The Project Gutenberg eBook, Manhãs de Cascaes, by Alberto Pimentel This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: Manhãs de Cascaes Author: Alberto Pimentel Release Date: August 30, 2010 [eBook #33588] Language: Portuguese ***START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK MANHÃS DE CASCAES*** E-text prepared by Pedro Saborano Notas de transcrição: O texto aqui transcrito, é uma cópia integral do livro impresso em 1893. Foi mantida a grafia usada na edição original de 1893, tendo sido corrigidos apenas pequenos erros tipográficos que não alteram a leitura do texto, e que por isso não foram assinalados. No original havia uma errata. Nesta edição corrigimos os erros ali apresentados. ALBERTO PIMENTEL Manhãs de Cascaes Edictor Livraria Ferin Lisboa ALBERTO PIMENTEL Manhãs de Cascaes 1893 Livraria Ferin Lisboa I O primeiro mosquito Chegou o inimigo. Ouvi hontem o seu clarim vibrante resoar sobre a minha cabeça em som de guerra. Era a guarda avançada do grande exercito alado do verão, hunos do ar que invadem os nossos quartos de cama zombando perfidamente de todas as nossas precauções e dilacerando-nos a carne com o seu pequenino áspide, agudo como um punhal. --Ah! disse eu. É o primeiro mosquito que chega! E estremeci de horror. É que se ha animal n'este mundo que me incommode, que seja incompativel comigo, esse animal é o mosquito,--o pequeno mosquito, um dos mais sanguinarios inimigos da humanidade. Uma vez, em certa praia, um amigo meu mostrou-me o seu quarto, cujas paredes estavam revestidas de uma estranha pintura,--arabescos de sangue, o sangue da victima, o sangue d'elle, o desgraçado! --Entram os mosquitos, dizia-me o meu pobre amigo, e roubam-me o que eu tenho menos, roubam-me o sangue. Eu, não podendo repellir a aggressão, porque essa praga de mosquitos vem aos centos, adoptei a estrategia de os deixar cevarem-se á vontade. Engordam e agiboiam-se, ficam obesos e inertes. Então sôa a hora da minha vingança, pego n'um sapato e atiro-me a elles como S. Thiago aos mouros. Pá! pá! sapatada para a direita, sapatada para a esquerda, aqui se esborracha um, ali se estampa outro, a parede salpicada de sangue parece um crivo, um mappa, e é assim que eu, durante um mez, tenho conseguido ornamentar o meu quarto com esta estranha decoração, arabescos de sangue roubado ás minhas proprias veias. O que está ali na parede sou eu, depois de ter atravessado pelo interior de um mosquito. Centenas d'elles me teem sugado, com o meu sangue teem vitalisado os seus orgãos sonoros, porque cada mosquito traz ás costas uma fanfarra estrondosa, que nos ensurdece com o tinido dos seus metaes. Tenho n'aquella parede o meu sangue, e tenho no meu corpo a minha anemia: o traço de união entre aquillo, que é a parede, e isto, que sou eu, é o mosquito. Ha banhista que prefere dormir na praia, sobre um banco de pau, ou mesmo sobre a areia, a dormir em casa sob a tyrannia dos mosquitos. Um sujeito encontrei eu já, que, accordando de madrugada meio devorado pelos mosquitos, sahiu para o meio da rua,--com o resto do corpo que elles lhe tinham deixado de fartos. Logo que amanheceu e a primeira tenda da praia se abriu, elle correu a escrever sobre o balcão a seguinte carta ao senhorio, que era um dos pescadores mais ricos da terra: «Illmo. sr. José Peixeiro:--Sendo v. s.ª um dos homens mais considerados d'esta localidade, regedor de facto e barão em perspectiva, muito me admira que commettesse a burla de arrendar a sua casa a duas familias ao mesmo tempo. Quando me entregou a chave da porta, fez-me suppôr que não havia lá dentro mais inquilinos. Com effeito, assim me quiz parecer quando entrei, porque a unica pessoa, e essa inoffensiva, que encontrei, foi o cavalleiro D. Fuas Roupinho a pique de despenhar-se do rochedo da Nazareth. É realmente um quadro muito bonito, que, longe de me incommodar, me deleitaria. Aposentei a minha familia, a minha mulher e os meus filhos, e eu preferi para meu uso o quarto onde se acha o quadro do _Milagre da Nazareth_, porque sou amador, e falla-se mesmo em mim para inspector da Academia de Bellas Artes. Deitamo-nos. Eis senão quando, outra familia de inquilinos surge como por encantamento. Primeiro appareceu o pae, depois a mãe, depois os meninos, depois as meninas, depois os meninos dos meninos, depois as meninas das meninas, depois os bisnetos, depois os tresnetos, depois os tetranetos, uma alluvião de individuos, uma phalange, um exercito e, sem respeito nenhum pelo nosso somno, começaram a conversar em voz alta, o pae com a mãe, os manos com as manas, os tios com os sobrinhos, os primos com as primas. Calei-me a vêr no que aquillo parava. Mas não parou. Depois toda essa magna caterva teve vontade de ceiar, foi á dispensa, foi á cosinha, e como não encontrasse nada para comer, resolveu comer a minha familia inteira. Participo-lhe, pois, que estamos comidos,--duas vezes: pelo senhor e por elles, os outros inquilinos do meu predio. Resolvi portanto mudar de casa para um banco da praia, que está á sua disposição, se nos quizer dar a honra da sua visita. Quanto á sua casa, ahi lhe mando as chaves, para que o sr. vá lá dormir esta noite com a sua familia, a fim de verificar se as minhas informações são verdadeiras ou não.» O sr. José Peixeiro respondeu immediatamente: «Lá irei á noite vêr essa pouca vergonha, e se fôr como diz eu cá estou para obrar como regedor.» Então o pobre queixoso julgou dever prestar mais um esclarecimento importante á digna auctoridade parochial: «Illmo. sr. José Peixeiro.--Tenho por conveniente informal-o de que na minha carta anterior faltou um _note bene_, que vae agora. Os inquilinos a que me refiro são os mosquitos. Supponho que esta informação ha de aproveitar á sua perspicacia.» José Peixeiro deu-se pressa em enviar a seguinte replica: «A minha casa é a melhor da villa, e tem sido sempre habitada por pessoas de importancia. Eu, no resto do anno, vivo lá. E tanto eu como minha senhora temos gosado saude; a unica doença que a minha senhora lá tem tido foi um parto. Eu, nem isso; sou são como um pêro. Mosquitos e moscas em toda a parte os ha; a mim ainda me incommodam mais as moscas do que os mosquitos. O anno passado, o sr. visconde do Pecegueiro veiu a morrer para a minha casa, e foi-se embora tão bom, que até o meu compadre barbeiro, que tem pilheria, disse que elle ainda ia capaz de dar pecegos. Mas para não se incommodar com os mosquitos inventou o systema de dormir de caraça e de luvas. Faça o senhor outro tanto, e não dê importancia aos trombeteiros.» Ah! caro leitor, aviso-o para que se acautele, visto que já fui atacado pelo primeiro mosquito d'este verão: compre caraça e luvas como o visconde do Pecegueiro. Oh! o primeiro mosquito! Que horror! II A comedia das praias De manhã cedo, na praia, todos parecem ter ainda o olhar vidrado, estupido, de quem acaba de accordar. Olham uns para os outros com certa surpreza spasmodica, achando-se feios. Defeitos que durante o dia chegam a passar despercebidos, avultam: foi n'uma praia que eu descobri que certa dama, aliás formosa, tinha uma orelha maior que a outra... de manhã! Dar-se-ia o caso que, depois de feita a _toilette_, a orelha mais pequena crescesse ou a maior diminuisse? Certamente que não. Mas diante do espelho, com vagar, um geito dado ao cabello, artisticamente, encobria o defeito da orelha. O ferro de frisar salvava a situação: a madeixa, que elle fazia descer, salvava a orelha, que a natureza fizera subir. * * * * * Em questões de _toilette_, o meio termo não é admissivel: ou tudo ou nada. Ou a _toilette_ esplendida ou... a estatua. Eva, depois do peccado original, faz-nos rir vestida de folhas de figueira. Ora o fato de banho é o meio termo: a folha de figueira. Para vestir... é pouco; para despir... é muito. Ha porém uma coisa peior do que vestir um fato de banho: é querer sophismal-o. Certas damas, quando chegam á praia, conseguem dar na vista pela perfeição plastica das suas curvas. Ao entrar na agua, vestidas para o banho, perdem as curvas. Não perderam; deixaram-n'as na barraca. Este sophisma deploravel revela a carencia de um bom argumento. Argumento ou augmento. O eufemismo é o mesmo. Mas só a praia consegue revelar um segredo, de que, quando muito, apenas se suspeitava... * * * * * Andam pessoas a enganar-nos durante onze mezes em cada anno. Suppomol-as polidas, eruditas, francas, estimaveis. Em Lisboa, quando as encontravamos na rua, trocavam comnosco um _shake-hand_, tinham um dito amavel ou sentencioso, pareciam-nos cordealmente expansivas. Nas praias, á sombra de um _chalet_ ou de uma arvore, durante duas horas de conversação, desmascaram-se. Dia a dia, podemos fazer o inventario das suas idéas, dos seus sentimentos, das suas opiniões. E, ao cabo de um mez de estação balnear, averiguamos que: Fulano, que vae á missa em Lisboa, não crê em Deus. Sicrano, que tinha fóros de erudito, apenas lê a _Revista dos dois mundos_. Beltrano, que parecia fallar-nos com o coração nas mãos, não fazia outra coisa senão metter-nos os pés nas algibeiras. * * * * * Em Lisboa, accusa-se o Gremio e a Havaneza de terem má lingua. Pobre Havaneza! pobre Gremio! pagam as favas injustamente. A maledicencia habitual d'esses dois pontos, de reunião tem apenas um caracter pessoal. Eu explico. Ordinariamente, falla-se só do sujeito que passou ou do sujeito que saiu. A maledicencia das praias estende-se á geração, chega ao pae, passa ao avô, alcança ás vezes o bisavó. É retrospectiva. Por exemplo: --Quem é aquelle sujeito que vem acolá? --Pois não conhece! É fulano. --Não conheço. --Ha de lembrar-se com certeza do caso da herança do Gutierres. Foi muito fallado. --Lembro-me, sim. --Pois este é que falsificou o testamento. --Este! E anda vestido de branco,--como as virgens! --É de familia... --O fato branco? --Não. A alma negra. O pae foi negreiro. --Já vem mais de traz, isso. --Por quê? --O avô enriqueceu no tempo dos francezes, dando assalto ás casas dos visinhos que tinham fugido. O sujeito aproxima-se, dois ou tres levantam-se para abraçal-o; mas a esse tempo, que foi pouco, já lhe está desenterrada a familia até ao avô. O vagar faz colhéres, diz o povo. Nas praias, o vagar faz exhumações tremendas. Não ha bisavô que esteja seguro na sepultura. * * * * * Na comedia das praias, as moscas teem um papel importante. Em Lisboa, para se dar importancia a uma mosca, é preciso que ella haja sido audaciosa até o ponto de escolher para suicidar-se o nosso prato de sopa. De resto, em Lisboa, as moscas morrem, mas, nas praias, as moscas matam. Teem dentes; são carnivoras. Mordem, perseguem, endoidecem a gente. Desforram-se da ociosidade de um anno inteiro, esperam famintas pelos banhistas, e, depois de os morder, zumbem e zombam, parecem rir de troça umas com as outras. Só nas praias é que o europeu consegue ser victima das moscas. E fallarmos nós com horror das moscas de Africa! As moscas saloias são muito peiores! * * * * * Em Lisboa, os criados passam ás vezes um anno inteiro sem partir loiça. Mas, chegando ás praias, os seus dedos parecem debeis como vimes. Quebram hoje um copo, ámanhã um prato, escacam, em quinze dias, metade da loiça do senhorio. Encontrei uma vez, n'uma praia, certa dama, que andava afflictissima de loja em loja, procurando alguma coisa, que lhe dava grande cuidado. --Imagine, disse-me ella, que o meu criado quebrou hontem uma chavena! --É vulgar. --Quebrar é vulgar; mas a chavena é que o não era. --Como assim?! --Quando eu vim, a senhoria disse-me: «Peço a v. ex.ª todo o cuidado com esta chavena, que era a chavena do papá.» --Como o sabre da _Grã-duqueza_! --Isso. Ninguem se servia d'aquella chavena gloriosa, nenhum de nós tinha ousado mandal-a tirar do guarda-loiça. Mas o meu criado ousou limpal-a hoje, e quebrou-a. Aqui ando eu agora afflicta á procura de uma chavena, que possa continuar a ser, na tradição da casa, a _chavena do papá_! * * * * * Nada ha que me dê tanto a impressão do communismo como um club de praia. É de todos, sem pertencer a ninguem. Cada um que vem chegando pensa que o club é seu. A primeira cousa de que se apossa é... o piano. O piano passa a ser, não um instrumento de musica, mas um escravo. Submisso, paciente, resignado, obedece como um negro, cujos dentes são muito brancos... Açoutam-n'o com as mãos, e não protesta; dão-lhe pontapés no pedal, e não se desconjunta. Familias inteiras vão affirmar no teclado os seus direitos de socio. A mãe toca a _Norma_, que é uma opera do seu tempo, a filha perpetra a _Carmen_; o filho executa os _Fados_--com a mão direita. O pae agarra-se aos jornaes e parece resolvido a não deixal-os lêr por mais ninguem. As primeiras senhoras que á noite chegam ao club parecem tomar gosto á grandeza da sala... O seu desejo seria talvez que as outras, mais retardatarias, ficassem á porta a contemplal-as... de longe. Mas, como isso não acontece, as que já estão de posse da sala, preparam-se para o ataque, assestam as suas baterias. É o _lorgnon_... É o sorriso sardonico... É o ditinho picante... Tudo isto entra em fogo ao mesmo tempo. Depois, as que acabam de chegar, fazem causa commum com as que já tinham chegado e, preparadas para o combate, ficam á espera das que hão de chegar ainda... * * * * * Ha sempre nas praias uma menina que recita. De pé, quasi sempre vestida de branco, recita versos azues. Quero dizer, versos ethereamente romanticos. Em quanto ella recita, a mãe põe os olhos no chão. As outras senhoras põem o leque diante da cara. Algumas vezes, a menina engana-se, falta-lhe a memoria. Nem para traz nem para deante. Então lança mão de um recurso supremo: desmaia. --Um medico! Não está ahi um medico? N'uma praia estão sempre quatro medicos, pelo menos. Vem um. --Isto não é nada, passa já. Mas o irmão mais novo da menina desmaiada foi, a correr, buscar a casa o _Almanach das Senhoras_. E, reanimada por este auxilio, a menina continua a recitação, ficando o irmão mais novo mettido atraz do piano,--servindo de ponto á mana. * * * * * Tambem ha sempre uma menina que tem album. Pede, a torto e a direito, uns versos, um desenho, uma melodia. Póde imaginar-se o valor do album dizendo que são os poetas que desenham, são os pintores que fazem versos, são os que sabem fazer desenhos ou versos que escrevem a melodia. Em conclusão: ninguem quer perder n'um album o melhor do seu talento... III N'uma praia solitaria Um amigo meu, que se acha n'uma praia do norte do paiz, certamente das menos conhecidas e frequentadas, acaba de descrever-me n'uma carta a maneira como alli tem vivido desde os ultimos dias de julho. Quando chegou, apenas encontrou já installado um outro banhista, que desde logo se constituiu seu companheiro inseparavel, comquanto então se vissem pela primeira vez. O meu amigo é de Lisboa, o outro reside actualmente no Alto Minho. Foi o acaso que os reuniu pela identidade de destinos, como dois náufragos desconhecidos que se encontrassem agarrados á mesma tabua de salvação ou perdidos na mesma ilha deserta. Começaram por tirar cerimoniosamente o chapeu um ao outro, mas ao cabo de duas horas de convivencia tratavam-se por tu,--intimamente. A ilha deserta em que se encontraram era a unica loja importante da praia,--uma loja onde se vende tudo o que uma pessoa póde desejar em qualquer momento. Supponhamos que um Lucullo extraviado chegava alli e pedia champagne. Encostando-se ao balcão, perguntaria: --Tem champagne? --Tenho, sim, senhor. E abrindo um armario mysterioso, cheio de retortas, alambiques, garrafas e garrafões, o dono do estabelecimento demorar-se-ia um instante operando chimicamente. Passada meia hora, quando muito, apresentaria uma garrafa de champagne, feito talvez de petroleo, talvez de azeite, talvez de vinagre: composição sua. O freguez poderia extranhar que a garrafa não tivesse capsula de chumbo, mas apenas uma velha rolha porosa. O dono do estabelecimento responder-lhe-ia imperturbavelmente: --É verdade isso, mas eu preoccupo-me mais com a qualidade dos meus vinhos do que com a apparencia das garrafas. Lucullo, sentado á sua mesa de familia, provaria o champagne, e ficaria por ahi, a não ser que quizesse envenenar-se. Mas, para não ser o unico a cahir no logro, calar-se-ia e, para rir um pouco, aconselharia a toda a gente que fosse comprar o bello champagne da loja do _Elephante azul_. Ora é justamente o discreto silencio dos freguezes, que querem ter companheiros na desgraça (_solatium est miseris_, etc.), que explica a grande clientella que tem, principalmente na epocha de banhos, a loja do _Elephante azul_. Foi, pois, n'essa ilha deserta, deserta antes do mez de setembro, o melhor n'aquella remota praia, que os dois solitarios banhistas se encontraram, e principiaram a tratar-se por tu, duas horas depois de se terem visto pela primeira vez. --Mas então, perguntava o meu amigo, não costuma vir mais gente para aqui? --Sim, senhor, respondia o dono do _Elephante azul_, no mez de setembro é tanta a concorrencia, que eu costumo vender todo o champagne, toda a cerveja, toda a genebra que fabrico. E o outro, que já lá estava a banhos, observava: --Em setembro, será assim. Mas desde o dia 20 de julho, em que cheguei, até hoje, apenas eu só tenho tido a honra de despertar as attenções dos pescadores. No primeiro dia olharam para mim com surpreza, e nos dias seguintes com espanto. --Como assim?! --Espanto de que eu, encontrando-me sosinho, continuasse a ficar... --Mas agora somos já dois! --Agora seremos um, _in carne una_, porque eu já te não largo, amigo da minha alma! até que em setembro chegue mais gente. Tu foste a minha tabua de salvação, ó inesperado e dilecto amigo! --O que direi eu então de ti, que me proporcionaste occasião de ter com quem fallar da crise monetaria e do caso das Trinas! Feliz de mim, que te encontrei, e de ti que me encontraste! Gloria a Deus nas alturas, e paz na terra... a dois homens! --Imagina, porém, que, por nos exaltarmos em qualquer discussão, tinhamos de ficar de mal um com o outro? --Era o mesmo que romper com toda a humanidade! --Mas o que farias tu? --Eu?! Eu ficaria de bem comtigo até que, chegando setembro, podesse encontrar dois padrinhos para te mandar desafiar... Começou agosto, e por mais que os dois amigos espreitassem para dentro de todas as diligencias que se fazem annunciar ao som de estridulas campainhas, não viam chegar ninguem. --Então para que servem as diligencias? perguntava um. --Servem para alimentar a tradição de viajar, respondia o outro. O dono do _Elephante azul_ dizia do lado: --Em setembro vêem cheias de gente. Ás vezes trazem dezeseis pessoas em oito logares. --Mas não seria melhor que essas pessoas viessem a pouco e pouco, cada uma em seu logar? --Não, senhor. Porque então, replicava o dono do _Elephante azul_, por muita gente que viesse, não se sentiria tanto. Os dois amigos tinham já esgotado todo o reportorio das suas opiniões. --O que pensas tu, caro amigo, a respeito do caso das Trinas? --Já to disse hontem. --E a respeito da crise monetaria? --Já t'o disse ante hontem. --É verdade! Por signal que te repetiste. Tambem já m'o tinhas dito no dia em que eu cheguei... O que mais os aborrecia era não poderem encontrar um terceiro parceiro para o voltarete. Haviam já perguntado ao dono do _Elephante azul_: --Sabe o voltarete? --Não, sr. Sei fazer champagne, sei fazer cognac, sei fabricar cerveja, só não sei jogar o voltarete! --Porque não trata de o aprender? --Não vale a pena: não é coisa que se venda. No dia 8 de agosto, por volta do meio dia, qual não foi a surpreza dos dois amigos quando, encostados á porta de _Elephante azul_, viram chegar uma carruagem com um passageiro dentro. --Eureka! gritou um. --Apaga a lanterna de Diogenes! exclamou o outro. O passageiro apeiou-se do trem e, sem entrar na loja do _Elephante azul_, seguiu para o interior da villa. --Vae installar-se, disse um. --Vae, e não tarda ahi, á procura dos unicos dois homens que n'este momento lhe podem ser agradaveis. O dono do _Elephante azul_, tendo vindo á porta examinar o recem-chegado, observou: --Não é cara conhecida. Nunca veiu cá. --Podera! Se já conhecesse a praia, não vinha senão em setembro. Ficaram os dois conversando, mas o homem não appareceu. --Onde se metteria elle? --Naturalmente, disse o dono do _Elephante azul_, anda procurando casa. --Se fosse só isso, já a teria encontrado. É mais provavel que ande procurando gente... Cerca das trez horas da tarde, tornou a apparecer a carruagem, mas vasia. O caso ia tendo as proporções de um mysterio. --O homem suicidou-se! --Qual! Anda perdido nas ruas, e não encontra ninguem para lhe ensinar o caminho. Finalmente, o homem appareceu. Entrou no _Elephante azul_ para comprar cigarros. Os dois banhistas crivaram-n'o logo de perguntas. --V. ex.ª vem para cá? --Não, sr. Os dois olharam-se com dolorosa surpreza. --Então não vem para cá? insistiu não sei qual d'elles. --Vim justamente fazer o contrario. --Mas... não percebo! --Vim dizer que não vinha para cá. --Nem mesmo em setembro? --Nem mesmo... nunca. Tenho ahi um parente que me esperava, e vim dizer-lhe que não contasse commigo. --Mas isto é muito bonito... em setembro! --Será. Eu tenho informações que me levam a pensar o contrario. --Pois que! Nem sequer tenta fazer uma experiencia! --Não, sr. Um amigo meu veiu uma vez em agosto, e esperou até setembro que viesse gente. Mas em setembro achou-se ainda mais só, porque morreu de bexigas o unico banhista que lhe podia fazer companhia. --N'esse caso vae-se embora? --Vou já, respondeu o sujeito pagando os cigarros. Já elle ia a dirigir-se para o trem, quando um dos dois se lembrou de gritar: --Ó sr. Mendonça! O sujeito não fez caso. --Ó sr. Andrade! O sujeito dispunha-se a entrar no trem. --Ó sr. Mattos! O sujeito voltou-se rapidamente. --Ah! já sei que se chama Mattos!... tem a bondade de nos dar uma palavra? O sujeito, que já tinha um pé no estribo, veiu ao encontro dos dois. --Sabe o sr. Mattos, disse um, o que nós estamos resolvidos a fazer? O meu amigo olhava para o companheiro de desgraça sem poder adivinhar a sua intenção. --Não sei, mas v ex.^as terão a bondade de dizer. --Pois bem, sr. Mattos! Vae sabel-o E agarrou-o pelas lapellas do frak. --O sr. está preso. --Preso?! Porque?! Então o meu amigo sentiu-se illuminado. Adivinhou tudo. E deitando as mãos aos hombros do homem, gritou por sua vez: --Preso... sim, sr.! --Mas que crime fiz eu? --Não se trata de um crime, nem precisamente de uma prisão. --Mas, se não se trata de uma prisão, porque é que me prendem!? --Fica apenas detido. Segundo o codigo, é differente. --Sómente detido. O codigo estabelece a differença. --Preso ou detido! disse o homem. Mas porque? Para que? --Detido ou preso... Preso para banhista. --Mas eu não quero tomar banhos! --Pois não tome, mas fica preso para banhista. --Preso não, observou o meu amigo. É bom não confundir as palavras. O sr. Mattos fica apenas detido até setembro... emquanto não vem mais gente. --Mas que proveito tiram d'ahi os srs.?... perguntou o Mattos. --O proveito de sermos trez. --Trez para tudo: trez para o cavaco, trez para o voltarete, trez para o banho, trez para o _Elephante azul_. --Mas eu não sei o voltarete! --Pouco importa. O que se quer é que o jogue. --Para jogal-o é preciso aprendel-o. --Isso não é inteiramente verdade... Mas, dado o caso que seja verdade, até setembro tem o sr. Mattos muito tempo para aprender a jogar o voltarete. O meu amigo termina a carta dizendo: --«Cá temos o homem preso, e bem vigiado. Á noite fechamos-lhe a porta, e levamos a chave para casa. Uma noite, para lhe suavisarmos o captiveiro, resolvemos perder ao voltarete. E assim é que conseguimos ser trez! Mas, para vêr se vem mais gente, mandamos dizer nos jornaes do Porto que a praia está muito animada, e que em setembro serão poucas as casas para os banhistas que se esperam. Vê lá se dizes isso tambem nos jornaes de Lisboa...» IV Os frequentadores das praias Escolhamos alguns dos typos que avultam na galeria das praias, para fixarmos n'elles a nossa attenção por um momento. _O fallador_--É o discursador de cada praia, o homem que conta anecdotas e que sabe da vida alheia. Tem corda para toda a época balnear. Levanta-se pela manhã a fallar, vai conversar para a praia dos banhos logo que se levanta, e á noite é o ultimo a sair do club. --Meus amigos, diz elle, alli na Arruda aconteceu-me uma vez uma partida de estalo. Imaginem que um rapaz do meu tempo, vendo-me apeiar da diligencia, se lembrou de dizer aos da terra que eu era o homem mais rico de Portugal. D'alli a pouco choviam-me no _hotel_ memoriaes, requerimentos, bilhetes de visita. Um tal foi propôr-me um negocio que devia render cincoenta por cento. Outro queria vender-me uma quinta phylloxerada. E um pai de familia pretendia que eu lhe desposasse a filha... no caso de ser solteiro. Via-me embaraçado com tantos pedidos e propostas. De modo que tive de escrever para um meu amigo de Lisboa pedindo-lhe que me dissesse em telegramma; «Falliu Rio Janeiro casa Antunes & C.ª Paciencia e resignação.» Eu li este telegramma na botica da terra, onde me foi entregue, e exclamei fingindo desmaiar: «Estou arruinado!» Acreditaram. Nunca mais ninguem me procurou para saber a resposta que eu daria aos memoriaes e aos requerimentos. D'alli a instantes: --Em Maçãs de D. Maria tambem me aconteceu um caso muito ratão. Eu tinha ido lá para arrematar uma quinta, que devia ir á praça n'esse dia. Mas, por qualquer motivo, não se realisou a arrematação. Logo souberam, porém, ao que eu ia. Á noite, armaram um bailarico, e convidaram-me para assistir. Houve descantes em minha honra. Mas no dia seguinte, realisava-se a festa de um santo qualquer e vieram dizer-me que eu tinha de pagar a missa e o sermão, porque era costume da terra que toda a pessoa que alli fosse pela primeira vez, e recebesse a honra de um bailarico, fizesse á sua custa a festa d'aquelle santo. No club, á noite: --Uma vez, na Narazeth, lembramo-nos de ir todos para o club vestidos com o fato do banho. Imaginem que risota?! --Mas as senhoras? O que disseram as senhoras a isso? pergunta alguem, do lado. _O fallador_ não se atrapalha: --Ah! as senhoras não foram n'essa noite ao club... _O silencioso_--Ouve tudo calado, mascando no seu charuto. Não aventa uma ideia, não arrisca uma opinião. Não quer conhecer ninguem. Os outros banhistas que se riem do _fallador_, riem-se igualmente do _silencioso_. Ao cabo de vinte dias de praia, o _silencioso_ aventura-se a proferir uma palavra ou duas. Em vez de levar apenas a mão ao chapeu, rompe neste excesso de eloquencia: «Muito bons dias» ou «Muito boas noites». Cinco dias depois, já cumprimenta um ou outro pelo seu nome. E no fim do mez, quando parecia resolvido a fallar, vae-se embora! Uma vez, n'uma praia, appareceu um _silencioso_ d'estes. Havia um _fallador_, que embirrava muito com elle. Era natural. --Eu hei de obrigar a fallar este diabo... Fazia-lhe uma pergunta, e o homem contentava-se com encolher os hombros. --Não importa! Eu hei de obrigar a fallar este diabo... dizia o _fallador_ assim que o _silencioso_ voltava costas. --O cavalheiro toma banhos? O _silencioso_ meneiava affirmativamente ou negativamente a cabeça. Desesperado, o _fallador_, estando certo dia a contar uma das suas muitas historias, fingiu-se distraido, e pisou o outro. --Que bruto! exclamou o _silencioso_. --Mas... fallou! gritou cheio de jubilo o _fallador_. O _generoso_--Vá, rapazes, lembrem-se vocês d'alguma festa, e contem commigo. Póde-se tirar partido de tanta coisa! Querem um arraial? Eu dou o fogo de vistas. Querem uma regata? Eu dou os premios. Querem uma burricada? Eu dou os burros. --Não os ha, diz alguem, do lado. --Qual não ha! Tudo são difficuldades! Já não ha rapazes!... --O que não ha são burros. --Burros! ha sim, sr. Eu encarrego-me de os mandar vir pelo caminho de ferro ou, se tanto fôr preciso, pelo telegrapho. Onde ha dinheiro, ha tudo. O _sovina_--Andam ahi a fazer uma subscripção? Tem graça! Quem encommendou o sermão, que o pague. Eu nunca na minha vida dei dez réis para divertir os outros. Pelo contrario, o que eu quero é que os outros me divirtam a mim. Agora uma _soirée_! Não vou a parte nenhuma para tomar chá. Tomo-o em minha casa quando quero. De mais a mais uma _soirée_ com bolos saloios, que quebram os dentes á gente! E chá de herva cidreira ainda por cima! No chá não se admitte meio termo: ou bom ou nada. Eu não gosto senão do Hyson. E depois dá cá dez tostões! Ora que tal está a maroteira! Queriam dançar? Dançassem a sêcco. Quanto mais leve se está, melhor se dança! O _pai extremoso_--É a primeira vez que o cavalheiro vem a esta praia? --Sim, sr.; é a primeira vez. --Então hade conhecer poucas senhoras? --Muito poucas. --É uma contrariedade para quem gosta de dançar. O cavalheiro dança? --Gosto muito. --Pois bem, esta noite queira procurar-me no club, que eu o apresentarei a tres ou quatro senhoras. --Oh! mil vezes obrigado. --Se me não custa nada! Á noite, no club, o _pai extremoso_ procede ás promettidas apresentações. --Tenho a honra de apresentar ao cavalheiro minha filha Engracia. E passando em claro apenas uma cadeira: --Tenho a honra de apresentar ao cavalheiro minha filha Cecilia. E duas cadeiras mais adeante: --Tenho a honra de apresentar ao cavalheiro minha filha Conceição. Depois, filando o apresentado pela lapella do frack: --Agora já o cavalheiro tem muito com quem dançar. Para o caso, porém, de querer variar um pouco, apresento-lhe ainda a minha Mimi, que tem apenas nove annos, mas que gosta muito de dançar. Aprendeu com o Justino Soares, e elle disse-me quando viemos para cá: «Esta menina ha de vir a dançar ainda melhor que as irmãs!» O _pai indiferente_.