Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01

By Alexandre Herculano

The Project Gutenberg EBook of Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo I
by Alexandre Herculano

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Title: Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo I

Author: Alexandre Herculano

Release Date: June 22, 2005 [EBook #16111]

Language: Portuguese


*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OPÚSCULOS POR ALEXANDRE ***




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                                OPUSCULOS

                                   POR

                              A. HERCULANO



         SOCIO DE MERITO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE LISBOA
       SOCIO ESTRANGEIRO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE BAVIERA
                          SOCIO CORRESPONDENTE
                 DA R. ACADEMIA DA HISTORIA DE MADRID
           DO INSTITUTO DE FRANÇA (ACADEMIA DAS INSCRIPÇÕES)
                DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE TURIM
               DA SOCIEDADE HISTORICA DE NOVA YORK, ETC.



                            QUESTÕES PUBLICAS


                                 TOMO I



                                 LISBOA
            EM CASA DA VIUVA BERTRAND & C.ª--CHIADO, N.º 73

                             M DCCC LXXIII


                           IMPRENSA NACIONAL




                          *ADVERTENCIA PRÉVIA*


Havia annos que os meus velhos editores e amigos, os fallecidos Irmãos
Bertrands, admiraveis typos dessa modesta austeridade e dessa nobre
honradez, em todas as relações da vida civil, que eram gloriosa tradição
da classe burguesa, e que a burguesia destes nossos tempos, ensanefada
já de ouropeis fidalgos, não parece inclinada a manter com excessivo
ciume; havia muito, digo, que os meus editores instavam comigo para que
ajunctasse em volumes alguns opusculos, escriptos por mim e publicados
por elles em diversas conjuncturas, cujas edições se achavam de todo
esgotadas. Na sua opinião, eu devia incluir tambem nessa collecção
outros opusculos, que, ou impressos avulsamente por minha conta, ou
inseridos em publicações periodicas, tinham feito certo ruido, e não se
encontravam já no commercio. Entendiam igualmente que nesta compilação
de trabalhos sobre assumptos tão variados poderiam introduzir-se
quaesquer outros ainda ineditos, que me não parecessem indignos de virem
a lume, o que, no seu modo de ver, daria certo realce á publicação que
se propunham, e em cujo exito confiavam.

Apesar das ponderações que me faziam homens tão experimentados nas
cousas da imprensa, hesitei muito tempo em acceder aos seus intuitos.
Após largos annos consumidos na vida agitada das letras, em que o meu
baixel mais de uma vez fora açoutado por violentas tempestades, tinha,
emfim, ancorado no porto tranquillo e feliz do silencio e da
obscuridade. Olhava com uma especie de horror para as vagas revoltas da
immensa lucta das intelligencias, contraste profundo da vida rural a que
me acolhera. Depois, o espirito sentia bem a propria decadencia, cujos
effeitos a interrupção dos habitos litterarios devia aggravar.
Reflectia, sobretudo, no tedioso de rever escriptos, parte dos quaes
remontavam a tempos assás distantes. Podia, na verdade, devia talvez,
deixá-los passar como estavam, no que respeita á maior ou menor exacção
das doutrinas, porque a pretensão á infallibilidade é sempre ridicula no
individuo, e eu nunca tive tal pretensão; mas era indispensavel
castigá-los em relação á fórma. O methodo, o estylo, a linguagem, as
condições, em summa, da arte de escrever são, no mundo das letras, o que
a boa educação, a cortesia, as attenções, o respeito para com os usos
recebidos são no tracto civil, o que os ritos são nas sociedades
religiosas. No ente que cogita, a idéa póde e ha de variar com o decurso
do tempo, com a ampliação dos horisontes do pensamento. Sobrepõe-se
gradualmente a verdade ao erro, e ainda mal que, outras vezes, é o erro
que succede ao erro, quando não á verdade. Aprender quasi sempre é
esquecer; affirmar quasi sempre é negar: esquecer o que aprendemos;
negar o que nós proprios affirmámos. É por isso que, no meio de milhões
de duvidas, cada geração lega á que lhe succede poucas verdades
incontrastaveis, e que a lentidão do progresso real é um bem triste e
desenganador dynamometro da tão limitada potencia das faculdades
humanas. Não assim pelo que toca ás formulas externas das manifestações
do espirito. O incompleto, o barbaro, o vicioso, o tolhido, o
desordenado, o obscuro não são o revolutear do oceano das idéas: são
simplesmente ignorancia ou preguiçoso desalinho, mais ou menos
indesculpaveis.

Ora a revisão de escriptos de tão diversas epochas, ainda limitando-me
ao exame da contextura e execução, repugnava-me. Era renovar o tracto
com as letras no que ha nellas menos attractivo, na questão da fórma. E
todavia, sem esse trabalho preliminar, não podia decentemente satisfazer
os desejos dos meus editores, desejos que o ultimo d'elles, pouco antes
de fallecer, ainda vivamente manifestava.

Mas, o que era na realidade esta repugnancia ao trabalho, embora fosse
um trabalho ingrato? Era o egoismo dos annos derradeiros; o amor á
quietação da intelligencia, que, no outono da vida, é em nós como o
prenuncio da completa, da eterna paz. Para vencer esta enfermidade dos
espiritos cançados e gastos, cumpre que surja nelles um incitamento
poderoso, uma necessidade instante. Foi, porém, este incitamento ou esta
necessidade que, a final, nasceu para mim, justamente das condições da
vida rural.

Para o velho que vive na granja, na quinta, no casal, como que perdidos
por entre as collinas e serras do nosso anfractuoso paiz, ha na
existencia uma condição que todos os annos lhe prostra o animo por
alguns mezes, doença moral, mancha negra da vida rustica, facil de
evitar nas cidades. É o tedio das longas noites de inverno; das horas
estereis em que o peso do silencio e da soledade cai com duplicada força
sobre o espirito. Para o velho do ermo, nesses intervallos da vida
exterior, a corrente impetuosa do tempo parece chegar de subito a pégo
dormente e espraiar-se pela sua superficie. A leitura raramente o
acaricia, porque os livros novos são raros. A decima visão da mesma
idéa, vestida do seu decimo trajo, repelle-o, não o distrahe. As
convicções ardentes, as alegrias das illuminações subitas, as coleras e
indignações que inspiram e que, na mocidade e nos annos viris, enchem a
cella do estudo de turbulencias interiores, de arrebatamentos
indomaveis, de debates inaudiveis, de lagrymas não sentidas, de amargo
sorrir, cousas são que se desvaneceram. Matou-as o gear do inverno da
existencia. Desfallece-lhe o animo, mal tenta embrenhar-se na selva das
cogitações, engolfar-se nas ondas dos pensamentos, que, em melhor idade,
lhe roubavam á consciencia os ruidos longinquos e confusos das
multidões, e aquella especie de zumbido obscuro que ha no silencio
profundo, e as passadas tenebrosas da noite, e o surgir e o galgar do
sol ao zenith, emquanto a penna inspirada arfava, deslisando sobre o
papel, semelhante á véla branca da bateirinha, que, ao refrescar do
vento, vai e vem de margem a margem, atravez da ria. Não: para o velho
não ha a febre da alma que devora o tempo. Sente-o gotejar no passado,
como os suores da terra que cáhem, lagryma após lagryma, pela claraboia
de galeria deserta na mina abandonada. É verdade que a natureza compensa
o esmorecer e passar do vigor e da actividade intellectual com a propria
somnolencia do espirito, voluptuosidade da velhice, ameno e dourado
pôr-do-sol, que se refrange no espectro da sepultura já vizinha e o
illumina suavemente. Mas o dormitar do entendimento, para ser deleitoso
enleio, exige o movimento externo e as singelas occupações e cuidados da
vida campestre. Sem isso, e é isso que falta muitas vezes nas
interminaveis noites de inverno, a inercia da intelligencia, que vagueia
no indefinito sem o norte da realidade, vai-se convertendo pouco a pouco
em intoleravel tormento; tormento no qual ha, por fim, o que quer que
seja da céllula circular e esmeradamente branqueiada, onde o grande
criminoso é entregue, sósinho, á euménide da propria consciencia. N'esta
extremidade, por mais somnolenta e obscurecida que esteja a mente, por
mais que ella ame o repouso, o trabalho do espirito, ainda o mais arido,
é preferivel, cem vezes preferivel, ao fluctuar indeciso no vacuo.

Foi por isto que comecei a ajunctar os _disjecta membra_ de uma grande
parte do meu passado intellectual; a accrescentar, a cortar, a corrigir,
a completar. Vencido o primeiro inverno, vi desapparecerem os marcos
negros juncto dos quaes cumpria que longamente me assentasse ao cabo de
cada um dos poucos estadios que ainda me restam a transitar pela estrada
da vida. Que esta confissão ingenua sirva para ser absolvido da especie
da correria que, apesar dos mais firmes propositos, faço, ainda uma vez,
na republica das letras.

Os escriptos aqui reunidos, os quaes, na sua maior parte, foram
inspirados por impressões momentaneas, perderam o interesse que lhes
provinha das circumstancias que os provocaram; mas, ainda assim, podem
ficar como marcos milliarios que ajudem a assignalar as luctas e o
progresso das idéas em Portugal no decurso de mais de trinta annos que
as datas d'esses escriptos abrangem. Naquellas luctas o auctor dos
seguintes opusculos teve largo quinhão, e se, como é possivel, nem
sempre a razão esteve da sua parte, esteve-o sempre a convicção. É do
que lhe parece hão-de dar testemunho a propria contextura e o proprio
estylo dessas composições, que não vinham só da intelligencia, que
vinham muitas vezes tambem do coração. A demasiada vivacidade, a talvez
exaggerada energia, com que frequentemente ahi são expostas e defendidas
taes ou taes ideas e combatidas outras, revelam a indole impetuosa mas
sincera de quem escreveu essas paginas. Foi, porventura, este o melhor
titulo do auctor á benevolencia publica largamente manifestada;
benevolencia que encontrou ainda em muitos que estavam longe de
commungar com elle nas doutrinas para as quaes buscava ou obter o
triumpho ou adquirir sectarios.

Ordenando esta compilação, não me adstringi nem a conservar
rigorosamente a ordem das epochas a que esses varios escriptos
pertencem, nem a distribui-los precisamente conforme a sua indole.
Adoptei um termo medio, que me facilitasse ao mesmo tempo o trabalho de
revisão, e me habilitasse para ir successivamente publicando qualquer
volume á medida que o coordenasse. N'uma grande variedade de assumptos,
o espirito não se amoldaria a reconsiderá-los nem pela ordem das datas,
nem pela identidade da materia. A intelligencia é caprichosa, e
duplicadamente caprichosa na sua decadencia. Attendendo em geral á
natureza dos diversos opusculos, entendi que podiam dividir-se em tres
categorias--Questões publicas--Estudos historicos--Litteratura.--Estas
tres categorias constituirão tres series separadas, servindo-lhes apenas
de nexo o serem uma collecção geral das minhas opiniões, quer em
questões litterarias ou historicas, quer em questões sociaes. Assim, um
volume seguir-se-ha a outro da mesma ou de diversa serie sem
inconveniente para a publicação, e sem se tornar necessario que, n'um
trabalho tedioso e frequentemente interrompido, a attenção se dirija por
muito tempo e sem desvio para idéas até certo ponto congeneres ou pelo
menos analogas.

Ajunctando aos titulos dos opusculos as datas em que foram escriptos, o
auctor teve em mira habilitar o leitor para o julgar com justiça. Sem
querer no minimo ponto fugir á responsabilidade das suas opiniões,
entende que a responsabilidade será ora maior, ora menor, se porventura
se attender á epocha em essas opiniões foram manifestadas. O decurso de
trinta a quarenta annos, no turbilhão, cada vez mais rapido, em que hoje
as idéas passam, modificando-se, transformando-se, é um periodo que
corresponde a seculos nos tempos em que o progresso humano era sem
comparação mais lento. As doutrinas, as apreciações criticas, os
systemas, os livros quasi que envelhecem tão depressa como o homem. O
pensamento que ha vinte annos parecia uma verdade nova póde hoje parecer
apenas um problema não resolvido, e até um erro condemnado; a observação
profunda de então ser hoje trivialidade; a critica subtil, que levou um
raio de luz a certos recessos obscuros dos factos, achar-se incorporada
e transfigurada em apreciação mais complexa que illumine dilatados
horisontes. Por isso, a data de cada um dos opusculos contidos nos
seguintes volumes é um dos elementos indispensaveis para estes serem
avaliados com justiça e imparcialidade. Nem sempre fugimos á pressão das
idéas que se manifestam ao redor de nós, e muito faz aquelle que algumas
vezes sabe elevar-se acima das preoccupações ou dos interesses da epocha
em que escreve.

Não se associarão a estas considerações, que sollicitam a indulgencia,
algumas instigações do amor proprio? Suspeito que sim. Nos seguintes
escriptos ha, em mais de um logar, idéas, previsões, affirmativas,
negações que não raro grangeiaram para o auctor as qualificações de
temerario, de paradoxal, de visionario. Em certos casos, o decurso do
tempo encarregou-se de decidir de que lado estava ou a perspicacia ou a
boa razão: em alguns, o paradoxo, a visão, foram-se lentamente
insinuando em outros espiritos, e mais de uma vez o visionario primitivo
veio a achar-se como sumido na turba de tardígrados visionarios. Que o
facto não contribuisse para se datarem estes opusculos ninguem o
acreditaria, nem eu pretendo negá-lo. Chamarão uns a isso orgulho:
chamar-lhe-hão outros vaidade. E uns e outros terão razão. A vaidade e o
orgulho que são, senão duas especies de um genero unico de fraquezas? O
vaidoso é o que chama o mundo para espectador do seu orgulho: o
orgulhoso é o que se colloca a si como unico espectador da propria
vaidade. Symptomas varios de enfermidade identica: manifestações
diversas de uma só miseria do coração humano.




                          A VOZ DO PROPHETA


                                 1837




                             INTRODUCÇÃO

                                 1867


Depois da epocha em que o seguinte opusculo foi publicado e dos factos
que lhe deram origem, têem decorrido mais de trinta annos. Os homens que
intervieram nesses factos dormem já, pela maior parte, debaixo da terra.
Com raras excepções, restam apenas alguns dos que eram mais moços. O
auctor da _Voz do Propheta_ pertence a esse numero. Contava vinte e seis
annos naquelle tempo.

O homem de hoje póde julgar imparcialmente o escripto do homem de então.
O animo tranquillo póde avaliar a paixão que o inspirou. Aquelles a quem
esse verbo ardente feria viram no auctor um partidario que friamente
calculava os resultados politicos das suas palavras. Injustiça ou erro;
o mesmo que havia da parte delle em ver nos homens que forcejavam por
dirigir a revolta de 1836, por fazer sair desse facto um governo
regular, grandes criminosos. A verdade era que, n'uns davam-se ambições,
mas ambições talvez nobres; n'outros houve, de certo, o sacrificio das
proprias sympathias, o silencio imposto ás proprias convicções, para que
a revolta não degenerasse em anarchia. Em muitos desses individuos,
apparentemente revolucionarios, havia o patriotismo reflexivo, e até a
abnegação, emquanto em nós, os que os aggrediamos com a sinceridade da
indignação, havia, por amor exagerado aos bons principios, uma colera
que em muitas cousas offuscava a razão. A _Voz do Propheta_ representa
esse estado dos espiritos.

Hoje a exageração sincera do insulto, a invectiva hyperbolica,
inspirada, não pelo calculo, mas pelas irritações da consciencia, mal se
comprehende. Neste crepusculo da vida publica, tão favoravel ás
prostituições do cidadão, como o crepusculo do dia ás prostituições da
mulher; nesta epocha de extrema agonia, iniciada pela proclamação dos
_interesses materiaes_ acima de tudo, fórmula decente de sanctificar o
egoismo, porque para cada individuo o interesse material alheio é apenas
um interesse de ordem moral; agora que a boa educação dos homens novos
mudou a linguagem politica, e vai arrojando para os archaismos
historicos a lucta face a face, a punhalada pelos peitos; agora que a
strychnina da allusão calumniosa e amena, o enredo tortuoso, a traição
ridente vão expulsando da arena das facções as objurgatorias, rudes na
substancia e na fórma, a _Voz do Propheta_ é, sem duvida, uma composição
agreste e brutal. Inutil como exemplo e modelo, servirá todavia como
amostra do que eram as malevolencias da geração cujos raros
representantes, hoje quasi estrangeiros no seu paiz, não tardarão a ir
esconder no tumulo as ultimas grosserias que deturpam a suavidade dos
costumes e as tolerancias de toda a especie dos cultos filhos de
barbaros.

Os homens que em 1837 se aggrediam violentamente na imprensa e no campo
tinham, de feito, habitos e sentir diversos dos actuaes. As febres
politicas eram então ardentes, indomaveis, porque derivavam de crenças.
Naquella epocha havia, como houve sempre, belforinheiros da politica;
mas constituiam a excepção. O geral era gente baptisada com fogo e com
sangue nas duas religiões inimigas do absolutismo e do liberalismo.
Chamo-lhes religiões, porque o eram. A guerra civil, que terminara em
1834, tivera muitos dos caracteres das antigas cruzadas. Sobretudo nos
primeiros impetos della, haviam-se practicado actos de abnegação, de
constancia, de valor e de soffrimento sobrehumanos, ao passo que se
perpetravam outros de bruteza e ferocidade inauditas. A maior parte
delles, factos obscuros, individuaes, reiterados cada dia, cada hora
daquelle prolongado paroxismo de grandiosa barbaria, não os registou,
não os registará nunca a historia, talvez. E todavia, é isso que explica
a proceridade da estatura moral dos homens daquelle tempo, estatura a
que não chegaram, nem provavelmente chegarão as gerações subsequentes.
Sem paixões violentas e exclusivas, não ha as energias que assombram.
Então a existencia e os commodos e gosos della eram tão casuaes e
transitorios, as privações e dores de tão completa vulgaridade, que dar
a vida ou tirá-la aos outros pouco mais significavam do que acções
indifferentes. Diante do fanatismo politico, a reflexão que discrimina o
bom do mau, o justo do injusto, quasi que era puerilidade. Podia
ceder-se, e não raro cedia-se, a instinctos generosos para com o
adversario: a justiça em apreciá-lo moralmente, ou em respeitar-lhe os
direitos, isso é que se tornara difficil.

Taes eram os homens que, depois de esmagarem a monarchia absoluta,
vinham, emfim, a aggredir-se mutuamente na imprensa e no campo. A
revolta, desmembrando o partido liberal, constituia dous partidos
violentos, daquella violencia a que estavam affeitos e cujo embate devia
produzir males profundos e em parte irremediaveis.

Esta scisão, logo depois da victoria, era difficil de explicar fóra de
Portugal. Aqui entendia-se, embora derivasse de um facto injustificavel.
A harmonia de opiniões, a unidade de crenças e intuitos dos vencedores
dissipava-se, porque realmente não existia senão nas suas relações
negativas. Negava-se, combatia-se o passado. Era no que havia accordo.
As apparencias de união e conformidade creara-as a grandeza do perigo. A
phalange é e será sempre o mais poderoso instrumento de guerra, moral e
materialmente. Embora, porém, houvesse diversidade de doutrinas, o que
havia mais era contraposição de interesses. Para as primeiras se
manifestarem e tenderem ao predominio bastavam a liberdade da palavra
oral e escripta, e a discussão parlamentar. Aos segundos, dada a
impetuosidade e impaciencia da ambição humana, sobretudo nas raças
latinas, não bastava nenhuma liberdade. Recorreu-se ao illegal, ao
tumultuario, e a revolta de septembro de 1836 appareceu.

Quem a preparou e fez surgir? Não sei. Ostensivamente, os seus auctores
foram a plebe de Lisboa e alguns soldados que se negaram a dispersar os
amotinados. Os individuos que, depois de consummado o facto, tomaram nas
mãos as redeas do governo, recusaram para si a paternidade daquelle féto
político. Creio que, affirmando-se innocentes, falavam verdade; senão
todos, ao menos alguns. Fugir, porém, á responsabilidade de uma
situação, que aliás se busca fortalecer e constituir, é indirectamente
condemná-la; é dizer _não_ com a consciencia; _sim_ com os labios. A
sentença daquelle motim lavravam-na os mesmos que forcejavam por
convertê-lo n'uma cousa grave. Por outra parte, o que me parece evidente
é que os governos que cahem como cahiu o que existia, embora simulem de
vivos, estão já moralmente mortos.

E o governo de então estava-o. Por grandes que os seus serviços ao paiz
houvessem sido durante a lucta, o seu proceder depois da victoria não o
abonava. Havia quem fizesse sentir isso, quem até desmesuradamente o
exagerasse. Exageravam-no, sobretudo, os vencidos. Emquanto durou o
ruido das armas, os lamentos destes não se ouviam; mas quando o estrondo
cessou, e asserenaram os terrores, os queixumes foram-se convertendo em
invectivas colericas, e tambem em accusações não raro ou justificadas ou
plausiveis. A liberdade da palavra falada e escripta tinha-se
conquistado não só contra os defensores da censura e do absolutismo, mas
tambem para elles. Nas expansões da sua dor e do seu despeito, no pouco
ou muito que essas expansões contribuiram para o descredito dos homens
que mais cordialmente odiavam, tiveram os vencidos occasião de
reconhecer que a liberdade humana, ruim em these, sobretudo para a
salvação eterna, póde, em tal ou tal circumstancia, não ser
absolutamente má.

Os depositarios do poder executivo tinham, porém, adversarios mais
perigosos. No gremio liberal houvera homens, alguns de dotes não
vulgares, que, ou por despeitos pessoaes, ou por falta de animo para
affrontarem os trabalhos e riscos de commettimento desigual, ou
finalmente por obstaculos independentes do seu alvedrio, tinham ficado
extranhos á guerra civil, sumidos em escondrijos na propria patria, ou
acoutados na terra estrangeira para escaparem aos impetos da tyrannia.
Desaccordos nascidos no exilio entre alguns destes ultimos e os homens
de valia de quem o Duque de Bragança se rodeiara quando emprehendia a
guerra da restauração, não tinham feito senão medrar e azedar-se
progressivamente por diversas causas. Estes desaccordos, que pareciam
pouco importantes emquanto durou a contenda, apenas essa epocha
tormentosa cessou, tornaram-se mais graves, porque os individuos que se
haviam conservado como extranhos á lucta em que se lhes conquistava uma
patria, tinham amigos e parciaes numerosos entre os que pelejavam e
venciam. Constituido o regimen parlamentar, as malevolencias, mais ou
menos latentes, converteram-se em hostilidade acerba. Esta hostilidade
podia ter, e tinha em parte, motivos maus; mas, contida no ambito
constitucional, era, até certo ponto, bem fundada e util.

Os estadistas, que, cercados durante annos de espantosas difíiculdades,
souberam superá-las exercendo o poder, eram indubitavelmente homens de
alta esphera. Podia reputar-se problematica a virtude de um ou de outro:
a capacidade e a firmeza não podiam disputar-se a nenhum delles.
Affeitos a reger o paiz com o vigor de uma dictadura, inevitavel
emquanto durara a guerra, e com as formulas militares, custava-lhes
esquecerem-se dos habitos dessa epocha, confundindo mais de uma vez, na
praxe da administração, as duas idéas oppostas, de paiz libertado e de
paiz conquistado. Por outra parte, os que muito haviam padecido queriam
gosar muito, e o reino, devorado por discordias intestinas superiores ás
proprias forças e exhausto de recursos, via comprometter o futuro da
riqueza publica por larguezas, não só desacertadas, mas tambem
juridicamente injustificaveis. Homens que teriam legado á posteridade
nomes gloriosos e sem mancha, e que, mais modestos nas suas ambições
materiaes, seriam vultos heroicos na historia, pagaram-se como
_condottieri_ mercenarios, ao passo que outros, depondo as armas e
voltando á vida civil, exigiam ser revestidos de cargos publicos para
exercer os quaes lhes faltavam todos os predicados; homens cujo unico
titulo era terem combatido com maior ou menor denodo nas fileiras
liberaes ou haverem padecido nas masmorras os tratos da tyrannia. A
grande, a séria, a profunda revolução que se fizera no meio do estrondo
das armas levara de envolta com os dizimos, com os bens da corôa, com as
capitanias-mores, com toda a farragem do absolutismo, os antigos
_officios_, moeda que por seculos servira para pagar algumas vezes
meritos reaes, muitas mais vezes, porém, prostituições e villanias. Mas
as funcções publicas, os empregos vieram supprir essa moeda, tomando não
raramente cunho analogo, e distribuindo-se com a mesma justiça e
cordura. Estes e outros erros e abusos que o governo commettera, ora por
impulso proprio, ora para satisfazer as influencias preponderantes com
que o poder tem de transigir, necessidade fatal do regimen parlamentar,
e um dos maiores defeitos da sua indole ainda tão imperfeita,
engrossaram rapidamente, com os muitos desgostosos e indignados, a
parcialidade que na origem representava antes malevolencias pessoaes do
que antinomia de doutrinas.

Foi por isso que a revolta de septembro, se não achou eccho pelo paiz,
também não achou nelle repugnancia manifesta, e pôde na capital
constituir-se e tomar em poucos dias a importancia que não tinha em si.
A consciencia da propria impopularidade, o inesperado dos
acontecimentos, talvez, até o tedio e cansaço de aggressões continuas,
haviam feito titubeiar os membros do governo decahido, tornando-os
inhabeis para séria resistencia, emquanto os seus adversarios
aproveitavam o successo com a energia de inimizades encanecidas e de
ambições até ahi não satisfeitas.

Os homens que entenderam ser do seu interesse ou do interesse do paiz
fazer surgir daquelle estado anormal uma situação regular viram que a
primeira necessidade era elevar o motim á altura de uma revolução.
Faltava o assumpto. O derribar um ministerio não o subministra. Basta
para isso a acção mais ou menos lenta, mas segura e pacifica, da
liberdade da palavra, da imprensa e do voto. O povo que com estes
recursos não sabe tirar os seus negocios das mãos de quem lh'os gere
mal, é um povo ou que ainda não chegou á maioridade ou que já se arrasta
na senilidade. Urgiam, porém, as circumstancias. Á falta de outra cousa,
proclamou-se irreflexivamente a constituição de 1822 com as modificações
que decretassem as futuras constituintes.

Tinha-se, pois, feito uma revolução para obter um projecto, um texto de
discussão constitucional? Se o intuito dos amotinados fôra só derribar
os ministros, o facto era excessivo, injustificavel e portanto
illegitimo e criminoso; se porém o motim, nobilitado em revolução, tinha
por alvo alterar as instituições, não menos digno de reprovação se
tornava, porque era um crime inutil. A Carta encerrava em si o processo
da propria reforma, processo aliás prudente, regular, exequivel. Partir
da constituição de 1822, acervo de theorias irrealisaveis, se theorias
se podiam chamar, de instituições talvez impossiveis sempre, mas de
certo impossiveis n'uma sociedade como a nossa e na epocha em que taes
instituições se iam assim exhumar do cemiterio dos desacertos humanos,
era mais que insensato. A revolução, reconhecendo a necessidade de
reformar o codigo que restabelecia, condemnava-o, e condemnava-se.

Parece-me que me não engano se disser que, em geral, aos liberaes mais
illustrados e sinceros a nova situação politica repugnava altamente.
Ponderavam que a mudança das instituições politicas de qualquer paiz por
via de uma revolução é sempre um abalo profundo cheio de riscos, e que
mais de uma vez, longe de produzir o bem, tem conduzido as sociedades á
sua ruina. Sem rejeitar de modo absoluto as revoluções como elemento de
progresso, é certo que ellas são um meio extremo. Só, talvez, a
necessidade de combater o despotismo as justifique, porque só debaixo de
tal regimen são impossiveis quaesquer outras manifestações da opinião
publica, e não existe campo diverso onde a lucta do direito contra a
força, das idéas novas contra os velhos abusos possa travar-se. Em 1836
essas manifestações não tinham porém obstaculo algum, e o campo onde as
doutrinas podiam debater-se, os interesses contrapor-se, os partidos
digladiar-se, era amplissimo. Se em taes circumstancias uma revolução
fosse legitima, quaes seriam aquellas em que se lhe negasse a
legitimidade?

Depois, nas proprias relações politicas, o espirito humano não se dirige
unicamente pela reflexão. As paixões e affectos modificam e alteram as
suggestões do raciocinio; porque o homem imprime necessariamente em
todos os actos da vida as condições do seu ser. A favor da manutenção da
Carta não militava só a boa-razão; militavam affectos, e affectos
profundos. A Carta havia sido o grito de guerra do campo liberal em lide
de um contra dez. Havia sido, digamos assim, a traducção moderna do
_Sanctiago!_ de Affonso I, do _S. Jorge!_ do Mestre d'Aviz. Nas
reminiscencias indeleveis de muitos de então, (bem poucos hoje) estavam
ainda os vivas á Carta proferidos por labios que iam cerrar-se na morte,
quando as bayonetas inimigas desciam inexoraveis sobre o peito ou sobre
o ventre dos nossos soldados feridos e derribados[1]. Em nome da Carta
se tinha desfeito o triangulo fatal do patibulo, e quebrado o ferrolho
da masmorra e da enxovia, em nome della se tinham aberto para os
foragidos as portas da patria que davam para os desertos do desterro, do
desterro que é sempre solidão e desventura. A Carta fora como a estrella
polar da esperança nos dias, tão longos, da fome, da nudez, das
tempestades, do desalento. Vivia depois como envolta na saudade desses
dias, acre e quasi dolorosa saudade, que nós os velhos ainda sentimos,
mas que será provavelmente uma cousa inintelligivel para as gerações
novas.

A razão, pois, e o sentimento falavam a muitos energicamente em favor
das instituições annulladas. Falavam tambem a favor dellas a consciencia
e a dignidade humanas. Tinham jurado manter essas instituições milhares
e milhares de homens; milhares e milhares de homens as tinham nobremente
mantido com o sangue, com as privações, com a resignação illimitada no
sacrificio. Podem valer pouco os juramentos politicos; póde, até, ser
absurdo o juramento em geral. Mas a quebra de promessas solemnes e
espontaneas, seja qual for a sua formula, será sempre uma villania
emquanto tiverem culto a honra e a lealdade.

Taes eram os principaes incentivos que induziam grande numero de
liberaes a constituirem um partido hostil á nova ordem de cousas. A
denominação de cartista, que esse partido adoptou, não correspondia
rigorosamente ás causas da sua existencia, nem aos seus intuitos ou á
sua indole. Mas representava até certo ponto isso tudo, ao mesmo tempo
que era conciso, e facilmente comprehensivel para o vulgo. O cartista
não reputava todas as instituições, todos os preceitos da Carta como a
mais alta manifestação da sabedoria humana. Nesta parte os liberaes eram
em geral eclecticos. Tanto o partido da revolução, como o
anti-revolucionario nenhum tinha em si unidade completa de principios;
nem entre um e outro havia senão antinomias parciaes quanto ás doutrinas
de direito politico. No primeiro, que tomava por base das ulteriores
reformas uma constituição democratica, exagerada até o despotismo das
turbas, havia individuos para quem, como o tempo mostrou, as theorias da
democracia ainda mais moderada eram altamente odiosas, ao passo que
outros forcejavam por chegar, senão á republica, ao menos a instituições
republicanas. No partido cartista dava-se o mesmo phenomeno. Todas as
modificações do governo representativo tinham ahi fautores; tinham-nos,
talvez, até, as doutrinas do absolutismo illustrado. A meu ver, a
distincção profunda e precisa entre o cartismo e o septembrismo
consistia em negar o primeiro o principio da revolução, dentro das
instituições representativas livre e solemnemente adoptadas ou acceitas
pelo paiz, e em affirmá-lo o segundo. Tudo o mais em ambos os campos era
fluctuante e vago.

É essa a explicação de um facto que os homens daquelle tempo poderão
testemunhar recorrendo ás proprias reminiscencias. Alistaram-se nas
fileiras cartistas talvez mais individuos que haviam sido adversos aos
ministros derribados, do que amigos e parciaes seus, ao passo que alguns
destes abraçavam sem hesitar a revolução. De uns e de outros se deve
crer que preferiam nobremente as suas opiniões aos seus interesses, ás
suas affeições ou inimizades pessoaes. Para muitas dessas opiniões havia
logar em ambas as parcialidades. Os que, porém, só attendiam á
moralidade e cordura dos actos de administração ordinaria, lançavam-se,
por via de regra, na revolução; os que, sem desattender taes questões,
sem approvarem corrupções ou iniquidades a que eram extranhos e que
tinham condemnado, remontavam a mais elevadas considerações de ordem
moral e politica, abraçavam o cartismo. Não falo dos especuladores que
se resolviam conforme as vantagens que se lhes antolhavam n'um ou
n'outro campo. O proceder destes taes tinha na consciencia publica
então, como depois, como sempre, uma qualificação conhecida.

Mas, dir-se-ha, como nessa epocha se disse, que entre o cartismo e o
septembrismo se dava uma distincção mais radical e profunda. A Carta,
outorgada por D. Pedro IV, representava o direito divino dos reis; era
uma concessão de senhor, em vez de um pacto social, ao passo que a
constituição de 1822, derivada da soberania popular, era a consagração
das doutrinas democraticas. Considerada a esta luz, a revolução adquiria
as proporções de um facto gravissimo, porque assentava a liberdade em
novos fundamentos, e vinha a ser um passo gigante dado na estrada do
progresso politico.

Na epocha, quasi exclusivamente liberal, em que se passavam aquelles
successos, a resposta do cartismo a estas allegacões parecia facil. Não
sei se o seria agora; agora que se tem achado e demonstrado, segundo
parece, não prestar para nada o liberalismo. As intelligencias vigorosas
da mocidade hodierna têem aberto caminho a theorias ou novas ou
rejuvenescidas que nós os velhos de hoje e moços de então ou ignoravamos
ou suppunhamos estereis, e talvez pueris, e de que sorriamos, quando
alguns engenhos que reputavamos tão brilhantes como superficiaes,
buscavam, evangelisando-as, jungir por meio dellas as turbas, más porque
ignorantes, odientas porque invejosas, espoliadoras porque miseraveis,
ao carro das proprias ambições. A questão da soberania popular não era
precisamente o que preoccupava mais os entendimentos, cultos, mas
tardos, daquelle tempo, e a democracia não apaixonava demasiado os
animos, sobretudo os animos dos que haviam pelejado desde os Açores até
Evoramonte as batalhas da liberdade, ou padecido na patria durante cinco
annos, sem o refrigerio sequer de um gemido tolerado, as orgias do
despotismo. Uns tinham visto de perto a face da democracia; tinham-na
visto por entre a selva de oitenta mil baionetas que fora preciso
quebrar-lhe nas mãos para a liberdade triumphar; tinham-na visto nas
chapadas e pendores das collinas que circumdam o Porto, até onde os
olhos podem enxergar, alvejando-lhe nos hombros os cem mil embornaes
preparados para recolher os despojos da cidade da Virgem, da cidade
maldicta, rendida e posta a sacco; outros haviam-na visto de machado e
de cutello em punho, mutilando e assassinando prisioneiros inermes e
agrilhoados. O liberalismo achara a catadura da democracia pouco
sympathica. Restava a soberania popular. Essa funccionara durante cinco
annos e dera mostra de si. A soberania do direito divino, repartindo com
ella o supremo poder, provava que não era tão ignorante como a faziam.
Tinha litteratura. Applicava, modificando-o, o verso:


Divisum imperium cum _plebe_ Caesar habet.


As classes inferiores constituiam então, como hoje, como hão de
constituir sempre, a maioria do paiz, e foi a esta maioria que ella
entregou os direitos que cedia. Era a legitimidade consagrando outra
legitimidade. Amavam-se, comprehendiam-se ambas. É que entre as
extremidades ha contacto ás vezes. A democracia americana cuida ter
inventado a lei do Linch. Puro plagio. Inventou-a em Portugal a
soberania popular. Havia uma differença. Na America a plebe prende,
julga, condemna á morte e executa; em Portugal o direito divino
reservara para si o tribunal excepcional e o privilegio do cadafalso.
Modesta no exercicio do supremo poder, a soberania popular limitou-se á
prisão, ao espancamento, á multa, elevada, quando occorria, até o
confisco. Se o incendio, o estupro, o assassinio se ingeriam ás vezes
nesses actos judiciaes, era por simples casualidade. Manchas, tem-nas o
sol. O mercador, o artista, o industrial, o professor, o proprietario
urbano e o rural, o homem de letras, o cultivador, o capitalista, todas
as desigualdades sociaes, todos esses attentados vivos contra a perfeita
igualdade democratica conservaram por muito tempo dolorosas lembranças
do amplexo das duas soberanias.

O liberalismo, que durante a contenda fora um pouco aspero para com a
democracia, mais de uma vez tambem, empregara sacrilegamente a prancha
do sabre e a coronha da espingarda para cohibir o excesso de zêlo
administrativo e judicial da soberania popular. A brutalidade do
liberalismo obrigara esta a abdicar após a abdicação da soberania de
direito divino. Os dogmas, pois, em que se estribava a constituição de
1822, e contra os quaes protestava a historia, ainda palpitante, dos
ultimos annos, eram inefficazes, porque os tornava impotentes a
heterodoxia das consciencias. Duvido de que nesses rudes tempos de
positivismo liberal elles obtivessem uma só conversão sincera.

O amor do real e do evidente era um dos grandes defeitos dos homens de
então. O cartismo argumentava: «Que nos importa, dizia, d'onde veio a
Carta? A questão é se ella consagra a liberdade humana e a cérca de
garantias. É deficiente? É defeituosa? Esperemos que a razão publica, a
torrente da opinião force os poderes do estado a completá-la, a
corrigi-la. A opinião illustrada largamente preponderante é irresistivel
nos governos livres. O que não é irresistivel é a opinião de alguns ou
de muitos que benevolamente se encarregam de interpretar pelo proprio
voto o voto commum, o voto dos que têem capacidade para o dar.--«Não se
reputaria louco, accrescentava o cartismo, o representante de uma
familia outr'ora opulenta, mas reduzida á miseria por espoliação remota,
que, ao vir, por impulso espontaneo, o descendente do espoliador
restituir-lhe os bens extorquidos, repellisse aquelle acto de nobreza e
virtude, achando desar recuperá-los pacificamente? E se tal desar
existiu; se a outorga da Carta e a tacita acceitação do paiz não podiam,
aos olhos da metaphysica politica, elevá-la á altura de um pacto social,
os immensos sacrificios que o restaurá-la, depois de abolida, custou á
parte mais illustrada, mais rica, mais activa e laboriosa da nação, ás
forças vivas da sociedade, e as torrentes de sangue e de lagrymas que
serviram de sacro encausto á assignatura do paiz não valeriam bem o
plebiscito da maioria inintelligente, o plebiscito daquellas classes
inferiores que pelejaram até o ultimo extremo, senão com valor, de certo
com ferocidade, para conservar essa monstruosa e horrivel soberania que
a servidão lhes trouxera?

Tem passado trinta annos depois daquella epocha; as paixões tempestuosas
de então fizeram silencio, e o cartismo e o septembrismo são dous
cadaveres sepultados no cemiterio da historia. O auctor da _Voz do
Propheta_ contempla tão placidameute o seu opusculo como se mão extranha
o houvera escripto. A experiencia e os desenganos fazem-no sorrir
daquellas coleras, daquellas hyperboles dos vinte e seis annos. Quantos
erros, quantas ignorancias em muitas das suas opiniões desse tempo! E
todavia, ainda os sentimentos que inspiravam o cartismo no seu berço lhe
parecem nobres e elevados, as doutrinas que constituiam a sua essencia
solidas e justas. É innegavel que o credo democratico, em que os
adversarios se estribavam, tem desde essa epocha adquirido numerosos
sectarios. O velho liberalismo passa de moda. O dogma da soberania
popular, proclamado como supremo direito, substitue o unico direito
absoluto que elle reconhecia, a liberdade e os fóros individuaes. Isso
passou: agora a igualdade civil, que era um consectario do dogma
liberal, transfere-se para o mundo politico, e um nivel imaginario passa
theoricamente por cima de todas as desigualdades humanas, perpetuas,
indestructiveis. A paixão da liberdade esmorece, porque a absorve e
transforma a da igualdade, a mais forte, a quasi unica paixão da
democracia. E a igualdade democratica, onde chega a predominar, caminha
mais ou menos rapida, mas sem desvio, para a sua derradeira
consequencia, a annullação do individuo diante do estado, manifestada
por uma das duas formulas, o despotismo das multidões, ou o despotismo
dos cesares do plebiscito.

O partido cartista tinha por si as grandes e recentes recordações, a
consistencia politica, os bons principios que representava, e,
sobretudo, o sensato e practico das theorias que predominavam entre os
seus membros. Mas a eiva moral quasi que lhe começou no berço. O seu
primeiro erro foi adoptar por chefes os homens eminentes que, pela
gerencia dos negocios em situações difficilimas, tinham concitado contra
si, como succede quasi sempre e a quasi todos, a animadversão publica,
talvez a da maioria daquelles mesmos que acceitavam agora a sua direcção
politica. Deviam honrar-se taes homens, embora muitos dos actos da sua
administração não podessem defender-se, porque esses actos eram bem
pequeno desconto aos immensos serviços que a liberdade lhes devia.
Tomá-los, porém, por guias era acceitar uma parte da sua
responsabilidade; era polluir a pureza das doutrinas com as manchas da
fraqueza humana; era, sobretudo, arriscar que a irritação das paixões e
os intuitos de desaggravo dirigissem o procedimento de um partido novo e
cheio de vida, que só deveriam inspirar a razão tranquilla e a
applicação logica das proprias doutrinas. Deste primeiro erro nasceram
as tentativas infelizes de contra-revolução. Essas tentativas não podiam
reputar-se crime, porque o elemento revolucionario tinha entrado como
formula politica no direito publico do paiz, mas eram altamente
illogicas em relação á índole e ao symbolo do cartismo. Por outro lado,
o governo da revolução mostrava-se, ao mesmo tempo, tolerante para com
as opiniões e energico em cohibir excessos. Por isso o partido cartista
podia contar com a victoria incruenta que na urna lhe havia de dar o
paiz; victoria para os principios, e não desaggravo para as paixões
irritadas. Que este resultado era seguro, provaram-no os factos. Vencido
na guerra civil, desauctorisado e moralmente enfraquecido, o cartismo
viu triumphar em grande parte as suas idéas na contextura da
constituição de 1838, votada por umas constituintes onde os vencidos
estavam representados por insignificante minoria. Era a condemnação
solemne da revolução, lavrada por um parlamento eleito debaixo da
influencia della. O que no novo codigo politico parecia mais opposto á
indole da Carta era a organisação da segunda camara, e todavia o
cartismo adquiria por aquelle meio uma arma poderosa para de futuro
reformar constitucionalmente o que havia mau na recente organisação de
um dos corpos colegislativos, de modo que nem se restaurasse o absurdo
pariato hereditario e illimitado, nem a assembléa conservadora
significasse apenas a interposição de uma parede entre duas porções de
parlamento unico. Uma vez que o senado procedia simplesmente da eleição,
logo que o cartismo obtivesse a preponderancia eleitoral, dominaria
completamente em ambas as camaras. Dentro em dous annos, de feito, o
predominio do cartismo era indubitavel.

