Judas: Romance lirico em quatro jornadas

By Augusto de Lacerda

The Project Gutenberg EBook of Judas, by Augusto de Lacerda

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Title: Judas
       Romance lirico em quatro jornadas

Author: Augusto de Lacerda

Release Date: November 16, 2008 [EBook #27276]

Language: Portuguese


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JUDAS




DO MESMO AUCTOR

Theatro:

_A Flôr dos Trigaes_, comedia original em um acto, em verso--Theatro de
D. Maria II.

_Aspasia_, drama original em quatro actos--Idem.

_Samuel_, idem--Idem.

_A Tesoura_, monologo--Idem.

_A Charada_, sainete original--Theatro do Gymnasio.

_Casados-Solteiros_, comedia original em tres actos--Idem.

_O Vicio_, peça original em cinco actos--Theatro do Principe Real.

Em livro--Edições esgotadas:

_Religião do Amor_, versos.

_O Padre_, romance intimo.

_A Pança_, contos.

_A Lei da Exauctoração Militar_, poemeto.

_Cyrilleida_, analyse de uma critica á «Velhice do Padre Eterno.»

_Juizo Final_--Evangelho da Consciencia.

A entrar no prélo:

_O Rabbi da Galiléa_--(Vida de Jesus)--Romance.

_Juizo Final_--Evangelho da Consciencia--2.ª edição.

Em preparação:

_Consciencia Libertada_--Evangelho do Futuro.

_Lendas de Israel._




Augusto de Lacerda


JUDAS

ROMANCE LIRICO

EM

_QUATRO JORNADAS_


LISBOA

Antiga Casa Bertrand--JOSÉ BASTOS

_73, Rua Garrett, 75_

1901


_Exemplar n.º_ 461


Todos os direitos d'este livro são propriedade exclusiva e reservada do
seu auctor.


Ao Dr. Manoel Maria Bordallo Pinheiro

    _Il n'y a guère de détails certains en histoire; les détails
    cependant ont toujours quelque signification. Le talent de
    l'historien consiste à faire un ensemble vrai avec des traits qui ne
    sont vrais qu'à demi._

    Ernest Renan--Vie de Jésus


PRIMEIRA JORNADA


EM 8 DE NISAN


PRIMEIRA JORNADA


EM 8 DE NISAN

A aldeia de Bethania fica a hora e meia de Jerusalem. Sobre a collina em
que ella assenta ergue-se, modesta e affastada das outras habitações, a
casa de Simão, o _Leproso_. Tem esta a forma tipica de uma piramide
rectangular truncada, e na parte superior um terraço onde florescem nos
canteiros roseiras de Jerichó.

Em frente da porta, ladeada de duas janellas a deseguaes alturas, um
pequeno largo coberto pela enorme abobada de verdura de grossas arvores
seculares, coevas talvez dos ultimos grandes profetas.

A agua de uma fonte visinha, jorrando natural da fenda de um rochedo, cae
sobre uma pia ampla, de architectura romana, espalhando no ambiente notas
cristallinas, e fazendo-nos pensar na Samaritana da lenda...

Um tronco de arvore carcomido pelo tempo e tombado no solo convida ao
descanso e á meditação.

Uma longa estrada, aberta pelo rodar dos carriões, vae desde ali serpeando
por entre o matto, ora subindo, ora descendo, em curvas graciosas, até que
chega aos terrenos cultivados onde o trigo verdeja e as papoulas
entreoccultam as suas manchas rubras. Ergue-se então o Monte das Oliveiras,
de um verde acinzentado; da sua macissa ramagem surgem, majestosos, dois
altissimos cedros antigos como Babylonia, e em volta dos quaes esvoaça um
bando de pombas brancas.

Aquelle monte, á esquerda, rude, penhascoso, de côr turva, é o Monte do
Escandalo; e chama-se Cedron o riosinho que apparece na linha inferior da
encosta, e que, muito calmo e prateado, vae sumir-se alem no Valle de
Josaphat, onde dormem em seus sepulcros caiádos as ossadas dos profetas e
patriarchas.

Lá ao longe, no fundo do quadro e sobre terreno irregular, alonga-se a
cidade de Jerusalem com as suas casarias de configuração muito geometrica,
amontoadas como um forte punhado de dados. Mal se distinguem as ruas
estreitas, com apparencia suja nas velhas cantarias.

A cidade vae n'um plano ascendente, que se quebra para lá da encosta:--é
ali a antiga Sião do tempo do grande rei David. Mais clara, vem descendo a
cidade nova, terminando junto do Monte Moriah onde, segundo diz a lenda,
Abrahão esteve prestes a immolar seu filho Isaac, em sacrificio ao Senhor.
Por isso n'aquelle monte se alevanta, mudo como um misterio, o grande
Templo, a casa do Deus que «foi, é e ha-de ser»: _Jehovat_. A Torre
Antonia, a um dos angulos do vastissimo quadrado, que fecha o recinto
vedado a profanos, é como uma sentinella de Tiberio, na sua attenta
quietação.

Para alem da cidade, a perder de vista, alonga-se o campo inculto, onde o
carrasco e a urze predominam, e onde raras palmeiras deixam pender suas
folhas esfarrapadas. Pequenos logarejos clareiam aqui e ali; muito nos
longes, divisa-se a collina de Mizpa e a cordilheira de Gabaão entestando
no firmamento azul e alegre.

Vae declinando o sol d'uma formosa tarde do começo da primavera, que
entorna regaços de seiva, de canticos e de cores por sobre todo o
harmonioso quadro. A brisa, ainda morna, traz-nos o aroma dos trigaes, de
mistura com o resinoso do matto, que morenisa a pelle e põe nos labios um
sabor acre. Os rebanhos tilintam vagamente; vão cantando na estrada as
cotovias.


GAMALIEL, que chegou da cidade, arrimado ao seu bordão, as barbas brancas
doiradas pelo sol, dirige-se á casa de Simão, e, clamando:

  Eleazar, meu caro, honrado ebionita,
  Recebe de um amigo a cordeal visita.

ELEAZAR assomou logo a uma das janellas. É um rapaz de vinte e tantos
annos, franzino e melancólico.

  És tu, Gamaliel? Que idéa bemfaseja
  Teus passos dirigiu assim, para que eu veja
  Á porta do modesto e humilde lavrador
  Aquelle que possue o nome de doutor
  Notavel e profundo?

GAMALIEL

                      É pobre a moradia,
  Amigo?--Não encerra a vil hypocrisia,
  Ornamento dos maus e da nefanda casta,
  Que faz do sacerdocio uma arma. Isto me basta.

ELEAZAR

  É que a virtude leva ás almas refrigerio
  Tal, como á flôr o pranto envolto no misterio;
  Pranto suave, meigo e virginal e ardente,
  Que uma estrella chorou silenciosamente...

GAMALIEL

  É que a bondade espalha a sua luz divina
  E pura, como o Sol que a todos illumina...

E baixinho, encostando-se ao peitoril da janella onde Eleazar se
conservou:

  O que tenho a dizer-te é coisa de segredo.
  Escuta-me portanto aqui.

ELEAZAR

                          Porquê? Tens medo
  De que minhas irmãs...?

GAMALIEL

                          O assumpto é muito grave,
  E receio que a dôr ainda mais se crave
  Nas almas feminis do que na tua.

Bem o comprehendeu Eleazar. Eil-o que se retira da janella, e saíndo de
casa, accode logo ao secreto chamamento.

                                  Amigo,
  Uma nova cruel:--o Mestre...

ELEAZAR, estremecendo

                              Algum perigo
  É imminente?

GAMALIEL

              Aquella estupida gentalha
  Ridicula, mesquinha, hipocrita e canalha
  Prepara com misterio o plano vingador,
  E está na posição terrivel do condôr,
  Pairando ao ver a presa incauta. A esta hora,
  Em casa de Kaiapha...--É sabbado hoje? Embora!
  --... O Conselho procura, extravasando o fel,
  Garantir-se o poder no povo d'Israel.

ELEAZAR

  Prendendo o Mestre?

GAMALIEL

                      Sim! Razões tem para tudo
  O seu pensar feroz, indómito e agúdo!
  Amor divino? Qual! Apenas o receio
  De perder o logar no execravel meio:
  D'um lado, a ambição, por mais que abuse e coma,
  E d'outro o servilismo ás leis que vem de Roma!

N'um brusco movimento deixou transparecer todo o rancor que o domina e
que se expande, emfim, n'uma invocação:

  A Virgem de Sião suspira ha muito já!...
  --Ó terra de Jacob! Heroes de Josaphat!
  Que é feito do vigor da tua fala, Isaías?
  E das lamentações sinceras, Jeremías?
  Profeta Ezequiel, a tua voz potente
  Jámais ribombará por todo o Oriente,
  Fazendo estremecer o despota cezareo,
  Como o gládio de Deus, terrivel, incendiario,
  Que na vasta amplidão a olhar o mundo assôma,
  Que sepultou Gomorrha e destruiu Sodôma?!

ELEAZAR, com o olhar vago:

  Vergonha! opprobrio!...

GAMALIEL, que enxugára á manga da tunica uma santa lagrima de
enthusiasmo civico:

                          Ai! desde que um idumeu
  Conseguiu transviar o nobre povo, o hebreu,
  E nos hombros depoz o manto purpurino...
  Maldito! que deixaste um rasto viperino,
  Um rasto de peçonha! Infame! Rei protervo,
  O teu nome recorda o luto e um acervo
  De horrores!--Certo dia, ousaste no portal
  Da casa do Senhor dar poiso á _immortal_
  Aguia romana!...--Vil, nascido de idumeus,
  O Cezar tambem morre: a aguia eterna é Deus!
  ... Que tristeza, ao pensar n'uma tão negra historia!
  --Do nome do tiranno o filho honra a memoria.
  Surge um brado, a Nação protesta, grita, lucta...
  Afinal, para quê? sem forças, dissoluta?...
  --Eu vi por toda a parte erguerem-se madeiros;
  Vi morrerem na cruz milhões de prisioneiros,
  Gritando «Jehovat!» nas ancias da agonia!
  E ao passo que na morte o hebreu se contorcia,
  E filhas e mulher's davam á luz o pranto,
  O incendio voraz lavrava o Logar Santo!
  --Depois?... Depois mais nada. O Cezar nos esmaga,
  Revolvendo o punhal na apodrecida chaga!
  Seja procurador Coponio, ou seja Marco,
  Ou Rufo, ou Grato, ou Poncio, a nação é um charco
  Onde vivem, senís, as rãs do servilismo...
  É provincia romana; e viva o cezarismo!

E ri amargamente n'uma cascalhada ironica de velho rabbino, apertando,
convulso, o cajado na mão ossuda onde as veias resaltam.

ELEAZAR, suggestionado pelas palavras do velho:

  Não! não! Resurgirás, eleita do Senhor,
  D'esta funda apathía e d'este grande horror!
  Judéa, serás livre! Elias não morreu,
  Porque revive n'um que tem o verbo seu,
  E elle ha de trazer a guerra e o exterminio!
  Se é branco o seu vestido, ai! pode ser sanguineo!...
  Abaterás o orgulho, o despotismo, a infamia!
  O povo quer vingança atroz: pois bem, derrame-a
  Sem minimo temor da colera dos ceus!

GAMALIEL, n'um clarão de esperança:

  Já temos o preciso: um _Homem_!

MARIA, que tinha saído de casa e que ouviu as ultimas palavras:

                                 Não!--Um _Deus_!

Alta, morena, olhos negros, de languidez oriental. Negras devem ser
tambem as suas tranças occultas a olhares mundanaes. As roupagens
escuras, que lhe descem até aos pés, cáem suavemente em prégas regulares
e castas como as de Suzanna. O seu olhar é sempre vago e tranquillo; os
seus gestos sempre em accordo com as serenas emoções da alma.

  É bello o teu falar, mas como de cegueira
  Pelo amor patrio estás vencido! De maneira
  Que apenas bastaria um pulso valoroso
  Para despedaçar o monstro ambicioso
  De fausto e de poder que se revolve além,
  N'aquella babylonia? Então, Jerusalem,
  Movida por um braço, embora resoluto,
  Poderia colher o ambicionado fructo
  Da plena liberdade em meio da revolta?
  --Vae longe, muito longe, o tempo... que não volta!
  A Judéa prefére a honra em mil pedaços,
  Cheia de timidez, crusando inerme os braços,
  Inhabil para a lucta e com horror á morte...
  A tribu de Levy, aquella cujo porte,
  Sendo mais senhoril e nobre, inspiraria
  Coragem ao vencido e alguma simpathia
  Ao vencedor, que faz? Conspira contra o povo.
  --Onde encontraste, irmão, o excitante novo,
  Que possa dar alento a quem succumbe exangue,
  Que os nervos fortaleça e retempére o sangue?

GAMALIEL

  Ha sempre em casos taes...

ELEAZAR
                            a força d'um athleta!

MARIA

  Tem muito mais poder o verbo d'um profeta!
  Ha de ser elle, sim! prégando a perfeição
  Das coisas divinaes a toda a multidão,
  Que se contorce afflicta em negro paroxismo,
  Descrente de Moysés, propensa ao paganismo.
  Nem ferro, nem madeiro: apenas a palavra,
  Que ao entranhar-se em nós suavemente lavra,
  Pesada, como o arado á terra bemfasejo,
  Subtil, como o poisar castissimo d'um beijo!

GAMALIEL

  E quem te diz que não? Eu julgo indifferente
  Que tenhamos no Mestre aquelle descendente
  Do nome de David ao mundo promettido
  Pelo Senhor. Amal-o é todo o meu sentido.
  Porque bem vejo a força enorme, o poderío
  Que exerce na cidade. É mais que prestadío
  Á Patria um homem tal!

ELEAZAR

                        A sua mão convulsa,
  Brandindo um azorrague, os vendilhões expulsa
  Para longe do sitio ás preces consagrado...

MARIA

  E o seu falar murmúra ás vezes tão magoado!...
  --Regenéra a mulher atreita ás bacchanaes
  E que mercadejava as graças corporaes;
  Ascende até o amor aos pobres, ás creanças,
  Aos tristes e aos nús, e dá mil esperanças
  N'um reino que elle sabe e que ninguem conhece...

ELEAZAR

  Quando, porem, troveja irado, mais parece
  Que vibra no seu peito a propria voz de Deus!

MARIA
  Oh! sim! que é de temer o divinal prestigio!...

ELEAZAR

  Que deixa em seu caminho um profundo vestigio...

GAMALIEL, ao ouvido de Eleazar, aproveitando o ensejo dado por Maria,
que foi sentar-se junto da fonte:

  Mas o povo nem sempre acceita um bom aviso,
  E Deus pode morrer... quando fôr mais preciso.

ELEAZAR, com o intuito de afastar o negro pensamento, que a todos trez
opprime no intimo:

  O Mestre não virá. Alegra-me a certeza
  De que foge ao Conselho a ambicionada preza.
  Começa em breve a Paschoa, e entre os forasteiros
  Ainda não chegou nem um dos companheiros
  Do Mestre.

GAMALIEL

            Vae o Sol no termo da viagem:
  Torno para a cidade.

E novamente em segredo:

                      Eleazar, coragem!
  No teu silencio tens a minha vida e a tua.

ELEAZAR, abeirando-se muito a elle, supplicante:

  Se te constar, porem, que o plano continúa
  E mais se desenvolve...

GAMALIEL
                         Hei de dizer-te, amigo.

ELEAZAR, saúdando-o:

  Que não te fuja Deus!

GAMALIEL, saúdando-o:

                       Fique o Senhor comtigo!

Saúda tambem Maria, e, retomando o caminho da cidade, vae-se ao longo da
estrada, um pouco alquebrado, cadenciando os passos pelo bater do bordão
no solo poeirento.

ELEAZAR sentou-se no tronco d'arvore, pensando; e, como respondendo aos
proprios pensamentos:

  Ninguem pode roubal-o á proxima agonía.
  Morrerá na cidade. A horrivel profecia
  Aponta-lhe, cruel, a inevitavel a sorte...
  Ha muito que de longe anda a espreital-o a morte!


Martha e Simão de Bethania saíram de casa. Ella é uma rapariguita de
desoito annos, irrequieta, buliçosa, muito infantil; elle, um velho cujo
cabello e barba ha muito branquearam; nas mãos o trabalho da lavoura
poz-lhe grossos callos e deformou-lhe os dedos; e no rosto a lépra
deixou-lhe vestigios indeleveis em manchas avermelhadas.

MARTHA

        No que pensa o meu irmão?

ELEAZAR

                                 Em nada penso.

MARTHA

                      Duvido.
        Ha n'esse olhar definido
        Vislumbre d'inquietação.

SIMÃO

        Se tu pensas na lavoura,
        Fazes mal, que o dia de hoje,
        Emquanto o Sol não nos foge,
        Prohibe que, scismadora,
        A mente se occupe assim
        De coisas que não respeitam
        A Deus.

MARIA, em longa abstracção, junto da fonte, como se ninguem a ouvisse:

                Aquelles que engeitam
        O pensar, mesmo o ruim,
        São como as ondas brutaes,
        Que lançam á rocha dura
        A espuma de cuja alvura
        Ellas são as mães e os paes...

SIMÃO, chasqueando-a, mas com meiguice:

        Sempre has de ser renitente
        Em respeitar a doutrina
        De Moysés!

MARIA, com amargo sorriso:

                  O que ella ensina
        É por vezes incoherente.
        De ouvil-a já estou cançada,
        E nem assim me convence.

MARTHA encostada ao hombro do irmão, que se conserva sentado:

        Não falas?

SIMÃO

                  Deixa-o! Que pense,
        Uma vez que isso lhe agrada!

ELEAZAR

        Mas como sois curiosos
        Do que se passa por fóra
        De vossas almas!

MARTHA

                        Agora
        Vem discursos lamentosos,
        Recriminações, aposto!
        Grande mau!

ELEAZAR sorrindo contrafeito:

                   Grande creança!

MARTHA picada no seu amor proprio:

        Não te inspiro confiança?

ELEAZAR condescendente:

        Inspiras, sim.

MARTHA

                      Pois não gosto
        De segredos--Que tristeza!...
        Não percebo! Porque, em summa,
        Não vejo razão nenhuma
        Para tal! Não ha riqueza?
        A nossa vida, porem,
        É feliz; a privação
        Nunca nos veio affligir,
        Nem ameaça o porvir,
        Não é verdade? Simão,
        Este bom velho leal,
        Que tanto e tanto nos ama,
        Dá-nos meza, casa, cama,
        E conselho paternal;
        Tu retribues a amizade,
        Auxiliando-o na vida.
        Achámos uma guarida
        Nas trevas da orfandade:
        Temos familia! Por isso
        Para nós a vida é clara
        Assim como a luz. A seara
        É verdadeiro macisso
        De pão; agua na fonte;
        Lenha nas faldas do monte...
        Nada vejo, d'importancia,
        Que não tenhamos. Então,
        Quero saber o motivo
        Por que estás tão pensativo...

E rindo muito:

        E com cara de chorão!

ELEAZAR

        E tenho de que sorrir?

MARIA em longa abstração, como se ninguem a ouvisse:

        Quem pensa é como quem sonha...
        E como a vida é risonha,
        Quando se pode dormir!...

ELEAZAR perseguido pelo olhar inquiridor de Martha:

        A minha alma atribulada
        Profundo misterio aninha...
        Sê caridosa, irmãsinha,
        Não me perguntes mais nada!

MARTHA afastando-se logo com muito despeito:

        Ai! não pergunto!

SIMÃO que de parte estivera rindo dos dois:

                          Uma idéa,
        Que talvez seja bem dita:
        Vou fazer uma visita
        Ao José d'Arimathéa.
        Vem commigo. Pode ser
        Que tenhas n'este passeio
        O prompto e seguro meio
        Da tristeza espairecer.

ELEAZAR

        Dizes bem.

SIMÃO

                  Acceitas?

ELEAZAR

                           Sim.

SIMÃO

        Afinal é sempre o velho
        Quem dá o melhor conselho!

ELEAZAR ás irmãs:

        Adeus!

E beijando Martha, que o evita d'arremeço:

              Tu foges de mim?
        Não vens beijar-me, teimosa!
        É então uma vingança?

MARTHA, deixando explodir o seu despeito:

        São arrufos... de _creança_!

ELEAZAR beijando-a á viva força:

        São os espinhos da rosa!

Vão-se Eleazar e Simão. Succede grande silencio.


MARTHA foi á beira da estrada e segue-os com o olhar. Depois,
appreensiva, com vago receio:

        Nunca o vi assim como hoje...

MARIA em longa abstracção, como se ninguem a ouvisse:

        «Espairecer»... Puro engano!
        O pensamento não sae...
        É como a sombra que vae
        Correndo atraz de quem foge...

MARTHA que lançou para longe a tristeza, despertada pelo cantar mais
proximo d'uma cotovia.

        Como o tempo está formoso
        E se prepara, amoroso,
        Para a Paschoa d'este anno!

N'uma corrida, eil-a junto da irmã que ficára sentada á beira da fonte.
Um beijo resôa na face de Maria e logo aos pés d'esta se senta Martha.

