Os tripeiros

By Antonio José Coelho Louzada

The Project Gutenberg EBook of Os tripeiros, by António José Coelho Lousada

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org


Title: Os tripeiros
       romance-chronica do seculo XIV

Author: António José Coelho Lousada

Release Date: September 13, 2009 [EBook #29979]

Language: Portuguese


*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OS TRIPEIROS ***




Produced by Rita Farinha and the Online Distributed
Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was
produced from scanned images of public domain material
from the Google Print project.)






     *Nota de editor:* Devido à quantidade de erros tipográficos
     existentes neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à
     versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com
     o original. No final deste livro encontrará a lista de erros
     corrigidos.

                                             Rita Farinha (Set. 2008)




OS

TRIPEIROS.

ROMANCE-CHRONICA DO SECULO XIV.

POR

A. C. LOUSADA.


PORTO:
TYPOGRAPHIA DE J. J. GONÇALVES BASTO,
LARGO DO CORPO DA GUARDA N. 106.

1857.




I.

A mensagem do Mestre.


                           Alteradas estão do reino as gentes
                           Co' o odío que occupado os peitos tinha.

                                              CAMÕES, LUS. CANT. IV.


Era uma estranha romaria, para quem não tivesse noticia dos alvoroços a
que a morte de Fernando 1.^o e o casamento de Beatriz em Castella tinham
dado causa, a que pelos meados de Maio de mil trezentos e oitenta e
quatro sahia pelas portas da cidade do Porto que davam sobre o rio, e
mais pela chamada Porta Nova. Se fosse facil conduzir o leitor a vêr do
alto das torres que a defendiam aquelle gentio, acreditaria que elle
tinha invadido algum arsenal a procurar disfarce entre o guerreiro e o
burlesco. Um popular cobria a cabeça com um elmo adamascado, e,
mostrando os joelhos através do grosso estofo das calças, com pés
descalços pisava a areia onde o montante que arrastava deixava um sulco;
um outro, parecendo ter em menos conta a cabeça do que o peito, abrigava
este em uma couraça mais que farta, e deixava aquella ao sol e ao vento;
este, vestindo apenas umas calças, se assim se podia chamar um cirzido
de trapos, trazia suspenso de funda um escudo de couro, onde em tempos
estivera pintada ou divisa ou brasão, pois não era já facil adivinhar o
que fôra; de um cinto leonado pendia de um lado um estoque, do outro um
punhal, e, como se não bastassem estas armas offensivas, empunhava um
chuço enorme; aquelle levava um bacinete amassado e um gorjal
ferrujento, e tinha por cinto de grosseira jornea uma funda, o
provimento da qual, como se não fôra uma arma facil de encontrar a cada
passo, pesava em um sacco lançado aos hombros. De tempos a tempos o bom
povo, como lhe chamava o mestre de Aviz, abria aqui logar a um
cavalleiro acobertado de ferro desde os pés á cabeça, seguido dos seus
pagens, ou escudeiros, alem a outros mais exquisitamente vestidos pelo
antiquado das armas, ou pelo incompleto. Havia capacete que, se
Cervantes o visse, não o deixaria ser original descrevendo o que deu ao
seu heroe no principio das perigrinações; peitos de aço polido,
espelhando o sol, que disparatavam com umas grevas desconjuntadas,
enegrecidas, remendo visivel; feixes de armas que desdiziam umas das
outras pelo valor, casando-se a facha grosseira com um estoque cuja
bainha acobertavam ornatos de prata, montantes de Toledo e adagas
grosseiras. Os cavallos iam uns cobertos de ferro, outros apenas com os
arreios necessarios para se poder cavalgar, e não poucos dos
cavalleiros, e aos pares até, montavam em mulas. Os cidadãos que assim
sobrecarregavam os pobres animaes, costume vulgar por esses tempos e por
muitos outros, vestiam em geral a garnacha negra, distinctivo dos
doutores e physicos. Com este mesmo traje, porém arregaçado pela
ponteira da espada, deixando vêr a calça de duas cores e o borzeguim
ponteagudo via-se tres ou quatro aspirantes áquella distincta classe de
medicos e letrados, e com elles alguns monges, que tambem se mostravam
affeitos ás armas pelo modo como seguravam o punho da espada e cobriam a
tonsura com o bacinete. Um dos cavalleiros mais bizarros da romaria era
tambem um ecclesiastico; pelo menos assim o demonstrava um roquete, que
sobre armas soberbas vestia em vez de brial.

De burlesco para a gente que guarnecia as muralhas, as torres, os
eirados e soteas nada havia nesta procissão; de marcial havia muito,
tudo, a avaliar pelo enthusiasmo com que a saudavam, e pelos vivas que
se juntavam ás saudações. Tinha decorrido uma boa hora desde que correra
na cidade que umas galés demandavam a barra, e, posto que houvesse quem
affirmasse logo que eram portuguezas, como dos de casa havia tanto a
recear como dos extranhos, todos se tinham prevenido para as receber. Um
pagem levara já a Ayres Gonçalves e ao bispo D. João a nova de que eram
expedidas pelo mestre de Aviz; porém estes senhores eram então
authoridades quasi nominaes, e deixavam por tanto, para não perderem o
tempo, fazer a sua demonstração aos bons populares e aos cavalleiros que
não eram de suas casas, creação, ou serviço.

Ideia de que no seculo decimo quarto era uma guerra civil, acompanhada
de uma invasão estrangeira, nem todos os que passam os olhos por este
capitulo farão. Hoje hasteam­-se duas ou tres bandeiras, ou mais, se
quizerem, mas, o primeiro impeto passado, a machina civil lá vae
funccionando peor ou melhor por conta dos governos provisorios­;
naquelles tempos, porém, ninguem se entendia por vezes. Cada fidalgo
levantava o seu troço de gente e vendia e revendia a espada; hoje era ao
serviço de um, ámanhã ao de outro; os alcaides dos castellos, a maior
parte dominando as povoações principaes, juravam preito e perjuravam
todos os dias, e as municipalidades lançavam, bom ou mau grado, pela
manhã um bando em favor de um monarcha e á tarde acclamavam outro. No
meio desta bella ordem havia caudilho que dava em ambos os partidos
belligerantes, e sobretudo nos pacificos, aventureiros que se batiam por
si e para seu proveito. Na menoridade do pae do regedor, como modesta e
arteiramente se appellidara o irmão bastardo de D. Fernando, e em quasi
todos os reinados antecedentes, a provincia de Entre Douro e Minho tinha
tido a sua amostra destas amabilidades; mas o que a gente da _ordem_
chama revolução e revolução politica não estalara em tempo algum como
agora. Até ahi o povo contentara­-se, salvo um ou outro caso, com evitar
a ponta da lança dos nobres senhores e o virote dos seus homens d'armas,
e ainda mais de lhe franquear as arcas e de correr os cordões da bolsa,
o que raras vezes conseguia. Os burguezes do Porto, o mais desenquieto
povo de toda a provincia e do reino, tinham já dado mostras da sua força
aos bispos Martinho Rodrigues e Vasco Martins, porém, nestas revoltas se
entrava politica era acobertada: elles não davam por tal. Desta vez o
exemplo da capital fôra-­lhes contagioso, e mesmo sem tão bons motores
como Alvares Paes, desempenháram a sua tarefa por tal arte, que se póde
dizer, que a lei por que se governavam era a sua. Ayres Gonçalves de
Figueiredo, o governador de Gaya admirára da outra margem a valentia dos
pulmões dos partidarios do novo governo, e, posto que não estivesse bem
seguro das suas ideias quanto á legalidade da regedoria, e preferencia
de direitos do mestre de Aviz sobre os do infante, dos deste sobre a
irmã, ou vice-versa, para não lhes avaliar as iras tambem,
contemporisara, soltando as mesmas acclamações. Na cidade havia um
cahos. Os vereadores, governavam; governavam os juizes do povo e o juiz
real; governavam os chefes das corporações; governava, porém menos, o
bispo e os seus meirinhos; governavam até, ou mandavam, os prisioneiros,
ou tidos por taes, como era o conde D. Pedro de Transtamara, que no
campo de Coimbra tivera as suas aspirações á coroa de Portugal, e a ser
o terceiro marido legitimado de Leonor Telles; finalmente, mandavam
todos, se a mais ninguem fosse, cada um a si.

Do pequeno povoado que ficava extra-­muros, composto de uma mescla de
armenios, que nove annos antes tinham deixado cahir o throno de Livonio,
o seu ultimo rei, aos golpes de espada do sultão do Egypto; de gregos da
Asia, escapados á furia dos soldados de Amurath; de flamengos e
genovezes aventureiros, de mouros, os cultivadores da encosta em que o
bairro se abrigava; da pequena povoação, do bairro Armenio, augmentado
ainda depois da tomada de Constantinopla com os piedosos guardas de S.
Pantaleão, ajuntava-se á procissão sahida da Porta Nova uma chusma de
curiosos, que pela variedade de vestuarios, lhe vinha dar realce. Como
em taes casos succede, toda esta gente se embaraçava na marcha, peões a
cavalleiros, cavalleiros a peões; todos fallavam, todos tomavam e davam
concelho, e perguntavam por novas de que iam dar ao primeiro encontrado
uma versão correcta e augmentada com reflexões de lavra propria e
extranha. O espaço que se estendia desde os muros até onde a Arrabida
deixava apenas um caminho de cabras, aberto na rocha para quem se
quizesse dirigir á Foz do Douro, não foi pois transposto em menos de uma
hora, pela vanguarda: uma grande parte do exercito popular nem lá
chegou. Os primeiros que encontraram uma das galés subindo o rio,
gritaram para os tripolantes que lhes dissessem por quem vinham, e como
estes respondessem que pelo Mestre, sem mais attenderem, voltaram atraz,
dando vivas, como se fosse aquillo reforço inesperado, que os viesse
tirar de apuros.

Nas galés não vinha reforço algum para os do Porto, unica terra de
importancia ao norte do reino, que não acceitára como rei o marido de
Beatriz, e tinha a braços setecentas lanças e dous mil infantes do
arcebispo de Santiago e de outros senhores castelhanos e portuguezes,
sem contar os aventureiros de Fernando Affonso, que não eram nem uma
cousa nem outra.

D. João de Castella, feita em Santarem a cessão dos direitos á coroa por
D. Leonor, a troco de vinganças promettidas no povo de Lisboa, que a
respeito della e em rosto esgotára um vocabulario immenso de nomes, de
que Fernão Lopes dá uma amostra, e a mimoseára com pedradas; D. João,
resolveu-se, senão a cumprir o ajuste, pois se malquistára com a
ambiciosa sogra por causa de dous judeus, a destruir a rebellião, como
elle lhe chamava, no fóco, e avançára até o Bombarral, ao passo que
aprestava uma armada que, fechado o assedio por terra, cerrasse tambem
as communicações por mar.

Os arredores de Lisboa talados, as povoações saqueadas não podiam
abastecer de viveres os sitiados; entre elles e Coimbra estavam os
arraiaes inimigos, portanto recorria-se ao Porto, pedindo tambem um
reforço de navios para impedir que o Tejo fosse bloqueado. D. Lourenço,
arcebispo de Braga, azafamára-se para armar as galés que deviam levar
estes soccorros, e o mestre de Aviz encarregára Ruy Pereira de uma
missiva, em que aos bons burguezes se promettia mil regalias; pois D.
João acceitára o conselho de dar tudo o que lhe fosse possivel dar, e
prometter até o impossivel.

Os vivas e o appendice a todo o enthusiasmo politico de morras, naquella
quadra aos castelhanos, aos traidores e aos scismaticos, prolongaram-se
até que as galés em que vinham Ruy Pereira e Gonçalo Rodrigues vararam
perto dos muros da cidade e principiou o desembarque destes e outros
illustres personagens, e ainda maior foi a algazarra quando o estandarte
real appareceu. O conde de Transtamara, como primo do rei de Castella,
não era dos coristas mais fracos deste grande côro desafinado, e fôra
dos primeiros cavalleiros que se apearam para receber os reaes
mensageiros, com toda a cortezania. O povo sem fé naquella conversão e
pouco acatador nesse momento das esporas de ouro, das cotas bordadas e
cimeiras historiadas; o povo, deixando escapar desses epygrammas de que
elle possue o molde particular, em vez de lhe abrir caminho, cerrava-se
na sua passagem, fazendo perder ao fidalgo o aranzel lisongeiro que
tencionava prégar a Ruy Pereira. Ruy era uma notabilidade, como hoje se
diz; porque então ainda se não tinha inventado as notabilidades, nem
muitas outras cousas. Desde que explicára ao mestre de Aviz a opinião do
povo a respeito da rainha Leonor, notando que quando andava para casar
com sua mulher, fallavam todos em que se queria casar com Violante
Lopes, e depois de casado ninguem mais de tal fallára; depois,
sobretudo, que déra o golpe de mercê ao conde valido, abaixo de seu
sobrinho, dos homens de espada com valimento na côrte, era o primeiro, e
para quem estava nas circumstancias de D. Pedro, portanto, pessoa que
era prudente lisongear.

Já então, como se verá no decurso desta narração, se attendia a
conveniencias.

Em quanto os mesteiraes e burguezes embaraçavam o conde, Martim Gil,
abbade de Paço de Sousa, substituia-o dignamente com duas rajadas de
latim, a substancia do todo, que o mensageiro perdeu por não entender a
lingua de Cicero, e uma enfiada de periodos em portuguez garrafal, que
entenderia perfeitamente, se a algazarra tivesse cessado. Ruy Pereira
satisfez-se com vêr abrir e fechar a bocca ao reverendo, e respondeu a
toda esta eloquencia, fazendo-lhe um ponto no meio do recado,
perguntando onde havia de pousar. Martim Gil indicou-lhe todas as boas
casas da cidade desde os paços da Sé e o convento de S. Domingos, até
algumas das vivendas particulares, e o tio de Nuno Alvares escolheu S.
Domingos, mostrando mais pressa de descançar dos encommodos do mar, que
de dar conta da sua missão. O abbade tentou então dar á entrada na
cidade dos passageiros e tripolantes da galé de Gonçalo Rodrigues, e das
outras que iam aproando ao longo da praia, um todo processional, porém
luctava em vão; que era até difficultoso fazer desembaraçar os sitios de
desembarque, onde o povo se apinhava, se acotovallava sem dar descanço
ao pulmão. O Douro não tinha ainda, nas suas soberbas, arrojando as
terras roubadas nas campinas d'encontro á praia; tornado esta tão larga
como hoje; nem os homens haviam com parapeitos avançado sobre o leito
daquelle. O espaço existente logo além de portas, onde havia povoado,
era tão limitado, que, a distancia, parecia que as edificações tinham
para a agua serventia, como os da cidade das lagunas, a rainha do
Adriatico; o estado de exaltação, e animo revoltoso ou independente dos
burguezes e vilões, porém, até em logares mais espaçosos tornava
difficil a empresa do abbade.

Ruy Pereira, apesar de ter presenceado em Lisboa a revolta popular,
fazendo-se popular elle mesmo, não o era tanto que levasse a bem aquella
sem-ceremonia dos portuenses, e lançando sobre os mais proximos um olhar
pouco amavel, reprimindo a custo a vontade que tinha de mandar abrir
caminho a prancha de espada e conto de lança, lamentava _in mente_ os
bons velhos tempos--que já então havia bons velhos tempos--em que a
cousa «peão» descortinando a vontade no gesto de um rico homem, logo
obedecia sem mais tugir ou mugir.

Graças á intervenção dos juizes do povo e real, que, avisados da chegada
dos navios e de quem eram as pessoas que elles conduziam, vinham para as
accommodar em pousada decente e fazer todas as honrarias, que em tal
caso competia, o embaraço terminou. As tres authoridades, duas
municipaes, uma real, duas de muros a dentro, outra ribeirinha, foram
felizes, deve-se confessar, naquella occasião, por não haver conflicto
de poderes, nem recalcitração dos governados, o que era raro, e deveram
esta felicidade a estar satisfeita a curiosidade dos burguezes, e não
ser preciso empregar barqueiro ou pescador algum na amarração dos
navios. A procissão começou pois a mover-se pelas estreitas ruas da
cidade, e, em vez de parar em S. Domingos, seguiu até á casa da camara
no meio sempre de grandes acclamações ao mestre de Aviz, defensor e
regedor do reino, e morras aos castelhanos herejes, scismaticos e
traidores, o que fazia tragar sem réplica a Ruy Pereira o ceremonial
amofinador a que o submettiam os edis portuenses, e a pressa que tinham
de saber em que podiam servir a sua senhoria, o futuro rei.




II.

Um rapaz travesso.


                                         He elle um par bem 'scolhido.

                                               GIL VICENTE.--V. DA HORTA


Quando o mensageiro do Mestre era processionalmente levado pela porta,
que tempos depois deu a um poeta com o nome um trocadilho para um
requerimento em verso, no marulhar de curiosos e patriotas que se
empuxavam, forcejando por abrir caminho para aquelle gargalo, um burguez
que tornava respeitavel o sizudo do traje, uma barriga proeminente, onde
batia uma gorda bolsa de couro e um esguio punhal, cabello branco,
patrioticamente cortado, luctava para não ser levado na corrente, dando
mostras pelo inquieto do olhar que procurava alguem. A força da corrente
era grande, porém, e arrastou-o pouco a pouco até junto de uma das
torres de defesa, onde a ressaca o fazia tomar todas as direcções e
posições possiveis no meio dos gritos das mulheres abafadas, das
crianças trilhadas, do estalar das armaduras, que, permitta-se a imagem,
eram os crustaceos que as ondas daquelle mar lançavam d'encontro ás
rochas. Mestre Gonçalo Domingues suava por todos os póros e formava com
os cotovellos um amparo ao abdomen e quebra-mar á maré, receando ser
lythographado no muro, resmungando ao passo uma ladainha contra o
causador daquelle desastre, segundo se lhe affigurava, um sobrinho que o
acompanhára momentos antes, e que perdera de vista. Resolvido já a
deixal-o por sua conta, pois não estava já em edade de se perder, e a
escapar-se daquelle aperto, começava a recuar, servindo-se dos
cotovellos como de uma alavanca, quando sentiu umas mãos callosas
pousarem-lhe no hombro, sustendo-o na marcha. Sentindo aquella
resistencia, sem vêr quem a oppunha, pois lhe era impossivel voltar o
rosto, e receando de novo ser levado para o muro, empregou contra o
individuo que assim lhe cortava a retirada um cotovellão, que estava na
razão directa da força que o impellia: tudo isto acompanhado por uma
praga:

--Más terçãs te colham, cabeça de bogalho!

A praga a meio, e uma das mãos a erguer-se a descer fechada em murro,
estourando no costado de mestre Gonçalo Domingues, que soltou um
regougo, cambaleou e perderia de certo o equilibrio, se um mesteiral,
que estava na frente, o não amparasse na queda. O burguez, incommodando
com o peso o seu primeiro ponto de appoio, este o saccudiu para um dos
visinhos, que o recambiou sobre o homem do murro, appresentando-lh'o de
cara.

--Se te apanhára aqui, maldito! tornou a exclamar mestre Gonçalo,
soltando outro gemido: punha-te as orelhas a fumegar. Tu m'as pagarás!

Esta exclamação a meia voz, dirigida ao ausente sobrinho, foi
interceptada a meio pelo homem de murro, um marinheiro, que, vendo o
rosto afflicto do bojudo cidadão, se contentou com dar-lhe um grande
encontrão, resmungando, como goso que vê em perigo o osso que esburga:

--Pois junte lá mais isso á conta, meu baleote.

Mestre Gonçalo estava affeito a ser mais bem tractado intra-muros:
doeu-se da chufa dirigida ao seu physico pelo maritimo, e fez-se mais
vermelho do que estava; fez-se roixo, se póde dizer, desde a raiz do
cabello até aos queixos, mas não reagiu. A sua indole era pacifica,
apesar do punhal que o acompanhava; e demais, não via perto de si senão
caras desconhecidas e rostos queimados pelo ar do mar, que podiam ser de
vassallos da coroa, e estes, posto nessa occasião estivessem em harmonia
com os vassallos da mitra, e já um pouco apagadas as divisões antigas,
era de crêr que por elle não tomassem partido. Comtudo, não se ficou,
sem responder:

--Se não está bom, deite-se, ou vá travar razões com petintaes,
espadeleiros ou outra gente da sua egualha; não se metta com quem não se
mette comsigo.

--Olhem o outro! resmungou o marinheiro; abalroou-me com os cotovellos
pelos peitos, e diz que se não mette com a gente; traz aquella cara que
parece mesmo um odre a rever, e grita que um homem cá está toldado!

Gonçalo Domingues, doendo-se da nova zombaria, tornou mais apropriada a
imagem do marinheiro, e cerrando os punhos exclamou:

--Veja como falla!

--Graças a S. Pedro; meu advogado, redarguiu o homem do mar, levando a
mão ao barrete--não é facil de dizer se em attenção ao santo-apostolo,
se em cortezia zombeteira, pelo esgar que fez, ao senhor Gonçalo--graças
a S. Pedro, fallo sem trave. E não me faça biocos nem arremessos,
accrescentou com ar mais carregado: que, se me sobe a maré aos
cascos?!...

--Que é lá isso, mestre Gonçalo? perguntou quasi ao mesmo tempo um
cidadão de pouco menos edade que o interrogado.

--É este excommungado, que se metteu onde não era chamado, e me poz a
paciencia em maior apuro do que já a trazia.

--Excommungado é elle! resmungou o marinheiro, recambiando o apódo que
lhe fôra dirigido, e fitando ora o novo, ora o antigo interlocutor.

--Olhe, mestre Gil, tornou o burguez rubicundo, dirigindo-se ao
recem-chegado; ia eu amofinado por causa daquella cabeça de vento de meu
sobrinho...

--E que tenho lá eu com seu sobrinho? tornou o marinheiro.

--Isso mesmo queria eu que me dissesse! acudiu o senhor Gonçalo.

E, voltando-se para o seu collega, continuou:

--­­Ia eu, como lhe dizia, amofinado, porque o maldito do rapaz se me
escapou--ora sei eu lá para onde!--e não sei que digo de mim para mim,
quando essa creaturinha, como se não tivesse da sua egualha mais com
quem desenferrujar a lingua, travou-se de razões...

--Isso nada vale, mestre Gonçalo! atalhou o homem a quem vimos dar o
nome de Gil, dirigindo-se para o galeote, que lhe voltou as costas,
fazendo uma careta muito expressiva para um companheiro, que, com uma
mão pousada no hombro delle, parecia, na posição que tomava, querer
dizer que alli estava para ir em seu auxilio, se preciso fosse, que não
era.

O gordo burguez, vendo o antagonista voltar-lhe as costas, desafogou
contra elle, com o seu amigo, a cholera, que o ameaçava com uma
apoplexia; e em seguida desafogou tambem a respeito do causador, o
estouvado sobrinho, que desapparecera. Apesar de ter escoado a multidão
pela porta da cidade, de estar já desembaraçado o transito, á volta dos
altercadores havia uma reunião de curiosos, como de costume, cujo nucleo
era uma boa duzia de garotos pertencentes, pelo que dos trapos vestidos
se divisava, a tres religiões; pelo typo, a tres raças, e ao qual se
juntavam por um segundo, que mais não fosse, os arrastados daquella
procissão e todos os que por alli o acaso conduzia. Uma velha que
regressava aos lares com os aviamentos para a ceia, comprados na tenda
d'ao pé da porta, soalheiro do bairro, não escapou, apesar de carregada,
á força attrahente das lamentações de mestre Gonçalo; e, sabida a causa
destas, se appressou em dar-lhe remedio.

--Quer saber do seu sobrinho que esteve no convento, mestre Gonçalo? Bem
se vê que o rapaz não tinha queda para os latins e o hábito; aquillo é
um levantado! Tome sentido com elle, mestre! Agora o vi eu a correr pela
bitesga que vai por pé da casa de João Ramalho. A modos que elle...

A reflexão da velha, se na phrase ficou incompleta, não o ficou no
gesto. A traducção deste era que o rapaz começava a inclinar­-se ás
saias. (Como demos a traducção, ajuntaremos, em nota intercalada no
texto, que a boa santinha parecia, no ar malicioso que tomou,
recordando-se dos seus tempos, ter delles saudade.)

Gonçalo Domingues, sem mais attender á mulher da alcofa, tomou a
direcção do sitio indicado como o seguido pelo sobrinho, resolvido a
descarregar nelle o mau humor excitado pelo seu desapparecimento, pelos
apertões que levára, o cortejo que perdera, e, sobretudo, os apodos e
murros do galeote. Em quanto para lá se dirige, ruminando aquellas
passadas attribulações, saibamos o que fazia o travesso rapaz.

Como já viu o leitor, no antecedente capitulo, no tempo em que estas
cousas succediam, as habitações, em Miragaya, estavam mais perto do rio,
ou melhor, o rio corria mais perto das habitações. Entre S. Pedro e os
muros, havia, no espaço que abre a montanha, algumas bitesgas, de que
ainda se conserva uma amostra, povoadas umas, outras correndo entre
cercados e muros; em outros sitios, um fraguedo deixava apenas o logar
preciso para algum carreiro não muito viavel. A povoação cerrava-se,
apinhava-se mais para o pé da velha egreja de S. Pedro, e rareava
progressivamente para o oriente e poente. Perto dos muros, havia tão
sómente uma fieira de casas á beira d'agua; depois o declive rude do
monte onde se edificou o convento dos Agostinhos, coberto de silvados e
matto, que vinha angustiar mais o passo para a cidade. Onde se tornava
mais suave a encosta, subia um carreiro, que, depois de serpear por
detraz de algumas das moradas do bairro do rei, se bifurcava, levando um
braço a uma daquellas ruas, lançando outro pelo monte, serventia a
casaes que se communicavam egualmente com a cidade pelo lado do Olival.
Por este carreiro é que tomára Fernando, ou Fernão Vasques, o sobrinho
do senhor Gonçalo Domingues, mal viu absorvida a atenção deste nas galés
reaes e seus passageiros. O rapaz correu por algum tempo sem tropeçar,
para o que preciso era estar bem affeito a trilhar similhante caminho, e
só affrouxou o passo quando se approximava de uma casa de boa
apparencia, cuja frente dava para a praia, habitação de uma das
notabilidades do bairro, e que o foi depois, na historia, do piloto e
mercador João Ramalho.

A casa para o lado do rio nada appresentava de notavel na fachada: era
um edificio de madeira como muitos dessa epocha; para o lado do monte,
porém, era bastante pictoresca. A parte inferior escondia-­se em uma
moita de arbustos de um pequeno cercado, onde tambem se levantavam
algumas arvores de fructo, uma das quaes, rompendo, com um braço lançado
á flor da terra o muro de pedra insossa, saccudia sobre o caminho a
folha, a flor e mesmo o fructo, se a gula dos garotos esperava pelos
effeitos do tempo. Acima do verde dos arbustos descortinava-se uma
varanda de pau, onde, no parapeito, davam passagem ao ar e á luz
aberturas symetricas, figurando folhas de trevo, e na parte superior,
zelozias em xadrez, tudo pintado de encarnado vivo e verde esmeralda,
com que realçava o branco que tingia o tabique. De ambos os lados da
varanda descia uma escada, cujos maineis se perdiam entre os arbustos,
depois de se ligarem em um patamar, ao centro, para de novo se
separarem, formando da sorte um corpo saliente na fachada. Por cima da
varanda abriam-­se duas janellas, todas lavradas, ornadas de zelozias
tambem, e tendo por baixo, sobre traves salientes, em cada uma das quaes
artista rude esculpira um animal sonhado, dous caixões com terra. Em um,
apar do qual duas longas canas formavam um estendal, onde se via roupa a
seccar, a providencia domestica semeára salsa e a precaução contra
feitiços dispozera um pé de arruda; no outro, havia um pé de amores
perfeitos e outro de madresilva marinhando por cordões passados para o
guarda-chuva de madeira que os abrigava.

Quando Fernando Vasques se aproximou da casa, depois de alguns assobios,
entre a trepadeira e por cima dos amores, appareceu, aberta a zelozia,
uma cabeça bem propria para encaixilhar entre aquellas flores. Imaginae
um rosto oval, de uma carnação que se não podia dizer branca, mas a que
se não podia chamar trigueira, porque o não era; uma pallidez, sem ser
dessas que denunciam uma natureza enfesada, doentia; uma pallidez que
lhe dava um todo de brandura, de carinho, que fazia por vezes realçar um
carmim vivissimo e trahia um olhar travesso, de travessura infantil,
innocente; imaginae uma bocca de um lindo desenho, formando em cada
extremo uma covinha engraçada; uma bocca que parecia sorrir sempre,
mesmo quando a fronte scismava ou as lagrimas desciam pelas faces;
imaginae que o nariz fôra modelado pelo de uma estatua antiga, e
imaginae, sobretudo, uns olhos castanhos rasgados, assombrados por uma
franja de cilias tão cerrada, que pareciam negros como a baga do
loureiro; uns olhos, emfim, expressivos, verdadeiros espelhos d'alma,
como lhes chamam os poetas, e tereis uma ideia das feições de Irene.
Esta encantadora cabeça enfeitava-se com o mais soberbo cabello que se
póde ter aos quinze annos; negro, longo, serico, ligeiramente ondeado.
Para maior realce da côr, parecia feita á moda que vogava. As tranças,
que vinham pousar no collo, alvo como marfim, eram intermeiadas por
fitas de lã de um vermelho vivo, que se cruzavam depois na cabeça e
vinham cahir soltas, dos lados, terminando em pingentes de metal
dourado.

As leis que faziam distinguir, pela cabeça, as solteiras das casadas e
estas das viuvas cahiam em desuso.

A filha de João Ramalho, apesar da curta edade, era uma bellesa. O
sangue de sua mãe, uma dessas bellas moças da Asia, em que se confundiam
dous typos, o grego e o armenio, predominando, desenvolvera aquelle
corpo garboso; dera-lhe na adolescencia o acabado, a morbidez que só
mais tarde, em geral, em outra edade se alcança. Com o corpo
desenvolvera-se o espirito: desenvolvera-o a esmerada educação materna,
que distava bem da vulgar entre a nossa burguezia naquelles tempos, e os
carinhos da boa mulher, que o senhor João não comprehendia bem,
entretido sempre nas suas viagens e rude, voltados todos para aquella
filha unica, em que se embellezava cultivando-lhe o coração,
aformosearam-lhe a alma. Uma bella alma faz um rosto, senão formoso,
amavel; a intelligencia reproduz-se nas feições como aureola que lhes dá
realce; a natureza, já o dissemos, fôra madrinha e não madrasta para com
Irene: a bella menina, reunindo, pois, todas as formosuras, despertava a
admiração e o amor ao mesmo tempo. A impressão produzida no sobrinho de
Gonçalo Domingues fôra esta, e que o amor naquelle peito tinha boas
raizes, dizia-o a confusão em que elle ficou, mal á janella appareceu a
gentil cabeça. Fernando, um rapaz jovial e resoluto, como o diziam uns
olhos castanhos cheios de fogo, um nariz ligeiramente curvo, os lábios
delgados, accentuados na extremidade por um ligeiro buço; Fernando
baixou os olhos, fez-se vermelho, sentiu que os joelhos se dobravam,
enfraquecidos, e, sem se attrever a fitar de novo aquella apparição, bom
tempo gastou em puxar o barrete de um para o outro lado da cabeça e
amarrotal-o nas mãos, nem creança bisonha que se dispõe a abrir brecha
na bolsa paterna, ou tem de responder por avaria feita, acabando por
desafivelar o cinto da jornea, como se carecesse de tomar largo folego
para levar a cabo a sua empresa.

