The Project Gutenberg EBook of Quatro Novelas, by Ana de Castro Osório This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: Quatro Novelas Author: Ana de Castro Osório Release Date: November 6, 2009 [EBook #29968] Language: Portuguese *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK QUATRO NOVELAS *** Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Print project.) QUATRO NOVELAS Composto e impresso na Typographia França Amado, rua Ferreira Borges, 115--Coimbra. ANNA DE CASTRO OSORIO QUATRO NOVELAS A VINHA. A FEITICEIRA. DIARIO DUMA CRIANÇA. SACRIFICADA. COIMBRA FRANÇA AMADO--EDITOR 1908 I A Vinha A VINHA Luis sahira para o colegio ainda criança e de lá para as escolas superiores; assim os anos tinham decorrido sem que nunca mais visitasse a terra natal. Dez anos, dez longos anos se tinham passado, e só agora voltava, como um foragido ou como um ladrão, que enlouquecido de saudades arrisca a vida e a liberdade para revêr a terra que primeiro conheceu e é sempre para o homem a mais querida, a mais bela, a melhor de todas. E--pobre Luis!--era na verdade como um foragido que voltava, escondendo-se para que o não vissem, envergonhado dessa fraqueza sentimental que já não ia nada bem com os seus galões de guarda-marinha e o seu bonito bigode a ensombrar-lhe o labio superior. E voltava amesquinhado aos seus proprios olhos, elle que se julgava tão importante pelos estudos transcendentes, que seguira com certo brilho, porque só agora compreendia o sacrificio de cada momento, a luta de cada hora, o verdadeiro heroismo obscuro e respeitavel que a sua educação representava na vida da familia. Compreendia, afinal, um pouco tarde demais para que a consciencia lhe ficasse limpa de remorso, quanta mentira santa fôra preciso inventar, com quanta delicadeza envolver as palavras, quanta historia arquitétar para que elle aceitasse sem desconfiança o propositado afastamento em que o tinham conservado durante esse longo periodo de tempo. Chegara por vezes a pensar, as poucas ocasiões em que reparara nisso, que o desprezavam, que era um pária, que os pais afastavam receando a vergonha de o apresentarem como seu herdeiro e continuador. Dizia-lhe a consciencia que tal procedimento não era justo, porque--se é verdade que não fôra nunca um estudante desses que se mostram com desvanecido orgulho, carregados de distinções e premios que esmagam o proprio dôno e irritam os companheiros,--é certo que o curso lhe sahira limpo, seguido como de empreitada, numa indiferença risonha de quem o levava com uma perna ás costas. Lembrava-se de pensar ás vezes no facto, um tanto irritante, do seu afastamento sistematico da casa paterna, e pôr-se consigo a acusar os pais; mas á mais leve referencia acudia uma carta de Eduarda, que varria do seu coração, voluvel e bondoso, a desconfiança cruel. Era sempre a mesma delicadeza inteligente, procurando as palavras para não maguar nem esclarecer, fugindo graciosamente duma pergunta mais nitida, dizendo pouco em longas cartas, que satisfaziam plenamente a sua ansiedade de momento mas muito deixavam escondido nas dobras duma alma que se não pode expandir, sob pena de infelicitar os outros. Eduarda, apenas mais velha dois anos do que Luis, fôra desde criança uma pequena figura simpatica de mulher, dessas mulheres adoraveis sem deixarem de ser profundamente humanas, ou talvez por isso mais adoraveis ainda, que tudo compreendem, por tudo se interessam, para todos são a providencia, o refugio e a esperança. Quando fôra resolvida a sua entrada para o colegio militar, Luis ficara radiante. É que essa admissão fôra o seu maior empenho, a ambição de largos mêses e dias--desde que na terra aparecera, a proposito de qualquer festa pública, um regimento de lanceiros, que o tinha enlouquecido com o seu ar soberbamente marcial e as bandeirolas, vermelho e branco, a panejarem ao sol. Não pensava noutra coisa senão naquella sua entrada para o colegio em que todos os alunos são já pequeninos homens, pequeninos militares de botões reluzentes, barretina, dragonas, e duma compostura grave de disciplina rígida. Fazia projectos, contava as peças do enxoval, que a mãe lhe ia empilhando na mala, lia e relia a relação das coisas que lhe mandavam levar e prometia a si mesmo só quebrar o seu, mialheiro de barro quando tivesse já a farda, para ir tirar o retrato de grande uniforme. Mas quando chegou o dia da partida e viu á porta o carro em que devia seguir, os criados arrastando as malas, o pai gritando porque não estavam as coisas em ordem--e o comboio não espera!--quando viu a mãe soluçante por vêr partir o mais novo, o mais fraquinho, o preferido--todos o sabiam--o Luis perdeu a coragem. E chorou, chorou intensamente, num soluçar fundo, proprio dessas naturezas impulsivas, febris, doentias, a que os nervos emprestam uma acuidade dolorosa, embora passageira, nas sensações. E ella, a irmãsita, já com a orla do vestido a procurar o cano da bota, a trança loira cahida pelas costas, o corpo airoso e fino ainda sem o quebrado das linhas feminis, não tivera lagrimas que correspondessem áquella dôr excessiva, nem palavras que consolassem aquella alma desolada. Sorria até, para esconder uma ligeira tremura significativa no labiosito ainda criancil, mas o seu olhar era limpido, e a face, ligeiramente enrubecida, em coisa alguma trahia o esforço enorme de vontade que a sua atitude representava. É que era realmente heroica aquella criança que represava as lagrimas, bem naturais no entanto, para encobrir o seu legitimo desgosto ao vêr partir o irmão, o seu companheiro e amigo mais certo. Porque Luis e Eduarda eram, mais do que pelo sangue, que tantas vezes corre desemelhante em filhos da mesma arvore, irmãos pela camaradagem no estudo e nos passeios, nas distrações como nos desgostos, nesses tão maguados desgostos infantis, que todos desprezam e são talvez os mais violentos e os mais desesperadores de toda a vida. Mas Eduarda tinha a rara delicadeza de certas almas de excéção, que em si concentram a propria dôr e só têm para a dos outros carinho e consolo. Se o Luis soubesse o que ella sofria, ficando ali a vê-lo partir, debruçado na portinhola da carroagem e ainda a recomendar-lhe as suas coisas--os animais, as flôres, os brinquedos abandonados!... Se elle soubesse como a pequena sentia já a solidão em que ia ficar, naquella pobre terra sem diversões e sem conhecimentos, ella que não cultivara mais amizades infantis álêm da delle!... Nos primeiros tempos as cartas amiudavam-se: elle, contando tudo quanto via de novo e o trazia em contínua sobreexcitação, em duas linhas sugestivas, sempre apressado por falta de paciencia para escrever; ella, narrando detalhadamente os pequenos casos domesticos, que tanto interesse despertam sempre ás crianças. Eram recordações de passeios e brinquedos, a relação de todas as pessôas avistadas, os amigos da casa que perguntavam sempre por elle, os seus recados, as suas proprias palavras. Luis bem o conhecia: eram verdadeiros _recados_ aquelles,--não banalidades ceremoniosas--que evocavam, á sua recordação saudosa, as figuras amigas que as enviavam, de longe. Depois, no fim das cartas, como repique festivo de sinos em vespera de dia santo, a esperança das férias, a contagem dos dias que faltavam para essa felicidade tão desejada e retardada sempre. Quando se aproximava esse abençoado mês de setembro e elle já só esperava a ordem para embarcar no grande comboio resfolegante que o levaria ao conchêgo da familia e ao abrigo das velhas paredes amigas, que tinham visto nascer e crescer umas poucas de gerações de rapazes como elle, uma carta vinha preveni-lo de que aguardasse o pai para seguirem ambos para uma dessas famosas praias do litoral onde um mês se passa sem se sentir na vida duma criança. Assim foi passando o tempo: aos anos de colegio seguiram-se os da escola, sempre despreocupados e alegres, sem que coisa alguma o preparasse para o martirio incomportavel que estava agora sofrendo, sem que coisa alguma lhe fizesse supôr o doloroso drama, obscuro e martirisante, que lá longe se ia desenrolando lentamente, esmagando com ferocidade os corações que tanto lhe queriam... Tambem, que satisfação, livre de preocupações, elle teve quando recebeu aquella carta em que Eduarda lhe dizia, entre coisas ligeiras e banais:--que tinham resolvido vender a velha casa e o quintal para irem viver para Lisbôa. Ficariam assim mais perto delle, quando as suas longas viagens o deixassem descansar por algum tempo com a familia. Assim estariam juntos durante todo o tempo em que estivesse em Portugal. Que alegria a delle! Nem sequer lhe passou pela cabeça a lembrança dessa velha casa, que os abrigara, carinhosa e maternal, como tinha já abrigado os pais e os avós, e vivia como sêr consciente dentro do fundo da sua alma. Como Eduarda, querendo poupar toda a mágua ao seu coração mal preparado para a dôr, mostrava bem conhecer essa natureza de amoravel e sentimental, que um nada arrebata á mais acêsa alegria como á mais desolada tristeza!... A vida intensa das grandes cidades, que mais a fariam a ella viver adentro de si mesma, concentrando-a no seu eu, tirava-lhe a elle a sensação nitida da sua vida propria e, apanhando-o nessa engrenagem barulhenta e niveladora, dava-lhe apenas as ideias e os sentimentos de toda a gente. Agora, com a vinda dos pais e da irmã, sentia-se bem feliz para nem sequer se deter a pensar nos provaveis motivos que tinham determinado aquella resolução. Como estaria Eduarda, que deixara ainda uma criança, tantos anos volvidos sem se verem? E a mãe? Dizia-lhe sempre, nas suas cartas, que se sentia muito velha e doente, mas elle sorria-se confiante e não a via senão como a deixara, sorridente, laboriosa e desempenada, a alma de toda aquella colmeia que era a casa paterna. Com que impaciencia febril esperou o dia marcado para a chegada, e como logo de manhã, ao alvorecer desse dia bemdito, se sentiu outro, alegre até á loucura de ter vontade de abraçar toda a gente, de saltar pelas ruas como uma criança, sentindo-se leve, surpreendendo-se diferente, mal cabendo na sua bonita farda de guarda-marinha! Ás horas da comida não conseguiu engulir com desfastio os costumados manjares da velha hospedeira, a quem deu um abraço apertado prometendo-lhe trazer a familia para que os conhecesse,--havia ella de vêr como eram seus amigos... E a velha D. Engracia, que tantas vezes se arreliara com _as suas telhas_, como ella dizia, sentiu que as lagrimas lhe vinham aos olhos com a comunicativa sensibilidade daquella alma que se escancarava para lhe mostrar quanto sentia de bom. Muito antes da tarde já elle se dirigia para o Rocio, na ideia inconsciente de se aproximar da estação onde os iria esperar, algumas horas mais tarde. Falando com um e com outro, discutindo um pouco sem se interessar muito nas conversas, entrando no Tavares Cardoso para folhear um livro, indo ao Martinho beber uma cerveja, mastigando cigarros sobre cigarros, impaciente e febril, mas alegre e falador como nunca os seus amigos o tinham visto... A hora chegou por fim, porque todas as horas chegam, por mais doloroso ou lento que seja o seu caminhar esmagante, como fogem todas, por mais que as queirâmos retardar um instante nos raros momentos que nos trazem felicidade. Elle lá estava, desde muito cedo, esperando na gare, sentindo o coração bater desordenado, quando ao fundo do túnel despontou a luz vermelha da locomotiva e o guarda tocou a corneta anunciadora, ao passar nas agulhas... Depois, que estranha sensação a sua ao vêr as três cabeças, que resumiam todos os seus grandes afectos, debruçarem-se nas janelas do vagão, sorrindo-lhe e reconhecendo-o de longe! E elle, que só reconheceria o pai, com certeza, se os não esperasse, tal era a diferença que faziam as duas: Eduarda, uma mulher perfeita, sem nada que recordasse a criança esbelta que deixara; a mãe, debilitada e encanecida, tão vélhinha, que não podia afirmar que não houvesse engano. Oh, mas a vélhinha é que o reconhecia bem, ao seu Luis, beijando-o e abraçando-o com frenesi e achando-o mil vezes mais bonito do que ao retrato. Tambem Eduarda o abraçou alegremente e achou muito bom, apesar de um pouco menos forte do que ella, que se talhara e desenvolvera longe da atmosféra falsificada da cidade, no puro ar criador da montanha. Chegou tambem a vez da Maria o abraçar,--Maria; a criada fiel que os acompanhara sempre, que era alguem na familia, uma pessôa que a todos satisfazia e com quem todos contavam. Inolvidavel momento aquelle que os reunia, depois de tão grande e inexplicavel afastamento; encantador de contentamento esse primeiro repasto, num restaurante trivial da Baixa, para darem tempo a que as bagagens podessem chegar á casa muito alegre que elle escolhera, com vistas sobre todo o estuario azul do Tejo, onde a lua entornava, nessa noite gloriosa de junho, a sua luz branca e leitosa, vagamente adormecedora... Luis sentiu-se orgulhoso com os elogios que a sua escolha cuidadosa mereceu á irmã e queria convencer a mãe de que nada havia que se comparasse ao espétáculo grandioso de toda essa cidade picada de luzes, estirando-se ao longo do rio, que centenares de pequenos faroes faziam tambem palpitar e viver, como outra cidade flutuante. A pouco e pouco, abertas as malas para que tudo fosse colocado no seu logar, Luis começou a reconhecer com enternecimento as velhas coisas que os seus olhos de petiz haviam conhecido e admirado. Foi com alegria quasi infantil que levou á mãe a velha caixa de xarão, herança da avósinha, onde eram guardadas cuidadosamente as pequeninas coisas preciosas que queriam roubar á curiosidade, nem sempre segura, das suas mãositas de criança. Uma chavena, uma jarra, qualquer coisa emfim que ia aparecendo, lhe ia trazendo uma saudade da infancia longinqua e que esvoaçava agora na sua alma como farrapo branco de nuvem distante a dissolver-se num rubro poente. A mãe, que um momento ficara só junto delle, chorava silenciosamente, olhando-o com ternura. Luis não compreendia--chorar!?... Então não estava satisfeita por estar em Lisbôa, com elle? Não viera por sua muito livre vontade? E então a pobre senhora, incapaz de por mais tempo o iludir, desejando mesmo--no egoismo inconsciente dos que sofrem--associar todos á sua dôr, não se fez rogada e disse, disse tudo, tudo quanto de amargurado e desesperador lhe tinham dado esses anos em que o não vira. --Fôra uma luta tremenda e desigual, essa que o pai sustentara durante anos, contra tudo e contra todos, sem perder a energia, sem trepidar nem recuar. Primeiro, ia muito bem nos seus negocios--o Luis devia lembrar-se... Depois, as fianças, os roubos, a má fé de uns, a inveja mesquinha de outros, abalaram-lhe o crédito, envolveram-no em questões e demandas, fizeram-no perder uma a uma todas as suas belas propriedades, as compradas á custa de muito trabalho e as que herdara pessoalmente, e até a sua propria casa de moradia, quando já nada mais tinha que desafiasse a cubiça alheia, lá se fôra embora, com o quintal. Sim, esse fôra o último e o mais certeiro dos golpes, que sangrava ainda e tarde se poderia cicatrisar na sua pobre alma dolorida. As lagrimas corriam sem parar pelas pálidas faces da bondosa criatura, que assim foi contando, uma a uma, todas as suas dôres, não poupando Luis a nenhum dos incidentes, a nenhum detalhe desse martiriologio incomportavel de lutar com os maus, os inferiores, esses que acorrem sempre a lançar a sua pedra quando presentem que a fortuna abandonou os que ha pouco invejavam. Luis, calado, ouvia, sem a compreensão bem fixada da realidade, olhando com uma persistencia dolorosa essa vélhinha que chorava um passado em frangalhos, e era a sua mãe, a mesma que elle deixara rica e tão feliz dez anos antes. --E porque lhe não tinham dito o que se passava?! Porque o tinham alheado assim de todos os desgostos da familia, como se fosse um estranho? Não era filho como os outros, não devia ser igualmente filho para as alegrias como para os sofrimentos?... --Ah, sim! Por sua vontade ter-lhe-ia contado logo o que se ia passando, mas nem o pai nem Eduarda o consentiram para que elle se não impressionasse e desviasse a atenção dos estudos, que era preciso levar ao fim sem uma falta. Luis padecia naquelle momento uma tão insofrivel amargura, que no fundo do seu coração, humanamente egoista, sentia uma onda de reconhecimento pelos que o tinham poupado daquella maneira... Devia-lhes uma pacifica e alegre mocidade, que lhe preparava uma serena vida futura. Então, nesse impulso que dá a propria revolta em toda a criatura contra a dôr que a esmaga, começou a consolar a mãe, consolando-se a si mesmo. O pai, com o emprego que arranjara numa das principais casas bancarias que até ao fim o tinham sustentado, sustentando-lhe o seu crédito para a liquidação voluntaria, ganhava certamente mais do que negociando por sua conta. Depois, elle não estava ali com tudo quanto ganhasse para lhes dar, tudo sendo pouco, é claro, para o que lhes devia?!... E a mãe sorria por entre lagrimas, numa grande consolação de apaziguamento, porque a sua dôr encontrava abrigo em outra alma que a lamentava. --Sim, a situação economica não era de todo desesperada. Dispensariam apenas o superfluo, a que se tinham habituado, e mesmo esse não completamente, porque na liquidação grande parte do seu dote podéra ficar intacto. --Oh, elle compreendia bem que não era a questão material a que mais os afligia, era a recordação dum longo passado de paz e de desanuviadas venturas que já ia longe; era a amargura desses últimos anos em que todas as suas energias se concentravam em aparentar uma soberba que não sentiam, em mostrar um orgulho que era feito de toda a condensação amargurada da sua dôr por vêrem o egoismo e a maldade dos que ferozmente lhe espiavam as lagrimas e as decéções. --Elle compreendia bem, finalmente, que o que mais lhe custara fôra o deixar essa casa que representava tanto na vida afectiva da sua bôa alma de sofredôra. Desde esse dia nunca mais Luis perdêra aquella ideia, que se tornou uma obsessão: ir visitar a velha casa e reviver diante das suas paredes, que lhe falariam do passado, todo o martirio a que o tinham furtado generosamente. Em vão Eduarda o dissuadia desse capricho do sentimento, que classificava de criancice; em vão ella lhe dizia que o passado estava morto e ninguem mais o poderia resurgir; que não havia imaginação nem vontade humana capaz de fazer voltar atraz o curso da vida, que para elles se precipitara numa cachoeira desatinada e agora ia deslisar num mais bello e sorridente campo. Mas não! Elle fizera desse projecto o seu sonho, o seu misterio de apaixonado, e iria, sem que ninguem o podesse impedir de o fazer. A ideia de que a casa que fôra o lar abençoado de toda a sua familia já lhes não pertencia, desvairava-o. Iria, acontecesse o que acontecesse, num romantico impulso de sentimento--que mal compreenderia quem lhe não tivesse compulsado os arrebatamentos de apaixonado--evocar todo o passado e embeber-se bem na dôr das eternas e irremediaveis separações. Agora, elle ali vinha, como um namorado, revêr pela ultima vez as coisas que já lhe não pertenciam, e que indiferentemente iam tornar-se para outros as suas coisas, os seus afectos. Para que viera?--pensava já--porque não se deixara guiar pelos conselhos da corajosa rapariga que tão alegremente ia entretecendo um novo ninho com os restos dispersos do antigo, desfeito pelo temporal? Porque viera?!...--É que queria sofrer, ali mesmo, tudo o que tinham sofrido aquelles que amava. Fugir a isso parecia-lhe uma covardia excessiva. Imaginava sentir assim, pelo poder evocativo da sua memoria despertada pela visão, lagrima por lagrima, desespero por desespero, vexame por vexame, revolta por revolta, a vulgar mas horrivel tragedia desse incidente numa familia burguêsa. No vagão onde passou a noite, nem uma só vez os olhos se lhe fecharam num sôno reparador. Os nervos em sobreexcitação faziam-no reviver, na memoria, todas as circunstancias torturantes em que se déra o desastre final. Sentia uma doentia voluptuosidade em pensar nos tormentos por que o seu coração teria passado se a elles tivesse assistido. Os nervos irritados por tantos dias de ansiedade obrigavam-no a agitar-se numa febre de movimento, um desejo de choro, de gritos convulsivos, que lhe desoprimissem o peito... Cada nome de estação gritado monotonamente, cortando na noite arrastada o sôno dos viajantes, era para elle o martelar desesperador do condenado que assiste ao levantar da sua propria forca. Em breve, mais um desses gritos ouvidos, a perder-se na noite, e estaria na linda terra, que revia: toda branca e faiscante nos dias ensoalhados de verão, varrida pelas nortadas ásperas da serra, nevada como uma noiva nas invernias inclementes--com as suas paisagens cristalisadas de sonho; as suas feiras rumorosas; as ladainhas atravez dos campos em flôr, pelo despertar das primaveras amorosas; as romarias barulhentas, sob um sol sufocante de canícula... Depois, os descantes; os natais, em que fôra, romeiro piedoso e crente, ao presepe do menino; as _janeiras_, cantadas á sua porta e em que os versos laudatorios lhe agradavam sempre; as semanas santas, com procissões na rua, por esse agonisar de sol doirado em que um Deus assistia á morte doutro Deus... Tudo isso elle revia, todo esse passado distante se apoderava da sua alma e o fazia viver por momentos uma existencia, que se não repetiria mais. Agora, em frente da antiga casa que lhe enchêra de sonhos os últimos mêses de vida, Luis sentia-se frio. Quizera sentir muito e não sentia nada. Nenhuma comoção, nenhuma dôr--na sua alma gelada. Nem a casa lhe parecia a mesma--e decerto não era!--cortadas as trepadeiras que a revestiam de verde e lilaz e que a perfumavam dôcemente com os cachos exoticos das glicinias rôxas. Até as janelas tinham sofrido o insulto de serem repintadas de vermelho, e as paredes estavam caiadas de branco, essas paredes de granito polido que tinham ao sol faiscamentos de mica e escureciam sem se resentirem das intemperies, suavemente, como se envelhece sem sobresalto nem luta, quando se vive sem preocupações. Já não era a mesma--nada lhe dizia ao seu coração que era a mesma. Lançou pelas janelas abertas um olhar de indiferente curiosidade para o interior e então quasi lhe deu vontade de rir, tanto era banal o mobiliario que a guarnecia, tão charramente burguêsa e sem gosto a decoração que a tornava uma casa trivial de _endinheirados_, de _adventicios_ sem educação. Fechou os olhos, concentrou-se por segundos na evocação do passado, quiz enganar-se a si proprio, mas não o conseguiu; a sua alma quedou-se, por fim, numa frieza e numa desolação de completo desmoronamento. Faltava-lhe o quintal; voltou-se para seguir ao longo do muro, deitando um olhar prescrutador para o pequeno jardim gradeado, que era no seu tempo um tufo apenas de verdura, e sofrêra, como a casa, a influencia dos novos dônos. Sim, no quintal ao menos iria encontrar as mesmas arvores, os mesmos recantos amaveis de sombra, o mesmo perfume saudavel do pomar e da horta verdejantes. E seguia, rapidamente, olhando o muro de pedra solta e que era bem o mesmo que bastas vezes saltara para comer os bellos cachos de uva ferral de grandes bagos córados. Isso não mudara, ao menos; era o mesmo que conhecera e lhe fazia lembrar tantas garotices, tanta alegria passada... Quando chegou ao alto do caminho descobriu a parte do quintal que menos estimava, porque tinha sido adquirida ulteriormente, poucos anos antes da sua ida para o colegio. Lembrava-se bem de quando o pai comprara aquelle grande campo de oliveiras e terra centeeira a entestar com o pomar, que sempre tinham desejado na familia e por teima de camponios rudes lhes não pertencia desde muito. Como elle ria, satisfeito, olhando a mulher, muito contente tambem, ao vêr cahir uma a uma as pedras do muro que ia fazer do seu pequenino quintal uma quintasinha deliciosa, mas que para elles nunca deixara de sêr o quintal. Luis sentira então, ao correr pela carreira principal, tão comprida que ao fundo deixava de se avistar a casa, uma sensação de posse, que o fazia agora sorrir. Lembrava-se bem como Eduarda estava melancolica naquella tarde de outôno, olhando o desmoronamento que lhe parecia um começo de destruição--porta escancarada por onde entrariam todos os desastres... Presentimentos de alma extremamente vibratil, ou acaso sem nenhuma significação, quem pode ao certo dizer o que determinados estados de espirito representam?! Ali tambem havia mudança... Luis começou a sentir a ansiedade da dúvida. Tinham plantado vinha nesse campo, que dantes ondulava num verde tenro pelas primaveras, e pelos verões era um manto de oiro, com as espigas acurvadas ao pêso do grão já maduro. Entrou pelo fundo do quintal, que no seu tempo tinha apenas um pequeno muro como signal de posse e agora se alteara numa hipótese de muralha orgulhosa. Seguindo pela rua mais larga, ia recordando, uma por uma, as arvores do pomar. Uma certa pereira que se erguia em roca, toda florida e branca como fogaça, e era a primeira a amadurecer as suas peras magnificas; uma rua de aveleiras baixas e tufadas, donde apanhavam ás mãos cheias as avelãs ainda em leite, que eram dum verdadeiro apetite... Depois lembrava-se dumas certas ameixas, muito rôxas e carnudas, que ainda lhe faziam crescer a agua na bôca. E a nespereira imensa que sombreava a horta, com grande desespero do velho Antonio hortelão... e a enorme cerdeira, que tinha uma historia engraçada, que os pequenos sempre contavam ao ouvido dos visitantes e os fazia desenhar gestos de nojo, o que lhes provocava uma esfogueteada de risos!?... E tantas outras que eram mais conhecidas, como suas irmãs, que iria abraçar piedosamente numa despedida derradeira. Se fosse tempo de lilazes, como teria gosto de levar um grande mólho de flôres para a mãe! Sim, roubaria, porque ao seu inconsciente criterio isso não lhe parecia um roubo: se o quintal era o seu, o mesmo que tinha deixado anos antes, que mal poderia haver nisso?! Apressou o passo até avistar a grande nogueira, plantada no ano do nascimento de Eduarda, e que já no seu tempo era uma bela arvore que desafiava a cubiça do rapazio que de fóra namorava as suas verdes nozes de bôa casta. Se não fosse noite poderia vêr no tronco rugoso as iniciais do seu nome, que Eduarda tinha aberto, na vespera da sua partida para o colegio. Mas ao chegar junto á arvore, donde se descobria todo o quintal, não poude reprimir um gesto de pavôr. Ah, para que viera ali, numa febre apreensiva de lembranças,--para reviver uma vida que já não existiria mais, para materialisar uma saudade que já não poderia sêr realidade... para quê?!... Bem lho dissera Eduarda, aconselhando-o a não dar ao passado mais do que a melancolica e vaga recordação que merece, e lembrando-lhe o dever de caminhar para a frente, de viver, como ella, uma nova vida mais nobre e mais cheia de ideais, que a faziam até abençoar esse desastre material que a libertara de preconceitos e costumes seculares... Mas elle sofria verdadeiramente e intensissimamente; era uma dôr material como a de lhe cortarem um pedaço do seu proprio corpo, ao vêr que tambem o pomar não soubera resistir á mudança de proprietario, na sua passividade de natureza vegetativa. Oh, as lindas arvores de fruto, as ruas de plumeiras decorativas,--inuteis para o criterio mesquinho do vulgo--os crisântemos estrelados, os lirios rôxos, as roseiras já grossas como arvores, tudo, tudo fôra sacrificado ao ignobil desejo do lucro. Tudo desaparecêra, para dar logar á vinha! Como sofria com tal hecatombe, e como sentia no seu proprio sêr os gemidos doloridos das suas plantas mortas, cujas almas erravam ali sem dúvida--elle ouvia-lhes e compreendia-lhes as queixas esparsas naquelle ar triste de cemiterio... Vinha: toda a horta, todo o pomar, o seu proprio jardinzinho cultivado com tanto disvelo! Um soluço lhe subiu do peito oprimido, e as lagrimas vieram-lhe, sem querer, aos olhos ardentes. O quintal tinha pouca agua, sim, elle sabia isso,--fôra até a grande preocupação da familia--estando numa encosta que declivava dôcemente até ao ribeiro... Mas nunca lá tinha morrido nada com sêde; pelo contrario, as arvores desenvolviam-se a olhos vistos. Todo o desespero das coisas fatalmente irremediaveis o sacudia e fazia halucinadamente padecer. A vinha! Como detestava essa planta, de que transformam em subtil veneno o dôce e aromatico sumo do seu fruto, e que estropia mais criaturas e faz correr mais sangue e mais lagrimas pelo mundo do que exercitos em campanha! Como se tornava odiosa aos seus olhos essa planta, que torce convulsamente para o céo os braços descarnados de esqueleto, e como a desejaria queimar, numa furia vingativa de inquisidor! Luis amaldiçoava mil vezes essa planta, que é tão estimada, porque representa a cupidez explorando o vicio. Diante dos seus olhos, embaciados pelas lagrimas, todos esses troncos nus se animavam e viviam dançando numa roda selvatica de possessos. Como detestava entranhadamente, sagradamente, a vinha! Não lhe lembrava, por certo, a alegria rubra e ruidosa das vindimas, quando elles iam todos, pelos poentes fulvos dos lindos outônos da sua terra, ás propriedades de fóra, e voltavam atraz dos carros que as dornas a transbordar faziam chiar doridamente, ora enterrando-se na areia solta das azinhagas orladas de silvas, ora trambulhando pelas lages e pedras dos caminhos carreteiros. Nem sequer recordava o delicado e suave perfume a resêda da vinha em flôr, quando na primavera as noites são frescas e os rouxinois cantam pelas ramarias os lirismos dos seus amôres e as romanzas dos seus noivados. Via sómente os esqueletos tristes que tinham expulso as suas arvores amadas, as suas flôres escolhidas, as esbeltas trepadeiras, tudo emfim que fazia o encanto daquelle pedaço de natureza que fôra uma parte da sua propria alma e deixara de existir para sempre. Luis abraçou a nogueira, numa última expansão de sentimental, beijou-a devotamente, como a uma velha amiga que se lhe tivesse conservado fiel ao coração, e afastou-se lentamente daquelle logar que fôra de martirio para a sua alma, como a mêsa de operações dum hospital onde se amputa um membro infermo. Ainda de longe olhou para traz, e, num instintivo movimento, tirou o chapéo num último adeus á leal amiga que o vira nascer e fôra a unica que lhe soubera conservar a ilusão do passado. Um adeus, um último e enternecido adeus, e tudo tinha acabado. Foi quasi com indiferença que de novo transpôs o muro, sorrindo para o pinhal que marulhava como as vagas de vagabundo mar, e que era o mesmo ainda. Esse não tinha mudado. Quando o comboio se pôs em marcha para o internar de novo na sua vida do presente, depois daquella tentativa de viver pela recordação um passado sepulto, Luis sentia a impressão estranha de que a terra que deixava não era aquella em que tinha vivido uma tão importante época da sua vida. Essa, parecia-lhe ter desaparecido completamente, como se a tivessem rasgado do mapa e a tivessem substituido por uma outra vila burguesinha, cheia de sol e de gente palradora e vasia, a mexer-se e a dançar indefinitamente. Quasi a dormitar seguia vagamente essa gente, ia escutar-lhe as palavras para rir do mesmo riso banal, e ficava silencioso, sem nenhuma impressão de alegria ou tristeza. Depois... tudo se foi diluindo, aos poucos, e adormeceu profundamente, revendo de novo a terra antiga, com varandas revestidas de trepadeiras perfumadas, silencios religiosos, as arvores, as casas, os costumes, e a gente que era dantes... II A Feiticeira A FEITICEIRA «La peur qui met dans les chemins Des personnages surhumains La peur aux invisibles mains qui revet l'arbre D'une carcasse ou d'un linceul Qui fait trembler comme un aïeul Et qui vous rend, quand on est seul, Blanc comme un marbre.» MAURICE ROLLINAT. De todos os rapazes da aldeia era o Manoel da Clara o mais querido das raparigas. Fôra sempre um belo rapaz de afugentar rivais, mas, desde que viera da tropa e de lá trouxera aquelle ar desdenhoso de feliz D. João, aprendido no convivio dos camaradas presunçósos e mulheres de vida airada, parece que as enlouquecia. Acostumado a ajustar a farda, como apertava bem a cinta de lã preta ou carmezim, que parecia trazer espartilho, o démo do rapaz! Os sapatos com o lustro bem puxado, que pareciam de verniz; o chapéo garbosamente descahido sobre a esquerda; a ponta do cigarro atraz da orelha; e o lenço, com flôres e uma legenda bordadas a côres vivas, a sahir da pequena algibeira da jaqueta, as mais das vezes levada ao hombro; o Manoel era na verdade a nata da rapaziada do logar. No meio dos outros, com as suas caras rapadas de lôrpas, valentes mas sem a elegancia dos gestos disciplinados pelo exercicio regular, o seu pequeno bigode de cidadão retorcia-se aos domingos com uma petulancia irresistivel. Nas feiras e romarias, firmado no varapau metido debaixo do braço, toda a vaidade satisfeita a brilhar-lhe nos inquietos olhitos garços, desafiava toda a concorrencia desagradavel. Ás raparigas iam-se-lhes os olhos nelle, e mediam-se com o rancôr de rivalidades latentes. E valentão!?