O Annel Mysterioso, Scenas da Guerra Peninsular

By Alberto Pimentel

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Title: O Annel Mysterioso
       Scenas da Guerra Peninsular

Author: Alberto Pimentel

Release Date: September 17, 2010 [EBook #33749]

Language: Portuguese


*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O ANNEL MYSTERIOSO ***




Produced by Pedro Saborano





    Notas de transcrição:

    O texto aqui transcrito, é uma cópia integral do livro impresso
    em 1904.

    Foi mantida a grafia usada na edição original de 1904, tendo
    sido corrigidos apenas pequenos erros tipográficos que não
    alteram a leitura do texto, e que por isso não foram assinalados.




                         O ANNEL MYSTERIOSO




                     NOVA COLLECÇÃO PORTUGUEZA

                                 II

                         O ANEL MYSTERIOSO

                    SCENAS DA GUERRA PENINSULAR

                        ROMANCE ORIGINAL DE

                         ALBERTO PIMENTEL

           3.ª EDIÇÃO, ILLUSTRADA, REVISTA PELO AUCTOR




                              LISBOA
                  EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
                       _Sociedade Editora_

                        LIVRARIA MODERNA
                        Rua Augusta, 95

                          TYPOGRAPHIA
                       45, Rua Ivens, 47

                             1904




PROLOGO DA 3.ª EDIÇÃO


Este é um dos romances da minha mocidade. Foi publicado pelos editores
da _Bibliotheca Universal_, de Lisboa, em 1873. Precederam-n'o os
_Idyllios á beira d'agua_, (1870), a minha primeira tentativa no
romance, e _O testamento de sangue_, escripto aos vinte e trez annos.

Estas datas desculpam hoje, aos meus proprios olhos, tudo quanto ha de
hesitante e incorrecto em todas as trez novellas, que foram as primicias
litterarias de um rapaz educado n'uma terra essencialmente commercial,
avessa a idealidades romanescas e ao convivio e apreço de escriptores,
bons ou simplesmente toleraveis.

Pelo que especialmente respeita ao _Annel mysterioso_, se quando agora o
reli me não descontentou a acção dramatica, achei-lhe comtudo algum
excesso de floração declamatoria, que é um defeito peculiar a todos os
estreantes.

A grande arte de escrever está na ponderada sobriedade da expressão, no
equilibrio estavel entre a phrase e o pensamento.

Fóra d'isto ha rhetoricos, mas não ha escriptores.

Se eu, no decorrer dos annos, consegui aproximar-me d'este requisito
essencial, não perdi de todo o meu tempo. Mas, ainda n'esse caso, é
defensavel a reimpressão de uma novella, que póde fornecer elementos de
confronto entre duas épocas da vida de um escriptor.

Como quer que seja, o _Anel mysterioso_ agradou quando foi publicado em
1873. A breve trecho sahiu a segunda edicção. E os mesmos editores me
convidaram a escrever logo em seguida outro romance, que foi _A Porta do
Paraizo_.[1]

Ambos estes livros me abriram caminho entre o publico de Lisboa.

O exito da _Porta do Paraizo_ explica-se facilmente pelo interesse que
inspirava ainda então o reinado de D. Pedro V.

Quanto ao _Annel mysterioso_, que não é senão a biographia de uma
celebridade das ruas do Porto, parece que foi o entrecho commovente que
no espirito dos leitores lisbonenses suppriu a falta de conhecimento
directo do protagonista.

Quando eu escrevia este romance, muitas pessoas d'aquella cidade se
lembravam ainda de ter visto frequentes vezes o _Desgraça_.

Uma d'essas pessoas era Camillo Castello Branco, que, seis annos depois
da publicação do _Anel mysterioso_, dizia a pag. 296 do livro
_Sentimentalismo e historia_: «A um canto (do botequim da _Aguia
d'ouro_) estava um velho de semblante livido, muito desgraçado, com um
chapeu enorme de sêda d'um azulado decrepito, com um grande cigarro no
canto da bocca. Ao lado, sobre um mocho, via-se uma guitarra com manchas
gordurosas de suor que punham brilhos, e aos pés um cão d'agua com o
felpo encarvoado, cheio de torçidas, encaroçado, dormia, e acordava de
salto, apanhando com muita furia, no ar, as moscas que lhe picavam as
orelhas. Era o José das Desgraças, o legendario mendigo, que morreu de
saudades do seu cão, aggravadas pela fome».

Esta referencia authentíca hoje o retrato de uma individualidade
popular, cujos contemporaneos dormem, como ella, o somno eterno da morte.

Lisboa, 10 de abril de 1903.

                                                _Alberto Pimentel._


    [1] A quarta edicção, luxuosa, d'este romance, foi por nós
    publicada em 1900.

                                          (Nota dos editores.)




O ANNEL MYSTERIOSO


I

O Desgráça

Entre os typos populares, que pouco a pouco vão rolando a sepulturas
ignoradas, deixando após si o rasto de uma vida sobremodo accidentada de
peripecias quasi sempre sombrias--rasto que só um ou outro escriptor se
compraz em prucurar desde a cadeia ao degredo, do albergue ao
cemiterio--avulta na tradição portuense um homem que por longo tempo ahi
foi o alvo das assuadas do rapazio e dos chascos dos frequentadores de
botequim. Uns chamavam-lhe o _José das Desgraças_, outros simplesmente o
_Desgraça_.

Parece dever inferir-se de tão lutuosa alcunha que a população da cidade
lhe conhecia a biographia exuberante de lastimosos lances. Tal não ha.
Quando elle passava coxeando arrimado ao seu bordão, sobraçada a
guitarra inseparavel, de velho chapéo alto amassado, sobrecasaca
abotoada, pendente a medalha de prata da guerra peninsular, annel d'ouro
na mão esquerda, na bocca o enorme cigarro que elle proprio manipulava
com pontas de charuto, seguido do cão fiel, que se chamava _Junot_, por
motivos que mais tarde desvelaremos, o gentio das ruas ou sorria
alvarmente da pittoresca pobresa do excentrico mendigo, ou rompia em
apostrophes de _Ó Desgraça! Ó Desgraça!_ que elle parecia não ouvir ou
despresar em sua imperturbavel serenidade.

E a populaça, sem sequer suspeitar da tenebrosa origem do cognomento,
quedava-se a ouvil-o, calmadas as arruaças com que era saudado, quando
elle, sentado á porta de um café, especialmente o do Jardim de S.
Lazaro, começava a tanger melancolicamente a sua guitarra, na qual
executava operas completas, queimando o seu enorme rolo de tabaco e
contemplando, de cabeça inclinada, o cão que parecia escutal-o
attentamente...

Depois, quando a mão caía extenuada sobre as cordas silenciosas,
affigurava-se, tão alheado ficava, que estava rememorando maguas
intimas, segredos da sua vida obscura, sem que parecesse dar tento das
esmolas que lhe atiravam ao regaço os que entravam ou saíam a porta do
botequim.

Ás vezes, como se não houvesse conseguido linimentar com a musica as
recordações dolorosas acordadas no imo peito, voltava a tanger na
guitarra uns dulcissimos arpejos que finalmente lhe serenavam a alma
tempestuosamente alanceada, chorando por elle, que não tinha lagrimas.

Restituido á realidade da sua resignada nobresa, erguia-se firmado no
bordão, sobraçava a guitarra, e continuava a peregrinação, vagueando
pelas ruas da cidade, sem todavia dirigir-se aos transeuntes e recebendo
impassivel os óbolos que jámais solicitava. E o cão, o leal companheiro
de infortunio, seguia egualmente resignado seu dono, e quasi sempre
indifferente ás provocações do rapazio que se divertia em apedrejal-o e
açulal-o.

Frequentemente intervinha o _Desgraça_ ameaçando com o bordão os
perseguidores do seu dedicado companheiro; mas como o inquieto rapazio
conhecesse que a velhice lhe desnervava o braço, entrava de levantar
celeuma atroadora, em que, ainda assim, quasi sempre se distinguiam
vozes de «Morra o _Desgraça_ e o _Junot_! Vende o annel e não andes a
pedir!»

Estranho homem devia de ser esse, que parecia guardar grande mysterio, e
tinha por unico amigo, entre uma população inteira, que o apupava, o cão
fiel, e por consolação unica a sua guitarra, e por unica protecção a
piedade dos seus conterraneos, que elle não implorava.

O povo não suspeitava sequer que a biographia d'aquelle homem
justificasse o appellido. Quando o _Desgraça_ fazia chorar a guitarra
entre os dedos, e o cão denunciava comprehender a guitarra, como que
ligeiramente se commovia a turba acatasolada, mas d'ahi a pouco, quando
estrondeavam os apupos, era o cão o unico espectador que mostrava lêr na
physionomia do velho o mysterio de uma vida tormentosa.

Ria a gentalha torpe d'aquella intima convivencia de homem e cão. E
todavia não saía d'entre a arraia miuda o mais desgraçado dos populares
a dizer ao pensativo guitarrista: «O teu cão sente e não fala; eu
falarei por elle. Soffres decerto muito e precisas consolação. Eu sou
tambem muito infeliz, muito mais do que tu, porque não tenho guitarra
nem cão. Deixa-me pois compartir do teu cão e da tua guitarra, que eu te
darei o que tu não tens, dois ouvidos que te escutem, uma voz que te
responda.»

Não. A desgraça é tão infeliz, que se ri da desgraça; é ella que se
desauctorisa a si mesma. Só lhe falavam para chasqueal-o, para lhe
cuspir na face a zombaria que elle, absorto no seu continuo cogitar,
deixava resvalar aos pés.

E todavia aquelle homem era um grande desgraçado, que só tinha no mundo
a sua guitarra, o seu cão, e as suas recordações. O annel, que trazia na
mão esquerda, podia matar-lhe talvez um dia de fome, mas não haveria
miseria que lh'o arrancasse do dedo, porque as suas recordações estavam
n'aquelle annel.

      *      *      *      *      *


II

Na quinta das Chãs

Na noite de 17 de fevereiro de 1809, a morgada viuva da quinta das Chãs
conferenciava gravemente com o seu capellão n'uma das salas terreas do
solar, a duas leguas de Braga, sobranceiro á aldeia de Carvalho d'Éste.
A morgada, senhora de uns sessenta annos, deixava entrever nas sombras
da physionomia a tempestade que lhe agitava a alma; o capellão,
passeando de um para outro lado, enviesava á morgada olhares
investigadores, que para logo revelariam perfidia e cupidez.

--É preciso partir, padre capellão, dizia afflictivamente a morgada. Se
os francezes logram atravessar o rio Minho, estarão brevemente em Braga.
A mim pouco me importaria a vida se não fosse Augusta, que a esta hora
está dormindo na serenidade da sua innocencia. Tomára que chegasse o
Teixeira para contar o que se passou. Diga o que disser, padre capellão,
é preciso pensar maduramente. Meu genro fez-me depositária de um
thesouro, que eu hoje quero salvar de todos os perigos, custe o que
custar, porque se me affigura que já estimo mais Augusta do que aos seus
proprios paes, e a seu irmão. Recebi minha neta aos 5 annos, porque á
luz da consciencia conheci que melhor poderia eu sustentar uma criança,
apesar das hypothecas da minha casa, do que um pobre capitão do exercito
poderia sustentar dois filhos. O padre capellão administrava as
propriedades. Que me restava a mim para não morrer de aborrecimento
durante o dia? Augusta, a criança que me tinha sido confiada. Era ella a
minha unica distracção, o meu unico amor; ha dez annos que este tecto
lhe abriga a innocencia, e ha dez annos que eu abençôo a resolução de a
chamar para amparo da minha velhice. Olhe que os annos tornam a gente
egoista, padre capellão; a abnegação é só apanagio da mocidade.
Não pense que me bastava a unica distracção do voltarete; é sempre a
mesma cousa! Quando eu _peço licença_ o padre capellão _prefere_, e o
Teixeira dá-lhe _codilho_. Tambem é boa embirração a sua de _preferir_
sem jogo. Nem que tivesse vontade de fazer mal... E o dia, estes longos
dias da provincia, que não teem fim! Era morrer de fastio. Augusta
trouxe-me cuidados e variedade. A principio com as suas exigencias de
criança; agora com as suas ingenuidades de donzella. Vi, anno a anno,
desabotoar a flôr. A flôr, disse bem, porque Augusta é realmente uma
rosa... de quinze annos. E é que eu a estimo como seu jardineiro que
sou. Instantemente lhe pedi que se deitasse para que não ouvisse dizer
ao Teixeira as proezas que os senhores francezes teem feito lá para esse
rio Minho. Mas, padre capellão, o que é certo é que eu já haveria
partido para o Porto, se n'esta occasião estivesse prevenida com
recursos. O padre capellão bem sabe...

--Sei, sei, senhora morgada, que a occasião é má para todos.

--Se os caseiros pudessem pagar o resto das rendas...

--A senhora morgada devia conhecer o que é guerra sobre guerra. Tivemos
esse excommungado Junot, mais as suas aves de rapina, a comer-nos os
olhos da cara. Nem as egrejas respeitou, o maldito! A senhora morgada
ainda fala em pedir o resto das rendas aos caseiros! E para quê? Para
fugir para o Porto, para casa de seu genro, para abandonar as suas
propriedades!

--O padre capellão velará por ellas. É que eu bem sei os sustos que
curti aqui durante a primeira invasão. Se no Porto não estivesse a
soldadesca do Taranco, teria fugido para lá.

--E que teima essa de me querer confiar as suas propriedades, capacitado
como estou de que a senhora morgada suppõe que lh'as administro mal!
Administro mal, administro, porque não forço os caseiros a pagarem o
resto das rendas para vossa senhoria o ir gastar no Porto com a familia
de seu genro. Depois de uma guerra e em vesperas de outra é que a
senhora morgada fala em pagar!

--Pagar é um dever, padre capellão, e quanto mais nos apressamos a
fazer o que devemos tanto maior é o repouso do espirito. Bem sei que são
más as circumstancias, mas é que tambem esta pobre gente se importa
pouco com o calendario, e acha que todo o tempo é tempo. É que tambem
não imaginam que se esconda a pobresa detraz de pergaminhos e
genealogias. Pois esconde, se esconde! Sabe o padre capellão que eu
falei no resto das rendas porque n'esta occasião não ha dinheiro em
casa. Ninguem melhor o sabe, porque lhe passam os negocios pela mão. O
que é certo é que eu sinto ameaços de pobresa...

--Nem tanto ao mar, senhora morgada...

--Se presinto! Vivo modestamente n'estas solitarias Chãs, encantada nas
graças d'Augusta, cerrando ouvidos ao bulicio da cidade que está
proxima. Não posso fazer despezas extraordinarias, é preciso não largar
a brida da mão para costear as indispensaveis.

--Os chás não são indispensaveis, senhora morgada...

--Magôa-me a sua ironia, padre capellão! Tanto mais que sabe como é
limitado o serviço da nossa mesa de jogo. E depois queria que eu
fechasse as minhas portas na face do velho Teixeira, amigo leal da nossa
casa desde a mocidade de meu marido? Sabe o padre capellão como o
morgado deixou as propriedades sobrecarregadas de hypothecas. Mal tenho
podido rehabilitar o casal, apesar de todas as economias e da maxima
abstenção d'obras de beneficencia...

--Maxima abstenção!...

--É injusto, padre capellão! Refere-se talvez á Augusta... Não sabe que
é filha de minha filha, casada por inclinação com um honrado militar do
exercito portuguez, a quem não basta unicamente a sua immaculada
honradez para ser feliz! Era-me impossivel soccorrer a mãe; soccorri a
filha. Eu não podia ir mais longe, senão teria ido. Sempre
contrariedades! Sempre o padre capellão a annunciar-me algum novo
desastre! Ah! mas d'esta vez creia que não haverá desastre nem
contrariedade que me véde o tirar dos hombros uma enorme
responsabilidade, levando Augusta para a companhia dos seus, e minha
tambem, porque ella é minha, e muito minha, pelo sangue e pelo
coração... Em ultimo caso, recorrerei ao emprestimo...

--Outro?

--É minha filha e meus netos que eu prejudico; o padre capellão, não.
Todavia, como é para bem d'elles, elles m'o perdoarão. O padre capellão
por sua propria mão recebe os juros das quantias que tem desembolçado, e
creio que as propriedades que conservo fartamente abastarão ao pagamento
do capital, no momento em que queira usar dos seus direitos de crédor.

--Eu não quero...

--Deixe-me figurar a peior hypothese, e evidenciar-lhe que lhe não
causam detrimento os seus desembolços.

--Falando francamente, senhora morgada, sou a dizer-lhe que o juro é
pequeno...

--Augmente-o como lhe apraza. Não é meu costume questionar cinco réis ao
padre capellão.

--Eu sou tão pobre como a senhora morgada, tartamudeou o reverendo com
um frouxo de tosse que denunciava estar providencialmente entalado com o
osso da mentira.

A morgada gesticulou de incredulidade e enfado.

--Eu sou tão pobre como a senhora morgada, reatou o capellão ajudando-se
a engulir a falsidade com um sorvo de rapé--e é á custa de trabalho que
tenho recolhido escassas mealhas ao canto da gaveta. De inverno arrosto
as neves da madrugada para saír aos campos a espionar os trabalhadores
no interesse de vossa senhoria. No verão aguento as calmas do meio dia
para os estimular ao trabalho. As horas feriadas de canceiras externas
passo-as á banca a fazer a escripturação ou no quarto a rezar as minhas
orações. Tenho envelhecido ao serviço de vossa senhoria, e o magro
peculio do pobre padre ao trabalho o devo. E o mais é que já vou achando
ser horas de descançar... Vejo porém que não seria facil encontrar quem
com zelosa dedicação governasse a casa alheia, e, se me é canceira o
dirigil-a a despeito da velhice, tambem me é consolação o ouvir dizer-me
a consciencia que devo trabalhar por não ver quem facilmente me
substitua. Digam embora o senhor seu genro e a senhora sua filha o que
quizerem, e me consta que dizem: a verdade é esta...

--Convenho, padre capellão, e é por conhecer a sua desinteressada--a
morgada deu a esta palavra uma inflexão sensivelmente
ironica--desinteressada dedicação, que tenho batido á sua porta sempre
que a necessidade me obriga a incommodar alguem. Se lhe pedia agora para
passar aviso aos caseiros, era porque não queria importunal-o com
repetidas mercês...

--Nunca me incommodaram as ordens de vossa senhoria, atalhou o padre,
curvando-se respeitosamente a meio da sala.

--Eu é que a mim mesma me incommodo com a ideia de incommodal-o, posto
que eu não seja dos devedores que mais devem aborrecer por egoistas...

--Creio que já tive a honra de dizer á senhora morgada que a occasião é
má para todos.--E proseguiu mirando ao alvo que elle queria attingir:
Era porém grande a quantia que vossa senhoria desejava?

--A sufficiente para me transportar ao Porto com a menina, e para não
tornar pesada a hospedagem que minha filha haja de dar-me. É preciso
partir, padre capellão, se os francezes não forem repellidos na
fronteira. Entrarão por esse Minho dentro furiosos, e eu não respondo só
pela minha vida, que já pouco vale, mas tambem pela de Augusta, que me
foi confiada em deposito. Que valeria a minha presença aqui? Os criados
fugiriam decerto, e a edade do padre capellão não lhe permittiria
defender duas mulheres, ambas timidas, uma porque é velha, e outra
porque é nova. Além de maior segurança que offerece o Porto, como grande
cidade que é, Augusta poderá d'ali seguir melhor a sorte de seu pae e
seu irmão nos combates. Não estará para aqui anciosa sem receber
noticias que a tranquillisem. Aqui, quando ha guerra, apenas se sabe que
ha guerra, e mais nada. O padre capellão offereceu-se para ficar;
desappareceram todas as difficuldades. Sem o seu offerecimento eu não
poderia deixar desamparado o solar de meus avós. Teria de luctar
angustiosamente entre o amor d'Augusta e o respeito á memoria de meus
paes e meu marido. Se os invasores entrarem, respeitarão porventura a
sua velhice e as suas vestes, padre capellão, se é que elles respeitam
alguma cousa...

O padre capellão, julgando haver já simulado a precisa resistencia á
partida da morgada, apostrophou de golpe:

--Mas, voltando ao caso, senhora morgada, ponhamos os pontos nos i i.
Quanto desejava vossa senhoria?

--Eu... cem moedas talvez.

--Cem moedas é muito, senhora morgada, e eu não estou prevenido.

--Pois veja o padre capellão se póde obter essa quantia, que eu cederei
a qualquer exigencia de juro.

--Menos de 15 por cento não será possivel, senhora morgada...

--Pagarei os 15 por cento; trate o padre capellão de negociar sem demora
as cem moedas.

--Hum! rouquejou o padre. Veremos. Póde ser que se abra alguma porta ao
homem honrado que só em grande estreiteza deixa d'abrir a sua. Ámanhã
falaremos, senhora morgada. Vou fazer as minhas rezas emquanto não chega
o palrador do Teixeira com noticias dos francezes...

E saíu da sala em direcção ao seu quarto.

A morgada, vendo-se só, pareceu respirar com sofreguidão, como o
encarcerado que conquista a liberdade e, como elle, pareceu conversar
comsigo mesma:

--Que alma de marmore a d'este homem! É um inimigo que tenho de portas a
dentro e que conservo porque me não permitte o animo nem a edade travar
lucta com tão arteiro contendor, que apara todos os golpes na batina com
beatitude irritante.

Depois levantou-se, agitou a campainha, e esperou com os olhos fitos na
porta que apparecesse a criada.

--A menina dorme? perguntou.

--Dorme, senhora morgada.

--Accende o candieiro e abre a mesa. Quando bater o sr. Teixeira, manda
entrar.

Palavras não eram ditas, resoou a aldrava do portão.

Momentos depois entrava á sala o velho Teixeira, fidalgo retirado das
pompas da côrte por conselho da consciencia que o advertia de que estava
a empobrecer d'um dia a outro. N'aquelles tempos que precederam a
retirada da familia real para o Brazil, as tentações de Lisboa eram
tantas, e tão dispendiosas, que não admirava que um cortezão immolasse a
celebradas damarias o seu opulento morgado do Minho. Alguma coisa
salvára porém o velho aulico do muito que na côrte consumira. Trouxera
de lá a palaciana compostura que realça até mesmo na decadencia.
Maneiras e palavras, pesadas com fina discreção, estavam desculpando a
cada passo as sombras que por mais d'uma vez denunciavam não ser
impeccavelmente crystalina a reputação das açafatas da rainha D. Maria I.

Entrou o fidalgo e logo correu a morgada a perguntar-lhe anciosamente:

--Que noticias nos traz vossa senhoria?

--Boas, senhora morgada, se póde haver boas noticias quando a
tempestade, que se descondensa n'um ponto, ameaça n'outro.

--Inda bem! inda bem! apostrophou a morgada relanceando um olhar
d'alegria á porta do quarto onde estava descançando a neta.

O padre capellão, sem se dar o incommodo de desculpar a ligeireza com
que alinhavara as suas orações, appareceu mordido de curiosidade.

--E o caso é que pensei que das indagações já não sobrava tempo para o
nosso voltarete!--disse o Teixeira sentando-se a um gesto da
morgada.--Venho tarde, e porei por desculpa da demora o bom empenho que
tinha em poder satisfazer a justa anciedade de vossa senhoria.

--Não obstante serem boas as informações, supplico-lhe que não aggrave
as côres do quadro, dado que entre por ahi de improviso a minha neta,
que se recolheu aos seus quartos, por ordem minha, para não ser
testemunha auricular da narrativa no caso de que fosse lugubre.

--Os francezes foram repellidos heroicamente, disse o fidalgo baixando a
voz.

--Vamos a isso! atalhou o padre capellão fungando uma pitada.

O fidalgo proseguiu:

--Os francezes não ousaram metter-se ao Minho, que vae de monte a monte,
com a agua que tem caído, por se arreceiarem da cheia. Trouxeram por
terra os barcos que puderam obter na Guardia, e puzeram-n'os a nado no
Tamuge.

--Que artes teem os malditosl exclamou o capellão lembrando-se de
que não haveria thesouro que resistisse á astucia franceza.

--Deixe ouvir... observou a morgada.

--Eram vinte e tantos os barcos, que pretendiam abicar á praia do
Camarido. Trez separaram-se, ao descer o rio, e chegando primeiro á
praia, os soldados desembarcaram. Os outros barcos tiveram que luctar, e
muito, contra a maré que lhes era adversa. Isto durou toda a noite. Só
hontem de madrugada foi que o Champalimaud percebeu claramente a
tentativa do inimigo, e que mandou fazer fogo de fuzilaria. Um dos
barcos foi a pique; outro despedaçou-o o mar. Os francezes dos trez
primeiros barcos refugiaram-se no Camarido. Estes desastres deram alento
aos paisanos, que se embarcaram para atacar o inimigo no rio, protegidos
pela artilharia da Areia Grossa e da Insua, e pelos soldados do 21. Os
francezes, contrariados pela correnteza das aguas e pela resistencia dos
nossos, retrocederam para a margem direita do Minho, desesperando
d'atravessal-o. Então bateram os nossos a matta do Camarido, encontrando
dentro mais de trinta francezes, um dos quaes consta ser capitão e haver
declarado o nome do general em chefe de todo o exercito. Chama-se Soult
o general...

--Elles tambem escolhem-n'os pelos nomes! interrompeu o padre para quem
toda a prosodia era difficil, incluindo a latina e a... portugueza.

--Os paisanos, segundo se dizia em Braga, fizeram proezas, continuou
placidamente o fidalgo. Até as mulheres acudiram com fouces roçadouras e
forcados.

--Nunca as mãos lhes dôam... observou impudentemente o capellão

--Pelo meio dia atacaram os francezes Villa Nova da Cerveira, sendo
ainda repellidos brilhantemente pelos nossos, tropa e povo. Mas, senhora
morgada, o que mais dava que falar era a coragem de trez rapazes de
Valença, que se arrojaram a ir encravar um morteiro, que os francezes
tratavam de assestar contra a praça. Isto é o que se sabe desde manhã; o
que já se terá passado pertence a Deus e aos que estão em armas.

--Mas que lhe parece a vossa senhoria: entrarão ou não entrarão?
perguntou a morgada.

--Para que nos havemos de illudir com mentirosas esperanças? Os
invasores são poderosos e por mais d'uma parte poderão entrar, ao passo
que os nossos, divididos para guarnecerem as fronteiras, perdem muito de
sua força n'essa mesma divisão.

--Com que então não se fala por ora em guerra! disse de improviso a
morgada ouvindo abrir a porta do quarto d'Augusta.

O fidalgo já não teve tempo de responder porque sentiu na sala os passos
da menina.

--Então não ha guerra? exclamou Augusta com graciosa innocencia.

--Não ha, não ha, respondeu amavelmente o fidalgo; a não ser a do nosso
voltarete.

E continuou, convidando a morgada a sentar-se:

--Permitta-me vossa senhoria, senhora morgada que eu continue a assestar
a bateria dos codilhos contra a muralha de _preferencias_ do nosso
reverendo. Então, padre capellão, quer sentar-se?... Em que estava
pensando tão absorto?

--Estava pensando que se não puderem entrar pelo litoral, poderão entrar
por Chaves, porque o castello está desmantelado, disse o capellão com a
maxima impudencia ou com a maxima velhacaria.

--O quê?! perguntaram todos a um tempo, incluindo Augusta, que pareceu
fulminada de raio.

--Ah! sim... isto é quando elles entrarem. Vamos lá fazer a partida.

      *      *      *      *      *


III

Pomba que presente sangue

A morgada das Chãs passou agitadamente essa noite, e do inquieto cogitar
na solidão do seu quarto resultou levantar-se decidida a partir n'esse
dia com a neta.

O padre capellão negociou as cem moedas... comsigo mesmo, dizendo que as
obtivera d'um proprietario mediante o desconto dos juros d'um semestre
adiantado.

Partiu a morgada, de manhã, para o Porto, acompanhada por Augusta,
depois de haver entregado as chaves da sua casa ao capellão, que tinha
nos labios um sorriso de alvar alegria. Tambem a morgada estava radiosa
do duplo jubilo de poder respirar desopprimida da sombra d'aquelle
homem, e de ir collocar sob o amparo paternal a neta querida do seu
coração. Nas faces d'Augusta havia egualmente um reflexo d'intimo
contentamento, não só porque a aproximavam dos paes, mas porque a
levavam para os braços do irmão, a quem ternamente estremecia, e com o
qual permutava cartas diarias perfumadas das mais suaves fragrancias do
amor de familia.

A menina contava quinze annos, como já sabemos; o irmão, que se chamava
José Maria, tinha dezeseis. Estas duas creanças eram filhas do capitão
do exercito Graça Strech, que em 1809 morava á rua nova do Almada[2].
O appellido Strech inculca á primeira vista procedencia
estrangeira, e realmente é d'origem germanica. O pae do capitão Graça,
allemão de nascimento, fôra capitão de navios, e tivera por ultimo um
modesto estabelecimento commercial em Cima do Muro. Os dois filhos de
Graça Strech nasceram porem á rua Direita, na casa que divide a rua de
Santo Ildefonso da rua de Santo André, e onde elle morára durante os
annos de 1793 e 1794.

Augusta era tudo o que se póde imaginar de graciosamente feminil na
época em que nos é dado conhecel-a. O pintor que quizesse retratal-a
facilmente lançaria á tela os cabellos loiros, naturalmente annelados;
os olhos d'um azul suavissimo como os mais formosos horizontes; as faces
d'uma brancura levemente rosada; a estatura _mignonne_,--tudo quanto
póde haver de mais correcto e dôce em figura de mulher. Mas a
difficuldade estaria seguramente em reproduzir no retrato a meiga
morbidez dos lirios que se abrem ao desabrochar da manhã. E n'ella
brotava a mulher das graças da creança, como um lirio á luz da aurora.

José Maria era uma organisação inteiramente opposta á de sua irmã.
Dir-se-ia que ella havia nascido para rosa, e elle para roble; ella para
succumbir, e elle para luctar. Desenhavam-se no seu corpo de dezeseis
annos os contornos athleticos d'um spartano. Olhos vivos, e pretos como
os cabellos; talhe esbelto, maneiras sacudidas e ageis. Pois que elle
era a força e Augusta a brandura, affigurava-se providencial essa
disparidade de constituições, e até de genios, para que a flôr pudesse
ser protegida pela sombra do roble.

Quando a morgada das Chãs chegou ao Porto, entrou-se de profundo
arrependimento por ter feito vingar a sua resolução. Em casa da familia
Strech era grande a tristeza. O pae e o irmão[3] estavam no
exercito, e portanto a tristeza provinha da anciedade com que o azar dos
combates alvoroça sempre as familias dos militares.

--Eu trouxe Augusta, dizia a morgada, chorando, á filha, para que, se
houvesse de correr perigos, não ficasse o meu coração atormentado de
medonha responsabilidade; porque mais facilmente saberia aqui noticias
do pae e do irmão do que nas Chãs; e porque finalmente o Porto
offerecia maiores garantias e segurança do que qualquer outra terra.

De feito, a cidade do Porto era julgada inexpugnavel, e a ella se
acolhera grande parte da população do Minho, á medida que os
acontecimentos da guerra se iam desdobrando.

Tratemos de saber quaes foram.

Os francezes, impossibilitados de seguir o caminho do litoral, que lhes
tinha sido ordenado, marcharam para Traz-os-Montes no proposito de
entrar em Portugal pelo valle do Tamega. No dia 8 de março estavam as
avançadas francezas á vista de Chaves, que no dia 10 foi sitiada,
rendendo-se no dia 12. O marechal Soult, vendo-se impossibilitado de
guardar os prisioneiros, despediu as milicias e as ordenanças, que
estavam dentro da praça, depois de lhes exigir juramento de que nunca
mais pegariam em armas. As praças da tropa de linha convidou-as a
bandearem-se no seu exercito; ellas unanimemente aceitaram com o
proposito de desertar, como aconteceu.

O sonho de Soult era tomar o Porto, e para o realisar tinha nada menos
que dois caminhos: o que vae a Villa Real e o que vae a Braga. O
marechal preferiu o segundo, por ser o menos accidentado. Chegado que
fosse a Braga, só encontraria no caminho do Porto a difficuldade da
passagem do Ave em Santo Thyrso. Seguiu, pois, o exercito francez para
as alturas de Barroso no dia 14. O general Bernardim Freire d'Andrade,
tendo noticia de que os piquetes francezes escaramuçavam na Portella de
Avado e em Villarelho da Raia com as avançadas do general Silveira,
commandadas pelo coronel Magalhães Pizarro, tomou desde logo todas as
medidas possiveis para salvar o Porto, repartindo as suas pequenas
forças por Salamonde, Ruivães, Salto e Ponte do Cavez, guarnecendo a
raia, e mandando occupar Amarante o brigadeiro Victoria, a cujas ordens
militavam o capitão Graça Strech e seu filho.

No dia 15 foi Freire de Andrade insultado pela população de S. Gens,
quando voltava de visitar os postos entre Braga e Ruivães. O fim a que
avisava o general portuguez era retardar a marcha do inimigo sobre
Braga, quanto lhe fosse possivel, para dar tempo a que d'aquella cidade
saíssem para a defeza do Porto as munições e o laboratorio. Depois de
haver expedido ordem ao brigadeiro Victoria para se internar no
Porto, recolheu-se Freire d'Andrade no dia 17 a Braga, encontrando por
todo o caminho vestigios da grandissima exaltação popular, que se
levantára mal que soou a noticia da aproximação dos francezes. Dado o
signal de rebate, o povo do Minho saíu em turbamulta a esperar o inimigo
em Carvalho d'Éste, e outros logares convisinhos, armado de chuços,
fouces roçadouras, e mais instrumentos proprios do seu uso.

Em Carvalho d'Éste houve brodio geral, constante de pão e vinho, a
expensas d'alguns particulares patriotas, o que não obstou a que um dos
membros da sordida junta de segurança apresentasse o rol das despezas.
Procedendo-se a uma collecta geral, que foi voluntariamente paga, ficou
o povo duplamente esfomeado, porque a contribuição parece que só
aproveitou á junta de segurança.

Avisinharam-se, finalmente, os francezes da cidade de Braga, e
conhecendo Freire d'Andrade, no dia 17 em que ali entrou, que era
impossivel qualquer defeza, mandou retirar pela estrada do Porto,
resolvido a embargar denodadamente o passo ao inimigo n'essa marcha.

Todavia o povo, suppondo-o traidor por não se haver empenhado em acção
geral com os invasores, saíu-lhe ao encontro em Carapoa, e já ahi seria
morto se lhe não valesse Antonio Berardo da Silva, commandante de uma
brigada de ordenanças.

Removido o inesperado perigo, seguiu o general seu caminho, mas
encontrando-o as ordenanças de Tabosa, prenderam-n'o e conduziram-n'o a
Braga, onde, chegado que foi é prisão do Aljube, a populaça desenfreada
o arremessou pelas escadas abaixo, acabando de matal-o ás chuçadas.

Subsequentemente foram tambem immolados á sanha popular, em Braga, o
quartel-mestre general de Bernardim Freire, Custodio Gomes Villas Boas,
o corregedor da cidade, Bernardo José de Passos, e outros; e em Santo
Thyrso, D. João Correa de Sá e Manoel Ferreira Sarmento.

No mesmo dia da morte do general Bernardim Freire de Andrade tomavam os
francezes posição em frente de Carvalho d'Éste, sendo repellidos no
primeiro ataque.

O barão d'Eben commandava as nossas tropas, com as quaes se havia
bandeado a gente das aldeias convisinhas. Entre a populaça contavam-se
os criados da quinta das Chãs que desampararam o padre capellão, sempre
prompto a castigal-os, e odiado por elles.

Pelas onze horas da noite chegaram, para reforçar o posto, a legião de
Salamonde e duas companhias do regimento de Vianna. Soldados e povo
estavam famelicos. Durante a noite um magote de populares, engrossado
pelos criados da morgada, bateu ao portão da quinta. Ao primeiro
chamamento não respondeu ninguem; ao segundo assomou a uma das janellas
a cabeça silicosa do padre capellão.

--Pão e vinho! gritou a turba.

--Não está cá a senhora morgada, tartamudeou o reverendo.

--É o mesmo; abra a porta, contestou o gentio.

Como porém a impaciencia da turba fosse muita, a populaça metteu a porta
dentro a tempo que o padre atravessava o pateo de lampeão em punho.

Um dos populares vibrou-lhe uma chuçada que o prostrou, e logo outro,
que era criado da casa, acrescentou:--Vamos á _burra_ do padreca; no que
fôr da senhora morgada não se toca.

No dia seguinte atacou o inimigo novamente Carvalho d'Éste, e no dia 20
voltou ao ataque, apparecendo em grande força.

Parece que a Providencia havia aconselhado a morgada das Chãs a fugir de
um ponto onde a lucta foi mais renhida, porque, posto que os populares a
respeitassem, o inimigo caiu no dia 20 em forte columna sobre Carvalho
d'Éste, empenhando-se ataque geral, e sendo desesperada a posição dos
nossos, que fugiram em grande confusão, acossados muito de perto pela
cavallaria franceza.

No pateo da quinta das Chãs tinham os nossos quinze barris de polvora
que, não podendo ser salvos, por estar muito proximo o inimigo, foram
incendiados por ordem do barão d'Eben, perecendo oito homens na execução
d'esse serviço.[4] As chammas, enleiando-se pelos alpendres
encostados ao edificio, acabaram por envolvel-o, e, horas depois dos
francezes entrarem em Braga, e a tempo que o povo enfuriado matava
os presos encarcerados no Aljube, ardia, chammejando como fornalha
enorme, o solar das Chãs, a duas leguas de distancia da cidade invadida.

A noticia da tomada de Braga só se soube no Porto no dia 22, quer dizer,
quarenta e oito horas depois.

Havia dias que o brigadeiro Victoria se tinha internado n'esta ultima
cidade com as suas forças, por ordem do agora fallecido Bernardim Freire
de Andrade. Como já sabemos, o capitão Graça Strech e seu filho
militavam ás ordens deste brigadeiro. Portanto, teve Augusta occasião de
abraçar o irmão e o pae, que procuraram serenar com palavras de carinho
e conforto os receios do angustiado coração da menina.

A morgada, quando soube que os francezes tinham rompido por Carvalho
d'Éste sobre Braga, apesar de ignorar os pormenores da lucta, a morte do
capellão e o incendio do solar, agradeceu ao anjo da guarda a inspiração
da resolução tomada.

N'esse mesmo dia foi o Porto theatro de lastimosas scenas.

Conhecida a derrota de Braga, dirigiu-se a populaça á cadeia da Relação,
reclamando a entrega dos presos da Inconfidencia, e arrancando para fóra
dos muros do carcere o brigadeiro Luiz d'Oliveira e mais quatorze
infelizes, que foram arrastados pelas ruas até Villa Nova de Gaya,
d'onde a gentalha ensanguentada os precipitou, do Caes da Bica, á
corrente do Douro, por haverem sido condemnados á morte pelo tribunal
popular constituido na _Porta do Olival_.

Só o bispo, D. Antonio José de Castro, poderia, por muito respeitado que
era, conter a furia dos cannibaes das ruas, mas, provavelmente para não
incorrer no desagrado da canalha contrariando-lhe os brutaes instinctos,
deixou-a espostejar á vontade os presos da Inconfiencia.

Sua excellencia reverendissima é que se não arriscou a ser conceituado
de jacobino.

Quando a turba descia com os presos a calçada dos Clerigos, ouvia-se na
rua Nova do Almada a celeuma das victimas e dos algozes.

Augusta, tremula de horror, acolheu-se nos bracos do irmão, que obtivera
licença para sair por alguns momentos do seu posto na linha de
defesa, e poz as mãos supplicando a Deus que a tirasse do mundo onde os
homens se estavam despedaçando como feras no sertão.

Só as caricias de José Maria lograram aquietal-a, quando a vozeria soava
mais longe, porque já a multidão havia enveredado pela rua das Flores,
caminho da Ribeira.

A mãe e a avó pareciam agonisar abraçadas em estreito amplexo.

O marechal Soult, senhor de Braga, podia recuperar as suas communicações
com Tuy ou marchar sobre o Porto, mas, como era natural, attenta a
importancia d'esta cidade e a fama das suas riquezas, optou pelo segundo
dos caminhos a tomar, porque melhor realisaria assim o seu sonho de
conquistador.

Ouçamos o sr. Soriano historiando o roteiro que o marechal Soult seguiu
de Braga ao Porto: «Deixando portanto em Braga a divisão do general
Heudelet, para lhe defender a rectaguarda contra as incursões do general
portuguez, José Antonio Botelho de Sousa e Vasconcellos, que commandava
as forças da divisão da raia, entre os rios Lima e Minho, dividiu o seu
exercito em trez columnas, a primeira marchou pela estrada de Guimarães
a S. Justo, com ordem de forçar a passagem do Ave de Cima e occupar o
campo do lado de Pombeiro; a segunda, commandada pelo proprio Soult em
pessoa, marchou logo direita á Barca da Trofa; e a terceira, deixando
Barcellos, para onde de Braga tinha sido mandada, tomou a estrada da
ponte do Ave. A passagem d'este rio foi fortemente disputada pelos
portuguezes, sendo a columna da esquerda obrigada a bater-se
renhidamente em Guimarães, Pombeiro, Negrellos, e sobretudo n'este
ultimo ponto, onde morreu o bravo general Jardon, cuja falta muito
sentida foi pela totalidade do exercito inimigo. A marcha da columna do
centro foi interrompida na Barca da Trofa, por se ter n'ella cortado a
ponte do Ave; mas Soult, vendo o grande cumulo das nossas forças ali,
forçou a passagem em S. Justo, ganhando a margem opposta. Desde então
facil lhe foi a columna da direita fazer o mesmo, ficando assim vencida
a passagem do Ave em todos os pontos, e portanto aberto inteiramente o
caminho em direitura para a cidade do Porto, a cujos entrincheiramentos
o exercito francez chegou no dia 27 de março.»

Na tarde d'esse mesmo dia a guarda avançada do inimigo, acampado em S.
Mamede de Infesta, adeantou-se até um quarto de legua das baterias do
Porto.

Ouviu-se na cidade o fogo indicativo da aproximação dos francezes. Para
logo se espalhou o terror, não obstante terem sido organisados alguns
elementos de resistencia.

As familias que tinham os seus empenhados nas linhas de defeza,
afflictivamente receiavam os perigos de uma grande catastrophe, pois que
ainda quando a lucta fosse coroada pela victoria, havia de interpôr-se
aos primeiros combates e aos louros do triumpho um mar de sangue portuguez.

Que dolorosa commoção não seria a de Augusta, que torturado soffrer nas
vascas da anciedade não seria o seu, ao ouvir estrondear á distancia o
fogo que os invasores assestavam contra as linhas de defeza, onde
combatiam o pae e o irmão! Aquellas trez mulheres, a avó, a mãe e a
filha, ajoelhadas deante de uma imagem de Nossa Senhora, cerrando
convulsamente os olhos a cada detonação longinqua, dir-se-iam outros
tantos authómatos, empedrados pelo terror, se não fôra o ciciar dos
labios e o abrir e fechar nervoso das palpebras.

Sabem como baloiça a haste do lirio, quando o sopro calido da tempestade
proxima passa esfuziando por entre a folhagem das plantas que lhe
offereciam resguardo?

Tal era Augusta, lirio vasado em moldes de mulher, entre os dois
corações amigos, o da avó e o da mãe, que já não podiam garantir-lhe
protecção.

Conhecera o marechal Soult que era má a fortificação da cidade e má a
guarnição, e expediu no dia 28 um emissario propondo capitulação. O
emissario, para se não arriscar á morte, serviu-se de um ardil de guerra
e disse-se incumbido de negociar a entrega do exercito francez mediante
condições favoraveis.

Entrou o bispo em negociação, cuja má fé, por parte dos invasores,
estava manifesta na circumstancia de continuar a ser intenso o ataque
durante todo o dia.

N'essa tarde ouviu-se subitamente grande celeuma nas ruas.
Recresceu a anciedade no presupposto de serem as avançadas francezas.

A morgada das Chãs teve a coragem precisa para se aproximar da vidraça,
e viu um militar francez rodeado de grande turba de populares que
gritavam enfuriadamente: «_Morra o Maneta! Morra!_»

Adivinhou-lhe o coração que era um emissario, que provavelmente ia á
bateria de S. Francisco a parlamentar com o bispo. Quasi defronte das
janellas, como augmentassem as vozes de: _Morra Loison, morra o Maneta_,
o militar francez levantou ambos os braços para desfazer o equivoco. Não
obstante, a populaça arremettia contra o cavallo em que elle vinha
montado, e a celeuma rugia temerosamente.

A morgada correu a abraçar a filha e a neta, ajoelharam orando
fervorosamente, e longo tempo supplicaram que um raio da Providencia
illuminasse o coração do povo, para que á desgraça da invasão não
sobreviesse a furia da represalia.

O emissario francez não era effectivamente o general Loison, mas o
general Foy; com blandicias e ameaças, escriptas por Soult, vinha propôr
a rendição, que foi recusada.

Com este acontecimento fechou a tarde do dia 28 tempestuosa e triste,
como se o céo compartisse do luto da terra. Ás detonações do trovão
respondiam as detonações da artilharia.

    [2] Chamava-se então rua _Nova_, porque o celebre governador
    da cidade. Francisco d'Almada e Mendonça, fallecido em 1804, tinha
    transformado a antiga rua das Hortas n'esta nova rua, que tomou
    o seu nome.

    [3] Por decreto de 11 de dezembro de 1808 toda a nação foi
    obrigada a pegar em armas.

    [4] Este facto consta do relatorio do proprio barão.

      *      *      *      *      *


IV

Horrores da invasão

Durante a noite de 28 para 29 continuou tão rijo o fogo, que o inimigo
logrou forçar a bateria da Prelada.

