Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 04

By Alexandre Herculano

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Title: Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo IV

Author: Alexandre Herculano

Release Date: November 28, 2005 [EBook #17177]

Language: Portuguese


*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OPÚSCULOS POR ALEXANDRE ***




Produced by Isabel Calderon Dinis (Projecto Enclave) and
edited by Rita Farinha (Biblioteca Nacional
Digital--http://bnd.bn.pt)






OPUSCULOS



*OPUSCULOS*

POR

A. HERCULANO

SOCIO DE MERITO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE LISBOA

SOCIO ESTRANGEIRO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE BAVIERA

SOCIO CORRESPONDENTE DA R. ACADEMIA DA HISTORIA DE MADRID DO INSTITUTO
DE FRANÇA (ACADEMIA DAS INSCRIPÇÕES) DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE
TURIM DA SOCIEDADE HISTORICA DE NOVA YORK, ETC.

*TOMO IV*


QUESTÕES PUBLICAS

TOMO III


LISBOA

*VIUVA BERTRAND & C.^a* SUCCESSORES CARVALHO & C.^a

73, Chiado, 75

M DCCC LXXIX




*COIMBRA--IMPRENSA DA UNIVERSIDADE*




ADVERTENCIA


Propondo-nos continuar a interrompida compilação dos _Opusculos_ do
fallecido escriptor Alexandre Herculano, importa dizermos em breves
palavras qual é o nosso intuito, para que não se tomem á conta de
insensato arrojo as timidas diligencias que fazemos por cumprir um
dever, que reputamos impreterivel.

Quem leu a primorosa _Advertencia previa_ do primeiro volume d'esta
collecção sabe que o auctor resolvera imprimir de novo, de envolta com
alguns trabalhos seus ainda ineditos, os numerosos escriptos que, no
dilatado periodo de quasi quarenta annos, dera á luz, ou em folhetos
avulsos, cujas edições estavam esgotadas, ou em folhas periodicas,
algumas pouco conhecidas hoje, e todas mais ou menos difficeis de reunir
e compulsar. Como elle proprio declara, um dos motivos, se não o
principal, que o levava a «ajunctar os _disjecta membra_ de uma grande
parte do seu passado intellectual», era o desejo de ser um dia julgado,
com imparcialidade e justiça, pelas idéas que emittira e pelas opiniões
que sustentara. E foi para tornar mais justa semelhante apreciação que
assentou em conservar escrupulosamente a parte doutrinal dos opusculos
primitivos, junctando-lhes, apenas, as datas da sua composição; porque,
«sem querer no minimo ponto fugir á responsabilidade das suas opiniões,
entendia que a responsabilidade seria ora maior ora menor, se porventura
se attendesse á epocha em que essas opiniões foram manifestadas.»

Fiel a estes principios, e obedecendo ao plano que traçara, conseguiu
ainda o sabio escriptor dar á luz os tres primeiros volumes da presente
collecção, nos quaes inseriu grande parte dos trabalhos que maior abalo
produziram no animo publico, pela elevação, desassombro e energia com
que ahi são tractados os mais melindrosos assumptos. Muitos outros,
porém, estavam virtualmente destinados a formar novos livros, que por
fim haviam de completar os elementos necessarios do processo, sobre que
tinha de recair a sentença definitiva dos juizes imparciaes, a quem elle
com tamanha confiança entregava o julgamento da sua causa; e são esses
trabalhos dispersos, entre os quaes ha não poucos inteiramente
desconhecidos da geração actual, que diligenciamos reunir e publicar.

É grave, sem duvida, a responsabilidade moral e litteraria que
contrahimos, escasso o tempo de que podemos dispor, debeis as forças,
nulla a competencia. Erraremos, necessariamente, na escolha dos artigos,
na ordem em que os collocarmos, na preferencia que lhes dermos, e acaso,
até, na inserção de algum que o proprio auctor excluiria, O que, porém,
podemos affirmar ao leitor é que empregaremos os maximos esforços para
que seja fidelissima a transcripção d'esses artigos: fidelissima,
dizemos, em quanto ao texto; porque a orthographia deixamol-a ao cuidado
da imprensa. Seria muito moroso, além de sujeito a frequentes
irregularidades, querer reduzir escriptos de tão differentes epochas, e
publicados em desvairadas folhas periodicas, sem unidade orthographica,
ao systema que o auctor ultimamente seguia.

Para este quarto volume da collecção geral dos _Opusculos_, e terceiro
das _Questões publicas_, escolhemos dois trabalhos egualmente
importantes, e que nos parece terem intima correlação.

O primeiro é um largo e consciencioso estudo ácerca da instituição
vincular, onde são maduramente apreciadas as vantagens e os
inconvenientes d'este modo de ser da propriedade, bem como as
difficuldades que offerecia, n'aquella epocha, a sua immediata abolição.
Este estudo, que encontrámos completo e mostra ter sido escripto sem
interrupções, ficou, todavia, inedito na sua maior parte; porque apenas
se imprimiram os tres primeiros capitulos, no jornal _A Patria_ de 8, 17
e 25 de fevereiro de 1856, e o quinto, d'ahi a tres annos, nos numeros 5
e 7 do _Archivo Universal-, a instancias do mallogrado escriptor Rodrigo
Paganino. Quaes foram os motivos que impediram a publicação dos
restantes, n'uma conjunctura em que as luminosas reflexões do auctor
podiam auxiliar a resolução do grave problema, não nos foi possivel
descobril-os; mas, com quanto a abolição dos vinculos fosse, poucos
annos depois, levada a effeito, pelas leis de 30 de junho de 1860 e de
19 de maio de 1863, aos homens competentes pertence o decidir se n'essas
leis foram, ou não, previstas com lucidez, e resolvidas com acerto todas
as diffículdades que faziam vacillar um espirito tão esclarecido e um
animo tão resoluto.

Compõe-se o segundo trabalho de uma serie de cartas, dirigidas ao sr.
conselheiro Carlos Bento da Silva, nas quaes o auctor manifesta, com a
sua habitual lealdade e franqueza, a opinião que tinha ácerca da
emigração para a America, assumpto que então preoccupava muito os
espiritos, e hoje parece não dar excessivo cuidado a ninguem. Publicadas
na _Revista agricola_ e no _Jornal do Commercio_, e sustentando
doutrinas contrarias, em grande parte, às que eram geralmente seguidas,
estas cartas levantaram clamores, que, não só interromperam um estudo
cheio de bom senso e de generosas aspirações, mas arrastaram, em breve,
para o terreno ingrato das luctas politicas a discussão, que só podia
ser proveitosa mantendo-se nas regiões serenas da sciencia. Não é, por
conseguinte, o dezejo de avivar a lembrança de uma controversia
desagradavel, que nos leva a reproduzir, sem a menor alteração, algumas
paginas mais calorosas deste trabalho litterario: fazemol-o, porque era
impossivel mutilar um escripto de tanta importancia, justamente na parte
em que o auctor, além de responder ás objecções do seu antagonista,
desenvolve e reforça com argumentos novos as suas proprias idéas.

Como succede a todos os homens que, súperiores ás preoccupações do seu
tempo e movidos por um sentimento innato de rectidão, não encobrem o seu
modo de pensar, nem sacrificam a verdade, embora tenham de censurar
amigos ou de dar razão a adversarios, Alexandre Herculano foi, por via
de regra, mal avaliado pelo commum dos seus concidadãos, e victima
frequentes vezes de infundadas e contradictorias accusações. Têm,
comtudo, os grandes engenhos e as consciencias immaculadas certa no
futuro a justiça que os contemporaneos lhes negaram; e nós cremos que o
leitor desapaixonado, comparando estes dois opusculos, distanciados até
aqui por um intervallo de cerca de vinte annos e reunidos agora no
presente volume, encontrará n'elles, como em todas as obras do auctor,
os mais claros testemunhos da coherencia das suas idéas, da
imparcialidade dos seus juizos, e da pureza das suas intenções.

_Os legatarios_.




OS VINCULOS

1876




I

*Preliminares*


O caracter mais prominente dos actos legislativos promulgados durante a
dictadura do duque de Bragança, foi a tendencia para alterar na sua
essencia, melhorando-a, a condição das classes laboriosas e productoras,
aquellas em que verdadeiramente reside a força vital da sociedade.

As leis d'essa epocha singular da nossa moderna historia tinham de
ordinario por fim principal desmoronar os alicerces do antigo systema
politico, e tornar impossivel a sua restauração. Era uma idéa grandiosa,
implacavel como o destino, que presidia á redacção de todas ellas; mas,
em quasi todas, ao pensamento da lei ou ás suas provisões ligava-se a
idéa de um allivio ou o de um incitamento á quasi unica industria do
paiz--a agricultura. Assim a lei dos foraes e a abolição dos dizimos,
destruindo os recursos de certas corporações de mão-morta e de certa
aristocracia de berço, em cuja influencia fatal se estribava
principalmente o velho systema, livravam ao mesmo tempo a propriedade e
o trabalho rural dos mais gravosos impostos; e a extincção das milicias,
dos capitães-móres e das ordenanças, ao passo que desorganisava as
resistencias locaes ás novas instituições, restituia ao lavrador e ao
obreiro dos campos o uso integral do fructo do seu suor.

A restauração era grandemente revolucionaria nas suas manifestações
legislativas; mas, como todas as revoluções vivedoiras, ella
representava uma revolução politica e ao mesmo tempo uma revolução
social e economica.

Em quanto Mousinho da Silveira influiu nos conselhos do duque de
Bragança, a restauração conservou os caracteres que lhe imprimira esse
homem singular. Os actos subsequentes da dictadura, sem deixarem de ser
logicos com os que até ahi se haviam practicado, deixaram de ter egual
alcance. A extincção, por exemplo, das ordens monasticas, ao mesmo tempo
que desprezava direitos legitimos, os que os monges tinham ás suas
dotações, e condemnava á miseria muitos individuos innocentes e
respeitaveis, atirava para o mercado ou desbaratava sem tino e sem
previsão um enorme cumulo de propriedade territorial, que, alienada por
um systema sensato e previdente, teria sido dez vezes mais util á
prosperidade geral do que realmente foi.

A suppressão das ordens religiosas e a extincção do papel-moeda
constituem os dois unicos actos de verdadeira audacia revolucionaria
practicados pelos successores de Mousinho. As chagas sociaes em que elle
não puzera o ferro ficaram. Taes foram as complicações do direito
emphyteutico, que tornam absurda essa excellente fórma de transmissão e
conservação de propriedade; taes os vinculos, instituição incompativel
com o espirito da nossa epocha e com o regimen da liberdade; taes as
contribuições municipaes sobre o consumo; taes os pastos communs, que
offerecem embaraços permanentes a uma revolução agricola, que as
circumstancias tornaram indispensavel. Toda essa farragem do passado
teria provavelmente desapparecido, se o genio de Mousinho houvesse
dirigido por mais algum tempo os destinos de Portugal.

O movimento mais ou menos bem regulado d'aquella grandiosa revolução
tinha por principal incentivo a febre de uma guerra civil violenta,
especie de duello gigante entre o passado e o futuro. Quando a lucta
cessou, o impulso reformador foi esmorecendo, e a reacção começou, como
era natural apoz tamanho abalo, a modificar os espiritos. Houve quem
parasse nos limites do justo; mas outros passaram além. Movia á piedade
a situação do clero regular; causava graves apprehensões a
desorganisação do secular; e o systema de administração franceza, cuja
adopção fôra um erro de Mousinho, funccionava mal. Estes lados da
reforma eram os menos defensaveis, e tinham contra si por um lado o
sentimento religioso offendido, e por outro o incommodo dos povos nas
suas relações administrativas. Explorou-se a mina: buscou-se tirar
partido a favor dos velhos abusos das confissões leaes d'aquelles que,
addictos ás doutrinas generosas da dictadura, eram assaz sinceros para
condemnarem os erros que se haviam commettido. Animados por essas
confissões, os interesses illegitimos, que a revolução havia ferido
profundamente, agítaram-se e conspiraram contra ella. No meio das luctas
civis que sobrevieram de novo, posto que menos violentas, e das
incertezas e perturbações publicas, devidas umas aos nossos erros e
paixões, outras a circumstancias independentes da vontade do paiz e das
parcialidades, as tradições do duque de Bragança esqueceram
gradualmente. Os exemplos de tentativas para sophismar ou destruir as
suas leis economicas não foram raros. Houve mais d'um Oza que estendesse
a mão á arca santa, não para a amparar, mas para a derribar, sem que
cahisse fulminado. Nada prova mais esse progresso gradual de reacção do
que os diversos projectos de refórma do decreto de 13 de agosto de 1832,
chamado vulgarmente lei dos foraes, e as respectivas discussões nas duas
camaras, reacção que veiu a formular-se na lei de 22 de junho. A questão
do restabelecimento completo ou incompleto dos dizimos chegou a
agitar-se nas commissões do parlamento. A idéa da reorganisação das
milicias tem passado uma e outra vez pelas cabeças de homens assaz
influentes, e porventura ahi vive ligada á existencia dos denominados
batalhões nacionaes, que successivamente perecem e renascem. O jury,
combatido a principio cora vantagem, como succede a todas as
instituições novas que por via de regra funccionam mal, accusado por
algumas das suas decisões, que a maior parte das vezes procediam e
procedeam de causas alheias à instituição, foi pouco a pouco
restringido, desnaturado, e posto á mercê dos juizes chamados letrados,
designação infelizmente inexacta em relação a muitos. Não se ponderou
que não ha jurados sem segurança publica, e que essa segurança não
existia; que não os ha sem juizes habeis, e que muitos d'elles o não
eram; que não os ha sem ensino primario, amplo na extensão e
intensidade, e que o ensino era entre nós, como ainda é, incompletissimo
em ambas as relações. Reagiu-se, em summa, no que se pôde, desde a
vaidade de ter em Lisboa um patriarcha e um simulacro de patriarchal,
inutilidades dispendiosas que a dictadura annullara, até o imposto sobre
a pesca, vexame intoleravel abolido pelo duque de Bragança em favor de
uma classe e de uma industria, que a humanidade e as boas doutrinas
economicas mandavam proteger com a melhor das protecções, a plena
liberdade.

A reacção manifestada nestes e em outros factos parece incutir já
receios em muitos homens publicos, que reflectem. N'outros uma especie
de instincto politico suppre a falta da intelligencia superior e da
razão esclarecida. Sente-se que é preciso conter o movimento retrogrado.
Em nossa opinião o remedio é simples: é voltar aos bons principios; é
comprehender bem a indole da restauração; é applicar as suas doutrinas,
modificando-as nas applicações pelo que a experiencia de vinte annos nos
deve ter ensinado. A dictadura do duque de Bragança foi demasiado curta
e tempestuosa. Fez muito; mas não podia fazer tudo. Completae a sua
obra; favorecei o augmento e o bem estar das classes productoras; ligae
os seus interesses á manutenção das instituições, e a reacção reduzida á
impotencia de uma vã theoria cessará de se reproduzir nos factos.

As questões de direito publico são graves: o respeito pelas fórmulas e
garantias da liberdade não merecem por certo o desdem com que alguns
escriptores, aliás sinceramente liberaes, as tem às vezes tractado,
desdem de que bem desejamos, por nós e por elles, não tenham ainda de
arrepender-se. Entretanto é indubitavel que o meio mais seguro de
colligir uma força moral que as mantenha é crear interesses de tal modo
ligados com a existencia d'ellas, que toda e qualquer reacção os ameace
collectivamente. É necessario que esses interesses se contraponham á
organisação social, ao modo de ser da propriedade, ao systema de
administração e de impostos, á distribuição das classes, congenitos com
a monarchia absoluta. Não ha evolução completa de progresso sem as duas
condições do melhoramento material e do aperfeiçoamento social. Podem
dar-se factos que realisem a primeira, e que todavia sejam estranhos á
fórmula politica do paiz onde se verificam. Nenhum descobrimento
contribuiu tanto para o augmento da civilisação como o vapor e os
caminhos de ferro, e todavia o vapor e os caminhos de ferro tem-se
estabelecido em maior ou menor extensão, mas com as mesmas facilidades e
vantagens, tanto na Inglaterra e nos Estados-Unidos, como na Austria ou
na Russia, sem que alterem ou devam alterar por em quanto a indole
politica ou social d'esses paizes. O erro deploravel dos adeptos de
certa escola é desprezarem a distincção entre o progresso que influe no
melhoramento social e moral dos povos, e aquelle que só melhora a sua
condição physica. Esses taes não contestam a superioridade do primeiro,
porque isso seria demasiado imprudente; mas julgam ter cumprido com o
que devem ás doutrinas que professam, limitando-se a applaudir quaesquer
tentativas mais ou menos imperfeitas para se obter o ultimo. Dir-se-hia
que para elles o homem interior em relação ao homem physico equivale a
zero á esquerda de qualquer algarismo. E todavia não é assim. Se o povo,
deduzindo as ultimas consequencias de certas maximas que elles ás vezes
proclamam sem reflexão, se entregasse nas mãos do primeiro despota que
lhe promettesse o bem estar material; se essa triste philosophia do luxo
e dos gosos, que dominava no imperio romano sob a tyrannia dos Cesares,
chegasse a gangrenar inteiramente as sociedades modernas, horrorisados
da obra para que teriam contribuido, apressar-se-hiam a renegar a
propria escola e a alistar-se n'aquella, que, sem desprezar o homem
exterior, não esquece que ha n'elle uma coisa interior chamada a
consciencia, que reclama a liberdade e a dignidade como condições
impreteriveis em todo e qualquer progresso das sociedades humanas.

É debaixo da impressão d'estas doutrinas, e convencidos da sua
importancia, que vamos escrever. Os estudos que iremos successivamente
publicando não são um trabalho completo; porque talvez n'elles nenhuma
questão seja considerada sob todos os seus aspectos. São apenas
reflexões soltas que temos lançado ao papel nas diversas epochas em que
circumstancias especiaes nos obrigaram a volver a attenção para os
negocios publicos: são simples apontamentos, posto que coordenados e
ampliados agora. Podem ter erros; mas a intenção que os dictou é leal. O
auctor nunca poz a penna a soldo de partidos ou de escolas; nunca
mercadejou com a sua razão, nem com a sua consciencia. Á falta de outro
merecimento, estes estudos tem o da convicção sincera.


II

*Processo agricola.--Propriedade rural.--Opportunidade da discussão*


Apezar do impulso dado ao desinvolvimento agricola pelas leis da
dictadura de 1832, as consequencias de certos factos historicos, de
certas instituições abusivas, que por seculos haviam esmagado o paiz,
ainda em parte se experimentam. Remover essas instituições; neutralisar
os effeitos d'aquelles factos é completar a revolução politica pelo
complemento da revolução economica.

A extincção dos dizimos, das milicias, das ordenanças, das prestações
foraleiras deram á lavoira uma extensão imprevista, e a situação do
cultivador portuguez melhorou sensivelmente. Se por uma parte os
methodos sempre cambiantes da percepção dos tributos, aliás viciosos na
sua essencia, não houvessem substituido por gravames novos os gravames
antigos, posto que em muito menor escala; se, por outra parte, a grande
propriedade não fosse ainda demasiado preponderante; se a falta de
proporção entre o accrescimo da cultura e o accrescimo da população não
houvesse augmentado, pela subida do salario, o custo das producções,
cujo valor a concorrencia nos mercados tem ido progressivamente
diminuindo; se a falta de instituições de credito agricola e a derivação
dos recursos pecuniarios do paiz para a agiotagem, resultado de uma
pessima administração da fazenda publica, não houvessem tornado o
capital esquivo á agricultura; se o quasi nenhum melhoramento das vias
de communicação não pesasse indirectamente sobre os productos; se o
atrazo da instrucção popular não inhabilitasse o homem do campo para
simplificar os methodos e instrumentos de cultura; se finalmente um
falso systema de protecção não difficultasse indirectamente ao productor
portuguez o accesso aos mercados estrangeiros; a industria agricola
entre nós teria chegado ou chegaria em breve a uma situação brilhante.
Descentralisação administrativa; divisão razoavel de propriedade;
construcção de estradas geraes e caminhos concelhios; simplicidade e
ordem no systema tributario, tanto geral como municipal; meios de crear
o credito rural accommodado aos habitos e necessidades do paiz; impulso
á instrucção popular, ou antes nacional, substituindo o impulso, talvez
excessivo, dado á instrucção litteraria e superior; mudança gradual e
reflectida do systema protector para o systema da livre permutação, a
que só se poderá chegar pela descentralisação administrativa; eis o que,
em nosso intender, constituiria em geral o complemento da revolução de
1832. Por esses meios, desinvolvidas as forças productivas da terra em
toda a sua energia, o accrescimo da população acompanharia o accrescimo
de trabalho; o valor d'este se harmonisaria com o das subsistencias; o
producto liquido guardaria sempre proporcionalidade com o producto
bruto, ou, pelo menos, seria bastante para se accumular em capital e
converter-se em instrumento de producção; e emfim a grande industria
nacional, livre de peias e, ainda melhor, de uma falsa protecção,
influiria poderosamente no progresso da industria fabril e do commercio,
cuja prosperidade é impossivel onde a agricultura definha debaixo do
peso de instituições ou incompletas ou absurdas.

De todas estas questões, cuja solução importa a este grande problema,
nenhuma, se exceptuarmos a da liberdade do commercio, é tão grave,
difficil e importante como a da divisão do sólo, isto é, da fórma e
condições da propriedade territorial em relação á industria agricola.
Debatendo-a, não só se discute uma das principaes materias economicas:
discutem-se, digamos assim, as bases da sociedade civil.

A revolução de 1832, a unica revolução séria que tem havido em Portugal,
occorreu, entre outras coisas, ao damno e á vergonha, a que os erros dos
nossos antepassados nos haviam conduzido, de comprarmos aos
estrangeiros, durante uma parte do anno, a subsistencia de uma população
pouquissimo numerosa em relação ao nosso territorio, e que uma
insignificante industria fabril por certo não distrahia do trabalho
agricola. Mas as grandes providencias d'essa epocha não deram nem podiam
dar á industria e á população rural um impulso de maxima energia.
Deram-lhes apenas o que procede da libertação da terra, da cessação de
certas rapinas senhoriaes e fiscaes, e, consequentemente, o impulso
indirecto que provinha da maior facilidade de produzir subsistencias,
cuja abundancia e barateza, sempre progressivas, nos tem efficazmente
convertido, no fim de quinze ou vinte annos, de importadores em
exportadores. Os outros meios de augmento de população e de industria
agricola, que eram consectarios do largo systema que a revolução
adoptara, não se pozeram por obra desde que os dois elevados espiritos
que tinham encetado a reforma radical do paiz desappareceram, um no
tumulo, outro no esquecimento ingrato dos seus concidadãos.

A redempção da terra pela destruição dos antigos vexames devia
completar-se, de feito, por instituições e leis cujas tendencias fossem
accordes com as da revolução. Desde que pelas providencias da dictadura
de D. Pedro se entrava no caminho da reforma; desde que se fazia sair a
agricultura da immobilidade e somnolencia em que jazera por seculos;
desde que se lhe dizia «caminha!» era necessario acabar de lhe pôr
franca a estrada, removendo todos os obstaculos á sua marcha ulterior.
Não succedeu, porém, assim. Um dos factos mais importantes da historia
da nossa fazenda publica prova que o systema da revolução, ou não foi
comprehendido, ou foi promptamente abandonado por aquelles que deviam
manter as tradições d'essa epocha.

A lei dos foraes e, ainda mais do que ella, a extincção da maior e mais
opulenta parte das corporações de mão morta trouxeram á massa de bens
publicos uma porção avultadissima de propriedade rural. Calcular com
alguma certeza os valores, os capitaes possuidos por essas corporações
abolidas, ou rehavidos pela reversão gradual dos bens da corôa, é
dífficillimo, senão impossivel, pelo pessimo methodo com que taes bens
foram e tem sido incorporados na fazenda e depois alienados. Não será
porém excessivo o algarismo de cincoenta a sessenta mil contos. Mas
esses bens eram na sua maxima parte predios rusticos, ou censos e
pensões sobre elles, symbolo do senhorio directo e portanto equivalentes
de um capital. Tendo-se aberto uma nova era ao progresso da agricultura,
os homens publicos d'então deviam pensar que não seria indifferente e
sem influencia na economia social do paiz o destino que se désse a tão
avultada somma de instrumentos de trabalho rural. N'um paiz de vinculos,
de commendas, de bens de corôa, devia suppôr-se que a grande propriedade
não estava em equilibrio com a pequena. Não era, porém, necessario
suppol-o. Sabia-se que só na provincia do Minho preponderava a ultima, e
que nas outras províincias predominava a primeira, sendo quasi exclusivo
esse predominio na mais extensa de todas, o Alemtejo. Cumpria, portanto,
comparar os resultados económicos e sociaes da grande e da pequena
propriedade. Este exame mostraria, quanto a nós, a necessidade de
favorecer a multiplicação dos pequenos predios, sobretudo no centro e no
sul do reino. Não se fez, porém, isto. A massa enorme de riqueza
territorial possuida então pelo Estado, a qual na maxima parte poderia
ter cabido em mãos laboriosas e humildes por emprasamentos de superficie
limitada, ou que, pelo menos, poderia ser vendida depois de retalhada,
alienou-se por um systema absolutamente contrario. Dividida a
propriedade tornar-se-hia accessivel a todas as condições e fortunas
pelo emprasamento, e pela venda a milhares de pequenos peculios. Em vez
d'isso cahiu geralmente nas mãos de homens opulentos, trocou-se por
capitaes avultados. Em muitos casos foi o rico proprietario que
conglobou nos seus extensos predios vastos predios nacionaes, e isto
n'um mercado onde reinava pela abundancia a depreciação do genero, e
onde a concorrencia era difficil. Outra parte serviu para converter
muitos capitalistas em proprietarios. Assim se annullaram os mais
importantes resultados que se deviam ter tirado da reivindicação parcial
dos bens da corôa para o patrimonio publico, e da extincção das
corporações religiosas.

Foi a ignorancia que produziu o mal? Foi a persuasão de que a grande
propriedade era mais util do que a pequena? Não o cremos. A verdadeira
razão era o interesse pessoal dos homens influentes. Tinham-se inventado
as indemnisações; tinham-se taxado os exilios, as perdas effectivas, os
lucros cessantes, as perseguições que se haviam padecido por causa de
opiniões. A religião do juramento, a fé nos principios, a lealdade á
dynastia legitima deixaram de ser uma herança de honra para se legar
como exemplo a filhos e netos, e converteram-se em capital com juro: os
heroes transformaram-se em chatins. Foi uma abdicação moral quasi
completa, a que a historia fará justiça. Para as indemnisações a
alienação em grande convinha por mais de um modo. O _Ha-de-haver_ da
conta de ganhos e perdas engrossava-se prodigiosamente ao lado do _Deve_
em branco. Os mercadores politicos, que a escripturavam, viam-se no
governo, no parlamento, nos conselhos, nos altos cargos administrativos,
judiciaes, e militares. Olharam para essa mole appetitosa e immensa que
tinham ante si, e talharam a reparação pelo valor da presa cubiçada.
Quanto mais se accumulassem e portanto se depreciassem no mercado os
bens nacionaes, maior porção d'elles seria necessaria para satisfazer
indemnisações exaggeradas. Com o tempo desappareceu tudo. O que não
serviu para se trocar a honra politica por fortuna predial,
desbaratou-se por preços insignificantes. Os capitalistas vieram
substituir-se aos donatarios, aos commendadores e aos frades. Depois os
heroes e os capitalistas foram ao templo dar graças aos deuses. A
republica estava salva.

Então seguiram-se quinze a vinte annos de revoluções tão estrondosas
como insignificantes. Os partidos disputaram o poder, luctaram,
digladiaram-se: houve sangue e desventuras; houve theorias dominantes,
vencidas depois, e vencedoras de novo; houve homens turbulentos e
cubiçosos (os ambiciosos são raros no nosso paiz) que ora se apoderaram
do poder, ora desappareceram na obscuridade, quando não no exilio: houve
todas as convulsões, todas as peripecias dos tempos de politica pessoal,
de politica de odios acerbos e de interesses individuaes feridos. Só
faltaram novos incitamentos para o progresso legitimo. Dentro da acção
administrativa e parlamentar, o desenvolvimento do paiz, desenvolvimento
innegavel, posto que muito inferior ao que devera ter sido, foi apenas a
consequencia das providencias da primeira dictadura, e de alguns poucos
actos da revolução de 1836, em que appareceu um homem de verdadeiro
talento e de verdadeiro patriotismo, mas que, perdoe-nos elle, quasi
compensou o bem que fez com os males cuja semente lançou á terra,
transportando do campo da theoria para o dos factos as idéas
proteccionistas. Ainda eram, comtudo, idéas: ainda era um reflexo de
1832. Depois só houve politica esteril ou reaccionaria. O progresso,
independente das instituições, das leis e da acção administrativa, que
se realisou n'este periodo, tem-se devido ás idéas e aos esforços
particulares, á razão e á actividade dos cidadãos, movendo-se n'um
ambiente de liberdade intellectual; porque é preciso confessar que
n'esta longa epocha de pequenas paixões e de turbulencias interminaveis
a iniciativa individual e a liberdade dos espiritos, fóra da esphera
politica, tem sido geralmente respeitada.

O cansaço quebrou por fim a violecia das facções e trouxe o periodo do
repoiso. Boas ou más que fossem as doutrinas dos partidos militantes,
ellas eram bandeira, não crença. A prova ahi está na historia dos
ultimos quatro annos. Modificaram-se e mollificaram-se as opiniões,
porque não tinham sido senão o estandarte dos interesses particulares, e
porque nas phases variadas da longa lucta das parcialidades aquelles
interesses chegaram mesmo, por acaso, a uma combinação politicamente
possivel. Mas este facto trouxe outro mais grave: o paiz, que suspeitava
de muitos, descreu de todos. É um mal ou um bem absoluto? O futuro o
dirá. O que é certo é que desanimou e tornou-se indifferente aos
partidos. Entretanto é incontestavel que vivemos n'uma quadra
tranquilla. Que os homens influentes da situação o attribuam, não á
indifferença do paiz, ao seu tedio de conflictos mais ou menos
sanguinolentos e devastadores, mas sim á illustração, á justiça, á
moralidade e ao liberalismo do poder, e á sua propria philosophia
politica, que se remonta acima da comprehensão de nós outros homens
vulgares, que importa? É uma rixa domestica; é uma questão entre os
labios e a voz intima do coração. Nada temos com isso. O que nos importa
é o facto, e o facto é que gosamos de paz e de liberdade de discussão
ácerca de todas as materias politicas e sociaes. A quem nos deixa isto
deve-se perdoar alguma coisa. Pode-se ter qualquer sentimento a respeito
dos homens da situação: ter-lhes odio seria impossivel. Estão abaixo e
além d'isso.

E no meio da paz e da liberdade da palavra e da escripta apparecem
tendencias, e mais do que tendencias, esforços para a realisação de
novos progressos. O governo actual é arrastado pela opinião publica,
como o seria qualquer outro que o substituisse, a melhorar as
communicações internas, e no Minho ergue-se o povo para tomar n'esta
parte a iniciativa. As questões d'instrucção popular, que passavam
desapercebidas, excitam já a attencão e o interesse: não tardará que a
opinião reclame a sua solução practica tão imperiosamente como reclama
as estradas. As doutrinas da liberdade da industria e do commercio não
só combatem face a face as preoccupações contrarias, mas até são
chamadas á prova, e legitimam-se pelos resultados. Os espiritos começam
a comprehender que o credito rural pode deixar de ser uma utopia, a
associação uma vã palavra. No parlamento é atacada a instituição dos
vinculos, e parece aproximar-se a ultima ruina d'estes. O governo,
emíim, abriu o caminho para se chegar um dia ao verdadeiro systema
tributario, sem o qual o triumpho completo do livre commercio e da livre
industria é impossivel. Por ora a repartição do imposto directo,
substituida á decima, pouco mais é do que uma troca de palavras, e Deus
queira que não deixe de o ser antes de tempo; mas o povo vai-se afazendo
á idéa, e é essa uma grande difficuldade vencida para o futuro.

Estes factos são importantes, e estão, em geral, no espirito da
revolução de 1832; mas todos elles tem uma desenvolução posterior, e
essa desenvolução é que ha-de aproximal-os ou afastal-os do systema
d'aquella epocha. Oppõem-se-lhes as tendencias reaccionarias, algumas
das quaes já se manifestam nas leis e traduzem-se nos factos. Quando em
muitos animos preponderam os desejos da restauração do passado; quando
estes desejos começam a apparecer na legislação, é preciso estar de
sobreaviso para que a reacção se não introduza no progresso sob o manto
da imparcialidade. É esse o perigo das doutrinas, que nos aconselham
afastemos os olhos das questões de ordem moral para só pensarmos no
melhoramento material. Servirão taes doutrinas a tal ou tal situação,
porque precisará d'ellas para se absolver a si propria; mas não servem
ao paiz, e podem ser ainda fataes áquelles mesmos que as propugnam.
Cumpre na desenvolução de cada reforma ligal-a pelas suas condições ao
systema da liberdade.

Se repetidos exemplos de corrupção fizeram descrer o paiz dos homens
publicos, o progresso material, desligado e independente das condições
politicas da sociedade actual, pode fazel-o descrer d'essas condições. O
governo representativo não é commodo nem barato. É preciso que o povo
considere as vantagens do bem estar como inseparaveis dos incommodos e
sacrificios que as instituições exigem. O triste espectaculo, que hoje
presenceamos, de uma grande nação privada dos seus fóros é a mais
tremenda lição que nos offerece a historia sobre as consequencias de
converter o porco de Epicuro em symbolo exclusivo da religião social.


III

*Abolição dos vinculos*

O pró e o contra


Entre as reformas pendentes merece attenção particular a abolição dos
vinculos. Agita-se hoje essa questão, á roda da qual vêm accumular-se
outras mais graves. Considerada em si, e só em relação aos seus
resultados economicos, a extincção d'esta fórma de propriedades
realisar-se-ha de um modo. Considerada em relação a todas as
consequencias da medida, tanto economicas como sociaes e politicas,
ha-de realisar-se de outro. A abolição dos morgados e capellas pode, até
certo ponto, remediar o mal que resultou do systema inconveniente
adoptado na distribuição e alienação dos bens nacionaes, se essa
abolição se reputar um problema subordinado, uma hypothese que entra na
questão geral da organisação da propriedade em relação ao bem estar
material, moral e politico da sociedade. A esta luz a solução da questão
geral determina forçosamente a da hypothese. Não é possivel, portanto,
separal-as. Nas considerações que vamos fazer, considerações talvez
incompletas, mas que cremos uteis, procuraremos quanto fôr possivel
attingir á generalidade.

As principaes objecções que se podem oppôr á existencia dos vinculos são
de diversa ordem: moraes, politicas e economicas. Uma parte d'ellas
entram na questão geral da grande e da pequena propriedade. Outras
pertencem á ordem politica e á ordem moral.

Oppõe-se aos vinculos que, sendo estes uma fórma de propriedade em que o
direito de testar é tirado ao possuidor d'ella, convertido em simples
administrador, falta a este o principal estimulo para os melhoramentos
permanentes. Tudo pelo contrario o incita a tirar dos predios que possue
a maxima utilidade pessoal. Salvas as hypotheses de viva affeição
áquelle, que, não elle, mas a lei e a instituição fazem seu herdeiro, ou
de uma decisiva paixão pela agricultura, o administrador do vinculo será
sempre o peior entre os proprietarios ruraes, e a terra vinculada será
constantemente um modelo de atrazamento e de incuria, um obstaculo
permanente ao progresso agricola. A historia e o estado dos vinculos em
Portugal demonstram _a posteriori_ a verdade e o alcance d'esta
objecção.

A instituição vincular é injusta excluindo os irmãos menores de egual
quinhão na herança paterna, tornando-os dependentes, por um subsidio, do
irmão mais velho, ao passo que não podem obstar a que este annulle os
recursos para o pagar. Aquelle incerto meio de subsistencia é, alem
d'isso, um incentivo de preguiça e ignorancia, uma fonte de irremediavel
miseria para o homem a quem um berço illustre poz sem culpa sua fora do
direito commum.

O vinculo é a negação permanente de uma das primeiras condições da
propriedade: n'elle os dois dominios estão incorporados n'um só, mas
esse dominio não está _actualmente_ em parte nenhuma. Ficou, digamos
assim, chumbado na campa de um tumulo: o tumulo retem-n'o até o fim das
gerações. O morto desmentiu o direito dos vivos. O seu herdeiro, o homem
que lhe succedeu na posse da terra e que elle chamou a isso por um acto
livre e espontaneo, é pouco mais que um simples usufructuario. Mas ha
outro que deva depois d'elle succeder com pleno direito, porque o
affecto nascido dos laços domesticos ou do sentimento da gratidão moveu
o instituidor a tornal-o proprietario d'essa terra apoz o
quasi-usufructuario? Não ha. Ha só uma serie de descendentes que o
instituidor desconhece, e, na falta d'estes, os de collateraes que não
lhe importam. O fundador de um vinculo não fez mais do que empilhar os
corpos de individuos tirados das diversas gerações para sobre elles
assentar o throno da sua vaidade. Decretou-se homem grande: teve pena de
que o futuro esquecesse personagem tão importante. Certa escola
socialista mais moderada nega no que possue o direito de testar: os que
estabeleceram a jurisprudencia dos morgados foram os precursores d'essa
escola. Os antigos sacrificavam ao Deus desconhecido, _ignoto deo_; os
instituidores de vinculos sacrificam _ignoto homini_.

Os vinculos refogem, pela condição da inalienabilidade, aos impostos
sobre transmissão por venda. Tornam, n'esta parte, em virtude de um
privilegio, impossivel de se realisar ácerca d'elles a proporcionalidade
constitucional das contribuições.

A existencia dos vinculos, derivando de um privilegio, está
absolutamente em antinomia com a lei política, não se provando que essa
existencia seja de utilidade publica.

Admittidos entre nós os vinculos em epochas, nas quaes o atrazo agricola
tornava pouco productiva a terra, esta só podia constituir um morgado ou
capella importante, vinculando-se uma immensa extensão de solo. No meio,
porém, de população rara e de cultura pouco intensa e pouco frequente,
elles não ofereciam grande obstaculo á exploração da terra. Agora,
porém, que já o agricultor arrosta com os terrenos de segunda qualidade,
e que a população se desenvolve e cresce, cada decada, cada anno, cada
dia estão mostrando mais claramente o absurdo de se conservarem
terrenos, muitas vezes de primeira ordem, incultos ou mal cultivados por
causa de uma instituição, cuja existencia não é legitimada por nenhum
motivo attendivel.

A propriedade d'esta especie esta em regra condemnada á ruina e ao
atrazamento. O predio vinculado, passando livre ao successor, é uma
pessima hypotheca. O capital não se põe em contacto com elle senão por
meio de exorbitantes usuras. Comprehende-se como um mau administrador de
vinculo para satisfazer os proprios appetites ou paixões sacrifique á
agiotagem um futuro que é seu; mas não se comprehenderia egual
sacrificio da parte de um homem cordato, que pretendesse applicar um
capital avultado aos melhoramentos de propriedades arruinadas pelo
desleixo e falta de economia dos seus antecessores. Embora as
bemfeitorias sejam encargo transmissivel, é certo que o dinheiro seria
sempre incomparavelmente mais caro para elle do que para o proprietario
cujos bens podem ser executados, e o dinheiro caro é para a agricultura
do nosso paiz como se não existisse.

Na verdade, trazida sem restricções a propriedade vinculada ao direito
commum, o mau administrador desbarataria facilmente os proprios haveres;
mas o bom poderia com uma parte d'esses bens, por qualquer modo
alienados, tornar solido o resto da sua fortuna: mais; poderia tirar do
sacrificio os meios de dar á porção salva um valor egual ou maior do que
tinha todo o vinculo. Por certo que para isso necessitava de actividade,
de economia e de intelligencia; mas favorecer taes dotes não seria uma
das menores vantagens da abolição.

Se a facil divisão do solo tem em geral uma grande importancia economica
e social; se a tem egualmente a facil transmissão pelos contratos de
compra e venda; os vinculos, contradizendo completamente esses dois
factos, devem cessar de existir.

Taes são as considerações principaes que se offerecem ou podem offerecer
para se abolir esta forma especial de propriedade. Os seus defensores
recorrem não raro a subterfugios e a razões insignificantes. Ha todavia
algumas considerações que parecem favorecer os vinculos. Contrapol-as às
allegações em contrario é mostrar que se busca sinceramente a verdade.

O direito de propriedade é virtualmente atacado na abolição dos
vinculos. O instituidor de qualquer d'elles estabeleceu-o em bens seus
inteiramente livres, e sem offensa das leis de successão. Se elle tinha
o direito de testar esses bens, tinha tambem o direito de regular o modo
de succeder, de limitar e impôr condições á fruição do que era seu.

Nas monarchias representativas considera-se a existencia das
aristocracias como um facto social legitimo. Pelas instituições esse
facto é convertido em principio politico manifestado no pariato: ou,
antes, o facto indestructivel da desegualdade social é circumscripto por
aquellas instituições dentro da orbita politica, ficando ao mesmo tempo
excluido das relações civis legaes. Desde que, porém, a aristocracia,
representante da desegualdade, é considerada como elemento politico,
torna-se necessario garantil-a. Os vinculos, destinados a manter e
perpetuar as familias aristocraticas, estão portanto essencialmente
ligados á existencia da monarchia representativa.

A divisão indefinita do solo tem os inconvenientes que a França, onde as
instituições de direito publico e de direito civil a favorecem
excessivamente, já experimenta em larga escala. A idéa de allodialidade
absoluta da terra, e de favor para a subdivisão contínua da propriedade,
prevalecendo entre nós no commum dos espiritos, e manifestando-se já nas
tendencias de certas leis, ha-de emfim vir a produzir os mesmos males
que produz em França e em outros paizes, e contra os quaes varios
estados de Allemanha tratam de prevenir-se por via de leis positivas e
terminantes. A existencia dos morgados estabelece uma compensação a
similhantes tendencias, e equilibra a grande e a pequena propriedade.

