Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 09

By Alexandre Herculano

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Alexandre Herculano

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Title: Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo IX

Author: Alexandre Herculano

Release Date: May 6, 2006 [EBook #18330]

Language: Portuguese


*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OPÚSCULOS POR ALEXANDRE ***




Produced by Biblioteca Nacional Digital (http://bnd.bn.pt),
Nuno Lopes (Projecto Enclave) and edited by Rita Farinha






OPUSCULOS

TOMO IX


Proprietários e editores: José hastes & C.^a--Typographia da Antiga Casa
Bertrand, Rua du Alegria, 100--Lisboa, 1909.





Opusculos

POR

A. HERCULANO


TOMO IX


LITTERATURA

TOMO I


*Antiga Casa Berfrand--JOSÉ BASTOS & C.^a--Livraria Editora*

73, Rua Garrett, 75--LISBOA




Reservados todos os direitos de propriedade. Para o Brazil, nos termos
do ajuste feito entre Portugal e aquelle paiz em 9 de Setembro de 1889,
mandado cumprir pelo decreto do Governo Imperial de 14 de Setembro do
mesmo anno.




ADVERTENCIA


Na collecção dos tomos de opusculos de A. Herculano ainda até hoje não
estava representado um dos grupos em que elle a dividiu--o de
litteratura. O presente tomo vem remediar esta falta embora com a
probabilidade de ficar isolado na divisão a que pertence. Os avulsos
litterarios do nosso escriptor não são todos da mesma índole. Com alguns
d'elles, os de caracter poetico, resolvemos coordenar um volume appenso
ao grupo dos romances e lendas e que está prompto a entrar no prélo. Foi
depois d'esta selecção que passámos a apurar entre os demais os
adoptaveis para tomos de opusculos. Taes nos pareceu deverem ser os que
constassem de historia, theses, controversias e juizos litterarios.
Nestas condições a obra do escriptor era bastante para que elle tivesse
calculado formar com ella dois tomos pelo menos e por certo mais, se
aproveitasse interessantes cartas que no genero escrevera. Accresce que
sendo a maioria d'estes artigos dos primeiros tempos da vida litteraria
do auctor, elle proprio dizia tencionar acompanhá-los de um exame
retrospectivo e ampliar alguns como em parte nelles indicara. É também o
que se deduz do plano geral da publicação exposto na advertencia do tomo
I. Mas dos trabalhos complementares conducentes a esse fim, e que o
auctor de dia para dia adiava para horas de aprazivel remanso de
espirito, não achámos vestigios nos papeis d'elle. Apenas nalguns dos
artigos recolhidos neste tomo estavam indicadas breves correcções de
linguagem, das quaes introduzimos nas cópias enviadas para o prélo as de
immediata intelligencia. E ainda essas correcções, tão leves que hão-de
passar despercebidas, seriam apenas preparativos de revisão, segundo o
methodo adoptado pelo auctor,--meros signaes para marcar os logares e
lembrar o sentido em que teriam de ser feitas as definitivas. Estes os
motivos pelos quaes é provavel que tenhamos de limitar-nos ao presente
tomo em materia de litteratura, sem todavia podermos assegurar que aos
elementos que ficam de reserva, não venham de futuro junctar-se outros
que por novas pesquisas possam apurar-se, e tornem possivel o seguimento
do grupo.

Dada, porém, a abundancia de original de que dispunhamos para este tomo,
conseguimos organiza-lo de modo que os elementos que encerra quasi
constituem um todo homogeneo de doutrina, representando em globo, sem
embargo da falta de ampliações que haviam de enriquecê-lo; como que as
generalidades de um curso de litteratura moderna, prevalecendo a lição
sobre litteratura patria. E não admira que assim succeda attendendo á
relação íntima dos artigos escolhidos com o ideal da epocha em que foram
escriptos, e que dominava o espirito do auctor. Aspirava A. Herculano a
encaminhar por meio d'elles a revolução litteraria que nascera para nós
com a recente mudança de instituições politicas e que, sob o ponto de
vista poetico com intenso brilho fôra iniciada por Almeida Garrett, com
os dois poemas _D. Branca_ e _Camões_. D'ahi a feição doutrinal e
harmonica que o tomo apresenta. Sabem os leitores com que riqueza e
variedade de monumentos concorreu A. Herculano ao lado de tantos outros
privilegiados escriptores para engrandecer a imponente phase das nossas
letras que desde então se foi desenvolvendo. Juncto a esses monumentos
vem, pois, occupar agora o logar que lhe compete, a propaganda com que
elle os precedeu e os acompanhou, naquella esperançosa epocha de
revivencia nacional.

Nas paginas que precedem os artigos vão indicadas as datas em que estes
vieram a publico e as folhas de onde foram trasladados. Mas desde já
convém advertir que trouxemos os dois primeiros da folha quinzenal _O
Repositorio Litterario_, publicada durante alguns meses de 1834 a 1835
na cidade do Porto, contando o auctor vinte e quatro annos de edade. Nos
dois annos anteriores havia elle arriscado a vida em mais de vinte
combates do cêrco da cidade, em todos em que interviera o glorioso
batalhão a que pertencia de _Voluntarios da Rainha_. Segundo resam
formais attestados, e era proprio do altivo caracter que elle nunca
desmentiu, em todos esses combates dera aos companheiros de armas
exemplos de inexcedivel destemor, de arrojada bravura. Levantado o cêrco
despia os trajos de soldado e quando se lhe afigurou terminada a lucta
pelas armas, surgiu cheio de enthusiasmo, revelando inesperados
conhecimentos e como vulto dominante do Repositorio, a pelejar no campo
das idéas. Pela leitura dos dois artigos transcriptos d'essa folha, se
ajuizará da originalidade e vigor com que deu começo á propaganda
exposta no discorrer do tomo. O primeiro descreve o estado geral da
nossa litteratura naquelle periodo de transição, visando norteá-la á luz
das novas aspirações e exigencias sociaes, e nas varias fórmas em que
ella tinha de manifestar-se. O segundo trata da poesia em especial, e
como se o auctor já então quisesse dar medida do poderoso engenho
analytico de que era dotado, ao passo que vai explanando com
extraordinaria erudição e lucidez a famosa questão dos classicos e
romanticos, vai tambem deduzindo e conglobando as bases de uma alta
poetica de concepção propria, com o pensamento de afastar o genio
nascente das aberrações de uma e outra d'aquellas seitas, e de o guiar
para a fecunda desenvolução litteraria em que meditava.

A par d'estes artigos abria o novel escriptor nas columnas do
Repositorio, com a descripção das escholas de ensino elementar da
Prussia, a campanha em parte descripta no tomo VIII de opusculos, e que
não mais abandonou, em prol da instrucção popular. Provocando o
confronto da excellencia d'aquellas escholas com a obscuridade das
nossas, frisava por esse meio o alcance do grave assumpto, pondo em
relevo perante os homens cultos e aquelles a quem competisse dirigir os
destinos da nação, o maior dos obstaculos que tinham a vencer para
assegurar o bom exito das instituições liberaes. O absolutismo politico
fôra derrubado pelas armas e pelas geniaes concepções legislativas,
arremessadas contra elle em som de guerra. Chegava o momento de lançar
novas e grandes idéas, de suggestionar os espiritos para que sobre os
escombros do derrocado edificio se erguesse gradualmente o da liberdade
e da civilização. Era com o profundo sentimento, a nitida visão d'esta
imperiosa necessidade social, que A. Herculano se estreava como
propagandista no memoravel periodico portuense.

_Maio de 1907_.

O coordenador.




Qual é o estado da nossa litteratura?

Qual é o trilho que ella hoje tem a seguir?

*REPOSITORIO LITTERARIO*

1834




Qual e o estado da nossa litteratura?

Qual é o trilho que ella hoje tem a seguir?


Estas duas perguntas pedem nada menos do que a dolorosa confissão da
decadencia em que se acha em Portugal a poesia e a eloquencia, e o
encargo difficultoso de indicar os meios de melhoramento no ensino e no
estudo d'ellas. Sem pretender que sejam as unicas, nem as melhores,
exporemos a serie das nossas idéas sobre este duplicado objecto.

A convicção de uma verdade litteraria produziu nos seculos XVI e XVII um
erro na Italia, que, extendendo-se á Hespanha e a Portugal, transviou da
legitima direcção todos, ou quasi todos os escriptores da epocha chamada
do seiscentismo. Sentiu-se que a metaphora, a mais bella de todas as
figuras poeticas e oratorias, a mais repetida, a mais necessaria mesmo
nos discursos communs da vida, abundava por isso nos bons escriptores
classicos e modernos, que já nesse tempo illustravam a Europa: viu-se
que as passagens bellas ou sublimes de Horacio, Pindaro e Virgilio, de
Dante e Ariosto, deviam-lhe em grande parte a sua belleza e sublimidade,
e isto era certo; inferiu-se d'ahi que a metaphora era o principal e
talvez o unico meio da poesia e eloquencia, e que ella devia revestir
todas as imagens e sujeitar ao seu imperio todos os generos, todos os
estylos, e isto foi um erro: a vertigem metaphorica se apossou dos
poetas e oradores, e, por uma consequencia natural, o fundo das idéas
esqueceu e só se olhou para as fórmas: á sombra d'esta mania prosperavam
os conceitos e as agudezas, chegando as letras a caír numa barbarie, que
tanto mais irremediavel parecia por ser filha da civilização litteraria
já exaggerada. _O Zodiaco soberano_, _Os crystaes d'alma_, _A Fenix
renascida_ e outros muitos escriptos d'esse tempo, são lamentaveis
monumentos da corrupção de gosto a que chegou Portugal no principio do
decimo oitavo seculo.

Porém o mal não foi sem remedio, e os membros da Arcadia fizeram volver
as letras á severa singeleza das puras fórmas da Grecia. Muito ae deve a
Garção, Gomes e Quita; mas ninguem tanto como Dinis mostrou a
superioridade do genio e do gosto que caracterizaram a segunda metade do
seculo XVIII. Dando os seus principaes cuidados á poesia chamada
pindarica, genero difficil pelo audaz das figuras, pelo gigantesco das
imagens, elle soube escapar aos defeitos e frioleiras do seiscentissimo
que bebera na eschola, em composições nas quaes era mui facil
introduzir-se o mau gosto; e ainda que Quita e Garção tentaram o mesmo
genero, em nosso intender, Dinis não foi emulado. Capaz de todos os
tons, no burlesco, no pastoril, no dithyrambico, nos deixou apreciaveis
exemplos, e as suas dissertações sobre a poesia campestre são dictadas
por um grande conhecimento da arte, ainda que não excedam em merecimento
theorico as annotações de Gomes ás proprias poesias, nem os trabalhos de
Freire e posteriormente de Barbosa e Fonseca sobre as poeticas de
Aristoteles e Horacio.

Entretanto nenhum dos poetas e litteratos do seculo de José I olhou as
letras de um ponto de vista eminente. Similhantes aos escriptores do
seculo de Luiz XIV, foram muito eruditos, mas pouco philosophos, e assim
o caracter das duas litteraturas é a confusão dos principios absolutos
com os de convenção. Cingindo-se quasi cégamente á auctoridade dos
antigos, miudeada e explanada pelos commentadores, a sua obediencia
illimitada a alheias opiniões contribuiu muito para a posterior
decadencia. A impertinente questão dos archaismos e neologismos veiu
tomar o logar das discussões da Arcadia e essa occupação dos meios
talentos e da meia instrucção, influindo sobre objectos mais
importantes, viciou e acanhou toda a litteratura. Se as notas, que sobre
palavras e phrases Francisco Manuel ajunctou ás suas poesias, fossem
dedicadas a _coisas_, quão ricas messes nós colheriamos do saber d'este
homem! Mas infelizmente não foi assim, e a polemica suscitada sobre o
merito do immortal cantor dos Lusiadas, pelos insultos que contra elle
vomitou o orgulhoso auctor do gelado _Oriente_, mostraram a que
mesquinho estado tinha a critica chegado em Portugal. Parte dos reparos
que Macedo copiou dos criticos franceses ficaram sem cabal resposta,
porque os systemas estheticos mais liberaes e philosophicos que o dos
antigos, e o da eschola de Boileau, eram em geral desconhecidos entre
nós, e estamos persuadidos de que o juizo a respeito do tão grande
quanto infeliz Camões ainda resta a fazer, apesar da abundancia de
escriptos que sobre este objecto se publicaram.

Emquanto assim entre nós a critica se apoucava, um sentimento vago de
desgosto pelas antigas fórmas poeticas, a influencia da philosophia na
litteratura, a necessidade que sentia o genio de beber as suas
inspirações num mundo de idéas mais analogas ás dos nossos tempos, e
emfim, varias outras causas difficeis de enumerar, começaram a crear na
Europa uma poetica nova, ou, digamos antes, a fazer abandonar os canones
classicos. A Alemanha foi o foco da fermentação, e foi lá que os
principios revolucionarios em litteratura começaram a tomar desde a sua
origem uma consistencia, e a alcançar uma totalidade de doutrinas
methodicas e consequentes, não dada, ainda hoje, ao resto das nações. Lá
não havia a luctar com a gloria nacional para a introducção de novas
idéas, porque os monumentos da eschola afrancesada de Opitz não honravam
demasiadamente o dogmatismo intolerante do seculo de Luis XIV,
impropriamente chamado classico, e Bodmer e Breitinger deram começo á
revolução ousando preferir a poetica de Shakspeare e de Milton á de
Racine e de Boileau; comtudo as opiniões na Alemanha teem-se desviado,
em parte, d'esta direcção e as idéas de Schlegel já teem reagido na sua
tendencia um tanto nova, sobre a litteratura inglesa donde tiveram
origem. Na França o antigo systema, amparado pelo renome de muitas
producções immortaes, disputa ainda a campanha ás innovações que entre
esse povo, extremo em tudo, teem chegado a um deseafreamento barbaro e
monstruoso.

Mas a Portugal não coube o figurar nesta lide. A parte theorica da
litteratura ha vinte annos que é entre nós quasi nulla: o movimento
intellectual da Europa não passou a raia de um país onde todas as
attenções, todos os cuidados estavam applicados ás miserias publicas e
aos meios de as remover. Os poemas _D. Branca_ e _Camões_ appareceram um
dia nas paginas da nossa historia litteraria sem precedentes que os
annunciassem, um representando a poesia nacional, o _romantico_; outro a
moderna poesia sentimental do Norte, ainda que descobrindo ás vezes o
caracter meridional de seu auctor. Não é para este logar o exame dos
meritos e demeritos destes dois poemas; mas o que devemos lembrar é que
elles são para nós os primeiros e até agora os unicos monumentos de uma
poesia mais liberal do que a de nossos maiores.

Comtudo, não existindo ainda um só livro sobre as letras consideradas de
um modo mais geral e mais philosophico do que os que possuimos; sem uma
só voz se-ter levantado contra a auctoridade de Aristoleles e de seus
infieis commentadores, será impossivel emittir um juizo imparcial sobre
escriptos de similhante natureza. Julgá-los por fórmas que o poeta não
admittiu, será um absurdo, emquanto se não provar a necessidade d'essas
fórmas; e isto, mesmo que ellas sejam legitimas, só pode ser resultado
de um maduro exame ou de uma polemica sincera. Antes d'isso os velhos
eruditos, vendo offendida a _inviolabilidade_ de um tropel de preceitos
que julgavam imprescriptiveis, só darão ao genio nascente o sorriso do
desprezo; e os mancebos poetas, a quem o sentimento incerto das opiniões
contemporaneas dirige por estradas que muitas vezes não conhecem, farão
que as suas poesias corram brevemente parelhas com os desvarios que tem
ultimamente manchado a mais bella das artes na França e na Inglaterra.

Um curso de litteratura remediaria os clamnos que devemos temer, e
serviria ao mesmo tempo de dar impulso ás letras. Em Portugal ainda ha
homens cheios de vasta erudição, de philosophia e de genio. Tyrannias
mais ou menos longas, mais ou menos crueis, os teem conservado na
obscuridade de que devem saír, agora que se não receia a instrucção,
agora que os resguarda a egide da lei. Nós não desejariamos, porém, que
uma tal obra fosse puramente orgão d'esta ou d'aquella eschola; d'este
ou d'aquelle partido. Convem que os principios oppostos sejam examinados
de boa fé e sem acrimonia: a intolerancia em idéas politicas ou
religiosas é odiosa; em materias scientificas é ridicula. Se coubesse
nas nossas diminutas forças um trabalho de tanta magnitude, nós
começariamos por discutir qual é o objecto da poesia, e d'esta questão
nos parece que já se tirariam importantes resultados, e que as duas
caracteristicas--o _icastico_ e o _ideal_--que distinguem as tendencias
do antigo e do novo systema, surgiriam d'ella para nos servirem depois
na resolução de varios problemas que se nos apresentariam na serie das
nossas indagações. O exame das differentes theorias sobre o bello e o
sublime, e as consequencias, objecto immediato a que nos conduziriam os
primeiros raciocinios, dariam em resultado os principios necessarios e
universaes de todas as poeticas, e consequentemente aquelles sobre que
deveriamos emittir uma opinião absoluta e exclusiva: no resto
respeitariamos as opiniões de cada povo, de cada epocha, em tudo aquillo
em que ellas se não oppusessem aos principios geraes. Indagando a
historia da poesia nos diversos tempos e nações, vê-la-íamos depois da
queda da bella litteratura greco-latina, surgindo do norte com um
sublime de melancholia e mesmo de ferocidade, proprio dos povos que a
inventaram: veriamos esta poesia fundida com os restos da romana, e
posteriormente com a arabe, produzir as diversas especies do romantico,
d'essa poesia variada e verdadeiramente nacional, na França e nas duas
peninsulas, e termo medio entre a bella symetria classica e o sublime
gigantesco do septentrião: achariamos essa originalidade nascente da
litteratura da meia-edade destruida quasi no resurgimento das letras, e
substituida por theorias antigas, que, conservando sempre o mesmo nome,
foram sendo enxertadas em idéas, em preceitos modernos: encontrariamos,
finalmente, o espirito de liberdade e de nacionalidade da actual
litteratura. O quadro das novas opiniões nas suas variedades todas, as
vantagens ou damnos resultantes de cada uma comparada com os elementos
universaes da arte, nos poria em estado de formar um corpo de doutrina
que determinasse as proporções essenciaes da futura poesia portuguesa,
completando ao mesmo tempo uma serie de juizos imparciaes sobre as
producções das differentes eras e das differentes escholas, em relação
ao seu genio particular, e á philosophia geral das letras.

Todos sabem que os antigos dividiam a eloquencia em tres generos, que
muitas vezes se confundem: um destinado ao elogio ou á invectiva; outro
a fazer condemnar ou a absolver, a invocar a lei a favor do innocente, a
invocá-la contra o criminoso; outro, emfim, destinado a ventilar os
grandes interesses das nações nos congressos ou na tribuna popular. Foi
a estas três classes que elles reduziram a oratoria, divisão que ainda
hoje se conserva e que, apesar da sua arbitrariedade, nós respeitaremos
em nossas reflexões. Em Portugal, onde a representação nacional não
existia, onde os tribunaes eram fechados ás defesas oraes e aos juizos
publicos, e a arte de defender e accusar consistia geralmente em
conhecer os meios de oppor entre si a nossa ora mesquinha, ora
contradictoria, ora obscura legislação, e numa dialectica as mais das
vezes pueril, tanto o genero deliberativo como o judiciario não tinham
quasi applicação: ficava sómente a eloquencia dos panegyricos para o
orador profano, e uma mistura de todos os tres generos para o orador
sagrado; mas em nenhuma das duas classes temos de que nos gloriar neste
seculo. Por uma parte elogios de encommenda ou feitos com miras de
interesse pessoal não podiam sair da bocca do orador acompanhados das
inspirações do enthusiasmo; e sem convicção e persuasão propria não se
póde convencer nem persuadir os outros: por outro lado a eloquencia
sagrada nunca pôde preencher inteiramente o fim da arte, uma vez que não
divague do seu objecto--a moral religiosa. O fim da eloquencia é
persuadir; para isto não só é necessario mover os affectos, mas tambem
obrigar a razão. O usar d'este meio, nervo principal da oratoria entre
as nações civilizadas, seria ridiculo perante um auditorio christão. O
incrédulo não vai ouvir sermões, e o orador que empregasse uma logica
severa para provar a conveniencia da moral do christianismo, a quem
d'isso está de antemão convencido, obraria com tanta impropriedade, como
se o missionario diante de homens de diversa crença buscasse tão sómente
mover os affectos sem falar á razão.

O exemplo de dois grandes homens parece oppor-se ao que temos acabado de
dizer. São elles Bourdalone e Bossuet: o primeiro empregando a
severidade do raciocinio, o segundo tacteando todas as cordas do
sentimento, excitando todos os terrores, todas as esperanças da
imaginação, e ambos considerados como grandes modelos. Mas de que são
elles modelos? É, justamente, d'essa eloquencia imperfeita, cujo vicio
se contém na sua propria natureza. Com effeito, Bourdalone não
preencheu, nos discursos em que se lançou no abysmo dos mysterios, o
objecto da arte: esta dirige-se á vontade, pela acção; e a defesa
metaphysica bem que eloquente dos dogmas christãos não requer acção
alguma. Bossuet está no caso contrario: para que as suas orações tenham
effeito é necessaria a fé. O homem indifferente em materias de religião,
e que não possuir gosto bastante para avaliar seu merecimento, dormirá
tranquillamente á leitura de qualquer d'ellas, em quanto uma philippica
ou olynthia de Demosthenes fará sempre impressão em todo o homem que
tiver uma patria, uma fortuna a perder. Sabemos quanto nos pódem oppor
sobre estes dois oradores, e sobre a oratoria sagrada em geral; mas, não
sendo possivel o entrar aqui numa questão bastante vasta que estas
reflexões não comportam, lembraremos só aos leitores que nós
consideramos os panegyricos e os sermões de controversia como alheios do
pulpito; que Bourdalone, de todos os oradores sacros o que mais sentiu a
necessidade dos raciocinios como meio da eloquencia, nos seus
panegyricos fugia constantemente para a moral, o que nos faz crer que
elle a considerava o objecto da sua arte como acima dissemos. Em ultimo
logar transcreveremos uma cita da tentativa sobre a eloquencia do
pulpito pelo abbade Maury, obra a mais acreditada entre as d'esta
natureza: _J'avoue_, diz elle, _qu'il est très-rare de pouvoir suivre
cette marche didactique dans nos chaires, où les discussions morales ne
sont jamais problématiques, et où la conscience, qui ne ment jamais, ne
saurait contester la vérité à ses remords_. O que entra justamente na
ordem de nossas idéas, tanto sobre o objecto como sobre o defeito
constitutivo da eloquencia sagrada.

Voltando ao nosso país, na mesma eloquencia do pulpito, a unica em
Portugal cultivada, só um orador deixou pela estampa monumentos dignos
de exame, se attendermos á fama popular que para seu auctor grangearam:
já se vê que falamos do P. Macedo. Como orador sagrado, Macedo deveu a
popularidade de que gozou a um falso brilho no fundo das idéas, e sobre
tudo a essa instrucção perfunctoria que começa a invadir a capital e que
é mais damnosa ás letras do que a ignorancia. Sem vislumbres da
sublimidade de Bossuet, sem a uncção de Fenelon, sem a profundeza de
Bourdalone, sem a nobre e evangelica simplicidade de Paiva d'Andrade,
ganhou seu renome com os ouropeis de Seneca; mas tal renome, se ainda
soar na posteridade, não será para as suas cinzas um bafejo consolador
de gloria.

Porém não é a eloquencia sagrada que deve hoje chamar a nossa attenção:
ella tem sido o luxo da religião, e nós desejamos vê-la substituida por
meios mais conducentes a fazer prosperar esta. A bella e sublime moral
do evangelho não precisa dos soccorros da arte de Demosthenes e Cicero;
e a religião practica d'um clero virtuoso, seria a homilia mais
eloquente para insinuar a moral do Crucificado.

Antes de passar avante occorreremos a um reparo que farão os leitores: o
de não falarmos sobre a eloquéncia desenvolvida nas côrtes da nossa
primeira epocha de liberdade, que fórma uma excepção de quanto dissemos
sobre a eloquencia portuguesa do XIX.^o seculo. Tivemos para isso
razões, e talvez a principal seja o quão longe nos levaria o exame de
alguns discursos alli pronunciados; entretanto diremos por honra da
nossa patria que então appareceram mui grandes homens, e que
desejariamos ver publicar uma escolha das opiniões e relatorios então
ventilados, á maneira do que se fez em França das orações dos
representantes nacionaes desde o principio da revolução.

É, portanto, a educar homens que ventilem dignamente as questoes de
interesse publico nas camaras legislativas, ou que defendam a innocencia
e persigam o crime nos tribunaes já publicos, que o estudo e ensino
d'esta parte da litteratura se deve dedicar: é assim que nós fariamos da
essencia d'estes dois generos de oratoria o objecto da segunda parte de
um curso litterario, tocando apenas de leve quanto é formal na arte e
que sapientissimos rhetoricoes, copiando-se uns aos outros, de sobejo
explicaram; mas tractando com profundeza os principios applicaveis
principalmente aos generos judiciario e deliberativo em relação á nossa
situação politica. Para isto seria do exame da eloquencia nos
differentes tempos e logares, que nós partiriamos em nossas indagações:
veriamos Demosthenes, trovejando na tribuna, armado da razão e da
indignação, admiravelmente conciso e misturando com esta concisão os
sublimes movimentos do patriotismo, arrastar após si a opinião das
multidões; veriamos Cicero defender os seus clientes, tractar os mais
importantes negocios da republica quasi sempre com uma gravidade e
eloquencia estudadas: na historia da oratoria moderna achariamos a
vigorosa razão de Mirabeau acompanhada de um estylo raras vezes
rasteiro; achariamos nos discursos de Maury os mais bellos monumentos de
uma eloquencia mascula mas tranquilla; e, finalmente, o frenesi
inspirado pelo amor ás velhas fórmas do absolutismo nas orações de
Montlosier: passando á da Inglaterra exporiamos o genero de Pitt, genero
severo, renovado hoje por Makintosh e Burdett, a que succedeu o
igualmente nervoso, porém mais cheio de artificio, de Burke, Sheridan e
Caning, e o genero medio de Fox, terminando assim o exame das fontes
verdadeiras da eloquencia.

Seria a d'esta ultima nação que nós proporiamos como principal modelo
sem exceptuar comtudo as outras. Entre os gregos, romanos, e franceses
ha muito que aproveitar; mas, se é verdade que a litteratura em parte
depende de certa harmonia com as circunstancias de cada povo, nenhuma
eloquencia é mais digna para nós d'estudo do que a inglesa. Nem entre os
antigos, nem na republica francesa, ella estava na mesma relação com as
instituições sociaes que vai a estar na nossa patria. O orador, na
discussão de uma lei perante a plebe, que deve votar sobre ella ou
influir na votação, como acontece no calor das revoluções, tem de usar
de meios differentes dos que hade empregar para a impugnar ou defender
em uma camara, cujos membros são, ou devem ser, os mais conspicuos da
nação por suas luzes e virtudes. No primeiro caso os raciocinios convem
sejam acompanhados dos meios formais da arte para dirigir as paixões
populares; no segundo, expostos a homens que conhecem a arte tão bem
como o orador, sem alcançarem o seu effeito, os artificios só
attrahiriam sobre elle a suspeita de má fé: isto sem pretendemos dizer
que elle discuta com a secura de um geometra as questões do publico
interesse; porém os seus movimentos devem surgir sinceros de um coração
intimamente commovido e de nenhum modo dar a conhecer que foram
tranquillamente calculados pelos preceitos de Quintiliano.

Entre os romanos, a pequena porção de leis que havia ainda nos ultimos
tempos da republica e o espirito de generalidade a que se limitavam,
dava motivo a que nas causas particulares o advogado ou accusador de
qualquer réo buscasse despertar a compaixão ou a sanha dos juizes, de
quem muitas vezes era guia unica o senso commum e a moralidade, na falta
de disposições preceptivas, e apesar da similhança dos tribunaes civis e
criminaes de Roma com os nossos modernos jurados, existe entre nós e
elles uma differença enorme por causa das circunstancias legaes. Hoje,
entre os povos livres, ha, ou deve haver, um codigo que previne todos os
casos com clareza e exacção, e o mister do orador reduz-se a provar se o
seu cliente está ou não no caso da lei: então todo o pleito deverá ser
uma questão de factos provados ou provaveis, e vice-versa.

D'aqui se colhe quão sobrio elle deve ser empregando os meios que lhe
ministra a arte. Clareza, ordem de idéas, logica severa, eis os meios
principaes da eloquencia do fôro e das camaras legislativas.

Tal é o rápido quadro do nosso modo de pensar sobre a actual litteratura
portuguesa, e sobre os meios de a dirigir. As curtas reflexões que temos
feito sobre a poesia e a eloquencia são as bases em que julgamos
dever-se fundar um curso de litteratura, que serviria como de
introducção aos estudos mais profundos do poeta e do orador. Oxalá que
d'entre os nossos litteratos algum se encarregue d'esta util e
importante tarefa.




POESIA

Imitação--Bello--Unidade

*REPOSITORIO LITTERARIO*

1835




POESIA

Imitação--Bello--Unidade


     Je donne mon avis non comme bon, mais comme mien.

     Montaigne.


Na torrente de opiniões contrarias sobre a critica litteraria, que na
presente epocha combatem, morrem, ou nascem, tambem nós temos a nossa: e
vem a ser parecer-nos que da falta de exame dos principios em que se
fundam os differentes systemas, procedem essas questões que se teem
tornado interminaveis talvez por esse unico motivo. O genio, impellido a
produzir no meio de idéas vagas e controvertidas sobre as fórmas, as
condições da poesia, julga que todas ellas são indifferentes e
desvairado se despenha; o engenho, dominado pelos preceitos que muitos
seculos por assim dizer, sanctificaram, contrafaz e apouca as suas
producções temendo cair naquillo que julga monstruoso e absurdo. Tal é,
geralmente, o estado da litteratura: e emquanto se não estabelecer um
corpo de doutrina que, afiançando a liberdade do poeta, o circumscreva
aos limites da razão, a republica das letras similhará as associações
politicas no meio de uma revolução espontanea onde o despotismo extremo
e a extrema licença, os terrores e as esperanças, a felicidade e a
desventura, se cruzam, se arruinam e se anniquilam no meio de uma
confusão espantosa.

Os que conhecem o estado actual das letras fóra de Portugal, na França,
na Inglaterra, e ainda na Italia, sabem ao que alludimos. Trememos ao
pronunciar as denominações de _classicos_ e _romanticos_, palavras
indefinidas ou definidas erradamente, que sómente teem gerado sarcasmos,
insultos, miserias, e nenhuma instrucção verdadeira; e que tambem teriam
produzido estragos e mortes como as dos _nominaes_ e _reaes_, se
estivessemos no XVI seculo. Infelizmente em nossa patria a litteratura
ha já annos que adormeceu ao som dos gemidos da desgraça publica: mas
agora ella deve despertar, e despertar no meio de uma transição de
idéas. Esta situação é violenta, e muito mais para nós, que temos de
passar de salto sobre um longo prazo de progressão intellectual para
emparelharmos o nosso andamento com o do seculo. Se as opiniões
estivessem determinadas, o mal ainda não seria tão grande; mas é num
cháos que nos vamos mergulhar e do qual nos tiraremos talvez muito
depois de outras nações. A influencia da litteratura estrangeira torna
necessario este acontecimento, se aquelles a quem está encarregada esta
porção do ensino publico não tractarem de estabelecer uma theoria segura
que previna tanto o delirio d'uma licença absurda como a submissão
abjecta que exige certo bando litterario. Sabemos as difficuldades que
tal trabalho encerra; porém o amor da lilteratura vencerá todas quando
ajudado do estudo e do genio.

As reflexões que ora apresentamos são fructo de uma parte de nossas
meditações sobre tal objecto. Desejariamos tê-las podido coordenar todas
e estabelecer melhor algumas; mas trabalhos, posto que litterarios, de
differente especie, impostos por um dever, nos distrahiram do nosso
desenho. Offerecemo-las aos eruditos para que tendo alguma utilidade a
aproveitem e sendo damnosas acautelem d'ellas aquelles a quem podem ser
nocivas. Nós nos envergonhariamos mais de ter acertado com leveza do que
de ter errado pensando.

Talvez alguem as julgue em demasia abstrusas; mas, ou o bello, objecto
da poesia, seja inteiramente resultado das relações das nossas
faculdades intellectuaes entre si, ou das d'estas faculdades com o mundo
objectivo, ou, finalmente, resida neste, é sempre a alma do homem quem o
sente e goza. Para nós a sua existencia depende da nossa; e a
metaphysica influirá sempre em qualquer systema que sobre tal objecto
venhamos a adoptar. Tem-se dito, e mil vezes repetido, que é preciso
para que a litteratura floresça afastá-la d'esta sciencia: isto equivale
a dizer-se que para os ramos de uma arvore se conservarem virentes é
mister decepar-lhe o tronco principal. Na poesia ha essencia e fórmas:
estas devem convir áquella, ou, diremos melhor, d'ella devem partir. Sem
levar o facho da philosophia ao seio das artes, sem examinar a essencia
d'estas, as theorias formaes ficam sem fundamento; e é justamente o que
tem acontecido. Seguiu-se quanto a nós, methodo inverso ao que devera
seguir-se, e um grande mal d'ahi resultou: a fluctuação dos principios,
e consequentemente dos juizos criticos. Todos sabem das controversias de
Boileau e seus sectarios com Perrault, Lamotte, e ainda Fontenelle e
Huet; mas o que nem todos sabem é que muitas vezes os ultimos tinham
razão. E se é possivel entender uns e outros, veremos que o arruido
nascia da incerteza ou da contradicção dos preceitos, o que nunca
succederia se a poetica estivesse fundada em principios metaphysicos em
que ambos os bandos conviessem. Mas qual era a consequencia da
versatilidade das regras e das suas contradicções? O fazerem homens,
aliás engenhosos, os juizos mais contradictorios sobre a mesma coisa, e
haver uma falta de consciencia em todos esses juizos que salta aos
olhos. A critica tomou naquella epocha um caracter mesquinho e pedante.
Nem acreditemos que esse mesmo Boileau, tão gabado pelos seus franceses
como homem de summo gosto e fino tacto, sobrelevasse muito outros seus
contemporaneos. A falta d'esse gosto e d'esse tacto achamos nós numa
carta a Brossette acêrca do Telemacho. Esta grande creação de um dos
maiores genios do seculo (perdoem-nos os admiradores do inquisitorial e
raivoso Bossuet) foi comparada pelo autocrata litterario da França com o
romance de _Theagenes_ e _Chariclea_ de Heliodoro bispo de Tydea,
romance obscuro escripto na decadencia do imperio romano e da antiga
litteratura: bastava esta carta para sabermos o peso que deviamos dar ás
decisões de Despreaux, quando nas suas poesias não encontrassemos já
para isso erradas opiniões acêrca do Quinault e do Tasso.

A historia da critica em França no reinado de Luís XIV e de Luís XV, e
que tambem o é com pouca differença da que vogava em Inglaterra durante
o governo de Anna, se reduz a que, se um poeta ousava apartar-se das
fórmas imaginadas nos antigos monumentos, e se este poeta merecia a
estimação publica, os criticos se viam na necessidade ou de confessar,
se não a inutilidade, ao menos a instifficiencia de seus preceitos, ou a
votar ao desprezo as producções do genero moderno. A opção não era
duvidosa; as regras sempre tinham razão; mas como ante o tribunal da
opinião era preciso que ellas apresentassem algum titulo, ahi se corria
a pedir soccorro ao homem e ao mundo, e sempre lá se achava com que
contentar o povo litterario. Aquelles preceitos que factos oppostos não
controvertiam ficavam amparados por grandes nomes e pelo respeito dos
seculos sem dar razão da sua existencia, bem como em nossas cathedraes
os conegos á sombra do culto religioso.

A justiça pede que digamos que uma grande parte dos preceitos dos
antigos foram deduzidos do principio da unidade, d'esse principio que
reside em nossa alma e que, emquanto existirmos sobre a terra,
representa para nós o absoluto, ao qual nos faz constantemente tender a
consciencia da immortalidade; mas a applicação d'este principio foi em
nosso entender muitas vezes errada ou exaggerada. Metastasio refutou
excellentemente a regra da restricta unidade de logar e de tempo nos
poemas dramaticos, e nós veremos brevemente que nem só essa unidade
carecia de fundamento: porém, a fóra das regras nascidas d'este
principio, outras ha de tal maneira futeis que para as destruir basta
negar-lhes a validade. Que razão daria Horacio, tirada da essencia do
tirania, para uma tragedia ou comedia não ter nem mais nem menos de
cinco actos? Julgamos não teria outra melhor do que uma dada
engraçadamente pelo auctor do _Anno de 2440_ em nota a um dos seus
dramas.[1]

Nós devemos em grande parte aos antigos o que sabemos: seria uma
ingratidão negá-lo. Elles crearam as letras e as levaram a um ponto de
esplendor admiravel; mas por as crear e aperfeiçoar não se deve concluir
que acertaram em tudo ou tudo sabiam. Nós não dizemos com Mr. de
Chateaubriarid que em litteratura só devemos estudar os antigos: Camões,
Tasso, Klopstok não nasceram na Grecia ou em Roma, e entretanto achamos
tanto que estudar nos escriptos d'elles como nos de Homero e Virgilio. O
mesmo Mr. de Chateaubriand é uma prova de que o genio não é partilha
exclusiva de nenhuma epocha, de nenhum povo. No renascimento das letras
a admiração pelos auctores classicos não deixou ver seus defeitos e
erros, e julgou-se inviolavel a antiguidade. Venia mereciam os
descobridores dos preciosos manuscriptos que continham o thesouro de
idéas que nos herdaram os gregos e os romanos: laboriosas indagações,
largos annos de applicação davam jus aos Vallas e aos Philelfos, aos
Aldos e aos Stephanos, a não verem uma só macula nos objectos caros que
elles revelavam á Europa: mas que, passados dois seculos, ainda a
republica litteraria se conservasse deslumbrada pelo fulgor tios tempos
remotos, emquanto as sciencias começavam a fazer justiça e a dar o seu a
seu dono, é o que nos parece inexplicavel ou, para melhor dizer, o que
com repugnancia explicariamos.

Embora se apresentassem difficuldades insuperaveis, embora fosse preciso
recorrer ás razões mais frageis, aos argumentos mais illusorios, uma vez
que as regras fossem ou se cressem originaes, ou derivadas dos escriptos
de Aristoteles ou de Horacio, de Cicero, de Quintiliano ou de Longino,
era obrigatorio defendê-las sob pena de ser havido por ignorante ou por
homem de minguado criterio. Boileau disse em uma das suas satiras que só
a verdade era bella: o padre Castel profundo litterato que escreveu
sobre o bello e sublime e que jurava ante os numes defender esta
proposição (porque em fim era de Despreaux), sem mesmo se aproveitar da
vaga distincção do verdadeiro e verosimil, que tem salvado muita coisa e
muita gente, começou a applicá-la por esse mundo poetico; mas embicou
logo com Virgilio. O verso _Provehimur portu terraeque urbesque
recedunt_ recalcitrava, além de outros, contra a sentença do mestre. Que
fez o bom rio padre?--Zás--Uma razão digna de Fr. Gerundio: «O verso de
Virgilio exprime uma idéa verdadeira, porque ha ahi uns annos
descobriu-se a theoria do movimento; e voto a Apollo que a regra ha-de
passar inconcussa: o verso e bello porque é verdadeiro». Se fosse
possivel um padre grave ludibriar o publico, nós diriamos que elle
estava escarnecendo os leitores. Desejariamos que o padre Castel nos
tivesse explicado porque o verso era achado bello antes d'essa theoria e
porque o continuaria a ser mesmo se ella fosse destruida. Taes são as
miserias que teem resultado do modo porque durante muitos seculos foram
tractadas as letras. D'estas ninharias poderiamos dar muitos exemplos;
mas voltemos ao nosso objecto.

Depois de Aristoteles a poesia foi para os antigos a imitação do bello
da natureza, tendo por condições a unidade e a verdade, ou a
verosimilhança. É esta em nossa opinião a maneira mais simples de
exprimir a philosophia da arte entre elles, ou os elementos da sua
poetica, os quaes o continuaram a ser até nossos dias. É, pois, o valor
dos termos _imitação_, _bello_, _unidade_, _verdade_ ou _verosimil_, que
cumpre determinar para ver se as idéas que exprimem estão em harmonia
entre si, e se podem dar validade a uma poetica nellas fundada.

A imitação suppõe o bello em a natureza moral ou physica, e qualquer
d'ellas existente fóra de nós. Os actos humanos serão na primeira,
digamos assim, o _substractum_ da imitação: na segunda sê-lo-hão os
corpos, e o bello nos será communicado por meio das sensações: qualidade
dos corpos, fórma das acções, naquelles a sua impressão será universal,
nesta nunca necessaria. O europeu, o chim, o hottenlote sentirão
egualmente que o Apollo de Belvedere é bello: a acção dos templarios
cantando hymnos a Deus no meio das chammas, e cuja morte Mr. Rainouart
pintou divinamente num só verso:

     «Il n'en etait plus tems, les chants avaient cessé.»

nunca será nessariamente bella: se elle a imitou de um acto humano
similhante, esse acto sendo contingente parece-nos não teria qualidade
dotada de caracter necessario: se applicarmos isto a uma acção épica ou
dramatica, ainda mais visivel é a falta de necessidade da sua existencia
e consequentemente a dos seus caracteres formaes.