O ulterior procedimento deste partido estava estrictamente determinado
pela sua origem e pelo seu passado. Como vimos, não era tanto a sua
indole menos democratica, o seu apego á liberdade e aos direitos
individuaes com preferencia a tudo, que o caracterisavam. Sans opiniões,
erradas opiniões, havia-as tanto n'um como n'outro campo. O que
constituia a essencia do cartismo era a lealdade ao juramento; a
lealdade viril no cumprimento da palavra dada pelo homem honrado quando
a dá no pleno uso do seu alvedrio. Os cartistas tinham feito tudo quanto
materialmente podiam, mais do que moralmente deviam, para supprimir a
revolução. Não o tinham conseguido, e ella fechara o periodo da sua
duração, protestando na lei politica decretada pelas constituintes
contra a propria origem, contra a sua razão de ser. A constituição de
1838 era um campo neutro onde todos se podiam encontrar pacificamente e
procurar, sem sair da legalidade, o predominio das respectivas opiniões.

E o cartismo entrou naquelle campo. Quando o paiz viu os homens que tão
tenazmente haviam mantido a fé que deviam ao seu juramento, jurarem
solemnemente o novo pacto, acreditou que falavam verdade, e que o cyclo
das revoluções terminara. Passados tempos, a urna provava aos cartistas,
de modo indubitavel, que nas classes influentes, nas forças vivas da
sociedade, a preponderancia era sua. No fim de tres annos podia-se dizer
que o triumpho moral do cartismo estava consummado. O poder e o futuro
pertenciam-lhe.

Um facto inopinado veio então desbaratar todos os calculos, desmentir
todas as previsões. Uma grande parte, ou antes a maioria desse partido,
cuja essencia era a lealdade a solemnes promessas, e a execração das
revoluções no seio de um paiz livre, hasteou subitamente a bandeira
revolucionaria, substituindo ao motim da plebe o unico motim peior do
que elle, o da soldadesca. Quebrando inutilmente o seu ultimo juramento,
derribava a constituição do estado e proclamava o restabelecimento da
Carta pura, que, sem os acontecimentos de 1836, os mesmos homens que a
achavam agora um codigo perfeito teriam constitucionalmente modificado.
É que á victoria dos principios faltava um laurel, o desaggravo do amor
proprio offendido. O partido cartista suicidava-se juncto, ao altar da
vaidade, e amortalhava-se a si proprio, morrendo, no estandarte da
revolução.

Depois houve muitos que continuaram a chamar-se cartistas, porque os
vocabulos são propriedade dos homens, e a propriedade, conforme o velho
direito, consiste na faculdade de usar e abusar. Era como os graus e
veneras das ordens de cavallaria extinctas. Enfeitam, mas correspondem
ao nada. Symbolos vãos sobre um sepulchro. Para a historia, como a
historia ha-de ser quando de todo houverem calado as paixões dos que
intervieram nessas tristes luctas, o cartismo tinha expirado com a
restauração da Carta.

[Nota de rodapé 1: Assim vi morrerem alguns soldados do 5.° de caçadores
e voluntarios da Rainha no temerario reconhecimento de Vallongo, que
precedeu a batalha de Ponte-Ferreira.]




                           A VOZ DO PROPHETA


                             PRIMEIRA SERIE


                                    Et irruet populus, vir ad virum, et
                                    unusquisque ad proximum suum:
                                    tumultuabitur puer contra senem et
                                    ignobilis contra nobilem.

                                                         ISAIAS, III-5.


                                   I


O Espirito de Deus passou pelo meu espirito, e disse-me: vai, e faze
resoar nos ouvidos das turbas palavras de terror e de verdade.

E eu obedecerei ao meu Deus no meio dos punhaes de assassinos.

Povo!... breve soará a tua hora extrema: tu mesmo a assignalaste no
decorrer dos tempos.

O anjo exterminador vibra sobre ti a espada da assolação, e tu danças e
folgas ebrio das tuas esperanças.

Essa terra que pisas crês que é um solo remido por tuas mãos: repara
porém; olha que é um sepulchro.

Amplo é o sepulchro de um povo: dentro em breve tu ahi calarás para
sempre.

Creste-te forte, porque sabes rugir como a panthera: mas somente Deus é
grande.

Encheste o vaso das tuas iniquidades; elle trasbordou, e a terra ficou
polluida.

Maldictos os nomes dos que accenderam o volcão popular; nomes
abominaveis perante o céu e a terra.

Portugal foi pesado na balança da eterna justiça, e a Providencia
retirou a mão de cima delle.

Derribem-se os altares, cerrem-se as portas dos templos: Deus já não
acceita os sacrificios, nem ouve as preces deste povo, senão como uma
expressão de escarneo.

E como o aquilão varre a folha secca do outono, o sopro do Senhor
varrerá da face da terra esta raça corrompida e immoral.


                                  II


O que tem ouvidos para ouvir ouça: o que tem olhos para ver veja: o que
tem coração para se contristar, contriste-se.

O povo tinha a liberdade e quiz a licença; tinha a justiça e quiz a
iniquidade: o povo perecerá.

Desgraçado daquelle que anda fóra dos caminhos do Senhor: correndo
despelado por despenhadeiros, sentir-se-ha por fim baqueiar no fundo de
um precipicio.

Porque a lei e a virtude foram postas no mundo para proveito do homem,
não para proveito de Deus.

Quando uma nação quebra todos os laços sociaes, della será todo o damno.

Para as turbas o cheiro do sangue é perfume suave; o roubo gloriosa
conquista.

E ellas se fartarão de sangue e de rapinas com a voluptuosidade atroz do
anthropophago que se banqueteia com os membros semivivos do seu
semelhante.

Porque a plebe desenfreiada é como o phantasma do crime, como o espectro
da morte, como o grito do exterminio.

Horrível é o aspecto do empestado, que, entreabrindo o lençol que lhe
servirá de mortalha, descobre as pustulas, donde mana a podridão e o
cheiro da sanie, e que por entre os labios amarellos e os dentes
cerrados deixa fugir o som rouco do estertor.

Mas para o homem honesto, que contemplar uma scena das raivas da plebe e
ouvir as suas blasphemias e vir as faces hediondas dos homens
dissolutos, será como allivio a asquerosidade das chagas, o halito podre
e o rouco estertor do empestado.


                                 III


E o povo continúa a dançar em roda do seu mesmo sepulchro.

E as outras nações meneiam a cabeça em signal de compaixão.

Os tyrannos sorriem e dizem por escarneo aos homens virtuosos: ide, e
dae a liberdade ás turbas: erguei á dignidade de homens livres servos
devassos e educados no lodo: elles vos pagarão com a unica moeda que
guardam em seus thesouros.

A relé popular é chamada as fezes da sociedade, não porque é humilde,
não porque é pobre, mas porque é vil e malvada.

O sabio e o virtuoso indigentes são mais nobres do que os grandes da
republica, do que os dominadores da terra.

O ferrete da abjecção e da infamia estampa-se em qualquer fronte sem
excepção de berço, e aos que trazem este signal de reprovação é que a
philosophia chama escoria da sociedade.

A medida por que Deus conta os graus dos meritos da vida é a da pureza
de coração; é a do aperfeiçoamento da intelligencia.

Os typos das diversas alturas a que sobe o espirito humano na carreira
indefinita da perfeição formam como uma pyramide, cuja base assenta no
fundo de um tremedal, cujo ápice se esconde no interior dos céus.

Muitos nasceram no infimo da pyramide e subiram a grande altura: outros
de grande altura desceram a mergulhar-se no lodo.

E tanto a uns como a outros julgará a immutavel justiça de Deus.


                                  IV


Os soldados da liberdade morreram nos combates da patria e misturaram o
seu sangue com o sangue dos satellites da tyrannia: os seus ossos
alvejam nas serras e nos valles, como alvejam as ossadas dos servos com
quem combateram.

Foi sasão essa de abundante messe de almas puras para o céu. Consolem as
lagrymas dos justos as cinzas desses valentes.

Eram apenas um punhado; a morte ceifou os mais delles; o resto já não
tem força senão para pranteiar sobre as ruinas da patria.

E o vidente pranteiará com elles, porque o Senhor lhe amostrou o futuro.

Se os homens do desterro e das tempestades podessem levantar-se da sua
jazida, a terra de antigas glorias ainda seria salva: mas elles dormem o
perpetuo somno do repouso.

E foi o ultimo leito honrado em que portugueses se reclinaram no seu dia
extremo.

Felizes os que então se despediram do sol e misturaram com a terra o pó
que lhes emprestara a terra.

Os dias dos que restamos não eram ainda contados; porque nossos erros
pediam a punição do opprobrio.

O Senhor nosso Deus é justo; curvemos a cabeça diante da sua
Providencia.


                                   V


Formosos eram os tempos em que pelejavamos pela liberdade do povo; tão
formosos, quão negros estes em que a plebe peleja pela licença.

As nossas armas vomitavam a morte: semeiava-a tambem o inimigo pelas
nossas fileiras: e nós estavamos firmes nos pincaros das montanhas, ou,
descendo, faziamo-las resoar debaixo de nossos pés.

E arrojando-nos aos contrarios, as bayonetas reluziam á luz do sol; e o
tinido dos ferros encontrados, e o clamor dos feridos, e o estampido dos
tiros reboavam pelas quebradas dos valles.

Quando a victoria, embora sanguinolenta, nos coroava a fronte, o
triumpho era para nós um delirio; porque o combate fora de homens
valentes.

Na historia do soffrimento humano a mais bella pagina é a historia do
nosso soffrimento. Nem a peste, nem a fome, nem a desesperação de todo o
humano soccorro dobraram a robustez de corações ousados.

Porque pelejavamos por uma causa justa, e Deus estava comnosco.

Por serranias agrestes e aridas combatemos debaixo de sóes ardentes, e
as entranhas mirravamse-nos de sede: tinhamos os labios resequidos como
a urze já morta, e humedeciamo-los com as lagrymas da dor, e
supportavamos a sede.

Encostados a mal construídos vallos e cercados por quarenta mil
soldados, vigiavamos pelas noites longas e tenebrosas do inverno. A
chuva cahia-nos em torrentes da atmosphera densa sobre os membros
mal-vestidos, e o oeste sibillava em nossas armas.

Ou se as cataractas do céu se vedavam, o frio leste trazia-nos o seu
sopro envolvido nas geadas dos montes penhascosos.

Cruelissimas eram estas entre as noites crueis desse tempo; porque ao
redor de nós tudo estava devastado, e não havia um unico tronco para
alimentar a fogueira do arraial.

E o frio recalcava a vida toda no coração do soldado; e elle sem um
lamento soffria o rigor de noite dilatadissima.

A fome apresentou-se diante de nós: medonho era o seu aspecto: os
membros desfalleciam-nos e as armas por vezes nos cahiam das mãos.

Mas o amor da patria estava vivo em todos os corações. A Providencia
infundia-nos valor, e soffremos sem murmurar a fome.

Gloria a Deus!--Os ultimos portugueses saíram illesos da prova. Os
antigos cavalleiros os receberam como irmãos lá onde são com o Senhor.

Bemaventurados os que deixaram esta terra de lagrymas, porque não viram
que o seu sangue fôra derramado em vão.


                                  VI


E depois dos combates íamos sepultar os mortos.

No campo da batalha abria-se uma grande cova, e simultaneante se
lançavam nella os cadaveres de amigos e de inimigos.

Porque além do limiar do outro mundo calam todos os humanos odios.

E o tecto de terra estendia-se sobre os muitos que ahi dormiam no mesmo
jazigo.

E algum pranto derramado sobre o pó revolto, e as preces da igreja
proferidas pelo sacerdote consolavam os extinctos.

Plantava-se a cruz sobre a gleba para consagrar a memoria dos mortos;
para pedir a esmola da oração ao que passasse, e para lhe annunciar que
todos os que alli repousavam eram irmãos por Jesu Christo; eram irmãos
pelo sepulchro.

Perdoavamos para sermos perdoados: perdoavamos porque eramos fortes.


                                 VII


Alevantou-se a plebe, e logo commetteu um crime.

Agitava-se e ondeiava pelas ruas com clamor inintelligivel; arrastava-a
o espirito das turbulencias civis.

Um homem inerme passou por entre os amotinados: era um dos votados ao
exterminio: muitos tiros e golpes partiram do meio da turba, e o homem
cahiu exangue e sem vida.

E arrastaram até o cemiterio publico, ao som de injurias e risadas,
esses restos que a morte sanctificara. As maldicções do odio mais
profundo param á beira do tumulo. A maldicção popular, essa é que não
parou ahi.

Soterraram por meio corpo o cadaver e cuspiram naquellas faces lividas
aonde já não podia subir do coração o rubor, e que os olhos cerrados não
podiam já mundificar com lagrymas.

E esse homem assassinado e arrastado e cuberto da escuma fetida da
gentalha, fora um dos que salvaram o povo do cutello dos tyrannos.

Plebe: commetteste um assassinio, e serás julgada. A ferro morrerá o que
ferir com ferro: disse-o o Propheta do Golgotha.

Deixaste acaso a face da tua victima descuberta para monumento do crime?

Quizeste porventura desafiar a eterna justiça, e convocar a combate o
Regedor dos mundos?

Se na tua maldade e soberba assim o pensaste, sabe que baldada foi a
profanação da sepultura.

Se nos confins da terra sumisses o morto; se o escondesses nos abysmos
do oceano; se o arrojasses na cratera de um volcão encendido, lá Deus o
havia de divisar.

Porque todo o gemido do moribundo resoa até o throno do Eterno.

Preparae-vos, vermes, se tanto ousaes: porque o Senhor se erguerá sobre
os orbes, e o estridor da setta exterminadora sibillará atravez do
Universo: ella se cravará na terra que pisaes e passareis como o fumo.

Ai daquelle que, impenitente, acordar ao som da ultima trombeta tincto
no sangue injustamente derramado de algum de seus irmãos!

Em verdade vos digo que para esse já não ha perdão, mas só o ranger de
dentes e o bramir sempiterno.


                                 VIII


Povo! Onde estão os teus sabios, os teus generaes, os teus nobres, os
teus abastados, os teus homens virtuosos!

Os timidos escondem-se diante da tua sanha: os valentes, não podendo
combater com as turbas, erram no oceano á mercê das tempestades.

E é a segunda vez que se affrontam com ellas por amor da liberdade e da
lei.

Deus proverá os foragidos, como provê de sustento os animaes que
vagueiam na terra e as aves que cruzam os ares.

E os timidos que, ouvindo o rugido da plebe, se embrenham por antros de
serranias, por profundezas de bosques, confiem tambem no Senhor.

Porque delle vem a salvação para os bons no dia da cólera e do castigo.

Que os perseguidos se consolem lembrando-se dos proprios erros, porque
ninguem se isenta da culpa, e antes remi-la neste valle do desterro, do
que além da sepultura.

O que padece não deve queixar-se, nem rebellar-se contra a Providencia:
porque essa queixa inspira-a a soberba.

Que é um homem em comparação de uma cidade; uma cidade em comparação de
um povo: um povo em comparação do genero humano; o genero humano em
comparação do Universo?

E que intelligencia é capaz de medir a distancia que vai do primeiro ao
ultimo?

Milhões de milhões de vezes menos importa a existencia de um individuo
na somma das existencias, do que na pyramide de Cheops o mais miudo grão
de argamassa importa á solidez do monumento.

Emquanto vive na terra, o homem é um atomo na immensidade: grande será
depois da morte no reino do céu; grande ainda entre os bramidos do
inferno.

Porque para elle existe a eternidade só então: só então comprehende a
omnipotencia de Deus.


                                  IX


Cinco annos em nome do Evangelho uma parte do povo perseguiu seus
irmãos, e cobriu-os de opprobrio.

Em nome do Evangelho pregoou-se o odio, a vingança, e o perjurio: em
nome do Crucificado pregoou-se o incendio, o roubo, o sangue e o
exterminio.

Mas o dia da punição chegou, porque as lagrymas da innocencia orvalharam
o seio de Deus.

Elle estendeu o seu braço, suscitou os ousados, e conduziu-os de milagre
em milagre. Então os impios dobraram a cerviz altiva.

As nossas victorias foram de homens fortes; mas a robustez de animo
vinha-nos daquelle que é fonte e origem de toda a humana virtude.

Vestia-se então a maldade dos trajos puros da religião para perpetrar
impunemente crimes: hoje abriga-se á sombra da arvore sancta da
liberdade para assolar a terra da nossa infancia.

Ai dos maus, porque os olhos do Todo-poderoso lhes vêem nus os corações
em toda a hediondez da sua perversidade!

A justiça celeste nunca dorme, como na alma do criminoso nunca se cala o
remorso.

E a hora da tribulação e das angustias chegará para os malvados; e elles
amaldicçoarão o ventre materno e os peitos que os amamentaram.


                                   X


Povo! os que hoje saudas como numes, ámanhã fa-los-has em pedaços, e
arrastarás pelas ruas os seus cadaveres cobertos de feridas e pisaduras.

Porque, bem que tarde, conhecerás que elles te hão enganado.

Prometteram-te abundancia, e achar-te-has faminto; prometteram-te
liberdade, e achar-te-has servo.

A licença mata a liberdade; porque se livremente opprimes, livremente
podes ser oppresso; se o assassinio é teu direito, direito será para os
outros assassinar-te.

Se a força, e não a moral, é a lei popular, quando os tyrannos tiverem
mais força, legitimamente podem pôr no collo do povo um jugo de ferro.

Ministros da tyrannia são os que suscitaram a lucta das facções, os que
deram o primeiro grito da revolta, os que accenderam a guerra civil;

Porque a nação se dilacerará, e enfraquecida passará das mãos da plebe
para as mãos d'algum despota que a devore.

Lembrae-vos da Serpente, que enganou nossos primeiros paes: foi com
palavras sonoras, com promessas de gloria e de ventura que ella perdeu a
ambos.

Dado que para vós não houvesse liberdade e elles vo-la offerecessem á
custa de perpetuo damno, devieis tê-los por vossos destruidores.

Porque a liberdade não é tanto um fim como um meio: quer-se a liberdade
não tanto para as nações serem livres, como para serem felizes.

Que importa o respeito de propriedade ao que nada possue? Que vale a
liberdade da palavra para o que só tem de proferir maldicções e
queixumes? Que monta que os vossos pares vos julguem, se o odio das
facções nos fez inimigos uns dos outros?

Sem concordia, inevitavel é que o edifício social desabe: e porventura
nascerá a concordia do meio das sedições?


                                 XI


Se no coração de algum dos concitadores da anarchia existe vislumbre de
virtude, ai delle! Ai delle, se a sua alma é inteiramente negra!

Porque de qualquer dos modos um abysmo está cavado debaixo de seus pés:
na estrada do arrependimento o da vingança popular, no seguimento do
crime o da justiça de Deus.

Elles revelaram á multidão o segredo da sua força, e as turbas os
levarão diante de si.

O leão ruge livre na arena, e o conductor que o desatrellou cumpre que
mais ligeiro lhe preceda na carreira, aliás será o primeiro que elle
desfaça entre as garras.

Aquelles que hoje são o amor das turbas serão chamados por ellas para
presidirem a conselhos de sangue, a longos dramas de destruição e de
angustias.

E se a consciencia lhes clamar com a voz do remorso, e se tremulos
quizerem retroceder, a plebe lhes dirá--ávante!

E se ousarem implorar piedade para com as victimas do desenfreiamento e
da barbaridade, rir-se-ha a plebe, e gritar-lhes-ha--ávante!

E se, aterrados da altura do precipicio, voltarem atrás um passo, este
passo será o extremo: a plebe os anniquilará.

Elles encheram o calice das amarguras publicas: os justos o beberão aos
tragos; mas as fezes serão para os escanções do banquete popular.

A salvação unica do instigador de revoltas e uniões está em admittir
todas as consequencias dellas.

E então forçoso lhe é tornar-se conspicuo no crime e revolver-se no
sangue.

Mas qual será a eternidade de tal homem?

Deus não deu palavras ás línguas da terra para o dizerem. É esse um dos
mysterios do inferno.


                                 XII


Temo as horas caladas da noite, e o coração aperta-se quando o somno me
pesa sobre as palpebras amortecidas:

Porque para mim o somno não é repouso, e os phantasmas das sombras são
mais crueis do que as crueis realidades do dia.

Deus converteu a sua voz no meu pensamento e collocou nos meus labios o
grito da sua colera.

O seu verbo desfará a minha alma, como o ar aquecido dilatando-se dentro
do vaso o desfaz em fragmentos.

O espanto cerca-me no meio das trevas, e o futuro está parado diante de
mim como um pesadello eterno.

Em um momento reune o Senhor na minha alma as dores com que por largos
dias gemerá esta desventurada patria.

E, em sonhos, oro ao Deus de nossos paes; mas na sua ira o Altissimo
repelle as minhas preces; e acordo debulhado em lagrymas.

Este acordar arremessa-me á vida actual, a esta atmosphera de
depravação, ao meio do deshonesto tumultuar de um povo corrompido.

E a oração, que em sonhos ousara levantar a Deus, cahe gelada na terra
ao som das pragas e blasphemias da turba desenfreiada.


                                XIII


Eu vi uma visão do futuro, e o Senhor me disse: vai e revela-a na terra.

Como em panorama immenso, um reino inteiro estava diante dos meus olhos.

E nas duas cidades mais populosas delle homens de má catadura começavam
de agglomerar-se nas praças e a trasbordar pelas ruas.

E nos campos e nas aldeias outros homens com aspecto de reprobos
começavam tambem a apinhar-se nos passos das serras, nas assomadas das
montanhas e nas clareiras das florestas.

E tanto nas faces dos filhos dos campos, como nas dos habitadores das
cidades adivinhava-se o grito de exterminio que bramia no fundo dos
corações.

Os magotes de serranos fundiram-se n'uma só turma; e o mesmo succedeu
aos das cidades.

E cada uma das turmas se converteu em uma besta-féra, que se assemelhava
ao tigre.

Agigantada era a sua estatura, e na fronte de uma lia-se--Fanatismo--e
na da outra--Desenfreiamento.--

Com os olhos tinctos em fel e sangue, correram então os dous monstros um
para o outro, ergueram-se em pé e estenderam as garras.

No mesmo instante abriram-se os céus: dous grandes cutelos afiados e
dous fachos encendidos cahiram juncto das alimarias ferozes.

E nas laminas dos cutelos estavam escriptas com letras de fogo as
palavras seguintes--Maldicção de Deus.

E cada uma das alimarias segurou com a esquerda um dos fachos, e com a
direita um dos cutelos.

A das cidades arrojou o seu facho sobre os campos, e os campos ficaram
em um momento áridos e ermos.

E a outra sacudiu o seu sobre as duas cidades, e subito no logar onde
ellas foram estavam dous montões de ruínas.

Depois, combatendo por largo tempo e atassalhadas de golpes, cahiram e
renderam os espiritos.

Então as lagrymas me offuscaram os olhos; porque bem entendia o que
significava a visão.

Mas enxugando-os, tornei a lançá-los para o logar da peleja.

E vi uma solidão safara e negra, sobre a qual a perder de vista para
todos os lados alvejavam milhares de ossadas.

E em cima dellas estavam assentados dous espectros gigantes. Chamavam-se
Assolação e Silencio.


                                 XIV


Era uma noite serena, e, ao clarão da lua, a sombra de templo antigo
estirava-se no terreiro contiguo.

Os sinos dormiam nos campanarios das torres erguidas, e tudo estava
calado no ambito do monumento religioso, herdado aos homens impios deste
seculo pelos homens crentes dos tempos que foram.

Atravez das esguias e ponte-agudas janellas da igreja transverberava na
praça a luz amortecida das alampadas penduradas ante as capellas
desertas.

Era a hora em que se passam cousas mysteriosas por adros e cemiterios, e
em que vagueiam pela terra os mortos condemnados a assim cumprirem com
sua justiça.

N'um angulo do terreiro estava eu. Não sabía que mão me tinha para alli
arrastado; mas era a mão de Deus.

Ao longo de uma rua que naquelle logar desembocava vinha ondeiando um
turbilhão negro, cujo rugido era semelhante ao rugido do pinhal da
montanha em noite tempestuosa.

E parecia aquelle grande vulto um fragmento do cahos, a quem, de todos
os elementos de harmonia e de ordem, só o Creador concedera o movimento.

E chegou o tumulto diante da igreja e espraiou-se por toda a praça, e
houve profundo silencio.

E um homem alevantou a voz no meio do tropel, que pendia de seus labios,
e disse:

«Vós sacudistes o jugo dos poderosos, e o nome de rei e o titulo de
nobre são palavras sem significação na linguagem de nação regenerada.

O povo que jazia no lodaçal alevantou-se como gigante de prodigiosa
altura, e estendendo os braços, estreitou os palacios dos abastados e
dos potentados: os pannos dos muros vacillaram nos seus fundamentos de
marmore e de granito, e começaram de desmoronar-se e baqueiaram por
terra.

E o gigante popular riu-se e assentou-se em cima de montões de ruinas.
Foi este dia dia de sempiterna gloria.

Mas os monumentos da credulidade e do fanatismo de nossos paes ainda
assoberbam a cidade dos homens livres. A hypocrisia abriga-se á sombra
dos altares e invoca, talvez contra nós, um Deus que não existe.

O unico Deus de corações generosos é a liberdade. Quando cumpre, o altar
della é o cadafalso: o seu sacerdote o algoz: o seu culto verter o
sangue dos tyrannos.

A religião que tem por fundamento a humildade e a abnegação de si é a
religião dos servos.

É por isso que nossos paes foram servos.

Amaldicçoemos, pois, o nome dos que nos geraram e derribemos a obra da
superstição.

E cada um daquelles precítos amaldicçoou seu pae. Os cabellos
erriçaram-se-me de horror.

Então a turba arrojou-se ao portal do templo, e os largos ferros dos
machados scintillavam erguidos e faziam estourar as portas. Pelas naves
da igreja retumbava um gemido longo e sonoro.

E o terreiro ficou esgotado dessas ondas de povo, vertidas pelo ádito da
velha cathedral dentro de seu amplo recincto.

Como os vermes se arrastam vagueiando pelos membros do cadaver, assim os
homens do sacrilegio se espalharam, arremessando-se aos altares e a
todos os logares onde reluzia a prata ou o ouro.

E cuspindo sobre a hostia do Cordeiro, pisavam-na aos pés e motejavam do
Crucificado.

E despido o templo das riquezas alli depositadas em testemunho da
piedade de seculos, os impios saíram delle carregados de despojos.

Depois, accendendo fachos, lançaram-lhe fogo por todos os angulos, e
breve as chammas se ergueram ao céu com espantoso ruido.

O estalido das pedras que se desconjunctavam, e o fragor das abobadas
desabando, e o estridor do incendio, que trepava em espiraes pelas
columnas e se estendia em lençoes vermelhos, lambendo a face dos muros,
e o ultimo gemido dos orgãos era a orchestra deste sarau popular.

E a plebe folgava de roda, e embriagava-se, passando de mão em mão as
taças do vinho espumoso, e tecendo danças com as mais vis prostitutas.

Tal foi o sonho do futuro que o Senhor me enviou n'uma noite de agonia.


                                  XV

O anjo das predicções mudou então na minha alma a scena do porvir.

Á mesma hora, á mesma luz da lua, estava eu no logar onde vira o povo
quebrar as portas do sanctuario; onde vira os homens dissolutos transpor
a ultima barreira que os separava dos tigres, e lançar de si o ultimo
signal que os distinguia dos espiritos das trevas.

Dos fustes truncados das columnas do templo pendiam hervas bravias, e
nos muros semi-rotos enlaçava-se a héra.

Nos campanarios afumados pelo incendio haviam as aves nocturnas
construído os seus ninhos: ao cahir das trevas, em vez dos sons
religiosos dos sinos, despenhavam-se lá dos cimos das torres os pios
melancholicos da poupa solitaria.

E no meio do terreiro surgia o que quer que era negro e que não se
assemelhava a nenhuma obra da natureza, a nenhuma obra das mãos do homem
feita para o uso da vida.

Approximei-me. Era o patibulo.

Um vulto humano pendia do alto delle e volteiava para um e outro lado á
mercê da brisa da noite.

E tinha as faces disformes e os olhos espantados, e da bôca meia aberta
gotejava-lhe a espaços o sangue.

Eu estava com os olhos cravados nelle, e não os podia despregar do homem
do patibulo.

E involuntariamente cahi de joelhos: as preces pelo morto íam-me a
romper dos labios. Sentia ardente a fronte e batia-me o pulso rapido e
com força.

Á primeira palavra de oração que proferi, um estremeção agitou o cadaver
do justiçado.

E sem mecher os beiços murmurou sons inarticulados: depois proferiu
algumas palavras: a sua voz era a de um ventriloquo.

Cala-te!--disse o cadaver.--A eternidade é já minha. Deus riscou-me do
livro da vida: maldicto seja o seu nome!

Fartei-me de crimes na terra: por isso fui condemnado.

A minha existencia foi como um halito de pulmoens ralados: a minha voz
nunca ensinou senão a destruição.

Hypocrita da liberdade, pregoei a anarchia e a licença, como os
hypocritas da religião pregoam a intolerancia e o exterminio.

Fui eu o que nas trevas preparei a discordia dos homens livres; que
suscitei o primeiro dia de furor popular.

Colloquei em frente dos amotinados alguns mancebos, em cujo seio havia
fragmentos de virtude, mas cuja ambição era cega.

Porque bem sabia eu que a plebe immoral anniquilaria todos os que não
fossem tão dissolutos como ella.

Deixei na arena dos bandos civis todos os meus émulos, e abandonei o
paiz que de futuro devia ser minha prêa.

Quando voltei, o povo tinha feito pedaços os seus idolos de um dia, e
havia-os sumido debaixo dos pés das turbas.

Era então que começava o meu imperio. Ai dos que eu tinha arrolado no
livro da morte! Nenhum ficou sobre a terra.

Milhares deixaram a cabeça debaixo do cutelo do algoz: milhares
volteiaram no cadafalso por noites de luar, como agora eu volteio.

E este baraço que ora me sobreleva do chão ainda o achei aquecido do
collo da minha ultima victima.

Fartei a sede de vingança e de sangue que mirrava o meu coração, e morri
seguro de que deixava atraz de mim a campa cerrada em cima de todos os
virtuosos.

O tyranno do céu folgue embora em me ver no inferno: ao menos pude
apagar o seu nome na terra que me deu o berço.

Um brado meu desmoronou os templos: o sacerdocio desappareceu; a oração
calou para todo o sempre.

Agora tambem eu passei; porque na senda do crime o povo com uma passada
vence o caminho de um seculo, e eu era apenas um homem.

Os que empolgaram o poder, que me foi arrancado, não os tinha ainda
conhecido, porque se arrastavam hontem em regiões obscuras; aliás
ter-me-hiam precedido em descer aos abysmos.

Aqui, dando um longo gemido, o suppliciado calou; os olhos
fecharam-se-lhe, e a cabeça pendeu-lhe para o peito.

Emquanto falara, bem conheci quem era; mas o Senhor me ordenou não
revelasse o seu nome.


                                 XVI


O anjo das predicções mudou o espirito dos meus sonhos.

Era por noite fria de inverno: n'uma quadra desadornada de palacio meio
arruinado jazia um homem em pobrissima enxerga.

No seu rosto estava pintada a doença e a fome, as bagas do suor da morte
transudavam-lhe da fronte, e dos olhos fugia-lhe a lagryma extrema do
moribundo.

Os farrapos que vestia não o resguardavam do frio; e o homem tremia, e
os dentes batiam-lhe uns contra os outros.

E no seu delirio o misero soltava palavras cortadas.--Agua!
agua!--dizia; porque a sede lhe roía as entranhas. E não havia quem lhe
desse um pucaro de agua.

Tribunos da plebe, dae-me um pouco de pão. Ah! bem negro que seja! que
tambem eu sou do povo.--E lançava os olhos para os seus farrapos.

Fui nobre e rico; mas esquecei-vos disso! Perdoae-me, porque nada me
resta: tão pobre sou como o mais humilde mendigo, que d'antes estendia a
mão para o ultimo dos meus servos.

E o homem sorria, e o seu riso significava a desesperação da sua alma.

Depois olhou para um crucifixo que estava encostado á parede, e estendeu
para lá os braços.

Mas não havia quem lhe unisse ao peito a imagem do Salvador: não havia
um sacerdote que lhe desse o extremo _vale_.

Então deixou descahir os braços, fechou os olhos, e morreu. Sobre o
cadaver ir-lhe-ha amontoando o tempo as ruinas dos paços que lhe
herdaram seus paes.

E será esta a campa republicana do homem que foi nobre e abastado.


                                 XVII


O anjo das predicções mudou o espirito dos meus sonhos.

Era o dia da lucta das facções: era um dia de ampla carnificina.

E o demonio do meio-dia pairava sobre a cidade do sangue, e blasphemava
do Senhor.

O povo corria furioso e tumultuava; e os tiros e golpes soavam pelas
praças, pelas ruas e pelas encruzilhadas.

O gemer dos feridos, as pragas dos vencidos, e as ameaças dos vencedores
conglobavam-se em rumor semelhante ao arquejar de volcão.

As portas dos edificios estouravam pelos gonzos e fechaduras, e a plebe
clamorosa entrava de tropel até o mais recondito das habitações.

E o ulular das mulheres, e o vagido dos infantes e o chôro dos velhos
rompiam por entre o clamor da matança.

Mas a lascivia e o punhal breve punham o sello do silencio nas frontes
de inteiras famílias.

No recontro das diversas parcialidades os irmãos assassinavam os irmãos,
os filhos assassinavam os paes.

Porque á voz das sedições, o povo tinha quebrado, depois dos laços
sociaes, os vinculos da natureza.

E o roubo, a dissolução, a morte e o incendio estavam assentados nos
quatro angulos de uma cidade outrora populosa e rica.

Estas eram as divindades que adorava a plebe nos dias da licença e do
furor.


                                 XVIII


O anjo das predicções mudou o espirito dos meus sonhos.

Nas abas de uma serra das provincias do norte ainda as casinhas de
pequena aldeia alvejavam certa manhã ao despontar o sol.

E nas assomadas dos montes, e nos comoros dos outeiros ondeiavam os
cimos dos pinhaes agitados pela viração matutina.

A aldeia e os campos que a rodeiavam eram, no meio deste paiz assolado,
como o vulto da esperança erguido sobre a lousa do sepulchro.

E os habitantes pacificos do valle não sabiam que as tempestades
politicas trovejavam além das suas montanhas.

Mas nesse dia souberam-no para morrerem. O raio da furia popular
fulminou-lhes a destruição.

Bandos de soldados negrejavam em ondas descendo para a planicie; e os
primeiros raios do sol espelhavam-se nas suas armas.

E seguiu-se mais uma scena de carnificina, como tantas que eu tinha
visto em meus sonhos do futuro. O ultimo abrigo da felicidade neste
mal-aventurado paiz foi reduzido a cinzas.

Os velhos morriam abraçados aos troncos dos carvalhos e castanheiros,
seus veneraveis amigos da infancia, que tinham testemunhado a ventura de
seis gerações inteiras.

Os moços cahiam combatendo pela salvação dos paes, das esposas e dos
filhos; mas, inexpertos nas armas, levemente eram vencidos da soldadesca
feroz.

Na ermida do presbyterio buscaram as mulheres indefensas guarida contra
os assassinos; porque as desgraçadas não sabiam que a religião tinha
fugido desta terra dos crimes.

Alli, ante o altar do Senhor, foram vilipendiadas e saciaram a bruteza
dos filhos da dissolução.

E no dia seguinte, nos soutos e nos pinhaes da encosta ouvia-se tão
somente o murmurio das ramas; e no meio do valle fumegava um monte de
cinzas.


                                 XIX


O anjo das predicções mudou o espirito dos meus sonhos.

N'uma vasta sala estavam congregados muitos homens de aspecto feroz e em
cujos olhos faiscavam as coleras immensas dos bandos civis.

Chamavam-se estes homens os legisladores, os eleitos do povo.

Vans denominações eram essas: a lei residia na vontade mudavel da plebe;
e elles eram em grande parte mandados para aquelle recincto pela
parcialidade que então triumphava.

De roda, em balcoens erguidos, agitava-se a plebe tumultuosa.

Alli se lavravam os decretos de exterminio: e era, ouvindo-os, que as
turbas victoriavam os homens do sangue.

Mas, se aos labios de algum assomava uma palavra de humanidade, e se
ousava proferi-la inteira, os gritos de traição e de morte
recalcavam-lhe das faces para o coração esse impensado impeto de
piedade.

Neste dia pelejavam as parcialidades nas ruas para decidir quem tinha
direito de commetter mais crimes: era dia de abundante colheita para o
sepulchro e para o inferno.

Mas ao recincto, outrora chamado o sanctuario das leis, não chegava o
clamor do combate: porque ahi a discordia excitava alaridos e, sacudindo
o seu facho, encendia os animos de uns contra outros, Luctavam tambem as
parcialidades lá dentro.

Na praça publica a victoria convertia a final o que naquella assembléa
se chamava minoria facciosa em irresistivel maioria. A plebe soberana
annunciou-o aos legisladores, fazendo estourar a golpes de machado as
portas da immensa quadra, onde o vozeiar não era de ardentes debates,
mas sim de pugilato infrene. A turba-rei precipitou-se como torrente: o
tumulto ondeiou pela sala espaçosa, e houve um momento de ancia e de
silencio.

Então os punhaes reluziram erguidos e desceram com força; e os gritos e
as pragas e as blasphemias misturaram-se com o estertor dos moribundos.

E a plebe nos balcoens batia as palmas, e dizia entre risadas:--_viva!_

Tal foi a ultima scena de meus sonhos; e nada mais me revelou o Senhor.


                                 XX


O Filho do Homem comprazia-se em ensinar a sabedoria por meio de
parabolas: na parabola está a philosophia do povo.

Um agricultor possuia certo campo que não produzia senão fructos
enfezados; porque o solo se havia tornado sáfaro por falta de cultura
durante largos annos.

Porém ainda, aqui e acolá, pela extensão da veiga, vecejavam algumas
arvores e cepas de boas castas, e que só de maltractadas pareciam
bravias.

E este agricultor morreu, deixando o campo de seus paes a tres filhos
que tinha; e estes tractaram entre si ácerca do que deviam fazer da
herança paterna.

E o mais velho disse:--Respeitemos a memoria de nossos antepassados, e
deixemos aos que de nós vierem o campo que herdámos do mesmo modo que o
recebemos:

Porque se não diga que menoscabamos a prudencia dos velhos e que
pretendemos ser mais avisados do que foi nosso pae.

Elle viveu, posto que pobre, tranquillo: vívamos como elle viveu.

E disse o segundo-genito:--Veneranda é a memoria dos que nos geraram:
comtudo tambem se deve acatar a razão, que nos foi dada por Deus.

Conservemos todas as obras do tempo passado; mas melhoremos tudo o que
nellas houver ruim.

Ahi estão arvores uteis no meio da nossa herdade: não as derribemos,
porque o fazê-lo, além de impiedade, fora rematada loucura.

Porém roteemos os bréjos e sarçaes, adubemos a terra, e procuremos fazer
novos plantios adequados á qualidade do solo.

E disse o irmão mais novo:--Que nos importa os que passaram, ou que
temos nós com o que elles fizeram?

Nossos paes viveram nas trevas da ignorancia; e por isso todas as suas
obras são loucura e vaidade.

A luz e a sciencia só veio ao mundo em nossos dias, e só a propria
sabedoria póde fazer-nos felizes.

Comecemos pois por arrancar deste agro todos os vestigios de antiga
cultivação: não verdeça nelle nem uma unica planta.

E depois buscaremos arvores extranhas de fructos saborosos e sementes
uteis, e a nossa herdade causará inveja a todos os vizinhos.

Cada um dos irmãos estava firme em seu proposito, e os servos e os
familiares bandeiaram-se em tres partidos.

E luctaram uns com os outros, e triumphou a opinião do mais velho.

E o campo mal cultivado, cada vez produzia menos, e a fome veio
assentar-se no limiar da porta dos tres irmãos.

O que vendo o segundo-genito, disse aos do seu bando:

Força é que tiremos o poder das mãos dos que nos governam, aliás
morreremos todos á pura mingua.

E assim o fizeram; e, posto que a lucta fosse longa e encarniçada,
venceram; porque a razão estava da sua parte, e Deus os abençoava.

Então começaram a trabalhar: alimparam as arvores dos ramos seccos e
exuberantes; adubaram os campos e prados, e arrancaram as moutas e as
plantas nocivas.

E lançaram boas sementes á terra, e quando a seara foi crescendo,
começaram de mondar-lhe o joio e as outras hervas damninhas.

Promettia naquelle anno ser excellente a colheita, e no coração dos
familiares renascia já a esperança.

Mas o irmão mais novo, possuido do espirito de destruição, colligou-se
com os criados devassos e que aborreciam o trabalho continuo a que eram
forçados.

E fizeram uma união contra o segundo-genito e tiraram-lhe o mando,
valendo-se de muitos clientes do primogenito, os quaes, por via da
dissensão entre os dous mais novos, esperavam triumphasse o mais velho.

Lançaram-se então ao campo, destruiram a sementeira, cortaram as
arvores, e passaram a charrua por cima dos campos arrelvados.

