco caracteristica, é o mais a que se póde chegar n'este momento; todavia, não devemos deixar de especificar a elegante planta da egreja da Batalha, que descreveremos n'outra parte d'este livro. Uma disposição particular muito constante das egrejas ogivaes parece-nos ser a maior elevação da nave central sobre as colateraes. Nas paredes d'esta nave, exteriormente fortalecidas por arcobotantes, abrem-se as grandes janelas do _clerestory_. Ás vezes, desapparecendo o _triforio_, estas janelas assumem enormes proporções, prestando-se então admiravelmente aos magnificos quadros dos vitraes polychromicos. Esta disposição, que dá extrema belleza ás naves centraes, é a da Egreja da Batalha. N'algumas egrejas, os ambons primitivos--as tribunas onde era lido o Evangelho--foram substituidos por galerias elevadas, lançadas entre a nave central e o côro, com accesso pelos dois lados. Estas galerias, profusa e ricamente ornamentadas, repousam sobre grandes arcos, por baixo dos quaes fica livre e desembaraçada a ligação do corpo da egreja com o côro. D'esta construcção, aliás pouco vulgar e não existente entre nós, ha exemplos elegantissimos e muito ricos. Pelo que respeita ás fachadas, a diversidade é maravilhosa; todavia, de um grande numero de edificios póde deduzir-se um schema de certa importancia e clareza. Tomaremos, para exemplo, um monumento bem conhecido, a Cathedral de Notre Dame de Paris. A fachada é dividida em trez partes verticaes--em geral ha tantas partes definidas, quantas são as naves interiores da egreja--a do centro comprehende a porta principal, sobrepujada pela rosacea; as lateraes, correspondendo ás torres, conteem as portas secundarias e por cima as respectivas janelas ou rosaceas, que illuminam as naves correspondentes. A fachada offerece, tambem, tres divisões horisontaes bem distinctas, a primeira envolve as tres portas, a segunda a rosacea e as janelas ou rosaceas lateraes, a terceira começa na nascença das torres. Nas fachadas sem torres, como as das Cathedraes de Milão e de Sevilha, de cinco grandes naves, e na da Egreja da Batalha de tres, as divisões verticaes são muito evidentes, accusando, sempre por fórma bem marcada, o numero e a disposição decrescente das naves interiores. Este schema parece-nos apenas interessante; porque seria impossivel abranger a variedade infinita das fachadas ogivaes em curtas regras e poucos principios. Diremos mais: é quasi impossivel descrever a mais modesta só com simples palavras oraes ou escriptas. As torres ogivaes são caracteristicas, de extrema elegancia, principalmente quando coroadas de elevadas, finas e rendilhadas agulhas. Offerecem a impressão de força e grandeza, sem duvida; mas a profusa ornamentação e as grandes janelas, onde reina a ogiva, dão-lhes um aspecto especial de leveza e elegancia, que não possuem as romanicas. Algumas vezes as torres da fachada apresentam-se deseguaes; accusando, assim, a secundaria importancia da egreja na hierarchia ecclesiastica. Estes e outros caracteres dos templos ogivaes manifestam-se tão salientes, impressionam tão profundamente a intelligencia e a memoria, que os menos entendidos e versados na architectura podem distinguil-os, classificando com relativa facilidade edificios bem definidos. A ornamentação ogival é em extremo complexa; mas tão harmonica e bem combinada, que produz a sensação de grande simplicidade. Para bem a apreciar seria indispensavel estudar elemento a elemento as differentes partes de um edificio, o que não podemos fazer. Na ornamentação mural do seculo XIII predomina o reino vegetal; na Cathedral de Reims, por exemplo, contaram-se mais de trinta especies vegetaes differentes, espalhadas pelos varios pontos do edificio. Os ornamentos mais usados são os trifolios, os quadrifolios, as violetas, as crossas ou arpões, orlando os angulos das pyramides e as linhas dos frontões e das cornijas, os pinaculos, rematando as cabeças dos botareos, os nichos com doceis mais ou menos pyramidaes e rendilhados, zig-zags, cabeças de pregos e algumas outras molduras romanicas. A antiga ornamentação byzantina, que floresceu ainda no Estylo Romanico, tende a desapparecer. O trabalho é fino e perfeito; procura-se imitar a natureza, sem a copiar, com extrema liberdade de concepção e firmeza de execução. No seculo XIV esta ornamentação subsiste. Os doceis dos nichos tomam fórmas mais elevadas e pyramidaes. Os triforios obscuros tornam-se transparentes, illuminados por janelas. As arcaturas teem n'este periodo uso mais geral. No seculo XV, domina nas molduras a secção prismatica. Os doceis dos nichos accentuam-se em elevação e em caprichosos e ricos ornamentos. Os caixilhos, ou almofadas, constituem decorações muito vulgares, que mascaram a nudez das paredes. A ornamentação do seculo XV acompanha, como é natural, a evolução do estylo, é grandiosa e complexa, approximando-se das fórmas da renascença. A esculptura no seculo XIII começa a perder as fórmas tradicionaes e byzantinas dos seculos anteriores. Tem mais grandeza e naturalidade, sem prejudicar a uncção religiosa. A architectura emancipou-se da influencia monastica, a esculptura seguiu-lhe o exemplo. É o elemento profano que vae preparando successivamente o movimento artistico da renascença, pelo estudo da natureza e da antiguidade classica. No seculo XIV apparecem as creações grotescas, algumas assás livres, e as satyras da vida monastica, de que entre nós existem exemplos. Na Egreja da Batalha, alguns capiteis mais elevados, segundo nos disseram operarios que os restauraram, descrevem scenas equivocas, ou pelo menos pouco edificantes. Não pudémos verifical-o, attendendo a enorme altura dos capiteis e á pouca claridade do templo. Algumas gárgulas offerecem disposições parecidas; uma parece symbolisar accentuadamente o classico deus Priappo. No antigo Convento da Conceição em Evora, mosteiro de freiras, uma gárgula representa uma freira, dando á luz uma creança. Na egreja matriz de Caminha, outra gárgula figura um homem, voltando as costas para Hespanha em posição assás equivoca. Estas e outras anomalias, aliás vulgares e caracteristicas n'este estylo, procurámos explical-as, tratando da organisação das associações _franco-maçonicas_. Em qualquer caso, são o producto do trabalho independente da acção monastica, talvez uma manifestação deploravel da liberdade de pensamento, que foi a aspiração do segundo periodo da Edade-Media. No seculo XV a esculptura e a pintura libertam-se. A verdade da natureza traduz-se nas posições e nos actos. Sente-se bem que a Renascença está á distancia de um seculo. Os esculptores e os pintores teem individualidade propria, as suas escolas e os seus discipulos; não se apresentam simples decoradores, manifestando já a dignidade de artistas, que professam artes independentes. A pintura mural foi muito usada no Estylo Ogival. No interior, as abobadas eram, ás vezes, pintadas de azul e constelladas de ouro e prata. A côr verde applicava-se aos capiteis, a encarnada aos fustes das columnas. Nas paredes desenhavam-se varios ornamentos, em alguns casos simulando elementos architectonicos que melhor pertencem á esculptura. No exterior, a pintura cobria tambem os portaes, as arcaturas e os pontos principaes do edificio. As folhagens offereciam a côr verde e as figuras dos porticos eram recamadas de ouro. A pintura mural rivalisava com a dos grandes vitraes. O tempo fel-a, porém, desapparecer quasi por completo, habituando a esthetica moderna a não comprehender nem admirar a polychromia dos edificios, aliás tambem muito empregada nos Estylos Classicos. A Sainte Chapelle de Paris, modernamente restaurada, offerece no interior um excellente exemplo da pintura mural. É, todavia, mais do que provavel que este uso não fosse geral, pelo menos nas egrejas de menor importancia. Segundo a nossa opinião, devemos confessal-o, as velhas cathedraes devem aos seculos o grande beneficio de lhes haverem substituido o effeito garrido da pintura exterior pela côr sombria e solemne, que provém da acção do tempo. Um dos mais bellos ornamentos do Estylo Ogival consiste, sem a menor duvida, nos vitraes. As vidraças multicolores, rutilantes á luz do sol, como se fossem de pedrarias, coando serena claridade pelas grandes superficies irisadas, onde se desenham, envoltos em caprichosa ornamentação, complexas scenas, paisagens, episodios guerreiros ou religiosos, nichos rendilhados com grandes figuras asceticas, produzem effeitos de luz surprehendentes e de extrema belleza esthetica. Estes vitraes polychromicos causam uma impressão profunda e indelevel, em que se mistura a poesia da alma com a musica das côres. Sem elles as mais bellas cathedraes perderiam grande parte do espirito mystico e do seu finissimo caracter artistico. Vimos apparecer estes vitraes no ultimo periodo romanico, pelo menos com mais importante applicação; vamos agora esboçar as transformações, que soffreram nos seculos seguintes. No seculo XIII, as vidraças coloridas attingem grande perfeição. A arte do vidreiro e a pintura aperfeiçoaram-se. Como se chegou a obter na mesma chapa de vidro côres differentes e esbatidas, as malhas do tecido de chumbo são maiores, não recortam tanto o desenho, e os tons dos vitraes manifestam mais harmonia e doçura. As figuras são mais elevadas, o que provém logicamente dos grandes vãos das janelas. Os ornamentos, mais cuidados e ricos, harmonisam-se com os do interior do templo. São variadissimos os motivos; scenas do Novo e Antigo Testamento, lendas do Christianismo, o florilegio dos martyres, combinam-se com episodios do tempo e representações de industrias coévas, verdadeiros subsidios de estudo. Retratos de personagens da epocha, ecclesiasticas e civis, guerreiros com armaduras e bispos paramentados, constituem recordações historicas de piedade christã e de votos dos que offereceram estes despendiosos ornamentos, que embellezam as antigas cathedraes. No seculo XIV o desenho dos vitraes é mais correcto e as figuras vão sempre perdendo o caracter byzantino. Os pintores começam a estudar mais a antiguidade e a natureza, abandonando as fórmas tradicionaes dos seculos anteriores. A esthetica consegue em bellos effeitos o que perde em originalidade e espirito de tradição, que aliás encerra sempre manifestações de belleza mais de accordo com a architectura dos templos. As côres tornam-se menos vivas, prevalecem as neutras pouco carregadas. As egrejas precisam de luz, a fim de que os fieis possam ler nos breviarios os exercicios divinos; as vidraças tornam-se, pois, mais claras. A Imprensa, inventada no seculo XIV, se esclareceu o mundo, sacrificou um pouco as velhas cathedraes, desfazendo essa penumbra doce e encantadora que era a expressão mais adequada ao mysticismo religioso. Uma ornamentação, embora accessoria, que embelleza as cathedraes ogivaes, é a rica obra da talha ou a esculptura em madeira, principalmente nas cadeiras dos córos, que nos estylos mais primitivos eram de pedra. A perfeição d'este trabalho attinge proporções admiraveis no seculo XIV. N'este genero de coros, em que a nossa pobreza é extrema, deve citar-se o da Sé da Guarda. Em Hespanha, pelo contrario, ha riquezas immensas nos coros e nas respectivas obras de talha. O mais rico, que temos visto é o da Cathedral de Sevilha, collocado segundo o uso n'aquelle paiz na nave principal, como no Estylo Latino. Este côro, admiravel e riquissimo em todo o sentido, parece-nos que deve datar dos meiados, se não dos fins do seculo XVI. Antes de finalisar este capitulo, são indispensaveis algumas considerações geraes de ordem mais ou menos technica, que somos forçados a desenvolver. Em nenhuma das phases da evolução da arte se manifesta mais accentuada a influencia do _meio_, do que no Estylo Ogival. Provam esta asserção a unidade dos seus caracteres geraes e tambem a sua rapida dispersão nas zonas, onde esse _meio_, como o definimos na introducção d'este livro, era mais ou menos identico; todavia, a existencia de elementos e de condições particulares nos differentes paizes tinha de influir necessariamente nos caracteres da arte. As construcções ogivaes, obedecendo á influencia do _meio_ particular das nações, entre as quaes se desenvolveram, tomou feições proprias em cada uma, muito embora subordinadas ás leis e aos caracteres geraes do estylo. O mesmo facto succedeu com o Estylo Romanico. Assim, as feições especiaes, diriamos talvez mais nitidamente as physionomias, do ogival allemão, francez e inglez são por tal fórma definidas, que os grandes entendedores da arte as distinguem com facilidade. A evolução e a decadencia do estylo não se manifestaram, tambem, em identicos periodos: por exemplo, a Inglaterra conservou mais puro e duradouro o bom estylo, não experimentando quasi o periodo de decadencia. A Italia, principalmente ao sul, offereceu sempre tenaz resistencia a todas as innovações artisticas, que mais se distanciavam do profundo espirito classico, herdado no sangue das gerações successivas e conservado em numerosos restos dos antigos monumentos. Ao Estylo Ogival aconteceu facto analogo: as suas construcções appareceram primeiro nos pontos, onde menos abundavam as romanicas. Não falaremos na Grecia e no Oriente, porque n'esses paizes o _meio_ social conservou-se sempre differente. A estas indicações se deve attender na historia de um estylo, sem perder, tambem, de vista que a unidade e a harmonia dos edificios são sempre prejudicadas pela demorada construcção. É sabido, com effeito, que alguns dos maiores monumentos ogivaes levaram seculos a terminar, não falando, ainda, nas successivas restaurações, que chegam a alterar a unidade e o caracter de um edificio. Um facto, que parece caracteristico tanto no Estylo Romanico como no Ogival, consiste no pequeno numero de nomes dos grandes architectos, que nos conservou a historia, emquanto são conhecidos muitos dos classicos. Tem-se procurado, com excesso de paciencia archeologica, explicar este facto pela humildade christã dos frades architectos do Estylo Romanico e pela organisação especial das associações _franco-maçonicas_, principaes constructoras dos edificios ogivaes. Talvez em parte fossem estas causas a origem do silencio; não comparemos, porém, a illustração e o gosto artistico dos cidadãos livres da Grecia e de Roma com a ignorancia dos barões feudaes e dos cavalleiros medievaes, que timbravam em não saber ler e escrever, sellando os documentos com os copos das proprias espadas. Nem confundamos a plebe d'aquellas florescentes republicas com a multidão desgraçada e quasi selvagem da Edade-Media. Nos paizes classicos a arte foi sempre considerada nobre e elevada funcção; na Edade-Media deve ter sido apenas olhada como simples profissão. Assim, conservaram-se os nomes dos fundadores dos templos e dos grandes e poderosos da terra, para quem foi inventada a Historia; os dos pequenos e humildes, embora geniaes e creadores, mergulharam nas trevas do esquecimento e da ignorancia medieval. Alem d'isso, os architectos não punham em evidencia os seus nomes. Aqui e além dão-se pequenas excepções a esta regra. Quando muito, empregavam signaes caracteristicos e proprios em qualquer ponto evidente da construcção. Assim, já o dissemos, na pequena e elegante capella do Estylo Ogival secundario, agora em via de restauração na Sé de Lisboa, a flor de lyz, gravada na face de uma columna prismatica, póde bem indicar a origem franceza do architecto. Os signaes gravados nos silhares dos monumentos ogivaes tambem são muito vulgares. Teem sido attribuidos a simples marcas dos canteiros, que indicavam, talvez para pagamento, as pedras feitas por cada um. O facto de serem os signaes gravados na pedra e alguns difficeis e complicados, como se póde verificar no Mosteiro da Batalha, prejudica no nosso espirito esta hypothese. Mais provavel nos parece que sejam signaes particulares das differentes lojas maçonicas, ou secções d'ellas, a que pertenciam os differentes trabalhadores, mestres e architectos. O assumpto não offerece, aliás, senão o simples valor de curiosidade. Temos exposto, segundo nos parece, os caracteres principaes do Estylo Ogival. O trabalho é incompleto, nem podia deixar de o ser em assumpto tão vasto e complexo, sobre o qual muito se tem escripto e muito ha ainda para escrever. N'este estylo temos, felizmente, um riquissimo exemplar no Mosteiro da Batalha, cuja historia e descripção reservamos para uma parte especial d'este livro. Esta rapida monographia completará a exposição feita, melhor talvez do que outros desenvolvimentos mais ou menos didacticos. Na nossa opinião, o Estylo Ogival é a mais elevada expressão esthetica, até hoje revelada na evolução da architectura. Para o comprehender não é necessario ser artista, sabio ou crente; bastará, apenas, possuir algum sentimento, firmado em instrucção vulgar, e comparar os movimentos do nosso espirito em face das creações dos melhores estylos. Nós vimos grandes templos, restos da antiguidade classica, sumptuosas basilicas, magnificos exemplares byzantinos e romanicos; encontrámol-os por muita parte. Em longas horas de contemplação e de estudo, procurámos o espirito d'esses monumentos, transportando-nos aos seculos, que lhes imprimiram physionomia. As impressões mais perfeitas e harmonicas foram-n'os dadas, sempre, pelas grandes cathedraes do Estylo Ogival. CAPITULO SEXTO O ESTYLO OGIVAL ENTRE NÓS Eis um capitulo por natureza curto. Se Portugal é, infelizmente, pobre em monumentos, a sua penuria manifesta-se extrema nos do Estylo Ogival. O Estylo Romanico deixou entre nós algumas construcções, mais ou menos importantes, embora, em geral, estragadas depois por inscientes restaurações, que o cuidado e o gosto moderno vão a pouco e pouco substituindo, a fim de darem aos edificios a possivel pureza primitiva. A Sé de Coimbra, egreja romanica do segundo periodo, é bom exemplo d'este gosto e cuidado. Pelo paiz inteiro, pelo menos na parte por nós percorrida, encontram-se de quando em quando trechos do Estylo Romanico de soffrivel valor, escondidos no mesmo edificio por entre outros ogivaes e da renascença. Assim, um dos nossos primeiros monumentos, o Convento de Christo em Thomar, offerece construcções differentes. A subida importancia que outr'ora teve este Mosteiro, sem duvida o mais rico do paiz, a extrema e curiosa diversidade de estylos, que elle manifesta, aconselha-nos mais detida descripção, embora exceda em parte os quadros d'este livro. [Figura: 1 Terreiro e escadorio. | 6 Sacristia. 