--como aquilo poucos! E, como sempre, era a superioridade material da força e da coragem o que mais o fazia valer aos olhos de primitivas femeas, oferecendo-se orgulhosamente ao vencedor, ao macho forte e soberbo. Quando o Manoel, com um rapido piparote atirava para a nuca o chapéo móle de largas abas, dava um passo atraz, fazia girar o varapau em sarilho sobre a cabeça, e torcia a bôca espumante num esgare de raiva... podiam fugir delle! Contavam-se na aldeia as valentias do Manoel com o mesmo entusiasmo e ufanía com que se contariam as de um heroi da historia, um heroi autêntico, de que a tradição nos deixasse o nome e a memoria de largos feitos. Uma vez era todo o povo de Infias que se juntara para o desafiar, raivosos por uma questão de mulheres de que o Manoel era afortunado protogonista, e que elle _enfiara_ pela serra abaixo--que até parecia que o vento os levava. «Ó Manoel, lembras-te?... «E daquella vez na romaria da Senhora dos Verdes?... «E na feira, quando foi da compra dos meus bois?!... As perguntas, as respostas, as diferentes versões e comentarios, envolviam o Manoel num côro de louvôres, que elle recebia mal disfarçando a vaidade num meio sorriso modesto emquanto ia enrolando o cigarro entre os dedos fortes onde brilhava um anel de cobra, o encanto e a inveja dos mais rapazes. No jogo da bola, ao domingo, no terreiro da igreja, nenhum o excedia, como ninguem era capaz de o vencer numa partida de chinquilho ou no jogo do pau. Um valentão, um rapaz ás direitas, sempre pronto a fazer um favôr, riso franco, coração nas mãos para os amigos; ninguem emfim mais digno da estima dos seus patricios e ninguem que de facto fosse mais estimado do que o Manoel da Clara. Álêm de todos estes merecimentos fisicos, que o superiorisavam, ainda era senhor de algumas belgas, e unico herdeiro da meação da mãe, a viuva do Rezadeira, que ajuntara o seu peculiosito na _casa dos fidalgos_. E era uma mulher de trabalho, a velha Clara do Rezadeira, que só tinha olhos e coração para o filho, o seu enlevo e orgulho. Primeiro do que ninguem, como o galo da manhã, saltava da cama, onde a asfixia dum coração emperrado mal a deixava socegar, e começava a labuta de todos os dias: amassando o pão, chegando ao forno a prevenir a forneira, cosinhando a vianda para os cevados, chamando a gente para o trabalho, despachando serviço, ralhando com um, combinando com outro, e sem nunca perder de vista a panela onde se cosiam as batatas para o caldo verde que o seu Manoel havia de comer antes de sahir, na sua tigela bem meada de brôa. Mal elle aparecia, ainda espreguiçando-se e os olhos mal abertos mas já risonho e feliz como soberano que se julga crédor de todos os afétos e homenagens, a vélhota aprontava tudo num ápice, rindo e ralhando num visivel contentamento de quem se revia no rapagão, que era o seu filho. É claro que não havia rapariga na aldeia e arredores á qual não agradasse a ideia de poder vir a sêr a mulher estimada do Manoel, a senhora do seu coração e do rico bragal de linho que a velha mãe guardava avaramente nos grandes arcazes de madeira de fóra, grossamente chapeados de ferro. Elle ria-se com todas, o patife, querendo gosar o mais possivel a sua situação de desejado, sem até ahi mostrar preferencias comprometedoras por nenhuma. Mas, entre todas, havia duas que nos últimos tempos mais preocupavam o Manoel, com grande contentamento da mãe que ansiava por o vêr casado com rapariga que fosse do seu calhar:--só assim morreria descansada, pois uma cabeça alevantada como a delle precisava bem do arrimo duma bôa mulher de trabalho. Por felicidade, as duas raparigas que o Manoel trazia debaixo de vista agradavam por igual á velha Clara--assim tinha liberdade para á vontade consultar o coração. Uma, Maria Tereza--a Terezinha, como lhe chamava quando acertava de a topar no seu caminho--era afilhada da _fidalga_ e lá pelo palacio se tinha criado com mimos e delicadezas que as outras não conheciam. Era com uma graça toda senhoril que punha os olhos no chão e enrubecia como romã bem madura quando elle a fitava de frente, bem de frente, como fazia ás mais, sem conseguir com isso chamar-lhes o sangue ao rosto, mas fazê-las explodir em jocundas gargalhadas. O seu andar lento e ondulado dava um realce de elegancia exotica ao seu corpo delgado de anemica, flôr tristemente desabrochada entre paredes sombrias e velhas coisas impregnadas da melancolia dos tempos passados. Como era a unica que na terra sabia lêr, eram tambem os seus os unicos olhos que na missa se não levantavam do livro para andarem em leilão pela igreja á procura dos rapazes, que lá de longe, e de soslaio, não perdiam o grupo buliçoso da raparigada. A madrinha queria-lhe muito, era o que todos afirmavam, e se não tivesse morrido nem a Terezinha sahia do palacio, onde era respeitada como filha da casa, e, talvez, se a morte não fosse repentina, tivesse ficado senhora daquella fortuna, quem sabe!?... Tem-se visto coisas mais raras. E melhor teria sido para a terra, pois a casa dos fidalgos, que fôra sempre abrigo de miseraveis como consolação de desgraçados, mal a senhora morgada fechara os olhos fechara-se tambem á pobreza, com uma crueldade que revoltava toda a gente. Os herdeiros, uns primos em último gráu legal, souberam da sua morte sem testamento e acorreram de Lisbôa em marchas forçadas. Mas, tudo liquidado á pressa, apartaram gulosamente, para figurarem nos salões da capital, as preciosidades que enchiam e decoravam o velho solar. Durante alguns dias não se ouviu senão o martelar dos carpinteiros fazendo e pregando caixotes e não se via senão a moderna condessinha, muito prática em antiqualhas preciosas, abrir portas e armarios, percorrer os salões e os sotãos, dar volta ás paredes e ás bojudas cómodas de floreados embutidos, que seguiram com os candelabros, as joias, os quadros e os Sèvres ricos como os incontaveis Chinas para o sorvedoiro de Lisbôa. Depois, mal o Conde, com o seu ar mais chic de fadiga, deu por terminadas as contas e entregues as propriedades ao feitôr trazido das lezirias ribatejanas como pessôa de inteira confiança, fugiram atemorizados pela tristeza pesada e humida que resumbrava o casarão quasi deshabitado havia anos, desde que a fidalga se tolhêra de todo e passava os dias nos aposentos mais ensoalhados onde fizera a sua habitação e a da Terezinha, que lhe lia os autôres predilétos e a arrastava na cadeira de rodas pelas ruas ensombradas pelos buxos seculares do jardim. Verdade seja que a Senhora Condessa, sabendo o amôr que a velha prima dedicava á afilhada e a docilidade e o desinteresse com que ella a servira e cuidara até ao fim, ofereceu-lhe o logar de sua criada de quarto e obrigou o marido a pôr em seu nome algumas propriedades arredadas ou a arbitrar-lhe o seu valôr em dinheiro, coisa duns cem mil réis, para os seus alfinetes, o que a tornaria na aldeia uma pequena morgada. A Terezinha agradeceu cheia de reconhecimento a generosa munificencia da condessinha, a quem serviu, como ella nunca fôra servida, até á última hora que se demorou no palacio. Depois, quando se viu fóra do ninho onde a sua alma se emplumara e o seu corpinho debil de criança pobre crescêra e se tornara de mulher perfeita, sentiu-se como que isolada num vasto campo deserto. Mas, séria e ponderada como era, tomou logo a mais acertada resolução: indo viver com a tia, a Zéfa do Padre, uma que fazia belos dôces e fôra por muitos anos ama do velho abade. E para encher os dias, tão longos agora quanto lhe pareciam pequenos dantes a rodear de cuidados a madrinha paralitica, metêra-se a tecedeira. Em breve era a melhor, sem favôr, que havia na terra. O seu tear, no monotono bater do pedal e correr da lançadeira, só parava aos domingos e algumas horas da noite. Aquella vida de reclusão mais lhe amaciava a pele e dava um tom ligeiramente empalidecido ás suas feições miudas. --«Mas era alegre dantes!... Agora, _dês_ que o _Manél_ da Clara veiu de soldado e entrou de atentar nella, é que de mais em mais se vai definhando, que nem já parece a mesma. Louvado seja Deus, que só trabalhos e desgostos me chegam _pró_ fim da vida. Dizia isto a Zéfa do Padre á Gertrudes Zarôlha, velha conhecida dos longinquos tempos da mocidade, assentadas á porta, com a roca á cinta e o fuso girando e torcendo o linho cuspinhado pelas suas bôcas palreiras. --«Mas então aquelle desaustinado não diz nada cá á nossa cachopa?!... --«Qual historia! Que eu saiba, ainda não lhe disse fala _pró_ bem nem _pró_ mal. --«Que desaforado! O que elle precisava sei eu!... Uma rapariga como a nossa Terezinha!... Crédo, santo nome de Jesus! Mal empregada é ella para tal libertino, que veiu mesmo perdido da tropa!... --«Lá isso, ó Gertrudes, mau rapaz não é elle, e tem o seu bocadinho... --«Ah, mas tem uma cabeça mais leve! No nosso tempo parece que não eram assim, ó Senhora Zéfa! Quando algum pretendia duma rapariga, dizia-lho, e estava acabado, iam _prá_ igreja os banhos!... --«Ora, eu sei lá! Haveria de tudo. Estas coisas esquecem muito, e o nosso tempo já lá vai ha tanto!... --«Ai eu cá lembra-me perfeitamente, que o meu _home_ assim fez. Foi até numa cava; calhou eu ficar ao pé delle, e fômos ao desafio. Como eu é que ganhei, elle então deu-me um abraço muito grande e disse-me assim:--Ó Gertrudes, és uma mulher _duma cana_; ámanhã se tu quizeres vou falar ao senhor abade e _vame-nos a botar os pregões_. E assim é que foi... --«E eu que ainda me lembra do senhor abade vir p'ra casa a rir muito e a contar o caso á minha tia--que Deus haja! Ainda ella então andava rija e _féra_, coitadinha. --«Mas vocemecê já lá estava, pois não estava? --«Pois estava, desde a idade de oito anos que fui p'rá companhia da minha tia até á idade dos cincoenta em que aquelle santo rendeu a alma a Deus! Ficou-me nos braços... --«Coitadinho! Tão bom homem, tão sério, era como o nosso pai de todos. Veja lá se tudo não vai a peor! Olhe-me para o desatino em que este anda por ahi, com as raparigas e as mulheres dônas de sua casa, atraz, sempre em cantorias, e em rezas novas, que nem podem agradar a Nosso Senhor... --«Já o dizia o senhor abade: a religião deve sêr a consolação da nossa vida e não o seu unico fim. Mas essa jesuitada entrou por toda a parte com este rapazelho do seminario--e bem mal têm já feito e hão de fazer ás familias!... O senhor abade bem dizia, bem dizia... E bastantes desgostos teve nos últimos tempos, que lhe amarguraram o resto dos dias... Coitadinho! Assim Deus lhes perdôe, que eu não posso tragá-los. Até me custa ouvir a missa daquelle avejão--Deus me perdoe se péco! --«E o que me diz ás amizades delle com os feitôres da fidalga?! Ella toda _trinques_, caminho da missa logo de madrugada; as filhas de güelas abertas com as tais _onzenices_ de cantorias na igreja, e mais florinhas p'rá qui, e mais rendinhas novas nas toalhas do altar, confissão a cada passo... Eu nem sei, eu nem sei!... --«E o marido? Vocemecê hade ouvir alguma coisa--está ali á beirinha da casa... --«Ora o marido!... Tambem gosta muito daquellas coisas, e reza e canta e leva o padre p'ra casa a jantar e a tomar o chá, as mais das vezes. --«_Eia!_--vivem como fidalgos! --«Aquelles grandes excomungados! No tempo da fidalga, graças a Deus ninguem batia áquella porta com fome que não trouxesse uma consolaçãosinha; agora nem um chavo! Tudo querem para elles, aquelles ladrões!... Parece que ainda estou a vêr a Terezinha ir a correr contar á fidalga e vir logo com uma abada de pão ou de fruta, ou umas batatinhas, ou uma tigelinha de papas e o bocadinho de carne!... --«Pobre Terezinha, tão mimosa foi da madrinha e agora tão triste a vejo! --«Mas aquelle maroto não lhe dizer nada é o que me dá no gôto!... --«Elle passa por ahi ás tardes, e ri-se para ella... Quando vai a alguma romaria sempre lhe traz uma prenda e um cravo com um verso _bem calhante_, mas nada mais! Ella então é uma tôla pelo rapaz! Mas quando o vê faz-se encarnada como um pimentão, põe os olhos baixos, e nem sequer o salva. --«Ora essa! Tem sua graça, tem! --«Eu nem posso explicar isto. Que a minha Tereza--não é por sêr minha sobrinha--não é de engeitar... é a melhor cachopa cá da terra. --«Ora isso, nem se fala! Compara-se lá! Basta saber lêr e têr a _inducação_ que teve. É a flôrsinha da nossa vila. --«Pois isto dá-me cuidado, dá! E não é pouco... A pequena só me tem a mim no mundo, e eu estou velha e cansada; queria-a vêr arrumada antes de fechar os olhos. E com o _Manél_ da Clara do Rezadeira gostava, lá isso gostava: a mãe é rapariga do nosso tempo, e elle tem alguma coisa de seu, e no fundo não é mau rapaz. Mas então!... Parece bruxaria. --«Ai senhora Zéfa, não pônha mais na carta. Isso hade sêr, hade! E não é mais nada senão coisas daquella atrevida da Maria do Próspero! Aquilo sempre fôram de má raça. Até o pai... hade saber! Não?! Pois eu lho conto. Crédo, santo nome de Jesus! Cada vez que me lembra até os cabelos se me põem em pé. O que aquelle malvado disse de mim, que sempre entrei em casa da fidalga, que Deus tem, com toda a franqueza!... --«O que foi então? --«Ai não sabe?! Aquele grande diacho, Deus me perdôe! Então não disse elle que eu é que chupara o morgadinho, o filho da senhora fidalga!? Aquella aventesma!... Nem que eu não soubesse!... Bom, calo-me, que é melhor... E mudando de tom, muito confidencial e amigavel: --«Posso dizer-lhe de certeza: a Maria do Próspero conversa com o _Manél_ e parece que o traz enfeitiçado. Olhe que lhe ouvi eu dizer--que primeiro estava ella, que já o namorava ha muitos anos, ainda antes de elle ir para a tropa, e que nunca a _lesma_ da Terezinha o havia de apanhar! Desculpe, senhora Zéfa, aquilo é uma atrevida, uma doida!... Pois de que raça ella é!... --«E o que é certo é que vai levando ávante o seu intento; tem artes do demonio!... --«Deixe estar, deixe estar... Eu sei cá umas coisinhas que hãode voltar o _Manél_, oh se hãode!... Assim eu tivesse uma coisa que lhe pertencesse... Coisa de vestir era melhor... Punha-lhe a pedra de ara e dizia a oração... É coisa certa. --«A Terezinha tem um lenço que elle lhe deu, mas fosse lá falar-lhe nisso!... Toda se zangava, não acredita nestas coisas... --«Pois são bem verdadeiras... --«O outro dia ensinei-lhe que cruzasse as pernas mesmo de pé quando a atrevida da Maria passar por ella... Desatou a rir! --«Ah, isso é uma coisa certa para livrar do mau olhado de quem nos quer mal. Sabe o que era muito bom? Era fazer á pequena um defumadoiro com hervas colhidas na manhã de S. João... É o alecrim, o funcho, a dedaleira, o rosmaninho, o sabugueiro... Se quizer, eu tenho lá. --«Muito obrigada. Assim ella quizesse!... Bem se fazia um defumadoiro que a livrasse daquelle enguiço. Assim continuaram em conversa larga, cheia de combinações e reticencias, que muito as interessava, emquanto a Terezinha dentro de casa trabalhava na teia branca, que parecia sempre a mesma, eterna como as suas máguas. O tear monotonamente fazia subir e descer os _pentes_ com um barulho sêco e igual, emquanto ella levantava a sua vózinha agradavel de soprano numa toada melancolica: --«Eu heide amar uma pedra, Deixar o teu coração; Uma pedra não me deixa, Deixas-me tu sem razão». E ao dizer a quadra, que parecia sahir-lhe do proprio coração, os olhos enturvecidos de lagrimas fitavam a estampa ingenua que elle lhe trouxera da Senhora do Castelo, a grande romaria de setembro. Todos os anos lá ia--era o costume--e tambem a Maria do Próspero, que punha nos ranchos um contínuo esfusiar de gargalhadas terçando galhardamente com os mais afamados _piadistas_ as armas perigosas da chalaça e da resposta á letra. Cantavam ao desafio, ella e o Manoel. Tinham fama por todas aquellas redondezas, e, mal as suas vozes se trocavam num principio de duelo, os auditores cercavam-nos e apertavam-nos num círculo de admiração excitando-os com risos e ápartes. Tambem era o par certo em todas as romarias--talhados um para o outro! A Maria era alta e desempenada! A sua tez, dum moreno intenso, fôra brunida pelas soalheiras ardentes e curtida pelas ventanias agrestes. A bôca, sempre aberta em riso, era vermelha e fresca como cerejas maduras, e os dentes brancos e agudos cravavam-se com delicia no pão de milho, sua unica escôva. As saias, rodadas em balão, faziam-lhe mais altas as ancas já de si redondas e fortes; o cabelo, em duas tranças pregadas, enchia-lhe a cabeça como uma touca de veludo negro. Quando punha o cáchené vermelho e amarelo de grandes ramagens verdes, o chale em bico traçado deixando livre o braço esquerdo, a chinela branca pespontada na ponta do pé, nenhuma como a Maria do Próspero para arrebanhar admiradores. Depois, sempre satisfeita, radiava em plena expansão dos seus vinte anos sadios, vividos em plena natureza. Nas ceifas, ao ardôr dos sóes caniculares, mangas arregaçadas mostrando os braços trigueiros e musculosos; ou no gesto mecânico de juntar as paveias e sobraçar os mólhos, tinha a harmonia escultural e grave duma Céres fecunda. Nas vindimas, era a primeira dos ranchos, vermelha do môsto que corre como sangue generoso, a bôca escancarada em risos e cantigas... Tinha um aspecto quasi tragico e uma beleza perturbante e assustadora de bacante. Pela apânha da azeitona, quando os campos amanhecem brancos da geada que toda a noite cahira manso e manso, tudo uniformisando sob a sua alvura de sudario, e o frio corta as mãos, que se _engatinham_, e entorpece os dedos que mal se podem dobrar, ella motejava de todos, sempre na frente, cantarolando e rindo, enchendo de ânimo os mais desanimados, encorajando os mais entanguecidos pela friagem. Sempre pronta para o trabalho, a Próspera, em todas as sáfaras e com todos os tempos! Mas, tambem, não faltava ás romarias e ás feiras das cercanias, com o seu lenço berrante, o casaquito branco engomado a capricho, e a sua alegria saudavel, que fazia bem vêr. O Manoel não resistia áquella força que chamava a sua força, áquella exuberancia de mocidade que atrahia a sua mocidade. Quando a via, nem sequer pensava na Terezinha, que se ia finando lentamente ao compasso triste e monotono do seu tear caseiro. E, no fim de contas, para falar a verdade, a Maria era tambem uma bôa rapariga, que nunca tivera outro conversado. Nem havia lingua danáda de velha de soalheiro que se atrevesse a debicar nos seus créditos. Alegre, sim; rir com todos, vá! Mas atrevimentos não os consentia a ninguem. E tinham-lhe respeito--que a sua mão era lésta, e um sopapo da Próspera não era brincadeira! Só o Manoel gosava da sua confiança e só com elle tinha as suas _graças_ e brincalhotices mais livres, o que mais o afervorava naquelle amôr crescente que o ia conquistando dia a dia. Á noite, nas esfolhadas, quando o luar é môrno e as flôres têm um perfume mais intenso, corriam um atraz do outro, batiam-se fortemente, e cahiam ás vezes sobre a palha ainda quente do sol, com um cheiro sêco que entontece. As gargalhadas seguiam-nos de todos os lados da eira, as chalaças cruzavam-se no ar como morcegos de pesado e estonteado bater de azas:--Eh lá, Maria, vê se tens mais força do que elle! Isso é que era um riso, o valentão deixar-se bater por uma mulher!... --«Talhados um para o outro--isso é que não havia dúvida, nenhuma! --«A Zéfa do Padre que se deixasse de querer casar a sobrinha com o Manoel. --«Bôa rapariga, lá sobre isso não havia duas opiniões; mas a Maria é que estava a calhar para um homem de trabalho, uma mocetona daquellas que era capaz de voltar um campo sósinha. Os homens votavam pela Maria, bela mulher para tudo e forte como uma torre. As mulheres, essas eram pela Terezinha, delicada e amavel, pondo sorrisos de aquiescencia onde a outra só tinha ruidosas gargalhadas de troça. Era ella que lhes talhava e cosia á máquina, sem paga, as chitas pobres, mas apesar disso tão dificilmente compradas, e lhes ajustava os coletes de linho grosso que tão irmanados lhes erguiam os seios até á raís do cólo:--«Ora, sempre era _outra loiça_! Podia lá comparar-se! Bem se via que tivera outra criação, lá em casa da fidalga, que a tratara como filha. --«Que elle gostasse della, vá! Agora da Maria, uma cachopa como as outras!... O Manoel, ainda indeciso, mas já a inclinar-se para a Maria, irritava as mulheres que se ofendiam com a insolente alegria da rapariga, que andava radiante com o seu ar de triunfo certo. A velha Gertrudes Zarôlha vivia sobre brazas, nos últimos tempos. Com meias palavras ou redundancias enigmaticas conseguia sobresaltar o coração do rapaz, mas não desviá-lo duma paixão que se harmonisava inteiramente com o seu modo de sêr moral e fisico. --«Casar com a Maria--dizia a velha á bôca cheia--era até um pecado!...--e benzia-se com gestos de apavorada, que não explicava mas punha de sobre-aviso as consciencias timoratas. Por uma noite de verão, sinistra pelo negrume de nuvens carregadas de eletricidade e prometedoras de fortes aguaceiros que toldavam o céo, voltava o Manoel da Clara da vila proxima onde assistira á feira. Um calôr asfixiante pesava como chumbo no abandono pungente da paisagen lugubre. Os pinheiros esguios tinham um murmurio mais triste e vago, como soluços suspensos de almas em pânico, e o olival verde negro destacava-se no fundo, apertando como num cilicio doloroso a pobre terra que se dependura de fraguedos rudes, sempre ameaçada pela montanha que a cavalga e lhe limita o horizonte, cortando-lhe toda a esperança de se expandir por ali, como o pecado véla e corta toda a esperança da alma piedosa... O Manoel, que tinha ficado um pouco para tarde, conversando com uns amigos na taberna do Geitoso, vinha assobiando alegremente, caminhando despreocupado e sem grande pressa. Ao passar pela _Fonte do Inferno_... diabo!... que ouviu elle?! Um rumôr confuso de gargalhadas, que aflavam no ar como grasnar longinquo de corvos... Mêdo?.... Elle não tinha mêdo, mas desde que acontecera aquella historia da casa dos Carneiros... _Crédo! Abrenuncio!_ --E não se benzeu, o Manoel, como lhe cumpria fazer, ao lembrar-se de coisas daquellas!... A tropa é que estraga os rapazes, está visto... Agora, as gargalhadas já soavam mais perto... diria mesmo que ouvia a Maria do Próspero. --Mas naquelle sitio, áquella hora!... Quem se atreveria?!... --Em casa dos Carneiros,--lembrava-se involuntariamente--aquelle barulho de cadeias a arrastar, os ferros em braza que vinham cahir aos pés da gente da familia, o vozear sinistro que se escutava em toda a aldeia e trazia apavorados os mais valentes... Deus do céo, que terror fôra na terra toda! Já ninguem dormia nem descansava. Muitas mulheres tiveram então _espiritos_ que os padres e os _bentos_ esconjuravam, e se batiam com elles como forças iguais. --Só depois que o senhor Vigario velho se resolveu a sahir, de capa de asperges, para benzer a casa endemoninhada, é que tudo socegou... O Manoel já não assobiava, e ia olhando de soslaio para o Camborço, pedraria escalvada suspensa por milagre sobre o abismo e que a toda a hora parece desabar e soterrar as pobres casas de pedra solta tisnadas pelo tempo. Um ventito picado e quente levantou-se então, trazendo o rumôr distinto de vozes, gritos surdos e gargalhadas abafadas... O Manoel era destemido; apesar da má fama do sitio, tido como logar de maleficas reuniões diabolicas, resolveu-se a transpôr o pequeno muro que separava o caminho da _Fonte do Inferno_, a propriedade de mais estimação dos velhos fidalgos. Primeiro, não viu nada; depois, vaga e confusamente, luzinhas que saltavam e atravessavam-se corriam e perseguiam-se, juntavam-se e tornavam a afastar-se... Um calafrio lhe percorreu o corpo e sentiu na espinha dorsal uma sensação desagradavel que o fez tremer. O Manoel era valente,--nisso não podia haver dúvida!--mas é que aquilo que via tão realmente como se á luz do sol olhasse as suas proprias mãos eram as feiticeiras, tal qual a sua mãe as tinha visto tambem quando em pequenino esteve ameaçado de sêr chupado por ellas... Entre curioso e medroso--já agora não sahiria dali sem vêr o que aquilo era. Acercou-se da eira onde a ronda sinistra era mais febril...--Jesus, que coisa horrivel!--Olharapos corriam vertiginosamente, que mais pareciam voar, na noite negra, com o seu unico olho flamejante no meio da testa, lanterna magica das profundezas do averno!... Um lobis-homem passou a galope, no seu fado triste, procurando alma christã á qual podesse, antes da meia-noite, entregar a sua cruz martirisante. Se elle o tivesse topado!... Até os cabelos se lhe punham de pé. As luzinhas continuavam correndo alígeras, voando na escuridão dura da noite. Surrateiramente foi-se aproximando da eira onde chamejavam em halucinado rodopio... A pouco e pouco ia-as distinguindo na sua fórma humana, girando buliçosas e gárrulas. No meio da roda--cruzes! como podia aquilo sêr?!...--o Diabo passeando altivo, vestido de encarnado e de chapéo guisalhante, poisando os pés de forquilha sobre as cabeças das feiticeiras, que riam sarcasticamente. Dessa vez o Manoel não poude deixar de rir, tão patusca lhe pareceu a cêna. Ah! mas quando elle viu com os seus proprios olhos--tão certo como haver a luz do sol que nos alumia!--adiantar-se uma das luzinhas e, tornando rapidamente á sua figura de mulher, aparecer-lhe a Maria do Próspero, tal qual ella!... E quando a viu chegar ao pé do _homem vermelho_, estender-lhe os fortes braços roliços e trigueiros, abraçá-lo com ardôr, não poude retêr um surdo grito de raiva. Aquelles braços, que só o pensar nelles lhe fazia febre; aquella mulher, que o trazia prêso havia tanto tempo e com a sua honestidade alegre e simples conseguira o seu respeito e o seu amôr, estava ali em frente delle abraçando outro! E esse outro--Deus do céo, que até a sua alma tremia!--esse outro era o proprio Diabo em pessôa! Tremia de desespero e horror por essa criatura, que não passava afinal duma feiticeira. Uma tremura nervosa e um frio de gelo o faziam vibrar todo. O sangue subia-lhe á cabeça, punha-lhe zoeiras nos ouvidos, halucinando-o. As luzitas recomeçaram a dansa, numa _farandola_ de _sabbat_, correndo e saltando, num delirio de gargalhadas frias como entre-chocar de ossos numa dansa macabra. Ao Manoel parecia-lhe que tudo dansava á volta delle, que elle mesmo se sentia voar num rodopio de entontecer. Agora o Diabo, sentado num trôno luminoso de feiticeiras, os pés de bode torcidos e negros a descansar sobre o formoso corpo de Maria, como se fosse um estrado, lia um grande livro de capas encarnadas. A cada folha que voltava, sahia uma nuvem de diabitos fantasticos, saltitantes, folgazões como garôtos ao sahir da escola, que iam juntar-se ás feiticeiras, e tudo corria, voava, num cabriolar estonteante e doido. Uma das luzes aproximou-se então do Manoel, que ficara empedrado na contemplação da cêna que o atordoava e lhe tirava toda a sensação da vida, e rapidamente se fez mulher. Ficou boquiaberto, pois a bruxa era nem mais nem menos do que a Gertrudes Zarôlha, a velha amiga e confidente da Zéfa do Padre. Se tivesse pensado melhor não se teria espantado tanto, pois essa era tida e havida por tal desde que o compadre Marques, o alfaiate, a encontrara feita galinha, lá para as bandas da vila, arrastando após si uma ninhada de frangas, as discipulas que ia exercitando pela noite alta. Admirou-se:--uma galinha tão tarde fóra da capoeira!?--e dando-lhe com o metro partiu-lhe uma aza. Logo a Gertrudes tornou á sua fórma natural e lhe pediu que se calasse, pois em paga do seu silencio lhe daria todos os anos uma camisa nova. Mas o que é certo é que toda a gente soube do caso, sob segredo, e elle nem por isso deixou de receber anualmente a bôa camisa de pano de linho. A Gertrudes quedou-se diante do Manoel: feia e engelhada, a bôca vasia de dentes, o cabelo esbranquiçado e crespo a fugir do lenço de chita, uma cavidade vermelha no logar do olho direito perdido não se sabia por que desastre. --«Ai, Manoel, pobre rapaz, desgraçado!... Se o Senhor te visse, estavas perdido neste mundo e no outro!... Elle olhava-a emparvecido, numa confusão labirintica de ideias, que não explicava nem compreendia. --«Ouves, Manoel?--continuava a velha bruxa.--Eu sou tua amiga, não te quero vêr perdido. Olha, escuta, toma sentido no que te vou dizer: O _Senhor_ vai perguntar quem corre mais, para lhe entregar a caldeirinha que veiu hôje do inferno para a nossa missa. Tu hasde dizer que corres como o pensamento, agarra nella, e foge. Corre quanto podéres! Só estarás em segurança agarrado á corda do sino da igreja, depois do galo preto romano cantar pela terceira vez depois da meia-noite. Corre, corre quanto podéres, e livra-te de olhares para traz, oiças o que ouvires, sintas o que sentires. Ainda que te chamem pelo teu nome, não olhes nem páres,--olha que depende dahi a tua salvação e a tua vida! Afastou-se saltitando, outra vez luzinha, a misturar-se com as outras na dansa macabra. O Manoel ficou estarrecido, mas o proprio mêdo lhe deu energia bastante para responder com segurança á pergunta que o _homem vermelho_ fazia em voz tão formidavel e soturna que toda a natureza estremeceu de pavôr e os corvos no visinho cemiterio grasnaram agoirentamente. Tendo gritado, no meio de vozearia geral, como lhe ensinara a Gertrudes Zarôlha,--«corro como o pensamento!»--agarrou na caldeirinha magica que estava no meio da roda e desatou a correr com quanta força tinha, em diréção á igreja, cujo campanario singelo donde pendia a corda do sino era agora a sua unica esperança de salvamento. Mas, fosse porque o conhecessem pelo andar ou fosse por penetração diabolica e subtil, o que é certo é que, logo que voltou costas, uma grita ensurdecedora lhe chegou aos ouvidos. Sentiu-se perseguido por toda uma canalha de demonios, fúrias vêsgas e feiticeiras esguedelhadas, pequeninos trasgos e enormes gigantes, que ardendo em sêde do seu sangue e da sua alma christã lhe corriam no encalço. Via-se quasi perdido, sentia-se quasi agarrado por enormes braços descarnados e com unhas aduncas e enclavinhadas, que se lhe cravavam na carne como tenazes... Chamavam-no pelo seu nome, ouvia coisas pânicas, e ora o insultavam com palavras que se desprendiam como pedradas de funda, ora o seduziam com promessas tentadoras. E dizia mesmo que essas vozes sedutôras, que se misturavam ás outras brutais e agressivas, eram ditas pela bôca vermelha e fresca da Maria... Mas, fiel á recomendação da Gertrudes, corria numa ânsia ofegante, num desespero de loucura. Na cabeça enfebrecida duas unicas ideias se lhe espetavam, como navalhas agudas:--a Próspera abraçando o _Senhor_, como lhe chamara a Zarôlha, e o campanario humilde onde estava a sua salvação. Não compreendia nem via mais nada, e nada mais lhe interessava no mundo. Mas chegaria a tempo de poder agarrar a corda do sino antes do galo preto romano cantar pela terceira vez á meia-noite?!... Já as pernas lhe fraquejavam, a cabeça andava-lhe á roda, e os gritos satanicos, que mais e mais se avisinhavam, davam-lhe a certeza do seu triste fim, se não conseguisse chegar. Mas já estava perto--num último arranco, estava salvo! Se fosse vinte passos mais longe não poderia resistir. Quando deitou a mão á corda do sino, que deu na noite negra uma badalada lugubre, o galo preto romano soltava pela terceira vez a sua voz clara e sonora de espancar visões e pesadelos. Um gargalhar surdo e um rumôr de maldições e pragas perderam-se no ar, emquanto o Manoel cahia pesadamente no chão, agarrado ainda á corda do sino que tremia nas suas mãos crispadas. Ao lado tombara a caldeirinha tilintando numa vózita escarnicadora. Para quem duvide do caso, lá está ella na igreja matriz, da pequena terra triste, cortada na rocha bruta, estrangulada entre pinhais melancolicos e oliveiras de folhagem eternamente sombria. Lá anda ella, cheia de agua benta, tilintando sempre a sua vózinha escarnecedora e fantastica, acompanhando enterros de cavadores tisnados que na terra encontram o seu unico repouso, e criancinhas frageis que vão para o céo aspergidas com a agua benta da caldeirinha infernal... Lá anda, muito serena, orgulhosa do seu metal desconhecido forjado nas profundezas ardentes do mundo sobrenatural, a acompanhar o senhor vigario na visita anual em dia de Páscoa alegre e florída:--«Bôas festas, bôas festas, santas festas!, sorri no seu arzinho petulante. De madrugada, quando os homens iam para o trabalho, encontraram o Manoel ainda desmaiado, agarrando-se á corda do sino como naúfrago a táboa salvadora. Levaram-no para casa, alvorotando toda a vila com o extraordinario caso. A Clara de Rezadeira,--coitada!--mal viu o filho, o seu Manoel, estendido como um cadaver sobre o leito de cabeceiras embutidas, para onde os homens o atiraram já cansados da caminhada com semelhante pêso, ia morrendo tambem, sufocada pelo sangue cujos impetos o pobre coração mal podia regular. Mas o mestre barbeiro afiançou a cura para breve, dando uma picadélasita no braço do rapaz--que era de humôr muito quente, e apanhara algum golpe de sol lá pela feira. A febre sobreveiu e teve-o entre a vida e a morte, dias e noites ardendo num fogo de que o delirio e a agitação eram o corolario logico. O que elle via, os sonhos e os pesadelos que lhe enchiam a pobre cabeça enfebrecida, mal o compreendiam os seus enfermeiros. E todo aquelle mal se agravava e a agitação chegava ao delirio furioso dum louco se por acaso a Maria do Próspero chegava á porta, a pedir noticias ou a querer ajudar a tia Clara nos arranjos domesticos. Ninguem podia compreender tal horror á rapariga, nem ella, que se consumia e chorava sem consolação por vêr a mudança brusca do seu Manoel. Quando se levantou estava pálido, cambaleava, e uma tristeza profundissima lhe encovava os olhos. No primeiro dia em que sahiu, o seu cuidado foi logo ir procurar a Gertrudes Zarôlha, que encontrou sentada á porta da casa, fiando e conversando com o gato preto gordo e pesado, seu unico companheiro e amigo. O Manoel não esteve com ceremonias, foi direito ao fim. Contou á velha tudo quanto tinha visto na _Fonte do Inferno_ quando viera tarde da feira, e exigiu explicações completas sob a ameaça duma sóva se ella não quizesse dizer a verdade. Ao principio a Gertrudes indignou-se, pôs as mãos no peito, jurou a sua inocencia e negou que fosse feiticeira. --Na _Fonte do inferno_?! --O Manoel que não sonhasse em tal--_crédo!_ _cruzes, canhoto!_ Fôra aquelle patife do Próspero que levantara aquella calúnia e dizia a quem o queria ouvir--que fôra ella quem chupara o filho da fidalga... Mas o Manoel atalhou:--não negassse a Senhora Gertrudes; tinha-a elle visto, ora essa! Querer dizer-lhe que não era verdade uma coisa que elle mesmo vira, com aquelles mesmos olhos que a terra havia de comer?!... Demais, não tinha nada com a sua vida nem o contaria a ninguem, pois até lhe estava muito agradecido por o têr ensinado a livrar-se de tamanho perigo. Agora o que queria saber era a verdade--sobre a Maria do Próspero. Seria ou não certo tê-la visto abraçar o _Senhor_?... Seria ou não certo o sêr ella feiticeira a valer?! Podia têr-se enganado... podia-a têr confundido com outra... Ás vezes, e como foi ao longe... Era a última esperança, e a ella se agarrava com todo o afinco de quem não quer perder uma dôce ilusão. E pensava, horrorisado, que aquilo poderia sêr verdade e teria que deixar de pensar na Maria, agora que a paixão por ella chegara ao halucinamento, hesitante entre o amôr e o odio. Quanto daria para que a Gertrudes lhe désse a certeza de que os seus olhos o tinham iludido, quanto daria!... Tornar a têr na Maria a confiança que tinha dantes; podê-la levar para a sua casa, como ainda na vespera lhe dissera a mãe, que morria pela rapariga--tão trabalhadeira, tão desembaraçada e bôa... Não tinha nada, mas isso o que importava? Ella, a Clara do Rezadeira, não se importava nada com isso e aconselhava-lhe a que escolhesse antes uma rapariga de trabalho do que uma com dinheiro, que nada vale quando dá em mãos que o não sabem guardar nem aumentar. Como elle esquecia, evocando a formosa rapariga, a pálida Terezinha, que lentamente se ia definhando e morrendo aos poucos, ao compasso surdo e monotono do seu tear!... Mas a Gertrudes foi impiedosa. A pouco e pouco começou a dizer tudo; primeiro timidamente, tenteando o assunto, depois entusiasmando-se, contando detalhes, dizendo coisas que arrepiavam e indignavam o Manoel. Era certo e mais que certo sêr a Maria feiticeira! Havia pouco tempo que aprendera, mas já a consideravam das mais finas e das mais queridas do _Senhor_. --O lobis-homem que tinha visto--mas isso em grande segredo, porque tinha medo de levar alguma sóva--era o Próspero velho. Andava com o fado ha tantos anos! Não tinha sorte nenhuma, coitado! Que de historias lhe contou, e elle ouviu pasmado, vencido por aquella verdade irrefutavel:--a Maria era feiticeira! A Gertrudes comentava com gestos curtos e vozes de confidencia:--Ora essa! De que se admirava? Sempre lhe dissera que não era mulher capaz para um homem de brio e de honra. Tinha-lhe odio, o odio implacavel das velhas criaturas despresiveis aos que têm a insolencia da alegria, da juventude e da beleza. E então, depois que a rapariga dissera numa sacha, entre as gargalhadas do rancho, que não queria estar ao pé della porque lhe podia dar quebranto ou chupá-la como fizera ao filho da fidalga, a Gertrudes não a podia tragar. --Se fosse com a Terezinha,--continuava convencedora--com essa era de sua aprovação. Uma rapariguinha tão recolhida, sem uma _nota_, sem más palavras para ninguem, e sempre tão bôa, tão condoïda! Mesmo um anjo do céo! O Manoel calava-se, abismado no seu desgosto, não podendo seguir-lhe a tagarelice nem dizer uma palavra que lha fizesse estancar. De quando em quando, uma palavra ou outra feria-lhe o ouvido, chamando-o á realidade, aos repelões, sobresaltando-lhe ainda mais a alma amarfanhada. Por vezes já a imagem da Terezinha, com a sua esbelteza delicada, o seu vestido escuro de luto aliviado, o sorriso maguado da sua bôca virgem de beijos, se começava a esboçar na sua memoria. Via-a córada como a romã quando acertava de lhe dirigir a palavra, sofredora e resignada quando o sabia mais prêso pelos encantos de Maria; lembrava-a fugindo arisca da porta para o espreitar da janela, mal assomava ao cimo da rua com os seus ares triunfantes, bamboleando-se com a importancia de janota de aldeia.