--Passo. O filho mais novo, chegando-se ao pé da mesa do voltarete: --Manda dizer a mamã se faz favor de ir á sala para arranjar um par para a mana. Ella ainda não dançou. --Diz á mamã que vou já. D'ahi a pouco volta o pequeno: --Faz favor de lá ir, que se vai dançar uma quadrilha. --Peço licença. --Que diz o papá? --Que já lá vou. --Então eu espero pelo papá. --Isto não tem discussão possivel: cinco matadores. --Venha d'ahi, papá. --Dois de licença, cinco de matadores, dois de cinco primeiras: nove. --Olhe, papá, já começou a quadrilha! --Quando se dançar outra, vem chamar-me. O _commodista_--Meninas, olhem que já são dez horas. --Ámanhã é dia santo, papá. --Ó Jeremias! deixa dançar as pequenas mais um bocado... --Perde-se todo o effeito dos banhos com estas noitadas! --É só mais um bocado... --Nada! nada! já estou com muito somno. --Vê se o espalhas. --A Rosa já deve ter feito o chá. --És massador! --Ai que deixei a janella do quarto aberta, e entram os mosquitos! Vamos lá depressa... O _sucio_--Eu cá sou de feição. Não gostei nunca de desmanchar prazeres. Podem dançar á vontade, que eu vou vêr jogar. E vae para a rua conversar com as raparigas do povo, que espreitam á porta do club. Uma hora depois, volta á sala. --Então, ainda querem dançar mais? --Só mais uma valsa. --Pois sim! Eu cá não quero ser desmancha-prazeres. Vou lêr os jornaes, que remedio! E torna para a porta do club a conversar com as raparigas do povo. --Ó Melôa, já te vaes embora? --Já, sim, sr., e não tenho medo dos ladrões. --Pois fazes mal. Espera ahi, que eu acompanho-te. Sempre é bom acautelar... O _indigena da praia_--Quem diabo serão os patuscos, que andam a tocar trompa a esta hora?! Estava no melhor do meu somno! Corja de patifes! _Os da trompa_--Sopra-lhe ahi com força para accordares o Diamantino, que me vendeu um fato de banho por mais seis tostões. Patife! V Casos... Conta-se a anecdota de certo prelado de uma diocese do Alemtejo, homem de lettras afamado, que viveu no tempo do marquez de Pombal e que, em estando entregue aos seus trabalhos litterarios, de nada mais queria saber. Um anno, pelo tempo das boas-festas, estava o bispo sentado á banca, no seu vasto escriptorio--um salão do paço episcopal--quando um diocesano entrou para cumprimental-o. O prelado não deu tento da entrada do homem, tanto era o interesse que lhe merecia o assumpto de que estava tratando. --Sr. bispo! apostrophou timidamente o recem-chegado. O bispo não ouviu. --Sr. bispo! tornou a exclamar o visitante. Nada! O bispo não ouvia. Então, muito compromettido, o visitante resolveu-se a empurrar uma cadeira para fazer barulho. O bispo voltou de subito a cabeça. Viu-o, e perguntou: --O que é que quer? --Eu vinha visitar v. ex.ª E o bispo, continuando a escrever, respondeu: --Pois visite, visite. * * * * * O curso do quinto anno de direito estava simulando audiencias, como é costume, fazendo um estudante de juiz, outro de escrivão do processo, outro de official de diligencias, etc. Constituiu-se o tribunal, e o professor da cadeira disse ao estudante que representava de juiz: --Ha sussurro na sala. O que faz o sr. juiz? --Toco a campainha, e recommendo silencio ao auditorio. Mas o professor insistiu: --Continua o sussurro. O que faz o sr. juiz? --Torno a tocar a campainha, e de novo recommendo silencio. --Mas supponha que não basta isso. O sussurro continua. --N'esse caso, direi: Official, tome nota das pessoas que estão fazendo sussurro, para serem autuadas. --Mas o sussurro redobra. E o estudante, já muito atarantado, exclama: --Redobra! --Sim, senhor,--o sussurro redobra. O estudante pensa um momento... --Então, insiste o professor, o que fazia o sr. juiz? --Eu? Eu fazia isto: punha o chapeu na cabeça e dizia: Está levantada a sessão. Riu o professor, riu todo o curso, e o estudante salvou-se da entalação d'aquelle dia,--por ter tido uma idéa e um chapeu. * * * * * Havia um grande capitalista, que, por ter um sobrinho muito extravagante, já lhe não queria dar vintem. Um dia appareceu-lhe o sobrinho annunciando que ia partir para os Estados Unidos, onde poderia vender melhor do que em Portugal, dizia elle, o segredo de uma invenção maravilhosa. O tio, picado de curiosidade, quiz saber no que consistia a maravilhosa invenção. Recusa do sobrinho. Insistencia do tio. Finalmente, o sobrinho revelou o seu segredo: tinha descoberto o processo de fazer oiro. O tio, tão rico como ambicioso, resolve comprar-lhe o segredo por seis contos de réis. O sobrinho, simulando alguma difficuldade, acaba por vender-lhe a receita, que o tio paga immediatamente. Concluida a transacção, despedem-se, mas, já no fundo da escada, diz o sobrinho ao tio: --Ah! esquecia-me uma coisa, meu tio. Para que a receita dê resultado satisfatorio, é preciso que o tio, quando quizer fazer oiro, não se lembre do _elephante branco_. E saiu com o dinheiro na algibeira. O tio tratou de montar o seu laboratorio, e de realisar a receita. Mas, por mais que quizesse affastar do seu espirito a idéa do _elephante branco_, essa terrivel idéa acudia-lhe sempre, pelo que jámais conseguiu tirar da compra que fizera o resultado que esperava... * * * * * Não sei quando, nem mesmo onde, existiam dois esposos, que se enriqueceram... de filhos. A boa fortuna parecia apostada em querer que elles esgotassem todos os nomes do _Flos sanctorum_. Começaram pelos vulgares. Os primeiros filhos chamaram-se Manuel, Joaquim, Antonio, João. Depois passaram a escolher nomes romanticos: Arthur, Laura, Beatriz, Egberto. Por ultimo, tiveram que lançar mão dos nomes mais esquisitos e arrevesados: Cunegundes, Tecla, Mafalda, Thimoteo. Um dia, quando já era difficil saber a conta de todos os filhos, e acertar-lhes de prompto com os nomes, saiu o pae a passeio e, longe de casa, encontrou na rua uma creança que chorava, escondendo o rosto entre as mãos. Apiedou-se, dirigiu-se á creança, levantou-lhe a cabeça, achou que tinha uns olhos bonitos, e disse-lhe: --O que fazes tu por aqui, meu menino! --Ando perdido. --Pobre creança! Sabes quem é a tua familia? --Não estou bem certo d'isso, meu sr. --Tens fome? --Muita, muita. --E frio? --Muito frio... --Está bem, anda d'ahi comigo. Onde ia elle levar a creança? Ora! onde é que o negociante feliz vai depositar os seus lucros? No Banco. Pois o Banco onde esse feliz casado enthesourava todos os lucros da sua prosperidade conjugal era... a sua propria casa,--o seu lar. Chega elle, muito contente, com a creança pela mão. --Querida mulher! disse ao entrar em casa. Trago-te mais uma creança... --Outra?! --Sim, filha, tu és bondosa, compassiva, has de comprehender o impulso do meu coração. --O que queres dizer? --Quero dizer que encontrei na rua, abandonada, esta pobre creança, que não sabe ao certo quem são os seus pais e onde moram. E o pequeno, escondendo o rosto choroso entre as mãos, arquejava, soluçava... --Vendo-o, pensei commigo mesmo: Onde cabem vinte, podem caber vinte e um. Eis aqui está o que eu pensei, e trouxe-o commigo. --Que Deus nos ajude, homem! mas já estávamos tão sobrecarregados! --Quando tinhamos apenas seis filhos já diziamos isso mesmo! E comtudo tem havido logar para todos, nenhum d'elles ainda morreu de fome. --Pois bem! fique o pequeno. A creança conservava-se ao canto da casa, soluçando, arquejando. --Disseste que era bonito o pequeno? --Olha para elle, e verás os lindos olhos que tem! --Levanta a cabeça, meu menino. A creança não se mexia. Arquejava, soluçava. Então foi preciso levantar-lhe a cabeça quasi á força. --Ora esta! exclama a dona da casa. --O que é?! pergunta o marido. --É o nosso Augusto! Eram tantos, que já nem o pai os conhecia! * * * * * Sabem o que é muito difficil no carnaval? É encontrar um companheiro que nos não incommode e que nos não contrarie. Ah! isso é que é muito difficil! Eu apenas conheço um caso em que certo amigo meu poude encontrar o melhor dos companheiros para um baile de mascaras. Esse companheiro era um general, que parecia excellentemente disposto: alto, forte, com um bello bigode branco, e algum brilho ainda nos olhos. O meu amigo convidou-o para irem a um baile de mascaras. Acceitou logo. Foram. Uma vez no baile de mascaras, o meu amigo sentou-se junto a duas mulheres mascaradas. O general tambem. O meu amigo fallava-lhes. Ellas respondiam. Só o general estava calado, parecendo comtudo excellentemente disposto. Convidou-as o meu amigo para irem ceiar todos juntos. O general não oppôz a menor resistencia. --Pois sim! vamos lá ceiar, disse elle. Foram ceiar. As mulheres tiraram a mascara. O meu amigo disse a uma das mulheres que gostava muito d'ella, o general não disse nada á outra. Comeram. O general comeu tambem. No fim da ceia, queimaram todos quatro as suas cigarrilhas. O general parecia excellentemente disposto. Desabotoou o collete, repotreou-se na cadeira, accendeu segunda cigarrilha. Veiu a conta. O meu amigo quiz pagar toda a despeza; o general não consentiu, quiz pagar tambem a sua parte. Sairam. O meu amigo, voltando-se para o general, disse-lhe: --E agora? O general, parecendo sempre muito bem disposto, inclinou-se ao ouvido do meu amigo, e disse-lhe: --Olhe, meu caro, eu já não tenho condição nenhuma para gostar de um baile de mascaras. E o meu amigo, sem se desconcertar, sem se surprehender, offereceu o braço direito a uma das mulheres, o braço esquerdo á outra, e disse ao general, que continuava a parecer muito bem disposto: --Boa noite, general. * * * * * Certo estudante, tendo faltado ás aulas, apresentou uma certidão de doença, falsa. O medico que a passára era uzeiro e vezeiro em justificar a cabula dos estudantes, que lhe pagavam a justificação. Do alto da cathedra, o professor, tendo relanceado os olhos á assignatura da certidão, perguntou: --Ó sr. Fulano! se estivesse doente chamava este medico para o tratar? O estudante respondeu com promptidão e firmeza: --Não, senhor. * * * * * Tinha Antonio Feliciano de Castilho ido ao Rio de Janeiro, e fôra recebido em audiencia particular pelo imperador D. Pedro II. A conversação versou, como era natural, sobre assumptos litterarios. Castilho havia sido prevenido de que o imperador, por amor á discussão com homens notaveis, gostava de que elles o contrariassem nas suas opiniões. Assim avisado, se o imperador dizia que tal objecto era branco, Castilho sustentava que esse mesmo objecto era preto. O sr. D. Pedro II estava delirante de alegria, e propositadamente prolongava a conversação. Veiu a ponto fallarem de versos alexandrinos. O imperador declarou que não gostava do verso alexandrino, de que, como se sabe, Castilho era enthusiasta. --Ser-me-ha licito, disse Castilho, perguntar a vossa magestade os fundamentos da sua opinião? --Acho o alexandrino--replicou D. Pedro II, um metro inutil, por isso que é composto de dois versos de seis syllabas. Digam francamente que fazem versos de seis syllabas, e escusam de baptisar cada parelha de seis syllabas com o pomposo nome de alexandrinos. Castilho replicou: --O que faz vossa magestade quando tem sêde? O imperador sorriu-se, e respondeu: --Bebo agua. --Ora muito bem! tornou Castilho, mas se vossa magestade beber agua por dois copinhos, não fica tão satisfeito como tendo-a bebido de um só trago por um copasio enorme. * * * * * Um homem que se dava excellentemente com a mulher, e que tinha trez filhas muito bonitas e trez filhos muito espertos, não podia soffrer a sogra,--como quasi sempre acontece. Um dia, ella adoeceu gravemente, muito gravemente. Foi preciso chamar o medico que, depois de lhe vêr a lingua e tomar o pulso, torceu o nariz. --Isto não está bom! disse o medico. --O que se ha de fazer então? --Deitar-lhe bichas, já, immediatamente. Mandou-se, sem perda de tempo, buscar as bichas, muitas bichas. O bom do genro assistiu á chegada das bichas, viu-as deitar, chegou mesmo a perguntar se ellas tinham feito bem o seu dever: morder na sogra. Á noite, no club, dizia elle: --Assisti hoje a um combate de feras. --Como assim?! --Vi deitar duas duzias de bichas em minha sogra... * * * * * Certo professor de medicina perguntava a um estudante: --Por que é que no tratamento das feridas se emprega o panno de linho velho? O estudante procurou qualquer razão, e disse-a. --Não, sr., replicou o cathedratico. O estudante tratou de procurar outra razão. Observação do professor: --Tambem não. O estudante dá ainda tratos á cabeça para descobrir uma terceira razão. Então o professor resolve-se a fazer luz no assumpto: --Por duas razões, e nenhuma d'ellas o sr. foi capaz de descobrir! 1.ª Porque o panno de linho velho é mais barato. 2.ª Porque o panno de linho novo é mais caro. * * * * * Eu estava uma vez no escriptorio de um advogado meu amigo, homem de lettras, jornalista principalmente, que me pedira que esperasse emquanto elle acabava de escrever um artigo de fundo. A penna rangia vertiginosamente sobre o papel. Eis senão quando entra um saloio. --Que é? perguntou o advogado escrevendo sempre. O saloio respondeu: --Vinha consultar v. ex.ª sobre uma pequena questão. --Vá dizendo. O saloio olhou para o advogado, olhou para mim e olhou para um espelho que havia no escriptorio. Estava embaraçado, duvidoso de expôr o seu assumpto sem que o advogado se prestasse a dar-lhe toda a attenção. --Vá dizendo, repetiu o advogado. --Sr. dr.: Ha na minha terra uma mulher de má lingua, que traz todo o logar embrulhado. Por causa d'ella lavram inimisades de familia, questões entre casados, o diabo! Mas de cara a cara ella não se mette com ninguem; é só por traz da cortina. Veiu para lá ha tres annos, comprou uma casita, e trabalha de tecedeira. Mas o que ella tece melhor são intrigas. Por sua causa estou de mal com meu sogro e com meu cunhado. Eu e outros mais da freguezia queremos pôl-a fóra do logar, mas não sabemos a quem havemos de requerer... E calou-se. O advogado continuava escrevendo. --Não sabemos a quem havemos de requerer... repetiu o saloio. O advogado não respondeu. --Sr. dr., perguntou o saloio, a quem havemos nós de requerer? O advogado nem palavra. Mas o saloio não desistiu. Aproximou-se da banca, e tornou a perguntar curvando-se até quasi juntar a sua cabeça com a do advogado: --A quem havemos nós de requerer, sr. dr.? --A D. Miguel, respondeu o advogado continuando sempre a escrever. * * * * * Quem conhecia bem a formiga era um certo lavrador do Alemtejo, cujo celleiro as formigas tinham invadido como praga damninha. Elle consultou todos os chimicos afamados para que lhe vendessem um ingrediente que as matasse. A droga que lhe receitou o boticario da sua terra, não deu resultado. Veiu de proposito a Lisboa, conversou sobre o assumpto com os mais conspicuos pharmaceuticos da capital. --Faça isto. --Faça aquillo. --Faça aquell'outro. Nada deu resultado. Um dia, na charneca, aconselhou-se com um pastor. Obrigados, pela solidão em que vivem, á observação da natureza e á philosophia da experiencia, os pastores da charneca têem ás vezes phrases conceituosas, alvitres sapientissimos. O pastor deu-lhe um conselho, que valia mais do que as drogas dos pharmaceuticos. Chegado a casa, o lavrador pegou n'uma tira de papel, escreveu n'ella algumas palavras, e foi pregal-a na porta do celleiro. Legiões de formigas avançavam, pelo veso, em demanda das tulhas. Mas logo que avistavam a porta, e liam o lettreiro, retrocediam como que embuchadas. No dia seguinte, a mesma coisa. O pastor tinha aconselhado um remedio excellente. O que escreveu o lavrador no papel? Esta simples phrase: «_De hoje em deante, toda a formiga que entrar no meu celleiro ha de pagar dez réis--por cabeça._» Ora como as formigas são essencialmente avarentas, chegavam á porta do celleiro, liam o papel, e desandavam para a toca, não sabendo ao certo se o lavrador gracejaria ou fallaria verdade. * * * * * Um moço de fretes costumava ir confessar-se todos os annos, mas fazia a sua chorata ao prior para não ter que pagar a _desarrisca_. De uma vez, porque lhe parecesse que o prior se aborrecia com a choradeira, que era fingida, andou a procurar entre os seus patacos um que tinha peor cara e que por isso mesmo era mais duvidoso. Foi confessar-se, muito contricto, com o pataco falso na algibeira. Antes de receber Nosso Pae, pensando sempre em Deus e no pataco, dirigiu-se para a sachristia. --Sr. prior, disse elle, eu tenho abusado muito da bondade de v. s.ª --Nem por isso, Ramon... --Tenho, tenho, sr. prior, mas este anno não ha de ser assim. E, dizendo, tirava vagarosamente da algibeira do collete o que quer que fosse. --Este anno, continuou, quero pagar a _desarrisca_. Se o sr. prior estiver pelos autos, ficará o costume de eu pagar de dois em dois annos. --Pois seja como quizeres. E o moço de fretes, tirando o pataco da algibeira, pôl-o a um canto da mesa em que o prior estava escrevendo no livro. --É poucochinho, sr. prior, mas os annos vão muito bicudos... --Não fallemos mais n'isso. --Sempre chega para o rapé. Este pataquinho é para o rapé do sr. prior. --Pois seja. E o prior, voltando-se para o menino do côro, que estava perto, disse-lhe imperativamente: --Ó Zé Maria, vae-me ali defronte comprar um pataco de meio grosso. O Zé Maria sahiu, a correr, e o moço de fretes, sempre muito contricto, foi ajoelhar-se á mesa da communhão, esperando pelo prior. Um instante depois, o menino do côro entrava na sachristia com o rapé e com o pataco. --Sr. prior, disse elle, não quizeram receber o pataco. --Por quê? --Porque é falso como Judas. Mas obrigaram-me a trazer o rapé por ser para o sr. prior. --Deixa lá vêr o pataco. O prior pegou no dinheiro, levou-o á altura dos olhos, e riu-se. Levantou-se, preparou-se para ir dar a communhão. Chegando á egreja, descobriu o moço de fretes, que estava já com o queixo muito embrulhado na toalha de rendas. O prior foi distribuindo as sagradas particulas, mas quando chegou ao gallego, introduziu-lhe o pataco na bocca,--delicadamente. Habituado a grandes pesos, o penitente nem sequer se admirou de que fosse tão pesada aquella estranha particula. Mas quando quiz engulil-a, é que foram ellas! E o prior, de pé, grave e solemne, esperava. Bem voltas dava á lingua o gallego, mas não havia meio de engulir o pataco. Até que, com alguma difficuldade, se resolveu a dizer: --Não passa, sr. prior! E o prior, sempre muito grave e solemne respondeu-lhe: --Não passa, não. Já mandei comprar rapé, e não o quizeram acceitar. * * * * * --Por que é, perguntava um professor de agricultura, que as sementes precisam ser enterradas na terra? --Por isto... dizia um estudante. --Por aquillo... respondia outro. O professor zangou-se: --Não, sr.! É preciso enterrar as sementes para os passaros as não comerem. VI Á volta dos pés da imperatriz Referiram ha tempos os jornaes que se tinha levantado na côrte de Berlim uma grave questão de etiqueta,--grave como todas as questões d'este genero, incluindo a do _Hyssope_. A actual imperatriz, que prima por uma extrema simplicidade de vestidos e maneiras, pedira ao imperador seu marido que dispensasse, nas grandes solemnidades do palacio, os vestidos roçagantes, as longas _traines_ cadentes. A condessa Waldersee, que tem auctoridade em questões de etiqueta, reforçou com a sua opinião o pedido da imperatriz. Mas Guilherme II não annuiu, e as extensas caudas de setim e velludo continuarão a arrastar-se, sobre os tapetes da côrte allemã, longamente, apparatosamente... Á bocca pequena dizia-se em Berlim que no pedido da imperatriz havia o que quer que fosse de vaidade feminina, porque, tendo uns pés pequenissimos, não desejava que lh'os empanasse o vestido. O imperador, conhecendo a intenção reservada da imperatriz, entrincheirára-se na recusa, porque, não obstante as suas aventuras d'amor, Guilherme II, como todo o marido que se prese, entende que deve ser elle o unico a ter o direito de admirar as perfeições plasticas de sua mulher. Pelo que respeita aos pés femininos, dividem-se as opiniões. Os leitores sabem-n'o tão bem como eu. Entendem uns que os pés da mulher são tão pouco para admirar como a haste de uma rosa. Todas as attenções se fixam na belleza da corolla, no colorido das petalas. É a rosa fresca e bella? É isso o que se quer. Tenha a mulher as graças do semblante, que os pés, que ficam lá muito para baixo, escapam á vista, sejam grandes ou pequenos. Outros porém, e estes são decerto em maior numero, adoram os pés caprichosamente pequeninos, miniaturados a buril como por um gravador que houvesse cegado depois de os ter feito... Os que são d'este parecer defendem-se com a tradição da estatuaria classica, com as lendas graciosas da bella plastica antiga, em que a mulher, não raras vezes, apparece divinisada pela pequenez do pé. Recordam a historia da _Cendrillon_, a nossa _Gata borralheira_, que perdeu o chapim pelo qual um principe galante a mandára procurar até que, encontrando-a, só descansou quando poude desposal-a. Citam a tradição da formosa Rhodopis a quem, estando ella no banho, uma aguia empolgou uma das sandalias, que deixou cahir no terraço do palacio real de Memphis, onde o rei, apanhando-a, tratou de descobrir, desde essa hora, o pequenino pé de que pela sandalia ficára enamorado. É, no fundo, a mesma lenda, talvez um symbolismo mythico transformado em anecdota historica, como julga Husson. Lembram ainda em seu abono o instincto artistico da poesia popular, que sempre celebrou as mulheres de pés pequenos. E adduzem exemplos: Tendes o pé pequenino, Do tamanho d'um vintem: Podia calçar de prata Quem tão pequeno pé tem. A verdade é que o arsenal de defesa dos que assim pensam está copiosamente abastecido de citações e referencias, a que esses taes poderão recorrer para seu triumpho. Na écloga segunda de Bernardim Ribeiro,--de que os seus biographos tanto se têem servido para dilucidar a mysteriosa vida do poeta--é tambem pelo pé de Joanna que o pastor Jano se deixa fascinar amorosamente. Jano anda guardando o seu rebanho quando vê aproximar-se Joanna que, vestida de branco, se entretém colhendo flôres. Elle occulta-se espreitando-a. Colhidas as flôres, Joanna, as abas erguidas, Entrar pela agua ordenou; E assentando-se, então As çapatas descalçou, E, pondo-as sobre o chão. Por dentro d'agua entrou, E a Jano pelo coração. Ah! que é preciso uma pessoa ser cega de enthusiasmo pelo bucolismo, pela infancia poetica da alma portugueza, tão simples, tão sincera e ao mesmo passo tão docil, para não morrer de apoplexia fulminante ao soar-lhe nos ouvidos este plebeu vocabulo _çapatas_, tão grosseiro e saloio, como elle nos sôa hoje! Bernardim, esse favo de saudades a que o tempo não tem roubado a doçura, essa abelha do amor, que usurpou ao Hymetto o segredo de amelar deliciosamente as suas trovas com as boninas do coração namorado, parecer-nos-ha, se o não avistarmos de alto, um camponio da Ribaldeira a gabar as çapatas amarellas da moça do prior! Mas o pastor Jano não teve mão em si que não sahisse do escondrijo ao encontro da bella zagalla. Ella, como Galatéa, esquivou-se fugindo: Muito perto estava o casal Onde vivia o pai d'ella, Que fez ir mais longe o mal. Que Jano teve de vêl-a: Mas o medo que causou, Joanna partir-se assi, Tanto as mãos lhe embaraçou, Que a çapata esquerda, alli, Com a pressa lhe ficou. Agora é que o ridiculo da situação parece subir de ponto, porque o pastor Jano--o proprio Bernardim talvez--corre a abraçar-se com a çapata, a chorar sobre ella, çapatando os peitos. É textual. Çapata, deixada aqui, Para mal de outro mor mal, Quem te deixou, leva a mi: Que troca tão desegual! Mas pois assim é, seja assi. Foi, portanto, pelo pé de Joanna que o pastor Jano se sentiu arrastado para o abysmo do amor,--com a çapata na mão. Como os tempos mudam! Hoje, um poeta palaciano, que ouzasse cantar em publico, ainda mesmo sob o disfarce de pastor, a çapata da bem-amada, era um homem que tinha a sua carreira cortada pelo ridiculo. A Academia, elegante como ella é, diria, se alguem lhe fallasse em admitil-o socio correspondente: --Que! O da çapata?! Não póde ser! Elle que mude para chapim. Qualquer ministro do reino, com receio do ridiculo das gazetas, se algum influente politico lhe pedisse que fabricasse deputado o poeta, responderia sorrindo: --Ora adeus! O deputado da çapata?! É lá possivel! Você quer matar o governo pelo ridiculo! Todavia a Academia Real curva-se--e n'este ponto curva-se bem--perante Bernardim Ribeiro, o primeiro poeta bucolico portuguez. As gazetilhas em verso fariam uma troça de seiscentos diabos ao anonymo que ouzasse mandar para o _Diario de Noticias_ o seguinte annuncio: «Ha oito dias que estou beijando incessantemente a çapata que v. ex.ª perdeu em Cascaes quando, para me fugir, entrou precipitadamente no banho. A çapata entrou-me pelo coração, como V. ex.ª pela agua.» Nada obstante, se os redactores de gazetilhas vissem entrar Bernardim Ribeiro no escriptorio do jornal, vestido de mendigo, como a lenda nol-o pinta á volta de Saboya, roto e esfrangalhado, e se elle lhes dissesse que era o auctor do livro das saudades, os srs. redactores levantar-se-iam respeitosos, curvados e dominados, para offerecer uma cadeira ao grande poeta Bernardim Ribeiro, que devia estar cansado, por vir de longes terras. Mas, á parte o desprimor archeologico do vocabulo, emerge d'esta trova do bucolista o naturalismo, vivo e quente, que endeusa a pequenez do pé feminino. Parece-nos galante toda a conjunctura em que um pé de fada se descubra aos nossos olhos na sua exiguidade microscopica, seja pulando sobre o tapete de um salão, poisando no estribo d'uma carruagem, ou aquecendo na concha ardente das nossas mãos aduncas... Conta frei Luiz de Sousa que o infante D. Fernando, tendo casado com D. Guiomar Coutinho, em torno da qual se agitou a paixão dramatica do marquez de Torres Novas, e «subindo ambos uma escada, em tempo que andava pejada D. Guiomar, lhe lançou mão dos chapins para que tivesse menos pena na subida.» Gentil, não é? Todas as delicadas galanterias que se façam aos pés de uma mulher, suppõem que o que n'elles encantou foi a perfeição com que a natureza os talhou no marmore. Enumerar todos quantos poetas, antigos e modernos, têem cantado os pés femininos, seria o mesmo que encher de versos uma bibliotheca. Temos, pois, que resignar-nos, quanto ao numero, a dar apenas insignificantissimas amostras. De um poeta antigo; Rodrigues Lobo: As flôres, por onde passa, Se os pés lhe acerta de pôr, Ficam de inveja sem côr E de vergonha com graça. Qualquer pégada que faça Faz florescer a verdura, Vai formosa e não segura. Citarei apenas dois poetas modernos. É conhecidissimo o bello pensamento de João de Deus: O que te falta pois? os teus desejos Quaes são? de que precisas? Ah! não ser eu o marmore que pisas... Calçava-te de beijos! O soneto _A Borralheira_, de Luiz Guimarães, é dos mais scintillantes da sua lyra ardente: Meigos pés pequeninos, delicados Como um duplo lilaz,--se os beija-flôres Vos descobrissem entre as outras flôres, Que seria de vós, pés adorados! Como dois gemeos sylphos animados, Vi-vos hontem pairar entre os fulgores Do baile, ariscos, brancos, tentadores... Mas, ai de mim!--como os mais pés calçados «Calçados como os mais! que desacato! Disse eu.