2 Adro. | 7 Portaria. 3 Charola, egreja primitiva. | 8 Côro e corpo da egreja. 4 Antiga porta da egreja primitiva. | 9 Claustro de João III--Filippes. 5 Claustro do D. Henrique ou Cemiterio. | 10 Refeitorio. 11 Claustro de Santa Barbara. ] Na anterior planta estão descriptos os elementos do grande edificio, que nós suppomos deverem ser considerados verdadeiramente monumentaes; o que não quer dizer que n'outros pontos, já na parte pertencente ao Estado, já n'aquella que infelizmente foi vendida, não existam trechos de verdadadeiro valor artistico e historico, dignos de cuidadosa defeza e conservação. [Figura: CONVENTO DE THOMAR--Fachada da Egreja] A egreja actual é formada por dois corpos, construidos em seculos differentes. O circular, que parece hoje constituir a charola da egreja, foi o templo primitivo. Pertence ao Estylo Romanico, talvez terciario, visto que a ogiva, embora pouco accentuada, se desenha sob as camadas de estuque, que revestem os oito arcos do recinto octogonal, cuja abobada forma uma especie de zimborio sobre o altar. Primitivamente, este recinto tinha o aspecto de torre central, elevando-se a respectiva abobada bastante acima da abobada anelar da nave envolvente. A antiga porta de entrada, virada ao nascente, foi transformada em janela, quando á egreja romanica se annexou o corpo rectangular. N'esta fórma do primitivo templo sente-se a indiscutivel influencia de S. Vital de Ravenna e do Santo Sepulcro de Jerusalem. Nos começos do seculo XV foi construido ao norte da primitiva egreja o Claustro de D. Henrique ou do Cemiterio, que, embora muito simples e pequeno, é de assás puro e elegante Estylo Ogival; talvez do terceiro periodo, se attendermos aos caracteres dos capiteis das columnas, unicos elementos que poderão servir para rigorosa classificação architectonica d'este claustro. Nos fins do mesmo seculo XV e principios do XVI elevou-se a construcção do actual corpo da egreja, que abre para o primitivo templo circular, transformado em capella-mór, por grande arco, rasgado na respectiva parede. A nova entrada, olhando o sul, é formada por um magnifico e elegante portal. Assim, antes da construcção do Claustro de D. João III, vulgarmente chamado dos Filippes, toda a fachada sul da egreja, comprehendendo este portal e duas grandes janelas de volta inteira, bem como a fachada Occidental, ficavam livres e visiveis. O côro, outr'ora guarnecido de excedente obra de talha, occupa quasi metade do corpo da egreja e firma-se sobre a abobada da casa do capitulo. Por esta fórma, a fachada occidental, ladeada por dois formosos e originaes botareos, offerece entre elles na parte superior uma rosacea, abrindo no côro, e na inferior, illuminando a casa do capitulo, uma magnifica janela com rica ornamentação de algas, embora na realidade um pouco pesada. Toda esta parte do edificio é do Estylo da Renascença do primeiro periodo, entre nós chamado manuelino, manifestando-se na fachada occidental grande influencia do oriente, principalmente na decoração dos botareos e da janela das algas. Pouco depois do meiado do seculo XVI foi construido e encostado á fachada sul da egreja, da qual mascara grande parte, o Claustro de D. João III, erradamente denominado dos Filippes. Este claustro, que faz recordar os magnificos pateos dos palacios florentinos, é de excellente Estylo da Renascença italiana. Emquanto a nós, se não constitue o unico exemplar nacional d'este estylo, deve pelo menos ser considerado o mais puro e completo. Para o claustro, ou mais rigorosamente para este pateo, abria outr'ora a porta do refeitorio, que da parte monumental é elemento integrante e indispensavel, como o indica a planta. Esta bella e ampla sala abobadada pertence tambem ao Estylo da Renascença; hoje, porém, encontra-se separada do monumento, havendo sido murada a respectiva porta. Embora seja propriedade do Estado, anda ha longos annos arrendada ao proprietario de parte do Mosteiro e da respectiva cêrca, servindo-lhe de celleiro! Todos os esforços empregados até agora para acabar com este arrendamento, ainda os mais recentes feitos pelo Conselho dos Monumentos Nacionaes, têem sido infructiferos[4]! Do Claustro do Cemiterio passa-se para a sacristia, peça de secundario valor architectonico, construida nos fins do seculo XVI em Estylo da Renascença, frio e pesado, que faz lembrar muito a singular physionomia da renascença do Escurial. Esta succinta descripção demonstra a importancia architectonica do Mosteiro de Thomar, bello exemplar onde se casam os mais perfeitos estylos com ornamentações ricas e caracteristicas. Devemos, porém, observar que, no rigor da palavra, a parte não monumental do grande edificio monastico envolve tambem elementos e trechos de bastante valor artistico. Assim, no Claustro da Micha, não comprehendido na planta junta, existem tres grandes salas, onde a tradição affirma que se reuniram as Côrtes de Thomar. Se é possivel duvidar d'esta tradição, embora o estylo das salas seja da epoca, não padece duvida alguma que todas, principalmente a da Nobreza, são bellas e dignas de conservação, ou talvez melhor de salvamento, porque o tempo e o vandalismo acabarão por destruil-as sem remedio[5]. Além d'isso, o Mosteiro manifesta riquissima construcção quer em materiaes, quer em trabalho; assim, por exemplo, os corredores para onde abrem as cellas, na realidade multiplas, vastas e sobrepostas galerias cortando-se em angulo recto, são cobertos por tectos de volta inteira e apainelados de excellente carvalho do norte. De espaços em espaços, encontram-se n'estas galerias bellos trechos e baixos-relevos da pura arte da renascença. A conservação em que tudo isto se encontra, exceptuando os edificios monumentaes descriptos, menos descurados hoje, é quasi deploravel na parte pertencente ao Estado; porque a outra parte do Mosteiro, talvez a maior, encravada nas pertenças nacionaes sem ordem e sem nexo, bem como a bella cêrca e outras valiosas propriedades conventuaes, foram vendidas por somma irrisoria[6]. Entre todos os mosteiros nacionaes, exceptuando o de Mafra e o de Alcobaça, suppomos que o de Thomar é o maior e o segundo na ordem da riqueza artistica e historica. Uma administração nacional sensata e illustrada teria conservado completo e mobilado este bello monumento, como typo da vida e dos costumes monasticos. Seria, por assim dizer, um exemplar unico no mundo. Hoje, alienada parte do edificio, vendidos a desbarate ou roubados os moveis e os livros, esta restauração seria quasi impossivel; mas, no que nos resta ao menos, o edificio deveria ser conservado como excellente exemplo de uma feição caracteristica e importante das organisações sociaes dos seculos passados[7]. Grande parte das egrejas no norte do paiz, foram primitivamente do Estylo Romanico do primeiro ou do segundo periodo, mas são de construcção acanhada e pobre, offerecendo cobertura de madeira. No sul ainda a escassez de monumentos é maior. Em todo o Algarve, depara-se-nos apenas a Sé de Faro e a de Silves, que merecem alguma attenção. Julgamos que a ultima obedece aos principios das construcções do norte: Estylo Romanico do terceiro periodo--transição--naves cobertas de madeira, côro abobadado, mas tudo em lastimoso estado de conservação artistica. A Egreja Matriz de Caminha parece-nos constituir um bello exemplo d'este typo de egrejas do norte. Sem duvida, a primeira construcção foi romanica do segundo periodo. Soffreu, depois, grandes restaurações no tempo da renascença manuelina. A fachada, composta de tres corpos distinctos desenhando as naves internas, é d'este definido estylo. No interior, muito interessante, existem tres naves. A cobertura é de carvalho e de castanho, com vigas descobertas. Arcos de volta inteira sobre columnas delgadas dividem as naves. As paredes lateraes d'estas naves não tinham primitivamente capellas; as que hoje existem são dos seculos XVI e XVII. A egreja acha-se revestida até á altura dos capiteis das naves por azulejos ordinarios, datados de 1690. D'ahi para cima as paredes estão caiadas. O templo primitivo não tinha côro sobre a porta principal, o que existe na actualidade é de construcção moderna. A capella-mór, tambem manuelina, é coberta por uma bonita abobada. No exterior d'esta capella-mór corre um bello friso de corda e por baixo d'elle outro, simulando uma cadeia de ferro. É o primeiro que vimos n'este genero. Na fachada lateral da egreja ha uma bonita porta da renascença. A construcção é toda de granito. Em geral, os ornatos estão muito apagados, porque o granito empregado tem o grão muito grosso e esborôa-se, exposto á acção do tempo. Fazemos esta ligeira descripção para darmos idéa de um typo assás vulgar das nossas egrejas secundarias do norte e do seu estado actual. Parece-nos dever concluir, do que temos visto, que as construcções religiosas em Portugal foram bastante activas nos seculos XI e XII, isto é, no periodo romanico. O periodo ogival não manifesta a mesma actividade. Na Sé de Lisboa, como nas de Evora e de Braga e n'outros pontos, o ogival apparece certamente; mas, em geral, parece-nos que foi trazido pelas restaurações dos edificios e pela construcção de capellas annexas. Assim, na Sé de Lisboa, como vimos, a charola é ogival, guarnecida de capellas, resultando da restauração da antiga charola do romanico secundario, estylo a que pertence a egreja. O claustro é tambem ogival e deve datar da restauração da charola. Á esquerda, logo a principio da nave lateral da egreja, foi construida nos meiados do seculo XIV uma elegantissima capella ogival, por testamento de Bartholomeu Joannes. Esta capella é talvez, apesar das suas pequenas dimensões, um dos mais ricos exemplares do ogival francez do segundo periodo, existente em Portugal. As suas disposições fazem lembrar--até certo ponto e com a devida modestia--as da Sainte Chapelle de Paris. Está hoje em adeantada restauração; devendo constituir, em breve, a unica construcção completa do Estylo Ogival em Lisboa. A Egreja do Carmo, como o attestam as respectivas ruinas, foi um edificio ogival do segundo periodo, de certa grandeza e de bastante valor architectonico, muito embora diminuido por evidentes restaurações, sobre tudo na capella-mór e nas capellas lateraes das naves, que a primitiva egreja não devia ter. Esta construcção, começada alguns annos depois da do Mosteiro da Batalha, seguiu-lhe o plano, pelo menos nas disposições geraes; sem, comtudo, ter podido nunca manifestar a elegancia e a pureza de estylo do seu bello modelo. É para lamentar que o terremoto de 1755 inutilisasse o unico edificio ogival importante de Lisboa. Hoje, não seria rasoavel restaural-o completamente; mas dever-se-ia tentar, com proveito para a arte nacional e para a decoração da cidade, a _restauração das ruinas_,--se nos consentem a expressão--o que não seria obra difficil nem dispendiosa. Da Egreja de Alcobaça já falámos anteriormente, classificando-a de preferencia no Estylo Romanico de transição. Julgamos, pois, opportuno apresentar agora as rasões de ordem architectonica, em que fundamos esta classificação, que póde ser talvez impugnada. Este edificio religioso, um dos maiores se não o maior que entre nós existe, é attribuido tambem a D. Affonso Henriques; sendo, portanto, coévo da Sé de Lisboa; seria, porém, completamente edificado no seculo XII, ou apenas restaurado e engrandecido n'esse seculo um templo primitivo existente? Confessamos não possuir elementos sufficientes para dar fundada resposta a esta pergunta, embora nos inclinemos para a segunda hypothese. Esta investigação, que aliás teria importancia para o estudo perfeito do monumento, é dispensavel no caso presente, em que apenas procuramos classifical-o e firmar a nossa opinião em affirmações claras e positivas. Em seguida, apresentamos a planta da parte monumental do Mosteiro de Alcobaça, famoso pela grandeza do edificio, pelas ricas propriedades conventuaes e pelas tradições de opulencia gastronomica dos frades beneditinos, que o habitaram. [Figura: 1 Egreja. | 5 Sacristia. 2 Sala dos Reis. | 6 Capella do Santissimo. 3 Sala dos tumulos. | 7 Claustro de D. Diniz. 4 Vestibulo. | 8 Sala do Capitulo. ] A parte monumental é relativamente pequena em relação á enorme superficie do Mosteiro; todavia, a egreja deve em comprimento considerar-se a maior do paiz. A fachada foi, evidentemente, restaurada, ou melhor, reconstruida já no periodo da renascença, talvez a partir dos meiados do seculo XVII, aproveitando-se pelo menos parte do antigo portal. Esta fachada manifesta-se fria e pesada, pertencendo ao estylo, assás espalhado entre nós, que de bom grado chamariamos _jesuitico_; porque nos parece traduzir a ferrea disciplina, o caracter forte e combatente, o methodo implacavel e severo d'essa machina de guerra religiosa, chamada Companhia de Jesus, que, durante seculos, dominou a sociedade portugueza, organisando-a á sua imagem e similhança nas instituições, na philosophia, na sciencia, na religião e até nas manifestações estheticas. É preciso, em verdade, confessar que a fachada da Egreja de Alcobaça, apesar das qualidades indicadas, offerece elevado cunho de severidade e um grande aspecto solemne, que até certo ponto se nos impõe, resgatando os defeitos do respectivo estylo. É como a disciplina e o espirito jesuiticos, aos quaes, por mais antipathicos que se manifestem á nossa intelligencia e ao nosso sentimento, não podemos deixar de reconhecer grandeza e de tributar um odiento respeito. [Figura: CONVENTO DE ALCOBAÇA--Fachada da Egreja] A egreja no interior não exprime, tambem, o sentimento religioso, que se apodera da alma em edificios ogivaes d'esta natureza, principalmente na bella Egreja do Mosteiro da Batalha. Este facto provém talvez mais de condições secundarias do que das disposições geraes architectonicas. É possivel que a impressão fosse profundamente modificada, se a egreja tivesse um dia completa e perfeita restauração e os vitraes polychromicos produzissem a suave e poetica luz, que hoje falta por completo ao grande templo. Em todo o caso, a egreja não deixa de causar uma sensação profunda de majestosa e solemne severidade, exactamente aquella que produzem os edificios romanicos e, sem duvida, provém da synthese caracteristica dos elementos fundamentaes do estylo. A egreja tem tres elevadas naves, cujas respectivas abobadas se elevam a egual altura. As lateraes são muito estreitas e como excepção, que julgamos assás rara, inflectem-se em angulo recto, acompanhando os braços do transepto. A capella-mór, relativamente pequena, é envolvida pela charola, onde foram abertas capellas. Suppomos que estas capellas devem ter sido construidas no periodo ogival; estão, porém, tão cobertas de obra de talha dourada, que não é facil fazer seguras affirmações sobre este ponto. As columnas romanicas da capella-mór, bem caracterisadas, segundo pensamos, do periodo secundario, são visiveis da charola; pela frente, estão mascaradas por intercolumnios classicos semicirculares, de construcção relativamente moderna, muito elegantes: o inferior da Ordem Jonica e superior da Composita. N'este ponto reside, sem duvida, uma das difficuldades e um dos problemas de qualquer futura restauração. O Claustro de D. Diniz--damos-lhe a designação vulgar--fica encostado á parede norte da egreja, commum a ambas as construcções. É um bello e grande claustro, o terceiro na ordem architectonica dos que existem no paiz, considerando o primeiro o do Mosteiro da Batalha pela unidade e delicioso estylo e o segundo o do Mosteiro dos Jeronymos. Primitivamente este claustro apenas teve, como o da Batalha, porticos inferiores, segundo todas as probabilidades cobertos por terraços; nos fins do seculo XV ou no XVI foram construidos os porticos superiores, cuja cobertura é de madeira e telhados amouriscados. A Sala do Capitulo abre no portico oriental inferior do claustro. É uma bella peça architectonica; sobretudo, a grande porta, ladeada de quatro janelas, duas de cada banda, constitue um dos melhores exemplares romanicos, existentes no paiz. Ninguem acreditará, por certo, que esta porta e estas janelas, tão puras e caracteristicas, se acham muradas, ficando separada da parte monumental a respectiva sala, que outr'ora serviu de _picadeiro_ ao regimento de cavallaria aquartelado no velho Mosteiro e hoje está occupada pelo _gymnasio_ militar! Os restantes edificios, exceptuando a chamada Sala dos Reis, são construcções posteriores, annexas ou encostadas ao antigo monumento. Por pouco se recommendam, embora sejam elementos integrantes e indispensaveis da parte monumental. A Sala dos Reis deve ser coéva da egreja e do claustro, quer seja primitivo o seu estado actual, quer resulte de posteriores reconstrucções. Não tem valor architectonico. A sua designação provém de umas estatuas (?!) de gêsso com olhos pintados, que sobre misulas de pedra _ornam_ as paredes do recinto. Uma só phrase define estas grotescas personagens: _ridiculas e vergonhosas_. Seria uma obra de misericordia artistica e de amor patrio tirar d'ali aquelles _mônos_, que attestam a esthetica dos gordos frades de Alcobaça e nos envergonham perante nacionaes e