--«Coitadinha! Gostava tanto delle! Emquanto esteve doente, nunca ella deixou apagar a lampada á Senhora do Castelo... O Manoel afastou-se por fim--a velha já o enjoava com as suas historias. E, ao sahir dali, pensava com funda melancolia em todo o passado extinto, nessa alegria radiosa que não voltaria mais. Da sua vida, tão profundamente abalada, nem a si mesmo sabia dar conta. Quando subia vagaroso e preocupado a rua estreita e ingreme, os seus olhos poseram-se com sobresalto na Maria do Próspero, que caminhava em sentido contrario, cabisbaixa, os braços cahidos ao longo do corpo, os olhos pisados postos no chão, o fato em desalinho de quem perdeu o gosto e a garridice. Que mudada estava! Nem parecia a mesma,--não a reconheceria por certo fóra dali. O rapaz, olhando-a, sentiu subir-lhe do largo peito um soluço doloroso. Meteu-se na sombra duma porta e deixou-a passar, avergada ao pêso da tristeza e do remorso do seu pecado sinistro. Estremecia de horror como se a visse ainda na noite demoníaca, cuja lembrança o perseguia como uma ideia fixa de monomaníaco. Como podia ser feiticeira uma rapariga tão linda, tão alegre, tão sincera?!... Mas era-o, tinha a certeza, porque a vira abraçando o _homem vermelho_ de negros pés de forquilha, e porque a Gertrudes lho afiançara havia instantes. Todo o pavôr daquella noite tragica o tomou de novo, e involuntariamente evocou o _sabbat_ infernal:--as luzinhas bailando, entrechocando-se, e afastando-se num compasso rítmico; as gargalhadas que soavam como crucitar de corvos; os olharapos correndo, com o seu unico olho a furar-lhes a testa; os lobis-homens galopando, no seu fadario triste; avejões, diabitos galhofeiros, lémures, trasgos, duendes, feiticeiras, e, sobre tudo, como ferro em braza a causticar uma chaga, a recordação da cêna em que a Maria abraçava o _homem vermelho_ e lhe servia de estrado. Era de endoidecer! Quando despertou desse pesadelo de acordado, já a Maria ia longe, andando lentamente, acurvada pelo imenso desgosto de vêr o Manoel tão diferente do que fôra, e sem razão nenhuma que ella lhe désse! Se ao menos soubesse explicar o motivo porque tão cruamente a repelira durante toda a doença, quando ella passava as noites sem se deitar, sempre pronta á primeira voz,--uma verdadeira filha para a Clara do Rezadeira, que já lhe queria como tal!... Alguns mêses depois, os sinos da antiga igreja matriz repicavam freneticamente mostrando o entusiasmo do sacristão pelo casamento do Manoel com a Terezinha da Zéfa do Padre. A noiva ia radiante, mais linda do que nunca. Os olhos brilhantes, os labios ardentes, as faces ligeiramente córadas pela felicidade inesperada que a chamava á vida, quando ia já caminhando para a morte, ao compasso monotono do tear subindo e descendo no contínuo trabalho. Satisfeito e feliz, tambem o Manoel ia, triunfante, com o seu fato preto de pano fino, o seu chapéo lustroso, a sua fina camisa engomada a primôr, ao lado da noiva--uma santinha do altar!, dizia a Gertrudes benzendo-se. Tambem elle se sentia alegre e despreocupado, sem pensar na pobre Maria do Próspero, que curtia sósinha, num desespero tôrvo e sem remedio, a sua derrota miseravel. Quando a Gertrudes Zarôlha começou a espalhar o que se passara, o que vira o Manoel na noite em que viera mais tarde da feira, por se têr demorado a conversar com uns amigos na taberna do Geitoso, a Maria teve um violento acesso de cólera, uma rubra indignação, que estava na logica da sua forte e sadia natureza. Quiz bater na velha, que fugiu espavorida, gritando-lhe que fosse perguntar ao Manoel--e elle lhe diria tudo quanto vira... E ella fôra logo, forte da tranquilidade da sua consciencia, certa de que elle estaria ao seu lado para a defender de tão absurda acusação... Mas quando ouviu da bôca delle a confirmação dos ditos da velha, quando elle lhe atirou com despreso o epíteto de _feiticeira_, sucumbiu. Ficou quieta, a olhá-lo pasmada, sem encontrar uma palavra para se defender, cheia de dúvidas e de desânimo... Sem a confiança do Manoel, o que podia fazer?! E desandou dali, com grossas lagrimas a rolarem-lhe pelas faces, e um aperto na garganta que a estrangulava. Fechou-se em casa; e, sem ninguem que a consolasse, nenhuma alma compassiva que a ajudasse a levantar daquelle abismo em que a propria consciencia desaparecia sob a sugestão alheia, rebolou-se pelo chão, rasgou o fato, atirou contra as paredes a cabeça que sentia perdida e desvairada, soltou gritos que lhe despedaçavam o peito, até que, exausta, ficou como morta no meio da casa. Ao voltar do trabalho é que o pai a levou para a cama, limpando, num repelão, á camisa suja de suor e poeira, uma lagrima que teimava em rebolar-lhe pela face encarquilhada e dura. --A sua pobre filha, a alegria da sua vida--em que estado a encontrava! Maleitas ou mau olhado, espirito ruim que lhe entrara no corpo e já a não largaria... Quando voltou a si, pesou bem a desolação da sua vida, e chorou toda a sua esperança, a sua alegria como a sua mocidade exuberante que tinham fugido espantadas diante daquella noite negra e sem fim. ......................................................................... Emquanto os sinos cantavam na manhã clara, de sol radioso e céo azul em festa, as alegrias do casamento da Terezinha com o Manoel da Clara, a caldeirinha magica tilintava o seu risito escarninho e macabro e todos a consideravam com admiração e respeito pelo sobre-natural. A Maria, agora feiticeira conhecida e apontada por todos, já não canta nem vai ás romarias. Nos trabalhos do campo, as mulheres e as crianças afastam-se della apavoradas, e os homens, lamentando-a, não têm coragem de vencer esse pavôr. Um brilho ardente de febre queima sempre os seus lindos olhos negros, que vagueiam inquietos, num mêdo doentio e tragico. Atormentada de visões, mordida de maus olhados, mêses inteiros prêsa de delirios histericos, sente-se, na verdade, transportada nas azas do vento para sitios ermos em que luzinhas saltitam em rondas buliçosas, lobis-homens passam em cavalgadas doidas para se irem espójar nas encruzilhadas sinistras, moiras encantadas tecem em teares de oiro contando as saudades antigas da sua vida humana, e olharapos, duendes, lémures e trasgos povôam as noites horrificas de _sabbat_. III Diario duma criança DIARIO DUMA CRIANÇA Creio que não é bem exáto o titulo que escrevi no alto da página. Isto não é verdadeiramente o _Diario duma criança_, não é, mas sim a minha vida toda recordada dia por dia, hora por hora, com uma precisão de factos e sensações de que o Chico muito se admira. Decerto não sou muito velha--fiz em março vinte e dois anos--mas, assim mesmo, elle acha extraordinario como os episodios da minha infancia se me fixaram na memoria tão vivamente, e os posso recordar com tanta nitidez, como se a minha alma tivesse a receptibilidade mecânica de um fonógrafo. Não pensei nunca em escrever; sei, tão pouco, que nenhuma novidade pode trazer ao mundo a minha prosa descuidada e frouxa. Fui sempre pouco estudiosa e nenhuma honra dei aos meus professores. O Chico, que é um sábio, é que me disse, uma tarde, resumindo toda uma longa palestra em que eu lhe contei os mil incidentes de vida estranha em que o meu pobre espirito se debateu até chegar á dôce paz da nossa felicidade de hôje: --«Se tu escrevesses isso tal qual o contas, fariamos um belo estudo de psicologia infantil!... Eu, que adoro o meu Chico, não o queria desgostar, mas escrever tudo quanto sentia, tudo quanto me lembrava têr sofrido, parecia-me tão dificil!... Vida toda feita de sensações e estranhêzas de caráter, quem poderá têr interesse em conhecê-la?! Oh que coisa tão custosa de realisar, este desejo, quasi imposição, do Chico!... As minhas memorias são leves fios de aranha que não servem para urdir e tecer utilmente uma sólida obra caseira. Escrever o _Diario_ da minha infancia, eu que nunca tive paciencia de rabiscar cartas muito grandes--a não sêr para o Chico!... Depois, sei unicamente escrever o que sinto, e os escritôres--dizem--não fazem assim. O Chico sente os versos que faz tão lindamente, mas esse... oh esse é outra coisa! Por muito tempo discutimos, mas, como o senhor meu marido é adoravelmente teimoso e eu não sei ainda contrariá-lo, deixei-o ir uma noite destas ao teatro, recusando-me a acompanhá-lo a pretexto de ter sôno, e quando voltou, eram duas horas da manhã, entreguei-lhe o manuscrito, que leu sem descansar, tal qual o mandou imprimir logo no dia seguinte. Isso é que me custou!... Porque, depois de o escrever duma só vez, e sem hesitar diante duma unica palavra que não correspondesse ao meu pensamento, deixando correr a penna nervosamente, em galopada doida, quando as recordações vinham em montão, chamadas umas pelas outras, numa lufada de quasi vertigem, sempre imaginei que elle emendaria aquilo e lhe daria uma fórma mais corréta. Mas--qual historia!--o querido _infame_ teve o descaramento de se rir na minha cara e de me responder: --Que se o emendasse estragaria tudo! Foi assim que sahiu, tal qual o escrevi, numa hora de febre. Chamo-me Raquel. Creio que este nome é hereditario na minha familia, porque a minha avó e a mãe da minha avó eram tambem Raquel. Não sei. De genealogias, como de tudo mais, entendo pouco. O mais longe que posso recordar na minha existencia humana, vejo-me feliz. Era uma grande casa de aldeia, a nossa. Havia ali de tudo quanto pode desejar uma criança acostumada á simplicidade da vida campestre. Os pateos eram habitados por uma multidão de animais domesticos, que nos conheciam bem, de tanto milho que ás escondidas lhes deitavamos. Eu era a mais velha, e os meus quatro irmãositos seguiam-me alegremente pelos campos fóra, como um rebanho segue o pastor. Nada nos era defêso, nem parede que não tivessemos escalado, nem arvore que não conhecessemos como os nossos dedos. Os frutos eram vigiados desde que as arvores se cobriam de prometedoras flôres, e antes, muito antes da familia os vêr em casa, já nós tinhamos feito a nossa primeira escôlha. Quando a nossa pobre _burrica_ descansava do fatigante trabalho da nóra, iamos desamarrá-la da manjedoura, saltavamos-lhe para cima, e fazíamo-la trotar pelos caminhos pedregosos da aldeia como um _pur-sang_ trotaria nas avenidas areadas dum luxuoso parque. Felizes tempos!... Mas, no fim de contas, eu era uma rapariga; ás vezes lembrava-me disso, e nem sempre estava disposta a fazer de general no exercito _fraternal_. Muitas vezes mesmo, o instinto do meu sexo pedia-me brincadeiras mais socegadas: queria _governar casa_, _sêr a mãe_, exercer a minha atividade de mulher trabalhadeira e que conhece o seu logar. Chamava então as pequenas da minha idade e brincavamos _ás dônas de casa_: improvisando os nossos lares em qualquer recanto do jardim, servindo de baixela fragmentos de loiça, _cosinhando_ pétalas de flôres e hervas que tinhamos mais á mão; indo ao tanque lavar a roupa das bonecas, _as nossas filhas_; carregando a agua com a cantarinha em equilibrio sobre a _rodilha_, no alto da cabeça; tendo as nossas disputas e conversas como viamos ás _senhoras visinhas_, lá no povo. Ralhavamos com os _homens_, os meus irmãositos--porque entravam tarde, andavam por lá com os amigos... Na aldeia não havia meninas _finas_, e então arranjara as minhas amigas e companheiras nas humildes filhas dos nossos caseiros e serviçais. Tinha os seus modos desempenados, os seus gostos simples, e, apesar disso, não me parecia com ellas! Sempre me hade lembrar o que escandalisava meus pais quando afirmava perentoriamente: que de todas as casas da vila proxima, onde as havia muito bôas, era a mais humilde de todas a que mais me agradava. Cuidaram que era uma perversão do meu senso estético, mas vendo-a ha pouco, já depois de mulher, confesso que não mudei de opinião. É que sentia intuitivamente o pitoresco que os nossos artistas andam hôje procurando com tanto afan... Na verdade a casinha térrea, construida sobre a rocha onde tinham cavado os degraus, com seu alpendre e o seu pé de videira a ensombrá-lo, era duma originalidade, na sua singeleza primitiva, que me encantava. Nunca, como tantas crianças na minha idade, me lembrei de imitar a mamã, as tias, ou as senhoras das nossas relações. Nada! Só procurava sêr aquilo que nunca conseguiria, por mais esforços que empregasse. Melhor fôra que tivesse conseguido o meu desejo e ficasse como as outras raparigas da minha aldeia: uma perfeita camponeza, cheia de saude e de alegria, sem mais cultura do que a dellas!... --Meu Deus! A delicada ternura do Chico compensa-me de muitos desgostos passados, abre-me um caminho largo a uma existencia toda inundada de sol; mas, quando penso em quatro anos da minha existencia, sinto em mim uma tão grande repercussão de dôres passadas, que não sei quanta bondade lhe será precisa para mas fazer esquecer!... Emquanto eu suportei todos os tormentos que uma pobre criança pode sofrer, sequestrada de tudo quanto lhe rodeou e acariciou os primeiros anos; emquanto o meu espirito, sacudido pelas lutas mais violentas, angustiado pelas mais sombrias dúvidas, se abria á compreensão duma vida que dizem superior; emquanto o meu coração aprendia na dôr os infinitos cambiantes dos sentimentos complicados; a Rosita, a Maricas, e a Anninhas da méstra--as queridas companheiras da minha infancia--cresciam e faziam-se bôas e laboriosas mulheres, cheias de vida e saude, sem incompreensões mortificantes do seu proprio coração. Quando ellas me viram voltar á aldeia, tristemente grave, empalidecida pela dôr, adelgaçada pelos anos, o trajar cuidado de quem não desconhece os preceitos da elegancia, não compreenderam as lagrimas que bruscamente me vieram aos olhos e correram impetuosas pelas faces, como vaga interior vencendo todos os diques. Imaginaram--as pobres!--que eu tinha saudades das amigas de Lisbôa e as desprezava a ellas. Oh não, mil vezes não! Tinha uma pungente saudade do tempo em que o meu espirito, não fatigado, se comprazia nas suas conversas simples, e em que os seus gostos naturais eram tambem o meu gosto. Chorava desesperadamente a minha alegria, para sempre tocada de mal incuravel; tinha desprezo--e muito--por essa educação que me roubara quatro anos de vida feliz e proveitosa, dando-me em troca uma ignorancia mais completa do que a sua! Porque as minhas amigas e companheiras de infancia sabiam muita coisa util, e eu apenas me podéra convencer de que não sabia nada--o que é altamente desconsolador. Como já disse, durante a infancia considerei-me feliz. A minha mãe era bondosa, como muita gente o é, porque assim tinha nascido, pela mesma fatalidade psicologica que a podia têr feito nascer uma criminosa. Mas juntava a essa inconsciente bondade muita justiça e bom-senso. Cuidava escrupulosamente do amânho interior da nossa casa, não deixando as criadas levantar mão dos serviços, com uma disciplina que invejariam muitos instrutores de recrutas. Rezava as orações obrigatorias de cada dia; cabeceava á bôca da noite, antes de se acender o candieiro para o serão; e depois de espertar era a última a deitar-se em casa, depois de vêr todas as portas e apagar todas as luzes--não, fôsse o inimigo sonso que se lhe metesse algum ladrão em casa, ou as raparigas se descuidassem com o lume! De manhã era a primeira a madrugar, para a mesma labuta de todo o ano,--que era afinal a de toda a sua vida. De sabedorias para si, importavam-lhe pouco, mas queria-as para mim, que no seu entender devia tornar-me uma verdadeira _menina educada_: tocando piano, ataviando-me com geito de quem sabe, que não privasse com as _raparigas da rua_, que lêsse romances para têr umas luzes de historia, que bordasse a matiz e a escama de peixe ou a casca de castanha, cantasse ao piano em francês ou italiano, soubesse, emfim, estar numa sala... Duma tão grande infelicidade que a unica filha tinha modos de rapaz, detestava o piano, adormecia a lêr os mais pateticos romances, e fazia a cabeça doida ao padre José, que nos dizia a missa na capela da casa e toda a semana carregava com a pesada cruz de nos iniciar nos misterios da lingua portuguêsa. Ralhavam comigo, mas, por mais que ralhassem, não conseguiam fazer-me compreender a possibilidade de estar perfilada numa cadeira a receber as visitas na sala, como via as filhas do recebedor e as do medico da vila quando vinham á nossa casa. Francamente, abominava as adoraveis meninas, que ficavam com sorrisos murchos ao cimo da escada, recusando-se a seguir-nos á quinta com mêdo de estragar os lindos vestidos á moda, esses vestidos aparatosos, cheios de fitas e rendas, que usam na provincia as meninas ricas. Eu, que era uma selvagem incapaz de tolerar um colête justo ou umas botas apertadas, que pedia para que me cortassem o cabelo para não sofrer os penteados, que só gostava dos vestidos depois de afeitos ao corpo pelo uso, olhava com verdadeiro assombro aquellas meninas modelos. Ás vezes, a minha bôa Maria Augusta tentava apertar um pouco os cordões do colête,--«para me tornar elegante»--mas eu protestava tão energicamente que tinha de desistir logo, dizendo-me arreliada: --«Ó menina, é preciso sofrer para sêr formosa! --«Pois sim, espera por essa... Eu nem quero sofrer nem quero sêr formosa! Uma vez levantei-me cedo, estava uma manhã gloriosa de inverno, deste inverno tão nosso, em que o azul do céo é limpo, puro e transparente como se fabricado fôsse pelo mais escrupuloso dos artistas e da mais preciosa das porcelanas. Em casa apenas as criadas traquinavam na cosinha, encetando a labuta do dia, e a Maria Augusta abria janelas e portas para a limpeza do rez-do-chão. Acordara cedo; a chilreada dos pardais madrugadores era o meu despertador. O sol começava a aureolar o cume dos montes, e, como a nossa casa ficava ao cimo dum vale, depressa me inundou o quarto duma luz rosea que enchia de alegria os meus olhos e me fazia cantarolar e rir sósinha, como se estivesse no maior divertimento. E vesti-me á pressa, com grande abundancia de gestos, batendo na agua fria, que atirava para a cara com as mãos em concha, satisfeita e feliz como se uma alma nova despontasse em mim. Em baixo, a Maria Augusta e as outras criadas festejaram o meu sorriso jubiloso, a minha madrugada feliz. Correndo para o pateo, comecei por dar liberdade a toda a capoeira que ainda permanecia fechada, por soltar o Tigre que os criados já tinham acorrentado á sua grilheta diurna, e fui á estrebaria vêr a nossa bôa Cacilda, a burra, que me cumprimentou com um zurrar festivo. Iniciando assim o que a Maria Augusta chamava irreverentemente a série dos meus disparates, não parei no principio, o que seria prova de pouca independencia de caráter... Desprender a Cacilda e trazê-la para a horta, para que ella podesse saborear á vontade as couves que o velho hortelão guardava avaramente dos seus dentes de apreciadora, pareceu-me a coisa mais natural do mundo. Depois, ella bem almoçada, e naturalmente tão alegre como eu e como o Tigre, que a seguiamos satisfeitos de a vêr escolher uma a uma as mais tenras folhas da horta, achei tambem natural, como um simples remate de tal festa, que fôssemos dar um passeio até á mata. Chamando a Cacilda, acariciei-lhe o pescoço, dei uma volta á corda na mão, e dum pulo fiquei-lhe montada sobre o dorso como um rapaz. Um pequeno assobio ao Tigre preveniu-o da minha resolução, e ahi vamos nós todos três, alegres e felizes, porque o céo estava limpido e o sol brilhava, porque o ar era puro e os campos reverdeciam numa jovialidade de primavera proxima. A meio da carreira sobreveiu-nos um obstaculo inesperado, na vera pessôa do bom padre Zé, que já voltava das suas arvores em cata do almoço, e fez estacar a Cacilda com os seus gestos e gritos indignados. --«Para onde vai a menina assim montada?! --«Dar um passeio á mata. É para abrir a memoria e o apetite--respondi-lhe a rir. --«Mas isso não são modos de menina bem educada!--apostrofou-me aflito. --«Eu não sou _menina_, nem _bem educada_!--retorqui-lhe numa gargalhada. --«Se a mamã sabe!.... --«Não lhe diga nada, que eu já volto. E, dando um sinal á Cacilda, partimos a galope, deixando o bom do padre no mais profundo pasmo. Agora são os medicos os primeiros a preconisar ás senhoras essa maneira de cavalgar, e não tardará que a moda a impônha como a última palavra do _chic_. Como a razão é intuitiva e se faz sentir na inteligencia liberta da criança! Mas á volta é que fôram ellas! Tinha levantado um verdadeiro temporal de protestos e queixas com os meus átos, tão espontaneos e naturais quanto me pareciam humanos e justos... Pois não seriam elles meritorios: abrir as prisões, soltar os presos, dar de comer aos que tinham fome, e em seguida premiar-me a mim mesma indo passear?! Não o entenderam assim em casa, lá porque as galinhas tendo encontrado aberto o portão do quintal tinham acabado a destruição da horta, que a Cacilda encetara com tanto brio! O hortelão parecia doido e a minha pobre mamã benzia-se assustada, temendo que eu tivesse o diabo no corpo. Fui chamada ao escritorio, áquelle escritorio de paredes revestidas de velhos livros onde o meu pai recebia os caseiros, fazia a sua escrituração, e lia, a maior parte das vezes, os seus in-fólios mofentos. O caso era realmente grave, mais do que poderia presumir, para que assim se tivesse apelado para a autoridade paterna... Assentado na larga cadeira antiga, de coiro lavrado e braços abertos num carinhoso aféto, onde elle descansava as suas finas mãos de intelectual, diante do pesado bufete de pau santo torneado em três cordas, como um juiz austero, o meu pai admoestou-me severamente por tanto disparate e terminou por dizer:--que me tornava o escandalo da familia e assim não podia continuar... E como esta outras muitas fiz, que não acabaria se as fôsse a contar todas. A mamã queixava-se da minha extrema ignorancia e incapacidade de sêr apresentada diante de gente, o que o meu pai corroborava dizendo por seu turno:--sêr absolutamente preciso, e muito urgente, mandar vir uma professora que tomasse conta de mim e me sujeitasse a uma «disciplina de ferro». --Que não, isso que não!--acudia a minha mãe--não queria estranhas metidas em casa a vêrem e a ouvirem tudo quanto se faz e em pouco tempo a saberem mais da nossa vida do que nós proprios. Nem a gente pode falar á sua vontade, nem têr as suas coisas, porque emfim não ha casa que as não tenha, sem que tudo se saiba e se comente... Depois, ceremonias, _niquices_, exigencias... nada, isso não! --«Pois é o unico meio:--opinava o papá triunfante--uma senhora que lhe fale uma lingua estrangeira e que a sugeite a um regimen invariavel. --«Nada, um colegio é ainda o melhor; mete-se lá a pequena e fica-se livre de cuidados. Meu pai hesitava,--tinha lá as suas ideias contra os internatos--e estou em crêr que me preferia ignorante, como a _Zéfinha da horta_ ou a _Teresita do barbeiro_, a têr que me mandar para um colegio. Os meus irmãositos todos se afligiam quando se ventilava a magna questão, que os ameaçava da minha ausencia, e eu, sem bem saber o que preferia, ia gosando alegremente os dias na bela paz da minha aldeia florída e ensoalhada. Mal suspeitava que a desgraça estava a bater-me á porta--e mais terrivel do que podia imaginar! Parece-me estar a vêr entrar na cosinha de grande chaminé, onde se enxugava o _enchido_ e as castanhas secavam no _caniço_, a mulher dos recados que fôra á vila buscar o correio, e me dizia, alviçareira: --«Olhe, menina, aqui vem uma carta para a mamã. É do seu tio Manoel; já lhe conheço a letra. Muito alegre, arrebatei-lha das mãos e fui-me pela casa fóra a gritar pela mamã até dar com ella no celeiro a receber uma _pensão_. Lembro-me bem--_cincoenta e sete!_--gritava o caseiro, e a mamã, muito serena, ia apanhando um grão de milho por cada alqueire que o homem despejava na tulha. Quando entramos--eu e os meus quatro irmãositos--como se fôssemos uma revoada de pardais bulhentos, ella toda se agastou...--Como isto me ficou nitido na memoria!--Quando viu de quem era e o que dizia a carta, correu toda satisfeita em busca do marido, emquanto nós aproveitavamos a falta de vigilancia para saltarmos todos para dentro do milho. Eu, que era a maior, enterrava-me até á cinta nos grãos amornados e enchia os bolsos do meu bibe branco, para levar uma lembrança ao pombal. Um dos pequenos gritava que as suas botas, de canos muito largos por têrem pertencido ao mais velho, levariam mais dum saco de milho, para a ração suplementar da Cacilda. Riamos perdidamente, atirando uns aos outros aquella chuva de grãos muito sêcos, ainda cheirando a campo e ao sol das eiras onde se aloirara e brunira! O caseiro achava muita graça aos meninos--podéra não!--e na sua cabeça lanzuda esboçava-se, talvez, o pensamento finório de se enganar na conta com alguns alqueires a menos. É provavel que assim sucedesse, porque a carta do tio Manoel tinha transtornado por tal fórma a mamã, que até se riu quando nos veiu encontrar a todos aninhados dentro do milho, e não passou revista ás nossas algibeiras quando saltamos para fóra e nos safamos com presteza--não fôsse ainda cerceada a merenda que levavamos aos nossos protegidos da capoeira, do pombal e da estrebaria! Já fóra e ainda ouviamos a contagem dos alqueires que entravam para a tulha, arrastada e monotona. Os bois, jungidos ao pesado e primitivo carro de duas rodas, estacionavam no quintal, ainda carregados com os sacos cheios com o resto da _pensão_, guardados por uma criancita vestida de jaqueta, calças compridas e grande chapéo, como um pequeno homem de caricatura. O que nós rimos! Era o filho do caseiro, o _Tonito_, mais novo do que o mais novinho dos meus irmãos, mas já util como uma pessôa crescida. São assim os filhos do nosso povo, duma sujeição ao trabalho que os predispõe para uma longa existencia paciente, sofredora e productiva. Como esse foi o último dia feliz da minha infancia, não me esqueceram nenhuns destes detalhes, nem o cheiro á poeira do milho e aos queijos da Serra da Estrella, que secavam em tábuas prêsas ao této do celeiro por cordas isoladas com têstos de barro, por causa dos ratos, providencias caseiras da minha mãe. Desde essa luminosa tarde de outôno, ainda quente como se o sol cahisse a prumo, num estiramento inesperado de estio, e já perfumada pelos frutos maduros, que se recolhiam á pressa, e pelo môsto de cheiro forte que ferve nas dornas ainda antes de recolher ao lagar, a nossa casa transformou-se completamente. Eram só conferencias sobre o que se daria aos _manos_, e mais os lençois bordados, a coberta de damasco para a cama, as toalhas de linho com ricas franjas de renda de Peniche... Tudo quanto havia de melhor se levava para _o quarto da laranjeira_, o mais vasto e cómodo da casa, o proprio quarto de meus pais, que tudo achavam pouco para receber condignamente o mano Manoel, que voltara havia pouco tempo do ultramar, casado com uma estrangeira. E assim passaram oito dias em que se não pensou nem falou noutra coisa. A minha mãe fazia esforços de memoria por se recordar bem nitidamente dos traços fisionomicos do irmão, como se volvidos tantos anos gastos em trabalhos e fadigas, elle podesse têr ainda o rosto levemente rosado, o buço mal lhe sombreando o labio superior, a cabeleira negra ondeada que lhe davam um tão gentil aspéto no retrato em _daguerreotipo_, tirado quando assentara praça em cadete, e que nós não nos cansavamos de ir vêr á sala de visitas, no seu estojo forrado de veludo granada. Até o Padre José afroixava a sua vigilancia pelo nosso estudo e punha-se ao dispôr da mamã--para o que fôsse necessario. A minha mãe sorria benevola e agradecia, mas não o ocupava em coisa alguma, porque elle, muito forte no português e no latim e mesmo um tanto no francês, tirado disso só á mêsa, diante duma travessa cheia de açorda, ou no pomar podando e cuidando das suas queridas arvores, era homem de alguma utilidade. Um santo, o nosso bom professor! Que saudades delle eu tive depois, quando comparava a sua maneira tão lhana de ensinar, a sua ingenuidade de bom, respondendo meio comprometido ás nossas curiosidades extemporaneas, e quando se atrapalhava á nossa pergunta atrevida: --«Ó padre Zé, para que está sempre a falar no diabo? Era o costume delle, o seu _bordão_. --«É verdade--respondia-nos muito ingenuo--é um diabo duma mania que eu tenho de estar sempre a falar no diabo!... Um bom homem, afinal de contas; um santo velho, nada fanatico, de bolsa franca para todas as miserias, palavras de consolação para todas as lagrimas, espirito bem equilibrado e muito logico, um filósofo sob a aparencia dum sólido camponez. Conseguira que eu aprendesse da minha lingua aquilo que ainda hôje sei; conseguiria--era capaz!--ensinar-me talvez o latim e até a ajudar-lhe á missa. O que não faria desta sua rebelde discipula a paciencia beneditina do bom Padre José! O tio Manoel era irmão mais velho da minha mãe. Sahira de casa muito novo; a última vez que empreendera a incómoda viagem á aldeia, era apenas cadete, como tirara o retrato. Depois fôra para a Africa, na ânsia de ganhar honras e postos. De lá percorrera quasi todas as possessões ultramarinas, sem mais se lembrar de escrever á familia. Só havia pouco tempo mandara noticias participando têr casado, e dizendo a sua resolução de voltar em breve ao reino. Alguns mêses mais tarde, nova carta dava conta da sua chegada a Lisbôa, onde estava tratando de se instalar, e convidava a irmã e cunhado para irem fazer-lhes uma visita. Na última carta, aquella que tanta impressão causara em todos nós, dizia:--que, em vista da dificuldade que os meus pais opunham em deixar a casa, viria elle visitá-los e apresentar a sua senhora. No dia em que deviam chegar, logo de manhã nos envergaram os fatos domingueiros, recomendando-nos muita cautela--não fôssem os tios julgar-nos uns besuntões! Nesse dia era escusado o _lembrete_, pois nenhum de nós pensava em diabruras, ansiosos como estavamos por vêr chegar os hospedes. O Papá partira cedo para a vila, para esperar a diligencia que traria os viajantes, e nós subimos ás janelas mais altas a vêr se descobriamos o carro por entre as faias da estrada real. Lá para o meio dia descobriu um de nós uma nuvem de poeira ao longe--tal qual como no Barba Azul--e, logo depois, ouvimos o guizalhar da diligencia que já se avistava numa volta da estrada. Corremos alvoroçados a prevenir a mamã, que na cosinha dava as últimas instruções á criada sobre a cosedura do perú e o assado de leitão. Um quarto de hora depois apeava-se á nossa porta, entre o povo curioso, a mais extraordinaria pessôa que até esse tempo eu tinha conhecido. Depois disso, no caminho da vida, que já não é curto pelo muito que tenho sentido e sofrido, tenho visto bastas figuras caricaturais: gente de todos os modos e feitios, tipos de comedia e tipos dolorosos de tragedia, riscados em dois traços por Gavarny, risos disformes em pálidos abortos, exageros de vestuario igualmente ridiculos, ou pela extrema elegancia ou pelo extremo desleixo... Tenho visto de tudo, e jámais senti o pasmo que essa primeira pessôa estranha causou no meu espirito desprevenido. Os meus irmãos, em frouxos de riso, fugiram para dentro de casa, e o Miguelsinho, que era o mais velho, abaixo de mim, puxava-me pela manga sublinhando risos muito ironicos. Eu, não sei porquê, não tive vontade de rir; qualquer coisa me dizia cá dentro de mim que era para pranto, e não para riso, a entrada daquella gente na minha vida. Primeiro apeou-se o meu tio, um vélhote bastante alquebrado, mas alegre por se vêr na terra natal. Abraçava toda a gente, e tratava por _tu_ velhas que eu me acostumara a considerar avós, e que limpavam os olhos lagrimejando por o vêrem tão acabadinho... E elle ria--raparigada do seu tempo, todas essas vélhinhas, e queriam que elle estivesse um rapaz, e mais que não tinham andado por trabalhos e canseiras de climas inhospitos!... E achava extraordinario que a irmã, uma garotinha de saias curtas quando elle partira, estivesse já mãe de filhos... --«E já de cabelos brancos--visse bem o mano!... Atraz delle, sahiu do carro uma pequena de cinco anos, parecendo têr o dobro, nem bonita nem feia, extravagantemente vestida á inglesa de torna-viagem, e toda doutoral nas suas frases. Fôra a última a nascer, depois de bastantes anos de casamento, em que todos os filhos lhes tinham morrido; por isso era respeitada como milagre vivo. Por fim, quando os criados tinham carregado uma aluvião de malas, necessarios, sacas de linho bordadas, e tanta coisa que nos fazia arregalar os olhos de espanto, a nós pobres pequenos selvagens, que, a respeito de viajar, iamos ás quintas proximas pelo tempo da vindima e até ao rio em folgada pescaria uma vez por festa. Depois começou a sahir um prodigioso chapéo de palha envolto em gaze côr de castanha, e, a seguir, um corpo enorme vestido com um guarda-pó de xadrez em largas mangas perdidas. Era monstruosa a minha tia! Nunca lhe poude dar este nome porque o meu espirito se recusou sempre ao convencimento desse parentesco, que repugnava á minha afétividade. Alta como um carvalho e gorda em proporção, o que a tornava ainda mais exotica entre gente miuda como é a nossa. Talvez não tivesse sido feia, mas as feições estavam enterradas em tecido adiposo, e só naquelle deserto de cara branca brilhavam uns olhos metalicos e frios que nenhum sentimento conseguia adoçar. Quando os poisava na miudinha figura de morenita que eu era então, toda a minha carne se arrepiava numa tremura e os meus nervos vibravam desagradavelmente. Trazia o cabelo, já a embranquecer, cortado pelo pescoço,--_á estudanta_, diziam por lá as pequenas da aldeia--modos autoritarios, voz de comando, andar de granadeiro, e uma lingua de trapos que ninguem entendia. Mãos e pés não tinham fim, e o seu desembaraço irritava-me pela mania que tinha de fazer tudo e melhor do que ninguem, de falar alto e atirar os braços para a frente num gesto resoluto de jogador de _box_. Meu pobre tio admirava-a e escutava-a, submisso, como a um oraculo, nada fazendo sem a consultar. Sobretudo nenhuma delicadeza feminil, muito orgulhosa da sua superioridade e senhora da sua pessôa, dizendo mal--de _pórtuguês_, _e tudo quanto é pórtuguês, muito estupidos_!... Dizia-se filha dum banqueiro da Havana prodigiosamente rico, mas tais riquezas--como as de _Pedro Cem_--perdiam-se na sombra da lenda. Contava coisas estupendas de _seu papá_, descendente em linha réta de _grandes de Espanha_, pelos vistos, dos soberbos companheiros de Colombo... A _sua mamã_, essa era uma aristocratica _lady_, viuva dum membro da aristocracia britanica, que não se dedignara de aliar o seu puro sangue azul ao de descendente dos audazes conquistadores... A fortuna de _seu papá_ pesara por muito tempo nos destinos do visinho reino, como o luxo da _mamã_ déra brado na côrte de Madrid e na vilegiatura de San Sebastian, uma vez que os dois tinham visitado a metropole. Coisas que ella dizia, que, ao certo, quem pode dizer donde vem essa gente, retalhos desencontrados e disparatados das raças do mundo inteiro?! Apreendi depois, no decorrer da nossa convivencia, por meias palavras escapadas a uns e a outros e por inconfidencias de pessôas das relações e que os tinham conhecido lá fóra, que o banqueiro cahira vergonhosamente numa falencia que fizera estrondo e a _lady_ não passava duma aventureira, dessas que a Inglaterra exporta, sob a capa angelical de sérias _institutrices_, e que por todos os meios querem arranjar uma existencia mais cómoda. Orgulhava-se extremamente dessa sua origem britanica, como de têr nascido na America, como se fôsse uma legitima filha dos Estados-Unidos... Oh, a livre America, sonho de todos nós os que nos sufocâmos sob a pressão do convencionalismo europeu, como essa mulher nô-la mostrava odiosa, opressiva, duma rigidez de puritanismo fanatico! --«Oh! _Amérricana_, grande coisa!... _Eurrópa, muito desmoralisada!... Pórtuguês, muito estupida!..._ Igual ao seu orgulho de têr nascido numa ilha da America e de pais tão ilustres, só o desprezo, e a ignorancia propositada, por nós, pelos nossos gostos e aspirações, pelo nosso povo tão laborioso e inteligente, embora inculto, pelo nosso país tão belo, o nosso clima tão dôce no sul e tão soberbo junto ás montanhas que a neve cobre nas invernias grandes... Desconhecia a nossa historia, não sabia lêr os nossos poetas, não se entusiasmava com os nossos prosadores. Os nossos costumes, tão pitorescos, eram, aos seus olhos, de