Não era esta a vez primeira em que alli se encontrava em taes embaraços,
porém nunca tão graves tinham sido as circumstancias. A gravidade não
provinha da escapula feita a seu tio, que já nem de tal se lembrava, mas
da resolução que tomára de realisar as suas ambições e sonhos, as
combinações de tantas horas; de passar além de alguns gestos e sorrisos
e umas saudações feitas do cimo da encosta, não fallando em uma enfiada
de sons, que palavras se não podiam dizer, pois nem elle lhes soubera o
sentido, soltados á porta de S. Pedro entre uns como arrepios, que
attribuiu ao modo porque o encarou a cultivadora da arruda, a creada a
quem o senhor João Ramalho, por morte de sua esposa, confiára o governo
da casa e a guarda da filha.

Quasi egual á força da resolução fôra o abalo, como nestas cousas é de
costume, mas Fernando não estava resolvido a deixar perder mais uma
occasião: puxando o barrete sobre a nuca, subiu a um comoro, ao lado da
quelha, ergueu os olhos e abriu a bocca, porém a palavra
engasgou-­se-lhe a um gesto de Irene. O pobre não prevera que prégar a
sua confidencia daquelle sitio fôra, querendo que ella a ouvisse,
mettel-a tambem nos ouvidos dos visinhos, ou pelo menos das pessoas de
casa, e a moça, levando um dedo aos lábios e indicando-lhe com um gesto
que descia á varanda para encurtar a distancia, se no enleio, no rubor
se mostrava mal affeita áquellas artimanhas, professadas pelo amor, ou
quem suas vezes faz, como do sexo a que pertencia, se mostrava mais
prudente. Irene desceu, mas vencido a meio o inconveniente da distancia,
furtava-se, encoberta pelo cercado da horta, ás vistas de Fernando. Este
eclypse, como diria um poeta, foi que deu ao namorado um animo de que
elle proprio se espantou por muitos dias depois: atreveu-­se a subir ao
muro e marinhar pela arvore que se debruçava sobre a estrada, a
esconder-se entre a ramagem.

Os discursos naquelle dia tinham má sorte: como o que fôra destinado a
Ruy Pereira, o pensado e repensado do sobrinho de Gonçalo Domingues não
vingou. A erudicção do abbade de Paço de Sousa achatar­a-se de encontro
á paciencia do fidalgo; as flores escolhidas para ornar a declaração
feita a Irene (tão rico dellas é o coração em que rebenta o amor!) as
flores de estylo queimou-as um olhar lançado ao mancebo, traduzindo
tanta cousa, que só um desses olhares podia dar bons tres capitulos como
este em que se conta e commenta tanto successo. O olhar de uma donzella,
como a filha do piloto, nestas confidencias de um primeiro amor--deixem
dizer que o amor, o verdadeiro amor só vem muito mais tarde, deixem; que
elles treleem, e julgam que o egoismo aquilata a paixão--; o olhar de
uma donzella assim, encerra um mixto de affecto carinhoso, de volupia
indefinivel, de pudor e innocencia, de receio e ousadia, que, para delle
dar uma ideia, a poesia mesmo é uma linguagem descolorida.

Fernando, mal se viu frente a frente com a moça namorada, sentiu um
formigueiro nos pés, turbara-se-lhe a vista, e teve de se agarrar aos
ramos da arvore, para não cahir; quiz procurar o cabeçalho da sua
declaração, porém nem uma só ideia lhe vinha á mente; por mais de uma
vez abriu a bocca, e teve de a fechar sem formular um unico monosyllabo.
Irene, na varanda, com a approximação tambem se acanhára, e occultava o
seu embaraço, ou, antes descobria-­o, passando a mão pela fronte,
levantando uma trança para logo a abaixar, enrolando e desenrolando uma
das fitas, afogando e desafogando o pescoço com o singelo colleirinho do
corpete. Os minutos que assim passaram não foram poucos. Recuar depois
de ter chegado até alli era desairoso e difficil.

O sobrinho de Gonçalo Domingues fez o supremo esforço para não perder
tudo.

--Irene, Irenesinha! disse elle, amarrotando o barrete com a mão que
tinha desembaraçada.

A moça fitou-o, sorriu-se, e ainda alguns minutos foram desperdiçados,
se desperdiçado se póde dizer aquelle tempo passado em enleio, rápido na
passagem, mas que depois enche com a recordação tantas horas de vida.

--Irenesinha! tornou Fernando, continuando a procurar a musa no barrete.

A moça continuou a fitar o embaraçado rapaz, aguardando que alguma
palavra mais seguisse á invocação. O barrete não absorvera, ao que
parecia, os galanteios estudados, amimados por tanto tempo, pelo que,
depois de larga pausa, Fernando desceu das regiões do amor a cousas mais
terrestres, na linguagem; procurou, se, o que é mais provavel, se não
agarrou á primeira idea visada, um ponto de partida nos successos do
dia, e titubeou:

--Não sabe que chegaram ahi umas galés de Lisboa?

--Sei; respondeu a joven, baixinho, depois de olhar para todos os lados
a vêr se alguem poderia ouvir aquella conversação _amorosa_. Meu pae
para lá foi.

--Foi? interrogou machinalmente o mancebo.

-­-Foi, repetiu Irene, debruçando-se pela varanda e fazendo com uma das
mãos junto do ouvido uma concha para não perder uma só palavra.

--Pois veem nellas muitos fidalgos de Lisboa. Não os viu desembarcar?

-­­-Vi.

--Disseram-me que iam em procissão á cidade, e que traziam um recado do
senhor D. João!

--E não foi vêr?...

--Olhe, Irene, atalhou Fernando em voz mais baixa e intercortada, por
muito que tenham que vêr, eu antes quero estar aqui. A menina é que não
sei como não vai para o lado da praia.

--Para que? Tão longe fica o lugar onde vararam as galés, e está um
gentio...

--Então, se podésse vêr, não estava ahi.

--Porque não? disse Irene, córando.

--Porque... porque, titubiou Fernando, baixando os olhos; porque
aquelles fidalgos com as jorneas bordadas, aquellas armas a espelhar são
mais para se verem...

--Da janella, tornou a moça, encolhendo os hombros; da janella não se
podem admirar esses alindes.

Fernando baixou a cabeça, desconcertado o seu intento. A moça não vinha
para o campo para que elle a queria trazer: não o entendia, pensava
elle, e se o não entendia é porque o não amava. Se soubesse avaliar a
entonação de certas palavras não pensaria daquella sorte; porém todos os
namorados assim são: não reparam nas rosas e colhem os espinhos.

--Oh! Irenesinha, e se esses fidalgos viessem fazer uma leva para a
guerra contra os scismaticos de Castella? tornou o mancebo, procurando
levar a conversação ao fim desejado.

--Para que pensar nessas cousas!

--E se me levassem? insistiu elle.

--Mas elles não veem para isso; não, senhor Fernando? disse a donzella
com uma inflexão de voz, que pintava o receio de que uma affirmativa
fosse a resposta.

O sobrinho de Gonçalo Domingues não notou esta expressão e proseguiu:

--Não se lhe dava que eu fosse?

--Eu?

--Sim; parece que não teria pena alguma.

--Não diga essas cousas!

--Pois devéras magoava-a a minha partida?

--Devéras; disse Irene, passando a mão pelo rosto, para occultar as
tintas do pejo, que a elle assomavam com esta confissão.

--Não diz o que pensa, acudiu o mancebo, imprimindo, cheio de alegria,
um tal abalo á arvore, que esta, oscilando o roçando de encontro ao
muro, fez desprender algumas pedras.

--Jesus! vai cahir! exclamou a donzella, tornando-se pállida.

--Ai! Irenezinha, só para vêr se o que diz é certo, de boa vontade
quebrava a cabeça.

A moça, em vez de responder, com um gesto impoz silencio ao seu
conversado. Do lado de baixo ouvia-se os passos de quem para alli se
dirigia, e pouco depois appareceu Gonçalo Domingues.

--É meu tio, disse Fernando, com voz tão sumida, que para si tão só
parecia fallar, e no momento em que o rotundo burguez passava distrahido
junto do muro, querendo esconder as pernas que deixava pender de um e
outro lado do galho em que cavalgava, de novo oscilou a arvore
violentamente, mais arruinando o muro a que se encostava.

--Oh velhaco, que fazes ahi empoleirado?

--Eu, senhor tio? accudiu o pobre rapaz, coçando na cabeça com toda a
furia.

--Sim, tu, Belzebuth! Salta cá para baixo, que te ensino a andar a
roubar fructa pelos cerrados.

--Oh meu tio, a arvore não tem fructo; olhe bem.

--Então que fazes ahi?

--Eu estava a vêr...

--O que, rapaz de má morte, cabeça ôcca?

--A vêr se o via por algures, proseguiu o desconcertado mancebo.

--Levadigas te colham! Procuraste atalaya bem longe do caminho. Ora,
desce, que eu te vou ensinar chanças melhores.

--Cuidei que ia pela Aljama.

--Algemia é isso que tu estás a prégar. Desce, velhaco!

--Lá vou, tio; disse Fernando, descavalgando, porém deixando-se suspenso
pelas mãos do seu poleiro. Mas...

--Mas o que? Por tua causa em boas me vi, e tu m'as pagarás juntas. Eu
farei de modo que não tenhas mais vontade de ir devassar hortas e
cerca­dos. Se vais por esse caminho, acabas nas mãos da justiça!
exclamou o senhor Gonçalo Domingues, com sobrecenho provocado pela
recordação de desaguisado da praia.

Fernando deitou á donzella, que toda trémula se conservava encostada á
varanda, um olhar a furto, não se attrevendo, por envergonhado de ser
assim, alli na presença della, tractado como uma creança, a uma
despedida; com outro relance d'olhos avaliou se as ameaças do tio não
teriam, na execução, algum desconto, e lentamente, soltando um suspiro,
desceu da arvore em que, ao modo das aves, tinha soltado as primeiras
confidencias do amor. Tão depressa sentiu nos pés o contacto do
pedregulho da bitesga, como sentiu nas orelhas o da mão de mestre
Gonçalo, que acompanhava cada puxão com um epitheto pouco amavel,
terminando pelo de «ladrão».

--Ladrão não! exclamou o rapaz dando um salto, ferido pela insistencia
do tio naquelle ruim conceito.

--Então que fazias alli, rapaz dos meus peccados?

Alguem, não o interrogado, se encarregou de responder. Á janella onde
vecejava a arruda assomou um rosto encarquilhado, meio occulto em uma
enorme touca de linho a feição das que usam as freiras, e gritou com uma
voz de canna rachada, debruçando-se:

--Menina Irene! menina Irene!

Gonçalo Domingues suspendeu as suas iras, e estendeu o lábio inferior
com um gesto que queria dizer muita cousa, e, entre outras, que atinava
com o motivo de ter o sobrinho trocado a procissão dos fidalgos por uma
ascensão ás arvores do senhor João Ramalho. Lembraram-lhe as palavras e
os momos da velha da praia.

--Já agora vamos pela Aljama, e de passo fallarei com meu compadre;
disse em seguida, dando um encontrão ao mancebo e indicando o carreiro
que subia a montanha.

Mettendo-se a caminho, voltou a cabeça, como a voltára Fernando, para a
casa do mercador, e viu na janella do andar superior, por entre a
zelozia meia aberta, o rosto da gentil menina.

--Á fé, disse elle por entre dentes, que o rapaz não tem ruim gosto; e
ella...

A palavra foi terminada por um sorriso, olhando para Fernando, como
desvanecido do seu sangue. Gonçalo Domingues era um excellente homem,
apesar de toda a sua aspereza apparente.




III.

Os Velhacos.


     Aquelles cidadãos nobres praticavam n'isto com mais deliberação,
     como homens, que tinham mais que perder, que os plebeus que seguiam
     o Mestre...

                                                CHRONICA DE D. JOÃO 1.^o


Uma cidade da peninsula, no seculo XIV, não era um aggregado de
individuos vivendo, como hoje, debaixo da mesma lei--segundo reza a lei,
entenda-se. Afóra as distincções de classes e senhorios diversos, havia
a distincção de crenças, e a separação era visivel nas grossas cadeias
que tornavam ao cahir das Ave-Marias incommunicaveis certos bairros. O
Porto tinha de tudo: subditos da coroa e subditos da mitra, e no tempo
em que succedia o que narramos, moradores que nem reconheciam uma, nem
outra; havia christãos, mouros e judeus. Sobre um monte alteavam-se as
torres da Sé, e os paços fortificados do bispo; sobre o outro mais
humilde levantava-se a esnoga, ou synagoga, e na encosta, entre um e
outro, a pequena aljama appresentava-se, como o symbolo da religião do
propheta de Yatreb, querendo approximar-se do Evangelho e da Biblia, e
lançando depois pela encosta um ou outro casebre, como transição para
alguma morada de heresiarcha que se occultasse entre os foragidos do
Oriente. A aljama era a mais pobre: a esnoga era a mais rica; a cruz,
mais alta, dominando as duas, era a mais forte.

Aljama, municipio, cathedral, esnoga, tudo fôra cintado pela mesma
muralha, como para viver em boa fraternidade; mas esta aguara entre os
dous filhos de Adão, quanto mais entre tanta gente. O judeu despresava o
mouro; o mouro despresava o judeu; o christão despresava a ambos, e,
como fizera a lei, talhára para si mais regalias e para os outros mais
tributos, reservando, para os que nada tivessem de seu, o direito de se
lamentarem em particular de algum pescoção de burguez arrufado, gilvaz
de cavalleiro, pedrada de garoto e praga de rascôa enraivecida, ou velha
rabujenta. Era uma sorte bem agradavel, feliz, comtudo, aquella, em
comparação á que lhes prepararam, aos judeus especialmente, uns beatos
mettidos em politica, de que se serviam para ganhar o céu, suppunham
elles, e um bando de togas, garnachas e roupetas que se serviam do céu
para apanhar dinheiro. Aquella animosidade era a regra geral, mas toda a
regra tem excepção, e na mouraria era ás vezes recebido com os braços
abertos o mesteiral; na judearia havia mão que se estendia ao burguez em
prova de amisade sincera, e um ou outro filho de Israel achava agasalho
não chorado na casa do christão, mesmo quando aquelle não tinha a arca
cheia de boas dobras; que em tal caso todas as portas se abriam, desde a
do paço régio ou episcopal e a do solar do nobre, até á da cella do
reverendo abbade, e a do leigo, e sobre elles choviam honras e mercês;
como eram prova viva D. Judas e D. David, duas creaturas, que, fazendo
grande arruido na côrte, jogaram com os destinos do paiz, como bons
ministros de finanças­--o nome, o titulo ainda não estava creado, mas a
cousa já existia--não se esquecendo de tirar delle todo o succo
possivel. Gonçalo Domingues vivia em boa harmonia com o arabi, ou arrabi
menor, harmonia que o devia lisongear, pois era até certo ponto uma
notabilidade, como chefe dos judeus da cidade e como homem de teres, e
por isso se resolvera a subir a encosta, pelo lado do Olival, para
fallar em certos negocios em que desejava servir um seu compadre, e
tractar da compra de porção de gado. O velho Gonçalo, forçureiro nos
seus principios, reunira o cabedal bastante para alargar a área do seu
commercio: estendera-o ás carnes-verdes e ensacadas e a pellames de todo
o genero; tornara-se em fim um negociante de consideração, como um seu
collega de Coimbra, que salvou a patria, emprestando a sua senhoria, o
Mestre de Aviz, alguns punhados de dobras, serviço que lhe rendeu a
doação de alguns bens nacionaes e a gloria de ser o tronco de uma nobre
familia. A nobreza de elmo cerrado atira-se aos fidalgos do seculo XIX,
lançando-lhe em rosto o não ser com a espada que lavrassem os seus
escudos; mas é porque não teem paciencia ou vagar de revolver os
archivos da familia, senão deixaria de atirar pedra ao telhado dos
visinhos, vendo os seus de vidro: se por tal de vidro os podem
considerar. Deixemos reflexões, porém, e retrogrademos ao bom tempo, que
assim se chama sempre ao tempo passado, a apanhar o rico burguez e o
sobrinho á porta do Olival.

No campo, que, extra-­muros, por aquelles lados se estendia, ainda se
viam alguns individuos, que, com os olhos postos no rio, pareciam
analysar as galés chegadas; mas era visivel que, de todos os portuenses,
estes, que assim ainda pasmavam, eram os menos curiosos, os mais
indifferentes á lucta travada. A boa parte, farrapos, que em bom tempo
tinham formado uma aljuba, denunciavam como decendentes de Tarik; a
outros distinguia-os um circulo de lã amarella pregado nos grosseiros
tabardos; o resto não se distinguia por cousa alguma da roupa, porque
naquelle cerzido de trapos nada se podia distinguir. Os curiosos, os
verdadeiros curiosos tínham, como vimos, descido á baixa da cidade, e
mais crescera o numero depois que se soubera que nada havia que receiar
das galés, e que Ruy Pereira e os outros capitães desembarcaram e
seguiram processionalmente para os paços municipaes. Gonçalo Domingues,
intercalando as combinações de seu negocio com reflexões sobre a
descoberta feita dos amores de seu sobrinho, reflexões que faziam com
que a este mostrasse gesto carregado, e interiormente se sorrisse,
avivando na memoria os seus verdes annos: medindo de tempos a tempos a
altura do sol, que não eram depois de Ave-Marias seguras certas
paragens, passeava de um para o outro lado do campo: Fernando
acompanhava-­o, voltando a todo o instante a cabeça para Miragaya;
procurando aproximar-se de sitio d'onde podésse ao menos vêr a casa do
mercador; reprehendendo-se por não ter aproveitado melhor o tempo que
passára junto de Irene, dizendo uma fineza daquellas do livro de
cavallerias, que frei Gumeado lhe deixára lêr; descoroçoado por aquelle
final, que de certo o rebaixaria no conceito da linda moça. O sobrinho
andava tão embebido, que nem sentia os pés tocar no chão, e o campo não
era jardim areado; o tio cançava-se já de aguardar seu compadre, que não
encontrára em casa, quando a apparição de um personagem veio pôr em
movimento os frequentadores do campo: uns deslisaram-se, o mais
sorrateiramente que lhes foi possivel, pela encosta e por entre o
arvoredo, outros perfilaram-­se, e levaram as mãos aos barretes, os que
os tinham, mostrando, comtudo, pelo gesto, que não era a estima, mas o
temor que os levava a esta delicadesa.

O recem-chegado, personagem lhe chamamos, e mostrava-o ser de conta
entre aquella gente, era uma figura notavel. Um barrete de tela vermelha
de forma exquisita rematava, assentado sobre um capirote, uma fronte um
pouco crescida e saliente, complemento de um rosto ossudo, moreno, em
que dous olhos desesperados com a proeminencia de um nariz, que se
mettia em tudo de permeio, tinham aca­bado por enviar as pupillas, cada
uma para o seu lado, a tomar conhecimento com as orelhas; o lábio
superior era adornado por um bigode esfarrapado, de côr duvidosa, ou de
todas as côres possiveis--preto, branc­o, castanho, louro e ruivo--e de
egual mescla eram os pellos que deixava crescer no queixo. Da cabeça não
desdiziam o resto do corpo e o vestuario: trajava um gibão bipartido
preto e vermelho, e uma das longas pernas enfiava-se em uma calça e
borzeguim vermelho, a outra em calça e borzeguim preto; do pescoço
pendia-lhe uma medalha de metal amarello, com as armas da cidade, da
cinta um grande punhal e uma enorme bolsa de couro, e na mão sustinha um
bastão, terminado por uma cabeça de metal cinzelada, ao que parecia, por
artista que tomára a delle por modello. Medalha e bastão apregoavam que
Tello Rabaldo era o pae dos velhacos, cargo que não tem hoje
correspondente, por não tolerarem as luzes do seculo absurdos. Tello
superintendia, governava tão sómente cidadãos que em noites serenas teem
o docel do leito recamado de estrellas, jejuam sem devoção, deixam
crestar o corpo pelo sol de Agosto e gelar o sangue pelo frio de
Janeiro, e chamar-lhes velhacos era alterar a significação das palavras,
se não era malicia de legislador, que assim arrebanhava e baptisava
alguns centos de creaturas, para que se persuadissem as de boa fé que na
terra não havia mais, como os hospitaes de doudos lisongeam muita gente
que não é forçada a não ter lá moradia. Os velhacos, os verdadeiros,
então, como hoje, não se deixavam governar, sempre governavam tambem, e
havia-os anafados, vestindo custosas telas e abrigados em paços
soberbos.

--Eh! boa gente! exclamou Tello, dirigindo-se aos individuos que
tractavam de lhe evitar a presença; então assim querem fugir a seu pae!
Vamos, venham receber a benção, como bons filhos, e com a benção uma boa
nova. Olá, Pedro Choca! accrescentou, depois de honrar com um sorriso a
facecia que servira de exordio, dirigindo-se a um dos que se
desbarretava; que nenhum dos teus falte depois de ámanhã na Ribeira.
Onde está o João Bispo?

--João Bispo, redarguiu o interrogado, ha dias que desappareceu.

--O velhaco voltaria para o convento farto de estar deitado de barriga
ao sol, ou se metteu outra vez com a filha do velho Humeia, e está a
fazer penitencia por ter peccado com moura?

--Ou se foi lançar com os scismaticos...

--Para que? Toma conta em ti! Chegou-me aos ouvidos que te travaste com
elle de razões por umas nonadas, e se me déste cabo do rapaz, em boa te
metteste! Se não me trouxeres em breve novas delle, a tua pelle m'as
dará. A polé do aljube está nova, e poderá bem comtigo.

Choca resmungou por entre dentes algumas palavras, e o pae dos velhacos
proseguiu:

--Avisa aos compadres para que ou vão comtigo e mais a sua gente, ou a
levem para as tercenas. Que não falte ninguem! Quero duzentos homens,
bons pulsos...

--Duzentos homens, bem sabe sua mercê que não podemos reunir. A melhoria
da gente levou-a o senhor conde Gonçalo; o senhor alcaide tem boa
porção, e se creanças, mulheres e aleijados não servem...

--E esses perros de cabeça amarrada! exclamou Tello, designando um mouro
que a curiosidade trouxera para junto de Pedro Choca, capataz de uma
turma de vádios. Quanto aos aleijados, sei de uma mésinha que os põe
sãos como um pero, ajuntou, mostrando o seu bastão; o manco da porta da
Sé que o diga. Vamos: sua senhoria (uma barretada) appellidou os bons
homens da sua boa cidade (outra barretada) para que o ajudassem a dar
cabo dos perros de Castella, e os alvazires dão-vos honra mettendo-vos
na conta dos bons homens... fazendo-vos trabalhar. Que ninguem falte, e
viva sua senhoria!

--Viva sua senhoria! repetiram os vádios e com elles Gonçalo Domingues,
que se approximára da roda formada ao pae dos velhacos, roda desfeita a
um signal por este dado com a vara, deixando a importante, incansavel e
incorruptivel auctoridade, como lhe chamariam hoje, que todos os
encargos teem um ou mais adjectivos annexos, face a face com o burguez,
que abria a bocca para indagar quaes os serviços que o filho de Thereza
Lourenço reclamava dos portuenses.

A interrogação não foi formulada. Tello Rabaldo, cheio da sua
importancia, fez uma leve saudação, carregou o barrete sobre um dos
olhos em rebeldia, e girou sobre os calcanhares ao mesmo tempo que um
outro individuo assentava nos hombros do forçureiro uma grande palmada.
Gonçalo Domingues voltou-se a vêr quem segundava a amabilidade do
marinheiro, e se não reconheceu logo o seu compadre, foi porque um
abraço de metter costellas dentro o suffocou. O bom homem vinha
lisongeado com a carta de que Ruy Pereira fôra portador, lisongeado em
extremo no seu patriotismo de localidade, e expandia o seu contentamento
daquella sorte e em exclamações, que fizeram suspeitar ao tio de
Fernando, que não estava em bom arranjo aquella cabeça. D. João chamava
aos portuenses o seu bom povo, mi­moseára-o além disso com outros
epythetos taes como--leal, esforçado, etc., e o portador, resolvido,
apesar do seu enfado, a ser amavel e popular, pintára a amisade e
reconhecimento do Mestre, pela espontaneidade da sua acclamação na
cidade da Virgem, com taes côres, descera da sua dignidade
prodigalisando sor­risos ao corpo municipal, batendo no hombro de Luiz
Giraldes de um modo, que o nosso homem esteve por um triz a deixar cahir
uma lagrima de commoção. Era uma alma candida e enthusiastica, apesar do
involucro grosseiro, o compadre do senhor Gonçalo Domingos; tão candida
que acreditava no desinteresse do Mestre de Aviz, suppondo que defendia
a coroa para a entregar ao filho de Ignez de Castro; tão enthusiastica e
patriotica que, quando, á força de lhe perguntar o marchante se
encontrára o arrabi, seccas as goellas e já sem alento para descrever a
reunião nos paços municipaes e mais epysodios da embaixada, se recordou
do seu negocio, era tarde. O sol ia quasi a mergulhar no oceano, e era
provavel não só que, na judearia estivessem fechadas as ruas, mas até
que se lá fossem, encontrassem as portas da cidade cerradas no regresso.
Os dous burguezes separaram-se, pois: o patriota, compadre de Gonçalo
Domingues, seguiu pelos campos em direcção ao povoado de Cedofeita;
est'outro, despertando o sobrinho de pensamentos em que não entravam nem
compras, nem vendas, nem os direitos que os filhos de Henrique 2.^o de
Castella e D. Pedro 1.^o de Portugal, podiam ter á terra que pisava,
tomou com elle o caminho de casa.

As nuvens, que o norte espalhára no ar, como flocos de algodão, ornadas
pelas tintas que formam a gradação entre o rubro e o amarello vivo,
davam ao céu a apparencia de um marmore, um todo que em pintura seria
inverosimil; os edificios de Villa Nova e de Gaya cortavam com o perfil
o horisonte, vestindo pouco a pouco uma côr uniforme, o cinzento-escuro.
De um destes edificios, o que mais se avantajava, do castello de Gaya,
as janellas esguias voltadas para o poente pareciam dar sahida aos fogos
de um incendio. De que não era, porém, este chamejar mais que um reflexo
do sol no occaso, se poderia desenganar quem, mesmo nunca tendo
presenceado este phenomeno, se nos anticipasse na residencia do tenente
do conde D. Gonçalo, onde uma hora depois lhe provariamos que a
reflexão, ao appresentar Tello Rabaldo, não fôra de leve feita: velhacos
não eram só os que não tinham nem leira nem beira.

Em uma das salas que no castello serviam de apposento ao alcaide,
revestida de apainelados de carvalho, em que a luz do dia, coada pelos
miudos vidros de côr, formando losangos, embaçava, e embaçava egualmente
a que davam as tochas sustentadas por braços de ferro, passeava de um
para outro lado um homem de alguma edade já, magro e de estatura
mediana. No peito de uma especie de camisola de panno de curtas fraldas,
cujas mangas, farpadas nas orlas, pendiam até ao joelho, viam-­se
bordadas a verde com nervuras de ouro tres folhas de figueira; o mesmo
distinctivo se reproduzia em uma bolsa de couro, que, do lado contrário
ao estoque, acompanhava um punhal, nos fartos reposteiros das duas
portas, que para a sala davam serventia, e na manga da jornea de um
pagem, creança de dez annos, que cabeceava com somno a um canto. O
barrete adornava-se com duas pennas de aguia, presas em fecho de ouro, e
os borzeguins apresentavam uns longos bicos, moda que um epysodio da
guerra travada deixou assignalada na historia. Encostados, no vão de uma
janella, conversavam, em voz baixa, uma dama e um individuo que se
tornava notavel por usar crescido o cabello, raro e de côr avermelhada,
e por uma longa espada, de que affagava o punho. Do lado opposto havia
seis individuos, um dos quaes vestia hábito monastico, e outro se
acobertava com uma velha armadura de malha.

O homem que passeava era Ayres Gonçalves de Figueiredo; a dama era a
esposa deste, D. Catharina; o individuo, que lhe fazia companhia, o
irlandez Guilherme Down-Patrick; os restantes eram quatro cavalleiros,
homens de solar de Entre-Douro-e-Minho, o capitão de besteiros, Pero
Bedoido, e frei Garcia.

As passadas do alcaide soavam mais alto do que as poucas palavras que
toda aquella gente trocava entre si, e visivelmente preoccupava-­o
negocio, que não era para os outros estranho, a não enganar o modo
porque de tempos a tempos se fitavam e a meditação que se seguia. Duas
pessoas se subtrahiam á influencia geral, a castellã e o irlandez: se se
calavam era, ella para amimar uma galga branca, que se enroscava sobre
um escabello, elle para com a vista percorrer a laçaria e penduróes do
tecto.

Segredos e silencio, aquelles olhares e gestos tinham um todo
mysterioso, que houve por bem quebrar Ayres Gonçalves.

--Que me dizeis, senhores? exclamou, estacando no meio do passeio, como
a procurar alvitre que viesse pôr termo á sua irresolução, parecer que
se conformasse com o que tinha na mente.

Ninguem respondeu, porém, e o castellão, lançando á volta de si um olhar
de quem queria lêr nas physionomias dos hospedes as suas intenções,
proseguiu:

--Sua senhoria quer em volta de si todas as lanças do reino, e não se
lembra, ou não se quer lembrar de que fica desguarnecida uma terra tão
importante como esta, e cercada por tantos senhores que levantaram voz
pela rainha D. Beatriz. Deixa a cidade aos peões, aos peões, que tracta
como a gente de prol?!

--Em boa confusão vae pondo as cousas! Um dia, veremos, senão lhes pozer
cobro ás ousadias, vir arraya tomar-nos os solares; atalhou, abanando a
cabeça com ar sentencioso, um velho fidalgo de Riba-Tua. Bem altaneiros
andam já burguezes e mesteiraes!

--Deixae, accudiu Affonso Darga, as encamiza­das dos peões, que terão
seu cabo. O Mestre precisa de sustentar a guerra, e lisongea por isso
quanto mercador tem a arca bem provida de boas dobras, tornezes, gentis,
florins e pilartes. Aos do Porto pede elle agora uma armada, mantimentos
e dinheiro.

--Armada que nos levará a vêr o rosto ás hostes de Castella; tornou
Ayres Gonçalves.

--Se se fizer.

--O povo do Messias de Lisboa a arranjará. Não viram como os alvazires
propozeram logo uma derrama, e juraram a Rui Pereira que teriam antes de
um mez a nado algumas naus e outras se armariam dos melhores navios do
commercio com Flandres?! Estão inchados com o valimento que lhes dão.

--Por ahi se conhecem os vilões...

--É que dão elles ao Mestre? Grande cousa! Em campo se verá de que
servem, e no campo é que a contenda tem de se decidir. Irão com béstas,
virotes e azevans fazer frente ás lanças de Cas­tella? Lingua teem
elles; mas brio é que nem toda a algaravia desses mestres em leis e
clerigos, que o regedor tomou para seus conselhos, esses falladores de
Pisa e Bolonha, poderá metter nessa gente.

