Silva Porto e Livingstone

By António Francisco Ferreira da Silva Porto

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António Francisco Ferreira da Si Porto

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Title: Silva Porto e Livingstone
       manuscripto de Silva Porto encontrado no seu espólio

Author: António Francisco Ferreira da Si Porto

Release Date: January 3, 2009 [EBook #27691]

Language: Portuguese


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     neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à versão
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                                             Rita Farinha (Jan. 2009)




Sociedade de Geographia de Lisboa

SILVA PORTO

E

LIVINGSTONE


MANUSCRIPTO DE SILVA PORTO

ENCONTRADO NO SEU ESPOLIO


LISBOA
_Typographia da Academia Real das Sciencias_
1891




Sociedade de Geographia de Lisboa

SILVA PORTO

E

LIVINGSTONE

MANUSCRIPTO DE SILVA PORTO

ENCONTRADO NO SEU ESPOLIO


LISBOA
_Typographia da Academia Real das Sciencias_
1891




Este trabalho foi encontrado entre os papeis do illustre sertanejo
portuguez que deram entrada na Sociedade de Geographia de Lisboa, depois
da morte d'elle.

Foi escripto no Bihé em 1868. Convém ter sempre em vista esta
circumstancia e esta data.




APONTAMENTOS SOBRE A OBRA

DO

EX.^{MO} SR. D. JOSÉ DE LACERDA

«EXAME DAS VIAGENS DO DR. DAVID LIVINGSTONE»

POR

UM PORTUENSE



                                                                Leitor


Uma das testemunhas avocadas na obra do ex.^{mo} Sr. D. José de Lacerda,
devo explicações sobre muitos dos seus artigos, pois que a recusa
d'ellas, seria crime de lesa-nação, em aggravo do bom nome portuguez.

O reverendo dr. David Livingstone mereceu, sem duvida, a corôa que seus
concidadãos lhe votaram pelos serviços prestados n'estas partes de
Africa; no entretanto, força é confessal-o, ella foi desfeita pelo
illustre viajante, visto havel-a manchado com a peçonha da calumnia.

Quiz chegar aos fins importando-se pouco com os meios.

Em abril ou maio de 1853, no dia em que teve noticias minhas, um raio
que lhe cahisse proximo não causaria a impressão que lhe produziu
semelhante nova, porque, necessariamente havia de comprehender que, mais
cedo ou tarde, teria de se achar em face de um competidor, obscuro pelo
seu fraco talento, sim, mas testemunho vivo de prioridade nos mesmos
logares em que o dr. se julgava com direito a chamar-se o primeiro
europeu que os visitou. Ella não me pertence inteiramente, é certo,
visto que outras pessoas percorreram esses mesmos logares antes de mim e
muito antes do illustre viajante, mas pertence-me de facto, pois que
essas pessoas eram enviadas por mim, existiam, e existem ainda,
presentemente, no maior numero, ao meu serviço: umas naturaes de Loanda,
outras de Golungo-alto, outras de Ambaca, outras de Pungo-andongo,
outras, finalmente, do Bihé.

O illustre auctor do _Exame_ não tem porventura provado até á evidencia
que ella pertence desde epocha remota aos portuguezes?

Mas, modernamente, pelo que me diz respeito, e em relação ao illustre
viajante, creio não estar em erro dizendo que, a prioridade no interior
do continente Africano é minha.

Para o provar poderia reportar-me á epocha de 1840; mas como não
pretendo exaggerar nem sequer allegar serviços, trarei unicamente para a
arena a data de 1845, da primeira viajem ao Lui, muito anterior á
apparição do illustre viajante e seus companheiros, em 1 de agosto de
1849, no lago Ngami, percorrendo então, as pessoas que acabo de
designar, o Rianbeje em todas as direcções, como adeante terei occasião
de mostrar.

Oppondo muitos nomes áquelles de que se serve o illustre viajante para
designar coisas e pessoas, não faço mais do que servir-me dos termos
empregados pelos indigenas, a fim de designar essas mesmas coisas e
pessoas, visto que pela maior parte, se forem interrogados sobre o
assumpto, não obstante darem por alguns, outro tanto não acontecerá em
relação a outros; e nem faço mais do que servir-me da orthographia da
minha lingua materna, bem assim como o illustre viajante usou da
liberdade de se servir da sua. Outro tanto não direi da situação
geographica dos logares aqui indicados, attendendo a que não são
marcados com a bussola, mas sim segundo a posição em que nasce e se põe
o sol; para me subtrahir a taes inconvenientes dirigi a carta que abaixo
segue ao illustre viajante, julgando-o então em Rinhande.

Hoje mesmo, que o governo portuguez se delibere a enviar uma pessoa
pratica nas sciencias naturaes e geographicas, e eu, com muito gosto me
promptifico a acompanhal-a a todas as paragens d'esta parte da Africa
para o indicado fim, que será o unico meio de pôr termo, de uma vez por
todas, a invectivas menos justas de naturaes e estranhos.

Eis a carta a que me refiro.


                                                   Meu illustre amigo.


_Bihé_, 22 de setembro de 1861.


Os grandes heroes que a historia proclama, a mór parte das vezes o são,
assolando a terra, e devastando a raça humana. A esses, pois, tal titulo
significa uma blasfemia! Em identicas circumstancias, mas por fórma
diversa, que é por certo maior gloria, ao vosso zelo, perseverante
vontade, e á custa de immensos sacrificios a prol das sciencias, e a
favor da humanidade, ella com justiça e verdade, vos terá de acclamar de
seu heroe.

Poderei ser tão feliz que tenha a dita de vos tornar a vêr? Se assim se
verificar desde já ponho a minha gente ás ordens do meu illustre amigo,
para estas paragens, e n'ellas, ou mesmo para qualquer parte que
pretenda seguir, a minha pessoa fica desde já tambem á sua disposição.

Assigno-me com toda a consideração


                                           De V. S.^a

                                        Amigo attencioso

                           _Antonio Francisco Ferreira da Silva Porto_


Disse e repito que, o illustre viajante quiz chegar aos fins
importando-se pouco com os meios; vejamos se assim não é.

A carta que acabo de transcrever e que lhe dirigi julgando encontral-o
em Rinhande, é a confirmação plena da minha boa vontade, quando, puz os
meus bons serviços á sua disposição. A tel-os acceitado, a sua missão
seria completa, porque eu levava-o, facilmente, ás nascentes dos
seguintes rios: Riambeje, Quango, Cubango, Cunene, Quanza, e outros que
vão desaguar no atlantico ao sul de Loanda até Benguella. Regeitou,
porque não quiz que uma segunda pessoa partilhasse tal gloria, muito
principalmente sendo essa pessoa estranha á sua nacionalidade; preferiu
occupar-se exclusivamente, e mais de espaço, em pintar com sombrias e
carregadas côres, o hediondo quadro dos incorrigiveis traficantes de
carne humana; da sua prioridade no descobrimento do interior do
continente Africano, e finalmente na pregação da Biblia, como palavra
descida do Céo.

Deixou o rio Lunga, affluente do Cabombo, e esteve na povoação do soba
Machico. Devia de saber alli que d'esse local á nascente do Riambeje,
apenas se contam dez dias de viagem, como affirma o actual soba do paiz,
que por vezes foi á caça dos elephantes para essas partes; parece-me que
valia a pena accrescentar esses dias na ambicionada viagem de Loanda,
embora se tornasse mais demorada, a fim de marcar com precisão a
latitude e longitude da nascente do manancial de mais longo curso,
conhecido aqui em Africa, se é que o rio Cubango se não dirige para o
mar, e põe termo á sua carreira no lago Ngami, como é a opinião do
illustre viajante. Proseguiu ávante, deixando tudo em trevas, como quer
fazer acreditar aos olhos do mundo civilisado, fazendo-nos passar por
inteiramente ignorantes; e note o illustre viajante que falo em marcar
com precisão, e não em descobrir o que ha muito já se acha descoberto.

Poderia eu dirigir-me ás nascentes d'esses mananciaes que ficam
descriptas a fim de que se viesse no conhecimento das suas verdadeiras
origens, mas attendendo a que a sciencia exige mais alguma cousa, além
de uma simples descripção, por este motivo tenho desistido da empreza
aguardando que de futuro pessoa competente na materia, venha resolver o
problema.

Pondo remate a esta minha introducção, peço indulgencia para algumas
phrases menos mal cabidas, que porventura se encontrem no decurso dos
meus apontamentos; mas, sendo ellas tão amiudadas na descripção que o
illustre viajante nos apresenta, seria necessaria a paciencia de um
santo para deixar de respostar ao pé da lettra.

_Lui_, 14 de setembro de 1868


                           _Antonio Francisco Ferreira da Silva Porto_




Principiaremos pelas nossas coisas, e vem a ser que, tratando o illustre
auctor do _Exame_ a ps. 12, das missões, diz o que segue:


     «A extincção das ordens religiosas, e com ella a de todas as
     missões, foi perda irreparavel para as nossas possessões africanas,
     que tanto podiam e deviam ter com ellas aproveitado. As funestas
     consequencias estão-se experimentando, e desde logo tinham de
     prever-se: de certo, porque de todo o ponto é fóra de duvida que,
     missões regularmente constituidas, e d'onde hajam a esperar-se
     effectivos e avantajados resultados, só por via das corporações
     religiosas podem obter-se. O que, n'este intuito, podem fazer as
     corporações religiosas, só ellas podem fasel-o, porque só ellas
     podem preparar, escolher e ter á mão, mediante os votos monasticos,
     os obreiros mais competentes; as condições tão especiaes,
     proporcionadas pelos votos, mormente pelo da obediencia, não ha
     nenhum outro modo de serem suppridas. É por isso que tanto fizeram
     outr'ora os nossos missionarios em uma e outra Africa, e na India,
     e na America, e na China, e no Japão, e na Cochinchina, e em toda a
     parte; e é por isso tambem que tão pouco têem feito quaesquer
     outros missionarios não pertencentes ás congregações religiosas:
     estes vão aonde querem ou aonde podem, aquelles aonde os mandam:
     para estes, tudo são estorvos e tropeços, para aquelles, sem
     familia, sem bolsa e sem vontade propria, não ha obstaculo, porque
     obdecem: estes hesitam, porque deliberam; aquelles obram, porque
     não carecem de resolver-se. etc.»


Assim o creio no que diz respeito ás missões, visto que os missionarios
que então existiam pelas colonias nada tinham com a politica seguida na
metropole, não dizendo outro tanto dos seus ultimos tempos em Portugal,
porque os factos praticados pelos membros de que se compunham as
differentes ordens religiosas durante o periodo de 1828 a 1833, são de
todos conhecidos, e foram o que deram causa á sua extincção. Os
ministros que representam Jesus Christo na terra devem occupar-se
unicamente da missão sagrada do seu ministerio, e não de negocios
mundanos, inteiramente em desharmonia com ella.

É indubitavel o incremento do nosso poder no interior d'este vasto
continente, sob a acção das missões, e a sua decadencia depois da
extinção d'ellas; o Bihé gozou dos seus beneficos effeitos tendo por
capitão-mór Antonio Francisco da Conceição e Mattos, nomeado em 11 de
maio de 1791, no governo de Manuel de Almeida e Vasconcellos,[1] e a
missão dirigida por um barbadinho italiano, que celebrava os officios
Divinos n'uma casa apropriada ao fim, na povoação do dito Mattos,
baptizou grande numero de sertanejos que ao tempo existia no paiz, uns
naturaes da Europa, e outros do Brazil, outros finalmente indigenas, mas
todos portuguezes, ministrando egualmente o mesmo Sacramento, a grande
parte do povo Bihano, o qual, na falta de sacerdote no seu territorio,
tem por habito receber o baptismo na cidade de S. Filippe de Benguella.

Em 1842 conheci egualmente n'esta cidade o seu vigario (padre Manoel),
que tambem exerceu o ministerio no Bihé, e em Caconda. A sua benefica
influição devia de ter chegado ás terras da Lunda, Luvar e Lui,
attendendo a que os habitantes d'estas regiões são tão sociaveis como o
povo Bihano, não se podendo dizer outro tanto em relação a grande parte
da tribu Quimbunda, a que pertence a Bihana, visto que os quimbundos se
conservam no estado primittivo de selvagens, e bem assim a raça
Ganguella, cuja familia se pode dizer composta de diversas tribus, como
aquella.

Finalmente, venham missionarios para as nossas possessões, mas
missionarios portuguezes. Com o intuito de se reparar o erro, foi
restaurado o collegio de S. José do Bombarral, sendo do dever do governo
lançar vistas para assumpto tão momentoso, a querer que conservemos a
importancia que nos compete como nação de grande consideração colonial.

A paginas 30 e 31 o seguinte:


     «Vou occupar-me do lago Ngami, um dos descobrimentos de que tão
     grande alardo fez o dr. Livingstone. No capitulo 3.^o lê-se a pag.
     65 o seguinte: Doze dias depois que nos apartámos dos wagons em
     Ngabisane chegamos á extremidade nordeste do lago Ngami; e no 1.^o
     de agosto de 1849 descemos todos à bacia do lago, e, _pela primeira
     vez_, observaram europeus este magnifico lanço de agua.»


Sendo interrogado pelo illustre viajante sobre se conhecia o Cubango,
respondi affirmativamente, ao que retorquiu alimentar o lago mencionado;
disse eu então que não omittia opinião segura, mas que me parecia não
limitar-se ao lago unicamente, visto ser um rio de grandes dimensões.

No dia 22 de maio de 1846 digo o seguinte: «Continuámos a viagem, e
fomos fazer quilombo nos mattos, na margem direita do rio Cutato dos
Mangoias. Caminho plano, mattos fechados, em partes, em outras
despovoado de arvoredo, falta de riachos, terreno fertil. Uma hora de
marcha distante d'esta paragem, existem as nascentes de dois rios
caudalosos: Rio Cutato dos Mangoias, dirigindo o seu curso para o norte
a desaguar no rio Quanza, e o rio Cubango, dirigindo o seu curso para o
sul a desaguar no mar para o nascente.»

Ora, comprehendendo as vertentes d'este grande manancial até ao lago
Ngami, não quero discutir se com effeito é ahi o seu termo, ou se segue
ávante como acabo de transcrever no trecho acima da minha Viagem, no
citado anno, á cidade de Benguella, o que fica para ser resolvido por
pessoas competentes, mas sim fazer ver que os portuguezes de Quilengues,
desde antiga data, mantem não interrompido commercio pelo interior para
o sul e sueste, comprehendendo o lago em questão.

Os portugueses de Caconda, Quingollo, Galangue, e Caquingue, só mais
tarde é que principiaram de transitar para esses mesmos logares; e
finalmente os portuguezes do Bihé; todas as paragens do interior d'este
vasto continente, desde antiga data, e até ao presente teem sido, e são
por elles percorridas em não interrompido commercio com os indigenas. Em
virtude do que, não teem razão de ser a pretensão do illustre viajante á
descoberta do lago, visto que em setembro de 1841, achando-me na cidade
de Benguella, ahi encontrei já grande movimento commercial para as
terras que acabo de designar: e para que parte seguiriam essas fazendas,
a não ser para esses logares que ficam indicados? Regressando ao Bihé
n'esse mesmo mez e anno, o mesmo presenciei, e para que parte seguiria
esse commercio, a não ser para o Ribebe, e terras circumvisinhas,
Ganguellas, Luvar e Lunda, onde a concorrencia era immensa para cera,
marfim e escravos, mas com especialidade para estes ultimos, pelas
grandes vantagens que então se davam, mas que tinham de ter termo como
todas as cousas o teem n'este vae-vem terrestre? E a concorrencia
continuou de affluir á terra da Lunda, depois d'elle; porque não
obstante a extincção do trafico, sempre foi um grande mercado de marfim,
explorado de antiga data pelo povo de Cassange; da mesma sorte a terra
já citada do Ribebe e circumvisinhas, situadas nas vertentes do Cubango;
em identicas circumstancias as terras da grande familia Ganguella sob
diversas denominações, que não obstante a extincção do trafico, sempre
se tornaram uns grandes mercados de cera, n'umas, e d'este mesmo
producto e marfim, egualmente, em outras. Finalmente, temos as diversas
terras da grande familia Quimbunda, tambem sob diversas denominações,
cujo commercio consta unicamente de escravos, e que em virtude da sua
visinhança ao litoral, sempre foram habitadas, de antiga data, por
europeus que n'ellas fixaram residencia, e hoje por seus filhos, netos e
bisnetos, sobrepujando a todas, a terra do Bihé, grande centro de todo o
commercio do interior, na epocha em que o trafico era licito, e annos
depois por contrabando até 1845. Ellas não bastavam a abastecer o
mercado do litoral, e os sertanejos á porfia procuravam e percorriam as
terras que acabamos de designar para o indicado fim: acabado o trafico
hediondo da escravatura, pelos principios philantropos e humanitarios,
assim chamados, são da mesma fórma procuradas as terras do interior,
onde apparece a cera e o marfim.

Que fosse pois até essa epocha, que o illustre viajante nos quizesse
expor á censura geral como entes desmoralisados, vá: advertindo que,
ainda lhe restava a presumpção do parallelo entre portuguezes e
inglezes; considerando que estes depois do aprisionamento de qualquer
navio negreiro, conduziam os desgraçados africanos para as suas
possessões, e não os vendiam por toda a vida, e por preços fabulosos,
como faziam os infames contrabandistas, mas sim por uma modica quantia e
por um determinado espaço de tempo no fim do qual, o filho de Africa se
tornava livre!

Mas presentemente, e tanto de espaço tratar de uma questão que se póde
dizer extincta, parece incrivel que a tanto se aventurasse!

Esteve no meu estabelecimento em Catongo: quantas correntes cheias de
infelizes encontrou?

Se tal se desse teria materia de sobejo para um volume.

E se me desviei do assumpto que me tinha proposto, de mostrar a
prioridade dos portuguezes no lago Ngami, assim era de necessidade a fim
de mostrar que para a permutação de escravos não era necessario sahir de
territorio Quimbundo do anno de 1845 por deante.

A paginas 62 sobre a mosca _tse-tse_,--os Macorrollos dão-lhe a
denominação de _Zeze_, o povo Lui dá-lhe a denominação de _Madinda_, e
finalmente, o povo Bihano dá-lhe a denominação de _Bisumangalla_ ou
_Apopullo_,--eis o que digo a respeito d'este insecto damninho, no dia
26 de junho de 1853:

--«Continuámos a viagem, e fomos fazer quilombo nos mattos, logar
denominado Maranhati. Caminho plano, mattos fechados, terreno fertil,
legoas andadas 6, rumo de sul.

«Encontrámo-nos com tres grandes manadas de gado, que se dirigiam com
destino a Quiceque e Rinhande, tendo sahido poucos dias antes da minha
partida da capital do Lui. Seguiam pois os conductores munidos de
escudos e azagaias, pelos lados do gado, este, formando o centro,
carregando, sobre a cabeça, e ligado entre a armação, os couros
preparados, e que servem de cobertura aos mesmos pastores; seguindo
manso e vagaroso, o som do apito de um unico pastor como guia, na sua
frente: os chefes da comitiva seguiam por ultimo, para que não se
desgarrasse alguma creação.

«Quando chegam na margem de alguma lagoa ou rio, tiram os couros que o
gado conduz, e este principia de pastar, isto pelo espaço de duas horas,
pouco mais ou menos, tempo em que o geral do povo se entrega a tomar
tabaco, a fumar, a comer, e finalmente ao descanço; e, ao cabo de cujo
espaço tornando de pôr os utensilios em cima dos animaes, continuam a
marcha encetada, que, no maior rigor, não excede jámais a cinco horas
diariamente, excepto por certas e determinadas paragens, nas quaes se
torna indispensavel a marcha nocturna, em consequencia de uma mosca de
mordedura venenosa que, sendo em grande abundancia se torna o flagello
(do gado) visto seguir-se a morte ao cabo de determinado periodo. Por
estas paragens é denominada de Zeze, e pelos bihanos de Bisumangalla; é
um pouco mais comprida que a mosca ordinaria, mas muito mais dura de
pelle, pois que para se matar é necessario pizal-as com os pés, bem
assim, andar o viajante munido de ramos nas mãos para as afugentar do
corpo, pelos mesmos logares onde se tornam abundantes.