Grande era o pavor da cidade, e maior foi quando se soube que sua
excellencia o bispo generalissimo se havia retirado para a Serra do Pilar.

Este facto demonstrava não só a descrença do prelado na defeza do Porto,
senão que tambem punha a descoberto a intenção de fuga, no caso de
perigo, o que realmente aconteceu.

Não lastimemos a impiedade deshumana do pastor, que abandonava em tão
dolorosa conjunctura o rebanho indefeso, porque basta a historia a
stygmatisal-a, mas calculemos a funesta impressão que semelhante noticia
causaria nos animos desalentados dos portuenses.

A familia do capitão Graça Strech foi seguramente uma das que mais
succumbiram n'aquella tormentosa noite.

As trez mulheres estavam entregues ás suas orações e angustias,
inabalaveis no proposito de esperar a pé quedo a desgraça,
verdadeiramente sós, porque os criados, que foram os primeiros a dar
rebate, fugiram, durante a noite, bandeados com outros habitantes, para
Gaya.

O capitão e o filho combatiam ás ordens do brigadeiro Victoria, na linha
do Bomfim, posto defensivo que, á hora da invasão, veiu a nobilitar-se
com esforçados prodigios de coragem por parte do intrepido brigadeiro e
dos seus.

Umas visinhas da familia Strech, já preparadas para a fuga, instaram com
as pobres senhoras para que as acompanhassem. Segundo o seu plano,
acoitar-se-iam em Gondomar, onde diziam ter parentes lavradores.

Augusta, lavada em lagrimas, e offegante de commoção, reagiu energicamente.

--Se meu pae e meu irmão morrerem--dizia ella--deixemo-nos morrer
tambem, porque o viver sem elles seria peior que a morte. Se vencermos,
seremos as primeiras a abraçal-os, a agradecer-lhes por nós e pela
patria. Elles cumprem o seu dever; e nós tambem. Elles estão no seu
posto; nós estamos no nosso. O meu coração revolta-se contra a ideia de
levarmos o egoismo da nossa vida até ao esquecimento de que temos dois
soldados nas linhas de defeza. Muito obrigada, minhas amigas, mas minha
mãe e minha avó são da mesma opinião, e ficaremos todas. O perigo, se o
houver, repartido por trez será menor. Vão, não percam tempo; oxalá que
nos tornemos a vêr...

E despediram-se, chorando e soluçando, como se se despedissem para a
eternidade.

Ao alvorejar da manhã forçaram os francezes as baterias de Santo
Antonio, Pedral e Aguardente.

A cavallaria inimiga, entrando a dois de fundo pelas ruas da cidade,
correu a atacar pela rectaguarda as baterias que resistiam ainda.

Uma das que por mais tempo, e mais heroicamente resistiram, foi a do
Bomfim.

Já quando era grande a confusão em todo o circuito, destacou o
brigadeiro Victoria para o exterior da linha a gente que lhe restava da
legião lusitana, e mais duas partidas na força total de cem homens.

O brigadeiro, o tenente coronel Champalimaud, o ajudante da praça de
Valency, Antonio de Azevedo, e o capitão Graça Strech corriam
denodadamente de um lado a outro animando o povo, que ali confluira, e
que esperava poder fugir protegido por duas baterias, as quaes não só
defendiam a rua do Bomfim mas até as baterias de Campanhã.

Outro tanto não aconteceu no lado esquerdo da linha, commandado pelo
brigadeiro Antonio de Lima Barreto.

Logo pela manhã o immigo começou a atacal-o com energia; Barreto,
perdendo algumas baterias, voltou-se para os artilheiros dizendo-lhes:

--Encravem as peças. Retirem-se. Estamos perdidos.

Os soldados, ouvida a ignara apostrophe, metteram-lhe duas balas
no corpo, e despejaram a ultima polvora contra o inimigo.

Quando a cavallaria franceza, forçando a bateria d'Aguardente, entrou na
cidade, as ordenanças, desamparados os postos, fugiram tumultuariamente
para a ponte pelas ruas da Sovella e nova do Almada.

A morgada, ouvindo o estridor dos fugitivos, ainda longinquo, correu á
janella, e reconheceu á distancia as ordenanças.

--Que é? perguntaram-lhe anciosamente a filha e a neta.

--Não é nada; é o povo que se affez a correr e a gritar, respondeu a
morgada, tranquillisando ambas.

Como porém a massa enorme rolasse já mais perto, ouviram-se
distinctamente vozes de:

--São os francezes!

--Vem ahi!

--Fujam! fujam!

--Á ponte! á ponte!

--Não ha outro caminho!

--Depressa!

Augusta, que tinha chegado a meio da sala, recuou espavorida, e
deixou-se cair nos braços da mãe, gritando dolorosamente:

--Ah! meu pae!... meu irmão!

Os francezes, entrando na cidade, levaram de roldão adeante de si a onda
allucinada dos fugitivos que procuravam salvar-se. D'elles, uns tomavam
a direcção da Foz, outros, em maior numero, corriam para a Ribeira, na
ancia de atravessar para Villa Nova. Alguns passaram o rio a nado ou em
barcos. Mas o grosso da multidão, enovelando-se n'uma vertiginosa
confusão de pavor, rolou sobre a ponte, cujo taboleiro assentava, de
espaço a espaço, sobre um renque de lanchões. E as primeiras pessoas que
conseguiram transpol-a abriram, logo que se julgaram a salvo, os
alçapões da ponte--systema de defesa empregado em casos
extremos--pensando preparar assim um desastre aos francezes que as
perseguiam.

Novos fugitivos, onda sobre onda, empurrando-se uns aos outros, cegos de
desespero, loucos de medo, iam caindo pelos alçapões ao rio, e a
dizimada cavallaria portugueza, fugindo tambem, e procurando a ponte,
maior pressão fazia ainda sobre a grande massa de povo, pisando-a,
atropellando-a, empurrando-a com os cavallos para o sorvedouro
hiante onde centenas de pessoas desappareciam, ao mesmo tempo que as
baterias de Villa Nova, vendo os francezes descer a rua de S. João, iam
metralhando a Ribeira, e augmentando involuntariamente o terror e o
morticinio.

Diz-se que eram tantos os mortos, que, empilhados no vacuo dos alçapões,
nivelaram o pavimento da ponte, facilitando passagem aos ultimos
fugitivos por cima de rumas de cadaveres sobrepostos uns aos outros.

Os proprios invasores se commoveram com esta horrorosa tragedia, e ainda
puderam salvar da morte algumas pessoas.

Depois, lançando pranchas sobre os alçapões, passaram para Villa Nova,
d'onde facilmente desalojaram as nossas baterias.

Saibamos agora qual seria a sorte do capitão Graça Strech e da sua
familia n'essas crudelissimas horas da invasão.

Esteve o capitão ao lado do brigadeiro Victoria, na bateria do Bomfim,
até aos ultimos momentos em que a ambos, e a poucos mais, foi dado
combater pela patria.

O que é certo, e a historia o refere, é que puderam proteger a retirada
de mais de seis mil pessoas, que se evadiram por aquelle lado da cidade.

Abrigados os restantes valentes por um muro, que se levantava no outeiro
do Bomfim, lograram continuar o fogo com desesperado denodo.

Foi realmente heroico esse render-se de heroes, quando, desamparados de
todo o soccorro, enviaram ao inimigo a ultima metralha que lhes restava.

O brigadeiro Victoria, conhecendo insustentavel a posição, apertou a mão
do tenente coronel Champalimaud, do ajudante Antonio de Azevedo e do
capitão Graça Strech, dizendo-lhes com voz tremula de commoção:

--Meus amigos, meus bravos amigos, o sacrificio da nossa vida nada
aproveitaria á patria, que está invadida. Fizemos o nosso dever;
pelejámos emquanto pudemos. Agora que cada um procure salvar a sua vida
para quando mais util possa ser á terra em que nascemos.

Mal acabava de dizer estas palavras cahiam feridas duas pessoas
das que rodeavam o brigadeiro: o commandante dos artilheiros e o capitão
Graça Strech.

--Que foi? perguntou Victoria.

--Foi a ultima arcanhadura dos francezes, responderam a um tempo os dois
bravos militares.

Era necessario retirar; por Campanhã já não podia ser. Optaram por
atravessar o Douro, que o brigadeiro e alguns officiaes conseguiram
passar defronte d'Avintes. N'esse numero porém não podemos incluir o
capitão Graça Strech.

Ferido no peito, se bem que houvesse dissimulado a gravidade do
ferimento, conheceu que era perigoso o seu estado. Foi então que se
lembrou da filha, da esposa, da sogra, e do filho, que havia duas horas
tinha perdido de vista.

Que seria d'ellas, pobres mulheres, entregues sem protecção aos horrores
d'aquelle dia? E o filho, que se batera como valente na bateria do
Bomfim, haveria ficado entre os muitos que lá succumbiram, e adormeceram
sobre a terra embebida no sangue de seus irmãos?

Não sabia.

Oh! mas era preciso que o soubesse antes que se lhe fechasse em torno a
noite escura da eternidade. Pouco lhe importava morrer; o que elle
queria era obter a certeza de que a embriaguez da victoria não tinha
desvairado os invasores ao extremo de não respeitarem fracas mulheres
indefesas.

Ainda se restasse vigoroso o braço do filho para amparar o golpe que
fosse vibrado contra ellas!

Não o pôde suppôr; julgou-o morto nos derradeiros momentos da refrega,
por que o não tornou a vêr.

Atravessar o Douro era arriscado; tentar internar-se na cidade, tambem.
Todavia o primeiro meio era a morte no desespero; o segundo podia ser a
morte com a esperança.

Abraçou-se pois a esse unico esteio que lhe restava--a esperança, de
poder abraçar os seus.

Arrancou os vivos da farda, e, esquecido de si, e do sangue que cada vez
lhe repuxava do peito com maior intensidade, tentou descer a rua do
bomfim e bandear-se em logar azado com a turba dos que percorriam as
ruas desvairadamente.

Do militar que fôra, arrancados os vivos e emblemas, só lhe restava a alma.

Poucos passos andados, sentiu porém que lhe ía fugindo a vista, á medida
que empenhava as ultimas forças para adiantar caminho.

Ainda mais uma vez enganára a coragem do soldado o coração do pae.

Quiz andar. Fraquejaram-lhe as pernas, e Graça Strech procurou com a mão
um amparo que não encontrou.

Após um momento de oscillação, ruiu em terra. Estava morto.

Entretanto havia occorrido a enorme desgraça da ponte, e os invasores,
enfurecidos pela resistencia que encontraram, iam encetar as tremendas
represalias que estão na memoria de todos os portuenses.

Infelizes os que tiveram de assistir hora a hora a esse drama de sangue
e terror que teve por bastidores os muros d'uma cidade inteira.
Infelizes os que viram despedaçar-se momento a momento nas garras dos
cannibaes os até então immaculados thesouros do seu coração. Infelizes,
finalmente, os que viram cavar-se a seus pés a sepultura ingente de
milhares de familias e não puderam enchel-a com o sangue dos que
assassinavam em nome da victoria.

José Maria da Graça Strech pertence ao numero d'estes grandes
desgraçados, que foram muitos.

Quando a bateria do Bomfim protegeu a fuga de seis mil pessoas, já
quando, depois das oito horas da manhã, era desesperada a situação dos
portuenses, duas senhoras, que se destacaram da multidão desorientada,
acenaram ao denodado moço que por acaso olhára na direcção que ellas
seguiam.

Elle reconheceu-as. Eram as duas visinhas que horas antes tinham
convidado Augusta a acompanhal-as na fuga e que, arrastadas pela onda
impetuosa dos que procuravam salvação, chegaram até ao Bomfim.

Abeirou-se o moço a falar-lhes, por um momento radioso de felicidade,
porque lhe acudira a lembrança de que as pessoas da sua familia as
haveriam acompanhado. Oh! se sua irmã, se a estremecida menina estivesse
ali, poderia fugir incolume aos horrores que elle presagiava imminentes,
attenta a vantagem do inimigo em toda a linha.

--Ellas vieram? perguntou açodadamente José Maria.

--Não, teimaram em ficar, respondeu confrangida uma das senhoras.

--Oh! meu Deus! exclamou o filho do capitão Strech levando a mão ao
coração.

--Veja se póde salval-as, salve-as por Deus, que estão sósinhas,
desampadas de criados...

--Mas como? Como?! articulou o moço estendendo o braço para a posição do
inimigo, como se quizesse indicar que era preciso combater a todo o transe.

--Augusta, a pobresinha, fazia dó! Oh! salve-a, salve-a, que ella
morrerá de pavor! acrescentou a outra visinha.

--Augusta! Augusta! repetiu José Maria, perplexo, olhando para as duas
lacrimosas mulheres e para os seus companheiros d'armas que defendiam á
distancia a unica bateria que não se tinha rendido.

E, sem se mover do sitio em que empedrára, dizia com desalento:

--Pobresinhas! E meu pae ali, exposto á morte a todo o instante, e ellas
sem defeza, sem ninguem!...

Então, aproveitando a opportunidade d'um momento, ordenára o coronel
Champalimaud que se désse passagem ao magote dos fugitivos que mais se
tinha adiantado.

--Vão, vão, gritou o moço affastando com o braço as duas
mulheres--Salvem-se ao menos, e obrigado, muito obrigado. Eu verei se as
posso salvar... a ellas, a Augusta.

O troar proximo do canhão pareceu chamal-o á realidade do perigo.

--São elles, disse de si para comsigo, correndo na direcção da bateria,
os poucos que n'esta hora se sacrificam pela patria. E tambem hão de ter
mãe, e irmã... e estão ali, firmes, corajosos, heroicos. Oh! cobardia do
meu coração, não, não te posso, não te devo ouvir...

E não tardou que se collocasse ao lado dos seus esforçados companheiros.

Todavia cada vez se aproximava mais o lastimoso desfecho d'aquella
desesperada resistencia. Começava a lavrar a confusão na bateria,
fustigada por violento fogo dos francezes--indomito ataque, de que
em breve foi victima, como já dissemos, o proprio capitão Graça Strech.
Tamanha era a fumarada, que já se tornava impossivel verem-se uns aos
outros. Foi então que José Maria, involto na cerração da metralha,
conhecendo que era impossivel prolongar por mais tempo aquella proeza de
bravos patriotas, se lembrou de que nada aproveitaria á causa da patria
o sacrificio da sua vida. E soaram-lhe aos ouvidos as palavras
afflictivas das duas mulheres, e sonhou ver estenderem-se para elle os
braços tremulos d'Augusta, que pedia soccorro.

Então, como se o coração houvesse decretado uma sentença irrevogavel,
cortou resolutamente o fumo da polvora, e affastou-se da bateria,
murmurando os nomes de sua mãe, de sua irmã, de sua avó.

Momentos depois foi que o brigadeiro Victoria fugiu tambem, e que o
capitão Graça Strech caiu morto na rua do Bomfim.

Trabalhoso e arriscado foi o abrir caminho por entre a multidão que,
semelhante a um grande mar, ondulava no vertiginoso fluxo e refluxo do
desespero. Algumas vezes teve de se esconder, outras de retroceder, e só
pela tarde chegou á rua nova do Almada.

Abroquelado pela energia da coragem, e mais feliz ou mais infeliz que
seu pae, venceu todas as contrariedades, até que finalmente, escoando-se
por entre os grupos desvatrados, entrou em casa no momento em que ao
fundo da rua assomavam tropas francezas que, senhoras de toda a cidade,
continuavam o saque, as violações e a carnificina que tristemente
assignalaram esse dia memoravel nos fastos da nossa historia.

      *      *      *      *      *


V

O juramento de vingança

As casas da rua nova do Almada estavam pela maior parte desertas.

Foi esta uma das ruas que mais lutuoso espectaculo offereceram. Os
habitantes fugiram deixando abertas as portas, de modo que, á hora em
que começou o saque, os francezes se locupletaram tranquilamente. Poucos
foram os predios que lhes deram o breve incommodo de forçar a entrada. A
este numero pertenceu, porém, a casa onde se conservou, entregue aos
seus pavores, a familia Strech. José Maria, ao entrar açodado pela
aproximação dos invasores, appellou para o ultimo recurso de defeza que
lhe restava: fechou a porta. Lembrou-se de que os francezes se
domiciliariam nos predios devolutos e de que não porfiariam em forçar
uma entrada encontrando abertas tantas portas. Não pôde imaginar n'esse
momento de suprema preoccupação que meditassem a pilhagem e a
carnificina que, passadas horas, consummaram.

Correu, pois, a procurar a irmã, a mãe e a avó, que, ouvindo passos
apressados, e no presupposto de serem os de algum soldado francez,
romperam em gritos angustiosos, traindo d'este modo o segredo dos seus
esconderijos.

--Augusta! Augusta! Minha mãe! Avósinha! apostrophou precipitadamente
José Maria para serenal-as e correndo pelo corredor.

--José! José! exclamou uma voz que parecia soar das profundezas de um
tumulo.

E logo dois braços tremulos de commoção enleiaram o moço, e uns labios
gelados de mortal frialdade lhe procuraram as faces, e um novo grito de
dolorida alegria lhe estrugiu aos ouvidos.

E immediatamente soaram passos, que elle conheceu: a mãe e a avó,
seguindo a pobre menina que as precedera, correram ao encontro de José
Maria.

Augusta, apertando-o contra o peito, alternando beijos e olhares por
egual frementes, porque o sangue congelado no coração parecia, acordado
de subito, correr em turbilhões ao cerebro, não lograva articular
palavra, tão violenta era a sensação que estava experimentando.

Não assim, porém, sua mãe, que, parando como que fulminada á porta,
tivera comtudo voz para perguntar ao filho enleiado pela irmã:

--E... teu pae?

--Lá ficou ainda a combater com os ultimos valentes. Bem póde ser que a
Providencia o tenha salvado como a mim me salvou. O cobarde fui eu, sim,
fui eu, porque me lembrei de ti, minha irmã, e de si, minha mãe, e...

Não pôde completar a phrase, porque de repente foi chamado á realidade
pelo estrepito que a soldadesca franceza fazia na rua.

--Retirem-se! escondam-se! gritou elle. São os francezes, bem os vi, são
elles! Esconde-te, Augusta, minha mãe, minha avó...

N'este momento estremeceu o predio nos alicerces como se a porta tivesse
soffrido o embate de um ariete.

--Que é? Onde é? perguntou offegante a menina, que de novo descorára até
á lividez do cadaver.

--São elles que forçam a porta, naturalmente... Eu fechei-a quando
entrei, sim, eu fechei-a.

--E estava aberta! Foram os criados quando fugiram! acrescentou a avó.

--Escondam-se, escondamo-nos todos. Viram-me decerto entrar.
Perseguem-me! tornou afflicto José Maria.

E, após segundo estrondo, soaram no portal e na escada os passos da
soldadesca que entrava.

Das quatro pessoas que estavam na sala, nenhuma pôde fugir; todas como
que ficaram chumbadas ao pavimento.

E os francezes entraram vozeando, praguejando, e logo assomaram á porta
muitas cabeças cujos olhos chammejavam de cubiça e sensualidade.

Então José Maria, como galvanisado de subito, adeantou-se para a porta,
estendendo o braço para defender as trez mulheres e, quando ia
talvez a balbuciar uma supplica, caiu desamparado, vibrando um grito e
recebendo no peito a ponta de uma bayoneta, cujo golpe fôra mais
doloroso que profundo.

As vozes das trez mulheres, conglobadas n'uma só, soltaram uma d'essas
exclamações impossiveis de descrever, apenas comparavel ao grito
lamentoso da araponga no deserto, quando encontra vazio o ninho, porque
uma ave de rapina lhe arrebatou a prole.

E a soldadesca entrou de roldão na sala, affastando com o pé o corpo de
José Maria, sedenta de prazer e rapina.

Para os que suppozerem que exageramos com toques demasiado sombrios os
horrores que se succederam á invasão do Porto, vamos copiar apenas
algumas linhas da _Historia da guerra civil_, de Soriano:

«Para cumulo de todas estas desgraças a cidade foi posta a saque, por
castigo da sua resistencia, como em casos taes se costuma praticar,
saque que começou pelas onze horas do dia, levando os vencedores a todas
as casas de habitação, a par do terror que infundiam, o roubo, a
violação e a morte, excitados de mais a mais para isto por encontrarem,
segundo alguns dizem, varios prisioneiros francezes sem olhos, com
linguas cortadas, e os membros truncados ou rasgados.»

Alguns escriptores o dizem, em verdade; um d'elles é o sr. Claudio de
Chaby que, nos seus _Excerptos historicos_, refere:

«No transito das ruas e praças encontraram os soldados de Soult alguns
dos seus camaradas, que nas differentes refregas tinham os nossos
aprisionado, exercendo n'elles as sevicias da mais repugnante crueza: a
uns tinham cortado a lingua, arrancado a outros os olhos ou decepado os
membros!--O effeito natural da observação de taes crueldades, junto á
tambem natural disposição de espirito dos invasores em taes
circumstancias, levou estes á pratica de vingativos e deploraveis
excessos, de _assassinato, roubo, violencia e profanação_!»

O mais que se passou na casa da rua nova do Almada, depois que a
soldadesca entrára, não o soube exactamente José Maria que, ao cerrar da
noite, tornára a si, depois de haver perdido muito sangue pelo
golpe que recebera no peito. Foi de tempestade na terra e no céo essa
noite, como podem confirmar os poucos que se lembrarem d'ella.

Tamanho era o temporal havia dias imminente ao Porto, que trinta navios
inglezes, carregados de vinho e outros productos, impedidos de sair das
aguas do Douro pelo mau estado da barra, caíram em poder do marechal
Soult, bem como a polvora guardada n'um vasto armazem, e 196 peças de
artilharia, recolhidas nas differentes baterias da cidade.

Algum tempo esteve José Maria firmado sobre o braço direito, que
d'instante a instante fraquejava, procurando orientar-se e recordar-se.

Era profundo o silencio na casa toda.

Dir-se-ia que despertava n'um tumulo.

Assim que pôde rememorar o que se passára até ao momento de ser ferido,
entrou de chamar em altas vozes a irmã, a mãe e a avó.

Apenas porém respondia ás suas afflictivas exclamações o chofrar dos
aguaceiros nas vidraças.

Ergueu-se com muito custo, atabafando o sangue com a roupa, e começou a
sondar a escuridão, procurando alguem.

Não tardou que tropeçasse n'um obstaculo que os pés encontraram.
Curvou-se e tacteou. Encontrou vestidos de mulher. Estendeu a mão e
apalpou um rosto. Até pelo tacto conhecemos os nossos. José Maria
estremeceu como se tivesse recebido em pleno peito um novo golpe de
ferro, e rugiu d'afflicção e desespero. Não podia duvidar. Era o rosto
de sua irmã. Parecia morta! Entrou de agital-a, de chamal-a. O mesmo
silencio, a mesma immobilidade!

--Mortal morta! rouquejava elle convulso.--Minha mãe! minha avó!

E unicamente lhe respondia a chuva a fustigar a vidraça.

Occorreu-lhe porém que, como se deu com elle, podia ser que sua irmã
estivesse apenas adormecida em deliquio.

--Ella é tão delicada! apostrophou-se elle. Desmaiou talvez.
Julgaram-n'a morta. Deixaram-n'a. Mas minha mãe? E minha avó?

Era preciso tirar-se d'aquella duvida horrivel.

Sondando as trevas, saíu tremendo, a procurar luz.

Momentos depois voltava cambaleante á sala e, levantando una candieiro
de latão á altura da cara, reconhecia trez cadaveres.

..........................................................................

N'essa mesma noite, e a essa mesma hora, ruidosamente se banqueteavam
n'uma taberna do largo da Lapa, ebrios de vinho e victoria, alguns
soldados da divisão Delaborde.

Comia-se, bebia-se, fumava-se, cantava-se. Era a celebração solemne d'um
dia de saque, que requeria uma noite d'orgia. Algumas vivandeiras
francezas cantavam em côro, no idioma patrio, e reclinadas aos hombros
dos soldados, uma canção marcial, cujo estribilho podia ser traduzido
d'este modo:

    Viva a França! viva a França!
    Que triumpha na matança!
              Rataplan!

Um dos soldados; de olhar scintillante e fartos bigodes retorcidos,
chasqueava na sua lingua natal com uma das vivandeiras que se lhe queria
escapar dos braços:

--Oh! Por Deus, que era bem mais bonita do que tu!

--Quem? perguntou d'esguelha a vivandeira.

--A portugueza que me resistiu.

--E que tu mataste?

--E que eu matei para que não deixasse de resistir a outro.

--A pobre rapariga!

--Pobre rapariga! d'aquella edade deve ter morrido pura! Tu não morres
assim, _ma petite chienne! Par Dieu!_

--Cruel!

--E o caso é que quasi do mesmo golpe derrubei as duas mulheres que a
defendiam e abraçavam. Um soldado do imperador livra-se depressa ainda
que seja d'um cento de mulheres.

--Cheiras a sangue! exclamou a vivandeira forcejando por desprender-se
dos braços do soldado.

--Acodes pelo teu sexo! O que me não perguntas é quantos homens matei!
Por Deus! que era precisa a vingança. Estes perros d'hespanhoes, que se
chamam portuguezes, não nos queimaram a alma porque não puderam.
Atiravam-nos desesperados! E matavam os nossos emissarios! e mutilavam
os nossos irmãos! Quantos centos de francezes imaginas tu que morreram
hoje? Não se mata impunemente um francez como se mata um cão. E desde
que entrámos em Portugal quantos não teem ficado para nunca mais voltar
a França! Vingámol-os; estão vingados! _Vive l'empereur! Vive le
marechal! Vive la France!_

E voltando-se para outra das vivandeiras, que estava proxima, jogou-lhe
esta phrase intimativa:

--Esta é minha; canta tu.

E logo, por entre a vozeria, se ouviu cantar;

    Viva a França! viva a França!
    Que triumpha na matança!
              Rataplan!

..........................................................................

Aquelles cadaveres eram os das trez senhoras da familia Strech.

José Maria esteve contemplando-os mudo, absorto, authomatico. Dir-se-ia
que a intelligencia se lhe havia paralysado, e o coração havia
adormecido. Era um deliquio, como o que fôra consequencia do ferimento,
mas muito mais horroroso de certo, porque os olhos tinham vista para a
realidade, embora o cerebro não tivesse actividade para comprehender.

Parecia que as trez pobres senhoras dormiam tranquillamente, se bem que
o desalinho dos vestidos e dos cabellos fosse claro indicio de lucta.

José Maria ajoelhou-se, poisando a luz, a contemplal-as e, porque o
coração humano é tão valente ás vezes que se excede a si mesmo, resistiu
áquella dôr incomparavel e quiz ainda procurar nas ruinas do seu
pensamento o auxilio de uma ideia.

N'aquella immensa e tenebrosa cerração era preciso um raio de luz, ainda
que fosse sinistro como os clarões sulphureos dos mysticos paineis que
representam o inferno.

E verdadeiramente infernaes foram os horrores d'esse dia.

Se o leitor, apesar das indicações historicas de que me tenho
soccorrido, imagina que estou phantasiando negruras para architectar um
romance tenebroso, achará no seu proprio espirito a convicção da
verdade, se se concentrar por um momento deante do tosco e funebre
quadro, allusivo á invasão dos francezes, que pende da muralha da
Ribeira, a dois passos da ponte pensil.

Ahi, á luz das lanternas que descrevem na escuridão da noite duas zonas
luminosas, ouvindo o ruido triste do Douro que lhe rola aos pés, vendo a
pequena distancia erguerem-se ao ar, como outros tantos espectros
sombrios, as armações dos navios fundeados, ahi, dizia eu, comprehenderá
todas as angustias, hoje esquecidas, d'essa epoca de horror, traduzidas
na concisa simplicidade d'esse piedoso monumento.

A inscripção do quadro nem por singela deixa de convidar á meditação:


    «Pelas almas dos que falleceram na ponte do rio Douro na
    entrada dos francezes no anno de 1809, um Padre Nosso e
    uma Ave-Maria.»


Ali fui eu muita vez, pela calada da noite, como a procurar a triste
inspiração para escrever as primeiras paginas da historia da familia
Strech. Estes horrores poderão hoje parecer sinistramente romanticos,
mas uma hora só de recolhimento em face do quadro da Ribeira basta a
acordar em nós a consciencia historica d'essa epoca calamitosa.

Para os que morreram na catastrophe da ponte pede o rotulo uma oração,
mas quantos não morreram então sem oração e sem mortalha, quantos não
agonisaram em ancias que não foram mortaes, sem a mortalha que
desejariam, e sem uma oração de que blasphemariam!

Ó Providencia! só tu sabes o segredo de todas as maguas, só tu podes
contar as bagas de suor que ressumbram na fronte dos infelizes que tu
não matas logo, para que não morram em desespero sacrilego!

E José Maria não morreu.

Por um esforço intellectual, que só a Providencia podia permittir a um
soldado ferido, quando já as trevas da loucura procuravam
cingir-lhe o cerebro escandecido, conseguiu encontrar uma recordação, se
bem que a principio tibia e vaga como o diluculo que se vae alargando e
colorindo pouco a pouco até chammejar no céo.

E tambem essa luz que se fez no espirito do pobre moço lhe queimára a
intelligencia, como se fosse labareda, mostrando-lhe as ruinas do
passado ainda fumegantes de um incendio recente.

Eram aquellas as cinzas da sua felicidade...

Estavam ali espalhadas pelo turbilhão da guerra, retintas de sangue, a
clamar vingança.

E os seus beijos cariciosos e ardentes, e as suas palavras ao mesmo
passo desalentadas e calorosas não puderam, depois que inteiramente se
recordou da realidade, galvanisar os trez cadaveres, animar os trez
corações paralysados, descerrar os labios da mãe, da irmã e da avó, para
sempre mudos, para sempre adormecidos.

--Pobresinhas!--pensava elle--deixaram-se talvez morrer por me supporem
morto! E antes eu o estivesse, que já teria soado a ultima hora da minha
triste mocidade. E mata-se assim a mãe, a dois passos do filho! E não se
respeitam os cabellos brancos da velhice! nem a belleza e a virtude que
teem duplo direito á vida! Mas, agora reparo eu, aqui estão patentes e
irrecusaveis os signaes da lucta... é que se disputavam o sacrificio da
morte... ou... suspeita horrivel! morreram talvez para defender a
virgindade de uma só! Dize-me, ó minha boa irmã, ó minha doce amiga, se
isto não é um sonho atroz da minha desvairada cabeça! Responde, Augusta,
sou eu que te peço, eu, o teu irmão, o teu José... E não fala, e não
responde! Está morta! Mataram-n'a elles, os malditos soldados d'esse
leão indomavel da Corsega para quem todo o mundo é pequeno, todo o
sangue pouco! Acaso não se saciava a tua sanha, leão, sem a vida d'estas
trez pobres mulheres, que nunca te amaldiçoaram, que nunca levantaram um
brado de justa indignação contra a tua ambição desmedida! Eu é que devia
morrer, sabes tu? Eu sim, porque fiz guerra de morte aos teus soldados,
porque as minhas mãos cheiram ainda a polvora com que os fuzilei. Eu
sim, porque a minha morte seria uma represalia; mas a morte d'estas trez
mulheres, timidas e indefesas, não foi uma represalia, foi uma
infamia...

E, extenuado d'esta subitanea exaltação, pendeu a fronte, como se lhe
faltasse a vida para tamanha angustia, porque o sangue perdido era
copioso. Entretanto continuava a tempestade e, confundido com o
estrepito da chuva, começou-se a ouvir o toque dos clarins nos postos
dos invasores.

José Maria pareceu despertar de subito, acordado por essa sinistra
linguagem dos acampamentos:

--Sois vós! Podeis estar tranquillos, que a esta hora não haverá um só
braço que tenha a energia de vos acommetter no vosso glorioso descanço.
Tudo são orphãos e viuvas, que pranteiam cadaveres. Descançae,
descançae, que muita coragem vos deve ter custado o assassinio de
mulheres inoffensivas como estas! como todas! Oh! mas ámanhã a vingança
acordará terrivel, e então vos pedirá contas das vossas atrocidades e
das vossas infamias. Sim, ámanhã, nós todos, unidos por commum desgraça,
seremos um só inimigo, porque a nossa vingança é uma, mas não imagineis
que tendes a derrubar um só inimigo, porque serão muitas as cabeças a
decepar, muitos os portuguezes a vencer... Onde houver um portuguez,
haverá um soldado, porque elle pelejará por desaffrontar a memoria dos
seus parentes, dos seus amigos, d'um filho, d'uma irmã...

E curvando-se carinhoso para o cadaver d'Augusta, e tirando-lhe
delicadamente do dedo o annel com que ella havia morrido:

--E eu vingarei a vossa memoria, minhas santas amigas, e vingarei a tua
innocencia, minha querida irmã... Por este annel o juro, que será o meu
fiel companheiro, talvez o unico que me seja dado conservar até a hora
da morte... Beijal-o-hei antes d'entrar em combate, e elle me dará a
coragem dos valentes; elle será a minha égide protectora se a morte me
quizer arrebatar a minha vingança..... Que Deus me oiça, Augusta. Sobre
o teu annel, que nunca te desacompanhou, faço este juramento solemne,
que jámais quebrarei...

      *      *      *      *      *


VI

A mariposa do acampamento

Fôra demasiado esforço para tão melindroso estado.

O corpo, alquebrado pela dôr physica, parecia vergar ao peso d'aquella
grande alma.

Graça Strech caminhou em direitura á porta, vacillando a cada passo, e
deixando após si um rasto de sangue. Antes de sair, volveu ainda um
ultimo olhar aos trez cadaveres, e levantou por um instante a mão de
sobre o ferimento, apalpando o peito n'outro sitio, como para se
certificar da existencia d'alguma coisa que lá trazia occulta, e que
pareceu encontrar.

Era o maço das cartas d'Augusta, escriptas da quinta das Chãs, e que
elle conservára no seio durante as mais perigosas refregas na bateria do
Bomfim.

Desceu vagarosamente as escadas, amparado ao corrimão, e conseguiu a
muito custo chegar á rua.

Uma lufada de vento, humida e fria, momentaneamente refrigerou o cerebro
d'aquelle moço, em quem as mais violentas congestões parecia
succederem-se rapidamente.

Onde ia elle, ferido, cerrada a noite?

A esta pergunta, que muitas vezes se fez no decurso de sua vida, nunca
pôde achar resposta satisfatoria.

O que parece mais proximo da verdade é que, não sentindo já forças e
coragem para demorar-se ali, luctasse por arrancar-se de ao pé dos trez
cadaveres.

Chegado ao limiar da porta, e recebendo de subito uma lufada de ar,
impregnado d'humidade, reconheceu-se, no meio da cerrada escuridão
d'aquella noite tenebrosa, inteiramente carecido d'alento para dar um
passo.

N'essa conjunctura ouviu estrepito de cavallos. Sentiu de novo
affluir-lhe o sangue ao cerebro. Eram de certo elles, os assassinos da
sua familia, que patrulhavam a cidade invadida. Não se enganou. Os
cavallos que se aproximavam eram os d'uma ronda franceza. Graça Strech
estava porém desarmado, ferido, impossibilitado do menor esforço. A
ronda acercou-se, e um dos cavalleiros, que era um official portuguez
obrigado pelo direito de conquista ao triste mister d'interprete,
perguntou com voz tremula:

--Quem está ahi?

Graça Strech ficou surprehendido d'ouvir falar-lhe na lingua nacional, e
respondeu:

--Um soldado portuguez, ferido.

Demorou-se o official a falar á patrulha franceza, e apeando-se dois dos
cavalleiros ergueram o corpo de Graça Strech até a altura precisa para
poisal-o entre o arção da sella e o corpo do official portuguez.

E monotamente continuou a eccoar na rua o estrepito da ronda.

Não pareça extraordinaria esta piedade dos invasores para com os
invadidos no mesmo dia de tão sanguinosa victoria.

O marechal Soult, que entrára no Porto na tarde d'esse dia, puzera desde
logo todos os seus cuidados em serenar os animos da população por actos
ostensivamente meritorios.

Era este um procedimento por ventura aprendido na lição da historia
romana--o da benevola protecção aos vencidos.

Manda porém a verdade que se diga que, mal que entrou na cidade, expediu
ordens terminantes ás tropas para que, sob pena de austera correcção
militar, respeitassem a população, e até a protegessem em caso de
conflicto.

Assim foi que, reprimindo os abusos da soldadesca, logrou restabelecer o
socego em toda a cidade trez dias depois da invasão, procurando
insinuar-se na opinião publica, abstendo-se de impôr contribuiçoes de
guerra, nomeando pessoas idoneas para os logares vagos, e soccorrendo os
habitantes completamente privados de recursos.

O partido anti-patriotico, subitamente creado em redor do marechal
Soult, para logo fundou um orgão jornalistico, denominado _Diario do
Porto_, porque a imprensa tem sido desde tempos immemoriaes o
respiradouro aberto a todas as paixões, justas e injustas, nobres e
mesquinhas.

O leitor deve ficar conhecendo uma pequena amostra, sequer, da linguagem
empregada no supracitado diario. Oiçamos o falsario redactor no
supplemento ao n.º 2.º:

«Este paiz tão bello, e tão favorecido pela natureza, parecia no passado
governo tocado de paralysia; mas, graças aos céos, que se lhe prepara um
novo futuro, que os bons conhecedores já tinham d'antemão entrevisto!
Nada terá o Principe que dizer sobre a nossa fidelidade; nos lh'a
guardamos emquanto existiu entre nós; mas uma vez que nos deixou, uma
vez que desdenhou lançar mão das redeas do governo, que largára quando
as circumstancias lh'o permittiam, renunciou todos os seus direitos, e
nada é já para os portuguezes, que deixou ao desamparo. Em uma palavra,
a casa de Bragança já não existe; aprouve aos céos que os nossos
destinos passassem a outras mãos, e foi particular predilecção da Divina
Providencia, que impera sobre o universo, o ter-nos enviado um homem
isento de paixões, e que só tem a da verdadeira gloria; que se não quer
servir da força, que o grande Napoleão lhe confiou, senão para nos
proteger e livrar-nos do monstro da anarchia, que ameaçava devorar-nos.
As palavras que elle nos dirigiu, e as promessas que nos fez[5],
desde que entrou n'esta cidade, tudo se tem cumprido á risca,
muito mais do que o poderiamos esperar, e do que as circumstancias
pareciam promettel-o: porque tardamos, pois, em congregar-nos ao redor
d'elle, a proclamal-o nosso pae e nosso libertador? Porque tardamos a
exprimir o nosso desejo de o vermos á testa d'uma nação, cujo affecto
soube tão rapidamence conquistar? O soberano de França prestará ouvidos
aos nossos clamores, e se lisonjeará de ver que desejamos para nosso rei
um logar-tenente seu, e ao mesmo tempo um grande general, que a seu
exemplo soube vencer e perdoar. Seja, pois, esta grande e interessante
comarca, já que tem experimentado os effeitos da sua clemencia, e a quem
elle tem prodigalisado os seus beneficios, seja uma das primeiras, que
se glorifique de o reconhecer e de lhe offerecer os seus braços, os seus
bens e o seu patrimonio todo.»

Não ficaram simplesmente em louvaminhas de gazeta os salamaleques
feitos ao duque de Dalmacia. De Braga veiu ao Porto no dia 25 d'abril
uma deputação composta de trinta e seis membros do clero, nobreza e
povo, a pedir ao marechal que se dignasse fazer ver ao imperador a
necessidade de collocar um principe de sua eleição no throno que a
dynastia de Bragança deixára devoluto.

No dia immediato entrou egualmente ao palacio do duque de Dalmacia outra
grande deputação, constituida por todas as autoridades civis, clero,
deputados, nobreza, cidadãos, corporações judiciaes e militares da
cidade do Porto, a repetir o pedido com viva instancia.

A deputação, acompanhada desde a casa do conselho pelos officiaes do
estado-maior general, era esperada no atrio do palacio dos Carrancas
pelos ajudantes de ordens do marechal Soult. Foi o general de divisão
Quesnel, investido nas funcções de governador militar do Porto e da
provincia do Minho, quem a introduziu na sala de recepção, onde o
corregedor da comarca botou fala consoante ao estylo dos supplementos do
_Diario do Porto_.

O marechal devia estar sorrindo interiormente da versatilidade dos
portuguezes, que lhe atiravam aos pés nuvens d'incenso, recebendo-o dias
antes nas trincheiras com nuvens de polvora. Força é assoalharmos as
nossas glorias, para sermos portuguezes, e as nossas manchas, para
sermos justos. E esta é realmente uma lamentavel nodoa que macula as
paginas da historia portugueza. Se nos não respeitámos, durante a
invasão, a boa policia de guerra, tambem a soldadesca franceza não
respeitou, na victoria, os direitos individuaes. Saldada a divida,
estavamos quites. Para a atrocidade, filha da revolução, a represalia,
irmã do triumpho. A attitude do Porto, depois de vencido, e em presença
do cavalheiroso procedimento de Soult, devia ser a da resignação
reconhecida, nunca a do servilismo infamante. Agradecer é das boas
almas; ajoelhar aos pés do usurpador é dos maus cidadãos. E nós fomos
então maus cidadãos. Ainda bem que redimimos as nossas culpas d'um dia
com a heroicidade de cinco annos, que tantos são os que vão desde a
invasão do Porto até ao regresso das nossas tropas, coroadas de loiros.

Se o throno portuguez tinha sido abandonado pelo rei, estava porém
encimado ainda pelas armas da nação! Se não se podia amar o rei, que
fugira, devia-se defender a patria, que ficára.

Mas, disse-o Camões, e é uma profunda verdade, que

    O fraco rei faz fraca a forte gente

Perdoemo-nos a nós, porque nos rehabilitamos depois, e perdoemos ao rei,
que já hoje é do tumulo, e que no triste curso de sua attribulada
existencia mais inspira por vezes compaixão do que odio.

Mas tornemo-nos a Graça Strech, que deixámos ferido em companhia da
ronda franceza.

Fôra elle transportado a um dos muitos hospitaes de sangue que se
estabeleceram nos conventos do Porto:--o convento de S. Francisco. O
serviço cirurgico, na maior parte d'estes hospitaes improvisados, era
feito, por ordem do marechal Soult, pelas mulheres que acompanhavam o
exercito invasor. Uma d'ellas, conhecida entre os seus pela alcunha de
_lá gentille vivandière_, recebeu o ferido e, ajudada por outras,
deitou-o no catre e começou o curativo do ferimento com certo carinho,
que só a ordem do marechal Soult não explicaria cabalmente.

É que fez impressão a Rosina a physionomia, posto que dolorosa, serena,
do soldado portuguez. Pareceu-lhe um roble que baqueára magestosamente.
Não havia a menor contração n'aquelle corpo athletico; por entre os
labios, descórados e immoveis, não se coava um gemido. Verdade era que
não era desesperado o ferimento, e que mais para recear parecia a
gravidade da prostração que a do golpe. Não obstante, o soldado, que a
espaços abria os olhos, nem uma gota d'agua pedia.

Durante a noite a vivandeira acercou-se do catre, por muitas vezes, a
escutar. Pela madrugada sobreveiu o delirio ao abatimento, e o ferido
dizia com manifesta difficuldade algumas palavras que ella não entendia.
Como, porém, de uma das vezes o visse febrilmente apalpar o peito,
comprehendeu-o, e, tirando do forro da fardeta, que lhe tinha despido, o
maço de papeis, insinuou-lh'o entre as mãos. O ferido, conhecendo-o
provavelmente pelo tacto, abriu por algum tempo os olhos, e demorou em
Rosina o doce e apagado olhar. Talvez fosse este um acto puramente
mechanico e talvez não; a verdade, melhor que os medicos, a sabe Deus.

A vivandeira ficou sobremodo commovida do que a ella lhe pareceu
intencional. Apiedou-se do soldado, que tinha porventura a sua mesma
idade, e parecia guardar n'aquelles papeis uma querida memoria, como
ella, como ella n'aquella madeixa de cabellos que possuia...

Aqui entra o leitor a sentir desejos de saber a historia da madeixa.

Rosina era a filha adoptiva d'um dos regimentos da brigada Arnaud. Por
seu pai, moribundo, um dos bravos militares do exercito francez, natural
das Ardennas, aquella vasta floresta, _Arduenna sylva_, golpeada por
quatro rios, o Semoy, o Lesse, o Ourthe e o Sure, fora confiada como
precioso deposito, no campo de batalha, á velhice d'um camarada fiel,
soldado do mesmo regimento.

O bom velho, que penhorado acceitára tão grave legado, era só, e n'uma
época em que o exercito francez estava em continua mobilisação, achou
que o melhor meio de velar pelo destino da creança era trazel-a sempre
ao pé de si.

Assim foi que Rosina, então de quatorze annos, estivera em pessoa, se
bem que entre a bagagem e mantimentos, na batalha de Austerlitz, em
1805. Vira por seus proprios olhos, a distancia, o imperador Alexandre e
o imperador Francisco. Nos breves instantes de repouso que n'essa
arriscada campanha tinha o exercito francez, era sempre Rosina o
assumpto das conversações do acampamento, a mariposa inquieta que
passava sorrindo de umas correias a outras, de um soldado a outro
soldado. D'essa campanha ficou até na memoria do regimento uma agudeza
da pequena vivandeira. Estavam os soldados chasqueando uma vez da
fealdade de certo camarada.

--Que tal te parece, Rosina? perguntou um á pequena.

--Parece-me mal, respondeu ella, porque já vi _os trez imperadores_.

Como se sabe, é esta uma designação vulgar da batalha de Austerlitz,
onde estiveram os dois imperadores já nomeados, completando Napoleão a
trindade coroada.

