Serão inquieto : contos

By António Patrício

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Title: Serão inquieto : contos

Author: Patrício António

Release Date: April 17, 2010 [EBook #32020]

Language: Portuguese


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    Notas de transcrição:

    O texto aqui transcrito, é uma cópia integral do livro impresso
    em 1920.

    No original havia uma errata. Nesta adição corrigimos os erros ali
    assinalados, e marcámos as alterações na versão html deste livro.
    Outros erros detectados durante a transcrição, foram devidamente
    corrigidos e, quando poderiam alterar a intenção do autor, foram
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                            ANTÓNIO PATRÍCIO

                             SERÃO INQUIETO

                                 CONTOS


               LIVRARIAS AILLAUD E BERTRAND--PARIS-LISBOA




SERÃO INQUIETO




DO AUCTOR

OCEANO (versos).

O FIM (história dramática em dois quadros).

SERÃO INQUIETO (contos), 2.ª edição.

PEDRO O CRU (drama em 4 actos), 2.ª edição.

DINIS E ISABEL (Conto de primavera).

_Em preparação:_

POEMAS.

O REI DE SEMPRE (Tragedia Nossa).

SHEHÉREZADE (contos).

CINCO DIÁLOGOS DE SONHO.


Composto e impresso na Tip. da Empresa Diário de Notícias
Rua do Diário de Notícias, 78




ANTÓNIO PATRÍCIO

SERÃO INQUIETO

CONTOS

2.ª EDIÇÃO


LIVRARIAS AILLAUD E BERTRAND

PARIS--LISBOA

LIVRARIA CHARDRON

PORTO

LIVRARIA FRANCISCO ALVES

RIO DE JANEIRO

1920




A

ANTÓNIO CÂNDIDO


        Ecris avec du sang et tu apprendras que le sang est esprit.

                _Ainsi parlait Zarathoustra._

                          F. NIETZSCHE.




DIÁLOGO COM UMA ÁGUIA


Diálogo com uma águia

Fui jantar hontem ao palácio. Estava lindo! Felizmente ninguêm. Tudo
deserto. Quando eu desci do restaurante, a accender um Laferme com
preguiça, caía a tarde de outono em vitrais ricos p'ralêm das ramarias a
despir-se. Passeei algum tempo na avenida, e sem saber porquê, indo ao
acaso, fui estacar nesse recanto triste onde mora engaiolada uma águia
velha. Há que tempos conheço êste mostrengo, num abandono de asilo, de
ar pedinte, com asas que diríeis paralíticas, de um tom coçado e neutro
de miséria!... Uma águia isto, êste espantalho! A decadência reles de
estas asas que tanta vez olhei com indiferença, nem eu sei bem
porquê, impressionou-me. Um animal de fábula, de mito, um ser que bebeu
sol de olhos abertos, curvava as garras frouxas num poleiro, e depois de
carnagens e aventuras, encolhido, misérrimo, com fome, acabava a aspirar
a um meio-bife, como um vadio à porta de um café. Coitada! Teve uma
forma assim aquela águia que saboreou Prometeu numa montanha!

A gaiola está sórdida, está imunda. Antes estivesse empalhada num museu,
ou no quarto de trabalho de um zoólogo, sócio da Academia, homem de
estudo, que ao voltar da rua ou da glória, lhe pendurasse do bico o
chapéu alto. Coitada! Coitada! E notei com um calafrio, que pronunciara
alto êste «coitada», com uma voz que a mim mesmo surpreendeu pela
inflexão perturbante de quinto acto. Olhei a águia. Vi-a encolher-se
tôda, contrair-se, enclavinhar as garras no poleiro, como a uma dor
aguda que a varasse. Encarou-me por fim, olhou-me todo, fazendo-me corar
dos pés ao côco, e com uma voz que não era a voz da fábula, sem nada
de lendário, sem estranho, com uma voz normal de velha beata, arrastada
e roufenha, quasi gaga, cacarejou num tom de dor e mofa:

--Ao que eu cheguei! Ao que eu cheguei! Já tem pena de mim _isso_ aí
fora... Antes estar morta e podre, antes estar podre...

Estarreci. Não era o impossível realizado dessa carcassa de águia a
falar alto, a falar como eu, que me empedrava: nem sequer o estranhei
naquele instante; mas o dolorosíssimo desprêzo com que ela me chamou
_isso aí fora_, com que ella ouviu que um _isso_ a lamentava. Deitei
fora o cigarro bruscamente, compus um momo frio de desdêm escondendo a
irritação que me excitava, e premindo a bengala contra o queixo,
retorqui-lhe benévolo e grosseiro:

--Não percebo o seu desprêso, não me atinge. Eu não disse «coitada» p'rá
ofender. É sempre triste ver uma águia presa, mas numa gaiola, assim, é
lamentável. P'ra mais, conforme vejo no letreiro, foi um comendador
que a ofereceu... E a gaiola...

--Que tem? Falta de estilo?

--Está cheia de excrementos. Está indecente.

--Já não diria isso se os visse cair de alto, no deserto, sôbre o
granito cariado duma esfinge... Scenários, digo-lho eu, literatura...

Eu então requintei de pedantismo, e perguntei-lhe a rir de que alta
estirpe, de que águias reais, de que família, ela veio a cair neste
poleiro onde agora a ouvia perorar num claro entardecer de intimidade,
com idilios de guardas e criadas, raros bebés jogando às escondidas e um
homem a varrer as fôlhas sêcas. Coçava-se a hesitar, com o bico baixo.
Sacudio as longas asas poeirentas e com uma voz de sono, começou:

--De alta estirpe, sim, de uma família de águias antiquíssima. Uma das
minhas ancestrais, como agora se diz, fêz viagens épicas na Judeia, e
num crepúculo de assombros, abrindo com as garras uma cordilheira de
nuvens, vio pregado na cruz o Hebreu Doce, e logo desceu ao morro numa
gula tão doida, que ensanguentou no ar de sêda as asas bravas... Rasgou
o peito magro do Homem-Deus, e ficou doida para sempre, doida, doida, na
alucinação dêsse manjar patético, de martírio divino e desespêro. Porque
ela ouviu a confidência do Heroi meigo... Mas não posso contar-lha, nem
mais pio! É um segrêdo de família, é o meu segrêdo.

Amuei, retorqui num tom mimalho:

--Mas então, se não podia contar, p'ra que me falou nisso? Eu sou de uma
curiosidade feminina. Já não saio daqui sem que mo diga.

--Mau! O senhor é uma criança. Que tolice! Dezenas e dezenas de avós
meus, gerações e gerações de águias marinhas, levaram o segrêdo herdado
e não traído, que nem ao sol, que é o deus das águias, revelaram. E
quere agora o senhor com um papelzinho que lhe custou uns cobres (se o
pagou) violar o murmúrio que tem séculos, e é a última vibração
daquele espírito que vestiu de nebulosas tôda a Vida... Sabe que mais?
Estou já arrependida de falar.

--Não se zangue. Juro-lhe, juro-lhe que não digo nada a ninguêm. Se
soubesse o que eu sei!... Segredos de família, dramas... dramas...

Esperei um instante ansiosamente. A águia inteiriçou-se, sem me olhar,
bicando longes de memória, de saudade:

--Não sei que tenho hoje. Velhice, morte próxima talvez,
pressentimentos... Quando essa avó longínqua cravou as garras no peito
d'êsse Réu, e lhe bicou o coração e bebeu sangue, sentiu que
enlouquecia, que era outra... Como se ferisse uma irmã, teve remorsos;
fixou os olhos bêbedos de sol nos olhos d'Êle, refrescou-lhe com as asas
a cabeça, empastada em suor, de um verde lívido...

A cruz que estremecia, ficou hirta. E foi então, foi então que Êle lho
disse...

--Mas o quê? O quê? Diga depressa.

--O segrêdo, senhor, o meu segrêdo.

--Mas qual é afinal? Quere torturar-me...

--Renegou-se a Si-mesmo. Retractou-se! Disse o remorso de não ter
vivido, a tristeza infinita, o desespero e o mal sem remédio de ser
virgem, de morrer no corpo morto de uma árvore, único corpo que sentiu,
o de um cadáver... As estrêlas que nasciam no céu dúbio eram pr'ó Moço
Hebreu pólen doirado, e a sua alma moribunda abria tôda como os hortos
ideais da Galilea... O peito arqueou-lhe mais, contracturado... Queria
largar a cruz p'ra poder dar-se, à terra dêsse cerro, a alguma forma, a
um corpo de mulher, a alguêm, a alguêm...

A voz da multidão pela ravina era um marulho de ressaca mui confuso, e
Êle sentiu entre pragas e risadas, entre os lamentos e os insultos que
silvavam, sentia vozes de mulher... ouviu, ouviu-as... Só elas Êle
ouviu, ouvia sempre... Queria falar ainda, quis falar-lhes e pedir-lhes
perdão do que lhes disse, com parábolas mentirosas de doçura e com
olhos de lago sem desejo... Esvaía-se em sangue, ia azulando. Foi então
que a minha avó num voo lento, lhe emmoldurou nas asas côncavas a
Face... e que ela ouviu, senhor, e que ela ouviu...

Calou-se um instante imóvel no poleiro. Reparei. Era o guarda que passava.

--Já não sei onde ia. Estou com febre. Ah! No que ouviu a minha avó
naquele instante... Quando eu penso nisso, quando penso... Imagine, se
pode, ora imagine... Êle que era um Adivinho, Êle o Vidente, num dêsses
instantes de génio que abrem séculos, previu, previu bem claramente,
como se mentiria à Vida em nome d'Êle, a morte da Beleza e da Alegria, a
Tristeza e a Doença em nome d'Êle, séculos e séculos de vida envenenados
por o sangue de amor que Êle vertera, e iria embebedar os homens muito
tempo, para sempre talvez, talvez p'ra sempre. Sentiu então que a querer
salvá-los, os perdera... Certo, êsse instante de dor sempre ignorado
foi o maior de dor que alguêm viveu. E como Êle a diria, como...

--Em que língua falou? Foi em hebraico?

--Foi na língua das asas que Êle o disse. Não lha posso ensinar, já me
não lembro. Quando me engaiolaram, esqueci-a. Mas que impressão lhe faz
o meu segrêdo? Se os homens o soubessem, seria Êle na verdade o Redentor...

--Sim, sim. É bem justo o que me grasna. Shelley tê-lo-ia amado como
irmão, e Nietzsche, o próprio Nietzsche...

--Bem sei. Êsse afirmou com pompa lá p'rò Norte, que Êle decerto se
teria retractado se tão cedo o não crucificassem. Foi minha mãe que o
disse a Zaratustra. Zaratustra ouviu mal, não disse tudo. A verdade é
assim, como eu lha conto. Parece que os homens riram do filósofo,
acharam tudo isso uma tolice...

--Acharam...

--E afinal êsse Hebreu crucificado, no instante supremo de tortura,
quando p'ralêm das nuvens o esqueciam, chamava só por Pan, o grande
Pan! Se os homens soubessem isto e o entendessem, teria o grande Pan
ressuscitado. Seriam brancas estas pobres asas.

--Brancas? Porquê?

--Durante séculos tivemos asas brancas, todas nós, águias da minha
estirpe. Foi só depois que Pan morreu, que elas ficaram pretas, como
luto. Quem se lembra de Pan por êstes tempos?...

--Os que sabem amar, os que ainda amam.

--Os que sabem amar!... Êsse Hebreu mesmo só conheceu o Amor no alto da
cruz. Viveu como um fantasma transparente, com sonho nas artérias e nos
olhos... Só escoado em sangue, no madeiro, viu nos olhos da minha avó
sanguissedenta, dois espelhos do Amor, irmão do sangue...

--Conhecem lá o amor aves de presa!

A águia crispou as garras no poleiro e casquinou um riso muito sêco, que
soava sem timbre, como tosse. Depois mudou de aspecto. Começou a
tremer, tôda friorenta, as asas como andrajos mais pendidas, e nos olhos
de febre, muito fitos, uma grande saudade que varava.

--O amor das águias... o amor das águias...

--Que tem? Está comovida. Conte-me o seu amor. Sou todos ouvidos.

--O meu amor... o meu amor... Já me não lembro. Já não posso dizer-lho.
Vai tão longe!... Sou uma velha tonta, sem memória, um farrapo de penas
para escárnio. Nem olho o sol em face há muito tempo. O meu amor... o
meu amor... Já me não lembro. Coisas sem forma... nuvens... nostalgias...

Fêz uma pausa. Parecia mais adunca, mais mirrada.

--No convés de um navio abandonado, amei no mar do Norte, aos vagalhões,
noites e noites, bêbeda de espuma... Havia a bordo um marinheiro morto.
Lembro-me bem. Que noites! Que mar alto!...

Tive um ninho e filhos pequeninos, num jardim vago, ao sol da
meia-noite... Que silêncio! Sentia-o a passar por entre as garras...

Ensandeci de gôzo no deserto... Ouvi a Esfinge falar, ouvi a Esfinge,
quando o sol lhe fendeu todo o granito, pôs ranhuras de dor nos olhos
átonos, e escancarou a bôca em rictos duros... O que eu ouvi à pobre?

Soluçava!... Eis o inigma afinal, o grande enigma, à hora das miragens,
do delírio, quando o sol enraivece, é só desejo, e o deserto urra no
silêncio, e as areias escaldam e o ar zune... Amei... amei... amei na
terra tôda... Desfraldei o desejo, cravei garras. Olhei o mar saciada e
compreendi-o.

--Tem saudades do mar, aí na gaiola?

--Como um marinheiro preso... doidamente... O que eu viajei, o que eu
viajei por sôbre a espuma!... Sei as lendas do mar como ninguêm.
Contou-mas numa rocha um corvo antigo. Como sabe, os corvos vivem
séculos... Sabia-as todas êsse velho amigo... naufrágios e terrores...
dramas da névoa... O mar! O mar! O que eu amei no mar! Mas o senhor não
compreende, o senhor não sabe. Que sabem do Amor os homens todos?... Foi
êsse Hebreu, sem querer, que os desgraçou. Fizeram ao Desejo o que fazem
às águias quando podem... Está como eu o Desejo: engaiolaram-no! Fizeram
do Amor isto... um dever! Um dever... um dever... um dever triste!
Empalaram-no em leis, codificaram-no. Até fizeram isso... o casamento! E
vivem em gaiolas, os seus lares! Raça de escravos! Se êsse Hebreu os
visse...

--A senhora é uma águia, não percebe... Eu não posso explicar-lhe a
Sociedade...

A águia olhou-me com um desprêso frio.

--O quê? Não sei? Sei mais do que Balzac. Eu li-o todo em casa de um
burguês. Vivi lá dez anos de amarguras. Estive presa primeiro no
quintal. Depois cortaram-me as asas e soltaram-me. Soltaram-me
mutilada pelas salas... Canalha! O que eu odeio os homens... As
crianças, veja o senhor os anjos!... arrancavam-me as penas,
espetavam-me o corpo com agulhas, e um dia um criado, na cozinha, tentou
picar-me os olhos às risadas, a rir, a rir... como só riem homens. Sofri
dez anos entre essa canalha. Era uma gente séria, muito séria. Vi a
Família, a Tradição, vi tudo. Não queira argumentar, não diga nada. Sou
uma águia, mas conheço os homens.

--De acôrdo. Eu não duvido. Não quero discutir, não argumento. Mas
falamos do Amor, e apenas digo que há ainda quem ame sôbre a terra...
gente da minha espécie... homens... homens... O amor, há-de a senhora
concordar, não é um monopólio de asas nómades... Um bípede implume
tambêm ama. É raro, eu sei, amor genuíno, é raro. Mas existe ainda,
afirmo-lho eu, existe ainda...

--Que novidade! Pois não lhe disse já que li Balzac? E viajei, e
vivi mais do que pensa.

Parou um instante, o olhar scismático, sem foco:

--... Uma vez, num céu da Andaluzia, vi num jardim mourisco dois
amantes. Senti o cio encrespar-me as asas largas e desci p'rós ver de
perto na luz de ouro... Era na paz de uma cidade morta. Pousei num dos
ciprestes do jardim. Tinha uma taça de alabastro esverdinhada, e uma
água glauca que cheirava a febre. Era junto da taça que se amavam, sob a
garra do sol, loucos de raiva. Fiquei quêda a aspirá-los muitas horas.
Que corpos fortes! Eu achava-os lindos. Dormi na torre da igreja, numa
gárgula, e de manhã voltei p'rós ver ainda. E assim dias e dias... Uma
vez demorei-me, vim mais tarde, e encontrei-os imóveis e enlaçados.
Tanto tempo os vi assim e tão imóveis, que pensei: _estão talvez mais
que adormecidos..._ Desci. Bati-lhes com as azas nos cabelos. Cravei as
garras devagar nos seios dela... Estavam mortos! Julguei então
enlouquecer de gula. Devorei, devorei, até à noite... Lembro-me que
sorvi os olhos dela. Estavam secos de amor. Eram cinzentos...

--Que horror! O que a senhora fêz!...

A águia ergueu as asas num espanto e tornou a fechá-las lentamente.
Depois, com grande enfado, foi dizendo:

--Que absurdos macacos são os homens! São os animais mais torpes que eu
conheço. Como tudo que vive, como todos, só pensam em gozar, gozar a
vida... e com esta obsessão a estorcegá-los, prendem-se os braços,
castram os desejos, adoentam-se, torcem-se... progridem. Querem morder,
morder bem fundo... e beijam-se; sentem calor e andam ao sol vestidos;
amordaçam o instinto, os imbecis!... Encerram o desejo nas alcovas, onde
não entre sol, sombra de lua... Tem estatutos, cláusulas, parágrafo. Não
fecundam a amar, são fabricados: são produtos de indústria os homens de
hoje! Chamam a isto Civilisação. Não vivem por viver: tem deveres a
cumprir, obrigações... E tudo isto em códigos, sistemas, em religiões,
teorias, em morais!... P'r'ós que tentem ser homens a valer, há prisões,
há leis, ha tôda a Ordem! Existem já na terra há muitos séculos, e ainda
não começaram a viver... ou, se viveram, foi na Pre-História ou na
Pre-Lenda! Que macacos absurdos! Que macacos!

--Mas pare um instantinho, oiça, oiça...

--Não me mace, senhor, não me interrompa... O que mais os consome e os
faz grotescos, e os enche de vaidade, é a Consciência, o Espelho, o
Guia, o grande Guia, que os levou a isso que são hoje...

Atalhei, como quem aponta um cumplice:

--A culpa foi dêsse Hebreu de quem falámos. Talvez se o seu segrêdo se
soubesse...

--Não foi só d'Êle, foi de muitos outros... Antes d'Êle e depois..., de
muitos outros.

Tremeu-lhe o corpo todo. Arrepanhavam-se-lhe as penas. Estava outra.
Via-a transfigurar-se com espanto.

--O senhor é bem um homem. Não se pode nutrir sem illusão. Quando há
pouco lhe disse o meu segrêdo, dei-lhe a entender que se êle se
soubesse, havia na verdade um Redentor, os homens viveriam sôbre a
terra. Tive pena de si que é um desgraçado. Sempre lho digo agora: era
inútil! Conheço bem os homens por meu mal. O segrêdo do Hebreu que lhe
contei, não é um caso único: é de sempre. _Á hora de morrer--a uma
águia, aos lençois ou ao travesseiro, todos os homens tem como êsse
Hebreu, um segrêdo supremo a revelar. É apenas isto: a confissão de que
morrem sem viver._

Continuou depois com o bico alto:

--Os homens são uma espécie condenada. _São bastardos de planta e de
fantasma._[1] Quem disse isto? Não sei... estou sem memória.
Raça de escravos vis, raça de escravos! E p'ra fugir à Vida o que
inventaram! Como trabalham, suam e tressuam!... Dissecam tudo, árvores e
pedras, fecham-se em quartos a estudar micróbios... E cada dia são mais
desgraçados, mais fracos, mais inquietos e mais tristes!... Cada dia se
embrulham mais em roupas, põem mais vidros nos olhos, tem mais mêdo... E
cada dia fogem mais à vida! Que imbecis! Que imbecis! Que espécie torpe!

Sentia-me exaltado, nervosíssimo. A voz saíu-me estrangulada, rouca, em
sobressaltos, brusca, sem fluência:

--A senhora diz coisas que me espantam, que por vezes são justas e
terríveis, mas há outras tambêm que não entende, que não pode entender,
sim, que não pode. É natural. A senhora é de outra espécie. Tem vivido
com os homens mas é águia... e águia ficará até morrer.

Parei. Sentia-me vazio, em suores álgidos, quási incapaz de articular
palavras. Ela então, com a plumagem toda crespa, transfigurada
agora, agora outra, já com metal na voz, interrogou-me:

--O quê? O quê? O que é que eu não entendo?

Sem recursos, nulo, desvairado, atirei-lhe êste lugar comum, como se
estivesse a falar com um jornalista:

--Por exemplo: o Sentimento, a Beleza moral que há no Universo!

Vi-a saltar do poleiro, esvoaçar, bater asas de fúria nos arames, e
recaír depois na mesma pose, a arquejar, asmática de raiva. Ficou assim
sem fala ainda algum tempo. Apeteceu-me fugir. Tive vergonha. A voz dela
por fim veio em arestas, ferindo o meu orgulho já ulcerado:

--A Beleza moral!... O Sentimento! Que fizeram com isso?... Que fizeram?
A Harmonia social, êsse concerto que é de rasgar os olhos e os ouvidos.
A fome, a revolta, o desespêro... A raiva de saber, de analisar, de
fechar em teorias toda a Vida... A Dúvida, a loucura metafísica, e o
culto da dor, êsse onanismo!... A impotência em tudo, a
impotência... E por paródia à luta de viver, uma luta sem garras,
enluvada, um ódio triste e covarde, corrosivo; a intriga e a cilada pela
fôrça; a caridade que é o egoísmo doente, e o culto dos ídolos, os
cultos, a escravidão aos deuses e às ideias... A Harmonia social... essa
gaiola onde vivem a uivar os homens todos!

Dava gritos estrídulos, sarcásticos: as penas erriçavam-se de fúria.

--Oh! O ódio dos homens, que grotesco! E há classes opressoras e
oprimidas, com fórmulas, com cláusulas, com leis!

Não é o ódio celular, contracturante; não é o ódio animal todo de
instinto; não é o ódio de todos quantos vivem! O ódio dos homens foi
canalizado, por seitas, por classes, por partidos, em dogmas,
preconceitos, covardias. Nos outros animais o ódio é orgânico! Todo o
combate é sempre pela Vida. O dos homens é anémico, missérrimo, e
defende o dever, o preconceito, as taras de domínio e servidão, e até
mesmo na revolta é miserável, pautando a Vida, sistematizando. É o
ódio da paródia de viver, do fantasma de Vida que êles vivem!...

Parou. Eu estava como tonto, desvairado. Tinha decerto endoidecido essa
águia velha, delirava, dizia só loucuras; mas eu não achei nada para
opor-lhe, p'rà aniquilar nêsse silêncio de fadiga. De súbito lembrei-me:
a Arte, a Arte, tôda a minha quimera de mãos postas!

Sentindo-me desta vez irredutível, gritei-lhe p'rà gaiola:

--E a Arte? A Arte? Consolação suprema de viver...

Teve farpões de escárneo ao responder-me:

--A Arte!... A Arte é a expressão da Vida. São os homens que o dizem,
não é assim? Ora se êles não vivem, se não vivem, se parodiam a Vida a
cada instante, se fogem mais e mais da grande Vida, a Arte é uma paródia
de paródia, um espectro de espectro... miserável! Querem com tintas
imitar o céu, e transcrevê-lo em lonas, em madeiras!... O céu bebe-se
aos haustos, com os olhos; olha-se por olhar, sem intenção;
recebe-se nas pupilas extasiadas, que se alargam mais com sêde dêle... É
o que faz um sapo a olhar os astros! É o que os homens não compreendem
nunca! Toda a terra é feliz se o sol a doura; tudo germina, as pedras e
as sementes... Só os homens que se cobrem p'ra evitá-lo; que nas cidades
gastam horas a vestir-se; que tem por céu só um paninho côncavo a que
chamam guarda-chuva ou guarda-sol; que o filtram nas igrejas por
vitrais, que usam lunetas, que o receiam sempre; que tem medo da morte
às suas garras, deslumbramento e orgulho de águias soltas; só os homens,
absurdíssimos macacos, querem copiá-lo em lonas, em madeiras, com
tintas, com carvões, com paus de côr!...

Que macacos absurdos, que macacos!

Bem quis interrompê-la, não podia. Vibrava de loucura negadora,
hierática, estranha, convulsiva.

--E nem poupam o mar nem as searas, as penedias trágicas, as rosas!
Metem o mar nuns centímetros de lona, e com medo que as marés vão
sufocá-los (a águia ria, ria como louca) mandam emoldurá-lo,
encaixilhá-lo!...