Suppondo, porém, que em geral a grande propriedade prepondere hoje;
suppondo ainda que a parte allodial d'ella se não transforme pelo
decurso do tempo, e que resista ás tendencias e leis que favorecem a
divisão do solo; nem ainda assim os vinculos devem ser abolidos por
manterem a grande propriedade. Esta não pode ser considerada como um
inconveniente, visto parecer demonstrado que a grande cultura produz
mais barato, que dá em resultado maior producto liquido, e que não ha
grande cultura sem vasta propriedade. Deduzir da situação accidental dos
vinculos, situação que ainda se não examinou se podia ser melhorada,
argumentos contra a essencia de uma instituição, que pode contribuir
para a creação de importantes valores, parece pessima logica e ainda
peior economia politica.

Na hypothese, porém, de que a propriedade perfeitamente livre tenda sem
remedio a subdividir-se indefinidamente, opinião que tem por si os
factos e as previsões de distinctos economistas, abolidos os vinculos,
que é o que fica para satisfazer á necessidade economica da existencia
de grandes predios ruraes?

A centralisação é o grande defeito dos governos representativos:
centralisação da soberania; centralisação da administração pelo
executivo; centralisação da justiça; centralisação da força publica. Mas
todos os poderes centraes tendem a destruir a independencia ou a acção
uns dos outros e a elevar-se acima d'elles. Não raro acontece isto, e a
experiencia ensina-nos que por via de regra é o executivo quem triumpha,
sobre tudo pelos meios de corrupção, triumpho tanto mais perigoso,
quanto é certo que se mantem de ordinario as apparencias
constitucionaes, e que esse absolutismo é mais facil de sentir do que de
demonstrar quando acata certas formulas tornadas estereis. A força dos
agentes administrativos é, n'esta hypothese, immensa; porque se
multiplica de um modo incalculavel a energia da centralisação já d'antes
exaggerada. Abolindo-se os morgados e capellas, e destruindo-se por esse
modo a grande propriedade e as influencias dos nomes historicos, não se
faz mais do que remover obstaculos ás demasias dos delegados do poder
central. O _cavalheiro de provincia_, essa entidade com recursos
materiaes e moraes para contrastar a autocracia do funccionalismo,
cessará de existir. Retalhados os predios allodiaes pelas heranças, os
morgados seriam o ultimo e unico refugio da resistencia legal ao
despotismo da centralisação administrativa.

Ainda outros argumentos a favor da manutenção dos vinculos se costumam
deduzir de certa ordem de considerações moraes. Tal é a difficuldade de
os abolir sem offender direitos adquiridos ou as regras da equidade. Mas
tambem os adversarios dos vinculos vão buscar nessa mesma ordem de idéas
considerações que se oppõem á sua conservação. Subsequentemente teremos
de avaliar alguns d'esses encontrados argumentos quando a successão das
idéas nol-os suggerir. Aqui só quizemos indicar as ponderações mais
graves que mutuamente se contrapõem sobre um problema, de cuja solução
pendem muitos interesses, não só geraes mas tambem particulares, e em
que por isso as exaggerações e argucias são frequentes e é difficil a
imparcialidade.

Basta porém attender ás considerações principaes para se conhecer que a
sua confirmação ou refutação dependem do modo de resolver os mais serios
problemas sociaes, taes como a indole e fins das aristocracias nas
sociedades modernas, a organisação do poder central, e o equilibrio
politico pela descentralisação administrativa, as vantagens e os
inconvenientes da grande e da pequena propriedade, da grande e da
pequena cultura, as leis que determinam o augmento da riqueza publica,
tudo, emfim, quanto mais intimamente se liga com o progresso material e
moral do paiz. Importa ter idéas claras ácerca d'esses graves assumptos
para dar um voto sobre a questão dos morgados. Sem isto os instinctos ou
os interesses de classe, de partido ou de individuos influirão
exclusivamente na abolição ou não abolição, e, supposta a primeira
hypothese, nas disposições da lei por que forem abolidos.


IV

*O principio vincular considerado na sua legitimidade*


A primeira consideração que parece favorecer a conservação dos vinculos
é de ordem juridica; liga-se com a maxima questão social--o direito de
propriedade. O commum dos morgados em Portugal foram instituidos em
terças, de que os instituidores podiam livremente dispor; e quando, com
licença do rei, então arbitro supremo, abrangiam os bens de legitima,
resalvavam-se os alimentos, a que se entendia terem jus os filhos por
direito natural, que ao rei não era licito infringir. Os instituidos,
com permissão regia, em bens de corôa, em commendas, etc., ou fundados
por individuos sem herdeiros forçados, é evidente que não offendiam
direito algum particular, e que o instituidor não fazia senão practicar
um acto legitimo, dando esse futuro destino a bens que podia livremente
testar, ou de que a auctoridade suprema lhe consentia dispor para esse
fim como de cousa propria. Assim a abolição, destruindo a fórma e
condições impostas na transmissão da propriedade pelo proprietario,
negaria retroactivamente o uso de um direito legitimo. A lei pode
prohibir as novas instituições vinculares; mas não pode converter o
administrador em proprietario, nem regular a successão dos bens de
vinculo pelo direito commum.

Na verdade os instituidores de morgados tinham o direito de transmittir
a propriedade de que livremente podiam dispor com as condições que
entendessem; mas as consequencias que d'ahi se deduzem estão longe de
serem incontestaveis. Se admittis a doutrina que apenas estriba o
direito de propriedade nas leis positivas, é evidente que ellas podem
modificar, restringir e até annullar esse direito. Se, com mais razão,
considerais a propriedade como de direito natural, ainda assim as
difficuldades subsistem. As opiniões variam ácerca da extensão d'esse
direito. Ha quem negue que a successão testamentaria e _ab intestato_ se
inclua n'elle; não seja de pura instituição civil: ou, por outra, que o
direito de propriedade possa subsistir além do tumulo. O acto, porém, de
instituir um vinculo não é mais do que levar o exercicio d'esse direito
não só além da morte, mas tambem á perpetuidade. Supponhamos, todavia,
que a successão esteja envolvida no direito natural da familia. Não se
comprehende melhor como a successão vincular se haja de fundar em tal
direito. Que é o que transmittiu o instituidor? Apenas uma parte do
dominio. Nenhum dos seus herdeiros tem o dominio absoluto dos bens do
vinculo: o que tem é, digamos assim, apenas meia propriedade. Resulta
d'aqui um facto. Pela nossa jurisprudencia os morgados extinguem-se: e
esta extincção dimana da sua natureza. Quando ao ultimo administrador
não restam parentes consanguineos, que tambem por consanguinidade o
sejam do instituidor, o morgado acabou. Os bens vinculados devolvem-se
então á corôa, á fazenda publica, á sociedade. Por mais intimos que
sejam os laços de familia que unam o derradeiro possuidor com outros
individuos, esses individuos são excluidos. Comtudo a legitimidade da
successão nos vinculos, como em outra qualquer propriedade, estriba-se
forçosamente ou na lei civil revogavel, ou no direito natural da
familia. N'esta ultima hypothese o vinculo repugna ao principio da sua
propria validade. Porque veiu a succeder o Estado? O dominio residia
n'elle? Dir-se-hia que sim. A idéa de semi-propriedade é uma idéa de
restricção, limitativa: cumpre por isso que exista a cousa restringida,
limitada. Concebe-se, por exemplo, perfeitamente o usofructo nos bens
não vinculados: após o usofructuario ha sempre um herdeiro definitivo.
Nos morgados não acontece assim. Existe á limitação sem a cousa
limitada, se não suppozermos o Estado revestido d'aquelle dominio que
não existe no possuidor. Em relação, pois, ao direito natural da
propriedade a existencia dos vinculos é uma cousa incoherente,
contradictoria, inexplicavel.

Mas ha uma consideração ainda mais grave a oppor áquelles que invocam os
fundamentos do direito em favor d'essa instituição. É que, para
subsistir, ella carece absolutamente das leis de privilegio. A sociedade
deve proteger o livre uso da propriedade e as disposições testamentarias
em quanto ellas se conformam com o direito commum. Lei de excepção para
taes ou taes hypotheses é que não deve nem pode admittir senão por um
motivo que virtualmente o faça entrar na regra geral--a utilidade
publica; e a utilidade publica só pode qualificar-se por uma declaração
legal, por uma disposição de direito positivo. Declarada não util a
existencia dos vinculos, o direito politico faz desapparecer
necessariamente desde logo as leis que mantêm os vinculos. Revogadas
estas, como se não pode conceber propriedade sem proprietario, ou o
dominio completo dos bens de morgado será considerado como _nullius_ e
recahirá no Estado, ou esse dominio se incorporará no meio dominio,
convertendo-se o administrador em proprietario. Seria, com effeito,
absurdo que qualquer individuo tivesse o direito de regular a applicação
e uso dos proprios bens _post mortem_ por tal arte que não se houvesse
de realisar a sua vontade sem certas disposições especiaes de direito
positivo, e que a sociedade fosse constrangida a promulgar ou a manter
semelhantes disposições. A soberania de tal homem excederia a da razão
publica, unica de legitimidade indubitavel.

A abolição, pois, dos vinculos, ou, para falarmos mais exactamente, a
revogação das leis positivas que os protegem, e sem as quaes a sua
existencia não se comprehende, respeita o direito de propriedade. A
questão pode versar sobre a conveniencia ou não conveniencia do
principio vincular, e sobre a maneira da abolição ou da conservação, mas
nunca sobre o direito que o paiz tem de retirar o seu apoio a esta
antiga instituição.

Tirada, porém, a base de um direito primitivo e indestructivel, os
defensores dos morgados appellam para o direito politico. A monarchia
representativa consagra o principio da desegualdade social, fazendo-a
representar pela aristocracia de berço, cuja conservação forçada deriva
da indole do pariato hereditario. Exigindo-se para este, além de outras
habilitações, uma renda avultada, importa que as instituições e as leis
mantenham a perpetuidade d'essa renda, em harmonia com as que consagram
a perpetuidade das funcções. A permanencia dos vinculos assegura esse
resultado, ao passo que a sua abolição importa a não existencia do
pariato hereditario.

A lei politica estabelece o pariato hereditario e o vitalicio; mas nem
determina a proporção de um ou de outro, nem, rigorosamente, exige a
existencia simultanea de ambos. Não a exige, porque seria absurda essa
exigencia. Sem as leis organicas e com a Carta na mão, o rei poderia
substituir o par fallecido sem herdeiro que o representasse por um par
vitalicio. Esta hypothese verificada em vinte ou trinta casos teria
acabado com o pariato hereditario. Vice-versa o rei poderia deixar de
supprir os logares vagos por morte dos pares vitalicios, ou tornal-os
hereditarios e acabar assim com a não hereditariedade.

A lei de 11 de abril de 1845, exigindo, além de outras habilitações, uma
certa renda ao individuo que succede no pariato, levou em mira a
manutenção da dignidade e independencia dos membros da camara alta. Ora
essas condições não podem verificar-se com uma renda imaginaria: é
preciso que esta seja real e effectiva. Mas são justamente os vinculos
que menos asseguram a realidade e effectividade de semelhante renda, e
que ao mesmo tempo offerecem mais meios para ser sophismada a letra e
desmentido o espirito da lei. O mau administrador de morgado (e a regra
é ser mau administrador do fundo quem não passa de pouco mais de
usufructuario) pode reduzir-se a si proprio á miseria dentro de um ou
dous annos, e perder a independencia e a dignidade que a lei requer
n'elle: pode, até, transmittir ao seu successor a propria miseria,
porque são vulgarmente sabidos os alvitres de que usa o capital, ou, se
quizerem, a agiotagem, para illudir o principio da immunidade vincular.
Na apparencia, porém, a renda exigida pela lei continua a subsistir: o
fundo não desapparece: o administrador actual lá possue nominalmente
_uma casa_ de quatro, seis ou oito contos de réis. Na verdade hoje não
tem que almoçar, ámanhã não terá que jantar; ao seu successor acontecerá
o mesmo; mas que importa? A letra da lei está salva: o que se annullou
completamente foi o seu intuito, o seu espirito, a razão que a
sanctificava. Se os bens do par fossem sujeitos á lei commum, este facto
servir-lhe-hia de poderoso incentivo para ser um cidadão economico,
activo e bem morigerado; porque a manutenção da dignidade de par, em si
e n'aquelle que houvesse de succeder-lhe, dependeria d'essas virtudes,
virtudes que aliás não deixariam de influir nas suas opiniões e no seu
procedimento politico, e de reverterem em beneficio da republica.

Mas admittamos por um momento que o pariato hereditario seja inseparavel
da existencia dos vinculos. Não se segue d'ahi a necessidade de os
conservar. É facil reformar o artigo constitucional que consagra
simultaneamente a hereditariedade e o vitalicio no pariato, reduzindo-o
a esta ultima fórmula. Se a abolição dos vinculos involve um grande
interesse social, a solução mais razoavel será a suppressão da
hereditariedade do pariato, suppressão que em nosso modo de ver
representaria um verdadeiro progresso na organisação politica, acabando
com uma idéa falsa.

Esta idéa, na qual se estriba o pariato por successão, é a de que a
aristocracia, elemento politico, é forçadamente o mesmo que a
aristocracia de linhagem: ou, por outra, que o facto indestructivel da
desegualdade humana se ha de manifestar eterna e quasi exclusivamente na
fórmula dos tempos feudaes.

É uma opinião que vale a pena de se examinar.


V

*Desegualdade e personalidade*


A desegualdade natural entre os homens tem sido negada de um modo
absoluto nos tempos modernos: tem-se empregado todas as subtilezas da
philosophia do direito para demonstrar a possibilidade de destruir um
facto indestructivel. Tudo nasce, em nosso entender, de se confundirem
as idéas de diversa ordem.

A egualdade civil não é só possivel, é necessaria. Deriva do direito
natural que cada um tem de desenvolver a sua actividade até onde não
impede a desenvolução da actividade alheia. Esse direito suppõe deveres
correlativos. A sociedade existe para manter aquelle e estes. É por isso
que o estado social é inseparavel da humanidade, e que o homem da
natureza, sonhado por alguns philosophos do seculo passado como anterior
á sociedade, não passa de uma chimera. Um simples exemplo fará sentir
melhor esta incontestavel doutrina do que longas dissertações. O que,
trabalhando, deu valor a um tracto de terra desoccupado e inculto e o
fez fructificar, desenvolveu legitimamente a propria actividade. Se
outrem quizer colher os fructos ou substituir-se ao primeiro occupador
do campo agricultado exorbitará da esphera legitima da propria
actividade, e deixará de cumprir o dever de respeitar a livre acção
alheia. N'este exemplo se resumem e symbolisam as infinitas relações
civis que a sociedade mantém e que correspondem ás idéas de egualdade.
As instituições que asseguram o livre movimento do individuo dentro da
esphera da propria acção, sejam quaes forem, são instituições de
liberdade, porque mantém a egualdade civil.

Mas a egualdade civil importa a desegualdade social. Outro exemplo
tornará tambem evidente esta doutrina. Se em campina illimitada e
fertil, mas sem dono e inculta, dous individuos occuparam dous tractos
de terra diversos, e um d'elles dotado de maiores forças physicas, de
melhores instrumentos, de maior energia e actividade, assignalou mais
extensa área aos proprios esforços e accumulou maior somma de trabalho
intelligente, e por consequencia maior somma de productos, nem por isso
o menos forte e menos habil pode queixar-se de que elle penetrou na sua
esphera de legitima actividade. Se pretendesse que a sociedade
repartisse com elle uma parte dos valores creados pelo seu vizinho,
pretenderia uma injustiça--a quebra da egualdade civil. Por outro lado,
se o mais robusto e intelligente, pretextando a incapacidade relativa,
physica e moral, do menos energico e menos habil, pretendesse
apoderar-se da terra e dos instrumentos do pequeno cultivador, a
sociedade seria injusta se lhe désse razão; se tolerasse que elle
estendesse a esphera da propria actividade até penetrar na esphera da
acção alheia: toleraria a quebra da egualdade civil, se não mantivesse
cada qual na orbita que lhe fôra assignalada pelo supremo direito da
natureza.

Se a manutenção, porém, do livre exercicio da actividade dos vizinhos
era n'este caso equivalente á manutenção da egualdade e da justiça, as
consequencias que derivassem d'esse facto, e só d'elle, seriam tambem
incontroversamente legitimas. Ora uma d'ellas, a mais importante, havia
de ser forçosamente a desegualdade social; a desegualdade d'aquellas
relações cujas normas se estabelecem, em parte, pelas regras a que
chamamos direito publico, direito que a razão e a historia nos
apresentam como mais cambiante, menos conforme no espaço, e menos
permanente no tempo, do que as regras das relações civis. A desegualdade
social dos dois vizinhos manifestar-se-ia em muitos factos
impreteriveis. O que por excesso de energia e de trabalho tivesse obtido
melhores, mais numerosos, e mais variados productos, gosaria mais, e
necessariamente, pela intelligencia e pelos recursos materiaes,
exerceria maior influxo no animo dos outros homens. A sua generosidade
fora mais ampla, a sua hospitalidade mais opulenta, o seu tracto mais
aprazivel, a sua opinião mais seguida: isto é, elle seria socialmente um
algarismo em relação ao qual o seu vizinho representaria outro bem
inferior. E todavia a desegualdade nascida da egualdade não offenderia o
direito, não seria senão justiça.

O arroteador do grande predio é o symbolo da aristocracia: como emanação
do direito fundamental que virtualmente a gera é que esta se absolve e
legitíma. Mas d'ahi nasce o corollario de que ella é essencialmente
individual, personalissima. A desegualdade não é de gerações, de
linhagens predestinadas: é de individuos. Por isso as suas manifestações
collectivas, para serem naturaes e logicas, devem ter ao mesmo tempo o
sello da individualidade. A aristocracia, como entidade real, é uma
concreção necessaria, mas artificial; é a generalisação da idéa das
desegualdades individuaes; é a incorporação das maximas forças sociaes;
é o reconhecimento e a organisação de um facto impreterivel.

Na verdade, superioridade social herdada e derivando do direito natural
da familia pode em alguns casos ser legitima; mas é accidental, e vem
entrar em ultima analyse na regra da superioridade individual. Se o pae,
que era um membro da aristocracia pela sua riqueza, a legar ao filho,
este o será como seu pae, independentemente de todas as instituições
positivas, do mesmo modo que deixará de o ser na realidade desde o dia
em que perder essa herança, sejam quaes forem as leis que pretendam
manter-lhe um caracter social que lhe desappareceu da fronte.

A fórma por que adquiriu os valores, que o convertem em uma força de
excepção, nada importa, uma vez que seja legitima. É indifferente que
lh'os désse o trabalho, a intelligencia ou o berço. O importante, o
indispensavel é que elle actualmente os possua: que exista um facto que
a força bruta pode destruir, mas que a razão publica não pode deixar de
reconhecer.

O influxo moral de um nome illustre, herdado de antepassados, é tambem
uma força social. Esse influxo constitue a nobreza, a qual, não sendo em
rigor um facto indestructivel, é todavia uma realidade. A democracia,
quando o condemna ou o nega, engana-se. O valor da _aristocracia de
sangue_ assenta n'uma ordem de idéas extranha ao direito; procede do
sentimento, digamos assim, poetico das sociedades, porque todas as
sociedades tem a sua poesia. A esta luz nada mais legitimo do que a
fidalguia; porque o senso esthetico é uma condição natural das
sociedades civilisadas, e o orgulho pelas tradições gloriosas do passado
constitue uma parte da sua vida moral. A nobreza de linhagem é um
monumento do passado. Os que pretendem expungil-a da lista das
manifestações da vida social devem por maioria de razão mandar destruir
os tumulos dos heroes e dos sabios, e dispersar-lhes as cinzas ao vento,
quebrar-lhes os bustos e as estatuas, arrazar os templos, os obeliscos,
os monumentos, sejam quaes forem, que ligam as glorias do passado ao
presente pelas recordações. Aquelle que affirma ser coisa absolutamente
van a herança de um grande nome, não chame vandalo ao que derriba a
quadrella da muralha ou a torre do castello antigo para calçar as ruas.
Este não faz mais do que elle: nega a significação dos monumentos; nega
tudo aquillo que só a poesia nacional sanctifica. N'este systema a unica
maneira de ser rigorosamente logico é ir até aonde foi a revolução
franceza de 1793. É necessario que ao lado das pedras, que desabam,
rolem pelo chão as cabeças.

O facto social, em que se estriba a aristocracia de linhagem, está,
porém, ligado a uma condição que forçadamente dá a esta o mesmo caracter
de personalidade, que é indelevel nas outras especies de aristocracia.
Essa condição deriva do principio de que o poetico é inseparavel do
moral, o bello do bom. Ora o que se eleva acima dos outros, porque
herdou um nome venerado pela opinião, está adstricto a respeitar a
moralidade dos seus actos para não perder essa _força_ herdada, que não
póde existir sem a sua condição philosophica. Esta doutrina é confirmada
plenamente pela observação practica. Os netos degenerados dos homens
grandes, se os depojardes de todas as distincções facticias que servem
de encobrir o vicio e a incapacidade, invocarão debalde o nome de seus
avós como uma _desegualdade_, uma _força_, que os eleva _socialmente_
acima d'aquelles que _civilmente_ são seus iguaes. O sentimento moral,
que exteriormente se traduzia em consideração e respeito, desappareceu
ao passo que a lei esthetica se annullou. Assim a nobreza hereditaria,
dependendo inteiramente da acção do individuo, entra na lei geral da
aristocracia--a personalidade.

O erro dos escriptores democraticos, que entendem ser possivel a
destruição _effectiva_ de uma classe aristocratica, procede de
confundirem a fidalguia hereditaria com a do corpo aristocratico; de
tomarem a especie pelo genero. É possivel que a especie chegue a
desapparecer temporariamente, ou por degeneração moral dos individuos
que representam as velhas linhagens, ou pela extincção d'estas; mas o
tempo sanctificará as novas illustrações que se alevantam, e em quanto
as nações tiverem o sentimento do bom e do bello, isto é, em quanto
tiverem uma condição sem a qual não podem existir, a progenie d'esses
homens summos herdará a força moral de seus nomes, e só a perderá
destruindo-a pela _villania_ pessoal.

Mas extincta ou existente, brilhante ou obumbrada, a fidalguia não é uma
formula essencial da aristocracia. Para ser revalidado o protesto da
desegualdade social em todas as gerações, não é necessaria a assignatura
das castas; não é preciso que esse protesto seja firmado com sellos
blasonados. O genero fica, embora a especie desappareça.

Reflectiram bem os que dizem que as sociedades caminham á completa
egualdade democratica, porque se facilita o caminho das mais elevadas
situações, das mais poderosas influencias, a todas as vontades
energicas, a todos os talentos fecundos, e porque, do fastigio das
grandezas e do poderio, familias e individuos caem facilmente na
obscuridade e na impotencia social? Esta observação, que muitos julgam
profunda, não passa de uma trivialidade sem alcance. A questão é se esse
fastigio, esse poderio, essas influencias, essas manifestações, em
summa, da desegualdade humana desappareceram; se podem desapparecer ou
se ha sempre, ou não ha, sujeitos em quem ellas se personalisem; se,
collocados em situação identica e tendo interesses communs, elles
constituem ou não uma entidade moral juxtaposta ou sobreposta á
democracia. Eis a questão. Que importa se a preeminencia do individuo se
explica por um testamento, por um berço, pelo genio, pelo trabalho, ou
por um acaso feliz? Seja qual for a origem d'essa preeminencia, d'essa
força, a sociedade pode negal-a, combatel-a, annullal-a temporariamente;
o que não pode é impedir a sua reproducção. A desegualdade é a lei: a
aristocracia a sua manifestação indestructivel.

No mosaismo e no brahmismo o sacerdocio foi e é a herança de tribus ou
de castas privilegiadas; no christianismo, porém, o sacerdocio acceitou
sempre homens de todas as condições e hierarchias. Desde a dignidade do
metropolita até ás humildes funcções do ostiario, que situação houve ou
ha na igreja, a que igualmente não houvessem ou não hajam de ser
chamados o nobre, o burguez, o filho da plebe? E todavia o clero foi por
seculos a mais poderosa aristocracia conhecida. As tradições de
influencia e predominio do corpo ecclesiastico perderam-se, alteraram-se
acaso, porque não era a hereditariedade do berço que as mantinha? Não
era e não é o corpo do clero a negação da familia, e por consequencia da
hereditariedade? Houve nunca, especialmente durante a idade media, uma
classe social mais compacta, mais distincta das outras, com interesses
mais exclusivos, com uma acção collectiva mais irresistivel e incessante
na vida das nações? O clero que combatia nos campos, nas conspirações, e
nos parlamentos contra o poder central; que não raro o fazia ceder, e
que o esmagava algumas vezes, valia bem mais do que essa fidalguia
hereditaria dos ultimos seculos, que vivia das migalhas distribuidas
pela côroa, e que, sem iniciativa nem vigor, comprava com genuflexões
nos paços do rei a altanaria que ostentava nas ruas e praças do povo.

Parece-nos evidente que a aristocracia, ao passo que é indestructivel
como elemento social, é no concreto e em relação aos individuos
essencialmente pessoal e por consequencia movel. Assim, na sua
manifestação politica, não pode perder esse caracter que lhe é
essencial.

Pouco tardará a epocha em que a razão triumphe das preoccupações, a
realidade de hoje das tradições de uma sociedade que deixou de existir.
O pariato deve tornar-se em breve simplesmente vitalicio e talvez
amissivel. Dado e não concedido que a existencia dos vinculos fosse uma
condição impreterivel do pariato hereditario, a abolição d'elles não
faria senão apressar n'esta parte convenientemente a reforma das
instituições politicas.


VI

*Os vinculos garantia de liberdade*


Demonstrado, como parece, que nem na abrogação do direito vincular se
offende principio algum de justiça absoluta, nem a manifestação politica
das desegualdades sociaes está ligada á existencia dos vinculos, antes
de entrar nas difficeis questões economicas que este debate suscita,
passemos a examinar o que ha mais grave nas objecções politicas que se
offerecem contra a abolição d'esta fórma especial de propriedade. As
considerações sobre as resistencias, que uma aristocracia territorial
permanente e hereditaria pode oppôr ás demasias de um poder central
excessivamente forte, parecem-nos fundadas, e nunca se poderão
desprezar, em quanto o nosso systema administrativo fôr, como é, uma
copia, mais ou menos mal delineada, do systema administrativo da França.
Na verdade hoje a unica resistencia séria, que os abusos do executivo e
dos seus delegados podem encontrar em certas provincias, é a d'essa
especie de aristocracia rural, que vulgarmente se designa pelo nome de
_cavalheiros_. A illustração e a riqueza, não excessiva mas solida,
consistindo geralmente em bens territoriaes, pertencem principalmente a
esta classe nos districtos do norte do reino, onde predomina quasi
exclusivamente a pequena propriedade. Sem a fundação de municipios assaz
vastos e poderosos, mas organisados de modo que a vastidão do territorio
não faça com que a administração se difficulte aos administrados; sem as
magistraturas municipaes recuperarem a força primitiva que
successivamente perderam; sem um novo methodo de renovação d'essas
magistraturas, que mantenha na administração dos concelhos a sequencia e
unidade de systema e de idéas; sem se lhes restituirem as funcções que
lhes são proprias e que a centralisação lhes traz alheadas; sem, em
summa, restaurar a vida municipal, de que resta apenas um vão simulacro;
o correctivo contra os abusos do poder central só pode consistir nas
resistencias legaes e pacificas dos individuos que, pelo respeito
tradicional do povo ao nome da sua familia, pelos recursos materiaes de
que dispõem, pela maior cultura intellectual, pelos instinctos generosos
que lhes inspira uma educação mais elevada, constituem um elemento
poderoso de equilibrio. Quem tem residido nas provincias do norte ou por
ellas viajado sabe que naquella classe é que principalmente se dão essas
condições de superioridade individual, que suppre até certo ponto nas
relações politicas a falta ou o incompleto das instituições locaes.

É preciso notar aqui um facto, que ao diante havemos de ponderar mais
detidamente. Os vinculos nas provincias do norte não tem em geral os
mesmos caracteres que nas provincias do sul: aproximam-se mais, nas suas
condições economicas, dos bens emphyteuticos, e não é raro achar
individuos que se denominam morgados e que não passam de possuidores de
prazos. Tão facil é neste ponto a confusão das cousas pelos accidentes
externos. Em geral, o vinculo dos districtos do norte ou é instituido em
uma ou mais propriedades de mediocre grandeza, ou em propriedades e em
direitos dominicaes. Mas o que em todo o caso se pode affirmar é que as
grandes fortunas vinculares são raras. Os poucos inconvenientes
economicos dos vinculos mediocres havemos de avalial-os n'outra parte.
Para o intuito presente o que importa é attender ás consequencias
politicas da sua abolição. Ou mediocres em si, ou compostos de diversas
e pouco vastas propriedades, e de censos e pensões senhoriaes, entrando
esses vinculos no direito commum, as leis da successão e os accidentes
da vida, que accumulam ou dissolvem mais rapidamente as pequenas do que
as grandes fortunas, fariam desapparecer em breve a aristocracia
provincial, e por conseguinte um poderoso elemento de resistencia ás
demasias da auctoridade central, e uma importante garantia de liberdade.

Mas, dir-se-ha, assim como a desvinculação, o livre movimento da
propriedade, produziria a dissolução das fortunas e das familias
patricias, tambem esse movimento elevaria, como já eleva, outras
familias, crearia, como já cria, outras fortunas, e uma especie de
aristocracia movel e pessoal substituiria a hereditaria como elemento de
resistencia e equilibrio. Em these a resposta é concludente: o que não
tem é applicação á hypothese.

'Nesta, o argumento a favor dos vinculos estriba-se em factos
transitorios e especiaes, factos que só o tempo e os progressos sempre
lentos da civilisação moral e material podem destruir. De certo os
vinculos não são de um modo absoluto obstaculo ás demasias do poder
nesta especie de organisação plethorica, de apoplexia administrativa
eminente em que vivemos. São-no relativamente. A restauração da vida
municipal, a descentralisação bem caracterisada; seria o remedio natural
e completo contra os excessos do executivo. Com elle, não só a
aristocracia permanente e hereditaria, mas tambem a individual e movel
seriam inuteis como obstaculos ou instrumentos de equilibrio. Mas
tracta-se do presente, e no presente as condições da nossa sociedade dão
todo o valor ás considerações politicas em que os defensores dos
vinculos estribam a manutenção delles.

A riqueza maior ou menor não basta para que o cidadão saiba, queira e
possa defender o seu direito ou erguer a voz a favor do opprimido. É
necessario que a educação o habituasse a uma nobre altivez ou á
independencia moderada mas firme do homem livre, e que a cultura do
intendimento o habilitasse para discernir e apreciar os proprios
direitos e deveres, e os direitos e deveres dos agentes do poder. Ora
esses dotes, nos districtos da Beira, Traz-os-Montes e Minho, dão-se
principalmente entre os cavalheiros, que, alem das idéas que lhes
inculcam na educação domestica, frequentam de ordinario os estudos
juridicos, e que, ainda abandonando a cultura das letras, não perdem
nunca, digamos assim, o verniz litterario e as idéas geraes que
adquiriram na universidade; porque a universidade, com todos os seus
defeitos, ainda é o foco d'onde irradia a luz da civilisação
intellectual para a maxima porção do paiz. Os advogados, os
facultativos, um certo numero de ecclesiasticos, e os administradores de
vinculos, constituem quasi exclusivamente a classe illustrada das
provincias sertanejas. Na verdade, o filho de um ou de outro lavrador
mais abastado, de um ou de outro industrial ou commerciante, recebe a
educação universitaria, e despido de ambições honra-se de seguir a
condição paterna; mas o geral d'estes busca na carreira das letras uma
situação mais elevada ou pelo fôro ou pela medicina ou pelas funcções
publicas. Os possuidores de direitos territoriaes ou de predios assaz
consideraveis para não serem obrigados a cultival-os pelas suas proprias
mãos, e para não procurarem um supprimento de renda pelo exercicio de
uma profissão scientifica, são quasi unicamente os administradores dos
vinculos. 'Nelles reside, por tanto, e residirá por muito tempo a
principal força de resistencia, a quasi unica barreira que encontra uma
centralisação excessiva.

Nos districtos sertanejos, nesses tractos do paiz onde vive a maxima
parte da sua população, só muito excepcionalmente apparecem os grandes
capitaes monetarios, as grandes industrias, o grande commercio, e, como
já dissemos, nos do norte até é rara a vasta propriedade. Não ha, por
consequencia, ahi as poderosas influencias pessoaes que resultam de
factos puramente economicos. As grandes influencias só podem proceder de
se darem no mesmo individuo condições de diversa ordem--a superioridade
da intelligencia, a superioridade da fortuna, a superioridade de um nome
illustre que o povo está costumado a venerar, e a elevação de animo
resultado da educação domestica, elevação de que é consectario o valor
civil indispensavel para defender a liberdade e os outros direitos, ou
proprios ou dos pequenos e humildes. Com a ruina das familias nobres
essas influencias salutares desapparecerão quasi completamente, e o
imperio das portarias e das circulares não achará limites.

O celebre dr. Johnson, fallando das substituições inglezas, dizia que
tinham a vantagem de não produzirem senão um tolo em cada familia. O dr.
Johnson fazia um epigramma de mau gosto, porque era falso. A historia
diplomatica, militar, naval, administrativa e parlamentar da Inglaterra
prova que os primogenitos da aristocracia ingleza podem ser tanto homens
grandes como os segundo-genitos, ou como os filhos da raça puramente
saxonia. Entre nós o epigramma do dr. Johnson é uma preoccupação
popular, preoccupação que invade até espiritos que tinham obrigação de
serem superiores a ella. A idéa da incapacidade dos administradores de
vinculos é tão verdadeira como a da ignorancia e imbecilidade mental dos
cistercienses, que não eram nem mais ignorantes nem mais imbecis do que
outros quaesquer frades. Os que tem visitado os districtos interiores do
reino sabem por experiencia que é no seio das familias aristocraticas
onde se encontram mais vestigios do que o antigo caracter portuguez
tinha generoso, elevado e bom, e onde se acha mais illustração, embora
misturada com os preconceitos nobiliarios. É nessa categoria que
predomina uma benevolencia efficaz e real para com as classes
inferiores, benevolencia muito mais rara entre a duvidosa burguezia
saída d'essas mesmas classes.

Esta burguezia das provincias, considerada em geral, está longe por
emquanto de ser uma forte barreira aos excessos da auctoridade central.
Os seus destinos politicos tem de ser grandes quando existirem no paiz
instituições congenitas com a indole das tradições primitivas d'elle;
quando nos cançarmos de traduzir _ad usum_ administração franceza em
portuguez bastardo. Por emquanto faltam-lhe os principaes elementos dos
que constituem a força da opinião e o espirito publico; falta-lhe a
cultura intellectual, que nos habilita para irmos até ás raias do nosso
direito sem as ultrapassar; falta-lhe o orgulho da independencia, que
está principalmente na consciencia e no caracter. Tudo isto tem
excepções, e excepções notaveis; mas fallamos da regra geral. A
burguezia mais ou menos opulenta das provincias, e sobretudo dos
districtos do centro e do norte, forma-se pela pequena industria, pelo
commercio de retalho, e pelos mediocres grangeios agricolas. Fóra das
duas cidades mais populosas, as grandes fabricas, as vastas emprezas
commerciaes, em summa, as applicações de avultados capitaes e a
existencia d'estes na mão de um individuo, são cousas raras. Mas é acaso
de esperar d'aquelle, que começou obscura e quasi pobremente a edificar
uma fortuna modesta pelo trabalho, pela parcimonia, pelos habitos da
obediencia passiva, quasi da subserviencia, sem educação politica, sem
educação litteraria, sem idéas geraes, e que depois de vinte ou trinta
annos de esforços, de prudencia, de abnegação, de sacrificios moraes e
materiaes, creou uma riqueza, que aliás poderia servir-lhe de esteio, e
inspirar audacia para manter a dignidade e independencia de cidadão de
um paiz livre; é de esperar, dizemos, de tal homem que lhe chegue tão
tarde o sentimento e a convicção profunda do seu direito e o valor
politico para o fazer respeitar do poder? Que o leitor busque a resposta
na sua razão, e, ainda melhor, na sua experiencia.

Para nós é grave, pois, a questão da existencia ou não existencia de uma
especie de aristocracia provinciana, que tenha, em geral, por titulo da
sua preponderancia o nome, a educação, e a fortuna, em quanto o
municipio fôr entre nós pouco mais de que um vão nome, ou de que uma
tapeçaria das salas administrativas. É grave essa questão, porque são
ainda graves, ao menos para nós, as questões da liberdade e da dignidade
humanas. Quando as resistencias d'essa aristocracia aos excessos a que
tende naturalmente uma centralisação exaggerada fossem demasiado
egoistas, e nunca servissem de egide ás classes democraticas
desorganisadas e opprimidas, quereriamos mantel-a como protesto, como
laço entre as tradições do passado e a organisação do futuro. Se a
historia serve para alguma cousa, lembremo-nos de que o absolutismo se
erguia em Portugal á altura de uma instituição quando a um chefe da
aristocracia do paiz rolava a cabeça pelo cadafalso, e outro cahia
apunhalado aos pés d'aquelle monarcha, tão caro a uma democracia
inintelligente, que substituiu a vontade real, como principio politico,
ao rude esboço de monarchia representativa com que a sociedade
portugueza vivera e progredira durante mais de tres seculos. Diminuir as
resistencias individuaes ao absolutismo do executivo, em quanto se não
criam resistencias collectivas, é um erro profundo. Direitos, que não
tem força para se traduzirem em factos, são, por nos servirmos de uma
phrase de Shakespeare, palavras, palavras e mais palavras. São isto, e
nada mais.


VII

*Difficuldades moraes e economicas na abolição dos vinculos*


Se considerações de ordem politica parece aconselharem a manutenção
temporaria dos pequenos mas numerosos vinculos das provincias do norte,
na questão practica da abolição da propriedade vincular suscitam-se
dificuldades de ordem economica e de ordem moral, que tendem
indirectamente a manter uma instituição, a qual, absolutamente
considerada, não tem motivo nenhum racional de existencia. A apreciação
d'essas difficuldades deve influir nas resoluções que se hajam de tomar
sobre tão grave assumpto.

Supponhamos que abolimos os vinculos; que fazemos entrar essa parte de
propriedade territorial no direito commum; que lançamos esse capital
immobilisado no vortice das evoluções economicas, fazendo-o mover
livremente por toda a esphera da sua acção. Foi, em these, um
melhoramento social importante. Falta o modo practico de conseguir esses
resultados salutares.

A lei proclamou que o principio vincular pereceu; que o direito commum
rege toda a propriedade. Mas não basta proclamar a regra geral: é
preciso ver o modo de a applicar aos factos.

Quaes são estes factos?

Até agora havia certa especie de propriedade, em que uma porção de
dominio pertencia não sabemos a quem (porque o considerar como
co-proprietarios os _successores_, entidades contingentes, não passa de
uma subtileza juridica), e outra porção d'esse dominio, que se confunde
quasi com o usofructo, pertencia a um individuo chamado administrador de
morgado. É esta fórmula da propriedade a que deixou de existir.

O administrador do morgado passou a ser proprietario d'aquillo de que
era pouco mais que usufructuario: pode hypothecar, doar, vender,
emprazar, testar, como outro qualquer possuidor de bens allodiaes. Este
facto, porém, deve forçosamente produzir consequencias juridicas e
economicas.

A primeira é para o Estado. O Estado é sempre, ao menos potencialmente,
um dos successores, mas successor que existe já, que não é uma entidade
contingente. Extincta a linha chamada pelo instituidor, o herdeiro
definitivo é o Estado, que não morre, ao passo que as linhas
successorias vem mais tarde ou mais cedo a extinguir-se. Convertendo o
vinculo em bens livres, a sociedade despojou-se de um direito em
beneficio de um homem que não tem motivo nenhum especial para
beneficiar.

Os vinculos tem encargos pios, que, ou pela propria instituição ou por
effeito de providencias legislativas, revertem muitas vezes em beneficio
de instituições, cuja existencia as doutrinas economicas não podem
condemnar. Seja qual for a resolução que se tome a este respeito
abolindo-se os vinculos, ou a propriedade que se quiz fazer allodial
ficará forçadamente censitica, ou serão espoliados os institutos de
caridade.

Embora os jurisconsultos considerem ou não os bens vinculados como
hypotheca dos alimentos dos irmãos do administrador, o que é certo
economicamente é que esses alimentos constituem uma renda, e que essa
renda é representada necessariamente por um capital incluido na somma
dos bens vinculados, porque as subtilezas juridicas não alteram a
essencia das cousas. Desvinculados aquelles bens, ficarão as pensões dos
segundo-genitos consideradas como onus e seguindo os bens atravez de
todas as phases de venda, emphyteuticação e hypotheca? Qual será o valor
de troca dos predios gravados por pensões cuja duração é indeterminada?
Serão os segundo-genitos espoliados dos alimentos para tornar a
propriedade inteiramente livre?

Á luz economica, a utilidade real do administrador era poder, em quanto
vivo, consummir a renda liquida do vinculo, excepto a parte destinada
aos encargos. Rigorosamente, ao menos em grande numero de hypotheses, as
pensões dos segundo-genitos representando uma renda e correspondendo a
um capital estavam no caso da renda fruida pelo administrador. Porque,
pois, não entregar aos segundo-genitos como allodiaes porções de bens ao
menos equivalentes ao capital das respectivas pensões? Porque ha-de a
lei favorecer desegualmente o mais velho convertendo-o só a elle em
proprietario? Não repugna esse facto a um dos motivos que se invocam
para a abolição--a desegualdade de direitos entre os irmãos? Desde que a
lei reconhece que essa desegualdade é uma injustiça pode reservar a
reparação d'ella para a geração seguinte?

Mas juncto a este direito ha outro direito antinomico, inconciliavel com
elle. É o do immediato successor. Salvos os raros casos da lenta
devolução ao Estado, o vinculo sempre tem um successor immediato, porque
a successão vai até o millesimo gráu de parentesco. O nascimento deu a
esse individuo, quem quer que seja, o direito de succeder integralmente
no morgado, embora onerado com alimentos. Desde que a obrigação de os
solver cessar, por morte dos pensionistas ou por outra qualquer
circumstancia, a fruição d'essa parte da renda liquida será sua. Se,
reduzidos os bens vinculados a allodiaes, uma parte d'esses bens tiver
passado aos irmãos do antecedente administrador, elle será espoliado do
seu direito n'essa parte pela lei.