Rosina seria pois a andorinha da caserna se não fosse antes a
mariposa do acampamento. Tinha um pouco da floresta, seu berço, e um
pouco do quartel, seu ninho. Estes poucos fizeram o todo. Tinha a pureza
da vegetação virgem, a suavidade inculta da floresta, e ao mesmo passo o
destemor da vivandeira, a facilidade de morder um cartucho de polvora e
de cantar uma canção marcial. Na alma tinha os murmurios das correntes
patrias; nos olhos o brilho da polvora.

Era, n'uma palavra, a pastora tornada vivandeira. Respeitava-a todo o
regimento e conhecia-a todo o exercito.

Quando o seu velho protector morreu, um anno depois de Austerlitz, ella
acompanhou-o com os camaradas á sepultura, e, como limpasse furtivamente
duas lagrimas, disse-lhe um dos soldados:

--Pois tu choras, Rosina, tu, a que viste os trez imperadores?!

E ella, voltando-se de subito, respondeu:

--Não choro eu, chora a França.

Porfiaram os soldados em escolher-lhe novo protector; todos a estimavam
a ponto de querer adoptal-a. Por fim decidiu-se que Rosina cortasse o nó
gordio. Ella observou:

--Os meus paes eram os que morreram; já não posso ter outros. Serei
portanto de hoje em deante filha do regimento. Para onde elle fôr, irei
eu; onde estiver, estarei tambem.

E assim foi.

Era quasi um soldado; muitas vezes dizia que a sua morte havia de
occasional-a uma bala perdida.

Viera com o exercito a Hespanha e Portugal, com a mesma facilidade com
que iria, licenciada pelo commandante do regimento, visitar as Ardennas,
sua patria.

Contava agora dezoito annos, e estava em todo o vigor da sua gentil
formosura.

Gentil é a palavra; por isso lhe chamavam _lá gentille vivandière_.

E o caso é que á sua origem e á sua formosura devia por certo as
immunidades que lhe outhorgavam os superiores. Era ella o melhor
intercessor do regimento; requerimento que ella levasse á chancellaria
militar, trazia sempre bom despacho. É que as flôres...

Ora a historia da madeixa é muito mais breve que a historia de Rosina, e
por isso ficou para o fim.

Seu pae, o bravo official das Ardennas, sentindo-se morrer dos graves
ferimentos que recebera, pediu ao velho camarada, no momento de
confiar-lhe a filha, que lhe entregasse aquella madeixa que elle cortára
do seu proprio cabello, para que ella possuisse sequer alguma coisa que
o tornasse lembrado.

E como entre os cabellos alguns apparecessem já grisalhos, acrescentou o
militar moribundo:

--Dize-lhe que alguns d'elles embranqueceram a pensar no destino d'ella...

O soldado, com os olhos marejados de lagrimas, respondeu commovido:

--Vá descançado, meu capitão. Emquanto Jacques Regnau tiver vida, o
paiol não ha de arder. Depois que vier a metralha da morte, o Deus dos
exercitos velará por ella...

O soldado Jacques estava na confidencia do nascimento de Rosina. Fôra
elle que, annos antes, saltára ao jardim de uma casa da rua das
Tournelles, para receber dos braços de uma criada uma creança, cuja mãe
procurava assim occultar o segredo da sua deshonra.

Jacques Regnau atravessou com ella nos braços o _boulevard_ da Bastilha,
e ia dizendo comsigo:

--O caso é que ainda tenho geito para estas aventuras mysteriosas.
Suppunha-me velho e levo aqui esta creança mais como pae do que como
avô. E todavia o que decerto vem a acontecer é que eu seja o avô, e o
meu capitão o pae...

E assim, em verdade, aconteceu, com uma unica differença. Se Rosina, no
decurso de sua vida, precisasse de nobilitar-se com um appellido, o pae,
ao invés do que acontece em todas as familias, não lhe daria o seu
appellido, mas sim o do leal camarada. Diria provavelmente:

--Põe lá: Rosina Regnau.

Ella porém não precisava de appellido paterno. Era a filha do regimento.
Chamava-se simplesmente Rosina, _lá gentille vivandière_.

Esta era a enfermeira do nosso ferido.

    [5] Referencia á proclamação de Soult.

      *      *      *      *      *


VII

No hospital de sangue

Oito dias transcorridos, vamos encontrar Graça Strech, sentado no catre,
convalescente, se bem que muito debilitado ainda, a relêr algumas das
cartas que, por piedoso interesse de Rosina, pudera guardar debaixo do
travesseiro.

Os successos de tão breve curso de tempo pequena chronica requerem.
Rosina tem sido para o soldado portuguez carinhosa enfermeira.
Chasqueam-n'a as outras mulheres, encarregadas do serviço do hospital,
de extremamente compassiva para o prisioneiro, e zombeteiramente aventam
que, a julgar pelos prolegomenos, lhes não parece impossivel que o
exercito portuguez inteiramente se deixe desarmar pelas vivandeiras
francezas.

As almas das restantes mulheres não se levantam do nivel commum ao
femeaço que segue tropa. São grosseiras, sensuaes e malevolas. Rosina
respira melhor entre os soldados do que entre ellas. D'aqui uma certa
rivalidade apenas contida pelo respeito com que todo o exercito acata á
filha do bravo militar das Ardennas. Todavia a «gentil vivandeira», como
mariposa que é, não se demora no ambiente infeccionado em que ellas
respiram; evita-as como a pantanos miasmaticos, sem lhes dar a conhecer
que o muladar unicamente é povoado por vermes. Passa inquieta e ao mesmo
tempo cautelosa, agitando as suas azas iriadas. Atravessa o lodaçal sem
tocar-lhe. Guarda para si o nectar que vae libando nas flôres perfumadas
da sua phantasia. É mariposa! dizem. Concentra-se nos circulos
caprichosos em que doideja. Quer adejar e sorrir. Mas para esta, como
para todas as mariposas, depois do jardim, cujas flôres beijou, ha de
crepitar a chamma, que será o seu ultimo beijo. Beijo de fogo, que mata.
E chamaes felicidade a isto! Olhaes sómente á superficie; a
mariposa não é feliz porque passe adejando...

Graça Strech fez reparo no carinho da enfermeira, mórmente comparando-o
ao desamor com que eram tratados os demais feridos. Não poria duvida em
beijar a unica mão caridosa que se estendia para elle na solidão do
mundo, se não receiasse que o odio que lhe refervia no coração contra a
França lhe envenenasse os labios. E aquella mulher era franceza.
Parecia-lhe que dos seus vestidos se exhalava ainda o cheiro da
carnagem. Por ventura o soldado que assassinára sua irmã, sua mãe e sua
avó viera adormecer tranquillo nos braços d'aquella mulher, se é que não
fôra mais d'um soldado, com as mãos ainda tintas das nodoas do crime.
Via n'ella a creança corrompida pela lascivia da soldadesca, e, ao mesmo
passo que lhe era reconhecido, tinha por ella o desprezo que se tem pelo
vicio precoce. Considerava-a uma das victimas arrastadas pelo carro
triumphal do Cesar francez. Bem podia ser que n'aquelle corpo vendido ao
prazer germinasse uma alma boa logo corrompida pela putrefação
contagiosa da caserna. Se não tivesse por mãe uma mulher devassa, uma
vivandeira, uma meretriz de soldados, que não faria mais que atirar sua
filha ao berco em que ella propria nascera, poderia encontrar um marido
honesto, ser o anjo do lar, divinisar-se no altar da familia, porque as
mães podem considerar-se as santas da religião domestica. Mas não. Graça
Strech suppunha-a a flôr do paul. Tinha para elle a belleza maculada da
vegetação dos charcos. Não sabia o que era o azul do firmamento, porque
só os lagos, de superficie crystallina, são espelho do céo. As flôres do
paul querem viver no lodo; ella queria viver no prazer. Os beijos que
recebia tresandavam ao acre do tabaco e da aguardente. Não dulcificavam;
queimavam. E assim como a gente se admira de ver uma flôr, por mais
desbotada e menos formosa que seja, á beira d'um monturo, assim elle se
admirava de que aquella mulher tivesse nos olhos um relampago de
compaixão estando habituada a viver entre soldados e concubinas. Era, a
seu juizo, o ultimo lampejo da alma que bruxoleava apagada pelo vicio.
Extincto o derradeiro clarão, ficaria apenas a lampada--o corpo. E elle
não queria gosar; queria vingar-se. O prazer da vingança, se o ha,
esse anhelava-o. Mas uma mulher corrupta não podia ser-lhe instrumento
sufficiente a sacial-o. Nenhum dos generaes que capitaneavam o exercito
invasor teria uma filha innocente, candida, formosa? decerto não; se a
tivesse, não consentiria que a soldadesca violasse as alheias. Mas se a
tinha, trouxessem-lh'a, pura como estava, bella como era, que a queria
polluir, e dizer depois ao pae exasperado: «Os teus soldados mataram
minha irmã, que tambem era virgem; eu matei tua filha, porque a
encontrei no estado de minha irmã. Ambas são mortas: isso que ahi está
já não vive.»

A toda a hora, tudo ali lhe recordava esse horrivel drama de sangue, que
reputaria ainda sonho infernal, se a memoria de trez cadaveres o não
chamasse á realidade. Tudo eram mulheres mancommunadas com os invasores,
tudo feridos e prisioneiros, que de continuo amaldiçoavam, esporoados
pela dôr physica, a França e o Corso. A lingua que se falava era a
d'ellas, mesclada de raras palavras hespanholas para melhor se fazerem
entender dos que não tinham a illustração bastante para comprehendel-as.
Não será preciso observar que Graça Strech não desconhecia o idioma
francez.

A principio confundiam-se-lhe no cerebro enfraquecido todas as sinistras
visualidades d'aquella tormentosa phase de sua vida. Depois, á medida
que ia cobrando forças, não só entrou de raciocinar ácerca de Rosina,
como lhe acudiu a lembrança de seu pae, cuja morte só o tempo
comprovára, e a consciencia da sua propria situação. Estava prisioneiro,
guardado á vista por sentinellas francezas, e todavia havia jurado
vingar a morte da sua familia. Esta idéa infernou-lhe as primeiras horas
de lucidez. Era impossivel despedaçar as cadeias, romper por entre as
sentinellas; não queria de modo algum expôr-se á morte que o roubaria á
vingança. E o sentir no dedo o contacto do annel, em que se coagulára
uma gota de sangue seu, ou de sua irmã, exasperava-o ao extremo de cair
prostado no leito.

N'estes lances acudia meigamente Rosina Regnau, chamemos-lhe assim, a
soccorrel-o com notavel dedicação. Umas vezes a repellia elle com
ingratidão brutal, quando a accentuação franceza lhe coava ás entranhas
estremecimentos de raiva, outras fitava na vivandeira o olhar
amortecido como a dizer-lhe que a prostração seria passageira. Na
vespera do dia em que estamos, teve Graça Strech uma idéa que para logo
reputou auxilio providencial. Lembrou-se de que só por intervenção de
Rosina poderia evadir-se do hospital de sangue. Tratou pois de
corresponder á solicitude com que ella o distinguia, de se mostrar
reconhecido, de occultar o seu pensamento de vingança sob a mascara de
ternura. Immediatamente o dominou este proposito, e a si mesmo prometteu
nunca mais receber Rosina com intermittencias de rancor ou azedume.
Difficil era o cumprimento d'esta promessa. Não se mascára facilmente o
coração.

Relia elle, como dissémos, as cartas de sua irmã. Umas eram queixumes de
rôla solitaria confrangida da tristeza alpestre das Chãs; outras eram
hymnos de esperança, votos de felicidade commum, vagas alegrias dos
sonhos dos quinze annos... N'umas denunciava-se a mulher; n'outras a
creança. Umas eram a lagrima; outras o sorriso. Aquellas tinham a
tristeza d'uma nuvem em céo d'abril; estas eram um raio de sol doirado
pela primavera... Ou antes, como o leitor poderá classifical-as, as
primeiras eram o presentimento da desgraça imminente, as ultimas eram o
cantico do anjo que punha os olhos no céo, sua patria.

Vejamos:

«_30 de novembro de 1807._--Meu irmão.--Não sabes como soffro
horrivelmente, receiosa dos perigos que virão. A avosinha tambem está
muito afflicta depois que os francezes entraram em Abrantes. Já cá
sabemos da partida da familia real, apezar de tu, grande dissimulado,
m'o não haveres dito! O padre capellão anda sempre a contar dinheiro e a
ralhar com os abegões. Isto é uma tristeza! Quem nos vale a ambas, a mim
e a avósinha, para nos tranquilisar, é o Teixeira. Eu, por mim, peço
todos os dias a Deus que não aconteça mal algum aos portuguezes...»

«_18 de setembro de 1808._--Meu José--Graças a Deus, que se dignou ouvir
as minhas continuas orações! O Teixeira esteve hontem á noite a
contar-me tudo. Até que emfim está a patria livre outra vez, sem haver
acontecido desgraça de maior á nossa familia. Queira Deus que continue a
paz para que tu possas vir vêr-me brevemente. A noticia do
Teixeira deu-me grande alegria, meu José. Reconquisto de novo a
felicidade! Eu creio que não tenho coragem para soffrer... Dá um beijo
muito demorado á mamã e um abraço muito apertado ao papá. A avósinha diz
que venhas logo que possas. Vem, sim? Olha lá... logo que possas. O
beijo á mamã que seja muito longo, muito longo... Não te esqueças.
Tua--_Augusta_.»

Graça Strech sentiu os olhos marejados de lagrimas ao lêr estas cartas,
especialmente a ultima. Estava alli todo o coração de sua irmã, a
alegria da avesinha, ainda tremula, que se sente desopprimida dos seus
negros receios, phantasticos uns, justificados outros.

Abeirou-se brandamente do catre, como quem teme ser importuno, Rosina
Regnau, e com encantadora timidez perguntou:

--Chorava?

--Um soldado portuguez não chora nunca, respondeu Graça Strech com
doçura meiada de altivez e fingimento.

--São menos felizes as vivandeiras francezas, contestou ella com sincera
simplicidade.

--Por quê?

--Porque choram ás vezes.

--Ainda a não vi chorar!--E, como se instantaneamente deixasse
resfolegar o rancor latente no coração, acrescentou:--A polvora queima
os olhos e o coração, e Rosina é quasi um soldado... francez.

--Olhe que se contradiz! observou ella maviosamente.--Esquece-se de que
tambem é soldado e chora...

Graça Strech caiu em si e deu-se pressa em attenuar o mau effeito das
suas palavras:

--Tem razão. A desgraça dá esta incoherencia aos pensamentos...

--Julga-se então muito desgraçado?

--Pungente ironia que só pode vir... d'ahi! retrucou sobremodo exaltado
o convalescente. Pois pergunta-se a um prisioneiro, a um ferido, a um
homem mil vezes deshonrado, se é infeliz? Onde aprendeu esse cynismo de
vivandeira? Onde havia de ser! Na taberna e no quartel. Só lá é que se
fala assim...

E, como ella chorasse á beira do catre:

--Sabe que eu ainda não estou inteiramente curado, Rosina?
Parece-me que deliro ás vezes! Agora delirei eu. Não... não delirei.
Conheci que era mais piedosa do que as outras mulheres... Quiz ver até
onde chegava a sua sensibilidade... Perdõe-me a experiencia... Vejo que
ainda tem lagrimas... sim... tem lagrimas... não posso duvidar... está
chorando!

--Não seja mau para mim, soluçou Rosina Regnau. Eu tive pena de vêr o
senhor a lêr e a chorar... De mais a mais fui eu que lhe dei as cartas
para a mão no dia em que o senhor veiu e parecia pedir-m'as... Pois não
se lembra?

--Não. E viu-as alguem? leu-as alguem?

--Ninguem as leu, senhor. Eu pensei que se lembrava, porque o senhor,
quando lh'as dei adivinhando de certo o seu pensamento, olhou para mim...

--Sim, talvez olhasse... eu queria as cartas...

--Isso comprehendi eu. A gente ás vezes estima qualquer cousa que não
tem valor... Eu tambem tenho um d'esses thesouros que nada valem...
É...--E calou-se, receiosa de proseguir.

--É?

--A madeixasinha de meu pae, que era capitão do exercito.

--Capitão? perguntou Graça Strech.

--Era capitão, senhor. Para me não deixar desamparada, entregou-me ao
velho Regnau com esta madeixa que era o seu unico legado... Nada mais
tinha que me deixar...--E tirou do seio a sua reliquia, sobre a qual
foram cair duas lagrimas ardentes.

Graça Strech, subitamente commovido, attentou na vivandeira que tinha
baixado os olhos, como se quizesse esconder o pranto.

--Ás vezes, proseguiu ella, fico-me a contemplar este thesouro,
sobretudo se estou triste. Que mais tenho eu no mundo? Nada. Esta
madeixasinha da minha riqueza, o meu talisman, creio eu. Beijo-a e
choro. Fico melhor. É tambem a minha companhia. Estas mulheres--e
indicou as demais vivandeiras--nem sequer se lembram de que tiveram pae!
Até lhes convém pensar que o não tiveram para não sentir atormentada de
remorsos a consciencia.--Ellas querem-me mal, bem o sei. Que me importa?
Eu tenho o meu coração tranquillo. Devo a Deus o haver-me protegido com
a sua misericordia. Sou a filha do regimento, e ninguem offende uma
filha. Estima-me; estimo-os. Da guerra que ellas me fazem nem me
lembro. Pobresinhas, que não são capazes d'uma ação boa! Vivo só,
completamente só, senhor. Sou digna da compaixão de todos, acredite,
porque sou infeliz; criminosa não. Meu pae, que decerto me está ouvindo
n'esta hora, bem o sabe. É porque sou infeliz, que comprehendo as
desventuras alheias. Pareceu-me que o senhor tinha maguas secretas.
Inspirou-me sympathia. Bem sei que a minha presença lhe não deve ser
agradavel, porque emfim eu sou franceza e o senhor é portuguez. Mas que
culpa tenho eu de haver nascido longe? Foi nas Ardennas... bonita terra
d'uma vez! Ainda não vi arvores como lá! O imperador é quem manda; nós
não temos culpa nenhuma: obedecemos. Elle quer o mundo; conquiste-se o
mundo. E depois eu não tenho odio nenhum aos portuguezes. Até se o
senhor algum dia precisar do meu prestimo... Eu não valho nada... mas
verá que ha de encontrar sempre a mesma Rosina Regnau... O que eu queria
é que me tratasse bem. Não faço mal a ninguem, porque não se tira
proveito nenhum de fazer mal... O senhor foi ferido, é verdade; mas fui
eu quem o feriu?...

--Não, Rosina, não! atalhou Graça Strech enternecido a lagrimas. Mas
feriram-me na alma, bem fundo, muito fundo... Sou um grande desgraçado.
Se lesse estes papeis, que são tambem a minha unica riqueza, veria que o
sou. Eu tenho apenas de meu estas cartas; Rosina tem apenas a sua
madeixasinha. Somos irmãos na desgraça. Eu sou filho d'um capitão
portuguez, talvez morto a esta hora; Rosina é filha de um capitão
francez, que tambem não existe. Ainda n'isto irmãos! Bem sei que não tem
culpa de haver nascido franceza. Perdoe-me, se a offendi... Offendi, que
o sei eu. Deite tudo á conta da minha arrebatada mocidade e dos meus
soffrimentos. Mas é que este abysmo cavado por Napoleão entre as duas
nações é incommensuravel, acredite. O abysmo chama o abysmo... Jámais
correu sangue impunemente... A guerra faz dos homens leões... E que
guerra esta, santo Deus!... Zomba-se de tudo--da virgindade, da honra,
da innocencia! Oh! que os seus irmãos tremam das represalias... Medonhas
devem ser... Não se opprime assim um paiz inteiro... A estrada por onde
fugiu Junot está atravancada de cadaveres, mas ainda cabe por ella
o exercito de Soult. A hora do resgate será tremenda, Rosina. Fuja, fuja
emquanto é tempo, pomba que vive entre milhafres. Fuja com a sua
innocencia. Eu comprehendo, eu acredito que é boa, e casta. Mas não
encontrará em Portugal coração que possa acceitar o seu amor, alma que
prese os thesouros da sua. E sabe por que? Porque entre um portuguez e
uma franceza medeia n'esta hora uma barreira invencivel... E essa
barreira está em pouco, mas não haverá ahi exercitos que a transponham.
É um maço de cartas, um annel, uma madeixasinha talvez. Supponha que um
homem havia ferido mortalmente seu pae... Que esse homem viesse agora
dizer-lhe, Rosina, que lançasse ao fogo essa reliquia sagrada; que
matára em nome da patria; que seu pae era primeiro que tudo um soldado,
e que um soldado era para elle o inimigo... Chora, Rosina! As suas
lagrimas são ainda mais eloquentes que o seu silencio... Pois supponha
que mataram meu pae, supponha que me retalharam a alma, que eu tenho
noite e dia nos ouvidos o clamor da vingança, que eu sou um homem que já
não vivo para mim, mas para os que morreram...

E, exhausto de forças, caira sobre o travesseiro, pedindo soccorro com o
olhar, em que subitamente se apagaram os fogos da exaltação.

Fez-se em torno do catre o lugubre silencio dos hospitaes, apenas
interrompido de espaço a espaço pelos gemidos de alguns portuguezes que
anhelavam a morte, porque só n'ella encontrariam o supremo resgate.

Rosina, curvada para o doente, julgava amparar nos seus braços um homem
que desejava viver para vingar a morte da mulher amada. A excitação
febril do prisioneiro fazia-lh'o crer. Estava longe de suppôr que essa
mulher fosse apenas irmã, ou antes que a desgraça d'esse homem fosse
tamanha que tivesse de vingar a morte de uma familia inteira.

Como, porém, Graça Strech lentamente parecesse recobrar alento,
inclinou-se-lhe ao ouvido e maviosamente repetiu:

--Se algum dia precisar do auxilio da pobre vivandeira, acredite que
Rosina Regnau será sempre a mesma...

      *      *      *      *      *


VIII

O anjo da liberdade

Foi-se restabelecendo o doente.

Meiado abril, Craça Strech julgava-se robustecido sufficientemente para
encetar a sua obra de vingança. Toda a sua attenção se concentrava na
idéa fixa da fuga. Rosina continuava a ser para elle a dedicada, a
solicita, a meiga enfermeira dos primeiros dias. Se em tão carinhosa
dedicação estava occulto o germen do amor, se era aquella a mascara da
alma apaixonada que tinha de respeitar conveniencias e circumstancias,
não tardará que o saibamos. Todavia os seus sorrisos, posto que doces,
revelavam tristeza. O coração a attraíl-a para aquelle homem, e o
destino a distancial-a! Que elle soffria, era evidente. Mas por que
soffria? Porque esse homem--suppunha-o ella--amára doidamente, com o
fogo dos primeiros amores, com a loucura dos primeiros annos, e vira
talvez correr, na hora da invasão, o sangue innocente da mulher amada.
Porque esse sangue clamava vingança, e elle esperava apenas pela hora
tremenda da represalia. Porque essas cartas que relia a toda a hora eram
outros tantos protestos contra a tyrannia dos que venceram. Fossem dizer
ao coração d'esse homem pungido pelo que ha ahi de mais excruciante na
terra: «Despe o teu luto; enflora-te. Os que te mataram eram meus
irmãos, mas quem te resuscitará serei eu. Com o sangue do cadaver, que
desceu á tumba commum, regaremos as flôres da tua felicidade futura.»
Não podia ser. Elle tivera razão quando disse: «Supponha que um homem
havia ferido mortalmente seu pae. Que esse homem viesse agora dizer-lhe,
Rosina, que lançasse ao fogo essa reliquia sagrada; que matára em nome
da patria...» Referia-se a uma barreira insupperavel, e falava do maço
de cartas, de um annel, de uma madeixasinha talvez. E as cartas
relia-as elle, e annel tinha um na mão esquerda, tinto de sangue, que
era talvez da pessoa cuja morte anhelava vingar. Que esperança podia,
pois, ter Rosina no seu louco amor? Mas, por outro lado, quem ha de
dizer ao coração que é loucura amar? Como havia ella, allucinada pela
paixão, de raciocinar comsigo mesma: «Tu és a pobre Regnau, a vivandeira
franceza, que acompanhas o exercito vencedor; elle é o soldado do
exercito vencido, e vencido elle mesmo. Não se póde transpôr um abysmo,
muito menos dois. Tantos são os que nos separam n'esta hora: o da
vingança e o da nacionalidade!» Isto ninguem o diz; ella não o podia
dizer. Amava, sim, mas amava sem esperança, e, o que é mais, amava com
medo. Agrestemente a tratava elle a principio. Desde o dia em que ella
lhe perguntou se chorava, e em que timidamente se abeirára do catre
antes como enfermeira do que como amante, pareceu todavia abrandar um
pouco mais o seu odio inspirado pelo nome francez. Conheceu decerto que
ella não estava ainda pervertida, e condoeu-se. Mas condoer-se não é
amar. E depois que desgraçado aquelle! Que pensaria elle fazer? Talvez
matar-se. Prefiriria morrer a combater contra a sua patria, contra o seu
nome de portuguez, contra as suas recordações. Como ella quizera
sondar-lhe a alma e arrancar-lhe o seu segredo! O que importava,
primeiro que tudo, era affastal-o da morte. Por isso o espionava Rosina,
e cada vez era maior a sua solicitude. Não tardou porém a hora em que
Graça Strech ia levantar uma ponta do véo mysterioso que occultava os
seus designios.

Era ao entardecer. Havia na sala a penumbra crepuscular. Elle escolhera
decerto essa hora para que a physionomia lhe não traisse os sentimentos
reconditos.

--Lembra-se, Rosina, do offerecimento que me fez?

--Lembro, e repito-o, respondeu ella estremecendo de golpe.

--Pois bem; é chegada a occasião de aproveital-o. Cumpre porém que
primeiro lhe diga que a minha vida fica pendente d'esta revelação. Se
ámanhã quizer denunciar-me aos meus algozes, póde fazel-o, e então
completará a vingança dos meus desabrimentos. Completará, disse
eu, porque compassivamente me tem tratado, e a compaixão é a vingança
das almas nobres. Quer-me parecer, não obstante a posse do meu segredo,
que continuará a vingar-se nobremente... O seu coração é bom, Rosina; o
meu é que não é assim. Eu sou vil, rancoroso, sanguinario. Mas, ainda
assim, em alguma hora da minha vida me é dado ouvir a voz do meu anjo da
guarda. Depois a celeuma dos maus instinctos suffoca-a. É porém esta uma
das horas em que o meu coração não é inteiramente perverso. Portanto lhe
falarei com a maxima franqueza. Eu quero sair d'aqui, Rosina, livre,
completamente livre, entenda-me bem. Só por sua intervenção o poderei
conseguir. Mas, se me presta esse serviço, quem lhe não dirá, Rosina,
que soprou no meu peito as labaredas que eu sinto escaldarem-me o sangue
quando volvo os olhos a um passado proximo, muito proximo?... Sabe que é
quasi um fratricidio que vae praticar? A voz da consciencia será a
primeira a dizer-lh'o. Não irá combater contra os seus pessoalmente, mas
irá dar mais um soldado ao exercito portuguez cerceado pela derrota...
Pense em tudo isto. Vae trair a confiança dos seus irmãos para
conquistar apenas a gratidão d'um só homem...

A esta palavra, os olhos de Rosina, até ahi brilhantes de copiosas
lagrimas, illuminaram-se d'um clarão d'alegria.

--Gratidão! disse?--soluçou ella. É a primeira vez que eu oiço dos seus
labios tão doce palavra... Acredite-me, sim? Eu já pensava em
auxiliar-lhe a fuga, mesmo quando ainda não era meu amigo. Tinha pena,
muita pena do senhor, e receiava que se quizesse matar para não ficar
prisioneiro. Faria por lhe dar a liberdade, ainda que m'o não
agradecesse, porque algum dia, ahi por esses acampamentos fóra, bem
podia ser que o senhor encontrasse, prostrada por uma bala perdida, a
vivandeira Rosina, e dissesse, lançando-lhe um olhar de piedade: «Bem te
reconheço! Eras a pobre Regnau. Deste-me a liberdade. Estás morta. Que
te hei de dar agora? Dar-te hei uma oração». Isto me bastaria, senhor,
que eu bem sei que não mereço mais. Mas agora o caso muda muito do que
eu havia pensado na minha tristeza. O senhor promette-me gratidão. Que
mais posso eu invejar? A memoria de meu pae me perdoará, porque
elle--disse ella com irreflectida candura--tambem amou muito, segundo
contava o velho Regnau. Gratidão é o que o ceguinho das Ardennas tem ao
seu fiel molosso. O pobresinho do Hubert anda sempre a dizer,
referindo-se ao seu cão: Não ha pessoa a quem eu seja mais grato!» Veja
o senhor como elle lhe quer, que até chama pessoa ao cão! Pois eu serei
para o senhor como o molosso para o Hubert. Ter-me-ha gratidão; viverei
feliz... E sabe o senhor que o cão do ceguinho das Ardennas o segue
sempre? Sabe o que isto quer dizer?...

E calou-se de subito, ruborisada de pudor.

--Não sei! observou Graça Strech sobremodo admirado da sinceridade
d'aquella confidencia.

--Não sabe? É que eu tambem queria seguil-o ao senhor...

--Como?! perguntou o moço aprumando-se como galvanisado por um choque
electrico. Seguir-me! Sabe bem o que diz, Rosina? Sabe que atraz de mim
caminhará sempre a morte, e atraz de si o odio francez? Sabe que isso é
renegar a sua patria, o nome de seu pae?

--Esquece-se de que meu pae não me deixou nome? Se no céo se sabe tudo,
elle saberá que o meu coração é puro. O mais que me importa a mim? Nem
por seguir o senhor deixarei de querer cada vez mais á minha
madeixasinha. Crime era o esquecer-me d'ella, o desprezal-a, o não a
trazer commigo. Mas é que eu seguirei o senhor, e ella seguir-me-ha a
mim. E depois o senhor não me comprehendeu bem... Eu não queria deixar
de ser vivandeira... Não se quesile, não? O senhor vae combater. Eu
seguirei o exercito como até aqui, mas estarei sempre em sitio onde lhe
possa acudir, e em vez de soccorrer um soldado francez soccorrerei o
senhor se as balas o não respeitarem. O crime está só n'isso, e Deus m'o
perdoará... Eu, depois que morreu o velho Regnau, o meu segundo pae,
tenho vivido tão sósinha, tão sósinha!... O exercito é muito grande e
por isso mesmo não faz companhia. Não lhe perderei o rasto, senhor,
esteja certo. As vivandeiras estão costumadas á guerra de emboscada.
Surprehendel-o-hei quando menos o esperar. Que seja preciso affrontar
perigos, pouco importa. Rosina, a «gentil vivandeira», como por
favor me chamam, é destemida. Toda a brigada Arnaud lh'o podia
dizer...

A admiração, o pasmo, o alheamento de Graça Strech eram cada vez
maiores. Espantava-o aquelle conjuncto de candura e coragem, aquelle
receiar e querer da vivandeira. Achava extraordinaria a creança, que
tinha innocencias d'anjo e impetos de mulher. Não sabia se mais havia de
admirar a originalidade do temperamento se a originalidade da revelação.
Começava a lêr na alma da vivandeira que o amava. Comprehendeu que ella
sabia respeitar-lhe a dôr, impondo-lhe suavemente o dever de
respeitar-lhe a sua. E tudo o que ella soffria era por ser franceza...
Tambem elle se não lembrava n'esse lance de que a mariposa procura a
chamma!

E Rosina era a mariposa do acampamento.

Não obstante, desconfiando ainda da clareza da sua percepção, quiz oppôr
obstaculos á resolução da vivandeira:

--Mas não sabe que isso é impossivel, Rosina? Não sabe que se não póde
seguir ninguem através dos azares da guerra? Quem póde luctar com as
ondas sem naufragar? Não lucte, Rosina, não lucte com o que é
invencivel. Guarde essa coragem do seu bello coração para as batalhas do
mundo, que toda lhe será precisa. Deixe-me ir até onde chegam todos os
infelizes. Não sabe que ámanhã posso encontrar a bala que me mate?...
Não será ámanhã, não, porque eu ámanhã não haveria completado a minha
obra. Preciso de viver, mas a guerra é tão caprichosa! Completa a minha
obra, desejo morrer livre, quite com o mundo. Não quero que ninguem me
chore--morrerei feliz.

--Outro tanto poderei eu dizer, atalhou com doçura a vivandeira. Mas
deixe-me ir... tambem até onde vão os infelizes. Já agora, eu, que lhe
vou abrir o seu futuro, quero saber ao menos o sitio em que o senhor
estiver. Bem pouco lhe peço, como vê. Caprichos de mulher! especialmente
caprichos de franceza...

E, como que arrependida de haver soltado esta palavra:

--Fui indiscreta, bem sei; perdôe-me. O seu coração precisa de esquecer
a minha nacionalidade para me não odiar...

Era impossivel luctar por mais tempo com tão energica e ao mesmo passo
tão meiga natureza.

Como se aproximasse gente, Graça Strech apertou-lhe silenciosamente a
mão e escondeu no lençol a face involuntariamente orvalhada de lagrimas.

Chegára a noite triste que ao nascer das estrellas invade os hospitaes e
as prisões com o seu silencio e a sua tremula claridade.

Graça Strech não pôde conciliar o somno. Tantos e tão extraordinarios
eram os pensamentos que se lhe baralhavam no espirito, que ora sentia
subir-lhe ao cerebro a frialdade glacial dos tumulos, ora a chamma
abrazadora da congestão. Assim esteve, sem dar tino do tempo que
passava, com os olhos fitos na sombra oscillante que uma lanterna
projectava na parede fronteira ao seu catre.

Os gemidos d'alguns feridos compassavam-se a intervallos mais ou menos
longos, segundo a gravidade do ferimento. Duas vivandeiras, encarregadas
de ficar de véla n'aquella noite, deixaram-se adormecer com a
tranquillidade de quem está bem e não se importa de que os outros
estejam mal.

Na rua tropeavam com interrupções os cavallos das rondas. Uma ou outra
vez ouvia-se trocar palavras entre as patrulhas que passavam e a
sentinella do hospital. Não se percebia, porém, o que diziam...

E assim decorria a longa noite das enfermarias e dos carceres com o
lutuoso aspecto que faz d'umas e outros--cemiterios de vivos.

A mais de meio iria a noite, quando a Graça Strech pareceu vêr entrar
cautelosamente na sala um soldado francez, que foi caminhando, cada vez
mais receioso, até se avisinhar do seu catre.

Se obedecesse ao primeiro impeto, haveria falado, porque lhe passou no
espirito a suspeita de que Rosina o denunciára, e de que esse soldado,
que tanto se arreceiava de ser surprehendido, era um assassino
galardoado talvez pela devassidão da vivandeira.

E bastou esse momento para a suppôr mobil d'uma infamia inaudita, a
ella, que momentos antes lhe pedia unicamente, a troco da liberdade
promettida, que a deixasse seguil-o como o fiel molosso seguia o cego
das Ardennas.

Era, porém, corajoso de mais para succumbir aos perigos d'uma traição.

Para logo se lhe accendeu o coração em labaredas do inferno, e se lhe
requeimou a garganta como a do tigre dos palmares quando tem sêde de
sangue.

Era, porventura, um soldado francez que o vinha apunhalar, de noite,
suppondo-o a dormir, talvez por ciume da barregã com quem passára a
noite, ou para vingar o odio que aquelle prisioneiro nutria contra os
francezes.

Não tinha armas, nem carecia d'ellas. Infamia por infamia. Luctaria
braço a braço, encarniçadamente, silenciosamente, até que um d'elles
ficasse prostrado.

Sentou-se no catre, com o joelho direito levantado, em posição de melhor
se poder erguer para responder á aggressão.

E com tão sinistro brilho lhe coriscavam os olhos, que o supposto
soldado francez, conhecendo de certo o que lhe ia na alma, impuzera
silencio com um gesto e dissera a alguns passos de distancia:

--Sou eu.

Graça Strech reconhecera Rosina.

O vulto que elle suppuzera um assassino transformára-se no anjo da
liberdade. Não lhe vinha trazer a morte; vinha restituir-lhe a vida.
Como poderia elle receiar a aggressão d'aquelle soldado franzino,
gentil, cujos olhos, por meigos e luminosos, trahiriam o segredo do seu
disfarce, cujos cabellos, ennovelados a um e outro lado, denunciavam as
tranças da mulher enroladas em cachos?

Visualidades d'imaginação doente, chimeras que o habito do soffrimento
cria, e a noite avulta.

--Sou eu, repetiu ella cada vez mais baixinho, e aproximando-se.

E, como se por encantamento um genio bom lhe deizasse cair ás mãos o
fardamento d'um soldado, igual ao que vestia, acrescentou:

--Não ha tempo a perder. Vista-se e venha.

E retrocedeu a esconder-se á porta, onde as sombras mais se condensavam,
e a levantar do chão o saco d'oleado da ambulancia, que continha o seu
trage de vivandeira.

Não se fez esperar o prisioneiro, que logrou atravessar a sala sem ser
percebido. Nos olhos dos que dormiam havia as nuvens precursoras da
noite eterna, que nada deixam vêr para fóra do corpo. É o
recolher-se da alma que vae partir.

As duas enfermeiras continuavam a dormir tranquillamente.

--Venha, disse-lhe Rosina travando-lhe da mão.

Graça Strech desceu conduzido pela vivandeira.

Quando a sentinella deu tino de que se aproximava alguem, cumpriu a
praxe militar do--_Qui vive?_

Um dos soldados, que levava ao hombro a bolça da ambulancia, respondeu:
_L'empereur_;--e quando já a sentinella podia distinguir os uniformes,
acrescentou com voz firme e sã em francez.

--Soldados da ambulancia com ordens urgentes para o quartel general.

O soldado que respondera era, como calculam, a vivandeira das Ardennas.

Chegados á rua, Rosina Regnau apertou convulsamente o braço de Graça
Strech e segredou-lhe:

--Nunca se esqueça de que n'este dia, e a esta hora, lhe dei a
liberdade, roubando-a a mim mesma.

--Nunca! respondeu elle commovido.

E, como sentissem aproximar-se uma ronda, estugaram o passo, caminhando
sem norte.

Por duas vezes, no aventuroso transito, os surprehenderam patrulhas
francezas.

Era sempre Rosina quem respondia no idioma patrio, não sem que sentisse
palpitar vertiginosamente o coração receioso de ver desabar n'um momento
a felicidade sonhada.

Insensivelmente se foram aproximando do rio Douro, a cuja margem pararam
algum tempo vacillantes no que fariam e, não obstante serem ambos
corajosos, quasi amedrontados. Só então, chamados á realidade, olharam
para dentro de si mesmos, conscientes da arriscada situação em que se
encontravam.

Pareceu-lhes, porém, ouvir o compasso de remos na agua, e tanto bastou
para se illuminar d'um raio d'esperança a alma da vivandeira.

Foi Graça Strech quem se aventurou a chamar o barqueiro.

Nenhuma voz respondeu ao chamamento mas, decorrido algum tempo, viram
avisinhar-se do caes o vulto negro do barco.

N'aquelle tempo eram tão frequentes as fugas nocturnas, dos que
presumiam mais demorada, do que foi, a occupação franceza da
cidade, que alguns barqueiros dos logares convisinhos, inteiramente
privados de recursos, se affoutavam a bordejar no Douro por horas mortas
para receber a esportula dos fugitivos.

Graça Strech e Rosina Regnau saltaram ao barco.

Estremeceu o barqueiro conhecendo o uniforme francez, mas Graça Strech
acudiu a serenal-o com estas palavras:

--Somos portuguezes, amigo. O habito não faz o monge. Salva-nos, e não
te importe o mais. Afasta-nos, o mais depressa possivel, da cidade.

      *      *      *      *      *


IX

Entre a vingança e o amor

Foi o barco singrando Douro acima lentamente.

Graça Strech lançou mão d'um remo e auxiliou o barqueiro, não sem haver
arrancado de si mesmo, com fogosa violencia, a jaqueta do uniforme francez.

--Que peso que me fazia isto! disse elle sorrindo a Rosina.

E voltando-se para o barqueiro:

--Onde estará agora o resto do nosso pobre exercito, sabes? perguntou
vivamente.

--Anda para Riba-Tamega, senhor. Desde hontem que vae para lá o inferno,
tão certo como ser hoje 19 de abril, e chamar-me eu o Tunante de
Pé-de-Moira.

--Não sabes mais nada?

--Eu, senhor?... tartamudeou o barqueiro relanceando um olhar de medo ao
soldado francez que ia sentado é pôpa.

Graça Strech comprehendeu-o, e acrescentou:

--Pódes falar. Não te disse eu que o habito não faz o monge? Aquelle
soldado francez, que tu vês ali, é uma mulher.

--Uma mulher! repetiu o barqueiro.

--E de mais a mais faze de conta que é... muda, disse sorrindo
maliciosamente Graça Strech.

A esta palavra, se elle houvesse reparado, veria brilhar
extraordinariamente os olhos de Rosina Regnau, que encontrára n'esse
momento, melhor ainda, n'esse vocabulo, a chave d'um enigma que a
preocupava dolorosamente.

--Pois então, lá vae tudo, p-a-pá-Santa Justa, tornou facetamente o
barqueiro. Os francezes pegaram hontem fogo á villa d'Amarante. Hoje de
manhã havia uma procissão de gente que vinha fugida da villa. Em
Pé-de-Moira ficaram dez pessoas. Foram ellas que contaram o que se havia
passado.

--Quem commanda os Portugueses, sabes?

--É o general... Ora que me não lembra agora! Elle tem assim um nome a
modo d'arvore...

--Silveira? perguntou com anciedade Graça Strech.

--Tal qual: Sirveira, deturpou o barqueiro.

Aclarava-se o céo com os primeiros alvores do dia 20 d'abril.

Rosina levava os olhos postos no arvoredo das margens, alanceada,
porventura, de vagas saudades das florestas das Ardennas.

--Agora, á luz d'esta candeia, apostrophou o barqueiro apontando para o
sol nascente--já eu não me enganava com o sordadito...

Rosina sorriu melancolicamente, como se entendesse o barqueiro por uma
fina intuição de mulher apaixonada, e Graça Strech perguntou em francez
pousando o remo:

--Vae triste! É o arrependimento que chega?...

A vivandeira respondeu energicamente com um gesto negativo, como se em
verdade fôra muda.

--O peior--disse o barqueiro improvisamente--é que se virem de terra que
vae aqui um soldado francez, são capazes de fazer fogo contra todos nós.
Os diabos o jurem! Mas se ella não é franceza p'ra que diabo lhe fala o
senhor n'esses latins?

--São coisas... respondeu austeramente Graça Strech.--Tens razão,
tens... no que lembraste.

E, voltando-se para Rosina, traduziu o pensamento do barqueiro.

--Vae ali uma manta, e a cachopa que se embrulhe n'ella, se quizer,
observou o Tunante de Pé-de-Moira, com certo orgulho alegre de tomar
parte n'uma aventura que desde logo presumiu amorosa.

Rosina, aconselhada por Graça Strech, acceitou o offerecimento, e despiu
a fardeta.

O Tunante, orgulhoso de poder fazer concessões, acrescentou:

--Minha mulher tem lá por casa uns trapos, que não valem nada. Assim que
chegarmos, eu irei buscal-os.

Inteirada do offerecimento, Rosina abriu a bolça da ambulancia e tirou
com presteza o seu corpete, saial e _bonnet_ de vivandeira,
arremessando-os ao rio.

--Que faz? perguntou Graça Strech.

A vivandeira encolheu os hombros, como se aquelle movimento quizesse dizer:

--Atiro á agua o passado.

--Porque não fala, Rosina! Ainda não ouvi a sua voz desde que entrámos
n'este barco! Quererá tomar a serio o gracejo da sua mudez, com que eu
procurei ludibriar a curiosidade do barqueiro?

--É que, respondeu ella affectuosamente, me sinto preoccupada ao estudar
o papel que devo representar ámanhã...

--Mas... não percebo!

O barqueiro tinha largado os remos e deixado pender o labio inferior ao
ouvir a pronuncia de Rosina. Para elle, que tinha suas fumaças de rato
da agua, como quem diz _lobo do mar_, era aquelle um mysterio
impenetravel. Podia acaso acreditar que fosse realmente ali, em
companhia d'um portuguez, uma mulher franceza, que lançára ao rio um
fato em que brilhavam as côres sinistras da França, áquella hora em que
o sangue, o incendio, o saque, a tyrannia se erguiam como barreira entre
o povo d'um e outro paiz?

O Tunante de Pé-de-Moira não sabia historia, e ignorava o prodigio
d'estas affinidades individuaes que se escondem entre as correntes
oppostas dos sentimentos nacionaes. São grãos d'areia perdidos no
oceano; é preciso descer ao fundo do mar para encontral-os. Outra
pessoa, que não fosse rude, não se admiraria. A historia diz que, pouco
depois da invasão, o marechal Soult se vira fechado n'um circulo de
cariciosas sympathias, e que eram rasgados os salamaleques dos que já se
presumiam aulicos de D. Nicolau I. A historia refere que semelhantemente
alguns foram os corações que se renderam á prepotencia de Junot, e que
era contra esses que se erguia tremenda a grande voz popular: «Morra
Junot, e mais quem d'elle tiver dó.»[6] Finalmente, ainda
conta a historia que Piton, um sargento do corpo de policia de Lisboa,
fora promovido a alferes, pelos grandes serviços que prestou aos
francezes, com os quaes se retirou para França ao depois.[7]

O Tunante, se soubesse historia, não se admiraria portanto de que o
coração ainda tivesse um élo para ligar portuguezes a francezes, e, se
houvera adquirido maior conhecimento dos homens e das coisas, saberia
que primeiro se verga ao tufão das paixões a palmeira flexivel e
solitaria do deserto, que o roble secular da floresta, duas vezes
forte--porque é robusto e porque não esta só.