Se dissermos que o bello é relativo e resultado do nosso modo de ver, da
relação particular dos objectos comnosco, da harmonia ou desharmonia dos
tactos com as nossas idéas moraes, nesse caso não poderemos affirmar que
os _Lusiadas_ ou a _Odyssea_ sejam absolutamente superiores ao _Affonso_
ou ao _Viriato Tragico_. Poderemos dizer que para nós não ha sequer
comparação; mas seria absurdo exigir dos outros o mesmo sentimento.
Boileau julgou esquivar-se a esta difficuldade asseverando que a opinião
geral devia ser a norma do nosso modo de sentir, e que a totalidade dos
homens não se engana numa crença duradoura. Desejariamos que Boileau nos
dissesse se era pela opinião geral que elle acharia frio o gelo e quente
o fogo. Que nos importa a opinião quando se tracta de sensações? Que
vale mesmo aos olhos dos homens cordatos o credito de uma opinião geral?
Cremos nós hoje na arte mágica, na alchymia, ou na virtude dos Jesuitas?
E foram estas crenças porventura pouco geraes e pouco duradouras? Quando
concedessemos o principio, elle nos seria inutil para julgar as
producções contemporaneas, e a critica não nos serviria para conservar
puras as letras, nem para gozar as creações do genio moderno: a gloria
ou o desprezo não encontraria já nem as cinzas do poeta. Seculos
haveriam passado para reformar a opinião, quando isso mesmo fosse
possivel.

Mas felizmente não é assim. Lamartine! com uma poesia celeste tu fazes
adorar a religião que saudaste em teus hymnos solitarios. Monti! tu nos
encheste de um terror delicioso conduzindo-nos aos umbraes do outro
mundo. Schiller! quem não sentiu bater mais fortemente o coração lendo a
despedida de Picolomini e Thecla? A infancia do seculo XIX já tem muitos
titulos com que faça passar sua memoria enobrecida deante dos outros
seculos. Elles julgarão como nós os genios que no meio das tempestades
politicas consolaram o genero humano com a harmonia de seus cantos.
Acêrca de Lamartine, de Monti, de Schiller, e não só d'elles, nós damos
seguro da posteridade.

Tal é o bello para quem o julgar em sua modalidade necessario e
absoluto: uma idéa opposta repugna e nos afflige: nós queremos que todos
os tempos, todos os homens o julguem e gozem como nós, e diremos sem
hesitar, o que não for de nosso sentir ou carecerá de gosto ou o terá
pervertido.

É esta circumstancia da necessidade do nosso juizo sobre o bello que
distingue inteiramente este do agradavel.--Do primeiro nós affirmamos a
existencia, do segundo a sua relação comnosco. O quadro da morte da
Clorinda na Jerusalem Libertada é bello, e que deixe os poetas aquelle
que tal não o julgar. Um pomo saboroso é para nós agradavel, talvez para
outrem o não seja, o que nos é indifferente. No primeiro caso julgamos;
no segundo exprimimos a idéa da relação particular entre nós e o
phenomeno.

A que reduzirião Burke e Delaunay a maxima parte do que escreveram sobre
o assumpto se tivessem reflectido nesta differença? Poria um porventura
os elementos do bello nas linhas curvas e no macio e tê-lo-ia outro
dividido geographicamente como se dividem as raças humanas? Estamos
persuadidos que não.

A incerteza acêrca do criterio do bello não é o unico resultado do
principio da imitação: elle tambem está em contradicção com o da
unidade: esta debalde se procuraria nos corpos: as partes do universo
coexistem; mas individualmente, e entre individuo e individuo medeia um
abysmo que rigorosamente falando nós não podemos eliminar: generos,
especies, familias, causas e effeitos necessarios são fórmulas do
entendimento; são como lhes chama Ancillon muletas da intelligencia. Se
procurassemos a fugitiva unidade do total do Universo lá mesmo ella
seria para nós a nuvem de Ixion. Com effeito, sendo impossivel á
imaginação acabar a synthese dos phenomenos, ella disse quando
cansou--isto é o universo--; mas teem acaso os objectos que produziram
essa idéa uma ligação absoluta e una entre si?--Não: a mente faz uma
abstracção similhante á que faz a historia natural deduzindo dos
individuos generos, especies, familias. O Universo não é senão a
repetição indefinida da individualidade.

Parece-nos, pois, que é forçoso ou abandonar a imitação do mundo
physico, ou não exigir a unidade nas imitações d'este genero. Outras
razões existem para provar que a mesma difficuldade apresenta a
conciliação dos dois principios no mundo moral; mas nós guardamos essas
reflexões mais complicadas para quando voltarmos a este assumpto,
temendo ser por agora tachados de prolixos.

Do que temos dicto concluimos que o bello das imagem, o bello chamado
physico não existe nos objectos porque a unidade e a necessidade da sua
existencia seriam destruidas; mas sem estas duas condições o espirito
não o admitte. É, pois, em nós, no mundo das idéas que o devemos buscar.
Um typo independente do que nos cérca, deve existir, com o qual a
faculdade de julgar possa comparar o bello de uma imagem particular.
_Eu_--_Não eu_, eis o circulo das existencias, os dois nomenos fóra os
quaes nada concebemos. Mas nós admittimos o necessario e o uno sem o
encontrarmos no que nos rodeia: cumpre, pois, que elles residam em nós
como fórmas da intelligencia.

É visivel que um typo é preciso para julgar o bello: sem elle as artes
plasticas seriam impossiveis. As comparações entre os objectos não podem
jámais estabelecer regras invariaveis de gosto, e ellas suppõem já uma
comparação anterior. Quando comparamos dois objectos, um bello outro
não, o unico resultado que tiramos d'ahi é ver que são desimilhantes:
mas por que modo agrada um, outro repugna? É sem duvida porque um
harmoniza com uma idéa, bem que indeterminada, e outro se oppõe a ella.

Será este typo resultado da experiencia? Cremos que não. Onde existe o
typo da Venus de Medicis, de Laocoonte, ou de Marco Sexto? Quem se póde
gabar de o ter encontrado na natureza? Elle existia na mente dos
artistas: as idéas d'estas creacões foram para elles antes de ser para
nós: unisonas com o seu typo, o genio as traduziu no marmore, no bronze
e na tela. Dir-se-ha, em ultimo caso, que o estatuario e o pintor
reuniram o bello parcial para formar o todo. Porém seria aggregado uno?
Além d'isso, não é claro que para essa escolha precisavam de um guia
existente na sua alma? Quem os moveu a escolher esta fronte, estes
labios, este collo com preferencia a outros? Parece-nos que estas
perguntas ficarão sem resposta emquanto os homens procurarem fóra de si
o principio vivificante das artes.

Quanto ao verosimil e verdadeiro na imitação, nós faremos só alguns
leves reparos, porque de outro modo seria preciso examinar as mudanças
que se teem feito na intelligencia d'este principio para devidamente o
apreciar, e este trabalho exigiria longas paginas. Aristoteles
estabelece a differença entre a verosimilhança e a verdade, dizendo que
a primeira pertence á poesia, a segunda á historia: que a primeira
consiste nos actos consequentes de um caracter em geral, a segunda nos
actos practicados por um individuo existente e determinado. D'estas
expressões resulta que para a distincção do verdadeiro e do verosimil
physico o critico grego não nos deixou nenhuma regra, e que no moral
cessa com o verosimil a imitação: na natureza não ha senão caracteres
individuaes, os geraes existem por uma idéa. Confessamos nossa rudeza;
não entendemos como as paixões concebidas da maneira que as concebe o
genio e applicadas a um individuo, ou supposto ou historico, sejam uma
imitação. Quando quisessemos exprimir esse caracter por factos, dar-lhe
uma existencia real e individua, nada mais fariamos do que destruir uma
abstracção por nos servirmos da linguagem sensualista. Além d'isso,
suppondo que todas as nossas idéas sejam resultado de sensações, a idéa
geral e absoluta de um caracter é uma chimera dando-lhe validade
necessaria e imprescritivel. Circumstancias particulares, opiniões, em
fim as _côres locaes_ viriam introduzir a confusão e a anarchia no
imperio da critica. Supponhamos que os caracteres dos heroes da Hiada
foram traçados, segundo a opinião de Aristoteles, pela idéa geral do
valor, mas nós vemos esses heroes fugirem do inimigo que temem. Odoardo
e Gildippe, na Jerusalem, cáem sob o alfange de Saladino sem terem
voltado as costas, Sueno acaba sobre os cadaveres dos seus soldados no
meio dos infiéis sem depor a espada, apesar de ser impossivel vencer.
Quem imitou a idéa geral do valor? Foi Homero ou foi Tasso?
Provavelmente Homero porque é mais antigo. Algum futuro commentador de
Aristoteles no-lo explicará.

Não nos tendo este deixado a norma para julgar o verosimil physico,
vejamos se Horacio occorreu a esta falta. Foi por ahi que elle começou a
epistola aos Pisões. Descrevendo um monstro que imaginou, convida-os a
rir do quadro que lhes apresenta--e porque? Dá o poeta a razão--_vanae
fingentur species_,--Batteux paraphraseando accrescenta--_images vagues
qui n'ont point de modèle dans la nature_. E assim, o que for vão, o que
não tiver typo na natureza nunca será bello. Pobre Homero! Os teus
cyclopes, o teu Poliphemo, os monstros de Charybdis, emfim teus lindos
sonhos devem-nos arrancar uma gargalhada. Tu mesmo, crapulario Horacio,
quererás com o teu Pegaso fazer-nos estourar de riso? Com effeito, onde
existem as ficções dos antigos monstros da mythologia? Quem viu um homem
ou um cavallo alado como o Amor e o Pegaso? Nem se diga que a crença
popular lhes tinha dado a existencia: isto são palavras que soam mas sem
sentido.--Cremos que existir na intelligencia não é existir no mundo
real. Se a phantasia produziu estas creações ellas não foram imitadas,
logo não teem modelo, logo não são bellas; porque nos persuadimos que a
mais duradoura crença nunca poderá fazer que uma coisa seja o que não
é.--Vemos, portanto, que para a theoria do verosimil pouco se aproveita
a poetica do illustre adulador de Meçenas e de Octaviano.

Talvez Boileau nos satisfaça. Eis o que encontramos nas suas doutas
poesias a este respeito:

_Rien_ n'est beau que le vrai, le vrai seul est aimable.[2]

Le vrai peut quelque fois n'être pas vraisemblabe.[3]

Qual seria a conclusão que tirariamos d'estas duas proposições,
dispondo-as em fórma de syllogismo?--Quem respeitar Despreaux não ousará
fazê-lo.

Metastasio falando da imitação nos commentarios da poetica
d'Aristoteles, nos explica em que consiste o verosimil que o imitador é
obrigado a conservar na sua imitação: «O alvo do copista, diz elle, é
que a sua cópia possa substituir o original, o do imitador é conservar a
_similhança possivel_ do objecto sem alterar a materia sujeita da
imitação». Continua depois dizendo que o _admiravel_ d'esta consiste nas
difficuldades que venceu o artista: o que, em nosso entender, equivale a
dizer que o bello consiste em vencer as difficuldades da imitação:
lembremo-nos, porém, que por este mesmo tempo Batteux reduzia as artes a
um só principio--a imitação da _bella natureza_; e louvemos a Deus pela
unidade de doutrina de uma eschola que hoje com tanta arrogancia accusa
de barbarismo e incerteza todos os principios litterarios que não se
amoldam aos seus.

Tirou Metastasio da estatuaria um exemplo para nos dar a conhecer as
differenças que ha entre imitação e cópia, mas, tractando-se de poesia,
seria talvez bom que nesta o buscasse. Nós o faremos por elle comparando
o retrato de Gabriella de Estées por Voltaire, com o de Ignez Sorel por
Chapelain.--Para os nossos leitores poderem ajuizar transcreveremos
ambos:

CHAPELAIN

En la plus haute part d'un visage celeste,
...un front grand et modeste
Sur qui vers chaque temple á bouillons séparés
Tombent les riches flots de ses cheveux dorés
Sous lui...
Deux yeux étincelans... sereins...
Au dessous se tait voir en chaque joue éclose
Sur un fond de lis blanc une vermeille rose
Qui de son rouge centre épandue en largeur
Vers les extremités fait palir sa rougeur.
Plus bas s'offre et s'avance une bouche enfantine,
Q'une petite fosse a chaque angle termine,
Et dont les petits bords faits d'un corail riant
Couvrent deux blancs filets...


VOLTAIRE

Telle ne brillait point au bord de l'Eurotas
La coupable beauté qui trahit Ménélas.
Moins touchante et moins belle, á Tarse on vit-paraitre
Celle qui des Romains avoit dompté le maitre

       *       *       *       *       *

Elle entrait dans cette age, hélas! trop redoutable,
Qui rend des passions le joug inevitable.
Son coeur né pour aimer, mais fier et généreux,
D'aucun amant encor n'avoit reçu les voeux.
Semblable en son prinptems á la rose nouvelle
Qui renferme en naissant sa beauté naturelle,
Cache aux vents amoureux les trésors de son sein
Et s'ouvre aux doux rayons d'un jour pur et serein.

Quem duvidará que Chapelain imita uma bella mulher com a _similhança
possivel_ e que no retrato de Gabriella a imaginação nada póde
affigurar-se que não seja vago e indeterminado? Quem duvidará tambem que
o primeiro retrato é obra de um borrador e o segundo digno de Albano?
Comtudo hoje é reputado barbaro e extravagante quem se ri das regras da
velha poetica!...

Desde Batteux, Sulzer, Jaucourt e outros, as artes em geral e a poesia
em particular foram definidas--a imitação do bello da natureza. Esse
principio se achava nos escriptos dos antigos, mas confundido com a idéa
de que do artificio da imitação tambem resultava um prazer similhante ao
produzido pelo bello. Muito devemos a estes criticos; aliás, fugindo
constantemente da natureza para a arte e d'esta para aquella, a velha
poetica salvaria uma grande parte dos seus canones dos olhos
investigadores da philosophia. Era isto misturar a noção do agradavel
com a do bello. Os modernos, reduzindo a poesia á imitação d'este,
cairam, em nosso entender, num erro analogo confundindo-o com o bom.

Diderot disse que no util consistia o bello--Watelet que o era tudo o
que preenchia o seu fim. Mr. Lemercier dá como causa final das letras a
utilidade. Mendelssohn creu-o a expressão sensivel da perfeição, e ao
seu systema similha o de Mr. Laurentie ácerca do bello intellectual.
Todos estes enunciados se podem reduzir ao de Mr. de Bonald--o bello
absoluto é synonimo de bom. Não sabemos o que Marmontel e Laharpe
opinaram, porque temos a infelicidade de não entender as suas
deffinições.

Os sensualistas do seculo passado, depois de um longo rodeio, voltaram á
confusão do agradavel e do bello; e os espiritualistas d'aquelle seculo
e do nosso foram progressivamente tirando o bello da natureza physica e
collocando-o sómente na moralidade, ou creando uma cousa chamada _bello
relativo_ que, ou não existe ou é o mesmo que o agradavel.

Mr. Laurentie escreveu um volume para mostrar aos barbaros innovadores
que o bom e o bello moral eram inseparaveis: neste livro toma o pobre
Kant para a sua alma, visto que, por culpa d'elle, foi enxovalhado o
rico e harmonioso idioma de Paschal e Bossuet com o _Eu_ e _Não-eu_. Até
aqui bem vamos. Se Kant fosse vivo, como causa primeira de se commetter
tão horroroso attentado, devia acabar numa fogueira: e nisto, cremos,
conviria Mr. Laurentie, porque nos seus escriptos alguma pena mostra de
ter visto findar as assaduras dominicanas. Mas no que não tem razão é em
insultar a memoria do veneravel professor de Konigsberg, que estabeleceu
antes d'elle a mesma verdade, como mostrariamos se este escripto
comportasse uma exposição da doutrina d'aquelle philosopho acêrca do
juizo esthetico. Não seria melhor que Mr. Laurentie, antes de decidir
com um tom tão dogmatico e magistral estudasse primeiramente as opiniões
que intentava impugnar? Similhante altivez não nos parece concordar com
a humildade evangelica propria de um bom christão como Mr. Laurentie![4]

Insistimos na differença do bom e do bello, porque o grande nome de
Mendelssohn se colloca naturalmente á frente dos que os declaram
identicos. Esta idéa se encontra já na philosophia néo-platonica e
talvez no Hippias maior do mesmo Platão, de cujas opiniões Mendelssohn
não estava mui longe. O que Mr. de Bonald e Alletz disseram sobre este
ponto funda-se inteiramente naquellas doutrinas.

Porém serão ellas verdadeiras? Nós cremos que não. A perfeição de
qualquer coisa é o complemento de seus fins, e estes devem ser bons,
aliás não se daria aquella. D'isto resulta sempre um interesse, quer no
moral quer no physico, o que suppõe uma existencia real: porém o
sentimento do bello é desinteressado e não carece de ser acompanhado do
de existencia. Os jardins de Alcinoo, a ilha de Venus, não seriam mais
bellos se os cressemos existentes fóra da Odyssea e dos Lusiadas. A
imaginação é quem nos presta a idéa de que resulta o juizo acêrca do
bello: o bom nasce de uma idéa determinada pela razão; porque, para
julgar uma coisa boa e perfeita, é preciso saber para que serve, qual
seu alvo, quaes suas relações: um edificio irregular, mas commodo e
reparado, será bom, porque satisfaz o seu alvo objectivo: a Venus de
Medicis chama-se bella, porque satisfaz, por uma idéa da imaginação, o
jogo das nossas faculdades quando a comparamos com o ideal do bello
humano.

Dissemos que o bello moral é sempre acompanhado do bom. Concordando
nisto com as opiniões actuaes dos litteratos puros, julgamos não ser
preciso prová-lo e portanto nos absteremos d'isso. O pouco que notámos
basta para se ver em que consiste a differença das duas idéas no mundo
da moralidade.

Cremos ter indicado, bem que mui de leve, as difficuldades e por ventura
contradicções que encerra uma poetica respeitada por tantos seculos. Mas
desde Aristoteles estava apontado, e por elle mesmo, o vicio da sua
construcção. Applicando á Iliada os canones que tinha estabelecido e que
julgou ter deduzido d'ella, achou que ás vezes elles falhavam, e viu-se
obrigado a dizer que as regras se podiam pôr de parte quando o bello
assim o exigisse. Não é d'este modo que nós concebemos a poesia. Seus
preceitos devem ser imprescriptiveis sendo deduzidos do bello e de suas
condições. De que modo o nosso criterio póde ser seguro, ter este
caracter de necessidade que a consciencia requer, sendo incertos os seus
meios? O jogo de arguições e replicas que constituem o capitulo 25 da
sua poetica seria digno de um sophista, não do maior philosopho da
antiguidade: ellas fariam luzir um estudante das nossas aulas de
rhetorica em uma sabatina; mas para o estudo da litteratura parece-nos
que de nada servem.

Tendo até aqui procurado derribar, cumpria edificar agora: mas não
escrevendo um livro, nem possuindo para isso o cabedal necessario,
apenas lançaremos os primeiros traços dos (quanto a nós) unicamente
verdadeiros fundamentos de uma poetica razoavel, para estabelecer a
theoria da unidade de um modo mais conforme a razão, e ao mesmo tempo
mais concorde com os grandes monumentos litterarios.

A poesia é a expressão sensivel do bello por meio de uma linguagem
harmoniosa.

O bello é o resultado da relação das nossas faculdades, manifestada como
jogo da sua actividade reciproca.

Esta relação consistirá na comparação da idéa do objecto com uma idéa
geral e indeterminada: a harmonia d'ella resultante produzirá o
sentimento do bello: esta harmonia será sujectiva, residirá em nós; e a
sua existencia _a priori_ necessaria e universal.

Como composta a idéa do objecto leva comsigo a variedade; como geral o
outro termo da comparação é puramente subjectivo e consequentemente uno.

A condição, pois, do bello é a concordancia da variedade da idéa
particular com a unidade geral: condição que é por tanto necessaria em
todos os juizos acêrca do bello.

Mas existindo essa harmonia no jogo das faculdades e requerendo-se para
ella a unidade, esta será subjectivamente absoluta, e tudo o que na idéa
particular do objecto não estiver em relação com ella nunca poderá ser
julgado bello.

Tanto nos basta da longa e difficil theoria do bello e sublime para o
nosso intento. Na sua applicação restringir-nos-hemos aos poemas
narrativos, porque os outros, sobretudo os dramaticos, exigiram um mais
amplo desenvolvimento que não comporta este escripto.

Dos principios que apresentámos e que em parte as antecedentes
observações pediam, se colhe o sempre imprescriptivel canon da unidade,
porém esta collocada mui longe d'onde os antigos a collocavam. É uma
idéa geral e indeterminada que a torna necessaria: a acção não é mais do
que a serie de variedades que devem, digamos assim, dar um som unisono
com a idéa geral e una. Será, pois, em nosso systema o primeiro passo a
dar no exame de qualquer poema o buscar qual foi essa idéa, esse _deus
in nobis_ que constrangeu o poeta a revelar-se ao mundo em cantos
harmoniosos. Nós a buscaremos nos cinco mais celebres poemas da
Europa--_a Iliada_,--_a Eneida_--o _Orlando furioso_--os _Lusiadas_--e a
_Jerusalem libertada_. Se a theoria for verdadeira acharemos essa idéa:
as partes que os constituem serão concordes com ella; aliás estes poemas
cessarão para nós de ser considerados como absolutamente bellos, e
ficaremos persuadidos de que a Europa inteira se enganou tendo-os por
modelos do gosto.

Antes, porém, de tudo convem sujeitá-los a um exame cujo norte seja o
que a antiga poetica exige para julgar similhantes producções. Seremos
severos neste exame, mas limitar-nos-hemos ao mais importante
principio--o da unidade de acção, a que nós temos a infelicidade de não
dar valor algum. Com este nos contentamos, que de outro modo fariamos em
vez de um artigo um volume.

Quem será nosso guia para vêr em que essa unidade consiste? Aristoteles:
ninguem o refusará. Elle é o unico escriptor original sobre taes
materias: os que vieram depois d'elle o copiaram, o commentaram e talvez
demudaram suas idéas. Diz Dacier que todas as poeticas se reduzem á do
Stagyrita, e por outra parte Mr. Lemercier nos assegura ser bastante
para constituir um perfeito critico em poesia o entender bem as poeticas
de Aristoteles, Horacio, Vida e Despreaux. Reunindo, pois, as opiniões
de dois tão illustres litteratos parece-nos que nesse escripto do velho
grego devemos buscar a norma de nossos juizos para avaliar os poetas.

Busquemos lá, com effeito, em que a unidade consiste. Achá-lo-hemos no
capitulo 8. _Serão_, diz elle, _as partes de uma acção de tal geito
ligadas entre si, que tirada ou transposta uma, fique tudo destruido ou
mudado_.

São os episodios que na epopêa constituem essas partes da acção,
rigorosamente falando. Assim o julga Dacier e a Encyclopedia: assim o
cria Voltaire dizendo que os episodios similham aos membros de um corpo
robusto e bem affigurado. Um episodio, pois, que sendo omittido deixa a
acção inteira, inserido nella destruirá a sua unidade. Mas ficará,
porventura, incompleta a acção da Iliada se lhe tirarmos o longo trecho
da descripção das naus gregas e o muito mais longo do funeral de
Patroclo? Cremos que não, e que portanto se, pela poetica de Aristoteles
julgarmos a Iliada, d'ella desapparecerá a unidade.

Diz mais o critico grego, no começo d'este capitulo, que a identidade do
heroe principal nunca estabelecerá a unidade, quando as acções forem
multiplices. Ora, quem é que une a primeira metade da Eneida á
segunda?--Apenas o heroe. Tudo é novo depois da sua chegada á Italia.
Novas são as aventuras, novas são as personagens secundarias. É o mesmo
Virgilio quem nos indica a duplicidade da acção do seu poema. A
exposição da Eneida estava plenamente desenvolvida no fim do sexto
livro, e assim, logo no principio do setimo, elle nos avisa que vai
contar uma nova ordem de coisas[5]. Podemos, pois, affirmar affoitamente
que na Eneida da falta a unidade.

Quanto aos Lusiadas nada é preciso dizer. Salta aos olhos que a historia
dos doze de Inglaterra, o assassinio de D. Ignez, teem tanto com a acção
do descobrimento da India como com a da Odyssea.

Todos acham bellissimo o Orlando furioso, ainda ninguem o achou uno. A
distincção de poema heroico, de poema romance, de Dubois, Fontenelle, e
de Mr. Lemercier nada mais é do que a impotencia absoluta de applicar a
certas producções as regras da antiga poetica.

A Jerusalem libertada é o poema que mais parece ageitar-se aos preceitos
classicos pelo que toca á unidade. Entretanto qual é a acção do poema? A
conquista de Jerusalem: e acaso conduziria o episodio de Olindo e
Sophronia para o seu exito? Certo não. Além d'isso, a acção da Jerusalem
conquistada é a mesma; o poeta mudou varios episodios e ella continuou a
ser a da Jerusalem libertada, apesar de Aristoteles.

Vejamos, segundo o nosso modo de julgar, se uma uma idéa geral e
indeterminada póde estabelecer a unidade na serie de acções, de quadros
e de descripções que constituem estes cinco poemas.

No tempo de Homero a historia grega apresentava só um grande feito, a
conquista e ruina de Troia. Uma grande idéa occupava a mente do poeta e
esta idéa era a gloria da Grecia. Foi, pois, á roda d'ella que Homero
agglomerou as variedades que lhe diziam respeito. Onde existiam ellas?
Unicamente na memoria das batalhas pelejadas juncto aos muros de Troia:
mas uma parte d'essa historia era vergonhosa para os gregos. Ou
admittamos qualquer das opiniões referidas por Herodoto acêrca da queda
d'aquella populosa cidade, ou as narrações de Triphyodoro e do supposto
Dictys, a nodoa de fraqueza, quando não de dolo, sempre parece vir
manchar os gregos. Neste caso o poeta repelliu todo o odioso da historia
e aproveitou ou inventou o que dava um som unisono com a idéa que o
dominava: assim, na Iliada tudo a ella tende; assim, o poema começa
quando a ialta de Achilles deixa fulgir o valor dos outros heroes e
acaba quando a morte de Heitor devia, bem pelo contrario da verdade
historica, fazer caír Troia e dar a victoria aos gregos. Da era a mais
gloriosa da semi-barbara Grecia, foram os successos de poucos dias que
Homero escolheu para objecto de seus cantos; mas estes dias eram os mais
bellos d'aquella epocha memoranda; nelles tiveram logar os mais
brilhantes feitos de guerra tão acintosa, e o poeta ainda os tornou mais
admiraveis com os traços vigorosos do seu pincel divino.

Os caracteres dos heroes da Iliada são todos agigantados e o valor
d'estes rude, como o podia conceber a mente de Homero; mas os valentes
de Troia são sempre homens, em quanto os da Grecia são muitas vezes
semi-deuses. O mesmo Heitor, que hoje (nós pelo menos) achamos a
personagem mais interessante da Iliada, e que parece vir destruir a
opinião de que a unidade exista neste poema por uma idea vaga da gloria
patria, é uma prova do principio que estabelecemos. Para julgar Homero é
preciso collocar-nos no seu tempo e no seu país. O amor paternal e
conjugal por que Heitor nos interessa, não era para os antigos,
sobretudo nos tempos primitivos, o mesmo que para nós. A robustez de
braço e de coração era a principal virtude, e os affectos moraes estavam
apenas esboçados nessas sociedades nascentes. Por isso elle devia
interessar, não despedindo-se de Andromacha, porém combatendo por uma
causa que reputava injusta, mas que se tinha tornado a da patria; não
por suas virtudes domesticas, mas pelas virtudes publicas e por seu
valor quasi egual ao de Achilles.

Foi por causa d'este que Homero desenhou tão amplamente o caracter de
Heitor. Com effeito, aquelle guerreiro que viu fugir ante si Diomedes, o
vencedor de um nume[6], cai vencido e morto aos pés de Achilles. Quanto
este devia parecer grande entre um povo que olhava o valor e a força
como o dote mais digno do homem, e qual seria a ufania e a gloria de um
país cujos filhos assim sobrelevavam os numes.

Alguem crê dever notar o haver-nos Homero pintado Achilles arrastando o
cadaver do seu inimigo á roda dos muros de Troia. Parece-nos tambem
nascer isto de se julgar os antigos por nossas actuaes idéas. Nós vemos
que para a maior parte das virtudes sociaes elles não tinham divindades
particulares; comtudo havia-as para a amizade. Certo é, pois, que esta
nobre paixão tinha preço e valia entre elles. Esqueçamo-nos das virtudes
que devemos unicamente ao Christianismo, constituamo-nos gregos, e
vejamos qual de nós não faria o mesmo no momento da vingança e da
colera. Sómente aquelle desgraçado que não possuisse um amigo.

Se assim examinarmos toda a Iliada, acharemos sempre a idéa de gloria
patria servindo de nó a este admiravel poema que hoje se despreza por
moda, crendo-se que nisso consiste o romantismo. Já lemos numa enfiada
de versos, de que não era possivel ler vinte sem bocejar, que Homero
fazia dormir. Ao menos quem assim calca aos pés o velho trovador da
Grecia não corre o risco de lhe acontecer o caso do soldado liliputiano
que metteu a lança pelo nariz de Gulliver. Homero já não espirra. Que
pensariam taes criticos poetas se lhes dissessemos que a Odyssea, quanto
ás imagens e mesmo ás fórmas, tem muitissimos caracteres proprios da
poesia romantica? Certamente não nos entendiam. Não é em chamar ridiculo
ao que é bello, nem em destemperos que deve consistir a ingenuidade das
modernas opiniões litterarias.[7] Mas passemos a Virgilio.

Foi na epocha d'este que Roma caíu em terra e que Cepias se assentou
sobre a campa da patria. Todos sabem a historia dos feitos romanos e a
gloria que os cerca: mas a gloria acaba onde a escravidão começa. Nesta
transição appareceu Virgilio que, talvez exemplo unico, sabia mendigar
as migalhas de um tyranno e nutrir idéas generosas. As recordações da
republica, as memorias de um povo que já não existia reclamavam as
canções do poeta. Esta idéa o agitava e ella gerou a Eneida. Porém o
cortesão não podia no palacio de Augusto, nos banquetes da prostituição,
ao som dos grilhões de Roma, entoar um hymno em que a lembrança da
liberdade se associaria a quasi todas as imagens, a quasi todos os
sentimentos. Por outro lado a grinalda dos louros romanos partia de uma
caverna de salteadores: nascia de um ponto negro como o em que findava.
Este podia illustrá-lo Virgilio; uma messeniana[8] e um punhal bastavam;
mas elle queria gozos e repouso: Augusto ameigava-o, e o manhoso Mecenas
dava-lhe os meios de satisfazer seus vergonhosos appetites. O mal
denominado epicurismo que dominava na cidade eterna e que tanto
contribuiu para ella deixar de o ser, o fazia olhar a vida feliz como um
bem que se devia conservar mesmo á custa da moralidade. Tudo contribuiu
para envilecer Virgilio, e notemos que até no seu estylo encontramos a
prova disso. Aquelle lavrado, aquelle _molle atque fecetum_ que Horacio
achava em seus versos não sabemos o que tem de analogo ás palavras
suaves e attractivas de um homem abjecto quando a dula o seu patrono.
Porque haverá tantas similhanças entre as pessoas do tempo de Luís XIV
que dava pensões aos poetas, e as do seculo de Augusto que lhes dava
tambem de comer? Porque serão elles nestas duas epochas modelos de
perfeição, pelo que toca ao bem obrado do estylo, sempre em proporção de
seus serviços e da sua frequencia nos passos dos Reis e dos grandes da
terra?

Na impossibilidade de cantar os romanos, quando dignos d'este nome,
sómente restava a Virgilio um meio de satisfazer essa idéa de gloria
patria, d'esse Deus que o agitava, o collocar um monumento espantoso no
berço obscuro da sua nação: elle o fez, e a Eneida foi este monumento.
Não tendo como Homero ao menos um pequeno cabedal de realidade, elle
arrancou da phantasia todo o seu edificio, edificio o mais bem acabado
que neste genero conhecemos. Porém observemos que elle desenhou os
caracteres dos seus heroes mui differentes dos da Iliada. Os d'esta são
rudes mas sublimes, os da Eneida são macios e cuidados, mas geralmente
mesquinhos. No poema grego surgem, interessam individualmente os Aiaces,
Diómedes, Ulysses, Agamemnon e tantos outros; no latino os heroes
secundarios deslizam pelo poema, como as turbas de Roma deslizavam por
uma existencia sem significação debaixo dos pés do Cesar. De todos os
troianos, acabada a leitura da Eneida, apenas nos recordamos do filho de
Anchises: Achates, Gyas, Cloantho sumiram-se como sombras. O mesmo Eneas
tem um certo ar hypocrita que desagrada aos homens singellos e o colloca
a seus olhos bem longe de Achilles. Foi a influencia do seculo quem fez
Virgilio, nesta parte tão inferior a Homero: se o poeta tivesse vivido
no tempo dos velhos romanos, nós não possuiriamos hoje a mais agradavel
porção do 4.^o livro da Eneida. Dido não teria sido seduzida e
abandonada, embora isto contribua, e muito, para satisfazer a idéa
principal do poeta. Uma immoralidade tão vil, o ludibriar a
hospitalidade e a fraqueza só podia caber a um heroe inventado na epocha
dissoluta da queda da republica romana. Afóra isto nós não podemos
deixar de admirar Eneas; e apesar da corrupção do seculo e da propria,
Virgilio soube ainda dar um illustre fundador á sua patria. De todos os
restos de Troia só d'elle precisava o poeta, assim é que só elle
resplandece no meio dos seus troianos, emquanto os guerreiros da
Hesperia, Turno, Pallante, Lauso, Camilla, teem muitas vezes uma côr
homerica. Estes eram filhos da Italia e a Italia era o solo que viu
nascer Virgilio. Quando Voltaire, acabando de ler a Eneida, achou que
Turno interessava mais que Eneas, disse que apesar da falta da unidade
de interesse não ousava reprehender Virgilio. Nem havia de quê: a
unidade de interesse tem tanta validade como a de acção. Qualquer dos
dois que interessasse principalmente, a idéa geral estava preenchida.
Nos bellos dias de gloria de Roma, todos os povos do Lacio estavam
fundidos no romano e as suas recordações nas d'este. Escondesse o filho
de Venus o covil de Romulo com o seu escudo celeste, o fim de sua
existencia estava satisfeito, e o poeta podia na serie das variedades
buscar as que bem lhe parecessem para com ellas tirar um som accorde com
a idéa que o dominava. Segundo nosso modo de pensar em litteratura,
muitos defeitos que teem sido assacados á Eneida não existem nella. Em
nenhuma coisa offendeu Virgilio os principios eternos do bello, senão
quando o seculo com sua peçonha pôde mais do que o genio extraordinario
do poeta. Elle não teria egual se tivesse sido livre.

A ordem das idéas exige que desprezemos a rias datas. Circumstancias ha,
como o leitor verá, que nos obrigam a falar dos Lusiadas em seguimento
aos dois grandes poemas da antiguidade, e a unir as reflexões acerca do
Orlando ás que temos de fazer acêrca da Jerusalem. Os Lusiadas são o
poema onde mais apparece a necessidade de recorrer a uma idéa
independente da acção para achar a imprescriptivel unidade, e o seu
titulo nos revela logo a mente de Camões. Não foi, quanto a nós, o
descobrimento da India que produziu este poema: foi sim a gloria
nacional. Esta idéa bella, pura, immensa, como a alma de Camões, gerou
os Lusiadas. A unidade, que procurada de outro modo nào póde
encontrar-se neste poema, se encontra logo encarando-o por esta maneira.
Era o feito mais espantoso da historia portuguesa que servia de
frontispicio á longa collecção de maravilhas que ella offerecia; foi por
alli pois que rompeu a canção nacional que entoou Camões; mas todas as
recordações de Portugal, mesmo as suas debeis esperanças, estão
consignadas nos Lusiadas. Não é um facto que elle cantou; são mil
factos, mas unidos todos por um ponto, a idéa do renome português.
Camões lançou mão de nossos annaes, rasgou e maldisse suas paginas
negras, e arrojou o resto á eternidade. As differentes feições moraes
traçadas no seu poema teem uma individualidade que não cede, em nossa
opinião, á das personagens da Iliada ou da Jerusalem, mas todas com um
ideal eminente de bello ou de sublime. Poucos sentimentos houve de que o
poeta não revestisse algum de seus compatricios, e se Mr. de
Chateaubriand accusa Tasso de ter esquecido o mais puro de todos elles,
o da maternidade, não poderia dizer o mesmo do nosso Camões, que por
este lado, despindo-nos de qualquer prevenção nacional, não podemos
deixar de chamar divino. Se nisto ninguem o excede, talvez ninguem o
eguale em agglomerar num quadro selvas tão densas e variadas de imagens
e sentimentos. Diz Mr. J.B. Say que a descripção da partida dos
portugueses para o descobrimento da India é mais do que a narração de um
embarque. Nós dizemos que pouco achamos neste genero que assimilhar-lhe.

Chegando a este trecho dos Luziadas, cremos estar vendo ondear na praia
do Restello um tropel immenso de pessoas de todas as condições e edades;
cremos descobrir no gesto, nas expressões de cada uma d'ellas, a
multidão de idéas, de paixões que tal espectaculo devia excitar, e
quando ellas acabam de passar deante de nossos olhos, um velho lá surge
e fluem da sua bocca as palavras da sabedoria. Nós o escutamos: a vida
exterior nos esquece: o ancião nos fez pensar sobre a vaidade de nossas
paixões, sobre o nada de nossas esperanças; e o poeta terminando aqui e
com arte summa um canto do poema, é que nos vem despertar da nossa
meditação, abrindo o seguinte canto com estes versos, que exigem uma
expressão vagarosa, similhante ao modo por que um homem embebido em
reflexões as deixa, e começa a volver os olhos para os objectos que o
rodeiam:

Estas _sentenças_ taes o velho honrado
_Vociferando_ estava, quando abrimos
As azas ao _sereno e sooegado_
Vento, e do porto amado nos partimos.

Tal é sempre um poeta livre, celebrando as memorias de uma nação
illustre. Tal é Camões a quem não pôde envilecer nem a desventura, nem o
ar da côrte de D. João III e de seu illudido e absoluto neto, ar ja
apestado pela escravidão. Assim talvez o unico deleito dos Lusiadas seja
o seu absurdo maravilhoso, que elle deveu ao século, e de que mesmo
poderiamos tirar um argumento a favor da immensidade do genio de Camões,
se o espaço d'este artigo já demasiado longo no-lo permittisse.

A admiração e o respeito que lhe consagramos nos fez desviar um tanto do
nosso objecto: mas seja-nos isto desculpado. Só por Camões nós os
portugueses seriamos grandes. Opprobrio da Europa nos tempos modernos,
era debaixo da sua corôa de louro e das de antiga gloria, que já
começavam a desfolhar-se quando elle a cantou, que nós nos abrigavamos
para ainda entre os estranhos ousar dizer o nome de nossa patria. E esta
com que retribuiu ao poeta? Nem com um amigo. O seu Antonio era filho da
Asia. E em nossos dias levantou-se um verme da terra para insultar sua
memoria. Deshonra eterna áquelle que pretendia despedaçar-nos nosso
ultimo titulo de nobreza, nosso ultimo consolo no meio da infamia e das
desditas!

Ariosto e Tasso não tinham patria, porque é não tê-la o nascer numa
terra de servos. D'este modo as duas idéas que dão unidade a seus poemas
são duas idéas geraes, mas estranhas como taes á Italia,--a cavallaria e
as cruzadas. A segunda parece conter-se na primeira, mas considerada em
si é tão geral e tão indeterminada como ella. O que é a cavallaria? É o
espirito humano modificado de certo modo. O que são as cruzadas? A
resposta do Christianismo á terrivel pergunta que lhe fizera o islamismo
quando os sarracenos invadiram a Italia, a Hespanha e uma parte da
França. Qual de nós dominará a terra? Esta era a pergunta: a resposta
foi o som das armas nos plainos de Ascalon, o estrondo das portas de
Jerusalem estalando aos embates dos arietes de Godofredo. Incerta como a
pergunta do mahometismo foi a replica da cruz. Vagas como o seu
resultado, estas invasões longinquas teem uma certa magnificencia moral,
digamos assim, uma certa demasia de enthusiasmo religioso, de
generosidade e de valor que esses gélidos filhos do seculo XVIII, esses
compiladores e discipulos da Encyclopedia escarneceram, porque eram
incapazes de sentir profundamente o bello e sublime d'esse todo
historico das cruzadas. Foi, pois, a idéa geral de Ariosto uma epocha
brilhante; a de Tasso, a lucta e victoria da cruz contra o crescente. As
variedades relativas á primeira, eram em muitissimo maior numero do que
as relativas á segunda; assim o Orlando é mais variado do que a
Jerusalem. Multiforme, como a vida de um cavalleiro, a idade média se
apresentou a Ariosto ora sublime, ora bella, ora ridicula nas suas
variedades immensas, e se o Orlando tem muitas vezes um caracter de
verdade objectiva, isso, em vez de servir de argumento a favor da
imitação, unicamente prova haver-se muitas vezes quasi realizado o ideal
nesses tempos heróicos das nações modernas[9]. Faltam a Tasso a miudo as
côres locaes, a verdade dos costumes, porque a sua grande idéa tinha um
lado extremamente moral, e nos costumes e no historico das Cruzadas
havia muita cousa em desharmonia com ella. O poeta substituiu tudo isso
por ficções de côres muito mais bellas, e a Jerusalem ficou sendo um
canto admiravel elevado em honra do christianismo e do enthusiasmo dos
baixos tempos.