Estatuindo-se, porém, que a applicação d'esta sómente se verificasse por
morte do administrador actual, evitar-se-hiam esses inconvenientes? Não
por certo. O direito do successor existe já durante a vida do
administrador. Como pois serão partiveis os bens entre elle e seus
irmãos sem offensa grave do anterior direito, sem uma espoliação? Na
verdade, em relação á sua legitima elle passa a possuir com pleno
dominio; mas servir-lhe-ha isso de compensação ao que perde? Estribado
n'um direito que as leis lhe garantiam, achou-se collocado n'uma
situação social accorde com os seus futuros recursos. Educação, habitos,
profissão, relações de familia, tudo foi calculado para elle ou por elle
á luz d'esse direito. Sem culpa sua, a sociedade retira-lhe, digamos
assim, a base da sua vida civil. Será isto justo? A lei que proclamou
como iniqua a indivisibilidade dos vinculos, e que todavia a manteve em
beneneficio do administrador, no momento em que a morte d'este chama o
successor a uma situação perfeitamente identica cessa de tolerar a
iniquidade que tolerou até ahi.

Removendo o facto da abolição para a epocha da morte do immediato
successor, uma parte d'estes inconvenientes da ordem moral poderiam
evitar-se; mas nem se evitariam todos, nem a abrogação do principio
vincular teria grande importancia. Apenas indicámos aqui uma parte das
difficuldades que cumpria resolver, conforme á consciencia e á justiça,
em relação á familia. Muitas se apresentariam ainda quando a
transformação do direito e do facto houvessem de verificar-se n'uma
epocha mais remota. Legislar, porém, sobre factos economicos, que só
poderiam realizar-se depois de quarenta ou cincoenta annos, parece-nos
absurdo. Suppondo a media da vida humana de 30 annos, e portanto a media
da vida que resta aos administradores actuaes de 15, pode tambem
calcular-se a media da extincção de todos os administradores e
immediatos successores em 45 annos. O que é incalculavel é o progresso
que terão feito n'este periodo as idéas politicas e economicas, e a
relação em que estaria uma lei actual de desvinculação com essas idéas e
com o estado da sociedade: podendo-se affirmar, sem receio de erro, que
no fim de tão largo periodo uma tal lei seria obsoleta antes de ser
applicada.

Depois, a solução da questão dos vinculos é uma instante necessidade.
Este modo de ser da propriedade, conservado sem modificação, embaraça
profundamente o progresso economico, ao menos n'uma parte do reino.
Veremos adiante como a nossa situação exige que se pense attentamente na
maneira por que a população está distribuida pela superficie do paiz, e
o movimento que cumpre dar á translação e divisão da propriedade
rustica. Os vinculos são um grande obstaculo á satisfação d'essa
necessidade, e o unico modo legal de desvincular a propriedade--a
subrogação--não corresponde ás exigencias da situação presente, antes a
contraría como teremos occasião de observar.

Mas a jurisprudencia que regula as subrogações é sobretudo immoral e
antieconomica. A subrogacão faz-se, em regra, por inscripcões ou
apolices de divida fundada, e o que se exige n'esse contracto é o
equivalente não do capital mas da renda. A renda media da propriedade
territorial não excede a tres por cento, em quanto a das inscripções é,
ainda hoje depois de reduzido o juro, de seis a sete por cento, visto
que o valor nominal das apolices é mais que duplo do seu valor de
mercado. Assim 47$000 réis em dinheiro, convertidos n'uma apolice de cem
mil réis, crearão uma renda de 3$000 réis; em quanto, convertidos em
propriedade territorial, apenas darão 1$410 reis. Trocado por
inscripções o predio, resta portanto um capital de mais de metade do
valor d'esse predio, de que o administrador de vinculo parece poder
livremente dispor. Como, porém, taes actos para serem válidos necessitam
da acquiescencia do successor do vinculo, cumpre repartir com elle: e se
o successor é menor, recorre-se não raro á corrupção para obter o
consentimento dos seus tutores e curadores; porque a subrogação por
inscripções é sempre para elle um mal. O remanescente divide-se de
ordinario entre o novo proprietario e o administrador; porque, em regra,
semelhantes transacções são feitas debaixo da pressão de necessidades
urgentes: o luxo, o jogo, as devassidões, a miseria são as mais das
vezes os conselheiros d'estes deploraveis negocios, e a situação mais ou
menos apurada do possuidor do vinculo determina as deducções mais ou
menos fortes a favor do capitalista. Raras vezes acontece reverter
integralmente o agio da transacção em beneficio do primeiro.

A lei em que se estriba esta especie de contractos não pertence á nossa
epocha. É o alvará de 13 de maio 1797, que permitte a subrogação por
apolices. Semelhante meio de aggredir as instituições vinculares não é
uma transacção entre o passado e o futuro, porque estas podem e devem
fazer-se quando grandes e radicados interesses se oppõem a uteis
innovações: é apenas uma astucia indigna de figurar na jurisprudencia de
nações livres. Se entendeis que não existe outro meio de libertar a
terra vinculada se não destruindo absolutamente os vinculos, matae-os,
mas não os _assassineis_. Os expedientes da timidez são os peiores de
todos. N'este meio capcioso não ha, porém, só isso: ha outros
inconvenientes não menos graves. É o primeiro o jogo de bolsa, a
agiotagem dos fundos publicos feita pela lei; é a creação de um elemento
de falso credito. Milhares de contos de inscripções, procurados
successivamente no mercado, e procurados para se amortisarem, para não
voltarem a elle, tem contribuido e contribuem de certo para a elevação
do preço dos titulos de divida fundada. Mas essa elevação, que em regra
é um indicio de credito, deixa de o ser n'este caso, porque a procura
significa, não a confiança, mas a necessidade creada pela lei. Na compra
pelo capitalista e na venda immediata que este faz ao administrador de
vinculo a troco da propriedade territorial, ao primeiro não importa o
que lhe custam os titulos que compra, nem a sua futura depreciação, em
quanto o segundo, indifferente até certo ponto a isso, visto que só lhe
interessa a manutenção do juro e a regularidade do pagamento d'este,
considera como uma vantagem o trocar a propriedade por titulos o mais
depreciados que for possivel, porque maior será o seu lucro individual
n'aquella operação, operação que desmente as leis do mercado, por isso
que é essencialmente viciosa.

A procura dos fundos publicos, resultado de especulações livres,
podendo, em resultado de outras especulações, converter-se brevemente em
offerta, não incita os governos a abusarem do credito; ao passo que a
procura das apolices para subrogações é um incitamento para novas
emissões, e portanto um meio de facilitar o augmento da divida do
Estado. Averbadas nos titulos dos vinculos, essas inscripções
immobilisaram-se, e o governo pode ir substituindo-as gradualmente com
diversos pretextos, sem que o mercado se resinta, ao menos de um modo
facil de appreciar, do augmento da divida publica. Por ventura esse
unico pensamento explica o alvará de 1797.

Não são os administradores de moderados vinculos, que os cultivam por si
proprios em todo ou em parte, e a quem o modico rendimento d'elles
obriga a viver longe dos grandes centros da população e do luxo, os que
de ordinario recorrem a estas transacções deploraveis. São, por via de
regra, os donos de grandes casas, os cortesãos, os titulares, os homens
para quem os habitos de uma vida dissipada ou luxuaria se converteram em
segunda natureza, os opulentos possuidores dos vastos predios do sul,
incapazes não raro de se dedicarem a uma administração complicada e
trabalhosa, que mal se accommoda com a sua educação; são de ordinario
estes, quando a desordem dos seus negocios os tem collocado em
difficuldades insoluveis, que se precipitam na voragem das subrogações.
Não faltam exemplos de ser o lavrador abastado, o proprio rendeiro do
predio destinado á subrogação, quem se aproveita das circumstancias para
se apoderar do solo onde exerce a sua industria. Succede isto quando
elle casualmente vem, n'uma conjunctura de angustia, tentar com o cumulo
das suas lentas economias a miseria ostentosa do administrador
arruinado. 'Nesta hypothese o mal das subrogações é menor. Na verdade
aquelle capital, accumulado por privações, por honestos e longos
esforços, seria mais utilmente empregado em augmentar as forças
productivas do solo; mas ao menos o industrial agricola consolida a
propriedade com o trabalho, e as novas economias irão d'ahi ávante
preencher fins mais positivos para a sociedade. É, todavia, commum esta
hypothese? Não por certo. O desperdicio, o luxo, as noites febris do
jogo, os affectos de bastidor, as vãs ambições da vaidade, os extravios
de um sensualismo que a saciedade leva até o delirio; as paixões ruins
em summa, que arruinam tantas familias das classes mais elevadas, só
raramente consentem que nos cataclysmos das grandes fortunas vinculares
aquella hypothese se verifique. É o cabedal monetario do especulador, a
quem, não sabemos se com justiça, se dá o nome insultuoso de agiota, o
que vai de ordinario trocar-se pela propriedade territorial. A razão é
obvia. O capitalista está sempre prompto para empregar dinheiro n'uma
transacção vantajosa, e elle sabe que o desleixo, a incapacidade, ou os
vicios dos administradores dos vinculos são campos feracissimos para a
especulação.

Mas posto que a abolição completa dos morgados, ainda que fosse em
virtude de uma lei irreflectida e imprevidente, valesse mais que a
existencia d'elles com o systema da destruição lenta pelo meio indirecto
das subrogações, é certo que a abolição traria tambem, em muitos casos,
ou uma difficuldade insoluvel, ou uma vantagem para os mutuantes de
capitaes, que não seria menos immoral do que as subrogações, porque
equivaleria a uma espoliação dos mutuarios. Fallamos do que succederia a
respeito dos vinculos, cujos administradores contrahiram dividas mais ou
menos avultadas, ficando hypothecados á divida os rendimentos dos bens
vinculares durante a vida d'elles, ou d'elles e dos immediatos
successores, se os ultimos intervieram no contracto com o seu
assentimento.

Diz-se que a agiotagem mais infrene preside commummiente a esta especie
de negocios. Cremos que nisto ha pelo menos exaggeração. De certo que o
juro de ura emprestimo de tal ordem deve ser avultado; mas pode ser
avultado sem ser excessivo. Não ha ahi só a renda do capital mutuado: ha
um juro de risco. É evidente que a restricção legal de passarem livres
aos successores os bens vinculados pode modificar de mil modos as
condições do mutuo. Na hypothese de intervir no contracto o immediato
successor, o risco é menor mas não deixa de ser grandissimo. A garantia
é dupla, mas egualmente incerta: é a instabilidade de duas vidas em
logar da de uma. Depois, a idade mais ou menos avançada do administrador
do vinculo, ou d'este e do successor quando o successor intervem, os
seus habitos de maior ou menor dissipação, a existencia de outras
dividas, a deterioração dos bens vinculados e por consequencia a
diminuição gradativa do rendimento; esses factos e dezenas de outros
analogos determinam a maior ou menor elevação do juro em contractos que,
considerados de um modo absoluto, seriam altamente usurarios, mas que as
poucas probabilidades do pagamento integral talvez plenamente
justifiquem.

Mas como se representa esse juro de risco? Uma lei inepta, impotente
sempre para impedir a usura, e que, taxando o lucro do capital, não
discrimina as circumstancias que o devem fazer variar, fixa ao dinheiro
determinado preço para todas as hypotheses. A necessidade, porém, e o
capital são astutos: o capitalista e o administrador do morgado sabem
como se illude a lei. O juro de risco representa-se no capital e no juro
da parte nominal d'este. Quando se recebe uma somma, o contracto
refere-se ao duplo; a mais ou menos, conforme o valor do dinheiro, a
gravidade do risco, a necessidade do mutuario e a consciencia do
mutuante. A transacção, respeitando na apparencia a lei, ludibria-a na
essencia: sorte de todas as leis civis, que radicalmente contradizem as
economicas.

Qual é, porém, a consequencia d'estes factos, que constituem a historia
da avultadissima divida que grava os vinculos? É que uma parte d'essa
divida representa apenas um juro e juro de risco. No contracto que lhe
deu existencia houve um verdadeiro jogo sobre um calculo de
probabilidades. O capitalista arriscou-se a perder a somma que realmente
emprestou, recebendo como premio no caso de amortisação o capital
nominal, além dos juros legaes; a eventualidade d'esse premio
equilibrou-se portanto com a possibilidade da não amortisação. Entre as
vantagens e as desvantagens deu-se a mutua compensação.

Desvinculae, porém, a propriedade vincular e sujeitae-a ao direito
commum. Em relação ás dividas que pesam sobre ella violaes um contracto,
irregular na verdade, mas irregular porque as leis que sanctificavam a
exempção hereditaria dos vinculos, e as que fixavam o juro do
emprestimo, o tornavam tal forçadamente. Supponde illicitas, criminosas
as transacções d'esta especie: considerae, se quizerdes, o mutuante como
usurario e o mutuario como prodigo. A desvinculação pune este e premeia
aquelle. A divida nominal, escripta no contracto, é uma; a real é outra.
O mutuante receberá, porém, ou por execução ou por outro qualquer modo,
o valor expresso. O que terá desapparecido é a desvantagem do risco.

A iniquidade é flagrante, e tem-se reconhecido que o é. Como meio de a
evitar lembram-se varios arbitrios para restringir a acção do credor
sobre os bens desvinculados. De todos esses arbitrios o mais simples e o
que parece mais justo e exequivel é o de considerar taes bens como ainda
vinculados em relação ás dividas contrahidas, limitando-se o direito do
credor á percepção da renda, durante a vida d'aquelle ou d'aquelles que
contrahiram o encargo, se n'este periodo não se verificar a amortisacão
completa. Mas qual será o resultado d'esta nova situação d'aquella
especie de propriedade? A quasi impossibilidade da alienação. Ninguem
compraria um predio cuja renda está hypothecada por um periodo
indeterminado (e a que, portanto, não se pode fixar o valor) senão por
um preço infimo, que salvasse todas as eventualidades, e que o vendedor
não acceitaria. A transacção só poderá effeituar-se com o proprio
credor; mas este, certo de que é impossivel a competencia, ha-de levar
as suas pretensões até onde chegar a possibilidade de se realisarem as
vantagens que aliás lhe dá o proprio direito. Assim a transacção tem de
ser forçosamente lesiva para o vendedor; lesiva a ponto de impedir a
alienação, ou de se realisar a expoliação que se pretendera evitar.

A consequencia ordinaria de tal arbitrio seria, pois, a immobilidade dos
bens ainda depois de desvinculados; ou, por outra, a desvinculação pelo
que respeita aos grandes morgados, sobre cujos redditos pesam
avultadissimos encargos e que são os mais numerosos, não alteraria as
principaes condições da sua existencia actual que justificam a abolição.
O livre movimento do dominio territorial, a subdivisão da propriedade, o
desenvolvimento da população e da cultura, o augmento das sizas; tudo
isso ficaria, em regra, suspenso até á morte dos individuos pessoalmente
responsaveis pelas dividas. É outra vez o adiamento, que parece
tornar-se inevitavel desde que, partindo da idéa da abolição absoluta,
se pretende legislar sobre a propriedade privilegiada, na qual o
interesse publico exige modificações immediatas.


VIII

*Os vinculos considerados em relação á grande e á pequena propriedade, á
grande e á pequena cultura*


Antes de debater em relação a Portugal uma questão ventilada com ardor
na Europa ha mais de um seculo, a da grande e da pequena propriedade,
consideremol-a successivamente como resolvida em favor de um e de outro
systema, e indaguemos que influencia possa exercer no predominio de um
ou de outro a conservação ou a abolição dos vinculos. Vendo-os a esta
luz, os que defendem a sua manutenção presuppõem a grande propriedade
como ligada á grande cultura, e a grande cultura como preferivel á
pequena. Os que sustentam a abolição presuppõem vantajosa a divisão
indefinita da propriedade, embora acompanhada da pequena cultura, que em
regra é a consequencia da subdivisão illimitada do solo, e ácerca de
cujas vantagens variam as opiniões d'aquelles mesmos que mais
ardentemente desejam a suppressão de todas as instituições tendentes a
impedir a livre divisão do solo.

Os que, preferindo os vastos predios e a grande lavoura aos pequenos
casaes, cuja cultura principalmente se caracterisa pelo trabalho braçal,
vêem nos vinculos um meio poderoso de manter o systema agricola que
suppõem mais vantajoso, podem acaso invocar em seu abono os factos?
Podem invocal-os os que pensam de modo contrario? Comecemos pelos
exemplos do nosso paiz, que são os primeiros que nos importa estudar.

Já n'outra parte nos referimos á differença profunda que se dá entre os
vinculos das provincias septemtrionaes e os das provincias meridionaes
do reino. Nos districtos do norte a constituição moral dos vinculos é a
mesma dos vinculos situados nos districtos do sul; mas a sua
constituição material é diversa. Em geral os vinculos do norte são
constituidos, em relação á propriedade territorial, n'um maior ou menor
numero de predios de dimensões taes que a designação de latifundios lhes
seria inteiramente inapplicavel. São quintas, casaes, bouças, campos;
nunca ou raramente uma granja, uma herdade analoga áquillo a que damos
estes nomes nos districtos do sul. O senhorio directo de predios
emphyteuticos e os censos completam para o administrador do morgado o
cumulo da renda territorial. Todas as fórmas de exploração agricola se
manifestam n'aquella multidão de propriedades vinculadas: a cultura
directa, a parçaria, o arrendamento, o colonato. Discorrei pelo Minho.
Certos edificios nas villas, nas aldeias, mais grandiosos, ornados de
pedras-d'armas, hão-de revelar-vos a existencia de centenares de
morgados: mas os campos e a sua cultura, as quintas e as suas dimensões
não vos dirão nada; porque a allodialidade, a emphyteuse, o vinculo na
sua influencia sobre a agricultura não imprimem aos campos caracteres
especiaes que distingam estas diversas especies de propriedade, ou
diversifiquem as culturas.

Penetremos agora no Alemtejo, sobretudo no Alemtejo central e
meridional. Como o Minho é o typo da propriedade e da cultura
septemtrionaes do reino, o Alemtejo é o typo mais acabado da propriedade
e da cultura meridionaes. As outras provincias são a transição entre os
dous extremos. Como o Minho é a terra classica da subdivisão
territorial, o Alemtejo é a terra classica dos latifundios. Grande parte
d'estes latifundios pertencem a importantes morgados; mas o resto
constitue geralmente propriedades allodiaes, sendo os prasos n'aquella
provincia, em contradicção com o que succede no Minho, apenas uma
excepção rara, e ainda assim caracterisados ás vezes pela indole geral
da propriedade no Alemtejo--a extensão demasiada. Um systema de cultura
uniforme é applicado ahi sem distincção aos predios livres e aos
vinculados.

Na Extremadura e na Beira occidental, mas principalmente na Extremadura,
predomina a cultura media e a propriedade media, se exceptuarmos as
margens do Tejo desde a Barquinha até perto de Lisboa, onde a extensão
da propriedade, como na Beira-baixa, annuncia, por assim nos
exprimirmos, a aproximação do Alemtejo. Mas, no meio de todos estes
cambiantes nas dimensões dos predios rusticos, vemos os vinculos
amoldarem-se a todas as fórmas de propriedade e de cultura, e
amortizarem em si a quinta, o casal, a granja, o praso, a horta, o
pinhal, o montado, a charneca interminavel; com a mesma facilidade com
que se amoldam ás manifestações extremas da grande e da pequena
propriedade e da pequena cultura.

Que se infere d'estes factos? Que outras causas alheias á instituição
vincular determinam a maior ou menor vastidão dos predios rusticos e o
seu systema de grangeio. Umas são puramente historicas, outras
juridicas, outras agronomicas, outras economicas. Não queremos dizer com
isto que a instituição não influa, n'um ou n'outro caso, no facto de
maior ou menor dimensão dos predios, e na sua situação agricola; mas
cremos que de todas as causas esta é a menos importante. Desejariamos
que os defensores da manutenção dos vinculos como garantia de grande
propriedade nos explicassem a existencia dos vastos allodios do
Alemtejo, a sua força de cohesão contra os effeitos do direito commum da
successão, pelo engenhoso expediente dos _quinhões_, de que n'outra
parte teremos de falar. Esses predios estão provando que não é
necessario o principio vincular para impedir a disgregação das grandes
propriedades rusticas; que o interesse individual bem ou mal avaliado,
as condições do solo e clima, a natureza das culturas dependentes
d'essas condições, o estado economico do respectivo districto, e, até,
os habitos e preconceitos, podem assegurar a união de amplos tractos de
terra, embora deixe de existir uma instituição que o espirito publico
reprova, por motivos que, posto sejam especiosos ás vezes, são em grande
parte subejamente justificados.

Mas tambem quizeramos que os fautores da pequena propriedade allodial e
da subdivisão indefinita do solo, que vêem na existencia dos morgados o
principal obstaculo á realisação das suas idéas, nos explicassem como é
que ao norte do reino a pequena propriedade se harmonisa tão facilmente
com a instituição vincular, e ao sul a vasta propriedade passa indivisa
de geração em geração ao lado dos latifundios vinculados: que nos
dissessem se essas innumeraveis subrogações, pelas quaes se tem
libertado a terra para se immobilisarem em logar d'ella titulos de
divida fundada, tem influido na subdivisão do solo; e se, dando-se nos
predios ainda actualmente vinculados as mesmas condições especiaes
agronomicas e economicas que determinam a integridade dos allodios,
elles esperam que pelo facto da desvinculação desappareçam nos bens de
vinculo essas condições especiaes.

A verdade é que, considerada nas suas relações agricolas, a grande
propriedade não presuppõe necessariamente nem a grande nem a pequena
cultura. Em rigor os vastos predios vinculados poderiam associar-se com
ella e, ainda, chegar á extrema exaggeração que a torna um verdadeiro
flagello das populações ruraes. Se o nosso paiz não offerece exemplos
assaz geraes e evidentes d'esse facto, temol-os extranhos, mas
decisivos. É a Irlanda que nos subministra o mais singular. A Irlanda
antes das ultimas reformas, e da revolução produzida pelo _Encumbered
Estates Bill_, era quasi exclusivamente um paiz de substituições (os
morgados inglezes), e, se essa lei previdente de uma immensa liquidação
produziu grandes beneficios, os males antigos ainda subsistem em larga
escala[1]. Em nenhuma parte se acha tão perspicuamente descripta a
associação da grande propriedade com a pequena cultura, e bem assim os
effeitos que pode produzir essa associação, dadas certas circumstancias,
como na passagem que vamos transcrever de um dos lilivros mais notaveis
que se tem publicado na nossa epocha[2]. Posto que algum tanto extensa
transcrevemol-a inteira, porque encerra outras idéas e outros factos que
talvez não nos sejam inuteis na prosecução d'este trabalho.

«Gerava enleio nos fautores exclusivos da vasta propriedade, diz Mr. de
Lavergne, a ponderação do estado da Irlanda. Mais que em Inglaterra,
mais até que em Escocia prevaleciam ahi os vastos predios. Proprietarios
de glebas medianas ou pequenas só os havia nas cercanias das povoações
de vulto, onde limitado trafico commercial ou limitada industria tinham
favorecido a existencia de uma especie de burguezia. Dividia-se o resto
da ilha em latifundios de 1:000 até 100:000 acres ou geiras inglezas.
Quanto maiores eram as propriedades, maior era a decadencia d'ellas. As
de mais extensa área estavam de cavallaria, como, por exemplo, o celebre
districto de Connemara, no Connaught, chamado vulgarmente _Martin's
Estate_. As substituições, mais communs na Irlanda que em Inglaterra,
tornavam estes bens inalienaveis.

O enleio para os que reputam a pequena cultura panacéa universal, não
vinha a ser menor. Se a Irlanda era a terra da vastissima propriedade,
era tambem a terra da pequenissima cultura. Não se contavam ahi menos de
300:000 casaes inferiores a dous hectares; 200:000 de dous a seis;
80:000 de seis a doze, e de doze para cima apenas 50:000. As leis de
successão favoreciam estas divisões, ordenando que as proprias terras de
arrendamento se dividissem entre os filhos do rendeiro, o que não era
uma disposição van como em Inglaterra.

Esta união da grande propriedade com a pequena cultura, que deu optimos
resultados n'alguns pontos da Gran-Bretanha e da Escocia, deu-os
pessimos na Irlanda. Parecia que os proprietarios e os lavradores se
tinham ajustado para a ruina commum, estragando o instrumento da commum
riqueza--o solo. Em vez do fecundo habito de residencia local, que
caracteriza os proprietarios inglezes, os _landlords_ irlandezes, sempre
ausentes dos seus predios, tiravam d'elles quanto rendimento podiam para
o gastarem n'outra parte. Faziam arrendamentos a longo prazo, pelo mais
alto preço possivel, a especuladores residentes em Inglaterra, e que
eram representados por sub-arrendatarios, denominados _middlemen_.
Imprevidentes e gastadores como todos aquelles a quem o dinheiro não
custa a ganhar, e não tendo, por não saberem applicar algum a tempo e
horas nos respectivos predios, senão redditos incertos e precarios,
dispendiam sobre posse, e as dividas absorviam-lhes por fim a maior
parte da sua supposta fortuna.

Do mesmo modo os _middlemen_, só empenhados em accumular lucros sem
dispender real e descuidados do futuro, não tendo com a cultura em si
nenhuma relação directa e pessoal tinham sublocado a terra até o
infinito. A população rural multiplicada excessivamente, visto que subia
a 60 almas por hectare proximamente, ao passo que em França sobe apenas
a 40, em Inglaterra a 30, e na Escocia baixa a 12, accommodava-se aos
seus intuitos. Havia-se creado uma concorrencia extraordinaria entre os
cultivadores para obterem porções de terra. Tanto cabedal possuiam uns
como outros, e por isso os meios de lançarem em praça eram eguaes para
todos: o que cada chefe de familia queria era adquirir algumas nesgas de
terra para cultivar com a familia.

Assim se desenvolvera o systema das pequenas locações, a que chamaram o
_cottiers system_, que não será precisamente mau em si se não se
exaggerar. Além de dispensar o capital, quando o não ha, substituindo-o
pelo trabalho braçal, tem a vantagem de supprimir a entidade a que
propriamente se chama jornaleiro, isto é, o individuo que vive só da
procura de trabalho e sujeito ás suas variações. A dizer a verdade, em
Irlanda havia pouquissima gente assalariada: os que n'outras partes
seriam jornaleiros, vivendo do jornal diario, eram alli pequenos
rendeiros. Mas tudo tem limites, e era o que não acontecia na divisão
dos grangeios, em razão do numero sempre maior dos concorrentes. Os
caseiros tinham a principio obtido casaes, onde uma familia podia,
rigorosamente fallando, viver e pagar a renda: dividiram-se estes casaes
primeira, segunda e terceira vez, ale que se chegou ás 600:000 glebas de
menos de 6 hectares, ou, por outra, á extremidade de não ter o
cultivador senão o estrictamente necessario para não morrer de fome, e
de importar a menor quebra no volume da colheita primeiro a
impossibilidade do pagamento da renda, e a final a morte do proprio
rendeiro.»

O exemplo da Irlanda é uma demonstração estrondosa da inutilidade dos
vinculos para manter pela grande propriedade a grande cultura: prova
que, onde se derem causas efficazes para que a pequena cultura
prepondere, os vinculos, longe de lhe pôr obstaculos, a deixarão ir até
á extremidade em que é um verdadeiro mal, mal que egualmente pode
resultar do fraccionamento excessivo da propriedade allodial.

Se os vastos predios vinculados nas provincias meridionaes de Portugal
não nos dão o espectaculo que nos offerece a Irlanda, é porque nas
nossas provincias do sul escaceia a população rural, e falta quem,
impellido pela fome, vá disputar a outro miseravel como elle algumas
nesgas de terra: é que o sul do reino, sobre tudo o Alemtejo, acha-se em
grande parte deserto. Se assim não fosse, a existencia dos vinculos não
obstaria de certo a que a procura excessiva da terra, compensando pela
elevação da renda parcellaria as desvantagens da divisão dos grandes
predios, trouxesse a pequena cultura, não com os seus caracteres
beneficos, mas com aquelles que tornam fatal o seu predominio
illimitado.


IX

*Objecções fundadas contra os vinculos*


As precedentes considerações parece-nos terem provado duas cousas: terem
provado que a abolição dos vinculos nem é facil, nem deixa de trazer
serios inconvenientes; e ao mesmo tempo que as vantagens, attribuidas a
esta instituição pelos seus defensores absolutos, são em grande parte
imaginarias. A aristocracia, a manifestação das desegualdades sociaes,
como ella é possivel n'este seculo, vimos que não precisa d'esse meio
artificial para se manter, porque deriva das condições impreteriveis da
sociedade; mas tambem vimos que a conservação dos pequenos vinculos é o
correctivo temporario a uma organisação administrativa que vicia as
instituições politicas e que attenta pela força da propria indole contra
a liberdade.

Em nosso entender tanto os que combatem os vinculos como os que os
defendem partem, talvez involuntariamente, de preoccupações oppostas que
não os deixam apreciar desapaixonadamente o merito da questão. Tanto uns
como outros cedem mais ao affecto do que aos frios calculos da razão. Os
vinculos representara o passado: são um resto do edificio social
desmoronado, cuja completa demolição julgam commummente indispensavel os
homens das novas idéas. Para estes os vinculos devem desapparecer,
porque são uma tradição, um memento da antiga monarchia e de uma
sociedade affeiçoada por ella. Mas é justamente por isso que os seus
adversarios querem amparar o que resta em pé do edificio, ou que, indo
mais longe na irreflexão da saudade, desejariam não só conservar este,
mas tambem colligir de novo todos os outros materiaes dispersos que
servissem para o reconstruir.

Este modo parcial e indiscreto de apreciar um facto economico e social
conduz forçosamente a conclusões absolutas e extremas; mas as conclusões
absolutas trazem a impossibilidade de uma transacção, e nós não
consideramos nenhuma solução da contenda como util e possivel senão a
que resultar de uma transacção entre idéas oppostas e oppostos
interesses. Não a consideramos como util sem uma transacção, porque a
abolição radical e completa traria os graves inconvenientes que em parte
ficam ponderados, e que aliás estão longe de provar que a existencia dos
vinculos é ou foi proveitosa. Não a consideramos como possível, porque,
ferindo interesses poderosos e preoccupações arreigadas, estes
interesses e preoccupações seriam obstaculo perpetuo a uma lei
definitiva sobre o assumpto. N'uma epocha revolucionaria, como a de 1832
a 1834, a abolição completa teria sido exequivel. As idéas e os
interesses oppostos eram obrigados a calar-se diante da voz omnipotente
da revolução. O tempo teria absolvido as injustiças relativas e os males
parciaes pela importancia dos resultados. N'essa epocha, porém, de
grandes ousadias, não se ousou tanto, e apenas se manifestou a guerra
aos vinculos pela condemnação dos pequenos morgados; d'aquelles a que
menos quadravam as accusações que se podiam fazer contra esta especie de
propriedade. Dir-se-hia que n'essa conjunctura, em que a sociedade e a
monarchia se transformavam, só se tivera presente o pensamento da lei de
3 de agosto de 1770, que consagrava a amortisação dos latifundios como
meio de conservar uma opulenta aristocracia hereditaria que cercasse de
falso brilho o throno de um rei absoluto. Se, porém, os homens gigantes
d'então, ardentes nas suas crenças, implacaveis contra o passado,
capazes de combater energicamente pelas proprias idéas, armados de uma
dictadura erguida em campos de batalha e baptizada em pegos de sangue;
se esses animos feros de uma epocha singular, que provavelmente não
achará tão cedo outra que a offusque ou que sequer a valha, tocaram
apenas timidamente no collosso vincular por um acto de dictadura sem
vigor e sem originalidade, poder-se-hão agora, no meio de uma geração de
estatura politica sobradamente modesta, encetar luctas de idéas
exclusivas e inexoraveis? As fileiras dos antigos pelejadores, cujo
ardor aliás se acha enfraquecido pelo cansaço, rarearam-nas os annos, e
os novos não tem braços assaz robustos para o combate. Hoje chama-se á
tibieza tolerancia, e aos calculos do egoismo e da pusillanimidade
civilisação. Os velhos interesses e as velhas preoccupações tem voz e
voto, preponderante ás vezes, nas cousas publicas. Os tumultos, as
luctas das facções, as guerras civis são ainda possiveis: as revoluções
não. Para isso requer-se que nas veias dos homens haja sangue, no
coração crenças, e na sociedade seiva moral.

D'este estado de cousas deriva a necessidade das transacções entre idéas
e interesses oppostos seja qual for a sua legitimidade. Independente de
quaesquer circumstancias, o que existe tem sempre grande força contra a
innovação; mas tem-na, sobretudo, nas epochas em que a descrença e o
intorpecimento, por assim dizer, epidemicos, invadem os espiritos. Por
mais terminantemente que a opinião condemne os vinculos; por mais
poderosamente que uma ou outra intelligencia os combata, a inercia, o
desanimo, a indifferença hão-de dar uma força de resistencia quasi
invencivel a essa instituição, que aliás podia, não sanctificar-se pela
sua origem ou legitimar-se pela sua indole, mas defender-se com razões
mais ou menos plausiveis na sua manutenção.

Que nos cumpre, pois, fazer, se quizermos chegar a um resultado practico
e exequivel na questão dos vinculos? Não é combater radicalmente a sua
existencia: é combater o que n'elles ha evidentemente nocivo. O facto de
certa qualificação nobiliária ser dada a certos individuos não perturba
a sociedade a que elles pertencem. Sabemos por experiencia o que valem e
o que podem essas qualificações. Mui pouco importa egualmente ao bem
commum que o juro de um determinado capital, a renda ou aluguer de
qualquer instrumento de producção se transmitta por testamento ou _ab
intestato_ a este ou áquelle, a um ou a mais individuos na successão das
gerações. O que importa é que esse capital ou esse instrumento se não
inutilise; que se adapte, ao menos na maior parte dos casos, a todas as
necessidades, a todas as mudanças, a todas as transformações do
progresso economico. Obtido isto, a conservação ou não conservação dos
vinculos é uma questão que perde a maior parte da sua importancia, e que
até se ha-de tornar assaz insignificante para deixarmos sem receio aos
vindouros o encargo da sua solução final.




A EMIGRAÇÃO

1873-1875




I

*Val-de-Lobos, dezembro de 1873.*


Ex.^{mo} sr.--Meu amigo, recebi no dia 9 d'este mez uma carta de v.
ex.^a, acompanhando o questionario que no dia 18 deve servir de assumpto
a uns debates na associação agricola de Lisboa. N'essa carta pede-me v.
ex.^a a minha opinião ácerca dos quesitos especificados n'aquelle papel.
São elles de duas especies: quesitos relativos a factos, quesitos
relativos a doutrina. Quanto aos de facto, sobre a maior parte d'elles
as noções que tenho são incompletas e pouco seguras: quanto aos de
doutrina, e ainda aos de factos em que me reputo melhor instruido, um
voto fundamentado sobre tão espinhosas e complexas questões exigiria um
livro, que mal coubera em razoavel volume. Delineal-o e escrevel-o n'uma
semana excederia as raias do possivel, não digo para a minha capacidade,
mas para a maior capacidade do mundo. É verdade que v. ex.^a pede-me
apenas reflexões ao correr da penna; mas em assumptos tão serios, basta
o amor proprio para nos induzir á circumspecção, e a consciencia
força-nos a tel-a, quando a nossa opinião, por ser nossa, como v. ex.^a
tão benevola como inexactamente pensa a meu respeito, pode exercer certa
influencia em outros espiritos. Assim, desejando por um lado cumprir os
preceitos de v. ex.^a, e por outro evitar, quanto possivel, uma grave
responsabilidade, direi successivamente o que me occorrer sobre o
questionario, se e quando outras occupacões impreteriveis me derem logar
a isso e v. ex.^a tiver animo para malbaratar alguns minutos em decifrar
as minhas rabiscas. A estreiteza do tempo apenas me consente fazer
n'esta carta algumas reflexões sobre o preambulo d'aquelle papel; e
ainda, pelo que a estas respeita, espero que nem v. ex.^a nem ninguem dê
a idéas tão mal elaboradas mais valor do que na realidade tem.

Resulta do preambulo do questionario que o debate, que vai abrir-se na
annunciada reunião, tem por alvo principal considerar o assumpto da
emigração para a America á luz da connexão que tal facto possa ter com
os interesses agricolas. Parece dar-se por provado que as difficuldades,
mais ou menos graves, da nossa agricultura procedem unicamente da falta
de braços, e da elevação dos salarios, elevação que se presuppõe
derivada exclusivamente d'essa falta, e esta, não da _insufficiencia_
dos braços em relação a uma _procura crescente_, mas da sua _diminuição_
por effeito da emigração, que se inculca, talvez por obscuridade de
redacção, como vulgar em todo o reino. A discussão terá, pois, por fim
averiguar quaes os meios de evitar a emigração do homem de trabalho para
fóra do reino, e de fazer com que a torrente d'ella se derive das
provincias mais populosas para as menos populosas, sobretudo para as
solidões do Alemtejo.

Estou plenamente de accordo em que se empreguem todos os meios razoaveis
e liberaes, para promover um movimento da população do norte para as
provincias do sul, especialmente para o Alemtejo, e para reter na patria
as classes trabalhadoras dos districtos insulares. Mas o que não posso é
sentir essa repugnancia absoluta, esses terrores profundos, illimitados,
da emigração, e o desejo de obstar a ella só para obter salarios baratos
para a agricultura. A emigração é um phenomeno complexo nas suas causas,
condições e resultados. Emigram uns por calculos e previsões, ou
proprios ou dos que os dirigem, pela esperança, bem ou mal fundada, de
voltarem algum dia ricos ou abastados á aldeia natal; emigram, não
porque não podessem viver, trabalhando, vida modesta e tranquilla entre
os seus, mas porque aspiram a mais elevada fortuna. Outros ha que
emigram violentados, ou antes que não emigram; que são expulsos pela
miseria; que não calculam, nem esperam, nem deliberam; que tão sómente
se resignam. Entre estas duas situações ha, a meu vêr, um abysmo:
confundil-as quando se tentasse annullar a ultima em beneficio das
victimas, e não em proveito d'estes ou d'aquelles, conduziria
provavelmente a grandes desacertos; confundil-as, porém, para as
destruir com a mira de tirar d'ahi vantagens para certa classe ou certa
industria, parece-me ainda peior. Faça-se tudo para supprimir a
emigração forçada; mas evite-se tambem tudo o que possa coagir, directa
ou indirectamente, aquelle que sente em si ambições e audacia a sopitar
os impulsos da propria actividade; evite-se que a sociedade ponha por
qualquer modo o seu veto (sem aliás abdicar do seu direito de inspecção)
a que a affeição paterna ou a previdencia tutelar busquem, dentro ou
fóra do reino, tornar melhor a sorte futura d'aquelle que a natureza ou
a lei confiou á sua guarda. Nas questões de interesse privado, nos
negocios da vida civil, dou incomparavelmente mais pelos resultados da
sagacidade e do livre arbitrio dos individuos, do que pelos da
intervenção do Estado.

Fallo assim, porque vejo do preambulo do questionario que tambem se quer
obviar aos intuitos dos que aos lucros modestos na patria preferem as
riquezas que lhes promette a America, o que, segundo se affirma, _raras
vezes se realiza_. É isto exacto? Parece-me que os factos affirmam
claramente o contrario. Não possuo aqui livros, documentos officiaes, ou
informações particularisadas sobre a situação economica dos nossos
compatricios residentes no Brazil, em que me possa estribar; mas tenho
ouvido calcular a pessoas que reputo competentes o valor medio annual
dos ingressos monetarios, que nos traz o refluxo da emigração portugueza
na America, em mais de 3:000 contos de réis. Não sei se é verdade: o que
sei é uma coisa, que, se não pertence á estatistica economica, pertence
á estatistica moral, e que não é menos eloquente que os algarismos; sei
um facto de suprema notoriedade. A denominação de _brazileiro_ adquiriu
para nós uma significação singular e desconhecida para o resto do mundo.
Em Portugal, a primeira idéa, talvez, que suscita este vocabulo é a de
um individuo, cujos caracteristicos principaes e quasi exclusivos são
viver com maior ou menor largueza e não ter nascido no Brazil; ser um
homem que saiu de Portugal na puericia ou na mocidade mais ou menos
pobre, e que, annos depois, voltou mais ou menos rico. Esta noção vulgar
da palavra _brazileiro_ não surgiu sem motivo entre o povo. É que
milhares e milhares de factos lh'a gravaram no espirito. O _mineiro_ do
seculo passado converteu-se no _brazileiro_ dos nossos dias. São a
primeira e a ultima palavra da historia de uma evolução politica e
economica altamente instructivas, que poderia acaso resumir-se no
seguinte asserto: «_a nossa melhor colonia é o Brazil, depois que deixou
de ser colonia nossa_.»

Applaudo, meu amigo, o questionario, porque os estudos que promove podem
ser grandemente proficuos ao melhoramento de muitas condições sociaes. O
que não posso applaudir são as suas causas finaes e o modo como é
apresentado. Acho inconvenientissimo confundir-se ahi a emigração
espontanea com a emigração forçada, e infelicissima a idéa de combater
egualmente uma e outra, afim de obter salarios baratos para a
agricultura. Por via de regra, o emigrado espontaneo, aquelle que a
miseria não atira cegamente, brutalmente, para fóra da patria, sabe o
que quer; sabe como vai e para onde vai. Conta com o parente, com o
amigo da familia, com o protector que lhe hão de dar as recommendações
que leva. É pobre, porém não desvalido. Impõem-lhe os seus, ou impõe
elle a si proprio annos e annos de laboriosidade, de sacrificios, de
abstenções; mas, além d'esses annos, nos horizontes da vida, ergue-se
uma luz, uma esperança que o alumia e fortifica. Esta luz e esta
esperança ensinam-lhe a norma do seu proceder, e o seu procedimento
redundará, não direi em toda a especie de proveitos, mas decerto em
proveito economico d'elle e da terra que o viu nascer, e pela qual lhe
vai redobrar o affecto o grande incentivo da ausencia.