A palmeira cede ao primeiro impulso, e deixa-se ir, em doce
voluptuosidade, embalada nos braços vaporosos do vendaval, que são os
primeiros, e por ventura os unicos, que se estendem para ella.

O roble cede apenas quando o tronco está corroido pelos vermes ou
abalado pelas luctas da tempestade.

Os aulicos de Soult e os thuriferarios de Junot tinham as entranhas
comidas pelas serpes da perfidia, e a alma vergastada pelo açoite da
cupidez.

Rosina era a palmeira do deserto, que verga sem saber que vae ser
arrastada para longe do seu torrão natal, e que o simoun a despenhará
n'um abysmo inevitavel.

Era o amor que a dementava a extremos de renunciar a sua patria, se bem
que a cada instante lhe pungisse no coração uma vaga saudade das
Ardennas; era finalmente um sentimento nobre que a impellia a essa
loucura, serena postoque ardente, resignada postoque dolorosa.

A que mobil obedeceriam, porém, as damas portuguezas, que, um anno
antes, se banquetearam e valsaram, no theatro de S. Carlos, em ruidoso
sarau e na presença de Junot, com a officialidade franceza?

Suas excellencias, as beldades da capital, eram recebidas no vestibulo
do theatro por quatro pagens, loiros e provavelmente rosados. Sahia a
esperal-as ao limiar da platéa, d'onde corria um tablado a nivelar-se
com o palco, o general Margaron, que fazia as honras da casa. Ao fundo
da scena havia trez cadeiras de braços, que se conservaram devolutas até
á chegada de Junot, e em frente o busto de Napoleão a resaltar sob
um docel armado com quatro bandeiras em que se liam os nomes de outras
tantas batalhas assignaladas: Marengo, Austerlitz, Iena e Friedland.

Já as damas ouviam requebradas os galanteios dos officiaes de Napoleão,
quando entrou Junot á maneira d'imagem em andor, isto é ladeado por duas
das mais formosas portuguezas. Então começou o delirio da valsa, que
rodou em circulos vertiginosos pela sala, até que a meio do tablado se
abriu uma tenda de campanha, onde se serviu a ceia unicamente ás
senhoras. É de suppor que suas excellencias se volvessem galliciparlas
para melhor poderem acompanhar a eloquencia dos officiaes francezes nos
brindes.

Os convivas do sexo masculino estavam vexados--segundo diz candidamente
o já citado José Accursio das Neves--e espreitavam dos camarotes as
viandas e as esposas, resignando-se ao exiguo prazer de respirar os
perfumes d'umas e outras.

Em redor do edificio do theatro estavam postados quatro mil aguadeiros,
de barril ao hombro, medida preventiva ordenada por Junot, para
acudirem, em caso de maior sinistro, ao duplo incendio da lascivia e da
gula.

Parece porém averiguado que não funccionaram por serem permittidos
dentro os escandalos.

D'esta combustão, que afogueou o interior do theatro de S. Carlos, na
noite de 8 de junho de 1808, tambem não sabia o Tunante de Pé-de-Moira.

Que ignorante aquelle!

Entenda-se todavia que não veiu á tela o facto para avultar a necedade
do barqueiro, senão que para desculpar o coração e a mocidade da pobre
Rosina Regnau. E agora é tempo de reatarmos o interrompido dialogo.

--Reparou, replicou a vivandeira a Graça Strech, que ia calada. Ia a
pensar. Bem vê que é desculpavel a concentração em quem agora renasce
para a existencia. Não creia porém que o não ouvia. Ouvia sim... Quer
uma prova? Acaba de serenar a minha alma com uma unica palavra, de
resolver um problema, como se diz em Pariz, no bairro Latino. O senhor
não precisa de pensar no futuro. Já o escolheu. Vae combater, vae
realisar o seu desejo, tão facil de realisar que lhe basta apenas
encontrar o exercito portuguez. Eu comecei a realisar o meu: era
acompanhal-o. Bem; aqui vou ao pé de si. Mas depois? mas ámanhã? mas
sempre? Procurar o exercito francez era entregar-me á morte. Seguir o
exercito portuguez era denunciar-me no primeiro momento em que me
ouvissem falar. E os resultados d'essa imprudencia facilmente se
imaginam... Seriam tambem a morte... Não, não, eu quero viver, preciso
de viver, com o senhor e como o senhor. Viverá para a sua vingança; eu
viverei para o meu... amor. Sim, pode acreditar na verdade d'esta
palavra, aqui, a esta hora, depois, de eu haver atirado ao rio o meu
fato de vivandeira... O senhor disse ao barqueiro: Faze de conta que é
muda. Pois bem, sel-o-hei d'hoje em diante sempre que tenha á volta de
mim ouvidos estranhos. Reservarei para o senhor as minhas palavras e o
meu coração; para todos os outros serei muda, idiota, louca, se tanto
for preciso. Mas deixe-me vel-o, seguil-o, falar-lhe só a si, percebe,
só a si! Não estranhe a minha fraqueza. A alma da vivandeira é como um
cartuxo de polvora: cheguem-lhe lume, e ella arderá. O senhor bem sabe
que eu sou vivandeira...

Graça Strech queria falar.

Ella atalhou-o:

--Quando se enfastiar de mim, tenha a coragem de m'o dizer. Um soldado
deve ser corajoso. O ceguinho das Ardennas, quando vae a qualquer casa
onde as crianças teem medo do seu cão, manda-o embora, e elle
obedece-lhe. O senhor diga-me tambem: «Rosina Regnau, não te esqueças de
que eu sou para ti o cego das Ardennas, o pobre Hubert». Bem sabe que
quando ha guerra não é difficil a gente encontrar repouso. Ás vezes, no
caminho, sae-nos ao emcontro uma bala perdida. Quando a gente é feliz, a
bala cae-nos aos pés, mas quando só falta calar-se o coração para
morrer, a bala cae no coração.

--Rosina! Rosina! murmurou Graça Strech, profundamente commovido.

Ella atalhou-o de novo:

--Sim, agora ainda sou Rosina, ainda posso sel-o. Ámanhã serei--a muda.
Serei uma sua parenta, uma louca com quem o senhor reparta piedosamente
da sua marmita. Dirão: Ali vae a louca! E eu não poderei voltar-me
sequer, porque a louca será ao mesmo passo surda e muda. Se porém o
calor da lucta não só fizer que se enfastie de mim, mas tambem que me
odeie, como a principio me odiava, então não me mande embora,
denuncie-me, entregue-me. Bastará uma palavra sua para fazer-me
emmudecer para sempre. Bem vê que se o encargo é pesado, o resgate é
facil...

--Offende-me, Rosina, veja bem que me offende! disse elle ardentemente.
Amo-a... sim, tambem eu posso dizer-lhe que a... amo. E quem diria,
Rosina, quem o diria ha tão pouco tempo ainda! Como é feito o coração do
homem! Odeio os seus irmãos e amo-a a si... Pela primeira vez na minha
vida sinto amor por outra mulher que não fosse...

--Cale-se, cale-se! apostrophou ella delirantemente. Não quero saber
quem amou; seja esse o segredo do seu annel.

--Acredite, Rosina, que o amor de que este annel é recordação era o mais
puro amor que ha na terra... A pessoa a quem elle pertencia era minha
irmã, acredite, era minha irmã.

--Sua irmã! repetiu ella incredula e ironica. Bem vê que o sentimento
que esse annel lhe inspira não é a saudade, é o enthusiasmo...

--Oh! que não sabe como eu a amava! São d'ella tambem estas cartas..
Póde vel-as, desenganar-se...

--Não as entenderia.

--É verdade. Não as entenderia.

--E que certeza me dariam as cartas de que eram da mesma pessoa que
possuia o annel? Que sua irmã lhe escrevesse era natural... Não preciso
de provas para acredital-o...

--Rosina! Rosina! Este annel tambem era de minha irmã, que eu vi morta,
fria, hirta, livida... Mataram-n'a, Rosina, mataram-n'a... E ella era
tão formosa, tão innocente, tão timida! Mataram-n'a os francezes, a
ella, que lhes não fazia mal nenhum, a ella, que era meiga como uma
pomba!... E não contentes com um assassinio, commetteram mais dois na
minha familia. Ao pé do cadaver d'Augusta havia outros cadaveres: o de
minha mãe e o de minha avó. Mataram-n'as os francezes, Rosina. Por isso
eu odiava este nome. O annel, cujo segredo não acredita, é um
legado de sangue... Sim, eu amo-a, mas nunca me peça mais do que eu lhe
posso dar. Nunca me peça compaixão, clemencia... Era impossivel! Sobre
este annel jurei vingar-me. Bem vê que é delgado, fino, como o dedo que
cingia. Pois elle é a unica barreira que póde haver entre mim e Rosina,
quero dizer, o unico obstaculo que lhe prohibe a plena posse do meu
coração... Viverei, sim, entre este annel e Rosina; entre a minha
vingança e o meu amor... Eu patenteei-lhe a minha alma antes de acceitar
a liberdade que me deu. Não tem de que me accusar... Comprehendo-a,
Rosina, acredite que a comprehendo. A sua alma é tão extraordinariamente
grande, tão poderosamente forte, que chega a assombrar-me a coragem do
seu amor... Eu conheço que vae raiar para mim uma nova aurora. Quizera
poder-me dar completamente ao seu amor, viver d'elle e só para elle, mas
infelizmente a aurora que vae raiar nasce tinta de sangue, e sangue...
de seus irmãos.

Rosina tinha lagrimas nos olhos e fogo no coração. Parecia-lhe
impossivel que a saudade d'uma irmã despertasse em Graça Strech tão
dolorido enthusiasmo. Se era essa a unica recordação ligada áquelle
annel, que phenomenal, que afflictiva e ao mesmo tempo que energica não
era a alma d'esse homem! Cada vez o amava mais por que cada vez lhe
parecia maior. E todavia, entre elles, tão germanados pela impetuosidade
dos sentimentos e pela virilidade do animo, medeava uma barreira, posto
que delgada, insupperavel--o annel mysterioso. Ella quereria tirar-se
d'aquella duvida cruciante, adquirir, ainda que á custa de sacrificios,
uma convicção, embora funesta; mas que direito tinha ella a interrogal-o
mais, a duvidar, a ter ciumes?

Cerca do meio dia abicou o barco a um reconcavo sombrio, perto de
Pé-de-Moura, onde o barqueiro saltou em terra para ir buscar o fato
promettido. Antes d'elle desembarcar, Graça Strech lançou-lhe a mão ao
braço, e disse austeramente:

--Tens filhos?

--Saiba v. s.ª que tenho quatro. Por elles me exponho á morte todas as
noites no rio...

--Pois bem. Por elles me jurarás que não dirás a ninguem palavra do que
viste e ouviste aqui.

--Juro, senhor...

--Agora recebe todo o dinheiro que resta a um soldado.

Uma hora depois, Graça Strech, saltando á margem, dizia a uma camponeza
que o seguia:

--Para Amarante.

E a camponeza, como se só tivesse sorrisos e não palavras, sorria.

Já dissemos que era aquelle o dia 20 d'abril.

Quizeram os francezes, depois da invasão do Porto, estender a sua
victoria pelo paiz inteiro. Immediatamente se assenhorearam de Valença e
Vianna, tentando simultaneamente passar a Traz-os-Montes, mas foram duas
vezes repellidos n'essa tentativa.

Beliscados na sua vaidade de conquistadores, tinham mandado sobre
Amarante no dia 9 uma força, que recuou perseguida pelo general
Silveira. Appareceu porém, reforçada, no dia 15, travando combate em
Manhufe e Villa Meã durante trez dias para dar tempo a soccorrel-a os
quatro mil homens de Loison e De Laborde, que, partindo de Guimarães,
lograriam colher os portuguezes pela rectaguarda.

A pericia do general Silveira frustrou-lhes o intento com um rapido e
habil movimento sobre Amarante. Os portuguezes occupavam a margem
esquerda do Tamega; os francezes a direita.

O empenho do inimigo era atravessar a ponte. Desesperados pela valorosa
resistencia dos portuguezes, pegaram fogo, na noite de 18, a toda a
villa. A crueza do inimigo mais pareceu atiçar a coragem dos nossos,
cuja resistencia recrudesceu no dia immediato, apesar de reforçados os
francezes pelas brigadas de Sarrut e Marisy.

Estas eram as evoluções das tropas inimigas, em Amarante, á hora em que
deixamos Graça Strech e Rosina Regnau em caminho do acampamento portuguez.

Tempo depois, um poeta conterraneo, mais familiar ás armas d'Apollo que
de Marte, encarecia no seguinte soneto a gloria do general Silveira,
cuja tactica elle provavelmente estivera contemplando de sitio aonde já
não podiam chegar pelouros:

    Uma nuvem de fumo o ar povôa,
    E do Tamega enluta as margens frias,
    O portuguez canhão quatorze dias,
    Sem descanço algum ter, fuzila e trôa.

    De um lado a outro lado a morte vôa
    Por entre essas crueis artilharias,
    E perdendo as antigas ousadias,
    Curva ao duro francez a altiva prôa.

    Amigos hespanhoes, nação brilhante!
    Eis como cá seguimos vossa esteira,
    Eis nossa Saragoça, eis Amarante.

    Os olhos ponha em nós a Europa inteira,
    E veja, em amplo quadro flammejante,
    O Tamega, Ebro, Palafox, Silveira.

Pena foi que Graça Strech precedesse alguns dias a gestação do soneto
escripto em honra de Silveira, porque, de contrario, se topasse o poeta
a versejar em ociosa inactividade, havel-o ia empurrado, no seu
vivissimo odio contra os francezes, para o meio da infatigavel fuzilaria
que durante quatorze dias sinistramente illuminou as aguas do Tamega.

O que valeu foi que, se houve poetas para incensar metricamente
Silveira[8], houve tambem soldados que denodadamente pelejaram pela
patria.

E o numero dos valentes da ponte d'Amarante ia agora ser augmentado com
um soldado que seria o primeiro a romper fogo contra o inimigo.

Deixar lá o poeta dizer que as margens do Tamega eram _frias_ n'aquelle
tempo. Os poetas dizem tudo, e tudo podem dizer...

    [6] «Historia antiga e moderna da sempre leal e antiquissima
    villa de Amarante». etc., por P. F. de A. C. de A.--1814, pag. 54.

    [7] «Historia geral da invasão dos francezes em Portugal»,
    por José Accurcio das Neves. Tomo I, pag. 282.

    [8] Veja-se _Elogio de Silveira_, pelo padre mestre dr. fr.
    F. de S. T., e _Silveira_, poema por J. S.

      *      *      *      *      *


X

A hora do resgate

Quatorze dias durou, como dissémos, a heroica defeza da ponte d'Amarante.

Foi aquella uma proeza que requeria desfecho condigno, o que
infelizmente não aconteceu. Reforçado o inimigo ao decimo terceiro dia
de combate, e animado pela presença do marechal Soult, preparou-se para
uma lucta decisiva, que o nevoeiro com que amanheceu o dia seguinte
viera inesperadamente coroar.

Perdidos os nossos na cerração da metralha e da neblina, e atacadas pela
rectaguarda algumas baterias, tiveram de abrir passagem por entre uma
densa floresta d'armas, marchando em retirada para Mezão Frio e Campeã,
a tempo que o general Silveira recuava para Entre-os-Rios.

É realmente assombrosa a historia portugueza nas paginas que dizem
respeito ás guerras peninsulares.

São tão descommunalmente grandes os factos, que, em sua mesma simpleza,
ora se nos affiguram episodios d'Homero, exuberantes d'esforços
titanicos, ora se retingem dos toques sombrios de Dante.

As façanhas da invasão franceza claramente revelam que ha pouco mais de
sessenta annos corria ainda nas veias dos portuguezes o sangue dos
valentes d'Ourique, Aljubarrota e Montijo. Renasciam os heroes das
cinzas dos heroes, como se a gloria fosse herança de paes a filhos.
Podia o animo portuguez desvariar se por momentos, como já anteriormente
fizemos notar, que logo despertava melhor retemperado para a
rehabilitação. Assim é que 1640 faz esquecer 1580, e que o vulto
homerico de João Pinto Ribeiro resgata a perfidia de Miguel de
Vasconcellos.

Hoje, as batalhas que outr'ora eram campaes, volveram-se parlamentares,
isto é, falamos muito e praticamos pouco. A apostrophe «S. Jorge e
ávante!» foi substituida por est'outra: «Senhor presidente, peço a
palavra!» Ha menos soldados e mais deputados, menos regimentos e mais
commissões. Não obstante, alguma faulha resaltaria ainda das cinzas
quentes das nossas conquistas para atiçar o incendio das paixões, na
hora em que perigasse a independencia da patria.

Aconteceria, porém, que muitos deputados, que nas côrtes de S. Bento
discursam calorosamente sobre a nossa autonomia, requereriam, dada a voz
de alarma, inspecção da junta de saude para serem considerados invalidos...

Mas iamos nós falando dos feitos portuguezes durante as guerras
peninsulares. Estupendos foram, é certo.

No combate da ponte d'Amarante, por exemplo, perecera gloriosamente um
official d'artilharia, muito lastimado por seus companheiros d'armas,
incluido o general Silveira, que lhe abraçou o cadaver.

O tio do official, e a mãe, que era viuva, vestiram-se de gala, dizendo
esta nobre mulher aos dois filhos que lhe restavam, e estavam pranteando
o irmão:

--Não choreis, filhos. Vosso irmão não morreu. Vós é que morrereis da
morte da vergonha se vos não mostrardes dignos da sua memoria.

Este exemplo d'animo varonil em peito feminino prova que não anda
phantasia popular na lenda d'aquella Deosadeu, de Monsão, de Celinda, a
heroina de Certã, de Filippa de Vilhena, e doutras celebradas matronas
portuguezas, que deram á patria uma geração de meninas que fazem _crochet_.

É egualmente abundante de heroismos a chronica da primeira invasão, á
parte pequenas manchas, como aquellas que dos copos dos officiaes
francezes cairam sobre o tablado do theatro de S. Carlos.

Deixem-me citar um facto na mesma linguagem em que o historiador o
descreveu.

«O juiz de fóra de Algozo, Jacintho d'Oliveira Castello Branco, fez-se
digno de honrosa memoria, pela sua repugnancia ás ordens do governador
intruso; por continuar debaixo d'elle a uzar do nome de S. A. R.[9] em
alguns processos; por conservar as armas reaes no pelourinho e na casa
da camara d'aquella villa; e por outras acções, egualmente sublimes e
arriscadas. Jantando em sua casa varias auctoridades portuguezas, que o
increpáram de não cumprir as ordens reiativas á contribuição de guerra,
respondeu-lhes, lançando mão a um copo, e fazendo uma saude a S. A. R. o
principe regente.»

Não é menos avantajado em heroicidade o procedimento do juiz de fóra de
Marvão, Joaquim José de Magalhães Mexia, que, intimado para se render ao
jugo estrangeiro, fez desistencia publica perante os seus escrivães, e
foi prostrar-se diante da imagem do Senhor dos Passos da sua villa,
encostando a vara á imagem por fórma que parecia haver-lh'a depositado
nas mãos, e recolhendo-se depois a casa para vestir-se de luto.

É pois digna de que a reproduzam na tela os melhores pintores, os
melhores poetas e os melhores historiographos--esta ingente lucta d'um
pequeno paiz, apenas soccorrido por outro, contra o gigante tresvariado
pela gloria, que firmava os pés nas planicies da Italia, e alguns annos
depois fôra visto á luz, para elle sinistra, dos incendios de Moscow,
enchendo, de sul a norte, a Europa inteira.

Alguns talentos verdadeiramente robustos teem lançado o colorido do seu
pincel sobre esta enorme tela, nunca esgotada. Que me lembre n'este
momento, Rebello da Silva, Camillo Castello Branco, Pinheiro Chagas e
Arnaldo Gama trataram brilhantemente tão fecundo assumpto. Eu chego com
pequeno viatico, embora não venha tarde, unicamente para mostrar que
tenho seguido reverentemente o sulco que todos quatro abriram no vasto
campo da guerra peninsular.

Reatando a narrativa.

Graça Strech foi um dos soldados portuguezes que mais se distinguiram
nos ultimos dias da defeza da ponte d'Amarante.

O general Silveira estimou-o desde que elle, apresentando-se, lhe disse:
«Venho bater-me como leão porque venho vingar-me»; e começou a admiral-o
horas depois da apresentação.

Ao anoitecer do mesmo dia, fizeram reparo alguns soldados n'uma
camponeza, que parecia muda, e se bandeava com o sequito do exercito.

--D'onde viria? perguntavam elles.

--É minha... irmã, atalhou commovido Graça Strech. Não podia
convencel-a a que me não seguisse, porque a infeliz nem ouve nem fala.
Veiu vindo atraz de mim, receiosa de que eu morresse sem ver-me.
Pobresinha!--acrescentou com os olhos marejados de lagrimas--não faz mal
a ninguem, e é muito minha amiga.

--Que pena a sua desgraça, que tão formosa é! observou piedosamente um
portuguez.

--Nem se diria portugueza! exclamou outro com a affouteza que lhe dava o
não estar na presença de portuguezas.

Graça Strech replicou:

--Ha com effeito ali alguma coisa allemã no rosto como no nome. Os
nossos antepassados tinham sangue teutonico. Ainda nos corre nas veias o
sangue d'elles. A pobresinha estremece-me. Como não tem ouvidos nem voz,
quer estar ao pé de mim sempre que póde, como para falar pela minha
bocca e ouvir pelas minhas orelhas. Eu sou quasi a sua moleta... Tambem
a infeliz não tem ninguem mais n'este mundo, e ella de si pouco tem...

--Infeliz! ponderaram os soldados enternecidos.

Rosina Regnau interpretou magistralmente o seu papel. Passavam por ella
e diziam: _A muda allemã!_ e ella, apesar de entender a phrase á força
de repetida, nem sequer voltava o rosto para agradecer aquella esmola de
compaixão.

Se não ouvia! se não falava!

Sentava-se entre as bagagens a entrançar folhas verdes ou a desfolhar
flôres.

Algumas vezes mettia-se por entre as arvores para se inteirar da posição
das tropas.

Depois d'um combate, aproximava-se dos soldados, quando Graça Strech se
demorava ainda, e pousando a face na mão e fechando os olhos, perguntava
por gestos se «o irmão» estava ferido ou morrera. Os soldados, que já a
comprehendiam, acenavam-lhe negativamente.

Assim decorriam os dias, sem que a alma da vivandeira saisse para fóra
de si mesma.

Quem adivinhava ali que de receios, de maguas, de pensamentos, de
esperanças muito vagas... agitavam aquelle formoso cadaver que só tinha
vida nos olhos?

Ninguem.

E todavia ella estava pensando sempre...

A sua ambição, o seu sonho, o seu ideial era possuir inteiramente a alma
de Graça Strech, porque ella desde o momento da fuga para ninguem mais
vivia.

--Achou decerto--suspeitava ella--que eu não era digna de receber a
confissão do seu segredo. Quem és tu, disse elle lá comsigo, pobre
vivandeira, para comprehenderes a enormidade d'um amor que vive na
morte? Se aquelle annel fosse realmente de sua irmã, curvar-me-ia a seus
pés e beijar-lh'o-ia. Mas se elle cingiu o dedo d'outra mulher, que o
amava muito menos do que eu, arrancar-lh'o-ia da mão ainda mesmo com a
certeza de morrer esmagada pela sua colera. Cumpre pois que, por
sacrificio sobre sacrificio, eu chegue a nobilitar-me a seus olhos o
bastante para elle me convencer. N'esse dia serei sua amante; por
emquanto sou apenas o seu cão. Vamos, solitario molosso, affaga o teu
dono...

Graça Strech passava, atirava-lhe uma flôr, e sorria...

Ella sorria tambem.

Guarnecidos todos os pontos do Douro, desde a retirada d'Amarante até a
acção d'Ovelha, tiveram as tropas algum descanço apenas interrompido por
escaramuças e reconhecimentos.

Foi n'esse intervallo que Graça Strech começou a aprender a tocar
guitarra com um soldado, filho da Regua, e muito conhecido ali por
excellente musico.

A natural aptidão de Graça Strech fez que dentro em pouco se avantajasse
ao mestre. Assim era que não desaproveitava occasião de estar
guitarreando ao lado de Rosina, que conservava na physionomia a habitual
immobilidade de linhas, como se a musica, que se lhe coava á alma, não
lhe desse nenhuma sensação, por não poder ouvil-a.

Ás vezes, de noite, Rosina podia murmurar muito a medo, aos ouvidos de
Strech, através dos sons da guitarra:

--José!

Ella sabia pronunciar este nome como se de pequenina o aprendera.

Depois olhava em redor, como para adquirir a certeza de não ser
escutada, e repetia maviosamente:

--José!

Elle apertava-lhe convulsamente a mão e respondia:

--Rosina!

E aquelle immenso amor da vivandeira, que renunciára á patria, á
liberdade e á voz, contentava-se com exhalar-se n'uma palavra, e ser
correspondido por outra.

Ella tambem não pedia mais. Era o cão do soldado: seguia-o.

Quando a tristeza lhe descia ao coração, a indefinida tristeza de quem
ama, consolava-se a si propria imaginando-se ainda vivandeira, porque
ouvia troar o canhão e sentia no ar o cheiro da polvora.

Era apenas a memoria o que lhe restava do que fôra; o fato da sua
infancia sepultára-o ella no fundo das aguas...

Entretanto proseguiam com actividade as operações d'um e outro exercito.

A 22 d'abril entrava em Lisboa Wellesley, commandante em chefe das
forças britannicas, que desembarcaram no Porto, na Figueira, etc. As
tropas inglezas, de combinação com as portuguezas, começaram a tomar
differentes posições. Em Coimbra passaram algumas divisões nos dias 1 e
2 de maio, sendo recebidas com festas que chegaram a tocar o maximo
enthusiasmo.

Era aquelle o hymno de esperança da patria, anciosa de liberdade.

Avançaram as tropas alliadas até Agueda, e lograram repellir os
francezes desde as Albergarias até Oliveira d'Azemeis, onde Wellesley,
depois lord Wellington, estabelecera o quartel general.

No dia 11, a guarda avançada do exercito anglo-luzo destroçou em Grijó
os postos avançados francezes que recuaram até Gaya e passaram o Douro,
cortando immediatamente a ponte de barcas.

Na vespera d'esse dia atravessára Beresford o Douro na Regua com as suas
tropas, repellindo Loison para Amarante, e de Amarante para o Porto;
Loison perdera na retirada muitas peças, alguns obuzes, e cento e
dezenove carros com bagagens.

Estava pois o flanco esquerdo do exercito francez torneado por
Beresford, o direito por Hill em Ovar, e o centro alcançado pelas
divisões Trant e Paget.

Durante toda a noite de 11 para 12 marchou o exercito alliado sobre
Villa Nova de Gaya.

De manhã, e impossibilitado de passar o rio, soube o coronel Watters que
um barbeiro portuense, salvo da vigilancia das patrulhas francezas,
havia atravessado n'um barco; aproveitando a conjunctura providencial, e
o barco não menos providencial que a conjunctura, passou á margem
direita, voltando á esquerda com trez grandes barcos, que pudera obter.

Avisado Wellesley do achado miraculoso, voltou-se jubiloso para o
coronel e disse:

--Passem as tropas que couberem nos barcos.

Não faltaram valentes que se expuzessem aos azares da façanha,
surprehendendo os francezes que contavam repellir vantajosamente o
inimigo quando tentasse a travessia a descoberto.

Foi, pois, o coronel Watters o Martim Moniz da reconquista do Porto.

Percebidos os francezes da audacia heroica do exercito alliado, para
logo se desviaram em movimentos confusos, como o redemoinhar das areias
no deserto revolvidas pelo simoun. E assim como as areias tomam,
erguidas no ar, á luz do sol, irradiações prismaticas que deslumbram,
assim resplandeciam, á luz do meio dia, as armas dos francezes
baralhando-se tumultuariamente nas ondulações do terreno que medeia
entre o caes da Ribeira e o Prado do Bispo.

E então marinhavam as tropas luzo-britannicas pelos alcantis do
Seminario, como outr'ora os cruzados pelos despenhadeiros da torre do
norte, na tomada de Lisboa, e, para que se complete o parallelo, o que
lá era Guilherme, duque de Normandia, era cá Wellesley, lord Wellington.

E já para anciedade dos portuenses se abria manhã d'esperança, á medida
que os nossos ganhavam terreno, e mais revoluteavam as hostes francezas
nas eminencias sobranceiras ao Douro.

Por um momento se julgou perdido o triumpho, quando a artilharia
franceza começou a varejar o Seminario.

Mas não tardou que ao canhão da margem direita respondesse o canhão da
margem esquerda, que das alturas do Pilar vomitava torrentes de fumo
negro sobre o valle cavado pelo Douro.

Reanimados os portuenses, entraram de preparar barcaças, que conseguiram
pôr a salvo do outro lado do rio, e que transportaram as tropas do
general Sherbrooke.

Simultaneamente estrondeava no Porto, rolando até ao caes como o rumor
longinquo d'uma cathedral em festa, o concerto das vozes, que pregoavam
victoria, á mistura com os sons festivos dos campanarios.

Nas janellas da cidade baixa agitavam-se lenços brancos em vertiginoso
tumultuar.

Tambem assim accordou Lisboa, cento e sessenta e nove annos antes, na
manhã de 1 de dezembro de 1640, quando um punhado de fidalgos
portuguezes subjugava nas praças publicas, sem correr uma gotta de
sangue, o famelico leão das Hespanhas.

Era o grito de liberdade longos dias reprimido na garganta d'um povo
inteiro.

Era o jubilo d'uma nação, que parece apenas occupar alguns palmos de
terra no mappa da Europa, á hora em que despedaçava as gramalheiras que
por sobre os Pyreneus lhe lançára o César da França, e dizia ao vencedor
de Austerlitz: «Tu prostraste a Prussia em Iena, a Russia em Friedland;
tu levantaste sobre as baionetas dos teus exercitos os thronos de
Napoles, da Hollanda, da Westphalia, e da Hespanha, mas nós fizemos
estremecer na tua mão, ó demolidor victorioso, a alavanca com que
procuravas revolver nos alicerces o solio portuguez. Que o amigo
leopardo da Inglaterra te contrariasse, vá, porque a Inglaterra é muito
poderosa. Mas nós, pequenos como somos, fazemos suster o vôo da tua
aguia e, audazes como ella, gritamos-lhe para a amplidão que avassalla:
Basta! Pára!»

    [9] Sua Alteza Real.

      *      *      *      *      *


XI

O que a vivandeira pensava

Retiraram os francezes pelo norte de Portugal, acossados pelo exercito
anglo luso.

No dia 17 ganharam Montalegre, no dia 18 passaram a Alhariz, e no dia 19
entraram em Orense, depois de marchas tão violentas como trabalhosas, de
perdas consideraveis, e de perseguida vivamente a sua rectaguarda pelas
tropas alliadas.

Na passagem pelas povoações que medeiam entre o Porto e a fronteira,
deixaram os invasores um rasto de sangue e fogo de que falam com
assombro os documentos officiaes.

Á medida que fugiam foram espalhando a morte nas ultimas terras de
Portugal, como se quizessem atulhar de cadaveres o abysmo cavado na
gloria de Napoleão.

N'uma carta dirigida por lord Wellington ao secretario de guerra,
escripta no quartel general de Montalegre, no dia 18, lê-se que: «O
inimigo começou a retirada, como já informei a v. s.ª, destruindo uma
grande porção dos seus canhões, e munições. Ao depois destruiu o resto
d'ambos, e grande parte da sua bagagem, sem conservar mais do que quanto
pudessem levar os soldados, e poucas mulas. Deixou ficar os doentes e
feridos; e o caminho até Montalegre está juncado de cadaveres de
cavallos, e mulas, e soldados francezes, que foram mortos pelos
camponezes, antes que a nossa guarda avançada os pudesse salvar. Esta
circumstancia é o effeito natural da maneira por que o inimigo faz a
guerra n'este paiz. Os soldados teem saqueado e morto a paizanagem, a
seu arbitrio; e eu tenho visto muitas pessoas pendentes enforcadas nas
arvores ao longo das estradas, executadas por nenhuma outra razão, que
eu possa saber, senão porque não eram amigas da invasão franceza,
nem da usurpação do seu paiz; e podia traçar-se a rota da sua retirada,
pelo fumo das aldeias a que elles lançavam fogo. Temos tomado cousa de
quinhentos prisioneiros. Em tudo, o inimigo não tem perdido menos de um
quarto do seu exercito, e toda a sua artilharia e equipagem, desde que
nós o atacámos junto ao Vouga.»

O marechal Beresford afina pelo mesmo tom:

«Não é possivel pintar a cruel e infame conducta do inimigo; ella póde
ser facilmente traçada pelos lamentos dos infelizes paizanos, das
mulheres e das crianças, e pelo fumo das villas, aldeias e casas
incendiadas: elle a nada perdôa: esta villa (Amarante) está inteiramente
destruida: a de Mezão Frio o está em proporção do tempo que tiveram...»

Passavam, pois, os francezes, devastando, incendiando, matando.

Quiz o duque de Dalmacia que o occaso da sua invasão fosse allumiado
pelas labaredas do incendio.

Eram os ultimos lampejos d'uma victoria ephemera. Mas a voz da patria, á
hora do resgate, erguia-se mais alto que o crepitar das chammas no
pendor das serras, que os lamentos dos velhos e das crianças que
succumbiam á ultima carnificina da segunda invasão franceza.

No Porto, governado militarmente pelo coronel Trant, grande era o
jubilo, se bem que não tão cego que sir Arthur Wellesley não houvesse
proclamado aos habitantes que os feridos e prisioneiros estavam debaixo
da sua protecção, e que seria considerado criminoso quem os offendesse.

Em Lisboa, mal que no dia 17 se teve noticia official da restauração do
Porto, salvou o castello de S. Jorge, sendo correspondido pelos navios
de guerra inglezes surtos no Tejo; saiu bando para que a cidade se
illuminasse por trez dias, no ultimo dos quaes mandou o governo cantar
um _Te-Deum_ na Basilica de Santa Maria Maior.

Internado o inimigo no territorio da Galliza, as operações do marechal
Victor na Extremadura hespanhola, ameaçando nova invasão de Portugal
pelo Alemtejo, obrigaram sir Wellesley e o marechal Beresford,
solicitado tambem o primeiro pela junta central de Hespanha residente em
Sevilha, a marchar com seus respectivos exercitos para o sul do reino.

Retirou, pois, sir Wellesley, posto que a despeito do governo portuguez,
para a cidade do Porto, d'onde passou a Coimbra, Thomar, Constancia, e
Abrantes, acampando na margem direita do Tejo. O exercito portuguez
acompanhou o movimento retrogrado do exercito inglez, marchando para
Abrantes, no intuito de atacarem em commum o marechal Victor, que
estanceava nas visinhanças do Guadiana. Não se demorou, porém, o
marechal Victor n'esta posição. Avançou, com os seus 90:000 homens, para
a margem esquerda do Tejo, no intuito de o passar na ponte d'Alcantara.

Reportemo-nos ao dia 14, dia assignalado pela brilhante defeza d'esta
ponte durante mais de seis horas.

Eram oito da manhã quando o inimigo, em trez columnas, rompeu o ataque
por differentes pontos.

D'uma e outra parte foi terrivel o fogo da artilharia até que, cerca do
meio dia, vendo o regimento de milicias de Idanha-a-Nova
consideravelmente dizimadas as suas fileiras, retirou em debandada,
deixando ficar no campo apenas a legião lusitana.

Em tão desesperada conjunctiva, o coronel Mayne mandou incendiar as
minas da ponte, rompendo a explosão apenas por um lado, e ao major Grant
confiou o commando das baterias para proteger a retirada dos nossos, que
se realisou pelas trez horas da tarde.

A cavallaria franceza vivamente perseguira então a nossa pequena
divisão, sem que todavia pudesse impedir que se acautelassem os feridos
e juntassem os dispersos.

Ora um dos feridos na defeza da ponte d'Alcantara chamava-se José Maria
da Graça Strech.

Quando, em logar seguro, o tiraram d'um carro, onde lhe eram
companheiros outros valentes portuguezes, a _muda alemã_, como
geralmente chamavam a Rosina Regnau, esteve a ponto de trair o segredo
do seu disfarce, vibrando um doloroso grito, o qual se apagou n'um rouco
murmurio, que é, em lances afflictivos, o supremo esforço dos que não
teem voz.

E logo correu a encostar ao peito a cabeça do ferido, a examinar a
ferida, e a perguntar por gestos se poderia resultar perigo.

Os soldados, condoídos de tão carinhosa dedicação, responderam logo,
desde muito costumados a prognosticar sobre ferimentos, gesticulando
negativamente.

E a muda poz as mãos, levantando os olhos ao céo e entrou de affastar os
cabellos de Graça Strech, banhados de suor frio, para contemplar-lhe a
physionomia levemente alterada.

Elle sorria-lhe com os olhos marejados de lagrimas e serenava-a
acenando-lhe meigamente com a mão.

Um dos soldados, abeirando-se de Graça Strech, disse curvando-se para elle:

--O que tu tens de valente tem ella de boa! Sois dois irmãos dignos um
do outro.

Graça Strech encarou n'elle e meneou a cabeça; a muda ficou indifferente
a curar as feridas do irmão.

E só depois que não podia ser vista nem ouvida de estranhos, começou,
alternando palavras com beijos, a falar-lhe tão baixinho, tão baixinho,
como se até dos ouvidos d'elle guardasse o seu segredo, e só quizesse
que a escutasse a alma...

--Não é nada, José, meu José. Elles disseram e eu agora bem vi. Sabes
que fui vivandeira e que tambem entendo o meu pouco de feridas. Não! A
morte não te rouba d'esta vez á tua vingança e ao meu amor.

--Rosina, minha adorada Rosina! Alma pura! Coração nobilissimo!
Obrigado. Curva-te sobre a minha bocca; queiro beijar a tua face...

--É o primeiro beijo! murmurou ella circumvagando um olhar cauteloso.--É
o primeiro beijo que de ti recebo... Obrigada, meu Deus!

--Sim, tu és muito melhor do que eu... Tens-me dado tantos, tantos..
Mas--e perdoa-me, Rosina, perdoa-me--a minha alma só agora te póde
beijar livremente...

--Ó felicidade!... Praza a Deus que se este beijo me abre a tua alma eu
a chegue a possuir inteiramente, porque o amor, meu José, é tão egoista,
tão egoista...

--E não crês possuil-a ainda?

--Não. Todavia tenho esperança... Virá um dia. Cala-te, que te faz
mal falar... Já não foram pequena felicidade estas palavras, por que, tu
bem sabes, eu só tenho palavras para ti e para... Deus.

Foi longo e reparador o primeiro somno do ferido.

Rosina Regnau velou á cabeceira da tarimba, absorta nos seus pensamentos
pela primeira vez illuminados por um raio de sol. Estava folheando o
roseo poema do primeiro beijo, decompondo em estrophes maviosas a
harmonia que da alma subira aos labios. Era a primeira gotta de orvalho
na aridez do seu destino, uma parcella de ternura em recompensa dos
thesouros que ella por tanta vez prodigalisára sobre as faces de Graça
Strech.

O primeiro beijo! A santa loucura das almas que se amam, como diz a trova:

    Foi aqui mesmo, á tremula
        Sombra do olmeiro,
    --Dizia o pastor Lícidas--
        Aqui, aqui,
    Que eu hontem n'estes labios
        Tive o primeiro
    Beijo da minha Flérida,
        E endoideci![10]

E baralhavam-se-lhe os pensamentos com a precipitação da ephemera
demencia que a felicidade dá.

--Sim... eu começo a ser feliz. Diz-me o coração que o serei... Mais
provas! mais provas, senhor meu coração! Mostre-se digno d'aquella
enorme alma, inspire-lhe confiança para lhe recolher os segredos, e
possua-a, e juntem-se, e prendam-se, e identifiquem-se, tão unidos, tão
unidos, que nem a morte os possa separar... Sem isso não ha felicidade
completa... Sim, bem vês, pobre coração, meu pobre coração que tanto
tens soffrido, que se aquelle annel fecha ainda a saudade de um amor
redivivo, não pódes por emquanto conquistar a fortaleza que se não
renderá. Tu sabes lá como a saudade se bate entrincheirada detraz de um
tumulo! Então terás ainda muito que soffrer e que luctar, pobre doente
para quem hoje raiou o primeiro symptoma da cura, meu triste
coração tão soffredor! Mas forceja, vá, porfia, esforça-te por
arrancar-lhe o segredo... Se aquella é a ultima memoria de uma irmã
querida, alegra-te, pobre louco, porque nem a amante desluzirá a irmã,
nem a irmã desluzirá a amante. A alma d'elle é tamanha que chega para
mim e para ella. Para o que não chega é para duas amantes, que se
disputam palmo a palmo o terreno, que luctam, que combatem, que oppõem
ciume a ciume, despeito a despeito, embora uma esteja morta e outra
viva... Não, «a gentil vivandeira» não soffre competencias. Já se fez
amar d'um exercito; é preciso que se faça amar d'um homem. Pois então
perde-se tudo, a patria, a liberdade, o socego, as florestas das
Ardennas, as minhas queridas florestas das Ardennas, que talvez não mais
torne a ver, e as montanhas do Hainaut e do Luxembourg, que eu conheço
desde pequenina, e o Semoy e o Lesse e o Ourthe e o Eure, tudo, n'uma
palavra, perde-se uma vida inteira de dezoito annos, para amar um homem,
para ser a sua sombra, o seu cão, e não se ha de possuir ao menos todo o
seu coração, todos os seus pensamentos, os seus segredos todos? Quem me
diz porém que não hei de vencer? Não vi eu porventura tantas batalhas,
não as vejo ainda, e não posso tirar da incerteza da victoria um bom
agouro para o meu futuro? Dize-te, pobre Rosina, diz a ti mesma o que
são os combates que tantas vezes tens visto. Pinta um quadro para ti.
Anima-te! Olha... São duas as montanhas alcantiladas, sombrias,
enormes... Uma defronte da outra... No meio um rio sereno, e crystalino
a principio... depois vermelho de sangue. Sobre o rio uma ponte, e sobre
a ponte, como a desabarem para ella, as montanhas. E n'uma e outra os
exercitos, os uniformes variados, os kepis multicôres, as espadas
reluzentes, os cavallos pendurados das fragas, os cavalleiros pendurados
dos cavallos, as carretas suspensas na ladeira, as peças que abrem a sua
bocca de fogo para vomitar o fumo e a morte, a voz dos clarins e a voz
dos commandantes, pragas, juras, maldições, gemidos, blasphemias,
sacrilegios, e a turba ora a estreitecer, a apertar-se, a juntar-se em
pinha, ora a crescer, a alargar-se, a fazer-se onda, a trasbordar, ora a
rolar como avalanche pelo monte abaixo, ora a marinhar por elle, a
trepar, a agarrar-se, tão espessa, tão escura, tão confusa como se
fosse uma nuvem que saísse do rio, e o sol a doiral-a agora e logo
o fumo a envolvel-a, e já se desencadeiam d'um e d'outro lado ameaçando
chocar-se sobre a ponte, que corta o valle, e que afundará com elles, e
baralham-se, enovelam-se, redemoinham, e apparecem uns, e desapparecem
outros, e tombam cadaveres ao rio, e estruge no ar a grita, e corre
ensanguentada a agua, e são aquelles os que vencem, os que estão em
maior numero, e vão esmagar os outros, e arvorar a bandeira... mas rolam
de novo, precipitam-se, confundem-se, e são estes agora os que
triumpham, lá se embrenham por entre o inimigo, passam como corisco, e
assombram-n'o, fulminam-n'o, e a victoria é sua! Bem, Rosina Regnau,
assim foi em Amarante e ainda agora em Alcantara; assim póde ser para
ti. Quem te diria no hospital de sangue, quando o estavas contemplando
adormecido, tão pallido, tão mergulhado no somno, e tu te lembravas de
que eras franceza e elle portuguez, quando tu já o amavas e elle dormia,
quem te diria, ó vivandeira ignorada, que dias depois havias de seguil-o
por toda a parte, e perder a tua voz para que te não conhecessem, e
encostar ao teu peito a cabeça d'elle, que caira ferido, e recber-lhe o
primeiro beijo? Ninguem! Nem aquelle endemoninhado do Beauvier, que era
o bruxo do exercito, e andava sempre a olhar para os astros, e
adivinhava quando chovia, e a lua havia de ser cheia, aquella bonita lua
cheia da França!... Ninguem, Rosina, ninguem! Pois tambem não ha magico
na terra que saiba dizer se tu chegarás a vencer o seu coração de modo
que te julgues tão poderosa, tão senhora do mundo como o imperador, e
por feitio que sejas tão ambiciosa como elle, que não deixa palmo de
terra a ninguem!...

Interrompeu-lhe este intimo monologo uma contração do ferido, que
balbuciou monosyllabos.

--Sonha!--pensou ella--e quem sabe o que sonha? Estou aqui tão perto
d'elle, a vel-o, feição por feição, linha por linha, a examinal-o tanto,
que dir-se-ia querer contar-lhe um por um os seus cabellos, e sinto-lhe
o halito na minha face, e fala, e só eu o oiço, e todavia não sei de
quem são os seus pensamentos, nem o que querem dizer, o que está
recordando, o que está sonhando, finalmente! Tenho diante de mim, como
livro aberto, a sua physionomia e não posso lêr na sua alma! Sei que ha
ali um mar mysterioso, e não posso sondal-o. D'uma vez--recordou
ella--lia o meu pae Regnau os jornaes, e disse: «Fulano e sicrano foram
á pesca das ostras.» E acrescentou: «E o imperador que as tem bem boas
na Corsega!» E eu perguntei ao pae Regnau para que iam elles pescar as
ostras, tão longe, se podiam pescar outros peixes no Sena.
«Tontinha!--respondeu elle--porque das ostras é que se tiram as perolas,
e é preciso metter-se uma pessoa ao mar para pescal-as!» Bem me
ensinaste tu, pae Regnau! O mar esconde tanta coisa... que até esconde
as perolas. Aqui estou eu á beira do oceano e não as vejo... As que eu
procuro, vivem escondidas ali...

