The Project Gutenberg EBook of O Annel Mysterioso, by Alberto Pimentel This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: O Annel Mysterioso Scenas da Guerra Peninsular Author: Alberto Pimentel Release Date: September 17, 2010 [EBook #33749] Language: Portuguese *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O ANNEL MYSTERIOSO *** Produced by Pedro Saborano Notas de transcrição: O texto aqui transcrito, é uma cópia integral do livro impresso em 1904. Foi mantida a grafia usada na edição original de 1904, tendo sido corrigidos apenas pequenos erros tipográficos que não alteram a leitura do texto, e que por isso não foram assinalados. O ANNEL MYSTERIOSO NOVA COLLECÇÃO PORTUGUEZA II O ANEL MYSTERIOSO SCENAS DA GUERRA PENINSULAR ROMANCE ORIGINAL DE ALBERTO PIMENTEL 3.ª EDIÇÃO, ILLUSTRADA, REVISTA PELO AUCTOR LISBOA EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL _Sociedade Editora_ LIVRARIA MODERNA Rua Augusta, 95 TYPOGRAPHIA 45, Rua Ivens, 47 1904 PROLOGO DA 3.ª EDIÇÃO Este é um dos romances da minha mocidade. Foi publicado pelos editores da _Bibliotheca Universal_, de Lisboa, em 1873. Precederam-n'o os _Idyllios á beira d'agua_, (1870), a minha primeira tentativa no romance, e _O testamento de sangue_, escripto aos vinte e trez annos. Estas datas desculpam hoje, aos meus proprios olhos, tudo quanto ha de hesitante e incorrecto em todas as trez novellas, que foram as primicias litterarias de um rapaz educado n'uma terra essencialmente commercial, avessa a idealidades romanescas e ao convivio e apreço de escriptores, bons ou simplesmente toleraveis. Pelo que especialmente respeita ao _Annel mysterioso_, se quando agora o reli me não descontentou a acção dramatica, achei-lhe comtudo algum excesso de floração declamatoria, que é um defeito peculiar a todos os estreantes. A grande arte de escrever está na ponderada sobriedade da expressão, no equilibrio estavel entre a phrase e o pensamento. Fóra d'isto ha rhetoricos, mas não ha escriptores. Se eu, no decorrer dos annos, consegui aproximar-me d'este requisito essencial, não perdi de todo o meu tempo. Mas, ainda n'esse caso, é defensavel a reimpressão de uma novella, que póde fornecer elementos de confronto entre duas épocas da vida de um escriptor. Como quer que seja, o _Anel mysterioso_ agradou quando foi publicado em 1873. A breve trecho sahiu a segunda edicção. E os mesmos editores me convidaram a escrever logo em seguida outro romance, que foi _A Porta do Paraizo_.[1] Ambos estes livros me abriram caminho entre o publico de Lisboa. O exito da _Porta do Paraizo_ explica-se facilmente pelo interesse que inspirava ainda então o reinado de D. Pedro V. Quanto ao _Annel mysterioso_, que não é senão a biographia de uma celebridade das ruas do Porto, parece que foi o entrecho commovente que no espirito dos leitores lisbonenses suppriu a falta de conhecimento directo do protagonista. Quando eu escrevia este romance, muitas pessoas d'aquella cidade se lembravam ainda de ter visto frequentes vezes o _Desgraça_. Uma d'essas pessoas era Camillo Castello Branco, que, seis annos depois da publicação do _Anel mysterioso_, dizia a pag. 296 do livro _Sentimentalismo e historia_: «A um canto (do botequim da _Aguia d'ouro_) estava um velho de semblante livido, muito desgraçado, com um chapeu enorme de sêda d'um azulado decrepito, com um grande cigarro no canto da bocca. Ao lado, sobre um mocho, via-se uma guitarra com manchas gordurosas de suor que punham brilhos, e aos pés um cão d'agua com o felpo encarvoado, cheio de torçidas, encaroçado, dormia, e acordava de salto, apanhando com muita furia, no ar, as moscas que lhe picavam as orelhas. Era o José das Desgraças, o legendario mendigo, que morreu de saudades do seu cão, aggravadas pela fome». Esta referencia authentíca hoje o retrato de uma individualidade popular, cujos contemporaneos dormem, como ella, o somno eterno da morte. Lisboa, 10 de abril de 1903. _Alberto Pimentel._ [1] A quarta edicção, luxuosa, d'este romance, foi por nós publicada em 1900. (Nota dos editores.) O ANNEL MYSTERIOSO I O Desgráça Entre os typos populares, que pouco a pouco vão rolando a sepulturas ignoradas, deixando após si o rasto de uma vida sobremodo accidentada de peripecias quasi sempre sombrias--rasto que só um ou outro escriptor se compraz em prucurar desde a cadeia ao degredo, do albergue ao cemiterio--avulta na tradição portuense um homem que por longo tempo ahi foi o alvo das assuadas do rapazio e dos chascos dos frequentadores de botequim. Uns chamavam-lhe o _José das Desgraças_, outros simplesmente o _Desgraça_. Parece dever inferir-se de tão lutuosa alcunha que a população da cidade lhe conhecia a biographia exuberante de lastimosos lances. Tal não ha. Quando elle passava coxeando arrimado ao seu bordão, sobraçada a guitarra inseparavel, de velho chapéo alto amassado, sobrecasaca abotoada, pendente a medalha de prata da guerra peninsular, annel d'ouro na mão esquerda, na bocca o enorme cigarro que elle proprio manipulava com pontas de charuto, seguido do cão fiel, que se chamava _Junot_, por motivos que mais tarde desvelaremos, o gentio das ruas ou sorria alvarmente da pittoresca pobresa do excentrico mendigo, ou rompia em apostrophes de _Ó Desgraça! Ó Desgraça!_ que elle parecia não ouvir ou despresar em sua imperturbavel serenidade. E a populaça, sem sequer suspeitar da tenebrosa origem do cognomento, quedava-se a ouvil-o, calmadas as arruaças com que era saudado, quando elle, sentado á porta de um café, especialmente o do Jardim de S. Lazaro, começava a tanger melancolicamente a sua guitarra, na qual executava operas completas, queimando o seu enorme rolo de tabaco e contemplando, de cabeça inclinada, o cão que parecia escutal-o attentamente... Depois, quando a mão caía extenuada sobre as cordas silenciosas, affigurava-se, tão alheado ficava, que estava rememorando maguas intimas, segredos da sua vida obscura, sem que parecesse dar tento das esmolas que lhe atiravam ao regaço os que entravam ou saíam a porta do botequim. Ás vezes, como se não houvesse conseguido linimentar com a musica as recordações dolorosas acordadas no imo peito, voltava a tanger na guitarra uns dulcissimos arpejos que finalmente lhe serenavam a alma tempestuosamente alanceada, chorando por elle, que não tinha lagrimas. Restituido á realidade da sua resignada nobresa, erguia-se firmado no bordão, sobraçava a guitarra, e continuava a peregrinação, vagueando pelas ruas da cidade, sem todavia dirigir-se aos transeuntes e recebendo impassivel os óbolos que jámais solicitava. E o cão, o leal companheiro de infortunio, seguia egualmente resignado seu dono, e quasi sempre indifferente ás provocações do rapazio que se divertia em apedrejal-o e açulal-o. Frequentemente intervinha o _Desgraça_ ameaçando com o bordão os perseguidores do seu dedicado companheiro; mas como o inquieto rapazio conhecesse que a velhice lhe desnervava o braço, entrava de levantar celeuma atroadora, em que, ainda assim, quasi sempre se distinguiam vozes de «Morra o _Desgraça_ e o _Junot_! Vende o annel e não andes a pedir!» Estranho homem devia de ser esse, que parecia guardar grande mysterio, e tinha por unico amigo, entre uma população inteira, que o apupava, o cão fiel, e por consolação unica a sua guitarra, e por unica protecção a piedade dos seus conterraneos, que elle não implorava. O povo não suspeitava sequer que a biographia d'aquelle homem justificasse o appellido. Quando o _Desgraça_ fazia chorar a guitarra entre os dedos, e o cão denunciava comprehender a guitarra, como que ligeiramente se commovia a turba acatasolada, mas d'ahi a pouco, quando estrondeavam os apupos, era o cão o unico espectador que mostrava lêr na physionomia do velho o mysterio de uma vida tormentosa. Ria a gentalha torpe d'aquella intima convivencia de homem e cão. E todavia não saía d'entre a arraia miuda o mais desgraçado dos populares a dizer ao pensativo guitarrista: «O teu cão sente e não fala; eu falarei por elle. Soffres decerto muito e precisas consolação. Eu sou tambem muito infeliz, muito mais do que tu, porque não tenho guitarra nem cão. Deixa-me pois compartir do teu cão e da tua guitarra, que eu te darei o que tu não tens, dois ouvidos que te escutem, uma voz que te responda.» Não. A desgraça é tão infeliz, que se ri da desgraça; é ella que se desauctorisa a si mesma. Só lhe falavam para chasqueal-o, para lhe cuspir na face a zombaria que elle, absorto no seu continuo cogitar, deixava resvalar aos pés. E todavia aquelle homem era um grande desgraçado, que só tinha no mundo a sua guitarra, o seu cão, e as suas recordações. O annel, que trazia na mão esquerda, podia matar-lhe talvez um dia de fome, mas não haveria miseria que lh'o arrancasse do dedo, porque as suas recordações estavam n'aquelle annel. * * * * * II Na quinta das Chãs Na noite de 17 de fevereiro de 1809, a morgada viuva da quinta das Chãs conferenciava gravemente com o seu capellão n'uma das salas terreas do solar, a duas leguas de Braga, sobranceiro á aldeia de Carvalho d'Éste. A morgada, senhora de uns sessenta annos, deixava entrever nas sombras da physionomia a tempestade que lhe agitava a alma; o capellão, passeando de um para outro lado, enviesava á morgada olhares investigadores, que para logo revelariam perfidia e cupidez. --É preciso partir, padre capellão, dizia afflictivamente a morgada. Se os francezes logram atravessar o rio Minho, estarão brevemente em Braga. A mim pouco me importaria a vida se não fosse Augusta, que a esta hora está dormindo na serenidade da sua innocencia. Tomára que chegasse o Teixeira para contar o que se passou. Diga o que disser, padre capellão, é preciso pensar maduramente. Meu genro fez-me depositária de um thesouro, que eu hoje quero salvar de todos os perigos, custe o que custar, porque se me affigura que já estimo mais Augusta do que aos seus proprios paes, e a seu irmão. Recebi minha neta aos 5 annos, porque á luz da consciencia conheci que melhor poderia eu sustentar uma criança, apesar das hypothecas da minha casa, do que um pobre capitão do exercito poderia sustentar dois filhos. O padre capellão administrava as propriedades. Que me restava a mim para não morrer de aborrecimento durante o dia? Augusta, a criança que me tinha sido confiada. Era ella a minha unica distracção, o meu unico amor; ha dez annos que este tecto lhe abriga a innocencia, e ha dez annos que eu abençôo a resolução de a chamar para amparo da minha velhice. Olhe que os annos tornam a gente egoista, padre capellão; a abnegação é só apanagio da mocidade. Não pense que me bastava a unica distracção do voltarete; é sempre a mesma cousa! Quando eu _peço licença_ o padre capellão _prefere_, e o Teixeira dá-lhe _codilho_. Tambem é boa embirração a sua de _preferir_ sem jogo. Nem que tivesse vontade de fazer mal... E o dia, estes longos dias da provincia, que não teem fim! Era morrer de fastio. Augusta trouxe-me cuidados e variedade. A principio com as suas exigencias de criança; agora com as suas ingenuidades de donzella. Vi, anno a anno, desabotoar a flôr. A flôr, disse bem, porque Augusta é realmente uma rosa... de quinze annos. E é que eu a estimo como seu jardineiro que sou. Instantemente lhe pedi que se deitasse para que não ouvisse dizer ao Teixeira as proezas que os senhores francezes teem feito lá para esse rio Minho. Mas, padre capellão, o que é certo é que eu já haveria partido para o Porto, se n'esta occasião estivesse prevenida com recursos. O padre capellão bem sabe... --Sei, sei, senhora morgada, que a occasião é má para todos. --Se os caseiros pudessem pagar o resto das rendas... --A senhora morgada devia conhecer o que é guerra sobre guerra. Tivemos esse excommungado Junot, mais as suas aves de rapina, a comer-nos os olhos da cara. Nem as egrejas respeitou, o maldito! A senhora morgada ainda fala em pedir o resto das rendas aos caseiros! E para quê? Para fugir para o Porto, para casa de seu genro, para abandonar as suas propriedades! --O padre capellão velará por ellas. É que eu bem sei os sustos que curti aqui durante a primeira invasão. Se no Porto não estivesse a soldadesca do Taranco, teria fugido para lá. --E que teima essa de me querer confiar as suas propriedades, capacitado como estou de que a senhora morgada suppõe que lh'as administro mal! Administro mal, administro, porque não forço os caseiros a pagarem o resto das rendas para vossa senhoria o ir gastar no Porto com a familia de seu genro. Depois de uma guerra e em vesperas de outra é que a senhora morgada fala em pagar! --Pagar é um dever, padre capellão, e quanto mais nos apressamos a fazer o que devemos tanto maior é o repouso do espirito. Bem sei que são más as circumstancias, mas é que tambem esta pobre gente se importa pouco com o calendario, e acha que todo o tempo é tempo. É que tambem não imaginam que se esconda a pobresa detraz de pergaminhos e genealogias. Pois esconde, se esconde! Sabe o padre capellão que eu falei no resto das rendas porque n'esta occasião não ha dinheiro em casa. Ninguem melhor o sabe, porque lhe passam os negocios pela mão. O que é certo é que eu sinto ameaços de pobresa... --Nem tanto ao mar, senhora morgada... --Se presinto! Vivo modestamente n'estas solitarias Chãs, encantada nas graças d'Augusta, cerrando ouvidos ao bulicio da cidade que está proxima. Não posso fazer despezas extraordinarias, é preciso não largar a brida da mão para costear as indispensaveis. --Os chás não são indispensaveis, senhora morgada... --Magôa-me a sua ironia, padre capellão! Tanto mais que sabe como é limitado o serviço da nossa mesa de jogo. E depois queria que eu fechasse as minhas portas na face do velho Teixeira, amigo leal da nossa casa desde a mocidade de meu marido? Sabe o padre capellão como o morgado deixou as propriedades sobrecarregadas de hypothecas. Mal tenho podido rehabilitar o casal, apesar de todas as economias e da maxima abstenção d'obras de beneficencia... --Maxima abstenção!... --É injusto, padre capellão! Refere-se talvez á Augusta... Não sabe que é filha de minha filha, casada por inclinação com um honrado militar do exercito portuguez, a quem não basta unicamente a sua immaculada honradez para ser feliz! Era-me impossivel soccorrer a mãe; soccorri a filha. Eu não podia ir mais longe, senão teria ido. Sempre contrariedades! Sempre o padre capellão a annunciar-me algum novo desastre! Ah! mas d'esta vez creia que não haverá desastre nem contrariedade que me véde o tirar dos hombros uma enorme responsabilidade, levando Augusta para a companhia dos seus, e minha tambem, porque ella é minha, e muito minha, pelo sangue e pelo coração... Em ultimo caso, recorrerei ao emprestimo... --Outro? --É minha filha e meus netos que eu prejudico; o padre capellão, não. Todavia, como é para bem d'elles, elles m'o perdoarão. O padre capellão por sua propria mão recebe os juros das quantias que tem desembolçado, e creio que as propriedades que conservo fartamente abastarão ao pagamento do capital, no momento em que queira usar dos seus direitos de crédor. --Eu não quero... --Deixe-me figurar a peior hypothese, e evidenciar-lhe que lhe não causam detrimento os seus desembolços. --Falando francamente, senhora morgada, sou a dizer-lhe que o juro é pequeno... --Augmente-o como lhe apraza. Não é meu costume questionar cinco réis ao padre capellão. --Eu sou tão pobre como a senhora morgada, tartamudeou o reverendo com um frouxo de tosse que denunciava estar providencialmente entalado com o osso da mentira. A morgada gesticulou de incredulidade e enfado. --Eu sou tão pobre como a senhora morgada, reatou o capellão ajudando-se a engulir a falsidade com um sorvo de rapé--e é á custa de trabalho que tenho recolhido escassas mealhas ao canto da gaveta. De inverno arrosto as neves da madrugada para saír aos campos a espionar os trabalhadores no interesse de vossa senhoria. No verão aguento as calmas do meio dia para os estimular ao trabalho. As horas feriadas de canceiras externas passo-as á banca a fazer a escripturação ou no quarto a rezar as minhas orações. Tenho envelhecido ao serviço de vossa senhoria, e o magro peculio do pobre padre ao trabalho o devo. E o mais é que já vou achando ser horas de descançar... Vejo porém que não seria facil encontrar quem com zelosa dedicação governasse a casa alheia, e, se me é canceira o dirigil-a a despeito da velhice, tambem me é consolação o ouvir dizer-me a consciencia que devo trabalhar por não ver quem facilmente me substitua. Digam embora o senhor seu genro e a senhora sua filha o que quizerem, e me consta que dizem: a verdade é esta... --Convenho, padre capellão, e é por conhecer a sua desinteressada--a morgada deu a esta palavra uma inflexão sensivelmente ironica--desinteressada dedicação, que tenho batido á sua porta sempre que a necessidade me obriga a incommodar alguem. Se lhe pedia agora para passar aviso aos caseiros, era porque não queria importunal-o com repetidas mercês... --Nunca me incommodaram as ordens de vossa senhoria, atalhou o padre, curvando-se respeitosamente a meio da sala. --Eu é que a mim mesma me incommodo com a ideia de incommodal-o, posto que eu não seja dos devedores que mais devem aborrecer por egoistas... --Creio que já tive a honra de dizer á senhora morgada que a occasião é má para todos.--E proseguiu mirando ao alvo que elle queria attingir: Era porém grande a quantia que vossa senhoria desejava? --A sufficiente para me transportar ao Porto com a menina, e para não tornar pesada a hospedagem que minha filha haja de dar-me. É preciso partir, padre capellão, se os francezes não forem repellidos na fronteira. Entrarão por esse Minho dentro furiosos, e eu não respondo só pela minha vida, que já pouco vale, mas tambem pela de Augusta, que me foi confiada em deposito. Que valeria a minha presença aqui? Os criados fugiriam decerto, e a edade do padre capellão não lhe permittiria defender duas mulheres, ambas timidas, uma porque é velha, e outra porque é nova. Além de maior segurança que offerece o Porto, como grande cidade que é, Augusta poderá d'ali seguir melhor a sorte de seu pae e seu irmão nos combates. Não estará para aqui anciosa sem receber noticias que a tranquillisem. Aqui, quando ha guerra, apenas se sabe que ha guerra, e mais nada. O padre capellão offereceu-se para ficar; desappareceram todas as difficuldades. Sem o seu offerecimento eu não poderia deixar desamparado o solar de meus avós. Teria de luctar angustiosamente entre o amor d'Augusta e o respeito á memoria de meus paes e meu marido. Se os invasores entrarem, respeitarão porventura a sua velhice e as suas vestes, padre capellão, se é que elles respeitam alguma cousa... O padre capellão, julgando haver já simulado a precisa resistencia á partida da morgada, apostrophou de golpe: --Mas, voltando ao caso, senhora morgada, ponhamos os pontos nos i i. Quanto desejava vossa senhoria? --Eu... cem moedas talvez. --Cem moedas é muito, senhora morgada, e eu não estou prevenido. --Pois veja o padre capellão se póde obter essa quantia, que eu cederei a qualquer exigencia de juro. --Menos de 15 por cento não será possivel, senhora morgada... --Pagarei os 15 por cento; trate o padre capellão de negociar sem demora as cem moedas. --Hum! rouquejou o padre. Veremos. Póde ser que se abra alguma porta ao homem honrado que só em grande estreiteza deixa d'abrir a sua. Ámanhã falaremos, senhora morgada. Vou fazer as minhas rezas emquanto não chega o palrador do Teixeira com noticias dos francezes... E saíu da sala em direcção ao seu quarto. A morgada, vendo-se só, pareceu respirar com sofreguidão, como o encarcerado que conquista a liberdade e, como elle, pareceu conversar comsigo mesma: --Que alma de marmore a d'este homem! É um inimigo que tenho de portas a dentro e que conservo porque me não permitte o animo nem a edade travar lucta com tão arteiro contendor, que apara todos os golpes na batina com beatitude irritante. Depois levantou-se, agitou a campainha, e esperou com os olhos fitos na porta que apparecesse a criada. --A menina dorme? perguntou. --Dorme, senhora morgada. --Accende o candieiro e abre a mesa. Quando bater o sr. Teixeira, manda entrar. Palavras não eram ditas, resoou a aldrava do portão. Momentos depois entrava á sala o velho Teixeira, fidalgo retirado das pompas da côrte por conselho da consciencia que o advertia de que estava a empobrecer d'um dia a outro. N'aquelles tempos que precederam a retirada da familia real para o Brazil, as tentações de Lisboa eram tantas, e tão dispendiosas, que não admirava que um cortezão immolasse a celebradas damarias o seu opulento morgado do Minho. Alguma coisa salvára porém o velho aulico do muito que na côrte consumira. Trouxera de lá a palaciana compostura que realça até mesmo na decadencia. Maneiras e palavras, pesadas com fina discreção, estavam desculpando a cada passo as sombras que por mais d'uma vez denunciavam não ser impeccavelmente crystalina a reputação das açafatas da rainha D. Maria I. Entrou o fidalgo e logo correu a morgada a perguntar-lhe anciosamente: --Que noticias nos traz vossa senhoria? --Boas, senhora morgada, se póde haver boas noticias quando a tempestade, que se descondensa n'um ponto, ameaça n'outro. --Inda bem! inda bem! apostrophou a morgada relanceando um olhar d'alegria á porta do quarto onde estava descançando a neta. O padre capellão, sem se dar o incommodo de desculpar a ligeireza com que alinhavara as suas orações, appareceu mordido de curiosidade. --E o caso é que pensei que das indagações já não sobrava tempo para o nosso voltarete!--disse o Teixeira sentando-se a um gesto da morgada.--Venho tarde, e porei por desculpa da demora o bom empenho que tinha em poder satisfazer a justa anciedade de vossa senhoria. --Não obstante serem boas as informações, supplico-lhe que não aggrave as côres do quadro, dado que entre por ahi de improviso a minha neta, que se recolheu aos seus quartos, por ordem minha, para não ser testemunha auricular da narrativa no caso de que fosse lugubre. --Os francezes foram repellidos heroicamente, disse o fidalgo baixando a voz. --Vamos a isso! atalhou o padre capellão fungando uma pitada. O fidalgo proseguiu: --Os francezes não ousaram metter-se ao Minho, que vae de monte a monte, com a agua que tem caído, por se arreceiarem da cheia. Trouxeram por terra os barcos que puderam obter na Guardia, e puzeram-n'os a nado no Tamuge. --Que artes teem os malditosl exclamou o capellão lembrando-se de que não haveria thesouro que resistisse á astucia franceza. --Deixe ouvir... observou a morgada. --Eram vinte e tantos os barcos, que pretendiam abicar á praia do Camarido. Trez separaram-se, ao descer o rio, e chegando primeiro á praia, os soldados desembarcaram. Os outros barcos tiveram que luctar, e muito, contra a maré que lhes era adversa. Isto durou toda a noite. Só hontem de madrugada foi que o Champalimaud percebeu claramente a tentativa do inimigo, e que mandou fazer fogo de fuzilaria. Um dos barcos foi a pique; outro despedaçou-o o mar. Os francezes dos trez primeiros barcos refugiaram-se no Camarido. Estes desastres deram alento aos paisanos, que se embarcaram para atacar o inimigo no rio, protegidos pela artilharia da Areia Grossa e da Insua, e pelos soldados do 21. Os francezes, contrariados pela correnteza das aguas e pela resistencia dos nossos, retrocederam para a margem direita do Minho, desesperando d'atravessal-o. Então bateram os nossos a matta do Camarido, encontrando dentro mais de trinta francezes, um dos quaes consta ser capitão e haver declarado o nome do general em chefe de todo o exercito. Chama-se Soult o general... --Elles tambem escolhem-n'os pelos nomes! interrompeu o padre para quem toda a prosodia era difficil, incluindo a latina e a... portugueza. --Os paisanos, segundo se dizia em Braga, fizeram proezas, continuou placidamente o fidalgo. Até as mulheres acudiram com fouces roçadouras e forcados. --Nunca as mãos lhes dôam... observou impudentemente o capellão --Pelo meio dia atacaram os francezes Villa Nova da Cerveira, sendo ainda repellidos brilhantemente pelos nossos, tropa e povo. Mas, senhora morgada, o que mais dava que falar era a coragem de trez rapazes de Valença, que se arrojaram a ir encravar um morteiro, que os francezes tratavam de assestar contra a praça. Isto é o que se sabe desde manhã; o que já se terá passado pertence a Deus e aos que estão em armas. --Mas que lhe parece a vossa senhoria: entrarão ou não entrarão? perguntou a morgada. --Para que nos havemos de illudir com mentirosas esperanças? Os invasores são poderosos e por mais d'uma parte poderão entrar, ao passo que os nossos, divididos para guarnecerem as fronteiras, perdem muito de sua força n'essa mesma divisão. --Com que então não se fala por ora em guerra! disse de improviso a morgada ouvindo abrir a porta do quarto d'Augusta. O fidalgo já não teve tempo de responder porque sentiu na sala os passos da menina. --Então não ha guerra? exclamou Augusta com graciosa innocencia. --Não ha, não ha, respondeu amavelmente o fidalgo; a não ser a do nosso voltarete. E continuou, convidando a morgada a sentar-se: --Permitta-me vossa senhoria, senhora morgada que eu continue a assestar a bateria dos codilhos contra a muralha de _preferencias_ do nosso reverendo. Então, padre capellão, quer sentar-se?... Em que estava pensando tão absorto? --Estava pensando que se não puderem entrar pelo litoral, poderão entrar por Chaves, porque o castello está desmantelado, disse o capellão com a maxima impudencia ou com a maxima velhacaria. --O quê?! perguntaram todos a um tempo, incluindo Augusta, que pareceu fulminada de raio. --Ah! sim... isto é quando elles entrarem. Vamos lá fazer a partida. * * * * * III Pomba que presente sangue A morgada das Chãs passou agitadamente essa noite, e do inquieto cogitar na solidão do seu quarto resultou levantar-se decidida a partir n'esse dia com a neta. O padre capellão negociou as cem moedas... comsigo mesmo, dizendo que as obtivera d'um proprietario mediante o desconto dos juros d'um semestre adiantado. Partiu a morgada, de manhã, para o Porto, acompanhada por Augusta, depois de haver entregado as chaves da sua casa ao capellão, que tinha nos labios um sorriso de alvar alegria. Tambem a morgada estava radiosa do duplo jubilo de poder respirar desopprimida da sombra d'aquelle homem, e de ir collocar sob o amparo paternal a neta querida do seu coração. Nas faces d'Augusta havia egualmente um reflexo d'intimo contentamento, não só porque a aproximavam dos paes, mas porque a levavam para os braços do irmão, a quem ternamente estremecia, e com o qual permutava cartas diarias perfumadas das mais suaves fragrancias do amor de familia. A menina contava quinze annos, como já sabemos; o irmão, que se chamava José Maria, tinha dezeseis. Estas duas creanças eram filhas do capitão do exercito Graça Strech, que em 1809 morava á rua nova do Almada[2]. O appellido Strech inculca á primeira vista procedencia estrangeira, e realmente é d'origem germanica. O pae do capitão Graça, allemão de nascimento, fôra capitão de navios, e tivera por ultimo um modesto estabelecimento commercial em Cima do Muro. Os dois filhos de Graça Strech nasceram porem á rua Direita, na casa que divide a rua de Santo Ildefonso da rua de Santo André, e onde elle morára durante os annos de 1793 e 1794. Augusta era tudo o que se póde imaginar de graciosamente feminil na época em que nos é dado conhecel-a. O pintor que quizesse retratal-a facilmente lançaria á tela os cabellos loiros, naturalmente annelados; os olhos d'um azul suavissimo como os mais formosos horizontes; as faces d'uma brancura levemente rosada; a estatura _mignonne_,--tudo quanto póde haver de mais correcto e dôce em figura de mulher. Mas a difficuldade estaria seguramente em reproduzir no retrato a meiga morbidez dos lirios que se abrem ao desabrochar da manhã. E n'ella brotava a mulher das graças da creança, como um lirio á luz da aurora. José Maria era uma organisação inteiramente opposta á de sua irmã. Dir-se-ia que ella havia nascido para rosa, e elle para roble; ella para succumbir, e elle para luctar. Desenhavam-se no seu corpo de dezeseis annos os contornos athleticos d'um spartano. Olhos vivos, e pretos como os cabellos; talhe esbelto, maneiras sacudidas e ageis. Pois que elle era a força e Augusta a brandura, affigurava-se providencial essa disparidade de constituições, e até de genios, para que a flôr pudesse ser protegida pela sombra do roble. Quando a morgada das Chãs chegou ao Porto, entrou-se de profundo arrependimento por ter feito vingar a sua resolução. Em casa da familia Strech era grande a tristeza. O pae e o irmão[3] estavam no exercito, e portanto a tristeza provinha da anciedade com que o azar dos combates alvoroça sempre as familias dos militares. --Eu trouxe Augusta, dizia a morgada, chorando, á filha, para que, se houvesse de correr perigos, não ficasse o meu coração atormentado de medonha responsabilidade; porque mais facilmente saberia aqui noticias do pae e do irmão do que nas Chãs; e porque finalmente o Porto offerecia maiores garantias e segurança do que qualquer outra terra. De feito, a cidade do Porto era julgada inexpugnavel, e a ella se acolhera grande parte da população do Minho, á medida que os acontecimentos da guerra se iam desdobrando. Tratemos de saber quaes foram. Os francezes, impossibilitados de seguir o caminho do litoral, que lhes tinha sido ordenado, marcharam para Traz-os-Montes no proposito de entrar em Portugal pelo valle do Tamega. No dia 8 de março estavam as avançadas francezas á vista de Chaves, que no dia 10 foi sitiada, rendendo-se no dia 12. O marechal Soult, vendo-se impossibilitado de guardar os prisioneiros, despediu as milicias e as ordenanças, que estavam dentro da praça, depois de lhes exigir juramento de que nunca mais pegariam em armas. As praças da tropa de linha convidou-as a bandearem-se no seu exercito; ellas unanimemente aceitaram com o proposito de desertar, como aconteceu. O sonho de Soult era tomar o Porto, e para o realisar tinha nada menos que dois caminhos: o que vae a Villa Real e o que vae a Braga. O marechal preferiu o segundo, por ser o menos accidentado. Chegado que fosse a Braga, só encontraria no caminho do Porto a difficuldade da passagem do Ave em Santo Thyrso. Seguiu, pois, o exercito francez para as alturas de Barroso no dia 14. O general Bernardim Freire d'Andrade, tendo noticia de que os piquetes francezes escaramuçavam na Portella de Avado e em Villarelho da Raia com as avançadas do general Silveira, commandadas pelo coronel Magalhães Pizarro, tomou desde logo todas as medidas possiveis para salvar o Porto, repartindo as suas pequenas forças por Salamonde, Ruivães, Salto e Ponte do Cavez, guarnecendo a raia, e mandando occupar Amarante o brigadeiro Victoria, a cujas ordens militavam o capitão Graça Strech e seu filho. No dia 15 foi Freire de Andrade insultado pela população de S. Gens, quando voltava de visitar os postos entre Braga e Ruivães. O fim a que avisava o general portuguez era retardar a marcha do inimigo sobre Braga, quanto lhe fosse possivel, para dar tempo a que d'aquella cidade saíssem para a defeza do Porto as munições e o laboratorio. Depois de haver expedido ordem ao brigadeiro Victoria para se internar no Porto, recolheu-se Freire d'Andrade no dia 17 a Braga, encontrando por todo o caminho vestigios da grandissima exaltação popular, que se levantára mal que soou a noticia da aproximação dos francezes. Dado o signal de rebate, o povo do Minho saíu em turbamulta a esperar o inimigo em Carvalho d'Éste, e outros logares convisinhos, armado de chuços, fouces roçadouras, e mais instrumentos proprios do seu uso. Em Carvalho d'Éste houve brodio geral, constante de pão e vinho, a expensas d'alguns particulares patriotas, o que não obstou a que um dos membros da sordida junta de segurança apresentasse o rol das despezas. Procedendo-se a uma collecta geral, que foi voluntariamente paga, ficou o povo duplamente esfomeado, porque a contribuição parece que só aproveitou á junta de segurança. Avisinharam-se, finalmente, os francezes da cidade de Braga, e conhecendo Freire d'Andrade, no dia 17 em que ali entrou, que era impossivel qualquer defeza, mandou retirar pela estrada do Porto, resolvido a embargar denodadamente o passo ao inimigo n'essa marcha. Todavia o povo, suppondo-o traidor por não se haver empenhado em acção geral com os invasores, saíu-lhe ao encontro em Carapoa, e já ahi seria morto se lhe não valesse Antonio Berardo da Silva, commandante de uma brigada de ordenanças. Removido o inesperado perigo, seguiu o general seu caminho, mas encontrando-o as ordenanças de Tabosa, prenderam-n'o e conduziram-n'o a Braga, onde, chegado que foi é prisão do Aljube, a populaça desenfreada o arremessou pelas escadas abaixo, acabando de matal-o ás chuçadas. Subsequentemente foram tambem immolados á sanha popular, em Braga, o quartel-mestre general de Bernardim Freire, Custodio Gomes Villas Boas, o corregedor da cidade, Bernardo José de Passos, e outros; e em Santo Thyrso, D. João Correa de Sá e Manoel Ferreira Sarmento. No mesmo dia da morte do general Bernardim Freire de Andrade tomavam os francezes posição em frente de Carvalho d'Éste, sendo repellidos no primeiro ataque. O barão d'Eben commandava as nossas tropas, com as quaes se havia bandeado a gente das aldeias convisinhas. Entre a populaça contavam-se os criados da quinta das Chãs que desampararam o padre capellão, sempre prompto a castigal-os, e odiado por elles. Pelas onze horas da noite chegaram, para reforçar o posto, a legião de Salamonde e duas companhias do regimento de Vianna. Soldados e povo estavam famelicos. Durante a noite um magote de populares, engrossado pelos criados da morgada, bateu ao portão da quinta. Ao primeiro chamamento não respondeu ninguem; ao segundo assomou a uma das janellas a cabeça silicosa do padre capellão. --Pão e vinho! gritou a turba. --Não está cá a senhora morgada, tartamudeou o reverendo. --É o mesmo; abra a porta, contestou o gentio. Como porém a impaciencia da turba fosse muita, a populaça metteu a porta dentro a tempo que o padre atravessava o pateo de lampeão em punho. Um dos populares vibrou-lhe uma chuçada que o prostrou, e logo outro, que era criado da casa, acrescentou:--Vamos á _burra_ do padreca; no que fôr da senhora morgada não se toca. No dia seguinte atacou o inimigo novamente Carvalho d'Éste, e no dia 20 voltou ao ataque, apparecendo em grande força. Parece que a Providencia havia aconselhado a morgada das Chãs a fugir de um ponto onde a lucta foi mais renhida, porque, posto que os populares a respeitassem, o inimigo caiu no dia 20 em forte columna sobre Carvalho d'Éste, empenhando-se ataque geral, e sendo desesperada a posição dos nossos, que fugiram em grande confusão, acossados muito de perto pela cavallaria franceza. No pateo da quinta das Chãs tinham os nossos quinze barris de polvora que, não podendo ser salvos, por estar muito proximo o inimigo, foram incendiados por ordem do barão d'Eben, perecendo oito homens na execução d'esse serviço.[4] As chammas, enleiando-se pelos alpendres encostados ao edificio, acabaram por envolvel-o, e, horas depois dos francezes entrarem em Braga, e a tempo que o povo enfuriado matava os presos encarcerados no Aljube, ardia, chammejando como fornalha enorme, o solar das Chãs, a duas leguas de distancia da cidade invadida. A noticia da tomada de Braga só se soube no Porto no dia 22, quer dizer, quarenta e oito horas depois. Havia dias que o brigadeiro Victoria se tinha internado n'esta ultima cidade com as suas forças, por ordem do agora fallecido Bernardim Freire de Andrade. Como já sabemos, o capitão Graça Strech e seu filho militavam ás ordens deste brigadeiro. Portanto, teve Augusta occasião de abraçar o irmão e o pae, que procuraram serenar com palavras de carinho e conforto os receios do angustiado coração da menina. A morgada, quando soube que os francezes tinham rompido por Carvalho d'Éste sobre Braga, apesar de ignorar os pormenores da lucta, a morte do capellão e o incendio do solar, agradeceu ao anjo da guarda a inspiração da resolução tomada. N'esse mesmo dia foi o Porto theatro de lastimosas scenas. Conhecida a derrota de Braga, dirigiu-se a populaça á cadeia da Relação, reclamando a entrega dos presos da Inconfidencia, e arrancando para fóra dos muros do carcere o brigadeiro Luiz d'Oliveira e mais quatorze infelizes, que foram arrastados pelas ruas até Villa Nova de Gaya, d'onde a gentalha ensanguentada os precipitou, do Caes da Bica, á corrente do Douro, por haverem sido condemnados á morte pelo tribunal popular constituido na _Porta do Olival_. Só o bispo, D. Antonio José de Castro, poderia, por muito respeitado que era, conter a furia dos cannibaes das ruas, mas, provavelmente para não incorrer no desagrado da canalha contrariando-lhe os brutaes instinctos, deixou-a espostejar á vontade os presos da Inconfiencia. Sua excellencia reverendissima é que se não arriscou a ser conceituado de jacobino. Quando a turba descia com os presos a calçada dos Clerigos, ouvia-se na rua Nova do Almada a celeuma das victimas e dos algozes. Augusta, tremula de horror, acolheu-se nos bracos do irmão, que obtivera licença para sair por alguns momentos do seu posto na linha de defesa, e poz as mãos supplicando a Deus que a tirasse do mundo onde os homens se estavam despedaçando como feras no sertão. Só as caricias de José Maria lograram aquietal-a, quando a vozeria soava mais longe, porque já a multidão havia enveredado pela rua das Flores, caminho da Ribeira. A mãe e a avó pareciam agonisar abraçadas em estreito amplexo. O marechal Soult, senhor de Braga, podia recuperar as suas communicações com Tuy ou marchar sobre o Porto, mas, como era natural, attenta a importancia d'esta cidade e a fama das suas riquezas, optou pelo segundo dos caminhos a tomar, porque melhor realisaria assim o seu sonho de conquistador. Ouçamos o sr. Soriano historiando o roteiro que o marechal Soult seguiu de Braga ao Porto: «Deixando portanto em Braga a divisão do general Heudelet, para lhe defender a rectaguarda contra as incursões do general portuguez, José Antonio Botelho de Sousa e Vasconcellos, que commandava as forças da divisão da raia, entre os rios Lima e Minho, dividiu o seu exercito em trez columnas, a primeira marchou pela estrada de Guimarães a S. Justo, com ordem de forçar a passagem do Ave de Cima e occupar o campo do lado de Pombeiro; a segunda, commandada pelo proprio Soult em pessoa, marchou logo direita á Barca da Trofa; e a terceira, deixando Barcellos, para onde de Braga tinha sido mandada, tomou a estrada da ponte do Ave. A passagem d'este rio foi fortemente disputada pelos portuguezes, sendo a columna da esquerda obrigada a bater-se renhidamente em Guimarães, Pombeiro, Negrellos, e sobretudo n'este ultimo ponto, onde morreu o bravo general Jardon, cuja falta muito sentida foi pela totalidade do exercito inimigo. A marcha da columna do centro foi interrompida na Barca da Trofa, por se ter n'ella cortado a ponte do Ave; mas Soult, vendo o grande cumulo das nossas forças ali, forçou a passagem em S. Justo, ganhando a margem opposta. Desde então facil lhe foi a columna da direita fazer o mesmo, ficando assim vencida a passagem do Ave em todos os pontos, e portanto aberto inteiramente o caminho em direitura para a cidade do Porto, a cujos entrincheiramentos o exercito francez chegou no dia 27 de março.» Na tarde d'esse mesmo dia a guarda avançada do inimigo, acampado em S. Mamede de Infesta, adeantou-se até um quarto de legua das baterias do Porto. Ouviu-se na cidade o fogo indicativo da aproximação dos francezes. Para logo se espalhou o terror, não obstante terem sido organisados alguns elementos de resistencia. As familias que tinham os seus empenhados nas linhas de defeza, afflictivamente receiavam os perigos de uma grande catastrophe, pois que ainda quando a lucta fosse coroada pela victoria, havia de interpôr-se aos primeiros combates e aos louros do triumpho um mar de sangue portuguez. Que dolorosa commoção não seria a de Augusta, que torturado soffrer nas vascas da anciedade não seria o seu, ao ouvir estrondear á distancia o fogo que os invasores assestavam contra as linhas de defeza, onde combatiam o pae e o irmão! Aquellas trez mulheres, a avó, a mãe e a filha, ajoelhadas deante de uma imagem de Nossa Senhora, cerrando convulsamente os olhos a cada detonação longinqua, dir-se-iam outros tantos authómatos, empedrados pelo terror, se não fôra o ciciar dos labios e o abrir e fechar nervoso das palpebras. Sabem como baloiça a haste do lirio, quando o sopro calido da tempestade proxima passa esfuziando por entre a folhagem das plantas que lhe offereciam resguardo? Tal era Augusta, lirio vasado em moldes de mulher, entre os dois corações amigos, o da avó e o da mãe, que já não podiam garantir-lhe protecção. Conhecera o marechal Soult que era má a fortificação da cidade e má a guarnição, e expediu no dia 28 um emissario propondo capitulação. O emissario, para se não arriscar á morte, serviu-se de um ardil de guerra e disse-se incumbido de negociar a entrega do exercito francez mediante condições favoraveis. Entrou o bispo em negociação, cuja má fé, por parte dos invasores, estava manifesta na circumstancia de continuar a ser intenso o ataque durante todo o dia. N'essa tarde ouviu-se subitamente grande celeuma nas ruas. Recresceu a anciedade no presupposto de serem as avançadas francezas. A morgada das Chãs teve a coragem precisa para se aproximar da vidraça, e viu um militar francez rodeado de grande turba de populares que gritavam enfuriadamente: «_Morra o Maneta! Morra!