«Verificada a occasião da marcha nocturna, um pastor na frente, servindo
de guia, e tangendo uma frauta, o mais povo dos lados, e na retaguarda
os chefes com tições accesos, fecham o sequito de uma numerosa manada de
gado; logo que chegam no logar destinado para o curral, este é feito
n'um momento, de paus e ramos das arvores, que cortam para o indicado
effeito: no centro repousa o gado, em circulo, e encostado ao cerco o
mais povo da comitiva para evitar qualquer assaltada do rei das selvas,
e em virtude do que não deixam de velar continuamente.»

N'essa occasião, levando a cavalgadura do meu uso, por me livrar de um
excesso, vim a cahir no excesso contrario: livrei-me de um, deixando de
costear o Riambeje por causa dos rios seus affluentes que forçosamente
tinha de passar em canoas, e cuja passagem se tornava perigosa para
ella; deixando por esse motivo de visitar a catarata Chungo ou
Mosioatunia cuja descoberta então teria a regalia de disputar ao
illustre viajante, mas não assim aos meus concidadões, fosse qual fosse
a sua côr e condição;--comtudo, visitei-a mais tarde como terei occasião
de mostrar--e cahindo por consequencia no excesso contrario por causa da
mosca de que acabo de falar, visto que fui obrigado a deixar ficar a
cavalgadura no dia 30 d'esse mesmo mez e anno, n'uma das povoações do
povo Guete, fazendo por tal motivo a jornada a pé d'esse local para
Rinhande, e vice-versa, para o que me não achava preparado.

A paginas 71 o seguinte:


     «Contando-nos a sua marcha para o interior do continente africano,
     e o seu encontro com Sebituane, celebre chefe indigena, em o esboço
     que desveladamente d'elle nos bosquejou, diz o dr. Livingstone:
     «Tendo conquistado todas as convisinhanças do lago Kumadau
     (_Mculadau_), ouvio fallar dos homens brancos, que viviam na costa
     occidental; e esporeado pelo que parece ter sido o sonho de toda a
     sua vida, o desejo de abrir communicação com os brancos, passou ao
     sudoeste.» Mais adeante se lê: «Sebituane (_Xabitane?_) formou o
     designo de descer o Zambeze até ás terras dos homens brancos. Tinha
     a idéa fixa, que _não sei d'onde lhe viera_, de que, se possuisse
     uma peça de artilharia, lhe seria possivel viver em paz. Sebituane
     passara a vida na guerra, e todavia ninguem mostrava desejar a paz
     tanto como elle. Um propheta o persuadiu a voltar de novo para
     oeste. Aquelle homem, por nome Tlapano, era chamado «Senoga», isto
     é, que trata com deuses... Tlapano apontando para o oriente,
     exclamou: Alli, Sebituane, vejo fogo: evita-o: é fogo que pode
     abrazar-te. Os deuses dizem que não vas alli.» Voltando-se para o
     oeste, exclamou: «Vejo uma cidade e uma nação de homens negros,
     homens da agua: o seu gado é vermelho: a tua tribu está a acabar, e
     toda será destruida: tu has de governar os homens negros, e depois
     que os teus guerreiros tiverem captivado o gado vermelho, não
     consintas que os donos d'elle sejam mortos. São elles a tua futura
     tribu, elles hão de formar a tua cidade. Sejam poupados, para que
     te obriguem a edifical-a. E tu, Ramosini, sabe que a tua aldêa será
     totalmente arruinada. Se Mokari se apartar d'aquella aldêa elle
     perecerá primeiro, e tu, Ramosini, perecerás ao depois.» Com
     respeito a si proprio accrescentou. «Os deuses foram causa de que
     outros homens tivessem agua para beber; porém a mim só me
     concederam a pessima bebida do chakuru (rhinoceros.) Chamam-me para
     si. Não posso demorar-me mais.»


Disse que para provar a nossa prioridade ao illustre viajante, traria
unicamente para o caso a data de 1845 da primeira viagem ao Lui, o que
passo a demonstrar.

A minha perigrinação por estas paragens data de 1840, tendo partido da
Cidade de S. Paulo d'Assumpção de Loanda; porém em 1841, dirigindo-me á
cidade de S. Filippe de Benguella, como já tive tambem occasião de
dizer, os meus commissionados dirigindo-se pelas terras do interior que
ficam designadas, passavam e repassavam o Riambeje, no dominio da Lunda,
e nas terras dos Ganguellas; o ponto a que se dirigiam era para a terra
do Lutembo, povo assás turbulento, e mescla das tribus Bunda e
Zambueira, com o intuito de se obter passagem para a terra do Lui, já de
grande nomeada pelas amiudadas incursões que fasia o seu povo ás terras
circumvisinhas a fim de se assenhorear do gado que na epocha abundava
por todas. Eram taes as maravilhas que circulavam d'esta California em
prespectiva, que se tornava necessario lá chegar, fossem quaes tivessem
de ser os sacrificios a fazer.

O soba Cabitta, então senhor da dita terra, ou porque quizesse o
exclusivo do mercado do marfim que negociava com o soba do Lui (Cacoma
Mulonga ou Sanduro), e permutava com sertanejos do Bihé, semelhantemente
ao Jaga de Cassange, com o Matiamvo,--ou receioso de ser aggredido mais
amiudadamente depois de franqueado o caminho aos da mesma procedencia, é
certo que sempre se recusou a prestar o seu consenso; porém no anno de
1845, mediante extorsões inauditas, e a clausula de dois empregados que
foram constrangidos de ficar comprando os generos por preços fabulosos,
foram abertas as portas de par em par á comitiva para a terra da
promissão, e obtida esta primeira conquista, restava ainda outra de não
menos difficil empenho e vinha a ser o pôr termo as excessos do senhor
de Lutembo, visto que as extorsões se foram grandes na ida, se tornaram
muito maiores no regresso, exigindo-se dentes de marfim como tributo da
passagem concedida para o Lui.

Prompta, pois, a comitiva para a partida, recommendei ao seu chefe,
Francisco Monteiro da Fonseca, um diario da dita viagem, e bem assim,
procurar por todos os meios ao seu alcance, passagem para o Lui que não
fosse a da terra já citada.

No anno de 1847, na segunda viagem á dita terra, eis o que digo a este
respeito:

«A terra do Lui propriamente dita, é habitada presentemente pelo povo
Genge, (synonymo de audacioso, posto pelos indigenas aos Macorrollos, e
pelo qual se ficou denominando o paiz,) o qual se assenhoreou do paiz
pela imbecillidade do soba Riumbo, antigo senhor do mesmo. Este se bem
que tarde conhecesse a sua fraqueza, jámais quiz ser tributario
d'aquelles a quem o havia entregue, e por esse motivo, expatriando-se,
com parte do seu povo, se veiu refugiar n'esta terra denominada Locullo,
antigamente sua tributaria, e hoje sua côrte, denominada Lui. O soba
Riumbo tem seguros sessenta annos de idade, e não obstante a mesma,
ainda não depôz as armas de guerreiro, pois se tarde conheceu a sua
fraqueza entregando o paiz aos seus inimigos; presentemente não lhes tem
cedido um palmo de terra. É paiz de grande extensão, com immensas terras
que lhe são tributarias, cujos sobas seguidos do seu povo, annualmente
vem prestar tributo ao soba Riumbo, com os seguintes generos: marfim,
escravos, canoas, pelles de todas as qualidades, mantimentos, carnes de
caça, peixe, mel e sal; não ha gado domestico de especie alguma, visto
que o possuido antigamente, ficou em poder do povo Genje; a unica
creação domestica que possuem são gallinhas.

«É pois este povo, d'entre o geral do gentio, de costumes simples e não
corrompidos; o unico instincto que possuem é o de Deus e nada mais: usam
trajar pelles dos differentes animaes bravios, as quaes são por elles
mui bem preparadas; as suas armas, são: arcos e frechas, lanças curtas e
compridas.»

Pelo que diz respeito ao soba Cabitta, as coisas continuaram da mesma
fórma, e relativamente a buscar differente caminho, não foi possivel
persuadir os Bihanos para tal fim.

No anno de 1849, da terceira viagem, falleceu o soba Riumbo,
succedendo-lhe seu primogenito Machico, e de cujo acontecimento nenhum
damno resultou para os viajantes, attendendo á boa indole do povo, e
attendendo egualmente ao estylo seguido alli tambem:--_Morreu o rei:
Viva o rei_.--pois que o defunto soba não passa além de vinte e quatro
horas insepulto, e o herdeiro já existe occupando o seu logar, passando
por consequencia o acontecimento desapercebido como qualquer outro.

As extorsões do soba Cabitta, já para com as pessoas da comitiva, já
para com dois empregados que de rigor eram obrigados de ficar, como tive
occasião de dizer, continuavam da mesma maneira, dando logar n'esta
occasião a ter eu de lançar mãos das armas para repellir do quilombo o
dito soba e a turba de que se fazia acompanhar a fim de lhes infundir
respeito aos viajantes; para evitar taes disturbios aquelles se fitavam
mutuamente, concorrendo cada um com o peculio indispensavel, e em
proporção das fazendas que cada contribuinte recebia da minha mão, e
depois de entregue, segundo o preço imposto pelo insaciavel e turbulento
soba, e de bem examinados todos os objectos, respondia este: _agora sim,
estão desempedidos; podem seguir viagem quando quizerem_.

No entretanto, estes vexames não eram praticados unicamente na ida; no
regresso, apresentava-se o licencioso soba no quilombo exigindo dentes
de marfim de tributo, e segundo o que cada pessoa conduzia, visto que
assistindo á passagem da comitiva no rio Lutembo, em cuja margem
esquerda se acha situada a libata grande, que vem a ser a povoação
principal ou chefe da terra, contava e recontava as cargas de marfim que
do porto eram conduzidas para o abarracamento, dizendo sem rebuço em tal
acto, que era para que o não enganassem; tornava-se necessario pôr termo
a taes excessos, mas, como vamos vêr, a um acaso providencial se deve
semelhante successo.

No anno de 1850, da quarta viagem, ainda o soba Cabitta gozou na ida da
comitiva o direito de passagem, porém chegando ella na margem direita do
Riambeje, como era de costume dispararam-se as armas a fim de dar aviso
da chegada de hospedes na terra, e a cujo signal de prompto acudiam os
canoeiros; o silencio n'esta occasião, bem assim no dia seguinte, foi a
resposta que os viajantes obtiveram; acto continuo formaram conselho
sobre o que restava a fazer, e o accordo foi geral de que Machico tinha
sido guerreado pelos intrusos visinhos, e por consequencia havia mudado
de local, e então que se devia descer o rio com o intuito de se
entabolar negociações com o chefe dos Macorrollos; para este effeito
deram caça a dois pretos da tribu Nhengo, que depois de presos para não
fugirem, serviram de guias á comitiva até ás povoações de Ribonda, ao
noroeste do Riambeje, e situadas na sua margem direita, onde, depois de
postos em liberdade e gratificados, regressaram ao logar da sua
nacionalidade.

Por ordem do chefe do local foi a comitiva impedida, julgando-a povo de
invasores, até ulterior decisão da libata grande do paiz, para onde
tinham seguido emissarios com a participação da sua chegada, regressando
ao cabo de dois dias com outros enviados do soba, a fim de a conduzir
para o local que lhe era indicado para fazer o estabelecimento, ou
Quibango, como o denominam na lingua Bihana, em frente a Nariere, então
corte do povo Macorrollo no Lui.

Esta povoação ficou inteiramente deshabitada depois da revolução de
setembro de 1864, que elevou ao poder Hipopa, actual senhor do paiz, e
ultimo filho de Cacoma Mulonga ou Sanduro, muito conhecido do illustre
viajante, visto que esteve ao seu serviço por concessão de Hiquereto,
então sob o nome de Lutango.

Recebeu o chefe da comitiva á sua chegada no local, um dente grande de
elephante, um boi, e grande porção de mantimento, e no dia seguinte,
seguida dos seus companheiros, apresentou-se em Nariere, que, como era
de esperar, estava litteralmente apinhada de povo, avido sempre de
novidades.

Na praça, ou centro da povoação, Hebitane; Pepe, seu logar-tenente no
Lui; Hiquereto, seu filho e successor, pastoreando então o gado n'esse
tempo; Borollo, seu irmão; inclusivè as pessoas do sexo masculino da
familia, e mais optimatos da tribu assentados em bancos rasos a curta
distancia da residencia do soba; os viajantes proximos, e a turba na
praça se achava apinhada, como já disse, assentada no chão; sendo
recommendado silencio, levantou-se o chefe da comitiva, e no idioma
Ganguella deu conta de todas as particularidades relativas á viagem; da
terra da sua naturalidade; por quem eram enviados, e finalmente as suas
intenções de manter relações de amizade com o chefe do paiz, o que foi
transmittido a Pepe, e este, acto continuo, passou a transmittir a
Hebitane, o qual respondeu achar-se de accordo, visto serem esses os
seus desejos.--«A Quiceque, disse elle, chegaram Macuas do Oriente,
apontando para o indicado ponto, (No dia 12 de março de 1853 falo d'esta
gente, procedente de Inhambane ou talvez de Quelimane), mas havendo-se
retirado, não teem regressado. Por differentes vezes, continuou elle,
tenho ouvido falar de Macuas do Occidente em Locullo, sem que se
apresentassem no local, o que tinha dado logar a mandar guerrear
Machico, a fim de vêr, se, continuariam de o procurar, ou então se
vinham ao local como acabava de se realisar, e por cujo successo todos
se deviam congratular.»

Findo o que, teve logar a entrega de presentes, mutuamente, e o
dispersar de actores e espectadores para seus logares; e agora, que o
soba Cabitta desappareceu da scena, visto que morreu em 1854, e visto
egualmente que d'elle nos não tornaremos a occupar, porque a comitiva na
torna viagem passou pela terra do Cutti: permitta-me o leitor que
desviando-me do assumpto, relate um caso que tem relação com uma
heroina, mãe d'este mesmo soba fallecido, e em cuja familia é innato o
despeito.

No dia 30 de maio do corrente anno, na margem direita do rio Cubangui,
emissarios de Muene Gambo ou Muene Calunga, (a mãe de Cabitta) me vieram
da sua parte pedir um dia de demora no local, a fim de fazer negocio do
dente direito de um elephante, e de cujo animal já tinha comprado o
dente esquerdo na cabeceira do dito rio; respondendo affirmativamente,
esperei, e eis o que digo a este respeito:

--«_31 de maio de 1868._ Pelas duas horas da tarde chegou Muene Gambo
com uma comitiva excedente a duzentas pessoas, não trazia marimbas, mas
trazia os tambores que é de uso fazer concerto com os ditos
instrumentos, e o indispensavel farcista ao estylo do Luvar e da Lunda,
cujo unico serviço consiste em ser varredor, fazer visagens, e repetir
continuamente a saudação usual do dito povo: _Averié! Averié!_

«Tendo feito alto fóra do quilombo, (arraial), dei ordem para que fosse
introduzida, e hospedada n'uma barraca que lhe tinha destinado, e depois
de haver descançado algum tempo, mandei comprimental-a, e saber se
queria fazer negocio do dente de marfim, que já a tinha precidido;
respondeu negativamente, dizendo que: o seu cancaço era grande, em
virtude da jornada que já não comportava a sua edade; e em presença de
semelhante decisão, lhe mandei dar algumas gallinhas, carne de vacca
secca, e farinha de massango, para o seu jantar: concluido este dever,
tratei egualmente de apromptar os generos necessarios para o negocio em
questão, a fim de estar prevenido para o dia seguinte.

«Frio, e vento forte de Nordeste.»

«_1.^o de junho._ Eram oito horas quando mandei comprimentar Muene
Gambo, e saber se estava disposta a tratar do negocio, apresentou-se
pessoalmente com seis dos seus macotas (conselheiros), fazendo-me vêr
que, o seu fim tinha por objecto conhecer-me, e o dente de marfim, era
presente que me fazia: retorqui agradecendo a visita; e dizendo que não
tinha por habito receber presentes de valia, e então seria melhor
tratarmos do negocio, attendendo a que se não daria mal. Com effeito,
sendo esta gente bastante impertinente em assumptos de mutua troca, com
esta velhinha ainda robusta, eram nove horas quando o negocio estava
concluido, muito a seu contento e dos seus conselheiros, jurando ella
que de futuro, cera ou marfim que lhe fosse possivel obter, teria o
cuidado de conservar a fim de me ser enviado para o dito effeito; não
necessitando dizer que, o direito de passagem que teria a fazer ao seu
subdito Muene Camgamba, (soba do local, mas que nada recebe de tributo
dos viajantes, em virtude de n'elle vir situar muito posteriormente á
passagem de comitivas para Lui) o fiz a ella em mais avultado quinhão,
mas não exigido, e dado com muito gosto.

«Esta mulher deve com effeito ufanar-se da sua existencia, visto que tem
sido mãe de treze filhos que por seu turno reinaram em diversas partes,
sendo, seis do sexo masculino, e sete do sexo feminino, existindo apenas
Chiella sua filha, actualmente em Cangilla, e avó do actual soba da dita
terra, de que falei a 22 do mez proximo findo; presentemente então
governando os seus netos e bisnetos de ambos os sexos, sendo os
seguintes de maior consideração: Soba Liatto no Lunguébungo, de quem é
feudatario o soba da terra de Muatamjamba; sobas das terras de Cangilla,
Gonga e Lutembo; o celebre Catongotongo, hoje situado proximo das
vertentes do rio Cutti, tambem é seu neto.

«Concluindo, direi que, Muene Gambo tem para mais de oitenta janeiros,
estatura baixa, e reforçada de corpo; cabellos brancos, cheios de
missanga branca grossa, entretecida de maneira a dar-lhe á cabeça a
apparencia de coberta com um capacete. Uma especie de baculo de canna,
de que ha abundancia nos bosques da Lunda, imitante a canna da India,
lhe servia de arrimo; trajava pannos de zuarte, e sobre o hombro
direito, trazia um especie de enxó bastante enfeitada. Notei que tinha o
passo firme, não obstante a sua avançada edade; e, como acabo de dizer,
eram nove horas quando o negocio estava concluido; depois de nos
haver-mos despedido, dei ordem para alevantar a comitiva. Continuámos a
viagem, passámos o rio Cubanguí, e proseguindo a marcha, fomos entrar no
quilombo sito na sua margem esquerda, onde nos encontrámos a 14 de
novembro do anno passado, eu, e o meu amigo Bonifacio José Rasquete.

Tempo frio e vento forte de Nordeste.»

Agora, voltando ao assumpto de que me tinha desviado, direi que da
quinta viagem no anno 1852, está o illustre viajante bastante ao facto,
visto que n'ella tive a honra de o conhecer, o que, hoje, em virtude do
que se tem dado julgo que melhor fôra se não tivesse realisado. O
illustre viajante sabe perfeitamente que a ingratidão é uma dama que
causa tedio! Quanto melhor não fôra que tivesse tratado simples e
puramente da sua viagem no interior d'este continente? deixasse viver em
paz os pobres traficantes? não tratasse tanto de uma ephemera
superioridade, que hoje eleva para amanhã abater? e finalmente tratasse
mais da Biblia, como palavra descida do céo...

Hebitane, tinha tido conhecimento de viajantes portuguezes do Oriente e
do Occidente, muito tempo antes do illustre viajante pôr pés em
territorio africano. Os primeiros vieram a Quiceque, e os segundos
faziam parada em Locullo, apenas a cinco dias de distancia de Nariere,
como já tive occasião de dizer; que sejam classificados de negociantes,
sertanejos, ou _mambari_, (áparte a côr) isso pouco importa. O illustre
viajante é conhecido commummente pelo seu nome:--O Reverendo Dr. David
Livingstone,--mas entre os indigenas simplesmente pelo appellido de
_Monare_; a peça de artelharia, encommenda de Habitane, na occasião da
retirada dos meus empregados, e que mandei vir de Lisboa, teve-a seu
herdeiro no poder, mais tarde, isto é, em 1854, mas o destino que lhe
deu, foi o de a mandar refundir para manilhas dos braços e pernas, visto
que era de bronze, e pouco menos de calibre um; o mesmo destino lhe
daria seu pae, a dar-se o caso de não ter fallecido.