selvagens; as canções do nosso povo achava-as sem brilho nem graça, melopeias só proprias para adormentar crianças. Oh, o horror que nos causava essa criatura, que assim abocanhava tudo quanto nos era querido, achando sempre que dizer das superioridades dos outros países! Nós, os pequenos, que não tinhamos adquirido com o decorrer da vida a fleugma risonha com que meu pai a escutava, a indiferença com que a minha mãe ia tratando da sua vida sem lhe prestar atenção, nem a paciencia do Padre Zé, que abanava a cabeça embranquecida como unica resposta; nós desesperavamo-nos por não nos permitirem contrariar a hóspeda. E o Miguel, que já pensava muito bem e tinha observações muito a proposito, dizia-me baixinho, de cada vez que a ouvia denegrir as nossas coisas:--Não sei como, sendo tão mau o nosso país e a gente tão estupida, ella casou com um português e veiu para cá maçar-nos!... Mas o que eu não compreendo é como essa criatura, que para nós era tão desagradavel, conseguiu convencer meus pais da sua inteligencia, chegando a dar-lhe razão nos seus grossos dislates. Principalmente na minha pobre mãe, que se julgava uma ignorante,--ella que dirigia a sua casa com tanto criterio e olhava providencialmente por nós todos--fizera profundo sulco a torrente de sabedoria enciclopedica que jorrava enfaticamente da sua bôca. Logo que chegou, desembaraçada dos apetrechos da viagem, olhou-nos com altivez. Depois tomou-me á sua conta, por sêr eu a mais velha e por ser rapariga. Um dia sujeitou-me a um interrogatorio em fórma: --«Menina sabe francês? --«Não, menina não sabia francês. --«Oh!... vergonha! Estive para lhe responder:--E a senhora sabe português?! Chamaram-me sempre atrevida nas respostas, mas o que é certo é que me arrependo sempre das poucas que tenho deixado de dar tal qual as penso. --«Menina sabe inglês? --«Não. --«Oh! sabe _desenha_? --«Não. --«Oh! muito _linda_! Aquellas sombras!... Na _Amérrica_ toda a gente sabe _desenha_!... --«Sabe _piana_? --«Não. --«Oh! vergonha, vergonha, uma menina não tocar nem cantar!... E seguiu-se uma preléção sobre tudo quanto enumerava e que eu, pertinazmente, ignorava. Na verdade eu sabia pouquissimo, mas estou certa que ella não conhecia senão de nome a maior parte do que dizia. Aquilo tudo era papagueado, elementos de coisas que aprendera no decorrer movimentado da sua vida. O meu querido Padre José pasmava:--«Como podia uma senhora saber tanto?!... E a minha mãe desculpava:--«Oh, a mana não imagina a falta de professores que ha por estes sitios! Temos pensado em mandar a pequena para um colegio, mas o pai prefere uma professora... Eu, professoras em casa--tenho-lhes um mêdo! Demoraram-se, apesar de todos os incómodos a que se sujeitavam naquele selvatico país, um longo mês em nossa casa. Depois... Quando penso, ainda estremeço de raiva! Depois de longas conferencias e segredos com os meus pais, combinaram que eu iria com elles para Lisbôa e ficaria em sua casa para me educar. Quando nós, os pequenos, soubemos o que significavam tais misterios, já tudo estava resolvido. Eu desanimei; os meus irmãositos choravam pelos cantos, e chegavam-se a mim para os animar. O Miguelsinho, que era o preferido da mãe, tentou discutir tal resolução e pedir para que me não entregassem á _estrangeira_, mas ficou desiludido da sua influencia porque o chamaram pateta e prohibiram-lhe terminantemente de se meter onde não era chamado. Cá por mim, nada pedi nem objétei; fechei-me num mutismo que exprimia já, mais do que as palavras, a onda de revolta que se me ia formando no coração. Sucumbi. Já não tinha gosto para nada: não voltei á quinta nem procurei mais a Cacilda, para a cavalgar como os rapazes e percorrer os caminhos tão conhecidos e amados. Os meus amigos do pombal sentiram por certo a minha falta, como os da capoeira a tinham já sofrido... Nunca mais procurei as pequenas minhas companheiras, mas via-as por detraz dos vidros da janela dansarem em rodas, ouvia-lhes as cantigas joviaes, percebia que jogavam a _laranjinha_ ou faziam de _senhoras visinhas_... E ficava-me indiferente, já alheada da sua alegria, afastada para sempre do seu convivio, desprezando inconscientemente a sua humildade. Era como aquellas pessôas, quasi na agonia, que já não são deste mundo nem o que nelle passa lhes interessa--e ainda não entraram no supremo descanso da morte. Decerto que muitas vezes pensara em sahir da aldeia, percorrer novos caminhos, vêr paisagens inéditas, terras lindas de encantar como as sonhava por esse mundo fóra!... Invejara, não poucas tambem, os vagabundos que passavam pela aldeia e nos contavam coisas estranhas para os nossos espiritos, e de que elles traziam nos olhos um vago assombro... Devaneando, o Miguelsinho e eu, quantas vezes não conversamos sobre a divertida existencia dos ciganos, que andam de terra em terra com os ursos e os macacos e sob a sua esfarrapada tenda têm todo o seu aféto e interesse no mundo?! Sahir dalí... ir viajar... vêr paisagens novas em folha para a minha retina, terras desconhecidas, gentes exoticas, seria uma libertação, mas ir na companhia duma pessôa que nos era tão particularmente antipatica, confiada á sua guarda, colocada sob a sua autoridade, isso nunca o podia têr sonhado, nem como pesadelo me assaltara jámais o espirito. Não chorava, porque a profundeza do golpe me revoltou até quasi á loucura. Desde o dia em que me deram a noticia do meu destino, deixei de sêr a criança que fôra até ahi para me tornar numa sombria criatura, raro abrindo em risos a sua alma ingenua. Tinha doze anos, cheios de saude e alegria; era uma perfeita criança, sem sombra de malicia a macular-me o espirito--uma pequena criatura muito humana e muito bondosa. Fui depois uma pobre alma torturada, contorcida em odios, desprezando e desconfiando de tudo e de todos. O mundo deixou de sêr para mim uma festa cheia de sol para se tornar num algido subterraneo. Hãode dizer que exagero, que o caso não era para tanto, nem a mulher de meu tio merecia o repulsivo odio que lhe votei... Mas que querem?! Não ha animais que odeiam uma determinada criatura, numa repugnancia instintiva, sem aparente razão? Tal o meu sentimento por ella: instintivo, invencivel, fatal. Meus irmãos choraram muito quando eu parti; a minha mãe abraçava-me soluçando convulsivamente, apesar de toda a sua serenidade de mulher que nunca sentira rebate de nervos em vibrações assustadoras, mas eu desprendi-me dos seus braços, de olhos enxutos, pálida e sombria, concentrada na convicção íntima de que não me estimava verdadeiramente quem assim me expulsava do seu lar, para me colocar sob a autoridade despotica duma quasi desconhecida e já detestada criatura. Antes o colegio!--pensava com amargura. Ao menos teria amigas que sofreriam comigo o cativeiro, teria talvez professoras que estimasse... Toda a gente da aldeia acorrêra para me dizer adeus; assim eu andava de braços para braços, levando beijos que me repugnavam mas aos quais não tinha coragem de me negar. As criadas, uma por uma, vieram ainda á porta do carro dizer-me os últimos adeuses, e quando a Maria Augusta me abraçou apertou-me com tal ânsia que um nó se me deu na garganta, e teria fraquejado ali, diante da _estrangeira_, se a não visse no fundo do carro sorrir com ironia da cêna, que aos meus olhos nada tinha de ridicula. Quando na vila, ao partir da diligencia, meu pai se voltou para limpar as lagrimas furtivamente, toda a minha alma explodiu num adeus--que mais era um grito de protesto... Até elle! Todos, todos, me abandonavam. Era demais! Aninhei-me a um canto da carroagem, estupidificada pelo assombroso do caso, e deixei-me transportar como um fardo, sem vontade nem iniciativa; era mais um volume a acrescentar aos inúmeros sacos, malas e maletas que abarrotavam a diligencia alugada por conta da minha enorme tia. De pouco me recordo dessa jornada triste que me levou a Lisbôa. Dias chuvosos de princípio de outôno, estradas desertas, campos desnudando-se numa paisagem uniforme, tristezas da alma e tristezas da bôa natureza, que se despedia dos meus olhos num compungimento de simpatia. Ainda bem que chovia! Se fizesse sol, se as raparigas cantassem pelos campos, e os carros de bois arrastassem pelos caminhos a fartura da colheita, quanto isso seria infinitamente mais desolador para a minha pobre alma confrangida! Assim cheguei a Lisbôa por uma madrugada nevoenta, sem sequer me têr admirado do caminho de ferro que pela primeira vez vira no Entroncamento, onde o fômos tomar. O que podia interessar e comover o meu espirito atordoado por esse repelão da vida, que tão cedo começava a maguar-me?! Ah, como se sofre quando se é criança, quando ninguem respeita a nossa dôr e a nossa vontade, quando decidem do nosso querer como se fôssemos títeres animados por maquinismo industrial! Lisbôa não me deslumbrou, porque mais, muito mais, fantasiara dos seus encantos e fausto no meu sonhar de criança. As ruas da Baixa, com as suas altas casarias alinhadas e uniformes, que a rigidez pombalina decretou, faziam-me uma terrivel saudade dos campos largos por onde a vista passeia e cabriola como cabritinho montez. Apertava-se-me o coração recordando os horizontes que se esbatem ao longe, nas serranias violetas; e o marulhar da multidão irritava-me os nervos, mal me podendo recordar o rumorejar embalante dos pinheirais atravessados pelos ventos em livres carreiras de tardes outonais... O meu pobre tio mostrava-me coisas, queria que me extasiasse com a capital, eu pobre serrana que nunca vira nada, mas a faculdade admirativa tinha-se embotado em mim. Era um corpo sem alma--que essa por lá me ficara, errando pelos campos da minha risonha terreola. Só quando o mar se descobriu diante dos meus olhos, elles se abriram numa atenção de velha simpatia. Não, nunca tinha visto o mar, mas sonhava-o e amava-o desde muito, com o aféto entranhado e atavico que todos nós lhe temos. O mar, a nossa estrada movediça e terrivel!... O mar, essa nossa segunda patria, foi a unica coisa onde descansei a vista com enlevo e que durante os quatro anos de cativeiro me deu algum prazer á vista. Quando, entre duas ruas, o descobria lá ao fundo, numa nesga rutilante de sol, toda a minha alma se refrescava e florejava de sorrisos. Felizmente que a casa do tio era num bairro afastado e novo, onde raro chegavam os pregões berrados das ruas e só de longe em longe o rodar duma carroagem fazia estremecer os vidros das janelas. E, por fortuna, tinha atraz um jardinsito, entalado entre casas é verdade, mas emfim mimoseando-nos com um pouco de ar mais puro para os robustos pulmões desenvolvidos pelo ar forte da montanha. A _cubana_ tinha fórmas dogmaticas sobre a educação, que serviam para os cinco anos da filha e para os meus doze de rapariga nubil. Era preciso que me levantasse cedo--vá! Isso não me custava, acostumada desde criança ás madrugadas na aldeia. Mas, depois de me levantar, não podia correr pela quinta, abrindo o apetite ao almoço suculento que me esperava na mêsa; tinha que fazer a cama, arrumar o quarto, e estudar. Em casa, para ajudar a Maria Augusta, muitas vezes lhe tirava a vassoira das suas pobres mãos encarquilhadas, e varria, cantando festiva, auxiliando-a no fazer das camas e mais arranjos domesticos; ali, obrigada, mandada por aquella monstruosa criatura, sentia um tal desespero, um tal rancôr a referver-me na alma, que todas as minhas ideias eram negras como fuligem, todos os meus sentimentos eram maus a roçarem pela perversidade. Encostada aos vidros da janela do meu quarto, olhava a gente que seguia o seu caminho, apressada ou vagarosa, alegre ou triste, pobre ou rica,--e a todos eu invejava com verdes invejas de reptil!... Era preciso que estudasse três horas antes do almoço, e o meu espirito vagabundeava pelos caminhos pedregosos da minha terra, debruçava-se na ribeira onde os salgueiros reflétiam a folhagem leve e as margaridas rosadas, as pervincas azuis e os miosotis da côr do céo espreitam entre a verdura da herva tenra.... Era preciso que inclinasse sobre os livros a minha pobre cabeça pesada de sôno, e os meus olhos fechados reviam os milharais regados de fresco, as cerejas vermelhas suspensas como pingos de lacre das arvores amigas, as amendoeiras em flôr, as encostas cobertas de olivedos pálidos, os pinheiros esguios, os castanheiros arreganhando a bôca dos seus ouriços para nos darem o fruto saboroso. O meu espirito não acompanhava o pobre corpo oprimido, que se estiolava num quarto fechado, diante de estereis livros que não compreendia; não! Elle assistia, lá ao longe, á ininterrupta festa da natureza; alegrava-se com os divertimentos do campo; procurava os magustos, onde se comem as castanhas assadas na fogueira; ia aos _serões_, onde as velhas avós contam lindas historias ás raparigas, fiando á mortiça luz da candeia suspensa do velador de pau enegrecido pelos anos; evocava as ranchadas que vão ás romarias, cantando e tocando a viola e os ferrinhos, e os que vão para as feiras álacres, entre festivos e afadigados, na policromia do trajar das mulheres e na gravidade interesseira do comerciante que oferece ou compra a mercadoria e discute largamente o seu negocio... A fuga era o unico deleitoso pensamento que se esboçava no meu cerebro. Fugir! Sêr livre! Não têr mais diante dos meus olhos a figura estupenda da mulher de meu tio, nem a face simiesca da petiza!... Era o ideal supremo que acariciava, um sonho redentor que se me fixava na cabeça por mil pontos delicados e impercétiveis. Formava com esta unica e obsessiva ideia projétos sem conto, e se não fôsse a covardia ante o escandalo, que é ainda uma servidão do nosso espirito, se não fôsse o receio atroz de sêr apanhada pela policia, vir o meu caso por miudos nos jornais, e sêr finalmente trazida de novo alí, certamente teria _feito alguma_!... Faltava-me a energia determinante dos fortes caratéres. A revolta traduzia-se pelo embrutecimento, pela apatia, pela oposição passiva dos fracos e dos ignorantes. Fechada no quarto todas as manhãs, em vez de estudar deitava-me sobre a cama, e afiguravam-se-me as tábuas alinhadas e estreitas do této como se fôssem as tábuas do meu caixão. Lá fóra era a vida: os pregões que atravessavam a rua solitaria numa festa ruidosa de côres, revoadas de andorinhas riscando o azul em zig-zagues caprichosos, a chilreada estúrdia dos pardais pelos telhados... Morria de aborrecimento, e morrer, creio, foi o pensamento mais consolador que nesse tempo se alojou no meu cerebro. Não estudava, o que era em mim um velho habito, mas com as lições do Padre Zé tinha chegado a compreender alguma coisa, e agora sentia-me sem nenhuma inteligencia, sonolenta, parada, sem sombra de vivacidade intelectual. Tinha uns poucos de professores, pagos pelos meus pais é claro. E por sinal que eram bem generosos com o dinheiro dos outros... O inglês ensinava-mo ella, mas eu odiava-a tanto e o meu espirito começava a achar um tal prazer em contrariar os outros, que me sublevava contra mim mesma quando começava a compreender essa lingua que ella tinha como sua. Farta já de a saber, obrigava-a a algaraviar o português para me rir intimamente dos seus comicos disparates. Estava assim. Pouco sahi durante os quatro anos que durou o meu cativeiro--porque a sua companhia me desagradava cordialmente, porque os passeios por ella escolhidos eram odiosamente disparatados, e porque a sua imposição de me ensacar em verdadeiros horrores, que ella alcunhava de vestidos á inglêsa, me causava um asco invencivel. Sem têr nunca apreciado os _laçarotes_ e as rendas esbanjadas nos vestidos provincianos das minhas antigas conhecidas, sem ambicionar a elegancia casquilha das meninas lisboêtas, o meu espirito era demasiadamente meridional, demasiado artista, para se não prender com a fórma e não se encantar pela côr e pela beleza do trajo, como de tudo quanto me pertencia e rodeava. Assim, achava meio de me esquivar sempre que sahiam, o que era raro, pretextando estudos que nunca fazia. De mêses a mêses, a visita ao consul inglês era o unico parentesis de luz na tristeza da minha vida. Tinha umas filhas encantadoras, algumas já senhoras, e, entre ellas, a Maud era muito gentil para mim, consolando-me e alegrando-me, nas poucas vezes em que nos avistavamos, das muitas horas de incomportavel tedio que passava naquella casa. Maud era muito inglêsa na sua educação para censurar uma pessôa das relações da casa, mas o simples sorriso dos seus labios finos, a ligeira caricia dos seus olhos puros, era quanto bastava para me encher o coração de reconhecimento e têr na sua amizade toda a confiança. Pobre Maud! Levada pelo destino para longe, obrigada a ganhar a sua vida pela morte dum pai afétuoso e inteligente, em que país, em que terra, em que familia, o seu sorriso honesto, a sua graça séria, serão consolo e júbilo para alguma criança infeliz, como eu era?! Outra qualquer pessôa, por menos melindrosa e suscétivel que fôsse, não se sentiria feliz num meio em que tudo era violento e desagradavel. A _cubana_ ralhava por tudo, nada estava feito a seu gosto, de manhã á noite lamentava têr vindo para um país de que dizia indelicadamente, grosseirônamente, os ultimos horrores:--a vida era carissima, os criados eram mandriões e inhabeis, era preciso olhar por tudo, vêr tudo, desde a roupa da lavadeira até á limpeza da casa... Tornava desgraçada toda a gente, e não consentia que ninguem se considerasse infeliz--possuindo a rara fortuna de a têr ao lado! Ao meu pobre tio impunha uma felicidade que elle estava longe, bem longe, de sentir. Não podia formular uma opinião sua; era obrigado a confirmar tudo quanto ella dizia, e ainda dizer-se o mais ditoso dos maridos e fazer elogios á sua alta inteligencia, bom-senso e sábia economia. Meu pobre tio! Verdadeiramente, aquella pressão moral em que conservava o bom do velho, revoltava-me. Nunca pensei em impôr a minha vontade a ninguem, e tudo quanto seja coagir a dos outros, tirar ao sêr humano a liberdade de sentir e pensar por si mesmo, exaspera-me como violencia contra mim propria exercida. Depois, a pequena tinha a bela qualidade de espiar e ir contar-lhe tudo quanto se dizia e fazia em casa, e por muitas vezes o que nem sequer se sonhava dizer ou fazer. Um _amôr_ de criança! As criadas entravam e sahiam com uma velocidade de comboio expresso. Quando mal humorada, dava-lhes bofetada e descompostura que as fazia fugir espavoridas; mas, se por outro lado lhe désse na cabeça, enchia-as de presentes e favôres. Era conforme ellas sabiam ou não lisongear-lhe a vaidade. A última que lá conheci, talvez a mais velhaca de todas, essa soube cativá-la, e fazia quanto queria sem que ouvisse uma simples reprimenda. Adiante falarei na menina Eulalia, que entrou para muito na minha vida. Meu tio é que escrevia para casa e lá dizia dos meus adiantamentos, que, francamente, não eram nenhuns. Ás noticias dos meus pais, tão carinhosas e prolixas, eu respondia com aquellas cartas incolôres que todas as crianças prisioneiras nos internatos, ou onde quer que lhes pônham sentinela ao pensamento, têm escrito. Cartas em que nem um vislumbre da alma infantil entreluz; cartas feitas só de palavras ouvidas, e que são o primeiro passo para a mentira social a que nos querem sujeitar, como a cães sábios sob o chicote domesticador e o mêdo... A criança, que sabe que as suas cartas serão maculadas pelos olhares indiferentes, e os seus verdadeiros sentimentos procurados nas linhas em branco da sua pobre correspondencia, perde a sinceridade, não se expande com lisura, não diz o que sente... Os bilhetes que metia no mesmo sobrescrito de meu tio eram frios, pouco mais ou menos o que me diziam que era dever escrever:--que estava bem, que era bem tratada, que me sentia feliz... Nada do que, em verdade, eu teria desejo de dizer! É certo que a minha alma irritada julgava-se ofendida pelo desamôr com que me tinham expulso de casa para me atirar para o poder daquella mulher, que para mim resumia tudo quanto eu podia odiar mais. Nesse tempo não gostava de ninguem--nem de mim mesma. Era injusta, mas era humana. O animal criado em toda a expansão da sua vida material e forte, não se subjuga sem rebelião, não se obriga sem muito custo a entrar no regimen de servidões a que se convencionou chamar _deveres sociais_. Assim, quando meu pai empreendia a longa viagem da aldeia á capital para me vêr, eu não correspondia de modo algum ao seu aféto e interesse. Sem compreender o enorme sacrificio que faziam para me dotarem com uma educação que supunham sêr um precioso instrumento de felicidade para toda a minha vida, achava que era desamôr o que me consagravam e tão sómente desejo de me vêrem longe da sua casa, porque o meu feitio moral os desconcertara e lhes era talvez odienta a minha presença... Ás perguntas insistentes que me fazia, vendo-me tão delgadinha e triste, o meu orgulho fazia-me responder com sistematica negativa. Se elle se demorasse, se insistisse, a minha energia não seria mais forte do que a revolta contra o sofrimento, tão natural ao sêr humano quando novo e saudavel. Mas o meu pai não supunha encontrar tais meandros e subtilezas no sentir duma criança que conhecera defeituosamente franca e impulsiva. Por outro lado, os negocios da casa não o deixavam demorar mais do que um dia ou dois, o que não era muito para fundir o gêlo que se formara no meu coração contrariado e amarfanhado. Ora de estudos ia eu muito mal. Os meus professores classificavam de estupidez a minha incapacidade de satisfazer as lições, e creio bem que o era. Não estudava, e mesmo que estudasse não compreendia. A cabeça parecia-me de chumbo, pesava-me como o capacete dum guerreiro antigo. Não faziam nada de mim, pela certa! A professora de desenho era a unica que tinha dó dos meus traços indecisos e me dirigia com bôas palavras, por isso fiquei sabendo um pouco mais dessa arte, que das outras, e com imensa pena de não poder fazer tudo quanto ella me dizia que seria capaz de realisar, com a minha paixão pela corréção das linhas classicas, a minha expansiva busca das côres, que ousava procurar inéditas e brilhantes na paleta de principiante... Sentia-me infeliz, e, se verdadeiramente me quizesse queixar, não saberia bem precisar o que me maguava naquella casa. Talvez porque era tudo, desde a gente até á comida. Chegava a sêr um suplício; acostumada em casa a encher abundantemente o meu pequeno estomago voraz, ali tinha até mêdo de meter na bôca um pedaço a mais, porque via todos os olhos a pesarem e a medirem tudo o que a minha garganta oprimida conseguia deixar passar. Por economia e por habito, eram todos frugais, e eu, por ceremonia, quando os via recusar o _roast-beef_, que se comeria frio no almoço do dia seguinte, recusava-o tambem, embora ás vezes sentisse um bom apetite de animalsinho carnivoro, que não se sente satisfeito. O meu unico desafogo era o jardinsito, que tratava com todo o cuidado. As sementeiras iam a horas para a terra, e não lhes faltavam as regas, com a agua que eu mesmo tirava da bomba, nem a cobertura de palha, mais tarde, por causa das geadas. Andava sempre a espreitar o crescimento das plantas tenrinhas, que mal despontavam na terra pobre de adubos vitalisadores; e quando, na primavera, as arvores que mal se desenvolviam na sombra daquelle jardinsito entalado entre predios altos, se enfloravam, toda a minha alma florescia com ellas, recordando as que lá ao longe perfumavam os campos onde a minha saudade me levava errante... Ora o jardim era dividido do que pertencia ao rez-do-chão da esquerda por uma sebe de madeira, que eu pensara em disfarçar sob a verdura abundante duma trepadeira de folha permanente. Passava horas desembaraçando as finas hastes para as ir guiando e atando. Quantas vezes, de tanto as querer estender e espaldar, não parti grandes pedaços, que depois lamentava muito contristada! O mal de quem tem muita pressa... em contrafazer a natureza. Ao fundo, era limitado pela parede dum outro jardim, que nunca tivera a curiosidade de procurar vêr, embora por lá sentisse as risadas de crianças mais felizes do que eu... A tristeza até embota a curiosidade, essa fórma, embora inferior, da vivacidade intelectual. Concentrava-me no meu proprio sentir, e todo o mundo me era estranho. Ora isto foi assim até que num dia veiu para o rez-do-chão visinho uma nova familia: pai, mãe, e filha, uma pequena encantadora, que começou a sorrir-me e a cumprimentar-me quando me via na minha faina de jardineira. A Mariquinhas, com a sua mobilidade graciosa, falou-me uma primeira vez, a proposito de nada, só para encetar conversa. Respondi-lhe acanhadamente de principio, mas em breve toda a minha timidez desaparecera diante da sua ampla cordialidade. Conversamos, e logo á despedida nos beijamos, por cima da sebe que já conseguira vestir duma folhagem de lindo verde brunido. Em poucos dias ficamos as maiores amigas do mundo. Pela minha parte entreguei-me com ardôr ao estranho prazer dessa amizade; agarrei-me a essa ventura com o desespero de quem se vê só, num meio irritante e hostil, sem um unico aféto a confortar um pobre coração feito para o sentimento. A Mariquinhas era a unica e amimada filha duns pais, que a tinham só a ella, duns poucos que no seu ninho tinham batido azas palpitantes de alegria e esperança e a morte lhes levara numa impiedosa e cega colheita. Era em casa uma pequenina rainha, que não abusava é certo da sua autoridade, antes punha uma suprema graça nas suas ordens e caprichos. Hôje, recordando bem as suas feições, que o tempo já quasi deliu na minha memoria, acho que não devia sêr, talvez, uma formosura, mas nesse tempo era para mim tudo quanto conhecia de mais puro enlevo. Magrinha, elegante, duma finura de traços angelicais, tinha a pálida beleza das camelias delicadas, que as fortes chuvas do inverno desfolham rapidamente. Era muito instruida, uma pequena e encantadora sábiasinha, que sorria, maternalmente conselheira, da minha supina ignorancia. Já quasi mulher, um tudo-nada garrida, vestindo divinamente os lindos vestidos da sua escôlha, ella materialisou no meu espirito o ideal duma santa ou dum anjo salvador, que Deus tivesse mandado ao meu purgatorio. Porque... esquecia-me mais esta: a mulher de meu tio era protestante, mas da última hora. Com todo o fanatismo dos neófitos e a sua terrivel mania de impôr as suas ideias e de prégar as suas convicções, todos os dias me ensinava e explicava o evangelho, á sua moda, isto é: analisando-o e adaptando-o á vida quotidiana, com uma banalidade desesperadora. Na minha aldeia nunca ouvira falar em evangelho senão no latim do Padre Zé, á missa, quando a minha mãe nos dava a consolação de nos pôrmos de pé. Mas estava acostumada a conversar com o Anjo da guarda como se fosse um irmão, e no rosto delicado das esbeltas Santas góticas, que ornavam as paredes da nossa velha igreja, lia enlevadoras historias que ellas me sorriam... Arrancar a uma pobre alma de meridional, apaixonada pela côr e pela fórma, o olôr dos incensos subindo em dolentes preces para um céo recamado de oiro e pedrarias, onde lindas crianças cantam e tocam flautas e guitarras maravilhosas, onde florescem jardins ideais, e correm fontes inesgotaveis de perfumes suaves; tirar-lhe a ilusão magnifica duma vida embalada pela esperança do milagre, e dar-lhe em troca a frieza do raciocinio, a clara e positiva significação das palavras, a simplicidade da fórma despida do encanto da arte, será por certo de muito bons resultados futuros--e foi-o para o meu espirito, que se habituou ao rigoroso cumprimento da verdade--mas nesse tempo constituia um sacrificio a mais a juntar aos muitos outros. Pois a Mariquinhas encarnou para a minha imaginação mortificada, o anjo meu companheiro e protétor. Pela sua mão seguiria por sobre a _fragil ponte_ que representa o dificil caminho da virtude, nas imagens popularisadas pela oleografia barata, em que o guarda angelico guia uma criancinha, com a sua mala de viagem a tiracolo, pela áspera senda do bem... Fôram os dias bons da minha permanencia naquella casa. Não sei como a terrivel _cubana_ se não opôs á nossa convivencia, embora distanciada, apenas entretida pelas fugitivas palestras trocadas a mêdo por sobre a sebe que as minhas trepadeiras iam vestindo e matisando com uma floração polícroma. Lembro-me agora que a Mariquinhas, com a sua viva inteligencia cultivada no convivio da sociedade, compreendera desde logo de quanta vaidade e orgulho se enchia a enorme criatura, e sabia lisongeá-la com leves delicadezas, das quais eu nem sequer compreendia o alcance, na minha inteireza selvagem. Hôje, era uma linda flôr mandada pela pequena para a mamã pôr no seu logar, á mêsa; ámanhã, noticias lidas por acaso nos jornais sobre coisas passadas em Inglaterra ou nos Estados-Unidos; depois, uma corréta atenção aos discursos que lhes algaraviava, quando acontecia vê-la da janela. Com tão pouco, a Mariquinhas vencera a resistencia feroz daquella fortaleza e achava-se senhora da situação. Nunca pensei que eu teria, talvez, conseguido o mesmo se o orgulho--que é uma virtude que nos nobilita, mas torna dificil a vida social--não me fizesse olhar com desprezo para esses processos que me punham numa dependencia moral que me irritava. Decididamente a Mariquinhas era muito melhor politica; onde o meu temperamento voluntarioso punha energia revoltosa, a doçura do seu espirito, tão levemente ironico quanto profundamente conhecedor das fraquezas alheias, usava o suborno da lisonja, que a todos conquista e agrada. Apesar das familias não têrem nunca encetado relações que as tornassem do mesmo convivio,--porque a mãe da Mariquinhas detestava a _espanhola_, como lhe chamava--conseguira a criança, com as suas blandicias de lisboêta amavel, que me deixassem ir passar algumas tardes a sua casa. Era um banho dulcissimo de calma para o meu espirito, que fermentava em sublevações concentradas mas nem por isso menos violentas. A D. Emilia era uma destas almas bôas e sãs, tal qual a da minha mãe, modestas no cumprimento religioso duma existencia que nunca teve dúvidas nem sobresaltos de consciencia. O seu espirito era simples, e os seus olhos diziam na clara expressão o que ás vezes os labios não se atreviam a proferir, com receio de ir infelicitar os outros com uma observação menos resignada... ou mais verdadeira. Conversar com a bonissima criatura era abrir o coração e deixar correr as palavras livremente, numa fluencia de ribeira múrmura e limpida deslisando por campo sem obstaculos; ouvi-la era escutar o carinhoso conselho duma rara alma humana que nunca se tinha poluido numa mentira. Ah, como o meu coração se aliviou da tristeza imensa em que se afundava, contando-lhe a minha vida; e como ao contar-lha precisei verdadeiramente o _mal de viver_, que me vencera e arrastava para o desespero! E como ao escutar-lhe a palavra mansa e insinuante, compreendi, e melhor apreciei, a modesta e nobre missão da minha pobre mamã!... O pai da Mariquinhas parecia viver só para tornar felizes as duas criaturas, que eram todo o seu cuidado e amôr. Aposentado do seu logar de lente duma escola superior, passava os dias estudando e lendo no seu gabinete cheio de livros, que já lhe invadiam a secretária, que a filha todas as manhãs lhe ia enflorar com lindos ramilhetes que ella mesma cortava e ageitava nas jarras. Que suave e dulcida existencia! E como a vida corria sem se sentir entre aquellas três criaturas, tão estreitamente unidas pelo amôr, sem violencias nem coáções... Que diferença da nossa casa, onde a mulher de meu tio queria impôr não só a sua autoridade absoluta, o que já seria abominavel, como os seus gostos e sentir e toda a sua maneira particularissima de vêr as coisas! Aquella atmosfera pacificadora fazia-me bem, domesticava-me o coração que se tinha tornado feroz no odio e na desconfiança. A unica receita eficaz para se sêr amado sinceramente é amar; era a que usavam os meus amigos, e por isso venceram a minha rudeza e fizeram com que os amasse com todo o entusiasmo da minha alma apaixonada. Com o refrigerio daquelle contacto a vida tornou-se-me menos pesada; suportava melhor a desgraça desde que tinha quem me compreendesse e lamentasse. Pobre criança expatriada, que eu era,--naquelle meio tão estranho e adverso! Passado o sofrimento que nos crucifica, tirados do logar em que fômos martirisados, olhando a frio para o que nos fizeram sofrer, é que verdadeiramente compreendemos e sentimos a dôr, mas com um sentir retrospétivo que se torna tanto mais agudo quanto maior é a convicção do que foi a nossa miseria. Durante o sofrimento a sua propria vehemencia nos atordôa e dá um anestesico moral, que é a unica compensação para os que têm sentido pesar sobre si a infinita maldade humana. Quantas vezes, lendo a historia do passado, não nos atravessa o espirito a dúvida de que fôsse possivel ao fragil organismo humano resistir aos ferozes martirios fisicos e morais que as paginas ensanguentadas de todos os povos nos mostram; mas, olhando em roda de nós, sabendo o que se faz ainda hôje e que a tirania já não pode esconder ao nosso conhecimento, porque os protestos dos condenados resôam mais alto na consciencia humana ou os nossos ouvidos se apuram mais para os escutar, convencêmo-nos de que é um facto esse embrutecimento sensacional que pela propria violencia da dôr atenua a mesma dôr, que quasi nos insensibilisa á força de sofrer. É o motivo porque hôje pasmo da resistencia passiva que eu fiz ao martirio daquelles quatro anos de educação inquisitorial. Ou não fôsse a minha tia uma legítima descendente dos _hidalgos_ inquisidores que civilisaram a ferro e a fogo os infelizes seus conquistados! Ora na casa a que pertencia o jardim que confrontava com o fundo dos nossos, vivia uma familia das relações dos meus amigos,--fôra até a causa delles virem morar para o nosso lado, soube-o depois. A Mariquinhas falava-me muitas vezes no Chico, que vivia do outro lado do muro e era filho da grande amiga de infancia da sua mamã. Dizia-me que nessa ocasião passava elle as férias no campo, e que quando voltasse eu veria como era gentil e bom companheiro de brinquedos. E falava com tal entusiasmo do seu pequeno amigo, um belo estudante já quasi a terminar o curso do liceu, que o meu aféto--confesso--se sobresaltou, e um dia perguntei-lhe ansiosa: --«Ó Mariquinhas, tu gostas mais do Chico do que de mim, não gostas?!... Teve um fino sorriso incompreensivel para a minha ingenuidade lôrpa e respondeu-me com o ar ironico duma verdadeira mulher: --«Elle é um rapaz, e tu uma rapariga. --«E isso que tem para sêres mais sua amiga? --«Tem tudo. Não é a mesma coisa. Não percebi como podesse existir tal diferença nos afétos, mas resignei-me a ficar sem mais explicações para que o sorriso de desdem com que a Mariquinhas acolheu a minha evidente tolice não lhe aflorasse de novo aos labios finos. Bastas vezes me ficava meditabunda, entristecida, perguntando a mim mesma se nova complicação não viria por aquelle lado entenebrecer a minha pobre existencia, onde se abrira uma nesga de céo azul. Felizmente não foi assim. O Chico, apesar de mais velho do que nós dois anos, foi um ótimo companheiro das nossas tardes de recreio. A Mariquinhas ao pé delle tornava-se mais senhora, mais cheia de gravidade e importancia, sorrindo-se para o Chico quando eu dizia alguma infantilidade, como uma mãe que acha encantadora a ingenuidade do seu filhinho. E bem criança que eu era, apesar dos meus quatorze anos, ao pé da Mariquinhas, reflétida, instruida e séria como o não são muitas mulheres feitas. O Chico, que já então era um sábio em miniatura, ensinava-me muita coisa, lia-me lindas historias de viagens e descobertas, que era o que mais o interessava, e explicava-me cheio de paciencia as minhas lições. Saltava pelo muro para o quintal da Mariquinhas, de maneira que não fôsse visto de minha casa, com receio de sobresaltar a _estrangeira_, e vinha têr comnosco associando-se aos nossos brinquedos com um bom