estrangeiros, hoje começando a affluir em visita ao monumento. A Sala dos Tumulos, abrindo no ramo sul do transepto, é de construcção posterior á da egreja. Edificio vulgar, contém, apenas, alguns sarcophagos de valor, principalmente o de D. Pedro I e o de D. Ignez de Castro, magnificos exemplares do Estylo Ogival, embora um pouco damnificados pelas profanações, que em geral soffreram as nossas ricas sepulturas _no tempo dos francezes_. É a defeza habitual da incuria e falta de respeito pelas tradições e pelos mortos. Tambem, muito posteriormente á construcção da egreja, uma das capellas envolventes da charola foi rasgada para ligar o templo com a sacristia actual. Esta sacristia, de Estylo da Renascença, é muito pobre e quasi glacial. Parece-nos posterior á restauração da fachada. No extremo da sacristia vê-se um Relicario circular, todo forrado de talha dourada e de bustos de madeira, em geral assás feios e mal feitos, que encerravam as reliquias. Apesar dos defeitos e do pessimo estylo, se esta palavra se póde applicar ao caso, este Relicario deveria ser restaurado, como exemplar dos costumes religiosos do tempo. Em frente da sacristia encontra-se uma capella, actualmente do Santissimo, sem valor architectonico absolutamente algum. Todavia, no vestibulo, que serve esta capella e á sacristia, as duas respectivas portas são de excedente Estylo da Renascença manuelina. Eis a succinta descripção da planta da parte monumental do Mosteiro de Alcobaça. No resto do edificio nada encontramos que mereça attenção a não ser a Sala da Bibliotheca, do Estylo da Renascença, vastissimo salão com estuques modernos a caír em pedaços e ameaçando proxima e perigosa ruina. Nos vãos das respectivas janelas existem ainda vestigios da antiga ornamentação, onde se nota a influencia dos frescos e pinturas muraes de Pompeia, tão usadas depois da descoberta, no meiado do seculo XVIII, e das excavações d'esta antiga cidade romana, situada nas margens do Golpho de Napoles. Não mencionaremos a _pantagruelica_ cozinha dos gastronomos frades de Alcobaça, que, segundo parece, a todas as artes preferiam, a julgar pelo _sanctuario_, a arte culinaria e as famosas _tremendas_, pequenas refeições de um arratel de toucinho assado! A que estylo pertencem a egreja e o claustro, ao Romanico de transição ou ao Ogival primario? É claro que em face d'estes edificios vamos collocar-nos como os classificadores zoologicos ou botanicos em frente de novos exemplares. Além d'isso, não temos a pretensão de resolver o problema; desejamos, apenas, enuncial-o claramente, o que em mathematica se considera meia resolução. Comecemos pela egreja, fazendo notar não só a impressão particular, que ella produz, mas tambem a circumstancia de que tanto este edificio, como o claustro e a casa do capitulo se encontram tão ligados, tendo paredes communs, que no respectivo conjunto a construcção deve ter sido pelo menos quasi simultanea. Enumeremos, pois, os principaes caracteres romanicos bem definidos d'estas construcções. A egreja offerece os seguintes: 1.^o Os pilares das arcadas, que dividem as naves, são rectangulares, massiços e muito fortes, embora assás elevados. Os cinco primeiros de cada lado, a contar do transepto, têem columnas nichadas nos quatro angulos. Nas faces exteriores d'estes pilares, as columnas, que sustentam os arcos da nave central perpendiculares ao respectivo eixo, são chanfradas em certa altura, não chegando ao pavimento. Nos oito pilares seguintes, tambem de cada lado, desapparecem as columnas nichadas e as das faces exteriores assentam sobre fortes misulas. Todas estas columnas, que revestem de grandes em grandes espaços os pilares rectangulares, embora sejam muito elevadas, manifestam relativamente grande grossura. Estamos, pois, bem longe dos pilares polistylos ogivaes. Assim, se a um architecto dessem isoladamente a secção d'estes pilares e parte da sua elevação, cremos que não duvidaria em classifical-os romanicos. 2.^o Em algumas bases das columnas da egreja apparecem garras, cuja fórma nos parece accentuadamente romanica. 3.^o As portas da Sala dos Reis, a da entrada para o claustro e a do refeitorio, no portico norte d'este claustro, manifestamente primitivas, são _caracterisadamente_ romanicas. 4.^o Os arcos primitivos da capella-mór são de puro Estylo Romanico. 5.^o As janelas da capella-mór, as orientaes do transepto e as lateraes das naves, excepto a ultima de cada lado proximas do transepto, são de volta inteira. D'esta exposição suppomos dever concluir a supremacia do arco continuo nos elementos fundamentaes da egreja. A ogiva apparece, sem duvida, mas nem ao menos é dominante. Assim, na abobada da nave central apresenta-se pouco accentuada e se o é nas lateraes, póde o facto attribuir-se á condição da egual altura dos fechos das abobadas nas tres naves, que obrigou o constructor a dar maior ponto aos arcos, pronunciando a ogiva. É verdade que o portal da fachada principal é ogival; mas nada prova que esse portal seja o primitivo. Além d'isso, os respectivos capiteis, de folhagens e galões com muito pequeno relevo, são mais romanicos do que ogivaes. Passemos agora ao claustro: 1.^o A porta e as janelas da Sala do Capitulo são _absolutamente_ romanicas. 2.^o Os porticos inferiores são formados de dois ou tres arcos geminados de ogiva bem definida, com pequenas rosaceas sobre os angulos curvilineos; mas o grande arco envolvente é _sempre_ de volta inteira. 3.^o O pavilhão da fonte tem janelas nas quaes a ogiva mal se desenha. Se a tudo isto juntarmos que o coroamento do edificio, na parte primitiva, é formado de ameias, repousando sobre forte e simples cachorrame, teremos dado a summula dos argumentos architectonicos, em que nos fundamos para a classificação do monumento. Outros mais entendidos do que nós que os apreciem, porque na realidade não temos em geral grande amor ás nossas idéas e em todas as occasiões da nossa vida, sem sacrificio de vaidade, temos procurado apenas a verdade. Este bello Mosteiro de Alcobaça teve sorte egual ao de Thomar. Não o venderam, é certo; mas transformaram-n'o em caserna e abandonaram-n'o á pilhagem. Verdade seja que hoje lá vamos com diminuta somma restaurando lentamente o magnifico claustro. Afóra isto, nada mais existe no paiz do Estylo Ogival, pelo menos que o conheçamos, a não ser em pequenos edificios e em trechos encravados em egrejas romanicas; eis o que nos parece incontestavel. Assim, na realidade, o unico monumento puro, completo e relativamente grande, que Portugal possue do Estylo Ogival, é o Mosteiro da Batalha; por isso mais detidamente o vamos estudar e descrever. Da Renascença não é tão accentuada a nossa pobreza. Durante os seculos XVI, XVII e XVIII reparou-se e construiu-se bastante entre nós. As construcções são em geral acanhadas, é certo; ás vezes, de um estylo de pessimo gosto, como o de quasi todas as egrejas d'esse estylo frio, deselegante, disciplinado e monotono, que, segundo dissemos, parece ter nascido da influencia do espirito jesuitico, dominante n'esses seculos. Mas edificios existem, como o Mosteiro dos Jeronymos em Belem, o Palacio da Ajuda, o Convento de Mafra, o Convento da Madre de Deus e a Egreja da Estrella em Lisboa, o Convento de Santa Joanna em Aveiro e ainda alguns outros, que possuem qualidades estheticas e architectonicas dignas de admiração e louvor. D'este ponto não nos podemos occupar n'este livro, limitado pela prévia definição do assumpto; reservando para mais tarde o delicado estudo do Estylo da Renascença, se podérmos ainda tentar e realisar este trabalho[8]. PARTE QUARTA O MOSTEIRO DE SANTA MARIA DA VICTORIA NA BATALHA [Figura: MOSTEIRO DA BATALHA--Vista geral] CAPITULO PRIMEIRO ORIGENS E CONSTRUCÇÃO DO MOSTEIRO O Mosteiro da Batalha é, sem possivel contestação, o nosso primeiro monumento do Estylo Ogival, quasi poderiamos dizer o unico entre nós pela unidade e grandeza, porque os outros offerecem valor secundario. Tivemos occasião de apreciar esta asserção no capitulo precedente. A verdade é, ainda, que deve ser considerado, não pelas dimensões mas pela architectura, um dos primeiros do mundo. Seria inutil, com effeito, comparal-o com as enormes Cathedraes de Milão, Sevilha, Strasburgo e Colonia. A pequena Egreja da Batalha caberia quasi nos transeptos das duas primeiras cathedraes, vastos colossos de cinco grandes naves, cujas abobadas se elevam a mais de quarenta metros nas naves centraes. A posição primacial do Mosteiro da Batalha, entre a multidão dos monumentos ogivaes, é-lhe fixada pelas formosas condições architectonicas, pela unidade e harmonia de estylo, rarissimas nas outras cathedraes, pelo sentimento indescriptivel de poesia e de mysticismo que infunde a todos os visitantes, embora sejam versados no estudo de outros monumentos e tenham visto alguns dos principaes. Ora, devemos observar que é necessario ter um edificio singulares qualidades estheticas para resistir á falta de grandeza, que constitue, sem duvida, um requisito quasi indispensavel nas construcções monumentaes. Assim, por exemplo, o Alhambra de Granada com o seu lindo pateo dos Leões, um primor da arte arabe, visto em gravuras causa grande impressão, que é modificada depois de visitado, por effeito da pequenez do recinto. O aspecto é encantador, de certo; mas falta-lhe a solemnidade das dimensões. Os porticos do pateo dos Leões, formados de pequenas columnas cujos capiteis mal excedem a altura elevada de um homem, offerecem mesquinho aspecto. O nosso espirito procura augmentar tudo aquillo, alargar-lhe as dimensões, dar-lhe, emfim, grandeza e com ella a solemnidade. Já o mesmo não succede na antiga mesquita de Cordova, transformada em Cathedral. Se o edificio é baixo, como em regra o eram os do Estylo Arabe, as vastas alamedas de columnas, ligadas por dois arcos sobrepostos e cortando-se perpendicularmente em enorme superficie, dão-lhe um aspecto original e grandioso. Outro tanto não poderemos dizer da Sainte Chapelle de Paris, riquissimo exemplar do Estylo Ogival, mas tão pequeno e rendilhado que faz nascer a idéa de estarmos dentro de um riquissimo e gigantesco cofre cinzelado. Taes são as impressões, que produzem, pelo menos no nosso espirito, estes dois pequenos monumentos: o arabe e o christão. Assim, as condições excepcionaes do Mosteiro da Batalha, quer em relação á nossa riqueza artistica, quer pela sua elevada classificação entre os monumentos do Estylo Ogival, obrigam-nos a estudal-o mais detidamente, procurando, se for possivel, fixar a seu respeito doutrinas e opiniões, que ainda nos parecem pelo menos incertas e confusas. _Origem e data da construcção._--No momento critico, em que a batalha de Aljubarrota, dada em 14 de agosto de 1385, esteve perdida para os portuguezes, D. João I e o seu grande condestavel Nuno Alvares Pereira faziam, talvez ao mesmo tempo, o voto de edificar um templo ao Deus dos Exercitos, porque só elle os podia salvar n'esse terrivel transe. A victoria dos castelhanos teria sido, com effeito, a perda irremediavel do pequeno reino de Portugal, visto que as condições politicas do tempo eram differentes das de 1640. Os votos dos dois poderosos senhores foram entre nós origem de duas construcções ogivaes. O espirito religioso da Edade Media produziu estes resultados em muitos pontos. Foi, como dissemos, uma das causas da grande dispersão do Estylo Ogival por todo o orbe christão no periodo do feudalismo, que aliás em rigor não existiu entre nós. O rei cumpriu o voto, edificando perto dos campos de Aljubarrota o Mosteiro de Santa Maria da Victoria, o condestavel elevando em Lisboa o templo do convento, onde em vida mystica passou os ultimos annos da sua existencia. Esta egreja, destruida pelo terramoto de 1755, é conhecida pelo nome de Ruinas do Carmo. A data do começo dos trabalhos do Mosteiro da Batalha não é facil de fixar. Os archivos do convento, como aconteceu com os de muitos outros, foram dispersos e roubados, principalmente depois da revolução constitucional. Existem, todavia, documentos, pelos quaes se póde definir com muita probabilidade esta data e o periodo da construcção. Na carta regia de 4 de abril de 1388, el-rei D. João I fez doação do convento á Ordem de S. Domingos. É, pois, natural que n'esta data os trabalhos estivessem começados e parte do convento, pelo menos, em estado de receber os frades. O cardeal patriarcha de Lisboa, D. Francisco de S. Luiz, auctor de uma memoria valiosa sobre o Mosteiro da Batalha, homem instruido que viveu durante alguns annos no convento e pôde ainda consultar os archivos mais ou menos completos, manifesta a opinião de que o edificio teria sido iniciado em 1387, ou quando mais cedo no anno precedente. A necessidade de fazer projectos e de reunir mestres e operarios habeis, principalmente para obra de estylo grandioso e rico pouco cultivado entre nós, exclue, a nosso ver, o curto espaço de um anno entre o voto e o começo da construcção. Além d'isso, frei Luiz de Sousa, o chronista do Mosteiro, cuja descripção constitue um primor de estylo e linguagem do tempo, frade no proprio convento, na sua _Historia da Ordem de S. Domingos_ escreve estas phrases: «com as armas ás costas--D. João I--revia traças, consultava architectos, buscava officiaes e, ganhando por uma parte logares rebeldes que lhe resistiam, ia por outra edificando paredes sagradas. E foi assim que já havia tres annos que a obra do Mosteiro corria, quando, estando de cerco sobre o castello de Melgaço, assentou de o dar á ordem de S. Domingos». Esta citação demonstra a vida agitada do monarcha e o seu cuidado em buscar architectos e artifices para a realisação do voto, mas em parte está evidentemente incorrecta, porque, datando a doação do convento de 1388, não podia a respectiva construcção ter já n'essa epocha tres annos, visto que tambem tres annos antes se ferira a batalha de Aljubarrota. Por estas rasões, corroboradas por outras que exporemos em logar competente, somos levados a fixar o começo dos trabalhos em 1387 e com grande probabilidade a suppor, em harmonia com o espirito peculiar dos votos, que foi escolhido para este acto o dia do anniversario da victoria sobre os castelhanos, 14 de agosto. _Periodo da construcção._--O conjunto do Mosteiro, como existiu outr'ora porque depois parte do convento foi arrasada para desaffrontar o monumento, deve ter sido construido em tres epochas differentes. A primeira epocha abrange os edificios principaes, como a egreja, a capella do fundador, o claustro, a sacristia, o refeitorio e a casa do capitulo. Estes elementos, os de maior valor, constituem uma parte monumental do Mosteiro e são do melhor e mais puro Estylo Ogival, embora em pontos muito secundarios offereçam vestigios da renascença manuelina. A segunda epocha comprehende um outro claustro, denominado de D. Affonso V e os antigos annexos do convento. A terceira epocha envolve as _capellas imperfeitas_ e o respectivo vestibulo. Occupar-nos-emos, agora, só dos edificios da primeira epocha, porque os da segunda e os da terceira serão succintamente apreciados em um dos seguintes capitulos. Uma das impressões profundas, que á simples vista produzem logo os edificios ogivaes da primeira epocha, é a sua perfeita harmonia e unidade, tão completas que no nosso espirito se radica a opinião de que o conjunto teve planos estudados e realisados por um só architecto. Esta impressão é manifestada por todos os homens versados no assumpto. Citaremos dois. Murphy, architecto inglez, que em 1793 viajou em Portugal e visitou o Mosteiro da Batalha, onde fez estudos desenvolvidos, publicou dois livros conhecidos, um sobre as viagens, outro sobre o Mosteiro, acompanhado de magnificas gravuras. Ora, este architecto escreve ácerca dos edificios, agora considerados: «no todo vêem-se tal correcção e regularidade que apparentemente parece ter sido o resultado de bem concebido plano original e, ao mesmo tempo, é evidente que este plano foi seguido e executado em progressão regular, sem as alterações e as interrupções a que estão, em geral, sujeitas estas grandes construcções». Um grande engenheiro portuguez, Luiz Mousinho de Albuquerque, que durante longo tempo dirigiu as primeiras obras de restauração do Mosteiro, distinguindo-se nas dos vitraes, observa, em memoria que corre impressa, terem todos os edificios da primeira epocha paredes communs e directas communicações. Esta observação indica que a construcção não podia deixar de ser simultanea e de obedecer a um plano geral definitivo, organisado sob as vistas harmonicas em concepção e estylo de um architecto, ou pelo menos de poucos animados do mesmo espirito. Além d'isso, demonstra que os edificios deviam ter sido construidos em curto praso. Com effeito, vimos que nas grandes cathedraes do periodo ogival faltam em regra a unidade e a harmonia, porque nos longos periodos de construcção, ás vezes abrangendo seculos, muitos architectos se seguiram na direcção das obras e, durante tão largos espaços, o _meio_ social e o gosto artistico tiveram tempo de se transformar sensivelmente, influindo sobre a unidade e a harmonia dos monumentos. Nos edificios considerados do Mosteiro da Batalha não se deve ter dado este facto. Eis o que resulta da simples observação; ora, os documentos e as presumpções positivas demonstram esta verdade, por fórma irrefutavel. No testamento de D. João I, feito em 1426, lêem-se em relação ao estado do edificio as seguintes phrases: «que o Mosteiro se acabe de Crasta, casarias, e de todolos outros edificios, que a bom comprimento do dito Mosteiro forem necessarios». Anteriormente, no mesmo documento, El-rei designa para sua sepultura a _capella-mór_, onde jazia a rainha D. Filippa, sua mulher, ou _na outra que Nós ora mandamos fazer, depois que for acabada_. Cotejando estas duas citações devemos concluir que a