V. ex.^a sabe perfeitamente quaes são as applicações possiveis do
producto liquido do trabalho humano. Ou se destina a satisfazer as
necessidades, os commodos e os appetites do productor, ou a accumular-se
e a converter-se em capital reproductivo, ou, finalmente, a dividir-se
entre estas duas applicações. Ambas ellas influem na riqueza publica,
mas com diverso gráu de intensidade. A satisfação das nossas precisões
ou da nossa propensão para gosar tende a manter prosperas centenas de
industrias; mas a accumulacão do capital, quando este chega a
converter-se em instrumento de producção, tem uma influencia, sem
comparação, mais energica no progresso da riqueza social. São verdades
triviaes estas: fôra inutil insistir n'ellas. Qual é, porém, o teor da
vida, em geral, do portuguez do Brazil, do futuro brazileiro de
Portugal? É o forcejar incessante, pertinaz, por accumular capitaes,
reduzindo ao estrictamente indispensavel a satisfação das suas
necessidades. Dedica á prosperidade da industria, da agricultura, ou do
commercio d'aquellas regiões a menor parte que pode do fructo do seu
trabalho. A sua idéa constante, inflexivel, tenaz, é voltar rico, ou
pelo menos abastado, á patria. E volta. Se, cançado de sacrificios e
trabalho, quer gosar, é á industria, á cultura e ao commercio do seu
paiz que atira ás mãos cheias o oiro que ajunctou. Se a sêde do ganho
não se extinguiu n'elle, esse oiro converter-se-ha em capital
productivo. E nós, nós que prégamos aos operarios a abstenção, a
poupança das suas tão modestas sobras para as accumularem nas caixas
economicas, havemos de combater a emigração voluntaria para o Brazil,
emigração que representa uma caixa economica opulentissima, a qual, por
mais que se fizesse, todas as outras junctas nunca poderiam egualar?

No preambulo do questionario allude-se ás esperanças burladas de muitos
emigrados voluntarios, ás illusões desfeitas, o que exaggeradamente se
presuppõe ser a regra geral. Decerto a America illude, e até devora,
muitos d'esses que acreditam ir encontrar n'ella prospero futuro. Mas
então, porque solicitar, pelo favor directo de providencias especiaes, o
homem de trabalho a buscar a fortuna na mineração dos metaes, na marinha
mercante, ou na exploração das nossas colonias de Africa? As minas, o
oceano e a Africa tambem illudem, tambem devoram. Em vez de solicitar,
repelli. Abrireis novos mananciaes de trabalho barato para a agricultura
nacional.

Disse a v. ex.^a que não applaudo as causas finaes do questionario. Digo
mais: deploro-as. São ellas que dão origem á confusão do acto espontaneo
com o forçado, com a emigração que provém da maior das tyrannias--a
tyrannia da miseria. Na emigração voluntaria ha um uso da plenitude da
nossa liberdade, e é por isso que a responsabilidade da sorte futura do
individuo recae inteira sobre elle proprio. O progresso social parece-me
consistir, sobretudo, na ampliação da responsabilidade individual
derivando da liberdade. O absolutismo nada mais é do que a tutela
publica na sua manifestação extrema. Na emigração forçada é que seria
injusto e cruel attribuir ao emigrado, que abandona o seu paiz sem
norte, sem rumo certo, e muitas vezes sem a minima esperança, a
responsabilidade de um facto que em rigor não é seu. A sociedade tem de
acceital-a. Essa secreção de desgraçados, que o corpo politico súa de
si, é anormal. Ha, aqui ou alli, na estructura d'elle um vicio de
conformação ou um estado pathologico que produz o phenomeno. A miseria
de um ou de outro individuo pode derivar de culpa propria: a que expulsa
uma parte notavel da população de um paiz, onde esta, considerada
collectivamente, está longe de superabundar, é sempre resultado de um
defeito ou de uma perturbação nos orgãos da sociedade.

Affligir-me-hia profundamente que o auctor ou auctores do questionario e
do seu preambulo imaginassem que eu duvidava, n'um só ápice, da pureza
das suas intenções, da sua humanidade, da sua justiça, do seu
patriotismo. O que simplesmente me parece é que o problema se poz mal.
Suppõe-se a agricultura do sul, sobretudo a do Alemtejo, collocada em
difficuldades taes que ameaçam a sua existencia. Suppõe-se que estas
difficuldades extremas provêm de uma causa unica--a elevação dos
salarios agricolas--e que essa elevação nasce exclusivamente da falta de
braços. Em tal caso, a resposta ao _quid faciendum_ é simples.
Promova-se o abaixamento dos salarios pela multiplicidade dos braços, e
multipliquem-se os braços combatendo indistinctamente toda a especie de
emigração: a emigração moral e economicamente nociva, e a emigração
socialmente legitima e economicamente boa. A questão reduz-se a achar os
meios de inventar e de reter dentro do paiz, por todos os modos que se
reputem licitos, trabalhadores ruraes.

Supponhamos, porém, que os debates, a que o assumpto vai dar vasto
campo, tornam patente que nem os embaraços da agricultura são tão graves
como se pintam, nem essas difficuldades, maiores ou menores, nascem
exclusivamente, e nem sequer principalmente, da elevação dos salarios,
nem esta deriva da diminuição de braços.

Pergunto: em tal hypothese, que não é mais gratuita do que a do
preambulo; n'esta hypothese, digo, deixar-se-ha de attender á dolorosa
questão da emigração pela miseria? Não! O dever commum é, não direi
resolvel-a, porque não sei se atinaremos com os especificos, mas envidar
os maximos esforços para obstar ao mal.


II

*Val-de-Lobos, janeiro de 1874.*


Amigo e senhor.--Se, como se diz no preambulo do questionario, a
elevação dos salarios, que se reputa effeito exclusivo da falta de
braços produzida pela emigração, ameaça já a existencia da agricultura
do Alemtejo, do nosso granel de cereaes colmiferos, e colloca os
cultivadores, por todo o reino, em circumstancias tão difficeis que os
rendeiros vão abandonando as terras, é claro que o mal ganhou
intensidade e extensão assustadoras, e o paiz, essencialmente agricola,
caminha rapido para profunda decadencia. Supposta sem mais exame esta
situação, haverá desassombro bastante para não ultrapassar os meios
indirectos de obstar ao mal? Não occorrerá facilmente a idéa da
compulsão, de restricções e impedimentos á liberdade? O fatal mote
_salus populi_ não virá ainda uma vez ser o pretexto de coacções mais ou
menos deploraveis?

Felizmente o que se apresenta como certo não passa por ora de hypothese,
hypothese quanto ao facto e hypothese quanto á causa. A meu ver, o
primeiro quesito do questionario deveria consistir em averiguar até que
ponto é real a existencia da enfermidade, e a sua verdadeira correlação
com o motivo a que se attribue. Como addição a esta especie de quesito
preliminar, quizera eu, porém, que se inserisse outro. Suppondo
conhecida a media dos salarios ruraes, o que não sei se é facil,
cumpriria examinar se essa media será sufficiente para o proletario
occorrer ás mais urgentes precisões da vida--ao alimento, ao vestuario,
e á habitação da familia--ainda admittindo que o trabalho d'esta possa
augmentar os recursos domesticos. Se achassemos que a retribuição do
assalariado, embora assim accrescentada, não attingia o alvo, é evidente
que ás difficuldades, em que se provasse laborar a agricultura, haviam
de buscar-se remedios diversos de qualquer reducção artificial de
salarios. A sociedade não pode honestamente sacrificar uma classe a
outra classe, e sobretudo sacrificar o pobre, falto muitas vezes do
necessario, ao comparativamente abastado, a quem, embora em situação
mais ou menos precaria, será raro que falte inteiramente o superfluo.

Achamo-nos assim, talvez sem o pensarmos, no terreno das discussões
ardentes que perturbam profundamente as sociedades modernas.
Encontramo-nos face a face com o socialismo. Era inevitavel. Desde que
se affirma que existe n'este ou n'aquelle ponto, n'esta ou n'aquella
industria, uma desproporção, para mais ou para menos, entre o preço do
trabalho e o valor do producto, affirma-se, no estado economico actual,
uma desharmonia, uma lucta grave, entre o obreiro e o industrial. Buscar
temperamentos á collisão é entrar forpadamente no campo d'essas
discussões, de ordinario tão apaixonadas. Não o reputo grande mal no
caso presente. Pode ser, até, um bem, se tivermos força para subjugar o
que houver excessivo no afferro ao proprio interesse; se debatermos com
placidez, com a luz da imparcialidade e da justiça, que uma consciencia
recta e sincera não deixará de ministrar-nos, o assumpto complexo da
producção agricola e do trabalho rural, buscando ahi remedio á emigração
moralmente forçada.

Nas declamações mais gementes, mais irritadas, contra o socialismo,
parece-me que ha por vezes o que quer que seja do carpir da mulher que
se receia da suppressão de alguns enfeites, ou do resmoninhar colerico
do antigo frade, ao fallar-lhe o guardião em reducção da pitança para
avolumar o caldo da portaria. O socialismo é um perigo serio; mas o
homem deve haver-se perante os perigos com cordura e hombridade: deve
olhar para elles fito, em vez de se pôr a ensartar lastimas ou a
vociferar improperios. Onde e quando o socialismo, com a taboleta de
communismo, de internacionalismo, ou outro qualquer letreiro, recorrer á
violencia, responda-lhe a violencia. São negocios que tem de resolver
entre si o petroleo e a metralha. Os incendios não se discutem:
apagam-se. Mas onde e quando o socialismo nos aggredir com as armas da
razão, ouçamol-o. Se a razão estiver da sua parte, de-mos-lh'a.
Demos-lh'a porém, não com uma confissão esteril, mas com actos
efficazes. Assim, parece me que elle ha-de retrogradar, enfraquecer-se,
desapparecer, como desappareceram as cruzadas ou as inquisições; como
desapparecem todos os desvarios epidemicos de que adoece de seculos a
seculos o espirito humano. Aliás, se, de accordo com o douctor Pangloss,
assentarmos em que somos chegados á melhor das sociedades possiveis, não
me atrevo a perscrutar a sorte que a Providencia prepara ás velhas
nações da Europa.

Meu amigo, no amago dos grandes extravios das multidões, de que a
historia nos subministra terriveis exemplos, ha quasi sempre uma idéa
justa que as paixões viciaram. As resistencias, porém, a esses extravios
não escapam de mácula identica. No ardor do combate, a idéa justa
obscurece-se, condemna-se, involta na proscripção das doutrinas absurdas
e das applicações temerarias. É assim que nenhuma das grandes luctas
entre as orthodoxias e heterodoxias deixa de nos apresentar esse triste
espectaculo. No socialismo ha duas cousas bem distinctas: as
affirmativas e as negações. As mais das vezes as suas doutrinas
constituintes, os seus systemas de reforma social, afiguram-se-me
abstrusos, infundados, inexequiveis, e não raro iniquos; e as apologias
das quinze ou vinte escholas em que elle se divide, e muitas vezes se
contradiz, frequentemente faltas de condescendencia para com o senso
_commum_, o que me parece pouco democratico. Dos seus queixumes contra a
sociedade actual é que me seria difficil dizer outro tanto. É ahi que me
persuado está a sua idéa justa. No meio das exaggerações, das
amplificações, de certo lyrismo tetrico, a critica socialista tem ás
vezes razão de sobra. É d'isto que me temo. Deixem ao socialismo a
legitimidade moral que lhe provém da existencia de certos factos, e
queixem-se depois do resultado definitivo da contenda.

As circumstancias difficeis em que se diz achar-se a agricultura
merecerão duvidoso credito aos desinteressados, em quanto por um
conjuncto de provas seguras não se mostrar a existencia do facto. As
affirmações valerão pouco, se indicios, que todos podem apreciar, lhes
forem adversos. Augmenta gradual e quasi constantemente a exportação dos
productos agricolas do paiz; a população rural cresce com mais rapidez
do que nunca; desbravam-se todos os annos novos terrenos; as aldeias
dilatam-se; as habitações dos agricultores revestem cada vez mais o
aspecto de aceio e conforto; o transito e o transporte pelos caminhos de
ferro e o movimento dos nossos portos elevam-se de anno para anno de
modo inesperado. Todas as apparencias, em summa, convergem para nos
persuadirem que estamos mais ricos do que eramos ha quarenta ou
cincoenta annos. Se essa riqueza é real, como explical-a, na hypothese
de uma decadencia profunda na principal industria do reino? Parece
altamente improvavel. Ao menos cumpre esperar pelas provas claras e
precisas d'essa contradicção economica.

Não devo acreditar que a affirmativa de uma elevação anormal dos
salarios assente em irreflexivas comparações chronologicas. Na successão
dos tempos, o mesmo preço de trabalho pode ser exprimido por algarismos
diversos. Depende tudo das oscillações do valor da moeda, em
consequencia da diminuição ou accrescimo dos metaes preciosos, e
portanto do seu valor. Não me persuado de que haja quem ignore a
abundancia sempre crescente d'esses metaes no decurso d'este seculo.
Assim, o algarismo 15 pode, por exemplo, representar rigorosamente o
mesmo preço de um dia de trabalho, que o algarismo 10 representava ha 30
ou 40 annos. A proporção entre o valor venal do producto e o salario do
trabalh o ficará sempre a mesma, porque a depreciação da moeda lá irá
manifestar-se de egual modo no algarismo d'esse valor, se causas
extranhas, com as quaes o obreiro nada tem que vêr, não vierem influir
na carestia ou na barateza do producto.

Mas, ainda evitando esse erro grosseiro, em que me parece ninguem
cairia, nem por isso fica removido o perigo de nos illudirmos em relação
aos salarios ruraes. Repugna á razão e á consciencia que se considerem
estes em geral como susceptiveis de reducção illimitada. O obreiro é,
por via de regra, o chefe ou o sustentaculo de uma familia.
Comprehende-se o padre ou o soldado segregados d'esta e celibatarios:
não se comprehende como o poderia ser a classe dos trabalhadores, que
constituem tres quartos ou mais da população, sem que esta decrescesse
gradualmente até chegar a extinguir-se. A familia do obreiro é
inevitavel, e por isso inevitavel que a reducção dos salarios não a
torne impossivel. Toda a industria em que o lucro ou retribuição do
industrial não possa, em absoluto, conciliar-se com esta condição
impreterivel, é uma industria condemnada fatalmente a perecer mais cedo
ou mais tarde, sejam quaes forem os arbitrios a que se recorra para a
aviventar. Ora, em Portugal, como em qualquer outro paiz, concebe-se o
desapparecimento d'esta ou d'aquella industria fabril: o que se não
concebe é o desapparecimento da industria agricola. Entre os dois
termos, immutaveis, inexoraveis como o destino--existencia da
agricultura e sufficiencia do salario--tem a sociedade necessariamente
de buscar a solução de quaesquer difficuldades economicas que possam
comprometter a nossa, não direi quasi unica, mas capitalissirna
industria. Propor que se reduza indefinidamente o preço do trabalho por
uma concorrencia artificial e illimitada, sem indagar até onde essa
reducção poderá conciliar-se em cada districto ou provincia com a
existencia da familia do obreiro, será dissolução: solução é que de
certo não é.

Sou cultivador, vivo no campo, no meio de outros cultivadores, e ouço
frequentemente os queixumes contra a elevação sempre crescente dos
salarios. Tenho pensado n'uma questão que me toca tambem. Sei quanto é
difficil, ás vezes, saldar _as despesas_ da producção com o valor venal
do producto por um saldo positivo; mas d'essas despesas, aquella que o
lavrador tem sempre deante dos olhos, pela sua permanencia, é a das
soldadas e jornaes. São as soldadas e jornaes que o obrigam mais vezes a
realizar em conjuncturas inopportunas o valor dos productos. Não
sabendo, em geral, distinguir com exacção as despesas productivas das
improductivas, as escusadas das inevitaveis, avalia-lhes a indole apenas
pelos algarismos que as representam, pelos obstaculos que lhe suscitam,
e pelos apertos em que o collocam. As maiores e mais frequentes são as
peiores: eis, em resumo, o seu criterio. Para elle o ideal do
improductivo é o imposto, e não acho impossivel que até certo ponto
tenha razão. O imposto, porém, que no seu espirito se confunde algum
tanto com a extorsão, com a espoliação, irrita-o; mas irrita-o uma vez
por anno. O salario, soldada ou jornal, é o espinho que o punge, ora
mais ora menos, na alta ou na baixa, mas de continuo; é a fonte perenne
de cuidados, de repugnancias, de coleras, de debates. As causas que mais
contribuem para attenuar, e ainda para inverter, a proporção entre a
importancia do custo e o valor do producto, tanto as que possam provir
da sua imprevidencia, das suas poucas luzes, do seu desleixo, das suas
preoccupações tradicionaes, da laxidão dos seus habitos, como as que
provenham do incompleto ou do vicioso das instituições, das leis, dos
regulamentos, que directa ou indirectamente attingem a agricultura, e
até as que derivam da perversão dos costumes publicos, raras vezes as
considera e aprecia nas suas relações exclusivamente agricolas. Os
effeitos d'essas causas não se exprimem em réis, não se especificam no
diario, supposto que se dê o caso de ter o agricultor algum simulacro de
contabilidade, embora assás simples para lhe ser possivel. Quizera eu
que se applicasse a causas tão variadas e complexas o dynamomelro da
economia rural, para avaliarmos com justiça e imparcialidade o quinhão
que lhes pertence e o que pertence ao salario nas difficuldades em que
se diz laborar a agricultura, e que não duvido se deem em certos casos.
Se houvessemos de seguir esta vereda, parece-me que seria um pouco
extenso o supplemento aos quesitos do questionario que v. ex.^a teve a
bondade de me remetter.

Mas, se, accusado de involta com outras causas deprimentes da
agricultura, o salario rural tiver de ir assentar-se ao pé d'ellas no
banco dos réus, é necessario que não lhe ponham mascara; que o levem
para alli com o seu verdadeiro aspecto. Não é só nas suas exaggerações
transitorias que elle deve ser considerado. A indole do salario agricola
é diversa da indole do salario fabril. O fabricante, debaixo do tecto da
sua fabrica abrigada atraz do paredão proteccionista, produz para um
mercado que não suppre completamente, e cujas lacunas deve vir
preencher, saltando por cima do paredão, o producto similar estrangeiro.
Os effeitos disso, subretudo n'um paiz pequeno, conhece-os decerto v.
ex.^a. Que o motor e os machinismos funccionem bem, que a má
administração não comprometta a fabrica, e o operario fabril que fizer o
seu dever pode contar com um salario, mais ou menos elevado, mas
regular, por todo o decurso do anno. As oscillações são ahi pequenas, e
raras as ferias do trabalho. São outras as condições do assalariado
rural. Na verdade, a soldada do _criado de anno_ tem, até certo ponto,
analogia com a retribuição do lavor fabril, porque assegura, pouco mais
ou menos, ao criado a habitação, o vestuario e o alimento por todo o
decurso do anno. Mas pela natureza das cousas, por motivos que fôra
demasiado longo enumerar, o criado está sempre exposto a passar á
situação de jornaleiro. É em relação a este que é grave a questão. No
jornal, as variações são repentinas, violentas, desordenadas. N'estes
sitios onde vivo, a constituição da propriedade rustica e da industria
agricola aproximam-se bastantemente do typo ideal (ideal, ao menos para
mim) da boa organisação da agricultura, no _momentum_ actual da evolução
agricola--a mistura da grande e da pequena propriedade, da grande e da
pequena cultura. A população aqui não é excessiva, mas é assás numerosa:
as aldeias crescem e até nascem; a charneca foge para o horizonte ante o
reluzir do alferce e da enchada. E todavia, quantas vezes, n'um domingo,
depois da missa, na _praça_, o lavrador, o feitor, ou o capataz é
_forçado a pagar o vinho_ para o jornal de 340 ou 360 réis durante a
semana, e no domingo seguinte faz o _favor_ de o pagar para o de 140 ou
160 réis! Decerto aquelle jornal de 340 ou 360 réis, associado ao
producto do trabalho da familia, e ao producto liquido da courella, da
vinha, do _foro_, em summa, que, por via de regra, o jornaleiro possue
(não sei se v. ex.^a conhece bem a entidade _foro_: o foro é o grande
moralisador dos campos, o supplente efficaz do parodio e do mestre,
mythos que a poesia politica inventou para entretenimento dos
parlamentos e das secretarias); aquelle jornal, digo, excede a verba
indispensavel para satisfazer as precisões, aliás tão limitadas, da
familia rustica. Mas pode dizer-se o mesmo do jornal de 140 ou 160 réis,
ou irão as tenues economias dos dias felizes supprir as lacunas do
insufficiente salario, e sobretudo a carencia absoluta d'elle nos dias,
nas semanas, nos mezes, até, de chuvas pertinazes, em que a terra
empapada em agua se recusa ao consorcio com o trabalho humano? Fôra
loucura pensal-o. Os jornaes de 340 ou 360 réis são a excepção: os
vulgares são os de 140 e 160 e os que oscillam entre estes algarismos e
o de 240 réis, aliás bastante raro, afóra os que se exprimem por zero.
Coincidem as altas excessivas, repentinas, com as ceifas, com as sachas
e rechegas, com as podas, empas e cavas, etc. Cumpre, porém, attender ao
periodo da sua duração. A natureza não se dobra aos caprichos e aos
calculos, ás vezes ineptos, do homem: o cultivador que mantém aquelles,
ou erra estes, paga-o. Os serviços hão-de fazer-se a tempo, aliás lá
está o producto com o látego na mão para punir o réu. São questões de
tres, de quatro, de seis semanas. Ora, por aqui, o calendario teima em
affirmar que o anno se dilata por 52 d'esses periodos semanaes, a
arithmetica protesta que 35 ou 40 são algarismos superiores a 12 ou a
15, e a physiologia e a hygíene mais rudimentaes continuam, impassíveis,
a ensinar que a familia do obreiro ha-de comer e vestir-se todos os
dias, e abrigar-se á noite das injurias da atmosphera: factos
impreteriveis, fataes, emquanto a sciencia não mandar o contrario.

Á vista d'elles e do questionario que v. ex.^a me remetteu, estive
tentado a indagar se uma porção dos nossos trabalhadores, ao
aproximarem-se as epochas d'esses serviços, costumavam ir contemplar as
florestas virgens da America, e voltarem só ao despenhar-se o salario
das alturas do excessivo nos limbos melancholicos do insufficiente.
Obstava a distancia: não tive remedio senão absolver o Brazil, ao menos
em relação á minha localidade, das altas desordenadas do salario.

Desconfio de que começo a ser importuno com esta carta, já em demasia
longa. É vasto o assumpto. Peça v. ex.^a a Deus que a multiplicidade das
minhas occupações me não consinta tornar a importunal-o tão cedo.


III


Ill.^{mo} e ex.^{mo} sr.--Se, conforme creio, as condições e a indole do
salario rural são actualmente como as descrevi na carta precedente,
salva uma ou outra modificação accidental, segue-se que não seria licito
empregar nenhuns meios directos ou indirectos tendentes a minorar as
altas repentinas e transitorias, sem que ao mesmo tempo se tractasse de
elevar o salario insufficiente. Mas, fechado no estreito campo da maior
procura ou da maior offerta de trabalho, tendo por causa unica a
diminuição ou o augmento de braços, o problema torna-se obviamente
insoluvel á luz da equidade. Se a multiplicação da offerta influir na
descida da alta, influirá do mesmo modo na descida da baixa, e tornará,
portanto, cada vez mais miseravel a situação do obreiro. Se, pelo
contrario, crescesse a procura sem que a offerta crescesse
proporcionalmente, suppondo-se, como se pretende, que as difficuldades
em que labora a agricultura d'ahi procedam, tornar-se-hiam cada vez mais
intensas essas difficuldades. Resulta d'aqui a necessidade de buscar a
solução do problema e o remedio á crise, se existe, n'uma ordem de idéas
diversa.

A meu ver, o mal não procede da escacez de braços: procede da errada
vereda que tem seguido entre nós o desenvolvimento agricola; do
deploravel esquecimento de certas leis economicas e de certos principios
e doutrinas indisputaveis da sciencia de agricultar. Se isto é assim
(depois o examinaremos) a emigração, que só pode influir na maior ou
menor affluencia de trabalhadores, é questão distincta da questão dos
embaraços agricolas, que não hão-de, na minha opinião, remover-se com a
depreciação do trabalho.

A emigração da miseria deve combater-se, não porque o agricultor vê
n'isso, bem ou mal, o seu interesse, mas porque o emigrante é, como nós,
filho d'esta terra; porque a emigração forçada tem para o coração humano
as mesmas amarguras do desterro; porque ao cabo das esperanças do
foragido (quando para elle exista a esperança) estão muitas vezes as
desillusões e a morte. A certeza de que os altos salarios são
transitorios, e de que após elles vem sempre o trabalho mal retribuido
ou a falta de trabalho, é poderoso incentivo para a emigração; mas
sel-o-ha ainda mais a manifestação de que as providencias, sejam ellas
quaes forem, para afastar os trabalhadores de emigrarem, tem por
principal intuito produzir uma descida nos jornaes elevados. Diz-se que
ha embaidores incumbidos de os alliciarem para além do Atlantico,
illudindo-os com promessas de vantagens imaginarias. É natural que seja
assim, porque a America, em grande parte despovoada e inculta, precisa
para o seu progresso dos braços laboriosos da Europa. Mas é justamente
por causa d'isso que não reputo prova de grande prudencia auctorisar
esses homens astutos a fazerem avultar as cores e lineamentos do seu
quadro de brilhantes promessas com as sombras carregadas dos intuitos
egoistas d'aquelles, que buscam reter o trabalhador na terra natal para
o converterem em instrumento do proprio interesse.

Abstrahindo da emigração razoavel, da emigração d'esses que vão para o
Brazil com determinado destino, e com a esperança fundada de adquirir
uma fortuna que não tem probabilidade de obter no seu paiz, ha nos que a
pobreza impelle _per la via dolente_ dois grupos que se distinguem por
indole e caracter diversos: uns naturalmente audazes e propensos a
guiar-se mais pelos impulsos das paixões e da imaginação do que pela
prudencia; outros, timidos e reflexivos, a quem as aventuras repugnam, e
que só se precipitam n'ellas pela urgencia das precisões. Reter os
primeiros sem violencia, quasi que o julgo impossivel, ao passo que
desviar os segundos d'esse deploravel caminho se me afigura
comparativamente facil.

A ignorancia e rudeza, meu amigo, não excluem a faculdade da imaginação,
e a credulidade impera na razão inversa da cultura do espirito. Como
evitar nos animos propensos ás maravilhas do extraordinario, do
longinquo, do indefinido, os effeitos das narrativas dos que voltam da
America opulentos ou remediados? Como occultar, n'um paiz cujas relações
com o Brazil são frequentes, intimas e variadas, qual é alli a
retribuição do trabalho, a certeza do salario, a facilidade de
occupar-se no commercio de retalho, a falta de operarios fabris, etc.? A
perspectiva da vida tranquilla, a que não faltem os meios de satisfazer
ás necessidades indispensaveis, mas uniforme, laboriosa, sem peripecias
(e é isto o mais que a sociedade lhes pode proporcionar) fraco
attractivo será sempre para os animos irrequietos, atrevidos, mudaveis,
quando ao lado da nudez e da fome, que os martyrisam ou os ameaçam, se
alevantarem as seducções, em parte verdadeiras, em parte suppostas, que
sorriem d'além do oceano. Sobre a tela de factos mais ou menos inexactos
borda a imaginação idylios e a credulidade milagres. E que muito, se a
individuos, incomparavelmente mais cultos que os obreiros ruraes, tenho
visto tecer d'esses contos de fadas em relação aos lucros do trabalho
litterario? Não sou, me parece, dos que podem como escriptores
lamentar-se da indifferença do publico americano. As maiores provas,
porém, de benevolencia d'este para commigo ficaram sempre muito áquem
das vantagens enormes que esses individuos, conforme o que lhes tenho
ouvido, tirariam da profissão das letras no Brazil, se a fatalidade não
os retivesse na patria, ou certa ordem de embaraços lhes não tolhesse
alli a venda dos seus livros. Um grande talento, a quem só faltou uma
educação litteraria condigna, e melhor sorte no seu paiz, lá foi acabar,
arrastado por essas illusões de poeta, depois de esgottar o calix de
amargos desenganos.

Sinceramente, meu amigo, creio que a eloquencia dos embaidores dos
operarios rusticos seria bem inefficaz, se a peroração do discurso não
fosse redigida pela miseria. Porque são raros os seus triumphos entre os
da nossa Estremadura e do Alemtejo, que aliás não me parece sejam
nenhuns Cresos, e são tão frequentes nas provincias do norte e nos
districtos insulares? A resposta que se poderia dar a esta pergunta não
seria a mesma que se poderia dar a outras até certo ponto analogas?
Porque se precipitam annualmente do norte para o meiodia do reino bandos
e bandos de trabalhadores nas epochas das _fainas_ da nossa triste
agricultura biennal e triennal? Qual é o embaidor que os arrasta para as
ceifas nas campinas do sul, requeimadas por sol abrazador, que ás vezes
os fulmina, ou para os alagamentos mornos dos arrozaes, onde ao
amanhecer e ao entardecer o nevoeiro, cultivador de intermittentes,
semeia dia por dia uma porção da sua terrivel seara? Nos valles do Minho
e da Beira, que o suor de quarenta ou cincoenta gerações tornou ferteis,
e cuja cultura é em certas relações admiravel, falta o estigma do pousio
não adubado, da folha não alqueivada, que pede unicamente ás influencias
atmosphericas o azote de que, um anno sim outro não, ou de dois em dois
annos, a esgottam rachiticos cereaes. E não falta só nos prediosinhos
que numericamente ahi predominam; falta era geral nos mais vastos, que
correspondem á pequena herdade alemtejana e á quinta e ao casal
estremenhos. Ahi cultiva-se annualmente todo o chão reduzido a cultura,
a qual até certo ponto é licito qualificar de intensiva. Não lhes faltam
os braços, porque esses amanhos, que podem chamar-se esmerados,
fizeram-se; e fizeram-se sem perda, porque aliás a agricultura do norte,
cujos productos augmentam, declinaria gradualmente, e a população, que
cresce alli, como por todo o reino, apezar da emigração, diminuiria, em
vez de seguir em progressão o accrescimo dos productos. A estatistica
official d'essa população, comparada entre duas epochas tão proximas,
como são os annos de 1864 e 1868, é eloquente[3]. Seja-me agora
permittido perguntar: se as _fainas_ da agricultura do sul não tivessem
attrahido por salarios, mais ou menos remuneradores, esses milhares de
obreiros, que por dois ou tres mezes, e ainda mais, de lá se ausentaram,
sem que os serviços ruraes deixassem de se ultimar, em que trabalhos os
teriam occupado os agricultores do norte? Até que ponto chegaria a
insufficiencia dos jornaes? Depois, quem nos diz que essas emigrações
temporarias dentro do paiz representam completamente um equilibrio entre
o excesso da offerta do trabalho no norte e o excesso da procura no sul?
As previsões e esforços ordinarios do interesse privado asseguram-nos
que a procura foi satisfeita por um preço mais ou menos elevado, dentro
das condições de tempo, impreteriveis em agricultura. Nada, porém, nos
prova que a offerta n'um mercado não excedesse a procura no outro. Em
tal caso o excesso da offerta significaria a miseria de mais ou menos
numerosos trabalhadores do norte.

Em que se occupa grande porção d'esses obreiros, que affluem todos os
annos para o sul de certo tempo a esta parte? No plantio de vinhas; e o
plantio de vinhas offerece um problema, que eu teria grande gosto em ver
resolvido pelos que acham na falta de braços a principal senão unica
fonte dos embaraços da agricultura. Creio que ninguem deixará de
confessar que, dos diversos ramos da industria agricola, o que mais
cresce e se dilata por quasi todos os districtos do reino é a
vinicultura. Repovoam-se de cepas os terrenos que desvastou o _oïdium_;
campos que produziam cereaes transformam-se em vinhas; de anno para
anno, collinas, recostos de montes, pedregaes, pousios apparentemente
repugnantes á cultivação, uns apoz outros, vão-se cobrindo de verdura no
estio com bacelladas novas; a vide invade as charnecas como o _pioneer_
da America invade os desertos; as solidões do Alemtejo, que de memoria
de homens ainda vivos não produziam vinho para o consumo dos seus raros
habitantes, exporta hoje centenares de pipas d'este producto. E todavia,
se exceptuarmos as lavouras de esgraminha dos terrenos já cultivados que
vão converter-se em vinhedos, qual é, no nosso actual systema de
viticultura, a machina que se emprega na plantação e subsequentes
amanhos da vinha? O braço do homem; exclusivamente o braço do homem.
Como, porém, conciliar este facto, que todos podem observar, que se
realisa quasi por toda a parte, com essa falta de obreiros, com esses
salarios monstruosos, impossiveis, que devoram a agricultura e de que é
culpado o Brazil? Dir-se-hia que grandes, medianos e pequenos
proprietarios se ligaram e ajuramentaram para um vasto suicidio
economico, e que, convertendo o vidonho em alliado da America, a ajudam
a cavar a ruina d'elles proprios e dos cultivadores de cereaes.

Felizmente não é assim. A vinha cultivada com mais esmero ha-de
contribuir para que a emigração diminua, trazendo não só a elevação dos
salarios, como a sua melhor distribuição. Com os amanhos reiterados de
uma cultura habil, e com um fabrico esmerado e cuidadosa conservação do
producto, que devem abrir aos nossos vinhos de pasto os mercados da
Europa, o trabalhador dos districtos vinhateiros, que são quasi todos os
do reino, evitará em grande parte as ferias que a penuria acompanha, e
que o fazem acceitar contractos muitas vezes leoninos, mas que lhe
promettem permanencia no trabalho, embora em regiões apartadas. É o que
a lavoura de cereaes, quer biennal, quer triennal, sobretudo como ella é
entre nós, não pode prometter-lhe. Afóra as sachas e colheitas do milho,
as mondas (quando se monda) e as ceifas dos cereaes colmiferos, ella
exige só o serviço de abegoaria, e a elevação, as vezes exaggerada, dos
salarios que produz não poderá nunca melhorar a condição do jornaleiro.

Creio que nenhuma pessoa medianamente versada n'estes assumptos porá em
duvida a superioridade da agricultura de França comparada com a de
Portugal. E todavia, um dos agronomos mais distinctos d'aquelle paiz,
Leconteux, ainda ha oito annos mantinha, na edição que então publicava
do seu notavel livro sobre os melhoramentos agricolas, uma passagem que
peço licença a v. ex.^a para transcrever. Depois de se referir á rotação
triennal, que ainda prepondera largamente em França, embora alli se
estribe no alqueive de primavera e estio (o que nem sempre entre nós
succede) o redactor principal do _Jornal de Agricultura Practica_
prosegue: «É verdade que, por beneficio da folha de alqueive, a rotação
triennal exclusiva conserva illesa a boa ordem no serviço das
apeiragens; mas pode dizer-se o mesmo em relação ao trabalho braçal? De
modo nenhum. Durante os trez mezes de ceifas e de gadanhar os fenos, é
avultado o numero de trabalhadores de que a lavoura carece. A estas
fainas, porém, seguem-se nove mezes feriados para os numerosos obreiros
que o lavrador chamou ás colheitas. Reduz-se tudo a ficarem na lavoura
alguns jornaleiros por eirantes. Mas que succederá á multidão dos
ceifeiros? Tem de ir buscar vida, uns na vinhataria, outros nos cortes
de lenha e madeira, outros nas suas fazendinhas. Mas se nem todos tem
estas saidas, o que succederá aos que não as tiverem? Perguntem á turba
de obreiros que annualmente abandonam o campo para se metterem nas
cidades, e terão de confessar que o amor do incognito não é o unico
motor de taes desvios. Movem-os sobretudo o medo do _não-ha-que-fazer_
nos trabalhos ruraes e o legitimo desejo de ganhar os salarios mais
elevados e mais regulares, que subministram os estabelecimentos de
industria fabril e as officinas e obras publicas. Que não estejam, pois,
todos os dias a fallar aos jornaleíros ruraes das venturas da vida
rustica. Remontem dos effeitos ás causas e verão que o systema triennal
com folha de pousio é um dos primeiros e mais poderosos causadores de se
ermarem os campos[4].»

Que se reflicta sobre estas ponderações de um homem competentissimo e
appliquem-se a Portugal. As nossas officinas, arsenaes e obras do Estado
são nimiamente restrictas comparadas com as de França, ainda dada a
differença entre um grande e um pequeno paiz; e na industria fabril
maior é a desproporção. Não podem por isso as cidades, os grandes
centros de população, absorver a torrente de trabalhadores, que um
systema errado de cultura arvense suscita e attrae para depois os
repellir. Assim, é a propria indole da agricultura, o afferro
intransigente do lavrador a antigas praxes, que facilita a tarefa dos
encarregados de induzir os obreiros a emigrarem. O cultivador queixa-se
da America: mas quem sabe se a Providencia deu ao Brazil o destino de
ser para comnosco um aspero missionario do progresso?

Ha um livro bem conhecido de v. ex.^a (porque interveiu mais ou menos na
sua publicação), cujo conteudo lança viva luz sobre alguns pontos d'esta
grave e complexa questão, postoque não os illumine todos por conter
apenas os resultados de trabalhos ainda incompletos. Fallo do volume que
tem por titulo _Primeiro inquerito parlamentar sobre a emigração_. É
obra de uma commissão da camara dos deputados e faz v. ex.^a parte
d'ella. Os documentos annexos ao relatorio são altamente instructivos.
Tem a primazia entre elles as informações de pessoas collocadas em
situação official, ou habilitadas por experiencia e estudo para tractar
a materia. Entre os documentos d'essa especie sobresaem pela sua
importancia o informe do sr. deputado Candido de Moraes relativo á
emigração dos Açores, o do dr. Bernardino de Almeida, obtido por
intervenção do nosso consulado no Rio, o do consul portuguez de Boston,
e sobretudo o do sr. Taibner de Moraes, secretario do governo civil do
Porto. Posso divergir de qualquer d'elles no que respeita a certas
doutrinas e a certos alvitres para obstar á emigração: o que não posso é
recusar a seus auctores o conhecimento dos factos e o estudo reflectido
d'esses factos. D'estes ha um em que todos concordam quando indagam as
causas capitaes da emigração. É elle a insufficiencia dos salarios entre
nós. Quanto aos Açores são notaveis as observações do sr. Candido de
Moraes. «São, diz elle, geralmente pequenos os salarios dos operarios, e
de todos elles são os trabalhadores os que menores attingem, e por isso
são miseraveis a sua alimentação e vestuario... Os trabalhadores
agricolas tiram do salario escassos meios para a sua sustentação e das
familias, por pouco numerosas que ellas sejam, e por isso procuram pelo
arrendamento de terras obter esses meios. D'aqui nasce uma concorrencia
irreflectida e altamente nociva para esses desgraçados... Succede por
isso um grande numero de vezes que esses infelizes completam a sua ruina
quando julgam terem alcançado os meios de melhorar a sua condição; e
completamente exhaustos, sem poderem satisfazer aos encargos que
tomaram, vão acompanhados das familias procurar no Brazil os meios que o
seu trabalhar incessante não podia proporcionar-lhes na patria.
Condemnar esses homens que fogem á miseria, porque não tem a coragem de
se deixar morrer á fome no paiz em que nasceram, parece-me injusto:
tolher-lhes a liberdade de sair da terra onde não acham os recursos
indispensaveis para subsistirem seria, mais do que injusto, cruel[5].»

Um illustre escriptor nosso, o sr. Mendes Leal, tinha, no jornal _A
America_, reputado principal origem da emigração a miseria, attribuindo
esta a diversas causas que o dr. Bernardino de Almeida em grande parte
rejeita. Admitte, todavia, e confessa, que a emigração dos trabalhadores
se explica tambem pela penuria, e na sua opinião a penuria procede da
insufficiente remuneração do trabalho[6]. O consul portuguez de Boston
explica egualmente a nossa emigração para os Estados Unidos pela
convicção que o obreiro tem de encontrar alli a remuneração condigna do
seu trabalho, que não acha no proprio paiz[7]. No informe do sr.
Taibner, onde abundam considerações graves, e por vezes tão verdadeiras
como profundas, reconhecem-se francamente as estreitezas que opprimem os
operarios ruraes. «Apezar do augmento sensivel dos salarios, pondera o
digno funccionario, pode dizer-se que não são elles sufficientemente
ente remuneradores do trabalho, e não evitam a emigração, a que dá causa
o desejo de melhorar de fortuna[8].

Não será esta mesma opinião a que está no amago do questionario que v.
ex.^a me remetteu? Como, sem isso, explicar o quesito 29? Para este se
entender racionalmente, é preciso presuppor a sobejidão de obreiros
ruraes nas provincias do norte, e por consequencia o seu inevitavel
consectario--a insufficiencia dos salarios. Ahi não se indaga se convirá
forcejar para que elles se conservem no seu districto ou provincia
natal: pedem-se desde logo alvitres para os attrair ao sul e fixar no
Alemtejo. Se a escacez de braços e conseguintemente a excessiva elevação
dos jornaes fossem, como se diz, geraes em todo o reino, com esse
movimento de translação a agricultura do norte ficaria completameate
arruinada.

Temos, pois, um conjuncto de opiniões respeitaveis sobre a
insufficiencia dos salarios ruraes. A estas opiniões vem a estatistica
dar plena confirmação, revelando com a irresistivel eloquencia dos
algarismos a verdadeira situação do jornaleiro, tanto em relação aos
seus recursos como ás suas necessidades. Incompletas por abrangerem só
uma parte dos districtos do reino, deficientes por omissões e falta de
especificação nos elementos subministrados por alguns municipios, os
quadros estatisticos addicionados ao _Inquerito parlamentar_, ainda
assim são bastante numerosos nas suas varias especies para poderem
deduzir-se d'elles conclusões geraes. Os mappas do valor dos generos e
do preço dos salarios durante o decennio de 1862 a 1871, communicados
pelas camaras de diversos districtos, suscitam reflexões e calculos que
peço licença para submetter á apreciação de v. ex.^a.