Admira pois que o illustre viajante perdesse o seu tempo com taes
futilidades, como a da prophecia; pense que ninguem é propheta na sua
patria, e muito menos na alheia: Hebitane tinha um tanto de lunatico, e
era um selvagem; nada mais natural do que acreditar nos ditos do
embusteiro Tlapano, que, em parte se realisaram com a revolução de
setembro de 1864, preludio do massacre de seu irmão Borollo, regente na
menoridade de seu sobrinho Ritari, de toda a sua familia, e de toda a
tribu Macorrollo, aqui no paiz, e que, como já tive occasião de falar,
elevou ao poder o actual soba Hipopa, filho de Cacoma Mulonga.

Esta terrivel catastrophe para a tribu em questão, só poupou algumas
mulheres que de bom grado acceitaram a nova ordem de coisas,
entregando-se voluntariamente nas mãos d'aquelles que na vespera
curvavam a cerviz ao jugo estranho, e que no curto espaço de vinte e
quatro horas, trocando-se os papeis, passavam de escravos a senhores. Á
excepção d'essas infelizes que inda assim assistiram á tragedia, o
massacre foi geral, não poupou creança de peito! Effeitos violentos de
medidas que emanam sempre do terror, e que mais tarde ou cedo fazem
acabar os que as empregam ás mãos do mesmo terror, mas não de vaticinios
sem connexão, nem mesmo com o merecimente da novidade.

Senhor do mais bello paiz central do continente africano, que o acaso
havia deposto a seus pés, sem que lhe custasse a mais minima gotta de
sangue, Habitane não o soube gozar, nem mesmo soube aplanar o caminho
para os seus, a fim de que para o futuro o viessem a desfructar;
principiou por ordenar o exterminio d'elles, não obstante o seu já
reduzido numero; até que a morte o veiu colher em 1851, em Rinhande de
Muanamgombe ou sitio Dumbua, capital que havia fundado, e onde jaz
sepultado. Uns dizem que de morte natural, outros, e d'estes o maior
numero, dizem que envenenado; o que deixo para ser averiguado por
pessoas competentes, que de futuro se occupem com as nossas coisas de
Africa.

Hiquereto, seu primogenito, assumindo o poder, transferiu a capital para
Rinhande, local mais ao Sueste, e a oito horas de distancia, porém,
trilhando a mesma vereda de seu pae, pode dizer-se que o seu governo foi
um continuo sorvedouro de vitimas, mandadas assassinar sob a mais leve
apparencia de suspeitas, já ao supremo arbitrio, já em virtude de
feitiços contra a sua pessoa. Depois de uma longa enfermidade do mal de
Lazaro, foi mandado estrangular no leito da agonia por seu tio Borollo,
segundo o pregão da turba, em 1863, e sepultado n'esse mesmo local de
que foi fundador, e que durante os primeiros annos do seu governo, se
tornou um grande centro de animação e movimento.

Borollo, vendo que o poder, depois da morte de Hiquereto, passava ás
mãos de sua mãe, apresenta-se em Rinhande a fim de o disputar (1863), o
que consegue depois de uma grande batalha, em que a victoria depõe a
corôa de vencedor a seus pés, assumindo por essa occasião a regencia
durante a menoridade de seu sobrinho Ritari e recolhendo á terra do Lui
que torna a readquirir a sua antiga preponderancia da capital do paiz.
No entretanto, em logar de poupar os da sua tribu a fim de equilibrar a
governação entre elles e os indigenas ao contrario de seu irmão e
sobrinho, continua o seu exterminio sem descanço, a fim de desaggravar
as injurias porque havia passado no governo d'este ultimo: o que visto
pelos naturaes, foi o signal de alarme para sacudir o jugo dos
Macorrollos em setembro de 1864, como acabei de dizer.

A paginas 72 e 73 o seguinte:


     «Conta o Dr. Livingstone que, tendo-se dirigido de Naliele a
     Sesheke (deve ser de Rinhande), cento e trinta milhas ao nordeste,
     e descoberto o Zambeze no centro do continente, e visitado o paiz
     limitrophe, fôra procurado, e o seu companheiro Oswell, por muitos
     individuos, que trajavam baetas de differentes cores, e um d'elles
     algodão pintado; e nos informa de que taes mercadorias eram obtidas
     por via dos Mambari, que demoram nas proximidades do Bihé, os quaes
     as tinham trocado por creanças de ambos os sexos. Accrescenta que,
     em 1851, se realisara um rasgate de duzentos rapazes de 13 a 14
     annos de idade por espingardas portuguezas, as quaes tinham a marca
     de _Ligitimo de Braga_. Ora os Mambari eram, por assim dizer,
     commorcãos do Bihé, e estavam em intimas relações com os
     portuguezes, com quem traficavam em escravatura, e de quem eram
     corretores, e a quem, como é sabido, e, como veremos, attesta o
     mesmo Dr. Livingstone, acompanhavam nas suas excursões commerciaes
     pelo interior de todas aquellas regiões. Não póde pois deixar de
     ter-se por certo, porque se torna incrivel o contrario, que tinham
     dado os Mambari largas noticias do Zambeze central.»


No já citado anno de 1845, os negociantes da praça da cidade de
Benguella que até então depositavam inteira confiança nos seus
sertanejos do Bihé, e de futuro continuaram, entregavam as suas fazendas
a estes sem condições previas, quer dizer: que as dividas até essa data
fossem solvidas em escravos, em cera, ou em marfim, isso não era
questão, esta limitava-se a que se fizesse o pagamento, em prazo mais ou
menos longo, não obstante o estipulado na escriptura que era de seis
meses; no entretanto, no já citado anno, foi imposta condição positiva
de taes dividas serem pagas em cera e marfim, o que sempre se tem
verificado até ao presente.

Não necessito dizer que isto foi motivado pelo rigoroso cruzeiro então
estabelecido para a total suppressão do contrabando.

Disse egualmente que as diversas terras de que se compunha a tribu da
grande familia Quimbunda, e á qual pertence a Bihana, faziam o seu
exclusivo, de escravos, e, a ser possivel a exportação d'elles, sendo a
praça da cidade de Benguella o grande centro de affluencià do commercio
do interior, n'um momento dado em que lhe fosse necessario, mil, ou dois
mil escravos, não tinha mais do que enviar emissarios pelo interior,
para que no curto espaço de um mez, tal numero se apresentasse. O Bihé
demora apenas a dez dias de distancia d'esta cidade, e d'aqui para baixo
as mais terras da tribu designada. Ora, os sertanejos em questão, não se
podiam afastar de uma condição imposta muito antecipadamente ao
contrahimento da divida, e na mesma escriptura, que, para todos os
effeitos reputavam de sagrada, e dada tal hypothese, significaria faltar
á fé dos contractos, a que por certo se não queriam expor; menos, quando
fosse possivel a exportação de escravos no litoral por qualquer
circumstancia fortuita como acabei de falar.

Porque haviam de aventurar-se então a um mercado de tal natureza, tão
longiquo como a terra do Lui, Luvar, ou mesmo da Lunda, tendo-o á porta,
e por todo o interior nas differentes terras de grande familia
Ganguella, depois de se transpor os rios Cuquema e Quanza,
comprehendendo o quadrante do norte e sul, a limitar por leste com as
tres terras acima, nas quaes, muito antes das medidas suppressores do
trafico, o melhor escravo não excedia jámais dez lenções, (medida de
cinco covados cada lençol,) e d'este preço para baixo até tres lenções.

E sendo o primeiro preço, aquelle porque regula qualquer escravo entre a
tribu Quimbunda, não necessito dizer que, cahe por terra qualquer
argumento em contrario ao que acabo de expender.

No Lui, os escravos eram comprados pelos Bihanos com os pagamentos que
se lhes fazia, que nunca excedeu para todas as terras do interior, além
de tres lenções, na ida (para a cidade de Benguella regulava o mesmo
preço na ida, porém na recolhida em seis lenções;) e outros tres na
recolhida, fazenda que dava perfeitamente para dois escravos, que
serviam de carregadores ao senhor, em quanto que elle passava a carregar
a carga do sertanejo. E hoje que se não dão negocios taes n'este paiz, e
se realisam na terra da Lunda, os Bihanos seguem á porfia para esta.

Relativamente ao resgate ou melhor diremos compra, de duzentos rapazes
de 13 a 14 annos de edade, pelas taes espingardas denominadas
portuguezas, não teem qualificação possivel tal asserto; no entretanto,
notaremos que é um excessivo numero de instrumentos mortiferos para quem
lhes sabe o valor intrinseco, mas não na mão d'esta gente que, ao menor
desarranjo em qualquer mola, e na falta de mestre para o concerto, as
vendem por um lençol de fazenda ou um macete de missanga. Qualquer
sertanejo procedente do Bihé quando se dirige para este paiz, nunca traz
mais de uma até duas caixas de espingardas, segundo a quadra do anno,
que vem a ser no primeiro caso, trinta, e no segundo, sessenta armas;
uma parte d'este numero fica no caminho permutado por cera e marfim; nas
comitivas, de ordinario, sempre veem um numero muito maior, mas é para
sua defeza.

D'onde, sahiu pois o numero indicado pelo illustre viajante?...

Emquanto ao rotulo, significa usurpação pura e simples d'aquelle de que
faz uso seu primitivo auctor, visto que a procedencia d'essas armas,
hoje, é das fabricas da Allemanha e Inglaterra, que as mandam ao mercado
por modicos preços e em virtude dos quaes o verdadeiro auctor não pode
fazer competencia.

Até 1854 foram aquellas as armas que para aqui vieram, e todas as tribus
para o poente não fazem uso de outras, porém, como os Macorrollos
sympathisassem mais com as raiunas, introduzidas pelo illustre viajante,
principiaram estas, d'essa epocha por deante até 1864, de affluir ao
paiz, mas em consequencia dos acontecimentos cahiram em desuso, para de
novo darem entrada áquelles, as quaes, bem como polvora, chumbo em
balas, e munição, arame de latão grosso, contaria de diversas côres e
qualidades, fazendas finas e ordinarias, e finalmente roupas, finas e
ordinarias, genero de grande extracção, são de exclusiva negociação com
o soba, attendendo a que este concentra na sua pessoa como senhor
absoluto, todo o machinismo mercantil, negociação unicamente feito, por
elle, e pelo sertanejo que se apresenta. Concluida, ella tem logar a
entrega do marfim, e por consequencia a distribuição dos generos pelos
magnates em geral; tem egualmente logar então a dispersão do povo da
comitiva para as terras limitrophes, onde se permuta o marfim,
egualmente os escravos, sendo este segundo ramo da attribuição dos
Bihanos, que, se dão melhor com elles, que não com os da sua raça, em
consequencia da humildade d'elles, já para o seu serviço, já para
satisfazer Milongas (crimes), já finalmente para permutar por cabeças de
gado, cujo preço é de seis bois grandes (castrados) por um escravo, o
que o possuidor decora com o pompôso titulo de sua manada de gado. E
todo aquelle que possue esta, e, ainda além d'ella, quatro ou seis
escravos, sahiu da classe plebea para a nobre; já por ter maior numero
de concubinas, que uma honraria adquirida á razão de um escravo ou um
boi; e já finalmente porque entra na classe de pombeiro, recebendo
fazendas dos sertanejos, pelo que é obrigado de acompanhal-os para toda
a parte; sendo a isto que o Bihano aspira unicamente, dando principio á
sua carreira pelo tirocinio de carregador.

Pelo que fica dito se vê que o nome de _Mambari_, applicado
indistinctamente ao povo Bihano pelos indigenas, e alternadamente
_Himbari_, e _Bimbari_, pelo povo Ganguella, é synonymo de _Quimbar_ ou
_Himbar_, com o qual são designados os escravos pertencentes aos
sertanejos, entre a raça Qimbunda, á qual, como já tive occasião de
falar, pertence a terra do Bihé, e mais terras para o poente até á
cidade de Benguella, comprehendo algumas que demoram para o norte e sul.
Em virtude do seu dialecto especial, e unico assim denominado,
apresentando-se os sertanejos do Bihé pelo interior a tratar de seus
negocios, os habitantes julgando o povo da comitiva como sujeito aos
mesmos, os ficaram designando de vez pelos nomes que ficam notados, e
com os quaes se não deshonram os Bihanos, povo excencialmente
commerciante.

Nas mesmas pag. 73 e 74 o seguinte:


     «Quando os Mambari (narra Livingstone) divulgaram entre os seus, em
     1850, noticias favoraveis do novo mercado, aberto no Oeste, muitos
     mulatos portuguezes, dados ao commercio da escravatura, foram
     induzidos a ir alli em 1853; e um, que _similhava perfeitamente um
     portuguez_, chegou a Liniante (_Rinhande?_) emquanto eu alli
     estava. Este homem não trazia mercadorias, e affirmava ter vindo
     unicamente com o fim de indagar que sorte de fazendas teriam sahida
     no mercado. Pareceu-me muito transtornado com a minha presença.
     Sekeletu (_Hiquereto?_), deu-lhe de mimo um dente de elephante e um
     boi, e, tendo-se (o portuguez) encaminhado a distancia de perto de
     cincoenta milhas a Oeste, levou comsigo uma _aldeia inteira de
     Bakalahari_ (_Bacalaliari?_) pertencente ao Makololo
     (_Macorrolos?_). Trazia comsigo grande numero de escravos armados;
     e como todos os habitantes da aldeia, homens, mulheres e creanças
     foram levados, e o facto ficou ignorado até muito tempo depois, não
     se sabe se elle realizou o seu intento por meio da força, ou se
     mediante seductoras promessas. Em todo o caso a escravidão foi a
     sua sorte. O portuguez era conduzido n'uma maca, dependurada de
     duas varas, de modo que tendo a configuração de um sacco, os
     Makololo, o nomeavam «o pae-do-sacco.»


Este homem tão infamemente ultrajado, e que foi meu visinho no Bihé,
presentemente morador no concelho do Dombe, no districto da cidade de
Benguella, chama-se Caetano José Ferreira, natural do Barreiro, suburbio
de Lisboa, e tem tanto de mulato, quanto o illustre viajante tem de boa
fé nos seus escriptos.

Sahindo comigo do Bihé a 20 de novembro de 1852, e seu companheiro
Norberto Pedro de Senna Machado, natural de Setubal, a 16 de janeiro de
1853, a comitiva dos ditos senhores tomou a direcção do Sul, para as
vertentes do rio Quando, e a minha, a direcção de Nordeste para aqui.

Caetano José Ferreira, por suggestões das pessoas principaes da
comitiva, foi levado a contrahir juramento com o soba do local onde
permutou seus negocios, dominio do então soba Hiquereto, como
actualmente o é do soba Hipopa.

Este juramento que os indigenas denominam Cacendo, consiste na diabolica
cerimonia dos contrahentes fazerem uma pequena incisão no peito, á qual
depois de applicados os labios, mutuamente chupam o sangue que d'ella
sae, e concluido tal acto, dizem-se inseparaveis para a vida e para a
morte; bem assim com direito reciproco nos seus bens, havidos e por
haver.

N'esta scena repugnante que rapido acabo de bosquejar, verificou-se,
porém, o contrario do que naturalmente era de esperar, visto que um mez
depois da retirada do mesmo senhor para o Bihé, succede morrer o soba, e
os selvagens affirmando ser proveniente do sangue que tinha sorvido do
europeu, em razão de tal ceremonia achar-se unicamente em uso entre os
naturaes, aguardaram ensejo de se apresentar alli em 1854 uma comitiva
minha, para preparar o assassinato de dois Bihanos, como represalia do
acontecimento, notificando ao chefe de dita comitiva, que, se Caetano
José Ferreira se não apresentasse, ou gente sua, a fim de pagar o crime
da morte do soba, os dois assassinatos que tinham commettido, seria o
preludio de vinganças mais estrondosas na occasião em que no local, ou
circumvisinhanças, apparecessem comitivas do Bihé.

Effectivamente, os dois assassinatos foram _pagos_ pelo dito sr. no Bihé
aos parentes das victimas, e, acto continuo, foi constrangido a mandar
enviados seus com fazendas, para satisfazer ao arguido crime da morte do
soba em questão, a fim de evitar maiores complicações e prejuizos de
futuro.

E sendo o caso que acabo de descrever a consequencia de uma imprudencia
irreflectida, qual não seria aquelle que immediatamente se seguiria ao
attentado do sequestro de uma _aldeia inteira de Bakalahari?!!_ Eu vou
dizer ao leitor: O chefe da comitiva, o seu companheiro, inclusive
brancos naturaes do paiz, e brancos para mais de mil, seriam massacrados
ao furor da turba de taes paragens, sempre avida de sangue, attendendo a
que para tal carnificina, seriam sufficientes quarenta e oito horas, se
tanto, de communicação pelo rio Quando, a fim do soba Hiquereto enviar a
ordem, depois de recebida a participação, no que não seria economico,
muito principalmente tendo por mentor o illustre viajante inglez.

Não appliques aos outros aquillo que, não desejas te seja applicado, diz
o rifão. De fado, o illustre viajante não pensou jámais que mui proximo
teria de ser victima d'este proloquiio, pois que recebendo debaixo da
mais boa fé, do dito soba, a gente que o conduziu a Loanda, bem assim o
marfim para alli lhe permutar, parte d'este genero serviu de costeio á
dita viagem, affectuada a qual nos nivela com zero; e tornando de
receber identico beneficio na viagem premeditada e realizada a
Moçambique, tornou ainda a abusar da boa fé do mesmo soba, porque o
actual senhor do Lui espera ainda pelo marfim e gente que acompanhou o
illustre viajante á mencionada terra.

Terminarei este paragrapho com duas palavras sobre a questão das côres.
Os inglezes sabem bellamente o quanto lhes teem custado estes mesquinhos
preconceitos. Os portuguezes estão ao facto da malquerença que entre
elles e seus irmãos do Brazil existe: no entretanto, nem uns nem outros
querem tomar o juizo perante os exemplos, a fim de uma vez por todas
acabarem com elles.

Nas mesmas pag. 74, 75, e 76 o seguinte:


     «Mpepe (Pepe?) favorecia estes commerciantes de escravos, e elles,
     segundo o seu costume, fundavam as esperanças de se tornarem
     preponderantes no bom resultado da rebellião meditada. Conheceram
     que o apparecer eu em scena havia de pezar na balança contra os
     seus interesses. Um grande golpe de Mambari tinham vindo a Liniante
     (_Rinhande_), quando eu andava herborisando nos prados ao sul do
     Chobe (_Rio Quando?_). Chegando-lhes a noticia de eu estar alli
     proximo, mudaram de rosto; e quando alguns Makololo, que nos tinham
     ajudado a atravessar o rio voltaram com os chapéos que eu lhes
     dera, os Mambari fugiram precipitadamente. É do costume que os
     visitantes peçam licença com formalidade antes de se retirarem da
     terra do chefe onde se acham, porém a apparição dos chapéos fez que
     os Mambari enfardassem á pressa. Os Makololo informaram-se da causa
     da precipitada retirada, e lhes disseram que, se eu alli estivesse,
     lhes tomaria os escravos e as fazendas; e posto que Sekeletu lhes
     assegurasse que eu não era salteador, mas sim homem de paz, fugiram
     de noite, achando-me eu a sessenta milhas de distancia. Marcharam
     para o norte, sob a protecção de Mpepe, construíram uma forte
     estacada, d'onde alguns mulatos, commerciantes de escravos,
     capitaneados pelo portuguez nativo, continuaram no seu trafico, sem
     fazerem caso do chefe, em cujo territorio tinham feito incursão com
     a maior semceremonia.»