Tasso respeitava as regras: a Jerusalem _conquistada_ foi o fructo
d'esse respeito. Felizmente a _Libertada_ já era publica: aliás o poeta
perseguido pelos preceitos e pelos pedantes teria destruido a sua obra
prima para nos deixar um poema que ninguem hoje lê. Seria mais um mal
produzido pelo fanatismo litterario; e apesar de Galileo e de Dureau
Delamalle, nós folgamos que tal não acontecesse.[10]

Passámos de leve na applicação de uma parte de nossos principios aos
cinco mais celebres poemas da velha e nova Europa, porque não era
compativel com a brevidade o fazê-lo de outro modo; por essa razão fomos
talvez obscuros. Ser-nos-ha porventura dado algum dia tractar d'esta
materia, fóra de uma folha periodica: então mostraremos que esta nova
theoria não é tão horrivel como agora parecerá a muitos; nem se nos
levará tanto a mal a nossa impiedade litteraria, quando, mais
miudamente, fizermos surgir do cháos da antiga critica suas
contradicções e absurdos.

Mas, pertendendo destruir o systema da eschola classica, não somos nós
romanticos? Alguem nos terá como taes: cumpre por tanto que nos
expliquemos. Na verdadeira accepção do termo elle é o nosso symbolo;
porém este symbolo nada tem em rigor com aquillo acêrca de que havemos
falado. Tractámos das fórmas da poesia. As modernas opiniões dos
verdadeiros romanticos versam sobre a sua essencia. Verdade é que a
theoria do bello, que indicámos apenas, dá a razão da maior parte
d'essas mesmas opiniões, cujo exame nos absteremos de encetar. Diremos
sómente que somos romanticos, querendo que os portugueses voltem a uma
litteratura sua, sem comtudo deixar de admirar os monumentos da grega e
da romana: que amem a patria mesmo em poesia: que aproveitem os nossos
tempos historicos, os quaes o Christianismo com sua doçura, e com seu
enthusiasmo e o caracter generoso e valente desses homens livres do
norte, que esmagaram o vil imperio de Constantino, tornaram mais bellos
que os dos antigos: que desterrem de seus cantos esses numes dos gregos,
agradaveis para elles, mas ridiculos para nós e as mais das vezes
inharmonicos com as nossas idéas moraes: que os substituam por nossa
mythologia nacional na poesia narrativa; e pela religião, pela
philosophia e pela moral na lyrica. Isto queremos nós e neste sentido
somos romanticos; porém naquelle que a esta palavra se tem dado
impropriamente, com o fito de encobrir a falta de genio e de fazer amar
a irreligião, a immoralidade e quanto ha de negro e abjecto no coração
humano, nós declaramos que o não somos, nem esperamos sê-lo nunca. Nossa
theoria fôra a primeira a caír por terra deante da barbaria d'esta seita
miseravel que apenas entre os seus, conta um genio, e foi o que a creou:
genio sem duvida immenso e insondavel, mas similhante aos abysmos dos
mares tempestuosos que saudou em seus hymnos de desesperação: genio que
passou pela terra como um relampago infernal, e cujo fogo mirrou os
campos da poesia e os deixou aridos como o areal do deserto; genio emfim
que não tem com quem comparar-se, que nunca o terá talvez, e que seus
exaggerados admiradores apenas teem pretendido macaquear.

Falamos de Byron. Qual e, com effeito, a idéa dominante nos seus poemas?
Nenhuma ou, o que é o mesmo, um scepticismo absoluto, a negação de todas
as idéas positivas. Com um sorriso espantoso, elle escarneceu de tudo.
Religião, moral, affectos humanos, mesmo a liberdade e a esperança foram
seu ludibrio. A leitura dos seus poemas só produz, em geral,
descoroçoamento ou antes desesperação. Byron é o Mephistopheles de
Goethe lançado na vida real.--Virtude e crime, pudor e impudencia,
gloria e infamia, que montam em seus cantos sinistros? Mas o homem, ser
immortal, passageiro em um mundo transitorio, não nasceu para o
scepticismo, para um estado violento, porque elle precisa crêr, quando
mais não fosse ao menos na voz esperançosa ou ameaçadora da consciencia:
infeliz, pois, d'aquelle que ao acabar de ler Byron não sente no coração
um peso insupportavel: a sua alma será tão escura e tão vasia como a
d'este poeta sublimemente destruidor. De sua eschola apenas restará
elle; mas como um monumento espantoso dos pricipicios do genio quando
desacompanhado da virtude. Dos seus imitadores diremos só que elles
farão com seus dramas, poemas e canções em honra dos crimes, que a
Europa, volvendo a si, amaldiçoe um dia esta litteratura, que hoje tanto
applaude. Nossa prophecia se verificará, se, como cremos, o genero
humano tende á perfectibilidade, e se o homem não nasceu para correr na
vida um campo de lagrymas e despenhar-se pela morte nos abysmos do nada.
No meio das revoluções, na epocha em que os tyrannos, enfurecidos pela
perspectiva de uma queda eminente, se apressam a exgotar sobre os povos
os thesouros da sua barbaridade: emquanto dura o grande combate, o
combate dos seculos, os hymnos do desespero soam accordes com as dôres
moraes; mas quando algum dia a Europa jazer livre e tranquilla, ninguem
olhara sem compaixao ou horror os desvarios litterarios do nosso seculo.
Muitos mesmo não os entenderão.




*Origens do theatro moderno--Theatro português até aos fins do seculo
XVI*

PANORAMA

1837




*Origens do theatro moderno--Theatro português até aos fins do seculo
XVI


O país onde primeiro appareceu a arte dramatica moderna foi a
Inglaterra, se arte dramatica podemos chamar a espectaculos tirados de
passos historicos da Biblia, sem invenção ou enredo, e só copiados
litteralmente em discursos e acções. Estas primeiras tentativas
theatraes, a que depois os franceses e italianos chamaram _mysterios_,
appareceram na Grã-Bretanha durante o seculo XI. Os monges as compunham
e representavam, e ainda no fim do seculo XVI elles pediam a Ricardo II
embargasse os comediantes de exercerem uma profissão que julgavam ser um
privilegio seu, porque ordinariamente o objecto dos dramas se tirava do
velho e novo Testamento.

Pelas muitas relações que havia entre a Inglaterra e a França, parece
que os mysterios ingleses não tardaram em introduzir-se neste ultimo
país. A _Morte de Santa Catherina_, representada na abbadia de
Dunstaple, em mil cento e tantos, foi no seculo seguinte posta de novo
em scena no mosteiro de Sancto Albano em França, e é talvez esta a
memoria mais antiga que temos da arte dramatica francesa. Depois esta
continuou e cresceu, chamando se ás farças prophanas _jogos_ ou
_representações_, e aos dramas sacros _mysterios_.

A Italia começou mais tarde, com este genero de composições barbaras:
mas, tendo primeiro que nenhuma outra nação seguido o gosto da
litteratura grega e romana, brevemente o tomou tambem no theatro. Os
dramas de Mussato compostos no principio do seculo XIV, e em latim, são
_Ezzelino_ e _Achilles_, imitações de Seneca, escriptas com um tão falso
estylo como o do dramaturgo romano. Foi no XV seculo que appareceram na
Italia os primeiros dramas vulgares: Lourenço de Medicis publicou a
_Representação de S. João e S. Paulo_, e Angelo Policiano deu pouco
depois a sua tragedia intitulada _Orpheo_.

Desde o seculo XIV appareceram dramas na Alemanha; mas estes nada mais
eram do que imitações dos _mysterios_ franceses, e escriptos em latim
pelos monges. Em meado do seculo XV foi que verdadeiramente começou
neste país o theatro nacional. Hans-Folz e Rosemblut compuseram diversas
farças, que se representaram em Nuremberg e Calmar: estas farças, obra
de homens rudes, são um tecido de grossarias e indecencias apenas dignas
de se recitarem diante da plebe mais desfaçada. Depois de 1500 é que
appareceu _Hans-Sachs_, a quem podemos chamar o Gil Vicente da Alemanha.

Na Hespanha, ou porque os arabes o introduzissem, ou porque os
hespanhoes o inventassem, ou, emfim, porque muito cedo o imitassem dos
franceses, o drama remonta aos primeiros tempos da monarchia. Só, na
verdade, do principio do seculo XIV conhecemos a scena hespanhola; mas
restam memorias d'ella muitissimo mais remotas, e pouco depois de 1200,
dizem que appareceram dramas em Valenciano. Do seculo XV ainda existem
muitas composições neste genero de litteratura.

Essas primeiras tentativas dramaticas eram forçosamente um tecido sem
nexo, sem ordem, e ridiculo: os seus auctores se entregavam
desenfreadamente a todos os caprichos de uma imaginação fervente, e as
producções d'esse tempo são em geral monstruosas e absurdas. Rodrigo de
Cotta começou a dar alguma regularidade ao drama na comedia de _Calisto
e Melibea_; mas a licença de seus quadros e expressões mancha o
merecimento d'esta peça, que depois foi algum tanto corrigida e
accrescentada por Fernando de Roxas, auctor de outra comedia--_Progne e
Philomela_. Apesar de assim emendada a obra de Cotta ainda é monstruosa.
Uma serie de enredos amorosos e de crimes se encruzam e estendem ahi
através de vinte e cinco actos. Entretanto a verdade dos costumes e
caracteres e a verosimilhança dos episodios lhe deram celebridade; e com
o titulo de _Celestina_ ella foi muitas vezes reimpressa, traduzida em
diversas linguas e até na latina pelo celebre Barthius. A reputação da
_Celestina_ fez nascer os imitadores; e novas composições, com o mesmo
ou differente titulo, mas que estão longe de ter o merito da original,
surgiram brevemente em Hespanha.

Por este tempo floresceram mais outros dois auctores dramaticos, o
Marquez de Villena e João de la Enzina, que foi o principal modelo do
nosso Gil Vicente. Os dramas do primeiro foram representados em Saragoça
na côrte de D. João II, pelo meado do XV seculo; os do segundo o foram
tambem, na côrte de Fernando e Isabel nos fins d'aquella mesma era.

Resurgiam então as letras gregas e romanas, e a admiração do theatro
antigo despertou na Hespanha o genio da tragedia. Oliva publicou duas
composições trágicas--_Hécuba triste_ e _La venganza de Agamemnon_, as
primeiras que neste genero se escreveram na Peninsula. Restrictas e
acanhadas imitações dos gregos, ellas se podem considerar como
traducções livres da _Hécuba_ de Euripides e da _Electra_ de Sophocles.

Em Portugal é provavel começassem as representações scenicas pelo mesmo
tempo em que principiaram na Hespanha; mas nenhuns vestigios restam
d'esse theatro primitivo. O que é certo é que já nos fins do seculo XIV
havia em Portugal entremezes. Garcia de Rezende na chronica de D. João
II, narrando as festas que se fizeram em Evora no casamento do principe
D. Affonso com a infanta D. Isabel de Castella, fala, em varios
capitulos, dos _entremezes_ e _representaçoens_, que nessa occasião se
fizeram, dando a entender pelo modo porque acêrca d'elles se exprime,
que eram uma coisa bem conhecida e vulgar, e não é impossivel que ainda
se nos depare algum monumento d'esse nosso primitivo theatro.

Porém, o mais antigo drama que hoje conhecemos é um de Gil Vicente,
representado em 1502 na côrte de D. Manoel, e Gil Vicente é, no estado
actual da nossa historia litteraria, considerado como o fundador da
scena portuguesa, pela mesma razão porque o podemos ter por inventor dos
_rimances_, ou _xácaras_, dos quaes os mais antigos que existem são os
que elle entresachou pelos seus _Autos_, e o que elle dedicou á morte de
el-rei D. Manoel.

Gil Vicente dividiu em quatro livros as suas composições dramaticas,
incluindo no primeiro todos os autos a que chamou de _devoção_, por
versarem em geral sobre objectos biblicos e religiosos; mas estas _obras
de devoção_ parecem as menos devotas de todas, se das outras
exceptuarmos a comedia de _Rubena_ que pertence ao segundo livro. Taes
_autos_ são na essencia o mesmo que os mysterios franceses, como elles
cheios de indecencias, porém ao mesmo tempo ricos de sal e chistes. O
poeta abominava cordealmente o clero, sobretudo os frades, e não
desaproveitou occasião alguma de os presentear com chascos e epigrammas.
Os autos das _barcas_, que são como continuação uns dos outros, e formam
a _trilogia_, ou drama em tres quadros, mais antiga da Europa,
constituem com _Mofina Mendes_ e _Rubena_ a flôr do theatro de Gil
Vicente; porque talvez em nenhuma das scenas que os compõem deixa de
patentear-se em subido gráu o genio da comedia. Este poeta reunia á
qualidade de auctor a de actor; e com seus filhos representava os
proprios dramas na côrte de D. Manoel e de D. João III. Apesar de
cortesão, o poeta morreu pobre, em Evora, depois de 1550. As suas obras
se imprimiram em Lisboa em 1562, e muito mutiladas em 1586. Uma nova
edição completa se publicou ultimamente em Hamburgo em 1833.

Gil Vicente teve um filho do seu mesmo nome, que dizem desterrou para a
India, levado pelo ciume de este o exceder no genio dramatico. Ao moço
Gil Vicente se attribue a composição de um auto intitulado _D. Luiz de
los Turcos_.

Pelo meado do seculo XVI appareceram em Portugal varios poetas que mais
ou menos seguiram as pisadas do auctor de _Rubena_. Ao infante D. Luiz
se attribue o auto de _D. Duardos_, que anda impresso como de Gil
Vicente. Antonio Ribeiro Chiado, tão conhecido na côrte de D. João III e
de D. Sebastião, pelos seus gracejos e agudezas, e pela propriedade com
que remedava a voz e o gesto de todos, nos deixou dois autos assás
engraçados, o da _Natural Invenção_ e o de _Gonçalo Chambão_. Na
_Primeira parte dos Autos e Comedias Portuguezas_, publicada em 1587,
livro hoje bastante raro, se imprimiram sete autos de Antonio Prestes,
que revelam espirito comico não inferior porventura ao de Gil Vicente,
cuja escola Prestes seguiu, bem como Jorge Pinto, auctor de _Rodrigo_ e
_Mengo_, e Jeronymo Ribeiro Soares, auctor do _Auto do Fisico_, que vem
naquella collecção cuja segunda parte nunca se deu á estampa. O nosso
Jorge Ferreira de Vasconcellos, auctor dos dois romances da _Tavola
Redonda_, floresceu tambem por estes tempos. Tres composições suas nos
restam, _Aulegrafia_, _Euphrosina_ e _Ulyssipo_, a que elle chamou
comedias, e que, realmente, são antes dialogos do que dramas. Nellas
teve por alvo Jorge Ferreira reunir os proverbios e annexins da lingua
ou a philosophia popular do seu tempo, e por este lado são ellas, na
verdade, dignas da maior estimação; mas se as quisermos considerar como
dramas bem pequeno é o seu merito.

No reinado de D. Sebastião, o cego Balthasar Dias, poeta natural da
Madeira, publicou um grande numero de autos e outras obras, humildes
pelo estilo, mas com toques tão nacionaes e tão gostosos para o povo,
que ainda hoje são lidos por este com avidez. Correi as choupanas nas
aldeãs, as officinas e as lojas dos artifices nas cidades, e em quasi
todas achareis uma ou outra das multiplicadas edições dos _Autos de S.
Aleixo_, _de S. Catherina_ e da _Historia da Imperatriz Porcina_, tudo
obras d'aquelle poeta cego do seculo XVI.

Este era o theatro verdadeiramente nacional até o anno de 1600, em que
floresceu Simão Machado, auctor do _Cerco de Diu_ e da _Pastora Alfêa_.
Muitas composições d'este genero se perderam, ou não chegaram á nossa
noticia, como os Autos de Antonio Pires Gonge, de Sebastião Pires, e de
António Peres, que dizem que escrevera mais de cem dramas. O auto do
_Fidalgo de Florença_, composto por João de Escobar, no reinado de D.
Sebastião, teve nesse tempo grande celebridade, e se imprimiu repetidas
vezes: porém d'elle ainda não encontrámos um unico exemplar.

Emquanto assim a escola formada por Gil Vicente progredia, e, em nosso
entender, se aperfeiçoava, independente de estranha influencia, poetas
de grande nome trabalhavam por introduzir em nossa litteratura as fórmas
do theatro grego ou romano. Francisco de Sá de Miranda escreveu duas
comedias intituladas _Vilhalpandos_ e _Os Estrangeiros_, as quaes se
imprimiram, depois de sua morte, em 1560 a primeira, e a segunda em
1569. Nestas procurou elle seguir as pisadas de Planto e Terencio, como
o confessa no prologo dos _Estrangeiros_, e com effeito ellas se podem
comparar com as dos dois comicos latinos. Antonio Ferreira compôs quasi
pelos mesmos tempos as comedias _Bristo_ e _Cioso_ e a tragedia _D.
Ignez de Castro_, a segunda que appareceu na Europa conforme a todas as
regras classicas, sendo a primeira a _Sophonisba_ do poeta italiano
Trissino; mas a de Castro é superior; e nós a temos por um milagre
dramatico, attendendo á falta de modelos modernos e ao seculo em que foi
escripta. O illustre Camões tambem nos deixou, com o titulo de autos,
duas comedias--_Os Amphytrioens_ e _Filodemo_, das quaes a primeira é
quasi uma traducção de Plauto. Desde esta epocha o theatro português foi
caindo e podemos dizer que nunca mais tornou a restaurar-se.




*Novellas de cavallaria Portuguesas*

PANORAMA

1838-1840




*Novellas de Cavallaria Portuguesas*


I

Amadis de Gaula


As idéas de honra, de valentia e de amor, que occupavam quasi
exclusivamente os espiritos durante a edade média, reproduziram-se em
todas as fórmas sociaes e instituições d'aquella brilhante epocha: o
sentimento religioso traduzia-se em cruzadas ou em guerras de seitas: o
do prazer em justas, torneios e caçadas, que eram imagem da guerra, ou
em serões, onde os themas inexgotaveis dos trovadores eram ou amores ou
armas: as leis apesar de terem a sua principal origem no direito
canonico e depois no romano, lá abriam a liça aos combates judiciarios:
as habitações eram castellos, e os adornos dos aposentos corpos de armas
pendurados, lanças, e razes, onde as mãos das donzellas tinham lavrado a
historia de combates. Neste predominio exclusivo de certas idéas, como
escaparia a litteratura de ser dominada por ellas? Assim, depois das
cantigas dos trovadores, vieram os _rimances_ mais longos, os poemos e
as novellas de cavallaria. Era esta a litteratura d'aquelles seculos,
nem outra podia ser: a imaginação dos poetas e novelleiros não
alcançaria espraiar-se além das fórmas da sociedade de então; porque a
litteratura de todas as epochas sem exceptuar a nossa, não é mais do que
um echo harmonioso, ou um reflexo resplendente das idéas capitães, que
vogam em qualquer d'ellas. As aventuras, os amores, os feitos d'armas
dos heroes do Boiardo eram a imagem, vista através de um prisma, dos
homens do XV seculo: a ancia de liberdade descomedida, a misantropia, os
crimes, a incredulidade dos monstros de Byron são o transumpto medonho e
sublime d'este seculo de exaggerações e de renovação social.

O prazo durante o qual os portugueses tocaram a meta do espirito
cavalleiroso, e o conservaram em toda a pureza e vigor, prolongou-se por
obra de um seculo, desde os ultimos annos do reinado d'el-rei D.
Fernando até o d'el-rei D. Affonso V. Antes d'esse tempo nossos avós
eram demasiado rudes para conceberem e reduzirem a inteira practica a
concepção immensamente bella da cavallaria; depois d'elle, eram muito
cidadãos para serem cavalleiros. D. Alvaro Vaz d'Almada caindo morto na
batalha de Alfarrobeira era o symbolo da cavallaria expirando nas
paginas da ordenação affonsina. Nesta compilação indigesta e
essencialmente contradictoria da legislação de tres seculos, não bastava
o ser inserido o velho regimento de guerra português, emendado por
jurisconsultos, para salvar da morte a cavallaria, que outras
disposições d'esse codigo indirectamente assassinavam. Nisto como em
quasi tudo o mais, das actas das côrtes portuguesas anteriores a D. João
II e da ordenação affonsina, se póde extrahir toda a substancia
philosophica da historia dos primeiros tres seculos da monarchia.

Se o espirito puro de cavallaria dominou tão largo periodo, os
_cavalleiros-modelos_ (permitta-se-nos a expressão) foram só os que se
crearam na côrte de D. João I; e a poetica ficção dos Doze de Inglaterra
pinta a epocha em que se diz succedera essa aventura. Cavalleiros
andantes portugueses houve-os nos seculos anteriores; mas a cortesia, a
louçainha, e a galantaria que caracterizam a verdadeira cavallaria só as
amostra a nossa historia nos guerreiros indomaveis, que na batalha de
Aljubarrota formavam o esquadrão brilhante chamado a _Ala dos
Namorados_. Eram estes guerreiros que faziam aquelles _votos denodados_,
em demanda de cuja execução muitas vezes perdiam a vida: eram estes que,
discorrendo pelas terras estrangeiras, ahi deixavam perenne memoria de
seus esforçados feitos.

Foi na luzida côrte do mestre de Aviz onde achou a cavallaria de toda a
Europa o seu Homero em Vasco de Lobeira. Como antes d'aquella houve
poetas, assim antes d'este houve romancistas; como Homero eclypsou a
memoria dos cantos dos seus antecessores, assim Lobeira fez esquecer as
mal tecidas invenções dos mais antigos novelleiros, e o _Amadis de
Gaula_ é a primeira e a principal novella no extensissimo catalogo dos
contos de cavallaria.

Poucas memorias nos restam acêrca de Vasco de Lobeira. Sabe-se que foi
natural do Porto, e armado cavalleiro por D. João I antes de começar a
batalha de Aljubarrota. Viveu a maior parte da sua vida em Elvas, e
morreu em 1403.

Escripto muito antes da invenção da imprensa, o _Amadis_ correu
manuscripto até o tempo de D. João V; porque os nossos antepassados
nunca tiveram a curiosidade de o imprimir. Foram assim escasseando as
copias d'elle, e nos ultimos tempos se havia tornado tão raro que apenas
se lhe conhecia um ou dois exemplares. O conde da Ericeira, testemunha
acima de toda a excepção, o viu, e o abbade Barbosa diz que o proprio
original estava na livraria dos duques de Aveiro. O fatal terremoto de
1755 fez desapparecer este monumento precioso da nossa litteratura, e
tudo nos incita hoje a crêr que se perdeu para sempre.

Mas, se já não existe o original, existem as versões d'elle, ainda que
alteradas pelos traductores. Trasladado em hespanhol se publicou em
Sevilha em 1510. Vimos esta traducção, de que ha um exemplar na
bibliotheca publica da cidade do Porto; e bem sentimos não ter tomado
d'ella varias notas, que de grande utilidade nos foram para o que vamos
dizer. Lemos ultimamente a edição de Garciordonez de Montalvo, impressa
tambem em Sevilha, em 1526, da qual nenhum bibliographo, que nós
conheçamos, faz menção. Segundo o abbade Barbosa as edições do _Amadis_,
vertido em hespanhol, se repetiram em 1539, 1576 e 1588.

Esta novella tambem appareceu em 1540, traduzida em francês e
accrescentada por Nicolau de Herberay: em 1583 a publicaram os alemães
na sua lingua; e Bernarda Tasso, pai do grande Tasso, a reduziu em
italiano quasi por esse mesmo tempo, fazendo um poema riquissimo de
versos pomposos, e... de dormideiras. Esta acceitação unanime das
diversas nações é o maior elogio que se podia fazer á obra do nosso
Lobeira.

O _Amadis_, como hoje o conhecemos, na antiga versão hespanhola, consta
de quatro livros, o ultimo dos quaes foi grandemente alterado por
Garciordonez, segundo elle mesmo diz: "Corrigi (são palavras do prologo)
estes tres livros do Amadis, que por culpa dos máus escriptores ou
compositores mui corruptos e viciados se liam, e _trasladei_ e emmendei
o livro 4.^o". Estes quatro livros, traduzidos tambem em francês, foram
continuados por diversos auctores, constando hoje a obra de vinte e
quatro.

Sendo impossivel dar uma idéa do _Amadis de Gaula_, teia immensa de
aventuras, que ao modo das do Ariosto formam um labyrintho inextricavel,
buscaremos ao menos dar a conhecer o tempo e o logar da acção, e o seu
principal actor, com a brevidade a que nos constrangem os limites do
_Panorama_.

A epocha escolhida pelos romancistas de cavallarias para nella
collocarem os seus heroes fabulosos é indeterminada em todas as
novellas. A do _Amadis_, ainda que bastante incerta, é menos vaga. O
heroe viveu muito antes do celebre Arthur ou Artus, rei de Inglaterra:
mas já quando este país e o de França eram christãos. É o que se lê no
1.^o capitulo do _Amadis_, e sendo assim este guerreiro floresceu no VI
ou VII seculo; e como a maior parte dos romances de cavallaria, que
ainda existem, versam sobre a vida dos seus imaginarios descendentes,
podemos tambem para elles estabelecer, ainda que imperfeitamente, uma
especie de chronologia.

O theatro em que se passam as aventuras de _Amadis de Gaula_, é um
theatro quasi tamanho como o mundo conhecido no tempo de D. João I. O
heroe e os mais cavalleiros seus contemporaneos cruzavam mares extensos,
peregrinavam centenares de leguas, com a mesma rapidez e facilidade com
que nós fazemos visitas dentro de Lisboa. Esta commodidade
aproveitaram-na todos os novelleiros que vieram depois de Lobeira; e
para as distancias que seria incrivel fazer correr em curtissimo prazo a
um cavalleiro, lá estavam as magas e os encantadores, especie de espada
de Alexandre, que o escriptor sempre tinha á mão para cortar todos os
nós gordios que embaraçavam as narrações.

Não nos cabendo neste logar tudo o que temos de dizer acêrca do
_Amadis_, o deixaremos para segundo artigo, continuando nos subsequentes
com a historia das outras novellas de cavallaria portuguesas.


II

Amaclis de Gaula

(Continuação)


Promettemos no antedecente artigo dar uma brevissima idéa d'esta
primeira novella de cavallaria: cumpri-lo-hemos aqui, tocando depois um
ponto em que de proposito deixámos de falar, e vem a ser a célebre
questão acêrca de saber se esta novella é obra de um auctor português,
hespanhol, ou francês. Todas estas tres nações a pretendem para si; e na
contenda os portugueses parece estarem peior que os seus adversarios,
visto já não existir o original. Mas, ao cabo, são elles que teem razão,
segundo nosso entender; e por isso não duvidámos de attribuir o _Amadis_
a Vasco de Lobeira.

O rei Perion reinava na Gaula (França): o rei Garinter na Pequena
Bretanha, hoje a provincia de França d'este nome. Levado pelo desejo de
conhecer Garinter intenta Perion uma longa viagem[11]; e com efteito o
encontra numa caçada; dão-se a conhecer um ao outro, e Perion é
conduzido á corte do seu novo amigo. Tinha este uma filha chamada
Elisena, que se namora de Perion, o qual d'ahi a pouco parte para a
Gaula, deixando-a gravida. Ella para esquivar-se á infamia entrega o
fructo dos seus amores á mercê das ondas, encerrado em uma caixa. Foi
este Amadis. Encontrado por uma barca em que ía Gandales, cavalleiro
escocês, este o salva e cria com seu filho Gandalim, depois escudeiro de
Amadis. Os dois moços são levados á côrte de Languines, rei da Escocia.
Aqui viu a Amadis el-rei Lisuarte, que de Dinamarca vinha reinar em
Inglaterra, o qual deixou na côrte de Languines a sua filha Oriana. Foi
então que começaram os amores d'esta princeza com Amadis, que são o
principal objecto da novella. Amadis é reconhecido por seu pai Perion,
já casado com a filha de Garinter, e cresce em poder e renome. Mil
difficulclades se alevantam para elle chegar a possuir Oriana, as quaes
vence com repetidos actos de generosidade e valentia. Emfim o romance
acaba de um modo incompleto com os trabalhos que nos seus ultimos annos
cercaram a el-rei Lisuarte.

É esta, em summa, a materia que enche o volumoso romance de _Amadis_,
novella cheia de muitas paginas fastidiosas, mas tambem de muitas que
grandemente excitam a curiosidade. O estylo em que está escripto é o de
uma velha chronica do seculo XV, e notamos nelle uma grande similhança
com os escriptos do pai da nossa historia, o singelo chronista de João
I, Fernão Lopes, que tantas vezes se mostra mais poeta que muitos que se
arrogam este titulo.

Traçado um leve esboço da novella de _Amadis de Gaula_, segue-se tractar
a questão de saber se a devemos attribuir a um escriptor português.

Primeiro que tudo, é de notar que a tradição constante em Portugal foi
sempre que o _Amadis_ fôra composto por Lobeira. Antonio Ferreira e o
dr. João de Barros, que escreveram no seculo XVI, não duvidam dá-lo por
certo: o conde da Ericeira numa conta dada á academia de historia, de
certa colleção de livros que andava examinando, diz que ali se achava um
manuscripto do _Amadis_, sem que sobre isso faça admiração ou reparo; o
que parece provar que naquella academia nenhuma duvida havia acêrca da
existencia da novella, no original português. Mas não era só nossa esta
opinião: a maior parte dos escriptores hespanhoes convem em attribuir a
Lobeira o _Amadis de Gaula_.

Pretendem os franceses (não todos os que na materia teem escripto) que
esta novella fôra traduzida em hespanhol do idioma picardo, e Herberay
diz a vira nesta lingua: mas isto nada prova. Quem impedia que os
franceses traduzissem o original de Lobeira? A outra objecção contra nós
é ter feito o auctor os seus heroes franceses e ingleses; mas isto
tambem nada prova: por que prova de mais. Os ingleses teriam ainda mais
razão para pedirem a gloria d'esta obra, visto que, apesar de ser
francesa a personagem principal, a maior parte dos acontecimentos
põe-nos o auctor em Inglaterra, e quasi todos os cavalleiros notaveis
são d'este país, á excepção de Amadis e seu irmão Galaor. O certo é que
Lobeira, tendo vivido no tempo de el-rei D. Fernando I e de D. João I,
tinha visto as proezas que em Portugal obraram os cavalleiros ingleses,
a quem devemos os progressos que então fizemos na arte da guerra. Devia
elle fazer portanto alta idéa da cavallaria d'aquella nação. Nada havia
mais natural do que fazer da Inglaterra o theatro das façanhas dos seus
imaginarios heroes. Como, porém, o agente principal de todos os
successos devia ser o amor, naturalissimo era que o auctor buscasse um
principe estrangeiro que viesse tornar brilhante a côrte inglesa, com
seus amores pela dama principal, a filha de Lisuarte, que não poderia
aliás corresponder á affeição de um subdito de seu pai. Eis a razão
obvia porque Amadis é francês.

Alem d'estas observações ha uma principal, que ainda ninguem, que nós
saibamos, se lembrou de fazer: o examinar em si a novella, para ver se
das suas proprias entranhas se podia arrancar a certeza da sua origem.
Se isto se tivesse feito, a questão estaria de ha muito decidida.

Citámos mui de proposito no primeiro artigo as palavras de Garciordonez,
que diz emendara os tres livros de _Amadis_, que andavam viciados, e
_trasladara_ o quarto. Aqui o verbo _trasladar_, é claro que não póde
significar senão traduzir, o que mostra a olhos desapaixonados que a
obra não era originalmente hespanhola.

Seria francesa?--Dizemos, sem duvida alguma, que não. Perion encontrando
Garinter diz-lhe que viera de mui remotas terras para o vêr. Era
possivel acaso que um escriptor francês fizesse o rei da Pequena
Bretanhi desconhecido do da França, e pusesse na boca d'este um tão
descompassado erro geographico? Além d'isto Perion e Lisuarte reunem
_côrtes_, nos casos difficeis e circumstancias importantes: nestas
côrtes apparecem, não os barões das antigas assembleas feudaes da
Inglaterra e França, mas os _ricos-homens_ e _homens-bons_ das côrtes
portuguesas. Emfim o auctor descreve a passagem do canal de Inglaterra
como uma viagem de nove dias com vento favoravel. As frequentes relações
de guerra e de paz entre a Grã-Bretanha e a França permittiam porventura
que ignorasse um escriptor francês a distancia de um a outro país?

Nós poderiamos accrescentar muitos outros exemplos d'esta natureza; mas
cremos serem de sobejo os que apontamos, para que á nação portuguesa
seja cedida a palma de ter saído da penna de um escriptor seu a mais
antiga e mais celebre das novellas cavalheirescas.


III

Novellas do seculo XV


Quando escrevemos os dois primeiros artigos acêrca das novellas de
cavallaria portuguesas,[12] era nossa intenção continuar sem demora a
publicação do breve resumo, que encetámos d'esta parte da nossa historia
litteraria, por ser aquella sobre a qual menos se tem escripto. Mas por
isso mesmo era preciso fazer maiores indagações, que outros trabalhos
nos não permittiam. Abrimos pois, mão do intento que hoje continuamos a
pôr por obra: não porque julguemos sufficiente o que temos colligido,
desde então para cá, sobre a materia; mas porque mais valem poucas
noticias que absolutamente nenhumas.

Antes que passemos adiante cumpre-nos accrescentar aqui alguma coisa
acêrca do _Amadis_, de que largamente falámos nos artigos já publicados,
e vem a ser um testemunho que corta por uma vez a questão da sua
originalidade. Este testemunho é o de Gomes Eannes de Azurara,
historiador que os nossos leitores já conhecem[13], e que diz o seguinte
no capitulo 63 da chronica do conde D. Pedro de Menezes--«e assy o livro
d'Amadis, como quer que sómente este fosse feito a prazer de um homem,
que se chamava Vasco Lobeira em tempo d'el-rei D. Fernando, sendo
toda-las cousas do dito livro fingidas do auctor»--Este logar de um
escriptor, a bem dizer coevo, deve tirar a última sombra de duvida sobre
a nacionalidade do celebre _Amadis de Gaula_.

Assim como a côrte de D. João I foi a eschola dos mais famosos
cavalleiros de Portugal, assim a epocha do seu reinado se pode
considerar como a mais favoravel para as letras, que Portugal viu, até o
tempo de D. Manuel. D. Duarte, o bom e infeliz D. Duarte,
proporcionalmente o mais instruido dos nossos reis, não teve que ir
aprender, nem virtudes, nem cavallaria, nem sciencias nas côrtes
estrangeiras, porque as virtudes de que foi ornado, e os vastos
conhecimentos que possuiu, adquiriu-os na de seu illustre pai. O infante
D. Pedro, principe grande entre os maiores que Portugal tem gerado, se
correu o mundo foi para encher de assombro os sabios com sua sciencia,
os valorosos com seu valor.

O infante D. Henrique ha ahi quem não o conheça? Quem não conheça o
fundador da nossa gloria maritima? Certo que não. Nome é esse que nunca
esquecerá. E todavia de todos os quatro filhos de João I (contando o
infante D. Fernando) é elle quem occupa o logar mais baixo na escala das
virtudes, e porventura na sciencia apenas lhe caberá o terceiro depois
de D. Duarte e D. Pedro.

E ainda o infante D. Fernando, esse pobre cavalleiro da cruz a quem a
nação ousou negar o resgate, preferindo alguns palmos de terra cingidos
de muralhas, á liberdade e á vida de um homem leal, que bem a servira,
antepondo uma infamia a uma perda, talvez facil de remediar; ainda,
dizemos, o bom infante sancto, o martyr resignado da patria e da fé,
quão amigo e protector foi das letras e dos que as cultivavam! Fernão
Lopes e Fr. João Alvarez foram feitura sua; e, provavelmente, não nos
honrariamos hoje d'esses dois homens, dos quaes um deu o primeiro
impulso á nossa linguagem historica, e outro á nossa linguagem oratoria,
se a boa sombra de D. Fernando os não fizesse medrar. Leia-se o
testamento que fez quando mancebo partiu para a Africa, e ver-se-ha
quantos e quão notaveis livros possuia o infante; numa epocha em que,
não existindo a typographia, muitas vezes em países então semi-barbaros,
como por exemplo a Inglaterra, era necessario empenhar um castello ou um
solar inteiro para obter a copia de qualquer livro. E todavia, de todos
os quatro irmãos D. Fernando é o menos conhecido na nossa historia
litteraria.

Os vestigios da litteratura portuguesa do periodo que decorre desde os
principios do reinado de D. João I até o de D. Affonso V são
innumeraveis; mas são apenas vestigios. Das artes ahi está a Batalha, e
ainda apesar de conegos, S.^{ta} Maria de Guimarães, dizendo o que em
Portugal foi essa era de toda a casta de glorias, a que vertendo sangue,
se acolhem os corações que por ora não renegaram do nome português, hoje
vilipendiado e arrastado por tabernas e monturos d'estrangeiros. Dos
monumentos, porém, da nossa velha litteratura apenas restam alguns
nomes, e alguns titulos ou fragmentos d'obras, consumidas por incuria
propria, e por terremotos e incendios, ou roubadas por castelhanos,
franceses, ingleses, e, emfim, por todos aquelles que teem querido tomar
o leve trabalho de arrebatar, ou pôr em almoerla as preciosidades dos
nossos cartorios, bibliothecas e museus.

Do já citado testamento do infante D. Fernando, do de Diogo Affonso
Mangancha, do inventario de Vasco de Sousa, do catalogo da livraria
d'el-rei D. Duarte, e de muitos outros documentos publicados e ineditos,
bem como de varias passagens dos nossos chronistas, e ainda mais dos
historiadores monasticos, se vê quão grande era em Portugal o tracto dos
livros, numa epocha, que por ahi se chama barbara, porque era de grandes
virtudes. E não se creia que esses livros eram só latinos: pelo
contrario, a maior parte estava escripta nas linguas vulgares de
Hespanha, principalmente na portuguesa. As obras de Cicero foram
traduzidas pelo infante D. Pedro, e por sua ordem o livro do Regimento
dos Principes. Só a lista das obras d'el rei D. Duarte espanta pela
variedade de materias em que este rei philosopho empregou a sua penna
nada rude. Marco Paulo já estava traduzido no seu tempo. O livro da
côrte imperial prova que naquella epocha se tractavam em vulgar as
arduas materias de theologia polemica. Levantavam-se cartas
topographicas do reino, se é que os _Cadernos das cidades e villas de
Portugal_, que existiam na livraria d'el-rei D. Duarte, não eram antes
uma especie de estatistica, o que, em nosso entender, mais admiravel
fôra. Então, Diogo Affonso Mangancha, Fr. Gil Lobo, os dominicanos Fr.
Rodrigo e Fr. Fernando d'Arrotea, e tantos outros oradores, faziam
descer do alto dos pulpitos palavras de eloquencia e de uncção, que
chegavam ao fundo dos corações, como se viu nas exequias de D. João I.
Estudava-se a philosophia e a historia, de que dão testemunho os livros
philosophicos, e historiadores romanos e modernos da mesma livraria
d'el-rei D. Duarte. Emfim o ensino da jurisprudencia, trazido de Italia
por João das Regras, produziu uma multidão de jurisperitos, a quem
depois Portugal deveu grande parte da legislação, excellente para
aquelle tempo, que se encontra no codigo affonsino.

Que resta de tantos homens e coisas? Esse codigo, que serviu de base aos
que o substituiram. Dos livros que ajunctou D. Duarte apenas sabemos da
existencia do intitulado _Côrte Imperial_ e de um fragmento do
_Regimento de Principes_. Tudo o mais quasi com certeza se poderia
talvez dizer, que, ou o tempo o consumiu, ou jaz sepultado por
bibliothecas estrangeiras, como succede ás obras do mesmo monarcha.

Na sua já citada livraria existiam quatro obras que pelos titulos se vê
serem novellas de cavallaria. Eram estas o _Livro de Tristão_, _O
Merlim_, o _Livro de Galaz_, e o _Livro d'Hannibal_. O referido
catalogo, que apenas merece o nome de rol, só declara expressamente ser
em português o _Livro d'Hannibal_. Incrivel é quasi que o _Amadis_
ficasse sem imitadores, e poder-se-ia conjecturar que alguma das citadas
novellas fosse original portuguesa. De todas, porém, temos achado rastos
nas litteraturas estrangeiras, vindo por tanto, a serem provavelmente
todas ellas traducções do normando-saxonio (inglês), ou com mais
probabilidade da lingua d'Oil (francesa) ou da lingua d'Oc (provençal).