Prendem-no assim nas salas, nas alcovas. Oh! A Arte dos homens! Coisa
imensa! A paródia da Vida... paralítica! Mas vá alguêm dizer-lho! Vão
dizer-lho! Ainda os antigos cegavam as estátuas... Êstes abrem-lhes
olhos, bem abertos, a reflectir... o quê? A vida dêles, a paródia de
vida que êles vivem e que andam a imitar ainda por cima!...

A noite começava a entrar nas coisas. Um grito de pavão varou o parque,
assustou os jardins que adormeciam, e um instante no ar, teve
saudades... Uma angústia sem nome andava esparsa, caía das árvores
grisalhas, que pareciam à escuta, com terror. Em frente o chorão vergava
mais, quási rasava a terra com doçura, em curvas de um encanto nazareno.
Uma sereia aguda de vapor, já a sair a barra certamente, mugiu como um
agouro de naufrágio. A treva ia afogar tôda a gaiola. Não via bem a
águia, mal a via. Só os olhos e as asas muito vagas... Era um fantasma
de águia àquela hora, mas crescia em mim desmesurada, como um ser de
fábula e tragédia, oráculo sarcástico e sinistro, lendo o horóscopo num
poleiro reles, como se rasgasse a esperança com as garras. Afinal era eu
a sua presa, e ouvia-a passivo a torturar-me.

--A Arte dos homens! Que mentira triste! Em vez de serem belos como
estátuas, derrancam mais os corpos para erguê-las! Até modelam sonhos e
quimeras!...

Nunca olharam as nuvens, nunca as viram, esses mármores ao vento,
fluctuando... E o vento! O vento! Sabem lá ouvi-lo! Tanto não sabem que
quando êle prega, durante o inverno em que êle é todo génio, metem-se em
casas grandes, bem fechadas, p'ra ouvir sons, sons, imensos sons...
Chamam a isso Música. Conheço-a. Desde que vivo com os homens,
perseguiu-me. Nem aqui na gaiola eu lhe escapei. Toca aos domingos
horas, no coreto. Enche-me mais de raiva e de miséria. A música das
águias como é outra!... Quem a ouviu como eu quando era águia, antes de
ser esta carcassa reles! Nas montanhas, no mar, na névoa móvel!...
Sobretudo no mar, no grande mar... O que eu viajei nos temporais a
ouvi-la! Ás vezes partíamos no vento em turbilhões, asas e asas,
nómades, pairantes... Regougos de ondas, nuvens a rasgar-se, e os nossos
gritos, bêbedas de espuma!... E mil vozes de formas nunca ouvidas, a voz
de tudo, tudo, a voz de Pan! E o silêncio, o silêncio... Certos
instantes únicos, supremos, em que êle se ouve, o temporal hesita, e um
pânico arrepanha as asas todas... Como é agudo, agudo, êsse silêncio!...
Nas meias-noites de estio... o que eu gostava de despertar no éter
melodias, ferindo-lhe o teclado luminoso, numa alma de voo,
sereníssima... Punha medo com o rumor das minhas asas às nuvens que
dormiam extasiadas, e auscultava a noite pelo céu, até ouvir a manhã
vibrando tôda, quando o ar é uma orquestra miriadaria e os homens dormem
nas alcovas mornas...

Estendeu por minutos seculares o seu monólogo patético de velha, essa
arenga evocativa de fantasma, lapidando o meu ser com ironias, em que
memórias épicas passavam, como o granizo aos pobres em dezembro. Todo o
meu senso crítico se foi na rajada feroz dos seus desprezos: era uma
fúria aguda de vingança, de esfrangalhar essa carcassa oráculo,
varar-lhe os olhos com a ponteira da bengala, acabá-la de vez,
estrangulá-la. Retorqui-lhe então com a voz dura, pondo raivas de morte
nas palavras:

--Sim, sim... Diga ainda mais... o que quiser. Cante à sua vontade,
minha amiga! Insulte os homens, ria, desgraçada. Nem me dou ao trabalho
de a esmagar. Só lhe pergunto isto, apenas isto: quem a tem aí bem presa
na gaiola? A si e a êsse mocho seu vizinho? Ao leopardo, ao lobo, a
essas feras? Quem lhe dá por esmola bifes podres, e faz de si o riso das
crianças, e a há-de empalhar depois de morta?... Você é uma águia tonta,
dementada, que a escravidão ensandeceu de vez. Melhor, melhor! Assim
faz-nos rir mais. Grasne p'raí; rebente a divertir-nos!...

Parei pr'a tomar fôlego, cansado; mas o relevo imóvel dessa ave, a sua
forma heráldica de bronze, alheavam-na tanto desta cólera, do desespero
besta em que eu tremia, que me pareceu inútil continuar e me senti um
títere grotesco. Era o mais infernal dos casuístas, essa águia
impossível de ferir, feita de sombra, emoldurada em sombra, presa nessa
gaiola e mais distante que se esgarçasse as asas nas estrelas. Emquanto
assim pensava, ei-la que fala:

--Bem certo, sim, bem certo o que me diz! O Homem alastra pela terra
como um cancro, pervertendo a vida, corroendo. Reduziu-me a mim, asas e
garras, a um animal grotesco de capoeira, meio tonto de dor e de
miséria. E as feras!... Exibem-nas nas feiras e nos circos, em gaiolas
de ferro, à luz eléctrica, ante o pasmo alvar das multidões, rindo da
força mutilada e doente. Cortam as jubas aos leões, abrem-lhes
risca, dão-lhes chicote e bifes, civilizam-nos! E quando os tem nas
jaulas, sonolentos, sem força e sem instinto, entorpecidos, com as
pupilas de oiro marasmadas, com as garras inúteis já sem preza, acham-se
heróicos porque os chicoteiam, mesmo quando êles tremem de sezões, mesmo
quando êles morrem de saudade!... Não há amor de asas num rochedo à
névoa, que o terror dos homens não errice!... Antes disto, porém, já os
adoraram. No Egipto, em tardes de colheita, o voo das íbis riscava no ar
do Nilo curvas em que êles viam profecias... E outros como Isis, como
Anúbis, sucumbiram no tédio de ser deuses, e depois das pompas rituais,
de oferendas, de orações, de sacrifícios, são os servos misérrimos do
homem, domesticados já, civilizados!

Mutilam as árvores, deformam-nas; exilam certas plantas nas estufas, com
saudades do húmus e do sol, e trazem na lapela rosas mártires, que
abriam de desejo como noivas, à espera do pólen bem-amado! Não entendem
o sangue nem a seiva: vão pervertendo tudo, corroendo! Até que um
dia, não mais florestas, catedrais a Pan! A terra será calva como um
sábio, e cordilheiras, montes e ravinas serão assassinadas, cavacadas,
p'ra que os homens mobilem os palácios, p'ra que tenham poleiros nas
gaiolas... Os areais, as deserteiras ruivas onde o mar espadana e se
extasia, terão motores, instalações fabris p'ra utilizar a raiva das
marés, em quê, deus-sol?... a enriquecer indústrias... Todo o azul será
viuvo de asas, e os filhos das águias e das feras nascerão em gaiolas e
em jaulas! Ah! Mas tambêm nada haverá mais triste do que os filhos dos
homens, as crianças... A inocência, essa graça animal, de flôr e de ave,
que êles chamam divina... os imbecis! não mais existirá nos filhos
dêles, reflectindo nos olhos já doentes, a farça de viver, como nos
velhos... Será assim um dia, será assim. Onde irão depois refugiar-se?
Nos braços do amor, do amor dêles, em que um olhar de mulher lembra um
naufrágio, e faz que, cada trança, por mais loira, venha a ser
sempre a fôrca de um destino! A terra será a catedral do sofrimento, fim
da farça sinistra que êles vivem, a inventar anestésicos e dores!

Certo, o farrapo de penas que hoje sou, é bem obra dos homens. Certo,
certo... Mas aqui mesmo, num poleiro reles, garras em cotos, quási
paralítica, consola-me pensar que nenhum dêles será nunca o que eu fui,
asas e garras, vivendo pr'ó Desejo pelo instinto, e em nomaderias de
vertigem, amando tudo, tudo, a terra tôda, na luxúria suprema e
inconsciente, de viver, de viver só por viver!

Fêz uma pausa. Tive a visão daquela vida fulgurante, evocada em gritos
de delírio, por essa pitonisa de asas longas que cortava com o bico o
meu destino.

Foi então que eu ouvi estas palavras, que eram mais que um soluço, que
um crocito, uma espécie de guincho em que houve lágrimas.

--Iriam cair nas mãos dos homens os meus filhos!...

Lambeu-me um calefrio de vertigem.

Era demais, meu Deus, era de mais! Não era já o meu orgulho em chaga,
enovelado como um trapo nessas garras: o que eu agora queria, o que era
urgente, era mostrar a essa águia, a essa mãe, que o seu dolorosíssimo
terror era uma apreensão de louca, uma injustiça: o que eu agora queria
de alma tôda, era mostrar-lhe o coração dos homens p'ra que ela o visse
bem e tão patente, como se lhe pendesse a sangrar do bico curvo. Pr'à
convencer daria tudo, tudo. Procurava um meio, sem achar. Sentia a
inanidade das palavras. Com uma idea súbita falei-lhe:

--Vou abrir-lhe a gaiola. Vai ser livre.

Era decerto o pasmo que a gelava, porque não saiu da treva uma palavra.
Eu continuei numa emoção crescente em que vibrava a ânsia de a soltar:

--Vai ser livre, livre como outrora. Acorde as suas asas esquecidas.
Diga adeus a essa gaiola imunda. Olhe mesmo daí: que encanto de hora! A
noite arqueia ao pêso das estrelas... Uma palavra sua e abro-lhe a
porta. Não duvide. Sou forte. É num instante...

O seu recorte altivo de águia em bronze amezendou: fôsse fadiga ou
tédio. E num becejo vago, interrogou-me:

--Vai abrir-me a gaiola... mas p'ra quê?...

--P'ra quê?! P'ra que antes de morrer domine o espaço... p'ra sentir a
vertigem do infinito...

--Eu?!... repetiu numa fleugma desdenhosa. Eu?!... Saír dêste poleiro,
da gaiola? Não sou doida varrida por emquanto. Saír da minha casa, do
conforto pr'á incerteza da noite, p'rò mistério?... Sou uma águia mas
vivi entre homens. Já estou civilizada, meu senhor... E se o vento me
arranca as asas velhas? E se chover, e se chover? Já pensou nisso? Nem
com as garras enluvadas eu me atrevo... Nem que me cubra as asas de
impermeáveis...

Nem com um _water-proof_, nem assim...

A águia ria, ria doidamente. Crispei as mãos nos arames, exasperado,
e com uma voz enrouquecida fui dizendo, num tom de confissão, quási febril:

--Imagina talvez que a não entendo, que sou um homem como os outros,
imagina...

É natural... é natural. Não me conhece... Mas eu quero dizer-lhe: oiça!
oiça!

Há em mim um não sei quê de águia marinha. A sua sorte comove-me,
acredite. Quero tambêm dizer-lhe o meu segredo, quero desabafar,
contar-lhe tudo...

Bateu as asas com um ruído sêco, e num timbre fatídico de corvo, com uma
voz de sibila, crocitante, atirou-me estas palavras derradeiras:

--_É cedo, é cedo ainda. Imite os outros. Diga isso ao morrer ao
travesseiro._

Esse sarcasmo último transiu-me; e como quem se agarra ainda á
esperança, pus-me a gritar p'rà gaiola, tontamente:

--É o convívio dos homens que nos perde. O seu destino é irmão do meu,
escute... Queria ser forte e belo, queria...

Falei, falei, falei... Não sei que disse.

Sandices e quimeras e desejos, larvas de ideas, raivas, desesperos.
Parei por fim.

Já nem lhe via os olhos. Decerto cerrara as pálpebras com tédio. Só o
vulto de sombra sôbre a sombra se alongara mais, estava maior. Ouvi
então uma sineta banalíssima, a pôr-me fora sêcamente: era já tarde.
Olhei ainda a gaiola, despedi-me, atirei-lhe p'ra lá um «adeus» surdo.
Ao passar na jaula do leopardo, senti um cheiro mau a carne podre.
Vi-lhe o vulto enigmático de esfinge, a cabeça nas patas dianteiras, os
olhos de oiro fulvo, fuzilando. Se aquele me falasse, o que diria!...
Atravessei o parque silencioso, como numa balada, com terror. Vi nas
acácias os pavões adormecidos, olhei o céu filtrado por folhagens onde
um langor de outono se esfolhava, e à saída já, p'ra me calmar, molhei
as mãos febris numa das taças e passei-as nas fontes consolado.

Achei-me emfim na rua, longe dela.

Um rapaz namorava mesmo em frente, a patrulha descia compassada,
disse-me adeus um côco conhecido: dobrava a esquina um eléctrico
apinhado. Tinha ainda no ouvido a voz da águia, quando saiu de uma
janela aberta uma ária roufenha de fonógrafo.

Comuniquei feliz com a vida reles. Depois disto, é evidente, não posso
mais falar-lhe. Ainda bem! Levava-me ao suicídio essa águia velha.




O PRECOCE

A João de Barros


O precoce

Desde que o Emílio estava doente, todos os dias, ao anoitecer, se
reuniam no seu quarto e assim ficavam algumas horas, numa intimidade
meiga, como se dessa cabeça de precoce, ungida de sossêgo, dos seus
olhos de adivinho, de um veludo grande e calmo, se exalasse paz, uma paz
clara, em que tudo se perdoasse e se esquecesse.

Tinham já lugares marcados. A mãe à cabeceira, logo ao pé a tia Olívia,
p'ra contar histórias; os outros em redor, e aos pés da cama, em frente
ao doentinho, o busto nobre do tio Eduardo, já grisalho, a sua máscara
fina um pouco vaga, como a de todos os que vivem no silêncio como
outrora se vivia num convento. O pequenino era assim uma figurinha de
mito familiar, e nas suas palavras lentas, de intuição e de carícia,
todos se ouviam como o mar nas conchas. Tinha uma voz de sombra amiga.
Adoravam-no. Mas agora, martirisado de dores, a consumir-se dia a dia,
as mãozitas transparentes, entravam no terror de o ver pior. E se um
móvel estalava, um farrapo de luar batia os vidros, ou ao cair da noite,
a sombra vinha,--tremiam no silêncio, tinham medo, como se
disfarçadamente a Morte entrasse, viesse de mansinho p'ra gelá-lo.

Às vezes, nas pausas de algum conto ou da conversa, se alguêm se
voltava, logo os outros inquietos o seguiam; e era vulgar olharem a
porta de soslaio, como se esperassem alguêm, uma visita...

Todos falavam em surdina, velando a voz um pouco opressa, e assim as
coisas mais banais tinham um não sei quê de estranho; as palavras caíam
como fôlhas sêcas e nos olhos de todos havia uma expressão de adeus.
Nem todos, nem todos! A mãe radiava fé. Bastava ver-lhe as mãos correndo
a dobra do lençol, de veias altas, entumecidas de ternura, e poisarem
numa geada de beijos nas mãos do seu filhinho, para sentir a emoção
louca, religiosa, tendo ressurreições em cada gesto, sarando num olhar,
numa oração. É que essa creança era a sua própria alma, presa naquele
leito como um passarito enfêrmo, abrindo p'ra ela olhos enormes, como
p'rá decorar bem, antes de partir; e dizendo de quando em quando: «mamã,
minha mamã», num rumor de asa cansada.

Era muito moreno, tinha a testa alta, um pouco bombeada, bôca de lábios
finos, mento curto, bosselado em covinhas, que a magreza já quási que
delira. Mesmo quando tinha saúde, ria pouco; não sabia brincar e
qualquer coisa, o mais simples aspecto, o distraía como numa visão
inconsciente.

Tinha um ar de quem se lembra. Uma vez foi ao colégio. Voltou com febre,
doente, a tremer todo, e quando o pai o interrogou, só pôde dizer
«que não era nada, que não tinha nada». Mas à noite, quando a mãe ia a
deitá-lo, rompeu a beijar-lhe as mãos, num chôro brusco, e mal pôde
pedir entre soluços, de mãos postas, p'ra não voltar... p'ra não voltar
mais ao colégio.

--Sossega, meu filhinho. Quem te fêz mal? Que te fizeram? Não voltas
mais, não voltas mais. Que te fizeram?...

--Vi bater num menino.

E outra vez o chôro o sufocou, em bagas grossas, torcendo o seu corpinho
de arbusto à ventania. Nessa noite teve febre, delirou, e os pais
resolveram que tão cedo não voltava. Pediu então à mãe que o ensinasse.
Ao caír das tardes, com a costura no regaço, ela dava-lhe lição, e em
pouco tempo, por entre confidências que eram beijos, êle aprendeu
maravilhado a ler. O seu amor cresceu ainda, como regado de gratidão.
Dizia «mamã» como quem reza.

Adorava-a. Nas tardes de sol, os irmãos brincavam no quintal;
chamavam-no, e como êle era o mais pequeno, faziam-lhe mimos, numa
grande ternura protectora. Êle não ia, desculpava-se. Preferia ficar
junto dela, na varanda de pedra, a vê-la bordar.

--Não queres brincar, Milinho? Vai, vai brincar com os manos.

Êle erguia os seus olhos de veludo:

--Deixe-me estar ao pé de si, mamã. Não há nada tão bom p'ra mim.

Raro saíam. Ás vezes, com a mãe, ia às tardes à Foz p'ra ver o mar.
Voltavam ao anoitecer. Falavam pouco.

--Gostas do mar, Milinho?

--Muito, mamã, muito. É a coisa mais linda que há.

Foi ao voltar de um passeio assim, numa tarde de novembro, que o
pequenino teve tosse e cuspiu sangue.

--Que te dói? Dói-te o peito?

--Pouco, mamã. Não se aflija. Não há-de ser nada.

O médico veio, aconselhou cautela, receitou. Teve depois com o pai uma
conferência larga. E foi então que o terror abriu sôbre ela as asas
concavas, geladas. Não podia dormir. Levantava-se a cada instante, p'ra
ver se estava bem coberto, se tomara o remédio, p'ra senti-lo. A tosse
dêle feria-lhe tambêm o peito; transia-a tôda, como um dobre. Vestia-se
à tôa, sem cuidado. Tudo o mais lhe era indiferente. Marido, os outros
filhos, família, governo da casa, visitas, os outros... que lhe
importavam agora, se o seu filhinho estava mal?

E extenuada, adormecia às tardes à cabeceira do doentinho, que a olhava
a sorrir, muito feliz, como se fôsse um ser de conto preso num lindo
encantamento. Pouco a pouco, apesar de ninguem o achar melhor, foi-se
esvaindo o terror dela, e uma grande loucura, a loucura divina da
esperança, galvanizou-a de coragem, deu-lhe fé. Amava-o com tôda a carne
e tôda a alma.

O casamento tinha sido, p'rá sua índole delicada de romântica, uma
decepção dolorosíssima a que pouco a pouco se adaptara. Não teve crises,
não sofreu violentamente. Foi um esperecer lento da ilusão; todo o
seu sentimento que morria como uma planta à sêde; e ela curvara a
cabeça, aceitava a vida que lhe davam, com uma resignação de fraca que
se esquece. Teve dois filhos. Criou-os. E uma paz de maternidade um
pouco animal, foi-a calmando; o seu passado de sonho estava longe, nas
águas mortas da memória; e ia vivendo assim, anestesiada, sem os
sobressaltos de nervos de outros tempos, uma vida normal e clara, no seu
lar, entre os seus. Era uma renúncia sem tortura, inconsciente.

Passaram alguns anos, uniformes, que só a doença de um filho ou do
marido vinham alvoroçar de longe a longe, e que por fim se sumiam na
memória, na mesma cinza neutra, pardamente. Vivia como se fôsse a
própria sombra. Já não esperava ter mais filhos. Quando soube que ia ser
mãe ainda uma vez, teve a emoção maior da sua vida. Certo, ela foi
sempre boa mãe: amava os seus dois filhos muito e muito. Mas agora era
diferente, era outra coisa. O que viria era mais, bem mais que os
outros: era o filho dela e do seu _sonho_... Ressuscitou em si
mesma: renasceu. O seu sangue resava nas artérias promessas que antes
não lhe ouvira, e começou a parecer-lhe que êsse filho era a compensação
que Deus lhe dava, quási um milagre, a flôr inesperada em que o seu
sonho redivivo iria abrir.

A sua vida banal, desencantada, murchando dia a dia, sem interesse, num
automatismo frio e resignado, fôra uma provação, tinha passado: e os
seus nervos de histérica, despertos, com todo o amor que a vida
sufocara, calcado em resignação, morrendo à sêde, renasciam a vibrar de
esperança, davam-lhe uma beatitude transcendente.

O seu filho (estava certa que era um filho) seria um pequenino
abençoado, com um destino que só ela e Deus sabiam, e no primeiro olhar
que êle lhe desse, pressentiria um evangelho novo como um beijo a
correr-lhe tôda a alma... Tudo mudou na vida dela, tudo. Mal falava aos
filhos, ao marido, que interpretava a estranheza dos seus modos como a
mudança de carácter, os caprichos que muitas mulheres tem naquele
estado. Se a olhavam insistentemente ou lhe faziam perguntas, alusões,
isolava-se, desaparecia de repente, como alguêm que vive p'ra um segrêdo
e receia que os outros lho desvendem. Parecia mais alta, elanguescida,
com grandes olhos sempre a olhar p'ra dentro, como teem certas aves e os
mármores.

Em solteira, nunca fêz confidências às amigas. Tecia a sua teia no
mistério. Todos lhe achavam qualquer coisa de dormente: não compreendiam
bem o seu carácter. Mas como era modesta e era boa, esquecida de si
mesma e sem vaidade, deixavam-na viver no seu silêncio como um nelumbo
de pureza à flôr de um lago. Mesmo no seu isolamento da província, onde
vivera com os pais até casar, lia pouco e sempre os mesmos livros: vidas
de santas, lendas de conventos. Exaltava-se com êles, tinha fé em
qualquer coisa que Deus lhe reservava. Durante os serões lentos,
costurando, scismava que nascera para freira. Toda a sua energia, a
sua força, abrasava o seu sonho, era interior: e quando batiam à porta
da sua alma, ela saía distraída, resignada, a obedecer aos seus
passivamente. Esperava contudo _um não sei quê_. O Destino dissera-lhe
um segrêdo. E sem contar a ninguêm o que pensava, vivia como uma eleita:
estava à espera... Os seus vinte anos em flôr eram p'ra êle.

Foi debruçada a esta ogiva de mistério, que a vieram chamar para a
casarem. Depois a decepção, o sofrimento: mais tarde a renúncia, a
anestesia na sonolência banal dos seus cuidados.

Apesar de não casarem por amor, outra qualquer, no seu lugar, era feliz.
Êle era forte, delicado e bom. A sua vida de engenheiro absorvia-o.
Quando viu que aquela rapariga, que conhecera na província vaga e meiga,
continuava nos seus braços abstraída, com um olhar desencantado e quási
triste, compreendeu que fizera mal em ir buscá-la como quem colhe um
lindo fruto: erguendo o braço. Tentou então insinuar-se pouco a
pouco, interessá-la nas suas coisas, diverti-la. Por fim resignou-se,
desistiu. Como não era um sentimental, um romanesco, e a sua profissão o
apaixonava, contentou-se em ter nela uma amizade, um ser de lialdade e
de doçura, desdenhando teatros e convívios pela paz transparente do seu
lar, e vivendo p'ra êle, para os filhos, e para aquela vida inviolada
que desfocava os seus olhos noutros céus... Como porêm tudo mudara agora!

Dia a dia, a exaltação dela ia crescendo. Uma noite mesmo teve febre, e
o médico lembrou que p'rà calmar, era melhor uma mudança de ares, uma
temporada na aldeia ou à beira-mar. Partiu então p'rò Minho, para a
quinta, e como nem o marido nem os filhos podiam nesse tempo
acompanhá-la, levou consigo apenas as criadas, dizendo que preferia
ficar só na grande paz do campo, a sossegar.

Era na Páscoa. Nessa ressurreição da primavera, ao abrir a janela do seu
quarto, aspirou no perfume dos lilases a esperança que subia com as
seivas, vibrando já nas asas migradoras e no pólen que doirava o ar.

Enternecia-a tudo: as relvas novas, ver os rebanhos beberar às tardes
quando os montes violáceos se concentram, os pássaros felizes no pomar,
e à hora das regas, ao crepúsculo, a alegria das águas borbulhantes,
quando as estrelas vem, tudo descansa, pelos atalhos vão chiando carros,
e nos paúis, pobres poetas liricos, os sapos piam comovidamente. Nunca
sentira tanto a natureza.

E foi nesta atmosfera de pomar que ela esperou misticamente a hora
suprema, querendo sofrer, feliz, extasiada, como uma nuvem alta da manhã
que o sol rompesse p'ra descer aos homens...



Davam Trindades. A tia Olívia contara um lindo conto. Ao sair dos
palácios de feeria por onde a voz dela o ia levando, o Emílio ficava a
olhar as jóias, os anéis, a pedras preciosas esparsas na sua mesa de
doente e luzindo em sortilégio, na penumbra. Eram olhos de fadas,
encantados...