     «Accresce que, n'outro logar Livingstone, referindo-se a este mesmo
     facto, accrescenta: _Alguns Mambari nos visitaram quando estavamos
     em Naliele_.» São da familia Ambonda (_Quimbunda?_) que habita o
     territorio ao sueste de Angola, e falla o dialecto bunda
     (_Quimbundo?_) commum aos Barosse, (_Brose_, _Bruse?_) Baicie, etc.
     São tão negros como Barosse, mas _vive entre elles grande numero de
     mulatos_, distinctos pela sua côr peculiar de amarello doente. Os
     _mulatos_, _os portuguezes nativos_, todos sabem lêr, e escrever, e
     o cabeça do bando, se _realmente não é portuguez, tem o cabello
     europeu_, e obrigado provavelmente pela carta de recommendação do
     cavalleiro Duprat, arbitro por parte do governo de S. M. F. na
     commissão mixta ingleza e portugueza na cidade do Cabo, mostrou-se
     sinceramente desejoso de apresentar-me todos os bons officios ao
     seu alcançe. Estas pessoas, _estou certo_, foram os primeiros
     individuos de sangue portuguez, que viram o Zambeze no centro do
     paiz, e chegaram lá dois annos depois da nossa descoberta em 1851.»


Ja tive occasião de dizer que, o soba como senhor absoluto do paiz
concentra na sua pessoa todo o poder, todos affirmam, mas ninguem se
aventura de reprovar a minima de suas acções; elle, e o sertanejo, são
as duas pessoas que unicamente se entendem sobre negocios: feliz d'este
se á primeira partida de marfim que recebeu lhe paga a factura, porque
todo o mais que fôr apparecendo de tributo até ao dia da sua retirada,
pertence-lhe, porque o vae recebendo proporcionalmente ao passo que fôr
chegando.

O tributo de escravos á sua chegada, depois de escolher os melhores para
o seu serviço, é distribuido pelo povo da localidade, verificando-se a
mesma particularidade nos mais ramos tributarios, com excepção das
canoas, e redes de pescar; aquellas para o serviço geral, e estas para
distribuir pelos pescadores. De tal regalia gozaram Pepe, em virtude dos
seus poderes illimitados; mais tarde Hiquereto; mais tarde Borollo; e
goza actualmente Hipopa. Esse grande numero de rapazes de 13 a 14 annos
de edade que tanto deram no goto do illustre viajante, tambem disse só
poderia ser transacção dos Bihanos. O sertanejo quando dá as suas
fazendas ás diversas pessoas de que se compôem a comitiva, é para a
permutação de marfim e jámais de escravos.

Agora, rebellião de quem, a favor de quem, e contra quem?...

Eu teria tudo a perder com ella, e nada a ganhar; no entretanto posso
affirmar ao illustre viajante que, effectivamente, tive propostas do
infeliz soba Pepe de cooperar com elle para o extreminio do soba
Hiquereto, a que respondi negativamente, fazendo-lhe vêr que tinha vindo
tratar dos meus negocios, e não ingirir-me em outros que me não diziam
respeito.

Propostas identicas me foram mandadas fazer da parte do soba Machico,
que rejeitei egualmente; ora se eu fosse natural de Zamzibar, e, quiça,
que inglez, tendo como tinha sufficientes meios de que dispor para o
effeito, talvez me inclinasse a acceitar taes offerecimentos que na
realidade eram brilhantes; mas sendo de opinião differente, não quiz
acceitar o que por tres vezes me foi offerecido: uma pessoalmente pelo
infeliz soba Pepe, e duas por parte do soba Machico, como acabei de
dizer. As medalhas teem verso e reverso, e quem assim não pensar
arrisca-se de cahir de muito alto.

E eu dava tanta importancia ao apparecimento do illustre viajante em
scena, ou melhor direi á sua sem razão no assumpto a que se refere, que
por elle sou justificado na minha semceremonia de transitar em todas as
direcções, n'um paiz que não era meu, mas onde, no entretanto, para
usofruir de tal regalia, havia comprado esse direito, contribuindo com o
competente tributo, como é de uso em todas estas paragens.

Quereria talvez o sr. Levingstone o exclusivo d'elle como Mentor do soba
Hiquereto?!

Dependeria eu d'elle em alguma coisa?!

Mas os Bihanos fugiram de que? Pela apparição dos chapéos, ou pela
noticia que tiveram de se achar proximo o illustre viajante, visto que
andava como diz: «herborisando nos prados ao sul do Chobe?»

Responderei que nem por uma nem outra coisa. Retiraram-se mas foi
realmente pelo illustre explorador andar «herborisando»... na boa fé do
soba Hiquereto, que a não ser tal circumstancia, talvez este se
resolvesse a vender o marfim que possuia, e que não vendeu por
insinuação sua, dirigindo-se então elles para Quiceque, e logares
circumvisinhos, bem assim para territorio do dominio da tribu Batebere,
onde permutaram as fazendas pelos dentes de elephantes, e não:
«Marcharam para o norte, onde, sob a protecção de Mpepe, construiram uma
forte estacada.» Esta estava concluida em fevereiro, quando a dispersão
do povo da comitiva teve logar em março de 1853, como passo a
demonstrar. Ella, e a bandeira das quinas que dei ordem de arvorar á sua
chegada, causariam ao illustre viajante sem duvida, a impressão de um
raio, qual a da minha apparição no Lui, como já tive occasião de dizer.

Por esse lado não tem razão, como effectivamente a não tem na maior
parte dos seus escriptos, attendendo a que a prioridade das descobertas
em Africa pertence de facto e de direito aos portuguezes. Agora, que na
terra a força disponha da justiça, o reverendo Dr. David Livingstone,
sabe perfeitamente que acima de nós existe um poder superior a nós,
perante o qual todos teremos de ser julgados.

Relativamente á celebre estacada de Catongo, ou muro de pau a pique, de
que acabei de falar, responderei que querendo eu ficar na margem d'além
do Riambeje, por estar ao facto das desintelligencias do soba Pepe com o
soba Hiquereto, aquelle fez-me vêr que tal passo não era do seu agrado,
em virtude do que, dei ordem para se passar para a margem d'aquem.
N'esta, foi-me destinada a montanha denominada Catongo, para fabricar o
estabelecimento, local verdadeiramente bello pela elevação que occupa, e
pela prespectiva que apresenta da sua sumidade. Dei principio e
conclusão áquelle fabrico em fevereiro do já citado anno, seguindo o
povo da comitiva para os differentes pontos do paiz no mez de março
seguinte, bem assim a comitiva de Moçambique, e isto depois de recebida
a ordem do soba Hiquereto para o indicado effeito, quando ainda o
illustre viajante não tinha chegado da sua tão apregoada segunda viagem.

Desgostoso pelos acontecimentos, fiz formal tenção de não voltar ao Lui;
despachei os meus empregados no anno seguinte de 1854, porém regressando
elles ao Bihé junto a emissarios do soba Hiquereto, e de sua ordem,
tanto insistiram commigo que resolvi seguir viagem em 1858. Chegando no
paiz fiquei na margem d'aquem do Riambeje, no estabelecimento de Luiz
Albino Rodrigues, e local dos primeiros, onde continuou fluctuando a
bandeira das quinas, além da que nos era inseparavel, quotidianamente,
na frente da comitiva, sendo então logar-tenente de Hiquereto, seu tio
Borollo, com quem communiquei no que dizia respeito aos meus negocios,
attendendo a que aquelle era apenas um automato da vontade d'este, e o
Lui, _Broze_, e _Bruse_ dos indigenas, era simplesmente a sombra de sua
passada grandeza. O movimento, e a vida do paiz, estava litteralmente
falando, em Rinhande.

Depois de ter despachado a comitiva para os seus differentes pontos, e
de ter chegado a esta capital, n'um dia, em occasião de conversar com
Hiquereto, disse-me elle que: o illustre viajante lhe havia dito não
approvar no paiz a presença de Macuas de Oeste, pois que pretendiam
apossar-se d'elle, havendo as provas do que avançava, na estacada por
mim feita em Calongo!!

Respondi ser falsa semelhante asserção, tendo elle provas mais
convincentes do contrario na minha recusa de voltar ao paiz, e quem
pretendesse assenhorear-se de qualquer dominio, não dava, por certo
semelhante passo, nem, ainda, se apresentaria com a força com que eu me
apresentava; poderia pois socegar por este lado, porque não seria da
minha pessoa que lhe resultaria o menor damno.

Podendo inferir-se de um tão insolito procedimento, a razão de ser que
existe na confrontação de portuguezes e inglezes, descripta a ps. quinze
da introducção, 68 e 231 do _Exame_, accrescentarei, que não levei
jámais a audacia a ponto de malquistar meus irmãos perante os selvagens,
considerando como meus irmãos todos aquelles que andam peregrinando por
estas paragens seja qual fôr a sua procedencia e naturalidade.

Em presença do que acabo de dizer, perguntará o leitor para que dirigia
a carta de offerecimento dos meus serviços ao illustre viajante;
responderei que então não quiz dar credito ao que Hiquereto me disse,
attribuindo a revelação a intriga dos familiares; hoje, porém,
verifica-se o contrario em presença dos factos que se apresentam.

É menos exacto egualmente o que o illustre viajante diz sobre dialectos,
isto é, ser commum a lingua Quimbunda ao povo Lui e Baieie; Como a ps.
191 do _Exame_ se trata mais detidamente do assumpto, responderei que, é
commum a lingua Quimbunda a grande parte do territorio Africano, podendo
fazer-se egual parallelo entre ella, e o dialecto Bunda (de Angola e
suas dependencias) áquelle que se dá entre a Portugueza e a Castelhana:
mas já não assim em relação aos dialectos Cafrial, Ganguella, Humbe,
Macorrollo, e Mullua; não menciono a tribu numerosa dos _Cassaqueres_,
especie de ciganos, de côr pardo claro, e errante pelo interior do
continente, em virtude do seu estado vagabundo. Aquelles tribus
espalhando-se com o correr do tempo pelo extenso e vasto solo que lhes
deu o berço, vieram mais tarde a mesclar-se umas com as outras, formando
nações diversas, e taes como existem presentemente. Os sabios de futuro
terão de resolver o problema.

Reservando para aqui as palavras que de proposito sublinhei de: «_Alguns
Mambari nos visitaram quando estavamos em Naliele_.» direi que não têem
qualificação possivel, visto que o illustre viajante foi visitado por
mim, e não pelos Bihanos, faltando por consequencia ao que deve a si
como cavalheiro, nivelando um outro com os selvagens.

A paginas 77 e 78 o seguinte; ouçamos o que diz ao ponto o Dr.
Livingstone, e ficaremos desenganados:


     Mr. Oswell e eu nos dirigimos para Sesheh (_Quiceque?_) a cento e
     trinta milhas ao Nordeste, e, no fim de junho de 1851, fomos
     recompensados das nossas fadigas com o descobrimento do Zambeze no
     interior do continente. Isto era de grande momento, porque d'antes
     não se sabia que existisse alli aquelle rio. Os mappas portuguezes
     todos o representam como tendo origem muito mais a Éste do lado
     onde nos achavamos, e se em algum tempo tivesse existido coisa que
     semelhasse uma serie de postos commerciaes atravez do paiz, entre
     as latitudes 12.^o e 18.^o Sul, esta magnifica porção d'aquelle rio
     devia ter sido conhecida. Nós o vimos no fim da estação estiva,
     tempo em que o rio está mais diminuido, e comtudo levava então
     corrente de agua profunda na largura de tresentas a seis centas
     jardas. Mr. Oswell declarou que nunca vira rio tão formoso (_que
     não tem em tal logar formosura, visto ser despido de arvoredo_),
     nem mesmo na sua India. No tempo da sua inundação annual eleva-se
     perpendicularmente vinte pés e alaga quinze ou vinte milhas de
     terras adjacentes ás suas margens.»


Não obstante repizar n'um objecto que não admitte controversia, como
seja o Riambeje visitado em antiga data pelos meus concidadãos;
anteriormente a 1845 pela minha gente em territorio do dominio da Lunda,
e d'esta data por deante no Lui, lembrarei a feira de Cassange
estabelecida de antiga data, e da qual ainda me não occupei. Os
portuguezes ahi estabelecidos enviavam e enviam suas fazendas pelo
interior, tomando diversas direcções, e em algumas, segundo os pontos a
que se dirigem, passam e tornam a repassar o Riambeje. Em identicas
circumstancias temos os portuguezes residentes nas Pedras de
Pungoandongo, as suas fazendas seguem da mesma fórma para todos os
pontos do interior, em alguns passam e tornam a repassar o
Riambeje,--_Riambei_ e _Riambeje_, nomes empregados commummente pelos
indigenas por estas paragens, para designar o grande rio, e cujas terras
banha com as suas aguas, o qual, como já tive occasião de falar, é o
manancial de mais longo curso conhecido aqui em Africa.

No dia 20 de janeiro de 1848 na viagem dos meus empregados, eis o que
digo em relação a este rio:

--«Passámos o Riambeje para a margem opposta, ao qual se torna
impossivel marcar as braças que poderá ter, em consequencia de ser um
grande descampado todo cheio de agua na presente estação; o rio dirige o
seu curso pelo centro, as canoas largando da margem direita para a
esquerda, gastam seis horas de bom remar na ida e volta. O Riambeje tem
a nascente na terra do dominio da Lunda denominada _Musso-candanda_, e
vae desaguar no mar para o Oriente.»

Na actual viagem encontrei no estabelecimento Bonifacio José Basquete e
o seu empregado João Francisco da Silva; aquelle senhor na sua viagem do
Bihé para Cazembe-mucullo, passou, a um dia de distancia d'aquella
terra, o Riambeje, com agua pela curva da perna; accrescentando o dito
seu empregado, que, a gente da povoação Namoanna Hicungo, do já citado
dominio de Musso-candanda, está situada na cabeceira do rio em questão,
d'onde tiram agua para seu uso diario. A povoação de um dominio qualquer
pode existir hoje, e amanhã desapparecer em virtude da sua fórma de
governo, mas já não a terra de Musso-candanda, ou mesmo outra qualquer
em dominio poderoso; mudam apenas os sobas. Concedendo porém que assim
não seja como acabo de transcrever, é fóra de toda a duvida que qualquer
rio caudaloso aqui em Africa, vadiavel que seja com a agua pela curva da
perna, d'ahi á sua cabeceira não podem distar mais de quatro dias de
jornada, a experiencia assim m'o tem ensinado. Fica pois demonstrado que
não tem razão de ser a pretensão do illustre viajante á descoberta do
Riambeje no interior do continente, em 21 de junho de 1851, querendo
ainda corroboral-a com a presença de mr. Oswell, attendendo a que muito
anterior á sua apresentação no dito local, isto é, de fins do seculo
passado até ao presente, os portuguezes o teem passado e repassado em
todos os pontos banhados pelas suas aguas.

A paginas 79 e 80 o seguinte:


     «Fallando do reino de Matiamvo, e do desejo que tivera de visitar
     este potentado, diz o dr. Livingstone: Que lhe asseguram, assim os
     commerciantes indigenas, como os naturaes de Balonda (_Calundas?_)
     que um braço consideravel do Zambeze, corre no territorio a leste
     da capital, e caminha ao sul. «Todo este braço (accrescenta o dr.
     Livingstone) incluindo o ponto, d'onde toma a oeste, para Masiko
     (_Machico?_) está assignalado no mappa (d'elle Livingstone)
     provavelmente em demasia ao nascente. Foi assim marcado quando eu
     pensava que o Matiamvo e Cazembe ficavam mais a leste do que tive
     ao depois motivo para julgar. Sendo todas estas indicações
     derivadas do testemunho dos indigenas, eu as dou com desconfiança,
     e como carecendo de ser verificadas por novos exploradores.


Machico acossado por Pepe, e mais tarde seu tio Rimbúa, que habitava as
lagoas do rio Nhengo, onde se tinha exilado, depois de Hebitane se
assenhorear do paiz, foram fixar domicilio no mesmo local a oito horas
de marcha, de distancia um do outro, onde vinham permutar seus negocios
as comitivas procedentes das Pedras de Pungo-Andongo, de Cassange e do
Bihé; mas depois de ser assassinado por seu tio Hipopa, este
assenhoreou-se do dominio, que desfructou até o momento de ser acclamado
senhor do Lui, e por esse motivo aquelle ponto presentemente é dominio
seu feudatario, dando logar a que não seja tão concorrido.

É d'esse mesmo local que eu disse por occasião da passagem do illustre
viajante para Loanda, achar-se apenas a dez dias de distancia da
nascente do Riambeje, segundo as indicações de Hipopa, que por vezes foi
á caça dos elephantes para essas partes. Com effeito, no espaço que
medeia entre Machico e Catende para o sul e sudoeste, que são
necessarios dez dias para percorrer, deve effectivamente encontrar-se a
nascente do grande rio.

De Catende para Catema, temos cinco dias, d'esta terra para Chaquilembe
outros cinco dias; estas tres terras são tributarias do Matiamvo, e
n'ellas limita o seu dominio com a tribu do Lui, do Luvar e do Quiboco,
sendo em Chaquilembe que as comitivas procedentes das terras que acabei
de designar, se refazem de mantimento para continuar a sua viagem mais
para o centro, e quem, seguindo por ellas, tomar a direcção do nordoeste
e leste, não passa o Riambeje porque o deixa ao sul e sudoeste, como
acabei de dizer.

Agora, as comitivas da mesma procedencia tomando esta ultima direcção,
teem necessariamente de passar pelas terras de Musso-candanda e
Canunguessa, egualmente do dominio Matiamvo, e passar o Riambeje na sua
nascente, a vau ou em ponte, segundo as localidades a que se dirigir.

Se, pois, o illustre viajante, pondo de parte preconceitos mesquinhos e
futeis puerilidades, tratando com mais afinco dos objectos em immediata
relação com a sciencia, partisse de Machico com destino a estas ultimas
terras, e n'ellas tratasse de investigar o que tanto prendia com o seu
dever, teria sem duvida achado a chave do enigma, como seja a nascente
do Riambeje, deixando por consequencia de luctar n'aquella duvida do ser
e não ser, como infelizmente se veiu a realizar para a sua pessoa.

A mesma pagina 80 o seguinte:


     «Expondo a extranheza que lhe causou o phenomeno de um rio correndo
     em duas direcções oppostas, nota o dr. Livingstone que não
     advertira, quando tinha atravessado o Lotembua, qual direcção toma
     a corrente d'este rio; mas que, tendo feito reparo, ao achar-se da
     outra banda do lago Dilolo, de que seguia para o sul, presumiu que
     nascia no grande paúl, que observara indo para o nordeste, e
     continuava correndo para o meio dia; porém que chegando á margem
     meridional, ali o informaram de que a parte do rio, que tinha
     acabado de atravessar, caminha ao norte, e não desagua no lago
     Dilolo, mas sim no rio Kasai. Posto que eu não observei a corrente
     (adverte Livingstone) de nenhuma sorte duvido de que seja exacta a
     asserção, que aliás me foi confirmada, nem de que, por conseguinte,
     o lago Dilolo sirva de reservatorio commum dos rios que vão
     correndo uns para o nascente, outros para o poente.»


A este respeito só a sciencia geographica pode apresentar um trabalho
completo, o que não está em relação com os meus conhecimentos; no
entretanto, apresentarei aquillo de que posso dispor, dizendo que os
rios de uma mesma origem, e com direcções oppostas, abundam aqui em
Africa:--aquelles de que tenho conhecimento segundo as informações
obtidas, são os que seguem descriptos nas minhas differentes viagens:

_Rio Loengue_, na terra de Miqueselumbue. _Rio Lunguébungue_, no
territorio Ganguella, das tribus Luchiaje e Bunda. _Rio Quando_, no
territorio Ganguella, das tribus Zambueira e Bunda. _Rios Cuito da
Zambueira, Cuime_ e _Cuiba_, no territorio Ganguella, entre as tribus
Luchiaje, Zambueira, e Quiboco. _Rios Caquema_, _Cuito_ e _Cunhinga_, no
territorio Quimbundo, do dominio do Bihé, descampado denominado Inhana
Umbolobulo. _Rios Cubango_ e _Cutato dos Mangoias_, no territorio
Quimbundo proximo ás terras de Candumbo e Sambo, descampado denominado
Acaca e Acatumbo. _Rios Quebe_ (_Cubo_ na sua foz ao sul de Loanda) e
_Cunene_, no territorio Quimbundo, na terra do Ambo, montanha denominada
_Ecunjo_, e assento da libata grande da dita terra, podendo dizer-se
que, é ella e suas circumvisinhanças, a paragem onde têem origem todos
os rios que deitam suas aguas no Atlantico, comprehendendo todo o
litoral ao sul de Loanda até Benguella. Não falo do Cunene, visto que
segue curso mais longiquo pelo interior, até á sua foz ao Sul de Cabo
Negro. Tambem é voz tradiccional que n'ella existem minas de oiro,
explorado em principio do seculo actual pelo sertanejo de Benguella João
Pedro Costa.