--Mas nella se estriba D. João, disse, meneando a cabeça, um dos
cavalleiros.

--Para elles appella com boas palavras; a nós manda-nos, não recado, mas
ordem! exclamou o alcaide. É dessas garnachas sahidas do nada que vem a
desconsideração em que nos tem.

--Tempos do rei D. Fernando! suspirou Down-Patrick, recordando-se talvez
de quando as hostes do duque de Lencastre faziam, entre os alliados
por­tuguezes e os inimigos de Castella, de tudo roupa de francez.

--Era um bom rei o que Deus tem! ajuntou frei Garcia, fazendo uma momice
de piedade.

­--Rei, e creado como rei, bem sabia elle onde estava a força e grandesa
do reino e sua.

--E melhor agasalho não nos fazem sempre no campo do marido da rainha D.
Beatriz. Aos de sua casa aconselhou D. Leonor que fossem para o Mestre,
que ao menos não era soffrego.

--Com isso perdeu D. João: perdeu-o a altivez.

--E ao Mestre não approveitarão as mercês rastejadas.

--Elle não precisa de nós, tornou o velho, o mais desappontado dos
hospedes do alcaide, ao que perecia; faz cavalleiros a seu capricho do
primeiro peão que se lhe antolha.

--Bons cavalleiros! observou, rindo, o mais moço da reunião. Por lá
andam montados em mulas fazendo rir com os seus ares de importancia. Não
será preciso, para os derribar, erguer clava ou montante: andam tão mal
a geito com arnez e grevas, tão abafados pelos elmos, os que os teem,
que ao primeiro arranco das azes vão ao chão.

--Em se tractando de lançadas é comnosco que se haverão, bem o vêdes,
disse Ayres de Sá.

--E ireis, senhor alcaide? interrogou Affonso Darga.

--Eu, senhores, respondeu Ayres depois de alguma hesitação, levantei voz
pelo Mestre, mas recebi o castello do conde D. Gonçalo: obedecerei a sua
senhoria em tudo, mas só abandonarei o castello...

A phrase do alcaide não terminou. D. Catharina, approximando-se de seu
marido, e impondo-lhe com um relance d'olhos a conveniencia de não
proseguir, atalhou:

--Largos dias tendes para tomar conselho, cavalleiros; alegrae o sarau
com outros contos. Cousas de tanta importancia não se devem tractar de
salto: o tempo que se leva a pensar em casos taes não é perdido. Tomai
exemplo de D. Gonçalo Telles, ajuntou mais baixo, dirigindo-se ao
esposo.

D. Catharina de Figueiredo era, até certo ponto, uma dona prudente, como
chama um historiador, por egual conselho fabiano, a Beatriz Gonçalves de
Moura, aia depois da excellente rainha D. Philippa. O exemplo do conde
era um grande exemplo, pois era de homem que sabia, ou parecia ter de
memoria o _Sic vos non vobis_ de Virgilio, e dar-lhe o valor devido nas
cousas do mundo. D. Gonçalo fechara-se em Coimbra, jogára­ com sua irmã
um jogo pouco leal e parecia aguardar que a sorte decidisse qual dos
pretendentes á corôa tinha razão e direito, ou força e geito para a
segurar na cabeça. O alcaide approveitou o conselho e abandonou o thema
em que o lançára o mau humor causado pela mensagem de Ruy Pereira.

Palestra sobre outro assumpto era naquella occasião difficil de
sustentar. Os cavalheiros pouco a pouco deixaram a sala, e quando só
restavam o aventureiro, Henrique Fafes, o mais moço dos da reunião, e
frei Garcia, indicou este ultimo com o olhar o pagem quasi adormecido,
tirando ao mesmo tempo da manga uma tira de pergaminho dobrada. Ayres de
Figueiredo, sacudindo com violencia a creança de quem o reverendo
parecia recear a indiscripção, a poz, extremunhada, fóra da porta,
ordenando-lhe que se recolhesse, e em seguida percorreu com os olhos o
escripto, que lhe appresentaram.

--O alcaide de Monsaraz veio? disse elle terminando a leitura e
dirigindo-se ao frade.

--Senhor, sim, veio.

--E não desconfiaram de nada?

­--Penso que de nada. As galés castelhanas não appareceram.

--E de boa fonte houvestes esta proposta?

--Do irmão do arrabi-mór, esse judeu a quem sua real senhoria acaba de
fazer mercê.

--Misser Guilherme, senhor Henrique, disse o alcaide depois de fitar os
dous por um momento, se pouco caso se faz de nós em Lisboa, no campo dos
que a sitiam teem-nos em apreço. D. João não é tão soffrego como o
pintavam, e a prova é este pergaminho.

Down-Patrick fez uma visagem e soltou um «oh» guttural, que expressava a
pouca admiração que lhe causava o apreço em que o poderiam ter, como
certo dos seus muitos merecimentos.

--Gonçalo Rodrigues vos fallará depois d'ámanhã em S. Domingos, disse
frei Garcia, attrahindo o alcaide para junto de uma das portas, a
opposta áquella por onde sahira o pagem. E depois, accrescentando
algumas palavras em voz baixa, sahiu pelo outro lado.

Ayres de Sá, chamando Henrique Fafes e o irlandez, seguiu-o.

Quando a sala ficou deserta, o reposteiro, junto do qual frei Garcia
fallára com o alcaide de Gaya, oscillou e appareceu entre elle e a
hombreira da porta um rosto, onde a curiosidade e a malicia se pintavam.

--A mulher tem razão, disse, referindo-­se ás palavras de D. Catharina,
o curioso, depois de ter o ouvido á escuta por alguns segundos; o tempo
que se gasta em certas cousas não se perde, e eu não perdi o meu. Ah!
Garifa, minha pobre Garifa! exclamou em seguida, mudando de expressão e
ajuntando á exclamação um suspiro, de ti é que não apanho novas.




IV.

Dous namorados.


                                        ... Donde amor se atraviesa
                                        No hay padres reverenciados.

                                                  (ROMANCES DE GAZUL.)


Fernando, chegando a casa, o melhor predio da rua dos Pellames, ao toque
de Angelus, viu seu tio devorar com todo o appetite uma grande posta de
carneiro e um tassalho de toucinho, capaz do pôr em debandada um
exercito mahometano, regado tudo com o summo da uva. Gonçalo Domingues,
se dava descanço aos dentes, não o dava á lingua, pois incetou, ao
_benedicite_, um sermão, que, ao _gratias_, ainda não estava concluido.
O velho fallou na creação do seu tempo, na obediencia da gente moça á
mais idosa em geral, e em especial áquella de quem se recebe o pão do
corpo e o pão do espirito; discorreu sobre as passadas travessuras do
sobrinho, e foi cahir na ultima, terminando pela ameaça de um sevéro
castigo, em caso de reincidencia. Fernando, ao inverso do tio, não
tocava sequer em uma mealha do pão alvo, que a criada com um prato de
figos passos servira por mimo, e, com os olhos fixos na toalha, não
soltava uma palavra de desculpa. O bom velho, notando aquelle
extraordinario fastio e sizudez, tomou tudo por effeito da sua
eloquencia, conversão e compunção do rapaz, e por um triz esteve, no
final, a addicionar ao sermão um palliativo, tirando o exemplo de casa,
pois que o podia fazer; mas a necessidade da disciplina, de conservar
sempre perante o sobrinho um todo de soberania, um sobrecenho, que
julgava indispensavel, embora não quadrasse com a affeição que lhe
tinha, o detiveram. Fernando era, segundo elle, um estouvado, um leviano
como seu pae, do que déra já provas exuberantes, abandonando, depois dos
estudos, o convento de S. Francisco, então extra-muros, para onde um
outro parente o chamára, a fim de o metter na estrada do céu e do mundo
pela clausura. O que nisto amofinava mais o forçureiro era a boa
disposição que mostrava o mancebo para as letras, a intelligencia
desenvolvida, que nos primeiros tempos fizera dizer a frei Gumeado,
grande sabedor para aquellas epochas, que bem podia vir a aspirar a
grandes dignidades da egreja e do seculo, a ser geral, bispo, ou
chanceller. Todo o rigor, pois, que empregasse era pouco, e despediu-se
do mancebo com toda a solemnidade, para dizer á cuvilheira que, como por
seu voto e lembrança, lhe levasse ao quarto alguma cousa de comer.

Se Gonçalo Domingues soubera qual a attenção que lhe dava o sobrinho, de
certo não fizera semelhante recommendação. É bem certo que os annos
trazem, ás vezes, experiencia e algum saber; mas não é menos certo que á
proporção que vão passando se esquece muita cousa egualmente: aos
sessenta perde-se a memor­ia dos vinte, senão das acções praticadas, dos
pensamentos havidos; um mancebo póde muito bem avaliar o que não
apreciará, não conseguirá distinguir um homem a quem o inverno da vida
tenha gelado o coração. A prédica entrava tanto na absorpção de
Fernando, como entrava a mensagem do Defensor: as palavras do tio
eccoavam-lhe aos ouvidos como sons vagos, que se não reproduziam no
machinismo regulador chamado intelligencia e outros nomes, segundo a
face por onde é visto, porque sons diversos o impressionavam. As fallas
de Irene, as inflexões, os mais leves gestos preoccupavam-no: de uns e
outros tirava esperanças agora, logo motivos de amofinação; traduzia
agora uma phrase, das poucas obtidas de Irene, por um modo que o coração
trasbordava de alegria, e logo parecia-lhe que o timbre de voz, um nada
sonhado lhe dava bem diverso valor; assignalava aquelle dia como o mais
feliz da vida, e recordando-se do desfecho do colloquio, em seguida;
entristecia-se e amaldiçoava o tio, que o fizera descer do galho da
arvore e dos braços da felicidade. O puxão de orelhas, sobretudo,
doia-lhe, quando o recordava, mais do que lhe doera em Miragaya,
julgando-se aos olhos da sua namorada deshonrado... mais que deshonrado,
ridiculo. Este combate entre o desejo e o receio, durou, trazendo a
insomnia, até altas horas da noite; mas, a final, venceu o desejo, e a
alegria espelhou-se-lhe no rosto. Fernando, nas azas da imaginação;
voava do passado ao futuro, e deste áquelle, amontoando as pedras do seu
castello de felicidade. Deitando-se e apagando a luz sorria a todos os
sonhos creados; sentia como nova vida a inflar-se no peito, e parecia
querer affogar-se em ar, tanto era o que respirava de momentos a
momentos. Junto com a imagem da linda filha de João Ramalho toda a
natureza era risonha naquella miragem: as arvores reproduziam-se mais
verdes, mais cheias de perfumes e mais bellas as flores; as aves nos
cantos diziam todas--alegria; o céu transparente deixava adivinhar além
do manto azul uma segunda vida toda amor. O mancebo vira, bem o po­dem
acreditar, bastantes vezes o céu, as arvores e as flores, mas nunca se
lhe tinham affigurado assim: como á estatua de Pygmalião, faltava-lhe o
fogo no peito. A lavareda ateára-se naquelle dia, posto que incubasse
havia muito.

Fernando Vasques amava Irene desde que a vira, e vira-a nessa edade em
que se sente um vacuo no coração; a si mesmo confessára já esse amor;
mas definido, claro, só então rebentára: o vácuo enchera-­se, e a
trasbordar, e para o encher talvez o amaldiçoado puxão de orelhas, a
primeira grande contrariedade, entrasse por muito: «talvez» dizemos, e
podiamos dizer «certamente.» O amor vive de contrariedades, de luctas,
diz um phisiologista; e como um malicioso accrescentou que por isso só
elle nas mulheres se creava, saibam, acreditem as leitoras que todo o
homem tem no coração o seu tanto ou quanto de mulher, na mocidade
sobretudo, e por isso não perde. As mulheres lucram menos com o que
recebem do homem em geral: não as compensamos. Como diziamos, porém,
deixando reflexões, a correcção de Gonçalo Domingues, e ainda, se
quizerem, as poucas palavras trocadas entre os dous namorados, tinham
ateado a lavareda no peito do mancebo, e um dos effeitos della fôra, de
fazer acordar homem quasi quem se deitára creança.

Fernando, no dia seguinte, não era o mesmo rapaz; o tio notou aquella
differença e attribuio-a ao jejum da vespera, com a mesma prespicacia
com que attribuira a causa delle á sua predica; e para contentar o
rapaz, levou-o de manhã, depois de tractar dos seus negocios e da
politica do dia, a visitar frei Gumeado, que o costumava regalar, apesar
da sua deserção, com gulodices, em que não tocou dessa vez, e de tarde,
a passeio até aos Carvalhos do monte, que assim se chamava o local onde
o cabeçudo parodiador do marquez de Pombal no Porto, o corregedor
Almada, edificou um theatro. O effeito destas amabilidades é facil de
adivinhar. O namorado de Irene, que, voltando com a luz da madrugada á
lucta de esperanças e receios, anceava por occasião de ir buscar um
desengano nos olhos da donzella, preso assim todo o dia, revoltou-se
interiormente contra a tutella do tio e desappontou-o com desabrimentos.
O velho pasmou, benzeu-se, e da compaixão, do arrependimento da aspereza
da vespera cahiu com um mau humor verdadeiro, tomando aquelle
procedimen­to por ingratidão, protestou que a severidade, que até ahi
lhe ficava nos lábios, ia ser posta em acção, e como assim se revoltára
pelo leve castigo de uma travessura, elle trataria em primeiro logar de
as impedir, não lhe deixando uma hora para folias, nem arredar pé da
loja de pellames; em segundo, se se furtasse á sua vigilancia, de passar
além do puxão de orelhas, dando causa verdadeira a amuos.

No outro dia, um domingo, não se esqueceu do seu protesto o velho
forçureiro, e o desespero do sobrinho augmentou, tanto quanto augmentava
o receio de perder o amor da linda moça; que, se até ao dia em que
conseguira trocar algumas palavras com Irene, muitos se passaram em que
não descera a Miragaya, sem que tanto se amofinasse, aquella meia
declaração e o desfecho mudára as circumstancias: daquellas em que se
encontrava bem podem fazer ideia as leitoras e os leitores, aos quaes a
memoria ainda conserva vivas as paginas da mo­cidade.

Depois de jantar, porém--­refeição que se tomava nessas epochas, mesmo
entre aristocratas, desde as onze ao meio dia, exactamente á hora em que
hoje almoça muita gente--quando Gonçalo Domingues executava, dormindo a
sesta, uma musica que se assemelhava a tempestade em chaminé na
combinação de assobios e notas de contrabasso, appareceu Luiz Geraldes,
o mais respeitavel individuo da burguezia, a procural-o para irem a S.
Domingos, onde se devia tractar do meio de corresponder á confiança que
o mestre de Aviz depositára nos bons cidadãos da terra, assumpto em que
o alvitre do forçureiro era valioso, por se poder traduzir na linguagem
sonora das boas dobras de el-rei D. Pedro; appareceu Luiz Geraldes e com
elle a occasião que desde madrugada esperava e provocára á sombra de
todos os pretextos. Mestre Gonçalo, pois, a sahir, e Fernando a procurar
na arca o seu melhor gibão e o barrete, a alindar-se, e a bater com a
porta da rua na cara da velha creada, que lhe recordava as ordens dadas
pelo tio, avivadas segundos antes, e a trovoada que sobre elle e sobre
ella descarregaria se ou o encontrasse na rua, ou o não achasse em casa,
regressando.

O namorado moço deitou a correr; mas, como em certo apologo, a pressa
foi causa de vagares. Tal era o estado daquella cabeça que tomou o
caminho seguido por seu tio e o grande amigo do Mestre, e ao cabo da rua
da Bainharia esbarrava com elles se um encontrão de um homem d'armas o
não obrigasse a uma pausa, e na pausa a um espadeiro, que se sentava em
um desses balcões ou mostradores que fechavam uma das portas das
estreitas e escuras lojas, conservando nas ruas mais estreitas e não
menos escuras os freguezes, não ouvisse dizer para um visinho que
deitava a cabeça por uma adufa:

--Lá vae em cata de mestre Gonçalo, que dobrou agora mesmo para o
terreiro, o sobrinho... o filho de Vasco, que Deus haja.

Fernando, quiz retroceder; porém, como o bom do espadeiro lhe gritasse
que perto ia Gonçalo Domingues, se o procurava, não teve remedio senão
responder que ia a recado para as Aldas, e enfiar pelo arco de
Sant'Anna, tomar caminho pelo lado da judearia e descer aos Banhos, onde
lhe tolheu o passo o personagem que no capitulo antecedente vimos no
castello de Gaya, surdir por entre o reposteiro.

--Vindes de S. Domingos? interrogou elle, pondo-se diante do mancebo.

--Oh! és tu João Bispo! exclamou Fernando, depois de examinar o rosto do
individuo, assombrado por um farto capuz. Ha muitos dias que te não
vejo.

--É verdade, redarguiu o recem-chegado, dando pelo nome, que ouvimos já
da bocca do pae dos velhacos. É verdade, repetiu; e á palavra ajuntou um
profundo suspiro.

--Que tens, tu? Estás tão triste como quando nos tinham no convento.

--D'onde nunca devêra ter sahido! tornou João, soltando outro suspiro.

--Bem mudado estás, meu folião, ou é isso momice nova?

--Antes fôra, Fernando! antes fôra! mas finaram-se as alegrias.

--Mas, ao que parece, a vida não te vae peor. Gibão novo de barregana...
boa adaga! disse o mancebo, medindo-o de alto a baixo. ­

--Vesti isto; mas embrulhade em almafega respirava melhor: o saio e as
calças riam-se por todas as costuras, mas eu tambem ria, e agora bem
vedes....

--Vejo que estás sizudo como eremitão, ou mestre em leis, é verdade...
Mas onde assim te pozeram? d'onde vens?

--Do castello.

--Do castello? Tomaste lá moradia e serviço?

--Ou cousa parecida... que não se pode assim dizer de praça...

--Segredo! Ora vejam João Bispo feito escrivão da puridade do alcaide!
exclamou o mancebo, sorrindo e dando alguns passos para seguir seu
caminho.

João segurou-o por um dos braços, e encolhendo os hombros respondeu á
zombaria:

--Mofai, que a vez a todos chega. Algum dia haveis de querer bem a
alguem....

--E por isso te amofinas, quando não tens quem te empeça de a vêr a todo
o momento! redarguiu Fernando, que se não recordou naquelle instante de
outro contratempo em amores, senão do que com elle se dava.

--Vêl-a!... vêl-a! exclamou, tornando a suspirar o vadio. Oh! minha
pobre Garifa!

--Garifa, repetiu Fernando; Garifa... ora espera... Garifa não era
aquella rapariga moura que vinha ao terreiro vender fructa?

João Bispo fez com a cabeça um aceno affirmativo.

--­­Uma rapariga sempre alegre, que na procissão de _Corpus_ tangia
pandeiro e dançava com tanta desenvoltura, trazendo o vestido cheio de
cascaveis?

--­Sim.

--Que tão bem cantava umas cantigas castelhanas?

--Sim.

--Pois bonita era... pena que fosse moura! E tu, João...

--Eu quero-lhe, quero-lhe como se em noite de S. João me fizessem
feitiço...

--E feitiço foi de certo; porque uma moura...

--Não sei se é grande peccado o querer-lhe bem; mas cá para mim tenho
que não. Ella é moura, é; mas...

--É por isso que tão magoado te vejo? Querial-a christã, e casavas.

--Não é, não; é porque m'a roubaram!

--Roubaram-ta?

--Roubaram. Ha uma semana, no sabbado, estava eu na encosta do Olival,
ao pé do regato, á espera della, e eis que vejo o pae, o velho Humeia,
vir direito a mim. O pobre homem chorava como uma creança; as lagrimas
eram como punhos pela cara abaixo e os soluços pareciam affogál-o;
cortava o coração! disse João Bispo, limpando com a manga do gibão os
olhos, sensibilisado ou pela recordação da scena, que narrava, ou pela
desapparição de Garifa. O velho proseguiu, quando pôde começar a fallar,
a pedir-me a filha, dizendo que lh'a entregasse; que bem tinha visto
andar-lhe no seguimento, e na vespera a encontrára ainda alli mesmo a
fallar commigo. Olha, Fernando, fiquei como quando me vieram dizer que
meu pae--Deus o tenha--era finado, e jurei áquelle pobre homem que não
fôra eu que lhe tirára a filha... e commigo pela hostia consagrada jurei
tambem descobrir-lhe a rapariga. O velho acreditou-me, e disse-me
cousas, que não poderei repetir; que não sei bem o que foram; mas que
pelo modo de as dizer me deram um nó na garganta: parecia que tinha
engolido uma maçã inteira. Procurei Garifa. Dous homens foram vistos a
passar o rio nessa noite com uma mulher, me disse um petintal, e corri
tudo em Gaya; alistei-me no troço de Pero Bedoido, para ter occasião de
esquadrinhar todos os cantos do castello; mas vêl-a... vêl-a... ainda a
não vi! Desconfio, porém, que lá esteja, e se lá estiver, ai do
rausador! Olhai, elles deram-me esta adaga, e eu trago-a bem afiada, os
ouvidos attentos e os olhos abertos!

João Bispo, ao soltar estas ultimas palavras, baixou a voz e um veo
sinistro lhe assombrou a fronte; por alguns instantes permaneceu calado,
e proseguiu depois, vendo que o sobrinho de Gonçalo Domingues parecia
atterrado com semelhante confidencia:

--A alegria não póde durar sempre. Desde que, morto meu pae, que por
força me queria vêr tonsurado, fiz uma reverencia ao guardião, dei um
cascudo no porteiro e me fiz velhaco, visto que no convento não apprendi
officio e de sujeição estava farto, bem vestido, mal vestido, mais
trapo, menos trapo, barriga mais cheia ou menos, tinha quasi todo o
santo dia os dentes á amostra; agora veio um revez...

--Não és só tu, João, que os tens; eu...

--Que lhe fizeram, atalhou o vadio; diga, que eu dou uma ensinadella,
e...

--É negocio em que nada podes. Não sabes, João, disse o mancebo, pondo a
mão no hombro do seu antigo companheiro, e chegando-lhe a bocca perto do
ouvido, como em segredo; não sabes... eu tambem quero a uma rapariga
como ás meninas dos meus olhos. Oh! é mais bonita que a tua!

--É, disse João Bispo, com um meio sorriso.

--Muito mais; porém, meu tio, tenho eu para mim...

--Não quer? ­

--Parece-me que não.

--É pobre?

--Pobre!... repetiu Fernando Vasques, encolhendo os hombros.

--Mestre Gonçalo Domingues é rico, e...

O namorado de Irene, ouvindo o nome do tio, lançou em torno de si os
olhos, como se receiasse que alli apparecesse; lembrou-se que passava o
tempo e elle podia, de volta a casa, não o encontrar, se fosse grande a
demora; recordou a causa do seu passeio, e fazendo um gesto de
despedida, deu alguns passos em direcção á porta da cidade.

--Se fôr necessario o antigo companheiro das folias, não o poupeis. Os
meus trapos nunca vos fizeram voltar o rosto, quando nos encontramos, e
hei de mostrar que não tendes feito mal, Fernando, disse o ex-noviço,
estendendo ao mancebo um pulso que não era fraco. Ah! exclamou em
seguida; não vindes do lado de S. Domingos?

­--Não.

--Nem pelo caminho vistes o alcaide de Gaya?

--Não.

--E que tens a vêr com o senhor alcaide, meu velhaco? disse uma voz, que
logo João Bispo reconheceu por ser de Tello Rabaldo.

--Ah! sois vós! murmurou o interpellado, visivelmente contrariado por
aquella apparição, em quanto Fernando deitava a correr pela rua abaixo.

--Vosso servo, tornou o pae dos velhacos, tirando com ar zombeteiro o
seu barrete e segurando pelo capuz a João Bispo. O fidalgo de certo que
só com fidalgos tem tracto e por elles procura; porém como está em
behetria, para não haver desaguisado, pondo-o fóra, dou-lhe companhia
mais chã; mas que lhe fará bom agasalho. Vamos! exclamou mudando de tom;
para as tercenas já!

--Senhor Tello, porém...

--Vais seccar a goella sem proveito.

--Senhor Tello, quizera fallar a Ruy Pereira.

--Agora é com Ruy Pereira! Grandes são os negocios! Bravo! continuou o
pae dos velhacos, medindo João Bispo de cima abaixo, como minutos antes
fizera o sobrinho de Gonçalo Domingues, e como elle admirando a mudança
que na roupa havia; bravo! Parece que vamos ter contas graves a ajustar!
Cortaste bolsa, ou arrombaste a porta a mercador ou algibebe para vires
assim garrido?

--Sou bésteiro do rei.

--Bésteiro do rei desde quando, velhaco? desde que fugiste com a filha
do velho Humeia?

--Está excommungado! crédo! gritou uma velha do pequeno ajuntamento que
se fizera á volta dos dous interlocutores. Ter contractos com aquella
condemnada moura, aquella...!

A mulher disse nome que lhe valeu de João Bispo um murro, que levava a
força proporcional á raiva que lhe causára a abelhuda comadre,
insultando Garifa.

--Olhem o maldito! gritaram duas companheiras da aggredida. Onde está a
justiça? Que faz o senhor bispo que o não manda açoutar bem açoutado? E
attreve-se em rosto do senhor Tello...

--Calem a bocca, serpentes! berrou o pae dos velhacos, fazendo um gesto
e meneando o seu bastão.

--Serpentes? grunhiu a velha, segurando com a mão os dentes que o socco
pozera em vesperas de despedida.

--Serpentes? pipitou uma das novas, esganiçando-se.

--Serpentes? resmungou a outra, ferrando os pulsos nas ancas.

--Serpentes! gritaram, grunhiram e pipitaram entre gargalhadas e em
todos os tons os garotos que já embaraçavam o transito.

Tello Rabaldo viu a sua dignidade compromettida, o que não poucas vezes
acontecia, e tractou de a salvar pelos meios usados ainda hoje em
embaraços--pela força; e como á mão não tivesse se não a sua, foi dessa
que se serviu. Segurando sempre o namorado da moura pela extremidade do
capirote, fez rodizo com o seu bastão; tomando-o pela parte superior, e
uma escala salteada de «ais» e «uis» sahiu dentre a roda de curiosos e
curiosas, que augmentava.

--O senhor alcaide! Ahi vem Ayres Gonçalves! gritaram duas vozes quasi
ao mesmo tempo.

--Tolhido sejas tu, maldito! resmungou João Bispo, lançado em apuros com
semelhante apparição.

--Senhor Pero! senhor Pero Bedoido! berrou o pae dos velhacos, para o
capitão de bésteiros, que, seguindo o alcaide de Gaya, se dispunha a
embarcar para o castello, e desepparecia por um dos postigos.

--Já nada faço, disse comsigo o ex-noviço deitando o olho a vêr se o
capitão accudia ao chamamento. A pelle corre-me agora grande risco, se
desconfiam de mim. Com a bocca no pixel não os apanho já!

--Olé, senhor Pero! sua mercê não me diz se este velhaco tomou serviço?
proseguiu Tello, querendo arrastar comsigo João Bispo, mais talvez para
á sombra do capitão dos bésteiros se fazer acatar, do que pela
curiosidade de saber se o namorado de Garifa lhe mentira, ao que estava
bastante affeito, para regular a sua justiça pelo humor em que o
apanhavam e não por depoimentos e confissões. Em materia de confissões
dava fé ás feitas em potro, ou de borzeguins, quando estava de boa
feição, e felizmente não era isto raro.

­­--Grande velhaco! continuou, dirigindo a palavra ao seu prisioneiro;
ainda ha pouco não tinhas que dizer a todos os fidalgos? Mais depressa
se pilha um mentiroso do que um côxo.

Pero Bedoido, ouvindo a voz do pae dos velhacos, parára junto do
postigo, que dava sobre a margem do rio, e retorcendo o bigode piscava
os olhos para concentrar os raios visuaes afim de melhor reconhecer quem
o chamava. Ayres de Figueiredo parára igualmente.

Quem não deve não teme. João Bispo sentia os seus arripios pelos lombos,
porque um pensamento, que o leitor experto, e que de certo se recorda do
dialogo apanhado atraz do reposteiro, adivinhará, o punha, na
consciencia, em hostilidade com o nobre alcaide, e se na presença delle
Tello Rabaldo de novo se referisse á entrevista que pretendia ter com o
tio de Nuno Alvares, a vida corria-lhe grave risco. João não tinha,
porém, cursado em vão os estudos em S. Francisco e a eschola pratica de
velhacarias dos terreiros, praças e bitesgas da cidade da Virgem, para
não achar um expediente bom ou mau com que se sahisse de apuros,
momentaneamente que fosse. Tello segurava-o, tendo-o quasi esganado pela
extremidade do capirote, e o cabeção deste fechava no peito e garganta
por meio de quatro grossos botões. Desabotoado estava livre.

--Senhor Tello, senhor D. Tello?! murmurou o rapaz, levando as mãos já
aos botões, e esgotando no submisso, no plangente da voz, e naquelle
«dom», o ultimo recurso oratorio.

--Ah! perro, velhaco! Eu te...

O pae dos velhacos não concluiu a phrase: um cascudo que preparava como
paga da nobilitação dada ao seu nome, deu-o no ar, e com o costado no
mesmo momento apalpou o chão, depois de abalroar com as canellas de
alguns curiosos.

Um côro formado de um unisono de gargalhadas e de gritos ensurdeceu os
visinhos que enchiam as janellas e atulhavam as portas. As gargalhadas
provocara-as o desastre de Tello; os gritos soltaram-nos os que abriam
caminho a João Bispo. O amante de Garifa deixando o capirote na mão do
pae dos velhacos, que perdera o equilibrio, mettera mãos á adaga e
corria na direcção da Ferraria.

Ao passar em frente do postigo um acontiado da behetria tomou um virote
para lhe embargar o passo.

Ayres Gonçalves, ao mesmo tempo que Pero Bedoido, reconhecendo no
fugitivo um dos seus homens, lhe sustava o arremesso, gritou em voz bem
alta para chegar aos ouvidos de João:

--Perro, villão, se tocas n'um dos meus homens!...

E a mão do fidalgo pousou como complemento de phrase no punho do
estoque.

O acontiado fez uma careta de despeito, baixou o virote, e quando o
fidalgo voltou costas, deu com elle com uma força tal d'encontro á
parede, que o fez voar em hastilhas, resmungando:

--Perros e villões... perros e villões! A nossa vez ha de chegar,
traidores, scismaticos!




V.

Irene.

                           Ma son, mentre ella piange, i suoi lamenti
                           Rotti da un chiaro suon oh'a lei ne viene...

                                             TASSO. Ger. lib. cant. VII.


E a linda Irene, a filha de João Ramalho?