egreja estava quasi acabada em 1415, anno da morte de D. Filippa, porque o respectivo epitaphio refere a trasladação do corpo da rainha para o Mosteiro da Batalha, em 15 de outubro de 1416. Assim, comparadas estas datas, é ponto incontroverso que em 1416 a egreja se achava terminada e estavam em adeantada construcção o claustro principal e a capella do fundador; portanto, tambem o deviam estar a casa do capitulo, o refeitorio e a sacristia, como corpos annexos e por necessidade do proprio desenvolvimento das obras. D. João I morreu em agosto de 1433. Seu filho, D. Duarte, continuou os edificios, já muito proximos do fim. O cardeal D. Francisco de S. Luiz transcreve uma carta d'este ultimo rei, escripta de Setubal, em 10 de maio de 1436, a Fernão Rodrigues, _védor_ das obras--sublinhamos propositadamente o cargo--dizendo-lhe: «vimos a carta que nos escreveste pelo Ruy Fernandes, vosso filho, sobre certas obras que dizeis que eram ordenadas por El-Rei, nosso Senhor que Deus haja, que se fizessem logo n'esse Mosteiro e que quereis saber o que n'este caso havemos por bem que se fizesse, convem a saber: em vir a agua da fonte dos valles, ou da jardoeira, ou da calvaria para o lavatorio do dito Mosteiro». As expressões d'esta carta provam que em 1436 a construcção tocava o fim, porque o lavatorio, a que evidentemente se refere D. Duarte, é a bella fonte de excellente estylo, abrigada no pequeno pavilhão, construido n'um dos angulos do claustro principal e fazendo parte integrante da respectiva construcção. A exposição das opiniões de ordem technica e a comparação dos documentos historicos, que acabamos de fazer, auctorisam e fundamentam a hypothese de que todos os edificios da primeira epocha foram construidos e terminados, pelo menos nos seus elementos principaes, de 1387 a 1433, isto é, no periodo de quarenta e seis annos. Contra esta hypothese podem apenas suscitar-se duvidas de caracter muito secundario e facilmente explicaveis, por exemplo: a cruz de Christo e a esphera armillar, emblemas manuelinos, existentes nos tecidos rendilhados dos tympanos de alguns arcos do claustro principal. É evidente que estes elementos podem ter sido feitos posteriormente, porque não eram indispensaveis para os usos do Mosteiro; alem d'isso, é muito possivel que provenham de restaurações, visto que a pedra empregada nos edificios é branda em excesso e, nas peças finas e rendilhadas principalmente, mostra-se muito sensivel á acção corrosiva do tempo. CAPITULO SEGUNDO O ESTYLO ARCHITECTONICO DO MOSTEIRO Quando tratámos dos Estylos Romanico e Ogival, expozemos as rasões pelas quaes os nomes dos architectos d'esses periodos eram pouco conhecidos. Tambem o do Mosteiro da Batalha segue esta regra quasi geral; todavia, é assumpto muito interessante esta investigação, que, ao mesmo tempo, nos esclarecerá, sobre varios pontos historicos e technicos do nosso primeiro monumento ogival. Ouçamos os documentos; depois virão as deducções geraes e os argumentos de ordem technica. Veremos se é possivel lançar alguma luz n'estas densas trevas. «D. João I chamou de _longes terras_, escreve frei Luiz de Sousa, os mais celebres architectos que se sabiam, convocou de todos os pontos officiaes de cantaria destros e sabios; convidou uns com honras, a outros com grandes partidos, obrigou a outros com tudo junto. Á voz da grandeza da obra acudiu de _todo o mundo_ numero infinito de peonagem a servir e trabalhar e ganhar jornaes--que este bem têem as grandes obras, manter muitos pobres».--E n'outro ponto faz notar que os religiosos não eram chamados a dar voto, nem traça, nem ordem nas obras, «unicamente dirigidas por officiaes reaes». Estas affirmações na bocca de um escriptor grave, eminentemente nacional, que devia ter ao seu alcance os archivos e conhecer as tradições oraes monasticas do Mosteiro da Batalha, offerecem decisiva auctoridade. Frei Luiz de Sousa viveu por largos annos no convento; attesta-o a magnifica descripção que d'elle fez na sua grande obra, escripta no principio do seculo XVII, isto é, cerca de duzentos annos apenas depois da construção do Mosteiro. Se os archivos do convento já não existiam, havia a tradição oral, admissivel em tão curto espaço de tempo, principalmente n'uma associação monastica. Frei Luiz de Sousa não cita o nome do architecto; mas escreve expressamente que foram chamados de _longes terras_ os mais celebres architectos; ora, n'este caso, a expressão designa nações estrangeiras. Esta interpretação não póde soffrer duvida, porque o mesmo auctor mais abaixo explica que o pessoal acudiu de _todo o mundo_. A declaração é expressa. Por outro lado, José Soares da Silva, nas _Memorias de D. João I_, affirma que n'outra memoria do dominicano Antonio de Madureira se dizia ter sido o primeiro architecto do Mosteiro da Batalha um irlandez chamado David Aquete, que então vivia em Vianna do Castello. Debalde procurámos encontrar esta ultima memoria, ou determinar a data em que existiu este frade dominicano, o que poderia constituir valioso subsidio para a resolução do problema; todavia, parece-nos dever concluir d'estas citações que, entre os frades dominicanos, passava por averiguado ter sido estrangeiro o primeiro architecto da Batalha. O patriotismo dos nossos escriptores antigos, por vezes exagerado, não teria por certo deixado escapar a occasião de enaltecer o nome nacional com a gloria da creação de monumento, que em todos os tempos foi profunda e geralmente admirado. Esta furia patriotica offerece um eloquente exemplo. Murphy, fundando-se na asserção de Soares da Silva, anteriormente citada, traduziu Aquete--fórma portugueza--pelo nome inglez, que sonicamente lhe corresponde, escrevendo Hakett, appellido irlandez por signal. D. Francisco de S. Luiz critica este procedimento do architecto inglez, que aliás teve tambem outros motivos technicos importantes para acceitar a origem ingleza do creador do plano do Mosteiro, e declara-o exagerado. E como se não bastasse este triste argumento, accrescenta, com incrivel arrojo, que n'esse tempo da construcção do Mosteiro eramos a nação mais adeantada em architectura e nas outras artes, exceptuando apenas a Italia! Ora, n'este ponto, o Cardeal, aliás erudito e grave, demonstrou pequenos conhecimentos, porque não só no ogival a Italia nunca teve a primazia, mas n'essa epoca já a França, a Allemanha, a Inglaterra e os Paizes Baixos estavam cobertos de monumentos dos mais puros estylos, não falando nas outras artes. Em contraposição a estes indicios, cujo valor é incontestavel, temos a opinião de frei Manuel dos Santos, que diz chamar-se o mestre da obra Affonso Domingues, natural de Lisboa, morador na freguezia da Magdalena, homem digno de eterna memoria pela capacissima idéa, com que delineou a fabrica. Devemos observar que este chronista do seculo XVIII, pela sua posição official, não nos deve infundir grande confiança em questões patrioticas. Além d'isso, estudou tão mal a questão que, linhas abaixo, escreve haver-se executado a construcção do Mosteiro de 1385 a 1388, o que era em absoluto impossivel no curto espaço de tres annos, confundindo assim a data da doação do convento, feita por D. João I, com a do fim dos trabalhos. D. Francisco de S. Luiz, como é logico, acceita esta versão e dá-lhe certa plausibilidade. O futuro Cardeal Patriarcha de Lisboa estivera por muito tempo no Mosteiro da Batalha, onde estudou o monumento e consultou os archivos, existentes no principio do seculo passado, colhendo preciosas informações sobre os seus successivos architectos, pintores e vidraceiros, nomes que hoje estariam perdidos, se não fossem o zêlo e a curiosidade do illustre prelado. Ora, entre os documentos do archivo, este escriptor viu um de 1402, que se referia a Affonso Domingues e já o dava por fallecido n'esta data. Como os trabalhos haviam começado em 1387, segundo a nossa opinião, este architecto, se o foi, podia bem ter sido o primeiro, ou um dos primeiros do Mosteiro da Batalha; não se devendo concluir d'aqui, comtudo, que fosse o unico, ou o auctor do plano primitivo, que bem poderia ter vindo de _longes terras_. Em todo o caso a observação tem valor. Affonso Domingues seria architecto? Eis a duvida. Um grande architecto não se forma isoladamente. No gabinete estuda-se a arte, que se pratica depois. A imaginação, a sciencia da construcção, a firmeza do estylo, emfim, as grandes qualidades de um architecto, se dependem do proprio genio, desenvolvem-se pela pratica e, sobretudo, pela influencia do _meio_. O que existia em Lisboa n'esse tempo tendo verdadeiro valor architectonico, a não ser do Estylo Romanico e d'esse bem pobre e pouco? O que estava em construcção, onde se aquecesse e formasse o seu genio? Porque produzir no gabinete e realisal-o depois, sem a experiencia e a influencia de grandes obras existentes ou em construcção, plano como o do Mosteiro da Batalha, seria um rasgo genial, quasi superior ao de Pascal, que, sendo novo, pelo unico esforço do proprio genio deduziu os trinta e seis primeiros theoremas de Euclides. Mas entre a mathematica e a architectura, as differenças são profundas: na primeira, as verdades absolutas existem e concatenam-se no raciocinio; na segunda, a intelligencia não póde supprir os factos numerosos, que constituem a arte e a sciencia do constructor. É verdade que no seu tempo, em meiados do seculo XIV, acabára a construcção em Lisboa de uma pequena capella do Estylo Ogival, n'este momento em via de restauração, encostada á velha Sé; mas o exemplar, simples e modesto, é do ogival francez do segundo periodo, como o attestam os seus caracteres architectonicos e a assignatura do seu auctor n'uma pilastra principal, conforme era de uso ás vezes, segundo já dissemos: uma flor de lyz bem definida, que, se occulta o nome, define a nacionalidade. Finalmente, para citarmos uma opinião inesperada e singular, o auctor da collecção de memorias relativas aos pintores, esculptores, architectos e gravadores estrangeiros, que estiveram em Portugal, cita o nome de Benjamin Comte. Esta citação não envolve valor algum, porque estas memorias, impressas em 1827, manifestam grosseiras inadvertencias. O nome parece francez; todavia, cumpre notar que depois da conquista dos normandos foram introduzidos em Inglaterra muitos nomes de origem franceza. Esta supposição podia tomar vulto, se o segundo mestre, ou architecto do Mosteiro da Batalha, que apparece no documento citado de 1402, como testemunha e já era fallecido em 1450, Mestre Ouguet, Huet, ou Huguet, não fosse, como é provavel, a fórma sonica portuguesa do nome bem inglez Hewett. D. Francisco de S. Luiz, para reforçar a hypothese de que Affonso Domingues foi o architecto do Mosteiro, diz que bem póde ser este mestre Ouguet o Aquete, nomeado por Soares da Silva segundo a memoria do dominicano Antonio de Madureira. Bem avaliados os documentos e as citações apresentadas, o nosso espirito fica perplexo. Sem duvida, Affonso Domingues existiu e teve importante ingerencia nas obras do Mosteiro da Batalha; mas isto não significa que, se dirigiu as obras, fosse d'elle o plano primitivo do Mosteiro. Em primeiro logar, poderia apenas tel-o executado; depois--parece-nos esta observação importante--a situação de Affonso Domingues tambem podia ser a de simples fiscal da obra, contractada com uma corporação _franco-maçonica_, que a teria projectado e realisado, como tudo nos leva a crer e explicaremos mais adeante. Esta ultima asserção nossa é corroborada pela carta de El-Rei D. Duarte, anteriormente citada e escripta de Setubal a Fernão Rodrigues, _védor_ das obras, do Mosteiro da Batalha, em 1436. N'este anno, vivia ainda o architecto Hewett, que se suppõe ter sido o segundo mestre das respectivas obras, porque D. Duarte lhe fez doação em 1436 de umas casas, que elle Hewett habitava junto das obras; ora, este principe morreu em 1438, reinando apenas cinco annos. N'este periodo de tres annos de 1433 a 1436, ou pelo menos em parte d'elle, o architecto inglez teve, como _védor_ ou fiscal, Fernão Rodrigues, delegado regio. Se este devia ser logicamente o systema, como o é na actualidade nas grandes empreitadas do Estado, nada repugna ao espirito que o mesmo facto se desse em epocha anterior com o architecto David Hacket e o _védor_ Affonso Domingues. Assim, ficaria explicado o apparecimento do nome do segundo no documento de 1402, que infelizmente, ainda visto por D. Francisco de S. Luiz, já hoje não existe. Esta investigação é assás difficil e uma conclusão, mais ou menos segura, carece de ser fundada em argumentos e provas de outras ordens, que em seguida procuraremos adduzir. Por emquanto, a nosso ver, a mais provavel supposição reduz-se a estas proposições: que o plano do Mosteiro da Batalha é de origem estrangeira, ingleza provavelmente, e que o primeiro architecto, que delineou e começou a realisar este plano, não era nacional, mas tambem, segundo as maiores probabilidades, de nação ingleza. Se os argumentos de ordem historica nos levam a estas conclusões, vejamos agora onde nos conduzem outros argumentos e outras inducções de natureza architectonica. As construcções ogivaes, obedecendo á influencia do _meio_ particular das nações, entre as quaes se desenvolveram, tomaram feições proprias em cada uma, muito embora subordinadas ás leis e aos caracteres geraes do estylo. O mesmo facto succedeu com o Estylo Romanico. Assim, as feições especiaes, diriamos talvez mais nitidamente, as physionomias do ogival allemão, francez e inglez são por tal fórma definidas, que os grandes entendedores da arte as distinguem com facilidade. A evolução e a decadencia do estylo não se manifestaram, tambem, em identicos periodos; por exemplo, a Inglaterra conservou mais puro e duradouro o bom estylo, não offerecendo quasi o periodo de decadencia. Eis o que escrevemos a proposito do Estylo Ogival e agora por applicavel repetimos. No fim do seculo XIV, quando começou a construcção do Mosteiro da Batalha, manifestava-se já certa decadencia na arte ogival do continente, emquanto a ingleza era, ainda, pura e florescente. É certo que, pelas suas condições geographicas e particulares, Portugal recebia o influxo das artes um pouco em atrazo; devemos, pois, entrar em linha de conta com este facto. O estylo architectonico do Mosteiro da Batalha é de um ogival purissimo, de perfeita unidade e harmonia nas linhas geraes, elegantissimo, sobrio na ornamentação aliás fina e distincta; em summa, traduz os melhores caracteres da arte na mais florescente edade. Esta impressão resalta do conjunto do monumento e do estudo das suas differentes partes. Faremos notar, por exemplo, a extraordinaria e formosa visão architectonica, permitta-se-nos a phrase, que, mais talvez do que em nenhum outro ponto, o monumento produz, visto do canto do claustro principal, no terrado junto ao pequeno pavilhão da fonte. Jámais outros grandes monumentos, dos que vimos, nos provocaram tão profunda sensação e sempre repetida; a não ser, talvez, a grande charola da Cathedral de Milão. A construcção do Mosteiro da Batalha começou, pois, quando no continente o Estylo Ogival resvalava para a decadencia; pelo mesmo tempo, erguiam-se em Sevilha e Milão duas enormes cathedraes de estylo bem menos puro. Esta coincidencia da pureza architectonica do Mosteiro da Batalha com a da arte ingleza parece-nos assás caracteristica; outras rasões ha, porém, que ainda mais apertam estas relações. Em assumpto tão delicado procuremos a opinião de um mestre inglez, bem conhecido historiador da arte. «Nós não encontramos, tambem, em Inglaterra, diz Hope, esses porticos profundos, cheios de estatuas e encimados de grande rosaceas, que se vêem nas Cathedraes de Strasburgo, Reims, París, Chartres, Amiens e outros pontos. Apenas podemos formar idéa d'isto pela rosacea, relativamente insignificante, da egreja de Exester. Por toda a parte--em Inglaterra--o portal e a rosacea são substituidos por uma porta e uma janela sem proporção alguma entre si, a porta sendo muito pequena e a janela muito grande.» Não multiplicamos as citações para evitar longa exposição e porque esta nos parece caracteristica. Olhando a fachada principal e a do sul do Mosteiro, porque a egreja está orientada, como era costume, voltando a capella-mór para o oriente, encontraremos realisada a regra do historiador inglez, principalmente na ultima. Outras similhanças se manifestam nos caracteres do coroamento e da ornamentação, que seria prolixo descrever. Além d'isso, em todo o edificio predominam as grandes janelas com maior ou menor numero de maineis; só duas insignificantes rosaceas existem na casa do capitulo e essas talvez não sejam primitivas. Uma observação fizemos logo n'uma das nossas primeiras visitas ao Mosteiro da Batalha, guiado, de certo, pelas presumpções e pelos factos historicos, a que nos havemos mais tarde de referir; pareceu-nos que a feição, a physionomia artistica do Mosteiro offerecia grandes analogias com a da Cathedral de York, apesar das profundas differenças nas respectivas linhas geraes. Assim, foi com alguma surpreza e contentamento que se nos deparou, depois, a seguinte opinião de Raczynski, cuja obra sobre as Artes em Portugal é bem conhecida: «logo que eu conheci, diz este sabio, a soberba Egreja da Batalha pelas gravuras de Murphy, achei-lhe tal analogia com a Cathedral de York, que não me restou duvida sobre a origem commum d'estes edificios». Ora, deve notar-se que este grande critico da arte não podia ter presumpções fundadas, nem perfeito conhecimento dos factos historicos portuguezes, que o levassem, como a nós, a ser bem guiado ou enganado por elles. O testemunho é, pois, valioso e insuspeito. É tambem verdade que Murphy, o architecto inglez de quem já falámos e a quem Raczynski se refere, no seu livro _Viagens em Portugal_, diz que