As Noites do Asceta

By Alberto Pimentel

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Title: As Noites do Asceta

Author: Alberto Pimentel

Release Date: July 7, 2009 [EBook #29347]

Language: Portuguese


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OPUSCULOS ROMANTICOS

II

AS NOITES DO ASCETA

POR

ALBERTO PIMENTEL



LISBOA
Empreza Editora, Carvalho & C.ª
RUA LARGA DE S. ROQUE, 100, 1.º
1876





AS NOITES DO ASCETA

POR

_Alberto Pimentel_



LISBOA
Empreza Editora Carvalho & C.ª
100, Rua Larga de S. Roque, 1.º
1876




Typ. de J. C. Almeida, Rua da Vinha, 65--Lisboa.




_a_

_Jacintho Maria Rodrigues_

    Oh, que viesse o que não crê, comigo,
    Á vecejante Arrabida, de noite,
    E se assentasse aqui sobre estas fragas,
    Escutando o sussurro incerto e triste
    Das movediças ramas, que povoa
    De saudade e amor nocturna brisa;
    Que visse a lua, o espaço oppresso de astros,
    E ouvisse o mar soando:--Elle chorára
    Qual eu chorei.........................

          Alexandre Herculano--_A Harpa do Crente._

    «Ajuntava a esta abstinencia (Frei Agostinho da Cruz) as muitas
    vigilias, ásperas disciplinas, em que se exercitava, e outras
    mortificações, que elle depositou no archivo do silencio, e só nos
    deixou as inferencias, de que eram muito esquisitas.»

        Frei Antonio da Piedade--_Espelho de penitentes e chronica da
        Provincia de Santa Maria da Arrabida._ Tomo I, part. I, liv. V.




Eram aquelles os tempos do Amor.

Por toda a parte o coração era a mais fecunda, a mais vivida, a mais
completa manifestação da Vida. A humanidade entrára no idyllico periodo
da sua primavera. As flores do sentimento brotavam candidas e perfumadas
sob os pés da Mulher deificada pela adoração. Deus estava no ceu e a
Mulher na terra. A mesma religião absorvia e confundia estas duas
grandes individualidades mysteriosas, porque Deus fôra gerado no ventre
da Mulher virgem. Pois que o amor divino se librava puro, austero,
immaculado, o amor terreno procurava igualal-o pela candura das suas
intenções. O seculo XIV, um dos mais famosos seculos do grande cyclo
amoroso, vê um rei de Inglaterra curvar-se para levantar a fina liga de
seda da condessa de Salisbury, e ouve a legendaria imprecação do rei aos
maliciosos cortezãos cujo riso envenenava esse extremo de galanteria
palaciana. E é d'essa pequena fita, acolchetada por esmaltadas fivelas
de oiro, que o rei namorado quer fazer o mais ambicionado, o mais nobre,
o mais difficil galardão cavalheiresco:--a jarreteira azul. O mesmo
seculo vê um rei portuguez realisar á beira do Mondego o mais ardente e
lacrimoso idyllio da tradição amorosa nacional, e, para diluir as
sombras com que os validos de Affonso IV quizeram ennegrecer o que
n'esse grande amor havia de puresa, mandar rasgar-lhes o peito e lavar a
crudelissima affronta no sangue d'elles. A loira Ignez apparece depois
de morta menos princesa que martyr. Os seus funeraes são uma apotheose;
a memoria que de si deixa completa a deificação. D. Pedro quer que desde
Coimbra a Alcobaça passe o athaude por entre duas filas de cirios, duas
fitas d'estrellas--como diz Schoeffer--; no tumulo de Ignez avultam
entre os phantasiosos ornatos as azas que denunciam os cherubins. O Amor
faz de Ignez um anjo, e é ainda pelo anjo, que voou, que a pequena fonte
da margem do Mondego chora lagrimas de casta saudade.

Petrarcha não pôde esquecer n'este poetico seculo do Amor. Elle
representa o mais puro, o mais santo, o mais ideial amor que é dado
conceber-se: o amor sem esperança. Elle renega as tendencias voluptuosas
da Roma classica, em que foi educado, e lança-se na solidão de
Valchiusa, sem amaldiçoar Laura, quando o amor lhe dilacera o peito,
como o açor póde dilacerar a pomba que empolgou.

Illumina-se phantasiosamente o seculo decimo-quinto com o renascimento
das artes e das letras. É o seculo de Lourenço de Medicis--o
Magnifico--, o grande seculo em que tudo traduz o Amor: o marmore, a
tinta, a linha. Leonardo de Vinci lança na tela a encantadora figura da
Gioconda, a esposa adorada; Raphael dá á Virgem a formosura da florista
de Florença, a _fioraia_, divinisando a Mulher. E ainda a Religião a
companheira dilecta do Amor. São os papas que protegem as artes. Roma, a
capital do mundo catholico, tambem o é do mundo artistico. São
religiosos os assumptos de todos os quadros, que se pedem do Meio-dia e
do Occidente. Sómente a Renascença torna a alma menos pura e o corpo
mais formoso. Desapparecem das telas as pallidas figuras asceticas, e
relevam sobre o peito feminino as curvas voluptuosas das mulheres pagãs.
Magdalena transforma-se em Venus. Ainda um prodigio do Amor! É que o
artista amante quer perpetuar na tela a mulher amada. A madona deixa vêr
a _fioraia_.