A paginas 91 depois de fazer vêr o illustre auctor do _Exame_ que, o
conhecimento da navegação e do curso do Zambeze pelos portuguezes, já é
de antiga data, conclue como segue:


     «Eis aqui as palavras do homem tão competente, como insuspeito a
     que me referi, fallo de mr. V. A. Malte-Brum, que dando noticia do
     mappa de Zambezia e Sofalla do sr. visconde (hoje marquez) de Sá da
     Bandeira, que vae publicado no fim d'este volume (do exame) assim
     se explica. «A carta que temos á vista comprehende a parte da
     Africa Austral, que se estende do 10.^o ao 24.^o grao de latitude
     meridional, e do 25.^o ao 41.^o gráo de longitude oriental do
     meridiano de Greenwich.

     O mappa representa o curso do Zambeze desde Seshek, capital dos
     Makololos, até á foz do rio, e tem por objecto fazer conhecido,
     qual é sobre as suas duas margens, e no interior do continente
     africano austral, os estados dos conhecimentos e dos dominios
     portuguezes.

     Não ha duvida em que, por esta costa oriental da Africa, os
     portuguezes hajam ha muito penetrado muito mais ávante do que
     nenhuma nação europea; mas tambem nada mais certo do que, quer
     fosse por motivos politicos, quer fosse por indifferença
     relativamente aos interesses scientificos, haver-se guardado
     silencio ácerca de descobertas que só o engodo commercial tinha
     provocado. Hoje os portuguezes parece que soffrem o castigo d'este
     silencio premeditado; silencio que deu naturalmente occasião ao
     esquecimento; e comtudo elles reclamam a prioridade das descobertas
     feitas pelo reverendo David Livingstone sobre as margens do Chire e
     do Nhanja... O mappa permitte que se faça idéa exacta da extensão
     que tinha adquerido o dominio portuguez sobre a costa de Sofalla, e
     sobre as margens do Zambeze, e contem indicações uteis, que debalde
     se procurariam n'outra parte.»


A prioridade das descobertas pelos portuguezes, está demonstrando até á
saciedade que lhes pertence de facto e de direito, faltando unicamente
para que fossem o que deviam ser, e era de esperar, que, o governo ou
mesmo sociedades scientificas, enviassem homens praticos nos
conhecimentos dos differentes ramos da sciencia humana, a fim de
explorar, investigar, e descrever tudo o que teem immediata relação com
essas descobertas, e quando tivessem a desgraça de serem seifados pela
morte, como succedeu ao dr. Francisco José de Lacerda e Almeida, era do
dever não desanimar, proseguindo sempre na obra encetada até o seu
complemento. As honras, as grandezas, e os premios, foram instituidos
para renumerar taes feitos, visto que como diz Mr. Matte-Brun, o engodo
commercial obriga a grandes reservas, e distrae os espiritos para a
sordida avidez dos interesses.

Mas que é o que pode prosperar sobre a terra sem esse agente que se
chama commercio?! Aquelles, que vivem exclusivamente d'elle, não são
competentes para metter hombros a taes emprezas, e os exemplos temol-os
de casa.

Se a minha obra fosse o que deveria ser, ha muito que estaria publicada,
e talvez que em diversas linguas, obrigando o illustre viajante, a se
tornar mais commodido nos seus escriptos; não o tem sido pela falta de
valor litterario, nunca é tarde porém para se emendar e corrigir erros.

As pag. 96 e 97 o seguinte. No cap. 12 escreve o dr. Livingstone:


     «Procurando certificar-me se por ventura Santura (_Sanduro?_) tinha
     sido visitado em algum tempo por homens brancos, não pude achar
     vestigios de tal visita: não existe prova de que alguem da tribu de
     Santura tivesse visto um homem branco antes da minha chegada e de
     Mr. Oswell em 1851. Aquelles povos não tem, é certo, recordações
     escriptas; porém os acontecimentos notaveis são commemorados por
     nomes, como Parke observou ser costume nas terras por onde viajara.
     O anno da minha chegada foi honrado com o nome do anno em que
     chegou o homem branco. Depois da primeira visita de minha mulher
     muitas creanças tiveram o nome de _Ma-Roberto_ (applicado á mãe e
     não ao filho, synonimo das primeiras lettras; depois do traço é o
     nome do filho. A tribu Quimbunda serve-se das lettras Ma, para
     designar Mãe) ou mãe de Roberto, nome do seu filho mais velho,
     outros tiveram o nome de Espingarda, Wagon, Monare, Jesus, etc,
     porém posto que os nossos nomes e os dos nativos portuguezes, que
     vieram em 1853, foram adoptados, não ha vestigio de que tivesse
     logar cousa semelhante mais cedo entre os Barotse: a visita do
     homem branco é acontecimento tão notavel, que, se tivesse occorrido
     durante os ultimos cem annos, devia ter d'ella ficado tradição.»

     «É muito para notar esta insistencia do dr. Livingstone em que não
     eram os portuguezes conhecidos dos Barotse. Esta demasiada
     insistencia faz desde logo nascer suspeitas no animo do leitor
     desprevenido, e mórmente se porventura está familiarisado com a
     maneira de escrever do celebre missionario: n'elle a insistencia
     longe de significar segurança, quasi sempre indica hesitação, e não
     acontecerá agora o mesmo? Examinemos.»

     «Em uma nota ao logar citado diz o dr. Livingstone: «Os Barotse dão
     a si o nome de Buloiana, ou pequenos Baloi, como procedendo do Loi
     ou Lui, segundo a commum pronunciação. Lui tem sido visitado pelos
     portuguezes, porém como a posição de Lui não está bem fixada,
     voltaram-se as minhas indagações para verificar se porventura era a
     mesma que a de Naliele. Perguntando ao cabo dos Mambari, chamado
     Porto, se tinha ouvido dizer que Naliele tivesse anteriormente sido
     visitada, respondeu negativamente, e declarou «que por tres vezes
     tentara elle ir alli do Bihé, porém que sempre lhe tolhêra o
     intento a tribu dos Ganguellas.» Elle quasi o conseguiu em 1852,
     porém foi repellido. Agora (1853) tentou ir ao nascente de Naliele,
     mas retrocedeu para Barotse, não podendo ir além de Kamko, povoação
     situada junto ao rio Bashukulompo, a oito dias de distancia. A
     gente de Porto desejava com ardor obter a recompensa promettida
     pelo governo portuguez. O não ter sido elle bem succedido,
     confirmou-me na intenção de ir para Oeste. Porto benevolamente se
     offereceu a acompanhar-me, querendo eu ir com elle ao Bihé, porém,
     não acceitando eu, precedeu-me a Loanda, e, estava publicando o
     _Diario_ da sua viagem, quando cheguei áquella cidade. Ben-Habibe
     contou-me que Porto tinha remettido cartas para Moçambique pelo
     arabe Ben-Chombo, que eu conheci; e depois assegurou, em Portugal,
     que elle mesmo fôra a Moçambique com as suas cartas.»


O illustre viajante sendo menos exacto na exposição dos factos, taes,
como se deram, permitta-me de os narrar como se passaram.

No dia 1.^o de fevereiro de 1853, cheguei na terra do Lui, margem
direita do Riambeje, isto é, ao estabelecimento feito pelos meus
empregados em 1850, sendo n'este mesmo mez que passei para a margem
esquerda, e dei principio e fim ao novo estabelecimento, e ficando por
consequencia depois da sua conclusão, esperando, que chegasse a licença
do soba Hiquereto, para a comitiva tomar os seus differentes destinos.

Com effeito, ella não se fez muito demorada, porque a 12 de março
chegaram os emissarios do soba Pepe que tinha partido para Rinhande á
nossa chegada no paiz, juntos a outros do soba Hiquereto, que
acompanhavam doze dentes grandes de elephante para permutar por polvora,
com ordem para a comitiva transitar por onde bem lhe conviesse: o que
logo se levou a effeito, visto que tudo se achava prestes para o dito
fim; bem assim a partida da comitiva de Moçambique, realizada a 25 do já
citado mez e anno, como egualmente tive occasião de falar.

Projectando Pepe, em fins de maio, prestar homenagem ao seu Suzerano, e
em attenção, á qualidade de seu hospede com que era tratado, convidou-me
para a jornada, que, gostosamente acceitei, em virtude da recente
noticia da chegada de um homem branco com carros a Rinhande. Este homem
era o illustre viajante.

Partimos a 20 de junho, eu por terra, o soba Pepe pelo Riambeje, em
companhia de quem enviei Jorge José Motta meu empregado, com dois fardos
de fazendas, (esta fazenda voltou intacta para o estabelecimento) para
permutar por marfim, segundo a indicação d'aquelle.

A 3 de julho cheguei a Quiceque, onde, os primeiros emboras da minha
recepção foram a noticia do assassinato do soba Pepe, traiçoeiramente,
ás mãos de seu primo Hiquereto, e victima por consequencia da sua
bonhomia e boa fé.

Confesso que bastante impressionado fiquei com tal acontecimento,
fazendo-me luctar na alternativa de retroceder, ou de proseguir ávante,
mas vencendo esta fraqueza, optei em proseguir a minha jornada, chegando
a Rinhande a 12 do já citado mez, onde fui minuciosamente informado,
pelo dito meu empregado, do homicidio em questão, o qual o illustre
viajante em virtude dos seus usos, teria o cynismo de attribuir a
connivencia nossa e os mais que após se seguiram na desditosa familia da
victima, quando o pequeno leão senhor do Lui fosse assistido de qualquer
portuguez, como era assistido da sua pessoa.

Pela minha parte não lhe quero arrogar semelhante injuria.

No dia 13 estava prestes a seguir para a libata grande ou povoação do
soba, comprimentar este, reservando para depois a mesma cerimonia para
com o branco, que os indigenas appellidavam geralmente de _Monare_
(synonymo de negociante ou sertanejo, como o illustre viajante me
disse), quando, inesperadamente se apresenta o primeiro seguido de um
numeroso sequito, como é de costume entre os Macorrollos, e após elle, o
illustre viajante, pelas nove horas da manhã.

Depois de trocados os comprimentos do estylo, puzemo-nos a conversar;
segundo as minhas indicações falava o interprete Joaquim Marianno,
conhecido dos indigenas pelo appellido de _Hindere_ (synonymo de branco
na lingua quimbunda), com Hiquereto, já seu conhecido da viagem de 1850,
pastoreando elle ao tempo o gado no Lui, como já tive occasião de falar,
e eu, com o illustre viajante que, dirigindo-me a palavra sobre se eu
falava inglez, francez, latim, etc., respondi negativamente, não
dissimulando o meu constrangimento em presença de taes interrogações.

Apresentei-lhe papel e lapis a fim de inscrever o seu nome, o que fez,
fazendo eu outro tanto por baixo, bem assim, passei a inscrever o de
Caetano José Ferreira, segundo a indicação do illustre viajante,
trabalho a que se não quiz dar na occasião da visita do mesmo senhor no
local, pelo julgar, quiçá, de superfluo; retirando-se o soba e o seu
sequito, bem assim o illustre viajante, eram onze horas.

No dia 14 recebi dois dentes grandes de elephante e um boi, presente do
soba Hiquereto, que retribui na occasião, e mais tarde, na minha
retirada para o Bihé, e n'este dia, pelas dez horas, fui retribuir as
visitas recebidas na vespera, a primeira ao soba por ter a certeza de
que não seria tão demorado, e a segunda ao illustre viajante, onde me
demorei bastante tempo e tive a honra de jantar.

Antes porém de proseguir ávante, permitta-me o illustre viajante, que
passe a transcrever os trechos que seguem, e que vem aqui muito a
proposito; o primeiro tem relação com o assassinato do infeliz soba
Pepe, prova de que nada diz a seu respeito, e é este:

«_10 de julho de 1853._ Continuámos a viagem, e fomos fazer quilombo nas
povoações de Rinhande. Caminho plano, mattos de espinheiro, e palmeiras,
abundante de sal, terreno fertil, leguas andadas 6, rumo de oeste. Este
local serviu de theatro ao mais atroz attentado, no assassinato do
infeliz soba Pepe, perpetrado por seu primo o soba Hiquereto. O homicida
não tendo a menor consideração para com aquelle que espontaneamente lhe
havia entregue o poder, tão cobarde se mostrou, que o commetteu á
traição, e revestido do seguinte facto: Em maio do corrente anno, partiu
Borollo da capital do Lui, dizendo ao seu superior que seguia para
Rinhande a visitar Hiquereto; na realidade assim se verificou, porém, o
objecto da sua visita teve por fim a ambição do poder em mira,
servindo-se das armas da calumnia, para levar a cabo seus malevolos
intentos contra quem o havia salvo da morte, livrando-o da azagaia de
seu irmão o defuncto soba Hebitane; diz o rifão que «quem seu inimigo
poupa nas mãos lhe vem a morrer». Tendo a calumnia na mente do inexperto
soba sortido o desejado effeito, com a sua inexperiencia de moço e
selvagem, não quiz recorrer a provas para a salvadora justificação da
victima, mas sim, servindo de juiz e algoz a um tempo, saciou a sede de
sangue n'aquelle que lhe apontavam de rival. Foi, pois, n'este local,
que sahindo ao encontro da sua victima, e a titulo de obsequio, a
deshoras, commetteu o homicidio, degolando o infeliz. Egual sorte espera
no futuro o calumniador, muito principalmente n'este paiz, em que a
vontade do chefe é a lei suprema.»

Os dois paragraphos que seguem é para que o leitor possa avaliar o
cavalheirismo do illustre viajante, na linguagem empregada nos seus
escriptos em relação á minha pessoa.

«_13 de julho._ Fui visitado pelo soba Hiquereto, que esteve a conversar
perto de duas horas no quilombo, ao cabo de cujo espaço, e seguido do
seu sequito, se retirou á sua povoação. Ao mesmo tempo tive a honra da
receber a visita do dr. David Livingstone, missionario inglez, enviado
pela Sociedade da propaganda da fé em Londres, a fim de explorar o
interior de Africa.»

«_14 de julho_. Fui visitar o dr. Livingstone, e vendo até que ponto
pode chegar a industria dos inglezes, completamente admirei o seu
arrojo. A comitiva do dr. é composta de oito pessoas, e em geral, bem
como elle, falam perfeitamente a lingua dos macorrollos; dois grandes
carros de quatro rodas cada um, e puxados cada qual por seis juntas de
bois, transportam uma immensa bagagem, que, a ser conduzida por pretos,
indispensavel seriam sessenta carregadores. Sahindo, pois, do Cabo da
Boa Esperança, até á capital do povo Macorrollo, gastou seis mezes de
viagem, passando unicamente dois rios caudalosos, Orange, proximo do
Cabo, e Quando, proximo de Rinhande; havendo ao mesmo tempo paragens,
nas quaes não encontrava agua em cinco dias consecutivos. É, pois, esta
a segunda viagem do dr. David Livingstone a Rinhande, e a querer
emprehender viagem para o Occidente com taes carros, inteiramente se
tornava impossivel, em virtude dos mattos fechados a percorrer, serras a
transpor, grandes paues, e finalmente abundancia de rios caudalosos.
Teve a bondade de me fazer ver todos os seus mappas, uns completos e
outros incompletos, e ao mesmo tempo, que desejava seguir em minha
companhia até á capital de Angola, ao que annuindo, lhe fiz ver que com
muito gosto acceitava a sua companhia; depois de nos havermos despedido,
retirei-me ao quilombo».

Tornando ao assumpto de que me tinha desviado. Depois dos comprimentos
indispensaveis, o illustre viajante apresentou-me os seus mappas, uns
completos e outros incompletos, e um mappa antigo portuguez, de pequeno
formato, contra cujo auctor se mostrou o illustre viajante agastado, por
não haver marcado precisamente como era do seu dever, a posição e
largura do rio Loanja, apresentando-o muito fóra do seu natural.

Objectei que os rios na estação invernosa, são uma cousa, e na estação
secca, outra, talvez que essa mesma circumstancia se desse em relação ao
rio Loanja, sendo visitado na primeira d'essas estações pelo auctor do
dito mappa, o que o fizera cahir em erro, mas que tendo eu transitado
pela sua margem direita, tres dias consecutivos, e trazendo a direcção
do sul para Quiceque, lhe assignalara tres braças de largo, sem comtudo
o haver passado, e com a particularidade de ser na estação secca; não
insistindo mais sobre este ponto, aqui terminou o incidente, do qual me
tornarei a occupar. Disse mais se tinha conhecido o soba Hebitane. A uma
proposição tão insolita, respondi indicando o interprete Joaquim
Mariano; a isto nada retorquiu.

Perguntou mais quantos dias eram do Bihé ao logar em que nos achava-mos;
respondi que só apresentando o Diario da minha viagem poderia dizer
alguma cousa com precisão.

Fomos jantar, e depois d'este, apresentou-me o illustre viajante um
mappa em branco, que desenrolou; deu-me um lapis, a fim de marcar a
posição do Bihé, e pontos principaes por onde tinha transitado. Mais um
vexame para mim, por me fazer passar por ignorante aos olhos do illustre
viajante, visto que tive mais de uma vez de lhe responder negativamente,
dizendo não ter os conhecimentos necessarios para tal. Enrolou o mappa,
que guardou, bem assim a bussola, e depois apresentou-me a carta do
cavalheiro Duprat, especie de circular ás auctoridades e subditos de S.
M. F., recommendando o illustre viajante, a qual, depois de ter acabado
de ler, dobrei e entreguei; e como fossem já cinco horas da tarde
despedi-me e retirei ao quilombo.

No dia 15 de julho, fui percorrer a povoação de Rinhande, e tendo sido
prevenido de que Hiquereto partia no dia seguinte para o Lui, pelo
Riambeje, em companhia do illustre viajante (foi n'esta occasião que
elle visitou a catarata Cungo (_Chungo_) ou Mosioatunia, e que tiveram
logar os assassinatos de que acabei de falar, na desditosa familia do
infeliz soba Pepe) dispuz a minha partida para o mesmo dia, mas por
terra, e pelo mesmo caminho da vinda, em consequencia de ter ficado a
minha cavalgadura no caminho, a quatro dias de distancia de Quiceque,
por motivo da mosca _Zeze_ em que abunda as margens do Loanja, do que já
tive occasião de falar.

A 16 de julho parti de Rinhande, e depois de vinte dias gastos no
caminho, em marchas e demoras, cheguei ao estabelecimento a 4 de agosto.
Acto continuo á minha chegada mandei chamar a gente que tinha partido
para Moçambique a 25 de março, a fim do seu chefe dar conta dos motivos
que originaram o aborto da viagem, cujos se acham descriptos no logar
competente. Após esta audiencia tambem mandei chamar as pessoas
principaes da comitiva, a quem expuz os pormenores relativos á viagem
que acabava de fazer, bem assim a tenção immediata de continuar jornada
para o nordeste, a fim de me encontrar com os pombeiros de
Miqueselumbue, unicos que faltavam no estabelecimento. Isto era um dever
a que me não podia eximir, segundo a pratica estabelecida, e concluido
elle, dei por terminada esta segunda audiencia, e ordem para os
preparativos de partida.