Irene, das primeiras fallas trocadas com Fernando, colheu um resultado
quasi igual ao que este obtivera. A impressão primeira foi a da alegria.
Deslembrada da apparição de mestre Gonçalo, quando foi ao encontro da
cuvilheira, que a chamára, a physionomia illuminára-se, reproduzindo
toda a felicidade que lá ia por dentro naquelle coração. Á pergunta que
lhe fizeram, mas não ouviu, respondeu com um abraço na velha, que, mal
affeita, pela sua rabuje, a taes carinhos, abriu grandes olhos, e o
espanto desta subiu ainda, levando-a a benzer-se, quando viu que, sem
lhe prestar attenção, a moça começou a entoar uma copla de amores,
desses cavalheirescos amores da epocha. Aquella alma de virgem saudava o
enfloramento da nobre paixão que no seio lhe germinára, e a velha, como
Gonçalo Domingues a respeito de Fernando, nem se quer pensou que nessa
exaltação entrasse por alguma cousa o mancebo, de quem já havia notado
os passeios em frente da casa--o que a levára a fazer-lhe carrancas de
sobrecenho capazes de affugentar qualquer outro que não fosse um
namorado.

--A menina Irene namorar! a menina que depois da morte da nossa ama
tenho creado com todos os cuidados?! pensava ella com os seus botões,
quando lhe vinham desconfianças, ou as visinhas, pela sésta, no cavaco
quotidiano que tinha depois de arranjados prateis, agomias, sartã,
pucaros e mais aprestes de cosinha, notavam o volver d'olhos de um ou
outro alindado da terra.

A tia Genoveva tinha de si para si que o coração de Irene se abriria só
quando ella, ou o senhor João Ramalho muito bem quizessem.

As tias Genovevas ainda hoje não são raras.

A linda moça, quando a deixou a cuvilheira, insensivelmente começou a
reflectir nas palavras de Fernando, e pouco a pouco no semblante e no
coração começou a tristeza a vencer. A pobre não sabia que o amor se não
traduz bem em palavras, e esmorecera pensando que podia não ser amada,
ao passo que bem sentia definir-se-lhe no seio a paixão; e quando, noite
cabida, a velha trouxe para o quarto de trabalho um velador do qual
pendia um graúdo candil, não respondeu ás «boas noites» dadas, possuida
de sentimento bem diverso do que horas antes a distrahira. Ainda mais: a
tia Genoveva, ao espiar a roca e terminar a ultima ave-maria da coroa
que todas as noites rezava á Senhora da Silva, para a ter por sua
intercessora; a tia Genoveva notou uma lagrima a balouçar-se nas cilias
da linda joven, como aljofre matutino nos estames de uma flor.

--Porque chora, menina? perguntou a velha criada tomando-lhe o rosto
entre as mãos, para melhor se certificar de que não era illusão sua
aquelle pranto.

--Chorar... eu? murmurou Irene, limpando os olhos.

--Sim, a menina. Então não veem o espanto que faz?

--É que eu não choro... Porque havia de chorar?

­--Porque? Ora sei eu o porque?

--Nem eu...

--Credo! Anjo bento da minha guarda! Feitiço por certo lhe fizeram! De
tarde a rir e a cantar como uma louquinha, e a fazer-me momices
carendeiras; agora a choramingar sem que nem para que! É quebranto,
menina... é feitiçaria; e bem fará em pôr esta noite debaixo da
almadraquexa um ramo de arruda.

A velha atinava: que maior feitiçaria que a do amor não póde haver. Só
elle tem o privilegio de dar a uma palavra ecco que, por vezes, dura até
com elle se casar já bem fraco o das ultimas preces: de perpetuar uma
imagem ante os olhos até que os cerre o frio osculo da morte.

Pranto e risos, succedendo-se rápidamente sem explicação para quem os
vê, sem explicação mesmo para quem os sente humedecer as faces, ou
descerrar os lábios, são em geral o resultado vulgar do toque da vara do
grande feiticeiro: emquanto o feitiço conserva toda a força, o pranto é
como os chuveiros de Maio, que veem como para fazer ressaltar o sol que
lhes succede, ou como os orvalhos de Junho, que refrigeram as flores;
quando o feiticeiro se ausenta, o riso é como o luar em noites de
Fevereiro, quando tudo é silencio: contrista como elle,· traz
melancholia. As lagrimas da linda filha de João Ramalho eram chuveiros
de Maio. Correndo á vontade sobre o travesseiro, em que não pozera a
arruda, não lhe imprimiam nas faces a aridez; regavam, permitta-se mais
esta imagem entre tantas, o amor que, como no sobrinho de Gonçalo
Domingues, repetimos, se definira naquella tarde.

O amor na juventude, no sexo que chamamos fragil, porque nós, que nos
dobramos a todo o momento a seus pés, lhe esmigalhamos o coração em um
circulo de ferro chamado positivismo, realidade e conveniencia, quasi
sempre nasce entre lagrimas, lagrimas das que chorava Irene quando
repetia baixinho, comsigo, o nome de Fernando; lagrimas que rebentam
espaçadas, se demoram nas palpebras, e descem lentas pelo rosto.

No outro dia muitas vezes correu a moça namorada á janella da praia,
muitas á que dava para o lado do monte, e impacientou-se e
entristeceu-se quando viu cahir a tarde sem apparecer o sobrinho do
forçureiro; no domingo, durante a missa do dia, na velha igreja de S.
Pedro, fez cochichar umas poucas de comadres, que lhe ficavam na
rectaguarda, tantas foram as vezes que voltou, durante o officio, a
cabeça para o lado da porta, e ainda mais se impacientou e entristeceu
quando, feitas ante todas as imagens as estações que eram da devoção da
senhora Genoveva, regressou a casa sem vêr uma sombra rastejando ao lado
della (que olhar face a face, de perto, para Fernando, nunca a gentil
menina olhara) sem ouvir certas passadas, que distinguia de todas as
outras e lhe causavam uma impressão nervosa agradavel.

Neste descontentamento, sentada na varanda, que tentamos já descrever,
prestava attenção a todos os ruidos, quando a velha criada com quem João
Ramalho havia conferenciado depois de jantar, arrastando um tamborete de
pau e umas contas com que se entretinha todas as vezes que não
trabalhava ou dava á lingua, lhe veio fazer companhia. Genoveva
engorolou um _pater_ e tossiu; engorolou outro _pater_ e tossiu outra
vez; terceiro _pater_ a meio e mais prolongada foi a tosse, e, ao
findar, a esta juntou um arrastar de tamborete e um suspiro. Era
evidente que rebentava por fallar; porém a sua joven ama estava bastante
distrahida para notar todos aquelles preparativos oratorios. A velha
ainda se resignou a fazer passar mais algumas contas, a mudar o
tamborete da direita para a esquerda e a passar na tosse do _piano_ ao
_forte_, do _moderato_ ao _vivace_ e até á _furia_; mas vendo que era
trabalho perdido, pousou o rosario, puchou a touca, crusou os braços
sobre a barriga e exclamou:

--A menina que tem?

--Nada, respondeu Irene, olhando pela abertura da zelozia para o céu,
que mostrava um azul soberbo.

--Nada! Então eu estou cega; ha dias que não sei o que tem... anda
triste!...

--Triste? atalhou Irene, com um desses sorrisos, que se denunciam como
contrafeitos. Ainda esta manhã me disse que andava com a cabeça no ar, e
achou que ria como louca... não sei quando...

--Sim, sim: veja se me engana com esses risinhos sêccos, menina. Por
mais que faça não me faz acreditar que não está magoada. Eu desconfio
que...

­--De que? interrogou Irene, fazendo-se vermelha, julgando ser do
sentimento dominante no seu coração que lhe iam fallar.

--Nada, nada. O senhor seu pae não lhe fallou... não lhe deu a
entender...

--Meu pae, tornou a joven sobresaltada, não me disse cousa alguma...

--É que... pensei...

--O que, Genoveva? Que tinha meu pae a dizer-me?

--Nada, nada; respondeu a velha, recomeçando de novo o rozario.

--Não, alguma cousa era! Diga, diga, Genoveva; meu pae está de mal
commigo?

--De mal! elle que não vê outra cousa, que a traz nas palminhas das
mãos, apesar daquelle modo assim de poucas palavras?! Se se amofina é...

-­-Acabe! supplicou a joven.

--Triste já está a menina; para que a entristecer mais? disse a criada
mastigando. ­ --Não me quer entristecer mais? Pois que ha? exclamou a
filha de João Ramalho, erguendo-se com a anciedade pintada no rosto.

--É... nada, nada, redarguiu a velha. E baixo accrescentou, tornando a
carregar a roca:--Cala-te, bocca. Ora, não ia eu já dizer tudo?

O áparte da cuvilheira, por uma mania que tinha de sempre dar á lingua
para que a ouvissem, pareceu­-se com todos os ápartes do theatro, e mais
anciosa ficou Irene.

--Jesus, Genoveva! Succedeu alguma cousa?

--Nada: é que...

--Acabe por uma vez.

--Como tem de ser... porém, olhe, triste já a menina está, e quanto mais
tarde...

--Está a fazer-me mal, minha boa Genoveva! exclamou Irene, juntando e
erguendo as mãos em acção de supplica.

--Ora vejam! mal é que eu lhe não queria fazer; mas visto que teima...
sempre lhe digo: seu pae embarca por estes dias.

--Embarca... disse a joven tornando a sentar-se. Julguei que fosse outra
cousa. Não estou já affeita a vêr partir meu pae, todos os annos, uma,
duas e tres vezes para essas terras de Christo? Se podésse fazer com que
não andasse sobre aguas do mar, ex­posto; porém...

-­-Ao mar, atalhou Genoveva, já o senhor João Ramalho está affeito.
Parece que tem todos os santos e santas por elle... e merece-o, que não
ha tempestade­ que mal lhe faça; e mais dizem que são bem más as da
Inglaterra e Flandres! Mas não é agora só o mar...

--Então que mais é, Genoveva?

--É... que... que volta a Lisboa... e...

--Jesus! agora... que anda a guerra por lá!...

--Deus ha de querer que nenhum mal lhe venha, e eu hei-de recommendal-o
muito á Senhora da Silva e á Senhora do Amparo, as duas santas de mais
valimento que ha no céo... de maiores milagres pelo menos... ao Senhor
S. Pedro, advogado da gente do mar, e ás almas milagrosas! redarguiu a
senhora Genoveva, fazendo uma especie de mesura a cada nome dos beatos
patronos que proferia.

--Bem me dizia o coração que destas náus e galés chegadas me viria mal,
disse Irene recordando-se naquelle instante das palavras de Fernando.

--Mal... mal? Tenha fé em Deus, que é grande peccado descoroçoar assim.
O senhor João Ramalho, seu pae, se anda cuidadoso é por si, menina
Irene: como está já uma moça... eu cá me entendo... quer deixal-­a bem
amparada, em logar seguro; que nestes tempos revoltos, e nos que o não
são, todo o cuidado é pouco. Como não vae lobo a redil nem raposa a
gallinheiro senão quando acha a porta mal cerrada e não ha mastins para
açular, queria deixal-a em abrigo seguro, e lembrou-se de um convento.
Já dei recado para uma prima, que tenho, sergente em Entre-Rios, a vêr
como poderei ir fazer companhia á menina...

--Então, Genoveva, vamos para tão longe! exclamou a linda moça com voz
magoada.

--Ainda não é de certo. É precisa licença do senhor D. João Affonso, e
não sei que outras requestas... e como não é para já o caso... por estes
dias...

--Genoveva! Genoveva! gritou do andar terreo o senhor João Ramalho,
fazendo estacar a falladora cuvilheira, que incetando um Padre-nosso em
um tom de voz que, sem offensa da boa da beata, se podia comparar ao
rosnar de um cão, desceu as escadas.

--Virgem santa, valei-me! murmurou a joven fechando uma na outra as
mãos, brancas e delicadas, e deixando sobre o seio pender o rosto, que
não desfeiavam os assomos de tristeza.

Irene assim permaneceu longo tempo, e quando ergueu os olhos orlava-lhe
as palpebras uma côr mais rosada que de costume, e as lagrimas
borbulhavam mais intensas do que as trazidas pela desconfiança de que
Fernando Vasques não correspondesse ao affecto por ella consagrado. Eram
mais intensas, porque junto com as arrancadas pelo amor filial--pois
bemqueria a joven a seu pae, com um extremo inexplicavel, attenta a
rudesa apparente do piloto, se é que uma força occulta a não fazia
corresponder ao sentimento por elle votado ao unico ente que na terra
lhe restava, á imagem de uma esposa adorada com o fogo que empregam
essas almas reconcentradas, os homens que jogam a vida sobre o mais
terrivel dos elementos, e passam dias e noites seguidas a soletrar no
livro da natureza a pagina do infinito, em circulo fachado por céo e
mar;--junto com as saudades e receios por seu pae, se ligavam penas
avultadas pela sua imaginação, suppondo-­se já separada, longe de
Fernando, clausurada para a vida talvez; que no amor tudo é coado por um
prisma que engrandece e multiplica os objectos.

Ás lagrimas do travesso moço succedera a resolução: Fernando fizera-se
homem; ás lagrimas de Irene succedia o anniquilamento: póde-se dizer
tambem que se fizera mulher a pobre menina porque: a coroa do seu sexo é
formada por essas perolas nascidas no coração, perolas que resgatam a
propria culpa e a alheia. Para o resgate da humanidade Deus, tornado
homem, deu o seu sangue; para completar essa regeneração, para abrir ás
mulheres as portas da vida, inflar-lhe no seio uma alma, verteu lagrimas
uma virgem.

Irene chorava pela segunda vez, depois que se apoderára do seu coração a
imagem de Fernando, quando lhe veio ferir os ouvidos um som distante e
confuso; confuso porque era grande o arruido que petintaes, espadeleiros
e galeotes faziam na praia, sanctificando o dia do descanço com libações
frequentes de verde e maduro, cidra e outras bebidas. Era o som de um
toque de caça, assobiado por um valente folego. A moça estremeceu,
quando se lhe afigurou reconhecel-o; estremeceu e a alegria repelliu
naquella fronte as nuvens de tristeza com tanta ou mais rapidez de que
nos leva a dar uma ideia dessa mudança. Ergueu-se e correu ao extremo da
varanda, encostou á adufa o ouvido attento a linda namorada; mas
calára-se a marcha, e os berros da chusma iam em um _rinforzando_
prodigioso. Alguns minutos de anciedade assim passou, com o seio a
arfar, os lábios meio-abertos, deixando vêr uma enfiada de dentes alvos
como o fructo das camarinhas, com os olhos brilhantes, fixos, até que
com novo sibilo rompeu um grito da joven, um grito de alegria, e
deixando a varanda subiu a assomar a cabeça por aquella historiada
janella das flores, onde com ella travamos conhecimento.

A cabeça appareceu e desappareceu logo.

Irene soltou outro grito, porque os seus olhos encontraram os de seu
pae, irados, em vez de outros que de certo procurava carinhosos.

Junto com o sibilo, com os gritos, com o bater das adufas da varanda e
portadas da janella--junto, se póde dizer, tal foi a rapidez da
successão--ouviu-se um grande fragor.

A arvore do cercado oscillára e o muro da quelha fôra a terra.

A filha de João Ramalho deixou-se cahir no estrado em que costumava
costurar; o piloto soltou uma praga, e a cabeça da tia Genoveva, que da
cosinha presenceára parte desta scena, appareceu de bocca aberta no
quarto da donzella, persignando-se e abanando a cabeça como um manequim,
pintando em toda esta gesticulação o seu pasmo, e terminando por entre
dentes com esta phrase, que havia de ser, como já fôra, repetida
milhares de vezes:

--Ora fiem-se lá nas innocencias deste tempo! O mundo vai perdido!




VI.

Causa publica e cousas particulares.

/#
     A nenhu era ouvida rezão, nem escuza, que por sua parte dar
     quizesse, mas como hum falava dizendo: que fohão he delles; não
     havia cousa que lhe desse vida, nem justiça que o livrasse das suas
     mãos: e isto era especialmente contra os melhores e mais honrados,
     que havia nos logares, dos quaes muitos foram postos em grande
     cajão de morte...

     FERNÃO LOPES.--Chronic.
#/


Em quanto Irene soluçava, Tello Rabaldo vociferava, sacudindo a poeira
do gibão, e João Bispo evitava na rêde de bêccos e escadas do bairro a
sanha do bésteiro e de alguns mesteiraes, que o suppunham réo de crime
grave, ou queriam nelle desacatar o alcaide, que viam, como a grande
parte dos nobres, com maus olhos, no terreiro de S. Domingos havia
grande ajuntamento de povo, e na portaria do convento e claustro da
igreja se reuniam os homens bons da cidade, burguezes e cavalleiros; que
a ordenação de D. Diniz era desattendida durante aquelles transtornos,
como o tinha sido por vezes, e depois havia de ser.

Ruy Pereira e a edilidade portuense combinavam os meios, já o sabemos
por via de Luiz Giraldes, de corresponder ao appello do Mestre, e
corriam as cousas ás mil maravilhas. Affonso Eannes Pateiro e Alvaro da
Veiga, bastante compromettidos com a acclamação do novo governo,
juntamente com o rico mercador que fôra despertar Gonçalo Domingues
sopravam em pequenos conciliabulos o enthusiasmo de amigos e conhecidos,
e não perdiam o tempo. Os periodos mais ou menos bombasticos, mais ou
menos curtos, tinham, depois de um ou outro commento, como ponto, a
deslocação de dous ou tres individuos, que se dirigiam a uma mesa
cercada de tamboretes e cadeiras, onde dous homens vestidos de negro, um
redondo, de nariz globuloso e vermelho, outro côr de pergaminho e de
feições angulares, se viam ao par de alguns vereadores, afagando este
com a rama da penna os lábios ressecidos, abanando-se aquelle com um
caderno de papel. Um dos patriotas segredava tres palavras ou quatro ao
ouvido de um dos alvazires; os burguezes diziam outras tantas; os homens
negros traçavam algumas letras e algarismos, que liam em voz alta, e de
tudo isto sahia, póde-se dizer, a Milheira, a Estrella e a Sangrenta, o
levantamento do cerco e bloqueio de Lisboa, a dynastia de Aviz e--quem
sabe?--a salvação e civilisação da Europa. Se julgam paradoxal a ultima
parte, provem como sem os donativos daquelles bons homens se accudiria
ao Mestre; se este não se veria obrigado a tornar real o fingido
embarque para Inglaterra; se, simples João Pires, casaria com a exemplar
filha de João de Ghaunt; se haveria quem formasse um viveiro de
navegantes tão destemidos, arrojados, para devassar a costa d'Africa e
penetrar na Asia pelo Oceano, como o infante D. Henrique; como sem o
córte dado naquellas paragens ao poder ottomano, se lhe sustaria a
carreira victoriosa dos seus estandartes, que chegaram a tremular junto
dos muros de Vienna, na costa da Italia, na Hungria e na Bohemia, que
pendiam bafejados pelas tépidas aragens de Aldjesireh, da Arabia, e
açoutavam os ares impellidos pelos ventos gelados na Polonia, se
espalhavam nas aguas do Mediterraneo, no mar-Negro, no golfo Persico e
no Oceano, e acobertavam os recebedores de pareas até ao Dekan.

Se algumas circumstancias concorreram tambem para este gigante resultado
foram as narradas nos antecedentes capitulos, desde as dos namoros de
Irene com Fernando e de Garifa com João Bispo, até á daquelle virote
quebrado.

Não cuidem que um escriptor consciencioso escreva uma linha só com o fim
de encher papel; que invente um episodio por seu alto recreio: tudo aqui
vem a pello desde o mais somenos facto ao de mais vulto, e os leitores
phylosophos, que esquadrinham os fins moraes, procuram o succo de todo o
livro e folheto, farejam uma ideia em cada letra impressa, acharão neste
romance demonstrações de que grandes successos, que pasmam do mundo, são
como os nevões: um floco de neve, que rola do cimo dos Alpes, ao chegar
ás fraldas destroe casas e plantios; uns bigodes cortados em 1152, ainda
no seculo em que viviam estes nossos heroes, destruia cidades, assim
como as bagatellas acima apontadas salvavam este canto da terra de ser
hoje em dia... um pachalik ou cousa peior.

E João Bispo, Fernando Vasques, e até para muita gente João Ramalho,
Affonso Eannes, Alvaro da Veiga, Domingos Pires das Eiras, Luiz Giraldes
e outros com quem o leitor tomará ainda conhecimento, estavam no
olvido?!

Lamentemos esta má sina de ingratidão pelos grandes homens... que em
vida não tiverem condados d'Ourem, nem terras do Alfeite; lamentemos, e
vamos de novo para S. Domingos.

Ao passo que os burguezes davam que fazer a Gonçalo Pires, escrivão de
chancellaria e ao seu companheiro, na casa do capitulo, bocejavam os
poucos cavalleiros que tinham adherido, como hoje se diz, ao
pronunciamento do Porto, por vontade, ou circumstancias. Dissemos que
bocejavam; pois movimento, acção em poucos se notava, a não ser um
alguns dos recem-chegados de Lisboa, dos quaes o mestre soubera captar a
benevolencia com aquella largueza de mãos, que o deixaria rei das
estradas de Portugal, se não fossem depois as garnachas, de que já se
queixavam então, e em alguns pobres infanções e simples cavalleiros. Ruy
Pereira reunia em volta de si, os dous sobrinhos do rei de Castella, D.
Pedro e Affonso Henriques de Transtamara, misser Manoel Pessanha, João
Rodrigues Guaday, Ayres Pires de Camões, Affonso Furtado e os irmãos
d'Alvalade, e em uma das extremidades da quadra segredavam, ou antes
fallavam quasi por signaes o alcaide de Monsaraz, Affonso Darga, o
irlandez Down-Patrick e o velho fidalgo de Riba-Tua. Do resto, faziam
uns retinir pelo sobrado os acicates dos seus sapatos de ferro, que
vinham em traje de guerra não poucos, outros descançavam nas grandes
cadeiras de espaldar, que os reverendos para alli tinham feito conduzir.
De tempos a tempos um pagem ou um leigo entravam com recado para o tio
do condestavel, ou este fallava a alguns dos seus homens, que
estanceavam á porta, e elles partiam ás carreiras para diversos pontos.

Ruy Pereira tractava de aproveitar o tempo o melhor possivel, como bom
cabo de guerra e bom politico, depois de ter conferenciado com os
influentes da cidade, conferencia que déra em resultado decidir-se que
se chamasse ao partido do defensor o conde Gonçalo, combinação que não
era mais do que uma lisonja aos bons burguezes: pois, soprada pelo
mensageiro de sua senhoria a Domingos Pires, e por este appresentada,
fôra já decidida nos paços de S. Martinho. D. João resolvera comprar o
conde com os bens pertencentes á irmã desthronada, bens que já tinham
servido de engodo a outros. O escolhido para o ajuste do balsão do nobre
senhor, de quem tinham sido já indagadas as ambições--que se iam
encontrar com as de Nuno Alvares, felizmente bastante patriota para
ceder ás circumstancias;--o escolhido fôra o alcaide de Monsaraz,
Gonçalo Rodrigues de Sousa, e devia seguir logo com alguns navios para a
Figueira, emquanto outros iriam correr a costa da Galliza, inquietar em
casa o inimigo, e nos seus barcos, pescarias e alfandegas procurar um
reforço para as arcas exhaustas do thesouro.

O movimento dos pagens, dos sergentes do convento, dos bésteiros e
homens d'armas tinha produzido o ajuntamento da pequena praça ou
terreiro, que ficava em frente do convento, e das tortuosas ruas
visinhas. Na praça, vistas do alto, as cabeças dos curiosos formavam uma
massa, que ondeava como as espigas de trigo sazonado, impellidas pelo
vento, e no meio de borborinho constante, especie de gemer de tempestade
em praia cheia de recifes, surgiam ora estrepitosas gargalhadas, ora
gritos, apodos e vivas. As gargalhadas eram provocadas pelo bôbo da
cidade. O Porto não era uma terra de pouca monta para não ter um bôbo
seu, como qualquer principe, mesmo no meio daquellas calamidades e
sustos, e tinha-o até que não ficava nada a dever aosque se importavam
de França, por aquellas epochas, com o mesmo cuidado com que se haviam
de importar cabelleireiros--o que, entre parenthesis, não quer dizer que
para escolha dos primeiros se expedissem tão gordas personagens como
para o dos segundos--.Voltando ao nosso caso, ao bôbo da cidade: os
leitores que comnosco fazem esta viagem ao seculo XIV e ao terreiro de
S. Domingos, devem confessar que a verba votada no orçamento municipal,
verba insignificantissima, não devia ser chorada. D. Golias era uma
raridade; uma creatura de seis palmos de alto, se tanto, comprehendendo
esta medida uma desmarcada cabeça, cortada de lado a lado no terço
inferior por uma bocca, cousa unica que correspondia naquelle todo ao
nome com que o tinham baptisado. D. Golias áquella bocca, mais do que ao
infésado da estatura e uma mobilidade de feições extraordinaria, devia o
seu emprego e a sua popularidade. Os mesteiraes e burguezes que o
encontraram, vindo do acampamento, onde exercia as suas funcções,
tinham-lhe feito um acolhimento brilhante, uma ovação, e elle,
escarranchado sobre um vádio espadaúdo e meio idiota, com o seu vestido
variega­do e o seu capirote, notavel por duas immensas ore­lhas
asininas, correspondia a tanto extremo disparando, entre esgares e
tregeitos, epygrammas para a direita e esquerda, na portaria do
convento.

Uns bons dous terços destes gracejos, dos mais pesados, eram dirigidos a
nobres senhores ou a alguns ricos burguezes, o que os fazia ser
acolhidos com prazer pela gente da praça.

--Olé, mossem Methusael, D. Methusael, tio Methusael! ginchou elle
sacudindo os cascaveis do vestido e da palheta, dirigindo-se ao
arrabi-menor, que por entre a multidão abria caminho; o vinho que á
socapa comprastes a mestre Manoel do Arco, subiu-vos á cabeça, ou foi
exconjuro que vos trouxe aqui?! Mossem Methusael, as vossas dobras vão
tinir como a minha jornea, e o vinho vae desfazer-se em lagrimas! Não é
verdade, manos, que vai haver juderega dobrada e tresdobrada. Mossem
Methusael antes quer que elles roubem a pequena Lea do que um punhado
das boas barbudas da arca!

O arrabi resmungou algumas pragas, que se perderam entre as risadas do
povo, e appressou o passo, seguindo um cavalleiro, na direcção da
portaria, a fim de em tal companhia ter mais facil accesso.

--Guarda! berrou o bôbo, attravessando a palheta; guarda! Se queres
entrar pede a frei Roque que te lave em agua-benta!

--Tira a tua vara, truão, gritou o cavalleiro, ao pousar o pé no limiar
da porta.

--Arreda, Portugal! tornou Golias; arreda, que ahi vem Castella em peso!
Passe lá, don cavalleiro; eu levanto o meu sceptro e arredo-me, porque
não quero tocar em scismaticos. Don cavalleiro, tornou, quando o fidalgo
subia já a escadaria, tendes novas do mano Garcia Manrique? Quando lhe
ides dar a mão?!

E voltando-se para o leigo porteiro, que, depois de fazer uma grande
reverencia ao nobre recem-chegado, o fitava, espantado da ousadia,
proseguiu:

­--Eh! beguino de má morte, se cuidas que te estás a vêr a espelho de
Veneza, enganas-te: estas orelhas são do capirote. As tuas são mais
compridas e mais felpudas!

Estes e outros gracejos, que não é licito escrever, pois não curava o
truão da polidez da linguagem, nem eram por esses tempos malsoantes
palavras que o são hoje; estes e outros gracejos eram a pedra de toque
da popularidade dos individuos a quem os dirigiam: a gargalhada e os
assobios, as palmas, os grasnidos e murmurios que provocavam, diziam a
conta em que eram tidos. Quando a vaia partia, e o povo se calava, não
insistia o bôbo, certo de que era a personagem aggredida estimada por
aquella boa gente, e não teria, por isso, defensor, se algum syllogismo
contundente fosse servir de censura ás suas burlescas reflexões.
Regulando por este thermometro, o piloto e mercador João Ramalho e
Gonçalo Domingues eram bemquistos na cidade da Virgem. O forçureiro,
sahindo açodado pela porta do convento, esbarrára em cheio com o piloto
que entrava, e do choque resultou a oscillação dos dous corpos, que
procuravam o equilibrio, e um regougo abafado do burguez. A risada foi
inevitavel, pois as pequenas desgraças teem sempre o riso por
caudatario; mas um olhar do pae de Irene engasgou nas fauces de Golias o
motejo.

João Ramalho não vinha para graças.

Ao olhar sevéro dirigido ao bôbo seguiu-se outro lançado a mestre
Gonçalo, que lhe estendia a mão com a costumada lhaneza, e o piloto
começou, quasi sem tomar folego, uma lenga-lenga de recriminações, que
fizeram abrir os olhos do burguez desmarcadamente. Porque se espantava
um, adivinha-o o leitor, porque desabafava o outro a sua cólera, se o
não sabe, aventa-o: Fernando sahira contra ordem expressa da rua dos
Pellames e fôra colhido em flagrante delicto de namoro, acompanhado das
aggravantes circumstancias de escalada e destruição de um muro. O piloto
deduzira de tanto ruido peccado mais gordo do que sonhára o mancebo, e,
como este se lhe tinha salvado da furia, valendo-se da sua agilidade na
carreira, avinha-se com o tio. Mestre Gonçalo Domingues, se naquelle
instante apanhasse a geito o travesso rapaz, de certo o punha em maus
lençoes, tal era a indignação e raiva, traduzidas nas faces em uma côr
arroixada, que lhe incitava a narração deste successo, feita pelo rude
marinheiro. O sangue subia-lhe á cabeça e ameaçava-o com uma apoplexia.
Sem o querer, applicou-lhe o pae de Irene o remedio; porém, continuou a
aggressão tão viva contra o travesso rapaz; chegou a taes ameaças, que o
forçureiro julgou dever fazer algumas observações a esse respeito, e as
observações fizeram desviar o raio de uma cabeça para outra. A culpa
daquelle attentado, tão grave para o cego piloto, era de Gonçalo
Domingues, que não soubera morigerar o seu pupillo; que lhe déra largas
illimitadas; que lhe deixára damnar alma e corpo com ruins paixões. Quem
ouvisse aquella recapitulação de queixas e accusações tomaria o namorado
de Irene por um D. Juan, se Tirso de Molina já tivesse modelado no
_Burlador_ o typo famoso, que, com um arrebique para aqui, uma limadella
para acolá, um nariz de cartão, uma cabelleira empoada, ou os tezos e
cortantes colarinhos de um mylord tem servido a tanta e tão boa gente. O
bom do tio, posto que chofrado, e duvidando de tanto aggravo, julgou o
caso de consciencia, comtudo, e mentalmente resolveu a questão por um
dos lados; por onde a lei, se fossem veridicas as supposições do
forçureiro, a resolveria, mesmo naquelle tempo, visto que não havia
desigualdade de castas. O rico burguez não mettia em linha de conta a
vaidade do piloto, não se recordava tambem de que o commercio e
industria com que se locupletara eram marcados com despreso tradicional,
despreso ecclipsado para as maiorias pelo brilho das dobras, é verdade;
porém não de todo para os mais pechosos. João Ramalho, á primeira phrase
em que o forçureiro dava a entender a sua resolução, feriu-o vivamente
no fraco, e emcambulhando-se as palavras em dialogo alternado, a voz do
tio de Fernando chegava ao diapasão da do pae da linda namorada deste,
quando arruido maior lhes abafou as vozes, e uma onda de povo os
separou, lançando um para um lado, outro para outro.

Para explicar esse alvoroço voltemos outra vez ás assoadas de D. Golias,
o bôbo da cidade.