Falkenstein bibliothecario em Dresde, lhe escreveu: «ser fóra de duvida que a maior parte das cathedraes ogivaes eram obra da inspiração de architectos, ou pedreiros livres--_franco-maçons_. Havendo, tambem, acrescenta Murphy, recebido informações de empregados dos archivos de Lisboa, que lhe affirmaram ter sido um architecto inglez, chamado Stephen Stephenson, o constructor do Mosteiro da Batalha. «Foi a Rainha D. Filippa, continúa Murphy, filha do duque João de Lencastre e neta de Eduardo III, de Inglaterra, quem deve ter tido maior acção na escolha do architecto. É fóra de duvida que Stephen Stephenson fazia parte dos _free and accepted masons_, cujo centro em Inglaterra era York--_grand-loge of free masons at York_.» Esta observação valiosissima podia ter guiado Raczynski; mas não seria sufficiente para lhe formar a opinião das parecenças, visto que lhe faltavam outros elementos. A affirmação de Murphy póde ser contestada; d'ella se conclue, porém, embora implicitamente, que o architecto inglez encontrára os caracteres do Estylo Ogival da sua nação no Mosteiro da Batalha, aliás não acceitaria nem exporia as hypotheses apresentadas. Por todas estas rasões, parece-nos demonstrado que o estylo do Mosteiro é do ogival inglez. Vejamos ainda se os factos historicos e as respectivas datas, bem como outros argumentos, corroboram esta conclusão. Em primeiro logar, a construcção da Cathedral de York, levada a effeito pelos _franco-maçons_ da loja-mestra d'aquella cidade, começou cêrca do anno de 1245 e tinha terminados os principaes elementos, naves, transepto, etc., etc., de 1291 a 1360. As obras do mosteiro da Batalha, havendo sido iniciadas em 1387, permittem as datas não só a influencia directa da Cathedral de York sobre o monumento portuguez, mas explicam até esta influencia pela possibilidade de ter sido feito o plano respectivo por architectos inglezes da loja-mestra dos _franco-maçons_ d'aquella cidade, chamados depois a Portugal por D. João I para o executarem. Um facto muito secundario na apparencia parece-nos avigorar esta presumpção. Alguns nomes portuguezes dos elementos architectonicos ogivaes são perfeitas adulterações das palavras correspondentes inglezas, por exemplo: o _maynel_, ou pinazio das janelas, traduzido por _mainel_, o _butress_ transformado em _botareos_, a _gargoil_ em _gargula_. Estes termos, pelo menos, são de origem ingleza. Assim tambem, nos tempos modernos, os operarios inglezes, que primeiro trabalharam no caminho de ferro entre Lisboa e Porto, deixaram, entre outros termos especiaes, os _rails_, carris, traduzidos pelo portuguez popular em _ralhes_ e as _sleepers_, travessas, transformadas em _chulipas_. A analogia tem aqui grande importancia e demonstra, a nosso ver, que na primitiva construcção do Mosteiro da Batalha trabalharam operarios inglezes; ora, sendo inglezes, a logica leva-nos a suppor que deviam ser de York, pertencentes á grande corporação _franco-maçonica_, que levantou a grande cathedral d'esta cidade. Os factos da historia do tempo mais corroboram ainda esta fundada presumpção. É impossivel fazer n'este ponto um quadro completo d'essa phase historica nacional; por isso, citaremos apenas, apreciando-os e comparando-os, alguns factos culminantes, que mais directamente interessam o presente assumpto. As nossas relações com a Inglaterra eram então muito intimas. N'esse tempo, em que não existia representação diplomatica permanente, Portugal tinha n'aquella nação dois embaixadores, cujos nomes a historia conservou: D. Fernando Affonso de Albuquerque e Lourenço Annes Fogaça. Eduardo III, o pae do celebre _Principe Negro_, acabava de crear condados para dois dos seus filhos, dando-lhes soberania quasi independente: o de Leicester, para João de Gaunt, e o de York, para Eduardo de Langley. Os condados eram limitrophes e no segundo approximava-se do fim a construcção da grande cathedral, que passa por ser a melhor da Inglaterra e uma das melhores do mundo. Sem entrarmos em outros pormenores, digamos que em começos de 1386 chegaram a Portugal emissarios de João de Gaunt, duque de Leicester, annunciando a sua chegada e pedindo navios. De facto, o duque desembarcou na Corunha, em 25 de junho do mesmo anno. Em novembro seguinte, n'uma conferencia realisada no Porto, ficou ajustado o casamento de D. João I com D. Filippa de Lencaster, filha do duque inglez. Assim, em fevereiro de 1387 realisou-se no Porto o casamento. A fórma, pela qual os factos se precipitam em tempos, em que as communicações eram difficeis, demonstra as relações intimas e constantes das duas côrtes. É, pois, natural que D. João I, informado pelo duque de Leicester das magnificencias da Cathedral de York, cuja fama corria já por toda a Inglaterra, lhe pedisse esses _celebres architectos e officiaes de cantaria de longes terras_, de que fala Frei Luiz de Sousa. Esta presumpção é logica e humana. Seria absolutamente impossivel suppor que D. João I não falasse ao duque, seu futuro genro e auxiliar na guerra, na batalha de Aljubarrota e no cumprimento do voto; como impossivel é, tambem, que a tal respeito o interlocutor não se referisse á Cathedral de York. É muito provavel, portanto, haverem sido encommendados os planos para Inglaterra, ou pedidos os architectos para os fazer em Portugal, dirigindo depois a respectiva construcção. A proxima vinda para Portugal de Filippa de Lencaster facilitava esta resolução. De certo, estes raciocinios só por si poderiam representar simples coincidencias de datas; mas ponderados e cotejados com os restantes, já desenvolvidos, assumem um caracter de plausibilidade de incontestavel valor. Ora, não existe duvida alguma em que architectos e operarios da loja-mestra _franco-maçonica_ de York foram os constructores da grande cathedral; portanto, é rigorosamente logico e muito natural que a essa corporação se fossem buscar os elementos para a construcção do Mosteiro da Batalha. A prova da cathedral ingleza, quando outra não houvesse, daria nome e fama universal aos seus habeis constructores. É, além d'isso, muito provavel que as associações _franco-maconicas_ fossem empreiteiras, como existem sociedades modernas. Em qualquer tempo, a eguaes necessidades sociaes correspondem instituições similhantes, ou pelo menos equivalentes. Se assim não aconteceu, manifesta-se ainda provavel que estas associações _franco-maçonicas_, creadas tambem para defeza dos respectivos operarios de todas as ordens, se garantissem por meio de contratos de trabalho. Qualquer d'estes factos, ambos naturaes e logicos, explica a existencia do _védor_, ou fiscal das obras, Fernão Rodrigues, que vivia no tempo de D. Duarte. Assim, ficaria egualmente fundamentada a nossa hypothese: Affonso Domingues poderia muito bem ter sido o primeiro _védor_ real das obras do Mosteiro da Batalha. De todos estes raciocinios e factos, expostos e comparados, resulta, segundo pensamos, a plena convicção de que o Mosteiro da Batalha, sendo do Estylo Ogival inglez, foi planeado e construido por architectos e operarios inglezes, que faziam parte da associação _franco-maçonica_ da grande-loja de York. [Figura: CONVENTO DA BATALHA--Planta geral. LEGENDA PRIMEIRA EPOCHA 1 EGREJA. 2 CAPELLA DO FUNDADOR. 3 SACRISTIA. 4 THESOURO. 5 CLAUSTRO PRINCIPAL. 6 CASA DO CAPITULO. 7 PONTE OU LAVABO. 8 REFEITORIO. 9 COZINHA. 10 ADEGA E DISPENSA. 11 PORTARIA. SEGUNDA EPOCHA 12 CLAUSTRO DE D. AFFONSO V. TERCEIRA EPOCHA 13 VESTIBULO. 14 CAPELLAS IMPERFEITAS.] CAPITULO TERCEIRO AS EPOCHAS DA CONSTRUCÇÃO DO MOSTEIRO Como dissemos em anterior capitulo, os edificios, constituindo o antigo Convento da Ordem de S. Domingos, na Batalha, foram construidos em epochas differentes. Depois da extincção das ordens religiosas, esteve o Mosteiro completamente abandonado durante longos annos, caindo em ruinas parte d'elle e soffrendo graves prejuizos a parte monumental, exposta á acção do tempo e ás grosseiras depredações, praticadas pela ignorancia popular. Mais tarde, quando começaram com algum methodo e continuidade as obras de conservação e restauração dos edificios, uns foram arrasados como inuteis, porque formavam as arruinadas pertenças do convento, e outros para desaffrontar a parte monumental do Mosteiro. A planta geral, que apresentamos, traduz o estado actual e definitivo d'estes edificios. Em tres epochas muito proximas, quasi successivas, foram elles construidos. Na planta procurámos distinguir estas epochas, dando tons diversos ás construcções respectivas existentes. Assim, temos: 1.^a Epocha. Envolve, bem nitidamente definidos pelas intimas ligações, a capella sepulcral do fundador, a egreja, a sacristia, o claustro principal, a casa do capitulo, a portaria, a adega, a cozinha e o refeitorio. 2.^a Epocha. Comprehende actualmente o claustro de D. Affonso V e alguns dos antigos annexos. 3.^a Epocha. Abrange, apenas, as chamadas _capellas imperfeitas_, que mais rigorosamente se deveriam denominar _incompletas_, porque o nome lhes vem de estarem ainda em grande parte por acabar, e o respectivo vestibulo. Da historia dos edificios da primeira epocha já nos occupámos nos anteriores capitulos, por serem do monumento os que pertencem ao Estylo Ogival. Não será, todavia, longa e escusada digressão, determo-nos um pouco na apreciação dos edificios das outras epochas. Os edificios da segunda epocha eram assás vulgares; apenas o claustro chamado de D. Affonso V, cujo reinado durou de 1438 a 1481, offerece algum valor architectonico. É do Estylo Ogival, muito espaçoso e simples, não manifestando ornamentação alguma, nem até nos proprios capiteis das columnas prismaticas dos porticos. Apesar d'isso, as suas linhas geraes são agradaveis, embora tenha de luctar com a proximidade do bello claustro monumental. Sem duvida, foi construido para servir de centro ás pertenças do convento, que principalmente para elle abriam. O Cardeal D. Francisco de S. Luiz admitte que a construcção d'este claustro se deve attribuir aos mestres Martin Vasques e Fernão de Evora. O primeiro d'estes mestres, segundo o mesmo auctor, dirigiu as obras de 1438 a 1448. Como este claustro era o centro das pertenças conventuaes, a respectiva construcção deve ter acompanhado de perto a dos edificios da primeira epocha. Os edificios da terceira epocha reduzem-se ás _capellas imperfeitas_ e ao respectivo vestibulo, que são peças de elevado valor architectonico, onde a primeira physionomia do Estylo da Renascença se desenha com excessiva nitidez e se accentua, á medida que a ornamentação se manifesta nas partes superiores do edificio, parecendo marcar-lhe varios e successivos periodos de construcção. Julgamos indiscutivel que este conjunto é obra do reinado de D. Manuel, que durou de 1495 a 1521. Assim, logo no interior do vestibulo, por baixo das lindas janelas que o illuminam, uma ao norte outra ao sul, vê-se em logar superior o caracteristico _E_, letra do nome d'este rei, Emmanuel, cercada de uns lavores, que por signal têem dado tratos á imaginação dos archeologos pacientes, e por baixo as seguintes legendas em caracteres romanos: _perfectum fuit anno domini 1509_. Ora, é mais do que natural que as paredes do vestibulo crescessem simultanea e parallelamente com a elevação das paredes das capellas. O Cardeal D. Francisco de S. Luiz, que estudou o monumento, infere, não sabemos com que criterio, que esta data corresponde á suspensão das obras. Julgamos infundado este asserto. Não é natural nem logico suppor que a suspensão se désse n'esse anno, quando D. Manuel no seu testamento, feito em 1517, recommenda com a maior instancia ao seu successor que as mande acabar. N'este documento, com effeito, lêem-se textualmente os seguintes periodos: «item, rogo muito e encomendo que se mandem acabar as Capellas da Batalha naquella maneira que milhor parecer, que seja conforme á outra obra e asy lhe dem entrada para a Igreja do Mosteiro da milhor maneira que parecer, e mandem mudar para ellas, sendo primeiro de todo acabadas, e asy seus Altares, e todas as outras cousas necessarias: El-Rei Duarte, que foy o primeiro principiador dellas, e assy El-Rey D. Affonso meu thio, e El-Rey D. João, que Deus aja, e o Principe D. Affonso, meu sobrinho». As phrases terminantes d'esta parte do testamento parece indicarem D. Duarte como iniciador das obras, quer este principe tivesse apenas o pensamento de construir um pantheon de familia, que D. Manuel depois adoptou, quer lhe lançasse os fundamentos, sobre os quaes depois, e muito mais tarde, começaram a crescer os edificios. Em nossa opinião só a tanto se poderia ter alargado a iniciativa de D. Duarte, não só porque o reinado d'este principe, de 1433 a 1438, foi curtissimo; mas ainda porque em principios do seculo XV seria impossivel em qualquer parte, principalmente em Portugal, o emprego do estylo d'estas capellas. N'este tempo reinava o Estylo Ogival no seu estado de pureza, e a evolução da arte não manifestára ainda os primeiros symptomas da renascença. Além d'isso, a carta, anteriormente citada, de D. Duarte a Fernão Rodrigues, védor das obras do Mosteiro da Batalha, corrobora esta presumpção. O principe não teria deixado de referir-se ás obras das capellas, sendo natural ter maior interesse pelas da sua propria iniciativa. A construcção devia, pois, estar parada e ter ainda pequena importancia no principio do reinado de D. Manuel, se na realidade passou de simples plano. Todas estas presumpções são fortalecidas por outras rasões, que seguidamente vamos adduzir, muito embora não pretendamos alongar esta exposição e fazer detida descripção d'esta parte do Mosteiro. A grande porta das _capellas imperfeitas_ é uma das melhores, das mais ricas e bellas, se não a melhor que temos visto até hoje, fóra e dentro do paiz. Deve ser considerada incontestavelmente um primor de elegancia, de ornamentação e de execução; mas um architecto ogival não a poderia ter creado, por maior genio e sciencia que possuisse. A potente concepção do artista, fosse elle quem fosse, já estava fortemente aquecida pela renascença e enthusiasmada pelas glorias das viagens portuguezas ao Oriente. Sente-se, vê-se isto n'aquellas pedras, quasi cinzeladas. Sem a pretensão de descrever, o que é indescriptivel sem o auxilio de planos e desenhos minuciosos, diremos, apenas, que na face voltada para o vestibulo, a de ornamentação mais sobria e pura, as molduras da porta estão, de cima até abaixo, absolutamente cobertas de pequenos anneis encadeados, em cujos espaços circulares se lêem caracteristicas legendas. No alto da porta, em dois grandes anneis similhantes, que a fraca claridade do vestibulo mal deixa perceber, lêem-se em caracteres gothicos as palavras gregas: _pante taray_. Nos anneis mais pequenos repete-se sempre outra legenda, tambem em grego: _tanyas erey_. Sem falarmos nos erros orthographicos, que provêem de se empregar muitas vezes n'esse tempo o _y_ por _i_, estas legendas completam-se na symbolica e imperativa phrase: _depressa por toda a parte descobre regiões_. É o grito da alma portugueza dos seculos XV e XVI que o architecto deixou gravado na pedra do formoso monumento! Na face voltada para o recinto das capellas, o estylo parece mudar de physionomia. Os rendilhados assumem proporções phantasticas. A pedra parece trabalhada por joalheiros. A nossa memoria occorrem essas filigranas delicadissimas, que a India e a China nos enviam, abertas em sandalo e marfim! Se é licito, deante de tal primor, lembrar defeitos, talvez seja esta ornamentação, levada ao ultimo excesso de finura e riqueza, aquelle que impressiona o nosso espirito, principalmente quando passamos abruptamente do grande estylo, simples, puro e ideal dos edificios da primeira epocha para os das _capellas imperfeitas_. Que nos perdoe o poderoso e genial creador d'esta maravilha architectonica! Ora, se é possivel duvidar de que as paredes do vestibulo crescessem simultaneamente com as do recinto das _capellas imperfeitas_, duvida que aliás para nós não existe, seria um absurdo insustentavel fazer egual supposição ácerca da porta monumental, que dá entrada _unica_ para este recinto. Devia ter um genio prophetico o architecto ogival, que em começos do seculo XV, durante o reinado de D. Duarte, projectasse esta porta monumental de accentuada renascença, com indiscutiveis influencias orientaes na ornamentação e nas legendas, excepcionalmente escriptas em lingua grega! No interior do recinto das capellas a physionomia do estylo muda sensivelmente. Até á altura das janelas em começo, a influencia ogival ainda é profunda; embacia-se mais, depois, accentuando-se os caracteres da renascença. Por cima da magnifica porta, que acabamos de indicar, uma bella janela accusa já fortemente a renascença italiana, que aliás se manifesta na ornamentação geral d'esta parte superior do edificio. Aos espiritos um pouco versados na historia e nos caracteres dos estylos occorre que algum tempo deve ter separado estas duas construcções sobrepostas, realisadas por architectos differentes[9]. De facto, parece que depois da interrupção da construcção das _capellas imperfeitas_, ainda no tempo de D. Manuel, as obras tiveram andamento. Assim, D. Sebastião, para continuação dos trabalhos, mandou dar em 1574, pela Casa da India, 400$000 réis annuaes, impostos sobre o contrato da pimenta. Já n'este tempo tinhamos addicionaes! Segundo consta, este imposto pouco ou nada produziu; mas isto não prova que o mesmo rei não concedesse outros fundos para esta construcção, que lhe mereceu as attenções. Depois, em 1591, Filippe I--o celebre _demonio do meio dia_--mandou fazer o orçamento, como se diria hoje, para terminação das _capellas imperfeitas_; mas o dinheiro nunca chegou de Hespanha, onde mal dava para a grandiosa obra da construcção do Mosteiro de S. Lourenço, no Escurial. Seja como for, a parte