No dia 5 de agosto apresentei-me na libata grande, onde pernoitei, a fim
de comprimentar Hiquereto, bem assim o illustre viajante; retirando-me
no dia 6, visto haver cumprido esse dever de civilidade. N'esta povoação
denominada Nariere, entre outras coisas de que falámos, veiu a do
illustre viajante fazer menção dos recentes assassinatos, consequencia
do trama preparado por Borollo; respondi que egual sorte aguardava este
no futuro. Disse mais que desejava viver retirado, e, se, com este
intuito não haveria para o occidente uma terra para n'ella residir;
respondi negativamente, visto que o illustre viajante havia delineado um
segundo paraiso. E, interrogado mais sobre se em Loanda haviam
hospedarias, e inglezes, respondi affirmativamente, accrescentando elle
que, pretendia dirigir-se a Ribonda fazer algumas observações, e que no
seu regresso aproveitaria o ensejo para me visitar; a que retorqui
achar-me ás suas ordens.

No dia 7 alevantei com direcção ao nordeste a encontrar-me com os
pombeiros de Miqueselumbue nas margens do Loengue, unicos que faltavam
no estabelecimento de entre o grande numero que tinha despachado para
diversas paragens, como acabei de dizer, e prompto para despachar pela
segunda vez a comitiva para Moçambique, isto depois de ter recommendado
o bom agasalhado do illustre viajante, como á minha propria pessoa.

Nos mattos, a dois dias de distancia, da terra de Miqueselumbue, isto é,
depois de dezaseis dias de marcha, e no dia 22 de agosto,
encontramo-nos, passando acto continuo a tomar contas aos diversos
negociadores sobre a permutação que haviam feito. No entretanto, a minha
missão não estava terminada; tinha vindo ao encontro d'esta gente, é
certo; mas no seu numero faltava a arabe Ben-Habibe, a quem eu queria
confiar a minha gente para a viagem de Moçambique, pelo julgar mais
habil que seu tio Ben-Chombo, que já se tinha recolhido ao
estabelecimento, e ambos haviam recebido fazendas minhas. Mas havendo
ficado ainda á retaguarda, e não me sendo possivel ter mais demora, no
dia seguinte 23 de agosto retrocedendo para o Lui, cheguei ao
estabelecimento a 6 de setembro, tendo a noticia de que o soba
Hiquereto, bem assim o illustre viajante, tinham partido para Rinhande
cinco dias antes da minha chegada. Acto continuo mandei chamar
Ben-Chombo ao qual propuz a commissão de Moçambique em companhia da
minha gente, mediante o perdão da quantia em que tinha ficado alcançado,
e a gratificação de cem pezos, no caso de bom exito, acceitando
promptamente e ficando por consequencia á minha disposição; (ainda não
satisfiz esta divida em virtude de se não ter apresentado o arabe depois
que desempenhou a commissão) tratando-se unicamente n'este meio tempo
dos preparativos das duas viagens: a de Moçambique realisada a 22, e a
minha para o Bihé levada a effeito a 30 d'esse mesmo mez.

Posto isto, direi que, em referencia á terra não ser visitada por branco
algum, antes, e mesmo no tempo de Sanduro, se o illustre viajante se
désse ao incommodo de visitar o local onde jaz sepultado este mesmo
soba, (todos os sobas depois de acclamados têem por habito construir a
sua respectiva povoação, ahi residem, e ahi são enterrados, e sempre no
valle de Lui) alli encontraria vestigios do contrario n'umas campainhas
que foram do dito Sanduro: eis o que digo relativamente:

«_15 de setembro de 1867._ Hoje fui ao local de romagem dos sobas
primitivos d'este povo, e, tambem dos senhores intrusos durante o seu
dominio no paiz, que nada teem a admirar, exceptuando as Eçandeiras e
Palmeiras que contam para mais de seculo de existencia, seguindo a
posição das mesmas a fórma oval, como são todas as povoações dos
selvagens; hoje, apenas apresenta a fórma semi-circular, visto que o
tempo destruindo algumas da parte de sueste, damnificou de alguma
maneira o todo pittoresco do local, em consequencia da situação que
occupa no meio d'este descampado immenso, e despovoado de arvoredo, que,
tem uma elevação de dez pés acima do nivel terreo, onde nunca chegou a
agua, mesmo em annos de grande inundação; e que segundo informações dos
velhos que me assistiram, foi mandado entulhar pelo soba Sanduro.

«Proximo do mesmo, sobranceiro ao Riambeje pequeno, do lado do norte, e
junto, do lado de leste, existem duas povoações a cargo de cujos
habitadores está confiada a sua limpeza; no centro, e junto de uma
corpulenta Eçandeira, está a sepultura do fundador que com facilidade se
distingue em virtude de oito grossas forquilhas de pau ferro com as
hastes bastante compridas e agudas, e nas quaes o soba manda depositar
uma peça de fazenda fina, (é primeiramente rasgada aos pedaços) logo que
na terra faz entrada qualquer comitiva de sertanejos, e que ahi é
consumida pelo tempo. Tambem ahi encontrei quatro campainhas antigas.

«Como fosse prevenido para o effeito, depositei egualmente quatro jardas
de algodão e quatro campainhas pelos ditos paus, presenteando egualmente
o chefe do local, velho de oitenta janeiros, com duas jardas de baeta, e
missanga aos seus companheiros e para a turba que me rodeava; após o que
me retirei, deixando todos satisfeitos da minha visita, quiçá, que
anhelando outras identicas pelo proveito que d'ellas lhes resulta.
Spleen de Londres, e vento vario de dia e de noite.»

De que parte sahiram essas campainhas antigas de que acabo de fazer
menção: do Oriente ou do Occidente?

Quem é tambem o auctor do mappa de pequeno formato, antigo e portuguez,
cujo auctor tanto tinha attrahido a colera do illustre viajante, pelo
erro relativo ao rio Loanja?

O povo Lui segue o costume de beijar as palmas das mãos, e tambem o de
se oscular, costume que ainda não vi reproduzido entre as mais tribus
d'estas paragens; isto quando por qualquer circumstancia se avistam
parentes e amigos, ou mesmo por caso fortuito se encontram; se o soba
segue para a guerra, e dada a circumstancia de regressar victorioso, o
povo de ambos os sexos acode pressuroso ao seu encontro para o
victoriar. Como emblema da victoria, cada individuo previne-se de dois
ramos verdes de arvore especial, que leva em cada uma das mãos, e
chegado na margem de qualquer rio, lago ou lagôa, mettem-n'os como
emersão na agua, tirando-os acto continuo, e espargindo-se á imitação de
agua benta, e como que purificando-se.

Concluida esta primeira cerimonia, a um tempo, e seja qual fôr o numero
de pessoas, todas em ala, com os ramos sempre nas mãos, canto monotono e
candenciado, mas que tem um tanto de agradavel e harmonico, em louvor do
soba e dos seus, pela victoria acabada de alcançar, a passo grave e
candenciado, dirigem-se em ala para elle. A um tempo tudo se prosta de
joelhos, dando principio de lhe beijar as palmas das mãos,
alternadamente a direita e esquerda; primeiramente as pessoas de elevada
jerarchia, seguindo-se após estas, as pessoas plebeias, isto por tres
vezes successivas, tendo logar primeiramente a esparsão da agua, a fim
de ter logar após a mesma, o beijar das palmas das mãos. Os osculos teem
logar entre pessoas de egual jerarchia; o soba é tão sómente osculado
por pessoas da sua familia, ás quaes tributa alguma consideração.

Dado o caso de ser em occasião do seu regresso, e depois de transpor os
limites da capital, que a turba venha ao seu encontro, o soba pára, e
egualmente o povo da guerra, a fim de ter logar a cerimonia que acabo de
descrever: continuando da mesma fórma na libata grande, até que o povo
em geral, da capital, tenha cumprido tal dever, acompanhado de tributo
segundo o custume do paiz, mas tributo que se não torna oneroso, visto
que cada pessoa deposita aos pés do soba aquillo de que pode dispor, e
em virtude do habito de que ninguem se lhe apresenta sem que leve alguma
cousa.

D'onde, pois, veiu tal habito ao povo Lui: dos missionarios catholicos
ou protestantes? creio que d'aquelles e não d'estes, em presença de não
haver exemplos em contrario.

Finalizo dizendo que na digressão por mim feita a encontrar-me com os
pombeiros de Miqueselumbue, gastei até ao logar do encontro, dois dias
áquem do rio Loengue, 16 dias. Para Moçambique, da primeira vez em que a
viagem abortou, sahindo a minha gente como já disse do estabelecimento a
25 de março de 1853 até á terra do soba Camgomba, além do rio Lohunje,
em 7 de junho do citado anno, 75 dias, sendo 46 de viagem e 23 de demora
nos differentes pontos por onde transitou; recorrendo, pois, o illustre
viajante ao seu mappa, e no qual grandes modificações teem a fazer, virá
no conhecimento da falta que commetteu em se deixar levar das
informações menos bem cabidas de Ben-Habibe.

Em identico caso estamos na minha precedencia ao illustre viajante a
Loanda, bem assim na minha ida a Portugal. As minhas viagens até o
presente, a partir da epocha em que tivemos a honra de nos conhecer-mos,
teem-se limitado unicamente: da terra do Bihé para a cidade de
Benguella, e vice-versa, e da terra do Bihé para o Lui, e vice-versa. E
que, á imitação do illustre viajante poderia eu egualmente desmentir as
suas palavras sob a asserção de ter visitado o Riambeje em companhia de
Mr. Oswell, em 21 de junho de 1851, mas sim haver realisado tal excursão
na sua segunda viagem em 1853, da qual data a sua visita á catarata
Chungo ou Mosioatunia, visto que assim me foi affirmado por Hipopa,
dizendo que na occasião em que o illustre viajante e Mr. Oswell, se
dirigiam para Quiceque, tivera logar o seu encontro com a comitiva de
Pepe e Hiquereto, que se dirigiam para Rinhande, em consequencia da
morte do soba Hebitane, e que regressando, se retirára poucos dias
depois para o Cabo, fazendo tal excursão na segunda viagem como acabo de
dizer.

Faço simplesmente a narração, tal como me foi affirmada; mas não
respondo por ella.

A paginas 120, o seguinte.


     «Por occasião de encarecer a affeição dos Bechuanas aos filhos,
     quando estes ainda em tenra edade, diz o dr. Livingstone: «Tive
     conhecimento de varios casos de avós que amamentaram os netos.
     Masina de Kuruman não tinha tornado a ter filhos desde o nascimento
     de sua filha Sina, e não tinha leite depois que Sina fora
     desmamada, o que costuma ter logar quando a creança tem dois ou
     tres annos de edade. Sina casou quando contava dezesete ou dezoito
     annos, e teve dois gemeos. Masina, decorrido o intervallo pelo
     menos de quinze annos desde que amamentara o ultimo filho, pegou de
     uma das creanças e a poz ao peito, e o leite correu em tal
     abundancia, que ella poude só por si alimental-a. Masina contava
     então pelo menos quarenta annos.»


Vou egualmente corroborar o facto apresentado pelo illustre viajante. No
Bihé havia uma familia oriunda de paes europeus, fallecidos muito tempo
antes da minha chegada ao paiz; o chefe era homem que sustentava a mãe,
velha sexagenaria, e duas filhas que vinham a ser netas da velha; das
quaes, tendo-se amancebado a mais velha, que foi habitar para a
companhia d'aquelle que a tinha escolhido para sua companhia, veiu a
constar a familia unicamente de tres pessoas. Acontecendo porém este
mesmo homem ter a desgraça de ser arguido de feiticeiro por um europeu,
que levou a barbaridade a ponto de o mandar assassinar, segundo o estylo
do paiz, ficou por consequencia a familia sem chefe, seguindo a avó, e a
neta por tomar estado, para a companhia d'aquelle que, ainda não havia
decorrido um anno tinha elegido para sua companheira a filha do homem
barbaramente assassinado, e o qual cumprindo os deveres d'este, veiu a
ser o arrimo da familia, succedendo por essa occasião dar a sua
companheira á luz um infante, mas fallecendo poucas horas depois do
parto.

A pobre creatura ferida no amago d'alma por dois golpes, se pode dizer
repetidos, a perda do filho que era o seu arrimo, e após ella a perda da
neta, sabendo ser delicto entre a tribu Quimbumda que reduz á escravidão
a familia que em virtude de um tal acontecimento entregasse a creança a
peitos estranhos para amamentar: toma o bisneto recemnascido em seus
braços, e trata de cumprir o dever do amor maternal, alimentando-o a
seus resequidos peitos, a que acorde copiozo alimento, o qual serve de
conservar a existencia ao innocente por espaço de um mez, no fim do qual
expirou, mas em virtude de doença que lhe sobreveiu.

Por egual extraordinario, talvez, em tal acontecimento, é a natureza ter
produzido um ente em paiz culto, que em Africa, pela falta absoluta de
conhecimentos, de mistura com a sua fraqueza veiu a adquirir os habitos
dos selvagens, tornando-se uma fera como aquellas que habitam as selvas,
por suggestões d'aquelles que o rodeavam. E para honra da humanidade
taes actos apontam-se.

A paginas 158 o seguinte.


     «As aldéas dos Barotse são construidas sobre defezas, algumas das
     quaes dizem que foram elevadas artificialmente por Santuru, antigo
     chefe dos Barotse, e, durante a inundação, todo o valle toma a
     apparencia de um grande lago, com as aldêas sobre as defezas como
     ilhas, do mesmo modo que succede no Egypto com as aldêas dos
     egypcios.»


Já tive occasião de falar d'este local onde jaz sepultado o pae do
actual soba do paiz, unico que foi mandado aterrar por elle, e tambem de
que ha exemplo; os mais logares ficam pelo descampado ou valle, onde
residiram e foram enterrados os antecessores do actual soba, (a sua
povoação corre de noroeste para sueste, é a maior que tem existido, e
approximadamente contém duas mil pessoas; por occasião da inundação
d'este anno não fizeram mudança, visto que a agua se conservou a vinte
passos de distancia do local) e do povo Lui propriamente dito que em
parte habita os lados marginaes ou encosta dos mattos, e em parte o
descampado, sobre monticulos de maior ou menor ambito e elevação, nos
quaes pela maior parte tambem cultivam o grão, que fica sempre de vez em
antes de se realisar o periodo da inundação, á excepção dos logares
proximos aos mattos, e mesmo por estes em ambas as margens do
descampado, bem assim as dos monticulos de que acabei de falar; este
povo não tem por habito cultivar a terra nos logares baixos do valle;
emquanto a inundação vae tomando incremento, não lhe dão importancia,
mas no momento em que principia a chegar ás povoações, e só n'este caso,
então dão immediatamente logar á sua mudança para ambas as margens do
descampado, porque é indicio da inundação tomar maior incremento, o que
de ordinario tem logar nos mezes de janeiro e fevereiro, tendo logar o
regresso nos mezes de abril e maio, nos quaes a agua vae diminuindo
progressivamente. Para este effeito estão de ordinario prevenidos com as
canoas, porque então se pode dizer um mar ou grande lago o geral do
descampado, formando ilhas de maior ou menor ambito os monticulos como
que espalhados por elle, e como seja o seu elemento favorito, e pelo
qual de ordinario almejam; a caçada ao hipopotamo, e a de toda a especie
de aves, em que então abunda, torna-se o seu divertimento de todos os
dias: ao passo que a gente do sexo feminino passeia de uma para as
outras povoações. Porém não havendo indicios de que a inundação vá em
progressivo augmento, conservam-se nas suas localidades, sendo n'este
caso o gado o unico objecto que não admitte de longar, porque effectuam
de ordinario a sua transferencia no mez de dezembro, para ambas as
margens do descampado; reservando unicamente aquelle de tirar leite, do
seu uso diario, o qual, é mudado no caso de se verificar a mudança do
proprietario, visto haver logares conhecidos dos indigenas por onde pode
passar sem perigo.»

Foi pois Sanduro que mandou aterrar o local em que habitou, o qual não
tem mais de uma milha em toda a sua circumferencia, isto provavelmente
por ter escolhido para sua residencia, justamente uma ilha formada por
um braço do Riambeje, a partir do lado de noroeste, a desembocar no de
nordeste, e que tem a designação de Riambeje pequeno; paragem mais baixa
que o geral do descampado. Na mesma ilha, em egual direcção, e na
distancia de uma legoa, existe o local denominado Nariere, antiga côrte
do povo Macorrollo, hoje inteiramente deshabitada como já disse. Fóra da
dita ilha, em egual direcção, e na distancia de uma legoa egualmente,
existe a povoação de Hipopa, da qual tambem acabei de falar.

A paginas 162 e 163 o seguinte:


     «Terça feira 17 de janeiro (1854) fomos honrados (narra
     Livingstone) com uma grande recepção por Shinto. Sambanza reclamou
     a honra de nos apresentar, porque Manenko se achou um tanto doente.
     Os portuguezes nativos e os Mambari iam armados de espingardas a
     fim de darem uma salva a Shinto, fazendo o tambor e o trombeteiro
     todo o ruido que lhes era possivel com instrumentos muito velhos. O
     Kotta, ou logar da audiencia era uma praça de perto de cem jardas,
     e viam-se em uma das extremidades dois agradaveis specimens de uma
     especie de Baniána, (_arvore, cujos ramos pendem para a terra, e,
     tomando n'ella raiz, engrossam e formam novos troncos, etc.,
     «Eçandeira, ou ulemba dos Quimbundos; existem seis especies.»_)
     Debaixo de uma d'ellas estava assentado Shinto, sobre uma especie
     de throno, coberto com uma pelle de leopardo; trajava com véstia
     variegada, saiote de baeta vermelha agaloada de verde, pendiam-lhe
     do pescoço muitos fios de contas grossas, e os braços e as pernas
     enfeitadas de braceletes e varios ornamentos de ferro e de cobre,
     na cabeça tinha posto uma sorte de capacete feito de contas de
     vidro entretecidas com primor, e coroado de grande penacho de
     pennas de pato. Proximo a elle estavam assentados tres mancebos com
     grandes feixes de settas sobre os hombros, etc.»


Admiramos unicamente a belleza do estylo empregado pelo illustre
viajante no trecho que acabamos de reproduzir, e seguintes, descrevendo
a recepção que lhe fez o soba de Catema, que a falar a verdade nem
merece as honras do titulo, não porque o queira humilhar, mas pelo papel
que representa, elle e todos os mais do dominio da Lunda perante o seu
Suzerano, ou dado o caso de virem enviados d'este a exigir-lhes tributo,
como adeante terei occasião de falar.

Entre as tribus Ganguellas ou Quimbundas constituidas pela maior parte
sob a fórma republicana, poderiam gozar das prerogativas de estados de
segunda ordem, porque então poderiam taes sobas dizer-se, senhores do
_quero, posso e mando_; mas debaixo do jugo ferreo do Matiamvo,
tornam-se simples automatos da sua vontade.

O illustre viajante deve de estar ao facto do tratamento dado por
Hiquereto áquelles potentados que se lhes apresentavam com tributo, ou
mesmo teria ouvido falar das extorsões feitas pelos seus emissarios,
quando, enviados em qualquer commissão aos ditos sobas, que, por via de
regra, vinha a ser pela tardança de tributo, faziam e fazem ainda
presentemente (e quando deixarão de o fazer!) pelas suas localidades:
pois n'uma e n'outra terra é identico o tratamento; com a differença
porém de que, no Lui não fazem ostentação dos assassinatos prepetrados e
mandados perpetrar; ao passo que na Lunda é um acto de glorificação do
Matiamvo. Posto isto, passaremos a narrar os factos taes como se passam,
e cujos significam o reverso da medalha.

Os sobas Chinde, Catema e Catende, que são precisamente aquelles por
onde transitou o illustre viajante, em antes da extincção do trafico e
quando os elephantes percorriam os seus respectivos dominios, vendiam
escravos, e tributavam com elles o Matiamvo, correndo-lhes tudo por esse
motivo ás mil maravilhas, monteando-se aquelles animaes á imitação dos
outros, para seu alimento, ficando, por consequencia, os dentes no mesmo
local em que era morto o elephante, expostos á deterioração e sem que
ninguem os procurasse, (presentemente ainda se dá esta celebre anomalia
para o sul além do rio Cubango, nas paragens percorridas pelos
Cassaqueres); mas findo o trafico as coisas tornaram-se outras; o marfim
teve principio de ser procurado, os indigenas deram principio egualmente
de o pôrem debaixo de guarda; e tendo finalmente logar d'essa epocha por
deante o tributo de escravos e marfim para o Matiamvo, em virtude das
suas ordens.