--Vou já talhar-lhes um sapato Leve, ideial, fantastico, secreto...» Eil-o. Resta saber, anjo faceiro, Se acertou na medida o sapateiro: Mimosos pés, calçai este soneto. A sabedoria da antiguidade, formulada em proverbios, que são como que migalhas de philosophia, impõe-se ao nosso espirito na immensa variedade de assumptos que podem impressional-o. Ora os antigos diziam: _Ne quid nimis._ Nada que seja de mais. Eu fui educado com velhos, e aprendi da sua experiencia. Se n'aquelle proverbio posso calçar um pé de mulher, acho que o proverbio é bom, e que o pé é ainda melhor. Se não posso, quer-me parecer que os meus velhos educadores me estão segredando em espirito com a auctoridade dos seus cabellos brancos: «Ahi ha pé de mais e proverbio de menos.» _Ne quid nimis_ ou, como dizem os francezes, _Rien de trop_... até nos pés! VII Loucura alegre Conta-se que sobre uma pequena terra de provincia cahira, não sei quando, uma chuva verdadeiramente original, tão original, que perderam o juizo todos os que a apanharam. E o caso é que toda a gente d'aquella terra a apanhou, com excepção de um sabio que ali vivia voluntariamente exilado, entregue a leituras profundas, a estudos d'alta sciencia. No dia da chuva, o sabio não sahiu; não sahia nunca. Ficou, portanto, em seu perfeito juizo. A gente da terra vivia principalmente dos trabalhos da agricultura, em pleno campo, de modo que a chuva cahiu-lhe em cheio sobre a cabeça, foi como se lhe alagasse os miolos... Tendo endoidecido todos, o sabio era como que o unico pharol de bom senso que brilhava n'aquelle vasto mar de loucura. Aconselhava os outros. Procurava chamal-os á razão. Dava-lhes conselhos acertados. Reprehendia-os amoravelmente quando elles praticavam desatinos. Mas qual! Ninguem o acreditava, ninguem o attendia, todos os outros haviam apanhado a chuva terrivel, todos estavam loucos, e procurar restabelecel-os de um momento para o outro era o mesmo que remar contra a maré. Começou o sabio a inquietar-se com a sua propria situação, que em verdade nada tinha de agradavel. Receiava elle proprio perder o juizo, que tão preciso lhe era, como se estivesse vivendo no meio de um hospital de doidos. A sua criada desatava a cantar e bailar quando elle lhe mandava fazer o biffe do almoço ou as torradas para o chá. De sorte que se via na necessidade de ir elle mesmo fazer o biffe ou as torradas, emquanto a criada bailava e cantava em frente do fogão, azoinando o amo. O seu criado engraixava-lhe a camisa engommada, quando elle lhe mandava engraixar as botas, e escovava-lhe as botas, quando elle lhe mandava tirar da gaveta uma camisa engommada. Pensou o sabio em mudar de terra, mas a pequena propriedade que possuia estava situada ali; e em taes circumstancias ninguem lh'a queria comprar, porque o caso da chuva tinha soado ao longe, de maneira que a terra cahira em descredito, sabia-se que todos lá estavam doidos. Os proprios trabalhos scientificos do sabio, até ahi tão considerados, principiaram a ser suspeitos de loucura. Já não havia quem os quizesse lêr. A opinião publica é assim. Até então, como corresse fama de que era aquelle um grande sabio, toda a gente o considerava como tal; de repente, com a mesma unanimidade, toda a gente principiou a duvidar de que elle podesse conservar inteiro o juizo vivendo no meio de doidos. --O que hei de eu fazer? perguntava a si mesmo o sabio. Como ainda houvesse pelas ruas da villa muitas pôças de agua da chuva, começou a analysar chimicamente a agua para vêr se descobria o segredo daquella extranha epidemia de loucura. Mas nada lhe achou de notavel segundo a chimica. Era agua de chuva como qualquer outra. --Eu perco o juizo! dizia de si para comsigo o sabio. Tudo isto é tão extraordinario, que sinto vacillar a minha propria razão! E a criada continuava a bailar e a dançar quando elle lhe mandava fazer o biffe ou as torradas. E o criado engraixava-lhe a camisa quando elle lhe mandava engraixar as botas. Os seus caseiros não se entendiam com elle, nem elle com os seus caseiros. O padeiro, pela manhã, trazia-lhe pedras duras em vez de pão fresco. O merceeiro mandava-lhe assucar quando elle pedia arroz ou mandava-lhe arroz quando elle lhe pedia assucar. De modo que, n'um momento de desespero, o sabio resolveu um bello dia perder o juizo que até então havia conservado. Fugiu para o meio da rua, andou procurando uma das pôças de agua da chuva, que ainda havia. Poz-se de cócoras, olhou em roda, e reconhecendo mais uma vez que todos estavam doidos, metteu as mãos na pôça, encheu-as de agua, e começou a encharcar a cabeça. D'ahi a momentos estava tambem doido, e toda a sua preoccupação anterior havia desapparecido, porque, tendo elle proprio perdido a razão, já não se affligia com a loucura dos outros. Lembrou-me esta anecdota quando, passando sabbado á noite pelo Colyseu dos Recreios, vi uma enorme multidão de povo invadir as portas, disputar a entrada, ancioso de obter um logar para ir assistir ao beneficio da Geraldine. --Então, dizia eu com os meus botões, tudo isso de reducções imminentes é uma fabula! O paiz está rico e contente. Diz-se que ha miseria, e toda a gente pensa em divertir-se! O que se vê é que as industrias estão prosperas, o commercio florescente. Os operarios, voltando agora de um trabalho fartamente remunerado, tratam de comprar bilhete para a _geral_. Vender uma colonia! para que? O que o povo quer é que lhe vendam um bilhete do Colyseu! Os jornaes portuguezes e extrangeiros dizem que estamos pobres! Sempre mentem muito os jornaes! Toda essa gente, que ahi se agglomera ás portas, estende para o camaroteiro uma _nota_, offerece-lhe dinheiro, tão rica está toda a gente! E, pensando n'isto e na anecdota, continuei a dizer com os meus botões: --... Salvo se o ultimo portuguez que tivesse juizo tambem molhou a cabeça na pôça d'agua! Mas no domingo fui passeiar á Avenida como para procurar a contra-prova do espectaculo da vespera. Oh! que alluvião de gente! que bulicio! que vida! que animação! Longas filas de trens desdobravam-se ao longo da Avenida n'um grande esplendor de equipagens brilhantes. O dinheiro trotava em bellos cavallos _pur sang_; rodavam titulos e brazões, _fortunas_ colossaes deslisavam a quatro soltas, pomposamente. E eu continuava perguntando aos meus botões: --Santo Deus! onde é que está o ultimo sabio d'esta terra?! E olhava para o chão esperando vêr que o ultimo sabio, posto de cócoras, estivesse olhando para os outros e molhando a cabeça com frenesi. Qual! não era para o chão que eu devia olhar. Os sabios portuguezes prezam-se muito para que algum d'elles queira acocorar-se á vista dos seus patricios. Era para o alto das boleias e para a estampa das horsas que eu devia olhar; não para o chão. O chão! esse, coitado, estava pisado, moido do continuo attricto das ferraduras dos cavallos e das rodas das carruagens. O sol, bellamente festivo, cahia em palpitações de luz sobre a Avenida. O monumento victorioso dos Restauradores recortava-se n'um fundo de azul luminoso parecendo chispar centelhas como uma lamina erguida ao sol. Chalets elegantes alcandoravam-se pela encosta oriental da cidade. Predios magnificos, alguns sumptuosos, agrupavam-se em grandes bairros novos á ilharga da Avenida nas terras outr'ora desertas e solitarias. As antigas hortas desappareceram para dar logar a palacios novos. Guardas-portões imponentes encostavam-se ás portas vendo de longe o formigueiro dos trens que passavam rodando ao trote largo de cavallos finos. E por mais que eu olhasse para o chão nenhum sabio, de cócoras, tratava de molhar a cabeça para não ter que chorar sobre tanta alegria! Então, recolhendo para casa, olhando sempre cautelosamente para não ser atropellado pelos trens e pelos cavalleiros, lembrou-me outro caso, nada mais e nada menos que o plano de um poema que certo amigo meu havia delineado quando a morte o surprehendêra. _A Valsa_: era o titulo do poema. A acção leva pouco tempo a contar. Meia duzia de velhos, que no seu tempo haviam sido grandes valsistas, resolveram, a despeito do peso dos annos, reconquistar uma hora de mocidade, dar um baile em que todos elles valsassem como antigamente, embora fossem morrendo de cansaço no meio da sala. Assim fizeram. Na noite do baile, eil-os que entram no salão, correctamente barbeados, tão gentis, quanto a idade lhes permittia, dentro das suas casacas muito justas e luzidias. Uma valsa de Strauss fez ouvir as suas primeiras notas. Tudo ali parece palpitar ao som da musica,--os velhos principalmente. E, cingindo a cintura de bellas damas, todos elles principiam a valsar com a intrepidez dos vinte annos. A valsa não affrouxa nunca, e os velhos valsistas, extenuados, principiam a cahir de cansaço, pallidos, mortos, um após outro, até que, estendidos sobre o verniz do salão, teem por funeral o baile, por _De profundis_ a valsa de Strauss, que parece não acabar nunca! Era phantastico o poema, excentrico o poeta. Mas, o caso é que me lembrei do poema da _Valsa_, que, ai do poeta! ficou apenas em projecto. Tudo aquillo que eu tinha visto, no sabbado e no domingo, era como a valsa dos velhos extenuados, que, ao som da musica, iam cahindo mortos n'uma atmosphera de alegria e n'uma allucinação de prazer, que os matou sem os ter remoçado, que os esgotou sem os ter divertido! VIII A mascotte Ter ou não ter _mascotte_, eis a questão, para tudo e para todos. Não sei se o leitor é dado a superstições e crendices, que, de resto, constituem o fundo simples e primitivo da natureza humana. Eu, por mais que oiça dissertar os philosophos, creio profundamente em superstições. Sou, a este respeito, quasi primitivo. E entre as superstições, que me inspiram maior fé, acredito cegamente na influencia benefica de um genio bom e tutellar, a que modernamente chamamos _mascotte_. Até--seja dito em confidencia--já tive uma _mascotte_. Por que não hei de contar francamente essa historia? Era uma insignificantissima bengala da ilha da Madeira, que me tinha custado doze vintens e que ninguem seria capaz de me comprar por seis. Estava muito longe do meu espirito a suspeita de que essa reles bengala, cheia de nós e de mossas, podesse exercer alguma influencia benefica na minha vida. Mas comecei a notar a coincidencia de que tudo me corria mal, quando o mau tempo me obrigava a substituir a bengala pelo chapeu de chuva. Difficuldades, incertezas, contrariedades que o chapeu de chuva tinha suscitado e alimentado, aplanavam-se e desappareciam quando no dia seguinte a bengala substituia o chapeu de chuva. Este facto repetiu-se uma e muitas vezes: induzi portanto que aquelle reles pausinho da ilha da Madeira tinha condão de felicidade. Era o meu talisman. Tomei-lhe amor, ganhei confiança na sua virtude, e comecei a acreditar na existencia de uma _mascotte_ que, se me abandonava um momento, me deixava exposto ás maiores contrariedades. Em dias de chuva torrencial, dias de temporal desfeito, eu não ousava sahir sem a _mascotte_, importando-me pouco que as outras pessoas podessem fazer reparo na excentricidade de um homem que, apesar de chover a potes, deixava o chapeu de chuva em casa e sahia com a bengala debaixo do braço. Muitas vezes fui obrigado, por manter o culto devido á minha _mascotte_, a tomar um trem. Mas fazia de bom grado essa despeza, nem me importava apanhar chuva, comtanto que não tivesse de largar a _mascotte_. Os meus amigos conheciam esta superstição, e riam-se. Fingiam querer roubar-m'a. Mas eu, se passava a noite com elles, sentava-me de bengala na mão, não a abandonava um momento. Um dia perdi-a. Vou contar como isso foi. O leitor póde imaginar o desgosto que n'esse dia me feriu. Era então ministro da marinha o conselheiro Julio de Vilhena, que morava na rua de S. João da Matta. Na vespera haviamos passado grande parte da noite a conversar sobre um livro, que se relacionava com o assumpto litterario de que eu então me estava occupando. Tratava-se da symbolica do direito, que me era preciso estudar para o livro _A jornada dos seculos_, que eu trazia entre mãos. Julio de Vilhena offerecêra emprestar-m'o, e ficou combinado que eu iria no dia seguinte a sua casa, á uma hora da tarde, buscar o livro. Chovia: tomei um trem. Durante o trajecto, para accender um cigarro, tive que encostar a bengala a um canto da carruagem. Quando cheguei á rua de S. João da Matta, disse-me o correio que o ministro estava ainda almoçando, e que eu teria de esperar pelo menos meia hora. Despedi o trem, sem tomar sentido no numero. Chegaram mais pessoas, com quem esperei conversando. Quando o ministro acabou de almoçar, e me recebeu no seu escriptorio, lembrei-me subitamente de que a _mascotte_ tinha ficado no trem. Mostrei-me inquieto, disse-lhe o motivo da minha inquietação, porque elle conhecia muito bem, como todos os meus amigos, a lenda da bengala. Sahi de afogadilho, com o livro debaixo do braço, e dirigi-me immediatamente ao commissariado geral de policia. A um dos commissarios, meu amigo, contei que me tinha esquecido dentro de uma carruagem, cujo numero ignorava, uma bengala que valeria apenas seis vintens, mas que eu estimava muito. O commissario imaginou talvez que se tratava de uma recordação de familia. Socegou-me. Como a bengala não tinha valor material, appareceria facilmente, ia dar as suas ordens, e eu prometti gratificar o policia que encontrasse a bengala. Sahi do commissariado de policia para ir dar umas voltas, tratar de negocios particulares. Mas tinha a convicção de que tudo me correria mal n'esse dia e nos outros, porque, ai de mim! havia perdido a _mascotte_. Era, moralmente, um homem morto. Ás cinco horas da tarde, muito contrariado, quasi rabujento, subia eu o Chiado, olhando attentamente para todos os trens que passavam, ancioso de reconhecer o cocheiro que me tinha levado á rua de S. João da Matta. De repente, descendo o Chiado, passa um trem. O cocheiro olha para mim, e pára. Ó felicidade! era o cocheiro que eu procurava! De dentro da caixa da almofada tirou elle a minha querida bengala, e eu tirei da algibeira dez tostões que lhe dei como alviçaras. O cocheiro, que via pagar por dez tostões uma bengala que valeria seis vintens, ficou a olhar para mim, espantado. Suppoz, talvez, n'aquelle momento, que eu era filho do sr. Monteiro da rua do Alecrim. Que boas horas de alegria que eu tive, readquirindo a posse da _mascotte_, a minha querida bengala! Nadando em jubilo, fui dizer ao commissario de policia que a bengala tinha apparecido. E á noite, contando a historia do feliz achado aos meus amigos, recebi parabens. Rodaram alguns annos, durante os quaes tive sobejos motivos para firmar a minha crença no condão maravilhoso da bengala. Era decididamente uma _mascotte_. Mas um dia--que terrivel dia esse!--por acaso, n'uma esgrima simulada, a bengala partiu-se. Deus perdôe a quem, com a mais amavel intenção d'este mundo, contribuiu para esse medonho fracasso. Guardei durante algum tempo os dois fragmentos da bengala, mas o seu condão de felicidade tinha-se partido com ella, ai de mim! A _mascotte_ havia fugido, como uma alma abandona um corpo. O leitor póde sorrir-se da minha ingenua credulidade, mas eu cria cegamente na virtude d'esse talisman, que um acaso me trouxe, e que um acaso levou. Não ha philosophia que resista aos factos. De varias pessoas sei eu que tiveram _mascotte_, e que criam n'ella como em Deus. Uma d'essas pessoas era o general José de Vasconcellos Correia, que morreu conde de Torres Novas. A sua _mascotte_ era uma escova de fato, que o não abandonava jamais. Justamente, tendo de partir para Torres Novas, onde se assignalou pelo seu valor, esqueceu-lhe metter dentro da mala a escova. E, por não querer separar-se d'ella em tão duvidosa occasião, metteu-a dentro da barretina. Em Torres Novas, durante a refrega, recebeu uma cutilada na cabeça. O golpe tel-o-ia prostrado, se entre a barretina e a cabeça não estivesse a escova,--a que ficou devendo a vida. Falta-me o espaço para referir outros muitos casos não menos interessantes e justificativos. E tenha pena! O leitor começaria talvez por sorrir-se; mas acabaria decerto por acreditar. Toda a gente, por muito que finja o contrario, tem as suas superstições. IX Era em abril... C'était en avril, un dimanche, Oui, le dimanche! J'etais heureux... Vous aviez une robe blanche Et deux gentils brins de pervenche, Oui, de pervenche, Dans les cheveux. Nous étions assis sur la mousse, Oui, sur la mousse, Et sans parler, Nous regardions l'herbe qui pousse, La feuille verte et l'ombre douce, Oui, l'ombre douce, Et l'eau couler. Un oiseau chantait sur la branche, Oui, sur la branche. Puis il s'est tu. J'ai pris dans ma main ta main blanche. C'etait en avril, un dimanche, Oui, le dimanche... T'en souviens--tu? Ah! como esta deliciosa canção primaveral de Eduardo Pailleron concentra em si todos os perfumes, todos os canticos, todos os sonhos de abril, quando o laranjal florido deixa cair da sua côma, semelhante a um _bouquet_ de noiva, não sei que doces pensamentos de amor, não sei que fragrancias de _boudoir_, que estonteamentos de volupia, cheia de mysterios, de segredos e de arrulhos maviosos!? A olaia põe no terreno grandes manchas encarnadas, tapetes de petalas soltas, que se alastram convidando ao remanso d'um idyllio, oui, d'un idylle... No ar, passam foliando os assobios estridulos dos melros e da flauta de Pan, dando uma extranha sensação de prazer vibrante, sobretudo se brilha no céu o bello sol ocioso d'um domingo... _oui, le dimanche_! Perto, um veio d'agua crystallina e múrmura dá uma enorme sensação de frescura e de preguiça, porque não ha nada que enerve mais deliciosamente do que vêr correr a agua sobre um campo... _et l'eau couler_. Tufos de relva, estrellados de malmequeres, redondos e grandes, vecejam n'uma exuberancia de florescencia sadia, impregnada da immensa vitalidade vernal... Nous regardions l'herbe qui pousse, La feuille verte et l'ombre douce. Delicioso abril! Primavera encantadora! por mais que a gente queira adorar-te sem rhetorica, é completamente impossivel, porque tu mesma és a rhetorica da creação, o Padre Cardoso da naturesa... * * * * * _C'était en avril..._ Era sim, era em abril, os melros e as toutinegras enchiam de musica o ar, os laranjaes e as olaias doidejavam galas de flores e de perfumes, e o meu amigo Rosendo, tão feliz como Pailleron, foi com a sua bella ao Campo Grande passar um domingo, uma esplendida manhã de domingo... _oui, le dimanche_. Tinham ido por ahi fóra no omnibus do Salazar, n'uma felicidade cortada de phrases ternas e de solavancos, um paraiso ambulante, tirado por tres pilecas rebeldes ao amor e ao chicote. Rosendo e Ambrosia tinham pressa de chegar ao Campo Grande, tinham um grande desejo de verdura, quasi tanto como as pilecas. Ella ia fresca de mocidade e elegancia singela: um vestido de percale claro, umas rendas, uma rosa natural, um chapeu com _blonde_ verde, luvas de _peau de Suéde_... Tentadora! Nunca uma Ambrosia parecera tão fascinante, nunca um Rosendo sentira no coração um bando de rouxinoes tão palreiros e tão musicos como naquella hora deliciosa. Imagine-se a pressa do Rosendo em chegar ao Campo Grande, porque, com um bando de rouxinoes dentro do coração, estava em risco de morrer de hypertrophia, se não chegasse de pressa,--mesmo muito de pressa. Mas finalmente chegaram. Esperava-os um banco verde, um banco de idyllio, que nem que fosse mandado pôr ali de encommenda pela camara municipal, para uso dos namorados ao domingo... _oui, le dimanche_. Por de traz, um bosquesinho de roseiras, discreto como um cego, silencioso como um mudo. Rosendo sabia os versos de Pailleron por os ter lido na _Revista dos dois mundos_, e por os haver achado deliciosos. Tratou de pôl-os em acção, ou antes, de pôr a sua mão de enamorado Rosendo sobre a mão branca de Ambrosia. J'ai pris dans ma main ta main blanche... Não faltava nada para que o scenario fosse em tudo semelhante ao da _Revista dos dois mundos_: a erva vecejante, a folha verde, a agua corrente, o domingo e a felicidade. Passaros folgasãos pipillavam no arvoredo, n'uma grande bambocha de _virtuoses_, e á distancia, amortecido pelo intervallo dos canteiros, o ruido de um trem que passava para o Lumiar, ouvia-se. Rosendo, achando-se divino, divinisava Ambrosia, para se confundirem ambos n'uma grande consubstanciação amorosa. Elle só tinha um desgosto:--que ella, em vez de uma rosa no vestido, não trouxesse nos cabellos dois ramos de pervinca... _oui, de pervenche_. De repente, Ambrosia, ouvindo dar oito horas, voltou-se rapidamente para elle, e dos seus labios saiu esta phrase, terrivel como um grito de Tantalo: --Ó Rosendo, vamos nós almoçar ao José dos Caracoes?... ......................................................................... _T'en souriens tu..._ Rosendo? X A felicidade e a camisa Houve outr'ora um rei, que possuia vastos dominios, formosos castellos, vastos parques, ricas baixellas e equipagens. Mas era triste, peior talvez do que triste, melancolico. Organisava festins, e aborrecia-se no meio d'elles. Nem o ouro, nem a saude, nem a grandesa conseguiam distrail-o. A rainha confrangia-se de vêr sempre meditando o seu real esposo. O principe real improvisava ruidosas caçadas para alegrar seu augusto progenitor, mas o rei, a breve trecho, cahia na sua melancolia habitual, sentava-se á sombra de uma arvore, scismava... Um dia, n'uma kermesse, que as damas da côrte promoveram para divertir seu real amo, appareceu uma cigana, que andava lendo a _buena-dicha_ de barraca em barraca. Era alta, morena como todas as ciganas, e tinha uns olhos tamanhos e tão vivos, que bem podiam lêr o futuro a grande distancia... Embrulhava-se n'um manto de retalhos, uma capa de pedinte que, á força de remendada, já não tinha côr propria. Lia, com profunda indifferença, o destino dos outros, seguindo com a vista as linhas que elles tinham gravadas na palma da mão. Annunciava tragedias, desgraças, coisas tenebrosas com a mesma serenidade com que promettia riquezas, venturas, delicias. O rei soube que tinha apparecido na kermesse aquella cigana, e mandou-a chamar. --Quero que me digas, ordenou-lhe o rei, se posso ainda ser feliz. A cigana, sem parecer preoccupar-se com a honra que lhe era dispensada, respondeu laconicamente: --Sim. Ainda póde ser feliz vossa magestade. Alegrou-se subitamente o rei e perguntou-lhe: --O que é preciso fazer para que eu seja inteiramente feliz? A cigana demorou-se um momento consultando as linhas da real mão, e respondeu: --Precisa vossa magestade vestir a camisa de um homem feliz. --Mas onde poderei eu encontrar esse homem feliz? --Isso agora não é comigo, disse a cigana. E voltou costas ao rei indifferentemente. Logo sua magestade mandou reunir no palacio real os seus validos e conselheiros. Contando-lhes o caso da cigana, acabou por dizer-lhes: --Agora é que eu vou conhecer qual de vós me é mais dedicado. Trata-se de procurar um homem feliz, cuja camisa, ainda que custe rios de ouro, eu hei de vestir, ide procural-o, pois. E todo aquelle que o encontrar, receberá recompensas quaes rei algum da terra ainda concedeu. Fazendo mil protestos de dedicação, logo cada um d'elles se deu pressa em partir. Para onde? Ao acaso, pelo mundo fóra, á procura de um homem feliz... Tal conselheiro do rei descobriu um proprietario muito rico, que todos os dias via entrar pela porta dentro os seus rendeiros carregados de ouro. Foi procural-o, na supposição venturosa de que tinha encontrado a pessoa que procurava. --Sois feliz como pareceis? perguntou-lhe. --Não sou, ai de mim! É verdade que possuo uma riqueza enorme, mas falta-me a saude, que é cada vez mais precaria. Daria toda a minha riqueza para poder viver sem dôres, para comer com apetite. Outro conselheiro do rei encontrou um homem muito robusto, cuja saude todos na sua terra invejavam. --É o homem mais forte d'estes sitios! disseram-lhe. Foi visital-o. --Uma pergunta vos quero fazer. Dizei-me se, na posse de tão florescente saude, sois completamente feliz... O homem forte suspirou, e respondeu: --É verdade que sou muito robusto, mas quizera não o ser tanto, porque não tenho gosto nenhum de viver ainda muitos annos. --Por que? --Porque sou pae de doze filhos e não ganho o bastante para lhes dar de comer. Quanto mais trabalho, menos ganho. Ha destinos assim, e o meu, já agora, não tem remedio. Informaram um dos validos do rei, de que em tal aldeia morava um homem que, vinte annos depois de casado, ainda namorava a mulher. Assombrou-se com esta revelação o valido, e foi a correr por montes e valles procurar o ditoso casado. Sem mais preambulos, interrogou-o. --É certo que sois casado ha vinte annos? --Ha vinte annos e vinte dias. --E que tendes vivido n'uma continua lua de mel: --Certissimo, meu senhor. --Sois pois inteiramente feliz? --Sel-o-ia se... --O que?! Pois não vos reputaes um homem feliz?! --Sel-o-ia, se não fosse minha sogra, que volta e meia se lembra de vir visitar-me. Já iam decorridos alguns mezes, sem que os conselheiros e validos do rei houvessem voltado ao paço para noticiar a sua magestade o achado de um homem feliz. Esta demora tinha desanimado cada vez mais o rei, que, de quando em quando, gritava enfurecido: --Pois não haverá sobre a terra um homem verdadeiramente feliz?! Certo dia um dos conselheiros do rei ia jornadeando, sempre na faina de procurar um homem feliz, por uma serra muito agreste e solitaria. Só de longe a longe avistava algumas cabras, que andavam roendo as raizes das urzes. --Que serra tão triste! disse o fidalgo ao arreeiro. --Por aqui só se encontra algum pastor; ninguem mais. Lá está um acolá, no alto d'aquelle rochedo, a tocar na sua flauta. --É verdade! Quero fallar-lhe. Vamos lá. Era grande a distancia. Mas á medida que se aproximavam iam ouvindo os sons rusticos da avêna e vendo o pastor a bailar, muito contente, sósinho, no topo do rochedo. --Parece impossivel, dizia o fidalgo, que não tenha medo de cair! Chegaram perto do rochedo, e o fidalgo gritou-lhe: --Olá, pastor! O pegureiro interrompeu a musica e o baile. Tirou o chapeu, e ficou-se muito quieto. --Anda cá, que te quero fazer uma pergunta e dar dinheiro. O pastor desceu de um salto. --Julgas-te feliz, meu rapaz? --Sim, meu senhor, julgo-me feliz. O conselheiro do rei receiou endoidecer de alegria. --Pois então, pega lá todo este dinheiro, e vende-me a tua camisa. --Meu senhor, respondeu o pegureiro, eu não tenho camisa... Por mais que a gente possa invejar a felicidade dos outros, e desesperar da sua, o que é certo é que, ainda quando os outros lhe parecem felizes, sempre lhes falta alguma coisa: a camisa, por exemplo. XI Morte de um gentleman _(Barão da Torre de Pêro Palha)_ Foram-se os deuzes, depois os heroes, por ultimo parece que tambem vão acabando os homens... Os homens antigos, entenda-se, os homens de rija tempera, fortes, destros, gentis, bem educados. Bem educados, sobretudo, que tambem isso faz muito ao caso para a disciplina social, para a harmonia das classes, para a ordem que não póde deixar de ser a base do respeito que as diversas categorias se devem umas ás outras. Os homens que viram nascer a liberdade, que a sonharam e implantaram, e que tinham por ella esse culto dedicado que se conserva por uma creança que educamos a nosso geito... O que ahi vae ficando já não são homens medidos pelo estalão que outr'ora marcava a estatura moral. Como na Grecia antiga, foram-se os Milciades, os Themistocles, talvez os Pericles. Não tardará o tempo em que se levantem trezentas e sessenta estatuas a Demetrio Phalerio, quero dizer, aos heroes da decadencia. Se não ha melhor! Generaes illustres, oradores proeminentes, sabios conspicuos, tudo isso tem desapparecido a pouco e pouco. Até vae desapparecendo tambem um typo que parecia fundido de uma costella de cavalleiro e d'outra costella de trovador: fundido dos restos meio heroicos e meio galantes da idade-media. Era o _gentleman_, que sabia montar a cavallo, bater-se em duello, fallar ás damas, dançar uma valsa, entrar n'um salão. Era o _gentleman_, que punha o chapeu na cabeça diante de um insolente, e que o tirava quando á portinhola de uma carruagem cumprimentava uma senhora. Era o _gentleman_, que não parecia ridiculo quando vestia uma calça de ganga e calçava umas luvas côr de açafrão. Era o _gentleman_... Morreu outro dia um; desconfio que foi o ultimo... Chamava-se Hugo Owen, barão da Torre de Pêro Palha. Não fez discursos, não fez leis, não escreveu livros, não compoz óperas, mas conquistou o direito a ser conhecido e estimado dos seus contemporaneos. Por que? Porque foi um _gentleman_. Eis tudo... Seu pai, um inglez de distincção, militara ao serviço de Portugal no tempo em que os espiritos mais generosos principiavam a sonhar com a liberdade. Casára, ficára entre nós; e o filho, direito como um pinheiro novo, esvelto e firme, passou os primeiros annos da vida montando garbosamente a cavallo no séquito de D. Pedro IV, improvisado, quasi por galanteria, em seu ajudante de campo. Zuniram-lhe as balas do cêrco do Porto por cima da cabeça, ouviu de perto o estrondo da metralha, fortificou-se respirando a fumarada da polvora. Depois... depois a guerra acabou, os vencedores julgaram que tudo o que havia a fazer pela liberdade estava feito, quanto se enganaram! e os vencidos presumiram-se decerto as ultimas victimas das luctas politicas em Portugal. Quanto se enganaram tambem!... Hugo Owen casou com uma dama portugueza, amou-a extremosamente, era rico, forte, alegre, feliz. Mas a roda da fortuna encravára-se um dia; parou de subito. A esposa de Hugo Owen morrêra deixando-lhe filhos pequeninos. No coração do viuvo fez-se um vácuo profundo, enorme. E aqui começa a serie das suas desgraças, quaes poucos homens teem soffrido, e que elle aguentou sem se azedar a ponto de parecer malcreado e sem se mostrar desgostoso ao extremo de querer descalçar as luvas para sovar a humanidade. Pois se o fizesse, teria tido razões de sobra para isso... As difficuldades levantavam-se-lhe debaixo dos pés, a fatalidade andava inventando para elle casos imprevistos e complicados, como um advogado chicaneiro que não pensa senão em urdir uma rêde de rabulices para embaraçar a parte contraria. Um dia, Hugo Owen assistia á agonia de um filho, que a morte viera surprehender prematuramente. O coração do pae despedaçava-se atormentado contra esse leito, como a vaga contra os rochedos. Havia já na face do moribundo a pallidez que parece ser o reflexo longinquo do luar de além-tumulo. Os irmãos soluçavam, abafados de angustia, e o pae, pendido para o leito, disfarçava a sua dôr murmurando palavras carinhosas, de uma grande ternura dolorida, sobre a cabeça do moribundo. N'isto, rompe n'um dos andares do predio a esfusiada musical de uma valsa de Strauss, sente-se dançar ruidosamente, pular, conversar, tinir loiças e cristaes. Está-se em plena _soirée_, e a festa parece prolongar-se pela noite dentro, attingir a madrugada. É no som da valsa que o moribundo se contorce no delirio da agonia, é a dois passos da vida alegre da sala que o espectro da morte vem assentar arraiaes. Teriam tido conhecimento d'esta deploravel antithese os que se estavam divertindo? Certamente que não. Mas essa tormentosa coincidencia tinha-a o destino guardado para esmagar o coração do barão da Torre de Pêro Palha. Uma sua irmã, Fanny Owen, morreu na flôr dos annos, sacrificada a um drama conjugal que enche muitas paginas de um livro de Camillo Castello Branco, _No Bom Jesus do Monte_. Foi casada, e morreu pura. Os medicos que procederam á autopsia, assim o affirmaram sob juramento. Pois bem! um anno depois da morte de Fanny, contado dia a dia, Hugo Owen, estando n'um hotel de Lisboa, ouviu gemer n'um quarto proximo. --Quem está ali doente? perguntou. --É o sr.... Era o marido de sua irmã, o marido que tão allucinadamente a aggravára, que vinha morrer a dois passos de distancia do barão da Torre de Pêro Palha! E, como estas, outras mil contrariedades e coincidencias, que o destino baralhava para o atormentar, expressamente... Eu conheço a biographia de Hugo Owen em tudo o que ella teve de mais intimo e recondito. Sómente não estou auctorisado a contal-a. Conheço-a, porque elle me confiou um dia as suas memorias, que se conservam inéditas; paginas que elle escrevia com a verdade e o respeito de um homem que se julga já diante de Deus contando o que soffreu entre os homens. Encontrei nas memorias do barão o material preciso para urdir dez romances sem dar tratos á imaginação. Em cada capitulo havia um drama de lagrimas. Li o manuscripto, sentindo-me muito honrado com a confiança que o barão depositava em mim, fechei-o profundamente commovido e sepultei no fundo do meu coração o segredo das suas revelações, tão pungentes e dilacerantes. Ás vezes, quando conversava com o barão da Torre de Pêro Palha debaixo da Arcada ou á porta da Casa Havaneza, assombrava-me a sua resignação, espantava-me a sua paciencia, a correcção sempre distincta das suas palavras e das suas maneiras. E todavia elle estava tão pobre, que mal poderia esperdiçar um charuto... Os que o não conheciam de perto, poderiam suppôl-o um homem feliz. Com o seu ar elegante, o seu casaco curto, as suas calças largas, um pouco á _hussard_ (essas calças tradicionaes dos _gentlemen_ do