        Achamos isto um encanto!
        Como elles acham, porem,
        Que tudo é feio.

MARIA

                        Elles, quem?

MARTHA com o cotovello apoiado no joelho de Maria, o olhar limpido
erguido para o olhar da irmã:

        Os Dose, que gostam tanto
        De dizer mal de Judá.
        A Galiléa! Não ha
        Para elles outro mundo!
        Têem sincera affeição,
        Tributam amor profundo
        Ao paiz de Salomão!

MARIA desculpando-os:

        A sua terra natal...
        --Todos dizem que em verdade
        É um paiz ideal
        A Galilêa.

MARTHA

                  Quem ha de
        Duvidar, se elle inspirou
        Os galanteios doirados
        D'aquelles apaixonados...
        --Como elles, ninguem amou!

Depois de alguma hesitação reconstituiu na memoria o cantico, e
recita-o, com um sorriso humido nos labios, em tom plangente, repassado
de languidez. Maria quedou o olhar no fio d'agua, e vae brincando com
elle, deixando-o deslisar por entre os dedos finos e alongados.

        «É formoso o meu amante,
        Formoso como nenhum,
        E como o cédro elegante...
        É formoso o meu amante,
        Formoso como nenhum...

        «São de perfumes e odores
        Suas faces purpurinas,
        Dois ramalhetes de flores...
        E suas mãos dois primores
        Das pedrarias mais finas.

        «O seu corpo deslumbrante
        Do marfim o brilho tem...
        --Eu aqui... Elle distante...
        Onde está o meu amante,
        Filhas de Jerusalem?»

Olhando de fito para a irmã:

        Esta idéa é mesmo linda!

MARIA com frieza, como a da corrente d'agua que entre os seus dedos vae
deslisando:

        Amôres...

MARTHA

                  Muito falados!
        Olha que outros bem-amados
        Como estes não houve ainda!
        E quando elle se transporta,
        Descrevendo a sua amante?
        Não pode ser mais galante!
        Queres ouvir?

MARIA

                     Que m'importa!...

MARTHA

        «És formosa entre as formosas!
        Como tu não ha nenhuma!
        Tens no rosto duas rosas...
        És formosa entre as formosas!
        Como tu não ha nenhuma!

        «Duas pombas tens no olhar
        Onde transluz a bondade.
        Os teus cabellos sem par
        Fazem-me sempre lembrar
        As cabrinhas de Galaad...

        «Tua bocca é tão fagueira!
        Quando sorrís com ternura,
        Julgo vêr n'uma ribeira,
        Unidinhas em fileira,
        Ovelhas de casta alvura!

        «Oh! que suaves martirios
        Em tuas caricias francas!
        São teus seios--que delirios!
        --Como duas corças brancas
        A pastarem entre os lirios!»

Indiscretos ouviram Martha desde o meio da recitação. Claudia e o seu
sequito passavam pela estrada, e a curiosidade fez que a mulher de
Poncio Pilado detivesse os lecticarios com um gesto. Apeou-se da
liteira; sem ser presentida, avançou, cautelosa, e com ella a sua
escrava e confidente Geda.

Os soldados que escoltam a liteira ficaram immoveis; e o sol poente,
avermelhando-lhes as couraças e os capacetes, parece tel-os transformado
em estatuas de sangue. Na mão de um d'elles, que á frente caminhava,
brilha o pilo de oiro, emblema heraldico da casa de Poncio.

Claudia é uma mulher alta e formosa, cujo rosto a idade ainda não
enrugou, mas do qual fugiram as rosadas côres da mocidade, que a pintura
e o artificio em vão tentam simular. Typo de matrona donairosa, fanatica
do deus Phallus, tomando por modelo no amor a divina Julia, consorte de
Tiberio, illustre messallina--_lassata, sed non satiata_. A tunica azul
celeste apertada pelo largo cinto de oiro contorna-lhe a base do tronco
esculptural. Um diadema, egual aos braceletes, que se lhe enroscam na
carne, refulge no ebano de seus cabellos, e dá-lhe a majestade olympica
do perfil das medalhas de Agrippina.


CLAUDIA em tom faceto de cortezã affeita ao jogo de gracejos nos
triclinios de má nota da velha Roma:

    Muito bem!

Ergueu-se Maria em sobresalto, e, reconhecendo a mulher de Poncio,
dirige-se apressada para casa, levando comsigo a irmã; mas á porta
detem-se.

              Que formosa poesia
    Cheia de amor e de melancolia!
        Ha quem diga no Lácio
    Que é impossivel encontrar primores
    Que não sejam de Ovidio nos «Amores»
        Nos «Epodos» de Horacio...
    --É que ninguem conhece quanto val'
    A doce poesia oriental!
        --Isso é de Salomão?

MARTHA muito a mêdo:

    Senhora...

CLAUDIA

              Pois eu sou tão lisongeira,
    Para ouvir-te apeei-me da liteira...
        E foges?--A razão?

E como não colhesse resposta, prosegue sardonicamente:

    Tambem me odeias, tu, gentil creança?
    --Quando ha de fazer-se uma alliança
        Entre Roma e Judéa?
    Ganhariamos todos, com certeza:
    Nós, simpathia; vós, delicadeza.
        Darei a Poncio a idéa.

Olhando de fito para Maria, que permaneceu immovel com labios contraídos
e os punhos cerrados:

    Conheces-me tambem?

MARIA por entre dentes:

                       Perfeitamente.

CLAUDIA

    Se não me engano, a tua alma sente
        Por mim o mesmo affecto...
    Mas que mal vos fiz eu? Por ser casada
    Com Poncio, devo estar acorrentada
        A um odio tão directo?

MARIA fitando-a resoluta, mas serena:

    É que tu desconheces o rancor
    Que tem toda a Judéa ao vencedor!
        Fossem mil as nações
    Caídas sobre nós! Odio profundo
    Teriamos então a todo o mundo
        E ás suas gerações!
    --Ninguem pediu que ouvisses o falar
    Da minha irmã. De mais, vindo escutar
        Fizeste muito mal...
    És Claudia; quer dizer: alguma coisa
    Que nos merece tédio, e que repoisa
        Sobre um vil pedestal
    Todo feito de lama e impudicicia!
    Justamente porque és uma patricia
        Deves ter o criterio
    De não brincar co'as cinzas ainda quentes,
    Porque nós detestamos intendentes
        E amantes de Tiberio!

Dois soldados olham rapidos para Claudia e logo n'um movimento impulsivo
de mercenarios servis apoderam-se de Maria, que não resiste. Martha
soltou um grito; succedeu-lhe longo silencio interrompido apenas pelo
murmurio da agua e pelo chôro suffocado de Martha, que não desamparou a
irmã.

CLAUDIA deixando cair as palavras uma a uma, como gôtas de chumbo
derretido:

  Terrivel quando odeio, e meiga quando estimo.
  A todo o sentimento o da maldade encimo,
  Se acaso á minha face o insulto e o desdem
      Me forem arrojados por alguem!
      Uma frase, um olhar--tanto me basta;
  Pois como sou nervosa, em mim logo se engasta,
  Qual sanguineo brilhante, a fébre da matança,
  Dos deuses o prazer dulcissimo: a Vingança!

Mas em rapido movimento, como obedecendo a pensamento occulto, faz
signal aos soldados, que logo abandonam Maria. Depois, com acerado
sorriso de maldade:

  Agradece, mulher, a mim e ao teu Deus
  Esta disposição d'espirito, e os meus
  Bons nervos hoje; e grava, em summa, na memoria
      Que o insulto nem sempre é uma gloria!

MARIA muito vexada pela insultante benevolencia de Claudia:

  Eu não pedi perdão...

CLAUDIA victoriosa pelo effeito que o perdão causou no animo
independente da patriotica filha d'Israel:

                        E quem diz tal, judía?
  Fui eu que perdoei...--Offendes-te?

MARTHA supplicante ao ouvido da irmã, que ia responder:

                                      Maria...

CLAUDIA rindo, satisfeita, feliz:

        _Maria_... Nome formoso,
        Que tem um rythmo éoleo!
        Merece logar honroso,
        Por Jove, no Capitolio!

E volta para a liteira.

A ESCRAVA GEDA ajudando-a a accomodar-se nas almofadas da liteira:

  Nunca te vi assim...

CLAUDIA

                      Diverte me a bondade,
  Ás vezes...

O CENTURIÃO AMPÍO ao sequito:

             A caminho!

Os lecticarios põem a liteira aos hombros.

CLAUDIA

                        Á porta da cidade
  Haveremos de estar antes da noite. Anceio
  Por que termine em bréve este infeliz passeio,
  Sem novo encontro mau.--Ó palida judía,
  Pode ser que eu te veja ainda... Até um dia
  Tem saúde até lá, que o ferro vingador
  Detesta a gente magra, e tem maior furor
  Ao trespassar um cólo arredondado e terno...

MARIA

  Descansa: não hei de ir incommodar-te ao inferno!

Claudia solta uma gargalhada, correspondida n'um murmurio pela
soldadesca; e Maria, affagando Martha, que não cessou de chorar, leva-a
comsigo para casa.


Apparecem então os fariseus Benjamim e Josué, cautelosos, o olhar
obliquo circumdando o terreno, como bons espiões: concretisação grotesca
da hipocrisia sacerdotal da época. Mantos negros, andar pausado, mitras
de feitio semelhante á dos outros judeus, mas de maior dimensão. Debaixo
dos braços, os rôlos de Escriptura. Compostura beatifica. Benjamim, um
pouco alquebrado, por calculo, parece não querer levantar do chão o
olhar para as coisas superiores ao pó da terra; Josué, pelo contrario,
conserva-os erguidos ao ceu como para não os baixar ás coisas mundanaes.
Claro é que de quando em quando a compostura perde-se, e os velhacos
manifestam-se.

BENJAMIM

    Não ha que duvidar: chegaram todos.

JOSUÉ

    Viste bem, Benjamim? seria engano...

BENJAMIM

    Engano o que? Se affirmo, se até juro
    Ter visto o Mestre e os dose companheiros.
    Tomaram pela horta do Simão,
    E em bréve hão de estar n'aquella casa.

E approxima-se da casa do _Leproso_. Detem-se; prestando attenção, ouve
a distancia o murmurio festivo do povo que, saúda com _Hossannas!_ a
chegada do Rabbi da Galiléa.

    Eu não te digo?... O povo já começa
    A correr ao encontro. Dentro em pouco,
    Vae por esta Bethania uma celeuma,
      Que nem no Templo em dia de festejo!
    Eis portanto o momento ambicionado
    De cumprirmos as ordens recebidas...

JOSUÉ, timido, covarde, circumvagando o olhar:

    Mas Benjamim...

BENJAMIM

                    O que é?

JOSUÉ

                            Sinceramente,
    Vou achando pesada esta incumbencia.
    É que nós somos dois: elles são tantos!...

BENJAMIM

    Em verdade te digo; principío
    A estar arrependido de indicar-te
    Para meu ajudante n'esta empreza!
    Hanan mandou que fossemos prudentes:
    Devemos ter prudencia. Hanan mandou
    Que tomassemos nota do que vissemos:
    Tudo o que virmos lhe será contado.
    Hanan mandou que fosse descoberto
    O melhor paradeiro onde, em segredo,
    Se podesse prender o Nazareno,
    Muito em segredo, sim, para evitar
    Protestos e tumultos: pois, meu caro,
    Havemos de encontral-o!

JOSUÉ

                            Estás bem certo?...

BENJAMIM velhacamente, animando-o:

    E não vejo que mal nos ameace.
    O ex-Grande Sacerdote é simplesmente
    Quem se entrega aos revezes d'este jogo.
    Se perde ou ganha, o caso é lá com elle;
    E nós de qualquer forma ganharemos
    Não só a consciencia de homens probos,
    Leaes respeitadores de Moysés...

JOSUÉ unctuosamente:

    O que á minha alma traz doce conforto...

BENJAMIM

    ... Mas tambem o dinheiro promettido,
    Que não menos conforta as nossas bolsas.

JOSUÉ com desinteresse hypocrita:

  Tens um sistema de encarar a vida!...

BENJAMIM

    É forçoso que nós nos convençamos
    De que, se os bons principios se defendem,
    Tambem se deve garantir ao corpo
    A delicia das bôas digestões...
    Á custa do dinheiro do Conselho!
    --Ouve portanto o que é mister cumprir:
    Tu vaes para a cidade; a bréve trecho
    Procurarás o ex-Sacerdote... E então
    Dir-lhe-ás que o profeta e os companheiros
    Chegaram a Bethania era sol-posto;
    Que decerto aqui ficam toda a noite,
    E que eu não deixarei de estar álerta.

JOSUÉ

    Perfeitamente.

BENJAMIM

                  Espéra! De manhã,
    Logo que vejas os clarões do dia,
    Has de esperar por mim...

JOSUÉ

                             Que sitio indicas?

BENJAMIM

    Não distante da entrada principal
    Do Templo. Dado o caso que eu não chegue,
    Commigo has de encontrar-te...

JOSUÉ

                                  E onde?

BENJAMIM

                                         Aqui.

JOSUÉ

    Muito bem!

BENJAMIM

              Percebeste?

JOSUÉ

                          Que pergunta!
    Como quem desenrola o «Pentateuco»
    E passa a vista pelo que elle diz.
    --A proposito: guarda-me estes rôlos.

BENJAMIM acceitando-os e juntando-os aos seus:

    Tens razão. As Sagradas Escripturas
    Iriam pezar muito no caminho.
    Mas deves ir com um, pois é preciso
    Para te dar o aspecto d'homem sério.

JOSUÉ

    Ao romper da manhã...

BENJAMIM

                         Vae-te! Vem gente!

E tomam para lados oppostos, revestidos de sua compostura habitual.


Quatro homens assomaram á porta do _Leproso_; são Eleazar acompanhado de
João, Simão Pedra e Matheus.

João é um bello tipo da raça judaica do norte. Alto, robusto, espadaúdo
e ainda imberbe. Os louros cabellos de genuino galileu caem-lhe sobre os
hombros em fartos anneis. Olhar azul, meigo; gesto largo e suave, na
quietação d'alma; mas desordenado e brusco, se a colera o determina. Voz
intensa, possante, cadenciada, de homem habituado a falar ao ar livre,
na grande extensão da superficie das aguas.

Mais velho do que elle, Simão Pedra deixa transparecer em toda a sua
figura suavidade extranha em creatura humana. De Capharnaum, galileu
tambem e tambem robusto homem do mar, o seu rosto é circumdado pelos
annelados cabellos e pela barba comprida, bipartida, e tão loura, que
mais parece branca. Olhar penetrante, mas bondoso e ligeiramente
accentuado por um vinco entre os supercilios, o que torna a sua
fisionomia um pouco severa. Gesto sempre sereno; voz protectora,
paternal.

Matheus é mais velho do que João e mais novo do que Simão Pedra. Baixo,
de forte musculatura, barba ruiva bipartida; olhos meùdos e muito vivos
de antigo publicano. Todavia o conjuncto da fisionomia é attrahente por
uma expressão de rude franqueza que n'elle predomina. Voz quasi
homofona, de homem metódico, que raras vezes se enthusiasma ou
sensibilisa, e que tem da vida uma noção segura.

Os trez trazem na cabeça turbante á moda egypcia, com as pontas caídas
ao longo das costas. Os mantos e as tunicas empoeirados mostram que foi
grande o percurso que fizeram os romeiros.

JOÃO resfolegando:

  Amigos, n'este sitio ha fresco e liberdade!

MATHEUS

  E ficam bem á vista os muros da cidade...
  Não sei o que adivinho!...

JOÃO

                            Ao largo esse receio!
  Muito mais me entristece a nuvem má que veio
  Escurecer ao Mestre o doce olhar...

SIMÃO PEDRA, com o braço direito sobre o hombro de Eleazar, n'uma
intimidade muito amiga:

                                      Meu caro,
  Que justissimo orgulho eu tenho, se comparo
  O tempo que passou a este em que hoje estamos:
  O verbo illuminando a treva e os recamos
  Do manto a que se abriga uma ambição enorme;
  As contorsões finaes do animal disforme
  Que viu a luz no Horeb ao sopro de Moysés,
  Rojando-se afinal vencido a nossos pés!

ELEAZAR descrente, mas muito timido, querendo occultar o que lhe vae
n'alma:

  E julgas que não tarda em despontar o dia
  Tão desejado?

SIMÃO PEDRA

                Eu?! Pois quem duvidaría?
  --A doutrina do Mestre é como o grão de trigo,
  Que o lavrador dispõe no seu terreno amigo.
  Que mais cuidados tem o bom do lavrador?
  Não tem nem um cuidado. A terra, em seu labor,
  Se encarrega de dar ao germe, ao simples grão,
  A força e o poder da multiplicação.
  Se o lavrador depois no campo seu repára
  E vê brilhar ao sol a refulgente seára,
  Exclama, commovido: Abençoada terra,
  Que assim tanta bondade e tanto amor encerra!

ELEAZAR, quasi a medo:

  Mas se acaso acontece o lavrador morrer...?

SIMÃO PEDRA

  Quem passa pela estrada e attenta no crescer
  Do risonho trigal, diz logo, reverente:
  Bemdito quem dispoz na terra esta semente!

ELEAZAR, depois de grande hesitação:

  Escuta, Simão Pedra: Ás furias do Conselho
  Não curvareis, talvez, humildes, o joelho?...

SIMÃO PEDRA

  Nunca!

ELEAZAR

        Nem fugireis?

JOÃO que se erguera, rapido e violento:

                     Nenhum de nós!

Judas sae de casa de Simão e vae sentar-se, pensativo, junto da fonte.
Bem o viu João: mas, dissimulando, continúa ainda mais violento, e,
dando ás palavras uma intenção reservada:

                                    Nenhum...
  Dos que têem do Mestre a patria por commum!
  Posso dizer bem alto, amigo: os seus patricios
  Nunca hão de vacilar perante os sacrificios.
  Se acaso o Mestre fôr levado de vencida,
  Qualquer de nós dará por elle a propria vida!
  Quem ha de recusar-se a tal? Filippe, André,
  Thaddeu, Nathaniel, Simão, Matheus, Thomé,
  Iago, o publicano, ou Simão Pedra?--Não!
  Julga-me alguem covarde, a mim, ou a meu irmão?
  --Vês pois, Eleazar, qual seja o nosso intento.

JUDAS

  Não falaste de mim...

JOÃO muito secco e terminante:

                       Por méro esquecimento.

E vae para junto de Matheus, como para evitar maior explicação.

ELEAZAR ao ouvido de Simão Pedra:

  Pareceu-me o contrario...

SIMÃO PEDRA triste e confidencial:

                           É sempre assim co'o Judas...

Judas tem quando muito trinta e dois annos. É um homem em toda a força
da vida, conformação máscula, de virilidade quasi selvagem. Estatura
regular. Elle proprio vae dizer-nos d'onde é, e qual a côr dos seus
cabellos naturalmente revoltos, curtos e encaracolados. Barba cerrada;
pélle morena. Olhar profundo e d'infinita melancolia, que de fórma
notavel contrasta da rudeza do resto da figura. Os dentes alvos brilham
entre os labios vermelhos; e quando irado, o labio inferior que é
grosso, sensual, estremece-lhe como o d'um touro em circo romano. É uma
d'essas creaturas que não sabemos se devam inspirar-nos simpathia, se
conservar no nosso espirito a idéa de repulsão que a principio nos
dispertaram. Gestos angulosos e rigidos; mãos, braços e peito
cabelludos; andar pesado. Voz de tonalidades irregulares; extremamente
meiga e cariciosa na dôr, extremamente vibrante, herculea na cólera.

JUDAS amarga, mas serenamente, depois de ter meditado por algum tempo:

  Que mal te fiz, João? Chego a pensar que estudas
  As tuas aggressões áquelle que te présa!
  Eu tenho uma alma branca, e a consciencia illésa.
  De injurias contra mim tu sempre estás faminto!
  Que mal te fiz, João? Tu pensas que não sinto...
  (E crê que muita vez isto me vem á idéa)
  ... Ter nascido em Judá e não na Galiléa?
  Sou culpado de quê? De ter a pélle escura?
  De ter cabello negro? Isto é para censura?

MATHEUS conciliadôr:

  Mas se elle já te disse...

JUDAS

                            E eu digo que, em verdade,
  Prefiro lealmente o odio a esta _amizade_!

E volta aos seus pensamentos dominantes.

MARTHA, assomando a uma das janellas, n'uma risadinha infantil:

        Vinde ceiar, que são horas.
        Não quereis?

SIMÃO PEDRA, aproveitando a inconsciente intervenção de Martha

                    Nem se duvída!

MARTHA

        Pois deixae-vos de demoras,
        Aliás vae-se a comida!
        --Uma ceia improvisada
        Mas nem por isso mesquinha,
        Podeis crêr.

SIMÃO PEDRA

                    A caminhada
        Que fizemos foi damninha...
        Por aguçar o appetite.