Os caçadores Quibocos como fossem conhecendo o valor d'este genero em
presença dos concorrentes, principiaram no seu paiz de mover guerra de
exterminio aos mesmos animaes, que afugentados por esse motivo, se foram
internando pelo interior, onde da mesma fórma se lhes continuou tal
guerra, pela ambição a que o marfim tinha dado origem, ficando o caçador
com o dente esquerdo e dando o direito ao senhorio em cujo dominio era
morto o elephante. A perseguição não diminuiu; pelo contrario, foi em
progressivo augmento, visto que já se não falava em escravos pelas
mesmas terras, mas sim a ordem do dia era marfim, porque ao passo que
affluia ao mercado do littoral, ia tendo alta de preço; dando-se por
consequencia a mesma circumstancia pelos differentes pontos do interior.
A isto se deve a descoberta de novos mercados, de outras terras, e
finalmente de outras tribus, até então desconhecidas. Os elephantes
foram escaceando no dominio dos tres sobas que acabei de designar, e
outros, até o seu total desapparecimento; e como era forçoso de
apresentar tributo annualmente ao Matiamvo, faziam-no com escravos,
fazenda, missangas, pelles e alguns dentes de marfim, quando os podiam
obter dos caçadores; em presença de que, se tornava excessivamente
oneroso tal encargo, visto que para arranjar fazendas e missangas
sufficientes, se lhe tornava necessario dispôr de dez escravos, termo
medio, além d'aquelles com que tributavam o seu suzerano. Por este
motivo a decapitação de taes sobas principiou a ter logar mais
amiudadamente, já na occasião em que se apresentavam com o tributo na
côrte, já mandando o Matiamvo saber porque motivo se demorava o tributo
além do tempo marcado; se por um lado quando se apresentam, ficavam por
via de regra desempedidos, pelo outro ficavam detidos de permeio com o
povo de que eram acompanhados, empregando-os em todo o serviço que lhes
era destinado, até que ao cabo de um ou dois mezes, e ás vezes mais
tempo, lhes era permittido regressar aos logares de suas naturalidades.
Se, pelo contrario na occasião em que se apresentavam com o tributo, o
Matiamvo não ficava satisfeito com qualquer dos apresentantes, em acto
continuo o mandava decapitar, depois de lhe tiraram do pulso a insignia
do poder, que vem a ser uma manilha ou bracellete de metal, envolvida em
certos e determinados preservativos do seu conhecimento e superstição,
que acto continuo vão depositar aos pés do Matiamvo. Este, pegando
n'ella e depois de ter mandado vir á sua presença o successor immediato
da victima, porque necessariamente deve acompanhal-a, depois de lhe
recommendar o bom regimen do seu dominio, e o que deve fazer em relação
ao tributo, entrega-lhe a insignia do poder, que o investe no mandato do
seu decapitado parente, ficando por consequencia habilitado para o
exercer, se por acaso não vier a ter egual sorte.

Verificando-se porém o caso de que o Matiamvo envie emissarios ao
dominio de taes sobas, estes tornam-se martyres das extorsões que lhes
são feitas, e emquanto não são despedidos, a sua auctoridade torna-se
nulla na povoação; havendo alguns, como tem acontecido, que fazendo
observações contra tão insolito procedimento, o enviado puxando do
_Mucuale_(facão de dois gumes) decepa-lhe a cabeça sem mais ceremonia
que a sua vontade, e sem opposição da parte do povo da povoação,
tira-lhe do pulso a insignia do poder, que entrega ao successor
immediatamente, dizendo-lhe simplesmente que seja mais pontual que o seu
antecessor no desempenho das ordens do Matiamvo; depois de mandar
preparar o craneo, isto é, raspar por dentro e por fóra a fim de lhe
serem extrahidas todas as particulas admissiveis de putrefacção, para
ser guardado cuidadosamente com outros que teem egual sorte, e que na
sua retirada para a côrte, apresenta como tropheus na presença do
senhor, que lhe diz simplesmente ter cumprido o seu dever, dando-lhe a
maior importancia proporcionalmente á maior porção de objectos de valor,
lhe fosse possivel conduzir á sua presença.

Algumas vezes subornados pelos ambiciosos do poder, estes mesmos
enviados do Matiamvo, a que dão o nome de _Cacoattas_, ao entrar na
libata grande do dominio a que se dirigem, intimam o soba existente a
fim de abandonar o logar para que o seu successor o possa occupar, o que
executa acto continuo sem mais observações, não lhe sendo permittido
levar coisa alguma, além das pelles ou pannos que tinha no corpo, e com
os quaes o encontraram na occasião; porque lhe advertem immediatamente,
que, tudo quanto existe na povoação pertence ao Matiamvo. As pessoas que
lhe são affeiçoadas só depois da retirada do enviado é que se lhe vão
aggregar, e, se na occasião da expulsão se não lembrou de entregar a
insignia do poder, seguem logo emissarios em seu alcance para que a
restitua, e no que tambem não faz a menor objecção, visto que por
felizes se reputam aquelles a quem a sua boa estrella concedeu
semelhante graça.

Finalmente, taes atrocidades são frequentes, e os Cacoattas tornam-se os
flagellos dos sobas secundarios; taes oppressões teem dado logar a que
alguns se tenham rebellado, mas não obstam ellas, os pretendentes ao
poder são muitos, e não são exemplo a causar-lhes a menor impressão,
visto que do acontecimento de hoje já ninguem fala ámanhã; advertindo,
que, não é só entre os Mulluas que ellas se dão e repetem, os mesmos
episodios são identices no Batebere, no Cazembe, no Lui e entre o povo
Macorrollo, potentados poderosos para estas paragens.

Para além, isto é para o Oeste, entre a raça Quimbunda que se pode
reputar excepcional, temos as seguintes terras de potentados poderosos:
Bailundo, Bihé, Gallangue e Quiaca; mas n'ellas as unicas barbaridades
que se dão, vem a ser o assassinato de quatro pessoas, o maximo, no
governo de cada potentado para differentes preservativos, em virtude da
arreigada crença de seus antepassados, bem assim a de feiticeiria, que,
leva a perpetrar o assassinato por differentes fórmas, na pessoa do
desgraçado que fôr arguido de tal epitheto.

A paginas 175 e 176 o seguinte:


     O dr. Livingstone censura Manuel Caetano Pereira de ter exagerado
     egualmente o seu poder. «Indagando eu, escreve Livingstone, se
     ainda se faziam sacrificios humanos no reino de Cazembe, como no
     tempo de Pereira, informaram-me que taes sacrificios nunca tinham
     sido tão communs como Pereira os representara, e que só tinham
     logar occasionalmente, quando o chefe carecia de certos
     encantamentos, porque então era morto um homem por serem para
     aquelle precizas algumas partes do seu corpo.» N'outro logar
     accrescenta: «O Cazembe além de ser visitado por Lacerda, tambem o
     foi por Pereira, que deu do poder d'aquelle chefe grandiosa
     informação, a qual não foi confirmada pelas minhas investigações».


Se bem que tenha acabado de tratar da materia, e, se bem que sob
differente assumpto, o volver a ella nunca se torna demasiado.
Assassinar sob que pretexto fôr, sempre é commetter o homicidio; o
illustre viajante esquece aquelles que continuamente commettia
Hiquereto, não obstante a sua assidua assistencia entre os Macorrollos,
a quem, se não diariamente, ao menos uns dias por outros, fazia ouvir a
palavra da Biblia, como descida do ceu, para se dar ao incommodo de
investigar o que outros escriptores, muito tempo antes, relatavam sobre
o assumpto, no qual pecca como em todos os outros, por menos veridico
nas asserções.

Como pode ser que taes assassinatos tenham logar occasionalmente, dada a
circumstancia de se tornarem necessarios para os preservativos d'esses
mesmos poderosos potentados?! Se o seu instincto é a sede de sangue, com
elle são ammamentados, e n'elle iniciados, até que assumindo o poder se
fartam á semelhança do tigre que habita as selvas! E, porventura, se
taes crueldades não fossem continuas, o seu poder não seria ephemero?
Decerto que o seria, visto que para se sustentarem n'elle, ellas são
perpetradas com assiduidade, até que uma conspiração urdida nas trevas,
em presença de uma indisposição qualquer que elles sintam, lhes põem
termo á existencia, já propinando-se-lhes veneno, já torcendo-se-lhes o
pescoço, e já finalmente a decapitação, se um chefe audacioso preside á
conspiração. O herdeiro assumindo as redeas do governo, não modifica
estas disposições tradicionaes do seu codigo, cumpril-as-ha á risca, se
porventura se não tornar mais sanguinario.

Enviando uma expedição qualquer contra um estado rebellado, o chefe e
seus adjuntos devem apresentar no regresso o sacco dos craneos do soba e
mais pessoas de subida jerarchia do mesmo estado, que despejam com
grande ceremonial aos pés d'esses grandes potentados (Matiamvo e
Cazembe), e que acto continuo vão designando a quem pertenceram, porque
é n'isto que se cifra a sua maior vaidade; após este acto segue-se a
entrega do despojo, que, por via de regra é o que reservam para o fim do
ceremonial. Se, pelo contrario, em logar d'estes signaes de victoria,
foram derrotados, apresentando-se dando conta do successo, sejam quaes
forem as razões que possam allegar, ellas tornar-se-hão baldadas perante
o suzerano, porque a um signal seu particular, são mandados retirar da
sua presença, a fim de serem decapitados, um a um, sem o menor queixume
da sua parte por lhes ter chegado a sua ultima hora.

Este ceremonial de caveiras, tem logar unicamente no Cazembe, e na
Lunda, na terra do Luvar, entre a raça Ganguella, se o soba segue para
qualquer excursão, bem assim por occasião da sua morte; agora, entre o
povo Batebere, Lui, Macorrollo, não se dão ao incommodo de decepar
cabeças, o assassinato sendo perpetrado á azagaia, e na presença do
soba; o cadáver é arrastado para fóra da povoação, onde é consumido
pelos animaes; e sendo commetido fóra, ahi mesmo o deixam ficar para ter
egual destino; que seja proximo ou distante é coisa que pouco importa.

Finalmente, em relação ao poder do Cazembe, direi que é elle muito fraco
para affrontar o poder do Matiamvo, mas muito forte para o repellir em
caso aggressivo. O illustre viajante sabe perfeitamente o proverbio:
Duas aves de rapina não se fazem companhia; no mesmo caso temos ambos os
chefes indigenas e consanguineos.

A folhas 203 o seguinte:


     A situação do Bihé não é bem conhecida. Estando nós em Sanza,
     asseveraram-nos, que demora ao sul d'aquelle ponto, a oito dias de
     distancia. Esta noticia pareceu confirmar-se pelo facto de
     encontrar-nos muita gente, que vinha do Bihé para o Matianvo
     (_Sobre este ponto consulte o Diario de Joaquim Rodrigues á sahida
     do Bihé_) e para Loanda. Toda esta gente veiu reunida até Sanza, e
     alli se separou, tomando uns para o nascente, e outros para oeste.
     A nascente do Coanza por conseguinte não fica provavelmente longe
     do Bihé.»


«A 10 de dezembro de 1853 digo o seguinte--«Continuámos a viagem,
passamos o rio Quanza em ponte e a vau; n'esta paragem de quatro braças
de largo, e d'ella á sua nascente dois dias de viagem. Proseguimos a
marcha, e fomos fazer quilombo nos mattos, margem direita do dito rio.
Caminho plano, mattos fechados, abundancia de riachos, terreno fertil,
legoas andadas 3, rumo de leste.»

Mais tarde pude colher a seguinte informação: Que o rio Quanza procede
de um lago sito no local denominado Gunda-angongo, povo de raça
Ganguella da tribu Nhemba. Em relação ao Riambeje disse já o seguinte:
«Concedendo, pois, que assim não seja como acabo de transcrever, é fóra
de toda a duvida que, qualquer rio caudaloso aqui em Africa, vadiavel
que seja com agua pela curva da perna, d'ahi á sua cabeceira não pode
distar mais de quatro dias de jornada, a experiencia assim m'o tem
ensinado.»

Posto isto, direi ser applicavel o que fica dito ao rio de que nos
estamos occupando, e que concordamos inteiramente com a opinião do
illustre viajante, pelos exemplos que passamos a apresentar.

_Rio Nhengo_, _Ninda_ na sua cabeceira: Direcção de Oeste para Leste,
leito de areia e pedra, e de margens apauladas; da sua nascente á sua
desembocadura no Riambeje, nove dias de marcha; vadiavel nos quatro
primeiros dias a partir da mesma, d'ahi por deante a partir para a sua
foz, percorre-se em canoas. _Rio Cutti_: Direcção do Norte para o Sul,
leito de areia e argilla, e de margens apauladas no espaço de duas
milhas, isto é da margem direita para a esquerda do matto; da sua
nascente á sua desembocadura no rio Quando, oito dias de marcha;
vadiavel nos quatro primeiros dias, a partir da mesma, e d'ahi por
deante a partir para a sua foz, é percorrido em canoas. _Rio Cubangui_:
Direcção do Norte para o Sudoeste, leito de argilla, pedra e areia, e de
margens apauladas; da sua cabeceira ávante quatro dias; já não dá vau,
tornando-se necessario construir ponte para se passar para a sua margem
esquerda; dirige o seu curso para o rio Quando. _Rio Quando_: Direcção
do Norte para Sueste, leito de argilla e areia, e de margens apauladas;
da sua nascente ávante quatro dias, offerece passagem em ponte e a vau;
d'ahi para a sua foz no Riambeje proximo a Quiceque, é percorrido em
canoas. _Rio Caimbo_: Direcção de Nordeste para Sueste, leito de
argilla, pedra e areia, e de margens apauladas; a sua nascente procede
de um lago, e d'ella ávante dois dias, offerece unicamente passagem em
ponte e a vau, com difficuldade, pelo motivo da sua corrente veloz;
d'esta passagem á sua foz, no rio Quando, é percorrido em canoas. _Rio
Cuttau_: Direcção de Sudoeste para Noroeste, leito de areia, e de
margens apauladas; espraia muito, e por este motivo se pode dizer
vadiavel até á sua foz no rio Lunguébungo; este dirige o seu curso Para
o Riambeje. _Cuito da Zambueira_: Direcção do Norte para o Sul, leito de
argilla e areia, e de margens apauladas; da sua nascente ávante cinco
dias offerece passagem a vau, e em ponte, e d'ahi para a sua foz no
Cubango, é percorrido em canoas. _Rio Varia_: Direcção do Sul para o
Norte, leito de argilla; da sua nascente ávante cinco dias, offerece
unicamente passagem em ponte, e ávante tres dias na sua desembocadura no
rio Cuime, (este tem a sua foz no Quanza) é percorrido em canoas. _Rio
Quanza_: Direcção do Sul para o Norte, leito de argilla e pedra, e
margens de argilla; oito dias da sua nascente ávante, no porto do Cuio,
onde se passa em canoas. _Rio Cuquema_: Direcção de Nordeste para
Sudoeste, leito de argilla e pedra, e margens de argilla; cinco dias
ávante da sua nascente, no porto do Bissongue, onde se passa em canoas,
dando-se a mesma circumstancia d'ahi para a sua foz no Quanza, nos dois
dias a percorrer. Finalizo dizendo que os rios que ficam notados,
existem a partir do Lui para o Bihé, e vice-versa, e aquelles unicamente
cujas cabeceiras se passam, ou existem distantes do caminho do transito
os dias que ficam marcados; o que julgo sufficiente a provar o que fica
dito em relação aos rios Quanza e Riambeje.

A ps. 256 o seguinte:


     «Chegado ao rio Loembua, no proseguimento da marcha começada,
     refere o dr. Livingstone, que a presença de um homem branco
     infundio terror nas mulheres, e que, n'estes casos, pareciam muito
     contentes quando elle dr. Livingstone acabava de passar sem se ter
     apoderado d'ellas; que o espreitavam das fendas das portas, atê que
     elle se approximava, e então se recolhiam fugindo para o interior
     da casa.»


O illustre viajante quiz mostrar mais uma vez, a degradação a que chegou
por estas paragens o immoral e escandaloso commercio de escravos, dando
logar a que o bello sexo horrorisado nem se atreva de apparecer aos
olhos dos desmoralisadores traficantes de entes humanos, verdadeiro
flagello da humanidade n'esta parte do mundo chamado Africa. Mas isto em
relação á situação reciproca de duas partes mutuantes na acção de
contrahir um negocio qualquer; jámais no caso de aprisionamento de
pessoas, que se torna muito mais melindroso como aconteceria com a
_aldeia inteira de Bakalakau_; tal procedimento daria causa a graves
represalias, como então tive occasião de fazer ver, e ao facto de
correrem muito risco todos os sertanejos do Bihé, Caconda, Cassange,
Pungoandongo, de Quilengues, que não obstante partirem de pontos
oppostos, muitas vezes se encontram pelo interior d'este vasto
continente; mas quando se não desse essa mesma circumstancia, quem
deixará de ignorar que piratas não necessitam de negociar?

Aqui tem o illustre viajante o reverso da medalha. Depois de se transpor
os rios Cuquema e Quanza, as comitivas do Bihé são honradas na pessoa do
seu chefe, pelas pessoas de ambos os sexos em massa, das povoações dos
Ganguellas das tribus Luchiajé, Bunda, e Zambueira, nas terras por onde
passa, da maneira que segue: _O nosso senhor veiu! O nosso branco veiu!
O nosso amigo veiu!_ Isto á apparição do chefe da comitiva, batendo
palmas continuamente, e fazendo-lhe um cerco entre o qual com
difficuldade caminham os conductores da tipoia. E no momento em que elle
tenha transposto a povoação, o povo, da mesma sorte corre
precipitadamente para a frente, a fim de repetir a mesma ceremonia que
finda depois de terem acompanhado o negociante na distancia de uma a
duas milhas, retrocedendo então depois de cançados ás povoações d'onde
sahiram.

Entre a tribu dos Quibocos, estas demonstrações de jubilo excedem muito
além do que acabo de referir, porque aturam pelo espaço de dois a tres
dias, acompanhando a comitiva com seus generos, que permutam logo que se
acha concluido o trabalho de construir o quilombo, retrocedendo ás suas
povoações ao cabo do dito espaço; agora, se o illustre viajante não
recebeu applausos semelhantes, muito principalmente tendo effectuado a
sua passagem pela terra d'esta tribu, é isso devido ao pequeno numero de
pessoas de que se compunha a sua comitiva, limitando-se por consequencia
a vel-o pelas frestas das portas, como diz; mas não com receio de que
aprisionasse pessoa alguma, ou mesmo de que fosse anthropophago, como as
mães persuadem ás creanças indicando-lhes a approximação de qualquer
europeu, á maneira de papão, a fim de as adormecer.

Finalmente, não tendo o condão de adevinho, não obstante achar-me no
paiz onde em larga escalla se exercita essa arte, quer-me parecer que
foi a obra do illustre viajante que em 1866 ou 1867 deu logar a tanto
alardo na camara alta em Portugal para a total suppressão da escravatura
em todas as possessões portuguezas, não reflectindo jámais os nossos
legisladores que é um negocio assás melindroso de um traço de penna
acabar com ella, e que além d'isso temos uma lei que fixa para 1867 a
mesma suppressão.

Quaes são as medidas já adoptadas depois do celebre decreto de 22 de
abril de de 1858, para que aquelles que podem mandar, tenham aquelles
que sabem obedecer?

Responderão: o trabalho livre! Esperemos e veremos.