_» Adivinhou-lhe o coração que era um emissario, que provavelmente ia á bateria de S. Francisco a parlamentar com o bispo. Quasi defronte das janellas, como augmentassem as vozes de: _Morra Loison, morra o Maneta_, o militar francez levantou ambos os braços para desfazer o equivoco. Não obstante, a populaça arremettia contra o cavallo em que elle vinha montado, e a celeuma rugia temerosamente. A morgada correu a abraçar a filha e a neta, ajoelharam orando fervorosamente, e longo tempo supplicaram que um raio da Providencia illuminasse o coração do povo, para que á desgraça da invasão não sobreviesse a furia da represalia. O emissario francez não era effectivamente o general Loison, mas o general Foy; com blandicias e ameaças, escriptas por Soult, vinha propôr a rendição, que foi recusada. Com este acontecimento fechou a tarde do dia 28 tempestuosa e triste, como se o céo compartisse do luto da terra. Ás detonações do trovão respondiam as detonações da artilharia. [2] Chamava-se então rua _Nova_, porque o celebre governador da cidade. Francisco d'Almada e Mendonça, fallecido em 1804, tinha transformado a antiga rua das Hortas n'esta nova rua, que tomou o seu nome. [3] Por decreto de 11 de dezembro de 1808 toda a nação foi obrigada a pegar em armas. [4] Este facto consta do relatorio do proprio barão. * * * * * IV Horrores da invasão Durante a noite de 28 para 29 continuou tão rijo o fogo, que o inimigo logrou forçar a bateria da Prelada. Grande era o pavor da cidade, e maior foi quando se soube que sua excellencia o bispo generalissimo se havia retirado para a Serra do Pilar. Este facto demonstrava não só a descrença do prelado na defeza do Porto, senão que tambem punha a descoberto a intenção de fuga, no caso de perigo, o que realmente aconteceu. Não lastimemos a impiedade deshumana do pastor, que abandonava em tão dolorosa conjunctura o rebanho indefeso, porque basta a historia a stygmatisal-a, mas calculemos a funesta impressão que semelhante noticia causaria nos animos desalentados dos portuenses. A familia do capitão Graça Strech foi seguramente uma das que mais succumbiram n'aquella tormentosa noite. As trez mulheres estavam entregues ás suas orações e angustias, inabalaveis no proposito de esperar a pé quedo a desgraça, verdadeiramente sós, porque os criados, que foram os primeiros a dar rebate, fugiram, durante a noite, bandeados com outros habitantes, para Gaya. O capitão e o filho combatiam ás ordens do brigadeiro Victoria, na linha do Bomfim, posto defensivo que, á hora da invasão, veiu a nobilitar-se com esforçados prodigios de coragem por parte do intrepido brigadeiro e dos seus. Umas visinhas da familia Strech, já preparadas para a fuga, instaram com as pobres senhoras para que as acompanhassem. Segundo o seu plano, acoitar-se-iam em Gondomar, onde diziam ter parentes lavradores. Augusta, lavada em lagrimas, e offegante de commoção, reagiu energicamente. --Se meu pae e meu irmão morrerem--dizia ella--deixemo-nos morrer tambem, porque o viver sem elles seria peior que a morte. Se vencermos, seremos as primeiras a abraçal-os, a agradecer-lhes por nós e pela patria. Elles cumprem o seu dever; e nós tambem. Elles estão no seu posto; nós estamos no nosso. O meu coração revolta-se contra a ideia de levarmos o egoismo da nossa vida até ao esquecimento de que temos dois soldados nas linhas de defeza. Muito obrigada, minhas amigas, mas minha mãe e minha avó são da mesma opinião, e ficaremos todas. O perigo, se o houver, repartido por trez será menor. Vão, não percam tempo; oxalá que nos tornemos a vêr... E despediram-se, chorando e soluçando, como se se despedissem para a eternidade. Ao alvorejar da manhã forçaram os francezes as baterias de Santo Antonio, Pedral e Aguardente. A cavallaria inimiga, entrando a dois de fundo pelas ruas da cidade, correu a atacar pela rectaguarda as baterias que resistiam ainda. Uma das que por mais tempo, e mais heroicamente resistiram, foi a do Bomfim. Já quando era grande a confusão em todo o circuito, destacou o brigadeiro Victoria para o exterior da linha a gente que lhe restava da legião lusitana, e mais duas partidas na força total de cem homens. O brigadeiro, o tenente coronel Champalimaud, o ajudante da praça de Valency, Antonio de Azevedo, e o capitão Graça Strech corriam denodadamente de um lado a outro animando o povo, que ali confluira, e que esperava poder fugir protegido por duas baterias, as quaes não só defendiam a rua do Bomfim mas até as baterias de Campanhã. Outro tanto não aconteceu no lado esquerdo da linha, commandado pelo brigadeiro Antonio de Lima Barreto. Logo pela manhã o immigo começou a atacal-o com energia; Barreto, perdendo algumas baterias, voltou-se para os artilheiros dizendo-lhes: --Encravem as peças. Retirem-se. Estamos perdidos. Os soldados, ouvida a ignara apostrophe, metteram-lhe duas balas no corpo, e despejaram a ultima polvora contra o inimigo. Quando a cavallaria franceza, forçando a bateria d'Aguardente, entrou na cidade, as ordenanças, desamparados os postos, fugiram tumultuariamente para a ponte pelas ruas da Sovella e nova do Almada. A morgada, ouvindo o estridor dos fugitivos, ainda longinquo, correu á janella, e reconheceu á distancia as ordenanças. --Que é? perguntaram-lhe anciosamente a filha e a neta. --Não é nada; é o povo que se affez a correr e a gritar, respondeu a morgada, tranquillisando ambas. Como porém a massa enorme rolasse já mais perto, ouviram-se distinctamente vozes de: --São os francezes! --Vem ahi! --Fujam! fujam! --Á ponte! á ponte! --Não ha outro caminho! --Depressa! Augusta, que tinha chegado a meio da sala, recuou espavorida, e deixou-se cair nos braços da mãe, gritando dolorosamente: --Ah! meu pae!... meu irmão! Os francezes, entrando na cidade, levaram de roldão adeante de si a onda allucinada dos fugitivos que procuravam salvar-se. D'elles, uns tomavam a direcção da Foz, outros, em maior numero, corriam para a Ribeira, na ancia de atravessar para Villa Nova. Alguns passaram o rio a nado ou em barcos. Mas o grosso da multidão, enovelando-se n'uma vertiginosa confusão de pavor, rolou sobre a ponte, cujo taboleiro assentava, de espaço a espaço, sobre um renque de lanchões. E as primeiras pessoas que conseguiram transpol-a abriram, logo que se julgaram a salvo, os alçapões da ponte--systema de defesa empregado em casos extremos--pensando preparar assim um desastre aos francezes que as perseguiam. Novos fugitivos, onda sobre onda, empurrando-se uns aos outros, cegos de desespero, loucos de medo, iam caindo pelos alçapões ao rio, e a dizimada cavallaria portugueza, fugindo tambem, e procurando a ponte, maior pressão fazia ainda sobre a grande massa de povo, pisando-a, atropellando-a, empurrando-a com os cavallos para o sorvedouro hiante onde centenas de pessoas desappareciam, ao mesmo tempo que as baterias de Villa Nova, vendo os francezes descer a rua de S. João, iam metralhando a Ribeira, e augmentando involuntariamente o terror e o morticinio. Diz-se que eram tantos os mortos, que, empilhados no vacuo dos alçapões, nivelaram o pavimento da ponte, facilitando passagem aos ultimos fugitivos por cima de rumas de cadaveres sobrepostos uns aos outros. Os proprios invasores se commoveram com esta horrorosa tragedia, e ainda puderam salvar da morte algumas pessoas. Depois, lançando pranchas sobre os alçapões, passaram para Villa Nova, d'onde facilmente desalojaram as nossas baterias. Saibamos agora qual seria a sorte do capitão Graça Strech e da sua familia n'essas crudelissimas horas da invasão. Esteve o capitão ao lado do brigadeiro Victoria, na bateria do Bomfim, até aos ultimos momentos em que a ambos, e a poucos mais, foi dado combater pela patria. O que é certo, e a historia o refere, é que puderam proteger a retirada de mais de seis mil pessoas, que se evadiram por aquelle lado da cidade. Abrigados os restantes valentes por um muro, que se levantava no outeiro do Bomfim, lograram continuar o fogo com desesperado denodo. Foi realmente heroico esse render-se de heroes, quando, desamparados de todo o soccorro, enviaram ao inimigo a ultima metralha que lhes restava. O brigadeiro Victoria, conhecendo insustentavel a posição, apertou a mão do tenente coronel Champalimaud, do ajudante Antonio de Azevedo e do capitão Graça Strech, dizendo-lhes com voz tremula de commoção: --Meus amigos, meus bravos amigos, o sacrificio da nossa vida nada aproveitaria á patria, que está invadida. Fizemos o nosso dever; pelejámos emquanto pudemos. Agora que cada um procure salvar a sua vida para quando mais util possa ser á terra em que nascemos. Mal acabava de dizer estas palavras cahiam feridas duas pessoas das que rodeavam o brigadeiro: o commandante dos artilheiros e o capitão Graça Strech. --Que foi? perguntou Victoria. --Foi a ultima arcanhadura dos francezes, responderam a um tempo os dois bravos militares. Era necessario retirar; por Campanhã já não podia ser. Optaram por atravessar o Douro, que o brigadeiro e alguns officiaes conseguiram passar defronte d'Avintes. N'esse numero porém não podemos incluir o capitão Graça Strech. Ferido no peito, se bem que houvesse dissimulado a gravidade do ferimento, conheceu que era perigoso o seu estado. Foi então que se lembrou da filha, da esposa, da sogra, e do filho, que havia duas horas tinha perdido de vista. Que seria d'ellas, pobres mulheres, entregues sem protecção aos horrores d'aquelle dia? E o filho, que se batera como valente na bateria do Bomfim, haveria ficado entre os muitos que lá succumbiram, e adormeceram sobre a terra embebida no sangue de seus irmãos? Não sabia. Oh! mas era preciso que o soubesse antes que se lhe fechasse em torno a noite escura da eternidade. Pouco lhe importava morrer; o que elle queria era obter a certeza de que a embriaguez da victoria não tinha desvairado os invasores ao extremo de não respeitarem fracas mulheres indefesas. Ainda se restasse vigoroso o braço do filho para amparar o golpe que fosse vibrado contra ellas! Não o pôde suppôr; julgou-o morto nos derradeiros momentos da refrega, por que o não tornou a vêr. Atravessar o Douro era arriscado; tentar internar-se na cidade, tambem. Todavia o primeiro meio era a morte no desespero; o segundo podia ser a morte com a esperança. Abraçou-se pois a esse unico esteio que lhe restava--a esperança, de poder abraçar os seus. Arrancou os vivos da farda, e, esquecido de si, e do sangue que cada vez lhe repuxava do peito com maior intensidade, tentou descer a rua do bomfim e bandear-se em logar azado com a turba dos que percorriam as ruas desvairadamente. Do militar que fôra, arrancados os vivos e emblemas, só lhe restava a alma. Poucos passos andados, sentiu porém que lhe ía fugindo a vista, á medida que empenhava as ultimas forças para adiantar caminho. Ainda mais uma vez enganára a coragem do soldado o coração do pae. Quiz andar. Fraquejaram-lhe as pernas, e Graça Strech procurou com a mão um amparo que não encontrou. Após um momento de oscillação, ruiu em terra. Estava morto. Entretanto havia occorrido a enorme desgraça da ponte, e os invasores, enfurecidos pela resistencia que encontraram, iam encetar as tremendas represalias que estão na memoria de todos os portuenses. Infelizes os que tiveram de assistir hora a hora a esse drama de sangue e terror que teve por bastidores os muros d'uma cidade inteira. Infelizes os que viram despedaçar-se momento a momento nas garras dos cannibaes os até então immaculados thesouros do seu coração. Infelizes, finalmente, os que viram cavar-se a seus pés a sepultura ingente de milhares de familias e não puderam enchel-a com o sangue dos que assassinavam em nome da victoria. José Maria da Graça Strech pertence ao numero d'estes grandes desgraçados, que foram muitos. Quando a bateria do Bomfim protegeu a fuga de seis mil pessoas, já quando, depois das oito horas da manhã, era desesperada a situação dos portuenses, duas senhoras, que se destacaram da multidão desorientada, acenaram ao denodado moço que por acaso olhára na direcção que ellas seguiam. Elle reconheceu-as. Eram as duas visinhas que horas antes tinham convidado Augusta a acompanhal-as na fuga e que, arrastadas pela onda impetuosa dos que procuravam salvação, chegaram até ao Bomfim. Abeirou-se o moço a falar-lhes, por um momento radioso de felicidade, porque lhe acudira a lembrança de que as pessoas da sua familia as haveriam acompanhado. Oh! se sua irmã, se a estremecida menina estivesse ali, poderia fugir incolume aos horrores que elle presagiava imminentes, attenta a vantagem do inimigo em toda a linha. --Ellas vieram? perguntou açodadamente José Maria. --Não, teimaram em ficar, respondeu confrangida uma das senhoras. --Oh! meu Deus! exclamou o filho do capitão Strech levando a mão ao coração. --Veja se póde salval-as, salve-as por Deus, que estão sósinhas, desampadas de criados... --Mas como? Como?! articulou o moço estendendo o braço para a posição do inimigo, como se quizesse indicar que era preciso combater a todo o transe. --Augusta, a pobresinha, fazia dó! Oh! salve-a, salve-a, que ella morrerá de pavor! acrescentou a outra visinha. --Augusta! Augusta! repetiu José Maria, perplexo, olhando para as duas lacrimosas mulheres e para os seus companheiros d'armas que defendiam á distancia a unica bateria que não se tinha rendido. E, sem se mover do sitio em que empedrára, dizia com desalento: --Pobresinhas! E meu pae ali, exposto á morte a todo o instante, e ellas sem defeza, sem ninguem!... Então, aproveitando a opportunidade d'um momento, ordenára o coronel Champalimaud que se désse passagem ao magote dos fugitivos que mais se tinha adiantado. --Vão, vão, gritou o moço affastando com o braço as duas mulheres--Salvem-se ao menos, e obrigado, muito obrigado. Eu verei se as posso salvar... a ellas, a Augusta. O troar proximo do canhão pareceu chamal-o á realidade do perigo. --São elles, disse de si para comsigo, correndo na direcção da bateria, os poucos que n'esta hora se sacrificam pela patria. E tambem hão de ter mãe, e irmã... e estão ali, firmes, corajosos, heroicos. Oh! cobardia do meu coração, não, não te posso, não te devo ouvir... E não tardou que se collocasse ao lado dos seus esforçados companheiros. Todavia cada vez se aproximava mais o lastimoso desfecho d'aquella desesperada resistencia. Começava a lavrar a confusão na bateria, fustigada por violento fogo dos francezes--indomito ataque, de que em breve foi victima, como já dissemos, o proprio capitão Graça Strech. Tamanha era a fumarada, que já se tornava impossivel verem-se uns aos outros. Foi então que José Maria, involto na cerração da metralha, conhecendo que era impossivel prolongar por mais tempo aquella proeza de bravos patriotas, se lembrou de que nada aproveitaria á causa da patria o sacrificio da sua vida. E soaram-lhe aos ouvidos as palavras afflictivas das duas mulheres, e sonhou ver estenderem-se para elle os braços tremulos d'Augusta, que pedia soccorro. Então, como se o coração houvesse decretado uma sentença irrevogavel, cortou resolutamente o fumo da polvora, e affastou-se da bateria, murmurando os nomes de sua mãe, de sua irmã, de sua avó. Momentos depois foi que o brigadeiro Victoria fugiu tambem, e que o capitão Graça Strech caiu morto na rua do Bomfim. Trabalhoso e arriscado foi o abrir caminho por entre a multidão que, semelhante a um grande mar, ondulava no vertiginoso fluxo e refluxo do desespero. Algumas vezes teve de se esconder, outras de retroceder, e só pela tarde chegou á rua nova do Almada. Abroquelado pela energia da coragem, e mais feliz ou mais infeliz que seu pae, venceu todas as contrariedades, até que finalmente, escoando-se por entre os grupos desvatrados, entrou em casa no momento em que ao fundo da rua assomavam tropas francezas que, senhoras de toda a cidade, continuavam o saque, as violações e a carnificina que tristemente assignalaram esse dia memoravel nos fastos da nossa historia. * * * * * V O juramento de vingança As casas da rua nova do Almada estavam pela maior parte desertas. Foi esta uma das ruas que mais lutuoso espectaculo offereceram. Os habitantes fugiram deixando abertas as portas, de modo que, á hora em que começou o saque, os francezes se locupletaram tranquilamente. Poucos foram os predios que lhes deram o breve incommodo de forçar a entrada. A este numero pertenceu, porém, a casa onde se conservou, entregue aos seus pavores, a familia Strech. José Maria, ao entrar açodado pela aproximação dos invasores, appellou para o ultimo recurso de defeza que lhe restava: fechou a porta. Lembrou-se de que os francezes se domiciliariam nos predios devolutos e de que não porfiariam em forçar uma entrada encontrando abertas tantas portas. Não pôde imaginar n'esse momento de suprema preoccupação que meditassem a pilhagem e a carnificina que, passadas horas, consummaram. Correu, pois, a procurar a irmã, a mãe e a avó, que, ouvindo passos apressados, e no presupposto de serem os de algum soldado francez, romperam em gritos angustiosos, traindo d'este modo o segredo dos seus esconderijos. --Augusta! Augusta! Minha mãe! Avósinha! apostrophou precipitadamente José Maria para serenal-as e correndo pelo corredor. --José! José! exclamou uma voz que parecia soar das profundezas de um tumulo. E logo dois braços tremulos de commoção enleiaram o moço, e uns labios gelados de mortal frialdade lhe procuraram as faces, e um novo grito de dolorida alegria lhe estrugiu aos ouvidos. E immediatamente soaram passos, que elle conheceu: a mãe e a avó, seguindo a pobre menina que as precedera, correram ao encontro de José Maria. Augusta, apertando-o contra o peito, alternando beijos e olhares por egual frementes, porque o sangue congelado no coração parecia, acordado de subito, correr em turbilhões ao cerebro, não lograva articular palavra, tão violenta era a sensação que estava experimentando. Não assim, porém, sua mãe, que, parando como que fulminada á porta, tivera comtudo voz para perguntar ao filho enleiado pela irmã: --E... teu pae? --Lá ficou ainda a combater com os ultimos valentes. Bem póde ser que a Providencia o tenha salvado como a mim me salvou. O cobarde fui eu, sim, fui eu, porque me lembrei de ti, minha irmã, e de si, minha mãe, e... Não pôde completar a phrase, porque de repente foi chamado á realidade pelo estrepito que a soldadesca franceza fazia na rua. --Retirem-se! escondam-se! gritou elle. São os francezes, bem os vi, são elles! Esconde-te, Augusta, minha mãe, minha avó... N'este momento estremeceu o predio nos alicerces como se a porta tivesse soffrido o embate de um ariete. --Que é? Onde é? perguntou offegante a menina, que de novo descorára até á lividez do cadaver. --São elles que forçam a porta, naturalmente... Eu fechei-a quando entrei, sim, eu fechei-a. --E estava aberta! Foram os criados quando fugiram! acrescentou a avó. --Escondam-se, escondamo-nos todos. Viram-me decerto entrar. Perseguem-me! tornou afflicto José Maria. E, após segundo estrondo, soaram no portal e na escada os passos da soldadesca que entrava. Das quatro pessoas que estavam na sala, nenhuma pôde fugir; todas como que ficaram chumbadas ao pavimento. E os francezes entraram vozeando, praguejando, e logo assomaram á porta muitas cabeças cujos olhos chammejavam de cubiça e sensualidade. Então José Maria, como galvanisado de subito, adeantou-se para a porta, estendendo o braço para defender as trez mulheres e, quando ia talvez a balbuciar uma supplica, caiu desamparado, vibrando um grito e recebendo no peito a ponta de uma bayoneta, cujo golpe fôra mais doloroso que profundo. As vozes das trez mulheres, conglobadas n'uma só, soltaram uma d'essas exclamações impossiveis de descrever, apenas comparavel ao grito lamentoso da araponga no deserto, quando encontra vazio o ninho, porque uma ave de rapina lhe arrebatou a prole. E a soldadesca entrou de roldão na sala, affastando com o pé o corpo de José Maria, sedenta de prazer e rapina. Para os que suppozerem que exageramos com toques demasiado sombrios os horrores que se succederam á invasão do Porto, vamos copiar apenas algumas linhas da _Historia da guerra civil_, de Soriano: «Para cumulo de todas estas desgraças a cidade foi posta a saque, por castigo da sua resistencia, como em casos taes se costuma praticar, saque que começou pelas onze horas do dia, levando os vencedores a todas as casas de habitação, a par do terror que infundiam, o roubo, a violação e a morte, excitados de mais a mais para isto por encontrarem, segundo alguns dizem, varios prisioneiros francezes sem olhos, com linguas cortadas, e os membros truncados ou rasgados.» Alguns escriptores o dizem, em verdade; um d'elles é o sr. Claudio de Chaby que, nos seus _Excerptos historicos_, refere: «No transito das ruas e praças encontraram os soldados de Soult alguns dos seus camaradas, que nas differentes refregas tinham os nossos aprisionado, exercendo n'elles as sevicias da mais repugnante crueza: a uns tinham cortado a lingua, arrancado a outros os olhos ou decepado os membros!--O effeito natural da observação de taes crueldades, junto á tambem natural disposição de espirito dos invasores em taes circumstancias, levou estes á pratica de vingativos e deploraveis excessos, de _assassinato, roubo, violencia e profanação_!» O mais que se passou na casa da rua nova do Almada, depois que a soldadesca entrára, não o soube exactamente José Maria que, ao cerrar da noite, tornára a si, depois de haver perdido muito sangue pelo golpe que recebera no peito. Foi de tempestade na terra e no céo essa noite, como podem confirmar os poucos que se lembrarem d'ella. Tamanho era o temporal havia dias imminente ao Porto, que trinta navios inglezes, carregados de vinho e outros productos, impedidos de sair das aguas do Douro pelo mau estado da barra, caíram em poder do marechal Soult, bem como a polvora guardada n'um vasto armazem, e 196 peças de artilharia, recolhidas nas differentes baterias da cidade. Algum tempo esteve José Maria firmado sobre o braço direito, que d'instante a instante fraquejava, procurando orientar-se e recordar-se. Era profundo o silencio na casa toda. Dir-se-ia que despertava n'um tumulo. Assim que pôde rememorar o que se passára até ao momento de ser ferido, entrou de chamar em altas vozes a irmã, a mãe e a avó. Apenas porém respondia ás suas afflictivas exclamações o chofrar dos aguaceiros nas vidraças. Ergueu-se com muito custo, atabafando o sangue com a roupa, e começou a sondar a escuridão, procurando alguem. Não tardou que tropeçasse n'um obstaculo que os pés encontraram. Curvou-se e tacteou. Encontrou vestidos de mulher. Estendeu a mão e apalpou um rosto. Até pelo tacto conhecemos os nossos. José Maria estremeceu como se tivesse recebido em pleno peito um novo golpe de ferro, e rugiu d'afflicção e desespero. Não podia duvidar. Era o rosto de sua irmã. Parecia morta! Entrou de agital-a, de chamal-a. O mesmo silencio, a mesma immobilidade! --Mortal morta! rouquejava elle convulso.--Minha mãe! minha avó! E unicamente lhe respondia a chuva a fustigar a vidraça. Occorreu-lhe porém que, como se deu com elle, podia ser que sua irmã estivesse apenas adormecida em deliquio. --Ella é tão delicada! apostrophou-se elle. Desmaiou talvez. Julgaram-n'a morta. Deixaram-n'a. Mas minha mãe? E minha avó? Era preciso tirar-se d'aquella duvida horrivel. Sondando as trevas, saíu tremendo, a procurar luz. Momentos depois voltava cambaleante á sala e, levantando una candieiro de latão á altura da cara, reconhecia trez cadaveres. .......................................................................... N'essa mesma noite, e a essa mesma hora, ruidosamente se banqueteavam n'uma taberna do largo da Lapa, ebrios de vinho e victoria, alguns soldados da divisão Delaborde. Comia-se, bebia-se, fumava-se, cantava-se. Era a celebração solemne d'um dia de saque, que requeria uma noite d'orgia. Algumas vivandeiras francezas cantavam em côro, no idioma patrio, e reclinadas aos hombros dos soldados, uma canção marcial, cujo estribilho podia ser traduzido d'este modo: Viva a França! viva a França! Que triumpha na matança! Rataplan! Um dos soldados; de olhar scintillante e fartos bigodes retorcidos, chasqueava na sua lingua natal com uma das vivandeiras que se lhe queria escapar dos braços: --Oh! Por Deus, que era bem mais bonita do que tu! --Quem? perguntou d'esguelha a vivandeira. --A portugueza que me resistiu. --E que tu mataste? --E que eu matei para que não deixasse de resistir a outro. --A pobre rapariga! --Pobre rapariga! d'aquella edade deve ter morrido pura! Tu não morres assim, _ma petite chienne! Par Dieu!_ --Cruel! --E o caso é que quasi do mesmo golpe derrubei as duas mulheres que a defendiam e abraçavam. Um soldado do imperador livra-se depressa ainda que seja d'um cento de mulheres. --Cheiras a sangue! exclamou a vivandeira forcejando por desprender-se dos braços do soldado. --Acodes pelo teu sexo! O que me não perguntas é quantos homens matei! Por Deus! que era precisa a vingança. Estes perros d'hespanhoes, que se chamam portuguezes, não nos queimaram a alma porque não puderam. Atiravam-nos desesperados! E matavam os nossos emissarios! e mutilavam os nossos irmãos! Quantos centos de francezes imaginas tu que morreram hoje? Não se mata impunemente um francez como se mata um cão. E desde que entrámos em Portugal quantos não teem ficado para nunca mais voltar a França! Vingámol-os; estão vingados! _Vive l'empereur! Vive le marechal! Vive la France!_ E voltando-se para outra das vivandeiras, que estava proxima, jogou-lhe esta phrase intimativa: --Esta é minha; canta tu. E logo, por entre a vozeria, se ouviu cantar; Viva a França! viva a França! Que triumpha na matança! Rataplan! .......................................................................... Aquelles cadaveres eram os das trez senhoras da familia Strech. José Maria esteve contemplando-os mudo, absorto, authomatico. Dir-se-ia que a intelligencia se lhe havia paralysado, e o coração havia adormecido. Era um deliquio, como o que fôra consequencia do ferimento, mas muito mais horroroso de certo, porque os olhos tinham vista para a realidade, embora o cerebro não tivesse actividade para comprehender. Parecia que as trez pobres senhoras dormiam tranquillamente, se bem que o desalinho dos vestidos e dos cabellos fosse claro indicio de lucta. José Maria ajoelhou-se, poisando a luz, a contemplal-as e, porque o coração humano é tão valente ás vezes que se excede a si mesmo, resistiu áquella dôr incomparavel e quiz ainda procurar nas ruinas do seu pensamento o auxilio de uma ideia. N'aquella immensa e tenebrosa cerração era preciso um raio de luz, ainda que fosse sinistro como os clarões sulphureos dos mysticos paineis que representam o inferno. E verdadeiramente infernaes foram os horrores d'esse dia. Se o leitor, apesar das indicações historicas de que me tenho soccorrido, imagina que estou phantasiando negruras para architectar um romance tenebroso, achará no seu proprio espirito a convicção da verdade, se se concentrar por um momento deante do tosco e funebre quadro, allusivo á invasão dos francezes, que pende da muralha da Ribeira, a dois passos da ponte pensil. Ahi, á luz das lanternas que descrevem na escuridão da noite duas zonas luminosas, ouvindo o ruido triste do Douro que lhe rola aos pés, vendo a pequena distancia erguerem-se ao ar, como outros tantos espectros sombrios, as armações dos navios fundeados, ahi, dizia eu, comprehenderá todas as angustias, hoje esquecidas, d'essa epoca de horror, traduzidas na concisa simplicidade d'esse piedoso monumento. A inscripção do quadro nem por singela deixa de convidar á meditação: «Pelas almas dos que falleceram na ponte do rio Douro na entrada dos francezes no anno de 1809, um Padre Nosso e uma Ave-Maria.» Ali fui eu muita vez, pela calada da noite, como a procurar a triste inspiração para escrever as primeiras paginas da historia da familia Strech. Estes horrores poderão hoje parecer sinistramente romanticos, mas uma hora só de recolhimento em face do quadro da Ribeira basta a acordar em nós a consciencia historica d'essa epoca calamitosa. Para os que morreram na catastrophe da ponte pede o rotulo uma oração, mas quantos não morreram então sem oração e sem mortalha, quantos não agonisaram em ancias que não foram mortaes, sem a mortalha que desejariam, e sem uma oração de que blasphemariam! Ó Providencia! só tu sabes o segredo de todas as maguas, só tu podes contar as bagas de suor que ressumbram na fronte dos infelizes que tu não matas logo, para que não morram em desespero sacrilego! E José Maria não morreu. Por um esforço intellectual, que só a Providencia podia permittir a um soldado ferido, quando já as trevas da loucura procuravam cingir-lhe o cerebro escandecido, conseguiu encontrar uma recordação, se bem que a principio tibia e vaga como o diluculo que se vae alargando e colorindo pouco a pouco até chammejar no céo. E tambem essa luz que se fez no espirito do pobre moço lhe queimára a intelligencia, como se fosse labareda, mostrando-lhe as ruinas do passado ainda fumegantes de um incendio recente. Eram aquellas as cinzas da sua felicidade... Estavam ali espalhadas pelo turbilhão da guerra, retintas de sangue, a clamar vingança. E os seus beijos cariciosos e ardentes, e as suas palavras ao mesmo passo desalentadas e calorosas não puderam, depois que inteiramente se recordou da realidade, galvanisar os trez cadaveres, animar os trez corações paralysados, descerrar os labios da mãe, da irmã e da avó, para sempre mudos, para sempre adormecidos. --Pobresinhas!--pensava elle--deixaram-se talvez morrer por me supporem morto! E antes eu o estivesse, que já teria soado a ultima hora da minha triste mocidade. E mata-se assim a mãe, a dois passos do filho! E não se respeitam os cabellos brancos da velhice! nem a belleza e a virtude que teem duplo direito á vida! Mas, agora reparo eu, aqui estão patentes e irrecusaveis os signaes da lucta... é que se disputavam o sacrificio da morte... ou... suspeita horrivel! morreram talvez para defender a virgindade de uma só! Dize-me, ó minha boa irmã, ó minha doce amiga, se isto não é um sonho atroz da minha desvairada cabeça! Responde, Augusta, sou eu que te peço, eu, o teu irmão, o teu José... E não fala, e não responde! Está morta! Mataram-n'a elles, os malditos soldados d'esse leão indomavel da Corsega para quem todo o mundo é pequeno, todo o sangue pouco! Acaso não se saciava a tua sanha, leão, sem a vida d'estas trez pobres mulheres, que nunca te amaldiçoaram, que nunca levantaram um brado de justa indignação contra a tua ambição desmedida! Eu é que devia morrer, sabes tu? Eu sim, porque fiz guerra de morte aos teus soldados, porque as minhas mãos cheiram ainda a polvora com que os fuzilei. Eu sim, porque a minha morte seria uma represalia; mas a morte d'estas trez mulheres, timidas e indefesas, não foi uma represalia, foi uma infamia... E, extenuado d'esta subitanea exaltação, pendeu a fronte, como se lhe faltasse a vida para tamanha angustia, porque o sangue perdido era copioso. Entretanto continuava a tempestade e, confundido com o estrepito da chuva, começou-se a ouvir o toque dos clarins nos postos dos invasores. José Maria pareceu despertar de subito, acordado por essa sinistra linguagem dos acampamentos: --Sois vós! Podeis estar tranquillos, que a esta hora não haverá um só braço que tenha a energia de vos acommetter no vosso glorioso descanço. Tudo são orphãos e viuvas, que pranteiam cadaveres. Descançae, descançae, que muita coragem vos deve ter custado o assassinio de mulheres inoffensivas como estas! como todas! Oh! mas ámanhã a vingança acordará terrivel, e então vos pedirá contas das vossas atrocidades e das vossas infamias. Sim, ámanhã, nós todos, unidos por commum desgraça, seremos um só inimigo, porque a nossa vingança é uma, mas não imagineis que tendes a derrubar um só inimigo, porque serão muitas as cabeças a decepar, muitos os portuguezes a vencer... Onde houver um portuguez, haverá um soldado, porque elle pelejará por desaffrontar a memoria dos seus parentes, dos seus amigos, d'um filho, d'uma irmã... E curvando-se carinhoso para o cadaver d'Augusta, e tirando-lhe delicadamente do dedo o annel com que ella havia morrido: --E eu vingarei a vossa memoria, minhas santas amigas, e vingarei a tua innocencia, minha querida irmã... Por este annel o juro, que será o meu fiel companheiro, talvez o unico que me seja dado conservar até a hora da morte... Beijal-o-hei antes d'entrar em combate, e elle me dará a coragem dos valentes; elle será a minha égide protectora se a morte me quizer arrebatar a minha vingança..... Que Deus me oiça, Augusta. Sobre o teu annel, que nunca te desacompanhou, faço este juramento solemne, que jámais quebrarei... * * * * * VI A mariposa do acampamento Fôra demasiado esforço para tão melindroso estado. O corpo, alquebrado pela dôr physica, parecia vergar ao peso d'aquella grande alma. Graça Strech caminhou em direitura á porta, vacillando a cada passo, e deixando após si um rasto de sangue. Antes de sair, volveu ainda um ultimo olhar aos trez cadaveres, e levantou por um instante a mão de sobre o ferimento, apalpando o peito n'outro sitio, como para se certificar da existencia d'alguma coisa que lá trazia occulta, e que pareceu encontrar. Era o maço das cartas d'Augusta, escriptas da quinta das Chãs, e que elle conservára no seio durante as mais perigosas refregas na bateria do Bomfim. Desceu vagarosamente as escadas, amparado ao corrimão, e conseguiu a muito custo chegar á rua. Uma lufada de vento, humida e fria, momentaneamente refrigerou o cerebro d'aquelle moço, em quem as mais violentas congestões parecia succederem-se rapidamente. Onde ia elle, ferido, cerrada a noite? A esta pergunta, que muitas vezes se fez no decurso de sua vida, nunca pôde achar resposta satisfatoria. O que parece mais proximo da verdade é que, não sentindo já forças e coragem para demorar-se ali, luctasse por arrancar-se de ao pé dos trez cadaveres. Chegado ao limiar da porta, e recebendo de subito uma lufada de ar, impregnado d'humidade, reconheceu-se, no meio da cerrada escuridão d'aquella noite tenebrosa, inteiramente carecido d'alento para dar um passo. N'essa conjunctura ouviu estrepito de cavallos. Sentiu de novo affluir-lhe o sangue ao cerebro. Eram de certo elles, os assassinos da sua familia, que patrulhavam a cidade invadida. Não se enganou. Os cavallos que se aproximavam eram os d'uma ronda franceza. Graça Strech estava porém desarmado, ferido, impossibilitado do menor esforço. A ronda acercou-se, e um dos cavalleiros, que era um official portuguez obrigado pelo direito de conquista ao triste mister d'interprete, perguntou com voz tremula: --Quem está ahi? Graça Strech ficou surprehendido d'ouvir falar-lhe na lingua nacional, e respondeu: --Um soldado portuguez, ferido. Demorou-se o official a falar á patrulha franceza, e apeando-se dois dos cavalleiros ergueram o corpo de Graça Strech até a altura precisa para poisal-o entre o arção da sella e o corpo do official portuguez. E monotamente continuou a eccoar na rua o estrepito da ronda. Não pareça extraordinaria esta piedade dos invasores para com os invadidos no mesmo dia de tão sanguinosa victoria. O marechal Soult, que entrára no Porto na tarde d'esse dia, puzera desde logo todos os seus cuidados em serenar os animos da população por actos ostensivamente meritorios. Era este um procedimento por ventura aprendido na lição da historia romana--o da benevola protecção aos vencidos. Manda porém a verdade que se diga que, mal que entrou na cidade, expediu ordens terminantes ás tropas para que, sob pena de austera correcção militar, respeitassem a população, e até a protegessem em caso de conflicto. Assim foi que, reprimindo os abusos da soldadesca, logrou restabelecer o socego em toda a cidade trez dias depois da invasão, procurando insinuar-se na opinião publica, abstendo-se de impôr contribuiçoes de guerra, nomeando pessoas idoneas para os logares vagos, e soccorrendo os habitantes completamente privados de recursos. O partido anti-patriotico, subitamente creado em redor do marechal Soult, para logo fundou um orgão jornalistico, denominado _Diario do Porto_, porque a imprensa tem sido desde tempos immemoriaes o respiradouro aberto a todas as paixões, justas e injustas, nobres e mesquinhas. O leitor deve ficar conhecendo uma pequena amostra, sequer, da linguagem empregada no supracitado diario. Oiçamos o falsario redactor no supplemento ao n.º 2.º: «Este paiz tão bello, e tão favorecido pela natureza, parecia no passado governo tocado de paralysia; mas, graças aos céos, que se lhe prepara um novo futuro, que os bons conhecedores já tinham d'antemão entrevisto! Nada terá o Principe que dizer sobre a nossa fidelidade; nos lh'a guardamos emquanto existiu entre nós; mas uma vez que nos deixou, uma vez que desdenhou lançar mão das redeas do governo, que largára quando as circumstancias lh'o permittiam, renunciou todos os seus direitos, e nada é já para os portuguezes, que deixou ao desamparo. Em uma palavra, a casa de Bragança já não existe; aprouve aos céos que os nossos destinos passassem a outras mãos, e foi particular predilecção da Divina Providencia, que impera sobre o universo, o ter-nos enviado um homem isento de paixões, e que só tem a da verdadeira gloria; que se não quer servir da força, que o grande Napoleão lhe confiou, senão para nos proteger e livrar-nos do monstro da anarchia, que ameaçava devorar-nos. As palavras que elle nos dirigiu, e as promessas que nos fez[5], desde que entrou n'esta cidade, tudo se tem cumprido á risca, muito mais do que o poderiamos esperar, e do que as circumstancias pareciam promettel-o: porque tardamos, pois, em congregar-nos ao redor d'elle, a proclamal-o nosso pae e nosso libertador? Porque tardamos a exprimir o nosso desejo de o vermos á testa d'uma nação, cujo affecto soube tão rapidamence conquistar? O soberano de França prestará ouvidos aos nossos clamores, e se lisonjeará de ver que desejamos para nosso rei um logar-tenente seu, e ao mesmo tempo um grande general, que a seu exemplo soube vencer e perdoar. Seja, pois, esta grande e interessante comarca, já que tem experimentado os effeitos da sua clemencia, e a quem elle tem prodigalisado os seus beneficios, seja uma das primeiras, que se glorifique de o reconhecer e de lhe offerecer os seus braços, os seus bens e o seu patrimonio todo.» Não ficaram simplesmente em louvaminhas de gazeta os salamaleques feitos ao duque de Dalmacia. De Braga veiu ao Porto no dia 25 d'abril uma deputação composta de trinta e seis membros do clero, nobreza e povo, a pedir ao marechal que se dignasse fazer ver ao imperador a necessidade de collocar um principe de sua eleição no throno que a dynastia de Bragança deixára devoluto. No dia immediato entrou egualmente ao palacio do duque de Dalmacia outra grande deputação, constituida por todas as autoridades civis, clero, deputados, nobreza, cidadãos, corporações judiciaes e militares da cidade do Porto, a repetir o pedido com viva instancia. A deputação, acompanhada desde a casa do conselho pelos officiaes do estado-maior general, era esperada no atrio do palacio dos Carrancas pelos ajudantes de ordens do marechal Soult. Foi o general de divisão Quesnel, investido nas funcções de governador militar do Porto e da provincia do Minho, quem a introduziu na sala de recepção, onde o corregedor da comarca botou fala consoante ao estylo dos supplementos do _Diario do Porto_. O marechal devia estar sorrindo interiormente da versatilidade dos portuguezes, que lhe atiravam aos pés nuvens d'incenso, recebendo-o dias antes nas trincheiras com nuvens de polvora. Força é assoalharmos as nossas glorias, para sermos portuguezes, e as nossas manchas, para sermos justos. E esta é realmente uma lamentavel nodoa que macula as paginas da historia portugueza. Se nos não respeitámos, durante a invasão, a boa policia de guerra, tambem a soldadesca franceza não respeitou, na victoria, os direitos individuaes. Saldada a divida, estavamos quites. Para a atrocidade, filha da revolução, a represalia, irmã do triumpho. A attitude do Porto, depois de vencido, e em presença do cavalheiroso procedimento de Soult, devia ser a da resignação reconhecida, nunca a do servilismo infamante. Agradecer é das boas almas; ajoelhar aos pés do usurpador é dos maus cidadãos. E nós fomos então maus cidadãos. Ainda bem que redimimos as nossas culpas d'um dia com a heroicidade de cinco annos, que tantos são os que vão desde a invasão do Porto até ao regresso das nossas tropas, coroadas de loiros. Se o throno portuguez tinha sido abandonado pelo rei, estava porém encimado ainda pelas armas da nação! Se não se podia amar o rei, que fugira, devia-se defender a patria, que ficára. Mas, disse-o Camões, e é uma profunda verdade, que O fraco rei faz fraca a forte gente Perdoemo-nos a nós, porque nos rehabilitamos depois, e perdoemos ao rei, que já hoje é do tumulo, e que no triste curso de sua attribulada existencia mais inspira por vezes compaixão do que odio. Mas tornemo-nos a Graça Strech, que deixámos ferido em companhia da ronda franceza. Fôra elle transportado a um dos muitos hospitaes de sangue que se estabeleceram nos conventos do Porto:--o convento de S. Francisco. O serviço cirurgico, na maior parte d'estes hospitaes improvisados, era feito, por ordem do marechal Soult, pelas mulheres que acompanhavam o exercito invasor. Uma d'ellas, conhecida entre os seus pela alcunha de _lá gentille vivandière_, recebeu o ferido e, ajudada por outras, deitou-o no catre e começou o curativo do ferimento com certo carinho, que só a ordem do marechal Soult não explicaria cabalmente. É que fez impressão a Rosina a physionomia, posto que dolorosa, serena, do soldado portuguez. Pareceu-lhe um roble que baqueára magestosamente. Não havia a menor contração n'aquelle corpo athletico; por entre os labios, descórados e immoveis, não se coava um gemido. Verdade era que não era desesperado o ferimento, e que mais para recear parecia a gravidade da prostração que a do golpe. Não obstante, o soldado, que a espaços abria os olhos, nem uma gota d'agua pedia. Durante a noite a vivandeira acercou-se do catre, por muitas vezes, a escutar. Pela madrugada sobreveiu o delirio ao abatimento, e o ferido dizia com manifesta difficuldade algumas palavras que ella não entendia. Como, porém, de uma das vezes o visse febrilmente apalpar o peito, comprehendeu-o, e, tirando do forro da fardeta, que lhe tinha despido, o maço de papeis, insinuou-lh'o entre as mãos. O ferido, conhecendo-o provavelmente pelo tacto, abriu por algum tempo os olhos, e demorou em Rosina o doce e apagado olhar. Talvez fosse este um acto puramente mechanico e talvez não; a verdade, melhor que os medicos, a sabe Deus. A vivandeira ficou sobremodo commovida do que a ella lhe pareceu intencional. Apiedou-se do soldado, que tinha porventura a sua mesma idade, e parecia guardar n'aquelles papeis uma querida memoria, como ella, como ella n'aquella madeixa de cabellos que possuia... Aqui entra o leitor a sentir desejos de saber a historia da madeixa. Rosina era a filha adoptiva d'um dos regimentos da brigada Arnaud. Por seu pai, moribundo, um dos bravos militares do exercito francez, natural das Ardennas, aquella vasta floresta, _Arduenna sylva_, golpeada por quatro rios, o Semoy, o Lesse, o Ourthe e o Sure, fora confiada como precioso deposito, no campo de batalha, á velhice d'um camarada fiel, soldado do mesmo regimento. O bom velho, que penhorado acceitára tão grave legado, era só, e n'uma época em que o exercito francez estava em continua mobilisação, achou que o melhor meio de velar pelo destino da creança era trazel-a sempre ao pé de si. Assim foi que Rosina, então de quatorze annos, estivera em pessoa, se bem que entre a bagagem e mantimentos, na batalha de Austerlitz, em 1805. Vira por seus proprios olhos, a distancia, o imperador Alexandre e o imperador Francisco. Nos breves instantes de repouso que n'essa arriscada campanha tinha o exercito francez, era sempre Rosina o assumpto das conversações do acampamento, a mariposa inquieta que passava sorrindo de umas correias a outras, de um soldado a outro soldado. D'essa campanha ficou até na memoria do regimento uma agudeza da pequena vivandeira. Estavam os soldados chasqueando uma vez da fealdade de certo camarada. --Que tal te parece, Rosina? perguntou um á pequena. --Parece-me mal, respondeu ella, porque já vi _os trez imperadores_. Como se sabe, é esta uma designação vulgar da batalha de Austerlitz, onde estiveram os dois imperadores já nomeados, completando Napoleão a trindade coroada. Rosina seria pois a andorinha da caserna se não fosse antes a mariposa do acampamento. Tinha um pouco da floresta, seu berço, e um pouco do quartel, seu ninho. Estes poucos fizeram o todo. Tinha a pureza da vegetação virgem, a suavidade inculta da floresta, e ao mesmo passo o destemor da vivandeira, a facilidade de morder um cartucho de polvora e de cantar uma canção marcial. Na alma tinha os murmurios das correntes patrias; nos olhos o brilho da polvora. Era, n'uma