humôr que nos encantava. Que a Mariquinhas e o Chico esboçassem já então um destes idilios deliciosos de infantilidade que são ás vezes o princípio de grandes e puros afétos, que se enroscam na alma e influem para sempre na sua modalidade, pode sêr, mas que eu não compreendia nada dessas precocidades sentimentais, é tambem certo! Foi nesta altura da minha vida que entrou para criada da nossa casa a menina Eulalia. Não sei de que terra ignorada de provincia teria vindo aquelle especimen bem acabado da criada alfacinha, mas é certo que ella já trazia o cunho particular, os vicios e o geito dessa peste que entra nas casas como a traça na roupa. Que diferença entre essas criaturas falsas, interesseiras e intrigantes e as nossas criadas da provincia, á moda antiga, um pouco boçais e confiadas, é certo, vivendo com os amos numa certa igualdade familiar, mas tão fieis, tão amigas e carinhosas para nós! A Maria Augusta, coitada, com quanta ternura eu pensava na bôa mulher que nos criara com extremos de mãe, e tanto chorara a ultima vez que me fôra vestir, para a jornada! E a cosinheira solícita e desembaraçada, que nunca esquecia de meter na fornada semanal do pão de milho, para os criados, os bôlos para os meninos?! E a _paquêta_, a pequena criada que se vai avesando de criança aos usos da casa, e é, ás vezes, no futuro, a melhor de todas?! E a de fóra, encarregada da criação e dos porcos, que nos trazia abadas de fruta quando ia ás propriedades distantes?! E os criados, desde o rapaz dos recados ao feitôr, como toda essa gente era sincera julgando-se na sua propria casa--dizendo as _nossas_ casas, as _nossas_ matas, as _nossas_ rendas!... Quanto melhores, apesar dos defeitos de educação que lhes notava a mulher de meu tio, do que essa turba avarenta e mal educada que vi desfilar por sua casa durante os quatro interminaveis anos que lá vivi! Eulalia era baixa e magra, as faces manchadas, os dentes postiços, os cabelos frisados, e uns olhos pequenos e inquietos que nunca se fixavam em nós com franqueza. Não gostava della intimamente, mas acostumara-me já a nada mostrar dos meus sentimentos e nada, pois, lhe disse que a fizesse supôr tal antipatia. No entanto, ella compreendeu desde logo que eu era pouco na casa, e ria-se de mim com a _Lóló_ (o nome familiar da pequena de meu tio), que enchia de falsas caricias. Tinha grandes demonstrações de aféto pela _sua rica senhora_, a quem lisonjeava para despertar a sua generosidade, que percebera existir quando gostava das criadas, o que não era vulgar. Com o meu tio, cada vez mais doente e enfraquecido, ninguem se dava mal. Portanto, ia a menina Eulalia sêr a primeira que por lá se conservasse mais de um mês ou dois. Era mais uma criatura hostil a seguir os meus passos, mais uma bôca a denegrir o meu procedimento, mais uns olhos a espiarem-me, e um pensamento álerta que se exerceria contra mim. Apesar disso, as minhas relações com a Mariquinhas não afrouxavam, e a mulher de meu tio não se opunha a ellas porque encontrara emfim o meio infalivel de domar o meu orgulho e fazer-me docil e estudiosa. Á simples ameaça de me prohibirem esses momentos de desafogo, não havia nada que eu não fizesse! Se era a unica felicidade para o meu coração--e o sêr humano tem della tanta necessidade! Nem os professores já se queixavam de mim, que a Mariquinhas e o Chico tinham-me tornado quasi estudiosa, com os seus conselhos e com os seus exemplos. O tempo nunca pára e por peor que estejâmos corre do mesmo modo veloz, ainda que tal nos não pareça, dobradas como são as horas de amargura. Já ia para quatro anos que ali estava e, relativamente, os últimos dois, desde que conhecera a Mariquinhas, tinham sido de relevado encanto para mim. Não pensava nem queria pensar no que me rodeava, para só vêr os meus amigos e com elles viver, mesmo quando ausente. Foi então, quando nós iamos já contar dezeseis anos, que a Mariquinhas entrou a adoecer. A toda a hora se sentia mal. A mãe, muito inquieta mas sem o querer mostrar, envolvia-a de carinhos, procurava satisfazer-lhe todos os desejos. Enchia-se de apreensões, e toda a sua alma se enregelava e tremia num pavôr de dôres já sentidas a prognosticarem amarguras ainda inéditas. Pobre mãe! Era bem certo que a Mariquinhas lhe daria, e breve, o maior desgosto da sua vida. O outôno vinha chegando, duma estranha doçura esse ano, a infiltrar-se na alma, todo doirado nos poentes tepidos a esmorecerem em lentas agonias, como nas arvores que se cobriam do oiro das folhas mortas para mais depressa se despirem e esperarem arrepiadas e friorentas o triste inverno. O jardim constelava-se de crisântemos, que na nossa terra têm o sugestivo nome de _despedidas de verão_, brancos como flocos de neve, rubros, amarelos, dum rôxo desmaiado como leves aguadas, outros de côres intensas, mesclados e rajados, variando na côr como na fórma, desde o desgrenhado da cabeleira bohemia ao recorte regular da máquina de fazer flôres de papel. Debaixo do caramanchão, que tambem se ia despindo, primeiro das flôres, depois das folhas, a Mariquinhas, quasi deitada na cadeira de verga que a mãe lhe almofadava desveladamente, olhava melancolica os seus queridos crisântemos, que todas as manhãs desabrochavam de novo e vinham preencher a falta dos que se cortavam ou pendiam emurchecidos. Com as suas mãos translucidas, que eram uma das suas grandes vaidades, entretinha-se por vezes a juntar em ramilhete as flôres que eu lhe ia levando. E mandava-me ir dispô-las no gabinete do pai, como outrora ella fazia. Mas o triste velho é que não lhe achava o mesmo encanto, e com a cabeça entre os braços cruzados sobre a secretária, mal me via desatava num soluçar de criança, que me compungia extraordinariamente. Ás vezes mandava-mas cortar duma só côr, e juntando-as num ramo, dizia-me, sorrindo enigmatica: --«Vês? Gosto mais assim. As brancas junto das outras pareciam-me ainda mais pálidas. É como os doentes ao pé dos que têm saude. Tinha então manias esquisitas, caprichos inconcebiveis, maus humôres, que me faziam sofrer enormemente. Impacientava-se quando me via chorar com as suas maldades, mas chamava-me dahi a pouco para me beijar, numa solicitude, numa súplica, de quem deseja sêr perdoado. Ás tardes, quando o Chico recolhia depois das aulas, pedia-lhe para que fôsse lêr-lhe historias, lindos romances, que elle ia escolher á estante clara, de _érable_, do seu lindo quarto de donzela. Foi assim que ouvi, como o decorrer dum sonho delicioso, aquelles adoraveis romances de Julio Diniz, que ficaram sagrados como livro de rezas para o meu coração de rapariga. Depois, nem já mesmo isso; ás horas a que costumava entrar o Chico, mandava-me embora, com uma crueldade, um desamôr, que me enchia de desespero e me fazia chorar horas seguidas, com a cabeça enterrada nas almofadas da minha cama para que ninguem suspeitasse do motivo da minha pena. Voltavam todos os meus desesperos e tristezas como bando de corvos, por um pouco afugentados pela alegria. Dizia adeus ás tardes joviais de recreio, adeus a tudo quanto me tinha consolado de viver!... Algumas vezes, mas sempre quando não estava o Chico, a Mariquinhas mandava-me chamar com muito empenho. Ia logo, correndo alvoroçada, e encontrava-a então carinhosa como nunca, num redobramento de aféto e ternura que me fazia esquecer todos os agravos. Era então a Mariquinhas doutro tempo, a bôa fada que transformara a minha dura existencia, o dôce e querido anjo da guarda dos meus sonhos. Uma tarde, em que estava melhor, olhou fixamente para mim, com um estranho olhar que nunca lhe vira, e disse-me, como quem faz uma descoberta: --«Ó Raquel, tu és bonita, sabes? Eu ri-me francamente, como quem nunca ouvira tal nem se preocupara com o assunto. --«Não... sério!--acrescentou convincente--tens uma cara estranha, que não é bonita á primeira vista, mas que, pensando bem, te hade fazer uma simpatica mulher. E quiz que a acompanhasse ao seu quarto, que tinham mudado para o rez-do-chão, para que não se fatigasse a subir escadas; enfeitou-me com todos os seus enfeites e joias, penteou-me de muitas fórmas, e batia as palmas satisfeita, queria que todos me vissem, perguntava á mãe: se realmente eu não tinha o tipo daquella mulher que o Chico lhe trouxera o outro dia numa magnifica gravura tirada duma revista e era a cópia dum quadro que obtivera o premio na última exposição do _Salon_. A pobre mãe sorria, um pouco animada por aquelle entusiasmo que lhe parecia prenúncio de melhoras. Mas não, aquilo foi como descanso da doença, como que para retomar força e voltar ao assalto com redobrada violencia. Sofria muito, a pobre alma! Já mal podia andar; melhor se poderia dizer que se arrastava, encostada ás pessôas que a acompanhavam. Tinha gestos tão cansados, sorrisos tão murchos, caricias tão frouxas, que eu chorava sem saber porquê, só de olhar para ella. Queria consolar-me e sorria, mas esse sorriso vinha molhado de lagrimas e descobria-lhe os dentes descarnados numa bôca exangue. Nunca mais os nossos encontros fôram a horas em que estivesse o Chico. Tambem, pouco me lembrava delle, triste como andava com a doença da Mariquinhas; mas, quando ás vezes perguntava noticias do nosso amigo, respondia-me tão sêcamente que cheguei a imaginar que estavam mal. A D. Emilia metia dó, e ella tambem olhava para mim fixamente e tinha uma frase de profundo desconsolo, de quasi inveja, que revelava o estado do seu espirito: --«Como a Raquel tem saüde!... O mal agravava-se de dia para dia, sem remedio possivel para a pobre querida que suportava heroicamente todos os martirios que a medicina tem inventado para prolongar a vida dos condenados. E ella que queria tanto viver! Tinha tanto amôr á vida que nunca tivera senão caricias para os seus adoraveis dezeseis annos!... Os pais já sabiam: todos os filhos na idade da Mariquinhas lhes tinham ido da mesma maneira, com os pobres pulmões esfacelados, deitando pela bôca todo o sangue dos seus corpinhos exauridos, sem que a opinião dos medicos chegasse a sêr uniforme sobre o verdadeiro mal. Quando o tempo peorou e ella tambem já se não podia arrastar até ao caramanchão, ficava por traz dos vidros da janela para que eu a podesse vêr de longe. Depois, nem isso, deixei de a vêr; e, por mais que espiasse no jardim os movimentos da casa, raro conseguia saber noticias. Vivia num tal desespero, agora que, desde que a doença se agravara, não consentiam que visitasse a Mariquinhas, com mêdo de contagios!... E viver ali, a dois passos da unica afeição que me enchia a alma, sabê-la gravemente inferma, vê-la de longe e não poder falar-lhe, era uma verdadeira tortura para o meu temperamento de impulsiva e apaixonada. Era uma angustia curtida em silencio, que me despedaçava brutalmente o coração. Um dia, quando atravessava a cosinha para ir á minha piedosa espionagem, a Eulalia voltou-se para mim com uma frigideira na mão e disse-me, com um ar escarninho que me arrepiou: --«A menina Mariquinhas--sabe?--está a morrer. E ante a dúvida, claramente expressa no olhar com que a fitei, esclareceu: --«É verdade! Disse-mo a criada da cosinha. Até lá ficou o medico esta noite. Empalideci, e cambaleei como se fôsse perder os sentidos. A Eulalia, que me dissera a novidade mais por espirito alviçareiro do que por verdadeira maldade, ao vêr a minha dôr teve realmente pena. Chegou-me uma cadeira, foi a correr buscar agua, que me obrigou a beber, e tentou consolar-me. Era tarde. O medico em casa da Mariquinhas a passar a noite... tinha-me soado como um dobre a finados. Sempre, para o meu espirito de criança, a sua presença assidua fôra presagio de desgraça proxima. Era a certeza de que a morte, que tantas vezes chamara para mim, andava perto, a bater á porta da Mariquinhas... Uma tremura convulsiva fazia-me bater os dentes como se estivesse a tiritar de frio--era todo o frio da alma que me enregelava o sangue. A Eulalia consolava-me, apiedada,--talvez que no fundo ella não fôsse verdadeiramente má. A vida, com as suas exigencias e cruezas, torna tão diferentes as criaturas que não têm a alma temperada para as grandes resistencias!--Porque não pedia eu licença para ir visitar a minha amiga? Talvez não fôsse verdade!... --Pedir á tia?! Nunca lhe tinha pedido nada, a Eulalia sabia. Era esse o meu orgulho, a unica coisa que me tornava, aos meus proprios olhos, num sêr independente e respeitavel. E a criada, muito conciliadora, como se tivesse despertado na sua alma a natural bondade da nossa raça de sentimentais pelo apiedamento que a minha mágua lhe causava, ofereceu-se para pedir, como coisa sua, a devida licença, se eu quizesse... Eu quiz, é claro. Era a primeira vez que o meu orgulho se dobrava numa convivencia com a criada, o que me amarrotava e inferiorisava á minha propria consciencia, que foi sempre o unico julgador que temi. A licença não veiu logo, para mais cruelmente me fazerem sentir a dependencia, mas a rapariga não desistiu e tanto disse que á tarde me entrou no quarto triunfante com a autorisação para ir fazer a visita tão ambicionada. A noite cahia num agonisar de luz, que as nuvens pesadas de chuva mais velavam. Ao entrar distingui apenas fórmas indecisas, movendo-se silenciosamente no quarto mal alumiado. Logo a seguir, não sei quem colocou uma lamparina de vidro coalhado sobre uma mêsa, aos pés da cama onde a Mariquinhas agonisava. Olhei com dolorida surpreza: ella, que fôra tão linda, duma graciosidade que doirava toda uma mocidade que se abria em flôr, tornara-se com a doença pavorosamente feia. De princípio apenas percebera o estertor rouco, que fazia arfar o seu corpinho mumificado, e uma frouxa mão muito pálida, que apanhava, inconsciente, a roupa da cama. Depois, com os olhos afeitos á quasi obscuridade em que me encontrava, fitei-a com terror e não podia, por mais que quizesse, deixar de olhá-la, num crescendo de angustia que me apertava a garganta e me comprimia o coração. Chorei então silenciosa mas desesperadamente, num desânimo de quem vê afundar-se todo um passado de alegrias e não vê no futuro luzeiro de esperança. A Mariquinhas ali estendida, a sofrer, a morrer, ella tão linda, tão gentil, a gárrula, algum tempo antes! Ai, pobre, pobre querida, como desejei sinceramente e como formulei no silencio da minha consciencia o desejo de que a morte me levasse antes a mim e a deixasse a ella, á bôa fada dos meus sonhos, ao anjo da guarda que descera até á minha miseria desdobrando as suas brancas azas acalmadoras! Mas a luz, avivada num momento, bateu-lhe em chapa no rosto, naquelle pálido rosto tão completamente mudado; a impressão foi por tal fórma brutal que as lagrimas secaram-se de subito nos meus olhos e um grito de terror veiu expirar nos meus labios. Endireitei-me sufocada, e ia fugir, numa revolta instintiva, á miseria do meu ideal despedaçado. Antes, antes a não tivesse procurado vêr, e guardasse na memoria a linda imagem do que fôra--dizia no íntimo da minha alma aquella voz egoista, e tão fundamente humana, que faz a felicidade dos que a podem escutar a tempo. Não sei quem me ciciou ao ouvido:--vai morrer! E, não sei porque estranha percéção daquella inteligencia prestes a desaparecer, ella me presentiu e me reconheceu. Abriu os olhos, uns olhos enormes já postos noutro fito; levantou a mão, já quasi entorpecida; e soltou uns sons inarticulados, que mal pareciam de voz humana. --«Chamou-a, quer-lhe dizer alguma coisa--murmuraram-me ao ouvido, empurrando-me para a cama. Fui cahir, desorientada, de joelhos, junto desse corpinho debil que tanto sofria para sêr arrancado á vida. E nunca, nunca mais poderei riscar da memoria o olhar fundissimo de amargura, quasi odiento, com que a Mariquinhas me envolveu toda, como que sondando-me... Meu Deus! eu não compreendi, não podia compreender então o desespero da pobre alma ao vêr-me cheia de saüde e de vida, emquanto ella--que tanto amava e desejava viver!--ia desaparecer, para todo o sempre! Ai pobre querida, que remorso imenso senti depois! Mas nesse instante, fixada por esse seu doloroso olhar cruel, senti uma surda revolta que subiu do mais íntimo da minha alma e me invadiu completamente o espirito. Toda a animalidade saudavel e forte do meu sêr se insurgia contra a inveja expressa nesse olhar de moribunda--que não queria sêr vencida... E que tinha ella que invejar-me, se alguns momentos antes toda a minha vida, toda a minha saüde, o meu sangue quente e palpitante, tudo eu lhe daria de bôa vontade?!... A mãe, de joelhos, do outro lado da cama, escondia a cabeça na roupa para que os soluços não amargurassem a doente que tudo ouvia e compreendia. O pai, enterrado numa poltrona, parecia paralisado pela violencia extrema da dôr. Dahi para diante não fui mais senhora de mim. Criaturas serviçais, muito práticas em identicas cênas, aconselhavam-me o que devia fazer. Uma velha, principalmente, apoderou-se da minha pessôa e foi-me indicando, com uma intimativa que não admitia tergiversações,--o que é costume fazer uma menina na morte de uma amiguinha. --«Ella quer falar,--segredava-me--pergunte-lhe se quer alguma coisa. E tocava-me nos hombros, para que me inclinasse sobre a face cadaverica da Mariquinhas. Queria fechar os olhos ao ritus de quasi caveira que tinha nos seus dentes descarnados, e cada vez os abria mais, até que a sua imagem me ficou tão profundamente vincada na memoria, que me vem sobre todas, que é superior a todas, ás mais ridentes como ás mais dolorosamente tragicas. Um som qualquer escapou desses labios que inutilmente se moviam num esforço para falar, e a velha murmurou, traduzindo o que ninguem poderia ter compreendido:--Coitadinha, falou no menino Chico! Depois, tive que apertar-lhe a mão, mas ao tocar na frieza placida desse corpo que vinha morrendo aos poucos, não sei que onda de sangue me subiu ardente do coração confrangido, que perdi a compreensão nitida das coisas e fugi desastradamente, empurrando todos, sentindo atraz de mim mãos de moribundos agarrarem-me nas costas, leves mãos feitas de sombra que não tinham força já para segurar-me... Ninguem deu pela minha fuga, suponho, porque logo após senti o chorar ruidoso dos que já não tinham que contêr a explosão da sua dôr diante do pobre corpo que umas tenues radículas de vida prendiam á terra. Voltei atraz. A mãe da Mariquinhas, abraçada ao corpo inanimado da filha, chorava tão angustiadamente que eu sentia ao ouvi-la uma dôr fisica tão aguda, tão sangrenta, como se me estivessem esfaqueando o corpo. O pai estava sucumbido--era como se o seu espirito tivesse acompanhado o da filha estremecida. Não sei como sahi dali e me encontrei nos braços da pobre D. Emilia, que chorava beijando-me com uma ternura que nunca lhe tinha conhecido. E não sei dizer, tambem, quem me levou para casa e me fez deitar essa noite no meu quarto onde fiquei transida de pavôr, esperando o dia como se com a luz terminasse aquelle terrivel pesadelo, que me recusava a aceitar como a verdade irremediavel! Com a morte da Mariquinhas toda a alegria acabou para mim. Nunca mais voltei ao jardim, a olhar as janelas do seu quarto, agora sempre fechadas. O Chico, quando voltou, pensativo e triste, só de longe me acenava com a mão um cumprimento amigo. A vida tornou-se-me insuportavel: despida de interesse, vasia de desejo. Voltei a não estudar, e peor do que nunca tolerava as repreensões, conselhos e imposições da inevitavel estrangeira. Com o sofrimento voltava-me a revolta; e, como com os meus dezeseis anos já raciocinava mais, via melhor as coisas, compreendia que meus pais não me tinham abandonado... Sim... eu confesso que me tornei alguma coisa dificil de aturar. A tia queixava-se, queria domar a selvagensinha--como me tratava--e convencia-se que havia de vencer o meu espirito rebelde. Mas isso, já o devia saber, era menos facil do que sujeitar uma aguia a viver numa capoeira. Uma tarde, encostava-me aos vidros da janela do meu quarto quando na rua vi passar o Chico. Sorriu-se para mim e perguntou-me se estava doente, tão demudada e triste eu lhe parecia. Mal o vi, uma onda de lagrimas me subiu aos olhos e retirei-me soluçando da janela, sem atinar com palavras com que respondesse á sua surpresa. Nesse dia chorei sempre, e já a noite ia adiantada quando me levantei da cama, acendi a vela, e assim mesmo, em camisa e descalça, fui escrever ao Chico a contar a minha dôr, dizendo-lhe o meu desespero, e pedindo-lhe que me livrasse daquella prisão onde em breve morreria, como a Mariquinhas,--estava certa! Escrevia, pela primeira vez, tudo quanto sentia, vertiginosamente, sem pesar as palavras, surpreendendo-me a escrever melhor do que se falasse... Depois da carta escrita e arrecadada debaixo do travesseiro, eu puz-me a imaginar o que faria o Chico. Certamente não me abandonaria á minha sorte, correria em meu auxilio como paladino doutras eras... O que uma cabeça de rapariga arquiteta aos dezeseis anos na sua primeira noite de insónia!... Toda a minha esperança era o Chico--se elle me faltasse, o mundo acabaria para mim! De manhã reli a carta, que me pareceu ainda dizer pouco do que sentia, e tentei escrever outra--que me sahiu peor. Meti-a no bolso e fui ao jardim com ideia de a entregar ao meu amigo, mas um invencivel acanhamento fez-me voltar para casa. A Eulalia, na cosinha, parecia adivinhar a minha intenção, e disse-me, maliciosa, muito habituada a _fazer de capa_ ás meninas que servira--«O menino Chico está aqui em casa da S.ª D. Emilia, entrou ha pouco para lá. E eu, fingindo uma grande serenidade, que ella bem conheceu ser falsa:--«Ah, sim?! Eu queria entregar-lhe uns papeis... uma carta... que a Mariquinhas deixou para elle. A mentira fez-me córar, balbuciar; envergonhei-me de mim mesma. --«Se a menina quer, eu levo-lha lá... E quiz. E ella levou a carta, emquanto eu ficava ansiada, mal contendo o coração, que parecia saltar-me no peito. --«Elle disse que respondia já--veiu a Eulalia, toda prazenteira, anunciar-me. Recolhi ao meu quarto, muito triste, sem saber o que fazer, até que a carta do Chico viesse trazer-me a esperança ou a morte. Como aos dezeseis anos a vida se nos apresenta duma simplicidade que não admite a resignação nem a tolerancia!... Não tardou muito sem que a Eulalia viesse, com um ar de camaradagem e cumplicidade que me irritou, trazendo a resposta do Chico debaixo do avental. Recebi-a simulando indiferença, e pú-la de lado, sem a querer abrir emquanto os seus olhos maliciosos ali estivessem a prescrutar os meus sentimentos, como que a assoalhar-me a alma... Desconcertada pela minha atitude, sahiu; e então, tremendo como quem comete uma áção criminosa, rasguei o sobrescrito, e li e reli cem vezes, com os olhos turvados, as poucas linhas que o Chico me escrevia: «_Raquel:_ «Obrigado pela sua carta e pela confiança que deposita em mim. Escreva aos seus pais contando-lhe a sua tristeza e mande-me a carta que eu me encarrego de lha fazer chegar ás mãos. A Senhora D. Emilia e a mamã acrescentarão algumas palavras para dar força ás suas queixas. Todos nos interessamos pela nossa amiguinha Raquel e temos muita pena de a vêr sofrer. Creia na dedicação e aféto do seu amigo--Chico.» Não era muito para o que eu tinha sonhado, mas era alguma coisa, era o apoio moral que me faltava. Sentia-me protegida e amada, e isso era o bastante para me tornar feliz. Relia ainda a carta, que ia meter no seio, quando a porta do quarto se abriu de improviso e a cara detestada da minha prima apareceu perguntando-me, trocista: --«Então a menina recebe cartas de namorados e não diz nada á gente?!... --«Vai-te daqui para fóra!--gritei desesperada. --«Ah, estás assim soberba com o teu Chico?! Pois eu direi á mamã, deixa estar! --«Importa-me pouco a tua mãe, dou-lhe tanta importancia como a ti--e, empurrando-a com violencia para o corredor, fechei a porta por dentro. A rapariga vingou-se: foi levantando um grande alarido de queixa que tudo contou á mãe. E não tinham decorrido talvez cinco minutos sem que a abominavel criatura não estivesse a bater com violencia á porta, gritando como possessa para que lha abrisse. Com uma serenidade de que ainda hôje me surpreendo, fui abrir, e ficando entre portas perguntei, sem me alterar, o que desejava. --«_Oh! Não ter vergonha! Menina dizer a mim você recebeu carta dum maroto e pergunta o que mim quer! Vêr esse carta já! Vergonhas, vergonhas, dar maus exemplos a meninas! Quando vier seu tio mim dizer tudo!..._ E a torrente de destemperos parecia não se estancar. No meio daquella gritaria poude apenas levantar a voz para lhe dizer resolutamente: --«Não lhe dou a carta, pode berrar á vontade. Perdeu então de todo a cabeça e fez um gesto de ameaça, que me desvairou. --«_Dá-me carta já!_ Á sua violencia respondeu a minha violencia. O meu caráter altivo, o meu temperamento indomavel, a minha educação livre, o meu proprio sangue, que vinha de herois, tudo se poderia amoldar e quebrar na luta surda e persistente de todos os dias; assim brutalmente, pela violencia, dava-se a reáção que produz a revolta. Ergui-me duma só vez a toda a altura do meu orgulho e tornei-me soberba de energia desesperada. --«Dar-lhe esta carta?!--E passei-lha insolentemente por diante dos olhos--Nunca! Fique sabendo, nunca! Prefiro enguli-la. As palavras vinham-me aos labios tumultuosamente, numa abundancia que me espantava. Então, a terrivel criatura vomitou coisas abominaveis que me insultaram infamemente e das quais--tenho hôje quasi a certeza--, na sua ignorancia do português, ella não sabia o verdadeiro sentido. Uma onda de sangue me subiu ao rosto e me turvou os olhos; toda a candura da minha alma, todo o pudôr do meu corpo de virgindade absoluta, se insurrecionou. Fitava-a, desvairada; sim, creio que, se não recuasse e não baixasse as mãos que tentavam prender-me, a teria estrangulado. Sahi do quarto violentamente, empurrando a Eulalia, que observava sardonica a cêna que preparara com a sua baixa intriga. Ao contacto do seu corpo a minha raiva explodiu com mais furôr: --«Vá, sua canalha!--gritei-lhe halucinada--vá chamar gente para lêr as cartas que me traz! Estava cega, como um toiro de bôa pinta longamente encurralado, quando lhe abrem a porta do curro e entra na praça louco de furia, correndo para um e outro lado, fazendo saltar para a trincheira, como bonecos, os toureiros que de longe o irritam agitando as capas vermelhas. A pequena agarrou-se a mim, aos gritos, mas rolou para o meio do chão com uma bofetada; e a porta da cosinha aberta, com um pontapé, que fez cahir um vidro que se estilhaçou no chão, enfiei por ella, sem bem saber o que fazer, e achei-me no jardim. Dum pulo saltei a sebe florida que separava o nosso jardinsinho, agora abandonado, do da D. Emilia, e entrei-lhe como doida pela casa dentro. Então cahi-lhe nos braços, soluçando perdidamente todo o meu desespero desfeito em lagrimas. Á noite o meu tio veiu buscar-me. Deu-me conselhos, tratou-me com muita bondade, desculpou a mulher, pediu, ordenou... Nada conseguiu. Agarrei-me á mãe da Mariquinhas, e de tal maneira me impuz ao seu pobre coração de mãe tão dolorosamente experimentado que ella pediu a meu tio que não insistisse. Eu ficaria com ella emquanto os meus pais não resolvessem o incidente. O meu tio concordou, vencido pela palavra persuasiva e dôce da minha protétora, e ao sahir bateu-me na cabeça e disse-me com ternura maguada:--«Ah, cabecinha, cabecinha louca, que herdaste, por teu mal, todo o sangue rebelde da nossa familia! E sahiu, desculpando-me no seu íntimo, elle o rebelde doutro tempo, vencido agora pela doença e dominado, contra vontade, sabendo muito bem que o era, só para não desencadear a tempestade caseira e não aturar o genio furibundo da mulher. Pobre e querido tio! Ninguem reconheceria nesse velho alquebrado, mas ainda de soberbo e distinto porte, o heroi de tanta façanha que deixara nome entre os rapazes da escola, como mais tarde entre os colegas do exercito e companheiros de trabalhos e perigos. Era o nosso sangue, na verdade, que o fazia sorrir, quasi indulgente, quando me admoestava por tanta loucura; o nosso sangue que o fizera, quando rapaz, desafiar, sósinho, uma companhia de pequenos colegiais como elle, e que o fizera, mais tarde, responder sempre com soberba quando se julgava desrespeitado, mesmo por um superior hierarquico... Pobre tio! Com quanta saudade recordo hôje o seu bom sorriso quando, longe da companheira, nos contava anedótas e aventuras que nos perdiam de riso. Como teria sido adoravel, sem essa servidão dum casamento abominavel, a que não soube nem poude fugir!... Foi então que escrevi aos meus pais contando-lhe o longo martirio daquelles quatro anos em que me tinham afastado do seu carinho. Disse-lhes o meu desespero, o meu horror á tia e aos seus métodos educativos, e recordei com pungente saudade a feliz infancia que me tinham feito a contrastar com aquelle inferno de todos os dias e de todas as horas. E como os meus nervos sobreexcitados faziam a penna galopar pelo papel desabaladamente, estou certa que nada deixei por contar. A D. Emilia e a mãe do Chico cumpriram o que tinham prometido; escreveram comigo para desmanchar qualquer má impressão que o meu procedimento podesse despertar no espirito dos meus pais. Que dôces dias de serena paz eu passei ali emquanto não veiu a resposta á minha carta--que fôram os meus proprios pais que em pessôa me quizeram vir buscar. Uma tarde o Chico entrou--vinha despedir-se. Eu trabalhava junto da janela, num bordado que a D. Emilia me dera para fazer, porque entendia que sempre as mãos deviam estar ocupadas e o espirito prêso a qualquer trabalho manual que, por insignificante que parecesse, era muito na disciplina moral do nosso sêr. Era a esse constante labôr das suas habilissimas mãos, que a bôa senhora atribuia o resistir ainda á sua dôr. Estava só; a D. Emilia fôra dentro chamada pelo marido, quasi sempre de cama desde que se dera o grande desastre para o seu coração de pai que na unica filha poséra todo o seu aféto e esperança. --«Que trabalhadeira estás!--disse-me o Chico, sorrindo, porque ao entrar eu nem sequer erguera os olhos, que dantes o fitavam confiantes e fraternais. É que as palavras impudicas da estrangeira acudiam-me á memoria e tinham maculado para sempre a inocencia do meu aféto por elle. Sorri á sua graça, mas com um sorriso tão maguado, que o Chico, vibratil e bondoso como é, logo percebeu que não estava bem. E, muito carinhoso, quiz saber se estava doente, se me doía alguma coisa.--Não, não,--respondi nervosa e sacudida--doença não tinha... mas lembrava-me o que tinham dito de ambos, e isso incomodava-me fortemente. E elle quiz saber o que me dissera a tia, o que dera causa á grande cêna, de que ainda ria, só em pensar nella. Cuidava que era ainda a pequena e ingenua Raquel que elle e a Mariquinhas quasi amavam como filha, e que o meu áto revoltoso fôra apenas um capricho de criança endemoninhada e voluntariosa. Mal supunha que uma alma de mulher, de subito despertada, sofria e palpitava dentro em mim. Subitamente as lagrimas vieram-me aos olhos e começaram a correr, sem que eu as podesse estancar no lenço encharcado, que mordia em desespero. Passara, sem transição, da insensibilidade quasi completa de quatro anos á mais disparatada pieguice. Por nada as lagrimas me vinham aos olhos e corriam sem cessar. Desesperava-me contra mim mesma; queria vencer-me, e não podia! O Chico, muito comovido, abraçava-me e beijava-me para me socegar, como fazia sempre, com a simplicidade carinhosa dum irmão mais velho, sem suspeitar a confusão em que eu me debatia. Aproveitando um momento de mais calma para os meus nervos, disse-lhe para mudar de conversa: --«O Chico vai-se ámanhã embora e nunca mais se lembrará de mim; eu tambem vou para tão longe! --«Que tolice, nem que em Portugal haja longes!...--respondeu a rir, emquanto eu me afastava um pouco, porque as suas caricias me sobresaltavam e faziam mal. --«Pois sim, Coimbra não é muito longe, mas os estudantes que lá andam não pensam a sério em coisa nenhuma e tudo esquecem quando lá chegam. --«Quem te disse tal? --«As raparigas da minha aldeia, quando cantavam: «O amôr dum estudante «Não dura mais de uma hora «Tóca a cabra vão para a aula «Vêm as férias vão-se embora. Quando isto é o amôr, o que fará a amizade!? As lagrimas tinham-se transformado em riso--ria agora convulsamente. --«Isso são cantigas! Não penses isso de mim, Raquel. Ha rapazes loucos, mas tambem os ha sérios, como eu... --«Não acredito! O Chico vai esquecer-se de mim, e quando fôr para a aldeia nunca mais o verei nem saberei de si! Antes queria morrer!...--tornava a chorar, visionando-me só, sem vontade nem gosto para viver. --«Ó Raquelsinha, não diga isso, não a esquecerei nunca,--que tolice! Os amigos de infancia nunca se esquecem, creia. Nem tão pouco esquecerei a Mariquinhas. --«A essa,--solucei, num sentimento de magua mortificado com uma pontinha de inconsciente ciume--a essa não a esquecerá o Chico, não!... --«Mas porque menos a ella do que a si? --«Então o Chico não era namorado da Mariquinhas?!--perguntei numa ansiedade de dúvida que se deseja não vêr confirmar. --«Ó Raquel, não diga isso! Quem lhe meteu na cabeça uma loucura dessas?!--perguntou indignado.--Então não eramos como três irmãos, três companheiros de brincadeira?!... --«Ninguem me disse nada. Eu hôje é que pensei, depois do que ouvi lá em casa, que podia sêr que o que se lembravam comigo fôsse com ella... Ás vezes a Mariquinhas parecia que me tinha raiva, e porfim já não queria que brincassemos juntos... lembra-se? --«Sim, é verdade. Não tinha pensado nisso. Até pediu para a não visitar quando estivesse a Raquel, porque a sua alegria a incomodava... Pobre Mariquinhas! A sua figura esbelta e linda levantava-se a nosso lado reclamando a sua parte de aféto, mas o seu rosto pacificado pela morte já não exprimia o vago ciume com que tanto nos mortificara. A sua recordação unia-nos numa afetuosidade e numa saudade igual. --«Mas então--disse o Chico, surpreso--a Mariquinhas supunha que nós eramos namorados?! Pobre amiga! Uma criança como a Raquel era... --«Eu não percebi nada--respondi ingenua--nem supunha que era tão sua amiga... Nem que esta amizade era diferente... Hontem é que compreendi tudo!... --«Mas hontem, porquê? Disseram-lhe mal de mim?!...