Já notei, e, conforme creio, provei, que avaliar a sufficiencia ou
insufficiencia da retribuição do jornaleiro pela media annual do salario
é um methodo illusorio applicado á questão da emigração. Escuso de
repetir o que disse, porque me parece de facil intuição. Entretanto
acceitarei a fórmula; porque, se, partindo d'essa media, ainda se provar
que a insufficiencia predomina em larga escala, desapparecerá a idéa de
que a elevação dos salarios e a falta de braços são as causas
deprimentes da agricultura, idéa por duas maneiras fatal, porque afasta
os agricultores de observarem e combaterem as causas verdadeiras do mal,
e porque ha-de ter uma pessima influencia nas deliberações que se
tomarem para destruir, não digo já a emigração em geral, mas o que
n'ella é, por assim me exprimir, artificial, e que não faz senão
conduzir a mais infeliz situação o proletario rural, já de sobra
desgraçado.

O districto do Porto é aquelle onde, mais do que em outro qualquer, a
emigração tem tido notavel incremento. Nos seis annos de 1866 a 1871, de
37:444 individuos que abandonaram o paiz pertenciam-lhe 16:450. N'um
periodo de dez annos, de 1862 a 1871, os salarios subiram n'aquelle
districto mais de 25 por cento; mas as consequencias d'este facto foram
attenuadas e talvez destruidas por uma circumstancia assás grave. Os
generos que predominam na alimentação do trabalhador do campo são o
milho, o feijão, e a batata. Ora dos 17 concelhos do districto, em 14
subiu o preço do milho, em 11 o do feijão, e em 7 o da batata. Na minha
opinião, o phenomeno não proveiu da diminuição dos productos: longe
d'isso. Proveiu da sempre crescente abundancia da moeda, devida
principalmente ao regresso á patria de avultado numero dos _nossos
brazileiros_. Seja, porém, esta ou aquella a causa, signifique a alta
dos generos o que significar, o que é certo é que ella diminuiu, se não
destruiu, o effeito da elevação dos salarios. Por outra parte, essa
elevação dos jornaes prova antes a sua pequenez em 1862 do que a sua
exaggeração em 1871; porque n'este ultimo anno a media d'elles em 8 dos
17 concelhos não excedeu a 200 réis, e dos restantes, apenas no do Porto
passou de 280 réis.

Os districtos onde, afóra o do Porto, a emigração é importante, são os
de Aveiro, Braga, Vianna, Vizeu, Villa Real e Coimbra. A commissão
obteve notas estatisticas sobre os preços dos generos e dos salarios nos
districtos de Aveiro, Vianna e Coimbra, além de outros (Lisboa, Leiria,
Bragança e Castello Branco), cuja quota de emigração é insignificante.
No de Aveiro, onde o numero de emigrados é o mais avultado depois do do
Porto, a comparação entre os preços dos principaes generos alimenticios
e os salarios ainda, porventura, é mais instructiva. Entre o primeiro e
o ultimo anno da decada de 1862 a 1871 o custo do milho augmentou em 9
concelhos e diminuiu em 6, o do feijão augmentou em 12 e diminuiu em 3,
o da batata augmentou em 8 e diminuiu em 5. Como, pois, considerar as
pequenas elevações dos jornaes, em geral, senão como compensação da
maior carestia das principaes subsistencias? Em 1871 esses jornaes
augmentados sobem, na verdade, um pouco acima de 200 réis em 7
concelhos; mas são de 200 réis e ainda de menos em 9. Tal é a enormidade
dos salarios que arruinam a agricultura! A estatistica do districto de
Vianna é assás deficiente, sobretudo em relação aos jornaes; mas vê-se
que alli o preço do milho e feijão subiu em 8 concelhos, diminuindo
apenas em um ou dois. Se houve elevação nos salarios, o facto explica-se
pela alta nos generos. No que respeita ao districto de Coimbra, as
informações são menos incompletas, posto que ainda insufficientes quanto
aos salarios ruraes. Ahi a proporção entre o accrescimo e a reducção no
preço dos generos é a favor d'esta; mas os salarios parece
conservarem-se immoveis, conforme as notas transmittidas pelas camaras
municipaes. Dá-se até a circumstancia de diminuirem nos concelhos de
Coimbra, Figueira e Cantanhede. Reduzidos, porém, ou estacionarios, por
todo o districto, á excepção de um concelho, foram em 1871 de 200 réis e
ainda de menos. O trabalho estacionou ou embarateceu como os generos.

Qual é o resumo e substancia d'estas observações? É que, de 1862 a 1871,
os salarios cujo augmento os fez ultrapassar a meta de 200 réis estão
para os que se mantiveram n'esse limite, ou nem sequer o attingiram, na
razão de 18 para 36, ao passo que o accrescimo do preço das principaes
subsistencias do operario rural está para a diminuição do custo d'essas
mesmas subsistencias na razão de 98 para 50. Manifesta-se, pois, uma
forte tendencia do salario para se conservar dentro d'aquelle limite, e
ao mesmo tempo uma não menos forte tendencia para a alta nos principaes
generos alimenticios do trabalhador. Deixo ao discernimento de v. ex.^a
tirar as illações que naturalmente dimanam d'estes factos.

Encontra-se nos mappas do preço do trabalho rural de alguns concelhos
dos districtos de Coimbra e de Castello Branco uma especie valiosa para
apreciar bem a situação economica do proletariado do campo. É pena que
no grande numero de concelhos em que, além d'esses, de certo existe o
facto, não o mencionassem. Seriam mais completas e indubitaveis as
reflexões que elle suscita. Refiro-me ás duas fórmas simultaneas da
retribuição do trabalho--jornal _a sêcco_, e jornal _com comida_. A
differença entre os dois jornaes representa o valor do sustento diario
do obreiro e corresponde forçosamente á realidade. Essa differença é
claro que resulta de um accordo livre entre o patrão e o operario, cada
um dos quaes poderia preferir a solução integral a dinheiro, se
porventura se reputasse lesado na avaliação do sustento. Esta é,
portanto, razoavel. Das notas de seis concelhos em que se menciona o
facto vé-se que, em dois, a manutenção do obreiro é computada em mais de
metade do jornal todo a dinheiro, n'um em menos, e em tres exactamente
na metade. Adoptarei essa metade para base do calculo, applicando este a
uma hypothese vulgarissima entre as familias rusticas--a de um obreiro
com mulher e dois ou tres filhos de um até dez annos de idade.
Supponhamos que a mulher, cumpridas as obrigações domesticas, pode ainda
trabalhar fóra os dias correspondentes aos dias uteis de um semestre,
ganhando metade do salario do marido. Supponhamos tambem que n'esses
seis concelhos (Pampilhosa, Oliveira do Hospital, Miranda do Corvo,
Goes, Fundão, Oleiros) foram os jornaes, em 1871, de 200 réis, embora só
o fossem no de Goes, e inferiores em todos os demais. Supponhamos ainda
que a alimentação da mulher e de dois ou tres filhos apenas equivalesse
á do jornaleiro. As condições da hypothese são o menos favoraveis que é
possivel ao que pretendo demonstrar. Pois bem: apezar d'isso, com taes
elementos, um calculo simples dá-nos em resultado a expressão de uma
verdade bem triste.


Salario de 200 réis em 365 dias      73$000

Dito de 100 réis em 180 dias         18$000
                                  ------------
                                     91$000

Deduzindo:

Domingos e dias festivos; 60
para o marido e 30 para a
mulher ou 12$000 + 3$000
réis. Dias de interrupção de
trabalho por temporaes e chuvas
copiosas, calculados no decurso
do anno em 30 para o
marido e 15 para a mulher
ou 6$000 + 1$00 réis                 22$500
                                  ------------

Rendimento annual da familia                     68$500

Media da alimentação do obreiro
em 365 dias                          36$500

Dita da mulher e filhos              36$500
                                  ------------
                                                 73$00
                                              ------------
Deficit                                           4$500


E as pobres roupas e trajos? E a pobrissima habitação? E os impostos em
dinheiro ou trabalho? E a falta de serviços? E a doença? Que o
jornaleiro não tenha um unico vicio; que não gaste mal um ceitil. Terá
por sorte a miseria.

Não sei se me illudo sobre a exacção d'este calculo. Se é exacto, deixo
a v. ex.^a deduzir d'elle as conclusões que lhe dictar a sua alta
intelligencia.


IV

*Val-de-Lobos, julho de 1874.*


Ill.^{mo} e ex.^{mo} sr.--Creio que já n'uma carta antecedente confessei
que a nossa agricultura lucta ás vezes com difficuldades e embaraços,
como, mais ou menos, luctam todas as industrias e todas as profissões.
Existencias que sem obstaculos, sem revezes, deslisem serenas na vida
são raras excepções. A lucta é o progresso: a resistencia das cousas ou
dos homens o incentivo dos supremos esforços: os erros que custam caros
os melhores mestres. N'este ultimo ponto a difficuldade está em acceitar
as lições. Somos propensos a attribuir aos outros as culpas proprias, e
é por isso que tantas vezes se inutiliza o proveito que poderiamos tirar
dos nossos desacertos.

As causas que obstam ao desenvolvimento agricola e á prosperidade a que
esta industria das industrias poderia ter-se elevado são complexas e
variadas, sendo talvez a principal a sua propria indole e a direcção que
tem seguido. É por isso que não posso ver na reducção do salario o
remedio para evitar os seus queixumes. Pelo contrario, como symptoma, a
lenta elevação dos jornaes, a immobilidade, ou o descenso d'elles são
indicios da lentidão do seu caminhar, do seu estacionamento, ou da sua
decadencia.

As reformas da dictadura de 1832 a 1834 impelliram energicamente a
industria agricola na senda do progresso, desonerando-a de multiplicados
vexames, vestigios de eras barbaras e obstaculo insuperavel á sua
prosperidade. Por este lado a revolução foi longe; mas a revolução não
podia transformar uma classe numerosa de agricultores atrazados em
homens que soubessem aproveitar practica e racionalmente os effeitos das
reformas. Assim, o progresso foi-se manifestando nos districtos do sul,
e em grande parte nos do norte, quasi exclusivamente na extensão da
cultura e pouquissimo na intensidade. Tem-se arroteado charnecas,
lavrado velhos pouzios, convertido pantanos em arrozaes, multiplicado as
vinhas e olivedos, desbastado e educado os chaparraes, dilatado por
bravios as roças e queimadas. Forcejamos por cobrir vastas áreas de
terreno de sulcos de arado sem perguntarmos a nós mesmos se pozemos
todos os meios para ser remunerado o nosso trabalho. N'um paiz
mediocremente cerealifero, ao menos com relação ás praganas, esgotamos
os terrenos ferteis com tristes rotações biennaes e triennaes, em que
raramente figuram as hervas de fouce. Pedimos a gandras, a encostas, a
chans, comparativamente fracas e pobres, as mais das vezes sem
alqueives, quasi sempre sem adubos, a maior porção dos cereaes
colmiferos. A cultura alterna é entre nós excepção rara, até porque os
terrenos que a admittem não são vulgares em Portugal. No sul do reino, o
prado artificial, que poderia tornar altamente progressiva a rotação
biennal, ainda não passou de uma curiosidade. Os nossos rios e ribeiras
vão direitos ao mar durante o anno inteiro, embora atravessem planícies
e valles uberrimos. Ahi a agua e o sol do estio subministrariam alimento
a gados numerosos, e conseguintemente produziriam massas avultadissimas
d'estrumes, cujos sobejos iriam gradualmente fertilisando os terrenos
pobres adjacentes, onde tantas vezes o lavrador tem de contentar-se com
tres ou quatro sementes. As vastas charcas, que suppririam a
insufficiencia das aguas correntias e a cuja construcção tão favoravel é
o accidentado do nosso solo, quem pensa n'ellas? E todavia, com a
cultura racional em vez da tradicional, metade dos terrenos fundeiros
produziriam o dobro ou mais, preparados para a irrigação, do que produz
o todo privado d'ella. Por outro lado, os nossos instrumentos agrarios
são em geral os mesmos que eram ha meio seculo, e os vehiculos rusticos
conservam-se, como os instrumentos, em hostilidade permanente com as
leis da mechanica. O que estes e dezenas de factos analogos influem no
curso dos productos agricolas conhecem-n'o pela reflexão e pela
experiencia os agricultores que sabem reflectir e experimentar. A outros
basta para explicar tudo a transitoria elevação do salario.

Costuma dizer-se que o poeta nasce. Em Portugal o que nasce é o
lavrador. A lavoura é profissão cujo tirocinio consiste em ser filho de
lavrador ou de proprietario rural. A sua divisa é o desdem do livro. O
livro é o supremo perigo da producção nacional. A praxe e a experiencia
não precisam de saber o que elle diz para o condemnarem. N'este genero
de industria a verdadeira superioridade está em não a reconhecer
n'aquelles que pelos factos provam que nos levam vantagem. O
jurisconsulto pode accommodar aos costumes, ás tradições, aos habitos
nacionaes a luz da sciencia que vem de fóra; o economista fazer selecção
nas doutrinas alheias de tudo quanto seja util ao desenvolvimento da
riqueza publica; o medico modificar pelas condições climatericas do paiz
os resultados do estudo e experiencia estranhos; o militar ir
apropriando á defesa do Estado o que nos progressos modernos da arte da
guerra se coaduna com a nossa indole e recursos, com as nossas aptidões,
com a configuração do nosso solo. Assim no mais, salvo em agricultura e
em economia rural. N'isto, basta-nos affirmar que ha muitas cousas em
que os estrangeiros teriam que aprender comnosco; que disfructamos um
clima abençoado, que isto é o jardim da Europa, e outros apophtegmas
egualmente sisudos e demonstrados.

Este horror ao livro não tem sido por certo menos fatal do que o
enthusiasmo cego por elle, achaque de que não pode negar-se que adoece
mais de um espirito illustrado. Resultam de similhante horror
consequencias funestas, mais funestas porque sem comparação mais geraes,
do que essas que derivam do fanatismo pela generalisação, pelas theorias
scientificas sem as restricções da experiencia. A agricultura, como as
outras industrias, talvez mais do que as outras, exige a actividade
physica, o movimento, a vida externa; mas, assim como os que se dedicam
ás industrias fabris sabem furtar ás lidas materiaes algumas horas para
estudar as questões technicas ou economicas que possam servir ao
progresso d'ellas ou contrariar a sua prosperidade, do mesmo modo o
cultivador precisa de dedicar quaesquer ocios a inquirir o que ha que
aproveitar na observação e no estudo alheios, e a habilitar-se para
apreciar o que na organisação economica da sociedade será vantajoso ou
nocivo aos interesses da sua classe. A incompetencia do productor rural
n'estes assumptos pode em certos casos ser para elle mais desastrosa que
todas as emigrações imaginaveis de proletarios. O lavrador portuguez,
por exemplo, é, geralmente fallando, proteccionista. Porque? Porque
ignora que os seus verdadeiros interesses estão ligados á liberdade
commercial. Não sabe referir ao seu paiz as questões que a tal respeito
se ventilam lá fóra, e nem sequer sabe que existem. Não sabe, nem quer
saber. Applaude candidamente o systema protector, e faz mais: sollicita
com affinco, talvez com colera, a manutenção de um systema, que apenas
tem o defeito de lhe liberalisar ampla protecção quando não a precisa, e
de lh'a retirar, ao murmurio das populações urbanas, quando carece
d'ella. Entretanto, á boa sombra d'esse admiravel regimen, tem de prover
ás necessidades da vida, ao vestuario, aos objectos de serviço
domestico, á alfaia rural, e, até ás vezes, a uma parte do alimento, por
preços artificialmente elevados. É até certo ponto a protecção que
explica a estagnação dos seus productos e a insufficiencia dos seus
recursos. Não pára, todavia, no bom caminho o _homem practico_, firme em
detestar o livro e as estrangeirices. No fim de trinta annos de
repugnancias, já na verdade hesita em condemnar absolutamente o caminho
de ferro, e começa a afrouxar nas suas sympathias pela azinhaga real, na
sua commiseração do almocreve, e a tolerar, e, no inverno, quasi a
bemdizer, a invenção de Mac-Adam. Não o faz, porém, sem prudentes
reservas, porque sobretudo é homem practico. No verão lança olhos longos
para a velha calçada do engenheiro juiz de fóra, e, se pode,
aproveita-a. As novas estradas são quasi sempre mais extensas pela mania
de evitar as ladeiras, e o chão batido de pedra britada esquenta os pés
do gado. Nada chega a uma boa calçada. Os seus carros aguentam-se bem
com as sobrerodas e os seus bois com as ladeiras, além de que seu pai e
seu avô sempre por alli passaram e não morreram por isso. Como ha-de
elle deixar, de conservar certo resentimento contra o rasto legal de
sete centimetros que lhe tolhe o prazer de margear o leito das novas
vias com o gume das rodas do carro de eixo movel, que ás vezes se põe a
arder com a _doçura_ dos attritos? A simples substituição do vehiculo do
norte e da Estremadura pela carreta alemtejana daria, na verdade, uma
differença no menor custo dos transportes acima de dez por cento, com a
mesma força de tracção. Não será, porém, mais simples obter essa
economia na reducção do salario dos jornaleiros?

Quantas ponderações equivalentes, ou pouco melhores do que estas, não
tenho eu ouvido a cultivadores, que em outros assumptos de interesse
privado, e até em certas questões geraes de agricultura são cordatos e
razoaveis! Dos seus contratempos e desastres nunca elles são os motores.
Se absolvem a natureza, no que não são faceis, as culpas vão
impreterivelmente cair sobre a sociedade. De certo nas instituições, nas
leis, nos regulamentos administrativos, na percepção e distribuição dos
impostos, ha erros, vexames, desegualdades, desvios, nocivos aos
agricultores; mas tambem no modo de pensar da maioria d'elles ha erros,
preoccupações, ignorancias, teimosias, não menos deploraveis nos seus
effeitos, sem contar com os que procedem de certos factos, não de ordem
economica, mas de ordem moral, imputaveis ao cultivador e de que me
abstenho de fallar.

Na população rural predomina um instincto ou como queiram chamar-lhe,
que no proletario será o mais poderoso elemento de bem-estar e de
regeneração moral para elle, e de paz e de progresso para a sociedade,
se esta souber favorecel-o e dirigil-o; mas que no agricultor mais ou
menos abastado é vicio ruinoso e difficil de corrigir, porque a
intelligencia obscurecida do vicioso o pinta a si proprio como
manifestação de providencias de economia, de amor ao trabalho, quasi de
virtude. Fallo d'essa affeição ardente, inquieta, tenaz, á propriedade
de raiz, á terra, que se mantém com o mesmo vigor no coração do homem do
campo desde a mocidade até ao ultimo dia, até a ultima hora da vida, e
que, apenas satisfeita, logo recrudesce. De todas as causas de ruina dos
agricultores nenhuma reputo mais desastrosa. É ella que de ordinario
deita a perder o lavrador laborioso, poupado, mas pouco reflexivo e
menos instruido. O que sobretudo escaceia ao cultivador portuguez é
cabedal para o grangeio. Por via de regra, a terra é mais forte do que o
seu cultor, e tarde ou cedo esmaga-o. Todavia elle acredita que é acto
meritorio, acto de homem que _faz casa_, converter em terras o capital
de que ha-de precisar para custeios, sempre incertos no seu _quantum_.
Ainda quando elle fosse de sobra, deveria applical-o a melhorar a alfaia
agricola, a adubos, a limpeza de arvoredos, a esgraminhar, a desviar
enxurros dos valles e a desobstruir ribeiros, a vallagens e esgotos,
etc. Mas o proprietario rural é radicalmente anguloso, e desadora com
isso. Estremece pela fórma circular. _Arredonda-se_ de continuo, podendo
e não podendo. Não é raro, até, vêl-o levantar dinheiro a 8, 10 ou mais
por cento para adquirir um campo que lhe dará o equivalente de uma renda
de 4 ou 5, se não menos. Se a cousa fazia tanta conta! Se endireitava a
lavoura! Se lhe proporcionava tão boa serventia! Havia de deixar que o
arrematasse outro confinante que cordealmente detesta? Concluiu-se o
negocio: os amanhos, que já se não faziam bem, são cada vez peiores, e
na producção apparece o castigo do erro. O capital loucamente amortisado
é supprido pelo que, em momentos de apuro, se vai buscar a 12, 15 ou 18,
por cento. Vendem-se os generos na baixa; vendem-se fructos ainda
pendentes; atrazam-se as soldadas, e a disciplina entre os creados
acaba. O gado anda magro, e o arado pára no rego emquanto se fuma ou
conversa. O agricultor nada d'isto vê, porque lhe empanam a vista as
soldadas em debito. A ruina tarda mais ou menos annos, espera ás vezes
pela morte do lavrador, mas vem quasi sempre, implacavel, fatal. Scismam
todos como um homem laborioso, economico, que em summa _fez casa_,
chegou, depois de _se arredondar_, a semelhantes termos. Os advertidos
começam então a lembrar-se das ruins searas que elle tivera desde tantos
annos, da pouca e má producção das suas vinhas e olivedos, da morrinha
do seu rebanho, das basseiras e ferrujões que lhe levaram dois ou tres
bois de trabalho. Mas advertem alguns, ainda mais experientes e
circumspectos, que essa é a historia de varios outros lavradores dos
sitios, incansaveis como elle em fazer casa. O facto tornou-se vulgar
desde que se não paga o dizimo a Deus, e que o reino está comido de
pedreiros livres. Depois, os tributos devoram tudo. Ha quem tenha feito
a conta. Paga mais a terra hoje do que nas epochas douradas dos quartos,
das jugadas, dos relegos, das coutadas, dos dizimos, das milicias, das
ordenanças, acogulado tudo com a decima d'el-rei nosso senhor.
Obviamente as terras produzem agora menos e as estações mudaram. Tem
muitas vezes notado estas cousas o reverendo prior da freguezia e o
fidalgo do logar, ancião respeitavel, que foi capitão-mór, e commendador
quando valia a pena de o ser. Lembram-se ambos com saudade dos bons
tempos em que o lavrador era completamente feliz... nas eclogas da
poesia classica.

D'essa insaciabilidade de terra resulta ainda outro mal não menos
grave--a dispersão do trabalho rural--causa de um sem numero de despesas
improductivas. Ha proprietarios que se resignam ao anguloso quando se
lhes torna impossivel o arredondarem-se; mas resta-lhes outro expediente
para se arruinarem. Como se tracta de satisfazer um vicio, os pretextos
não faltam. A acquisição de um campo, de uma belga de terra, de um
olival, de uma vinha, de um brejo, de um talho de matto, seja, em summa,
do que fôr, embora a meia ou a uma legua do centro da lavoura, é sempre
para os taes um negocio d'aquelles que raras vezes se fazem na vida.
Como elles esperam rir-se dos vendedores! Estes negocios raros, aliás
tão vulgares, trazem por via de regra mais damnos ao agricultor do que
todas as altas dos salarios. V. ex.^a conhece decerto o excellente livro
de Fermin Caballero, sobre a povoação rural de Hespanha, traduzido pelo
dr. Deslandes e publicado em Lisboa em 1872. É provavel que não sejam
muitos os exemplares vendidos. E, todavia, este notavel escripto deveria
ser tão lido e meditado (não digo cegamente adoptadas todas as suas
doutrinas) pelos nossos cultivadores pouco instruidos, como o admiravel
tractadinho de Matthieu de Dombasle sobre os acertos e revezes nos
melhoramentos agricolas o devera ser pelos turbulentos e insoffridos
reformadores das nossas velhas praxes, que tenho a fraqueza de não
suppor todas más. Infelizmente para o lavrador, que disputa aos chins
extremos de devoção pelo culto dos antepassados, a leitura de um livro
que contradiz as tradições avitas seria profanação. Que Fermin Caballero
faça apalpar aos seus hespanhoes as perdas enormes das lavouras
retalhadas e dispersas, cousas são de castelhanos: o cultivador
portuguez continuará todos os dias, a todas as horas e por toda a parte,
a fazer os taes raros negocios, que mais tarde ou mais cedo tem de lhe
inspirar serios queixumes contra os salarios devoradores, devoradores
sobretudo quando são pagos com dinheiro de 12 a 18 por cento.

Diz-se que a escola é uma grande necessidade para o rustico proletario.
Deve ser assim. Affirmam-n'o os entendidos das grandes cidades. Por ora,
suspeito que tem outras mais urgentes--a de melhor e mais abundante
alimento, a de mais roupa, e a de mais reparada habitação. A quem me
parece que aproveitaria desde já a escola é á _burguezia do campo_; mas
a escola como eu a concebo, a escola que ensina mais alguma cousa do que
a manear a ferramenta do estudo--ler e escrever,--a escola em que pouco
se tem pensado. Seria uma attenuação prodigiosa da suppressão dos
dizimos, da existencia do pedreiro livre, e até do fatal descobrimento
da America.

E é n'um paiz onde fallece a instruccão ao commum dos agricultores,
falta que lhes mostra do invez as questões economicas; que lhes mantém
as tendencias para immobilisarem todos os seus recursos pecuniarios,
desequilibrando de continuo os dois instrumentos essenciaes da producção
remuneradora--a terra e o capital; é n'este paiz que não existem
instituições de credito agricola, d'aquelle credito que, bem organisado,
poderia supprir com dinheiro barato a insufficiencia tão vulgar como
ruinosa dos capitaes de grangeio, sem que todavia favorecesse o vicio da
terra não menos vulgar, nem menos ruinoso! Pensámos nos proprietarios,
creando o credito hypothecario; não pensámos na industria rural,
esquecendo o credito agricola. Busca-se remover o perigo de que o dono
de tal predio, que se chama hoje Francisco, se chame ámanhã Antonio,
facto que, aliás, o credito hypothecario geralmente adia, mas raramente
impede, e que importa mediocremente á riqueza publica, se é que antes
não a contraría. Mas que o lavrador, rendeiro ou proprietario, ou
rendeiro e proprietario a um tempo, que exerce um mister indispensavel e
que não pode nem sabe exercer outro, se arruine atirando-se á voragem
dos juros excessivos para effectuar em epochas precisas,
intransgressiveis, os amanhos annuaes; que, arruinado, abandone a
profissão; que se esterilise assim uma actividade productiva; que esta
se converta em patriotismo eleitoral, e no estudo diurno e nocturno do
elenco dos cargos que tem a prover o Estado ou o municipio; eis do que
não cogitam os poderes publicos. É que o pretor não cura das cousas
minimas, conforme o velho brocardo da jurisprudencia romana.

Assim no mais. Durante quarenta annos, por exemplo, de governo
representativo não tem sido possivel encontrar um meio sério e efficaz
de manter a segurança pessoal do cultivador e o goso completo e
exclusivo do fructo do seu trabalho. Pode dizer-se que não existe
policia rural. D'aqui a necessidade nos grandes predios rusticos, e
ainda nos medianos, da existencia de um ou mais guardas particulares,
que desempenhem o serviço de segurança pessoal e real, que parece devera
ser a primeira applicação dos tributos que a terra paga. São gravissimas
as considerações de ordem moral e social que esse facto suscita, mas
limitar-me-hei a uma unica observação de ordem puramente economica.

Suppondo de 60$000 réis o vencimento annual de um guarda, entre
comedorias e soldada, se essa entidade viesse a tornar-se inutil e
desapparecesse, elevando-se ao mesmo tempo a media dos jornaes de 200 a
300 réis, o cultivador poderia pagar por este ultimo preço duzentos dias
de trabalho, sem que entre a sua receita e despesa houvesse alteração no
saldo.

Quiz, meu amigo, lembrar-lhe alguns exemplos dos obstaculos graves, mais
positivos que a alta de salarios attribuida á emigração, que embaraçam o
movimento da nossa agricultura e que attenuam a acção das causas que
deveriam ter-lhe dado maior incremento. Não é possivel nos limites de
uma carta considerar miudamente todos esses obstaculos e apreciar os
seus effeitos. Temos um systema de organisação militar analogo ao das
grandes nações, expressão de uma idéa aggressiva, e que inutilisa de
contínuo e aos milhares os braços mais robustos da população rural, em
vez do systema proprio dos pequenos estados, adequado unicamente á sua
defesa: temos os impostos municipaes applicados quasi exclusivamente aos
commodos da parte urbana dos concelhos, com esquecimento da aldeia e da
herdade ou casal solitarios: temos o _absenteismo_, posto que menos
frequente e esgottador do que o foi na Irlanda, mas temos além d'isso o
semi-absenteismo--a lavoura feita de longe--, com o que se tenta
conciliar a gloriola ou a necessidade de ser cultivador e as diversões
que só se encontram nos grandes centros de população: temos os pastos
communs, que significam a negação de boas pastagens e de bons
afolhamentos: temos a frequentação exaggerada das feiras e mercados, uma
das paixões do lavrador, que na falta de motivos sérios inventa
pretextos para ir dispender alli o que não deve e muitas vezes o que não
pode, emquanto os creados, livres da vigilancia do amo, addicionam a
essas despesas os resultados do seu descuido e perguica, quando não da
sua maldade: temos a tauromachia e a lavoura com gado bravo, duas
barbarias que mutuamente se auxiliam e que roubam annualmente a uma
agricultura sensata grande porção dos nossos terrenos de alluvião, isto
é, dos nossos terrenos mais productivos: temos a falta das cadernetas de
serviço dos creados de soldadas, que aliás, dados a nossa indole e
costumes, talvez fossem inuteis; mas que, todavia, fora conveniente
experimentar, porque o creado rural, desleixado, ratoneiro, ou perverso
pode trazer grave dispendio ao amo e ser em certos casos a origem da sua
ruina: temos as _contas de sacco_ tão vulgares e tão desastrosas, quanto
seria impossivel para o lavrador mediano a contabilidade complexa,
inculcada em certos escriptos de economia rural, e só applicavel a
grandes emprezas agricolas. Sobre estes e outros factos analogos fora
facil escrever um livro, onde ficassem patentes as causas reaes e
profundas do insufficiente progresso da agricultura portugueza. Elle
provaria que o quinhão da responsabilidade que a similhante respeito
toca á emigração, é insignificante ou nullo. O que não é possivel, como
já disse, é metter a materia de um livro na estreiteza de uma carta.

Qual é a illacão a deduzir d'estas considerações e d'estes factos? De
certo v. ex.^a adivinha o alvo em que ponho a mira. É em separar a
questão da emigração das vantagens ou desvantagens da agricultura, ou
antes dos agricultores; é em nobilital-a, elevando-a á esphera das
questões de humanidade, de patriotismo, e de ordem social. Isto não
impedirá que os arbitrios, a que haja de recorrer-se para pôr barreiras
a esse triste exodo de milhares de infelizes, possam influir no augmento
da população rural, na sua melhor distribuição, e no accrescimo dos
productos agricolas. Imaginar, porém, que ha-de combater-se a emigração
forçada, que a miseria alimenta, conciliando a suppressão d'ella com a
reducção dos salarios ruraes, cuja insufficiencia resulta dos documentos
colligidos pela commissão de inquerito, afigura-se uma pretensão
insustentavel, pretensão que só servirá para tornar suspeitos e odiosos
áquelles mesmos que desejamos salvar os nossos sinceros esforços para
obter esse fim.

Nas subsequentes cartas verá v. ex.^a que firmemente creio na
possibilidade de se atinar com a solução do problema, uma vez que se
pense, não no proveito d'esta ou d'aquella classe, mas exclusivamente em
atalhar o mal.

_P.S._ Na conjunctura em que concluia esta carta, leio nos jornaes que a
emigração tem diminuido n'estes ultimos tempos de modo singular. Os
recentes symptomas do rapido desenvolvimento da riqueza publica explicam
facilmente o phenomeno. N'esta mesma conjunctura, porém, acabam de
voltar aqui varios trabalhadores das aldeias vizinhas angariados para as
ceifas no sul e oeste da Estremadura e no Alemtejo, os quaes asseveram
terem obtido altos jornaes, que chegaram a elevar-se nas immediações de
Lisboa a 640 réis. V. ex.^a tem mais á mão do que eu os meios de
verificar se é exacto este asserto. A sel-o, v. ex.^a não deixará de
inquirir d'aquelles a quem isso cabe, a razão porque, ao passo que a
emigração notavelmente diminue, o salario rural se eleva de um modo não
menos notavel. As explicações devem ser curiosas e altamente
instructivas para nós todos.


V

*Val-de-Lobos, setembro de 1874.*


Ill.^{mo} e ex.^{mo} sr.--Vimos, meu amigo, que o interesse d'uma classe
abastada, senão rica, e que por muitos titulos merece a consideração de
nós todos, não deve, apesar d'isso, influir na indole das providencias
destinadas a reter na terra natal o trabalhador do campo. Vimos
egualmente que para obstar á emigração não ha outro meio efficaz,
liberal e legitimo senão remover, até onde for possivel, a miseria que
afflige os proletarios ruraes. Todas as reflexões sobre os
inconvenientes do desterro voluntario; todas as narrativas tetricas
ácerca da sorte dos que os precederam n'aquelle caminho serão baldadas,
porque as refuta peremptoriamente o padecer actual.

Á commissão de inquerito, de que v. ex.^a faz ou fez parte, parece que o
principal instrumento para arredar o proletario das tendencias para a
emigração é a escola primaria obrigatoria. Entende a commissão que o
saber ler e escrever o habilitará para ouvir os conselhos da razão e
evitar os laços dos embaixadores. Sinto discordar da illustre commissão.
Assim como podem fallar, os embaixadores podem escrever. Não faltam
escriptos que celebrem as opulencias da America, e os recursos que a
actividade e o trabalho encontram alli. Saber ler e escrever não
equivale a saber discernir onde está a verdade--se n'esses escriptos, se
nos que cinzelam o reverso da medalha. Nem attinjo a razão porque os
conselhos verbaes das pessoas illustradas serão impotentes contra
instigações egualmente verbaes. A meu ver, o mais efficaz antidoto da
emigração, como de quasi todas as resoluções arriscadas, violentas,
irreflexivas, das multidões, é a modesta felicidade domestica obtida e
mantida pelo trabalho. O estar bem induz á circumspecção; afugenta-a o
estar mal. A condição preliminar, indispensavel, para o melhoramento
intellectual e moral das classes laboriosas é o seu melhoramento
material. Sem isso, todos os esforços, por mais sinceros e energicos que
sejam, para derramar a luz da instrucção entre estas populações rudes e
agrestes, serão baldados, e illusorias as esperanças apparentemente mais
bem fundadas.

No actual estado de cousas, o ensino obrigatorio não passa de mais um
flagello para a pobre familia obreira, que lhe opporá constantemente uma
resistencia passiva, mas invencivel. Afigura-se-me que toca as raias da
crueldade dizer--«manda á escola teus filhos»--ao homem que
habitualmente dorme vestido na esteira de tabúa, na casa de telha vã,
onde, se géa, tiritam de frio elle, a mulher e os filhos, porque a roupa
falta; que, se chove, não tem fato para mudar, e ás vezes nem sequer
lenha para o enxugar; cuja alimentação é de ordinario ruim, quando não
insufficiente; e que, como se isto não bastasse, sente com frequencia
apertar-se-lhe o coração ao dizer-lhe o lavrador, no sabbado: «Para a
semana não ha que fazer.» D'esses filhos que lhe pedem para a escola,
um, dois, os mais velhos, são pastores ou ajudas; sustenta-os, dá-lhes
agasalho o lavrador, e os seus pequenos salarios mais de uma vez vão
supprir esta ou aquella falta urgente da familia: outro leva a comida ao
pai, que trabalha a um ou dois kilometros de distancia, o que facilita á
mãi exercer algum mister retribuido: os de seis a nove ou dez annos
discorrem descalços pelas estradas ajunctando nas pequenas cestas os
excretos que na vespera ahi deixou o transito dos animaes, miseravel
industria, que, todavia, no fim do anno produz o valor de alguns
cruzados, que resolvem uma ou mais difficuldades da dura vida do
obreiro: outro, pouco maior, vai á fonte, á lenha, ao recado; chamam-no
para guardar aves domesticas, para colher ervas ou flores medicinaes,
para afugentar os passaros que damnam os fructos ou as searas, para dez
ou para vinte serviços analogos. E todos esses serviços tem uma
retribuição, que se incorpora nos recursos da familia e lhe cerceia o
numero das privações. É humano, é justo; digo mais, é moral aggravar a
miseria do trabalhador, tornar mais escura a noite do seu viver em nome
da luz interior? Bem desejaria eu tambem tecer a minha olympica á escola
obrigatoria: as phrases, os periodos, as estrophes andam já vasadas em
fôrmas: basta haver novidade na invenção das suturas. Veda-m'o a
consciencia. Esperarei que ou a escola se ageite a estas condições da
familia obreira, o que vejo longe, ou que, melhorada a situação d'essa
familia, a escola deixe de significar para ella um intoleravel imposto.

A este proposito accrescentarei só uma ponderação, para a qual chamo a
attenção de v. ex.^a. Se ha paiz no mundo onde a escola obrigatoria
domine em virtude de leis austeras, severamente executadas, é a
Allemanha.

Ora, segundo os calculos de Molinari[9], a media annual da emigração
allemã orçava por 100:000 individuos em 1851, verificando-se n'ella a
regra geral de todas as emigrações europeas--o augmento gradual, embora
vacillante às vezes no movimento de ascencão por causas accidentaes.

Os calculos de Molinari foram feitos sobre as estatisticas de 1842 a
1851. Não será, portanto, exaggeração suppor que vinte annos depois, em
1870, fosse essa media de 150:000 almas, ou de 900:000 n'este e nos
cinco annos anteriores.

A proporção entre a população da Allemanha e a de Portugal é a de 10
para 1. Se a nossa emigração egualasse a allemã, seria no mesmo periodo
de 90:000 individuos. Todavia, cinco annos depois, de 1866 a 1871, ella
foi, no continente e ilhas, de 51:509[10], isto é, de pouco mais de
metade. Pode fazer-se conceito da immensa população que a Allemanha cede
á America, sabendo-se que nos seis annos, de 1861 a 1866, só no porto de
Nova-York desembarcaram 312:065 emigrados allemães[11]. Se, porém,
reflectirmos em que a União se compõe de mais de trinta Estados, muitos
com portos notaveis aonde tambem a emigração se dirige; que os allemães
não buscam exclusivamente fortuna no territorio da União Americana, e
que, por exemplo, nas colonias mais importantes, fundadas pelo governo
brazileiro, a maioria dos colonos é de origem germanica[12]; pode
afoutamente dizer-se que a emigração allemã é proporcionalmente maior
tres ou quatro vezes que a de Portugal. Não me parece, por isso, que a
lei do ensino primario obrigatorio, ainda cumprida severamente como na
Allemanha, ou antes porque o é, seja preservativo moral demasiado
efficaz contra o mal que pretendemos evitar.

Permitta-me, pois, v. ex.^a que, em vez de considerar a instrucção
elementar como meio indirecto de combater a emigração, eu substitua esse
meio por outro, na verdade menos espiritual e mais grosseiro, mas que me
parece dever precedel-o na ordem das nossas idéas. Consiste em buscar um
complemento ao salario rural, de modo que os recursos da familia do
trabalhador correspondam ás suas necessidades. Esse complemento
dar-se-hia, talvez, na elevação e permanencia dos jornaes, resultado de
uma direcção mais acertada, de uma transformação na indole da industria
agricola. Podem as leis, as instituições, a crescente illustração do
paiz favorecer as tendencias em tal sentido; mas a sociedade tem de
parar, n'estes assumptos, deante do alvedrio e da responsabilidade
individuaes. Não se legisla o progresso. Resta outra solução, para a
qual as leis e a acção administrativa podem contribuir fortemente,
respeitando aliás todos os direitos individuaes na sua integridade. Este
meio consiste em promover energicamente a associação do trabalho rural
com a propriedade rustica, de modo que o producto liquido do trabalho
accumulado e incorporado no solo, a que chamamos renda, suppra a
fluctuação no _quantum_ e a incerteza do salario. É preciso dirigir
todas as diligencias para a suppressão do proletariado rural. É preciso
que os obreiros-proprietarios se tornem cada vez mais numerosos, e que
sejam os verdadeiros representantes do trabalho agricola, assalariado ou
não assalariado.

É uma utopia que proponho como remedio ao mal? Parece-me que estou bem
longe d'isso. O postulado que julgo indispensavel para combater a
emigração, até onde é justo, conveniente e possivel fazel-o, só na
apparencia é arduo. Para o realisar gradualmente, temos um meio tão
efficaz como trivial, meio profundamente radicado nos habitos nacionaes,
tradição romana nunca inteiramente interrompida atravez dos seculos
barbaros, e que, na fundação e desenvolvimento dos estados néo-latinos,
povoou e desbravou a maior parte do solo habitado e cultivado do nosso
paiz e da Hespanha occidental; meio que ainda hoje é um dos instrumentos
mais efficientes da ampliação da cultura e do augmento da população, e
que de ha muito dá ao trabalhador laborioso e bem procedido accesso á
propriedade. V. ex.^a já, por certo, alcança que fallo da emphyteuse com
os seus varios nomes e nas suas variadas fórmas. Não é uma theoria de
equilibrio mais ou menos socialista; é uma praxe conhecida, que tem por
base a liberdade individual e a natureza de puro contracto, simples,
comprehensivel, como são por via de regra todas as concepções fecundas.
É uma cousa velha, applaudida por uns, condemnada por outros, mas que a
população rural cada vez solicita com maior ardor. Em politica as
revoluções radicaes podem ser ás vezes necessarias; no que, porém,
respeita aos usos tradicionaes e aos costumes juridicos das sociedades,
só de ordinario dão bons resultados as modificações, ou as
transformações graduaes do que existia d'antes. Nas questões publicas
d'esta ordem é inevitavel contar com os habitos, com as tradições, com a
historia. A meu ver, um dos grandes erros do socialismo é esquecer isto.
Não é menor, todavia, o erro dos que pretendem caracterisar como
fatalmente necessaria a miseria de milhares de familias, ou escondel-a
debaixo de um acervo de sciencia problematica, de argumentos que não
peccam por excesso de solidez, de invectivas e ironias, que
peremptoriamente refuta e condemna o grito instiuctivo da consciencia
humana.