palavra, a pastora tornada vivandeira. Respeitava-a todo o regimento e conhecia-a todo o exercito. Quando o seu velho protector morreu, um anno depois de Austerlitz, ella acompanhou-o com os camaradas á sepultura, e, como limpasse furtivamente duas lagrimas, disse-lhe um dos soldados: --Pois tu choras, Rosina, tu, a que viste os trez imperadores?! E ella, voltando-se de subito, respondeu: --Não choro eu, chora a França. Porfiaram os soldados em escolher-lhe novo protector; todos a estimavam a ponto de querer adoptal-a. Por fim decidiu-se que Rosina cortasse o nó gordio. Ella observou: --Os meus paes eram os que morreram; já não posso ter outros. Serei portanto de hoje em deante filha do regimento. Para onde elle fôr, irei eu; onde estiver, estarei tambem. E assim foi. Era quasi um soldado; muitas vezes dizia que a sua morte havia de occasional-a uma bala perdida. Viera com o exercito a Hespanha e Portugal, com a mesma facilidade com que iria, licenciada pelo commandante do regimento, visitar as Ardennas, sua patria. Contava agora dezoito annos, e estava em todo o vigor da sua gentil formosura. Gentil é a palavra; por isso lhe chamavam _lá gentille vivandière_. E o caso é que á sua origem e á sua formosura devia por certo as immunidades que lhe outhorgavam os superiores. Era ella o melhor intercessor do regimento; requerimento que ella levasse á chancellaria militar, trazia sempre bom despacho. É que as flôres... Ora a historia da madeixa é muito mais breve que a historia de Rosina, e por isso ficou para o fim. Seu pae, o bravo official das Ardennas, sentindo-se morrer dos graves ferimentos que recebera, pediu ao velho camarada, no momento de confiar-lhe a filha, que lhe entregasse aquella madeixa que elle cortára do seu proprio cabello, para que ella possuisse sequer alguma coisa que o tornasse lembrado. E como entre os cabellos alguns apparecessem já grisalhos, acrescentou o militar moribundo: --Dize-lhe que alguns d'elles embranqueceram a pensar no destino d'ella... O soldado, com os olhos marejados de lagrimas, respondeu commovido: --Vá descançado, meu capitão. Emquanto Jacques Regnau tiver vida, o paiol não ha de arder. Depois que vier a metralha da morte, o Deus dos exercitos velará por ella... O soldado Jacques estava na confidencia do nascimento de Rosina. Fôra elle que, annos antes, saltára ao jardim de uma casa da rua das Tournelles, para receber dos braços de uma criada uma creança, cuja mãe procurava assim occultar o segredo da sua deshonra. Jacques Regnau atravessou com ella nos braços o _boulevard_ da Bastilha, e ia dizendo comsigo: --O caso é que ainda tenho geito para estas aventuras mysteriosas. Suppunha-me velho e levo aqui esta creança mais como pae do que como avô. E todavia o que decerto vem a acontecer é que eu seja o avô, e o meu capitão o pae... E assim, em verdade, aconteceu, com uma unica differença. Se Rosina, no decurso de sua vida, precisasse de nobilitar-se com um appellido, o pae, ao invés do que acontece em todas as familias, não lhe daria o seu appellido, mas sim o do leal camarada. Diria provavelmente: --Põe lá: Rosina Regnau. Ella porém não precisava de appellido paterno. Era a filha do regimento. Chamava-se simplesmente Rosina, _lá gentille vivandière_. Esta era a enfermeira do nosso ferido. [5] Referencia á proclamação de Soult. * * * * * VII No hospital de sangue Oito dias transcorridos, vamos encontrar Graça Strech, sentado no catre, convalescente, se bem que muito debilitado ainda, a relêr algumas das cartas que, por piedoso interesse de Rosina, pudera guardar debaixo do travesseiro. Os successos de tão breve curso de tempo pequena chronica requerem. Rosina tem sido para o soldado portuguez carinhosa enfermeira. Chasqueam-n'a as outras mulheres, encarregadas do serviço do hospital, de extremamente compassiva para o prisioneiro, e zombeteiramente aventam que, a julgar pelos prolegomenos, lhes não parece impossivel que o exercito portuguez inteiramente se deixe desarmar pelas vivandeiras francezas. As almas das restantes mulheres não se levantam do nivel commum ao femeaço que segue tropa. São grosseiras, sensuaes e malevolas. Rosina respira melhor entre os soldados do que entre ellas. D'aqui uma certa rivalidade apenas contida pelo respeito com que todo o exercito acata á filha do bravo militar das Ardennas. Todavia a «gentil vivandeira», como mariposa que é, não se demora no ambiente infeccionado em que ellas respiram; evita-as como a pantanos miasmaticos, sem lhes dar a conhecer que o muladar unicamente é povoado por vermes. Passa inquieta e ao mesmo tempo cautelosa, agitando as suas azas iriadas. Atravessa o lodaçal sem tocar-lhe. Guarda para si o nectar que vae libando nas flôres perfumadas da sua phantasia. É mariposa! dizem. Concentra-se nos circulos caprichosos em que doideja. Quer adejar e sorrir. Mas para esta, como para todas as mariposas, depois do jardim, cujas flôres beijou, ha de crepitar a chamma, que será o seu ultimo beijo. Beijo de fogo, que mata. E chamaes felicidade a isto! Olhaes sómente á superficie; a mariposa não é feliz porque passe adejando... Graça Strech fez reparo no carinho da enfermeira, mórmente comparando-o ao desamor com que eram tratados os demais feridos. Não poria duvida em beijar a unica mão caridosa que se estendia para elle na solidão do mundo, se não receiasse que o odio que lhe refervia no coração contra a França lhe envenenasse os labios. E aquella mulher era franceza. Parecia-lhe que dos seus vestidos se exhalava ainda o cheiro da carnagem. Por ventura o soldado que assassinára sua irmã, sua mãe e sua avó viera adormecer tranquillo nos braços d'aquella mulher, se é que não fôra mais d'um soldado, com as mãos ainda tintas das nodoas do crime. Via n'ella a creança corrompida pela lascivia da soldadesca, e, ao mesmo passo que lhe era reconhecido, tinha por ella o desprezo que se tem pelo vicio precoce. Considerava-a uma das victimas arrastadas pelo carro triumphal do Cesar francez. Bem podia ser que n'aquelle corpo vendido ao prazer germinasse uma alma boa logo corrompida pela putrefação contagiosa da caserna. Se não tivesse por mãe uma mulher devassa, uma vivandeira, uma meretriz de soldados, que não faria mais que atirar sua filha ao berco em que ella propria nascera, poderia encontrar um marido honesto, ser o anjo do lar, divinisar-se no altar da familia, porque as mães podem considerar-se as santas da religião domestica. Mas não. Graça Strech suppunha-a a flôr do paul. Tinha para elle a belleza maculada da vegetação dos charcos. Não sabia o que era o azul do firmamento, porque só os lagos, de superficie crystallina, são espelho do céo. As flôres do paul querem viver no lodo; ella queria viver no prazer. Os beijos que recebia tresandavam ao acre do tabaco e da aguardente. Não dulcificavam; queimavam. E assim como a gente se admira de ver uma flôr, por mais desbotada e menos formosa que seja, á beira d'um monturo, assim elle se admirava de que aquella mulher tivesse nos olhos um relampago de compaixão estando habituada a viver entre soldados e concubinas. Era, a seu juizo, o ultimo lampejo da alma que bruxoleava apagada pelo vicio. Extincto o derradeiro clarão, ficaria apenas a lampada--o corpo. E elle não queria gosar; queria vingar-se. O prazer da vingança, se o ha, esse anhelava-o. Mas uma mulher corrupta não podia ser-lhe instrumento sufficiente a sacial-o. Nenhum dos generaes que capitaneavam o exercito invasor teria uma filha innocente, candida, formosa? decerto não; se a tivesse, não consentiria que a soldadesca violasse as alheias. Mas se a tinha, trouxessem-lh'a, pura como estava, bella como era, que a queria polluir, e dizer depois ao pae exasperado: «Os teus soldados mataram minha irmã, que tambem era virgem; eu matei tua filha, porque a encontrei no estado de minha irmã. Ambas são mortas: isso que ahi está já não vive.» A toda a hora, tudo ali lhe recordava esse horrivel drama de sangue, que reputaria ainda sonho infernal, se a memoria de trez cadaveres o não chamasse á realidade. Tudo eram mulheres mancommunadas com os invasores, tudo feridos e prisioneiros, que de continuo amaldiçoavam, esporoados pela dôr physica, a França e o Corso. A lingua que se falava era a d'ellas, mesclada de raras palavras hespanholas para melhor se fazerem entender dos que não tinham a illustração bastante para comprehendel-as. Não será preciso observar que Graça Strech não desconhecia o idioma francez. A principio confundiam-se-lhe no cerebro enfraquecido todas as sinistras visualidades d'aquella tormentosa phase de sua vida. Depois, á medida que ia cobrando forças, não só entrou de raciocinar ácerca de Rosina, como lhe acudiu a lembrança de seu pae, cuja morte só o tempo comprovára, e a consciencia da sua propria situação. Estava prisioneiro, guardado á vista por sentinellas francezas, e todavia havia jurado vingar a morte da sua familia. Esta idéa infernou-lhe as primeiras horas de lucidez. Era impossivel despedaçar as cadeias, romper por entre as sentinellas; não queria de modo algum expôr-se á morte que o roubaria á vingança. E o sentir no dedo o contacto do annel, em que se coagulára uma gota de sangue seu, ou de sua irmã, exasperava-o ao extremo de cair prostado no leito. N'estes lances acudia meigamente Rosina Regnau, chamemos-lhe assim, a soccorrel-o com notavel dedicação. Umas vezes a repellia elle com ingratidão brutal, quando a accentuação franceza lhe coava ás entranhas estremecimentos de raiva, outras fitava na vivandeira o olhar amortecido como a dizer-lhe que a prostração seria passageira. Na vespera do dia em que estamos, teve Graça Strech uma idéa que para logo reputou auxilio providencial. Lembrou-se de que só por intervenção de Rosina poderia evadir-se do hospital de sangue. Tratou pois de corresponder á solicitude com que ella o distinguia, de se mostrar reconhecido, de occultar o seu pensamento de vingança sob a mascara de ternura. Immediatamente o dominou este proposito, e a si mesmo prometteu nunca mais receber Rosina com intermittencias de rancor ou azedume. Difficil era o cumprimento d'esta promessa. Não se mascára facilmente o coração. Relia elle, como dissémos, as cartas de sua irmã. Umas eram queixumes de rôla solitaria confrangida da tristeza alpestre das Chãs; outras eram hymnos de esperança, votos de felicidade commum, vagas alegrias dos sonhos dos quinze annos... N'umas denunciava-se a mulher; n'outras a creança. Umas eram a lagrima; outras o sorriso. Aquellas tinham a tristeza d'uma nuvem em céo d'abril; estas eram um raio de sol doirado pela primavera... Ou antes, como o leitor poderá classifical-as, as primeiras eram o presentimento da desgraça imminente, as ultimas eram o cantico do anjo que punha os olhos no céo, sua patria. Vejamos: «_30 de novembro de 1807._--Meu irmão.--Não sabes como soffro horrivelmente, receiosa dos perigos que virão. A avosinha tambem está muito afflicta depois que os francezes entraram em Abrantes. Já cá sabemos da partida da familia real, apezar de tu, grande dissimulado, m'o não haveres dito! O padre capellão anda sempre a contar dinheiro e a ralhar com os abegões. Isto é uma tristeza! Quem nos vale a ambas, a mim e a avósinha, para nos tranquilisar, é o Teixeira. Eu, por mim, peço todos os dias a Deus que não aconteça mal algum aos portuguezes...» «_18 de setembro de 1808._--Meu José--Graças a Deus, que se dignou ouvir as minhas continuas orações! O Teixeira esteve hontem á noite a contar-me tudo. Até que emfim está a patria livre outra vez, sem haver acontecido desgraça de maior á nossa familia. Queira Deus que continue a paz para que tu possas vir vêr-me brevemente. A noticia do Teixeira deu-me grande alegria, meu José. Reconquisto de novo a felicidade! Eu creio que não tenho coragem para soffrer... Dá um beijo muito demorado á mamã e um abraço muito apertado ao papá. A avósinha diz que venhas logo que possas. Vem, sim? Olha lá... logo que possas. O beijo á mamã que seja muito longo, muito longo... Não te esqueças. Tua--_Augusta_.» Graça Strech sentiu os olhos marejados de lagrimas ao lêr estas cartas, especialmente a ultima. Estava alli todo o coração de sua irmã, a alegria da avesinha, ainda tremula, que se sente desopprimida dos seus negros receios, phantasticos uns, justificados outros. Abeirou-se brandamente do catre, como quem teme ser importuno, Rosina Regnau, e com encantadora timidez perguntou: --Chorava? --Um soldado portuguez não chora nunca, respondeu Graça Strech com doçura meiada de altivez e fingimento. --São menos felizes as vivandeiras francezas, contestou ella com sincera simplicidade. --Por quê? --Porque choram ás vezes. --Ainda a não vi chorar!--E, como se instantaneamente deixasse resfolegar o rancor latente no coração, acrescentou:--A polvora queima os olhos e o coração, e Rosina é quasi um soldado... francez. --Olhe que se contradiz! observou ella maviosamente.--Esquece-se de que tambem é soldado e chora... Graça Strech caiu em si e deu-se pressa em attenuar o mau effeito das suas palavras: --Tem razão. A desgraça dá esta incoherencia aos pensamentos... --Julga-se então muito desgraçado? --Pungente ironia que só pode vir... d'ahi! retrucou sobremodo exaltado o convalescente. Pois pergunta-se a um prisioneiro, a um ferido, a um homem mil vezes deshonrado, se é infeliz? Onde aprendeu esse cynismo de vivandeira? Onde havia de ser! Na taberna e no quartel. Só lá é que se fala assim... E, como ella chorasse á beira do catre: --Sabe que eu ainda não estou inteiramente curado, Rosina? Parece-me que deliro ás vezes! Agora delirei eu. Não... não delirei. Conheci que era mais piedosa do que as outras mulheres... Quiz ver até onde chegava a sua sensibilidade... Perdõe-me a experiencia... Vejo que ainda tem lagrimas... sim... tem lagrimas... não posso duvidar... está chorando! --Não seja mau para mim, soluçou Rosina Regnau. Eu tive pena de vêr o senhor a lêr e a chorar... De mais a mais fui eu que lhe dei as cartas para a mão no dia em que o senhor veiu e parecia pedir-m'as... Pois não se lembra? --Não. E viu-as alguem? leu-as alguem? --Ninguem as leu, senhor. Eu pensei que se lembrava, porque o senhor, quando lh'as dei adivinhando de certo o seu pensamento, olhou para mim... --Sim, talvez olhasse... eu queria as cartas... --Isso comprehendi eu. A gente ás vezes estima qualquer cousa que não tem valor... Eu tambem tenho um d'esses thesouros que nada valem... É...--E calou-se, receiosa de proseguir. --É? --A madeixasinha de meu pae, que era capitão do exercito. --Capitão? perguntou Graça Strech. --Era capitão, senhor. Para me não deixar desamparada, entregou-me ao velho Regnau com esta madeixa que era o seu unico legado... Nada mais tinha que me deixar...--E tirou do seio a sua reliquia, sobre a qual foram cair duas lagrimas ardentes. Graça Strech, subitamente commovido, attentou na vivandeira que tinha baixado os olhos, como se quizesse esconder o pranto. --Ás vezes, proseguiu ella, fico-me a contemplar este thesouro, sobretudo se estou triste. Que mais tenho eu no mundo? Nada. Esta madeixasinha da minha riqueza, o meu talisman, creio eu. Beijo-a e choro. Fico melhor. É tambem a minha companhia. Estas mulheres--e indicou as demais vivandeiras--nem sequer se lembram de que tiveram pae! Até lhes convém pensar que o não tiveram para não sentir atormentada de remorsos a consciencia.--Ellas querem-me mal, bem o sei. Que me importa? Eu tenho o meu coração tranquillo. Devo a Deus o haver-me protegido com a sua misericordia. Sou a filha do regimento, e ninguem offende uma filha. Estima-me; estimo-os. Da guerra que ellas me fazem nem me lembro. Pobresinhas, que não são capazes d'uma ação boa! Vivo só, completamente só, senhor. Sou digna da compaixão de todos, acredite, porque sou infeliz; criminosa não. Meu pae, que decerto me está ouvindo n'esta hora, bem o sabe. É porque sou infeliz, que comprehendo as desventuras alheias. Pareceu-me que o senhor tinha maguas secretas. Inspirou-me sympathia. Bem sei que a minha presença lhe não deve ser agradavel, porque emfim eu sou franceza e o senhor é portuguez. Mas que culpa tenho eu de haver nascido longe? Foi nas Ardennas... bonita terra d'uma vez! Ainda não vi arvores como lá! O imperador é quem manda; nós não temos culpa nenhuma: obedecemos. Elle quer o mundo; conquiste-se o mundo. E depois eu não tenho odio nenhum aos portuguezes. Até se o senhor algum dia precisar do meu prestimo... Eu não valho nada... mas verá que ha de encontrar sempre a mesma Rosina Regnau... O que eu queria é que me tratasse bem. Não faço mal a ninguem, porque não se tira proveito nenhum de fazer mal... O senhor foi ferido, é verdade; mas fui eu quem o feriu?... --Não, Rosina, não! atalhou Graça Strech enternecido a lagrimas. Mas feriram-me na alma, bem fundo, muito fundo... Sou um grande desgraçado. Se lesse estes papeis, que são tambem a minha unica riqueza, veria que o sou. Eu tenho apenas de meu estas cartas; Rosina tem apenas a sua madeixasinha. Somos irmãos na desgraça. Eu sou filho d'um capitão portuguez, talvez morto a esta hora; Rosina é filha de um capitão francez, que tambem não existe. Ainda n'isto irmãos! Bem sei que não tem culpa de haver nascido franceza. Perdoe-me, se a offendi... Offendi, que o sei eu. Deite tudo á conta da minha arrebatada mocidade e dos meus soffrimentos. Mas é que este abysmo cavado por Napoleão entre as duas nações é incommensuravel, acredite. O abysmo chama o abysmo... Jámais correu sangue impunemente... A guerra faz dos homens leões... E que guerra esta, santo Deus!... Zomba-se de tudo--da virgindade, da honra, da innocencia! Oh! que os seus irmãos tremam das represalias... Medonhas devem ser... Não se opprime assim um paiz inteiro... A estrada por onde fugiu Junot está atravancada de cadaveres, mas ainda cabe por ella o exercito de Soult. A hora do resgate será tremenda, Rosina. Fuja, fuja emquanto é tempo, pomba que vive entre milhafres. Fuja com a sua innocencia. Eu comprehendo, eu acredito que é boa, e casta. Mas não encontrará em Portugal coração que possa acceitar o seu amor, alma que prese os thesouros da sua. E sabe por que? Porque entre um portuguez e uma franceza medeia n'esta hora uma barreira invencivel... E essa barreira está em pouco, mas não haverá ahi exercitos que a transponham. É um maço de cartas, um annel, uma madeixasinha talvez. Supponha que um homem havia ferido mortalmente seu pae... Que esse homem viesse agora dizer-lhe, Rosina, que lançasse ao fogo essa reliquia sagrada; que matára em nome da patria; que seu pae era primeiro que tudo um soldado, e que um soldado era para elle o inimigo... Chora, Rosina! As suas lagrimas são ainda mais eloquentes que o seu silencio... Pois supponha que mataram meu pae, supponha que me retalharam a alma, que eu tenho noite e dia nos ouvidos o clamor da vingança, que eu sou um homem que já não vivo para mim, mas para os que morreram... E, exhausto de forças, caira sobre o travesseiro, pedindo soccorro com o olhar, em que subitamente se apagaram os fogos da exaltação. Fez-se em torno do catre o lugubre silencio dos hospitaes, apenas interrompido de espaço a espaço pelos gemidos de alguns portuguezes que anhelavam a morte, porque só n'ella encontrariam o supremo resgate. Rosina, curvada para o doente, julgava amparar nos seus braços um homem que desejava viver para vingar a morte da mulher amada. A excitação febril do prisioneiro fazia-lh'o crer. Estava longe de suppôr que essa mulher fosse apenas irmã, ou antes que a desgraça d'esse homem fosse tamanha que tivesse de vingar a morte de uma familia inteira. Como, porém, Graça Strech lentamente parecesse recobrar alento, inclinou-se-lhe ao ouvido e maviosamente repetiu: --Se algum dia precisar do auxilio da pobre vivandeira, acredite que Rosina Regnau será sempre a mesma... * * * * * VIII O anjo da liberdade Foi-se restabelecendo o doente. Meiado abril, Craça Strech julgava-se robustecido sufficientemente para encetar a sua obra de vingança. Toda a sua attenção se concentrava na idéa fixa da fuga. Rosina continuava a ser para elle a dedicada, a solicita, a meiga enfermeira dos primeiros dias. Se em tão carinhosa dedicação estava occulto o germen do amor, se era aquella a mascara da alma apaixonada que tinha de respeitar conveniencias e circumstancias, não tardará que o saibamos. Todavia os seus sorrisos, posto que doces, revelavam tristeza. O coração a attraíl-a para aquelle homem, e o destino a distancial-a! Que elle soffria, era evidente. Mas por que soffria? Porque esse homem--suppunha-o ella--amára doidamente, com o fogo dos primeiros amores, com a loucura dos primeiros annos, e vira talvez correr, na hora da invasão, o sangue innocente da mulher amada. Porque esse sangue clamava vingança, e elle esperava apenas pela hora tremenda da represalia. Porque essas cartas que relia a toda a hora eram outros tantos protestos contra a tyrannia dos que venceram. Fossem dizer ao coração d'esse homem pungido pelo que ha ahi de mais excruciante na terra: «Despe o teu luto; enflora-te. Os que te mataram eram meus irmãos, mas quem te resuscitará serei eu. Com o sangue do cadaver, que desceu á tumba commum, regaremos as flôres da tua felicidade futura.» Não podia ser. Elle tivera razão quando disse: «Supponha que um homem havia ferido mortalmente seu pae. Que esse homem viesse agora dizer-lhe, Rosina, que lançasse ao fogo essa reliquia sagrada; que matára em nome da patria...» Referia-se a uma barreira insupperavel, e falava do maço de cartas, de um annel, de uma madeixasinha talvez. E as cartas relia-as elle, e annel tinha um na mão esquerda, tinto de sangue, que era talvez da pessoa cuja morte anhelava vingar. Que esperança podia, pois, ter Rosina no seu louco amor? Mas, por outro lado, quem ha de dizer ao coração que é loucura amar? Como havia ella, allucinada pela paixão, de raciocinar comsigo mesma: «Tu és a pobre Regnau, a vivandeira franceza, que acompanhas o exercito vencedor; elle é o soldado do exercito vencido, e vencido elle mesmo. Não se póde transpôr um abysmo, muito menos dois. Tantos são os que nos separam n'esta hora: o da vingança e o da nacionalidade!» Isto ninguem o diz; ella não o podia dizer. Amava, sim, mas amava sem esperança, e, o que é mais, amava com medo. Agrestemente a tratava elle a principio. Desde o dia em que ella lhe perguntou se chorava, e em que timidamente se abeirára do catre antes como enfermeira do que como amante, pareceu todavia abrandar um pouco mais o seu odio inspirado pelo nome francez. Conheceu decerto que ella não estava ainda pervertida, e condoeu-se. Mas condoer-se não é amar. E depois que desgraçado aquelle! Que pensaria elle fazer? Talvez matar-se. Prefiriria morrer a combater contra a sua patria, contra o seu nome de portuguez, contra as suas recordações. Como ella quizera sondar-lhe a alma e arrancar-lhe o seu segredo! O que importava, primeiro que tudo, era affastal-o da morte. Por isso o espionava Rosina, e cada vez era maior a sua solicitude. Não tardou porém a hora em que Graça Strech ia levantar uma ponta do véo mysterioso que occultava os seus designios. Era ao entardecer. Havia na sala a penumbra crepuscular. Elle escolhera decerto essa hora para que a physionomia lhe não traisse os sentimentos reconditos. --Lembra-se, Rosina, do offerecimento que me fez? --Lembro, e repito-o, respondeu ella estremecendo de golpe. --Pois bem; é chegada a occasião de aproveital-o. Cumpre porém que primeiro lhe diga que a minha vida fica pendente d'esta revelação. Se ámanhã quizer denunciar-me aos meus algozes, póde fazel-o, e então completará a vingança dos meus desabrimentos. Completará, disse eu, porque compassivamente me tem tratado, e a compaixão é a vingança das almas nobres. Quer-me parecer, não obstante a posse do meu segredo, que continuará a vingar-se nobremente... O seu coração é bom, Rosina; o meu é que não é assim. Eu sou vil, rancoroso, sanguinario. Mas, ainda assim, em alguma hora da minha vida me é dado ouvir a voz do meu anjo da guarda. Depois a celeuma dos maus instinctos suffoca-a. É porém esta uma das horas em que o meu coração não é inteiramente perverso. Portanto lhe falarei com a maxima franqueza. Eu quero sair d'aqui, Rosina, livre, completamente livre, entenda-me bem. Só por sua intervenção o poderei conseguir. Mas, se me presta esse serviço, quem lhe não dirá, Rosina, que soprou no meu peito as labaredas que eu sinto escaldarem-me o sangue quando volvo os olhos a um passado proximo, muito proximo?... Sabe que é quasi um fratricidio que vae praticar? A voz da consciencia será a primeira a dizer-lh'o. Não irá combater contra os seus pessoalmente, mas irá dar mais um soldado ao exercito portuguez cerceado pela derrota... Pense em tudo isto. Vae trair a confiança dos seus irmãos para conquistar apenas a gratidão d'um só homem... A esta palavra, os olhos de Rosina, até ahi brilhantes de copiosas lagrimas, illuminaram-se d'um clarão d'alegria. --Gratidão! disse?--soluçou ella. É a primeira vez que eu oiço dos seus labios tão doce palavra... Acredite-me, sim? Eu já pensava em auxiliar-lhe a fuga, mesmo quando ainda não era meu amigo. Tinha pena, muita pena do senhor, e receiava que se quizesse matar para não ficar prisioneiro. Faria por lhe dar a liberdade, ainda que m'o não agradecesse, porque algum dia, ahi por esses acampamentos fóra, bem podia ser que o senhor encontrasse, prostrada por uma bala perdida, a vivandeira Rosina, e dissesse, lançando-lhe um olhar de piedade: «Bem te reconheço! Eras a pobre Regnau. Deste-me a liberdade. Estás morta. Que te hei de dar agora? Dar-te hei uma oração». Isto me bastaria, senhor, que eu bem sei que não mereço mais. Mas agora o caso muda muito do que eu havia pensado na minha tristeza. O senhor promette-me gratidão. Que mais posso eu invejar? A memoria de meu pae me perdoará, porque elle--disse ella com irreflectida candura--tambem amou muito, segundo contava o velho Regnau. Gratidão é o que o ceguinho das Ardennas tem ao seu fiel molosso. O pobresinho do Hubert anda sempre a dizer, referindo-se ao seu cão: Não ha pessoa a quem eu seja mais grato!» Veja o senhor como elle lhe quer, que até chama pessoa ao cão! Pois eu serei para o senhor como o molosso para o Hubert. Ter-me-ha gratidão; viverei feliz... E sabe o senhor que o cão do ceguinho das Ardennas o segue sempre? Sabe o que isto quer dizer?... E calou-se de subito, ruborisada de pudor. --Não sei! observou Graça Strech sobremodo admirado da sinceridade d'aquella confidencia. --Não sabe? É que eu tambem queria seguil-o ao senhor... --Como?! perguntou o moço aprumando-se como galvanisado por um choque electrico. Seguir-me! Sabe bem o que diz, Rosina? Sabe que atraz de mim caminhará sempre a morte, e atraz de si o odio francez? Sabe que isso é renegar a sua patria, o nome de seu pae? --Esquece-se de que meu pae não me deixou nome? Se no céo se sabe tudo, elle saberá que o meu coração é puro. O mais que me importa a mim? Nem por seguir o senhor deixarei de querer cada vez mais á minha madeixasinha. Crime era o esquecer-me d'ella, o desprezal-a, o não a trazer commigo. Mas é que eu seguirei o senhor, e ella seguir-me-ha a mim. E depois o senhor não me comprehendeu bem... Eu não queria deixar de ser vivandeira... Não se quesile, não? O senhor vae combater. Eu seguirei o exercito como até aqui, mas estarei sempre em sitio onde lhe possa acudir, e em vez de soccorrer um soldado francez soccorrerei o senhor se as balas o não respeitarem. O crime está só n'isso, e Deus m'o perdoará... Eu, depois que morreu o velho Regnau, o meu segundo pae, tenho vivido tão sósinha, tão sósinha!... O exercito é muito grande e por isso mesmo não faz companhia. Não lhe perderei o rasto, senhor, esteja certo. As vivandeiras estão costumadas á guerra de emboscada. Surprehendel-o-hei quando menos o esperar. Que seja preciso affrontar perigos, pouco importa. Rosina, a «gentil vivandeira», como por favor me chamam, é destemida. Toda a brigada Arnaud lh'o podia dizer... A admiração, o pasmo, o alheamento de Graça Strech eram cada vez maiores. Espantava-o aquelle conjuncto de candura e coragem, aquelle receiar e querer da vivandeira. Achava extraordinaria a creança, que tinha innocencias d'anjo e impetos de mulher. Não sabia se mais havia de admirar a originalidade do temperamento se a originalidade da revelação. Começava a lêr na alma da vivandeira que o amava. Comprehendeu que ella sabia respeitar-lhe a dôr, impondo-lhe suavemente o dever de respeitar-lhe a sua. E tudo o que ella soffria era por ser franceza... Tambem elle se não lembrava n'esse lance de que a mariposa procura a chamma! E Rosina era a mariposa do acampamento. Não obstante, desconfiando ainda da clareza da sua percepção, quiz oppôr obstaculos á resolução da vivandeira: --Mas não sabe que isso é impossivel, Rosina? Não sabe que se não póde seguir ninguem através dos azares da guerra? Quem póde luctar com as ondas sem naufragar? Não lucte, Rosina, não lucte com o que é invencivel. Guarde essa coragem do seu bello coração para as batalhas do mundo, que toda lhe será precisa. Deixe-me ir até onde chegam todos os infelizes. Não sabe que ámanhã posso encontrar a bala que me mate?... Não será ámanhã, não, porque eu ámanhã não haveria completado a minha obra. Preciso de viver, mas a guerra é tão caprichosa! Completa a minha obra, desejo morrer livre, quite com o mundo. Não quero que ninguem me chore--morrerei feliz. --Outro tanto poderei eu dizer, atalhou com doçura a vivandeira. Mas deixe-me ir... tambem até onde vão os infelizes. Já agora, eu, que lhe vou abrir o seu futuro, quero saber ao menos o sitio em que o senhor estiver. Bem pouco lhe peço, como vê. Caprichos de mulher! especialmente caprichos de franceza... E, como que arrependida de haver soltado esta palavra: --Fui indiscreta, bem sei; perdôe-me. O seu coração precisa de esquecer a minha nacionalidade para me não odiar... Era impossivel luctar por mais tempo com tão energica e ao mesmo passo tão meiga natureza. Como se aproximasse gente, Graça Strech apertou-lhe silenciosamente a mão e escondeu no lençol a face involuntariamente orvalhada de lagrimas. Chegára a noite triste que ao nascer das estrellas invade os hospitaes e as prisões com o seu silencio e a sua tremula claridade. Graça Strech não pôde conciliar o somno. Tantos e tão extraordinarios eram os pensamentos que se lhe baralhavam no espirito, que ora sentia subir-lhe ao cerebro a frialdade glacial dos tumulos, ora a chamma abrazadora da congestão. Assim esteve, sem dar tino do tempo que passava, com os olhos fitos na sombra oscillante que uma lanterna projectava na parede fronteira ao seu catre. Os gemidos d'alguns feridos compassavam-se a intervallos mais ou menos longos, segundo a gravidade do ferimento. Duas vivandeiras, encarregadas de ficar de véla n'aquella noite, deixaram-se adormecer com a tranquillidade de quem está bem e não se importa de que os outros estejam mal. Na rua tropeavam com interrupções os cavallos das rondas. Uma ou outra vez ouvia-se trocar palavras entre as patrulhas que passavam e a sentinella do hospital. Não se percebia, porém, o que diziam... E assim decorria a longa noite das enfermarias e dos carceres com o lutuoso aspecto que faz d'umas e outros--cemiterios de vivos. A mais de meio iria a noite, quando a Graça Strech pareceu vêr entrar cautelosamente na sala um soldado francez, que foi caminhando, cada vez mais receioso, até se avisinhar do seu catre. Se obedecesse ao primeiro impeto, haveria falado, porque lhe passou no espirito a suspeita de que Rosina o denunciára, e de que esse soldado, que tanto se arreceiava de ser surprehendido, era um assassino galardoado talvez pela devassidão da vivandeira. E bastou esse momento para a suppôr mobil d'uma infamia inaudita, a ella, que momentos antes lhe pedia unicamente, a troco da liberdade promettida, que a deixasse seguil-o como o fiel molosso seguia o cego das Ardennas. Era, porém, corajoso de mais para succumbir aos perigos d'uma traição. Para logo se lhe accendeu o coração em labaredas do inferno, e se lhe requeimou a garganta como a do tigre dos palmares quando tem sêde de sangue. Era, porventura, um soldado francez que o vinha apunhalar, de noite, suppondo-o a dormir, talvez por ciume da barregã com quem passára a noite, ou para vingar o odio que aquelle prisioneiro nutria contra os francezes. Não tinha armas, nem carecia d'ellas. Infamia por infamia. Luctaria braço a braço, encarniçadamente, silenciosamente, até que um d'elles ficasse prostrado. Sentou-se no catre, com o joelho direito levantado, em posição de melhor se poder erguer para responder á aggressão. E com tão sinistro brilho lhe coriscavam os olhos, que o supposto soldado francez, conhecendo de certo o que lhe ia na alma, impuzera silencio com um gesto e dissera a alguns passos de distancia: --Sou eu. Graça Strech reconhecera Rosina. O vulto que elle suppuzera um assassino transformára-se no anjo da liberdade. Não lhe vinha trazer a morte; vinha restituir-lhe a vida. Como poderia elle receiar a aggressão d'aquelle soldado franzino, gentil, cujos olhos, por meigos e luminosos, trahiriam o segredo do seu disfarce, cujos cabellos, ennovelados a um e outro lado, denunciavam as tranças da mulher enroladas em cachos? Visualidades d'imaginação doente, chimeras que o habito do soffrimento cria, e a noite avulta. --Sou eu, repetiu ella cada vez mais baixinho, e aproximando-se. E, como se por encantamento um genio bom lhe deizasse cair ás mãos o fardamento d'um soldado, igual ao que vestia, acrescentou: --Não ha tempo a perder. Vista-se e venha. E retrocedeu a esconder-se á porta, onde as sombras mais se condensavam, e a levantar do chão o saco d'oleado da ambulancia, que continha o seu trage de vivandeira. Não se fez esperar o prisioneiro, que logrou atravessar a sala sem ser percebido. Nos olhos dos que dormiam havia as nuvens precursoras da noite eterna, que nada deixam vêr para fóra do corpo. É o recolher-se da alma que vae partir. As duas enfermeiras continuavam a dormir tranquillamente. --Venha, disse-lhe Rosina travando-lhe da mão. Graça Strech desceu conduzido pela vivandeira. Quando a sentinella deu tino de que se aproximava alguem, cumpriu a praxe militar do--_Qui vive?_ Um dos soldados, que levava ao hombro a bolça da ambulancia, respondeu: _L'empereur_;--e quando já a sentinella podia distinguir os uniformes, acrescentou com voz firme e sã em francez. --Soldados da ambulancia com ordens urgentes para o quartel general. O soldado que respondera era, como calculam, a vivandeira das Ardennas. Chegados á rua, Rosina Regnau apertou convulsamente o braço de Graça Strech e segredou-lhe: --Nunca se esqueça de que n'este dia, e a esta hora, lhe dei a liberdade, roubando-a a mim mesma. --Nunca! respondeu elle commovido. E, como sentissem aproximar-se uma ronda, estugaram o passo, caminhando sem norte. Por duas vezes, no aventuroso transito, os surprehenderam patrulhas francezas. Era sempre Rosina quem respondia no idioma patrio, não sem que sentisse palpitar vertiginosamente o coração receioso de ver desabar n'um momento a felicidade sonhada. Insensivelmente se foram aproximando do rio Douro, a cuja margem pararam algum tempo vacillantes no que fariam e, não obstante serem ambos corajosos, quasi amedrontados. Só então, chamados á realidade, olharam para dentro de si mesmos, conscientes da arriscada situação em que se encontravam. Pareceu-lhes, porém, ouvir o compasso de remos na agua, e tanto bastou para se illuminar d'um raio d'esperança a alma da vivandeira. Foi Graça Strech quem se aventurou a chamar o barqueiro. Nenhuma voz respondeu ao chamamento mas, decorrido algum tempo, viram avisinhar-se do caes o vulto negro do barco. N'aquelle tempo eram tão frequentes as fugas nocturnas, dos que presumiam mais demorada, do que foi, a occupação franceza da cidade, que alguns barqueiros dos logares convisinhos, inteiramente privados de recursos, se affoutavam a bordejar no Douro por horas mortas para receber a esportula dos fugitivos. Graça Strech e Rosina Regnau saltaram ao barco. Estremeceu o barqueiro conhecendo o uniforme francez, mas Graça Strech acudiu a serenal-o com estas palavras: --Somos portuguezes, amigo. O habito não faz o monge. Salva-nos, e não te importe o mais. Afasta-nos, o mais depressa possivel, da cidade. * * * * * IX Entre a vingança e o amor Foi o barco singrando Douro acima lentamente. Graça Strech lançou mão d'um remo e auxiliou o barqueiro, não sem haver arrancado de si mesmo, com fogosa violencia, a jaqueta do uniforme francez. --Que peso que me fazia isto! disse elle sorrindo a Rosina. E voltando-se para o barqueiro: --Onde estará agora o resto do nosso pobre exercito, sabes? perguntou vivamente. --Anda para Riba-Tamega, senhor. Desde hontem que vae para lá o inferno, tão certo como ser hoje 19 de abril, e chamar-me eu o Tunante de Pé-de-Moira. --Não sabes mais nada? --Eu, senhor?... tartamudeou o barqueiro relanceando um olhar de medo ao soldado francez que ia sentado é pôpa. Graça Strech comprehendeu-o, e acrescentou: --Pódes falar. Não te disse eu que o habito não faz o monge? Aquelle soldado francez, que tu vês ali, é uma mulher. --Uma mulher! repetiu o barqueiro. --E de mais a mais faze de conta que é... muda, disse sorrindo maliciosamente Graça Strech. A esta palavra, se elle houvesse reparado, veria brilhar extraordinariamente os olhos de Rosina Regnau, que encontrára n'esse momento, melhor ainda, n'esse vocabulo, a chave d'um enigma que a preocupava dolorosamente. --Pois então, lá vae tudo, p-a-pá-Santa Justa, tornou facetamente o barqueiro. Os francezes pegaram hontem fogo á villa d'Amarante. Hoje de manhã havia uma procissão de gente que vinha fugida da villa. Em Pé-de-Moira ficaram dez pessoas. Foram ellas que contaram o que se havia passado. --Quem commanda os Portugueses, sabes? --É o general... Ora que me não lembra agora! Elle tem assim um nome a modo d'arvore... --Silveira? perguntou com anciedade Graça Strech. --Tal qual: Sirveira, deturpou o barqueiro. Aclarava-se o céo com os primeiros alvores do dia 20 d'abril. Rosina levava os olhos postos no arvoredo das margens, alanceada, porventura, de vagas saudades das florestas das Ardennas. --Agora, á luz d'esta candeia, apostrophou o barqueiro apontando para o sol nascente--já eu não me enganava com o sordadito... Rosina sorriu melancolicamente, como se entendesse o barqueiro por uma fina intuição de mulher apaixonada, e Graça Strech perguntou em francez pousando o remo: --Vae triste! É o arrependimento que chega?... A vivandeira respondeu energicamente com um gesto negativo, como se em verdade fôra muda. --O peior--disse o barqueiro improvisamente--é que se virem de terra que vae aqui um soldado francez, são capazes de fazer fogo contra todos nós. Os diabos o jurem! Mas se ella não é franceza p'ra que diabo lhe fala o senhor n'esses latins? --São coisas... respondeu austeramente Graça Strech.--Tens razão, tens... no que lembraste. E, voltando-se para Rosina, traduziu o pensamento do barqueiro. --Vae ali uma manta, e a cachopa que se embrulhe n'ella, se quizer, observou o Tunante de Pé-de-Moira, com certo orgulho alegre de tomar parte n'uma aventura que desde logo presumiu amorosa. Rosina, aconselhada por Graça Strech, acceitou o offerecimento, e despiu a fardeta. O Tunante, orgulhoso de poder fazer concessões, acrescentou: --Minha mulher tem lá por casa uns trapos, que não valem nada. Assim que chegarmos, eu irei buscal-os. Inteirada do offerecimento, Rosina abriu a bolça da ambulancia e tirou com presteza o seu corpete, saial e _bonnet_ de vivandeira, arremessando-os ao rio. --Que faz? perguntou Graça Strech. A vivandeira encolheu os hombros, como se aquelle movimento quizesse dizer: --Atiro á agua o passado. --Porque não fala, Rosina! Ainda não ouvi a sua voz desde que entrámos n'este barco! Quererá tomar a serio o gracejo da sua mudez, com que eu procurei ludibriar a curiosidade do barqueiro? --É que, respondeu ella affectuosamente, me sinto preoccupada ao estudar o papel que devo representar ámanhã... --Mas... não percebo! O barqueiro tinha largado os remos e deixado pender o labio inferior ao ouvir a pronuncia de Rosina. Para elle, que tinha suas fumaças de rato da agua, como quem diz _lobo do mar_, era aquelle um mysterio impenetravel. Podia acaso acreditar que fosse realmente ali, em companhia d'um portuguez, uma mulher franceza, que lançára ao rio um fato em que brilhavam as côres sinistras da França, áquella hora em que o sangue, o incendio, o saque, a tyrannia se erguiam como barreira entre o povo d'um e outro paiz? O Tunante de Pé-de-Moira não sabia historia, e ignorava o prodigio d'estas affinidades individuaes que se escondem entre as correntes oppostas dos sentimentos nacionaes. São grãos d'areia perdidos no oceano; é preciso descer ao fundo do mar para encontral-os. Outra pessoa, que não fosse rude, não se admiraria. A historia diz que, pouco depois da invasão, o marechal Soult se vira fechado n'um circulo de cariciosas sympathias, e que eram rasgados os salamaleques dos que já se presumiam aulicos de D. Nicolau I. A historia refere que semelhantemente alguns foram os corações que se renderam á prepotencia de Junot, e que era contra esses que se erguia tremenda a grande voz popular: «Morra Junot, e mais quem d'elle tiver dó.»[6] Finalmente, ainda conta a historia que Piton, um sargento do corpo de policia de Lisboa, fora promovido a alferes, pelos grandes serviços que prestou aos francezes, com os quaes se retirou para França ao depois.