E buscaram sementes exquisitas e arvores exoticas, e atiraram á terra
desalinhadamente com tudo isso, e depois adormeceram.

As arvores, porém, seccaram logo, e as sementes, apenas rebentaram,
morreram; porque os imprudentes não haviam estudado nem a natureza do
clima, nem as propriedades do solo, nem as regras de agricultar.

E a familia inteira no fim do anno tinha perecido de fome.


                                 XXI


Na terra de Cethim houve um rei que era bom e cheio de liberalidade e
valor.

E cançado de reinar, disse em certo dia a seu filho, que ainda era muito
moço:

Pesam-me já demais a coroa e o sceptro, e os esplendores do throno não
me deslumbram. Vem, e assenta-te nelle.

E o filho obedeceu, e começou de reger os povos por certas leis
estabelecidas por seu pae, o qual foi viver em regiões longínquas.

Mas um tyranno alevantou-se com o reino, e o moço principe errou largo
tempo por extranhos paizes com os poucos seguidores de sua má ventura.

E o bom rei que descera do throno correu a restituir ao filho a herança
que lhe legara.

E a sua espada foi como a de Gedeão; o seu braço come o dos Machabeus.

Então o principe desterrado voltou á patria, reassumiu o sceptro que lhe
fora roubado, e a lei e a justiça recobraram o antigo vigor.

Depois o rei virtuoso morreu de puras fadigas, e foi dormir com seus
paes: sobre a sua memoria desceram não só as bençãos dos seus soldados,
mas tambem as de todos os amigos da justiça e da paz.

Nas trevas, porém, homens corrompidos começavam a tramar dissensões
civis; porque pretendiam que os bons soffressem, depois da tyrannia de
um unico mau, a tyrannia de muitos homens ruins.

E estes mysterios da corrupção vieram a lume, e a plebe disse um dia ao
principe e aos cidadãos pacificos:--A força está em nós, e a força é o
direito: obedecei-nos pois, aliás um descerá do throno, outros serão
reduzidos a pó.

E tudo calou diante da plebe; porque era verdade que ella tinha a força.

Os nobres, os prudentes, e os homens bons cubriram-se de dó, e no gesto
lia-se-lhes a amargura do coração.

Mas o moço rei a quem os turbulentos fingiam acatar, porque descera até
elles, mostrou-se contente do seu damno, e engolfou-se nas delicias de
que o rodeiaram os algozes da patria.

Foi então que se apagou em todos os animos honestos o ultimo raio de
esperança.


                                 XXII


Havia naquelle tempo em Cethim um propheta, em cuja boca posera Deus o
verbo da eterna verdade.

E este propheta entrou um dia nos paços do principe e disse-lhe:

Mancebo inconsiderado, emquanto folgas e ris, vai desconjunctar-se
debaixo de teus pés o throno que te herdaram teus paes.

Lembra-te de que subiste a elle por cima das ossadas de vinte mil dos
teus amigos, regadas pelas lagrymas de cem mil familias.

E não te esqueças de que entre esses ossos jaziam os de teu pae: não
maldigas com tuas obras a sua memoria; porque elle foi justificado
diante do Senhor.

Crês tu que os homens do nada te perdoarão o teres nascido do sangue dos
reis? Enganas-te! Crime para elles é este que nunca te será relevado.

O sorriso que na tua presença lhes aclara o torvo das faces, não o
creias de amor: repara, e verás que é o riso infernal do desprezo.

Os filhos da abjecção queriam igualar-se comtigo; não, sendo elles quem
subisse, mas sendo tu quem descesse.

As taboas da lei foram feitas pedaços; se o vê-las partidas te apraz ou
disso não curas, antes de o patenteiar cumpria-te restituir-nos as vidas
e o sangue de nossos irmãos.

Este paiz soffreu tudo por guardar o pacto que jurou, e que também tu
juraste: que direito é o teu para approvares que esse pacto seja
rasgado? Porque não padecerias alguma cousa a bem dos que tanto
padeceram por ti?

Crês, porventura, que é bello e generoso assentares-te em um throno que
a relé do povo conspurcou de lodo e de infamia?

A plebe era forte: embora. Mais forte era o tyranno de outrora, e
baqueiou por terra.

Devias deixar aos maus a consummação do seu crime e não o sanctificares
tu.

Devias confiar na Providencia, e arrojar de ti o manto de ignominia que
sobre os hombros te lançavam.

Devias conservar sem mancha o teu nome, porque está ligado ao do que te
deu o ser, e este será glorioso até o termo dos séculos.

Nós iremos ajoelhar juncto ao sepulchro de teu pae, e ás cinzas do rei
virtuoso pediremos a justiça que não encontramos na face da terra.

Oh, que se fosse possivel alevantar-se elle em pé sobre a campa, um seu
olhar te encheria de remorsos; um brado seu fulminaria os perversos!

Taes foram as palavras que o propheta de Cethim disse ao principe
mancebo: o que depois aconteceu não o sei eu narrar.

E este é um fragmento da historia de eras que passaram ha muito.


                                XXIII


A justiça de Deus é grande: maior a sua misericordia.

Para o que se arrepende mana do seio do Senhor fonte perenne de perdão,
e as preces do contrito sobem ligeiras até os degraus de seu throno.
Depois dos dias de afflicção, elle envia o consolo e quebra em pedaços o
vaso da sua colera.

Povo, que vagueias desenfreiado pelas sendas da morte, converte-te á
vida, converte-te ao Deus de teus paes.

Elle não se esquecerá dos netos desses fortes que espalharam a luz do
seu Verbo entre os mais remotos barbaros, e os teus erros serão
esquecidos.

Nossos avós souberam ser livres sem ser licenciosos; souberam ser
grandes sem crimes: eterna é a sua gloria.

Ousariamos nós irmos ajunctar-nos com elles no repouso do tumulo
carregados das maldicções do Altissimo, e sepultando comnosco a herança
do nome português cuberta da execração do universo?

Lembrae-vos de que as cinzas dos cavalleiros de João primeiro; dos
valentes de Ceuta, de Tangere e de Arzila, dos conquistadores do
Oriente, estão envoltas na terra que pisaes.

E onde quer que ponhaes os pés levantará o passado um grito de
reprehensão contra a depravação do seculo actual.

Formosa e pura é a luz do sol neste amoroso clima do occidente: não
queiraes convertê-la no facho avermelhado e sinistro que fulgura por
cavernas de salteadores e de assassinos.

Unamo-nos, pois, como irmãos, e abraçando-nos uns com outros, cáiam
algumas lagrymas de reconciliação sobre esta terra tão regada de
lagrymas de amargura; tão ensopada no sangue do fratricidio.

Refloreçamos entre nós a paz e a amizade: tenhamos um nome só, o de
portugueses, um só bando, o da patria.

Ainda algum dia estes rogos do propheta serão ouvidos: mas quando, é um
segredo de Deus.




                          A VOZ DO PROPHETA


                            SEGUNDA SERIE


                                Iniquitas surrexit in virga impietatis;
                                non ex eis, et non ex populo, neque
                                ex sonitu eorum, et non erit requies
                                in eis.

                                                      EZECHIEL, VII-11.


                                  I


Lisboa, cidade de marmore, rainha do oceano, tu és a mais formosa entre
as cidades do mundo.

A brisa que varre os teus outeiros é pura como o céu azul, que se
espelha no teu amplo porto, semelhante a grande mar.

Trinta seculos tem surgido depois que tu surgiste, e sorvendo milhares
de existencias cahiram todos no abysmo do passado.

E tu os has visto nascer e morrer; e sorriste-te, porque julgavas que a
vida te estava travada com a vida do universo.

Escondendo nas trevas dos tempos remotissimos a tua origem, dizias ás
demais cidades da Europa:--Sou vossa irmã mais velha.

Nobre e rica outrora, quando o Oriente e a Africa te mandavam o ouro das
suas veias, os extranhos vinham assentar-se-te ao pé dos muros e
abastecer-se com as migalhas cahidas das mesas dos teus banquetes.

Cada um dos teus velhos palacios abrigou já os ultimos dias de um grande
capitão; em cada pedra dos teus templos ha uma recordação das virtudes
passadas; em muitas lousas de sepulturas nomes que não morrerão.

Nas eras de tua gloria, os monarchas dos ultimos confins da terra se
haviam por honrados com chamar irmãos a teus filhos; e filhos teus davam
e tiravam coroas.

As tuas armadas aravam as campinas do oceano, e neste nem uma vaga
deixou de gemer debaixo das naus do Tejo.

Para as frotas da nova Tyro, os golpes de machado resoavam ao mesmo
tempo nos bosques da Europa e da Africa, do Oriente e do Novo-Mundo: os
lenhos do Indostão cosidos com os da Nigricia fluctuavam por mares
distantes, e sobre elles se hasteiava um signal de terror para o orbe:
era o pendão das Quinas.

Então, oh cidade do Tejo, reinavas tu e eras forte, mais do que Roma ou
Carthago; mas o imperio e a força vinham-te das virtudes de teus filhos,
dos homens a quem sem pudor chamamos nossos avós.

Vivificavam-te o seio um sem numero de bem nascidos espiritos, e eras
seminario feracissimo de corações generosos.

Porém, que te resta hoje do antigo esplendor, da gloria de tantos
seculos? Um echo do passado nas paginas da historia, o sol puro da tua
primavera, os restos dos paços e templos que os terremotos te não
consumiram, e o grande vulto das aguas do amplo ádito do Tejo.


                                 II


Mas este echo da historia, que devia ser para ti como um grito de
remorso, não ha ouvidos que o escutem, e soa em vão e morre no meio do
vozeiar descomposto da plebe:

Mas este céu puro que te cobre, e que testemunhará no grande dia as
virtudes de nossos maiores, testificará também perante o Senhor a tua
corrupção actual:

Mas este porto, que a liberdade regrada de tres annos começava a povoar
de entenas, torná-lo-ha o reinado da licença tão ermo como os extremos
dos mares gelados:

Mas pelos palacios de marmore já não retumba a voz dos heroes, e os
templos estão desertos: só por lupanares e praças sussurra o clamor dos
populares, ou entoando os canticos das orgias, ou tumultuando em
assuadas e preparando o dia em que satisfaçam a sede do roubo e do
assassinio.

Viuva prostituida, os vicios corromperam-te a seiva da vida, e a
gangrena e os herpes corroem-te os membros, que ainda vestes de trajos
louçãos, mas onde a morte se encarnou ha muito.

Formosa ainda no aspecto, assemelhas-te ao sepulchro do evangelho, alvo
e polido no exterior, mas cheio de podridão e negrura.

Nova Jerusalém, a dextra do Senhor vergou pesando-te os crimes e, como a
antiga, saberás se por ventura são asperas as angustias que o
Omnipotente manda aos povos no dia da sua justiça.

Rapida é a carreira do malvado pelos atalhos do crime: porque esses
atalhos levam, de despenhadeiro em despenhadeiro, ao abysmo da perdição.

Breve empallidece o outono as folhas das arvores; breve as desprende dos
troncos; breve as espalha e some, arrebatando-as sobre as azas dos
ventos.

Esse curto praso bastou ao povo para esgotar os thesouros da
misericordia divina, que os erros e culpas de seculos não haviam podido
empobrecer.

Os feitos portentosos de dous annos de combates civis foram
amaldicçoados pelo povo em uma noite de sedição, e a arvore da liberdade
cerceiada juncto da terra.

E as esperanças de salvação e de felicidade passaram como o sonho
matutino que se desvanece ao alteiar do sol.


                                 III


Como a antiga Jerusalém se afundou em mar de crimes, assim a moderna
Sião, a grande cidade do occidente, se mergulhou em torrente de
perversidades.

E a maldicção celeste que sumiu aquella d'entre as nações pesará ainda
mais rijamente sobre a desgraçada Lisboa, sobre esta caverna de vicios e
de desenfreiamento.

Á roda dos muros de Solima apinhavam-se os cavalleiros de Babilonia, e
as tendas de Nabuchodonosor estavam assentadas ao pé da torrente de
Cedron.

E as catapultas arrojavam pedras sobre os eirados do templo, no cimo do
Moria: os arietes batiam os baluartes, que vacillavam até os
fundamentos, e o granizo das settas sibilava, passando por entre as mal
defendidas ameias.

E ao longe scintillavam os ferros das lanças e o bronze dos elmos e dos
cossoletes, e ouvia-se o nitrir dos cavallos.

Surgira o dia extremo para a cidade das maravilhas, para a reproba
Solima. E d'alli a um anno, sobre as ruinas della estava assentado um
velho.

Era o propheta de Anathot, que, em cima da ossada dos palacios e do
templo, entoava uma elegia tremenda, a elegia da sua nação.


                                 IV


Tambem o dia em que, entre os vestigios da cidade maldicta, algum vate
levante um grito de agonia, um grito de desesperança, não tardará a
chegar.

Porque Deus ergueu-se no seu furor, e mandou descer sobre este paiz o
anjo do exterminio.

Mais cruel será o teu castigo, oh terra do meu berço, do que o de
Jerusalém: porque ella pereceu a mãos de extranhos, e seus filhos
morreram defendendo os lares paternos.

Mas a ti é um matricidio popular, é a febre ardente das sedições que te
vae arremessar ao sepulchro.

Os teus muros converter-se-hão em circo: pelas praças e ruas
pelejar-se-hão pelejas como de gladiadores, combates como de mastins e
feras.

Porque o temor de Deus saiu do coração do povo, e entraram nelle todas
as raivas do inferno.

Aspero é para o que morre assassinado não poder clamar ao céu justiça
contra o seu matador.

E neste mau caso cahirá o povo; porque serão as suas proprias mãos que
lhe rasgarão as entranhas: será elle quem lavre a sua sentença de morte.

Elle se amaldicçoará a si, e o remorso e a desesperação de toda a humana
piedade lhe dobrarão as agonias do passamento.


                                  V


Os que pelejaram contra os tyrannos purpurados mal sabiam que lhes
quebravam o sceptro de ferro, para metter a espada da assolação na
dextra de tyrannos cobertos de vermes e farrapos.

Mal pensavam que uma raça corrupta não conhece outra estrada senão a da
servidão ou a da licenciosidade.

A nação, esmagada pelos reis, tinha muito tempo gemido debaixo da
propria miseria.

Mas surgiu um principe que deu a liberdade ao povo e que veio morrer
para lh'a restituir, quando elle vilmente a deixou baqueiar por terra.

E estes homens, que pouco antes haviam dobrado o joelho perante o
despotismo, mostraram-se tão orgulhosos e insolentes, quanto, até então
haviam sido abjectos e timidos.

E n'uma orgia popular fizeram resoar gritos insultuosos nos ouvidos
daquelle que duas vezes os libertara, e invocaram-lhe a morte. Nesse
momento longe estavam os seus soldados, e muitos delles arquejavam
moribundos no campo onde se pelejou a ultima batalha da patria.

Em verdade vos digo que tal crime é dos que Deus não perdoa; porque a
ingratidão é a mais horrenda de todas as perversões humanas.

Elles apressaram o repouso do tumulo para o salvador da republica: mas o
nome de parricidas será o que sobre a jazida lhes escreverá a historia.


                                 VI


O sonho da liberdade, o sonho da minha juventude, esta fonte da poesia e
de acções generosas, converteu-se para mim n'um pesadello cansado.

Digno era o povo de compaixão quando estava em ferros, e por bom feito
se tinha entre as almas puras o affrontar-se o homem com a morte pela
salvação dos seus semelhantes:

Porque, subindo ao patibulo ou expirando entre o estrondo das armas, a
voz da consciencia assegurava ao que fenecia as lagrymas e as bençãos
dos vindouros, e que algum dia cyprestes se plantariam na terra que lhe
bebesse o sangue.

Mas isto era crer na virtude popular: era apenas um sonho, e a
consciencia mentia.

A corrupção estava no amago das existencias. A arvore da vida social
carcomiu-a a servidão. Cumpria que as tempestades politicas a
derribassem; que os vermes da sociedade lhe roessem e desfizessem os
troncos.

E estes vermes são as turmas de uma plebe invejosa, que incessantemente
trabalham na grande obra da publica destruição.

Almas virtuosas, que nos paizes ainda escravos preparaes no silencio a
queda dos tyrannos, não apresseis o grande dia da emancipação popular.

Porque nesse mesmo momento sereis amaldicçoados pelos que salvastes, e
cubertos de escarneos e de injurias, sabereis que a plebe lança em
poucos mezes mais crimes na balança da eterna justiça do que os tyrannos
ahi hão lançado por seculos.


                                 VII


Certo dia, o conde de Avranches entrava nos paços de Affonso quinto, e
os cortesãos calumniavam sem pudor o bom duque de Coimbra, o salvador da
republica.

E o conde disse-lhes:--mentis, como desleaes; e aos melhores tres de vós
prova-lo-hei á lança e á espada: innocente e justo é o mui nobre filho
de meu senhor e rei, Dom João de excellente memoria.

E ninguem ousou responder ao velho cavalleiro da Garrotéa; porque bem
sabiam que a sua consciencia era pura e o seu montante pesado.

D'ahi a alguns dias elle provou o dicto. Na batalha de Alfarrobeira,
sobre um montão de cadaveres, cahiu defendendo a innocencia e bom nome
do seu desventurado amigo.

Onde estavam os do valente capitão da nova Diu, do rei soldado da
patria, quando o vulgacho no meio da praça publica, assentado no seu
lodaçal mandava derrocar as leis, as recordações e a gloria d'uma nação
inteira?

Onde estavam os amigos de D. Pedro, quando a memoria do grande homem era
amaldicçoada na condemnação da sua obra; quando sobre as suas cinzas a
dissolução cuspia escarneos; quando a liberdade morria ás mãos da
licença popular?

Quem se ergueu, seguro em boa consciencia, para lançar a luva em defesa
da justiça, e dizer ás turbas:--sois desleaes e mentis?

Ninguem! Todas as espadas ficaram embainhadas. Em Portugal já não ha um
cavalleiro. Na batalha de Alfarrobeira morreu o conde de Avranches, e a
sua espada foi sepultada com elle.


                                  VIII


Quando os reis se assentavam em thronos de ferro; quando a lisonja os
rodeiava de prestigios, e o terror estava assentado ás portas dos seus
palacios, era bello e generoso affrontar-se o homem com a tyrannia e
menoscabar as dores dos supplicios.

Então era ousado o propheta, quando, nos paços de Balthasar, lia nos
muros, escriptas pela mão de Deus, palavras de condemnação.

Eram sublimes os martyres, quando perante os cesares davam testemunho do
evangelho, e escarnecendo dos apparelhos de morte, se deitavam
tranquillamente sobre a cruz da agonia.

Era bello ouvir o poeta de Florença trovejar contra a prostituta Roma,
denunciar ao mundo a corrupção e os crimes dos pontifices do Tibre, e
comer no desterro um pão eivado de lagrymas e esmolado por estranhos.

Era bello, quando nós, assentados sobre os gelos do Norte, saudavamos do
desterro a terra que nos deu o berço, e vinhamos, fracos pelo numero,
mas fortes de coração, lançar as nossas baionetas na balança da
Providencia, onde a tyrannia tinha tambem lançado as suas.

Tudo isto era bello e generoso; porque então os pequenos gemiam
oppressos debaixo dos pés dos grandes, e ao homem justo incumbia fazer
resoar na terra a voz da eterna justiça, o grito da liberdade.

Mas hoje que a plebe reina e, como ampla voragem, ameaça tragar a
virtude, a liberdade, a justiça e todas as recordações sanctas do
passado, para o homem de boa consciencia sê-lo-ha, tambem, o morrer.

Sê-lo-ha o bradar no meio das turbas, e derramar sobre ellas a
condemnação, que Deus confiou em todos os seculos aos labios do
innocente e virtuoso.

Sê-lo-ha chegar aos tribunos populares, apontar-lhes para o céu, e
apresentar a cabeça ao cutello dos lictores.


                                    IX


Povo, hoje és tu quem impera, e absoluto é o teu poder; porque te dizes
unica fonte delle.

Toma, pois, em tuas mãos a vara do magistrado, e assenta-te uma vez mais
no teu throno, amassado com sangue e pó.

Vem assentar-te, e julga-nos, a nós, que tu maldizes, e aos tribunos,
aos instigadores de tumultos, que cobres de amor e de bençãos.

Porque isto diz o Senhor Deus: se a plebe julgar com justiça, a plebe
ainda será salva.

Desça o terror da tua vingança sobre o coração do que te houver
offendido; volvam-se no pó as frontes onde tu achares estampado o
ferrete do crime.

Recorre as acções da nossa vida, recorre as obras passadas das vidas dos
teus tribunos, e por preço do perdão de Deus, julga-nos com justiça.

Quando tu jazias na servidão, e os grilhões, encarnando-se-te nos pés e
nos pulsos, te roçavam pelos ossos, peleijavamos nós por te salvar;
derramavamos o nosso sangue por ti.

Por ti viamos o irmão e o amigo morder o pó dos campos de batalha, e
calavamos; sentiamo-nos descahir de fome, e não soltavamos um queixume.

Porque guardavamos os ais para o silencio das trevas. Soldados da
patria, ousariamos acaso queixar-nos diante da luz do sol?

E elles, que faziam, emquanto as nossas noites eram veladas debaixo de
um céu de ferro e de fogo, emquanto os nossos dias se consumiam entre o
sibilar dos pelouros?

Elles? Nos lupanares e tabernas de paizes extranhos, folgavam nos
banquetes da embriaguez; reclinavam-se no leito da prostituição.

Elles? Cubriam-nos de insultos, chamavam loucura e vaidade á nossa nobre
ousadia, e riam-se do juramento que faziamos de morrer ou dar a
liberdade a nossos irmãos.

Elles? Buscavam por todas as vias semeiar a zizania e os odios, damnar a
nossa causa sancta, e fazer-nos perecer debaixo das ruinas de uma cidade
illustre.

Eis o que elles fizeram em proveito da patria. No meio do foro, diante
de teu tribunal terrivel, descubra quem o ousar o peito, e mostre e
conte as cicatrizes das feridas que recebeu pela salvação da republica.

Um só delles as mostrará; porque esse foi valente e amigo da virtude.
Anjo de luz, porque te despenhaste no abysmo?

A historia escrevia o teu nome na pagina das bênçãos: tu mesmo o
riscaste e o foste escrever na pagina das maldicções...................
.......................................................................
.......................................................................



                                    X


Porém, debalde invocariamos justiça perante o tribunal popular; porque o
povo é abastado de injustiça e ingratidão.

Os que estão cubertos de cicatrizes, os que foram longamente saciados de
angustias por salvá-lo seriam condemnados, e os tribunos, os
concitadores da anarchia, cujas obras unicas tem sido conduzir a patria
ao abysmo da perdição, seriam absolvidos, seriam abençoados.

Embora: a nossa consciencia está tranquilla, e no grande dia é Deus quem
a todos nos julgará.

Houve um propheta outrora em Israel, e chamava-se o Filho do Homem.

E este propheta amava os humildes e os pobres, e reprehendia os
poderosos.

E condemnava os hypocritas da religião, e por isso era abominado pelos
grandes e pelos sacerdotes.

Mas respeitava as leis, e ensinava a obediencia: mandava que se pagasse
o tributo das duas drachmas do templo, e o tributo de Cesar.

E affeiava aos populares os seus vicios e abominações; e por isso era
tambem malquisto da gentalha.

E, condemnado á morte pelos poderosos, o povo, a quem tinha trazido a
luz e a vida eterna, o povo, que elle tanto amava, cubria-o de
opprobrios.

E podendo salvá-lo do supplicio, antepunha-lhe um grande criminoso, e
clamava aos algozes:--Pregae-o na cruz, e cáia o seu sangue sobre a
nossa cabeça e sobre a cabeça de nossos filhos.

E este propheta era o Messias, era o redemptor do genero humano, era o
filho de Deus.

Consolem-se, pois, aquelles que sobre os hombros tomaram o odio dos
tyrannos por amor do povo, e a quem o povo paga com injurias e pragas.

Como Jesu-Christo, os hypocritas e os oppressores das nações
abominam-nos: como a Jesu-Christo, o vulgacho cobre-nos de affrontas, e
pede para nós aos seus tribunos a condemnação e o supplicio.

E que nos cumpre fazer para seguirmos em tudo o exemplo do Justo
assassinado, do Deus que nos deixou na terra o consolo e a esperança?

Pedir morrendo ao Eterno Pae o perdão de nossos perseguidores e, como o
divino Mestre, lançar á conta da ignorancia as culpas de corações
corruptos.

Imitando o Salvador na cruz, seja um pensamento de benção o nosso
pensamento extremo; porque o derradeiro suspiro do christão deve ser um
murmurio de affecto grande para os que o amaram, mas ainda maior para os
que o odeiaram e perseguiram.


                                    XI


E ainda uma vez, filhos da perdição, ainda uma vez vos falarei em nome
do Senhor nosso Deus.

Que foi o que fizestes assassinando as esperanças da salvação publica,
derribando a sancta tradição da patria?

Até no crime fostes apoucados. Porque não se ergue um de vós, perverso,
mas sublime, como o archanjo das trevas, e diz:--fui eu o concitador do
motim popular, fui eu o primeiro que clamei «quebrem-se as taboas da
lei?»

Louvaes a sedição, chamaes-lhe obra illustre, e nenhum de vós acceita a
gloria de ser o bem-feitor do seu paiz?

Quando combatiamos pela liberdade gravavamos os proprios nomes em nossas
armas, e o inimigo que ousasse vê-las de perto, ahi os lería inteiros.

Não combatiamos nas trevas; e os nossos capitães diziam ao
mundo:--Vede:--e mostravam a face diante da luz do sol.

Hypocritas, que enganaes o povo, credes porventura que tambem enganareis
o Senhor e que, semelhantes á prostituta que engeita o fructo de seu
crime, engeitareis diante delle a obra da vossa iniquidade?

Não! Lá se levantarão os nossos e os vossos filhos, para quem preparaes
berço de miseria, vida de amargura e morte de desesperação.

E elles testemunharão contra vós na presença do Altissimo: e haverá ahi
choro e ranger de dentes.


                                   XII


Ambiciosos, que desvairaes o povo, o Senhor leu no fundo dos vossos
corações e revelou-me o que ahi está escripto!

A cubiça do mando e do ouro é o vosso amor de patria; a vossa ancia de
liberdade a sêde de tyrannia.

Merecedores de jazer perpetuamente na escuridade, e ermos de virtude e
de sabedoria, não podendo fulgir com luz celestial, tentastes romper as
trevas de vossos caminhos com o clarão torvo do inferno.

E a serpente vos emprestou a sua vã sciencia, as suas corruptoras
palavras, e alumiados por fulgor de morte, alguns vos creram illustrados
pela luz que mana do throno de Deus.

Mas os que foram enganados vos amaldicçoarão no dia em que patenteardes
a hediondez das vossas intenções, e o Pae de misericordia lhes perdoará
um erro de intelligencia.

Eis o que diz o Senhor:--Vós sois os assassinos da republica, mas
debaixo das suas ruinas ficarão tambem esmagadas as vossas frontes, e os
vossos membros quebrantados e sumidos.

Tambem vós tereis quem maldizer na hora do passamento: os dias futuros
justificarão o Verbo de Deus.


                                  XIII


Os soldados que arrastavam o Justo ao Golgotha, quando o povo de
Jerusalém pedia o sangue innocente, poseram sobre a cabeça do Filho do
Homem a inscripção--Este é Jesus rei dos Judeus.

Porque o povo não sabe commetter um crime, sem, afora o crime,
blasphemar e escarnecer da virtude.

Assim os tribunos da plebe, depois de rasgarem o pacto social, disseram
por irrisão:--Reuna-se o conselho dos anciãos, dos sabios e dos
prudentes, e façam-se leis para o regimento da republica.

Como se não houvesse ahi lei; como se os eleitos do povo não tivessem
sido expulsos pela relé e separados uns dos outros.

Então os malfeitores rodeiaram a urna onde d'antes os cidadãos podiam
livres lançar o voto da sua consciencia.

E todos os bons se afastaram dessa urna; porque a mão do crime a tinha
collocado no templo, e á roda della sómente sussurravam ameaças de
morte.

E por isso os nomes que d'alli sairam foram nomes opprobriosos ou
desconhecidos, e como extranhos no meio de nós.

Um erro trouxe outro erro, e o punhal passou da praça para o templo, e
houve ahi mysterios das trevas, mysterios de perversidade.

E homens imberbes, ignorantes e ignobeis ir-se-hão assentar no conselho
dos legisladores, no logar destinado para os velhos, para os sabios e
para os homens virtuosos.

Mas a plebe ahi estará também, com seu gesto hediondo, como um espectro
de terror, como a imagem do supplicio nos ultimos dias de um criminoso
depois da sua condemnação.

Ella ahi estará; e o seu grito será mais alto que o das consciencias, se
é que podem consciencias falar no conselho de homens corruptos.

Ella ahi estará; e as leis serão feitas por ella; porque errados vão os
que pensam que o povo larga jámais o poder que a imprudencia ou a
maldade lhe depositaram nas mãos.

Homens a quem a dissolução social vestiu a toga de senadores, para
debaixo da campa levareis nas frontes duplicado o ferrete da infamia e
do aviltamento.

Nellas vo-lo escreveu uma eleição fraudulenta, em que votou o punhal do
assassinio e o obulo da embriaguez, preço porque a plebe vendeu aos
tribunos o exercicio de um direito que não era seu e que ella tinha
roubado por noites de sedição.

E nellas vo-lo estampará tambem o grito insultuoso do vulgacho que vos
ergueu do pó para sanctificardes a sua rebellião, para serdes cumplices
nos seus decretos de morte, e para depois vos quebrar em pedaços, como
um vaso fragil quando se torna inutil.


                                   XIV


De fel e de trabalho me cercou o Senhor. Esta é uma das suas visões, que
elle me enviou em espirito.

N'um campo extensissimo estava eu, e cerrava-se-me o coração, como
traspassado do frio do terror. Era ao cahir das trevas.

Havia por ahi sepulchros, mas sepulchros semelhantes a dorsos de
montanhas: havia por ahi cyprestes, mas cyprestes seculares como o
universo, e cujos cimos avultavam como a espessura de um bosque
primitivo.

O sitio em que eu estava era o cemiterio das nações e dos seculos.

Sobre muitos desses tumulos espantosos já tinha cahido a campa; já o
musgo e as sarças lhes dissimulavam as juncturas, e o estellio e o
áspide passavam por cima, rangendo como as folhas seccas.

Outros havia lá que ainda estavam abertos, e tinham as lousas erguidas
sobre uma das bordas, juncto da qual um anjo derramava lagrymas. Jaziam
nestes muitos seculos de nações modernas.

Algumas sepulturas ahi estavam inteiramente descubertas e ainda
alvejantes, como collocadas de pouco em meio do campo sancto: nem lousas
estavam ao pé dellas.

Mas ao longe ouvia-se como o gemido de eixos que vergavam e de homens
que altercavam e que pareciam trabalhar em uma obra de Deus.

E este gemido era semelhante ao do oceano revolto, e o borborinho soava
como o clamor de milhões de vozes.

Na frente de cada um dos jazigos estava escripta a historia do povo ou
do seculo que lá repousava ou que lá devia cahir.

E algumas destas inscripções eram antigas e meio gastadas, e de roda
tinham esculpidos symbolos de gentilidade.

Apenas sobre uma dellas estava gravado o nome de Jehovah; mas fechavam a
campa sete sellos, cuja lenda era:--até a consummação dos seculos.

E mais alguns monumentos ahi se erguiam, já cubertos com a lousa final:
e em cima delles estava plantada a cruz, e a inscripção acabada.

Juncto destes ajoelhei e derramei lagrymas: eram sepulchros das raças
que educara o evangelho: dormiam lá irmãos meus.

E os reinos e as republicas da idade media eram os que nesse logar
estavam sepultados: áquelles tinham-nos anniquilado loucuras e tyranias
de reis; a estas a licença e a corrupção popular.


                                    XV


Lá estava tambem o monumento da nossa patria.

E nelle repousavam os cadaveres de muitos seculos.

E a historia de cada um destes lia-se na face da pedra, escripta pela
mão do archanjo que velava o sepulchro e que forcejava por suster a
campa, que já pendia, como para os encubrir á luz.

E esta era a lenda sepulchral:

Deus escolheu para si a nação do extremo occidente, e a benção do
Altissimo desceu sobre o berço della.

E passou glorioso o primeiro seculo da sua existência, rico de combates
e victorias: elle herdou ao seguinte a cruz plantada nos coruchéus dos
alcorões, e uma raça valente e virtuosa, que defendesse a terra
conquistada.

«De incremento e prosperidade foi o segundo seculo; e posto que ahi
houvesse dias de turbação, o povo cresceu; porque o Senhor o abençoava.

E na terceira era soou em paiz extranho uma voz que falava de servidão.
O povo português lançou mão da espada e da lança, e em vinte combates
provou a sua independencia, e que o Deus dos exercitos fora o Deus de
seus paes.

E na quarta era chegou a idade viril da republica: a sua estatura
assemelhava-se á de um gigante, os seus braços aos de um athleta.

E na quinta ella estendeu a mão para o oriente, e aferrando centenares
de povos, metteu-os debaixo dos pés.

Então commetteram-se crimes, a corrupção estendeu-se, e a face do Senhor
turbou-se.

Aqui na inscripção seguia apenas um nome de poeta, o depois uma longa
beta negra. Esta significava que de infamia e servidão fora a sexta
idade da republica.

E a lenda tumular proseguia:

Surgiu um dia o povo, e quebrando os grilhões que tyrannos estranhos lhe
haviam lançado, açacalou de novo a sua espada esquecida, e combateu
quasi um seculo.

E recobrou a independencia, senão a liberdade.

D'aqui ávante, falava o letreiro de existencias e de largos annos; mas
de existencias sem gloria, e de annos semelhantes apenas á decrepitude
de homem que foi robusto.

E havia ahi guerras e victorias e leis: mas as victorias coroavam o
general e não o soldado, porque o soldado era servo: as leis eram talvez
justas, mas desciam do throno dos reis sem a sancção popular, e o povo
dobrava o joelho.

E isto era impio. O servo que acceita sê-lo é só meio-christão. Do
evangelho deriva a liberdade, como condição impreterivel do homem,
responsavel por seus actos perante Deus. A liberdade póde rasgar-se do
evangelho; não separar-se delle.

Depois lia-se o nome de um rei; e este nome era grande e honrado, como
os dos antigos reis portugueses, e a sua historia estava escripta no
monumento da eternidade. Após esta, seguiam-se algumas palavras de
esperança.

E d'alli por diante a pedra estava em branco; porque a oitava era da
republica ainda não tinha adormecido juncto do umbral do passado.


                                   XVI


E eu meditava em silencio, e o meditar era amargo para o meu coração.

Subito senti um ruido remoto, semelhante ao ruido de bosque sacudido
pelo vento e granizo.

E divisei por entre os cyprestes um vulto, que se approximava da
clareira onde estava a sepultura, e as suas passadas, posto que
apressadas, soavam como se fossem de pés de bronze.

E chegou. Fitando os olhos no vulto, descortinei uma figura humana de
desmesurada altura.

A sua cabeça tinha muitas faces e muitos olhos: do tronco saía-lhe uma
grande multidão de braços.

E com todas as suas linguas proferia palavras immundas e blasphemas, e
maldizia a religião e a justiça.

E vinha salpicado de sangue.

E parou diante do monumento.

Ficou immovel por algum tempo; depois, como excitado por um accesso de
raiva infernal, procurava aluir o sepulchro.

Mas a immutabilidade do passado era a immutabilidade delle. Tinha-o
posto alli a mão de Deus.

Então o vulto começou a raspar a inscripção, mas as letras cada vez mais
se avivavam. Lá do intimo soou um longo gemido.

E o vulto soltou uma praga tremenda, e transpoz a borda do sepulchro; e
estava em pé dentro delle.

E começou a afundar-se nas trevas; e estendendo os braços, os braços lhe
ficavam hirtos.

E nos olhos, que até alli chammejavam furor, já fluctuavam lagrymas de
homem que morre.

E descia, e descia!

E quando a fronte lhe topetava com a borda, a campa escapou das mãos do
anjo, que trabalhava por sustê-la, e cahiu dando um som profundo.

E a face do sepulchro, abaixo da inscripção, tingiu-se de negro até o
rez da terra.

E as ultimas palavras, palavras de esperança, converteram-se em outras
tão horríveis, que a minha lingua não ousa proferi-las.

E a visão desappareceu.


                                   XVII


Reprobo sería aquelle que, vendendo seu pae por preço de opprobrio, o
entregasse á servidão de extranhos.

Reprobo, mil vezes réprobo, sería tal homem; porque este crime fôra mil
vezes mais negro do que o parricidio.

Quem, por noite tempestuosa, o acolheria debaixo de tecto hospitaleiro?
Quem, vendo-o mirrado de sêde, lhe offereceria um pucaro de agua?

Ninguem: porque o seu hálito inficionaria o ar que respirasse: os seus
labios empestariam o vaso por onde bebesse.

No seu leito de morte, que sacerdote ousaria dizer-lhe:--Eu te absolvo
em nome do Deus que perdoa? Nenhum: e o que o dissesse mentir-lhe-hia;
porque nos thesouros da piedade divina não ha resgate para semelhante
divida.

Mas que é este crime, comparado ao daquelle que vende a patria? Esse,
não vende o progenitor sómente: vende a familia, os ossos de avós, a
fonte do baptismo, a cruz do cemiterio; vende as saudades, os affectos e
as esperanças de todos os seus irmãos.

E todavia, nos conciliabulos dos tribunos proclama-se que no
anniquilamento está o segredo da nossa futura grandeza. Rebeldes de sete
seculos, seremos applaudidos e respeitados no mundo, quando, de joelhos
perante os nossos orgulhosos senhores, fizermos penitencia do glorioso
delicto de mais de vinte gerações de antepassados!

São homens destes que as turbas insensatas victoreiam!

Cegou Deus a intelligencia do povo, porque o quer perder; porque o
afastou de sob as azas da sua Providencia amorosa.

E por isso a visão do sepulchro me foi mandada, e vi cerrar-se a campa
da eternidade em cima da derradeira epocha da monarchia de Valdevez, de
Aljubarrota, e de Montes-Claros.


                                  XVIII


Povo desvairado, doe-te de ti proprio. Sabes, acaso, a quem os homens
das trevas pretendem submetter-te e a teus filhos e netos?

Dir-to-hei, oh povo, para que nos futuros momentos de afflicção não
digas ao Eterno:--Senhor, salva-me, porque eu não soube o que fiz!

Odio de sete seculos te separa desses futuros senhores: vinte batalhas,
em que os teus cavalleiros venceram os seus, jazem não vingadas nas suas
recordações.

Houve tempo em que elles poseram o pé no collo de nossos maiores, e a
vida destes foi durante esse periodo tecida de amargura e de infamia.

Então, além do oceano, nos campos de tua gloria, sentia-se um ruido
incessante. Eram as tuas fortalezas que desabavam; eram as tuas naus que
se affundiam; era o teu poder que expirava.

Nas veigas, o arado ficava esquecido no meio do sulco, e no prado e no
monte os novilhos mugiam debalde pelo seu guardador:

Porque os mancebos eram levados a combater em paizes remotos, para
sustentar a tyrannia de seus senhores, e, novo genero de ludibrio,
tambem oppressos, quinhoavam as maldicções lançadas sobre os oppressores
da sua patria.

Á viuva e ao orphão era arrebatado o obolo do tributo, e este ia
accumular-se nos cofres dos extranhos e servir, depois, ao luxo e á
devassidão.

O soldado hespanhol estava em pé, encostado á lança, juncto ás ameias de
nossos castellos, e o escravo português que passava ao sopé dos muros
pregava os olhos no chão, e a dor acabrunhava-lhe o espirito.

As cidades foram saqueiadas, os patibulos ergueram-se, os homens de
valor e virtude derramaram-se pela face da terra.

Mas os portugueses lembraram-se um dia de que o eram, e levantando os
braços para o céu, com os grilhões que lh'os roxeiavam esmagaram os
craneos dos oppressores estrangeiros.

E breve os campos da Hespanha talados, as suas aldeias arrasadas, os
seus valentes postos á espada, pagaram injurias de sessenta annos.

E na terra adubada com cinzas e sangue se lançaram sementes de
malevolencia perpetua entre as duas nações.

Ai de nós, ai da patria, se o leão da Iberia podesse rugir solto pelas
nossas montanhas, e vir acoutar-se debaixo de nossos tectos!

E isto é o que pretendem os destruidores da liberdade, os suscitadores
da anarchia.

Saúde pois o povo os tribunos e obedeça-lhes, emquanto elles não
consumam a sua abominavel obra; emquanto o não entregam, como um rebanho
de ovelhas, nas mãos dos seus futuros algozes.

Nós, os que não nascemos para a servidão, ergueremos as campas de nossos
paes, e ricos com estes restos queridos, iremos depositá-los debaixo do
cypreste do desterro.

Não, o hespanhol orgulhoso não calcará as cinzas dos nossos valentes,
embora possua esta terra corrupta e serva; embora venha riscar da face
della todos os monumentos dos seculos da nossa gloria.


                                   XIX


Tal é, oh povo, o futuro que para ti guardam os teus tribunos no
thesouro de maldade de que são ricos os seus corações.

Tu gemerás captivo e não ousarás queixar-te; e as orações e as lagrymas
das tuas noites de tribulação e vigilia não romperão os céus, tornados
para ti de bronze.

Eis porque os filhos da perdição suscitaram no teu seio o grito da
guerra civil: foi para que a espada da fratricidio devorasse os teus
fortes, e se fartasse e embriagasse com o sangue delles.

Para que, inerme e enfraquecido, estendesses os braços ás cadeias e
curvasses o joelho ante aquelles de quem receberam o preço da tua
liberdade.

Acaso poderão negá-lo?--Não: porque o mysterio da iniquidade foi
revelado, e a voz que o patenteiou era bem alta, e resoava desde o Tejo
até as alturas dos Pyrenéus.

Crê, agora, plebe illudida, crê que os homens que te vendem a extranhos,
melhor te venderiam a um tyranno domestico.

Crê que se homens taes fossem a unica barreira alevantada entre ti e
aquelle que nós expulsámos e tu maldisseste em teus hymnos populares,
semelhante dique fora facilmente transposto pela torrente das vinganças
do despotismo.