E apontou para o coração do ferido.

Os labios de Graça Strech pareceram descerrar um sorriso. Rosina, que,
apesar dos seus pensamentos, estava attenta ao menor movimento, ao mais
subtil perpassar d'uma sombra, estremeceu ao rebramir da tempestade
interior:

--Sorri! pensou ella.--Havia n'este seu sorriso a melancolia de quem
está recordando a felicidade perdida... Lembra-se talvez d'uma hora em
que, rosto a rosto, juntas as mãos, sorrindo, falando, sonhando, lhes
fugia o tempo mais rapido que o pensamento... E ella, a mulher que elle
amava, era decerto formosa, muito formosa, e dizia-lhe que jámais
haveria no mundo quem viesse a amal-o como ella... E elle acreditou-a, e
por isso a ama ainda no tumulo, e jurou que, viva ou morta, lhe seria
eternamente leal, porque o coração lh'o havia dado para todo o sempre...
Ah! mas quem sabe, durante o combate, a quem ha de pertencer a victoria?
O teu quadro, Rosina Regnau, é verdadeiro. Lucta até o fim, vivandeira,
faze como os soldados que foram teus irmãos. Combate a saudade com a
esperança. Soffre, porque o soffrer é de quem lucta. Mas porfia,
conquista resignadamente esse coração onde desejas reinar, porque todo
elle é preciso para o throno da tua felicidade.

Abriu Graça Strech os olhos e relanceou a Rosina um olhar suavemente
triste.

--Sempre aqui!--segredou elle.

--Aqui é o meu posto de enfermeira voluntaria.

--Eu dormi, Rosina: dormi e sonhei... com minha irmã. Estava-a
vendo aos cinco annos, vestidinha de branco, quando a fomos levar ás
Chãs, e quando eu tinha seis... Nunca isto me esqueceu! Trepámos a uma
cadeira para descer as maçãs que o padre capellão tinha a amadurecer no
friso da sala. Augusta subiu denodadamente, mas faltou-lhe a coragem
para saltar ao chão... E começou a gritar, a gritar, de sorte que o
padre capellão a veiu surpreender com as maçãs escondidas na abada do
seu pequenino vestido...

Sentiram-se passos.

--Cala-te! apostrophou Rosina. Cala-te! Rosina Regnau já aqui não está.
Fica apenas a _muda allemã_.

    [10] A _invenção dos jardins_ por Gessner; tradução do sr.
    Visconde de Castilho (Antonio Feliciano).

      *      *      *      *      *


XII

Amor e ciume

Foram proseguindo as operações da trabalhosa campanha de 1809 contra os
francezes.

Depois de segundo combate na ponte d'Alcantara, a 10 de junho,
poderemos, por nos furtar a minudencias fastidiosas em romance, ir
direitos á decisiva batalha pelejada nas proximidades de Talavera de la
Reyna, em Hespanha, dirigida pessoalmente d'um lado pelo rei José, e por
lord Wellington do outro.

Pela retirada dos imperiaes á vista do inimigo terminou esta importante
batalha, sendo todavia numerosas as perdas dos alliados, mórmente dos
inglezes.

Meiado agosto, começou o exercito portuguez a retirar para Zara,
entrando em Portugal por Salvaterra do Extremo, dirigindo-se a Castello
Branco, d'onde os differentes corpos foram enviados a disciplinar-se,
durante o resto do anno, em determinados acantonamentos.

Não podemos, porém, encerrar esta ligeira chronica dos feitos militares
de 1809 sem retroceder ao segundo combate da ponte d'Alcantara, a que
José Maria da Graça Strech não assistiu por estar ainda mal convalescido
do ferimento que no primeiro ataque recebera.

Entre os feridos francezes, que ficaram prisioneiros, requeria prompto
curativo um que denunciava claros indicios de perigo.

Rosina, mal que o viu, reconheceu-o.

Era Bénard, por alcunha _La goutte_.

Então lhe acudiram de tropel pungentes recordações da sua vida de
vivandeira, quando, sentada no acampamento, via _La goutte_ puxar da sua
garrafinha de vidro branco e offerecer aguardente por esta formula
inalteravel:

--_Voulez-vous lá goutte?_

Esta phrase motivou aquelle cognomento, que valia tanto como dizer em
portuguez: _O pinga._

Bénard era um excentrico, que tinha intermittencias soturnas e
luminosas. Umas vezes lhe dava a embriaguez para se deixar cair n'uma
tristeza insociavel, outras era causa d'uma garrulice chistosa e alegre.

Mal que se levantava, enchia a sua garrafinha de aguardente. Bebia até
ao meio, erguendo o frasco para venficar á luz se a medida era exacta,
e, certificado, acabava d'enchel-o com agua fria.

Convém, porém, saber que Bénard classificava os seus companheiros
d'armas do seguinte modo:


1.º--Amigos capazes de emprestar.

2.º--Amigos capazes de não pedir.

3.º--Amigos capazes de não emprestar.

4.º--Amigos capazes de pedir.

5.°--Conhecidos.


Mettida a garrafinha entre a fardeta, começava o processo
inalteravelmente observado todos os dias.

Encontrando um amigo da primeira classificação, abeirava-se d'elle e,
pondo a mão no peito, perguntava:

--_Voulez-vous la goutte?_

O amigo bebia até ao meio, porque elle não consentia que fosse mais
longe. Depois, segunda dynamisação, outra vez a garrafa cheia; e,
succedendo-se as dynamisações aos amigos, pela ordem por que os tinha
classificado, acontecia que os simplesmente conhecidos bebiam agua
commum passada por uma vasilha que tivera aguardente.

--Não merecem mais! dizia Bénard. Estes só teem pela gente um cheiro de
interesse.

Era pois _La goutte_ uma personagem lendaria no exercito francez, e já
passava em proverbio dizer-se, quando se era mal servido:

--Eu _sou conhecido_ do Bénard.

Rosina Regnau, ao vel-o ferido, sentiu-se propellida a dolorosa piedade.
Estava alli _La goutte_, que ella tantas vezes vira desde a sua
infancia, e de quem tantas vezes se rira na edade em que toda a
excentricidade nos parece ridicula.

E todavia o Bénard era um philosopho profundamente conhecedor da alma
humana. D'uma vez perguntaram-lhe:

--Se encontrasses o imperador, como o consideravas?

--Dava-lhe da ultima lagarada, como elle dizia. Bem se importa o
imperador commigo! Não me empresta dinheiro, porque o ganho eu; não m'o
pede, porque bem sabe como é mesquinho o _pret_ das tropas.

Bénard trazia pendurada do pescoço a sua garrafinha. N'esse dia, como a
refrega lhe não désse tempo para offerecer _a gotta_, bebera-a elle
toda, por excepção. O resultado foi expôr-se á morte com um denodo que,
sommado, daria a embriaguez de quatro amigos. Avançou imprudentemente e
ficou prisioneiro com uma bala no peito.

Rosina, que sempre evitava ser vista dos prisioneiros francezes, não
pôde todavia resistir a soccorrel-o, quando o seu coração por um momento
retrocedeu ao passado. Quasi involuntariamente o fez.

O ferido, sentindo que alguem o estava curando, abriu os olhos e demorou
em Rosina um longo olhar. Foi então que ella mediu o alcance da sua
imprudencia.

--Oh! rouquejou o ferido, sim, és tu! Eu tenho a vista embaciada, mas
ainda te conheço! Rosina Reg...

Ella tregeitou afflictivamente implorando silencio.

O ferido, desvairado pela embriaguez ou pela febre, não a comprehendeu.

Graça Strech havia-se aproximado e assistia entre respeitoso e ciumento
áquelle lance.

O ferido continuou com difficuldade.

--Fugiste, Rosina... Pobre rapariga!.. Como lá todos te querem mal!...
Se te vissem... matavam-te... Sim, eu sou Bénard... Tinha hoje a minha
garrafinha cheia... Bebi-a toda... Tomei calor... Boa gotta!...
Aguardente de Hespanha! Vão estes perros, que não teem um palmo de
terra, e mettem-me uma bala no costellame... Irra! Boa aguardente... E
tu aqui! Entre elles!... Maldita sejas... O pobre Regnau ha de dar pulo
de cobra no outro mundo...

Graça Strech, se bem que exhaurido de forças, estremecia em convulsões
repetidas, e tinha as faces esbraseadas por um colorido doentio. Todavia
parecia detel-o um braço invisivel; pesado como se fosse de ferro, que
lhe offegava a respiração.

Rosina chorava abundantes lagrimas, que lhe deslisavam pelas faces
mortalmente pallidas.

Postoque não estivesse presente, por felicidade, ninguem que pudesse
ouvir a revelação do segredo, além de Graça Strech, ella não ousava
falar. N'aquella hora, em que algumas mulheres e os convalescentes
soccorriam os feridos, a todos parecia natural que os dois irmãos,
segundo toda a gente dizia, se dedicassem ao curativo d'um soldado que
se affigurava moribundo.

Graça Strech aproximára-se desde o principio por lhe causar estranheza
que Rosina Regnau se dispuzesse a soccorrer o prisioneiro.

Primeiro se apiedou por conhecer n'esse acto o impulso natural de
coração de Rosina voluntariamente opprimido no captiveiro de um amor
impetuoso. Sobreviera porém o ciume quando se lembrou de que a
vivandeira habitualmente se esquivava a cuidar de feridos francezes, e
de que extremado devia ser o interesse para affoital-a á temeridade de
se deixar reconhecer.

É bem certo que o ciume completa o amor: porque o ciume é a desconfiança
que leva o coração a sondar a profundeza do amor. Então se investiga, se
espiona, se perscruta. E se o amor é verdadeiro, é puro, é santo, assim
como se lhe mede o alcance, e se reconhece infinito, vem a convicção de
que todos os sacrificios são poucos para galardoal-o, chega o
arrependimento de se haver sido injusto, e accorda o estimulo da
consciencia para o não tornar a ser. N'essa hora é que Rosina Regnau
começou, sem o saber, a ser verdadeiramente amada. Bastou o ciume de um
momento, que as subsequentes palavras do ferido vieram serenar, para
arreigar o amor no coração do soldado portuguez. E foi á luz d'esse
relampago de ciume que elle comprehendeu a enormidade do sacrificio de
Rosina; foram as palavras do prisioneiro francez que lhe mostraram
claramente quão grande abnegação era precisa para cair, amaldiçoada pela
patria, nos braços d'um homem estranho.

O ferido, apesar de cada vez mais se lhe embargar a voz na garganta,
proseguiu com longas pausas:

--Tu eras muito estimada, Rosina... Todos te queriam... Quem havia de
dizer que tu... renegarias... a tua França! Eu não morro pelo
imperador... que não pede nem empresta... que paga mal... eu
morro pela... França!... Já não posso... beber... A ultima gotta queria
bebel-a pela patria...

E, cada vez mais offegante e desvariado pela febre, acrescentou:

--Vae buscar aguardente... Anda depressa.. que já tenho a morte aqui...

E indicava o coração.

--Sim... amaldiçoados... os que não morrem francezes... como tu...
Jacques Regnau! lá n'esse quartel que ninguem sabe onde fica... eu te
contarei a verdade... Vamos para a reserva... temos tempo de falar...

E, como a cabeça do francez parecesse já desequilibrar-se, Rosina Regnau
procurou encostal-a ao peito carinhosamente.

--Não!--apostrophou com extrema difficuldade Bénard--não! Um francez...
só morre... encostado... a outro... francez... Eh! eh!--rouquejou.

E, procurando aprumar-se, disse com esforço grande de mais para o lance
do passamento:

--_Vive.. lá... Fran..._

Não pôde concluir. A ultima syllaba embargára-lh'a a morte.

Graça Strech estava como que fulminado pelas palavras do soldado
francez, que morrera amaldiçoando Rosina. Parecera-lhe que a voz da
providencia falava n'elle. Pela primeira vez um terror supersticioso
subjugou a coragem d'aquelle homem que tinha jurado guerra de morte á
França. E todavia expirava ali, ao pé d'elle, um francez saudando a
patria nas ultimas palavras que lhe foi dado pronunciar.

Rosina Regnau estava tambem paralysada n'essa especie de imbecilidade
que nas grandes commoções se nos affigura ser idiotismo.

O aço de que em parte era feita a sua alma de vivandeira vergára ao som
d'aquellas palavras horriveis; restava apenas, muito a dentro do peito,
a vibração dolorida das cordas maviosas.

No semblante, como se a distancia e o cansaço fossem amortecendo a
maguada vibração da alma, apenas se desenhava o espasmo das supremas
afflicções que parecem suspender a vida.

Quizera Graça Strech poder cingir nos seus braços Rosina, e despertal-a,
para a realidade do seu amor, d'aquelle excruciante alheamento.

Vedava-lh'o a presença das pessoas que, como já dissemos, estavam
cuidando dos feridos.

Ficaram ambos silenciosos, porventura á espera de opportunidade para
trocarem algumas fugitivas palavras.

Ella, acordando pouco a pouco d'aquelle infernal pesadello, sentia o
doer da realidade muitas vezes peior que os sonhos maus. E a si mesma
perguntava o que ficaria pensando Graça Strech: se julgaria criminosa a
sua compaixão pelo ferido; se a presumiria demudada pela maldição do
moribundo; se acaso o effeito d'aquella imprevista scena lhe haveria
levado ao coração o aborrecimento ou o desprezo?

Tudo suppunha, menos que o verdadeiro amor nascera n'aquella hora com o
ciume.

Como ella desejava poder cingir Graça Strech nos seus braços, cobril-o
com os seus beijos, embora elle a repellisse com enfado ou desabrimento!

Não valeriam ameaças.

Ella dir-lhe-ia com a affouteza que a innocencia dá:

--Eu bem sei que fiz mal. Mas aquelle era o Bénard, _La goutte_, que eu
conhecia, desde pequena, de o ouvir discorrer sobre o egoismo dos homens
e de o ver puxar pela sua garrafinha d'aguardente. O pae Regnau, apesar
do vicio, estimava-o muito, e até lhe chamava... philosopho. É que o pae
Regnau era dos primeiros amigos. Uma vez vendeu a ração do almoço para
que o Bénard não deixasse d'encher a sua garrafinha. O pae Regnau disse
então, bem me lembro: «Elle sem aquillo não é philosopho; e eu sem
almoço posso ser soldado.» O que valeu foi que o meu almoço chegou para
dois. Não me julgues arrependida do que fiz pelo que elle disse... Tudo
quanto elle disse bem o sabia eu... Lembrar-me da minha patria não quer
dizer que me esqueça de ti... Não. Amaldiçoam-me? Que me importa a mim
que me amaldiçoem! Abençoa-me tu, e não quero outra felicidade. Abre-me
a tua alma, de modo que eu saiba bem o que ella pensa, o que ella sente,
e não terei pena de que se me fechem as fronteiras da patria. Não me
aborreças nem me despreses... O teu primeiro beijo foi uma promessa, uma
esperança; eu acreditei-o, creei vida nova, sinto-me forte para a lucta.
_La goutte_, se me disse aquellas palavras, é porque me estimava;
estima-me, ama-me tu quanto eu desejo, que saberei esquecer as palavras
de _La goutte_.

Graça Strech, sem attingir o que se passava na alma de Rosina, estava
ancioso de dizer-lhe:

--Tudo quanto aquelle homem disse era verdade. Por mim perdeste tudo,
Rosina, por mim preferiste a solidão, em que ora vives, á tua immensa
familia--o exercito francez. Eu comecei por odiar-te, porque eras irmã
dos assassinos de minha irmã. Depois, ao odio, que procurava o caminho
da vingança, succedeu a gratidão, porque tu me restituias a liberdade.
Mas a realisação do meu sonho de sangue importava um enorme sacrificio
teu. Fizeste-o sem trepidar. E não contente com isso, que já era muito,
quizeste vincular a tua vida á minha, e tu, que havias renunciado á
patria, renunciaste tambem á voz com que recordavas as canções do teu
paiz natal. Começou a nascer em mim o amor misturado d'assombro. Nunca
me lançaste em rosto a minha crueza para os teus. Era a minha vingança,
e tu querias o que eu queria. Ao pé da imagem de minha irmã, que no
somno e na vigilia me apparecia, começaste tu a tomar vulto, a crescer,
de modo que eu fiquei preso entre vós ambas, porque se o sangue d'uma
clamava vingança, o sacrificio d'outra me proporcionava vingar-me. E uma
noite, no breve repousar do acampamento, sonhei que minha irmã me viera
falar e me dissera que tu eras boa, e leal, e pura. Então beijei-te. Mas
hoje, ao ouvir aquellas palavras, completei os meus pensamentos pela
certeza de que tu eras pura, e leal, e boa. Dize: Que queres de mim?
Sacrificio por sacrificio, amor por amor, dedicação por dedicação. Serei
teu, porque tu és minha. Ouve, Rosina, ouve-me bem. Tu tens sido o meu
anjo da guarda, o meu enfermeiro, e--porque não hei de dizel-o?--tens
sido para mim como o cão amigo para o cego das Ardennas. Pois bem.
D'hoje em diante as nossas almas fundir-se-hão n'uma só, viverão dos
mesmos pensamentos, e tu chorarás minha irmã como eu a choro, porque o
teu coração sentirá a saudade que eu sinto.

Ao anoitecer veiu a carroça dos cadaveres, acompanhada pelo capellão
militar, buscar o morto.

Rosina Regnau deteve-se a contemplal-o, esquecida de que aquelle homem
morrera amaldiçoando-a.

Era-lhe defeso o falar. Se não fosse, haveria pedido uma oração pela
alma do soldado Bénard, de alcunha--_La goutte._

Graça Strech assistiu á cerimonia commovido. Um dos soldados
encarregados d'aquella triste commissão, como lhe visse carregadas as
linhas do rosto, apostrophou:

--Pois tu, que te bates como leão contra os francezes, não assistes
impassivel aos funeraes d'um francez!

--A morte quebra todos os odios, respondeu Graça Strech.

Outro soldado, ao dar tino da garrafinha entalada entre a farda e a
camisa, exclamou facetamente:

--Pena tenho eu de o não matar emquanto a garrafa estava cheia!

--Este diabo não fazia senão beber! acrescentou outro.

--Tambem me consta que fazia outra coisa, replicou Graça Strech.

--O que era?

--Enterrava os nossos mortos com mais piedade do que tu.

--Prégas hoje de cadeira!

--Lembro-me de que elle, pelas ultimas palavras que lhe ouvi, era tão
francez como eu sou portuguez...

--Era? perguntou ingenuamente um dos soldados.

--E a mim, concluiu Graça Strech, pesa-me sempre a morte d'um bom soldado.

Quando a carroça rodou lugubremente, caminho da valla commum, onde
portuguezes e francezes iam dormir sem odios nem malquerenças o somno
eterno, Graça Strech acercou-se de Rosina, que parecia duvidar ainda do
que tinha ouvido, e segredou:

--Devo á memoria de Bénard uma felicidade que não merecia a Deus. De
hoje em deante não haverá entre nós barreira que possa separar-nos. As
nossas almas serão uma; os nossos pensamentos um só...

--Promettes? murmurou ella doida d'alegria.

--Prometto.

--Então dir-me-has tudo o que pensas, tudo o que sentes?

--Tudo o que penso e sinto te direi.

E o segundo beijo sellou esta promessa.

      *      *      *      *      *


XIII

Como acaba a tragedia de Goethe

Não morrem os gigantes ao segundo golpe.

Napoleão ergueu-se no senado francez, a 4 de dezembro de 1809, e
sobrepujando com a sua voz a voz da Historia, como se lhe não andasse já
descontada a gloria com dois consecutivos revezes na peninsula iberica,
disse: «Tanto que eu appareça alem dos Pyreneus, o leopardo
recolher-se-ha amedrontado ao oceano para fugir á ignominia, á derrota e
á morte. A victoria das minhas armas será a do genio do bem sobre o do
mal: a victoria da moderação, da ordem e da moral sobre a guerra civil,
sobre a anarchia e as paixões destruidoras.»

E, concluida a campanha de Austria pela paz de Vienna, a aguia franceza
deixou de pairar sobre o norte da Europa, e do alto do palacio imperial
de Schoenbrunn fitou o olhar ardente e profundo na orla do occidente
banhada pelo Atlantico.

E pela terceira vez se equipava o exercito invasor, superior a oitenta
mil homens; e pela terceira vez fôra chamado um general distincto a
tomar o commando em chefe das tropas para obter melhor exito que os seus
dois antecessores.

A eleição recaiu no marechal Massena, principe de Essling, duque de
Rivoli, cuja valentia e sciencia Napoleão conhecia desde as campanhas
d'Italia.

Não precipitemos, porém, os acontecimentos que o anno de 1810 havia de
desdobrar sobre a Europa. Justo é reverter ao que é assumpto principal
d'este livro, mais biographia do que chronica.

Já anteriormente dissémos que o exercito portuguez recolhera ao quartel
general de Castello Branco, e d'ahi fôra mandado, nos ultimos dias
d'agosto de 1809, para diversos acantonamentos.

Em Castello Branco, o marechal Beresford permittiu aos soldados,
que mais se haviam distinguido, a escolha de corpo e quartel, não só
para lhes galardoar d'algum modo os serviços prestados, como para
incitar os outros a medirem-se na terceira campanha com os premiados na
segunda. José Maria da Graça Strech escolheu o regimento d'infantaria
18, que, com o 6 e 9 da mesma arma, foi mandado para Coimbra.

Então se levantava detraz do tumulo da irmã querida, para o desgraçado
moço, a aurora do amor, que desabrochára no primeiro beijo, e que o
ciume aclarára definitivamente á beira do catre do moribundo Bénard.

Havia-se batido como leão, açulado pelo cheiro do sangue. Mil vezes se
atirára á morte, e a morte parecia respeitar no sorriso de Rosina Regnau
a heroicidade do soldado. Dir-se-ia que a vivandeira tinha duas azas,
que, desdobradas, o abrigavam. Graça Strech acabou, como era natural,
por amar o seu anjo da guarda, quando inteiramente comprehendeu que ella
lhe dizia na triste eloquencia do silencio a que se condemnára: «Eu
tenho de guardar a tua alma; para guardal-a preciso possuil-a.»

No seu coração calcinado pela saudade choveu pouco o orvalho
refrigerante companheiro da aurora; o amor cauterisou a ferida que
sangrava odios; ficára apenas a cicatriz, como fica voltada n'um livro a
pagina que se leu, e cuja impressão jámais se desluz na mente do leitor.

Aconteceu a Graça Strech como ao commum da humanidade.

O amor, que é luz, que é fogo, que é sol, vae se decompondo em
irradiações parciaes na nossa alma, á medida que a vae desenregelando,
como o verdadeiro sol n'um prisma de crystal. Verdade é, ser preciso que
tenha a alma a pureza do vidro para que lentamente se vão revezando as
côres, alternando as _nuances_, e embriagando-se ella a pequenos haustos
no banquete da felicidade. O amor que rebenta como erupção, não é amor,
é desatino. Nasceu cego: não vê. Irrompe como a lava, passa, queima,
desapparece.

Este é o amor das almas versateis, que não se vergam ao sacrificio, e
que por isso mesmo são incapazes de metter hombros á cruz cujo peso
devera ser repartido pelos dois. Os que amam sem previamente
haver soffrido, amam apenas emquanto o amor não é soffrimento. E quem
póde desfolhar a rosa sem ferir-se no espinho? Esses amam pouco. As
lagrimas são a agua que baptisa na religião dos attribulados. A mocidade
de Graça Strech recebera esse primordial sacramento. Dera a sua vida em
holocausto á saudade. Soffrera muito, e alma que soffre assim tem de
certo a pureza dos grandes sentimentos. Por isso a luz da aurora, que
lhe alvorecia sobre o tumulo da irmã, se foi decompondo em gradações
prismasticas por feitio que elle, muito alma a dentro, pôde conhecer a
nitidez das côres, o brilho das tintas casado á transparencia do cristal.

Desde então começou a amar como os que teem soffrido. «Tudo o que penso
e sinto te direi,» segredára elle em Alcantara.

Estas palavras não eram apenas a promessa d'uma revelação;--eram a
promessa da felicidade.

Os acontecimentos não permittiram que, antes de Coimbra, Rosina Regnau
pudesse affastar de si a nuvem do ciume que de ha muito lhe opprimia o
coração.

Muito primeiro o amára ella, porque o ciume nascera parelho do amor.

Parece que o destino porfiára em depôl-os no eden viridente de Portugal
para mandar depois a serpente a tental-os. N'aquelle jardim de Coimbra
ha sombras fadadas para o amor. Já o disse um poeta:

    Quem nunca viu Coimbra
    Pela brisa embalada
       Do Mondego,
    Que de amorosa timbra
    Na margem reclinada
       Com socego,
    Não sabe o que é belleza,
    Ai! não conhece a filha
       Dos amores,
    Mais nobre que Veneza,
    Mais linda que Sevilha
       Sobre flôres.[11]

Ali rememora ainda a celebrada fonte, que suspira n'uma das extremas do
campo de Santa Clara, o poema das lagrimas da formosa Castro--o
maior poema d'amor que se tem sentido em Portugal. Que phantasias que
não tem o amor em Coimbra! É velha a doidice que se respira n'aquelles
ares, porque já Faria e Sousa conta que Pedro, o principe amoroso,
confiava á agua da fonte, que n'esse tempo ia jorrar nos jardins do paço
real, os bilhetinhos namorados que a loura Ignez muito em segredo
recolhia e, em maior segredo ainda, relia. E perora Faria e Sousa:
«Tales son las astucias de los amantes». Com perdão de Faria e Sousa,
astuciosos são os escriptores que nos pintam amores fabulados de tão
acertadas contingencias, como era a da agua, sem embargo dos seixos e
hervagens, ser fiel correio do principe e da aia.

Eu contarei singelamente o meu caso, tal como aconteceu na hora em que o
ciume de Rosina Regnau, como se já não fosse preciso para atiçar as
labaredas do amor, se acalmava na mutua confiança das almas que se possuem.

Foi ahi por alguma copada sombra das margens do Mondego, onde, como
disse Gabriel Pereira de Castro, o rio

    ... nas voltas se mostra arrependido
    De levar agua doce ao mar salgado,

que Rosina Regnau e Graça Strech descançavam n'uma das ultimas tardes
d'agosto.

Aproveitavam sempre as horas feriadas do serviço militar para essas
excursões, reguladas pelo toque das cornetas no quartel, porque só onde
a sombra os escondesse poderiam dialogar, os dois, sem que ouvido
estranho traísse o segredo da mudez de Rosina.

Ahi se indemnisava ella dos longos silencios a que era constrangida, e
assim se foram estreitando os laços, que já tão cingida tinham a imagem
da felicidade n'um e n'outro coração.

N'essa tarde Rosina Regnau intencionalmente encaminhou o dialogo para o
episodio da morte de Bérnard, e a ponto veiu recordar as palavra de
Graça Strech: «Tudo que penso e sinto te direi».

--Ah! não sabes, disse ella subitamente exaltada pelo ardor da
vivandeira, que do cumprimento da tua promessa depende a
realisação da minha felicidade!...

--Pois duvidas?...

--E não duvidaste tu de mim, quando em Alcantara soccorri o pobre _La
goutte_?

--Perdôa-me...

--Sim, perdôo, não a ti, ao ciume, pois que para o ciume tambem peço
perdão n'este momento. Ouve-me, portanto.

--Fala!... exclamou Graça Strech.

--Ha uma duvida horrivel no meu espirito, que é preciso dissipar; um
obstaculo no meu caminho, que é preciso vencer. O meu amor, que começou
por dar-te a liberdade, não póde viver escravisado. Desde o primeiro
momento te amei perdidamente. Emquanto tu dormias, veláva eu, para que
as tuas palavras de soldado não fossem desmentidas pela tua physionomia
de ferido sem eu perceber a verdade. Já então--mal o pensavas!--a minha
vida dependia da tua. E vigiava-te, e estudava as mais ligeiras
alterações do teu semblante, como a mãe que observa, de noite, na
solidão silenciosa do seu quarto, o filho doente que dorme. Tu não
suspeitavas que pudesse entrar tamanha dedicação na alma d'uma
vivandeira, e razão de sobra tinhas. As mulheres com quem eu vivia eram
tão vis, que se riam do meu carinho para comtigo. E eu arrostava-lhes os
chascos, os insultos, porque bem sabia que a culpa não era d'ellas, mas
do destino que as tornou tão desgraçadas. Aspereza, injustiça, só me
doía a tua. Não bastava amar sem esperança: o meu amor era recompensado
com despreso. Tu eras nosso prisioneiro; não podias, portanto, soffrer
que a minha pronuncia te estivesse recordando a cada hora a tua
infelicidade. Quiz, porém, Deus que me ouvisses um dia com menos
indifferença, quando conheceste que eu valia um pouco mais do que as
outras. Viste que eu era boa, e quizeste-me para instrumento da tua
vingança. O que tu não suppunhas era que o teu sonho fosse a esse tempo
o meu--dar-te liberdade! que eu contasse os instantes da tua vida pelas
horas da minha! que eu quizesse ser para ti o que era o fiel molosso
para o cego da minha terra... Pois queria, juro-te, queria. Se não
pudesse restituir-te a liberdade, teria a coragem de envenenar um
remedio para que o mesmo veneno nos matasse a ambos. Acredita;
tinha. Mas sempre na tua bocca a palavra vingança! Sempre essa palavra
horrivel! Eu bem sei que todo o homem, que vê a sua patria invadida,
precisa vingar-se a si, e a ella. Mas esse annel que não mais te deixou
não era da patria... Falavas de tua irmã, tens-me falado sempre d'ella.
Comprehendo como se possa amar uma irmã, que era boa, que era pura, e
que foi morta injustamente. Todavia comprehendo tambem que se as cartas
as escreveu tua irmã, o annel póde deixar de ser d'esse anjo...

Nos labios de Graça Strech havia o tranquillo sorriso de quem sabe com
que ardor é amado.

Quiz falar; ella interrompeu-o.

--Oh! por piedade, não sorrias, sem que esta duvida atroz se desfaça!
Tenho tido a coragem de saber esperar este momento solemne e para mim
decisivo. Tu sempre a pensar no teu annel, eu sempre a pensar em ti! Tão
calada, que nem voz posso ter deante d'estranhos. E que tivesse! Havia
de perguntar a alguem pela vida do homem que eu chamava irmão? Tu
sonhavas de noite, como quando ficaste ferido em Alcantara, e sorrias.
Acordavas, vias-me ao pé de ti, e acudias logo a falar de tua irmã...
Oh! se eu soubesse que tu me enganavas!... Se tu estivesses sonhando com
outra mulher que não fosse tua irmã, quando eu estava ali, sósinha,
calada, sem patria, sem amigos, amaldiçoada, a velar pelo teu somno...
Sabes o que eu faria? Vestiria o teu uniforme, José, e iria bater-me,
avançando tão imprudentemente como o infeliz Bénard, até que as balas
dos soldados da França se me cravassem no peito. Morreria pelo ingrato
como os soldados morrem pela patria, e morreria contente por morrer
amortalhada no teu uniforme... Vê, pois, bem a minha alma. Unicamente te
peço que sejas sincero, ainda que a tua sinceridade tenha de ser cruel.
Estamos a dois passos do Mondego. É-me facil procurar n'elle a maior
altura da agua, se o coração me disser que me estás enganando... Mas não
has de, mas não me deves enganar, porque pela memoria sagrada de tua
irmã te peço que sejas verdadeiro...

E ficou anciosa, com os olhos fitos, os labios entreabertos, o seio
offegante...

--Pela memoria de minha irmã te juro que mais uma vez te
repetirei a verdade--disse Graça Strech, cuja physionomia parecia
irradiar a luz clara e pura dos que estão fazendo uma confissão
sincera.--Tambem eu te amo doidamente, Deus o sabe! Tambem eu tive
ciumes, Rosina! Tambem eu estou costumado a soffrer. Se aquelle
moribundo d'Alcantara houvesse denunciado, por um gesto sequer, que
tinha outros direitos á tua dedicação, além dos de estar ferido e ser
francez, eu, impossibilitado de aggredir um homem meio morto,
haver-te-ia fugido para me expôr á morte que encontraria em qualquer
parte. Juro-te, pela memoria de minha irmã te juro, que isto o senti eu
ao pé do pobre Bénard, quando te vi soccorrel-o. N'esse momento forjou o
ciume as cadeias que nos teem agora aqui presos. Comecei por
aborrecer-te, é certo. Sobre este annel, que tirei do dedo de minha
pobre irmã morta, jurei vingal-a, Rosina, porque primeiro me derrubaram
a mim para que eu não pudesse defendel-a, e depois a assassinaram a
ella, a minha mãe, e a minha avó. Meu pae, que já sei ter morrido no
mesmo dia, porque houve participação official de ser reconhecido, foi
vencido pelo azar do combate, não foi assassinado. E depois era um
soldado, e um soldado em campanha ou mata ou morre. Mas as pobresinhas
que mal faziam á França? Eu accordei do deliquio motivado pelo ferimento
que recebi, sem saber o que se tinha passado. Estendi o braço e senti um
corpo; apalpei e conheci roupas de mulher. Achei uma cabeça. Tacteei-lhe
os contornos, e não me enganou a mão quando me pareceu ser aquelle o
perfil de minha irmã. Era noite, bem sabes: dentro a escuridão; a
tempestade fóra. Eu sentia vibrar a espinha dorsal como se fôra d'aço,
fria como elle. Procurei luz, quasi louco. Mal me podia suster nas
pernas. No cerebro ardia-me um vulcão; em derredor do craneo sentia a
friura do gelo. E a luz mostrou-m'as, a ellas, minha irmã, minha mãe,
minha avó, mortas, desgrenhadas, deitadas no soalho, e rodeadas das
sombras que a interposição dos moveis projectava na parede, parecendo
moverem-se, bracejar, escancarar a bocca, casquinar gargalhadas que o
vento, lá fóra, parecia rir diabolicamente por ellas. Eram horrores da
minha imaginação, eram visões da febre, porque eu n'essas horas
incomparavelmente angustiadas delirei, enlouqueci, morri em mim
mesmo para renascer n'um cadaver. E o sangue, Rosina, o sangue
d'ellas, empoçado no soalho, tão vermelho que parecia incendiar-se ao
reflexo da luz! Foi então que a Providencia me soccorreu e me permittiu
um esforço sobrehumano. Beijei minha irmã, abracei minha mãe, acariciei
minha avó, falei-lhes, não sei o que lhes disse, não me lembra, e
estremecendo do contacto das mãos de minha irmã, que pareciam de
marmore, e que do marmore tinham os veios roxos e azues, tirei-lhe
delicadamente do dedo, como se ella pudesse molestar-se,--ella, que era
tão franzina!--este annel querido, sobre o qual proferi o meu juramento
de vingança, que até hoje tenho cumprido, e que cumprirei até que
Portugal succumba ou triumphe d'uma vez.

E como se a arrebatada eloquencia o repuzesse ainda em meio das
desgraças que historiava, pendeu ao peito de Rosina, extenuado,
descóradas as faces, revoltos os cabellos, flammejante o olhar.

Rosina ameigou-lhe a fronte banhada de suor frio, e docemente lhe pediu
perdão de o ter compellido a avivar tão recentes e profundas dôres.

Graça Strech estava preoccupado, como se procurasse um pensamento que
lhe entre lembrava; como se quizesse suster uma visão que se mostrava e
fugia.

--Ah! exclamou de repente. Não, Rosina, não basta ainda. O teu amor
reanimou o meu cadaver, eu devo-te a vida; quero abrir-te a minha alma
para que a vejas bem, para que a sondes, e leias n'ella. A tua luminosa
intelligencia já te permitte comprehender muitas palavras do idioma
portuguez. Pois bem, aqui tens uma prova irrecusavel que não póde deixar
a minima duvida no teu espirito...

E, desabotoando o uniforme, tirou o maço das cartas d'Augusta.

--É esta--continuou, procurando--é esta, lê aqui lê bem. Foi ha dois
annos, no seu dia natalicio, que lhe mandei este annel. Vê o que o anjo
me respondia. Lê, esta é a prova, lê: «O teu annel, José, o teu annel,
que me pareceu acompanhar a tua alma, porque a tive todo o dia ao pé de
mim, não me deixará até á hora em que a amortalhadeira m'o tire do dedo.
Pedes desculpa de que seja liso, de que só tenha uma pedra!... Tontinho!
O teu coração pésa mais do que o annel, e a avósinha diz que os
anneis de muito feitio apenas são proprios das camponezas.» Vê, Rosina,
olha para este nome--Augusta--o unico de mulher que pronunciei antes do
teu...

--José! exclamára Rosina divinisada por uma aureola de condoída doçura,
que parecia esbater-lhe o semblante no azul do céo.

A natureza dascaía na deliciosa morbidez do anoitecer. As labaredas que
a ambos afogueavam o coração foram bastantes a seccar as lagrimas d'um e
outro. Se eu quizesse passar por um escriptor tão casto como os que uzam
adoçar o acre das situações violentas, diria que se ouvia rumorejar as
folhas, sendo os labios que rumorejavam. Essas ultimas revelações tanto
contraíram os elos da cadeia, que já não era possivel medir a distancia
interposta ás duas almas embevecidas.

Se ali, n'aquellas paragens onde o grave Faria e Sousa achou que era
torrão azado para localisar astucias de namorados; se áquella hora, como
na tragedia de Goethe, estivesse ali Mephistopheles, bradaria com
alegria satanica: _Perdida!_

Bem podia ser porém que alguma voz do alto respondesse: _Salva!_ Só se
perde a mulher que não tem coração para comprehender o que é ser mãe.

    [11] Do sr. Antonio de Serpa.

      *      *      *      *      *


XIV

Quanto custa ser mãe

Em fevereiro de 1810 estacionava no valle do Mondego o exercito
commandado pelo general Wellington, repousando das passadas lides, se
bem que já apercebido para resistir aos movimentos dos francezes que de
novo ameaçavam invadir Portugal.

Beresford activamente se dedicava a exercitar e disciplinar as tropas, e
a providenciar pelo que tocava a provisoes que se tornavam
indispensaveis para a campanha que a todo momento se esperava, e cuja
duração era imprevista.

O rei José havia entrado em Sevilha, no primeiro dia d'esse mez, á
frente das suas tropas, e a nuvem que obscurecia o céo da Hespanha
alongava-se já para Portugal, deixando ouvir os rumores da tempestade
que lhe refervia no bojo caliginoso.

N'esse tempo vamos nós encontrar Graça Strech na escóla militar do valle
do Mondego, se bem que muito demudado o encontremos, e mereça especial
attenção a tristeza que parece salteal-o nas horas em que o soldado se
permitte ser homem. Procuramos á roda de si, e não encontramos a «muda»,
sua irmã. Inquieta-nos tão inesperada ausencia. Depois que
comprehendemos o coração da Rosina Regnau, depois que passo a passo a
acompanhámos nos lances angustiosos de sua attribulada mocidade,
habituamo-nos a estimal-a, e já agora nos é magua o deixar de vêl-a.

Morreria acaso?

Algumas vezes se lembrára ella, quando vivandeira do exercito francez,
de que uma bala perdida a mataria. É uma tradição de Vivandeiras, a do
pelouro esgarrado que as ha de prostrar, porque, companheiras dos
soldados, esperam do soldado a sorte. Todavia nem sempre se realisam as
contas que a phantasia lança, e não é de presumir que dos
soldados que manobram exercitando-se no valle do Mondego partisse a bala
destinada a roubar-lhe a vida. Tambem nas faces de Graça Strech não ha a
tristeza sombria das perdas irreparaveis, mas um novo reflexo de
melancolia que, a despeito de a querer concentrar, dá á physionomia um
toque de soffrimento. Procuremos tirar-nos de tão saudosa incerteza, e
saber o que se passára nos mezes que decorreram desde agosto de 1809 até
fevereiro de 1810. Pelo que vamos ouvir a Graça Strech, n'um rapido
dialogo com um companheiro d'armas, não poderemos fazer juizo seguro,
mas esse será o fio de Ariadna que depois nos guiará no labyrintho de
nossas pesquisas.

--Tens tido noticias de tua irmã? perguntou o soldado.

--Não tenho; nada sei da pobresinha! respondeu dolorosamente Graça Strech.

--Deve-te custar a ausencia! Se a nós, que não eramos irmãos, tambem nos
custa! Estavamos habituados aos seus tregeitos, e o caso é que já os
entendiamos como se fossem palavras! Que pena que não falasse! Bonita
era! e tão meiga como bonita! Sempre aquelle sorriso doce para todos e
para tudo! Mas, ó Strech, se a conversa te magôa, não continúo...

--Continúa, sim. Ás primeiras palavras rebenta a saudade; depois Deus
manda a resignação, e é o que vale.

--Eu tambem tenho familia, Strech, tambem sei o que isso é. E depois tu
sempre deves estar com teu cuidado, porque tua irmã ia doente.

--Começou a soffrer Trabalhos da guerra, commoções fortes, talvez
receios da nova campanha... Não sei. O que é certo é que a não julguei
com forças de andar commigo em correrias atraz dos francezes, que é
preciso enxotar pela ultima vez. Temos uma tia nossa na Allemanha. Veiu
a Portugal ha annos, e affeiçoou-se muito a minha irmã. Deu-se a
coincidencia de estar no porto da Figueira um brigue italiano, e ir a
bordo um passageiro allemão, que me pareceu homem compassivo, e que me
prometteu acompanhar a pobre muda até ao seu destino. Que havia eu de
fazer, quando a demora de minha irmã em Portugal seria a morte, e todas
as circumstancias pareciam favorecer visivelmente o meu designio
de a mandar para a Allemanha? Deixei-a ir, mais entregue a Deus do que
ao compassivo allemão.

--E que tencionas fazer agora?

--Agora! Quem sabe quando chegará a hora de pertencermos a nós mesmos!
Se eu morrer, ficará minha irmã entregue a sua tia; se eu sobreviver a
victoria das nossas armas--porque nós não podemos succumbir depois de
havermos triumphado duas vezes--irei buscal-a á Allemanha, e viveremos
juntos até que um de nós deixe d'existir.

--Desculpa-me, Strech,--tornou o soldado condoído.--Mas eu também
estimava tua irmã, e por isso te perguntei por ella. Como já partiu em
dezembro, e eu tenho conhecido que andas triste, pensei que tivesses
recebido noticia de que a pobresinha ia a peior. Como felizmente não se
realisou a hypothese, desculpa-me. Olha... Estou em dizer que Deus traga
a guerra depressa para nos distrairmos. A guerra embriaga como o vinho,
e a embriaguez é bom remedio para saudades. Eu e tu, pelo que vejo,
soffremos ambos da mesma doença. Adeus, Strech.

Este dialogo, como anteriormente disse, não é explicação cabal, nem...
verdadeira. Graça Strech via-se obrigado a enganar as pessoas que lhe
perguntavam por sua «irmã», se bem que o engano apenas se limitasse aos
motivos da partida e ao destino de Rosina. Elucidemos.

Em dezembro de 1809 começaram a manifestar-se os symptomas da
maternidade. Esta desgraça, cujas funestas consequencias não previram na
loucura do seu amor, obrigou-os a pensar reflectidamente no futuro,
subitamente entenebrecido no horizonte que o poetico sol de Coimbra
azulejava nas tardes em que as margens do Mondego lhes enfloravam os
ardentes idyllios. O peor que ha no Paraiso é o ter porta: porque não se
abre, quando a ancia da felicidade a impelle, e porque se fecha sobre as
mais doces illusões, movida por qualquer viração que mais branda e mais
embalsamada parecia. Eu, pouco sabido em philosophias, acho a porta do
Paraiso muito peior que a serpente: uma tenta, a outra fecha. Ora a
gente poderia fugir da tentação, se encontrasse a porta aberta.
Deixamo-nos seduzir pela cascavel. Ouvimol-a. Embriagamo-nos com
as paizagens do éden, com as melodias eolias do arvoredo, com o maná que
o céo deixa cahir sobre o coração. Entretanto a serpente adianta-se.
Cinge-nos, enleia-nos. Olhamos para a porta: é-nos defesa a saída.
Estamos encarcerados. A serpente triumpha.

Por duas ponderosas razões não podia ficar Rosina Regnau em Portugal.
Era a primeira que, inculcando-se irmã de Graça Strech, a sua deshonra
seria desaire para o irmão. A segunda estava em que o conservar-se
occulta no reino, em estado de não poder acompanhar o exercito, seria
imperdoavel n'uma epoca em que tudo que cheirasse a francez inspirava
odio, e em circumstancias em que o deixar de falar seria quasi impossivel.

Avultou aos olhos d'um e outro, como pesadello horrivel, a necessidade
da separação. O mesmo foi verem-se inesperadamente sepultos nas ruinas
dos castellos encantados que ambos haviam architectado. E a felicidade é
como todos os edificios: leva muito tempo a construir e basta um
instante para desabar.

Estava effectivamente a esse tempo, nas aguas da Figueira, um brigue
italiano. Concordaram ambos em aproveitar a commodidade do transporte.
Rosina energicamente rejeitou a ideia de voltar a França, duas vezes
deshonrada. Convieram, pois, em que ella esperaria em Italia, com o
filho nos braços, o termo da guerra peninsular. Depois, para sempre se
reuniriam, e viveriam enlevados na infancia da criança, que ambos
phantasiavam formosa.