Não tiveram remédio senão dar-lhos: por quanto tempo, meu Deus, por
quanto tempo?... P'rò distrair, há dias, o tio Eduardo tirou os anéis e
deu-lhos, e como o viram ficar muito contente, os outros deram-lhe
tambêm os que traziam. Mas quando iam nessa noite a despedir-se, êle
ficou tão triste ao entregá-los, que o tio Eduardo propôs que lhos
deixassem e todos imediatamente consentiram.

--Fica com êles, Milinho, guarda-os, guarda-os.

--Mas não são meus, não quero... Assim, não quero...

--São todos teus, são todos teus, meu filho.

Então em roda todos confirmaram a mentira damor que o alegrava.

Daí por diante, sempre àquela hora, vivia num delírio de gandezas. Mas
nesta tarde, ou porque o conto mais o impressionasse, ou porque
estava mais fraco e com mais febre, a excitação do Emílio era maior. Os
seus olhos de mago, muito abertos, dois veludos de febre ainda mais
negros, maguavam-se fitando as pedrarias, êsse baile de côres e de
reflexos que pareciam mais vivos na penumbra, e como se a febre dêle os
contagiasse, tinham fulgurações de um brilho agudo. Abria, abria os
olhos fascinado.

--Que lindo, mamã, veja que lindo!

Toda a sua carita consumida desaparecia no clarão dos olhos, mais pretos
que asas de andorinhas, ao tremerem no ar em despedida. Outro sino mais
longe deu Trindades, numa voz de prata e de fadiga, como se lhe custasse
a vibrar até ao quarto. Todos estavam opressos, sem falar. E êle,
erguendo os braços de repente, deixou-os ir cahindo sôbre as jóias,
cobriu-as com as palmas das mãosinhas, puxando-as contra o peito
avaramente:

--São todas minhas, não é? São todas minhas...

--Todas, Milinho, disse a mãe transida. Vergou-se então sôbre elas com
esfôrço, como se fôsse p'ràs beijar, branco de cera, e repetiu ainda
extasiado:

--É lindo, lindo... lindo. Não dou nenhuma a ninguêm. São todas minhas.

Espalhou-as um pouco sôbre a mesa, pôs de parte os anéis, ficou a
olhá-los, e sorrindo à idea que tivera, disse baixinho:

--Vou pô-los nos meus dedos. Começou a enfiá-los com cuidado nos
dedinhos ossudos, só falanges, mas deixava-os cair a cada instante,
largos de mais, em fugas de reflexos. Já ia na terceira tentativa, num
desespero mudo, a arfar cansado, quando o tio Eduardo e a mãe o
ajudaram. Levantaram-lhe as mãos quentes de febre, e enfiaram-lhe os
anéis nos dedos ósseos, que êle ergueu quanto pôde, deslumbrado.

--Mamã! Estavam a dar Trindades. Vou rezar uma avé-maria, vou rezar.

Na penumbra da alcova, de mãos postas, escorrendo em reflexos irisados,
a sua vòsinha disse a avé-maria num timbre muito fino de carícia,
como um adeus que punha os olhos rasos, num veludo expirante de
palavras, dêsses que tem no outono, a horas mortas, certas fôlhas de
arbusto a despedir-se. Nem o tio Eduardo se conteve. Brilhavam-lhe já
lágrimas nos olhos. Ninguêm tinha coragem para falar.

A lua, que agora vinha muito cedo, batia na varanda, brancacenta. Êle
tirou os anéis devagarinho, como um ser de conto, a sorrir sempre, e
deitou-se p'ra baixo fatigado.

--Dê-me as suas mãos, mamã, quero senti-las.

E ficou a beijar-lhas muito calmo. No enleio de uma emoção religiosa,
todos queriam quebrar êsse silêncio, feito de sonho e de apreensões de
morte, que avançava talvez na luz do luar. Foi o tio Eduardo que falou:

--Esteve hoje um dia lindo, quási quente. Temos à porta a primavera.
Dentro em pouco, Milinho, estás mais forte; já podes dar à tarde o teu
passeio.

--Logo que possa, mamã, vou ver o mar. Consigo, sim?

--Se Deus quiser, meu filho, havemos de ir. E ainda antes, has-de ir
para o quintal brincar com os manos. Sabes que a _tua_ árvore, a
magnólia, já está cheia de flores muito brancas?

--Ó mamã, mamã, deixe-ma ver,--pediu êle erguendo a cabeça de repente.

--Mas vais apanhar frio, meu filhinho. Amanhã, amanhã, agora não.

Tanto insistiu, que o levaram ao colo até à janela, embrulhado em
cobertores, muito contente, e ficou assim alguns instantes, a carinha
colada contra os vidros, no deslumbramento da magnólia, da _sua_ árvore,
erguendo o tronco negro e lívido de lua, e nos ramos implorantes e
afilados, as flores mais brancas que há na terra.

Deitaram-no. Deviam ser nove horas, pouco mais. E como sempre,
levantaram-se todos p'ra partir. Cada um então foi dar-lhe um beijo, e
ao apertarem-lhe as mãos--adeus Milinho!--êle olhou-os desta vez
mais devagar, com um olhar que nunca mais lhe viram, em longes de
meiguice, de outro mundo, numa névoa de lágrimas contentes. E sorria ao
dizer:

--Adeus, adeus. Tio Eduardo, tia Olívia, adeus, adeus...

Essa creança assim, a despedir-se, com uma voz perlada de carícia,
encheu-os de aflição e de terror; e foi mordendo os soluços, sufocados,
que saíram da alcova, que partiram, ouvindo dentro dêles o
crocito--nunca mais! para sempre! _never more!_--dêsse corvo fatídico,
de lutos, que Poé revelou em versos trágicos. Qualquer coisa de lindo ia
morrer. Qualquer coisa de lindo ia morrer...



No emtanto na alcova, o pequenino, alongava os bracitos para a mãe e
dizia feliz, como em segrêdo:

--Que bom, mamã! Que bom estar só consigo! Sente-se aqui depressa, mais
pertinho...

--Aqui me tens, Milinho, aqui me tens. E beijava-o na testa longamente.

--Como eu gosto de si, minha mamã! Quem me dera viver sempre ao pé de si!

--Deus há-de-te sarar. Verás, verás...

--Bem sei que lhe faz pena, não se aflija: qualquer dia, mamã, eu vou
partir...

--Nem digas isso, meu amor, nem digas isso.

--Vou-me embora, vou, p'ra muito longe... Não faço falta a ninguêm.
Ficam-lhe os manos. Só lhe deixo a si muitas saudades...

--Se tu gostas de mim, não digas isso.

Êle tornou mais lento, resignado:

--Por sua causa, mamã, queria viver ainda que fôsse assim... sempre
doente, sem saír do quarto, ao pé de si, mamã, ao pé de si...

--Agora precisas de dormir, de descansar. Fecha os olhos, Milinho,
dorme, dorme...

--Então dê-me as suas mãos. Quero dormir com as minhas mãos nas suas.

Dentro em pouco, serenamente, adormeceu. Ela tirou as mãos devagarinho,
aconchegou-lhe a roupa contra os ombros, e afastando-lhe dos olhos o
cabelo, deu-lhe um beijo na testa, muito leve.

Já o luar escorria pelos vidros em lágrimas de opala e de mercúrio. A
noite vinha ver o seu filhinho e enchê-la de esperança e de coragem.
Como o pai disse recolher mais tarde (uma entrevista no _club_ p'ra
negócios) mandou deitar as criadas, ficou só: esperá-lo-ia ali, junto ao
seu filho. Como dormia bem, tão sossegado! Deus era bom, havia de
salva-lo. E numa exaltação, quási feliz, encostou-se à vidraça a olhar a
noite.

A magnólia ao luar estava divina. Se o pequenino a visse, o pobresinho!
Como êle gostava das árvores, do mar! Não se lembrava de ter visto um
luar assim. Fazia-lhe tão bem: calmava-a tôda. Via ao longe, no rio, as
mastreações, e distinguia as vêrgas, o velame, a luz dos estais à pôpa,
nictitando. Vila-Nova, a casaria, os arvoredos, subiam do outro lado
empoalhados, e a névoa que se erguera pouco a pouco, era já na
colina ao luaceiro uma via-láctea nova, avoejante, salpicada de luzes,
muitas luzes, como se Deus atirasse com amor, às mãos-cheias de estrêlas
sôbre a terra. Toda a mole granítica da Sé, galvanisada a lua, se
animara: corria luar nas veias dessas pedras, morenas do sol de tantos
séculos, e tôda a catedral se eterizava como se as gárgulas aladas das
cimalhas acordassem p'ra tentar um voo último. A casaria mesmo, estava
absorta. Que lindo, meu Deus, como era lindo! Elfos de lua, gnomos,
rondas fluidas, andavam no ar com o pólen dos jardins, e as rosas de
toucar por sôbre o muro, fechando todo o quintal em trepadeiras, tinham
nuances de síncope, esmaiadas. A paisagem era um sonho deslumbrado, numa
assunção p'ra Deus, erguendo os caules, e os troncos, as torres das
igrejas, e os olhos das janelas: de mãos postas. Deus fundira-se em lua,
andava esparso, como um filtro de sonho, transcendente, propiciando,
amando, perdoando.

Bem certo: o seu filhinho sararia. E nessa maré-cheia de luar, no
encantamento sortílego da noite, a esperança subia a aluciná-la
despertando o sonho místico de outrora. Aquella figurinha não mentia: os
seus olhos de mago eram proféticos. As suas mãos tocando adivinhavam,
como naquela noite, há já três meses, em que uniu, sob a bênção dos seus
olhos, as mãos do tio Eduardo e da tia Olívia, no silêncio que em roda
se fizera. Assim os dois souberam que se amavam, e ficaram a olhar o
pequenino como numa liturgia nupcial... E não tinha sete anos ainda
então! Mesmo a sua conversa perturbava, com inflexões de médium,
reticentes, em que palavras de sempre, as mais comuns, se engastavam em
timbres de mistério. Nascera para amar, o seu filhinho. E tudo, a sua
voz de concha meiga, a sua palidez estiolada, os seus olhos de
oráculo--criança, diziam bem um ser predestinado, um guiador augusto de
destinos, em cuja atmosfera de carícia muita dor havia de acalmar-se,
como um perfume de rosa, a certas horas, nos beija com uma bôca de
perdão.

Toda a vida do seu filho ia passando. Descaíam-lhe as pálpebras, ao peso
das quimeras debruçadas. E de repente, estremeceu gelada. Sentiu o luar
nas mãos, subiu-lhe aos seios... Se a beleza da noite, transparente,
êste aquário em que a lua abria as veias e a vida da terra ia boiando
num abandono de ninfeia aberta, fôsse afinal uma cilada d'_Ela_, um
disfarce da Morte p'ra roubar-lho!?... Meu Deus, meu Deus! Era possível
que ela viesse assim, essa maldita, na feeria argêntea dessa noite, com
a fouce escondida em musselinas, silenciário carrasco sem memória,
correndo em passos de êxtase e de opala, e matando com um hálito de
gelo, num aflorar de plumas hesitantes junto do qual um beijo era
grosseiro?... Um instante o terror alucinou-a. Não deixaria a lua entrar
na alcova! Ia fechar as portadas, e no escuro, colando o corpo contra o
seu filhinho, estaria mais segura, a defendê-lo. Num sobressalto, foi
até junto dêle, ficou queda. Que imensa paz nessa carinha meiga!
Pôs-lhe a polpa dos dedos sôbre a testa. Estava muito suado como sempre.
Mas a sua respiração era tão calma, e na concha das pálpebras descidas
havia uma doçura tão profunda, que se sentia bem que o seu anjinho
estava a sonhar com as fadas de algum conto, onde, como êle às vezes lhe
contava, a boa fada tinha a cara dela, e olhava e beijava como ela. Tudo
corria bem. P'ra que assustar-se? Os seus nervos, afinal, só os seus
nervos! E ao voltar-se de novo para a noite, teve remorsos de ter medo
dela, de ter desconfiado loucamente que êsse luar de perdão espargelado
fôsse um scenário infame de traição, contra aquela flôr--a pobresinha!
que era seu filho e Deus ia salvar.

Voltou p'ra junto da vidraça, ainda trémula, a sossegar nesse esplendor
silente. O luar avançava sempre e sempre. Já lhe doirava agora os olhos
razos, o cabelo, a testa, o corpo todo. E com uma idea súbita rezou. Não
podia dizer a quem rezava, se rezava a Deus ou ao luar... Mas Deus
era o luar, era o luar... E agora estava certa, estava certa de que êle
vinha p'ra curar o seu filhinho, e envolvê-lo todo p'ra sará-lo como um
beijo de Deus a essa criança.

Pôs-se em bicos de pés o mais que pôde, e com um gesto feliz,
misterioso, corria os cortinados de mansinho, p'ra que êle chegasse mais
depressa junto ao leito, a sorrir e a chorar, tôda contente. Êle vinha,
êle entrava sempre e sempre. Estendia-lhe as mãos como a chamál-o, as
suas mãos de mãe, de veias altas, que um dilúvio de amor intumescera. Já
despertava os móveis, seus amigos, a que ela queria como a confidentes.
E doida de feliz, quási riu alto ao ver-se no espelho enluarado.
Dizia-lhe baixinho: «entra, entra...» Já a cadeira de braços estava
empoada e a trama florida do tapete ressuscitava em gamas sonolentas.
Se até vitalizava as coisas mortas! Era Deus, era Deus êste luar... E
que sossêgo agora, que sossêgo!... Até a bica do tanque se calara. Havia
uma atmosfera de milagre, o seu sonho de mística era certo. Os seus
pressentimentos não mentiram. Era um destino sagrado, o pequenino. Por
isso Deus descera no luar: era êle, era êle, estava ali... Isto era bem
verdade, era a verdade. Mas então o seu filho estava salvo! E desatou a
rir perdidamente, num timbre de histeria muito sêco.

De repente lembrou-se: o luar era Deus: não devia pisál-o, era um
pecado... Fugiu então p'rà zona ainda escura, olhou o pequenino
adormecido. Pareceu-lhe que sorria extasiado. Sentiu uma alegria
semi-louca, um excesso de esperança a sufocál-a. Por fim ajoelhou-se
junto ao leito, chamando-o com as mãos, lavada em lágrimas; mas rindo
sempre, sempre, a segredar-lhe: «Entra, entra, entra...» Êle vinha, êle
vinha, muito fluido, de cada vez mais branco, mais divino. Debruçou-se
então, beijou-lhe a orla. Ergueu-se a radiar, transfigurada, com os
olhos histéricos mais vítreos e um riso em aro, descobrindo os dentes,
numa beatitude arripiada. Foi esperar o luar do outro lado, as mãos
nas grades da cama, à cabeceira. Êle dormia sempre, o pequenino, uma mão
escondida no pescoço, a outra sôbre a dobra do lençol. Curvou-se para
ver onde o luar vinha. Mal conteve um grito de ventura. Tocava os pés da
cama: ia subir!... «Sóbe, sóbe, sóbe» ia dizendo. O seu pobre coração
endoidecera: despedaçava-lhe o peito, de feliz. Premiu as fontes com as
mãos: «lá vem, lá vem. Bemdito seja Deus, sempre bemdito».

Havia um clarão no _couvre-pieds_ agora. Uma larga lágrima, redonda, foi
lá rolar como uma grande pérola. Nesse instante ouviu como um gemido. O
pequenido mexia-se, acordava. Levou as mãos ao peito, despertou. Mal se
viu o veludo dos seus olhos... Quis erguer a cabeça, descaíu-a. A mãe
vergou-se sôbre êle: «meu filhinho», pôs-lhe as mãos em caricia sôbre as
fontes que um suor muito frio perolava, e ia beijál-o, quando ouviu três
vezes, como um fio de voz, já muito longe: «mamã, mamã, mamã...» E
fechou p'ra sempre os seus olhos febris de grande génio triste
depois dessa palavra suprema que era tôda a sua fé.

O luar chegara emfim à cabeceira!

Só quando êle esfriou sob os seus beijos, só quando viu os braços que
lhe erguera, para que Deus o visse de mãos postas, implorando-lhe vida,
o pequenino!--recaírem inertes sôbre a roupa, compreendeu o crime, o
crime imenso.

--Vinha no luar a Morte... no luar...

Voltou-se então num desespero último, p'ró expulsar, p'ró pisar sob os
seus pés: depois reanimaria o seu filhinho: dar-lhe-ia a beber todo o
seu sangue. Mas ficou paralítica de assombro. O luar alagara todo o
quarto: água lustral de lua, alma de lua, no chão, no ar, em tôda a
parte... O seu sangue gelava-se nas veias. Não podia lutar, era
impossível. Êle invadira a alcova, asfixiara-a. Estava tudo perdido,
tudo, tudo... Abriu os braços, hirta, inteiriçada, e caiu ao desamparo,
sem sentidos.




O HOMEM DAS FONTES

A Justino de Montalvão


O Homem das Fontes

Chama-se Harry Young o homem das fontes. Vi-o a primeira vez em Granada
no Paseo de los Tristes, ao pé de uma fonte árabe já morta. É um rapaz
alto, de um loiro muito claro, maneiras simples que revelam raça, olhos
de névoa calmos e abstractos, e uma voz estranha, monocórdia, ou p'ra
dizer melhor, uma voz de água. Nasceu em Londres. É rico. Sem família e
sem lar, vive em perpétua viagem. Encontrei-o em Roma, em
Constantinopla, em Florença, e, detalhe que me feriu intensamente,
desenhando, escrevendo ou só olhando, sempre junto a uma fonte,
concentrado, como se fôsse a caricatura fabulosa que o encantamento
de uma ninfa ali prendesse.

Harry Young chegou a obsidiar-me. Nunca porêm, pensei em ir falar-lhe,
recorrendo ao impudor tradicional que se tolera sempre aos que viajam.

Uma manhã, em Florença, tive quási a impressão de que era um louco. Cedo
ainda, seriam cinco horas da manhã, fui p'rà Piazza dela Signoria
encher-me de sadismo estesiante a olhar na Loggia o Perseu de
Benevenuto. Tem, como sabem por centenas de gravuras, uma fonte
desenhada por Vasári à sombra ameada do Palazzo Vecchio. Caía uma luz
melodiosa. Harry desenhava, um caderno de apontamentos na mão fina. Um
esbôço da fonte, era evidente.

Àquela hora só havia pombas no silêncio irreal da praça. Discretamente,
pus-me a olhar tambêm a fonte. Ao centro, o Neptuno de mármore é boçal;
há uma ronda de ninfas alongadas num bronze de _patine_ quási azul; os
cavalos marinhos saltam na água e os tritões que cercam tôda a taça
tem a alegria de quem vive na água, uma beatitude cínica e animal,
espirrando das máscaras de bronze por fossetas de riso, bocas ébrias, em
_verve_ muscular, em gestos vivos. Os dorsos luziam de água
esparrinhada, e de estátua p'ra estátua voavam pombas fazendo em roda
aquele adágio de asas que à pôpa dos navios, no mar alto, riscam os voos
curvos das gaivotas. Não podia saborear aquela paz, com um desejo único
a morder-me: ver o que Harry Young desenhava.

Êle fixava a fonte alguns instantes, e antes de transcrever o que
colhera, quedava ainda imóvel, recolhido, numa aura de emoção mais do
que estética, que me parecia absurda, incompatível com um esbôço num
álbum de viagem. Ao lado, em frente à estátua de Cosme de Médicis,
criados sonolentos iam dispondo as mesas nas _terrasses_. Já havia dois
cafés abertos onde gente apressada ia beber. Harry, que continuou
alheado ainda algum tempo, foi por fim sentar-se a uma _terrasse_, e
bebendo um copo de leite lentamenle, tinha o álbum aberto sôbre a
mesa dando os últimos retoques ao desenho.

Quem era esta criatura que só o encanto das fontes interessava, e que em
Florença, como em Granada, como em Córdova, nunca vi num museu ou numa
igreja, como se só o granito ou o mármore das fontes tivessem para os
seus olhos estesia? Que sensibilidade aberrante, que destino fadara p'rò
convívio enigmático, p'rò segrêdo embalador das fontes, êste rapaz, que
não tinha ainda trinta anos, era decerto rico, bem nascido, e nem via
mulheres nem paisagens, absorto neste claro misticismo?

Sentei-me numa mesa perto dêle e pude ver à vontade o seu desenho. Nem
um traço da fonte nessa página onde bem claro, escrito a grandes letras,
sob um desenho singular de mulher nua, eu li: _Fonte Adamanti, em
Florença._ O quê?! A fonte concebida por Vasári era p'ra Harry Young
aquele corpo?... E buscando a relação possível com essa fonte mítica e
ingénua, onde em torno a um Neptuno gigantesco farandolam ninfas e
tritões, ou fôsse sugestão da simpatia que desde que vira Harry eu
senti, ou porque de facto ela fôsse um claro simbolo, pareceu-me que
essa forma musical, êsse corpo de oceanide surprêsa esperando o tritão
que a possuiria, era a síntese poética flagrante da fonte que Vasári
imaginou. Corria o risco de me tornar suspeito na ânsia de ver melhor,
de analisar. Harry ergueu-se. Vi-o seguir pela galeria degli Uffizii e
desaparecer ao fundo, lentamente, p'ra êsse scenario onde se evoca
Dante, feito de lindas pontes habitadas, da escultura nobre das colinas
e das águas do Arno romanescas.

Depois voltei p'ra Roma, onde encontrara Harry meses antes.

Muitas vezes me lembrava dêle, eu que tambêm adoro as fontes, com uma
simpatia persistente, cúmplice. Por êsse tempo ia eu às noites degustar
o rascante trágico da solidão na Piazza del Popolo, estirado no largo
rebordo de alabastro da fonte, fronteira ao Pincio, impregnando-me
dessa alma sem memória, dessa crónica augusta de silêncio, que é em Roma
a atmosfera de magia das praças sem ninguêm, com vozes de água. Ficava
assim horas numa tristeza quási sensual, com uma espécie de delírio de
grandezas que me permitia dialogar com Roma, calmar a minha incerteza de
falhado na beleza sobrenatural da grande morta, e fundir com o dela o
meu destino como o de um herói num poema antigo.

P'ra sentir esta luxúria psiquica é preciso ter vivido muito ou ter a
velhice precoce dos artistas, que em plena força e plena mocidade,
agarrando pelos cabelos a alegria, entristecem ao beijar-lhe os olhos.
Era aquela em Roma _a minha hora mais silenciosa_.

Ao centro da praça os quatro leões golfavam água, guardando o obelisco
egípcio numa vigília de esfinges, sempiterna. Em Roma, à noite, vivem-se
horas de convento. É a cidade suprema p'ra viver com um sonho ou com uma
idea, velada por formas milenárias que recebem exames de
consciência. Notei um vulto esguio, à quarta ou quinta noite, sentado
aos pés do obelisco, num degrau. Estava na sombra e, nem eu sei porquê,
pensei em Harry. Dentro em pouco, na embriaguez dessa auto-sugestão, nem
já admitia dúvidas: era Harry, era o _homem das fontes_ que ali estava.
E como uma raiz fende um granito, brotou da minha solidão de quatro
meses, viajando sem sofrer um só convívio, um desejo furioso de falar-lhe.

O lirismo imemorial dêsse silêncio levava-me p'ra aquela criatura, que
uma espécie de loucura poética instalara de vez no meu espírito, como
p'ra um ser afim, um quási irmão.

Pareceu-me que êle mesmo se movera, olhara na minha direcção, como
esperando. E nessa hipertensão de nervos que dá aos imaginativos o
silêncio, o convívio calado e fascinante com as criaturas brancas dos
museus, o meu desejo de falar com Harry atingiu a plenitude,
exasperou-se. Levantei-me. Sem me atrever a caminhar p'ra êle,
fui-me timidamente aproximando: dei a volta ao obelisco devagar e parei
com ar distraído junto de Harry, como se olhasse um dos leões golfando
água. Fiquei assim nervosamente alguns segundos.

Quando por fim o olhei, vi nessa máscara glabra de tritão um desejo de
me falar igual ao meu. Não posso repetir o que lhe disse, as primeiras
palavras que trocámos. Aludimos aos nossos múltiplos encontros, em
Espanha, na Itália, na Turquia, por uma coincidência bem estranha,
sempre junto de fontes...

Ninguém passava. Ouvia-se o vento a arrastar no Pincio fôlhas sêcas.
Lembrei-lhe a manhã em Florença, na Piazza dela Signoria, o desenho da
fonte de Vasári que eu vira na _terrasse_ por trás dêle. Harry calava-se
surpreendido. Perguntei-lhe se viajava como artista, p'ra pintar.

--Não sou pintor. Gosto muito das fontes, perdidamente. São o grande
interesse da minha vida...

Disse-me então o seu amor às fontes, baixando um pouco a voz, quàsi em
segrêdo.

Era órfão. Nunca quis conviver com os seus parentes, onde, por razões
que depois soube, só encontrou um acolhimento frio, como se fôsse um
estranho, sem ternura.