Que um pouco de ouro se espalhasse, e as comportas que rebatem o oceano
de sua cólera seriam por elles abertas de par em par, para te
mergulharem em um pélago de agonias.

Tu os verias até combater por soldar o sceptro de ferro que quebrámos,
se nessas almas mesquinhas houvesse valor para escutar o silvo do
pelouro, para ver o lampejar da espada erguida.

Ouvi-los-hia protestar que as suas mãos estavam puras do sangue vertido
nas luctas da liberdade, nas luctas de um contra dez; que entre si e
esse cantinho de Portugal revolvido durante um anno pelas bombas e
granadas, varrido pela metralha, fustigado pelo granizo das ballas,
visitado longamente pela fome e pela peste, tinham mantido com esmero a
moderada distancia que medem as solidões do oceano.

E falariam verdade; e sería porventura o unico dia da sua vida hypocrita
em que assim o fizessem.


                                    XX


N'uma visão ajuncta Deus o passado e o futuro; porque para elle não
existem nem espaço nem tempo. Visão, pois, do Senhor foi a que se me
representou.

Parecia-me ver uma grande cidade: rodeiavam-na antigos muros e
baluartes, cruzavam-se ruas estreitas e tortuosas dentro do seu ambito,
semelhantes á rede do pescador, e, por entre uma selva de edificios
humildes, surgiam, aqui e acolá, torres ponteagudas subtilmente
lavradas, e templos alumiados por frestas esguias ornadas de vidros
corados, que reflectiam o sol occidental em espectros de luz
variadissima.

Grande numero de cavalleiros corriam pelas praças, e iam armados de
elmos e saios de malha e grevas de aço, que scintillavam, e nos seus
olhos e faces assomavam espíritos valorosos.

E os campos circumstantes estavam cultivados, e a cruz plantada em todos
os termos dos caminhos e em todas as encruzilhadas.

E conhecia-se nos rostos dos homens que passavam pela cidade e pelos
campos que em seus corações havia virtude e contentamento.

E proxima desta povoação estava outra muito mais aprazivel no primeiro
aspecto: as suas ruas eram espaçosas: aformoseiavam-na os jardins e
hortos, e surgiam no meio della nobres e opulentos edificios.

Viam-se ainda ahi alguns templos, mas arruinados e solitarios, e como
que monumentos da queda de toda a crença.

E os campos que se dilatavam ao redor della estavam áridos e ermos. Nem
uma só cruz lá se descobria.

E os homens passavam silenciosos uns por outros. Das almas, turbadas por
paixões tempestuosas e por crimes, subiam-lhes ás frontes annuviadas, em
ondas de sombras, os escuros pensamentos.

E estas duas cidades eram a imagem dos tempos que foram e dos tempos que
hão de ser.


                                   XXI


E na cidade do passado os coruchéus e eirados dos seus apinhados
edificios eram para os meus olhos, que divisavam tudo quanto se passava
no interior dos aposentos, como o crystal translucidos.

Em uma das quadras de um desses edificios estava um velho, e derredor
delle suas filhas, que o cercavam de amor.

E ao canto via-se um arnez, por muitas partes falsado e roto, e um elmo
abolado e com as enlaçaduras quebradas. Só ahi faltava uma espada.

E quando eu considerava este velho guerreiro rodeiado dos seus e as
alfaias e os adornos desta habitação tranquilla; quando bebia o halito
de paz que tudo ahi espirava, um mancebo armado entrou na sala: na
cincta trazia mettido um estoque largo e curto, espada do homem valente,
cujo punho em cruz lhe assentava sobre o coração.

E dos labios das donzellas partiu um grito: este grito dizia que o
mancebo era seu irmão. Abraçando-o, os olhos se lhes arrasavam de
lagrymas.

O velho ergueu a cabeça e olhou com aspecto severo para o soldado, que
se aproximou de seu pae, como se estivera perante o seu juiz.

Fronteiro d'Africa!--disse o ancião--posso acaso abençoar-te como filho,
ou cubriste de infamia o meu nome e a minha espada? Quaes foram teus
feitos no serviço da patria, da religião e do rei?

E o moço, calado, desenlaçou a couraça e, afastando as roupas que lhe
cubriam o peito, mostrou as cicatrizes de golpes da lança do arabe e do
alfange mourisco.

E o velho, alevantando-se tremulo, contava-as, e as lagrymas também lhe
banhavam o rosto, e depois apertou o filho entre os braços por largo
tempo.

D'ahi a pouco, armas ainda não ferrugentas estavam encostadas ás do
ancião no angulo da sala, e afóra ellas, via-se lá uma espada.

E esta familia era feliz; porque havia ahi virtude, honra e amor filial
e fraterno.

Mas esta parte da visão passou, como um sonho formoso; como os homens
virtuosos dessas epochas, sobre os quaes dorme o silencio dos tempos que
já não são.


                                   XXII


E o espirito de Deus collocou-me sobre a moderna cidade.

E aos meus olhos estavam patentes os segredos domesticos e a vida intima
da sociedade, e observando-os, o coração me desfallecia á vista de
tantas abominações.

Via a corrupção em quasi todas as familias; crimes em grande numero
dellas; temor de Deus quasi em nenhuma.

E clamei ao Senhor na minha afflicção, e disse-lhe:--Oh meu Deus, porque
abandonaste este povo?

E dos céus me foi respondido:--O povo é que abandonou os caminhos da
salvação e se afastou de sob as azas da piedade divina.

O perjurio foi sanctificado pelos que se chamaram eleitos do povo, e
este os victoriava quando elles assim quebravam o mais forte vinculo
social, e preparavam a quéda da republica.

A religião avíta apresentou-se ás portas do senado, pedindo a esses
homens soberbos a deixassem subsistir neste paiz desgraçado, para
enxugar lagrymas de desditosos e ser a ultima esperança daquelles que
perderam todas as outras.

Porém, como prostituta vil, a religião de nossos paes foi coberta de
motejos, e, entre risadas, lançada fóra do sanctuario das leis.

E houve ahi quem dissesse:--Que temos nós com Deus?--E as turbas
approvaram o dicto.

E o Dominador dos orbes respondeu:--Nada terei comvosco!

E o universo tremeu a estas palavras, que logo foram escriptas no livro
da morte.

Ai daquelles que romperam o pacto do Creador com a creatura: ai
daquelles por cuja bôca falou o espirito das trevas. A blasphemia cahirá
sobre a cabeça dos blasphemadores; e o sepulchro lhes dirá onde é a
patria dos que motejam de Deus!

E esta voz de cima acabrunhou-me o coração; porque não sabia como
desculpasse perante a Providencia os peccados do povo. O anáthema estava
lançado, e a consciencia me dizia que o céu tinha sido justo: nem ousei
implorar outra vez a misericordia divina.

Então olhei para a cidade que me ficava debaixo dos pés, onde sussurrava
um ruido de vida, mas ruido semelhante ao de mar procelloso e ameaçador
de naufragios.

E só descobri rixas e bandos civis, e assassinios atraiçoados e
dissoluções, e o roubo e a embriaguez.

O filho passava por juncto do feretro materno, que homens pagos levavam
com escarneos ao campo do esquecimento, e perguntava o nome desse
cadaver.

Juncto ao leito de pae moribundo, as filhas entregavam-se á
prostituição, e ao velho, morrendo, era ultimo sentimento o do
opprobrio.

Longa era esta scena de crimes, e parecia-me que fechava os olhos para
não ver tão horrivel espectaculo. Neste momento a visão desvaneceu-se, e
achei-me banhado em suor frio e repassado de amargura.

E por impossivel tinha que tão negro futuro houvesse nunca de
verificar-se: mas subito ouvi muitas vozes que diziam:--Guerra á
religião do Christo!

Então cri na visão que o Senhor me enviara, e apagou-se-me na alma o
ultimo clarão de esperança.




                        THEATRO-MORAL-CENSURA


                                *1841*




Quando, vencidas difficuldades que pareciam insuperaveis, o theatro
parece renascer entre nós na sua parte litteraria; quando, até, se
affiguram grandes probabilidades de vermos alevantar um edifício
consagrado á arte dramatica, onde este genero de litteratura possa ficar
a salvo daquella especie de ergastulo hediondo e triste a que poseram
por irrisão a alcunha do Theatro Normal; Gerião, cuja ossada se
esphacela debaixo da sua triplice face de taberna, de emunctorio das
ruas, e de prostibulo; quando todos os homens de letras e todos os que
as amam forcejam para que nesta formosa arte vamos algum dia emparelhar
com as outras nações, nenhuma questão que venha a suscitar-se acerca do
assumpto será insignificante ou indifferente, porque nella interessam a
vida intellectual do paiz, a sua civilisação e o seu bom nome
litterario. Mas se essa questão, além de importar á arte dramatica,
envolver o interesse da moral publica, considerá-la e dar opinião sobre
ella é obrigação daquelles a quem Deus deu intelligencia para a
comprehender e razão para a avaliar. Ora, enquanto se forceja para
elevar e restaurar litteraria e até materialmente o theatro nacional,
vemos o drama decahir, prostituir-se moralmente cada vez mais. Cresce
todos os dias a indignação da gente honrada contra os espectaculos que
sobem á scena, orgias da arte, se arte se pode chamar a quadros onde ha,
não o sublime de paixões mais ou menos perversas, o sublime do horrível,
mas o torpe, o asqueroso dos vicios mais vis. Cumpre que a imprensa seja
orgam desta indignação; que busque a origem e o remedio do mal. A sua
mais alta missão é contribuir para que a sociedade se melhore e
civilise, e o theatro pode ser um poderoso instrumento de civilisação.

Mas como desempenhará a imprensa este grave dever? Como se opporá a que
o theatro seja uma eschola de corrupção, devendo ser um logar de puro e
innocente deleite? Como fará rasgar por uma vez esses cartazes, que,
affixados nos logares públicos, só trazem á memoria, pelos titulos dos
dramas que annunciam, as taboletas dos alcouces romanos desenterrados em
Pompeia? Fulminará os desgraçados histriões, machinas de aleijar as
verdadeiras obras d'arte, e de peiorar semsaborias; títeres de carne e
osso, incapazes de comprehenderem a sua nobre arte, e de resistirem ao
estragado gosto de quem os dirige, e não sei se diga, ao mais estragado
da plateia? Não: deixae-os; porque são existencias inertes, impalpaveis
para a imprensa, traça do drama, da linguagem, do senso commum; pagos
para roer as concepções da intelligencia sobre quatro taboas velhas, ao
passo que o caruncho os vai imitando na substancia destas. Deixae-os,
pelo amor de Deus! Punirá com o açoute do epigramma os empresarios e
directores dos theatros? Ainda menos. Um empresario é um individuo
inexplicavel e inclassificavel: é uma abstracção de todas as idéas, de
todas as crenças, de todos os affectos: a sua éthica é o _livro de
razão_, o seu evangelho o da _caixa_; o seu culto o da _cruz_, mas da
cruz dos cruzados novos; o seu destino, além do sepulchro, o _limbo_.
Não acrediteis na possibilidade de os constranger a despregarem os olhos
destes tres objectos, que, junctos aos farrapos dos bastidores e ao oleo
fétido das lanternas do proscenio, constituem o seu universo. Deixae-os
tambem; que para elles, que não querem, nem sabem, nem podem ler, a
imprensa é como se não existisse, e as suas reprehensões mais amargas,
as suas ironias mais pungentes não os distrahirão um momento da
contemplação beatifica das moedas que rende em cada noite um
estabelecimento industrial de prostituição para familias honestas. Seja
quem for o empresario de qualquer theatro, não se abalance a imprensa ao
louco empenho de convertê-lo. Que pessoa tentou jamais educar e instruir
um surdo-mudo-cego de nascimento?

Contra quem pois alevantará a imprensa a sua voz solemne? Contra as
auctoridades propostas aos espectaculos dramaticos? Não; porque posto
que revestidas de um poder arbitrario, acima dellas ha tambem o
arbitrio, que lhes inutilisa a energia moral, quando tentam usar della a
bem da decencia publica; e porque, impossibilitadas de julgar por si
essa alluvião de asquerosidades que diariamente sobem á scena, e além
disso obrigadas por lei a ouvir sobre cada uma dellas o parecer de tres
censores, que podem julgar bem ou mal, não se lhes ha de lançar em conta
uma culpa que não é sua. Nenhum homem de alguma gravidade se quizera
submetter a passar dias, mezes e annos inteiros quasi asphyxiado n'uma
atmosphera de sandices, pelos mais avultados proveitos do mundo, e muito
menos gratuitamente, como servem os inspectores do theatro.

Quem resta por tanto para accusar? Os censores?--Parece-me ouvir a
muitos daquelles que acham mais commodo invectivar individuos do que
avaliar instituições, dizerem que sim. Eu todavia respondo:--Não; mil
vezes não! Brevemente se verão os fundamentos da minha negativa.

Não sendo, porém, culpados nem os histriões, nem os bufarinheiros de
rosalgar moral chamados empresarios, nem os inspectores, nem os
censores, onde estará a causa de um mal de que todos se queixam, e a que
ninguem busca o remedio nos thesouros inexgotaveis da reflexão e do
raciocinio?

Essa causa está n'uma instituição anachronica, absurda, insensata,
attentatoria da liberdade intellectual do engenho humano, e além disso,
perfeitissimamente inutil.

O mal não vem dos homens: vem das cousas: vem de uma parvoice legal: vem
da _censura prévia_.

O remedio só lh'o póde dar um parlamento que queira pensar cinco minutos
nesta materia.

Á luz politica, a censura prévia applicada ao theatro é um attentado tão
flagrante como applicada á imprensa. Todas as constituições existentes e
possiveis consagram a liberdade do pensamento e a livre communicação das
idéas. O theatro é, como a imprensa, como as artes plásticas, um meio de
communicação. Uma representação scenica é um livro impresso em tantos
exemplares quantos são os espectadores, com a unica differença de que
estes exemplares se apagam acabada a sua leitura. O principio da
liberdade do espirito é tanto ou mais sancto que o da liberdade da
terra: não soffre excepções, porque, se as soffresse, desceria da
categoria de principio para a classe das regras transitorias da vida
civil. Onde quer que appareça a censura, onde quer que se aninhe esta
irmã gémea da inquisição, ha uma quebra nos foros da independencia do
homem, ha uma insolencia do passado contra a dignidade social da geração
presente. Seja para o que for, a censura é um impossivel politico.

Contra o impossivel não ha razões de utilidade. As mais evidentes
considerações de conveniencia deveriam cahir diante da immutabilidade
dos principios; porque não ha meio termo entre o renegar do progresso
humano, e o respeitar sempre e em toda a parte os elementos fundamentaes
das sociedades modernas.

Mas existem, porventura, taes conveniencias? A censura do theatro--dizem
os defensores dessa cópula sacrilega e bestial de uma instituição
cadaver com as instituições vivas e actuaes--é uma necessidade: melhor é
prevenir que castigar: o castigo dos que abusarem deste modo de
publicação não impedirá que elle tenha já produzido a corrupção: sem
censura póde, até, attentar-se contra a segurança do Estado: no anno de
tal em Paris, em Bruxellas, na Haya, emfim não sei onde, um drama
recheiado de maximas subversivas produziu tal assuada, tal motim, tal
revolta.--Eis as excellentes razões, pouco mais ou menos, com que se
defende a existencia de um absurdo.

Estes argumentos são a apologia, não da censura do theatro, mas de toda
a censura; da censura do drama, como do livro ou do jornal; e ainda mais
destes; porque o exemplar da publicação scenica deixa de existir apenas
cahe o panno; mas do livro ou do jornal impressos, embora sequestreis os
volumes ou os numeros não vendidos, os exemplares derramados do primeiro
golpe lá ficam no dominio publico; milhares de individuos os lerão, e
com tanto maior avidez quanto mais severa houver sido contra elles a
condemnação dos tribunaes.

A desculpa da prevenção nos attentados legaes contra os principios vai
mais longe: vai até a inquisição, se quizermos ser logicos. Um homem é
conhecido por suas opiniões anti-religiosas: este homem é imprudente,
voluntarioso, ousado: nada mais facil, mais provavel que o vermo-lo
cahir na culpa de não respeitar a crença do Estado, de a insultar
publicamente. Á cautella, creae-me uma inquisiçãosinha illustrada; uma
inquisição progressiva, arejada, sem polés, nem potros, mas preventiva e
paternal, onde o incredulo, entre sermões, pão negro arraçoado e agua
benta, seja inhibido de commetter um crime, previsto na lei politica do
mesmo modo que o abuso da liberdade de escrever e de falar. Apostolos da
censura prévia, em nome da logica, dae-me a sancta inquisição.

Deixemos, todavia, as duas bagatellas dos principios e da logica.
Venhamos ao campo da experiencia. A censura ahi está. Que tem ella
feito, não digo já entre nós, que palpamos todos os dias os bellos
effeitos da instituição; mas na França, na Belgica, na Hespanha? Onde
tem impedido a prevaricação do theatro? Respondei-me.

É um dos argumentos mais triviaes e mais lastimosos que se fazem a favor
desta monstruosidade inutilissima o exemplo da França. D'antes, em
Portugal, para fazer uma lei, o que se indagava era se ella convinha ao
paiz. Ha annos a esta parte entendemos que era mais judicioso ver se
convinha aos outros povos. Esta abnegação completa da intelligencia
nacional poderá conduzir-nos ao céu pelo caminho da humildade; mas
tem-nos arrastado cá na terra a muita vergonha legal.

A verdade é que em França os homens independentes e illustrados clamam
tambem contra a censura prévia do theatro, porque é attentatoria e
inutil. Quereis a prova da sua inutilidade no vosso paiz modelo?--Ahi a
tendes á mão. D'onde nos vieram as _Torres de Nesle_, as _Proesas de
Richelieu_, e todas as mais prostituições litterarias da nossa pocilga
dramatica, chamada theatro normal? Vieram-nos dos repertorios dos
theatros de Paris: atravessaram pela censura de Mr. Taylor ou dos seus
delegados, como em Portugal passaram sans e escorreitas pela censura do
Conservatorio. Lá, como cá, a censura é um phantasma de que todos se
riem, e que só serve para descarregar os hombros dos empresarios,
auctores, e traductores dramaticos da responsabilidade moral e legal dos
seus envenenamentos litterarios.

É realmente uma das pequices mais desmarcadas falarem-nos das commoções
populares excitadas n'uma plateia. Quando a revolução vai assentar-se
nos bancos do theatro, não busqueis a sua origem nas palavras energicas
do poeta: buscae-a na frouxidão ou na maldade do poder. Sob um governo
forte e justo, uma revolução no theatro não passaria de comedia
representada áquem do proscenio. Mas, além disso, onde achaes os
exemplos de semelhantes factos? Justamente em alguns dos paizes onde
existe censura prévia. Como o capitão de Luiz de Camões, que não cabia
em nada, sancta gente, vós não cahis em que esse argumento é uma
punhalada na vossa querida censura?

Donde vem a impotencia da censura? De ser uma cousa anachronica, morta,
fétida, inintelligivel. Ao censor que respeita a inviolabilidade dos
principios repugna o impedir a representação de um drama; porque não crê
que o seu arbitrio possa substituir os jurados; que se possa executar
uma lei evidentemente contraria á lei fundamental do estado. Pelo que,
porém, toca ao que não crê nessas cousas, o aborrecimento inevitavel que
lhe traz o desempenho de um dever tedioso, de que não tira nem honra nem
proveito, ou o receio de attrahir odios de homens mais ou menos
poderosos, para o que não são triviaes entre nós o valor e a
consciencia, faz com que ou deixe de ler, ou leia essas miserias e as
approve. Se algum ha que não reflectisse no absurdo da instituição, e
que tenha energia bastante para lhes pôr o seu veto censorio, lá ficam
os empenhos e os respeitos humanos para fazerem escrever no rotulo do
boião immundo de peçonha litteraria: _passe e venda-se por dóses de 480
réis_.

É este o fado de todas as leis, de todas as instituições contradictorias
com as idéas e principios capitaes de qualquer seculo. São cadaveres, em
que a força legal opera os phenomenos que produz no corpo morto a pilha
voltaica; visagens de terror para os circumstantes, falsos movimentos de
vida, mas que todos sabem não passarem de joguetes de physica.

Fazei uma lei para o theatro em harmonia com a lei politica da nação,
com os principios eternos da liberdade intellectual, e salvareis a moral
e a decencia publica, que a vossa ridicula censura deixa todos os dias
impunemente affrontar.

Constitui um jurado especial composto dos membros das corporações
litterarias, homens que tem uma intelligencia para pensar, uma reputação
de probidade, de litteratura, e de gravidade que perder. Ahi tendes um
avultado numero de individuos respeitaveis na Academia das Sciencias, na
Eschola Polytechnica, na Eschola Medico-cirurgica, na Eschola do
Exercito, no Conservatorio e em todos os mais estabelecimentos
litterarios. Confiae-lhes a defensão da moralidade. Os espiritos fracos,
mas honestos, ahi julgarão sem temor; porque a sua sentença será
collectivamente sabida, mas individualmente secreta. Ahi, quando a
occasião do julgamento legal chegar, a causa já estará julgada e
sentenciada pela opinião publica, e esta opinião fará tremer os juizes,
se porventura entre elles houver algum de mais larga consciencia, ou que
seja capaz de esquecer-se, por affeição ou por odio, da sua grave e
importante missão.

Fazei que o processo seja rapido. Haja um procurador especial contra os
delictos dramaticos em offensa da moral publica. Seja o inspector dos
theatros; seja quem vos parecer. Se faltar á sua obrigação, puni-o.

A penalidade da lei seja severa. Por mais severa que a imaginemos, será
sempre branda em comparação da que cabe ao ladrão matador; e eu não sei
resolver qual besta-fera é mais damninha, se um assassino do corpo, se
um envenenador do espirito, que assassina as almas inexpertas das
mulheres e da mocidade, surripiando-lhes ainda em cima alguns cruzados
novos.

Desenganae-vos de que as formulas constitucionaes são mais efficazes que
as molas carunchosas do absolutismo.

Ficae certos de que os jurados não terão de vibrar o golpe da punição
mais do que uma vez. O primeiro empresario que, sem remedio, tiver de ir
dormir por um anno aos paços de S. Martinho, e de practicar a
generosidade de mandar algumas dezenas de moedas para o Asylo de
Mendicidade, ou para a Casa dos Expostos, tirará a todos os empresarios,
presentes e futuros, o fino gosto de offerecerem no theatro ao publico
indignado espectaculos que affrontariam um alcouce.

Que a censura prévia é inutil, os factos tem-no sobejamente provado.
Se-lo-ha uma lei constitucional? Não o creio. Se assim acontecesse, a
nação portuguesa não fora uma sociedade corrompida; fora uma nação
perdida. Nesse caso cumpriria deixar á Providencia de Deus convertê-la
ou anniquilá-la.




                              OS EGRESSOS


         *PETIÇÃO HUMILISSIMA A FAVOR DE UMA CLASSE DESGRAÇADA


                                 1842*




Não sei se todos aquelles que passam os largos serões do inverno, não
nos theatros, nem nos banquetes profusos, nem nos bailes esplendidos,
mas em aposento de poucas varas em quadro, rodeiados de alguns livros e
a sós com o seu pensar silencioso; não sei, digo, se a todos esses
acontece o mesmo que a mim, quando o som do chuveiro subito, o silvo do
vento, e o bramido do mar, quebrando lá ao longe nos rochedos da
marinha, lhes vem toldar a serenidade do tão suave calar nocturno e as
imagens que transitam lentas no kaleidoscopo da imaginação. Aquelles
brados da natureza, que parece gemer angustiada, nem uma só vez deixam
de despenhar-me do meu tão formoso universo das idéas no mundo das
realidades. A vida actual obriga-me então a tomar por uma das suas
estradas dolorosas, e como ao pobre judeu errante, esse bradar da
natureza, envolto no fustigar da chuva, no sibillar da ventania e no
rumorejar longinquo das ondas, repete-me de continuo:--Ávante! ávante!»

O que nesses caminhos muitas vezes se encontra é o clarão que illumina e
o clarão que deslumbra; é a sciencia que se entrevê, separada de nós
pela insufficiencia das forças do espirito; são profundezas ennevoadas
em que a razão se precipita e vai revoluteando até se incrustar n'um
macisso de trevas quasi tangiveis; é o desconsolo de trocar, de noite a
noite, o crer pelo duvidar, o duvidar pelo descrer; é aprender
laboriosamente pouco, desaprendendo dolorosamente muito; é substituir
pela observação e pelo raciocinio opprimidos no finito, no existente, a
poesia que nos leva mansamente embalados atravez das suas creações
infinitas; é consumir a brevidade da vida em esforços não raro
inefficazes para alcançar a verdade, que além da morte, nos espera
tranquilla nas amplidões do tempo sem fim.

Foi n'uma destas noites procellosas, emquanto eu buscava a verdade do
passado, que a imaginação insoffrida, como que a furto, me transportou
das realidades que foram para uma triste realidade que é.

Aproximava-se a meia noite. Tinha acabado de ler uma das bullas do
violento Innocencio III contra o não menos violento Sancho I de
Portugal, inserida nos registos daquelle digno successor de Gregorio
VII, volumosos registos, onde ha muito que aprender ácerca da vida
social de nossos maiores e das obscuras luctas da liberdade burguesa,
tronco antigo das modernas revoluções populares, que tambem tem as suas
arvores de costado, como a aristocracia de berço.

Ao anoitecer o céu estava toldado, a terra humida, e o ar tepido com o
bafo vaporoso do sul. Mas era mais tarde que a tempestade, como o ladrão
nocturno, queria fazer o seu gyro por entre as habitações dos homens.

Era, pois, já bem tarde. Subitamente a chuva fustigou as vidraças: o
primeiro bofar do vento fez ramalhar as arvores meias calvas; e senti-o
que se abysmava debaixo das arcarias de pedra.

Por momentos imaginei que uma especie de demonio familiar me batia á
porta. Dir-se-hia que viera assentado no dorso eriçado do tufão.
Pareceu-me que me affundia diante dos olhos as visões do passado, e que,
entre risadas, me chirriava aos ouvidos.--Ávante pelos caminhos do
presente; ávante, sonhador de abusões».

Obedeci: o meu espirito cahiu no mundo presente, presente na sua mais
rigorosa data, uma noite pessima do mez de novembro do anno do Senhor de
1842.

Lá fóra passava o temporal desfeito. Affigurou-se-me que, levado nas
azas delle, corria por agra e longa estrada das nossas provincias do
norte. Os robles baixos e reforçados, cuja vida, contrahida ao cêpo pela
mão do homem, lhes converte os topos em hydrocephalos monstruosos,
assemelhavam-se aos renques de dolmens druídicos da Bretanha. Quando as
nuvens, no seu curso precipitado, abriam alguma fenda passageira, por
onde a lua golfava instantaneo clarão na terra, via-os fugir para traz
de mim negros, hirtos, nus, como cadaveres tisnados de cousa que já
vivera. Parei. Ao longe, a fita alvacenta da estrada, coleando por entre
os linhares e milharaes, refrangia de quando em quando o luar fugitivo
da superficie alagada das baixas, e depois, alçando-se, como o collo do
cysne, sobre um outeiro, sumia-se no viso delle, ao curvar-se para o
pendor opposto. A dilatada fileira dos robles era o que unicamente se
alevantava da terra por um e outro lado. Pareceu-me, porém, que um vulto
distante vinha pela estrada do lado do outeiro: era um vulto humano, que
ora se encobria na sombra de nuvem negra que passava chuvosa, ora se
desenhava na claridade transitoria do céu. Aproximou-se vagarosamente, e
chegou ao pé de mim: passando, os seus vestidos roçaram-me por uma das
mãos: eram frios e molhados. Seguiu ávante, sem reparar em mim, que não
podia despregar os olhos d'elle. Os seus passos eram arrastados e
tremulos, vergado o corpo, a fronte nua e calva. E eu olhava para elle
fito. A chuva começou de novo a cahir cerrada e escura. O vulto
encostou-se então a um dos robles da estrada, como buscando abrigar-se;
e na cerração da saraiva que sobreveio, ouvi-lhe um gemido.

Foi um gemido inexplicavel de desalento e agonia.

«É mentira:--dizia comigo, tentando quebrar o feitiço daquelle pesadello
de homem acordado.

E quebrei-o: e era mentira. «Girei n'um circulo vicioso--pensava eu--.
Parti do ideal para chegar ao ideal atravez da realidade.»

E de feito, como o leitor facilmente acreditará, estava no meu gabinete,
com um tinteiro e algumas folhas de papel diante de mim, tendo do lado
esquerdo o segundo tomo das epistolas de Innocencio III, e da direita o
terceiro volume da _Monarchia Lusitana_ de Fr. Antonio Brandão; isto é,
da esquerda um papa ao mesmo tempo intractavel e astucioso; da direita
um frade modesto e sincero; e como personalisados nelles, o mau e o bom
anjo, que nos seguem sempre e por toda a parte.

De resto, a chuva cahia, mas era lá fóra. Eu estava enxuto e secco,
tanto, quasi, como a alma de um politico: estava bem, agasalhado,
commodamente. Só a luz do candieiro é que se tornara escandalosamente
mortiça.

Ergui o braço para a espivitar, e a cabeça para ver se a minha obra era
boa. Não sei se nestas palavras abuso das reminiscencias biblicas. Os
theologos o dirão.

O meu _fiat lux_ foi cumprido. O candieiro despediu um clarão brilhante,
que alagou todo o aposento.

Nunca eu tivera practicado este acto de omnipotencia! N'uma porta
fronteira, que dava para outro aposento desalumiado, estava o vulto que
vira no meu desvaneio de homem acordado; estava ahi, immovel, triste,
afflictivo, como a imagem do innocente suppliciado que apparecia todas
as noites sobre o bofete do celebre auctor da Ulissea.

E a figura avultava lá: e eu olhava para ella sem pestanejar. Oh que se
vós a víreis!

Era um ancião veneravel: tinha a fronte suave e pallida sulcada
profundamente dessas rugas horisontaes, que são como as ondas que vem
morrer nas margens exteriores do oceano tempestuoso dos pensamentos: o
seu olhar era esse olhar manso, agasalhador, indulgente, que em certos
velhos nos fascina e subjuga, e que nos faz dizer a nós os moços:--Quem
me dera ser teu filho!» Nas faces cavadas aninhava-se-lhe a fome ou a
penitencia...

«É a fome!--bradei eu, pondo-me em pé; porque, correndo a vista ao longo
da barba branca do ancião, vi que esta lhe cahia sobre o escapulario
negro de monge benedictino.

Mas a visão desapparecera de novo: e apenas me pareceu ouvir soar ao
longe uma voz cava e debil, como a que sáe de peito consumido por febre
pulmonar, que recitava estas palavras do Psalmista:

_Judica me Deus, et discerne causam meam, et a gente non sancta et ab
homine iniquo et doloso erue me_.

O meu circulo vicioso não existia. Cahira das idealidades do passado no
mundo real, e ahi, n'uma das realidades mais torpes, mais ignominiosas,
mais brutaes, mais estupida e covardemente crueis do seculo presente,
que diante de Deus, que o vê e o condemna, ousa gabar-se de grande e
generoso e forte; mas em cuja campa o christianismo e a philosophia
escreverão algum dia unicamente este letreiro:

--Aqui jaz a ultima era dos martyres.--

E pûs-me a scismar.

_Erue me! Erue me!_--O Senhor te resgatará, pobre monge; porque não
tarda a bater a hora em que durmas tranquillo na terra fria e humida,
fria e humida como a estamenha que te cobre. Queiras tu de lá
perdoar-nos!

E lançando os olhos em volta, perguntava a mim mesmo:--Porque possuo eu
os commodos da vida, o pão do corpo e o pão do espirito, e porque perdeu
elle tudo isso? Que bem tenho eu feito ao mundo? Que mal lhe havia elle
feito?

Á fé, que a minha consciencia não achou uma unica resposta cabal a tão
simplices perguntas.

A lembrança do frade velho atormentou-me toda a noite. A imaginação não
m'o pintava já na passagem escura, onde surgira pela segunda vez: via-o
na idéa, e ahi, encostado ao roble, procurando conchegar os membros
inteiriçados na cogulla encharcada, e resguardar a cabeça calva ao
abrigo do robusto madeiro. Errante e mendigo como o rei Lear, o monge
não tinha, como elle, para o guiar na solidão e na procella a caridade
de um truão.

É que hoje não ha truões. Este seculo é um grave, sério e cogitador
assassino.

De quantos anciãos veneraveis será a historia a historia do meu
benedictino?

«Mas elles têem pão: os soccorros publicos...» Olé, homens grandes,
silencio!

Qual é o juro legal de cem milhões? São cinco.

Quanto dizeis vós que atiraés dos vossos balcões dourados aos hélotas da
sciencia e do sacerdocio? Uma quota diminuta dessa quantia.

Cahiu também a arithmetica debaixo das ruinas do passado? Se é assim,
dizei-o. Supprimamos a arithmetica. O que não fica supprimido é a
palavra--mentira!

Mentistes; porque a somma de que falaes existe apenas em palavras mais
torpemente hypocritas que as da serpente tentadora de nossa primeira
mãe, as que se escrevem nas paginas de um orçamento.

E a realidade? A realidade é a minha visão; é que o monge, o sacerdote,
se converteu em mendigo.

Silencio, outra vez, homens grandes! Tambem eu nasci nesta terra, e o
sangue ainda me não esqueceu o caminho das faces.

E se nós, geração do progresso e da philosophia, nos envergonharmos de
ser deshonestos, e dissermos:--Dê-se uma fatia de pão ao que morre de
fome!» Mais; se dissermos:--Pague-se um juro modico dos valores que nos
apropriámos?»

Se o fizermos, em logar de sermos mil vezes uma cousa, cujo nome não
escreverei aqui, sê-la-hemos só novecentas e noventa e nove; porque
teremos restituido a millesima parte do que loucamente havemos
desbaratado.

O homem não vive só de pão. Di-lo um livro que vós nunca lestes, mas que
nem por isso tem deixado de ser por dezoito seculos o abrigo, a
doutrina, a crença e a consolação de innumeraveis milhões de individuos.

Calculastes jámais quanto é insolente, atroz, diabolico, chegar a um
velho, tomar-lhe nas mãos todas as suas affeições, todos os seus habitos
de largos annos, todas as suas esperanças mais queridas, e despedaçá-las
e calcá-las aos pés, e dizer-lhe depois:--Dar-te-hei um bocado de pão?»
Prometter pão aos setenta annos!... Feita a quem esperava morrer
abraçado com o passado; que reportava a elle o presente e o futuro; cujo
viver intimo era só de memorias, essa promessa materialista e de
escarneo bastaria para deshonrar-vos. Que nome, porém, se dará aos que
nem essa mesma cumpriram?

Quaes podiam ser as affeições de antigo monge habitador de um d'esses
mosteiros solitarios espalhados pelas provincias, e afastados do tumulto
das grandes cidades? As suas affeições existiam todas dentro dos muros
do claustro: era a cella caiada e limpa; era a enxerga do seu catre; era
a banca de pinho em que meditava e lia; era a poltrona tauxiada em que
se assentava; era a estamenha do seu habito; eram as suas sandalias de
peregrino; era a arvore da cerca, fronteira da janella, onde o rouxinol
cantava na madrugada; era o crucifixo do seu oratorio; era a lagea da
crasta, debaixo da qual dormiam seus irmãos mais velhos, aquelles que
antes delle haviam seguido o caminho do Calvario, e donde pareciam
chamá-lo para o seio de Deus, quando os seus passos vagarosos soavam por
cima da pedra. Nisso, e em mil cousas como estas estavam postos o seu
amor, os seus affectos, as suas saudades, os seus desejos. Era o seu
mundo esse; e a vida, serena, calada, melancholica, balouçava-se-lhe
suavemente nessas affeições do retiro. Porque lhe despedaçastes tudo
isto? Quanto vos renderam a enxerga, as sandalias, a lagea do sepulchro
e o crucifixo?

Pobre velho! Pobre velho!

«Mas nós, acudireis, não podiamos calcular essas cousas, nem cremos em
affectos moraes. Temos cabeça, mas falta-nos coração, como convém a
homens politicos. Os frades eram um elemento da sociedade antiga que
cumpria annullar. Fizemo-lo. E então?»

Então roubastes Satanaz.

Pois Satanaz era um demente, que vos désse palacios, carruagens,
banquetes, prostituições, embriaguez, poderio, a troco de uma alma
inteiramente morta para os affectos; que não comprehendesse nem a dor
moral, nem as harmonias suaves que ha entre o universo e o homem? Uma
alma sempre em noite, e na qual nunca penetrasse a saudade mysteriosa do
céu? De que lhe serviria para comvosco a sua terribilissima herança de
uma eternidade de tormentos?

Ah... deixae-me dizer tudo isto; porque a imagem do velho benedictino
está gravada na minha alma como um remorso; e sinto lá fóra a chuva que
lhe açouta as faces ardentes de febre, o tufão que lhe revolve as cãs
venerandas, a torrente que lhe alaga os pés descalços. As lagrymas do
sacerdote, só, mendigo, nú, esfaimado, são uma tremenda maldicção
contra nós, maldicção que ha de cumprir-se.

A arte moderna parece ter achado os mais poderosos meios de excitar a
compaixão e o terror: tudo quanto a arte antiga tinha pathetico e
terrivel sentimo-lo hoje frouxo e pallido. Se hoje, porém, houvesse
engenho capaz de traduzir em palavras humanas o drama horribilissimo das
ultimas agonias da vida monastica em Portugal, aquelle que lesse uma só
vez esse livro monstruoso e incrivel poderia depois, ao deitar-se,
conciliar o somno com o _Leproso de Aosta_, com o _Fausto_, com o
_Manfredo_, ou com os _Últimos dias de um sentenceado_.

Quando em 1834 se extinguiu o antigo e celebre cenobio de Sancta Cruz de
Coimbra, aconteceu ahi um facto que póde, até certo ponto, dar uma idéa
das primeiras scenas do negro drama que ha oito annos começou a passar
ante os olhos daquelles que ainda não abnegaram de todo a humanidade e o
pudor. Expulsos os cenobitas, e inventariados os bens do mosteiro pelos
commissarios desta obra brutal, quasi por toda a parte brutalmente
executada, ainda uma cella daquelle vasto edificio ficava occupada por
um dos seus antigos habitadores. Era um velho de oitenta annos, a quem o
tropego, o quasi morto dos membros embargavam o caminhar, e que por isso
não podia seguir seus irmãos. Entrando no aposento, encontraram o
cenobita deitado no seu catre humilde, em cujo topo pendia o crucifixo
que, talvez por sessenta annos, tinha visto a seus pés consumir-se na
meditação, nas preces e na penitencia aquella dilatada vida. Estava só o
ancião, e o silencio que o rodeiava apenas era interrompido pelos
gorgeios de uma avesinha, que pulava contente ao sol n'uma gaiola
pendurada da abobada. O velho parecia pensativo, como se adivinhasse que
era chegada para elle a hora do martyrio.

As passadas dos que entravam moveram-no a volver os olhos: correu-os por
aquelles rostos desacostumados: depois tornou-os a abaixar. Que lhe
importavam os homens do seculo? Elle não os conhecia.

Disseram-lhe então que era necessario sair d'alli.

«Porque?--perguntou o cenobita.

«Porque os frades acabaram:--replicou o mais eloquente e discreto dos
verdugos, como se exprimisse a idéa mais simples e trivial deste mundo.

«Porque os frades...: repetiu em voz baixa o velho, sem concluir. Os
labios não podiam levantar de cima do coração o resto daquella phrase
monstruosa: ella lh'o havia esmagado.

Um sorriso estupido passou pelas faces estupidas de alguns dos
circumstantes. No gesto espantado do cenobita liam elles a grandeza do
esforço com que associavam o proprio nome á obra prima do seculo.

E com razão. O triturar assim um coração de oitenta annos era feito que
excedia em heroicidade todos os que haviam practicado dous cavalleiros
portugueses, que, lá embaixo na igreja, continuavam a dormir nos seus
leitos de pedra um somno de muitos seculos, e que se chamavam Affonso
Henriques e Sancho Adefonsíades.

Os olhos do ancião ficaram enxutos. Só accrescentou:--Mas para onde hei
de eu ir?»

«Para casa dos vossos parentes:--acudiu o philosopho.

O cenobita correu a mão pela fronte calva, e respondeu:--Já não tenho
parentes na terra: todos me esperam no céu».

«Então ireis para a de algum amigo.»

«O unico amigo meu que ainda vive é aquelle!»

E apontava para a avesinha.

«O frade irá pois morar na gaiola do pintasilgo:--rosnou por entre os
dentes um dos algozes, que tinha fama de gracioso. Não quiz, porém,
communicar aos outros tal idéa. Tudo estouraria de riso.

Alguem, que estudava ahi perto esta scena de progresso moral, não pôde,
todavia, continuar os seus graves e terriveis estudos. Precisava de ar,
de luz, de ver o céu. Atravessou ligeiro o longo dormitorio, e desceu a
quatro e quatro os degraus das extensas escadarias. As lagrymas
rebentavam-lhe como punhos.

Á portaria de Santa Cruz as primeiras palavras que ouviu foram, que a
municipalidade acabava de fazer um calvario no fundo de uma petição,
escripta em vasconço por certo doutor affamado, na qual pedia ao governo
lhe atirasse aquelle osso do mosteiro de sete seculos, para o roer até
os fundamentos, e construir no sitio d'elle, não me lembra ao certo se
um espogeiro, se uma sentina.

Era o estudo do progresso artistico após o estudo do progresso moral.

Quantos destes factos dolorosos se passaram naquella epoclha por todos
os ângulos de Portugal! Poderia contar-vos mil, e cada um delles fora
uma nova scena de agonia. Os martyres primitivos morriam nos eculeos,
nas garras das feras, nos leitos de fogo; não eram, porém, condemnados a
assentar-se em cima das ruínas de todos os seus affectos, clamando ao
Senhor durante annos: _Erue me! Erue me!_

Fizestes uma cousa absurda e impossível: deixastes na terra cadaveres
vivos, e assassinastes os espiritos.

Ao menos que esses cadaveres não sintam traspassá-los o vento que
sibilla nas sarças, a chuva que alaga as campinas, o frio que entorpece
as plantas e os membros dos animaes.