Antes de passar a expor porque e com quaes condições a emphyteuse pode
conduzir rapidamente á associação do trabalho actual com o trabalho
consolidado a que chamamos propriedade, e d'ahi, por natural
consequencia, a attenuar em grande escala a emigração nociva, consinta o
meu amigo que ponha termo a esta carta com uma digressão sobre assumpto
connexo, e do mais subido quilate. Refiro-me aos perigos que ameaçam a
Europa por effeito das paixões excitadas entre as classes laboriosas
pelas escolas socialistas extremas, isto é, inexoravelmente logicas.
Esses perigos não são por ora demasiado graves entre nós. Contrahida a
propaganda de certas doutrinas a uma parte dos operarios urbanos,
parece-me que ella se estriba mais no amor da novidade e da moda, do que
nas coleras reaes e funestas, que, n'outros paizes, suscita ás vezes o
excesso do padecer. Mas hoje é tão intimo o contacto entre os povos
civilisados, tão efficiente a mutua acção das idéas e dos factos, que
não seria prudente affirmar que taes perigos se não tornarão um dia
sérios para nós. As apprehensões ácerca das influencias estranhas
parecem sobretudo legitimas no seio das nações pequenas. O generalisar a
propriedade rustica; ligar o salario, que se recebe, com o dominio, que
se exercita, não é só privar de adeptos as doutrinas dissolventes: é
recrutar soldados para a manutenção da paz e da boa ordem. Desde que o
trabalhador rural achar no producto liquido da sua fazendinha um
complemento mais ou menos amplo do jornal; ou, antes, desde que não
considerar o jornal senão como complemento d'esse producto, a negação da
propriedade individual, longe de o lisongear, ha-de irrital-o, e os
apostolos da demoliçao social farão bem em não evangelisar deante d'elle
a lei nova, porque o trabalhador do campo é naturalmente rude. Seria o
caso de applicar, porventura com mais verdade, o dito agudo, a respeito
de Inglaterra, que De Lavergne celebra:--«Não aconselho ás choupanas,
que se amotinem contra os solares. Esmagavam-nas logo. São vinte contra
um.»--Depois da fusão, na familia do jornaleiro, do trabalho actual com
a propriedade, não aconselharia ás assosiações internacionalistas
urbanas que se amotinassem contra esta. Achar-se-hiam em bem restricta
minoria. A paixão da terra, tão forte e tão nociva no grande e no
mediano agricultor, arde com dobrada violencia no coração do proletario
rural. Que sacrificios, que tenacidade, que imaginação, que industria
para alcançar propriedade! Quando elle chega a poder proferir, de pé
sobre as belgas do chão esmoutado e vallado, as palavras magicas--«O meu
foro»--essa fronte, habitualmente inclinada para o solo, com os olhos
fitos na enchada, ergue-se e illumina-se de esperança no futuro e de
confiança no presente. Todos os ocios voluntarios ou forçados do
jornaleiro e dos seus vão-se transformando em trabalho que a arroteia
absorve, e que aflora depois na vinha, no tanchoal, no campinho de
cereaes, na figueira, na ameixeeira, no batatal. A taberna perdeu acaso
um freguez, o baralho e o chinquilho um parceiro, a rixa um arruador. É
que o proletario recebeu da nossa mãi commum o baptismo de cidadão.

_P.S._ Ao cerrar esta carta recebo o _Jornal do Commercio_ de 8 do
corrente, onde vem transcripta a minha penultima carta. Precede-a um
artigo do sr. P. de M., que parece destinado a corrigir factos e
apreciações contidos no que tenho escripto. Quando accedi á publicação
d'estas cartas, desde logo resolvi responder com o silencio ás
impugnações mais ou menos innocentes, mais ou menos habeis, mais ou
menos irritadas, que eram de esperar. Firo interesses e preconceitos
arreigados, rejeito opiniões adoptadas talvez sem sufficiente exame.
Como o homem physico, a idéa aggredida defende-se. É cousa natural. O
desgosto tem o direito de exprimir-se conforme a indole de quem o
padece. Deixal-o manifestar-se em paz, e consolar-se com um facil
triumpho. Declaro-me desde já vencido e refutado. Posso, porém, tractar
do mesmo modo o trabalho do sr. P. de M.? De certo não. Ao nobre e
independente caracter do auctor, ao seu talento, á sua especial
competencia n'estes assumptos, ajuncta-se a sua nunca desmentida
benevolencia para comigo, benevolencia que, longe de desmentir-se agora,
se duplica, talvez, até á exaggeracão. Podemos ver o assumpto a luz
diversa; mas somos ambos desinteressados. Pediu-me v. ex.^a a minha
opinião: dou-a, boa ou má, sinceramente, lealmente.

Sobejam-me annos e fallecem-me ambições: por isso não calculo se agrado
ou desagrado a uma escola, a um partido, a uma classe, e ainda ao
proprio paiz. Quando, porém, a nobreza moral, a inquestionavel
competencia, e o conhecido desinteresse me advertem que errei,
entristeço, porque é provavel que efectivamente errasse. O erro, ainda
quando involuntario, é sempre um mal. Vou estudar detidamente o trabalho
que precede, no _Jornal do Commercio_, a minha penultima carta. Não me
custará a retractação, a que é natural me conduza esse estudo: apenas me
ficará a magua de ter tomado o tempo a v. ex.^a com as minhas reflexões
menos acertadas.


VI

*Lisboa, outubro 1874.*


Ill.^{mo} e ex.^{mo} sr.--Meu amigo, depois de ter lido com a attenção
de que era capaz o escripto do sr. P. de M., sinto não poder
converter-me.

E sinto-o pelo prazer que teria em reconhecer a importancia do seu voto,
e em estribar as minhas opiniões na sua auctoridade indisputavel e
indisputada sobre o assumpto d'estas cartas. Ao primeiro aspecto, elle
parece concordar commigo na substancia. Dou a miseria como causa suprema
da emigração rural, e, no dizer do meu illustre contendor, _em tudo_
quanto escrevo a tal respeito _ha um fundo de verdade_. Occorrem, porém,
factos que tornam menos seguras as minhas conclusões.

Nem sempre, diz elle, a emigração deriva da miseria. Quem o duvida?
Decerto não sou eu, que não só admitto, mas até especifico outros
incentivos d'ella, e não só em certos casos a absolvo, mas até a
applaudo. A questão é se esta causa existe, e sobretudo se existe em
relação á emigração rural, que era o ponto sobre que v. ex.^a me pedia o
meu voto, visto ser a essa luz que se considerava o assumpto no
questionario que me remetteu. Se existe e actua em larga escala, os
poderes publicos devem forcejar por destruil-a; porque a miseria, como
phenomeno geral e permanente, deriva sempre de um vicio na economia
social. No meu modo de ver a acção d'esses poderes não vai mais longe.
Tremo da tutela publica; porque a tutela publica é o ponto de contacto
entre o despotismo e o socialismo. Nos actos commummente licitos da vida
civil não concebo a intervenção da auctoridade para que um unico d'esses
actos deixe de se practicar. N'esta parte o auctor do artigo, espirito
esclarecido, liberal e justo, parece que em these concorda commigo.

O sr. P. de M., reconhecendo a principio que ha um fundo de verdade no
que digo sobre a insufficiencia do salario, reconhece a existencia da
miseria que fatalmente deriva d'essa insufficiencia. O que parece não
admitir é que ella seja remediavel, porque faz nascer da propria
natureza do organismo social esses factos verdadeiros que apontei. Quer
isto dizer que a miseria do trabalhador provém indirectamente de uma lei
natural? Não creio que seja assim. A sociabilidade é que é uma lei. O
organismo social é a manifestação, a fórmula em que ella se traduz. Essa
manifestação, essa fórmula depende forçosamente de quem ha-de realisar a
lei; depende do homem, ente intelligente e livre, e portanto capaz de
aperfeiçoar as suas obras. O organismo social é, por isso, susceptivel
de ser transformado. Os progressos da civilisação constituem uma série
de transformações d'esse organismo. A historia está ahi para o
testificar. Deus me livre de crer na invencibilidade do mal.

Assim, no entender do meu tão benevolo contendor, ainda que a miseria
podesse enumerar-se entre as causas da emigração, cumpriria curvar a
cabeça ante um facto fatalmente necessario. Não crê, porém, que a
insufficiencia do salario rural seja uma causa indiscutivel da emigração
no continente portuguez. Está longe d'isso. Talvez a admitta só nos
districtos insulares, e se, especificando o que os poderes publicos
devem fazer relativamente á emigração, não lhes diz que tentem remediar
a miseria, a qual, ao menos alli, provém de salarios insufficientes, é
que os dolorosos effeitos d'essa insufficiencia são inevitaveis e
irremediaveis.

Qual é pois a causa supereminente, omnimoda, quasi exclusiva, da
emigração? É a indole aventureira e cubiçosa do homem. Esta indole
exaggera-se pela acção das idéas de um povo sobre as idéas de outro. A
idéa moderna das raças germanicas é o emigrarem os que tem alguma cousa,
e os proletarios morrerem abraçados com a terra da patria. As raças
celto-romanas, a que de ordinario chamamos povos latinos, são actuadas
hoje pela idéa germanica: isto sem livros, sem jornaes, sem
missionarios, sem nenhuma especie de propaganda, e só pela força
sympathica da idéa. Os que possuem vão-se, os que nada possuem ficam. Se
esta theoria é verdadeira, os lamentos dos agricultores são um perfeito
engano. Podem rarear as fileiras dos patrões; as dos simples jornaleiros
não. Quanto mais a emigração crescer, mais provavel é a baixa dos
salarios ruraes.

Procede a theoria do sr. P. de M. de duas fontes: 1.^a a propria
observação; 2.^a os factos que se dão em Allemanha. Para mim, o primeiro
seria decisivo, se as observações do sr. P. de M. fossem, não digo
completas, mas assás extensas. Limitam-se a um tracto maior ou menor das
costas do oceano. Sabe de casos numerosos em que a idéa germanica se
reproduz entre nós; isto é, em que, associando-se ás indoles
aventureiras e cubiçosas, essa idéa arrasta homens remediados a
liquidarem seus haveres e a demandarem as regiões da America. Não era
preciso o testemunho irrecusavel do meu honrado contendor para eu crer
esses factos. Ainda dispensando a intervenção da idéa germanica, estou
convencido de que os espiritos aventurosos, audazes, desejosos de
melhorar de fortuna, proletarios ou não proletarios, terão mais de uma
vez trocado a patria pela America. Para isso tem-se a si; e é o que lhes
basta. Ambos nós, embora por motivos em parte diversos, julgamos que não
convem obstar a esta emigração, e que para o fazer a auctoridade não tem
nenhum meio liberal e legitimo. Mas esses factos das orlas do mar serão
applicaveis ao complexo total da emigração do reino? O sr. P. de M.
conhece 50, 100, 200 casos de tal ordem: mais; muitos mais, se quizer. O
algarismo que os representa ha-de ser sempre grandemente inferior ao de
50:000 emigrados que, por exemplo, abandonaram o paiz só n'um dos
ultimos quinquennios. O mais que o meu bom amigo pode fazer é tirar
illações. Ora, illações de 50, de 100, de 1:000 para 50:000, não me
parece que tenham grande valor, sobretudo n'esta questão.

A idéa germanica, em que se funda a theoria do sr. P. de M., resulta de
um inquerito ordenado recentemente pelo chanceller do imperio allemão.
Segundo esse inquerito estatistico, relativo aos ultimos cincoenta annos
(se em Portugal apparecesse uma estatistica d'estas, o que se diria, meu
Deus!), a emigração allemã até 1840 foi constituida _exclusivamente_
pelos proletarios: _nem um_ só individuo de classes mais felizes buscou
fortuna na America. Repentinamente, por uma especie de mutação á vista,
o proletariado lança raízes na _Vaterland_, na terra d'Arminio. O
espirito aventureiro, a cubica da riqueza surgem n'aquelle anno. É uma
cholera moral que invade a Allemanha. A enorme torrente da emigração não
pára, não se attenua; cresce. O proletariado, porém, não lhe cede _um_
só individuo. O _maltrapilho_ emigrante passa a tradição. Todos os que
emigram tem de seu: liquidam e vão levar os capitaes da opulenta
Allemanha á pobrissima America. O paiz exhaure-se. Esses capitaes
representam nada menos do que uma somma equivalente á contribuição de
guerra imposta á França. Propriamente, o que os francezes pagaram foi um
saldo de contas entre a Allemanha e a America.

Perdoe-me o meu amigo P. de M. uma supposição vaidosa até á
extravagancia. Se eu fosse o principe de Bismarck, com o systerna um
pouco militar da administração prussiana, mandava descançar os
inquiridores nas casamatas de Spandau, para lhes fazer notar que o
gracejo não é admissivel em objectos de serviço. Só deixaria de o fazer,
se particularmente lhes houvesse recommendado que achassem esses
resultados moralmente impossiveis. V. ex.^a sabe, de certo, por pessoas
doutas e tementes a Deus, que eu sou um grandissimo impio, peiorado
agora com minha nesga de petroleiro. Tolere-me, por isso, um acto de
incredulidade quasi brutal. Não creio uma palavra dos fins apparentes e
dos resultados objectivos do inquerito. Creio, porém, que milhares e
milhares dos mais robustos braços, que o rio caudal da emigração arrasta
annualmente, fariam enorme falta ás espingardas de agulha no dia em que
a França cedesse ao appetite de ser esmagada de novo. Se o chanceller
pensa seriamente em retel-os, não ha-de ser só a estatistica encarregada
de dar plausibilidade ás suas providencias; ha-de ser toda a sciencia
allemã sem exceptuar a critica de Strauss e a philosophia de Hegel.

Quando o imperador Guilherme prohibiu ás companhias de caminhos de ferro
que fizessem abatimento nos preços de transporte aos que se dirigiam aos
portos de mar para emigrarem, e que esta singular prohibição alevautou
altos clamores nos Estados-Unidos, o ministro allemão em Washington
viu-se constrangido a confessar que as providencias tomadas significavam
precauções contra as tentativas de desforra da França. Não eram
capitaes, eram braços que o governo queria reter. E de facto, se os
emigrantes não fossem em grande parte simples jornaleiros, simples
proletarios, não haviam de ser alguns thalers a mais na despesa do
transito que retivessem na Europa a multidão de peculios, equivalentes á
contribuição de guerra da França, que iam felicitar a America.

Se eu, de má fé, quizesse acceitar a theoria do meu amigo P. de M. sobre
a emigração, provaria contra elle que a emigração portugueza é essencial
e quasi exclusivamente de proletarios miseraveis. Se admittisse a força
impulsiva dos exemplos peregrinos, o pensamento estranho, modificando
por uma acção mysteriosa o pensar nacional, acharia uma influencia mais
potente pela força numerica dos exemplos, pela maior proximidade, senão
affinidade, de raça, e até pela unidade de crenças religiosas, para
produzir o milagre. Refiro-me á Irlanda. Se existe uma especie de
magnetismo da classe remediada de origem germanica sobre a classe
remediada portugueza, porque se não dará o mesmo influxo do proletariado
celta sobre o proletariado celtoromano? São, porém, a cubica e a
audacia, ou é a miseria que tem expulsado o irlandez da patria? Se em
meio seculo a America attrahiu da Allemanha 2.500:000 individuos, só nos
Estados Unidos, só pelo porto de Nova-York, e só em 20 annos (1847 a
1866) entraram 1.500:000 emigrados irlandezes. D'estas duas forças
uniformadoras, qual é a mais poderosa, e qual d'ellas, portanto, teria
actuado mais em Portugal, se esta acção existisse?

Posto que seja uma triste convicção, continúo a crer que a miseria é a
causa suprema da emigração dos campos. A insufficiencia do salario
produz por dois modos a desgraça do trabalhador--privando-o directamente
do necessario, e impellindo-o ás vezes, pela dor moral, a buscar o
estonteamento na embriaguez, que lhe augmenta a propria miseria. É um
phenomeno vulgar; e se, como observa Laveleye[13]--«quasi por toda a
parte o salario do obreiro é insufficiente para satisfazer as suas
necessidades racionaes»,--esse phenomeno geral abrange-nos tambem.
Forcejar por lhe amortecer a intensidade, por destruil-o, se é possivel,
tenho-o como dever e interesse communs. Assim, não só removeremos um
poderoso incentivo de emigração, mas tambem fortaleceremos a sociedade
contra perigos mais serios. Segue-se d'isto, acaso, que não existem
outras causas de uma emigração nociva? De certo não. O que não vejo é o
remedio para neutralisar essas causas, algumas das quaes só alterações
profundas no mechanismo social poderiam remover. Sirva de exemplo o
recrutamento, que basta para explicar a emigração dos nossos mancebos
pelos portos da Galliza, facto que só pode maravilhar os que ignoram até
onde chega a repugnancia, ou antes o horror da mocidade aldeã a
arrancarem-n'a por alguns annos do ninho paterno para a lançarem n'um
teor de vida desconhecido, mas que ella bem sabe não condizer com os
habitos, com as occupações, com os affectos, que constituem a historia
completa da sua singela existencia. Pode applicar-se aos que assim o
fazem o dicto de Quevedo--_matar-se por no morir_; mas é certo que a
isso os arrasta um impulso interior, irreflexivo e irresistivel.

Preoccupam quasi exclusivamente o meu caro antagonista os engajadores:
vê-os por toda a parte; vê, até, no oceano um dos mais terriveis. O
aspecto e o ruido das ondas attrahem para a America. Permitta-me elle
que advogue a causa do oceano. Não é muito: a causa de Deus já foi
defendida na Convenção franceza. Se o mar tem o segredo de attrahir os
habitantes dos districtos de Vianna, do Porto, de Aveiro e de Coimbra,
que banha por uma orla, mostra-se de pasmosa incapacidade para o mister
que exerce, logo que as suas vagas rolam para o sul da foz do Mondego a
visitar as praias e ribas dos de Leiria, de Lisboa e do Algarve, ao
passo que o districto de Braga, vendo-o e ouvindo-o apenas por estreito
espiraculo, e os de Vizeu e Villa Real, conhecendo-o só de nome, lhe
entregam aos milhares seus filhos. Não seria mais simples e conforme á
razão pôr de lado influencias em parte contradictorias, em parte
incomprehensiveis, e buscar na densidade comparativa das populações
ruraes a explicação do phenomeno? Não é facto eloquentissimo serem os
districtos onde a população mais rapidamente cresce, e mais densa é em
relação á superficie do respectivo territorio, os que subministram
numero incomparavelmente maior de emigrados? Que significa isto, não
digo em Portugal, digo em toda a parte, senão que a producção, por
defeito do solo ou do clima, por pouca intensidade ou imperfeição da
cultura, pela má constituição da propriedade, emfim, por qualquer causa
natural ou facticia, não corresponde á densidade da população? O excesso
d'esta em relação aos seus recursos foi, é, e ha-de ser, em todos os
tempos e logares, o incentivo ordinario das migrações que tem povoado e
hão-de ir povoando o globo. Mas o desequilibrio entre a producção e as
necessidades impreteriveis do total dos productores tem de traduzir-se
em miseria para alguns ou para muitos d'elles antes que o equilibrio
renasça. Sempre, porém, os symptomas do mal hão-de manifestar-se nos
orgãos economicamente mais debeis do corpo social, nas classes
trabalhadoras. Por isso continúo a persuadir-me de que é, não a
influencia germanica, nem o oceano, mas sim a miseria a verdadeira,
co-ré dos engajadores.

Pede o SR. P. de M. severidade para com elles. Eu, de certo, não os
applaudo nem os protejo; mas, quando theoricamente esquecemos ou negamos
as causas mais efficazes d'esta ou d'aquella ordem de phenomenos,
estamos arriscados a engrandecer tão desmesuradamente as secundarias
quanto o exige a logica do erro. É assumpto de particular estudo este
dos engajadores, ácerca dos quaes, se não faltam deplorações sentidas e
accusações genericas, falta a indicação particularisada de sufficientes
factos especiaes sobre que possam recair apreciações reflectidas. É
probabilissimo, não me cansarei de confessal-o, que os animos
emprehendedores e cubiçosos, as imaginações ardentes, sobretudo quando
os aguilhoar a pobreza, busquem na emigração melhor fortuna. Para elles,
porém, a influencia germanica parece-me já de sobra, e os induzimentos
dos engajadores um verdadeiro pleonasmo. Em todo o caso, com essas
influencias ou sem ellas, ambos nós estamos de accordo em que não se
devem nem se podem pôr embaraços a esta especie de foragidos. Restam-nos
os animos irresolutos, as indoles timidas, pobres de imaginativa,
moderadas nos desejos. Dada a não existencia do irresistivel incentivo
da miseria, é racionalmente crivel que esses individuos sem ambições
exaggeradas, sem resolução, sem precisões urgentes, emfim, sem nenhum
impulso physico ou moral, quebrem violentamente os laços que os prendem
á terra de infancia, laços fortes sobretudo no homem do campo, só porque
um individuo, provavelmente desconhecido, os convida a deixar o seu
prediosinho, a familia, os amigos, os mil affectos, em summa, que nos
retem na patria, para se arrojar ás solidões do oceano, dobradamente
temerosas para quem as desconhece? Isto é impossivel!

Mas o engajador não é uma pura invenção. Acredito; postoque me faltem
bastantes factos, precisos e indisputaveis, para avaliar a extensão das
suas malfeitorias. Supponhamos, porém, a não-existencia da miseria
involuntaria e honesta: desde esse momento o engajador deixa de excitar
a indignação e deve ser visto a luz diversa do clarão sinistro que o
allumia.

Nas profundezas da sociedade, como nas depressões das gandras, ha lagôas
doentias, charcos apodrecidos. As paixões e os instinctos degenerados em
vicios alimentam esses brejos. Fluctuam ahi entes embrutecidos. São os
desgraçados que designamos com os nomes desdenhosos de relé, de
gentalha, existencias anormaes, zangões dos enxames humanos. O seu
_habitat_ mais commum é no seio das camadas inferiores das populações
urbanas, mas o campo não está isento d'elles. Supprimida theoricamente a
miseria honrada, a actividade dos engajadores move-se forçosamente na
esphera do vicioso, do abjecto, da parte da população moral e
economicamente nociva. N'este caso o engajador seria um emunctorio, e
longe de se lhe contrariarem os esforços, conviria favorecel-os.

Ou me engano muito, ou é esta a consequencia que se deduz, a final, das
doutrinas do meu illustre contendor. De certo não a previu quando,
indignado, pedia aos poderes publicos que sustessem toda a propaganda
que tivesse por fim promessas fallazes. Se entendo bem esta phrase um
pouco obscura, parece-me que lhes pede o desempenho de missão difficil.
Não me occorre, dentro dos limites dos principios liberaes, meio nenhum
practico de impedir propagandas, quer verbaes, quer escriptas, posto que
não faltem meios de punir as que offendam as leis. Não sei tambem como
verificar antecipadamente se quaesquer promessas, contidas no ambito do
possivel, serão ou não cumpridas: questão do futuro que o presente não
pode resolver. Parece-me arriscado aconselhar cousas d'estas aos
governos, propensos sempre a ultrapassar no exercicio do poder a
barreira incommoda dos principios. O perigo da phrase de certo escapou á
perspicaz intelligencia do meu illustre adversario, que, liberal
sincero, proclama a eterna verdade de que o indivíduo é _em primeira_ e
ultima instancia o juiz do proprio interesse.

Depois de fundamentar a sua doutrina, o sr. P. de M. accumula as
considerações que entende invalidarem a minha. Quanto a elle o operario
rural, se não gosa de todos os commodos possiveis, caminha em movimento
ascendente para o bem estar, emquanto a grande e a mediana propriedade
rural vão em temporaria decadencia. Sem negar as contrariedades e
embaraços, não direi da grande e da mediana propriedade, o que não é o
mesmo, nem tem a mesma importancia, mas sim da grande e da mediana
industria agricola, é obvio que as minhas convicções sobre a situação
relativa das duas classes são bem diversas das do meu tão indulgente
contendor. Como elle, derivei-as de certa ordem de factos. Esses em que
a opinião adversa se estriba pareceram-me, uns insufficientes, outros
inadmissiveis, outros gratuitos ou mal interpretados. Illudir-me-hia? O
insufficiente, o infundado, o impossivel, o gratuito, podem estar nos
elementos de que me servi ou nas consequencias que d'elles tirei. É a
esta luz que devo considerar agora as observações do meu amigo P. de M..
Obstaculos da vida privada obrigam-me, porém, a interromper aqui a serie
das idéas que me occorrem sobre a materia. Em breve espero atar-lhes o
fio e chamar de novo sobre ellas a attenção de v. ex.^a.


VII

*Lisboa, outubro 1874.*


Ill.^{mo} e ex.^{mo} sr.--É pela base que o sr. P. de M. começa a
demolição das considerações, que me levaram a crer que a emigração rural
tem por causa prominente a insufficiencia do salario e conseguintemente
a miseria do jornaleiro.

Entende elle que, se quizermos habilitar-nos para estudar a questão,
devemos previamente queimar os documentos officiaes onde se registam os
factos relativos ao assumpto, e ir estudar estes pessoalmente nos
diversos districtos do reino, porque os empregados subalternos de
administração são ignorantes, inhabeis, sem consciencia da propria
responsabilidade, e porque a estatistica não passa de uma sciencia
conjectural que cumpre pôr de parte.

Hesito, na verdade, em tomar o bordão de peregrino e correr os dezesete
districtos do reino só por estes fundamentos, porque duvido de que sejam
seguros. Os funccionarios subalternos, expressão demasiado vaga que pode
abranger toda a jerarchia administrativa, exceptuados os membros do
governo, são como o resto da sociedade, de cujo seio saem e a cujo seio
voltam, ignorantes uns, illustrados outros; uns remissos e desleixados
no exercicio das suas funcções, outros activos e zelosos; uns sem
consciencia do seu dever, outros pontuaes e briosos. A idéa,
infelizmente vulgar, de que o funccionario publico é geralmente mau,
parece-me inexacta e injusta. Como empregados e como homens não são
peiores nem melhores do que nós, os que não pertencemos a essa classe, o
somos, quer no exercicio das nossas respectivas profissões, quer na
nossa vida civil. Se a palavra official é indigna de credito, não sei
d'onde derive o melhor direito da nossa a ser accreditada. Se acaso eu
fosse de concelho em concelho interrogar o proprietário rural não
lavrador, o lavrador proprietario, o lavrador rendeiro, o caseiro ou
colono parciario permanente, o seareiro ou colono parciario annual, o
singeleiro, o criado de soldada, o jornaleiro proprietario, e o simples
jornaleiro, sobre a situação especial de cada uma d'estas classes e
sobre as suas mutuas relações, estou prevendo que, no fim da
peregrinação, havia de achar-me possuidor da mais estupenda collecção de
affirmativas contradictorias, de mentiras evidentes, de factos
improvaveis ou deturpados, de accusações apaixonadas, de convicios
reciprocos, resultados ordinarios da lucta de interesses oppostos.
Porque preferir esse meio de informação ás declarações da auctoridade
local, sobretudo quando é exercida por individuo estranho á parochia, ao
concelho, á comarca, ao districto? Se no meio das collisões de
interesses a corrupção pode leval-o a transfigurar os factos, não o
fará, por certo, em beneficio da classe dos operarios.

Para apreciarmos por nós mesmos as situações absoluta e relativa do
industrial agricola e do operario rural seria necessario que, além de
termos a consciencia segura acerca da propria imparcialidade,
exercessemos por dois ou tres annos a profissão de agricultores em cada
um dos diversos districtos do reino. Sem isso, a estatistica é
inevitavel; ou estatistica obtida dos que tem responsabilidade, que não
nego possam illudir, ou estatistica irresponsavel, e, o que mais é,
interessada. Abranger a totalidade dos factos economicos da industria
agricola de um paiz inteiro pela propria observação não cabe nem na vida
nem nas forças de um individuo. Pode essa observação dilatar-se por uma
área maior ou menor, mas será sempre assás limitada em relação ao todo,
embora produza ás vezes excellentes monographias que sirvam de
correctivo aos erros officiaes; mas colligir, de modo mais ou menos
imperfeito, a generalidade dos factos só o alcançam a vista e a acção
dos poderes publicos que se estendem a todo o paiz. Como nota De
Lavergne; as estatisticas geraes servem de aferição ás observações
individuaes. «Seria cousa nova--diz elle--o supprimil-as, como se, para
vermos mais claro, forcejando por accender um facho, começassemos por
apagar outro[14].

Se a rejeição dos meios officiaes de informação me parece inconveniente
e injusta, mais singular acho ainda a condemnação absoluta da propria
estatistica, votada ao ostracismo como sciencia conjectural. Ha aqui
forçosamente um equivoco. A estatistica tem por objecto colligir e
ordenar methodicamente os factos sociaes que se podem exprimir com
algarismos. Nada menos conjectural. Se em vez de factos se colligem
supposições, não se faz estatistica, faz-se novella. Na estatistica
applicada é que são possiveis as conjecturas e os erros que d'ellas
tantas vezes derivam; mas inferir d'isso a inanidade da estatistica é o
mesmo que negar a validade scientifica da arithmetica, porque muitas
vezes se erram sommas ou multiplicações. De que dependem por via de
regra as leis e providencias de indole generica, sejam de ordem juridica
ou moral, sejam de ordem economica? Dependem de um estudo estatistico
correlativo. É n'esse estudo que está a sua razão de ser.

Quando, convencidos da existencia de uma enfermidade social, desejamos
submetter á opinião publica os arbitrios que nos occorrem para a
remover, e estes arbitrios tem de estribar-se nos factos que a explicam
ou caracterisam, podemos contrapor livremente ao voto das maiorias o
voto individual pelo que toca ao valor e significação d'esses factos e
ás illações que d'elles se hão de tirar. Domina ahi o raciocinio e não a
auctoridade. Quanto, porém, á existencia dos mesmos factos, as nossas
affirmativas ou negativas hão-de esteiar-se em demonstrações claras e
indubitaveis, ou havemos de admittil-os como a sociedade nol-os
subministra. Querer que esta acceite o nosso vago testemunho, contra o
testemunho individuado dos seus agentes, parece-me exigir de mais.
Podemos recusar as informações d'elles quando evidentemente impossiveis
ou absurdas, porque n'esse caso o senso commum exerce a sua supremacia;
mas nem por isso as nossas affirmações em contrario precisam menos de
provas incontrastaveis. Esta é que me parece a boa doutrina.

Mas de que estatisticas me servi eu para verificar se a miseria do
operario rural era uma realidade, ou se era fundado o clamor dos
cultivadores contra a exorbitancia dos jornaes? Servi-me das indicações
subministradas por esses funccionarios do governo, para com os quaes se
mostra tão severo o meu illustrado antagonista? Apenas me referi ás
opiniões de alguns, que me não parecem ignorantes ou indifferentes. Como
prova de que nem elles nem eu nos enganavamos sobre a insufficiencia do
salario, recorri á comparação dos preços do meio dos principaes generos
de alimentação do trabalhador, e dos preços do meio dos salarios. Estes
elementos do calculo encontrei-os nos mappas communicados pelas camaras
municipaes. Nos concelhos onde predomina a propriedade rustica, as
vereações são compostas de proprietarios e lavradores, ou, pelo menos,
de individuos que mereceram a sua confiança, porque são elles que
preponderam nas eleições, pelo numero e pelas influencias. Fiei-me,
pois, em documentos de magistrados independentes do governo, e, o que
mais é, representantes da classe, cuja sorte o sr. P. de M. parece achar
mais digna de piedade que a dos trabalhadores. Os preços do meio não
foram de certo inventados para servirem aos meus argumentos. A fixação
annual d'elles é uma funcção exclusivamente municipal; é um facto
notorio, indubitavel, necessario. Depende d'isso a realisação de certos
contractos, a solução de certos encargos, e até o cumprimento de
mandados judiciaes. Haverá inexacções, para mais e para menos, na
fixação de taes preços; mas semelhantes inexacções compensam-se umas
pelas outras. Os meus calculos podem ser erroneos; mas as bases sobre
que assentam, creio-as inconcussas.

É singular! A situação da classe dos trabalhadores melhora gradualmente,
emquanto a dos proprietarios ruraes e lavradores peiora. E todavia
estamos de accordo em suppor que o signal do melhoramento da classe
operaria consistiria em ir-se transformando o simples jornaleiro em
proprietario. Parece que n'esse caso deveriamos deplorar a imprevidencia
do trabalhador que abandona uma situação progressivamente vantajosa,
para entrar n'outra que vai em decadencia. O meu talentoso adversario
sentiu que as suas affirmativas tinham o que quer que fosse que
suscitaria dúvidas. Explicou-as pois. A grande e a mediana propriedade
luctam com difficuldades e encargos novos, a que foge naturalmente a
pequena cultura, que tem limitadas precisões, que vive vida frugal, e
que não tem de pagar o trabalho que a si mesma subministra. Será esta
explicação exacta e sufficiente? Suspeito que não é. Os mais onerosos
encargos que definhavam antigamente a industria agricola desappareceram
em 1834 tanto para a grande como para a pequena cultura. Esmagam-na os
novos tributos directos? A verba total da contribuição de repartição,
que nos dizem representar ás vezes 12, 14 e mais por cento do liquido da
producção nacional, está por si mesma revelando o que é essa
contribuição directa, e ainda melhor se a compararmos com a verba total
dos rendimentos annuaes das nossas alfandegas, que, na sua generalidade,
representam uma percentagem de 10, de 20, de 30, ou ainda de mais, se
quizerem, sobre o valor venal dos objectos que, na maxima parte,
forçosamente se hão-de comprar com o producto liquido do trabalho
nacional, trabalho que sobretudo se manifesta nos valores creados pela
agricultura, e que indirectamente tem tambem de pagar as percentagens do
fisco e os ganhos do commercio. Todos nós sabemos um pouco da historia
contemporanea do tributo directo, ácerca do qual um illustre deputado, o
sr. Carlos Ribeiro, já teve occasião de dizer notaveis verdades. Se,
porém, na apreciação da materia collectavel, da renda e dos lucros
agricolas, ha erros graves, não creio que taes erros revertam de
ordinario em proveito dos proprietarios humildes e dos simples
jornaleiros. Mas, sejam quaes forem as nossas opiniões sobre o assumpto,
o que me parece evidente é que os melhoramentos materiaes do paiz nos
ultimos quarenta annos tem aproveitado, pela maior parte, á grande e á
mediana cultura. Possuimos caminhos de ferro, centenares e centenares de
leguas de boas estradas, principaes incentivos do desenvolvimento
agricola; temos a propriedade menos sujeita a extorsões e violencias
publicas e privadas; temos a liberdade e a paz, sempre e em toda a parte
fecundas de progresso e riqueza; temos dezenas de productos da industria
rural insignificantes ou desconhecidos para a exportação ha cincoenta
annos, e que hoje a fazem engrossar em milhares de contos de réis.
Affirmando que em algumas leis e instituições do paiz, e no nosso
systema fiscal, ha embaraços para a industria agricola, não creio que
sejam elles taes que annullem essas immensas vantagens, e sobretudo que
não abranjam a pequena como abrangem a grande e a mediana propriedade.

O meu tão cortez adversario aponta um facto como prova de que a sorte
dos proletarios ruraes tem melhorado. É a frequente accessão de um ou de
outro, durante os ultimos vinte annos, á posse da propriedade. Reconheço
a verdade do facto e o meu unico desejo é que elle se realise em
larguissima escala. Não é, porém, de vinte annos a esta parte que o
phenomeno se dá. Dá-se desde seculos remotos. Os archivos do estado, das
ordens monasticas e militares, das casas nobres, dos cabidos e mitras,
das pessoas, em summa, physicas ou moraes que tinham ou tem o dominio da
terra, ahi estão para o provar. Impediu d'antes, impede isso hoje, que a
grande maioria dos chefes de familia obreiros sejam simples proletarios?
Se nenhum de nós duvida da excellencia do meio, porque comparativamente
é elle tão pouco efficaz? Terei occasião de submetter a v. ex.^a algumas
considerações, que me persuado farão sentir como no complexo das nossas
leis civis e de fazenda se encontram graves obstaculos á posse do solo
pelo proletariado, ao passo que fallecem os incitamentos para esta se
realisar. O que explica a accessão do simples jornaleiro á propriedade é
a sua paixão ardente por ella, o seu amor á terra, que o faz tantas
vezes vencer esses obstaculos, que o fez vencel-os ainda em epochas bem
sombrias da historia do colonato. Crê, pelo contrario, o sr. P. de M.
que o proletario tem hoje não só grandes facilidades de acquisição, mas
tambem vantagens superiores ás dos grandes e medianos proprietarios para
obter prosperos resultados. Quanto a estas ultimas, diz-nos elle que o
pequeno agricultor tem poucas necessidades, vive vida frugal e não paga
o trabalho que fornece a si mesmo. São, quanto a mim, bem limitadas as
necessidades inevitaveis, impreteriveis, da vida rustica, e estas
communs ao grande, ao mediocre e ao pequeno agricultor. As outras, mais
ou menos facticias, seria excellente para os progressos agricolas que se
contivessem sempre dentro da orbita dos recursos de cada lavrador ou
proprietario rural. Não reputo grande fortuna do pequeno agricultor não
poder crial-as porque não tem meios de as satisfazer.

Por outra parte, a frugalidade não é uma virtude monopolio de nenhuma
classe; está á disposição de todas as vontades e de todas as
consciencias austeras. A mesa mais ou menos opipara é negocio alheio a
este ou áquelle methodo, a aquellas ou a estas condições da agricultura.
Tambem não me parece que o pequeno agricultor que não paga o trabalho a
outrem tenha alguma vantagem em não dar esse dinheiro, fazendo os
serviços por suas proprias mãos. Quem paga o trabalho da producção é o
producto. O salario representa a manutenção do obreiro. Que o ganhe
comsigo, que o ganhe fóra, ha-de viver e manter-se. A verdadeira
vantagem do jornaleiro proprietario é aproveitar a energia dos proprios
braços nos dias, nas semanas, nos mezes, em que não encontra quem lhe
pague essa energia. Se quando acha serviço alheio, prefere o seu, não
faz mais do que depositar na caixa economica chamada a terra o salario
d'aquelle dia. A sua situação, assim considerada, é a mesma dos grandes
e dos medianos agricultores-proprietarios. Como elles, representa duas
entidades economicas--o dono da terra que aufere a renda, e o industrial
que aufere o lucro liquido. A importancia dos jornaes que venceu como
trabalhador não se confunde nem com a renda nem com o lucro: é uma
deducção que ha a fazer no valor bruto da producção.

Outra ordem de factos vem confirmar isto mesmo. É vulgarmente sabido que
na grande e ainda na mediana cultura o producto liquido é
proporcionalmente maior do que na pequena, e o producto bruto maior
n'esta do que n'aquellas. Porque? Porque nas primeiras o emprego das
machinas, o poder dos motores, a divisão dos misteres, o trabalho não
interrompido e por grandes massas homogeneas, a simplificação das
operações, e outras vantagens analogas, reduzem o custo, embora tambem,
até certo ponto, reduzam o resultado. Na pequena cultura o emprego
exclusivo ou quasi exclusivo dos braços, o zelo com que estes trabalham,
o esmero com que os serviços são executados, os adubos frequentes, a
pulverisação da terra, o aproveitamento nas colheitas, a vigilancia
minuciosa nas pequenas cousas, que é um dos motivos da prosperidade
moral, mas que exige tempo e applicação, explicam a superioridade
relativa do producto bruto. Resultam d'estes factos diversos dois
phenomenos oppostos. O grande ou mediano cultivador consome comsigo e
com os seus uma pequena porção do que produz, e vende a maxima parte.
Com o pequeno succede exactamente o contrario. Consome a maior parte dos
productos, elle e os seus. Vende pouco; mas esse pouco, ás vezes
associado com os jornaes ganhos em serviço alheio, suppre melhor ou
peior aquellas necessidades da familia que não podem satisfazer-se com
os generos da propria lavra. Que significa este consumo quasi inteiro
dos productos? Significa salarios, seu, da mulher, dos filhos; significa
terem-se aproveitado bem todas as forças uteis da familia, emquanto no
trabalho interrompido e vacilante do simples jornaleiro uma grande parte
d'essas forças são annualmente annulladas.

No pensar do sr. P. de M., a pouco onerosa acquisição da terra pelo
aforamento, a parceria agricola, e, ás vezes, as sobras do salario,
estão facilitando ao trabalhador rural o goso da propriedade. Ignoro
como a parceria agricola facilita ao trabalhador o goso da propriedade.
Saberá explical-o o sr. P. de M.. Os salarios capitalisados a que se
refere conheço-os de ha muito; de uma epocha em que elle, provavelmente,
apenas começava os seus longos e profundos estudos sobre estas complexas
materias. Paguei-os e vi capitalisal-os, em enxugos de ribeiras
paludosas e em extensas lavras de arroz, entre as bahias do Tejo e do
Sado. Quem eram, porém, os capitalisadores? Mancebos solteiros, no vigor
da edade, que vinham durante mezes trocar a saude e alguns annos de vida
n'um clima insalubre por poucas moedas de economias, obtidas mais pelas
pequenas empreitadas do que pelo salario. E ainda assim, para
enthesourarem limitadas sobras, cumpria-lhes cortar pelo estricto
necessario, por uma alimentação já de si insufficiente n'aquellas
paragens, e não raro o enfraquecimento physico e a insalubridade do
clima tornavam as longas doenças herdeiras d'esses peculios. Os
cultivadores sinceros d'ente Tejo e Sado poderão dizer ao meu humano
contendor se eu descrevo um facto isolado ou assás commum. Este meio
indirecto de chegar á propriedade não me parece merecer nem confiança,
nem applauso. Chamo-lhe indirecto, porque não é immediato nem exclusivo
para que o proletario rural, isto é, para que o homem que nada possue,
senão a propria actividade e a robustez dos proprios braços, entre no
goso da propriedade. Todo o individuo que adquire um capital maior ou
menor, seja por que modo for, pode convertel-o em dominio territorial.
Fal-o, em regra, por um contracto oneroso, embora variem as fórmas
d'esse contracto. Ora o sr. P. de M. aponta como primeiro instrumento da
conversão do trabalhador em pequeno proprietario o aforamento, que
qualifica de pouco oneroso. Se o é actualmente para o pobre, teremos
depois occasião de o examinar. Em todo o caso, fazendo essa restricção,
reconhece que não pode ser para o jornaleiro um meio senão excepcional,
e as ponderações que fiz, na segunda carta que tive a honra de dirigir a
v. ex.^a, sobre a quasi impossibilidade em que está o simples
trabalhador chefe de familia de fazer economias na alta transitoria dos
salarios, não me parecem de desprezar. De certo, se foram mal cabidas, o
meu illustre contendor não levará tão longe a sua indulgencia para
commigo, que deixe de corrigil-as ou refutal-as.