[7] O Tunante, se soubesse historia, não se admiraria portanto de que o coração ainda tivesse um élo para ligar portuguezes a francezes, e, se houvera adquirido maior conhecimento dos homens e das coisas, saberia que primeiro se verga ao tufão das paixões a palmeira flexivel e solitaria do deserto, que o roble secular da floresta, duas vezes forte--porque é robusto e porque não esta só. A palmeira cede ao primeiro impulso, e deixa-se ir, em doce voluptuosidade, embalada nos braços vaporosos do vendaval, que são os primeiros, e por ventura os unicos, que se estendem para ella. O roble cede apenas quando o tronco está corroido pelos vermes ou abalado pelas luctas da tempestade. Os aulicos de Soult e os thuriferarios de Junot tinham as entranhas comidas pelas serpes da perfidia, e a alma vergastada pelo açoite da cupidez. Rosina era a palmeira do deserto, que verga sem saber que vae ser arrastada para longe do seu torrão natal, e que o simoun a despenhará n'um abysmo inevitavel. Era o amor que a dementava a extremos de renunciar a sua patria, se bem que a cada instante lhe pungisse no coração uma vaga saudade das Ardennas; era finalmente um sentimento nobre que a impellia a essa loucura, serena postoque ardente, resignada postoque dolorosa. A que mobil obedeceriam, porém, as damas portuguezas, que, um anno antes, se banquetearam e valsaram, no theatro de S. Carlos, em ruidoso sarau e na presença de Junot, com a officialidade franceza? Suas excellencias, as beldades da capital, eram recebidas no vestibulo do theatro por quatro pagens, loiros e provavelmente rosados. Sahia a esperal-as ao limiar da platéa, d'onde corria um tablado a nivelar-se com o palco, o general Margaron, que fazia as honras da casa. Ao fundo da scena havia trez cadeiras de braços, que se conservaram devolutas até á chegada de Junot, e em frente o busto de Napoleão a resaltar sob um docel armado com quatro bandeiras em que se liam os nomes de outras tantas batalhas assignaladas: Marengo, Austerlitz, Iena e Friedland. Já as damas ouviam requebradas os galanteios dos officiaes de Napoleão, quando entrou Junot á maneira d'imagem em andor, isto é ladeado por duas das mais formosas portuguezas. Então começou o delirio da valsa, que rodou em circulos vertiginosos pela sala, até que a meio do tablado se abriu uma tenda de campanha, onde se serviu a ceia unicamente ás senhoras. É de suppor que suas excellencias se volvessem galliciparlas para melhor poderem acompanhar a eloquencia dos officiaes francezes nos brindes. Os convivas do sexo masculino estavam vexados--segundo diz candidamente o já citado José Accursio das Neves--e espreitavam dos camarotes as viandas e as esposas, resignando-se ao exiguo prazer de respirar os perfumes d'umas e outras. Em redor do edificio do theatro estavam postados quatro mil aguadeiros, de barril ao hombro, medida preventiva ordenada por Junot, para acudirem, em caso de maior sinistro, ao duplo incendio da lascivia e da gula. Parece porém averiguado que não funccionaram por serem permittidos dentro os escandalos. D'esta combustão, que afogueou o interior do theatro de S. Carlos, na noite de 8 de junho de 1808, tambem não sabia o Tunante de Pé-de-Moira. Que ignorante aquelle! Entenda-se todavia que não veiu á tela o facto para avultar a necedade do barqueiro, senão que para desculpar o coração e a mocidade da pobre Rosina Regnau. E agora é tempo de reatarmos o interrompido dialogo. --Reparou, replicou a vivandeira a Graça Strech, que ia calada. Ia a pensar. Bem vê que é desculpavel a concentração em quem agora renasce para a existencia. Não creia porém que o não ouvia. Ouvia sim... Quer uma prova? Acaba de serenar a minha alma com uma unica palavra, de resolver um problema, como se diz em Pariz, no bairro Latino. O senhor não precisa de pensar no futuro. Já o escolheu. Vae combater, vae realisar o seu desejo, tão facil de realisar que lhe basta apenas encontrar o exercito portuguez. Eu comecei a realisar o meu: era acompanhal-o. Bem; aqui vou ao pé de si. Mas depois? mas ámanhã? mas sempre? Procurar o exercito francez era entregar-me á morte. Seguir o exercito portuguez era denunciar-me no primeiro momento em que me ouvissem falar. E os resultados d'essa imprudencia facilmente se imaginam... Seriam tambem a morte... Não, não, eu quero viver, preciso de viver, com o senhor e como o senhor. Viverá para a sua vingança; eu viverei para o meu... amor. Sim, pode acreditar na verdade d'esta palavra, aqui, a esta hora, depois, de eu haver atirado ao rio o meu fato de vivandeira... O senhor disse ao barqueiro: Faze de conta que é muda. Pois bem, sel-o-hei d'hoje em diante sempre que tenha á volta de mim ouvidos estranhos. Reservarei para o senhor as minhas palavras e o meu coração; para todos os outros serei muda, idiota, louca, se tanto for preciso. Mas deixe-me vel-o, seguil-o, falar-lhe só a si, percebe, só a si! Não estranhe a minha fraqueza. A alma da vivandeira é como um cartuxo de polvora: cheguem-lhe lume, e ella arderá. O senhor bem sabe que eu sou vivandeira... Graça Strech queria falar. Ella atalhou-o: --Quando se enfastiar de mim, tenha a coragem de m'o dizer. Um soldado deve ser corajoso. O ceguinho das Ardennas, quando vae a qualquer casa onde as crianças teem medo do seu cão, manda-o embora, e elle obedece-lhe. O senhor diga-me tambem: «Rosina Regnau, não te esqueças de que eu sou para ti o cego das Ardennas, o pobre Hubert». Bem sabe que quando ha guerra não é difficil a gente encontrar repouso. Ás vezes, no caminho, sae-nos ao emcontro uma bala perdida. Quando a gente é feliz, a bala cae-nos aos pés, mas quando só falta calar-se o coração para morrer, a bala cae no coração. --Rosina! Rosina! murmurou Graça Strech, profundamente commovido. Ella atalhou-o de novo: --Sim, agora ainda sou Rosina, ainda posso sel-o. Ámanhã serei--a muda. Serei uma sua parenta, uma louca com quem o senhor reparta piedosamente da sua marmita. Dirão: Ali vae a louca! E eu não poderei voltar-me sequer, porque a louca será ao mesmo passo surda e muda. Se porém o calor da lucta não só fizer que se enfastie de mim, mas tambem que me odeie, como a principio me odiava, então não me mande embora, denuncie-me, entregue-me. Bastará uma palavra sua para fazer-me emmudecer para sempre. Bem vê que se o encargo é pesado, o resgate é facil... --Offende-me, Rosina, veja bem que me offende! disse elle ardentemente. Amo-a... sim, tambem eu posso dizer-lhe que a... amo. E quem diria, Rosina, quem o diria ha tão pouco tempo ainda! Como é feito o coração do homem! Odeio os seus irmãos e amo-a a si... Pela primeira vez na minha vida sinto amor por outra mulher que não fosse... --Cale-se, cale-se! apostrophou ella delirantemente. Não quero saber quem amou; seja esse o segredo do seu annel. --Acredite, Rosina, que o amor de que este annel é recordação era o mais puro amor que ha na terra... A pessoa a quem elle pertencia era minha irmã, acredite, era minha irmã. --Sua irmã! repetiu ella incredula e ironica. Bem vê que o sentimento que esse annel lhe inspira não é a saudade, é o enthusiasmo... --Oh! que não sabe como eu a amava! São d'ella tambem estas cartas.. Póde vel-as, desenganar-se... --Não as entenderia. --É verdade. Não as entenderia. --E que certeza me dariam as cartas de que eram da mesma pessoa que possuia o annel? Que sua irmã lhe escrevesse era natural... Não preciso de provas para acredital-o... --Rosina! Rosina! Este annel tambem era de minha irmã, que eu vi morta, fria, hirta, livida... Mataram-n'a, Rosina, mataram-n'a... E ella era tão formosa, tão innocente, tão timida! Mataram-n'a os francezes, a ella, que lhes não fazia mal nenhum, a ella, que era meiga como uma pomba!... E não contentes com um assassinio, commetteram mais dois na minha familia. Ao pé do cadaver d'Augusta havia outros cadaveres: o de minha mãe e o de minha avó. Mataram-n'as os francezes, Rosina. Por isso eu odiava este nome. O annel, cujo segredo não acredita, é um legado de sangue... Sim, eu amo-a, mas nunca me peça mais do que eu lhe posso dar. Nunca me peça compaixão, clemencia... Era impossivel! Sobre este annel jurei vingar-me. Bem vê que é delgado, fino, como o dedo que cingia. Pois elle é a unica barreira que póde haver entre mim e Rosina, quero dizer, o unico obstaculo que lhe prohibe a plena posse do meu coração... Viverei, sim, entre este annel e Rosina; entre a minha vingança e o meu amor... Eu patenteei-lhe a minha alma antes de acceitar a liberdade que me deu. Não tem de que me accusar... Comprehendo-a, Rosina, acredite que a comprehendo. A sua alma é tão extraordinariamente grande, tão poderosamente forte, que chega a assombrar-me a coragem do seu amor... Eu conheço que vae raiar para mim uma nova aurora. Quizera poder-me dar completamente ao seu amor, viver d'elle e só para elle, mas infelizmente a aurora que vae raiar nasce tinta de sangue, e sangue... de seus irmãos. Rosina tinha lagrimas nos olhos e fogo no coração. Parecia-lhe impossivel que a saudade d'uma irmã despertasse em Graça Strech tão dolorido enthusiasmo. Se era essa a unica recordação ligada áquelle annel, que phenomenal, que afflictiva e ao mesmo tempo que energica não era a alma d'esse homem! Cada vez o amava mais por que cada vez lhe parecia maior. E todavia, entre elles, tão germanados pela impetuosidade dos sentimentos e pela virilidade do animo, medeava uma barreira, posto que delgada, insupperavel--o annel mysterioso. Ella quereria tirar-se d'aquella duvida cruciante, adquirir, ainda que á custa de sacrificios, uma convicção, embora funesta; mas que direito tinha ella a interrogal-o mais, a duvidar, a ter ciumes? Cerca do meio dia abicou o barco a um reconcavo sombrio, perto de Pé-de-Moura, onde o barqueiro saltou em terra para ir buscar o fato promettido. Antes d'elle desembarcar, Graça Strech lançou-lhe a mão ao braço, e disse austeramente: --Tens filhos? --Saiba v. s.ª que tenho quatro. Por elles me exponho á morte todas as noites no rio... --Pois bem. Por elles me jurarás que não dirás a ninguem palavra do que viste e ouviste aqui. --Juro, senhor... --Agora recebe todo o dinheiro que resta a um soldado. Uma hora depois, Graça Strech, saltando á margem, dizia a uma camponeza que o seguia: --Para Amarante. E a camponeza, como se só tivesse sorrisos e não palavras, sorria. Já dissemos que era aquelle o dia 20 d'abril. Quizeram os francezes, depois da invasão do Porto, estender a sua victoria pelo paiz inteiro. Immediatamente se assenhorearam de Valença e Vianna, tentando simultaneamente passar a Traz-os-Montes, mas foram duas vezes repellidos n'essa tentativa. Beliscados na sua vaidade de conquistadores, tinham mandado sobre Amarante no dia 9 uma força, que recuou perseguida pelo general Silveira. Appareceu porém, reforçada, no dia 15, travando combate em Manhufe e Villa Meã durante trez dias para dar tempo a soccorrel-a os quatro mil homens de Loison e De Laborde, que, partindo de Guimarães, lograriam colher os portuguezes pela rectaguarda. A pericia do general Silveira frustrou-lhes o intento com um rapido e habil movimento sobre Amarante. Os portuguezes occupavam a margem esquerda do Tamega; os francezes a direita. O empenho do inimigo era atravessar a ponte. Desesperados pela valorosa resistencia dos portuguezes, pegaram fogo, na noite de 18, a toda a villa. A crueza do inimigo mais pareceu atiçar a coragem dos nossos, cuja resistencia recrudesceu no dia immediato, apesar de reforçados os francezes pelas brigadas de Sarrut e Marisy. Estas eram as evoluções das tropas inimigas, em Amarante, á hora em que deixamos Graça Strech e Rosina Regnau em caminho do acampamento portuguez. Tempo depois, um poeta conterraneo, mais familiar ás armas d'Apollo que de Marte, encarecia no seguinte soneto a gloria do general Silveira, cuja tactica elle provavelmente estivera contemplando de sitio aonde já não podiam chegar pelouros: Uma nuvem de fumo o ar povôa, E do Tamega enluta as margens frias, O portuguez canhão quatorze dias, Sem descanço algum ter, fuzila e trôa. De um lado a outro lado a morte vôa Por entre essas crueis artilharias, E perdendo as antigas ousadias, Curva ao duro francez a altiva prôa. Amigos hespanhoes, nação brilhante! Eis como cá seguimos vossa esteira, Eis nossa Saragoça, eis Amarante. Os olhos ponha em nós a Europa inteira, E veja, em amplo quadro flammejante, O Tamega, Ebro, Palafox, Silveira. Pena foi que Graça Strech precedesse alguns dias a gestação do soneto escripto em honra de Silveira, porque, de contrario, se topasse o poeta a versejar em ociosa inactividade, havel-o ia empurrado, no seu vivissimo odio contra os francezes, para o meio da infatigavel fuzilaria que durante quatorze dias sinistramente illuminou as aguas do Tamega. O que valeu foi que, se houve poetas para incensar metricamente Silveira[8], houve tambem soldados que denodadamente pelejaram pela patria. E o numero dos valentes da ponte d'Amarante ia agora ser augmentado com um soldado que seria o primeiro a romper fogo contra o inimigo. Deixar lá o poeta dizer que as margens do Tamega eram _frias_ n'aquelle tempo. Os poetas dizem tudo, e tudo podem dizer... [6] «Historia antiga e moderna da sempre leal e antiquissima villa de Amarante». etc., por P. F. de A. C. de A.--1814, pag. 54. [7] «Historia geral da invasão dos francezes em Portugal», por José Accurcio das Neves. Tomo I, pag. 282. [8] Veja-se _Elogio de Silveira_, pelo padre mestre dr. fr. F. de S. T., e _Silveira_, poema por J. S. * * * * * X A hora do resgate Quatorze dias durou, como dissémos, a heroica defeza da ponte d'Amarante. Foi aquella uma proeza que requeria desfecho condigno, o que infelizmente não aconteceu. Reforçado o inimigo ao decimo terceiro dia de combate, e animado pela presença do marechal Soult, preparou-se para uma lucta decisiva, que o nevoeiro com que amanheceu o dia seguinte viera inesperadamente coroar. Perdidos os nossos na cerração da metralha e da neblina, e atacadas pela rectaguarda algumas baterias, tiveram de abrir passagem por entre uma densa floresta d'armas, marchando em retirada para Mezão Frio e Campeã, a tempo que o general Silveira recuava para Entre-os-Rios. É realmente assombrosa a historia portugueza nas paginas que dizem respeito ás guerras peninsulares. São tão descommunalmente grandes os factos, que, em sua mesma simpleza, ora se nos affiguram episodios d'Homero, exuberantes d'esforços titanicos, ora se retingem dos toques sombrios de Dante. As façanhas da invasão franceza claramente revelam que ha pouco mais de sessenta annos corria ainda nas veias dos portuguezes o sangue dos valentes d'Ourique, Aljubarrota e Montijo. Renasciam os heroes das cinzas dos heroes, como se a gloria fosse herança de paes a filhos. Podia o animo portuguez desvariar se por momentos, como já anteriormente fizemos notar, que logo despertava melhor retemperado para a rehabilitação. Assim é que 1640 faz esquecer 1580, e que o vulto homerico de João Pinto Ribeiro resgata a perfidia de Miguel de Vasconcellos. Hoje, as batalhas que outr'ora eram campaes, volveram-se parlamentares, isto é, falamos muito e praticamos pouco. A apostrophe «S. Jorge e ávante!» foi substituida por est'outra: «Senhor presidente, peço a palavra!» Ha menos soldados e mais deputados, menos regimentos e mais commissões. Não obstante, alguma faulha resaltaria ainda das cinzas quentes das nossas conquistas para atiçar o incendio das paixões, na hora em que perigasse a independencia da patria. Aconteceria, porém, que muitos deputados, que nas côrtes de S. Bento discursam calorosamente sobre a nossa autonomia, requereriam, dada a voz de alarma, inspecção da junta de saude para serem considerados invalidos... Mas iamos nós falando dos feitos portuguezes durante as guerras peninsulares. Estupendos foram, é certo. No combate da ponte d'Amarante, por exemplo, perecera gloriosamente um official d'artilharia, muito lastimado por seus companheiros d'armas, incluido o general Silveira, que lhe abraçou o cadaver. O tio do official, e a mãe, que era viuva, vestiram-se de gala, dizendo esta nobre mulher aos dois filhos que lhe restavam, e estavam pranteando o irmão: --Não choreis, filhos. Vosso irmão não morreu. Vós é que morrereis da morte da vergonha se vos não mostrardes dignos da sua memoria. Este exemplo d'animo varonil em peito feminino prova que não anda phantasia popular na lenda d'aquella Deosadeu, de Monsão, de Celinda, a heroina de Certã, de Filippa de Vilhena, e doutras celebradas matronas portuguezas, que deram á patria uma geração de meninas que fazem _crochet_. É egualmente abundante de heroismos a chronica da primeira invasão, á parte pequenas manchas, como aquellas que dos copos dos officiaes francezes cairam sobre o tablado do theatro de S. Carlos. Deixem-me citar um facto na mesma linguagem em que o historiador o descreveu. «O juiz de fóra de Algozo, Jacintho d'Oliveira Castello Branco, fez-se digno de honrosa memoria, pela sua repugnancia ás ordens do governador intruso; por continuar debaixo d'elle a uzar do nome de S. A. R.[9] em alguns processos; por conservar as armas reaes no pelourinho e na casa da camara d'aquella villa; e por outras acções, egualmente sublimes e arriscadas. Jantando em sua casa varias auctoridades portuguezas, que o increpáram de não cumprir as ordens reiativas á contribuição de guerra, respondeu-lhes, lançando mão a um copo, e fazendo uma saude a S. A. R. o principe regente.» Não é menos avantajado em heroicidade o procedimento do juiz de fóra de Marvão, Joaquim José de Magalhães Mexia, que, intimado para se render ao jugo estrangeiro, fez desistencia publica perante os seus escrivães, e foi prostrar-se diante da imagem do Senhor dos Passos da sua villa, encostando a vara á imagem por fórma que parecia haver-lh'a depositado nas mãos, e recolhendo-se depois a casa para vestir-se de luto. É pois digna de que a reproduzam na tela os melhores pintores, os melhores poetas e os melhores historiographos--esta ingente lucta d'um pequeno paiz, apenas soccorrido por outro, contra o gigante tresvariado pela gloria, que firmava os pés nas planicies da Italia, e alguns annos depois fôra visto á luz, para elle sinistra, dos incendios de Moscow, enchendo, de sul a norte, a Europa inteira. Alguns talentos verdadeiramente robustos teem lançado o colorido do seu pincel sobre esta enorme tela, nunca esgotada. Que me lembre n'este momento, Rebello da Silva, Camillo Castello Branco, Pinheiro Chagas e Arnaldo Gama trataram brilhantemente tão fecundo assumpto. Eu chego com pequeno viatico, embora não venha tarde, unicamente para mostrar que tenho seguido reverentemente o sulco que todos quatro abriram no vasto campo da guerra peninsular. Reatando a narrativa. Graça Strech foi um dos soldados portuguezes que mais se distinguiram nos ultimos dias da defeza da ponte d'Amarante. O general Silveira estimou-o desde que elle, apresentando-se, lhe disse: «Venho bater-me como leão porque venho vingar-me»; e começou a admiral-o horas depois da apresentação. Ao anoitecer do mesmo dia, fizeram reparo alguns soldados n'uma camponeza, que parecia muda, e se bandeava com o sequito do exercito. --D'onde viria? perguntavam elles. --É minha... irmã, atalhou commovido Graça Strech. Não podia convencel-a a que me não seguisse, porque a infeliz nem ouve nem fala. Veiu vindo atraz de mim, receiosa de que eu morresse sem ver-me. Pobresinha!--acrescentou com os olhos marejados de lagrimas--não faz mal a ninguem, e é muito minha amiga. --Que pena a sua desgraça, que tão formosa é! observou piedosamente um portuguez. --Nem se diria portugueza! exclamou outro com a affouteza que lhe dava o não estar na presença de portuguezas. Graça Strech replicou: --Ha com effeito ali alguma coisa allemã no rosto como no nome. Os nossos antepassados tinham sangue teutonico. Ainda nos corre nas veias o sangue d'elles. A pobresinha estremece-me. Como não tem ouvidos nem voz, quer estar ao pé de mim sempre que póde, como para falar pela minha bocca e ouvir pelas minhas orelhas. Eu sou quasi a sua moleta... Tambem a infeliz não tem ninguem mais n'este mundo, e ella de si pouco tem... --Infeliz! ponderaram os soldados enternecidos. Rosina Regnau interpretou magistralmente o seu papel. Passavam por ella e diziam: _A muda allemã!_ e ella, apesar de entender a phrase á força de repetida, nem sequer voltava o rosto para agradecer aquella esmola de compaixão. Se não ouvia! se não falava! Sentava-se entre as bagagens a entrançar folhas verdes ou a desfolhar flôres. Algumas vezes mettia-se por entre as arvores para se inteirar da posição das tropas. Depois d'um combate, aproximava-se dos soldados, quando Graça Strech se demorava ainda, e pousando a face na mão e fechando os olhos, perguntava por gestos se «o irmão» estava ferido ou morrera. Os soldados, que já a comprehendiam, acenavam-lhe negativamente. Assim decorriam os dias, sem que a alma da vivandeira saisse para fóra de si mesma. Quem adivinhava ali que de receios, de maguas, de pensamentos, de esperanças muito vagas... agitavam aquelle formoso cadaver que só tinha vida nos olhos? Ninguem. E todavia ella estava pensando sempre... A sua ambição, o seu sonho, o seu ideial era possuir inteiramente a alma de Graça Strech, porque ella desde o momento da fuga para ninguem mais vivia. --Achou decerto--suspeitava ella--que eu não era digna de receber a confissão do seu segredo. Quem és tu, disse elle lá comsigo, pobre vivandeira, para comprehenderes a enormidade d'um amor que vive na morte? Se aquelle annel fosse realmente de sua irmã, curvar-me-ia a seus pés e beijar-lh'o-ia. Mas se elle cingiu o dedo d'outra mulher, que o amava muito menos do que eu, arrancar-lh'o-ia da mão ainda mesmo com a certeza de morrer esmagada pela sua colera. Cumpre pois que, por sacrificio sobre sacrificio, eu chegue a nobilitar-me a seus olhos o bastante para elle me convencer. N'esse dia serei sua amante; por emquanto sou apenas o seu cão. Vamos, solitario molosso, affaga o teu dono... Graça Strech passava, atirava-lhe uma flôr, e sorria... Ella sorria tambem. Guarnecidos todos os pontos do Douro, desde a retirada d'Amarante até a acção d'Ovelha, tiveram as tropas algum descanço apenas interrompido por escaramuças e reconhecimentos. Foi n'esse intervallo que Graça Strech começou a aprender a tocar guitarra com um soldado, filho da Regua, e muito conhecido ali por excellente musico. A natural aptidão de Graça Strech fez que dentro em pouco se avantajasse ao mestre. Assim era que não desaproveitava occasião de estar guitarreando ao lado de Rosina, que conservava na physionomia a habitual immobilidade de linhas, como se a musica, que se lhe coava á alma, não lhe desse nenhuma sensação, por não poder ouvil-a. Ás vezes, de noite, Rosina podia murmurar muito a medo, aos ouvidos de Strech, através dos sons da guitarra: --José! Ella sabia pronunciar este nome como se de pequenina o aprendera. Depois olhava em redor, como para adquirir a certeza de não ser escutada, e repetia maviosamente: --José! Elle apertava-lhe convulsamente a mão e respondia: --Rosina! E aquelle immenso amor da vivandeira, que renunciára á patria, á liberdade e á voz, contentava-se com exhalar-se n'uma palavra, e ser correspondido por outra. Ella tambem não pedia mais. Era o cão do soldado: seguia-o. Quando a tristeza lhe descia ao coração, a indefinida tristeza de quem ama, consolava-se a si propria imaginando-se ainda vivandeira, porque ouvia troar o canhão e sentia no ar o cheiro da polvora. Era apenas a memoria o que lhe restava do que fôra; o fato da sua infancia sepultára-o ella no fundo das aguas... Entretanto proseguiam com actividade as operações d'um e outro exercito. A 22 d'abril entrava em Lisboa Wellesley, commandante em chefe das forças britannicas, que desembarcaram no Porto, na Figueira, etc. As tropas inglezas, de combinação com as portuguezas, começaram a tomar differentes posições. Em Coimbra passaram algumas divisões nos dias 1 e 2 de maio, sendo recebidas com festas que chegaram a tocar o maximo enthusiasmo. Era aquelle o hymno de esperança da patria, anciosa de liberdade. Avançaram as tropas alliadas até Agueda, e lograram repellir os francezes desde as Albergarias até Oliveira d'Azemeis, onde Wellesley, depois lord Wellington, estabelecera o quartel general. No dia 11, a guarda avançada do exercito anglo-luzo destroçou em Grijó os postos avançados francezes que recuaram até Gaya e passaram o Douro, cortando immediatamente a ponte de barcas. Na vespera d'esse dia atravessára Beresford o Douro na Regua com as suas tropas, repellindo Loison para Amarante, e de Amarante para o Porto; Loison perdera na retirada muitas peças, alguns obuzes, e cento e dezenove carros com bagagens. Estava pois o flanco esquerdo do exercito francez torneado por Beresford, o direito por Hill em Ovar, e o centro alcançado pelas divisões Trant e Paget. Durante toda a noite de 11 para 12 marchou o exercito alliado sobre Villa Nova de Gaya. De manhã, e impossibilitado de passar o rio, soube o coronel Watters que um barbeiro portuense, salvo da vigilancia das patrulhas francezas, havia atravessado n'um barco; aproveitando a conjunctura providencial, e o barco não menos providencial que a conjunctura, passou á margem direita, voltando á esquerda com trez grandes barcos, que pudera obter. Avisado Wellesley do achado miraculoso, voltou-se jubiloso para o coronel e disse: --Passem as tropas que couberem nos barcos. Não faltaram valentes que se expuzessem aos azares da façanha, surprehendendo os francezes que contavam repellir vantajosamente o inimigo quando tentasse a travessia a descoberto. Foi, pois, o coronel Watters o Martim Moniz da reconquista do Porto. Percebidos os francezes da audacia heroica do exercito alliado, para logo se desviaram em movimentos confusos, como o redemoinhar das areias no deserto revolvidas pelo simoun. E assim como as areias tomam, erguidas no ar, á luz do sol, irradiações prismaticas que deslumbram, assim resplandeciam, á luz do meio dia, as armas dos francezes baralhando-se tumultuariamente nas ondulações do terreno que medeia entre o caes da Ribeira e o Prado do Bispo. E então marinhavam as tropas luzo-britannicas pelos alcantis do Seminario, como outr'ora os cruzados pelos despenhadeiros da torre do norte, na tomada de Lisboa, e, para que se complete o parallelo, o que lá era Guilherme, duque de Normandia, era cá Wellesley, lord Wellington. E já para anciedade dos portuenses se abria manhã d'esperança, á medida que os nossos ganhavam terreno, e mais revoluteavam as hostes francezas nas eminencias sobranceiras ao Douro. Por um momento se julgou perdido o triumpho, quando a artilharia franceza começou a varejar o Seminario. Mas não tardou que ao canhão da margem direita respondesse o canhão da margem esquerda, que das alturas do Pilar vomitava torrentes de fumo negro sobre o valle cavado pelo Douro. Reanimados os portuenses, entraram de preparar barcaças, que conseguiram pôr a salvo do outro lado do rio, e que transportaram as tropas do general Sherbrooke. Simultaneamente estrondeava no Porto, rolando até ao caes como o rumor longinquo d'uma cathedral em festa, o concerto das vozes, que pregoavam victoria, á mistura com os sons festivos dos campanarios. Nas janellas da cidade baixa agitavam-se lenços brancos em vertiginoso tumultuar. Tambem assim accordou Lisboa, cento e sessenta e nove annos antes, na manhã de 1 de dezembro de 1640, quando um punhado de fidalgos portuguezes subjugava nas praças publicas, sem correr uma gotta de sangue, o famelico leão das Hespanhas. Era o grito de liberdade longos dias reprimido na garganta d'um povo inteiro. Era o jubilo d'uma nação, que parece apenas occupar alguns palmos de terra no mappa da Europa, á hora em que despedaçava as gramalheiras que por sobre os Pyreneus lhe lançára o César da França, e dizia ao vencedor de Austerlitz: «Tu prostraste a Prussia em Iena, a Russia em Friedland; tu levantaste sobre as baionetas dos teus exercitos os thronos de Napoles, da Hollanda, da Westphalia, e da Hespanha, mas nós fizemos estremecer na tua mão, ó demolidor victorioso, a alavanca com que procuravas revolver nos alicerces o solio portuguez. Que o amigo leopardo da Inglaterra te contrariasse, vá, porque a Inglaterra é muito poderosa. Mas nós, pequenos como somos, fazemos suster o vôo da tua aguia e, audazes como ella, gritamos-lhe para a amplidão que avassalla: Basta! Pára!» [9] Sua Alteza Real. * * * * * XI O que a vivandeira pensava Retiraram os francezes pelo norte de Portugal, acossados pelo exercito anglo luso. No dia 17 ganharam Montalegre, no dia 18 passaram a Alhariz, e no dia 19 entraram em Orense, depois de marchas tão violentas como trabalhosas, de perdas consideraveis, e de perseguida vivamente a sua rectaguarda pelas tropas alliadas. Na passagem pelas povoações que medeiam entre o Porto e a fronteira, deixaram os invasores um rasto de sangue e fogo de que falam com assombro os documentos officiaes. Á medida que fugiam foram espalhando a morte nas ultimas terras de Portugal, como se quizessem atulhar de cadaveres o abysmo cavado na gloria de Napoleão. N'uma carta dirigida por lord Wellington ao secretario de guerra, escripta no quartel general de Montalegre, no dia 18, lê-se que: «O inimigo começou a retirada, como já informei a v. s.ª, destruindo uma grande porção dos seus canhões, e munições. Ao depois destruiu o resto d'ambos, e grande parte da sua bagagem, sem conservar mais do que quanto pudessem levar os soldados, e poucas mulas. Deixou ficar os doentes e feridos; e o caminho até Montalegre está juncado de cadaveres de cavallos, e mulas, e soldados francezes, que foram mortos pelos camponezes, antes que a nossa guarda avançada os pudesse salvar. Esta circumstancia é o effeito natural da maneira por que o inimigo faz a guerra n'este paiz. Os soldados teem saqueado e morto a paizanagem, a seu arbitrio; e eu tenho visto muitas pessoas pendentes enforcadas nas arvores ao longo das estradas, executadas por nenhuma outra razão, que eu possa saber, senão porque não eram amigas da invasão franceza, nem da usurpação do seu paiz; e podia traçar-se a rota da sua retirada, pelo fumo das aldeias a que elles lançavam fogo. Temos tomado cousa de quinhentos prisioneiros. Em tudo, o inimigo não tem perdido menos de um quarto do seu exercito, e toda a sua artilharia e equipagem, desde que nós o atacámos junto ao Vouga.» O marechal Beresford afina pelo mesmo tom: «Não é possivel pintar a cruel e infame conducta do inimigo; ella póde ser facilmente traçada pelos lamentos dos infelizes paizanos, das mulheres e das crianças, e pelo fumo das villas, aldeias e casas incendiadas: elle a nada perdôa: esta villa (Amarante) está inteiramente destruida: a de Mezão Frio o está em proporção do tempo que tiveram...» Passavam, pois, os francezes, devastando, incendiando, matando. Quiz o duque de Dalmacia que o occaso da sua invasão fosse allumiado pelas labaredas do incendio. Eram os ultimos lampejos d'uma victoria ephemera. Mas a voz da patria, á hora do resgate, erguia-se mais alto que o crepitar das chammas no pendor das serras, que os lamentos dos velhos e das crianças que succumbiam á ultima carnificina da segunda invasão franceza. No Porto, governado militarmente pelo coronel Trant, grande era o jubilo, se bem que não tão cego que sir Arthur Wellesley não houvesse proclamado aos habitantes que os feridos e prisioneiros estavam debaixo da sua protecção, e que seria considerado criminoso quem os offendesse. Em Lisboa, mal que no dia 17 se teve noticia official da restauração do Porto, salvou o castello de S. Jorge, sendo correspondido pelos navios de guerra inglezes surtos no Tejo; saiu bando para que a cidade se illuminasse por trez dias, no ultimo dos quaes mandou o governo cantar um _Te-Deum_ na Basilica de Santa Maria Maior. Internado o inimigo no territorio da Galliza, as operações do marechal Victor na Extremadura hespanhola, ameaçando nova invasão de Portugal pelo Alemtejo, obrigaram sir Wellesley e o marechal Beresford, solicitado tambem o primeiro pela junta central de Hespanha residente em Sevilha, a marchar com seus respectivos exercitos para o sul do reino. Retirou, pois, sir Wellesley, posto que a despeito do governo portuguez, para a cidade do Porto, d'onde passou a Coimbra, Thomar, Constancia, e Abrantes, acampando na margem direita do Tejo. O exercito portuguez acompanhou o movimento retrogrado do exercito inglez, marchando para Abrantes, no intuito de atacarem em commum o marechal Victor, que estanceava nas visinhanças do Guadiana. Não se demorou, porém, o marechal Victor n'esta posição. Avançou, com os seus 90:000 homens, para a margem esquerda do Tejo, no intuito de o passar na ponte d'Alcantara. Reportemo-nos ao dia 14, dia assignalado pela brilhante defeza d'esta ponte durante mais de seis horas. Eram oito da manhã quando o inimigo, em trez columnas, rompeu o ataque por differentes pontos. D'uma e outra parte foi terrivel o fogo da artilharia até que, cerca do meio dia, vendo o regimento de milicias de Idanha-a-Nova consideravelmente dizimadas as suas fileiras, retirou em debandada, deixando ficar no campo apenas a legião lusitana. Em tão desesperada conjunctiva, o coronel Mayne mandou incendiar as minas da ponte, rompendo a explosão apenas por um lado, e ao major Grant confiou o commando das baterias para proteger a retirada dos nossos, que se realisou pelas trez horas da tarde. A cavallaria franceza vivamente perseguira então a nossa pequena divisão, sem que todavia pudesse impedir que se acautelassem os feridos e juntassem os dispersos. Ora um dos feridos na defeza da ponte d'Alcantara chamava-se José Maria da Graça Strech. Quando, em logar seguro, o tiraram d'um carro, onde lhe eram companheiros outros valentes portuguezes, a _muda alemã_, como geralmente chamavam a Rosina Regnau, esteve a ponto de trair o segredo do seu disfarce, vibrando um doloroso grito, o qual se apagou n'um rouco murmurio, que é, em lances afflictivos, o supremo esforço dos que não teem voz. E logo correu a encostar ao peito a cabeça do ferido, a examinar a ferida, e a perguntar por gestos se poderia resultar perigo. Os soldados, condoídos de tão carinhosa dedicação, responderam logo, desde muito costumados a prognosticar sobre ferimentos, gesticulando negativamente. E a muda poz as mãos, levantando os olhos ao céo e entrou de affastar os cabellos de Graça Strech, banhados de suor frio, para contemplar-lhe a physionomia levemente alterada. Elle sorria-lhe com os olhos marejados de lagrimas e serenava-a acenando-lhe meigamente com a mão. Um dos soldados, abeirando-se de Graça Strech, disse curvando-se para elle: --O que tu tens de valente tem ella de boa! Sois dois irmãos dignos um do outro. Graça Strech encarou n'elle e meneou a cabeça; a muda ficou indifferente a curar as feridas do irmão. E só depois que não podia ser vista nem ouvida de estranhos, começou, alternando palavras com beijos, a falar-lhe tão baixinho, tão baixinho, como se até dos ouvidos d'elle guardasse o seu segredo, e só quizesse que a escutasse a alma... --Não é nada, José, meu José. Elles disseram e eu agora bem vi. Sabes que fui vivandeira e que tambem entendo o meu pouco de feridas. Não! A morte não te rouba d'esta vez á tua vingança e ao meu amor. --Rosina, minha adorada Rosina! Alma pura! Coração nobilissimo! Obrigado. Curva-te sobre a minha bocca; queiro beijar a tua face... --É o primeiro beijo! murmurou ella circumvagando um olhar cauteloso.--É o primeiro beijo que de ti recebo... Obrigada, meu Deus! --Sim, tu és muito melhor do que eu... Tens-me dado tantos, tantos.. Mas--e perdoa-me, Rosina, perdoa-me--a minha alma só agora te póde beijar livremente... --Ó felicidade!... Praza a Deus que se este beijo me abre a tua alma eu a chegue a possuir inteiramente, porque o amor, meu José, é tão egoista, tão egoista... --E não crês possuil-a ainda? --Não. Todavia tenho esperança... Virá um dia. Cala-te, que te faz mal falar... Já não foram pequena felicidade estas palavras, por que, tu bem sabes, eu só tenho palavras para ti e para... Deus. Foi longo e reparador o primeiro somno do ferido. Rosina Regnau velou á cabeceira da tarimba, absorta nos seus pensamentos pela primeira vez illuminados por um raio de sol. Estava folheando o roseo poema do primeiro beijo, decompondo em estrophes maviosas a harmonia que da alma subira aos labios. Era a primeira gotta de orvalho na aridez do seu destino, uma parcella de ternura em recompensa dos thesouros que ella por tanta vez prodigalisára sobre as faces de Graça Strech. O primeiro beijo! A santa loucura das almas que se amam, como diz a trova: Foi aqui mesmo, á tremula Sombra do olmeiro, --Dizia o pastor Lícidas-- Aqui, aqui, Que eu hontem n'estes labios Tive o primeiro Beijo da minha Flérida, E endoideci![10] E baralhavam-se-lhe os pensamentos com a precipitação da ephemera demencia que a felicidade dá. --Sim... eu começo a ser feliz. Diz-me o coração que o serei... Mais provas! mais provas, senhor meu coração! Mostre-se digno d'aquella enorme alma, inspire-lhe confiança para lhe recolher os segredos, e possua-a, e juntem-se, e prendam-se, e identifiquem-se, tão unidos, tão unidos, que nem a morte os possa separar... Sem isso não ha felicidade completa... Sim, bem vês, pobre coração, meu pobre coração que tanto tens soffrido, que se aquelle annel fecha ainda a saudade de um amor redivivo, não pódes por emquanto conquistar a fortaleza que se não renderá. Tu sabes lá como a saudade se bate entrincheirada detraz de um tumulo! Então terás ainda muito que soffrer e que luctar, pobre doente para quem hoje raiou o primeiro symptoma da cura, meu triste coração tão soffredor! Mas forceja, vá, porfia, esforça-te por arrancar-lhe o segredo... Se aquella é a ultima memoria de uma irmã querida, alegra-te, pobre louco, porque nem a amante desluzirá a irmã, nem a irmã desluzirá a amante. A alma d'elle é tamanha que chega para mim e para ella. Para o que não chega é para duas amantes, que se disputam palmo a palmo o terreno, que luctam, que combatem, que oppõem ciume a ciume, despeito a despeito, embora uma esteja morta e outra viva... Não, «a gentil vivandeira» não soffre competencias. Já se fez amar d'um exercito; é preciso que se faça amar d'um homem. Pois então perde-se tudo, a patria, a liberdade, o socego, as florestas das Ardennas, as minhas queridas florestas das Ardennas, que talvez não mais torne a ver, e as montanhas do Hainaut e do Luxembourg, que eu conheço desde pequenina, e o Semoy e o Lesse e o Ourthe e o Eure, tudo, n'uma palavra, perde-se uma vida inteira de dezoito annos, para amar um homem, para ser a sua sombra, o seu cão, e não se ha de possuir ao menos todo o seu coração, todos os seus pensamentos, os seus segredos todos? Quem me diz porém que não hei de vencer? Não vi eu porventura tantas batalhas, não as vejo ainda, e não posso tirar da incerteza da victoria um bom agouro para o meu futuro? Dize-te, pobre Rosina, diz a ti mesma o que são os combates que tantas vezes tens visto. Pinta um quadro para ti. Anima-te! Olha... São duas as montanhas alcantiladas, sombrias, enormes... Uma defronte da outra... No meio um rio sereno, e crystalino a principio... depois vermelho de sangue. Sobre o rio uma ponte, e sobre a ponte, como a desabarem para ella, as montanhas. E n'uma e outra os exercitos, os uniformes variados, os kepis multicôres, as espadas reluzentes, os cavallos pendurados das fragas, os cavalleiros pendurados dos cavallos, as carretas suspensas na ladeira, as peças que abrem a sua bocca de fogo para vomitar o fumo e a morte, a voz dos clarins e a voz dos commandantes, pragas, juras, maldições, gemidos, blasphemias, sacrilegios, e a turba ora a estreitecer, a apertar-se, a juntar-se em pinha, ora a crescer, a alargar-se, a fazer-se onda, a trasbordar, ora a rolar como avalanche pelo monte abaixo, ora a marinhar por elle, a trepar, a agarrar-se, tão espessa, tão escura, tão confusa como se fosse uma nuvem que saísse do rio, e o sol a doiral-a agora e logo o fumo a envolvel-a, e já se desencadeiam d'um e d'outro lado ameaçando chocar-se sobre a ponte, que corta o valle, e que afundará com elles, e baralham-se, enovelam-se, redemoinham, e apparecem uns, e desapparecem outros, e tombam cadaveres ao rio, e estruge no ar a grita, e corre ensanguentada a agua, e são aquelles os que vencem, os que estão em maior numero, e vão esmagar os outros, e arvorar a bandeira... mas rolam de novo, precipitam-se, confundem-se, e são estes agora os que triumpham, lá se embrenham por entre o inimigo, passam como corisco, e assombram-n'o, fulminam-n'o, e a victoria é sua! Bem, Rosina Regnau, assim foi em Amarante e ainda agora em Alcantara; assim póde ser para ti. Quem te diria no hospital de sangue, quando o estavas contemplando adormecido, tão pallido, tão mergulhado no somno, e tu te lembravas de que eras franceza e elle portuguez, quando tu já o amavas e elle dormia, quem te diria, ó vivandeira ignorada, que dias depois havias de seguil-o por toda a parte, e perder a tua voz para que te não conhecessem, e encostar ao teu peito a cabeça d'elle, que caira ferido, e recber-lhe o primeiro beijo? Ninguem! Nem aquelle endemoninhado do Beauvier, que era o bruxo do exercito, e andava sempre a olhar para os astros, e adivinhava quando chovia, e a lua havia de ser cheia, aquella bonita lua cheia da França!... Ninguem, Rosina, ninguem! Pois tambem não ha magico na terra que saiba dizer se tu chegarás a vencer o seu coração de modo que te julgues tão poderosa, tão senhora do mundo como o imperador, e por feitio que sejas tão ambiciosa como elle, que não deixa palmo de terra a ninguem!... Interrompeu-lhe este intimo monologo uma contração do ferido, que balbuciou monosyllabos. --Sonha!--pensou ella--e quem sabe o que sonha? Estou aqui tão perto d'elle, a vel-o, feição por feição, linha por linha, a examinal-o tanto, que dir-se-ia querer contar-lhe um por um os seus cabellos, e sinto-lhe o halito na minha face, e fala, e só eu o oiço, e todavia não sei de quem são os seus pensamentos, nem o que querem dizer, o que está recordando, o que está sonhando, finalmente! Tenho diante de mim, como livro aberto, a sua physionomia e não posso lêr na sua alma! Sei que ha ali um mar mysterioso, e não posso sondal-o. D'uma vez--recordou ella--lia o meu pae Regnau os jornaes, e disse: «Fulano e sicrano foram á pesca das ostras.» E acrescentou: «E o imperador que as tem bem boas na Corsega!» E eu perguntei ao pae Regnau para que iam elles pescar as ostras, tão longe, se podiam pescar outros peixes no Sena. «Tontinha!--respondeu elle--porque das ostras é que se tiram as perolas, e é preciso metter-se uma pessoa ao mar para pescal-as!» Bem me ensinaste tu, pae Regnau! O mar esconde tanta coisa... que até esconde as perolas. Aqui estou eu á beira do oceano e não as vejo... As que eu procuro, vivem escondidas ali... E apontou para o coração do ferido. Os labios de Graça Strech pareceram descerrar um sorriso. Rosina, que, apesar dos seus pensamentos, estava attenta ao menor movimento, ao mais subtil perpassar d'uma sombra, estremeceu ao rebramir da tempestade interior: --Sorri! pensou ella.--Havia n'este seu sorriso a melancolia de quem está recordando a felicidade perdida... Lembra-se talvez d'uma hora em que, rosto a rosto, juntas as mãos, sorrindo, falando, sonhando, lhes fugia o tempo mais rapido que o pensamento... E ella, a mulher que elle amava, era decerto formosa, muito formosa, e dizia-lhe que jámais haveria no mundo quem viesse a amal-o como ella... E elle acreditou-a, e por isso a ama ainda no tumulo, e jurou que, viva ou morta, lhe seria eternamente leal, porque o coração lh'o havia dado para todo o sempre... Ah! mas quem sabe, durante o combate, a quem ha de pertencer a victoria? O teu quadro, Rosina Regnau, é verdadeiro. Lucta até o fim, vivandeira, faze como os soldados que foram teus irmãos. Combate a saudade com a esperança. Soffre, porque o soffrer é de quem lucta. Mas porfia, conquista resignadamente esse coração onde desejas reinar, porque todo elle é preciso para o throno da tua felicidade. Abriu Graça Strech os olhos e relanceou a Rosina um olhar suavemente triste. --Sempre aqui!