Mas, por que espesso véo de lagrimas se não filtrava este raio de
longinqua felicidade, illuminando-o e iriando-o como um reflexo de sol
moribundo através de neblina humida em tarde de tempestade!

Era esse o arco-iris da esperança, gravado em traços multi-côres, d'um
abysmo a outro, sobre um céo plumbeo.

--O pae Regnau,--dizia Rosina--costumava dizer que a felicidade era uma
bola de sabão. Agora vejo que é. Tudo desfeito, n'um momento! Eu
desterrada para um paiz desconhecido, sósinha com a minha desgraça e o
nosso filho! Tu, a muitas leguas de distancia, exposto á sorte dos que
combatem, mais incerta que qualquer outra! Viverei entre a esperança da
tua chegada e o receio d'uma noticia funesta. Oh! esta idéa é
horrivel! Então Deus ha de permittir que, meu filho entre no mundo
vestidinho de luto! Não não póde ser. Não te exponhas loucamente á
morte, meu amigo, não? A tua vingança já deve estar satisfeita, e depois
um soldado que é pae deve ter duas cadeias a ligal-o ao mundo: a patria
e a familia. Ora eu bem sei que tua irmã é a patria; mas lembra-te, sim,
lembra-te! de que teu filho é a tua familia...

Acudia a serenal-a, com o coração despedaçado nas garras de desconhecido
abutre, Graça Strech. Queria ser forte, e as lagrimas a trahirem nos
olhos o esforço! Tentava enganar, e estava desilludido. Ainda não houve
maior desgraça, mais amargo calix de amargura esperado nos labios com um
sorriso...

--Não, Rosina, não imagines desgraças que Deus não permittirá. Bem sabes
que a Providencia me tem guardado até hoje... Verdade é que tu eras o
meu anjo da guarda, e tu vaes fugir-me. Isto é, em verdade, maior que a
coragem humana! Não me arriscarei imprudentemente á morte, está certa...
Mas ás vezes, na refrega, a gente não tem tempo de evitar uma bala...
Não chores, Rosina, não chores. Foi uma loucura que eu disse. Eu não hei
de morrer. Acaso morri eu para a memoria de minha irmã? Tambem não hei
de morrer para o futuro de meu filho, para o teu amor. É forçoso
separarmo-nos; separemo-nos. Ficaremos, porém, um ao pé do outro, sempre
juntos, que já não ha distancias que nos separem, braços que nos
desunam. Tu ver-me-has pelos olhos da saudade; eu, que já estou
costumado a ver assim, ver-te-hei tambem. Conversarei no meu coração
comtigo, acompanharei meu filho desde o primeiro vagido e a primeira
lagrima... Ó Rosina, triste coisa é a vida! Nascemos soffrendo, como
devemos viver, e morremos como vivemos. E olha que a minha loucura deu
mais uma alma á desgraça... Mas eu amava-te tanto, tanto! Pobresinha de
ti, que dizias parecer-te ouvir a maldição de Bénard... Por amor de mim
te deshonraste uma vez; o meu amor duas vezes te deshonrou... Não
chores... Já estão desbotadas as rosas das tuas faces, não as desmereças
mais... Lembra-te do céo da Italia, que todos dizem ser formoso, e de
que nosso filho nascerá sob o céo d'esse bello paiz Deus ha de
protegel-o. Lá viveremos todos n'uma só felicidade... Mas não
chores, Rosina, que eu sinto despedaçar-se-me o coração...

Foi chegado o momento da partida.

Rosina subiu a escada de portaló amparada nos braços de Graça Strech.
Dir-se-ia um cadaver que se destinava a uma sepultura distante.

Os passageiros que estavam no convés pareceram commovidos de tão
doloroso espectaculo. Um d'elles, que era musico napolitano, escondia
contra a harpa o rosto brilhante de lagrimas.

Graça Strech viu-o chorar e disse de si para si:

--O mais desgraçado é aquelle, porque já desaprendeu de consolar.

E dirigiu-se a elle:

--Dá-me licença que o interrogue? perguntou.

--Da melhor vontade, respondeu o menestrel.

--Vae só?

--Infelizmente vou... Deixei um filho morto em Portugal. O rapaz era
fraquito, e não pôde aguentar-se. Desde que me elle morreu, fiz voto de
voltar a Italia. Mas quem póde agora ir por Hespanha com estas malditas
guerras, que nem n'este bom paiz de Portugal deixam ganhar a vida?
Juntei tudo o que podia, consegui obter uma reducção na passagem, e aqui
vou eu com a minha harpa, sem o meu filho.

E cada vez luziam mais as lagrimas nos olhos do italiano, que parecia
não ter ainda cincoenta annos, posto lhe alvejassem já os cabellos.

--Sente-se, senhor...

--Pietro, acudiu elle com a celebrada vivacidade napolitana, se bem que
lhe soluçasse a voz commovidamente.

--Estimei saber o seu nome, porque preciso archival-o no coração. Vim
aqui para lhe pedir um grande favor. Tem de ser sua companheira de
viagem aquella desgraçada rapariga franceza que ali vê...

--Franceza! atalhou admirado o italiano.

--Sim, franceza. É um mysterio cuja revelação iria augmentar a sua
maguada compaixão, meu bom Pietro. Olhe por ella, anime-a, que a
pobresinha é muito infeliz, e quem lh'o pede não é menos infeliz do que
ella...

O velho aprumou-se, tirou solemnemente o seu barrete de gomos, e
disse:

--Fique descançado, senhor. Pela memoria de meu filho lhe juro que a
tratarei a ella como se fôra elle mesmo. O meu coração até agradece á
Providencia esta inesperada companhia que me dá. _Corpo di Baccho!_ que
eu estava aqui triste, triste, que já mal podia commigo...

--Obrigado! muito obrigado! exclamou com extraordinaria commoção Graça
Strech.

--Vá buscal-a para aqui, tornou o italiano. A minha harpa está habituada
a chorar; eu a farei chorar mais uma vez. Quando eu vir que a minha nova
filha vae triste, eu a despertarei: _Carina!_ E o _canta-storie_ sempre
ha de saber alguma napolitana para cantar-lhe.

Abeirou-se Graça Strech de Rosina. Ella tinha os olhos postos na
superficie do mar, immoveis e desluzidos, e deixava rolar as lagrimas
livremente pelas faces, como se já não tivesse vida para enxugal-as.

--Rosina! apostrophou elle acordando-a, e com voz que mal se percebia.

Ella estremeceu e fitou-lhe um olhar que se diria inconsciente.

--Rosina! tens ali um companheiro de viagem, que me pareceu tão
desgraçado como qualquer de nós. É musico italiano. Volta a Italia
porque lhe morreu em Portugal o filho que o acompanhava. Já vês que deve
ser infeliz. Levanta-te, anda para ao pé d'elle. Anda, Rosina, minha boa
amiga, minha desgraçada irmã. Tem fé, tem animo, já que eu sinto
perdel-o... Olha... quero dizer-te uma coisa... Vou confiar-te o meu
thesouro, Rosina, o meu thesouro que tão mysterioso te pareceu, e que
tanto te fez soffrer... Guarda este annel de minha irmã... Deus sabe se
eu algum dia fiz tenção de o tirar do dedo! Que m'o tirassem depois de
morto, pouco me importava. A minha tenção era morrer com elle. Mas eu
amo-te tanto, tanto, que quero que tu o guardes. Elle já me não póde
recordar agora a minha vingança... Quando nosso filho crescer mette-lh'o
no dedo, e alguma vez lhe contaremos ambos a historia do annel mysterioso.

Rosina olhava para Graça Strech em dolorosa suspensão. Pareceu accordar,
porém, quando sentiu na mão o contacto do annel.

E entrou de beijal-o anciosamente, delirantemente, como se fosse
para ella uma reliquia mais valiosa do que a madeixasinha de seu pae.

--O que eu soffri por elle, por este annel! disse ella soluçante. Agora
o levo commigo, e com elle a tua alma... Senta-te aqui, José, ao pé de
mim, não me fujas ainda, que o navio não parte por ora... Lembra-te que
esta separação póde ser eterna...

--Eterna! repetiu estremecendo Graça Strech.

--Não, não ha de ser, Deus ha de conservar-nos a vida que nos é mais
precisa do que nunca... Mas bem sabes que eu quero gravar bem na memoria
as tuas feições, uma por uma, todas, porque te quero ter presente a toda
a hora, contemplar a cada instante o teu retrato, tão fiel, tão fiel,
que me pareça estar-te vendo... Bem sabes que é uma illusão de que
preciso, de que depende a minha vida. Pois se eu me desalentar, se
succumbir á saudade,--e baixou timidamente a voz--quem ha de velar por
nosso filho, soccorrel-o, beijal-o, amal-o?...

N'este momento deu a sineta de bordo signal para que descessem as
pessoas que não eram passageiros.

Graça Strech, não tendo já forças nem coragem para levantar Rosina, fez
signal ao italiano para que se aproximasse.

Pietro abeirou-se com a sua harpa, sentou-se ao pé de Rosina, e
relanceou a Graça Strech um olhar que parecia dizer: Póde ir.

Rosina escondia o rosto entre as mãos, e soluçava offegante,
estrangulada a voz na garganta.

Um dos marinheiros veiu, por ordem do capitão, lembrar a Graça Strech
que já tinha dado o signal de bota-fóra.

--Eu vou... respondeu elle machinalmente sem poder desfitar Rosina, e
quasi sem força para mover-se.

E, lançando a mão á corda, desceu oscillando como estonteado por uma
violenta vertigem.

Na Occasião em que o capitão passava por deante de Pietro, o italiano
levantou-se e sorrindo cortezmente lhe disse:

--O capitão dá-me licença que toque na minha harpa o hymno da partida?

O capitão sorriu tambem, e Pietro, inclinando-se para Rosina, exclamou:

--_Carina!_ A minha harpa vae ser de hoje em deante a nossa unica
consolação. É preciso atordoarmo-nos com a musica. Ahi vae a _Capuana_
para não sentir o barulho de levantar ferro. Agora, para Napoles.

E começou a entoar, acompanhando-se, uma canção napolitana que poderia
traduzir-se assim:

    Esta tarde na ribeira
    Uma hora passeei.
    Meu pensamento, occupaste-o
    E tanto pensei em ti,
    Que o coração lá perdi...
    Tu vieste e apanhaste-o.

    Ensina-me pois agora
    A desfazer a meada.
    São parciaes os juizes,
    E a justiça demorada.
    Bem sei que perdia a causa...
    Que meio? Lembra-te algum?
    Tu lá tens dois corações,
    E eu cá não tenho nenhum.

    Para que nos custe menos
    A resolver a questão,
    Expliquemo-nos. Ha males
    Que ás vezes nos trazem bens.
    Vamos fazer um ajuste:
    Tu dás-me o teu coração.
    E guarda o que lá me tens.
    ............................

O brigue navegava já. E a musica parecia adormentar aquelles dois
desgraçados: um porque levava seu filho; o outro porque o deixava
ficar.

      *      *      *      *      *


XV

A queda do gigante

A historia da terceira invasão franceza, comquanto prenda com a nossa
narrativa, não lhe é essencial.

Muito de leve passaremos pois pelos acontecimentos que medeiam de julho
de 1810 até agosto de 1814 e que, todavia, não podemos supprimir.
Limitar-nos-hemos, em conformidade com o nosso plano, a um simples
bosquejo não descabido em romance.

O marechal Massena, chegado a Valhadolid, assumiu o commando do exercito
francez, que mandou reunir em Salamanca, e marchou sobre Portugal,
tomando de caminho Ciudad Rodrigo, que se rendeu depois de heroica
resistencia. Quasi volvido um mez, capitulou a praça d'Almeria; havendo
soffrido um longo cerco, e tendo sido o paiol incendiado pelo inimigo.

O exercito alliado, em força de setenta mil homens, esperou os francezes
nas alturas do Bussaco, onde durante os dias 27 e 28 de setembro se
pelejaram duas sangrentas batalhas, sendo grande a victoria para o
exercito anglo-luzo, que galhardamente repelliu o inimigo em grande
parte dizimado. É esta uma das paginas mais brilhantes da historia
portugueza durante o longo periodo das guerras peninsulares.

Os francezes, marchando para oeste, passaram ao Sardão, e d'ahi seguiram
para o sul; os alliados, retirando sobre Lisboa, rebateram-n'os nos
campos de Coimbra, e em Leiria.

Amedrontado Messena á vista das linhas chamadas de Torres Vedras--sobre
as quaes o official inglez John T. Jones deixou uma circumstanciada
_Memoria_, que convém ser consultada pelos que não desdenham saber
historia patria--tomou posições á rectaguarda em Santarem e Leiria,
esperando reforço para atacar as linhas. O exercito francez,
consideravelmente derrotado, estava de mais a mais carecido de viveres.

N'esta conjunctura e já entrado o anno de 1811, passou o marechal
Beresford ao Alemtejo para se oppôr ao inimigo, o que não impediu que
Badajoz capitulasse. Não obstante esta victoria, e um reforço de trinta
mil homens que o exercito francez recebeu, começou a retirar nos
primeiros dias de março d'esse anno, sendo atacado na retirada pelos
alliados, e entrando em territorio hespanhol no mez d'abril. Segunda vez
reforçado, atacou o exercito anglo-luzo em Fuentes d'Honor, não sendo
ahi mais feliz do que no Bussaco. No dia 11 d'esse mez retomaram os
nossos a praça d'Almeida, e pela terceira vez se viu Portugal
desopprimido do jugo francez.

Pareciam empenhados os factos em desmentir a prophecia de Napoleão: era
a aguia da França que fugia amedrontada para o seu ninho
d'além-Pyrineus. O leopardo triumphava á sombra da cruz, que sempre foi
timbre dos guerreiros portuguezes.

Á batalha de Fuentes d'Honor seguiu-se outra não menos cruenta--a de
Albuera, onde a victoria nos foi descontada pela perda de seis mil homens.

A aguia franceza, a dominadora da Europa, irritada por uma série de
desastrosas derrotas, procurou ainda desferir no céo da peninsula o
arrojado vôo das suas passadas glorias. Por um momento lhe sorriu a
victoria. Substituido Messena por Marmont, o exercito francez logrou
tomar-nos a artilharia em Fuente Guinaldo, obrigando os alliados a
retirar sobre a fronteira portugueza, mais assignalados ainda na
retirada que no triumpho, porque, aguentando o peso da cavallaria
inimiga, repelliram todos os ataques, retomando a artilharia. Com a ação
de Arroyo-del-Molinos, pelejada a 18 de outubro, cuja victoria coube aos
alliados, se encerrou o anno de 1811, com muita honra para os
anglo-luzos. Não começou mal auspiciado o anno seguinte, que se
estreiou, para os alliados, com a tomada da praça de Ciudad Rodrigo,
seguindo-se-lhe a rendição de Badajoz, depois de haver soffrido os
apertos de primeiro e segundo sitio. Todavia o maior successo d'esse
anno estava reservado para a batalha de Salamanca, em que os dois
exercitos, commandados de um lado por Wellington e do outro por Marmont,
se equipararam em galhardia e pericia, cabendo a victoria--que se
reputa a mais celebre de toda a guerra peninsular--aos luso-anglos. Á
victoria de Salamanca seguiu-se a tomada de Madrid, e á tomada de Madrid
o assedio ao castello de Burgos pelos alliados, que, por desobediencia
de Ballesteros, tiveram de retirar sobre a fronteira de Portugal com
denodo egual ao que em Fuente Guinaldo os assignalou. Não remata
deshonrosamente o anno de 1812, para o exercito anglo-luso com este
revez que se póde considerar façanha. Refeitas, porém, as tropas
alliadas das perdas soffridas na retirada de Burgos, e já começado o
anno de 1813, avançaram até Victoria, onde, na manhã de 2 de junho, se
travou batalha geral, retirando o inimigo sobre Pamplona, perdendo
artilharia, caixa, bagagens, e salvando-se o rei José, que estivera
presente, em precipitada fuga.

_Alea jacta erat._

A sorte de Napoleão, pelo que respeitava a ambições relativas á
peninsula, havia sido jogada na batalha de Victoria, e a aguia franceza,
em cujos olhos brilhava o olhar coruscante do Corso, pela ultima vez
cruzava, demandando a França, as cumiadas dos Pyreneus.

No dia 1 de julho entrava o inimigo em solo francez. De nada valeu
reforçar-se, e tomar Soult o commando geral. No ultimo dia d'esse mez
ganharam os alliados a batalha chamada dos Pyreneus, rechaçando o
inimigo para dentro das suas fronteiras. Seguem-se, para honra das armas
alliadas, a tomada da praça de S. Sebastião, a batalha de Nivelle, os
combates de Bayonna, as victorias de Nive e Orthez, e, finalmente, a
triumphal entrada do exercito luso anglo em Tolosa, a 12 de abril de 1814.

Começava, como os acontecimentos o demonstram, a empallidecer no céo da
França a estrella de Bonaparte. A lucta, desde muito travada entre a
aguia e o leopardo, lucta de morte, encarniçada, contínua, estava
chegada a ponto em que já era dado suspeitar que o pedestal de Napoleão
não era tão firme como a sua coragem. O contendor, apesar dos revézes,
era o mesmo; a fortuna principiava a falhar. A Inglaterra havia vencido,
a sorte mostrára-se rebelde, mas o conquistador da Europa,--e para o ser
faltava-lhe vencer a Inglaterra--não desesperava de reconquistar
a sua boa fortuna. Não tomou por aviso da Providencia o desastre. No
immenso taboleiro da sua ambição, em que as nações eram outras tantas
tavolas que movia a bel-prazer, pareceu-lhe aquelle um cheque sem
consequencias para o resultado da partida em que se jogavam os destinos
de povos e reis.

Bonaparte ufanava-se de empunhar a balança em cujas conchas pesavam d'um
lado a Europa e do outro uma ambição immensa, indomavel, manifestada
desde os primeiros passos da sua carreira militar. Comtudo havia na
Europa uma nação quasi invencivel, porque o mar lhe servia de muralha,
porque os seus recursos economicos prosperavam largamente, e porque as
instituições d'esse povo, traduzindo a altivez do genio nacional, eram
muralha tanto mais para temer como a que o mar, cingindo as ilhas
britannicas, opporia a qualquer invasão. Era tudo isso, e mórmente o
regimen liberal da Inglaterra, que incommodava Bonaparte, cujo poderio
havia ultrapassado a barreira da tyrannia. O guerreiro feliz
imaginava-se senhor absoluto: era a vertigem da victoria. Havia porém um
meio de egualar a Inglaterra, como diz madame Staël: era imital-a.
Bonaparte, porém, não tinha nascido diplomata. A vista do conquistador é
incisiva, rapida, abrange de uma só vez o exercito todo por mais
espraiado que esteja; o diplomata tem de profundar, estudar, decompôr,
analysar não só os negocios englobados diante de si, mas as suas intimas
relações, as suas consequencias proximas e remotas. N'um requer-se o
olhar ardente da aguia; no outro a vista penetrante do lynce. Toda a
diplomacia de Napoleão se cifrava em preparar os acontecimentos de modo
a provocar um conflicto internacional, que tendesse a prejudicar a
Inglaterra. Haja vista o tratado secreto de Fontainebleau, em que
Portugal e a casa de Bragança eram sacrificados á velha rivalidade dos
dois paizes. Bonaparte visava sempre a vencer, não empregando a
influencia politica da sua posição, mas empregando a influencia armada
do seu exercito. Edificava sobre cadaveres, arriscando a vida dos
soldados francezes ao sabor da sua phantasia. Chegado á suprema
embriaguez da preponderancia, tanto valia para elle o sangue dos
soldados como a corôa dos reis. A sua vontade era lei. Conta-se
que uma vez um dos seus conselheiros d'estado ousou lembrar-lhe
que o codigo napoleonico era contrario á resolução que ia tomar.

Bonaparte respondeu:

--O codigo foi feito para salvação do povo, e, se a salvação do povo
exige outras medidas, é preciso adoptal-as.

Estas palavras são transparentes: deixam ver a tyrannia. O povo francez
não podia ter vontade livre: vivia affrontado pela sombra de Napoleão e
encarcerado na inquisição politica de que o ministro Fouché era
claviculario. O cézar dominava tudo: a vontade do povo e a opinião da
imprensa. Os jornaes eram thuribulos que vaporavam o incenso da adulação
aos pés do throno. Os poetas estavam habituados desde o tempo do
Directorio a cantar heroides em honra do Primeiro Consul. Os
follicularios poisavam a penna, quando tentavam assumpto que esquecesse
a grandeza napoleonica, amedrontados pelo espectro da proscripção. A
visão do desterro bastava a intimidar a maior parte d'elles, senão
todos. Madame de Staël, que não trepidava deante da estatua gigantea do
imperador, teve de procurar refugio em Inglaterra.

E comtudo, na sua origem, a corôa de Napoleão emergira, Venus da
realeza, da onda da liberdade!

É certo, mas a estas palavras respondem cabalmente as seguintes linhas
da auctora das _Considérations sur la revolution française_, cujo
espirito era profundo de mais para se deixar cegar por despeitos.

«Não bastava,--diz a insigne pensadora--que todos os actos de Bonaparte
tivessem o cunho de um despotismo cada vez mais audacioso; devia elle
proprio revelar o segredo do seu governo, pois que despresava a especie
humana o bastante para dizer-lh'o. No _Monitor_ do mez de Julho de 1810
fez publicar as palavras que dirigia ao segundo filho de seu irmão Luiz
Bonaparte criança a quem o grã-ducado de Berg era destinado: _Não
esqueças nunca_, lhe diz elle, _em qualquer posição que te colloquem a
minha politica e o interesse do meu imperio, que os teus primeiros
deveres são para mim, os segundos para a França: todos os outros,
incluindo os relativos aos povos que eu pudesse confiar-te estão
depois_. Não se trata aqui de libellos, de opiniões de partido; é elle
proprio, Bonaparte, que se denunciou mais severamente do que a
posteridade ousaria fazel-o. Luiz XIV foi accusado de ter dito
intimamente: _O Estado sou eu_; e os historiadores esclarecidos
apoiaram-se com razão n'esta linguagem egoista para condemnar o caracter
do rei. Mas se este monarcha, quando collocou seu neto no throno de
Hespanha, lhe houvesse ensinado publicamente a mesma doutrina que
Bonaparte ensinava ao sobrinho, talvez que o proprio Bossuet não ousasse
antepôr os interesses dos reis aos das nações; e é um homem eleito pelo
povo, que quiz encher com o seu _eu_ gigantesco o logar reservado á
especie humana! foi n'elle que os amigos da liberdade momentaneamente
puderam ver o representante da sua causa! Muitos disseram: «É o filho da
Revolução. Sim, é, mas filho parricida: deveriam reconhecel-o?»

Tudo isto é profundamente verdadeiro.

A liberdade franceza ficára esmagada sob a purpura do cézar. Novo
Archimedes, levantaria com a alavanca do seu poder a Europa inteira, se
a Inglaterra consentisse em ser o ponto d'apoio. Era preciso vencer essa
unica difficuldade. Serviu-se pois de todos os meios. Na _Historia
Secreta do Gabinete de Napoleão Bonaparte_, por Lewis Goldsmith, está
manifesto o espirito faccioso do escriptor inglez, mas ainda assim ha
por vezes a eloquencia terrivel dos factos, e esses não os póde calar a
historia. Bonaparte procurou triumphar por mil maneiras differentes,
seduzindo com largas retribuições a lealdade dos jornalistas inglezes;
mandando a Inglaterra espiões, entre os quaes algumas mulheres, como
madame Bonneuil e madame Visconti; procurando sublevar a Irlanda, etc.

Mas estava escripto no livro dos destinos que a Inglaterra fosse o
sepulchro da grandeza de Bonaparte. Lord Wellington, perseguindo a aguia
franceza desde Lisboa até Waterloo, similhante ao adversario de Macbeth,
segundo a expressão de madame de Staël, foi o Josué da historia profana
que ousou suster o curso do sol napoleonico em meio d'um longo dia de
gloria prolongado em dez annos de lucta contra a Inglaterra.

O cartel de desafio, tantas vezes arrojado á face da nação britannica,
volveu-se na hora da decadencia em supplica dirigida ao principe regente
d'aquelle paiz.

Estas palavras de Napoleão, escriptas em Aix, depois de Waterloo, são
claro testemunho da inconstancia das coisas terrenas:

«Alteza real, a braços com as facções que dividem o meu paiz, e com a
inimisade das grandes potencias da Europa, puz termo á minha carreira
politica. Venho, como Themistocles, sentar-me junto ao lar do povo
britannico; abrigo-me á protecção de suas leis, a qual solicito de vossa
alteza real como o mais poderoso, o mais constante e o mais generoso dos
meus inimigos.

                                                        «NAPOLEÃO»[12]


Não era porém sincera a humildade do cézar decaído. Themistocles pedia a
hospitalidade d'Artaxerxes, mas não pensava em beber a morte no veneno.
Os tropheos da Inglaterra, como os tropheus de Melciades, perturbavam o
somno do hospede desterrado. No momento de embarcar em a nau ingleza,
Napoleão repellia o general Becker que se abeirava d'elle para
despedir-se, e dizia-lhe:

--Retire-se general. Não se diga que um francez veiu entregar-se nas
mãos do inimigo.

Themistocles não esquecia a gloria de Melciades.

Napoleão preferira morrer na morte lenta de todos os exilados, e
agonisára durante cinco annos n'uma possessão ingleza.

Ahi, na triste solidão da ilha de Santa Helena, devia recordar a cada
momento a epopea da sua gloria e da sua desgraça, pensando ou dictando
as suas memorias ao general Las Cazes. Então, pelo silencio da noite,
apenas interrompido monotonamente pelo ruido do mar, refugiria de si
mesmo ao ver passar deante dos olhos o bando lutuoso das viuvas e dos
orphãos dos seus soldados, e ao adivinhar a pallida e lacrimosa figura
da moribunda de Malmaison, a formosa Josephina Beauharnais.

É sempre no mar que se esconde o sol; Santa Helena illuminou-se com os
ultimos clarões da gloria de Bonaparte no duplo occaso da grandeza e da
vida. Orgulho de soldado: ordenou que lhe fosse mortalha o capote
que trazia na batalha de Marengo. Na sua vaidade de cézar até á morte se
queria impôr.

Mais longe do que desejavamos nos levaram as nossas divagações,
esquecendo-nos de que o protagonista d'esta narrativa não era Bonaparte,
imperador dos francezes, mas um obscuro soldado dos exercitos que o
venceram.

Tempo é de falarmos de Graça Strech, e de dizer que mais duas vezes fôra
ferido no decurso da campanha peninsular: uma em Salamanca, e outra em
Victoria com uma bala n'uma perna, do que lhe resultou ficar coxeando.
Fôra gravissimo este ultimo ferimento. Por mais d'uma vez os soldados
portuguezes suppozeram moribundo o seu valoroso companheiro. Ás
exaltações febris, em que o ferido precipitava palavras que os seus
camaradas não comprehendiam, succediam-se tão profundas prostrações, que
era difficil averiguar se vivia ainda.

D'uma das vezes ouviram-lhe dizer:

--Não! não! Não vêdes a morte?... Não quero morrer... E Rosina?... Meu
filho!... Estou aqui sósinho... Pietro tocava a sua harpa.. A muda
chorava muito... Em Coimbra, n'aquella tarde... Sim, ella era innocente
e pura... Pietro parecia triste de a vêr chorar... Que é?... São os
francezes?... Que venham... Eu vingo a memoria de minha irmã, mas não
quero morrer porque tenho um filho...

--Um filho! exclamaram os dois soldados que piedosamente o soccorriam.

O ferido continuou a delirar:

--Tudo perdeu por mim... Como era grande o seu amor!... Pobresinha...
Para traz, francez; quero ir vel-a. Estás ahi? Sempre ao pé de mim!
Sim... bem me lembro... o ceguinho das Ardennas e o seu cão... Não
ouviste chorar uma creança? É meu filho...

--O nosso tenente treslê! exclamou um dos soldados.

Graça Strech havia, pelos seus actos de valor, chegado áquelle posto,
sendo condecorado com a Torre-Espada, com a cruz de S. Fernando
d'Hespanha, e ao depois com a medalha da guerra peninsular.

--Pena é se morre, acrescentou outro soldado, que não ha mais
destemido militar que o nosso tenente!

--Isso não! Animava-se com a polvora, que tambem não tem de haver no
mundo militar mais triste...

--E mais desgraçado! Não te lembras que já a irmã era muda?

--Muda, sim.

A este tempo havia caído Graça Strech em lethal modorra, e retiravam-se
os dois soldados receiosos de que o tenente não resistisse ao ferimento.

Todavia, como poderemos ver pelo capitulo seguinte, não tinha de ser
aquella a ultima hora da attribulada existencia de Graça Strech.

    [12] _Historia de Napoleão Bonaparte_, pelo dr. Caetano
    Lopes de Moura, Vol. II.

      *      *      *      *      *


XVI

Uma festa no Porto ha cincoenta e nove annos

Amanheceu festivo para a cidade do Porto o dia 15 d'agosto de 1814.

Ainda de noite começaram a povoar-se as janellas, e a animar-se as ruas
com enorme multidão.

Ás sete horas da manhã já não havia casa que não estivesse adornada de
ricas tapeçarias, pendentes dos balcões, que competiam com as galas das
damas da cidade e da provincia debrusadas nos peitoris.

Muitas das janellas estavam emmolduradas em grinaldas e arcos de flôres;
outras ladeadas por bandeiras; ao longo das ruas corria um verdejante
tapete de hervas aromaticas.

Em muitos olhos brilhavam lagrimas d'alegre commoção, e em todos os
labios desabrochavam sorrisos que eram espelho do jubilo da alma.

Que motivo havia, pois, para tamanha festa na cidade cujos habitantes,
no lento curso de cinco annos, estavam costumados ao luto e á saudade
dos que pereceram na catastrophe da ponte, nas linhas de defeza, nos
hospitaes de sangue e dos que posteriormente haviam succumbido na
demorada campanha peninsular contra os francezes?

Não eram estranhos os jubilos d'esse dia a tão funestos acontecimentos.
Esperava-se a brigada de infantaria do Porto, composta dos regimentos 6
e 18, que victoriosa regressava de França depois de haver pelejado com
egual denodo pela restauração d'estes reinos e de toda a peninsula.

Os feitos da brigada de infantaria do Porto haviam soado, com assombro
dos portuguezes, em Portugal inteiro, mórmente os que praticára na
batalha da estrada de Bayona, em França, no dia 13 de dezembro do anno
anterior.

O senado da camara tinha-se reunido nos primeiros dias d'agosto para
assentar nos festejos com que se devia celebrar o regresso das tropas.
Resolveu que se levantassem arcos de triumpho, fazendo-se outras mais
demonstrações de alegria, e encarregou da direcção dos preparativos o
vereador decano José de Sousa e Mello.

Tratou-se, pois, com febril afan, de executar o programma dos festejos.

Construiu-se sobre a ponte do Poço das Patas a _Porta da cidade_[13],
guarnecida com os castellos que lhe são proprios, e com as
insignias concedidas por carta regia de 13 de maio de 1813;
collocando-se na cimalha da porta a imagem de Nossa Senhora, que
entregava a seu Divino Filho uma fita com a legenda _Civitas Virginis_.

O gosto da pintura, imitando velha cantaria, muito deu na vista das
pessoas que percorriam as ruas e estacionavam boqui-abertas em frente do
arco.

Tambem na cimalha foi embutida uma lamina de bronze com este distico:


                        HINC GENTI HOMEN;
                    HINC REGNO PLURIES SALUS;
                       HINC EUROPAE, ORBI
             PRIMA LIBERTATIS LUX NOVISSIME AFFULSIT.


No alto da rua nova de Santo Antonio levantou-se um arco de triumpho, de
ordem composita, firmado em quatro columnas; resaltavam dos
intercolumnios arnêzes, grévas, escudos, bandeiras e lanças entrelaçadas
com listões de murta, ramos de oliveira, palmas e louros. Nos dois
grandes pedestaes sobre que descançavam as columnas, lia-se:

    Sempre engrandeça a patria lusitana
    Vosso nome immortal, claro, e subido;
    E a Casa restaurada de Bragança
    Tenha em thesouro seu vossa lembrança.

                               _Condest._

    Esta Cidade forte, e populosa,
    Colonia antiga do poder Romano,
    Cavou a sepultura temerosa
    D'um gigante nas obras deshumano.

                     _Affons. Afric._

Egualmente estavam enfloradas as cornijas, architraves e os frizos.
Sobre o portico erguia-se o escudo das armas da cidade; por cima da
balaustrada que corria ao longo do arco, havia quatro estatuas que
figuravam:

A SAUDADE

Mostrava um livro aberto em que se lia: _1.º e 2.º de Setembro de 1809._
(Dias em que saíram do Porto as tropas.) No pedestal estava escripto:

    Deixando a Patria amada, e proprios lares
    Se mostraram nas armas singulares.

                                       _Cam._

A ALEGRIA

Indicava em outro livro a data: _15 d'agosto de 1814._ (Dia da entrada
das tropas.) Lia-se no pedestal:

    A Deus, ao Rei de quem a paga esperam
    Fazer maior serviço não puderam.

                                 _Malac._

A VICTORIA

Desenrolava os annaes das acçoes em que a brigada entrára. Legenda do
pedestal:

    Aonde falta o premio a quem milita
    Não habita a razão, nem gente habita.

                           _Dest. d'Esp._

A ETERNIDADE

Tinha, entre o symbolo da serpente enroscada, os nomes dos
regimentos: _Infantaria 6 e 18._ No pedestal:

    Ajudados dos céos em mar e em terra,
    Tem fechadas na mão a paz, e a guerra.

                                  _Malac._

Sobreposta a uma longa inscripção latina, rematava o grupo do arco uma
esphera armilar, sustentada por Genios que entornavam flôres.

Nos intercolumnios posteriores correspondiam armas, espadas, tambores e
alabardas unidos com feixes de louro, ramos de carvalho e oliveira.

Nos grandes pedestaes havia gravadas epigraphes em verso, correspondendo
os ornatos aos da frente e as estatuas da balaustrada estas quatro:

O PORTO

Offerecia com a mão direita uma corôa de louro e empunhava na esquerda
um ramo de carvalho, tendo no pedestal:

    Orno os heroes que a patria eternizaram
    E por ella seu sangue derramaram.

                                     _Elp._

O AMOR DA PATRIA

Offerecia com a direita um coração e apontava com a esquerda para o
peito. No pedestal:

    Meu valor, minha nobre fortaleza
    Será gloria da gloria Portugueza.

                     _Affons. Afric._

A PAZ

Offertava com a mão direita o ramo de oliveira, e sustentava na esquerda
um feixe de palmas. No pedestal:

    Que mais ditoso fim se lhe esperava
    Que este agora que merecido estava!

                     _Affons. African._

A DOCILIDADE

Arremessava com a mão esquerda um montão de cadeias, e com a direita
segurava uma estreita fita. No pedestal:

    O Soberano Author da redondeza
    Da minha redempção deu-vos a empreza.

                                 _Bocag._

A tarja que, do outro lado, correspondia á inscripção lapidar, tinha
figurados em relevo todos os petrechos de guerra, e os Genios, que
d'esse lado sustentavam a esphera, desenrolavam uma fita em que estava
escripta uma quadra do _Condestabre._[14]

Ahi se agrupava impaciente a multidão, não só attrahida pela
magnificencia do arco, senão tambem pelo variegado espectaculo das
tropas da guarnição, que estavam postadas em alas até ao largo de Santo
Eloy; bem como para ver pegar fogo á bateria collocada no topo da
calçada dos Clerigos e destinada a salvar com vinte e um tiros de peça a
passagem da brigada pelo arco.

Na rua nova do Almada baralhavam-se dois formigueiros de povo: um que,
receoso do tumulto na aproximação das tropas, demandava o Campo de Santo
Ovidio; outro que, tendo visto o obelisco levantado no meio d'este
campo, ia procurar logar, na hypothese de encontral-o, junto ao arco da
rua nova de Santo Antonio.

Era tambem sobremodo esplendoroso o obelisco n'aquelle campo. Rodeava o
pedestal uma espaçosa varanda, adornada com ricas bandeiras portuguezas.

Sobre o pedestal, e em frente da rua nova do Almada, estava o retrato do
principe real, com a seguinte legenda escripta na almofada correspondente:

    Diga-o a Augusta Effigie contemplando:
        Foi este o forte, o justo,
    João, da Patria Pae, que a patria alçando
    Deu pasmo a naturaes, e a estranhos susto.

                                        _Elp._

Em frente da rua da Boa Vista, resaltava o retrato da rainha, lendo-se
no pedestal:

    O louvor que se ganha pelos meios
    Da virtuosa vida, este só dura,
    Este de se perder não tem receios.

                               _Bern._

E em frente da linha dos predios foi disposto o retrato da princeza,
tendo no pedestal:

    Que affavel se olharia a tua face,
    Se o céo a nossos votos sempre amigo
    Na fria estatua espiritos soprasse!

                               _Filint._

Do lado da Lapa, em frente do quartel, viam-se as armas do reino e da
cidade, unidas por um listão, em que estava escripto o dia da
restauração do governo nacional

                         18 DE JUNHO DE 1808

lendo-se no pedestal os seguintes versos de Horacio:

                  HIC DIES VERE NOBIS FASTUS ATRAS
                           EXIMIT CURAS.

Todos os retratos foram collocados entre tropheus de bandeiras, e eram
cingidos pelos emblemas da paz e do heroismo...

O bom povo portuense, na cegueira do seu jubilo, não reparava que esses
emblemas, á beira dos augustos retratos, deviam ser uma pungente ironia
se a familia real tivesse olhos para os ver atraves de enorme distancia,
e interposto o mar!

No cimo do obelisco assentava a corôa real cingindo um manto de preciosa
bordadura.

Pouco depois das oito horas e meia, um unisono grito de alegria
annunciou a chegada da brigada ao Alto do Senhor do Bomfim.

Então começou o estrondear dos morteiros, o repicar dos sinos e o
alarido dos vivas. Quando as tropas chegaram ao topo da rua nova de
Santo Antonio, o enthusiasmo attingiu as raias do delirio,
tamanho era o alvoroço da multidão que saudava com brados, com os
lenços e os chapeus os dois regimentos portuenses. Durante todo o
percurso até ao Campo de Santo Ovidio as flôres, as grinaldas e os
ramos, que desciam das janellas, figuravam uma chuva iriada e espessa
que ia orvalhar de petalas as fardetas dos soldados.

Se nos fosse dado ouvir os breves dialogos que se perdiam no borborinho
geral, de grupo a grupo iriamos recolhendo vozes, posto que variadas,
todas concernentes á festa d'esse dia.

N'uma das janellas da rua nova do Almada chalravam as visinhas da
familia Strech, as quaes cinco annos antes tivemos occasião de conhecer
em lances que verdadeiramente contrastavam com o espectaculo a que
estamos assistindo.

Passava o regimento de infantaria 18, e diziam ellas.

--Vamos a ver se conhecemos o José Maria!

--Vem tenente e condecorado!

--Já sei. Mandou dizel-o o homem da Victorinha.

--Deve vir muito mudado!

--Será aquelle?

--Aquelle, menina! Aquelle militar tem mais de vinte e cinco annos...

--Vamos a ver se elle olha para a casa onde morou...

--Vês? Não olha! Vae até a olhar para o chão...

Era elle, effectivamente.

No meio da rua dialogavam dois velhos:

--Que pena não assistir o Trant!

--Está doente.

--Bem sei.

--E elle que tanto trabalhou para esta recepção!

No Campo de Santo Ovidio, antes da chegada das tropas: Um velho
perguntando a um sujeito que estaciona junto d'elle:

--Falta-me a vista! Quem são aquelles que estão nas janelas do quartel?

--É o juiz e a camara. Olhe... Não vá mexer-se agora uma cabeça?

--Vejo, mas não distingo.

--Pois é o José de Sousa e Mello.

--Acho que elle tem de falar pelo senado?

--O programma dizia que sim.

--Esperaremos. Sempre não ter vista! Perco metade!

Chegaram as tropas ao Campo de Santo Ovidio e, depois de formar
quadrado, fizeram continencia aos retratos da familia real, que, diga-se
em abono da verdade, não responderam.

Os originaes estavam no Brazil; não viram.

Em seguida o brigadeiro Carlos Ashworth, commandante da brigada,
levantou vivas ao principe regente e á rainha...

Os retratos não se mexeram.

Quando porém se ouviu um enthusiastico viva em honra da cidade do Porto,
a cidade respondeu delirantemente pela bocca das tropas, do povo, e pelo
acenar vertiginoso dos lenços nas janellas.

Dada a voz de descançar armas, desceu o já nomeado vereador decano, José
de Sousa e Mello, que pouco antes viramos a uma das janellas do quartel.
O brigadeiro commandante, tendo-se apeiado, dirigiu-se para elle. Então
o camarista Mello recitou uma allocução que terminava por estas
palavras: «A camara roga a vossa excellencia queira fazer-lhe a honra,
não só de jantar hoje n'este quartel, mas de convidar em seu nome toda a
officialidade d'estes dois regimentos, mandando vossa excellencia que,
além d'isto, se distribua pelos sargentos, cabos e soldados o dinheiro
que ali se acha para lhes supprir o jantar d'hoje.»

O brigadeiro Ashworth agradeceu amavelmente o convite, e asseverou que a
officialidade acceitaria reconhecida.

A immensa multidão que enchia o Campo de Santo Ovidio rompeu n'este
lance em freneticos vivas e, ao som das bandas marciaes, recolheram as
tropas a quarteis, sendo seguidas por grande numero de pessoas,
parentes, amigos, e conhecidos, que esperavam lhes fosse permittido
abraçar soldados e officiaes.

Concedidas duas horas para desafogo de saudades, cinco annos retraídas,
e gastas em ardentes expansões que as volveram momentos, foi o regimento
de infantaria 18 ouvir missa á egreja da lapa e o regimento de
infantaria 6 á egreja da Graça. Em ambos os templos houve _lausperenne_
e _Te-Deum_.

Cumpridos os deveres do coração e da alma, começaram os da cortezia.

O brigadeiro Ashworth foi cumprimentar o senado á sala da
secretaria do quartel de Santo Ovidio, convenientemente preparada para a
solemnidade da recepção, recolhendo-se depois ao quartel general da rua
nova do Almada, onde, pelo meio dia, recebeu a visita dos vereadores.

Cerca da uma hora da tarde, quando o brigadeiro já estava desembaraçado
de felicitações officiaes, annunciou-se no quartel general o tenente
Graça Strech.

O brigadeiro acudiu a recebel-o com a maxima familiaridade, que era
testemunho de maxima consideração.

--Vem tambem cumprimentar-me? galhofou o brigadeiro.--Ora sente-se e fale.

--Venho solicitar um grande obsequio, respondeu o tenente.

Razão tinham as meninas da rua nova do Almada para não reconhecer n'elle
o gentil e vigoroso José Maria dos dezeseis annos. Estava velho aos
vinte e um, velho das geadas do infortunio que requeimam as flores da
alma, e apagam nos olhos o brilho da mocidade. Tinha a magreza viril do
soldado, mas cruzavam-se na sua physionomia umas sombras espessas que á
primeira vista inculcavam que espirito e corpo haviam soffrido por
egual. Como as palreiras meninas da janella disseram, figurava ter mais
de vinte e cinco annos.

Mas, voltando ao dialogo do tenente com o brigadeiro:

--Que grande obsequio é esse? perguntou com affabilidade Carlos Ashworth.

--Venho pedir dispensa de assistir hoje ao jantar.

--Ah! meu amigo, isso não póde ser! O galardão é para todos; cumpre,
pois, que cada um receba o quinhão que lhe cabe.

--Eu creio que já em França tive a honra de lhe dizer, meu brigadeiro,
que precisava descanço porque soffria...

--E de me pedir a sua baixa, bem sei. D'essa vez não pude annuir ao
pedido do meu bravo tenente, porque havia recebido instrucções
particulares do senhor marechal marquez de Campo Maior para não
licenciar soldados nem officiaes. Era justo que o Porto conhecesse todos
os heroes d'esta brilhante campanha. O marechal tinha razão. Agora, meu
bom amigo, tambem não posso ser-lhe agradavel como desejava. O
tenente foi dos militares que mais se distinguiram desde Portugal a
França. As ordens do dia falaram muita vez no seu nome. Conhecem-n'o.
Seria uma affronta para o Porto que estivesse entre os seus muros, e
recuzasse o talher que lhe offerece. Isso--disse o brigadeiro
curvando-se amigavelmente para elle--são saudades, não quero saber de
quem. Tambem eu as tenho... Vamos, assista ao jantar, que eu me
empenharei por obter a sua baixa o mais breve possivel.

E estendeu-lhe cordealmente a mão.

O tenente Graça Strech saiu d'ali com os olhos no chão para não vêr a
casa onde nascera, e atravessou as ruas da cidade absorto na triste
concentração de quem está em terra onde não conhece ninguem.

Ia entregue aos seus pensamentos, e assim andou ao acaso até que outro
tenente do mesmo regimento lhe bateu no hombro e disse:

--São quasi cinco horas e meia. Vamos lá ao jantar, homem. Está marcado
para as seis.

Effectivamente, á hora designada, reunida a officialidade no quartel de
Santo Ovidio, passou com os vereadores á sala do banquete, cuja
ornamentação era brilhante.

A um e outro lado corriam arbustos, d'entre os quaes appareciam as armas
de Portugal e Inglaterra. A um grupo de trophéus de guerra, com
bandeiras d'uma e outra nação, que cobriam a cabeceira da mesa, fazia
_pendant_ um nublado em que se enleiava a serpente, symbolo da
eternidade, tendo escripto no centro--_Ashworth._--Guarneciam o nublado
duas bandeiras com os nomes dos dois regimentos, atadas por uma fita em
que se lia a data de maior gloria para a brigada do Porto--_13 de
dezembro de 1813_.