--perguntou assomado, numa daquellas fogosas cóleras que ensombram rapidamente o rosto do meu amigo. --«De si, não!... Foi de mim. A _estrangeira_... disse-me coisas, coisas... que só pensar nellas me faz mal! Córei e baixei os olhos numa confusão, vendo-o sorrir, já desanuviado. Curvando-se para mim, perguntou-me baixinho, numa caricia que estava toda na doçura da voz: --«Disse-lhe que era minha namorada, não foi?... Abaixei ainda mais a cabeça sobre o bordado, não querendo responder uma afirmativa que me confundia. --«E não o quer sêr, de verdade, Raquel?... Será a minha noiva emquanto andar a estudar, e a minha mulher, a minha companheira, quando eu já ganhar dinheiro para os dois... Sorria embevecida, olhava-o cheia de desejo de lhe dizer que sim e saltar-lhe ao pescoço, numa alegria louca; mas ficava-me calada, perturbada, sem saber verdadeiramente distinguir até onde me seria permitido mostrar o meu entusiasmo segundo as praxes que a _tia_, dizia, eu ha muito tinha desprezado impudentemente. O Chico compreendeu; e, não precisando ouvir mais, pegou-me dôcemente na mão que conservou entre as suas emquanto conversavamos a meia voz, sorrindo enlevados, contando coisas, recordando factos, que reconhecemos nesse momento sêrem significativos daquelle desenlace. Ha muito tempo que eu era a sua mulhersinha--recordou o Chico sorrindo--nas brincadeiras em que a Mariquinhas, já mais consciente, reservava para si sempre os papeis de rainha ou fada, que iam tão bem á sua gentil figurinha de estatueta. Foi nessa tarde deliciosa de fim de inverno, com o testemunho das camelias brancas, que a Mariquinhas adorava, e na vespera delle ir para Coimbra e eu recolher á velha casa paterna, que nós ligámos para sempre as nossas existencias, que dissemos essas mil palavras banais que nada dizem para os outros e são, num momento unico da vida humana, as verdadeiras palavras sacramentais que ligam duas almas numa comum e deliciosa aspiração. Foi nessa tarde, que remiu para o meu coração anos de sofrimento, que traçámos a azul e oiro o futuro ridente que hôje estamos desfrutando. Com a vinda de meus pais, trocadas explicações e desculpas entre elles e os tios, sem que eu fôsse obrigada a vêr mais a minha façanhuda inimiga, a tranquilidade e a alegria voltaram de novo ao meu espirito, que em breve se refez e normalisou na serenidade da vida aldeã. O Miguel, que já então era um estudante muito cuidadoso, tornou-se em breve o amigo inseparavel do Chico, que teve sempre meio de repartir as férias entre a antiga familia, que o adorava, e a nova, onde não era menos querido. Até o Padre Zé discutia com elle pontos graves de historia romana e ficava boquiaberto com a sabedoria dos rapazes de hôje... e da qual nos riamos a valer, indo depois ás escondidas folhear o Larousse onde procuravamos citações e factos para confundir o santo velho. A Maria Augusta, essa só pedia a Deus que a deixasse viver até vêr na capela da casa, abençoado por Deus e pelos homens, um par que era tanto do seu agrado. E agora, realisado esse ideal,--que reuniu á mesma mêsa duas familias que ficaram sendo só uma, naquelle grande jantar de nupcias a que assistiu toda a parentela dos arredores--ella espera ansiosa porque lhe seja permitido apresentar ao Padre Zé, de capa de asperges e estola rica, um menino que hade vir breve de Paris numa condessinha de flôres, e para o enxoval do qual trabalhamos dia e noite com a mais rútila e alvoroçada alegria. --Com o vestido de antiga seda côr de rosa e grandes ramos prateados, coberto com o véo de tule bordado, que a mamã guarda na grande arca dos enxovais, eu verei como irá lindo!...--É o que me assegura a Maria Augusta, que recorda outros batisados celebres na familia, e o meu principalmente, que, crescidinha já, por doença do padrinho, me desesperei iconoclastamente com o _sal da sapiencia_ e arranhei a cara ao padre! Não se esqueceu de recomendar ao Chico, uma vez que elle foi a Lisbôa, que deixasse feita a encomenda dos bolos para a festa e de confeitos para a rapaziada, que assim encherá de bençãos o batisado... Isto emquanto a bôa mamã dá volta ao bragal, desmancha lençóes e finas bretanhas, e manda ao sotão buscar o lindo bercinho em que nos criou a todos, e que já espera, forrado e engomado de fresco, pelo pequenino dôno...--ou dôna?!... E, seja o que fôr, bem vindo será ao nosso lar e... já o jurámos: só nós o educaremos e guiaremos nos seus estudos, porque, sahindo, como poderá ser, á mãe, não será facil meter-lhe grandes sabedorias na cabeça. Esquecia-me dizer que o meu pobre tio está emfim descansado, livre da mulher que tão amarga lhe fez a existencia, bem encafuado num mausoleu de marmore, onde ella o vai vêr a miude, naturalmente para lhe dar conselhos o reprimendas. Dizem-me que na sua opinião eu sou o mais execravel dos animais ferozes, e ainda treme de raiva só em pensar na minha negra ingratidão. A filha prepara-se para casar confecionando o enxoval e aprendendo a sêr uma admiravel dôna de casa, capaz até de ser professora numa escola de _ménagères_, mas os noivos é que, como sempre assustados com o merecimento da mulher, já lhe vão tardando um pouco. O pai da Mariquinhas morreu, e a D. Emilia resigna-se a viver para chorar todas as lagrimas da sua bela alma pelo marido e pelos filhos, sempre vivos na sua lembrança. Sente por nós um dôce carinho, que nos enche de reconhecimento, e todos nos juntamos na saudade da querida morta, a linda Mariquinhas, que tão íntimos e indissoluveis tornou os nossos afétos. IV Sacrificada SACRIFICADA I Quando Manoela entrou para o convento, todas as freiras e recolhidas correram apressadas á grade do côro para conhecerem a nova companheira, de que a superiora, Soror Gertrudes, ha muito anunciara a vinda. Falavam a um tempo, riam satisfeitas com aquella diversão, que desmonotonisava a vida fastienta de todos os dias, emquanto que ella, nervosa e pálida, as olhava assustada, como quem entrevê, sem o compreender, um mundo estranho. Sentia-se abandonada no mundo, sem um aféto ou uma ilusão que lhe devesse dar o desejo e a alegria de viver, mas, apesar disso, aos seus dezeseis anos encantadores não sorria positivamente a ideia da prisão. Era tão dôce o sorriso triste que lhe errava nos labios, e a sua voz, ligeiramente cantada, com o sotaque provinciano, era tão fresca e cariciosa, que as bôas freiras a consideraram desde logo um anjo do Senhor, mandado para as consolar naquelle triste fim da sua casa religiosa. Encheram-na de presentes: uma trazia-lhe uns bentinhos, outra uma lâmina ingenua, salpicada de papelinhos doirados; rendas finas, outrora feitas na casa; dôces, especialidade do convento; coisas insignificantes, que eram no entanto toda a sua fortuna. E ella sentiu-se assim prêsa pelo reconhecimento, integrando-se numa vida que em breve seria tambem a sua. A mãe perguntou-lhe: se queria entrar desde logo para o convento ou ficar alguns dias fóra, para vêr a cidade. --Não; se tinha que entrar ali, então que fôsse já. Vêr a cidade para quê?! Que lhe importava a alegria, o movimento, a luz,--aquilo que era a existencia da outra gente? Não estava ella perdida, morta para o mundo, despedaçado tudo que tinha feito o encanto da sua propria existencia, que era agora uma coisa áparte, fóra da normalidade?!... A mãe aprovou, contente com aquella resolução; ansiava por a vêr entregue aos cuidados da bôa tia, Soror Gertrudes, que a recebeu soluçando de contentamento e magua--alegria de têr a sobrinha junto de si, fundo desgosto pela sua imensa desgraça. Porque era uma historia um pouco triste, a dessa rapariga, que assim vinha esconder a sua vida em flôr no silencio dos longos corredores cheios de sombra, adormentar o espirito nessa vida que já pertencia ao passado. Manoela ficara, muito nova, sem pai, e por isso quasi inteiramente abandonada a si mesma, visto que a mãe, duma devoção estreita e dum caráter frio e áspero, entregava-se por completo á prática das suas muitas rezas e orações e deixava os filhos em plena liberdade. A pequena, que era uma natureza delicada e emotiva, assim foi crescendo sem um carinho que lhe afagasse e dulcificasse a existencia, retrahindo-se numa aparencia de frieza melancolica. Os irmãos, três rapazes, viviam alegremente, sem cuidados nem canseiras, caçando pelas serras, comendo e bebendo á tripa-fôrra com os companheiros, jogando o pau pelas romarias e feiras--senhores morgados de aldeia que todas as raparigas disputavam para seus pares, e dos quais todos os homens tinham como honra a convivencia. O mais velho, bom rapaz, bronco e ingenuo apesar da sua aparencia de gosador, fôra para Coimbra por sua alta recreação, segundo o costume tradicional dos morgados beirões, e por lá se ia formando aos solavancos: _R R_ daqui, guitarradas dali, ceias e patuscadas com os amigos, sempre alegre e satisfeito comsigo e com os outros. Ora uma vez, a pretexto de caçadas que se faziam melhores que em parte alguma pelos matagais cerrados das suas serranias, levou, para passar umas férias na aldeia, o seu mais íntimo amigo e companheiro mais certo das suas noitadas e _troupes_ em vesperas de feriado. Cavalgando os possantes cavalos que os criados lhes levaram com tempo, juntaram-se á caravana dos mais rapazes da região e seguiram, como era costume, atravessando vilas e aldeias ao som marcial das cornetas, como um verdadeiro batalhão, que ia diminuindo, não pela morte, mas pela alegria dos que primeiro encontravam as suas casas e se despediam dos companheiros até ao fim das férias. Fôram elles os últimos a chegar ao vasto casarão de provincia, onde a adega estava sempre aberta, as espingardas carregadas atraz da porta, e a matilha impaciente tudo invadia, roubando na cosinha, sujando as salas e quartos, batida pelas criadas em desespero, afagada pelos amos que riam das suas partidas e se sentiam muito á vontade no meio daquella desordem. Manoela era um verdadeiro milagre de graça e pureza num meio tão vulgar e rude. O rapaz, ao vê-la assomar ao alpendre, mal sentira a tropeada dos cavalos e descer correndo os degraus de pedra que davam acesso exterior para o andar nobre da casa, para abraçar o irmão, ficara deveras impressionado. Tanto mais que não contava encontrar, numa irmã do seu herculeo companheiro de estúrdia, tanto mimo e graciosidade de linhas, uma tal delicadeza e aristocracia nativa de porte. Á primeira impressão de agradavel surpresa seguiu-se o desejo da posse e o projéto da conquista. Para que essa criança, ignorante e ingenua, se prendesse a um homem que lhe falava a dulçorosa e enganadora linguagem de vulgar D. João, que para ella representava a verdade, a honra, o ideal supremo porque tantas outras têm, como ella, sofrido, não era preciso muito. Um homem honesto ter-se-ia cautelosamente afastado, receoso de despertar uma alma tão confiada e crente, na sua ignorancia infantil; mas elle, conquistador sem escrupulos, de palidez sentimental e cabeleira romantica, cantando ao luar fados chorosos que falam de amôres infelizes com tremuras na voz e fundos ais arrastados, dedilhando a guitarra que soluça baixinho caricias de beijos gritando alto paixões estridulas... Elle, sem alma nem consciencia, viu apenas a flôr que se abria á vida e que as suas mãos brutais podiam desfolhar e arremessar depois como coisa inutil e sem importancia. Representou, mais uma vez, a vulgarissima comedia do amôr-paixão, em que ella, a pobresita, acreditou, exatamente porque era ingenua e pura, deixando-se arrastar, sem que houvesse mão amiga que a fizesse parar a tempo na descida perigosa. Acabadas as férias, promessas feitas e juradas, elle partiu alegre e triunfante, ella ficou abismada na mais desesperadora tristeza. A saüdade, fustigando barbaramente a sua pobre alma mal preparada para o sofrimento, punha-lhe nas faces a palidez da morte e nos olhos arroxeamentos de incuravel doença. Os dias fôram passando, os mêses decorreram lentos e monotonos, e o desespero ia-lhe tomando o coração avassaladoramente, visto que elle, o ingrato, nem uma unica palavra lhe enviara a encorajá-la e a dar-lhe esperanças. Confiando da Ama-Rita o seu segredo, conseguiu da pobre mulher--que a amava, mais do que aos proprios filhos, porque a criara com o seu leite--a promessa de receber e mandar as cartas para o namorado. Enviou muitas, muitas, mas respostas nunca as recebeu, porque nunca elle lhas mandou. Sentindo-se abandonada, quando mais necessario se lhe tornava o auxilio moral do homem que a enganara vilmente, e não podendo esconder por mais tempo o seu estado, foi têr com a mãe implorando protéção e piedade. Contou tudo, por entre soluços e lagrimas, nem tentando sequer atenuar com uma desculpa a grandeza do delito, como se tivesse um prazer estranho em se torturar e deprimir, num princípio de expiação. Quando a mãe compreendeu o verdadeiro sentido das suas palavras, possuiu-se dum desespero louco. Levantando os braços e os olhos ao céo, tomava-o como testemunha da sua ignorancia e inocencia em tão grande crime, como se o esperasse vêr cahir sobre a cabeça da pecadora que soluçava a seus pés. Mas como do céo não baixou nenhum sinal indicador da colera divina, ella afastou-se brutalmente, prohibindo-a de sahir mais do quarto. Escreveu então ao filho, contando-lhe em poucas palavras o que se passava e encarregando-o de procurar o amigo, e--prometendo um bom dote a Manoela--fazer com que casassem imediatamente. Essa carta, mandada pela Ama-Rita para Manoela vêr, deixou-lhe no coração um vislumbre de esperança, naquelle desejo que todos nós temos de nos agarrar ao menor luzeiro que prediga felicidade. Mas a resposta não podia sêr mais cruelmente aniquiladora:--o namorado de Manoela tinha casado, pouco tempo antes, com uma prima muito rica, e nunca mais pensara na criança que ia começar a expiação duma culpa que era só delle. Não havia pois maneira de legalisar ao pequenino ente que vivia já da vida da infeliz mãe, a entrada no mundo e na familia. Tratou-se então de esconder um facto--que seria a vergonha para todos. Levaram-na para uma casa meio arruinada, numa propriedade distante; e foi ali, entre rochedos desolados e na visinhança lugubre dos lobos que uivavam a sua fome pelos matagais, que Manoela, entregue aos unicos cuidados e carinhos da ama, teve uma filha. Com que dulcido encanto, depois do martirio de algumas horas, em que as velhas paredes repercutiram os seus gritos lancinantes, ella acalentou nos braços o corpinho fragil, que era uma parte do seu proprio sêr, e premia sob os seus labios febris a carnesinha arroxeada e setinea da pequenina face! Nos olhos, que mal se abriam á luz, queria ella lêr um infinito de ternura; da boquinha, que ainda não sabia sorrir e já sabia chorar, esperava talvez ouvir palavras de justiça e consolação... E as lagrimas iam correndo serenamente pelas suas faces desbotadas, lagrimas que eram ainda uma felicidade, que em breve deixaria de possuir. A Ama-Rita chorava tambem, sem coragem para de pronto lhe arrancar a criança, como lhe fôra ordenado, na impotencia de todas as bôas almas para despedaçar uma ilusão alheia, principalmente quando toda uma existencia está suspensa dum sorriso de criança. Foi ainda a mãe que a veiu arrancar desse passageiro sonho, anunciando-lhe como coisa decidida a sua entrada para o convento onde Soror Gertrudes já a esperava. Manoela revoltou-se:--o convento, a prisão para ella, que apenas fôra uma vitima!?... Pois era tamanha a sua culpa, santo Deus!?... --Era, sim, tão grande que já coisa alguma poderia lavar essa mancha do seu nome, recahindo sobre toda a familia. Apenas o silencio e a ausencia poderiam atenuar o mal fazendo-o ignorar do público!... Soluçava baixinho, num grande aniquilamento de toda a vontade, escutando as palavras que sahiam frias e ásperas da bôca da mãe. --«Bem, irei!--disse por fim Manoela, resignada--mas ao menos quero levar a certeza do seu perdão, minha mãe!... --«O meu perdão?! Não, nunca poderei perdoar á senhora que assim desce ao nivel de qualquer camponia sem principios... Então, sentindo-se ferida, mais pelo tom do que pelas palavras, que representavam apenas o seu orgulho de casta, a alma de Manoela levantou-se tambem com altivez. Uma revolta surda a tomava toda, partidos definitivamente os laços que a prendiam a essa mãe que a repelia sem encontrar uma atenuante á sua culpa, sem um lampejo de piedade pela sua existencia tão cêdo anulada. Embora! Se não lhe perdoavam os outros, absolvia-se ella a si mesma. Não conhecia o mundo; mas a sua consciencia presentia vagamente que não eram justos acusando-a duma falta que se baseava apenas no preconceito social, que entre dois cumplices escolhe, para imolar como vítima expiatoria no altar da hipocrisia, aquelle que pela inocencia e ignorancia menor responsabilidade apresenta. Avaliando bem--agora que a vida se lhe antolhava tal qual é: cheia de deveres e responsabilidades para os fracos, livre e tolerante para os fortes e cinicos...--a perversidade moral do homem que amara, uma grande repulsa, um grande desprezo lhe invadiu o espirito por tal criatura. Vieram então novas cartas de Coimbra nas quais o irmão, numa furia brava, contava como procurara o sedutor para o matar, como costumava matar os lobos que lhe ameaçavam os rebanhos, e não o podera encontrar. «Apenas lhe souberam dizer: que fôra com a mulher passar a lua de mel, não lhe quizeram indicar para onde. Oh, mas havia de encontrá-lo, fôsse onde fôsse, fôsse como fôsse. Quanto á irmã, que desaparecesse--não a queria mais vêr! Manoela sorriu, já conformada. Tambem ella não tinha vontade de viver mais com uma familia que tão levianamente a abandonara e era agora tão cruel na condenação. --Sim, iria para o convento o mais depressa possivel. Mas duas condições punha á sua completa submissão: saberia onde ficava a filha, que não queria deixar entregue ao acaso, como sêr desprezivel que não merece a esmola dum afago; e fariam prometer ao irmão que não continuaria a perseguir o sedutor. Para quê?! Matá-lo era forçarem-na a lamentá-lo, quando era apenas desprezo e asco o que sentia por tanta abjéção. Esquecessem-nos a ambos... Ella entraria desde já para o convento, sem nenhuma relutancia. O irmão cedeu, instado pela mãe, ansiosa por vêr o caso liquidado como entendia sêr melhor, sem mais desasocegos e desgostos. Os outros dois irmãos, não tendo entrado na confidencia, admiraram um pouco a subita vocação de Manoela, mas como lhes não desagradava inteiramente, pois ficavam assim mais á vontade,--visto que a mãe, afóra as horas de comer, raro sahia do quarto, a não sêr para a capela--aprovaram a resolução com toda a bôa vontade. II Desde que obteve a certeza de que as suas condições eram acatadas, Manoela ficou apática e indiferente para tudo. Deixava-se levar sem resistencia para onde a mãe queria que fôsse. No seu espirito não havia senão ruinas e desmantelos. Sempre melancolica, sem raiz que a prendesse á vida, parecia nem sequer se preocupar com a filha que tanto a sobresaltara de princípio e deixava especialmente entregue aos cuidados da ama. --«Adeus Ama-Rita,--dizia-lhe na última hora--estima a minha filha como me estimaste a mim, e que Deus a faça mais feliz do que a sua triste mãe! Até... um dia--em que nos havemos de encontrar. Mas quando esse dia?... Não sabia, não via nada claro no seu futuro. Encostada á varanda do quarto onde tanto sonhara e tanto sofria agora, passeava os olhos amortecidos por toda a montanha que limita o horizonte, e naquella ocasião, em que a primavera tudo cobria com o seu verde manto, se afofava em cambiantes de pelucia cara. Ao seu lado, a pobre mulher abafava os soluços que a sufocavam e limpava as lagrimas á ponta do avental. Seguira-se a viagem, a cavalo, atravessando terras desconhecidas, onde gente espantada as seguia com a vista pelos caminhos poeirentos e pedregosos, deixando-lhe tal confusão no espirito que nunca saberia dizer por onde passara nem o que vira. Logo á chegada, a mãe conferenciou com Soror Gertrudes, tia do marido, agora superiora do convento, que a pouco e pouco iria acabando pela morte das últimas freiras, e onde Manoela foi recebida em festa por todas essas tristonhas almas encarceradas precocemente envelhecidas. A mãe partiu, socegada emfim, sem saüdades que a fôssem mortificar ou distrahir dos seus austeros deveres de bôa católica. Tambem a filha as não sofreu, porque nunca se tinham compreendido nem estimado aquellas almas, que ninguem diria tão estreitos laços uniam, tal a dessemelhança que involuntariamente as separava. Manoela parece que vinha, inteiramente, do pai, de quem se lembrava vagamente, fazendo-a saltar nos joelhos, rindo e chalaçando com todos, enchendo a casa de vida e satisfação. E um dia, subitamente, estando sentado á mêsa, do rompimento duma aneurisma morrera. Quasi se não lembrava do facto em toda a sua nitidez, tão longinqua era essa recordação, que ficara apenas na sua alma infantil como sensação dolorosa, a primeira tristeza na sua vida tão cheia dellas. Agora vinha encontrar, na tia, o mesmo caráter, essa amizade confiante que lhe faltara, essa alegria que tão bem fazia á sua alma dolorida. Sentia-se envolver naquella atmosfera de paz, que nunca tinha respirado, e sentia-se bem naquelle esquecimento de tudo quanto a fizera padecer. Os dias sucediam-se aos dias, de quando em vez cortados por noticias de casa, que recebia indiferente; o tempo ia correndo sempre igual, com as mesmas festas aos mesmos santos, as mesmas rezas, as mesmas infantis preocupações de vestidos a bordar para o menino Jesus tal ou para a Senhora de invocação diversa, o presepe no Natal, o dôce para a venda, a mesma comida sempre ás mesmas e invariaveis horas. Mas um dia Soror Gertrudes morreu. Manoela tinha então vinte anos. Era uma criança pela simplicidade do espirito, que ficara ingenuo e ignorante do mal, apesar de tudo, mas era uma verdadeira mulher pela reflexão e pela dôr. Os últimos quatro anos passados naquella casa conventual tinham decorrido num meio sonho vago, que nem chegava a compreender bem. Depois da catastrofe que lhe angustiara a existencia, a alma tinha-se-lhe afundado num como branco nevoeiro, que a deixava viver inconsciente e passiva essa vida comum sem que nella tomasse verdadeiramente parte. Dir-se-ia um meio estado sonâmbulo de que a morte da tia, a bôa Soror Gertrudes, a vinha acordar dolorosamente. Como ia sentir a falta dessa querida vélhinha, que lhe dera um aféto todo maternal na solidão em que a austeridade da verdadeira mãe lhe deixara o coração! Logo ao entrar, passados os primeiros dias de surpresa, as palavras de conforto da bôa vélhinha tinham sido um grande bem para o seu espirito. --Aconselhava-a a têr esperança--o futuro traz surpresas que não podemos prevêr.... E ella era tão nova, santo Deus, como desesperar?! Socegasse, estava entre bôas criaturas que a amavam, e ella como tia a teria sempre junto de si. Ainda que o não fôsse, estimá-la-ia na mesma, bastava sêr uma criança que a desgraça lhe tinha tão tragicamente arremessado aos braços... Tinha razão Soror Gertrudes--Manoela era bem digna de piedade. Entrada apenas na vida, era della expulsa com vergonha, e a sua mocidade, que mal desabrochara, iria fenecer entre as paredes frias dum convento. Quebrados todos os laços que a prendiam ao mundo exterior, o que ficava dessa pobre rapariga tão admiravelmente feita para amar e sêr amada? Sentia-se cahir pesadamente num abismo. Fechando os olhos, estendeu os braços em busca dum apoio, e encontrou a mão trémula, o sorriso alegre na sua bôca desdentada, e a face macerada da freira, que para ella teria carinhos inegualaveis. Bem sentia ella o cancro brutal, que a ia corroendo lentamente, mas nada dizia para não afligir a sobrinha. Sorria dolorosamente quando uma picada mais aguda a fazia levar a mão ao seio esquerdo, num gesto mecânico, quasi involuntario. Manoela sobresaltou-se quando as dôres começaram a sêr mais amiudadas, lembrando-se da terrivel molestia que de quando em quando assaltava a sua familia paterna. A tia socegava-a:--era um _nascido_ que tinha havia muitos anos, não seria coisa de morte... Mas nos últimos três mêses a doença agravara-se caminhando rapidamente para o fim. O cancro rebentara, vermelho, luzidio, enorme, deformando horrivelmente o pequenino seio esteril, branco como o marfim--esse seio que guardara com tanto recato durante sessenta anos e se mostrava agora na sua infermidade horrivel. Quando Manoela o viu pela primeira vez, perdeu a côr, vacilou e só se conteve por um esforço de vontade, que se manifestava nella com a revolta natural contra mais esse golpe do destino. Dahi para diante nunca mais abandonou a tia, assistindo-lhe a todo o martirisante fim, sentindo, por assim dizer, na sua alma todas as dôres que ella ia sofrendo no seu magro corpo esfacelado. Foi-lhe infermeira solícita, disfarçando a repugnancia que lhe inspirava a ferida, que se ia arroxeando, com laivos azuis, quasi negros, numa aparencia ascorosa de podridão. Em volta a péle retesada do peito ia-se abrindo e esfarelando. Manoela tinha sempre diante dos olhos a ferida horrivel que tão cuidadosamente tratava, e que era o fim--ella sabia-o--dessa existencia tão querida. Por fim Soror Gertrudes nem sequer se podia assentar na cama, e ella assistiu-lhe á agonia, que durou dois longos dias,--lento quebrar de cadeias que se tinham enferrujado mas não carcomido. Quando a superiora declarou que chamassem Soror Angelica para a substituir, porque já se não podia levantar e a morte não tardava, toda a comunidade acudiu em pranto:--era pois certo que Soror Gertrudes as ia deixar para todo o sempre?! Foi-se prevenir o capelão, que a confessou rapidamente, tal era a inocencia dessa alma imaculada, e quando voltou com a comunhão todas as freiras e recolhidas ajoelhadas em volta do leito choravam silenciosamente, com os véos negros cahidos sobre os seus rostos de cerusa. Manoela encostara-se á cama, e a tremura do seu corpo fazia estremecer esse leito onde a morte já se instalara triunfante. A ceremonia prolongou-se com o perdão que a moribunda foi pedindo a uma por uma das suas companheiras, numa voz que era já um éco de outra existencia passada. Quiz a sobrinha sempre ali, e consolava-a com a esperança dum futuro melhor. Deixava-lhe o Menino Jesus do Milagre, que fôra o seu companheiro de longos anos, desde que uma senhora freira do convento do Paraizo ali morrera e lho deixara por lembrança. E deixava-lhe tudo mais que propriamente possuia, e bem pouco era, naquella vida estreita de renúncia. Dirigindo-se a Soror Angelica entregou-lhe a sobrinha e pediu-lhe para ella todo o seu amôr e carinhosa solicitude. Custava-lhe muito deixá-la. Deus mandara-lhe ao fim da vida aquella suprema provação, que fôra afinal a maior felicidade de toda a sua existencia. Quando ella já se sentia cahir na cova, com tão egoista alegria, vinha aquelle aféto imenso prendê-la á terra com laços tão fortes que ao parti-los metade da alma lhe ficava cá. Fechou os olhos: imaginaram-na morta e já os soluços se ouviam mais altos. Mas não, era apenas um dormir de extenuamento que breve durou. Ao acordar já a voz lhe estava prêsa no estertor, que causava calafrios a todas as assistentes. Fazia esforços para falar, queria talvez dizer coisas que a sua alma, já quasi desprendida do mundo, via como nunca tinha visto emquanto a materia a segurava á terra. Os seus olhos, dum azul pálido, como desbotado pelos anos, voltavam-se para a sobrinha numa ânsia derradeira. Choravam todas por a vêr assim, implorando a morte que a viesse libertar do incomportavel martirio. Manoela escondia a cabeça na roupa, soluçando e gemendo apavorada; teria fugido áquelle espétáculo superior ás suas forças, se a moribunda lhe não tivesse agarrado desesperadamente as mãos como última ancora... A situação prolongava-se pela noite fóra, e tão pungitiva que todas se entreolhavam em pânico. Era alta noite quando uma criada, vinda do campo havia pouco, se propôs pôr termo áquelle martirio, voltando a senhora. E explicava, muito sabida e vista nessas coisas:--que era o demonio que estava ali, não deixando morrer a senhora, emquanto estivesse deitada sobre o lado esquerdo. Vingava-se assim de não lhe poder levar a alma, que era de Deus, pela muita bondade da Madre-Superiora. Todas acreditaram piamente na explicação da rapariga; não estava o _Livro da fundação_ cheio de factos que comprovavam as tentações e maleficios do eterno inimigo das esposas do Senhor, especialmente dirigidos contra as piedosas irmãs daquella santa casa tão rica em milagres e indulgencias?!... Aceite o alvitre, voltaram o corpo pesado, que a morte já quasi gelava completamente, deixando-lhe apenas aquelle imenso sofrimento como despedida duma existencia de que não conhecera senão as tristezas. Mal lhe tocaram, despediu num suspiro o último lampejo de vida, tal como aquelles cadaveres conservados intactos por anos e anos nos seus tumulos socegados e logo que se lhes toca, trazendo-os ao ar, se desfazem em pó. III Manoela sahiu do dormitorio logo que a tia deixara de existir. Cambaleando, os olhos sêcos, a alma vazia, sem a sensação dolorosa da pena, como se a tivessem magnetisado para a furtarem ao sofrimento, apenas uma necessidade material a impulsionava. Tinha sôno--havia tantas noites que não dormia! Agora que tudo estava acabado, que não havia uma esperança a sustentá-la, estonteada, inconsciente, deixava-se vencer por esse torpôr que segue a excitação dolorosa de dias sobre dias de espétativa diante da morte. A natureza retomava os seus direitos, e a reação era tanto mais violenta quanto fôra maior o predominio do espirito sobre a materia. Logo na pequena sala contigua ao dormitorio, que fazia de livraria, deixou-se cahir numa cadeira sem força para ir mais longe. No dormitorio ia um vai-vem silencioso que mais parecia mover de sombras num pesadêlo. As freiras ciciavam ordens ás criadas, acendiam-se luzes, rezavam baixinho, limpavam as lagrimas que teimavam em enevoar-lhes os olhos, e levantavam com respeito a morta para a vestirem como havia de ir para a cova, com o mesmo triste habito que trouxera em vida e logo ao entrar para o convento, noviça ingenua e formosa, lhe tinham dito que seria a sua mortalha. E assim, eternamente amortalhada, passava da tristeza de viver ao unico sôno consolador dos infelizes, porque é daquelle que se não acorda para sofrer mais. A sua face, serenada pela morte, reflétia a suprema felicidade de não existir conscientemente num triste mundo tão cheio de desacertos e injustiças. As freiras benziam-se e murmuravam baixinho, pondo as mãos com devoção:--que o seu rosto de santa reflétia já todo o goso da bemaventurança. Manoela, abrindo os olhos no meio sôno em que ficara embebida, viu os pés da morta calçados com as sandalias da ordem, magros e compridos, atados com uma fita para não descahirem; e, mergulhando de novo em letargo, sonhou que esses pés caminhavam por sobre o seu corpo desfeito e lhe batiam com força no coração. E a sensação foi tão dolorosa e a dôr tão forte, que acordou de vez, sentindo realmente uma pontada que lhe suspendia quasi a respiração e a fez gritar levando as mãos ao peito, sufocada. Foi quando Soror Angelica veiu têr com ella e a condusiu para o segundo dormitorio, fazendo-a deitar na sua propria cama, encarregando uma irmã leiga de a vigiar e acompanhar. Então Manoela cahiu num sôno pesado e mau, cheio de sonhos que a faziam chorar e gemer baixinho como quem se sente estrangulado, sem poder gritar, e a que a irmã leiga punha termo chamando-a carinhosamente e abanando-a de leve todas as vezes que a sentia. Era já manhã quando a vieram chamar para assistir aos responsos que se iam fazer no côro e para os quais toda a comunidade se preparava. Levantou-se sobresaltada, sem nada perceber, como quem acorda dum terrivel pesadêlo e reconhece com surpresa que ainda existe na vida tal qual a deixara... Atiraram-lhe o véo para a cara, composeram-lhe o vestido, e levaram-na pelo braço, sem que compreendesse intimamente de que se tratava. Mas quando se encontrou no côro e viu a morta estendida no chão sobre um pano preto, entre quatro grossos tocheiros, os padres rezando os responsos, e toda a comunidade em volta com os véos cahidos e segurando velas acêsas, compreendeu finalmente o que se passava, a sua alma despertou para o sofrimento intenso da pavorosa realidade. Já não havia dúvida possivel, e a noite, que se passara num atordoamento de sonanbulismo, aparecia-lhe agora em toda a sua nua e horrivel fatalidade. Debaixo do véo que lhe cobria o rosto, as lagrimas corriam sem cessar mas já sem explosão de soluços, tão amargas e lentas que cada uma parecia vir arrastando um pedaço da sua alma esfacelada. Procurava nessa face amada, coberta igualmente com o véo preto, o sorriso bondoso, o olhar de carinho, que em quatro anos de reclusão a tinham feito esquecer que a vida existia fóra daquellas paredes soturnas. O véo era denso bastante para lhe velar a face, mas nada obstava a que os seus olhos halucinados vissem, debaixo do grosseiro hábito, o peito entumecido escancarando-se na repelencia da ferida. Finda a encomendação, seguiu atraz das freiras, vélhinhas alquebradas e esquecidas pelo mundo, que assim iriam rareando, uma por uma, na longa fila que vinha do côro. Era o último enterro a que assistia ali, porque a nova lei prohibia enterrar fóra do cemiterio público e fôra não pequeno trabalho para se conseguir das autoridades aquella excéção em favôr de Soror Gertrudes, que era conhecida e estimada em toda a terra. Manoela tremia de pavôr observando a serenidade extatica das freiras, que não se distinguiam umas das outras, com os véos negros derrubados, as velas a arder na mão direita, hirtas e silenciosas e graves como espétros. Lá dentro,--quem sabe?--talvez que as suas almas tremessem de frio a cada sacudidela do vento da morte que ia levando uma a uma as companheiras de muitos anos, e que nunca mais seriam substituidas. Já no refeitorio iam faltando tantas que, ao meio dia, a hora antigamente tão alegre de jantar,--quando sobre as toalhas de linho alvejante os moringues de barro de Estremoz marcavam nas mêsas estreitas e compridas, voltadas para o pulpito, o logar de cada uma--mais parecia que a sineta chamava para um banquete de sombras. Os padres iam compassando os responsos, rodeando a cova onde já repousava o cadaver, e cada um ia deitando uma pá de terra, seguindo-se na ceremonia toda a comunidade. Ah, bem feliz era Soror Gertrudes que ainda encontrava um abrigo santo junto das suas irmãs, vivendo com ellas no eterno sôno, sob o abrigo das arcarias do claustro florido, acalentada pelo murmurio fresco da fonte que transbordava na sua concha de marmore. As outras--pobres dellas!--já não teriam na morte esse mesmo abrigo sagrado e seriam relegadas a mãos estranhas e indiferentes, esquecidas nesse campo desabrigado e devassado por todos os olhos profanos, que eram os novos cemiterios. As velas tremiam nas mãos enrugadas das pobres vélhinhas. Das trinta e três freiras que o _Livro da fundação_ dava como limite para a comunidade, homenagem piedosa aos anos de Christo, e que ao soar a hora, que para muitos fôra de redenção e para ellas de mágua, se preenchera á pressa, abreviando as profissões das noviças, já quinze dormiam insubstituidas sob as lages do claustro. Sentindo o lento caminhar das vivas, que eram como fantasmas errantes nesse asilo guardado pela morte, sentiriam a dôce ilusão de assistirem com ellas na vida comum. Olhavam-se apavoradas, as velhas freiras, a cada nova escolhida que a morte vinha tocar com o seu beijo gelado, e murmuravam entre si:--de qual será agora a vez?