--segredou elle. --Aqui é o meu posto de enfermeira voluntaria. --Eu dormi, Rosina: dormi e sonhei... com minha irmã. Estava-a vendo aos cinco annos, vestidinha de branco, quando a fomos levar ás Chãs, e quando eu tinha seis... Nunca isto me esqueceu! Trepámos a uma cadeira para descer as maçãs que o padre capellão tinha a amadurecer no friso da sala. Augusta subiu denodadamente, mas faltou-lhe a coragem para saltar ao chão... E começou a gritar, a gritar, de sorte que o padre capellão a veiu surpreender com as maçãs escondidas na abada do seu pequenino vestido... Sentiram-se passos. --Cala-te! apostrophou Rosina. Cala-te! Rosina Regnau já aqui não está. Fica apenas a _muda allemã_. [10] A _invenção dos jardins_ por Gessner; tradução do sr. Visconde de Castilho (Antonio Feliciano). * * * * * XII Amor e ciume Foram proseguindo as operações da trabalhosa campanha de 1809 contra os francezes. Depois de segundo combate na ponte d'Alcantara, a 10 de junho, poderemos, por nos furtar a minudencias fastidiosas em romance, ir direitos á decisiva batalha pelejada nas proximidades de Talavera de la Reyna, em Hespanha, dirigida pessoalmente d'um lado pelo rei José, e por lord Wellington do outro. Pela retirada dos imperiaes á vista do inimigo terminou esta importante batalha, sendo todavia numerosas as perdas dos alliados, mórmente dos inglezes. Meiado agosto, começou o exercito portuguez a retirar para Zara, entrando em Portugal por Salvaterra do Extremo, dirigindo-se a Castello Branco, d'onde os differentes corpos foram enviados a disciplinar-se, durante o resto do anno, em determinados acantonamentos. Não podemos, porém, encerrar esta ligeira chronica dos feitos militares de 1809 sem retroceder ao segundo combate da ponte d'Alcantara, a que José Maria da Graça Strech não assistiu por estar ainda mal convalescido do ferimento que no primeiro ataque recebera. Entre os feridos francezes, que ficaram prisioneiros, requeria prompto curativo um que denunciava claros indicios de perigo. Rosina, mal que o viu, reconheceu-o. Era Bénard, por alcunha _La goutte_. Então lhe acudiram de tropel pungentes recordações da sua vida de vivandeira, quando, sentada no acampamento, via _La goutte_ puxar da sua garrafinha de vidro branco e offerecer aguardente por esta formula inalteravel: --_Voulez-vous lá goutte?_ Esta phrase motivou aquelle cognomento, que valia tanto como dizer em portuguez: _O pinga._ Bénard era um excentrico, que tinha intermittencias soturnas e luminosas. Umas vezes lhe dava a embriaguez para se deixar cair n'uma tristeza insociavel, outras era causa d'uma garrulice chistosa e alegre. Mal que se levantava, enchia a sua garrafinha de aguardente. Bebia até ao meio, erguendo o frasco para venficar á luz se a medida era exacta, e, certificado, acabava d'enchel-o com agua fria. Convém, porém, saber que Bénard classificava os seus companheiros d'armas do seguinte modo: 1.º--Amigos capazes de emprestar. 2.º--Amigos capazes de não pedir. 3.º--Amigos capazes de não emprestar. 4.º--Amigos capazes de pedir. 5.°--Conhecidos. Mettida a garrafinha entre a fardeta, começava o processo inalteravelmente observado todos os dias. Encontrando um amigo da primeira classificação, abeirava-se d'elle e, pondo a mão no peito, perguntava: --_Voulez-vous la goutte?_ O amigo bebia até ao meio, porque elle não consentia que fosse mais longe. Depois, segunda dynamisação, outra vez a garrafa cheia; e, succedendo-se as dynamisações aos amigos, pela ordem por que os tinha classificado, acontecia que os simplesmente conhecidos bebiam agua commum passada por uma vasilha que tivera aguardente. --Não merecem mais! dizia Bénard. Estes só teem pela gente um cheiro de interesse. Era pois _La goutte_ uma personagem lendaria no exercito francez, e já passava em proverbio dizer-se, quando se era mal servido: --Eu _sou conhecido_ do Bénard. Rosina Regnau, ao vel-o ferido, sentiu-se propellida a dolorosa piedade. Estava alli _La goutte_, que ella tantas vezes vira desde a sua infancia, e de quem tantas vezes se rira na edade em que toda a excentricidade nos parece ridicula. E todavia o Bénard era um philosopho profundamente conhecedor da alma humana. D'uma vez perguntaram-lhe: --Se encontrasses o imperador, como o consideravas? --Dava-lhe da ultima lagarada, como elle dizia. Bem se importa o imperador commigo! Não me empresta dinheiro, porque o ganho eu; não m'o pede, porque bem sabe como é mesquinho o _pret_ das tropas. Bénard trazia pendurada do pescoço a sua garrafinha. N'esse dia, como a refrega lhe não désse tempo para offerecer _a gotta_, bebera-a elle toda, por excepção. O resultado foi expôr-se á morte com um denodo que, sommado, daria a embriaguez de quatro amigos. Avançou imprudentemente e ficou prisioneiro com uma bala no peito. Rosina, que sempre evitava ser vista dos prisioneiros francezes, não pôde todavia resistir a soccorrel-o, quando o seu coração por um momento retrocedeu ao passado. Quasi involuntariamente o fez. O ferido, sentindo que alguem o estava curando, abriu os olhos e demorou em Rosina um longo olhar. Foi então que ella mediu o alcance da sua imprudencia. --Oh! rouquejou o ferido, sim, és tu! Eu tenho a vista embaciada, mas ainda te conheço! Rosina Reg... Ella tregeitou afflictivamente implorando silencio. O ferido, desvairado pela embriaguez ou pela febre, não a comprehendeu. Graça Strech havia-se aproximado e assistia entre respeitoso e ciumento áquelle lance. O ferido continuou com difficuldade. --Fugiste, Rosina... Pobre rapariga!.. Como lá todos te querem mal!... Se te vissem... matavam-te... Sim, eu sou Bénard... Tinha hoje a minha garrafinha cheia... Bebi-a toda... Tomei calor... Boa gotta!... Aguardente de Hespanha! Vão estes perros, que não teem um palmo de terra, e mettem-me uma bala no costellame... Irra! Boa aguardente... E tu aqui! Entre elles!... Maldita sejas... O pobre Regnau ha de dar pulo de cobra no outro mundo... Graça Strech, se bem que exhaurido de forças, estremecia em convulsões repetidas, e tinha as faces esbraseadas por um colorido doentio. Todavia parecia detel-o um braço invisivel; pesado como se fosse de ferro, que lhe offegava a respiração. Rosina chorava abundantes lagrimas, que lhe deslisavam pelas faces mortalmente pallidas. Postoque não estivesse presente, por felicidade, ninguem que pudesse ouvir a revelação do segredo, além de Graça Strech, ella não ousava falar. N'aquella hora, em que algumas mulheres e os convalescentes soccorriam os feridos, a todos parecia natural que os dois irmãos, segundo toda a gente dizia, se dedicassem ao curativo d'um soldado que se affigurava moribundo. Graça Strech aproximára-se desde o principio por lhe causar estranheza que Rosina Regnau se dispuzesse a soccorrer o prisioneiro. Primeiro se apiedou por conhecer n'esse acto o impulso natural de coração de Rosina voluntariamente opprimido no captiveiro de um amor impetuoso. Sobreviera porém o ciume quando se lembrou de que a vivandeira habitualmente se esquivava a cuidar de feridos francezes, e de que extremado devia ser o interesse para affoital-a á temeridade de se deixar reconhecer. É bem certo que o ciume completa o amor: porque o ciume é a desconfiança que leva o coração a sondar a profundeza do amor. Então se investiga, se espiona, se perscruta. E se o amor é verdadeiro, é puro, é santo, assim como se lhe mede o alcance, e se reconhece infinito, vem a convicção de que todos os sacrificios são poucos para galardoal-o, chega o arrependimento de se haver sido injusto, e accorda o estimulo da consciencia para o não tornar a ser. N'essa hora é que Rosina Regnau começou, sem o saber, a ser verdadeiramente amada. Bastou o ciume de um momento, que as subsequentes palavras do ferido vieram serenar, para arreigar o amor no coração do soldado portuguez. E foi á luz d'esse relampago de ciume que elle comprehendeu a enormidade do sacrificio de Rosina; foram as palavras do prisioneiro francez que lhe mostraram claramente quão grande abnegação era precisa para cair, amaldiçoada pela patria, nos braços d'um homem estranho. O ferido, apesar de cada vez mais se lhe embargar a voz na garganta, proseguiu com longas pausas: --Tu eras muito estimada, Rosina... Todos te queriam... Quem havia de dizer que tu... renegarias... a tua França! Eu não morro pelo imperador... que não pede nem empresta... que paga mal... eu morro pela... França!... Já não posso... beber... A ultima gotta queria bebel-a pela patria... E, cada vez mais offegante e desvariado pela febre, acrescentou: --Vae buscar aguardente... Anda depressa.. que já tenho a morte aqui... E indicava o coração. --Sim... amaldiçoados... os que não morrem francezes... como tu... Jacques Regnau! lá n'esse quartel que ninguem sabe onde fica... eu te contarei a verdade... Vamos para a reserva... temos tempo de falar... E, como a cabeça do francez parecesse já desequilibrar-se, Rosina Regnau procurou encostal-a ao peito carinhosamente. --Não!--apostrophou com extrema difficuldade Bénard--não! Um francez... só morre... encostado... a outro... francez... Eh! eh!--rouquejou. E, procurando aprumar-se, disse com esforço grande de mais para o lance do passamento: --_Vive.. lá... Fran..._ Não pôde concluir. A ultima syllaba embargára-lh'a a morte. Graça Strech estava como que fulminado pelas palavras do soldado francez, que morrera amaldiçoando Rosina. Parecera-lhe que a voz da providencia falava n'elle. Pela primeira vez um terror supersticioso subjugou a coragem d'aquelle homem que tinha jurado guerra de morte á França. E todavia expirava ali, ao pé d'elle, um francez saudando a patria nas ultimas palavras que lhe foi dado pronunciar. Rosina Regnau estava tambem paralysada n'essa especie de imbecilidade que nas grandes commoções se nos affigura ser idiotismo. O aço de que em parte era feita a sua alma de vivandeira vergára ao som d'aquellas palavras horriveis; restava apenas, muito a dentro do peito, a vibração dolorida das cordas maviosas. No semblante, como se a distancia e o cansaço fossem amortecendo a maguada vibração da alma, apenas se desenhava o espasmo das supremas afflicções que parecem suspender a vida. Quizera Graça Strech poder cingir nos seus braços Rosina, e despertal-a, para a realidade do seu amor, d'aquelle excruciante alheamento. Vedava-lh'o a presença das pessoas que, como já dissemos, estavam cuidando dos feridos. Ficaram ambos silenciosos, porventura á espera de opportunidade para trocarem algumas fugitivas palavras. Ella, acordando pouco a pouco d'aquelle infernal pesadello, sentia o doer da realidade muitas vezes peior que os sonhos maus. E a si mesma perguntava o que ficaria pensando Graça Strech: se julgaria criminosa a sua compaixão pelo ferido; se a presumiria demudada pela maldição do moribundo; se acaso o effeito d'aquella imprevista scena lhe haveria levado ao coração o aborrecimento ou o desprezo? Tudo suppunha, menos que o verdadeiro amor nascera n'aquella hora com o ciume. Como ella desejava poder cingir Graça Strech nos seus braços, cobril-o com os seus beijos, embora elle a repellisse com enfado ou desabrimento! Não valeriam ameaças. Ella dir-lhe-ia com a affouteza que a innocencia dá: --Eu bem sei que fiz mal. Mas aquelle era o Bénard, _La goutte_, que eu conhecia, desde pequena, de o ouvir discorrer sobre o egoismo dos homens e de o ver puxar pela sua garrafinha d'aguardente. O pae Regnau, apesar do vicio, estimava-o muito, e até lhe chamava... philosopho. É que o pae Regnau era dos primeiros amigos. Uma vez vendeu a ração do almoço para que o Bénard não deixasse d'encher a sua garrafinha. O pae Regnau disse então, bem me lembro: «Elle sem aquillo não é philosopho; e eu sem almoço posso ser soldado.» O que valeu foi que o meu almoço chegou para dois. Não me julgues arrependida do que fiz pelo que elle disse... Tudo quanto elle disse bem o sabia eu... Lembrar-me da minha patria não quer dizer que me esqueça de ti... Não. Amaldiçoam-me? Que me importa a mim que me amaldiçoem! Abençoa-me tu, e não quero outra felicidade. Abre-me a tua alma, de modo que eu saiba bem o que ella pensa, o que ella sente, e não terei pena de que se me fechem as fronteiras da patria. Não me aborreças nem me despreses... O teu primeiro beijo foi uma promessa, uma esperança; eu acreditei-o, creei vida nova, sinto-me forte para a lucta. _La goutte_, se me disse aquellas palavras, é porque me estimava; estima-me, ama-me tu quanto eu desejo, que saberei esquecer as palavras de _La goutte_. Graça Strech, sem attingir o que se passava na alma de Rosina, estava ancioso de dizer-lhe: --Tudo quanto aquelle homem disse era verdade. Por mim perdeste tudo, Rosina, por mim preferiste a solidão, em que ora vives, á tua immensa familia--o exercito francez. Eu comecei por odiar-te, porque eras irmã dos assassinos de minha irmã. Depois, ao odio, que procurava o caminho da vingança, succedeu a gratidão, porque tu me restituias a liberdade. Mas a realisação do meu sonho de sangue importava um enorme sacrificio teu. Fizeste-o sem trepidar. E não contente com isso, que já era muito, quizeste vincular a tua vida á minha, e tu, que havias renunciado á patria, renunciaste tambem á voz com que recordavas as canções do teu paiz natal. Começou a nascer em mim o amor misturado d'assombro. Nunca me lançaste em rosto a minha crueza para os teus. Era a minha vingança, e tu querias o que eu queria. Ao pé da imagem de minha irmã, que no somno e na vigilia me apparecia, começaste tu a tomar vulto, a crescer, de modo que eu fiquei preso entre vós ambas, porque se o sangue d'uma clamava vingança, o sacrificio d'outra me proporcionava vingar-me. E uma noite, no breve repousar do acampamento, sonhei que minha irmã me viera falar e me dissera que tu eras boa, e leal, e pura. Então beijei-te. Mas hoje, ao ouvir aquellas palavras, completei os meus pensamentos pela certeza de que tu eras pura, e leal, e boa. Dize: Que queres de mim? Sacrificio por sacrificio, amor por amor, dedicação por dedicação. Serei teu, porque tu és minha. Ouve, Rosina, ouve-me bem. Tu tens sido o meu anjo da guarda, o meu enfermeiro, e--porque não hei de dizel-o?--tens sido para mim como o cão amigo para o cego das Ardennas. Pois bem. D'hoje em diante as nossas almas fundir-se-hão n'uma só, viverão dos mesmos pensamentos, e tu chorarás minha irmã como eu a choro, porque o teu coração sentirá a saudade que eu sinto. Ao anoitecer veiu a carroça dos cadaveres, acompanhada pelo capellão militar, buscar o morto. Rosina Regnau deteve-se a contemplal-o, esquecida de que aquelle homem morrera amaldiçoando-a. Era-lhe defeso o falar. Se não fosse, haveria pedido uma oração pela alma do soldado Bénard, de alcunha--_La goutte._ Graça Strech assistiu á cerimonia commovido. Um dos soldados encarregados d'aquella triste commissão, como lhe visse carregadas as linhas do rosto, apostrophou: --Pois tu, que te bates como leão contra os francezes, não assistes impassivel aos funeraes d'um francez! --A morte quebra todos os odios, respondeu Graça Strech. Outro soldado, ao dar tino da garrafinha entalada entre a farda e a camisa, exclamou facetamente: --Pena tenho eu de o não matar emquanto a garrafa estava cheia! --Este diabo não fazia senão beber! acrescentou outro. --Tambem me consta que fazia outra coisa, replicou Graça Strech. --O que era? --Enterrava os nossos mortos com mais piedade do que tu. --Prégas hoje de cadeira! --Lembro-me de que elle, pelas ultimas palavras que lhe ouvi, era tão francez como eu sou portuguez... --Era? perguntou ingenuamente um dos soldados. --E a mim, concluiu Graça Strech, pesa-me sempre a morte d'um bom soldado. Quando a carroça rodou lugubremente, caminho da valla commum, onde portuguezes e francezes iam dormir sem odios nem malquerenças o somno eterno, Graça Strech acercou-se de Rosina, que parecia duvidar ainda do que tinha ouvido, e segredou: --Devo á memoria de Bénard uma felicidade que não merecia a Deus. De hoje em deante não haverá entre nós barreira que possa separar-nos. As nossas almas serão uma; os nossos pensamentos um só... --Promettes? murmurou ella doida d'alegria. --Prometto. --Então dir-me-has tudo o que pensas, tudo o que sentes? --Tudo o que penso e sinto te direi. E o segundo beijo sellou esta promessa. * * * * * XIII Como acaba a tragedia de Goethe Não morrem os gigantes ao segundo golpe. Napoleão ergueu-se no senado francez, a 4 de dezembro de 1809, e sobrepujando com a sua voz a voz da Historia, como se lhe não andasse já descontada a gloria com dois consecutivos revezes na peninsula iberica, disse: «Tanto que eu appareça alem dos Pyreneus, o leopardo recolher-se-ha amedrontado ao oceano para fugir á ignominia, á derrota e á morte. A victoria das minhas armas será a do genio do bem sobre o do mal: a victoria da moderação, da ordem e da moral sobre a guerra civil, sobre a anarchia e as paixões destruidoras.» E, concluida a campanha de Austria pela paz de Vienna, a aguia franceza deixou de pairar sobre o norte da Europa, e do alto do palacio imperial de Schoenbrunn fitou o olhar ardente e profundo na orla do occidente banhada pelo Atlantico. E pela terceira vez se equipava o exercito invasor, superior a oitenta mil homens; e pela terceira vez fôra chamado um general distincto a tomar o commando em chefe das tropas para obter melhor exito que os seus dois antecessores. A eleição recaiu no marechal Massena, principe de Essling, duque de Rivoli, cuja valentia e sciencia Napoleão conhecia desde as campanhas d'Italia. Não precipitemos, porém, os acontecimentos que o anno de 1810 havia de desdobrar sobre a Europa. Justo é reverter ao que é assumpto principal d'este livro, mais biographia do que chronica. Já anteriormente dissémos que o exercito portuguez recolhera ao quartel general de Castello Branco, e d'ahi fôra mandado, nos ultimos dias d'agosto de 1809, para diversos acantonamentos. Em Castello Branco, o marechal Beresford permittiu aos soldados, que mais se haviam distinguido, a escolha de corpo e quartel, não só para lhes galardoar d'algum modo os serviços prestados, como para incitar os outros a medirem-se na terceira campanha com os premiados na segunda. José Maria da Graça Strech escolheu o regimento d'infantaria 18, que, com o 6 e 9 da mesma arma, foi mandado para Coimbra. Então se levantava detraz do tumulo da irmã querida, para o desgraçado moço, a aurora do amor, que desabrochára no primeiro beijo, e que o ciume aclarára definitivamente á beira do catre do moribundo Bénard. Havia-se batido como leão, açulado pelo cheiro do sangue. Mil vezes se atirára á morte, e a morte parecia respeitar no sorriso de Rosina Regnau a heroicidade do soldado. Dir-se-ia que a vivandeira tinha duas azas, que, desdobradas, o abrigavam. Graça Strech acabou, como era natural, por amar o seu anjo da guarda, quando inteiramente comprehendeu que ella lhe dizia na triste eloquencia do silencio a que se condemnára: «Eu tenho de guardar a tua alma; para guardal-a preciso possuil-a.» No seu coração calcinado pela saudade choveu pouco o orvalho refrigerante companheiro da aurora; o amor cauterisou a ferida que sangrava odios; ficára apenas a cicatriz, como fica voltada n'um livro a pagina que se leu, e cuja impressão jámais se desluz na mente do leitor. Aconteceu a Graça Strech como ao commum da humanidade. O amor, que é luz, que é fogo, que é sol, vae se decompondo em irradiações parciaes na nossa alma, á medida que a vae desenregelando, como o verdadeiro sol n'um prisma de crystal. Verdade é, ser preciso que tenha a alma a pureza do vidro para que lentamente se vão revezando as côres, alternando as _nuances_, e embriagando-se ella a pequenos haustos no banquete da felicidade. O amor que rebenta como erupção, não é amor, é desatino. Nasceu cego: não vê. Irrompe como a lava, passa, queima, desapparece. Este é o amor das almas versateis, que não se vergam ao sacrificio, e que por isso mesmo são incapazes de metter hombros á cruz cujo peso devera ser repartido pelos dois. Os que amam sem previamente haver soffrido, amam apenas emquanto o amor não é soffrimento. E quem póde desfolhar a rosa sem ferir-se no espinho? Esses amam pouco. As lagrimas são a agua que baptisa na religião dos attribulados. A mocidade de Graça Strech recebera esse primordial sacramento. Dera a sua vida em holocausto á saudade. Soffrera muito, e alma que soffre assim tem de certo a pureza dos grandes sentimentos. Por isso a luz da aurora, que lhe alvorecia sobre o tumulo da irmã, se foi decompondo em gradações prismasticas por feitio que elle, muito alma a dentro, pôde conhecer a nitidez das côres, o brilho das tintas casado á transparencia do cristal. Desde então começou a amar como os que teem soffrido. «Tudo o que penso e sinto te direi,» segredára elle em Alcantara. Estas palavras não eram apenas a promessa d'uma revelação;--eram a promessa da felicidade. Os acontecimentos não permittiram que, antes de Coimbra, Rosina Regnau pudesse affastar de si a nuvem do ciume que de ha muito lhe opprimia o coração. Muito primeiro o amára ella, porque o ciume nascera parelho do amor. Parece que o destino porfiára em depôl-os no eden viridente de Portugal para mandar depois a serpente a tental-os. N'aquelle jardim de Coimbra ha sombras fadadas para o amor. Já o disse um poeta: Quem nunca viu Coimbra Pela brisa embalada Do Mondego, Que de amorosa timbra Na margem reclinada Com socego, Não sabe o que é belleza, Ai! não conhece a filha Dos amores, Mais nobre que Veneza, Mais linda que Sevilha Sobre flôres.[11] Ali rememora ainda a celebrada fonte, que suspira n'uma das extremas do campo de Santa Clara, o poema das lagrimas da formosa Castro--o maior poema d'amor que se tem sentido em Portugal. Que phantasias que não tem o amor em Coimbra! É velha a doidice que se respira n'aquelles ares, porque já Faria e Sousa conta que Pedro, o principe amoroso, confiava á agua da fonte, que n'esse tempo ia jorrar nos jardins do paço real, os bilhetinhos namorados que a loura Ignez muito em segredo recolhia e, em maior segredo ainda, relia. E perora Faria e Sousa: «Tales son las astucias de los amantes». Com perdão de Faria e Sousa, astuciosos são os escriptores que nos pintam amores fabulados de tão acertadas contingencias, como era a da agua, sem embargo dos seixos e hervagens, ser fiel correio do principe e da aia. Eu contarei singelamente o meu caso, tal como aconteceu na hora em que o ciume de Rosina Regnau, como se já não fosse preciso para atiçar as labaredas do amor, se acalmava na mutua confiança das almas que se possuem. Foi ahi por alguma copada sombra das margens do Mondego, onde, como disse Gabriel Pereira de Castro, o rio ... nas voltas se mostra arrependido De levar agua doce ao mar salgado, que Rosina Regnau e Graça Strech descançavam n'uma das ultimas tardes d'agosto. Aproveitavam sempre as horas feriadas do serviço militar para essas excursões, reguladas pelo toque das cornetas no quartel, porque só onde a sombra os escondesse poderiam dialogar, os dois, sem que ouvido estranho traísse o segredo da mudez de Rosina. Ahi se indemnisava ella dos longos silencios a que era constrangida, e assim se foram estreitando os laços, que já tão cingida tinham a imagem da felicidade n'um e n'outro coração. N'essa tarde Rosina Regnau intencionalmente encaminhou o dialogo para o episodio da morte de Bérnard, e a ponto veiu recordar as palavra de Graça Strech: «Tudo que penso e sinto te direi». --Ah! não sabes, disse ella subitamente exaltada pelo ardor da vivandeira, que do cumprimento da tua promessa depende a realisação da minha felicidade!... --Pois duvidas?... --E não duvidaste tu de mim, quando em Alcantara soccorri o pobre _La goutte_? --Perdôa-me... --Sim, perdôo, não a ti, ao ciume, pois que para o ciume tambem peço perdão n'este momento. Ouve-me, portanto. --Fala!... exclamou Graça Strech. --Ha uma duvida horrivel no meu espirito, que é preciso dissipar; um obstaculo no meu caminho, que é preciso vencer. O meu amor, que começou por dar-te a liberdade, não póde viver escravisado. Desde o primeiro momento te amei perdidamente. Emquanto tu dormias, veláva eu, para que as tuas palavras de soldado não fossem desmentidas pela tua physionomia de ferido sem eu perceber a verdade. Já então--mal o pensavas!--a minha vida dependia da tua. E vigiava-te, e estudava as mais ligeiras alterações do teu semblante, como a mãe que observa, de noite, na solidão silenciosa do seu quarto, o filho doente que dorme. Tu não suspeitavas que pudesse entrar tamanha dedicação na alma d'uma vivandeira, e razão de sobra tinhas. As mulheres com quem eu vivia eram tão vis, que se riam do meu carinho para comtigo. E eu arrostava-lhes os chascos, os insultos, porque bem sabia que a culpa não era d'ellas, mas do destino que as tornou tão desgraçadas. Aspereza, injustiça, só me doía a tua. Não bastava amar sem esperança: o meu amor era recompensado com despreso. Tu eras nosso prisioneiro; não podias, portanto, soffrer que a minha pronuncia te estivesse recordando a cada hora a tua infelicidade. Quiz, porém, Deus que me ouvisses um dia com menos indifferença, quando conheceste que eu valia um pouco mais do que as outras. Viste que eu era boa, e quizeste-me para instrumento da tua vingança. O que tu não suppunhas era que o teu sonho fosse a esse tempo o meu--dar-te liberdade! que eu contasse os instantes da tua vida pelas horas da minha! que eu quizesse ser para ti o que era o fiel molosso para o cego da minha terra... Pois queria, juro-te, queria. Se não pudesse restituir-te a liberdade, teria a coragem de envenenar um remedio para que o mesmo veneno nos matasse a ambos. Acredita; tinha. Mas sempre na tua bocca a palavra vingança! Sempre essa palavra horrivel! Eu bem sei que todo o homem, que vê a sua patria invadida, precisa vingar-se a si, e a ella. Mas esse annel que não mais te deixou não era da patria... Falavas de tua irmã, tens-me falado sempre d'ella. Comprehendo como se possa amar uma irmã, que era boa, que era pura, e que foi morta injustamente. Todavia comprehendo tambem que se as cartas as escreveu tua irmã, o annel póde deixar de ser d'esse anjo... Nos labios de Graça Strech havia o tranquillo sorriso de quem sabe com que ardor é amado. Quiz falar; ella interrompeu-o. --Oh! por piedade, não sorrias, sem que esta duvida atroz se desfaça! Tenho tido a coragem de saber esperar este momento solemne e para mim decisivo. Tu sempre a pensar no teu annel, eu sempre a pensar em ti! Tão calada, que nem voz posso ter deante d'estranhos. E que tivesse! Havia de perguntar a alguem pela vida do homem que eu chamava irmão? Tu sonhavas de noite, como quando ficaste ferido em Alcantara, e sorrias. Acordavas, vias-me ao pé de ti, e acudias logo a falar de tua irmã... Oh! se eu soubesse que tu me enganavas!... Se tu estivesses sonhando com outra mulher que não fosse tua irmã, quando eu estava ali, sósinha, calada, sem patria, sem amigos, amaldiçoada, a velar pelo teu somno... Sabes o que eu faria? Vestiria o teu uniforme, José, e iria bater-me, avançando tão imprudentemente como o infeliz Bénard, até que as balas dos soldados da França se me cravassem no peito. Morreria pelo ingrato como os soldados morrem pela patria, e morreria contente por morrer amortalhada no teu uniforme... Vê, pois, bem a minha alma. Unicamente te peço que sejas sincero, ainda que a tua sinceridade tenha de ser cruel. Estamos a dois passos do Mondego. É-me facil procurar n'elle a maior altura da agua, se o coração me disser que me estás enganando... Mas não has de, mas não me deves enganar, porque pela memoria sagrada de tua irmã te peço que sejas verdadeiro... E ficou anciosa, com os olhos fitos, os labios entreabertos, o seio offegante... --Pela memoria de minha irmã te juro que mais uma vez te repetirei a verdade--disse Graça Strech, cuja physionomia parecia irradiar a luz clara e pura dos que estão fazendo uma confissão sincera.--Tambem eu te amo doidamente, Deus o sabe! Tambem eu tive ciumes, Rosina! Tambem eu estou costumado a soffrer. Se aquelle moribundo d'Alcantara houvesse denunciado, por um gesto sequer, que tinha outros direitos á tua dedicação, além dos de estar ferido e ser francez, eu, impossibilitado de aggredir um homem meio morto, haver-te-ia fugido para me expôr á morte que encontraria em qualquer parte. Juro-te, pela memoria de minha irmã te juro, que isto o senti eu ao pé do pobre Bénard, quando te vi soccorrel-o. N'esse momento forjou o ciume as cadeias que nos teem agora aqui presos. Comecei por aborrecer-te, é certo. Sobre este annel, que tirei do dedo de minha pobre irmã morta, jurei vingal-a, Rosina, porque primeiro me derrubaram a mim para que eu não pudesse defendel-a, e depois a assassinaram a ella, a minha mãe, e a minha avó. Meu pae, que já sei ter morrido no mesmo dia, porque houve participação official de ser reconhecido, foi vencido pelo azar do combate, não foi assassinado. E depois era um soldado, e um soldado em campanha ou mata ou morre. Mas as pobresinhas que mal faziam á França? Eu accordei do deliquio motivado pelo ferimento que recebi, sem saber o que se tinha passado. Estendi o braço e senti um corpo; apalpei e conheci roupas de mulher. Achei uma cabeça. Tacteei-lhe os contornos, e não me enganou a mão quando me pareceu ser aquelle o perfil de minha irmã. Era noite, bem sabes: dentro a escuridão; a tempestade fóra. Eu sentia vibrar a espinha dorsal como se fôra d'aço, fria como elle. Procurei luz, quasi louco. Mal me podia suster nas pernas. No cerebro ardia-me um vulcão; em derredor do craneo sentia a friura do gelo. E a luz mostrou-m'as, a ellas, minha irmã, minha mãe, minha avó, mortas, desgrenhadas, deitadas no soalho, e rodeadas das sombras que a interposição dos moveis projectava na parede, parecendo moverem-se, bracejar, escancarar a bocca, casquinar gargalhadas que o vento, lá fóra, parecia rir diabolicamente por ellas. Eram horrores da minha imaginação, eram visões da febre, porque eu n'essas horas incomparavelmente angustiadas delirei, enlouqueci, morri em mim mesmo para renascer n'um cadaver. E o sangue, Rosina, o sangue d'ellas, empoçado no soalho, tão vermelho que parecia incendiar-se ao reflexo da luz! Foi então que a Providencia me soccorreu e me permittiu um esforço sobrehumano. Beijei minha irmã, abracei minha mãe, acariciei minha avó, falei-lhes, não sei o que lhes disse, não me lembra, e estremecendo do contacto das mãos de minha irmã, que pareciam de marmore, e que do marmore tinham os veios roxos e azues, tirei-lhe delicadamente do dedo, como se ella pudesse molestar-se,--ella, que era tão franzina!--este annel querido, sobre o qual proferi o meu juramento de vingança, que até hoje tenho cumprido, e que cumprirei até que Portugal succumba ou triumphe d'uma vez. E como se a arrebatada eloquencia o repuzesse ainda em meio das desgraças que historiava, pendeu ao peito de Rosina, extenuado, descóradas as faces, revoltos os cabellos, flammejante o olhar. Rosina ameigou-lhe a fronte banhada de suor frio, e docemente lhe pediu perdão de o ter compellido a avivar tão recentes e profundas dôres. Graça Strech estava preoccupado, como se procurasse um pensamento que lhe entre lembrava; como se quizesse suster uma visão que se mostrava e fugia. --Ah! exclamou de repente. Não, Rosina, não basta ainda. O teu amor reanimou o meu cadaver, eu devo-te a vida; quero abrir-te a minha alma para que a vejas bem, para que a sondes, e leias n'ella. A tua luminosa intelligencia já te permitte comprehender muitas palavras do idioma portuguez. Pois bem, aqui tens uma prova irrecusavel que não póde deixar a minima duvida no teu espirito... E, desabotoando o uniforme, tirou o maço das cartas d'Augusta. --É esta--continuou, procurando--é esta, lê aqui lê bem. Foi ha dois annos, no seu dia natalicio, que lhe mandei este annel. Vê o que o anjo me respondia. Lê, esta é a prova, lê: «O teu annel, José, o teu annel, que me pareceu acompanhar a tua alma, porque a tive todo o dia ao pé de mim, não me deixará até á hora em que a amortalhadeira m'o tire do dedo. Pedes desculpa de que seja liso, de que só tenha uma pedra!... Tontinho! O teu coração pésa mais do que o annel, e a avósinha diz que os anneis de muito feitio apenas são proprios das camponezas.» Vê, Rosina, olha para este nome--Augusta--o unico de mulher que pronunciei antes do teu... --José! exclamára Rosina divinisada por uma aureola de condoída doçura, que parecia esbater-lhe o semblante no azul do céo. A natureza dascaía na deliciosa morbidez do anoitecer. As labaredas que a ambos afogueavam o coração foram bastantes a seccar as lagrimas d'um e outro. Se eu quizesse passar por um escriptor tão casto como os que uzam adoçar o acre das situações violentas, diria que se ouvia rumorejar as folhas, sendo os labios que rumorejavam. Essas ultimas revelações tanto contraíram os elos da cadeia, que já não era possivel medir a distancia interposta ás duas almas embevecidas. Se ali, n'aquellas paragens onde o grave Faria e Sousa achou que era torrão azado para localisar astucias de namorados; se áquella hora, como na tragedia de Goethe, estivesse ali Mephistopheles, bradaria com alegria satanica: _Perdida!_ Bem podia ser porém que alguma voz do alto respondesse: _Salva!_ Só se perde a mulher que não tem coração para comprehender o que é ser mãe. [11] Do sr. Antonio de Serpa. * * * * * XIV Quanto custa ser mãe Em fevereiro de 1810 estacionava no valle do Mondego o exercito commandado pelo general Wellington, repousando das passadas lides, se bem que já apercebido para resistir aos movimentos dos francezes que de novo ameaçavam invadir Portugal. Beresford activamente se dedicava a exercitar e disciplinar as tropas, e a providenciar pelo que tocava a provisoes que se tornavam indispensaveis para a campanha que a todo momento se esperava, e cuja duração era imprevista. O rei José havia entrado em Sevilha, no primeiro dia d'esse mez, á frente das suas tropas, e a nuvem que obscurecia o céo da Hespanha alongava-se já para Portugal, deixando ouvir os rumores da tempestade que lhe refervia no bojo caliginoso. N'esse tempo vamos nós encontrar Graça Strech na escóla militar do valle do Mondego, se bem que muito demudado o encontremos, e mereça especial attenção a tristeza que parece salteal-o nas horas em que o soldado se permitte ser homem. Procuramos á roda de si, e não encontramos a «muda», sua irmã. Inquieta-nos tão inesperada ausencia. Depois que comprehendemos o coração da Rosina Regnau, depois que passo a passo a acompanhámos nos lances angustiosos de sua attribulada mocidade, habituamo-nos a estimal-a, e já agora nos é magua o deixar de vêl-a. Morreria acaso? Algumas vezes se lembrára ella, quando vivandeira do exercito francez, de que uma bala perdida a mataria. É uma tradição de Vivandeiras, a do pelouro esgarrado que as ha de prostrar, porque, companheiras dos soldados, esperam do soldado a sorte. Todavia nem sempre se realisam as contas que a phantasia lança, e não é de presumir que dos soldados que manobram exercitando-se no valle do Mondego partisse a bala destinada a roubar-lhe a vida. Tambem nas faces de Graça Strech não ha a tristeza sombria das perdas irreparaveis, mas um novo reflexo de melancolia que, a despeito de a querer concentrar, dá á physionomia um toque de soffrimento. Procuremos tirar-nos de tão saudosa incerteza, e saber o que se passára nos mezes que decorreram desde agosto de 1809 até fevereiro de 1810. Pelo que vamos ouvir a Graça Strech, n'um rapido dialogo com um companheiro d'armas, não poderemos fazer juizo seguro, mas esse será o fio de Ariadna que depois nos guiará no labyrintho de nossas pesquisas. --Tens tido noticias de tua irmã? perguntou o soldado. --Não tenho; nada sei da pobresinha! respondeu dolorosamente Graça Strech. --Deve-te custar a ausencia! Se a nós, que não eramos irmãos, tambem nos custa! Estavamos habituados aos seus tregeitos, e o caso é que já os entendiamos como se fossem palavras! Que pena que não falasse! Bonita era! e tão meiga como bonita! Sempre aquelle sorriso doce para todos e para tudo! Mas, ó Strech, se a conversa te magôa, não continúo... --Continúa, sim. Ás primeiras palavras rebenta a saudade; depois Deus manda a resignação, e é o que vale. --Eu tambem tenho familia, Strech, tambem sei o que isso é. E depois tu sempre deves estar com teu cuidado, porque tua irmã ia doente. --Começou a soffrer Trabalhos da guerra, commoções fortes, talvez receios da nova campanha... Não sei. O que é certo é que a não julguei com forças de andar commigo em correrias atraz dos francezes, que é preciso enxotar pela ultima vez. Temos uma tia nossa na Allemanha. Veiu a Portugal ha annos, e affeiçoou-se muito a minha irmã. Deu-se a coincidencia de estar no porto da Figueira um brigue italiano, e ir a bordo um passageiro allemão, que me pareceu homem compassivo, e que me prometteu acompanhar a pobre muda até ao seu destino. Que havia eu de fazer, quando a demora de minha irmã em Portugal seria a morte, e todas as circumstancias pareciam favorecer visivelmente o meu designio de a mandar para a Allemanha? Deixei-a ir, mais entregue a Deus do que ao compassivo allemão. --E que tencionas fazer agora? --Agora! Quem sabe quando chegará a hora de pertencermos a nós mesmos! Se eu morrer, ficará minha irmã entregue a sua tia; se eu sobreviver a victoria das nossas armas--porque nós não podemos succumbir depois de havermos triumphado duas vezes--irei buscal-a á Allemanha, e viveremos juntos até que um de nós deixe d'existir. --Desculpa-me, Strech,--tornou o soldado condoído.--Mas eu também estimava tua irmã, e por isso te perguntei por ella. Como já partiu em dezembro, e eu tenho conhecido que andas triste, pensei que tivesses recebido noticia de que a pobresinha ia a peior. Como felizmente não se realisou a hypothese, desculpa-me. Olha... Estou em dizer que Deus traga a guerra depressa para nos distrairmos. A guerra embriaga como o vinho, e a embriaguez é bom remedio para saudades. Eu e tu, pelo que vejo, soffremos ambos da mesma doença. Adeus, Strech. Este dialogo, como anteriormente disse, não é explicação cabal, nem... verdadeira. Graça Strech via-se obrigado a enganar as pessoas que lhe perguntavam por sua «irmã», se bem que o engano apenas se limitasse aos motivos da partida e ao destino de Rosina. Elucidemos. Em dezembro de 1809 começaram a manifestar-se os symptomas da maternidade. Esta desgraça, cujas funestas consequencias não previram na loucura do seu amor, obrigou-os a pensar reflectidamente no futuro, subitamente entenebrecido no horizonte que o poetico sol de Coimbra azulejava nas tardes em que as margens do Mondego lhes enfloravam os ardentes idyllios. O peor que ha no Paraiso é o ter porta: porque não se abre, quando a ancia da felicidade a impelle, e porque se fecha sobre as mais doces illusões, movida por qualquer viração que mais branda e mais embalsamada parecia. Eu, pouco sabido em philosophias, acho a porta do Paraiso muito peior que a serpente: uma tenta, a outra fecha. Ora a gente poderia fugir da tentação, se encontrasse a porta aberta. Deixamo-nos seduzir pela cascavel. Ouvimol-a. Embriagamo-nos com as paizagens do éden, com as melodias eolias do arvoredo, com o maná que o céo deixa cahir sobre o coração. Entretanto a serpente adianta-se. Cinge-nos, enleia-nos. Olhamos para a porta: é-nos defesa a saída. Estamos encarcerados. A serpente triumpha. Por duas ponderosas razões não podia ficar Rosina Regnau em Portugal. Era a primeira que, inculcando-se irmã de Graça Strech, a sua deshonra seria desaire para o irmão. A segunda estava em que o conservar-se occulta no reino, em estado de não poder acompanhar o exercito, seria imperdoavel n'uma epoca em que tudo que cheirasse a francez inspirava odio, e em circumstancias em que o deixar de falar seria quasi impossivel. Avultou aos olhos d'um e outro, como pesadello horrivel, a necessidade da separação. O mesmo foi verem-se inesperadamente sepultos nas ruinas dos castellos encantados que ambos haviam architectado. E a felicidade é como todos os edificios: leva muito tempo a construir e basta um instante para desabar. Estava effectivamente a esse tempo, nas aguas da Figueira, um brigue italiano. Concordaram ambos em aproveitar a commodidade do transporte. Rosina energicamente rejeitou a ideia de voltar a França, duas vezes deshonrada. Convieram, pois, em que ella esperaria em Italia, com o filho nos braços, o termo da guerra peninsular. Depois, para sempre se reuniriam, e viveriam enlevados na infancia da criança, que ambos phantasiavam formosa. Mas, por que espesso véo de lagrimas se não filtrava este raio de longinqua felicidade, illuminando-o e iriando-o como um reflexo de sol moribundo através de neblina humida em tarde de tempestade! Era esse o arco-iris da esperança, gravado em traços multi-côres, d'um abysmo a outro, sobre um céo plumbeo. --O pae Regnau,--dizia Rosina--costumava dizer que a felicidade era uma bola de sabão. Agora vejo que é. Tudo desfeito, n'um momento! Eu desterrada para um paiz desconhecido, sósinha com a minha desgraça e o nosso filho! Tu, a muitas leguas de distancia, exposto á sorte dos que combatem, mais incerta que qualquer outra! Viverei entre a esperança da tua chegada e o receio d'uma noticia funesta. Oh! esta idéa é horrivel! Então Deus ha de permittir que, meu filho entre no mundo vestidinho de luto! Não não póde ser. Não te exponhas loucamente á morte, meu amigo, não? A tua vingança já deve estar satisfeita, e depois um soldado que é pae deve ter duas cadeias a ligal-o ao mundo: a patria e a familia. Ora eu bem sei que tua irmã é a patria; mas lembra-te, sim, lembra-te! de que teu filho é a tua familia... Acudia a serenal-a, com o coração despedaçado nas garras de desconhecido abutre, Graça Strech. Queria ser forte, e as lagrimas a trahirem nos olhos o esforço! Tentava enganar, e estava desilludido. Ainda não houve maior desgraça, mais amargo calix de amargura esperado nos labios com um sorriso... --Não, Rosina, não imagines desgraças que Deus não permittirá. Bem sabes que a Providencia me tem guardado até hoje... Verdade é que tu eras o meu anjo da guarda, e tu vaes fugir-me. Isto é, em verdade, maior que a coragem humana! Não me arriscarei imprudentemente á morte, está certa... Mas ás vezes, na refrega, a gente não tem tempo de evitar uma bala... Não chores, Rosina, não chores. Foi uma loucura que eu disse. Eu não hei de morrer. Acaso morri eu para a memoria de minha irmã? Tambem não hei de morrer para o futuro de meu filho, para o teu amor. É forçoso separarmo-nos; separemo-nos. Ficaremos, porém, um ao pé do outro, sempre juntos, que já não ha distancias que nos separem, braços que nos desunam. Tu ver-me-has pelos olhos da saudade; eu, que já estou costumado a ver assim, ver-te-hei tambem. Conversarei no meu coração comtigo, acompanharei meu filho desde o primeiro vagido e a primeira lagrima... Ó Rosina, triste coisa é a vida! Nascemos soffrendo, como devemos viver, e morremos como vivemos. E olha que a minha loucura deu mais uma alma á desgraça... Mas eu amava-te tanto, tanto! Pobresinha de ti, que dizias parecer-te ouvir a maldição de Bénard... Por amor de mim te deshonraste uma vez; o meu amor duas vezes te deshonrou... Não chores... Já estão desbotadas as rosas das tuas faces, não as desmereças mais... Lembra-te do céo da Italia, que todos dizem ser formoso, e de que nosso filho nascerá sob o céo d'esse bello paiz Deus ha de protegel-o. Lá viveremos todos n'uma só felicidade... Mas não chores, Rosina, que eu sinto despedaçar-se-me o coração... Foi chegado o momento da partida. Rosina subiu a escada de portaló amparada nos braços de Graça Strech. Dir-se-ia um cadaver que se destinava a uma sepultura distante. Os passageiros que estavam no convés pareceram commovidos de tão doloroso espectaculo. Um d'elles, que era musico napolitano, escondia contra a harpa o rosto brilhante de lagrimas. Graça Strech viu-o chorar e disse de si para si: --O mais desgraçado é aquelle, porque já desaprendeu de consolar. E dirigiu-se a elle: --Dá-me licença que o interrogue? perguntou. --Da melhor vontade, respondeu o menestrel. --Vae só? --Infelizmente vou... Deixei um filho morto em Portugal. O rapaz era fraquito, e não pôde aguentar-se. Desde que me elle morreu, fiz voto de voltar a Italia. Mas quem póde agora ir por Hespanha com estas malditas guerras, que nem n'este bom paiz de Portugal deixam ganhar a vida? Juntei tudo o que podia, consegui obter uma reducção na passagem, e aqui vou eu com a minha harpa, sem o meu filho. E cada vez luziam mais as lagrimas nos olhos do italiano, que parecia não ter ainda cincoenta annos, posto lhe alvejassem já os cabellos. --Sente-se, senhor... --Pietro, acudiu elle com a celebrada vivacidade napolitana, se bem que lhe soluçasse a voz commovidamente. --Estimei saber o seu nome, porque preciso archival-o no coração. Vim aqui para lhe pedir um grande favor. Tem de ser sua companheira de viagem aquella desgraçada rapariga franceza que ali vê... --Franceza! atalhou admirado o italiano. --Sim, franceza. É um mysterio cuja revelação iria augmentar a sua maguada compaixão, meu bom Pietro. Olhe por ella, anime-a, que a pobresinha é muito infeliz, e quem lh'o pede não é menos infeliz do que ella... O velho aprumou-se, tirou solemnemente o seu barrete de gomos, e disse: --Fique descançado, senhor. Pela memoria de meu filho lhe juro que a tratarei a ella como se fôra elle mesmo. O meu coração até agradece á Providencia esta inesperada companhia que me dá. _Corpo di Baccho!