Como em baile de etiqueta annunciava o maninelo quanto individuo de seu
conhecimento se approximava do mirante semovente, em que se empoleirara,
quando um claro se fez do lado do arco, que dava serventia para as
Cangostas, rua que não desmente­ ainda hoje o nome posto, para a
Bainharia e almuinhas, e appareceu açodado o nosso conhecido João Bispo.
Se a pressa, que mostrava trazer, e o conservar na mão a adaga não
fizessem notada a pessoa do ex-subordinado de Tello, chamariam sobre
elle a attenção os gritos de Golias.

--Upa! acima sineiros da maldição, berrava elle. Os sinos não tangem?
Beguino, frei velhaco! campas e sino grande, tudo a chocalhar! Venha
toda a monjaria de cruz alçada, que chega o senhor bispo, o bispo João!
Sua mercê traz pressa; mas nem por isso deve ser recebido sem as
honrarias de usança. Vá: deitem-lhe agua benta aos olhos, para que não
veja por ahi moura perdida pelas celas!

E terminando a exclamação imitava com a bocca o repique de sinos,
baloiçando-se sobre os hombros do espadaudo vadio, em quanto este, que
não tinha a insensibilidade de campanario, grunhia incommodado pelo
revolver dos pés do bôbo ante os olhos, e arrepelões dados na hirsuta
cabelleira.

A cidade ficava de certo sem o importante Golias; pois que o vadio
estava já disposto a sacudil-o no lagedo, como o besoiro, que lhe
fizesse cocegas no cachaço, e de certo o estatelava, senão se ouvissem
gritos no meio da praça, e o novo bésteiro de Gaya se não viesse
embaraçar, tentando penetrar na portaria, nas pernas da victima do bôbo,
ao mesmo tempo quasi que o acontiado do municipio.

--Castelhano! gritou este, deitando as mãos ao namorado de Garifa,
castelhano, aqui não te valem os fidalgos traidores!

O homem do virote, que sentira subir-­lhe o sangue á cabeça com a ameaça
de Ayres Gonçalves, correra, mal este embarcára, a procurar desafogo em
João Bispo, e mais desesperado pela velocidade da carreira deste e pelo
emmaranhado dos beccos por onde seguira, quando o encontrou, ao dobrar o
arco, sentiu o despeito renascer; o nosso bésteiro, porém, deitou-o no
chão com um cambapé e seguiu caminho. A vontade de tirar desforço do
novo desappontamento trouxe aos lábios do homem do virote aquella
palavra «castelhano». João Bispo correra menos risco quando lhe chamaram
ladrão, entre os bons burguezes, na baixa, do que baptisado com
semelhante nome.

--Castelhano?! exclamaram alguns mesteiraes correndo para junto dos dous
soldados, emquanto João se desembaraçava do seu aggressor.

E um sussurro indicador de que a tempestade, as iras populares estavam
eminentes se levantava no terreiro, ao passo que a portaria era
invadida.

--Mata, mata! gritaram em seguida alguns garotos do outro extremo da
praça; mata o castelhano!

João Bispo sentiu um suor frio correr-lhe pelo corpo todo, e murmurou
dando um salto, encostando-se a uma das hombreiras da porta, e cobrindo
o peito com a adaga:

--Castelhano... castelhano? Quem falla aqui em castelhano? Affastar,
proseguiu em voz mais forte, affastar! Em castelhanos vou eu pôr o dedo.

--Mata, mata! berraram com os garotos alguns dos homens mais
esfarrapados da chusma; e uma pedra veio ferir fogo nos umbraes do
convento.

O amante de Garifa, metteu a mão no seio e tirou uma pequena tira de
pergaminho, ao passo que o bôbo, atterrado com o arremesso de projectis
em semelhante direcção, julgava dever intervir:

--Sús, boa gente; quem chama castelhano a João Bispo? Frei João não foi
sagrado pelo papa dos scismaticos... foi pelo papa dos velhacos.

--Oh! é João Bispo? perguntaram duas ou tres vozes d'entre a chusma.

--João Bispo, ou o bispo João, tornou o bôbo, fazendo mesuras ao
publico, ao qual soubera modificar as iras com o seu gracejo.

O homem do virote via de novo escapar-se-lhe a victima.

--Vêde, vêde, gritou elle apontando para o pergaminho, que o bésteiro
segurava na mão, e tentando apoderar-se delle: vêde como quer esconder
aquillo.

João Bispo levantou o braço para furtar o escripto, que trazia a Ruy
Pereira, á mão do bésteiro do municipio, ao mesmo tempo que Golias
estendia o braço e o apanhava.

--Ui que esgaravunhos! pipitou elle desenrolando a tira. Isto é
esconjuro de bruxa, ou pacto de venda de alma de judeu?

--Ou mensagem para os do arcebispo! resmungou um dos mesteiraes.

--Mensagem para os do arcebispo... disseste a verdade, mal-­cuidando!
accudiu o bésteiro de Gaya, soltando ao mesmo tempo uma praga, e com a
raiva pintada no rosto dando um salto para rehaver o pergaminho.

O escripto voou das mãos do truão assustado para junto de João Ramalho,
que, levantando-o, passou pelos olhos as primeiras linhas:

--Traidor, Gonçalo de Sousa?! exclamou elle.

--Traidor, sim, disse João Bispo; e ainda ha pouco aqui tramou não sei
que outras villanias! Estes cães que trouxe ás pernas não me deixaram...

João não proseguiu. O alcaide de Monsaraz desembocava no pateo,
acompanhado de Affonso Darga, vindo do lado da casa do capitulo. Entre
os mesteiraes entrados na portaria reinava profundo silencio. O joven
cavalleiro fallava com o commandante da flotilha enviada pelo Mestre de
Aviz ás aguas do Douro:

--Senhor Gonçalo de Sousa...

Como João Bispo não acabára a phrase não a acabou tambem Affonso Darga.
João Ramalho dirigira-se para o alcaide, e batendo-lhe com uma das mãos
no hombro, appresentou-lhe o escripto. Aquelle pergaminho apanhara-­o o
ex-­noviço ao capellão de Ayres Gonçalves. Scismando nas palavras
ouvidas atraz do reposteiro, quando, ao regressar de uma visita á
ucharia, se perdera nos lanços de escada e corredores dos paços de Gaya,
pensou que no aposento do frade lhe acharia a explicação. A prova de que
não pensou mal era o ter encontrado alguma cousa, e essa cousa--o
pergaminho--fizera perder a côr ao alcaide de Monsaraz.

Á pallidez, seguiu-se o rubor, e depois de novo a pallidez. Gonçalo de
Sousa sacudiu a mão do mercador, como se fosse um reptil, que lhe
tivesse pousado nos hombros; quiz fallar e a voz prendeu-se-lhe na
garganta; a espuma produzida por um accesso de bilis appareceu-lhe aos
cantos da bocca. O nobre senhor, nesse instante, temia menos as iras das
turbas, sentia menos a deshonra, se deshonra via na sua traição, do que
a ousadia do homem do povo, que assim se arvorava em seu juiz.

--Arreda, villão! gritou, mal a voz se desembaraçou.

--Villão! repetiu João Ramalho, refece é quem assim atraiçoa a terra que
o viu nascer; não é, senhor alcaide?

A voz do piloto tremia; mas não de susto. Gonçalo Rodrigues de Sousa
arrancou-lhe das mãos o pergaminho, e rasgando-o, lançou-lhe os pedaços
ao rosto.

--Quereis resposta? disse elle com um sorriso nervoso, symptoma de um
excesso de raiva; quereis uma resposta? Eil-a... Outra só a darei quando
o meu accusador não fôr da tua ralé.

O punhal de João Ramalho lampejou no ar. O alcaide de Monsaraz contára
aquella hora como a ultima da vida, se uns poucos de mesteiraes e
bésteiros do municipio não fizessem o mesmo, lançando-se sobre elle,
embaraçando-se uns aos outros.

A onda popular, levantada pelas primeiras palavras do homem do virote,
pela accusação feita ao namorado de Garifa, crescera furiosa, estuara no
meio dos gritos de «morra o traidor, o castelhano». A portaria do
convento fôra invadida, esmagado quasi o porteiro, apeiado e pisado o
pobre D. Golias, e azevans, ascumas e agomias luziam ameaçadoras por
cima daquellas cabeças inquietas, como na crista das vagas os flocos de
espuma feridos pelos raios do sol. Quatro braços possantes seguraram o
alcaide, mais já lembrado de que era homem do que fidalgo: Affonso Darga
e uns dous monges, que o quizeram cobrir com o corpo, foram repellidos
em um abrir e fechar d'olhos.

--Ao pelourinho, ao pelourinho! gritou um dos mesteiraes arvorados em
justiceiros. Açoutado e enforcado!...

--Jesus! gritou o dominico, tentando salvar Gonçalo Rodrigues; Jesus! o
que ides fazer é um homizio, e o sangue...

--Vamos fazer justiça. A traidor como a traidor! Peões, não temos cepo
nem cutello; mas temos boas cordas de canave.

--Ao pelourinho, ao pelourinho!

--Morram os traidores!

--Bésteiros, a mim bésteiros! gritou o alcaide de Monsaraz, vendo
apparecer do lado do claustro dous acontiados da esquadra.

--Quem é aqui por traidores?! exclamou um dos que empunhára o alcaide.

Os bésteiros não se moveram. A celeuma na praça crescia.

--Por Christo crucificado! tornou o dominico pacificador, erguendo a
cima da cabeça a imagem do Redemptor. Quem com ferro matar, morrerá pelo
ferro...

--Ide-­vos, homem de Deus; ide-vos, senão quereis que vos tomem por
traidor.

­A voz de Ruy Pereira, avisado do risco em que estava Gonçalo de Sousa,
trovejou por cima daquella celeuma:

--Quem falla aqui em traições? Traidores, se os ha, deixai-os á justiça
do regedor. D. João vol-a fará boa e prompta, bons homens! Senhor
meirinho, senhor meirinho!

--O povo do Porto sabe fazel-a tão bem e tão boa como o de Lisboa.

--Senhor meirinho, senhor meirinho, gritava o tio de Nuno Alvares,
barafustando para se approximar do commandante das galés do Mestre, e
procurando com o vista o meirinho da cidade, que abafava entre os
mesteiraes.

­--Ao pelourinho! vozeavam estes.

Um bésteiro neste momento atravessava o terreiro, soffreando o cavallo
em que montava, para não pisar o povo, nessa occasião soberano em
verdade. Conhecido de alguns dos amotinados, abaixara-se a fallar-lhes,
e pouco e pouco, á proporção que se approximava da portaria do convento,
ao berreiro de «morras» succedia um borborinho destas palavras trocadas
em voz baixa:

--Os gallegos! os gallegos!

--Os gallegos! exclamou o mesteiral que segurava o alcaide e parecia ter
grande influencia nos seus companheiros; os gallegos veem? Boa idéa:
mandar-lhe-hemos este bom cavalleiro para o arraial. As machinas que
estão do lado das Hortas podem com pesos maiores. É uma boa lança que
enviamos aos do arcebispo. Não é para elles que se queria partir?

Uma gargalhada saudou a lembrança, apesar de não ser original.

Gonçalo Rodrigues de Sousa estava salvo com aquelle addiamento das
vinganças populares.




VII.

Recontro de Leça.

                                          Todo oro que se afina
                                          Es de mas fina valia,
                                          Porque tiene mejoria
                                          De cuando estaba en la mina,
                                          Ansi se apura y retina
                                          El hombre y cobra valor
                                          En la fragoa del amor.

                                          GIL VICENTE.--FRAGOA D'AMOR.


--Bofé, por aqui?!

--É verdade, João.

--Mas como? Se o não vira com estes olhos que a terra ha de comer...

--Pois eu sou.

--Como S. Thomé, parece-me que será preciso tocar-­vos para crêr. E como
vindes armado! Nem moço escudeiro vos leva as lampas! Mas ainda o não
posso acreditar. E mestre Gonçalo?

--Meu tio...

--Sim! O bom do velho veio tambem na arrancada. É o que faltava vêr...
elle que não é para estas cousas, apesar de bom portuguez. Mas, em fim,
está ahi o Porto em peso; velhos e cachopos... até mouros. Por pouco
vinham as mulheres! Ala fé, mestre Gonçalo Domingues...

--Meu tio não veio...

--Então...

­--Ai, João, se souberas?!

­--O que?

--Estou como tu; sem leira nem beira.

--S. Jorge e todos os santos batalhadores sejam commigo! Que foi o que
vos succedeu, Fernando? Morreu mestre Gonçalo?

­--Não morreu, não... nem Deus queira tal.

--Então, que foi?

--Ai, João, hontem foi um dia bem de mau sestro!

--Para mim tambem: por um argueiro duas vezes escapei á morte!... Pois
não vi, ao sahir de Gaya, nem gato preto, nem chapim de sola para o ar,
nem velha varrendo lixo: nem ouvi piar a coruja, nem uivar os cães!
Valeu-me o anjo da Guarda...

--A mim não me quizeram matar; mas... parece-­me que me foi peior...

--Peior?!

--Sim, João: lembras-te de me encontrares nos Banhos, e de te fallar em
certos amores? ..... Fui vêl-­a.

--Ah! fostes vêr a tal menina, e estava arrufada...

--Não, João; Irene...

--Irene? chama-se Irene? é um nome que não é feio.

--E ella é mais linda; mas, como te ia contando, fui vel-a. Ia a subir a
um muro do lado do quintal para lhe fallar--queria tirar um peso que
tinha no coração; dizer-lhe que, apesar de meu tio ralhar, lhe havia de
querer muito e... nem eu sei o que mais; mas queria-lhe fallar,
vel-a--ia a subir ao muro, e o muro... zas... no meio do chão, e cara a
cara dou com o pae...

--Ora! E por tal é essa amofinação?

--Olhe, João, que não é o caso para folgar! Como não ralharia elle á
minha pobre Irene, elle, que não tem ar de palavras de mel, e ficou com
um senho... que descarregou nella... de certo...

--Isso de nada vale, Fernando.

--Ainda não ficou ahi o mal. Deitei a correr... eu sei lá para onde!
Quando me lembrei de voltar para casa era tarde; pouco faltava para o
sol posto. Appressei o passo, lembrado de que se meu tio me não
encontrasse nos Pellames, elle, que me guardava má tenção por me haver
encontrado já na maldita arvore, faria de sorte que eu não tornaria a
pôr pés na rua. Ao chegar quasi a S. Domingos, havia uns alaridos, um
grande vozear, e parara ao pé do arco, quando mestre Duarte, o nosso
visinho, veio aonde eu estava, e contou que vira o pae de Irene fallar
com meu tio, e que ambos esbravejavam, por palavras que lhes ouvira,
contra mim. Voltei a Miragaya...

--Para que?

--Nem o sei dizer. Receiava de meu tio... e não receiava. Quando de novo
me dirigi á porta da cidade estava fechada. Do lado da Esnoga via-­se um
grande clarão, e continuava o alarido...

--Era a chamusca da casa de mossem Moysés, o irmão de D. David Algaduxe;
era o escote dos judeus.

--Assim me disseram de manhã.

--Passastes a noite ao relento?!

--Passei, João, e se visse sequer uma luz á janella, parece-­me que
ficava consolado. Ao alvorecer, como depois daquella noite assim corrida
maiores razões tivesse para não voltar aos Pellames, subi a encosta em
cata de mestre Pedro, e, como o não encontrei, fui pelas Hortas. No
campo, a chusma das galés, os acontiados da cidade, e a gente de armas
dos ricos homens vindos de fóra, estava tudo em movimento; chegava povo
a todos os momentos e sahia no meio de vivas; ao pé da torre, junto á
porta, do lado de dentro, distribuiam armas. Um anadel deu-me um
encontrão, e disse-­me que fosse buscar tambem alguma cousa, e fui;
pozeram-me a caminho para aqui, e puz-me a caminho tambem...

--Amores! amores! E agora que ides fazer?

--Boa pergunta, disse, erguendo e cabeça com certo enthusiasmo, o
namorado de Irene, Fernando Vasques, de certo já reconhecido, bem como
João Bispo desde as primeiras linhas deste dialogo; agora é batalhar, e
ou ficar para ahi, ou fazer acção de fama; e depois...

--E depois ides pôr a espada aos pés da vossa dama, como naquelle conto
da Tavola-Redonda ou naquell'outro que tinha frei Gumado... Ama...
Ama...

--Amadis, queres dizer?

--Isso é: um em que havia combates de gigantes e uma princeza muito
formosa: deixai vêr se me lembra o nome... Oriana!...

--A dama de Amadis.

--Bonitos contos, Fernando, esses de cavallerias e amores; pena é que
hoje nada succeda assim de geito.

--Pena que não haja quem tenha a vontade de boas acções e famosas! O
senhor Nun'Alvares, tem-se, ainda assim, havido como alguns dos mais
pintados, e ouvi contar a meu tio, que o viu simples pagem, acompanhando
a rainha Leonor, pela qual depois foi armado.

--Tomou o leão para o fazer lebreo de estrado; mas elle, mal chegou a
idade, mostrou-lhe os dentes todos, e foi para o monte a monteal-a.
Desde nado trouxe boa sina Nuno Alvares. Mestre Thomaz, grande
astrologo, que andava em casa de seu pae, leu nas estrellas, e viu que
empresa em que se mettesse seria boa, e elle sahiria vencedor, se fosse
para bem sua tenção.

--Por isso deixou elle a rainha Leonor; pois em serviço della não andava
bem, e podia-se quebrar o encanto com que foi fadado.

--A mim tambem me leram a sina; porém a maldita da moura que o fez disse
uma tal embrulhada, de que só percebi que havia de entrar em grandes
batalhas, e salvaria um rei...

--Não ouvis? atalhou Fernando, sobresaltado.

--Ouço.

--Além do rio...

--Um como tropear de gente, e quebrar de ramos. Estas fogueiras não
deixam vêr bem. As vigias dormirão?

--­Não... olha, não vês alli ao pé daquelle fraguedo, onde bate o luar,
aquella que se move? está bem desperta. Ainda ha pouco se recolheu uma
rolda, a que acompanhou frei Patinho.

--Escutai, tornou João Bispo, deitando-se no chão para melhor distinguir
a direcção do rumor, depois de retesada a corda da sua besta.

A noite descera havia muito; os galos de algumas choças visinhas tinham
já annunciado que ia alta, a meio do seu curso, e a lua erguia-se
redonda, avermelhada, semelhando um escudo candente, por entre as ramas
dos pinheiros, que fechavam ao nascente o horisonte, fazendo destacar a
uns por contornos negros, cobrindo de uma luz phantastica os curutos de
outros, e projectando sombras immensas pelas clareiras. Á proporção que
ella minguava no céu, tornavam-se mais vivos os reflexos azulados com
que tingia alguns objectos, fazendo contraste com os fogos dos dous
acampamentos áquem e álem de Leça--fogos que em pontos ainda se
mostravam vivos, fazendo ressaltar vultos negros, tocados, sobretudo nos
arnezes, braçaes e grevas dos homens d'armas, de linhas ardentes,
vermelhas quasi; em outros quasi extinctos, mostrando, através de uma
luz vaga, fórmas indecisas, movendo-se, tregeitando. Aqui o ferro de uma
azevan, volteando, espelhava um raio da lua, e imitava os fogos fátuos;
acolá o bacinete polido de um bésteiro de polé lampejava, ao cruzar
rápido por pé dos fogos das vigias. De vez em quando o relincho dos
cavallos se reproduzia nos eccos; as vozes das roldas se alteava;
erguia-se aqui uma risada, alli um clamor, e depois recahia tudo em um
silencio, que só interrompia, alguma conversa a meia voz, como a que
cortaram os nossos dous namorados.

Pela bocca de um delles já todos sabem que os combatentes de que podia
dispôr a cidade da Virgem, homens e rapazes se tinham nessa dia de
madrugada posto a caminho de Leça, e se estão lembrados da noticia dada
pelo bésteiro em S. Domingos, noticia que tirou Gonçalo Rodrigues das
mãos dos populares e o entregou á justiça, que lhe fez grande favor em o
reter preso em Gaya; se se lembram de que D. João Manrique, arcebispo de
Santiago, abalára de Braga com setecentas lanças e dous mil infantes,
portuguezes, partidarios de D. Beatriz, e gallegos, e quando chegára a
mensagem do Mestre acampava perto da cidade, atinarão qual o intento que
ahi os levava. Alguns corredores do bando inimigo tinham, ao tempo que
pecuniariamente se salvava a patria, chegado a Paranhos, alarmando os
poucos camponezes não recolhidos á cidade, e os bons burguezes, que já
os tinham esperado duas vezes sem verem apparecer uma só lança, haviam
resolvido affugentar estes hospedes importunos.

Seis a sete mil homens, pois, acampavam áquem do Leça, occupando uma
extensa linha.

Esta tropa, superior á do arcebispo em numero, era, encarada por outro
lado, talvez inferior. Dos nobres que com os seus homens d'armas tinham
seguido as hostes populares, em alguns não eram firmes as crenças de
partido, como vimos; nos outros, em geral, havia certa má vontade por
vêrem ao seu lado cavalleria burgueza, para a qual olhavam pouco mais ou
menos com os mesmos olhos com que ainda hoje, no seculo XIX, olha o
militar para o miliciano que marcha ao seu lado. Os bésteiros da
behetria, trezentos ao todo, era gente de animo resoluto, porém fracos
atiradores, e os quinhentos, tirados da esquadra e de Gaya, tinham os
outros quasi na mesma conta que ás lanças que rodeavam a bandeira onde
entre torres a Virgem apparecia mostrando Jesus inda menino, aquelles
que seguiam balsões historiados, e mesmo ainda ao mais historiado
labaro, museu de imagens santas ideado pelo futuro condestavel.

Cinco mil homens, exceptuando a chusma da armada, pertenciam a essa
gente que parecia entregue a uma mascarada, quando levamos o leitor aos
adarves que tinham vista para Miragaya. Eram porém estes, era o povo e
os acontiados do municipio que tinham de fazer retirar os muito
esforçados cavalleiros Lopo de Lira, Fernão Gomes da Silva, Martim
Gonçalves de Athaide, Gonçalo Pires Coelho e outros nobres, que seguiam
com elles o arcebispo de Santiago. As ascumas e os mangoaes affaziam-se,
a passar aquellas entre o gorjal e a barbuda, a malhar estes em
cimeiras; amestravam-se para a grande tarefa de Aljubarrota.

Como dissemos, os defensores do Mestre estendiam-se na margem do Leça
por bom espaço. João Bispo e Fernando Vasques encontravam-se em uma das
extremidades da linha, ou acampamento, quando extranho ruido vindo de
uma mata visinha os fez interromper o dialogo que ahi fica exarado. O
amante de Garifa, depois de se conservar por alguns segundos deitado,
com o ouvido attento, ergueu-se, fez um signal ao seu companheiro, e,
empregando o maior cuidado possivel para não fazer rumor, dirigiram-se
ambos para o lado do poente, onde de novo se pozeram a escutar.

--São os nossos, disse o bésteiro novel a Fernando; são os nossos, que
estão abrindo caminho no bosque.

Palavras não eram ditas, um grito sahia da selva, e um bésteiro
levantava quasi debaixo da cara do sobrinho de Gonçalo Domingues a sua
besta armada, mirando-o.

--Eh! Gil! abaixa lá isso, gritou João Bispo: guarda os teus virotes
para os gallegos! Que desbravar de matto é esse?

--Eramá! estás ahi, João? tomei-vos por esculcas desses condemnados!
Abrimos caminho na mata, e vamos passar o rio. João Ramalho está lá em
baixo com trezentos dos da cidade.

--Começa o folguedo?

--Boa festa! Vamos fazer dançar os do arcebispo ao som de assobiar de
virotes, e ranger de polés e garruchas. Os malditos deste lado dormem,
ao que parece, e não é mau despertal-­os.

O amante de Garifa deu alguns passos para se internar na mata. Fernando
reteve-o.

--Espera, João, eu sei um sitio onde se póde passar melhor do que ahi.

--Sabes?

--Além, abaixo daquelle casal que está a alvejar, pelo açude.

--Bom discorrimento teve o cachopo! exclamou o bésteiro, com um sorriso
de escarneo. Vão lá passar pelo açude! É o mesmo que fazer caminho para
o outro mundo. Dous homens na outra margem tragam-vos uma hoste, como a
uma tigella de migas.

--E se de lá não houver ninguem?

O bésteiro, como unica resposta, voltou as costas, encolhendo os
hombros; João Bispo, depois de curta reflexão, tomando a mão do seu
companheiro, exclamou:

--Vámos ao açude!

O desbaste do arvoredo continuou com affinco, e uma hora passada, havia
uma soffrivel clareira aberta, onde tinham já penetrado alguns homens
d'armas. No campo inimigo, em frente, não se ouvia senão o ciciar da
aragem. Um troço de bésteiros e populares, armados estes com toda a
sorte de armas, desde o montante farpeado e o machado, a maça de puas,
até ao chuço e mangoal, começaram a passar o pequeno rio pouco abaixo do
mosteiro dos Hospitaleiros. Cem homens teriam tomado pé na outra margem,
quando um sibilo se ouviu, e um virote se veio cravar em um velho roble,
ao pé do qual João Ramalho dava ordens aos acontiados da cidade. Em
seguida, a outro sibilo juntou-se um grito, o som da queda de um corpo
na agua, e logo um alarido immenso. Bésteiros de pé e a cavallo,
burguezes e mesteiraes, que se tinham lançado ao Leça, recuaram.

Do campo do arcebispo haviam notado o movimento da gente do Mestre, e o
silencio guardado fôra alliciente para os chamar além. Cem homens
estavam na outra margem prisioneiros, se o grosso da força não
avançasse.

--Santiago! Santiago! gritaram os castelhanos; e a margem appareceu como
por encanto coberta de frecheiros, e d'ahi a momentos o relinchar dos
ginetes e o som das trombetas eccoava pelos valles.

--S. Jorge e Portugal! gritou João Ramalho, arrebatando a bandeira da
cidade das mãos de um cavalleiro do municipio, e lançando-se ao rio.
Ávante, filhos, ávante!

Um troço de mesteiraes lançou-se em seguida do caudilho popular; porém
recuou de novo.

As folhas das arvores cahiam, como varejadas, e os troncos lascavam aqui
e alli, que os bésteiros de Garcia Manrique faziam a sua obrigação.

--Assim deixaes os vossos nas mãos daquelles perros?! exclamou Nicolau
Domingues, apontando para a outra margem onde havia um concerto de
pragas, vivas e morras. Bésteiros! bésteiros, pela Virgem de Vandoma,
ávante!

--Ávante! responderam alguns mesteiraes e acontiados, seguindo o exemplo
de João Ramalho.

A lucta travada além do Leça era uma temeridade. O luar alto já,
allumiava o necessario para o inimigo vêr o inimigo que tinha junto de
si, para uma lucta quasi corpo a corpo; e os homens d'armas do
arcebispo, avançando sobre o ponto invadido, iam dar cabo dos attrevidos
portuenses; demais, os fundibularios e bésteiros d'aquem temiam ferir os
seus, ao passo que os gallegos, prolongando-se de lado opposto pela
margem, enviando tiros mesmo ao acaso, difficultavam a passagem. Martim
Correia, o escrivão da chancellaria, Gonçalo Pires, e o filho do Mestre
de Santiago, D. Pedro de Transtamara, com alguns escudeiros e um troço
de cavalleria da cidade, forcejavam em vão por enfiar mais além a
estreita ponte, ainda hoje existente naquellas paragens. O grosso dos
homens d'armas e cavalleiros embaraçavam-se uns e outros, nos vallos,
fraguedos e silvados, pelos sitios onde tinham acampado, alarmados pelo
rebate extemporaneo.

No rio, se se ouvia o chapejar, era o de um ou outro burguez fugitivo;
no bosque o estallar dos ramos, o rumorejar dos fetos não era só
produzido pela queda de virotes; era tambem pela queda de homens.
Nicolau Domingues gritava a bom gritar; mas a chusma da esquadra, vinda
de reforço, não se resolvia a ir juntar-se aos acontiados do Porto,
quando um sucesso inesperado deu um fim brilhante ao que até então não
se podia dizer mais que uma imprudencia do pae de Irene, e da sua gente.

O mosteiro dos Hospitaleiros appareceu illuminado por uma luz
avermelhada: nas ameias da egreja e das torres veria quem dellas se
approximasse vultos negros correndo de um para outro lado açodados, e um
alarido immenso se casava ao fragor do combate da margem.

Fernando Vasques e João Bispo tinham passado o açude e approximado,
fazendo um rodeio, do acastellado mosteiro, pelo lado do norte, lado
desguarnecido, e bastante custára ao namorado da filha do velho Humeia a
suster o seu companheiro, que na effervescencia do seu amor, cheio de
enthusiasmo, imbuido de mais na leitura dos livros de cavallerias, para
conquistar renome se dispunha a commetter temeridades, que serviriam
apenas para alarmar os castelhanos e arriscar a vida. João persuadiu-o a
voltar á outra margem, a procurar reforço para uma ideada surpresa, e
não tinham do lado de áquem dado muitos passos quando lhes chegou aos
ouvidos um vozear confuso, e toparam com uma mulher, que, soluçando, com
os olhos arrasados de lagrimas, conduzia pela mão uma creança, chorosa
tambem. Guiados por essa mulher, a quem Fernando, condoido, perguntára a
causa daquelle pranto, foram ter a um casal. As portas todas da casa
estavam arrombadas: por uma sahia um grande clarão. Uma velha arca e
outros trastes ardiam ao canto de uma adega, e á volta das pipas
tripudiava um troço de bésteiros. O vinho derramado em uma grande celha
de pau, e que, trasbordando, se esbanjava pelo chão, mostrava em que
estado tinham as cabeças, e mais ainda o modo porque recebiam as
admoestações de micer Guilherme: dançavam, tregeitavam, grunhiam e
berravam em várias linguas e dialectos, chegando alguns dos que se
mostravam menos firmes nas pernas ao nariz do nobre aventureiro uma
escudella a trasbordar. Para bem da verdade deve-­se dizer que o
irlandez, pretendendo conter os seus patricios, os inglezes, escocezes,
gascões e normandos, que, recrutados pelo chanceller em Londres, tinham
vindo nas galés, deitava á escudella um olhar tão terno, que não era
para delle esperar grande sanha contra os indisciplinados, nem grande
vontade de se metter á agua.

João Bispo via no meio de gargalhadas e motejos desfazer-se o plano
combinado com o sobrinho de Gonçalo Domingues, quando este se lembrou de
notar aos nossos fieis alliados por palavras e gestos que o vinho dos
cavalleiros de S. João devia de ser cousa muito superior ao de pobre
lavrador. Um hurrah saudou Fernando, e, cambaleando, a turma tomou o
caminho do açude, apesar dos protestos de Down-Patrick.