O Bernardim das _Saudades_ é a ponte amorosa lançada entre o seculo XV e
o seculo XVI. Vós, cavalleiros gentis, para quem o Amor é uma tradição
gloriosa, atravessai d'um seculo para outro por sobre o cadaver d'este
pobre trovador, que deixou partido o bandolim sobre os tapetes da côrte.

O seculo XVI é o seculo de Camões. Basta dizer isto. Na alma do poeta
pulsam as tendencias do seculo. O Amor anda na epopea a par da Gloria.
As luctas do coração dão maior relevo aos poetas d'essa idade. A gruta
de Macau ouve os suspiros de Camões; Diogo Bernardes chora á beira do
Lima a traição de Sylvia; Agostinho da Cruz foge do paço do infante
D. Duarte para o eremiterio da serra da Arrabida.

Mas em Portugal as sinistras fogueiras dos autos de fé, mandadas
accender por D. João III, haviam empallidecido nas telas as figuras
pagãs da Renascença. Então, se o Amor pintasse na côrte portugueza,
usaria as sombrias tintas da eschola de Ombria. Dir-se-hia que Fra
Angelico resuscitára para succeder a Raphael.

Frei Agostinho da Cruz é o Fra Angelico da poesia portugueza. Um ia
cobrindo de melancolicos _frescos_ os muros do seu convento de Fiesole;
o outro, entalhava nas arvores da Arrabida os seus versos religiosamente
tristes e amorosos. Em ambos um coração de artista amortalhado no
habito. Ambos abençoados por Deus na hora do passamento.

Assim, porém, como por sobre o cadaver de Bernardim, involto na sua capa
de trovador, atravessa do seculo XV para o seculo XVI a tradição
amorosa, assim tambem o cadaver de Frei Agostinho da Cruz, involto no
seu habito de franciscano, é a ponte lançada entre o seculo XVI e o
seculo XVII, entre as caladas grutas da Arrabida, onde Agostinho
poetava, e a cella do convento da Conceição de Beja, onde Marianna
Alcoforado recebia o sr. de Chamilly; entre o paço do infante D. Duarte,
onde os monges arrabidos iam praticar sobre a conversão de Frei Jacome
Peregrino, devida a uma simples visita que fizera á santa montanha
barbarica, e a côrte de Luiz XIV, onde o Amor não havia perdido ainda a
sua velha influencia de tres seculos, mas decotava as suas impuresas
com a mesma thesoira doirada com que a La Valliére, a Montespan, a
Fontanges e a Maintenon decotavam os seus vestidos.

Iam a desfolhar as ultimas florescencias da Primavera do coração,
crestadas pelo bafo ardente da sensualidade palaciana. Começavam a
amadurecer os pomos do Outomno.

Á flor, na sociedade como na natureza, succedia o fructo. Após os
seculos da Guerra, das correrias, das conquistas, das lanças e das
cruzadas, tinham vindo os seculos do Amor, das ambições de gloria, das
grandes proesas namoradas, dos altos feitos poeticos. Era chegado o
momento de soar no eterno relogio das gerações a hora dos indeterminados
seculos do trabalho e do pensamento, da força moral e da potencia
intellectual, das conquistas pelo estudo e pela perseverança, do cyclo
vencedor e forte, não da duresa do ferro, de que se fabricavam as velhas
armaduras, mas da duresa do silex, de que brotam centelhas.

Sim, meu solitario poeta da montanha da Arrabida, humillimo eremita
d'esses fraguedos bemditos, o teu vulto melancolico e pensativo apparece
ainda de pé, olhando para o mar sereno e curvo, ao limiar da tua ermida,
como encostado á porta d'um templosinho invisivel onde se rendesse o
derradeiro culto ao doce platonismo de Petrarcha, onde ao sopé da Cruz
houvesse duas mulheres, ambas santas, ambas moças, ambas formosas,
chorando uma de saudade, outra de arrependimento, mas ambas por
Amor,--Maria e Magdalena. Sim, eu ahi te vejo a meditar no que foi a
tua breve mocidade, ó castissimo asceta, em quanto os passarinhos da
serra te vinham poisar sobre os hombros descarnados, como diz a legenda,
e as feras da matta vinham procurar-te á mão, como aos antigos padres do
deserto, o teu duro e escasso alimento de solitario.

Sim, eu entrevejo-te nas tuas longas noites silenciosas, na
bem-aventurada velhice dos teus sessenta e cinco annos, nos primeiros
tempos da tua religiosa solidão, antes que o duque de Aveiro te mandasse
edificar a ermidinha que ainda hoje se conserva, escondido ao fundo da
tua cabana, por ti mesmo entretecida de ramos, encostado ao breviario, e
ao pé dos seccos feixes de matto, que te serviam de cama... Por unicas
alfaias em toda a choça, as disciplinas e os cilicios. Fóra, a noite, a
noite tepida e luminosa, esmaltada de estrellas dormentes; e em baixo,
ao fundo, o grande mar, a ampla bahia, curva como um alfange,
narcotisada pelos effluvios do luar.