Para intelligencia d'esta nossa opinião poremos aqui resumidamente uma
idéa geral dos romances ou novellas de cavallaria.

Os que teem escripto acêrca d'esta materia, e nomeadamente Sismondi,
dividem todos os romances em três classes ou cyclos, conhecidos pelos
nomes das primeiras personagens d'essas series de novellas, que partindo
da historia de cada um d'aquelles heroes, continuavam pela de seus
filhos e netos, alliados, ou inimigos indefinitamente. Estas tres
classes são a das novellas de Amadis, a das de Artus, ou Arthur
d'Inglaterra, e a das de Carlos-Magno. Todavia parece-nos que esta
classificação é imperteita. Dividiriamos antes essa multidão de romances
em cinco cyclos ou classes: a de _Artus_, a do _Sancto-Brial_, a de
_Carlos-Magno_, a de _Amadis_, e a dos romances a que podemos chamar
greco-romanos, porque eram as vidas dos heroes antigos, que davam
materia ás invenções dos novelleiros. Não esconderemos que a do
_Sancto-Brial_ está tão ligada á de _Artus_, que se confunde com esta;
mas logo diremos porque nos parece dever-se d'ella separar.

Os romances de _Artus_ ou da _Tavola-redonda_ são a historia fabulizada
do famoso Arthur, ultimo rei d'Inglaterra, da raça dos bretões, e que
defendeu valorosamente o seu país da invasão dos anglo-saxonios. Esta
serie de novellas começa no romance de Bruto, composto por micer Gasse
em 1155; a ella pertence o romance de Merlin, filho de uma dama bretã e
do diabo, no qual se contam as guerras de Uter e de Pandragon, o
nascimento de Artus, e a instituição da Tavola-redonda, isto é, de uma
especie de doze pares ingleses, que costumavam comer como _eguaes_ em
uma _mesa redonda_ nos paços d'el-rei Artus: a historia de Tristão de
Leonis tambem pertence a este cyclo, sendo Tristão um dos cavalleiros da
Tavola-redonda; e estes dois romances cremos nós que eram os que
existiam traduzidos na livraria de D. Duarte: no mesmo cyclo entram as
novellas de Meliot de Logres, Melinus de Dinamarca, Micer Galvão,
Lancelote do Lago, Vigalois, Vigamor, e Daniel de Valdeflores, e muitas
outras que fôra longo enumerar.

Os romances do Sancto-Greal, Gral, ou Graal (que os nossos escriptores
chamam erradamente Santo Brial) formam um cyclo bastante ligado com o
antecedente, mas distincto pelo pensamento que presidiu á sua invenção.
O Sancto-Greal (derivado de _Sang-réal_, ou _Sanguis-réalis_) era o vaso
ou copa em que Jesu-Christo tinha comido com os seus discipulos na noite
da cêa, e em que José d'Arimathea tinha, segundo a tradição dos
novelleiros, recolhido o sangue derramado pelo Senhor na cruz; vinha
assim esta copa imaginaria a ser o mesmo que o Sancto-Catino que os
genovezes se gabaram de ter trazido da terra sancta. Este precioso vaso
estava guardado, segundo os romancistas, em um templo na Hespanha, num
sitio desconhecido, e só os cavalleiros escolhidos por Deus podiam
atinar com elle. Para isto era necessario que se alevantassem á maior
alteza, não só de feitos de armas, mas de virtudes moraes. Vê-se,
portanto, que o pensamento d'estes romances era uma allegoria religiosa,
um typo do alvo em que devia cada cavalleiro pôr a mira do seu
procedimento para merecer tal nome, ou para ser _escolhido_ de Deus[14].
A este cyclo pertencem o Perceval, Lohengrin, Titurel, e uma parte dos
romances da Tavola-redonda, porque muitos dos cavalleiros de Artus
trabalhavam por conquistar o Sancto-Greal, que, segundo escrevem alguns
dos novelleiros d'esse cyclo, tinha sido levado para Inglaterra. O
primeiro e principal romance do Sancto-Greal foi escripto por Christiano
de Troyes no seculo XII, e existe manuscripto na bibliotheca real de
Paris, na sua fórma original, que é em verso.

O cyclo dos romances de Carlos Magno começa com a chronica fabulosa do
arcebispo Turpin, publicada em 1566, por Echardt, mas escripta, segundo
a opinião mais seguida, no undecimo ou duodecimo seculo. Este livro
passou muito tempo por historico, e as fabulas nelle contidas foram
inseridas como authenticas nas chronicas de S. Dinis, recopiladas por
ordem do celebre abbade Sugerio, nos fins do seculo XII:[15] mas depois
das cruzadas, a obra attribuida a Turpin não serviu mais senão como de
éllo de uma multidão de novellas relativas aos suppostos pares de
França, ou paladinos de Carlos-Magno. O romance de Bertha, o de Ogeiro
de Dacia, e de Cleomadis, o de Reinaldos de Montalvão, o dos quatro
filhos d'Aymão, o de Flora e Brancaflor, o do gigante Morgante, e varios
outros, de que se aproveitaram Boiardo, Ariosto, Pulci, e os mais poetas
romancistas d'Italia pertencem a este cyclo.

O cyclo dos romances do Amadis começa por o d'aquelle nome, e
pertencem-lhe todas as emitações que d'ellese fizeram, e das quaes, a
mais notavel é o Amadis de Grecia. Florismarte d'Hircania, Galaos,
Florestam, as Sergas de Esplandiam, o D. Duardos, os Palmeirins d'Oliva
e d'Inglaterra, e muitissimos outros entram nesta divisão. É esta
especie de novellas de cavallaria propriamente hespanhola. A maior parte
d'ellas foram compostas nos idiomas da Peninsula, e muitas nem d'aqui
saíram. Desgraçadamente os continuadores e emitadores de Lobeira foram,
por via de regra, faltos de talento e cheios de máu gosto. D'ahi veio a
graciosa justiça que d'elles fez Cervantes por mãos do cura, no seu
inimitavel D. Quixote.

A ultima classe de romances de cavallaria é aquella em que as
personagens e successos da historia antiga, conhecidos imperfeitamente,
davam largueza á imaginação dos novelleiros, que revestiam essas
personagens dos costumes, crenças e opiniões da edade-média, e
affeiçoavam esses successos pelas instituições da cavallaria, enxerindo
até os heroes da Grecia e de Roma, nas familias fabulosas dos Artus e de
Amadis. Pertencem a este cyclo os romances d'Alexandre, descendente
d'el-rei Artus, o d'Eneas, o da guerra de Troia (do qual segundo parece,
tambem existia uma traducção em aragonês na livraria de D. Duarte) e
outros, com os titulos dos quaes escusado é encher papel.[16] Em alguma
d'estas cinco classes entram naturalmente todas as novellas de cuja
existencia em Portugal, no principio do seculo XV, temos noticia. O
_Merlim_ e o _Livro de Tristão_ indicam pelo seu simples titulo, serem,
quando muito, versões dos dois romances do cyclo da Tavola-redonda,
conhecidos por aquelles nomes. O livro de _Galaaz_ com toda a
probalidade não era mais que a historia de _Galaad_, filho de Lancelote
do Lago, pertencente ao mesmo cyclo. E finalmente o livro d'_Hannibal_
seria uma traducção de alguns dos numerosos romances do cyclo
greco-romano.

Nem nos admiremos de que na livraria d'el-rei D. Duarte predominassem os
romances da Tavola-redonda. Todos sabem que sua mãi, a rainha D.
Philippa, era inglesa, e nada mais natural do que ella e as pessoas da
sua nação, que com ella vieram a Portugal, fizessem conhecer essa classe
de novellas que, mais que nenhumas, lisongeavam o amor proprio dos
ingleses.

De outras obras se faz menção no indice d'aquella livraria, que
vehementemente suspeitamos serem novellas de cavallaria; mas não
passando esta opinião de mera suspeita, guardaremos sobre isso silencio.

Desde a epocha de D. Duarte até o principio do reinado de D. Manuel
nenhum rasto temos encontrado d'este genero de litteratura. Foi em 1496
que se publicou a _Estoria do muy nobre Vespasiano emperador de Roma_,
livro de que démos noticia a pag. 164 do 1.^o volume d'este jornal.

Esta _Historia de Vespasiano_, que examinámos por permissão do nosso
erudito collega o sr. Vasco Pinto de Balsemão, e da qual o unico
exemplar que existe pertence á bibliotheca publica da côrte, não é senão
uma novella de cavallaria, pertencente ao cyclo greco-romano. Ha ahi, na
verdade, alguns factos historicos, mas os costumes, e as
particularidades da narração não passam de meras ficções. Que a obra
seja uma traducção, não nos parece duvidoso. Na subscripção d'ella se
diz que fôra ordenada «por Jacob e Josep abaramatia, que a todas
aquellas cousas foram presentes». Isto indica bastantemente a origem
estrangeira do livro. Se, porém, nos lembrarmos de que José de
Arimathea, figura nos romances do Santo-Greal, como tendo recebido o
sangue de Christo nesse celebre vaso, é naturalissimo que o novelleiro,
auctor da historia de Vespasiano, se lembrasse de lhe attribuir a
propria composição, tanto mais que era quasi como lei entre os
romancistas dar uma origem mysteriosa, ou ao menos remota, ao fructo das
suas imaginações.

Accresce, para mais fundamentar a nossa opinião, que Mr. Fauriel
menciona uma _historia romance_ da destruição de Jerusalem por
Vespasiano, escripta em provençal, e que elle classifica como livro
connexo com o cyclo das novellas do Santo-Greal. Este romance, que,
segundo nossa lembrança, existe manuscripto na Bibliotheca Nacional de
Paris, é com toda a probabilidade, o original da novella portuguesa.

Eis o que temos podido alcançar acêrca dos romances de cavallaria em
Portugal, durante o seculo XV. Outros mais habeis e mais felizes terão
chegado a maior profundidade com as suas indagações. Trouxemos á praça,
em proveito commum, a nossa pobreza. Não eramos a mais obrigados.

No artigo subsequente falaremos dos romances de cavallaria portugueses,
no seculo XVI.[17]




*Historia do Theatro Moderno Theatro Hespanhol*

PANORAMA

1839




*Historia do theatro moderno Theatro hespanhol*


I

Ha um anno a esta parte que o theatro começa a ter entre nós a
importancia que ha muito tinha entre as outras nações da Europa.
Acontecimentos, vulgarmente sabidos e que não veem ao nosso proposito,
contribuiram para que a reforma do theatro, em todas as suas partes, que
em todas d'ella carecia[18], excitasse o espirito publico: os periodicos
falam já das actuaes representações, e julgam, bem ou mal, não só as
novas tentativas litterarias que se teem feito, mas o modo porque são
levadas á scena e executadas pelos actores: e não são, por certo, esses
artigos os que se lêem com menos avidez.

No segundo numero do Panorama démos nós uma noticia do nosso theatro,
precedida de alguns breves paragraphos acerca do theatro das outras
nações: na conjunctura actual parece-nos que não será fóra de propósito
o continuar aquelle artigo com mais alguns sobre a arte dramatica dos
demais povos, cuja litteratura tem relação com a nossa, e como do
theatro hespanhol veiu o português, conforme o que dissémos falando das
origens d'este, será da origem e progresso do drama hespanhol, que
tractaremos em primeiro logar.

Em Hespanha, como nos outros países, foi a egreja que fez nascer o
drama: todavia a primeira representação, a que estrictamente se póde
chamar theatral, e de que ha menção nos annaes de Hespanha, é a que se
fez em 1414, na festa da coroação de Fernando o bom, rei de Aragão. Foi
composta pelo marquez de Vilhena, e só sabemos que era uma peça
allegorica, em que figuravam a Justiça, a Paz, a Verdade, e a Clemencia,
de modo que pertencia á classe das _moralidades_, que tiveram voga por
algum tempo, na infancia da arte dramatica hespanhola, e que depois
Cervantes fez reviver. Pouco depois d'esta tentativa de Vilhena, o seu
amigo, o marquez de Santilhana, homem, como elle, de grande saber e de
idéas claras, reduziu a drama, com o titulo de _Comedieta de Ponza_, os
incidentes de uma batalha naval, dada em 1435, juncto á ilha de Ponza,
entre os aragoneses e genoveses, em que estes ficaram vencedores. O
drama nunca foi representado nem impresso com as demais obras d'este
auctor, e só se sabia da sua existencia pelas cartas do marquez, até que
o sr. Martinez de-la-Rosa, o grande poeta hespanhol nosso contemporaneo,
o descobriu entre os manuscriptos da bibliotheca real de Paris. Esta
curiosa reliquia das primeiras tentativas do genio dramatico hespanhol é
notavel pela habilidade que nella apparece, não só no modo de tractar um
facto historico, mas tambem no enredo, dialogo, e versificação.

Foi pelos fins do seculo XV que em Castella se estabeleceu uma especie
de theatro. Os primeiros ensaios dramaticos nesta parte da peninsula,
fê-los João de la Encina, mui conhecido pelas suas poesias soltas, e
cujas obras formam por si só um cancioneiro. Depois de alargar os
limites das representações religiosas, compondo varios autos, onde não
sómente se acham paraphrases da biblia, mas tambem invenções do poeta,
formou o projecto de fazer saír o drama dos objectos religiosos, para o
que compôs pequenas peças pastoraes, que denominou eclogas. Estas peças,
em que elle proprio fazia os principaes papeis, se representaram
primeiramente em casa do almirante de Castella, e da duqueza do
Infantado. Como a denominação o indica, ellas de nada mais constavam do
que de um dialogo entre dois ou mais pastores. O auctor, á imitação de
Virgilio, usou a primeira vez d'esta invenção para celebrar, por via de
allusões, algum acontecimento notavel, como a conclusão de pazes ou a
volta de algum principe; e depois inventou uma acção curta e simples, na
qual reduziu a drama as paixões das suas personagens. Estas pequenas
peças, cortadas por danças, e acabando com vilhancicos ou cantigas,
continham tambem alguma scena truanesca ou graciosa; de modo que nellas
entravam juntamente os elementos da tragedia, comedia e opera. Teem
estas primeiras tentativas bastante sal e agudeza, e ao mesmo tempo
naturalidade e viveza. A primeira representação d'estas comedias
pastoris fez-se em 1492, anno memoravel nos annaes de Hespanha, por ser
o da conquista de Granada e do descubrimento do Mundo Novo. Foi tambem
por este tempo que appareceu a famosa _Celestina_ de Rodrigo de Cota, de
que já falámos no primeiro artigo.

Os primeiros dramas regulares hespanhoes nasceram no principio do Seculo
XVI, e, o que é mais notavel, fóra de Hespanha. Um certo Torres Naharro,
residente em Roma, compôs alli varias comedias, que foram representadas
perante Leão X.[19] Nellas a invenção é feliz, os caracteres bem
traçados e o dialogo vivo, e contém algumas ousadias que neste auctor
não eram de admirar, porque, apesar de ser clerigo e de viver na côrte
pontificia, compôs satyras contra os ecclesiasticos, taes que Luthero
não estimaria pouco ser auctor d'ellas. Naharro compôs tambem uma arte
dramatica, a primeira que appareceu em castelhano: nella faz a
distincção da tragedia e da comedia, e divide esta em duas especies,
comedia de _noticia_, isto é, historica, e comedia de _phantasia_, isto
é, de imaginação: foi tambem elle que inventou os _introitos_ ou
prólogos e que deu aos actos a denominação de _jornadas_, seguida depois
constantemente pelos auctores hespanhoes nas divisões dos seus dramas.

As peças de Naharro, apenas appareceram em Hespanha, foram, prohibidas
pela inquisição, como succedeu ás pouco mais recentes de Christovam de
Castillego, secretario dos imperadores Maximiliano e Fernando.[20]
Estas, quando se imprimiram as obras de Castillejo, passados annos,
foram supprimidas e perderam-se de todo. Apresenta assim o theatro
hespanhol o phenomeno singular de ter tido duas infancias. Havendo sido
prohibidas, as primeiras tentativas de composições dramaticas regulares
não acharam imitadores, e até parece que inteiramente esqueceram, porque
no casamento de uma infanta de Castella, em 1548, foi uma peça de
Ariosto que se representou. Entretanto alguns eruditos, como Villalobos,
Oliva e outros, trabalhavam por apresentar os antigos como modelos
dramaticos, traduzindo as comedias de Plauto, Terencio e Aristophanes;
mas estas antigas composições casavam-se mal com o genio hespanhol, de
maneira que, emquanto as producções theatraes que a Hespanha possuia,
jaziam sepultadas nas livrarias dos curiosos, ou nos archivos da
inquisição, o povo se entretinha com as grosseiras caturrices dos
jograes truões. D'aqui nasceu que Schlegel, Bouterweek, Sismondi, e
quasi todos os criticos estrangeiros, ignorando até os nomes dos
primeiros escriptores dramaticos hespanhoes, não só d'elles não falam,
mas põem a origem do drama castelhano no meiado do seculo XVI.

O fundador do theatro hespanhol a que verdadeiramente se póde chamar
nacional e popular, foi Lopes de Rueda de Sevilha, que deixou o seu
officio de bátefolha para se ajunctar a uma companhia de comicos
ambulantes dos quaes foi brevemente o cabeça, ou, segunda a expressão
hespanhola, o _autor_. Este titulo, derivado, não do latim, _auctor_,
mas de _auto_, dava-se naquelle tempo ao que compunha e recitava peças;
e também lhe chamavam _maestro de hacer comedias_. Lope de Rueda tinha
ambas as castas de talento necessarias para ser um _autor_ d'aquella
épocha; ganhou por isso grande reputação, e foi unanimemente julgado
grande poeta e grande actor; e tão completamente esqueceram as
tentativas dramaticas feitas antes d'elle que o tiveram em conta de
inventor da divisão em jornadas ou actos, e dos prologos chamados
introitos, e depois loas. Durante uns poucos de annos discorreu Lope de
cidade em cidade; mas por fim a sua grande reputação fez com que fosse
chamado á côrte de Philipe II. Os poucos dramas, dialogos pastoris,
etc., que d'elle restam, se destinguem por certa graça e viveza
naturaes; e posto que sejam todos em prosa, elle os escrevia em verso
com a mesma facilidade.

Ha um facto curioso, que prova a indulgencia com que os ecclesiasticos
olhavam, naquelle tempo, até para os dramas profanos; facto que se lê na
historia de Segovia, de Colmenares: na occasião da grande festividade da
abertura da cathedral d'aquella cidade, a companhia de Lope de Rueda
representou em um tablado, erecto no meio da egreja, depois de vesperas
solemnes, _una gostosa comedia_. O proprio Lope, morrendo em Cordova no
anno de 1567, foi alli enterrado com grande pompa, no côro da cathedral.

Por este tempo (1561) a côrte hespanhola, que até então tinha andado
vagueando pelas capitães das differentes provincias, fez assento fixo em
Madrid, circumstancia que foi favoravel para a arte dramatica, porque
d'ella nasceu o haver um theatro fixo. Documentos authenticos provam que
um anno depois da morte de Lope de Rueda havia theatros em Madrid.
Existiam então, tanto na capital como nas provincias, varias companhias
de actores, distinctas umas das outras por nomes extravagantes e
burlescos, e tão numerosas, que um escriptor moderno hespanhol as
distingue em oito especies differentes.

Os progressos materiaes acompanharam d'ahi ávante os litterarios e
moraes. Por 1570 estabeleceram-se os dois theatros _de la cruz e del
principe_, que ainda existem, e alguns engenhos summos começaram a
trabalhar em composições dramaticas, o que até então se tinha deixado
aos directores das companhias ambulantes. Cervantes, tendo chegado do
seu captiveiro de Argel, foi um dos primeiros que encetaram esta
carreira; mas, apesar dos seus muitos meritos como escriptor dramatico,
era mais inclinado ao genero narrativo, o que não se compadecia, por
certo, com o estylo proprio do drama.

Emquanto o auctor de D. _Quixote_ escrevia em Madrid, João de la Cueva
fazia representar alguns dramas no theatro de Sevilha, reduzindo a
quatro o numero de actos ou jornadas, que até então eram cinco ou seis.
A representação de cada noite constava da peça principal, e, além
d'isso, de tres entremezes e um baile. Tambem Valencia, que nas artes e
boas letras era a rival de Sevilha, deu alguns passos na carreira
dramatica. Foi um poeta valenciano Christovam de Virues, que ainda
reduziu o numero de actos a que se limitaram d'ahi ávante todos os
escriptores dramaticos hespanhoes. Até então o drama, segundo o
engraçado conceito de Lope de Vega, tinha andado com as mãos pelo chão
(a quatro pés) como uma creança, porque estava na idade infantil.

A pompa scenica do theatro hespanhol tinha já feito grandes progressos.
Rojas diz que no tempo de Lope de Rueda toda a vestiaria e mais aprestos
de qualquer companhia dramatica se podia carregar ás costas de uma
aranha, mas que no tempo de Cueva e Virues as actrizes representavam os
seus papeis com vestuarios de seda e veludo, e com fios de pérolas e
cadeias de ouro; que nos entremezes se cantavam tercettos e quartetos; e
que até appareciam no tablado cavallos, quando assim era necessario para
ser completa a illusão.

Digno é de notar-se que já no seculo XVI se acha em Hespanha travada a
guerra entre os escriptores dramaticos, que pugnavam pela sua liberdade,
e os criticos, que os queriam sujeitar aos preceitos d'Aristoteles. Era
assim que emquanto o _rhetorico_ Pinciano clamava que respeitassem as
tres unidades, de que nenhum caso se fazia, João de la Cueva tomava
despejadamente a seu cargo deffender as liberdades dramaticas no seu
_Exemplar Poetico_. Pugnava por ellas porque eram o fructo de uma serie
de seculos que tinham abolido todos os antigos costumes;--porque eram
mais favoraveis aos vôos atrevidos da imaginação;--e porque, emfim, eram
o mais adaptado meio de agradar ao publico. Mas, apresentando tão
judiciosa opinião, estabelecia maximas para regular as composições
dramaticas, taes que serão sempre approvadas pelo bom juizo e bom gosto,
posto que os seus compatriotas nem d'estas mesmas fizeram caso, no seu
ardor contra toda a casta de restricções litterarias.

Este desregrado fervor de imaginação era o resultado necessario das
particulares circumstancias que por muitos seculos tinham concorrido
para formar o caracter nacional em Hespanha. «Os hespanhoes, diz
Schlegel, tiveram um quinhão glorioso na historia da idade média,
quinhão muito esquecido pela ingratidão dos tempos modernos. Elles foram
então como uns atalaias soltos nas fronteiras da Europa: a Peninsula era
como um arraial exposto aos incessantes commettimentos dos arabes, e
desamparado de alheio soccorro. Acostumado a combater ao mesmo tempo
pela liberdade e pela religião, o hespanhol era afferrado a esta com o
zêlo fervoroso de quem a tinha comprado á custa do mais puro sangue.
Cada solemnidade do culto divino era para elle como um premio de suas
acções heroicas; cada templo um monumento das façanhas dos seus
antepassados. Em mais recentes epochas nunca importou aos hespanhoes
examinar os actos de seus superiores, mas continuaram nas guerras de
aggressão ou ambição com a mesma fidelidade e valentia que tinham
mostrado nas guerras de defensão. A fama individual, e o zêlo falso da
religião os cegava acêrca da justiça das causas que os moviam. Empresas
sem egual, levaram-nas felizmente a cabo; e o Mundo-Novo, descuberto por
elles, foi conquistado por um punhado de valorosos aventureiros: casos
particulares de crueza e rapina mancharam o brilho do mais acabado
heroismo, mas estas corrupções não chegaram ao amago da nação. Em parte
nenhuma como em Hespanha, sobreviveu o espirito de cavallaria á sua
existencia politica por tanto tempo, por isso que ainda brilhou depois
de ter passado o predominio de Hespanha e de ter soffrido grande
diminuição a opulencia interna do país, em virtude dos ruinosos erros de
Philippe II. Propagou-se o espirito cavalleiroso até o periodo mais
florente da sua litteratura, e nella estampou o seu cunho, de não
duvidosa maneira. A imaginação dos hespanhoes era audaz, como as suas
acções: nenhuma aventura intellectual lhe parecia perigosa. A
predilecção do povo por maravilhas extravagantes já se havia mostrado
nas novellas de cavallaria. Desejavam vêr tambem o maravilhoso no
theatro; e quando os seus poetas, eminentes na cultura litteraria, e na
situação da vida, lhes representavam esta na fórma requerida,
introduziam nella uma especie de harmonia, e purificavam-na da sua
grossaria real, resultando do contraste entre o objecto e a sua fórma
uma fascinação irresistivel. Imaginavam os espectadores que viam certo
fulgor da omnipotente grandeza da sua nação, já muito abatida, quando
toda a harmonia dos mais variados metros, toda a elegancia de agudas
allusões, todo aquelle esplendor de imagens e comparações que só na sua
lingua se acha, se derramavam por enredos dramaticos, sempre novos, e
quasi sempre grandemente engenhosos. Buscavam-se na imaginação os mais
ricos thesouros de passados tempos para contentar o povo, como se
realmente existissem: pode-se dizer que nos dominios de tal poesia, como
nos de Carlos V, nunca se punha o sol.

Foi quando os animos mostravam similhante tendencia, que surgiu Lope de
Vega, para exercitar a sua protentosa fertilidade de invenção dramatica,
e facilidade metrica. D'este illustre dramaturgo falaremos no proximo
artigo.


II

Lope de Vega tinha o grandissimo e principal dote para primar na
carreira que seguia: era este dote o conhecer profundamente o gosto e
paixões do povo para quem escrevia: porém do que nunca elle deu mostras,
foi do mais importante e nobre merito de estimar a arte e cultivá-la com
enthusiasmo. O effeito, segundo a vulgarissima accepção d'este vocabulo,
não era só o seu principal objecto, como cumpre que seja para todo o
verdadeiro escriptor dramatico, mas unico--as miras todas pô-las
unicamente em bater neste alvo--e em verdade ninguem o alcançou como
elle; deixando-nos assim o mais notavel exemplo de sacrificio de alta e
duradoura reputação a troco de inegualavel mas temporaria popularidade.
Na grande porção que nos resta das suas innumeraveis composições, o que
mais admira é a inexhaurivel invenção de incidentes, a variedade de
caracteres, o jogo das paixões, e o mimoso e subtil do dialogo; mas
todas estas brilhantes circumstancias estão como que affogadas na
espantosa exuberancia com que pullulam, em cada scena, em cada fala, e
até em cada verso.

Cumpre, porém, que digamos que nem no seu país nem fóra d'elle, teve
Lope de Vega modelo que imitasse, ou rival que excitasse a sua emulação.
A Italia não tinha ainda passado da _Mandragola_ de Machiavello; nem a
França saído das informes imitações dos antigos: em Portugal só havia os
esboços dramaticos de Gil Vicente, os dramas-novellas de Jorge Ferreira,
e as imitações classicas de Sá de Miranda e Ferreira; a Alemanha não
tinha saído ainda dos _mysterios_; e a Inglaterra, onde já apparecera o
divino Shakspeare, era, excepto pelo lado politico, uma terra incognita
para os escriptores hespanhoes.

Em 1621, dôze annos antes da morte de Lope da Vega, sobreveiu a do
triste e devoto Philippe III, a quem succedeu um principe mancebo
inclinado aos passatempos, e mui addicto ao theatro. Philippe IV gostava
do tracto dos homens de letras, recebia-os na côrte, e se divertia em
compor com elles essa especie de improvisos que então, andavam muito em
moda na Italia: até se lhe attribuem algumas composições dramaticas que
appareceram anonymas; e tal affeição tinha aos dramas nacionaes, que não
consentiu que em Hespanha entrasse a opera italiana, que então era muito
estimada em todas as côrtes da Europa. Estas circumstancias augmentaram
nova força ao impulso já dado por Lope de Vega, e trouxeram o mais
brilhante periodo do drama hespanhol. Durante a vida de Lope, grande
numero de escriptores seguiram as suas pisadas: taes foram os doutores
Ramon, e Mira de Mescua; os licenciados Mexia e Miguel Sanchez; o conego
Tarraga, Guillen de Castro, Aguilar, Luiz Velez de Guevara, Antonio de
Galarza, Gaspar d'Avila, Damian Salustrio del Poyo, e varios outros; mas
todos eram meros imitadores de Lope de Vega, e muito inferiores a elle;
no fim d'este dramatico reinado é que devia apparecer um rival, que lhe
disputasse a primazia.

Foi este Calderon de la Barca, que, não menos conhecedor do genio e
gosto do vulgo, do que o proprio Lope, unia a isso o amor pela sua arte,
que ao outro faltava. Como as composições d'este grande escriptor teem a
primazia entre os dramas hespanhoes verdadeiramente nacionaes; como
ellas em nada são inferiores ás de Lope, em variedade, e o seu numero
mais que o das de nenhum outro, se approxima do numero das d'elle; e
como, por consequencia, nos dão os mais perfeitos monumentos de cada uma
das differentes especies de producções dramaticas peculiarmente
hespanholas; não ha meio nenhum de dar uma idéa clara das fómas e genio
do theatro hespanhol na epocha do seu maior esplendor, senão
caracterizando breve mas distinctamente, as varias classes das peças de
Calderon. A mais corrente classificação dos dramas profanos, é para os
mesmos hespanhoes, a de _comedias heroicas_, _comedias de capa y espada_
e _comedias de figuron_. As da primeira d'estas classes tinham o mesmo
logar na litteratura dramatica, que nas ficções narrativas tiveram as
novellas de cavallaria que, expulsas da prosa pelo D. Quixote, se
acolheram ao theatro, onde por muito tempo foram bem acceitas do
publico. As da segunda classe, cujo nome vinha do vestuario que se usava
na epocha em que foram escriptas, representavam os costumes hespanhoes
d'esse mesmo tempo; mas, em consequencia do grande sabor de novella que
esses costumes ainda conservavam, tinham um aspecto, que a homens
modernos e de outras nações parece ideal. «Isto (observa Schlegel) não
fóra possivel, se Calderon nos introduzisse no interior da vida
domestica... Estas peças acabam, como as comedias dos antigos, por
casamentos; mas quão differente é tudo o que precede a este desfecho!...
traça, na verdade os seus principaes caracteres de ambos os sexos no
primeiro fervor da mocidade; mas o alvo a que elles miram, e diante do
qual tudo abate bandeiras, nunca em seus animos se confunde com outro
qualquer desejo. A honra, o amor e o ciume, são sempre os motivos da
peça, e o enredo nasce da impetuosa mas nobre lucta d'estas paixões...
Nos caracteres mulheris o sentimento da honra não é menos poderoso do
que nos dos homens: este sentimento rege o do amor, que tem logar a par
d'elle, porém não acima d'elle. A honra das mulheres, segundo o modo de
pensar que transluz nos dramas de Calderon, consiste em amar um homem de
reputação sem macula, e em amá-lo com perfeita pureza. O amor requer ahi
inviolavel segredo, até que uma legitima união permitia declará-lo
publicamente: este segredo o salva dos effeitos da vaidade, que poderia
misturar nelle gabos de favores concedidos, ou pretensões a elles, e lhe
dá a apparencia de um voto, que, por isso que é mysterioso, é mais
pontualmente observado. No meio d'esta moralidade dramatica, são, em
verdade, admittidas manhas e dissimulações, para fins amorosos, e a
ponto de parecer que recebe quebra a honra: mas, quando essas manhas vão
de encontro a deveres, como, por exemplo, os da amizade, o respeito mais
pundonoroso é constantemente guardado a esses deveres. O poder do ciume,
sempre vivo, e revelado ás vezes de terrivel maneira; ciume não como o
dos povos do oriente, de posse, ou de gozos materiaes, mas dos
sentimentos suavissimos do coração, serve para ennobrecer o amor. A
perplexidade, que nasce d'estes differentes motivos moraes, acaba muitas
vezes em nada, e então o desfecho é grandemente comico: ás vezes, porém,
a catastrophe é trágica, e a honra se converte em uma especie de destino
avesso, para aquelle que com ella não póde cumprir sem anniquilar a
propria felicidade, ou tornar-se para sempre criminoso. Grande numero
d'estas peças não teem senão um papel burlesco, o do creado ou gracioso,
que serve principalmente para parodiar os motivos sublimes das acções de
seus amos, o que, por via de regra, faz com muita graça, servindo raras
vezes para instrumento do enredo.»[21].

As comedias de _figuron_, ou de caracter, distinguem-se da classe de que
tractámos no antecedente paragrapho, em o interesse da acção não ser
dividido pelas personagens de um enredo variadissimo, mas concentrado em
um individuo, no qual é personalizado caracteristicamente algum vicio ou
absurdo.

Alguns dos dramas de Calderon, historicos ou mythologicos, não podem
estrictamente ser classificados em nenhuma das tres especies
antecedentes. Com a maior verdade aproveitou elle algumas epochas da
antiga historia hespanhola; mas parece ter tido tamanho aferro ao genio
da sua nação, que não pôde produzir facilmente o caracter das outras. A
antiguidade classica era inintelligivel para elle, e por isso, o já
citado Schlegel observa que a mythologia grega se converte, nas suas
mãos, em uma deleitosa novella, e a historia romana em uma hiperbole
magestosa. Outra classe de peças tem Calderon a que elle chama
_fiestas_: eram estas destinadas para serem representadas na côrte em
occasiões solemnes. Posto que taes peças requeressem pompa theatral,
frequentes mudanças de scenario, e até musica, todavia podemos
chamar-lhes _operas poeticas_, isto é, dramas, que pelo mero esplendor
da poesia, produziam o mesmo effeito que na opera moderna produzem as
vistas, a musica e a dança. Foi nestas composições que Calderon se
entregou inteiramente aos vôos da sua imaginação, podendo dizer-se que
nellas as personagens apenas pertencem a este mundo.

Mas é na classe dos _autos sacramentales_, ou dramas religiosos, que o
genio e o espirito de Calderon se desenvolveram com mais força e
formosura. As cerimonias religiosas dos gregos tinham gerado o theatro
grego: as cerimonias do christianismo deram origem ao theatro moderno. O
principio fundamental dos espectaculos dramaticos, introduzido ou
sanccionado pelo clero, consistia em apresentar ante os olhos dos fiéis,
em todas as festividades ecclesiasticas, e dias de commemoração de
certos sanctos, a representação ao vivo da passagem do Testamento Novo
ou do Catalogo dos Sanctos, que tinha connexão com essa festividade.
Estas representações, que no resto da Europa se denominavam mysterios,
chamaram-se em Hespanha, desde o principio, _divinas comedias_ e _autos
sacramentales_. Faziam-se com grande pompa, não só nas praças e nas
procissões, mas tambem nos theatros publicos. Taes dramas, representados
em dias solemnes, debaixo da protecção das auctoridades civis e
ecclesiasticas, e em presença de todo o povo, não só davam ao auctor
mais proveito, mas tambem mór gloria. Lope de Vega escreveu alguns
centenares d'estas peças: mas Calderon tanta vantagem levou aos seus
predecessores e contemporaneos, nisto como no mais, que lhe foi
concedido um privilegio exclusivo de compor os autos que se haviam de
representar na capital, monopolio de que gozou durante trinta e sete
annos.

Temos sido talvez mais technicos e extensos do que cumpria sobre o
espirito e execução dos dramas hespanhoes dos fins do seculo XVI e
principios do XVII, porque as regras dos rhetoricos e pedantes, regras
que se desfazem em pó diante de um _porquê_,--persuadem o vulgo da
republica das letras de que qualquer drama, a não ser grego ou romano,
ou não trazendo, pelo menos, pós, casaca de seda e espadim, á moda de
Luís XIV, é forçosamente barbaro, rude ou absurdo. Este pensar acanhado,
emquanto se não derrocar de todo, torna impossivel uma verdadeira
regeneração dramatica: os portugueses devem ser em litteratura uma só
nação com os hespanhoes: se quisermos ter originalidade, nacionalidade,
e o que mais é, verdade, estudemos Lope, Calderon e os seus
contemporaneos; não nos envergonhemos de folhear livros por onde
constantemente estudam os mais illustres escriptores dramaticos da
Alemanha e da Inglaterra, apesar de não poderem tirar d'elles todo o
proveito, que nós por certo tiraremos. Mas voltemos ao nosso assumpto.

É digno de notar-se, que, durante o mais bello periodo do theatro
hespanhol, o conselho de Castella se atrevesse a propôr como condição
para se reabrirem os theatros que tinham estado fechados por causa de
varios luctos da côrte, desde 1644 até 1649, que os dramas que se
houvessem de representar se limitassem a objectos edificativos, sem
mistura das profanidades do amor; e que, por consequencia, todos
aquelles que até então se tinham representado fossem prohibidos,
nomeadamente os de Lope de Vega, que tão prejudiciaes tinham sido á sã
moral. Felizmente o bom gosto do monarcha, concorde com o do publico,
fez com que fosse regeitada a proposta dos austeros conselheiros.

Durante a longa carreira de Calderon, appareceu Moreto, que dotado de
menos força inventiva e menos fervor de imaginação, se distinguiu
principalmente por aperfeiçoar melhor as comedias de _figuron_ ou de
caracter. Como exemplo, taes são os seus dramas--_O lindo D. Diogo_, e
_O marquez de Cigarral_, especie de D. Quixote, endoudecido á força de
ler e reler, sem descanso, os pergaminhos de sua casa, e os costados da
sua arvore genealogica. Por este lado, póde-se crer que Moreto foi um
dos modelos de Molière, entre cujas peças, com effeito, se encontra uma
fraca imitação do _marquez de Cigarral_. Nesta mesma epocha viveu outro
poeta dramatico, cuja fama emquanto vivo não egualou a celebridade de
que goza depois de morto e que, por um acaso extraordinario foi
desconhecido aos mais eminentes criticos, como Signorelli, Sismondi e
Schlegel: era este um frade da Trindade, chamado Fr. Gabriel Telles,
que, com o supposto nome de Tirso de Molina, pôs em scena um grande
numero de dramas, que depois foram colligidos e publicados por um
sobrinho seu. Menos engenhoso do que Calderon, e menos delicado, excede,
todavia, os outros poetas do seu país em certa agudeza maledica. Pouco
lhe importam as regras, ou a verosimilhança, com tanto que lhe venham a
pello gracejos pungentes e maliciosos, usando de uma linguagem, ás vezes
licenciosa, e de pensamentos que mostram tão pouco respeito ás potencias
da terra como ás do céu. Nada poupa, uma vez que esse objecto lhe
desagrade ou possa mover a riso. Ha só um escriptor a quem elle deva com
exacção ser comparado, e com quem, com effeito, tem muitissima
parecença: é este o moderno dramaturgo francês Beaumarchais. E assim
como este auctor foi o verdadeiro pai de Figaro, do mesmo modo (facto
certamente curioso) Fr. Gabriel foi o primeiro que pôs em scena a famosa
historia de D. João e a Estatua (_El combidado de Piedra_)
aproveitando-se da lenda inventada, segundo dizem, pelos franciscanos de
Sevilha para explicarem o desapparecimento do verdadeiro D. João
Tenorio, que, conforme tambem alguns querem, fôra por elles assassinado
em vingança dos muitos vexames que lhes fazia.

No proximo artigo mencionaremos mais alguns dramaturgos hespanhoes
d'esta epocha, e concluiremos a historia do theatro hespanhol com a
noticia dos escriptores mais modernos.


III

O periodo brilhante do theatro hespanhol encerra-se na primeira metade
do seculo XVII. O gosto do monarcha, da côrte e da nação, tinha lançado
um grande numero de homens de letras nesta carreira, que então era a
mais honrosa e lucrativa. Assim, além dos eminentes escriptores
mencionados no antecedente artigo, appareceu um enxame de dramaturgos de
segunda ordem, a cuja frente devemos collocar Francisco de Rojas, que
tinha todos os dotes de Moreto, mas que o excedia nos defeitos.
Seguiam-se a este Guillen de Castro, Ruis de Alarcon, La-Hoz, Diamante,
Mendoza, Belmonte, os irmãos Figueroas (que escreviam conjunctamente,
como os modernos auctores de farças francesas), Cancer, Enciso, Salazar
e Candamo, os quaes, posto que nenhum creasse uma eschola sua,
produziram ao menos importantes composições theatraes.