MARTHA intimativamente, retirando-se da janella:

        Dize que venham depressa,
        Porque, faltando ao convite,
        Sem vós a ceia começa!

JOÃO a Matheus e a Eleazar, continuando a conversa interrompida e n'um
tom de voz inaudivel para Judas:

  Dizeis que elle é honesto e probo e crente, em summa
  Que para ser dos bons não falta a coisa alguma...
  Talvez que seja assim como dizeis. No entanto,
  Se para o seu olhar o meu olhar levanto...
  --É tectrico e sombrio aquelle olhar revêsso!
  Pensando sempre! Em quê?--Amigos, bem conheço
  Que pode ser fatal este misterio vivo!
  Qualquer de nós é meigo, alegre e expansivo...
  --Quizeram confiar-lhe a bolsa do dinheiro:
  Não procederam bem.

SIMÃO PEDRA que se reunira aos tres, carregando o semblante:

                      Porquê?

JOÃO em tom leviano:

                              O embusteiro
  Apenas retribue a prova de amizade
  Gastando em seu proveito o que é da sociedade.

SIMÃO PEDRA, que não poude reprimir um sobresalto, tornando-se ainda
mais severo:

  Já não te quero ouvir nem mais uma palavra!
  No teu peito leal um sentimento lavra
  Improprio de quem és! Lá dentro direi tudo.
  Depois do que te ouvi, não posso ficar mudo!

ELEAZAR conciliador:

  Então!

MATHEUS detendo Simão Pedra, que ia para entrar em casa do _Leproso_:

        Menos calor!

JOÃO repêso, meigo, supplicante:

                    Oh! cala-te, por Deus!
  Não vás exacerbar ao nosso Mestre os seus
  Desgostos; porque, emfim, sou muito leviano...
  Proveio o que me ouviste apenas de um engano...
  Simão Pedra, desculpa!

Á supplica de João succede algum silencio: todos têem o olhar em Simão
Pedra, aguardando o desenlace.

SIMÃO PEDRA sorrindo, afinal, benevolo:

                        Eu sei que és razoavel.
  Já tinha como certa a confissão louvavel,
  Que logo surgiria á simples ameaça...

JOÃO abraçando-o effusivamente:

  Devemos collocar ao longe o que a desgraça
  Procura intrometter no nosso coração!

MATHEUS

  O Mestre é que diz bem: nasceste d'um trovão,
  Mas tens dentro do peito os risos da bonança!

SIMÃO PEDRA

  Não voltes a magoal-o.

JOÃO

                        Hei de mudar, descansa.

Encaminha-se para casa, mas

SIMÃO PEDRA detendo-o e apontando para Judas, que nada ouviu do que se
passára:

  E fala-lhe, João: não vês como ficou?

JOÃO com bonhomía:

  Judas, deixa-te d'isso! Anda d'ahi!

JUDAS olhando lealmente para elle e com um sorriso de reconciliado:

                                      Eu vou.


Mas fica, e só os quatro entram para casa.

Judas está agora sósinho, sempre sentado junto da fonte, novamente
immerso nas suas meditações. Anoiteceu. O luar vem rompendo, illuminando
toda a paísagem e coando-se pelas folhas do arvoredo. Uma paz enorme
reina em todo o quadro. Calaram-se as cotovias, calaram-se os rebanhos;
apenas os ralos se fazem ouvir, estridulos. Muito distante, porém,
distinguem-se os sons mal definidos de uma melodia: são os ultimos
romeiros, que veem para a festa da Paschoa tangendo psalterio, frauta e
pandeiro. É um himno melancólico, dolente, ao pausado compasso da
andadura. Pouco a pouco os sons definem-se, approximam-se. A aragem
fresca e perfumada balouça docemente o arvoredo.

JUDAS solta um suspiro, e erguendo o olhar, expandindo a sua alma:

    Porque motivo, ó Deus, esta injustiça?
    Desegualdade sem razão, medonha!
    Uma alma pura, virginal, submissa;
    Outra, vertendo em lagrimas peçonha!
    --Ah! fatal e profundo sentimento,
    Que tens do abismo a attracção e o horror!
    És para mim dulcissimo tormento,
    E sendo um grande amor... não és amor!
    Um desejo voraz, ardente, furia,
    Que a força da vontade não arranca!
    Tem sonhos de volupia, de luxuria,
    Com as palpitações da carne branca!
    Transforma o ideal em verdadeiro
    E a minha alma timida conduz
    A seductor e vago paradeiro,
    Onde eu estreito um cólo e uns braços nús!
    Não morrerás? não has de ter um fim,
    Ó tenebrosa e infernal tortura,
    Que pareces viver dentro de mim
    A construir a minha sepultura?
    --Quem te ordena que leves a maldade
    A fazer-me avançar para o impossivel?
    Porque segrédas tu que a castidade
    Nem sempre pode ser irresistivel
    Ás seducções frenéticas do amor?
    E porque vens mostrar-me, sensual,
    Certa nudez, e em todo o seu fulgor
    Um monte de oiro junto d'um punhal?
    --Como és infame! Sim! Com violencia
    Levas minh'alma fraca aos empurrões.
    E, como a Daniel, a Consciencia
    Queres deitar á cova dos leões!
    --Oh! nunca! Podes crêr que te resisto!
    Hei de salvar minh'alma moribunda,
    Arrancar-te de mim, e, depois d'isto,
    Escarrar-te no corpo, besta immunda!


E ergue-se de subito; mas o seu olhar detem-se, vendo no limiar da porta
o vulto de Maria destacando-se no fundo de luz amarelada que vem do
interior da casa.

Maria, ao reconhecer Judas, parou hesitante. Sobre o quadril esquerdo
traz apoiada uma amphora de grés. Tem uns momentos d'indecisão. Alguma
coisa extraordinaria occulta-se n'aquellas duas almas... Depois, Maria,
como animada de forte resolução, encaminha-se para a fonte, passando
pela frente de Judas, natural e serena. Elle seguiu-a com o olhar e
quedou-se a contemplal-a. Maria põe a amphora sob a corrente d'agua, e
espera que encha.

Os romeiros aproximam-se com o seu tanger plangente.

Dir-se-ía que uma lagrima resvalou no rosto de Judas, cujo olhar está
agora fito no chão. Mas, por fim, com expressão de resignado, eil-o que
se dirige para casa, onde entra a passos lentos.

A amphora transborda. Maria põe-na sobre o quadril e dá alguns passos.
Parou: negro pensamento lhe atravessa o espirito; olha para as bandas da
cidade com expressão de temor, como se d'ali podesse vir desgraça para
algum ente querido... Entra depois em casa, serenamente, fechando a
porta.

Os romeiros, cinco apenas, passam na estrada, tangendo os seus
instrumentos, e vão-se afastando, afastando gradualmente, os sons
sumindo-se pouco a pouco na distancia. A lua sobe com lentidão; paira em
todo o quadro a quietação muda da Natureza adormecida...

Mas um vulto suspeito e cauteloso deslisa na sombra, e dir-se-ía que
esse vulto é Benjamim.




SEGUNDA JORNADA

EM 9 DE _NISAN_




SEGUNDA JORNADA

EM 9 DE _NISAN_


Estamos em casa de Simão de Bethania.

A casa de entrada é ampla. N'uma das paredes abrem-se as duas janellas
tendo ao centro a porta; por ellas vemos o aprazivel sitio já nosso
conhecido e a fonte d'onde a agua dimana. Na parede, que nos fica á
direita, outra janella olha para Jerusalem e para a estrada que á cidade
conduz; na da esquerda, pequena porta com trez degraus dá communicação
para o interior.

Em volta da casa, a todo o comprimento das paredes, largo e baixo poial,
onde existem em descuidosa promiscuidade varios utensilios da vida
domestica, pratos, amphoras, onde o estilo ainda egypcio se revela;
pequenos copos de barro pintalgados, almofadas de velho tecido da Syria,
pedaços d'esteira de junco do Jordão. Não distante da janella fronteira
á cidade, pequena meza redonda cercada de camilhas denuncía tambem a
influencia do triclinio nos costumes da Judéa.

A lampada de cobre, que do tecto pende, tem ainda nos seus quatro bicos
os morrões que a apagada luz na vespera deixara. É dia claro,
festivamente bello; o sol dardeja e as cigarras vibram.

No triclinio trez homens estão deitados: Simão Pedra, Matheus e o
_Leproso_. Comem vagarosamente restos de legumes e peixe secco
temperados com oleo de oliveira doce, de que estivera cheio e amplo
graal collocado no centro da meza. Duas infusas junto de Simão; pedaços
de pão levedo em frente de cada commensal.

Não distante da porta, Judas está sentado no poial, as pernas cruzadas
sob a tunica, e tendo nos joelhos um grande rôlo aberto onde lê attento
as Sagradas Escripturas.

João, no limiar da porta, sem manto, a tunica á cintura aconchegada por
uma velha corda de linho que foi branco, braços cruzados,--medita e
lança de quando em quando olhares furtivos e penetrantes, que prescrutam
Judas.

MATHEUS

  De ha muito que não como, e sem lisonja o digo,
  Um pão com tal sabor. Que saboroso trigo!
  Não achas?

SIMÃO PEDRA

            Fabricado em casa do Simão...

SIMÃO

  Obrigado. Outro copo?

SIMÃO PEDRA

                        O vinho é de Ascalão.
  Conhece-se a distancia apenas pelo aroma.

SIMÃO

  Continuam a dar-lhe enorme apreço em Roma
  Para onde vão toneis sobre toneis!

MATHEUS que n'um movimento de cabeça concordára e que bebera depois
d'aspirar o bom perfume:

                                    Pudera!
  O amor entre os pagãos á embriaguez prospéra.

SIMÃO apresentando outra infusa:

  Temos agora aqui magnifica cerveja.

SIMÃO PEDRA

  De cevada?

SIMÃO

            Não é.

MATHEUS

                   De peros?

SIMÃO

                            De cereja
  Cultivada em Ramá.

Com sorriso amigo, Simão Pedra e Matheus estendem os copos para Simão
que n'elles verte o nectar rubro e espumante. Cheio o seu, bebem os trez
em silencio e com recolhimento.

SIMÃO PEDRA pousando o copo onde o olhar pensativo está fixando:

                    Olhae como é profundo
  Este segredo!

MATHEUS

                Qual?

SIMÃO PEDRA

                      Por um processo immundo,
  Pela fermentação, consegue-se tirar
  Da materia um licor tão grato ao paladar.

JOÃO que parecia estranho a tudo, fala emfim, com o olhar cravado em
Judas, que continúa lendo:

  Não acontece o mesmo a tudo que fermenta.
  Ha certas podridões que geram peçonhenta
  Bebida a que nem Deus o rude effeito acalma.
  Entrando pela vista, é digirida na alma!
  E sinto que n'esta hora a dôr que me aniquila
  Provem d'esse veneno horrivel que distila
  Muito perto de mim com lugubre misterio.
  Inutil procurar um doce refrigerio,
  Por que elle é semelhante á nodoa, que onde cae
  Arredonda-se, alastra, afunda-se e não sae!

Judas ergue para elle o olhar inquiridor; mas João já se retirou para
alem da porta e passeia em frente d'ella como para espairecer os negros
pensamentos.

Judas voltou á leitura sempre silencioso.

SIMÃO quasi em segredo aos seus dois commensaes:

  Nunca ouvi tal falar da bôca do João.

SIMÃO PEDRA tristemente:

  E o caso é que tambem começo a achar razão
  A tudo que elle diz.

Abandonam o triclinio reunindo-se junto da proxima janella, onde
conversam em voz baixa sem que Judas possa ouvil-os.

MATHEUS

                      O Judas, francamente,
  No que hontem se passou, deu prova de demente,
  Ou de infiel ao Mestre e cinico impostor!

SIMÃO

  Hontem?

MATHEUS

         Á noite.

SIMÃO

                  O quê? Dizei-me, por favor.
  Não sei do que falaes.

MATHEUS

                        Passou-se tudo aqui.
  Durante a ceia. Não ouviste?

SIMÃO

                              Não; sahi,
  Mas foi por pouco tempo.

SIMÃO PEDRA muito confidencial:

                          Então eis o motivo...
  --Durante toda a noite esteve pensativo
  E por mais d'uma vez fugiu-nos á conversa
  Com palavras banaes e frias. Tão submersa
  Tinha em meditações a alma, que ninguem
  Deixou de perceber...

SIMÃO

                        Percebi eu tambem
  Que, muito mais que outr'ora, havia no seu rosto
  A fiel expressão d'um intimo desgosto.

SIMÃO PEDRA

  Maria, aquella honesta e bôa rapariga,
  Desejando seguir a usança muito antiga
  No povo do Senhor, a de render um preito
  De sincera amizade e natural respeito
  Ao viajante illustre a quem se dá guarida,
  Abeirou-se da mesa, e, muito commovida,
  Derramou sobre o Mestre um perfumado unguento
  De nardo puro. Então, infame sentimento
  De Judas se apodéra. Em vez de prazenteiro
  E alegre como nós, aquelle companheiro
  Reputado fiel, só tem uma censura
  Para galardoar a prova de ternura:
  --«Melhor fôra, elle diz, que esse custoso nardo
  Se tivesse vendido. Eu, que o dinheiro guardo,
  Saberia guardar tambem zelosamente
  A importancia da venda a todos pertencente,
  Entregando-a depois em meu e vosso nome
  Áquelles que teem frio e áquelles que teem fome.»

SIMÃO como assombrado:

  Mas isso foi um insulto! E o mestre?

SIMÃO PEDRA

                                      Respondeu
  Brandamente, como é velho costume seu.

SIMÃO

  Nem siquer suspeitaes a causa?

MATHEUS

                                Tarde ou cedo,
  Alguem desvendará por certo este segredo.

E vão-se os trez para alem da porta, onde ficam ainda conversando,
encaminhando-se por fim para mais distante.

JOÃO tinha voltado, e encostára-se a uma das camilhas, observando sempre
Judas. Como não possa conter o que sente em si, aproveita o ensejo de
estar a sós com elle para expandir-se. Começa, porem, em tom sereno,
como procurando dominar-se:

  O que estás lendo? O assumpto é grave, ao que supponho.
  Reparo em que lhe dás toda a attenção.

JUDAS

                                        Medonho!
  --A infamia de Caím.

JOÃO

                      É proveitoso, e muito!
  Feliz coincidencia! E eu que tinha o intuito,
  No que inda ha pouco ouviste em frase rude e chã,
  De falar d'esse crime o qual desde manhã
  Tanto me preoccupa.

Muito ironico:

                      Á tua consciencia
  Não pode causar damno esta coincidencia...
  És tão sincero, és tão leal e virtuoso!...
  --Mas devo confessar-te...

JUDAS sereno e sempre sentado:

                            O quê?

JOÃO

                                  Que estou ancioso
  De ha muito por que tu expliques o motivo,
  Que te obrigou a ser cruel e offensivo
  Para quem te consagra uma affeição fraterna.

Exaltando-se pouco a pouco, mau grado seu:

  O que possues em ti, Judas, que assim governa
  O teu entendimento? É sempre em vão que eu scismo
  No misterio que abriu na tua frente um abismo
  Cercado de fataes e nús despenhadeiros,
  Affastando-te assim dos nossos companheiros,
  Sem que nenhum pezar lá dentro te remorda.

E indicando a corda com que prende a tunica á cintura:

  Somos na união eguaes a esta corda,
  Que as estrigas de linho unidas fortemente
  Fizeram tão subtil, mas que é tão resistente.
  Na sólida affeição, unificados, somos
  Assim como n'um fructo os solidarios gommos.
  --Desfia-se, porem, a corda, ao que parece;
  E julgo ver no fructo um gommo que apodrece...

JUDAS com affectada bonhomía:

  Chiméras, illusões...

JOÃO

                        Talvez.--Mas quando penso
  Que o teu profundo mal pode tornar immenso
  O crime, e que será depois intempestivo
  O arrependimento... Em summa, não me esquivo
  A dizer-te o que tenho a corroer-me a entranha:
  Nunca simpathisei comtigo; não se amanha
  Com a tua frieza a ardencia do meu peito.
  É por isto que eu sou dos Dôse o mais affeito
  A observar-te.

JUDAS

                A mim?!

JOÃO

                        E sabes o que vejo?
  Que tens uma alma rude e instincto malfasejo!

JUDAS erguendo-se, vagaroso, com o rôlo nas mãos, fingindo indifferença:

  Chiméras, illusões...

JOÃO

                        Talvez.--Mas quem nasceu,
  Tendo as ondas por berço, e a cupula do ceu
  Por vasto cortinado; aquelle que na infancia
  Aprendeu a olhar com summa repugnancia
  Para tudo o que seja immundo, vil, terrestre,
  Muito melhor que tu ha de entender o Mestre.
  Não podem comprehendel-o os rudes corações
  Selvagens como o teu!

JUDAS

                        Chiméras, illusões...

JOÃO

  Não podes comprehendel-o, e apezar d'isto queres
  Viver junto de nós!... Ás bolsas esmoleres
  Supplícas com aspecto humilde uma parcella
  P'ra o Mestre!--Na verdade, é preciosa e bella
  Tanta dedicação! Provoca o elogío!
  --Ah! julgas que não sinto ás vezes, quando espío
  O teu olhar matreiro, o brilho da avareza
  A dar-lhe um tom sinistro?--Odeias a pobreza!
  Ambicioso e fraco, andas comnosco apenas
  Como atraz do rebanho os lobos e as hienas!

JUDAS avançando para elle, irrompe finalmente com um rugido abafado, o
olhar ameaçador:

  João!

JOÃO cruza os braços e sereno:

        Podes bater, amigo! Por que esperas?

Judas, arrependido do seu primeiro movimento, affastou-se rapido. E
João, agora ainda mais excitado:

  E chamas illusões! e vens chamar chiméras
  Ao que é verdade núa e positiva?!--Agora
  Que a todos cumpre ter mais força do que outr'ora;
  No actual momento em que até eu vacílo,
  Presentindo que não poderá ser tranquillo
  O futuro do Mestre e de nós todos, mudas
  Em odio declarado essa frieza, Judas?!
  Que mal te fez, que affronta, elle, que é tão bondoso?
  Confessa que proveito, ou que terrivel goso
  Encontras n'essa infamia abjecta!

Desesperado pela indifferença apparente de Judas:

                                    Que supplicio!
  Não poder arrancar-te ao menos um indicio!
  Não poder descobrir a causa que assim léva
  O teu cerebro audaz a trabalhar na tréva!
  Ah! não poder, depois do que disseste aqui,
  Rachar-te o craneo ao meio, e entrar dentro de ti!

E senta-se, febril, n'uma das camilhas.

JUDAS, que em silencio estivera contorcendo as mãos nervosamente,
diz-lhe emfim com muita ironía:

  Está bem! muito bem! Ao menos, esperava
  Que soubesses deter a incandescente lava,
  Que todo me queimou, transformando em carvão
  A minha consciencia... embora de _ladrão_.

Resoluto, firme, altivo:

  Vou deixar-vos! Não sei qual seja o meu destino;
  Mas isso que te importa? Um ser tão viperino,
  Como eu, só tem logar no meio da ralé,
  E quando estorva o passo, affasta-se co'o pé!

JOÃO repêso, olha para elle bondosamente e com um sorriso amigo:

  Acalma a excitação, Judas. O principal
  Resume-se, ao presente, em confessares qual
  A origem do teu odio. É isto o que eu te peço,
  É isto o que eu desejo.

JUDAS n'um brusco impulso de independencia:

                        Isso é que não! Confesso
  Á minha consciencia o que me vae no peito!
  Arrancar-me um segredo? E julgas ter direito
  De desvendar em mim reconditos misterios?
  Acalmo a excitação, mas guarda os vituperios!
  --Pediste por acaso ao mar em que nasceste
  Que descobrisse o leito? Alguma vez desceste
  A espreitar-lhe a vida, a revolver-lhe o fundo?
  Pois o meu coração como elle é tão profundo,
  Que se alguem pretendesse abrir uma passagem,
  Teria de morrer submerso na voragem!

João avançou para elle com expressão conciliadora; Judas, porem,
detem-no com um gesto. Depois, parecendo sincero, mas occultando as suas
verdadeiras intenções:

  Não me perguntes mais. Ao peso da injustiça
  Conseguirei vergar esta alma tão submissa.
  Chiméras, illusões condemnam-me implacaveis...
  Judas, vae reunir-te áquelles miseraveis,
  Que vagueiam, sem rumo, e que andam foragidos,
  Erguendo para os ceus o olhar e os gemidos...
  Depois quando vier o derradeiro instante,
  Desamparado, nú, febril, agonisante,
  Revolvendo no pó as tuas mãos afflictas,
  Em vez de maldições, tem palavras bemditas,
  Para quem desprezou teu pobre coração,
  Deixando-o succumbir como se fosse um cão!
  --Adeus e para sempre.

Com ironia muito concentrada, já no limiar da porta:

                        Acceita em pensamento
  O que d'aqui te envio: em tão cruel momento,
  Abraçar-te e beijar-te é todo o meu desejo
  Sincero. Para quê? pois de que serve um beijo
  Dado por mim? Demais, meu hálito enxovalha!
  --Adeus, amigo. Adeus... Adeus, João.