Vinte homens, se tanto, seguiam aos dous namorados: uma duzia de
archeiros de Gilles de Montferrand e alguns subordinados de Tello
Rabaldo, encontrados tambem na adega do casal: os demais, embriagados,
tinham ficado pelo caminho, e uns dous ou tres afogados no Leça.
Bésteiros e vádios penetraram na cerca com o maior silencio em quanto
João e Fernando rodeavam um páteo junto da igreja, onde os do arcebispo
tinham amontoada bagagem, carros e grande porção de escadas, com que
ameaçavam um assalto á cidade. A sentinella, posta desse lado, dormia,
cabeceando, encostada á lança, quando Fernando deitou mão de uma das
escadas para a encostar ao muro. O pobre archeiro, extremunhado, abriu
os olhos, esgaziados logo pelo terror, e a bocca para dar o signal de
alarme; porém aquelles embaciaram, e desta sahiu apenas uma golphada de
sangue; deu umas outras duas passadas, cambaleando, estendendo as mãos
como a procurar appoio, e cahiu no chão soltando um som rouco e um
assobio, como de homem que desperta de pezadello. O castelhano, não
despertava; adormecia para sempre: aquelle estertor sahia pela garganta
e feridas abertas no peito por João Bispo.

--S. Jorge e Portugal! exclamou o namorado de Irene, abraçando-se ás
ameias do eirado, e arrancando a bandeira dos partidarios de D. Beatriz,
que tremulava ao pé da vermelha dos cavalleiros. S. Jorge e Portugal!

--Estamos perdidos! resmungou João, ouvindo o grito do mancebo; e
estropeando o nome do aventureiro irlandez, gritou: Micer D. Patrico!
micer D. Patrico, por aqui! por aqui! A mim, bésteiros!

Nas torres ergueu-se um alarido immenso: alguns penedos cahiram do
eirado no páteo, e uma nuvem de virotes sibilava nos ares. Ao chamamento
de João apenas tinham acudido Pedro Choca e tres vádios. O sobrinho de
Gonçalo Domingues, com a haste da bandeira defendia-se dos castelhanos,
que, alarmados, mais tratavam de lançar a escada a terra do que de se
desfazerem do temerario inimigo.

--Abaixo, Fernando, abaixo! gritou João; e no alto das torres
appareceram algumas luzes.

--Viva o Mestre de Aviz! gritou o mancebo quasi ao mesmo tempo que lhe
fugia a escada debaixo dos pés, deixando-o suspenso das ameias e
estribado em uma enorme salamandra de granito, que servia de goteira ao
eirado.

--Ahi vem ginetes, disse Pedro Choca, fazendo um esgar. Recommendemos a
alma a Deus!

--Se elle t'a quizer! redarguiu um dos vádios soprando a uns tições alli
deixados em rescaldo, que embrulhára em uma pouca de palha.

--Fernando! exclamou João Bispo, encostando outra escada ao muro, apesar
dos arremessos; afferra-te, Fernando, que eu sou comtigo. ­

--S. Jorge! S. Jorge! se ouviu do outro lado do mosteiro em altas vozes.
­

--A mim, bésteiros, a mim! tornou João Bispo, em quanto o seu amigo se
defendia na goteira, procurando saltar no eirado.

--Hurrah! S. Jorge!

--Malditos! aquelles odres onde estarão! Micer D. Patrico!

--Arriba, João, arriba! accudiram os vádios, marinhando pela escada, que
de novo tinham erguido. Aquelle endemoninhado cachopo vai morrer!

Uma grande lavareda, de repente, illuminou a lucta travada entre
Fernando Vasques, os seus companheiros e alguns homens d'armas do
eirado. Pedro Choca tinha lançado fogo a uns carros de palha, e este
ateava-se aos enormes pavezes de vime, proprios para assalto, amontoados
entre as escadas e bagagens. Era uma fogueira soberba que dentro em
pouco faria estalar o travejamento dos aposentos de D. Mafalda, ao mesmo
tempo que os castelhanos abandonavam o eirado da egreja.

--Os do Mestre! os do Mestre! se ouvia por todos os lados; e nas torres,
besteiros e fundibularios perdiam os seus tiros.

­--Hurrah! continuavam, já roucos, a berrar, do outro lado da cerca, os
inglezes.

--S. Jorge e Portugal! gritaram algumas vozes, com boa clara, pronuncia
portugueza, do lado do rio, apparecendo por entre os castanheiros,
retirando os homens d'armas de Garcia Manrique.

--Ter! gritou um dos seus caudilhos, ameaçando com o estoque os mais
medrosos; ter, rapazes! Não se diga que retiramos diante de meia duzia
de villões!

--Ter, ter! exclamou o guerreiro arcebispo, ap­parecendo no meio dos
fugitivos.

--Os do Mestre estão no bailiado! disse uma voz d'entre a multidão.
Vêde, o mosteiro está a arder, e foi derribada a bandeira!

--Por Sanctiago! tornou o arcebispo para os seus companheiros, espantado
da audacia dos portuenses, embrulhados já com os gallegos, e suppondo-se
cortado por forças immensas; estes excommungados estão decididos a
morrer, e trazem com­sigo o poder do mundo. A caminho de Braga,
senhores! Temos tempo sobejo para desforra.

--Covarde! resmungou João Rodrigues Portocarreiro, esporeando o seu
ginete para se lançar sobre os do Mestre. Covarde! repetiu; e o fogoso
animal, ferido nos peitos por um virotão, ergueu-­se com as mãos no ar,
e cahiu, arrojando com ruido o portuguez rebelde a alguns passos de
distancia, abollando-lhe a armadura e o capacete e fracturando-lhe o
craneo.

--Covarde! repetiu tambem o arcebispo com um sorriso de mofa,
voltando-se para um dos seus capitães, e designando o fidalgo portuguez:
temeridades não aproveitam.

A ponte tinha sido forçada ao mesmo tempo quasi, e a cavallaria de D.
Pedro de Transtamara cortava já pelo meio dos gallegos, atterrados.

--A caminho de Braga! tornou a gritar o arcebispo D. João, que,
lançando-se na estrada partiu, a galope,­ seguido de grande porção de
cavalleiros, e pouco depois de todo o exercito, deixando os apprestes
d'assalto, viveres e bagagens nas mãos dos burguezes do Porto.

--Senhor conde, senhor conde, aqui está a bandeira de Castella,
exclamava momentos depois, attravessando no meio de vivas por entre as
hostes do Mestre, o sobrinho de Gonçalo Domingues, com as mãos cheias de
sangue, de feridas do corpo e da cabeça, mas tão contente, que nada lhe
doia naquelle instante, e, em vez do perigo corrido, se recordava tão
sómente de Irene, alegrava-se por saber que o seu nome lhe havia de
chegar aos ouvidos na historia daquelle recontro.

Era um heroe feito pelo amor.........................................
.....................................................................

O mosteiro dos Hospitalarios tinha sido abandonado, mal o incendio
mostrou aos seus guardas as hostes portuenses além já do Leça, abatida a
bandeira e em fuga Garcia Manrique. No entanto, ainda do lado da cerca,
sol já nascido, as mesmas vozes roucas gritavam:

--Hurrah! S. Jorge!

--Onde demonio estarão estes bargantes? perguntou o namorado de Garifa,
procurando o sitio donde sahia aquelle vozear.

Uma gargalhada estrondosa se seguia, pouco depois, á pergunta. Os
besteiros encontrados no casal, não se esqueceram, chegados ao mosteiro
dos cavalleiros de S. João, que vinham para humedecer a garganta com bom
vinho, e foi a adega a primeira cousa que procuraram. Era de lá que
tinham, com os seus hurrahs, ajudado a alarmar os gallegos.

Desta vez micer Guilherme Down-Patrick não resistira á tentação.




VIII.

Torneio.

/#
     E elles no Porto por ledice de sua vinda ordenarão hum torneo
     vespora de S. Iohão, que era em que os moradores daquella cidade
     costumavam fazer gram festa.

     ­(Fernão Lopes _Chronic._)
#/


Por uma tarde de mez de Junho, pouco mais de uma hora seria, caminhavam
em direcção ás Hortas, no meio de extraordinario concurso, mestre
Gonçalo Domingues e Fernando Vasques. O feito de Le­ça, tornando um
heroe, entre os patriotas da terra, o moço namorado, os gabos por elle
publicamente recebidos de Martim Correa e do conde D. Pedro, a ovação
feita pelos populares, que em charola, o conduziram, quando perdidas as
forças, pelo sangue derramado, cahira ao voltar do recontro; tudo fizera
passar por alto ao bom tio a fuga da loja. O velho abraçou-o
enthusiasmado tambem, com o riso nos labios e ao mesmo tempo umas duas
lagrimas nos olhos e só se lembrou de fazer algumas reflexões sobre as
imprudencias da mocidade, quando em casa notou a necessidade de chamar
um medico, ou physico, como então se dizia.

Gonçalo Domingues tinha, como muita gente, na cabeça uma boa dóse de
ideas em opposição com as inspirações e sentimentos do coração,
sobretudo a respeito de seu sobrinho. Se dissessemos que queria ao
mancebo tanto como ás suas dobras, diriamos que lhe tinha affeição de
pae; porém, ia mais longe o velho: queria-lhe mais; pois bom dinheiro
sem dó com elle tinha dispendido. E comtudo dava-se de vez em quando a
perros por causa de certas travessuras e inclinações do filho de seu
irmão, sobre as quaes fazia observações muito sisudas, cheias de um
positivismo tal, que obrigava a dizer aos que o ouviam que elle era um
homem de grande tino e prudencia. Reflexões e ralhos, terminavam quasi
sempre por aquelle sorriso que lhe viram os leitores quando elle voltava
de Miragaya.

Fernando vinha ainda alguma cousa pállido, debilitado, ao que no corpo
mostrava; porém nos olhos havia um fogo extraordinario, uma alegria
pintada em todo o semblante, e nos movimentos uma força, uma rapidez,
que não parecia de quem entrára pouco havia em convalescença. O tio bem
lhe dizia que moderasse o passo, pois lhe fazia mal aquella violencia, e
elle mesmo a custo o poderia seguir sem correr; mas o mancebo, se o
affrouxava, era por instantes.

O sol, ainda quasi a prumo, podendo, dardejar os raios por entre as
esguias e altas edificações das estreitas ruas, que percorriam,
rarefazia o ar, appresentando nos terreiros á vista a illusão de um como
doudejar de átomos no ambiente, um tremor que fere os olhos; porém
Fernando nada sentia. Ia vêr Irene, Irene que não vira desde o
esboroamento fatal do muro; Irene, que João Ramalho, em vesperas de se
fazer de véla para a Figueira, d'onde seguiria para Lisboa, recolhera ao
castello de Gaya, recommendando-a a D. Catharina. A nobre senhora era
bastante astuciosa para não affagar em quanto fosse conveniente um homem
popular como o piloto mercador, e fallando elle em metter a joven em um
convento, em quanto ia servir o Mestre, para a guardar dos riscos a que
a idade a expunha, se offerecera para a tomar como donzella sua «e tel-a
como filha» palavras della. D. Catharina devia ir ao campo das Hortas
nessa tarde, e por João Bispo soubera o mancebo que á sua namorada fôra
concedida a honra de formar parte do seu cortejo. Em logar do sol que
fazia, podia queimar o dos tropicos, que o mancebo o sentiria tanto como
a aragem fagueira por sesta do outomno, ou a gellos de hinverno.

O recontro de Leça deixára desassombrada a cidade, e os bons burguezes
entregaram-se todos aos cuidados de aprestar as embarcações e mais
soccorros pedidos pelo Mestre de Aviz, posto em apuros pelo aperto do
sitio e bloqueio. Em quanto o abbade de Paço de Sousa se dirigia a
Coimbra, transtornada, como vimos, a embaixada do alcaide de Monsaraz,
as galés vindas de Lisboa e outras do Porto, já prestes, para não
perderem tempo tinham-­se feito de véla pela costa da Galliza,
capitaneadas pelo conde D. Pedro, lançando contribuições aos povos que
não queriam experimentar o nosso ferro. Destruido completamente o Ferrol
e queimadas algumas naus, pelos fins de Junho de novo a frota appareceu
nas aguas do Douro, rebocando umas sete presas, e carregada de despojos.

Os sinos de todas as torres da cidade balouçaram-se, atroando os ares;
berrou-se em todas as escalas os vivas do costume, e os edis, no fogo do
enthusiasmo, decretaram uma festa esplendida, como appensa á de S. João,
santo sempre popular e mais nessa quadra, por ser o do nome do Mestre,
que o povo tinha por um Messias, como diziam os partidarios de D.
Beatriz. A vespera da commemoração do nascimento do Baptista, morto por
ter desdenhado da dança, devia ser celebrada com danças, guinolas,
touras, momos e por um vistoso torneio, que tinha de ser o assombro da
terra, pouco affeita a tão graúdos folguedos.

Desde o amanhecer do dia 23 o campo das Hortas estava cheio de gente
embasbacada para o tablado levantado na vespera, que alguns operarios
cobriam com tapeçarias, em quanto outros davam a ultima demão ao circo,
ou estacada, adornando-a com bandeiras, panoplias e festões de ramagem.

Aos gritos e cantigas dos trabalhadores, aos commentos dos curiosos, ás
risadas pouco e pouco se juntavam os pregões das vendilhonas de fructa,
dos taberneiros, fritadeiras e padeiras, que assentavam as suas mezas,
as suas tendas, ou os carros enramados por todos os lados, que o circo
deixava devolutos, e pouco antes do meio-­dia era já difficil mover-se
no campo, apinhando-se além disso um gentio immenso nos adarves e torres
da cidade, por aquelle lado, e na encosta dos dous montes do Olival e
Batalha. Se até ahi os bons burguezes tinham aberto a bocca para as
tapeçarias onde a agulha ou a lançadeira traçara os episodios dos contos
de cavallerias, mostrando o rei Arthur, Amadis, Lisuarte, Galaor, a
duqueza Iguerna, Mabilia, Oriana, Urganda, Brisena e outras muitas
personagens, que para maior illucidação dos seus feitos e ditos tinham a
sahir pela bocca o texto da «illustração»; se ficavam embellesados nos
grandes pannos de ouro, trazidos da cathedral para enfeitar o esperavel
do estrado das damas, nos estandartes, onde havia divisas de toda a
sorte, bordadas ou pintadas, mais pasmaram quando começaram a apparecer
os mantenedores das justas, os improvisados arautos, mestres e juizes de
campo, passavantes, sergentes, menestreis e trovadores, que para a festa
tinham sido igualmente apenadas as musas.

O Porto, behetria havia muito, entregue todo ao commercio, quando não se
divertia a jogar as cristas com os seus bispos e a pugnar pelas suas
liberdades, o Porto tinha visto passar os cortejos de alguns reis e
principes; mas de fugida, meios envergonhados, como o de D. Fernando, ou
em som de guerra, e em devota romagem e peregrinação: cortejo assim,
festa egual nunca se déra, pois nunca, como então, se reuniram de muros
a dentro tantos e taes elementos: tinha uma côrte de seu. Os mesteiraes
e os burguezes nesse dia, tão enlevados estavam nas louçanias que se
desenrolavam, que abriam caminho com a melhor vontade aos cavalleiros, e
alguns mesmo suspiravam por que fosse levantado o interdicto a quem com
tanto garbo soffreava um ginete, vestia tão airosamente, e fazia tão
acabadas mesuras.

Tinham as corporações apparecido com as suas bandeiras, precedidas pelas
figuras que davam para abrilhantar o acto, como na procissão de Corpus:
tinham-se­ reunido, amontoado os trajes mais variados, desde as vestes
negras, compridas dos juizes, alvazires e meirinhos, as jorneas
partidas, de panno bristol, de seda e velludo, os briaes blasonados, as
marlotas dos mouros dançarinos, as olandilhas, as opas dos foliões e
jograes, os arnezes polidos, espelhando o sol, adamascados ou tingidos
de vivas cores, os vestidos de brocado, de panno de ouro e prata, os
arminhos e zibelinas das damas e donzellas, a almafega e o burel de
certos momos; casavam-­se os preludios de todos os instrumentos; o
arrabil e o tiorba, a charamela e o clarim, o tambor e o pandeiro,
estrugiam, chiavam, rangiam; mas tudo aquillo dava vida e animação,
afinava, no meio da sua desafinação, permitta-se dizer, com o ressalte
das côres, que como em brazão pareciam postas, com os alaridos, as
risadas e os vivas, quando Fernando penetrou no palanque, onde seu tio,
como notabilidade da terra, conseguira bom logar.

O mancebo, mal entrou, estendeu a cabeça, a procurar com a vista não os
arautos improvisados, que se pavoneavam de ambos os lados da liça,
vistosamente trajados de branco e azul, com as armas da cidade bordadas
no peito, nem os mestres de campo, montados já em bem ajaesados corceis,
e correndo de um para o outro lado: foi para o estrado ou cadafalso das
damas. Estava porém cerrada a cortina, e, que não estivesse, no palanque
era tal o reboliço, tanta gente estava de pé, que não seria facil
descobrir lá alguem, a não estar em logar eminente. Mestre Gonçalo
Domingues, parte por natural curiosidade, parte por desejo de ostentar
perante os visinhos, como os paes costumam, quando se embellesam nas
prendas dos filhos, inquiria a significação de todas aquellas
tapeçarias, e amofinava-se por ver que o sobrinho mal lhe prestava
attenção, respondendo de tal sorte, que facil era ver que nem sequer
olhava para o sitio indicado.

De repente notou-se um marulhar de cabeças, e á algazarra succedeu o
silencio. Os alvazires appareceram no estrado para elles preparado, e em
outro, contiguo ao das damas, os juizes do campo--Ruy Pereira e Ayres
Gonçalves de Figueiredo.

As trombetas soaram; alvazires e juizes tomaram assento, e depois de
feitas as costumadas ceremonias, um dos trovadores ergueu-se, desenrolou
um pergaminho cheio de illuminuras, e começou em voz alta a recitar o
seu poema, que era nada menos que um elogio aos guerreiros da espedição
maritima. A poesia nessa epocha era tida em grande conta, e as
attenções, por tanto, da assemblea voltaram-se todas para o bardo. Uma
cabeça, uma só se volvia attenta para outro lado, e esta cabeça era a de
Fernando.

A cortina de cadafalso das damas fora corrida por dous pagens, e D.
Catharina e mais umas oito damas da nobresa das visinhanças da cidade
tinham apparecido rodeadas pelas suas donzellas.

Os trovadores podiam dizer bocados de ouro sobre­ façanhas militares,
que as palavras eccoavam como sons vagos aos ouvidos do namorado moço;
os versos de amores, esses, como se affinados pelo sentimento que o
dominava, ligados por uma corrente magnetica, faziam-no sorrir e córar,
sem comtudo desviar os olhos do estrado.

Depois que as palmas de todos os lados, e as trombetas soaram, quando o
vencedor proclamado, appresentando o seu manuscripto a Gonçalo Pires,
escrivão da chancellaria, com uma corôa de louros, recebeu em soberba
bandeja um bonito sacco de argempel, rico pelo bordado, e mais ainda
pelas boas dobras que o pejavam, premio votado pela municipalidade,
segundo antigas usanças, appareceu no meio da liça o mantenedor das
justas.

D. Pedro de Transtamara vinha, sobre garrido, aprimorado, formoso.

Bem fraca figura fazem hoje nas nossas festas e folguedos, com a esguia
casaca preta e a gravata branca de rigor, os alindados do seculo XIX á
vista da que faziam os nossos avós. Para o namorado de hoje em dia no
baile não ha meio de se distinguir, de lisongear o amor da sua dama,
como então nos torneios, nos jogos de cannas e argolas, nos bafurdios e
cavalgadas; não apparecem hoje os vistosos trajes de seda, ouro e prata,
as mangas bordadas, de honra, as charpas ou bandas, nas quaes em cores
preferidas pela donzella querida se via a tenção ou divisa, que
recordava a ambos um protesto, uma confidencia, ou descobria um
pensamento. O amor tinha, sobretudo no cavalheiresco seculo a que
transportamos o leitor, um culto, que hoje não tem, hoje em que
arrancaram a aljava a Eros, o facho ao Hymeneo, e a ambos deram por
distinctivo um saquitel de lona, como a imagem globulosa de bemfeitor de
confraria. (Entre parenthesis, faço aqui excepção dos meus leitores: os
que são casados, o são por amor, e os solteiros e as solteiras ainda não
deram um sorriso, um olhar a dote algum de boa somma, simplesmente pelo
dote e nada mais. São a nata das creaturas.)

O conde D. Pedro vestia sobre ricas armas de Toledo cheias de relevos,
esmaltes e embutidos, um brial côr de cereja, onde, em vez do brasão
proprio, havia bordadas chammas de ouro, e no escudo, esmaltado da mesma
côr rubra, e taxeado de ouro, lia-se a palavra «_Cuydado_» entre duas
palmas, que enramavam um sol feito de espadas. Um malicioso notou que o
desenho do escudo podia figurar a roda de navalhas de Santa Catharina, e
que a esposa de Ayres Gonçalves trajava um corpete de tela, da côr
favorita do mantenedor do torneio, adornado com um peitilho e fraldilhas
de arminho; todos poderiam notar egualmente que, quando, ao fazer
caracolar o seu ginete, o conde deu uma volta á roda do circo, antes de
tomar das mãos do escudeiro que o seguia o elmo, a lança e o escudo,
entre elle e a nobre castellã se cruzára um olhar expressivo; porém, o
governador de Gaya mostrava-lhe um sorriso de agrado, e eram tão sabidos
os recentes amores, que o tinham feito abandonar a côrte de seu tio, que
a maledicencia achava-se um pouco embaraçada nos vôos.

O mantenedor do campo foi saudado com tanto enthusiasmo ou mais que o
trovador, e da mesma sorte foram acolhidos, em seguida, os
contendedores, que se appresentaram: Vasco Martins de Mello, Gil
Esteves, Affonso Darga, Henrique Fafes, um dos irmãos Alvalade, micer
Manoel Pessanha, Affonso Henriques de Transtamara, e outros mancebos,
todos tão adornados e vistosos, que á multidão iam-se-lhe os olhos
nelles, não sabendo a qual dar primazia. Depois das ceremonias do
costume e de um bafurdio, jogo em que cada um mostrava a destreza no
arremesso das lanças, diversão tomada dos arabes, começou o combate.
Vasco Martins, Henrique Fafes e Alvalade perderam a sella, não
supportando o embate das lanças; micer Manoel, como mais affeito ao mar
que á terra, ao dar a volta em um dos extremos da liça, para arremetter
contra o seu antagonista, o fez de sorte, que, roçando pela barreira com
o cavallo, o arremessou este para o outro lado, deixando-o menos
maltractado que a uns dous burguezes, que lhe amacearam a queda com o
corpo.

As damas debruçavam-se curiosas na balaustrada do cadafalso, e mais
curiosas do que as damas as donzellas de honra e as burguesas, para quem
tudo aquillo era inteiramente novo e de fortes impressões, como hoje se
diria. D. Catharina de Figueiredo, entre as do seu sexo, era a excepção,
como Fernando entre os homens. Alguma cousa lhe prendia a attenção, e
essa cousa ficava perto da bancada onde estava­ o mancebo. Seguindo a
direcção dos olhares frequentes da bella dama, encontrar-­se-hiam as
vistas do sobrinho do forçureiro, e ao primeiro relance dir-se-hia que
se provocavam e comprehendiam. D. Catharina notara Fernando; notara nos
olhos os reflexos do incendio ateado no coração, e illudira-­se, como se
poderia illudir muita gente. Extranhar a audacia a principio, podia-­a
extranhar; porém, mulher, havia de achar-lhe indulgencia, por virtuosa
que fosse. Não o era. De sangue ardente, fogosa por temperamento
pertencera, demais, á corte de Leonor Telles; era uma das damas com que
a astuta rainha jogara, para formar partido, cativar a benevolencia dos
cavalleiros a principio um pouco do parecer do povo que apedrejara os
paços de apar S. Martinho, e não desdissera depois da escóla em que se
criara. Nos seus galanteios não encontrara nunca um olhar de adoração
como o que interceptava; Fernando Vasques fizera-lhe mesmo uma impressão
mais que extraordinaria: fizera-lhe não só, alli, esquecer o conde; mas,
depois, ainda mais, a distancia em que estava ella, dama de alta
linhagem, de um simples burguez, um peão.

A illustre dama não contava com Irene, que se occultava, córando, atraz
da poltrona em que se sentava: o filho do mestre de Santiago não contava
tambem com o sobrinho de Gonçalo Domingues; mas via claramente que as
côres e divisas que tomara podiam ser taxadas de vaidade, presumpção e
nada mais.

Quando um novo contendor entrou na liça, estava tão preoccupado o nobre
mantenedor, a procurar quem lhe podia roubar completamente as attenções,
que não reparou que era esse o mais destro de todos, affeito aos jogos
dos arabes de Granada, a medir-se com os cavalleiros da Africa ao
serviço dos Alhamarides; que era seu proprio irmão, Affonso Henriques. O
moço castelhano, passando junto do conde guiou tão destramente o
cavallo, que lhe roçou pelas joelheiras, e dando um geito á lança, na
carreira, desviou completamente a do seu antagonista e tocou com a sua
no escudo de tal sorte, que o braço que o segurava, estendeu-se; a mão
abriu-se e aquella arma defensiva foi ao chão. D. Pedro, ao ouvir os
applausos levantados a seu irmão, e com a cabeça perdida pela distracção
da sua dama, ergueu-se furioso nos estribos e arremetteu contra elle. A
sua lança desfez-se desta vez em hastilhas no arnez do mancebo; porém
este não saltou da sella, e em poucos instantes estava outra vez em
frente do conde. A lucta tornou-se então um verdadeiro duello, e as
regras do cartel apresentado no principio, consentindo tudo que fosse
destresa, e mandando parar ao primeiro ferimento ou queda, pois que não
era justo que grande mágoa enlutasse tão grande festejo, foram
despresadas. O conde tinha sido desappontado nos seus galanteios como
homem, e nos seus brios como cavalleiro. Ás lanças succedeu a espada; e
as espadas como a lança quebraram, amolgando os elmos, disjuntando e
torcendo peças dos braçaes. Tomaram um a maça, outro o machado, e
furiosos correram um para outro.

O tio de Nuno Alvares Pereira e Ayres Gonçalves de Figueiredo, estavam
tomados de assombro para intervirem na lucta; os mestres de campo, que a
principio haviam tentado manter com os arautos as condições do cartel,
tinham-se, embaraçados, por noviços, retirado para junto das bancadas, e
olhavam uns para os outros e para os juizes, procurando conselho, que
não viam nos olhos de ninguem. Os espectadores, homens e mulheres, esses
applaudiam os epysodios da lucta.

A massa ressoou na armadura de Affonso Henriques, e a um rugido, um
regougo seguiu-se um fio de sangue a correr por entre as fendas do
gorjal sobre o arnez. Os contendores tinham-se esquecido de que eram
irmãos. D. Pedro, sobretudo, estava cego. O brial do conde fez-­se em
farrapos, enrodilhado pela machadinha; o ginete em que montava D.
Affonso, ferido na cabeça, apesar de acobertado de ferro, cahiu na arena
levando o cavalleiro. Os gritos da multidão, como nos circos romanos,
eccoaram pelos montes visinhos.

--A pé, a pé! gritaram alguns cavalleiros enthusiasmados, exigindo a
egualdade de combate.

Não foi preciso repetir a exigencia: ou melhor fôra ella escusada: o
conde de Transtamara lançara-se abaixo do cavallo, e corria direito para
o irmão, que, já erguido, com o machado no ar o esperava.

--Cavalleiros, cavalleiros! exclamou Ruy Pereira ao mesmo tempo que
Ayres Gonçalves, querendo sustar o combate.

Os passavantes e o mestre de campo correram para a arena, porém quando
chegaram junto dos irmãos, um delles, D. Pedro, soltáva um grito
doloroso, e cahia com todo o peso do corpo, fazendo ranger e estallar
todas as peças da armadura.

O guante de ferro que lhe guarnecia a mão direita estava despedaçado, e
despedaçado o pulso. O sangue tingiu a areia da liça.

--Jesus! se ouviu do lado das damas e depois uma borborinha correu pela
assemblea; pois a queda do sobrinho do rei de Castella, tomada como o
baquear extremo, produzira no povo uma impressão desagradavel.

Aquelle rumor e assombro fizeram cahir em si Affonso Henriques.

Os momos que se seguiram ao torneio foram sem interesse para os
espectadores entretidos a commentar o combate extraordinario dos dous
nobres castelhanos. Se recrearam alguem foi a Fernando Vasques e a
Irene, e pela duração; não por outra cousa.

D. Catharina não havia tambem despregado os olhos do mancebo. Ao
cavalleiro que a invocára no torneio, se concedera um olhar, fôra de
curiosidade. Quando este tornára a si do desmaio em que a dôr e o sangue
perdido o haviam feito cahir, passando junto delle, ao entrar para as
andas em que viera de Gaya, teve algumas palavras; mas ainda, se não
dirigidas, allusivas ao sobrinho de Gonçalo Domingues, que tratára de
seguir Irene, apesar das exclamações do velho forçureiro, pouco amigo de
se metter em apertos, lembrado do desembarque de Ruy Pereira.

--Bello pagem se fizera daquelle mancebo... se fôra de linhagem! Não é
certo, micer Guilherme? disse ella.

--Bello pagem! disse o irlandez, que de certo devia ter achado a festa
menos divertida que o recontro de Leça, e sem mesmo olhar para o joven
que D. Catharina designava com a vista.

Fernando, perto da linda filha de João Ramalho, mais formosa agora e
esbelta com as galas que lhe consentira a castellã, embellecido o rosto
pelo amor; Fernando não ousára erguer os olhos, e sustentára assim a
illusão para a antiga donzella de Leonor Telles, que repetio:

--Bello pagem!




IX.

Garifa.

                                   Cade in tanto dolor, che si dispone
                                   Allora allora di voler morire......

                                      _Ariosto_--Orland. fur. cant. V.

                                   Maravilhou a todos o spectaculo
                                   Inesperado...
                                   Que será? disse emfim um rumor surdo
                                   De vozes dos que tremulos pararam...

                                        _Garrett_--D. Branca--cant. I.


--Para longe o agouro! Ora esta! dizia, horas depois do torneio, em
Gaya, junto da fonte do rei Ramiro, a mulher de um galeote.

--Pois que é, tia Dordia? interrogava outra.

--Que ha de ser? Vindo ás vozes do lado do monte, ouvi fallar em
affogado, e bem sabe que o meu Manoel anda por esses mares!

--Para longe o agouro, repetiu a outra mulher. Isto de agouros nem
sempre são certos. Fé em Deus, que elle fará as cousas pelo melhor.

--Fé em Deus tenho eu; mas bem mau é que em noite de S. João se ouçam
cousas destas! A velha Mafalda, o anno passado, ouviu, ao passar ao arco
de S. Domingos, fallar em um justiçado, e bem sabe o que aconteceu ao
filho.

--São signaes que cada um traz ao nascer. Mas ainda não é meia-noite,
proseguiu a mulher, querendo consolar a senhora Dordia da crença ainda
hoje existente junto da foz do Douro, de que, quando, vespera de S.
João, ao cahir da meia-noite, se procura um prognostico, ou noticias da
sorte de pessoa ausente, as dão as primeiras palavras de qualquer
conversa.

--Deus a ouça, visinha... Deus a ouça; mas parece-me que já será: o
sete-estrello vai alto!

--Não é, não. Ólá, João Canhoto, meia-noite será?

--Não é, tia Luiza. Quer ir saltar as fogueiras?

--Eu não: forças para tal Deus as déra. O meu tempo já passou. Quando
rapariga!...

--Então deitou ovo em escudella?

--Para que?