Os desastres que sobrevieram á monarchia hespanhola nos ultimos annos do
reinado de Filippe IV, junctos com uns poucos de luctos publicos, que
fizeram fechar por muito tempo os theatros, deram o primeiro golpe na
arte dramatica hespanhola. Em 1665 a morte d'aquelle principe, que tinha
sido o seu mais zeloso protector, foi o signal da queda rapida e inteira
do theatro. O successor de Filippe IV, o parvo Carlos II, era ainda
creança; e a rainha regente assignalou o principio da sua administração
com um decreto, dictado, sem duvida, pelo seu director espiritual o
jesuita Nitar, e, por certo, unico nos annaes dramaticos. Ordenava a
rainha no citado decreto, que todas as representações cessassem até seu
filho ter idade de se entreter com ellas. Posto que esta extravagante
ordem não pudesse ser executada á risca, todavia é claro quão grande
effeito devia produzir numa epocha, em que a litteratura só podia
progredir debaixo do patrocinio dos grandes, e em que o theatro, só com
a especial protecção do monarcha podia resistir aos repetidos ataques do
conselho de Castella. Para vermos o que d'aqui resultou poremos em
contraste dois factos notaveis. De um memorial, dirigido a Filippe IV em
1632, pelo actor Ortiz, se vê que havia então em Hespanha mais de
quarenta companhias de comicos, e que estas companhias davam a somma de
mil actores; e que se tinham edificado tantos theatros, que poucas
cidades ou villas notaveis havia que não tivessem o seu. No anno, porém,
de 1679, quando Carlos II casou com uma infanta de França, na festa do
casamento, não foi possivel reunir mais de tres companhias para virem
representar na côrte.

Neste periodo de decadencia e desprezo um unico escriptor trabalhou por
amparar o vacillante theatro: Solis, o eloquente historiador da
conquista do Mexico, dedicou tambem ao theatro a sua brilhante
imaginação, polida agudeza, e vigoroso estilo. Deixou-nos varios dramas
dignos do periodo a que sobreviveu; especialmente um d'elles que
intitulou--_Amor al uso_, tem grandissimo merito.

Com Solis póde-se dizer que expirou o theatro verdadeiramente hespanhol.
A subida ao throno de Filippe V, tendo dado valia ao gosto francês, e
introduzido (ao menos na côrte) os habitos e costumes da côrte de Luís
XIV, fez que os hespanhoes, depois de terem sido os mestres e
precursores dramaticos dos franceses, se contentassem de se converter em
humildes imitadores e copistas d'elles. É verdade que, durante o seculo
XVII, algumas tentativas fizeram para restabelecer o drama nacional,
Zamora, Canizares, Luzan e Jovellanos; mas estas honrosas tentativas só
alcançaram transitorio applauso; e para achar uma obra original
(mencionando, todavia, os _sainetes_ de Ramon de la Cruz) cumpre chegar,
no principio do seculo actual, a Moratin, o engraçado e elegante auctor
do _Caffé_, do _Barão_, etc., e ao sr. Martinez de la Rosa, auctor
de--_A mãe no baile, e a filha em casa_.

A descripção que fizemos das varias especies de composições dramaticas
do tempo de Calderon, mostra que no antigo drama hespanhol a tragedia
classica, posto que menos que a comedia classica, podia ter amplo e
effectivo logar. Todavia, enganados, segundo parece, pela palavra
_comedia_, que na lingua hespanhola teve sempre uma significação tão
geral como a palavra alemã _spiel_ ou a inglesa _play_[22], muitos
criticos de nota, principalmente franceses, falaram da total falta de
tragedias no theatro hespanhol, como de um phenomeno singular e
inexplicavel. Tão enraizadas estavam nos animos de taes criticos as
distincções _classicas_, com que os haviam educado, que assim o
affirmavam com toda a gravidade, embora admittindo ao mesmo tempo, que
«o elemento tragico predominava em grande numero das mais afamadas peças
do theatro hespanhol». Mas que é este predominio senão o unico meio de
destinguir a tragedia da comedia, unico que existe na essencia da
natureza humana e da arte dramatica? Segundo este systema mais racional
de classificação, o antigo theatro hespanhol, pela propria confissão dos
criticos de que falamos é grandemente abundante na tragedia. Noticiemos
agora brevemente as poucas amostras de obras dramaticas, que na Hespanha
appareceram mesmo com a _denominação_ de tragedias.

Boscan, que primeiro introduziu na Hespanha o estilo italiano de
versificação, dizem que traduzira uma das tragedias d'Euripedes,
traducção que se perdeu. Tambem pelos annos de 1520 Fernão Peres
d'Oliva, voltando da côrte de Leão X, onde vira representar a
_Sophonisba_ de Trissino, escreveu duas imitações do theatro grego,--a
_Vingança d'Agamemnon_, tirada da _Electra de Sophocles_, e a _Hecuba_,
imitação de Euripedes. Estas tragedias, escriptas em elegante prosa,
ficaram desconhecidas fóra das universidades, e até ha razão para crer
que nem ahi foram representadas. Em 1570, João de Malara deu ao theatro
de Sevilha varias tragedias, de objectos biblicos, como _Absalão_,
_Saul_, etc; e em Madrid, que então fôra escolhida para capital do
reino, um frade, chamado Jeronymo Bermudez, tomando o nome supposto de
Antonio da Silva, publicou duas tragedias, que merecem fazer-se d'ellas
especial menção. São ambas fundadas na celebre historia de D. Ignez de
Castro. A primeira, intitulada _Nise Lastimosa_, é uma imitação da
Castro do nosso Antonio Ferreira: a segunda, intitulada _Nise Laureada_,
que tem por acção a vingança, que o infante D. Pedro, quando subiu ao
throno, tomou dos assassinos da sua amada, e a coroação do cadaver
d'Ignez, é mais original que a primeira, mas inferior a ella no enredo e
desenlace. Estas duas peças, dividida cada uma d'ellas em cinco actos,
entresachados de coros, são as primeiras tragedias regulares, que em
verso castelhano se escreveram. Por este mesmo tempo, em Valencia, onde
o primeiro theatro, edificado em 1526, era pertença de um hospital,
foram representados varios dramas, ainda mais notaveis, compostos por
Christovam de Virues, de quem já falámos, e por Andres Rey d'Artieda.
Virues official militar, era um dos cabeças da grande eschola que, desde
o seu principio se gloriara de menoscabar as restricções aristotelicas.
Foi a sua primeira producção _La Gran Semiramis_, acção que ao mesmo
tempo tractava, em Italia, Murio Manfredi. Todavia, Virues, em vez de
fazer a peça em cinco actos ao modo grego, dividiu-a em tres _jornadas_,
nas quaes metteu toda a vida de Semiramis, passando-se o primeiro acto
na Bactriana, o segundo em Ninive e o terceiro em Babilonia. Compôs
depois, sempre com o mesmo desprezo das unidades, as tragedias da _Cruel
Cassandra_, _Atila Furioso_, _Infeliz Marcella_, etc. A que intitulou
_Elisa-Dido_, e que elle annunciou como escripta _conforme al arte
antigua_, é com effeito, a unica, em que as regras são inteiramente
respeitadas. O consocio de Virues na antiga guerra contra os preceitos
classicos, Juan de la Cueva, depois de traduzir o _Ajax_ de Sophocles,
publicou em Sevilha duas tragedias originaes; uma fundada em certa
tradição popular, e intitulada--_Los Siette Infantes de Lara_, a outra
tirada da historia romana e reunindo dois objectos tragicos, a morte de
Virginia e a de Appio Caudio, sendo La Cueva o primeiro que pôs em scena
estes successos, tantas vezes aproveitados depois. Entretanto no theatro
de Madrid as tragedias de Bermudez eram substituidas pelas de Lupercio
d'Argensola, as quaes Cervantes louva mais do que ellas merecem. O
proprio auctor do D. _Quixote_ escreveu então a sua _Numancia_, tragedia
a mais classica que, porventura, tem o theatro hespanhol, porque é
aquella em que mais transluz a simplicidade e pureza do drama grego,
posto que o espirito cavalleiroso de Cervantes appareça quasi sempre
debaixo d'essas fórmas antigas.

É claro que o espirito romantico predomina sobre o classico, até nas
producções declaradamente tragicas do theatro hespanhol antigo. Todavia,
quando a subida de Filippe V ao throno submetteu o gosto nacional á
influencia do de Paris, não só os poetas tragicos franceses foram
traduzidos em lingua castelhana, mas tambem os poetas hespanhoes fizeram
varias tentativas para os imitar. No numero d'estas se devem contar a
_Virginia_ e o _Ataulfo_ de Montiano.

Subsequentemente, durante o alumiado ministerio do marquez d'Arauda,
Fernandez Moratin, Cadalso e Garcia de la Huerta renovaram essas
tentativas: o primeiro escreveu _Hormesinda_, o segundo _D. Sancho
Garcia_ e o terceiro _Rachel_, mas estas obras, posto que valiosas,
principalmente a ultima, não eram sufficientemente notaveis para haverem
de naturalizar uma casta de dramas tão nova em Hespanha. No principio
d'este seculo tentou o mesmo genero, com melhor successo, D. Nicasio
Alvarez de Cienfuegos, habilmente ajudado pelo talento do celebre actor
Isidoro Mayquez, de algum modo discipulo de Talma, e não indigno de seu
mestre, posto que mais se approximasse da versatilidade maravilhosa do
actor inglês Garrick, porque não só era feliz nos papeis tragicos, mas
tambem em quaesquer outros, sem exceptuar os de truão e bobo.

Depois de Cienfuegos, que deixou um _Idomeneu_, um _Pitaco_ e uma
_Zoraida_, appareceram dois outros poetas tragicos, que cremos, vivem
ainda ambos. Um d'elles, Quintana, é auctor de uma tragedia intitulada
_Pelayo_, fundada na historia d'esse antigo campeão da causa perdida da
independencia hespanhola contra os arabes triumphantes, peça, em
verdade, nobre e pathetica, da qual os modernos hespanhoes, obrigados
como seus avoengos a repellir o dominio estranho, costumavam repetir as
passagens mais energicas, marchando para os combates. O outro, Martinez
de-la-Rosa, ha pouco primeiro ministro d'Isabel II, é auctor de uma peça
tambem patriotica, intitulada _A Viuva de Padilla_, fundada na memoravel
lucta das cidades municipaes da Hespanha contra a aggressão tyrannica de
Carlos V. Esta tragedia, a primeira de tal genero, que Martinez
de-la-Rosa compôs, foi feita e representada em um theatro, construido
para isso em Cadiz, quando os franceses tinham esta cidade cercada. O
mesmo auctor compôs uma _Morayma_ um pouco ao modo da _Merope_ de
Voltaire, e um Edipo, representado depois em Madrid, no qual, diz um dos
mais entendidos criticos da litteratura hespanhola (Mr. Viardot) elle
trabalhou por ser original, tractando um objecto já tractado por
Sophocles, Seneca, Corneille, Voltaire, La-Motte e Dryden.

Pelo que respeita a presente estimação theatral, que se faz dos antigos
dramaturgos hespanhoes no seu proprio país, devemos observar que, em
quanto Lope de Vega está desterrado nas bibliothecas, e emquanto
Calderon e Moreto raras vezes sobem á scena, Tirso de Molina, de quem já
falámos, apparece mais frequentemente no theatro que outro qualquer
antigo escriptor dramatico. Fernando VII gostava muito dos _ricos_
gracejos do licencioso frade; e esta declarada predilecção fazia calar o
genio vidrento e pundonoroso de certas auctoridades, cuja sanha podiam
excitar os motejos do frade contra os grandes. A comedia de Tirso,
intitulada _D. Gil el de las calzas verdes_ era a de que el-rei mais
gostava; e por isso a camara municipal de Madrid não deixava de a mandar
representar nos dias de gala.

Posto que a representação dos _Autos Sacramentales_ fosse supprimida em
1765, todavia o advento e a quaresma, e especialmente a Semana Sancta,
ainda se festejavam ha poucos annos nas igrejas com taes representações;
levantava-se no côro uma especie de tablado, sobre o qual se
representavam os passos da paixão de Christo, e em que as numerosas
personagens que successivamente figuravam na peça, se apresentavam com
os vestuarios da idade-média, quaes se deviam usar na origem d'estas
representações, como san-benitos, mascaras pretas, farricocos, cotas,
camisolas, e, numa palavra, toda a vestiaria de uma procissão de _auto
da fé_.




*Crenças populares portuguesas ou Superstições populares*

PANORAMA

184O




*Crenças populares portuguesas*


I

Todas as nações tanto antigas como modernas teem sido sujeitas á doença
moral chamada credulidade. Dada a crença da existencia dos espiritos e
da sua immortalidade, os homens vendo diariameute morrer os seus
semelhantes, e sentindo em si uma consciencia que repugna a
anniquilação, perceberam facilmente que o espirito não morria: a
revelação não fez mais que confirmar um sentimento innato no homem.
Depois a saudade dos mortos que nos foram caros, e o temor que
experimentavam os criminosos de que as suas victimas ainda se pudessem
vingar d'elles além do sepulchro: emfim amor e remorsos, ajudados da
imaginação, povoaram este mundo de phantasmas. A Grecia, sempre poetica,
formulou esta serie de factos intellectuaes em muitas expressões
materiaes: sirva de exemplo a descida d'Orpheu aos inferno em busca
d'Euridice, mytho formosissimo, com que os antigos gregos simbolizaram o
amor como capaz de unir os espiritos que passaram com os que vivem na
terra. A imaginação multiplicou e variou estas expressões de um
pensamento vago e primitivo. D'ahi vieram os lemures, as strygas, e
todas essas creações extravagantes, que ainda no primeiro seculo
christão o severo philosopho Plinio não se atrevia inteiramente a
descrer.

Entre as nações modernas a portuguesa passa por uma das mais inclinadas
a muitas d'estas superstições. É uma das multiplicadas calumnias que
sobre nossas cabeças lançam estrangeiros: quem d'isso se quiser
desenganar leia o _Diccionario infernal_ de Colin de Plancy, e achará
que qualquer provincia da França, ainda das mais civilizadas, nos deita,
como se diz vulgarmente, a barra adiante em superstições populares.
Quasi o mesmo se pode dizer da nação mais allumiada da Europa--a allemã.
Na Inglaterra, basta dizer que não haverá ahi perro turco, ou brahmane
credulo que leve vantagem em superstição ao povo dos tres reinos unidos.
As bruxas, diabos azues, vampiros, e seiscentas outras diabruras surgem,
por assim dizer, debaixo dos pés dos ingleses, como nos pinhaes do
Alemtejo e Estremadura se erguem, debaixo dos pés dos caminhantes, as
ninhadas dos sapinhos, quando sobre o pó das estradas cai em dia de
verão um aguaceiro de trovoada.

Apesar, porém, de não sermos dos povos mais abastados neste genero de
riquezas (que poeticamente o são) tem havido entre nós muitas crenças
populares dignas de se fazer menção d'ellas; por isso mesmo que as mais
antigas são geralmente desconhecidas, e as mais modernas vão diariamente
desapparecendo;--que ao menos esse bem temos tirado das nossas luctas
politicas e d'este espirito do seculo, que renegou de tudo quanto nos
transmittiu o passado;--tanto de umas como de outras colligiremos aqui
algumas especies, que se nos não enganamos, serão lidas com interesse
pelos leitores do Panorama.

Um dos mais antigos documentos que nos restam sobre as nossas
superstições populares é a celebre postura da camara de Lisboa de 1385.
Esta postura caracteriza essencialmente o espirito religioso da epocha
de D. João I. Nella se prohibem as superstições populares, as quaes ahi
se enumeram, como querendo a camara agradecer assim a Deus a victoria
d'Aljubarrota, que assegurou a independencia de Portugal.
Transcreveremos algumas passagens do referido estatuto, sem que tentemos
explicar muitas d'essas superstições a que se allude, porque difficil
fôra apresentar mais do que conjecturas. Eis o que nos parece mais
notavel naquelle assento municipal.

«Os sobreditos estabelecem e ordenam, que d'aqui em diante nesta cidade,
nem em seu termo nenhuma pessoa não use, nem obre de feitiços, nem de
ligamento, nem de chamar os diabos, nem de descantações, nem de obra de
veadeira, nem obre de carantulas, nem de geitos, nem de sonhos, nem
d'encantamentos, nem lance roda, nem lance sortes, nem obre
d'advinhamentos... nem outrosim ponha nem meça cinta, nem _escante
olhado_ em ninguem, nem lance agua por joeira...»

«Outrosim estabelecem que d'aqui em diante nesta cidade e em seu termo
não se cantem janeiras nem maias, nem a outro nenhum mês do anno, nem se
lance cal ás portas sob titulo de janeiro, nem se furtem aguas, nem se
lancem sortes...»

«Porque o carpir e depenar sobre os finados é costume que descende dos
gentios, e é uma espécie de idolatria, e é contra os mandamentos de
Deus, ordenam e estabelecem os sobreditos que d'aqui em diante nesta
cidade, nenhum homem ou mulher, não se carpa, nem depene, nem brade
sobre algum finado, nem por elle, ainda que seja pae, mãi, filho ou
filha, irmão ou irmã, marido ou mulher, nem por outra nenhuma pena, nem
nojo, não tolhendo a qualquer que não traga seu dó, e chore se
quiser...»

Muitas d'estas disposições dizem respeito a crenças que já não existem,
ou são conhecidas por outras denominações. As janeiras e maias duraram
até os nossos dias e ainda no Minho se chamam maias as flores da
giesteira amarella, com que se adornam as janellas no primeiro de maio;
alem d'isso todos os que hoje vivemos nos lembramos de ver em Lisboa os
maios pequeninos passearem as ruas cubertos de flores, bem como de ouvir
cantar as janeiras, o que ainda dura em muitas partes das nossas
provincias.

As prohibições da camara relativamente aos prantos pelos mortos, alludem
ao carpirem-se e arrepellarem-se sobre o cadaver e por elle, depois
d'enterrado, certas mulheres, que d'isso viviam chamadas carpideiras ou
pranteadeiras, e na falta d'estas os parentes mais proximos. Fr.
Francisco Brandão diz que tal costume se acabou no tempo de D. João I;
mas engana-se manifestamente, porque nos nossos chronistas se acham
memorias de similhantes prantos em epochas mui posteriores, e lá diz Gil
Vicente.

Prantos fazem em Lisboa
Dia de Sancta Luzia
Por elrei D. Manoel
Que se finou neste dia.

Entre as superstições antigas podem contar-se os reptos, requestas, ou
desafios, em que se appellava para o juizo de Deus quando um homem
accusava outro de homicidio ou traição. Este costume, geral em toda a
Europa, vogou muito em Portugal no principio da monarchia, sendo até
declarados nos foraes de algumas terras os casos em que o duello devia
servir de prova da justiça ou injustiça da accusação ou querella. Muito
cedo porém começaram os nossos reis a trabalhar, por meio de leis
prudentes e saudaveis, em pôr termo a este costume barbaro. D. Dinis foi
o primeiro que por lei de 1318 prohibiu houvesse reptos duas leguas em
redor d'onde estivesse a côrte.--«Estabeleço e ponho por lei (diz elle)
que d'aqui adiante nenhum Filho d'algo não desafie, nem mande desafiar
outro, nem por si, nem por outrem, perante mim, nem nos logares onde eu
fôr, nem a duas leguas aredor de mim; e aquelle que contra isto vier,
morra por isso, e a desafiação não valha»--Successivas providencias se
foram dando a este respeito, de modo que na ordenação affonsina apenas
são permitidos os desafios no caso de traição contra a pessoa real, como
se pode ver no titulo 64 do Livro 1.^o d'essa ordenação.

Como, porém, os reptos não tinham logar em todos os casos, e tal era o
de caír a suspeita do crime em mulheres, as quaes não podiam ir defender
ás lançadas a sua innocencia, havia outros meios de recorrer ao juizo de
Deus. D'estes eram geralmente em toda a Europa, as provas da agua fria,
da agua quente, e do ferro em braza. A que se usou em Portugal foi a
ultima, a qual consistia no seguinte: o accusado que queria arriscar-se
á prova, depois de se confessar, e de jejuar rigorosamente por alguns
dias, e de receber exorcismos, bençãos e orações de um sacerdote, ou se
punha a andar descalço sobre uma vara de ferro em braza, ou pegava nella
e caminhava apertando-a nas mãos por certo espaço. Se o _ferro caldo_
(como lhe chamavam) não produzia o seu natural effeito, o culpado era
havido por innocente; mas se lhe queimava os pés ou as mãos impunham-lhe
a pena do crime de que fôra accusado. Já se vê que era difficultosa
empresa achar innocentes por meio tal; todavia algumas tradições existem
que a serem verdadeiras, provariam que a providencia apiedando-se dos
injustamente opprimidos, suspendera algumas vezes a favor d'elles as
leis da natureza. Juncto ao sepulcro do commendador de Leça D. Garcia
Martins se conservava, segundo o testamento de Jorge Cardoso, um ferro
de arado, que, posto em braza, transportou para alli a mulher de um
ferreiro accusada de adulterio. Fr. Bernardo de Brito e Fr. Antonio
Brandão citam uma doação feita ao mosteiro de Arouca, Por D. Tareja
Soares, mulher de D. Gonçalo Mendes de Souza, que sendo accusada pelo
marido d'adulterio, recorreu, em sua defeza, á prova do ferro em braza,
e saindo illesa, se recolheu ao convento d'Arouca, ao qual fez uma
doação, onde se menciona este successo, que seria em verdade
extraordinario, se não fosse mais facil e razoavel crêr na supposição do
documento do que na realidade do milagre.

Esta superstição da prova por fogo parece que ainda estava muito
arreigada em Portugal no fim do seculo XIV. Quando o Mestre d'Aviz matou
o conde Andeiro a rainha D. Leonor, ouvindo na sua camara o ruido que
soava, mandou saber o que era, e vieram dizer-lhe que tinham assassinado
o conde. «A rainha quando isto ouviu, houve grão temor, porem disse: Oh
sancta Maria vale me mataram em elle um bom servidor!--e sem o merecer;
cá (porque) o mataram, bem sei porque. Mas eu prometto a Deus que me vá
de manhã a S. Francisco, e que mande ahi fazer uma fogueira, e ahi farei
taes salvas, quaes nunca mulher fez por estas cousas.» (Lopes chron. de
D. João I cap II). Santos, narrando este mesmo successo, accrescenta:
«Alludiu ao antigo costume de se purificarem, tomando o ferro quente, as
mulheres accusadas, ou murmuradas d'adulterio. (Mon. Lusiti Liv. 23,
cap. 8). E com effeito não é crivel que a rainha na sua afflicção
fizesse uma figura de rhetorica, dizendo que se queria sujeitar a um
costume que já não existia; muito mais que Fernão Lopes, escriptor tão
vizinho d'aquelles tempos, parece reconhecer a actualidade de tão
barbara usança, accrescentando que a rainha _tinha mui pouca vontade de
o fazer_.

Não era este supersticioso costume, que durou por tantos seculos, apenas
uma invenção do vulgo. Nas antigas leis d'Hespanha, conhecidas pelo nome
de _Fuero juzgo_, é expressamente ordenada a prova da agua a ferver, e a
do ferro em braza, e no foral de Baeça se particularizam os casos em que
taes provas tinham logar, bem como a maneira de as fazer.
Transcreve-lo-hemos aqui por ser grandemente curioso, tanto mais que em
parte diz respeito á prova do desafio.

«A mulher, que sabidamente mover, sendo o movito por mau termo seja
queimada, ou salve-se por ferro quente. E se alguma disser que é prenhe
de algum homem, e elle a não crer, tome ferro quente, e queimando-se,
não seja crida; mas se escapar livre do ferro, dê o filho ao pai, e
crie-o como mandam as leis.»

«A mulher que _ligar_ homens ou animaes, ou quaesquer outras cousas que
podem ser ligadas, queimem-na, e se negar, salve-se por ferro quente; e
se o ligador for homem seja açoutado e lançado fóra da terra, e se
negar, salve-se por combate.»

«A mulher que der hervas peçonhentas ou for feiticeira, seja queimada,
ou se salve por ferro quente.»

«A mulher que matar seu marido seja queimada, ou se livre por ferro
quente. Toda a mulher que taes cousas faz, deve tomar ferro; mas não por
erro da sua pessoa propria, salvo quando for approvada por má mulher, e
que teve parte com cinco homens differentes. As _terceiras_ sejam
queimadas, ou, se negarem, salvem-se por ferro quente.»

«O ferro que se mandar fazer por justiça para esta experiencia, tenha um
palmo de comprimento, e dous dedos de largo, e tenha quatro pés (a modo
de banco) tão altos, que a pessoa que houver de fazer a salva possa
metter a mão por baixo. E quando o tomarem, levem-no por distancia
d'outo pés, e tornem-no a pôr em terra suavemente. Mas antes o benza o
sacerdote, e depois elle e o juiz aquentem o ferro, e em quanto o ferro
se aquentar, nenhum homem se chegue junto ao fogo, porque não acerte de
fazer alguma feitiçaria; e a que houver de tomar o ferro primeiro se
confesse mui bem, e depois seja olhada, porque não traga escondido algum
feitiço. Depois lave as mãos diante de todos, e depois de limpas, tome
ferro, mas antes façam todos oração, pedindo a Deus que mostre a
verdade. E depois que tiver levado o ferro, o juiz lhe cubra logo a mão
com cera, e sobre ella lhe ponha a estoupa ou linho, e depois atem-lha
com um panno, e leve-a o juiz a sua casa, e passados tres dias vejam-lhe
a mão e se for queimada, queimam-na tambem a ella.»

Vimos que a prova do fogo durou em Portugal, pelo menos até o fim do
seculo XIV. Não sabemos ao certo a epoca da completa extincção d'este
abuso; todavia é sabido que elle estava em esquecimento no seculo
seguinte. Não assim a crença em feitiçarias que, como sabemos, durou até
aos nossos dias, e ainda hoje tem bastante voga entre os espiritos mais
rudes.

A primeira lei, que nos lembre fosse promulgada em Portugal contra os
feiticeiros é uma de D. João I, do anno de 1403, em que se diz o
seguinte: «Não seja nenhum tão ousado, que por buscar ouro ou prata, ou
outro haver, lance varas, nem faça circo, nem veja em espelho ou em
outras partes.» Esta lei foi confirmada no codigo affonsino, d'onde em
substancia passou para os que se lhe seguiram. Vê-se por ella que a
magia portuguesa d'esse tempo se reduzia a uma especie d'alchimia, ou
sciencia de encontrar ouro, o que, em verdade, era bem pouco se o
compararmos ao incremento prodigioso que teve a feitiçaria no seculo
seguinte.

Da variedade de praticas supersticiosas que produziu este incremento,
nunca encontrámos memoria mais curiosa, que o capitulo que trata d'esta
materia no rarissimo livro das Constituições do arcebispado d'Evora,
impressas em Lisboa no anno de 1534. Eis aqui o texto da constituição
primeira do titulo 25, que se intitula--_Dos feiticeiros, benzedeiros e
agoureiros_:

«Defendemos que nenhuma pessoa de qualquer estado ou condição que seja,
tome de logar sagrado, ou não sagrado, pedra d'ara ou corporaes, ou
parte de cada uma d'ellas, ou qualquer outra cousa sagrada; nem invoque
diabolicos espiritos, em circulo, ou fora d'elle, ou em encruzilhada;
nem dê a alguma pessoa a comer ou a beber qualquer cousa, para querer
bem ou mal a outrem, ou outrem a elle; nem lance sortes para adivinhar,
nem varas para achar haveres; nem veja em agua, ou crystal, ou em
espelho, ou em espada, ou em outra qualquer cousa luzente, nem em
espadua de carneiro; nem faça, para adivinhar, figuras ou imagens
algumas de metal, nem de qualquer outra cousa; nem trabalhe de adivinhar
em cabeça de homem morto, ou de qualquer outra alimaria; nem traga
comsigo dente, nem baraço de enforcado, nem faça com as ditas cousas, ou
cada uma d'ellas, nem com outra alguma semelhante, posto que aqui não
seja nomeada, especie alguma de feitiçaria, ou para adivinhar, ou para
fazer damno ou proveito a alguma pessoa ou fazenda: nem faça cousa para
que uma pessoa queira bem ou mal a outrem, nem para ligar homem ou
mulher, etc.»

«Outrosim defendemos que nenhuma pessoa doente passe por silva ou
machieiro, ou por baixo de trovisco, ou por lameiro virgem; nem benzam
com espada que matou homem, ou que passasse o Douro e Minho tres vezes;
nem cortem solas em figueira baforeira; nem cortem çobro em limiar da
porta; nem tenham cabeças de saudadores encastoadas em ouro, ou em
prata, ou em outras cousas; nem apregoem os demoninhados; nem levem as
imagens d'alguns sanctos ácerca d'agua, fingindo que as querem lançar em
ella, e tomando fiadores, que se até certo tempo lhes não der agua, ou
outra cousa que pedem, que lançarão a dita imagem na agua, nem revolvam
penedos e os lancem na agua para haver chuva; nem lancem joeira; nem
dêem a comer bollo para saberem parte de algum furto; nem tenham
mendracolas em sua casa, com tenção de haverem graças, ou ganharem com
ellas; nem passem agua por cabeça de cão, para conseguir algum proveito;
nem digam cousa alguma do que é por vir, mostrando que lhe foi revelado
por Deus, ou algum santo, ou visão, ou em sonho, ou por qualquer outra
maneira; nem benzam com palavras ignotas e não entendidas, nem
approvadas pela egreja, ou com cutellos de tachas pretas, ou d'outra
alguma côr, nem por cintos e ourelos, ou por qualquer outro modo não
honesto; nem façam camisas fiadas e tecidas em um dia, nem as vistam,
nem usem de alguma arte de feitiçaria »


II

Transcrevemos os titulos das constituições do arcebispado d'Evora acêrca
de feitiçarias, com preferencia a outro qualquer documento, por ser o
que mais especificadamente tracta d'esta materia; as outras
constituições diocesanas que vimos, promulgadas no seculo XVI,
limitam-se em geral a prohibir agouros e bruxedos sem os particularizar,
e sem que d'ellas se possa tirar maior luz para a historia das crenças
nacionaes. Muitas d'essas antigas compilações ecclesiasticas são hoje
rarissimas, nomeadamente as que primeiro se imprimiram, como uma da
diocese do Porto, de que nos lembra ter visto uma copia, e que pela
linguagem e o estylo nos pareceu pertencer ainda ao seculo XV.--Nas mais
remotas achar-se-hiam, porventura, outras noticias; mas não as pudemos
alcançar. E de passagem lembraremos aqui aos amigos das velhas coisas do
velho Portugal, que não ha, porventura, mais rica mina para a historia
dos costumes de nossos avós, depois das compilações das leis civis, que
estas leis ecclesiasticas, que íam devassar o proceder das familias, o
proceder de todas as classes, de todos os individuos, não só nas suas
relações sociaes, como, por via de regra, acontece com aquellas, mas
tambem nas relações domesticas, nas relações com Deus, tomando muitas
vezes para si os misteres e direitos, que em boa razão só deveriam
pertencer á consciencia de cada qual. Pelas antigas constituições dos
bispados quasi podemos seguir a existencia de nossos antepassados do
berço ao tumulo, porque a religião de um até outro cabo os acompanhava,
e ella então era essencialmente positiva e pratica. A lei ecclesiastica
vigiava a infancia, a puberdade, a idade viril, e a velhice; e para cada
epocha da vida tinha preceitos, e para cada erro castigo. Perguntava ao
celibatario se as suas noites eram solitarias, aos esposos se o seu
leito era casto, ao sacerdote se o seu coração era puro; batia alta
noite á porta afferrolhada das casas da devassidão, do jogo, da
ebriedade, e fazia tremer o devasso jogador, o ebrio; porque não era uma
lei morta, mas sim lei com a sancção de penas materiaes. Esta legislação
particular que tinha por base o Evangelho, por objecto os costumes,
devia primeiro que tudo conhecer exactamente estes, e ser definida e
precisa nas suas disposições. É assim que ella nos conservou a historia
das crenças e abusões do povo: das suas paixões, dos seus trajos, das
suas festas e jogos; e até dos seus alimentos: é assim que talvez se
possa dizer em rigorosa verdade, que só com as leis civis e
ecclesiasticas se poderia escrever a historia intima, a _historia do
viver_ das gerações que antes de nós passaram nesta terra portuguesa,
desde os primeiros seculos da monarchia. Para isto, todavia, é
necessario consultar as mais remotas com dobrada curiosidade; porque o
progresso da civilização trouxe o habito de generalizar as idéas, e este
habito influindo na legislação, tornou a sua expressão mais geral, e por
consequencia, neste sentido, muito menos histórica.[23]

Mas, voltando ao nosso assumpto, de que um pouco nos affastámos,
observaremos neste logar que a lei civil que por este mesmo tempo fôra
feita (Ord. Man Liv. 5.^o Tit. 33) fazia distincção, por assim dizer, da
grande e pequena bruxaria; porque as feitiçarias em que se usava
empregar pedra d'ara ou corporaes, ou quaesquer outras cousas sagradas,
era punida com pena de morte, bem como os esconjuros e invocações de
diabos, feitos em circulo ou em encruzilhada, e o dar a beber ou a comer
cousas enfeitiçadas para querer mal ou bem a alguem.

Todos os outros bruxedos, porem, que naquella ordenação se acham
especificados, e que são, pouco mais ou menos, os mesmos que enumeram as
constituições d'Evora, tinham por pena a marca de ferro nas faces, e o
degredo perpetuo para a ilha de S. Thomé. As demais superstições
populares, que não pareciam depender de tracto com o demonio eram
punidas com açoutes, sendo o criminoso peão, e sendo vassalo ou
escudeiro, ou mulher de qualquer d'estes, com degredo de dous annos para
os logares d'Africa. Estas disposições passaram quasi textualmente para
o titulo 3.^o do livro 5.^o das Philippinas, conhecidas geralmente pela
denominação d'Ordenações do Reino.

E cumpre aqui advertir que, se quando se reformou este codigo no
principio do seculo XVII se conservaram penas tão severas contra
individuos que não passavam de meros charlatães, que por taes meios
viviam á custa da credulidade publica, ou que se enganavam a si
proprios, imaginando terem imperio nos demonios e tracto com as
potencias invisiveis, é porque ainda então se cria que similhantes
sonhos eram realidades. E fomos só nós acaso os que isso
acreditámos?--Não. A Europa inteira estava na mesma persuação: nessa
epoca todos os governos, e legisladores, e até homens da mais alta
cathegoria litteraria admittiam a possibilidade dos maleficios, dos
sortilegios, e dos adivinhamentos. E tão duradora foi essa crença, que
ainda no principio do seculo decimo-oitavo, quando appareceu a _Magica
anniquilada_ de Maffeu (livro, em nosso entender, muito aquém da sua
reputação) se levantou uma grande discussão a similhante respeito, o que
é claro signal de que para muitos homens instruidos a magia não era uma
coisa inteiramente vã.

       *       *       *       *       *

Uma das coisas mais notaveis acêrca da credulidade dos nossos
antepassados no seculo XVII, é um alvará datado de 15 de outubro de
1654, impresso no _Jornal de Coimbra_ e citado por J. P. Ribeiro, em que
se dá licença a um soldado, que dizia ter o dom de _curar com palavras_,
para continuar a fazer uso d'esta estupenda habilidade com a obrigação
de empregar o seu prestimo em beneficio dos militares que d'elle
houvessem mister.

O progresso, porém, das sciencias foi pouco a pouco destruindo estas
abusões nos animos das pessoas sensatas, e os leiticeiros e bruxas, e
adivinhões viram-se obrigados a refugiar-se entre a plebe ignorante das
cidades, e entre a gente boa e simples dos campos. É ahi onde, ha mais
de cincoenta annos, apenas restam usanças que revelam a existencia das
chamadas artes diabolicas.

O conflicto entre o progresso intellectual e as antigas superstições
acarretou por vezes desgostos e perseguições áquelles que trabalhavam em
allumiar as nações; mas tambem deu aso a acontecimentos mui graciosos,
dos quaes re'ataremos aqui um, succedido em Evora no reinado de D. José.

Um frade de certa ordem tinha sido nomeado mestre de philosophia
naquella cidade. Querendo dar uma vez a seus discipulos idéa da
electricidade, pôde obter emprestada uma machina electrica, com a qual
fez algumas experiencias diante de varios padres graves do seu convento,
que ficaram pasmados de coisa tão extraordinaria, e suppuseram lá
comsigo andar nisto obra de feitiçaria. Esperaram, portanto, um dia em
que o mestre de philosophia saísse fóra do convento, e mandando o
prelado tocar á communidade, revestido, e de cruz alçada, seguido dos
demais frades, foi ao aposento, onde estava a machina para a exorcismar.
Começados os exorcismes tanta agua benta lhe deitaram que dentro em
pouco ficou completamente estragada. Quando d'ahi a dias o professor
quis trabalhar com ella, nunca o pôde alcançar; e os padres graves,
rindo uns com os outros, escarneciam do pobre philosopho, a quem, com
esconjuros, tinham inutilizado aquelle diabolico feitiço.

Concluiremos este artigo dando uma noticia do que temos alcançado acerca
das feitiçarias, bruxas, e lubis-homens, na opinião do vulgo, cuja
imaginação ainda dá existencia a estes sonhos ridiculos conservados nas
tradições populares.

O povo faz distincção entre feiticeiras, bruxas, e lubis-homens. São as
feiticeiras e bruxas, por via de regra, mulheres velhas, pobres, feias,
immundas, e de genio melancholico, ou colerico. Estes motivos bastam
para o vulgo as aborrecer, e para justificar a seus olhos qualquer
accusação que lhes façam de feitiçaria ou bruxedo. O mister das
feiticeiras é fazer maleficios a todo o genero de pessoas de qualquer
idade que sejam: estas acompanham ordinariamente o diabo em todas as
suas funcções neste mundo. As bruxas teem poder limitado, estando apenas
auctorizadas para chupar de noite o sangue ou a substancia das creanças,
matando-as pouco a pouco d'inanição, ou de repente, se chupam
desarrazoadamente.

Os lubis-homens são aquelles que teem o _fado_ ou _sina_, de se despirem
de noite no meio de qualquer caminho, principalmente encruzilhada, darem
cinco voltas, espoujando-se no chão em logar onde se esponjasse algum
animal, e em virtude d'isso transformarem-se na figura do animal
_pre-espoujado_. Esta pobre gente não faz mal a ninguem, e só anda
cumprindo a sua _sina_, no que teem uma cenreira mui galante, porque não
passam por caminho ou rua, onde haja luxes, senão dando grandes assopros
e assobios para que lh'as apaguem, de modo que seria a coisa mais facil
d'este mundo apanhar em flagrante um lubis-homem, accendendo luzes por
todos os lados por onde elle pudesse saír do sitio em que fosse
presentido. É verdade que nenhum dos que conta similhantes historias fez
a experiencia.

A instituição de qualquer feiticeira ou bruxa é pela seguinte maneira. A
adepta é levada alta noite pelas feiticeïras professas a um logar ermo,
onde o diabo apparece transformado em bode negro. Começa a ceremonia,
como é de razão, pela matricula, e a noviça escreve o termo da vencia da
sua alma com o proprio sangue: então o diabo lhe entrega um novello e um
pandeirinho que são os symbolos da nova dignidade que recebe, e pelo que
fica habil para fazer os seus maleficios, e para se transformar no que
quiser, quer sejam corpos animados, quer inanimados. Depois d'isto o
demonio _bodificado_ se assenta no seu throno cercado de candeinhas, e
por baixo d'este throno passa a noviça tres vezes; acabado o que, a nova
feiticeira dá um beijo na proximidade da cauda ao transformado rei do
inferno.

Feita esta ceremonia as circumstantes (que são todas as feiticeiras da
provincia, chamadas alli para assistir áquelle auto) tocam os seus
pandeirinhos, e com dansas mysteriosas levam a nova socia a casa, onde
lhe mostram os respectivos novellos de fiado, que são maiores ou
menores, conforme a importancia ou estimação em que as tem o diabo.

Estes novellos diabolicos em que principalmente reside a força e poderio
das feiticeiras são compostos de uma especie de linha fiada _pela mão do
diabo_, e cuja materia prima é o pello do bode, em que o cão tinhoso
costuma transformar-se. Tambem as bruxas teem por apanagio uma maçaroca
preta; mas a demonologia popular não declara de que maneira, ou de que
materia seja feita, bem como as dos lubis-homens, que tambem possuem
este adminiculo, do qual apenas sabemos uma circumstancia, que é o ser
de fio pardo.

Quando alguma d'estas importantes personagens, que tem pacto, ou fado,
está para morrer, chama a pessoa que mais estima, e a esta entrega o
fatal novello. Se lh'o não aceitam, não pode expirar, ainda que esteja
em agonias mortaes; mas apenas essa, ou alguma das circumstantes lh'o
recebe, a pobre creatura entrega logo descansadamente a sua alma a
satanaz. Parece que a posse de tal herança dá um direito na secretaria
d'estado infernal, para o herdeiro ser preterido no prehenchimento do
logar que ficou vago.

Tem a feiticeira obrigação, cada vez que quer infeitiçar alguem, de
invocar primeiramente o diabo, e de lhe pedir licença para exercer seu
officio, o que prova que não só na terra ha maus systemas de legislação.
A formula usada em taes casos, segundo alguns gravissimos auctores, é:
_Tenato, ferrata, andato, passe por baixo_, o que se repete tres vezes.
Acode o démo ao reclamo, e a professora de feitiços póde então ter a
certeza de tirar a sua a limpo.