_ que eu estava aqui triste, triste, que já mal podia commigo... --Obrigado! muito obrigado! exclamou com extraordinaria commoção Graça Strech. --Vá buscal-a para aqui, tornou o italiano. A minha harpa está habituada a chorar; eu a farei chorar mais uma vez. Quando eu vir que a minha nova filha vae triste, eu a despertarei: _Carina!_ E o _canta-storie_ sempre ha de saber alguma napolitana para cantar-lhe. Abeirou-se Graça Strech de Rosina. Ella tinha os olhos postos na superficie do mar, immoveis e desluzidos, e deixava rolar as lagrimas livremente pelas faces, como se já não tivesse vida para enxugal-as. --Rosina! apostrophou elle acordando-a, e com voz que mal se percebia. Ella estremeceu e fitou-lhe um olhar que se diria inconsciente. --Rosina! tens ali um companheiro de viagem, que me pareceu tão desgraçado como qualquer de nós. É musico italiano. Volta a Italia porque lhe morreu em Portugal o filho que o acompanhava. Já vês que deve ser infeliz. Levanta-te, anda para ao pé d'elle. Anda, Rosina, minha boa amiga, minha desgraçada irmã. Tem fé, tem animo, já que eu sinto perdel-o... Olha... quero dizer-te uma coisa... Vou confiar-te o meu thesouro, Rosina, o meu thesouro que tão mysterioso te pareceu, e que tanto te fez soffrer... Guarda este annel de minha irmã... Deus sabe se eu algum dia fiz tenção de o tirar do dedo! Que m'o tirassem depois de morto, pouco me importava. A minha tenção era morrer com elle. Mas eu amo-te tanto, tanto, que quero que tu o guardes. Elle já me não póde recordar agora a minha vingança... Quando nosso filho crescer mette-lh'o no dedo, e alguma vez lhe contaremos ambos a historia do annel mysterioso. Rosina olhava para Graça Strech em dolorosa suspensão. Pareceu accordar, porém, quando sentiu na mão o contacto do annel. E entrou de beijal-o anciosamente, delirantemente, como se fosse para ella uma reliquia mais valiosa do que a madeixasinha de seu pae. --O que eu soffri por elle, por este annel! disse ella soluçante. Agora o levo commigo, e com elle a tua alma... Senta-te aqui, José, ao pé de mim, não me fujas ainda, que o navio não parte por ora... Lembra-te que esta separação póde ser eterna... --Eterna! repetiu estremecendo Graça Strech. --Não, não ha de ser, Deus ha de conservar-nos a vida que nos é mais precisa do que nunca... Mas bem sabes que eu quero gravar bem na memoria as tuas feições, uma por uma, todas, porque te quero ter presente a toda a hora, contemplar a cada instante o teu retrato, tão fiel, tão fiel, que me pareça estar-te vendo... Bem sabes que é uma illusão de que preciso, de que depende a minha vida. Pois se eu me desalentar, se succumbir á saudade,--e baixou timidamente a voz--quem ha de velar por nosso filho, soccorrel-o, beijal-o, amal-o?... N'este momento deu a sineta de bordo signal para que descessem as pessoas que não eram passageiros. Graça Strech, não tendo já forças nem coragem para levantar Rosina, fez signal ao italiano para que se aproximasse. Pietro abeirou-se com a sua harpa, sentou-se ao pé de Rosina, e relanceou a Graça Strech um olhar que parecia dizer: Póde ir. Rosina escondia o rosto entre as mãos, e soluçava offegante, estrangulada a voz na garganta. Um dos marinheiros veiu, por ordem do capitão, lembrar a Graça Strech que já tinha dado o signal de bota-fóra. --Eu vou... respondeu elle machinalmente sem poder desfitar Rosina, e quasi sem força para mover-se. E, lançando a mão á corda, desceu oscillando como estonteado por uma violenta vertigem. Na Occasião em que o capitão passava por deante de Pietro, o italiano levantou-se e sorrindo cortezmente lhe disse: --O capitão dá-me licença que toque na minha harpa o hymno da partida? O capitão sorriu tambem, e Pietro, inclinando-se para Rosina, exclamou: --_Carina!_ A minha harpa vae ser de hoje em deante a nossa unica consolação. É preciso atordoarmo-nos com a musica. Ahi vae a _Capuana_ para não sentir o barulho de levantar ferro. Agora, para Napoles. E começou a entoar, acompanhando-se, uma canção napolitana que poderia traduzir-se assim: Esta tarde na ribeira Uma hora passeei. Meu pensamento, occupaste-o E tanto pensei em ti, Que o coração lá perdi... Tu vieste e apanhaste-o. Ensina-me pois agora A desfazer a meada. São parciaes os juizes, E a justiça demorada. Bem sei que perdia a causa... Que meio? Lembra-te algum? Tu lá tens dois corações, E eu cá não tenho nenhum. Para que nos custe menos A resolver a questão, Expliquemo-nos. Ha males Que ás vezes nos trazem bens. Vamos fazer um ajuste: Tu dás-me o teu coração. E guarda o que lá me tens. ............................ O brigue navegava já. E a musica parecia adormentar aquelles dois desgraçados: um porque levava seu filho; o outro porque o deixava ficar. * * * * * XV A queda do gigante A historia da terceira invasão franceza, comquanto prenda com a nossa narrativa, não lhe é essencial. Muito de leve passaremos pois pelos acontecimentos que medeiam de julho de 1810 até agosto de 1814 e que, todavia, não podemos supprimir. Limitar-nos-hemos, em conformidade com o nosso plano, a um simples bosquejo não descabido em romance. O marechal Massena, chegado a Valhadolid, assumiu o commando do exercito francez, que mandou reunir em Salamanca, e marchou sobre Portugal, tomando de caminho Ciudad Rodrigo, que se rendeu depois de heroica resistencia. Quasi volvido um mez, capitulou a praça d'Almeria; havendo soffrido um longo cerco, e tendo sido o paiol incendiado pelo inimigo. O exercito alliado, em força de setenta mil homens, esperou os francezes nas alturas do Bussaco, onde durante os dias 27 e 28 de setembro se pelejaram duas sangrentas batalhas, sendo grande a victoria para o exercito anglo-luzo, que galhardamente repelliu o inimigo em grande parte dizimado. É esta uma das paginas mais brilhantes da historia portugueza durante o longo periodo das guerras peninsulares. Os francezes, marchando para oeste, passaram ao Sardão, e d'ahi seguiram para o sul; os alliados, retirando sobre Lisboa, rebateram-n'os nos campos de Coimbra, e em Leiria. Amedrontado Messena á vista das linhas chamadas de Torres Vedras--sobre as quaes o official inglez John T. Jones deixou uma circumstanciada _Memoria_, que convém ser consultada pelos que não desdenham saber historia patria--tomou posições á rectaguarda em Santarem e Leiria, esperando reforço para atacar as linhas. O exercito francez, consideravelmente derrotado, estava de mais a mais carecido de viveres. N'esta conjunctura e já entrado o anno de 1811, passou o marechal Beresford ao Alemtejo para se oppôr ao inimigo, o que não impediu que Badajoz capitulasse. Não obstante esta victoria, e um reforço de trinta mil homens que o exercito francez recebeu, começou a retirar nos primeiros dias de março d'esse anno, sendo atacado na retirada pelos alliados, e entrando em territorio hespanhol no mez d'abril. Segunda vez reforçado, atacou o exercito anglo-luzo em Fuentes d'Honor, não sendo ahi mais feliz do que no Bussaco. No dia 11 d'esse mez retomaram os nossos a praça d'Almeida, e pela terceira vez se viu Portugal desopprimido do jugo francez. Pareciam empenhados os factos em desmentir a prophecia de Napoleão: era a aguia da França que fugia amedrontada para o seu ninho d'além-Pyrineus. O leopardo triumphava á sombra da cruz, que sempre foi timbre dos guerreiros portuguezes. Á batalha de Fuentes d'Honor seguiu-se outra não menos cruenta--a de Albuera, onde a victoria nos foi descontada pela perda de seis mil homens. A aguia franceza, a dominadora da Europa, irritada por uma série de desastrosas derrotas, procurou ainda desferir no céo da peninsula o arrojado vôo das suas passadas glorias. Por um momento lhe sorriu a victoria. Substituido Messena por Marmont, o exercito francez logrou tomar-nos a artilharia em Fuente Guinaldo, obrigando os alliados a retirar sobre a fronteira portugueza, mais assignalados ainda na retirada que no triumpho, porque, aguentando o peso da cavallaria inimiga, repelliram todos os ataques, retomando a artilharia. Com a ação de Arroyo-del-Molinos, pelejada a 18 de outubro, cuja victoria coube aos alliados, se encerrou o anno de 1811, com muita honra para os anglo-luzos. Não começou mal auspiciado o anno seguinte, que se estreiou, para os alliados, com a tomada da praça de Ciudad Rodrigo, seguindo-se-lhe a rendição de Badajoz, depois de haver soffrido os apertos de primeiro e segundo sitio. Todavia o maior successo d'esse anno estava reservado para a batalha de Salamanca, em que os dois exercitos, commandados de um lado por Wellington e do outro por Marmont, se equipararam em galhardia e pericia, cabendo a victoria--que se reputa a mais celebre de toda a guerra peninsular--aos luso-anglos. Á victoria de Salamanca seguiu-se a tomada de Madrid, e á tomada de Madrid o assedio ao castello de Burgos pelos alliados, que, por desobediencia de Ballesteros, tiveram de retirar sobre a fronteira de Portugal com denodo egual ao que em Fuente Guinaldo os assignalou. Não remata deshonrosamente o anno de 1812, para o exercito anglo-luso com este revez que se póde considerar façanha. Refeitas, porém, as tropas alliadas das perdas soffridas na retirada de Burgos, e já começado o anno de 1813, avançaram até Victoria, onde, na manhã de 2 de junho, se travou batalha geral, retirando o inimigo sobre Pamplona, perdendo artilharia, caixa, bagagens, e salvando-se o rei José, que estivera presente, em precipitada fuga. _Alea jacta erat._ A sorte de Napoleão, pelo que respeitava a ambições relativas á peninsula, havia sido jogada na batalha de Victoria, e a aguia franceza, em cujos olhos brilhava o olhar coruscante do Corso, pela ultima vez cruzava, demandando a França, as cumiadas dos Pyreneus. No dia 1 de julho entrava o inimigo em solo francez. De nada valeu reforçar-se, e tomar Soult o commando geral. No ultimo dia d'esse mez ganharam os alliados a batalha chamada dos Pyreneus, rechaçando o inimigo para dentro das suas fronteiras. Seguem-se, para honra das armas alliadas, a tomada da praça de S. Sebastião, a batalha de Nivelle, os combates de Bayonna, as victorias de Nive e Orthez, e, finalmente, a triumphal entrada do exercito luso anglo em Tolosa, a 12 de abril de 1814. Começava, como os acontecimentos o demonstram, a empallidecer no céo da França a estrella de Bonaparte. A lucta, desde muito travada entre a aguia e o leopardo, lucta de morte, encarniçada, contínua, estava chegada a ponto em que já era dado suspeitar que o pedestal de Napoleão não era tão firme como a sua coragem. O contendor, apesar dos revézes, era o mesmo; a fortuna principiava a falhar. A Inglaterra havia vencido, a sorte mostrára-se rebelde, mas o conquistador da Europa,--e para o ser faltava-lhe vencer a Inglaterra--não desesperava de reconquistar a sua boa fortuna. Não tomou por aviso da Providencia o desastre. No immenso taboleiro da sua ambição, em que as nações eram outras tantas tavolas que movia a bel-prazer, pareceu-lhe aquelle um cheque sem consequencias para o resultado da partida em que se jogavam os destinos de povos e reis. Bonaparte ufanava-se de empunhar a balança em cujas conchas pesavam d'um lado a Europa e do outro uma ambição immensa, indomavel, manifestada desde os primeiros passos da sua carreira militar. Comtudo havia na Europa uma nação quasi invencivel, porque o mar lhe servia de muralha, porque os seus recursos economicos prosperavam largamente, e porque as instituições d'esse povo, traduzindo a altivez do genio nacional, eram muralha tanto mais para temer como a que o mar, cingindo as ilhas britannicas, opporia a qualquer invasão. Era tudo isso, e mórmente o regimen liberal da Inglaterra, que incommodava Bonaparte, cujo poderio havia ultrapassado a barreira da tyrannia. O guerreiro feliz imaginava-se senhor absoluto: era a vertigem da victoria. Havia porém um meio de egualar a Inglaterra, como diz madame Staël: era imital-a. Bonaparte, porém, não tinha nascido diplomata. A vista do conquistador é incisiva, rapida, abrange de uma só vez o exercito todo por mais espraiado que esteja; o diplomata tem de profundar, estudar, decompôr, analysar não só os negocios englobados diante de si, mas as suas intimas relações, as suas consequencias proximas e remotas. N'um requer-se o olhar ardente da aguia; no outro a vista penetrante do lynce. Toda a diplomacia de Napoleão se cifrava em preparar os acontecimentos de modo a provocar um conflicto internacional, que tendesse a prejudicar a Inglaterra. Haja vista o tratado secreto de Fontainebleau, em que Portugal e a casa de Bragança eram sacrificados á velha rivalidade dos dois paizes. Bonaparte visava sempre a vencer, não empregando a influencia politica da sua posição, mas empregando a influencia armada do seu exercito. Edificava sobre cadaveres, arriscando a vida dos soldados francezes ao sabor da sua phantasia. Chegado á suprema embriaguez da preponderancia, tanto valia para elle o sangue dos soldados como a corôa dos reis. A sua vontade era lei. Conta-se que uma vez um dos seus conselheiros d'estado ousou lembrar-lhe que o codigo napoleonico era contrario á resolução que ia tomar. Bonaparte respondeu: --O codigo foi feito para salvação do povo, e, se a salvação do povo exige outras medidas, é preciso adoptal-as. Estas palavras são transparentes: deixam ver a tyrannia. O povo francez não podia ter vontade livre: vivia affrontado pela sombra de Napoleão e encarcerado na inquisição politica de que o ministro Fouché era claviculario. O cézar dominava tudo: a vontade do povo e a opinião da imprensa. Os jornaes eram thuribulos que vaporavam o incenso da adulação aos pés do throno. Os poetas estavam habituados desde o tempo do Directorio a cantar heroides em honra do Primeiro Consul. Os follicularios poisavam a penna, quando tentavam assumpto que esquecesse a grandeza napoleonica, amedrontados pelo espectro da proscripção. A visão do desterro bastava a intimidar a maior parte d'elles, senão todos. Madame de Staël, que não trepidava deante da estatua gigantea do imperador, teve de procurar refugio em Inglaterra. E comtudo, na sua origem, a corôa de Napoleão emergira, Venus da realeza, da onda da liberdade! É certo, mas a estas palavras respondem cabalmente as seguintes linhas da auctora das _Considérations sur la revolution française_, cujo espirito era profundo de mais para se deixar cegar por despeitos. «Não bastava,--diz a insigne pensadora--que todos os actos de Bonaparte tivessem o cunho de um despotismo cada vez mais audacioso; devia elle proprio revelar o segredo do seu governo, pois que despresava a especie humana o bastante para dizer-lh'o. No _Monitor_ do mez de Julho de 1810 fez publicar as palavras que dirigia ao segundo filho de seu irmão Luiz Bonaparte criança a quem o grã-ducado de Berg era destinado: _Não esqueças nunca_, lhe diz elle, _em qualquer posição que te colloquem a minha politica e o interesse do meu imperio, que os teus primeiros deveres são para mim, os segundos para a França: todos os outros, incluindo os relativos aos povos que eu pudesse confiar-te estão depois_. Não se trata aqui de libellos, de opiniões de partido; é elle proprio, Bonaparte, que se denunciou mais severamente do que a posteridade ousaria fazel-o. Luiz XIV foi accusado de ter dito intimamente: _O Estado sou eu_; e os historiadores esclarecidos apoiaram-se com razão n'esta linguagem egoista para condemnar o caracter do rei. Mas se este monarcha, quando collocou seu neto no throno de Hespanha, lhe houvesse ensinado publicamente a mesma doutrina que Bonaparte ensinava ao sobrinho, talvez que o proprio Bossuet não ousasse antepôr os interesses dos reis aos das nações; e é um homem eleito pelo povo, que quiz encher com o seu _eu_ gigantesco o logar reservado á especie humana! foi n'elle que os amigos da liberdade momentaneamente puderam ver o representante da sua causa! Muitos disseram: «É o filho da Revolução. Sim, é, mas filho parricida: deveriam reconhecel-o?» Tudo isto é profundamente verdadeiro. A liberdade franceza ficára esmagada sob a purpura do cézar. Novo Archimedes, levantaria com a alavanca do seu poder a Europa inteira, se a Inglaterra consentisse em ser o ponto d'apoio. Era preciso vencer essa unica difficuldade. Serviu-se pois de todos os meios. Na _Historia Secreta do Gabinete de Napoleão Bonaparte_, por Lewis Goldsmith, está manifesto o espirito faccioso do escriptor inglez, mas ainda assim ha por vezes a eloquencia terrivel dos factos, e esses não os póde calar a historia. Bonaparte procurou triumphar por mil maneiras differentes, seduzindo com largas retribuições a lealdade dos jornalistas inglezes; mandando a Inglaterra espiões, entre os quaes algumas mulheres, como madame Bonneuil e madame Visconti; procurando sublevar a Irlanda, etc. Mas estava escripto no livro dos destinos que a Inglaterra fosse o sepulchro da grandeza de Bonaparte. Lord Wellington, perseguindo a aguia franceza desde Lisboa até Waterloo, similhante ao adversario de Macbeth, segundo a expressão de madame de Staël, foi o Josué da historia profana que ousou suster o curso do sol napoleonico em meio d'um longo dia de gloria prolongado em dez annos de lucta contra a Inglaterra. O cartel de desafio, tantas vezes arrojado á face da nação britannica, volveu-se na hora da decadencia em supplica dirigida ao principe regente d'aquelle paiz. Estas palavras de Napoleão, escriptas em Aix, depois de Waterloo, são claro testemunho da inconstancia das coisas terrenas: «Alteza real, a braços com as facções que dividem o meu paiz, e com a inimisade das grandes potencias da Europa, puz termo á minha carreira politica. Venho, como Themistocles, sentar-me junto ao lar do povo britannico; abrigo-me á protecção de suas leis, a qual solicito de vossa alteza real como o mais poderoso, o mais constante e o mais generoso dos meus inimigos. «NAPOLEÃO»[12] Não era porém sincera a humildade do cézar decaído. Themistocles pedia a hospitalidade d'Artaxerxes, mas não pensava em beber a morte no veneno. Os tropheos da Inglaterra, como os tropheus de Melciades, perturbavam o somno do hospede desterrado. No momento de embarcar em a nau ingleza, Napoleão repellia o general Becker que se abeirava d'elle para despedir-se, e dizia-lhe: --Retire-se general. Não se diga que um francez veiu entregar-se nas mãos do inimigo. Themistocles não esquecia a gloria de Melciades. Napoleão preferira morrer na morte lenta de todos os exilados, e agonisára durante cinco annos n'uma possessão ingleza. Ahi, na triste solidão da ilha de Santa Helena, devia recordar a cada momento a epopea da sua gloria e da sua desgraça, pensando ou dictando as suas memorias ao general Las Cazes. Então, pelo silencio da noite, apenas interrompido monotonamente pelo ruido do mar, refugiria de si mesmo ao ver passar deante dos olhos o bando lutuoso das viuvas e dos orphãos dos seus soldados, e ao adivinhar a pallida e lacrimosa figura da moribunda de Malmaison, a formosa Josephina Beauharnais. É sempre no mar que se esconde o sol; Santa Helena illuminou-se com os ultimos clarões da gloria de Bonaparte no duplo occaso da grandeza e da vida. Orgulho de soldado: ordenou que lhe fosse mortalha o capote que trazia na batalha de Marengo. Na sua vaidade de cézar até á morte se queria impôr. Mais longe do que desejavamos nos levaram as nossas divagações, esquecendo-nos de que o protagonista d'esta narrativa não era Bonaparte, imperador dos francezes, mas um obscuro soldado dos exercitos que o venceram. Tempo é de falarmos de Graça Strech, e de dizer que mais duas vezes fôra ferido no decurso da campanha peninsular: uma em Salamanca, e outra em Victoria com uma bala n'uma perna, do que lhe resultou ficar coxeando. Fôra gravissimo este ultimo ferimento. Por mais d'uma vez os soldados portuguezes suppozeram moribundo o seu valoroso companheiro. Ás exaltações febris, em que o ferido precipitava palavras que os seus camaradas não comprehendiam, succediam-se tão profundas prostrações, que era difficil averiguar se vivia ainda. D'uma das vezes ouviram-lhe dizer: --Não! não! Não vêdes a morte?... Não quero morrer... E Rosina?... Meu filho!... Estou aqui sósinho... Pietro tocava a sua harpa.. A muda chorava muito... Em Coimbra, n'aquella tarde... Sim, ella era innocente e pura... Pietro parecia triste de a vêr chorar... Que é?... São os francezes?... Que venham... Eu vingo a memoria de minha irmã, mas não quero morrer porque tenho um filho... --Um filho! exclamaram os dois soldados que piedosamente o soccorriam. O ferido continuou a delirar: --Tudo perdeu por mim... Como era grande o seu amor!... Pobresinha... Para traz, francez; quero ir vel-a. Estás ahi? Sempre ao pé de mim! Sim... bem me lembro... o ceguinho das Ardennas e o seu cão... Não ouviste chorar uma creança? É meu filho... --O nosso tenente treslê! exclamou um dos soldados. Graça Strech havia, pelos seus actos de valor, chegado áquelle posto, sendo condecorado com a Torre-Espada, com a cruz de S. Fernando d'Hespanha, e ao depois com a medalha da guerra peninsular. --Pena é se morre, acrescentou outro soldado, que não ha mais destemido militar que o nosso tenente! --Isso não! Animava-se com a polvora, que tambem não tem de haver no mundo militar mais triste... --E mais desgraçado! Não te lembras que já a irmã era muda? --Muda, sim. A este tempo havia caído Graça Strech em lethal modorra, e retiravam-se os dois soldados receiosos de que o tenente não resistisse ao ferimento. Todavia, como poderemos ver pelo capitulo seguinte, não tinha de ser aquella a ultima hora da attribulada existencia de Graça Strech. [12] _Historia de Napoleão Bonaparte_, pelo dr. Caetano Lopes de Moura, Vol. II. * * * * * XVI Uma festa no Porto ha cincoenta e nove annos Amanheceu festivo para a cidade do Porto o dia 15 d'agosto de 1814. Ainda de noite começaram a povoar-se as janellas, e a animar-se as ruas com enorme multidão. Ás sete horas da manhã já não havia casa que não estivesse adornada de ricas tapeçarias, pendentes dos balcões, que competiam com as galas das damas da cidade e da provincia debrusadas nos peitoris. Muitas das janellas estavam emmolduradas em grinaldas e arcos de flôres; outras ladeadas por bandeiras; ao longo das ruas corria um verdejante tapete de hervas aromaticas. Em muitos olhos brilhavam lagrimas d'alegre commoção, e em todos os labios desabrochavam sorrisos que eram espelho do jubilo da alma. Que motivo havia, pois, para tamanha festa na cidade cujos habitantes, no lento curso de cinco annos, estavam costumados ao luto e á saudade dos que pereceram na catastrophe da ponte, nas linhas de defeza, nos hospitaes de sangue e dos que posteriormente haviam succumbido na demorada campanha peninsular contra os francezes? Não eram estranhos os jubilos d'esse dia a tão funestos acontecimentos. Esperava-se a brigada de infantaria do Porto, composta dos regimentos 6 e 18, que victoriosa regressava de França depois de haver pelejado com egual denodo pela restauração d'estes reinos e de toda a peninsula. Os feitos da brigada de infantaria do Porto haviam soado, com assombro dos portuguezes, em Portugal inteiro, mórmente os que praticára na batalha da estrada de Bayona, em França, no dia 13 de dezembro do anno anterior. O senado da camara tinha-se reunido nos primeiros dias d'agosto para assentar nos festejos com que se devia celebrar o regresso das tropas. Resolveu que se levantassem arcos de triumpho, fazendo-se outras mais demonstrações de alegria, e encarregou da direcção dos preparativos o vereador decano José de Sousa e Mello. Tratou-se, pois, com febril afan, de executar o programma dos festejos. Construiu-se sobre a ponte do Poço das Patas a _Porta da cidade_[13], guarnecida com os castellos que lhe são proprios, e com as insignias concedidas por carta regia de 13 de maio de 1813; collocando-se na cimalha da porta a imagem de Nossa Senhora, que entregava a seu Divino Filho uma fita com a legenda _Civitas Virginis_. O gosto da pintura, imitando velha cantaria, muito deu na vista das pessoas que percorriam as ruas e estacionavam boqui-abertas em frente do arco. Tambem na cimalha foi embutida uma lamina de bronze com este distico: HINC GENTI HOMEN; HINC REGNO PLURIES SALUS; HINC EUROPAE, ORBI PRIMA LIBERTATIS LUX NOVISSIME AFFULSIT. No alto da rua nova de Santo Antonio levantou-se um arco de triumpho, de ordem composita, firmado em quatro columnas; resaltavam dos intercolumnios arnêzes, grévas, escudos, bandeiras e lanças entrelaçadas com listões de murta, ramos de oliveira, palmas e louros. Nos dois grandes pedestaes sobre que descançavam as columnas, lia-se: Sempre engrandeça a patria lusitana Vosso nome immortal, claro, e subido; E a Casa restaurada de Bragança Tenha em thesouro seu vossa lembrança. _Condest._ Esta Cidade forte, e populosa, Colonia antiga do poder Romano, Cavou a sepultura temerosa D'um gigante nas obras deshumano. _Affons. Afric._ Egualmente estavam enfloradas as cornijas, architraves e os frizos. Sobre o portico erguia-se o escudo das armas da cidade; por cima da balaustrada que corria ao longo do arco, havia quatro estatuas que figuravam: A SAUDADE Mostrava um livro aberto em que se lia: _1.º e 2.º de Setembro de 1809._ (Dias em que saíram do Porto as tropas.) No pedestal estava escripto: Deixando a Patria amada, e proprios lares Se mostraram nas armas singulares. _Cam._ A ALEGRIA Indicava em outro livro a data: _15 d'agosto de 1814._ (Dia da entrada das tropas.) Lia-se no pedestal: A Deus, ao Rei de quem a paga esperam Fazer maior serviço não puderam. _Malac._ A VICTORIA Desenrolava os annaes das acçoes em que a brigada entrára. Legenda do pedestal: Aonde falta o premio a quem milita Não habita a razão, nem gente habita. _Dest. d'Esp._ A ETERNIDADE Tinha, entre o symbolo da serpente enroscada, os nomes dos regimentos: _Infantaria 6 e 18._ No pedestal: Ajudados dos céos em mar e em terra, Tem fechadas na mão a paz, e a guerra. _Malac._ Sobreposta a uma longa inscripção latina, rematava o grupo do arco uma esphera armilar, sustentada por Genios que entornavam flôres. Nos intercolumnios posteriores correspondiam armas, espadas, tambores e alabardas unidos com feixes de louro, ramos de carvalho e oliveira. Nos grandes pedestaes havia gravadas epigraphes em verso, correspondendo os ornatos aos da frente e as estatuas da balaustrada estas quatro: O PORTO Offerecia com a mão direita uma corôa de louro e empunhava na esquerda um ramo de carvalho, tendo no pedestal: Orno os heroes que a patria eternizaram E por ella seu sangue derramaram. _Elp._ O AMOR DA PATRIA Offerecia com a direita um coração e apontava com a esquerda para o peito. No pedestal: Meu valor, minha nobre fortaleza Será gloria da gloria Portugueza. _Affons. Afric._ A PAZ Offertava com a mão direita o ramo de oliveira, e sustentava na esquerda um feixe de palmas. No pedestal: Que mais ditoso fim se lhe esperava Que este agora que merecido estava! _Affons. African._ A DOCILIDADE Arremessava com a mão esquerda um montão de cadeias, e com a direita segurava uma estreita fita. No pedestal: O Soberano Author da redondeza Da minha redempção deu-vos a empreza. _Bocag._ A tarja que, do outro lado, correspondia á inscripção lapidar, tinha figurados em relevo todos os petrechos de guerra, e os Genios, que d'esse lado sustentavam a esphera, desenrolavam uma fita em que estava escripta uma quadra do _Condestabre._[14] Ahi se agrupava impaciente a multidão, não só attrahida pela magnificencia do arco, senão tambem pelo variegado espectaculo das tropas da guarnição, que estavam postadas em alas até ao largo de Santo Eloy; bem como para ver pegar fogo á bateria collocada no topo da calçada dos Clerigos e destinada a salvar com vinte e um tiros de peça a passagem da brigada pelo arco. Na rua nova do Almada baralhavam-se dois formigueiros de povo: um que, receoso do tumulto na aproximação das tropas, demandava o Campo de Santo Ovidio; outro que, tendo visto o obelisco levantado no meio d'este campo, ia procurar logar, na hypothese de encontral-o, junto ao arco da rua nova de Santo Antonio. Era tambem sobremodo esplendoroso o obelisco n'aquelle campo. Rodeava o pedestal uma espaçosa varanda, adornada com ricas bandeiras portuguezas. Sobre o pedestal, e em frente da rua nova do Almada, estava o retrato do principe real, com a seguinte legenda escripta na almofada correspondente: Diga-o a Augusta Effigie contemplando: Foi este o forte, o justo, João, da Patria Pae, que a patria alçando Deu pasmo a naturaes, e a estranhos susto. _Elp._ Em frente da rua da Boa Vista, resaltava o retrato da rainha, lendo-se no pedestal: O louvor que se ganha pelos meios Da virtuosa vida, este só dura, Este de se perder não tem receios. _Bern._ E em frente da linha dos predios foi disposto o retrato da princeza, tendo no pedestal: Que affavel se olharia a tua face, Se o céo a nossos votos sempre amigo Na fria estatua espiritos soprasse! _Filint._ Do lado da Lapa, em frente do quartel, viam-se as armas do reino e da cidade, unidas por um listão, em que estava escripto o dia da restauração do governo nacional 18 DE JUNHO DE 1808 lendo-se no pedestal os seguintes versos de Horacio: HIC DIES VERE NOBIS FASTUS ATRAS EXIMIT CURAS. Todos os retratos foram collocados entre tropheus de bandeiras, e eram cingidos pelos emblemas da paz e do heroismo... O bom povo portuense, na cegueira do seu jubilo, não reparava que esses emblemas, á beira dos augustos retratos, deviam ser uma pungente ironia se a familia real tivesse olhos para os ver atraves de enorme distancia, e interposto o mar! No cimo do obelisco assentava a corôa real cingindo um manto de preciosa bordadura. Pouco depois das oito horas e meia, um unisono grito de alegria annunciou a chegada da brigada ao Alto do Senhor do Bomfim. Então começou o estrondear dos morteiros, o repicar dos sinos e o alarido dos vivas. Quando as tropas chegaram ao topo da rua nova de Santo Antonio, o enthusiasmo attingiu as raias do delirio, tamanho era o alvoroço da multidão que saudava com brados, com os lenços e os chapeus os dois regimentos portuenses. Durante todo o percurso até ao Campo de Santo Ovidio as flôres, as grinaldas e os ramos, que desciam das janellas, figuravam uma chuva iriada e espessa que ia orvalhar de petalas as fardetas dos soldados. Se nos fosse dado ouvir os breves dialogos que se perdiam no borborinho geral, de grupo a grupo iriamos recolhendo vozes, posto que variadas, todas concernentes á festa d'esse dia. N'uma das janellas da rua nova do Almada chalravam as visinhas da familia Strech, as quaes cinco annos antes tivemos occasião de conhecer em lances que verdadeiramente contrastavam com o espectaculo a que estamos assistindo. Passava o regimento de infantaria 18, e diziam ellas. --Vamos a ver se conhecemos o José Maria! --Vem tenente e condecorado! --Já sei. Mandou dizel-o o homem da Victorinha. --Deve vir muito mudado! --Será aquelle? --Aquelle, menina! Aquelle militar tem mais de vinte e cinco annos... --Vamos a ver se elle olha para a casa onde morou... --Vês? Não olha! Vae até a olhar para o chão... Era elle, effectivamente. No meio da rua dialogavam dois velhos: --Que pena não assistir o Trant! --Está doente. --Bem sei. --E elle que tanto trabalhou para esta recepção! No Campo de Santo Ovidio, antes da chegada das tropas: Um velho perguntando a um sujeito que estaciona junto d'elle: --Falta-me a vista! Quem são aquelles que estão nas janelas do quartel? --É o juiz e a camara. Olhe... Não vá mexer-se agora uma cabeça? --Vejo, mas não distingo. --Pois é o José de Sousa e Mello. --Acho que elle tem de falar pelo senado? --O programma dizia que sim. --Esperaremos. Sempre não ter vista! Perco metade! Chegaram as tropas ao Campo de Santo Ovidio e, depois de formar quadrado, fizeram continencia aos retratos da familia real, que, diga-se em abono da verdade, não responderam. Os originaes estavam no Brazil; não viram. Em seguida o brigadeiro Carlos Ashworth, commandante da brigada, levantou vivas ao principe regente e á rainha... Os retratos não se mexeram. Quando porém se ouviu um enthusiastico viva em honra da cidade do Porto, a cidade respondeu delirantemente pela bocca das tropas, do povo, e pelo acenar vertiginoso dos lenços nas janellas. Dada a voz de descançar armas, desceu o já nomeado vereador decano, José de Sousa e Mello, que pouco antes viramos a uma das janellas do quartel. O brigadeiro commandante, tendo-se apeiado, dirigiu-se para elle. Então o camarista Mello recitou uma allocução que terminava por estas palavras: «A camara roga a vossa excellencia queira fazer-lhe a honra, não só de jantar hoje n'este quartel, mas de convidar em seu nome toda a officialidade d'estes dois regimentos, mandando vossa excellencia que, além d'isto, se distribua pelos sargentos, cabos e soldados o dinheiro que ali se acha para lhes supprir o jantar d'hoje.» O brigadeiro Ashworth agradeceu amavelmente o convite, e asseverou que a officialidade acceitaria reconhecida. A immensa multidão que enchia o Campo de Santo Ovidio rompeu n'este lance em freneticos vivas e, ao som das bandas marciaes, recolheram as tropas a quarteis, sendo seguidas por grande numero de pessoas, parentes, amigos, e conhecidos, que esperavam lhes fosse permittido abraçar soldados e officiaes. Concedidas duas horas para desafogo de saudades, cinco annos retraídas, e gastas em ardentes expansões que as volveram momentos, foi o regimento de infantaria 18 ouvir missa á egreja da lapa e o regimento de infantaria 6 á egreja da Graça. Em ambos os templos houve _lausperenne_ e _Te-Deum_. Cumpridos os deveres do coração e da alma, começaram os da cortezia. O brigadeiro Ashworth foi cumprimentar o senado á sala da secretaria do quartel de Santo Ovidio, convenientemente preparada para a solemnidade da recepção, recolhendo-se depois ao quartel general da rua nova do Almada, onde, pelo meio dia, recebeu a visita dos vereadores. Cerca da uma hora da tarde, quando o brigadeiro já estava desembaraçado de felicitações officiaes, annunciou-se no quartel general o tenente Graça Strech. O brigadeiro acudiu a recebel-o com a maxima familiaridade, que era testemunho de maxima consideração. --Vem tambem cumprimentar-me? galhofou o brigadeiro.--Ora sente-se e fale. --Venho solicitar um grande obsequio, respondeu o tenente. Razão tinham as meninas da rua nova do Almada para não reconhecer n'elle o gentil e vigoroso José Maria dos dezeseis annos. Estava velho aos vinte e um, velho das geadas do infortunio que requeimam as flores da alma, e apagam nos olhos o brilho da mocidade. Tinha a magreza viril do soldado, mas cruzavam-se na sua physionomia umas sombras espessas que á primeira vista inculcavam que espirito e corpo haviam soffrido por egual. Como as palreiras meninas da janella disseram, figurava ter mais de vinte e cinco annos. Mas, voltando ao dialogo do tenente com o brigadeiro: --Que grande obsequio é esse? perguntou com affabilidade Carlos Ashworth. --Venho pedir dispensa de assistir hoje ao jantar. --Ah! meu amigo, isso não póde ser! O galardão é para todos; cumpre, pois, que cada um receba o quinhão que lhe cabe. --Eu creio que já em França tive a honra de lhe dizer, meu brigadeiro, que precisava descanço porque soffria... --E de me pedir a sua baixa, bem sei. D'essa vez não pude annuir ao pedido do meu bravo tenente, porque havia recebido instrucções particulares do senhor marechal marquez de Campo Maior para não licenciar soldados nem officiaes. Era justo que o Porto conhecesse todos os heroes d'esta brilhante campanha. O marechal tinha razão. Agora, meu bom amigo, tambem não posso ser-lhe agradavel como desejava. O tenente foi dos militares que mais se distinguiram desde Portugal a França. As ordens do dia falaram muita vez no seu nome. Conhecem-n'o. Seria uma affronta para o Porto que estivesse entre os seus muros, e recuzasse o talher que lhe offerece. Isso--disse o brigadeiro curvando-se amigavelmente para elle--são saudades, não quero saber de quem. Tambem eu as tenho... Vamos, assista ao jantar, que eu me empenharei por obter a sua baixa o mais breve possivel. E estendeu-lhe cordealmente a mão. O tenente Graça Strech saiu d'ali com os olhos no chão para não vêr a casa onde nascera, e atravessou as ruas da cidade absorto na triste concentração de quem está em terra onde não conhece ninguem. Ia entregue aos seus pensamentos, e assim andou ao acaso até que outro tenente do mesmo regimento lhe bateu no hombro e disse: --São quasi cinco horas e meia. Vamos lá ao jantar, homem. Está marcado para as seis. Effectivamente, á hora designada, reunida a officialidade no quartel de Santo Ovidio, passou com os vereadores á sala do banquete, cuja ornamentação era brilhante. A um e outro lado corriam arbustos, d'entre os quaes appareciam as armas de Portugal e Inglaterra. A um grupo de trophéus de guerra, com bandeiras d'uma e outra nação, que cobriam a cabeceira da mesa, fazia _pendant_ um nublado em que se enleiava a serpente, symbolo da eternidade, tendo escripto no centro--_Ashworth._--Guarneciam o nublado duas bandeiras com os nomes dos dois regimentos, atadas por uma fita em que se lia a data de maior gloria para a brigada do Porto--_13 de dezembro de 1813_. No fim do banquete, ao som da banda de musica de milicias que tocava á porta do quartel, levantaram-se enthusiasticos vivas ao principe regente, á familia real, aos monarchas alliados, aos governadores do reino, generaes do exercito combinado, ás tropas victoriosas, e a todas as mais entidades que iam lembrando e mereciam a homenagem d'um calis de vinho. Um só conviva correspondeu a esses ruidosos brindes com um movimento de labios: foi Graça Strech. E á noite, quando toda a cidade se illuminava festivamente, era profunda a escuridão na sua alma. [13] É fiel a descripção d'estes festejos; O auctor encontrou-a n'um opusculo da epoca. [14] Poema heroico de Francisco Rodrigues Lobo. * * * * * XVII Como madrugam as aves e os noivos! Obtida a baixa, Graça Strech poucos dias se demorou no Porto. Sentia-se asphyxiado na atmosphera em que respirára ao nascer. Punham-lhe medo as sombras; as ruas affiguravam-se-lhe tristes como avenidas de cemiterio. Duas vezes, alta noite, depois de dolorosissima lucta comsigo mesmo, estivera, encostado á parede fronteira á casa em que viveu os primeiros annos da vida, mergulhado em profunda meditação. A ultima vez fôra a ultima noite que passára no Porto. O céo era d'um azul setinoso. O branco luar de agosto estendia ao longo da rua a sua claridade immovel, e parecia desenhar nos muros contornos phantasticos. Reinava na cidade o silencio imperturbavel das noites profundas. Na janella da sala onde cinco annos antes, por noite tempestuosa, jaziam tres cadaveres, luzia um reflexo mortiço como de lamparina que não tardou a apagar-se. Lembrou-se Graça Strech de que devera ser egualmente pallido o reverbero da luz que lhe tremia na mão quando contemplava os corpos inanimados das trez senhoras. Transportou-se áquelle horrivel espectaculo. Viu tudo. A mãe, a irmã e a avó estavam a seus olhos como n'essa hora tremenda. Não obstante o seu grande empenho, de pergunta em pergunta não lográra saber onde repousavam. Queria ir procurar Rosina, de quem nada sabia tambem, mas desejava despedir-se da familia que ficava, antes de partir para o seio da familia que o esperava. Não pôde realisar o seu desejo. Registos parochiaes não os havia. N'aquella immensa hecatombe da invasão, tambem as sepulturas foram invadidas sem averiguar-se por quem. Tinha desesperado de conhecer a verdade, e, já que não podia despedir-se do tumulo da sua familia, fôra despedir-se do predio que ella habitára. De repente, n'uma casa proxima, perpassou uma luz. Fez reparo. Quem velaria ainda áquella hora? Deteve-se a examinar, e certificou se de que ali viviam, no anno de 1809, as duas visinhas que lhe falaram na bateria do Bomfim. Foi isto um como raio de tardia esperança. Recriminou-se pelo esquecimento de não as ter procurado logo que chegou. A desgraça havia-o desmemoriado. Atravessára o Porto como um viajante solitario atravessaria o Sahará--calado, pensativo, sem ver, por ter medo de olhar. Mas--os infelizes duvidam sempre--viveriam ainda ali? Tinha razão. Quem poderia dizer se ellas, na fuga, haveriam chegado ao seu destino, sido attingidas pelas balas ou cahido em poder dos francezes? A estas perguntas, que a si proprio fazia, só poderiam responder indagações. Pesava-lhe todavia o ter de se aproximar de pessoas cuja conversação iria aggravar a dôr do passado. Se elle soubesse onde repousavam as cinzas da sua familia, lá iria para falar-lhes, para contar-lhes os extraordinarios lances da sua vida, para dizer aos frios restos de sua irmã por que razão não levava comsigo o annel, sobre o qual jurára vingal-a. Augusta, de dentro do sepulchro, responderia com o perdão implorado. Mas o que elle não queria era deixar entrever a sua dôr de modo que lh'a avivassem piedosamente, porque a sociedade não dá o balsamo da compaixão sem primeiro rasgar as feridas que a inspiram. O desejo vehemente venceu, porém, a natural repugnancia. A breve trecho fez tenção de não desaproveitar as poucas horas que lhe restavam para colhêr esclarecimentos. Resolveu-se a esperar que amanhecesse e, como a luz parecesse brilhar com intensidade a través da janella, não se afastou. Mal começava a raiar a claridade da madrugada, apagou-se a luz, e cerca das cinco horas da manha viu Graça Strech abrir-se a porta. Sairam duas mulheres de mantilha, seguidas por uma criada que levava um açafate á cabeça. Fosse reminiscencia ou phantasia, Graça Strech cuidou reconhecer as duas visinhas: tia e sobrinha. Tomou alento e acercou-se. Uma das mulheres, a mais nova, voltou de repente a cabeça como se esperasse alguem. Havendo-se enganado, achegou-se da outra e soltou um--ai!--que mais denunciava despeito que medo. --Não se assuste vossa senhoria, sr.