--A vêr se lhe sahe arco de egreja, respondeu o homem, que dava pelo
nome de João Canhoto, rindo.

--A mim agora só se me sahir tumba. Isso é bom para cachopas.

--Vamos, vamos, tia Luiza; ainda está féra, rija como um virote, e um
noivo agora era mel pelos beiços.

--Seu bargante! exclamou a velha, mostrando no rosto que a mofa do
galeote não era inteiramente recebida como tal.

-­­-Então, ainda não é meia-­noite? tornou a perguntar a senhora Dordia,
bastante impressionada pelo agouro tomado, para delle tirar o sentido,
não obstante os gracejos dirigidos pelo galeote á sua amiga.

--Qual meia-noite! Ao cantar do gallo toda a chusma, que anda por ahi,
ha de vir em descante. É uma festa de estrondo cá da gente. Verá se lá
os da cidade nos levam as lampas! Só violas é uma meia duzia, e os
rapazes que as tangem são mestres acabados. É de se abrir a bocca. E o
Safio? Se ha por ahi quem saiba deitar uma cantiga como elle, que eu
beba agua toda a minha vida! O Safio vem no rancho.

--Então, temos grande descante? interrogou uma outra mulher.

--É esperar para ver.

--O sitio não é lá dos melhores.

--Dizem que por aqui...

--O que?

--Que em noite de S. João apparece na fonte uma moura encantada... Ora
uma moura de não sei que rei...

--Bôa, bôa! exclamou o galeote. As mouras não se vem metter assim com um
homem do mar, por mais tresloucadas que andem. Se ella quizesse bailar
na festa...

--Credo! Não diga isso, que o póde ella ouvir! exclamaram duas ou tres
mulheres ao mesmo tempo.

­--Ai, senhor João, bem se vê que não é da terra, e não sabe que é certo
o apparecer ás vezes ahi a maldicta. Minha avó, que Deus haja, quando
era rapariga, viu-a, disse a tia Luiza.

--E vi-a eu, vai em tres annos, com estes que a terra ha de comer,
accudiu a tia Dordia.

--E eu, disse outra.

--E eu, exclamaram em seguida mais cinco ou seis.

--Então, como é a moura?

--Ora como ha de ser a moura? É uma figura branca, toda branca, muito
branca, com os cabelos, nem fios de ouro, soltos pelas costas; e
apparece a bailar na agua de um para o outro lado...

--Hoje quebra-se-lhe o encanto, atalhou o galeote, que era para o seu
tempo um grande incredulo ouvindo um desfinar de instrumentos do lado da
povoação.

--Alli vem a festa! Lenha para ahi! exclamou em seguida, dirigindo-se a
um rancho de creanças de ambos os sexos, que saltavam por cima do
brazido deixado pela fogueira.

A festa annunciada não tardou com effeito a apparecer. Uma grande porção
de galeotes, petintaes e espadeleiros de Gaya e Villa Nova arranhavam em
violas, tocavam tamboril, ou cantavam, fazendo coro, a canção entoada
por um rapaz alto e de ar jovial, que era nem mais nem menos o Safio
apregoado por João Canhoto. Para se dizer toda a verdade, deve-se
accrescentar que a desafinação dos instrumentos não destoava das vozes,
um pouco roucas, como as de todos os embarcadiços, e demais
ressentindo-se de brodio feito em tasca.

Uma voz cantava:

  Em noite de S. João
  Até no mar traiçoeiro
  Accendem anjos ou fadas
  Em cada vaga um luzeiro.

  E, velas de seda ao vento,
  Passa a galé encantada;
  Remos de ouro batem n'agua
  Ao som de branda toada.

  No ceo bailam as estrellas
  Bailam as mouras nas fontes...
  ..............................

--Jesus! exclamou uma mulher, pallida, com os olhos espantados,
lançando-se a tremer no meio da festa.

As violas calaram-se, o cantor, que desta vez dizia versos, que não eram
de sua lavra; os coros, que repetiam no fim de cada estrophe um
estribilho maritimo, calaram-se tambem; os rostos tornaram-se de
finados, como se tornara o da mulher. Esta, com o braço estendido,
designava a fonte de D. Ramiro.

Se vós, leitora, que talvez por mais de uma vez apregoastes que não
credes em muita cousa natural, quanto mais nas que o não são, visseis o
que Safio e os festeiros de Gaya estavam vendo, a côr do rosto vos
fugira, como a elles lhes fugiu, e talvez, como a vossa organisação não
é a de qualquer petintal, um desmaio vos tirasse de sustos.

A lua no extremo da sua carreira, redonda, mergulhava no mar, marcando
nas aguas uma esteira tremula, de um brilho duvidoso. O disco, meio
embaciado pelos vapores do occeano, podia servir para uma imagem
funebre: dir-se-hia que era o espectro do sol. Na outra margem, para o
lado da cidade, por entre fogos vermelhos, appareciam e desappareciam
figuras negras, como possuidas de uma vertigem, de frenesi, e a aragem
trazia nas azas humidas pelo orvalho, um concerto de rizadas em todas as
notas possiveis da escala, e uma discordancia de instrumen­tos, como em
ronda de feiticeiras. O rosto tornava-o negro uma immensa fogueira feita
na praia. Os reflexos da luz davam ao rosto dos marinheiros de Gaya,
tomados de assombro, um todo phantastico, assustador. Toda esta scena
momentos antes era alegre. Uma só cousa bastára para a transtornar.
Entre o fundo escuro em que se mergulhava a margem opposta, em
consequencia da fogueira que fizera avivar João Canhoto, e o lanço do
rio tocado pelos derradeiros raios da lua, junto da fonte, á beira da
agua, via-se uma figura branca, indefinida em tudo que não era o
contorno, movel, conforme as oscillações e intensidade dos fogos,
accesos que parecia, mais do que a pousar na terra, suspensa do ar,
baloiçada por fio invisivel.

Aquella apparição, como transtornára o aspecto da scena, como déra aos
cantos e aos risos um tom sobrenatural, tornára immoveis quasi os
collegas de Safio. Se não fosse o movimento que faziam para se
aconchegar uns aos outros, dir­-se-hia que ella os havia petrificado. O
suor innundara-lhes a fronte, e o frio corria-lhes pela espinha dorsal.

A campa do convento de Corpus-Christi dobrou compassada marcando a
meia-noite, e ao mesmo tempo quasi uma nota plangente vibrou no ar.
Marinheiros, que tinham affrontado a tempestade com o coração sereno,
que nas galés reaes ouviram sibilar os pelouros, sentiram perto do
craneo o embate do machado no machado tremeram como as folhas dos
alamos. Das mulheres nem fallamos. Todas as orações, todas as fórmas de
esconjuros se lhes embaralhavam na memoria, e os lábios negavam-se a
pronuncial-as.

--Meia-noite, tartamudeou João Canhoto, momentos antes emprazador de
phantasmas, e fazendo ao soar a ultima badalada o signal da cruz ás
avessas.

--Valham-me os santos e santas do céu!

--Jesus! bento nome de Jesus!

O silencio que estas exclamações interrompiam era tal que se ouvia o
respirar não muito desembaraçado daquella boa gente, e o terror tambem
era tamanho, que as passadas e mesmo a apparição de um homem junto do
rancho dos festeiros não foi por elles notada. Daquelle pasmo pasmou o
recem-chegado, mas não por muito tempo.

--Ui, Canhoto, exclamou elle; que mau olhado vos deu, e em toda essa
gente, que tendes cara de quem viu o trêpo em encruzilhada?!

--Jesus! bento nome de Jesus! repetiram as mulheres, deitando a correr
para o lado da povoação, como se a presença daquelle homem quebrára o
encanto de terror em que estavam.

--Ui! tornou elle, que demonio se lhes metteu no corpo?! Nem bando de
cotovias que farejaram besta armada. Eh! Canhoto, que feio esgar que
estás a fazer! Estás mudo, homem? Aquelles pergaminhos velhos de saias
que fugiram a grasnar eram bruxas? Em noite de S. João...

João Bispo, pois era o nosso conhecido o recem-chegado calou-se, e
recuou espantado, fitando um gesto dos galeotes de Gaya a apparição
phantastica que os atemorisára, e quasi ao mesmo tempo dous gritos se
confundiram com o baque de um corpo no rio. O phantasma branco, a moura
encantada durante a enfiada de perguntas de João Bispo, approximara-se
da margem do Douro, erguera os braços ao céo, como em supplica, e
precipitara-se na corrente. Durante este movimento o bésteiro
reconhecera naquelle vulto um ente querido, e ao grito, soltado como em
adeus extremo ao mundo, juntara-se outro de angustia tambem. O pasmo
produzido pelo reconhecimento feito em taes circumstancias não foi
longo, porém; ao baque na agua do corpo da moura seguiu-se outro, o do
bésteiro.

--João! João! exclamaram alguns galeotes perplexos; sem saber como
traduzir na sua intelligencia o passo do condiscipulo de Fernando.

João não ouviu sequer aquelles gritos.

--A moura saltou ao rio! disse um espadeleiro, que se attrevera a
procurar com a vista a causa do terror geral.

--Foi para casa de _Brazabu_! redarguiram dous ou tres, tomando de um
folego o ar necessario para cem homens, e limpando com as costas da mão
o suor frio que lhe banhava o rosto.

--João! João! tornaram os que mais perto estavam da praia.

--Arrastou-o a maldita. Não viram os olhos que ella deitava. Eram dous
luzeiros.

--Guay delle! Aquillo não era moura; era o tinhoso, resmungou o
espadeleiro, fazendo o signal da cruz, o vigessimo talvez nessa noite.

--A modo que sim, tio Vasco. Cheira aqui a não sei que.

--Olhem! olhem! disse com voz abafada outro marinheiro, que se attrevera
a approximar-se da margem, e de novo recuára atterrado. Olhem! olhem!
Não veem na agua aquelle marulhar? A moura filou o bésteiro.

--A Virgem santa seja com elle! murmuraram tres ou quatro a um tempo,
dando o nosso homem como perdido de corpo e alma.

No rio, mesmo na esteira que prateava a lua, com effeito apparecia e
desapparecia, para de novo surgir á flor d'agua, um vulto, a bracejar.
De uma das vezes não veio só. O vestido da moura alvejou, tocado por um
raio de luz, e a crença, dos marinheiros, de que João Bispo era
arrastado por um espirito ou pelo demonio, mais se confirmou, levando-os
a novos esconjuros. O bésteiro sobraçando o corpo e segurando com os
dentes as vestes da infeliz, embaraçado nos movimentos, luctava com a
corrente afim de alcançar a margem.

--A mim! a mim! gritou elle de uma das vezes em que veio ao lume d'agua;
porém os marinheiros olhando espantados uns para os outros não se
moveram em seu auxilio.

--S. Pedro seja com sua alma, murmurou o velho Vasco, recuando ao passo
que o bésteiro se approximava da margem, um pouco escarpada naquelle
sitio e então mais do que hoje. Que se apegue com a Virgem, não com a
gente, que nada póde com encantos.

--Oh de terra! soccorro, por Deus, que se me fina esta desgraçada!
tornou João Bispo com uma inflexão de voz, que denotava o desespero que
ia naquelle coração.

Safio e Canhoto, por um impulso sobre o qual nem tempo tiveram de
reflexionar, correram á praia. Safio approximou-se da rocha junto da
qual o bésteiro se debatia, segurando sempre a mulher de branco.

--Uma mão a esta pobre, que já mal respira.

­--É uma rapariga! exclamaram os dous marinheiros, estendendo os braços
a segurar aquella que, momentos antes, tomavam todos por um ente
sobrenatural.

Os petintaes, galeotes e mais festeiros pouco a pouco se tinham
approximado, ouvida esta exclamação, e vendo que se não tratava de mais
do que de arrancar á morte uma creatura, o exemplo de Safio e Canhoto
foi seguido, e, instantes depois, João Bispo a depositava em terra a sua
preciosa carga.

De novo reinou o silencio. Os marinheiros atordoados com as sensações
diversas experimentadas em tão curto espaço de tempo, formaram roda ao
corpo da mulher, que inane, desmaiada haviam conduzido para junto de uma
fogueira, e deitado sobre um monte de trevo, alfombra improvisada das
moças da terra, dispersas pouco havia. João Bispo com o olhar fixo,
espantado, as mãos pendentes, os lábios entreabertos contemplava o rosto
da moura, pois moura era a desfallecida. Parecia ter-se-­lhe apagado
completamente da memoria o que acabava de se passar: o corpo alli
prostrado era uma surpresa. De repente deu um grito; lançou-se de
joelhos junto da moura, tomou-lhe a cabeça no regaço, e palpou-lhe as
faces e o seio, a vêr se encontrava o calor da vida, e, curvando-se,
entre carinhos, como se com elles a quizesse acordar daquelle lethargo,
exclamou:

--Garifa! Garifa!

Garifa não respondeu. Os lábios contrahidos, lividos, perdido o fogo que
animava aquelle rosto moreno, quando, pelas grandes festas, nas danças e
folias, com que as da sua raça contribuiam, fazia girar sobre a cabeça o
adufe, ou agitava os cascaveis que lhe adornavam o curto saio; os olhos
cerrados; as longas cilias cheias de gotas d'agua, como se a morte a
surprehendesse entre prantos, nem um suspiro desprendia; nem um
movimento, por leve que fosse, se lhe notava.

--Morta! tornou a meia-voz, atterrado, o bésteiro, tirando do cinto o
punhal, e chegando-lhe a folha aos lábios depois de a ter limpado.

Um raio de luz, um raio de alegria passou pelos olhos do magoado amante,
quando o fraco alento da moça formou uma mancha na folha luzidia.

--Garifa! Garifa! tornou elle a exclamar.

--É viral-a de cabeça para baixo! resmungou o velho Vasco; é a mésinha
dos afogados.

--Garifa... minha pobre Garifa! murmurava o bésteiro.

--Safio, chega-lhe vinho; um trago não lhe fará mal, gritou João
Canhoto; e em seguida, tomando o pichel que o seu companheiro trazia á
cinta, derramou algumas gotas sobre os lábios da desfallecida moça, ao
passo que este resmungava, vendo correr o licôr a que não parecia
desaffeiçoado:

--Boa cera com ruins defuntos!

João Bispo lançou-­lhe um olhar terrivel, e fez um movimento, como se
tentasse desafogar em cólera contra o imprudente marinheiro todo o peso
do coração, e estallar, quando Garifa moveu os lábios fazendo um gesto
de repugnancia.

--Basta, Canhoto, basta! acudiu Safio, que não reparara no bésteiro;
vais fazer perder a alma á ra­pariga. No céu dos mouros... que é o
inferno, accrescentou por entre dentes... não entra quem prova do sumo
da uva, ouvi dizer.

O bésteiro arredára Canhoto, e, com um braço debruçando-se sobre o corpo
da sua namorada, tomava-lhe as mãos entre as suas, quando ella abriu os
olhos, murmurou algumas palavras inintelligiveis, e tornou a fechál-os,
soltando um suspiro.

--Garifa! Garifa! tornou a exclamar o amigo de Fernando.

--Quem me chama? perguntou a moura, como se acordára de um somno, com
voz fraca, descerrando de novo as palpebras, e fazendo um esforço para
se erguer.

--Eu, eu, Garifa! acudiu João Bispo cheio da alegria.

--Porque me não deixaram morrer? murmurou a filha de Humeia cobrindo o
rosto com as mãos.

--Morrer, Garifa?! E que querias depois que eu fizesse no mundo!
exclamou o mancebo affastando-lhe­ com brandura as mãos do rosto. Que
faria eu? proseguio... Morrer... morrer tambem!

A moura meneou a cabeça; fixou a vista, como admirada no besteiro;
estremeceu toda, e dos olhos rebentou-lhe o pranto ao mesmo tempo que os
soluços do peito. João Bispo, que, em alguns minutos apenas
experimentara os mais contrariados affectos, a extrema dôr e a alegria,
redobrou os seus carinhos, as palavras affectuosas; mas as lagrimas
continuavam a correr em fio dos olhos de Garifa.

--Garifa, minha Garifa, porque choras? Deixa esse pranto com que me
amofinas. Eu estou aqui, Garifa, e ninguem nos ha de agora separar. Tu
cumpres a tua promessa... e teu pae, que não espera já vêr-te...

--Oh, meu pae, exclamou a moça interrompendo-o, e de novo cobrindo as
faces; com que rosto lhe poderei eu apparecer?!...

--Elle perdoará tudo, Garifa; esquecerá tudo... e que não perdôe, eu...

--Nem elle, nem tu; João... Oh! porque me não deixaram morrer!

--Eu? Garifa? Eu não te entendo... Que mal me fizestes? porque te hei de
malquerer?...

João Bispo estacou, e de um salto ficou de pé. O que se passara
causara-lhe um violento abalo, para dar logar a reflexões, e
esquecera-se de que a mulher, que assim tentava pôr termo á vida, tinha,
duas semanas havia, desapparecido; esquecera­-se do que lhe dissera o
petintal e das suspeitas que o levaram ao ­ castello de Gaya. Tudo,
porém, resumido em uma idea unica acabára de lhe passar pela mente.

--Rausada?! exclamou, abaixando-se a arredar-­lhe de novo as mãos das
faces, procurando vêr se dos olhos mais depressa do que dos lábios
obtinha uma resposta.

A moça só redarguiu:

--Porque me trouxeram á vida... porque?

--Rausada! tornou João, passando uma das mãos pela fronte, em quanto com
a outra apertava o cabo do punhal. O nome desse homem, e pela hostia
consagrada juro que dentro em dias o repetirão em resa de finados.
Falla, Garifa: o nome desse homem? Vilão ou cavalleiro que seja, eu me
pagarei em sangue de quanto elle me roubou. Garifa, Garifa!

Soluços e lagrimas foi a resposta que obteve da filha de Humeia.

--Garifa, não respondes? Dize... dize que não te pozeram mão, dize,
proseguiu o mancebo fóra de si; livra-me desta idea que me faz perder a
cabeça; livra-me della ou aponta-me um homem em quem desafogue todo o
desespero que sinto. Tu não me atraiçoaste, não; não era possivel...
Empregaram a força; empregarei a força, e hei-de esmagar quem quer que
seja o rausador. Garifa, não respondes? Uma palavra!

--Que queres que te diga, João? Esmagaram o nosso amor, tornando-­me
indigna de ti: a filha de Humeia não póde mais apparecer com a face
descoberta!

--E o refece, o maldito?! gritou o bésteiro apertando com violencia os
pulsos da moura.

--A aguia vôa tão alto que não a alcança a garrocha, murmurou meneando a
cabeça, depois de alguns instantes de silencio, a namorada de João
Bispo.

--Quem foi, Garifa, quem foi?

--Deixa-me, João.

--O nome desse homem!... o nome desse homem!

--Não, não posso.

--Não pódes?...

--Não, não posso: dizer-te o nome era fazer-te açoutar ámanhã no
pelourinho... era matar-te...

--Ayres Gonçalves... Henrique Fafes!... gritou João Bispo.

--Não... não m'o perguntes...

--Qual delles, Garifa; qual delles? Affonso Darga?

--Ninguem!

--Ninguem?! O nome desse homem, ou tu és tão vil como elle!

--Serei, João... sou. A moura do Olival, que te queria tanto como á luz
dos olhos, morreu no dia em que lhe pozeram uma mordaça na bocca e
ataram os pulsos: atiraram depois o corpo ao monturo... como de moura
que era. Garifa morreu, João: o que aqui está é uma desgraçada corrida
por palafreneiros... a quem a lançaram...

--Calai-vos, calai-vos! exclamou o moço bésteiro, pondo a mão na bocca
da sua namorada. Não póde ser... é impossivel!

--Antes fôra!... murmurou Garifa.

--Em má hora vim ao mundo!

João Bispo calou-se e deixou pender a cabeça sobre o peito. Quando de
novo a ergueu, as palpebras estavam vermelhas, mas seccas; os olhos
vagavam-lhe incertos; o rosto estava pállido, e uma contracção nervosa
dos musculos parecia emagrecer-lhe, avelhentar as feições. O amigo de
Fernando Vasques, occultava sob as vestes grosseiras um grande coração,
cheio de fogo, de energia, e toda essa energia empregára-a no amor da
filha de Humeia. A moura do Olival era tambem a unica mulher que topára
no seu trilho capaz de não esfriar essa paixão. Não prendia, não
captivava sómente com a bellesa do corpo; captivava com os dotes do
coração, da intelligencia. Garifa tivera na infancia faixas bem
superiores ás telas grosseiras dos vestidos que trajava no Porto. Para
corresponder á exaltação, que a vida ociosa e ao mesmo tempo cheia de
sobresaltos e de incertesas produzia na mente do escolar de S. Domingos,
era necessaria a exaltação do sangue arabe, fervente nas veias de
Garifa. É facil de avaliar qual o abalo que o mancebo recebeu no caes de
Gaya. Aquella desventura, receara-a, temera-a; mas não se afizera á idem
de que se realisásse; achára sempre a providencia a estender a mão á sua
namorada, a protegel-a. Na maré mais negra seguindo-a com o pensamento,
depois que ella desapparecera do Olival vira-a morta; mas se encontrasse
no Douro o seu cadaver, a mágoa­ não fôra tamanha como a que sentia.

Mesteiraes e marinheiros fitavam commovidos os dous amantes, que se
conservavam mudos affastando as vistas um do outro: João de pé, sombrio,
pensativo; Garifa de joelhos, lacrimosa, tremulla, branca como a roupa
que vestia por baixo do roto gabão, que um marinheiro lhe lançara aos
hombros.

--Rausada! murmurou passados momentos o mancebo, sacudindo a cabeça,
como se assim podesse repellir aquella ideia.

Depois, estendendo a mão á pobre moura, ajuntou:

--Vem, Garifa; já não sou tambem o mesmo que era. Vem commigo.

A moça, levada pela solemnidade da voz e do gesto do mancebo, e ajudada
por elle, levantou-­se machinalmente, e com passos mal seguros,
seguiu-o, perdendo-se os dois na escuridão da estreita rua que guiava ao
povoado.

Os marinheiros ficaram olhando uns para os outros.

--Pobre rapaz! murmurou um delles.

--A rapariga era a que chegou a noite passada, quasi nua e toda magoada
á taberna do tio Pero, e que elle abrigou por caridade, e livrou de dous
mal encarados que a seguiam.

--Deu-me os seus ares della.

--Era a mesma, sem tirar nem pôr.

--Mal a puzeram em terra, conheci-a: era a moura do Olival.

--Coitado do Bispo, resmungou o velho Vasco. Bem enfeitiçado o traz a
tal moura. Estas condemnadas teem taes artes, que, se vos lançam olhado,
fica-se perdido de todo. Teem feitiços para tudo. Um rapaz conheci eu no
meu tempo, que se myrrou de todo, e morreu por causa de uma destas
maldictas. Em casa da rapariga, uma moura, e linda até alli, encontraram
uma figura de cera feita a imagem d'elle com os olhos pregados, e um
alfinete enterrado no sitio do coração.

--Qual feitiço, nem meio feitiço! resmungou João Canhoto.

--Não acreditas! accudiu outro mesteiral. As mouras todas sabem de
feitiçaria, e quando querem querem que um homem lhes queira, a ellas ou
a quem isso lhe pede, apanham um sapo, e cozem-lhe os olhos.

--Não digo que se não façam desses maleficios; mas a rapariga do
Bispo...

--Homem, é moura e basta.

--Moura ou christã, se enfeitiçava, era com os olhos. Não precisava de
outra cousa, accudiu João Canhoto. A bôa gente vi ficar de bocca aberta
para ella, este anno ainda na procissão de Corpus, e depois não tem sido
nem a um, nem a dous senhores de alta linhagem que tenho visto seguil-a,
todos requebrados. A um dos que está no castello ainda ha semanas
encontrei em seu alcance pela aljama, era já noite cahida. Não disse
nada ao Bispo, por que elle faria alguma!

--Feitiços, feitiços, para nos perder a alma, resmungou o velho.

--Ora, mestre Vasco! Tambem enfeitiçou ella a quem o poz naquelle
estado? A pobre, que se queria finar por se vêr assim, é porque não foi
por sua vontade que a tiraram de casa. Christãs conheço eu, como as
palmas das mãos, que não a valem. Se mestre Vasco estivesse mais novo, e
ella lhe dissesse palavras de bem querer...

--Credo! era um peccado!

--Deus me perdôe; mas eu não o tenho por peccado; se o é, muita gente
pecca.

João Canhoto não deixava de dizer a verdade: as mouras por aquelles
tempos roubavam ás christãs bastantes corações, tanto de nobres, como de
peões, o que as obrigava a crêr em poderes occultos, para não se
confessarem derrotadas nos encantos. Nos paços dos cavalheiros e
ricos-homens, muita descendente de Agar, forjava dos ferros que lhes
lançára a escravidão cadeias para os seus senhores: nas cidades as mais
jovens e formosas eram como Garifa forçadas quasi a mostrarem as suas
graças em publico nas grandes solemnidades: eram as bailarinas da
epocha, e as bailarinas teem feito dançar muita cabeça desde Herodiade
até aos nossos dias. Os escrupulos do velho Vasco não eram partilhados
senão pelos que se viam no seu estado. Os legisladores, entretendo-se a
impedir relações ou ligações entre as duas raças com penas mais ou menos
sevéras, não quizeram, ao que parece, mais do que deixar prova de que
ellas eram um pouco frequentes, e que já então se faziam leis para
ficarem letra morta, salva uma ou outra excepção feita com algum pobre
de Christo. Nos principios do seculo XVI ainda apparecem trovadores,
que, apregoando o seu affecto por descendentes de Azharat e de Shobeia,
não nos deixam ficar por mentiroso.

Para crédito das nossas avós christãs, attribuamos a maior recato
dellas, as conquistas das moças do Islam. O leitor, comtudo, não fique
pensando que estas não tinham sobre a virtude, sobre o pudor e sobre o
amor ideas identicas ás professadas por aquellas. Garifa não era uma
excepção unica feita para João Bispo: as ideas com que hoje são creadas
as mulheres no Oriente, não eram as das mulheres arabes de Hespanha. Com
pequenas excepções, o amor no seculo XIV tinha em Granada as mesmas leis
que na côrte da condessa de Champagne.

O leitor poderá agora dizer-nos o mesmo que Safio a Vasco e João
Canhoto:

--Deixemo-nos dessas cousas.

O marinheiro accrescentou:

--Vamos: a noite de S. João é para descantes e folias! Venham as moças
para o terreiro. Eia! mãos á obra: avivar as fogueiras e tanger as
violas, que as cachopas acudirão! Ehuh! Mafalda! Joanna!

Pouco depois ninguem diria que na praia da velha Cale se tinha passado
uma scena de lagrimas; que uma pobre rapariga tentára pôr termo aos seus
dias; que um coração se despedaçára. Um bando de raparigas, de
marinheiros e mesteiraes, dando as mãos uns aos outros, dançavam, ou
melhor, giravam, formando circulo, em volta de uma grande fogueira, e
entoavam todos esta cantiga, que os musicos da festa faziam por
acompanhar:

  «Todas as hervas são bentas
  Em noite de S. João
  Só o trevo, coitadinho!
  Anda a rasto pelo chão.»

E o sol, nascendo, ainda os encontrava no mesmo local.




X.

Uma idea.

                                Não falta com razões quem desconcerte
                                Da opinião de todos na vontade.
                                Em quem o esforço antigo se converte
                                Em desusada e má deslealdade.

                                          Camões. _Lusiad._ Cant. IV.


Os burguezes do Porto tinham desempenhado a sua palavra: os navios
promettidos estavam a nado nos aguas do Douro, promptos para dar á véla.
Os cavalleiros e ricos-­homens nem todos procediam do mesmo modo; o fogo
do amor da patria era em alguns, tibio, em outros nullo. Ayres Gonçalves
de Figueiredo era deste numero. Approveitara os conselhos de sua mulher,
e fazia todo o possivel por aguardar que a situação se definisse para
entrar com segurança na contenda. Martim Gil, mandado pelos portuenses,
ao conde D. Gonçalo, delle recebera uma resposta favoravel, depois de
feita, entende-se, a concessão das terras da rainha D. Leonor a sua
mercê, e a das de Lordello e Bouças seu filho D. Martinho, fóra outras
miudesas, taes como dinheiro e peças de panno; porém o conde adiava, sob
pretexto de aprestes, a sua partida, quanto lhe era possivel. O Mestre
lembrava continuamente os apuros em que estava a sua boa cidade de
Lisboa; mas os nossos homens não se queriam metter tambem nelles, sem a
certesa de bom resultado. Ayres Gonçalves tinha os olhos no conde de
Neiva; Affonso Darga e outros cavalleiros aguardavam a resolução do
alcaide de Gaya. Ruy Pereira, no entanto, enfastiara-se de tanta
delonga, e tendo Alvaro da Veiga, Luiz Giraldes e Domingos Pires
lembrado que se enviasse a armada receber o conde á Figueira, o alvitre
fôra acceite, com grande amofinação­ dos Fabios politicos, que trataram
logo de procurar embaraços á sua realisação.

Uma circumstancia os favoreceu.

Quando, pouco depois do S. João, a municipalidade tratava não só de
abastecer as galés, mas até de enviar alguns viveres para os sitiados,
como fôra requerido, alguns companheiros de Fernando Affonso de Zamora,
deslembrados da lição dada em Santo Thyrso, ou outros aventureiros
similhantes appareceram nas visinhanças da cidade. Mal a noticia se
espalhára, frei Garcia fora ter com Pedro Choca, e causára nas tercenas
um alvoroço extraordinario, pintando as cousas o mais feias possivel.
Este alvoroço, graças a outros individuos, se tornou contagioso; o temor
calou nos animos fracos, e na tarde desse mesmo dia nas ruas, terreiros
e praças lamentações não faltavam.

--Eis de novo esses malditos gallegos! más terçães os colham! dizia um
mercador. Não nos deixam tomar folego os hereges, e em bem mau estado
vão já os negocios. O tempo vai bom para espadeiros; que os outros não
veem pogea. Tudo são guerras, agora, e desordens. Dantes não era assim.
No tempo do rei D. Pedro!... suspirou o bom homem, e concluiu meneando a
cabeça, e fitando os olhos no tecto da loja.

Este gesto queria dizer que no tempo do pae do Defensor a paz florescia
na terra, e era, talvez, copiado de outro identico, feito pelo senhor
seu progenitor quando o amante de Ignez de Castro talava o Douro e o
Minho, e mesmo de algum feito por seu avô, affectado pelas desavenças de
D. Diniz com o pae do rei D. Pedro.

--Não foram bem sangrados, e veem por mais esses castelhanos ou
acastelhanados, redarguia um visinho; pois terão o seu escote, como o
teve o de Zamora e o arcebispo.

--Mal haja quem mal faz!

--Ruy Pereira, Ayres Gonçalves, ou qualquer os receberão como merecem.

--Assim creio; e por isso, como me dizia ha pouco mestre Lourenço, é que
não acho muito acertado mandarem para Lisboa quanta bôa lança ha por
ahi. É dever acudir ao proximo; mas em primeiro logar estão os da casa.