seu tempo: nunca o Manuel Browne e os outros vestiram calças que não fossem á _hussard_), as suas polainas brancas, a sua bengala de castão de prata, as suas lunetas de oiro, as suas suissas grisalhas, elle tinha o aspecto de um homem feliz, que houvesse accordado ao meio-dia depois de ter passado a noite n'um baile onde perpetrára a sua ultima valsa, onde queimára o ultimo cartucho do seu paiol amoroso. E todavia talvez tivesse almoçado, de pé, dois ovos _à la coque_, apenas... Tambem me assombrava n'este homem, cuja morte deploro, n'este homem que tinha corrido e visto tanto mundo, n'este homem que tanto havia soffrido e aprendido, a boa fé, a ingenuidade com que parecia acreditar todas as esperanças que lhe davam, todas as promessas que lhe faziam, o ar de candura com que tantas vezes procurou o seu nome no _Diario do Governo_. Seria um defeito de intelligencia? Não era, com certeza. Era apenas um aspecto da sua individualidade de _gentleman_. Conhecendo que a vida estava por pouco, não queria desfazer n'um momento a obra de toda a sua existencia, sahir do mundo desmanchando-se n'um gesto tão plebeu como expressivo. Procurava illudir-se por mais algum tempo... pouco! E, de resto, elle tinha razão. Quando já não podia viver com as mulheres, com quem viveria elle se tivesse rompido com os homens? Era esta decerto a sua ideia. Não queria isolar-se pelo resentimento, pelo azedume, pelo despeito, sentindo-se a dois passos da solidão eterna do tumulo. Fôra um homem de sociedade, sabia o que era a lisonja, a mentira, a falsidade cortez e amavel. Devia conhecel-as á legua. Mas assim como nos salões tinha fingido acredital-as, reduzido á pobreza fingia tambem dar-lhes credito. O enganal-o por cortezia podia ser um motivo para que elle continuasse a não ter dinheiro na bolsa, mas não era um motivo para que recusasse um _shake-hand_ á pessoa que o enganava segundo as boas praxes do codigo do bom tom. --Para a semana será... dizia elle. Passava uma semana, um mez, um anno. --Então?... --Tem havido difficuldades... Mas estão aplanadas... Agora vae. E não ia! Elle é que, fingindo esperar sempre alguma coisa que lhe consolasse os ultimos dias da vida, foi para o Porto, já muito doente, cheio de dôres e de desillusões, e de casa de uma filha querida, que lhe recolheu piedosamente o derradeiro suspiro, foi para a cemiterio de Agramonte, onde finalmente descansa... O _Diario do Governo_ perdeu um leitor, a sociedade portugueza perdeu um dos seus _gentlemen_, talvez o ultimo, seus filhos perderam um pae extremosissimo, e eu perdi um amigo tão dedicado, que me confiava os segredos dolorosos de toda a sua vida, dando-me a lêr o manuscripto das suas memorias inéditas. Pobre barão! Outros, que começaram mais tarde a frequentar a sociedade, chegaram depressa ao galarim, tão depressa que, na allucinação do triumpho, nem já o conheciam. Mas elle é que conhecia toda a gente: um _shake-hand_ para a direita, um sorriso para a esquerda, parecia andar fazendo as suas visitas de despedida antes de partir para a eternidade. E para que ninguem podesse ficar aggravado com o muito que elle tinha soffrido, perdoava a todos... Morreu como viveu: um _gentleman_. XII A «season» lisbonense em 1833 Este inverno promette uma _season_ verdadeiramente notavel: salas que raramente se abriam, como as dos condes de Porto Covo, reanimam-se e povoam-se; o presidente do conselho de ministros receberá ainda quatro vezes durante os dois mezes proximos. Fallemos principalmente das _soirées_ da presidencia, notaveis mais que todas por serem o ponto de reunião dos grandes vultos da politica portugueza na casa do primeiro entre os primeiros. Quem vir o sr. Fontes Pereira de Mello nas recepções officiaes do paço, nos actos solemnes da vida parlamentar, com o seu aspecto severo e frio, com a sua figura correcta e grave, terá avaliado apenas superficialmente este homem de estado que tem, como nenhum outro, a consciencia das funcções de que se acha investido e das situações em que se acha collocado. É preciso, porém, avalial-o _chez lui_, tendo uma phrase amavel para todas as pessoas que concorrem ás suas recepções, sabendo fallar ás senhoras e aos politicos, percorrendo todas as salas para ser attencioso com todos, conversando litteratura com os escriptores, politica com os homens de estado, accommodando-se com distincção a todos os assumptos e a todas as idades, sem constrangimento e sem esforço. Um estrangeiro, um viajante, um _touriste_ não encontraria decerto melhor occasião para conhecer todos os homens notaveis de Portugal do que aquella que as _soirées_ do presidente do conselho lhe podem fornecer. Aqui, um pouco curvado, o cabello levantado e branco, faces córadas, um sorriso docemente ironico, deixando vêr atravez das suas lunetas uns olhos penetrantes e expressivos, o ministro de Portugal em Madrid, vice-presidente da camara dos pares, passa nas salas, sobraçando a _claque_. É um erudito, um professor, um academico, que consome a maior parte dos dias na Torre do Tombo a revolver o archivo. Para os litteratos é o auctor de _Um anno na côrte_; para os academicos é o auctor da _Historia da linha de demarcação que repartia o mundo entre Portugal e Castella_, o recente annotador do _Roteiro de Lisboa a Goa_; para os politicos é um estadista e um diplomata de primeira ordem, é ainda o auctor dos _Perigos_; para os indifferentes é o sr. Andrade Corvo. Ali, debruçado sobre a meza do whist, na curvatura interessada dos myopes, um homem magro e sêco, de uma magresa forte e resistente, pondo ás vezes por cima dos oculos afumados o seu _lorgnon_, interroga o parceiro com a sua voz mansamente timbrada: é o poeta do _Avè Cesar_ e do _Pavilhão negro_, o dramaturgo dos _Primeiros amores de Bocage_, o romancista dos _Bandeirantes_, orador, estadista, diplomata, academico, é Mendes Leal, emfim. Acolá, o ministro dos negocios estrangeiros, Antonio de Serpa Pimentel, conversa animadamente, encostando o seu corpo franzino ao angulo de uma meza, fazendo girar rapidamente o cordão da sua luneta, e sorrindo: eis aqui um outro homem de estado que é ao mesmo passo um poeta, um prosador, um critico e um academico. Na sala de baile, a figura esvelta e forte de Thomaz Ribeiro destaca-se: a gran-cruz escarlate, atravessada sobre o peito largo, anima-lhe o busto: os cabellos grisalhos, como que ligeiramente empoados, têem por vezes fulgurações instantaneas. N'um _fauteuil_, Julio de Vilhena observa com os seus olhos penetrantemente meridionaes, sorri com vivacidade aos que lhe vão fallando, e retorce descuidadamente a guia esquerda do seu pequeno bigode. Hintze Ribeiro conversa n'um grupo de deputados sobre as discussões do parlamento: anima-se fallando, e fixa a luneta, fitando o interlocutor. O procurador geral da corôa e fazenda[1], alto e corpulento, conversa no tom modesto e auctorisado que lhe é peculiar, dois jurisconsultos distinctos ouvem-n'o com uma grande attenção respeitosa, como a um mestre. Barjona de Freitas, baixo, nutrido, hombros largos, cabello preto e luzidio, falla com Thomaz de Carvalho, que o ouve com o beiço inferior um pouco descahido, e Bulhão Pato, pequeno e forte, o cabello branco, faces morenas como as de um anduluz, aproxima-se, cofiando a pera. E como n'esse momento uma valsa, de uma melodia suave, docemente marulhada, se espraie pela sala, devem certamente acudir-lhe ao espirito ardente os versos da _Paquita_: Entrei no baile, quando a valsa rapida Corria as salas em airosas voltas! Das leves roupas, transparentes, soltas, Que doce aroma se esparzia no ar! Parei mirando aquellas frontes candidas, Que se animavam de alegrias loucas. Amor calando nas graciosas bocas, Amor dizendo no inspirado olhar. As primeiras valsistas de Lisboa, as de mais nobre nascimento e de mais distincta elegancia, giravam com effeito em torno do salão, que parecia ondular serenamente como um lago, encrespado por uma brisa ligeira. Algumas cabeças, formosamente loiras como a de Daphne, pareciam aureoladas por um diadema de oiro; outras, de bellos cabellos negros, affiguravam-se radiadas de arabescos luminosos, como o azeviche batido fortemente pela luz. O visconde de S. Januario, de amplo peito arqueado, gran-cruz traçada, cabeça altiva, conversava n'um grupo de senhoras; o duque de Palmella, alto, suissas pretas, com a mão direita entalada entre o collete e a gran-cruz, acabava de conversar com o duque de Loulé, que fôra fazer a sua partida de whist para a sala da bibliotheca, onde o conde de Valbom jogava emparceirado com o sr. Carlos Bento na mesma mesa em que tambem era parceiro o distincto advogado Pinto Coelho. Não haveria, pois, melhor occasião para poder observar os nossos homens mais distinctos na politica, no fôro, na litteratura, na diplomacia, no professorado, no commercio. Muitos d'elles, se não a maior parte, são um nobre exemplo de coragem, de perseverança e de gloria a todos quantos agora estreiam a sua carreira. Á custa de um trabalho paciente e intrepido alcançaram, por direito de conquista, a alta posição que hoje occupam. Soffreram, combateram, luctaram, mas conseguiram honrar o seu berço, o seu nome, e o seu paiz. Citemos ao acaso um nome, Mendes Leal, que atravessou todas as commoções de uma existencia accidentada de mil incertezas, luctando sempre, no theatro, na litteratura, na imprensa, na politica, mas conseguindo vencer por um esforço heroico de que só os homens do seu valor e da sua tempera são capazes. Quantos d'elles, se não todos, têem sido injustamente accusados, violentamente atacados, injuriados até! A consciencia do dever é, porém, uma especie de muralha da China, onde os projectis da inveja e da calumnia vão bater, refluindo de ricochete contra os que os arremessaram com mão traiçoeira. É a compensação providencial destinada aos que cumprem a sua missão. Os insignificantes, os invejosos, os inuteis, aquelles que não comprehendem o seu destino, julgam que todos lh'o roubaram, e por isso de todos dizem mal. Aqui está, pois, levamente esboçada, uma pagina da _season_ lisbonense em 1883. [1] Conselheiro Martens Ferrão. XIII Gostos não se discutem Tem cada um sua maneira especial de se divertir. Chega a haver n'isso uma tal variedade como nas physionomias. Ha quem não possa divertir-se com os outros, e quem não esteja bastante divertido sem os outros. Ha quem goste dos outros só por algum tempo, de modo que nos acontece ás vezes encontrar um sujeito que nos abre os braços e exclama nadando em jubilo: --Ora ainda bem que o encontro! Ha quanto tempo! ha quantos mezes! Temos muito que conversar! Vamos a isso! vamos a isso! Fica a gente horrorisada com a perspectiva de uma maçada enorme. Mas não ha remedio senão fazer cara alegre e acceitar as coisas como ellas são. --Pois vamos lá a isso! Conta-nos o sujeito duas lerias, fugitivamente, como se o tivesse de fazer por simples cumprimento. E, de repente, estendendo-nos a mão, parecendo ter já dito tudo: --Adeus! meu amigo. Estimei muito vel-o. Aqui está um exemplar de sujeito que gosta da companhia dos outros por algum tempo apenas. O grande prazer que sentiu encontrando-nos aguou-se tão de pressa, que só abandonando-nos de repente poude continuar a divertir-se. Conheci um alto cavalheiro, pessoa de estimação, que folgava immenso de que outro, que em tempo havia feito despachar para certo logar da alfandega, o seguisse por toda a parte, vestindo-lhe o casaco á saida dos theatros, pegando-lhe na bengala se queria atar o _cache-nez_, acompanhando-o a casa todas as noites, dizendo-lhe na rua o nome das pessoas que o iam cumprimentando. Um dia o fiel protegido adoeceu, e o protector tão aborrecido se encontrou da sua falta, que resolveu ficar em casa emquanto o outro não melhorasse. Pelo contrario, ha pessoas a quem uma tão solicita e dedicada gratidão incommodaria enormemente. Andrade Corvo, conversando comigo, dizia uma vez: --A gratidão que persegue a gente, é das coisas mais secantes que se conhecem. E offende até certo ponto, porque dá a entender que fazemos um favor para sermos servidos toda a vida. Como n'esse dia estivesse de notavel bom humor, exemplificou: --Ora imagine que se dá um espirro e se ouve dizer logo do lado: _«Dominus tecum_, sr. conselheiro.» Imagine que tira a gente um charuto da algibeira, e que a gratidão acode a cortar-nos o passo exclamando: «Aqui está o meu lume ás ordens de v. ex.ª, sr. conselheiro!» Olhe que chega a fazer perder a paciencia! Ha pessoas que se divertem passeiando sem fallar e sem olhar para ninguem. Recolhe um desses a sua casa e pergunta-lhe a mulher: --Encontraste muita gente conhecida? --Não sei. --E tiveste muito calor, filho? --Olha que tambem não sei. Outros, porém, gozam andando devagar, pasmando para tudo, parando de vez em quando a observar todos, descobrindo mysterios, surprehendendo segredos. Conheço um destes; que me disse ha poucos mezes: --Fulano, quando chegar a ministro, não faz caso de ninguem. --Por que? --Eu lhe conto. Outro dia encontrou elle um amigo na rua da Boa Vista. Você conhece de certo o Silveira? --Muito bem. --Pois era esse o amigo que elle encontrou. Eu vinha atraz e ouvi toda a conversa. Ambos queriam o _americano_ que fosse para o Rato. N'isto passava o carro que ambos desejavam. De repente o outro, que lobrigára um só logar vazio, larga o Silveira, trepa para o _americano_, e diz-lhe de lá adeus com a mão. O Silveira ficou com cara de parvo. --Mas que tem isso?! --Ah! então você não costuma aproveitar as lições que a observação de todos os dias lhe vae deparando! Está arranjado! Aquelle _americano_ era uma especie de carro do governo, em que o outro, logo que teve occasião, tratou de arranjar logar, sem se importar com os que ficavam atrazados. --Sim. Mas não me parece... --Homem! qualquer coisa define uma pessoa. Os que gostam de fazer _paciencias_ divertem-se comsigo mesmos: em tendo um baralho de cartas, prescindem bem dos outros. Um d'esses taes estava em casa uma noite. Passou um amigo, e entrou. --Pensei que estivesse gente de fóra! disse o amigo ao entrar. --Enganaste-te. Estou eu só a fazer _paciencias_. --E a sr.ª D. Ismenia? --Sahiu. --Foi para o theatro? --Tambem não sei bem. Sahiu com a mãe. --E tua filha? --Sahiu com o tio. --E tu por que não sahiste tambem? --Por que não precisava. --Mas sempre é bom passeiar depois que se janta. --Para passeiar, meu amigo, basta que saia alguem da familia. Outros são de feitio opposto: amam a sociedade, a companhia, a convivencia. Encontra a gente um ou outro, á meia noite, quando recolhe a casa. --Que pressa tem você de se deitar? pergunta elle. --Preciso levantar-me cedo. --Mas durma depressa, homem! --Durma depressa! tem graça! --É o que lhe digo. Quer você ouvir um caso? Olhe que ainda é cedo. Uma vez estava eu em Villa Franca, em casa do Tiberio. Jogava-se o voltarete. Havia hospedes: um d'elles era o major Noronha, que tinha de ir no comboio da manhã para Santarem. O jogo enremissou-se. A dona da casa, muito constrangida, lembrou que era melhor deixarem as remissas para outra occasião, porque o major tinha de levantar-se cedo. E vae elle, muito amavel, respondeu: «Não tem duvida, minha senhora, porque eu estou habituado a dormir depressa.» Faça você o mesmo, e dê dois dedos de cavaco. --Sim... mas é já tarde. --Olhe cá, a proposito de voltarete e remissas... Você sabe que o Castilho dizia que o voltarete era um jogo impio? --Impio? --Porque a cada passo ouvia dizer aos que o estavam jogando: Arre missas! (Ha remissas). --Tem graça, tem! Adeus, que já é tarde. E o pobre homem, que só com os outros se diverte, fica aborrecido por se achar só na rua. Lembra-lhe talvez ir pedir lume ao guarda nocturno para accender o charuto,--como um pretexto para armar cavaqueira. Depois de accender o charuto: --Ó sr. guarda! n'esta rua ha muitos namoros? --Já houve mais. --Por que? --Têem ido casando. --É mal feito! --Bem ou mal feito, é lá com elles. --Mas o senhor fica muito prejudicado! --Ora essa! --Porque quantos menos namoros houver, mais só vae ficando a rua. Eil-o aqui a pensar como se elle proprio fosse o guarda nocturno. Ah! se o fosse, valer-se-ia até talvez da carta anonyma para desfazer casamentos, porque os namoros podem succeder-se, mas os casados, em geral, não se namoram... depois. Ha pessoas secantes que se divertem ralhando sempre, e que gostam do jogo, porque lhes dá occasião de bater murros na mesa e de gritar. A um d'estes grasinas faltava certa noite um parceiro para jogar o whist de perna de pau. --Se viesse por ahi alguem! exclamava elle espreitando pelas vidraças para fóra. N'isto tocaram a campainha. --Ah! é você! Ainda bem! Vamos lá jogar o whist. --Não jogo. --Por que não joga? --Porque você ralha sempre! --Hoje não ralho. Palavra de honra. --Com essa condição, vamos lá. Meia hora depois dizia o dono da casa: --Esta stearina está hoje detestavel! Passados cinco minutos: --Parece que cá em casa não fazem hoje tenção de servir o chá! De repente os outros dois pegaram-se a discutir o jogo. --Ah! elle é isso! exclama o dono da casa. Pois então sempre lhe quero dizer a você (o tal, que tirára a condição) que já ahi fez uma grande asneira quando eu me queixei da stearina, e outra quando fallei no chá. Da primeira vez você devia ter vindo a oiros. Entra o criado com o taboleiro do chá. --Leva lá isso, que ainda é muito cedo! E da segunda vez porque devia ter vindo a copas, que era o que se lhe pedia. Epaminondas, segundo resa a historia, nem por gracejo mentia, tanto gostava da verdade,--até para se divertir. Outros, porém, só mentindo é que estão nas suas sete quintas. E isso cria-lhes difficuldades, põe-n'os em graves apuros, mas dá-lhes tanto gosto, que perdoam o mal que ás vezes lhes faz pelo bem que lhes sabe... o mentir. Contava um n'uma roda de amigos: --Ver a morte! Quatro vezes a tenho eu visto já! imaginem que andando á caça no Brazil, alonguei-me pela roça fóra, e tinha descido a uma chã quando vi que um preto, que eu havia castigado dias antes, corria atraz de mim de espingarda na mão. --E depois? --Depois o preto, que chegára á borda do outeiro, apontou-me a espingarda. Vocês sabem que os pretos têem uma pontaria infallivel! --Como diabo escapaste tu?! Chegado a este ponto, tambem elle proprio não sabia ainda como poderia ter escapado. --Sim! Como escapaste tu?! Nova hesitação do narrador. --Não escapaste! --Homem, isto é serio. Fosse em razão do odio que me tinha, ou do cansaço da corrida, o preto teve uma apoplexia fulminante e veiu cair-me aos pés. Dei-lhe um pontapé, e continuei a caçar. Conheci um rapaz, que morria por andar de calças brancas. Eu disse-lhe algumas vezes: --Que diabo de gosto o teu! Não te parece que andas em ceroulas? Elle respondia-me sempre: --E a ti não te parece que metteste as pernas n'um tinteiro! São gostos, e gostos não se discutem. Mas se toda a gente, em questão de gosto, tivesse a mesma opinião, quanto seria difficil... casar, por exemplo! XIV Peccadilhos metricos _Non bis in idem_ Fazem ámanhã annos, ...................... ...................... Alberto Pimentel ...................... _Novidades_, de domingo 27 de novembro de 1887. Ainda ante-hontem dizia Certo jornal que eu fazia Annos no dia seguinte. Comquanto o jornal ref'rido Pertença a outro partido, Era favor; não acinte. Mas, emfim, passa em julgado Que eu seja tão desastrado Que, já proximo dos _enta_, Faça annos cada semestre? Não: que o tempo é um grande mestre. Tempo que passa, avelhenta. Fazer annos em novembro, Logo em abril repetil-os! De tal coisa não me lembro! Tomára diminuil-os, Quanto mais, por triste engano, Duplical-os em cada anno! Assim, se chego aos sessenta, Contar-me-hão cento e vinte! Pois cada semestre augmenta Um anno, e outro o seguinte! Faço annos no quente e frio Como pago ao senhorio!! Não! Não pode ser! Protesto! Porque eu trabalho, e de resto, Pago de seis em seis mezes Duas rendas, uma em annos, Outra em metal! São enganos? Mas eu pago duas vezes! Fique pois bem entendido, Bem notorio, bem sabido, Que só uns annos farei. _Quatorze de abril_: é a data. Dispenso flôres, cantata... Mas protesto. E protestei. 29 de novembro de 1887. DEPOIS DO INCENDIO DO THEATRO BAQUET _(Versos recitados pelo actor Firmino, uma das victimas sobreviventes d'aquelle incendio, no beneficio que realizou no theatro da Trindade.)_ Venho d'entre as ruinas e das chammas, Onde tudo perdi. Sabeis a historia, Que o vosso coração ainda contrista. Perdoai a vaidade ao pobre artista... Eu sonhava essa noite com a gloria. Monstruosa ironia! A gloria! A gloria! Tive por ovação prantos, clamores. Ossadas por cortejo. O incendio e a fama Disputaram ali. Venceu a chamma. Eram chammas o palco e os bastidores... E ali n'essa sinistra apotheóse Ficaram sepultados meus thesoiros, Amigos que eu perdi,--tão dedicados! Minha pobre familia,--os meus cuidados, Doces cuidados que eu pref'ria aos loiros!... Sou agora a mim proprio quasi extranho, Um viajante perdido no deserto, N'esse infindo deserto da saudade. Sinto ainda a desgraça muito perto... Mas sinto ainda mais perto a caridade! Se vivo, é só por ella. Em seu regaço Choro o meu abandono, as minhas dôres. Refunde-se a minha alma em muitas almas, Vale um consolo o que não valem palmas... Vivo, meu Deus! graças a vós, senhores!... UMA DAS VICTIMAS DO INCENDIO _(Etelvina Julia d'Almeida.)_ Vi-a n'um baile, ha muitos annos, quantos! Da sua face bella as frescas rosas Deviam ter suavissimos encantos Se os beijos, namoradas mariposas, Fossem sorver, ha muitos annos, quantos! Da sua face bella as frescas rosas. Mas quem hontem logrou reconhecel-a Entre as negras ruinas sepultada?... Mas quem poude affirmar, dizer: É ella! Ella que fôra outr'ora alva e rosada! Já não poude ninguem reconhecel-a Entre as negras ruinas sepultada. 1.º DE DEZEMBRO Filippa de Vilhena! João Pinto Ribeiro! Palavra, que faz pena Ver o despenhadeiro Em que isto agora vae! E como o paiz cae! Agora é só dinheiro. Está campando em scena Sómente o deus Milhão! Filippa de Vilhena! João Pinto Ribeiro! Palavra, que faz pena... Agora é só dinheiro... E os que lá vão lá vão! 1887. EMILIA _(Minha irmã.)_ Nunca tu azas tiveras, Que te elevassem ao ceu. Nunca tu voar poderas Co'as azas que Deus te deu. Por mais que tu procuraste Reprimir-lhe o ancioso vôo, Eras tão debil! cansaste. Deus quiz o anjo, e levou-o. Tinha reflexos tão doces O teu olhar doce e brando, Que logo pensei que fosses Lirio que veio voando D'essa translucida esphera, Tão cristalina e tão alta, Onde a eterna primavera Sentiria a tua falta. Então as flôres celestes Chorando saudosamente Vestiram lutuosas vestes, Feitas de seda somente. E, debruçadas nas sépalas, Choraram pranto divino Sobre o justilho de pétalas, Polvilhado de ouro fino. Deus viu-as tristes, chorosas. Nos seus ethéreos jardins, E chorou co'as suas rosas, Teve dó dos seus jasmins. E como o pranto divino Tambem, como pranto, queima, Deus co'a sua voz, um hymno, Dissera ás azas: «Trazei-m'a.» E as azas, mal escutaram A celeste melodia, Obedeceram, voaram, Qual d'ellas mais voaria. Quando esse lirio nevado Chegou de novo ao empireo, Ia triste e maguado, Deus estranhou o seu lirio! E o que o lirio não dissera Tudo Deus adivinhou. Voando á celeste esphera, Chorára emquanto voou. As flôres do azul sorriam, Os lirios do ceu cantavam, Meus olhos já te não viam, Meiga creança, e choravam. Nunca tu azas tiveras, Que te elevassem ao ceu Nunca tu voar poderas Co'as azas que Deus te deu. 24--2--87. JOÃO DE DEUS João de Deus! De Deus... porque é divino. João, ou seja o primo de Jesuz Ou o outro que vela junto á Cruz, É divino tambem. E não atino Senão co'esta rasão: foi prophecia --Se já não foi destino-- De quem previu que João de Deus seria Um poeta divino. Ericeira, 21--10--90. KERMESSE O bem é como as auroras, Que para tudo o que existe Espalham luz e calor. Seja alegre ou seja triste A alma, o insecto, a ave, a flôr, Tudo o que ri ou que chora Sente nos raios da aurora A esmola do eterno amor... Os beijos do sol aquecem Tudo o que é velho ou que é moço, O ephémero e o colosso. As rochas e os corações, Os lagos e as ondas bravas, Emporios e solidões, As lagrimas das escravas E os sorrisos das rainhas, As cavernas dos leões E os ninhos das andorinhas. E o bem é como as auroras. Por isso ao bem não esquece A creança, o ninho, a escola... Tu és como o sol, esmola! És como a aurora, kermesse! OS TREZ VELHOS I Cahiu um nevão na serra. Desde a cumiada ao val Alveja rútila a terra. Não houve nevão egual! O ar gelado, cortante, Passa sobre as povoações Ceifando como um montante, Rugindo como os leões. Arvores sêcas, esguias Olham para o ceu, talvez A soluçar elegias, Carpindo a sua nudez. Cheias de fome, as manadas Sobre as campinas despidas Só róem urzes queimadas E raizes ressequidas. A fome, a doença, a morte Assentaram arraiaes Junto ao casal e á corte, Levando gente e animaes. Famintas, as alcateas Vem de noite ao povoado. Tremem de medo as aldeas, Ouvindo o lobo esfaimado... E desde o alto da serra Abre a neve o seu lençol. O que seria da terra Sem ter um raio de sol?! II Entre a egreja e o presbyterio Corre, caiado de novo, O muro do cemiterio. Vem ali juntar-se o povo. O sol, batendo no muro, Aquece a pedra ao meio dia, Torna o inverno menos duro, Tempera a nortada fria. Lá se juntaram trez velhos Sêcos, rijos, vermelhaços, Expondo ao sol os joelhos, Estendendo ao sol os braços. Emquanto o sol os aquece, Riem-se elles da nortada. Cada um seu mal esquece, Vai tudo de patuscada. --Tem morrido muita gente Com esta grande invernia!... --Pois nunca o inverno foi quente! --Salvo... este sol do meio dia. --Este sol é a minha adéga: Eu não quero outro calor. --Você o vinho renega!... --Lingua de mau pagador! --O vinho é caro. A cacháça Custa agora... --Isso que monta! --O sol dá-o Deus de graça!... --Mas beba vinho com conta! --Eu cá nunca fui borracho. --Nanja eu. Mas acho-o bom. --Diz um cacho a outro cacho: Não bebas sem tom nem som! E n'esta mansa folia Vão-se aquecendo os trez velhos Ao doce sol do meio dia, Rijos, sêcos e vermelhos. III --Lá vem enterro... Isto agora... Não tem descanso o coveiro! --Vem d'acolá d'onde mora A mulher do Zé Cabreiro. --Foi o filho... É de creança O caixão: eu inda vejo! --O coveiro não descansa!... --Inda hontem lhe dei um beijo! --A quem? Ao coveiro?! --Irra! Ao filho do Zé Cabreiro. --O frio as creanças mirra. --Lá vem atraz o coveiro... --A morte leva os fedelhos, Mata n'um dia um rapaz, Emquanto que nós, os velhos. Vamos ficando p'ra traz! --A morte é uma gulosa, Gosta de bocados finos. Carnes que cheirem a rosa, Polpa de tenros meninos... --Póde ser!... --Pois certamente! Nós cá, ossos esburgados, Nem para a cova de um dente Lhe chegavamos, coitados! No alto mar me contava Um velho de Guimarães Que a terra se embebedava Com as lagrimas das mães... --Por isso lhes leva os filhos!... A gulosa!... Quer banquete! --Quem tem filhos tem cadilhos. Morreram-me. Eu tive sete!... --E eu nenhum. --Nem eu. --Agora, Sem ter filhos nem mulher, Visto que ninguem nos chora, Nem mesmo a terra nos quer!... Janeiro de 1891. AS POMBAS _(De Theophilo Gautier.)_ Na collina dos mortos, entre os tumulos, Ergue a bella palmeira a verde pluma, E á tarde as mansas pombas de azas candidas Vão aninhar ali, uma após uma. De manhã, quando o sol desperta rutilo. As brancas pombas vão, cortando o ar, Como um solto collar no azul ethéreo, Longe do ninho um tecto procurar. Minha alma é como a solitaria arvore Onde enxames de loucas illusões Poisam á noite. Fugitivos hospedes, Vão-se co'a luz as pombas e as visões. 8--2--87. MULHER E GATA _(Paul Verlaine.)