No fim do banquete, ao som da banda de musica de milicias que tocava á
porta do quartel, levantaram-se enthusiasticos vivas ao principe
regente, á familia real, aos monarchas alliados, aos governadores do
reino, generaes do exercito combinado, ás tropas victoriosas, e a todas
as mais entidades que iam lembrando e mereciam a homenagem d'um calis de
vinho.

Um só conviva correspondeu a esses ruidosos brindes com um movimento de
labios: foi Graça Strech. E á noite, quando toda a cidade se illuminava
festivamente, era profunda a escuridão na sua alma.

    [13] É fiel a descripção d'estes festejos; O auctor
    encontrou-a n'um opusculo da epoca.

    [14] Poema heroico de Francisco Rodrigues Lobo.

      *      *      *      *      *


XVII

Como madrugam as aves e os noivos!

Obtida a baixa, Graça Strech poucos dias se demorou no Porto.

Sentia-se asphyxiado na atmosphera em que respirára ao nascer.
Punham-lhe medo as sombras; as ruas affiguravam-se-lhe tristes como
avenidas de cemiterio. Duas vezes, alta noite, depois de dolorosissima
lucta comsigo mesmo, estivera, encostado á parede fronteira á casa em
que viveu os primeiros annos da vida, mergulhado em profunda meditação.

A ultima vez fôra a ultima noite que passára no Porto. O céo era d'um
azul setinoso. O branco luar de agosto estendia ao longo da rua a sua
claridade immovel, e parecia desenhar nos muros contornos phantasticos.
Reinava na cidade o silencio imperturbavel das noites profundas. Na
janella da sala onde cinco annos antes, por noite tempestuosa, jaziam
tres cadaveres, luzia um reflexo mortiço como de lamparina que não
tardou a apagar-se. Lembrou-se Graça Strech de que devera ser egualmente
pallido o reverbero da luz que lhe tremia na mão quando contemplava os
corpos inanimados das trez senhoras. Transportou-se áquelle horrivel
espectaculo. Viu tudo. A mãe, a irmã e a avó estavam a seus olhos como
n'essa hora tremenda. Não obstante o seu grande empenho, de pergunta em
pergunta não lográra saber onde repousavam. Queria ir procurar Rosina,
de quem nada sabia tambem, mas desejava despedir-se da familia que
ficava, antes de partir para o seio da familia que o esperava. Não pôde
realisar o seu desejo. Registos parochiaes não os havia. N'aquella
immensa hecatombe da invasão, tambem as sepulturas foram invadidas sem
averiguar-se por quem. Tinha desesperado de conhecer a verdade,
e, já que não podia despedir-se do tumulo da sua familia, fôra
despedir-se do predio que ella habitára. De repente, n'uma casa proxima,
perpassou uma luz. Fez reparo. Quem velaria ainda áquella hora?
Deteve-se a examinar, e certificou se de que ali viviam, no anno de
1809, as duas visinhas que lhe falaram na bateria do Bomfim. Foi isto um
como raio de tardia esperança. Recriminou-se pelo esquecimento de não as
ter procurado logo que chegou. A desgraça havia-o desmemoriado.
Atravessára o Porto como um viajante solitario atravessaria o
Sahará--calado, pensativo, sem ver, por ter medo de olhar. Mas--os
infelizes duvidam sempre--viveriam ainda ali? Tinha razão. Quem poderia
dizer se ellas, na fuga, haveriam chegado ao seu destino, sido
attingidas pelas balas ou cahido em poder dos francezes?

A estas perguntas, que a si proprio fazia, só poderiam responder
indagações. Pesava-lhe todavia o ter de se aproximar de pessoas cuja
conversação iria aggravar a dôr do passado. Se elle soubesse onde
repousavam as cinzas da sua familia, lá iria para falar-lhes, para
contar-lhes os extraordinarios lances da sua vida, para dizer aos frios
restos de sua irmã por que razão não levava comsigo o annel, sobre o
qual jurára vingal-a.

Augusta, de dentro do sepulchro, responderia com o perdão implorado.

Mas o que elle não queria era deixar entrever a sua dôr de modo que lh'a
avivassem piedosamente, porque a sociedade não dá o balsamo da compaixão
sem primeiro rasgar as feridas que a inspiram.

O desejo vehemente venceu, porém, a natural repugnancia. A breve trecho
fez tenção de não desaproveitar as poucas horas que lhe restavam para
colhêr esclarecimentos. Resolveu-se a esperar que amanhecesse e, como a
luz parecesse brilhar com intensidade a través da janella, não se
afastou. Mal começava a raiar a claridade da madrugada, apagou-se a luz,
e cerca das cinco horas da manha viu Graça Strech abrir-se a porta.
Sairam duas mulheres de mantilha, seguidas por uma criada que levava um
açafate á cabeça. Fosse reminiscencia ou phantasia, Graça Strech cuidou
reconhecer as duas visinhas: tia e sobrinha. Tomou alento e acercou-se.
Uma das mulheres, a mais nova, voltou de repente a cabeça como se
esperasse alguem. Havendo-se enganado, achegou-se da outra e soltou
um--ai!--que mais denunciava despeito que medo.

--Não se assuste vossa senhoria, sr.ª D. Izabel! apostrophou Graça
Strech serenando a menina que se denunciava medrosa.

Tia e sobrinha olharam fito no desconhecido, e foi a sobrinha quem
primeiro exclamou:

--Pois não se lembra, minha tia? Olhe bem para elle!

--Quem é?

--É o sr. José Maria! Eu bem dizia outro dia que era o tenente das barbas!

--Póde lá ser o Josésinho!

--Tem razão, minha senhora, replicou Graça Strech. Eu devo parecer-lhes
uma sombra do que fui. Mas, sombra ou realidade, o certo é que me chamo
José Maria da Graça Strech.

--Ora uma coisa assim! Parece um velho!

--E parece! acrescentou a menina.

--Desgostos, minhas senhoras.

--E muitos teve tão novo, sim, porque vêr...

--Peço a vossa senhoria o obsequio de deixar em silencio essas tristes
recordações. Uma só quero eu avivar, e por isso lhes causei esta surpresa.

--Mas não nos ter procurado! exclamou a velha senhora.

--Não tomem á conta d'ingratidão o que é simplesmente embrutecimento.
Bem podia ser tambem que tivessem mudado de casa.

--Ora! Quem tem bocca vae a Roma! exclamou a menina. Já nem queria saber
novidades da sua antiga visinha! Pois saiba que me vou casar...

--Felicito vossa senhoria.

--Cala-te ahi, tagarella! acudiu D. Eulalia, affastando com o braço a
sobrinha. Ha de estar admirado de nos vêr sahir ambas a esta hora. Pois
não se admire. Combinamos com as Cerqueiras e as Brochados, tudo visitas
da sua casa, sr. Strech,--e com o noivo da Izabelinha--juntarmo-nos na
primeira missa que se diz no altar do Senhor dos Passos em S. João Novo
e irmos depois almoçar todos á Fonte das Virtudes.

Cumpre dizer que na primeira década do seculo XIX era ainda a
Fonte das Virtudes o local destinado ás comezainas das familias
burguezas do Porto. Ahi se reuniam em ruidosos convivios, deposta a
mantilha, e irmanados novos e velhos pelo mesmo apetite e pela mesma
alegria.

O camartello das demolições municipaes tem--_avis rara!_--respeitado até
hoje esta legendaria fonte que se compõe d'um alto frontispicio, ornado
de pyramides, e firmado em bancos de pedra, que a rodeiam. Rebenta
abundantemente a agua por duas enormes carrancas em conformidade com a
esculptura de todos os chafarizes antigos. Ladeiam a fonte dois grandes
tanques, durante todo o dia, ainda hoje, frequentados por lavadeiras.
N'esses bons tempos, ficava a fonte extra muros; sahia-se para ella pela
porta a que a fonte deu nome. Ao lado da porta, na eminencia da parte
oriental, havia já então os chamados _Assentos_, actualmente Passeio das
Virtudes.

O padre Agostinho Rebello da Costa, na sua _Descripção topographica e
historica da cidade do Porto_, impressa em 1789, escreve ácerca d'este
local: «Em toda a cidade, não ha sitio nem mais ameno, nem mais
agradavel; porque além da sua bella posição adornada de regulares
edificios, gozam os olhos d'um só golpe, vista de cidade, de mar, rio,
navios, montes, campinas, quintas e palacios. O grande paredão, que
presentemente se está fazendo, para com elle se formar uma praça
correspondente á belleza, e magnificencia d'esta agradavel situação,
será um monumento eterno do patriotico zelo que Rodrigo Antonio de Abreu
e Lima, cavalleiro professo na ordem de S. Thiago, inspector da marinha
do Douro, administrador geral dos portos seccos das trez provincias do
Norte, e actual juiz da alfandega, mostrou em obrigar o senado da camara
a fazer esta obra interessantissima á regia utilidade, e recreio publico.»

Dito o que as historias referem ácerca da Fonte das Virtudes, reatemos o
dialogo.

--Divirtam-se vossas senhorias, respondeu Graça Strech, que eu
perguntarei sem desvios o que desejo saber. Não me foi possivel
averiguar até hoje onde jaz a minha desventurosa familia. Vossas
senhorias sabem?

--Casualmente nos disse o sachristão de S. Martinho de Cedofeita
que tinham ali sido enterradas, se bem que nos não pudesse designar as
sepulturas, pela grande confusão de cadaveres que n'esses tristes dias
houve.

Isto disse D. Eulalia, acrescentando:

--No dia seguinte o quartel general mandou ordem a todos os parochos
para que, logo que anoitecesse, fôssem levantar os corpos dentro da
circumscripção das suas freguezias. Não sabemos mais nada, sr. Strech.
Nós recolhemos ao Porto depois que os francezes retiraram. Estivemos em
Gondomar, em casa d'uns parentes nossos, porque tivemos a felicidade de
encontrar livre o caminho. O senhor bem se ha de lembrar de que nos
protegeu na bateria do Bomfim. Prouvera a Deus que a sua familia tivesse
tido a mesma sorte! Muitas vezes lhes pedimos que nos acompanhassem. Não
quizeram. Ainda tenho nos ouvidos as palavras da Augustinha: «Se meu pae
e meu irmão morrerem, deixemo-nos morrer tambem, porque o viver sem
elles seria peior que a morte.» Nunca mais me esqueceram! Vel-a assim
fazia dó, a pobre menina!

Graça Strech estava livido. Já não tinha forças para ouvir mais.

--Muito obrigado, minhas senhoras, disse elle. Já sei o bastante.
Felicito-me de as haver encontrado e faço votos pela ventura da sr.ª D.
Izabel.

--Agradeço do coração, replicou a menina. O sr. Strech ha de dar-me a
honra de assistir ao meu casamento...

--Da melhor vontade assistiria, minha senhora, se não tivesse de partir
hoje mesmo para Italia.

--Partir?!

D. Eulalia repetiu:--Para Italia!

E exclamou virando-se para a sobrinha:

--O casamento anda-te com essa cabeça á roda! Se não sou eu lembrar-me
agora por essa palavra, não dirias nada ao sr. Strech d'aquella carta
d'Italia!

--Uma carta, apostrophou elle, sobremodo perturbado.

--É verdade! affirmou a menina com pesar de se haver esquecido.

D. Eulalia contou:

--Ha quatro annos, foi em...

--Junho, acrescentou Izabel.

--É verdade, foi em junho, proseguiu D. Eulalia; andou o carteiro por
esta rua, para cima e para baixo, a perguntar pela familia Strech. Todos
lhe diziam que essa desgraçada familia estava no cemiterio. Até que a
final o carteiro e alguns visinhos bateram á nossa porta, porque sabiam
das nossas relações com a sua familia. A carta, que trazia o timbre de
Italia, dizia: _Sr. José Maria da Graça Strech, soldado portuguez_ (pela
orthographia conhecia-se que a pessoa que escrevia era estrangeira,
disse em parentesis D. Eulalia) _natural do Porto;--Portugal._

Graça Strech ouvia offegante.

D. Eulalia proseguiu:

--Do senhor ninguem sabia nada, mas como a carta ficaria naturalmente
perdida no correio, encarregamo-nos de mandal-a ao acaso para onde
estivesse o exercito. Era o unico meio de lhe chegar á mão, caso o
senhor estivesse vivo. Nós nada sabiamos. Perguntamos o que haviamos de
fazer. Disseram-nos que a mandassemos para Almeida, que era onde
Wellingtão--ella pronunciou assim,--tinha estabelecido o quartel
general. Para lá a mandamos, pensando que fariamos bem. Visto isso o
senhor não a recebeu?

--Não recebi, minha senhora, respondeu Graça Strech com difficuldade.
Agradeço, porém, a vossas senhorias o cuidado que tiveram e, para não as
demorar por mais tempo, recebo as suas ordens...

--Tambem--atalhou D. Eulalia, vão sendo horas da missa do Senhor dos
Passos. Vamos lá. Se o sr. Strech precisar d'alguma coisa, não tem senão
mandar-nos e dizer onde está, para que não se torne a perder qualquer
carta.

Despediram-se. Ellas seguiram pela rua nova do Almada a baixo, e elle
caminhou em direcção ao Campo de Santo Ovidio.

A menina ia perguntando ingenuamente á tia:

--Não seria mau agouro encontrarmos o Strech na occasião em que eu ía a
pensar no meu casamento?

--O que tu quizeres! respondeu D. Eulalia. Reza um _Credo_ ao Senhor dos
Passos e deixa-te lá d'agouros. Deus é que sabe o que ha de acontecer.

Graça Strech caminhava machinalmente, engolphado em seus pensamentos. A
carta era de Rosina. Conjecturava elle que já devia ser mãe quando a
escrevia. Que diria ella? Coisas tristes, de certo. Os infelizes
vivem das desgraças que sonham e que soffrem. Por muitas vezes escrevera
elle para Napoles. Nunca obtivera resposta. Aquelle horrivel silencio
durava já havia quatro annos. Nem ella nem Pietro escreveram mais! O
que haveria acontecido? Que ancia que elle tinha de chegar a Italia, e,
ao mesmo passo, que receios! Não o esperariam lá novas dôres, maiores
soffrimentos? Que envelhecida mocidade aquella!

Foi andando, andando, até que chegou ao cemiterio de Cedofeita.

Quando viu negrejar cruzes e louzas por entre as verduras dos canteiros,
estremeceu de subito. O pensamento da morte vinha interromper os seus
dolorosos pensamentos. A sua familia estava ali, mas onde? Rosina e seu
filho onde estariam tambem, lá tão longe? O cemiterio era solitario
áquella hora, se não falarmos das aves que faziam alegre matinada nas
arvores.

Só os noivos e as aves saudam jubilosos a manhã.

Por isso madrugára a menina da rua nova do Almada em competencia com os
passarinhos do cemiterio de Cedofeita.

Graça Strech atravessou por entre as campas, confiado em que o coração
adivinharia o sitio em que repousava a sua familia. Andou, percorreu as
ruas todas, e parou á beira d'uns comoros que não tinham cruz nem
lapide. Devia ser ali. As campas dos que não deixam ninguem no mundo
conservam-se abandonadas. Quando muito, porque os despojos mortaes são
da natureza, veste-as a natureza de relva e flôres silvestres. Sobre um
dos comoros floresciam hervagens, que pendiam á terra umas singelas
boninas brancas. Seria a homenagem da natureza á innocencia de sua irmã?
Não sabia. O silencio da morte guarda todos os segredos. Ajoelhou. As
avesinhas das arvores funebres continuavam a cantar, a cantar!...

Áquella hora, n'aquelle sitio, cria-se em Deus.

A eloquencia das campas!

Como tudo aquillo fala suavemente d'além-tumulo!

No ruido das festas a ideia da morte é sempre um pungente contraste. Mas
não sei que amena tristeza dulcifica a certeza do repouso eterno, nos
cemiterios, mórmente se é manhã, e as aves chilriam, e estremecem
nas hervagens as gotas d'orvalho, e um raio de sol nascente doira uma cruz!

Graça Strech sentiu-se subitamente soccorrido por essa triste suavidade
que a vista dos tumulos infiltra aos desgraçados.

Longo tempo esteve ali, ajoelhado, conversando com os trez comoros os
seus segredos de cinco annos. No que estava florescido, curvou-se como
se quizesse falar para dentro. Conjecturava que seria o d'Augusta.
N'essa hypothese lhe contou as suas desventuras, os seus amores, os
sacrificios de Rosina, o destino que dera ao annel, a afflictiva
incerteza em que estava, a ancia que tinha de beijar seu filho, de
encontrar Rosina... Juntou lagrimas de saudade a palavras de perdão,
queixumes de animo attribulado a hymnos de confiança em Deus...

Não lhe havia dado tempo a sua trabalhada e desventurosa mocidade para
erguer o espirito acima das coisas terrenas das preoccupações humanas.

Pela primeira vez subiu até onde os fulgores da divindade enchugam as
lagrimas da oração. Muito acima do mundo deve ser, porque já se não ouve
então o tumultuar da humanidade, e porque já ahi chovem os balsamos da
resignação sobre a alma angustiada.

Ninguem diria que estava ali o soldado, o leão dos combates. Nada ali
falava de vingança, nem mesmo a supposta sepultura d'Augusta. Nada se
sabia do mundo, d'aquella porta de ferro a dentro. Todavia alguma coisa
julgou ouvir a alma de Graça Strech. Eram palavras intradusiveis que as
hervagens ciciavam, brandamente agitadas pela viração matutina. Sem
comprehender as palavras, entrou-lhe ao espirito o pensamento d'ellas.
Era a divina esperança do _post tenebras spero lucem_, de Job, e ao
mesmo tempo o _Non moriar, sed vivam, et narrabo opera Domini_, do
salterio.

Graça Strech interpretou assim esses fugitivos murmurios que soavam
sobre a campa da sua irmã. Trouxe do cemiterio a certeza de que depois
das trevas da vida veria luzir o sol da felicidade perpetua, e de que
não morreria sem ter tempo de narrar as obras do Senhor.

Isto equivalia á resignada esperança de não succumbir á sua desgraça sem
saber o destino de Rosina e seu filho.

Adquirira ali a certeza de que a alma d'Augusta abençoara do ceu a
criança cuja mãe possuia o seu annel. Levantou-se. Arrancou as
parietarias que marinhavam pelo muro proximo, e esparziu-as sobre os
trez comoros.

--Se ahi estaes, minhas doces amigas--pensou elle--recebei o primeiro e
unico testemunho de saudade que ainda vos manda o mundo esquecido de
vós. Pedi por mim, e pela familia que me resta na terra, se Deus m'a
tiver conservado. São tambem vossos pelo coração. Adeus, abençoadas
sejaes no céu pelo conforto que me destes.

E saíu do cemiterio, caminho do rio Douro, onde estava fundeado o navio
que n'essa tarde devia partir para um porto d'Italia.

A essa hora, na Fonte das Virtudes, havia expansiva alegria. Um velho da
familia Cerqueira dizia a um menino da familia Brochado:

--Vá, seu estudante, traduza-me lá a inscripção da fonte: _Fons scalet,
illustri virtutum_, etc. _Rompe aqui esta fonte..._ Vá, diga...

--Pudera romper acolá, estando aqui o chafariz! observou grosseira e
acertadamente o menino.

D. Izabel offerecia ao seu noivo um copinho da agua da fonte, panacea
para muitas molestias, entre as quaes as inflammações dos olhos.

Tinha bons sentimentos: não queria marido cego.

      *      *      *      *      *


XVIII

A Lenda d'Ashaverus

Comprehende-se com que anciosa impaciencia viajaria Graça Strech. A
Italia era para elle o unico raio de sol que lhe doirava o horisonte
fechado em torno do navio. Ia ver Rosina e seu filho; agradecer a Pietro
a protecção que provavelmente a uma e outro tinha dispensado, porque
Rosina devia ser mãe havia quatro annos. A carta perdida era decerto a
boa nova da maternidade... Mas, logo o animo, vesado a tristes
phantasias, descontava esta esperança com vagos receios. Todavia a
visita ao cemiterio de Cedofeita insinuava-lhe na alma o doce calor da
fé. Queria chegar a Italia, desenganar-se. Levava ao berço do filho a
tranquillidade aprendida á beira do tumulo da irmã. A Italia! a Italia!
a terra promettida do Moyses errante! Quando appareceu em frente do
navio uma nuvem pardacenta, e a voz de _Terra_! alvoroçou a tripulação,
o coração de Graça Strech doidejou desde a alegria expansiva da criança
até á timidez receiosa da mulher.

A Italia! O formoso sol da Italia a enxugar as lagrimas de tão longa
ausencia! A alma de Rosina Regnau a animar no desconforto, a premiar na
alegria! A alma e a voz! A liberdade do coração e da palavra! Um lar
modesto, muito modesto, pobre até, o filho a esvoaçar d'um lado para
outro, a chilriar, os cabellos loiros a brincarem-lhe em derredor da
cabeça; Rosina a viver arroubada entre os sorrisos do pae e do filho;
n'uma palavra, a felicidade que não escurece quando chega a noite; á
porta, de cabellos alvejantes, tranquillo, sentado ao sol, Pietro, o
_canta-storie_, a concertar as cordas da sua harpa, e a entoar, com a
sua voz já cançada, mas ainda sonora, a _Capuana_; fóra, o céu d'Italia,
o azul suavissimo, o sorriso da natureza, a eterna primavera
meridional!

De repente mudava-se o quadro.

Via uma cruz tosca, n'um cemiterio de Pescadores pendurado ao mar.
Rosina, demudada e lutuosa, chorando ao pé da cruz. Pietro, chorando ao
pé de Rosina, com a harpa silenciosa poisada diante de si. E seu filho
morto, sem o haver conhecido, sem o ter beijado sequer!

Outras vezes sonhava com a lividez da fome nas faces de Rosina, da
criança, e de Pietro!

A vivandeira havia levado recursos. Era a sua ração de dois annos, a
migalha do canario. Havia no 18 d'infantaria um quartel-mestre usurario.
Graça Strech fizera com elle uma transacção. O quartel-mestre ficava
recebendo durante dois annos o _prét_ por inteiro, e adiantára-lhe o
_prét_ d'um anno. Essa quantia, administrada com economia, devia durar
os dois annos. Se a campanha acabasse antes d'esse praso, o soldado
devia indemnisar o quartel-mestre, que tinha na sua mão um documento.
Mas haviam-se passado os dois annos, e outros dois. Graça Strech
escrevera muitas vezes para Napoles, como já dissémos, para obter
certeza do paradeiro de Rosina, e poder mandar mais dinheiro. De nenhum
vez obtivera resposta. Haveria acontecido alguma desgraça? Mas tambem
quem conhecia em Napoles Rosina Regnau? Bem se podiam lembrar de ir
saber ao correio. Pietro andava por fóra com a sua harpa; Rosina estava
cuidando do filho: não se lembravam. As mealhas que Pietro recolhia, e
generosamente repartia provavelmente, abastavam a alimentação dos trez.

Em Coimbra, disséra Rosina a Graça Strech, quando elle lhe pedia que não
soffresse privações sem o avisar:

--Se se acabar o dinheiro, eu, que posso ter voz em Italia, irei
cantando de rua em rua. Não receies por mim. Atravessei pura o exercito
francez; mãe, atravessarei destemida o povo italiano. A honra da
vivandeira é um baluarte invencivel; não deixa profanar a bandeira da
sua lealdade.

E logo, antevendo a triste solidão da ausencia, rompeu em afflictivo
chôro. Este era o natural de Rosina: ora vivandeira, ora mulher. Logo em
principio o dissémos.

Apesar da cega confiança que Graça Strech devia ao amor de Rosina, não
era a sua alma, quanto mais se avisinhava da Italia, estranha ao
ciume. No paiz dos amores, o ciume, _la gelosia_, respira-se com o ar.
Ciumes de que lhe ouvissem a dulcissima voz, se tivesse sido obrigada a
acompanhar com o canto os harpejos de Pietro; ciumes de que a
applaudissem, de que a vissem, de que a conhecessem. E, pensava elle,
quem ficaria olhando pela criança emquanto a mãe andasse por fóra?
Alguma mulher estranha, que não a acariciaria se chorasse, que não a
agasalharia quando tivesse frio, que lhe não responderia meigamente
quando perguntasse pela mãe...

Chegado que fôsse a Italia, procuraria, noite e dia, sem descanço, sem
tregua, e encontral-os-ia, e diria a Rosina: «Fica tu ao pé de nosso
filho, que eu vou trabalhar», e a Pietro: «Continua a ser o guarda dos
dois, que eu velarei pela tua velhice.»

E alternava risos com lagrimas, e agora falava e logo emmudecia, com as
mãos firmadas no bordo da amurada e os olhos cravados na nuvem do
horisonte, que se ia aclarando cada vez mais, conhecendo-se já, sobre o
azul do céo, os contornos irregulares da cidade.

O capitão esteve-o medindo com o olhar ao lado d'um passageiro que
durante a viagem tinha conversado algumas vezes com Strech.

--Nunca vi tamanha commoção! disse o capitão ao passageiro. Receio
d'esta alegria em homem costumado aos alvoroços de guerra.

--Elle vinha ancioso de chegar a Italia, retrucou o passageiro. O mais
que me disse foi que, tendo feito a campanha, vinha, doente e cançado,
procurar a Italia uma irmã, de quem, pela invasão de Portugal! fôra
obrigado a separar-se.

--Muito a deve estimar então! ponderou o maritimo.

E, aproximando-se de Graça Strech, disse-lhe affavelmente:

--O sr. Strech morria-se por vêr Italia. Ahi a tem agora.

--É verdade, respondeu exaltado Graça Strech. É verdade... A ancia de
chegar... a incerteza... tudo isto... Eu não estava costumado a estas
sensações... Por que emfim tudo hoje depende para mim de Italia... Ó
senhor capitão, quanto tempo gastaremos ainda?...

O capitão, sem responder, achegou-se do outro passageiro e segredou-lhe:

--Eu não lhe dizia? Nunca vi tamanha commocção! Queira Deus que não vá
louco...

Ah! o capitão entendia do mar; do coração, não. Chamava loucura áquillo!
A desvairada oscillação da alma que pende entre um longo passado de
trevas e a unica esperança que lhe entreluz no céo do porvir! É louco o
naufrago que, baldeado entre os vagalhões do oceano infrene, se abraça
com a prancha que lhe é dado alcançar, e que ou morrerá cuspido contra
os fraguedos ou fluctuará por mercê da Providencia até que surja a véla
branca, que é a bandeira da paz nas luctas com o mar? É louco o
caminheiro que se transviou ao anoitecer e sorri de alegria á estrella
da manhã, ainda que tenha de retrocecer para continuar jornada? É louco
o doente que se felicita de haver acordado d'um pesadello horrivel,
esquecendo-se de que, d'ahi a horas talvez, sobrevirá o sombrio
pesadello de que não se acorda mais--a morte?

O coração tem as tempestades e as calmarias do mar, é certo, os
murmurios e os segredos das aguas, mas o fundo do coração não está ainda
tão estudado como o fundo do oceano. A sondagem mente muitas vezes. Quem
já logrou medir a profundeza de certas dôres?

Tinha soado a hora do desengano ou da felicidade.

Graça Strech estava finalmente em Italia.

Começou desde logo a procurar, a procurar. Correu todo o reino de
Napoles--Napoleão puzera reis em toda a parte--a pedir informações d'um
velho tocador de harpa, que se chamava Pietro, d'uma rapariga franceza
chamada Rosina Regnau e d'uma creança, que devia ter quatro annos, e era
filha da rapariga franceza. Ninguem respondia. Quem em Napoles, o paiz
da musica, havia d'estremar um _sonatóre di arpa_? Acudia
afflictivamente Graça Strech a fazer o retrato do velho Pietro para
auxiliar a memoria dos interrogados. Harpistas velhos havia tantos, uns
que viviam em Napoles, outros que passavam por lá, que por fim de contas
a população lembrava-se de todos e não se lembrava de nenhum. A
declaração de chamar-se Pietro nada aproveitava. Ninguem se importa com
o nome dos menestreis das ruas, mórmente quando todos os musicos
ambulantes parece chamarem-se Pietros. Rapariga franceza ninguem dizia
tel-a visto, e depois acrescentavam que talvez lá houvesse estado, sem
fazerem reparo n'ella, porque os francezes sempre foram tão vulgares em
Italia como os italianos em França, por isso que a natureza pôz entre as
duas nações a ponte granitica dos Alpes.

Graça Strech percorreu vertiginosamente todas as estalagens, todos os
albergues, recolheu informações particulares e officiaes, e não soube nada.

Disseram-lhe que talvez o harpista houvesse passado, como é costume
d'elles, a outras cidades d'Italia, por isso que a concorrencia os
afugenta de Napoles.

Acceitou o alvitre. Visitou em seguida o reino da Etruria, procurou sem
descançar, como um cão que perdeu o faro de seu dono. Uma tarde, em
Piombino um albergueiro pareceu recordar-se d'um harpista velho que ali
pernoitára havia um anno com uma criança que lhe chamava avô. Vira só o
velho e a criança. De mulher franceza que os acompanhasse, não tinha
reminiscencia. Fizera reparo nos dois, pelo contraste. O velho passára a
noite á lareira com a criança adormecida nos braços, afagando-lhe os
cabellos loiros, cobertos pelos seus cabellos brancos, sem dizer uma
palavra. Comeu pouco e bebera menos. Pela manhã saíra com a harpa e a
criança. Aqui está o que o albergueiro de Piombino dissera,
acrescentando unicamente: Quando elle sahia, perguntei-lhe que rumo
levava, porque realmente o harpista me fez pena.

O velho respondeu:

--Vamos correr esse reino d'Italia, á mercê de Deus. Bem vê que é
preciso trabalhar: somos duas boccas, e só temos dois braços--são os
meus que já pouco podem.

A historia do velho e da criança fez profunda impressão no animo
attribulado de Graça Strech. Perdeu-se em conjecturas. Seria Pietro?
Haveria morrido Rosina? O estalajadeiro não soube dizer-lhe o nome do
harpista. Sobretudo, a ideia da morte de Rosina enlouqueceu-o de dôr.
Seria possivel que ella morresse sem o ver, sem o ouvir, sem lhe fallar,
ella, que tinha tanta coragem, que devia resistir energicamente á morte,
porque a morte era a separação eterna? Aquella criança seria
realmente seu filho, e viveria no mundo sem pae nem mãe, apenas confiado
á protecção do pobre harpista napolitano, cuja velhice e trabalhos em
breve o prostrariam, se era que ainda vivia a essa hora? E se elle já
tivesse morrido, que seria da criança na infantil inconsciencia dos seus
quatro annos, que tantos devia ter a ser seu filho? Morreria enregelada
no caminho, morreria de fome entre duas arvores, no meio da serra, ou
então haver-lhe-ia estalado o pequeno coração depois de haver estado a
gritar para que acudissem ao avô, que caíra ao chão e ficára esmagado
pela harpa, sem falar mais, sem responder ao seu afflictivo chamar.

O albergueiro começou a notar extraordinaria agitação na physionomia do
hospede. Viu encovarem-se-lhes os olhos, e estremecerem-lhe os musculos
das faces cadavericas pela magreza e pela lividez. Em breve as
contracções nervosas se estenderam a todo o corpo. O caminheiro começou
a tremer, a tremer. Trouxeram roupa, cobriram-n'o. Pediram-lhe que se
deitasse; recusou. Esteve assim longo tempo, tremendo, frio como o gelo.
Depois, como o peso da roupa fosse muito, começou a córar e a suar.
Dizia palavras que ninguem entendia. Aprumou-se de subito, sacudiu a
roupa. Foi direito á sua maleta, desafivelou-a e tirou de dentro... a
guitarra. Começou a tangel-a febrilmente. A gente da pousada
entreolhava-se com pasmo. E cada vez as notas se precipitavam com maior
rapidez, até que, inesperadamente, a musica foi afrouxando, parecendo
unicamente suspirar. Viram chorar o desconhecido, circumvagar um olhar
alheiado, e arrancar da sua guitarra apenas gemidos e suspiros dolorosos.

Tornaram a dizer-lhe que era melhor descançar. Recusou com pertinacia.

--Peço que me deixem ficar aqui, disse elle pausadamente para que o
comprehendessem.

Não queriam consentir; elle insistiu.

Ouviram ainda por algum tempo suspirar a guitarra, que depois se calou.
Foram espreital-o: viram-n'o com a cabeça poisada sobre ella. Estava
assim, mas não dormia; d'instante a instante viam-n'o estremecer. Ao
romper da manhã saíu. Mal se podia aguentar a pé. Pediram-lhe que
ficasse para se restabelecer; agradeceu e partiu. Continuou, posto que
debilitado, a sua peregrinação indefessa.

--Eu já não viveria, dizia elle ás vezes, se não tivesse ido ao
cemiterio de Cedofeita buscar esta sombra de fé que me ampara ainda!

E lá ia, descançando uma hora, caminhando duas.

Esteve em Turim. Perguntou, investigou, não soube nada. Como para crear
alento, que lhe permittisse seguir jornada, sentava-se nas praças
publicas a tocar na sua guitarra. O povo fazia-lhe circulo. Elle não
levantava os olhos emquanto estava tocando, excepto se ouvia falar
alguma criança. Algumas vezes lhe chamavam louco, porque lhe lançavam
dinheiro ao regaço, e elle não agradecia. Era o idiotismo da desgraça.
Estava pobre, gastára quanto levára comsigo nos primeiros tempos da
peregrinação. Se não fosse a guitarra, morreria de fome. Pouco lhe
importava a vida sem Rosina e seu filho. Se não se matava, era porque
tinha ainda um resto de fé que o amparava.

Foi a Milão. A mesma canceira: perguntar, sempre perguntar. Inquiria
todos os harpistas: nenhum lhe soube dar noticias do velho Pietro.

--Em Italia não estão! dizia elle. Tenho a certeza, não ha recanto que
eu não tenha batido.

Atravessou a Suissa sem melhor resultado.

Uma noite sonhou com as Ardennas: era a patria de Rosina. Lembrou-se de
que viveriam lá na supposição de que elle, se fosse vivo, logo atinaria,
por impulso do coração, com o esconderijo que haviam procurado. Passou a
França: foi direito ás Ardennas. Quasi se sentiu morrer diante d'aquelle
paiz de florestas. Ali havia nascido Rosina. Como ella o devia amar para
se esquecer do seu formoso ninho! Consultou todas as arvores, bateu a
todas as portas. De Rosina Regnau ninguem se lembrava; Pietro, o velho
_sonatóre_, ninguem o vira. Graça Strech esteve ali muito tempo: havia
já tanto que saíra de Portugal! Teve tentaçoes de se deixar morrer nas
Ardennas. Queria respirar ao morrer o ar que Rosina respirára ao nascer.
Chegou a pedir a Deus que lhe désse por tumulo o berço d'ella. Mas,
emquanto orava parecia fortalecer-se a sua fé.

Resignou-se a partir. Recomeçou a caminhar. Ia no fim o anno de 1816.
Disseram-lhe no caminho que no inverno se reuniam em Pariz todos os
musicos ambulantes. Para lá foi com a sua guitarra. Effectivamente o
enxame dos _virtuosi_ enchia os cafés, as praças e as ruas. Á porta dos
theatros havia todas as noites uma nuvem d'elles.

A este tempo reinava em França Luiz XVIII. Napoleão, não podendo
resistir á colligação das potencias alliadas, abdicou o imperio em
Fontainebleau, retirando á ilha d'Elba.

O congresso de Vienna havia regulado os negocios da Europa; sem embargo,
Napoleão sonhava ainda com voltar a França. Em março de 1815 desembarcou
em Cannes e entrou em Pariz. Pôde ainda vencer em Charleroy e Fleurus,
mas a hora solemne de Waterloo bateu no relogio que marca a existencia
de vencedores e vencidos, e Themistocles teve de pedir hospitalidade a
Artaxerxes.

Graça Strech ia caminhando e ouvindo as vozes do povo. Quando soube do
resultado de Waterloo, disse de si para si:

--A Providencia é justa. A minha familia não precisava da minha
vingança, porque a Providencia se encarregou de punir o assassinio de
todas as mulheres, de todos os velhos e de todas as crianças. Ora a
justiça da Providencia não deixará de me aclarar o mysterio que eu
procuro desvendar ha tanto tempo. Deus sabe se tenho forças para mais!

Pouco antes de chegar a Pariz viu passar uma carruagem seguida por uma
ordenança.

Perguntou quem era. Responderam-lhe:

--É o duque de Richelieu, ministro de Luiz XVIII.

Elle contestou serenamente:

--Se fosse no tempo de Napoleão, ia um esquadrão de cavallaria atraz da
carruagem. Napoleão mandava exercitos atraz de toda a gente.

Dizia isto como um homem que se entre-lembra vagamente das coisas do
mundo. Passou a carruagem do duque de Richelieu, e elle logo se esqueceu
da França para se recordar da missão em que ia consumindo baldadamente a
vida.

--Vamos com Deus, e com a pobre guitarra! E seguiu para Pariz.

      *      *      *      *      *


XIX

A terra da promissão

Graça Strech chegou a Pariz no inverno de 1816.

Estavam n'essa occasião agglomeradas na capital da França as andorinhas
errantes da musica das ruas, que todos os annos saem do vasto ninho da
Italia, a percorrer a Europa inteira. De todos os _virtuosi_ que n'essa
occasião poisavam em Pariz, apenas cinco ou seis seriam francezes, e um
só era portuguez, Graça Strech.

A guitarra, melancolicamente tangida por elle, cuja dolorosa physionomia
não era menos melancolica do que a sua guitarra, despertava geral
attenção. Acrescia a circumstancia de que esse instrumento não era dos
mais conhecidos na orchestra dos musicos ambulantes. Tudo isso concorreu
para o éxito. Graça Strech tinha sombrios alheamentos emquanto estava
tocando. Caíam-lhe em desalinho os cabellos a esconder a fronte pallida
e cadaverica. Era uma bella cabeça d'artista em que muitos pintores
fizeram reparo. Um estudante d'esculptura chegou a convidal-o para
modelar-lhe o busto.

Graça Strech respondeu:

--Agradeço a sua amabilidade, senhor. Mas eu sinto-me de tal modo
cançado, que não póde ser longa a minha vida. O senhor é muito moço
ainda; póde esperar. Se eu morrer em Pariz, aproveite a minha mascara.

A imprevista sobranceria d'esta resposta causou sensação. Passou de
bocca em bocca, e os homens d'espirito começaram a olhar com certo
interesse respeitoso para o guitarrista estrangeiro. Uma noite, no café
_Evezard_, á esquina do Palais National, estavam sobremodo animadas as
mesas quando Graça Strech entrou. Encostou-se á ombreira da porta e
começou tangendo a guitarra. Como não pedia esmola, interrompia-se a
miudo para receber os óbolos que lhe davam os _habitués_ que entravam e
saíam.

Na primeira mesa á entrada estavam oito francezes, todos rapazes mais ou
menos artistas, que se calaram a ouvir attentamente o guitarrista, tanto
mais que já o conheciam de nome. Como fixassem a vista em Graça Strech,
e falassem visivelmente a seu respeito, procurou elle ouvir, dando-se o
maximo disfarce, tudo quanto diziam.

--É assombroso! exclamava um, cuja pallidez denunciava uma cabeça
febrilmente enthusiasta.

--Depois da pequena da harpa que esteve o anno passado em Pariz com o
velho das barbas brancas, ainda não vi maior prodigio! acrescentou um
cuja physionomia denunciava um caracter franco e compassivo.

--Que pequena era essa? perguntou no grupo um _commis-voyageur_.

--Era uma pequenita que parecia um passarinho encostado a uma harpa.
Acompanhava-a um velho de cabellos brancos, a quem chamava avô, e que
lhe transportava a harpa. Impressionava o contraste. Seria difficil
dizer qual d'elles poderia melhor com a harpa, se o avô ou a neta. Elle
tinha tanto de velho como ella de pequenina. E depois que tristeza dava
o vêl-a vestidinha de preto! Perguntava-se-lhe por quem andava de
luto:--Por meu pae e por minha mãe--respondia ella com certa vivacidade
triste, que enternecia a lagrimas. Tu copiaste o grupo, pois não
copiaste, ó Maubert?

--Copiei, respondeu o pallido rapaz que primeiro falava, e que parecia
absorto na contemplação do guitarrista.

--Sabes então mais alguma coisa a respeito da pequena e do velho?

--Pouco mais sei. O avô parecia empenhado em não contar nada. Nem o
encanto do mysterio lhes faltava, a elles, áquelle soberbo inverno
coberto de neves e áquella infantil primavera que parecia vegetar no
gelo do avô! Quando lhes perguntei os nomes para intitular os bustos,
respondeu-me o velho:--Queira pôr--_Pietro, sonatóre di arpa; Augusta,
sonatrice, lá piccola, nipotina mia._--Fiquei triste com a mysteriosa
singelesa da resposta. Previ um romance. Que querem? A doida da minha
phantasia! Apertei com o velho, fiz-lhe promessas para que me
contasse a sua. Não consegui nada. Lá partiram ambos para Inglaterra.

--Olha para o guitarrista! exclamou o de mais compassiva physionomia.

Olharam todos. Graça Strech estava sendo inconscientemente o alvo de
todas as attenções. Havia-lhe descaido o braço; subitamente a guitarra
emmudecera; os cabellos do guitarrista, longos e annelados,
acompanhavam, pendidos a um lado, a inclinação da fronte, e os olhos
brilhavam através dos cabellos com anciosa vivacidade. Era inutil
dissimular: Graça Strech estava ouvindo o que diziam na mesa proxima.

--Escuta o que nós dizemos! ponderou o que estivera contando a historia
do velho e da criança.

--É verdade!

--Não se póde duvidar!

--Lá começa a dedilhar de novo... Deu tino de que fisemos reparo. Toca
_pianissimo_ para ouvir o mais que dissermos.

--É certo! _Che dolcemente!_

--Que terá elle comnosco?

--Talvez não seja comnosco; talvez seja com o velho e a creança,
apostrophou o _habitué_-artista.

--Ora, essa cabeça! Tu encontras romances em toda a parte.

--Espera! tornou observando o esculptor. Ia jurar que os olhos d'este
homem são os da pequenita! Que semelhança!

--Oh! oh! continua o romance! Esse molde de novellas é velho, Maubert!
D'esta vez o pae, que era julgado morto, não volta da Terra Santa. Corre
atraz da filha, que ao partir para o combate entregára ao avô. Tem-n'a
procurado e não sabe onde pára. És tu, Maubert, que vaes desfazer o
mysterio. A Providencia encarregou-te de dizeres: _Pára!_ ao Ashaverus
do nosso seculo! Oh! oh!

E os outros gargalharam em côro:

--Oh! oh!

--És tu que vaes mostrar ao Moyses da guitarra a Terra da Promissão!
disse um.

--Que elle nos está ouvindo é certo, porque todos repararam! exclamou o
de mais dôce semblante. E talvez seja algum desgraçado. Este mundo dos
_virtuosi_ das ruas tem tantos mysterios! Atravessam Paris no
inverno e a gente ouve-lhes a musica sem lhes vêr a alma. Alguns d'elles
parecem conversar com a harpa e com o violino: é porque teem que lhes
dizer. Decerto que não são alegrias. Póde ser alegre quem atravessa os
Alpes a pé, e dorme para ahi em qualquer canto, e vae correr a Europa
inteira unicamente fiado na agilidade dos seus dedos e na obediencia das
cordas? Creio que não. Parecem despreoccupados, parecem, porque emfim
elles teem das aves alguma coisa: as azas pelo menos. Rouba o filho a um
passarinho, que elle, com o coração despedaçado, tambem esvoaça em redor
do ninho vasio. Pensam vocês que nem ao menos lhes ha de doêr a
ausencia? _La rimembránza_, meus amigos, _la rimembránza_ chora muita
vez nas harpas d'elles. Oh! eu creio-o! E nós, apesar de nos deliciarem
os ouvidos, olhamol-os indifferentemente. No inverno dizemos: _Cá
estão!_ Quando chega a primavera exclamamos: _Lá fôram!_

--Tu pendes mais para o sentimentalismo, Guillibaud. Maubert prefere a
phantasia e o maravilhoso.

--Olha! lá está ouvindo o guitarrista outra vez!

--É notavel! Que curiosidade!

De repente interromperam-se os commentarios. Graça Strech aproximou-se
de Maubert pedindo-lhe o obsequio de lhe dispensar dois minutos
d'attenção em particular. Havia no seu olhar, nos gestos, na voz, tão
claros indicios de grande agitação, que Maubert immediatamente se
levantou. Os outros, enquanto os dois sahiam a porta do botequim,
ficáram dizendo:

--Este Maubert é um bibliotheca viva d'aventuras.

--Deixa lá, observára condoídamente Guillibaud. A julgar pelo aspecto do
guitarrista, o caso afigura-se-me grave d'esta vez. Talvez seja um
romance triste...

--Se tu não havias de vir com o teu sentimentalismo!

--És melancholico como uma lagrima!

--Que não seja de vinho...

--Tens razão: as lagrimas de vinho alegram.

--São ellas de certo que vos dão essa continada alegria! disse com
enfado Guillibaud.

O leitor está porém impaciente de seguir Graça Strech e Maubert.
Vamos-lhes pois na piugada.

Mal sahiram a porta, o guitarrista dirigiu-se immediatamente ao
esculptor em correcto francez:

--Peço-lhe vivamente perdão, senhor, de o haver privado da companhia dos
seus amigos, mas o que o senhor estava dizendo era tão extraordinario
para mim...

--Ouvia-nos então? perguntou Maubert.