Se, porém, se não tracta de um feitiço de segunda ordem; mas sim d'algum
que deva produzir a morte do individuo enfeitiçado, é preciso mais
trabalho, e pelas leis infernaes não é licito a qualquer feiticeira
tomar sobre si só tamanha responsabilidade, d'onde se póde concluir qual
seja a prudencia, gravidade e consciencia do diabo, que por certo não é
tão feio como o pintam. Quando, pois, alguma d'estas boas creaturas quer
dar cabo de qualquer individuo, toca o seu pandeirinho e chama duas suas
companheiras para d'ellas se ajudar naquella boa obra. Então as taes
fazem uma figura da pessoa condemnada a morrer, e compostos certos
unguentos liquidos vão com elles unctando aquelle vulto, e á proporção
que o trabalho se vai adiantando, vai o enfeitiçado adoecendo, até que
chega ás ultimas. Neste ponto a feiticeira mais velha tira o seu
novello, põe-se a dobá-lo, e quando o doente deve morrer uma das outras
corta o fio com uma tesoura, e no mesmo instante expira o enfeitiçado.
Depois invocam todas tres o demonio, que vem, e solda de novo o fio que
ficou cortado.

Limitamo-nos neste artigo a tractar com mais alguma individuação a mais
notavel das superstições populares, o imaginario pacto com o demonio.
Deixamos para outra occasião o falar de muitas outras crenças e costumes
que poderiamos ajunctar a estes incompletos apontamentos, e então
daremos especial noticia das _mulheres de virtude_, especie de
contraveneno com que o povo de algum modo quis destruir os terrores que
lhe causava o poderio das feiticeiras que elle proprio creara.




*A Casa de Gonsalo*

COMEDIA EM CINCO ACTOS

PARECER

Memorias do Conservatorio

1840




*A Casa de Gonsalo*

COMEDIA EM CINCO ACTOS

PARECER


A commissão encarregada de dar o seu parecer sobre a comedia
intitulada--_A Casa de Gonsalo_--que concorreu aos premios destinados
para os dramas originaes portugueses, que mais se avantajarem entre os
outros no concurso aberto por este Conservatorio para o corrente anno de
1840, vem apresentar a sua opinião a este Jury, desempenhando assim o
encargo que lhe coube em sorte.

A comedia sobre que versa este parecer é precedida por um prologo, ou,
como seu auctor lhe chama, por um endereço aos censores.

A Commissão hesitou se devia ou não fazer algumas observações sobre a
materia nelle contida: grave e importante é esta; ridicula e talvez
chula a fórma porque o auctor a tractou; mas a Commissão intendeu por
fim que tocando-se nesse prologo a grande questão das condições da arte,
que hoje agita o mundo litterario, era da sua obrigação, entrar no exame
das idéas contidas nelle. Pospondo, por tanto, os gracejos do auctor, e
considerando somente as suas opiniões e proposições, até porque elle
parece apresentá-las, como norma por onde os censores houvessem de
guiar-se, antes de julgar o drama dirá algumas palavras sobre o
mencionado prologo.

Começa o auctor esse prologo pela sua biographia litteraria referindo
como tem composto um bom numero de _comedias comicas_, e outras
lamentosas ou patheticas, de que, segundo elle diz, são muito
apaixonados os alemães. Deixando de parte as noticias
biographico-litterarias, importantissimas para uma nova edição da
Bibliotheca Lusitana, ou do Diccionario dos homens illustres, mas que no
caso presente nada montam para o Conservatorio, a Commissão apenas se
faz cargo das duas circumstancias que deixa apontadas: a 1.^a de ter o
auctor composto comedias lamentosas, ou como, com Voltaire, elle lhes
chama, _larmoyantes_: 2.^a a de affirmar que d'este genero são muito
apaixonados os alemães. Admira com effeito, que o auctor tão afferrado
aos sãos principios dos antigos, tão desprezador dos desvarios modernos,
gastasse o seu tempo com um genero dramatico bastardo, em que os antigos
nem sonharam, porque só conheceram a tragedia e a comedia, vendo-se
daqui que houve uma epoca em que o illustre auctor da _Casa de Gonsalo_
sacrificou ao Moloch revolucionario: não admira menos, que um escriptor
tão versado em materias litterarias ignore que o drama lamentoso nasceu
em França, e que a Alemanha só conta um auctor notavel neste
genero--Kotzebue--que não teve successores, e que hoje está quasi
completamente esquecido naquelle país, onde exclusivamente apparecem
poucas comedias, bastantes tragedias, e infindos dramas da eschola
moderna que está bem longe de ser a de Diderot, ou dos dramaturgos
chorões, lamentosos ou patheticos.

Continua o illustre auctor da _Casa de Gonsalo_ dizendo que sabe que a
sua comedia não hade agradar porque tem aquelle mau gôsto de composição
que recommenda Aristoteles e Horacio que eram uns rançosos e d'esse
ranço é Menandro, Aristophanos e Terencio etc.; fala nos freios da arte
da eschola classica, unidade de acção, consistencia de caracteres;
paixões e affectos naturaes, verdade de costumes, (!) estabilidade de
logar, unidade de tempo; fala no Sales que tinha a habilidade de fazer
velhos os rapazes que iam ouvir-lhe as licções de poetica e rhetorica
(!); diz que todas as regras acabaram com Hugo e Delavigne, e que os
modernos destruiram a unidade d'acção, de caracter, de tempo, e de
logar. Do que tudo conclue o auctor que a sua comedia não hade agradar,
e que por isso a apresentou sem a mandar copiar.

Se a letra em que a comedia está escripta, e a historia litteraria do
illustre auctor inserida neste prologo, não revelassem, aquella a mão
trémula de um velho, esta uma larga vida cheia de recordações do
sapientissimo Sales, que, bem differente das magas das novellas de
cavallaria, as quaes transformavam as rugas de velhice em viço de
mocidade, convertia a mocidade em velhice: se a Commissão, digo, não
inferisse de tudo isso que este prologo encerrava um pensamento de
Sansão, classico, o qual vendo morta a sua nação quer morrer tambem
levando comsigo os philisteus da nova arte, e se este pensamento não
fosse generoso, ella se teria abstido de fazer observações algumas
acêrca das idéas do auctor, que em um homem moço e que não tivesse essas
razões d'amor ás coisas com que se creou, seriam apenas dignas de
compaixão muda. A Commissão, porém, pertence infelizmente ao presente, e
quando vê um campeão do passado, de quem se póde dizer como Virgilio:

_Et dulces moriens reminiscitur Argos.
Do caro Sales lembra-se morrendo_.

não pode deixar de lhe dar o extremo _vale_, nem é licito que responda
com um silencio que se poderia tomar pelo silencio do desprezo a quem
vem lançar na estacada a luva do combate, por uma causa talvez bella,
mas nestes tempos irreverentes e dissolutos, bem mal-aventurada.

Senhores! A guerra que os homens do passado fazem ás opiniões do
presente é um phenomeno trivialissimo, e repetido todas as vezes, que,
ou as meditações ou as inspirações do genio, ou finalmente a accumulação
das idéas e das observações de muitos homens, tem produzido uma
revolução, seja ella de que natureza fôr. A razão d'isto dá-se neste
prologo. Quem encanecendo no estudo de qualquer ramo de sciencia nunca
pôde passar além de comprehender o que os outros pensaram, intende que a
isto se deve reduzir todo o poderio intellectual do genero humano. Taes
individuos são por via de regra os representantes da immobilidade. Bem
longe da theoria do progresso indefinido, crêem que a civilização é como
a praia do mar, os homens como as ondas d'elle, que ora se aproximam ora
se afastam em continuados éstos. São taes individuos que nunca se
persuadiriam de que as chamadas trevas da edade média não eram mais que
a chrisalida de uma civilização maior e melhor que a grega e romana, de
uma civilização cuja aura vital era a grande transformação religiosa
chamada o christianismo. São taes individuos para quem fôra baldada a
demonstração de que no objecto de que neste logar se tracta--o
drama--uma nova epoca e por consequencia uma nova fórma tinha começado
com o berço das nações modernas, e de que entre o nosso theatro e o dos
antigos devia haver a mesma differença que ha entre a civilização
christã e a pagã, entre o christianismo e o polytheismo; emfim que nas
respectivas litteraturas dramaticas devia haver uma diversidade
parallela á que ha entre aparte material do theatro antigo e a do
theatro moderno.

Era licito, pois, a estes homens morrerem abraçados com as poeticas e
rhetoricas sobre que encaneceram; era-lhes licito desprezarem os fructos
das cogitações dos modernos; era-lhes licito terem commentado as regras,
na impossibilidade de fazerem dramas. Tudo isso lhes era licito menos
ignorarem a historia da arte antiga, desconhecerem os principios da
moderna, mentirem acêrca d'aquella, e calumniarem esta. Isto é o que tem
feito os admiradores dos rhetoricos de todas as nações, isto é o que se
reproduz no prologo do erudito discipulo do eruditissimo Sales.

A Commissão não entrará aqui no exame do valor relativo dos principios
da eschola antiga, e da eschola moderna que tambem os tem mais profundos
e por ventara mais creadores de difficuldades que os da antiga. A
comparação d'esses principios seria materia de um livro, de um curso de
litteratura dramatica, e nunca de um parecer que deve servir de base á
discussão especial do merito de um drama. Mas a Commissão se mostraria
pouco attenta á dignidade, e á honra litteraria do Conservatorio se
deixasse passar como exactas affirmativas contrarias á historia do
theatro e á critica, sem que rectificasse inexactidões que se lhe vem
apresentar como verdades.

O auctor diz que sabe que a comedia não ha de agradar por se verem nella
cumpridos os decretos de Aristoteles e de Horacio. Desejaria a Commissão
que elle tivesse declarado cujo era o desagrado em que tinha a certeza
d'incorrer. Se era o do publico, como tendo essa certeza concorre ás
provas publicas?--Neste procedimento ha pelo menos um pleonasmo tão
flagrante como ha no titulo de _comedia comica_ que elle dá a esta. Se é
o do Conservatorio, parece fazer com isso grave injúria a este.

O Conservatorio possue no seu seio homens de convicções differentes, e
até certo ponto oppostas, em materias litterarias: uns pertencem, como o
auctor, ás idéas antigas, outros ás opiniões modernas. Para os primeiros
a execução d'essas regras é um merito; para os segundos se as suas
opiniões assentam sobre uma theoria completa da arte--e a Commissão crê
que sim--o desempenho d'essas regras é indifferente, porque não é nem na
falta, nem na existencia d'ellas que consiste a arte. O auctor devia
saber que a eschola moderna colloca quasi a par de Shakespeare e acima
talvez de Calderon e Lopo da Vega, dois escriptores da arte dos
preceitos--Moliere e Corneille: devia saber que ella rejeita d'esses
preceitos aquelles que não teem uma sancção esthetica; aquelles que, ou
o capricho, ou um exame superficial das materias litterarias, admittiu
como canones imprescriptiveis; aquelles que são mui proximos parentes
dos achrosticos, dos echos, e dos versos leoninos--mas devia tambem
saber, que a eschola moderna nunca desprezou o dramaturgo, cujo genio,
apesar d'essas peias escholasticas, se remontasse a altura da verdadeira
arte, e que, por tanto os membros do Conservatorio cujas opiniões são
modernas não rejeitariam o drama só porque se assujeitava ás andadeiras
rethoricas da eschola antiga. Se um pensamento unico tivesse precedido á
composição d'esta comedia: se o ideal de um ou muitos caracteres comicos
tivessem nella revestido as fórmas da vida real, embora o drama
estivesse arrebicado de cem regras e duzentos preceitos, os sectarios da
nova eschola teriam dicto com os da antiga; _equites romani plaudant_!

O digno auctor da _Casa de Gonsalo_, seguindo as pisadas dos homens da
sua eschola parece querer tornar solidaria a arte dos gregos e romanos
com a arte do renascimento; essa arte bella, pura, e nacional dos
antigos com a arte caprichosa, polvilhada, cortesã e regreira do seculo
de Luis XVI. Hoje não é licito ignorar as differenças que ha d'aquella a
esta: ignorar que além de outras coisas duas regras essenciaes para os
modernos faltam entre os antigos as unidades de logar e de tempo, e que
vice-versa entre os antigos havia no theatro os coros que os classicos
modernos deixaram, bem como a musica tanto dos coros como da scena, a
qual fazia que o drama fosse então o que é hoje a opera italiana, ou a
vulgar, onde esta existe.

Senhores: o drama moderno nasceu dos mysterios ou representações
religiosas da edade média: o caracter essencial dos mysterios era o
vestir o ideal christão--e o nome o está dizendo--com as fórmas da vida
real, e a vida real era então como hoje, como sempre, uma indistincta
mistura de lagrimas e riso, de paixões vis e nobres, d'infamias e de
grandezas. Nos mosteiros onde o drama começou, se reuniam os extremos
oppostos da sociedade: o monge era a um tempo sacerdote e jogral: a
ignorancia vejetava ahi ao lado da sciencia, a crapula ao lado da
modestia e da virtude, o folguedo e o bom humor ao lado da penitencia,
os grandes crimes ao lado da pura innocencia. Então o monge a quem a
natureza fizera poeta, tendo quasi por unicos estudos a historia
symbolica dos hebreus, as sublimes invenções da sua poesia, e esse
evangelho tão ideal desde a primeira até a ultima pagina, não conhecendo
o drama antigo, fazia, sem o saber, uma transformação na arte dramatica
e começava essa eschola moderna, salva apenas na Hespanha e na
Inglaterra no seculo XVII e restaurada hoje em toda a Europa com mais
brilho, e aperfeiçoada pela philosophia. O caracter d'esta eschola é na
essencia um contraste completo com a antiga: esta tomava o mundo real,
positivo e até trivial e vestia-o de fórmas ideaes: os caracteres, as
paixões, as situações procurava-as na vida quotidiana: nas expressões,
na fraze é que estava a poesia, e é por isso que o poeta antigo carecia
dos coros para ahi principalmente derramar as harmonias da sua alma; é
por isso, que Sophócles, ou Euripides não comprehenderiam o drama em
prosa; é por isso que o theatro dos antigos não separava a musica da
letra, porque a tragedia não era senão uma larga elegia sobre as
amarguras da existencia ordinaria; a comedia não era senão uma satyra,
um escarneo contra os vicios e as ridicularias da vida commum. Pelo
contrario o theatro da edade média buscava no ideal paixões, caracteres,
situações. Onde achamos nós essas martyres tão suaves, tão aereas, tão
amorosas de um objecto sumido nas profundezas do céu? Onde achamos esses
demonios chocarreiros e perversos, cujos motejos e risadas infernaes nos
fazem ao mesmo tempo rir e tremer? Onde esses corações, ao mesmo tempo
tão robustos e tão delicados, dos cavalleiros do romance e do drama da
edade média?--Nos mysterios e nos autos; e os mysterios e os autos são
ascendentes do drama actual: as Angelas, os Myphistopheles, e os
Hernanis não refusam a sua arvore genealogica.

Esta familia, nobre, porque, como as familias humanas, vai entroncar-se
na edade média, teve um tempo em que caíu na abjecção: foi quando os
paços a rejeitaram; quando appareceu outra, que se chamava mais
illustre; outra que se dizia de mais antiga ascendencia, aparentando-se
com gregos e romanos: mas a critica mostrou que isto era falso, a
philosophia que, ainda sendo verdade, não era tal razão bastante para a
preferencia. Esta é em resumo a historia das vicissitudes da arte.

Ha ainda duas proposições no prologo da _Casa de Gonsalo_ as quaes a
Commissão intendeu que não devia deixar passar sem fazer sobre ellas
alguns reparos. Consiste a primeira em dizer que os modernos destruiram
o principio do desenvolvimento logico dos caracteres, ou como o auctor e
a sua eschola lhe chamam--a unidade de caracter. De todas as accusações
que se podiam fazer á eschola moderna esta é a mais infundada. Condição
absoluta da arte actual é essa unidade dos caracteres, e neste ponto a
Commissão não recearia d'eslabelecer parallelos entre os melhores dramas
classicos e os dramas de segunda ordem, escriptos debaixo da influencia
dos novos principios, certa de que a vantagem ficaria sempre ou quasi
sempre aos ultimos. Consiste a segunda proposição em affirmar o auctor
que todas as regras acabaram com Hugo e Delavigne: nisto ha uma
falsidade e um êrro de historia litteraria. Falsidade porque não é
preciso ter lido senão os prologos de Victor Hugo ao _Cromwel_, e ao
_Ruy-Blas_ para se ver que ainda o dramaturgo mais exaggeradamente
liberal da eschola moderna estabelece regras, que a Commissão não avalia
aqui, mas que incontestavelmente o são, boas ou más. Accresce que, sem
falar numa grande multidão d'escriptos sobre a arte dramatica publicados
ha vinte annos, basta ler as revistas litterarias francesas, alemãs, e
inglesas, para ver que a critica tem já assentado muitos principios
incontestaveis para julgar as producções do theatro, e que se em outros
ha diversidade de opiniões, não é isso de admirar numa eschola que conta
apenas vinte annos como theoria, e que é obrigada a provar a justiça da
sua causa com razões e ao mesmo tempo com obras, ao passo que os
defensores da antiga, firmados em monumentos e glorias seculares,
desobrigados, e por ventura incapazes de crear obras de arte, não tem
outro trabalho senão defender e amparar seus principios, principios que
apesar d'esses monumentos, d'essas glorias, d'essas defensões, e sobre
tudo de sua antiguidade, não deixam muitas vezes de ser incertos e até
contradictorios. Agora quanto ao êrro de historia litteraria a Commissão
julga escusado dizer mais nada, senão que quem pôe em parallelo
Delavigne e Hugo, como egualmente destructores da arte antiga, mostra
que nem os comparou, nem os leu, e por certo nem um nem outro lhe deve
ficar obrigado. Delavigne, o academico Delavigne, que treme a cada passo
de pertencer ao seu seculo, não se julgaria em decente companhia
vendo-se ao lado de Victor Hugo, e este, que vai por ventura mais longe
do que devera, crer-se-ia sujo de todo o pó dos bacamartões pedantes dos
commentadores d'Aristoteles, achando-se collocado a par do classico
auctor da _Princesa Aurelia_, do bucolico auctor do _Pariá_.

Entremos no exame da comedia.

O auctor tomou por objecto nesta composição o converter em uma acção
dramatica um dos antigos proverbios populares, especie de formulas com
que o vulgo exprime muitas vezes idéas complexas. É este o que se
applica a qualquer casa mal governada e arruinada por toda a casta de
desvarios: _É a casa de Gonsalo_:--eis a expressão proverbial; eis o
pensamento que presidiu á composição do drama. Vejamos como o auctor o
tractou.

Um viuvo e uma viuva são casados em segundas nupcias: ella tem uma
filha. D. Farnacia é o nome da mulher: elle chama-se Gonsalo--pobre
homem que se deixa governar inteiramente por D. Farnacia prezada de
fidalga, caprichosa, e gastadora. Gonsalo instigado por D. Farnacia pôs
na rua seu filho Bernardo, moço tão sisudo e composto, quanto Leonor,
filha de D. Farnacia, é tola, namoradeira e desassisada.

A familia compõe-se, além dos tres, Gonsalo, D. Farnacia e Leonor, de um
irmão e de uma sobrinha de D. Farnacia, chamados Bonifacio e D.
Dorothea; aquelle é um peralvilho, frequentador de botequins, e que não
pensa senão em acceitar cartas d'amores; esta é uma presumida de sábia,
que em todos os seus discursos mistura palavras e phrazes francesas, e
que só lê novellas, citando a torto e a direito quantos destemperos tem
lido. Um creado e uma creada desobedientes, ladrões, e desavergonhados
completam aquella ninhada domestica.

Gonsalo tem um amigo, Florencio, a quem deve obrigações, e dinheiro,
homem prudente e sério, que pretende tirá-lo da vida de abjecção em que
vive, aconselhando-o sempre para que tome o logar de verdadeiro dono da
casa, e seguindo-se d'isto o ser cordealmente odiado por D. Farnacia.

Dois alindados frequentam esta casa, ou antes torre de Babel--Constando
e Carlos: o primeiro é o namorado de Leonor.

É com estas personagens, que o auctor conduz a comedia a seu fim, e a
Commissão seria demasiado prolixa se quisesse historiá-la por todos os
cinco actos em que elle a dividiu. Bastará dizer que á fôrça de gastos
loucos, Gonsalo se acha finalmente no maior apuro, do qual o livra o
expulso e maltractado Bernardo, obtendo uma provisão para administrar a
casa paterna, ajudado por Florencio, que sendo o principal credor exige
para seu filho a mão de Leonor, e faz casar Bernardo com Dorothea, a
qual tem um avultado dote, a que por isso era requestada por Carlos,
amigo de Constancio, e que juntamente com elle frequentava a casa de D.
Farnacia.

Á Commissão parece que o drama é em geral bem conduzido, o dialogo
excellentemente travado, a successão das scenas logica e natural, e a
linguagem accommodada ao assumpto, e com poucas excepções, limpa e
corrente. Estes são os meritos que julgou se davam no drama, e pelos
quaes seu auctor é digno de ser louvado.

Infelizmente partes e circumstancias são estas que não bastam.
Obte-las-ha para as suas composições todo aquelle que escrever
fortalecido de estudo: mas só o genio dá vida ás obras d'arte. As fórmas
exteriores póde-as traçar mão amestrada; vida só a infunde o alento do
poeta, que se assimelha ao sôpro vivificante de Deus.

Os caracteres, as situações, e os pensamentos das personagens de
qualquer comedia abrangem forçosamente toda a graça comica que nella se
póde dar; e nesta não ha nem um caracter, nem uma situação, nem um
pensamento verdadeiramente comico. D'isto ficarão persuadidos aquelles
que se derem ao trabalho de ler o drama; a Commissão está prompta a
mostrá-lo quando haja quem o conteste.

Do que fica ponderado se conclue naturalmente que este drama, falho dos
meios de attrahir a attenção dos espectadores, correrá grande risco em
ser posto ás provas públicas, e portanto a Commissão louvando o que ha
bom nelle, isto é, o que propriamente se póde chamar a sua parte
material, deixa ao Conservatorio o resolver o que mais justo e acertado
fôr quanto ao destino que se lhe deve dar.

Conservatorio Dramatico, 17 de Julho de 1840.--_A. Herculano_, Relator.




*Elogio historico*

de

SEBASTIÃO XAVIER BOTELHO

Memorias do Conservatorio

1842




*Elogio Historico*

de

SEBASTIÃO XAVIER BOTELHO


Senhores:

Honrado com o encargo de revocar hoje a memoria de um nosso illustre
consocio que a morte nos roubou, não posso deixar de sinceramente
lamentar que este Conservatorio quisesse que eu, intendimento humilde,
va bater á porta do sepulchro para através d'elle citar uma nobre
intelligencia, que repousa no seio de Deus, e dizer-lhe--Vem ouvir o
processo da tua gloria, o julgamento sobre o modo porque desempenhaste a
tua missão intellectual na terra.

Porque, Senhores, ou muito me engano, ou é esse o principal, diria quasi
o unico mister que nos incumbe, aos que fomos escolhidos para falar
neste dia e neste logar dos nossos fallecidos consocios. Em nome das
letras, d'essa revelação formosa e sancta do ingenho humano, nos
ajuntámos neste recinto: por ellas existimos como corporação: ellas nos
fizeram irmãos e eguaes. Pelas letras as differenças voluntarias e
incertas do mundo--as riquezas, o poder, os nomes d'avós, se convertem
em palavras sem sentido. A democracia absoluta, sonho impossivel,
talvez, de realizar na sociedade civil, torna-se entre nós uma condição
d'existencia. Nas associações litterarias a vida é de certo modo
immaterial, e as nossas distincções são unicamente as da superioridade
do ingenho. Mas a ultima instancia onde taes preferencias se julgam é o
tribunal da posteridade. Só a morte abre de par em par as portas d'este,
e é ahi que definitivamente se resolve se o nome do que passou será
lançado na herança dos seculos, na memoria perenne dos homens, ou se tal
nome deve esquecer como esquece o som derradeiro da loisa caindo sobre a
borda do sepulchro, onde foi repousar o que não pôde ou não soube
conquistar a immortalidade.

É por este caracter democratico, de todas as corporações como a nossa,
porque alheias inteiramente ás condições da sociedade civil, que me
parece não ser nos archivos d'esse pobre mundo das vaidades, a que
chamam realidade, onde hajamos de ir buscar documentos e testemunhos,
que provarão muito para outro genero de renome e gloria, mas que de
nenhum modo vem a ponto para as canonizações litterarias, no momento
solemne em que devemos preparar o processo pelo qual a posteridade tem
de julgar intelligencias ja livres d'este sudario da vida. Antepassados,
haveres, grandeza, cargos, que nos importam? Outra é a nossa missão:
temos de perguntar ao que traçou algumas palavras no livro eterno e
immenso da arte e sciencia humana--Que foi o que fizeste?--Que era o que
podias fazer? Isto é o que nos pertence, o resto á sociedade.

O nosso fallecido consocio, que passando na terra escreveu nesse livro
uma das suas formosas paginas, foi o sr. Sebastião Xavier Botelho. Para
se poder avaliar o merito d'esta escriptura de que preciso eu?--De
lê-la.

Difficultosa é similhante leitura; porque as palavras do homem de
ingenho são concisas e profundas: soletram-nas a custo os que não
possuem esse dom de cima; e, sem humildade hypocrita, eu sei que
pertenço a estes.

A culpa do máu desempenho será, pois, vossa, Senhores, que medistes
erradamente as minhas forças pelos meus e pelos vossos desejos.

A historia intellectual e intima do sr. Botelho divide-se em dois
grandes periodos: corre o primeiro desde a epoca em que concluiu os seus
estudos de jurisprudencia na Universidade de Coimbra até áquella em que
importantes e laboriosos cargos, que lhe foram confiados, o
constrangeram a dedicar-se inteiramente ao cumprimento de suas
obrigações, e a deixar os ocios litterarios da juventude: o segundo
abrange o tempo que discorreu desde esta epocha até á da sua morte. O
primeiro periodo foi para elle o do tracto e cultura das boas lettras: o
segundo o do estudo dos homens e das coisas, da sciencia, da historia e
do governo. No primeiro, o Sr. Botelho foi poeta: foi o homem do ideal:
no segundo foi historiador, economista, e politico; foi o homem do mundo
real. É nestes dois periodos que eu considerarei as obras da sua
intelligencia, e procurarei responder á pergunta--Que serviços fez o sr.
Botelho ao progresso do espirito humano?

As primeiras composições poeticas do nosso illustre consocio foram
escriptas nos fins do anterior ou nos comêços do presente seculo:
d'estas nenhuma viu a luz publica: as que se lhes seguiram, pertencendo
pela maior parte á litteratura dramatica, tiveram o seu primeiro modo de
publicação--o da scena: mas o unico penhor de duradoiras recordações e o
unico fiador da perpetuidade da gloria, essa fonte de toda a sciencia e
civilização modernas--a imprensa--faltou-lhes como ainda ha dez annos
faltava commumente ás obras dos nossos bons ingenhos que nasciam e
morriam sem a conhecerem; porque dois anjos máus a guardavam, os quaes
tinham por nome--censura e ignorancia.

Por esses archivos de theatros jazem sepultados os dramas do sr.
Botelho, dos quaes apenas é imperfeitissimamente conhecida a tragedia
_Ignez de Castro_, e um pouco melhor a _Zulmira_, melodrama de que
restam varias copias.

_Zulmira_ é, como todos os melodramas, uma composição hybrida,
monstruosa, e falsa á luz dramatica; mas considerada como um hymno aos
nobres affectos do coração humano ella nos revela quanto era poetica e
formosa a alma do Sr. Botelho. Poucos versos haverá da epoca em que foi
escripta, a não serem os do melhor metrificador português--Bocage--nos
quaes se encontre tanta suavidade, melodia e arte e ao mesmo tempo tão
generosas idéas, tão affectuoso sentir, expresso muitas vezes com
admiravel precizão. Não é um drama a _Zulmira_!--E que importa? _Esther_
é uma elegia; _Athalia_ uma epopea; mas elegia e epopéa sublimes de um
poeta divino!

Mais bem salvas para a historia das letras foram as numerosas versões
dramaticas do sr. Botelho--amparavam-nas, seus originaes, largamente
conhecidos no mundo. Alem de muitas operas de Metastasio e de quatro
tragedias de Racine, _Berenice_, _Mitridates_, _Phedra e Bajacéto_, elle
transportou para a scena portuguesa quasi todos os mais afamados dramas
de Voltaire, como _Mahomet_, _Zaíra_, _Bruto_, _Marianna_, _Édipo e
Semiramis_, aos quaes accresceram muitos outros de menos celebres
auctores dramaticos.

Já vedes, Senhores, quantas e quão largas vigilias o mancebo poeta
consagrou ao theatro; as suas poesias volantes sabe-se que foram muitas,
mas do naufragio do tempo apenas salvou a imprensa a epistola a Bocage,
a qual mereceu os extremados louvores que este grande poeta dá para me
servir da linguagem arcadica d'aquelles tempos, ao vate Salicio. Vate
Salicio era o Sr. Botelho, que ainda então os poetas, por obrigação de
seu officio, se desbaptizavam do nome christão, íam em espirito
pastorear á velha Grecia, e voltavam de lá não poetas, mas pastores e
vates.

Procurei, Senhores, lembrar-vos quão extensos foram os trabalhos
poeticos do Sr. Botelho. Resta-me, todavia, mais difficultosa tarefa, o
recordar-vos qual foi a significação litteraria d'elles--o averiguar
como e quanto o nosso fallecido consocio contribuiu para os progressos
da arte nesta tão poetica terra de Portugal.

Poeta elmanista, e um dos primeiros e mais distinctos sectarios d'esta
eschola, que rainha da poesia, e dispensadora de gloria regeu sem
partilha de imperio os dominios da arte, é no julgamento d'essa eschola
brilhante que está o seu julgamento. Os juizos individuaes em historia
litteraria são tão falsos como em historia social: o individuo que vai á
frente da sua epoca, não é mais que a idéa predominante d'ella encarnada
no homem. Julguemos a idéa, e teremos julgado o symbolo humano que a
representa. Se aquelle que passou não a comprehendeu, não o chamemos
tambem ao tribunal da posteridade, e deixemo-lo repousar na paz de seu
esquecido sepulchro.

Mas o pensamento progressivo que agitou uma geração ou um seculo não vem
só: vem com elle os pensamentos dominadores das gerações ou dos seculos
antecedentes que o produziram, e vem os que elle gerou. Sem isso o
processo será incompleto: errada provavelmente a sentença. Expressão de
uma serie contínua e eterna de idéas, grandes porque veem de Deus, o
progredir humano revela o elemento intellectual de cada uma das nossas
transformações successivas em todas as formulas da vida. Esse elemento,
essa idéa prolifica, busquemo-la em todos os aspectos da civilização,
que em todos a havemos de encontrar. Nas instituições, e nos costumes,
na sciencia, e na arte, lá está escripta--escripta pela mão do anjo do
Senhor, que deixa cair sobre a terra uma lagrima de dó, quando a mão
d'algum louco crê que póde apagá-la, ou a voz do insensato se ergue para
a desmentir, e nella desmentir o brado do genero humano.

É na arte, á qual foi completamente dedicado o primeiro periodo da vida
litteraria do Sr. Sebastião Xavier Botelho, que eu buscarei
principalmente o pensamento ou facto intellectual que caracteriza e
explica a sua epoca e a sua eschola, ligando esse facto com os que o
precederam e com os que d'elle vieram. Oxalá que para animar-me em
tractar um objecto acima de minhas forças me não desampare a vossa
indulgencia!

Vós sabeis, Senhores, que durante a primeira metade do decimo sexto
seculo uma grande revolução se operou e completou no Meio-Dia da Europa.
As sociedades feudaes e municipaes, estas, no seu crescer, aquellas na
sua declinação, deram o ultimo arranco aos pés da sociedade monarchica.
Toda a vida anterior das nações do occidente desabou após ellas. Entre
nós mudou tudo: socialismo, sciencia, arte, caracter religioso. Ninguem
curou d'isso. A robusta e intelligente monarchia d'esse tempo atirou á
espantosa actividade de nossos avós tres partes do mundo para esmagar:
cevou-a em poderío, e saciou-a de gloria. Compuseram-se então todos os
aspectos da sociedade a exemplo da unidade monarchica: o senhorio feudal
tornou-se dependencia completa: o municipio delegação: os parlamentos
letra morta. A chronica, essa fórma tão viva, tão dramatica, tão
nacional da historia, cedeu o campo aos Thucydedes e Livios modernos: o
platonismo christão e espiritual, fugiu, combatendo como os Parthos,
ante o aristotelismo argumentador e materialista: as artes plasticas
seguiram de longe os destinos de suas irmãs d'Italia, onde as
illuminuras aereas e incorrectas dos missaes e horas, desappareciam
deante do pincel terreno e correcto de Rafael e as cathedraes
mysteriosas e symbolicas se desmoronavam ao altear do templo de S.
Pedro, prostituido á luz por Miguel Angelo: todas as artes se
confessaram vencidas, na sua imperfeição e rudeza sublimes, pelos
monumentos da arte antiga. O proprio christianismo se fez intolerante e
sanguinario, como o polytheismo romano, o perseguidor dos martyres--e a
inquisição restaurou o pretório. Finalmente a poesia nacional,
balbuciante ainda, retrahiu-se ante o fulgor da litteratura latina. As
instituições de Roma, a Roma dos imperadores, annullaram as nossas
instituições primitivas, e a poesia romana mudou o caracter da poesia
moderna. A sociedade reproduzia o pensamento que guiava o seculo. Deixou
de ser christã e nacional, para ser pagã e peregrina. Roma que, viva e
possante, não alcançara subjugar inteiramente este cantinho da Europa,
cadaver já, profanado pelos pés de muitas raças barbaras, conquistou-nos
com o esplendor da sua civilização, que resurgira triumphante. Netos dos
celtas, dos godos, e dos arabes, esquecemo-nos de todas as tradições
d'avós para pedirmos ás cinzas de um imperio, morto e estranho, até o
genio da propria lingua!

Mas essa civilização violenta, enxertada em arvore de diverso genero,
devia tarde ou cedo ceder o logar a outra mais homogenea com as
tradições e costumes, com as crenças e habitos dos povos modernos. O
mundo antigo fôra condemnado por Deus: a sua condemnação era o
evangelho. O ingenho humano pôde vestir-lhe o trajo dos vivos; mas por
baixo d'este estava-lhe sobre o esqueleto mirrado o sudario dos mortos.
Mais tarde ou mais cedo, repito, elle devia voltar á sua jazida.

E a reacção não tardou os annos de tres gerações. O seiscentismo foi uma
reacção.

Ha ahi acaso quem duvide de que elle era uma revolta, senão contra a
essencia da arte romana, de certo contra as fórmas exteriores d'essa
arte? Bem sabeis, Senhores, que não é difficil prová-lo, e que entre a
poesia anterior ao renascimento e a dos seiscentistas ha alguns
caracteres analogos, e muitas tendencias similhantes. Não direi quaes,
porque melhor o conheceis que eu--e porque preciso de approximar-me
rapidamente á epocha em que viveu para honra das letras o Sr. Sebastião
Xavier Botelho.

Qual foi a origem do seiscentismo? A historia litteraria diz-nos que
foram Marino, Gongora, e não sei quem mais. É uma d'aquellas falsidades
historicas, que nascem do curto pensar. Nunca um ou alguns homens
puderam assim mudar nem a minima das fórmulas sociaes, em cujo numero a
arte de certo não é a ultima. São as gerações arrastadas e agitadas por
idéas que nasceram e se derramaram insensivelmente, que fazem
similhantes transformações. Esses cabeças d'eschola são o verbo da idéa,
são os interpretes do genero humano--e mais nada.

O seiscentismo foi uma resolução que falhou, uma tentativa de
restauração da nacionalidade em litteratura, que não sendo acompanhada
pela restauração social completa do modo d'existir português anterior ás
influencias romanas, ficou aleijada e rachytica, e substituiu a uma arte
antinacional, mas judiciosa e brilhante, outra falsa e além d'isso
ridicula.

A celebre Arcadia, e a influencia que esta corporação teve nas letras
foi uma nova reacção litteraria, e o dogmatismo em que se restauraram as
doutrinas romanas, posto que reflexas já d'Italia e de França, foi ainda
mais intolerante e absoluto que na epocha do renascimento. O
seiscentismo acabou ás mãos dos arcades, que restabeleciam o predominio
da arte antiga e revocavam o pensar e o estylo dos poetas do tempo de D.
João III e D. Sebastião, ao passo que o Marquez de Pombal procurava
restaurar a esquecida robustez da monarchia com a austeridade dos seus
principios administrativos, e com a acção vigorosa do seu governo de
ferro.

A monarchia do Marquez de Pombal era anachronica em politica: a
restauração da arte romana era anachronica em litteratura. Ambas deviam
necessariamente passar--e passar rapidas. Assim aconteceu. Além do
anachronismo havia em ambas ainda outro elemento de dissolução. A
fórmula politica nunca fôra tão absolutamente monarchica: a fórmula
litteraria nunca fôra tão mesquinhamente romana. Nunca o motu-proprio
fôra tão cabal explicação de todas as leis: nunca os nomes e exemplos de
Aristoteles e de Quintiliano, de Horacio e de Virgilio, substituiram tão
completamente o raciocinio na critica. Mas o Marquez de Pombal começava
por discutir com a aristocracia e com a theocracia, e a Arcadia com o
seiscentismo; os homens do futuro tinham portanto tambem o direito de
discutir com elles. É o que tem feito e fará o nosso seculo.

A Arcadia derrubara a poesia seiscentista: cumprira com sua missão.
Depois dogmatizou e morreu. Foi d'inanição. Esta sociedade, tão activa,
tão belligerante, tão ruidosa nos seus começos--expirou, e nem sequer o
mundo litterario deu tino d'isso. Era que a Arcadia nunca propriamente
vivera, porque nunca representara uma idéa progressiva.

Foi depois d'ella que floreceu Bocage e a sua eschola, um de cujos
luminares era o Sr. Sebastião Xavier Botelho. Resta-me trazer á vossa
memoria o logar d'esse poeta e d'essa eschola nos annaes da arte.

Bocage vinha depois de duas restaurações classicas, ou romanas;
assistira ao derradeiro clarão da segunda, e fora educado por ella. Os
seus primeiros poemas são moldados pelos dos arcades, mas já nesses
poemas ha mais inspiração, porque Bocage nascera e não se fizera poeta,
com se haviam feito aquelles, se exceptuarmos Garção. As variedades que
gradualmente appareceram no seu estylo e pensar foram mui pouco
distinctas, salvo na metrificação em que escureceu completamente os
arcades, e na tendencia, visivel nas suas melhores composições, para
substituir a mythologia pagã pela allegoria, o que deveu talvez á
influencia dos poemas descriptivos franceses, a que o materialismo e a
incredulidade do seculo XVIII tinham reduzido a poesia d'aquella nação.

Mas é, Senhores, sob outro aspecto que importa considerar este homem
extraordinario para avaliar a missão da sua eschola, e saber qual
transformação o apparecimento d'ella veio produzir na arte.

Na litteratura dos arcades, como nas litteraturas de epocha de D. João
III e da épocha d'Augusto; a poesia tinha sido essencialmente cortesã,
aristocratica, altiva. Os pastores da Arcadia nunca assistiram aos mais
sublimes espectaculos do universo, nunca sentiram no coração essas
paixões violentas que devoram as existencias. Que sabiam elles dos
campos de batalha, das sedições, dos grandes crimes e das grandes
virtudes? Elles ignoravam o que são lagrimas de desterro, o que são
contentamentos de tornar a ter patria. Odios, fanatismos politicos,
ancia de gloria popular, ambições, miserias humanas, não existiam para
elles. Os mares e os seus terrores, as solidões profundas das serranias,
o ruido das torrentes, o sibilar dos ventos por gandras bravias, não
imaginavam o que fosse. As procellas emfim da natureza, e as mais
terriveis ainda do espirito em que parece deleitar-se o poeta d'este
seculo grave e triste, porque o converteram á melancholia e ao cogitar
profundo os seus destinos solemnes--tudo isso era alheio á suave
existencia dos bons arcades. Sacerdotes, magistrados, e servidores do
estado, o seu monte Menalo era uma sala adornada de sedas e razes; a sua
lyra ou rabil uma penna muitas vezes dourada; as suas inspirações uma
vasta erudição. Assim os affectos e imagens dos seus poemas vacillavam
entre a frieza e trivialidade, e a exaggeração e mentira--porque para
elles as paixões e a natureza estavam nos livros. Os livros foram o seu
universo.

Bocage porém não era arcade. Era um homem do povo que alimentava no
espirito todas as paixões violentas, e muitas vezes freneticas e
desregradas do vulgo; e como o vulgo, ajunctava a feios vicios nobres e
generosas virtudes. Era o trovador que improvisava os seus mais
admiraveis versos no meio das multidões, á luz do sol ou dos astros da
noite, nas orgias das cidades, nas festas campestres--em todos os
logares, a todas as horas. Depois de Camões, Bocage foi o nosso primeiro
poeta popular; como Camões, foi pobre, foi criminoso, e foi malfadado;
adormeceu, como elle, muitas vezes no balouçar das vagas do oceano, e
como elle orvalhou de lagrimas o pão do desterro, e veio morrer na
patria sobre a enxerga da miseria. Similhante ao infermo do Evangelho
passou pela terra abandonado, pobre, nú; mas como os antigos romeiros
trovadores, alegrou ou commoveu os animos das classes não privilegiadas,
ás quaes tres seculos tinham feito esquecer que a poesia era tambem e
principalmente para ellas.