--terrificadas com a ideia de sêrem a última. Soror Claudea, com o seu olhar sombrio e desvairado, seguia a ceremonia funebre com tremuras convulsivas no seu corpo magro de que a loucura histerica fizera uma bôa prêsa. Dantes tambem morriam, é certo, mas a cada cova que se fechava abria-se a porta a uma noviça que tomava o véo preto, e no simbolico número se ia conservando sempre a comunidade. Manoela soluçava agora, vendo cahir a última pedra que a separava para sempre da bôa tia, que era a sua unica grande afeição no mundo--tão diluida tinha na memoria a lembrança do passado que a filha era apenas uma vaga recordação, tão pouco pungitiva como a que lhe ficara do pai, que mal conhecera. Soror Angelica ficara superiora sem quasi se proceder á ceremonia da eleição, tanto se impunha a todas a sua inteligencia, a sua energia, e a sua cultura, rara entre as senhoras daquella casa de regra áspera e humilde. A nova superiora era uma bôa e valiosa amiga para Manoela, considerando como um dever estimá-la tal qual o fizera Soror Gertrudes, que tão solenemente lha entregara. Mas Soror Angelica era um espirito mais varonil e energico, e, se dava amizade segura e protéção incondicional, não tinha como a tia de Manoela os carinhos e as delicadezas dum espirito que tinha ficado menineiro apesar da esterilidade duma vida sem familia propria. A nova superiora era respeitada por todas; a antiga tinha sido amada e era chorada como uma bôa mãe. Se Soror Angelica tivesse nascido anos atraz, seria uma dessas preladas temidas e escutadas por todos, porque sabiam fazer valer a força do seu direito e pesar a influencia das familias, da fortuna e do nome profano de todas as suas governadas, em qualquer questão que as interessasse. Se tivesse nascido alguns anos mais tarde, seria, em qualquer campo para onde dirigisse os seus passos, uma criatura representativa, uma destas influencias que todos procuram captar para o seu lado porque em toda a parte entra com o valôr da inteligencia, da energia e da tenacidade, qualidades sempre raras em todos os tempos. Superiora sem importancia num convento desapossado de todos os seus rendimentos e que existia apenas emquanto vivessem as últimas freiras--como existe, sustentado pela hera que o reveste, o velho muro em ruinas--Soror Angelica era um desacerto porque era uma força inutilisada. Desde que ficou naquelle quasi isolamento, o espirito de Manoela começou a acordar, a debater-se para sahir do torpôr em que esses quatro anos amimalhados lhe tinham adormentado a alma. Essa loucura ardente da fé que despreza o presente pela vaga esperança dum futuro cheio de delicias, já por vezes a compreendia, exaltada pela devoção e pelas leituras misticas que a superiora lhe indicava. O caminho que leva á sarça em fogo onde se consomem as pobres almas doentes, que dão as Santas Terezas de Jesus, já por vezes se abria diante da sua imaginação inátiva e do seu coração amoravel tão implacavelmente impelido pelo destino para a solidão e o desamôr. Naquelle meio de apertada devoção, no silencio dos grandes corredores pontuados de capelinhas milagrosas, o seu espirito inclinava-se para um misticismo apaixonado e obsessivo, como tudo seria naquella alma de peninsular temperada e subtilisada pelo sofrimento, que vencera sem queixa. Andava vagarosamente pelos claustros lageados, sentindo-se prêsa dum respeito supersticioso por essas pedras que cobriam corpos macerados de santas; tinha sorrisos silenciosos, gestos vagos de corpo apenas vivo pela esperança de se consumir em breve e reviver só em espirito purificado. Á hora das orações rituais, assentava-se com as companheiras nos cadeirões de pau santo, que se defrontavam em duas filas sobrepostas e dantes eram só destinados ás professas, e pensava que a vela benta que as separava era a alma de cada uma das freiras que ardia no amôr apaixonado do Senhor seu Esposo e seu Deus. O bruxoleamento da luz sobre as paginas do livro de oficios, que seguia por dever, tinha para a sua mente enfebrecida a significação clara dum suspirar de espirito aspirando á eterna bemaventurança. Ali, naquelle côro grande como uma capela, revestido de azulejos policrómos, cheio de santos e relicarios preciosos, que irradiavam na meia obscuridade das suas doiraduras e pedrarias, numa luz quasi de sonho, Manoela gastava os seus longos e inuteis dias. O côro era, como tinha sido sempre desde que se fundara aquella casa, o unico luxo, o cuidado e gosto de todas aquellas almas privadas doutras delicadezas e distráções feminis. Privadas até de irem á igreja, que Manoela contemplava extatica pelas grades estreitas, revivendo a vaga recordação que lhe ficara do dia da entrada, quando os seus olhos enevoados pelas lagrimas a tinham visto sem lhe poderem dar o verdadeiro valôr. O convento nem se via de fóra, construido em quadrado por traz da igreja que o guardava, imperturbavel e austera como sentinela incorruptivel da fé. A igreja era magnifica, nada dizendo com a humildade da regra nem com a modestia do resto da casa: duma traça arrojada, em que as colunas em marmore côr de rosa subiam em cordas espiraladas, até se juntarem na cúpula alta e sonora. As janelas, do nosso gotico rendilhado a que se chama _manoelino_, conservavam ainda restos dos antigos vitrais, que deviam ter sido dum brilho e colorido que encheriam de encanto as naves silenciosas. Os paineis, que a rodeavam, sobresahiam das largas molduras doiradas e entalhadas, pelo colorido um pouco frio e o desenho convencional e rigido do estilo que se impunha no tempo em que uma grande dama da côrte se lembrara, apaziguando talvez recordações importunas duma mocidade cheia de dôces culpas, de fundar aquella santa casa onde, propositadamente, só á igreja fôra dada a magnificencia e o fausto devidos ao Senhor omnipotente, dispensador de todas as graças, arbitro de todo o julgamento. Para as Esposas, as virgens oferecidas como vítimas expiatorias do pecado deleitoso da fundadora, a humildade, o desconforto, e a asperesa da regra. Contemplando a igreja, Manoela sentia-se amar um Deus imenso e magestoso, arrastando purpuras e fazendo refulgir as joias da sua corôa imperial por catedrais goticas de naves resoantes, cheias de grandezas e misterio. Prostrava-se ante o seu trôno de luz nessa côrte celestial tão fantastica e deslumbrante, que lhe descreviam as almas crédulas e os livros piedosos. O Christo torturado, empalidecido e humanisado pela dôr, não o compreendia ali, no luxo e na grandeza da arte, como o poderia compreender na igreja humilde da sua modesta aldeia. Ali era um Deus para camponezes e para as almas simples; aqui era um Deus aristocratico e soberbo que se impunha aos grandes e aos poderosos. Prêsa naquelle deslumbramento, que a fazia viver uma existencia á parte, Manoela assim iria gastando a existencia se não viesse um banal incidente chamá-la a si, chamando-a á vida com novos interesses e novos deveres a cumprir. Ama-Rita, a bôa mulher que nunca a esquecêra, escrevia-lhe uma longa carta, de letra tortuosa, quasi ininteligivel, que ella decifrava a custo. «Só passados sete anos lhe escrevia, porque a senhora lho tinha prohibido e, não sabendo escrever, não confiava em ninguem da terra para fazer uma coisa contra a sua ordem. Agora era a sobrinha, a Luisa da Roda, que o fazia. A menina devia lembrar-se della, eram da mesma criação, tinham brincado bastante em pequenitas... Viera de servir, mas tão doente que o mais certo era não poder voltar. Podiam confiar nella e emquanto vivesse não teria a menina falta de cartas». Manoela tinha os olhos rasos de lagrimas ao pensar na pobre rapariga, talvez tisica, que tinha sido sua companheira de infancia, dessa breve infancia que lhe vinha, numa lufada sã, evocada por essa mal redigida carta de camponia. Era um pedaço da sua rude terra, que a urze e o rosmaninho incensavam. Depois, as noticias alongavam-se:--este que tinha ido para o Brazil, aquelle que voltara da tropa, casamentos, bátisados, mortes... e porfim, numa linha só, como misteriosamente, a causa primaria de se ter escrito aquella grande carta:--«A menina criava-se muito bem; a menina era muito linda». Mais nada... E, no entanto, que mundo novo de pensamentos e de paixões essas poucas palavras desenrolavam diante dos olhos e do coração da triste reclusa! O seu espirito, adormentado numa crise de misticismo para que a predispunha o meio ambiente, reagia agora com toda a energia, porque a sua alma não era feita para vagas abstrações; antes fôra, era, e seria sempre, uma mulher humana, nascida para viver e sentir humanamente a vida, com todas as suas amarguras e alegrias compensadoras. A filha!... Quasi a tinha esquecido, naquelle viver sem consciencia de si propria, que fôra a sua existencia ali. Como podera resignar-se durante tanto tempo só com a certeza de que esse pequenino anjo, que era a carne da sua propria carne, vivia, nessa terra longinqua e áspera, sob os cuidados da velha Ama-Rita? Sentia remorsos e agradecia intimamente á bôa serviçal, que assim a chamava á vida lembrando-lhe o cumprimento do seu dever. Relendo aquella frase incolôr, sentia que dentro da sua alma se ia levantando outro altar, criando uma nova religião, que mal sabia como era dificil de harmonisar. Encostada ás grades da janela do dormitorio, para onde viera na ânsia de se encontrar a sós com a sua propria alma, olhava o campo que se estendia num verde luminoso, com um castelo ao fundo, na imponencia de cenografia espétaculosa. Na cerca a nóra gemia e a agua cahia no tanque donde era tirada para as regas. Esse murmurar da agua corrente evocava-lhe o passado distante, a sua terra, o fiosinho de agua transparente a deslisar por entre os choupos, ao fundo da sua quinta, e aquella pequenina enseada onde se ia esconder, num desejo calmo de solidão, a olhar a agua saltando de pedra em pedra num grande esforço de quem vem exausto de longa caminhada. Recordava, com tanta saüdade que chegava a sêr uma dôr material, essa época tão afastada para o seu espirito que já parecia têr pertencido a outra existencia, as horas que passara ali sósinha, idealisando um futuro de poesia e de romance, como o idealisam sempre as mulheres que uma educação racional não preparou para entrar na vida pela porta ampla e sem mentidos encantos da realidade. Recordando todo esse passado, para sempre morto, a sua alma tão cruelmente torturada e tão profundamente humana acordava num alvoroço. Chamavam-na para a vida, e ella vinha toda inteira, corpo palpitante, coração sangrento pronto a entregar-se a um novo ideal. Desde esse dia nunca mais deixou de pensar na filha, que se tornou a sua obsessão; sentia-lhe a vózinha de choro chamando-a mãe; via-lhe o pequenino rosto, que idealisava duma pureza de linhas que só igualariam os anjos das pinturas rafaelescas; tremia com a ideia de que podia uma doença cruel arrebatá-la sem que a tivesse uma vez sequer acalentado nos braços. Já não rezava como dantes, mas ainda passava no côro as melhores horas da sua vida, ajoelhando-se de preferencia diante duma grande Virgem que a lenda dos seus milagres tornava célebre em toda a cidade. Dizia a crónica:--que essa imagem viera de Candia com destino a Espanha e fôra por milagre trazida á cidade. Recebida entre musica e fogos de artificio, foi levada em procissão e confiada ás freiras que tinham fama de mais virtudes entre todos os conventos da terra. De tal maneira se avigorou a fé nos milagres da formosa imagem que raro era o dia em que a irmã rodeira não recebia, de pobres criaturas sofredoras, bilhetes e cartas implorativas dirigidas á Virgem para sêrem colocadas sob a sua guarda. A crença no milagre, o último refugio dos fracos que não podem resistir á dôr, fizera da bela Senhora uma consoladora permanente como dispensadora desse beneficio inestimavel para a maior parte dos sêres humanos: a ilusão. Tambem Manoela se afervorava na devoção pela milagrosa imagem; mas o motivo que a arrastava até aos seus pés e a prostrava agora em extasis era mais humano do que mistico. É que diante dessa Virgem, que era uma mulher que a escultura traçara com toda a verdade, sustentando nos braços um pequenino Jesus, filho humano e verdadeiro, que ella, humanamente mãe, acariciava com a doçura do seu olhar veludoso e a caricia dum sorriso angelical, sentia a sua alma pacificada, sentia-se irmanada no mesmo sentimento. Essa mulher, mãe dum Deus, não a perturbava, porque era bem mulher, bem maternal, para compreender o sobresalto do seu coração, a saüdade que a sufocava por esse pequenino corpo adoravel, leitoso e macio, que apenas podera vêr e beijar á nascença. Aspirava pela caricia dos seus braços roliços e da sua boquinha perfumada; morria de paixão por esse entesinho dealbante, que lá longe ia crescendo e vivendo rudemente entre camponêses, que mal a saberiam amar. IV Num inverno humido e triste em que o claustro, a igreja e o palratorio chegaram a sofrer uma inundação que muito assustou a comunidade, Manoela tremia arrepiada sob o mantéo curto das recolhidas, e pensava com horror no frio que arroxearia as pequeninas mãos da filha que se aninharia ao canto da lareira fumarenta da miseravel casa onde se criava, por essa invernia inclemente que tudo abafava sob a nevada deslumbrante. Sentia o pavôr da sua almasinha trémula, quando os lobos esfomeados rondassem o povoado, acossados da montanha pela neve, e as ovelhitas timidas se aconchegassem no curral balando tristemente. Ah, ella não podia acostumar-se á ideia de que a filha, a sua querida filha, viveria assim eternamente sem conforto nem os mimos que para ella sonhava. Já por vezes tinha tentado convencer a mãe, levá-la ao esquecimento e á tolerancia pelas suas humildes súplicas, mas nada até ahi a tinha demovido do seu proposito de conservar em misterio a existencia daquella criança que a seu vêr não era do mesmo sangue que das suas veias tinha passado ás da filha, e da filha á neta, na continuidade fatal da natureza. Manoela insistia, pedia ainda; mas a força instintiva do amôr maternal, que a impulsionava agora, começava a fazê-la admitir a revolta contra esse poder que a natureza naturalmente afrouxa, porque assim o acha necessario para a conservação da especie, embora os homens o tenham querido fortalecer com as suas leis e costumes antinaturais. Soror Angelica, como superiora e como amiga, continha-a e aconselhava-a a conformar-se com a vontade de Deus... --«Depois,--dizia-lhe ella, um dia, aspirando deliciada a flôr perfumosa duma angelica que se abria num vaso colocado na varanda da sua céla de superiora, mimo gracioso duma das suas amigas da cidade--depois, Soror Manoela, de que lhe serve ir contra a vontade de sua mãe?!... Não é ella a senhora da casa?... Não é ella que tem só o poder do dinheiro?» --«É a senhora, porque nós, os filhos, assim o queremos; mas não sabe, Madre Angelica, que temos direito a puxar pela herança de meu pai e exigirmos a nossa parte?... Por pouco que seja, dar-me-ha o bastante para viver com a minha filha... Por menos que Manoela soubesse das leis que governam os homens, sabia o bastante, pelas relações mundanas entretidas entre o convento e a sociedade, para conhecer o direito que a tornava senhora da sua pessôa e da sua fortuna. --«Revoltar-se, Soror Manoela, cuida que isso lhe daria felicidade?!... Santo Deus! Os pais representam na terra a autoridade divina. Triste daquelle que no pecado procura a coragem bastante para lhe fugir!... --«No pecado?...--murmurou Manoela, limpando as lagrimas.--E não será maior pecado o meu se deixar morrer ao abandôno a minha filha, esse pobre anjo que não tem culpa nenhuma de têr sido chamada á vida?!... --«Sim, é uma grande culpa que sua mãe levará ao tribunal supremo, mas quanto maior não seria a sua, minha pobre filha, se levasse a de rebeldia e de orgulho filial!... Não chore! Tenha resignação; se soubesse quantas lagrimas têm chorado outros que... que... que por fim se resignaram a não viver senão com a esperança na morte!... E Soror Angelica desviou-se um pouco, abafando no lenço um soluço que não poude vencer. --«Madre Angelica?!...--interrogou ansiosa a recolhida.--Porque chora? Tambem, como eu, sabe o que é sofrer o pêso duma vontade alheia, que esmaga o coração? --«Ah, minha filha, se sei!... Não queira, Soror Manoela, sofrer como eu sofri... como nós sofremos... a tirania duma ordem, que despedaçou duas existencias!... A freira, que tinha sido uma das últimas professas, não era ainda muito velha, mas o seu rosto, amargurado agora pela recordação, evocava um tal passado de dôres e sacrificios, que Manoela, inconscientemente, curvou-se para lhe beijar as mãos, que juntava num gesto de imploração extrema, numa prece em que ia toda a sua alma de mistica e de sofredora. Depois, mais socegada, sentando-se junto da mêsa de trabalho, convidou a recolhida a sentar-se num pequeno escabelo e disse: --«Soror Manoela, o que lhe vou dizer julgava-o para sempre sepultado no fundo da alma, tão esquecido e longinquo como se o lêra duma outra infeliz, num desses livros da nossa santa casa. Mas Deus Nosso Senhor inspirou-me a ideia de lho contar para que nesse exemplo Soror Manoela encontre força para resistir á tentação diabolica que a impele á revolta contra a vontade de sua mãe. Soror Manoela, houve numa terra linda do Alemtejo uma familia que juntava aos seus pergaminhos de fidalguia uma grande fortuna em terras e dinheiro. Era pai e filho no tempo em que... em que os conheci. O pai era o tipo acabado da nobreza altiva e autoritaria; o filho a bondade, a inteligencia e a docilidade numa só criatura humana reunidas. Em pequenino ficara orfão de mãe, entregue aos cuidados duma velha parenta que o educara e cuidara como um perfeito cavalheiro. O seu gosto e a sua alegria estavam só nos livros que folheava sem descanso e na penna com que se servia para versejar... ás escondidas. Só uma pessôa sabia do seu _crime_, como elle lhe chamava, a rir...--e Soror Angelica sorriu tristemente para esse fantasma saudoso da mocidade.--Era uma pupila, do pai, orfã e morgada como elle. Oh, Soror Manoela, se soubesse como se compreendiam e se amavam aquellas duas almas que o destino parecia impelir uma para a outra!... Ambos novos, ambos sem um coração de mãe que lhe tivesse sido refugio e consolação, ambos ricos, ambos filhos unicos e ambos sentindo os mesmos prazeres, e tendo os mesmos gostos simples e modestos. Oh! deixassem-nos lêr as lindas historias de cavalaria que a velha prima alinhava com amôr na bibliotéca do seu quarto; deixassem que elle lhe recitasse as suas poesias emquanto ella matisava um bordado, sob a protéção carinhosa da vélhinha, que lhes queria como a filhos gemios do seu coração... e eram felizes. O que lhes faltava? Apenas a idade para que o pai consentisse no casamento, que via tambem com olhos complacentes. --«E casaram?...--perguntou Manoela, seguindo com vivo interesse a linda historia de amôr que lhe rasava os olhos de lagrimas, a ella que do amôr tivera apenas uma fugaz e mentida visão. --«Não, não casaram--respondeu a freira, sorrindo, apesar da dolorosa contráção da sua face marfinea.--Não lhe disse que o morgado era um homem ainda novo e belo, apesar dos seus quarenta anos? Pois era... Ao contrario do filho, montava com garbo um cavalo andaluz, que ninguem domaria como elle, só com a pressão dos joelhos e a firmeza da sua mão de rédea; sabia aprumar-se numa sala diante dos cavalheiros e curvar-se, como ninguem, num requinte de gentileza, diante das senhoras; jogava como um verdadeiro fidalgo, sem que ninguem podesse perceber-lhe no rosto se perdia ou ganhava... emfim era querido e procurado por todos e convidado com o maior empenho pelas familias aristocraticas da provincia e da capital. A quantas formosas raparigas não teria sorrido a ideia de o têrem por marido e quantos pais o não teriam desejado para genro? Elle ria-se dessas pretensões e estava bem convencido de que o seu destino estava traçado em vêr a felicidade do filho e receber os netos para herdeiros e continuadores do seu nome. Mas, um dia, o morgado viu uma senhora que se apoderou do seu coração, e desde logo deixou de se pertencer. Era uma mulher formosissima e igualmente rica, mas dum orgulho que nada havia que podesse igualar. Apaixonou-se tão loucamente que desde a hora em que a viu até que a morte o levou nunca mais teve vontade nem pensamento que não fôsse a della ou por ella inspirado. Apresentou-se como pretendente á mão da orgulhosa fidalga, e, apesar da sua idade e da concorrencia de muitos outros candidatos, foi aceite. A ambiciosa calculava o valôr das fortunas reunidas e optara pela pretensão do morgado, que lhe dava margem a viver na opulencia e grandeza que sonhara. Mas... o morgado tinha um filho, o herdeiro da casa, o futuro morgado e senhor, que mais tarde, morto o pai, a esbulharia dos seus direitos de posse, nada deixando para os filhos que podesse vir a têr. --«O que fez então? --«Oh, a desventurada sabia bem conciliar as coisas; só não soube conciliar a felicidade propria com a dos outros!... --«Casou com o filho? --«Não, que horror! Pôs como condição para o casamento com o morgado que o filho... se fizesse padre. --«Oh, que sacrilegio! E o morgado aceitou?! --«Assim foi. Em vão o filho e a pupila lhe pediram, de joelhos, que os deixasse casar; em vão elle ofereceu a sua desistencia ao morgadio. Ricos seriam os dois--com o seu trabalho e a fortuna de... da pupila do pai. Tudo debalde! Elle foi implacavel, porque ella o foi tambem. A lei só lhe garantia a posse do morgadio para os filhos se o verdadeiro morgado fôsse frade ou padre... --«Que desespero! Que mulher tão má! E depois, Madre Angelica?... --«Depois... elle foi padre! --«Oh!... E ella? --«A noiva? --«Sim, a noiva do rapaz. --«Essa cuidou morrer de desgosto, mas deu-lhe o Senhor coragem para resistir á doença do corpo e á da alma e... professou tambem. --«Freira? Resignada, resignados ambos?... Que almas eleitas, meu Deus? Mas... morreram? --«Elle morreu. Dorme ha muito na paz de Deus. O seu corpo ficou, a seu pedido, no claustro do convento que fundou quando ficou herdeiro da fortuna... --«Como?! Então sempre foi morgado? --«Sim. A maior dôr foi essa!... Soror Angelica encostou a cabeça á mão e as lagrimas escorregaram-lhe por entre os dedos, uma a uma. --«Mas porque não fugiram? Para que se sujeitaram a essa lei odiosa?! --«Porque elle era o pai. E os filhos não podem ir contra as suas ordens terminantes. Sugeitou-se, sacrificou-se, pela felicidade paterna. Mas... pouco tempo depois a nova morgada, apesar de rica, autoritaria e feliz, não poude resistir á fatalidade. Logo ao dar á luz o primeiro filho morreu, cheia de pavôr do castigo, consolada e amparada pelo homem que sacrificara ao seu orgulho e ambição. Mêses depois, o filhito que ficara o herdeiro da fortuna morreu tambem deixando o pai consumido de remorsos, envelhecido e triste, e herdeiro de toda a casa. E aqui tem porque, sendo padre o filho mais velho, sempre este ficou o infeliz herdeiro de toda essa fortuna maldita. --«Então não acha, Madre Superiora, que foi absurda, que foi até um crime essa obediencia que destruiu duas vidas? --«Soror Manoela--e a voz da freira tinha uma entoação grave, que nunca lhe conhecera, como se fôsse o éco apenas duma alma pairando muito alto--esse absurdo não deixou remorsos nas almas que se irmanavam e se amavam até ao infinito. Elle morreu sorrindo e perdoando; ella... vive na esperança duma vida melhor, sem que--graças a Deus!--tivesse sentido ainda a dôr amarga de ter causado o mal alheio. --«Amarem-se dessa maneira, têrem diante de si a vida, e matarem por suas proprias mãos toda a esperança de felicidade, Senhor! Como tiveram coragem? Eram decerto duas almas santas--não se podem tomar como exemplo... E não posso, não posso seguir o seu conselho, Madre Superiora! Se os velhos são egoistas e impiedosos, os novos têm direito a reclamar a sua parte de felicidade na terra. --«Faça o que entender, minha filha. Mas fique certa que, volvidos tantos anos e choradas tantas lagrimas, ainda não trocaria a paz da consciencia e a dôce consolação da minha saüdade por uma alegria construida sobre as ruinas doutra existencia... --«Pois era a Madre Superiora?!... --«Eu, sim, que não tive nenhum merito, porque _elle_ e só _elle_ foi o inspirador da nossa conduta, _elle_ o filho heroico que sacrificou, sem um protesto, a felicidade propria á felicidade de alguns anos de seu pai!... As duas calaram-se, entristecidas e como que suspensas, ouvindo uns gritos lancinantes que vinham da outra extremidade do corredor. --«Pobre Soror Claudea!...--lamentou Manoela--Anda agora tão louquinha! --«Ahi tem, Soror Manoela, uma que se não poude resignar de bôamente... --«O quê? Ella não foi sempre assim? --«Oh, não! Era a mais alegre, a mais encantadora, a mais viva de quantas têm vindo a esta casa procurar o repouso e a felicidade... que nunca poude encontrar entre nós. Se a visse!... Soror Claudea nunca teve vocação para freira e nunca pensou que o poderia sêr. Se entrou para o Convento das Bernardas foi na ideia de que de lá seria facil fugir á tirania do pai, que a queria fazer professa a todo o transe. --«Meu Deus! Mas porquê?! --«Porque a fortuna da casa era pequena e era preciso que ficasse toda reunida nas mãos do filho mais velho, o representante da familia. «As irmãs e irmãos de Madre Claudea espalharam-se, resignadamente, por varios conventos e fôram homens e senhoras muito respeitados na religião. Ella é que se revoltou sempre, porque, para seu castigo, desde pequenina que queria, com um amôr profano e intenso, a um moço de modestos recursos, filho segundo como ella, que se desesperava por a não poder furtar ao poder despotico do pai. «Começava nesse tempo a falar-se nos liberais que se juntavam no desterro para conspirar, os quais, dizia-se, eram recebidos de braços abertos pelo imperador, desde que mostrassem sêr homens de valia e de coragem. Se a causa liberal triunfasse, dizia-se, esses ficariam ricos e cheios de dignidades. Na esperança de por esse meio conquistar a fortuna que lhe asseguraria a felicidade sonhada, o rapaz emigrou e voltou mais tarde com as tropas liberais pondo em todos os átos de coragem da sua brilhante carreira militar o unico fito de libertar a mulher que amava, prêsa num convento e obrigada a professar, embora protestasse sempre e chorasse sem descanso durante toda a ceremonia. --«Assistiu a essa cêna, sem lagrimas, Madre Angelica?» --«Felizmente não foi no nosso convento que a fizeram professar, mas, embora as freiras chorassem e a lamentassem, o que lhe podiam ellas fazer?... O sr. bispo era parente da familia, e o sr. bispo é que aprovou a profissão. --«Pobre mulher!... --«E bem desditosa! Quando o namorado chegou a Portugal soube da sua profissão violentada, mas não desanimou. Combinou as coisas de modo que se poude corresponder com ella e... combinaram a fuga. --«Soror Claudea fugiu? --«Sim, chegou a sahir do convento, descendo por uma corda da altura dum segundo andar. Quando chegou á rua onde elle a esperava tinha as mãos em carne viva, tão feridas que ainda hôje conserva as cicatrizes e ficou com as articulações prêsas... --«Sim, já tinha reparado que mal pode trabalhar com desembaraço... --«Fugiram... mas na guerra não ha felicidade possivel. A morte foi tão cruel para o sacrílego como a familia o tinha sido para a desditosa... --«Infeliz mulher! E depois? --«Depois, abandonada de todos, aceitou este pobre refugio, apesar de não sêr professa da nossa Ordem. É desde então que Madre Claudea sofre as crises aflitivas que Soror Manoela conhece... Pobre Madre Claudea! Não soube conformar-se, e não foi por isso mais feliz fugindo á obediencia filial... --«Oh, Madre Angelica, sempre o peor é ter nascido mulher! Terá sido sempre assim? Será eternamente a mesma coisa?!... --«Quem o sabe?!... --«Que grande culpa a minha em têr dado vida a uma criatura que hade, como nós, sêr uma sacrificada!...--E Manoela torcia as mãos chorando numa crise de nervos, que a velha freira tentava aplacar. --«Tenha esperança, minha filha; quem sabe o que será o futuro?!... Houve sempre mulheres que escaparam ao destino comum e fôram felizes. V Manoela foi-se resignando a esperar, cedendo sempre, adiando de mês para mês a realisação do projéto que acariciava no seu coração, e que importava o áto público de rebeldia, que Madre Angelica tanto condenava. Os anos fôram decorrendo e ella assistindo, com o espirito dolorido e a vontade embotada, áquelle fim miserando de vidas que se iam extinguindo, num bater de azas lugubres que enregelava. O convento ia-se despovoando a pouco e pouco, como que tornando-se maior, á medida que as vélhinhas, uma a uma, iam sahindo, para não mais voltar, a tomar o seu modesto logar no cemiterio público. Manoela era agora a cabeça que por todos pensava, a alma e a energia que sustentava aquelle resto de vida conventual, dando-lhe uma aparencia de cohesão, que não tinha. Sentia-se apossada de todo esse vasto casarão, que parecia crescer a cada nova baixa que a morte marcava, com a sua fatalidade cega de força inconsciente, na comunidade já tão diminuida. Era a herdeira natural e incontestada dos santos que lhe iam deixando as pobres vélhinhas, como recordação, e na vaga esperança de que assim viveriam mais na sua memoria, unico abrigo ás suas almas exauridas. Das freiras que ao entrar a tinham enchido de blandicias e amimalhado como mães carinhosas, já poucas existiam. Iam-se mirrando e fenecendo, seguidamente umas atraz das outras, quasi sem doença e sem sofrimento, num descahir e murchar de vontade que nenhum ideal sustenta. Apenas três ou quatro vélhinhas entorpecidas pelos anos, Madre Angelica ainda energica apesar da sua idade e da sua dolorida existencia, e Madre Claudea cada vez mais dificil de aturar, fugindo endoidecida do convivio dos outros, seguindo apenas automaticamente as devoções obrigatorias do côro, que eram como que um farrapo de lucidez a alvejar no seu triste espirito entenebrecido. Chorava dias inteiros, com gritos dilacerantes, os pecados do mundo, que queria carregar sobre os seus miseraveis hombros, mais do que os dos outros pecadores, sem esperança de perdão. Tinha visões que assustavam as meninas do côro, e apavorava as criadas narrando-lhes: como na igreja do convento fôra uma vez enterrado um grande fidalgo da cidade cuja alma em pena o diabo veiu buscar com medonho barulho. Ella não se lembrava, Soror Claudea não era desse tempo; mas ouvira contar bastas vezes ás santas freirinhas que tinham assistido a essa luta homerica do diabo, querendo levar uma alma abrigada pelas paredes santas daquella virtuosa casa. O fidalgo durante toda a vida não tivera uma palavra de justiça nem de piedade para ninguem, nem se lembrava de minorar a miseria alheia, a não sêr por orgulho e fama. Assim, logo que morreu e que o trouxeram com pompas principescas ao carneiro de familia, feito na igreja por deferencia especial a quem muito protegera a comunidade, um verdadeiro e espesso nevoeiro se levantou logo do chão escurecendo a vista ás freiras, que nem podiam distinguir o padre oficiando no altar. E, á noite, o ruido era tanto pela nave magestosa, que as freiras atemorisadas deixaram de abrir as grades do côro para as rezas noturnas. Era impossivel resistir ao pânico que se apoderou daquelle rancho de mulheres, que viam e ouviam tudo quanto diziam vêr e ouvir por um fenomeno vulgar de sugestão, que tanto milagre tem feito no mundo. Madre Claudea descrevia e pormenorisava, então, a festa do exorcismo que fôra feita por santos monges arrabidos auxiliados por todas as outras comunidades dos arredores, que de cruz alçada entraram na igreja. Aberta a sepultura e aspergido o cadaver, uma nuvem negra sahiu da cova espalhando-se pela igreja e sahindo pela porta entre-aberta com fragôr. Depois tudo cahira no silencio, tudo se pacificara, ouvindo-se apenas as orações dos frades prostrados de joelhos num santo respeito por tão grande castigo. E quando fôram vêr a cova... não continha mais do que um punhado de cinza! Madre Claudea benzia-se murmurando exorcismos e orações, e as ouvintes entre-olhavam-se sentindo pela espinha um arrepio de pavôr. E não era só isto o que ella sabia. Uma ocasião--isso já fôra talvez ha seculos, mas o _Livro da fundação_ lá o tinha escrito--aparecera um rapazinho trazendo um feixe de varas resequidas que ofereceu á irmã rodeira para plantar na cerca. Se ella as plantasse veria como dum instante para o outro, por milagre do Senhor, cresceriam logo e se tornariam em belas e frondosas arvores. A irmã rodeira ralhou com o garoto e despediu-o; mas como nessa ocasião passasse uma noviça, criança e amiga de brincar, disse-lhe com empenho:--deixe-me experimentar, irmã rodeira; não faz mal nenhum e sempre a gente se rirá da lembrança do rapazinho. Assim foi. Pegou numa das varas e foi a correr enterrá-la na cerca, seguida por outras noviças em recreio. Imediatamente--Santo Deus, os maleficios que faz o mafarrico!--a vara engrossou e cresceu desproporcionadamente e tornando-se numa arvore magnifica encheu de assombro as pobres noviças, que viam, sobre ella, uma multidão de macacos fazendo-lhes negaças. Foi o inferno na casa! Todas as que olhavam a arvore maldita ficavam possuidas do espirito imundo e faziam os maiores desacertos e gritarias. Como toda a comunidade corria a vêr a causa de tal alvoroço, toda ella sofreu do mesmo mal, e têr-se-iam perdido todas, certamente, se não fôsse a Madre Superiora, que, antes de mais nada, mandara chamar pela moça de recados os senhores capelães e confessores para pôr termo áquelle inferno com as suas preces e esconjuros. Madre Claudea sabia mais e mais, mas já se não lembrava bem e a sua memoria fraquejava ao recordar tantas coisas idas... Apertava a cabeça com as mãos e chorava, num chôro desfeito e infantil que enchia de lagrimas todos os olhos. Só Manoela podia apaziguá-la e por assim dizer chamá-la á realidade e, com a sua voz persuasiva e grave, fazê-la socegar e adormecer confiada como uma pobre inocente. E olhando-a esqualida e apenas com os ossos cobertos por uma péle resequida e empergaminhada, Manoela pensava com amargura na linda rapariga que ella fôra, segundo lhe contara Madre Angelica, amada com paixão, amando com loucura, vítima de interesses e preconceitos alheios, um dia rebelde e desvairada rompendo com todas as peias, logo humilhada e cheia de remorsos, entrepondo-se voluntariamente á vida que engeitara, num terror atavico de escravo que não sabe o que hade fazer á liberdade, com sacrificios heroicos. Tambem Manoela teve um dia, e quando menos a esperava, depois de tantos anos de sujeição, a sua alforria, e tambem, como ella, a não soube usar, porque a sua vontade longamente oprimida não se fortalecera e definira. Ao princípio, quando chegou, a noticia da morte repentina da mãe, não se compenetrou bem do que essa morte representava para a sua existencia e apenas se sentiu surpreendida--não tendo a pretensão de querer sofrer, por costume, o que de facto não sentia, por aféto. Mas, relendo melhor as cartas do irmão e da Ama-Rita, compreendeu por fim que era rica e senhora absoluta da sua pessôa. Isto não lhe podia de pronto dar a sensação da liberdade que por vezes pensara deveria sentir, porque o hábito lhe dera uma nova servidão, que os timidos e os prisioneiros conhecem. Mas, a pouco e pouco apossando-se de si mesma, resolveu fazer prontamente o que havia tanto desejava com ânsia: mandar buscar a filha, reconhecê-la como tal, e conservá-la junto do seu coração e até á morte, triplicando em carinhos os anos de amargurada saüdade em que a tinham conservado. Foi têr com Madre Angelica, que era ainda a Superiora venerada e querida, que anos antes a acolhera no seu coração maternal. Parecia outra, galgando lestamente as escadarias e correndo pelos corredores que levavam até á céla da Superiora, que já quasi nunca sahia do seu cantinho cheio de sol. Com os seus trinta e quatro anos vividos numa vida quasi vegetativa, os traços finos do seu rosto, que fôra duma formosura discreta de morena, conservavam, apesar de tudo, a delicadeza e a graça ingenua que fôram o grande encanto da sua mocidade, quando a tinham trazido para ali. Nos momentos--raros momentos que elles fôram!--de perfeita felicidade para o seu coração, toda a sua pessôa irradiava uma alegria confiante, que a tornavam singularmente encantadora. Quando Madre Angelica levantou os olhos do livro de orações para dar a licença que ella lhe pedia á porta, foi já com o assombro que causa uma grande mudança numa pessôa querida, porque a propria voz da recolhida era outra--um novo timbre de alegria a fazia desconhecivel. --«O que é, Soror Manoela?!... Alguma novidade lá por baixo? --«Não, Madre Angelica, a novidade é só minha... é uma coisa que eu pensei e que lhe venho participar... E Manoela explanou, diante da pobre freira sobresaltada, o projéto, que tão simples se lhe afigurara. --«A sua filha para aqui, Soror Manoela, pensou isso?!...--perguntou apavorada. --« Sim, para aqui, então não hade sêr para aqui?! --«Oh, meu Deus, meu Deus! Para que estou eu guardada, santo Deus?!--lamentava a Superiora. --«Mas eu não compreendo o seu espanto, Madre Angelica! Então não sabia o motivo porque estou aqui ha dezoito anos? Não foi a Madre Angelica que me levou á obediencia a minha mãe adiando até agora a realisação do meu desejo?!... --«Sempre imaginei morrer antes de vêr esse escandalo!... Meu Deus, meu Deus! Então a minha filha quer dar a essas meninas o público espétáculo da sua antiga culpa?!... Quer sêr o riso e a fabula de toda a cidade?! O que dirão de nós?! Com tanta má vontade contra as casas religiosas, com tanta calúnia que se tem levantado, se Soror Manoela vai agora apresentar publicamente a sua filha, o que não dirão?!... --«E que me importa tudo isso?!