Quasi todos os dialogos, travados em diversos pontos appresentavam,
espremidos, o mesmo succo que o ­do bom mercador quando pelo lado das
Hortas entrava uma grande manada de bois, e rebanhos de ovelhas e
cabras, destinados ao abastecimento das galés. Alguns ociosos,
encontrando-se com a manada fizera-­lhe cortejo; alguns mesteiraes,
vendo os ociosos, pousaram a ferramenta e engrossaram-no; os garotos,
que possuem o faro dos grandes ajuntamentos, conhecendo que se formava
um, surdiram de todos os bêcos, para o completar. Ao chegar o gado a S.
Domingos, caminho das tercenas, onde deviam os carniceiros preparar as
carnes, a procissão era solemne pelo numero. A ideia que presidia a
todas as lamentações ia ser formulada de outra sorte: frei Garcia e
alguns outros apaniguados do alcaide, achavam-se entre as turbas; Pedro
Choca, desembocára do lado da Esnoga, sahido de uma taberna, onde, junto
com individuos que deviam estar debaixo da jurisdição de Tello Rabaldo,
tinha enxugado algumas medidas de vinho, e não era pelo menos destituido
da manha necessaria para certas empresas.

Se o concurso era grande, tambem era ruidoso. Os conductores da manada
gritavam, vendo que uma ovelha tresmalhava, picada por algum rapaz
travesso, ou um boi estacava, atemorisado por negaças; os homens d'armas
da escolta praguejavam no meio de tantos embaraços; aqui uma mulher
queixava-se de que a pizavam; além alguns homens altercavam com os
bésteiros, que os repelliam do transito; mais longe chorava uma creança.
Os garotos e os vádios praguejavam, gritavam, riam-­se, assobiavam,
cantavam e imitavam o balido de ovelhas e cabras, e o mugido dos bois,
como se os animaes se recusassem a tomar parte naquelle concerto.

Entrando no terreiro a multidão, crescera a algazarra. Uma chusma de
homens cobertos de andrajos, bem similhante á que estacionava no Olival,
no dia da chegada da mensagem, correra para as boccas das ruas que iam
dar ao rio, obstruindo-as completamente. Quando os guardas dos rebanhos
quizeram abrir caminho para as tercenas, os vadios demonstraram a sua má
vontade com apodos a que responderam os acontiados da behetria com os
contos das azevans, ou as béstas, manejadas em ar de clava. Nesta
destribuição de pancadas foram, como succede muita vez em casos taes,
contemplados bastantes innocentes. Um bésteiro, querendo chegar a um
velhaco, feriu no rosto uma mulher, levada para o centro do motim pelas
ondas de povo. O sangue, correndo pelas faces da pobre creatura,
indignou alguns circumstantes, que só a curiosidade alli trouxera.

--Fazei praça, exclamou d'entre elles um burguez, fazei praça, mas com
tento. Guardai os virotes para castelhanos escismaticos. Em recontro ou
batalha talvez o braço não ande tão destro.

O acontiado fez um gesto como de quem ia empregar syllogismo
contundente; mas a prudencia o aconselhou melhor, e contentou-se com
redarguir:

--Cuidai no vosso mester, bom homem, e deixae-­me. Onde pozeram a mira
estes velhacos sei eu. Não lhes passa ha mezes pelas goelas bocado de
cabrito, e querem fazer bôdo com algum que filem.

--Olha o outro! gritou um petintal. Se não comemos cabrito todos os
dias, comemos pão; mas amassamol-o com o nosso suor: não o vamos roubar
pelas padeiras. Os tagantes do aljube ainda teem a pelle de dous dos
vossos! Nós não nos servimos das adagas para cortar escarcellas de
mercadores encontrados fóra d'horas.

--Muito nos custa a viver! acudiu uma gôrda cidadôa, e mais custará
agora que levam todo isso para Lisboa.

--E não parará ahi, disse um dos companheiros de Pedro Choca do meio da
turba: vai quanto mantimento se encontra pela redondesa e ha na cidade.

--Se os de Lisboa estão cercados pelos de Castella, que façam como
fizemos em Leça: se por lá estão minguados de mantimentos, tambem não
nos sobejam.

--E os do arcebispo ainda não foram desta tão malferidos, que não possam
voltar, disse uma voz. Alguns corredores teem sahido de Braga.

--É verdade, é verdade! berraram ao mesmo tempo dez ou doze mesteiraes.
Os de Lisboa que se avenham como poderem.

--Teem braços como nós.

--E não havemos de finar-nos á mingua. Os mercadores mandam boas dobras.

--E a prata da Sé vai tambem!

--Já os alvazires carregaram uma galé de armas, e de Coimbra e Montemór
vieram outras.

--Que se contentem com isso, e com o biscouto e farinha que embarcaram!

--Deixai que não faltará, louvado Deus, mantimento na cidade, embora
levem tudo isso ao Mestre.

--Fallais assim redarguiu um dos queixosos, voltando para o ordeiro, que
proferira estas ultimas palavras, porque se um pão de praça vos custar
dous reaes brancos, tendel-os na arca! Nem mealha deixaremos embarcar.

--Nem mais tanto como uma unha negra!

Este dialogo, ou esta scena, que se passava ao pé do arco, como nas
tragedias antigas tinha o seu côro n'uma gritaria descompassada de que
seria difficil dar uma ideia. O que sobresahia no meio de tudo, eram os
_vivas_ e os _morras_. Se se perguntasse a cada um dos coristas em
separado porque davam essas vozes, nenhum talvez vol-o diria, a não ser
que confessassem que sentiam a necessidade de gritar, e que na falta de
melhor cousa, aquellas palavras serviam perfeitamente para tudo:
enthusiasmavam, animavam o tumulto, e de mais apregoavam que eram muitos
bons patriotas. Os vivas eram ao Mestre; os morras aos scismaticos:
levar a mal aquella berraria, ninguem podia levar.

Do lado opposto a algazarra era a mesma, com pequenas variantes.

Os conductores de gado e os guardas embrulhados pela chusma não tratavam
já senão de se deslimdarem della, e de acudir aos rebanhos.

Alguns amotinados tinham, para desembaraçar o terreiro, conduzido a
maior parte do gado graúdo para as azenhas: ovelhas e cabras, essas
corriam em todas as direcções. Para cumulo da confusão, quando Pedro
Choca e os seus companheiros persuadiam o povo a que se dirigissem ao
paço episcopal ou á casa do municipio, dous touros, enfurecidos ou
assustados pelo ruido e negaças d'alguns garotos, tinham aberto caminho
para o lado da Esnoga, derribando e maltractando algumas creanças e
mulheres. A culpa do desastre era dos amotinados; mas todos elles á uma
tinham procurado origem mais remota, e lançaram aos vereadores e bons
homens que tinham ordenado a remessa dos mantimentos. Um velhaco
lembrara-se de juntar aos «morras» da ordem um aos «alvazires, que
queriam matar o povo á fome» e entre multidão, mesteiraes, que horas
antes teriam dado a sua ultima pogea, se para sua senhoria lh'a
pedissem, repetiram aquelle grito.

Uma voz ampliou-o:

--Morram os traidores, que querem dar cabo da arraia miuda para entregar
a cidade aos de Castella!­

--Morram os traidores! uivou a chusma.

E apparecia já o alvitre de se ir em procura de alguns alvazires, e até
mesmo de os tractarem como ao arrabi-menor, quando dois daquelles
appareceram no terraço do arco de S. Domingos. Ruy Pereira, que vira
rebentar o alvoroço, mandara-os chamar e a alguns bons homens para que
socegassem os animos como podessem. O tio de Nuno Alvares, a principio
tivera, ao ouvir o arruido, vontade de baixar ao terreiro e cortar
naquella villanagem, que de cabeça tão levantada, insolente e turbulenta
trazia o Deffensor; mas, apenas mandara sellar o seu cavallo, a reflexão
lembrou-lhe a inconveniencia de um tal passo, e ­a reminiscencia poz-lhe
diante dos olhos os tumultos de Lisboa e Evora e tantas outras terras do
reino. O mensageiro do mestre, contentou-se, pois, em desabafar em
pragas, em dar duas grandes punhadas sobre a mesa, e desappareceu pelo
lado da cerca­ do convento onde pousava, para não se ver obrigado a
aturar o bom povo, deixando as authoridades municipaes em apuros. Não
eram fortes em rhetorica os bons homens, e a pouca que lhes concedera a
natureza fugira assustada.

Os velhacos, dando por elles saudaram-nos com uma ladainha de apôdos que
faria pasmar ao leitor pela quantidade e pelo desusado.

A arraia do terreiro tinha grande vantagem sobre os burguezes do arco:
para o attaque bastavam palavras soltas, ou mesmo gritos inarticulados;
para a defesa, para satisfazer as exigencias de Ruy Pereira, era
necessario um discurso, pequeno ou grande, mas um discurso.

Os alvazires e mais cidadãos que os acompanhavam, depois de se empuxarem
e acotovellarem uns aos outros, por bom espaço de tempo, tinham
resolvido, ou antes forçado o mais bojudo e o mais endinheirado d'entre
elles a tomar a palavra, e o nosso homem depois de um gesto bastante
solemne feito ao bom povo; depois de tossir e escarrar, como o faria, ao
encetar um sermão, o frade mais sabedor do convento de a pár, balbuciára
uma ou duas duzias de palavras. É de crêr que fossem boccados de ouro;
mas asseverál-o ninguem, a não serem os collegas, o poderia fazer, pois,
quasi nada perceberam no terreiro os que lhe quizeram prestar attenção.
Uma grande parte não lh'a dava, e continuava a formular as suas queixas
ou accusações.

--Querem dar cabo do povo, e entregar a cidade aos de Castella!

--Morram os traidores!

--Morram os scismaticos.

--Amigos, tornou o alvazir levantando a voz, logo que a tempestade
popular serenou mais; o Mestre nosso regedor e defensor se encomendou ás
vossas boas lealdades, e vos mandou dizer que, como este reino andava
todo revolto com desvairadas tenções...

--E bem desvairadas são as que tendes! exclamou cortando a palavra ao
orador, um amotinado, pouco reverente para com o plagio da mensagem de
Ruy Pereira, de que em apuros aquelle se valera.

O pobre homem, olhou em torno de si espantado; limpou o suor, que lhe
corria em bagas pela fronte; tossiu de novo; poz a mão no peito para
tomar um ar mais solemne, e começou novo aranzel:

--Todos vós sabeis que esta cidade levantou voz pelo Mestre...

--Viva o Mestre! Alcacere por sua senhoria! gritou a chusma...

--Todos vós sabeis, repetiu o alvazir, que esta cidade deu voz pelo
Mestre, que jurou defender-nos e amparar-nos, e tambem sabeis que el-rei
de Castella veio sobre Lisboa com toda a sua gente...

--Morram os castelhanos! gritaram do terreiro.

O illustre orador, como hoje lhe chamariam, se ele vivesse, as gazetas,
orgãos ou respiradouros do partido em que se tivesse lançado; o illustre
orador, vendo que não havia com tal gente meio de atar duas phrases sem
uma interrupção, tratou, já desesperado, de resumir o seu discurso:

--O regedor mandou pedir a esta boa cidade que lhe enviassem todas as
galés e barcos que fosse possivel armar e equipar, e bem assim
mantimentos e dinheiros, os quaes--­ajuntou o bom do alvazir, como se
entre os amotinados houvesse alguem que com tal se importasse--­como
filho de el-rei que é, por toda a sua verdade jurou pagar muito bem...

--E ressuscita os que tiverem morrido á fome? perguntou um velhaco, que
subira acima de um poial, arrimado ao arco, e de braços cruzados, com
gesto zombeteiro encarava o orador.

--Morram os traidores!

--O regedor não quer que matem o povo!

--Viva o Mestre!

--Fora os alvazires, gritou Pedro Choca.

--Fora, fora! vozearam d'entre a multidão.

O orador tornou a limpar o suor, que se tornava copioso e frio cada vez
mais, e ainda tentou proseguir; mas a sua má estrella quiz que ao
examinar o seu auditorio désse de novo com os olhos no velhaco do poial.
O maldito riu-se, e fez-lhe um esgar; e risada e esgar seccaram-­lhe
completamente a prosa na garganta. O bojudo cidadão bateu com a lingua
nos dentes, soltou dous ou tres sons, estendeu os braços, e meneou-os,
como se pertencesse á seita dos mestres pedreiros que, pouco havia,
tinham concluido os muros da cidade, ou quizesse nadar em secco; mas nem
uma palavra mais conseguiu formular, nem com todos aquelles tregeitos
exprimir uma ideia.

A atrapalhação do orador deu incremento ao alvoroço, e os bons-homens
que tentaram substituir aquelle na tribuna, não conseguiram um momento
de attenção. Era este o estado das cousas, quando Gonçalo Domingues e
Fernando, appareceram no terreiro, vindos do lado do Palmeirim. Mestre
Gonçalo e o compadre, que já encontramos no campo do Olival, tinham sido
os encarregados de arranjar o gado, e portanto a sua apparição trouxe
áquellas cabeças ­ desorientadas a ideia de que uma boa parte da culpa
dos males que receiavam, delles provinham. O acolhimento foi pois o
menos amavel possivel. As relações de mestre Gonçalo com o judeu Moyses,
em quem o povo já fizera justiça a seu modo, foi a primeira pecha que
lembrou a alguns dos amotinados, e mal lhes lembrou, logo foi lançada em
rosto. A chusma fez côro, como fazia a todas as lembranças, e o bom
burguez ficou perplexo: fez-se vermelho e fez-se amarello quasi ao mesmo
tempo, e o caso não era para menos. Quem não respeitava nem bispos, nem
abbadessas, não era muito que desacatasse um forçureiro, por mais
endinheirado que fosse. Não era mesmo naquellas circumstancias o
dinheiro carta de seguro; bem pelo contrario: era mais uma razão para
temores.

Gonçalo Domingues, impallidecendo, agarrou-se ao braço do sobrinho e
quiz retroceder; mas a rectaguarda estava-lhe já cortada, e entre
ameaças foi levado pela multidão até junto do paiol, onde se empoleirára
o vadio que seccára a eloquencia ao orador do arco. Fernando tomado de
assombro seguiu o tio. O sangue do mancebo, porém, não era o do velho, e
a vozearia, os insultos bem depressa o fizeram ferver. O primeiro
impulso do namorado de Irene, recuperada a exaltação que o dominava
desde o recontro de Leça, e levado por assomos de cholera foi o de se
lançar contra os amotinados. Desembaraçando-­se das mãos de seu tio,
atirou-se a um mesteiral, que junto do rosto daquelle erguera o punho
cerrado, e ia ser victima talvez dos seus brios, quando dous braços
musculosos seguraram o seu antagonista, e uma voz, que devia ser
conhecida de alguns dos que se mostravam mais enfurecidos contra mestre
Gonçalo, exclamou:

--Ter mão rapazes!

Pedro Choca vira Fernando Vasques ameaçado e correra em seu auxilio. O
velhaco, apesar de tudo, não deixava de ser um bom patriota, de ter o
seu enthusiasmo pelos defensores da arraia meuda. Conhecia Fernando do
assalto ao bailiado, e o denodo do mancebo fizera com que elle o tivesse
na conta de um heroe, contra o qual não levantára mão, nem consentira
que se levantasse por todo o dinheiro que lhe dessem.

As suggestões e os tornezes do capellão de Ayres Gonçalves, e mesmo o
prazer de fazer arruido não eram as unicas causas que o tinham feito
estafar os pulmões; frei Garcia gastára tempo e algumas malgas de vinho
para o convencer de que entre os alvazires havia partidarios de
Castella, que tinham tido o negregado pensamento de se vingarem do povo,
por meio da fome, fingindo que serviam ao mestre. Que Fernando pactuasse
com traidores não acreditava porém, o velhaco, e por isso repetiu com ar
ameaçador, vendo que alguns animos ainda se mostravam hostis ao mancebo:

--Que ninguem lhe toque em um cabello da cabeça, senão commigo tem de se
haver!

--A traidor, como a traidores! gritou o mesteiral, querendo
desembaraçar-se da prisão em que estava.

--Traidor, quem tomou uma bandeira aos gallegos, quem eu vi atirar-se a
esses perros como se os virotes fossem palheiras?!

--Se não é traidor, é por elles, que vale o mesmo. Que tem elle com esse
forçureiro de má morte!

--Que enriqueceu furtando ao peso.

--E mais sabe Deus se era cabrito ou cão o que dantes vendia!

--E agora comprou o gado todo, para nos deixar á fome!

--Mentis! exclamou Fernando, respondendo a estes capitulos de accusação;
mentis!

--Ahi o tendes! ponde a mão no fogo por elle! resmungou um dos vadios,
dirigindo-se a Pedro Choca.

--Se tão bom é um como o outro! ajuntou uma mulher. O rapazelho é filho,
ou cousa que o valha do forçureiro.

Pedro Choca coçou a cabeça, e olhou para Fernando com ar indeciso, mas
logo formulou este raciocinio:

--O mancebo era incapaz de pactuar com os inimigos do Defensor, e
protegia Gonçalo Domingues logo a não quadrava tambem o appellido de
traidor.

--Se é pae do meu homemsinho é outro caso, exclamou em seguida,
voltando-se para os circumstantes. Deve ser dos nossos.

Gonçalo Domingues, vendo que alguem mais de que o sobrinho vinham em seu
auxilio, tartamudeou.

--Domingues Pires ou Affonso Eannes, se aqui estivessem vol-o diriam!

--Que resmunga elle?

--Acoberta-se com o trato que tem com Domingues Pires?

--Sim, sim; mas tambem era dos amigos do perro Moyses! se ouviu dentre a
multidão.

A arraia meuda, como se baptisára o povo naquella quadra, tresvairada,
estreitára o circulo formado á volta do burguez e as suas intenções
pareciam ser bem pouco pacificas, quando Fernando, saltou acima do
poial, abandonado pelo companheiro de Pedro Choca. A vis oratoria,
molestia que se dá em quadras revoltas como sezões em terrenos
alagadiços, acommettera tambem o namorado de Irene. O rapaz emprehendia
tarefa espinhosa, como os respeitaveis edis o podiam attestar,
commettia, pode-se avançar uma loucura; mas é sabido que neste mundo por
vezes as loucuras aproveitam mais do que as cousas pensadas. Fernando
tivera uma idea, que vos fará rir talvez leitor, e que podia ter entre
os amotinados o mesmo, ou peior acolhimento; porem que foi agua em
fervura, como diz o povo. Fora uma idea feliz, uma idea luminosa a do
mancebo.

--Metteram-vos em cabeça que vos queriam matar á fome... porque se
embarca alguma carne na esquadra! exclamou elle: mas não se lembrou
ninguem de que todos os miudos cá ficam.

--É verdade?! acudiu com outros Pedro Choca, que desfazia agora, por
causa do seu heroe, a obra para que concorrera; é verdade!

--E depois? interrogou um mesteiral, embasbacado.

--E depois com tanta forçura, com tanta miudagem de todo esse gado não
se morre á fome.

--E a carne não é cousa que engasge a arraia muita vez no anno! observou
o vadio.

--Demais, proseguiu o mancebo, aos corredores gallegos nós os
ensinaremos, e haverá ahi mantimentos de sobra. Para dez scismaticos
basta um portuguez. A gente que foi a Leça e Santo Thyrso está ahi, e
antes da chegada das galés os do Porto esperaram a pé quedo os do
arcebispo, sem que elles se atrevessem a vir ás mãos comnosco. Deixai ir
as galés...

--Quem as quita? exclamou um mesteiral, a quem aquellas palavras tinham
inflamado o orgulho patrio. Se os de Lisboa carecem de nós, nós não
carecemos delles. Não nos atraiçoem os de casa...

--De casa... aqui neste boa cidade não ha traidores, atalhou o namorado
de Irene; aqui, ninguem põe o seu braço em almoeda: as lanças e ascumas
dos populares não teem preço!

­--Como certas espadas.

O mancebo apesar das interrupções, de approvação agora, não se calou.
Surprehendendo, como vimos, os amotinados com a primeira lembrança que
tivera, lançando por instincto mão dos argumentos melhores em taes
circumstancias, proseguiu appellando para os brios do povo, appellando
com a convicção de ser attendido, e o rumor levantado pouco a pouco em
torno de si provar-lhe-hia, se a isso désse attenção, se elle mesmo não
se enthusiasmasse com as suas palavras, que senão havia enganado. Quando
terminou o descontentamento da arraia, estava convertido em abnegação
civica, em enthusiasmo patriotico. O povo tem, como o oceano, destas
mudanças repentinas. Pedro Choca, cuja bossa decididamente era a de
vivorio, encarregou-se de dar expansão aos sentimentos que o agitavam.

--Viva Fernando Vaz! que... gritou elle; mas não pôde proseguir, porque
o distrahiu e engasgou uma pancada em um hombro e uma voz zombeteira,
que lhe dizia ao ouvido:

--Assim é que sua mercê trabalha nas tercenas?

O impulso estava porém dado, e Choca, desapparecendo, pois bem
reconhecera pela amabilidade da pancada e da voz a presença do pae dos
velhacos, deixava de novo o rico forçureiro em suores nos apertos da
ovação do sobrinho. O nome de Fernando Vasques era bastante popular
desde o recontro de Leça... pelo que demonstravam os successos, mais do
que a pessoa.

Quando Pedro se eclypsava com os seus companheiros, os acontiados do
municipio, ha pouco apupados, arrebanhavam sem a menor opposição o gado
que se espalhára pelos campos das azenhas. Os planos de Ayres Gonçalves
goravam completamente, graças sobretudo ao namorado de Irene. O rapaz,
tivera, repetimos, uma ideia feliz, e soubera tocar no fraco dos
amotinados melhor do que os alvazires, que no convento ainda discutiam,
embaraçados, a maneira de darem conta da sua missão. Falho o expediente
do alcaide de Gaya, as indecisões dos seus nobres companheiros tinham de
ser cortadas pela emulação dos caudilhos.

Os portuenses davam o primeiro passo para obterem em chrisma uma alcunha
que tinha de durar seculos; mas a honra da cidade estava salva. O pae
dos velhacos capitaneava os vadios, que, juntos com os besteiros,
levavam o gado ás tercenas, e os mesteiraes, que momentos antes tão
descontentes se mostravam acompanhavam-nos, berrando:

--Viva o Mestre de Aviz! Viva a arraia meuda do Porto!


FIM




PREÇO 300 REIS.

LIVRARIA DE IGNACIO CORREA, _Rua de Bellomente, n.^o 65 e 66--Porto._


*Louzada.*

Rua Escura--1 vol.                          500
Na Consciencia--1 vol.                      500

*Camillo C. Branco*

Anathema, 2.^a edição                       500
Duas Epochas da vida, poesias--1 vol.       600
Duas horas de leitura--1 vol.               400
Espinhos e flores.--1 vol.                  300
Lagrimas abençoadas--1 vol.                 400
Livro negro--1 vol.                         400
Marquez (O) de Torres Novas, drama--1
vol.                                        400
Mysterios de Lisboa--2 vol.               1$000
Neta do Arcediago (A)--1 vol.               400
Onde está a felicidade?--1 vol.             500
Purgatorio e Paraizo, drama--1 vol.         300
Que (O) fazem mulheres--1 vol.              500
Scenas Contemporaneas, contendo a
«Poesia e dinheiro» drama, e outros--1
vol.                                        500
Scenas da Foz--1 vol.                       500
Um homem de brios--1 vol.                   400
Um Livro, poesias--1 vol.                   360
Vingança--1 vol.                            500

*A. Gama*

Genio do Mal (O)--4 vol. 8.^o             1$920
Honra ou Loucura 8.^o                       500
Poesias e Contos--8.^o                      800

*E. Sue*

Avareza (A)--1 vol.                         300
Gula (A)--1 vol.                            240
Inveja (A)--3 vol.                          720
Ira (A)--in-12.^o                           300
Judeu Errante (O)--10 vol. 8.^o           2$000
Luxuria (A)--2 vol. in-12.^o                480
Martim o Engeitado--6 vol. 8.^o           1$600
Preguiça (A)--in-12.^o                      240
Soberba (A)--4 vol. in-12.^o                960

*Souza Lobo*

O Emparedado, drama--8.^o                   300
A Cigana, drama--8.^o                       200
A Moura, drama--8.^o                        200
Os tres dramas reunidos                     500

*P. J. Conceição*

Mysterios do Porto.--2 vol.                 480
Amante e Irmã--drama                        200


Lista de erros corrigidos

Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:


  +----------+---------------------+----------------------+
  |          |      Original       |      Correcção       |
  +----------+---------------------+----------------------+
  |#pág.   11| presonagens         | personagens          |
  |#pág.   13| edificapões         | edificações          |
  |#pág.   52| o insomnia          | a insomnia           |
  |#pág.   53| rebem               | recebem              |
  |#pág.   53| ingratidão,;        | ingratidão,          |
  |#pág.   68| ressaltar           | ressaltar            |
  |#pág.  103| desonvolver         | desenvolver          |
  |#pág.  263| gallegos?           | galegos!             |
  |#pág.  119| curiosidadade       | curiosidade          |
  |#pág.  121| embtuidos           | embutidos            |
  |#pág.  132| o ocoração          | o coração            |
  |#pág.  132| ?ibilar ?s pelouros | sibilar os pelouros  |
  |#pág.  139| Que ma?             | Que mal              |
  |#pág.  143| hemem               | homem                |
  |#pág.  144| principiosdo        | principios do        |
  |#pág.  144| prdor               | pudor                |
  |#pág.  144| id enticas          | identicas            |
  |#pág.  151| demonstaram         | demonstraram         |
  |#pág.  151| pobrecreatura       | pobre creatura       |
  +----------+---------------------+----------------------+





End of Project Gutenberg's Os tripeiros, by António José Coelho Lousada

*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OS TRIPEIROS ***

***** This file should be named 29979-8.txt or 29979-8.zip *****
This and all associated files of various formats will be found in:
        https://www.gutenberg.org/2/9/9/7/29979/

Produced by Rita Farinha and the Online Distributed
Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was
produced from scanned images of public domain material
from the Google Print project.)


Updated editions will replace the previous one--the old editions
will be renamed.

Creating the works from public domain print editions means that no
one owns a United States copyright in these works, so the Foundation
(and you!) can copy and distribute it in the United States without
permission and without paying copyright royalties.  Special rules,
set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to
copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to
protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark.  Project
Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you
charge for the eBooks, unless you receive specific permission.  If you
do not charge anything for copies of this eBook, complying with the
rules is very easy.  You may use this eBook for nearly any purpose
such as creation of derivative works, reports, performances and
research.  They may be modified and printed and given away--you may do
practically ANYTHING with public domain eBooks.  Redistribution is
subject to the trademark license, especially commercial
redistribution.



*** START: FULL LICENSE ***

THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE
PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK

To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free
distribution of electronic works, by using or distributing this work
(or any other work associated in any way with the phrase "Project
Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project
Gutenberg-tm License (available with this file or online at
https://gutenberg.org/license).


Section 1.  General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm
electronic works

1.A.  By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm
electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to
and accept all the terms of this license and intellectual property
(trademark/copyright) agreement.  If you do not agree to abide by all
the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy
all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession.
If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project
Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the
terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or
entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8.

1.B.  "Project Gutenberg" is a registered trademark.  It may only be
used on or associated in any way with an electronic work by people who
agree to be bound by the terms of this agreement.  There are a few
things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
even without complying with the full terms of this agreement.  See
paragraph 1.C below.  There are a lot of things you can do with Project
Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
works.  See paragraph 1.E below.

1.C.  The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
Gutenberg-tm electronic works.  Nearly all the individual works in the
collection are in the public domain in the United States.  If an
individual work is in the public domain in the United States and you are
located in the United States, we do not claim a right to prevent you from
copying, distributing, performing, displaying or creating derivative
works based on the work as long as all references to Project Gutenberg
are removed.  Of course, we hope that you will support the Project
Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by
freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of
this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with
the work.  You can easily comply with the terms of this agreement by
keeping this work in the same format with its attached full Project
Gutenberg-tm License when you share it without charge with others.

1.D.  The copyright laws of the place where you are located also govern
what you can do with this work.  Copyright laws in most countries are in
a constant state of change.  If you are outside the United States, check
the laws of your country in addition to the terms of this agreement
before downloading, copying, displaying, performing, distributing or
creating derivative works based on this work or any other Project
Gutenberg-tm work.  The Foundation makes no representations concerning
the copyright status of any work in any country outside the United
States.

1.E.  Unless you have removed all references to Project Gutenberg:

1.E.1.  The following sentence, with active links to, or other immediate
access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently
whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the
phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project
Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed,
copied or distributed:

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org

1.E.2.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived
from the public domain (does not contain a notice indicating that it is
posted with permission of the copyright holder), the work can be copied
and distributed to anyone in the United States without paying any fees
or charges.  If you are redistributing or providing access to a work
with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the
work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1
through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the
Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or
1.E.9.

1.E.3.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted
with the permission of the copyright holder, your use and distribution
must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional
terms imposed by the copyright holder.  Additional terms will be linked
to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the
permission of the copyright holder found at the beginning of this work.

1.E.4.  Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm
License terms from this work, or any files containing a part of this
work or any other work associated with Project Gutenberg-tm.

1.E.5.  Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this
electronic work, or any part of this electronic work, without
prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with
active links or immediate access to the full terms of the Project
Gutenberg-tm License.

1.E.6.  You may convert to and distribute this work in any binary,
compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any
word processing or hypertext form.  However, if you provide access to or
distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than
"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version
posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org),
you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a
copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon
request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other
form.  Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm
License as specified in paragraph 1.E.1.

1.E.7.  Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works
unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.

1.E.8.  You may charge a reasonable fee for copies of or providing
access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided
that

- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
     the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
     you already use to calculate your applicable taxes.  The fee is
     owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
     has agreed to donate royalties under this paragraph to the
     Project Gutenberg Literary Archive Foundation.  Royalty payments
     must be paid within 60 days following each date on which you
     prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax
     returns.  Royalty payments should be clearly marked as such and
     sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
     address specified in Section 4, "Information about donations to
     the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."

- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies
     you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
     does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm
     License.  You must require such a user to return or
     destroy all copies of the works possessed in a physical medium
     and discontinue all use of and all access to other copies of
     Project Gutenberg-tm works.

- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any
     money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
     electronic work is discovered and reported to you within 90 days
     of receipt of the work.

- You comply with all other terms of this agreement for free
     distribution of Project Gutenberg-tm works.

1.E.9.  If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
electronic work or group of works on different terms than are set
forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

1.F.1.  Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection.  Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or
corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual
property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by
your equipment.

1.F.2.  LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right
of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all
liability to you for damages, costs and expenses, including legal
fees.  YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
PROVIDED IN PARAGRAPH F3.  YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
DAMAGE.

1.F.3.  LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a
defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can
receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a
written explanation to the person you received the work from.  If you
received the work on a physical medium, you must return the medium with
your written explanation.  The person or entity that provided you with
the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a
refund.  If you received the work electronically, the person or entity
providing it to you may choose to give you a second opportunity to
receive the work electronically in lieu of a refund.  If the second copy
is also defective, you may demand a refund in writing without further
opportunities to fix the problem.

1.F.4.  Except for the limited right of replacement or refund set forth
in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.

1.F.5.  Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
the applicable state law.  The invalidity or unenforceability of any
provision of this agreement shall not void the remaining provisions.

1.F.6.  INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
https://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at https://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit https://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including including checks, online payments and credit card
donations.  To donate, please visit: https://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     https://www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.