Tinha uns nervos doentios que o isolavam. Dos seus tempos de colégio não
guardava saudades mas só ódios, à grosseria vulgar dos camaradas, à
promiscuidade forçada e torturante p'ra uma sensibilidade como a sua.
Logo que chegou à maioridade, rico e só, foi visitar nos arredores de
Londres o castelo em que seus pais viveram. Correu o parque, as salas,
as estufas. Viu ainda o seu berço, os seus brinquedos, onde um pó sem
saudade ia caindo, como sôbre coisas velhas num museu.

Passou no quarto de sua mãe algumas horas... Sentiu uma tristeza imensa
em que tudo lhe parecia hostil: os móveis, o ar, um cheiro a morte, até
os olhos fitos dos retratos... O seu primeiro desejo de homem livre fôra
essa visita com que tanta vez sonhara, e saía de lá desamparado, com
uma espécie de desespêro inerte que tôda a casa lhe contagiara: a
velhice das coisas sem beleza onde viveu alguêm que nos foi querido e
que perdem com a côr tôda a memória. Esses muros sem alma
angustiavam-no. Já atravessava o parque p'ra sair quando ouviu a
chamá-lo uma voz de agua. Era ali perto e pareceu-lhe bem distante,
vinda da sua infância já tão longe. Emfim alguêm amigo, acolhedor! Foi
p'ra ela como iria p'ra sua mãe ressuscitada, e ficou a ouvi-la até à
noite. Abrira-a o jardineiro emquanto êle percorria as salas. Harry
contou-me:

--Tive a visão de um lar naquele instante. Aquela pobre fonte sem beleza
consolou-me como uma mãe, beijou-me os olhos.

Acarinhou-me como a irmã... que nunca tive, como a noiva que decerto não
terei...

A sua água encheu-me de saudades. E ao pensar nas salas que deixara,
tudo me comoveu, ali, a ouvi-la: os olhos dos retratos já me olhavam...
os tapetes, os móveis, as paredes, tinham linguagem agora:
compreendiam-me. As janelas á névoa, eram olhos tão rasos como os
meus. E como poisavam pássaros na pedra, eu mesmo fui buscar pão p'ra
lhes dar, espalhei muitas migalhas pela fonte... Senti a vida tôda no
meu peito. Vem dessa hora o meu amor às fontes.

Harry erguera-se. Seguíamos pelo _Corso_ lentamente. Pedi-lhe então que
me mostrasse os seus desenhos, os símbolos de fontes que creara.

--Só se quiser vir comigo ao meu hotel.

Já tenho as malas feitas p'ra partir. Vou p'ra Veneza. Veneza é um
hospital de águas... Faz-me triste.



O quarto de Harry no hotel de Londres, Piazza d'Espagnia, tinha entre
duas janelas um piano. Estavam abertas à noite, que em Roma parece mais
arqueada, como p'ra receber melhor as confidências. A torre della
Trinitá del Monte deu onze horas. Naquela paz não éramos só dois, porque
subia da praça, propiciando, a voz da fonte de Bernini, _la
Borcáccia_, a escoar-se sem jactos, brandamente. Harry acendeu as
serpentinas sôbre a mesa. Vi então dois álbuns grandes de viagem, e
alguns pequenos mais esguios.

Começámos a folhear num dos primeiros a imaginosa notação das fontes
árabes: de Córdova, de Granada _la vieja_, a terra andaluza de
_mors-amor_. A fonte morta do Paseo de los Tristes, onde pela primeira
vez eu vira Harry, era um cadáver de almeia; e havia ainda outra de
Granada, que eu toquei no jardim de Lindaraja, onde a princesa agarena
vive ainda com uma côrte calada de ciprestes...

O desenho de Harry dava-me dela uma visão patética. Evocava-a nova,
musical, nesse jardim interior da Alhambra--jaula feérica da luxúria
árabe, onde os corpos morenos das almeias elanguesciam nos mármores dos
pátios, e nas salas de jóias lapidadas dormiam com os perfumes dos
jardins as grandes séstas tórridas, de cópula...

Desenhára o mirador de Lindaraja, com as suas gelosias marchetadas
que ela entreabria um pouco, debruçando-se, como p'ra ouvir melhor a voz
da fonte. E a fonte falava de desejo, porque ela tinha nos olhos, nos
cabelos, na bôca a entumescer, nas linhas sôfregas, a expressão de uma
corola ao cair do pólen... Dos desenhos que vi das fontes turcas, um
entre todos me maravilhou: a do sultão Ahmed, em Stambul, no coração da
praça do Serralho. É um lindo harém de grades redoiradas, arabescado de
oiro e lápis-lazuli, de que a água é sultana única.

Harry representara Schehèrezade, a noveleira das _Mil noites e uma
noite_. Essa era bem um símbolo de fonte, que durante _mil noites e uma
noite_, a contar histórias sôbre histórias, adormeceu o califa que a
matava se a sua voz lhe não fechasse os olhos... Foi um destino de fonte
Schehèrezade.

Havia fontes de parques e de claustros: a primeira era uma _Belle au
bois dormant_ que um pavão heráldico velava; e entre as imagens místicas
que vi, apenas lembro uma carmelitana, lendo sob uma ogiva, côr de
cera, decerto Santa Theresa, _Las moradas_... A última, porém, a mais
estranha, de não sei que vila romana ao abandono, era uma grande esfinge
tumular com asas mortuárias de falena. Recordo ainda páginas isoladas: a
fonte dos cavalos marinhos da vila Borghése era um Pégaso de crinas
alagadas, uma cabeça de cavalo grego, dêsses que nos versos de Homero
viviam irmãmente com os heróis. E não sei que fonte mitológica--uma
estátua de Juno, sereníssima, a cabeça nimbada de andorinhas.

O outro álbum era de esboços--desenhos e _maquettes_,--tôda uma
arquitectura fragmentária p'ra um palácio quimérico da água, num poético
parque, inverosímil como o de Poë no _Domínio de Arnheim_.

A maior parte dos desenhos eram vagos, dizendo a embriogenia dêsse
templo que Harry erguia à Água Padroeira, com beatitudes de arquitecto
místico, em linhas-versículos de sonho.

Perguntei-lhe se tencionava construi-lo. Harry sorriu.

--Construi-lo e habitá-lo... Com _Miss Fountain_... se a encontrar um dia.

O desenho mais minucioso era a fachada, feita de duas arquiteturas
sobrepostas: uma estável, de mármores rosados; outra móvel, música,
espumante, de milhares de tranças de água de essas fontes, cavadas em
motivos decorais no sonoro frontão religioso que viveria um dia tão
beijado como as asas do mar no temporal.

É impossível descrever-lhe as linhas, como é impossível descrever a
Alhambra. A fachada de mármore era subsidiária da segunda, a real, a
litúrgica, a _aquática_; era o seu esqueleto quási oculto, e por
milhares de ranhuras invisíveis, de declives matematicamente calculados,
por bôcas inflectindo em curvas gráceis, por biliões de crivos capilares
donde cairiam chorões de prata fluida, destinada a dar vazão a essa
segunda, arquitectura sinfónica, hino vivo, que o meu tritão exilado ia
criar.

O mármore apparecia, sob a trama arquitectural da água golfante, como
através de rendas de Burano um colo ou uma nuca de mulher, e intumescia
às vezes como um seio no bôjo de uma ânfora sveltíssima ou na escultura
de uma planta de água.

Oh! que feliz a carne dêsse mármore, escrava de uma fluida arquitectura,
cantada e beijada todo o sempre! Jactos cruzavam-se como na argentaria
solar de uma panóplia, caíam numa taça canelada, donde escorriam
molemente, em lágrimas, p'ra renascer vivendo noutros sulcos, donde
espirravam como flores se esfolham, em graças _platerescas_, em sorrisos.

Contra o sol, as janelas, os balcões, tinham estores de longos fios de
água, tamisando a luz pr'ò interior em irisações fantásticas de nave.
Mas, como Harry me fêz logo notar, o seu projecto, perfeitamente
realizável, era um _ensaio de arquitetura musical_. A euritmia dessas
linhas de água, tantas volutas líquidas que eu via no amoroso desenho
daquele álbum, não tinham só um fim arquitetónico, antes eram a
consequência imediata, o instrumento de beleza necessário, pr'á ópera da
Água revelada por um arquitecto-músico de génio. Mostrou-me então a
_partitura_ do palácio. Sentou-se ao piano e tocou-me alguns motivos.

Como tôda a gente no hotel dormia, executava em surdina, emocionado.
Primeiro o _leit-motiv_ da entrada, cantado no peristilo por três
fontes, com três taças de prata cada uma. Era a ogiva elegantíssima da
entrada (duas curvas angulares de água jorrante em conchas de alabastro
quási ocultas) que acompanhava as três vozes argentinas. Harry
chamava-lhe: _o motivo de saudação_.

Depois tocou-me a sinfonia da fachada. E foi então que ouvi a alma
transcendente dêsse tristão-poeta desterrado! E Harry dizia, crispando
as mãos numa impotência de nervoso, que era impossível mimar sôbre um
piano a fluidez dionisíaca das frases. Os _graves_ e os _agudos_
conseguiam-se por diferenças de calibres, indo de uma tenuidade
capilar até aos cilindros de maior diâmetro, às bocas, divertículos,
ampolas, com recôncavos e inflexões previstas, num duplo intuito
ornamental e acústico.

A gama das resonâncias era imensa, indo dos acordes dos mármores e
alabastros até aos timbres dos metais mais ricos, dos bronzes, pratas
foscas, claros oiros, com espessuras várias nuançando, imbutidos nos
mármores da fachada, enriquecida assim com côres de jóia e os tons
sobrenaturais de um órgão de água. Oh! essa sinfonia! Reouvi-la e, meu
Deus! prazer supremo, ouvi-la e vê-la, se um dia o templo da Água fôsse
vida!

Três melodias _fugadas_ corriam a fachada sem cessar. A que vibrava ao
centro tinha timbres mais finos e mais altos, os jactos erguiam-se mais,
implorativos, antes de recaírem em vertigem, nos dois focos de
resonância decoral. Era uma prece indefinida e dava ao templo como uma
aspiração de agulhas góticas, a expressão decantada, musical, que teem
as mãos erguidas das Ogivas. Harry chamava-lhe: _a ânsia de ser nuvem_.

Os outros dois, visualmente, fundiam-se em sinuosidades expressivas, em
caprichos de linhas reticentes, e fiando a mesma clara rêde, eram,
musicalmente, bem diversos. Harry chamava-lhes: _a alegria de morrer
sorrindo: a saudade dos rios, das nascentes_. E os três deliam-se numa
polifonia liquescente em que a _ânsia de ser nuvem_ tinha o patético de
umas mãos erguidas; _a alegria de morrer sorrindo_ lembrava a vida e
morte das espumas; e _a saudade dos rios, das nascentes_, nas conchas e
recôncavos de mármore revestidos dos bronzes mais espessos, dizia em
acordes quasi cavos o desespero da água outrora livre, domada e
orquestrada sabiamente: a nostalgia do coração das rochas vivas, dos
açudes, dos campos cultivados que ela regava a chalrar nos sulcos largos.

Nos três lados restantes, a decoração musical era mais simples: baladas
de ecos sem memória instilando um esquecimento de magia. Inútil
descrevê-las: impossível. Ante o imprevisto desta arquitectura, Harry
compreendendo o meu espanto, mostrou-me, em cadernos atulhados, a
notação musical minuciosa, em que as vozes de milhares de fontes tinham
sido por êle copiadas, e outras de ensaios que realizara até poder
compor a _partitura_ dêsse palácio feérico da Água.

O seu esfôrço agora, a sua obsessão de cada instante, era, estudando a
hidráulica e a acústica, chegar a harmonizar a arquitetura, que lhe
parecia pouco bela ainda no mármore, com a beleza musical e plástica da
arquitetura líquida exterior. Trabalhava com febre, dia e noite.

Mostrou-me ainda detalhes interiores. A _Galeria da Meditação_ tinha
vitrais historiando os mitos da Água: ao largo da laguna veneziana, o
casamento do Doge com o Adriático na galera de sonho o _Bucentauro_;
Ophélia louca, o cabelo como um chorão de fios de oiro, apartando com
mãos de prata fosca os canaviais orando à beira-rio: sereias
penteando-se ao luar com medusas nos seios gotejantes...

No chão de pórfiro, um tapete esmaecido de reflexos. E nas paredes nuas,
como se pendurasse as telas de algum mestre, Harry cavara duas fontes
pequeninas, num tingling lacrimal, beijante, clepsidras a viver fora do
tempo... Ali iria meditar e ler.

Era evidente porém que o seu palácio só podia existir no isolamento.

Disse-me então como teria de murá-lo, defendendo-o do vento,
concentrando-o. Alêm das grades balizando o parque, cinco muros de
árvores concêntricas, por ordem de alturas decrescente: a grisalha
colossal dos eucaliptos, o veludo dos cedros, choupos góticos, ciprestes
tutelares, e em vagas meigas, as cabeleiras sôltas dos chorões... E
seria num vale agasalhado.

Harry empalidecia de emoção. Detestava viajar, o convívio forçado dos
expressos, a promiscuidade dos hotéis, dos restaurantes. Só por as
fontes se fizera vagabundo, para as ver, pr'às ouvir assimilando-as, e
poder executar um dia o seu palácio--síntese de todas.

O entusiasmo de Harry contagiou-me. É possível que amanhã não seja
assim, que dêste plano de arquitectura musical que antevejo e anteoiço
emocionado, no contágio febril que me vem de Harry, me fique a idea de
um projecto fruste, de uma alucinação de hiperacústico, com uma forma de
loucura poética só como documento, interessante.

O templo da Água é para a vida dêste sensitivo, sob uma forma íntima e
discreta, a minúscula visão quási infantil, a creancice lírica encantada
em que êste poeta semi-louco e ingénuo tenta exprimir em linguagem de
arte, com a arquitectura e a música por meios, tudo quanto na terra
deslumbrou a sua alma de tritão éxul.

Se amanhã analisar êste projecto longe do seu contacto perturbante,
talvez eu reconheça a inanidade de todo o seu amorosíssimo trabalho, mas
sempre com emoção hei-de admirá-lo, porque teve uma paixão e se lhe
entrega, sem nenhuma restricção, de todo o corpo, e arde nessa
febre dia a dia, abandonando tudo, belo e rico, por uma vida nómade, de
acaso, que o fará morrer ao desamparo no hotel dálguma terra onde haja
fontes, ainda fiel a essa visão de sempre, sorrindo ao seu palácio em
cristais múrmuros...

O palácio da Água!... «Construi-lo e habitá-lo com _miss Fountain_ se a
encontrar um dia...» Eu cuido ver essa beleza de água tal como vive nas
pupilas de Harry. Tem uma voz de água, os olhos de água, uma alma de
água, clara, imperturbada, e um desejo, um sensualismo de água,
envolvente, fluido, esquecedor, como um nirvana de água inexgotável.

Sem o fermento de nevrose que o desvaira, com faculdades criadoras
coordenadas, Harry seria talvez um grande músico, um encantador, um
mystico dos sons, como fragmentariamente o revelaram as estranhas
composições que agora ouvi. Ou, quem sabe! um arquitecto novo, musical
pela assunção das linhas, sem recorrer, vesánico, quimérico, às
impossíveis sinfonias da água onde os seus olhos pálidos, de névoa,
cuidaram descobrir todo o destino.

Ao ouvir-lhe a voz meíga, monocórdia, já começo aqui mesmo a duvidar, e
penso no que seria o desespero, a irremissível catástrofe dêste homem,
sem família, sem noiva, sem amigos, condenado a um absoluto isolamento
por uma sensibilidade hiperaguda, se viesse um dia a convencer-se de que
era uma loucura essa chimera onde fechou o futuro a sete chaves.

É certo, é natural que isso suceda. Que sabe êle de hidráulica, de
acústica? Nem sequer tem uma educação profissional, e era forçoso, p'ra
admitir como exequível êsse plano, que êle fôsse um arquitecto
extraordinário, um músico revelador de novos meios e um engenheiro
único, de génio.

E assim mesmo, pois que o drama musical de Wagner é, na sua beleza de
vertigem, a mais victoriosa das derrotas, condenando pela voz dêsse
homem-deus tentativas quaisquer de fusão de artes, não era mais que
certa, irrevocável, a falência total do sonho de Harry?

Êsse supremo aro de unidade, fervorosa obsessão de todo o artista, é um
prodígio _interior_, não se exterioriza, e só com uma genialidade
adivinhante, se realiza por um meio único (literatura, música, pintura)
a obra-prima contendo em potencial, englobando em sugestões latentes,
domínios que pareciam de outras artes.

Se ao menos pudesse conviver com êle e canalizar tão bellas qualidades
p'ra qualquer coisa de viável, de fecundo! Queria evitar que a sua vida
se partisse como uma lufada de vento quebraria aquela arquitectura em
pratas de água, como um sistema arterial de sonho. Mas é esta a primeira
noite que falamos e é decerto a última tambêm.

E depois, como poderia desviá-lo, por que paixão substituir esta paixão,
êste culto das fontes religioso?...

Lembrei-me então do mar, todo o meu culto. E voltando à sinfonia da
fachada, comecei a dizer que um dos motivos--_a alegria de morrer
sorrindo_--me fizera, ali na paz de Roma, uma saudade imensa do meu
mar. Harry fixou-me. Parecia constrangido.

--Gosta muito do mar, não é verdade?

Harry calava-se, interdito. Senti então entrar pelas janelas, como uma
onda de silêncio que arrolasse, a paz de Roma prenhe de memórias... A
fonte de Bernini ouviu-se mais: dir-se-hia uma voz de ama milenária a
acalentar fantasmas com terror...

Ao ver Harry perplexo, hesitante, arrependia-me da pergunta que lhe fiz,
mas elle viu com certeza nos meus olhos a minha curiosidade, a minha
ância. A sôbre-excitação daquele instante, até o facto de eu ser quási
um estranho, a quem se faz mais facilmente confidências do que mesmo a
um amigo ou a um conhecido, forçaram-no a falar, violentaram-no.

Respondeu-me com agitação de um modo brusco:

--O mar?!... Não posso suportá-lo, odeio-o, porque foi êle que perdeu os
meus... Compreendo-lhe a beleza, que é divina, mas não o posso ver,
atterra-me, detesto-o...

Ainda hesitou. Depois, sem interrupção, _vivendo_ as frases:

--Meu pai, que era um homem do povo, viveu doze anos com _êle_ e
adorava-o. Era piloto. Viajava p'rò Norte quási sempre. Filho de
marinheiros, tinha nas veias o amor do mar. Foi de volta da Islândia, a
bordo do _Baltic_, que pela primeira vez viu minha mãe. Teria ela então
dezassete anos.

Meu pai, ruivo e forte, tinha uma beleza viril, impressionante. Ela, já
então órfã, viajava com meu tio, um velho estranho, que só as viagens
por mar interessavam. Era bela (tirou uma fotografia da carteira)
imensamente bela, não é verdade?

Tinha uma índole exaltada, romanesca, que o hábito de realizar todos os
caprichos levou a um despotismo singular, de perversão nervosa, de
histeria, e ao menor obstaculo, com acessos de chôro e grandes febres.
Meu tio era o tutor, e longe de a reprimir, estimulava-a mais,
lisonjeando-a, com uma adoração de spleenético alcoólico por aquela
andorinha semi-louca. Mesmo a bordo, quando começou a amar meu pai, ela
ia fazer-lhe confidências, contar-lhe os sobresaltos dos seus nervos, e
êle ouvia-a com uma indulgência de ternura e talvez mesmo com uma ponta
de sadismo. Mas não quero aborrecê-lo com detalhes.

Contra a vontade de todos, apenas ajudados por meu tio, cujo spleen se
comprazia neste drama, os dois casaram, depois de uma côrte romanesca
que alucinara de paixão meu pai. Minha mãe teve uma exigência única, mas
que era para êle a mais cruel: _abandonar a vida de bordo para sempre_.
Estava tão doido, que a aceitou sem compreender, pálido como se lhe
arrancassem tôda a alma...

Na véspera do casamento, foi a bordo do _Baltic_ despedir-se. Abraçou os
companheiros um a um, e andou horas a bordo, como um náufrago, como um
cão sem dono, os olhos rasos, a dizer adeus ao seu navio. Toda essa
noite passou-a a errar no pôrto. Ninguém diria que aquele vagabundo
tinha uma noiva aristocrata, bela e rica, e ia casar já na manhã seguinte.

A caminho da igreja, sentia uma alegria lúgubre, uma felicidade
exasperada, como um travo de remorso do mar longe...

Depois veio a vertigem. Durante dois anos, esqueceu o mar, esqueceu tudo
nos olhos verdes de minha mãe como num álcool. Viviam um do outro, sem
convívio, num castelo dos arredores de Londres, que meu tio, ainda em
vida, lhes doou. Havia no amor dêle a minha mãe devoções de plebeu por
um ser de raça, e o sensualismo de um marinheiro, moço e forte, com
longos períodos de abstinência no mar largo, por um corpo de pétala,
serpentino, enlaçando com braços e perfumes...

No amor de minha mãe havia bastante de perversão histérica. Sabia como
êle evitava falar do mar com uma espécie de pudor religioso. Um dia
mesmo êle pediu-lhe de joelhos que não lhe lembrasse a promessa que
fizera, que não falasse do mar diante dêle. E a cada instante, em
horas íntimas, quando passeavam no parque, nas estufas, nas grandes
noites de invernia e chuva, ela aludia em frases reticentes onde adejava
o espectro do mar longe. Tinha a volúpia de o martirizar. E quando o via
bem amarfanhado, caído como uma coisa ao desamparo, p'ra cima de um
estofo, a mascar raivas, erguia-se mais linda que um _tanagra_ e ia
beijar-lhe os olhos, dar-lhe a bôca, endoidecê-lo de amor e de luxúria.

E viviam assim meses e meses. Nem uma visita. Ninguêm. Raro saíam. A
vida mundana não interessava minha mãe. Tinha-a vivido febrilmente e
esgotou-a com uma precocidade de nervosa, que tudo interessa e aborrece
em pouco tempo. Depois, ainda por orgulho. Tendo feito um casamento
desigual, não queria humilhar meu pai nem humilhar-se.

Havia nesta vida de desejo de dois seres tão diferentes e isolados
qualquer coisa de feroz, de criminoso. Dois instintos presos por amor,
na mesma jaula de oiro, dia e noite... Enervavam-se um ao outro.
Enlouqueciam-se.

Tenho em Londres uma fotografia de minha mãe por êsse tempo. Emagrecera.
Lembrava um ser patético de Shakespeare. O seu temperamento de histérica
requintava, em perversões subtis, quási em loucuras. Torturava meu pai
continuamente, dando-lhe a visão do mar a cada instante, por sugestões
que iam atormentá-lo, evitando contudo falar dêle, com uma hipocrisia
que era mais cruel do que seria uma alusão bem clara. Nas salas havia
paisagens de mar por tôda a parte... E por cima das mesas, dos sofás,
como uma obsessão de crime, sempre e sempre, livros, romances e
gravuras, com narrações de mar, sempre com o mar...

Até as músicas que tocava ao piano. Dizia-lhe: anda «ouvir como isto é
lindo!» E êle encostado ao piano, junto dela, via os _Lieder_ de
Schubert já abertos numa página marcada. E lia: _O mar!..._

Depois que eu nasci, a nevrose de minha mãe, longe de se calmar na
maternidade, exasperou-se. Os dias para os dois eram enormes. Passavam
horas junto do meu berço, inventando-me encantos, a adorar-me. E como me
dizia a velha Jenny, por quem eu soube tudo o que lhe conto, dir-se-ia,
naquela solidão envenenada, que cada vez se desejavam mais, se bebiam
com olhos mais sedentos, com um amor que era uma espécie de ódio.

Tudo isto passava-se sem gestos, sem levantarem a voz uma só vez.

A virilidade impulsiva de meu pae caía dominada ao ouvir-lhe o andar. O
ruge-ruge dos vestidos dela fazia-lhe um terror voluptuoso. Estirava-se
aos pés dela muito tempo a beijar-lhe os sapatos, marasmado...

Os criados achavam-nos estranhos, cada vez mais pálidos, mais magros.
Eles mesmos pressentiam--no silêncio augural daquela casa onde os viam
enlaçados, de olhos loucos--qualquer coisa de trágico, de mau...

Meu pai, que a bordo fôra sempre sóbrio, bebia agora imenso,
embebedava-se. Depois, com a idea do mar cravada nele, ia esmoer essa
obsessão, calado. Viam-no às vezes falar só, baixinho, escondido nas
salas afastadas, dizendo por entre dentes, sufocado, coisas de bordo,
vozes de comando, com as mãos em porta-voz, olhando o tecto, como se
fitasse os mastros, o velame...

Se alguêm o via, disfarçava, com uma expressão de terror quási idiota.
Ia endoidecendo pouco a pouco.

Minha mãe sabia tudo, tudo. A pobre Jenny, sobressaltada, ia contar-lhe;
pedia-lhes que se distraíssem, viajassem, que fizesse um esfôrço p'rò
salvar. Ela, porêm, só tinha curiosidade p'ra saber se meu pai bebia
muito, se falava só, o que dizia...