Pão para a velhice desgraçada! Pão para metade dos nossos sabios, dos
nossos homens virtuosos, do nosso sacerdocio! Pão para os que foram
victimas das crenças, minhas, vossas, do seculo, e que morrem de fome e
de frio!

Cumpri aos menos a vossa brutal promessa. Podem n'essas almas ser
profundas as trevas, e todavia respeitardes as regras mais triviaes de
uma probidade vulgar.

Senão, que os pobres monges inclinem resignados a fronte na cruz do seu
martyrio, e alevantem uma oração fervorosa ao Senhor para que perdoe aos
algozes, que nella os pregaram. É este o exemplo que na terra lhes
deixou o Nazareno.

Mas que se lembrem os poderosos do mundo de que a oração de Jesus na
hora suprema da agonia foi desattendida do Eterno. E comtudo, Jesus era
o seu Christo.

Que olhem para essa nação que fluctua ha dezoito seculos no pégo da sua
infamia, maldicta de Deus, e apupada pelo genero-humano, sem nunca poder
submergir-se nos abysmos do passado e do esquecimento.

Que se lembrem do proprio nome, do nome de seus filhos, de que ha
justiça no céu, e na terra a posteridade.

Se nos seus corações restam vestigios de crenças humanas, que meditem
uma hora, um minuto, um instante nisso tudo. Das profundezas de tal
meditar surgirá uma idéa, que lhes fará manar da fronte o suor frio da
morte; porque será uma idéa tenebrosa e terribilissima.




                             *DA INSTITUIÇÃO

                                    DAS

                            CAIXAS ECONOMICAS

                                   1844*




                                     I


A origem das caixas economicas, embora imperfeitamente organisadas, como
todas as instituições nos seus começos, remonta apenas aos fins do
seculo passado, e a Allemanha e a Suissa foram os primeiros paizes que
as viram nascer. Hamburgo possuia uma em 1787, e a de Berna, instituida
só para os creados de servir, appareceu em 1789. Seguiram-se poucos
annos depois a do ducado de Oldemburgo e a de Genebra. Todas as demais,
nestes e n'outros paizes, foram fundadas posteriormente, e pertencem ao
presente seculo. Em Inglaterra, dizem alguns que a idéa das caixas
economicas occorrera primeiramente ao celebre Wilberforce; mas os
vestigios dellas que ahi se apontam anteriores a 1810 são de natureza
duvidosa ou apenas tentativas obscuras. Data daquella epocha o _banco de
poupanças_ (_saving's bank_) de Ruthwel, fundado por Duncan, e que foi o
primeiro que se constituiu naquelle paiz com estatutos publicos e
regulares. Os seus prosperos resultados foram poderoso incentivo para a
diffusão das caixas economicas. Dentro de sete annos contavam-se no
Reino-unido perto de oitenta estabelecimentes analogos, e em 1833 quasi
quinhentos, onde 470:000 individuos, pouco mais ou menos, tinham
depositado a enorme somma de quasi 16 milhões de libras esterlinas, ou
acima de 160 milhões de cruzados, subindo nos quatro annos immediatos o
numero dos depositarios a 636:000 e o valor dos depositos a 20 milhões
de libras ou mais de 200 milhões de cruzados. Ao passo que estes
beneficos institutos cresciam e se multiplicavam na Gran-Bretanha,
generalisavam-se e prosperavam tambem no meio das nações continentaes.
Em 1838 o numero das caixas economicas subia na Allemanha a 257, e na
Suissa a 100. A França, onde só foram introduzidas em 1818, conta
actualmente (1844) perto de 300, e na Italia quasi não ha cidade que não
possua estabelecimentos desta especie. Á porfia, os governos e os povos
tem concorrido para arraigar uma instituição, cuja idéa fundamental é,
talvez mais que nenhuma, civilisadora e moral. Como todas as cousas
verdadeiramente grandes e uteis, as caixas economicas não tem encontrado
uma unica parcialidade politica, uma unica eschola que ouse
condemná-las, uma só crença religiosa que as repudie. As monarchias
absolutas, os governos parlamentares, as republicas acceitam-nas,
promovem-nas. Ao passo que o ministro protestante as aconselha como
poderoso instrumento de morigeração e de ventura para o povo, o papa
sanctifica esta formosa instituição, abençoando-a e propagando-a nos
estados da igreja. Progresso verdadeiro, nascido no meio da terrivel
lucta de idéas, de paixões e de interesses em que ha meio seculo se
debate a Europa, as caixas economicas não tem custado á humanidade nem
lagrymas, nem sangue. Evidentemente uteis por sua natureza; provadas
taes pelos principios em que se estribam e pelos seus esplendidos
resultados; simples no seu mechanismo, por toda a parte aquelles a quem
os seus beneficios são especialmente destinados, os homens do povo,
tem-nas comprehendido e abraçado. Simplicidade, clareza, utilidade
reconhecida são as principaes condições de todo e qualquer pensamento
social que tenda a popularisar-se. As caixas economicas ostentam no mais
subido grau estes caracteres de todas as instituições que devem vir a
encarnar-se na sociedade e a viver a larga e robusta vida das nações, a
vida dos muitos seculos.

Este consenso unanime, não de paizes ignorantes, mas dos que estão na
dianteira da civilisação, e ahi, não de uma classe de individuos, mas de
homens de todas as jerarchias; tal consenso, dizemos, é o julgamento
mais completo, o testemunho mais irrefragavel da utilidade nunca
desmentida das caixas economicas. Onde quer que ellas appareceram, a
moralidade das classes inferiores e pobres melhorou em breve, e a
miseria, perspectiva permanente que o jornaleiro e o assalariado tem
diante dos olhos para o ultimo quartel da existencia, deixou de ser para
elles uma fatalidade ineluctavel. A sobriedade; a poupança, as virtudes,
em summa, de homem do povo deixaram de ser van precaução contra o seu
negro porvir de mendicante velhice.

A familia, sobretudo, essa imagem da sociedade e sua origem, que para o
obreiro, ás vezes escaçamente retribuido, é, não raro, flagello e
maldicção, póde deixar de ser desgraça, ao menos para aquelle a quem ou
viva crença religiosa, ou a natural bondade da indole induzem a preferir
á satisfação de vicios ignobeis o proprio bem estar futuro e o bem estar
de seus filhos.

Que é, pois, a caixa economica, essa arvore que produz taes fructos de
benção? É a cousa mais conhecida e trivial. É o mealheiro; é esse velho
alvitre de poupados que desde pequeninos todos nós temos visto usar aos
pouco opulentos, e que nossos paes e avós já conheceram; é a astucia do
pobre para fugir a superfluidades tentadoras (é longa a lista das
superfluidades do pobre: encerra quasi todo o necessario do rico) e á
custa dellas achar em si proprio soccorro nos dias de inactividade
forçada, da carestia ou da enfermidade. É o mealheiro, mas o mealheiro
tornado productivo, fecundado pela intelligencia e pelo principio de
associação: é uma grandiosa, e por isso singela, invenção do senso
commum, que durante muitas eras ficou, por assim dizer, no estado de
sementinha perdida, até que a luz do progresso e da civilisação a fez
rebentar, crescer, bracejar, florir e gerar fructos preciosos, que della
colhem em abundancia as sociedades modernas.

A este baptismo de regeneração, que, bem como ao do evangelho, são
principalmente chamados os pequenos e humildes, só tarde nós
concorremos. Não que ignorassemos a sua existencia, mas por essa especie
de destino mau que nos arrasta após novidades de pouca monta ou
contrarias á razão, ao passo que desprezamos o que nas instituições
estranhas ha conforme com os nossos costumes ou accommodado ás nossas
precisões reaes. Debalde um dos primeiros economistas portugueses[2]
propôs ha annos na camara dos deputados a creação das caixas economicas,
offerecendo a lei que as devia regular, e mostrando as suas vantagens
n'um largo relatorio, onde á vasta sciencia se ajuncta a eloquencia que
vem da convicção profunda. Entretidos com theorias, ou com interesses de
partidos ou de pessoas, os homens politicos lançaram no esquecimento as
boas e sinceras diligencias do deputado que desempenhava uma das mais
graves obrigações do seu mandato. Até hoje nada fizeram a semelhante
respeito aquelles a quem mais que a ninguem isso incumbia; e se a
existencia da primeira caixa economica portuguesa se realisou, deve-se o
facto a uma associação particular[3].

É sabido que, por via de regra, as caixas economicas são uma especie de
deposito, onde qualquer individuo póde ir ajunctando lentamente e em
quantias pequenas ou grandes as sobras da sua receita, salvas das
despesas necessarias á vida;--que, em vez de ficarem inertes as sommas
alli depositadas, começam logo a produzir juro, o qual, passado um anno,
se converte em capital e se accumula ao capital primitivo para com elle
produzir novos juros;--que esta accumulação, bem como a formação do
capital primitivo, é perfeitamente indeterminada e sem accepção nem
excepção de tempos e de quantias, uma vez que não sejam estas inferiores
ao diminuto minimo de cem réis;--que o depositante póde quando lhe
aprouver levantar o juro ou o principal no todo ou em parte, ou
transmitti-lo por testamento ou por successão a seus herdeiros ou
legatarios;--que, finalmente, o homem laborioso e poupado tem alli as
suas economias seguras pelas garantias positivas que lhe presta uma
associação poderosa e respeitavel, em vez de as conservar improductivas
e arriscadas no mealheiro domestico, ao qual, suppondo-lhe a indole
previdente e poupada que tantas vezes falta ao operario e, em geral, a
todos os que vivem de pequenos lucros eventuaes, teria necessariamente
de recorrer.

«Com razão se tem apontado, diz De Gerando, a utilidade moral que esta
instituição produz, favorecendo as inclinações para o arranjo e
economia. Ella é propicia ás virtudes que se ligam com essas
inclinações, ou que d'ahi nascem. Excita ao trabalho; habitua o homem
laborioso a cogitar; ajuda a desenvolver os affectos domesticos;
concorre para multiplicar tanto os estabelecimentos industriaes como as
familias, proporcionando meios de formar e conservar o cabedal
necessario para abrir uma officina ou ajunctar um dote para casamento;
ensina ao pouco abastado como em si proprio póde achar recursos e como
se póde remir na miseria, na doença e na velhice. As caixas economicas,
ao passo que diminuem o numero dos indigentes, concorrem tambem para
nobilitar o caracter do homem pobre e para lhe dar aquella honrada
altivez que nasce da maior independencia. Aos que vivem na estreiteza
faz-lhes saber quanto é grato o sentimento da propriedade,
estabelecendo-lhes uma que é real e que, apesar de modica, fructifica e
se perpetua. Além disso, são proveitosas em subido grau á sociedade,
porque são conjunctamente symptoma e instrumento da quietação publica.»

Veio o successo justificar as previsões do illustre moralista. Tem-se
observado em França e em em Inglaterra, que não ha individuo que tenha
feito depositos nas caixas economicas que fosse accusado nunca perante
os tribunaes, ao passo que as listas de criminosos feitas em diversas
epochas provam que as tres quartas partes dos individuos sentenceados
eram pessoas inclinadas ao jogo, ás loterias, ou a bebidas espirituosas.

Os factos citados pelo virtuoso De Gerando são, de feito, as
consequencias forçosas da idéa fundamental das caixas economicas. Das
classes populares saem, não só absolutamente, mas tambem relativamente,
a maior parte dos criminosos. Tem-se attribuido isto á falta de educação
nessas classes: sob certo aspecto e até certo ponto a causa é
verdadeira; não é, porém, a unica, nem a principal. Se indagamos quaes
foram os primeiros passos dos mais celebres malvados, achamos que
partiram dos simples roubos até chegarem á maxima ferocidade no crime.
Poucos entre os assassinos famosos escreveram logo com sangue as paginas
maldictas da historia da sua existência. Na estatistica da criminalidade
popular predomina o roubo: é cousa trivialmente sabida, como o é que a
miseria das classes laboriosas produz principalmente esse facto. Mas o
que a sociedade parece ignorar ou esquecer é que ella é a culpada de que
a pobreza do humilde se converta facilmente em miseria; miseria extrema,
desesperada, terrivel; miseria que impelle quasi forçadamente pela
estrada da immoralidade o homem do povo, para quem os legisladores ha
muito inventaram as masmorras, os desterros, os supplicios, em vez de
alevantarem barreiras moraes que lhe obstem a precipitar-se no abysmo.

Para o individuo sem propriedade, para o obreiro, o artifice, o creado
de servir; para aquelle, emfim, que só tem por capital os proprios
braços, e cuja renda é apenas um salario contingente, a imprevidencia e
o habito de procurar cada dia os meios de viver esse dia nascem
naturalmente da sua situação precaria. Nada espera no futuro, e por isso
nada teme delle: probabilidades, contingencias, não as calcula nem
previne. Assim, vemo-lo acceitar com facilidade os encargos de pae de
familia. Satisfez o appetite momentaneo; que importa o futuro áquelle
para quem isso não existe?

Depois vem os filhos, vem a doença, vem a falta de trabalho: as
affeições domesticas enraizaram-se no coração do desgraçado. A natureza,
a religião, os costumes, tudo lhe diz que esses entes que gerou, que
essa mulher a quem se prendeu devem achar nelle o seu abrigo, a sua
providencia. Ao passo que a má organisação da sociedade o inhabilita
absolutamente para em certos casos poder supprir os seus, a mesma
sociedade lhe diz, e diz bem, que nunca os deve abandonar. Desta ordem
de cousas, falsa, violenta, contradictoria, resulta que as mais leves
tendencias para o crime se excitam e dilatam até chegarem a produzir
tristes fructos, cujo desenvolvimento a sociedade crê impedir com as
algemas, carceres, grilhetas, desterros e patibulos, emquanto ella
propria, com o seu desprezo pelas classes pobres, com a falta absoluta
de instituições verdadeiramente moralisadoras e beneficas, alimenta a
arvore mortifera que produz as acções criminosas.


                                     II


As caixas economicas são o primeiro e agigantado passo para a solução do
problema que as leis ainda não tentaram resolver: as caixas economicas
são o contraste, a negação do patibulo. Matam a perversão popular nas
suas causas, em vez de a punir nos seus effeitos. Criam o futuro para
milhares de individuos que nunca imaginaram tê-lo, creando-lhes o goso
da propriedade, e nesta um recurso para a hora da afflicção e escaceza,
tão proxima, entre as almas vulgares, da hora do crime. O facto de não
apparecer o nome de um unico depositante das caixas economicas nas
listas dos sentenceados em França e em Inglaterra é a consequencia
natural dos principios em que esta instituição se estriba.

A sua influencia moral vai ainda mais longe. Os vicios são, depois da
miseria, a origem de frequentes attentados. O jogo e a embriaguez estão
por toda a parte mais ou menos nos habitos do povo: a embriaguez,
sobretudo, é para o maior numero de jornaleiros como refrigerio, como
prazer licito nos dias de repouso. Quem, todavia, ignora que estes dous
vicios são quasi sempre a causa de rixas entre os operarios, de
desordens domesticas, e de se aggravar cada vez mais a miseria das
classes laboriosas? As caixas economicas guerreiam, geralmente com
vantagem, a propensão para as bebidas fermentadas e para o jogo.
Inimigas da penalidade feroz e sanguinaria que ainda governa a Europa,
não o são menos da taberna, que muitas vezes é a porta fatal por onde o
homem de trabalho enceta o caminho que tantas vezes o conduz ás galés,
ao desterro e, até, á morte.

Mas, dir-se-ha, como podem as caixas economicas desarreigar os vicios
inveterados do povo? Como correrá este a depositar nos escriptorios das
caixas a exigua quantia que ia applicar á embriaguez e ao jogo? A esta
pergunta responde a experiencia dos paizes onde esta especie de
depositos estão instituidos e vulgarisados ha certo numero de annos. A
principio a concorrencia era diminuta e lenta; mas cresceu gradualmente,
e vai tomando hoje um incremento que passa além de todas as previsões
dos amigos da humanidade.

Entre nós mesmos ha um triste exemplo de como o povo, quando descortina
ainda a mais duvidosa perspectiva de melhorar a sua condição, dá de
barato o satisfazer os outros appetites para correr após essa incerta
esperança. São as loterias o exemplo: é exemplo essa deploravel invenção
de especular com a cubiça e com o desejo ardente que as classes menos
abastadas tem de conquistarem, seja como for, fortuna independente.

É de ver a ancia, diriamos quasi o delirio, com que o vulgo concorre a
lançar no sorvedouro das loterias quantos reaes lhe sobram do que lhe
cumpre gastar nas mais estrictas precisões da vida. Muitos ha que até
cortam pelo necessario a si e á família para o irem dar a devorar á
loteria, a essa fatal banca de jogo em que se joga á luz do dia, no meio
da praça publica, embora haja a certeza de _que a grandissima maioria
dos que apontam hão de forçosamente perder_; circumstancia que
caracterisa esta instituição _publica_ de modo, que, se fosse uma
especulação particular, os tribunaes puniriam severamente o especulador.
Mas o facto demonstra que, apenas clareia algum tanto o negro horisonte
do porvir; apenas lá reluz uma esperança tenue, improvavel até, a de um
premio avultado, o povo corre para essa esperança; porque antevê as
dolorosas consequencias da sua precaria situação e busca esquivar-se a
ellas.

É para tornar proficua e moral esta previsão que se instituiram as
caixas economicas. Fazendo convergir para si as sobras escaças dos pouco
abastados, as quaes aliás se desbaratariam provavelmente em vergonhosos
deleites, ou no que vale quasi o mesmo, na loteria, ellas não apresentam
esses engodos fementidos, essas promessas mentirosas com que se desperta
a cubiça popular; não promettem mil por dez com a condição de, em cem
casos, perderem-se noventa e nove vezes os dez e não se obterem os mil.
Não! As caixas economicas offerecem unicamente um juro modico, mas
constante, e alèm disso a certeza de rehaver o depositante o seu
capital, augmentado com o juro, no momento em que delle careça:
offerecem uma cousa simples, clara, possivel: não promettem milagres,
nem sequer maravilhas; porque o maravilhoso muitas vezes, e o milagroso
sempre, nas cousas humanas, são a caracteristica do charlatanismo.

Como os descobridores de thesouros encantados, como os viciosos de
loterias, como os alchimistas, os que desenvolveram e applicaram o
pensamento desta instituição calcularam tambem com a insaciabilidade da
cubiça humana; com a cubiça que póde estar dormente ou subjugada por
outros affectos, mas que existe em todos os corações. O primeiro
sentimento que deve levar o obreiro, o familiar, o caixeiro, o artifice
a ir entregar na caixa economica alguns tostões que forrou do producto
do seu trabalho será a idéa de que virão de futuro as occasiões da
enfermidade, da falta de occupação ou de outro qualquer contratempo, e a
reflexão de que, reservando os sobejos de hoje para as faltas de amanhã
é, sem questão, mais judicioso accumulá-los no mealheiro seguro e
publico, onde não corre uma hora, um minuto, em que a somma poupada não
produza seu lucro, e em que este lucro não se esteja transformando em
capital productivo, do que mettê-los no mealheiro particular, que póde
ser roubado, e onde, no momento da precisão, nem mais um ceitil se
achará daquillo que ahi se metteu. É este o sentimento que, no povo,
suscita desde logo a caixa economica, e conforme a experiencia de todos
os paizes, basta elle para angariar extraordinario numero de
depositantes. Ha, porém, um perigo: quando algum destes tiver accumulado
certa quantia que repute sufficiente para occorrer a qualquer apuro
inesperado, os costumes viciosos e desordenados que o temor do futuro e
a esperança de remedio domaram, hão de provavelmente melhorar-se nessa
lucta entre o bem e o mal, e o homem de trabalho voltará aos habitos de
desleixo e dissipação que lhe absorviam as suas sobras, e que lh'as
tornarão a absorver de novo, e quem sabe se, até, as proprias economias
que fizera. Obviamente o perigo é real e grandissimo: ha, todavia, no
coração humano tambem a avareza; ha essa paixão, que, ao contrario das
outras, augmenta com a posse, radica-se com a idade, arde violenta ainda
na penumbra fria do sepulchro. Na instituição das caixas economicas,
contou-se com ella. Invenção que toca as raias do sublime é o aproveitar
uma paixão má e ignobil para fazer o bem; tornar instrumento da moral e
da civilisação a mais indomavel, a pessima entre as nossas propensões.
Perigosa, destructiva, anti-social no rico, ella será útil ao pobre,
que, sem deshonra, a póde alimentar onde quer que existirem as caixas
economicas. E é o que deve succeder e succede. O creado, o jornaleiro, o
artifice que insensivelmente se achou transformado em pequeno
capitalista e que vê, com o decurso do tempo, engrossar os tostões em
cruzados, os cruzados em moedas, começa a amar o seu peculio e a fazer
sacrificios para o augmentar: esta idéa entranha-se no seu espirito, e
não tarda a vir o exame severo das superfluidades e o córte em todas
ellas. E fazem-no desafogadamente, porque sabem que no dia ou no
instante em que o excesso da poupança os conduza a algum apuro, é-lhes
licito ir levantar no todo ou em parte o juro ou o capital que possuem:
e se tal aperto se não der, tem a certeza de que, quanto mais depressa
ajunctarem um peculio de certo vulto, mais depressa realisarão o sonho
constante da maioria dos individuos collocados na precaria situação de
assalariados, a existencia independente. Um abrirá a loja de retalho,
outro a officina de pequena industria: este irá plantar a vinha no
outeiro escalvado; aquelle arrotear o chão baldio na planicie. Cada qual
seguirá a senda que a sua inclinação lhe indicar, mas todos pensarão só
n'uma cousa, a independencia; a independencia que nasce da propriedade,
e que é o mais fertil elemento da moral, da paz e da prosperidade
publica.

As considerações que temos feito são geraes; applícam-se a todos os
paizes, porque assentam sobre a indole dos affectos humanos, e sobre
circumstancias mais ou menos communs nas sociedades modernas. Se, porém,
ha nação cujo estado social, cujas tendencias entre as classes
inferiores assegurem ás caixas economicas, mais que nenhuma outra, uma
acção poderosa em melhorar a condição dessas mesmas classes, essa nação
é a nossa.

Em Inglaterra e em França as caixas economicas, apesar das suas
grandissimas e innegaveis vantagens, tem apresentado alguns
inconvenientes: tal é o de servirem para especulações de gente rica,
que, na falta de applicações para os seus cabedaes, alli os vão
depositar com os juros compostos que delles devem auferir, sem correrem
riscos e sem se onerarem com as despesas de administração. Procurou-se
em muitas partes remover este inconveniente, estabelecendo maximos para
as entradas e para o total dos depositos de cada individuo; mas esta
providencia nem é geral, nem impede que a frequencia das entradas supra
a modicidade dellas, e que repartindo uma quantia avultada por diversos
membros da propria familia, e fazendo todos estes ao mesmo tempo
pequenos depositos em diversas caixas, o abastado venha a abusar de uma
instituição cujo fim não é, de certo, locupletá-lo.

Entre nós não existe e difficilmente existirá semelhante perigo.
Portugal é um dos paizes da Europa, onde, graças á nossa antiga
organisação social e á natureza e condições das nossas industrias, as
fortunas são por via de regra mediocres, a propriedade territorial mui
dividida nas provincias mais populosas, e por consequencia os capitaes
raros e os grandes capitaes rarissimos. Fallecem elles ás applicações,
não as applicações a elles. Se a essa limitada força de capitaes que
possuimos faltasse o minotauro que os devora quasi todos, a agiotagem,
quasi sempre infecunda, com o governo e com os particulares, ainda
restavam as necessidades das industrias fabril e agricola, ás quaes por
muitos annos não bastarão os que existem, sem que receiemos sirvam para
perverter uma instituição quasi exclusivamente destinada ás classes
laboriosas e menos abastadas.

Tem-se ponderado que a acção benefica das caixas economicas é impotente
contra a miseria do maximo numero de obreiros, isto é, contra a miseria
de quasi todos os que pertencem á industria fabril. Nos paizes onde as
grandes fabricas são a principal fórma, o mais commum systema da
industria, essa observação é infelizmente verdadeira. O aperfeiçoamento
das machinas, a concorrencia dos productos nos mercados, a desproporção
entre o fabrico e o consumo tem feito descer os salarios a ponto que
toda e qualquer economia é impossivel para o operario, que ganha
exactamente só o preciso para não morrer de fome. Depois, nos grandes
focos de industria fabril, principalmente na Gran-Bretanha, a depravação
dos costumes é tão profunda, que, ainda quando a economia não fora
materialmente impossível, sê-lo-hia moralmente. Ahi, portanto, as caixas
economicas, são, sem duvida, insufficientes para libertar o povo da
miseria e da corrupção.


                                    III


Quando a organisação de um paiz é viciosa e contrafeita; quando e onde a
propriedade está mal e, digamos até, monstruosamente dividida: onde o
capital anda em guerra viva com o trabalho; onde a condição do obreiro é
relativamente peior que a do servo da idade media, a caixa economica de
certo não póde remediar os effeitos desta situação absurda. Os
districtos ruraes da Inglaterra, nomeiadamente os da Irlanda, são
victimas de uma constituição da propriedade territorial em que ainda
está viva a conquista dos normandos, e nas cidades manufactoras o
excesso dos aperfeiçoamentos mechanicos tem gerado o excesso de miseria
dos proletarios. Para estes, que pelas fluctuações do commercio externo,
tem repetidas vezes largas ferias de trabalho, e se vêem forçados a ir
receber a esmola dos soccorros parochiaes; para estes, a quem
frequentemente faltam os objectos de primeira necessidade, a caixa
economica é como se não existisse. Em tal situação recommendar ao
obreiro a economia e a previsão fora cruel escarneo.

Mas que ha entre nós que tenha semelhança com tal estado de cousas? As
nossas fabricas são poucas e acham-se ainda longe dos grandes
aperfeiçoamentos. Por outra parte, não havendo superabundancia de
braços, os salarios são razoaveis. N'uma nação essencialmente agricola a
industria manufactora difficilmente preponderará sobre a agricultura. Do
modo como a propriedade está constituida, sendo avultadissimo o numero
dos proprietarios ruraes, e predominando a pequena cultura pela grande
divisão do solo, essa preponderancia é e será por muito tempo
impossivel. A supremacia industrial dos ingleses devem-na estes, talvez
quasi exclusivamente, a que na Gran-Bretanha a terra, por assim dizer,
foge debaixo dos pés ao homem de trabalho. Paiz classico dos
latifundios, os possuidores de vastos predios, ou os seus opulentos
rendeiros obtem facilmente simplificar as operações da cultura com
engenhosos e potentes machinismos, dispensando assim um grandissimo
numero de braços, que vão augmentar a offerta dos que a industria fabril
utilisa. Essa, forcejando igualmente para os substituir pelas machinas,
ao que a obrigam as luctas interminaveis da concorrencia, acceita-os,
acceita-os sempre, mas com a condição inevitavel do abaixamento
indefinido do salario. Em Inglaterra a agricultura, adiantadissima em
extensão, em intensidade, em instrumentos, e em copia de capital movel,
está restricta a operar dentro dos limites do solo cultivado. O
principal instrumento de producção, a terra aravel, não póde
multiplicar-se. Quando a machina ou um novo systema agricola expulsa o
operario rural, expulsa-o para dentro das barreiras da industria fabril.
Para esta, ao contrario, o espaço onde labora é um dos menos importantes
elementos da sua existencia. Para produzir indefinidamente, só carece de
uma condição essencial; é a que a faz triumphar da industria das nações
rivaes, a do preço inferior ao do producto alheio com igual valor da
utilidade. A machina, ou aperfeiçoada ou nova, e a reducção dos
salarios, ou o augmento de horas de trabalho, o que é perfeitamente
identico, são os seus meios heroicos. Não lhe importa se o instrumento
homem se quebra, porque o renovará sem custo no meio das multidões
famintas. Vive de produzir barato, e os seus obreiros hão de viver de se
afadigarem em procura da morte. Cumpre que a industria inglesa triumphe
na batalha incessante que se peleja entre as nações industriaes, batalha
onde se não vê o fuzilar da espingardaria, nem se ouve o troar dos
canhões, mas descortina-se o revolutear do fumo das chaminés monstruosas
e soa o murmurar confuso da machina e do homem que lidam: terrivel
batalha, onde não corre sangue, mas corre o suor do trabalho, e depois o
suor da agonia.

D'esta situação, exteriormente esplendida e interiormente violenta e
dolorosa, estamos nós bem longe. Não receiamos dizer que em Portugal
será raro o operario válido que por meio de severa e intelligente
economia não possa depositar annualmente na caixa economica alguns
cruzados, ou para occorrer a desgraça imprevista, ou para crear um meio
de subsistencia na velhice, ou finalmente para adquirir a independencia
de proprietario. Com o modo de ser da população portuguesa, póde-se
prever que, diffundindo-se pelo reino as caixas economicas, a
estatistica destas será bem differente da estatistica das de Inglaterra,
e ainda das de França. Nestes dous paizes apenas a quarta parte das
quantias depositadas pertence aos operarios, e a classe que predomina
como credora dellas é a dos creados domesticos. Entre nós a proporção
tem de vir a ser diversa. Os donos de pequenos predios, os seareiros, os
creados de lavoura, os operarios, não só de officinas, mas tambem de
fabricas, hão de provavelmente predominar. E se assim acontecer,
poderemos affirmar que a nação progride largamente no caminho da
civilisação material e moral.

Alguém achará, talvez, que estas sinceras esperanças na futura
regeneração economica do nosso povo são contradictas pelo facto da
perfeita analogia que se dá entre a França e a Inglaterra, em serem
tanto n'um como n'outro paiz as mesmas classes as dos depositantes nas
caixas economicas. Na França, dir-se-ha, a divisão da propriedade é
facilitada até o ultimo ponto pelas leis, e o numero dos pequenos
proprietarios é proporcionalmente maior que em Portugal: a agricultura
também lá predomina sobre a industria fabril; finalmente a situação do
rendeiro e do trabalhador rural é mais semelhante á dos nossos que á dos
de Inglaterra. Como, pois, não dão as caixas economicas na Franca
resultados estatisticos diversos dos que subministram os _saving's
banks_ ingleses? Não se deve concluir d'ahi que não tem a influencia que
se lhes attribue, e vice-versa, que no seu progresso ou na sua
decadencia não influe nem a situação relativa das classes sociaes, nem o
estado da propriedade?

Não. A analogia dos dous paizes na desproporção, contraria á ordem
natural das cousas, entre os operarios e as outras profissões, em
relação aos depositos nas caixas economicas, tem causas em parte
semelhantes, em parte diversas, mas iguaes nos resultados. As fabricas
francesas seguem o rapido progresso das inglesas, e nos grandes centros
industriaes da França notam-se já em larga escala a miseria e a
dissolução das cidades manufactoras da Gran-Bretanha. Lille, Mulhouse,
Rheims, Ruão, reproduzem o triste quadro de perversão que apresentam as
classes laboriosas em Manchester, Birmingham, Leeds, Glasgow, etc. A
pobreza extrema, sem esperança e sem limites, já ahi golfa tambem das
caldeiras de vapor. A industria individual tende rapidamente a
converter-se na industria, digamos assim, collectiva. A officina
desapparece diante da fabrica, o homem diante da machina. A questão de
saber se isto é, em absoluto, um mal ou um bem, relativamente aos
interesses geraes de qualquer paiz, não a ventilaremos aqui; mas é
indubitavel que esse transtorno completo na forma do trabalho torna
altamente angustiosa a situação dos operarios, e inhabilita-os para
depositarem nas caixas economicas sobras de salarios diminutos e
frequentes vezes interrompidos.

Por outra parte, o modo de ser dos bens de raiz em França é exactamente
o contrario da indole da propriedade territorial em Inglaterra. O solo
inglês é, por assim dizer, um grande vinculo aristocratico; a França um
vasto allodio popular. A terra neste paiz está retalhada em cento e
vinte e cinco milhões de chãos ou courellas e tende a subdivir-se ainda
mais. Dão-se casos já em que o preço da venda de uma parcella de terreno
pouco excede o total das despesas necessárias para legalisar a
transmissão. Muitos homens pensadores começam a ter serios receios de
que a extrema divisão do solo venha a impossibilitar em certas
circumstancias uma cultura remuneradora; e ainda os que julgam estes
receios infundados confessam a conveniencia de uma lei que, distinguindo
na propriedade o seu modo de ser, quando este modo de ser importa á
causa publica, do direito do individuo á mesma propriedade, consinta em
todas as divisões possiveis deste direito, mas prohiba que se retalhem
indefinidamente os pequenos predios. O systema dos _quinhões_ do
Alemtejo, que tem uma razão de ser, mas que está longe de ter a
importancia que teria quando applicado ás glebas de moderada grandeza,
prova que a doutrina que distingue o modo de ser da propriedade do
direito de propriedade é reduzivel á praxe. Em França, porém, fora
difficil entrar nesta senda que repugna a habitos inveterados da vida
civil da nação. No estado actual das cousas alli, o lavrador
proprietario ou ainda o simples rendeiro acha facilidade em empregar
immediatamente na acquisição de terras as suas economias, sem que lhe
seja necessario accumulá-las por largos annos nas caixas economicas.
Quatrocentos, duzentos, cem francos que, lhe sobejem, deduzidas as
despesas de cultura e domesticas, é quanto basta; lá encontra logo um
prado, uma courella, um cerradinho, que comprado e cultivado com esmero,
lhe produzirá um lucro maior que o limitado juro da caixa economica:
prefere, portanto, aquelle expediente. Para elle esta bella instituição
torna-se realmente inutil.

Eis, quanto a nós, a explicação da analogia entre a França e a
Inglaterra pelo que respeita á proporção das diversas classes de
contribuintes das caixas economicas. A condição dos operarios fabris é
semelhante nos dous paizes. Quanto á população rural, essa, em
Inglaterra não contribue, porque a sua situação pouco melhor é que a do
obreiro da industria, e o proprietario da pequena gleba é uma excepção
pouco vulgar; em França, porque é facilimo para os pequenos capitaes o
transformarem-se em propriedade territorial. Assim naturalmente
explicada, essa analogia não invalida as considerações anteriormente
feitas.

Em Portugal o caso é diverso. Entre nós o modo mais commum de possuir a
pequena propriedade é a emphyteuse. Para o sabermos não precisamos de
estatistica: basta olhar ao redor de nós. Nas provincias do norte, pode
dizer-se, talvez, que é rara outra especie de propriedade. Sommados os
prazos, os vinculos, as vias publicas, os terrenos chamados _nullius_,
pouco faltaria para ter a medida superficial dessas provincias, e ainda
ao sul do reino são por milhares os terrenos emphyteuticos tanto ruraes
como urbanos. Os vastos allodios só predominam no Alemtejo, se é que os
vinculos lhes não levam a palma. Ora a caracteristica da emphyteuse é
ser um meio termo entre o systema de propriedade em Inglaterra, que não
passa, na essencia, de uma odiosa e anti-economica aggregação de
morgados, e aquelle systema illimitadamente parcellario da França, que
suscita as apprehensões dos pensadores. A emphyteuse, collocada no meio
destes dous extremos, se for simplificada e constituída de um modo
accorde com as idéas e costumes das sociedades modernas, será sempre uma
das mais sensatas e beneficas instituições civis, e os seus resultados
immensos nas crises sociaes que despontam no horisonte. Radicada nos
habitos nacionaes, parece-nos que não corre o perigo de ser abolida; mas
se alguem o tentasse e o obtivesse, faria um bem mau serviço ao seu
paiz. O prazo fateusim hereditario realisa o desejo, por tantos
manifestado em França, de que os terrenos que por successivas divisões
desceram a um limitado perimetro, passassem indivisos, sem que por isso
deixasse de ser divisivel o direito de propriedade sobre elles.

É n'um paiz assim, se nos não enganamos, que a vantagem da existencia de
caixas economicas é immensa. Em geral os prazos de certa grandeza
excedem em valor as economias annuaes que qualquer lavrador mediocre ou
seareiro pode realisar; mas estas economias, accumuladas por alguns
annos, bastarão não raro para a acquisição de um desses prazos, que
diversas causas tão frequentemente attrahem ao mercado. Quem conhece os
habitos do homem do campo sabe que, poupado durante a maior parte do
anno, porque os recursos lhe não sobejam, quasi sempre desbarata uma
porção do producto do seu suor na occasião das colheitas. Pagos as
rendas, fóros e impostos, reservadas as sementes, provida a sua parca
dispensa, acha-se ainda com sobras mais ou menos avultadas. Illude-se
então por alguns dias e suppõe-se rico. Quer gosar; e essas sobras, que
poderiam constituir lentamente um peculio consideravel, vão-se em luxo e
em festas, quando não no jogo, na embriaguez ou na devassidão. Se
houvesse, porém, um estimulo de cubiça que lhe excitasse o animo, essas
sobras assim malbaratadas converter-se-hiam em capitaes uteis, e tanto
mais uteis quanto, pertencendo ao mesmo homem de trabalho, iriam
fecundar duplicadamente a terra.

Depois, n'um paiz cuberto de baldios, para promover cuja cultura é
impossivel se não olhe seriamente quando posermos treguas á furia das
nossas paixões politicas, qual não deve ser o fructo das caixas
economicas?! Hoje, se estes baldios se offerecessem gratuitamente,
libertando de todos os impostos directos quem os cultivasse,
achar-se-hiam, provavelmente, muitos que se aproveitassem do beneficio.
Mas, quem seria? Os grandes proprietarios e lavradores e alguns dos
raros argentarios que as doçuras do agio não trazem captivos. Os
pequenos cultivadores, os rendeiros, os seareiros, aquelles, em summa,
que, mais que ninguem, importaria se convertessem em proprietarios do
solo, esses justamente é que ficariam no maximo numero excluidos,
porque, por mais diminuto que supponhamos o cabedal necessario para o
arroteamento de poucas geiras quando é o próprio dono que o faz, sempre
deve ser algum, e as classes trabalhadoras não possuem capitaes nem
grandes nem pequenos. É evidente, porém, que as caixas economicas,
estabelecidas, propagadas, favorecidas por todos aquelles que podem e
devem fazê-lo, preparariam os elementos necessarios para, com verdadeira
utilidade social, se poder tomar tão importante providencia.

Hoje entende-se que o melhor instrumento de moralisação e de ventura
social consiste em derramar entre o povo o desejo da independencia e o
amor da propriedade, associando por esse modo o capital ao trabalho em
vez de os conservar em mutua hostilidade, como infelizmente os vemos. Se
os modestos peculios se forem successivamente alistando no campo do
trabalho, este ha de frequentes vezes triumphar dos capitaes, embora de
maior vulto, mas combatendo isolados. Supponhamos que o rico concorre
com o homem do povo para adquirir a courella, o prazo, a pequena vinha,
o pequeno olival que se levou ao mercado. O primeiro calcula que somma
lhe será necessaria para instrumentos, para sementes, para pagar aos
obreiros que hão de amanhar o predio, e é por este calculo e pelo lucro
comparado com o de outras applicações do seu dinheiro, que se regula
para determinar o maximo que pode offerecer. O homem de trabalho, porém,
que tiver o sufficiente para viver até as primeiras colheitas, e
occorrer a poucas despesas prévias que não pode evitar, não compara
lucros com lucros, não conta com os obreiros. Dono e obreiro é elle;
são-no a mulher e os filhos. O lavor da familia valerá o dobro do
trabalho salariado que paga o rico, e o primeiro lucro do trabalhador
proprietario será o seu jornal e o dos seus, ganho no proprio campo. Põe
o signal de _mais_, por assim nos exprimirmos, onde o abastado põe o
signal de _menos_. Do operario rural quando trabalha no seu predio
costumam dizer os outros: «_anda comsigo_», expressão admiravel de
exacção economica. É isto que explica o phenomeno geralmente observado,
de, no mercado, o valor proporcional da propriedade rustica ser na razão
inversa da respectiva grandeza. O que não sería, se o homem do campo de
humilde condição poupasse tudo quanto desbarata!

Sinceramente confessamos que o unico meio simples, exequivel, pacifico,
não de cohibir os abusos do capital pela negação das suas funcções
economicas, e pela condemnação da propriedade; mas de o cohibir nos
excessos com que muitas vezes opprime o operario, consiste em habilitar
este para se transformar de proletario em modesto proprietario. O
estabelecimento e o progresso das caixas economicas é o instrumento mais
poderoso de quantos se poderiam excogitar para obter, sem offensa de
nenhuns direitos e sem convulsões sociaes, tão salutar resultado.

Que, pois, todos aquelles que se condoem das miserias populares: que
desejam ver augmentada a prosperidade publica, reformarem-se os
costumes, enraizar-se no animo do povo o aferro ao solo natal, protejam
por quantos modos souberem esta bella instituição. Exigem-no o
christianismo, a philosophia, a moral e a politica. Que as tres grandes
forças intellectuaes da sociedade, o sacerdocio do altar, o sacerdocio
da imprensa e o sacerdocio da eschola se liguem para esta grande obra de
civilisação. Será trahirem a sua missão negarem-se a fazê-lo; porque a
idéa a cuja realisacão tendem as caixas economicas é, embora ao primeiro
aspecto o não pareça, um consectario do evangelho, da philosophia e da
boa politica. Essa idéa é a manifestação da caridade judiciosa, porque
se encaminha a combater os vicios e a miseria, e a alargar a esphera da
liberdade humana, contribuindo para a assegurar ás classes laboriosas,
tantas vezes escravas da necessidade do salario. A liberdade pode
facilmente ser theoria, pode ser doutrina proclamada na constituição de
qualquer paiz; facto, realidade, só o pode ser onde a maioria dos
cidadãos possuam com que serem independentes.

Que a experiencia das nações extranhas nos aproveite; que o pudor do
patriotismo nos incite. Já que fomos a ultima nação da raça latina em
plantar entre nós esta instituição bemfazeja, não nos deshonremos
deixando-a logo definhar. Passariamos aos olhos do mundo attonito por
barbaros, e todos os nossos protestos de querermos o melhoramento moral
e material do paiz seriam havidos por hypocrisia insigne. Sem civilisar,
morigerar e felicitar as classes populares, todo o progresso é futil.