E por entre dentes, inaudivel e rancoroso, saíndo a porta:

                                        Canalha!

JOÃO ficou meditando, e depois generosamente, como falando á sua propria
consciencia:

  Oh! fui desapiedado! A sua voz tornou-se
  Tão lacrimosa e humilde! É mui de crêr que eu fosse
  Pedir ao exagero o auxilio necessario
  Para augmentar de vulto o crime involuntario,
  Ou a leviandade alheia á malvadez.
  Pobre Judas! E vae fugir de nós! Talvez
  Arrastar pelo mundo uma existencia nua
  De affectos, desgraçada... E não por culpa sua...

Á porta de casa appareceram Eleazar, Simão Pedra, Matheus e Simão de
Bethania.

ELEAZAR indicando João aos companheiros:

    Eil-o aqui está! E nós á tua espera!

SIMÃO PEDRA

    São horas de partir para a cidade.

JOÃO cercado pelos amigos e já esquecido do que se passou, todo o seu
pensamento entregue ao Mestre:

    Não deve ser pequena a caravana!

MATHEUS

    Junto do Mestre, o povo delibera
    Acompanhal-o.

SIMÃO PEDRA

                  O que é grande imprudencia!

JOÃO

    Grande imprudencia?!

SIMÃO PEDRA

                         Os nossos companheiros
    Em vão procuram com docilidade
    Suster o passo á gente leviana...

JOÃO

    E porquê? Não são elles verdadeiros
    Defensores do Mestre?

SIMÃO PEDRA

                         Mas reflecte...

JOÃO

    O povo quer seguir-nos? Pois que venha!

SIMÃO PEDRA

    Mas pode provocar algum tumulto.
    É preciso que a dentro da muralha
    Evitemos qualquer indisciplina.

JOÃO

    Tu que dizes? Que pensamento occulto
    Encerram taes palavras? Será crivel
    Que te arreceies da imbecil gentalha,
    Que anda a rosnar as suas ameaças
    Contra a força que temos, invencivel,
    Justiceira e tremenda?!

SIMÃO PEDRA

                            E porque não?
    Onde possues algemas e mordaças
    Para conter as furias imminentes?
    Pode acaso fugir-se a uma traição?
    Reflecte bem: devemos ser prudentes,
    Evitando que Hanan tenha pretexto
    Para exercer emfim uma vingança,
    Roubando ao Mestre a preciosa vida.

JOÃO, animando-se, cheio de puro enthusiasmo messianico:

    Não tens portanto uma unica esperança
    Em ver surgir a aurora promettida?
    --Enganas-te! Abrigae-vos sob o manto
    Do Profeta, que vamos afinal
    Assistir ao enorme vendaval,
    Que ha de causar a todo o mundo espanto!
    Da Lei não ficará nem uma linha,
    E as pedras do Templo hão de cahir!
    Eu antevejo, amigos, o porvir,
    Que de instante a instante se avisinha!
    Como cães a ulular, de toda a parte
    Hão de saír as abominações!
    Entre espadas de fogo e maldições,
    Vae tremular um sólido estandarte!
    Hão de as nuvens rasgar-se! A voz de Deus
    Ribombará como um trovão gigante,
    E o vento ha de levar para distante,
    Onde não haja terra, mar, ou ceus,
    As ultimas parcellas do monturo
    A que chamamos hoje humanidade!
    Álerta! vae rugir a tempestade!
    --Confia em Deus! Espera no futuro!

Voltando-se e vendo Gamaliel, não pode reprimir a sua surpreza:

  Gamaliel?!

GAMALIEL que pouco antes chegára da cidade, ouviu todo o falar de João.
Traz o rosto abatido, o olhar cavo; dir-se-ía portador de uma nova
terrivel.

            Eu proprio. E vejo que cheguei
  A tempo de lembrar que existe de uma Lei
  A rispida crueza, a inquebrantavel força,
  E que por mais que a tua exaltação retorça
  O positivo, elle ha de emfim prevalecer!
  Vós tendes a palavra. Hanan tem o poder.
  --O perigo é enorme.

Todos rodearam Gamaliel, attentos, em grande anciedade:

                        Ouvide: Nicodemo,
  Um homem de honradez e que respeita em estremo
  O vosso Mestre, não me occulta o que se passa
  A dentro do Conselho. Evite-se a desgraça,
  Fazendo-se abortar o plano vingador!

TODOS em sobresalto:

  Um plano?!

JOÃO

            Como?!

SIMÃO PEDRA

                  Dize!

MATHEUS

                        É de grande valor
  O que disséres.

JOÃO

                 Sim! deves dizer-nos tudo!

E acercam-se d'elle ainda mais:

GAMALIEL pausada e custosamente:

  Hanan possue no genro o seu melhor escudo.
  Se transformou Kaíapha em Grande Sacerdote,
  Foi para ter alguem que cegamente vote
  Na sua opinião. Mais do que o genro, alcança
  Dos homens do Conselho estima e confiança.

E custando-lhe a despegar dos labios as palavras:

  Eis por que hontem á noite, e em sessão secreta,
  Por elles foi votada a morte do Profeta!

SIMÃO PEDRA, erguendo as mãos aos ceus:

  O meu presentimento!

MATHEUS, convulsamente:

                      Infamia!

JOÃO, n'um grito:

                              Cobardia!

ELEAZAR agarrando Gamaliel por um pulso:

  É tempo de calcar aos pés a tirannía!

Todos, excepto Gamaliel, estão nervosos, irrequietos, consultam-se,
animam-se, invectivam Jerusalem. João foi á janella, e com os dentes
cerrados, o braço erguido, ameaça-a de esterminio.

GAMALIEL

  Tende serenidade!

JOÃO

                   Oh! não, Gamaliel!

ELEAZAR

  Liberte-se de vez o reino d'Israel!

GAMALIEL

  Que poderá tornar-se em grande mar vermelho,
  Se Poncio perfilhar o voto do Conselho!

JOÃO

  As espadas de Roma, as furias de Tiberio,
  Inda hão de succumbir a todo o nosso imperio!
  O povo ha de gritar, raivoso, leonino,
  Rasgando a face impura ao despota assassino!

GAMALIEL, procurando serenar os animos; as lagrimas borbulhando nos
olhos e cahindo-lhe pelas barbas brancas:

  Ouvide-me, por Deus! Eu tenho lido tanto
  No livro da experiencia, amigos, que é de pranto
  A minha pobre offerta á causa alevantada!
  Vós não podeis brandir a rutilante espada;
  Nem elle, todo amor, consentiria nunca
  Na transfiguração do verbo em garra adunca.
  Parti, pois que é preciso apparecer ao povo,
  Mas fugide a que venha um incidente novo
  Aguçar ao tiranno o sanguinario intento.
  Entrae com desassombro a porta do aposento
  Onde finge dormir, silencioso, o crime;
  Acalmae-vos, porem, ou elle não reprime
  O seu rancor feroz!

SIMÃO PEDRA tambem resoluto:

                     Seja o que Deus quizer!

JOÃO

  Nem lamina d'espada, ou pranto de mulher,
  Pode esfriar em mim a indignação!

GAMALIEL

                                   Piedade!

ELEAZAR

  Vamos!

MATHEUS

         Jerusalem!

SIMÃO

                   Coragem!

JOÃO

                            Na cidade
  Havemos de formar com os nossos companheiros
  Possante legião d'impávidos guerreiros!

E vão-se todos tumultuariamente, levando comsigo de roldão o velho
Gamaliel.


Decorridos alguns momentos em que a moradia de Simão ficou abandonada,
Maria e Martha veem de fóra. Martha sempre alegre; a irmã sempre absorta
em grande melancolía. Ao entrar em casa, Maria vae logo postar-se á
janella, seguindo com o olhar cheio d'angustia os que vão a caminho de
Jerusalem.

MARTHA

        E uma vez que partiram
        Para a cidade, afinal,
        Entreguemo-nos agora
        Ao que julgo essencial:
        Tratemos da nossa casa.

MARIA, indolente:

        Espera. Não tenhas pressa...

MARTHA

        É que está tudo em desordem,
        E o nosso irmão começa
        Dentro em breve a murmurar
        Que ninguem aqui trabalha!...

MARIA

        Martha, vae tu repoisar,
        Que eu tratarei do preciso.

MARTHA

        Não teimes, que me aproveito
        Do teu conselho.

MARIA

                        Careces
        De alguns momentos no leito;
        Deves estar fatigada.

MARTHA

        E não te enganas. Ergui-me
        Ao romper da madrugada...

MARIA

        E foste uma das primeiras
        Que se juntaram co'os Dôse
        No Monte das Oliveiras,
        Onde passaram a noite,
        Como é costume.

MARTHA, abeirando-se da irmã, muito meiga:

                        E não ficas
        De mal comigo?

MARIA

                        Porquê?
        Se em nada me prejudicas...

E anciosamente, vendo Judas que acabou d'entrar:

    O que ha de novo, Judas?

JUDAS

    Nada sei...

MARTHA muito admirada:

    Não quizeste partir para a cidade?

JUDAS indolente, recostando-se n'uma das camilhas do triclinio:

    Como vês, não parti... pois que fiquei.

MARIA

    E porquê?

JUDAS

              Porque o somno que me invade
    Exige para o corpo algum repouso.
    Vae alto o Sol; de ha muito manifesta
    Que brilha no seu ponto mais radioso,
    E que são horas de dormir a sesta.

MARIA, sem o fitar, serena:

    E vaes dormir?

JUDAS cerrando as palpebras:

                    O Livro dos Proverbios
    Alguma coisa diz... «Quem se julgar
    Com pequenos desgostos, exacerbe-os
    A dormir, a dormir... e a sonhar...»
    --Se durmo, para onde é que foge a vida?
    Para fóra de mim quem a conduz?
    Encontrará descanso na guarida
    Para onde, ao apagar-se, vae a luz?
    Ao despertar depois, quem reacende
    No cerebro o fulgor que relampeja?
    Quem é que nos dá vida ou que a suspende
    A seu prazer?

MARTHA com muita convicção:

                  É Deus...

JUDAS abriu os olhos, fitou-a, e depois, fechando-os de novo:

                            Talvez que seja.

MARTHA surpreza:

    Talvez?!

Muito baixinho ao ouvido da irmã:

             Extranho o Judas!

JUDAS

                              Sim, talvez;
    Porque não julgo prova de criterio,
    Antes se me affigura insensatez,
    Explicar um segredo co'um misterio.

MARTHA abeirando-se d'elle, e pondo-lhe a mão no hombro, diz com uncção,
melodiosamente:

        Anda a tua alma fugida
        Ao bom caminho da crença...
        Quem foi que d'elle a affastou
        E que dentro em ti deixou
        Uma escuridão immensa?
        Hontem á noite... (Desculpa
        Se acaso te contrarío
        Ao falar agora d'isto)
        Por todos nós foi mal visto,
        Judas, o teu desvarío.
        De tão modesta homenagem
        Não era merecedor
        Aquelle Mestre sublime
        Em cujo rosto se exprime
        A bondade e o amor?
        --Anda a tua alma fugida
        Ao bom caminho da crença.
        Que Deus de novo a conduza
        E o brilho reproduza
        Na tua alma, treva immensa!

Judas fica immovel e silencioso. Martha, satisfeita, julgando havel-o
convencido, diz então baixinho á irmã:

        Não responde. Pode ser
        Que facilmente consigas
        Descobrir toda a verdade.

MARIA, querendo esquivar-se:

        Eu?

MARTHA

            Com palavras amigas
        Interroga-o, porque, em summa,
        Custa ver n'um coração,
        Que deveria ser meigo,
        Semelhante ingratidão.

E vae-se para o interior da casa a reclinar-se no seu leito perfumado.
Judas e Maria ficam a sós; Judas, com as palpebras semi-cerradas,
observa-a.

MARIA conserva-se indecisa por algum tempo; mas depois, como respondendo
a si propria:

        É mais prudente...

E dirige-se para a porta por onde a irmã saíu:

JUDAS erguendo o corpo sobre o cotovello:

                          Maria,
        Pareces que vaes fugindo...

MARIA baixando o olhar:

        Para não te incommodar,
        Quando estiveres dormindo.

E retira-se tambem, fechando a porta castamente:


JUDAS ergue-se de chofre e avança como para seguil-a; mas detem-se,
perplexo. Depois, desalentado, senta-se n'um dos degraus da porta por
onde Maria saíu, a cabeça entre as mãos, os cotovellos fincados nos
joelhos. Ao cabo de longo meditar, solta brandamente a sua voz:

  É isto mesmo, é isto: o effeito vem da causa...
  Pois quando ao seu trabalho alguem ordena pausa,
  Logo termina o effeito. É isto mesmo, sim.
  Provem este rancor, que ella sente por mim,
  Da paixão que lhe inspira o rosto, o olhar, a fala,
  Do ente extraordinario a que nenhum se eguala,
  Conjuncto singular de tudo o que ha perfeito.
  Portanto é elle a causa, e o rancôr o effeito!
  --Oh! que hei de supprimil-o, esmagando-o de todo,
  Ainda que me sinta a resvalar no lodo!

E erguendo-se, impetuoso:

  E tu, Consciencia, não me opponhas embaraços!
  Quando o trovão ribomba altivo nos espaços,
  Acoita-se a tremer a aguia no seu ninho!
  Vae-te! vae para longe! Eu quero estar sósinho!
  --... Mas quem me diz não ser este sinistro plano
  Improficuo, ou então summamente leviano!
  Se elle fugir á morte, ao estertor final,
  Por um processo occulto e sobrenatural,
  Contra mim lançará todo o furor do ceu,
  Elle ha de ser juiz e eu hei de ser o réu!

Com a alma a contorcer-se n'um supplicio:

  Se eu visse esta mulher entregue ao frio atroz,
  O craneo sem ter luz, a bôca sem ter voz,
  Ó Deus, entoaria, agradecido a ti,
  Uma canção igual aos psalmos de David,
  Transformando o meu peito em grande tabernaculo!
  --Mas vive: ha de ser minha! Hei de vencer o obstaculo!

Pensa longamente, em grande abstracção de tudo o que o cerca, com um
sorriso malevolo, animando-se:

  E se, como se diz, elle não fôr divino?
  Se obedecer, como eu, á força do destino?...
  --Sim! sim! Tudo consiste apenas no convulso
  E possante vigor d'um corajoso pulso!

Alguem o está ouvindo sem ser visto: Benjamim e Josué. Cautelosamente,
Benjamim entrou em casa pela porta aberta e vae approximando-se de
Judas, relanceando o olhar desconfiado; Josué empurrou o batente d'uma
das janellas, e pela parte de fóra observa. Judas, porem, continúa,
agora acobardado:

  Assassinal-o!... Não! Vago terror me opprime.
  E como poderei matar, sem ver o crime?
  Armando um braço vil? comprando uma consciencia?
  É pouco, é muito pouco... e é tudo!--Que demencia!
  Quem poderá saber onde reside a féra,
  Que tenha peito humano e garras de pantéra?

Desvairado; os braços agitando-se, convulsos; os cantos da bôca
espumando:

  --Vomíta, ó grande Terra, essa entidade estranha,
  Que vive silenciosa em tua negra entranha,
  Que é pura como o fogo, immunda qual farrapo,
  Enorme como Deus, mesquinha como um sapo!
  Genio amante do crime e á virtude adverso,
  Que mora num covil... e zomba do Universo!
  Eu quero conhecer o amigo dos devassos:
  Expele-o do teu ventre e arroja-o nos meu braços!

Com grande desanimo:

  Nem elle me protege! E eu preciso, emfim,
  D'um ser bastante infame!

BENJAMIM com muita humildade:

                           Aqui me tens, a mim...

JUDAS voltando-se, rapido, e agarrando-o brutalmente pela nuca:

    Quem és tu?

BENJAMIM avergado, mas sempre humilde:

                Sou alguem que te escutava.
    O tempo, como vês, não desperdiço...
    Não perguntes quem sou. Aqui me tens,
            Amigo, ao teu serviço.

JUDAS sem o largar:

    Ignoro quem tu sejas, mas se acaso
    Divulgar o meu odio tencionas,
            Juro que em curto praso
    No fio de uma lamina abandonas
    Co'o meu segredo a vida!

BENJAMIM amigavelmente, em censura carinhosa:

                            Cala a bôca!
    Não blasfemes de coisas respeitaveis.
    Venho fazer propostas acceitaveis,
            Dizer tudo o que sinto,
    E só respondes co'uma furia louca!
    Se me has de receber com effusão,
    Achando em mim o teu melhor amigo,
            Alevantas a mão,
    Ameaçador como um guerreiro antigo!
    É ser ingrato!

JUDAS largando-lhe a nuca, mas agarrando-lhe logo um braço:

                   Dize-me o que sabes!

BENJAMIM sinceramente:

    Ora! sei que a tua alma se abalança,
    Depois do que houve aqui hontem á noite,
    A seguir o caminho da vingança.
    Naturalmente, sentes-te offendido
    Co'a resposta que teve o teu reparo
            Tão justo e merecido...

JUDAS como comsigo, satisfeito:

    Portanto, ignora...

BENJAMIM

                       É isto amigo?

JUDAS, rapido:

                                    É isso!

BENJAMIM explicando:

    Eu hontem ouvi tudo junto á porta...
    --Manda, que eu te obedeço. Aqui me tens,
            Humilde, ao teu serviço.

JUDAS ficou hesitante, tendo largado Benjamim, que foi trocar signaes
com Josué.

    Mas se eu não sei...

BENJAMIM agora senhor de si:

                        Não sabes? Pois sei eu.
    O Mestre será morto, em poucos dias;
    Depende só de ti, fica sabendo!

JUDAS nervosamente:

    Que dizes, fariseu?

BENJAMIM imperioso, rapido, monotono, quasi ao ouvido de Judas, que
parece devorar-lhe as palavras:

                      Ouve: É tremendo
    O odio que lhe tem todo o Conselho,
    O qual procura o instante mais propicio
            De pôr em exercicio
    O plano da prisão, do julgamento...

JUDAS

    E da morte?

BENJAMIM

              E da morte! O que, porem,
            No actual momento
    Ao sacerdote Hanan muito convem
            É prendel-o em segredo,
    Á noite, em sitio obscuro. Hanan tem medo
    De que o povo alevante alguns protestos...
            Á prudencia conforme,
    Assim procederá.

JUDAS animado, satisfeito:

                     Dize-me então...

BENJAMIM

    É urgente saber onde elle dorme.
    Tu sabes com certeza!

JUDAS hesitando, vagamente acobardado:

                          Mas...

BENJAMIM

                                O quê?
    Não queres a vingança, Judas?

JUDAS

                                  Quero...

BENJAMIM

    N'esse caso, aproveita o bello ensejo,
    Que outro não tens melhor. Sendo sincero
    E grande, como julgo, o teu desejo,
    Não deves recusar o que proponho.
    --Ouviste? Muito bem! Reflecte agora,
    Este sitio não é muito seguro...
          Aguardo te lá fóra!

Vae-se; Josué segue-o, e os dois desapparecem.

JUDAS ficou perplexo ainda, como medindo a gravidade da proposta. Mas
depois:

    De que serve hesitar, se me apresentam
    Como satisfazer o meu anceio?
    Basta que eu seja um cumplice d'Hanan,
    Um traidor simplesmente... Nada mais...

Com rude franqueza:

    --Na mão direita a Infamia,
    A Consciencia na esquerda. Eu de permeio!

Com funda ironia:

          A sentença fixei:
    «Não saiba a esquerda o que pratíca a irmã.»
    --Não saberá, que eu nada lhe direi!

Vae sair, mas a porta que dá communicação para o interior da casa
abre-se, e Maria apparece no cimo dos degraus. Judas quedou-se.

MARIA que no limiar da porta ficára tambem indecisa:

  Julguei ouvir falar...

JUDAS

                         Aqui? Foi puro engano.

E notando um movimento esquivo de Maria:

  Retiras-te de novo? Eu faço qualquer damno
  Com a minha presença?

MARIA condescendente:

                       Oh! não...

JUDAS caricioso:

                                  Deixa-te pois
  Ficar junto de mim, que facilmente os dois
  Teremos na conversa um passatempo. Fica.

E mentalmente:

  Vejamos se o que diz me excita ou pacifíca.

Ha um grande silencio. Maria desceu mansamente e ficou de pé junto do
primeiro degrau, o olhar sempre absorto, os braços inertes ao longo do
corpo. Judas voltou para o triclinio, e de braços cruzados observa-a,
apparentando a maxima serenidade. Lá fóra, o Sol illumina fortemente a
paisagem; o calor primaveril irradía por toda a parte; ouve-se
nitidamente o murmurio da agua; as vibrações das cigarras são cada vez
mais intensas e estridulas; ha segredos d'amor nos ninhos proximos...

JUDAS

  Em que pensas, Maria? O teu formoso olhar,
  Que era d'antes tão meigo e calmo como o luar,
  Ha tempos que derrama um brilho vago, incerto,
  E em nuvens de tristeza agora anda encoberto.