--não sou eu livre porventura?! --«Oh, livre, livre!... Ninguem é livre de alardear os seus pecados--respondeu a freira, impacientada. --«Não é isso o que nos diz a nossa religião, Madre Superiora. Esconder um pecado ou culpa é uma prova de orgulho que Deus condena. --«Mas não neste caso, em que a sua publicação trará descrédito e vergonha para a nossa santa casa. O que dirão, sabe, Soror Angelica?... Dirão que nesta casa a imoralidade chegou ao ponto de se apresentarem publicamente as filhas das freiras!... --«Dirão uma mentira, que eu propria desfarei contando a verdade. Bem sabe, Madre Angelica, que se não fiz isto ha muitos anos foi por seguir os seus conselhos, nos quais me mostrou que devia obediencia a minha mãe. Por ella, por esse respeito de que me falou para com uma pessôa que me afastou da casa de meu pai, que me expulsou como a uma criminosa, sofri dezoito anos dum silencio que considero uma covardia hôje... Ah, dezoito anos de saüdades por uma filha que se não conhece e pela qual se morre de amôr!... Ah, Madre Angelica, como fôram crueis comigo! A culpa, se a houve, se uma criança, como eu era, a pode têr por se deixar iludir por um homem da sua casta, um amigo de seu irmão... essa culpa bem a tenho lavado com lagrimas de um coração ansioso por conhecer a sua propria filha. Ah, a Madre Superiora é cruel: foi-o comigo, quando me fez recuar ante a minha justa vontade; é-o agora ainda, porque não compreende este meu sentir!... Mas agora sou livre; quero a minha filha--e heide tê-la!... Manoela, sempre tão delicada no dizer e tão submissa, chegava nesse momento á voluptuosidade das almas sacrificadas quando uma vez chegam á consolação de poderem articular a verdade, que lhe sahia em palavras que pareciam golfadas, num atropêlo de quem esteve encarcerado largos anos e vê por acaso uma porta escancarada. --«E seus irmãos, o que dirão elles desse áto?--arriscou a Superiora tentando dissuadi-la. --«Meus irmãos!?... Que lhes devo eu, Madre Superiora? Ha dezoito anos que me viram partir de casa, um amaldiçoando-me, os outros nem perguntando a causa dessa sahida, e só agora me escrevem porque apesar de tudo a lei me confere o direito de partilhar com elles a herança de nossos pais. Meus irmãos!? Quasi os não conheço... Nem lhes devo amizade, nem respeito. Á minha filha, sim, a essa devo todo o meu amôr, todos os momentos do resto da minha existencia. --«Soror Manoela, pense bem. Será um escandalo! O que dirão essas meninas do côro, as criadas, as senhoras que nos protegem e nos dão a sua amizade?!... Para que estava eu guardada, Senhor!?--E a freira levantava as mãos e os olhos ao céo, num gesto implorativo, murmurando:--Ah, se Madre Gertrudes fôsse viva!... --«Sim,--volveu a outra com vivacidade, tão pouco do seu costume--tem razão! Se minha tia fôsse viva, ella seria a primeira a chamar a si essa pobre criança que tem sido escorraçada de todos como um cão tinhoso. E já que a não posso trazer para esta casa que me foi abrigo nas horas tristes da vida, sahirei daqui. Irei viver com minha filha livremente... --«O que diz, Soror Manoela, deixar-nos!? Quer deixar-nos agora que estamos com os pés para a cova, e é a unica pessôa que aqui temos para nos ajudar a bem morrer, acabando em paz na nossa santa casa?!... Os soluços sufocaram-na. Tambem ella sofria com a dôr da sua pupila; tambem dos seus olhos, que já deveriam estar esgotados, por tanto terem chorado, cahiram lagrimas que Manoela recolheu no coração angustiado. Soror Angelica abriu-lhe os braços, e por largo tempo ficaram chorando juntas o desespero dessa primeira desinteligencia em tantos anos de confiada e dôce amizade. Foi a freira que quebrou o silencio: --«Soror Manoela, mande vir a menina; mas, se lhe merecem alguma consideração as suas velhas companheiras, não a reconheça desde já publicamente. Deixe que a morte feche as portas do nosso convento, e então será completamente livre para fazer a sua vontade. --«Mas que nome dará á amizade por uma criança que tão empenhadamente mando vir para junto de mim? --«Não poderá sêr uma afilhada?... --«Afilhada?!....--Manoela hesitava, pesando-lhe muito aquella fraqueza como uma verdadeira covardia. Mas as velhas companheiras de toda a sua existencia de expulsa mereciam alguma consideração... Cederia. Tinha de sêr--mais uma vez sacrificando ao descanso dos outros os seus sonhos, as suas revoltas, as suas alegrias, a sua vontade. VI Alguns dias depois chegava Christina, acompanhada pela Ama-Rita, que chorava de comoção só com o pensamento de revêr a sua querida menina. Manoela foi esperá-las á portaria, escondendo a custo a ansiedade da sua alma que tumultuava em desejos loucos de tomar a filha nos braços e gritar bem alto a sua paixão. Toda ella tremia, sorrindo contrafeita ás conversas e perguntas das outras senhoras, amparada pela Madre Superiora, que extraordinariamente sahira do cantinho da sua céla para a fortalecer naquella suprema prova. Veiu por fim a hora da chegada; abriu-se a portaria, e Manoela poude vêr pela grade entreaberta a Ama-Rita, muito vélhita e trôpega, acompanhada por uma mulher, uma verdadeira mulher forte e desempenada, que olhava com visivel curiosidade essas paredes enegrecidas que iam sêr o seu novo abrigo--sahida dum convento, onde a mãe pagara para a educarem, para entrar naquelle como recolhida. Manoela, á medida que a filha se ia aproximando, subindo a escada para entrar no palratorio, ia recuando espavorida, sentindo um frio de morte no coração, que a asfixiava. É que diante dos seus olhos estava, não a filha que amava e chamara febrilmente durante anos de paixão esteril em que se consumira, mas a imagem viva do homem que, na rétidão do seu caráter, apenas podera desprezar como um sêr ignobil e ascoroso. Christina não era nada, nada do que ella tinha idealisado. Não era a _sua_ filha, era a filha _delle_, que a natureza, inconsciente na fatalidade da sua força, lhe punha nos braços. Vencendo a repugnancia instintiva que essa semelhança lhe inspirava, foi sorrisonha e meiga que recebeu a afilhada, mas Christina não correspondeu tambem a esse apêlo. Os seus olhos garços ficaram frios e dominadores, como eram habitualmente; a sua bôca não se desdobrou álêm do sorriso escarninho que lhe errava habitualmente nos labios. Foi tristemente resignada que Manoela a acompanhou ao dormitorio cheio de luz onde ella dormia, e onde, com amoroso cuidado, lhe arranjara a cama velada com cortinados de inexcedivel brancura, fresca como um berço de criança. Ama-Rita seguiu-as falando muito, abraçando de quando em quando a sua querida menina, que ainda era capaz de reconhecer entre muitas apesar de tão mudada e tão triste. Christina não despertou a simpatia viva que a mãe inspirara a toda a comunidade logo ao entrar no convento. Pagava com sorrisos contrafeitos os carinhos que lhe faziam, e mal atentava nos mimos com que a mãe a rodeava. Aborrecia-se e impacientava-se com as pobres vélhinhas, que procuravam nessa mocidade a alegria que as aquecesse e lhes reflorisse as existencias a extinguirem-se. Como á mãe, outrora, todas abriram o coração a esse coração, mas este permaneceu fechado e frio, afastando-as descaroavelmente. Tinha revoltas bruscas, respondia sêcamente, e queixava-se á Ama-Rita de que a queriam sepultar entre quatro paredes e que a tinham tirado duma prisão para a fecharem noutra peor. Manoela sofria com todas essas pequenas coisas, que se iam avolumando, tornando-a odiada por todas as outras companheiras; mas temia fazer-lhe qualquer observação receando o seu genio, que presentia violento e áspero... Até que um dia Christina, de combinação com uma menina do côro que levou á rebelião, pôs uma verdadeira nota de escandalo no meio conventual, subindo com ella ao telhado para vêr o que se passava no largo apinhado de gente para a feira. Manoela foi obrigada a proceder, advertida pela Madre Superiora, que a acusava, com a sua voz dôce, de falta de energia para com a filha. --«Christina--dizia-lhe meigamente--para que me obriga a admoestá-la? Para que faz coisas... que não ficam bem a uma menina?... --«Mas o que fiz eu, minha senhora? Foi algum crime subir ao telhado para tomar um pouco de ar, para fugir um instante desta sensaboria?! --«Mas a Christina não está bem, não gosta de estar no convento? --«Não, minha senhora, não gosto de estar nesta prisão. --«Mas oiça: hade sahir, tenha paciencia um pouco. Isto não pode durar muito; são apenas duas as freiras que ainda existem, e quando ellas morrerem sahiremos ambas. Continuará aqui a sua educação; a Christina sabe tão pouco que mal se poderá apresentar no mundo, onde ha muita exigencia para as senhoras da nossa classe. --«Ah, sim!? Conselhos, conselhos tenho ouvido muitos. Eu já tenho educação bastante, não preciso mais... --«Christina!? --«Minha senhora!? --«Então não está bem ao pé de mim?...--E querendo-a convencer, com a sua voz dum carinho maternal:--Não diga que não, que é sêr ingrata. Se soubesse como sou sua amiga!... --«Minha amiga?! Se o fôsse, não me prendia aqui como uma criminosa. Se o fôsse, não me chamava afilhada--quando eu sei muito bem que tenho outro nome... Manoela interrompeu-a com um grito desvairado: --«Christina, Christina, cala-te! Tu não sabes, tu não podes compreender nada do tormento da minha vida!... --«Ah, sim, um bom meio de me obrigar a calar, quando eu posso falar porque sou sua filha--respondeu brutalmente. Manoela empalideceu; aos seus ouvidos soou uma zoeira congestiva e o seu coração quasi a sufocou na onda de sangue que lhe atirou á cara. --«Sua mãe!? Está enganada, menina! Nem sequer é minha afilhada. Mandei-a criar e educar por dó, e é por dó que a tenho comigo. Conhecendo o orgulho da filha, pagava essa afronta com afronta maior. Tambem ella se sentia ferida; tambem ella tinha necessidade de revoltar-se contra a crueldade alheia. Tambem ella tinha um temperamento violento, que a extrema sensibilidade e o prematuro infortunio tinham enfraquecido mas não aniquilado. --«Quer sahir?!--e o seu peito era sacudido por uma gargalhada nervosa, que tornava ásperas as palavras--quer sahir?! Pois sáia! Que me importa!? Recolhi-a por dó... não a obrigo a receber um beneficio que não merece. Mas Christina, como todos os egoistas, tinha a covardia das resoluções rapidas. Diante da indignação da mãe, queria recuar, submetia-se, desejava tudo conciliar... --«Sahir, minha senhora?! Mas para onde? --«Para onde estiver melhor, para onde quizer. Que me importa a sua vida?! E é melhor fazê-lo já, já. Manoela, com todos os nervos retesados numa crise dolorosa, tinha-se tornado duma palidez esverdeada, os beiços trémulos e descoloridos, o coração a afogá-la numa galopada infernal após uma como rapida suspensão de movimento. Ante aquella ordem e o gesto de repulsa que a acompanhava, Christina não resistiu, dirigindo-se para a porta, de cabeça baixa, contrafeita, unicamente arrependida de têr provocado uma cólera que a privava, dum instante para outro, de todo o bem-estar material a que se afizera. A mãe olhava-a tristemente:--era afinal aquella a filha que tanto amara e tanto desejara!... Um resto de piedade venceu ainda a indignação e o desgosto. --«Oiça--disse-lhe quando estava quasi ao fundo do dormitorio, fazendo-a voltar rapidamente a cabeça numa ânsia de esperançada. --«Minha senhora, chamou? --«Sim, venha cá.--E, sem a fitar, num repelão de magua que lhe causava a atitude tão diferente da filha, agora de cabeça baixa e ar hipocrita.--Custa-me abandoná-la para ahi, sem familia nem protéção... Vou pedir a meu irmão para a receber em sua casa, como afilhada... Se elle consentir, ficará contente? --«Sim, minha senhora; seria uma felicidade para mim. Quanto lhe devo, madrinha! --«Não, não me deve nada. Vá á sua vida, e tenha paciencia alguns dias mais. --«Mas... eu queria pedir desculpa... --«Não; não me ofendeu. Pode ir. Tinha pressa de se encontrar só. Dizia bem: o seu coração não estava ofendido; estava despedaçado, calcado aos pés, por aquella que tinha sido o encanto da sua existencia antes de a conhecer e depois não fôra senão motivo para desilusões e evocações pungentes. O desespero da sua alma contrastava com a serenidade da lua, em crescente, que se erguia manso e manso num céo translucido, ainda tingido de oirenta púrpura no poente, e era como um alfange de oiro pronto a vibrar-lhe o último golpe. Soluçava; já não podia mais. Pela janela gradeada, os olhos nublados de lagrimas mal distinguiam as linhas dessa paisagem, revista em cada dia durante anos, e que umas vezes lhe parecia grandiosa no seu aspéto cenografico, outras banal e triste, conforme as impressões do seu espirito, tranquilo ou perturbado. Sentia um agro prazer em chorar, e em soluçar como uma criança, numa desconsolação de abandôno e de desespero. O que fôra o seu passado? Apenas uma existencia sacrificada ao convencionalismo ou ao egoismo alheio. O presente era essa amargura de se sentir desamparada das suas proprias ilusões--as últimas companheiras dos que mais sofrem. O futuro... Santo Deus! o que lhe traria o futuro se não lhe trouxesse o hábito de viver para si mesma?!... Madre Angelica, prevenida pela Ama-Rita que vigiava sempre a sua menina, veiu têr com ella, arrastando-se vagarosamente ao longo do dormitorio, como uma sombra que o luar fazia destacar. --«Soror Manoela, o que tem, o que lhe fizeram para estar assim agoniada?!... --«Ai, Madre Angelica!... Estava ahi? Ainda bem, ainda bem que a tenho junto de mim neste momento. Julguei-me olvidada de todos--até de Deus!... --«Soror Manoela....--tornou a velha freira com severidade, adoçada pela sua muita estima á reclusa--veja o que diz, minha filha. Deus é pai e um pai não esquece nem aflige propositadamente os seus filhos. Elle ama os mais amargurados--e serão esses os que mais perto estarão da sua eterna gloria. --«Ah, mas custa muito chegar até lá, pelo caminho da vida... --«Tenha resignação, Soror Manoela; aprenda no exemplo dado pelo nosso Salvador: olhe para a sua santa imagem, coberta de chagas e coroada de espinhos! E tudo quanto sofreu, inocente e bom, foi para remir o mundo, para salvar aquelles que o flagelavam. --«Tem razão... terá razão--soluçou Manoela, humilhada. Mas logo, numa revolta subitânea que toda a sua devoção não poude evitar--mas elle era Deus, sofreu por sua vontade, e morreu logo!! O seu martirio não foi uma longa vida arrastada na dôr e no suplício! Mas eu que vivo, eu que tenho vivido anos e anos para sofrer em cada hora mais do que a morte... --«Soror Manoela!...--reprimendou a freira. --«Perdão, perdão! Meu Deus, se o sofrimento enlouquece!... E de joelhos, aflita, soluçante, apavorada com a sua propria heresia, foi-se arrastando até ao crucifixo que se destacava no fundo, tremulamente alumiado por uma lampada de cobre, e ali ficou agarrada aos pés chagados da grande imagem, num choro convulsivamente desfeito e tragico. Madre Angelica apiedou-se, ella que era o unico coração capaz de compreender e estimar a misera criatura, e tentou levantá-la com as suas poucas forças, e disse-lhe baixinho, numa voz que era uma consolação para essa alma torturada e desgraçada: --«Vamos, Soror Manoela, diga-me o que assim a faz sofrer. Conte-me a sua magua--que verá como ella diminue... --«Ai, Madre Angelica, morro de saüdades pela minha filha. Trocaram-ma. Não é esta! Como fui castigada, Santo Deus! E a freira, sinceramente surpreendida na sua credulidade ingenua: --«O que me diz?! Então a Christina não é a sua filha?... Será possivel?!... --«Não é!--volveu Manoela, sobreexcitada, não reparando sequer na dúvida da velha Madre.--Não é, não é a minha filha, que alimentei do meu proprio sangue, que sahiu do meu corpo como a flôr sai da planta. É uma estranha, é uma alma gelada, que não compreendo nem estimo. Veja-a, veja-a bem, Madre Angelica; veja-lhe bem os olhos frios e crueis, os seus olhos metalicos como os do _outro_! Veja-lhe o riso escarninho, que é _delle_... Consulte-lhe a alma soberba e impiedosa, como a da avó... Avalie a minha desgraça, Madre Angelica! Tenho uma filha que não tem nada, que não é nada de mim!... E despreza-me, a criaturinha!...--terminou num riso cascalhado, que era uma derivação do choro histérico que a tomara. --«Socegue, minha irmã. Então!?... Isso não é proprio de si... --«Sim, tem razão! Eu não devo sofrer assim, mas que fazer?! Não posso, não posso habituar-me a esta desolação; querer amar a minha filha tal como é e não como a sonhei, e não poder, não poder!... Falou longo tempo, num soluçar entrecortado que a esfrangalhava e halucinava, e só muito tarde, conseguindo levá-la para a sua céla, onde estavam mais á vontade, Madre Angelica lhe poude insuflar um pouco de coragem e resignação para vencer aquella crise dolorosissima. VII O irmão de Manoela respondeu afirmativamente á carta muito digna que ella lhe escrevera, consentindo em receber Christina como se fôsse uma filha. A morte da mãe deixara-lhe um vacuo imenso no grande casarão, onde só de quando em quando os irmãos, já casados e cada um em sua terra, o visitavam por ceremonia. «Christina pode vir--dizia na sua carta á irmã--quando quizer, e na certeza de que já a estimo como filha. Sentia-se só, e estava na idade em que uma nova amizade é um pouco de vida nova que se insufla na alma amortecida. «Manoela, que fôsse tambem; dezenove anos de penitencia teriam por certo depurado toda a mácula...» Esquecia o passado; talvez um pouco de inconfessado remorso o estivesse a maguar, agora que se sentia tão só e inclinado á vida serena duma familia a refazer. Mas a irmã não ia; agradecia-lhe muito, tanto a prontidão da resposta como a aquiescencia ao seu pedido e o desejo de a revêr... Mas não iria. Tinha ali uma triste missão a cumprir; não abandonaria, no fim da vida, as companheiras de tantos anos de angustia. Christina partiu alegre, numa ansiedade de prisioneira que reentra no mundo por que tem suspirado durante longos dias inresignados. Manoela ficava sem saüdades dessa filha que fôra durante anos a sua razão de viver; antes sentia, ao despedir-se, uma vaga sensação de alívio, não isenta de cavada amargura. --«Adeus, Christina,--disse-lhe na hora da despedida--diga a meu irmão que resolvi fazer o meu testamento deixando-a herdeira do que me pertence. Elle que administre a casa nesse sentido, pois só quero dispôr do usofruto por causa destas pobres criaturas que me rodeiam. --«Deixe-me agradecer-lhe, madrinha...--e tentava beijar-lhe a mão. --«Para quê?...--respondeu sorrindo com ironia e encolhendo os hombros á sincera alegria de Christina. Era com um profundo desdem que atirava essa fortuna, que lhe era indiferente, para o poder da filha que não a soubera amar nem reconhecera o presente inestimavel que lhe dera antes, tendo-lhe dado o seu amôr. Partiu, acompanhada de Ama-Rita, que apenas levava o encargo de a entregar ao tio e voltar logo, pois essa é que, decididamente, não abandonaria mais a sua menina. Para ella a menina era Manoela, que nunca deixava de revêr como fôra: a filha adótiva do seu coração, a estranha que tomara na sua alma o verdadeiro logar da filha morta á nascença. Mas bastante mudara nos últimos tempos, apesar della se não querer convencer do que via: a mulher que pouco tempo antes ella encontrara, senão a linda rapariga que vira partir, lavada em lagrimas, crucificada de dôres, pelo menos uma mocidade ainda florescente, estendendo-se por um outôno que se anunciava formosissimo. Em poucos mêses Manoela fez uma diferença que saltava aos olhos e afligia toda a comunidade, que só nella fundava as suas esperanças e as suas alegrias. O cabelo embranquecia-lhe nas fontes; a péle amarelecida, enrugava-se impercétivelmente a princípio, mas visivelmente nos últimos dias em que umas olheiras inchadas lhe davam no rosto o aspéto desolador da doença que lhe fizera do coração uma pobre maquina sem regulamento. Podia dizer-se que ia morrendo aos poucos, das feridas incuraveis que nelle sentira, durante toda essa existencia de eterna sacrificada, em que a alma se lhe esfacelara pelos agudos e impiedosos espinhos do egoismo alheio. Com a doença de Manoela, entrou o desânimo em todas as almas e a morte encontrou facil caminho entre aquelles organismos depauperados e sem resistencia moral. Todos os mêses havia mortes no convento: ora as freiras, ora as velhas criadas e recolhidas, lá se iam, umas atraz das outras, em debandada desoladora. E para ella, a morte que rodeava agora como companheira inseparavel a velha casa conventual, tão suavemente serena e risonha, era um aflar de azas sinistro que lhe deixava na alma o luto de toda essa querida familia espiritual, a unica que verdadeiramente estimava agora. O convento acabava dia a dia, hora a hora,--sentia-se, numa halucinação de presentimentos e presagios tetricos, avisos sobrenaturais e factos estranhos que causavam a perturbação e o pânico de todas aquellas criaturas enfraquecidas e mais ou menos doentes, senão do corpo pelo menos da alma. Assim, a sineta que no claustro de cima apenas era tocada quando alguem na casa entrava na agonia, para que as almas se recolhessem com Deus e na sua ânsia de bem merecer auxiliassem a que estava para partir, a desligar-se, sem pena nem pecado, desta vida defeituosa e amarga, começara uma tarde, á hora calma do Angelus, a tocar freneticamente conclamando toda a comunidade, que se olhava espavorida e convicta do tragico aviso.--Era certo: aquella sineta, que uma só vez tocara assim, segundo constava, anunciando a morte de duas freiras em cheiro de santidade, anunciava agora a morte, o fim da santa casa que fôra abrigo de tanta pobre alma de mulher revoltada ou submissa, mas todas crentes numa eternidade de venturas de que não tinham tido na terra a compensação. E todas ellas, velhas e novas, míseras sombras duma outra idade ou raparigas que a educação conservara afastadas do tempo em que vieram ao mundo, todas curvaram a cabeça á convicção de que a campa as chamava, de que era a morte que as libertaria em breve. Sim, ellas estavam prontas, mas quanta tristeza nesse fim de existencias que já mal se arrastavam, numa vida que não compreendiam já!... Outro dia era um reboliço enorme nas casas deshabitadas, que as fazia tremer de apavorante susto, pensando nas irmãs mortas ultimamente e em tantas que descansavam sob as lages frias do claustro. E eram vozes misteriosas vindas da terra, perfumes deliciosos e estranhos que se espalhavam pelos casarões vasios, fantasmas silenciosos de freiras mortas havia seculos e que deslisavam sorridentes como que a animarem as pobres irmãs que assistiam ao fim da sua casa tão amada!... Manoela, apesar de todo o seu bom-senso, não resistia ao contágio e, como as outras, vivia numa atmosfera de prodigios e de mêdos que mais activava o progresso do mal que a consumia. Mas não abandonava por esse motivo as velhas companheiras, que só nella achavam conforto para bem morrerem. Foi Soror Claudea a última a deixar a vida, que tão dolorida lhe fôra; foi ella, a pobre louca, quem fechou, como um ponto final simbolico, mais um periodo de historia feminina, tecida de sacrificios e servidões e ilusões profundas, e sem um fecundo e nobre e belo ideal de vida! Ali ou na familia, no claustro ou no mundo, a existencia feminina pouco diferia; pouco mais era que esse decorrer estirado de anos partilhados entre pequenos deveres, insignificantes trabalhos, apagadas alegrias e supliciantes sacrificios a que ninguem prestava atenção, tão naturais são aos servos e aos inferiores... Morta Madre Claudea, e participado o caso ás autoridades, teve Manoela que aceitar o depósito da casa para fazer a entrega legal. Acabada a clausura e o convento, por assim dizer franqueado ao público, começou um novo martirio para Manoela, que se não podia furtar á indelicada e faminta curiosidade de toda a gente da cidade, que já depois fazia da visita ao convento uma distráção a quebrar a monotonia da vida provinciana. A querida casa tão recatada e fechada a todos os olhares indiscretos, foi uma coisa pública escancarada e esquadrinhada por todos os indiferentes, uns sob a capa amavel da simpatia e da piedade, outros rancorosos ou hostis, desrespeitando as suas crenças ingenuas ou troçando com as suas alardeadas superioridades as infantis preocupações daquelles sêres inuteis... Manoela afétava uma serenidade que lhe custava anos de vida, não querendo dar aos indiferentes o espétáculo duma dôr que era apenas sua e das suas pobres companheiras, as recolhidas, as meninas do côro e as criadas, que em breve seriam arremessadas para o mundo como folhas inertes e sem vida, e dispersadas ao sabôr do acaso, que as levaria sabe Deus a que dôres e a que miserias!--tão mal preparadas como estavam para a luta de cá fóra, quasi todas pobres e sem amigos ou familia que as tivesse como suas... Já que não podia furtar a casa e as coisas á profanação dos olhos estranhos, fechava a sua alma num silencio orgulhoso que a tornava respeitada, e conservava uma certa distinção naquelle acabar de comunidade que sem ella seria um levantar de feira sem grandeza nem simpatia. O inventario feito, a pilhagem executada por ordem superior, viu com profunda amargura os preciosos _Grão-Vascos_ desprendidos das paredes seguirem, com os azulejos hispano-arabes que foi possivel arrancar, a pouca mobilia rica que havia, os livros e as tapeçarias de valôr, encaixotados, segundo diziam, para os museus de Lisbôa... Eram livros velhos aos cantos, pelos corredores, bahus e caixões devassados e esvasiados... E ainda lhe foi preciso assistir, sem que a desligassem do triste encargo de testamenteira, á invasão dos operarios que vinham transformar a casa, para novo destino mais em harmonia com a época. Portas escancaradas, divisões deitadas abaixo, montes de caliça pelos pateos e claustros, deslocadas as fontes murmurosas, mortas as plantas que eram o seu encanto--aquilo afigurava-se-lhe uma ruina completa, um desabar de todo um passado que morria sem têr criado raizes, como morre sem seiva, inutilisada, a planta nascida em terreno pobre e rochoso. Libertada, porfim, foi acabar de viver para uma pequena casa de campo que a Ama-Rita descobriu escondida entre tufos de verdura tenra e uma dôce paz idilica a rodeá-la. Sentia-se de mal a peor, e sem esforço deixava-se morrer, desligada da vida, sem afeições ou deveres que a prendessem. Álêm do amôr humilde da simples camponeza que a criara e a cumulava de carinhos e ternuras na morte, como a rodeara na infancia, nada lhe restava. Christina, muito prática, muito á sua vontade, talhara para si um logar amplo na vida. A última carta do irmão de Manoela pedia-lha em casamento, e a della, que vinha junta, pedia, pró-forma, o consentimento da madrinha. Manoela sorriu: era a sua vingança, uma como rehabilitação do seu sangue, da sua propria carne expulsa outróra como coisa imunda da casa e da familia. Era a vida omnipotente readquirindo os seus direitos, a natureza triunfando dos preconceitos, que desprezava as convenções e entrava como senhora donde fôra expulsa como réproba. Christina, na sua cega e egoista caminhada para a vida, fôra a força invencivel da razão e da justiça, fôra a suprema e triunfante palavra do futuro. A mãe, amoravel, generosa e submetida, dera a existencia aos pedaços para satisfazer as outras. A filha, egoista e revoltada, e sem exageros de sentimentalidade que só provocam a dôr, recebia uma por uma transformadas em alegrias as lagrimas da mãe. Manoela sorria: era a sua rehabilitação, era, saboreada com infinito gôsto--tão certo é que nenhum sacrificio se perde, aproveitando quasi sempre a quem menos o merece. VIII Em toda a noite Manoela não pudera dormir, angustiada, sentindo sobre o peito um pêso esmagador, sufocada e aflita. Com a manhã, que rompera radiosa empoeirando de oiro todo o campo e doirando as montanhas que se destacavam no fundo roseo do céo, serenava um pouco. Sentia-se mais aliviada e quiz arrastar-se até á janela aonde se sentou na cadeira de braços, que era o seu poiso habitual. Olhava atenta a bandada de pombas brancas que sahia do pombal em vôos estonteados e incertos, embaraçando-se nos ramos das laranjeiras que floriam de branco e perfumavam delicadamente a atmosfera. --«Ah, como era linda a natureza, sempre renovada e sempre a mesma,--e como era bom viver!... E a pobre doente ouvia, num encanto de esperança, nunca extincta no coração humano, as palavras de consolação que a bôa Ama-Rita lhe ia dizendo. --«Porque não iam passar uns tempos a casa do sr. Morgado?... Havia de fazer bem á senhora... --«Sim, iriam--concordava Manoela--mas não já, a primavera começara apenas, e a Ama-Rita bem sabia como eram ainda invernosos e frios esses mêses de primavera lá na terra. Oh, se sabia! Quantas noites enregeladas passara acalentando nos braços a sua menina; quantos dias fechada em casa porque a neve e o frio não dava licença, até maio, de se sahir da lareira... Manoela, sorrisonha ás recordações da bôa vélhota, prometia fazer essa viagem--em vindo o bom tempo. --«E o menino, quando nascerá?--perguntava a Ama. --«Já tens pressa de o chamar teu, não é assim?... E comparava, com um certo sorriso ironico a aflorar-lhe aos labios descórados, a ansiosa espera em que se andava pela vinda do primeiro filho de Christina e os transes porque ella passara para que a mãe chegasse a este mundo, onde era agora uma triunfadora. Recordava... e recordar era tornar a sofrer as horas de desânimo e desespero que por milagre a não tinham atirado para um hospital de doidos ou para o cemiterio. Tornava a vêr a casa em ruinas, onde a criança nascera como um animal bravio, que anda a monte, para não ofender com os seus gritos de filho ilegal as consciencias socegadas... Como isso já ia longe e como tudo tinha mudado! Quem lhe diria então que Christina, a sua filha, essa vergonha viva, essa nodoa na familia fidalga de que descendia, anos volvidos seria a senhora morgada a quem todos adivinhavam os desejos e amaciavam o caminho para que désse sem precalço o novo herdeiro da casa?!... E tão desemelhante destino só porque uma tinha um pai que legalmente reivindicava os seus direitos, emquanto a outra era filha dum homem, que na sua inconsciencia de bruto apenas cuidara do prazer material e passageiro, com tanta mais perfidia quanto era maior o seu conhecimento da indulgencia da sociedade para com as leviandades do homem transformadas em crimes para as mulheres. E Manoela, meditando e revendo toda a sua existencia naquella hora de passageiro repouso, que a doença lhe dera, pensava com amargurado remorso no que chamava agora a sua covardia: --«Sim, Christina, no impulso do seu egoismo e da sua ânsia de viver, é quem estava na verdade! «A transigencia, a covardia, a fraqueza, mesmo quando são filhas do sentimento, acarretam consigo o triste premio da sua inferioridade. E assim, pela covardia a que tinham dado o bonito nome de bondade, ella ali estava sem familia, sem amigos, sem uma alegria que a prendesse á vida que a ia abandonando como fardo inutil, que já não presta para nada. «Não, não se deve transigir, não se deve esconder uma áção que em nossa consciencia não é um crime, embora a sociedade na sua hipocrisia a mostre, ferozmente, como tal! «A sociedade acostuma-se a respeitar os fortes e só pede contas severas aos fracos, aos que transigem, aos que a ella se não adaptam ou a não dominam, as duas unicas fórmas de a vencer. «Christina tivera razão: ella não fôra uma bôa mãe, não soubera desempenhar o seu nobre papel, ferindo implacavel porque fôra ferida, cobrindo com a sua revolta o destino da criança que chamara a uma vida que lhe não pedira. Não tinha desculpa. Fôra necessario que a filha, no seu bom-senso de bastarda, soubesse encontrar a desforra no sacrificio do proprio corpo procurando nesse casamento sem amôr o nome que ella lhe negara. «E valia muito o amôr?... Ah, ella sorria, com dó de si mesma, recordando como se entregara toda inteira a esse sentimento, o corpo palpitante, a alma fremente, sem uma reserva, sem um pensamento mesquinho de dúvida, com a pureza duma criança, cuja alma não fôra maculada pela desconfiança--e o que lhe deram em troca?!... «Pois bem, ia reparar a sua falta. E, chamando a Ama, que dava uma certa ordem ao quarto, respeitando a sua meditação, Manoela pediu a escrevaninha portatil que estava sobre a mêsa de cabeceira, pegou num papel e ia a escrever... Depois suspendeu-se, sorriu com amargura, e pôs a penna de parte. O que ia fazer com essa declaração a juntar ao testamento?! Christina já não precisava do seu nome, mais amplamente coberta com o do marido que a tomara como filha de pais incognitos, e a sua declaração extemporanea apenas lhe traria vergonha inutil e dissabores... Não a fazia--era já tarde para isso. Recostando-se ás almofadas que a Ama-Rita lhe ageitava na cadeira, sentiu-se agoniada, pediu agua, depois fechou os olhos, franziu frouxamente os labios descórados, e a cabeça tombou-lhe para o lado sem vida. --«Deixou de sofrer!--dizia a velha, soluçando alto, para a criada e para a mulher do quinteiro que chamara aflita na primeira impressão de inevitavel surpresa. E alisava-lhe os cabelos sobre a fronte, juntava-lhe as mãos numa atitude de prece. Deixou de sofrer, coitadinha! Toda, toda a vida--uma sacrificada!... INDICE Pag. A Vinha 7 A Feiticeira 37 Diario duma criança 81 Sacrificada 181 OBRAS DA MESMA AUTORA AMBIÇÕES (romance) 700 INFELIZES (historias vividas). Esgotado. A BEM DA PATRIA: Bibliotéca de propaganda educativa e distribuição gratuita: 1.º _As mães devem amamentar seus filhos._ 2.º _A educação da criança pela mulher._ BEM PRÉGA FREI THOMAZ (comedia) 300 TEATRO INFANTIL: _A comedia da Lili_ 200 _Um sermão do Snr. Cura_ 60 A GARRETT. No seu primeiro centenario.--De colaboração com Paulino de Oliveira 500 GARRETT NO PANTHEON.--De colaboração com Paulino de Oliveira 50 A NOSSA HOMENAGEM A BOCAGE 100 ÁS MULHERES PORTUGUÊSAS.--Livro feminista de critica e propaganda 600 A MINHA PATRIA.--Livro aprovado oficialmente para premios escolares. Encadernação de luxo, desenho de Roque Gameiro, 400 paginas em magnifico papel e inumeras ilustrações 1$000 PARA AS CRIANÇAS: Publicação mensal ilustrada fundada em 1897. Publicados 15 volumes com magnificas gravuras. _Contos tradicionaes portuguêses_, 10 volumes. _Contos de Grimm_, traduzidos do alemão. 1 volume. _Alma infantil_ } _Animais_ } originais de Anna de Castro Osorio _Boas crianças_ } _Historias escolhidas_ (tradução diréta do alemão). Cada volume desta publicação avulso. 400 INSTRUÇÃO E EDUCAÇÃO (Festas infantis).--Folheto de critica pedagogica 100 End of the Project Gutenberg EBook of Quatro Novelas, by Ana de Castro Osório *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK QUATRO NOVELAS *** ***** This file should be named 29968-8.txt or 29968-8.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: http://www.gutenberg.org/2/9/9/6/29968/ Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Print project.) Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. 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It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need, are critical to reaching Project Gutenberg-tm's goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation web page at http://www.pglaf.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state's laws. The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered throughout numerous locations. Its business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email [email protected]. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation's web site and official page at http://pglaf.org For additional contact information: Dr. Gregory B. Newby Chief Executive and Director [email protected] Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide spread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. 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Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our Web site which has the main PG search facility: http://www.gutenberg.org This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.