Bocage é o typo mais perfeito da sua eschola, e de feito devia sê-lo.
Ella popularizou a arte, porque poetou principalmente para o povo, e
emballou ao mesmo tempo com as melodias da linguagem, com o sonoro do
metro, essas almas rudes mais attentas á harmonia da fórma que ao
poetico do pensamento.

Feita assim a poesia plebea, duas consequencias deviam seguir-se d'esse
passo gigante--a liberdade litteraria e o apparecimento do theatro. A
poesia popular regeita como o povo, quando começa a pensar e deixa de
querer, todas as leis que se fundam em auctoridade ou tradição e não em
conveniencias; e o drama é a fórma mais completa da arte quando esta se
faz burguesa. Não aconteceu todavia assim: a razão d'isso é obvia.

A revolução litteraria que a geração actual intentou e concluiu, não foi
instincto: foi resultado de largas e profundas cogitações; veio com as
revoluções sociaes, e explica-se pelo mesmo pensamento d'estas. Mas nem
Bocage, nem os poetas que o imitavam ou seguiam suas doctrinas, se
doctrinas havia nessa eschola, curavam d'averiguar theorias estheticas;
porque os tempos da grave discussão ainda não eram vindos. Poetas
inspirados deixavam-se ir ao som das suas inspirações, viviam numa
especie d'excitamento intellectual; o _estro_, em que tantas vezes
falam, era uma realidade, e o improviso a forma commum em que davam
vulto aos seus pensamentos e affectos. Esses ingenhos ardentes
respiravam numa atmosphera d'enthusiasmo, d'ebriedade poetica.
Similhantes á avesinha que solta o seu gorgeio como o aprendeu da
natureza e do gorgeio paterno, elles, no seu poetar espontaneo,
acceitavam sem exame as regras que lhe ensinara a Arcadia. E que podiam
fazer os pobres poetas peões senão curvar a cabeça ao voto dos mui
eruditos e cortesãos pastores do monte Menalo?

Por isso a eschola bocagiana preparou só metade da revolução artistica:
trouxe a poesia dos corrilhos e salões aristocraticos para a praça
publica; mas não a fez nacional. Esta difficultosa empresa estava em
grande parte guardada para um poeta tão romano em intenções e desejos,
quanto português na indole do seu ingenho. Francisco Manuel foi quem
acabou o que Bocage começara, completando pela nacionalidade o plebeismo
da arte. Feito isto, seguia-se a revolução--e um poeta mancebo,
desterrado como Francisco Manuel, rasgou a bandeira romana e hasteou a
portuguesa. Os poemas--D. Branca e Camões--foram o signal da revolta. As
tradições da Arcadia estavam irremissivelmente condemnadas.

Foi esse incompleto da eschola elmanista que impediu nascesse no meio
d'ella um theatro original. D'este houvera sido o fundador o Sr.
Sebastião Xavier Botelho, se as suas tendencias, o seu agudo ingenho, e
continua applicação a similhante genero de litteratura fossem ajudados e
acompanhados pelo espirito da épocha, e pelo caracter da eschola a que
pertencia. Debalde com a paciencia e tenacidade de poeta, que são as
maiores d'este mundo, não levantou elle mão de uma empresa que era
impossivel levar a cabo, e em que tinha ficado vencido o incansavel
Manuel de Figueiredo e Garção, o poeta da Arcadia. A nacionalidade não
existia ainda, e nacionalidade e theatro não ha separá-los. O theatro é
para as multidões, e o povo não intende senão quem lhe fala na sua
linguagem e sobre as suas coisas; das suas tradições e crenças, ou das
suas paixões e da sua vida actual.

Assim, com a logica do genio, o Sr. Botelho vira qual era a consequencia
da revolução litteraria para que elle contribuia; conhecera que feita
popular a poesia, e tirada dos aposentos de senhores e poderosos, ou do
seio das academias para ser lançada no mundo--porque ella é do mundo,
devia tomar a fórma mais adequada aos seus novos destinos; mas não viu,
porque não podia ultrapassar as idéas do seu tempo, que a transição era
incompleta. Foi por isso que se enganou nos meios, e pensou que trazendo
á nossa scena as sublimes poesias liricas, epicas, e elegiacas, chamadas
tragedias de Racine, e as dissertações dialogadas de philosophia
incredula, chamadas tragedias de Voltaire, o theatro resurgiria; mas o
theatro deixou-se ficar morto, porque não era a voz da individualidade
nacional, que o revocava á vida.

Eis aqui, Senhores, a luz a que eu vejo a eschola litteraria, a que
pertenceu o Sr. Botelho no primeiro periodo da sua vida intellectual, e
como me parece deve ser julgado elle proprio nas obras do seu ingenho. A
essa eschola cabe um honrado logar na historia do progresso humano, ao
Sr. Botelho toca especialmente o ter sentido, ou antes adivinhado, que,
tornada popular a poesia, devia o drama vir a ser a sua mais completa
expressão. Se não logrou seus desejos, segredo foi de cima. Não quis
Deus que essa mente gigante viesse ajudar-nos a evangelizar a nova
religião da arte com a eloquencia da palavra, e com a mais vehemente
ainda, de obras dignas da immortalidade.

Vistes, Senhores, o nosso fallecido consocio--lidando por honrar as
letras portuguesas, e restaurar o theatro; viste-lo consagrando á poesia
os annos proprios d'ella porque são os do imaginar; ve-lo-heis agora
applicando na edade madura a meditação, a energia do seu vigoroso
talento, e a experiencia alcançada no serviço da patria, a estudos
positivos, ao desenvolvimento das mais graves questões sociaes. O poeta
affectuoso, delicado, harmonioso, converteu esse ingenho de que a
natureza tão prodigamente o dotara, á philosophia politica, e nesta nova
carreira do mundo positivo, quasi posso dizer, escureceu a reputação que
anteriormente adquirira no mundo da idealidade.

Foi na sua demorada rezidencia na banda oriental das nossas desprezadas
colonias africanas, como governador de Moçambique e dos vastos
territorios adjacentes, que o Sr. Botelho colligiu os apontamentos e
noticias para a sua Memoria estatistica sobre os dominios portugueses na
Africa Oriental. Juiz incompetente, nada direi, Senhores, quanto á
materia do livro: escripto por um homem da capacidade do Sr. Botelho, e
talvez em grande parte naquellas mesmas provincias, facil é de suppôr
qual seja o seu valor intrinseco. Violentamente acommettida a obra em um
dos principaes periodicos litterarios d'Inglaterra, a Revista
d'Edimburgo, tal e tão cerrada de razões e provas foi a resposta do Sr.
Botelho, que não houve mais replicar, não sei se com quebra do orgulho
inglês. Acêrca da doutrina do livro, é esta em meu intender a mais cabal
defensão.

O que porém, naquelle precioso volume chega a causar uma d'essas invejas
que não deshonram, porque são nobres e honestas, é o estylo e a
linguagem d'elle. Tão sua tinha feito o Sr. Botelho esta formosa lingua
portuguesa, tão elegante e fluente é o seu descrever e narrar, que
difficultosamente lhe levarão vantagem os nossos principaes prosadores.
Ha no livro do Sr. Botelho uma circumstancia que muitos teem notado:
paginas inteiras das relações dos naufragios, principalmente das que
escreveu o celebre Diogo do Couto, se acham ahi reproduzidas
textualmente. Estas paginas, o mais exercitado leitor do Couto não será
capaz de as distinguir entre as do nosso illustre consocio, tão
irmão-gemeo é o seu estylo e linguagem com os d'aquelle admiravel
historiador. Ou esse apparente plagiato fosse uma prova incontestavel,
que o Sr. Botelho nos quisesse dar, de que o seu talento e saber o
egualavam com os nossos melhores classicos, ou fossem reminiscencias
involuntarias (que não precisava elle d'alheios haveres para ser
abastado) é indubitavel que tal circumstancia basta para caracterizar a
alteza a que chegara como prosador aquelle de quem como poeta dissera
Bocage:

O solemne idioma, o tom dos numes,
A voz que longe vai, que longe sobe,
Que sôa além do mundo, além dos tempos.

Esta importante Memoria foi coordenada e concluida no periodo que
discorreu desde 1828 até 1833, em que o Sr. Botelho esteve inteiramente
afastado dos negocios publicos. Precedeu pois a sua composição aos
opusculos politicos do nosso fallecido consocio, por isso a mencionei
primeiramente. Estes opusculos são, a Carta a S. M. I. o Duque de
Bragança, impressa em Londres em 1833, e as Reflexões Politicas
publicadas successivamente no seguinte anno. Escriptos com a singeleza e
sincera liberdade de homem que sentia bater dentro do peito um coração
português, esses opusculos são, litteralmente considerados, uma nova
corôa para o Sr. Botelho pela gravidade do estylo e pelo pensar profundo
que nelles transluz. Versam sobre importantes successos da época em que
foram publicados. Nesse tempo de paixões violentissimas, taes escriptos
pareceram talvez revelar em seu auctor demasiado apego ás coisas do
passado, e ainda hoje assim parecerão a muitos. Todavia, confesso-vos,
Senhores, que não vejo eu ahi senão novos motivos de venerar a memoria
do nosso illustre consocio, e de admirar a sua consummada prudencia, e o
seu amor de patria. É um filho extremoso que treme e desmaia vendo
applicar a seu pai velho e infermo, medicina violenta, que póde salvá-lo
ou arremessá-lo ao tumulo. E quem ousaria condemnar receios e hesitações
de um filho, nesse arriscado momento?

A epoca de 1833 foi a unica epocha revolucionaria porque tem passado
Portugal, neste seculo. Nem antes, nem depois, quadra tal epitheto aos
successos politicos do nosso país; porque só então foi substituida a
vida interina da sociedade por uma nova existencia. As fôrças sociaes
antigas desappareceram para dar logar a novas forças; destruiram-se
classes; crearam-se novos interesses, que substituiram os que se
anniquilaram: os elementos politicos mudaram de situação.--Podia esta
mudança fazer-se lentamente e sem convulsões dolorosas, ou cumpria que a
revolução fosse rapida e energica? Nem saber, nem vontade tenho eu para
o resolver. O Sr. Botelho julgou que o mais conveniente methodo era o
primeiro; disse-o sinceramente, e procurou prová-lo. Eis a substancia do
que nesses opusculos póde parecer menos progressivo a esses cujo
espirito vai após o futuro. Mas, na verdade, nem um só dos grandes
principios de reforma, que então se converteram em factos, foi combatido
pelo Sr. Botelho. A questão que elle tractou era a do tempo, e era a
prudencia quem movia a sua penna. As diligencias para conter o rapido
desabar das velhas instituições e costumes, era dever dos homens, cuja
edade grave e capacidade extraordinaria abonava d'experimentados.
Inquieto e ardente é por natureza o espirito da mocidade neste seculo de
grandes idéas e de grandes transformações. Aos velhos, aos que, melhor
que nós mancebos, conheceram a sociedade que expirou, incumbe
apontar-nos o que ella tinha respeitavel e bom, e o que ha em nossas
opiniões exaggerado ou perigoso, e a nós incumbe escutá-os com respeito.
Esses homens falam-nos com a mão sobre o coração, porque entre elles e o
julgamento de Deus, e da posteridade medeia só a grossura de uma loisa.
Elles nos admoestam encostados á borda da sepultura, e raro será que até
lá a hypocrisia ou a lembrança de mesquinhos proveitos acompanhem os que
viveram sem mancha uma larga vida. Solemnes e venerandas julgo eu as
palavras da velhice, porque a velhice é uma especie de sacerdocio, e
quando o ancião se ergue para soltar um brado de reprovação, se
escutarmos esse brado, elle poderá contribuir mais para o verdadeiro
progresso do que se os ultimos homens da sociedade extincta saudassem
covardemente a victoria das novas idéas; se caminhando para a morte,
imitassem os gladiadores de Roma, nos circenses do triumpho, que nesse
momento supremo saudavam os Cezares vencedores com aquellas horriveis
palavras: «Salve, Cezar! Os que vão morrer te saúdam!» Arriscar-se-ía
com isso a ser despenho o nosso progresso, e ao despenho segue-se ou o
perecer no abysmo, ou um doloroso retrogradar.

Considerados a esta luz, os opusculos politicos do Sr. Botelho não são
mais que o complemento de dilatados trabalhos encaminhados
constantemente ao aperfeiçoamento intellectual dos seus compatricios.
Poeta na mocidade, bem mereceu da arte: historiador e estadista na edade
grave, mais bem mereceu da patria por escriptos proprios d'essa épocha
da vida. Nós que o tractámos, que o vimos no meio de nós, que com
saudade nos lembramos do seu mérito, fazemos-lhe inteira justiça.
Far-lha-ha tambem a posteridade--e mais completa; porque se como homem
da arte e da sciencia tão honrado nome deixou entre nós, que será para o
mundo, que além d'essas razões de lhe venerar as cinzas, tem a rica
herança dos exemplos de virtudes domesticas, d'amor de patria, de
serviços ao estado, emfim de um nobre proceder--como homem, como pai de
familia, e como cidadão? Os vindouros, que não nós, porão o cimo e
remate ao formoso monumento da sua glória.--_Disse_.




*D. Maria Telles*

DRAMA. EM CINCO ACTOS

PARECER

Memorias do conservatorio

1842




*D. Maria Telles*

DRAMA EM CINCO ACTOS

PARECER


A Secção de Litteratura encarregada por vós de dar um parecer que sirva
de texto á discussão dos meritos ou demeritos do drama--_D. Maria
Telles_--que concorreu aos premios, offerecidos por este Conservatorio
para animar os nossos auctores dramaticos; vem apresentar-vos por minha
intervenção as reflexões que lhe occorrem sobre a materia, e que
rectificadas e ampliadas pelas dos outros membros d'esta Academia, devem
produzir a final um juizo prudente e acertado que sirva não só para em
especial determinar o valor litterario d'esta composição, mas para
illustrar os noveis que commettem tão difficil genero de litteratura.

_D. Maria Telles_--é um drama historico--historico ao menos na intenção,
de seu auctor.--A acção e a época escolhida pelo poeta, é bem conhecida.
A historia da formosa irmã da nossa Lucrecia Borgia--de D. Leonor
Telles--é uma d'aquellas biographias que encerram um só facto; mas que
por esse facto são perpetuamente celebres. Não ha ninguem que ignore com
que arte infernal a adultera D. Leonor sabia obter sempre a satisfação
das suas paixões: entre estas houve uma que era pura, o unico pensamento
sancto e suave que mora no coração d'essas hyenas com gesto humano
chamadas Telles ou Borgias, as quaes felizmente raro apparecem no mundo.
Este affecto era o amor materno. Devia ser vivo e profundo, se o
avaliarmos pelos crimes que D. Leonor commetteu para segurar na cabeça
de sua filha D. Beatriz a coroa de D. Fernando, que se cria seu pai e
que talvez o seria. O Infante D. João era um obstaculo que podia
oppor-se aos intentos d'aquella mulher diabolica. Como livrar se
d'elle?--Convertendo-o em um grande criminoso. Foi então que para o
perder lhe soprou na alma as duas paixões mais ferozes do coração
humano--a ambição e o ciume--e D. Maria Telles foi assassinada pelo
marido porque D. Leonor precisava do seu cadaver para calçar a estrada
por onde D. Beatriz devia subir ao throno. É este assassinio o desfeixo
a que nos conduz o drama: os acontecimentos que o prepararam são a tela
onde se desprega o lavor da imaginação do poeta.

Os caracteres introduzidos neste drama são o de D. Maria Telles; o do
Infante D. João: o de D. Lopo Dias de Sousa, filho de D. Maria e de seu
primeiro marido: o de Garcia Affonso, Commendador d'Elvas; o de João
Lourenço da Cunha, marido de D. Leonor Telles; o de D. Fernando I; o de
D. Leonor; o de Vasco, pagem de D. Leonor, e o de Fr. Soeiro, Director
espiritual, segundo parece, de D. Maria Telles. Um carcereiro, Damas,
Cavalleiros, povo, constituem isso a que se chama cheios, comparsas, ou
personagens mudos.

Não se póde na verdade negar ao auctor d'esta composição uma grande
ousadia litteraria em ajuntar no seu quadro tantos vultos difficultosos
de desenhar, e que por ventura seriam rebeldes aos pinceis de grandes
mestres. Vejamos como elle resolveu o seu problema dramatico
relativamente aos caracteres principaes.

D. Maria Telles era uma formosa viuva, de quem o Infante D. João se
enamorou. Os affectos do Principe só acharam correspondencia quando
prometteu casar com ella, e o casamento effectuou-se, porque a paixão do
Infante era ardente, mas d'esse ardor um tanto brutal proprio de uma
Côrte dissoluta como a de D. Fernando, e d'uma épocha em que o amor
demasiadamente metaphysico nos escriptos dos trovadores, era assás
grosseiro na realidade dos costumes. As probabilidades todas são que
similhante consorcio foi do lado de D. Maria Telles um calculo
d'ambição, e do lado do Infante um meio de satisfazer seus desejos. Isto
é o que resulta da historia. Mas o auctor podia substituir este
argumento historico pelo de um amor talvez mais lyrico, mas por ventura
não mais dramatico. O que não devia era dar a esse amor a fórma e
expressão que lhe deu. Expliquemo-nos.

D. Maria Telles não era uma donzella na primavera da vida: era uma dona
entrada já naquella edade a que se póde chamar o outono da formosura. O
auctor nesta parte acceitou o argumento da historia, introduzindo no seu
drama o Mestre de Christo, mancebo de dezoito ou vinte annos, filho de
D. Maria Telles. Forçosamente esta passara por isso o viço da mocidade.
O seu amor portanto devia ser intenso, mas grave: revelar-se
profundamente nos factos e muitissimo pouco em discursos. Devia ser um
amor que não tarda a transformar-se em amizade; que, por assim dizer,
começa a ter pudor do si mesmo, porque as illusões da juventude teem
quasi todas passado. Difficil é na verdade o pintar esse affecto severo
e intimo; mas se já deixou de ser um merito vencer difficuldades
inuteis, ainda é restricta obrigação do poeta o conhecer as phases do
coração humano, e não as desmentir jámais porque a natureza é immutavel.
O auctor sentiu ao que parece confusamente a verdade d'esta observação;
quis dar gravidade ao caracter de D. Maria Telles: não lhe deu senão
tristeza. Tristeza tanto quando se vai desposar com o Infante como
depois que elle começa a afastar-se d'ella, e a dar-lhe não equivocos
signaes de desamor. Porque está ella triste até á morte, segundo a
expressão de Job, quando se approxima aos altares? É por certos
presagios; é por sonhos; é por certo dizer do coração; é por vergonha
que tem de seu filho. Afora a ultima, nenhuma d'estas razões é
verdadeira, dramaticamente, e a tristeza fica inexplicavel, porque o
pudor não é melancolia. Sereno devia ser o seu contentamento; mas devia
ser contentamento. Não era nessa afflicção e lucto infundados que podia
revellar-se a gravidade do caracter de D. Maria Telles, quando por outra
parte todas as palavras d'esta mulher affectuosa, como o auctor a quis
pintar, só condizem com o amor dos vinte annos que se dilata impetuoso
até aos extremos horizontes da vida. Senão nos enganamos o caracter de
D. Maria Telles está falsificado em relação á historia, e o que mais é
em relação á natureza.

O caracter do Infante apenas se póde dizer que existe: no primeiro
apparece para dizer a D. Maria Telles que muito a ama. Das suas palavras
não resulta individualidade; repete o que em similhante materia se diz
desde o principio do mundo. No terceiro acto onde torna a apparecer, é
ameaçado e affrontado por João Lourenço da Cunha, e fica impassivel,
salvo quando este, provavelmente aborrecido de tanta tranquillidade,
volta as injurias e feros contra D. Leonor que está tambem presente. É
então que o Infante arranca da espada; mas el-rei acode: um dialogo se
trava entre este e João Lourenço. E o Infante? Não sabemos mais d'elle,
senão no V acto em que já quasi persuadido de que sua mulher é infiel,
encontra as provas suppostas d'essa infidelidade. Desde este momento não
é mais possivel o desenhar D. João; porque a furiosa cholera que o
domina o torna necessariamente similhante a qualquer outro homem em
situação analoga. A honra offendida pede sangue; é um pensamento
doloroso moralmente necessario á situação que depois d'isso actua no
drama, não a individualidade d'um homem. Onde está portanto o caracter
do infante?

E todavia esse caracter lá tinha os seus principaes lineamentos traçados
nos capitulos 98.^o e 99.^o da chronica de D. Fernando pelo grande
poeta-chronista Fernão Lopes. O genio aventuroso, folgazão e ousado, do
filho de D. Ignez de Castro, estudados nesses traços do grande mestre,
dariam facilmente a individualidade do personagem ao auctor de--_D.
Maria Telles_--e por certo que essa individualidade variando a monotonia
dos caracteres produziria maior contraste, e por consequencia maior
effeito no terrivel desfeixo do drama.

A monotonia dos caracteres dissemos nós. A monotonia na invenção é na
verdade o principal defeito d'esta composição. Ha ahi quatro ou cinco
vingativos, quatro ou cinco vinganças empastadas por toda ella. Vinga-se
o Infante de sua mulher, de quem tambem se vinga o Commendador d'Elvas,
cujo amor ella desprezara. João Lourenço quer vingar-se de D. Leonor: D.
Leonor de quasi toda a gente. D'esta identidade de situações moraes
forçosamente devia resultar esse capital defeito.

Os dois caracteres que nos parecem individuados são o de D. Leonor e o
do D. Lopo Dias. D. Leonor é a mulher successivamente hypocrita e
insolente: vil e orgulhosa; pobre de crenças moraes, rica de paixões
violentas. É a D. Leonor da historia, salvo em uma ou outra scena; é o
vulto principal do drama. D. Lopo é mancebo, poeta e triste como sua
mãi, mas sobram-lhe para isso razões. O mesquinho está phtysico, pelo
que se collige das suas palavras. Molestia é esta que tem levado muito
poeta imberbe á sepultura. Feliz ainda no meio de seus males, a
afflicção pulmonar que o consome é chronica e por isso lenta, por tal
arte que esperando elle morrer já no primeiro acto, ainda no quinto,
(cujos successos são posteriores mais d'um anno, aos do primeiro) D.
Lopo vive, e ao caír o panno fica de saude, não perfeita; mas da saude
que é compativel com a existencia de tuberculos pulmonares. Apesar de
que a phtysica não pareça coisa excessivamente dramatica e possa ter
algum perigo de ridiculo no theatro, é certo que essa vida cuja
distancia da morte a victima póde quasi exactamente medir: esse caminhar
para o sepulchro por uma estrada onde não ha de retroceder, e na qual
não passa hora ou momento em que a campa senão contemple erguida e
immovel no horizonte: esse oratorio peior que o do sentenciado, porque
dura meses emquanto este dura apenas tres dias; tudo isso é tremendo e
solemne, e o verdadeiro poeta poderá achar nas phases da longa e cruel
agonia do phtysico situações dolorosas e terribilissimas. Alexandre
Dumas as achou num dos seus melhores dramas. Seguiu-o de longe o nosso
auctor, mas nem por isso deixa este caracter de ser um dos mais bem
sustentados em--_D. Maria Telles_.--Os affectos de Lopo Dias são
generosos e puros: teem certa brandura de resignação, certa saudade de
quem pela esperança vive já num mundo melhor, mas que ainda pela
affeição filial está preso ás tristezas da terra. Este personagem é na
verdade possivel e poetico, absolutamente falando. O seu unico defeito é
o commum a todos; é não representar a épocha a que o poeta que o creou
quis que elle pertencesse.

Os outros caracteres do drama ou são nullos, ou reflexos mais ou menos
pallidos dos que ficam avaliados. Os sentimentos de vingança que
subjugam D. João Lourenço da Cunha e o Commendador d'Elvas, tornam
confusos os traços de um com os do outro, apesar das diligencias que o
auctor fez para lhes variar as situações; confusão esta que se augmenta
com a analogia que ha entre ambos e os de D. Leonor e do Infante. Fr.
Soeiro é perfeitamente nullo; e Vasco, seide de D. Leonor, é um caracter
que não pode fixar-se por demasiadamente transitorio, posto que
fortemente concebido. Se tivesse passado de um esboço seria talvez o
mais dramatico de todos elles. Isabel emfim é a eterna confidente do
theatro classico, cuja utilidade dramatica foi, é e será sempre passiva;
substituição impertinente do monologo; especie de titere que se deixa
mover á mercê do auctor, e que por mais que fale, se esforça ou chore,
por via de regra, serve tanto para o andamento da acção como as polés em
que se movem os bastidores.

Notámos acima que os personagens d'este drama não representam a época a
que historicamente pertencem: é este depois do uniforme, e confuso dos
caracteres o maximo defeito d'elle. Nesta parte accrescentaremos algumas
considerações que não parecerão inteiramente inuteis para os cultores
principiantes d'este genero de litteratura. A epocha dos reinados de D.
Fernando e D. João I é incontestavelmente a mais dramatica da historia
portuguesa. São-no os factos politicos e a vida civil d'esse tempo: as
pessoas e as coisas. A nobreza era chegada ao apogeu da sua grandeza,
porque as instituições feudaes que se haviam misturado com a nossa
primitiva indole social, tinham tocado então a méta do seu predominio:
quando já a sua dilatada agonia começava no resto da Europa: o povo dava
signaes exteriores de que existia, e existia robusto; a monarchia
exgotava a sua generosidade e os testemunhos do seu temor para com a
aristocracia na vespera de dar principio ao duello de morte para que ia
reptá-la, e que devia durar cem annos. Nestes dois reinados operou-se
uma transformação nacional: o fim do seculo XIV foi um periodo
revolucionario: revolucionario não tanto para as pessoas como para as
coisas; os elementos da vida social foram então chamados a uma grande
lucta, e, como acontece sempre em similhantes situações, tanto os que
deviam ser vencidos como os que haviam de ficar vencedores combateram
energicamente. Os grandes vultos historicos d'esse tempo--os personagens
extraordinarios, diriamos quasi homericos, que então surgiram--os
caracteres profundamente distinctos, e altamente poeticos, quer pela
negrura, quer pela formusura moral:--todos nasceram da situação social
do país: foram o resultado e o resumo d'esta, e por ella sómente se
podem comprehender, avaliar e explicar. Se porém essas imagens tão
aproveitaveis para a arte, forem arrancadas do quadro em cujo chão e luz
appropriados a ellas, unicamente se devem contemplar, ficarão
convertidas em desenhos de morte-côr, e o que mais é, perderão os seus
lineamentos caracteristicos; serão abstracções; serão quando muito
objectos d'estudo para a physiologia das paixões: serão representantes
do genero humano em geral, mas nunca de uma geração, de uma época, e
d'um país: darão materia para o drama metaphysico, para o drama como o
conceberam Goethe em _Ferv_ e _Betly_ ou na _Filha Natural_, e Byron no
_Manfredo_; porém não para o drama historico, para o drama que se
incarna na realidade, para o drama que não é um poema lyrico como a
_Athalia_ ou uma amplificação brilhante como _Mahomet_, mas uma obra
d'arte que toma por expressão a vida humana, e que é destinada para a
scena.

O titulo do drama historico dado ás composições mais notaveis neste
genero, que no seculo passado e no presente tem apparecido na Europa,
como _Goetz_, _Wallensteim_, _Hernani_, e tantos outros, não foi uma
phantasia ou capricho dos eminentes poetas que as produziram ou dos
criticos que as julgaram. Este titulo corresponde a uma realidade:
representa uma theoria litteraria verdadeira e nova substituida a outra
velha e falsa. O theatro antigo por via de regra era uma abstracção: os
seus personagens são vultos por assim dizer desenhados na atmosphera, e
que se movem nos raios do sol; não pisam a terra; não choram nem folgam
humanamente; não descendem como nós de Adão; não estão sugeitos senão a
certas condições da vida real. O dramaturgo antigo creava o caracter de
um tyranno, chamava-lhe Nero; de um voluptuario, chamava-lhe
Sardanapalo; de uma incestuosa chamava-lhe Phedra; de um hypocrita
feroz, chamava-lhe Mahomet. Podia chamar-lhes outra qualquer coisa;
buscar na historia ou fóra d'ella outros quaesquer nomes. _Constei
sibi_: eis o que exigia d'esses caracteres a philosophia da arte.
Satisfeita esta condição bem pouco importava se o personagem era romano,
syro, grego, ou arabe. _Constet sibi_.--Pouco importava se as suas
dimensões eram humanas. _Constet sibi_. Pouco importava quaes haviam
sido as crenças, as condições da vida civil, os varios aspectos emfim da
sociedade e da época em que o individuo que se arrastava para o theatro
tinha vivido, e que forçosamente deviam modificar-lhe de certo ou certo
modo as paixões ou os affectos, o pensar intimo ou o porte exterior.
_Constet sibi_: era o que lhe pedia a arte antiga. E na verdade não era
pedir muito. A arte moderna que os ingenuos e innocentes defensores do
passado accusam de licenciosa põe apenas mil vezes mais duras condições
aos seus sacerdotes; porque alem da constancia dos caracteres
dramaticos, exige nestes circumstancias, que só o muito estudo e um
ingenho profundamente synthetico póde fazer que se liguem ás obras
filhas da imaginação do poeta.

Se tão leves de soffrer foram outr'ora as condições dramaticas quanto
aos caracteres, escusado parece dizer que foram nullas quanto á
phisiologia intima do drama. Malbaratou-se toda a esthetica dos antigos
nas fórmas materiaes e externas d'elle, na anatomia dos ossos e
cartilagens. Os escriptores _licenciosos_ do seculo presente sentiram
não tanto que esta anatomia era erronea, apesar de o ser muito, quanto
sentiram que era incompletissima. Posto o principio incontestavel de que
o drama não é mais do que a arte vasada no molde da vida social, tiraram
o corollario forçoso de que era preciso primeiro que tudo estudar esta,
e exclusivamente esta. A arte não se estuda; porque a arte é o ideal, e
o ideal vem de Deus; é uma inspiração: o que se estuda são as formulas
materiaes em que ella se revela, os typos em que se resume; para que
estes possam ser claros e definidos como meios de communicação entre o
poeta e o mundo. No drama a historia é a expressão da arte, é a voz
articulada do homem inspirado. Elle deve por isso saber perfundamente a
historia da épocha e do povo que vai alevantar do sepulchro, para servir
d'interprete entre elle e as gerações que hão de escutar as suas
revelações de poeta.

Se os antigos pudessem ter adivinhado e seguido esta _licenciosa_
theoria, os seus estudos não houveram sido apesar d'isso nem largos nem
custosos. A historia era falsa como a arte. Reduzia-se a biographias
soltas e incompletas; era tambem um aggregado d'abstracções; resumia-se
nos factos politicos. A vida social passava desconhecida: o povo
desapparecia nas sombras gigantes que derramavam em volta de si os
homens eminentes. Ao passo, porém, que a arte se reconstruia,
reconstruia-se a historia. Ao lado de Goethe e Schiller apparecia Herder
e Muleer; ao lado d'Hugo, Guizot e Thierry. Ambas as refórmas se viram e
vêem obrigadas a refutar o passado com as razões e com o exemplo. Mas o
poeta é constrangido a encerrar-se na época e no país cuja historia se
acha escripta por um systema racional, ou a ser ao mesmo tempo
historiador e poeta, tarefa difficil debaixo da qual poucos hombros
deixarão de vergar; mas que é indispensavel leve a cabo aquelle que
quiser incarnar a sua obra dramatica na historia do passado, sob pena de
cair no convencional e incompleto do antigo theatro, porque não basta
sacudir o jugo dos preceitos pueris das poeticas para escrever o drama
historico: importa redigir-lhe a formula, e esta não está em achar
quatro datas, e seis nomes illustres, mas na resurreição completa da
epoca escolhida para nella se delinear a concepção dramatica. Primeiro
que tudo, importa que essa epoca se alevante, como Lazaro á voz ele
Jesus, cheia de vigor e de vida.

É de lamentar que os nossos mancebos, esperanças da litteratura patria,
prefiram ordinariamente as epocas historicas que passaram para nellas
traduzirem ao mundo os fructos do seu ingenho dramatico, tendo aliás
para isso a vida presente que tambem é sociedade e historia. Não seria
melhor que estudassem o mundo que os rodeia, e que vestissem os filhos
da sua imaginação com os trages da actualidade? Não lhes era mais facil,
mais agradavel até, este estudo feito no meio dos banquetes, dos bailes,
das conversações, do ruido, do presente, no qual os leva
irresistivelmente a lançarem-se a superabundancia de vida, o fogo da
mocidade? Muito se enganam elles, crendo que acham a historia em alguns
pobres livros historicos que por ahi existem. Não: a historia não está
lá! Não, vós não achastes a formula material para a vossa idealidade; o
vosso drama é a visão infernal mas ridicula de Perrault; é a sombra do
cocheiro que alimpava a sombra de uma carruagem com a sombra de uma
escova. Na vossa obra não ha drama porque na sua forma externa não ha
realidade, e a expressão é o real. Para achar este cumpre ter o estamago
e os braços robustos, os orgãos do olfacto endurecidos, a paciencia de
ferro, porque é preciso revolver a grande lagem que cobre o cadaver do
passado; é preciso aspirar o pó do sepulchro, deslizar prega por prega o
sudario apodrecido das gerações extinctas: é preciso contemplar as
formosuras das sociedades que se transformaram ou pereceram mas tambem
apalpares cancros que as devoraram: é preciso contemplar seus monumentos
sublimes de marmore; mas tambem ler lentamente os quasi apagados e
barbaros caracteres dos seus pergaminhos, e as obscuras, tediosas e
incertas sentenças da sua legislação; é preciso viver com os grandes
d'outr'ora em seus paços esplendidos, mas assistir tambem ás miserias e
agonias dos peões, cuja desventura faria hoje recuar de horror o maior
malaventurado. Tudo isto é necessario, sem contar o grande e fatal risco
de perderdes neste rude trabalho o que vale mais do que elle--a
imaginação e a poesia. Deixai que outros a quem alguma vocação fatal
leva para este genero de estudo, o mais tedioso talvez de todos, vos
reconstruam os tempos que se dissolveram em pedaços. Então podereis
livremente escolher a urdidura da vossa têa, e bordá-la com os ricos
matizes das vossas inspirações.

Que resulta de se escolherem para objectos de composições dramaticas
successos e individuos pertencentes a uma geração e a uma sociedade cuja
indole e modo de existir se ignora? Resulta cair-se no vicio do theatro
antigo; fazer abstracções, e desmentir a verdadeira arte. É o que
succede em--_D. Maria Telles_.--Ponham-se ahi em vez d'esses nomes tão
conhecidos do fim do decimo quarto seculo, signaes algebricos: cortem-se
todas as allusões aos acontecimentos politicos ou pessoas notaveis
d'então, e o drama pertencerá á epoca e ao país que nos approuver. E
porque? Porque falta ahi a individualidade portuguesa d'então: faltam o
crer, os costumes, as relações sociaes d'essas eras. E sendo isto assim
poder-se-ha dar a--_D. Maria Telles_--o titulo de um drama historico,
que evidentemente quis seu auctor se lhe désse?

Julgámos ser nossa obrigação dilatar-mo-nos nestas considerações sobre
duas partes importantissimas de qualquer drama--os caracteres, e a côr e
verdade historica e local, porque é preciso confessar que depois da
restauração do nosso theatro, é sobre estes dois pontos que a critica
litteraria attenta em demasia a averiguações, sobre a correcção de
lingua, tem sido assás negligente e escaça. Resta agora examinarmos com
a brevidade possivel a disposição ou enredo do drama, a propriedade do
seu estylo, e a pureza da sua linguagem. A traça do drama é a seguinte.

Primeiro acto.--O Infante D. João está a ponto de desposar-se com D.
Maria Telles. Esta o espera no castello de Barcellos, onde a ceremonia
do casamento deve celebrar-se a occultas, e alta noite, a despeito dos
sagrados canones. A boa dona possuida de uma tristeza inexplicavel está
acompanhada da sua confidente e ora na capella, onde se vê o tumulo do
seu primeiro marido. Por Isabel manda chamar Fr. Soeiro para que venha
animá-la e consolá-la, e fica sozinha. Chega seu filho D. Lopo Dias, D.
Maria Telles lhe escondera o negocio do casamento, mas elle o aventara
não sabemos como, nem o auctor o diz. Queixas do filho porque fica
desamparado; razão tinha, attento o seu estado de phtysico. Promessas da
mãi, de que toda a familia ficará junta, por que elle Lopo Dias e o
Infante são os seus unicos amigos. _Ainda tendes outro_, lhe brada um
cavalleiro de armadura negra e viseira callada que apparece á porta da
capella. Dizendo e fazendo, ei-lo que entra. D. Lopo pergunta-lhe quem
é: resposta; _sou um defensor de vossa mãi_. D. Lopo diz que lhe fica
muito obrigado mas que ella não precisa de defensores. Insiste o
desconhecido porque D. Leonor ha de persegui-la. Isso é a mim que
toca:--acode D. Lopo. Com bom fundamento o affirmava, e por isso o
cavalleiro não acertando a replicar-lhe vai-se ao tropheu d'armas que
está sobre o tumulo de Alvaro Dias, pega na espada do defuncto e
entrega-a ao mancebo recommendando-lhe que se mostre digno d'ella. A tão
bom conselho não havia fazer reparos. D. Lopo promette dar-lhe o devido
uso. Então o cavalleiro sai, não sem offerecer a D. Lopo o seu braço e
espada para qualquer lanço apertado; já se sabe sem dizer quem é ou onde
mora. Ido o cavalleiro, D. Maria pergunta ao filho quem seria aquelle
homem, era melhor ter-lho perguntado a elle. Se o conhecesse como as
suas mãos D. Lopo não responderia mais confiado: _É um homem que vos
ama, e que vigia sobre vós_. Não diz isto porque o conheça: mas porque o
sabe ab alto, a proposito do que vem uma dissertação sobre o dom
d'adivinhar que teem os phtysicos. Saindo Lopo, volta Isabel com Fr.
Soeiro: scena inutil.--Chega então o Infante, acompanhado do Commendador
d'Elvas; colloquios amorosos. O Commendador Garcia Affonso nas visagens
que faz, nos á partes que murmura mostra a raiva que lhe accende na alma
o affecto dos dois conjuges, que finalizam o acto ajoelhando junto ao
altar provavelmente para receberem a benção matrimonial de Fr. Soeiro.

Este acto, afora a inutilidade da scena VI, involve grave falta de
probabilidade. Como pôde um cavalleiro desconhecido entrar de viseira
callada e depois da meia noite na capella de um castello do seculo XIV?
Como rodou a ponte levadiça para lhe dar passagem? Que fazia o madraço
do alcaide; que faziam os vigias das quadrellas, roldas e sobre roldas,
que assim deixavam devassar a boa fortaleza d'el-rei de Portugal? Como
entrou esse homem? Eis o que o auctor não diz, nem lhe fôra facil
dizê-lo. Depois, é acaso natural que D. Maria Telles nem sequer deseje
conhecer quem elle é? Homem que fosse, não descansaria sem o saber,
quanto mais sendo mulher! D. Lopo indaga na verdade quem elle seja; mas
contenta-se com uma resposta evasiva, e consente que o incognito lhe vá
buscar a espada de seu pai, e lh'a entregue com a comminação de que ha
de fazer bom uso d'ella. O melhor uso que D. Lopo naquelle momento podia
fazer d'esse ferro era pôr-lho aos peitos para o obrigar a erguer a
viseira. Sua mãi vai celebrar um casamento occulto, e é quasi na hora
prefixa para a ceremonia que elle tolera venha um desconhecido devassar
a capella, sem o obrigar a descobrir-se? A theoria de que os phtysicos
adivinham será muito boa e verdadeira; mas a palhologia ainda não chegou
a atinar com essa circumstancia nas affecções pulmonares, e os
espectadores não poderão admittir a razão com que o auctor por bocca de
D. Lopo pretende desculpar a inverosimilhança de tal procedimento, isto
é, que elle já tem o que quer que seja d'alma do outro mundo, e que por
isso sabe que o desconhecido é pessoa de confiança. O antigo theatro só
consentia milagres em casos apertadissimos. _Nec Deus interrit nisi
dignos vindice nodus_. A licenciosa eschola moderna em nenhum admitte
taes meios, quer seja para conduzir o drama, quer para desfeixo d'elle.
Natureza e verdade são os seus unicos elementos.