ª D. Izabel! apostrophou Graça Strech serenando a menina que se denunciava medrosa. Tia e sobrinha olharam fito no desconhecido, e foi a sobrinha quem primeiro exclamou: --Pois não se lembra, minha tia? Olhe bem para elle! --Quem é? --É o sr. José Maria! Eu bem dizia outro dia que era o tenente das barbas! --Póde lá ser o Josésinho! --Tem razão, minha senhora, replicou Graça Strech. Eu devo parecer-lhes uma sombra do que fui. Mas, sombra ou realidade, o certo é que me chamo José Maria da Graça Strech. --Ora uma coisa assim! Parece um velho! --E parece! acrescentou a menina. --Desgostos, minhas senhoras. --E muitos teve tão novo, sim, porque vêr... --Peço a vossa senhoria o obsequio de deixar em silencio essas tristes recordações. Uma só quero eu avivar, e por isso lhes causei esta surpresa. --Mas não nos ter procurado! exclamou a velha senhora. --Não tomem á conta d'ingratidão o que é simplesmente embrutecimento. Bem podia ser tambem que tivessem mudado de casa. --Ora! Quem tem bocca vae a Roma! exclamou a menina. Já nem queria saber novidades da sua antiga visinha! Pois saiba que me vou casar... --Felicito vossa senhoria. --Cala-te ahi, tagarella! acudiu D. Eulalia, affastando com o braço a sobrinha. Ha de estar admirado de nos vêr sahir ambas a esta hora. Pois não se admire. Combinamos com as Cerqueiras e as Brochados, tudo visitas da sua casa, sr. Strech,--e com o noivo da Izabelinha--juntarmo-nos na primeira missa que se diz no altar do Senhor dos Passos em S. João Novo e irmos depois almoçar todos á Fonte das Virtudes. Cumpre dizer que na primeira década do seculo XIX era ainda a Fonte das Virtudes o local destinado ás comezainas das familias burguezas do Porto. Ahi se reuniam em ruidosos convivios, deposta a mantilha, e irmanados novos e velhos pelo mesmo apetite e pela mesma alegria. O camartello das demolições municipaes tem--_avis rara!_--respeitado até hoje esta legendaria fonte que se compõe d'um alto frontispicio, ornado de pyramides, e firmado em bancos de pedra, que a rodeiam. Rebenta abundantemente a agua por duas enormes carrancas em conformidade com a esculptura de todos os chafarizes antigos. Ladeiam a fonte dois grandes tanques, durante todo o dia, ainda hoje, frequentados por lavadeiras. N'esses bons tempos, ficava a fonte extra muros; sahia-se para ella pela porta a que a fonte deu nome. Ao lado da porta, na eminencia da parte oriental, havia já então os chamados _Assentos_, actualmente Passeio das Virtudes. O padre Agostinho Rebello da Costa, na sua _Descripção topographica e historica da cidade do Porto_, impressa em 1789, escreve ácerca d'este local: «Em toda a cidade, não ha sitio nem mais ameno, nem mais agradavel; porque além da sua bella posição adornada de regulares edificios, gozam os olhos d'um só golpe, vista de cidade, de mar, rio, navios, montes, campinas, quintas e palacios. O grande paredão, que presentemente se está fazendo, para com elle se formar uma praça correspondente á belleza, e magnificencia d'esta agradavel situação, será um monumento eterno do patriotico zelo que Rodrigo Antonio de Abreu e Lima, cavalleiro professo na ordem de S. Thiago, inspector da marinha do Douro, administrador geral dos portos seccos das trez provincias do Norte, e actual juiz da alfandega, mostrou em obrigar o senado da camara a fazer esta obra interessantissima á regia utilidade, e recreio publico.» Dito o que as historias referem ácerca da Fonte das Virtudes, reatemos o dialogo. --Divirtam-se vossas senhorias, respondeu Graça Strech, que eu perguntarei sem desvios o que desejo saber. Não me foi possivel averiguar até hoje onde jaz a minha desventurosa familia. Vossas senhorias sabem? --Casualmente nos disse o sachristão de S. Martinho de Cedofeita que tinham ali sido enterradas, se bem que nos não pudesse designar as sepulturas, pela grande confusão de cadaveres que n'esses tristes dias houve. Isto disse D. Eulalia, acrescentando: --No dia seguinte o quartel general mandou ordem a todos os parochos para que, logo que anoitecesse, fôssem levantar os corpos dentro da circumscripção das suas freguezias. Não sabemos mais nada, sr. Strech. Nós recolhemos ao Porto depois que os francezes retiraram. Estivemos em Gondomar, em casa d'uns parentes nossos, porque tivemos a felicidade de encontrar livre o caminho. O senhor bem se ha de lembrar de que nos protegeu na bateria do Bomfim. Prouvera a Deus que a sua familia tivesse tido a mesma sorte! Muitas vezes lhes pedimos que nos acompanhassem. Não quizeram. Ainda tenho nos ouvidos as palavras da Augustinha: «Se meu pae e meu irmão morrerem, deixemo-nos morrer tambem, porque o viver sem elles seria peior que a morte.» Nunca mais me esqueceram! Vel-a assim fazia dó, a pobre menina! Graça Strech estava livido. Já não tinha forças para ouvir mais. --Muito obrigado, minhas senhoras, disse elle. Já sei o bastante. Felicito-me de as haver encontrado e faço votos pela ventura da sr.ª D. Izabel. --Agradeço do coração, replicou a menina. O sr. Strech ha de dar-me a honra de assistir ao meu casamento... --Da melhor vontade assistiria, minha senhora, se não tivesse de partir hoje mesmo para Italia. --Partir?! D. Eulalia repetiu:--Para Italia! E exclamou virando-se para a sobrinha: --O casamento anda-te com essa cabeça á roda! Se não sou eu lembrar-me agora por essa palavra, não dirias nada ao sr. Strech d'aquella carta d'Italia! --Uma carta, apostrophou elle, sobremodo perturbado. --É verdade! affirmou a menina com pesar de se haver esquecido. D. Eulalia contou: --Ha quatro annos, foi em... --Junho, acrescentou Izabel. --É verdade, foi em junho, proseguiu D. Eulalia; andou o carteiro por esta rua, para cima e para baixo, a perguntar pela familia Strech. Todos lhe diziam que essa desgraçada familia estava no cemiterio. Até que a final o carteiro e alguns visinhos bateram á nossa porta, porque sabiam das nossas relações com a sua familia. A carta, que trazia o timbre de Italia, dizia: _Sr. José Maria da Graça Strech, soldado portuguez_ (pela orthographia conhecia-se que a pessoa que escrevia era estrangeira, disse em parentesis D. Eulalia) _natural do Porto;--Portugal._ Graça Strech ouvia offegante. D. Eulalia proseguiu: --Do senhor ninguem sabia nada, mas como a carta ficaria naturalmente perdida no correio, encarregamo-nos de mandal-a ao acaso para onde estivesse o exercito. Era o unico meio de lhe chegar á mão, caso o senhor estivesse vivo. Nós nada sabiamos. Perguntamos o que haviamos de fazer. Disseram-nos que a mandassemos para Almeida, que era onde Wellingtão--ella pronunciou assim,--tinha estabelecido o quartel general. Para lá a mandamos, pensando que fariamos bem. Visto isso o senhor não a recebeu? --Não recebi, minha senhora, respondeu Graça Strech com difficuldade. Agradeço, porém, a vossas senhorias o cuidado que tiveram e, para não as demorar por mais tempo, recebo as suas ordens... --Tambem--atalhou D. Eulalia, vão sendo horas da missa do Senhor dos Passos. Vamos lá. Se o sr. Strech precisar d'alguma coisa, não tem senão mandar-nos e dizer onde está, para que não se torne a perder qualquer carta. Despediram-se. Ellas seguiram pela rua nova do Almada a baixo, e elle caminhou em direcção ao Campo de Santo Ovidio. A menina ia perguntando ingenuamente á tia: --Não seria mau agouro encontrarmos o Strech na occasião em que eu ía a pensar no meu casamento? --O que tu quizeres! respondeu D. Eulalia. Reza um _Credo_ ao Senhor dos Passos e deixa-te lá d'agouros. Deus é que sabe o que ha de acontecer. Graça Strech caminhava machinalmente, engolphado em seus pensamentos. A carta era de Rosina. Conjecturava elle que já devia ser mãe quando a escrevia. Que diria ella? Coisas tristes, de certo. Os infelizes vivem das desgraças que sonham e que soffrem. Por muitas vezes escrevera elle para Napoles. Nunca obtivera resposta. Aquelle horrivel silencio durava já havia quatro annos. Nem ella nem Pietro escreveram mais! O que haveria acontecido? Que ancia que elle tinha de chegar a Italia, e, ao mesmo passo, que receios! Não o esperariam lá novas dôres, maiores soffrimentos? Que envelhecida mocidade aquella! Foi andando, andando, até que chegou ao cemiterio de Cedofeita. Quando viu negrejar cruzes e louzas por entre as verduras dos canteiros, estremeceu de subito. O pensamento da morte vinha interromper os seus dolorosos pensamentos. A sua familia estava ali, mas onde? Rosina e seu filho onde estariam tambem, lá tão longe? O cemiterio era solitario áquella hora, se não falarmos das aves que faziam alegre matinada nas arvores. Só os noivos e as aves saudam jubilosos a manhã. Por isso madrugára a menina da rua nova do Almada em competencia com os passarinhos do cemiterio de Cedofeita. Graça Strech atravessou por entre as campas, confiado em que o coração adivinharia o sitio em que repousava a sua familia. Andou, percorreu as ruas todas, e parou á beira d'uns comoros que não tinham cruz nem lapide. Devia ser ali. As campas dos que não deixam ninguem no mundo conservam-se abandonadas. Quando muito, porque os despojos mortaes são da natureza, veste-as a natureza de relva e flôres silvestres. Sobre um dos comoros floresciam hervagens, que pendiam á terra umas singelas boninas brancas. Seria a homenagem da natureza á innocencia de sua irmã? Não sabia. O silencio da morte guarda todos os segredos. Ajoelhou. As avesinhas das arvores funebres continuavam a cantar, a cantar!... Áquella hora, n'aquelle sitio, cria-se em Deus. A eloquencia das campas! Como tudo aquillo fala suavemente d'além-tumulo! No ruido das festas a ideia da morte é sempre um pungente contraste. Mas não sei que amena tristeza dulcifica a certeza do repouso eterno, nos cemiterios, mórmente se é manhã, e as aves chilriam, e estremecem nas hervagens as gotas d'orvalho, e um raio de sol nascente doira uma cruz! Graça Strech sentiu-se subitamente soccorrido por essa triste suavidade que a vista dos tumulos infiltra aos desgraçados. Longo tempo esteve ali, ajoelhado, conversando com os trez comoros os seus segredos de cinco annos. No que estava florescido, curvou-se como se quizesse falar para dentro. Conjecturava que seria o d'Augusta. N'essa hypothese lhe contou as suas desventuras, os seus amores, os sacrificios de Rosina, o destino que dera ao annel, a afflictiva incerteza em que estava, a ancia que tinha de beijar seu filho, de encontrar Rosina... Juntou lagrimas de saudade a palavras de perdão, queixumes de animo attribulado a hymnos de confiança em Deus... Não lhe havia dado tempo a sua trabalhada e desventurosa mocidade para erguer o espirito acima das coisas terrenas das preoccupações humanas. Pela primeira vez subiu até onde os fulgores da divindade enchugam as lagrimas da oração. Muito acima do mundo deve ser, porque já se não ouve então o tumultuar da humanidade, e porque já ahi chovem os balsamos da resignação sobre a alma angustiada. Ninguem diria que estava ali o soldado, o leão dos combates. Nada ali falava de vingança, nem mesmo a supposta sepultura d'Augusta. Nada se sabia do mundo, d'aquella porta de ferro a dentro. Todavia alguma coisa julgou ouvir a alma de Graça Strech. Eram palavras intradusiveis que as hervagens ciciavam, brandamente agitadas pela viração matutina. Sem comprehender as palavras, entrou-lhe ao espirito o pensamento d'ellas. Era a divina esperança do _post tenebras spero lucem_, de Job, e ao mesmo tempo o _Non moriar, sed vivam, et narrabo opera Domini_, do salterio. Graça Strech interpretou assim esses fugitivos murmurios que soavam sobre a campa da sua irmã. Trouxe do cemiterio a certeza de que depois das trevas da vida veria luzir o sol da felicidade perpetua, e de que não morreria sem ter tempo de narrar as obras do Senhor. Isto equivalia á resignada esperança de não succumbir á sua desgraça sem saber o destino de Rosina e seu filho. Adquirira ali a certeza de que a alma d'Augusta abençoara do ceu a criança cuja mãe possuia o seu annel. Levantou-se. Arrancou as parietarias que marinhavam pelo muro proximo, e esparziu-as sobre os trez comoros. --Se ahi estaes, minhas doces amigas--pensou elle--recebei o primeiro e unico testemunho de saudade que ainda vos manda o mundo esquecido de vós. Pedi por mim, e pela familia que me resta na terra, se Deus m'a tiver conservado. São tambem vossos pelo coração. Adeus, abençoadas sejaes no céu pelo conforto que me destes. E saíu do cemiterio, caminho do rio Douro, onde estava fundeado o navio que n'essa tarde devia partir para um porto d'Italia. A essa hora, na Fonte das Virtudes, havia expansiva alegria. Um velho da familia Cerqueira dizia a um menino da familia Brochado: --Vá, seu estudante, traduza-me lá a inscripção da fonte: _Fons scalet, illustri virtutum_, etc. _Rompe aqui esta fonte..._ Vá, diga... --Pudera romper acolá, estando aqui o chafariz! observou grosseira e acertadamente o menino. D. Izabel offerecia ao seu noivo um copinho da agua da fonte, panacea para muitas molestias, entre as quaes as inflammações dos olhos. Tinha bons sentimentos: não queria marido cego. * * * * * XVIII A Lenda d'Ashaverus Comprehende-se com que anciosa impaciencia viajaria Graça Strech. A Italia era para elle o unico raio de sol que lhe doirava o horisonte fechado em torno do navio. Ia ver Rosina e seu filho; agradecer a Pietro a protecção que provavelmente a uma e outro tinha dispensado, porque Rosina devia ser mãe havia quatro annos. A carta perdida era decerto a boa nova da maternidade... Mas, logo o animo, vesado a tristes phantasias, descontava esta esperança com vagos receios. Todavia a visita ao cemiterio de Cedofeita insinuava-lhe na alma o doce calor da fé. Queria chegar a Italia, desenganar-se. Levava ao berço do filho a tranquillidade aprendida á beira do tumulo da irmã. A Italia! a Italia! a terra promettida do Moyses errante! Quando appareceu em frente do navio uma nuvem pardacenta, e a voz de _Terra_! alvoroçou a tripulação, o coração de Graça Strech doidejou desde a alegria expansiva da criança até á timidez receiosa da mulher. A Italia! O formoso sol da Italia a enxugar as lagrimas de tão longa ausencia! A alma de Rosina Regnau a animar no desconforto, a premiar na alegria! A alma e a voz! A liberdade do coração e da palavra! Um lar modesto, muito modesto, pobre até, o filho a esvoaçar d'um lado para outro, a chilriar, os cabellos loiros a brincarem-lhe em derredor da cabeça; Rosina a viver arroubada entre os sorrisos do pae e do filho; n'uma palavra, a felicidade que não escurece quando chega a noite; á porta, de cabellos alvejantes, tranquillo, sentado ao sol, Pietro, o _canta-storie_, a concertar as cordas da sua harpa, e a entoar, com a sua voz já cançada, mas ainda sonora, a _Capuana_; fóra, o céu d'Italia, o azul suavissimo, o sorriso da natureza, a eterna primavera meridional! De repente mudava-se o quadro. Via uma cruz tosca, n'um cemiterio de Pescadores pendurado ao mar. Rosina, demudada e lutuosa, chorando ao pé da cruz. Pietro, chorando ao pé de Rosina, com a harpa silenciosa poisada diante de si. E seu filho morto, sem o haver conhecido, sem o ter beijado sequer! Outras vezes sonhava com a lividez da fome nas faces de Rosina, da criança, e de Pietro! A vivandeira havia levado recursos. Era a sua ração de dois annos, a migalha do canario. Havia no 18 d'infantaria um quartel-mestre usurario. Graça Strech fizera com elle uma transacção. O quartel-mestre ficava recebendo durante dois annos o _prét_ por inteiro, e adiantára-lhe o _prét_ d'um anno. Essa quantia, administrada com economia, devia durar os dois annos. Se a campanha acabasse antes d'esse praso, o soldado devia indemnisar o quartel-mestre, que tinha na sua mão um documento. Mas haviam-se passado os dois annos, e outros dois. Graça Strech escrevera muitas vezes para Napoles, como já dissémos, para obter certeza do paradeiro de Rosina, e poder mandar mais dinheiro. De nenhum vez obtivera resposta. Haveria acontecido alguma desgraça? Mas tambem quem conhecia em Napoles Rosina Regnau? Bem se podiam lembrar de ir saber ao correio. Pietro andava por fóra com a sua harpa; Rosina estava cuidando do filho: não se lembravam. As mealhas que Pietro recolhia, e generosamente repartia provavelmente, abastavam a alimentação dos trez. Em Coimbra, disséra Rosina a Graça Strech, quando elle lhe pedia que não soffresse privações sem o avisar: --Se se acabar o dinheiro, eu, que posso ter voz em Italia, irei cantando de rua em rua. Não receies por mim. Atravessei pura o exercito francez; mãe, atravessarei destemida o povo italiano. A honra da vivandeira é um baluarte invencivel; não deixa profanar a bandeira da sua lealdade. E logo, antevendo a triste solidão da ausencia, rompeu em afflictivo chôro. Este era o natural de Rosina: ora vivandeira, ora mulher. Logo em principio o dissémos. Apesar da cega confiança que Graça Strech devia ao amor de Rosina, não era a sua alma, quanto mais se avisinhava da Italia, estranha ao ciume. No paiz dos amores, o ciume, _la gelosia_, respira-se com o ar. Ciumes de que lhe ouvissem a dulcissima voz, se tivesse sido obrigada a acompanhar com o canto os harpejos de Pietro; ciumes de que a applaudissem, de que a vissem, de que a conhecessem. E, pensava elle, quem ficaria olhando pela criança emquanto a mãe andasse por fóra? Alguma mulher estranha, que não a acariciaria se chorasse, que não a agasalharia quando tivesse frio, que lhe não responderia meigamente quando perguntasse pela mãe... Chegado que fôsse a Italia, procuraria, noite e dia, sem descanço, sem tregua, e encontral-os-ia, e diria a Rosina: «Fica tu ao pé de nosso filho, que eu vou trabalhar», e a Pietro: «Continua a ser o guarda dos dois, que eu velarei pela tua velhice.» E alternava risos com lagrimas, e agora falava e logo emmudecia, com as mãos firmadas no bordo da amurada e os olhos cravados na nuvem do horisonte, que se ia aclarando cada vez mais, conhecendo-se já, sobre o azul do céo, os contornos irregulares da cidade. O capitão esteve-o medindo com o olhar ao lado d'um passageiro que durante a viagem tinha conversado algumas vezes com Strech. --Nunca vi tamanha commoção! disse o capitão ao passageiro. Receio d'esta alegria em homem costumado aos alvoroços de guerra. --Elle vinha ancioso de chegar a Italia, retrucou o passageiro. O mais que me disse foi que, tendo feito a campanha, vinha, doente e cançado, procurar a Italia uma irmã, de quem, pela invasão de Portugal! fôra obrigado a separar-se. --Muito a deve estimar então! ponderou o maritimo. E, aproximando-se de Graça Strech, disse-lhe affavelmente: --O sr. Strech morria-se por vêr Italia. Ahi a tem agora. --É verdade, respondeu exaltado Graça Strech. É verdade... A ancia de chegar... a incerteza... tudo isto... Eu não estava costumado a estas sensações... Por que emfim tudo hoje depende para mim de Italia... Ó senhor capitão, quanto tempo gastaremos ainda?... O capitão, sem responder, achegou-se do outro passageiro e segredou-lhe: --Eu não lhe dizia? Nunca vi tamanha commocção! Queira Deus que não vá louco... Ah! o capitão entendia do mar; do coração, não. Chamava loucura áquillo! A desvairada oscillação da alma que pende entre um longo passado de trevas e a unica esperança que lhe entreluz no céo do porvir! É louco o naufrago que, baldeado entre os vagalhões do oceano infrene, se abraça com a prancha que lhe é dado alcançar, e que ou morrerá cuspido contra os fraguedos ou fluctuará por mercê da Providencia até que surja a véla branca, que é a bandeira da paz nas luctas com o mar? É louco o caminheiro que se transviou ao anoitecer e sorri de alegria á estrella da manhã, ainda que tenha de retrocecer para continuar jornada? É louco o doente que se felicita de haver acordado d'um pesadello horrivel, esquecendo-se de que, d'ahi a horas talvez, sobrevirá o sombrio pesadello de que não se acorda mais--a morte? O coração tem as tempestades e as calmarias do mar, é certo, os murmurios e os segredos das aguas, mas o fundo do coração não está ainda tão estudado como o fundo do oceano. A sondagem mente muitas vezes. Quem já logrou medir a profundeza de certas dôres? Tinha soado a hora do desengano ou da felicidade. Graça Strech estava finalmente em Italia. Começou desde logo a procurar, a procurar. Correu todo o reino de Napoles--Napoleão puzera reis em toda a parte--a pedir informações d'um velho tocador de harpa, que se chamava Pietro, d'uma rapariga franceza chamada Rosina Regnau e d'uma creança, que devia ter quatro annos, e era filha da rapariga franceza. Ninguem respondia. Quem em Napoles, o paiz da musica, havia d'estremar um _sonatóre di arpa_? Acudia afflictivamente Graça Strech a fazer o retrato do velho Pietro para auxiliar a memoria dos interrogados. Harpistas velhos havia tantos, uns que viviam em Napoles, outros que passavam por lá, que por fim de contas a população lembrava-se de todos e não se lembrava de nenhum. A declaração de chamar-se Pietro nada aproveitava. Ninguem se importa com o nome dos menestreis das ruas, mórmente quando todos os musicos ambulantes parece chamarem-se Pietros. Rapariga franceza ninguem dizia tel-a visto, e depois acrescentavam que talvez lá houvesse estado, sem fazerem reparo n'ella, porque os francezes sempre foram tão vulgares em Italia como os italianos em França, por isso que a natureza pôz entre as duas nações a ponte granitica dos Alpes. Graça Strech percorreu vertiginosamente todas as estalagens, todos os albergues, recolheu informações particulares e officiaes, e não soube nada. Disseram-lhe que talvez o harpista houvesse passado, como é costume d'elles, a outras cidades d'Italia, por isso que a concorrencia os afugenta de Napoles. Acceitou o alvitre. Visitou em seguida o reino da Etruria, procurou sem descançar, como um cão que perdeu o faro de seu dono. Uma tarde, em Piombino um albergueiro pareceu recordar-se d'um harpista velho que ali pernoitára havia um anno com uma criança que lhe chamava avô. Vira só o velho e a criança. De mulher franceza que os acompanhasse, não tinha reminiscencia. Fizera reparo nos dois, pelo contraste. O velho passára a noite á lareira com a criança adormecida nos braços, afagando-lhe os cabellos loiros, cobertos pelos seus cabellos brancos, sem dizer uma palavra. Comeu pouco e bebera menos. Pela manhã saíra com a harpa e a criança. Aqui está o que o albergueiro de Piombino dissera, acrescentando unicamente: Quando elle sahia, perguntei-lhe que rumo levava, porque realmente o harpista me fez pena. O velho respondeu: --Vamos correr esse reino d'Italia, á mercê de Deus. Bem vê que é preciso trabalhar: somos duas boccas, e só temos dois braços--são os meus que já pouco podem. A historia do velho e da criança fez profunda impressão no animo attribulado de Graça Strech. Perdeu-se em conjecturas. Seria Pietro? Haveria morrido Rosina? O estalajadeiro não soube dizer-lhe o nome do harpista. Sobretudo, a ideia da morte de Rosina enlouqueceu-o de dôr. Seria possivel que ella morresse sem o ver, sem o ouvir, sem lhe fallar, ella, que tinha tanta coragem, que devia resistir energicamente á morte, porque a morte era a separação eterna? Aquella criança seria realmente seu filho, e viveria no mundo sem pae nem mãe, apenas confiado á protecção do pobre harpista napolitano, cuja velhice e trabalhos em breve o prostrariam, se era que ainda vivia a essa hora? E se elle já tivesse morrido, que seria da criança na infantil inconsciencia dos seus quatro annos, que tantos devia ter a ser seu filho? Morreria enregelada no caminho, morreria de fome entre duas arvores, no meio da serra, ou então haver-lhe-ia estalado o pequeno coração depois de haver estado a gritar para que acudissem ao avô, que caíra ao chão e ficára esmagado pela harpa, sem falar mais, sem responder ao seu afflictivo chamar. O albergueiro começou a notar extraordinaria agitação na physionomia do hospede. Viu encovarem-se-lhes os olhos, e estremecerem-lhe os musculos das faces cadavericas pela magreza e pela lividez. Em breve as contracções nervosas se estenderam a todo o corpo. O caminheiro começou a tremer, a tremer. Trouxeram roupa, cobriram-n'o. Pediram-lhe que se deitasse; recusou. Esteve assim longo tempo, tremendo, frio como o gelo. Depois, como o peso da roupa fosse muito, começou a córar e a suar. Dizia palavras que ninguem entendia. Aprumou-se de subito, sacudiu a roupa. Foi direito á sua maleta, desafivelou-a e tirou de dentro... a guitarra. Começou a tangel-a febrilmente. A gente da pousada entreolhava-se com pasmo. E cada vez as notas se precipitavam com maior rapidez, até que, inesperadamente, a musica foi afrouxando, parecendo unicamente suspirar. Viram chorar o desconhecido, circumvagar um olhar alheiado, e arrancar da sua guitarra apenas gemidos e suspiros dolorosos. Tornaram a dizer-lhe que era melhor descançar. Recusou com pertinacia. --Peço que me deixem ficar aqui, disse elle pausadamente para que o comprehendessem. Não queriam consentir; elle insistiu. Ouviram ainda por algum tempo suspirar a guitarra, que depois se calou. Foram espreital-o: viram-n'o com a cabeça poisada sobre ella. Estava assim, mas não dormia; d'instante a instante viam-n'o estremecer. Ao romper da manhã saíu. Mal se podia aguentar a pé. Pediram-lhe que ficasse para se restabelecer; agradeceu e partiu. Continuou, posto que debilitado, a sua peregrinação indefessa. --Eu já não viveria, dizia elle ás vezes, se não tivesse ido ao cemiterio de Cedofeita buscar esta sombra de fé que me ampara ainda! E lá ia, descançando uma hora, caminhando duas. Esteve em Turim. Perguntou, investigou, não soube nada. Como para crear alento, que lhe permittisse seguir jornada, sentava-se nas praças publicas a tocar na sua guitarra. O povo fazia-lhe circulo. Elle não levantava os olhos emquanto estava tocando, excepto se ouvia falar alguma criança. Algumas vezes lhe chamavam louco, porque lhe lançavam dinheiro ao regaço, e elle não agradecia. Era o idiotismo da desgraça. Estava pobre, gastára quanto levára comsigo nos primeiros tempos da peregrinação. Se não fosse a guitarra, morreria de fome. Pouco lhe importava a vida sem Rosina e seu filho. Se não se matava, era porque tinha ainda um resto de fé que o amparava. Foi a Milão. A mesma canceira: perguntar, sempre perguntar. Inquiria todos os harpistas: nenhum lhe soube dar noticias do velho Pietro. --Em Italia não estão! dizia elle. Tenho a certeza, não ha recanto que eu não tenha batido. Atravessou a Suissa sem melhor resultado. Uma noite sonhou com as Ardennas: era a patria de Rosina. Lembrou-se de que viveriam lá na supposição de que elle, se fosse vivo, logo atinaria, por impulso do coração, com o esconderijo que haviam procurado. Passou a França: foi direito ás Ardennas. Quasi se sentiu morrer diante d'aquelle paiz de florestas. Ali havia nascido Rosina. Como ella o devia amar para se esquecer do seu formoso ninho! Consultou todas as arvores, bateu a todas as portas. De Rosina Regnau ninguem se lembrava; Pietro, o velho _sonatóre_, ninguem o vira. Graça Strech esteve ali muito tempo: havia já tanto que saíra de Portugal! Teve tentaçoes de se deixar morrer nas Ardennas. Queria respirar ao morrer o ar que Rosina respirára ao nascer. Chegou a pedir a Deus que lhe désse por tumulo o berço d'ella. Mas, emquanto orava parecia fortalecer-se a sua fé. Resignou-se a partir. Recomeçou a caminhar. Ia no fim o anno de 1816. Disseram-lhe no caminho que no inverno se reuniam em Pariz todos os musicos ambulantes. Para lá foi com a sua guitarra. Effectivamente o enxame dos _virtuosi_ enchia os cafés, as praças e as ruas. Á porta dos theatros havia todas as noites uma nuvem d'elles. A este tempo reinava em França Luiz XVIII. Napoleão, não podendo resistir á colligação das potencias alliadas, abdicou o imperio em Fontainebleau, retirando á ilha d'Elba. O congresso de Vienna havia regulado os negocios da Europa; sem embargo, Napoleão sonhava ainda com voltar a França. Em março de 1815 desembarcou em Cannes e entrou em Pariz. Pôde ainda vencer em Charleroy e Fleurus, mas a hora solemne de Waterloo bateu no relogio que marca a existencia de vencedores e vencidos, e Themistocles teve de pedir hospitalidade a Artaxerxes. Graça Strech ia caminhando e ouvindo as vozes do povo. Quando soube do resultado de Waterloo, disse de si para si: --A Providencia é justa. A minha familia não precisava da minha vingança, porque a Providencia se encarregou de punir o assassinio de todas as mulheres, de todos os velhos e de todas as crianças. Ora a justiça da Providencia não deixará de me aclarar o mysterio que eu procuro desvendar ha tanto tempo. Deus sabe se tenho forças para mais! Pouco antes de chegar a Pariz viu passar uma carruagem seguida por uma ordenança. Perguntou quem era. Responderam-lhe: --É o duque de Richelieu, ministro de Luiz XVIII. Elle contestou serenamente: --Se fosse no tempo de Napoleão, ia um esquadrão de cavallaria atraz da carruagem. Napoleão mandava exercitos atraz de toda a gente. Dizia isto como um homem que se entre-lembra vagamente das coisas do mundo. Passou a carruagem do duque de Richelieu, e elle logo se esqueceu da França para se recordar da missão em que ia consumindo baldadamente a vida. --Vamos com Deus, e com a pobre guitarra! E seguiu para Pariz. * * * * * XIX A terra da promissão Graça Strech chegou a Pariz no inverno de 1816. Estavam n'essa occasião agglomeradas na capital da França as andorinhas errantes da musica das ruas, que todos os annos saem do vasto ninho da Italia, a percorrer a Europa inteira. De todos os _virtuosi_ que n'essa occasião poisavam em Pariz, apenas cinco ou seis seriam francezes, e um só era portuguez, Graça Strech. A guitarra, melancolicamente tangida por elle, cuja dolorosa physionomia não era menos melancolica do que a sua guitarra, despertava geral attenção. Acrescia a circumstancia de que esse instrumento não era dos mais conhecidos na orchestra dos musicos ambulantes. Tudo isso concorreu para o éxito. Graça Strech tinha sombrios alheamentos emquanto estava tocando. Caíam-lhe em desalinho os cabellos a esconder a fronte pallida e cadaverica. Era uma bella cabeça d'artista em que muitos pintores fizeram reparo. Um estudante d'esculptura chegou a convidal-o para modelar-lhe o busto. Graça Strech respondeu: --Agradeço a sua amabilidade, senhor. Mas eu sinto-me de tal modo cançado, que não póde ser longa a minha vida. O senhor é muito moço ainda; póde esperar. Se eu morrer em Pariz, aproveite a minha mascara. A imprevista sobranceria d'esta resposta causou sensação. Passou de bocca em bocca, e os homens d'espirito começaram a olhar com certo interesse respeitoso para o guitarrista estrangeiro. Uma noite, no café _Evezard_, á esquina do Palais National, estavam sobremodo animadas as mesas quando Graça Strech entrou. Encostou-se á ombreira da porta e começou tangendo a guitarra. Como não pedia esmola, interrompia-se a miudo para receber os óbolos que lhe davam os _habitués_ que entravam e saíam. Na primeira mesa á entrada estavam oito francezes, todos rapazes mais ou menos artistas, que se calaram a ouvir attentamente o guitarrista, tanto mais que já o conheciam de nome. Como fixassem a vista em Graça Strech, e falassem visivelmente a seu respeito, procurou elle ouvir, dando-se o maximo disfarce, tudo quanto diziam. --É assombroso! exclamava um, cuja pallidez denunciava uma cabeça febrilmente enthusiasta. --Depois da pequena da harpa que esteve o anno passado em Pariz com o velho das barbas brancas, ainda não vi maior prodigio! acrescentou um cuja physionomia denunciava um caracter franco e compassivo. --Que pequena era essa? perguntou no grupo um _commis-voyageur_. --Era uma pequenita que parecia um passarinho encostado a uma harpa. Acompanhava-a um velho de cabellos brancos, a quem chamava avô, e que lhe transportava a harpa. Impressionava o contraste. Seria difficil dizer qual d'elles poderia melhor com a harpa, se o avô ou a neta. Elle tinha tanto de velho como ella de pequenina. E depois que tristeza dava o vêl-a vestidinha de preto! Perguntava-se-lhe por quem andava de luto:--Por meu pae e por minha mãe--respondia ella com certa vivacidade triste, que enternecia a lagrimas. Tu copiaste o grupo, pois não copiaste, ó Maubert? --Copiei, respondeu o pallido rapaz que primeiro falava, e que parecia absorto na contemplação do guitarrista. --Sabes então mais alguma coisa a respeito da pequena e do velho? --Pouco mais sei. O avô parecia empenhado em não contar nada. Nem o encanto do mysterio lhes faltava, a elles, áquelle soberbo inverno coberto de neves e áquella infantil primavera que parecia vegetar no gelo do avô! Quando lhes perguntei os nomes para intitular os bustos, respondeu-me o velho:--Queira pôr--_Pietro, sonatóre di arpa; Augusta, sonatrice, lá piccola, nipotina mia._--Fiquei triste com a mysteriosa singelesa da resposta. Previ um romance. Que querem? A doida da minha phantasia! Apertei com o velho, fiz-lhe promessas para que me contasse a sua. Não consegui nada. Lá partiram ambos para Inglaterra. --Olha para o guitarrista! exclamou o de mais compassiva physionomia. Olharam todos. Graça Strech estava sendo inconscientemente o alvo de todas as attenções. Havia-lhe descaido o braço; subitamente a guitarra emmudecera; os cabellos do guitarrista, longos e annelados, acompanhavam, pendidos a um lado, a inclinação da fronte, e os olhos brilhavam através dos cabellos com anciosa vivacidade. Era inutil dissimular: Graça Strech estava ouvindo o que diziam na mesa proxima. --Escuta o que nós dizemos! ponderou o que estivera contando a historia do velho e da criança. --É verdade! --Não se póde duvidar! --Lá começa a dedilhar de novo... Deu tino de que fisemos reparo. Toca _pianissimo_ para ouvir o mais que dissermos. --É certo! _Che dolcemente!_ --Que terá elle comnosco? --Talvez não seja comnosco; talvez seja com o velho e a creança, apostrophou o _habitué_-artista. --Ora, essa cabeça! Tu encontras romances em toda a parte. --Espera! tornou observando o esculptor. Ia jurar que os olhos d'este homem são os da pequenita! Que semelhança! --Oh! oh! continua o romance! Esse molde de novellas é velho, Maubert! D'esta vez o pae, que era julgado morto, não volta da Terra Santa. Corre atraz da filha, que ao partir para o combate entregára ao avô. Tem-n'a procurado e não sabe onde pára. És tu, Maubert, que vaes desfazer o mysterio. A Providencia encarregou-te de dizeres: _Pára!_ ao Ashaverus do nosso seculo! Oh! oh! E os outros gargalharam em côro: --Oh! oh! --És tu que vaes mostrar ao Moyses da guitarra a Terra da Promissão! disse um. --Que elle nos está ouvindo é certo, porque todos repararam! exclamou o de mais dôce semblante. E talvez seja algum desgraçado. Este mundo dos _virtuosi_ das ruas tem tantos mysterios! Atravessam Paris no inverno e a gente ouve-lhes a musica sem lhes vêr a alma. Alguns d'elles parecem conversar com a harpa e com o violino: é porque teem que lhes dizer. Decerto que não são alegrias. Póde ser alegre quem atravessa os Alpes a pé, e dorme para ahi em qualquer canto, e vae correr a Europa inteira unicamente fiado na agilidade dos seus dedos e na obediencia das cordas? Creio que não. Parecem despreoccupados, parecem, porque emfim elles teem das aves alguma coisa: as azas pelo menos. Rouba o filho a um passarinho, que elle, com o coração despedaçado, tambem esvoaça em redor do ninho vasio. Pensam vocês que nem ao menos lhes ha de doêr a ausencia? _La rimembránza_, meus amigos, _la rimembránza_ chora muita vez nas harpas d'elles. Oh! eu creio-o! E nós, apesar de nos deliciarem os ouvidos, olhamol-os indifferentemente. No inverno dizemos: _Cá estão!_ Quando chega a primavera exclamamos: _Lá fôram!_ --Tu pendes mais para o sentimentalismo, Guillibaud. Maubert prefere a phantasia e o maravilhoso. --Olha! lá está ouvindo o guitarrista outra vez! --É notavel! Que curiosidade! De repente interromperam-se os commentarios. Graça Strech aproximou-se de Maubert pedindo-lhe o obsequio de lhe dispensar dois minutos d'attenção em particular. Havia no seu olhar, nos gestos, na voz, tão claros indicios de grande agitação, que Maubert immediatamente se levantou. Os outros, enquanto os dois sahiam a porta do botequim, ficáram dizendo: --Este Maubert é um bibliotheca viva d'aventuras. --Deixa lá, observára condoídamente Guillibaud. A julgar pelo aspecto do guitarrista, o caso afigura-se-me grave d'esta vez. Talvez seja um romance triste... --Se tu não havias de vir com o teu sentimentalismo! --És melancholico como uma lagrima! --Que não seja de vinho... --Tens razão: as lagrimas de vinho alegram. --São ellas de certo que vos dão essa continada alegria! disse com enfado Guillibaud. O leitor está porém impaciente de seguir Graça Strech e Maubert. Vamos-lhes pois na piugada. Mal sahiram a porta, o guitarrista dirigiu-se immediatamente ao esculptor em correcto francez: --Peço-lhe vivamente perdão, senhor, de o haver privado da companhia dos seus amigos, mas o que o senhor estava dizendo era tão extraordinario para mim... --Ouvia-nos então? perguntou Maubert. --Ouvi tudo, e incommodei-o unicamente para lhe pedir, não que me mostre a Terra da Promissão, como jovialmente disseram os seus amigos, mas, quasi o mesmo para mim, que me mostre os bustos do avô e da neta... --Oh! isso é muito facil. Estamos a dois passos do meu _atelier_. Vamos lá--respondeu o enthusiasta Maubert. Foram. Graça Strech ia concentrado, e cada vez estugava mais o passo; Maubert observava-o de esguelha e começava a achar summamente extraordinario aquelle homem, de quem se principiava a falar. Era perto o _atelier_. Entraram. Graça Strech precedia Maubert, tamanha era a sua impaciencia. --Aqui estão! disse o esculptor. Graça Strech, relanceando aos dois bustos um olhar rapido e incisivo, vibrou um grito, ao mesmo tempo doloroso e alegre, e, apontando para o do velho, exclamou: --É elle, é Pietro! Depois, demorando os olhos no busto da pequenita, deixou escapar outro grito que parecia o magoado estalar de todas as cordas da alma: --É minha filha! Não póde deixar de ser! Ca está: _Augusta, sonatrice, la piccola!