E tu, mudo e recolhido, deixando invadir-te a alma a placida doçura das
estrellas e das aguas, escutando--porque não hei de dizel-o?--os
eloquentes silencios da noite, que desciam á profundesa harmoniosa do
teu peito, e mansamente o atravessavam, e de lá voltavam a derramar-se
na amplidão luminosa do firmamento, já transformados n'estas e outras
palavras puras e sonoras como o oiro:

    Alta Serra deserta, d'onde vejo
    As aguas do Oceano d'uma banda,
    E d'outra, já salgadas, as do Tejo:
    _Aquella saudade_, que me manda
    Lagrimas derramar em toda a parte,
    Que fará n'esta saudosa, e branda?
    D'aqui mais saudoso o sol se parte;
    D'aqui muito mais claro, mais dourado,
    Pelos montes, nascendo se reparte.
    Aqui sobe-lo mar dependurado
    Um penedo sobre outro me ameaça
    Das importunas ondas solapado.
    Duvido poder ser que se desfaça
    Com agua clara, e branda a pedra dura
    Com quem assi se beija, assi se abraça.
    Mas ouço queixar dentro a lapa escura,
    Roidas as entranhas apparecem
    D'aquella rouca voz, que lá murmura.
    Eis por cima da rocha aspera descem
    Os troncos meio sêccos encurvados,
    Eis sobem os que n'elles enverdecem.
    Os olhos meus d'ali dependurados;
    Pergunto ó mar, ás plantas, ós penedos
    Como, quando, por quem fôram creados?
    Respondem-me em segredo mil segredos,
    Cujas primeiras letras vou cortando
    Nos pés d'outros mais verdes arvoredos.

Esta musica ineffavel, que subia para Deus em ondulações maviosas,
traziam da tua alma os silencios da noite: tal as abelhas do Hymetto,
atravessando a florida espessura do açafrão cheiroso, traziam para o
colmeal o alvo mel dos banquetes atticos.

Outras vezes rugia sobre o mar a tormenta, rasgavam-se de instante a
instante em listrões de fogo os fluctuantes crepes do ceu, o ribombar do
trovão vinha rolando montanha abaixo em echos entrecortados, o gigante
de pedra, em cujo dorso se entremostrou radiosa de nimbos mysteriosos,
em remotos tempos, a imagem de Nossa Senhora, ao mercador
Haildebrant, cuja embarcação, contrastada dos ventos, dobrára o cabo de
Espichel,--o gigante de pedra, minado pelo oceano, cingia contra o seu
peito robusto a Cruz da Redempção, e com ella cobria as caladas ermidas
dos solitarios arrabidos a essa hora prostrados em meditação piedosa...

E tu eras entre todos o que melhor comprehendias a linguagem vaga da
noite, quer a houvesses de interpretar no poema das estrellas, quer na
epopea da procella, porque no teu claro espirito havia aquella fina
sensibilidade que tem ouvidos para os mais subtis rumores, olhos para as
mais fugazes visões, e voz para responder ás mais incoerciveis
revelações...

A noite! a noite!

De noite avoejam errantes pela atmosphera pensamentos vagos e alados,
que umas pessoas sabem traduzir, outras presentem sem comprehender. Tem
a noite seus insectos e pensamentos peculiares, e uns e outros passam no
ar com fremitos mysteriosos. Só o naturalista conhece os primeiros,
atravez da negrura; só o poeta conhece os segundos. E quem não é uma nem
outra coisa, philosopho ou poeta, fica amedrontado do rumor que passa
adejando, e phantasia espiritos maleficos e creações sobrenaturaes no
que são apenas manifestações subtis da grande vitalidade nocturna. E
d'aqui nasce a visionaria cobardia que pelas horas do silencio e da
quietação saltea o animo do commum das pessoas. E como tudo o que ha de
mais incerto, escuro e insondavel é a morte, esses ligeiros fremitos
que passam remoinhando arrastam aereamente o grande, o triste, o fatal
pensamento da morte. Quantas pessoas não ha ahi que vivem despercebidas
da mortalidade do corpo os mais trabalhosos, os mais duros, os mais
soffridos dias da sua vida? Expostas a perigos temerosos, durante as
horas de sol, ellas os atravessam fortalecidas pela esperança de que os
hão de vencer finalmente. Oh! mas se de noite acontece lembrar-lhes a
materia que são mortaes, e que é incerto o momento da anniquilação
corporal, ahi acodem de tropel os estremecimentos nervosos, os sustos
imaginarios, os pavores phantasticos. A noite affigura-se-lhes uma
sepultura enorme, cheia das concavas sombras das grandes cavidades,
coberta pela bronca abobada das cryptas tenebrosas, e sentem-se
despenhar, saccudidas por mão invisivel e herculea, ao vacuo d'essa
profunda negrura, em cujo fundo está um mysterio terrivel e insondavel
--a eternidade!

Cuidam ouvir o baque do proprio corpo, e depois um como estrondoso
ranger de enormes ferrolhos em anneis de ferro, como se se estivessem
cerrando para todo o sempre as portas que separam o mundo das
visualidades terrenas do mundo da eterna realidade.

Portanto, que admiraveis são as almas que, á similhança da tua, ó
pallido eremita! se concentram serenas e firmes deante dos horrores da
noite, sondando-a, contemplando-a, lendo-a, adivinhando-a no que ella
tem de mais fugitivo e aereo, por mais ermo que seja o logar, por
mais adeantada que seja a hora, por mais profunda que seja a meditação!

Admirado sejas tu, que estendias os braços ciliciados para abarcares a
nuvem collossal da escuridão e do silencio contra o seio desoffegado e
placido, como se lhe quizesses dizer, a essa grande massa feita de
trevas e de mysterios: «Tu, que és a eternidade, a morte, o repouso,
ouve bem as compassadas palpitações do meu coração tranquillo. Eu estou
resignado, e até ancioso de que a tua aza negra me arrebate.»