superior das _capellas imperfeitas_ pela feição especial do seu estylo parece-nos de construcção posterior á outra parte, devendo datar dos meiados do seculo XVI. Apesar do seu incontestavel valor architectonico, a elevação d'este edificio, na situação onde se encontra, foi um grave e irremediavel erro, que se tornaria monstruoso se a construcção tivesse sido finalisada e posto em directa communicação o pantheon dynastico com a egreja primitiva, como D. Manuel indicava no seu testamento. Por esta fórma, as absides do templo ogival ficariam quasi sem luz e as communicações directas só podiam ser rasgadas, ou na abside central, a capella-mór, ou nas duas absidiolas lateraes adjacentes, estragando completamente a bella egreja ogival. Ainda no estado actual as _capellas imperfeitas_ prejudicam muito a luz das janelas inferiores das cinco absides do templo, principalmente das tres comprehendidas no vestibulo, tirando-lhes os bellos effeitos dos vitraes, atravessados pelos primeiros raios do sol nascente, tão procurados pelos architectos da edade media. Pensar em demolir as _capellas imperfeitas_, dado o seu grande valor historico e architectonico, constituiria um crime de lesa-arte; mas o que poderia fazer-se com vantagem para ambos os monumentos, um ganhando luz para as respectivas absides, outro para a soberba porta acima descripta, seria demolir a abobada do vestibulo, deixando-lhe apenas as paredes lateraes, onde existem, como dissemos, duas bellas janelas, que devem ser respeitadas. Eis em rapidos traços a summaria enumeração das construcções da terceira epocha. Se excede os quadros d'este livro, exige-a a descripção do Mosteiro, que não ficaria completa, se a este trabalho por inopportuno nos houvessemos poupado. [Figura: MOSTEIRO DA BATALHA--Córte longitudinal segundo o eixo da Egreja] CAPITULO QUARTO DESCRIPÇÃO GERAL DOS EDIFICIOS DA PRIMEIRA EPOCHA --Estylo Ogival-- Por ordem logica, deveriamos, talvez, começar pela descripção exterior das fachadas do Mosteiro, porque estes elementos se apresentam primeiro á nossa observação; todavia, alteramos esta ordem, visto ser impossivel bem avaliar e estudar uma construcção, sem previamente haver formado clara idéa das disposições geraes da respectiva planta. I Plano geral dos edificios ogivaes _Egreja_. Está orientada, como era costume, na direcção leste-oeste, correspondendo a porta da fachada principal ao poente e abrindo as bellas janelas das cinco absides sobre o oriente, d'onde o templo devia receber a primeira luz radiante da madrugada, atravez dos vitraes polychromicos. A absurda escolha do local para a construcção das _capellas imperfeitas_ inutilisa, em grande parte e sem remedio, este effeito poetico, procurado em quasi todas as cathedraes romanicas e ogivaes. A egreja tem tres naves, apenas; a do centro, mais larga e elevada do que as outras, termina pela abside principal, tambem de maior altura e comprimento do que as quatro absidiolas, duas de cada lado, correspondendo as confinantes com a nave central ás naves lateraes, e as extremas vencendo o excesso de comprimento do transepto sobre a largura das tres naves. Dada esta disposição, não existe charola. Assim, a nave central, prolongada pela respectiva abside e cortada pelo transepto, desenha uma elegante cruz latina. No extremo sul do transepto abre-se outra porta para a egreja; esta porta, e a da fachada principal, são as unicas que de fóra a servem. Em poucas palavras eis a descripção da elegantissima planta do templo. A egreja é pequena, já o dissemos; mas tão pura de estylo que a pequenez não lhe sacrifica a majestade. Para formar idea das suas dimensões, apresentamol-as comparadas com as das Cathedraes de Milão e de Sevilha, colossos de cinco grandes naves do Estylo Ogival. Milão Sevilha Batalha m m m Comprimento da porta ao fim da abside 148 140 81,18 Largura de todas as naves 57 77 21,97 Comprimento do transepto 87 77 36,12 Largura do transepto 19 16 9,48 Nave central { Altura 46 40 27,73 { Largura 19 16 9,48 [Figura: MOSTEIRO DA BATALHA--Córte transversal da Egreja segundo o eixo do transepte] N'estas dimensões devemos observar a relação da largura para a altura das naves centraes. Na Egreja da Batalha esta relação é representada por 1:2,9, emquanto na Cathedral de Milão attinge apenas 1:2,4 e 1:2,50 na de Sevilha. Differenças similhantes se devem dar nas naves lateraes; por isso, a expressão de elegancia do edificio portuguez é bem superior ás dos monumentos italiano e hespanhol. As naves lateraes são illuminadas por sete janelas, das quaes duas na do sul mais pequenas, porque ficam em parte inutilisadas pela capella do fundador. São elegantissimas e correspondem aos vãos interiores das arcadas da egreja. A nave principal recebe, tambem, luz de cada lado, por sete janelas do _clerestory_, verdadeiras reducções das anteriores, abrindo sobre os terraços das naves lateraes, entre os arcobotantes que amparam o corpo mais elevado do centro. Estas disposições serão facilmente comprehensiveis estudando e comparando as pequenas gravuras correspondentes ao corte longitudinal, segundo o eixo da egreja, ao transversal, segundo o eixo do transepto e finalmente ao do claustro principal[10]. Por cima da porta principal, uma grande janela maior do que o vão d'esta porta, fechada por finissimos rendilhados de pedra, derrama luz suave e multicolor ao longo da nave central. O transepto recebe luz de quatro janelas, rasgadas sobre as absidiolas e ainda de outra sobre a porta do extremo sul do mesmo transepto; janela enorme, de dimensões bem superiores ás da porta, com tympano de quadrifolios sustentado por dois maineis, entre os quaes existe um tecido de pedra aberto em lozangos. Em geral, na ornamentação dos tympanos das janelas predominam os quadrifolios. Insistimos na descripção para darmos idéa da feição caracteristica do ogival inglez, que se manifesta por toda a parte na Egreja da Batalha[11]. [Figura: MOSTEIRO DA BATALHA--Córte do Claustro principal] _Capella do fundador._ Seguindo a planta, ao entrar na egreja á direita, depara-se-nos esta capella de fórma quadrada, tendo 20^{m},1 de lado, juxtaposta á nave do sul, de que inutilisa parte de duas janelas. O conjunto d'este pequeno edificio é de um encanto grandioso, apesar das dimensões. O recinto é illuminado profusamente por tres janelas em cada uma das paredes livres, a do centro magnifica, com sete maineis sustentando um grande tympano, as lateraes de tres maineis. Arcocelios de puro estylo, encostados ao lado sul da capella, cobrem os sarcophagos dos infantes filhos de D. João I e de D. Filippa, cujos restos foram tambem recolhidos n'outro grande e bello sarcophago, isolado no meio da capella entre os arcos de um elevado zimborio, ou torre. Levanta-se esta construcção sobre oito arcos, formando um octogono de 5^m de lado. Estas arcadas sobem e sobre ellas e as paredes lateraes assentam as abobadas da parte rectangular da capella; depois, as respectivas paredes crescem, formando exteriormente uma torre octogona, amparada por arcobotantes, tendo em cada uma das faces uma janela. É admiravel o effeito d'este mausoleo, quer no interior, quer no exterior, verdadeira obra prima no genero. Constitue uma creação esthetica tão feliz no exito, que, ainda visto muitas vezes, causa sempre agradavel impressão. _Sacristia._ Da absidiola do norte passa-se para este recinto, tendo 11^{m},95 por 9^{m},47, que nada envolve importante a não ser as duas respectivas janelas conjugadas, viradas ao nascente. Para a sacristia abre a pequena casa do _thesouro_. _Claustro principal._ Encosta-se á nave lateral do norte; mas os porticos não lhe mascaram as janelas, que abrem sobre os terraços d'este claustro. Os porticos são, pois, baixos e não affrontam o corpo da egreja; pelo contrario, completam-n'o, dando-lhe o realce de varios planos. Este magnifico claustro, tendo 55^{m},3 de lado, é formado de grandes arcos, encastrados entre fortes botareos, com tympanos rendilhados repousando sobre cinco finos columnellos; produz um effeito deslumbrante. Sob um pavilhão, tendo paredes communs com o claustro, no angulo sudoeste, existe o lavabo, ou a fonte, a que indubitavelmente se refere a carta citada de D. Duarte. N'este ponto gosa-se de um dos mais bellos golpes de vista, que offerece o Mosteiro. _Casa do capitulo._ No portico oriental do claustro depara-se com a entrada d'este edificio, uma grande porta, ladeada por janelas, uma de cada lado, manifestando tudo extraordinaria belleza nas linhas geraes e na ornamentação. A sala forma um quadrado perfeito de 19^{m},95 de lado. É coberta por um só vão de abobada de extrema elegancia, ricamente artezonada e com enorme bocete. Esta abobada, cuja geração é um pouco complexa, constitue uma especie de cupula, dando em projecção horisontal uma estrella de seis raios. Nos cantos da sala os artezões nascem de misulas; nas paredes, firmam-se em columnellos, que descem ao pavimento. Em verdade, é uma das abobadas mais bellas e bem lançadas que temos visto. Além d'isso, distingue-se pela admiravel perfeição do trabalho; observação que devemos em rigor applicar a todas as obras ogivaes do Mosteiro da Batalha. [Figura: MOSTEIRO DA BATALHA--Portico sul do Claustro principal] Ácerca da construcção d'esta abobada, considerada muito difficil, correm varias lendas. É certo que a abobada é bastante abatida; não nos parece, porém, que a difficuldade extrema da construcção seja o caracter que mais a recommenda. Bem mais difficil julgamos ser a construcção de uma abobada unica, como a que por exemplo cobre o extenso transepto da Egreja do Mosteiro dos Jeronymos, em Belem. Em frente da porta da entrada d'esta sala, uma grande janela com vitraes, talvez os mais antigos e melhores do Mosteiro, dá luz ao recinto. Tambem se vêem por cima das janelas, que ladeiam a porta, duas pequenas rosaceas. São as unicas, aliás bem insignificantes, que se encontram em todo o Mosteiro, onde reinam exclusivamente as janelas de formas elegantissimas, algumas vezes simples, em geral divididas por maineis. _Refeitorio._ Communica com o portico occidental do claustro real. Nada tem notavel; é apenas uma grande sala de 27^{m},3 por 9^{m},7, abobadada, bastante feia e abaixo do valor architectonico do resto do edificio. _Cosinha._ Em communicação directa com o refeitorio existe a cosinha, tendo 10^{m},17 por 9^{m},34, que por cousa alguma se recommenda. _Adega, e dispensa._ Este edificio abobadado, tendo 37^{m},36 por 9^{m},34, corre ao longo do portico norte do claustro principal, para onde abre apenas por tres frestas. _Portaria._ É uma grande sala, tendo 12^{m},08 por 9^{m},34. Servia de aula para as lições, que os frades davam a estudantes seculares. Eis a succinta descripção do plano geral do Mosteiro, na parte que se refere aos edificios da primeira epoca, os ogivaes. Quizemos dar uma idéa do conjunto e das disposições relativas, para acompanhar a planta geral e as gravuras, que, segundo pensamos, muito esclarecem e completam a descripção. II Descripção das fachadas Descrevamos agora succintamente o exterior do edificio, limitando-nos ás linhas mais geraes. A fachada principal, que olha para o occidente, é formada por tres corpos diversos: o da egreja, ladeado ao sul pelo da capella do fundador e ao norte pelo do refeitorio. Os dois primeiros estão no mesmo alinhamento, o terceiro avança sobre este alinhamento a respectiva largura. _Fachada principal._ Não é ornada de torres. Pertence á categoria das construcções, de que são exemplo as Cathedraes de Sevilha e de Milão. Assim, tambem n'esta fachada se notam, perfeitamente marcadas por botareos encimados de pinaculos, tres divisões verticaes: a do centro correspondendo á nave principal, e as lateraes ás naves secundarias. [Figura: MOSTEIRO DA BATALHA--Fachada principal] A divisão central, de cerca de 30 metros de altura, excede n'um terço approximadamente as divisões lateraes. Comprehende o unico portal, sobrepujado por uma grande janela coroada por elegante platibanda. As divisões lateraes apenas teem as janelas, que illuminam as respectivas naves. Assim, nas linhas geraes, a fachada define com nitidez as dimensões e as disposições internas da egreja. Na divisão central, o portal pouco profundo, de molduras ogivaes embocetadas e decrescentes, repousando sobre columnellos eguaes, termina no vão da porta, ornada de tympano de pedra. A parede d'esta divisão da fachada cresce sobre o portal e quasi a dois terços da altura cessa, deixando estreita passagem, resguardada por uma platibanda, em frente da grande janela, que dá luz á nave principal. Esta passagem liga entre si os terraços das naves lateraes. O corpo medio da egreja, mais elevado do que os colateraes, é amparado por arcobotantes, dos quaes os mais proximos da fachada são mais rendilhados e leves. A ornamentação é de extrema sobriedade. Por cima do portal e da janela, altas e estreitas arcaturas--melhor lhe chamariamos talvez caixilhos ou almofadas--cujo lavor pouco sobresae da silharia da parede, parece sustentarem uma faixa de galões tecidos em losangos. As platibandas do edificio offerecem fórmas quadrilobadas, repousando sobre cornijas sustentadas por pequenos modilhões ogivaes. Os botareos centraes da fachada são ornados de caixilhos ou almofadas, a partir de certa altura. A simplicidade da ornamentação, despretenciosa e pura, é encantadora e traduz no emprego geral das arcaturas principalmente e dos caixilhos, bem como na relação das portas e das janelas e na ausencia de rosaceas, os caracteres do ogival inglez, apontados por Hope, na citação anteriormente feita[12]. _Fachada da capella do fundador._ É ainda de maior simplicidade. A parte quadrada inferior está dividida por quatro botareos, em cujos vãos se rasgam tres janelas. Dos botareos centraes partem arcobotantes, que terminam proximo das cabeças de outros oito botareos, revestindo os angulos da torre octogonal; a cada intervallo corresponde uma das oito respectivas janelas. A ornamentação, muito sobria e do caracter da anterior fachada, resume-se nas platibandas, desacompanhadas de arcaturas. A torre central foi coroada por um grande corucheo. Pena é que a restauração do Mosteiro não abrangesse até hoje este importante complemento, que tanto engrandeceria a fachada principal. [Figura: MOSTEIRO DA BATALHA--Portal do sul] _Fachada do refeitorio._ Por um muro curto e liso, apenas encimado pela platibanda já descripta, muro que corresponde a uma pequena extensão do claustro principal, liga-se a fachada simplicissima do refeitorio e da cozinha com a da egreja. É um edificio longo, dividido por nove botareos, entre os quaes se abrem janelas ou frestas, seis do refeitorio e duas da cozinha. São de verga inteira, sem ornamentação alguma. Platibanda similhante á do resto do edificio corôa tambem esta construcção. Como se vê, o conjunto das fachadas, offerecendo original simplicidade, é muito sobrio nas linhas geraes e mais ainda na ornamentação, em nada parecida com as disposições complicadas de outras construcções ogivaes, principalmente de caracter francez e allemão. Seria isto ainda um indicio, se necessario fosse, da origem do estylo do Mosteiro da Batalha. _Fachada sul._ Desenham-se as duas naves, a lateral com as janelas sobre parede lisa: as duas primeiras mascaradas em parte pela capella do fundador. A nave central vê-se por cima, guarnecida de botareos, sustentados por arcobotantes, encastrando as respectivas janelas do _clerestory_. Na parte correspondente ao transepto, outro portal, mais simples do que o primeiro, constitue a segunda entrada da egreja, tendo por cima a grande janela que anteriormente descrevemos. Na desproporção dos respectivos vãos mais se accentua, ainda, a observação de Hope sobre o ogival inglez. Seguem-se as absides com estreitas janelas e, encostada ao fundo d'essas absides, a construcção das _capellas imperfeitas_. _Fachada norte._ A este lado da egreja está encostado o claustro. A disposição d'esta fachada é em tudo similhante á precedente, salvo a elegante torre do relogio, coroada de fina e rendilhada agulha. O córte do edificio pelo claustro, gravura anteriormente apresentada, completa a descripção das mais importantes fachadas, porque as restantes se acham, em parte ou no todo, mascaradas pelas _capellas imperfeitas_ e pelos edificios do antigo convento, ainda hoje existentes. III A ornamentação architectonica do Mosteiro A grande arte traduz-se nas linhas geraes, que a ornamentação deve acompanhar, realçando-as apenas, sem lhes prejudicar a pureza e as elevadas qualidades essenciaes. O excesso de ornatos constitue, em geral, grave symptoma de decadencia na arte ou falta de genio nos artistas. Assim, uma das fórmas fundamentaes da belleza é incontestavelmente o corpo humano; ora, a suprema expressão d'esta unidade esthetica consiste em o representar em completa nudez. A grande difficuldade está incontestavelmente em realisal-o. Os artistas gregos, os geniaes creadores da mais perfeita esculptura do corpo humano, em que até hoje não tiveram senão bem raros competidores, descobriram esta lei do bello e enunciaram-n'a em milhares de creações, algumas das quaes, que resistiram á acção destruidora do tempo e dos homens, são ainda hoje causa de sincera e profunda admiração. Eis por que elles representavam quasi sempre Venus e Apollo, symbolos da belleza humana, em perfeito estado de nudez; e quando excepcionalmente lhes envolveram os corpos em leves estofos, a ornamentação contribuia para avigorar e realçar a perfeição das fórmas e das carnes nuas. Uma das mais formosas estatuas classicas, semi-vestidas, ainda existente, a Venus Callipygia do Museu de Napoles, arregaça com a mão esquerda a fina e leve tunica, deixando ver as linhas mais puras e suaves do corpo humano, traduzidas admiravelmente no