--Ouvi tudo, e incommodei-o unicamente para lhe pedir, não que me mostre
a Terra da Promissão, como jovialmente disseram os seus amigos, mas,
quasi o mesmo para mim, que me mostre os bustos do avô e da neta...

--Oh! isso é muito facil. Estamos a dois passos do meu _atelier_. Vamos
lá--respondeu o enthusiasta Maubert.

Foram. Graça Strech ia concentrado, e cada vez estugava mais o passo;
Maubert observava-o de esguelha e começava a achar summamente
extraordinario aquelle homem, de quem se principiava a falar.

Era perto o _atelier_. Entraram. Graça Strech precedia Maubert, tamanha
era a sua impaciencia.

--Aqui estão! disse o esculptor.

Graça Strech, relanceando aos dois bustos um olhar rapido e incisivo,
vibrou um grito, ao mesmo tempo doloroso e alegre, e, apontando para o
do velho, exclamou:

--É elle, é Pietro!

Depois, demorando os olhos no busto da pequenita, deixou escapar outro
grito que parecia o magoado estalar de todas as cordas da alma:

--É minha filha! Não póde deixar de ser! Ca está: _Augusta, sonatrice,
la piccola!_ Chama-se Augusta! Comprehendo tudo. Rosina morreu, sim, já
me não póde restar duvida alguma. É horrivel! Morreu! E pôde morrer sem
esperar por mim! Pobresinha! Poz á filha o nome de minha irmã. Era uma
surpreza que me queria fazer, e fez, realmente, mas que triste surpreza,
sr. Maubert, que desgraça esta! Olhe, aquella pequena é minha filha. O
senhor é artista... Veja que bonito perfil aquelle... Por isso foi que o
senhor a modelou, pois não foi? Sim, é muito bonita! Disse então que
andava vestidinha de preto? É pela mãe! Pobre Rosina! Oh! eu não
creio ainda que tu morresses, tu, que tinhas tanta coragem, tanta! Onde
está minha filha, senhor? Aquella não fala! Eu quero ver minha filha,
abraçal-a, beijal-a. Deixe-me beijal-a, sim, deixe-me enganar. Bem póde
ser que tambem a morte já m'a tenha levado, e por isso deixe saciar-se
de beijos este pobre coração ha tanto tempo opprimido. Olhe que gentil
cabeça! Que semelhança com minha irmã! É estar a vel-a, quando
brincavamos ambos e faziamos endoidecer o capelão das Chãs. Sim, o
senhor já me restituiu minha filha, mas Rosina, a minha vida, o meu
amor, que é d'ella, por que não a modelou o senhor para que eu a pudesse
beijar agora!

E, com o busto da pequenita apertado contra o coração, pareceu oscillar.

Maubert, que escutava commovido da enormidade d'aquella dôr, e perplexo,
porque não possuia todo o segredo d'esse homem, acudiu a amparal-o.

--Ah! não me roube a sua obra! exclamou Graça Strech apertando o busto
cada vez mais contra o coração, que pulsava vertiginosamente. Não m'a
roube. Dou-lhe tudo, a minha guitarra, a minha vida, mas não me arranque
a felicidade que me deu. Isto não é um pedaço de gesso inanimado, que o
senhor modelou. Não, isto é minha filha, a minha querida filha, a Terra
Prometida...

E, fazendo esforço para tirar a voz que lhe faltava, acrescentou:

--Disse o senhor que o avô e a neta foram para Inglaterra, pois não
disse? Bem, vou atras d'elles. Por França não tornaram a passar, ninguem
mais os viu? De Inglaterra só poderiam saír embarcados. Não é provavel.
Estamos no inverno. É a estação dos musicos. Hei de encontrál-os lá. Hei
de ver minha filha, beijal-a doidamente, percebe? doidamente, e
perguntar-lhe onde é a sepultura de sua mãe. Quero ir lá com ella, e com
Pietro. Parece-me que ainda posso dar vida a Rosina! Pois ella ha de
deixar-se ficar fria e calada, sabendo que eu estou ali, apenas separado
por uma camada de terra?! Está morta? Que me importa a mim! Isso não
póde ser obstaculo para o meu amor, para este longo amor de sete annos,
que não póde acabar assim, que deve durar mais do que a vida...

Maubert começava a receiar pelo guitarrista, que ficou sopitado em
demorada prostração. Piedosamente o soccorreu, e quando Graça Strech
tornou em si viu o esculptor curvado carinhosamente para elle.

--Muito obrigado! disse com voz flebil Strech. Muito obrigado! Ah! aqui
está o busto de minha filha!...

--Que é seu, observou Maubert.

--Sim, o senhor, que é bom, que é nobre, que tem coração e talento, não
podia negar esta felicidade a um pae!

--Agora, tornou Maubert, é partir para Londres. Para isso basta
atravessar o canal. Está prevenido? A minha bolsa d'artista tem ainda
para estas larguezas. Está á sua disposição o preciso para tão pequena
viagem.

--Muito obrigado, senhor, e acceito. Aqui está o que eu tenho de meu:
deu-m'o, como o senhor viu, quem entrava e sahia do _Evezard_. Eu não
pedia, porque não era mendigo: era simplesmente um pae que ha dois annos
procurava por toda a parte a sua familia. Conheciam a minha pobreza:
davam-me alguma coisa, eu acceitava, porque em verdade era pobre. Agora
não, agora não sou, porque finalmente achei o rasto de minha filha! Não
encontro Rosina, porque a sepultura m'a roubou, mas ainda me parece que
a hei de resuscitar, porque o meu amor, este amor que ainda me conserva
a vida, deve realisar todos os prodigios.

O mais que se passou entre o guitarrista e Maubert não nos importa saber.

Graça Strech embarcou ao outro dia para Londres. O que se passaria na
sua alma é facil de adivinhar: era o que ahi ha de mais pungente doer da
saudade á mistura com o mais avido phrenesi da anciedade; era o
supplicio atroz da alma que lucta com o irreparavel no ante-gosto d'uma
felicidade orvalhada de lagrimas.

É preciso que um coração esteja muito retemperado pelo soffrimento para
luctar, sem succumbir, com tão violentos contrastes, tão oppostos
extremos, tão desencadeadas tormentas. Elle resistiu, porque havia sete
annos que soffria o mais que podem soffrer homens.

Chegou a Londres.

Era, como sabemos, o inverno.

Fluctuava pelas ruas e pelos _cafés_ uma colonia de _virtuosi_. Gastou
um dia, gastou dois, sem encontrar quem procurava. Ao terceiro, viu
muita gente reunida n'uma praça. Estavam ouvindo uma harpa.

Logo um presentimento lhe alvoroçou o coração. Parou de subito, antes de
romper o circulo, porque uma dôr, cruciante como o queimar de um ferro
em braza, lhe atravessára o peito. Receiou morrer. Fez porém um esforço,
que devia tel-o prostrado a não ser ainda aquella a hora de avistar a
Terra da Promissão. Apartou febrilmente o grupo, relanceou por sobre as
cabeças um olhar d'aguia, e com um só grito fez emmudecer a harpa e
affastar a gente que rodeiava a harpista.

Um homem de meia edade, que não era decerto Pietro segurava a harpa,
tangida por uma pequenita vestidinha de preto.

Era o mesmo perfil do busto;--assim devera ser Augusta aos seis annos.
Faltava, para completar o grupo de Maubert, o original do outro busto:
faltava apenas Pietro.

Graça Strech arrebatou nos braços a criança. Beijou-a, abraçou-a,
acariciou-a delirantemente, soffregamente, doidamente.

E por entre beijos e abraços repetia, sorrindo e chorando:

--Sou teu pae! Eu sou teu pae! Acredita-me, Augusta; bem sei que te
chamas Augusta.

A criança tremia-lhe nos braços como um passarinho que se sente
comprimido, e procurava furtar as faces aos beijos ardentes do
desconhecido.

--Pietro, filha, onde está Pietro?

A pequenita, ouvindo pronunciar este nome, olhou attenta no guitarrista,
e respondeu com os olhos subitamente marejados de lagrimas, dando uma
suave expressão de magua ao dialecto napolitano;

--Morreu! Elle morreu. Tu é que talvez sejas meu pae, porque dizia o avô...

--Que dizia o avô, filha? perguntou anciosamente Graça Strech.

--Que meu pae tinha dado a minha mãe, _mia madre poverella_, um presente
para mim, e que se elle não tivesse morrido, como nós julgavamos, tu me
conhecerias por esse presente. Se sabes o que é, então és meu
pae; dá-me muitos beijos que eu consinto.

É o annel, filha! Ah! é o annel que eu dei a tua mãe.

Isso mesmo! disse a criança sorrindo d'alegria. Elle aqui está...

E tirou do seio uma saquinha, pendente do pescoço, onde guardava o annel.

Trago-o aqui. Sou ainda muito pequinina, _padre mio_, para o trazer no
dedo.

O povo, que tinha seguido todo este episodio, olhou-se admirado quando
viu a pequenita tirar do seio a saquinha, e mostrar o annel.

Era que para o publico, como para Rosina, aquelle annel tinha mysterio.

Graça Strech de novo colheu a filha nos braços, de novo a beijou com os
olhos razos de lagrimas, mas a pequenita, soltando-se com vivacidade,
disse para o homem que segurava a harpa:

Vamos lá, Giovanni, vamos com meu pae, que não morreu!

      *      *      *      *      *


XX

O manuscripto de Pietro

Pietro morrera um anno antes, em Londres, logo depois que de Pariz
passára a Inglaterra. Acamou, no miseravel albergue em que se hospedára
com a pequenita, victima d'uma febre aguda. Ás primeiras horas de leito
conhecera que era chegado o termo da sua vida. Antes que estivesse
impossibilitado de raciocinar e falar, mandou chamar Giovanni, um antigo
conhecido, em quem depositava confiança e, não sem difficuldade, porque
já a cabeça começava a pesar para a sepultura e o cerebro a
escurentar-se com as trevas da morte, lhe disse:

--Giovanni, tu és um homem de bem e, diga-se a verdade, inimigo de
trabalhar. Tens vivido sempre em companhia de musicos que te dão alguma
coisa porque tu lhes carregas com as harpas e os realejos. Ora, meu
amigo, é chegada a occasião de fazermos um negocio e, nota bem, o ultimo.

--Ora deixa-te de tolices!

--Não são tolices, Giovanni; bem vês que já me custa falar. Não posso
perder tempo. Portanto, ouve-me com attenção. A minha hora chegou e
pouco me importaria morrer se não tivesse uma neta...

--Uma neta! Tu! Só te conheci um filho, que morreu pequeno em Portugal.

--Isso é um segredo que te não deve importar. Essa criança que ahi está
fóra é mais minha neta do que se fosse filha de meu filho. Comprehendes
que morrendo tu, vae ella, coitadinha! ficar para ahi desamparada. Isso
é justamente o que eu não quero. Sabes que a pequena tem talento...

--Isso tem! respondeu Giovanni.

--Aprendeu tudo quanto eu lhe ensinei--acrescentou pausadamente
Pietro--e já sabe mais do que aprendeu. Deus nunca desampara os
desgraçados! O talento foi o patrimonio com que Deus dotou a
minha neta. Mas olha que é um capital cujo rendimento chegava bem para
nós dois! A pequenita bastava-lhe roçar com as azas pelas cordas: logo
sahia musica. Ora a nossa sociedade artistica vae dissolver-se. Da morte
não se appella. Um dos socios, o gerente, retira-se para a...
eternidade. Fica o outro, que por ser de menor edade não tem ainda
credito na praça. É preciso que tu, homem de bem, substituas o socio que
se retira, e entres apenas com a tua edade e com a tua experiencia. A
tua missão cifra-se em acompanhar a avesinha, e defendel-a das ciladas
do mundo. Nota, porém, que te corre obrigação de não traíres a confiança
que um amigo moribundo deposita em ti. Jura-me pela tua honra que serás
exacto como tens sido até hoje...

--Juro, disse com firmeza e commoção Giovanni.

--Muito bem. Logo que eu morra, olha tu pela pequena, que fica sendo
agora tua neta. Mas ouve ainda, Giovanni, mas ouve-me bem. Eu supponho e
e com boas razões, que o pae d'essa infeliz menina, morreu. Tudo me leva
a crêl-o. Se algum dia, porém, e Deus o permitta! o pae d'ella
apparecer, dize-lhe que te nomeie o objecto pelo qual elle ha de
reconhecer a filha: é um annel que ella traz n'uma saquinha ao pescoço.
De mim não quero que lhe digas nada, porque n'este papel, que lhe
entregarás, caso o pae da menina não tenha morrido, deixo explicado o
mais que tinha a dizer. Se elle não surgir do tumulo a reclamar a filha,
o que é provavel, entrega esse papel a Augusta, para que ella, em edade
de o entender, saiba com que amor eu a amei. Dá tempo ao tempo. Espera
que ella cresça e pense. Tens entendido, Giovanni? Agora dá-me a tua
mão. Palavra de homem de bem?

--Palavra e juramento, disse Giovanni com profunda commoção, e muitas
lagrimas.

E acrescentou:

--Vae descançado, Pietro. Tua neta, pois que assim lhe chamas, não ha de
soffrer mal algum. Eu tenho sido até hoje escravo da minha fidelidade.
Tenho andado pelo mundo atraz d'esses musicos, que afinal me não pagam.
Nasci preguiçoso, é verdade, Deus me perdôe, mas tu bem sabes que me não
pegou ainda ponta de vicio. Nem bebo nem jógo. Fumar, fumo eu,
mas isso é apenas um mau habito. Tendo pão e tabaco, estou contente.
Isso, é de sobra, dar-m'o-ha a harpa de tua neta. Agradeço a esmola, e
toda a vida serei agradecido a ti e a ella. O dinheiro que juntar eu
lh'o guardarei. Comprará uns vestidinhos, concertará a harpa, comprará
outra melhor...

--Isso não! isso nunca! interrompeu Pietro com febril exaltação. A minha
harpa nunca ella a deixará; já lh'o disse, e ella prometteu-m'o.

--Desculpa, Pietro, eu não pensei o que disse. Emfim comprará o que
quizer, porque todo o capital será d'ella; eu serei unicamente depositario.

--Bem! disse Pietro prostrado de commoção. Estamos tratados para a vida
e para a morte. Agora sae por algum tempo, e manda-me cá a pequena.

Saíu Giovanni e entrou Augusta.

O doente esteve olhando para ella mui attentamente, e exclamou:

--Que linda és!

A pequetita respondeu com beijos.

--Olha lá, Augusta,--tornou Pietro--não te esqueças da recommendação do
annel. Oh! que se tu encontrasses ainda teu pae! E d'ahi póde ser. Deus
é misericordioso. Se elle escapou á guerra, bem póde acontecer que ainda
algum dia o encontres. Deus o queira, Augusta, anjo, filha. És tão
pequenina, tão pequenina, que cada vez me pareces mais um passarinho!
Emfim eu não havia de ser eterno; muito me tem deixado Deus viver para
teu amparo. Que linda, filha, que linda! Olha... chama Giovanni, e vae
ali para fóra um momento... Tu és muito minha amiga, pois não és?... Vae
filha, vae, e chama Giovanni.

Saiu a pequenita a cumprir a ordem.

Giovanni abeirou-se do catre e recebeu da mão do doente os papeis em que
lhe falára.

--Não posso mais! disse Pietro. Pesa-me tanto a cabeça! Sabe Deus
com que difficuldade tenho feito tudo isto! E--acrescentou
placidamente--para o enterro já sabes que basta avisar o consul. Nós em
toda a parte somos italianos.

Giovanni tregeitou, e o doente deixou caír contra o travesseiro o craneo
que parecia de chumbo. Nos trez dias que se seguiram não mais tornou a
falar. Entrou em estado comatoso. Teve sempre os olhos fechados até que
a morte lh'os sellou para a eternidade.

O consulado italiano fez o enterro: só os summamente grandes e os
summamente pequenos são enterrados á custa das nações.

Quem soube, na colonia fluctuante dos musicos das ruas, que havia de
menos uma andorinha viajeira?

Os outros não souberam, porque, tendo por missão voar de terra em terra,
não lhes sobra tempo para se demorarem á beira d'um tumulo.

Soube-o o consul, e sentiam-n'o Augusta e Giovanni; ninguem mais.

A pequenita chorou muito, muito. Giovanni confortou-a como pôde. O sol,
que é a alegria de todos os passarinhos, fez o mais.

Começaram ambos a sua peregrinação.

A pequenita, pobresinha! só tocava n'esses dias de pungente saudade
musicas tão tristes como a alma d'ella. Ainda assim ouviam-n'a,
achavam-lhe graça, e davam-lhe dinheiro.

O publico, em geral, reputa felizes os que convidam á felicidade.

E, em geral, engana-se sempre.

Augusta sonhava quasi todas as noites com o avô. Pela manhã dizia a
Giovanni:

--Esta noite vi-o. Lá me tornou a repetir que não perdesse o annel.

Outras vezes:

--O avô, Giovanni, disse-me esta noite que te recommendasse que fosses
sempre muito meu amigo.

As recommendações de Pietro, que a pequenina ouvia em sonhos, não eram
precisas. Nem Augusta perdia o annel mysterioso, nem Giovanni se
esquecia das promessas que tinha feito.

Elle guardava a sua palavra; ella o seu annel.

E com esses dois thesouros se propunham correr mundo.

Giovanni pertencia ao numero dos homens-machinas que só obedecem ao
impulso do coração; ora o coração era bom, e as obras boas sahiam,
portanto.

Nascera, como o cão de quinta, para a ociosidade, mas, como o cão de
quinta, era fiel.

Durante o anno que acompanhou Augusta nunca deslisou um passo do caminho
do dever.

Ella ia adiante com o seu annel no seio; elle seguia-a com a
harpa ás costas, avisando-a sempre da aproximação dos trens e dos
cavalleiros.

Ao cabo d'um anno surgiu do tumulo Graça Strech, para nos servirmos da
phrase de Pietro. Feito o reconhecimento, Giovanni entregou-lhe a filha
e os papeis que recebera, e diziam assim:

MANUSCRIPTO DE PIETRO

Estas são as minhas memorias. Dito-as para serem lidas por Augusta ou
seu pae, se é que não morreu, para esclarecimento d'algum d'elles, ou de
ambos, se Deus o permittir.

Felizmente aprendi a escrever, e fui nos primeiros annos da minha vida
empregado n'um escriptorio. Depois morreu-me meu pae: faltou-me o leme.
Desnorteei. Troquei a penna pela harpa. Ha muitos annos que o meu
abecedario é o _do-ré-mi-fá-sol-lá-si_. Ainda assim, apesar do muito que
se soffre n'esta vida errante, agradeço a Deus o inspirar-me que fosse
musico, porque tive occasião de fazer bem.

Finou-se de saudades em viagem a _signora_ Rosina. Era um soffrer que
fazia horror! Não havia palavras que a consolassem, musica que pudesse
distraíl-a! Viajou chorando e suspirando; os olhos nunca ninguem lh'os
viu. Quasi não comeu. Acceitava, depois de muitas instancias, uma agua
de caldo apenas. Diziamos-lhe que era um crime deixar-se morrer; então
bebia. Chegámos a Napoles, e logo a _signora_ me pediu que tratasse de
arranjar albergue, porque se sentia muito doente. Em verdade estava
muito falta de forças. Quiz escrever para Portugal, e não pôde. Mal
pegava na penna descórava muito, e entrava de sentir-se agoniada. Eu,
vendo que semelhantes esforços a estavam debilitando cada vez mais,
pedia-lhe que deixasse isso para quando estivesse melhor. Comecei a
dizer-lhe que não tinha geito metter-se em casa. Depois de repetidas
instancias, annuiu em ir commigo ao anoitecer até á beira mar. Umas
vezes voltava melhor; outras vinha mais doente. No primeiro caso,
principiava a escrever. Escrevia algumas linhas, e já estava fatigada.
No segundo, passava a noite em convulsões, e era preciso não a
desamparar até pela manhã, que só então cahia em somno. Eu ia porém
instando sempre pelos passeios. Ah! mas ver a _signora_ um mez
depois que chegámos a Napoles! Que differença! Emagreceu, descórou,
fez-se velha. Não parecia a mesma! A primeira carta que recebemos de
Portugal causou-lhe tamanha impressão, que eu julguei que morresse. Tive
realmente medo. Chorou, riu, delirou. A carta não dizia porém que o
_signor_ Strech tivesse recebido as nossas. A _signora_ inquietou-se
muito com isto.

--Está lá sem saber nada de nós! disse-me ella. E a mim que me custa
tanto escrever!

--Escrevo eu.

--Nada, não quero, respondeu a _signora_. Hei de eu escrever sempre; bem
póde ser que alguma carta lhe chegue ás mãos...

--É que o exercito é muito grande, e depois anda d'um lado para outro...
disse eu prevenindo novas commoções.

Os soffrimentos da _signora_ havel-a-iam prostrado antes de ser mãe, se
não fosse essa carta que recebeu de Portugal. Beijava-a, relia-a,
apertava-a contra o coração; só n'aquillo achava allivio.

Desde principios de maio de 1810 que a hora da maternidade se annunciava
para breve. Quiz--porque ella tinha o presentimento da morte--escrever
uma longa carta, que devia ter chegado a Portugal em junho, e que com
certeza não foi recebida. Essa carta, cujo conteudo ignoro, era de certo
uma despedida, o ultimo adeus da _signora_. Deixou o papel ainda sobre a
mesa, e caíu contra o leito em grandes gritos. Acudi-lhe, e disse-lhe
que não a tornaria a deixar escrever mais.

--Não me é precisa a sua licença, meu bom Pietro! respondeu ella.

Eu estremeci.

Logo que serenou, fechei a carta, sem lhe poisar a vista, e fui eu mesmo
deital-a ao correio.

No dia 22 de maio, pela manhã, chamei a locandeira, que era piedosa,
porque a _signora_ me disse que n'esse dia seria mãe.

Soffreu doze horas. A final deu á luz uma menina. Quiz ver a filha;
mostrei-lh'a.

--Que se chame Argusta, Pietro, que se chame Augusta, recommendou a
_signora_.

Certifiquei-a de que esse seria o nome de sua filha.

Cobriu o rosto com o lençol, e começou a chorar e a gemer. Por mais que
lhe dissessemos, a locandeira e eu, que procurasse socegar, não o
conseguimos. De noite delirou. Falava do _signor_, Strech, d'Augusta, de
Coimbra, do mar, do annel. A febre era muita. Estáva córada como se as
faces fossem duas rosas: Eu tinha a menina nos braços; a locandeira
amparava a _signora_.

Pela manhã adormeceu. Acordou muito fria. Estava peior. Chamou-se o
doutor, que receitou, e disse que a _signora_ corria grande perigo.
Apesar dos remedios, não aqueceu em todo o dia. Ao fim da tarde, quando
eu estava acalentando a menina para adormecel-a, a _signora_ deu de
repente um grito, sentou-se na cama, disse que não via, tornou a dar
outro grito, e cahiu morta.

N'essa occasião chorava a criança como se adivinhasse que estava orphã.

Fiz um enterro decente á _signora_ Rosina, adquiri, com o auxilio do
consul, o direito de a sepultar n'uma campa perpetua e mandei-lhe pôr um
singelo epitaphio que diz: «Aqui jaz Rosina Regnau.»

Escrevi para Portugal a dar parte do triste acontecimento, que me custou
talvez mais--Deus me perdôe!--do que a morte de meu filho.

Não recebi resposta, nem tornei a receber mais cartas. Quiz partir para
Portugal. Informei-me. A guerra continuava cada vez mais renhida. Que
havia eu de ir fazer a Portugal com uma harpa ás costas e uma criança ao
collo? Demorei-me ainda um anno em Napoles para dar tempo a crear-se a
menina. Foi uma ama dos arrabaldes quem a amamentou.

Eu ia todos os dias vêl-a, e saber da ama se era preciso alguma coisa.
Durante esse tempo não recebi carta do _signor_ Strech. Não obstante,
continuei escrevendo sempre. Sabia-se que continuava a guerra. Não tinha
certeza de que as minhas cartas fossem entregues, e de que o _signor_
vivesse ainda. Maguava-me tão longo silencio, porque emfim eu cada vez
ia envelhecendo mais. Ao cabo d'um anno peguei na menina e na harpa e
comecei a minha peregrinação, porque estava exhausto de recursos. Em
Napoles ha sempre muitos musicos, e a concorrencia prejudicava-me.
Alguns eram velhos, e estavam tão pobres como eu. Além d'isso, fallecera
a dona do albergue, repentinamente, e quando eu sahia entravam os
crédores. Tive pena d'aquella boa mulher que tão caridosamente tratára
da _signora_ Rosina. Como ella sabia do nosso segredo, habituei-me a
consideral-a pessoa de familia. Nunca essa honrada creatura revelára a
ninguem as máguas da mãe d'Augusta. Eu tinha a certeza. O segredo descia
com ella á sepultura. Senti os olhos rasos de lagrimas quando a vi sahir
para o cemiterio e me encontrei com os crédores que entravam. Era
preciso ganhar vida, porque eramos duas pessoas a alimentar, melhor
direi pessoa e meia. Fui andando e tocando harpa. As noites, dormia-as
com a menina ao collo. Se eu era avô! Ás vezes apertava commigo a
tristeza. Lembro-me de que uma noite em Piombino, n'um albergue onde me
recolhi, me deixei entristecer tanto, contemplando a menina adormecida
nos meus braços, lembrando-me ao mesmo tempo da _signora_ e do _signor_,
ambos mortos para ella, que, francamente o confesso, n'essa noite
envelheci dez annos. Todavia, logo que nascia o sol, nascia com elle o
grande lenitivo dos desgraçados: o trabalho. Ia tocando na minha harpa,
e vivia. Uns davam-me esmola por me ouvirem; outros por me vêr com a
menina: muita vez o conheci.

Corri a Italia toda: vi bem a minha patria. Entretanto a menina ia
crescendo. Que espertesa que revelou desde os primeiros annos! O seu
gosto era estar a bulir nas cordas da harpa. E o caso é que ás vezes,
acaso ou não, combinava sons. Lembrei-me de que a menina podia aprender
musica. Seria o seu dote. Bem precisava ella d'algum. Tinha nascido tão
pobre, que me considerava seu avô, a mim, um musico ambulante! Com oito
mezes d'aprendizagem era um gosto ouvil-a! Parecia impossivel!
Dispensei-me de tocar, porque as mãosinhas da menina eram um prodigio!
Bastavam ellas para fazer a colheita que era sempre abundante. Comprei
roupa á menina; trazia-a uma princesasinha. Verdade é que sempre de
luto. Todo o meu fim era obrigal-a a perguntar-me porque vestia de
preto. Queria gravar-lhe bem na memoria os soffrimentos de seus paes,
que extraordinarios foram em verdade. E se fores tu, Augusta, que leias
este papel, e não teu pae, como muitas vezes acredito que serás, mais
uma vez te peço que conserves sempre viva em teu coração a memoria
d'esses dois grandes desgraçados, que mais o foram por tua causa.
Mas que talento o d'essa criança! Ainda outro dia, em Pariz, um rapaz
esculptor pediu o meu consentimento para nos modelar a ambos em gesso.
Não foi por minha causa, não. Eu não tenho orgulho senão de ser avô da
menina... Avô! Sim, pelo coração não posso deixar de o ser. O verdadeiro
avô não lhe quereria mais. Mas o tal esculptor encantou-se com a menina.
Quem se não ha de encantar? Modelou-a. Foi a primeira estatua levantada
em honra da pequenina harpista. A mim modelou-me de certo pelo
contraste. Deu-lhe graça vêr a cabeça d'um velho ao pé do rosto d'uma
criança. E que formoso rosto, _sangue di Christo_! Como eu gostei de ver
a menina assim retratada! Mal diria eu que um mez depois havia de soar a
hora de me separar d'ella. Não me custa deixar o mundo, onde se soffre
tanto; custa-me deixal-a a ella, porque a amo muito. Não quero, porém,
ser ingrato para com Deus. Grande mercê me fez em me não levar quando a
menina era mais pequenina. Egora sinto-me sem forças. Ha muitos dias que
estou doente. Não tenho querido acamar para não entristecer a menina.
Mas hoje, a tal ponto receio por mim, que vou mandar chamar o meu velho
conhecido Giovanni para lhe fazer as minhas ultimas disposições.

Dizem todas respeito á menina.

Giovanni ficará depositario d'ella, que é o meu thesouro. Giovanni é
preguiçoso, mas um verdadeiro homem de bem. Muitas vezes tive occasião
de o reconhecer. Eu não podia fazer melhor eleição. A minha harpa, que
lego á menina, ganhará para os dois, e Giovanni será incapaz de guardar
para si o que pertencer á menina.

Morro n'esta certeza. Giovanni é mais fiel do que um cão.

Estão, pois, saldadas as minhas contas com o mundo, com a _signora_ e o
_signor_. Fiz quanto pude, e me mandava o coração. Da justica de Deus
não me arreceio. Deus bem vê a minha alma.

Torno a repetir que escrevo este documento para que Augusta melhor
comprehenda um dia como eu a amei, ou para que seu pae, se Deus o
resuscitar, porque em verdade o supponho morto, veja que não trahi a
confiança que depositou n'um desconhecido. Se eu morresse em Napoles,
quereria ser enterrado ao pé da _signora_. Não fui o seu guarda
em vida? Continuaria a sel-o depois de morto. Como de certo morro aqui,
porque a minha doença é grave, apenas tenho a pedir que rezem um _Padre
Nosso_ pela minha alma, quando abrirem este documento, que fica em poder
de Giovanni.

_Fechado em Londres aos 25 de novembro de 1815:_

                                                                PIETRO.

      *      *      *      *      *


XXI

Epilogo

Estava escripto no livro dos destinos que não houvesse felicidade
completa para Graça Strech. Encontrava o coração da filha como
verdejante oasis no immenso deserto que a morte de Rosina lhe estendia
deante dos olhos. Era uma gota d'agua para matar uma sêde d'amor que o
requeimou durante sete annos; um só raio de sol que se coava á negridão
em que o destino o havia enclausurado; uma unica flôr a alegrar o
caminho interposto á velhice precoce e á valla que o esperava algures.

Entre lagrimas e sorrisos apertou contra o coração esphacelado o
corpinho flexivel da criança; tinha a filha nos braços e sentia nas mãos
a friagem da terra que cobria a campa da mãe; irradiava-lhe uma aurora
contra o rosto, e os clarões cambiantes espelhavam-se no pranto que lhe
sulcava as faces.

Devia remoçar, e sentia-se velho.

Parecia abrir-se-lhe a porta do paraizo e, em vez de transpôl-a, pedia á
criança que o acompanhasse ao cemiterio de Napoles, onde Rosina jazia.

Giovanni julgou importuna a sua presença, e balbuciou soluçando umas
palavras de despedida.

Graça Strech travou-lhe da mão e disse:

--Giovanni, tu eras o guarda de minha filha; sê agora o companheiro da
filha e do pae.

Giovanni correu a beijar a menina com lagrimas d'alegria nos olhos; era
quasi o cão a festejar o dono.

Partiram.

Ao passar em Pariz, Graça Strech foi com a criança procurar o esculptor
Maubert. Entrou no _atelier_ e disse ao artista:

--Aqui tem o original do seu busto, senhor: é minha filha. Falta o nobre
Pietro: roubou-o a morte. Eu não quiz atravessar a França sem lhe vir
agradecer o serviço que me prestou. Não encontraria minha filha,
se o senhor me não ensinasse o caminho. Que Deus lhe torne em alegrias o
que a mim me deu em consolação. O senhor receberá o premio da sua
benevolencia para commigo lá onde os bons e os desgraçados são
remunerados condignamente.

Seguiram para Italia. Graça Strech estava ancioso de chegar a Napoles,
onde se demoraram oito dias, visitando de manhã e de tarde o _Campo
Santo_. O que elle confidenciou junto á lousa de Rosina Regnau ninguem o
ouviu, nem é dado avental-o, porque ha dôres que só se comprehendem
quando se experimentam. Os labios do pae, ajoelhado á beira da campa,
ciciavam de todas as vezes palavras inintelligiveis; a filha, ajoelhada
ao pé do pae, tinha as mãos postas, e denotava doloroso recolhimento.
Não rezava, porque ninguem a tinha ensinado a rezar. A falta das mães é
tamanha que até Deus a sente! Giovanni completava o grupo, posto o
joelho em terra, e alternando olhares respeitosos entre o pae, a filha e
a campa.

Ao cabo d'oito dias a menina mostrava-se doente. Graça Strech tremeu da
tristeza da criança, e perguntou-lhe o que tinha.

--Faz-me medo estar no cemiterio! respondeu Augusta chorando.

--Tens razão, filha, disse Graça Strech. Mas o que havemos nós de fazer
agora no mundo todos trez?

--Eu toco a minha harpa, tornou com vivacidade a pequenita. O papá toque
a sua guitarra. Giovanni vae comnosco.

Graça Strech não teve animo de recusar.

--Voltemos então a França, alvitrou elle. Eu vi a sepultura de tua mãe;
quero agora vêr o seu berço. Iremos ás Ardennas.

--Mas as Ardennas não são tão tristes como o cemiterio, pois não?
perguntou ingenuamente Augusta.

--Não são, filha, não são. Para tua mãe eram o paraizo d'onde eu a
expulsei.

Foram musicando. Notavam-se entre todos os _virtuosi_, além da maguada
sympathia que filha e pae inspiravam, pela melancolia do seu repertorio.
A guitarra d'elle e a harpa d'ella falavam a linguagem da saudade. Se o
publico as ouvisse no _Campo Santo_ de Napoles, á beira d'um cómoro,
devia comprehendel-as. Estiveram nas Ardennas, onde os camponezes
sahiam em ranchos a ouvil-os. Alguns d'elles, vendo o guitarrista
esquecido a olhar para o cimo das montanhas, com o braço paralysado,
diziam entre si:

--Aquelle homem não tem a razão clara!

Passando-se depois a Pariz, encetaram o viver errante dos passaros.
Graça Strech tirava do amor com que idolatrava a filha as forças com que
vivia, e tinha desvairamentos nervosos se se demorava a contemplar-lhe
as faces pallidas, da meiga pallidez da irmã, e os olhos fundos e
brilhantes.

Quedava-se a olhar n'ella com a fronte banhada de suor frio.

--O papá gosta tanto de me vêr! exclamava a menina ao mesmo passo
carinhosa e amedrontada da sombria physionomia do pae.

--Gosto, filha. É que eu sou pae e desgraçado! Se tu morresses,
enlouquecia.

--Eu não morro. O papá não diga isso, que me faz medo. Deixe-se de estar
a pensar, papá! atalhava a menina. Ó Giovanni, traz a harpa; não estou
contente senão quando a tenho ao pé de mim! O papá não ralhe, porque eu
sou muito sua amiga tambem.

Decorreram os annos. O botão de rosa fez-se flôr. Flôr melancolica como
as que pendem aos sarcophagos.

Graça Strech procurava suavisar quanto lhe era possivel a sua continua
peregrinação. A menina, tomada de febril impaciencia, dizia ao pae que
havia de morrer no caminho tocando harpa. E acrescentava:

--Bem diz o papá: nós somos como os passaros. Elles tambem só parecem
alegres quando voam!

No inverno de 1824--tinha Augusta quatorze annos--começou a soffrer do
peito.

Estavam de novo em Londres.

Augusta queixava-se de dôres vagas; e tossia.

--Fujamos de Londres! disse Graça Strech fitando a filha com atormentado
semblante.

Em França os soffrimentos continuaram, se bem que a menina, para não
desalentar o pae, procurasse animar-se d'uma alegria que por bastante
transparente deixava entrever o disfarce.

Seguiram para Italia. Enflorava-se a formosa do Mediterraneo com as
galas da primavera de 1825.

Caminho de Florença nos ultimos dias de março, colhera-os ao entardecer
a tempestade no caminho. Tiveram de estugar o passo para recolher-se no
albergue de Pistoja. A menina chegou anciada, e afogueada das faces.
Deitou-se logo. O pae, atordoado como ebrio, não a desamparou em toda a
noite. Pela manhã, Giovanni foi poisar a harpa ao pé do catre. Augusta
reprehendeu-o. Disse que no dia seguinte tocaria. Veiu o outro dia,
vieram muitos, e a menina nem queria erguer-se nem ver a sua harpa.

--Então já não és como os passaros? perguntou o pae com voz que mal
podia romper através das lagrimas.

Augusta viu chorar o pae, e disse para Giovanni:

--Os passaros tambem cantam no ninho: vai buscar a harpa.

Tirou alguns sons, e não pôde continuar.

D'ahi a trez dias chamou de novo Giovanni e disse-lhe:

--Hoje estou boa; vae buscar a harpa.

O pae quiz illudir-se ainda: sorriu.

A menina vibrou as primeiras modulações e deixou pender os braços.

Acudiu o pae a chamal-a. Não respondeu. Giovanni agitou-a docemente e
conheceu que estava morta.

A avesinha não pôde completar o seu cantico de despedida.

Desde essa hora Graça Strech affigurava-se idiota. Unicamente pareceu
illuminar-se-lhe por instantes a razão quando disse a Giovanni:

--Meu bom amigo, meu fiel amigo, não tenho mais que te dar: péga n'essa
harpa e deixa-me viver em paz. Adeus, até á hora do resgate.

Giovanni quiz falar. Elle não consentiu; afastou-o com um gesto.

E deixou-se ficar dois dias com a cabeça apoiada nas mãos.

Levavam-lhe de comer: recusava.

O dono do albergue entrou a inquietar-se e acabou por ir a Florença
avisar o consul portuguez. Chamado Graça Strech ao consulado, muito
laconicamente respondeu ás perguntas que lhe fizeram. O consul reputou a
sua tristeza nostalgia, aggravada pela impossibilidade de se transportar
á patria. Deu-lhe um passaporte para Portugal. Graça Strech nem
agradeceu nem rejeitou. Ao outro dia foi o consul a bordo para o
recommendar ao capitão. Faltava Graça Strech. Mandou procural-o ao
albergue. Encontraram-n'o sentado com a cabeça firmada nas mãos.
Deixou-se conduzir ao navio. Subiu á coberta, e sentou-se n'um banco, na
mesma posição. O navio largou; elle não ergueu os olhos.

Passados mezes via-se nas ruas do Porto um estranho homem; andava
arrimado a um bordão, porque coxeava. Alguem, por caridade, o vestira:
trazia sobrecasaca abotoada e chapeu alto amolgado. Realçava sobre esta
pobreza a medalha de prata da guerra peninsular em competencia com um
annel de ouro que brilhava na mão esquerda. Como o vissem apanhar do
chão pontas de cigarros, e manipular um longo rolo de tabaco,
perguntavam-lhe por que não vendia o annel.

Respondia sempre:

--Porque este annel tem mysterio.

E, surdo a outras perguntas, começava tangendo maviosamente a guitarra
que trazia sobraçada. Se alguem lhe dava esmola, recebia-a; jámais a
implorou. Decorridos mais alguns mezes appareceu acompanhado por um cão,
e de tal modo se estimavam, cão e homem, que o cão parecia escutar
attento o guitarrista, e o guitarrista defendia energicamente o seu
companheiro quando era açulado pelo rapazio.

Onde encontrára o guitarrista o cão?

É que o primeiro tivera de pedir hospitalidade ao segundo.

N'um quintal da rua das Fontainhas, logo á entrada, descendo do Jardim
de S. Lazaro, ha ainda hoje um casebre, que n'esse tempo pertencia a
duas pobres mulheres, donas do cão. Ali piedosamente receberam o
guitarrista, que na primeira noite de hospedagem fôra mordido pelo
animal, que dava pelo nome de _Janota_, e se rebellara contra todos os
affagos do hospede. Indignou-se o guitarrista da feresa do seu
companheiro, e lembrou-se d'um facto semelhante que em Portugal
occorrera durante a primeira invasão franceza. Em Abrantes, em 1807, um
official portuguez poupou a vida de Junot; sem embargo, fôra, dias
depois, fuzilado, não sei a que pretexto, por ordem do mesmo Junot.

O guitarrista, applicando ao caso esta recordação da sua
mocidade, começou a dar ao cão o nome do general francez.

Ao cabo d'algum tempo de convivencia, o nome não tinha razão de ser,
porque homem e cão viviam em boa camaradagem; todavia subsistiu. As
proprias donas do casebre se habituaram a dizer _Junot_ em vez de
_Janota_. Em tamanha pobresa permaneceu o guitarrista até novembro de
1857, epoca em que o meu amigo, o sr. Antonio Martins Leorne, teve
casualmente occasião de falar-lhe.

Passava na Batalha quando o guitarrista, sentado nas escadas da egreja
de Santo Ildefonso, estava sendo chasqueado por trez estudantes do
seminario episcopal. Movido de indignação, subiu as escadas, e ameaçou
os seminaristas com denuncial-os ao prelado. Os rapazes debandaram
amedrontados, e o guitarrista levantou-se para agradecer ao sr. Leorne.
Pelas breves palavras que trocaram, conheceu este cavalheiro que estava
ali um lucido espirito e um nobre coração esmagados pela desgraça. Tanto
bastou para começar a protejel-o, até que no mez de novembro d'esse anno
conseguiu que fosse admittido no hospital dos Entrevados de Cima de
Villa. O guitarrista acceitou reconhecido. Mas, quando lhe foi imposta a
condição de usar o vestuario dos asylados, reagiu tenazmente. Só puderam
convencel-o a transigir repetidas instancias do sr. Leorne.

Durante a sua estada no hospital de Cima de Villa, grato á protecção
recebida, abriu-se em frequentes confidencias com o seu protector.
Algumas vezes lhe escreveu, assignando-se Graça Strech, se bem que os
registos de admissão e obito o nomeiem Conceição Graça.

Bem póde ser que o infeliz, talvez por melindre que nos não é dado
perscrutar, negasse ao escripturario o verdadeiro appellido de sua
familia, e facilmente se comprehende que o registo de obito foi modelado
pelo registo de entrada no hospital.

O leitor, antes de eu ter denunciado o nome do estranho guitarrista, já
o havia conhecido de certo, confrontando-o com a personagem que apparece
nas primeiras paginas d'este livro, e achando-os em tudo semelhantes.

Graça Strech falleceu no hospital dos Entrevados de Cima de Villa a 20
de maio de 1850. Antes de expirar, entregou ao seu protector, que
lhe assistiu aos ultimos momentos, a medalha da guerra peninsular, com
que fôra condecorado, e que o sr. Leorne ainda hoje possue[15].
O annel mysterioso, por expressa recommendação do moribundo,
desceu com o cadaver á sepultura. Outra piedosa pessoa, a quem o sr.
Leorne revelára as qualidades e soffrimentos de Graça Strech, se
encarregou de fazer-lhe os funeraes na capella do Prado do Repouso,
reservando para si a guitarra que elle por tão longos annos dedilhára.

Aqui podia terminar a biographia de José Maria da Graça Strech, mas,
para que fique mais completa, concluiremos copiando textualmenle as
unicas palavras que até hoje falavam d'elle:


_João José Duarte Machado, capellão director do cemiterio do Prado do
Repouso, n'esta cidade do Porto:_

«Certifico que no livro quarto do registo dos obitos e enterramentos dos
adultos, a folhas trezentas setenta e sete, verso, se acha o assento
seguinte:

«José Maria da Conceição Graça, filho de Francisco Pinto Graça, e de
Maria da Gloria, natural do Porto, edade sessenta e seis annos, estado
solteiro, profissão mendigo, morador que foi no Hospital de Cima de
Villa, dos Entrevados, falleceu de molestia não denominada pelas nove
horas da noute do dia vinte de maio de mil oitocentos cincoenta e nove;
depois de se lhe rezarem os responsos do costume foi sepultado pelas
oito horas da noute do dia vinte e um do dito mez n'este cemiterio
publico--Prado do Repouso--no canteiro numero tres, sepultura dois mil
trezentos e seis, de que se fez este termo que assigno com o reverendo
capellão. Eu Antonio José Antunes Barbosa, director, o subscrevi.
_Antonio José Antunes Barbosa_, director. _Francisco Alves da Soledade_,
capellão.

«Não contém mais o dito assento, ao qual me reporto. Porto e Cemiterio
do Prado do Repouso, nove de setembro de mil oitocentos setenta e tres.

                                        «JOÃO JOSÉ DUARTE MACHADO.»

                                            «Capellão director.»


FIM

    [15] Em 1873.




INDICE


Prologo da 3.ª edição                                     5
    I--O Desgraça                                         7
   II--Na quinta das Chãs                                10
  III--Pomba que presente sangue                         19
   IV--Horrores da invasão                               28
    V--O juramento da vingança                           38
   VI--A mariposa do acampamento                         47
  VII--No hospital de sangue                             55
 VIII--O anjo da liberdade                               63
   IX--Entre a vingança e o amor                         72
    X--A hora do resgate                                 82
   XI--O que a vivandeira pensava                        90
  XII--Amor e ciume                                     101
 XIII--Como acaba a tragedia de Goethe                  109
  XIV--Quanto custa ser mãe                             118
   XV--A queda do gigante                               127
  XVI--Uma festa no Porto ha cincoenta e nove annos     136
 XVII--Como madrugam as aves e os noivos!               146
XVIII--A lenda d'Ashaverus                              155
  XIX--A terra da promissão                             165
   XX--O manuscripto de Pietro                          174
  XXI--Epilogo                                          184






End of the Project Gutenberg EBook of O Annel Mysterioso, by Alberto Pimentel

*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O ANNEL MYSTERIOSO ***

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electronic work or group of works on different terms than are set
forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

1.F.1.  Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection.  Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
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property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
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Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
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LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
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in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
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provision of this agreement shall not void the remaining provisions.

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with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
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that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need, are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
http://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at http://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit http://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including checks, online payments and credit card donations.
To donate, please visit: http://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     http://www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
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