Isto dizia por ventura elle, na vasta solidão alpestre da Arrabida, na
hora em que, pelas mais populosas cidades, os outros homens, apesar de
reunidos como em exercitos, para melhor baterem os phantasmas
imaginarios da noite, levantavam barreiras de musica e de luz, dentro de
suas casas, e reuniam em torno de si as seducções femininas, que possuem
o segredo de aligeirar as horas, para fazerem rosto á invasão da treva e
do silencio, á onda escura que se derrama pelo ar, pelas ruas, pelas
praças, pela vastidão da terra e das aguas.

Uma coisa ha grandiosa, imponente, por vezes terrivel e invencivel como
a noite: é o Mar.

Tem querido o homem explicar a noite e o mar, descer ás profundesas
d'uma e d'outro, estudar as radiações nocturnas do firmamento e as
brancas e rosadas ramificações dos jardins submarinos; desenvencilhar os
rastros de luz que se cruzam sobre a saphira celeste e as enormes
filigranas de animalculos e plantasinhas que se enredam no fundo das
aguas marinhas; explicar a vida que palpita sob a nuvem e a vida que
palpita sob a onda.

Oh! mas que de mysterios ainda! que de problemas a resolver! que de
factos a demonstrar!

Por isso a noite e o mar serão ainda por muito tempo, e talvez
eternamente o sejam, companheiros inseparaveis de superstições
tradicionaes e horrores irresistiveis.

Mas tu, ó poeta do ermo, escondido na tua montanha, que sobrancea o mar,
tu contemplavas, de dia ou de noite, com religiosa firmesa, esse
magestoso visinho cheio de mysterios e de vozes, de força e de
humildade, de sanha e de candura.

Para ti a fragil embarcação que navegava dobrando o famoso cabo, onde os
geographos antigos quizeram assignalar o _fim da terra_, não era a
ousadia humana que passava, orgulhosa de domar as aguas, vaidosa das
suas flammulas e das suas velas desfraldadas: a ti affigurava-se-te um
enorme altar fluctuante, no qual se erguiam os mastros cortados pelas
vergas em forma de cruz; e o cordame fazia-te lembrar o labyrintho
phantasioso de estreitas cortinas e sanefas pendentes d'um templo que
fosse vogando mar em fóra em louvor de Deus.

E mais fundo se te arreigava no coração esta crença quando a maruja,
passando em frente da santa montanha, saudava em brados festivos a
_Estrella do mar_, não menos resplendente que no tempo de Haildebrant, a
_Estrella do mar_ engastada no seu vasto oratorio rustico, que de
nordeste a sudueste corre na extensão de cinco leguas, dominando
pelo norte as aguas do Tejo e esse formoso archipelago de pequenas
aldeas que se chama Azeitão; sobranceando pelo sul a larga corrente do
Sado, e as ruinas da velha Troya; avistando no horisonte que se rasga
pelo sudueste a orla alvacenta do Alemtejo e dos Algarves.

Onde houve na terra mais dilatado, magestoso e perduravel altar!
Assombroso era o templo de Diana em Epheso, e um dia os incendios
atiçados por Erostrato devoraram-n'o. Mas pelas tuas columnas e os teus
artesãos de pedra, ó santa montanha da Arrabida, pódem collear á vontade
as chammas dos fachos iconoclastas, que os não hão de crestar nem abalar
na sua immobilidade eterna.

Estas e outras grandesas do formoso retiro monastico referiam os monges
arrabidos em Lisboa nas salas piedosas da infanta D. Izabel fundadora do
convento de Santa Catharina de Ribamar, e viuva do infante D. Duarte,
irmão de D. João III. Quando este monarcha houve por bem dar casa a seu
sobrinho D. Duarte, orphão d'aquelle infante de egual nome, o pae de
Agostinho Pimenta conseguiu acommodar o filho no paço do imberbe neto de
D. Manuel, onde Pedro d'Andrade Caminha tinha os cargos de camareiro e
guarda-roupa.

Era Agostinho Pimenta um mocinho de idade igual á do infante a quem
vinha servir, saudoso da amenidade bucolica do seu Lima, onde elle, em
companhia de seu irmão Diogo Bernardes, versejára voltas e glosas em
honra da naturesa.

Foram-lhe lançando n'alma as saudosas paizagens do Minho, os germens
d'umas tristesas suaves, que algum dia chegam a florecer dolorosamente,
e que ás vezes se desentranham em fructos de lagrimas, quando a vida
consegue demorar-se até á sazão do outomno.

Nestas disposições de animo contemplativo entrou Agostinho Pimenta nas
salas duma princesa viuva, e dum infante cujo caracter melancholico
todos os dias mais se ia domando ao geito do eremitico apartamento que
os religiosos da Arrabida, certos frequentadores da casa, encareciam á
mãe e ao filho, principalmente Frei Jacome Peregrino, cuja conversão,
como de leve tocamos, dependeu d'uma simples visita á montanha.

Intencionalmente deixamos em silencio os nomes das duas infantas filhas
de D. Izabel de Bragança, D. Maria e D. Catharina, duas timidas meninas
que viviam constrangidas nos soporiferos habitos do paço, e que de
nenhum modo podem dar relevo ao grupo da familia do infante D. Duarte.