MARIA com simplicidade, avançando um pouco:

  Por vezes, sem querer, entregue á dôr immensa
  Que me aniquilla, tenho a tudo indifferença.
  Ao passo que me opprime este cruel receio
  De vêr barafustar o nosso Mestre em meio
  Dos inimigos seus, mais frio do que a neve
  Se torna o meu olhar.

JUDAS tôrvamente:

                        Deve ser isso, deve...

E depois de algum silencio, ironico:

  Costumado a subir nos estos d'esse amor
  Aos mundos do Ideal, o candido fulgor
  Transforma-se em desdem, e apenas se descerra
  Perante a mesquinhez que roja pela terra!

O olhar bem fito n'ella, animando-se:

  Assim como um punhal de rija temp'ra e agudo,
  Esse olhar desdenhoso, austero, vago, mudo,
  Brilha sinistramente e vem caír direito
  N'este pequeno espaço, o espaço do meu peito!

N'um arranco d'alma:

  Em verdade te digo, ó mulher altaneira,
  Quizesse Deus mandar-te aos olhos a cegueira,
  Já que d'alma és tão céga aos prantos de quem te ama,
  Que olhas para esse alguem, como se fosse lama!

Crescendo em furia:

  Desde hontem que eu desejo estar comtigo a sós
  Para que emfim termine este supplicio atroz!
  Do meu peito o rugir não sabe em que se esconda,
  E vae saír de mim, como em torpel a onda,
  Tudo o que hei suffocado, e tudo o que hei soffrido!
  --Escuta-me, ó mulher, apura o teu sentido,
  E deixa de cuidar n'essa paixão agora,
  Que é maior a paixão que todo me devora!

Maria vae responder; elle porém, detendo-a com um gesto:

  Eu sei! Conheço a frase; escusas de falar:
  É puro o teu amor, não é amor vulgar...
  Mas vê que, se elle abriu em ti essa ferida,
  No centro da minha alma em sangue e dolorída
  Existe uma paixão tambem que me envenena,
  Podendo ser mortal, assim como a gangrena...

Em frente d'ella, com a mão sobre o peito, contorcendo frenetico a
roupagem:

  Ah! no supremo arranco um peito esfacelado
  Como este, não receia o que haja mais sagrado,
  E julga-se capaz, co'o seu valor enorme,
  De luctar e vencer o ente mais disforme,
  Terrivel como Deus, gigante como Adão,
  Possuindo na voz as frases do trovão!
  E porque sinto aqui as contorsões finaes,
  Espando francamente as máculas brutaes,
  Que viveram sem luz n'um mundo subterraneo:
  Os monstros do meu peito e os vermes do meu craneo!

Grande e soberbo, de braços abertos, espéra.

MARIA que não se moveu, serenamente:

  Sou fraca, sou mulher, e sei no que te escudas;
  Confesso-te, porém: causas-me tédio, Judas.

JUDAS n'um rugido:

  Maria!

MARIA sempre immovel:

        Com franqueza, eu disse-te por vezes:
  Em castidade egual ás innocentes rezes
  No Templo do Senhor dadas em sacrificio,
  Tenho por goso infindo, ao amor viver propicio,
  Dedicar áquelle ente em que a virtude brilha
  Acrisolado amor, amor... como de filha.
  Na terra nada mais preciso que uma coisa:
  A Crença.

Enlevada, com o olhar erguido, as mãos sobre o peito virginal:

            O meu amor longe d'aqui repoisa,
  Estrella que não teme as nuvens tempestuosas.
  Brando como o dormir das aguas silenciosas,
  Vago como o misterio enorme do futuro,
  Meigo como um sorriso, e como o orvalho puro,
  Nos espaços do azul vive risonho e inerme.
  A estrella é sempre estrella...

Descendo o olhar para Judas:

                                  e o verme é sempre verme.

JUDAS com as mãos encrespadas, os labios trementes:

  Ó vil mulher, que tens desprezo pelo amor,
  Fugindo á grande lei do grande Creador,
  Que elle n'esse teu corpo as maldições concentre
  Para tornar assim fecundo o estéril ventre!

MARIA sem se perturbar:

  Enlouqueceste!

JUDAS caíndo em si, fica por momentos silencioso. Depois, com o rosto
dolorido, n'um queixume:

                Mas se eu nunca fui amado!
  Assim como o terreno a que não chega o arado,
  Semelhante em mudez ás pedras do caminho,
  Era o meu coração. Via-me tão sósinho,
  Que, por vezes, cravando o meu olhar nos ceus,
  Interrogava o Espaço, interrogava Deus,
  Procurava arrancar ás trevas o motivo
  De haver dentro de mim um morto, estando eu vivo.

Com a voz muito quente, repassada de amor, sensual, o olhar húmido, como
revestindo Maria com um manto de beijos, as mãos gesticulando em curvas
graciosas, languidas:

  Mas desde que no teu o meu olhar depuz,
  Enxerguei o brilhar d'uma divina luz
  Na immensa escuridão d'este viver amargo
  E senti-me surgir do fundo do lethargo.
  Fosse para onde fosse, eu via a tua imagem,
  Adorada Maria, envolta na roupagem
  Tão alva como o arminho, immaculada e honesta:
  No prado sorridente, em meio da floresta,
  Sobre os rochedos nús ás vagas sobranceiros,
  No horisonte sem fim, no dorso dos oiteiros...
  Por toda a parte, em summa!--Adoro-te, Maria!
  No caminho da vida o teu olhar me guia...
  Vem dar uma esperança ao pobre coração
  Que vive para ti, que te pertence...

MARIA com ligeiro movimento de cabeça:

                                       Não.

JUDAS promptamente transformado, n'um arranco furioso:

  Oh! que negra palavra, amarga como fel!

MARIA com a voz tranquilla:

  Á doutrina do Mestre...

JUDAS interrompendo-a com uma risada feroz:

                          O Mestre!...

MARIA

                                      ... és infiel.
  Abrigas, por teu mal, um sentimento ignaro
  Do que seja o dever, e que se torna avaro,
  Cubiçoso, traidor, miserrimo, egoista!
  Não podes resistir-lhe? É bem que eu te resista!
  Se não queres viver do amor pela virtude,
  Se á pureza é rebelde essa tua alma rude,
  Então que ao sacrificio eu seja quem te exhorte:
  Foge para distante, ou foge para a Morte.

JUDAS allucinado, avançando para ella:

  Escuso de ouvir mais. Não quero ouvir-te! Cala!
  Fica sabendo pois que isto que me avassala,
  O que por fim se espande e que ha de ser funesto,
  Nunca foi do amor um sentimento honesto!

MARIA levando instinctivamente as mãos aos seios:

  Maldito sejas tu, se acaso me tocares!

JUDAS com os olhos chammejantes, as mãos trémulas, os passos rigidos,
agarrando-a:

  Que importam maldições inuteis e vulgares?
  Os castigos de Deus, Deus sobre mim desabe-os,
  Mas que eu sinta, mulher, o aroma dos teus labios!

E tenta beijal-a, soffrego:

MARIA evitando-lhe os beijos:

  Oh! deixa-me, brutal demonio da luxuria!

JUDAS arrastando-a para o triclinio:

  Chamaste muito bem á minha ardente furia,
  Como o fogo voraz, cruel e deshumana,
  Que a Eva perverteu, e maculou Suzanna.

MARIA com a voz estrangulada, luctando:

  Soccorro! Eleazar!

JUDAS pondo-lhe a mão na bôca:

                    Oh! cala-te!

MARIA já sem forças:

                                 Meu Deus!

JUDAS achegando-a ao peito, lúbrico, antegosando a posse:

  Ah! como são gentis assim os olhos teus!
  Como é rosada e fina a tua debil mão!
  Vaes ser minha, afinal!

Aperta-a mais contra si; mas de subito, notando-lhe a immobilidade,
abandona-a; e vendo o corpo de Maria caír inerte sobre uma das camilhas,
diz n'um murmurio de desespero:

                          Desfallecida?!...

Um pensamento hediondo atravessa o cerebro de Judas; os olhos inquirem
em volta. Estão bem a sós, não ha duvida... Sob irresistivel attracção,
com o olhar lascivo desnuda-a; ergue-lhe em peso o corpo, aperta-o
contra si... Mas de subito, como accordando, como se a voz da Natureza
lhe désse um grito na alma:

                                            Não!!

E tomado de horror por si proprio, foge, correndo como doido atravez dos
campos, deixando o corpo de Maria inanimado, mas casto e puro como um
lirio d'Issachar...




TERCEIRA JORNADA

EM 13 DE _NISAN_




TERCEIRA JORNADA

EM 13 DE _NISAN_


Na quadra principal da Torre Antonia, moradia do procurador Poncio
Pilado, tudo é silencioso, embora a noite só agora acabe de tombar.

Assenta o elevado tecto em dez columnas não distantes das paredes; é de
mosaico branco e preto o chão marmoreo. Duas portas fronteiras
communicam, uma para os aposentos de Claudia e Poncio, outra para as
diversas dependencias da Torre. N'uma das paredes abre-se amplamente,
achegado um pouco para o angulo, um arco de elegante curvatura, que dá
para um terraço resguardado de formosa balaustrada. Comprida escadaria
d'ali conduz ao andar inferior e ao vestibulo. No centro geometrico da
quadra, ergue-se um busto de guerreiro: é de marmore branco o pedestal;
de roseo o busto, em cuja base lêmos, em caracteres romanos esculpida, a
legenda: _Tiberius Claudius Nero, Imp_. Das portas ha pendentes
reposteiros de azul e oiro. É da mesma fazenda o reposteiro que está
ornando o arco e repuxado junto ao angulo. Fitando nós o busto de
Tiberio, temos sobre a direita larga meza de citrus, onde ardem n'um
bronzeo candalabro trez vellas de cêra e pez; e perto d'ella vemos uma
cadeira d'estofado, de braços longos, costas amplas e recurvas; á nossa
esquerda, perto das columnas, coxim de bronze com embutidos de tartaruga
e trez almofadas de lavor riquissimo; não distante, no chão, está
estendida grande pelle de leão do Atlas. Um armario de ébano macisso
alonga-se na parede junto ao arco e sobre elle se ostenta graciosa
clepsydra de bronze, onde um Éros aponta com a flécha a escala das horas
que decorrem.

Entre as columnas, pendem das paredes, panoplias de couraças, capacetes,
escudos e adagas. Encostado ao pedestal do busto de Tiberio, o pilo de
oiro cinzelado.

Ha um misto de indecisa luz em toda a quadra: amarellada a que as vellas
espargem frouxamente, côr de prata a que o chão do terraço reenvia e que
a Lua derrama das alturas. A cidade dormita lá em baixo; e o luar,
banhando as casarías, dir-se-ía illuminar uma necropole.


No coxim do terraço está Claudia reclinada. A tunica é de lã; escura e
longa a estóla. Tem os braços cobertos pelas mangas da segunda tunica, e
é branca a facha que os cabellos lhe prende em élos brandos. Perto de
Claudia a sua escrava Geda. Ambas percorrem com o olhar cançado o por
demais conhecido panorama.

CLAUDIA solta emfim um suspiro.

        Dorme tudo na cidade.
        Que silencio e que tristeza!...

GEDA

        Tens então grande saúdade
        De Roma?

CLAUDIA

                Sim. Dizes bem:
        É saúdade esta amargura,
        Pois outro nome não tem
        O que sinto na Judéa
        Onde Poncio me exilou.
        --Que horas podem ser? Vê lá.

GEDA vae ligeira ao candalabro; d'elle tira uma vella e dirige-se á
clépsydra. Repõe depois no seu logar a vella, e voltando para junto de
Claudia:

        Salvo engano, gottejou
        A segunda hora de prima...

CLAUDIA

        Por Saturno, é muito cedo,
        Pois não é?

GEDA

                    Tambem eu cria
        Ser mais tarde.

CLAUDIA boceja largamente.

                        Agora, em Roma,
        Ouve-se ainda a folia
        Da multidão buliçosa,
        Que de toda a parte assoma,
        Soltando ao vento a harmonía
        Da sua voz descuidosa...

Vem Poncio, taciturno, e para a meza se encaminha, trazendo na mão
direita um escripto em papyro. É homem d'estatura mais do que regular, e
de idade viril. Rosto livre de pellos; o nariz aquilino; bôca breve,
olhos negros e vivos; curto cabello em curvas de frisados, testa larga
onde as rugas bem se ageitam. Alva a tunica e alvo o manto farto;
sandalhas amarellas; mãos carnudas. Sentou-se junto da meza, e o papyro
consulta.

CLAUDIA indolente, para Geda:

    Ali tens quem me trouxe para o _exilio_!
    Se não dormem Plutão nem Proserpina,
    Hão de cedo chamal-o ao domicilio
    Onde cáem as victimas da Morte!

Muito ironica:

            Que inspiração divina
    Eu tive ao escolher este consorte!

Com um gesto ordena a Geda que se retire. Ergue-se do coxim, e
adiantando-se para Poncio, que não a viu:

    Que novas trazes, Poncio?

PONCIO sem se voltar, continuando a lêr:

                              É de Tiberio
    Foi-me enviado este papyro honroso.

CLAUDIA em sobresalto infantil:

    O quê?! Novas de Roma?

PONCIO

                          O grande imperio
    Continúa radiante e venturoso.
    Foi porém necessario reprimir,
            No principio do anno,
    Certa conspiração que fôra urdida
    Pelos amigos do traidor Sejano.
            A mensagem termina
    Aconselhando a que use da violencia.

E lê pausadamente, accentuando muito as palavras:

    «Aprende em mim como o poder se eleva
            E como se elimina
    Todo aquelle que tenha a impudencia
    De attentar contra a posse d'este manto.
            Faze como eu tambem:
    Reprime a todo o custo a rebeldia.
    Talvez no Templo se conspire. Emquanto
            Mostres sabedoria,
    Espirito sensato, forte e agudo,
            Podes contar comigo.
    Recommenda a Claudia, Poncio amigo.
            Por Jove, te saúdo».

Põe de parte o papyro e reclina a fronte na mão.

CLAUDIA que em silencio ficára appreensiva:

    O que vaes responder?

PONCIO sem se mover:

                          Já respondi.

CLAUDIA apoiando-se nas costas da cadeira por detraz d'elle:

    Permaneces?

PONCIO

                Decerto, pois me cumpre.

Na perna esquerda sobrepõe a direita, fazendo-a oscillar por longo
tempo.

CLAUDIA não podendo conter a intima revolta:

    Bella esperança! Hei de viver aqui,
    Segundo me parece, eternamente!
    --Casou Venus com Marte e foi o Amor
    O que nasceu da conhecida união;
    Casei comtigo, audaz procurador,
    A principio amoroso, bom, cortez...
    O que nasceu, por fim, d'este consorcio?
            Nasceu a Insipidez!

PONCIO enrugando a testa e sem olhar para Claudia:

    Pela divina _Isis_ que estás louca,
    Ou requintas de véras em maldade!

CLAUDIA

            Talvez seja melhor
    Não despertar do Nilo a divindade!
    --N'estes ultimos annos tenho sido
    Verdadeiro modelo de matrona...
            Sabes que ambiciona
    A minha alma fugir a tal desterro,
    E não queres pedir a demissão!
    Imaginas talvez ser este o meio
    De garantir a minha honestidade?
            Pois olha, estás em erro!
    Não me curvo a pressões tão aviltantes.
    Se não fôr satisfeito o meu desejo,
            Perderei todo o pejo...
    --Inda possuo algum, valha a verdade!--
    E para me vingar bem cruelmente
    Serei mais leviana do que d'antes!

PONCIO que se voltára, encarando n'ella, e em tom suasorio:

    Tu não vês que deixarmos a Judéa
            Não seria prudente?
    Tiberio é para nós inexcedivel
    Em attenções, e dá-me como prémio
    A confiança. Bastaria a idéa
    Da minha demissão, para de vez
    Nos expulsar do resumido grémio
    Dos seus affeiçoados, e talvez
    Depois se transformasse em vingador...
    --Pede outra coisa, Claudia; nunca peças
            O que julgo insensato.
    Somos grandes aqui; nenhum valor
    Teriamos na côrte. Não te esqueças
    Da sorte de Coponio, Rufo e Grato,
            Ao voltarem a Roma.
    Pede outra coisa, Claudia, que por certo
        Has de ser attendida.
    Não me digas, porém, que vá trocar
    Aquillo que é seguro pelo incerto.

CLAUDIA n'uma espansão de franqueza em que o desdem transparece:

    Mas que m'importa, a mim, o teu logar,
    Se eu desejo viver onde se viva?
    Em Roma, na cidade portentosa,
    Onde qualquer escrava é mais altiva
    Que uma nobre judía virtuosa!
    Onde Gelanio, o deus das gargalhadas,
    Desinfecta as emmanações palustres
    Da tristeza! onde as pedras das calçadas
    Falam até de tradições illustres!
    Quero fugir d'este mortal supplicio
    Para onde o meu ser se espanda e vibre;
    Participar no seductor bulicio,
    E ver á tarde o Sol beijar o Tibre!
    Assistir como outr'ora aos festivaes
    No grande circo onde o valor impéra;
    Vêr athletas sanguineos, triunfaes
    E ouvir os rugidos d'uma féra!
    Beber o doce vinho de Falerno,
    Ser cortezã, de novo rir e amar...
    Dêem-me vida longe d'este Averno,
    E que m'importa, a mim, o teu logar!

PONCIO resoluto, imperioso, deixando caír na meza a mão espalmada:

    O que uma vez escrevo, escripto fica!

Depois, mais brando:

    Não fugirei ás ordens de Tiberio.
    De mais, coisa nenhuma justifica
    Em solidas razões o que me pédes.

E volta á primitiva posição.

CLAUDIA decorridos alguns instantes, refreando a cólera:

    Disseste?

PONCIO indifferente:

              Disse.

CLAUDIA

                    É caso firme e assente
    Permanecer?

PONCIO

               Que dúvida!

CLAUDIA

                           Não cédes
    Nem aos meus rogos?

PONCIO

                        Não.

CLAUDIA muito a sério:

                            És imprudente...
    --Sabes que fui amante de Tiberio?

PONCIO bamboleando a perna e sem mudar de expressão:

    Tenho ouvido dizer.

CLAUDIA

                        Não desconheces
    Que se é meigo, tambem é vingativo
    O meu caracter. Pois talvez um dia
    Desappareça o teu falar altivo.
            Tiberio, com certeza,
    Muito embora já tenha algumas cans,
    Ha de ainda lembrar-se da belleza
            Das suas cortezãs...

PONCIO franzindo lévemente o sobr'olho:

    Não comprehendo bem. Com isso tudo
    O que vens a dizer?

CLAUDIA sorrindo, palaciana e misteriosa:

                       Que te saúdo...

E recolhe em silencio aos seus aposentos, deixando tombar atraz de si as
prégas do reposteiro.


Poncio ficou sósinho, meditando. Logo apparece no terraço o Ostiario que
veio do andar terreo pela escada exterior.

O OSTIARIO

        Poncio, recebes agora?

PONCIO erguendo-se:

        E quem é que me procura?

O OSTIARIO

        O sacerdote judeu
        Hanan.

PONCIO surprezo, como comsigo:

              Hanan procurar-me
        Na Torre Antonia, a esta hora?
        --Ostiario, succedeu
        Alguma coisa?...

O OSTIARIO

                        Não sei.
        O povo está socegado.

PONCIO depois de reflectir:

        Manda entrar o sacerdote
        Para aqui mesmo.

Retira-se para o terraço o Ostiario. Poncio, que ficára preoccupado, diz
como comsigo:

                        Cuidado!...

Vae buscar uma adaga á panoplia mais proxima e mette-a no cinturão; pôe
em cima da meza o pilo de ouro que estava encostado ao busto de Tiberio.
Senta-se novamente na cadeira.


A um gesto do Ostiario, dois vultos subiram a escada, e a breve trecho
appareceram no terraço; são dois homens, cujos semblantes o luar
illumina. Um é Judas; o outro um velho de setenta annos, mas válido e
robusto--o ex-Grande Sacerdote Hanan, sogro do Grande Sacerdote Kaíapha.
Meão d'estatura, barba cerrada e não comprida onde abundam as brancas,
assim como no bigode hirsuto e no longo cabello descuidado; nariz
adunco, olhos azues e penetrantes. E seu trajar egual ao do mais humilde
filho d'Israel: tunica e manto, mitra redonda no alto da cabeça;
chinellos muito usados. Dir-se-ía que tal modestia d'aspecto foi um
calculo, um disfarce... Ha porem na sua fisionomia e na voz resoluta e
aspera a expressão da velhacaria e do mando.

O Ostiario retirou-se pela escada. Judas foi postar-se junto do busto de
Tiberio, com ar matreiro, e d'ali segue attento as fases do dialogo a
que vamos assistir.