_ Chama-se Augusta! Comprehendo tudo. Rosina morreu, sim, já me não póde restar duvida alguma. É horrivel! Morreu! E pôde morrer sem esperar por mim! Pobresinha! Poz á filha o nome de minha irmã. Era uma surpreza que me queria fazer, e fez, realmente, mas que triste surpreza, sr. Maubert, que desgraça esta! Olhe, aquella pequena é minha filha. O senhor é artista... Veja que bonito perfil aquelle... Por isso foi que o senhor a modelou, pois não foi? Sim, é muito bonita! Disse então que andava vestidinha de preto? É pela mãe! Pobre Rosina! Oh! eu não creio ainda que tu morresses, tu, que tinhas tanta coragem, tanta! Onde está minha filha, senhor? Aquella não fala! Eu quero ver minha filha, abraçal-a, beijal-a. Deixe-me beijal-a, sim, deixe-me enganar. Bem póde ser que tambem a morte já m'a tenha levado, e por isso deixe saciar-se de beijos este pobre coração ha tanto tempo opprimido. Olhe que gentil cabeça! Que semelhança com minha irmã! É estar a vel-a, quando brincavamos ambos e faziamos endoidecer o capelão das Chãs. Sim, o senhor já me restituiu minha filha, mas Rosina, a minha vida, o meu amor, que é d'ella, por que não a modelou o senhor para que eu a pudesse beijar agora! E, com o busto da pequenita apertado contra o coração, pareceu oscillar. Maubert, que escutava commovido da enormidade d'aquella dôr, e perplexo, porque não possuia todo o segredo d'esse homem, acudiu a amparal-o. --Ah! não me roube a sua obra! exclamou Graça Strech apertando o busto cada vez mais contra o coração, que pulsava vertiginosamente. Não m'a roube. Dou-lhe tudo, a minha guitarra, a minha vida, mas não me arranque a felicidade que me deu. Isto não é um pedaço de gesso inanimado, que o senhor modelou. Não, isto é minha filha, a minha querida filha, a Terra Prometida... E, fazendo esforço para tirar a voz que lhe faltava, acrescentou: --Disse o senhor que o avô e a neta foram para Inglaterra, pois não disse? Bem, vou atras d'elles. Por França não tornaram a passar, ninguem mais os viu? De Inglaterra só poderiam saír embarcados. Não é provavel. Estamos no inverno. É a estação dos musicos. Hei de encontrál-os lá. Hei de ver minha filha, beijal-a doidamente, percebe? doidamente, e perguntar-lhe onde é a sepultura de sua mãe. Quero ir lá com ella, e com Pietro. Parece-me que ainda posso dar vida a Rosina! Pois ella ha de deixar-se ficar fria e calada, sabendo que eu estou ali, apenas separado por uma camada de terra?! Está morta? Que me importa a mim! Isso não póde ser obstaculo para o meu amor, para este longo amor de sete annos, que não póde acabar assim, que deve durar mais do que a vida... Maubert começava a receiar pelo guitarrista, que ficou sopitado em demorada prostração. Piedosamente o soccorreu, e quando Graça Strech tornou em si viu o esculptor curvado carinhosamente para elle. --Muito obrigado! disse com voz flebil Strech. Muito obrigado! Ah! aqui está o busto de minha filha!... --Que é seu, observou Maubert. --Sim, o senhor, que é bom, que é nobre, que tem coração e talento, não podia negar esta felicidade a um pae! --Agora, tornou Maubert, é partir para Londres. Para isso basta atravessar o canal. Está prevenido? A minha bolsa d'artista tem ainda para estas larguezas. Está á sua disposição o preciso para tão pequena viagem. --Muito obrigado, senhor, e acceito. Aqui está o que eu tenho de meu: deu-m'o, como o senhor viu, quem entrava e sahia do _Evezard_. Eu não pedia, porque não era mendigo: era simplesmente um pae que ha dois annos procurava por toda a parte a sua familia. Conheciam a minha pobreza: davam-me alguma coisa, eu acceitava, porque em verdade era pobre. Agora não, agora não sou, porque finalmente achei o rasto de minha filha! Não encontro Rosina, porque a sepultura m'a roubou, mas ainda me parece que a hei de resuscitar, porque o meu amor, este amor que ainda me conserva a vida, deve realisar todos os prodigios. O mais que se passou entre o guitarrista e Maubert não nos importa saber. Graça Strech embarcou ao outro dia para Londres. O que se passaria na sua alma é facil de adivinhar: era o que ahi ha de mais pungente doer da saudade á mistura com o mais avido phrenesi da anciedade; era o supplicio atroz da alma que lucta com o irreparavel no ante-gosto d'uma felicidade orvalhada de lagrimas. É preciso que um coração esteja muito retemperado pelo soffrimento para luctar, sem succumbir, com tão violentos contrastes, tão oppostos extremos, tão desencadeadas tormentas. Elle resistiu, porque havia sete annos que soffria o mais que podem soffrer homens. Chegou a Londres. Era, como sabemos, o inverno. Fluctuava pelas ruas e pelos _cafés_ uma colonia de _virtuosi_. Gastou um dia, gastou dois, sem encontrar quem procurava. Ao terceiro, viu muita gente reunida n'uma praça. Estavam ouvindo uma harpa. Logo um presentimento lhe alvoroçou o coração. Parou de subito, antes de romper o circulo, porque uma dôr, cruciante como o queimar de um ferro em braza, lhe atravessára o peito. Receiou morrer. Fez porém um esforço, que devia tel-o prostrado a não ser ainda aquella a hora de avistar a Terra da Promissão. Apartou febrilmente o grupo, relanceou por sobre as cabeças um olhar d'aguia, e com um só grito fez emmudecer a harpa e affastar a gente que rodeiava a harpista. Um homem de meia edade, que não era decerto Pietro segurava a harpa, tangida por uma pequenita vestidinha de preto. Era o mesmo perfil do busto;--assim devera ser Augusta aos seis annos. Faltava, para completar o grupo de Maubert, o original do outro busto: faltava apenas Pietro. Graça Strech arrebatou nos braços a criança. Beijou-a, abraçou-a, acariciou-a delirantemente, soffregamente, doidamente. E por entre beijos e abraços repetia, sorrindo e chorando: --Sou teu pae! Eu sou teu pae! Acredita-me, Augusta; bem sei que te chamas Augusta. A criança tremia-lhe nos braços como um passarinho que se sente comprimido, e procurava furtar as faces aos beijos ardentes do desconhecido. --Pietro, filha, onde está Pietro? A pequenita, ouvindo pronunciar este nome, olhou attenta no guitarrista, e respondeu com os olhos subitamente marejados de lagrimas, dando uma suave expressão de magua ao dialecto napolitano; --Morreu! Elle morreu. Tu é que talvez sejas meu pae, porque dizia o avô... --Que dizia o avô, filha? perguntou anciosamente Graça Strech. --Que meu pae tinha dado a minha mãe, _mia madre poverella_, um presente para mim, e que se elle não tivesse morrido, como nós julgavamos, tu me conhecerias por esse presente. Se sabes o que é, então és meu pae; dá-me muitos beijos que eu consinto. É o annel, filha! Ah! é o annel que eu dei a tua mãe. Isso mesmo! disse a criança sorrindo d'alegria. Elle aqui está... E tirou do seio uma saquinha, pendente do pescoço, onde guardava o annel. Trago-o aqui. Sou ainda muito pequinina, _padre mio_, para o trazer no dedo. O povo, que tinha seguido todo este episodio, olhou-se admirado quando viu a pequenita tirar do seio a saquinha, e mostrar o annel. Era que para o publico, como para Rosina, aquelle annel tinha mysterio. Graça Strech de novo colheu a filha nos braços, de novo a beijou com os olhos razos de lagrimas, mas a pequenita, soltando-se com vivacidade, disse para o homem que segurava a harpa: Vamos lá, Giovanni, vamos com meu pae, que não morreu! * * * * * XX O manuscripto de Pietro Pietro morrera um anno antes, em Londres, logo depois que de Pariz passára a Inglaterra. Acamou, no miseravel albergue em que se hospedára com a pequenita, victima d'uma febre aguda. Ás primeiras horas de leito conhecera que era chegado o termo da sua vida. Antes que estivesse impossibilitado de raciocinar e falar, mandou chamar Giovanni, um antigo conhecido, em quem depositava confiança e, não sem difficuldade, porque já a cabeça começava a pesar para a sepultura e o cerebro a escurentar-se com as trevas da morte, lhe disse: --Giovanni, tu és um homem de bem e, diga-se a verdade, inimigo de trabalhar. Tens vivido sempre em companhia de musicos que te dão alguma coisa porque tu lhes carregas com as harpas e os realejos. Ora, meu amigo, é chegada a occasião de fazermos um negocio e, nota bem, o ultimo. --Ora deixa-te de tolices! --Não são tolices, Giovanni; bem vês que já me custa falar. Não posso perder tempo. Portanto, ouve-me com attenção. A minha hora chegou e pouco me importaria morrer se não tivesse uma neta... --Uma neta! Tu! Só te conheci um filho, que morreu pequeno em Portugal. --Isso é um segredo que te não deve importar. Essa criança que ahi está fóra é mais minha neta do que se fosse filha de meu filho. Comprehendes que morrendo tu, vae ella, coitadinha! ficar para ahi desamparada. Isso é justamente o que eu não quero. Sabes que a pequena tem talento... --Isso tem! respondeu Giovanni. --Aprendeu tudo quanto eu lhe ensinei--acrescentou pausadamente Pietro--e já sabe mais do que aprendeu. Deus nunca desampara os desgraçados! O talento foi o patrimonio com que Deus dotou a minha neta. Mas olha que é um capital cujo rendimento chegava bem para nós dois! A pequenita bastava-lhe roçar com as azas pelas cordas: logo sahia musica. Ora a nossa sociedade artistica vae dissolver-se. Da morte não se appella. Um dos socios, o gerente, retira-se para a... eternidade. Fica o outro, que por ser de menor edade não tem ainda credito na praça. É preciso que tu, homem de bem, substituas o socio que se retira, e entres apenas com a tua edade e com a tua experiencia. A tua missão cifra-se em acompanhar a avesinha, e defendel-a das ciladas do mundo. Nota, porém, que te corre obrigação de não traíres a confiança que um amigo moribundo deposita em ti. Jura-me pela tua honra que serás exacto como tens sido até hoje... --Juro, disse com firmeza e commoção Giovanni. --Muito bem. Logo que eu morra, olha tu pela pequena, que fica sendo agora tua neta. Mas ouve ainda, Giovanni, mas ouve-me bem. Eu supponho e e com boas razões, que o pae d'essa infeliz menina, morreu. Tudo me leva a crêl-o. Se algum dia, porém, e Deus o permitta! o pae d'ella apparecer, dize-lhe que te nomeie o objecto pelo qual elle ha de reconhecer a filha: é um annel que ella traz n'uma saquinha ao pescoço. De mim não quero que lhe digas nada, porque n'este papel, que lhe entregarás, caso o pae da menina não tenha morrido, deixo explicado o mais que tinha a dizer. Se elle não surgir do tumulo a reclamar a filha, o que é provavel, entrega esse papel a Augusta, para que ella, em edade de o entender, saiba com que amor eu a amei. Dá tempo ao tempo. Espera que ella cresça e pense. Tens entendido, Giovanni? Agora dá-me a tua mão. Palavra de homem de bem? --Palavra e juramento, disse Giovanni com profunda commoção, e muitas lagrimas. E acrescentou: --Vae descançado, Pietro. Tua neta, pois que assim lhe chamas, não ha de soffrer mal algum. Eu tenho sido até hoje escravo da minha fidelidade. Tenho andado pelo mundo atraz d'esses musicos, que afinal me não pagam. Nasci preguiçoso, é verdade, Deus me perdôe, mas tu bem sabes que me não pegou ainda ponta de vicio. Nem bebo nem jógo. Fumar, fumo eu, mas isso é apenas um mau habito. Tendo pão e tabaco, estou contente. Isso, é de sobra, dar-m'o-ha a harpa de tua neta. Agradeço a esmola, e toda a vida serei agradecido a ti e a ella. O dinheiro que juntar eu lh'o guardarei. Comprará uns vestidinhos, concertará a harpa, comprará outra melhor... --Isso não! isso nunca! interrompeu Pietro com febril exaltação. A minha harpa nunca ella a deixará; já lh'o disse, e ella prometteu-m'o. --Desculpa, Pietro, eu não pensei o que disse. Emfim comprará o que quizer, porque todo o capital será d'ella; eu serei unicamente depositario. --Bem! disse Pietro prostrado de commoção. Estamos tratados para a vida e para a morte. Agora sae por algum tempo, e manda-me cá a pequena. Saíu Giovanni e entrou Augusta. O doente esteve olhando para ella mui attentamente, e exclamou: --Que linda és! A pequetita respondeu com beijos. --Olha lá, Augusta,--tornou Pietro--não te esqueças da recommendação do annel. Oh! que se tu encontrasses ainda teu pae! E d'ahi póde ser. Deus é misericordioso. Se elle escapou á guerra, bem póde acontecer que ainda algum dia o encontres. Deus o queira, Augusta, anjo, filha. És tão pequenina, tão pequenina, que cada vez me pareces mais um passarinho! Emfim eu não havia de ser eterno; muito me tem deixado Deus viver para teu amparo. Que linda, filha, que linda! Olha... chama Giovanni, e vae ali para fóra um momento... Tu és muito minha amiga, pois não és?... Vae filha, vae, e chama Giovanni. Saiu a pequenita a cumprir a ordem. Giovanni abeirou-se do catre e recebeu da mão do doente os papeis em que lhe falára. --Não posso mais! disse Pietro. Pesa-me tanto a cabeça! Sabe Deus com que difficuldade tenho feito tudo isto! E--acrescentou placidamente--para o enterro já sabes que basta avisar o consul. Nós em toda a parte somos italianos. Giovanni tregeitou, e o doente deixou caír contra o travesseiro o craneo que parecia de chumbo. Nos trez dias que se seguiram não mais tornou a falar. Entrou em estado comatoso. Teve sempre os olhos fechados até que a morte lh'os sellou para a eternidade. O consulado italiano fez o enterro: só os summamente grandes e os summamente pequenos são enterrados á custa das nações. Quem soube, na colonia fluctuante dos musicos das ruas, que havia de menos uma andorinha viajeira? Os outros não souberam, porque, tendo por missão voar de terra em terra, não lhes sobra tempo para se demorarem á beira d'um tumulo. Soube-o o consul, e sentiam-n'o Augusta e Giovanni; ninguem mais. A pequenita chorou muito, muito. Giovanni confortou-a como pôde. O sol, que é a alegria de todos os passarinhos, fez o mais. Começaram ambos a sua peregrinação. A pequenita, pobresinha! só tocava n'esses dias de pungente saudade musicas tão tristes como a alma d'ella. Ainda assim ouviam-n'a, achavam-lhe graça, e davam-lhe dinheiro. O publico, em geral, reputa felizes os que convidam á felicidade. E, em geral, engana-se sempre. Augusta sonhava quasi todas as noites com o avô. Pela manhã dizia a Giovanni: --Esta noite vi-o. Lá me tornou a repetir que não perdesse o annel. Outras vezes: --O avô, Giovanni, disse-me esta noite que te recommendasse que fosses sempre muito meu amigo. As recommendações de Pietro, que a pequenina ouvia em sonhos, não eram precisas. Nem Augusta perdia o annel mysterioso, nem Giovanni se esquecia das promessas que tinha feito. Elle guardava a sua palavra; ella o seu annel. E com esses dois thesouros se propunham correr mundo. Giovanni pertencia ao numero dos homens-machinas que só obedecem ao impulso do coração; ora o coração era bom, e as obras boas sahiam, portanto. Nascera, como o cão de quinta, para a ociosidade, mas, como o cão de quinta, era fiel. Durante o anno que acompanhou Augusta nunca deslisou um passo do caminho do dever. Ella ia adiante com o seu annel no seio; elle seguia-a com a harpa ás costas, avisando-a sempre da aproximação dos trens e dos cavalleiros. Ao cabo d'um anno surgiu do tumulo Graça Strech, para nos servirmos da phrase de Pietro. Feito o reconhecimento, Giovanni entregou-lhe a filha e os papeis que recebera, e diziam assim: MANUSCRIPTO DE PIETRO Estas são as minhas memorias. Dito-as para serem lidas por Augusta ou seu pae, se é que não morreu, para esclarecimento d'algum d'elles, ou de ambos, se Deus o permittir. Felizmente aprendi a escrever, e fui nos primeiros annos da minha vida empregado n'um escriptorio. Depois morreu-me meu pae: faltou-me o leme. Desnorteei. Troquei a penna pela harpa. Ha muitos annos que o meu abecedario é o _do-ré-mi-fá-sol-lá-si_. Ainda assim, apesar do muito que se soffre n'esta vida errante, agradeço a Deus o inspirar-me que fosse musico, porque tive occasião de fazer bem. Finou-se de saudades em viagem a _signora_ Rosina. Era um soffrer que fazia horror! Não havia palavras que a consolassem, musica que pudesse distraíl-a! Viajou chorando e suspirando; os olhos nunca ninguem lh'os viu. Quasi não comeu. Acceitava, depois de muitas instancias, uma agua de caldo apenas. Diziamos-lhe que era um crime deixar-se morrer; então bebia. Chegámos a Napoles, e logo a _signora_ me pediu que tratasse de arranjar albergue, porque se sentia muito doente. Em verdade estava muito falta de forças. Quiz escrever para Portugal, e não pôde. Mal pegava na penna descórava muito, e entrava de sentir-se agoniada. Eu, vendo que semelhantes esforços a estavam debilitando cada vez mais, pedia-lhe que deixasse isso para quando estivesse melhor. Comecei a dizer-lhe que não tinha geito metter-se em casa. Depois de repetidas instancias, annuiu em ir commigo ao anoitecer até á beira mar. Umas vezes voltava melhor; outras vinha mais doente. No primeiro caso, principiava a escrever. Escrevia algumas linhas, e já estava fatigada. No segundo, passava a noite em convulsões, e era preciso não a desamparar até pela manhã, que só então cahia em somno. Eu ia porém instando sempre pelos passeios. Ah! mas ver a _signora_ um mez depois que chegámos a Napoles! Que differença! Emagreceu, descórou, fez-se velha. Não parecia a mesma! A primeira carta que recebemos de Portugal causou-lhe tamanha impressão, que eu julguei que morresse. Tive realmente medo. Chorou, riu, delirou. A carta não dizia porém que o _signor_ Strech tivesse recebido as nossas. A _signora_ inquietou-se muito com isto. --Está lá sem saber nada de nós! disse-me ella. E a mim que me custa tanto escrever! --Escrevo eu. --Nada, não quero, respondeu a _signora_. Hei de eu escrever sempre; bem póde ser que alguma carta lhe chegue ás mãos... --É que o exercito é muito grande, e depois anda d'um lado para outro... disse eu prevenindo novas commoções. Os soffrimentos da _signora_ havel-a-iam prostrado antes de ser mãe, se não fosse essa carta que recebeu de Portugal. Beijava-a, relia-a, apertava-a contra o coração; só n'aquillo achava allivio. Desde principios de maio de 1810 que a hora da maternidade se annunciava para breve. Quiz--porque ella tinha o presentimento da morte--escrever uma longa carta, que devia ter chegado a Portugal em junho, e que com certeza não foi recebida. Essa carta, cujo conteudo ignoro, era de certo uma despedida, o ultimo adeus da _signora_. Deixou o papel ainda sobre a mesa, e caíu contra o leito em grandes gritos. Acudi-lhe, e disse-lhe que não a tornaria a deixar escrever mais. --Não me é precisa a sua licença, meu bom Pietro! respondeu ella. Eu estremeci. Logo que serenou, fechei a carta, sem lhe poisar a vista, e fui eu mesmo deital-a ao correio. No dia 22 de maio, pela manhã, chamei a locandeira, que era piedosa, porque a _signora_ me disse que n'esse dia seria mãe. Soffreu doze horas. A final deu á luz uma menina. Quiz ver a filha; mostrei-lh'a. --Que se chame Argusta, Pietro, que se chame Augusta, recommendou a _signora_. Certifiquei-a de que esse seria o nome de sua filha. Cobriu o rosto com o lençol, e começou a chorar e a gemer. Por mais que lhe dissessemos, a locandeira e eu, que procurasse socegar, não o conseguimos. De noite delirou. Falava do _signor_, Strech, d'Augusta, de Coimbra, do mar, do annel. A febre era muita. Estáva córada como se as faces fossem duas rosas: Eu tinha a menina nos braços; a locandeira amparava a _signora_. Pela manhã adormeceu. Acordou muito fria. Estava peior. Chamou-se o doutor, que receitou, e disse que a _signora_ corria grande perigo. Apesar dos remedios, não aqueceu em todo o dia. Ao fim da tarde, quando eu estava acalentando a menina para adormecel-a, a _signora_ deu de repente um grito, sentou-se na cama, disse que não via, tornou a dar outro grito, e cahiu morta. N'essa occasião chorava a criança como se adivinhasse que estava orphã. Fiz um enterro decente á _signora_ Rosina, adquiri, com o auxilio do consul, o direito de a sepultar n'uma campa perpetua e mandei-lhe pôr um singelo epitaphio que diz: «Aqui jaz Rosina Regnau.» Escrevi para Portugal a dar parte do triste acontecimento, que me custou talvez mais--Deus me perdôe!--do que a morte de meu filho. Não recebi resposta, nem tornei a receber mais cartas. Quiz partir para Portugal. Informei-me. A guerra continuava cada vez mais renhida. Que havia eu de ir fazer a Portugal com uma harpa ás costas e uma criança ao collo? Demorei-me ainda um anno em Napoles para dar tempo a crear-se a menina. Foi uma ama dos arrabaldes quem a amamentou. Eu ia todos os dias vêl-a, e saber da ama se era preciso alguma coisa. Durante esse tempo não recebi carta do _signor_ Strech. Não obstante, continuei escrevendo sempre. Sabia-se que continuava a guerra. Não tinha certeza de que as minhas cartas fossem entregues, e de que o _signor_ vivesse ainda. Maguava-me tão longo silencio, porque emfim eu cada vez ia envelhecendo mais. Ao cabo d'um anno peguei na menina e na harpa e comecei a minha peregrinação, porque estava exhausto de recursos. Em Napoles ha sempre muitos musicos, e a concorrencia prejudicava-me. Alguns eram velhos, e estavam tão pobres como eu. Além d'isso, fallecera a dona do albergue, repentinamente, e quando eu sahia entravam os crédores. Tive pena d'aquella boa mulher que tão caridosamente tratára da _signora_ Rosina. Como ella sabia do nosso segredo, habituei-me a consideral-a pessoa de familia. Nunca essa honrada creatura revelára a ninguem as máguas da mãe d'Augusta. Eu tinha a certeza. O segredo descia com ella á sepultura. Senti os olhos rasos de lagrimas quando a vi sahir para o cemiterio e me encontrei com os crédores que entravam. Era preciso ganhar vida, porque eramos duas pessoas a alimentar, melhor direi pessoa e meia. Fui andando e tocando harpa. As noites, dormia-as com a menina ao collo. Se eu era avô! Ás vezes apertava commigo a tristeza. Lembro-me de que uma noite em Piombino, n'um albergue onde me recolhi, me deixei entristecer tanto, contemplando a menina adormecida nos meus braços, lembrando-me ao mesmo tempo da _signora_ e do _signor_, ambos mortos para ella, que, francamente o confesso, n'essa noite envelheci dez annos. Todavia, logo que nascia o sol, nascia com elle o grande lenitivo dos desgraçados: o trabalho. Ia tocando na minha harpa, e vivia. Uns davam-me esmola por me ouvirem; outros por me vêr com a menina: muita vez o conheci. Corri a Italia toda: vi bem a minha patria. Entretanto a menina ia crescendo. Que espertesa que revelou desde os primeiros annos! O seu gosto era estar a bulir nas cordas da harpa. E o caso é que ás vezes, acaso ou não, combinava sons. Lembrei-me de que a menina podia aprender musica. Seria o seu dote. Bem precisava ella d'algum. Tinha nascido tão pobre, que me considerava seu avô, a mim, um musico ambulante! Com oito mezes d'aprendizagem era um gosto ouvil-a! Parecia impossivel! Dispensei-me de tocar, porque as mãosinhas da menina eram um prodigio! Bastavam ellas para fazer a colheita que era sempre abundante. Comprei roupa á menina; trazia-a uma princesasinha. Verdade é que sempre de luto. Todo o meu fim era obrigal-a a perguntar-me porque vestia de preto. Queria gravar-lhe bem na memoria os soffrimentos de seus paes, que extraordinarios foram em verdade. E se fores tu, Augusta, que leias este papel, e não teu pae, como muitas vezes acredito que serás, mais uma vez te peço que conserves sempre viva em teu coração a memoria d'esses dois grandes desgraçados, que mais o foram por tua causa. Mas que talento o d'essa criança! Ainda outro dia, em Pariz, um rapaz esculptor pediu o meu consentimento para nos modelar a ambos em gesso. Não foi por minha causa, não. Eu não tenho orgulho senão de ser avô da menina... Avô! Sim, pelo coração não posso deixar de o ser. O verdadeiro avô não lhe quereria mais. Mas o tal esculptor encantou-se com a menina. Quem se não ha de encantar? Modelou-a. Foi a primeira estatua levantada em honra da pequenina harpista. A mim modelou-me de certo pelo contraste. Deu-lhe graça vêr a cabeça d'um velho ao pé do rosto d'uma criança. E que formoso rosto, _sangue di Christo_! Como eu gostei de ver a menina assim retratada! Mal diria eu que um mez depois havia de soar a hora de me separar d'ella. Não me custa deixar o mundo, onde se soffre tanto; custa-me deixal-a a ella, porque a amo muito. Não quero, porém, ser ingrato para com Deus. Grande mercê me fez em me não levar quando a menina era mais pequenina. Egora sinto-me sem forças. Ha muitos dias que estou doente. Não tenho querido acamar para não entristecer a menina. Mas hoje, a tal ponto receio por mim, que vou mandar chamar o meu velho conhecido Giovanni para lhe fazer as minhas ultimas disposições. Dizem todas respeito á menina. Giovanni ficará depositario d'ella, que é o meu thesouro. Giovanni é preguiçoso, mas um verdadeiro homem de bem. Muitas vezes tive occasião de o reconhecer. Eu não podia fazer melhor eleição. A minha harpa, que lego á menina, ganhará para os dois, e Giovanni será incapaz de guardar para si o que pertencer á menina. Morro n'esta certeza. Giovanni é mais fiel do que um cão. Estão, pois, saldadas as minhas contas com o mundo, com a _signora_ e o _signor_. Fiz quanto pude, e me mandava o coração. Da justica de Deus não me arreceio. Deus bem vê a minha alma. Torno a repetir que escrevo este documento para que Augusta melhor comprehenda um dia como eu a amei, ou para que seu pae, se Deus o resuscitar, porque em verdade o supponho morto, veja que não trahi a confiança que depositou n'um desconhecido. Se eu morresse em Napoles, quereria ser enterrado ao pé da _signora_. Não fui o seu guarda em vida? Continuaria a sel-o depois de morto. Como de certo morro aqui, porque a minha doença é grave, apenas tenho a pedir que rezem um _Padre Nosso_ pela minha alma, quando abrirem este documento, que fica em poder de Giovanni. _Fechado em Londres aos 25 de novembro de 1815:_ PIETRO. * * * * * XXI Epilogo Estava escripto no livro dos destinos que não houvesse felicidade completa para Graça Strech. Encontrava o coração da filha como verdejante oasis no immenso deserto que a morte de Rosina lhe estendia deante dos olhos. Era uma gota d'agua para matar uma sêde d'amor que o requeimou durante sete annos; um só raio de sol que se coava á negridão em que o destino o havia enclausurado; uma unica flôr a alegrar o caminho interposto á velhice precoce e á valla que o esperava algures. Entre lagrimas e sorrisos apertou contra o coração esphacelado o corpinho flexivel da criança; tinha a filha nos braços e sentia nas mãos a friagem da terra que cobria a campa da mãe; irradiava-lhe uma aurora contra o rosto, e os clarões cambiantes espelhavam-se no pranto que lhe sulcava as faces. Devia remoçar, e sentia-se velho. Parecia abrir-se-lhe a porta do paraizo e, em vez de transpôl-a, pedia á criança que o acompanhasse ao cemiterio de Napoles, onde Rosina jazia. Giovanni julgou importuna a sua presença, e balbuciou soluçando umas palavras de despedida. Graça Strech travou-lhe da mão e disse: --Giovanni, tu eras o guarda de minha filha; sê agora o companheiro da filha e do pae. Giovanni correu a beijar a menina com lagrimas d'alegria nos olhos; era quasi o cão a festejar o dono. Partiram. Ao passar em Pariz, Graça Strech foi com a criança procurar o esculptor Maubert. Entrou no _atelier_ e disse ao artista: --Aqui tem o original do seu busto, senhor: é minha filha. Falta o nobre Pietro: roubou-o a morte. Eu não quiz atravessar a França sem lhe vir agradecer o serviço que me prestou. Não encontraria minha filha, se o senhor me não ensinasse o caminho. Que Deus lhe torne em alegrias o que a mim me deu em consolação. O senhor receberá o premio da sua benevolencia para commigo lá onde os bons e os desgraçados são remunerados condignamente. Seguiram para Italia. Graça Strech estava ancioso de chegar a Napoles, onde se demoraram oito dias, visitando de manhã e de tarde o _Campo Santo_. O que elle confidenciou junto á lousa de Rosina Regnau ninguem o ouviu, nem é dado avental-o, porque ha dôres que só se comprehendem quando se experimentam. Os labios do pae, ajoelhado á beira da campa, ciciavam de todas as vezes palavras inintelligiveis; a filha, ajoelhada ao pé do pae, tinha as mãos postas, e denotava doloroso recolhimento. Não rezava, porque ninguem a tinha ensinado a rezar. A falta das mães é tamanha que até Deus a sente! Giovanni completava o grupo, posto o joelho em terra, e alternando olhares respeitosos entre o pae, a filha e a campa. Ao cabo d'oito dias a menina mostrava-se doente. Graça Strech tremeu da tristeza da criança, e perguntou-lhe o que tinha. --Faz-me medo estar no cemiterio! respondeu Augusta chorando. --Tens razão, filha, disse Graça Strech. Mas o que havemos nós de fazer agora no mundo todos trez? --Eu toco a minha harpa, tornou com vivacidade a pequenita. O papá toque a sua guitarra. Giovanni vae comnosco. Graça Strech não teve animo de recusar. --Voltemos então a França, alvitrou elle. Eu vi a sepultura de tua mãe; quero agora vêr o seu berço. Iremos ás Ardennas. --Mas as Ardennas não são tão tristes como o cemiterio, pois não? perguntou ingenuamente Augusta. --Não são, filha, não são. Para tua mãe eram o paraizo d'onde eu a expulsei. Foram musicando. Notavam-se entre todos os _virtuosi_, além da maguada sympathia que filha e pae inspiravam, pela melancolia do seu repertorio. A guitarra d'elle e a harpa d'ella falavam a linguagem da saudade. Se o publico as ouvisse no _Campo Santo_ de Napoles, á beira d'um cómoro, devia comprehendel-as. Estiveram nas Ardennas, onde os camponezes sahiam em ranchos a ouvil-os. Alguns d'elles, vendo o guitarrista esquecido a olhar para o cimo das montanhas, com o braço paralysado, diziam entre si: --Aquelle homem não tem a razão clara! Passando-se depois a Pariz, encetaram o viver errante dos passaros. Graça Strech tirava do amor com que idolatrava a filha as forças com que vivia, e tinha desvairamentos nervosos se se demorava a contemplar-lhe as faces pallidas, da meiga pallidez da irmã, e os olhos fundos e brilhantes. Quedava-se a olhar n'ella com a fronte banhada de suor frio. --O papá gosta tanto de me vêr! exclamava a menina ao mesmo passo carinhosa e amedrontada da sombria physionomia do pae. --Gosto, filha. É que eu sou pae e desgraçado! Se tu morresses, enlouquecia. --Eu não morro. O papá não diga isso, que me faz medo. Deixe-se de estar a pensar, papá! atalhava a menina. Ó Giovanni, traz a harpa; não estou contente senão quando a tenho ao pé de mim! O papá não ralhe, porque eu sou muito sua amiga tambem. Decorreram os annos. O botão de rosa fez-se flôr. Flôr melancolica como as que pendem aos sarcophagos. Graça Strech procurava suavisar quanto lhe era possivel a sua continua peregrinação. A menina, tomada de febril impaciencia, dizia ao pae que havia de morrer no caminho tocando harpa. E acrescentava: --Bem diz o papá: nós somos como os passaros. Elles tambem só parecem alegres quando voam! No inverno de 1824--tinha Augusta quatorze annos--começou a soffrer do peito. Estavam de novo em Londres. Augusta queixava-se de dôres vagas; e tossia. --Fujamos de Londres! disse Graça Strech fitando a filha com atormentado semblante. Em França os soffrimentos continuaram, se bem que a menina, para não desalentar o pae, procurasse animar-se d'uma alegria que por bastante transparente deixava entrever o disfarce. Seguiram para Italia. Enflorava-se a formosa do Mediterraneo com as galas da primavera de 1825. Caminho de Florença nos ultimos dias de março, colhera-os ao entardecer a tempestade no caminho. Tiveram de estugar o passo para recolher-se no albergue de Pistoja. A menina chegou anciada, e afogueada das faces. Deitou-se logo. O pae, atordoado como ebrio, não a desamparou em toda a noite. Pela manhã, Giovanni foi poisar a harpa ao pé do catre. Augusta reprehendeu-o. Disse que no dia seguinte tocaria. Veiu o outro dia, vieram muitos, e a menina nem queria erguer-se nem ver a sua harpa. --Então já não és como os passaros? perguntou o pae com voz que mal podia romper através das lagrimas. Augusta viu chorar o pae, e disse para Giovanni: --Os passaros tambem cantam no ninho: vai buscar a harpa. Tirou alguns sons, e não pôde continuar. D'ahi a trez dias chamou de novo Giovanni e disse-lhe: --Hoje estou boa; vae buscar a harpa. O pae quiz illudir-se ainda: sorriu. A menina vibrou as primeiras modulações e deixou pender os braços. Acudiu o pae a chamal-a. Não respondeu. Giovanni agitou-a docemente e conheceu que estava morta. A avesinha não pôde completar o seu cantico de despedida. Desde essa hora Graça Strech affigurava-se idiota. Unicamente pareceu illuminar-se-lhe por instantes a razão quando disse a Giovanni: --Meu bom amigo, meu fiel amigo, não tenho mais que te dar: péga n'essa harpa e deixa-me viver em paz. Adeus, até á hora do resgate. Giovanni quiz falar. Elle não consentiu; afastou-o com um gesto. E deixou-se ficar dois dias com a cabeça apoiada nas mãos. Levavam-lhe de comer: recusava. O dono do albergue entrou a inquietar-se e acabou por ir a Florença avisar o consul portuguez. Chamado Graça Strech ao consulado, muito laconicamente respondeu ás perguntas que lhe fizeram. O consul reputou a sua tristeza nostalgia, aggravada pela impossibilidade de se transportar á patria. Deu-lhe um passaporte para Portugal. Graça Strech nem agradeceu nem rejeitou. Ao outro dia foi o consul a bordo para o recommendar ao capitão. Faltava Graça Strech. Mandou procural-o ao albergue. Encontraram-n'o sentado com a cabeça firmada nas mãos. Deixou-se conduzir ao navio. Subiu á coberta, e sentou-se n'um banco, na mesma posição. O navio largou; elle não ergueu os olhos. Passados mezes via-se nas ruas do Porto um estranho homem; andava arrimado a um bordão, porque coxeava. Alguem, por caridade, o vestira: trazia sobrecasaca abotoada e chapeu alto amolgado. Realçava sobre esta pobreza a medalha de prata da guerra peninsular em competencia com um annel de ouro que brilhava na mão esquerda. Como o vissem apanhar do chão pontas de cigarros, e manipular um longo rolo de tabaco, perguntavam-lhe por que não vendia o annel. Respondia sempre: --Porque este annel tem mysterio. E, surdo a outras perguntas, começava tangendo maviosamente a guitarra que trazia sobraçada. Se alguem lhe dava esmola, recebia-a; jámais a implorou. Decorridos mais alguns mezes appareceu acompanhado por um cão, e de tal modo se estimavam, cão e homem, que o cão parecia escutar attento o guitarrista, e o guitarrista defendia energicamente o seu companheiro quando era açulado pelo rapazio. Onde encontrára o guitarrista o cão? É que o primeiro tivera de pedir hospitalidade ao segundo. N'um quintal da rua das Fontainhas, logo á entrada, descendo do Jardim de S. Lazaro, ha ainda hoje um casebre, que n'esse tempo pertencia a duas pobres mulheres, donas do cão. Ali piedosamente receberam o guitarrista, que na primeira noite de hospedagem fôra mordido pelo animal, que dava pelo nome de _Janota_, e se rebellara contra todos os affagos do hospede. Indignou-se o guitarrista da feresa do seu companheiro, e lembrou-se d'um facto semelhante que em Portugal occorrera durante a primeira invasão franceza. Em Abrantes, em 1807, um official portuguez poupou a vida de Junot; sem embargo, fôra, dias depois, fuzilado, não sei a que pretexto, por ordem do mesmo Junot. O guitarrista, applicando ao caso esta recordação da sua mocidade, começou a dar ao cão o nome do general francez. Ao cabo d'algum tempo de convivencia, o nome não tinha razão de ser, porque homem e cão viviam em boa camaradagem; todavia subsistiu. As proprias donas do casebre se habituaram a dizer _Junot_ em vez de _Janota_. Em tamanha pobresa permaneceu o guitarrista até novembro de 1857, epoca em que o meu amigo, o sr. Antonio Martins Leorne, teve casualmente occasião de falar-lhe. Passava na Batalha quando o guitarrista, sentado nas escadas da egreja de Santo Ildefonso, estava sendo chasqueado por trez estudantes do seminario episcopal. Movido de indignação, subiu as escadas, e ameaçou os seminaristas com denuncial-os ao prelado. Os rapazes debandaram amedrontados, e o guitarrista levantou-se para agradecer ao sr. Leorne. Pelas breves palavras que trocaram, conheceu este cavalheiro que estava ali um lucido espirito e um nobre coração esmagados pela desgraça. Tanto bastou para começar a protejel-o, até que no mez de novembro d'esse anno conseguiu que fosse admittido no hospital dos Entrevados de Cima de Villa. O guitarrista acceitou reconhecido. Mas, quando lhe foi imposta a condição de usar o vestuario dos asylados, reagiu tenazmente. Só puderam convencel-o a transigir repetidas instancias do sr. Leorne. Durante a sua estada no hospital de Cima de Villa, grato á protecção recebida, abriu-se em frequentes confidencias com o seu protector. Algumas vezes lhe escreveu, assignando-se Graça Strech, se bem que os registos de admissão e obito o nomeiem Conceição Graça. Bem póde ser que o infeliz, talvez por melindre que nos não é dado perscrutar, negasse ao escripturario o verdadeiro appellido de sua familia, e facilmente se comprehende que o registo de obito foi modelado pelo registo de entrada no hospital. O leitor, antes de eu ter denunciado o nome do estranho guitarrista, já o havia conhecido de certo, confrontando-o com a personagem que apparece nas primeiras paginas d'este livro, e achando-os em tudo semelhantes. Graça Strech falleceu no hospital dos Entrevados de Cima de Villa a 20 de maio de 1850. Antes de expirar, entregou ao seu protector, que lhe assistiu aos ultimos momentos, a medalha da guerra peninsular, com que fôra condecorado, e que o sr. Leorne ainda hoje possue[15]. O annel mysterioso, por expressa recommendação do moribundo, desceu com o cadaver á sepultura. Outra piedosa pessoa, a quem o sr. Leorne revelára as qualidades e soffrimentos de Graça Strech, se encarregou de fazer-lhe os funeraes na capella do Prado do Repouso, reservando para si a guitarra que elle por tão longos annos dedilhára. Aqui podia terminar a biographia de José Maria da Graça Strech, mas, para que fique mais completa, concluiremos copiando textualmenle as unicas palavras que até hoje falavam d'elle: _João José Duarte Machado, capellão director do cemiterio do Prado do Repouso, n'esta cidade do Porto:_ «Certifico que no livro quarto do registo dos obitos e enterramentos dos adultos, a folhas trezentas setenta e sete, verso, se acha o assento seguinte: «José Maria da Conceição Graça, filho de Francisco Pinto Graça, e de Maria da Gloria, natural do Porto, edade sessenta e seis annos, estado solteiro, profissão mendigo, morador que foi no Hospital de Cima de Villa, dos Entrevados, falleceu de molestia não denominada pelas nove horas da noute do dia vinte de maio de mil oitocentos cincoenta e nove; depois de se lhe rezarem os responsos do costume foi sepultado pelas oito horas da noute do dia vinte e um do dito mez n'este cemiterio publico--Prado do Repouso--no canteiro numero tres, sepultura dois mil trezentos e seis, de que se fez este termo que assigno com o reverendo capellão. Eu Antonio José Antunes Barbosa, director, o subscrevi. _Antonio José Antunes Barbosa_, director. _Francisco Alves da Soledade_, capellão. «Não contém mais o dito assento, ao qual me reporto. Porto e Cemiterio do Prado do Repouso, nove de setembro de mil oitocentos setenta e tres. «JOÃO JOSÉ DUARTE MACHADO.» «Capellão director.» FIM [15] Em 1873. INDICE Prologo da 3.ª edição 5 I--O Desgraça 7 II--Na quinta das Chãs 10 III--Pomba que presente sangue 19 IV--Horrores da invasão 28 V--O juramento da vingança 38 VI--A mariposa do acampamento 47 VII--No hospital de sangue 55 VIII--O anjo da liberdade 63 IX--Entre a vingança e o amor 72 X--A hora do resgate 82 XI--O que a vivandeira pensava 90 XII--Amor e ciume 101 XIII--Como acaba a tragedia de Goethe 109 XIV--Quanto custa ser mãe 118 XV--A queda do gigante 127 XVI--Uma festa no Porto ha cincoenta e nove annos 136 XVII--Como madrugam as aves e os noivos! 146 XVIII--A lenda d'Ashaverus 155 XIX--A terra da promissão 165 XX--O manuscripto de Pietro 174 XXI--Epilogo 184 End of the Project Gutenberg EBook of O Annel Mysterioso, by Alberto Pimentel *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O ANNEL MYSTERIOSO *** ***** This file should be named 33749-8.txt or 33749-8.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: http://www.gutenberg.org/3/3/7/4/33749/ Produced by Pedro Saborano Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. Creating the works from public domain print editions means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for the eBooks, unless you receive specific permission. If you do not charge anything for copies of this eBook, complying with the rules is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation of derivative works, reports, performances and research. They may be modified and printed and given away--you may do practically ANYTHING with public domain eBooks. Redistribution is subject to the trademark license, especially commercial redistribution. *** START: FULL LICENSE *** THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase "Project Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg-tm License (available with this file or online at http://gutenberg.org/license). Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. 1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be used on or associated in any way with an electronic work by people who agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works even without complying with the full terms of this agreement. See paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic works. See paragraph 1.E below. 1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation" or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the collection are in the public domain in the United States. If an individual work is in the public domain in the United States and you are located in the United States, we do not claim a right to prevent you from copying, distributing, performing, displaying or creating derivative works based on the work as long as all references to Project Gutenberg are removed. Of course, we hope that you will support the Project Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with the work. You can easily comply with the terms of this agreement by keeping this work in the same format with its attached full Project Gutenberg-tm License when you share it without charge with others. 1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in a constant state of change. If you are outside the United States, check the laws of your country in addition to the terms of this agreement before downloading, copying, displaying, performing, distributing or creating derivative works based on this work or any other Project Gutenberg-tm work. The Foundation makes no representations concerning the copyright status of any work in any country outside the United States. 1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg: 1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed, copied or distributed: This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org 1.E.2. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived from the public domain (does not contain a notice indicating that it is posted with permission of the copyright holder), the work can be copied and distributed to anyone in the United States without paying any fees or charges. If you are redistributing or providing access to a work with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.3. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted with the permission of the copyright holder, your use and distribution must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the permission of the copyright holder found at the beginning of this work. 1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm License terms from this work, or any files containing a part of this work or any other work associated with Project Gutenberg-tm. 1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this electronic work, or any part of this electronic work, without prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with active links or immediate access to the full terms of the Project Gutenberg-tm License. 1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary, compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any word processing or hypertext form. However, if you provide access to or distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than "Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org), you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm License as specified in paragraph 1.E.1. 1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided that - You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method you already use to calculate your applicable taxes. The fee is owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he has agreed to donate royalties under this paragraph to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments must be paid within 60 days following each date on which you prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax returns. Royalty payments should be clearly marked as such and sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the address specified in Section 4, "Information about donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation." - You provide a full refund of any money paid by a user who notifies you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm License. You must require such a user to return or destroy all copies of the works possessed in a physical medium and discontinue all use of and all access to other copies of Project Gutenberg-tm works. - You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the electronic work is discovered and reported to you within 90 days of receipt of the work. - You comply with all other terms of this agreement for free distribution of Project Gutenberg-tm works. 1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm electronic work or group of works on different terms than are set forth in this agreement, you must obtain permission in writing from both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the Foundation as set forth in Section 3 below. 1.F. 1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread public domain works in creating the Project Gutenberg-tm collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic works, and the medium on which they may be stored, may contain "Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by your equipment. 1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all liability to you for damages, costs and expenses, including legal fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE PROVIDED IN PARAGRAPH 1.F.3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH DAMAGE. 1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a written explanation to the person you received the work from. If you received the work on a physical medium, you must return the medium with your written explanation. The person or entity that provided you with the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a refund. If you received the work electronically, the person or entity providing it to you may choose to give you a second opportunity to receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy is also defective, you may demand a refund in writing without further opportunities to fix the problem. 1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. 1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any provision of this agreement shall not void the remaining provisions. 1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance with this agreement, and any volunteers associated with the production, promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works, harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees, that arise directly or indirectly from any of the following which you do or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause. Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of electronic works in formats readable by the widest variety of computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need, are critical to reaching Project Gutenberg-tm's goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation web page at http://www.pglaf.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state's laws. The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered throughout numerous locations. Its business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email [email protected]. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation's web site and official page at http://pglaf.org For additional contact information: Dr. Gregory B. Newby Chief Executive and Director [email protected] Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide spread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit http://pglaf.org While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. International donations are gratefully accepted, but we cannot make any statements concerning tax treatment of donations received from outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation methods and addresses. Donations are accepted in a number of other ways including checks, online payments and credit card donations. To donate, please visit: http://pglaf.org/donate Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic works. Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our Web site which has the main PG search facility: http://www.gutenberg.org This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.