Dirigimos estas ponderações especialmente á classe media e ao clero.
Naquella reside a illustração, a riqueza e verdadeiramente o poder; nas
mãos deste a preponderancia que dá o predominio sobre as consciencias.
Que tanto uma como outro usem da sua influencia para attrahir o povo ao
caminho da previsão, da economia e das legitimas ambições e esperanças.
Não só elle, hoje rude, pobre e inclinado a vicios ignobeis, lucrará com
isso; mas tambem as classes mais elevadas ganharão na paz e ordem
publicas, que se irão firmando á proporção que as classes inferiores se
melhorarem nos costumes e na ventura domestica. Empreguemos o exemplo e
a persuasão: uns poucos de cruzados postos nas caixas economicas não
produzirão, de certo, vantagens apreciaveis para o que possue uma
fortuna avultada ou ainda mediana; mas fructificarão para o povo,
gerando a confiança e despertando nelle o instincto da imitação.
Conspiremos todos para esta grande catechese; e que n'um paiz, onde o
habito da leitura ainda é limitadissimo, a persuasão oral, as relações
de familia ou de dependencia ajudem as diligencias da imprensa nesta
obra de alta moralidade. Deus abençoará os obreiros que semeiarem e
cultivarem essa rica sementeira de regeneração na terra patria; e o
povo, com a sua futura gratidão, dará testemunho da bençam da
Providencia.

[Nota de rodapé 2: O sr. Antonio de Oliveira Marreca.]

[Nota de rodapé 3: A associação do Monte-pio geral.]




                           AS FREIRAS DE LORVÃO

                                  *1853*

                                    A

                        ANTONIO DE SERPA PIMENTEL




Meu amigo.--Escrevo-lhe do fundo do estreito valle de Lorvão, defronte
do mosteiro onde repousam as filhas de Sancho I; deste mosteiro
melancholico e mal-assombrado como as montanhas abruptas que o rodeiam
por todos os lados: escrevo-lhe com o coração apertado de dó e repassado
de indignação. Descendo a examinar o archivo das pobres cistercienses,
penetrei no claustro por ordem da auctoridade ecclesiastica. Lá dentro,
nesses corredores humidos e sombrios, vi passar ao pé de mim muitos
vultos, cujas faces eram pallidas, cujos cabellos eram brancos. Esses
cabellos nem todos os destingiu o decurso dos annos: a amargura
embranqueceu os mais delles. Quasi todas essas faces tem-nas
empallidecido a fome. Morrem aqui lentamente umas poucas de mulheres,
fechadas n'uma tumba de pedra e ferro. Estas mulheres ouvem de lá, do
seu tumulo, o ruido do burgo apinhado na encosta fronteira, e dividido
do mosteiro apenas por um riacho. Naquellas casas de telha-van, negras,
gretadas, desaprumadas, com o aspecto miseravel da maior parte das
aldeias da Beira, vive uma população laboriosa, que até certo ponto se
pode chamar abastada, e a que, pelo menos, não falta o pão nem a
alegria. No mosteiro sumptuoso, vasto, alvejante, com um aspecto
exterior quasi indicando opulencia, é que não ha pão, mas só lagrymas.
Lorvão é peior do que um carneiro onde se houvessem mettido vinte
esquifes de catalepticos, sellando-se para sempre a lagea da entrada. O
cataleptico, fechado no seu caixão, ouve, sente, tem a consciencia de
que foi sepultado vivo. Nas trevas e na immobilidade, o terror, a
desesperação, a falta de ar matam-no em breve: a sua agonia é tremenda,
mas não é longa. Aqui é outra cousa: aqui vê-se, por entre as grades de
ferro, a luz do céu, a arvore que dá os fructos, a seara que dá o pão, e
tudo isto vê-se para se ter mais fome. Todos os dias uma esperança
duvidosa e fugitiva atravessa aquellas grades de envolta com os
primeiros raios do sol: todos os dias essa esperança fica sumida debaixo
das trevas que á tarde se precipitam sobre Lorvão das ladeiras do
poente. Depois as noites de insomnia; depois o choro; depois, sabe Deus
se a blasphemia!

Dez vezes que tenhamos lido o Dante, ao chegarmos á descripção da torre
de Ugolino erriçam-se-nos sempre os cabellos. Mas Lorvão é uma torre de
Ugolino. A differença está em que no carcere da _Divina Comedia_ havia
um homem forte de alma e de corpo, affeito á dor e ás scenas de dôr:
aqui ha dezoito ou vinte mulheres na idade decadente, que se affizeram
na juventude aos commodos, aos regalos, e até ao luxo compativel com as
condições da vida monastica. Lá o _fiero pasto_ acabava, e depois
morria-se rapido. Aqui não: aqui ha justamente quanto basta para
prolongar por mezes e por annos o martyrio. Dir-se-hia que existe uma
providencia infernal para que não falte ás freiras de Lorvão o
restrictamente indispensavel para, lento e lento, se lhes irem os
membros mirrando n'um longo expirar, debeis e senis.

Imagine, meu amigo, uma noite de inverno, no fundo desta especie de poço
perdido no meio da turba de montes que o rodeiam: imagine dezoito ou
vinte mulheres idosas, mettidas entre quatro paredes humidas e
regeladas, sem agasalho, sem lume para se aquecerem, sem pão para se
alimentarem, sem energia na alma, e sem forças no corpo, comparando o
passado, sentindo o presente e antevendo o futuro. Imagine o vento que
ruge, a chuva ou a neve fustigando as poucas vidraças que ainda restam
no edificio; imagine essas orgias tempestuosas da natureza que passam
por cima das lagrymas silenciosas das pobres cistercienses, e as horas
eternas que batem na torre. Imagine tudo isto, e sentirá accender-se-lhe
no animo uma indignação reconcentrada e inflexivel.

Ha poucos dias passou-se em Lorvão uma scena tremenda. N'um accesso de
desesperação, parte destas desgraçadas queriam tumultuariamente romper a
clausura; queriam ir pedir pão pelas cercanias. Custou muito contê-las.
Tinha-se apoderado dellas uma grande ambição; aspiravam á felicidade do
mendigo, que póde appellar para a compaixão humana; que póde fazer-se
escutar de porta em porta. Era uma vantagem enorme que obtinham. A sua
voz é demasiado fraca, e os muros de Lorvão demasiado espessos. Gemidos,
brados, prantos, tudo é devorado por esse tumulo de vivos. Ao menos,
surgiam como Lazaro da sua sepultura.

Gemidos, brados, prantos, nada disso chega aos ouvidos dos homens que
exercem o poder nesta terra; nada disso os incommoda. Entretanto, se eu
falasse com elles, dar-lhes-hia um conselho. Talvez o ouvissem, porque a
minha voz é um pouco mais forte que a das velhas freiras. Era o de
enviarem aqui sessenta soldados, formarem as monjas de Lorvão em linha
no adro da igreja e mandarem-lhes dar três descargas cerradas.
Desapparecia, a troco de poucos arrateis de polvora, um grande
escandalo, e resolvia-se affirmativamente um problema a que nunca achei
senão soluções negativas, o da utilidade da força armada neste paiz.

Sim, isto era util, porque era atroz; porque era uma festa de cannibaes;
porque se gravava na mente dos homens; porque ficava na historia, como
um padrão maldicto, para instaurar no futuro o processo desta geração.
Mas não era infame, não era covarde; não era o assassinio lento,
obscuro, atraiçoado, feito com a mordaça na boca das victimas. Corria o
sangue durante alguns minutos: não corria o suor da agonia durante
annos. Era uma scena de delirio revolucionario; mas não era um capitulo
inedito para ajunctar aos annaes tenebrosos do sancto officio.

A historia recente de Lorvão é simples. Os bens acumulados naquelle
cenobio durante dez seculos tinham-no tornado demasiadamente rico. A sua
renda annual dizem que orçava por mais de oitenta mil cruzados. Como
mosteiro cisterciense, Lorvão dependia dos monges brancos. Cem freiras
de que se compunha a communidade, e que viviam opulentamente, gastavam
muito, mas não gastavam tudo. Cinco frades bernardos, aposentados n'um
palacete contiguo ao mosteiro, consumiam o resto. Eram elles que
administravam as grossas rendas da casa. Os banquetes e as festas
succediam-se alli sem interrupção. Os hospedes eram continuos. O manto
da religião cobria todos os excessos da opulencia. A chronica dos
bernardos em Lorvão subministra mais de um capitulo curioso para a
historia dos _bons tempos_ que já lá vão.

Até aqui nada ha extranho. Mas os frades entenderam que deviam comer a
renda e o capital das cenobitas laurbanenses. Refere-se que certa vez,
não sabendo explicar plausivelmente o dispendio de uma verba de 600$000
réis, escreveram n'umas contas irrisorias que mostravam annualmente á
abbadessa: _Palitos--600$000 réis_. Pode ser fabula. O que, porém, não é
fabula é que durante muitos annos o dinheiro das decimas que o mosteiro
devia pagar esqueceu em Alcobaça, dando-se em conta como pago. Por outro
lado as _necessidades da casa_ tinham feito com que suas reverencias
empenhassem a communidade em 6:000$000 ou 8:000$000 réis. Os juros desta
divida também se não pagaram. Veio o anno de 1833. Desappareceram os
dizimos, principal rendimento do mosteiro. Os direitos senhoriaes
desappareceram tambem. Os frades, enxotados do seu feudo de Lorvão,
sairam d'alli, mandando primeiramente derribar todas as arvores que
povoavam aquellas encostas e vendendo as madeiras. Era o ultimo _vale_
que davam a suas irmãs. Ainda assim, ficava ás monjas uma honesta
subsistencia. Passado, porém, apenas um anno, o fisco arrebatou-lhes
quasi tudo pela divida de 25 contos de réis de decimas, e os credores
particulares levaram-lhes depois os demais bens. Restavam-lhes apenas
alguns pequenos foros espalhados por diversos districtos, os quaes
geralmente lhes são recusados, ou cuja difficil cobrança quasi consome o
producto delles. Vacillantes entre a vida e a morte, as freiras de
Lorvão prolongam uma existencia de dôr e miseria pendente das
eventualidades desse tenue rendimento. Ha um ou dous annos, o governo
deu-lhes a esmola de um subsidio: este subsidio, porém, cessou.
Ignora-se o motivo. Por ventura alguma secretaria de estado precisava de
novos estofos nas suas commodas poltronas, ou os felpudos tapetes das
salas ministeriaes tinham perdido o brilho das suas côres variegadas, e
cumpria renová-los. São despezas inevitaveis, e é necessaria a economia.
Se assim foi, respeitemos as exigencias imperiosas da dignidade
governativa. Alta noite, durante o inverno, vinte mulheres curvadas pela
inedia e pela velhice podem dirigir-se ao coro, calcando quasi descalças
as lageas humidas e frias destes claustros solitarios; mas as botas
envernizadas de suas excellencias devem ranger mollemente sobre um
pavimento suave, e as suas cabeças, afogueiadas pelas profundas
cogitações, reclinarem-se em fofos espaldares. Todavia a magestade das
secretarias e os apices da economia não excluem a tolerancia, nem a
indulgencia. Faço essa justiça ao poder. Quando a ultima freira de
Lorvão expirar de miseria, ou debaixo de alguma dessas paredes
interiores do mosteiro que ameaçam desabar, os ministros soffrerão com
animo paternal que mãos piedosas vão lançar o cadaver da pobre monja no
ossuario de sete seculos, onde repousam as cinzas de milhares de suas
irmãs. Depois venderão o edificio e a cerca a algum destes judeus do
seculo XIX, a que chamamos agiotas, se algum houver a quem passe pelo
espirito ter uma casa de campo em Lorvão.

Meu amigo: se a indignação consentisse o riso, se não se tractasse de
uma questão grave e triste, eu riria do afan da imprensa em ventilar os
meios de acudir á desgraçada ilha da Madeira. O remedio ha de ser o
abandono. Quando vejo a facilidade com que a sorte das freiras de
Portugal se tornaria feliz, e considero o estado de Lorvão, de Cellas, e
de tantos outros mosteiros, como hei de esperar que remedeiem um mal
cuja cura é mil vezes mais difficil?

Na secretaria da justiça encontram-se as provas de que a renda dos bens
que ainda possuem os conventos do sexo feminino em Portugal excede a
200:000$000 réis, e todavia ha centenares de freiras que morrem á
mingua. São dous factos que não carecem de commentario. É a manifestação
mais eloquente de que não ha governo nesta terra. Existem mosteiros,
cujas habitadoras vivem na opulencia, e onde o superfluo se desbarata de
um modo escandaloso. Não digo quaes. E para que apontá-los? Aposto meia
moeda, uma moeda até, contra mil acções da companhia Hislop, que se
lembravam logo de reduzir esses mosteiros á mendicidade para fazerem com
o rendimento delles sessenta coroneis e duas secretarias de estado
novas. Antes assim como está. Defendiam-nos mais, e administravam-nos
mais. Deus nos livre disso!

É certo, porém, que para as freiras de Lorvão viverem tranquilamente os
seus ultimos dias, bastava que nos homens do poder tivesse existido um
leve instincto de equidade. Os frades de Alcobaça roubaram 25:000$000
réis a Lorvão. Eram responsaveis por elles. A sua responsabilidade
passou para o fisco seu herdeiro e successor. As decimas de Lorvão
deviam ir buscar-se aos bens de Alcobaça, logo que se provasse que
Alcobaça espoliara fraudulentamente Lorvão. Averiguou-se o facto? Não. O
fisco executou as freiras, e recebeu duas vezes a mesma divida. Onde
houvesse moralidade na administração publica practicava-se isto?

Mas porque o importuno com esta larga historia? Não é, meu amigo, só
para desabafo: é para lhe pedir um favor. Supponha que viu, como eu vi,
as faces enrugadas e pallidas das monjas de Lorvão, por onde as lagrymas
se penduravam quatro a quatro, emquanto vozes convulsas descreviam
scenas do longo drama de miseria de que este sepulchro de vivos tem sido
theatro durante vinte annos: supponha que olhava para estas janellas mal
reparadas, para estas paredes verdoengas, cujo aspecto produz um
sentimento inexplicavel de frio, apesar do calor da atmosphera n'um dia
de julho; para as alfaias roçadas e poídas; para os proprios trajos das
freiras; que lia em tudo isso, repetida por cem modos, uma palavra só:
_infortunio, infortunio, infortunio_! Que fazia? Com o seu coração, com
os seus principios, e redactor de um jornal que tem largas sympathias,
sentia-se grande e forte pondo a sua penna eloquente ao serviço da
desgraça e da fraqueza. Faça-o, meu amigo; faça-o! Peça esmola para as
freiras de Lorvão, que foram ricas e felizes na mocidade, e que na
velhice tem fome. A velhice é sancta! Ponha esse contraste do passado e
do presente perante os olhos dos opulentos e ditosos, para que se
lembrem com alguns cruzados das pobres que gemem debaixo destas abobadas
escondidas no meio dos montes ladeirentos e agrestes do concelho de
Penacova. Ao governo não peça nem diga nada; deixe esses homens ao seu
destino; deixe-os estofar poltronas e dormir nellas. Deus e os vindouros
hão de julgar-nos a todos.

Se entender que esta carta de uma testemunha ocular póde servir de thema
ás suas considerações, publique-a. O homem que vê o que eu vi e abafa no
peito o grito da indignação ou é um malvado ou um covarde, e eu espero
não merecer jámais nenhum desses titulos. Imprima esta carta no todo ou
em parte, se quizer; porque folgarei com isso. O que importa é ver se
obtemos despertar a compaixão publica a favor destas infelizes.

Auctorisando-o, porém, a publicar as idéas que me assaltaram ao
presenciar o espectaculo atroz e repugnante que está diante de mim,
advirta que não ha nisso nem virtude, nem audacia. Incommodam-me
mediocremente as coleras de certa gente, e a malevolencia ou antes o
odio della é titulo que aprecio, porque creio que ha de honrar perante a
posteridade quem quer que o possuir, se é que este paiz não caminha
fatal e irremediavelmente á dissolução social.




                                DO ESTADO

                                   DOS

                    ARCHIVOS ECCLESIASTICOS DO REINO

                                  E DO

                           DIREITO DO GOVERNO

                                   EM

             RELAÇÃO AOS DOCUMENTOS AINDA NELLES EXISTENTES


                          PROJECTO DE CONSULTA

                              SUBMETTIDO Á

             SEGUNDA CLASSE DA ACADEMIA REAL DAS SCIENCIAS

                                 *1857*




Senhor.--Manda V. M. que a Classe de sciencias moraes, politicas e
bellas-letras da Academia Real das Sciencias de Lisboa consulte sobre as
representações dirigidas a V. M. por diversas corporações
ecclesiasticas, que recusara obedecer á portaria de 11 de setembro de
1857 pela qual se ordenou a entrega de certos documentos antigos
pertencentes aos cartorios dessas e d'outras corporações, para serem
depositados no Archivo nacional da Torre de Tombo, onde tem de ser
examinados, a fim de se transcreverem aquelles que se reputarem dignos
de entrar na collecção dos Monumentos Historicos de Portugal, que esta
Classe está publicando, e que se tornou pela ultima lei do orçamento uma
obra verdadeiramente nacional, visto que a sua existencia se estriba
hoje n'uma providencia legislativa.

Examinando a portaria de 11 de setembro e as representações que ella
suscitou, a Classe não póde deixar de deplorar que um acto do poder
executivo em que só transluz o amor das letras e o patriotismo
illustrado e circumspecto do Governo de S. M. encontrasse resistencias,
ás quaes se buscaram pretextos, que nem sequer tem o merito de
plausiveis, e que ao mesmo tempo envolvem affirmativas erroneas de
doutrina e de facto, que esta Classe, pertencendo a um dos primeiros
corpos scientificos do paiz, não deve deixar sem correctivo, até porque
foi ella, não só quem sollicitou a transferencia d'aquelles documentos,
mas também quem aconselhou a sua conservação no Archivo geral do reino,
circumstancia esta que, diante de inexplicaveis resistencias, a forçam,
bem contra sua vontade, a dar as razões que a moveram a suggerir esse
ultimo arbitrio ao Governo de V. M.

Dos papeis transmittidos á Classe por soberana resolução de V. M.,
comparados com as communicações dos commissarios encarregados da
recepção dos antigos pergaminhos indicados pela Classe, resulta que
nenhum prelado diocesano recusou entregar os documentos que foram
pedidos dos archivos das respectivas mitras, ou de outros immediatamente
dependentes dos mesmos prelados. Provaram assim que comprehendiam, como
o Governo e o Parlamento o haviam comprehendido, a magnitude e o valor
do trabalho que a Academia emprehendera, provando igualmente que o
episcopado português não degenerou, e que o baculo pastoral dos Caetanos
Brandões, dos Cenaculos, dos Avellares, dos Lemos, dos S. Luiz não cahiu
em mãos indignas delle. A Classe compraz-se em poder dar um testemunho
de agradecimento em nome das letras a quem tão nobremente sabe conciliar
a dignidade do caracter episcopal com o reconhecimento do direito do
Governo, e com o sentimento da gloria litteraria que resulta para o paiz
da publicação dos seus monumentos historicos, empreza que já é
devidamente apreciada, não só entre nós, mas tambem pelos homens
competentes de outras nações da Europa.

Do mesmo modo resulta dos documentos officiaes remettidos pelo Governo á
Academia e das communicações dos agentes desta, que umas corporações se
mostraram promptas a obedecer ao Governo, que outras desobedeceram,
limitando-se a declarar oficialmente aos agentes da Academia o motivo do
seu proceder, e que outras desobedeceram e representaram a V. M. Vê-se
d'aqui que entre ellas ha desacordo sobre a extensão dos respectivos
direitos, e que algumas entendem, e bem, como os prelados maiores, que o
Governo não ultrapassou os limites das suas attribuições.

Para poder apreciar devidamente os fundamentos da resolução tomada por
algumas das corporações de mão-morta, de que resultaria tornar-se
impossivel a continuação de um trabalho que hoje a lei fórça o Governo e
a Academia a realisar, cumpre expor o estado da questão e reunir as
objecções ao cumprimento da portaria de 11 de setembro, oferecidas nas
diversas representações recebidas pelo Governo e communicadas á
Academia, e nas respostas que foram dirigidas officialmente ao agente
desta nas provincias do norte. Não podendo qualificar-se o acto das
corporações que recusaram fazer a entrega sem recorrer a V. M., senão de
pura e simples desobediencia, a Classe abstem-se de indicar qual deva
ser em tal caso o procedimento do executivo, encarregado de cumprir as
resoluções do poder legislativo. O Governo de V. M. sabe perfeitamente
qual é neste caso, não só o seu direito, mas tambem o seu dever. Todavia
a Classe não póde deixar de se fazer cargo dos motivos de recusa que
directamente lhe foram dados, e conjunctamente d'aquelles sobre que é
mandada consultar.

A Academia pela Classe de sciencias moraes, politicas e bellas letras
sollicitou a vinda a Lisboa dos documentos anteriores ao anno de 1280
que existiam, não só nos cartorios dos extinctos mosteiros, mas também
nos das corporações de mão-morta não abolidas, pedindo ao mesmo tempo,
para maior segurança desses documentos, e para evitar uma
responsabilidade que lhe era inutil tomar, que fossem depositados no
Archivo geral do reino, aonde os academicos encarregados da publicação
dos Monumentos Historicos podiam, sem incommodo grave, ir fazer a
escolha e os mais trabalhos necessarios ácerca dos que se achasse que
deviam entrar naquella collecção. A Classe possuia já a este tempo um
inventario succinto de todos os documentos anteriores a essa data, que
ainda existem nos archivos dos districtos centraes e septemtrionaes do
reino, e que montam a alguns milhares. Este inventario fora feito por
um commissario da Academia com auctorisação do Governo, nos annos de
1853 e 1854.

A correspondencia deste commissario, no desempenho das funcções que lhe
tinham sido commettidas, e em conformidade das instrucções que lhe
haviam sido dadas, fez conhecer á Classe qual era o deploravel estado da
maior parte dos cartorios, não só das corporações extinctas, mas tambem
das existentes. A perda de antigos documentos, quanto ao passado, era já
immensa, e podia prever-se qual seria quanto ao futuro, conservando-se
as cousas no estado em que se acham. Convencida de que fazia um bom
serviço ao paiz aconselhando o Governo a que conservasse no Archivo
geral do reino os documentos chamados a Lisboa, depois de examinados e
utilisados litterariamente, a Academia não hesitou em fazê-lo;
absteve-se porém de fundamentar com os factos de que adquirira
conhecimento um conselho, na verdade não pedido, mas que o seu caracter
de corpo litterario official lhe impunha o dever de dar em materia de
sua competencia. Procurava assim evitar ás corporações existentes o
desgosto que a narrativa de certos factos, que podiam vir a ser
publicos, devia causar-lhes, e ao mesmo tempo precaver a continuação de
perdas irreparaveis. Entretanto, como o fim que então se propunha, e que
hoje se propõe, era o estudo e escolha desses documentos para continuar
o trabalho que encetara, deixou ao prudente arbitrio do Governo ponderar
se conviria mais restituir os documentos enviados á Torre do Tombo, se
conservá-los alli, propondo a V. M. a resolução mais conveniente.

A portaria de 11 de setembro de 1857 não é outra cousa senão a
reproducção deste pensamento da Academia, abraçado pelo Governo de V. M.
Expondo summariamente as razões que ha para se conservarem de futuro na
Torre do Tombo os documentos pedidos, o ministro dos negocios
ecclesiasticos e de justiça limitou-se comtudo a ordenar em nome de V.
M. a entrega delles, reservando para tempo opportuno resolver se devem
ser alli conservados ou restituidos aos cartorios das corporações.
Vê-se, pois, que nessa parte as representações eram licitas, e é até
possivel que as ponderações a favor da restituição fossem de ordem tal
que movessem o animo de V. M. a ordená-la. Isto, porém, não dispensava
as corporações de obedecerem quanto á entrega e ao deposito temporario
no Archivo nacional, que era por então o que preceptivamente se
estatuia. Quanto a este ponto, nenhuma opposição plausivel se poderia
fazer, e as recusas dirigidas officialmente ao commissario da Academia
constituem nessa parte, como já se notou, uma desobediencia formal.

E esta desobediencia é tanto mais grave quanto é certo que se o Governo
de V. M. não procurasse reprimi-la, della resultaria, não só a
impossibilidade de se cumprirem as resoluções do Parlamento, mas tambem
grande descredito para qualquer ministro que tolerasse semelhantes
obstaculos á continuação de uma empreza que, por nos servirmos da phrase
de um de dos maiores sabios da França, constituirá um dos títulos mais
gloriosos do reinado de V. M.

A Classe lamenta que taes resistencias venham de corporações parte das
quaes são compostas de individuos em quem se deve suppor maior ou menor
educação litteraria, e que, em relação á sociedade civil, são
verdadeiros funccionarios publicos. Não era por certo de esperar que,
tanto nas representações dirigidas a V. M., como nas respostas dadas ao
agente da Academia, se encontrasse tão singular esquecimento do direito
publico antigo e moderno do paiz, transtorno tão completo das boas
doutrinas, tão inexacta exposição de factos, e até accusações tão
offensivas contra a Academia, que V. M. relevará por certo que esta
Classe, repellindo-as, seja talvez sobradamente severa.

As ponderações feitas e os factos allegados, tanto nas representações
dirigidas a V. M., como nas respostas officialmente dadas ao commissario
da Academia, resumem-se no seguinte:

Diz uma das corporações que não pode convir na alheação dos antigos
documentos do seu cartorio, porque na maxima parte são comprovativos de
contractos onerosos, e quando o não sejam, illustram esses contractos, e
que a portaria de 11 de setembro alheia a favor do Archivo da Torre do
Tombo documentos que são propriedade da mesma corporação.

Diz outra: que a portaria encerra uma determinação inteiramente nova e
contraria á practica até hoje seguida.

Declara ao mesmo tempo, n'um officio ao commissario da Academia, que
para o exame de qualquer documento no seu archivo é indispensavel
licença regia e uma ordem do prelado ordinario; mas que para se tirarem
documentos seriam necessarias ou uma lei que dispensasse as formalidades
do esbulho da propriedade, ou sentença do poder judicial.

Outras duas corporações limitam-se a dizer em officios ao dito
commissario que a portaria de 11 de setembro offende o direito de
propriedade, e que recusam a entrega por terem representado sobre esse
assumpto ao Governo de V. M., representações que esta Classe não póde
apreciar porque não lhe foram communicadas.

Duas corporações monasticas do sexo feminino declaram, emfim, não
poderem entregar os dictos documentos por causa dos inventarios dos seus
bens a que se está procedendo por ordem do Governo, em virtude de
resolução de Cortes.

As outras corporações mostram-se todas promptas a obedecer ás ordens de
V. M.

Senhor, os membros da Classe de sciencias moraes, politicas e bellas
letras não podem deixar de dizer a V. M. com o respeito devido ao chefe
do estado, mas com a liberdade de homens de letras, que é impossivel
acumular mais desvarios do que os que se lêem nos documentos acima
substanciados. Elles provam peremptoriamente a necessidade de uma
profunda reforma no systema da educação do clero, e de vigilancia da
parte do Governo sobre o modo como são providos os beneficios
ecclesiasticos.

Predomina, em geral, nos documentos que temos presentes uma certa somma
de idéas, não sabemos se astutas, mas sem duvida falsas. É uma dellas a
confusão dos bens administrados pelas corporações com os titulos
primitivos dos mesmos bens, confundindo-se igualmente esses titulos
primitivos com os actuaes; os que podem ter uma utilidade practica na
administração ou no foro com os que só em casos rarissimos servirão para
fortificar ou esclarecer o testemunbo d'est'outros. Posses immemoriaes,
tombos incomparavelmente mais modernos do que os pergaminhos anteriores
ao seculo XIV, contractos de epochas posteriores, mais ou menos
recentes, eis os verdadeiros documentos de uso practico, que se
conservam nos cartorios das corporações. E se esses pergaminhos antigos
tem a utilidade material que se lhes attribue, as corporações devem
possuir índices regulares que apontem em substancia o objecto, a indole
d'elles e os logares onde se acham nos respectivos cartorios: depois,
devem abundar os exemplos de casos nos quaes ellas os hajam utilisado
nos ultimos vinte ou trinta annos. Exija o Governo de V. M. aquelles
índices; peça a enumeração especificada destes casos, que por certo não
ficará edificado da verdade das allegações nesta parte.

Ainda admittindo todas as inexacções de direito e de facto apinhadas nas
representações e officios sobre este assumpto, ha uma circumstancia que
torna a denegação absoluta e completa das corporações ao cumprimento da
portaria de 11 de setembro, não só um acto de vandalismo litterario e de
desprezo pela gloria da nação, mas tambem uma verdadeira espoliação
feita ao paiz. Na epocha a que pertencem os documentos exigidos, não
existia archivo especial do rei ou do estado, o qual só começou no tempo
de D. Fernando I. Os diplomas de alta importancia, cuja existencia se
desejava conservar para a posteridade, manda-vam-se depositar nos
cartorios dos cabidos e dos principaes mosteiros, chegando-se aponto de
se ordenar esse deposito no proprio corpo do diploma. É um facto este
que as corporações desobedientes tinham obrigação de não ignorar.
Depois, os prelados, os cabidos, as ordens ecclesiasticas e militares
exerciam, como donatarios da coroa, actos que importavam manifestações
de soberania, e contractos em que rigorosamente esses corpos não
figuravam senão como representantes do poder publico: taes eram os
foraes instituindo municipios e comprehendendo provisões de direito
publico local; taes eram os contractos por que se transformavam os
terrenos reguengos em jugadeiros, as quotas de fructos em rendas certas,
etc. Os documentos desta ordem não respeitam ás corporações; respeitam
ao paiz, como aquelles que os antigos monarchas confiaram á guarda do
clero. Suppondo que ellas tivessem direito a negar a entrega dos que
exclusivamente lhes dizem respeito, poder-se-hia tolerar que tambem
sequestrassem impunemente os documentos da nação por um capricho
inexplicavel, ou antes explicavel de mais?

Ha, pouco, Senhor, que examinando-se por ordem desta Classe os restos
que escaparam do rico archivo do mosteiro de Aguiar, conservados no
Thesouro-publico, ahi se foram encontrar no original muitos documentos
politicos e economicos da mais alta importancia relativos aos seculos
XIII e XIV. Se ainda existissem corporações religiosas do sexo
masculino, como existem do feminino, é natural que, como algumas destas,
os monges de Aguiar recusassem obedecer á portaria de 11 de setembro.
Toleraria, porém, o Governo que esses documentos importantes para a
historia, e talvez para questões actuaes ou futuras com a Hespanha
ácerca de limites, ficassem sepultados e inuteis nas tristes solidões do
Cima-Coa? E tolerá-lo-hia só porque alguns frades suspicazes e
ignorantes receiassem que o conhecimento dos velhos pergaminhos do seu
cartorio podesse servir para lhes contrariar interesses materiaes de
cuja legitimidade a consciencia os fizesse duvidar?

As difficuldades, Senhor, que se oppoem agora á realisação do empenho da
Academia e ao cumprimento da lei já em parte surgiram quando se ordenou
que os cartorios das corporações fossem franqueiados ao simples exame de
um commissario da mesma Academia. Houve recusas formaes; houve
subterfugios dilatorios. Indagou-se o motivo disto, e soube-se que se
receiava fosse utilisado o exame a que se procedia em beneficio dos
colonos ou proprietarios com quem as corporações tem litigios sobre
direitos dominicaes; porque a algumas d'ellas, ou a todas, custava a
comprehender que se gastasse tempo em decifrar esses pulverulentos e
afumados diplomas sem algum interesse material. Note-se agora a infeliz
coincidencia entre a resolução administrativa que chama a Lisboa os
documentos de antigos tempos, e a que ordena um inventario dos bens de
certas corporações de mão-morta, e achar-se-ha facilmente, em suspeitas
não menos insensatas que as primeiras, a explicação mais plausivel das
resistencias que apparecem por esta parte.

Os cartorios dos corpos de mão-morta tem sido sempre considerados como
cousa publica. Uma das corporações reconhece-o formalmente no officio
que dirige ao commissario da Academia, affirmando a necessidade de
licença regia, e determinação do prelado, para qualquer extranho
examinar os documentos do seu archivo. De certo um particular não
precisaria de licença regia para facultar a qualquer o uso do seu
cartorio ou para deixar sair delle quaesquer titulos. Tanto se
consideravam esses archivos como dependentes do Estado, que os seus
documentos mereceram sempre uma especie de fé publica. Em muitos delles,
até, existiam e existem chartularios, geral e impropriamente denominados
Tombos, e feitos em diversas epochas, desde o reinado delrei D. João II
até o delrei D. João V, em que se contém traslados dos documentos
antigos, precedendo provisões regias, pelas quaes se dá a estas copias o
mesmo valor dos originaes, para dellas se passarem certidões. Esses
actos do poder supremo não provam só a consciencia que o Governo tinha
da incapacidade ordinaria dos membros das corporações, e dos tabelliães
desses logares para lerem os antigos diplomas: provam tambem o caracter
publico de taes archivos; porque não nos consta que provisões de
semelhante natureza se passassem nunca a favor de cartorios
particulares. Embora o poder civil désse a sua sancção ás disposições
canonicas relativas á conservação dos documentos dos corpos de
mão-morta; embora prohibisse, como mais de uma vez prohibiu, a saída
delles do respectivo archivo, essa prohibição está justamente
demonstrando que elle poderia ordenar o contrario, se entendesse que
convinha mais guardá-los n'outra parte. Foi por isto que no reinado de
D. João V se proveu a favor da Academia de Historia, para que se lhe
facultasse o conhecimento e copia de todos os documentos das corporações
de mão-morta, que foram obrigadas a transmittir inventarios de todos
elles á mesma Academia. Foi por esse fundamento juridico, que nos
estatutos da universidade (L. 2, tit. 6, cap. 3) se determinou que os
cartorios dos mosteiros e das cathedraes estivessem patentes aos
professores de direito patrio, para lerem, estudarem, extractarem,
copiarem, ou fazerem extractar e copiar todos os documentos que
entendessem serem uteis ao ensino das leis patrias e da sua historia,
disposições que não se estenderam, nem podiam estender, ainda debaixo do
absolutismo ferrenho daquella epocha, aos cartorios particulares. É,
finalmente, á vista de tal jurisprudencia e de taes exemplos, que na
portaria de 11 de setembro o Governo ordena se facilite á Academia o uso
desses diplomas, reservando para si o direito, que indubitavelmente lhe
pertence, de resolver sobre o modo mais conveniente da sua futura
conservação.

Mas, diz uma das corporações desobedientes, que foi no proprio archivo
della que Brito e Brandão tomaram notas dos documentos ahi existentes;
que o guarda-mór Lousada copiou os mais curiosos e mandou as copias para
a Torre do Tombo; que alli se tiraram traslados dos mais importantes
para o Archivo de Historia Portuguesa; que a corporação possue no seu
seio um paleographo capaz de trasladar tudo, embora não seja tão habil
como os da capital; que não convem que os documentos andem de mão em
mão; emfim, que a Academia não restituiu integralmente os documentos
recebidos por ella, uma unica vez que lhe foram confiados.

A Classe desejava, Senhor, nesta consulta não empregar uma unica phrase
que não fosse moderada; mas, vendo accusados, se não os membros actuaes
da Academia, ao menos os que os precederam, de falta de probidade, e
sabendo que essa accusação vai directamente cahir sobre homens tão
eminentes por sciencia e virtudes como D. Francisco de S. Luiz, Trigoso
e outros varões, cujos nomes são veneraveis para o paiz e para as
letras, teme não saber reprimir sempre os impetos de indignação diante
das calumnias vertidas sobre as cinzas de individuos que não se podem
defender, mas que os academicos de hoje, posto valham menos do que
elles, não devem, nem querem deixar sem pleno desaggravo.

A corporação que, desobedecendo ao Governo, mostra desconhecer o antigo
e o moderno direito publico destes reinos, não foi feliz querendo dar
licções á Academia sobre materias de sua competencia, e increpá-la de
menos probidade. Se esta virtude tivesse faltado aos seus antigos
membros ácerca de documentos publicos, não seria o melhor meio de
preservar os actuaes de semelhantes delictos pôr-lhes diante os nomes de
Brito e Lousada, que passaram a vida, não tanto a distrahi-los, como a
forjá-los e a falsificá-los. Curiosas devem ser as memorias por onde
consta á corporação desobediente que o escrivão Lousada (despachado por
ella guarda-mór da Torre do Tombo) mandou para alli copias dos
documentos mais curiosos do seu cartorio, do que aliás nenhuns vestigios
restam no Archivo geral do reino. Dos que se remetteram para o Archivo
de Historia Portuguesa nada tem que dizer a Classe, porque não lhe
consta que tal archivo exista ou existisse nunca no mundo. Póde ser
excellente o paleographo que essa corporação inculca á Academia; mas a
Classe emprehendeu um trabalho demasiado serio, para exigir dos membros
encarregados da publicação dos Monumentos Historicos a conferencia
pessoal das copias destinadas á publicação com os respectivos originaes,
depois de terem apreciado quaes merecem ver a luz publica. Estes
trabalhos preliminares, assás tediosos e longos, não podem os socios
effectivos ir fazê-los a 50 ou 60 legoas da capital, porque tem aqui
outros deveres que cumprir, e por isso não aproveitam o offerecimento.
Se o sincero, honesto e judicioso Brandão teve a simplicidade de se fiar
em copias subministradas pelas corporações e nos paleographos habeis
dellas, pagou bem caro a sua imprudencia, não havendo, talvez, senão um
ou dous documentos, dos publicados por integra na 3.ª e 4.ª Partes da
_Monarchia Lusitana_, que esteja devidamente correcto. Quando,
finalmente, esta Classe pede, não que venham para a sua secretaria os
documentos que pretende examinar e transcrever, mas que se depositem na
Torre do Tombo, para onde os remette directamente a pessoa encarregada
de os receber, e onde não ha perigo de se extraviarem, nem de serem
presa de algum incendio; quando esta Classe prefere á propria
commodidade ir alli preparar e dirigir os trabalhos de que está
incumbida, temendo os riscos que de outro modo poderiam correr esses
restos dos abundantes monumentos historicos que outr'ora possuimos;
quando, depois, aconselha ao Governo que os conserve cuidadosamente
naquelle archivo, o ponderar-se que não convem que os antigos documentos
andem correndo de mão em mão é uma verdadeira inepcia.

Desde o começo desta consulta e no proseguimento della, a Classe
forcejou e forcejará sempre por não designar nomeiadamente nenhuma das
corporações a que se refere. Move-a a isso um sentimento de
generosidade. É todavia forçada a fazer uma excepção quando se tracta da
honra do instituto de que forma parte, e da boa fama dos que precederam
os signatarios deste papel nas cadeiras que hoje occupam. Na sua
representação dirigida ao digno prelado metropolitano, para ser presente
ao Governo, o cabido da sé de Braga accusa a Academia de não ter
integralmente restituido varios documentos que, por ordem do mesmo
Governo, lhe haviam sido confiados. Dos registos da Academia consta, com
effeito, que para uso da commissão de Cortes foram chamados a Lisboa, em
1836, varios monumentos do cartorio daquelle cabido; mas dos actos
officiaes, junctos por copia á presente consulta, se vê, 1.°, que a
Academia pediu um codice e cinco documentos avulsos do mesmo cartorio,
indicando o logar onde estes se achavam, e um volume manuscripto do
archivo da mitra; 2.°, que foram remettidos pelo cabido o codice e tres
dos cinco documentos pedidos, declarando o presidente da corporação que
não fora possivel encontrar os outros dous, nem na gaveta onde deviam
estar, nem nas diversas gavetas que diligentemente se examinaram; 3.°,
que em 1840 foram devolvidos á secretaria do reino para voltarem a Braga
o manuscripto da mitra, e bem assim o codice e os tres pergaminhos
avulsos que tinham vindo do cabido. A restituição foi, portanto,
integral. Esses actos officiaes, que a Classe leva á presença de V. M.,
não são, porém, só importantes para desfazer uma calumnia: são-no
igualmente para provar com quanta razão a Classe aconselhou que os
antiquissimos documentos chamados agora a Lisboa fossem conservados no
Archivo geral do reino. De cinco pedidos pela Academia, indicando ella o
logar onde se achavam, apenas tres existiam naquella conjunctura, porque
nem alli, nem nas outras gavetas, se acharam. Di-lo o chefe da
corporação; e das suas explicações se deduz que tambem não havia indice
do cartorio, nem registo por onde constasse como haviam sido
distrahidos. Se da historia, porém, dos cinco diplomas, pedidos
casualmente, houvessemos de tirar illações para o resto do archivo
capitular, infeririamos que dous quintos dos seus pergaminhos têem sido
desencaminhados, apesar das constituições synodaes e das excommunhões
fulminadas contra os dissipadores dos titulos da cathedral, excomunhões
que poderiam gerar nos animos sérias apprehensões sobre o destino além
da campa dos conegos até então fallecidos, mas que teriam sido
impotentes para salvar da rapina ou do desleixo os primitivos e
veneraveis monumentos da antiga metropole da Galliza.

Ainda, em relação áquella remessa de documentos, faz o reverendo cabido
bracharense uma severa increpação á Academia, de que esta Classe não
sabe, Senhor, defendê-la, mas para esquivar a responsabilidade da qual
se offerece em holocausto. O codice e os tres pergaminhos voltaram a
Braga á custa do cabido! É um successo que talvez perturbasse gravemente
a economia da fazenda capitular. Liquide-se aquella divida, e a Classe
restituirá integralmente o frete dos dous codices e dos tres
pergaminhos, como fica provado que se restituiram essas preciosidades.

Se nas suas representações ao Governo, por intervenção do prelado, o
reverendo cabido de Braga calumniou a Academia, no officio ao agente
desta calumniou todos os poderes publicos. Diz ahi o reverendo cabido
que, para se lhe tirarem os documentos de que se tracta, precisa-se de
lei precedente que dispense as formalidades do esbulho da sua
propriedade, ou sentença do poder judicial que o convença de que a deve
largar. Estas poucas phrases, senão são filhas da hallucinação ou de
incrivel ignorancia, são um grave insulto a todos os corpos do Estado. O
cabido offende o Governo, porque lhe attribue um acto de espoliação,
quando a portaria de 11 de setembro não é senão uma providencia
administrativa ordinaria, e que honra por mais de um modo o mesmo
Governo. Offende o poder legislativo, porque o suppõe capaz de fazer
leis inconstitucionaes e absurdas. O legislador nem mantem, nem dispensa
formalidades no esbulho, porque nunca póde determinar o esbulho. Quando
estatue a expropriação por utilidade publica, estatue sempre a
compensação. Offende o poder judicial, porque presuppõe que elle póde
ordenar a alguem por sentença que largue a propriedade que é sua. Quando
o magistrado julga que o individuo deve perder o que possue, é
justamente pelo motivo contrario; é porque se convence de que o
individuo retem o que não é seu; e nesse caso, não tira, mas defende a
propriedade.