HANAN que se adiantou até á presença de Poncio, curvando-se perante
elle:

  Tenho intima alegria, ao ver que no teu rosto
  Amavel transparece um juvenil composto
  De puro entendimento e de vigor e saúde.
  No falar respeitoso, humilde na attitude,
  O sacerdote Hanan ao grande Poncio envia
  Protestos de leal e eterna simpathia.

PONCIO que nem para elle olhou, desdenhoso:

  O alamo gigante, ao estender os braços
  Como para cingir Apollo, que os espaços
  Domína, mostra quanto é grande na affeição,
  Mas fructos não produz: É como a adulação.
  --Hanan, ouvir-te-ei attentamente.

HANAN fingindo não ter percebido:

                                    Vim
  Para que tu me dês auxilio.

PONCIO ironico:

                            Como assim?
  De noite? acompanhado?

HANAN

                        Este homem ouve, e cala
  Tudo o que ouvir. Demais, é-nos preciso.

PONCIO voltou-se um pouco, lançou um rapido olhar a Judas, e depois,
encostando o braço á meza e com a cabeça reclinada na mão:

                                          Fala.

HANAN muito submisso de começo:

  Embora nos vencesse a furia dos romanos
  Em tempos que lá vão; embora muitos damnos
  Haja soffrido o povo heroico d'Israel,
  Ás suas tradições conserva-se fiel,
  Na crença do seu Deus respeito manifesta.
  Religião sómente é hoje o que lhe resta,
  Porque tudo entregou ás mãos do vencedor;
  Por isso ha de manter, altivo e com fervor,
  O que elle considera um virginal trofeu!
  --Dize-me então se é justo ou não é justo que eu
  Procure lealmente ao povo garantir
  A crença de Moysés, agora e no porvir.

PONCIO, serenamente, mas deixando accentuado o seu desdem, aquelle
desdem dos romanos pelos povos vencidos:

  Não sei do que se trata, Hanan; mas sempre digo
  Uma coisa que eu penso ha muito a sós comigo:
  Do leito has de saír com mais celeridade
  Para zelar melhor a tua propriedade,
  E com menos se alguem te fôr dizer, de rastros,
  Que descobriu no ceu ladrões roubando os astros.

HANAN offendido, elevando a voz:

  Duvídas de que seja o meu falar sincero?
  Julgas que estou mentindo, e em nada considero
  A minha crença?

PONCIO olhando para elle de fito, severamente:

                  Olá!...

HANAN matreiro:

                          Desculpa-me. Prometto
  Não me exaltar de novo, ó Poncio.

PONCIO sem desviar d'elle o olhar:

                                    O mel do Hymetto
  Agrada a toda a gente... e fica bem na fala.

HANAN muito submisso:

  Dou-te razão; mas vê que dôr nenhuma eguala
  A dôr que sinto. E não terei motivo? Escuta:
  Aquella sã doutrina, a doutrina impoluta
  Que nos deixou Moysés, o grande fundador
  Da nação, que livrou das garras do oppressor
  O povo escravisado, e que á ditosa grei
  Legou, depois da Fuga, um Deus e Patria e Lei!
  A doutrina sublime, erario de virtudes,
  Que tem ficado illesa ainda nas mais rudes
  Provações...

PONCIO cortando a harenga, novamente em tom sarcastico:

              Vaes falar d'alguem profeta novo,
  Que anda por'hi talvez a amotinar o povo
  Contra os amigos teus?--Pois hei de protegel-o.
  Apraz-me não tocar nem siquer n'um cabello
  D'esse homem.

HANAN refreando a cólera:

                Mas porquê? Terás razões secretas?

PONCIO

  Quem as tem não sou eu: são elles, os profetas,
  Ao falarem de ti.

HANAN com ironia e falsa humildade:

                  Então! sê razoavel
  E mostra coherencia, ó tiranno implacavel!
  Um cadaver de mais, um cadaver de menos,
  É coisa que não leva aos teus dias serenos
  Nenhuma inquietação, nenhum remorso.

Animando-se pouco a pouco:

                                      E quando
  Um sacerdote probo e honesto e venerando
  Em nome da Judéa a morte solicíta
  Para um vil criminoso, o teu rancor hesíta?!

Esplodindo, francamente:

  De cumprir o dever percebo o que te afasta:
  Quem te fala sou eu, que tu odeias!

PONCIO fitando-o enfurecido, dá um murro na meza; e erguendo-se:

                                      Basta!
  Sabes que essas razões não oiço, nem toléro,
  E que digo uma vez que não, quando não quero!
  --Como o poder de Roma aos homens do Conselho
  Tirou todo o poder de tingir de vermelho
  N'um banho sanguinario os corpos fraternaes,
  Privados de lavrar sentenças capitaes
  Sem que eu lhes dê meu voto, imaginaste, Hanan,
  Que eu poderia, qual infame barregã,
  Despejar a vergonha á rua, como o lixo,
  Para satisfazer depois o teu capricho?
  Porque uma voz protesta e clama contra o vil
  Conselho que assoberba o povo e que, febril,
  Anda a espiar na sombra, a procurar o instante
  Em que ha de ser traidor ao Cezar triunfante;
  Porque um homem possue a civica ousadia
  De guerrear talvez a tua hipocrisia,
  Venerando ancião, tiveste uma lembrança:
  Transformar o meu voto em arma de vingança
  Cobarde! Sim! Bem vejo a idéa que te inflamma!

Agarrando no pilo:

  Pois digo-te que nunca has de caír na lama
  Co'o pilo de oiro! Não! D'Oriente a Occidente,
  A aguia de Roma é grande, e nunca foi serpente!

E poisando o pilo na meza, com ruido, senta-se.

HANAN depois de algum silencio, tentando convencel-o á bôa paz:

  Eu não falo por mim; eu falo por Moysés,
  Cuja doutrina tem sido calcada aos pés
  D'um homem, que apresenta uma doutrina estranha
  Ao direito e á lei; que os pobres arrebanha
  Só para dizer mal dos grandes e dos ricos;
  Que dirige a palavra aos seres impudícos,
  Ás mulheres venaes, aos infimos ladrões;
  Que anda em nome de Deus a conceder perdões
  A toda a gente; emfim, que o povo, em desatino,
  Se atreve a inculcar como um ente divino!

PONCIO tranquillo, sorrindo:

  Quem sabe?... Pode ser...

HANAN recuando, como se ouvisse uma heresia:

                            O quê?!

PONCIO com bonhomia, exagerando muito o valor das palavras:

                                    Se te reféres
  Ao Nazareno em vão me falas. Nunca espéres
  Que eu ponha ao teu serviço a minha autoridade
  Para o matar. Não mato uma celebridade.
  Conheço-o muito bem. Inda ha trez dias teve
  Uma grande ovação. De resto, não se atreve
  A suscitar no povo o odio contra o Império:
  Deseja que se entregue a Deus e a Tibério
  O que pertence a Deus e o que pertence a Roma.
  Agrada-me o desejo. É o melhor diploma
  Que lhe ha de garantir a minha protecção.

HANAN ao ouvido de Judas:

  Ficou tudo perdido, ó Judas.

JUDAS reservadamente:

                              Ainda não.
  Péde para eu falar.

HANAN

                      Duvído...

JUDAS

                                Experimenta.

HANAN muito supplicante a Poncio:

  Senhor, ouve as razões que este homem apresenta:
  Conhece o Nazareno, e sabe tudo...

PONCIO olhou novamente para Judas, e com enfadada condescendencia:

                                    Vá.
  Pode falar, mas bréve.

JUDAS avança até á presença de Poncio. Saúdou-o, e muito senhor de si,
firme, resoluto, assim começa:

                        Eu nasci em Judá.
  Odeio a Galiléa, e, sempre respeitoso,
  Me curvei de Tibério ao vulto majestoso.
  --Engana-te, senhor, aquelle que disser
  Que o profeta de quem falou Hanan requer,
  Como acabei de ouvir, as attenções do povo
  Para o império de Roma.

PONCIO estremeceu, carregou o semblante:

                          O quê?

JUDAS com sinceridade hypocrita:

                                Não me demôvo
  De dizer a verdade, inda que soffra o peso
  Do remorso, indicando um amigo indefeso
  Á justiça de Roma e do Conselho! Brado
  Em voz altisonante: Ó Poncio, és enganado!
  O Profeta conspira, em intimo rancor,
  Contra a lei de Moysés e contra o vencedor!
  --De tal conspiração confio-te o segredo...

Approximou-se mais de Poncio, que continúa assentado, e fala-lhe agora,
insinuante, incisivo, um pouco por detraz d'elle, encostando-se até á
curva da cadeira. Poncio escuta-o em silencio, com o olhar brilhante e
fixo em um ponto, todo o seu sentido concentrado nas palavras que sáem
dos labios de Judas como subtil veneno.

  Porque abate no mar, ás vezes, um rochedo
  Austero, alcantilado, enorme?--Toda a gente
  Julgava-o rijo, forte, invencivel, potente,
  Que do seu dormitar ninguem o accordaria,
  Que o Tempo, esse feroz destruidor, seria
  Incapaz de roer-lhe o corpo giganteu...
  Mas certa noite o monstro herculeo estremeceu,
  Barafustou no espaço, e com fragor medonho
  Afundou-se no abismo, ao despertar d'um sonho!
  --Que forças colossaes, que forças imprevistas
  O venceram? O sol ia doirar-lhe as cristas
  Majestosas, assim que despontava ao largo;
  A Lua namorada, em languido lethargo,
  Cobria-lhe de prata o dorso negro e frio,
  Que as lagrimas do ceu tornavam tão macío
  Como um peito de cisne ou face de mulher...
  O proprio Creador do Mundo nem siquer
  Lhe causava receio. Em doidas convulsões,
  Um raio desabou das vastas amplidões
  Sobre elle, e a sua voz, longe de ser magoada,
  Soltou-se em desdenhosa e grande gargalhada!
  --Que forças colossaes, que forças imprevistas,
  Lhe fizeram baixar as invenciveis cristas?
  Que forças?--Perguntae-o áquella massa informe,
  Que por vezes murmúra e que por outras dorme
  Em profundo silencio; interrogae o Mar,
  Que outr'ora vinha, meigo e humilde, a caminhar
  Do horisonte sem fim, da solidão distante,
  Para oscular os pés do impávido gigante!
  Interrogae o vil hipocrita, que ao passo
  Que era meigo e humilde, em fraternal abraço,
  Tratava de roer, silenciosamente,
  As bases do colosso athletico e indiff'rente,
  Que afinal, certa noite, ao despertar d'um sonho,
  No abismo tombou com fragor tão medonho,
  Que as Estrellas, ouvindo aquelle enorme grito,
  Sentiram-se tremer d'horror no Infinito!

PONCIO ergue-se de chofre, com o olhar incendido, trémulo, os braços
alevantados. E o seu vulto branco, destacando-se no fundo escuro da
vasta quadra, dir-se-ía o d'um espectro de destruição.

  Ha colossos que teem gigantes nas entranhas,
  Féros como leões, grandes como as montanhas!
  Possuem dos clarins as frases inspiradas,
  E fusilam do olhar relampagos d'espadas!
  Ó mares da perfidia, andaes a carcomer
  As bases do colosso herculeo do poder?
  Tende cuidado, anões, co'os ríjidos ciclópes!
  Ondas que assim correis, que vindes em galopes,
  Apressadas, servís, infames... Para traz!
  Que para reprimir a vossa furia audaz,
  Para que o vosso dente ao monstro não carcoma,
  Basta um simples olhar dos hercules de Roma!

E passeiando agitado, raciocinando e resolvendo de prompto:

  Prefiro debelar de prompto a crise. Ignoro
  Se falaste verdade, ou se acaso labóro
  Em uma vil intriga! A dúvida me envolve...
  Mas n'esta situação o meu poder resolve
  O que julga efficaz. Esse traidor proféta
  Ha de attingir ainda hoje a tenebrosa méta
  Da existencia. Vou dar a ordem da prisão
  Do Zéfiro subtil com furias d'Aquilão!

HANAN detendo-o, supplicante, receioso:

  Sê prudente, senhor. O sangue d'innocentes
  Não deverá correr. Escuta os meus prudentes
  Conselhos, bom amigo. Ai! poupa-me a Judéa!...
  Escuta-me, por Deus! e a indignação refreia!
  Tenho medo do povo... elle é tão leviano!...
  Será muito melhor seguir o nosso plano.

PONCIO sem querer ouvil-o:

  Que poderá falhar!

HANAN n'um protesto:

                     Que é firme!

JUDAS

                                  Que é seguro!

HANAN matreiramente:

  Uma escolta romana ao meu dispôr, e juro
  Por Moysés que ámanhã de noite será preso
  O Nazareno.

E em tom de muita confiança, como velha autoridade que bem conhece os
seus governados:

              O povo ha de ficar surpreso,
  Ao saber no outro dia a grande nova. Embora!
  Não deve protestar, porque elle não ignora
  Que é depois d'ámanhã o dia consagrado
  Ao festejo da Paschoa. Assim, manietado
  E mudo, ha de assistir ao julgamento e morte
  Do Proféta.--Senhor, bem vês que d'esta sorte
  Moysés perde um rival, Tibério um inimigo.
  --Este homem prometteu que ha de ensinar o abrigo
  Onde fica de noite o Nazareno occulto
  E os discipulos...

JUDAS

                     Que hão de fugir ao tumulto...

PONCIO que os ouviu taciturno, balbucia, como falando a si proprio:

  «Um cadaver de mais, um cadaver de menos
  É coisa que não traz aos meus dias serenos
  Nenhuma inquietação, nenhum remorso...»--Hanan,
  Dás-me a tua palavra...?

HANAN

                          O Proféta, ámanhã
  Por esta hora, se Deus não se mostrar contrário,
  Ha de estar preso.

PONCIO

                     Bem! Pois n'esse caso...

Dirige-se ao terraço e batendo as palmas, chamando:

                                              Ostiario!

HANAN radiante de alegria, ao ouvido de Judas:

  Ganhámos, afinal! Serás recompensado
  Pelo teu grande zelo, ó Judas.

JUDAS soturno:

                                 Obrigado...

HANAN

  Um prémio te darei. Trinta moedas; queres?
  De prata!

JUDAS indifferente:

            Sim, Hanan... Acceito o que me deres.

O OSTIARIO que appareceu no terraço:

  Chamaste-me?

PONCIO

                É de crêr que no Pretorio esteja
  Algum centurião. É Poncio quem deseja
  Que se dê cumprimento a tudo que estes dois
  Homens disserem.

O OSTIARIO

                   Bem.

PONCIO

                      Fique entendido pois.
  Ao Pretorio tu mesmo agora os encaminha.

E passando pela frente de Judas e de Hanan, sem para elles olhar,
retira-se para os seus aposentos.

HANAN que se curvára muito á passagem de Poncio, murmúra:

  Moysés ha de vencer!...

JUDAS tambem n'um murmurio, quasi inaudivel:

                          Maria ha de ser minha!...

Vão-se com o Ostiario pela outra porta.


Apparece então a escrava Geda, que se encaminha para o terraço.

GEDA affasta o coxim, trazendo-o para o interior da quadra e faz correr
parte do reposteiro que pende do arco.

        Vae repoisar a minha ama...
        Como a noite é calma e linda!
        Mas ninguem ha que prescinda
        Das indolencias da cama!
        Muito ingrata a Humanidade,
        Que acha as trévas de Morpheu
        Preferiveis a este ceu
        De risonha castidade!
        Talvez seja por vingança
        Que a mostrar-nos a outra face
        A Lua não se abalança!
        Seja lá pelo que fôr,
        Que sem protesto não passe,
        Diana, o teu desamor!

Acaba de fazer correr brandamente o reposteiro. Depois vae buscar o
candalabro e dispõe-se a leval-o comsigo.

Mas o reposteiro agita-se, é corrido pela parte exterior por mão nervosa
e resoluta, e uma mulher d'Israel apparece offegante, com o rosto
occulto por espesso veu de lã negra.

A MULHER adiantando-se como procurando alguem:

    Claudia?

GEDA admirada e insolente:

            Quem te deu a livre entrada?
    Que vens fazer aqui, judía?

A MULHER

                                Venho
    Para falar a Claudia, unicamente
            É este o meu empenho.

GEDA

    E que importa o motivo, se é costume
    Não entrar sem licença do Ostiario?

A MULHER

    Em pouco a minha falta se resume:
            Vi tudo solitario...

GEDA

    Esperasses.

A MULHER

                Desculpa-me...

GEDA

                              Duvído
    De que a minha ama te receba. É tarde.
    A menos que a tivesses prevenido
            De vir, e que te aguarde.

A MULHER assumindo attitude imperiosa:

    Urge que eu fale a Claudia. É muito sério
    O que me traz!

GEDA dominada pelo tom de voz da desconhecida, colloca o candalabro na
meza.

                   Eu vou...--Temos misterio!

E entra nos aposentos de Claudia.

A mulher, vendo-se sósinha, ergue então o véo. É Maria de Bethania. Á
fadiga reune-se no seu rosto transtornado profundo abatimento moral.

MARIA com os olhos erguidos ao ceu, os labios balbuciantes, como n'uma
préce:

  Ó essencia do Bem! ó divinal encanto,
  Que fazes do Amor a tua crença unica!
  Presinto que a Desgraça estende o negro manto
  E deixa a descoberto a sanguinaria tunica,
  Pairando sobre ti mais proxima que outr'ora
  Presinto que o teu rosto, onde sorri ventura,
  Em breve deixará de ser como é a aurora,
  Tornando-se, meu Deus! em grande noite escura!
  Mostra-te para mim bondoso e esmoler:
  Escuta-me, Senhor! E que seja bastante,
  Para fazer da noite aurora triunfante,
  Uma lagrima ardente e pura de mulher.

E fica absorta, com a cabeça encostada ao pedestal do busto de Tiberio.

CLAUDIA apparece muito descuidosa, e, ao vel-a, não reprime o seu
assombro.

    Maria de Bethania?! O quê? Pois tu
    Ousaste vir aqui? Pois desafías
    Com a tua presença o meu rancor?
    Tens a loucura, a falta de criterio,
    _De brincar com as cinzas inda quentes_?

MARIA baixou a fronte; e a meia voz:

    Perdôa-me, Senhora...

CLAUDIA

                          O que fizeste
    Da altivez soberana e do teu odio?

MARIA

    Perdôa-me, senhora. Quem se humilha,
    É porque tudo esquece, e quem supplíca
    O perdão d'uma offensa, tem direito
    A ser ouvida...

CLAUDIA encostando-se á meza, e esmagando Maria com a imponencia da sua
figura:

                    Apraz-me isso que dizes.
    Tu propria te encarregas de vingar-me.
    Optimamente!--O que é que tu me queres?

MARIA com meiguice:

    Nunca viste, depois da tempestade,
            Quando vem a bonança,
    Resplandecer de luz na immensidade
            O Arco da Alliança?
    Pois que venha, senhora, em tal momento,
            Um meigo olhar bondoso
    Alegrar do teu rosto o firmamento
    Como o divino traço luminoso.

CLAUDIA com uma risada:

    Não faças poesia, que Virgilio
    Mandou lançar a sua Eneida ao fogo!
    Começas muito mal. Por um idilio!...
    Do teu poema a sorte pões em jogo...

MARIA docemente:

    Na ironia cruel quanta amargura!
            Esta hora é suprema.
    Vou falar-te d'um ser todo candura...

CLAUDIA zombeteira, petulante:

            O heroe do teu poema?

MARIA animando-se pouco a pouco:

    Heroe, disseste bem, mas que regeita
            O gladio vingador,
    E que tem na palavra uma arma affeita
            Á bondade, ao amor...
    Ouvindo-lhe o falar tão meigo e doce
            Que de manso deslisa,
    Perfumado, subtil, como se fosse
            O perpassar da brisa,
    As almas estremecem, de sentidas,
            E ficam-se amorosas,
    Desabrochando trémulas, florídas,
            Como botões de rosas!
    Ha já trez dias, Claudia, que o terror
            É para mim veneno!
    Querem matal-o! Ai! salva o meu amor!
            Ai! salva o Nazareno!
    Não deixes que lhe roubem a existencia,
            E termina o martirio
    D'esta paixão que tem do Sol a ardencia,
            E a pureza d'um lirio!
    Ordena que o não matem, Claudia! acalma
            Os monstros malfasejos,
    Que eu a teus pés arrojarei minh'alma
            N'um effluvio de beijos!

E cáe de joelhos em frente d'ella, com a fronte erguida, o olhar febril,
os braços estendidos, supplicante.

CLAUDIA depois de nova risada:

    Isto é completamente um caso novo,
            E agrada-me de véras
    Que sejas tu, mulher, em vez do povo,
    Quem venha interceder pelo Profeta
            Com lagrimas sinceras!
    É bello!

MARIA

             Tem piedade!