antigo marmore de Paros, a que os seculos deram quasi o tom avelludado e quente de uma carnadura viva e palpitante. A casta Diana, a sabia e guerreira Minerva não fogem a esta regra. Uma das melhores estatuas da Galeria Chiaramonti no Vaticano, Diana contemplando Eudymion adormecido, veste o _peplum_ tão cingido, que por baixo d'elle se desenha o bello torso; a tunica roçagante é tão fina e sedosa, que atravez do estofo transparente se vêem as fórmas delicadas e perfeitas da casta deusa. Assim, na esculptura como na architectura, o genio grego demonstrou que nas linhas geraes reside a suprema belleza, não sendo a ornamentação mais do que um accessorio, que, longe de as abafar e deturpar, deve pelo contrario contribuir para as engrandecer e realçar. A simplicidade, a pureza e a harmonia da ornamentação são, pois, qualidades indispensaveis dos grandes estylos da arte[13]. Os primitivos architectos ogivaes do Mosteiro da Batalha executaram esta lei esthetica com verdadeiros rasgos de genio. Assim, em edificio algum do mesmo estylo, dos muitos que temos visto, a harmonia e a pureza das linhas geraes tocam o grau da perfeição, attingido no monumento portuguez; nem é possivel encontrar segundo, entre os de correspondente importancia, tão sobrio e puro na ornamentação. Estas qualidades excepcionaes são exactamente as que originam o seu incontestavel e elevado valor artistico. A harmonia architectonica entre as linhas geraes e a ornamentação é tão intima e perfeita, que, ao primeiro golpe de vista, o monumento portuguez produz a impressão profunda de uma unidade esthetica. É muito difficil, se não impossivel, com simples palavras definir impressões. Certos movimentos do espirito são comprehensiveis, porque, nascendo da propria essencia da alma, todos os possuimos e os sentimos em maior ou menor escala. A não ser isto, tornar-se-iam muitas vezes enigmaticos, visto que a linguagem humana, perfeita para a enunciação de idéas, é um instrumento incompleto, quando pretende definir a intima e profunda natureza das sensações e dos sentimentos. Assim, esta expressão _unidade esthetica_ poderá parecer obscura aos que não tenham larga cultura intellectual, ou pelo menos não possuam poderosas faculdades artisticas. A nossa experiencia tem-nos demonstrado que em taes casos uma simples comparação vale mais do que longas e didacticas dissertações. Evoquemos do passado de vinte e cinco seculos uma mulher d'essa belleza singular, que serviu de modelo aos maiores esculptores da Grecia; vistamol-a, depois, de qualquer fórma. Ficará sempre uma mulher formosa. Mas o penteado elegante e alto, o _peplum_ afivelado nos hombros nús, caindo sobre a tunica leve e roçagante, emfim, esse vestuario que o genio grego creou para as linhas geraes da belleza jonica, fará da mulher formosa uma _unidade esthetica_. Assim, o Mosteiro da Batalha produz-nos a impressão encantadora das mulheres virgens, honestas e formosas, ornadas com essa extrema e elegante simplicidade, que é o reflexo exterior e harmonico de um puro estado da alma. Já falámos das fachadas do Mosteiro; bem longe estamos d'esses enormes porticos profundos de caprichosa ornamentação, coroados de grandes rosaceas, e ladeados de torres immensas, cujas agulhas finas e rendilhadas parece tocarem as mais altas nuvens. O Mosteiro da Batalha não offerece esta rica ornamentação. Nem torres, com flechas arrojadas, nem profundos porticos guarnecidos de grandes esculpturas de phantasticas e mysticas personagens, possue o modesto e singelo monumento! A Cathedral de Milão é povoada por 6:000 estatuas de todas as grandezas, dispersas pela vasta construcção em nichos de ricos e variadas fórmas. O Mosteiro da Batalha tem apenas as doze estatuetas do portico; em mais parte alguma se vê outra estatua, ou um nicho deserto espera ainda a obra do esculptor! O interior da egreja é, tambem, de absoluta simplicidade. A ornamentação limita-se aos pontos, onde era indispensavel: aos capiteis das columnas, aos tecidos das janelas e, por excepção, aos lambrequins de pedra que guarnecem o intradorso dos arcos das absides. Os feixes de columnellos, de extrema elegancia e delicadeza, que revestem os pilares das naves, sobem a grande altura e ramificam-se nas abobadas, abrindo-se em simples rede de nervuras singelas. A Cathedral de Sevilha, no vastissimo cruzeiro e nos primeiros vãos das naves, a de Milão, em toda a extensão da grande nave, offerecem as abobadas recamadas de verdadeiras rendas de pedra, entre os meandros de complicadas nervuras. As paredes nuas do templo, emolduradas pelos arcos e pelos columnellos, crescem de baixo até acima sem o mais simples ornamento, sem a mais ligeira moldura; n'essas superficies immensas brilham, apenas, as janelas de excellentes proporções, como refulgem os grandes diamantes, encastoados em velha prata oxidada. A Egreja da Batalha possue a belleza ideal das suas linhas geraes, a perfeição innegavel da construcção e a côr de velho marfim, que os seculos deram á antiga pedra. Mais nada. Em todo o Mosteiro reina egual simplicidade. Na capella do fundador, cujas disposições elegantissimas já tentámos descrever, a ornamentação é um pouco mais rica nos lambrequins dos arcos da cupula interna. Não falaremos no tumulo de D. João I e D. Filippa e nos bellos arcocelios dos tumulos dos infantes seus filhos, porque na realidade não constituem verdadeiros elementos de ornamentação architectonica. [Figura: MOSTEIRO DA BATALHA--Janela do Claustro principal] No claustro principal póde dizer-se que toda a ornamentação se concentra tambem nos pontos onde era indispensavel: nos grandes tecidos dos arcos dos porticos, na porta e nas janelas da casa do capitulo e no pequeno pavilhão do lavabo, que existe proximo do refeitorio. Os tympanos dos arcos do claustro, sustentados por finos columnellos, são em geral magnificos. Apresentamos a gravura de dois arcos: um servindo de porta, outro de janela. Em ambos, principalmente, no segundo, ha vestigios e caracteres evidentes de renascença manuelina. A porta e as janelas da casa do capitulo são excellentes. Na gravura do portico oriental do claustro podem distinguir-se com certa nitidez estes elementos. Do interior d'esta bella sala já falámos precedentemente. O pequeno pavilhão da fonte, ou lavabo, é talvez o ponto do Mosteiro onde os architectos empregaram mais rica ornamentação, cujo caracter melhor se comprehende pela inspecção da respectiva gravura, o que não conseguiriamos em larga descripção. Se da ornamentação das fachadas e do interior dos edificios passamos para a dos coroamentos, a lei da simplicidade e da harmonia não soffre excepção. _Parecem guarnecidos de renda ingleza_, disse-nos um dia alguem, expressando perfeitamente a impressão, que elles produzem, pela figura que melhor se adequava ás tendencias e aos habitos do proprio sexo. De facto, os coroamentos dos edificios, formando grandes linhas horisontaes em diversos planos, são contornados por largas fachas rendilhadas, verdadeiras platibandas, em geral de espaço em espaço divididas por pilastras lisas, encimadas de pequenos pinaculos. Damos o desenho de um motivo assás frequente. O parapeito é guarnecido de um bello entrelaçado, onde predomina a flor de lyz; o corpo da platibanda, de evidentes quadrilobulos, assenta sobre uma cornija, sustentada por modilhões arqueados. [Figura] Este desenho póde considerar-se o _leit-motiv_ da bella symphonia ornamental dos coroamentos dos edificios. Por toda a parte foi o fio conductor, que dirigiu e deu unidade á inspiração do architecto. As fórmas variam, de certo, um pouco; mas, quasi sem excepção, ha sempre em todas a acção e a reminiscencia do trecho inicial. Além d'esta ornamentação nada mais têem hoje os edificios senão dois pinaculos mais elevados e a agulha, se tal nome merece o elegante e rendilhado corucheo da pequena torre do relogio. N'outro tempo, a capella do fundador foi, tambem, coberta por outro corucheo mais consideravel, ignorando nós as rasões do seu desapparecimento. Julgamos que este importante elemento architectonico deve ser reconstruido, como o exige a linha geral da fachada do Mosteiro, que assim ficaria muito mais completa e majestosa[14]. [Figura: MOSTEIRO DA BATALHA--Porta do Claustro principal] As tendencias horisontaes dos coroamentos, dispostos em planos não muito differentes, a ausencia quasi completa dos elementos verticaes de grande altura dão ao conjunto do Mosteiro uma fórma acastellada, muito caracteristica do ogival inglez, que manifesta fortemente, por exemplo, a Cathedral de York. Este facto seria ainda mais um indicio, se necessario fosse, da origem architectonica do monumento portuguez. A impressão é, sobretudo, bem definida vendo ao longe o desenho das suas grandes linhas em noite clara de estrellas, ou de pouco luar; ora, este effeito cresceria de intensidade, se o edificio ogival fosse construido em logar elevado, em vez de occupar um pequeno e fundo valle. Não se supponha que esta impressão possa provir da elevação do monumento sobre as edificações proximas, ou do tom escuro da grande molle desenhando-se mysteriosa e solemnemente nas semi-trevas da noute. Bem maior e mais alta é a Cathedral de Sevilha, tambem desprovida de grandes e numerosos elementos verticaes, e o seu enorme contorno não produz egual impressão. Emquanto á Cathedral de Milão o effeito nocturno é surprehendente; mas de natureza bem diversa, diremos mais, perfeitamente caracteristica e propria d'aquelle admiravel colosso. Sempre que nos foi possivel, não deixámos de ver os grandes monumentos nas semi-trevas da noite, ou á luz do luar. Não procuramos só o effeito poetico, ainda que esse é um dos fins das artes plasticas. A physionomia dos antigos monumentos toma na penumbra da noite uma grandeza especial; fala mais ao sentimento, que tambem é origem de idéas e excellente mnemonica. Assim, a impressão sentimental do Mosteiro da Batalha, principalmente do claustro, á luz de um luar claro, não se oblitera da memoria; como jámais esquece o effeito d'esse gigante ogival de Milão, visto de longe á claridade suave do incomparavel luar de Italia. Milão estende-se sobre vasta planicie d'esse fertil terreno de alluvião, de que é formada quasi toda a Lombardia. Do coração da cidade irrompe a grande molle da Cathedral, dominando tudo em volta de si, elevando-se, montanha de marmore branco, com as fórmas phantasticas e caprichosas de um enorme _iceberg_ dos mares septentrionaes. Pelo silencio da noite o monumento parece velar o somno da cidade, protege-a e fala-lhe quando o enorme sino do relogio, collocado no alto da grande torre, marca solemnemente as horas com graves sons, fortes, avelludados e severos, que parece encherem o espaço entre os Alpes e os Apenninos. [Figura: MOSTEIRO DA BATALHA--Portico oriental do Claustro principal] Tornando ao Mosteiro da Batalha, devemos concluir dizendo que o pobre monumento portuguez não possue ricos vitraes, essa ornamentação tão bella e caracteristica dos tempos medievaes. É certo que Mousinho de Albuquerque, a quem já nos referimos, começou a restauração methodica dos antigos vitraes, que na maior parte encontrou partidos. Este trabalho tem sido continuado com algum exito; mas bem merecia o monumento obra mais completa e perfeita. Da ornamentação subsidiaria dos grandes monumentos religiosos, nada existe; nem um simples orgão, que daria á bella egreja esse mystico encanto da musica religiosa. Assim, temos descripto o Mosteiro da Batalha não com a intenção de lhe fazer completa monographia, porque esse trabalho exigiria proporções na descripção, nos planos e nas gravuras bem superiores á do presente livro, mas com o simples fim de darmos, quanto nos foi possivel, exemplos nacionaes dos estylos architectonicos. Quizemos escrever um livro portuguez, feito exclusiva e completamente em Portugal; tel-o-emos conseguido?... [Figura: MOSTEIRO DA BATALHA--Fonte] CAPITULO QUINTO RELAÇÃO DOS ARCHITECTOS E MESTRES Ainda julgamos ser util dar noticia dos nomes dos mestres e architectos, que em differentes epocas dirigiram as obras do Mosteiro da Batalha; nomes citados em documentos, dos quaes hoje muitos se devem considerar perdidos. Esta simples e incompleta enumeração poderá talvez servir para guiar futuras investigações sobre o Mosteiro da Batalha. _Affonso Domingues._ Apparecia em documento de 1402, que o dava já por fallecido. Como a construcção começou em 1387, é muito provavel que fosse um dos primeiros architectos do Mosteiro, se foi architecto. Segundo a nossa opinião, expendida n'um dos anteriores capitulos, Affonso Domingues foi o primeiro _vedor_ real das construcções. _Mestre Ouguet_, _Huet_ ou _Huguet_. Apparecia como testemunha, no citado documento de 1402. Depois, documentos de 1450 e 1451 davam-n'o já como fallecido. D. Francisco de S. Luiz affirma que bem póde ser este mestre o Aquete, de que falla a tradição. Raczynski concorda com esta opinião. Emquanto a nós, parece-nos que esta hypothese é forçada, porque o nome inglez sonicamente correspondente é Hewett e não Hacket. D. Duarte em 1433 fez doação a este mestre de umas casas, que ficavam perto do Mosteiro; portanto elle vivia ainda pelo menos n'este anno. Talvez a casa doada fosse uma destruida ha poucos annos, sendo vendida por baixo preço a ultima e bella janela antiga. _Martin Vasques._ Apparecia em documentos de 1450 e 1451, dando-o já como fallecido. D. Francisco de S. Luiz colloca-o entre os successivos mestres do Mosteiro, desde 1438 a 1448, anno em que morreu, suppondo, ignoramos com que fundamento, que este mestre e o seguinte foram os constructores do segundo claustro, denominado de D. Affonso V. _Fernão de Evora._ Era sobrinho do precedente mestre. Vinha mencionado em documentos de 1448 a 1473. _Mestre Guilherme._ Por morte de Fernão d'Evora, foi nomeado mestre do Mosteiro por D. Affonso V em 21 de outubro de 1477. (Sousa Viterbo, _Diccionario_). _Matheus Fernandes._ Era mestre do Mosteiro, quando em 1480 D. Affonso V lhe tirou o cargo para o dar a João Rodrigues, cuja competencia declara superior. O Sr. Sousa Viterbo pergunta se será outro Matheus Fernandes, alem dos dois seguintes, ou se o architecto, caído em desgraça, se rehabilitou depois? Parece-nos mais provavel a primeira hypothese. _João Rodrigues._ Nomeado em 1480 mestre do Mosteiro por destituição do antecedente. Deve notar-se que já em 1490 era mestre do Mosteiro o seguinte Matheus Fernandes. (Sousa Viterbo, _Diccionario_). _João da Arruda._ Em 1485, sendo mestre do Mosteiro, foi mandado a Beja por D. João II para avaliar certas propriedades. (Sousa Viterbo, _Diccionario_). _Matheus Fernandes._ Um documento de 1503 falava d'este mestre, dizendo: «o muito honrado Matheus Fernandes, vassalo de El-rei, juiz ordinario na villa do Mosteiro de Santa Maria da Victoria e mestre de obras do dito Mosteiro, por El-rei Nosso Senhor.» Em documento de 1497 falava-se em Margarida Fernandes, sua filha, o que leva a crer que o pae já era mestre de obras do Mosteiro n'esse anno. Á entrada da egreja da Batalha, descendo os degraus da porta principal pode lêr-se ainda o seguinte epitaphio: «Aqui jaz Matheus Fernandes, mestre que foi d'estas obras, e sua mulher Izabel Guilhelme e levou-o Nosso Senhor aos 10 dias de abril de 1515, ella levou-a...» A ultima data não foi gravada. D'aqui se póde concluir que Matheus Fernandes foi mestre de obras do Mosteiro, desde o principio do reinado de D. Manuel até 1515; ora, como n'esse periodo a construcção das capellas imperfeitas foi muito activa, póde, com bastante plausibilidade, attribuir-se-lhe o respectivo plano. Sua mulher Isabel Guilhelme é provavelmente irmã ou filha de Guilhelme Belles, ou Belen, mestre vidraceiro que vivia de 1448 a 1473, ou do precedente mestre Guilhelme, architecto. _Matheus Fernandes_ (filho). Succedeu ao pae em 1516. Em documento de 1525, apparecia o nome d'este mestre, dando-o vivo; logo não podia ser o precedente, devendo ser naturalmente seu filho. O nome d'este mestre não se encontrava em mais documento algum; d'onde D. Francisco de S. Luiz conclue que foi afastado para outra obra. _Boutaca_ ou _Boytaca_. Apparecia em documento de 1509, como cavalleiro fidalgo da casa de El-rei; era tambem citado em documentos de 1512, 1514 e 1519. D. Francisco de S. Luiz dá-o como fallecido em 1528. Raczynski, sem citar auctoridades, affirma que este mestre italiano foi o constructor do Mosteiro dos Jeronymos em Belem. Varnhagen, em artigo publicado no «Panorama», de 9 de dezembro de 1843, diz que em documentos existentes na Torre do Tombo, descobriu que este mestre italiano Potassi foi o constructor do Mosteiro dos Jeronymos, bem como provavelmente o da Egreja da Conceição Velha de Lisboa. Em 1490 apparece um certo Diogo Boytaca, como auctor do plano do Convento de Jesus, em Setubal, cuja construcção começou n'esse anno. A este mesmo architecto concedeu D. Manuel, em 1498, a tença de 8$000 réis annuaes, a vencer depois do seu casamento. Sabe-se que depois, em 1512, um Boutaca, residente, ou pelo menos tendo propriedades, proximo do Mosteiro da Batalha, era casado com Isabel Amriques. Assim, foi rasoavel suppor que estes dois Butacas eram um só individuo. Aconteceu, porém, que ha poucos annos se procedeu a obras de restauração na pequena Egreja de Santa Maria da Victoria, que durante algum tempo serviu de freguezia á villa nascente; ora, subterradas no solo d'esta egreja, foram encontradas duas lapides tumulares, que veem lançar grande confusão nos trabalhos dos archeologos. A primeira lapide tem o seguinte epitaphio: _Sepultura, de mestre Boutac, cavalleiro da caza d'El-Rei nosso Senhor e mestre das obras do reino. Faleceu a 6 de Dezembro de 157_... O ultimo algarismo da data é illegivel. Na outra lapide, encontrada junto á primeira, lê-se: _Sepultura de Isabel Amriques, mulher de mestre Boutac. Falleceu em 23 d'Abril de 1522_. Assim, á primeira vista parece que este Boutac e sua mulher são os individuos, anteriormente citados. Mas para que isto seja possivel é necessario admittir que Boutac morreu com 100 annos, pelo menos. De facto, se elle foi o auctor do plano do Convento de Jesus, em Setubal em 1490 e morreu em 1570, hypothese mais favoravel, entre estas datas medeiam 80 annos. Ora, qual seria a edade do architecto, aliás estrangeiro, quando projectou tão grande obra? Concedamos 20 annos a Boutac, se é o mesmo; viveu, pois, _pelo menos_, 100 annos. Como isto não é nada provavel, resta a hypothese de Boutac pae e filho; mas, n'este caso deviam existir logo duas mulheres do mesmo nome Isabel Amriques, morrendo a a segunda 48 annos antes do marido! O que nos parece singular, tambem, é a orthographia tumular do nome, duas vezes escripto. Se o _c_ final foi cedilhado, o som é bem proximo de Potassi. D. Francisco de S. Luiz classifica Boutaca, entre os mestres de artes ou officios desconhecidos; ora, é indiscutivel que foi architecto e tão importante que chegou--elle ou o filho?