_ O vel-a até dava gosto Brincando co'a sua gata, Branca mão contra alva pata, Na penumbra do sol posto. Mitene, que a mão recorta, Por dissimular trabalha Unha d'ágatha, que corta E brilha como navalha. Mas a gata, disfarçada Tambem, com prazer ronrona E ensaia a unha acerada... Não é melhor do que a dona! E os dois labios purpurinos Enchiam de riso o ar, Onde se viam, felinos, Quatro phosphoros brilhar. N'UMA SALA A um canto, os politicos fallavam Com um certo mysterio Do modo como as coisas caminhavam, Se estava forte ou fraco o ministerio. Alguem que se mostrava resentido, Abanava a cabeça--era um symptoma De que a seu vêr o mundo está perdido E tudo cae,--como caíra Roma! Elle só, por sciencia e por estudo, Era talvez capaz de salvar tudo... N'outro canto da sala gorgeiava A musica do riso e d'alegria Um grupo que sorria e que fallava De quanto ouvia e via. Era o grupo formoso das solteiras, O grupo dos vinte annos, Que é capaz de passar noites inteiras, Rindo de tudo,--até dos desenganos! D'este grupo gentil como é que eu posso Desenhar o esboço? Precisaria ter as tintas finas, O magico pincel De que dispunha o grande Raphael! Em vez de uma... eram quatro Fornarinas. Quereriam talvez as bellas damas Vêr no papel traçado o seu perfil?! N'essa não caio eu... Quem é capaz de retratar abril? De transportar á tela o que é do ceu? De copiar as flôres? De imitar as estrellas? De dizer á manhã: Roubei-te as côres? Tende paciencia, ó minhas damas bellas, Incumba cada uma o seu Romeu D'esse arrojo inaudito. Eu cá por mim, repito, N'essa não caio eu... E de mais eu bem sei, minhas senhoras, Que me attendestes n'um serão inteiro Por não haver na sala algum solteiro... Sois boas, não sejaes enganadoras. Eu já tenho trez filhos, eu sou velho, Disse-m'o ha pouco tempo uma visinha, E o maldito do espelho Tem-me mostrado até... _pés de gallinha_!... Vão muito longe as minhas primaveras. De mais a mais, senhoras, a aza branca Da musa ideal que eu tive n'outras eras Desplumou-se a pensar em Salamanca, No imposto sobre o sal, A estudar as questões do parlamento, O orçamento geral, --Diabo de orçamento! Que é o livro maior que ha em _S. Bento_! Assim se foi rasgando, creio eu, Essa aza branca que me erguia ao ceu!.. Vede, senhoras, se ha tormento igual! O que me resta só, Para de todo errar da sorte o alvo, E vêr-me, um dia, calvo, E descer á miseria... de um chinó. N'estas alturas, minhas damas bellas, Não posso ser pintor. Quereis vêr-vos, senhoras, retratadas Formosas como sois, e delicadas? Mirae-vos n'uma flôr... N'essa não caio eu... Fazer-vos o retrato?! Mas, em compensação, Com a vossa adhesão Estou prompto a fazer um syndicato. XV Os amaveis Toda a gente os conhece, os amaveis, sempre generosos, sempre previdentes, tendo á flôr dos labios sorrisos doces e doces fallas, que, quando não encantam, incommodam com certesa os outros... Sim, porque os grosseiros custam a aturar, são bruscos, são asperos, são impertinentes. Mas os amaveis de profissão, os que fazem gosto e gala de o ser por uso e costume, chegam a aborrecer quasi tanto como os grosseiros. Com a differença de que se um grosseiro, por descuido, alguma vez se mostra amavel, fica a gente encantada com essa surpresa; ao passo que se um amavel, tambem por descuido, commette uma grosseria, fica a gente quasi vexada de vêr que elle estragou com um involuntario borrão todo o seu passado de homem fino. A cortezia é como certos estofos claros, em que a mais leve nodoa se torna saliente. Ao passo que nos tecidos grosseiros, qualquer incorrecção de côr, qualquer sombra, por maior que pareça, tem sempre esta desculpa: «É mesmo da fazenda...» Um brutalhão de marca maior costumava espancar a mulher por dá cá aquella palha. As visinhas tinham dó da pobre creatura sempre que ella acabava de apanhar a sova do estylo. «Coitada! diziam-lhe, vocemecê sempre foi muito infeliz com o marido que escolheu!» E ella respondia, cheia de philosophica resignação: «É genio d'elle, não façam caso.» Equivalia certamente a dizer: «É feitio da fazenda, não ha que extranhar.» Um amavel que uma vez escorrega, fica tão maltratado em sua boa fama, como ficaria maltratado corporalmente se tivesse caido do arco grande das Aguas Livres sobre as hortas da Rabicha. Um dia, certo cavalheiro primoroso em fallas e maneiras, inexcedivel em requintes de cortezia, andando adoentado de irritação intestinal, teve a infelicidade, estando a jogar jogos de prendas com damas, de ser elle proprio dolorosamente surprehendido por alguma coisa que o vexou. O jogo acabou de repente, no meio de um silencio gelado. O cavalheiro infeliz pegou no chapéo e, esquecendo-se da bengala, deitou a correr pela escada abaixo. As damas dividiram-se em grupos, fallando ao ouvido umas das outras, receiosas de que alguem as ouvisse. Os que estavam jogando o voltarete e o _whist_ perguntavam admirados: --Então acabaram tão cedo o seu divertimento! --Aconteceu alguma coisa? --Por que se foi Fulano embora tão depressa? E as damas calavam-se mysteriosamente, entrincheiradas n'um silencio, que só quebravam para cochichar ao ouvido de alguma sua amiga. No dia seguinte o caso espalhou-se em toda a cidade. --Sabe o que aconteceu hontem a Fulano em casa de Fulano? --Não sei. --Pois ainda não sabe! --Eu lhe digo... E dizia-lh'o ao ouvido, com tamanho mysterio, que justificava plenamente o pasmo com que a noticia era recebida. --Ora essa! --Um homem tão correcto! --Um tão perfeito cavalheiro! --Que pena! --Que desastre! --Que fiasco! E, em verdade, o que tinha acontecido a esse primoroso cavalheiro, que não podesse acontecer a qualquer outra pessoa? Tinha deixado cair um borrão no claro estofo da sua boa fama. Se se tratasse de um grosseirão, toda a gente haveria dito apenas que era proprio da fazenda. Viajando em caminho de ferro, quem é que não tem encontrado um companheiro tão amavel, que chega a aborrecer? Se tem vontade de abrir uma janella, encobre este desejo com um veo de cortezia, e pergunta: --Quer a janella aberta, não é verdade? Se deseja fechal-a, serve-se de processo identico, sempre em nome da cortezia: --Pois não é verdade, pergunta, que desejava a janella fechada: Se se trata de offerecer de jantar a alguem, o amavel insta, insiste, persegue quasi, que é talvez a melhor maneira da gente, no caso de ter que acceitar por força, ir mal disposta, e comer pouco. --Você--dizia certo amavel a um amigo que lhe appareceu sem ser esperado--você janta hoje comigo sem appellação nem aggravo. --Não posso, meu caro, o comboio parte d'aqui a meia hora, e eu tenho que seguir hoje viagem. --Que pena! que pena! Mas veja lá se póde de algum modo fazer o sacrificio de jantar hoje comigo... --Absolutamente, não posso, meu caro. E o amavel, tirando dois charutos da algibeira, offerece um ao seu amigo e procura o pretexto de ir ao interior da casa accender o outro. Serviu-se d'este pretexto para ir dizer alguma coisa ao cosinheiro, que aliás não tinha dotes de muito esperto. E, voltando para a sala, todo elle era perguntar ao amigo: --Seu pae como está? --Menos mal, obrigado. --E seu tio? --Esse passa peior. --Sinto muito. Diga-lhe que sinto muito. --E aquelle seu primo de Torres Novas? --Esse! Morreu ha um anno! --Não sabia! Que pena! um homem ainda tão novo! De repente, voltando ao offerecimento do jantar: --Mas, decididamente, você janta hoje comigo... --Não posso, meu caro, porque o comboio não dá licença. --Eu nem mesmo sei o que tenho hoje para jantar. Mas isso sabe-se depressa. Ó José Maria, anda cá. José Maria era o cosinheiro, a quem elle havia dito de repente, quando foi accender o charuto: --Se eu logo te perguntar o que temos para jantar hoje, inventa lá alguma coisa grande e pomposa. Vem o José Maria e, de barrete branco na mão, espera que o amo o interrogue. --O que temos nós hoje para jantar, José Maria? E o cosinheiro, que estivera matutando na invenção de alguma coisa grande e pomposa, responde: --Saiba v. ex.ª que temos uma balea. Gesto de surpresa do amigo e do dono da casa. O cosinheiro fica atarantado, suppõe que tinha dito ainda pouco... --O que dizes tu, José Maria! Uma balea! E o cosinheiro querendo emendar a mão: --Duas... duas, meu senhor. Um homem menos amavel teria certamente evitado este fiasco das duas baleas, porque não se lembraria de chamar o cosinheiro como collaborador da sua amabilidade hospitaleira. E toda a gente, d'ali por diante, repetiu o caso ás gargalhadas, fazendo alastrar a nódoa com que uma tão distincta pessoa maculára a sua reputação de homem amavel. Havia um sujeito, pessoa excellente, a quem a naturesa dera como filho um brutamontes rebelde a todas as correcções. Pae e filho foram convidados a jantar fóra de casa. O filho quiz ir por força: o pae consentiu, com a condição de que elle fallaria o menos possivel. Á mesa, o visinho da direita disse ao rapaz: --O tempo está magnifico! Elle limitou-se a meneiar affirmativamente a cabeça. O visinho da esquerda disse-lhe por sua vez: --Que magnifico tempo! Elle tornou a meneiar a cabeça. D'ali a nada diziam os visinhos aos visinhos: --Este rapaz é um grosseirão! E o rapaz, dirigindo-se ao pae, que estava sentado defronte: --Olhe que elles já me conheceram! Posso fallar á vontade. O pae sorriu encolhendo os hombros, como se quizesse dizer para os outros convivas. --Desculpem, isto é mesmo da fazenda. Desenganem-se: os amaveis teem muito mais que perder do que os grosseiros. E quantas vezes se arrepende uma pessoa de ser amavel, devendo ter sido grosseira!... XVI A sepultura d'um traidor Devo começar por dizer quem fosse o sr. D. Ruy, porque eu, posto a contar historias, tenho ainda o mau costume de começar pelo principio. O que faz com que seja alguma coisa massador... pelo menos. O sr. D. Ruy era o filho unico da fidalga da Gésteira e do morgado do mesmo nome. Sobre aquelle menino pesava uma nobreza de sete gerações, e uma riqueza talvez mais pesada ainda do que uma tal arvore genealogica. Pela sua parte, elle não precisaria ser tão nobre nem tão rico para se fazer estimar e adorar. Era, realmente, uma creança insinuante, meiga e intelligente, quasi nada voluntariosa apezar dos extremos, por vezes ridiculos, com que era tratada. A mãe parecia viver da vida do filho. Se elle ria, ria ella tambem; ás vezes adoeciam, mãe e filho, da mesma tristeza: chamava-se logo o medico para ambos, porque o morgado, depois de ter vivido no mundo, prescindira da sociedade que tanto o prendera outr'ora, para se limitar a viver para a mulher e para o filho, isto é, para uma só alma partida em dois corpos. No solar da Gésteira havia ainda uma outra pessoa, que fazia parte integrante da familia: era o padre João, capellão da casa. Padre João accumulára tambem as funcções de preceptor do sr. D. Ruy durante a primeira infancia do fidalguinho. Ensinara-o a lêr e a rezar. Umas vezes por outras fallava-lhe do sr. D. Miguel de Bragança, que, segundo elle, era o _Desejado_ dos tempos modernos. Mas o sr. D. Ruy foi crescendo, e chegou um dia em que se pensou no que se devia fazer d'aquelle menino. O que havia elle de ser no mundo para melhor fazer sobresair a sua riqueza e a sua fidalguia? A mãe, no egoismo do seu amor, dizia que o melhor era não se pensar mais n'isso, que o sr. D. Ruy já sabia lêr o bastante... para não ser analphabeto. Padre João concordava com a fidalga: que sim, que a sabedoria era boa para os pobres. O morgado protestava. Elle mesmo era bacharel em direito, e queria que o filho o fosse. Vivendo amarrado ás tradições de familia, queria que o filho se graduasse em leis, como elle, fazendo o que seu pae fizera, tendo um cavallo para passeiar, como todos os estudantes nobres d'aquelle tempo, exhibindo-se, n'uma palavra, em toda a plenitude das regalias que uzufruiam os morgados em Coimbra. Padre João concordava tambem com o morgado: que sim, que o saber não ficava mal a ninguem. A morgada zangava-se, e dizia: --O padre João está fallando assim por comprazer com meu marido. Já lhe tenho ouvido dizer que a sabedoria é boa para quem não tem outra coisa. O bom do capellão via-se enleiado, tomava a sua pitada, rufava depois com os dedos sobre os joelhos: --Sim, quero eu dizer, minha senhora, que nem tanto ao mar nem tanto á terra. Uma envernizadella ao espirito não faz mal a ninguem... --Uma envernizadella! replicava o morgado. Mais do que isso. Uma carta de bacharel. Póde nascer-se morgado, sem a gente o querer; doutor é que não. O padre João já viu alguem nascer doutor? --Eu, não, sr. --Pois se não viu, é porque para o ser é preciso estudar e saber alguma coisa. E a honra é tanto maior quanto o individuo, pela sua posição social, menos precisa das cartas de um curso para viver. Hoje os tempos mudaram, e um fidalgo ignorante já ninguem o toma a serio. Eu quero que meu filho vá a Coimbra. A fidalga punha os olhos no chão, ficava calada e triste. --Mas isso não é por ora, tornava o morgado; escusas de estar ahi a abalar de tristeza, Christina. Has de habituar-te pouco a pouco a viver sem o teu filho, como minha mãe se habituou. O habito é uma segunda natureza. Primeiro entrará o Ruy n'um collegio. Vamos viver para o Porto,--e olha que faço n'isso algum sacrificio, porque já me custa arrancar-me á vida da provincia. Para que elle tambem se habitue a viver sem nós, mettemol-o n'um collegio, no da _Guia_, por exemplo, porque tenho boas informações a respeito d'essa casa de educação. Iremos vel-o sempre que queiras. Pelas ferias, sahirá, viremos para a Gésteira, a fim de que elle possa saborear, de tempos a tempos, o bem estar da casa paterna, conservar as tradições de familia, que eu tanto prezo, e tu tambem. De sahir da Gésteira, de deixar o seu querido Minho, é que padre João não gostava; mas, chamado a conselho pelo morgado, não tinha remedio senão concordar. Finalmente, resolveu-se que o sr. D. Ruy iria para o collegio da _Guia_ estudar preparatorios. Os fidalgos da Gésteira sahiram para o Porto, e arrendaram casa, uma bella casa de trez andares, na rua de Santa Catharina. A fidalga queria ficar perto do collegio,--o mais perto possivel. Marcou-se o dia em que o sr. D. Ruy devia entrar no collegio. O director, o Daniel Navarro, tinha ordem de se não poupar a despezas para amenizar a iniciação do joven collegial. Esse dia, era uma segunda feira. Mas no domingo á noite a fidalga chorou tanto, que o morgado achou prudente deixar passar mais alguns dias. Por sua parte, o sr. D. Ruy estava um pouco vacillante entre as saudades da mãe e o desejo de entrar no collegio. Um dia o pae levara-o lá. Era á hora em que os alumnos estavam no _recreio_: todos elles pareciam alegres, riam, vozeavam, corriam pelas ruas da quinta, jogavam as escondidas, baloiçavam-se no trapesio. Aquillo não lhe desagradou; demais a mais o Navarro fizera-lhe muita festa, foi mostrar-lhe as aulas, os dormitorios, a casa de jantar, e disse-lhe: --Olhe que isto não é mau. E o sr. D. Ruy sorrira, sentira-se forte, imaginava que se havia de dar bem ali, com os outros, brincando como elles. Mas ao chegar a casa, chorára vendo a mãe, e ella chorára tambem, abraçada n'elle. --Bem! dissera do lado o pae, tu não desgostaste, pois não é verdade: O sr. D. Ruy, com os olhos chorosos, meneára affirmativamente a cabeça. --Então entrarás segunda feira... está dito! E passára a mão pela face da fidalga, afagando-a. --É que se o rapaz ainda não vae d'esta vez, disséra, fica sendo o D. Sebastião do collegio da _Guia_. Eu não quero que os outros lhe ponham alcunhas, que ficam depois para toda a vida. --Nem eu, replicára a fidalga com vivacidade. A ideia de que seu filho poderia ter uma alcunha, ser chamado o _D. Sebastião_ do collegio, sobresaltára-a. E desde logo protestou a si mesma que o deixaria ir na primeira segunda feira. --Ó mamã, dissera o pequeno, sabe que numero eu vou ter no collegio? --Qual? --Sou o 416. Esta novidade, o facto de ir ser o 416, agradava-lhe. Era uma variante á monotonia do seu tratamento habitual. Toda a gente lhe chamava D. Ruy, o sr. D. Ruy, mas d'ali em diante iam chamar-lhe o 416. Que bom! No domingo, o morgado tornou a levar o filho ao collegio. Quando entravam, os rapazes sahiam arregimentados. Iam ouvir missa á Lapa, e depois dariam um passeio até Paranhos. O morgado disse ao prefeito que tambem os acompanharia, para habituar o filho á sua nova vida de collegial. Na egreja da Lapa, emquanto esperavam pela missa, o sr. D. Ruy fez relações de amisade com um rapaz, filho de um fidalgo da casa de Villa Pouca, em Guimarães. Era o 86. O sr. D. Ruy gostou d'elle, e gostou de se vêr tratado familiarmente--por 416, apenas. Veio para casa contar á mãe o que tinha feito. Estava enthusiasmado. E a segunda feira tardava-lhe. A mãe alegrou-se um pouco da alegria do filho. Pela manhã lavou-o, penteou-o, ella mesma, chorando umas vezes, sorrindo outras, soffrendo e amando. Padre João foi com o morgado acompanhar o 416. A fidalga veiu para a janella. Chorava. Chegára finalmente o momento terrivel, que ella temia tanto. Mal viu o filho na rua, limpou as lagrimas, procurou sorrir. O sr. D. Ruy ia bem disposto, sentia-se forte, disse adeus á mãe sem chorar, mas á esquina da rua, quando a janella ia desapparecer, o valoroso 416 voltou-se ainda uma vez para traz, e limpou duas lagrimas ao canhão da jaqueta. É que, por muito leviano que se seja quando se é creança, sempre se tem consciencia de que uma mãe faz muita falta. O 416 deu boa conta de si no collegio da _Guia_. De dia, as aulas e o recreio absorviam-lhe a attenção; á noite, nos primeiros tempos, arrasavam-se-lhe sempre os olhos de lagrimas, quando, antes de adormecer, pensava na mãe. Faltavam-lhe os beijos d'ella, que se inclinava sobre o leito a compor-lhe a almofada, e a conchegar-lhe a roupa. A cabeça de Christina tomava então o aspecto de uma aza protectora. O 416, no collegio, enrolava-se no lençol, soluçando, e adormecia assim, rezando ao anjo da guarda, como padre João lhe ensinára. Mas, pela manhã, a disciplina escolar não lhe dava occasião para pensamentos tristes: era saltar da cama e começar a lide. Ao cabo do primeiro mez, o 416 já adormecia melhor. Como as suas relações com o 86 se houvessem estreitado cada vez mais, faziam ambos projectos para as ferias da Paschoa. O 416 levaria para a Gésteira o seu condiscipulo: já estavam solicitadas as respectivas licenças. Não havia duvida nenhuma. Fariam um Judas logo que lá chegassem. Houve apenas uma pequena divergencia, entre os dois amigos, sobre o modo como vestiriam o Judas. O 86 queria que fosse de veterano. O 416 preferia um fato de hespanhol--com as respectivas castanhetas. A sua opinião venceu, com uma simples modificação: as castanhetas seriam substituidas por um pandeiro. Padre João, n'uma visita ao collegio, disse que o fato de hespanhol não era proprio para Judas; que seria melhor vestil-o de judeu. Os dois collegiaes não quizeram saber d'isso, e o 416 encarregou o capellão de lhe comprar um fato de hespanhol, que o padre foi desencantar na rua de Santo Antonio, n'um guarda-roupa de carnaval. Imagine-se a alegria com que todos partiram para a Gésteira! A morgada parecia ter a idade do filho: ria, fallava, apoiava calorosamente os projectos dos dois collegiaes sobre a queima do Judas, que devia ser espaventosa. Na caixa do trem ia muito fogo de artificio para recheiar o apostolo... castelhano. Dentro da barriga tinham os dois amigos combinado pôr-lhe uma bomba, que devia rebentar como uma peça de artilheria. Na cabeça, outra bomba: o chapeu devia ir parar a casa do diabo. Logo que chegaram á Gésteira, trataram de fazer o Judas. O arcabouço era de palha. Vestiram-lhe as pantalonas castelhanas, a jaqueta de alamares; ataram-lhe a faixa encarnada. Pozeram-lhe uma caraça de andaluz, e um sombrero com debrum de velludo preto. As mãos eram duas luvas de algodão com recheio de palha; na esquerda tinha um pandeiro, e na direita a saca dos trinta dinheiros. Por um artificio sabiamente imaginado, a saca do dinheiro devia, quando se puxasse por um arame, bater no pandeiro, e fazel-o soar. Na bôca um charuto: era uma granada envolvida em folha de tabaco. Nos pés, esporas de lata, com polvora dentro. O Judas ficou n'um vasto telheiro que, dentro do pateo, se encostava ao muro da quinta. O machinismo do pandeiro e da saca dos trinta dinheiros, invenção do 86, levara muito tempo, e dera muito trabalho, de modo que só foi possivel acabal-o, á luz de lanternas, na sexta feira á noite. O Judas, finalmente prompto, estava de papo ao ar, no chão, hirto, inchado, apopletico. Pela manhã, os meninos levantar-se-hiam muito cedo para assistir á empalação. Depois... só restava pegar-lhe fogo. De madrugada, uma criada da casa fôra ao moinho buscar uns sacos de farinha, que trouxe n'uma jumenta. Descarregou a farinha e enxotou a jumenta para o meio do pateo, emquanto foi acondicionar os sacos na cosinha. Não se lembrou a estupida de que o Judas era de palha, e de que as jumentas comem palha... ainda mesmo quando lh'a não sabem dar. A jumenta, de focinho baixo, foi procurando o que havia pelo telheiro. Vendo o Judas deitado no meio do chão, começou, desconfiada, a ladeal-o, mas, por fim, investiu com elle. Cheirou-lhe a palha, e com uma dentada esgarçou-lhe o peitilho da camisa. Achou dentro a palha, e começou a comer. Trazia fome. Tinha ido para o moinho de madrugada, e lá, emquanto esperava pela moedura, apenas poderá traçar com os dentes umas hervitas, de modo que aquelle almoço inesperado soube-lhe bem. Quando os meninos se levantaram, correram ao telheiro. Do Judas... restava apenas a parte castelhana, isto é, o fato:, mas os intestinos tinham desapparecido. Proromperam n'um choro atroador as duas creanças. Os morgados, os criados, acudiram todos. As lamentações dos dois collegiaes eram sentidissimas, clamorosas. E a burra, indifferente a tudo o que se passava, continuava a procurar com o focinho alguma cousa, na esperança de encontrar outro Judas. N'um momento de cólera, o 86 e o 416 pegaram cada qual no seu fueiro, e começaram a desancar a jumenta. Levou muita lambada; até o padre João, para lisonjear os meninos, lhe dera um pontapé na trazeira, dizendo: Que grande burra esta! Mas ella, com o falso apostolo na barriga, parecia ter a consciencia de que um traidor não merecia sepultura melhor. XVII A caminho do Alemtejo Ha pouco mais de um mez, passava eu na linha do sueste com destino ao Alemtejo. Tinhamos atravessado o rio com muito vento; havia vaga. O ceu estava carrancudo; promettia chuva. O vento apressava-a. Na ponte do Barreiro, uma grande corda de agua principiára a cahir. Corremos todos para as carruagens;--foi um verdadeiro _sauve qui peut_. O comboyo partira e a chuva continuava a cahir. Uma inverneira pegada. Eu sentia-me somnolento, cabeceava. Na estação de... (sejamos discretos) sentindo correr uma vidraça na carruagem immediata, espertei. Uma voz, n'um tom agaiatado de rapazote de escola, disse: E a cabrinha? E a cabrinha? O chefe da estação, um homem velho, de bigode branco, olhou de repente para a carruagem d'onde a voz partira. Havia ficado visivelmente aborrecido, mas continuára fazendo o seu serviço. De instante a instante, ao passo que a voz repetia--E a cabrinha?--elle resmungava. Ao cabo de pouco tempo a campainha dera o signal da partida. No momento em que o comboyo largava, uma voz, mais vozes disseram: E a cabrinha? E a cabrinha? O que se passou não sei, mas n'uma das estações seguintes procurei occasião de perguntar ao meu visinho, que se apeiára, o que aquillo queria dizer. O rapazote, que teria quando muito dezeseis annos, explicou-me. Aquelle chefe tinha uma cabrinha de muita estimação, que lhe dava magnifico leite para o almoço. Mas a cabrinha, que era toda meiguice com a dona, mostrava-se pouco affeiçoada ao dono. Um dia, por um motivo qualquer, a mulher do chefe da estação teve de ausentar-se; o marido ficou, desempenhando as funcções do seu cargo. Quando chegou a hora do almoço, o chefe tratou de chamar a cabrinha para mungil-a. Isso sim! A cabrinha fugia, e o pobre homem resignou-se a tomar o seu café sem leite. Não gostou, e tratou de afagar a cabra para que ella se mostrasse menos extranha e rispida. Qual historia! No outro dia a mesma comedia, elle a chamar a cabra com as suas melhores maneiras, e ella a fugir d'elle como o demonio foge da cruz. O pobre homem deu tratos á imaginação para resolver o problema, em que elle e a cabra entravam como factores. O que havia de fazer? Demais a mais o café sem leite estava-lhe fazendo mal ao estomago, e a cabra não promettia tornar-se mais amavel do que até ahi se havia mostrado. Depois que os comboyos passavam, elle fechava a porta da estação, e dois pensamentos atrozes o preoccupavam: a mulher e a cabra. O que havia de fazer? pensava e tornava a pensar. Até que uma noite teve uma idéa luminosa, salvadora. Adormeceu mais tranquillamente, saboreando mentalmente a delicia de tornar a almoçar café com leite. Pela manhã, quando acordou, vestiu um vestido da mulher, poz na cabeça um lenço d'ella. Foi chamar a cabra, e a cabra veiu immediatamente, fazendo-lhe festa. Estava resolvida a difficuldade, a cabra deixava-se mungir; o bom homem endoidecia de contentamento. N'isto, um silvo terrivel ouve-se a pequena distancia. Era o comboyo, mas em que occasião, santo Deus! O pobre chefe estava vestido de mulher, de saia e lenço. Um dilemma implacavel se lhe apresentava: apparecer tal como estava ou faltar. Mas faltar seria um delicto muito grave, um motivo para demissão. N'isto o comboyo chegava... E o chefe da estação apparecia na plataforma, mascarado de mulher, a dar ordens no desempenho do seu cargo. Os passageiros riram a bom rir. O caso divulgou-se, espalhou-se ao longe, e agora é raro o dia em que passe um comboyo sem que alguem pergunte ao chefe da estação noticias da cabrinha... * * * * * --Já não ha salteadores no Alemtejo! dizia eu para um dos meus companheiros de viagem. Que falta que me faz um assalto, de que eu precisava escapar... para o contar depois! E elle referia-me casos tenebrosos de antigos salteadores alemtejanos, do José da Costa e do _Chapeu de ferro_, dois faccinoras, dois monstros, que viveram n'um tempo em que ainda se podia ser litterato. O José da Costa fôra ha doze ou quinze annos o terror das terras interpostas a Alcochete e Setubal. Desertor de lanceiros, andava a monte, zombando das auctoridades e da policia. Era um heroe terrivel, um homem sanguinario, uma lenda viva. Uma noite, encontrára o caseiro da quinta de Algeruz, e mandára-o apeiar do cavallo que montava. O caseiro obedecera immediatamente, e o faccinora dissera-lhe, passando-lhe a mão pela cara: --Anda lá, anda, segue teu caminho. O caseiro cavalgou de novo, dispunha-se a partir, quando José da Costa lhe tornou a dizer: --Apeia-te outra vez. E passando-lhe a mão pela cara: --Ajoelha-te. O caseiro ajoelhou. --Por esta vez, vae-te embora. O caseiro montou, e José da Costa, deitando a mão ás redeas do cavallo, exclamou: --Apeia-te, e ajoelha. E pondo-lhe a mão na cabeça e nas faces: --Vae com Deus ou com o diabo! O caseiro estava muito disposto a partir protegido por qualquer dos dois, quando o José da Costa lhe apostrophou: --Torna a descer, que to mando eu. E o caseiro desceu do cavallo. --Ajoelha. E o caseiro ajoelhou. --Monta agora. E o caseiro montou. E depois, vendo-o em cima do cavallo, atirou-o a terra com um tiro. --Coitado! disse, tornando a passar-lhe a mão pela cabeça inanimada, já devias estar cançado de montar e desmontar! De uma vez, José da Costa teve seus dares e tomares com um hespanhol pimpão. Travou-se a lucta braço a braço, e o faccinora parecia não levar a melhor. De repente, José da Costa grita para o hespanhol: --Olha quem ahi vem! Foge! Não vinha ninguem. O hespanhol, voltou-se e o faccinora feriu-o pelas costas. Foi na venda de Algeruz que José da Costa poude ser preso. Fecharam-lhe a porta á traição, cercaram a casa, e foram buscar a Setubal uma força militar, de que foi commandante o governador Cunha, ha annos fallecido. Mas dentro da taberna haviam ficado trez ou quatro homens, que não poderam sahir a tempo, e o José da Costa, vendo-se apanhado no laço, ia-os esfaquendo para saciar a sede de sangue. Os feridos gritavam de dentro, o povo gritava de fóra, a força havia chegado, estava de armas mettidas á cara, e de repente, por uma das janellas da casa, uma coisa saltára para a charneca. Mas os soldados, percebendo o que era, não descarregaram. José da Cosa havia atirado para fóra um cortiço, fingindo que era elle proprio que saltava, na esperança de que os soldados disparassem, e elle podesse fugir entretanto, são e salvo. Então, baldados todos os recursos, entregou-se á prisão. O _Chapéu de ferro_ infestava ahi por 1860 e tantos as circumvisinhanças de Beja. Uma vez matara um homem n'um _monte_, como quem diz um casal, e obrigára a mulher da victima a aparar-lhe o sangue n'um alguidar. Dois rapazitos, e um d'elles é hoje um cavalheiro altamente collocado, sahiam, em férias, de Beja para a sua terra natal. Um homem de grandes barbas espessas appareceu-lhes na charneca. --Quem são vocês? perguntou-lhes. --Somos estudantes. --E eu, sabem quem eu sou? --Não sabemos. --Pois eu sou o _Chapéu de ferro_. --O _Chapéu de ferro_! exclamaram horrorisados. --Sim, eu sou o _Chapéu de ferro_, e deixo-os ir em paz. Talvez _quizessem_ que eu os matasse, dois creançolas! XVIII A mulher Desde o paraiso terreal até hoje, não tem havido acontecimentos de polpa em que não figure a mulher. Os francezes dizem «_Cherchez la femme_». O que significa que a mulher anda sempre mettida em todas as endrominas d'este mundo. Ora, desde que principiou a desenvolver-se na imprensa o panorama escandaloso do Panamá, admirado estava eu de que não tivesse apparecido ainda como actriz ou como comparsa, como figurante de qualquer genero, uma mulher pelo menos. Já tinha tido tentações de lembrar á França que o seu proverbio falhára... pela primeira vez. Eis senão quando o proverbio triumpha, agora como sempre. No caso do Panamá apparece uma mulher, madame Cottu, e a sabedoria da França salva os seus creditos, emfim. Decididamente, a mulher, quer a emancipem quer não, tenha voto ou não tenha voto, ha de ser, na successão dos seculos, a eterna collaboradora do homem em todos os casos da vida. E visto que isto tem de acontecer por força, convém a cada homem escolher o typo de collaboradora que mais lhe agrade, especialmente para as emprezas em que o agrado é tudo. Deverá escolher-se a mulher pequena. Será essa, como typo do sexo, a que mais póde encantar os olhos de quem a vê? É certo que os antigos diziam: «A mulher e a sardinha quer-se pequenina.» A pequenina, a _mignone_, d'estas em que se póde pegar ao collo, e passeial-as sem cançar os braços, é, em verdade, um ser gracioso, que conserva, até mesmo na velhice, o que quer que seja de infantil, de ar alegre de boneca E de mais a mais dizia um philosopho, não sei qual, um philosopho apologista de mulheres pequenas: «Do mal o menos». Mas a verdade é que as nulheres altas, elegantes, fortes, se não são tão commodas para trazer ao collo, dão margem a que os olhos de quem as contempla possam saturar-se de bello sexo, demorando-se a miral-as da cabeça até aos pés. É como se a gente estivesse a olhar ao longo de terras vastas, de uma paizagem dilatada, com um horisonte amplo, infinito, em que sempre, por mais que se olhe, ha alguma coisa para vêr de novo. Outro philosopho--porque sobejam, graças a Deus! philosophos para tudo--costumava dizer que a mulher alta era a mais apreciavel de todas, visto que não tinha o coração ao pé da boca. Feia? Deverá ser feia a mulher? Não falta quem seja d'esta opinião. Não ha mulher feia que não possua pelo menos uma qualidade estimavel. A natureza mostrou-se principalmente sabia e justa nas compensações. Vê a gente ás vezes um homem loucamente apaixonado por uma mulher que a nós nos parece feia. Sempre que isto acontece, é para desconfiar que exista uma compensação, uma qualidade, que esse homem, tendo visto melhor que nós, conseguiu descobrir. De mais a mais, nada ha tão vehemente, tão vulcanico como o amor das feias. Tendo pouco quem as requeste, poupam o paiol do coração, de modo que o seu primeiro amor é como que uma explosão do Vesuvio. No olhar amoroso de uma feia ha sempre um discurso enthusiasta, que póde stenographar-se do modo seguinte. --Muito obrigada, bravo e heroico cavalheiro! que esgrimes denodadamente contra o preconceito da belleza, e