Resta o aforamento; resta a emphyteuse, considerada absolutamente e em
si. A emphyteuse, sim; n'essa creio eu. No meu modo de ver, esta enorme
vulgaridade, esta tradição dos seculos, para a qual certos theoricos
modernos olham com scientifica sobranceria, é a mais poderosa alavanca
para a um tempo afastar da emigração os jornaleiros ruraes e alistal-os
entre os defensores da propriedade, da paz e da ordem. Apezar de todas
as contrariedades, da falta de auxilio social sufficiente no sentido de
obter taes fins, esse elemento vivaz e fecundo, ajudado pela ambição de
possuir a terra, que domina o proletario rural, está ha muitos annos
produzindo o bem. A questão é se precisa de ser modificado e por que
modo, quaes os obstaculos que ha a remover para que elle funccione com
toda a sua energia, e de que favores carece para esta se tornar mais
forte e de mais rapidos e seguros effeitos. Reservo, como já disse, para
logar opportuno expor a v. ex.^a o que penso a este respeito. São
alvitres de um profano. Os competentes acharão outros melhores; mas cada
qual paga á sociedade o seu tributo de idéas em conformidade dos seus
recursos intellectuaes, como no imposto directo cada qual _deve_ pagar
na proporção dos seus haveres. O que é certo é que sobre este ponto
tenho por mim a valiosa auctoridade do sr. P. de M., que não deixará,
com a sua mil vezes superior sciencia e experiencia, de supprir,
emendar, e estabelecer mais solidamente o que nas minhas opiniões houver
incompleto, erroneo ou mal fundamentado.

Não desejo que, em geral, o jornaleiro venha a possuir algumas geiras de
terra e uma choupana, porque queira ou supponha que n'essa situação
fique em melhores condições relativas que o grande e o mediano
proprietarios, nem que possa eximir-se de trocar com elles o trabalho
pelo jornal. Os meus desejos são mais modestos. Vejo n'isso unicamente
um meio real de tornar permanente e sufficiente o salario da familia
obreira, applicada e fructifera toda a potencia do trabalho nacional em
relação á riqueza agricola. Escuso de affirmar de novo a minha crença
ácerca do bem que d'ahi ha-de resultar para reduzir consideravelmente a
emigração e fortificar a sociedade, emquanto é tempo, contra os perigos
que surgem, embora em remoto horizonte. Que o proprietario cultivador
mais ou menos abastado possua os commodos e gosos que o habito converteu
para elle em necessidades; mas que o trabalhador tenha os meios de se
isentar da miseria pelo trabalho; que a familia obreira desconheça a
nudez, a fome e a falta de abrigo. O christianismo, a humanidade e a
justiça impõe ás consciencias honradas o dever de adherirem a todos os
esforços que se façam em tal sentido. A classe media, a classe
predominante, se pensar n'isso, verá que faz um bom negocio
associando-se a este pensamento. O egoismo, quando illustrado e sensato,
pode muitas vezes ajudar a obter o bom resultado de conselhos sinceros e
moderados, que, se até certo ponto aproveitam aos desvalidos, porventura
aproveitarão ainda melhor ao interesse d'aquelles que, ignorando a
historia dos grandes cataclismos das sociedades, vêm n'esses conselhos
leaes o intuito de os prejudicar.

O artigo do sr. P. de M. conclue por me chamar a um terreno ardente e
escorregadio, no qual cuidadosamente tenho evitado entrar. É o das
relações moraes entre o operario rural e o grande ou mediano cultivador.
Não vou. Sei aonde elle me pode conduzir. N'esta edade, ama-se a paz.
Todavia, isso não obsta a que me associe cordealmente aos votos que o
meu illustre adversario faz para que nos campos se restaurem os laços da
vida moral. Tem-nos, com effeito, despedaçado quasi completamente as
luctas de ambições politicas, a cubiça imprevidente de influencias
obscuras, a depravação e a incapacidade do clero, o vicioso e incompleto
das instituições, o desleixo dos governos, a impotencia das
magistraturas ante a preponderancia de forças extra-legaes. É o que
explica de sobejo a decadencia moral do campo. Nos sitios em que vivo,
não conheço esses reformadores de má nota, principaes missionarios de
idéas perniciosas e dissolventes de que o meu caro contendor se queixa,
salvo se eu proprio o sou, sem d'isso dar tino. Creio mais facil
descobril-os entre as populações urbanas. Pela minha parte, se pequei,
foi na persuasão de que as vozes que soam do pulpito da imprensa não
chegam aos ouvidos do rustico trabalhador, e de que, ainda quando as
ouvisse, elle não as entenderia. Persuadi-me de que fazia bom serviço ao
paiz se dirigisse aos animos dos que podem ouvir-me e entender-me
palavras que os fizessem reflectir sobre os seus verdadeiros interesses,
e lhes despertassem o sentimento em que, por assim dizer, se encerra
todo o christianismo--a piedade para com os que padecem. Estou
certissimo de que a alta intelligencia do sr. P. de M. faz plena justiça
ás minhas intenções. Que outros a façam ou não, pouco me importa. Todas
as classes sociaes, cujos interesses, mais ou menos legitimos, são
feridos por qualquer opinião, acham sempre essa opinião perniciosa e
dissolvente. É a natureza humana.

Nada mais certo do que a necessidade de supprimir a anarchia moral e
estabelecer o respeito _mutuo_, não direi entre as diversas classes, mas
entre os direitos das diversas classes ou categorias sociaes. No campo e
na cidade, a moral publica é egualmente necessaria: n'este ponto, não é
possivel a discordancia entre nós. Que o jornaleiro e o creado ruraes se
abstenham do tão generalisado vicio dos pequenos, mas continuos furtos e
estragos nas grandes, nas medianas e nas pequenas propriedades; que dêem
ao cultivador, ao amo, o trabalho que lhes devem pelo jornal ou soldada
que recebem, cumprindo um contracto livremente celebrado; que não tornem
pouco digna de compaixão a sua miseria, pelo jogo, pela embriaguez, pela
devassidão; que aprendam a respeitar os laços santos da familia; que por
preguiça, indolencia ou genio brutal, não causem perdas graves e diarias
no capital movel ou semovente do agricultor; que não tractem, por todos
os meios que a malicia e a dissimulação lhes suggerem, de transtornar os
melhoramentos de cultura, que em beneficio proprio, e muitas vezes em
beneficio d'elles, tenta com sacrificios custosos o grande ou o mediano
cultivador; que não busquem vingança dos procedimentos que reputam
injustos com a calumnia, com o incendio covarde, com as aggressões
atraiçoadas. Forcejemos todos por arredar d'estes habitos funestos o
trabalhador rural. Mas que o grande ou mediano proprietario ou
agricultor...

Agora reparo que esta carta vai já demasiado longa, e que excedo os
limites rasoaveis de ser importuno. Tractarei de me cohibir de futuro,
quando outras occupações me permittirem dirigir-me de novo a v. ex.^a.


VIII


Ill.^{mo} e ex.^{mo} sr.--Nas cartas precedentes tenho dicto e repetido
que, na minha opinião, o mais poderoso instrumento para combater de modo
efficaz a emigração do trabalhador rural, quando ella proceda do
desequilibrio entre as suas necessidades impreteriveis e os seus meios
de as remediar, seria o promover energicamente os aforamentos.
Accrescentei que as providencias dirigidas a occorrer a um mal assás
grave seriam ao mesmo tempo prevenções não menos efficazes para obstar
ás perturbações profundas que ameaçam a Europa, contra as quaes as
outras nações se premunem, e de que não devemos suppor que ficaremos
isentos.

Não basta, porém, dizer isto. É preciso descer a considerações mais
particularisadas sobre o systema emphyteutico; fazer sentir toda a
extensão da sua benefica influencia; examinar os obstaculos que se
oppõem ao seu desenvolvimento; ver como, até onde, e em que sentido, a
lei deve promovel-o, sem quebra das maximas fundamentaes do nosso
direito publico, mas, sobretudo, sem a minima offensa do direito de
propriedade, que precisamos de fortificar e não de enfraquecer.

As vicissitudes da emphytheuse, as suas transformações successivas, o
seu maior ou menor predominio em diversas epochas e nos diversos paizes
da Europa central e meridional, desde a sua origem na sociedade romana
até o nosso tempo, são cousas alheias á questão da sua indole actual.
Tomemol-a como a constituiu a nossa legislação civil, e vejamos depois
se esta legislação tem de ser modificada para que ella possa desenvolver
completamente a sua acção em chamar a classe trabalhadora,
exclusivamente trabalhadora, ao goso da propriedade.

Dos tres elementos em que se decompõe o producto da industria agricola,
a renda, o custo da producção, e o lucro do agricultor, elementos que a
rigorosa analyse reduziria a um unico--a retribuição do trabalho, tanto
physico como intellectual, tanto consolidado como em acção--o que, no
predio emphyteutico, apresenta um modo de ser especial é a renda. No
predio allodial, o trabalho consolidado e, por assim dizer, n'elle
immanente, d'onde a renda deriva, é sempre e integralmente do
proprietario. Se este deixa a outrem a faculdade de cultivar, não lhe
transmitte a minima parte do seu dominio pleno. A concessão é
temporaria, por mais longa que seja, e a quebra de qualquer condição do
contracto de arrendamento pode annullal-o. D'esse contracto deriva a
fruição do uso transitorio da terra; nunca, porém, a do uso perpetuo.
Se, com permissão ou sem permissão do dono, o rendeiro consolida ahi
algum trabalho, este, retribuido ou não retribuido pelo proprietario,
conforme as circumstancias, incorpora-se forçosamente no dominio pleno.
Na emphyteuse o dominio divide-se em directo e util. Ha dois
possuidores: um do senhorio eminente, outro do uso perpetuo. Cada um dos
dois factos, na sua esphera, é completo, absoluto. Economicamente, o
dominio directo corresponde á propriedade do capital de trabalho
consolidado na terra até o acto do aforamento: o censo ou foro
representa a renda d'esses valores accumulados, o juro d'esse capital
productivo. O uso perpetuo ou dominio util habilita o acquirente a
consolidar no predio adquirido novo trabalho, capital novo, cuja renda é
sua. Abstrahindo da solução do foro e das consequencias que d'isso
derivam, o emphyteuta está perfeitamente na situação do proprietario
allodial.

O codigo civil, abolindo o laudemio, presuppoz implicitamente esta
doutrina. O laudemio representava, na hypothese de venda, uma quota dos
valores capitalisados na terra pelo foreiro, deduzida do preço total do
predio, em beneficio do senhor directo. O codigo respeitou, quanto ao
passado, a extorsão consentida e absolvida pelo contracto; mas prohibiu
que continuasse de futuro á sombra de uma praxe, cujo unico fundamento
era um inveterado abuso. Reconheceu no praso duas propriedades
incorporadas no mesmo solo, mas distinctas e ambas completas na
respectiva esphera, e por isso equiparou no privilegio do direito de
prelação o senhorio e o foreiro.

Á luz economica, o foro não pode effectivamente ser senão a
representação do juro ou renda de um capital de trabalho associado
inseparavelmente com a terra. No estado actual das nações mais ou menos
civilisadas a separação da terra e do trabalho seria difficil. Por via
de regra, só pode dar-se na abstracção, subjectivamente: no real, andam
sempre unidos. A meu ver, o trabalho é a unica base do direito de
propriedade territorial, como de quaesquer direitos analogos, e é a essa
luz que elles podem defender-se com vantagem das aggressões socialistas.
A terra, considerada em si, exclusivamente, é tanto objecto do direito
de propriedade, como a atmosphera, a luz, a chuva, o vapor, a
electricidade. As suas forças productivas dormem inuteis e infecundas
emquanto não as desperta o trabalho, e o trabalho é a prolação do
individuo, a manifestação da sua intelligencia e da sua força. A sua
intelligencia e a sua força estão lá. Mutilam-no se o expulsam do solo
vivificado por elle. Se consumiu o producto que resultou d'aquelle
facto, voltou ao individuo o que do individuo saira. Se não o consumiu;
se o converteu em instrumento cooperativo da nova producção, essa deriva
tão completamente da sua intelligencia e da sua força, como o primeiro
producto. Assim por diante. D'ahi a perpetuidade inseparavel d'este
direito primario; d'ahi a faculdade da transmissão, que as leis
positivas regulam, mas que não criam, porque procede inevitavelmente de
um direito primordial.

Na emphyteuse o dono do solo nada, em rigor, transmitte ao foreiro;
retira, apenas a sua acção sobre a terra; e como o capital do trabalho
ahi accumulado não pode separar-se d'ella, em vez de o transmittir por
um preço convencionado, como na venda, fal-o representar pelo juro
respectivo. É assim que a lei, na falta de outro meio de apreciação,
considera como equivalentes ao capital do foro vinte prestações
emphyteuticas.

Parece oppor-se a esta doutrina o aforamento de terrenos incultos. Se,
porém, descermos á analyse dos factos economicos e sociaes correlativos,
achal-a-hemos confirmada por aquillo mesmo que apparentemente a infirma.
Peço a attenção de v. ex.^a para as subsequentes considerações.
Ver-se-ha depois quanto ellas importam para resolver, sem offensa dos
principios, certas difficuldades que obstam á accessão do proletario á
propriedade territorial.

O trabalho humano que vai, transformado em valor, incorporar-se n'um
tracto de terra nem sempre tem a apparencia de uma incorporação real.
Se, por exemplo, construo um aqueducto para regar um campo, e o levo,
atravez de predios alheios ou de terrenos de uso commum, até á beira
d'aquelle campo, o trabalho ou capital que custou o aqueducto está
inherente, na sua manifestação sensivel, a esses predios ou terrenos;
mas o seu valor adhere ao campo que as regas vão fecundar. Ás vezes é um
trabalho alheio e individual, feito sem a minima intenção de me
beneficiar, que vem, pela força das cousas, tornar-me participante dos
seus resultados permanentes, e incorporar no meu dominio uma porção do
seu valor. Possuo, por exemplo, um predio situado na parte inferior de
um valle varrido por nortadas impetuosas e destruidoras. A parte
superior do valle, e as collinas nuas que o cercam pertencem a outro
dono. Para annullar a impetuosidade dos ventos, elle povôa as collinas
de extensos pinhaes. Foi a sua unica intenção ser util a si; mas sem
elle o querer, sem o pensar, o seu capital ou o seu trabalho ajunctou um
valor á minha propriedade. Assim em outras hypotheses, que seria facil
exemplificar.

O terreno inculto, mais ou menos visinho de habitações, proximo de vias
publicas, de fontes publicas, de canaes ou correntes que a mão do homem
converteu em meios de transporte, tendo facil communicação com os
grandes mercados; esse terreno, capaz de ser possuido, porque o complexo
dos factos e de instituições sociaes tornou possivel a sua occupação,
adquiriu um valor que se uniu inseparavelmente ao solo. Este valor é uma
quota do trabalho collectivo da sociedade, que a sociedade destinou ao
uso commum, e que só pode realisar-se individuando-se. A estrada é util,
porque o individuo pode caminhar por ella; o canal, porque o individuo
pode ahi navegar; a segurança, porque o individuo pode ser protegido por
ella. Cousas taes e outras analogas tem valor só pela individuação.

E esta interferencia do trabalho social na creação de valores que caem
sob o dominio particular não é uma hypothese gratuita para explicar sob
certo aspecto a propriedade territorial; é o facto constante, passado e
presente, que sem interrupção se realisa, tanto quando a civilisação se
inicía, como quando progride. Os poderes publicos, colligindo parcellas
do trabalho individual e applicando-as com o intuito do bem commum,
espargem ineluctavelmente os resultados dos esforços collectivos na
creacão ou no accrescimo de valor em objectos de dominio privado, embora
a manifestação sensivel fique ligada ás cousas que, na subtancia,
pertencem á communidade.

Supponha-se um tracto vastissimo de terreno inculto, contendo em si as
mais energicas faculdades de producção, mas situado n'um paiz deserto,
rodeado de brenhas impervias, murado por alcantís inaccessiveis,
retalhado por correntes invadiaveis, e acolheita de animaes ferozes. Que
valor apreciavel teriam os terrenos contidos n'essa região, fosse qual
fosse a energia creadora dos elementos latentes alli? Nenhum. Abram-se,
porém, largas estradas atravez das brenhas, achanem-se os alcantís,
converta a arte os rios em vias aquaticas, ou domem as pontes as suas
resistencias á communicação dos homens, façam-se brotar as fontes de
agua potavel, destruam-se ou expulsem-se as feras, e o que não tinha
valor impregnar-se-ha d'elle. Que o homem surja e se apodere de um
tracto maior ou menor d'esses terrenos, a individuação realisou-se. Como
d'antes, aquella superficie conserva o rude sello que ahi estampara a
natureza: nada apparentemente mudou; e todavia, como lá se encontraram o
homem e o valor, producto do trabalho social, a propriedade nasceu.

As forças da natureza são dom gratuito de Deus. Empregal-as como
auxiliares do trabalho é direito commum, direito egual para todos. Se me
apoderei das da terra em certo espaço d'ella, só um direito melhor que o
meu poderia vir depois destruir esse facto. Ora, o direito de outrem é
precisamente egual ao meu. Ha, pois, duas forças eguaes que se
equilibram. Portanto, o meu acto, que é anterior, subsiste. Não é ainda
a propriedade; mas se o trabalho, quer collectivo, quer individual, veiu
associar a esse acto uma parcella de valor--o elemento radical da
propriedade--essa propriedade é minha, porque aquelle valor se
incorporou e immobilisou no objecto em que exerço o meu direito ao livre
uso das faculdades productivas da terra. Por outro lado, se uma parcella
do trabalho commum cáe sob o meu dominio exclusivo, tambem n'esse
trabalho commum ha, pela acção directa, ou representada no imposto, uma
parte com que eu contribui. Que viesse augmentada ou diminuida, em
consequencia das leis economicas e dos seus, muitas vezes imprevistos, e
sempre incoerciveis effeitos, a quota que me coube é na essencia uma
restituição.

Assim, no territorio de uma sociedade organisada, om um grau maior ou
menor de civilisação, o valor do predio inculto, sob o dominio de
qualquer individuo, teve, ou n'elle ou nos que lh'o transmittiram, uma
origem tão racional, constitue uma propriedade tão legitima, como o
valor do predio cultivado. A unica differença está na diversa
intensidade dos dois valores. De certo o possuidor do predio onde apenas
se acha consolidada uma quota do producto do trabalho commum, não
exigirá o mesmo preço de venda ou o mesmo foro que exigiria, se com essa
quota se achasse incorporado o producto do seu trabalho directo. N'isto
está unicamente a differença: diversidade de capital e diversidade de
juro.

Qual é, pois, o facto que se dá na emphyteuse? O possuidor da terra
conserva ahi pelo dominio directo o que é seu, e só abandona o uso das
faculdades productivas do solo, dom gratuito da natureza. Não ha pois
transmissão de propriedade no contracto emphyteutico, quer este seja
respectivo a terrenos incultos, quer a terrenos cultivados. Na
emphyteuse ha um acto e um contracto: contracto de censo, de juro, de
renda perpetua, como a linguagem juridica lhe quizer chamar; acto de
abstenção do uso de certas forças naturaes que não podem constituir
propriedade.

Das precedentes considerações derivam duas consequencias luminosas que
podem guiar os poderes publicos nos seus esforços para trazer o
proletariado rustico a melhores condições de existencia, libertando-o da
emigração quando a ella o fórça a miseria, ligando-o á manutenção da
ordem e da propriedade pelo proprio interesse, tornando-o cooperador
mais energico e efficaz do accrescimo da riqueza publica, e
moralisando-o pelo bem estar domestico. A primeira consequencia é que
todas as disposições legislativas tendentes a obter estes fins devem
especialmente promover a emphyteuse nos terrenos incultos, onde, de
ordinario, o foro é moderado, e onde o colono não pode deixar de
incorporar no solo uma parte avultada do seu trabalho; convertido em
valor immanente, em capital productivo, que augmente de anno para anno o
bem estar da familia obreira, e crie para ella a verdadeira propriedade
territorial. Aparcellar, por pequenas emphyteuses, vastos terrenos já
reduzidos a cultura, tem vantagens e desvantagens que mutuamente se
annullam e que seria longo e extemporaneo discutir aqui. Nos baldios, as
desvantagens desapparecem e as vantagens subsistem, como depois veremos.
A segunda consequencia é que no complexo de leis e providencias
destinadas a elevar a condição moral e material do trabalhador agricola,
o respeito ao direito de propriedade e á justiça nunca se ha-de
preterir, á sombra de qualquer pretexto de utilidade commum, ou de
qualquer sophisma politico mais ou menos subtil. O estado pode
distribuir a quem entender, e como entender, a porção de solo que tem
legalmente debaixo do proprio dominio. É uma pessoa moral que usa do seu
direito. Se prefere a individuação allodial, em grandes ou pequenos
tractos de terra, commette, a meu ver, um erro, mas erro legitimo. O que
não pode é dispor do que é alheio, em nome das conveniencias sociaes. As
leis agrarias, as leis de sesmaria, mais ou menos applaudidas outr'ora
pela irreflexão, seriam na epocha actual, em relação á propriedade
individuada, um absurdo brutal, uma pura violencia. Os desvarios do
socialismo podem desculpar-se e perdoar-se quando rugem nos grandes
receptaculos das profundas miserias; mas o socialismo, descendo das
regiões do poder, que representa a sciencia, a consciencia e a vontade
justa e serena da sociedade, será fatal ainda mais para as gerações
futuras do que para a geração presente. Se a liberdade é contagiosa, o
despotismo é prolifico. A mancenilheira, que mata, cresce e braceja como
as arvores cujos fructos mantêm a vida. Em questões cuja solução possa
collidir com a liberdade e a propriedade individuaes, cumpre sobretudo
que a lei seja suasoria, e tenha, quanto for possivel, um caracter
facultativo. A persuasão da lei consiste em oppor um interesse maior e
novo ao interesse menor e antigo. Deixem o resto ás tendencias ingenitas
do coração humano. Tenho pouca fé no bem que pode provir da extorsão ou
de outra violencia, da quebra dos direitos originarios dos cidadãos.
Vai-se longe, guiado pela mão da logica, logo que se entra n'este triste
caminho.


IX

*Val-de-Lobos, janeiro de 1875.*


Ill.^{mo} e ex.^{mo} sr.--Meu amigo, n'estes sitios, onde a oliveira,
nos annos de safra, representa o mais importante papel agricola, e onde
sempre as sementeiras das nossas terras, geralmente pobres, carecem de
ser temporans, não sobra demasiado tempo ao cultivador, durante os mezes
de outubro a dezembro, para estar enfileirando idéas, e sabe Deus se
apenas phrases, sobre o papel. É por isso que tenho deixado respirar v.
ex.^a da tediosa leitura das minhas cartas. Se, porém, a tardança lhe
foi allivio, vai esta provar-lhe que ainda não expiou de todo o delicto
de as haver provocado.

A ultima das que a precederam suscitou a severidade da critica.
Achei-me, sem saber como, paradoxal. Pasmará v. ex.^.a Não pasme. É que
a palavra paradoxo significa hoje cousa diversa do que pensa. No nosso
tempo significava uma proposição verdadeira ou falsa (de ordinario
falsa) contraria ao sentir commum. Pois bem. Sabe v. ex.^a em que
consistiram os meus paradoxos? Em suppor que havia direitos primordiaes,
originarios, absolutos, e em imaginar (_horresco referens_) que o
possuidor legal de um terreno inculto era dono legitimo d'elle. Podem
ser dous erros grosseiros: mas que fossem paradoxos é o que nós não
suspeitariamos quando frequentavamos as escolas. São-no hoje: que quer
v. ex.^a que eu lhe faça? E todavia estes dous erros estão no amago de
uma questão suprema--a da legitimidade ou illegitimidade das condições e
essencia do liberalismo, do molde social por cuja manutenção ambos nós
temos longamente combatido; v. ex.^a com os seus poderosos e variados
meios; eu com os meus fracos recursos. Se porventura são erros, se
acertos, havemos de averigual-o. Custar-me-ha entretanto considerar os
taes paradoxos como desacertos, e provavelmente a v. ex.^a succederá o
mesmo. Estou velho, e v. ex.^a tambem. Os velhos são tenazes em manter
as suas opiniões da edade viril. Até, ás vezes, ignoram redondamente
muita cousa boa, que não foi do seu tempo. Digo isto por mim. Ando no
inverno da vida tão arredado do mundo e dos livros, que o ignorar os
mais recentes progressos do espirito humano não é em mim nenhum milagre.
A civilisacão, como os rios caudaes, deslisa pela amplidão das eras
majestosa e serena, e todavia rapida. Quem não a acompanha nas suas
incessantes evoluções acha-se abraçado com o erro quando cria abraçar a
verdade. Nada mais facil do que estar eu dando hoje um lastimoso exemplo
da exacção d'esta doutrina.

Consinta-me, em todo o caso, v. ex.^a que, antes de proseguir, recorde e
resuma aqui, nas menos palavras possiveis, o estado da questão sobre a
qual teve a imprudencia de pedir o meu voto. É uma razão de ordem.
Tracta-se da emigração para a America. Na minha opinião, salvo certos
actos vulgares de protecção e policia, rigorosamente contidos dentro dos
limites constitucionaes, nada ha a fazer sobre este assumpto, que seja
fecundo e legitimo, senão proceder de modo que a miseria, causa efficaz
da emigração, e quanto a mim a mais efficaz de todas, cesse de impellir
os nossos trabalhadores ruraes para além do Atlantico. As demais causas
de emigração ligam-se com a liberdade e responsabilidade individuaes, e
n'um paiz livre, nada ou muito pouco seria licito aos poderes publicos
tentar para as remover. Parece-me tambem que o grande e, talvez, unico
meio de combater vigorosamente essa miseria consistiria em associar ao
trabalho rustico a propriedade territorial, de maneira que mutuamente se
auxiliassem para melhorar a condição do obreiro. Seguindo esta senda,
fariamos ao mesmo tempo crua, mas incruenta guerra ao leviathan que
surge ameaçador nos horizontes politicos, o internacionalismo,
furtando-lhe o proletario do campo, o proletario seriamente perigoso,
sobretudo nos paizes de apoucada industria fabril. A emphyteuse, na
simplicidade a que a reduziu o codigo civil, não lhe deixando da
emphyteuse romana senão a essencia e o nome, e que a lei pode ainda
tornar mais facil, e promover, além d'isso, energicamente, afigura-se-me
um instrumento completamente adequado á realisação d'esse grande
intuito. Nem o busquei, nem o achei em nenhum recanto de qualquer livro
exquisito, d'esses que nos vem de fóra e nos quaes tanta gente abdica a
propria intelligencia. Nasci, cresci, vivi, envelheci ao pé d'elle.
Tenho-o visto funccionar toda a vida: vejo ao redor de mim os seus
maravilhosos effeitos. A emphyteuse está radicada nas tradições e nos
habitos do nosso paiz. Acceitam-n'a, comprehendem-n'a o burguez e o
rustico, o rico e o pobre, o douto e o ignorante: acceitavam-n'a e
comprehendiam-n'a quando era uma cousa multimoda, complexa. Ninguem se
crê nobilitado por ser senhorio directo; ninguem aviltado por ser
emphyteuta. Se a frequenta mais a pequena propriedade, não a desconhece
a grande. As provas do que vale para converter charnecas em campos
ridentes, e para augmentar a pequena e mais esmerada cultura, estão
escriptas na face da terra por todas as provincias do reino. Pode, em
summa, dizer-se afoitamente que Portugal é o verdadeiro representante da
emphyteuse na Europa moderna.

Para um auctor de paradoxos, lá parece que estas idéas encerram
trivialidades de mais. É o sentir commum; sobretudo o sentir dos homens
do campo, cuja propensão para este antigo contracto é indisputavel. Na
substancia, o meu modo de ver carece absolutamente de originalidade.
Todas as demais considerações em que tenho entrado são accessorias, e em
geral tendentes a justificar de antemão as condições com que entendo se
deve applicar o meio proposto para se obter o fim desejado. A critica,
na sua indubitavel superioridade, podia olhar com desdem para estas
velharias e vulgaridades; mas, se admitte a existencia da molestia,
podia tambem substituil-as pelas prescripções da sua therapeutica. Se,
como supponho, porque a critica é ás vezes ambigua, queria condemnar a
emphyteuse de hoje, que se divorciou do passado, não era preciso
confundir factos distinctos da historia. Era mais simples e instructivo
demonstrar os inconvenientes ou a inutilidade do meio proposto, se é que
o reputa inconveniente ou inutil. É verdade que allude vagamente a
anteriores e fugitivos escriptos, onde se contêm as fórmulas dos
medicamentos applicaveis ao caso; mas isso parece-me que é exigir muito
da retentiva de um espirito gasto e cansado. Depois, os que nos lerem,
que serão bem poucos, porque estas questões não divertem a frivolidade,
não tem obrigação de conhecer esses escriptos, e de os haver decorado.
Convinha, por isso, expor, ou ao menos indicar os melhores arbitrios.
Nunca é demais reaccender o pharol que allumia o navegante nas trevas do
oceano. O sol esconde-se todos os dias á tarde; mas tambem ainda não se
esqueceu de surgir todas as manhãs no oriente.

A critica lamenta que se não fizesse, a proposito da emphyteuse, a
historia clara e resumida de todos os vexames e extorsões de outros
tempos, que até epochas bem recentes pesaram sobre a industria rural do
nosso paiz. Não sei se isto é commigo, ou se é um artificio rhetorico
para a critica poder fazer essa historia com aquella elegancia
descuidosa, que só é dada ás grandes syntheses modernas. Se é commigo, a
minha intelligencia não alcança que proveito se possa tirar, para a
solução de um problema actual, do livro que pede a critica; porque não é
nada menos o que ella pede. Do modo como se exprime, parece deduzir-se
que, no todo ou em parte, a emphyteuse foi o instrumento d'esses vexames
e extorsões. Sem isso, como perceber que papel havia de fazer no debate
o exigido volume?

A razão, porém, d'essa exigencia pretende dal-a a critica.--A historia
da emphyteuse, e _em geral_ do operario rural (parece que o emphyteuta
era uma especie do genero operario rural, do moderno proletario rustico)
serviria para proporcionar á _classe desvalida_ o conhecimento do
passado, afim de não desanimar e não ter a sua situação actual como a
peior possivel.--Peço á critica me soffra dar tambem razão de mim.
Estava persuadido de que as classes desvalidas do campo nem sabiam ler,
nem tinham tempo para isso, e de que, ainda quando o soubessem ou o
tivessem, não entenderiam a tal historia, de sua natureza obscura e
difficil. Depois, a minha capacidade seria insufficiente para a fazer
comprehender aos entendimentos mediocremente subtis das dictas classes
desvalidas. Entendi que era melhor estudar os meios de tornar a sua
sorte menos dura do que prégar-lhes a resignação e
dizer-lhes:--«Paciencia, meus amigos. A vossa situação não é tão má como
a pintam. Já houve peior do que isto.»

Creio que, dicto a ellas e em relação a ellas, a prédica era não sómente
inutil, mas tambem de mais que duvidosa exacção.

Eu imaginava que a triste historia da oppressão das populações rusticas
era alheia á emphyteuse; imaginava que, na origem, foi a historia do
ergástulo dos latifundios que perderam a Italia, da escravidão rural
entre os romanos, escravidão aggravada ainda mais pelas conquistas dos
barbaros nas provincias do imperio em dissolução; imaginava que, depois,
o escravo immobiliario tanto romano como germanico, cultivador do predio
rural, fôra melhorando de condição ao passo que se convertia em servo da
gleba ou adscripticio, e que fora n'essa situação que se transformara
juridicamente de _cousa_ em ente humano, de ente humano em _pessoa_.
Cria que, no occidente da Peninsula, uma parte d'estes adscriptos tinham
passado nos seculos XI e XII a colonos pessoalmente livres de uma terra
serva, e que fôra esta servidão (a servidão _adscripticia da terra_, de
que falla a critica, nunca chegou ao meu conhecimento) que fizera
adherir ao solo cultivado grande parte dos encargos, sujeições e
vexames, que o servo adscripticio herdara do escravo immobiliario, e que
o colono livre herdava do adscripto. É o que uma sciencia, que vejo ter
caducado, ensinava ácerca da origem d'essa enorme variedade de direitos
senhoriaes que, mais ou menos, continuaram a opprimir a agricultura até
os nossos dias. Que tem com isto a emphyteuse? A emphyteuse romana era
um contracto livre entre o proprietario e o colono espontaneo. Esta
especie de colonato, perpetuado atravez dos seculos, nada tinha que ver
com a condição das familias de origem servil que de paes a filhos
cultivaram a honra, o couto, o proprio allodio não nobre, e o territorio
reguengo. A tradição romana da emphyteuse exerceu n'aquella epocha, e
ainda mais nos seculos immediatos, vasta influencia, mas foi em
transferir uma parte do direito de propriedade, isso a que chamamos
dominio util, para o industrial agricola. Se fez alguma cousa no sentido
economico, foi tornar menos facil o abuso e a extorsão, definindo por um
contracto os mutuos direitos e obrigações do senhorio e do cultivador. O
simples reguengueiro, que agricultava o predio do Estado só porque seus
paes e avós o tinham agricultado, passava a ter condominio n'esse predio
pelo aforamento, ao passo que aldeias inteiras mudavam egualmente de
situação juridica pelos aforamentos collectivos, que variavam de
condições até o ponto de se tornarem alguns em rudimentos de concelhos.
As _rações_ ou quotas de fructos, fluctuantes e incertas, convertiam-se
em prestações fixas, que podiam não ser menos onerosas, mas que ao menos
eram certas e sabidas. Ao mesmo tempo, nos dilatados alfozes dos grandes
concelhos que se constituiam, sobretudo no sul do reino, a distribuição
das terras, pelo sesmo, multiplicava largamente a propriedade allodial
posto que tributaria, como nos seculos anteriores a diffundira a
_presuria_ villan. O exemplo dos aforamentos nos territorios reguengos,
e o temor de que os proprios colonos fossem buscar a fruição da
propriedade plena, embora tributaria, no seio dos grandes municipios,
induziam naturalmente os senhores de honras e coutos a transferir do
mesmo modo para os agricultores um quinhão no dominio das terras
immunes. A emphyteuse nem aggravava, nem alliviava encargos. Fazia mais
do que isso: suscitava no coração do homem do campo dois altos
sentimentos--o da propriedade, embora incompleta, e o de certo grau de
independencia. Para nós seria bem pouco: para homens apenas emancipados
era uma revolução; uma d'estas revoluções lentas e serenas, que de
ordinario são as boas e duradouras.

Herdeiros dos _presores_ plebeus dos tres primeiros seculos da reacção
christã e herdeiros dos _privati_ mosarabes, confundidos com aquelles,
já no seculo XII, sob o nome commum de _herdadores_, e representando a
propriedade allodial não immune;--vizinhos dos concelhos a quem se
distribuiram terras com pleno dominio e que tambem se confundiram com os
antigos herdadores;--foreiros das aldeias por titulo collectivo, e
foreiros por titulo singular de predios avulsos, nos reguengos, nas
honras e nos coutos;--reguengueiros convertidos já em proprietarios nos
fins do seculo XIV, mas obrigados á solução das rações, que tomaram de
certo modo o caracter de um tributo, e que subsistiram até os nossos
dias como vestigio do antigo stygma da servidão;--eis os individuos que,
na velha monarchia, correspondiam ás varias especies de proprietarios
actuaes, afóra os possuidores com dominio pleno dos predios
privilegiados, que as revoluções contemporaneas, com sobejo fundamento,
fizeram entrar no direito commum.

Ao lado, porém, ou mais exactamente, abaixo d'este grupo, estava outro
que não era fadado, como elle, para constituir, passados seculos, a
parte mais numerosa e respeitada, senão a mais rica e mais culta da
classe media--a dos proprietarios ruraes e agricultores. Constituiam
ess'outro grupo os individuos de origem servil ou plebeia, que por
causas diversas não tinham attingido a esphera da propriedade
territorial ou que haviam perdido esta, e que eram conhecidos pelas
varias denominações de malados, de solarengos, de homens de criação, de
mancebos, de cabaneiros, de serviçaes, de soldadeiros, denominações que
se encontram com frequencia nos antigos documentos, sobretudo nos foraes
e nas compilações do direito consuetudinario dos concelhos. No seculo
XIII aquella infima classe abrangia já uma avultada porção de
individuos, que tinham por unica propriedade o trabalho. Tão
consideravel era o seu numero, que se julgou necessaria, no reinado de
Affonso II, uma lei contra a vadiagem, obrigando todo o que não
possuisse bens de raiz a viver de algum mister ou a assoldadar-se com
alguem, sob pena de ser expulso do reino. O preço do serviço d'estes
proletarios, em conformidade das falsas idéas economicas d'aquelles
tempos, era, annos depois, taxado, sobretudo em relação aos serviçaes do
campo, n'uma lei de Affonso III. Na legislação dos subsequentes reinados
e nos artigos de cortes as referencias a esta classe de individuos não
são raras. Negar a sua existencia entre nós seria desconhecer, não só a
historia social do reino, mas tambem a de todas as sociedades modernas.

A critica, porém, confunde, não digo que de má fé, mas por menos pausada
reflexão, esses dois grupos, tão distinctos d'antes como o são agora.
Evidentemente andou por aqui a synthese. Depois de enumerar os varios
tributos directos, os direitos senhoriaes, as rendas, as prestações
emphyteuticas, os serviços, as rações e foragens das terras
reguengueiras não aforadas e das immunes, diz que poderia oppor esse
quadro á situação presente do _operario rural_, mas que não o fará. Tomo
a liberdade de a contradizer, para ser mais justo com ella do que ella o
é comsigo mesma. Não só não o fará, mas tambem não poderia fazel-o,
porque é incapaz de fazer disparates. Pois o operario rural tinha,
geralmente fallando, alguma cousa que ver com os tributos directos dos
concelhos e da coroa, com os direitos senhoriaes das terras nobres e
ecclesiasticas, com as gravosas prestações emphyteuticas, com os quartos
e foragens reguengueiras, com os dizimos e primicias? Recaiam esses onus
sobre elle, ou sobre o proprietario ou lavrador a quem servia? A
consequencia de tantas extorsões era não se cultivarem senão as terras
que podiam supportal-as e achar-se assim a maior parte do paiz inculto;
era viverem o lavrador e o proprietario rural não privilegiado uma vida
quasi tão angustiosa como a do operario; era o estacionamento ou o
decrescer da população; era o fugir-se á miseria pelo respiradouro das
emprezas maritimas e das conquistas, que consumiram as forças vivas do
reino e que, enriquecendo-o na apparencia, o empobreceram na realidade,
convertendo-o n'um gremio social, cujas feições caracteristicas foram
por seculos o madraço e o mendigo. Sobre o salario rural não recaíam,
nem por incidencia, esses onus. Creio o salario actual insufficiente
emquanto provas positivas, que ha tanto tempo espero, não vierem
infirmar as revelações da estatistica: não sei como n'esses tempos elle
poderia ser inferior ao insufficiente. O trabalhador morria. Depois,
para obstar á depreciação do trabalho lá estava o fatal caldeirão da
portaria monastica, instrumento de equilibrio economico, que, dispensado
por nós, a França aproveitou para fundir em _atelier national_. Assim,
já no principio d'este seculo, quando ainda pesavam sobre a agricultura
os mais gravosos d'esses antigos encargos, o salario rural attingiu ás
vezes, n'algumas provincias, o preço de 500 réis, equivalentes quasi a
700 réis actuaes, maximo a que difficilmente pode hoje chegar[15].

O liberalismo fez desapparecer quasi inteiramente toda essa farragem de
extorsões legaes. Quem ganhou com isso não foi o operario rural; foi o
industrial agricola e o proprietario, quer allodial, quer emphyteutico.
Seria entre estes, entre os que viveram em epochas passadas e os que
vivem hoje, que racionalmente se poderiam instituir comparações. Deixo
de o fazer em attenção á critica. Ella já me disse que a sorte actual
dos agricultores e proprietarios ruraes era tanto ou mais digna de dó
que a dos rusticos trabalhadores. Essas comparações deviam mortifical-a.
A mim é que suspeito me não poria em grandes apuros a comparação das
condições de existencia material do antigo ganha-pão com as condições
economicas dos nossos proletarios ruraes.

Não sei, meu amigo, se nas precedentes reflexões tenho disparatado muito
ou caído em grosseiros paradoxos. Se tal é, seja indulgente com os
tristes efeitos d'este rustico viver, que me obscurece o espirito.
Affigura-se-me que essas reflexões deixam a pobre emphyteuse illibada
dos crimes sociaes que lhe imputaram. Poder-se-hia, até, invocar em seu
abono uma especie de _alibi_. Depois dos romanos, a propriedade
emphyteutica só existiu entre os povos neo-latinos e no Baixo-imperio do
oriente. Qual, porém, dos direitos senhoriaes, das extorsões, dos
serviços pessoaes, das desvairadas exigencias dos poderosos e do fisco,
que enumera a historia dos estados barbaros fundados nas provincias
romanas, deixa de enumerar a historia dos paizes puramente germanicos?
De certo a emphyteuse não os produziu, nem foi d'elles instrumento alli.
Não estava lá. O que lá existiu parallelamente foi a escravidão pessoal
e depois a servidão da gleba. Porque, pois, attribuir aos mesmos factos
duas causas inteiramente diversas?