Somos chegados, Senhor, a um ponto, ácerca do qual a Classe de sciencias
moraes, politicas e bellas letras tem, por mais de um modo, o dever de
lançar neste papel algumas considerações; porque se tracta de um
assumpto que é da sua competencia, como corpo official scientifico. O
pensamento de qualificar a portaria de 11 de setembro como um acto
exorbitante do Governo contra a propriedade não se manifesta só nas
phrases acima citadas: revela-se tambem, mais ou menos expressamente, na
linguagem de outras corporações desobedientes. Na opinião dellas, os
antigos pergaminhos dos respectivos cartorios são uma cousa em que o
Governo não póde tocar, sem quebra do direito constitucional que garante
a propriedade dos cidadãos; porque esses pergaminhos são os titulos dos
bens que possuem, os quaes as dictas corporações de mão-morta suppõe
gratuitamente que são uma propriedade sua, analoga á de qualquer
individuo ou associação civil.

A Classe disse já e mostrou como muitos dos documentos de que se tracta,
pela sua natureza, pelo sua origem, e por factos historicos sabidos e
certos, pertencem pura e simplesmente ao Estado; disse e mostrou já como
os cartorios das corporações de mão-morta se consideraram sempre
archivos publicos; disse e mostrou como os pergaminhos anteriores a 1280
não são nunca, ou quasi nunca, documentos de uso practico nos litigios
ou nas duvidas administrativas que podem suscitar-se ácerca de alguns
desses bens; e quando o fossem, nem a portaria de 11 de setembro ordena
definitivamente a sua retenção na Torre de Tombo, nem o Governo,
supposto que de futuro assim o ordenasse, deixaria de prover do modo que
estabelece naquella portaria. As corporações obteriam gratuitamente,
quando necessarios, transumptos authenticos, fórma unica em que elles
costumam figurar na tela judicial. Uma ou outra corporação póde achar no
seu seio ou na localidade onde reside um paleographo legalmente
habilitado para authenticar os traslados de antigos documentos; mas, na
maior parte dos casos, dada a necessidade de taes copias, elles teriam
de vir a Lisboa para serem decifrados e reduzidos os seus transumptos a
fórma authentica. Qual seria, porém, mais seguro para os velhos
pergaminhos, e até mais barato para as corporações; isto, ou as
providencias a que se refere a portaria de 11 de setembro?

As corporações falam da propriedade dos pergaminhos, confundindo-a com a
de quaesquer outros bens moveis ou de raiz. Os antigos documentos são ou
foram titulos de propriedade, o que é diverso. Para qualquer cousa ser
materia de propriedade precisa de ter um valor de utilidade; servir aos
fins e necessidades do homem. Não sendo como prova de dominio, elles de
nada servem ás corporações; e a não ser como monumentos litterarios ou
historicos, não tem nenhum valor real. Por este lado as corporações
estão bem longe de poderem utilisá-los. Como prova do dominio, nem o
Governo quer destrui-los, nem guardados no Archivo nacional ficam menos
seguros do que no seio das corporações, antes incomparavelmente mais.
Depois, não é o Estado padroeiro de todas essas cathedraes, collegiadas
e mosteiros desobedientes? Não teve elle sempre o direito de suprema
inspecção sobre o cumprimento dos deveres que resultam para esses corpos
das condições da sua fundação e instituição? Não lhe incumbiu sempre
vigiar sobre a conservação e uso dos bens unidos aos mesmos corpos? Não
deriva immediatamente desse direito o de providenciar do modo mais
conveniente sobre a fiscalisação daquelles bens, e de chamar a si os
titulos delles quando entender, e sobretudo quando se provar, que esses
titulos são tractados com desleixo, ou que podem ser conservados em
melhor ordem ou com maior segurança, ou finalmente quando precisar
delles para verificar se se tem dado abusos que o mesmo Governo possa e
deva corrigir? Se as corporações crêem que os documentos que lhes pedem
ainda tem o valor de titulos, em virtude de que direito recusam obedecer
á portaria de 11 de setembro?

E preciso, Senhor, dizer por uma vez a verdade inteira. As corporações
recalcitrantes, por um capricho insensato, talvez por insinuações
perfidas, e provavelmente por apprehensões infundadas de que o
conhecimento dos diplomas e chartularios que se lhes pedem possa ser
nocivo aos seus interesses como administradoras de rendas e direitos
dominicaes, aparentam por esses velhos pergaminhos, inintelligiveis e
indifferentes para ellas, um zêlo, um affecto que realmente não sentem.
Foi isto que as arrastou a invocarem o direito de propriedade, a falarem
de tal direito em relação aos bens que desfructam. Póde o Governo
tolerar, toleram os bons principios que as corporações se digam
proprietarias dos bens que usufruem? Até aqui a Classe provou por
diversos modos o desarrazoado e illegal das resistencias que suscitaram
esta consulta, ainda dada a situação de proprietarias, em que as
corporações pretendem collocar-se. No caso presente, o antigo direito
publico derivado dos antigos principios, das prerogativas do poder
supremo como então se concebia, e até o direito canonico relativo ao
padroado, bastariam para legitimar o acto practicado pelo Governo e
justificar as intenções manifestadas na portaria de 11 de setembro. Mas
esta Classe tem de ir mais longe. Desde que se querem estender as
actuaes garantias politicas dos cidadãos a corporações de mão-morta, por
um sophisma grosseiro; desde que se proclamam doutrinas subversivas que
mutilam a acção do poder publico, a Classe tem, pela sua indole, pelos
fins da sua instituição, o dever restricto de protestar contra erro tão
perigoso. São as corporações que a fórçam ao cumprimento de uma
obrigação desagradavel.

A propriedade, Senhor, é um direito preexistente ás sociedades, visto
derivar da necessidade que tem o individuo de satisfazer aos fins
racionaes para que foi creado. O direito de propriedade estriba-se na
lei natural, porque é inherente á natureza do homem. Desde que este
direito se não collocar acima das leis positivas, quer constitucionaes
quer civis, e anteriormente a ellas, a sociedade acceitará um elemento
de dissolução e de morte. Se é o legislador que cria esse direito; se
este não o precedeu no mundo, elle póde também crear o direito
contrario. Reduz-se tudo a uma questão de conveniencias moraes e
materiaes e de opportunidade, e tanto é possivel existir só a
propriedade commum, como existir a individual, ou, para exprimir a mesma
idéa com diversa formula, tanto é possível a não propriedade, como a
propriedade. D'aqui nasce que esta é primordial e principalmente
individual. A idéa de propriedade collectiva, como regra, como
principio, depois de andar por seculos ao serviço de um despotismo
espoliador; depois de attribuir ao chefe do Estado o dominio imminente e
aos subditos uma posse e um dominio incompletos, quando o sentimento da
liberdade e a razão esclarecida por tal sentimento collocaram os
direitos dos cidadãos á sua verdadeira luz, veio, apesar de velha e
gasta, pôr-se á mercê das escholas socialistas e communistas. Como em
mechanica dizia Archimedes, dêem a estas esse ponto nas regiões do
direito, e ellas revolverão o mundo.

A propriedade commum nas associações civis voluntarias não é senão uma
forma especial de manifestação da propriedade individual, que lhe muda
os accidentes sem lhe alterar a essencia. Dissolvida a associação, a
propriedade toma immediatamente os caracteres da individualidade. Não
assim nas corporações de mão-morta, cuja existencia depende do poder
publico. Ha, por certo, propriedades collectivas; taes são os bens
nacionaes de uso commum dos cidadãos; mas esta especie de propriedade,
estribando-se puramente na lei, supprime-se, desapparece, transforma-se,
accumula-se, tambem á mercê da lei, e é por isso que se denomina
propriedade legal. As instituições garantem a propriedade individual, a
do cidadão, aquella que se funda n'um direito acima das leis e anterior
a ellas. Não podem ir além sem serem antinomicas comsigo mesmas; sem
darem ao legislador a funcção de crear e não a de extinguir; sem
confundirem o absoluto com o condicional.

Os membros das corporações de mão-morta não gosam menos que outros
quaesquer cidadãos da garantia constitucional pelo que respeita á sua
propriedade particular. Não lhes é applicavel, porém, a mesma garantia
quanto á propriedade collectiva que desfructam, porque essa propriedade
é apenas legal. São proprietarios, como membros d'uma associação? N'esse
caso, porque não podem alienar; porque não podem testar; porque não se
resolverá em propriedade individual esse cumulo de bens, na hypothese de
deixar de existir a corporação? É que a sua existencia não deriva da
natureza; deriva do direito positivo. Assim, era com sobrada razão que
um publicista dizia: «Do mesmo modo que a suppressão de uma corporação
não é um homicidio, a revogação da faculdade que lhe foi concedida de
possuir bens de raiz não é uma espoliação». Pessoas facticias, a lei
póde destrui-las, como as creou; e se a sua existencia é precaria, como
é que possuem por um direito absoluto? Comprehende-se que o clero
hierarchico desfructe uma porção de bens que o Estado não revocou a si.
Como classe de funccionarios, de ministros de uma religião dominante, e
por consequencia official, podem ser retribuidos, no todo ou em parte,
por este modo: é um systema bom ou mau; mas é um systema que presuppõe a
doutrina de que os bens que administram não são propriedade sua e de que
nem sequer usu-fructuarios são por direito proprio. Porque recebem
corporações e individuos pertencentes á jerarchia da igreja, e cujas
congruas estão fixadas, apenas complementos d'essas congruas pelo
Thesouro, quando os redditos dos chamados bens ecclesiasticos
subministram parte d'ellas? Tractando-se de materias temporaes, se a
propriedade ecclesiastica é o mesmo que a propriedade individual, donde
provêm a desigualdade que resulta de uma retribuição desigual, que o
clero acceita sem murmurar? Se é por se attender só a que tenham a
_congrua sustentação_, porque não será esta calculada tambem em relação
aos bens patrimoniaes do sacerdote funccionario? Aquelles que hoje
invocam o seu direito de propriedade como sendo analogo aos dos cidadãos
têem já reconhecido, pelo facto proprio, que entre as duas cousas não
existe paridade.

Mas se nos lembrarmos, Senhor, da origem e historia dos bens
ecclesiasticos em Portugal, quanto mais deploraveis e imprudentes não
acharemos as doutrinas invocadas pelas corporações desobedientes, em
damno da gloria e das letras patrias! Verdadeiramente, entre nós, aos
bens d'esses gremios só quadraria uma qualificação repugnante comsigo
mesma, a de _propriedade anti-legal_. Começaram cedo neste paiz, nos
principios do seculo XIII, as leis de amortisação, e já antes el-rei D.
Sancho I, escrevendo a Innocencio III, affirmava o seu direito de privar
o clero dos bens que possuia para lhes dar uma applicação em seu
entender mais util. Renovadas successivamente as leis de amortisação,
foram tantas vezes vilipendiadas e infringidas pela prepotencia do clero
quantas de novo promulgadas. As corporações julgavam-se então tanto
acima do legislador quanto parece julgarem-se hoje acima do Governo. Sem
recorrer a outros monumentos das varias phases d'essa permanente revolta
de um dos corpos do Estado contra o direito publico do reino, basta
abrir successivamente os tres codigos que, um após outro, regeram este
paiz desde o seculo xv até os nossos tempos, para vermos que os
verdadeiros titulos dos bens usufruidos pelas corporações não são tanto
os antigos pergaminhos que ellas recusam largar da mão para utilidade
commum, como o desprezo insolente de leis que os nossos monarchas nunca
tiveram força para tornar effectivas. As Ordenações affonsinas, as
manuelinas e as philippinas reproduzem sempre o direito antigo, que
prohibia ás corporações de mão-morta possuir bens de raiz, mas a
clausula pela qual se perdoava a desobediencia passada perdia tudo;
porque provava a impotencia da lei, e abria campo a novos abusos, que se
tornavam a perdoar para se tornarem a repetir. O melhor titulo de
propriedade que as corporações podem invocar ácerca dos bens que
desfructam é este. V. M. apreciará a sua legitimidade.

Resta unicamente, Senhor, á Classe de sciencias moraes, politicas, e
bellas letras desempenhar um dever que desde o principio d'esta consulta
reconheceu incumbir-lhe. É o de dar a razão por que aconselhou ao
Governo que conservasse no Archivo da Torre do Tombo os documentos mais
antigos e preciosos das corporações tanto extinctas como existentes,
depois de utilisados pela Academia. Não foi, Senhor, um conselho dado de
leve: foi a triste convicção de que, sem isso, os vestigios e as
memorias authenticas das gerações que passaram irão gradualmente
desapparecendo, como até aqui tem desapparecido. Nos logares onde se
acham, os antigos pergaminhos e chartularios não são entendidos nem
apreciados, nem resguardados de um modo conveniente contra os accidentes
que possam sobrevir-lhes: não ha ordem racional na sua arrumação, nos
raros casos em que estão n'alguma ordem: não ha indices aos quaes se
possa recorrer quando é necessario consultá-los. Por quasi todos os
archivos se encontram pergaminhos nas costas dos quaes se escreveu a
palavra fatal _inutil_. Inutil quer dizer que não serve a algum
interesse material da corporação. Em regra, é no meio d'estas
inutilidades que se vão achar os documentos historicos mais importantes.
Quaes tem sido, porém, os effeitos d'aquella qualificação, quaes
continuarão a ser, facil é adivinhá-lo. N'alguns cartorios a phrase _é
latim_, tambem escripta nas costas do diploma, soa igualmente como
sentença de condemnação. Acham-se frequentemente pergaminhos (e destes
muitos n'um cartorio onde tal barbaridade não era de esperar), cuja
leitura quiz fazer algum curioso inhabil, cubertos de aguadas de galha,
que avivaram momentaneamente as letras sumidas, mas que depois formaram
uma só mancha negra, onde não tornará a ser possivel decifrar uma unica
palavra. Grande parte dos cartorios dão, ao simples aspecto dos seus
documentos, as provas de que durante annos estiveram, e de que estão
ainda expostos á chuva, ao passo que não ha um só que se possa dizer ao
abrigo dos incendios. As abobadas arejadas e enxutas, debaixo das quaes
se guardam a parte antiga e ainda uma grande porção das addições
modernas do Archivo Nacional, uso adoptado tambem por alguns mosteiros
da congregação benedictina, que sabia tractar objectos destes, porque
sabia entendê-los e apreciá-los, não existem em nenhuma parte. É esse um
dos factos que mais instantemente exigem a conservação na Torre do Tombo
dos já tão rareiados documentos dos primeiros dous seculos da monarchia
e dos que a precederam. A imprevidencia de collocar cartorios em logares
não convenientemente isolados fez com que n'uma noite perecessem
inteiros os quatro archivos mais ricos de monumentos da Beira Alta, os
de Salzedas, Tarouca, S. Pedro das Aguias e S. Christovam de Lafões, bem
como o incendio da Casa-pia, do Porto deu aso a perderem-se (dado que
perecessem nas chammas, o que é controvertido) quasi todos os cartorios
monasticos do Minho, que constituiam a parte mais importante das
riquezas do paiz n'este genero. O celebre incendio do Thesouro, que
tambem foi fatal a esta especie de documentos, é outro grande exemplo da
imprudencia que ha em não conservar archivos cuja perda é irreparavel em
edificios isolados ou pelo menos abobadados.

Expostos aos lentos effeitos da humidade e a serem devorados pelas
chammas, os antigos documentos das corporações nas provincias estão,
além d'isso, sujeitos ás devastações das guerras civis e estrangeiras.
Explicam estas em grande parte o não se acharem em quasi nenhumas
camaras do reino documentos originaes anteriores ao reinado de D. Diniz.
Nas tres provincias do norte, esta Classe apenas pôde descubrir a
existencia de um no cartorio da camara de Bragança. Sabemos, todavia,
que ainda certo numero d'elles existia nos fins do seculo passado. Não
teria sido mais util para o paiz, e até para as proprias
municipalidades, que o Governo tivesse feito recolher esses
antiquissimos pergaminhos no Archivo geral do reino? Quando el-rei D.
Manuel mandou expedir os foraes novos, recolheram-se alli as cartas
constitutivas e os privilegios annexos a ellas, respectivos aos
concelhos a quem se concediam aquelles foraes novos. É por isso que, em
parte, os seus primitivos titulos de liberdade ainda hoje existem. E que
é feito de tudo o mais que lá ficou? Desappareceu completamente.

A estes accidentes accresce a deterioração permanente que o desleixo e a
ignorancia produzem. No cartorio de certa corporação, lançado pela
janella fóra durante a guerra peninsular por alguns soldados franceses,
e de que só uma pequena parte foi recolhida, achou-se ainda em 1853
incrustado nos pergaminhos o lodo em que estiveram mergulhados durante
alguns dias; tal tinha sido o desvelo da corporação ácerca dos
monumentos que salvara. Não sabemos se é das que bradam contra a offensa
feita ao seu direito de propriedade. Em outro archivo de um corpo de
mão-morta, os documentos antigos tinham sido lançados em monte na
divisão inferior de um armario humido, cujo pavimento era de tijolo.
Alli haviam apodrecido até a altura de duas ou tres pollegadas,
constituindo, quando se examinaram em 1853, uma massa negra e compacta.
Salvaram-se apenas os que tinham cahido na parte superior d'aquelle
acervo, aonde a podridão ainda não chegava. Outra corporação pediu tempo
ao commissario da Academia para lhe tornar accessivel o cartorio. Estava
este n'um aposento sem vidraças, e pelas roturas das janellas os
passaros tinham estabelecido alli a sua residencia habitual. Era preciso
desimpedir aquella nova especie de estabulo de Augias. A maior parte das
corporações, cujos archivos se examinaram n'esse e no seguinte anno, não
poseram obstaculo algum a que os documentos de que se tomava nota fossem
separados e emmassados á parte, como se fez. A razão era simples. Tanto
importava aquella disposição como outra qualquer, visto não existir ahi
ordem nem indices. Cartorios ha, e dos mais notaveis, onde se adoptou a
distribuição corographica, mas esta distribuição era e é apenas parcial,
e necessariamente incompleta. Os documentos que por algum resumo ou
declaração externa, postos no verso do pergaminho, ou que por serem
modernos podiam facilmente classificar-se como relativos a tal ou tal
propriedade, collocaram-se nos massos respectivos. Todos aquelles,
porém, cujo conteúdo se ignorava, ou que refugiam a este systema
imperfeitissimo, assignalados ou não com o ferrete de _inuteis_, foram
amarrados em feixes e atirados para o fundo de armarios, onde ficaram
jazendo por dezenas e dezenas de annos, cubertos de pó e condemnados ao
esquecimento e a lenta ruína. Em um d'estes cartorios, depois de se ter
concluido o seu exame, achou-se uma gaveta, em logar pouco apparente, na
qual, debaixo de um monte de caruncho, se encontraram 40 a 50 bullas
originaes expedidas pela maior parte do decurso dos seculos XII e XIII.
Talvez durante 50 ou 60 annos ninguem tivera noticia da existencia
d'aquelles diplomas.

Certa corporação clerical teve a singular idéa de enquadernar os seus
pergaminhos avulsos. Era um arbitrio devido, segundo parece, á fecunda
imaginação de uma communidade franciscana, cujos documentos primitivos
se acham n'uma repartição de fazenda da provincia cosidos n'um volume,
podendo ler-se apenas parte de cada um d'elles. A corporação, porém,
encontrara uma difficuldade imprevista em aproveitar o alvitre dos
frades. Os sellos pendentes eram um obstaculo a essa obra meritoria.
Cortaram-nos, ensacaram-nos, e hoje mostram innocentemente aquelle
monumento de sabedoria. Os sellos, sobretudo os dos diplomas
pontificios, esperam pela trombeta final do archanjo para se unirem aos
respectivos corpos, porque só a trombeta final poderá operar tal
maravilha.

Esta mesma corporação possuia um chartulario dos mais conhecidos na
nossa litteratura historica. Esse chartulario tinha saído do archivo,
por ordem do prelado maior, havia quasi vinte annos, para se tirarem
delle copias de varios documentos, de que se carecia para objecto
litterario. Quando em 1854 a Academia mandou examinar os cartorios
provinciaes, o seu commissario perguntou pelo celebre codice. Fôra elle
que tirara aquellas copias quasi vinte annos antes. Disseram-lhe que
existia bem guardado. Pediu-o: apresentaram-lhe uma copia moderna.
Observou que esse volume não passava de um bom ou mau transumpto do
manuscripto de que se tractava. Não se conhecia outro! O commissario da
Academia recordou-se, porém, de uma circumstancia: as copias tiradas por
elle tinham sido feitas em certa livraria vizinha. Teria esquecido alli
o codice? Era um desleixo de vinte annos, absurdo, vergonhoso, incrivel,
mas por isso mesmo, probabilissimo. Propôs que se buscasse, ou antes,
offereceu-se elle proprio a procurá-lo. Acceitou-se a offerta. Não se
enganava. O precioso chartulario vivera desterrado vinte annos, emquanto
o seu pouco leal Sosia lhe usurpava as homenagens daquella corporação
erudita.

No fasciculo já impresso dos _Monumenta_ pertencente á serie intitulada
_Scriptores_ foi inserido um chronicon, cujo original existe no archivo
de uma das corporações ecclesiasticas que representam a V. M. contra a
portaria de 11 de setembro. Havia duas edições discordes entre si, e
ambas inexactas, como depois se viu. Quando se colligiam os monumentos
destinados a entrar naquelle fasciculo, buscou-se obter o codice
original para restabelecer a verdadeira licção. Era impossivel. As
excommunhões contra a extracção dos documentos do cartorio onde elle
existia obstavam a isso. O anjo percuciente velava á porta do cartorio
com a espada de fogo na mão. Á Academia, porém, repugnava manter n'um
trabalho serio, e feito com consciencia, o texto incorrecto. Favoreceu-a
uma circumstancia imprevista. A vigilancia do anjo percuciente fora
entretanto illudida. Pessoa particular obtivera por esse tempo que o
codice viesse a Lisboa. Empregaram-se então meios indirectos para
alcançar copia exacta do chronicon. Mas voltou o codice ao logar d'onde
saíra? Esta Classe ignora qual foi o seu ulterior destino.

É tempo, Senhor, de colher as vellas ao discurso. Parece-nos que o
Governo de V. M. fica habilitado para despachar as supplicas das
corporações conforme a justiça e as conveniencias publicas. A Classe tem
a consciencia de que, tanto nas suas sollicitações como nos seus
conselhos, procurou sempre conciliar o zelo com a circumspecção, e que
não deu neste negocio um único passo que não signifique o cumprimento de
um dever. Resta ao Governo cumprir o seu. Se no assumpto que se debate
ha lucta entre o amor das cousas patrias e um egoismo pueril, entre a
sciencia e a ignorancia, entre a luz e as trevas, não julga esta Classe
que o reinado de V. M. seja a epocha mais propicia para a victoria da
barbaria contra a civilisação.

Deus guarde a vida de V. M. como o paiz e as letras hão mister.




                               A SUPPRESSÃO

                                   DAS

                          CONFERENCIAS DO CASINO


                                   1871


                                    A

                                   J.F.




Teve v. s.ª a bondade de me remetter o discurso que o sr. Anthero do
Quental proferiu ou devia proferir no Casino (da sua carta não infiro
claramente se o facto chegou a verificar-se) o que, com os discursos dos
oradores que o precederam, deu aso a serem tolhidas pelo governo
aquellas conferencias. Pede-me v. s.ª que leia o discurso e lhe dê a
minha opinião sobre o seu conteúdo e sobre o procedimento da
auctoridade. Nesta vida positiva que hoje vivo, pouco é o tempo que me
sobeja para a leitura, nem, a falar verdade, o espirito se inclina muito
para esse lado. Depois, as suas perguntas referem-se a assumptos graves,
e até abstrusos, que, porventura, não cabem na capacidade da minha
intelligencia. Accresce que geram em mim tristeza as nossas questões
publicas, e com o egoismo de velho fujo de pensar nellas. Apesar, porém,
de tudo isso, forcejarei por fazer uma excepção a favor deste discurso,
por certa sympathia que sinto pelo auctor, não obstante a profunda
divergencia que ha entre as nossas opiniões. É, talvez, porque no seu
caracter me parece descobrir uma destas indoles nobremente austeras que
cada vez se vão tornando mais raras. Revela o trabalho que me remette as
precipitações e os impetos proprios da idade de quem o delineou. Só os
annos nos curam desse defeito. Quizera eu que o sr. Anthero do Quental
conhecesse melhor a doutrina e a tradição verdadeiramente catholicas,
porque havia de ser menos injusto com o catholicismo, embora não fosse
menos severo, ou talvez o fosse ainda mais, com os padres.

Quanto á prohibição das conferencias, que quer que lhe diga? É peior que
uma illegalidade, porque é um desproposito; e na arte de governar, os
despropositos são ás vezes peiores que os attentados. O que sería
escutado e em grande parte esquecido por cem ou duzentos ouvintes será
agora lido e meditado por milhares, talvez, de leitores. Diz-me que se
tomou por pretexto da suppressão das conferencias o desaggravo da
religião offendida. Erro deploravel. Idéa perseguida, idéa propagada:
lei perpetua do mundo moral, perpetuamente esquecida pelo poder. Por
certo, o governo tem obrigação de manter a religião do Estado, como tem
obrigação de manter todas as instituições do paiz. Mas o respeito pela
inviolabilidade do pensamento entra tambem no numero das suas
obrigações. E quando a religião do Estado e a liberdade do pensamento
collidem, é aos tribunaes judiciaes que cumpre dirimir a contenda. O
discurso oral é manifestação da idéa, como o é o discurso escripto. Não
se póde supprimir o orador, como se não póde supprimir o escriptor. Para
um, como para outro, ha a responsabilidade e a punição.

Depois, creio pouco que o sr. Anthero do Quental, apesar da sua clara
intelligencia, e da auctoridade moral que lhe dá a integridade do seu
caracter, seja assás poderoso para derribar o catholicismo, a religião
de S. Paulo e de S. Agostinho, de S. Bernardo e de S. Thomás, de Bossuet
e de Pascal. O perigo, não absoluto, mas relativo, está n'outra parte.
Aggredido pela frente, o catholicismo póde applicar a si, melhor que o
protestantismo, o verso do bello hymnario de Luthero.

Ein feste Burg ist unser Gott.

Não se toma a fortaleza divina; mas póde ser minada e alluida por uma
guarnição desleal. É este actualmente o grande perigo que a ameaça: não
são os discursos do Casino. A situação da igreja assemelha-se hoje
áquella em que se achava no IV seculo, quando o arianismo, no dizer de
S. Jeronymo, triumphava por toda a parte, e até o papa Liberio adheria á
formula ariana do conciliabulo de Sirmio e acceitava como orthodoxa a
heresia. Esta situação tristissima da igreja é cousa um pouco mais grave
para a religião do Estado do que todas as hostilidades imaginaveis dos
seus adversarios leaes.

Que me seja licito fazer uma pergunta, que vai maravilhá-lo. Existe
ainda entre nós o catholicismo proclamado instituição social pela Carta?
A resposta que eu proprio darei a esta pergunta ainda, porventura, o
maravilhará mais. Existe apenas na fé perseverante, mas silenciosa e
triste, de alguns fieis, que deploram os destinos preparados á igreja
por um clero geralmente faccioso e sem convicções. Hoje a igreja, se
podesse perecer, correria grande risco de não completar o vigesimo
seculo da sua existencia. Dar-lhe-hei nesta carta a razão do meu dicto,
embora isso a torne, talvez, demasiado longa; mais longa, por certo do
que eu desejaria.

Caracter fundamental do catholicismo verdadeiro, do catholicismo que nos
inculcaram na infancia, era a immutabilidade, a perpetuidade e a
universalidade dos seus dogmas e das suas doutrinas na successão dos
tempos, caracter precisamente descripto no celebre _Commonitorium_ de
Vicente de Lerins. Nessa crença, tão incomprehensivel seria a suppressão
de um dogma antigo, como a addição de um dogma novo, ou (para me servir
de phrase de um theologo eminente do seculo XV) nessa crença não se
tinha por menor heresia affirmar ser de fé o que não o era, do que negar
que o fosse o que era [4]. Nisto consistia practicamente a immensa
vantagem do catholicismo sobre as seitas dissidentes, indefinitamente
variaveis, fluctuantes, subdivididas de dia para dia, gerando as mais
desvairadas aberrações religiosas. Além disso, a igreja tinha leis que a
regiam desde os seculos primitivos e que só os parlamentos christãos, os
concilios, podiam alterar, quando essas alterações não fossem de
encontro ás tradições apostolicas, e a que todos os membros da sociedade
catholica, desde o papa até o mais obscuro entre os fieis, eram
obrigados a obedecer. Depois, na economia da sua administração interna,
nos ritos, e em outras manifestações accidentaes do culto, cada igreja
nacional, e até cada provincia ecclesiastica, tinha os seus usos e
liberdades especiaes, que a igreja universal consentia, porque o que
constitue verdadeiramente a unidade é a unidade da fé. Governo
parlamentar, maximas fundamentaes dominando atravez dos seculos a
legislação canonica, direito commum conciliando-se com o respeito ás
autonomias, ninguem superior á lei, a fraternidade humana, a tolerancia
material ao lado da intolerancia doutrinal; em summa, uma grande parte
das conquistas da civilisação moderna são apenas velhas conquistas do
christianismo transferidas para a sociedade temporal. Cuidando aportarem
a praias ignotas, os publicistas mais de uma vez tem plantado padrões de
descobrimento em regiões onde, embora occultos pelos musgos e sarças, os
padrões da cruz estão plantados ha mais de mil e oitocentos annos.

Sem duvida, durante a idade media, grande numero de abusos se tinham
introduzido na disciplina, no mechanismo da sociedade catholica. Houve
sempre homens grandes e virtuosos que luctassem contra esses abusos, mas
nem sempre alcançavam moderá-los e mormente vencê-los. Na epocha dos
concilios de Constança e de Basilea,[5] os dous ultimos concilios
sinceros e livres que a historia ecclesiastica memora, sorriu para a
igreja uma esperança de reforma; mas essa esperança desvaneceu-se em
breve. Os abusos adquiriram novo vigor quando o renascimento veio
substituir as tendencias christans pelas tendencias pagans, e se
tornaram possiveis papas como Alexandre VI e Leão X, mais devotos da
trindade de Momo, Venus e Baccho do que da trindade evangelica. Então,
em logar da reforma, veio a revolução: veio Luthero. O catholicismo,
mutilado, tornou-se fragmento, embora grandioso fragmento. A resistencia
á revolução gerou, porém, a assembléa de Trento. Trento exprime um facto
notavel. A igreja servira, seculos antes, como de typo á sociedade
temporal: a sociedade temporal, onde as liberdades da idade media tinham
cedido já o campo ao absolutismo victorioso, reflectiu na reorganisação
da igreja. Como o absolutismo trouxera vantagens na vida civil,
trouxe-as tambem na vida espiritual; mas, tanto aqui como alli, essas
vantagens foram bem modestas comparadas com os males que derivavam da
nova contextura da sociedade religiosa e da sociedade temporal; tanto
aqui como alli, um abuso derribado era o prenuncio de muitos que íam
pullular. Esses abusos, quer antigos quer modernos, ingeridos na
sociedade christan, invadiam sempre mais ou menos as igrejas nacionaes.
Mas, no meio da decadencia exterior, a essencia do catholicismo--o
dogma--mantinha-se intacta. O symbolo salvo pelo concilio de Nicéa e
pelos esforços de S. Athanasio continuou até nós immutavel. Na propria
disciplina, o poder temporal, quando nisso interessava, reprimia as
tendencias abusivas de Roma, e até, não raramente, o episcopado,
momentaneamente desperto, recordava-se da sua instituição divina. Novo
Encelado, revolvia-se debaixo da enorme pressão do papado e, batendo com
as algemas nos degraus do throno pontificio, fazia-o estremecer.
Travavam-se ás vezes luctas sérias entre os dous absolutismos. Ambos
tinham por alliado o céu. _Tu es Petrus_, allegava o papa: _Per me reges
regnant_, redarguia o rei. _Pasce oves meas_: acudia o papado. _Omnis
potestas a Deo_: repunha o absolutismo. Roma, por via de regra, não
levava a melhor, sobretudo quando os bispos, ou por conveniencia ou por
convicção, se associavam ao poder temporal, o que era frequente.

Ao promulgar-se a Carta, Portugal achava-se nesta situação religiosa. A
Carta, convertendo o catholicismo em instituição politica, adoptava-o
como elle existia no paiz--essencia e fórma; dogma e disciplina. Disse o
legislador que a religião catholica apostolica romana _continuaria_ a
ser a religião do reino: não disse que essa instituição seria uma cousa
nova, fluctuante, mudavel, conforme approuvesse aos jesuitas ir
supprimindo ou annexando dogmas á doutrina catholica, mediante o assenso
ou inconsciente ou incredulo do papa e do episcopado. O que continúa não
é o que vem de novo; é o que existe no acto de continuar. Ora os factos
estão desmentindo esta doutrina irrefragavel. Desde a promulgação da
Carta tem-se realisado gradualmente uma revolução na igreja catholica.
Com assombro da gente illustrada e sincera, vimos transformar em dogma
uma superstição dos seculos de trevas, rendoso mealheiro de
franciscanos, tinctura de pelagianismo, aproveitada hoje para aviar
receitas na botica de S. Ignacio, a immaculada conceição de Maria, dogma
que forçadamente conduz ou á ruina do christianismo pela base, tornando
inconcebivel a Redempção, ou á deificação da mulher, á mulher-deus, á
mulher redemptora, recurso tremendo nas mãos do jesuitismo, que,
lisonjeiando a paixão mais energica do sexo fragil, a vaidade, o
converte em instrumento seu para dilacerar e corromper a familia, e pela
familia a sociedade. Depois, ludibrio desses homens de trevas, vemos o
papa, celebrando uma especie de concilio disperso, mandar perguntar
pelas portas dos bispos que tal acham aquelle appendiculo á fé
catholica. Os bispos, pela maior parte, encolhem os hombros ou riem-se,
dizem-lhe que está vistoso, e vão jantar. Depois, os que falam em nome
do pontifice, tendo tornado virtualmente absurdo, por inutil, o
sacrifício do Golgotha para a redempção da humanidade, ou dando ao
Christo um adjuncto na sua obra divina, divertem-se em negar no
_Syllabus_ os dogmas, um pouco mais verdadeiros, da civilisação moderna,
e tendo elevado o erro, apenas tolerado, e ainda mal que tolerado, nos
dominios do opinativo, a dogma indisputavel, e sanctificado assim uma
opinião peior que ridicula, convidam a sociedade temporal á guerra
civil. É a Companhia de Jesus na sua manifestação mais caracteristica.
Os principios da Carta, como os de todas as constituições analogas, são
condemnados, anathematisados, exterminados _in petto_. É a communa de
Paris, prefigurada em Roma, a arrasar e queimar, em vez de edificios,
todas as conquistas do progresso social, todas as verdades fundamentaes
da philosophia politica. Ao concilio vagabundo segue-se então o concilio
parado. É que falta ao _Syllabus_ a sancção divina. Dar-lha-ha a
infallibidade indossada pelo episcopado ao papa ou á sua ordem.
Ajunctam-se não sei quantos bispos, muitos bispos; uns reaes, outros
pintados: agremiam-se; e o papa pergunta ao gremio, em vez de o
perguntar a si mesmo, se é infallivel. Os bispos tornam a encolher os
hombros ou a rir-se, dizem-lhe que sim, e vão ceiar. O papa infallivel,
que não sabía se era fallivel, fica emfim descançado, e os bispos
ceiados, dormidos e desappressados do _visum est Spiritui Sancto et
nobis_ do concilio apostolico de Jerusalem, transferido definitivamente
para a Casa-professa, voltam a annunciar aos respectivos rebanhos essa
nova correcção das erroneas doutrinas da primitiva igreja.

Taes são os deploraveis e incriveis successos que temos presenciado. O
jesuitismo converte o infeliz Pio IX n'um Liberio ou n'um Honorio,
induzindo-o a subscrever heresias, e a grande maioria dos bispos,
creando na igreja uma situação analoga á dos tempos em que o arianismo
dominava por toda a parte, e abandonando a maxima sacrosancta da
immutabilidade da fé, tornam-se em arautos e pregoeiros dos desvarios de
Roma. As novidades religiosas vem perturbar as consciencias, e o
marianismo e o infallibilismo quasi levam o christianismo de vencida na
igreja catholica. Ninguem vê isto; ninguem sabe disto. É que, em
Portugal, os que ainda crêem em Deus e na divina missão de Jesus, sem
crerem na conceição immaculada nem na infallibilidade do summo
pontifice, pelo seu diminuto numero e pela tibieza que é geral em todas
as crenças, não tem nem força, nem resolução para arrostar com as iras
do beaterio neo-catholico. O governo, esse vê só o Casino, ouve só os
discursos do Casino. Aquillo é que ameaça subverter a religião, a
monarchia e a liberdade. _Dedit abyssus vocem suam_. A voz do abysmo são
aquelles quatro ou cinco mancebos que vão falar de cinco ou seis
questões desconnexas a cem ouvintes, metade dos quaes provavelmente não
entendem a maior parte do que elles dizem, o que tambem é muito possivel
me succedesse a mim.

Isto é simplesmente, macissamente, indisputavelmente ridiculo.

O que é grave em si, e como tendencia, e como symptoma, é a intervenção
da policia preventiva nessa questão: é a policia violando um direito
anterior á lei positiva, o direito da livre manifestação das ideas,
direito exercido por individuos que se apresentam franca e lealmente
adversarios do catholicismo e acceitam sem tergiversar a
responsabilidade e a penalidade que possam corresponder ao seu acto. O
governo parece ignorar que o bom ou mau uso dos direitos absolutos está
acima e além das prevenções da policia. Dizer-se que se respeita a
liberdade do pensamento, sob a condição de não se manifestar, é pueril.
Na manifestação é que reside a liberdade, porque só os actos externos
são objecto do direito, e a liberdade de pensar em voz alta é um direito
originario, contra o abuso do qual não póde haver prevenção, mas
unicamente castigo. Menos essencial é o direito eleitoral ou a garantia
do jury. Traz aquelle não raro violencias, corrupções, tumultos: traz
esta pela indulgencia, ás vezes pela venalidade, frequentemente pelo
temor, audacia nos maus, frequencia nos crimes. A propria religião dá
pretextos ao fanatismo, e o fanatismo tem escripto a sua historia com
lagrymas e sangue na face dos seculos. Pois bem: supprimi o eleitor;
supprimi o jurado; supprimi a religião; supprimi tudo, pelos perigos que
de tudo podem advir. Fique só a prevenção e a policia.

O seu amigo Anthero do Quental podia fazer dez, vinte, cem conferencias
contra o catholicismo, comtanto que não perturbasse a paz publica, e o
governo podia querelar d'elle dez, vinte, cem vezes. Di-lo o artigo
363.° do codigo civil. Não assim a respeito das novidades que tem
alterado a indole da igreja catholica. Aqui não se tracta do modo como
um cidadão exerce um direito inauferivel: tracta-se do modo como
funccionarios publicos, segundo a jurisprudencia recebida, exercem as
suas funcções. Visto que assim se entende a Carta, os prelados
diocesanos e o seu clero são funccionarios, não só porque o poder
temporal lhes dá uma intervenção maior ou menor em assumptos de
competencia civil: são funccionarios publicos no proprio ministerio
sacerdotal; porque, convertida a religião em instituição politica, os
ministros d'ella são agentes e executores da lei constitucional,
justamente na esphera espiritual; absurdo, na verdade, grande, mas
corollario ineluctavel de outro absurdo maior, a interpretação que os
reaccionarios e ainda alguns liberaes dão ao artigo 6.° da Carta.

Eram acaso dogmas em 1826 o immaculatismo e o infallibilismo? Quem
ousaria affirmá-lo? Era em 1826 um dos caracteres essenciaes do
catholicismo a perpetuidade da fé e a sua identidade atravez dos
seculos? Ninguem se atreveria a negá-lo. Os proprios restauradores de
velhos erros, agora convertidos em dogmas, fazem esforços desesperados
para os filiarem nas tradições da igreja. São esplendores do céu que
andavam nublados. Acceitavam-se, porventura, antes dessa epocha as
maximas do _Syllabus_ contradictorias com as leis do reino, com o seu
direito publico? Já notei que nem o proprio absolutismo acceitava
aquellas que o contrariavam quando, dispersas, não se pensava ainda em
compaginar essa especie de mappa estrategico da campanha contra a
civilisação. O absolutismo tinha o _placet_ regio para repellir as
invasões de Roma e os proprios erros de doutrina em que Roma, ou antes
os successores de Pedro, podiam, como elle, não perpetuamente, mas
temporariamente, cahir; e o absolutismo usava amplamente desse recurso.
Era uma praxe sanctificada pelo simples senso commum, pelo direito que
tem todo o dono de casa de examinar as doutrinas que os vizinhos lhe
inculcam á familia. D'ahi derivou a legitimidade da convocação dos
primeiros concilios ecumenicos pelos imperadores romanos.

A historia do _placet_ ou _exequatur_ é por toda a parte rica de
peripecias. Nos ultimos seculos, o rei e o papa eram dons duellistas de
supremo cavalheirismo e esmerada educação. Das mutuas delicadezas, dos
apices de benevolencia não omittiam um só ao encetarem qualquer lucta.
Quasi que sentiam um pelo outro mutua ternura. O rei beijava, cá de
longe, o pé do papa: lá de longe, o papa estendia para o seu filho
predilecto a benção apostolica. A questão, que se iniciava pela recusa
do _placet_, terminava, de ordinario, por ser intimado o nuncio para
sair da corte em vinte e quatro horas, e por ser o paiz posto em
interdicto. Chamava-se então a isto, na phrase dos homens de estado e
dos jurisconsultos, concordia do sacerdocio e do imperio.