que reunes á coragem o talento, porque só tu foste capaz de descobrir a belleza na fealdade, a compensação que a natureza me concedeu. Saber que uma mulher é bella, quando ella realmente o seja, não engrandece o espirito de ninguem. Basta, para isso, não ser cego. Mas vêr uma obra de arte, a que todos acham defeitos, e descobrir-lhe a unica qualidade boa que possua, chega a ser brilhante, a ser glorioso, ó nobre, ó bravo, ó excepcional cavalheiro! A ti, a minha eterna dedicação! Ora este discurso, pronunciado por dois oradores ao mesmo tempo, isto é, pelos olhos de uma mulher, faz impressão no espirito de um homem, envaidece-o, lisonjeia-o, acaba por subjugal-o. E assim se póde explicar de certo a rasão por que as feias vão tendo despacho e consumo. Estão no caso das feias, as velhas. Não me refiro a uma antiguidade verdadeiramente gothica, nem me proponho sustentar que um homem deva casar-se com a sé de Braga. Mas Balzac fez, como se sabe, o elogio da mulher de trinta annos, e eu, na minha obscuridade, acho que é essa uma boa conta para ponto de partida. Trinta annos! obra acabada, paredes solidas, pavimentos seguros, um predio capaz de resistir a um terremoto! Magnifico! Já passou a epoca das pieguices, dos amuos, dos caprichos de creança. Nada de esboços, de linhas indecisas: obra a que a natureza acabou já de dar os ultimos retoques! Excellente! Entre os trinta e os quarenta toda a mulher se encontra na situação das feias, ainda que tenha sido formosissima. --Muito obrigada pela distincção que o cavalheiro me concede! parece dizerem os seus olhos amorosos. Ha por ahi tantas meninas interessantes, tantas rosinhas em botão, tantas flôres frescas e mimosas, e o cavalheiro por todas passou sem as cobiçar! Realmente, sinto-me captivada... Mas deixe estar que não hade arrepender-se. Saberei amal-o como duas meninas, pelo menos: uma, que já fui, outra, que torno a ser, remoçada pelo seu amor. E a fim de trazer sempre o homem satisfeito e entretido, toda ella é coração, toda ella se dispende em lembranças mimosas, enviando ao cavalheiro flôres para a lapella e rebuçados para o peito. Contou Julio Cesar Machado, uma vez, que certa quarentona, soffrega de amar, tomára um trem para n'um dia de primavera, cheio de estimulos e effluvios, ir dar um passeio ao Campo Grande. Pelo caminho, o coração trasbordava-lhe do peito, expandia-se, mas, infelizmente, não havia um homem que quizesse ter a heroicidade de amal-a. Quando chegou ao Campo Grande, no momento de apeiar-se, já com o pé no estribo, reparou nos olhos do cocheiro, que eram bonitos, expressivos. E deixando-se cair para fóra, de modo a que o cocheiro tivesse a ideia de amparal-a carinhosamente, exclamou: --Amo-te, José Traquitana! Julio Cesar Machado deixou neste ponto a historia, mas é de presumir que a dama, acceitando as consequencias da sua allucinação, viesse a tranformar esse cocheiro n'um marido grato e discreto, com tacto para a vida, visto que havia principiado por ter boa mão de rédea. Deverá preferir-se a mulher formosa? É decerto a que mais agrada no primeiro momento, porque a vida é uma serie de illusões, e a formosura a mais grata das illusões. Lá disse o padre Vieira: «O que é a formosura senão uma caveira bem vestida?» Mas, emquanto está bem vestida, agrada, attrae, fascina. Todavia, se se pensa um momento, receia-se... A mulher formosa agrada tanto ao que a possue, como aos outros. Tem esse perigo, que constitue um sobresalto permanente. E depois o que a possue não póde de certo esquivar-se a pensar com os seus botões, á medida que a belleza se vae apagando: «Quem te viu e quem te vê!» Se a mulher vale só pela formosura, faltando-lhe a graça, a bondade, uma qualidade de valor, emfim, o que quasi sempre acontece graças á theoria das compensações, essa mulher é, já o disse alguem, um livro que uma vez lido, não tem mais que lêr. Deve procurar-se uma mulher de bom genio? Uma mulher de inalteravel bom genio parece feita de açorda, é uma espécie de _menu_ sem surprezas, uma permanente dieta, em que o espirito não passa de servir-se todos os dias uma aza de frango, como se fosse um doente. Não irrita, mas não vivifica. Não esfria, mas não aquece. Quando um homem chega a festejar as suas bodas de prata, não tem que dizer aos outros senão isto: «Meus senhores, tenho passado vinte e cinco annos da minha vida n'uma paz podre, que me sabe a gallinha cozida.» Se a mulher tem mau genio, se tem nervos, deve isso ser desagradavel para o marido algumas vezes, mas nada ha que possa lisonjear tanto o espirito de um homem como vêr uma mulher, que tem a vocação da guerra, offerecer-lhe um beijo... de paz! Oh! é glorioso para um vencido acceitar o ramo de oliveira que lhe offerece o vencedor! Deverá ser rica? Para passar a vida, é bom que seja rica a mulher. Mas não deixa isso de vexar um pouco o marido, se toda a riqueza veiu d'ella. Quando um marido em taes condições manda pôr o trem, sente-se engasgado como se tivesse de dizer: «O José, manda pôr o coupé da senhora.» Se vae ao theatro, ao entregar o bilhete ao porteiro, a consciencia grita-lhe que deveria dizer, a querer ser sincero: «Abra o camarote da senhora!» Oh! deve ser horrivel! Pobre? E se a mulher é pobre? Dá isso pena a um marido que sinceramente a estime. «Aqui está, dirá elle comsigo mesmo, uma mulher a quem eu quizera proporcionar todos os regalos, todas as commodidades de uma princeza, e comtudo só poderei offerecer-lhe este mez um vestido de percale.» De modo que a independencia de que um tal marido gosa junto de sua mulher, e aguada pelo desgosto de a não poder felicitar tanto quanto desejava. É difficil a escolha! concluirá o leitor. Com effeito assim é. Difficilima, acrescentarei eu. Mas ha talvez um meio de illudir a dificuldade da escolha: é amal-as a todas indistinctamente, para, com o auxilio da experiencia, escolher depois a melhor... se houver tempo para isso. XIX O carnaval... Já contei ha alguns annos a historia carnavalesca do Felix Telles, de Estarreja. Mas vou reedital-a, para que se torne tão conhecida quanto o merece a mais interessante e a mais veridica historia que o carnaval de Lisboa tem produzido, desde que a caraça é caraça. Felix Telles, boa pessoa, com seus laivos de patuscão, vivia no solar de um fidalgo de Estarreja, na qualidade de professor aposentado dos meninos da casa. De vez em quando vinha a Lisboa a pretexto de visitar o irmão e sobrinhos do fidalgo de Estarreja. Agradava-lhe essa patuscada, que o distraía da monotonia das arvores e da vida da aldeia. Assim foi que um anno, pelo carnaval, elle disse ao fidalgo: --Meu senhor, se v. ex.ª se não oppozer, vou a Lisboa pregar uma partida real a seu mano e sobrinhos. --Então que intenta você fazer, ó Felix? --Uma partida de carnaval, que passo a expôr a V. ex.ª Ámanhã de manhã tomo o comboio descendente. Chego a Lisboa das oito para as nove horas da noite. O mano de v. ex.ª é certo, com toda a sua familia, n'um camarote da Trindade, segundo o costume. Logo que eu chegar, vou hospedar-me no _Hotel Alliance_ para me lavar e descançar. Á meia noite pouco mais ou menos, mando um criado do hotel alugar um dominó preto ao Cruz da rua Larga de S. Roque. Dirijo-me em seguida ao theatro da Trindade, vou direito ao camarote onde estiver a familia de v. ex.ª e proponho-me intrigal-a, com casos certos, durante uma boa hora. Quando eu lhe fallar de certas coisas, toda a familia arderá em curiosidade, dará tratos á imaginação para descobrir quem eu seja. Mas não poderão lembrar-se de mim por me supporem em Estarreja. Á saida do theatro tomarei as minhas precauções para não ser seguido nem conhecido. De manhã metto-me outra vez no comboio, e á noite estarei aqui a ceiar e a rir do caso com v. ex.ª É ou não é, ex.^mo senhor, uma partida real? --Pyramidal! meu caro Felix Telles. Applaudo com enthusiasmo. Vá deitar-se, visto que tem de fazer madrugada. Mas que boa partida! Eh! eh! ria o morgado, esfregando as mãos de contente. Foi dali o fidalgo para o seu escriptorio e, a rir comsigo mesmo, redigiu o seguinte telegramma: «Felix Telles chega ahi hoje noite para intrigar-te theatro Trindade. Dominó preto, alugado Cruz. Vai Hotel Alliance. Prepara-te para ataque. Segredo.» Depois chamou o seu criado particular, disse-lhe que logo pela manhã fosse ao telegrapho expedir aquelle telegramma, recommendando-lhe a mais completa reserva. No comboio descendente, Felix Telles tomava effectivamente logar n'uma carruagem de primeira classe, e saboreava mentalmente o prazer da sua aventura. Entretanto o irmão do morgado, o visconde de ***, recebia em Lisboa o telegramma, e chamava o escudeiro para dizer-lhe: --Esta noite estarás em Santa Apolonia á chegada do comboio. N'uma carruagem, que segundo o costume será de primeira classe, hade vir o sr. Felix Telles, que tu conheces muito bem. Seguil-o-has, sem que te veja. Se tomar um trem, toma tu outro. Deve apeiar-se á porta do Hotel Alliance. Ahi, logo que chegue ou pouco depois, dará ordem ao criado para que lhe vá buscar ao guarda-roupa do Cruz, na rua Larga de S. Roque, um dominó preto. Esperarás os acontecimentos parado em frente do hotel. Certificar-te-has se effectivamente sae do Alliance um homem de dominó preto. Esse homem será o sr. Felix Telles. Logo que elle saia, tomar-lhe-has dianteira, correrás ao theatro da Trindade. Encostados á casa do bengaleiro estarão os meninos e, quando o sr. Felix Telles entrar, dir-lhes-has: É este. Entendeste: --Perfeitamente, sr. visconde. Esteja v. ex.ª certo de que saberei dar conta do recado. --Muito bem. No seu quarto, os filhos do visconde escreviam sobre uma larga tira de papel branco, em garrafaes lettras pretas, o seguinte lettreiro: «_Sou o Felix Telles de Estarreja._» E riam estrepitosamente, com aquelle grande bom humor que se perde para todo o sempre depois que os dezoito annos passam... O criado do visconde desempenhou-se da sua missão de confiança ás mil maravilhas. Felix Telles chegava ao theatro da Trindade quando já os filhos do visconde, postos atraz do guarda-vento, se preparavam para pregar-lhe nas costas a grande tira de papel branco. Esta operação, aliás difficil, foi feita com perfeita delicadeza. As pessoas que presencearam tudo isto, casquinaram uma estrondosa gargalhada, que Felix Telles não percebeu. E logo muitas vozes, umas accentuadamente masculinas, outras feminilmente esganiçadas, começaram a gritar n'uma surriada d'opereta, emquanto o dominó preto passava: --Olha o _Felix Telles de Estarreja_! O homem estremeceu dentro do seu dominó, debaixo da sua mascara. E sujeitos de chapeu de côco, creanças de bisnaga em punho, _pastorinhas_ vestidas de gaze côr de rosa, _vivandeiras_ de cantil a tiracollo, caíam sobre elle com o peso d'uma troça implacavel. --Olha o _Felix Telles de Estarreja_! Elle voltava-se para surprehender o denunciante em flagrante delicto de bisbilhotice, não conhecia ninguem, suava, tressuava, perguntava a si proprio se teria enlouquecido, e então os esguichos, as gargalhadas, os gritos recrudesciam n'um _crescendo_ atroador. De repente, no salão, o visconde, de braços abertos, um riso epigrammatico nos labios, postado deante do dominó, saudava-o com a terrivel apostrophe, que se repercutia nos eccos da sala: --Ó Felix Telles, que diabo de lembrança foi a sua! E elle, o Felix Telles, desesperado, hydrophobo, apopletico, respondeu-lhe na sua voz natural, cheio de raiva, de colera: --Ora deixe-me, que não sou eu! E saiu, saiu acompanhado até á porta do theatro por este grito terrivel, insistente, perseguidor: --Tu és o _Felix Telles de Estarreja_! E no conjuncto de todas essas vozes irritantemente causticas, atrozmente mordentes, elle distinguiu perfeitamente as vozes dos filhos do visconde que gritavam: --Ó Felix Telles, venha cá!... Entrando no _Hotel Alliance_, Felix Telles despiu de repellão o dominó, deixou-o ficar sobre o tapete do quarto, disse brutalmente ao criado que se fosse embora, que o deixasse em paz, que o chamasse a tempo de sair no comboio da manhã, e que se não esquecesse de mandar entregar depois o dominó ao Cruz, com mais dez tostões que elle deixaria sobre a banquinha. Pela manhã, pagou rapidamente a sua conta, pousou sobre a banquinha os dez tostões para o Cruz, e saiu. Quando á noite chegou a Estarreja, já um telegramma do visconde para o irmão o havia precedido. --Então? perguntou-lhe o morgado o mais seriamente que poude. --Então! respondeu Felix Telles. Aquillo é ainda uma aldeia peior do que Estarreja! toda a gente me conheceu logo que lá cheguei! --Não é possivel! --Tão possivel como eu ter ouvido gritar de todos os lados, a todas as pessoas, que aquelle dominó preto era o Felix Telles de Estarreja! --Conhecel-o-íam pelo andar? --Eu sei lá, sr. morgado! Conheceram-me por tudo, não se ouvia senão o meu nome n'uma berrata que me ensurdecia! Trez dias depois, o morgado chamava ao seu escriptorio o Felix Telles e perguntava-lhe: --Onde foi que você despiu o dominó preto? --No _Hotel Alliance_. --E não viu no dominó preto alguma cousa branca? --Só se fosse o forro... Mas não reparei. --Pois eu lhe posso dar algumas explicações, que façam luz sobre o caso. Felix Telles esbugalhava os olhos attento, curioso. --Não viu um papel branco pregado nas costas do dominó preto? --Não vi! --Aqui o tem, pois--dizia o morgado desdobrando cautelosamente uma tira de papel enrugado, rasgado, que o visconde mandára pedir ao _Hotel Alliance_ e lhe tinha remettido pelo correio. E elevando-o á altura dos olhos de Felix Telles, mostrou-lh'o. --_Sou o Felix Telles de Estarreja_! dizia o papel. O pobre homem estava passado, assombrado. --Mas então!... exclamou elle caindo em si. E o morgado respondeu-lhe com uma gargalhada estrondosa, ao mesmo tempo que todas as pessoas da casa acudiam á porta do escriptorio a rir, a rir... XX O chapeu Perguntaram a uma tricana do norte para que servia o chapelinho, do tamanho de uma avellã, que coroava os seus fartos cabellos negros. --Ora essa! exclamou ella ironica e desdenhosamente. Serve para pôr e tirar... Realmente, é para isto que serve o chapeu, qualquer que seja o seu tamanho e o seu feitio, mas, principalmente pelo que respeita ao sexo masculino, que de responsabilidades andam ligadas ao simples facto de pôr e tirar o chapeu!... Custa pouco isso, tiral-o ou pôl-o, coisa é que se faz n'um momento, e comtudo nada ha que possa ter mais serias consequencias do que pôr o chapeu quando se devia tirar, ou tiral-o quando se devia pôr. Não é so no theatro, durante os espectaculos, que pôr ou tirar o chapeu é um facto que pertence aos dominios do formulario social. Mas no theatro, visto que se está entre uma sociedade menos numerosa, dá isso mais nas vistas, e se um espectador conserva o chapeu na cabeça, depois do panno subir, todos os outros começam a gritar: Peu! peu! Se o tira, mas parece reconsiderar tornando a pol-o, como que tem isso o proposito de querer irritar os outros espectadores, e então sobe de ponto a gritaria dos que mandam desbarretar o insolente. Ha já muitos annos, no theatro da rua dos Condes, appareceu n'um camarote de segunda ordem um grupo de patuscos que vinham das hortas, bem comidos e bem bebidos,--bem bebidos, sobretudo. Não se lembraram ou não quizeram tirar o chapeu, e o publico indignou-se, começou, de cara no ar, a gritar, a berrar para que se descobrissem. Assistia ao espectaculo, com alguns amigos, o Moita e Vasconcellos, então jovialissimo rapaz, mais tarde conselheiro e chefe de repartição no ministerio das obras publicas,--o pobre Moita que tão desgraçado morreu! Pareceu-lhe boa occasião de tirar partido do conflicto, e foi bater á porta do camarote dos patuscos. --Quem é? perguntaram de dentro. --A auctoridade, respondeu o Moita e Vasconcellos. Abriu-se a porta do camarote, e o Moita, tomando o ar grave de um representante da lei, exclamou: --Isto que se está passando é uma pouca vergonha! Pagaram ou não pagaram os senhores o seu camarote? --Pagamos, sim, senhor. --Pois se pagaram, podem estar como quizer, comtanto que não offendam a moral publica. Tanto monta ter o chapeu na cabeça como não ter. Isso não offende a lei nem a moral. O dever da auctoridade é proteger os direitos de cada um, disse e saiu com a mesma seriedade. Os do camarote, fortes com o apoio da lei, pozeram os chapeus na cabeça e despiram os casacos. Imagine-se a gritaria que n'esse momento irrompeu da platéa e dos outro camarotes! A inferneira cresceu a tal ponto, que a verdadeira auctoridade teve de intervir, e os patuscos tiveram de ceder, não podendo dizer ao certo se a embriaguez lhes haveria feito vêr a auctoridade em duplicado ou se neste paiz tudo andava tão fóra dos eixos, que havia duas auctoridades, uma para mandar pôr o chapeu, outra para o mandar tirar... N'alguns espectaculos tem acontecido que o publico se arroga o direito de mandar pôr ou tirar o chapeu, sem se importar com a intervenção das auctoridades, e sem que mesmo as auctoridades se atrevam a intervir. N'uma tourada de Badajoz appareceu uma vez um sujeito de chapeu alto. O publico, logo que elle entrou, começou a gritar-lhe em côro: --Que quite el sombrero! O homem quiz resistir, mas acabou por ceder. Tirou o chapeu. N'isto começou o publico a gritar, sempre em côro: --Que ponga el sombrero! E o homem, ao cabo de alguns momentos de hesitação, teve que pôr o chapeu, para depois o tornar a tirar, para ter que o pôr outra vez e para ter que tiral-o de novo... Na rua ha maior liberdade de acção, o facto de pôr ou tirar o chapeu escapa ao dominio do publico; mas por isso mesmo que ha maior liberdade de acção, ha maior responsabilidade no facto em relação á pessoa a quem é dirigido. Basta deixar de tirar o chapeu para cortar pela raiz, de um momento para outro, uma longa amisade de muitos annos. E assim, porque o chapeu ficou na cabeça, ficaram separadas moralmente duas pessoas. Tirar o chapeu fóra de proposito, tiral-o de mais ou tiral-o de menos, póde ter consequencias analogas, como se tome esse acto por troça, por baixesa de caracter ou por desconsideração. Tiral-o á mesma pessoa umas vezes, e não o tirar outras vezes, é caso para a pessoa, que umas vezes é cumprimentada e outras não, pensar no que deve fazer. Eu adoptei para este caso uma linha de procedimento. Se uma pessoa me cumprimenta uns dias por outros, hoje sim, ámanhã não, se me cumprimenta aqui e não me cumprimenta acolá, porque está acompanhada de melhor ou de peior sociedade, essa pessoa passa a fazer-me o effeito de um realejo, que me diverte proporcionando-me occasião de trautear esta popularissima trova: Quando eu quiz, não quizeste, Tiveste opinião; Agora queres, não quero, Tenho minha presumpção. O chapeu impõe deveres de normal cortezia, a que é preciso attender sem exagero para mais ou para menos. Nada ha tão aborrecido como o excesso de cortezia em que um chapeu póde incorrer estando fóra da cabeça quando devia conservar-se no seu logar. Um estadista portuguez, a quem um seu antigo protegido acompanhava de chapeu na mão por toda a parte, chegou a dizer n'um momento de desespero:--«Muito me incommoda a gratidão!» Da gente de Lisboa escreveu o quinhentista Prestes: ... e de Lisboa se sêa Que todos lá são honrados, Que de pessoa a pessoa Se fallam desbarretados. Mas Francisco Manuel de Mello poz á cortezia dos lisboetas seus justos limites quando disse: Um fallar com tanto geito, Um ditinho de repente. Que affeiçôa: _Um ter em tudo respeito_, Ai! mate-me Deus com a gente De Lisboa. Ter em tudo respeito,--eis a questão. É como se dissesse: ter conta em tudo. Respeito por os outros e por nós mesmos, até no cumprimentar! Ha pessoas que caem no defeito contrario áquelle, e que em vez e gastar a aba do chapeu, apenas gastam o dedo com que lhe tocam. É pouco. Se um só dedo podesse bastar a alguem para uso proprio ou alheio, a sábia natureza não nos haveria dado cinco dedos em cada mão. Quando a gente, não sendo militar, se vê cumprimentada d'esse modo, dá-lhe vontade de responder ao dedo com o braço todo,--para se mostrar generosa! O presidente de não sei que estado americano, passeiava um dia na praça publica, vestido á paisana, com o seu ajudante de campo ao lado. Passou por elle um escravo, e cumprimentou-o. O presidente tirou-lhe o chapeu, e seguiu seu caminho. Mas quiz parecer-lhe que o ajudante achou que elle cumprimentára de mais para um escravo. Voltou-se e disse: --Não quero que possa haver n'este paiz alguem mais bem educado do que eu! Isto percebe-se, e é logico. Fazer apenas meia dose de cumprimento, não é cumprimentar, é vexar, porque se lembra á pessoa cumprimentada a sua inferioridade. Ainda ha uma cousa peior talvez do que dispensar sómente meia dóse de cumprimento:--é exigir que lhe dispensem dóse dobrada. Certo fidalgo costumava deixar ficar de chapeu na mão as pessoas que lhe fallavam. Um dia, na rua larga de S. Roque, passou um sujeito a quem repugnou vêr outro desbarretado deante do fidalgo, que o não mandava cobrir. Chegou ao pé dos dois, tocou no hombro do que estava descoberto, e disse-lhe: --Póde pôr o chapeu na cabeça, que este senhor dá licença. Se algum dos dois devia agradecer não era o desbarretado, mas o fidalgo, porque estava fazendo peior figura... Ter em tudo respeito, ter conta em tudo, eis o caso. Chega a gente a sentir-se enjoada de vêr um sujeito que cumprimenta a torto e a direito para dentro de todos os trens que passam--ha n'isto verdadeiros especialistas--e que se agarra a um cabello para ter o pretexto de se tornar _snob_ dos machuchos. Mas não enjôa por certo menos vêr outros sujeitos que põem todo o seu orgulho na aba do chapeu, imaginando que a aba do seu chapeu é a continuação do firmamento. Acima d'elles, só Deus, e ás vezes nem Deus... que não conhecem! De tudo quanto completa a _toilette_ do homem é com certeza o chapeu o que lhe impõe maiores responsabilidades, o que o approxima ou affasta mais dos outros homens, o que o póde definir melhor na sua individualidade moral, o que o póde tornar mais estimavel e o que tambem o póde comprometter mais. E tudo isto por que? Porque o chapeu, como disse a tricana do norte, serve para pôr e para tirar. E em saber pôl-o a tempo e tiral-o a proposito é que está o buzilis. Pouco importa que o chapeu seja pequeno e a cabeça grande, que o chapeu seja grande e a cabeça pequena. Não está n'isso a harmonia entre o homem e o chapeu, mas sim no uso conveniente ou inconveniente que d'elle se faz. Quando a gente, ao sair de casa, põe o chapeu na cabeça, é como se pozesse ao sol o forro de si mesmo,--as suas ideias, os seus sentimentos, a sua educação, o seu caracter. Ha chapeus que vão dizendo de cima da cabeça: «Cá vae este tolo, que não conhece os conhecidos». Ha outros chapeus que, aborrecidos da roda-viva em que andam, parecem gritar a cada momento: «Cá vae este tolo, que até conhece os desconhecidos!» Ainda ha outros chapeus que parecem muito contentes do acerto com que são tratados pelo dono, e em cuja copa a gente cuida lêr esta divisa: «Nem de mais, nem de menos». Já repararam em que o chapeu, qualquer que seja o seu tamanho e feitio, parece variar de peso em certas occasiões e, especialmente, de pessoa para pessoa? O mesmo chapeu, se a gente está de animo opprimido, parece pesar mais que de costume. Um pretendente, fallando uma vez com Antonio Rodrigues Sampaio, começou por dizer-lhe, visto que n'esse momento lhe parecia ser de chumbo a aba do chapeu: --Muito custa, sr. conselheiro, andar a gente por aqui de chapeu na mão! E Sampaio, que tinha soffrido e trabalhado como poucos, respondeu de prompto obrigando-o a cobrir-se: --Pois ponha-o na cabeça, e diga o que quer. Dois sujeitos compram chapeu da mesma fórma e no mesmo chapeleiro. A um d'elles o chapeu como que brinca sobre a cabeça, inclinando-se requebrado n'um bolero permanente. É que a cabeça anda alegre e communica ao chapeu, que se sente leve, a vontade de foliar. A outro o chapeu vae-lhe descendo insensivelmente até ás orelhas, dando mostras de querer enterrar-se por desgostoso. É que a cabeça pegou-lhe as scismas em que anda martellando no silencio do espirito. Tão certo é, meus senhores, que o chapeu revela o homem:--o chapeu é o estylo de toda a gente, incluindo a que não tem estylo. XXI Os antipodas Ha pessoas tão infelizes, que julgam que a sua propria infelicidade não terá fim. Ha melancolicos para quem a esperança não accende um unico raio de sol, tão entranhadamente elles se entregam á melancolia. Ha pobretões que desanimam de ser remediados algum dia, tão pouca fé lhes vivifica o coração. É para todos estes que eu escrevo hoje, mandando-lhes n'uma anecdota um ensinamento moral, que póde, por um momento ao menos, arrancal-os aos seus pensamentos sombrios, tiral-os, por um instante que seja, do inferno da sua desesperança e entremostrar-lhes o ceu... O padre-mestre Fanhões tambem se arrepellava, teimosamente incredulo, quando o seu collega Liborio pretendia demonstrar-lhe que na esphera terrestre havia habitantes que, em relação aos de meridianos e parallelos oppostos, se chamavam antipodas, porque se achavam collocados de modo que os pés de uns estavam voltados contra os pés de outros. Padre-mestre Fanhões não o podia crêr e desgostava-se d'isso, visto que toda a gente acreditava na existencia dos antipodas, menos elle. --Não me fio! dizia de si para comsigo. Como é possivel que, estando nós n'um hemispherio de cabeça para cima, possa haver gente que se equilibre de cabeça para baixo no outro hemispherio?! Por mais que matutasse no caso, acabava sempre por dar razão a si proprio, e negal-a ao collega Liborio. --Ora imaginem, insistia elle, uma laranja, porque a terra tem approximadamente, segundo se diz, a fórma de uma laranja. Ponho a laranja sobre um prato e colloco-lhe facilmente na casca da metade superior um ou dois grãos de milho; mas se quizer collocal-os na metade inferior, claro está que não terei meio de segural-os. Cairão por força! Pois com os habitantes da terra ha de dar-se a mesma cousa. Que nos aguentemos de cabeça para cima, percebe-se; mas que haja outros que se aguentem de cabeça para baixo, não me entra no miolo. O Liborio é um asno, que acredita em todos os carapetões! E o padre-mestre, ensinando o seu latim aos rapazes, interrompia-se muitas vezes para dizer-lhes a proposito de cousa nenhuma: --Nos antipodas é que eu não acredito! Não póde ser! Os rapazes davam-lhe razão, não só porque n'essas occasiões o padre-mestre os apoquentava menos no latim, mas tambem porque elles proprios não tinham grande convicção na tal historia dos antipodas, gente que devia viver pendurada pelos pés, em permanente gymnastica. Tirante a caturreira dos antipodas, padre-mestre era uma excellente pessoa, um sacerdote exemplar, muito respeitador das leis da egreja e dos preceitos da Bulla da Santa Cruzada. Ás sextas-feiras comia-se sempre de magro em sua casa: os rapazes já contavam com o bello bacalhau n'aquelle dia. Elle proprio, o bom padre-mestre, o ia escolher á tenda nas quintas-feiras de tarde. Trazia-o para casa, escondido debaixo do capote. Dava-o a vêr á criada. --Que era de primeira ordem, approvava ella, o melhor que podia ser! --Pois sim, Gertrudes, vae atar-lhe uma corda e pôl-o a dessalgar no poço. Dito e feito. A Gertrudes pendurava o bacalhau, e mergulhava-o no poço até ao meio dia seguinte. Succedia algumas vezes que o padre-mestre Fanhões se encontrava n'esses dias, na botica, com o seu collega Liborio e, como sempre, discutiam o eterno thema, a eterna teima dos antipodas. --Que não! que não podiam existir! exclamava decisivamente o padre-mestre. Não havia argumento convincente que o Liborio não empregasse; mas o padre-mestre, muito casmurro e auctoritario, cortava a questão dizendo: --Ha duas cousas que eu sei perfeitamente: a primeira é que tenho ámanhã bacalhau para o jantar; a segunda é que essa tal historia dos antipodas não tem pés nem cabeça. Ora succedia que na sexta-feira pela manhã, quando a Gertrudes ia tirar o bacalhau do poço, o encontrava sempre reduzido a menos de metade; estava ratado, comido. O que seria, o que não seria?! --É gato que desce pela corda, alvitrava o padre. --Isto não é dente de gato! ponderava acertadamente a Gertrudes. E, realmente, fizeram a seguinte descoberta: que não podia ser gato de casa, porque o não tinham, e não podia ser gato de fóra, porque os muros do quintal eram muito altos, e estavam eriçados de cacos de garrafa. --Será elle rato de agua, ó Gertrudes?! --Nada, sr. padre-mestre, isto menos póde ser dente de rato. --Olha, dente de coelho é que é com toda a certeza, porque por mais que a gente puxe pelo miôlo não sabemos o que seja! A Gertrudes achava mais uma vez graça a este dito do padre-mestre, sempre repetido, e na sexta-feira seguinte, quando ia tirar o bacalhau do poço, encontrava-o roido em metade. Os alumnos do padre-mestre tinham inventado esta patuscada do bacalhau e, graças a ella, passavam em cautelosa folia as noites das quintas-feiras. Eram elles, os diabretes! que, depois de estarem certos de que o padre-mestre dormia, e de que a Gertrudes ressonava, desciam pé-ante-pé ao quintal, e, içando o bacalhau, cortavam e comiam grandes lascas. Se lhes dessem uma ceia de _foie-gras_ talvez não gostassem tanto. O bacalhau roubado tinha para elles o sabor do fructo prohibido, a que servia de aperitivo a chalaça de o irem buscar ao poço com o sobresalto de ratoneiros que temem ser presentidos. Padre-mestre dava em doido, o caso já o ia intrigando tanto como a historia dos antipodas. Um dia chamou de parte o mais intelligente dos seus discipulos de latim, e contou-lhe o que estava acontecendo com o bacalhau. --O que será? perguntou candidamente o padre-mestre. --Ao certo não sei, respondeu o estudante. Mas talvez... --Talvez? --Pode muito bem ser que o comam os antipodas. --Lá vens tu com a fabula dos antipodas! Não creias n'isso, rapaz! --Ó sr. padre-mestre, pois se todos os sabios dizem que sim, por que rasão havemos nós de pôr em duvida o que elles affirmam! De mais a mais vossa senhoria tem meio de