A primeira d'estas meninas veio a casar para Flandres com o principe
Alexandre Farneze; a segunda desposou seu primo co-irmão D. João, sexto
duque de Bragança, e figura como pretendente á coroa em 1580, epocha em
que o seu nome entra por assim dizer na historia de Portugal.

Entre os fidalgos que concorriam habitualmente ás salas da infanta D.
Izabel, era dos mais assiduos o terceiro duque de Aveiro, D. Alvaro de
Lencastre, mui celebrado nos livros antigos pela sua particular affeição
ao mosteiro da Arrabida.

Este fidalgo presava grandemente os talentos e qualidades do moço
Agostinho Pimenta, e não raro descaiam suas conversações nos assumptos
religiosos, que fluctuavam ao de cima de todas as preoccupações
n'aquella nobre casa.

Agostinho inflammava-se então nos arrebatamentos proprios da sua idade,
e umas vezes ardentemente encarecia na presença dos fidalgos o espirito
aventuroso dos mancebos portuguezes que, á similhança do poeta Luiz de
Camões, a esse tempo em Macau, iam militar no Oriente; outras, arrastado
pela suave e convincente palavra de Frei Jacome e demais arrabidos,
parecia deixar entrever vislumbres de propensão á vida ascetica do
eremiterio.

Acontecia sempre que o camareiro do infante D. Duarte, Pedro de Andrade
Caminha, affrontado com os gabos do moço Pimenta ao gentil ardimento de
Luiz de Camões, a quem profundamente odiava, sahia a ripostar-lhe com
deslavados epigrammas ao solitario da gruta de Macau, cujo officio era,
no seu entender, acutilar com a pena as authoridades de Goa, que o
deportaram para a China, como em Lisboa havia acutilado com a espada o
pescoço de Gonçalo Borges, criado do rei, o que lhe valeu ter que ir
servir na India por grande clemencia real.

Agostinho Pimenta tinha as opiniões contradictorias de quem ama pela
primeira vez, e receia as consequencias do primeiro amor, proclamando
agora a superioridade do coração humano sobre as pequenas contrariedades
amorosas da mocidade, e logo a poetica abnegação de quem sacrifica a
vida inteira ao serviço de Deus, depois de mal succedido nos amores
terrenos.

Batido no campo das tendencias aventurosas umas vezes por Pedro Caminha,
outras vezes pelos capuchos da Arrabida, Agostinho Pimenta via-se
encurralado no reducto do fanatismo religioso, e esta idéa, lentamente
insinuada, acabou por tomar no seu animo a consistencia d'uma
estalactite formada gotta a gota no tecto d'uma gruta.

Frequentes vezes relembrava a infanta D. Izabel a brevidade da
felicidade terrena, como para resignação sua e dos religiosos que a
escutavam. Recordava com tranquilla tristeza a magnificencia dos seus
desposorios com o filho de D. Manuel, celebrados em Villa Viçosa em
abril de 1537. Não exaggerava historiando com piedoso desdem o apparato
d'essa festa nupcial, que a dedicada amisade de seu irmão D. Theodosio
de Bragança quizera tornar esplendida. Uma phrase de Damião de Goes
corrobora as maguadas recordações da infanta: «O aparato d'estas festas
foi tamanho--diz o chronista manuelino--que com assaz trabalho o poderá
um Rei fazer com mór magnificencia.» D. João III, se não ordenára as
festas, assistiu a ellas, com os infantes seus irmãos, e a flôr da sua
côrte. Fôra elle que justára o casamento com D. Theodosio. Cabia-lhe,
pois, a iniciativa d'esse enlace que parecia prometter uma longa e
venturosa duração, e que tão breve foi. El-rei, que se achava no paço
d'Evora a esse tempo, fôra esperado pelo duque D. Theodosio a meia legua
de Villa Viçosa. Seguiu-se o jantar nupcial, no paço do duque, em
que D. Izabel teve logar ao lado do rei, e o duque logo abaixo dos
infantes. Sobre todas estas recordações do seu noivado passava nos
labios da infanta viuva um sorriso triste e resignado. Com fidalga
saudade, digamos assim, encarecia a gentil presença, bondade e piedade
do infante seu marido. Então acudia algum religioso de S. Domingos ou da
Arrabida a elogiar os dotes intellectuaes de D. Duarte, que praticava em
latim com o seu mestre André de Rezende, e recitava ao revez, de
memoria, qualquer capitulo de Cicero; e ditava quatro cartas ao mesmo
tempo, e compunha musica e poesia, e cantava, e jogava as armas, e era
caçador eximio. Quando vinha a lume esta prenda da caça, ainda a infanta
se lastimava dos incommodos que, mesmo depois de casado, se dava o
infante quando sahia a montear, e era certa a millessima edição do caso
de lhe haver um seu privado exposto os perigos dos excessos venatorios,
e o infante respondido que bom era educarem-se os homens em asperos
exercicios para melhor poderem soffrer os trabalhos da guerra. Esta
longa resenha das virtudes e talentos de D. Duarte seguia quasi sempre a
ordem chronologica da sua biographia, e portanto força era relembrar a
sua morte, por elle predicta, e o cilicio com que mysteriosamente trazia
cingidas as carnes, e a pomba que ao passar a sua tumba, caminho de
Belém, onde jaz, pelo hospital de Todos os Santos, voara mansamente para
o ceu.