A ps. 261 o seguinte:


     «Como d'este ponto (do Zambeze interior) deviamos separar-nos para
     o nordeste, resolvi-me a visitar na seguinte manhã a catarata
     Victoria, chamada pelos indigenas Mosioatunia, e mais antigamente
     Shonguê (_Chungo?_) Tinha-mos ouvido fallar d'ella desde que
     entramos n'estas terras, e uma das perguntas que me fez Sebituane
     foi «Tendes na vossa terra fumo que faça estampido? Elles (os
     indigenas) não se atrevem a approximar-se tão perto que possam
     examinal-a; porém, referindo-se ao vapor e ao estrondo
     «Mosi-va-tunia» o fumo alli estrondea. Outr'ora a catarata
     chamava-se Shonguê, mas nunca pude saber a razão de lhe darem este
     nome. A palavra que entre elles designa a vasilha de cozer a comida
     tem similhança com aquella, e acaso quereriam significar uma
     caldeira a ferver, comtudo não tenho certeza d'isto. Persuadido de
     que Mr. Oswell e eu fomos os primeiros europeus, que visitámos o
     Zambeze no interior do paiz, e de ser esta catarata o annel que
     prende as duas porções, _conhecidas e desconhecidas_, d'aquelle
     rio, decedi-me a usar da mesma liberdade com que se auctorisaram os
     Makololo, e lhe dei aquelle nome inglez, sendo esta a só occasião
     em que appliquei um nome da minha nação a alguma parte das terras
     que investiguei...»


_Chungo_, _namatittima_, _imbôto ea mahenza_: «D'aquelles local (o
abysmo) sae fumo, que molha a gente, e que atemoriza como o fragor do
trovão,» dizem os indigenas do local, tribu Baleia ou Guete (nome
generico pelo qual é denominada esta numerosa familia composta de
diversas tribus) d'estas paragens. «_Mosi-oa-tunia_:--«O fumo alli
estrondea», diziam outr'ora os Macorrollos, ao approximarem-se do local
d'onde sahem as columnas de fumo da catarata, e que por assim a terem
chrismado, assim se ficou denominando.--_Victoria falls_, repete o
illustre viajante á imitação dos intrusos senhores, querendo coroar a
obra da sua gloria na parte conhecida e desconhecida, do grande
manancial.

Eu penso, e creio não me enganar, que se os Macorrollos a um tempo se
fossem precipitar no abysmo da catarata que chrismaram como acabei de
dizer de Mosioatunia, o illustre viajante não os seguia, visto que a sua
prudencia assim lh'o aconselhava, mas já o amor proprio lhe não permitte
recusa na denominação em paiz estranho, a objectos, applicando-lhes
nomes do seu paiz natal, porque ao passo que o quer engrandecer, tambem
engrandece a sua pessoa! Vaidade das vaidades, e tudo vaidade.

Eis os nomes que lhe são applicados pelos indigenas aos differentes
pontos do seu curso a partir do Lui para Quiceque, e vice-versa.

_Sioma._ Povoação proxima da catarata;

_Gonhe._ Principio da catarata, e no qual as canoas são conduzidas por
terra em virtude dos escolhos.

_Cale._ Local mais ávante por onde passam as canoas com praticos.

_Luço._ Local mais ávante por onde passam as canoas com praticos.

_Gambue._ Local mais ávante, no qual as canoas são conduzidas por terra
em virtude dos escolhos.

_Lucibe._ Local mais ávante por onde passam as canoas com praticos.

_Molele._ Local mais ávante por onde passam as canoas com praticos.

_Acicuti._ Local mais ávante por onde passam as canoas com praticos, bem
assim onde habitou o fundador de que ha tradicção, do mesmo nome, e
chefe da tribu Baleia.

_Chungo._ Mosioatunia, synonymo do primeiro nome; fim da catarata e
local do abysmo, e no qual as canoas são conduzidas por terra em virtude
dos escolhos.

E, eis o que digo egualmente em 23 de julho de 1858 sobre o assumpto:

«23. Continuámos a viagem por mattos fechados, e chegamos na cachoeira
do Riambeje, sitio Catongo, onde se fez quilombo. Paragem de transito
sem inconveniente algum, terreno fertil, horas de marcha 9-1/2, rumo de
sul.

«Estamos nas margens do magestoso rio sem rival n'estas paragens, que
banha com suas aguas os contornos de Senne, Tete e Quilimane; o seu
curso é apenas interrompido por tres cachoeiras, prestando no mais do
seu transito, livre e seguro apoio áquelles que com as suas canoas,
sulcam as suas aguas. N'esta paragem que terá de extensão seis legoas,
as canoas em partes são carregadas por pretos, e em outras proseguem na
sua carreira pelos differentes braços que sahem do rio; formando este
aqui e alli, ilhas de maiores ou menores dimensões, cheias de arvoredo
secular, e em outros logares de cannaviaes impenetraveis; bem assim, os
contornos cheios de arvoredo gigante. O rio comprimido aqui pelas suas
margens alcantiladas, em partes cobertas de areia mui fina e clara, que
as enchentes vão accumulando segundo a direcção do seu curso, formam um
contraste inteiramente sublime; o terreno contiguo n'esta estação todo
gretado, bem assim algumas lagoas cheias de pedras, acham-se cobertas de
espessas camadas de sal, que os naturaes preparam com alguma perfeição.
Finalmente, o dr. David Livingstone, penna intelligente a toda a prova,
e que bastantes serviços tem prestado á causa das sciencias, e a prol da
humanidade, por vezes tem percorrido estas paragens em investigações
scientificas, ninguem, pois, melhor que elle, poderá apresentar o quadro
completo da topographia do paiz, cousa muito fóra da esphera dos meus
conhecimentos, como o meu amigo leitor facilmente deverá comprehender, e
que me não envergonho confessar.»

A ps. 286 o seguinte:


     «N'outro logar conta Livingstone que, achando-se na tribu de
     Mpende, cujo chefe lhe difficultára o passo, dous velhos vieram, de
     ordem d'este, perguntar-lhe quem era. E que lhes respondera. «Sou
     inglez.» A isto replicaram os velhos que não conheciam aquella
     tribu, e que suppunham que elle e os seus eram Muzungos
     (portuguezes) com os quaes n'outro tempo haviam combatido. «Então
     (accrescenta Livingstone) como eu ainda não sabia que a palavra
     Muzungo era applicada aos portuguezes, e pensei que queriam com
     ella designar os mulatos, mostrei-lhes o meu cabello e a pelle do
     meu peito, e perguntei se os Muzungos tinham o cabello e a pelle
     como eu? Como os portuguezes costumam cortar o cabello rente, e são
     além d'isso menos claros de que nós, os velhos responderam. «Não,
     nós nunca vimos pelle como essa tão branca.» E continuaram «Ah! vós
     decerto pertenceis á tribu que tem coração para os homens pretos.»
     Eu com satisfação lhe respondi que sim, etc.»


Diz inconsideradamente o illustre viajante: «Sou inglez»! Julgaria por
ventura que a Inglaterra enviasse a sua esquadra e desaggravar o seu
assassinato, dado o caso de que os selvagens o tentassem?! Felizmente
que taes arrogancias áquem Bihé, não se podem contar e apontar, ao passo
que além, a partir da mesma terra para o litoral, não só se apontam,
como infelizmente se contam repetidas! E, ai quando tal se realizasse na
pessoa do illustre viajante, em presença do seu caracter um tanto
irrascivel, não teria por certo direito a melhores honras, que aquellas
que tiveram tantos outros portuguezes, cujas ossadas insepultas por
essas mesmas paragens, reclamam incessantemente dos transeuntes a oração
funebre pelo eterno descanço de suas almas, já que outra cousa não podem
obter em desaggravo do seu desastrado fim.

O sr. Gamitto diz-nos no seu _Muata Cazembe_ que, os chefes designam os
portuguezes por Muzungos. Segundo o mesmo sr. a raça de Cazembe dá-lhes
egual denominação. A raça da Lunda chama-lhes _Hinder oe comema_; a raça
dos Ganguellas, _Sungo_, e a antecedente, bem assim, _Hinder ea numba_;
a raça do Luvar dá-lhes aquellas denominações, a raça dos Quimbundos,
_Sungo_; a raça Bunda, de Angola e suas dependencias: _Sungo_, e
_Cangundo_; a raça Lui e Macorrollo: _Macua do Oriente_, e _Macua do
occidente_, indicando as ditas partes do globo. Pela mesma maneira
designarão o Allemão, o Belga, o Hespanhol, o Francez, o Inglez, e
finalmente o Russo, em virtude da sua côr, de natos da mesma parte do
globo, de filhos de além mar; mas não que sirva a distinguir uma raça
qualquer, como o illustre viajante quer fazer acreditar. Que nos venha
dizer que, este ou aquelle regulo se não chame Hiquereto, sua segunda
Providencia, e que em virtude da sua indole, fizesse menos preço da sua
pessoa, levando a audacia ao ponto de o querer impedir na jornada, é
cousa que se entende, mas não a insinuação opprobriosa sob o nome
portuguez, simplesmente pela circumstancia de alguns membros da mesma
familia empregarem-se, no odioso trafico de escravos; o que não está em
harmonia com a posição que occupa na sociedade, e muito menos com o
caracter de que se acha revestido. A não ser essa sua segunda
Providencia, torno a repetir, o illustre viajante teria effectuado a sua
viagem a Loanda auxiliado por esses mesmos a quem amiudadamente pretende
expor no pelourinho da irrisão publica, como empregando-se n'um genero
de vida que já de ha muito deixou de ser. Teria egualmente effectuado a
sua viagem a Moçambique auxiliado pelo bom governo portuguez, a cuja
fraqueza deve o bom exito da sua viagem de Costa a Costa, para mais
tarde o escarnecer, como effectivamente o fez;... a retribuição seria
sempre a mesma!

Oh! se esta bella joia engastada como está na corôa de Portugal,
pertencesse á de França ou da Inglaterra, o commercio da escravatura
far-se-hia sempre, então, não direi que para possessões estranhas, mas
sim nas proprias; havendo a certeza de que uma potencia não tomaria
contas á outra por semelhante procedimento. O illustre viajante
percorrendo Africa como acaba de realisar, diria então: Acabo de fazer a
minha digressão na terra por excellencia denominada a oitava maravilha
do mundo, visto que está ainda por vir á luz. Mas se bem que lhe pese,
ella pertence a Portugal, e isso é sufficiente para a desacreditar, não
obstante os obsequios com que por toda a parte foi honrado.

As vicissitudes do acaso são assim, um tanto inconstantes para os
individuos como tambem para as nações, e para fortuna sua e dos seus, um
Pombal é como um meteoro; apparece de tempos a tempos, para desaggravar
e elevar a sua patria.

Qual será o potentado poderoso ou secundario em Africa, que abomine o
trafico da escravatura? Se d'ahi lhe provém a sua grandeza, que se pode
dizer ephemera, porque para se sustentar no poder, tem necessariamente
de ser prodigo!... E a prodigalidade é exercida em virtude dos pleitos
que quotidianamente decidem, e dos quaes são provenientes os escravos, o
gado, a fazenda, as enchadas, a cera, alguma ponta de marfim, e
finalmente toda a especie de creação miuda, fonte principal do seu
rendimento; visto que nem todos se podem chamar senhores da Lunda, Lui,
Cazembe, Batebere, Risucatebe e Macorrollos, onde abunda o marfim; os
Ganguellas, onde apparece o marfim e abunda a cera; o Humbe, onde
apparece o marfim e abunda o gado, mas que tambem permutam os escravos
em maior ou menor escala, attendendo a ser a força principal da sua
população.

Embora a total suppressão se approxime do termo, o illustre auctor do
_Exame_ pode ter a certeza de que o trafico não cessará jámais além do
dominio das Quinas, visto que ahi se dão egualmente lucros para
especuladores; compram escravos para o serviço, para a troca do marfim,
da cera, do sal, do gado e finalmente para satisfazer Milongas (crimes),
como já tive occasião de falar.

E como poderá deixar de ser assim, se os escravos e o gado, são os
unicos dois elementos que fórmam a riqueza principal e unica de todas as
classes, aqui no interior d'este grande continente?

Estudem primeiro o caracter, a indole, as leis tradicionaes, usos e
costumes dos seus habitantes, e depois falem-nos do odioso trafico da
escravatura, visto, repito, que não ha nenhum potentado poderoso ou
secundario que o abomine.

É certo egualmente que sem restricções o condemna a doutrina de Jesus
Christo, mas tambem não é menos verdade que ella manda illuminar os
pobres de espirito, a fim de que venham no conhecimento dos beneficios
recebidos e por receber.

E, já que desgraçadamente em tudo imitamos o extrangeiro, imitemol-o
egualmente na formação de companhias para o bem estar das nossas
possessões, no tocante a religião, civilisação e progresso; a fim de não
estar-mos unicamente com a mira no governo. Agora, prestar-se-lhes taes
beneficios sem o previo conhecimento d'elles, é, creio-o, do intimo da
minha alma, procurar a nossa ruina. Quem lá chegar o reconhecerá, como
diz o rifão.

Acabo aqui o meu trabalho bastante desagradavel pelo motivo que lhe deu
origem, e, logo que o illustre viajante traz para a arena o incidente de
triste recordação para os portuguezes do _Charles e George_, responderei
que, sou da opinião d'aquelles que preferem morrer na brecha, a ver a
sua patria ludibriada, visto dizer-nos o sr. conselheiro Bastos que:
«Antes inveja que piedade, vale mais ser invejado que lastimado». N'este
ultimo caso existe a infeliz e desditosa Polonia! E, mal da Inglaterra
se todos os seus filhos nutrissem sentimentos eguaes aos do illustre
viajante, porque então seria a unica dominadora do mundo, ou riscada do
mappa das nações.


Fim




Passo agora a transcrever o documento a que me referi, e que devo á
bondade de João Francisco da Conceição e Mattos, filho do agraciado; por
elle se virá no conhecimento, que a nomeação de capitães móres do paiz é
muito anterior a 1791.


Manoel de Almeida e Vasconcellos, Cavalheiro da Sagrada Ordem de S. João
de Jerusalem de Malta, do conselho de Sua Magestade Fidelissima;
Governador e capitão general d'este Reino, e suas Conquistas, etc. etc.
Faço saber aos que esta Minha Carta Patente virem, que por justas
considerações do Real Serviço, e do bem dos povos, é absolutamente
necessario prover-se o posto de Capitão mór, e Juiz da Provincia do
Bihé, povoação do Amarante, freguezia de Nossa Senhora do Desterro, e S.
Gonçallo, jurisdicção da Capitania de Benguella, que vagou por
fallecimento de Joaquim José Rodrigues, que o exercia, em Pessoa de
satisfação, e merecimentos, que bem o haja de exercer; e tendo
consideração aos de Antonio Francisco da Conceição, ter servido a Sua
Magestade no posto de Capitão Mór e Cabo da dita Provincia do Bihé, com
aptidão, e prestimo; e me pertencer este provimento pelo cap. 9.^o do
Regimento d'este Governo: Hei por bem de o prover (como por esta o
provo) no dito posto de Capitão-mór, e Luiz da Provincia do Bihé,
povoação de Amarante, freguezia de Nossa Senhora do Desterro, e S.
Gonçallo, jurisdicção da Capitania de Benguella, em quanto a Rainha
Nossa Senhora não mandar o contrario, e eu entender he conveniente ao
seu Real serviço; com a declaração de que será obrigado a residir na
dita Provincia, e a guardar todos os Regimentos, Leis, e ordens, que se
lhe communicarem, dilatando o commercio, a agricultura, e a industria,
quanto permittirem as forças da mesma Provincia, e as Regras da Justiça,
e de que não será reconhecido por tal Capitão-mór, fóra da dita
Provincia, não fazendo guerra aos Negros, nem acto nenhum de
hostilidade, sem expressa ordem Minha, e dos meus Successores, e que
attrahirá e dilatará os Vassallos, e Dominios de Sua Magestade, pelos
meios justos e suaves, da paz, da justiça, e do commercio, fazendo que a
cada um se pague os serviços que fizer, ou os generos que vender, e que
escuzando-se, não sahirá do Governo sem que primeiro seja rendido por
aquelle que Eu nomear. Pelo que mando ao Governador da Capitania de
Benguella conheça ao dito Antonio Francisco da Conceição por
Capitão-mór, e Juiz da Provincia do Bihé, e como tal o honre, estime,
deixe servir, e exercitar o dito posto, dando-lhe d'elle Posse, e
juramento na fórma costumada, de que se fará assento nas costas d'esta
Carta Patente; e as pessoas suas Subordinadas, que em tudo lhe obedeção,
cumprão, e guardem suas ordens por escripto, e de palavra, no que
pertencer ao Real serviço, como devem, e são obrigados. Na Thesouraria
Geral das Tropas ordeno se lhe faça o seu Assento nos livros
competentes, para delles tirar sua Fé de officios quando lhe convier. E
por firmeza de tudo lhe mandei passar a presente por mim assignado, e
sellada com o sello das Minhas Armas, a qual será registada nos livros
da Secretaria do Estado deste Reino, e aonde mais tocar. Dada nesta
cidade de São Paulo da Assumpção a onze de Maio. Hippolito Fernandes
Pinto official menor da mesma Secretaria, a fez. Anno de mil setecentos
noventa e um, Joaquim José da Silva, Capitão-mór encarregado do
expediente da Secretaria do Estado a fez escrever.


                                   _Manuel de Almeida e Vasconcellos._


Carta Patente porque V. Ex.^{cia} ha por bem prover Antonio Francisco da
Conceição, no Posto de Capitão Mór, e Juiz da Provincia do Bihé,
Povoação de Amarante, Freguezia de Nossa Senhora do desterro e São
Gonçallo, Jurisdicção da Capitania de Benguella, como nella se declara.


                                                Para V. Ex.^{cia} ver.

Por Despacho de S. Ex.^a de 11 de Maio de 1791.

Reg.^{da} af. 39 do L.^o 25 de Patentes e af. 41 do L.^o 5.^o dos Postos
para fora fica assentada a sua Praça. Thesouraria Geral das Tropas 12 de
Maio de 1791

                                                _Manuel Pinto Delgado_


Cumpra-se e registe-se.
Q.^{el} de Benguella 25 de maio de 1791.

                                 _Francisco Paym da Camara e Ornellas_


Reg.^{da} af do L.^o 21 de Patentes que deve n'esta Secretaria do Estado
d'este Reino. São Paulo da Assumpção a 11 de Maio de 1791.

                                               _Joaquim José da Silva_


Reg.^{da} af. 111 do Registo Geral d'esta Capitania. Benguella 26 de
julho de 1791.

                                                  _Francisco Bermesso_


Principiei pelas nossa cousas, e por um acaso findei egualmente por
ellas, visto ter-me vindo á mão o documento que acabo de transcrever,
accrescentando, que, somos bastantes pigmeos para não seguir-mos a
vereda de nossos antepassados. Então, procuravam, elles, estender e
dilatar o nosso poder. Presentemente, não só se trata de o incurtar,
como tambem abandonar! Assim se verificou com a Feira de Cassange, terra
subjugada em 1850 pelo bravo Francisco de Salles Ferreira, e mandada
abandonar pelo sr. João Baptista de Andrada em 1862...


  Bihé 2 de março de 1869.

                           _Antonio Francisco Ferreira da Silva Porto_




Notas:

[1] Veja-se o diploma no fim.




Lista de erros corrigidos


Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:


  +----------+---------------------+----------------------+
  |          |      Original       |      Correcção       |
  +----------+---------------------+----------------------+
  |#pág.   12| Na capitulo         | No capitulo          |
  |#pág.   14| grande smanadas     | grandes manadas      |
  |#pág.   25| 1352                | 1852                 |
  |#pág.   25| iudigenas           | indigenas            |
  |#pág.   29| papinas             | paginas              |
  |#pág.   33| Acarta              | A carta              |
  |#pág.   33| relativamete        | relativamente        |
  |#pág.   37| eutra               | outra                |
  |#pág.   38| fnturo              | futuro               |
  |#pág.   39| chegei              | cheguei              |
  |#pág.   42| artificialmenté     | artificialmente      |
  |#pág.   44| seuhores            | senhores             |
  |#pág.   45| apresentayam        | apresentavam         |
  |#pág.   50| ?ndigenas           | indigenas            |
  |#pág.   56| o declaração        | a declaração         |
  |#pág.   56| Annno               | Anno                 |
  +----------+---------------------+----------------------+





End of the Project Gutenberg EBook of Silva Porto e Livingstone, by 
António Francisco Ferreira da Si Porto

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Foundation as set forth in Section 3 below.

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Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need, are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
http://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at http://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit http://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including checks, online payments and credit card donations.
To donate, please visit: http://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


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