averiguar a verdade. Sexta-feira pela manhã debruce-se no poço, ponha-se á espreita, que talvez os apanhe com a boca na botija. --No bacalhau é que tu queres dizer... --Sim, senhor, no bacalhau. --Pois olha que hei de tomar o teu conselho. Na sexta-feira eu proprio irei tirar o bacalhau do poço para desenganar-me. Póde calcular-se o que os estudantes ririam uns com os outros á espera da sexta-feira, que n'aquella semana parecia não chegar nunca, tão anciosamente elles a esperavam. Mas, arrastadamente, a sexta-feira chegou, e o padre-mestre foi em pessoa buscar o bacalhau. Ao debruçar-se no poço, deu um grande grito. A Gertrudes correu á janella: --O que é, sr. padre-mestre? perguntou --Eu vi um homem no fundo do poço, respondeu elle assaralhopado. E assim que me endireitei para gritar, fugiu. --Atire-lhe uma pedra, sr. padre-mestre, aconselhou um dos estudantes, que tambem tinham acudido. O padre-mestre pegou n'um calhau e atirou-o para o fundo do poço. A agua turvou-se, de modo que, por mais que elle se debruçasse espreitando, não tornou a vêr homem nenhum,--isto é, não podia vêr-se a si proprio. --E o bacalhau está inteiro? perguntou outro rapaz --Vamos vêr isso. O padre-mestre deu-se pressa em içar a corda. Faltava metade ao bacalhau. --Ora agora, sr. padre-mestre, disse-lhe o estudante que primeiro o havia aconselhado, já vossa senhoria não póde duvidar da existencia dos antipodas, porque os viu. --E é verdade que vi um! --Mas o que fez elle quando vossa senhoria appareceu á beira do poço? --Ora o que faz um gatuno quando alguem o apanha com a boca na botija? --No bacalhau, sr. padre-mestre, emendou o estudante. --No bacalhau ou na botija. Fugiu! Pois o que havia elle de fazer, o patife?! --Vossa senhoria reparou se elle trazia casaco? --Trazia, sim, lá isso ainda eu pude vêr. --Está provado então que os antipodas vestem como nós. E vossa senhoria que não queria acreditar n'elles! --É verdade! Ninguem póde dizer: d'esta agua não beberei. Vou confessar o meu erro ao collega Liborio. E foi. O collega Liborio estava na aula a ensinar geographia aos rapazes. O padre-mestre chamou por elle em altos berros. O Liborio veiu á porta vêr que afflicção era aquella. Era o padre-mestre, que lhe gritou: --Não ha duvida, não senhor; Você tem razão n'aquillo dos antipodas! --Porque, ó padre-mestre? --Porque eu vi um. --Viu um! --Vi-o com estes que a terra hade comer. --E onde é que o viu? --No fundo do meu poço! Assim é em tudo o mais. Por muito escura que seja a vida, e basta que seja tão negra como o fundo de um poço, por mais teimosa na sua descrença que seja uma alma, e basta que o seja tanto como a do padre-mestre Fanhões, chega sempre um dia em que se vê ou se cuida vêr aquillo que jámais se reputava visivel: realidade ou illusão. Melhor é que seja a realidade, ao contrario do que aconteceu com o padre-mestre. Mas se fôr illusão, isso basta ás vezes, n'um mundo em que a maior parte das cousas são illusorias, para sentir a alma menos propensa á duvida e ao desalento. O padre-mestre julgou vêr um antipoda, e morreu na fé de que elles existiam,--por isso. O collega Liborio, em vez de vêr os antipodas no fundo do poço, via-os nos compendios de geographia e nos globos. Nem por se ter convencido mais depressa logrou ter maior convicção de que o padre-mestre desde aquelle dia. E ambos chegaram ao mesmo fim por caminhos diversos. Mas, com quanto um se atrazasse na jornada, ambos chegaram, e o essencial na vida é chegar... alguma vez! XXII As uvas Outubro: todos os lavradores tratam de apurar o resultado das vindimas. Quantas pipas de vinho tiveram? A como as venderão? Eis as questões que principalmente os preoccupam. São, pois, as uvas que estão ainda em scena no grande palco da vida rural, tablado sombrio e melancolico desde que o phyloxera começou a roer os bastidores feitos de pampanos e latadas, outr'ora verdejantes e opulentos de seiva. As uvas, disse-o algures Julio Cesar Machado, são o vinho em pilulas. Deliciosas e saborosas pilulas, que não precisam ser doiradas com assucar como as da botica!... Um dia, certo medico, que punha muito gosto em falar com distincção, aconselhou um dos seus doentes a tomar umas pilulas amargas que, para não repugnarem, precisavam ser envolvidas n'uma substancia doce. --Tome-as n'um vehiculo qualquer, recommendou o medico. Ora em pharmacia a palavra vehiculo é synonimo de excipiente, isto é, a substancia em que se encorporam ou dissolvem os medicamentos, para lhes mascarar o sabor, para diminuir o seu principio activo ou ainda para lhes dar uma fórma conveniente. No dia seguinte vem o medico, e não encontra o doente em casa. Mostra-se profundamente surprehendido e contrariado. --Onde está elle?! --Saiu. --Saiu?! Que imprudencia, santo Deus! --Mas foi V. ex.ª que mandou... --Eu?! N'isto ouve-se parar á porta uma carruagem. Era o doente, pallido e tremulo, que regressava a casa. --O que fez o senhor?! perguntou o medico. --Saí de carruagem. --Mas que loucura foi essa?! --Pois V. ex.ª não me disse que tomasse as pilulas n'um _vehiculo_ qualquer! Tomei-as de carruagem... Com as pilulas de vinho, tão doces são! não pódem dar-se d'estes equivocos, pois que não precisam vehiculo--assucar ou carruagem--para engulir-se com agrado. Perde-se na noite do cahos a origem da vinha e do seu fructo saboroso. Segundo a Biblia, Noé foi o inventor da arte de fazer vinho e, por tal signal, que aprendeu á sua custa, empiteirando-se sem o querer. Segundo a mythologia, foi Baccho o primeiro viticultor, e o que é certo é que nós ainda hoje, quando carregamos nos tropos, dizemos muitas vezes--o deus Baccho--em vez de vinho. Mas quem sabe lá qual foi ao certo o primeiro homem que cultivou a vinha e bebeu o sumo das uvas! De mais a mais a vinha não foi arvore que Deus prohibisse, como a do _bem e do mal_. Não, senhores, a cultura da vinha foi livre desde o principio do mundo, e então, que me conste, não se vendia o vinho por decilitros. O systema metrico decimal é, acho eu, muito posterior á origem do mundo... Cada um podia beber o que quizesse. Que delicia, o principio do mundo! Pois não serei eu que me proponha estudar a origem do vinho, para não incorrer no ridiculo d'aquelle sabio que, tratando de descobrir o inventor do jogo do _voltarete_, ficou capacitado de que tinha sido... Voltaire. Ha poucos dias li n'uma obra interessantissima, a viagem de Pyrard ás Indias Orientaes, que o duque de Alba, tendo tomado a cidade de Haerlem, na Hollanda, mandou fazer n'ella execuções tão crueis, que ha quem derive d'ahi o proverbio _fazer arlem_, de onde veiu, por corrupção, fazer _arlia_ ou _arrelia_. Pois nem Francisco Pyrard, nem Cunha Rivara, que commungou esta opinião, eram dois insignificantes. Pareceu-me forçada a derivação e contando-a a um homem de espirito, disse-me elle: --Eu estou convencido do contrario. Sabe vossê que Jacob só muito contrariado casou com Lia. Por isso, é natural que a não tratasse bem. Obrigava-a a trabalhar, sem que ella podesse e, como n'esse tempo todos os homens eram grosseiros, dizia-lhe a cada momento: _Arre, Lia_. D'aqui é que veiu certamente a locução... Tem graça, e caracterisa a facilidade com que os sabios inventam origens. Sempre me ha de lembrar o caso d'aquelles dois distinctos archeologos que, n'uma serra de Portugal, encontraram certa pedra tosca com estas duas lettras gravadas: C. M. Discutiram, investigaram, até que um cantoneiro lhes disse: --Essa pedra foi mandada ahi pôr ha muitos annos pela senhora _camara municipal_. Ficaram de cara á banda, os sabios. A mim, a respeito da vinha, não me ha de acontecer outro tanto. Tiro o meu chapeu á antiguidade da cepa, e passo adeante. Mas como as uvas, e bebo o vinho. No estado de civilisação em que nos encontramos hoje, é o melhor que temos a fazer. Sem embargo, tambem gosto de olhar para ellas, principalmente se são brancas, graciosamente tocadas pela luz em cada bago, o que faz o desespero dos pintores. Só um soube até hoje igualar-se ao Creador na reprodacção das uvas. Foi Zeuxis, diz a lenda. Os passaros, enganados por uma tão perfeita similhança, vieram bicar os cachos. Parrhasius, rival de Zeuxis, quiz pintar uma tela ainda melhor. No seu quadro havia um cortinado que enganou o proprio Zeuxis. --Levanta o cortinado, disse elle a Parrhasius, para que eu possa observar a tela. Quando reconheceu que era pintado, Zeuxis confessou-se vencido: «Eu enganei os passaros, mas Parrhasius enganou-me a mim!» A vinha póde ser mais ou menos elegante, alta e pendente como no norte do paiz, de _enforcado_ lhe chamam; ou pequena e redonda como nas provincias do sul: mas as uvas são sempre bellas na lucidez e variedade dos tons. É notavel que Camões, tendo vivido na Estremadura, se é que n'esta mesma provincia não nasceu, descrevesse na _ilha dos Amores_, não a vinha do sul, mas a de _enforcado_, a alta e pendurada, que vegeta no norte: Entre os braços do ulmeiro está a jucunda Vide, c'uns cachos roxos, e outros verdes. Frei Luiz de Sousa, na descripção da cêrca de Bemfica, serviu-se de uma feliz comparação com as pedras preciosas para caracterisar as _nuances_ da coloração dos cachos. Faziam, diz elle, «collares de pedraria as uvas, segundo os tempos, e as côres d'ellas: já topasios, já rubis, primeiro esmeraldas.» Na linguagem pittoresca do apologo, as uvas estão verdes quando a rapoza lhes não póde chegar. É uma das mais sentenciosas fabulas, essa, da rapoza e das uvas. Desdenha-se sempre d'aquillo que se não póde alcançar. --Ser ministro! diz um pretendente á pasta. Que massada! E do lado algum malicioso observa a meia voz: --Estão verdes, não prestam... Por este anno, vamos a despedir-nos das uvas, que só por ahi resta algum cacho guardado como um mimo. Perdem-se no ar, por esse paiz fóra, as ultimas canções das vindimas. No Douro, a região do vinho, a vindima é ainda uma festa, apesar da phylloxera. Canta-se todo o dia, vindimando. E ha razão para isso, porque a vindima representa o advento do vinho novo. No sul do paiz, a vindima corre triste e silenciosa, parecendo um funeral, o enterro das uvas. Mas, para o effeito de ser bom, pouco importa que o vinho nasça entre canções ou sem ellas. O que se quer é que alegre e aqueça... no inverno;--porque, no estio, alegra e refresca, dizem os borrachos. XXIII Pessoas conhecidas de vossas excellencias Temos visto cair de anno para anno, um a um, os mais antigos _habitués_ de S. Carlos. Por que não começaremos pelas testas coroadas? O seu _dilettantismo_ é tão humano como o dos outros _habitués_. Primeiro el-rei D. Fernando, um espectador certo, mesmo já quando a voracidade lethifera de um cancro lhe ia roendo a face. D. Fernando punha o seu parche de seda preta, e ia para S. Carlos, para S. Carlos onde elle havia brilhado outr'ora em plena mocidade feliz. Depois D. Augusto, que parecia amar a temperatura elevada de S. Carlos, apesar de ser um cardiaco. Em seguida, el-rei D. Luiz, que tinha pela musica a paixão nativa de todos os Braganças. Já doente, pallida e flaccida a face, n'um esphacelamento lento que o rosto denunciava, ia uma vez por outra a S. Carlos como para se despedir da musica, que sempre adorára. Cá em baixo, nas cadeiras, desapparecêra primeiro o dr. Alvarenga, que passára a vida a tratar o coração dos outros, embora, para o atormentar, lhe bastasse o seu, de que soffria muito. Lembram-se do dr. Alvarenga? Sempre de casaca, gravata preta, oculos escuros, e um crescente mais _dilettante_ do que cathedratico. Lembram decerto. Depois o José Carlos _Poeta_, grande peitilho lustroso, casaca de amplas lapellas, calva ostentosa e lusidia. Tinha conhecido a avó de cada cantora que ia apparecendo, e decerto gosava, ouvindo a neta, mais do que nós, porque vivia da saudade deleitosa que as suas recordações lhe avivavam. Foi-se um dia, de repente, alli ao fundo da rua do Alecrim. Julio Cesar Machado, muito correcto dentro da sua casaca, sempre de gravata preta--querendo assim mostrar que já se não tinha na conta de moço, comquanto se tivesse ainda na conta de _dilettante_--foi, como uma estrella cadente que parece procurar outra no ceu, ver se encontrava pelo azul fóra a alma do filho, que era a estrella querida do seu coração affectuoso. Agora, ultimamente, o duque de Albuquerque, uma só pessoa, que fornecêra a S. Carlos dois _habitués_: o conde de Mesquitella e o duque de Albuquerque. O seu chinó, sempre tão fallado nas chronicas de S. Carlos, era como que a pagina mais eloquente do seu gosto pelo mundo: queria fingir de mais moço cada vez que S. Carlos abria, não obstante ser mais velho um anno. E, depois de certa idade, nada ha que envelheça tanto como cada anno que vae passando... Julio Machado raras vezes subia a um camarote para visitar alguem; e tambem raras vezes assistia, nos ultimos annos, a um espectaculo todo. Parecia um pouco cansado do mundo: entrára no periodo em que a gente vive principalmente de recordações. O duque de Albuquerque, pelo contrario, entrava em todos os camarotes, visitava todas as damas, e apenas saía de S. Carlos... quando os outros saíam. Tinha razão, porque elle ia lá não só para ouvir as operas, como tambem, para ver os outros. * * * * * José Carlos de Freitas Jacome alternára uma grande parte da sua vida em occupações que profundamente contrastavam uma com outra: a prosa dos tribunaes e a poesia da opera. De per meio, e de passagem, plantára o seu loureirosinho no jardim das Musas, era escrivão do civel na Boa Hora, _dilettante_ em S. Carlos, e poeta por desfastio nas horas em que da prosa dos autos ascendia á região da harmonia. Fôra bastante escriptor para não ser unicamente escrivão, e, fóra da Boa Hora, esquecia-se de ser escrivão, para ter as predilecções e as honras de escriptor. Bom homem a valer, amavel, sabendo vestir uma casaca, tendo o segredo de fazer espelhar, com uma limpidez de cristal, o peitilho da sua camisa. Nunca perdeu, apesar de velho e doente, os seus ares de homem elegante, os seus habitos mundanos. Gostava do mundo, e tinha bom gosto, porque mal se chega a comprehender a mania, que teem alguns, de se sepultarem em vida na solidão da misantropia. Duas coisas lhe não esqueceram nunca: as suas luvas, e uma flôr. Nas bellas noites de S. Carlos, Freitas Jacome enflorava sempre a lapella da casaca. E no theatro, na egreja, na rua, na Havanesa, jámais lhe esqueceram as luvas, que ás vezes não calçava, mas que não abandonava nunca. Dava gosto vel-o na sua cadeira de S. Carlos, grave, attento, tendo o ar de um diplomata pomposo. Tendo visto nascer o romantismo em Portugal, fôra romantico de convicção e, como tal, adorava a musica italiana, saboreava-a, a goles de audição, como se fosse um licor esquisito, divino. Verdi servia-lhe á phantasia uma especie de champagne capitoso, que o embriagava docemente. Bellini e Rossini, dois copeiros da cava celeste, enchiam-lhe a taça do prazer de um tokay generoso, unico. E, de resto, tinha rasão, porque ainda não houve quem lhes podesse apagar os nomes na grande téla da immortalidade. Meyerbeer, uma aurora boreal, Mozart, uma estrella, Wagner, uma nublosa, passam hoje por todos os palcos do mundo, mas, sem embargo, as partituras italianas hão de illuminar-se sempre d'esse doce luar de sentimentalismo, que faz a delicia do coração. N'essa atmosphera fôra educado Freitas Jacome. Nos combates romanticos, da musica e da poesia, fizera as suas primeiras armas. Seguia o exemplo de Garrett no vestir e no pensar, amava o romantismo em si e nos outros. Não podia nivelar-se com esse grande homem na riqueza do intellecto, mas, no que podia ser assimilavel, imitou-o. Não podia medir-se litterariamente com Castilho, mas versejou a exemplo d'elle em honra das divas do Olympo lyrico, porque Castilho, com ser cego, glorificou na lyra o feminino da opera, a Agostini, a Bernardi, a Gazzaniga. Admirador de Herculano, uma das tres entidades gloriosas da trimurti romantica, não o imitou nos processos de vida rustica e meditativa: para solitario não tinha geito Freitas Jacome. Faz-me pena vêr morrer um homem que soube aproveitar o mundo como elle é e que, já combalido pela doença e desalentado pela velhice, poz o seu chapeu, pegou nas suas luvas, e foi para a rua esperar a morte, que não ousou atacal-o de cara, como a todos os tristes e a todos os fracos. Freitas Jacome morreu em plena rua, como Molière morreu em plena scena, n'um esforço de coragem. Lisboa, esta Lisboa que elle tanto amava, viu-o passar no seu ultimo passeio de vivo minutos antes de cahir morto. Mesmo doente, a vida exterior attraira-o. Em vez de pedir uma tisana ao medico, planeou o seu jantar d'aquelle dia, saiu, recebeu o ultimo golpe de luz que cahia do ceu de Lisboa, e morreu ouvindo o ruido da grande cidade, que fremia em torno d'elle. E todavia Freitas Jacome era provinciano! Muitas vezes lhe ouvi dizer que nascera em Thomar, cujas bellezas naturaes recordava, mas para um homem que gostava do mundo, e que tanto se interessava por elle, o mar de lona de S. Carlos era mil vezes preferivel á corrente authentica do rio Nabão. * * * * * Fallava-se muito dos irmãos Andrades, que já tinham cantado no Porto com a Sembrich, mas, cantar em Lisboa tendo nascido em Lisboa, caso era para uma certa curiosidade, direi mesmo para um certo receio. Todos nós nos lembravamos de ter visto esses dois rapazes pôr pela primeira vez chapeu alto. Foi outro dia, ainda. E quando se principiou dizendo que elles cantavam bem, havia sempre uma voz judiciosa que ponderasse: --Ora adeus! Se elles ainda outro dia pozeram chapeu alto! Christo dissera uma vez uma palavra profunda e sabia, como todas as suas palavras: que ninguem chega a ser propheta na terra em que nasceu. Por que será isto assim? É porque, talvez, o que em grande parte contribue para fazer a gloria dos homens é não tanto o seu merecimento como a sua lenda. Desde o momento que a gente apenas conheça, nua e crua, em toda a sua exactidão, a biographia de qualquer homem, vê-o unicamente pelo que elle possa ter de vulgar, de vulgarissimo, e julga que tudo o que constitua a individualidade d'esse homem ha de ser vulgar, vulgarissimo, tambem. Mas, quando se dá exactamente o contrario d'isto, quando primeiro se conheceu a lenda do que a biographia, então principiamos a vêr o semi-deus no homem, divinisamol-o ao capricho da nossa imaginação e da dos outros, porque a lenda não é outra coisa senão o que a imaginação de muitos sonha a respeito de um só... Se nos disserem que, no dia em que Adelina Patti nasceu, um rouxinol foi cantar sobre o seu berço, como para prophetisar-lhe que ella seria a rainha do canto, acreditamos facilmente. Ainda mesmo que a Patti tenha nascido no inverno, ainda mesmo! acreditamos que o rouxinol cantasse. Por que? Porque da Patti o que primeiro conhecemos foi a lenda, e, como já estamos habituados á lenda, nem mesmo chega a fazer-nos mossa ouvir cantar um rouxinol no inverno. Mas dos Andrades o que primeiro conhecemos não foi a lenda, foi a biographia. Tanto peior para elles. Viessem dizer-nos que quando os dois irmãos nasceram, seu pae, o tabellião José Justino, viu e ouviu um rouxinol começar a cantar sobre o berço de um e outro, como se o rouxinol viesse milagrosamente a vaticinar que o Antonio havia de ser tenor, e que o Francisco havia de ser barytono! Pois sim! Conta-lhe d'essas!--diriamos nós--rouxinoes! quaes rouxinoes nem qual historia! o que elle ouviria talvez seriam os pintasilgos da casa de jantar... Sempre o José Justino tem coisas! Depois, todos haviamos conhecido os dois Andrades ainda pequenos, todos os tinhamos visto assistir aos espectaculos do Gymnasio no seu camarote de familia. Por tal signal que riam a bandeiras despregadas com as pilherias do Taborda. E todos haviamos verificado que elles riam como as outras pessoas,--um pouco estavanadamente como todos os rapazes da sua edade. Onde estava n'isto a lenda? Voz podiam elles ter; lenda é que não tinham. Pois foi n'estas circumstancias, realmente difficeis, que os dois Andrades appareceram no palco do theatro de S. Carlos. Receiava-se... Suspeitava-se... Tremia-se!... Que falta faz uma lenda! Mas os dois artistas antepozeram o gosto de cantar na sua terra natal a todas as considerações pelas reticencias e pelas reservas dos seus conterraneos. E, uma vez resolvidos a cantar,--cantaram. E, depois que cantaram, ficou-se sabendo que elles sabiam cantar. XXIV Comer a dois carrilhos Numa villa do Alemtejo, cujo nome não vem para o caso, havia um tendeiro rico e avarento, que nem de verão nem de inverno se lembrava de atirar uma migalha aos mendigos que lhe batiam á porta. Um engeitado, um pária, um rapazote do sitio, tão pobre como ladino, matutou na injustiça da Providencia que dava ao tendeiro um bello capote de camellão para se resguardar do frio, ao passo que só lhe dava a elle o frio sem o capote. Matutou n'isto, e propoz-se regularisar a ordem das coisas. --Uma esmolinha, _tio_ Ambrosio, pelo amor de Deus... Está tanto frio! dizia elle, tiritante, roçando-se pela hombreira da porta do tendeiro. --Sai-te d'aqui, maroto, que não quero espantalhos á porta, resmoneava de dentro o tendeiro. Vae trabalhar. --Não posso, que sou doente... E tenho tanto frio, tanto! --Que te leve o diabo e mais o frio. No dia seguinte, o rapazito voltava. E, á força de teimar, o engeitado ia conseguindo poder demorar-se mais tempo á porta do tendeiro sem que o enxotasse já com tanta dureza. De uma vez o Ambrosio precisou um recado. --Olha lá, disse elle ao mendigo, já que não tens que fazer, vae-me ali chamar o José da Azenha. E o rapazito foi submissamente atravez o frio aspero da serra, ao passo que o tendeiro, bem embrulhado no seu capote de camellão, ficou sentado ao balcão da loja, olhando vagamente para os seus dominios. Ao outro dia o rapaz voltou. --_Tio_ Ambrosio, disse elle da porta, vocemecê não quer hoje algum mandado? O tendeiro ficou encantado com este desprendimento de um mendigo, que parecia ter o maximo empenho em fazer recados de graça ás pessoas ricas. Em vez de pedir que lhe pagassem o trabalho da vespera, o bom do rapaz vinha pedir que lhe dessem mais que fazer... pelo mesmo preço. --Sim, disse o tendeiro, pois olha... vae-me chamar o Joaquim da Rita, que preciso fallar-lhe por causa d'uma coisa. Essa coisa, eram uns juros em atraso. E o rapaz foi, em mangas de camisa, como andava, ao passo que o tendeiro, embuçando-se melhor no seu farto capote, disse lá comsigo que sempre estava muito frio. O Venancio engeitado, como todos o tratavam, tornou-se desde então o mais diligente criado que o tendeiro podia desejar. Sobretudo, pelo que tocava a soldada, era uma joia: nem vintem. Tambem elle não pedia. Mas fôra a pouco e pouco captando a sympathia e a confiança do tendeiro, que primeiro o deixou sentar á porta, e depois n'um banco dentro da loja. Nos dias de mercado, em que havia maior labutação no estabelecimento, o Venancio engeitado offerecia-se para tudo, elle para ir prender á argola as cavalgaduras, elle para lhes chegar umas sopas, elle para varrer as cascas dos ovos que os piteireiros bebiam, elle para limpar o balcão e lavar os copos... uma joia, uma verdadeira joia... a sêco!... O tendeiro gabava-o: Que era muito bom rapaz, que precisava muito, e que de mais a mais não era pedinchão. O que o tio Ambrosio queria, com toda esta cantata, era que os freguezes pagassem os serviços que o rapaz lhe fazia a elle, porque decerto pareceria escandaloso que uma vez por outra o Venancio não recebesse nada. Mas como os freguezes caíam, dando ao engeitado pão e azeitonas, o tendeiro entendia que ficava uma coisa pela outra, e achava-se desembaraçado para fazer do Venancio seu criado. Foram passando tempos, e uma vez, que estava na loja o morgado do sitio, um mãos-rotas de generosidade e bizaria, o Venancio disse de repente ao tendeiro, entrando na loja: --Ó _tio_ Ambrosio, se vocemecê me podesse dar agora aquellas duas libras que lhe dei a guardar, fazia-me favor. --Ó maroto! pois tu deste-me algumas duas libras?! --Dei, sim, senhor, ha dois mezes, na occasião em que estava aqui o da Michaela, que foi para o Brazil. --Ah! maroto, que me perdes! Pois tu já tiveste duas libras algum dia?! --Tive, sim, senhor, ha dois mezes, e dei-lhas a vocemecê para mas guardar por ser um homem de bem... --Ó senhor morgado, este maroto está-me a envergonhar! --E o _tio_ Ambrosio está-me a roubar, disse serenamente o Venancio. --Sr. morgado, continuava o tendeiro, eu sou um homem honrado, incapaz de tirar nada a ninguem. --Menos a um pobre... como eu. Duas libras! que eu guardava para uma precisão! exclamou o Venancio, e começou a chorar. Então, a natural bizarria do morgado não lhe permittiu tolerar aquella scena por mais tempo. Fosse verdade ou não fosse, era preciso acabar com aquillo,--uma miseria de duas libras! E o tendeiro envergonhado por tão pouco!... Não podia ser. --Rapaz, disse o morgado querendo salvar a situação, não foi ao sr. Ambrosio que deste a guardar as duas libras. Não te lembras bem. Foi a mim... Então o Venancio, serenamente, humildemente observou: --Essas foram outras, sr. morgado. XXV O ultimo puritano Era uma vez um velho, o Seabra, que eu de tempos a tempos procurava na repartição, porque tinha uma excellente mão de cursivo para tirar copias. Sessenta e seis annos bem puxados, posto que elle não desse ao manifesto mais de sessenta. --Sessenta--dizia elle--sessenta já cá estão! E suspirava. Não se sabia bem se suspirava com remorsos de estar mentindo ou porque, deitando as contas á sua vida, achasse que o mais prejudicado era elle... Tinha visto muita coisa, muita politica, muita patifaria. Nada que vinha de novo o surprehendia. Batera-se no Alto do Viso, trabalhára em varias eleições, e havia quarenta annos que saboreava, como premio de seus trabalhos e serviços, um pingue logar de amanuense cristalisado em seiscentos réis por dia. Conhecêra muitos homens importantes, que tinham lucrado com a collaboração d'elle, e outros que taes, para subir ao poleiro, e que por mais de uma vez lhe haviam promettido tiral-o d'ali para coisa melhor. Pois apesar de lhe faltarem a todas as promessas, de o trazerem enganado durante quarenta annos, elle tratava-os sempre com o mesmo respeito, cumprimentava-os muito reverente: --Sr. conselheiro, criado de v. ex.ª Era um praxista. Não cumprimentava ninguem sem ter descalçado primeiro a luva da mão direita, nem saía da repartição sem ir perguntar ao chefe, entreabrindo a porta do gabinete: --V. ex.ª, sr. conselheiro, determina mais alguma coisa? E o chefe, que estava conversando com amigos, muito entretido, nem o ouvia. Mas elle, insistindo, reperguntava: --V. ex.ª, sr. conselheiro, determina mais alguma coisa? E o conselheiro, se d'essa vez tinha ouvido, respondia: --Adeus, Seabra, até ámanhã. Algumas vezes lhe fallei do chefe, para sondal-o. E o Seabra dizia-me: --É dos novos; mas boa pessoa. Cheguei a entender o sentido d'estas palavras: _é dos novos_. Não era praxista, não respeitava as tradições e os regulamentos da burocracia, mas o Seabra reputava-o boa pessoa. Alma generosa, a d'esse velho amanuense! que, em respeito ao seu chefe, que o tratava simplesmente por _Seabra_, não ousava dizer d'elle senão que _era dos novos_... mas boa pessoa. Se o Seabra tivesse nascido meio seculo mais tarde, não entreabria a porta do gabinete do chefe para se despedir; mas, se o fizesse, e elle lhe respondesse com um «adeus, Seabra», pespegava-lhe uma tarea nas gazetas. Para um praxista como o Seabra, aquelle homem, que estava dentro do gabinete, conversando com os amigos, era seu chefe, e isso lhe bastava. Ora uma das praxes observadas pelo Seabra era a de consultar sempre, antes de sair da repartição, o seu espelhinho d'algibeira. Elle tinha apenas duas farripas de cabello branco, muito bem penteadas ao longo da cabeça. Mas essas duas farripas mereciam-lhe todo o cuidado e attenção. Vendo-se ao espelhinho, passava a mão por cima das farripas, brunia-as com os dedos, alisava-as. Depois observava a gravata, que era ordinaria, mas sempre bem tratada, sem sombra de pó. Por ultimo, segurando o espelhinho com a mão esquerda, escovava a sua velha sobrecasaca com a mão direita. E feito todo este serviço, depois que o chefe lhe dizia o «adeus, Seabra», guardava o espelhinho na algibeira, a escova no armario, e seguia para sua casa, a passos mesurados, muito vagaroso, pela rua do Oiro até Santa Martha. Inculcaram-m'o uma vez como tendo excellente letra para tirar copias. Apresentaram-m'o. Por varias vezes lhe dei trabalho, meu e alheio. Era pontualissimo na entrega das copias, e honestissimo nas contas que fazia. Arredondava sempre as quantias contra elle. Se, trabalhando a tanto por pagina, o seu trabalho importava por exemplo em 1$085 réis, não queria nunca receber mais de dez tostões. Comprehende-se que precisasse muito d'estas achegas para poder viver, visto que o seu logar lhe rendia apenas 600 réis diarios. Todas as noites saía para vir ao Rocio conversar n'uma loja até ás nove horas. O logista era um homem do tempo d'elle. Tratavam-se por tu. Ás nove em ponto, o Seabra despedia-se, ia para casa trabalhar até á meia noite, tirar copias a 120 réis a pagina. Não vi nunca pobresa mais resignada, nem mais elegante. Parecia um principe arruinado, a passos mesurados, pela rua do Oiro. Era só então que elle via o mundo, uma vez por dia. Mas via-o bem, depois de se ter preparado tambem para ser visto. Não saía da repartição sem o espelhinho lhe ter dito: «Estás correcto, Seabra.» Na rua do Oiro encontrava um conselheiro. Cumprimento respeitoso. --Criado de v. ex.