Ás vezes vinham cartas dos camaradas, dos portos em que o _Baltic_
tocava, falando-lhe de bordo com saudades. Êle lia-as e relia-as muitas
vezes. Trazia-as sempre consigo, decorava-as. Mas logo que minha mãe
aparecia, mudava de figura, era já outro. O olhar babava adoração.
E se um instante se abandonava nos seus braços, pegava nela ao colo como
um doido, levava-a p'rà alcova aos tropeções, sem se importar com os
criados, com ninguêm.

Afinal minha mãe gostava disto. Era ela que o enlouquecia pouco a pouco.
Cada vez mais, sem falar dêle, a propósito das coisas mais triviais,
aludia ao mar, com pausas bruscas, em que os ouvidos dêle, alucinados,
ouviam o rumor, a voz do largo...

Evocado a todos os pretextos, por essa linda torcionária histérica,
_êle_ acabou por ser uma presença: o Espírito do Mar viveu com êles!...
Eram três agora no castelo. Passava o inverno com êles, a seu lado.
Vivia nas marinhas das paredes, nos livros e no vento, nos ruídos... E
mais e melhor: na alma dêles...

Sós, à noite, a ouvir o vento, olhavam-se... E em ambas as bôcas, bem
cerradas, cada um lia: «Ouves o mar? É _êle_...» E depois de suspensos
um instante p'rò sentirem correr-lhes a medula, afogavam-se nos
braços um do outro, com uma fúria sensual desesperada. Foi minha mãe que
provocou tudo isto, e acabou por se enredar tambêm, por acreditar como
êle, contagiada. Numa cama de amor, dois amorosos, partilham as loucuras
como os corpos...

O Espirito do Mar estava com êles. Ainda lhe não tinham pronunciado o
nome, mas calavam-se muitas vezes para ouvi-lo, conversavam sôbre _êle_
por olhares...

Uma noite de inverno--ia a fazer três anos que casaram--recebeu do Norte
um telegrama.

Era dum camarada íntimo de bordo. Toda a tripulação o abraçava;
mandavam-lhe do _Baltic_ saudades... Pareceu-lhe então que o seu navio,
o seu pano que tanta vez ferrára, vinha naquela noite de Janeiro,
dizer-lhe o ultimo adeus da vida a bordo, das grandes rotas pelos mares
de névoa, das veladas na ponte a todo o tempo, dos sonos bons depois no
seu beliche, pequenino e estreito como um berço... Rolavam-lhe as
lagrimas dos olhos.

A Jenny, que andava inquieta e os vigiava, muita vez me contou essa
noite ultima.

Chovia imenso. Ela mesma lhes serviu o chá. Meu pai, como de costume,
bebeu _gin_. Mas nessa noite foi brutal o que bebeu. Minha mãe, com uns
olhos de aura histérica, dava-lhe as mãos a beijar, encorajava-o...

Já tarde, ergueram-se. Jenny foi ajudar a despir-se minha mãe. Êle
seguiu devagar pelo corredor e abriu a janela tôda à noite negra...
Ficou assim algum tempo a olhar o vago, com a cabeça nua, à chuva e ao
vento...

Depois, bruscamente, foi pr'ò quarto. Com um tremor de alcoólico nas
mãos, foi a um armário de que nunca se servia, e começou a tirar roupas
de bordo, atiradas há três anos para ali como coisas inúteis para
sempre. Pôs-se então a vesti-las febrilmente: japona de oleado, botas
altas, na cabeça o sueste... Como a bordo. Viu-se ao espelho. E ia a
sair, quando voltou p'ra trás. Qualquer coisa lhe faltava. Procurou
no armário, procurou... Era a faca de bordo, numa bainha de coiro já
puído. Pô-la â cinta e partiu com um andar mais firme, resoluto, como se
a bordo, fôsse fazer um _quarto_ em noite má.

Outra vez seguiu pelo corredor, até ao quarto de minha mãe, que o
esperava. Sem bater, entrou: parou a olha-la. Tinha os cabelos
desfeitos, muito branca, num _robe-de-chambre_ que abriu ao vê-lo
entrar. E com o colo nu perdeu-se a rir...

«Vaes p'r'ò mar, meu amor? Deixas-me só?...»

_P'rò mar! P'rò mar!..._ Pela primeira vez há já três annos, espantado
de se ouvir, da sua voz, repetia o nome sortílego, supremo: «_P'rò
mar!_» com uma inflexão pueril, quasi idiota.

A lenha crepitava no fogão. Ouvia-se chover cada vez mais.

--«Estás vestido p'ra bordo... Estás já pronto...»

De súbito, ela viu-o demudar-se. Com uma inflexão rouca, de bêbedo,
tornou; «Está mau... está mau... Está um temporal desfeito. Como querias
tu que eu me vestisse?» Ela sentiu terror e aproximou-se. «Ouves a
chuva?» dizia êle. «Ouves a noite?... Ouves?... Ih! Ih! Que vento! Que
maldito!...» Num lindo gesto meteu-se-lhe nos braços, colando-se contra
ele, abandonando-se. O _robe-de-chambre_ descaía-lhe nos ombros. «O pano
incha, o pano incha... Ferrar pano! gritou com voz de comando: Ferrar
pano!»--Tomou-lhe o corpo nos braços ennovelado. E Jenny, que ao
ouvir-lhe a voz correra, ouviu ainda aterrada; «Não aguenta o pano!
Cortar cabos!...» Tirou a faca de bordo da cintura, prendeu a bainha nos
dentes p'rà arrancar, e cravou-lha no colo até à raiz. Era curva.
Dir-se-ia que tinha a inflexão dos seios dela.

....................................................

Harry contou-me ainda o processo, o julgamento, e como êle no tribunal
acusou o Mar... A opinião dos médicos legistas, foi que êle estava
doido irresponsável. Apesar disso, porêm, foi enforcado. A opinião
pública, os jornais, eram contra êle.

Harry estava lívido.

--Compreende agora porque odeio o mar.




SUZE

A Paulo Osório


Suze

            Oh! dolce,
    della soglia del lupanare
    mirar le vergini stelle!
    --_La meretrice di Pirgo_--GABRIELE D'ANNUNZIO.


Não posso dormir. Como há mais de oito dias não recebi carta da Suze, e
a minha absurda vaidade se recusa a crer que ela me esqueça, ponho-me a
pensar, com uma perversidade triste, que tenho escrito loucuras a um
cadáver.

Na última contava ela com uma coragem simples, como o mais fútil
incidente, que ia entrar p'rò hospital p'ra ser operada. Anunciava-me
isto, entre um projecto de vestido _gris-taupe_, que iria bem à sua
tinta de viciosa pálida, e uma chuva de detalhes sôbre a gata, a
amar com romance e com luxúria um gato magro do terceiro andar.

Se tivesse sido operada e convalescesse, já decerto me teria mandado um
telegrama.

É pois forçoso convencer-me que a minha pobre Suze--«era uma vez»...

Repito alto p'ra mim mesmo: está morta, está morta a Suze! Logo que o
disse alto, todo o meu temperamento de actor o acreditou, e em todo o
meu ser, essa auto-sugestão ressoou em dobres, agudamente, por essa
rapariga de vinte e três anos com quem vivi dois meses.

A morta (é certo, é positivo que morreu) era alta e magra.

Aqui mesmo, no meu quarto, onde certa noite ela tomou chá entre os meus
livros, a vejo atirar o chapeu de rendas caras, em que havia heráldicas
tulipas, acender com um gesto fino um dos Laferme, correr a mão na testa
com o gesto da Duse nas catastrofes supremas, e dar-me fumo e destino e
sonho. Aqui mesmo.

Naquele espelho prolongou com um traço de crayon os olhos vagos,
ali palpou as molas do divan, e no _toilette_ atou horas depois, _im
memoriam_, as fitas de sêda azul que lhe prendiam a camisa nas espaduas...

(Mas assim, não consigo dizer o que ela foi. Preciso calmar a minha
febre e começar pelo comêço).

Vi-a a primeira vez êste verão, no teatro, e logo a destaquei.

Os seus cabelos de criança escandinava, loiro cendrado e sêda palha em
que havia reflexos quási brancos, tufavam na testa sob o chapéu preto,
descaíam à esquerda, subiam à direita recortando a têmpora em ogiva;
inverosímeis como raios de um sol de vício, quimicos, absurdos... Só
depois me convenci que eram autênticos.

Os olhos eram claros, cinzento de agua em névoa; a máscara alongava-se
num focinhito sonâmbulo; nariz incorrecto, quási grosseiro; bôca grande,
acolhedora, de comissuras em pontos de interrogação; e o mento perdia-se
na nuvem de tule de um laço, esparso na gola impecavel de um
_costume tailleur_ azul.

Tinha muito da Sarah em nova: a cabeça de uma madona _quatrocento_ em
que vivesse a alma de Montmartre.

Acompanhava-a outra que mal vi, fisgado pelo estranho do seu tipo. Toda
a noite, ferozmente, a encarcerei no meu binoculo e ela, exibindo
atitudes de indiferença numa galeria intérmina, nem sequer teve o ar de
ver-me.

Aborrecia-se com complacência, olhando sem fitar, cumprindo com
resignação êsse destino de, sôbre uma platea do Pôrto, num barracão de
_Folies_-Brégeiras, esfolhar a carícia exangue e lambedora das suas mãos
de raça.

No meu grupo faziam-se hipóteses. Cocotte? Cançonetista? Talvez seja
essa que se estreia amanhã.

Todos a achavam imensamente estranha e alguma coisa feia.

Quando à saída ela passou, compondo um ar abstracto e um passo ondeante
de serpente-fantasma, excitado e burro, disse não sei que frase
escória e ouvi numa voz de sêda que range, esta coisa justa: _imbécile!_

Deixei de ir ao teatro. Achei a vida tôda tão imbecil como eu.

Até que uma manhã Just irrompe no meu quarto e preludia felicíssimo:
«Foste um doido em não aparecer». Contou então: o empresário F.
apresentára-o, e como eram duas e eu continuava incógnito, apresentou
por sua vez o conde C., que ao menos não se arranjava mal.--«A tua, a do
conde, chama-se Suzanne. A outra, a minha, é Gaby d'Anjou, é perfeita.
Não sei se reparaste: um corpo grego. Ha uns poucos de dias que isto nem
parece o Pôrto--».

E partiu num turbilhão de _chance_, dizendo apenas quási à porta, que a
Suzanne era finíssima, e se tolerava o conde é porque não via melhor, e
porque emfim, o Amieiro o não vestia mal.

Como mesmo escrevendo, estou morto por chegar ao quarto dela, direi já
que almoçamos a sós dias depois, e nem sei mesmo se comi, porque
estendia as mãos em concha aos seus pés magros, p'ròs sentir crispar-se
com luxúria ao ranger da sêda em fôlha sêca...

Foi rapido e simples. O meu amigo apresentou-me: o conde é lorpa, eu sou
fino, ela é fina e... _voilà_!

Aqui começa a feitiçaria, o encantamento em que essa serpentina bruxa me
colheu, polarizando o meu desejo p'rò seu corpo elástico e felino, como
se as suas mãos de pianista me corressem na medula, e os seus olhos de
névoa me perdessem em hipnose.

De corpo e espírito era flexivel como uma chama ao vento.

Horas e horas, com febre, com riso, com desespero, vasculho na memória,
recomponho o complexo encanto dessa rapariga que sabia de cór tôda a
_Comédia Humana_; tinha um vício pessoal, erudito, arqui-subtil;
cinicamente ingénua, ingenuamente cínica; amoral e heróica, e que
caminhava p'rò seu leito de _cocotte_ com o ar redolente de Desdemona na
_canção do salgueiro_...

Oh! A sua _canção do salgueiro_, musica e versos de Bruant, como eu a
trauteio ainda exasperado:

    Les ch' veux frisés,
    Les seins blasés,
    Les reins brisés,
    Les pieds usés.

       Pierreuses,
       Trotteuses,
    Ás marchent l'soir
    Quand il fait noir
    Sur le trottoir.

Os cabelos impossíveis, abusivos, excessivos, caíam-lhe nos ombros; a
_robe empire_ era ampla e branca, as mangas vibravam em asas de serafim
profissional... Era uma aparição de lenda rociada de agua Lubin--orvalho
caro...

Quando depois mais de perto a detalhei, achei-lhe um não sei quê de
transido, de parado, espécie de kakemono, espécie de bébé enorme,
enigmatico, aflictivo, como só um caricaturista-poeta criaria, num
instante de emoção e febre, de quimera e riso. Pobre Suze!

Era pálida, pálida, no seu roupão de noite, sem as rosas do _maquillage_
que ela tão subtilmente esmaecia. Pobre Suze!

Nenhum pintor português, desde o Grão Vasco, viu para além do real como
tu viste, nem como tu transfigurou uma mascara de gêsso, patinada a lua,
numa obra-prima irradiante.

Tu que eu agora vejo como um mármore de desgraça, arripiado, vestido à
toa, sem _maillot_ de sêda, sôbre uma mesa misérrima de _morgue_; tu que
tens já talvez no ventre aberto o esverdear levíssimo com que a Morte
agora te maquilha; tu que depois de tanto te venderes, cada vez eras
mais _tu_ e mais perfeita,--ninguêm irá junto do teu cadáver pôr-te o
colar da Ordem do Desprêzo que na vida te deu beleza e estilo.

Foste um génio incompreendido, Suze. É o único ponto de contacto que
tiveste com dezenas de idiotas que eu admiro.

Mas não é isto o que me aflige, pois sei bem que se da Morte me ouvisses
e se da Morte me falasses, mais uma vez me dirias a tua grande frase, a
frase-medalhão, a frase-refrem, que tão sinteticamente define a tua
graça, o teu _génio_, o teu vicio, o teu desdem:

--_Tu sais, ça, c'est un détail._



P'rà Suze, tudo na vida era um _detalhe_.

Ela que se deu a saborear a tantos homens, duvido bem que conhecesse um
_ensaiista_, espírito de síntese, à Carlyle, que emquanto eu nesta noite
de insomnia a recomponho, com uma saudade sem esperança, friamente
medite um grosso tomo, que deveria assim chamar-se:--_A Filosofia de
Suze_ (livro postumo).

E em sub-título, dum chic transcendente:--_ensaio sôbre a supra-mulher_.
Dir-se-ia no futuro:--_isso é um detalhe_, como outrora se
disse:--_penso, logo existo_, como hoje se diz:--_o homem é uma ponte
p'ró Sôbrehumano_.

Se Eça de Queiroz fôsse ainda vivo, eu que nunca o conheci, havia de
apresentar-lhe a Suze, e juro, juro, que a acharia bem mais subtil, bem
mais complexa e humanamente fascinante, que o seu extraordinário
figurino--Carlos Fradique, dandy e epistológrafo.

Fialho, mais feliz, pôde falar-lhe; viu-lhe gestos que valiam maximas, e
ouviu-lhe memórias e anedotas bem mais significativas que parábolas. Mas
por mais que insistentemente lho pedisse, nunca escreveu sôbre ela:
recusou-se.

Não posso eu, como quem empalha uma asa, amortalhar o génio da Suze em
frases sabias, articular-lhe em sistema as formas tipicas, erguer emfim
essa arquitectura metafísica, que ficaria na névoa das idades, como um
farol p'ra sempre...

Não, não posso. Sinto ainda correr-me o corpo todo, em ondas lentas, o
afago dos seus cabelos, dos seus dedos, que eram vivos, enervantes como
línguas...

E não é assim, a arder em desejo postumo, que eu posso lançá-la à
posteridade... De resto, Suze, que era p'ra ti a posteridade? Um
_detalhe_, um _detalhe_ apenas...

Mas quero afirmar que nessa frase--que nem sequer p'ra muitos que a
beijaram, foi mais que uma ironia sem estílo--se condensa o estoicismo,
o galbo heroico, que fez desta parisiense tão estranha na sua vida de
_cocotte_ nobilíssima, uma neta espiritual de Marco Aurelio.

Foi nobre e foi cocotte. Não estranhem.

Viver, p'ra uma mulher, na sociedade de hoje, é qúasi sempre
prostituir-se. Mesmo as que casam, e que casando amavam os maridos,
quantas vezes não sofrem sem desejo, um cio incontinente, numa
humilhação de prostitutas, até que tôda a emoção se lhes estanque e o
hábito lhes embote o corpo e o espírito?...

Depois da primeira frase, em que a sêde de amor lhes doira a vida,
quantas não reconhecem no convívio que o seu ídolo moral é um canalha, e
que o amoroso é só o macho sordido, sem delicadeza, sem
ternura--contundente, ferocíssimo, legal...

As outras, são apenas fêmeas broncas presas à canga do lar animalmente,
ou semi-loucas resignadas que um catolicismo castrador perdeu, ou
índoles lunares de amorosas esperecendo de martírio e tédio. E
consciente ou inconscientemente, todas vão afinal prostituir-se. Só a
_moeda_ diferere: nada mais.

Mas se viver, p'ra uma mulher, é quási sempre prostituir-se, não o é
menos afinal p'ra um homem.

Prostituir-se é deformar, ou anular mesmo, o que em nós há de individual
e caracterisante, pela necessidade de captar alguêm, patrão ou mestre,
rico ou superior hierarquico, e até mesmo o pobre, que nos dá a ilusão
de sermos bons e a consideração hipocrita dos outros.

Cada um de nós, ao entrar na aula ou na oficina, no escriptorio ou na
repartição, no salão ou na taberna, é postiço, é convencional, é um
_outro_; ao princípio confrangídamente, através de mil torturas; depois
inconscientemente: mecanizado, deformado, quinquilharia andante e
cérebro de lixos, contribuindo assim para êsse ideal que nos empala, e
os moralistas chamam--solidariedade humana.

Era fácil mostrar como, violentando o temperamento, esta prostituição se
repercute até nos gestos, na nossa maneira de andar e de vestir. E isto
em todas as classes, porque ninguêm é suficientemente forte p'ra se
bastar a si mesmo; todos precisam da consideração dos outros, da opinião
pública, e vão vivendo sob a garra do preconceito, que os desengonça e
deforma, que os raquitiza e anula, como os saltinbancos às crianças.

Quantos resistem íntegros ao regímen penitenciário que é a vida de hoje
em sociedade? Alguns pelo isolamento;--bem poucos dos que ficam.

Não riam portanto ao ouvir que a Suze, a minha pobre Suze, foi nobre e
foi cocotte. Cocotte, sim. Como nós todos. Porque, em summa, eu sou
cocotte, tu és cocotte, êle é cocotte...

Que horas serão? Deve ser quási madrugada.

Eu bem queria nestas palavras de febre, silhuetar a Suze, ter um pouco
de método, monografá-la. Mas não posso, não posso.

Tenho aqui na minha mesa de trabalho o seu retrato, e nem sei como tenho
coragem p'ra escrever, como posso desviar os olhos da névoa abysmal dos
seus, que me transem de irremediável e me enlouquecem de desejo. Desejo
absurdo, que o impossível hiperestesia, e me impregnou celula a celula.

Sinto no corpo todo a carícia opiada dos seus dedos, a sua carne
sortílega, embruxada; a sua pele afim da minha, e que com ela dialogava
em silêncio, nas horas de esgotamento, rememorando sensações agudas,
fulgurantes...

Vejo-a, vejo-a!

Passa a teoria das nossas noites (em que os seus tics profissionais me
confrangiam) e ela era sempre duma envolvência fluida, de uma estesia de
actriz inconsciente, uma viciosa triste, insaciada, e uma boa e uma
pobre rapariga.

De comêço podiam julgá-la artificial, tão estilizada era a sua graça,
tanto o seu requinte parecia consciente e erudito, traindo-se em tudo:
no andar elástico, no dandismo sóbrio, e até no ruge-ruge da sua voz de
alcova e confidência. Mas não: viam-na mal. Ela era assim sem esfôrço,
naturalmente: ela nascera uma obra de arte. E todo o meu trabalho de
esta noite me parece o de um doido que quisesse com poeira reconstruir
uma obra prima...

Muitas vezes já, aludi ao seu cinismo. Mas entendam-me: cinismo, disse-o
o forçado genial de Reading--é a coragem de dizer as coisas como são e
não como deviam ser. E a Suze era assim, quando falava a alguêm que a
compreendia.

Êsses porém, eram raros, muito raros. Com uma intuição divinatória,
balzaquiana, a Suze adivinhava às primeiras palavras o seu caso,
lisonjeava-lhe os instintos, e assim durante o dia era, conforme o macho
em catequese, canalha ou ducal, obscena ou protocolar.

Um dêles, com quem viveu muito tempo, não via na Suze um animal de vício
em quintessência, e, estúpido, não lhe sentia a graça esparrinhando
génio: era apenas sentimental e jogador.

Outra qualquer, para o prender, faria comédias românticas, e decerto
orientaria o seu comércio por êsse fundo fadista e namorisquento. A Suze
não. Parecia-lhe demasiado reles, insuportávelmente folhetim. E foi por
o jôgo que o laçou.

Pouco a pouco, por sugestões dominadoras, foi-o convencendo de que
ganhava sempre quando cedia passivamente aos seus caprichos, quando lhe
dava mais vestidos, mais dinheiro: e em pouco tempo, ela era p'ra êsse
jogador supersticioso, um ícone sagrado, tutelar,--Nossa Senhora da
Sorte ao seu alcance...

Dominava-o por completo. Se o traía, explicava-lhe com um ar vago e
superior... que era para lhe dar _chance_; e todas as noites o
desgraçado vinha implorar da Suze, aninhada num divan, com um pequenino
ar de sibila delfica, um pouco de sorte por amor de Deus!...

Teve êste espectáculo hiper-dantesco: os Poderes Constituidos--em
cuecas!... Ella os viu, aos redentores da patria: viu como era piloso o
sacro onde teem o fogo os oradores: foi caloteada por economistas:
sofreu contra a pele fina a camisola de flanela dos guerreiros. Mas o
que mais magoou o seu desprezo, foi a secura e a egolatria dos artistas.

P'ra todos a sua arte era perfeita, radiando ilusão, hipnotisando.

Mais flexível que as nuvens são p'ró vento, o seu proteísmo teatral de
prostituta mimava a cada um o seu _ideal_...

Ah! Mas como ela ficava, a minha Suze, a sua fadiga nervosa aniquilante,
o seu imenso tédio neurasténico, querendo desertar de si, da sua alma e
da sua pele enojada, para sempre!...

E caída num estôfo, amarfanhada, era às vezes triste como uma coisa
morta, como uma asa ferida nalgum charco... Curtia assim consigo mesma
horas de miseria moral e de exaspêro, sem uma queixa, sem uma lágrima,
num orgulho de sózinha, donde só resumava o sofrimento, num gesto, num
olhar, numa ironia.

Uma manhã em Lisboa, acabavamos de almoçar no nosso quarto, com a
janella aberta p'rà Avenida.

Ela fumava um Laferme, devagar, no prazer subtil de soprar nuvens. E de
repente, como a uma lembrança súbita, disse-me isto baixinho, num tom
que nunca esquecerei:

--Tu sabes: não gosto de falar da minha vida. Nunca me queixei. Se agora
te falo, é porque é p'ra dizer bem... Neste horror, tenho tido dias de
uma volupia imensa. Nem sei como te diga. Começo por me sentir doente,
exasperada, sem poder mais... Eles vêem e eu penso que vou morrer de
nojo. Vem um, vêem muitos... vêem todos... Então, não sei porquê,
sinto um bem-estar, um gôso doido; acho prazer a que me humilhem;
parece-me que nasci p'ra isto, que não há destino melhor... e gozo... gozo.

Depois, num riso sêco:

--Sinto a volúpia de um cristão ás feras...

Parou. Eu recebi num beijo o fumo do Laferme, e a Suze concluiu:

--Que importa isto! É um _detalhe_...

As outras, as vulgares, bestializavam-se; passada a crise horrível de
adaptação, vendiam beijos, como um mercieiro vende arroz, um advogado
eloquência, ou um diplomata uma colonia. A Suze não; era esculptada em
lava: era _alguêm_. Prostituta ou esposa, seria sempre infeliz, seria
sempre _ela_, seria sempre só. Pobre Suze!

Alma apolínea, foi esboteada por fadistas que teem o nome em crónicas
heróicas; sofreu-lhes, em noites de orgia besta, o suor e o vomito; e
com uma clarividência trágica, presentiu muita vez os haustos da manhã
subindo, a olhar com a pele arrepiada a máscara boçal de algum cliente.

Teve amantes ricos, equipagens, e as suas melhores horas eram quando
sozinha, abandonada a si mesma, ouvia numa noite de inverno, como uma
confidência, o crepitar da lenha num fogão...

Teve paixões sensuais que a torturaram, foi roubada impunemente muitas
vezes, e uma noite em Moscou--cahia neve--velando uma companheira
moribunda, sem nada p'ra empenhar e sem recursos, foi pôr no prego, jóia
grotesquíssima!--a propria dentadura da doente que. Deus louvado, era
montada em oiro... Assim puderam comer aquela noite.