Segundo acto.--Tem passado um anno. D. Maria Telles está em Coimbra com
seu filho, e o Infante que já começa a esquecer-se de sua mulher anda na
côrte. D. Lopo faz versos e carpe-se: D. Maria carpe-se e ouve-lh'os
declamar. Mas como lagrimas e versos continuados são duas grandes
canseiras, a pobre dama abandonada convida seu filho para irem
espairecer suas maguas pelas margens do Mondego. A isto acode D. Lopo,
que é melhor irem ao monte visitar a caverna do solitario.--Qual
solitario? Logo o sabereis. D. Maria Telles faz suas objecções: a
caverna do referido solitario ou _homem dos mysterios_ tem má nomeada:
ninguem se atreve a chegar perto d'ella: a isto acode o poeta, com dizer
que todos esses medos são sandices do vulgo, e que lá por certos
barruntos que elle tem, adivinha que o solitario é pessoa de porte e de
bondade. Desassombrada de seus temores D. Maria está a ponto de sair eis
senão quando chega o Commendador d'Elvas com uma carta do Infante. Roto
o fecho da carta com o punhal de Garcia Affonso, D. Maria lê o contheudo
d'ella em voz baixa. A boa da carta era fria, fria como gêlo: nem uma
palavra affectuosa! Apenas lhe diz sua mercê o Infante que não pode ir a
Coimbra, demorado na côrte por negocios d'alta monta. Desesperação de D.
Maria que sente por isto que vai morrer. Porque? Porque D. João, marido
já de um anno, e preoccupado por graves negocios, não lhe escreve uma
carta de amores, e não lhe declara que negocios são esses que lhe
embargam os passos. Vêr a morte diante dos olhos; ficar desesperada por
tal motivo seria loucura d'uma rapariga de vinte annos, mas em uma dona
de trinta e seis é uma inverosimilhança inadmissivel. Se todas as
mulheres casadas de mais de um anno morressem por não serem as cartas de
seus maridos ausentes adubadas de amores e requebros: a proporção das
viuvas com o resto da população seria mais descommunal e espantosa do
que em Inglaterra a dos que morrem de fome com os que teem que comer.
Quanto ao segredo que o Infante guarda sobre os negocios que o reteem,
razão tinha D. Maria Telles, porque mencioná-los sem os particularizar,
era fazer nascer desejos vãos á insaciavel curiosidade feminina, e
todavia não podiam ser materias d'estado esses negocios?--não podiam ser
coisas que nada importassem a D. Maria? Para um desmaio ainda a carta
teria substancia se a dama fosse uma rapariguinha; mas para agonias
mortaes em uma dona sisuda, como lhe chama Fernão Lopes, não havia ahi
motivo. Por uns longes que se enxergam em dois á partes do Commendador
vê-se que foi elle quem armou esta negregada invenção da carta, e que
folga com o effeito d'ella. Se o auctor do drama tivesse concedido a D.
Maria Telles mais uma mealha de senso commum, Garcia Affonso não teria
mostrado ser na tal invenção da carta, senão um solemnissimo mentecapto,
se a sua intenção era, como elle diz num monologo, vingar-se d'ella e do
Infante.

Lida a carta, D. Maria chama o filho para irem visitar o solitario,
porque só nelle poderá achar consolações. Pois que tem o solitario (de
quem ella ha um instante tremia de medo) com o desamor de D. João? O
poeta, que fôra o movedor d'esta ida está prestes, e lá vão ambos por
montes e valles em cata do mysterioso anachoreta.

Não tardam muito a encontrá-lo. É apenas o tempo necessario para a
mutação da scena, cair e levantar-se o panno; não para mudança de acto,
mas de quadro. O solitario está na caverna falando a sós comsigo. De seu
dizer consta que havendo amado D. Maria Telles, e não podendo obtê-la
por ser já casada com Alvaro Dias de Sousa, casara com sua irmã D.
Leonor, que o deixou para subir ao throno. É, portanto, o eremita--João
Lourenço da Cunha, que lida com suas maguas, e que depois de invocar a
morte e sonhar vinganças, o que não é a mais approvada disposição moral
para esse transe tremendo, cai desfallecido sobre um rochedo. É neste
ponto que chegam Lopo Dias e sua mãi. lista apenas entra, diz-lhe que
vem trazer-lhe consolações. Impertinencia de mulher! Quem lhe disse a
ella que o anachoreta de cuja caverna ninguem ousa approximar-se, entrou
na vida eremitica por desventuras e não pelo arrependimento de seus
peccados? Quem lhe dá a certeza de que poderá consolá-lo, ella que não o
conhece, e que não sabe provavelmente o que lhe ha de dizer? Dar-lhe
consolações?! De que genero e de que modo? Que affirmou ella ao sair de
casa? Que vinha pedir e não offerecer consolo. Disse uma coisa sem
sentido, sem verdade, e agora diz outra. O solitario offende-se da
offerta e com razão. Affirmando-se porém na recem chegada, reconhece-a,
e ella reconhece-o a elle.--Explicações mutuas. João Lourenço refere
então como foi elle o cavalleiro d'armas negras que lhe appareceu na
capella, e explica-lhe o proceder do Infante. Este occultou na côrte o
seu casamento, e a mão da Infante D. Beatriz acaba de lhe ser
offerecida. Cheia d'angustia, neste logar, justa e bem fundada, D. Maria
Telles pergunta: e _acceitou-a_?--Uma voz que sôa na bocca da caverna
responde--_Acceitou_!--É o Commendador d'Elvas que assoma involto numa
capa, já se sabe, negra. D. Maria desmaia e cai o panno.

Este desfeixo do acto é natural e dramatico, e a melhor coisa de todo
elle. O Commendador vendo-a sair seguia-lhe os passos; escutou a
conversação, e em seus pensamentos de vingança não consentiu que outrem
desse a punhalada mortal nessa mulher de quem queria vingar-se. Aqui o
efleito dramatico vem naturalmente da situação e caracter dos
personagens. Quanto ás scenas anteriores parece-nos que estão abaixo de
toda a critica.

Acto terceiro.--D. Leonor está só debatendo-se com os remordimentos de
sua consciencia; entra o Commendador d'Elvas. Vem trazer-lhe a noticia
de que fez ao Infante a proposta do casamento com D. Beatriz, e que
achando-o mau de resolver lhe dera suspeitas de que sua mulher o
trahira. D. Leonor relucta contra esta nova calumnia: martyrizam-na os
remorsos porque viu em sonhos os castigos que lhes estavam reservados no
outro mundo a elle Commendador e a ella Rainha; nesses tormentos,
conforme o direito, e em vista da nossa moderna jurisprudencia
dramatica, ha pontas de rochedos em braza para arrastar o miseravel
Commendador. O triplicado da punição; as pontas, os rochedos e as
brazas, aterram-no, mas finge-se resoluto. Não assim a rainha a quem os
sonhos pavorosos não podem esquecer. Segue-se uma lucta moral em que os
insultos refervem entre os dois. O Commendador sai ameaçando a rainha.
Apenas esta se acha só, entra João Lourenço da Cunha: scena violenta
entre os dois em que a rainha successivamente treme, humilha-se,
amaldiçoa e ameaça, e em que elle fala constantemente a linguagem do
odio profundo. No meio da altercação sobrevem o Infante que tendo João
Lourenço por morto, crê que é a sua alma em pena. Este o ameaça tambem
por querer dissolver o matrimonio contrahido com D. Maria Telles. A
rainha nega o casamento: João Lourenço injuria-a de novo, e o Infante
arranca da espada. A ponto já de brigarem acode el-rei aos brados de D.
Leonor. João Lourenço que enfiou a ladainha dos doestos affronta tambem
D. Fernando que chega a levar a mão á espada, mas que lembrando-se de
quem é, manda-o como era de razão, metter na cadêa. Partindo, o antigo
marido da rainha, pergunta a si mesmo, quem, preso elle, defenderá D.
Maria Telles. D. Lopo Dias apparecendo no fundo responde-lhe;--_Seu
filho_!--E cai o panno.

Este acto, tem entre todos como é evidente, a primazia no desalinhavado
e absurdo do desenho, posto que não lhe falta merito ás vezes na
execução das scenas. Primeiramente como é crivel que tendo Garcia
Affonso sido encarregado pela Rainha de propôr ao Infante o novo
casamento, e estando este na côrte, o Commendador antes de dar parte a
D. Leonor do desempenho da commissão, fosse a Coimbra levar a celebre
carta do acto 2.^o, o que podia fazer qualquer pagem ou correio? Em
segundo logar, não estaria doido João Lourenço, tendo tomado a peito
defender D. Maria Telles, em vir metter-se nas garras da rainha, só para
a injuriar e aos outros seus inimigos, porque não consta do drama que
viesse fazer outra coisa? Que esperava elle lhe succedesse, entrando no
paço, onde todos o conheciam, para practicar aquellas gentilezas, senão
ir jazer na cadêa? Depois como entrou elle sem licença até o quarto de
D. Leonor? É a mesma inverosimilhança do primeiro acto. O paço real no
seculo XIV era menos vedado que hoje: permittia-o a differença dos
tempos; mas nem por isso era uma taberna, onde qualquer entrasse quando
e como lhe approuvesse; e todavia é sobre estes argumentos que assentam
os dois ultimos actos. Quanto a este abster-nos-hemos de dizer mais nada
contentando-nos com observar que termina por um effeito dramatico
perfeitamente analogo ao desfeixo do segundo, isto é pelo apparecimento
de um personagem inesperado.

Acto quarto.--João Lourenço está na masmorra em que a propria
imprudencia o lançou. Ahi se dóe e queixa de Deus, em vez de se queixar
de si. No meio de suas lástimas passa uma barca pelo Téjo, e ouve-se
nella uma voz que se approxima da prisão. A unica prisão em que podia
estar João Lourenço era a dos paços do Castello e como de lá se ouvia
uma voz no rio e esta se approximava da masmorra não será facil dizer:
todavia deixemos bagatellas. Provavelmente quem cantava era D. Lopo que
d'ahi a pouco entra no calaboiço, aliás, não intendemos que pudesse
trazer-se a proposito tal cantiga que nada tem com o drama. D. Lopo vem
livrá-lo, acompanhado do carcereiro que provavelmente para isso peitou.
Isto de carcereiros comprados como meio dramatico, é coisa quasi tão
velha e gasta quanto o estão os confidentes classicos. O prêso recusa a
liberdade porque quer morrer. Aqui fica evidente a doidice de João
Lourenço. Não podem ter passado cinco minutos desde que elle dizia: _Oh
Senhor Deus deixar-me-heis morrer sem ter salvado a innocente Maria?...
Oh, nem uma esperança me dais_?--e agora que o querem soltar responde
com vehemencia; _deixai-me morrer; deixai-me morrer_!?--Pois se quer
morrer para que estava apoquentando os céus com seus queixumes? Isto era
capaz d'impacientar até o sancto dos sanctos. Em fim depois de varias
ponderações do poeta phtysico o homem resolve-se a sair. D. Lopo diz-lhe
que espere que vai arranjar os meios da fuga, e parte com o carcereiro.
Fica só o prêso, porém não tarda companhia. Uma porta secreta se abre e
D. Leonor entra, tira a chave e encaminha-se para seu primeiro marido.
Vem dizer-lhe que elle ha de morrer alli mesmo: vem saciar o seu odio:
João Lourenço depois de ameaças mutuas tira-lhe repentinamente a chave
da porta secreta, e diz-lhe que vai salvar D. Maria Telles; a isto acode
a Rainha que não lhe achará senão o cadaver. Desesperação de João
Lourenço da Cunha, que supplica de joelhos, e que achando D. Leonor
inabalavel, ergue-se furioso e quer matá-la com um punhal que traz
escondido: é então que ella supplica; é então que elle se torna
inexoravel. Aponto de a apunhalar chega D. Lopo; a esperança amortece a
cholera no coração do marido da Rainha; o punhal cai-lhe das mãos. D.
Leonor continua todavia a ficar de joelhos, a pedir não que lhe deixem a
vida, porque esta já ella sabe que está salva; mas que a soltem: que lhe
permitiam sair d'aquelle logar d'horror. Sublime hypocrisia que encubriu
o animo damnado com a mascara do susto. Recusam-lho: então a cholera
trasborda do peito d'essa mulher que é um abysmo de maldade. Nem a
demora d'uma hora a que elles a condemnam saindo, soffre a rainha.
Apenas se acha só a régia hyena corre, e lança raivosa as garras ás
grades da masmorra; depois ajoelha e quer orar, mas alevanta-se logo, e
sorri. Pensa um momento, e com gesto ameaçador exclama: _D'aqui a uma
hora serei outra vez rainha_. Um pensamento atroz e medonho reluziu por
certo á luz sanguinea que bruxulea nessa alma? Qual foi elle?
Sabe-lo-hemos no sexto e derradeiro quadro.

Nas tres ultimas scenas d'este curtissimo acto, tão curto que talvez a
representação d'elle não occupe quinze minutos a scena, revela-se um
poeta. Não mencionaremos defeitos porque o que tem excellente no-los
varreu da memoria: o auctor comprehendeu perfeitamente o caracter de D.
Leonor: ha aqui o talento profundo de um verdadeiro escriptor dramatico.
Oxalá poderamos dar de tudo e de todo o drama os mesmos testemunhos de
louvor e admiração! Com magua temos feito o contrario, porque é o nosso
penoso dever distribuir recta e severa justiça, e corresponder á
confiança que em nós depositou esta assemblêa.

Quinto acto.--Estamos em Coimbra nos paços do Infante. Ao correr do
panno D. Leonor e Garcia Affonso falam a sós. A rainha, segundo parece,
saíu da prisão e chegou a Coimbra antes que João Lourenço e D. Lopo. Não
6 isto provavel mas é possivel; porque o odio entranhavel costuma ser ás
vezes mais diligente que todas as affeições. A scena da prisão, uma
vingança falha, uma humilhação necessaria mas cruel, espertaram toda a
violencia do caracter da rainha: os remorsos desappareceram, e ella
precisa de sangue. Incita por isso o Commendador para que positivamente
accuse sua irmã~ de adultera: conhecera pelo terror de João Lourenço que
este a amava, e é de bom-grado fratricida para começar pela vingança que
mais deve doer a seu antigo marido. É este o verdadeiro retrato de D.
Leonor, mas o que é falso, o que não condiz com o caracter profundamente
dissimulado que lhe attribue a historia, e o auctor tão bem pintou no
fim do 4.^o acto, é o injuriar gratuitamente o mesmo homem que está
incitando para que seja instrumento da sua vingança. Embora ambos se
conhecessem bem mutuamente: embora estas duas almas negrissimas
estivessem sem máscara; mas ainda os maiores malvados não ouzam recordar
uns aos outros os seus crimes, e injuriarem-se com elles senão nos
extremos de cholera. Vemos que do aspecto que toma esta scena e do seu
desfeixo, depende a existencia de duas ou tres scenas seguintes: a
inverosimilhança porém da origem diminue-lhes grande parte do merito que
possam ter. As affrontas da rainha são correspondidas por Garcia
Affonso, que acceitando a infame commissão, e um bracellete que deve
servir de prova á calumnia, sai praguejando e ameaçando D. Leonor, e
ameaçado e praguejado por ella. Esta scena é evidentemente desarrazoada,
ou antes impossivel. D. Leonor fica só, e num monologo resolve a morte
do Commendador: foi para isto que se delineou a scena antecedente. Por
assim dizer, o auctor fez num drama o que se diz fazia Boileau nos seus
alexandrinos, sugeitou a rima do primeiro verso á do segundo. Resolvido
o assassinio do seu antigo cumplice, a rainha dá um signal e apparece
Vasco seu pagem. D. Leonor diz-lhe que um homem a ultrajava: responde o
pagem que lhe diga seu nome e elle morrerá: esta scena está felizmente
imaginada e o caracter de um official d'assassino dado ao pagem é rapida
e profundamente traçado. Vasco sai e a rainha esconde-se em uma camara
para d'alli ver morrer Garcia Affonso. Apenas ella se retira o Infante
entra com o Commendador d'Elvas que pretende persuadi-lo da infidelidade
de D. Maria Telles e que por fim o convence com a prova do bracellete, o
qual, diz elle, João Lourenço perdera. Fraquissima é a prova, mas
acceitemo-la, visto que o Infante a acceita. Este arranca a adaga,
arromba a porta da camara de Maria Telles e arroja-se para lá furioso.
Garcia Affonso fica só e tirando um frasco de veneno, declara em um
monologo que envenenará o Infante logo que tenha assassinado sua mulher.
Vasco entra então, e gracejando com Garcia Affonso, diz-lhe que precisa
de lhe communicar um segredo, mas que antes d'isso beberá com elle um
trago de vinho. O aspecto de Vasco assustou o Commendador lembrado do
que passou com a rainha, e de que este pagem é o executor das suas
vinganças secretas. Emquanto Vasco vai buscar o vinho, elle lança á
cautella veneno em uma das taças que alli estão, e quando o pagem volta
enche-a e offerece-lh'a, tomando para si outra. Ambos levam as taças á
bocca, mas nenhum bebe. Garcia Affonso põe a sua sobre a mesa e pergunta
ao pagem qual é o segredo; rindo atrozmente este lhe pergunta se quer
sabê-lo; Garcia Affonso responde que sim, e que o diga depressa porque
lhe resta pouco tempo para o revelar por estar envenenado: o pagem
continua a rir e replica que é elle que o está, e que esse era o
segredo. Garcia Affonso despejando a taça mostra que lhe não tocara: o
pagem faz o mesmo. O Commendador então lhe diz: _Pois bem! nem um nem
outro morreremos_.--_Enganaes-vos_!--torna Vasco soltando uma risada
terrivel e dando-lhe uma punhalada. Garcia Affonso, amaldiçoa-se a si e
ao pagem, procurando tambem feri-lo. Neste momento ouve-se dentro a voz
de D. Maria Telles que implora piedade. O horror appossa-se do
Commendador agonizante, os gritos de D. Maria redobram, e o Infante sai
da camara com a adaga na mão tinta em sangue. Os remorsos fazem que o
Commendador moribundo confesse a innocencia de D. Maria Telles. O
infante furioso quer cravar-lhe a adaga, mas antes d'isso cai morto.
Garcia Affonso João Lourenço chega já tarde seguido de cavalleiros e
povo: o Infante desesperado pede que o matem, e João Lourenço quer
cumprir-lhe os desejos, quando D. Maria Telles saindo da camara o retem
e vai cair nos braços do Infante a quem perdoa morrendo. Apparece então
D. Leonor, e apontando para os cadaveres da irmã e de Commendador diz
para o marido--que veja como se vingou uma rainha. D. Lopo apparecendo
subitamente com a espada na mão, abre uma janella e mostrando a praça
atulhada de povo armado, diz-lhe:--_Senhora rainha, o filho vingará
tambem a morte de sua mãi, e o povo as injurias recebidas_. Assim se
conclue o drama.

Este acto é incontestavelmente o melhor, e o seu effeito scenico deve
ser grande. Apesar das imperfeições que n'elle se pódem e com razão
reprehender, o auctor procurou resgatar aqui os defeitos que pullulam
nos antecedentes, como successivamente notamos em cada um d'elles.

Restam algumas observações sobre estylo e linguagem: assim completaremos
o exame d'este drama visto a todas as luzes a que se deve considerar.

O estylo para dizer tudo em poucas palavras é o da moda: isto é, a maior
parte das vezes falso: comparações frequentes, que a situação moral dos
personagens que as fazem não comporta: certa poesia na dicção impropria
do dialogo: fartura d'essas exaggerações com que embasbacam os parvos da
platéa, e que os homens de juizo não podem soffrer. Ás mãos cheias estão
por ahi derramadas as maldições, os anjos de azas brancas, os rochedos
em braza, os infernos, os demonios, e toda a mais ferramenta dramatica,
usada hoje no theatro, e que não sabemos d'onde veio, porque sendo
evidente que os nossos escriptores principiantes buscam imitar os
grandes dramaturgos franceses, é certo que raramente acharão lá essa
linguagem ôca e falsa, que só póde servir para disfarçar a falta de
affectos e pensamentos: Victor Hugo e Dumas não precisam nem usam de
taes meios, e para citarmos de casa, já que temos cá o exemplo, que
esses noveis vejam se nos dramas do nosso primeiro escriptor dramatico,
se no _Aucto de Gil Vicente_ ou no _Alfageme_ ha essa linguagem de
cortiça e ouropel, ha essas expressões turgidas e descommunaes que fazem
arripiar o senso commum, e que offendem a verdade e a natureza. O estylo
é tudo, dizia Voltaire. Não somos da sua opinião absolutamente, mas é
incontestavel que uma obra litteraria excellente em todas as demais
partes, se lhe falecer a propriedade do estylo nunca poderá obter para
seu auctor uma reputação duradoira. Não faltam na historia litteraria de
todas as nações exemplos d'esta exactissima observação.

Quanto aos erros de lingua e construcção, faceis são elles de emendar:
assim o fossem os de estylo, e ainda mais os de contextura!
Intoleraveis, mais que nenhuns, nos parecem o vicio constante do
introduzir um _i_ nas segundas pessoas do plural dos preteritos como
_fizesteis_, _tivesteis_, etc.--por fizestes, tivestes; _soffrer_ por
_padecer_, sendo a significação portuguesa de _soffrer_ a de _padecer
com paciencia ou constancia_: o uso demasiado dos possessivos que tanto
afrancezam o nosso mui illiptico idioma: a substituição escusada de
preteritos simples pelos compostos do participio e dos auxiliares:
tautologias indisculpaveis, como--_abysmo immenso e sem fim_; _caverna
que parece zombar e escarnecer, etc._;--gradações ás avessas, como:
_cheio de desesperação e pesar_. A estes e outros defeitos poderia o
auctor dar remedio revendo attentamente o manuscripto, que talvez o
limite de tempo para o concurso lhe não deixou aperfeiçoar e pulir, e
por isso intendemos dever nessa parte ser indulgente a censura do
Conservatorio.

Temos feito longa e severamente a critica do drama--_D. Maria
Telles_.--Fizemo-lo assim por muitas e mui urgentes razões. Tem soado
queixas contra a fórma demasiado simples com que se costumam exarar os
pareceres sobre os dramas que annualmente concorrem a premios: conselhos
sinceramente dados tem-se tomado pela expressão do orgulho; imaginou-se
uma aristocracia litteraria, contraria a todos os ingenhos que surgem de
novo. É preciso confessar que pelo que toca ao não motivado, e á
brevidade dos pareceres, sobre tudo d'aquelles que condemnam, é justa a
queixa. Todas as mais são infundadas. Os factos de quatro annos ahi
estão provando o contrario. Se alguma culpa se pode lançar ao
Conservatorio é a nimia indulgencia; já algumas das suas sentenças
favoraveis tem sido reformadas pelo supremo tribunal do publico, ao
passo que ainda nenhum drama condemnado por elle toi levado por
appellação ao grande jury da opinião da platea: todavia se os auctores
d'esses dramas tinham a consciencia da injustiça no julgamento, para lá
deviam aggravar-se. Esta é a nossa defensão completa contra as vãs
accusações de parcialidade; contra os sonhos de uma imaginaria
aristocracia litteraria com que a mediocridade pretende passar aos olhos
de parvos e ignorantes, pelo ingenho perseguido ou menoscabado.

A Secção da Litteratura pensa por tanto, que importa ao bom nome do
Conservatorio o fazer sempre miuda e inexoravelmente o exame dos dramas
que concorrem aos premios, e motivar largamente as suas sentenças. Tanto
os concorrentes como a nação teem direito de assim o exigirem. O tempo
da censura inquisitorial, que muitas vezes só serve de capa á
incapacidade, passou. É nossa obrigação restricta fundamentar as
opiniões que assentamos: julgadores aqui, seremos lá fóra réos, e o
commum juiz que é o publico não está adstricto a julgar por nossas
palavras. Por outra parte esta miudeza e severidade de critica servirá
de correcção aos auctores, para cuja emenda é inutil um parecer
superficial e vazio de doutrina, ao passo que lhes habilita o amor
proprio para crer que não foram elles, mas fomos nós os que errámos.

Além d'isso, a Secção da Litteratura intende que é necessario ser
finalmente severa a censura do Conservatorio, para o verdadeiro
progresso dramatico. Durante quatro annos este progresso tem sido
unicamente em extensão: falta a profundidade. O numero dos dramas
augmenta, mas o merito d'elles é o mesmo, senão é menor. A principio
convinha affagar todas as tentativas: hoje é preciso afastar as não
vocações dramaticas que a facilidade das recompensas tem tornado em
demasia ousadas, e é preciso constranger aquelles que podem e sabem
produzir fructos de verdadeiro ingenho a darem ao theatro obras que os
honrem e honrem a patria.

Pelo que respeita em especial ao drama--_D. Maria Telles_--a Secção de
Litteratura ainda pede para elle a indulgencia do Conservatorio. A
leitura d'esta composição revéla a verdura d'annos e inexperiencia do
seu auctor. O desconnexo e inverosimil da contextura, a ignorancia quasi
absoluta dos costumes e instituições da epoca escolhida, e ainda mais a
falta de conhecimento da logica das paixões e affectos, e por isso da
consistencia dos caracteres estão dizendo que o mundo e a sociedade é em
grande parte um mysterio para elle, mysterio que ainda mal as
tempestades politicas e a vida demasiado energica do nosso seculo lhe
revelarão em breve. Se o auctor quiser acceitar os conselhos prudentes
que para melhorar o seu escripto lhe não recusarão, por certo, os
membros d'este Conservatorio, o drama--_D. Maria Telles_--poderá subir á
scena, não com a certeza de obter a approvação de summo juiz
o--publico--mas de apparecer ante elle sem deshonra sua, e sem que nós
sejamos accusados de desleixo no cumprimento dos nossos deveres. O
parecer da Secção da Litteratura é portanto, que a Mesa convide o auctor
do drama a dirigir-se a ella para o fim apontado. O Conservatorio
resolverá o que fôr mais justo e conveniente.--_Alexandre Herculano_.




*D. Leonor d'Almeida, Marqueza d'Alorna*




*D. Leonor d'Almeida, Marqueza d'Alorna*[24]


Por grande que deva ser a gratidão que se associa ás recordações
d'aquelles que nos geraram, por funda que vá a saudade inseparavel da
memoria paterna, no coração do bom filho ha um affecto não menos puro, e
não menos indestructivel para o homem cujo espirito allumiado pela
cultura intellectual tem a consciencia de que o seu logar e os seus
destinos no mundo são mais elevados e nobres que os d'esses tantos que
nasceram para viverem uma vida toda material e externa, e depois
morrerem sem deixar vestigio. Este affecto é uma especie de amor filial
para com aquelles que nos revelaram os thesouros da sciencia; que nos
regeneraram pelo baptismo das letras; que nos disseram: «caminha!» e nos
apontaram para a senda do estudo e da illustração, caminho tão povoado
de espinhos como de flores, e em cujo primeiro marco milliario muitos se
teem assentado, não para repousarem e seguirem ávante, mas para
retrocederem desalentados, quando sózinhos não sentem mão amiga apertar
a sua e conduzi-los após si. Tirai á paternidade os exemplos de um
proceder honesto, as inspirações da dignidade humana, a severidade para
com os erros dos filhos, os cuidados da sua educação, e dizei-nos o que
fica? Fica um certo instincto, ficam os laços do habito, e para impedir
que tão frageis prisões se partam, fica o preceito de cima que nos
ordena acatemos e amemos os que nos geraram, ainda que a elles não nos
prenda senão a dadiva da existencia, esse tão contestavel beneficio.
Pelo contrario aquelles que foram nossos mestres; que nos attrahiram com
a persuação e com o proprio exemplo para o bom e para o bello; que nos
abriram as portas da vida interior; que nos iniciaram nos contentamentos
supremos que ella encerra; para esses não é preciso que a lei de
agradecimentos e de amor esteja escripta por Deus: a razão e a
consciencia estamparam-na no coração: cada gozo intellectual do poeta,
do erudito, do sabio, lh'a recorda, e quando elles se comparam com o
vulgo das intelligencias, reconhecem plenamente a justiça do sentimento
de gratidão que os domina.

Estas reflexões occorreram-me ao abrir o primeiro volume das obras da
senhora marqueza de Alorna, condessa de Oeinhausen e Assumar, D. Leonor
d'Almeida, que actualmente se publicam e de que já dois volumes se acham
nitidamente impressos. E foi para mim um prazer verdadeiro escrever
estas cogitações d'um momento. Aquella mulher extraordinária, a quem só
faltou outra patria, que não fosse esta pobre e esquecida terra de
Portugal, para ser uma das mais brilhantes provas contra as vãs
pretensões de superioridade excessiva do nosso sexo, é que eu devi
incitamento e protecção litteraria, quando ainda no verdor dos annos
dava os primeiros passos na estrada das letras. Apraz-me confessá-lo
aqui, como outros muitos o fariam se a occasião se lhes offerecesse;
porque o menor vislumbre d'engenho, a menor tentativa d'arte ou de
sciencia achavam nella tal favor, que ainda os mais apoucados e timidos
se alentavam; e d'isso eu proprio sou bem claro argumento. A critica da
senhora marqueza de Alorna não affectava jamais o tom pedagogico e quasi
insolente de certos litteratos que ás vezes nem sequer entendem o que
condemnam, e que tomam a brancura das proprias cãs por titulo de
sciencia, de gosto, e de tudo. A sua critica era modesta e tinha não sei
o que de natural e affectuoso que se recebia com tão bom animo como os
louvores, de que não se mostrava escaça quando merecidos. Uma virtude
rara nos homens de letras, mais rara talvez entre as mulheres que se
teem distinguido pelo seu talento e saber, é a de não alardearem
escusadamente erudição, e essa virtude tinha-a a senhora marqueza em
grau eminente. A sua conversação variada e instructiva era ao mesmo
tempo facil e amena. E todavia dos seus contemporaneos quem conheceu tão
bem, não dizemos a litteratura grega e romana, em que egualava os
melhores, mas a moderna de quasi todas as nações da Europa, no que
nenhum dos nossos portugueses por ventura a egualou? Como madame de
Stael ella fazia voltar a attenção da mocidade para a arte de Alemanha,
a qual veio dar nova seiva á arte meridional que vegetava na imitação
servil das chamadas letras classicas, e ainda estas estudadas no
transumpto infiel da litteratura francesa da epocha de Luís XIV. Foi por
isso, e pelo seu profundo engenho, que, com sobeja razão, se lhe
attribuiu o nome de Stael portuguesa.

A vida d'esta nossa celebre compatricia acha-se á frente da edição das
suas obras: para lá remetto o leitor. Ahi verá como em todas as phases
da sua larga e não pouco tempestuosa carreira, ella soube dar perenne
testemunho do seu nobre caracter de independencia e generosidade: verá
que emquanto na terra natal primeiro a tyrannia e depois a ignorancia e
a inveja a perseguiam, ella ia encontrar entre estranhos a justa
estimação de principes e de illustres personagens da republica das
letras. Ahi verá como nascida no seculo do materialismo, vivendo largos
annos no foco das idéas anti-religiosas, acostumada a ouvir todos os
dias repetir essas idéas por homens de incontestavel talento, ella soube
conservar pura a crença da sua infancia, e expirar no seio do
christianismo. Ahi finalmente verá como as ausencias, por vezes
involuntarias, da sua terra natal, não puderam fazer-lhe esquecer o amor
que devemos a esta, ainda no meio das injustiças e violencias de todo o
genero.

O primeiro volume das obras poeticas da senhora marqueza de Alorna
contém, afóra a vida da auctora, e uma noticia biographica do conde de
Oeynhausen seu marido, as poesias compostas na mocidade. Boa parte
d'estas foram escriptas no mosteiro de Chellas, para onde entrou de oito
annos de idade com sua mãi, occorrendo a prisão do marquez de Alorna D.
João. Encerrada naquelle mosteiro passou D. Leonor d'Almeida os annos
mais viçosos da juventude, tendo para alegrar as tristezas de tão longo
captiveiro que excedeu desoito annos, unicamente o linitivo do estudo, e
os conselhos e affagos maternos. Quisera alguem que tivesse havido mais
severidade na escolha das composições d'aquella epocha, algumas das
quaes desdizem do primor que noutras posteriores se encontra. Eu lamento
só que senão pudesse ajunctar a cada uma a sua data. Assim, bem longe de
ter sido um inconveniente essa desigualdade innegavel, houvera ella sido
um meio para se avaliarem bem os rapidos progressos da joven auctora,
que nas obras de tão verdes annos annunciava já o seu brilhante futuro
nos rasgos frequentes de um engenho ao mesmo tempo solido, delicado e
vivo.

O resto do primeiro volume e o segundo contém as poesias da senhora
marqueza posteriores á sua saída do mosteiro. Na disposição d'ellas
tambem não se guarda o methodo chronologico: a natureza dos poemas
determina a ordem d'elles. Julgar essa grande variedade de composições
não cabia nos estreitos limites d'este jornal. Os que as teem lido, e
que sabem entendê-las appreciam-nas devidamente. Ellas são um illustre
monumento para a historia da poesia portuguesa, um nobre testemunho da
piedade filial que as trouxe á luz publica, e para em tudo esta
publicação ser apreciada, a sua nitidez typographica é uma prova dos
progressos que a arte de imprimir tem feito entre nós[25].

FIM DO TOMO




Índice


Advertência
Qual é o estado da nossa litteratura? Qual é o
  trilho que ella hoje tem a seguir?
Poesia: Imitação--Bello--Unidade
Origens do theatro moderno--Theatro português
  até aos fins do seculo XVI
Novellas de cavallaria portuguesas
Historia do theatro moderno--Theatro hespanhol
Crenças populares portuguesas ou superstições
  populares
_A Casa de Gonsalo_, comedia em cinco actos:--Parecer
Elogio historico de Sebastião Xavier Botelho
_D. Maria Telles_, drama em cinco actos:--Parecer
D. Leonor d'Almeida, Marqueza d'Alorna




Notas:


[1] Diz Mercier em uma annotação, que segundo nossa lembrança vem no
1.^o tomo de suas obras dramaticas, que a divisão de cinco actos é
fundada em ser preciso atiçar cinco vezes as luzes do theatro em quanto
dura uma recita.

[2] Epist. 9--v. 43.

[3] Art. poet. C. 3--v. 48.

[4] Talvez alguns dos nossos leitores extranhem o modo por que tractamos
um escriptor accreditado e ainda vivo. Nós sabemos que a urbanidade é o
principal dever de quem impugna qualquer opinião: mas confessamos que
não pudemos resistir á tentação. Mr. Laurentie é um defensor do
absolutismo, e muito mal tractou a causa da nossa patria no seu exame da
Carta portuguesa. É uma pequena vingança litteraria que se nos deve
perdoar.

[5] Major mihi rerum nascitur ordo:
Majus opus moveo--7, 4 4.

[6] Iliad, 5.^o.

[7] O nosso socio o Sr. Castilho teve tambem o seu _quinhom_ de critica
na referida moxinifada romantica. Cremos piamente que elle riu tanto
como teria rido o bom do Homero se fosse nosso contemporaneo.

[8] Alludimos ás Messenianas de Barthelemy e ás de Mr. Delavigne, de que
talvez as primeiras deram a idéa. Das ultimas lembrámo-nos
principalmente da de Waterloo.

[9] Em um curso de litteratura como nós o concebemos daria materia esta
idea, aqui apenas ennunciada, a dois capitulos interessantíssimos, o da
theoria do agradavel e o da poesia nacional, ou dos objectos da poesia
moderna.

[10] É curioso ver as observações de Galileo acêrca da Jerusalem
libertada, as quaes jaziam ineditas e foram publicadas em 1793, assim
como o é ler a dissertação de Dureau Delamalle comparando as duas
Jerusalens, a qual vem no fim do 1.^o tomo da Historia das Cruzadas de
Mr. Michaud.

[11] Livro 1.^o, capitulo 1.^o.

[12] Publicados no vol. de 1838, e o terceiro no vol. de 1840.

[13] Opusculos, tomo V, pag. 10.

[14] Herzog-Geschichte der deutschen Nat-Litt.--pg. 99 (Jen. 1831.)

[15] Sismondi. De la litteratura du Midi--tomo I, pg. 289.

[16] Os que sobre esta materia desejarem mais ampla instrucção consultem
as dissertações de Mr. Fauriel ácerca da origem da Epopeia Cavalleirosa,
no 8.^o vol. da _Revue des Deux-Mondes_ (anno se bem nos lembra, de
1832). A opinião de Mr. Fauriel, contraria á de Sismondi, põe o berço da
maior e melhor parte das novellas de cavallaria na Provença; mas antes
de abraçar essa opinião cumpre lêr e pesar maduramente as reflexões de
Sismondi, que o põe na Normandia, a pag. 273 e seg. do 1.^o vol. da sua
Historia Litteraria do Meio-dia da Europa.

[17] Não appareceu este novo artigo quer nos seguintes numeros do vol.
4.^o quer nos demais volumes, emquanto A. Herculano foi collaborador
permanente do Panorama. De outros mui variados assumptos litterarios o
auctor se occupou nesses volumes. A melhor conjectura sobre tal
interrupção não é a de um simples esquecimento, mas a de que o auctor,
certo de haver esclarecido a materia especial d'estes artigos onde mais
interessava, tencionasse porventura ligar o porseguimento d'ella a
certos pontos da nossa historia litteraria que demandavam vagarosa
meditação.

[18] Sem exceptuar a dos espectadores, que, bem como tudo o mais,
permitta-se-nos a expressão, é preciso crear de novo.

Sobre isso publicaremos brevemente um artigo que, dizendo respeito a um
objecto realtivo á civilização e moral publicas, entra naturalmente no
plano d'este jornal.

[19] E impressas em Napoles em 1517. Esta rara edição existe na
bibliotheca publica do Porto, e pertencia segundo nossa lembrança, á
livraria do Visconde Balsemão.

[20] O mesmo succedeu aos dramas portugueses contemporaneos: d'ahi
provém, principalmente, a extrema raridade das primeiras edições de
alguns d'elles, como de Jorge Ferreira, que só são conhecidos nas
edições mutiladas.

[21] Como hoje tanta gente faz criticas dramaticas--as mais difficeis de
todas--bom será que reparem nesta observação de Schlegel acêrca do
gracioso, personagem especial do drama peninsular. E ainda o grande
critico alemão não apontou o motivo principal d'este elemento dramatico:
o gracioso faz com que o drama seja em verdade a representação da vida,
onde sempre o terrivel e o lepido se cruzam e misturam
inextricavelmente. Não ser o gracioso elemento necessario do enredo tem
por motivo a natureza d'esse papel: o burlesco póde deixar de ser
necessidade da acção; mas nunca de ser essencivel á _fórma_ da acção: no
quadro dramatico o gracioso não é _desenho_, é _côr_; é a sombra do
clarão do bello e sublime. A tragedia classica, e a tragedia de Racine
morreu, porque não havia ahi o contraste: a comedia de Moliere vive, e
viverá para sempre, porque nella as lagrymas tolhem ás vezes o riso: na
comedia antiga apparecia o drama; na tragedia apenas havia poesia.

[22] Julgamos dever notar aqui que os nossos modernos actores ainda não
chamam geralmente qualquer drama, senão _comedia_, embora elle seja
tragico. Porventura é isto uma _tradição de bastidores_, conservada
desde o seculo XVII, em que entre nós eram tão vulgares as
representações dos dramas de Lope e Calderon, como na propria Hespanha.

[23] Para prova de quanto se podem aproveitar as leis como fontes da
historia, não dos reis ou dos soldados, mas do _progresso das nações_,
deixando as leis civis de que poderiamos apontar circumstancias de
extraordinaria curiosidade, limitar-nos-hemos a dizer que d'estas mesmas
constituições d'Evora se deprehende o uso antiquissimo das
representações nas igrejas, e de outras indecencias semelhantes que o
povo julgava então ou licitas ou piedosas. «Deffendemos, diz a
constituição 10 do titulo 15, a todas as pessoas ecclesiasticas e
seculares, de qualquer estado e condição que sejam, que não _comam nas
egrejas, nem bebam, em mezas_, nem sem mezas; nem cantem, nem bailem, em
ellas, nem em seus adros: nem os leigos façam ajuntamentos dentro dellas
sobre cousas profanas; nem se façam nas ditas igrejas, ou adros dellas,
jogos alguns, posto que seja em vigilia de sanctos ou d'alguma festa;
nem _representações, ainda que sejam da paixão de nosso Senhor J. C., ou
da sita resurreição ou nascença; de dia, nem de noite_, sem nossa
especial licença; porque _dos taes autos_ se seguem muitos
inconvenientes que muitas vezes trazem escandalo nos corações d'aquelles
que não estão muito firmes na nossa sancta fé catholica, _vendo as
desordens e excessos que nisto se fazem_.» D'esta passagem se póde
concluir que o uso de fazer autos nas igrejas data pelo menos do decimo
sexto seculo, sendo, além d'isso, provavel, que semelhante usança
remonte a epocha muito mais remota; porque os costumes populares levam
muitos annos, tanto a estabelecer-se como a destruir-se; e com effeito,
ainda no fim do seculo XVII o bispo do Porto, D. Fernando Corrêa de
Lacerda, fulminava censuras contra taes comedias, como se vê de uma sua
ordenança que lemos, ainda mais curiosa que a antecedente constituição;
mas que por brevidade não apontaremos aqui.

[24] Nasceu em 31 de Outubro de 1750. Falleceu em 11 de Outubro de 1839.

[25] Na capa d'este artigo se omittiram por esquecimento em seguida ao
titulo as palavras _Panorama_--1844.





End of the Project Gutenberg EBook of Opúsculos por Alexandre Herculano -
Tomo IX, by Alexandre Herculano

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To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
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state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
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