ª, sr. conselheiro. Não deixava nunca de vêr os conselheiros, apesar de todo o seu gosto, ao passar na rua do Oiro, consistir em vêr as mulheres ou, mais propriamente ainda, em vêr os pés das mulheres. Se parava uma carruagem á porta de uma loja, tambem elle parava, com delicado disfarce, para vêr saltar do estribo uma dama. Não tinha esta escola moderna dos que fazem tudo descaradamente, parando e observando com petulancia. Nada disso. Elle via o pé, media-o com os olhos, calculava, pelo pé, as dimensões da perna, ficava sabendo a côr e a qualidade da meia, mas, se alguem, encontrando-se com elle, lhe adivinhava a intenção, disfarçava a olhar para uma _vitrine_ ou a lêr um cartaz. Só ao cabo de alguns annos de convivencia, eu consegui conquistar a familiaridade precisa para lhe fallar nos pés das mulheres. --O sr. Seabra pella-se por vêr um pé bem feito! --Gósto!... gósto! E d'ahi a pouco parou uma carruagem, apeiou-se uma senhora, que deixou vêr, sobre o estribo, um pé digno da admiração do Seabra. --Então, sr. Seabra! disse-lhe eu. Repare, que vale a pena. --Não! nunca! respondeu elle um pouco atrapalhado. Jámais eu o tinha visto, em nenhum caso da sua vida, tão contrariado como naquelle momento. --Aquelle pé--pensei eu--é talvez uma recordação para elle. Mas reflexionei. A dama era, relativamente, nova. Podia ser filha do Seabra. --Será talvez filha? E architectei um antigo romance de amor, que tivesse deixado ao Seabra uma filha natural. Se fosse assim, eu poderia conseguir talvez que elle me contasse o seu romance. Tentei o assumpto. --Mas então, meu caro sr. Seabra, porque perdeu esta occasião propicia? --Não! nunca! tornou elle a responder. Devorado pela curiosidade, insisti: --Era talvez sua parenta? --Qual! disse elle surprehendido. Era a mulher do meu chefe! Fiquei a olhar para elle, aturdido, assombrado. Ó lealdade da velha burocracia portugueza! que, em homenagem á disciplina social, desviava os olhos para não vêr o pé da mulher a quem o chefe havia dado a mão! E tive tentações de o abraçar, em plena rua do Oiro, exclamando: «Honradissimo José do Egypto, cujos olhos largam a capa, quando a mulher do chefe da repartição expõe o pé á vista do publico! eu te admiro e te venero!» Acompanhando-o pela rua do Oiro adiante, baralhavam-se-me no espirito casos que eu tinha ouvido contar, por mais de uma vez, de empregados publicos que captavam as boas graças dos chefes seguindo o processo opposto ao do Seabra. Admiravel homem! pensava eu, que penteia as suas farripas para ir vêr as mulheres e que, não obstante querer vêl-as, não perde nunca de vista um conselheiro, para lhe cumprimentar a carta de conselho, nem a mulher do chefe, para evitar cumprimentar-lhe o pé! Uma coisa que entristeceu muito o Seabra foi o ir perdendo a vista, e com ella o gosto de passar na rua do Oiro. Mas, não obstante, não largou nunca o seu espelhinho. Tinha o mesmo cuidado em alisar as farripas e escovar a sobrecasaca. Sómente mudou de caminho, tomava pela rua da Prata, em vez de seguir pela rua do Oiro. Os seus collegas diziam: --O Seabra agora está muito caido! Na repartição, elle trabalhava com oculos, mas na rua nunca os punha. Um dia insisti com elle em que viesse comigo pela rua do Oiro. Pediu-me muitas desculpas, e recusou. --Já não vejo nada! dizia elle. --Mas por que não põe os seus oculos? perguntei-lhe eu. E elle, muito sentencioso, respondeu-me: --Eu sou de um tempo em que não era permittido confessar nenhuma fraqueza em publico: nem mesmo a da vista. De uma vez, como sempre, o Seabra entreabriu a porta do gabinete do chefe. --V. ex.ª, sr. conselheiro, determina mais alguma coisa? perguntou. --Não, Seabra, até ámanhã. O Seabra compoz, diante do espelhinho, as suas farripas, ageitou a gravata, escovou a sobrecasaca, fechou a escova no armario. E metteu pela rua da Prata, na sua teima de não querer confessar em publico nenhuma fraqueza: nem mesmo a da vista. Junto á Praça da Figueira andava-se concertando um cano, a rua estava esburacada. O Seabra caiu tão desastradamente, que partiu uma perna. Foi conduzido em maca ao hospital de S. José. Logo que lá chegou, cheio de dôres, despiram-no, metteram-n'o na cama. E elle, dirigindo-se muito attenciosamente ao enfermeiro, disse-lhe: --Quer ter a bondade, sr. enfermeiro, de recommendar todo o cuidado com o meu fato, e de me dar um espelhinho que está na algibeira das calças? Passados dias fui visital-o, levei-lhe um romance para que elle se entretivesse, lendo-o. --Não posso, disse-me elle. Deixei os oculos fechados na repartição. XXVI Os principes do Perú Vem já ahi caminhando ao nosso encontro a bella festa do Natal. Não tarda nada. Os batedores, a guarda avançada, chegaram com a sua costumada pontualidade. Cá temos o frio e o perú passeiando ambos pelas ruas de Lisboa, um muito afiado e cortante, o outro gluglujante e luzidio. Esta solemne festa do anno tem o condão de sorrir a todas as idades, de lisonjear todos os paladares, de encantar todas as imaginações. As creanças pensam, cheias de jubilo, no seu Presepio, na sua arvore do Natal, na bonecada e nos bolos. Os namorados estão já arregalando o olho amoroso para a missa do Gallo, que é boa capa para entrevistas hombro a hombro, de mãos dadas, emquanto se finge rezar muito devotamente... Os velhos, que são ordinariamente gulosos, começam a afinar o olfacto para descobrir, nas lojas de confeiteiro, os mais saborosos petiscos. Os ambiciosos de qualquer idade e sexo sonham com a grande loteria de Madrid, esse ideial de felicidade que todos os annos lhes faz negaças á imaginação fogosamente credula. As beatas estão já antegostando a delicia de oscular mysticamente as carnes rosadas e divinas do pequenino Jesus. No meio de todo este côro de alegrias só uma nota discordante poderia soar, mas o perú, a principal victima do Natal, não tem decerto a consciencia do perigo que a esta hora está correndo,--felizmente para elle. Pobre perú! Ahi o vemos fazendo descuidosamente a sua ultima _avenida_, dando o seu ultimo passeio de condemnado á morte, sem pensar em disposições testamentarias, tão felizes são os perús! As pessoas do norte do paiz não teem, como o lisboeta, a tradição do perú do Natal. No Minho, na Beira, em Traz-os-Montes pensa-se agora em mil guloseimas, que não tardarão a encher de aromas a cosinha e a mesa, mas o perú setemptrional não tem que receiar-se da faca do cosinheiro, porque a tradição local não exige como victima senão a gallinha gorda e o gallo nedio. Eis aqui a rasão por que um rapaz da Ponte da Barca, que, ha annos, andava estudando em Lisboa, ficou muito surprehendido com o pedido que lhe fizera a mais astuciosa das suas namoradas lisboetas. Ella era filha de um servente de repartição, creio eu, que vivia cheio de difficuldades, porque a mulher lhe havia dado uma prole numerosa: tres filhas e quatro filhos. Emquanto todos os sete foram pequenos, era com profunda tristeza que o marido e a mulher viam passar na rua, pelo tempo do Natal, os bandos de perús luzidios e gluglujantes. Não podiam chegar-lhes, elles! Dez tostões não era quantia que um servente de repartição, cheio de filharada, podesse dispender. Isto ralava-o. Mas o pobre homem dizia muitas vezes á mulher: --Deixa crescer a raparigada, e verás que não nos faltarão perús. A mulher sorria com desalento e replicava: --Pensas talvez que estão á espera d'ellas tres principes muito ricos, que hão de ser nossos genros?! --Não é isso. Eu cá tenho a minha ideia. Deixa crescer a raparigada, e verás. Os annos foram passando, e as tres filhas do servente cresceram, principiaram a revelar um palminho de cara menos mau. A mais nova tinha quinze annos; a mais velha dezesete. --E então os tres principes do Perú? perguntava a mulher ao marido, fazendo um _calembour_ inconscientemente. --É agora. Vae começar este anno, cá pelo que eu tenho observado. Elles ahi estão a bater á porta... --Os principes? --Não, os perús. --Fia-te n'essa, pateta! --Ora dize-me uma coisa: Teem ou não teem já as raparigas o seu derriço? --Sim... acho que teem. E d'ahi, homem? --D'ahi, tem paciencia, e espera. Eu logo vou conversar com as raparigas, porque todo o bom pai precisa aconselhar ajuizadamente as suas filhas. O Natal estava por um fio, chega não chega. Fazia frio e luar. O estudante da Ponte da Barca não fôra a ferias, porque n'aquelle tempo ainda o caminho de ferro não tinha encurtado as distancias. O rapazote, achando-se sem obrigações escolares, principiou a entregar-se exclusivamente á cultura de namoros desde pela manhã até á noite. Ora ia vêr uma das suas bellas, ora ia catrapiscar a outra, mas a filha do servente, a dos quinze annos, era de todas as namoradas a que mais o prendia talvez, não só por esse orgulho natural de ter inspirado um primeiro amor, como tambem porque o estudantelho era poeta e a rapariga parecia-lhe romantica. Romantica, sim, senhor! Onde fôra ella aprender isso? Quem o podéra dizer! Foi uma qualidade que derivou talvez do fluido magnetico dos seus olhos negros e grandes. O pae era tudo o que podia haver de mais prosa em servente de repartição. A mãe era digna esposa de seu marido segundo os canones e a prosa. As irmãs só desejavam poder um dia comer bem e dormir melhor. Mas a rapariguinha dos quinze annos tinha suas _reveries_, contemplava o azul do céu, gostava de vêr o luar, o que o pae e a mãe muito extranhavam classificando de telhuda a filha mais nova. Pois o Natal estava por um fio, chega não chega, como eu ia dizendo ainda agora. O servente ressonava já ha muito tempo em competencia philarmonica com a cara metade. As outras duas filhas sonhavam talvez com alguem que lhes desse um vestido e um camarote, mas a Mariquinhas estava á janella, envolta no véu azul do luar, unico de que podia dispôr, a conversar idillios com o seu estudantelho do Minho. --Tu és-me infiel, dizia-lhe ella. --Eu! respondia elle. Eu adoro-te, Mariquinhas, e só penso em poder casar comtigo logo que seja alferes de cavallaria. --São palavras... Não sentes o que dizes! --Por que duvidas de mim? --Porque tenho a certeza de que o teu coração não é sincero. Só te lembras de mim quando me estás fallando. --Tambem isso são palavras, apenas. --Nunca tiveste uma pequena lembrança que me désses, uma d'essas apreciaveis bagatellas que valem mais pelo que significam do que pelo custam. Agradece-se, estima-se a intenção, principalmente... --E que gostarias tu que eu te offerecesse? Um ramo de flores?... (Foi a coisa mais barata que lhe lembrou). --Logo vi que havias de escolher uma coisa que durasse tão pouco como o teu amor. Eu gosto immenso de flores, mas tenho má fé com ellas no amor. São como que o presagio de que tudo acabará de pressa. As flôres duram tão pouco! --Um leque, Mariquinhas, um leque?... (Lembrou-se de ter visto na rua do Oiro uns que custavam oito vintens). Ella replicou indignada: --Eu não sou mulher que me requebre de leque na mão. Não sou d'essas mulheres levianas que andam pela rua a fazer fogo de vistas com a ventarola. --Mas eu não te quiz offender, Mariquinhas. --Talvez não quizesses. Eu sou uma rapariga honesta, que vivo á sombra de meus paes, e que os adoro. Pésa-me de que elles sejam tão pobres e tão bons. Sabes no que eu penso? Em proporcionar-lhes um dia de Natal agradavel, como elles já não tiveram ha muitos annos... --E como seria isso? --Fazendo-lhes a surpreza de uma boa _meia noite_. --Como? --Comprando-lhes um perú sem o elles saberem. O estudante sentiu uma punhalada no coração; duas punhaladas é que foram. Primeira punhalada: Então ella, tão romantica, tão sonhadora, pensa agora n'um perú? Segunda punhalada: Onde hei de eu ir arranjar dinheiro para comprar o perú? Mas, emfim, era preciso não fazer má figura deante da Mariquinhas. --Socega, querida. Has de fazer essa agradavel surpresa a teus paes. --Quando? --Ámanhã... decerto, visto que depois d'ámanhã é vespera de Natal. --Ah! como sou feliz! exclamou a Mariquinhas. E o estudante, quando sahiu d'ali, ia dizendo comsigo: --Ella é muito exigente para um estudante, mas, em compensação, parece ser muito boa filha. No dia seguinte foi elle ao Rodrigues do Pote das Almas vender um _Magnum Lexicon_, umas grammaticas velhas, um Monteverde em menos mau estado. Apurou ao todo mil e duzentos. Comprou ao principio da noite, na Praça da Figueira, um perú por 1$100, e ficou-lhe ainda a tinir na algibeira o bello tostão para cigarros e café. Á meia noite, eil-o debaixo da janella da Mariquinhas, de perú debaixo da capa. Momentos depois o perú subia suspenso por um cordel, e a Mariquinhas era feliz. As outras irmãs dormiam, mas estariam sonhando ainda com alguem que lhes podesse dar um vestido e um camarote? Não. Sonhavam, o que era verdade, que tinha cada uma um perú, que ellas pediram aos namorados, por conselho do pae. Foi assim que o servente de repartição, como havia planeado, pôde ter perú na noite de Natal, perú no dia de Anno Bom, perú no dia dos Santos Reis. Tres perús a tres filhas,--por cabeça. E sentado á mesa, muito alegre e palreiro, ouvindo repicar os sinos para a missa do gallo, dizia elle á mulher: --Ahi vem sua alteza o primeiro principe do Perú. Os outros dois estão ainda em palacio. Não te dizia eu que elles haviam de chegar? XXVII A poesia da Servia Perguntaram um dia a Miçkiewiez: «O que são os servios? » E o grande poeta da Polonia respondeu: «Um povo destinado a ser o bardo e o menestrel de toda a raça slava.» J. Reinach sae em abono d'esta opinião confirmando-a: «O caracter servio é essencialmente poetico, e a sua poesia não se traduz apenas nos _pesmas_, nos hymnos nacionaes que acompanham na _guzla_, encontra-se ainda na religião, nas cerimonias do culto, nas festas, na organisação da familia, nos casamentos, na coragem heroica dos combates, nos sonhos de uma vida melhor. Se queremos procurar a causa d'este caracter dos slavos, devemos attentar no paiz que elles habitam. O povo que tem a Servia por patria, não podia deixar de ser, como disse Miçkiewiez, senão um povo de bardos e menestreis, e, nas horas de perigo nacional, um povo de heroes. As florestas sombrias e profundas, as quebradas dos valles, as altas montanhas com as suas cristas inaccessiveis e os seus bosques de castanheiros, os _Schumadia_, as margens accidentadas dos rios, toda essa natureza selvagem e pittoresca contém e inspira thesouros de poesia.» Na familia servia o sentimento da fraternidade é talvez o mais desenvolvido, «Não ha uma joven servia sem irmão» diz uma velha lei. Quando a noiva deixa o lar da sua familia, é pelos irmãos que ella chora lagrimas semelhantes a _bagos que se destacassem de um cacho maduro_. A canção do desgraçado Iowo diz assim: «O moço Iowo cahiu, porque o sobrado da casa abateu, e partiu o braço direito. «Quem o curará? Só a feiticeira da montanha, que conhece a fundo a virtude das plantas; mas a feiticeira exige muito. Pede á mãe a sua branca mão direita; á irmã as tranças do seu cabello; á mulher o seu collar de perolas... «A mãe dá, com a melhor vontade, a sua branca mão direita, a irmã dá as tranças do seu cabello, mas a mulher recusa o seu collar de perolas... «Agasta-se a feiticeira que vive na montanha, e lança veneno nos alimentos de Iowo. Iowo morre com grande pezar de sua mãe. «Ouvem-se então gemer trez cucos: um que não deixa jámais de lamentar-se; outro que só se faz ouvir pela manhã e á noite; e o terceiro, que sómente geme quando lhe apraz. «Qual é o que não deixa jámais de ouvir-se? A desgraçada mãe de Iowo. O que sómente se ouve pela manhã e á noite? A irmã de Iowo, profundamente afflicta. E o que só geme quando lhe apraz? É a joven viuva de Iowo.» O casamento entre os servios é livre, o resultado do _mutuus consensus_. O rapaz apresenta-se em casa do pae da namorada, a pedir-lhe a mão da filha. Obtida que seja, dá lhe o annel, penhor do casamento, porque um antigo _pesma_ diz: «Como testemunho de amor, dá-se um pomo; como perfume, um mangerico;--mas o annel só se dá para casar.» Se a donzella quer recusar o noivo, arremessa-lhe o pomo á cara, dizendo: «Não te quero a ti nem ao teu pomo.» Excepcionalmente, algumas vezes, os paes procuram para suas filhas casamentos ricos. Os _pesmas_ protestam contra esta excepção. A pobre rapariga caminha descalça sobre o gelo, tiritando, e o irmão pergunta-lhe: «Tens frio nos pés, querida irmã?» E ella responde: «Não! não tenho frio nos pés, meu irmão, mas sinto um frio glacial no coração. Não é a neve que me molesta, é minha mãe que me quer dar por esposo aquelle que eu aborreço.» Uma outra canção diz: «Vivia na montanha uma donzella, e toda a montanha era illuminada pela belleza de seu rosto. Ó meu rosto, dizia ella, ó meu unico cuidado, se eu soubesse, meu branco rosto, que um velho marido te devia beijar, oh! iria á montanha verde e colheria o absyntho, espremeria o seu suco e lavar-te-hia com elle, meu rosto, a fim de que o velho, quando te beijasse, lhe sentisse o amargor. Mas se eu soubesse, meu branco rosto, que um joven marido havia de te beijar, oh! então iria ao verde jardim, colheria todas as rosas e das rosas espremeria o suco para te lavar, meu branco rosto, a fim de que o joven noivo, quando te beijasse, ficasse perfumado do teu perfume.» O casamento, revestido ainda de todos os symbolos primitivos, exige que os irmãos e amigos da noiva a acompanhem á sua nova casa, a cavallo, ao som de musica, entoando canticos e dando tiros. As irmãs e as cunhadas vem então ao encontro da noiva, que se adeanta para ellas: apresentam-lhe uma creança que ella deve vestir, bem como deve offerecer aos convidados pão, vinho e agua. Só quando dá á luz é que a noiva passa a ser considerada como fazendo parte da familia. Recebe um dote, que os servios chamam _persia_. Quando a noiva já não tem pae, é o irmão que deve pagar o dote, sempre fixo, e de que o marido não póde fazer uso. Mas, circumstancia verdadeiramente notavel! quando uma rapariga casa sem auctorisação dos pais, a sua união é considerada legitima, pois que tem por base o amor. Assim é que diz uma canção: «Eu queria pedir a tua mão, mas teu pae não me quer para genro, e eu só não te posso roubar. Escuta as minhas supplicas, vem para mim, que t'o peço eu.--Bello amigo, é inutil pedir a minha mão; meu pae recusar-t'a-ha. Não penses em roubar-me, porque tu o pagarias, meu bem amado. Tenho nove irmãos e numerosos primos; quando elles montam nos seus cavallos negros, com as suas finas espadas na mão, só vel-os causa horror. Não quero que tu morras combatendo com elles; e se fugisses, não mais te poderia ouvir. Amo-te. Chama-me, eu irei voluntariamente lançar-me nos teus braços.» Os funeraes são, entre os servios, tão poeticos como o casamento. Quando morre alguem, os parentes levantam grande alarido; os homens saiem descobertos durante alguns dias; as mulheres deixam fluctuar os cabellos e os vestidos. Os homens choram silenciosamente, mas as mulheres, desde o dia da morte até ao do enterro, não cessam de _naritsati_, quer dizer de cantar em voz alta a sua dôr, pranteando a sorte do morto e dos seus. «Ai! ai! trava-se na minha alma um terrivel combate! Volto os meus olhos para o anjo luminoso de Deus, e exclamo: Fazei com que a minha vida seja curta. Mas Deus não me escuta. E eu, ai! contemplo o oceano da vida, de que as más paixões são as vagas, e em vão desejo abordar a porto e salvamento.» Segue-se a cerimonia dos funeraes, sendo o esquife do morto conduzido ao cemiterio pelos amigos. Quando o féretro desce á sepultura, um sacerdote lança-lhe em cima um punhado de cinzas, e as mulheres recomeçam a prantear longa e tristemente. Cada anno ha um dia consagrado aos mortos: é o Zaduchnitzi. Os servios, como diz Theophilo Lavallée, formam a população christã mais importante da Turquia, pela dignidade e gravidade do seu caracter, pela sua coragem, bondade, generosidade, costumes patriarchaes, amor á patria, usos e religião. A festa dos ramos é a primeira do anno: celebra o advento da primavera. As raparigas juntam-se n'uma collina e cantam o hymno da resurreição de Lazaro: «A creança cresce, o homem vive, o velho morre n'esta ideia: quando virá o imperio servio?» No dia seguinte, antes de nascer o sol, vão buscar agua e cantam em côro: «As pontas do veado tornam a agua turva, mas o seu olhar torna-a clara e limpida.» Esta canção deve ser interpretada n'um sentido mythico. O veado, cujas pontas tornam a agua turva, é o inverno, o tempo brumoso. Gubernatis, fallando do veado mythico, diz-nos que ha o veado negro, que symbolisa o céu coberto de nuvens, e o veado luminoso, que figura em muitas lendas da India. Ora n'esta canção servia, o olhar do veado, que torna as aguas claras e limpidas, deve ser considerado como o triumpho alcançado pela primavera sobre o inverno. Reinach diz que as raparigas servias saúdam no regresso da primavera a volta dos tempos felizes para o amor, entoando canções notavelmente simples, taes como esta: «Dois amantes beijaram-se na campina, e julgavam que ninguem os teria visto. Mas a campina viu-os, e contou tudo ao branco rebanho, que o repetiu ao pastor; o pastor disse-o ao viandante, o viandante ao marinheiro, que por sua vez o contou á barca. A barca foi dizel-o ao rio, e o rio á mãe da rapariga.» Os leitores de um livro meu, _Atravez do passado_, conhecem já a ideia fundamental d'esta canção encantadora, que se encontra tambem na Grecia, e que tem sido glosada por distinctos poetas, entre os quaes o allemão Chamisso. No fim de abril realisa-se a festa de S. Jorge, um dos patronos da Servia. As mulheres vão ás montanhas colher hervas e flores, que lançam depois ao rio, onde no dia seguinte se banham. É assim pois que os servios, como os outros povos slavos, celebram o advento da primavera. Vem immediatamente a festa de Kralitza, em que as donzellas festejam Lelio, a Venus da Servia, a deusa do amor. Segue-se o S. João, o tempo da canicula, em que, como diz a lenda, o sol parou outr'ora tres vezes. Se o anno tem corrido sêco, procede-se a uma cerimonia verdadeiramente original: uma rapariga, cujos vestidos consistem apenas n'uma ligeira tunica de folhas e flores, percorre, acompanhada por outras, os campos, que vae aspergindo com um regador, pedindo ao céu uma chuva fecundante, invocando o sol e a lua: _«Tako mi Suntza!_ (o sol) _Tako mi Semlie_ (a lua)! Que o sol seja comigo! Que a lua me proteja! Ligeiras corremos atravez da aldêa; possam as nuvens do ceu, mais rapidas do que nós, beneficiar os prados e as vinhas. _Tako mi Semlie._» Quando, pelo contrario, o anno tem corrido chuvoso, os habitantes do campo imploram o auxilio de Elio, que não é senão o sol. As festas domesticas na Servia têem um caracter deliciosamente intimo. Os viajantes, os estranhos são sempre recebidos com amavel hospitalidade. O chefe da familia, quando o repasto se realisa, entôa a canção de Batschka: «Tres passaros desferiram vôo atravez do espaço, levando cada um no bico um presente precioso: o primeiro, um grão de trigo; o segundo, um bago de uva; o terceiro a alegria e a felicidade. O grão de trigo caiu sobre a planicie de Batschka, o bago de uva sobre as montanhas de Gore; possam sobre a nossa mesa caír a alegria e a felicidade.» Mas de todas as festas domesticas da Servia, o Natal é a mais solemne. Ao fim da tarde, terminado o trabalho, o pae de familia vae á floresta cortar um carvalho novo e, pondo-o ás costas, volta para casa. Quando entra, exclama: «Boa noite! feliz Natal!» E a familia responde: «Que Deus te proteja, e te dê boa colheita!» Depois, o carvalho (badujak) é posto no fogo. No dia seguinte, a gente moça percorre a povoação a cavallo, disparando tiros de pistola. E o pae de familia, apparecendo á janella, atira para a terra alguns grãos e sementes, dizendo: «Natal! Natal! Christo nasceu.» Ao que os moços respondem no estylo do Evangelho: «Em verdade nós vol-o dizemos, Christo nasceu.» Então, todas as familias se juntam em torno do carvalho que arde, açoitando-o com correas; e quando as faiscas saltam, exclamam: «Tantas faiscas, quantos bois, cavallos, cabras, carneiros, porcos, abelhas e bençãos do ceu teremos este anno.» A festa do Natal dura tres dias. E até que entre o novo anno, toda a gente se saúda, dizendo: «Christo nasceu!» e respondendo: «Em verdade, nós vol-o dizemos, Christo nasceu!» A universalidade das crenças populares é realmente um facto admiravel! Assim como os servios tem o _badujak_. temos nós, nas provincias do norte, e citaremos para exemplo o concelho da Maia, arrabalde do Porto, o carvalho do Natal, que tambem se põe no fogo e que no fim da noite se guarda para tornar a accender-se em occasião de tempestade. A Servia é decididamente o paiz das canções. Todos os seus habitantes cantam. Em cada casa ha uma _guzla_, especie de mandolim ou guitarra, que tem apenas uma corda de crina. Não ha festa sem canção e sem _guzla_. A Europa occidental conhece de varias imitações ou traducções muitas das poesias populares da Servia. Prosper Mérimée, tendo aprendido cinco ou seis palavras de slavo, compoz em quinze dias um pequeno romanceiro, que attribuiu a um imaginario tocador de _guzla_, Jacintho Maglanovitch. Na poesia servia relevam a riqueza das imagens, a ingenuidade dos sentimentos, o ardor do patriotismo. A estrophe, sempre melodiosa, é geralmente curta; e o acompanhamento da _guzla_ apenas a toma nos ultimos versos. Os cantos nacionaes são compostos em trocheus; as canções de amor admittem os dactylos. No estudo da poesia servia ha a distinguir os _pesmas_ heroicos que os homens acompanham na _guzla_, e as canções do lar, que as mulheres e as raparigas entoam. Foi só muito tarde que os servios começaram a escrever os seus _pesmas_. Em conformidade com a theoria de Vico, a poesia, entre elles, precedeu a prosa, que foi definitivamente fixada por Obradwitch, depois da primeira metade do seculo passado. Os slavos do sul só modernamente attingiram na litteratura a fórma dramatica. Annibal Lusitch foi quem primeiro escreveu para o theatro, começando elle e os seus imitadores per seguirem o rasto dos poetas italianos, Metastasio, Alfieri, Guarini. Foi Estevão Popovitch quem comprehendeu que os assumptos nacionaes convinham ao theatro. Entre as suas producções merece especial menção a comedia _Belgrado na antiguidade e em nossos dias_, que teve um grande successo nos theatros provisorios levantados em Agram e Belgrado. Popovitch foi pois o Eschylo da Servia; Martinho Ban, auctor dos dramas _Lazaro_ e _Meirima_, póde ser considerado o Sophocles servio. A _Meirima_ tem por assumpto o amor de um christão por uma mussulmana, assumpto que, posto fosse tratado por Voltaire e Byron, offerece comtudo um certo encanto de execução. Entre as creações phantasticas da poesia popular da Servia devem contar-se as _vilas_, a que chamamos _feiticeiras_, á falta de melhor vocabulo, mas que são creaturas mysticas, que presidem aos votos do povo e que pairam silenciosamente sobre a existencia dos homens. São ligeiras e bellas, diz Reinach; o vento brinca, passando, com os seus longos cabellos. Habitam sobre as colinas, perto dos regatos, sobre o Lotchen, cujo cimo, onde a tempestade ruge incessantemente, é coberto de neves eternas. Mas se as _vilas_ são os genios bemfasejos da Servia, existem, em opposição a ellas, espiritos maleficos, que trabalham pela perdição do genero humano. São os _viétchizés_ que, flucctuando nos ares, surprehendem os pastores adormecidos, abrem-lhes o peito com uma vara magica, fixam o dia da sua morte, comem-lhes o coração, fecham de novo o peito das victimas e desapparecem. Quando os pastores acordam, sentem-se abatidos, doentes. E pouco depois expiram. Mas uma das creações mysticas que mais impressionam a imaginação slava é o _vampiro_, que se alimenta da carne dos cadaveres e do sangue dos vivos. Entre os typos dos _pesmas_ heroicos, o mais notavel é Marko, o Cid e Roland da Servia. Mas, percorrendo o cancioneiro servio, são as canções de amor as que mais nos encantam. Terminaremos este ligeiro artigo com uma canção amorosa, que rompe dos labios de uma rapariga: «_Ó tchardak_ (leito), um fogo abrazador me devora: ninguem, durante a noite, está á minha direita ou á minha esquerda; revolvo com o meu corpo a coberta, e com a coberta as, minhas dôres.» E o namorado responde-lhe: «Ó Mileva, assenta-te a meu lado. Nós não somos selvagens, nós sabemos onde se deve beijar: as viuvas entre os olhos, as solteiras entre os peitos.» FIM INDICE Pag. I O primeiro mosquito 5 II A comedia das praias 11 III N'uma praia solitaria 20 IV Os frequentadores das praias 30 V Casos... 38 VI Á volta dos pés da imperatriz 56 VII Loucura alegre 65 VIII A mascotte 73 IX Era em abril... 80 X A felicidade e a camisa 85 XI Morte de um gentleman 91 XII A «season» lisbonense em 1883 100 XIII Gostos não se discutem 106 XIV Peccadilhos metricos 114 XV Os amaveis 130 XVI A sepultura d'um traidor 137 XVII A caminho do Alemtejo 148 XVIII A mulher 155 XIX O carnaval... 163 XX O chapeu 171 XXI Os antipodas 181 XXII As uvas 190 XXIII Pessoas conhecidas de vossas excellencias 197 XXIV Comer a dois carrilhos 207 XXV O ultimo puritano 212 XXVI Os principes do Perú 221 XXVII A poesia da Servia 229 * * * * * ERRATAS Pag. 69, lin. 9, onde se lê--um bilhete Colyseu leia-se--um bilhete do Colyseu. Pag. 104, lin. 30, onde se lê--Á vista de um trabalho--leia-se--Á custa de um trabalho, etc. Pag. 142, lin. 23, onde se lê--deixaria na primeira leia-se--deixaria ir na primeira, etc. Pag. 155, lin. 2, onde se lê--havido acontecimentos leia-se--havido acontecimento, etc. Pag. 176, lin. 16, onde se lê--E como--leia-se--É como, etc. ***END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK MANHÃS DE CASCAES*** ******* This file should be named 33588-8.txt or 33588-8.zip ******* This and all associated files of various formats will be found in: http://www.gutenberg.org/dirs/3/3/5/8/33588 Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. Creating the works from public domain print editions means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. 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Redistribution is subject to the trademark license, especially commercial redistribution. *** START: FULL LICENSE *** THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase "Project Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg-tm License (available with this file or online at http://www.gutenberg.org/license). Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. 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