CLAUDIA revolvendo na ferida o punhal da ironia:

                         Honra o teu sexo
    O platonico amor que te inquieta;
    E n'elle vejo mais do que um reflexo
    Do feminil civismo d'outras eras.
            Tu excedes Cornelia,
    E de Coriolano a mãe Veturia!
    --Tenho notado haver n'esta Judéa
    Mais valor nas mulheres que nos homens,
    O que toma o aspecto d'uma injuria
            Ás patricias de Rhéa!
    Judith a Holofernes rouba a vida,
    Para salvar o povo seu amante,
            Ao vêr que elle agonisa;
    Esther, em patrio amor toda incendida,
    De Assuéro affronta a crueldade e insânia;
            Debóra, a profetisa,
    Entra na lucta e sae-se triunfante...
            Agora vem Maria de Bethania!
    --Palavra, que a Judéa é divertida!

Rindo sempre, passou pela frente de Maria e sentou-se no coxim, depois
de ageitar-lhe as almofadas.

MARIA erguendo-se, n'um movimento de indignação:

  Mas põe fim ao desdem, que chega a ser um crime!
  Quando uma alma se dobra e tanto se deprime,
  Quando um peito soluça, a compaixão ordena
  Que a ironia que esmaga e o riso que envena...

A um olhar severo de Claudia, humildemente:

  Oh! peço-te perdão! Esqueço-me de tudo
  Que não seja o tormento indómito e agudo,
  Que me offusca a razão e o peito me lacéra!
  Perdôa. Tem piedade. Apenas eu quizera
  Que soubesses tambem como é risonha a vida,
  Que toda se consagra a uma entidade querida:
  Sorrir quando sorri, chorar quando ella chora;
  Respirar o subtil perfume que evapora;
  Enchermo-nos da luz que o seu olhar derrama;
  Silenciosamente, amar tudo o que ella ama;
  Ouvir-lhe da palavra a doce melodía
  Tão limpida, tão casta e pura, que enebría,
  Vibrando dentro em nós alguma coisa ideal,
  Semelhante, no brilho, ao riso divinal
  Da estrella que, tremente, em candidez scintilla,
  Quando ao longe a manhã vem a romper tranquilla.

Claudia tem-se reclinado no coxim e, cerrando as palpebras, conserva-se
impassivel. Maria cae de joelhos junto d'ella.

  Ó Claudia, sê bondosa e presta-me sentido:
  Tu poderás talvez, pedindo a teu marido...
  Tu és bôa, afinal; e eu fui leviana
  Quando te respondi com altivez soberana.
  Esqueces tudo, sim? Já não me tens rancor
  E vaes poupar minh'alma, ó Claudia, á enorme dôr...
  --Mas fala, mas responde a isto que eu te peço!
  Ai! que ella não me escuta! Ó Deus, eu enlouqueço!

E chora convulsamente, com a cabeça entre as mãos, os cotovellos
fincados no coxim.

Claudia, sempre immovel, impassivel, parece dormitar.

Ao cabo de copioso pranto, Maria afasta do rosto as mãos, e continuando
de joelhos, com o olhar vago, como em extasi, as mãos com os dedos
enclavinhados sobre o regaço, diz em voz muito dolente:

        Não me resta uma esperança,
        Pois não me escuta ninguem!
        Dorme a eterna Divindade
        No azul da Immensidade,
        Nos horisontes d'além,
        Onde não chega um suspiro,
        Onde o silencio é profundo.
        Ha de ser bom tal dormir,
        Descuidoso do porvir,
        Descuidoso d'este mundo,
        N'aquelle reino divino
        Tecido por andorinhas,
        Feito só para os honrados,
        Para os bons e desprezados,
        Para as meigas creancinhas...
        Tão sereno como o lago
        Da Galiléa florída,
        Que se formou por encanto
        Do arrependido pranto
        Da mãe Eva arrependida...
        --Parece mesmo que o vejo
        No seu manto azul. Dir-se-ia
        Que o firmamento amoroso
        Teve a alegre fantasía
        De enviar á terra um beijo
        Puro, suave, bondoso...
        Parece mesmo que o vejo.
        --É seu olhar calmo e doce;
        A tudo o mais fica estranho,
        Quando distingue o fulgor
        Dos astros, como se fosse
        O cuidadoso pastor
        Do scintillante rebanho...

CLAUDIA adormecida, vagamente:

        É seu olhar calmo e doce...

MARIA continuando alheiada a tudo:

        Tem o brilho das seáras
        O cabello perfumado,
        Que nos hombros lhe descansa
        E lhe cerca as faces claras.
        É tão formoso e doirado
        Como um sorrir de creança...

CLAUDIA adormecida, vagamente:

        Tem o brilho das searas
        Seu cabello perfumado...

MARIA ergue-se vagarosamente; e, resignada:

  Mais uma vez perdão te peço. Eu vou sahir
  E não perturbarei, ó Claudia, o teu dormir.
  Reconheço por fim que era a esperança fátua.
  É inutil chorar em frente d'uma estátua...
  --Retiro-me vencida, assim como o pagão,
  Que dedicou á Sphinge, ardentemente e em vão,
  Os gritos da sua alma e os canticos do amor.
  Podes dormir risonha: eu levo a minha dôr!

E com a cabeça descaída sobre o peito, dirige-se para o terraço em
passos vagarosos, como se fôra a caminho da morte, com o negro véo
pendente ao longo das costas. Sem ter olhado para traz, desce a comprida
escadaria.

O somno de Claudia é agora profundo. Tudo ficou silencioso. Estinguem-se
uma a uma, com lentidão, as véllas no candalabro; e o luar, a que o arco
sem peias dá passagem, faz projectar o busto de Tiberio na parede
fronteira, como um enorme phantasma negro...




QUARTA JORNADA

EM 15 DE _NISAN_




QUARTA JORNADA

EM 15 DE _NISAN_


Estamos n'um dos sitios mais tristes e isolados junto da muralha de
Jerusalem. A denegrida alvenaria sobreposta é como gigantea molle, á
indecisa luz da madrugada. Ceu torvo, onde as nuvens carregadas desfilam
mansamente.

Das juncturas das pedras da muralha pendem aqui e alem longas hervas
parasitas balouçadas pela aragem fria, e que parecem, á frouxa luz,
corpos sem vida de suppliciados.

Abre-se na muralha pequena porta, á qual se chega por tortuoso e natural
caminho, que, não distante d'ella, passa por sobre um pequenino outeiro.
Parallelamente á muralha, alonga-se uma continuidade de penhascos onde
os cardos vegetam, e algumas figueiras bravas se contorcem rachiticas.
Junto ao sólo, uma caverna abre a sua negra fauce misteriosa.

Para alem do pequeno outeiro comprehendido entre a muralha e os
penhascos, mal distinguimos ainda o horisonte vasto, árido, sêcco,
argiloso e triste.

Choveu. Pairam no ambiente exhalações humidas. Relampagos fuzilam de
quando em quando; os distantes trovões ribombam roucamente.

A custo o dia vem rompendo; os galos cantam ao longe, ao desafio.


O ultimo relampago deixou nos vêr junto da porta um soldado romano que é
Ampío, fazendo sentinella. Sob a arcada dois vultos estão deitados: são
Lauso e Fábio, tambem soldados de Tiberio, porque as sentinellas foram
reforçadas na vespera por ordem de Poncio.

AMPÍO, tocando com o pé no corpo de um dos que dormem:

    Erguei-vos, camaradas, pois não deve
    O negro deus do somno tal imperio
    Exercer sobre vós, quando do Olympo
    Cáem com furia as cóleras de Jove.

LAUSO accordando:

    Novamente começa a tempestade?

FÁBIO, erguendo-se logo; voz de homem dado ao alcool e praguento:

    Foi aquelle patife do Vulcano,
    Que lhe enviou fornecimento novo.

LAUSO erguendo-se:

    Pois ainda troveja?

AMPÍO

                        Muito ao longe.

FÁBIO

    O peior é que Phébo, com certeza,
    Não vem tão cedo.

AMPÍO

                      Os galos já cantaram
    Das bandas do Levante, amigo Fábio.

LAUSO

    Olha! alguem se dirige para aqui.

FÁBIO rindo:

    Talvez seja Noctifer, deus das trevas.

E os trez esperam, encostados ás lanças. São seis miseros mercadores
avergados ao peso de seus fardos. Quando chegaram em frente dos
soldados.

UM MERCADOR em tom submisso:

    É permittida a entrada aos mercadores?

AMPÍO

    A dúvida, meu velho, está sómente
    Em pagarem tributo ao publicano.

O MERCADOR

    Decerto que pagamos, como é de uso;
    Mas quando vi trez guardas junto á porta.
    Fiquei suppondo alguma novidade...

AMPÍO

    Pois quê! não morreu hontem o profeta?
    Nada mais facil do que haver rebeldes...
    Conhecemos a vossa grande astucia
    E o vosso rancor, judeus malditos!

O MERCADOR por entre dentes:

    Maldita Roma!...

FÁBIO com uma risada alvar:

                    Eh! lá! Vê como falas,
    Que o _teu rei_ já não vive!

O MERCADOR muito seccamente:

                                 Da Judéa
    Ha muito que fugiu a realeza!

E os mercadores entram na cidade, seguidos pelos trez soldados que
d'elles chasqueiam.


A tempestade vae acalmando; as ultimas nuvens passam mais serenas. Um
vulto d'homem arrasta-se, vagaroso, para fóra da caverna, como se fôra
um animal silvestre. A custo saíu e a custo distendeu, para se erguer,
os membros entorpecidos. É Judas. Traz sobre si a tunica sómente,
esfarrapada e suja; cabeça a descoberto, o corpo enlameado, os pés
descalsos.

JUDAS, que permaneceu por longo tempo com o olhar erguido para o ceu, a
voz muito enfraquecida:

  Vem o dia a nascer das regiões eternas.
  Depois de ter lançado as iras justiceiras,
  O grande firmamento agora é mudo e quedo.
  Na penumbra, os chacaes regressam ás cavernas,
  E vão pedir a noite ás fendas do rochedo
            As aves agoureiras.

E olhando para a caverna d'onde saíu:

  Nunca tornes a ouvir o minimo sussurro,
  Ó treva de amargura e negras maldições!
  Ó antro, que animei co'o halito do crime,
  Cae de novo em mudez! As aguas do enxurro
  Hão de lavar-te ainda, ó meu algoz sublime,
            Das tectricas visões!

Com a cabeça apoiada n'uma das mãos e o cotovello na outra, move-se com
passos incertos, indecisos. Senta-se n'um monticulo de pedras; e depois,
como reconstruindo mentalmente o que se passou na ante-vespera:

  Estavam a dormir ao pé das oliveiras,
  E a Lua derramava em cheio nas clareiras
  O argentino olhar, o seu formoso pranto.
  Fui na frente da escolta, e ao avistar-lhe o manto,
  Caminhei para elle. Ergueu-se, olhou, sorriu...
  Mas ficou-se indeciso apenas descobriu
  Dos archotes a luz na solidão campestre.
  --Adiantei-me. «Deus seja comtigo, Mestre.»
  Fitou-me silencioso. Aproveitando o ensejo,
  Dei-lhe a mão desleal, e um repellente beijo
  Depuz n'aquella face imperturbavel... Ai!
  Co'um latido feroz toda a matilha sae
  Da sombra do arvoredo e cerca-o n'um momento!
  Aos amigos leaes occorre o pensamento
  Heroico de empregar a força. A gritaria
  Desperta o olival da funda lethargia.
  Cresce o tumulto. Um ferro ergue-se ameaçador...
  Contra mim? Não sei bem, porque me invade o horror.
  Por entre a ramalhada, aos pios, uma c'ruja
  Espavorida vae dizendo-me que fuja.

E erguendo-se de chofre, animando-se:

  Percorro velozmente os grandes olivaes;
  Quando abandono a sombra, entro nos matagaes;
  O manto esfarrapado o rasto meu indica,
  Depois a propria carne! A alma, porem, não fica,
  Pois se olho para traz, sobre a verdura espessa
  Persegue-me, a rolar em sangue, uma cabeça.
  Termina de repente o estenso matagal,
  Foge-me a terra, e vou caír n'um tremedal
  Onde tenho uma lucta encarniçada e louca:
  A lama em borbotões entra-me pela bocca,
  Os limos que eu encontro agitam-se irrequietos,
  Voam por sobre mim, zumbindo, mil insectos,
  Fogem nuvens de rãs para logares occultos,
  E o seu coaxar parece arremetter insultos!
  Mas saio vencedor e a terra firme alcanço;
  Então quero parar... mas corro sem descanso.
  As forças vão fugindo, e julgo que do peito
  O coração rebenta exanime e desfeito!
  Não se demora o rio: é tempo emfim! D'um alto
  Vejo a Lua a brilhar no espelho da agua; salto,
  Alheio á dôr do corpo, e emquanto vou nadando
  Sinistramente ao longe um lobo fica uivando.
  Chego á margem; depois entro por um atalho
  Escuro e pedregoso onde caíu o orvalho...
  Afinal, afinal, ó grande Deus, consigo
  Descobrir de repente o mais seguro abrigo!

Abeirando-se da caverna:

  Sem saber onde estou, a estremecer d'horror,
  Esfarrapado, ardendo em febre, sem vigor,
  Ouvindo sempre ao longe uns gritos de tortura,
  Venho enterrar-me aqui, na treva da amargura,
  Onde encontro por fim, núas e desgrenhadas,
  A Consciencia a chorar, a Infamia ás gargalhadas!

Ri convulso, com a cabeça entre as mãos. E o écho da caverna
responde-lhe longamente...

Depois de grande silencio, solta um suspiro d'alívio, e, com os braços
pendentes, a cabeça descaída sobre o peito:

  Eliminei a causa, e agora nem procura
  A minh'alma saber se existe ou já não dura
  O effeito. Um assassino é o que vejo em ti,
  Judas!

Apertando na mão um pequeno sacco de coiro que em si guardava.

        O coração refugiou-se aqui
  Transformado em dinheiro. É prata reluzente,
  Mas se queres vêr sangue, enterra n'elle o dente!
  E falas de ambição, tu que possues a marca
  Das filhas sem pudor do velho patriarcha!...
  Relembras o incesto horrendo de Thamar,
  E o crime de Ruben, que ousou enxovalhar
  A honra de seu pae no leito da madrasta!...
  E falas de ambição, tu, cuja voz arrasta
  Em de redor de mim o grande amontoado
  Das velhas podridões da carne e do peccado!

Ferido por um rapido pensamento:

  --Vou arrojar ao Templo este dinheiro infame,
  E talvez que o Senhor o seu perdão derrame...

Mas detendo-se, hesitante:

  Tenho medo... não sei...

E supersticioso:

                          Era de madrugada
  E eu ia caminhando em terras d'Ephraím
  Quando um sapo surgiu d'entre risonha mésse
  Para vir espreitar meus passos junto á estrada.
  Esmaguei o!--Se alguem agora me fizesse
            A mesma cousa, a mim?

Compadecído:

  Meus olhos, vêde a luz que o firmamento inunda,
  Que a luz tambem se fez para os olhos da serpente!
  Rasteja para longe, ó animal mesquinho,
  Deixando atraz de ti a escuridão profunda...
  Rasteja para longe... e ségue o teu caminho
            Silenciosamente...

A passos lentos, vae-se, costeando a muralha até dobrar o angulo que
ella fórma.


Duas mulheres, com os rostos occultos por densos véos, sáem da cidade.
Alguns passos dados, páram como avergadas pelo cansaço ou pela dôr. São
Maria de Bethania e sua irmã Martha.


MARIA com o braço pela cintura de Martha, e a voz muito suave e muito
resignada:

        Fica perto da cidade
        O sepulcro: é no jardim
        Do José d'Arimathéa.
        Ao aroma do jasmim
        Casa-me o aroma da rosa...
        É tudo meigo e silente
        N'aquelle triste remanso
        Onde elle dorme. A corrente,
        Que vae regar os pomares,
        Tem uns murmurios tão doces
        E tão cheios de misterio...

MARTHA

        Maria, irmã, se tu fosses
        Contaminar o teu corpo?
        É prohibido na Lei
        Ir a um sepulcro...

MARIA

                            Decerto...

MARTHA

        É um crime.

MARIA

                    Sim; bem sei.
        Mas devo eu conjecturar
        Que os negros vermes da terra
        Contaminem moradia
        Que tanto perfume encerra?
        As borboletas sómente,
        Aereos beijos de amor,
        Hão de poisar junto d'elle
        Como poisam n'uma flôr,
        Indo contar em seguida
        Aos espinhos do balseiro
        Quanta fragancia divina
        Exhala aquelle canteiro.
        ... Ao passo que eu viverei
        Na grande dôr do meu pranto,
        Como a aranha silenciosa
        Que fez a teia n'um canto.
        --No ceu da minha existencia
        Pairavam tranquillamente
        Dois flócos de nuvem, que era
        Como o fumo transparente...
        Andavam pairando assim
        Despreoccupados os dois,
        Para ao sopro d'uma aragem
        Se desfazerem depois...
        Fumo illusorio que sobe
        Mansamente pelo ar
        E que se esvae n'um instante
        P'ra nunca mais se juntar...

MARTHA

        Ó minha irmã!...

E abraçadas, com as frontes reclinadas no hombro uma da outra, soluçam
longamente.

Vem então da cidade outra mulher, que pelo trajar romano logo se
reconhece ser Claudia.

CLAUDIA chegando junto de Maria e Martha, cujos rostos se conservam
occultos, pára; e depois, poisando a mão no hombro de Maria, diz com voz
muito meiga:

                         Porque choras?

MARIA que se voltou, reconhecendo-a e baixinho á irmã:

        Ella?!

MARTHA receiosa:

               Claudia!...

CLAUDIA

                          Que motivo
        Gerou no teu seio a Dôr,
        A negra mãe do gemido?
        Conta-me tudo, mulher.
        --Morreu-te um filho, o esposo,
        Ou um irmão...

MARTHA ao ouvido de Maria:

                      Oh! meu Deus!
        Como o seu falar é outro!

CLAUDIA

        Tambem eu soffro ha trez dias
        D'um enorme soffrimento,
        E quero que na cidade
        Fiquem todos conhecendo
        Quanto Claudia é bondosa,
        Claudia, que o povo despreza,
        E quanto chora tambem
        Pela morte do Profeta.

MARIA absôrta:

        O que oiço!

CLAUDIA

                    D'uma mulher
        Taes lamentos recebi,
        Que um novo ser despertou
        De chofre dentro de mim.
        Sonhei depois, e que sonho!
        Nem mesmo o posso contar...
        Tão cheio de quietação,
        De suavidade e de paz,
        Que fiquei por muito tempo
        Absorta, de madrugada,
        Ao construir na memoria
        Todo o sonho que sonhara.
        --Eu fugira para longe,
        Para um paiz tão distante,
        Que este mundo em que vivemos
        Não me ficava ao alcance;
        E alguem cercado de luz
        E de meigas creancinhas
        Veio alegre ao meu encontro
        Nas paragens infinitas...

MARIA

        O que te disse?

CLAUDIA

                        Não sei...
        Apenas sei que, accordando,
        Não conheci a minh'alma
        Transformada por encanto;
        E por que um plano de morte
        Estava urdido em segredo
        Contra o bondoso Profeta,
        Logo intentei desfazel-o,
        Supplicando a meu marido
        Que em seu favor empregasse
        Todo o auxilio. Impossivel!
        A suprema divindade
        Caíra em somno profundo
        No seu grande leito azul,
        Deixando que o Nazareno
        Expirasse n'uma cruz!...

MARIA baixinho á irmã:

        E eu que ainda a accusava!...

CLAUDIA

        A minha dôr reparti
        Comtigo; deves portanto
        Confiar tudo de mim...

MARIA espansiva:

        Para quê, se tudo sabes?

CLAUDIA

        Tudo sei?...

MARIA

                    Pois que em Judá
        Nenhum rosto de mulher
        Por mais ninguem chorará
        N'este momento.

CLAUDIA

                        Por Elle?

MARIA animando-se:

        Sim, por Elle, Homem-Misterio,
        Que voou, como o aroma
        Da pobre rosa pendida
        Sobre a haste, dolorida
        Pela mágua da saúdade...
        --Vinde comigo, mulheres,
        Orvalhar co'o vosso pranto
        A boceta em que dormita
        Aquelle celeste encanto.
        Ide colher á campina
        Braçados de malmequeres,
        D'alfazema e rosmaninho,
        E vinde, vinde comigo
        Dispol-os naquelle ninho...
        E vós, ó mães, que trazeis
        No ventre o fructo do amor,
        Purificae-o aspirando
        O perfume e o calor,
        Que se evolam brandamente
        Do sepulcro sorridente,
        Como as nuvens que perpassam...
        ... Fumo illusorio, que sobe
        Com lentidão pelo ar,
        E que se esvae n'um instante,
        P'ra nunca mais se juntar...

E cala-se, a voz estrangulada pelas lagrimas.

CLAUDIA suspeitosa:

        Estas palavras?... Judía,
        Impossivel existirem
        Dois corações como o teu!

MARIA

        Já não o tenho: morreu.

CLAUDIA

        Como te chamas?

E vendo o rosto de Maria que se desvelára:

                        Maria!

MARIA caíndo de joelhos e beijando-lhe as mãos:

        Sim! que se roja a teus pés
        Humildemente contricta,
        Para dizer-te: mulher,
        Sê bemdita, sê bemdita!