É de estoirar a rir--não lhes parece?...

Sabia de cor tôda a _Comédia humana_: viveu tôda a comédia humana. Pobre
Suze!



Tu ao menos, não precisaste de ser louca p'ra sêres santa: ergueste-te
sempre corajosa e simples, sem um abatimento ou uma queixa; e através de
insultos e torpezas, conservaste puríssima, apolínea, uma alma
aberta ao sol como uma rosa!

Quantas vezes, calçada de verniz, tiveste fome, e com teu passo elástico
de espectro, nem um só Cireneu topaste que ao estender-te a mão, te não
pedisse gôzo...

Tu, Suze, sabias bem tôda a piedade humana e como ela é antes... e
depois. Se algum principe Nekhuladoff tentasse redimir-te, como a tua
palidez riria de alto ao pobre místico, a êle que te falava de perdão e
arrependimento, quando os teus olhos de névoa viam claro, com um
determinismo lúcido, fatal, que a tua vida era assim, irremediável, e
nem tinhas ódios nem sêde de justiça, pois bem sabias que é inútil tê-la
p'ra morrer à sêde...

Conheceste príncipes, é certo, mas nem um místico: só mais ou menos
imbecis... Não te fossem falar do ceu,--a ti que tantos viras de platina
na bôca de gozadores com avarias.

Por isso não tiveste gritos, não te estorceste: nem sei mesmo se
choraste.

Posta em teatro, não farias uivar as galerias nessa paródia de circo tão
grotesca que é um quinto acto p'ra burgueses e povinho; eras p'ròs
_raros apenas_ como o matoidismo poético da minha terra. Na tua voz de
fôlha seca, dizias de todo o teu calvário apenas isto: _é um detalhe_.

Mas para mim, Suze, o teu corpo serpertino, que ora começa a
decompor-se, o teu génio a fagulhar num incêndio murmuro de elitros e,
sobretudo, o supremo encanto da tua dor heróica, sem desfalências e sem
queixas, para sempre ficarão no meu espírito, como qualquer coisa de
belo, de perfeito, pois que correste os bastidores da vida, todo o
egoísmo, tôda a lama, tôda a infâmia, em vítima serena--tão serena como
essas que na Grécia iam hirtas de dor entre colunas...

E amaste sempre o sol! E amaste sempre o sol!



Deixa-me lembrar-te: é a última carta que te escrevo. Desta vez serei
sincero, porque estás morta, porque a não lerás...

Espera!... As nossas tardes no Rio Doce, em Leça... Os olhos dos mortos
ainda reflectem, ainda _vêem_... Pudesse eu ir arrancar-tos, trazê-los
nas mãos com cautela, como dois pássaros mortos, e dar-lhes ainda a
beber, pobrezinhos!--sol, mar, areias ruivas, aguas correntes...

Pudesse eu beijar-te os olhos mortos!

Chamava-se _Sol_ o nosso barco. Eu levava-o à vara, lentamente. Tiravas
o chapéu, estendias-te à pôpa e nem falavas. De quando em quando, ia
colar à tua a minha bôca: beijava-te as pálpebras de manso.

Parava sob um chorão, à sombra dos seus cabelos verdes. Cingia-te.
Poisava a cabeça nos teus seios, que eram lindos, tersos como de virgem.
Todo o teu corpo desfalecia, se humilhava no teu vestido de sêda crua
como o duma criança adormecida... E era então que eu sentia, que eu
palpava, que eu vivia a vida divina do silêncio.

Era mais vago o marulhar da ramaria e fazia mais silêncio, como faz mais
silêncio, à noite, o acorde das ondas numa praia...

Sentia-se cair silêncio como se sente cair névoa.

As nossas bôcas colavam-se num beijo húmido, calado, duma volúpia
tristíssima, confrangida. Era como uma despedida sem palavras, muito
lenta, de dois suicidas...

Eu não te via os olhos, mas adivinhava-os: estavam maiores, mais
nevoentos, como janelas deitando p'rò silencio que se cavava em torno,
fazendo leito ao nosso pensamento pelo espaço...

E confusamente sentíamos que o tempo passava, passava sempre entre os
nossos corpos enlaçados....

Por fim--era à bôca da noite--voltávamos.

Devagarinho, dizias tu, devagarinho...

Eu ia levando o _Sol_ na agua mortuária, e à nossa passagem, partiam
sempre, iam partindo, pássaros mal adormecidos nos salgueirais das
margens, reflectiam-se no rio em fugas de asas, e era tudo mais
triste como se êsse vôo fôsse o adeus de tudo...

Quantas vezes te olhei com os olhos rasos! Disfarçava, não queria nunca
que mos visses. E de repente, apertava-te os braços, sacudia-te p'ra me
aturdir, p'ra espancar a emoção que me afogava numa maré de lágrimas
reprêsas.

Queria gritar, queria chamar-te meu amor e... odiava-te. Queria
beijar-te as mãos, vestir-te de meiguice, e dizer-te a ância, o sonho
doido de viver contigo sem palavras--como as estátuas dos túmulos nas
criptas...

Queria bater-te, cuspir-te, demolir-te, como faz um tufão a uma árvore
sozinha, e a puxar-te os cabelos de creança, ir gritando, gritando
sempre: prostituta... prostituta...

Hoje tenho remorsos. Mas tu compreendes, tu bem sabes: era quási loucura.

Não podia perdoar à tua graça ter-se deixado poluir, não podia perdoar
ao teu génio a tua derrota, não podia perdoar-te, Suze, que fosses
vítima.

Ah! ter piedade, ter piedade... Mas isso é pouco, muito pouco: é um
sentimento consolador só para eunucos. E eu queria amar-te ao sol, Suze,
olhando as árvores irmãmente, todo o nosso desejo a escorrer luz...

A noite vinha. Seguíamos enlaçados, e eu cansava-me no esfôrço imenso de
te não magoar... Tu bem sabias, tu bem sabias... Segundo a segundo, o
meu martírio pesava o tempo como se uns ponteiros de relógio me ferissem
os nervos... Tu bem sabias. Tanto sabias, que por fim me beijavas na
testa, quási maternal, e a tua voz de fôlha seca rangia êste refrem de
outono: «Isso passa. E um instante, _é um detalhe_.

Minha pobre Suze, como tu eras justa, como tu adivinhavas, bruxa de
vinte ânos, p'ralêm da hora que passa, o nada que virá.

A tua desgraça era suprema, porque tu eras _aquela que não se ilude nunca_.

Ainda assim, penso comigo: quem sabe! quem sabe! Se ela me visse como eu
sou, se eu não fôsse com ela sempre actor, se eu não fôsse o ser
falso, o clown scéptico mascarrando com riso o sentimento; se eu não me
amordaçasse a cada instante, e tivesse podido ser eu mesmo... Se visses,
Suze, a creatura que eu escondo; se soubesses que afinal eu sou bem
simples e como eu amo a vida tôda de mãos postas...

Se em vez de analisar, eu me entregasse; se eu esquecesse os livros e os
outros e te falasse tão naturalmente como o meu sangue fala nas
artérias... Quem sabe!... Talvez, Suze, se eu fôsse o que não viste, o
que te fala agora... Porque eu lembro-me, eu lembro-me. Duas horas houve
que nós vivemos um no outro, fora do espaço, fora do tempo... Tu bem
sabes, tu lembras-te.

Era madrugada. Estávamos deitados.

Todo o meu ser vivia de ti, morria em ti. O nosso desejo ardera, estava
morto. Que fadiga a nossa, que fadiga!...

A rua despertava, ouviam-se pregões, o sol luzia nas frinchas: eu tinha
a cabeça contra o teu peito, perdidamente, como contra a esperança,
como contra o futuro...

Embebia-me em ti, aspirava o teu corpo, a tua carne, a sua tristeza
imensa, a sua saudade de tudo o que não teve, de tudo o que não foi... e
juro--que em nenhum jardim, em nenhuma aurora, uma flôr com orvalho me
ungiu assim de sonho, me fêz assim vibrar no impossível dum amor perfeito.

Levantámo-nos, saímos, e logo a rua, os outros, a vida dos outros, se
apossou de mim, me perverteu, me obrigou a mentir, a torcer-me... e eu
ri, eu ri imbecilmente, de nós, da nossa vida, e dessas horas em que
auscultei contra o teu peito--o impossível de um sonho sempre erguido!...

Pois se esta noite mesmo, ao começar a escrever, ao pensar em ti--na tua
morte, Suze!--eu fui palhaço, eu quebrei em esgares a emoção, e mimei um
ar gelado, irónico, impossível, quando queria chorar perdidamente,
quando queria beijar os pés ao teu cadáver... É que tinha medo, um
medo horrivel de que os outros me vissem, porque p'ra êles é uma
torpeza amar-te assim...

Eu podia dormir contigo, dar-te dinheiro... só não podia amar-te. P'ra
todos os crimes há uma indulgência feita de cumplicidade, menos p'ra um
crime assim: não tem remissão: é imoral e é grotesco.

É preciso que a dor me abale todo, me fite bem de frente, e me hipnotize
o seu olhar de chama, p'ra eu poder dizer como te amava, como te amo.

Perdoa, perdoa. Aqui me tens aos pés do teu cadáver.

Tôda a vida morreu p'ra mim: a seiva gelou nas veias das árvores; o mar
que eu amei tanto, não me importa.

A vida agora é êste horror: uma sala de _morgue_, mesas ovais de
mármore, cadáveres sem nome, já esquecidos, e entre êles, Suze, o teu
cadáver.

Como irás tu p'rà cova? Quem te vestiu?... Foram mãos sem carinho,
mercenárias.

Vejo-te, digo-te adeus, Suze... O teu cadáver transe, empedra de
martírio. Pareces mais alta, mais comprida. Não te souberam pentear;
deixaram-te o cabelo em desalinho e, não sei porquê, está mais claro, de
uma sêda mais pura, mais de infância...

Tens um vestido preto (com que me foste esperar: há quanto tempo?...)
sapatos de verniz, ponteagudos... fivelas de oiro... meias de sêda nos
teus artelhos finos de cegonha.

Cruzaram-te de certo as mãos no peito, mas escorregaram, descaíram, e
amarelas, outonais, dizem ainda: «é um _detalhe_ apenas, um _detalhe_...»

E o que mais me entristece é que tens frio: as mãos da podridão vão-te
gelando. Oh! As tuas noites na cova, Suze!...

Abriram-te o ventre no hospital. Suturaram-to àpressa, sem cuidado. Se
te tirassem os nervos... Bem sei que é doido, mas que querem?... Ficava
assim mais socegado.

É amanhã que te enterram?... Hoje mesmo? Deve ser quási dia, minha
Suze.

Deixa beijar-te as mãos geladas, de mansinho, enquanto falo... Assim. A
minha febre aquece-tas: verás...

Não te descerro as pálpebras. P'ra quê? Está ainda escuro.

Tens saudades do sol, minha pobrinha?... A última vez, quando almoçámos
na praia, ao pé de Leça, olhaste-o tanto que logo pensei que ias
morrer... Todo o teu corpo diz adeus ao sol. A mais ninguêm.

Família?... Nunca quis saber de ti: contaste-mo sem queixa,
simplesmente. Disseste como sempre: _é um detalhe..._

Que fica de ti, Suze? A memória da pele é passageira, e é muito incerto
que a tua graça vá dourar uma saudade.

Ninguêm irá ao teu enterro, e ainda bem!

Por tua causa, ninguêm se irritará jantando à pressa; ninguêm irá, de
sobrecasaca e mau humor, fazer-te o necrológio ao cemitério.

Não terás latim grunhido por um clérigo, nem essa coisa triste e
tão grotesca--um círio laico em ar solemne, com fungagá e arenga
humanitária.

Vais p'rà cova só, como viveste; e depois de te teres dado a tantos
homens, vai parecer-te natural que te amem vermes... Até na morte és
discreta, minha Suze, pois nem sequer virás numa gazeta.

Foste perfeita: és perfeita. Amaste a beleza sempre com loucura: nas
nuvens, nos _maquereaux_, nas pupilas das jóias, nos crepúsculos...

Ensinaste-me o desprêso sem palavras, a dor sem confidência, feita
orgulho. Deixa beijar-te ainda as mãos geladas.

Quem mas dera guardar p'ra sempre, em mármore; suspendê-las como um
_ex-voto_ à cabeceira, as tuas pobres mãos tão humilhadas, esfolhando
eternamente sôbre a vida, o perdão dos que a entendem:--o desprêzo.

... Oiço horas. Uma, duas... oito. Oito horas! Se eu pudesse dormir!

E agora mesmo, ao enfiar-me na cama extenuado, eu oiço a voz da
Suze, voz de sêda que range, a segredar-me:

--_Mon pauvre ami! Quoi?! Qu'est-ce qui t'attriste? Ma mort?... Mais, tu
sais, ça c'est un detail._

Sim, um _detalhe_... como tudo, terminando no mármore frio de uma
_morgue_, ou a uma esquina de rua banalmente. Como tudo.




O VEIGA

A Ramiro Mourão.


O VEIGA

É o tipo mais estranho que eu conheço. Que anos terá? Deve ter trinta ou
mais. Magríssimo, êsse lúgubre cabide que é o seu corpo, traz enfiadas
roupas de outros, muito largas: sobrecasacas, fraks, vestes ricas,
esverdeando, já em plena decomposição, e mais vexadas nesse esqueleto
curvo de pedinte que numa loja de adelo ou num palhaço.

Decerto o conhecem. Decerto já, cerimonioso e gago, lhes pediu esmola. É
um pobre diabo e é doido: o Veiga.

Caricatura das ruas, conselheiral e poética, encontro-o sempre com vagar
e ritmo, num abandono corcova de vadio, que daria dandismo a um
diplomata.

Pois bem: é só mendigo. Mas não como nós todos, a uma esquina de rua ou
a uma porta banal de ministério, a pedir emprêgo ou noiva rica, dez reis
ou participação num monopólio. Não é assim: é outro género, é paradoxal,
é único!

Pede para comer, mas não come como nós todos: por comer. É p'ra viver a
Vida, a Vida toda! Esperem um instantinho: é extraordinário.

Deixem-me antes contar-lhes como êle era.

O Veiga, quando eu dei por êle, era empregado num cartório. Às dez,
todas as manhãs, enfiava com unção manga de alpaca. Assim ficava até às
três, todo curvado, cumprindo religiosamente, riscando o papel selado
com uma letra estilada e redondinha, tão correcta e tão banal que faria
o desespêro de um grafólogo.

Tipo neutro, _nem vou lá, nem faço minga_, gozava em todo o tribunal uma
simpatia benevolente e desdenhosa. O escrivão, os colegas diziam
dêle: é um pobre diabo.

Era bem um pobre diabo.

Sofriam os seus nervos destrambilhados com o drama quotidiano do
tribunal, êsse espectáculo de miséria em carne viva, explorada pelos
outros que viam nela a melhor posta, extra-oficial e lucrativa, o
verdadeiro emprêgo.

O Veiga, coitado, não explorava: sofria. Às vezes, copiando
interrogatórios, mandados de captura ou de penhora, tinha os olhos
rasos, e umas rovoltas frustes de nervoso crispavam-lhe as mãos magras
na caneta, perturbando em trémulos sem arte o seu lindo e banalíssimo
cursivo.

Em muitas dessas prosas rígidas, onde se amortalha em formulas destinos,
ia o gráfico da sua emoção romantisada, o patético mapa dos seus nervos.

No cartório, melhor do que nos livros, sem gangas literárias, sem
imagens, o Veiga ouviu a maré rouca da desgraça: a sua caneta atenta
correu-lhe os sete círculos fatídicos; soube-a de cor, como um
folhetim vivo, gritado aos seus ouvidos, que êle recolhia em papel
selado a 20$000 réis por mês.

Naquelas laudas oficiais folheava a vida social como num índice; lia
como numa partitura, tôda a harmonia humana. E que harmonia, Santo Deus!

Tinha vontade de fugir, de tapar os ouvidos, de se meter sòzinho num
buraco. Ali roçou, mais encolhido, aspirações, quimeras ulceradas. Como
era um fraco, de uma nervosidade romanesca, sentiu terror: tinha vontade
de chorar. Não embotava como os outros num cinismo comodista: cada vez
destrambilhava mais.

Claro que não podia ter amigos: era ridículo, era diferente, era um
sòzinho. Riam-se dêle com benevolência, estendiam-lhe a mão com um ar de
obséquio.

Quando se afastava de algum grupo, sob as arcadas conventuais do
tribunal, ia aflito, a querer sumir-se, com vontade de morrer, pois bem
sabia que se riam dêle, das palhetas desafinadas, da gaguez.

Vivia com a mãe e sem mais parentes. Mal chegava a casa, ia esquecer,
queimar no braseiro interior essas misérias, e com a luz de tão má
lenha, fazia nimbos p'ro seu sonho.

Com que sonhava êle? Com o Amor.

Vira-o nu, reduzido a autos; ouviu-o debater-se bem imundo na
camisa-de-fôrças que é a Lei; acotovelou-o no cartório, em todas as
formas, da prostituta de viela ao adultério rico; e assim mesmo,
persistiu em amar imbecilmente, convencido,--o desgraçado! de não sei
que sarcástico destino que o talhara p'ra amoroso, com uma carcassa
humilhante de fantoche.

Amou.

Era uma loira muito chromo, filha da loja de miudezas lá da rua.
Escreveu-lhe em insónias de delírio, cartas imensas em papel azul.
Chamou-lhe tudo e ela respondeu-lhe. Durante umas semanas viu cor de
oiro, andava estonteado, como em sonho, suspenso dos fios dessa trança,
pairando à altura de um terceiro andar.

E mesmo na saleta do cartório, se o deixavam só alguns instantes,
fechava como os misticos os olhos, para forrar as pálpebras com ela,
sussurando baixinho devoções.

Que lhe importava agora o tribunal, essa tragédia amorfa, sem estilo,
tantas palavras que condensam dramas e que êle por ofício, copiava!
Escrevia a pensar nela, envolto em vago, como numa nebulosa redentora, e
já não via no papel um mar pautado, em que bóiam cadáveres de destinos,
frangalhos de esperanças, vidas podres...

Há muitos dias, o Veiga era quási um ser de sonho. Dizia à mãe em casa
coisas vagas, comia talvez menos, mas radiava.

Tinha grandes cuidados de _toilette_. Mandou brunir o seu antigo frak,
que agora sem pêlo era espelhento, e arranjou ainda um côco preto que o
magoava pouco na cabeça. P'ra ser em segunda mão, era magnifico.
Vendera-lho um colega no cartório. Andava cheio de felicidade como um
ovo. Era uma vontade doida de sorrir, de beijar as crianças, dar
esmolas, de agradecer a Deus o sol e a chuva, e de dizer a todos que era
amado.

Tinha ido apreçar um anel de oiro, e fazia economias prodigiosas para
lhe dar em breve essa _aliança_. P'ra ele o anel era um símbolo supremo:
fundiria p'ra sempre os seus destinos.

Só iria falar-lhe, gritando-lhe da rua o seu amor, quando pudesse levar
êsse aro liso, que ela enfiaria olhando-o perturbada, como numa liturgia
nupcial.

Chegou o dia. O Veiga nem comeu. Meteu o anel no bôlso, pôs o côco,
beijou a mão à mãe comovidíssimo, e partiu rítmico e mudo, mui solemne,
como se pisasse a aresta do destino.

Era ainda cedo. Vadiou nas ruas, braços pendentes, lânguido, scismático,
a construir projectos de futuro: outra casa melhor e em poucos anos--um
lar com ela, imortalmente loira.

Caminhava, alheado, fluctuando, sem olhar, sem perceber aspectos,
fumando o seu monólogo de sonho, sentindo com prazer que a noite vinha.

Parou por fim, cravando olhos de febre nessa varanda do terceiro andar.

Esperou... esperou e ela não vinha!... Há quanto tempo olhava êle a
varanda? Há cinco minutos talvez, talvez há uma hora. Perdera a noção do
tempo. Não sabia. Súbito moveu-se o transparente... Era ela. Olhou um
instante, viu-o, e retirou depois de um modo brusco.

«Coitadinha! Não pode vir agora. Talvez gente de fora...
Esperarei»--pensava o Veiga com as pernas a tremer. E esperou, esperou,
numa agonia.

Por fim deram dez horas muito fortes, badalando-lhe dentro da cabeça.
Ergueu os olhos. Não podia mais. Batia os vidros um luar de opalas
fluidas, e ela apareceu na claridade, muito branca, ao mesmo tempo que
lhe deu um encontrão um caixeiro ajanotado que passava.

«Foi decerto sem querer»,--pensou o Veiga, mas viu-o logo voltar-se a
provoca-lo.

«Que tem êle comigo? Que lhe fiz?» E interrogava-se assim ingenuamente,
quando o viu fazer sinais p'rò andar dela e opontá-lo a rir, com um ar
de troça.

Cessou em torno dêle tôda a vida. Deixou de ver, deixou de ouvir, ficou
imóvel, numa aura de vertigem que o lambia, cara p'rò alto, lívido,
inconsciente. O outro então aproximou-se dêle, fisgou-o pela gola, muito
têso, e com bruscos sacões foi-lhe dizendo:

--Que faz você alí, seu grande lorpa? Não percebeu ainda que o troçaram?
As suas cartas trago-as eu aqui, p'ràs ler aos meus amigos, p'ra me rir.
Você sempre é um ponto de primeira... Você ouve ou não ouve?...

E deu-lhe um sacão último mais forte.

--Não há que ver. É mouco como um muro.

O Veiga olhou-o atónito, sem gestos. Não teve uma palavra. Empedrou
todo. Vergava de fraqueza, mal ouvia, e nos olhos de febre, muito
abertos, um desencanto imenso, emparvecido, um vazio de assombro,
semi-louco... Estava em frente do outro sem o ver. Todo o seu corpo
magro de humilhado corcovava ainda mais de decepção, como se o
esfrangalhasse uma rajada. Parecia esperar uns braços p'ra cair. O outro
olhou-o num desprêzo besta, e rematou com o punho em murro junto dêle:

--Agora rode! Senão parto-lhe a cara.

O Veiga nem buliu. Ficou inerte.

--Não ouviu, seu burro, não ouviu?

E como êle não tinha um movimento, deu-lhe uma bofetada que o virou.
Depois, gozando muito o seu triunfo, encheu-lhe de pontapés o corpo
todo, teve-o nas patas ennovelado como um trapo, até que farto, resolveu
larga-lo, soltando-lhe magnânimo o perdão:

--Já basta. Tomou p'rò seu tabaco...

Havia um luar de espasmo, amorosissímo, e o imbecil, trepando a rua
derreado, abafava os soluços contra o lenço, cerrava a bôca seca como em
trismus, e só tinha uma ância a empurra-lo: ir despertar a mãe na
alcova escura para chorar baixinho junto dela, como em petiz quando o
troçavam no colegio.

Só isto poderia consola-lo: ouvir-lhe a voz, palavras de ternura,
sentir-lhe as mãos rugosas nos cabelos...

Fêz um último esfôrço, dominou-se. Foi em bicos de pés até ao quarto, e
caíu de bruços sôbre a cama, como se fôsse a cova, p'ra acabar, na
humilhação suprema de sovado diante do seu ídolo tão loiro.

Crispou no travesseiro mãos de náufrago, como na carne de alguêm que o
acolhesse, um amigo pr'a ouvir-lhe a confidência; disse coisas baixinho,
o nome dela, chorou horas e horas, gemeu alto, diluindo nas lágrimas a
angústia, sentindo contra o corpo extenuado a moleza da moinha a
consolá-lo.

Por vezes chorou quási com prazer, desdobrou-se, assistiu ao seu
martírio, como nas melhores noites de teatro, quando ouvia os quintos
actos soluçantes, apertado num logar das galerias.

Esteve assim de bruços muito tempo, amolentado, estúpido, pastoso. Não
podia dormir: era impossível. E com um grande esfôrço, quis erguer-se.
Mas doeram-lhe então as pisaduras, e numa raiva fruste de impotente,
feriu a paz do quarto com patadas, com rangidos de dentes e com murros,
torcendo-se num ódio corrosivo, menos contra o caixeiro que o tosara,
que contra êle, Veiga, gago e reles, sempre curvado em cumprimentos
torpes, entre troças e adeuses de desprêzo, sem coragem pr'a um murro ou
uma insolência.

Sentiu-se trapo, lôdo, coisa imunda. Teve mesmo prazer em deprimir-se;
rolou-se na humilhação quási com gôzo, como outros na glória ou na
luxúria, e arrancou do seu misérrimo grotesco, da sua covardia tão
cuspida, êste consôlo cristão para aureolar-se:

--Sou uma vítima, uma vítima do Amor e do Destino!

Tinha ainda na cara as bofetadas, ouvia ainda a voz boçal do caixeirola:
«Já basta. Tomou p'rò seu tabaco»; mas a única realidade bem
tangível, ao sentir-se chorar, assim, de bruços, de côco para a nuca e
sobretudo, era esta coisa mágica e inefável:--«Sou uma vítima do Amor,
tenho romance!» E com a cara a arder, era um herói.