Fôra n'esta atmosphera fradesca e milagreira, onde continuamente se
apregoava o ephemero e fragil das felicidades terrenas, ainda mesmo
das mais santamente conquistadas pelo amor e pela virtude, que o moço
Agostinho Pimenta respirou tristemente ao entrar na sociedade para onde
o mandaram desterrado do seu bucolico Minho.

Mas eu já vi uma vez, navegando Douro acima, empinar-se sobre a margem
esquerda o mais arido, o mais calcinado, o mais duro fraguedo que póde
imaginar-se, e pendurado d'uma rocha, e como que nascido do seio d'ella,
o mais verde, o mais fresco, o mais curvo festão de verdura que se
poderá descrever. Era nos fins de julho, pelos grandes calores. Havia
uma hora que navegavamos por entre alcantis que se recortavam com os
vagos contornos de gigantes de pedra. Nas frontes tostadas dos
marinheiros porejava o copioso suor do trabalho. A corrente era pequena,
e o barco subia vagarosamente a impulsos de vara. Dariamos um thesoiro,
se o tivessemos, por uma sombra de oasis. Mas o deserto, que era de
pedra, parecia infindo. Apertava comnosco o vago receio que nos dá a
solidão nas longas horas da charneca alemtejana, aggravado pelo sol
canicular que sobre nós cahia a prumo. De repente, ao dobrar uma volta
do rio, surge como por encantamento, desconhecido dos marinheiros, o
largo e alto festão, que promettia sombra deliciosa para o descanço de
meia hora. Foi assombrosa a nossa alegria. Como e quando nascera ali
aquelle braço de verdura que parecia estender-se amigavelmente ao
viajante para lhe offerecer abrigo? Ninguem o sabia; não o poderam dizer
os marinheiros.

Assim tambem ninguem podéra dizer como desabrochara o coração de
Agostinho Pimenta no sombrio paço que fechára as portas ao Amor quando o
cadaver do infante D. Duarte sahira para Belem.

Entre as damas que serviam a infanta D. Izabel uma havia, D. Branca de
Noronha, cuja formosura floria nas graças senhoris dos dezesete annos.
Tambem ella fazia lembrar o oasis no deserto. Esta gentil menina
contrastava singularmente com as melancholicas tendencias da familia e
commensaes da infanta viuva. D. Izabel era inalteravelmente a piedosa
fundadora do convento de Ribamar; seu filho, o infante D. Duarte, havia
recebido para todo o sempre a influencia d'uma educação intolerantemente
religiosa; Pedro d'Andrade Caminha conciliava como podia as suas
malquerenças como homem com o seu fanatismo religioso como camareiro do
infante; os franciscanos da Arrabida traziam para as salas do paço a
melancholia inherente á solidão do eremiterio. Delimitando os extremos
d'esta sociedade espessamente taciturna e aborrida,--duas creanças quasi
de egual idade, posto que de genios differentes,--Branca de Noronha e
Agostinho Pimenta.

Quem dera ás duas irmãs de D. Duarte o poderem espanejar-se, ainda que
tambem a medo, como a lepida aiasinha Branca!

Ella era a inquieta encarnação da alegria, a onda limpida que, sem se
amedrontar com o aspecto sinistro das ribas solitarias, as cobre de
instante a instante com as suas abundantes rendas de espuma, e as suas
pequenas perolas de agua. Era o unico riso que borboleteava ao de
cima da melancholia quasi conventual d'aquella casa, e, como o riso é
por via de regra a expressão da alegria, jámais se deixou contagiar da
tristesa que empallidecia os semblantes, e hybernava nos corações.

Agostinho Pimenta, cujos habitos infantis foram os de um poeta que
desabrocha entre a pensativa bellesa das paizagens do campo, não teve
força bastante para se deixar ficar embellesado nas scintillações que de
quando em quando lhe relampagueava a mocidade, e assim foi que cedeu á
pressão religiosa da infanta viuva e dos monges arrabidos.

Branca de Noronha sorria d'elle com uma graça capaz de abalar a
seriedade de Frei Jacome Peregrino, se ella poderá dizer-lhe com a mesma
franquesa os chistes com que de emboscada accomettia o moço Agostinho
Pimenta.

Não raro acontecia, á volta d'um corredor, encontrarem-se os dois, e
curvar-se ella em palaciana misura para dizer-lhe:

--_Deo gratias_, Padre Frei Agostinho!

E despedia n'uma graciosa corrida, atabafando com a mão delicada o seu
metallico rir senhoril.

Tantas vezes se repetiu a amavel zombaria da formosa aiasinha da
infanta, que o moço Agostinho Pimenta resolveu aproveitar um d'estes
frequentes episodios para dizer-lhe:

--Não graceje, Dona Branca, que póde vir a converter-se em realidade o
que nos seus labios é zombaria. Está na sua mão, direi antes no seu
coração, o atirar-me para a solidão conventual...

--Vejo que tem aproveitado as lições de Frei Jacome Peregrino...

--Ah! não continue a zombar, Dona Branca!

--Quer então que eu chore a conquista de mais uma alma para o ceu? Não
deve ser. O sr. Agostinho Pimenta tem inclinação para a vida monastica.
Eu não tenho. Que se me dá que vista o habito? Vista, se quizer. Será
mais um religioso que frequentará as salas da sr.ª infanta...