CLAUDIA com a voz cheia de bondade, obrigando Maria a erguer-se e
abraçando-a:

        Ergue-te, ó alma sublime,
        Que encheste de luz a treva
        E que tiveste o condão
        De abafar a voz do crime
        Co'o soluço do perdão.
        --Tambem eu ia levar-lhe
        O meu pranto dolorido
        Como nunca tive igual.
        És a mulher que fugiu
        Para o reino do Ideal...
        A terra é muito mesquinha,
        E o vôo da andorinha
        Convida a voar tambem...

Cingindo com os braços Maria e Martha:

        Partamos, sim, pela estrada
        Que nos conduz ao misterio.
        Sorri ao longe a alvorada...
        Vamos tranquillas, serenas,
        Bater a cada poisada,
        E sejam nossas palavras:

Levando-as comsigo docemente:

        Vinde comnosco, mulheres,
        Orvalhar co'o vosso pranto
        A boceta em que dormita
        Aquelle celeste encanto.
        Ide colher á campina
        Braçados de malmequeres,
        De alfazema e rosmaninho...

E vão-se as trez pela estrada a caminho do sepulcro.


O firmamento agora é limpo. Raras estrellas brilham ainda. A luz da
madrugada define-se, e a brisa traz os perfumes dos vergeis e trigaes de
Gethsemani. Por um pequeno atalho cinco homens avançam para a cidade:
João, Gamaliel, Simão Pedra, Eleazar e Simão de Bethania. Todos
denunciam no andar e no rosto o abatimento moral em que se encontram, a
irresolução, o receio. Chegados em frente da muralha:

SIMÃO PEDRA que viera junto de João:

  Não entres na cidade...

ELEAZAR

                          És muito conhecido.
  O Conselho não tem desviado o sentido
  Dos amigos do Mestre.

SIMÃO

                        Olha que talvez pense
  Em prender-te, e depois nada ha que recompense
  O inutil sacrificio.

SIMÃO PEDRA

                      Ao teu valor opponho
  Todo o meu raciocinio.

JOÃO que ficára immovel olhando para a muralha da cidade:

                        Ainda julgo um sonho!...

GAMALIEL encostado ao bordão, a meia voz, rancoroso:

  Sobre a cruz aviltante, assim como o homicida,
  Como o escravo traidor, como o ladrão!...

JOÃO irrompendo:

                                            Ó Vida,
  E continúas tu dando vigor a quem,
  Depois de infamia tal, dorme em Jerusalem!
  Profetas de Sião, da campa alevantae-vos
  Para escrever ali com sanguinarios laivos
  Esta nefanda historia, este inarravel crime!
  Dobrae Jerusalem, como se dobra um vime,
  E que a mão do Senhor, terrivel, iracundo,
  Em látegos crueis com ella açoite o Mundo!

SIMÃO PEDRA

  Co'a doutrina do Mestre o odio não se casa...

GAMALIEL por entre dentes:

  Mas tambem cicatriza a f'rida o ferro em braza!

JOÃO desalentado:

  E assim tudo acabou!...--Saúdosa Galilea,
  Onde sorris tranquilla, ó minha pobre aldeia!...
  Quantas recordações do teu ceu, do teu ar,
  Dos dias que passei no teu sereno mar,
  Das noites que dormi na relva da campina,
  Tão descuidoso! Mãe da excepcional doutrina,
  Que encheu d'enthusiasmo e risos seductores
  As almas infantis d'ingénuos pescadores,
  Fazendo-os caminhar atraz d'uma visão,
  Confiados, como vae por entre a cerração
  A barquinha velleira ao descobrir farol!
  Prados, que sois jardins, e onde o rouxinol
  Canta serenamente em noites estivaes;
  Macieiras em flôr; regatos que passaes,
  Ondeando, como ondeia á brisa, levemente,
  Da aldeã virginal a trança refulgente...
  Montanhas de Nain; e tu, ó grande monte,
  Que te elevas no fundo azul do horisonte,
  Redondo como um seio a amamentar os astros...
  Meigo Genezareth, campos, cabanas, mastros,
  Rochedos, alcantís, seáras e pastagens,
  Que bordam a primor tuas alegres margens...
  --Eis aqui finalmente a horrivel derrocada!
  A solida affeição dos Dôse feita em nada;
  A cegueira vencendo; a Luz amortecida;
  A tripudiar em nós um ladrão homicida;
  E eu, no meio de tudo, extactico e absôrto,
  Buscando o olhar de Deus na pallidez d'um morto!...
  --E assim tudo acabou!

GAMALIEL avançando para elle nervosamente:

                        Quem fala de acabar?
  O fogo ainda não se extinguiu no altar
  Da nossa consciencia, e os rubros holocaustos
  Onde fomos depôr as almas ainda exhaustos
  Não deixaram de todo os nossos corações!

JOÃO desanimado:

  Que havemos de fazer?...

GAMALIEL animando-se e animando-o:

                          Povos, religiões,
  Autoridades, leis, é tudo movediço
  E débil como ao sôpro um tímido aranhiço!

SIMÃO PEDRA

  Queres dizer então...

ELEAZAR

                        A lucta?!

GAMALIEL

                                  Braço a braço,
  Não se deve luctar. Seria um erro crasso
  Instituir o Bem co'o ferro. Não! Deixae
  Esse erroneo principio aos filhos de Schammai!

JOÃO erguendo-se:

  O que pensas?

GAMALIEL

                Que chega a ser um attentado
  Á memoria do Mestre abandonar o arado
  Com que elle andou lavrando a consciencia humana!
  Eu quero a lucta, sim, mas nunca a lucta insana,
  Que esfria os corações e purpurisa as ruas!
  Não quero vêr brilhar ao sol espadas nuas!
  Impiedades brutaes, odeio-as e renego-as!

SIMÃO PEDRA

  Mas faláste de lucta.

GAMALIEL

                        Humilde, mas sem trégoas;
  Branda, mas incisiva; humana... mas divina!
  Como arma, aquelle dom secreto que extermina,
  Ferindo os corações sem que haja soffrimento.
  Ruge, como o trovão e géme como o vento,
  Murmúra como a fonte e estála como o raio,
  Tem a ardencia do fogo e a alvura do desmaio;
  Dolente, acaricía; em furias, escalavra!
  Esta arma triunfante, esta arma...

JOÃO com o olhar brilhante:

                                     É a palavra!

Mas logo receioso:

  Falar ás multidões...?

SIMÃO PEDRA tambem receioso:

                         Continuar...?

GAMALIEL

                                      Decerto!
  Entrando no porvir que Elle deixou aberto.
  Pois que o Mestre morreu, a alguem cumpre seguir
  O caminho traçado entrando no porvir,
  E esse alguem és tu!

JOÃO n'um sobresalto:

                       Eu?

ELEAZAR abraçando-se n'elle, espansivo:

                           Sim, João!

SIMÃO incitando-o:

                                    Ninguem
  Melhor que tu!

SIMÃO PEDRA secundando já agora Gamaliel:

                Qual é de nós o que mais tem
  O verbo inspirador, altivo e fulgorante?

JOÃO indeciso:

  Simão, Gamaliel, amigos... Ai!

GAMALIEL

                                 Ávante!

ELEAZAR

  Para gloria do Mestre!

SIMÃO

                         E gloria tua!

SIMÃO PEDRA

                                       E nossa!

GAMALIEL

  É bella a occasião...

JOÃO

                        E quem vos diz que eu possa?...

SIMÃO PEDRA

  Serás novo profeta, aproveitando o exemplo...

GAMALIEL agarrando João por um braço:

  Vão começar agora os canticos no Templo.
  Anda comnosco!

ELEAZAR

                 Vem!

SIMÃO PEDRA

                      Sê forte!

GAMALIEL querendo arrastal-o comsigo:

                               N'um instante,
  De povo te verás cercado...

JOÃO n'uma grande espansão:

                              Ávante! Ávante!
  É preciso arrancar ao morbido lethargo.
  A doutrina do Mestre!

GAMALIEL em doida alegria:

                        Emfim!

JOÃO cheio de ardente enthusiasmo messianico:

                              É meu o encargo!
  O caminho do Bem eu vejo, como outr'ora
  A escada de Jacob á luz da meiga aurora.
  Por ella vae subindo um côro triunfal
  Proclamando no Espaço o amor universal
  E a guerra sem clemencia ás abjecções e ao vicio.
  Ávante! Não desabe o sólido edificio
  De que o Mestre assentou as bases! O thesoiro
  Da palavra, caíndo em grande chuva de oiro,
  Enriqueça de novo a consciencia humana!
  Inspira-me, Senhor! a minha estrada aplana!
  Tu, que fizeste a luz, tu que fizeste o dia,
  Uma scentelha só do genio teu envia
  Ao meu cerebro! Dá-me a força necessaria
  Que torne a minha voz da tua a emissaria!
  --Vamos, Gamaliel!

GAMALIEL como n'um grito de rebelião, avançando para a cidade:

                     Gloria ao profeta novo!

JOÃO vibrantemente:

  Dou a minha alma a Deus, e a minha vida ao Povo!

Entram todos na cidade, ouvindo-se logo a voz de

GAMALIEL bradando:

  Negra Jerusalem, escuta, ó assassina,
  D'aquelle que morreu a divinal doutrina!

E depois, mais distante:

  Ouve, Jerusalem, que matas os profetas,
  As palavras que são do teu Senhor dilétas!

E os brados do velho doutor da Lei proseguem por longo tempo cada vez
menos distinctos, á medida que o grupo se interna pelas estreitas e
tortuosas ruas da cidade.


No entretanto, Judas voltou do Templo em cuja caixa fôra lançar o
dinheiro da traição, e quedou-se encostado á muralha junto ao angulo.
D'ali ouvira as ultimas palavras de João e os brados de Gamaliel.

JUDAS com desdem:

  «Gloria ao profeta novo!»--Insensatos! João,
  Vaes procurar a Morte! E eu... a expiação!

Toma pela estrada e n'ella caminha, affastando-se da cidade, mas, vendo
alguem que se approxima, recúa e estáca.

  Maria?!

MARIA parando tambem:

          Judas!

JUDAS, desvairado:

                Ah! cobarde salteador
  D'estrada! Vens talvez trazer o teu amor?
  O olhar, que seduzia, infunde repugnancia!
  O hálito d'outr'ora, a virginal frangancia,
  Que me embriagava, enója! Hálito, corpo, olhar,
  Ao largo! Vae, mulher! Não poderei amar
  A carne do meu crime! Odeio-te!

MARIA, reposta da primeira impressão, serenamente:

                                  Não vim
  Trazer o meu amor.

JUDAS

                    Que queres tu de mim?
  Trazes-me o teu perdão?

Solta uma risada nervosa.

MARIA

                          O riso da demencia
  Nunca ha de suffocar a tua consciencia,
  Que géme e se revolve em negro torvelinho.
  Podes rir... mas eu vou seguindo o meu caminho.

JUDAS impedindo-lhe a passagem:

  E a maldição ha de ir seguindo-te as pisadas!

MARIA

  A tua maldição... as tuas gargalhadas!...
  --Como o teu odio é bom!

JUDAS

                          Inda não é bastante
  Odiar-te! Se de ti fizesse minha amante,
  Como eu satisfaria este voraz desejo:
  Ferindo em cada olhar, mordendo em cada beijo!
  Que ventura, meu Deus! sermos no crime os dois,
  Fruir o teu amor, e arrojar depois
  O teu corpo e a paixão de que hoje ainda te nutres
  Aos ventres bestiaes dos ávidos abutres!
  --Mulher, posso matar-te! Ao largo! tenho medo!...

MARIA muito calma:

  P'ra sempre guardarei, Judas, o teu segredo:
  O mundo é tão cruel que aleives não reprime,
  Se junto da virtude elle descobre o crime.
  Mas entretanto... foge!

JUDAS rindo febril:

                          Acaso me suppões
  Tão cobarde que vá fugir sem ter razões
  Mais fortes que o teu odio e a tua hypocrisia?

MARIA

  E se o Mestre voltar?

JUDAS rindo:

                        Que doida fantasía!

MARIA

  Se o visses novamente?

JUDAS de subito receioso:

                         Eu? vêl-o?

MARIA

                                    Sim!

JUDAS

                                         Não creio!
  A morte é vasto abismo...

MARIA, dogmatica:

                            Abismo, cujo seio
  Não poderá conter o que era illimitado!

JUDAS acobardado:

  Que dizes tu, mulher?!

MARIA em tom profetico:

                        Que dorme inanimado
  O insecto no casúlo; ao sepulcro sombrio
  Elle proprio deu forma, urdindo-o, fio a fio,
  Vagaroso, em silencio, estranho ao mundo vário,
  Como o trabalhador que não requer salário
  E que só tem por fim realisar o plano
  De ha muito concebido. Em vão o olhar humano
  Procura descobrir o que existe no centro
  Do casúlo: o misterio é silencioso dentro.
  Mas depois, certo dia, o homem vê, absôrto,
  Que o sepulcro é aberto e não encerra o morto!

JUDAS tomado de vago terror:

  Justos ceus!

MARIA animando-se:

              Has de vêr, com a tua alma inquieta,
  Saír do seu casúlo a enorme borboleta,
  Que n'esta hora talvez as palpebras descerra,
  Encher de luz o espaço e de pavôr a terra,
  Da grandeza de Deus ser vivo testemunho...

JUDAS trémulo:

  E caír sobre mim co'o azorrague em punho!

MARIA terrivelmente:

  Emquanto não voltar, os olhos do covarde
  Hão de vêl-o assim como hontem o vi á tarde:
  Co'o respirar opprésso, o corpo no madeiro,
  Nas angustias da morte, a olhar-te, justiceiro!

JUDAS caminhando d'um para outro lado, desvairado:

  Não pode ser, não creio...

MARIA perseguindo-o:

                            Ha de falar-te, Judas,
  Á tua consciencia abjecta!

JUDAS tentando occultar o rosto:

                            Não me illudas,
  Que eu nada vejo!

MARIA erguendo o braço:

                    Vês pairando sobre ti
  O Remorso, o fantasma eterno!...

JUDAS que seguira com o olhar o movimento de Maria, fixa-o na muralha, e
apontando tambem, trémulo, allucinado:

                                  Ali! ali!
  Co'aquelle olhar azul que a morte mais esfria!
  Ergue a fronte... descerra os labios... Ah! dir-se-ia
  Que vae falar-me!--Oh! cala-te! Fui eu
  Que te entreguei, ó Mestre, ao inimigo teu!
  Não me accuses, que sinto em mim a accusação;
  Tem os dentes da cobra e as garras do leão!
  Anda aqui dentro--ouviste?--a esfarrapar-me todo!
  Fica-me pôdre o craneo, e o peito fica em lôdo,
  Para ser tão nojenta a apparencia que eu tome,
  Que nem os proprios cães matem comigo a fome!

E apontando de novo, como um vidente:

  O respirar opprésso... o corpo no madeiro...
  Nas angustias da morte a olhar-me justiceiro...
  Exactamente!--Eléva os olhos para os ceus;
  A agonia final chegou: fala com Deus...
  A cabeça descae no peito: vae morrer...

E n'um grito dilacerante, fugindo para junto da caverna:

  Ai! não! deixa-me em paz! Não! não! Não quero vêr!

E resvalando o corpo ao longo dos penhascos, cáe de bruços no chão, o
rosto occulto nas mãos, gemendo, offegante.

MARIA mais compadecida agora, mas com a voz repassada de austeridade:

  Insultáste-me ha pouco ainda. Eu tudo esquéço.
  Tenho a razão bem clara, e tu és um possésso.
  Quanto ao Mestre, lá tens em ti a accusação...
  A tua alma está sendo, ó torpe vendilhão,
  Passiva e sem vigor n'este fatal momento
  Assim como o enforcado a baloiçar ao vento...
  --Adeus.

E entra na cidade vagarosamente, sem olhar para traz.


Ha um grande silencio entrecortado apenas pelos gemidos mal suffocados
de Judas. Pouco a pouco, vão-lhe voltando as forças, e então

JUDAS erguendo a cabeça e como acordado pela impressão que no seu
espirito deixaram as ultimas palavras de Maria:

           «O enforcado?...»

E ergue-se com custo. Interrogando a sua consciencia:

                             Emfim para que existo?

Pensa. Tendo apoiado a mão direita na cintura, o contacto da corda com
que cinge a tunica desperta-lhe a attenção e aviva-lhe na memoria
aquellas palavras de João que elle repéte machinalmente:

  «As estrigas de linho...»

E prevendo o effeito:

                            Um laço... um nó...

Resoluto:

                                                --É isto!

Então, desatando a corda, dobrando-a em duas, formando um nó corredio,
vae monologando, febríl, nervosa, sêccamente:

  Para que hei de fugir, ouvindo a cada instante
  Correr atraz de mim um grito retumbante
  E vingador? Fugir?... Sob o azul dos ceus
  Quem pode combater a cólera de Deus?
  Inda que fuja sempre, eu sempre retrocedo,
  Porque é fugir do Eterno o mesmo que estar quedo!
  Não fugirei!--Se fico, atrocidades cruas...
  Hei de ser arrastado ahi por essas ruas,
  Padecerei do povo horríficos flagellos:
  Vir alguem arrancar-me os olhos, os cabellos,
  E transformar em lama o corpo do homicida!
  --Não! Prefiro morrer... por ter amor á vida!

De súbito, n'um grito de independencia, muito egoista:

  Eu prefiro morrer! Que se escancáre o espaço
  Da treva! Sim, ó Morte, eu quero o teu abraço!
  A maldição eterna o Eterno em mim derrame-a!
  Que importa! Serei grande até na propria infamia!

Allucinado novamente:

  Odeio-te, Virtude! odeio-te, Verdade!
  Renego do respeito e amor á Divindade!
  Eu creio só na Morte... e basta-me esta corda!

E ri, ri convulso. Batendo com a mão no peito:

  Álerta, monstro! Olá! monstro hediondo, accorda,
  Para insultar a Vida, essa madrasta bruta,
  Que faz d'uma alma honesta uma alma dissoluta!
  E tu, ó Mundo, pae d'este animal disforme,
  Vem lançar-lhe no corpo o teu escarro enorme!

E desapparece por entre os penhascos, correndo doidamente.


É já manhã clara: o horisonte purpurisa-se e doira-se. Chilreiam
passarinhos não distante. No Templo começam os canticos matutinos, e as
vozes das mulheres e das creanças chegam até nós em plangente e languida
melodía. Calam-se de súbito os gorgeios e paira em todo o ambiente
grande serenidade, como se toda a Natureza estivesse escutando.

João apparece á porta da cidade seguido por Gamaliel, Simão Pedra,
Eleazar, Simão de Bethania e por mulheres, homens e creanças. Caminham
todos silenciosamente, respeitosos, para ouvirem o novo profeta. Vem
João apenas com a tunica, descalso, a cabeça e o peito a descoberto, os
braços cruzados, o olhar em extasi. Chegados á parte superior do pequeno
oiteiro, João parou. Os companheiros ficam junto d'elle. As mulheres com
os filhinhos ás cavalleiras nos hombros, ao uso oriental, tomam para a
direita, e os homens para a esquerda do terreno inferior; sentam-se no
chão, já secco pelo vento, formando um semi-circulo em frente do profeta
novo. Sentaram-se tambem os companheiros. O vulto de João, destaca-se
fortemente do horisonte rubro, onde o sol vem rompendo, triunfal.

E é então que

JOÃO solta a sua voz inspirada de orador apocalyptico, de gesto amplo e
vigoroso, emquanto muito ao longe os canticos proseguem:

  Quem tem ouvidos, oiça o que Elle manifesta!
  Elle é o Omnipotente; Elle o principio e o fim;
  Elle quem libertou da escravidão funesta
  O povo d'Israel... Elle descansa em mim.
  Elle é o Omnipotente! Elle o principio e o fim!

  Seja bemdito quem ouvir e conservar
  As palavras que encerra a minha profecia!
  Quem tem ouvidos, oiça! e purifique o olhar,
  Porque já não vem longe o tenebroso dia
  Em que todos vereis a minha profecia!

  --Despenham se na terra os astros refulgentes;
  O Sol veste de negro, a Lua é côr de sangue;
  Varíam de logar ilhas e continentes;
  A Grandeza estremece e vem caír exangue...
  O Sol veste de negro, a Lua é côr de sangue...

  ..............................................




Escripto em 1888-1890

Acabado de imprimir
aos 5 dias do mez d'Outubro de 1901
na Imprensa de Libanio da Silva
Rua do Norte, 87 a 103

Lisboa


Nota do transcritor:

Foram corrigidos diversos erros tipográficos. Na lista que segue estão as alterações mais importantes.

  Pág.  Original	                        Corrigido
  20    abnadonam Maria                   abandonam Maria
  18    Pois eu sou tou                   Pois eu sou tão
  25    JÕAO PEDRA, com o braço direito   SIMÃO PEDRA, com o braço direito
  30    a aragem fresca e permada         a aragem fresca e perfumada





End of the Project Gutenberg EBook of Judas, by Augusto de Lacerda

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