A Carta, transformando a religião em instituição politica, manteve
felizmente o beneplacito a que estavam sujeitas sem excepção todas as
letras apostolicas de caracter generico. Digo, felizmente, porque, em
vez de se dar ao artigo 6.° da Carta uma interpretação racional, e que
não esteja em antimonia com as garantias dos cidadãos e com as maximas
mais indubitaveis das sociedades livres, dá-se-lhe, com acceitação
commum, um valor monstruoso e illiberal. Racionalmente, a instituição de
uma religião do Estado n'um paiz livre não póde significar senão uma
homenagem á crença da grande maioria dos cidadãos, homenagem
representada pela manutenção do sacerdocio e do culto a expensas do
Estado, pelo singular privilegio de ser este culto o unico publico, e
pelas demonstrações de respeito para com a religião da sociedade que se
exigem de todos os cidadãos. Ao lado disto, n'um paiz livre, não póde
deixar de ser escrupulosamente mantida a plena liberdade da consciencia,
e removida completamente a mistura dos actos e formulas religiosas com
as phases e com os actos da vida civil em que tal mistura produza
annullação de direitos ou da igualdade de direitos. Com semelhante
garantia, e nesta situação transitoria entre o antigo predominio de uma
crença exclusiva e tyrannica e a distincção precisa entre o estado e a
igreja, que tem de vir a formular-se definitivamente nas sociedades
futuras, as prevenções do § 14.° do artigo 75.° da Carta seriam
excessivas, e até, porventura, desnecessarias. Mas, quando se quer que a
existencia de uma religião do Estado importe para a universalidade dos
cidadãos o dever de se conformarem com os preceitos della em todos
aquelles actos da vida exterior que taes preceitos possam abranger, e se
dá a uma crença religiosa, isto é, a certa norma das relações entre o
homem e Deus, os caracteres e a natureza de uma norma das relações entre
o homem e a sociedade, é obvio que se attribue á religião uma indole
mundana, temporal, derivando unicamente a sua auctoridade e a sua força
coactiva de ser instituição politica, e essa força e auctoridade hão de
manter-se, interpretar-se, applicar-se, circumscrever-se, pelos mesmos
meios e pelo mesmo modo por que se mantem, interpretam, applicam e
circumscrevem as das outras instituições analogas.

Supposta a theoria da coacção religiosa, supprimir na constituição a
doutrina do beneplacito seria absurdo, porque seria impossivel sem ella
impor aos ministros a responsabilidade por tolerarem qualquer infracção
do artigo 6.° da Carta, quando a infracção procedesse de abusos da curia
romana, de excessos do poder espiritual, do mesmo modo que seria
impossivel impor-lha recusando-lhes a inspecção dos actos do clero
official, ainda relativos ás suas funcções puramente sacerdotaes. É
certo que o direito de beneplacito é um dos erros feios anathematisados
no _Syllabus_; mas tambem é certo que no _Syllabus_ está anathematisado
um bom terço dos artigos constitucionaes da Carta.

Tendo, pois, os ministros por dever a manutenção da crença official na
sua integridade, nem mais nem menos, e possuindo os meios que lhes
faculta a constituição para desempenharem esse dever, como é que os
governos d'esta terra tem defendido, em relação ás aggressões do poder
espiritual, a instituição politica da religião do Estado? De um modo,
que, se a responsabilidade ministerial fosse entre nós cousa séria, e
não uma phrase inventada para os ambiciosos em disponibilidade darem
vaias aos ambiciosos em exercicio, receio muito que a maioria dos nossos
ministros, ha vinte e cinco ou trinta annos a esta parte, tivessem
corrido grande risco de severo castigo. Essas loucuras practicadas no
centro da unidade catholica, a que já me referi, reproduzem-se entre
nós. A historia da igreja portuguesa nos ultimos annos é uma
contradicção permanente com a Carta. Altera-se o dogma e busca-se
alterar a disciplina. Nas pastoraes, nos pulpitos, na imprensa
infallibilista inculcam-se novidades no regimen da igreja e novidades de
crença. Os missionarios e uma parte do clero curado repetem ao povo
quantas semsaborias se espriguiçam por essas vastas charnecas das
allocuções que os jesuitas assignam com o pseudonymo de _Pio Nono_. Os
principios que são hoje condições essenciaes da existencia politica da
nação portuguesa apontam-se ao povo ignorante como invenções do diabo.
Missões dos agentes do jesuitismo, umas ineptas, outras astutas,
instillam por toda a parte o veneno do ultra-montanismo extremo, e
corrompem o elemento social, a familia, sobretudo pela fraqueza
mulheril. Vemos bispos que protegem esses agentes, e que os applaudem;
parochos que os acceitam para que elles façam o que, em diverso sentido,
fora dever seu fazer. É uma conspiração permanente, implacavel contra a
sociedade. As resistencias nascidas no seio do proprio clero são
difficilimas, senão impossiveis. O que tentasse levantá-las seria
esmagado. Os antigos institutos monasticos, que pela emulação, e pela
seriedade e profundeza dos seus estudos, se contrapunham ao jesuitismo e
á sua sciencia facciosa e dolosa, desappareceram, e se hoje se
restaurassem entre nós, succederia o que succede quasi por toda a parte:
ir-se-lhes-hia encontrar a roupeta de S. Ignacio debaixo da cogulla
benedictina ou augustiniana. O presbyterado, que é como a burguesia da
igreja, e no seio do qual se encontram já muitos sacerdotes moços, ao
mesmo tempo crentes e illustrados, não tem força para readquirir nos
negocios da sociedade christan o quinhão de influencia que a disciplina
primitiva lhe dava. E, todavia, só uma especie de presbyterianismo
orthodoxo e simplesmente disciplinar tornaria agora possivel dar-se
algum remedio á ruina da igreja; porque talvez esses homens novos
quizessem e soubessem congraçá-la com a sociedade moderna. Infelizmente,
porém, á abdicação dos bispos nas mãos do papa, começada ha seculos e
consummada no nosso tempo, tem correspondido a servidão cada vez mais
profunda dos presbyteros. Ao procedimento do episcopado póde applicar-se
a phrase de Tacito «_omnia serviliter pro dominatione_». Tudo o que
tende a dar a menor sombra de independencia ao clero inferior irrita o
ciume dos prelados. Sirva em Portugal de exemplo a pertinaz resistencia
que se tem feito ás transferencias de parochos sem a intervenção
episcopal. De certo as tradições disciplinares do velho catholicismo não
favorecem essas mudanças; não é, porém, a quebra dos canones que
incommoda os prelados; e, senão, digam se viram já algum delles
indignado de o transferirem para sé mais importante ou mais pingue sem a
intervenção do concilio provincial, embora o consorcio entre o bispo e a
sua igreja não seja menos sério do que o é entre o presbytero e a sua
parochia. O que os magôa é que o simples clerigo possa obter a minima
vantagem sem que propriamente lh'a deva; que não dependa delles sempre e
em tudo. As aspirações desta succursal da Casa-professa a que ainda hoje
se chama igreja docente resumem-se n'uma formula breve: perfeito
absolutismo na jerarchia sacerdotal, tendo por cuspide um summo
sacerdote, como Deus infallivel. Roma homologou, substituindo-o á
constituição da igreja, o instituto da Companhia, porque assim são mais
precisos e pontuaes os movimentos estrategicos do exercito ultramontano
sob o commando do geral dos jesuitas, e o pensamento da assembléa
celebrada em Trento ha trezentos annos tende sempre, com mais ou menos
fortuna, á sua completa realisação. O absolutismo na igreja é como o
prodromo do absolutismo na sociedade civil, sanctificado pelo _Syllabus_
com os anathemas á liberdade. Depois, fundindo-se ambos n'uma ultima
evolução, a sua synthese definitiva seria o poder illimitado e omnimodo
do papa, do pontifice-deus, sobre a existencia interior e exterior,
espiritual e temporal dos povos; seria a monarchia universal, o
despotismo theocratico sonhado pela ambição de Gregorio VII.

Fora necessario estar inteiramente obcecado para não ver que a revolução
que de ha muito se ía preparando no seio do catholicismo, que hoje se
realisa, e cujo termo tem necessariamente de ser fatal para a igreja ou
para a liberdade, se espraia já, onda após onda, entre nós, sem
encontrar resistencia da parte dos poderes publicos, e nem sequer a
resistencia collectiva do partido liberal, que faz travesseiro para
dormir do destino das gerações futuras. Na Allemanha, no paiz da força e
da vida moral, da sciencia e da consciencia, as audacias de Roma
perturbam e concitam os animos, e o velho catholicismo arma-se para o
combate. Nós não pensamos nessas insignificancias: nós elegemos e somos
eleitos. Que importa o resto? _Loco libertatis esse coepit quod eligi
possumus_, dizia Tacito dos romanos corrompidos. Os povos, como os
individuos, assentam-se indifferentes e serenos no atrio da morte quando
lhes chega a quadra fatal do idiotismo senil.

E todavia, a questão é ao mesmo tempo simples e grave.

Tem o governo negado o _exequatur_ aos documentos emanados, a bem dizer,
diariamente da chancellaria apostolica, donde resultam alterações no
dogma e na disciplina da religião official, ou em que são aggredidos os
princípios do actual direito publico português? Tem o governo imposto
aos prelados a obrigação de lhe submetterem as suas pastoraes antes de
serem publicadas, de modo que quaesquer novidades religiosas ou
politicas não sejam propagadas pela auctoridade do alto clero? Tem o
governo advertido este de que os pulpitos dos templos fundados pela
nação, em eras mais ou menos remotas, protegidos pelas leis, e mantidos
á custa do Estado, não podem servir de instrumento para a ruina do mesmo
Estado? Se tem feito isto e não tem sido obedecido, o governo é
responsavel por não haver coagido os seus funccionarios ecclesiasticos a
respeitarem as instituições e as leis do paiz. Se não o tem feito, é réu
de traição contra a Carta. Nenhum parlamento impôs essa
responsabilidade, é certo; nenhum, provavelmente, a imporá. Sei isso, e
sei porquê. Não é, todavia, menos verdade que ha vinte e cinco ou trinta
annos o clero está infringindo a Carta, se o artigo 6.° della significa
o que o mesmo clero e tanta outra gente pretende que signifique. O
bispo, o parocho, o missionario, que propalam doutrinas tendentes a
alterar a religião do paiz, ou que offendam o pacto social, tumultuam.
Esses homens estão em manifesta rebellião, rebellião, não porque
condemnem as instituições em linguagem mais ou menos violenta, o que, se
fossem simples cidadãos, constituiria apenas um delicto commum sujeito á
apreciação dos tribunaes, mas porque aproveitam a força moral que lhes
dá o seu caracter sagrado e a sua condição de funccionarios do Estado
para, ao mesmo tempo, inficionarem com extranhos erros a religião de
nossos paes, que, immutavel, deve _continuar_ a ser a religião official,
e para alluirem pelos fundamentos a monarchia representativa.

É racionalmente possivel semelhante situação? Ha de soffrer-se a
anarchia, porque se agita, não nas ruas e campos, mas sob os doceis
episcopaes, no pulpito e no confessionario? Fizeram-se os governos para
proverem nos grandes perigos sociaes como este, ou para estarem
espreitando ás fisgas das portas se algum mancebo mais ou menos
imprudente, mas sem pensamento reservado, sem compromissos occultos com
conspiradores estrangeiros, expoem as suas opiniões, embora erradas, a
uma assembléa pacifica, pouco numerosa, e pouco attenta, provavelmente,
á substancia do discurso, mas curiosa da belleza da fórma? Pois a
consciencia timorata da policia a escrupulisar de ouvir impiedades e a
pôr, para as cohibir, o bengalão do quadrilheiro no logar das fórmulas
judiciaes é cousa que se tolere? Quando taes enormidades fossem licitas,
não se deveria dar ás exuberancias sinceras da mocidade mais importancia
do que tem realmente. Ha verduras da intelligencia, como ha verduras de
coração. Nas indoles energicas, nos cerebros vastos é que ellas são
maiores. Ha a esperar nessas intelligencias os effeitos do tempo e das
cogitações. Da inepcia ou da hypocrisia é que nada ha a esperar. Quando
as tempestades moraes, as longas e acres tristezas da existencia e os
profundos desenganos do mundo tiverem devastado aquellas almas, não será
raro que se vá encontrar o impio dos vinte cinco annos, lá pela tarde da
vida, assentado ao pé da cruz, a scismar no futuro e em Deus. Não quer
dizer isto que os devotos fervorosos de vinte annos sejam provadamente
hypocritas. A convicção religiosa póde ser mais precoce e mais viva
neste ou naquelle espirito. Todavia, sempre será bom verem se lhes
descobrem debaixo da burjaca piedosamente mal talhada o cabeção de
jesuita.

Mas que ha de fazer o governo? Cumprir o seu dever. Compellir o clero
official a respeitar as doutrinas da Carta, recusar o beneplacito a tudo
que venha de fóra alterar a religião do paiz, a religião como ella era
em 1826, e obstar a que os prelados acceitem e promulguem como dogmas
erros de fé, como direito a quebra dos canones, como doutrina catholica
as blasphemias contra as maximas fundamentaes da sociedade civil. O
governo tem arbitrio para conceder ou negar o _exequatur_ ás decisões
conciliares ou ás letras apostolicas quando não collidirem com a
constituição do reino. As que forem hostis a esta, é obvio que ha de
rejeitá-las, combatê-las, annullá-las. Podem em Roma inventar o que
quizerem, proclamar o que lhes convier, anathematisar o que lhes
parecer. Em Portugal é que nada disso póde ser admittido, se repugnar ás
instituições politicas de que forma parte a religião do Estado. Nas
proprias resoluções synodaes ou pontificias que não se contraponham á
Carta, mas de applicação geral, e que, portanto, hão-de obrigar a
generalidade dos cidadãos nas suas relações religiosas, a simples
acceitação do governo não basta: é necessaria, para terem vigor e
obrigarem, a acceitação do parlamento.

Mas, dir-se-ha, os ministros não são theologos nem canonistas para
aquilatar os actos e doutrinas recentes da igreja ou do seu chefe,
afferindo-os pelas tradições religiosas do paiz. Oh sancta simplicidade!
Os ministros são tudo o que é preciso que sejam para serem ministros.
Ninguem os recruta para isso. Mas ainda ao mais insciente ministro, dado
que as facções não possam dispensá-los de serem profundamente ignorantes
n'estas materias, uma experiencia facil ensinará se o neo-catholicismo é
ou não o mesmo que o catholicismo de nossos paes. Se não é, cumpre
extirpá-lo das regiões officiaes, porque a manutenção do pacto social o
exige. Os reaccionarios que, em nome da Carta, não admittem a minima
tolerancia para as divergencias religiosas que por qualquer modo se
manifestem, devem, por maioria de razão, ser os primeiros a applaudir a
severidade do governo.

E a experiencia é simples. Em encyclicas, em livros, em publicações
periodicas, em pareneses de missionarios são apodadas de erros, de
blasphemias e de heresias grande parte das doutrinas contidas na Carta.
Diante destas aggressões contra os principios liberaes, os ministros
podem talvez esquecer que ha tribunaes e juizes. Se faltam ao que, em
rigor, é dever seu, eu, pelo menos no foro intimo, estou quasi tentado a
perdoar-lhes. A laxidão neste caso confunde-se um tanto com a
tolerancia, e a tolerancia nunca se me affigura demasiada. Bom fora que
ella désse tambem uma volta pelo Casino. O que me parece de mais é que o
governo abandone a defesa moral, aliás tão facil, dos principios que são
hoje o fundamento da sociedade civil. O clero official não póde recusar,
sem previamente resignar as suas funcções, o ser instrumento do governo
nessa modesta e legitima defesa. É obvio que a antiga religião que, pela
Carta, _continuou_ a ser a religião do reino era e é perfeitamente
accorde com aquelles principios. Sem isso, a Carta não seria só absurda;
seria practicamente impossivel. Ou o artigo 6.°, como na praxe se
interpreta, matava o resto, ou o resto matava o artigo 6.° As liberdades
patrias, os direitos e garantias dos cidadãos, o mechanismo do governo
representativo conciliam-se, portanto, com a nossa crença. O pacto
social é a consagração de todo esse conjuncto de instituições. A sua
coexistencia, a sua harmonia são indispensaveis sob o regimen da Carta.

Quando pois, neste paiz, a malevolencia reaccionaria declara a religião
inimiga da sociedade moderna, não se refere á religião de Portugal, e se
o seu intuito é referir-se a ella, calumnía e insulta a crença nacional.
Nesse caso, cumpre que os bispos, os parochos, em summa, todos os
funccionarios ecclesiasticos desaggravem a fé offendida e esclareçam o
povo para que o erro não possa transviá-lo. É para servirem a religião
que a sociedade lhes confere honras, proventos, exempções, auctoridade;
e a unica religião que elles tem de ensinar, servir e defender é a que
coexiste e se harmonisa ha perto de meio seculo com as instituições da
Carta. É o direito e é o dever do governo compelli-los a que o façam. É
necessario exigir delles manifestações positivas, e que os bispos,
parochos e professores publicos de theologia declarem falsas e
subversivas todas as doutrinas, sejam de quem forem, venham donde
vierem, que tenderem a tornar contradictoria a religião do reino com as
condições impreteriveis da sociedade actual estatuidas na Carta.

Que o governo exija isto, e espere o resultado.

Outra experiencia.

Em 1826 a theologia, a historia ecclesiastica, os ritos, os canones
ensinavam-se na universidade, nos seminarios, nos cursos de estudos das
congregações e das ordens monasticas. As dioceses tinham os seus
catecismos, pelos quaes os parochos e mestres educavam a infancia na
doutrina catholica. Os prelados de então acceitavam esses compendios,
expositores e catecismos; ordenavam-nos, até. O ensino, portanto, das
sciencias ecclesiasticas e a doutrinação dos fieis eram necessariamente
conformes com a religião catholica seguida pelo paiz. Atenhamo-nos,
pois, aos catecismos, aos compendios, aos expositores, aos livros, em
summa, por onde se ensinaram as sciencia ecclesiasticas e se educou o
clero e o povo desde o principio deste seculo até a promulgação da
Carta. Declare-se que todas as doutrinas, ou desconhecidas nesses
livros, ou contrarias ás que elles encerram, ou a que se dê uma
interpretaçao ou um valor differentes dos que se lhes davam então, ou
são heterodoxas ou erroneas, quer se refiram ao dogma, quer á moral
religiosa, quer á disciplina. Teremos assim a certeza: primeiro, de que
_continúa_ a ser religião do reino a que d'antes era; em segundo logar,
de que essa é a crença catholica apostolica romana de que fala a Carta.
Os bispos eram então, como o foram sempre, os principaes juizes da fé, e
os papas os chefes visiveis da igreja pela sua primazia. Pio VI ou Pio
VII valiam bem Pio IX. Nunca, porém, nessa epocha Roma lançou sobre nós
sequer uma suspeição de heterodoxia, e fossem quaes fossem as
divergencias entre a curia romana e a igreja portuguesa ou o governo
português em assumptos disciplinares, nunca se proferiu contra nós a
accusação de scisma. Estavamos, pois, pelas nossas tradições e doutrinas
perfeitamente no seio da igreja. Mantendo exclusivamente o dogma
catholico, nem mais, nem menos, como a igreja no-lo ensinou a nós os
velhos, e conservando-nos, em relação á disciplina, onde estavamos,
estamos indubitavelmente no gremio dessa igreja; porque a religião é
immutaveí, a religião não se aperfeiçoa. O criterio supremo do
catholicismo está resumido na celebre maxima: _Quod ubique, quod semper,
quod ab omnibus creditum est_.

Diga o governo isto aos bispos, aos cabidos, ás escholas de theologia e
de canones, aos parochos, aos commissarios de estudos, aos mestres
primarios. Envolva-se no manto da sua ignorancia. O seu criterio é
apenas o do senso-commum. Mantem a religião da Carta, porque lhe não é
licito manter outra sem crime, e conscio da propria incompetencia,
recorre a um meio seguro de não errar. Imponha o ensino de ha cincoenta
ou sessenta annos em materia religiosa, e vigie pelos seus agentes se
alguem exorbita das doutrinas de então e se atraiçoa com o ensino oral o
ensino escripto. O imperante fará nisto não só o papel de mantenedor da
Carta, mas tambem o de bispo externo; fará o mesmo que nos seculos
aureos do christianismo faziam os imperadores romanos com applauso dos
Padres da primitiva igreja.

O tumulto que ha-de alevantar este procedimento, aliás tão simples e
razoavel, sei eu. Verá, meu amigo, o que vai. Verá a reacção a inquietar
na jazida com seus furiosos clamores as cinzas dos nossos mais
veneraveis prelados dos fins do seculo XVIII e dos principios deste
seculo, dos magistrados mais integros, dos professores mais sabios, dos
mais abalisados jurisconsultos e theologos, e até a memoria de algumas
das congregações religiosas que desappareceram, para os accusar de
jansenismo, de gallicanismo, de philosophismo. Verá o que succede ao
clero regular que foi, aos benedictinos, aos augustinianos, aos
oratorianos. Referindo-me á congregação do Oratorio, não falo do pequeno
hereje ruivo, o terrivel padre Pereira de Figueiredo. Esse tem de ha
muito recebido o seu quinhão de anathemas maranathas. Tudo
pedreiros-livres. Os reaccionarios hão-de provar até a evidencia que o
artigo 6.º da Carta não diz o que diz. _Quidquid dixeris, argumentabo_.
Hão-de provar que o verbo _continuar_ significa em rigor _ser
substituido_, substituido o catholicismo da biblia e da tradição, o
catholicismo de nossos maiores, pelo neo-catholicismo, com os seus
dogmas de nova fabrica e materia velha, com as suas maximas
anti-sociaes, com as suas pretensões á restauração do papado como o
concebiam Gregorio VII ou Bonifacio VIII, e com a moral asquerosa dos
casuistas do padre Lainez substituida á do evangelho de Jesu-Christo.

É uma lucta, pois, que eu aconselho ao poder civil? De certo. Os
governos fizeram-se para luctar quando é necessario manter as
instituições do paíz. O direito está da sua parte. Se o artigo 6.° da
Carta tem a significação e a latitude que se lhe dá, é indispensavel que
se dê igual valor e extensão ao § 14.° do artigo 75.° Cumpre que o clero
official venha a uma situação definida e precisa. Ou o _Syllabus_ ou a
Carta. A questão reduz-se a isto.

Mas a acceitação prestada pela maioria dos bispos ás definições _ex
cathedra_ do pontifice? Mas a adopção do _Syllabus_ pelos prelados como
norma de doutrina? Mas as decisões do concilio ecumenico do Vaticano?
Sem debater as condições que a tradição exige para terem valor as
definições pontificias, e se é ou não pueril a moderna distincção _ex
cathedra_ e _non ex cathedra_, inventada para salvar as contradicções
dos papas em materias de fé e de costumes: sem indagar se a adhesão dos
bispos representa sempre a adhesão das respectivas igrejas; sem
finalmente individuar os caracteres que assignalam a ecumenicidade de um
concilio, e até onde obrigam as suas resoluções, quando àcerca destas
não houve, ao menos, a unanimidade moral; evitando, em summa, questões
abstrusas, origem de interminaveis debates, limite-se o governo a exigir
o cumprimento rigoroso do respectivo artigo da Carta interpretado pela
reacção. Que mais querem? Os neo-catholicos constituidos em dignidade,
exercendo funcções publicas, ficam na plena liberdade interior de crerem
o que lhes aprouver: nos actos exteriores hão-de ser catholicos de 1826.
Supponho que a theoria é esta. Collidem as infallibilidades papaes?
Deixá-las collidir. Admittamos que a boa, a de lei, é a de hoje. Os
neo-catholicos estão salvos. Vai para o inferno o Estado quando morrer.
Manda-o para alli a Carta. Cumprir e fazer respeitar as instituições e
as leis é a missão dos ministros; não o é a salvação das almas. Isso
pertencia d'antes á igreja, e pertence hoje, por transacção particular,
á Companhia de Jesus.

Que ninguem se assuste com a immensa e omnipotente auctoridade de um
concilio ecumenico. A primeira condição da sua força é a certeza de sua
ecumenicidade e da liberdade das suas decisões; aliás não passaria de um
conciliabulo; de um _latrocinio d'Epheso_, conforme a phrase dos Padres
de Calcedonia. Ainda, porém, que se dê tal certeza, nem por isso o poder
temporal fica inhibido de negar o seu assenso ás resoluções synodaes.
Figurava de ecumenico o concilio de Trento, e todavia a França recusou
constantemente acceitá-lo, sem distincção de dogma ou de disciplina.
Havia, até, certa affectação nos actos officiaes em chamar _assembléa de
Trento_ ao concilio. Foi infructuoso todo o empenho do clero francez em
fazer admitti-lo, porque as barreiras que lhe oppunham ora os reis, ora
os tribunaes, eram insuperaveis. E nunca a França foi por isso reputada
scismatica, nem os reis _christianissimos_ deixaram de ser os _filhos
primogenitos da igreja_. Era simples a explicação da repulsa. Muitas das
resoluções disciplinares do concilio repugnavam aos principios e ás leis
que a sociedade temporal reputava uteis ou necessarias á sua existencia.
Acceitando o concilio, a sociedade feria-se ou suicidava-se. Era contra
o direito natural. Á cautela, repellia tudo, porque nas deliberações do
concilio nem sempre era facil discriminar o doutrinal do disciplinar.
Nenhum perigo havia naquella rejeição absoluta. Se o concilio não fizera
senão confirmar a doutrina catholica derivada das suas duas unicas
fontes, a Escriptura e a tradição constante e universal da igreja, a
França lá seguia essa doutrina desde remotissimos tempos. Se, porém, o
concilio inventara novos dogmas, ou alterara em qualquer cousa a antiga
crença, deixava de ser concilio, e rejeitando-o _in totum_, a França
separava-se tanto da igreja universal, como se, por um acto solemne,
rejeitasse a Confissão de Augsburgo.

Mas--perguntar-me-ha--póde razoavelmente esperar-se que haja um desses
governos a que estamos habituados, com energia e vontade sufficientes
para emprehender commettimento de tal ordem? Deve fazer-se neste ponto
uma distincção essencial. Hoje, sem duvida, do gremio de qualquer das
facções que disputam entre si a ponta da corda que vai arrastando para
futuro incerto o corpo enfermo do Estado, não devemos esperar que sáia
um governo capaz de reduzir o debate entre o liberalismo e a reacção a
estes simples termos. Todas ellas dependem, até certo ponto, do cura na
questão eleitoral, questão suprema e talvez unica das facções, instincto
de vida que é desculpavel. Ora o cura é o _servus a mandatis_ do bispo,
como o bispo é o _servus a mandatis_ do papa, ou para falar com mais
exacção, do geral da Companhia. Depois, ha aqui, alli, não se sabe bem
onde, o jesuita; o jesuita, que se encontra e sente, sem se ver, em toda
a parte, desde os paços até a taberna; o jesuita, que veste gentilmente
a farda bordada ou a farda lisa, a casaca ou o paletot, a béca, a loba,
preta, roxa, encarnada, ou a grosseira jaqueta do operario; o jesuita,
que, se cumpre, é mais impio que Voltaire, ou mais fanatico do que Pedro
de Arbués e Torquemada; que é absolutista, democrata, socialista,
communista, se a ordem de S. Ignacio interessa com isso; que seria, até,
liberal, daquelles celebres liberaes do _Syllabus_, se hypothese tão
abominavel fosse admissivel. Ora o jesuita póde vigiar a urna, morigerar
a urna, penitenciar a urna. É pois necessario ao homem d'estado (talvez
conheça o typo nacional da especie) manter-se em certa altura de tacto
politico para não adivinhar o jesuita, para não crer na existencia do
jesuita, dessa singular invenção de certos visionarios. Precisa a patria
de que a jerarchia ecclesiastica e a congregação não venham, irritadas,
oppor o seu voto, a sua preponderancia, ás benevolencias da urna.

Eis porque é impossivel, por emquanto, travar sériamente a lucta em chão
firme. Deixe gritar contra a reacção. Puro formulario. Bem como a
responsabilidade ministerial, o epitheto de reaccionario não significa
nada, na linguagem dos homens d'estado. É um extracto do vocabulario
politico, que a facção decahida mette impreterivelmente na algibeira,
quando desce das regiões do poder, para apupar e injuriar cá da rua os
de outra facção que para lá subiram. De resto, amor e respeito omnimodo
e universal á congregação. Se algum dia, porém, a gymnastica das
ambições deixar de ser o espectaculo mais divertido destes reinos e
passar de moda, ha uma reflexão gravissima a que antes de tudo tem de
attender-se. N'um paiz, onde, por ignorancia do clero inferior e má-fé
ou desleixo dos prelados, as maiorias incultas crêem nas bruxas, nos
feitiços, nas mulheres de virtude, nas almas penadas, na permutação de
milagres por ex-votos de cera, e onde, falando geralmente, as minorias
intelligentes e instruidas buscam estonteiar-se, supprimir uma voz
interior que fala de Deus, com a indifferença ou com o scepticismo, o
clero, jesuita ou não-jesuita, ha-de forçosamente exercer certa
influencia, que, por mais que elle se desconsidere ou o desconsiderem,
não será facil destruir. Para combater essa influencia, quando nociva, a
incredulidade superciliosa não é a melhor das armas, porque a
incredulidade é a negação de uma tendencia natural do homem, a
religiosidade; é o espirito violando-se a si proprio. As multidões não
podem ser, não serão nunca incredulas. Onde e quando lhes faltar a boa
doutrina, seguirão a má. Nas almas incultas a precisão da crença ha-de
sempre satisfazer-se. Por uma lei psychologica, o crer tenaz suppre
nellas o crer reflexivo das intelligencias privilegiadas. Não tem arte,
nem sciencia para oblitterar em si uma condição humana, o aspirar, com
maior ou menor ardor, ao infinito, ao immortal. Se deixardes sair de
todo pela porta o catholicismo christão, entrar-vos-ha pela janella o
que ainda cá falta do moderno catholicismo do beaterio, com os seus
intuitos dissolventes, com as suas extravagancias dogmaticas da
immaculidade e da infallibilidade, e com as blasphemias sociaes do
_Syllabus_.

Mas, radicalmente, a questão não é nem com os governos de hoje, nem com
os homens de hoje. Na escripturação da primeira entre as companhias
commerciaes do mundo, a Companhia de Jesus, nós os velhos, e ainda uma
ou duas gerações dos que tem nascido depois de nós, fomos já levados,
como perda redonda, como valores incobraveis, ao livro de conta de
ganhos e perdas. Do que se tracta sériamente nas especulações da
Casa-professa é da infancia; daquelles que hão-de receber as primeiras
impressões moraes e religiosas de mães filiadas nas associações de
diversos feitios e nomes, sob qualquer das epigraphes da mulher-deus, da
mulher redemptora. Decorridos mais alguns annos, os symptomas do mal
serão cada vez mais visiveis. Então a imminencia do perigo ha-de coagir
os homens novos a tractarem de pôr sérias barreiras a esse immenso lavor
subterraneo que tende a converter a Europa, sobretudo a Europa latina,
n'uma como vasta copia das Missões do Paraguay. Se, pois, esta carta
sair das suas mãos, é aos homens de quinze até vinte e cinco annos, cuja
educação o jesuitismo, aninhado entre os affagos maternos, não tenha já
viciado, que as precedentes idéas poderão, porventura, aproveitar. Deixo
por isso á apreciação de v. s.ª a conveniencia ou inconveniencia
absolutas de as tornar conhecidas, bem como a opportunidade ou
inopportunidade dellas. Nem ambiciono, nem temo que as minhas opiniões,
neste como em qualquer outro assumpto, sejam sabidas. Ao cabo da
existencia, os applausos ou as censuras do mundo fazem mediocre
impressão em quem está costumado a reflectir. Ou a nossa memoria se
desvanece nos longes indecisos do progressivo esquecimento, ou são
outros os juizes que hão-de definitivamente sentencear-nos; juizes
suspeitos quando julgarem as questões de opinião ou de interesse da sua
epocha, imparciaes e incorruptiveis quando julgarem as cousas e os
homens do nosso tempo.

[Nota de rodapé 4: Joan. Major, In 3.um Sent. Dist. 37, Quest. 16, apud
Launoium, Oper. vol. I, p. 78. É, expressa por outra fórma, a doutrina
constante da igreja, tão admiravelmente resumida por Vicente de Lerins:
«Christi ecclesia, sedula et cauta depositorum apud se *dogmatum*
custos, nihil in iis unquam permutat, nihil *minuit*, nihil *addit*.
_Commonitorium_ c. 32.]

[Nota de rodapé 5: Emquanto ecumenico.]



                                   INDICE

                                                              PAG.

Advertencia prévia                                           I a XV

A Voz do Propheta, precedida de uma Introducção             1 a 118

Theatro, Moral, Censura                                   119 a 134

Os Egressos                                               135 a 154

Da Instituição das Caixas Economicas                      155 a 192

As Freiras de Lorvão                                      193 a 206

Do estado dos Archivos Ecclesiasticos do Reino            207 a 251

A Suppressão das Conferencias do Casino                   253 a 297






                        CATALOGO DE ALGUNS LIVROS
                              QUE SE VENDEM
                     NA LOJA DA VIUVA BERTRAND & C.a
                            AO CHIADO N.° 73


Affonso Africano, poema heroico da presa de Arzilla e
  Tanger, por Vasco Mousinho de Quebedo; nova edição;
  8.º, 1844--480 réis.

Os amores de Dido com Enéas, traducção da 4.ª
  Eneida de Virgilio (com o texto latino ao lado), por
  João Nunes de Andrade; 8.°, 1847--240 réis, br.

Bellezas de Coimbra, por Antonio Moniz Barreto Côrte
  Real; 12.º grande, 1831--480 réis, br.

Cantatas de João Baptista Rousseau, traduzidas
  em verso portuguez por Antonio José de Lima Leitão;
  4.°, 1816--240 réis, br.

Caramurú, poema epico do descobrimento da Bahia,
  composto por fr. José de Santa Rita Durão; 2.ª edição;
  8.°, 1836--360 réis.

Carta de guia de casados, para que pelo caminho da
  prudencia se acerte com a casa do descanso, por D. Francisco
  Manuel; nova edição; 8.°, 1853--200 réis, br.

Chronica de Palmeirim de Inglaterra, por Francisco
  de Moraes, a que se ajuntam as mais obras do
  mesmo auctor; 4.°, 3 vol., 1786--2$4OO réis.

Cinco annos de emigração na Inglaterra, na Belgica
  e na França, do brigadeiro Antonio Bernardino
  Pereira do Lago; 8.°, 2 vol., 1834--400 réis, br.

Comedias (as primeiras quatro) de Terencio, traduzidas
  em verso solto portuguez por Leonel da Costa,
  com o texto latino em frente; 8.°, 2 vol., 1788--1$200
  réis.

  Ordem, ou construição litteral, palavra por palavra,
  das primeiras quatro comedias de Terencio, pelo mesmo
  Leonel da Costa; 8.°, 2 vol, 1790--960 réis.

Eclogas de Virgilio, traduzidas em portuguez em verso
  rimado, com as notas, explicação da fabula e de alguns
  logares escuros, por José Pedro Soares; 8.°, 1800--160
  réis, br.

Elegiada, poema da jornada de Africa, por Luiz Pereira;
  fielmente copiado da edição de Manuel de Lyra,
  anno de 1588, por Bento José de Sousa Farinha; 8.°.
  1785--480 réis.

Erasto, pastoral de Gessner, traduzida do allemão; 8.º,
  1817--120 réis, br.

Escolha de poesias orientaes, traduzidas da versão
  ingleza de Guilherme Jones, e seguidas de outras varias
  rimas, por Francisco Manuel de Oliveira; 8.°, 2 vol.,
  1793-94--400 réis, br.

Eufrosina, comedia de Jorge Ferreira de Vasconcellos;
  3.ª edição, fielmente copiada por Bento José de Sousa
  Farinha; 8.°, 1786--480 réis.

Henriada, poema epico de Voltaire, traduzido em verso,
  e illustrado com varias notas, por Thomás de Aquino
  Bello e Freitas; nova edição; 16.°, 2 vol., 1812--480
  réis, br.

Henrique IV, poema epico, traduzido do original francez,
  por ***; 4.°, 1807--480 réis, br.

Historia de Cromwell, conforme com as memorias escriptas
  d'aquella epocha, e as collecções das notas parlamentares;
  escripta em francez por mr. Villemain, e
  traduzida por M. S. da C. Couraça; 8.º grande, 1842--600
  réis, br.

Historia dos descobrimentos e conquistas dos
  portuguezes nas Indias orientaes e occidentaes:
  traducção do francez pelo capitão Manuel de
  Sousa; 8.°, 4 vol., 1786--1$920 réis.

Historia de Napoleão, por mr. Norvins; traduzida do
  francez sobre a ultima edição; 8.°, 4 vol., 1846--1$200
  réis.

Historia critica do theatro, e causas da decadencia
  do seu verdadeiro gosto, traduzida do francez por Luiz
  Antonio de Araujo; 8.°, 1779--320 réis, br.

O Hyssope, poema heroi-comico, por António Diniz da
  Cruz e Silva; nova edição, revista, correcta e ampliada
  de notas; 12.º grande, Paris, 1821--600 réis.

Idyllios, e poesias pastoris de Salomão Gessner:
  traduzidos em verso portuguez por Joaquim Franco de
  Araujo Freire Barbosa; 8.°, 1784--200 réis.

Itinerario da India por terra até Aleppo e d'ali à
  ilha de Chipre, por frei Gaspar de S. Bernardino; conforme
  a edição de 1611; 8.° grande, 1842--360 réis, br.

Lisboa reedificada, poema epico de Miguel Mauricio
  Ramalho; 8.°, 1780--300 réis.

Marilia de Dirceo, por T. A. G.; nova edição; 16.°,
  3 partes, 1 vol., 1840--120 réis, br.

A Natureza, poema, por José Agostinho de Macedo;
  8.º, 1846--320 réis, br.

Newton, poema, por José Agostinho de Macedo; 2.ª edição,
  correcta e augmentada; 8.°, 1815--300 réis, br.

Noites clementinas, poema em quatro cantos á morte
  de Clemente XIV (Ganganelli), trasladado em vulgar por
  um anonymo; nova edição; 8.°, 1816--320 réis.

Obras de Francisco de Borja Garção Stokler,
  tomo 1.º (contendo elogios de homens illustres--memoria
  sobre a originalidade dos descobrimentos maritimos
  dos portuguezes no seculo xv, etc.); 8.°, 1805--400
  réis, br.

Obras ineditas de Duarte Ribeiro de Macedo,
  publicadas por Antonio Lourenço Caminha; 8.°, 1817--400
  réis.

Obras poeticas de Bartholomeu Soares de Lima
  Brandão, abbade de Coronado; 12.º grande, 1794--240
  réis, br.

Obras poeticas de Francisco Dias Gomes, mandadas
  publicar por ordem da academia real das sciencias
  de Lisboa, a beneficio da viuva e orphãos do auctor;
  4.º 1799--800 réis, br.

Obras poeticas de Nicolau Tolentino de Almeida;
  nova edição, augmentada com as suas obras posthumas;
  16.º, 3 vol., 1828--300 réis, br.

Obras poeticas de Pedro Antonio Correia Garção;
  nova edição; 8.°, 2 vol. 1826--600 réis, br.

Obras de Virgilio, traduzidas em verso portuguez, e
  annotadas por Antonio José de Lima Leitão; tomo 1.°,
  contendo as Bucolicas e as Georgicas; 8.° grande,
  1818--5OO réis, br.

O Paraiso perdido, epopéa de João Milton, vertida do
  original inglez para verso portuguez por Antonio José
  de Lima Leitão; 8.° grande, 2 vol., 1840--1$200
  réis, br.

Poemas lusitanos do dr. Antonio Ferreira; 3.ª impressão;
  16.°, 2 vol., 1829--320 réis, br.

O porque de todas as cousas, ou endelechia da philosophia
  natural e moral, problemas de Aristoteles; escriptos
  no idioma castelhano por frei André Ferrer de
  Valdecebro e expostos na linguagem portugueza pelo
  padre Manuel Coelho Rabello; 8.°, 1818--300 réis.

Rimas de João Xavier de Matos; nova edição; 8.°,
  3 vol., 1827--1$440 réis.

Rimas varias, Flores do Lima, etc., por Diogo Bernardes
  e seu irmão Fr. Agostinho da Cruz; 12.°, 3 vol.
  1770--600 réis, br.

Do sitio de Lisboa, sua grandeza, povoação e
  commercio, etc., dialogo de Luiz Mendes de Vasconcellos;
  nova edição conforme á de 1608; 8.°, 1786--240
  réis, br.

As Solidões, poema de Cronegk, extrahido e traduzido
  da escolha de poesias allemãs de Huber; e algumas poesias
  portuguezas feitas em 1833 ao Bussaco; 8.°, 1835--160
  réis, br.

Successo do segundo cerco de Diu, estando D. Joham
  Mascarenhas por capitão da fortaleza, em 1546; poema
  de Jeronymo Côrte Real, fielmente copiado da edição
  de 1574 por Bento José de Sousa Farinha; 8.°, 1784--480
  réis.

Tratados de amisade, Paradoxos, e Sonho de
  Scipião, compostos por M. T. Cicero, e traduzidos do
  latim em linguagem portugueza por Duarte de Rezende,
  no anno de 1531; agora reimpressos por Luiz Antonio
  de Azevedo; 8.°, 1790--300 réis.

Ulysippo, comedia de Jorge Ferreira de Vasconcellos
  3.ª edição, fielmente copiada por Bento José de Sousa
  Farinha; 8.°, 1787--480 réis.

A verdade, ou pensamentos philosophicos sobre os objectos
  mais importantes á religião e ao estado, por José
  Agostinho de Macedo; 16.°, 1837--200 réis, br.

Viagem extatica ao templo da sabedoria, poema
  em quatro cantos, por José Agostinho de Macedo; 4.º,
  1830--600 réis, br.

Viagens de Cyro, historia moral e politica, pelo cavalheiro
  de Ramsay, traduzida em portuguez; nova edição;
  12.°, 2 vol., 1817--600 réis.





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Tomo I, by Alexandre Herculano

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