--É-lhe então absolutamente indifferente que eu professe?

E D. Branca, sem responder a esta pergunta, a que o novel poeta das
margens do Lima dava uma importancia apaixonada, mesurou graciosamente e
motejou:

--Padre Frei Agostinho, queira Vossa Charidade recommendar-me aos seus
irmãos capuchos.

E desappareceu com a ligeiresa d'uma arveloa. Agostinho Pimenta era,
como sabemos, o poeta educado pela naturesa, que tem o segredo de
aconselhar tristesas. Accrescia que respirava n'um meio onde o fanatismo
religioso se inoculava lentamente, durante a somnolencia dos serões
fidalgos, como as emanações da mancenilheira, durante o indiscreto somno
do viandante. Fez-se mais pensativo que nunca no decurso de tres dias,
durante os quaes algumas vezes lhe chegára aos ouvidos o leve rir
descuidado da aiasinha. Ao cabo do terceiro dia foi ao encontro do
provincial Frei Jacome, que estava praticando com a infanta e o infante
n'uma das salas do paço, e, depois de solicitar venia de D. Duarte e
sua mãe, pediu ao virtuoso monge que lhe permittisse vestir o habito da
sua Provincia.

Jubilou Frei Jacome com a resolução do moço Pimenta, com que elle
contava havia quatro annos, attribuindo-a candidamente á efficacia dos
seus conselhos, similhantemente ao pomareiro que se vangloria de que a
arvore fructifique mais pelo seu trabalho do que por espontaneidade da
naturesa.

Correu o anno do noviciado ou da approvação de Agostinho Pimenta, como
então se dizia, no conventinho de Santa Cruz da Serra de Cintra, do qual
elle ao depois tomou o appellido na profissão, como deixou escripto:

    Nasci, e renasci na Casa em dia
    De Santa Cruz, da Cruz o nome tenho.

Durante o noviciado, que principiou em 1560, Agostinho Pimenta parecia
por vezes entrever nas suas visões monasticas a formosa imagem da
aiasinha da infanta, e então era o descer da serra de Cintra e vir em
cata d'essa visão, que o podia salvar antes que as portas do conventinho
de Santa Cruz se fechassem eternamente sobre elle. D'estas visitas ao
paço do infante D. Duarte, dá recatada e dissimulada conta o biographo
José Caetano de Mesquita, quando diz: «E ainda que conservou algumas
correspondencias de pessoas instruidas, julgando não desdizer da
austeridade do seu instituto condescender com os seus amigos, achando-se
nas suas mezas, e comendo dos delicados pratos com que eram
servidas; comtudo sempre se houve com religiosa modestia, e o decoro
devido á mesma reforma.»

Uma d'estas visitas parece haver decidido definitivamente da sorte de
Agostinho Pimenta.

Celebrava-se o decimo-nono anniversario natalicio do infante D. Duarte.
As duas meninas suas irmãs haviam instado com a infanta D. Izabel para
que não deixasse passar despercebido o dia, e, consultados os frades da
Arrabida, concordaram elles que era de justiça ser assim. A infanta
viuva annuiu por obediencia aos seus conselheiros, e permittiu se
realisasse excepcionalmente a festa commemorativa do anniversario de seu
filho.

Agostinho Pimenta viera de Cintra expressamente.

Era em março. A primavera enflorava as alinhadas moitas do jardim, e as
rosas abriam alas festivas ás damas que divagavam por entre os
canteiros. Primava entre as damas de mais peregrinas graças a tréfega
aiasinha Branca. Não a perdia de vista Agostinho Pimenta quando glosava,
com o sabor religioso que a sua posição exigia, este mote que lhe dera a
infanta D. Catharina:

    Antre as cousas mais formosas
    Busca a mais formosa d'ellas;
    Mais que o sol, lua, e estrellas,
    Mais que lirios, e que rosas.

Havia D. Antonio de Mello, fidalgo ao serviço do infante, cortado uma
rosa, ao passar por um dos canteiros. Era alva de neve raiada de
laivos sanguineos. Decorrido tempo apparecera D. Antonio sem a flor, e
Agostinho Pimenta, encontrando Branca á beira do lago, sorriu-lhe com a
doce familiaridade que mezes antes os reunia no paço do infante. A
travêssa aiasinha, attentando no habito de Agostinho, respondeu com um
sorriso desdenhoso, e, ao curvar-se para mesurar o costumado _Deo
gratias, Padre Frei Agostinho_, a contracção do seio fez com que se
despenhasse á agua do lago a rosa branca radiada de filamentos
purpurinos, que D. Antonio lhe dera, e ella occultára no peito.

Não se prendeu a aiasinha com a contrariedade. N'esse dia era-lhe
permittido vibrar livremente a sonoridade metallica da sua voz. Riu
alegremente, e desappareceu por entre os alegretes com o rapido deslisar
das deusas do paganismo. E as brancas nymphas de loiça, e os sarcasticos
satyrosinhos de marmore, que se alapavam entre a verdura do jardim,
pareciam dizer á veloz aiasinha n'uma longa resonancia:

--Viva, Galathea!

Agostinho Pimenta ficou chumbado á beira do lago, com os olhos postos na
rosa fluctuante, e como que lhe segredava no seu olhar melancholico:
«Tambem eu me despenhei como tu!»