Já quási madrugada, adormeceu. Acordou-o o sol vindo até êle, e ia
voltar-se contra a luz covardemente, p'ra se escoar no sono, p'ra
esquecer, quando ouviu passos da mãe que vinha entrando.

Embrulhou-se nos cobertores num gesto brusco, para que ela o não visse
por despir; encolheu-se na roupa o mais que pôde, mas ainda assim ficou
com os pés de fora, com as botas de elástico enlameadas e o côco
amolgado em travesseira.

A mãe entrou no quarto devagar, foi abrir as janelas de mansinho,
supondo-o a dormir, bem sossegado. Quando o viu vestido sôbre a cama,
com uma palidez desfeita e olheiras fundas, correu p'ra êle, pôs-lhe a
mão na testa, e perguntou branca de susto, a tremer tôda:

--Que tens tu, meu filho? Estás doente? Porque dormiste assim todo
vestido?!...

O Veiga olhou-a lorpa, emburrecido. Não soube que dizer, não quis
contar-lhe; e como se a morte da ilusão o acanalhasse, como se viesse de
nascer nêle um outro ser, de secura e vaidade, um reles cínico,
levantou-se da cama, espreguiçou-se, e sem olhar a mãe, sem a beijar,
foi eructando estas mentiras torpes, surpreendido êle mesmo de as ouvir,
travando relações com um novo Veiga:

--Que quer?... Nem eu sei já como isto foi. Uma noitada... mulheres...
foi um pagode. Carreguei-lhe no vinho. Ora aí tem...

Meteu as mãos nos bolsos do colete, e de pernas abertas, bamboleando-se,
vomitou aos puxões o seu programa:

--Isto vai mudar muito de figura. Estou farto de ser burro, vou mudar.
De ora avante é outra coisa, é outra vida... Previno-a já. Não tem mais
que estranhar...

E apontava-lhe a porta:

--O almôço está pronto? Vamos a isso já. Não quero esperar.

Quási nem gaguejava, o imbecil. Sem as asas-muletas da ilusão, que
erguiam êste orango a céus de sonho, êle ficava um tiranete bufo, com um
rancor covarde de falhado, a farejar na sua raiva de impotente, uma
vítima, alguêm para expiar. Pasmada, a pobre criatura saíu limpando ao
avental os olhos. E começou nessa hora o seu martírio.



Nova fase do Veiga.

Iniciou-se então no botequim e com o olhar envernizado de genebra,
ouvindo as _mayonnaises_ de ópera que um sexteto melodramático lhe
servia, ia pagando bebidas aos amigos...

Foi um ex-colega, que se alcançara havia meses, p'ra fundar um semanário
clandestino, que o apresentou aos rapazes do cavaco. Depois,
extorquindo-lhe os cobres da bebida, empreenderam tambêm o apostolado.

--E o nosso amigo tem... a _ideia_?

O Veiga não a tinha. Forneceram-lha copiosamente, em noites de catequese
desvairante. Era agora um iniciado o meu idiota. As necedades que os
outros lhe gosmavam, como uma bíblia obscena de revolta, acolhia-as o
Veiga com fervor: o caixeiro agora era o _burguês_, e o seu ídolo loiro
o _preconceito_!

Perdia as noites num delírio gago, a proclamar no botequim o _amor
livre_. Faltava ao cartório muitas vezes. Inconscientemente, como rezava
com devoção até há pouco, absorvia brochuras anarquistas, e tinha à
cabeceira, como uma espécie de _Flos sanctorum_ laico, um agiológio
patético, ilustrado, com um Ravachol de auréola, hiper-cristo, e os
mártires de Chicago nimbados.

Recolhia de madrugada ou noite morta. Nem já tinha horas certas de
comer. Alimentava-se de pastéis e álcool. Só ia a casa para insultar a
mãe e p'ra dormir.

Mal lhe dava dinheiro p'ra comer. A pobre criatura envelhecia anos cada
dia. Por fim já nem falava: tinha por êle uma espécie de terror. Ouvia-o
arengar coisas tremendas: a revindita social a dinamite, o «ódio ao
burguês», trapos de frases feitas que êle moía e remoía muitas vezes,
numa espécie de automatismo cerebral.

--Porque, fique-o sabeado, Deus é o crime... o crime, sim senhor,
digo-lho eu... Hei-de dar que falar. Verá, verá...

--Não hei-de ver, meu filho, que eu não tardo... Deus há-de me levar. É
grande esmola...

E lá ia a chorar muito baixinho.

Com as noites de álcool e vadiagem, numa exaltação agudíssima e imbecil,
a loucura do Veiga emparedou-o.

Não podia dormir o meu fantoche. E depois das palestras de café, em que
os outros disparavam burramente trechos de artigos de fundo e anecdotas,
vagueava monologando, em falla-só, repetindo na excitação da bebedeira
as escórias que mais o impressionaram, e o que era pior,
sugestionando-se, desdobrando-se num Veiga que ameaçava, e noutro que o
terror lambia todo.

A Sociedade, a Religião, o Estado, eram os inimigos do meu títere.

Ao recolher a casa, noite morta, tomava precauções, dava mais voltas, e
era em suores de angústia, em calefrios, que dobrava, na névoa, cada
esquina.

Andavam a preparar-lhe uma cilada... Quàsi tinha terror do novo ser que
se instalara nêle, inquietante, atulhado de fluído de revolta, como uma
garrafa de Leyde subversiva.

Certo, êle não fizera nada, era um pobre diabo inofensivo, mas vivia
agora o _outro_ dentro dêle, como uma mina de dinamite, subterrânea, que
a Ordem poderia farejar... E entrou a ter medo da polícia.

Ao recolher, logo que via um guarda, nem sequer dissimulava o seu
terror, rodava nos calcanhares, voltava logo, de uma forma tão flagrante
e tão grotesca, que se fazia notar ao mais boçal.

Às vezes esperava o sol, porque de dia não _lhes_ tinha medo, e era na
luz lial da madrugada que se esgueirava p'ra casa, rente às portas.

Uma noite em que bebera mais, desengonçou-se em tão cómicos tregeitos
ante o primeiro guarda que avistou, que o santo homem resolveu
deitar-lhe a luva, e regenerá-lo com parasitas no Aljube.

Lá passou o resto da noite, sem falar, meio sonâmbulo de medo e de
genebra, e a única impressão nítida que teve, foi a de ouvir, pouco
antes de o soltarem, um fado soluçado como nunca, por um gatuno que
dormira ao lado dêle:

    Já que eu te não dou o pão,
    dá-te nua a quem to der;
    mas guarda-me o coração,
    a alma que ninguêm quer.

Foi por êste tempo, que êle fez parte do grupo dramático _Luz e
Esperança_. Gago e solene, estava a calhar p'ra conde e p'ra _pai
nobre_.

Teve triunfos colossais nos arredores. Declamava às noites pelas ruas,
corrigia nos espelhos das vitrines a expressão dramática da tromba, e
muita vez contrascenou com os candieiros, à hora espectral dos
varredores... Fazia, é claro, teatro de combate, peças de intuitos
sociais, dramas de tese, e como todos os colegas lá na _troupe_,
considerava-se um _actor-apóstolo_. Recolhia cada vez mais tarde,
trespassado de frio e de patético.

Uma manhã, chegando ao patamar, procurava a chave pelos bolsos, quando
viu um vulto enrodilhado contra a porta. Estacou, varado de terror. O
seu primeiro movimento foi de fuga. Quem seria?!... A mãe não,--dormia
àquela hora. Mas, olhando melhor, viu que era ela... Estremeceu. Meu
Deus! Estaria morta?... Não, não: adormecera ali. P'ra quê?... Não podia
perceber.

--Deu-lhe talvez alguma coisa... Coitadinha!

Sacudiu-a de manso, despertou-a. Pela primeira vez há muito tempo,
teve um gesto de filho, de piedade: ajudou-a com ternura a levantar-se.
A pobre criatura erguia uma cara de espanto, de terror. Vê-lo outra vez
meigo p'ra ela como dantes, inquietava-a mais que ouvir-lhe insultos. E
ali no patamar, sem gestos, fitaram-se, como dois náufragos, segundos.
Não se viam já há muitos dias...

A expressão da cara dela ia mudando à medida que o fitava:--_era o seu
filho!_ Aquele rapaz cheio de rugas como um velho, com um tremor nas
mãos, no corpo todo, aquele pobrezinho--_era o seu filho!..._

Sempre a olhá-lo, ergueu as mãos que tanto o abençoaram; a sua máscara
desfeita iluminou-se, tanto a piedade ardia dentro dela; e com uma voz
de misericórdia e de carícia, pôde ainda dizer-lhe:

--Ó meu filhinho!...

E caíu-lhe, tôda em lágrimas, no peito. Entraram abraçados pelo quarto.
Lá estava a cama aberta, a dobra feita--como uma carícia dela a
recebê-lo... Através das frinchas das portadas, a manhã estava a
sorrir no travesseiro...

Então na alma dêste trapo humano o remorso dobrou como um mau sino,
fazendo-lhe vêr quanto de bom era possível: a vida antiga com a mãe, a
vida calma... Sentia bem que fôra torpe para ela; viu-a com a cova ao
lado p'ra tragá-la: e numa lufada de desespero ajoelhou com lágrimas
rolando quatro a quatro; gaguejou como uma creança a quem bateram:

--Ó mãesinha... ó minha mãe... perdão

Ficou assim alguns instantes; levantou-se. Ainda outra vez fitaram-se
nos olhos--como se um dêles acabasse de chegar, com uma sacola de dor,
de muito longe... E agora, entre lágrimas, sorriam. Êle pôz-se a
dizer-lhe muito baixo:

--Juro por Deus, minha mãe, juro por si, que ainda a hei-de fazer muito
feliz... Hei-de pagar-lhe com amor, com muito amor, os meses de martírio
que lhe dei. Verá, verá. Vou ser outra vez o seu filho, vou ser
outro...

--Sim, sim, meu filho, tu és bom. Deus trouxe-te outra vez. Pedi-lho
muito. Eram as más companhias... os malvados... Por pouco te matavam,
meu filhinho. Matavam-nos a ambos, Manoel. A tua mãe já não podia mais.
E tu... e tu... estás tão magrinho!...

--Hoje começa vida nova. Não se aflija. Hei-de ser forte outra vez, vou
trabalhar...

Interrompeu-se de repente, como se uma ideia de terror viesse gelá-lo. A
mãe, sem compreender, continuava:

--Trabalhar... ora ahi está, é o que é preciso. Foi por isso que te
esperei deitada à porta, com mêdo que entrasses e saísses sem te eu
ver--como nos últimos dias sucedera... E eu, pobre de mim, que tinha
medo, não sabia como to havia de dizer!... E afinal tu mesmo o
reconheces. Louvado Deus! Tudo é pelo melhor. Ora vê tu--mas que cabeça
a minha!--pus-me p'raqui a falar e nem to disse... Esta tarde, o senhor
Sousa esteve cá...

--Quem?

--O snr. Sousa escrivão... êle... o teu chefe.

--Ah! disse o Veiga e pôs-se cor de cal.

A mãe, sem reparar, dizia sempre:

--Devo-lhe muito, é muito nosso amigo. Que outro no seu lugar--tu bem o
sabes--tinha-te posto fora do emprêgo. Mas êle não. Só quer que tu te
emendes. Diz que te espera hoje sem falta, às dez em ponto. Verás,
Manoel, tudo se arranja bem...

Êle olhava-a com os beiços a tremer:

--Estás contente com isto? An! Manoel?...

--Não, minha mãe, não volto ao tribunal. Não posso mais... não posso
mais lá ir...

--Ora essa, meu filho, tu que dizes?!...

--Não, minha mãe, não posso mais lá ir...

Por mais que perguntasse, que insistisse, sempre a mesma resposta em voz
sumida, como a última decisão de um agonisante:

--Não posso... não posso... É-me impossível

E de repente, chegando-se p'ra ela como um petiz com terror, pôs-se
a dizer baixinho:

--Quem sabe se não é uma cilada... O Sousa quere-me lá p'ra me
prender... Sabe que sou um anarquista... quere vingar-se...

Continuou neste tom ainda algum tempo. Ouvindo-o sem poder
interrompê-lo, com o coração a desfazer-lhe o peito, a mãe era forçada a
perceber que aquele desgraçado que ali tinha, guardado nos seus braços
outra vez, precisava mais de si que em pequenino, porque Deus lhe tirara
o entendimento.

Quando êle lhe contava as suas noites, como na rua a polícia o
perseguia, o que havia na nèvoa, a certas horas,--interrompeu-se
bruscamente e ainda mais baixo, transido de pavor, colado a ela,
pediu-lhe que fôsse ver ao patamar... tinha ouvido passos... era
alguêm... Para o tranquilizar, ela fechou a porta à chave, com os olhos
rasos, a conter-se, e pôs-se então a ver se o adormecia.

--O que precisas, Manoel, é de dormir, tens mesmo os teus olhos a
fechar-se...

Êle não queria dormir. Era impossível. Podia vir o Sousa... alguêm
prendê-lo... Só se ela ficasse ao lado, de vigia.

--Eu fico, eu fico ao pé de ti. Sossega. Despiu-o então como em pequeno.
Tirava-lhe a roupa devagar, ia-o beijando com meiguice, em despedida: e
deitou-o por fim sem resistência, como se fôsse uma criança sonolenta.
Aconchegou-lhe o cobertor bem contra os hombros--tão magrinho, Senhor,
um esqueleto!--e à beira da cama, de joelhos, sentindo-o adormecer, ia
dizendo:

--Dorme, meu filho. Dorme... dorme... dorme...

Quando o sentiu adormecido, ergueu-se.

--E agora?!... perguntou no quarto escuro. O filho doido... a morte em
tôrno dela... e ninguêm, ninguêm que lhe valesse...

Lá fora a manhã subia, com pregões. Mas neste quarto, para a pobre
velha, o silêncio era doloroso como um uivo.

Meses depois, encontrei-o uma manhã em Nevogilde, sob um grande
castanheiro a desfolhar-se.

Intrigou-me ver o Veiga em pleno campo, saturando-se de outono e
solidão. Que podia fazer ali aquele idiota?

Mas quando me aproximei e o vi de perto, espantou-me a mudança que
fizera. Era outro: era um pedinte louco, de olhos meigos...

Parei a olhá-lo. Êle cumprimentou-me com maneiras untuosas de prelado...
E ficou a sorrir, chapéu na mão, como à espera de que eu fôsse falar-lhe.

--Linda manhã, senhor Veiga, não é verdade?

--Diz Vossa Excelência muito bem... Está linda.

--Então mora por aqui--por Nevogilde?

--Não, senhor... Eu não tenho casa. Gosto disto... aqui. Ha campo e mar...

--Não tem casa!... Desculpe esta pergunta: e onde dorme o senhor?...

Esteve um pedaço a fitar-me, olhos em olhos. Depois--em confidência
misteriosa:

--A Vossa Excelência sempre o digo. Eu nunca durmo...

--An?!...

--Eu nunca durmo. Não tenho tempo p'ra dormir. Quero viver! viver!...
Não posso perder nem uma manhã nem uma noite. A gente sabe lá quando tem
de deixar isto... Sabe-o Deus! Eu já perdi muito. Tenho remorsos. Quando
penso nisso... tenho remorsos... Quando eu era empregado, passava dias
inteiros sem olhar p'rò céu. Só via gente e ruas... E as noites...
tambêm as perdia. Ia p'ròs teatros, p'ròs cafés. Foi só depois--quando
morreu a minha mãe--que eu compreendi que ia mal... e resolvi viver.
Passei dias de desespero, a pensar que não gostei dela como devia... que
a não acarinhei... que a deixei ficar sozinha muitas vezes... Ia dando
comigo em doido. Depois lembrei-me--que o que me sucedeu com a minha mãe
me podia suceder com a vida toda. E mudei de rumo... Deixei o
emprêgo. Fiquei assim... pus-me a viver. Agora, se adormeço num banco
uma hora ou duas, zango-me comigo...

Por muito tempo, em palavras de gago, bipartidas, sussurou as razões da
sua vida, a sua exegese moral de vagabundo, a sua felicidade e... os
seus recursos.

Tinha amigos, pessoas que o conheceram noutro tempo, _antes de êle saber
o que era a vida_... E quando precisava de dinheiro (êle afinal de pouco
precisava: nutria-se de frutos e de pão) era muito raro recusarem-lho:
só se de todo em todo não podiam.

Notou que eu lhe fixava a andaina rôta e sorriu com meiguice desdenhosa:

--Ando assim... todo rôto. Que me importa! E podia andar bem... isso
podia. Muitas pessoas me teem dado roupa. Até fatos inteiros... e em bom
uso. Pode V. Ex.ª acreditar. Mas às vezes, de noite, pelas ruas, vêem
ter comigo às escondidas da polícia, desgraçados com fome... todos
rotos... E por boas maneiras ou à fôrça, tenho de trocar a minha roupa
pela dêles...

--Imaginam, coitados, que me roubam... Que pode isso fazer-me!... Que me
importa!...

Teve uma expressão de piedade em tôda a máscara, e gaguejou com outra
voz, comovidíssimo:

--Tenho tanta pena dêles... tanta... tanta... de todos os que foram como
eu.... No fundo... é mais triste que a fome e que a miséria... ver como
andam na vida _sem viver_... V. Ex.ª perdoe o que eu lhe digo...

Assim, nessa manhã de outono, eu conheci um outro Veiga--o que me
interessa.

Perguntei-lhe, almofadando a oferta, se precisava algum dinheiro.
Recusou. Tinha já almoçado há algumas horas... Mas como eu insistia,
tirou do bolso uma mãocheia de migalhas, e mostrou-mas como um último
argumento:

--Ficou-me ainda isto... pr'òs pardais...

Depois, com um gesto lento, precioso, em que as taras do amador
dramático automaticamente se traíam, tirou do outro bolso muitas
pétalas, e ofereceu-me algumas:

--Faz... favor. São de uma roseira que o vento desfolhou...

Ficou curvado a aspirá-las uns segundos:

--Certas manhãs de outono... os perfumes dão vontade de chorar...

Datam daqui as nossas relações. Cultivo nele com estima, com ternura, o
único panteísta que eu conheço. E tal qual o vêem pelas ruas, êste pobre
mendigo alienado anda «bêbedo de Deus», como Spinosa.

Encontrei-o ontem à noite: conversámos. E as poucas palavras que me
disse, cravaram garra em mim: não as esqueço. Êle anda agora
esquelético, a cair: o seu boemianismo panteísta tomou uma forma aguda,
convulsiva: é uma espécie de delírio ambulatório.

Como eu aludia ao seu cansaço, pedindo-lhe que não andasse dia e noite
nessa lufa em que agora o via sempre, êle, que era mais meigo de
que um cão, deitou-me bruscamente as mãos aos braços, e com uma
indizível voz de raiva e súplica:

--Por o amor de Deus... não diga isso! Olhe que eu não duro muito. Eu
sei... eu sei... E tenho fome... fome de adorar... Eu quero como a um
filho, à terra tôda...

E falou-me das árvores, do mar.

Disse-me que queria acompanhar a Noite, sem perder um segundo, um só
segundo, caminhando com ela, caminhando;--e logo, logo ao despedir-se
dela, abrir bem os seus olhos, bem abertos, ao primeiro araiar da
madrugada... E seguir depois o sol até à morte, ele e a sua sombra que
era triste--como se fôsse já uma saudade...

Era num jardim público, deserto. Caíam dos plátanos fôlhas sêcas... Êle
baixou-se, apanhou algumas com cuidado, como se fossem borboletas
estonteadas...

--Veja V. Ex.ª veja... Como estão encarquilhadas... tão sequinhas! A
minha hora chegou como a hora delas...

E como o vento as fazia redemoinhar, estremeceu e disse bruscamente:

--Passe Vossa Excelêcia muito bem... Queira perdoar... Não posso perder
tempo...

E o amante da terra o meu pedinte; não tem tempo p'rá amar, por isso
sofre; sente que ela lhe foge a cada instante, e não quer adormecer p'rà
sentir sempre, contra o seu corpo de fantoche mártir, com sobrecasacas
doutros, fraques doutros, por cujos rasgões entra o sol ao luzir dalva,
até que a noite por sua vez se engolfe neles, correndo-lhe a carne de
miséria, sensitiva, e amando-o sem nojo horas e horas...

A Morte, quando vier, vai comover-se, ouvindo-lhe na gaguez frémitos de
asas, vendo-lhe abrir os braços de esqueleto como p'ra agasalhar a vida
tôda, e oferecer-lhe nas mãos roxas e ósseas--pétalas murchas e
folhagens sêcas...

Não pode durar muito: é impossível.

Mas nas pedras da rua onde morrer, terá em torno dêle a despedir-se, o
Mar, as Árvores, a Aurora, tôda a vida da terra--sua amante...

Apercebia com uma acuidade visionária a orquestração da noite, dita em
surdina nas janelas, nas folhagens, e decompunha essa penumbra de
ruídos, complexíssima, a que chamamos vulgarmente as «horas mortas».

Quási madrugada, em Dezembro, recolhia eu estugando o passo, porque
fazia uma névoa frigidíssima, quando o cruzei numa ruela íngreme. Levei
a mão ao chapéu e fui andando, mas instantes depois êle atracou-me, a
tiritar de frio, soleníssimo, o côco erguido e o busto em reverência.
Era ainda polidez, diplomacia:

--Desculpe V. Ex.ª Teve agora a bondade de saudar-me e eu não pude
corresponder... Só depois me voltei e o conheci. É que eu ia distraído,
a trautear...

--Nada mais natural, senhor Veiga, nada mais natural...

E p'rò não despedir com brusqueria, fiz-lhe ainda esta pergunta
estúpida:

--E que trauteava o senhor com êste frio?

Fixou-me. Depois com um gesto curvo, muito vago:

--Isto... o silêncio... a névoa...

Sem frauta rústica, pobre fauno de quico e butes rotos, o Veiga não
imitava, como colegas seus de longes tempos, quando a Terra era ainda
uma criança, o rumor claro das levadas rindo espuma, mas apenas o
esgarçar dolorosíssimo de uma névoa mendiga de dezembro, que o vento ia
rasgando aos empuxões, nos beirais dos telhados, nas esquinas, esquecida
talvez de que foi mar ou o chôro das nuvens vagabundas...

E lá foi sob a grisalha a desfazer-se, ouvindo música inédita p'ra
todos, êsse mísero fauno arripiado que eu vi uma só vez com uma ninfa...

Foi à beira do rio, em Massarellos. Como era tarde e não havia
eléctrico, eu ia a pé p'rà Foz, na noite calma.

No cais, sentado em toros de pinheiro,--madeira para embarque,
certamente--havia um par em idílio, muito unido, onde fui descobrir
com grande espanto, a silhueta cómica do Veiga.

Por trás, junto a uma faia sonolenta, detive-me um instante a escutar.
Era o Veiga que falava à creatura, na sua voz gaguejada e um pouco
emfática, em que eu sentia o ex-amador dramático sob uma névoa de
lágrimas molhando-a:

--Não se aflija. Eu tenho relações. Ha-de tornar a entrar p'rà fábrica,
descanse. De que serve chorar?... Torna a entrar, torna a entrar,
digo-lho eu.

E uma voz de timbre fino, adolescente, respondia num chôro sem esperança:

--Não me querem lá mais. Que hei-de eu fazer?...

--Qual não querem! Olha a grande coisa! Mas porque foi que andaram à
pancada?

A outra voz choramingava, aos haustos:

--Eu andava na descarga do carvão... Nunca chegávamos à barca ao mesmo
tempo. Quando eu trazia o cêsto carregado, voltava ela sempre de o
largar... e dava-me encontrões e más palavras. Eu calava-me, mas já não
podia mais. Tudo isto, já se vê, por causa dum rapaz que é da Afurada e
anda a passar o povo p'rá outra banda. Hoje deu-me um encontrão com
tanta força, que me voltou o cesto na cabeça e chamou-me... ainda por
cima. Foi então que me atirei a ela como cega--que até lhe cuspi de
raiva no cabelo... Depois o inspector veio e poz-me fora. E agora...
agora...

Desatou a chorar de encontro ao Veiga. Corria um leste morno de carícia,
e êle passando-lhe as mãos magras na cabeça, gaguejava consolações, mui
comovido:

--Não chore, não chore, torna a entrar. E há-de voltar p'ra casa ainda
esta noite... Eu mesmo vou acompanhá-la... Não tenho nada que fazer. Não
me faz monta... Eu falo à sua mãe, conto-lhe tudo. Já ela lhe não
bate... então... não vê? Depois volta p'rà fábrica, verá. Eu tenho
relações, trato-lhe disso. Amanhã pela manhã...

Não ouvi mais. Nem um sôpro de desejo nessa arenga: apenas o amor por um
ser vivo, a ânsia de o erguer que êle teria, vendo um caule partido num
caminho ou uma rosa ao abandono, a desfolhar-se.