--a ser _mestre de obras do reino_. _João de Castilho._ Varnhagen, no seu opusculo sobre o Mosteiro dos Jeronymos, em Belem, diz que João de Castilho foi nomeado para as obras do Mosteiro da Batalha em 4 de julho de 1528, por morte de Matheus Fernandes, filho, o que não nos parece exacto. _Miguel da Arruda._ Em 25 de junho de 1533 foi nomeado por D. João III mestre do Mosteiro, pela renuncia d'este cargo dada por João de Castilho. (Sousa Viterbo, _Diccionario_). _Dyonisio da Arruda._ Sobrinho do precedente, a quem substituiu por sua morte. Foi nomeado por D. João III em 25 de outubro de 1563. (Sousa Viterbo, _Diccionario_). _Antonio Gomes._ Apparecia como mestre n'um documento de 1548; n'outro documento de 1551 era, apenas, mencionado como pedreiro. D. Francisco de S. Luiz conclue d'este facto, com boa critica, que as obras do Mosteiro eram muito pouco importantes n'esse tempo. _Antonio Mendes._ Figurava em documento de 1578, como cavalleiro fidalgo da casa de El-rei, Nosso Senhor; na certidão da ciza, junta a este documento, lia-se: «Antonio Mendes, mestre das obras de El-rei Nosso Senhor». D. Francisco de S. Luiz crê que era um simples titulo honorifico, dando apenas direito ao vencimento de mestre de obras. _Guilhelme Bellés_ ou _Bellen_. Apparecia em documentos de 1448, 1463 e 1473, como mestre vidraceiro. Este nome é estrangeiro, parecendo-nos de origem franceza. Deve notar-se que a Cathedral de Bruges foi sempre celebre pelos seus vitraes. _Mestre João._ Apparecia como vidraceiro em documentos de 1489 e de 1528, tendo fallecido n'este anno ou no precedente. _Antonio Faca._ Apparecia em varios documentos, como mestre vidraceiro, sendo o primeiro de 1532. Era já fallecido em 1543. _Antonio Faca_ (filho). Documentos de 1535 e 1538, demonstravam que o mestre precedente tinha um filho do mesmo nome, designado pelo _moço_. Como este nome apparecia em documentos de 1543, quando o anterior era já fallecido, devemos concluir que o filho succedeu ao pae como mestre vidraceiro. Era já fallecido em 1596. _Antonio Faca_ (neto). Apparecia em documentos de 1608, o que deixa presumir o parentesco apontado, Este appellido parece-nos ser estrangeiro, talvez italiano ou hespanhol. Mestres de artes ou officios desconhecidos _Conjati._ Documentos de 1428, 1431 e 1443. _Miguel._ Documento de 1440. _Estaço_, 1463. Contemporaneo de Fernão d'Evora. _Conrate_, 1428. Officiaes de algumas artes e officios _Estevam Gomes_, pedreiro, mestre d'obras do Infante D. Pedro, 1428. _João Affonso_, apparelhador, 1450. _Gil Eannes_, imaginador, documentos de 1465. _Affonso Lopes_, imaginador, documentos de 1534, 1544 e 1555. _Duarte Mendes_, entalhador, documento de 1535. _Henrique Francez_, entalhador, documento de 1535. _Pero Faca_, entalhador, documentos de 1549 e 1561. _Francisco Faca_, pintor, documentos de 1566. _Alvaro Morato_, pintor, documentos de 1592. Muitos d'estes dados são extrahidos da Memoria de D. Francisco de S. Luiz sobre o Mosteiro da Batalha. Os documentos foram, pois, compulsados por este escriptor, cuja auctoridade é incontestavel. Alguns provéem do _Diccionario dos Architectos, Engenheiros e Constructores Portuguezes_, do Sr. Sousa Viterbo. COLLOCAÇÃO DAS PHOTO-GRAVURAS Entre pag. 1.^a Schema do uma basilica romana 48-49 2.^a Roma. Basilica de S. Paulo, fachada principal 54-55 3.^a Roma. Basilica de S. Paulo, fachada lateral 56-57 4.^a Roma. Basilica de S. Paulo, interior 58-59 5.^a Roma. Basilica de S. Lourenço, fachada 60-61 6.^a Roma. Basilica de S. Lourenço, interior 62-63 7.^a Constantinopla. Egreja de Santa Sophia, exterior 68-69 8.^a Constantinopla. Egreja de Santa Sophia, interior 72-73 9.^a Sé de Lisboa. Planta geral 148-149 10.^a Sé de Lisboa. Ruinas do terramoto de 1755 150-151 11.^a Sé de Lisboa. Fachada principal restaurada 152-153 12.^a Sé de Lisboa. Fachada lateral restaurada 164-165 13.^a Convento de Thomar. Fachada da egreja 202-203 14.^a Convento de Alcobaça. Fachada da egreja 212-213 15.^a Convento da Batalha. Vista geral 222-223 16.^a Convento da Batalha. Planta geral 248-249 17.^a Convento da Batalha. Córte longitudinal da egreja 258-259 18.^a Convento da Batalha. Córte transversal da egreja 260-261 19.^a Convento da Batalha. Córte do claustro principal 262-263 20.^a Convento da Batalha. Portico sul do claustro 264-265 21.^a Convento da Batalha. Fachada principal da egreja 266-267 22.^a Convento da Batalha. Portal do sul da egreja 268-269 23.^a Convento da Batalha. Janela do claustro principal 274-275 24.^a Convento da Batalha. Porta do claustro principal 276-277 25.^a Convento da Batalha. Portico oriental do claustro 278-279 26.^a Convento da Batalha. Fonte no claustro principal 280-281 Estas gravuras, excepto a do n.^o 12--_Fachada lateral da Sé de Lisboa, restaurada_--são das officinas do Sr. Thomaz Bordallo. A do n.^o 12, aliás uma das mais difficeis, é das officinas do Sr. Marinho. São, pois, todas nacionaes. INDICE Introducção VII PARTE PRIMEIRA Origens da architectura christã Capitulo 1.^o A lucta entre o paganismo e o christianismo 3 Capitulo 2.^o Os tres primeiros seculos do christianismo 17 Capitulo 3.^o As invasões dos barbaros 33 PARTE SEGUNDA Os estylos christãos primitivos V seculo ao X seculo Capitulo 1.^o Espirito e caracteres do Estylo-Latino 45 Capitulo 2.^o Espirito e caracteres do Estylo-Byzantino 63 Capitulo 3.^o Acção reciproca dos dois estylos christãos primitivos 81 PARTE TERCEIRA Os estylos christãos definitivos X seculo ao XV seculo Capitulo 1.^o Synthese social dos seculos XI e XII 101 Capitulo 2.^o Espirito e caracteres do Estylo-Romanico 119 Capitulo 3.^o A Sé Patriarchal de Lisboa e a sua restauração 141 Capitulo 4.^o Synthese social do seculo XIII 167 Capitulo 5.^o Espirito e caracteres do Estylo Ogival 181 Capitulo 6.^o O Estylo Ogival entre nós 201 PARTE QUARTA O Mosteiro de Santa Maria da Victoria Capitulo 1.^o Origens e construcção do mosteiro 223 Capitulo 2.^o O estylo architectonico do mosteiro 233 Capitulo 3.^o As epochas da construcção do mosteiro 249 Capitulo 4.^o Descripção do mosteiro 259 Capitulo 5.^o Relação dos architectos e dos mestres 281 Collocação das photo-gravuras 289 Notas: [1] O seguinte curioso facto demonstra a lenta formação dos estylos architectonicos. Em 1870, quando a cidade de Lyão esteve ameaçada pelos exercitos allemães, o Arcebispo Genouilhae fez a promessa de reedificar a pequena capella de Nossa Senhora de Fourvière, existente n'uma montanha que domina a grandiosa cidade, se ella fosse poupada pela guerra. O _milagre_ deu-se e o voto cumpriu-se; sendo elevada uma sumptuosa egreja n'esse ponto, onde por signal se disfructa um dos mais bellos e extensos panoramas do mundo. Os architectos Bossan e depois Perrin, amhos de incontestavel valor, _sonharam_ a formação de um novo estylo, em que o genio da arte classica se alliasse ao mysticismo dos estylos christãos n'uma unidade comprehensivel pelo espirito moderno. Aos constructores não faltava talento e sciencia para a tentativa, nem lhes escassearam recursos, porque na egreja, aliás não muito grande, se dispenderam, segundo informações recebidas que não julgamos exageradas, mais de 9:000 contos. Pois a tentativa falhou por completo! É extraordinario o effeito singular, até desagradavel, que produziu no nosso espirito aquella formidavel _mistura_ de elementos heterogeneos, constituindo, sem a menor duvida, um _montão_ de fabulosas riquezas e de preciosos e admiraveis pormenores architectonicos! Se nos fosse permittida a expressão, diriamos que julgámos assistir a uma _mascarada_ de estylos, porque, havendo quasi todos, uns tomam as feições dos outros, conservando algumas das respectivas linhas e qualidades fundamentaes. Ha de tudo, até o boi Apis ornamentando uma porta interior em Estylo Egypcio! Todavia, considerados isoladamente, quasi todos os elementos são admiraveis de concepção e de execução. O caso é analysal-os separados uns dos outros. Na fachada, por exemplo, tres lindissimos arcos de fórma ogival repousam sobre elevadas columnas de linha classica, onde todas as proporções e modulos foram desprezados. Por cima d'esta arcada rasga-se uma galeria de caryatides classicas; mas... as estatuas são oito anjos em posições mysticas, perfeitamente eguaes e com solemnidade byzantina. O edificio é coroado por frontão tambem de contorno classico, cujo tympano é preenchido por altos relevos de caracter byzantino. Esta fachada é ladeada por duas torres, que têem _ares_ de romanicas, não sendo afinal cousa alguma! No interior reina egual confusão de estylos, e, para de tudo haver, grandes superficies das paredes são revestidas por pannos tecidos ornamentaes. Eis ao que se chegou pretendendo crear um estylo! Descendo a montanha, a curta distancia, encontra-se a bella Cathedral de S. João, um primor ogival como é regra em quasi todas as magnificas egrejas de Lyão. E todavia o Estylo Ogival fez-se com elementos de variados e successivos estylos! A differença está em que a acção dos seculos em lenta evolução combinou os elementos d'esses estylos, adoçou-lhes as antinomias e esbateu-lhe as linhas rudes dos caracteres; emfim, penetrou-os intimamente n'um producto harmonico, como a fusão liga metaes differentes n'uma constituição physica, onde todos contribuem para um composto homogeneo. Assim, no seio de uma mulher se produz um novo ser, que se parece com os antecessores, mantendo a propria originalidade. Os novos estylos precisam de incubação no seio dos seculos. Este exemplo da Egreja de Fourvière deve ser citado e apreciado na Philosophia e na Historia da Arte. [2] Durante os trabalhos de restauração da porta lateral foram descobertas umas galerias subterraneas, evidentemente anteriores á construcção do edificio, porque estão cortadas pelos alicerces d'elle. Estas galerias têem cêrca de 1^{m},5 de altura por 0^{m},80 de largura, sendo revestidas de silharia e abobadadas em arco circular com pedras regulares. As que percorremos parece virem do lado do Castello de S. Jorge, atravessam a Rua do Limoeiro seguindo por baixo dos edificios annexos á fachada lateral-norte, até ao liminar da porta lateral da egreja. Ahi a galeria bifurca-se, lançando em curva um ramo para dentro da egreja e outro seguindo ao longo da parede do edificio, onde se encosta a Capella de Bartholomeu Joannes. O primeiro ramo está cortado pelo carneiro, onde jazem os restos do Cardeal Patriarcha de Lisboa D. Rodrigo da Cunha, o segundo pelos alicerces da capella ou da torre; mas ambos continuam manifestamente para alem d'estes pontos. Será facil encontrar esta galeria fazendo no solo do edificio annexo, que fica á esquerda do vestibulo da porta lateral, um corte parallelo á face interna da parede occidental; a pequena altura encontrar-se-á a galeria, se um dia houver curiosidade de o fazer. Segundo pensamos, esta galeria, que nunca foi cano de esgoto ou aqueducto, é de construcção romana e póde ser um caminho secreto, que ligava o velho castello romano com qualquer outro ponto da cidade, junto ás margens do Tejo. Parece-nos muito provavel que os tão falados subterraneos da Sé de Lisboa se reduzam a esta galeria, que manifestamente percorre o subsolo da egreja e porventura se ramifica no interior d'ella. [3] As principaes dimensões da egreja são as seguintes: Metros Comprimento da porta ao fim da capella-mór 59,20 Comprimento do transepto 35,00 Largura total das tres naves 21,90 { Altura 18,70 Nave central { { Largura 9,60 { Altura 9,20 Nave lateral (duas eguaes) { { Largura 6,25 { Altura 18,70 Transepto { { Largura 7,80 { Comprimento 17,80 Capella-mór { Altura 15,65 { Largura 11,40 Os comprimentos e as larguras referem-se ás superficies interiores das paredes e aos eixos dos pilares; as alturas aos fechos das abobadas. [4] Este famoso arrendamento, feito pelo Ministerio das Obras Publicas, produz 10$000 réis annuaes ao Thesouro! [5] O convento tem servido de moradia a algumas familias, cujos fogões de cozinha foram alimentados por taboas arrancadas dos tectos e naturalmente pelas portas _inuteis_. É provavel que o _uso_ continue com os effeitos previstos. [6] É versão geral por 40$000 réis. [7] A Suissa em outros tempos foi tambem victima da pilhagem de objectos nacionaes, artisticos e historicos; pois hoje não só a administração publica os defende, como os repatria, comprando-os quando é possivel. As gerações actuaes emendam a ignorancia e os erros das gerações passadas. [8] Observaremos n'este ponto que julgamos muito provavel o esquecimento de alguns monumentos dignos de menção. Não os conhecemos todos, e dos que conhecemos, muitos vimol-os sem detido estudo. Assim, haja desculpa para lacunas e erros, excepto n'aquelles de que damos maia larga informação. Temos percorrido, apenas, uma parte do paiz; ora, um trabalho completo e seguro d'esta natureza nem seria este o livro para o fazer, nem o poderiamos tentar com algumas probabilidades de exito sem percorrer todo o paiz, estudando a distribuição dos seus monumentos e o valor architectonico de cada um. A nossa vida, sempre um pouco trabalhosa, não nos permittiu em tempo proprio a realisação d'este desejo, se além d'isso não existissem outras difficuldades obvias. [9] Varnhagen attribue esta janela a João de Castilho e affirma ter visto a data de 1533 gravada em qualquer pedra. O illustre engenheiro condemna-lhe a esthetica com certa violencia, no que não tem rasão alguma. Esta _loggia_, como muito bem lhe chama Murphy, é um bello trecho da renascença italiana, ornamentada com espheras armillares e a cruz de Christo; embora, talvez, um pouco em desharmonia com a porta descripta, que lhe fica inferior. Foi esta discordancia que feriu em excesso o talentoso e mallogrado redactor do antigo _Panorama_. [10] Todos estes cortes são reproducções reduzidas dos do livro de Murphy sobre a Batalha, publicado em Londres em 1795. Estão sensivelmente exactos e apesar da sua antiguidade são os _unicos_ que até hoje se fizeram do nosso primeiro monumento ogival! [11] Principaes dimensões da Egreja da Batalha: Metros { Comprimento total com a capella-mór 81,18 Corpo da egreja { Largura das tres naves 21,97 { Altura 27,73 { Comprimento 36,12 Transepto { Largura 9,48 { Altura 27,73 { Comprimento 15,11 Capella-mór { Largura 8,10 { Altura 26,90 { Comprimento 56,59 Nave Central { Largura 9,48 { Altura 27,73 { Comprimento 56,59 Naves Lateraes { Largura 6,24 Duas eguaes { Altura 19,40 { Comprimento 11,95 Absides lateraes { Largura 5,63 Quatro eguaes { Altura 12,80 Todas as medições se referem á face interior das paredes e aos eixos das arcadas. [12] A gravura d'esta fachada é reproducção da que apresenta Murphy no citado livro, mas devidamente emendada, porque o original inglez tem erros importantes. A da porta lateral é egualmente de Murphy. Adoptamol-as, porque para a descripção offerecem mais nitidez de que as photographias, visto que as fachadas do monumento não foram tambem ainda rigorosamente desenhadas. As restantes gravuras são reducções de algumas da obra sobre a Batalha, do Sr. Visconde de Condeixa. [13] Citaremos um facto curioso. Os artistas da Exposição Universal de 1900, pretendendo fugir a estas leis fundamentaes, representaram a cidade de París por uma estatua vestida no estylo moderno. O bom senso popular deu-lhe o nome: fizeram uma _cocotte_. [14] Este corucheo, que indubitavelmente faria parte do projecto primitivo, para nós, pelos vestigios que encontramos nos traços da capella, não padece duvida haver existido. Além d'isso, Murphy desenhou-o e com tal minuciosidade, que o restaurador actual terá apenas o trabalho do córte e assentamento das pedras, não sendo importante a despeza. Lista de erros corrigidos Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos: +----------+-------------------------+----------------------+ | | Original | Correcção | +----------+-------------------------+----------------------+ |#pág. 83| dan-lhe | dando-lhe | |#pág. 88| espiritualist s | espiritualistas | |#pág. 90| a seculo | o seculo | |#pág. 121| racicionios | raciocinios | |#pág. 137| subtitue | substitue | |#pág. 170| perido | periodo | |#pág. 274| ver-dadeiras | verdadeiras | |#pág. 277| mjaestosa | majestosa | +----------+-------------------------+----------------------+ End of the Project Gutenberg EBook of A architectura religiosa na Edade Média, by Augusto Fuschini *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A ARCHITECHTURA RELIGIOSA *** ***** This file should be named 33377-8.txt or 33377-8.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: http://www.gutenberg.org/3/3/3/7/33377/ Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) 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