Que o abuso do dominio territorial havia de influir mais ou menos nas
transmissões emphyteuticas para a população rural gradualmente
libertada, é certo, porque era inevitavel. Mas de quaes instituições,
ainda d'aquellas que continuamos a manter e que reputamos mais
necessarias ou mais beneficas, não abusava a prepotencia na edade media
e nos seculos do absolutismo? A indole e as tendencias de qualquer
epocha revelam-se em todos os aspectos, em todas as fórmulas da vida
social. O sentimento das desegualdades humanas era tão exaltado e tão
exclusivo, como o vai sendo hoje o da egualdade democratica; duas idéas
verdadeiras, quando limitadas, que a exaggeração egualmente falsifica. A
inferioridade, a vileza dos entes que trabalhavam, dos entes uteis, em
contraposição á superioridade, á nobreza dos ociosos, quando não dos
nocivos, foi uma crença radicada e duradoura de que se impregnaram as
faixas e o berço das nações modernas, porque era ao mesmo tempo
germanica e romana. A exaggeração, levada até o absurdo, manifestava-se
em todas as relações sociaes. Só o christianismo foi a negação
fulminante, a antithese d'aquella brutal persuasão, e a egreja catholica
ufana-se de contar no gremio do seu antigo clero, das suas antigas
celebridades, os mais perseverantes adversarios d'ella. Ao christianismo
devem principalmente as classes trabalhadoras a sua emancipação. Se a
egreja não fez mais, não fez, talvez, quanto devia e podia, é que se
compunha de homens; e em todos os gremios, em todas as jerarchias, e em
todas as epochas, são sempre os menos, são quasi sempre os poucos, que
ousam luctar contra a corrente impetuosa e implacavel das opiniões
dominantes.

Repetirei, acabando esta carta, o que disse a principio. Não concebo a
que fim practico pretendia chegar a critica, fazendo a resenha, a meu
ver de um modo pouco exacto, de certo numero de extorsões, de direitos
senhoriaes mais ou menos oppressivos, e até de tributos nem peiores nem
melhores, juridica e economicamente fallando, do que alguns tributos
actuaes, que a analyse deixaria em bem mau estado, se a analyse fosse
cousa toleravel n'esta epocha das grandes syntheses. Tudo isto tem tanta
relação com a emphyteuse do codigo civil como com o descobrimento da
Australia. A critica, todavia, conclue _de tudo isso_ que a emphyteuse
serviu muitas vezes mais para açoute do que para redempção dos pobres, e
que o _homem de trabalho_ era, até epochas bem proximas, avexado pelos
dizimos ecclesiasticos e _seculares_, pelos senhorios nos arrendamentos,
pelos senhorios directos nas pensões e _rações_ dos predios
emphyteuticos _e dos prazos_, pelo systema fiscal nas quotas
tributarias, pelas camaras nos impostos municipaes e derramas. Mas, em
summa, admitte-se ou não se admitte a emphyteuse? Se não se admitte,
então _per te_ não admittamos nem arrendamentos, nem camaras, nem
systema fiscal. Se, porém, a admittimos, deixemo-nos de viajar no
passado, e vejamos como havemos de utilisal-a em beneficio do presente.
Mergulhar-se nas trevas dos seculos medios, para nos ensinar que os
campos ou terrenos cultivados pertenciam precipuamente aos padres e aos
fidalgos, que devoravam tudo, e que os concelhos eram _recinctos_ para
onde os cultivadores fugiam e onde tomavam outros officios, entre os
quaes avultava o de serem creados dos principes e senhores, livrando-se
do arado para viverem na ociosidade; devassar, digo, os arcanos mais
secretos da historia, para nos ensinar estas e outras cousas singulares,
é trabalho que pode ser util a mim e a alguem mais que, como eu, ignore
essas particularidades; mas parece-me que em nada aproveita ás dolorosas
questões do presente, que os poderes publicos tem de resolver, e em que
os homens de boa e sincera vontade, com os seus maiores ou menores
recursos, tem o dever de auxilial-os.

Quando outras occupações mais instantes m'o permittirem, procurarei
submetter á apreciação de v. ex.^a a minha defeza de ter soltado as
condemnadas proposições de que existem direitos primordiaes ou
originarios, e de que os predios incultos são de seus donos. Isto é
negocio mais sério do que a absolvição historica da emphyteuse. Se essas
proposições são desarrazoados paradoxos, o liberalismo é um absurdo e a
Carta uma blasphemia. Tirem o caracter absoluto e intransigente a certa
ordem de principios, e terão de descer de degrau em degrau, através das
vacillações e divergencias dos socialistas, até ás regiões sanguineas e
candentes do communismo. O que eu sei com certeza é que, ou seja pela
emphyteuse, ou seja por outro qualquer honesto arbitrio, é melhor chamar
o proletario do campo á propriedade rustica, do que deixar, com
imprevidencia fatal, que o chame a communa ao chuço e ao petroleo, para
subverter os dois fundamentos da vida social--a familia e a propriedade.


X

*Val-de-Lobos, 26 de fevereiro de 1875.*


Ill.^{mo} e ex.^{mo} sr.--Um quinto artigo do sr. P. de M. acaba de
fulminar-me e a minha ultima carta. Somos ahi discutidos, eu e ella.

Aquelle artigo tem dois objectos: a manutenção das doutrinas contidas no
que o precedeu, e uma desforra de quem lhes não guardou respeito.

Peço a v. ex.^a me consinta que tambem divida esta carta em duas
secções: uma sobre as doutrinas, outra sobre a desforra.

Entremos na secção das doutrinas, que são o que importa aos que se
interessam n'esta questão. Quanto á desforra, ninguem, creio eu, se
inquieta por isso. Veremos por seu turno o que ella vale.

Que foi o que alevantou a tempestade em que presinto que hei-de a final
soçobrar?

Pensando nos meios a que poderiamos recorrer para chamar ao goso da
propriedade rustica o proletario rural, comecei por excluir d'esses
meios as leis agrarias, as leis de sesmaria, que, renovadas por mais de
uma vez, nunca impediram que Portugal fosse ao mesmo tempo um breve paiz
e uma vasta charneca. As causas complexas e profundas que determinaram a
decadencia da agricultura, a rareza da população, e a miseria das
classes operarias, não se removem com leis agrarias. Depois, essas leis,
condemnadas como impotentes pela historia, são no meu modo de ver
injustas e illiberaes. Mudar-lhes o nome, atavial-as com disfarces não
as tornariam melhores. Disse-o, e dizendo-o, não imaginava offender
ninguem. Suppunha que já as tinham collocado entre os monumentos
archeologicos das ruinas do Carmo. Sonhava. Fez-me tristeza o acordar.

Estava e estou convencido de que, no seio das nações que chegaram a
certo grau de civilisação, todo o predio cultivado ou inculto tem valor
de troca, isto é, que constitue objecto do direito de propriedade; que
no inculto o valor provém unicamente do trabalho social, no cultivado
provém em parte d'este, em parte, mas principalmente, do trabalho de
determinados individuos. Desde que n'um e n'outro ha valor, ha em ambos
propriedade. De quem é esta no inculto? Cria e creio que é de quem o
possue. O Estado, representando a sociedade, e convertido em pessoa
moral por uma convenção, por uma ficção de direito, é capaz de possuir,
do mesmo modo que as demais pessoas moraes: e não só é capaz de possuir,
mas tambem de exercer outros direitos civis compativeis com a sua
indole. Mas tudo isto é inventado, facticio, não natural. Como corpo
politico, como condição e garantia da mais alta manifestação da
sociabilidade humana, actuando como poder publico é que não pode
equiparar-se á pessoa physica. Tudo quanto produz, os valores que cria
n'esta qualidade, que determina o verdadeiro caracter do Estado, ha-de
forçosamente individuar-se para ser util. Sicyès, o grande publicista da
revolução franceza, dizia:--«Se o estado social não tem por _unico_ alvo
a felicidade dos individuos, não atino com o que seja o estado social.»
Achava eu razão ao padre Sicyès. No mundo real e á luz economica, o
Estado é apenas o meio de simplificar e dirigir os esforços individuaes
a um fim commum, e de multiplicar, ás vezes, de maravilhosa maneira, os
effeitos d'elles pela collectividade, pela unificação. Quanto a fruir os
resultados, digam á entidade politica, o Estado, que pleiteie nos
tribunaes, que mande os filhos á escola, que transite pelas estradas,
que navegue nos rios e canaes, que adore Deus nos templos, que cultive
os campos, que negoceie nos mercados. A individuação, quer transitoria,
quer permanente, dos effeitos do trabalho social é inevitavel.
Transitoria nos resultados directos, que são as utilidades de uso
commum, torna-se permanente nos indirectos, que vão levar um valor de
troca á posse e ao dominio particulares. E assim devia ser. O Estado não
trabalha: collige os esforços individuaes e dá-lhes nexo e fins communs.
Se o producto d'esses esforços não revertesse em beneficio dos
individuos, ficavam estes obviamente logrados. Mas se isto é verdade em
relação aos productos directos do trabalho social, por maioria de razão
deverá sel-o tambem em relação aos indirectos.

A noção de que n'uma sociedade civilisada não ha predios sem valor de
troca é idéa aurea, a qual já hoje não é licito disputar. Não concebemos
como exista um predio, onde, indirectamente e mais ou menos, o trabalho
collectivo não o vá incorporar. Mas, n'essa coordenação de esforços,
n'essa realisação de utilidades pelo trabalho social, realisação quer
directa e prevista, quer indirecta e casual, quem actuou? Foi o Estado,
pessoa moral, entidade facticia, equiparada artificialmente á pessoa
physica, ou foi o Estado, instituição politica, poder publico, compendio
e orgão da sociedade? Foi obviamente este. Mas este, quando a ficção
juridica não o converte em pessoa civil, é iacapaz de direito de
propriedade. Produz apenas pela acção directora as cousas de uso commum,
transitoriamente utilisadas pelos individuos. Da existencia d'estas
cousas de uso commum deriva o valor do predio inculto, do mesmo modo que
deriva um augmento de valor no predio cultivado. Em virtude de que
principio ha-de o Estado apropriar-se de um valor que nasceu
independente da sua intenção, elemento indispensavel para a realisação
de qualquer direito? Como nasce para a entidade não pessoa civil, mas
sim poder, administração, justiça, um direito só possivel na pessoa
civil? E se esse direito se dá no Estado-governo, e se em nome de tal
direito elle expulsa do predio inculto o que o possue, como ha-de deixar
de apoderar-se do accrescimo de valor que indirectamente deu tambem ao
predio cultivado? Onde ficaria n'esse caso a egualdade perante a lei,
manifestação suprema da egualdade civil, que tambem se funda n'um
direito originario?

Entre esses direitos primordiaes, cuja existencia o sr. P. de M. nega no
seu penultimo artigo, e que no ultimo diz respeitar profundamente, ha
um--o primeiro na ordem d'elles, o direito á existencia--que, n'uma das
fórmas da sua realisação, consiste em apoderar-se o individuo dos dons
gratuitos da natureza, quer estes sejam productos immediatamente
utilisaveis, quer sejam forças latentes, que, associadas ao trabalho
humano, criem novas utilidades. É evidente que o direito de propriedade
não pode ter principio sem que preceda essa fórma de realisação do
direito á existencia pela apprehensão das forças puras da materia. Mas
se nos direitos originarios, isto é, no absoluto, não pode haver mais
nem menos, porque titulo será mais sagrada a apprehensão das forças
latentes, do que a apprehensão dos dons immediatamente utilisaveis?
Porque excluirá a _creação_ do direito de propriedade o _exercicio_ do
direito de apprehensão dos dons fungiveis da terra?

Para simplificar a questão separemos theoricamente, no predio inculto, o
valor adquirido em virtude do trabalho social. Deixemos n'elle tão
sómente as utilidades gratuitas. Do seu lado o sr. P. de M. tambem ajuda
a simplifical-a. Estabelecendo a sua doutrina, um pouco conquistadora,
da utilisação forçada dos terrenos incultos, estende-a aos de alguma
utilidade, embora escassa. Sentiu, talvez, que lhe seria difficil
encontral-os perfeitamente inuteis para seus possuidores. Quer
tirar-lh'os mediante compensação, acto que, no seu ultimo artigo, parece
equiparar á expropriação por utilidade publica, porque (diz elle) tem os
mesmos fundamentos. Quer, portanto, que, ainda no caso de aproveitar no
inculto os dons naturaes, o detentor, que exerce alli um direito
primordial, seja substituido por outro detentor. Chamo-lhe assim, porque
o segundo tem de o ser emquanto não constituir a propriedade, e pode,
até, não vir a constituil-a. Mas--dir-se-ha--se o fizer, augmentará a
riqueza publica e restituirá algum do pão _roubado a innumeras familias_
pelo primeiro detentor. É certo que a riqueza publica ha-de augmentar
com a cultura do inculto (o _pão roubado a innumeras familias_ é modo de
dizer), o que eu tambem vehementemente desejo se obtenha, não por
violencia, mas por favor do Estado e livre accordo dos interessados. Á
luz economica, a substituição será util, se o novo detentor fizer o que
promette. Mas a difficuldade juridica subsiste, e as nações não se regem
só pelas leis economicas e pelas conveniencias materiaes. A moral e o
direito tambem tem voto na governança, e desconfio, até, de que tem voto
de desempate. É axioma juridico que, se o exercicio do meu direito
perturba os interesses de outrem, não se me pode impor por isso a minima
responsabilidade. No systema do sr. P. de M., não só se me deve impor,
mas, se faço a outrem o desarranjo de não o deixar constituir
propriedade no que possue e disfructa em virtude da lei natural, essa
responsabilidade vai até á suppressão absoluta do meu direito ao
usufructo dos dons gratuitos da natureza.

O que, porém, excede a minha comprehensão n'aquelle systema é querer-se
compensação para o detentor expulso. Compensação de que, e como? Segundo
o sr. P. de M., os effeitos do trabalho collectivo que cria o valor,
objecto do direito de propriedade, não podem redundar em beneficio
peculiar d'este ou d'aquelle; ou, por outra, a sua incidencia não pode
juridicamente especificar-se: hão-de redundar em proveito de todos. Mas
raramente os resultados directos d'esse trabalho, e nunca os indirectos,
abrangem todos os cidadãos. Ora, se o valor creado por elle, por mais
indirecto que seja, não pode tornar-se propriedade particular, aquelle
valor tem forçosamente de ficar sempre no dominio do Estado, que não
ultrapassará as suas attribuições, antes cumprirá o seu dever (concedido
que, como governo, possa ser proprietario) se chamar a contas todos os
possuidores de bens de raiz, quer cultivados, quer incultos. Se acha que
ás cousas possuidas por um individuo accresceu valor, resultado
indirecto do trabalho collectivo, e que o mesmo valor não accresceu aos
bens de todos os outros cidadãos (ainda aos dos que os não tem),
recolhendo a si o accrescimo, não faz mais do que reivindicar o que é
seu. Assim, a compensação dada ao possuidor do predio inculto não tem
razão de ser. Restam os productos espontaneos immediatamente utilisaveis
que elle usufrue, aliás sem melhor direito que os outros, conforme quer
o sr. P. de M. Estes productos não tem valor de troca; não podem,
portanto, apreciar-se. Por isso a compensação é tão impossivel, como
substituir o amarello pelo redondo, ou o cubico pelo encarnado.

Mas, dado este systema, que sem duvida é judicioso, exequivel e justo,
acho ainda uma dureza na precedente doutrina, doutrina aliás
fundamental. A theoria continúa a reger a materia depois de empossado o
novo detentor, que _ha-de_ vir a ter o direito de propriedade quando
associar ás forcas naturaes o _seu_ trabalho. O valor consubstanciado no
predio por effeito indirecto do trabalho collectivo é do Estado, que não
pode dal-o a um, porque é de todos. Que se ha-de pois fazer? Ou o
Estado, pessoa moral, vende aquelle valor criado pela acção do
Estado-governo, ou, considerando-o como um capital que vai mutuar,
fal-o-ha representar pelo juro. No primeiro caso, o proletario, que não
tem com que compre cousas taes, em vez de ser chamado ao dominio
territorial, ficará excluido peremptoriamente d'elle, e a consequência
unica será a accumulacão de mais propriedade rustica nas mãos dos que já
a possuem, ou do capital habilitado para a adquirir. No segundo caso,
temos o aforamento, a emphyteuse de ominosa memoria, que, apezar de
todas as demonstrações historicas em contrario não refutadas, nem por
isso deixa de ter sido instrumento de extorsões e vexames, que por via
d'ella podem resuscitar.

Dão-se hypotheses, que o systema do sr. P. de M. forçosamente ha-de
abranger, e cuja solução, que me atrevo a antever, a consciencia publica
tem de applaudir com assombro. As convulsões da natureza, por exemplo,
os phenomenos meteorologicos imprevistos e violentos convertem ás vezes
o predio cultivado n'uma cousa mais desolada, mais improductiva, mais
nua, do que o era quando esses terrenos ainda incultos, mas por isso
mesmo mais capazes de resistir ao furor das procellas, apenas offereciam
ao homem fructos espontaneos e forcas latentes. A hypothese não é rara.
Ainda ha pouco Macau nos deu um horroroso documento do facto na
propriedade urbana. A tempestade destruiu tudo no predio rural, quebrou
ou arrancou as arvores frondiferas, areiou os campos, revolveu as
vinhas, derrubou a morada e as officinas da granja. Os gados morreram,
as apeiragens levou-as a cheia. O dono, attonito, desanimado, sem meios
para renovar o seu capital fixo e movel, falla em vender o predio.
Ouve-o o Estado e grita-lhe, estribado nos bons principios: «Alto lá,
burlão! Que é o que pretendes vender? Os fructos espontaneos, as forças
latentes? São utilidades que se não vendem. Quererás, porventura,
alienar o valor que te accrescentou ao predio a excellente estrada por
onde conduzias os productos ao mercado? A justiça que encontravas nos
tribunaes quando te disputavam alguma estrema? A segurança real e
pessoal com que alli vivias, mantida pela força publica? As vantagens,
em summa, que eu fiz adherir ao teu predio e que não posso ceder-te? Não
sabes que tudo quanto ahi resta é valor que me pertence? Destruiu a
tempestade os fructos accumulados do teu trabalho. Chamo-me eu a
tempestade? Se practicares o acto que meditas, a Africa te espera. A
burla está prevista no codigo penal.»

Depende a applicação do systema do sr. P. de M. de providencias cuja
contextura ignoro e desejaria conhecer para admirar. Deve ser uma das
mais notaveis assignalar precisamente o que é terreno inculto e o que é
terreno cultivado. Cumpre que os caracteres de um e do outro sejam
definidos, bem exactamente descriptos, indubitaveis, de modo que se
torne impossivel confundirem-se. A confusão seria o arbitrio, e o
arbitrio em questões de propriedade chama-se despotismo e espoliação.
Não convirá, ao menos n'isto, o sr. P. de M.?

Não pretendo negar a solidez do systema, nem embrenhar-me em questões de
principios. Exponho duvidas sobre a applicação practica d'elle; sobre o
_quid et quomodo faciendum_. É possivel que vão por ahi algumas
exuberancias de logica. Não sei retel-a a tempo, segundo dizem; mas eu
não tenho culpa de ter nascido com a intelligencia debil. Se ha culpa, é
da logica, em aproveitar-se d'este imbecil do meu espirito, para correr
á solta pelo campo das desattenções.

Desejo aplanar difficuldades aos progressos da evolução. As doutrinas
revolucionarias de 89 sobre os direitos originarios e imprescriptiveis
do homem estão velhas e gastas, como a minha razão. Os deuses vão-se.
Com o mau habito de repugnar ao arbitrio e de odiar a oppressão, tanto
de muitos por um, como de um por muitos (identica anarchia, identica
tyrannia), desejara que o absolutismo dos Cesares e o absolutismo das
multidões achassem diante de si e desenhando-se-lhes nas consciencias,
ao menos para uso dos remorsos, padrões que assignalassem os limites
entre o campo da auctoridade e as gandras silenciosas do despotismo.
Quizera que, no logar do antigo direito natural que expira, se
consagrassem principios novos accordes com os novos systemas, com as
evoluções e com as evoluções das evoluções _in infinitum_. Quizera que o
pretendente a detentor do predio inculto, ao sacudir d'alli o detentor
antigo, podesse estribar-se n'algumas maximas juridicas geralmente
acceitas. É provavel que o desapossado clame; é provavel que invoque as
doutrinas herdadas pelo seculo XVIII às sociedades modernas; é provavel
que faça um discurso ao pretendente. O perigo inspira. Naturalmente
diz-lhe assim, pouco mais ou menos:--«Cidadão proletario, exiges que te
ceda este solo inculto que possuo, para d'elle fazeres surgir as forças
latentes da natureza e casal-as com o teu trabalho, a fim de procrearem
o direito de propriedade, demonstrando ao mesmo tempo o transformismo de
Darwin pela selecção sexual, cousa importantissima para a solução da
contenda que vens alevantar. A tua pretenção, meu amigo, parece-me um
pouco exorbitante. Tu queres auferir d'este solo as forças naturaes; eu
aufiro já d'elle os seus productos espontaneos e gratuitos. O teu
direito de apprehensão é excellente, mas o meu não é ruim. Sou
preguiçoso e nasci com vocação campestre: contento-me de assar a minha
caça nas raizes carbonizadas do carrasco e da aroeira; de estirar-me ao
sol no inverno sobre o colchão perfumado do tomilho e do rosmaninho; de
aspirar voluptuosamente no estio os effluvios da giesta e da madresilva;
de scismar vagamente ao lusco-fusco, olhando para o viso crespo e
dentado da collina deserta, a que fazem espaldar, colgado do ceu, os
ultimos clarões do dia; de me dessedentar, debruçado sobre o arroio que
passa; de attender, ás vezes, ás insinuações imperiosas do estomago com
a azinha e o medronho da selva ou com a camarinha da gandra e a amora do
silvado. Deus me livre de obstar ao teu direito de trabalhar,
perfeitamente egual ao meu de fruir. Terás uma vantagem: acharás quem te
compre o fructo do teu trabalho, e eu não acharei quem me dê um ceitil
pela fruição dos dons da natureza. Se vender este predio, dar-me-hão o
restricto equivalente do valor de que o impregnou, sem intenção e pela
força das cousas, o trabalho social, em que tambem á fina força me
fizeram lidar, com grave prejuizo da minha indolencia. Vae, amigo,
trabalha. Se te appetece a agricultura, agriculta. É ampla a face da
terra, e posso asseverar-te, sem medo de errar, que o genero humano
ainda não desbravou nem apropriou, pelo trabalho dos individuos ou do
Estado, a decima parte d'ella. Ha no mundo charnecas a trasbordar. Se o
Estado faz gosto de que sejas lavrador n'estes sitios, não digo que não.
Vae ter com o Estado, e dize-lhe que me offereça vantagens, não tocando
no meu alvedrio. Pode ser que troque por ellas estes dons naturaes; que
sacrifique a minha vocação campestre. Acredita que sei calcular, e que
não nasci absolutamente idiota. Emquanto isso não se arranja, deixa-me
priguiçar n'este chão brenhoso, como tu has-de priguiçar quando a
propriedade adquirida pelos teus esforços, e em que terás um direito tão
absoluto como este meu, te habilitar para o fazeres, sem que ninguem te
ralhe por isso. A differença estará em que os teus commodos e gosos
serão, como é de razão, bem superiores aos meus. Com que então, o
usofructo não vale nada? Um civilista era capaz de te dizer que o meu
constitue uma especie de propriedade. A natureza deu-me o que podia dar:
eu acceitei o que podia acceitar. Contracto perfeito. Não irei tão
longe. O trabalho, querido proletario, é um dever moral. Confesso-o. O
que não te confesso é que seja uma obrigação juridica. Podes
vituperar-me no sanctuario da tua consciencia: não podes condemnar-me no
tribunal da tua justiça. Se não te apraz sair da tua patria, do teu
concelho, da tua freguezia, isso é altamente louvavel: prova que tens um
coração amoravel, mavioso; não me perturbes, porém, no exercicio do meu
direito. N'esse caso, muda de rumo, e deixa-te de agriculturas. As
forças naturaes tem modos indefinitos, senão infinitos, de se associar
com o trabalho. Não sejas birrento. Um capricho não destroe um direito.
Vês aquelle ribeiro? Aproveita as suas forças latentes: constroe um
moinho á beira da agua n'aquelle descampado, além da minha estrema, e
faze-te moleiro. Se é tarde para aprenderes o officio, nem por isso
ficas com os braços atados. Não desesperes do consorcio do teu trabalho
com as energias da natureza. Submette, por exemplo, aos teus esforços a
maleabilidade do ferro augmentada pelo calorico, e sê malhador de
ferreiro. Mette depois as sobras do teu salario na caixa economica.
Estás proprietario. Explora, até, a minha intelligencia, aproveitando-te
dos meus conselhos. Ainda melhor: explora a tolice humana, uma das
forças naturaes mais energicas. Faze-te védor d'aguas ou constructor de
estados sociaes novos; inventa um remedio secreto ou uma imagem que faça
milagres; vende bilhetes de loteria ou bullas da sancta cruzada. Depois
capitalisa. Faze tudo, menos bulir no meu usofructo das utilidades
gratuitas que, n'este tracto de terra, me subministra a natureza.»

Sei que os sophismas e os insulsos dicterios do retentor do predio
inculto caem diante da irresistivel theoria que supprime os direitos
primordiaes, guardando-lhes aliás todos os respeitos e sepultando-os com
todas as continencias. Mas se o retentor effectivo fica desarmado pela
theoria, tenho minhas suspeitas de que o pretendente a retentor não fica
melhor armado. Desconfio de que atraz d'aquelles gracejos de mau gosto
estejam aninhadas algumas formidaveis verdades. Restará a forca material
para dirimir a contenda; mas a força bruta, em questões de direito,
significa anarchia ou tyrania. É por isso que espero sejam substituidos
os direitos originarios ultimamente fallecidos por uns direitos
originarios novos que se amoldem ao progresso das successivas evoluções
sociaes, e que, demittidas do serviço publico as maximas juridicas
antiquadas, se formulem outras de indole perfeitamente evolutiva, isto
é, que vão seguindo, pela folhinha, a pista das festas moveis.

E o capitulo da desforra? Ia-me esquecendo. Ficará para mais opportuna
occasião.


XI

*Val-de-Lobos, 16 de marco de 1875.*


Ill.^{mo} e ex.^{mo} sr.--Foi apoz uma primeira e rapida leitura do
quinto artigo do sr. P. de M. sobre a extirpação das rainhas heresias
economico-juridicas, que pedi licença a v. ex.^a para dividir a presente
carta em duas secções ou capitulos. Depois, quando pensei no segundo,
hesitei muito sobre se deveria reduzir-me a significativo silencio.
Moveram-me em sentido contrario duas considerações. O silencio podia ser
offensivo para o meu antagonista, e ao mesmo tempo nocivo para uma idéa
que reputo altamente boa e practica, e de cujas vantagens, se fôr
applicada, estou intimamente convencido. Ha muita gente, e ás vezes
preponderante, que acha sempre razão a quem, para debellar uma idéa,
discute um individuo. Esta especie de criterio amolda-se a todas as
capacidades. É ruim o individuo? Ruim deve ser a sua doutrina. Má
arvore, mau fructo. É assim que os habeis argumentadores, quando a
discussão os cansa ou os irrita, recorrem, ás vezes irreflexivamente, a
esse ardil de guerra, que, se não mata, debilita, ao menos, a opinião
adversa. Eis as razões que afinal me induziram a fazer alguns reparos
sobre a substituição da analyse das minhas opiniões pela analyse do meu
caracter e da minha intelligencia, substituição a que, aliás, alguem
achará um merito--o de provar de modo irrefragavel que a maneira mais
justa, mais facil, mais simples, de chamar os proletarios rusticos á
posse de poucas geiras de terra, e de os converter em defensores da
propriedade é espoliar os donos dos terrenos incultos para repartir
estes com elles.

No artigo do sr. P. de M. ha dois logares que suscitam reflexões graves
e dolorosas; graves e tristes para elle, dolorosas para mim. N'esta
longa discussão, busquei sempre manter illesa a pessoa do sr. P. de M..
Não fiz senão o meu dever. Posso ter tractado com pouco respeito, talvez
com excessiva dureza, as suas idéas; nunca, porém, as expliquei por
vicios de caracter, por uma indole moral ou intellectual aleijada. Era
mau e era pueril. Ralharia, por certo, a consciencia commigo, e a
consciencia não me diz nada. Tenho o direito de avaliar as opiniões: não
o tenho de avaliar o individuo a proposito d'ellas. Se o fizesse, daria
um terrivel documento da irritação que se me attribue. Só a irritação
absolve taes lapsos. Os jesuitas, quando os faço agoniar, chamam-me
atheu, protestante e pedreiro-livre. Acho isto regular. Mas entre mim e
o sr. P. de M., cousa analoga seria monstruosa e moralmente impossivel.
Entendo que elle erra ás vezes, como elle entende que eu erro.
Digo-lh'o, e elle diz-m'o. A discussão é isto. Se não é, em que
consiste? As minhas cartas ahi estão. Onde aggredi o caracter, a indole,
ou descubri os _dotes_ condemnaveis do sr. P. de M.? Nem tinha motivos
para isso, nem que fosse fundada a aggressão, vinha a provar cousa
nenhuma no debate. Onde fiz o anachronismo de ir buscar o sudario frio
do morto para o lançar sobre os hombros do vivo? Demonstraria isso,
acaso, que os donos dos predios incultos são ou não são donos d'elles?
Ainda quando por esse meio se impedisse ou facilitasse a pacifica
evolução de uma lei agraria, nunca por causa d'isso ousaria nomear-me a
mim mesmo juiz substituto do juiz effectivo dos mortos, do magistrado
inflexivel mas justiceiro, que se chama a posteridade, e muito menos
ousaria matar ninguem, posto que hypotheticamente, para avolumar o rol
dos culpados sujeitos á minha usurpada jurisdicção.

Sinto mais pelo meu antagonista do que por mim que elle busque tornar
suspeito o individuo, como meio de tornar suspeita a idéa; mas sinto
incomparavelmente mais que assevere havel-o eu transformado em
communista, quando é elle que, em relação a mim, teve, segundo diz,
serias apprehensões ao ler, n'um escripto meu recente, que _parecia ser
chegado o tempo_ de se darem ouvidos ás caramunhas socialistas do homem
de trabalho. Sinto, sobretudo, e isto não só por elle, mas tambem por
mim, que o sr. P. de M. affirme que as minhas crenças sociaes e
politicas _mais modernas_ se declaram _á ultima hora_ cartistas. V.
ex.^a que, como eu, estima as excellentes qualidades do meu contendor e
leu a minha ultima carta, lamenta decerto, como eu lamento, que,
promettendo não perder a tranquillidade de animo, elle desminta a
promessa na mesma conjunctura em que a faz. Espero que o sr. P. de M.
(vai n'isso o seu pundonor) citará o escripto e a pagina, e transcreverá
textualmente a passagem, origem da sua anterior consternação e dos seus
profundos terrores ácerca das minhas intenções tenebrosas. Poupará assim
á synthese moderna o trabalho de me fulminar. Negára o meu adversario a
existencia dos direitos originarios, que eu invocava em defeza dos
possuidores de predios incultos. Lembrei-lhe as consequencias d'essa
negativa, que envolvia a condemnação do liberalismo e da Carta:
lembrei-lhe que, recusada a immutabilidade d'aquelles direitos, o perigo
de cair, de deducção em deducção, atravez dos systemas socialistas, nos
tremedaes do communismo, era inevitavel. Sabe v. ex.^a, sabem todos que
pela imprensa tiveram conhecimento d'aquella missiva, que nos periodos a
que o meu antagonista se refere, ha isto, e unicamente isto. Creio até
que, passado o impeto da paixão, no fim de vinte e quatro horas, e
apenas publicado o seu quinto artigo, o sr. P. de M. sabia já, como nós,
que a significação que dera ás minhas palavras era de todo o ponto
falsa. Ou ellas equivaliam a uma inepcia, ou, para valerem um argumento,
cumpria que tivessem exactamente a significação contraria. Era preciso
que eu suppozesse no meu contendor respeito á Carta e afferro ás crenças
liberaes. Ninguem diz ao que se ungiu com lodo e se enfileirou nas
cohortes da anarchia e do crime:--«Olha que te perdes; olha que, se
abandonas os principios eternos do justo, vais precipitar-te pelos
despenhadeiros obscuros, que conduzem á morte da consciencia; olha que
desmentes o credo liberal, os dogmas da tua religião politica; olha que
negas a Carta: sim, a Carta, cujas imperfeições é possivel que tambem eu
conheça um pouco, mas que é o pacto social do teu paiz, e que eu, tu,
nós todos temos obrigação de respeitar e manter, emquanto os poderes
legitimos não a alterarem ou substituirem; a Carta, sim, que, apezar dos
seus defeitos, nos assegura uma liberdade real, ampla, tranquilla,
liberdade que tem sido fonte de constantes progressos, e que está
attrahindo a attenção e a sympathia da Europa, pela tua pobre terra, tão
insultada e até calumniada em tempos bem pouco remotos.»--Acha-me o sr.
P. de M. cartista da ultima hora; acha o cartismo a minha crença _mais
moderna_. Isto a mim! Era o sr. P. de M. uma creança quando o cartismo
era um grande e nobre partido. N'aquelle tempo havia em Portugal
partidos. Segui-o do berço ao tumulo; segui-o desde que se ergueu como
um protesto contra o tumulto das ruas até que, desvairado, foi
suicidar-se no tumulto dos quarteis. Amortalhado nos estandartes da
soldadesca, diziam-n'o vivo. Que me importava, se, atravez da téla, bem
via que estava morto? Fui cartista emquanto houve cartismo, da primeira
até á ultima hora. Fiquei depois solto. Pertencera a um partido; não
pertenci a um cadaver. Desde então até hoje pensei e senti
exclusivamente por minha conta, em politica, bem como em tudo. Achei-me
só e isento. Se fiz bom negocio n'esta isenção, não alcancei fazel-o de
graça. Tive de recalcar bem fundo no coração todas as ambições. Nenhuma
parcialidade, desde a do pseudo-cartismo até a mais recente das que lhe
succederam, ha-de encontrar o meu nome no rol dos seus adeptos. Tambem
durante o periodo de quasi quarenta annos, nenhum governo deixou
commemoradas nos archivos das secretarias as mercês que d'elle
solicitei, ou que sequer lhe soffri. É por isso que na escala da
gerarchia social o meu logar, passado bem mais de meio seculo, é ainda o
mesmo onde nasci. Das reliquias dos sete mil e quinhentos loucos do
Mindello, não sei ao certo quantos mais dos não inteiramente obscuros,
podem dizer o que eu digo. Se houvera servido n'alguma cousa este paiz,
e tivesse por isso direito a solicitar recompensa, pediria que me
deixassem morrer em paz e depois dormir esquecido no adro da aldeia
visinha. Eisaqui o resumo e o fito das minhas crenças mais modernas e a
historia do meu cartismo da ultima hora. Virá tempo em que o meu honrado
adversario tenha pena de haver dito o que n'esta parte me disse. Quando
eu deixar o mundo, ainda cá ha-de ficar a injustiça.

Poucas mais palavras agora.

Acredite o sr. P. de M. o que lhe vae affirmar um velho luctador da
imprensa, que crê ter dado alli provas, não só de alguma energia e
pericia, mas tambem de sinceridade austera. O seu ultimo artigo
ageitava-se admiravelmente a crueis represalias, porque o dictára a
colera. Esteja bem certo d'isso. Algumas d'ellas iam-se accumulando
sobre o papel. A meio caminho, envergonhei-me de mim. Rasguei o que
estava escripto. Aos sessenta e cinco annos, que me batem á porta, não
ter equanimidade para reprimir o amor proprio, uma das poucas e
enfraquecidas paixões que nos perseguem até a velhice, é fraqueza que
humilha o orgulho legitimo. Domando a vaidade, fico bem commigo. Ha
miseraveis que, ás vezes, cumpre punir duramente, quando não o sejam a
tal ponto que imponham o silencio; mas tractar como uns ou como outros
um homem de brio e de talento que se transvia, pode não ser injusto em
abstracto, mas é em concreto iniquo.

O que não quero é tornar a fazer o papel de Mephistophles; arrastar de
novo o sr. P. de M. a batalhar n'um campo que, em momentos mais
placidos, reputaria defezo. Embora com prejuizo meu, cessarei de lêr os
seus artigos sobre a emigração e a agricultura. Continuando a dizer a v.
ex.^a o que penso ácerca de um assumpto, que cada vez se complica mais,
transformando-se, a ponto de se converter em materia principal o que era
incidente, é natural que as minhas opiniões repugnem ás suas
frequentemente, porque vemos as questões sociaes a diversa luz: eu ao
frouxo clarão das preoccupações cartistas que me invadem de novo; elle
aos vivos esplendores de atilada e consciente democracia. Abstendo-me de
o ouvir, a collisão das doutrinas é mais que provavel: a disputa é que
fica sendo impossivel.

Se todavia, depois de madura reflexão, o sr. P. de M. entender alguma
vez que a bem do paiz e das proprias convicções é necessario desenhar
com vigor os defeituosos lineamentos do meu caracter, deixo á sua
disposição o meu ser moral, não só nas manifestações da vida publica,
mas até nas da vida familiar e intima.

Desculpe v. ex.^a este, acaso immodesto, desafogo, e creia sempre que
sou, etc.




ÍNDICE


Advertencia


*Os Vínculos*
(1856)

I Preliminares

II Processo agricola--Propriedade rural. Opportunidade
da discussão

III Abolição dos vinculos--O pró e o contra

IV O principio vincular considerado na sua legitimidade

V Desegualdade e personalidade

VI Os vinculos garantia da liberdade

VII Difficuldades moraes e economicas na abolição dos vinculos

VIII Os vinculos considerados em relação á grande
e á pequena propriedade, á grande e á
pequena cultura

IX Objecções fundadas contra os vinculos


*A Emigração*
(1873-1875)

Carta 1.^a

Carta 2.^a

Carta 3.^a

Carta 4.^a

Carta 5.^a

Carta 6.^a

Carta 7.^a

Carta 8.^a

Carta 9.^a

Carta 10.^a

Carta 11.^a




LIVRARIA BERTRAND

73, Chiado, 75


*Obras de A. Herculano*


_Historia de Portugal_, desde o começo da monarchia
até o fim do reinado de D. Affonso III,
4 vol. br (5$000)

_Historia da origem e estabelecimento da Inquisição
em Portugal_, 3 vol. (1$800)

_Enrico_, o Presbytero (600)

_O Monge de Cistér_, 2 vol. (1$200)

_Lendas e narrativas_, 2 vol. (1$200)

_O Bobo_ (600)

_Poesias_ (600)

_Opusculos_, 4 vol. (2$400)

_Estudos sobre o casamento civil_, 3 folh. (600)

_A reacção ultramontana em Portugal_, ou a concordata
de 21 de fevereiro de 1857 (200)


*De Bulhão Pato*

Vida Intima de Homens Illustres


Biographias de Almeida Garrett, F.M. Bordalo,
Lopes de Mendonça, José Estevão. Santos e
Silva, Rodrigo Paganino, J. Luiz Gonçalves,
L.A. Rebello da Silva, Silva Gaio, Gonçalves
Dias, Guilherme Braga, A.F. de Castilho, F.
M. Champalimaud, 1 vol. (600)


*No prelo*


_O conde soberano de Castella_, Fernão Gonçalves, por
A. de Oliveira Marreca.

_Historia da civilisação iberica_, por J.P. Oliveira Martins.


Monografia do Café

Historia, Cultura, Producção e Consumo

Por Paulo Porto-Alegre

Socio da Academia Real das Sciencias de Lisboa.

Um bello vol. in-8.^o de mais de 500 paginas.


*Cartas Elementares de Portugal*

Para uso das escolas. Approvadas pela junta consultiva
de instrucção publica para as escolas primarias,
e duas d'ellas duas vezes premiadas na exposição de
Philadelphia de 1876. Por B. Barros Gomes.

Um folheto in-fol. contendo as cinco seguintes cartas
e respectivas descripções, e uma Lista especial dos
concelhos, com a sua caracterização agronomica, e a
sua população humana e pecuaria:

I. Carta concelhia.
II. Carta de relevo, orographica e regional.
III. Carta dos arvoredos.
IV. Carta agronomica.
V. Carta da povoação concelhia.

Preço 1$200 réis.


*Muita Parra e Pouca Uva*

Por

Francisco Gomes de Amorim

Contem: Historia de um caranguejo.--O Algarve.--A carteira do janota.--A
quinta das Laranjeiras.--O cypreste e o pecegueiro.--A vida dos vinte
annos.--Juizo do anno de 1874.--Drama entre rouxinoes.--A villa
Estephania.--No album de José Ferreira Chaves.--Pancracio Longuinhos.

Preço 500 réis.




NOTAS


[1] Dunckley, _Charter of Nations_, p. 398.

[2] L. de Lavergne, _Economie Rurale de l'Angleterre_, ch. 23.

[3] *1864*

*Districtos*   *População*
  Porto          410:665
  Braga          309:508
  Vianna         195:257
  Aveiro         238:700
  Coimbra        268:894
  Vizeu          353:543

*1868*

*Districtos*   *População*
  Porto          423:665
  Braga          320:655
  Vianna         204:679
  Aveiro         252:562
  Coimbra        282:593
  Vizeu          368:559

[4] _Principes de Culture Améliorante_ (1866), pag. 292.

[5] _Primeiro inquerito_, pag. 78.

[6] Ibid. pag. 114.

[7] Ibid. pag. 159.

[8] _Inquerito_, pag. 173.

[9] _Diction. d'Econ. Polit._ v. _Émigration_.

[10] _Inquerito_, pag. 495 e 502.

[11] _Osgood, New-York 19^{th} Century_, p. 103. Nos dois annos de 1865
e 1866, os emigrados allemães entrados em New-York subiam já a 83:451 e
81:287. Ibid.

[12] Veja-se o curioso livro--_O Imperio do Brazil na exposição de
Vienna_, p. 240 e segg.

[13] _L'Instruction du Peuple_.

[14] _Les ouvriers européens_.

[15] _Memor. Econ. da Acad. das Sciencias_, T. 5.^o p. 15 e 16.






End of the Project Gutenberg EBook of Opúsculos por Alexandre Herculano -
Tomo IV, by Alexandre Herculano

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in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS', WITH NO OTHER
WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.

1.F.5.  Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
the applicable state law.  The invalidity or unenforceability of any
provision of this agreement shall not void the remaining provisions.

1.F.6.  INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
https://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at https://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]

Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit https://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including including checks, online payments and credit card
donations.  To donate, please visit: https://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.

Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.

Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     https://www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
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*** END: FULL LICENSE ***