É que os nervos do Veiga, como os de certos artistas que teem génio,
vibravam de amor egual por tôda a Vida, e sentiam nas rosas e na névoa,
nas crianças e nos pobres e nas almas, a mesma ância inconsciente de
Unidade, o mesmo erguer de mãos para a Beleza.

Vi-o depois na Cordoaria uma manhã de inverno, sob o tufo scismático dos
cedros, grisalhos de névoa e de geada.

Debatia-se com grandes gestos aflitos, entre um grupo de garotos que
gritavam. Trazia um frak imenso, parecendo ter sido acastanhado, côco
preto que a grenha intonsa levantava, e na cara chorinca e acriançada,
davam-lhe os olhos rasos, mais que nunca, um ar de melodrama pífio, um
cómico angustioso de careta.

Não me sentiu aproximar. Ouvi-lhe a arenga gaguejada: compreendi.

Um dos garotos apanhara, fisgando-o à pedra, um pobre pássaro que outro
tinha nas mãos agonizante. O Veiga que passeava, interviera, e entre
insultos e risadas, reclamava com palavras patéticas, o pássaro--_para
que o não matassem._

--Se o quer, dê-me um vintém por êle, dizia brusco um dos pequenos.

--Quem?! Olha o peneira! gritava outro às gargalhadas.

Dei o vintém, mandei que lho entregassem.

Foi ao ouvir-me a voz que se voltou. Riam-lhe as lágrimas nos olhos.
Tirou-me o côco, curvado em reverência. Depois, como o garoto lhe
entregava o passarito, recebeu-o com carícia no côncavo das mãos
arroxeadas, e hirto, solene, sacerdotal, veio entregar-mo, erguendo
muito os braços, como se levasse uma píxide sacrosanta.

--É... é de Vossa Excelência... Muito... muito obrigado...

E sem que eu tivesse tempo p'ra fugir-lhe, beijou-me as mãos e deu-mo
ensanguentado.

Encontrei-o muitas vezes de passagem: de manhã, de noite, a tôda a hora.

Às vezes, esquecia-se a olhar muros de quinta, quando caem braçadas de
glicínias, e era dêstes p'ra quem o musgo núma pedra é um afago de
veludo que comove.

Uma noite, vi-o sair com um embrulho de um bazar. Vinha radiante.
Viu-me, flectiu em parábola numa vénia, e foi andando.

Cruzei-o horas depois ao vir do teatro. Seguiu-me. Vi que queria
falar-me e esperei-o numa esquina, a acender um cigarro. Abordou-me com
o cerimonial de mandarim que êle usa sempre. Supus que ia pedir
dinheiro. Mas não: era outra coisa.

--V. Ex.ª desculpe... Está frio e eu venho demorá-lo. Vem decerto do S.
João... é só um instante. É que eu devo uma satisfação a V. Ex.ª. Viu-me
hoje sair do _Bazar dos tres vintens_, não é verdade? Decerto
imaginou que eu fui lá comprar p'ra mim alguma coisa... Não fui: quero
contar-lhe...

--Ó senhor Veiga, que idea! Nem pensei nisso.

--V. Ex.ª consente? Eu vou dizer. Fui lá comprar uma boneca p'rà
Mariinha... Perdão. V. Ex.ª não sabe quem ela é. É a filhita duma pobre
que eu conheço... Tem cinco anos... É um amor de pequenina. Sou muito
amigo dela. Até me chama padrinho... A mãe ensinou-lhe. Já V. Ex.ª vê...
Era p'ra ela...

--Não era preciso dizer, eu nem notei...

--Era o meu dever. Pela consideração que V. Ex.ª me merece. Queira V.
Ex.ª perdoar. Não o importuno mais. Está fria... está muito fria a noite!

Ainda uma reverência e lá partiu.

Estranho Veiga! Como se desentranhou êste ser de hoje, do grotesco banal
que eu conheci?

Como dêsse reles títere, amoroso sovado, trapo humano, ex-amador
dramático e ex-poetrasto, saiu o panteísta vagabundo, o louco duma
misericórdia tão sentida, que eu vi salvar com os olhos rasos um pobre
passarito moribundo?...

A pobre velha, morrendo, _iniciou-o_. Nasceu da sua dor segunda vez...

Uma manhã, em Carreiros, junto à praia, depois das cortesias do costume,
pediu-me uns cobres para ir almoçar. E quando eu ia já a despedir-me,
reteve-me com um gesto, e gaguejou esta oferta, muito lento:

--Peço licença... p'ra uma pequena lembrança a V. Ex.ª Mas antes
prometa-me que a aceita... É uma insignificância, mas cuido que V. Ex.ª
a estimará...

Prometi.

Enfiou solene a mão ossuda no bolso da sobrecasaca coçadíssima, que
vestia sem camisa, contra a pele, e tirou com infinitas precauções, um
asterídeo ainda húmido, perfeito.

--Como sei que V. Ex.ª gosta do mar, pensei em dar-lha. É uma estrela do
mar... Perdoe o atrevimento...

E partiu quando eu lha agradeci, com os olhos loucos rasos de alegria.

Nunca, porém, me feriu tão fundamente o seu amor de louco à Natureza,
como nessa madrugada em que eu o vi numa rua afastada de arrabalde.

Fazia já um calor asfixiante. Estava em cabelo junto a um muro de
quintal, revestido de rosas de toucar, madre-silvas em flôr e clematites.

Todo em gestos litúrgicos, mui lentos, punha rosas a abrir na grenha
imunda, perfumava as mãos com madre-silvas, e passava-as nas fontes,
extasiado.

De quando em quando descaía os braços, descansava assim alguns
instantes, e na cara sugada, pele e osso, os olhos puros riam, muito
calmos, numa beatitude transcendente.

Havia já um grupo em torno dêle, de leiteiras que vinham p'rà cidade, de
moços de lavoura que estacavam. Olhavam-no a rir perdidamente.

Eu pensava em Ophélia, no Rei Lear, nas loucuras patéticas de
Shakespeare, ao ver êsse alienado vagabundo, êsse estranho pedinte de
olhos meigos, que trazia só pétalas nos bolsos, e em plena luz polínica
de estio, oficiava a Pan, de butes rotos, aspirando perfumes
voluptuado...




WORDS...


Words...

(DUM CADERNO DE NOTAS DE C. F.)[2]

--Ao morrer, cada um de nós deve dizer à Morte: «Deixe-me estar ainda um
bocadinho. Esquecia-me por completo de viver...»


--Xerxes chicoteou o Helesponto. Quando nós nos queixamos do Destino,
somos tão pueris como êsse rei.


--A dôr deve ser como um amante--que nos faz sofrer e em quem batemos.


--Nietzsche definiu a glória «a falta de pudor na admiração». No meu
país, é a falta de pudor na incompreensão.


--No silêncio, nascem em nós sentidos: os sentidos p'rà vida do mistério...


--Obsessão a brocar um moribundo:

«Nunca olhei, _sem outra idéa_, para o sol...


--Só a verdade é inverosimil.


--A amizade é uma hipótese divina que só os grosseiros cuidam ter
vivido.


--Avaliamos quási sempre os outros pelas opiniões que teem de nós. É por
isso que conhecemos menos--aqueles que mais julgam conhecer-nos.


--Os artistas procuram no amor, além da satisfação do instincto, a
glória,--na admiração de mãos postas da mulher. Compensa-os de não terem
público, e só tarde percebem--que quanto mais beijados... mais inéditos.


--É preciso ser feliz em família p'ra compreender a volúpia de estar só.


--Porque é que os ciprestes entristecem?... Porque, p'ra nós, são um
soluço alongado e verde-escuro. É bem possível que êles sejam muito
alegres... É por motivos dêstes que muitas coisas nos parecem tristes.


--Alguns dizem: publicar um livro é prostituir-se. Pedantes! O mar
recebe nêle os vossos corpos...


--Quem mais injustamente julga um crime? Primeiro o criminoso, que
estava _fora de si_, que já não sabe; depois os julgadores oficiais--que
estão _fóra de si_ profissionalmente.


--_Aut César aut nihil._ Podes ser um mendigo e ter na tua vida interior
êste brazão.


--Sou por tal fórma talhado para amar--que o meu amor cresce com o meu
desprêso.


--A maior parte da gente é _honesta_--em virtude da lei do menor
esfôrço.


--Há um instante na vida em que cada um de nós se julga um deus: com uma
doutrina a revelar, um calvário nos longes e um profeta...


--Quando depois de lamentar alguêm o vemos salvo, sentimo-nos _roubados_.


--A arte é o refúgio dos que não podem viver integralmente. E muitas
vezes tambêm, uma vingança.


--A mentira e o dever são irmãos gémeos.

Quando naturalmente, por instinto, nós fugimos ao código e à moral, ela
apareceu-nos, máscara doirada, para esconder a responsabilidade. Mas há
outra, a mentira criadora, que é a asa do Sonho e da Beleza. Os
filósofos chamam-lhe:--_Verdade_...


--Umas mãos, um gesto de mulher, um perfume de flôr, ou um velho estofo,
consolam bem melhor que Marco Aurélio...


--As mulheres não falam só ao nosso instinto. Falam mais: sem se
ouvirem, sem saberem... São quási sempre vazias ou banais. Mas para alêm
da frivolidade e do desejo, são verdadeiras fontes de inconsciente.
Numas pálpebras descidas, num olhar, no misterioso de milhares de
_nadas_, há sonhos e sonhos revelados, a expressão do _irredutível a
palavras_.

Elas são na sua vida interior, como crianças a assistir a uma
tragédia... Soube lá nunca a Mona Lisa que tinha tudo o que Vinci
copiou!...


--Um perfume na sombra tem uma voz de aparição.


--A renúncia é uma doença do desejo. Vem com a velhice quási sempre.


--A humildade corresponde no homem ao mimetismo dos insectos.


--Certas preferências--que nem o raciocínio nem a estesia
explicam--despertam em nós sensações de vidas anteriores: um certo
perfume, uma paisagem p'ra outros sem encanto, certa feia, uns versos
medíocres, um acorde banal...


--Recusei ontem uma apresentação a um «homem de princípios». P'ra quê?
Um «homem de princípios» é um homem conhecido: está impresso.


--_Música do mar_--Aquele violinista meu amigo foi viver, por conselho
meu, p'rà beira mar. Ia com uma grande febre de compor. Levava um
quarteto inacabado, um esbôço de sinfonia, outros projectos...
Encontrei-o na praia ontem à noite.--Então... êsse quarteto? a
sinfonia?...--Nem quarteto... nem sinfonia... nem violino... Eu já não
faço música. Pus-me a ouvir a do mar bem simplesmente.


--A moral é um lastro. Deita-se fora p'ra subir...


--Todos dizem adeus com o mesmo gesto. E êsse gesto é o das asas...
Subir é ficar só.


--Quando duas criaturas se amam, não pensam um instante em
compreender-se. Uma vaga de inconsciente submergiu-as. Só mais tarde,
morto o desejo, se reconhecem com espanto, dois estranhos.

Dizem com desespero: «Um de nós mudou. Já não somos os mesmos».


--De uma maneira geral, temos mais pontos de contacto com os nossos
inimigos do que com os nossos amigos.

Amar uma mulher, querer conseguir o mesmo fim, são causas de ódio.


--O nosso inimigo é o nosso cúmplice.


--Os programas de governo estão para a política, como os dogmas para as
religiões. Nem os primeiros interessam os partidários, nem os segundos
os crentes.

--A liturgia obliterou-se, é de uma teatralidade já sem símbolo.
Corresponde à retórica--ou arte de hipnotizar imbecis com gestos e
palavras em que se sacrifica à idea ausente.


--Não há esculturas como as nuvens.


--Os homens que construem um sistema, fazem a própria jaula em que se
fecham.


--A grande indústria humana--a específica--é a fabricação de deuses.


--P'ra viver puro é preciso durar como as espumas: um instante.


--A tragédia de D. João está no supremo poder de seduzir, de que êle
próprio foi a maior vítima. Em nenhum amor matou a sêde.

De mulher em mulher, como outros de idea em idea, êle era,
essencialmente, um homem _bêbedo de Deus_, como Spinosa.


--Um perfume é uma confidência: é tambêm o olhar das flôres, e, segundo
Hello, o seu estilo.


--Viajar é a arte de saborear decepções.


--A magia da viagem, tão grande como a do amor, começa no instante do
regresso. A do amor chama-se--saúdade, a da viagem--evocação.


--Se na morte tivéssemos consciência--gozaríamos emfim a viagem da vida.


--Um artista numa terra nova tem a sensação de nascer segunda vez.


--As escólas literárias são verdadeiras cooperativas de consumo. É só
matricular-se... e cozinhar.


--Os génios são inclassificáveis: são a promessa falhada de outra espécie.


--A garra do génio é a sinceridade.--Falar _por la bocca de su
herida_ é um acto heróico.


--Só são coerentes os factícios.


--Os que se conhecem, são vazios.


--A palavra de honra é uma gazua. Força a credulidade dos ingénuos
quando não temos força moral p'ròs convencer.


--A música é o médium do mistério.


--A eternidade é a sensação de _alguns_ instantes...

Às vezes é num grande perigo que a sentimos: certos segundos lúcidos da
agonia em que se faz o supremo exame de consciência; antes duma operação
grave, quando cada gesto tem um fervor de despedida; nos últimos minutos
dum condenado à morte.

Outras vezes, é num grande gôzo que a entrevemos: no espasmo da cópula;
na aura do ataque epiléptico (que Dostoïevski diviniza); nos primeiros
momentos de admiração por uma obra-prima; na vertigem da criação
sub-consciente; e finalmente os místicos, na absorção em Deus, ou,
segundo a expressão de Dante, quando «partem do século».


--Uma vez, tomando nas mãos uma cabeça de mulher, disse-lhe baixo, com a
vontade perdida nos seus olhos: «Podes fazer de mim o que quiseres».

É isto que eu agora digo à Vida.


--_Testamento dum pobre_--Se eu morrer na primavera, envolvam em feno
aromático meu cadaver nu, cubram-me de lilases e de rosas, deixem-me
decompor assim--com tantos vermes como borboletas!

Enterrem nos meus olhos de morto já gomosos, pecíolos de rosas de
veludo. Não me embalsamem. Que eu seja uma podridão bem petalada!

Ponham-me sob uma árvore florida, p'ra que um vento de cópula passando,
sacuda o pólen sôbre o meu cabelo! Depois no roxo outono, morto, o
mais feliz dos mortos, cada corvo que vier grasnando--há-de partir de
gula o bico curvo contra o meu crânio em que há pétalas murchas...


--O sacrifício é a selecção natural invertida: os fortes servem de
degrau aos fracos.


--A incoerência instintiva, absolutamente sincera, tem uma lógica
interior--a própria lógica da vida--que os psicólogos profissionais
nunca auscultaram. Os personagens de Dostoïevski, por exemplo, ganham
tanto mais em unidade e em verdade, quanto mais, p'ra olhos vulgares, se
contradizem. Bourget é o psicólogo da coerência...


--O grito de Oswald Alving no último acto dos «Espectros»: «Mãe, dá-me o
sol», é o grito que a morte gela em muitas bocas.


--Portugal é um navio naufragado em que a tripulação espera há
séculos...


--A arquitectura que eu mais amo é a dos navios.

Os mastros aspiram como agulhas góticas, mas emquanto a catedral se
queda em êxtase, as velas seguem entre adágios de asas...


--Adoro o mar. Ando a ensinar ao meu desejo um ritmo de ondas, e à minha
dor a arquear de desespero como as vagas--mas a sorrir por fim em pó de
espumas.


--A. é um místico (medievalite e hidrofobia), B. vê tudo Wateau (é um
requintado...), C. é um grego do tempo de Pericles; eu, tal qual tu me
vês, sou um romano...

Quantos homens da Renascença tu conheces!...

O visconde L., por exemplo, é um Medícis...

Como quási ninguêm está nesta época--é bem de ver--quási ninguêm existe.
Os que tu vês--são só sobreviventes... almas fósseis...


--Uma estátua mutilada humilha menos a nossa imperfeição: está mais
perto de nós, comove mais.


--Conheci um poeta que escreveu a «Imitação do Mar», paralelo á
«Imitação de Cristo».

Durante semanas viveu num quarto--só--uma vida de vaga. Encrespou,
arqueou num grande esfôrço, foi um côncavo glauco cheio de asas, e
explodiu a rir--todo espumante...

Só eu sei que se matou por não poder reviver aquela vida.


--Um livro tem p'rò autor uma outra voz: a do seu sangue a correr pelas
palavras.


--O ritmo é o anestésico mais forte.


--O sarcasmo é um soluço que despreza.


--Alguns escritores publicam os retratos nos seus livros. Ignoram,
decerto, que a _vera efigie_ de um artista é o estilo.


--Há no fundo do panfletário mais violento, um pobre diabo ingénuo,
fascinado, que aspira a _conselheiro_--sem saber...


--Receita p'ra fazer sucesso: condensar a banalidade, dar-lhe êmfase e
imprimi-la com maiúsculas...


--Alguns condenam as corridas de toiros e proclamam como uma
obrigação--o sacrifício...


--A procurar o sentido da vida, esquece-se muita gente de viver.


--Conheço muita gente que só olha a natureza... emoldurada.


--O processo, em arte, é o _maquillage_ do talento.


--O sucesso faz-se nos jornais:--a glória no silêncio.


--Quando um homem superior é célebre, ou é admirado por defeitos,
ou então por qualidades que não tem...


--As metafísicas são a _Belle au bois dormant_ contada em ideas.


--Que frio! Deito ao lume os meus deuses p'ra aquecer... É bom ouvil-os
crepitar: lenha divina!

Mas da cinza dos deuses--nascem deuses. Pela janela aberta vejo uma
estátua na névoa: o super-homem!

Criar deuses é a mais estranha função da nossa espécie. Nem podemos
aspirar as rosas: vivemos asfixiados de divino...


--Já viste uma ave livre--adormecida?... Tem nas asas fechadas todo o
ceu. Antes de te deitares, bebe à janela a noite, até caíres...


--A civilização é uma camisa de forças. Há duas maneiras de a rasgar: a
arte e o crime.


--A sociedade perfeita é a de Narciso: a própria imagem reflectida numa
fonte. É o máximo e o mínimo de convívio.


--A alegria é a pérola dos mergulhadores. Só se descobre com muitas
atmosferas de dôr por sôbre os ombros.


--Meditar é viajar através de nós mesmos.


--A lei faz isto: que um homem passe com fome num pomar sem cravar os
dentes num só fruto...


--As academias são o _trust_ da glória. Às vezes, são tambêm o asilo...


--P'ra saberes a expressão que teem as rochas, encomenda uma a um
escultor. Nenhum ta poderá executar. São mil máscaras fundidas numa
máscara.


--A melhor maneira de admirar um escritor é viver segundo o ritmo da sua
obra.


--Viver é adorar com o corpo todo. A suprema oração é o desejo, a
linguagem--a arte, que é o esfôrço heróico p'rà Beleza.


--Morte! És p'ra mim o sal da vida...

O teu silêncio grita:--andem depressa! Deita mais lenha na ambição,
ambicioso; decifrador de enigmas, parte a esfinge; corpo a corpo,
amorosos, sonho em sonho; e tu, maníaco de teorias, bom filósofo, coze
depressa o teu sistema--anda depressa!...

O teu silêncio excita como uma dança de baiaderas: dá vertigem...

P'ra exasperar em nós a sagrada loucura de viver, para que os homens não
percam um instante--ergam-te estátuas nos jardins, nas praças, na
cimalha das academias e dos templos, Musagéta da Vida, grande Morte, com
a lira de Apolo e olhos vazios...


--O que é o mar para o meu corpo, é a dôr para a minha alma.


--A solidão, _beata solitudo_, é o palácio encantado dos espelhos. Ó
alma, corre as tuas galerias. Myríades de retratos, de obras-primas, no
dédalo dos corredores, nas salas lúcidas, echoando em reflexos,
irisando-se, como a palavra de Deus de estrela em estrela. É o teu povo;
és tu, alma: és tu mesma.


--O tacto da alma é a evocação.


--Outono: idílio da Natureza com a Morte.


--O amor é o génio do desejo: um instinto espiritualisado.


--A arte é uma espécie de alchimia: mesmo do crime, extrai o oiro mais
puro.


    [1] Nietzsche.

    [2] C. F., meu ex-condiscípulo, despediu-se de mim para casar, como
    outros se despedem para morrer. Casou depois de ter vivido
    intensamente,--como outros se fazem morfinomanos ou alcoólicos: p'ra
    anular a sua inquietação, a sua febre, na sedativa estupidez da vida
    séria. Sentia-se sem saúde e sem coragem, quer p'ra viver a vida com
    nobreza, quer p'ra ir ao encontro ao seu outono, morrendo a
    tempo--como manda o meu filósofo. Foi há três anos. Nunca mais nos
    vimos. Soube depois, por os jornais, que é deputado e, o que é
    melhor... ou pior, que vai ser par. Não sei se o meu amigo conseguiu
    a paz no anulamento, ou se é o actor duma comédia
    lúgubre--mascarando de banalidade o seu espírito. Deixou-me à hora
    da morte (à hora da vida social, da vida _séria_) os seus cadernos
    de notas--e uma obra de humorismo lírico, de ironia comovida e
    filosófica:--_A Metafísica de uma borboleta._--Estas notas, que
    transcrevo de um dos seus cadernos, de entre as que não ferem
    sensivelmente a moral pública, são talvez--os senhores
    dirão--curiosas.




Índice

                                  PAG.

    Diálogo com uma águia           9

    O precoce                      47

    O homem das fontes             77

    Suze                          119

    O Veiga                       155

    Words                         201





ACABOU DE SE IMPRIMIR ÊSTE LIVRO A QUINZE DE JUNHO DE MIL NOVECENTOS E
VINTE NA IMPRENSA DA EMPRÊSA DO «DIARIO DE NOTICIAS» PARA AS LIVRARIAS
AILLAUD E BERTRAND



ERRATA

A pag. 2, onde se lê: «Colhecem lá o amor etc.», deve lêr-se: «Conhecem
lá o amor etc.»

A pag. 73, onde se lê: «... ressuscitava em gramas sonolontas.», deve
lêr-se: «... ressuscitava em gamas sonolentas.»

A pag. 86, onde se lê: «Aludimos os», deve lêr-se: «Aludimos aos».

A pag. 93, onde se lê: «Com miss Foutain», deve lêr-se: «Com Miss
Fountain».

A pag. 161, onde se lê: «Vivia com a mãe e sem mais parentes.», deve
lêr-se: Vivia com a mãe sem mais parentes.»






End of Project Gutenberg's Serão inquieto : contos, by Patrício António

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1.C.  The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
Gutenberg-tm electronic works.  Nearly all the individual works in the
collection are in the public domain in the United States.  If an
individual work is in the public domain in the United States and you are
located in the United States, we do not claim a right to prevent you from
copying, distributing, performing, displaying or creating derivative
works based on the work as long as all references to Project Gutenberg
are removed.  Of course, we hope that you will support the Project
Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by
freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of
this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with
the work.  You can easily comply with the terms of this agreement by
keeping this work in the same format with its attached full Project
Gutenberg-tm License when you share it without charge with others.

1.D.  The copyright laws of the place where you are located also govern
what you can do with this work.  Copyright laws in most countries are in
a constant state of change.  If you are outside the United States, check
the laws of your country in addition to the terms of this agreement
before downloading, copying, displaying, performing, distributing or
creating derivative works based on this work or any other Project
Gutenberg-tm work.  The Foundation makes no representations concerning
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States.

1.E.  Unless you have removed all references to Project Gutenberg:

1.E.1.  The following sentence, with active links to, or other immediate
access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently
whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the
phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project
Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed,
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This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
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from the public domain (does not contain a notice indicating that it is
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and distributed to anyone in the United States without paying any fees
or charges.  If you are redistributing or providing access to a work
with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the
work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1
through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the
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     you already use to calculate your applicable taxes.  The fee is
     owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
     has agreed to donate royalties under this paragraph to the
     Project Gutenberg Literary Archive Foundation.  Royalty payments
     must be paid within 60 days following each date on which you
     prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax
     returns.  Royalty payments should be clearly marked as such and
     sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
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     the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."

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1.E.9.  If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
electronic work or group of works on different terms than are set
forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

1.F.1.  Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection.  Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or
corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual
property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by
your equipment.

1.F.2.  LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right
of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all
liability to you for damages, costs and expenses, including legal
fees.  YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
PROVIDED IN PARAGRAPH F3.  YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
DAMAGE.

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your written explanation.  The person or entity that provided you with
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providing it to you may choose to give you a second opportunity to
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is also defective, you may demand a refund in writing without further
opportunities to fix the problem.

1.F.4.  Except for the limited right of replacement or refund set forth
in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.

1.F.5.  Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
the applicable state law.  The invalidity or unenforceability of any
provision of this agreement shall not void the remaining provisions.

1.F.6.  INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need, are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
http://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at http://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit http://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including checks, online payments and credit card donations.
To donate, please visit: http://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     http://www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
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