Doera-lhe no coração a magua de que a donzellinha se deixasse enliçar
nos aventurosos laços dos fidalgos que n'aquelle tempo viviam por
côrtes, e desde esse momento desejára antecipar, se possivel fôra, a
hora solemne da profissão. Esta descrença na puresa feminina era-lhe
em parte aggravada pelas cartas despeitadas de seu irmão Diogo
Bernardes, que se exulára em Ponte de Lima, mal ferido d'um galanteio
começado á beira do Tejo com uma dama que preferira casar rica.

Ah! mas Agostinho Pimenta enganava-se. A alegre aiasinha da infanta D.
Izabel tinha o genio mariposo que borboletea nas flores e se desvia dos
espinhaes. Era a graça com duas azas: tinha a desenvoltura que não rasteja.

Ao outro dia partia para o solar de Bragança em Villa Viçosa a infanta
viuva, suas filhas e seu filho D. Duarte.

As duas unicas recreações que habitualmente se permittia o infante D.
Duarte, a despeito de suas irmãs, tinham um caracter tradicional de
familia: eram a poesia e a caça.

O principe seu pai, cuja fama de caçador a historia ainda hoje pregoa,
fôra trovador. Dá testimunho Souza na _Historia genealogica_: «Na poesia
vulgar compoz sentenciosamente, guardando as regras poeticas.»

D. Duarte não versejava, mas gostava de ouvir trovar no seu paço.
Monteador era-o por herança, e famoso. Andava nos costumes da familia o
de uma caçada annual em Villa Viçosa.

O infante era acompanhado pelos fidalgos de sua casa, D. Diogo de Lima,
D. Antonio da Gama, Jorge da Silva, D. Diogo, D. Antonio e D. Rodrigo de
Mello, D. Luiz e D. Francisco de Moura, Gaspar de Souza, João Mendes de
Castello Branco, Fancisco Leitão, Luiz do Amaral e Pedro d'Andrade
Caminha.

O duque de Bragança, D. João, era seguido de luzida e numerosa comitiva.

Á infanta viuva, a D. Maria e a D. Catharina faziam sequito mais de
vinte senhoras, entre as quaes não seria difficil distinguir D. Branca
de Noronha.

A entrada em Villa Viçosa foi deslumbrante de magnificencia e digna d'um
principe de sangue, immediato á coroa.

O infante D. Duarte ia vestido á flamenga em cavallo de brida, e a
infanta sua mãe em umas andas, ricamente guarnecidas, acompanhada por D.
Catharina. D. Maria cavalgava em mula com andilhas de preciosa chaparia
de ouro.

De vespera haviam chegado os pagens e monteiros com numerosas matilhas
de lebreos, sabujos e outros cães, e boas aves de presa.

De manhã cedo já os nobres caçadores andavam no seu rude lidar, e não
poucas vezes lhes era servido o almoço á sombra d'uma alameda cuja
simplicidade bucolica notavelmente contrastava com as finas toalhas
hollandezas, os gomis de ouro lavrado, os picheis e taças de prata,--com
a preciosa baixella da casa do infante.

Foi n'uma d'essas manhãs, e sob essa mesma alameda frondosa, que o
infante D. Duarte recebeu uma carta cuja direcção, era a
seguinte:--_Para sua excellencia o senhor infante D. Duarte._[1]

Para logo conheceu o infante a letra: era de Agostinho Pimenta.

Houve curiosidade de saber o que diria a carta, por inesperada. O noviço
do conventinho da serra de Cintra sollicitava da infanta viuva e de seu
filho authorisação para professar. Jubilou com a noticia a côrte do
infante: havia conseguido uma victoria. Só D. Branca de Noronha
tregeitou quasi imperceptivelmente de desdem.

Momentos depois, ao tempo em que Agostinho Pimenta dolorosamente
suppunha a louçã aiasinha requebrada nas galanterias de D. Antonio de
Mello, esquivava-se ella ao encontro d'este galanteador fidalgo,
impellindo gentilmente o seu palafrem ao longo da alameda.

Ha uma desenvoltura mais casta do que o recato melindroso.

Ha, mas tambem ha uma força maior do que a Verdade.

É o Amor.

Pintaram-n'o cego os antigos. Cego, porque tudo é despenhar-se em
insondaveis profundesas de virtude ou de crime, sem lançar mão á humilde
esteva que florece no cairel do abysmo, para que o sustenha na queda;
cego, porque tudo é querer arremetter com as difficuldades que lhe tomam
o passo e ir por deante na sua vertiginosa carreira quasi sempre
vencedor e poucas vezes vencido; cego, porque se não lembra de que a
vida é pequena para elle e porque aspira á eternidade quando se inflamma
em peito de Jacob e de sete em sete annos renova o longo sonho da
sua ventura almejada com o pensamento fito em Rachel.

Duello titanico do Amor com a Verdade: do Amor, que nada quer vêr, com a
Verdade, que nasceu para ser vista; do Amor, que é o Protheu de si
mesmo, e que se faz Othello, Romeu ou Antony, com a Verdade, que tem uma
só forma, uma só face, e um só destino.

Postas rosto a rosto estas duas grandes forças, trava-se furiosa a
briga, arremettem-se, digladiam-se, confundem-se n'um vulto só como os
corpos de dois luctadores raivosamente abraçados n'um circo romano, e
quasi sempre o Amor, arremessando desdenhosamente para o largo esse
gigante luminoso que se chama a Verdade, passa ovante mas ferido em
vertiginosa carreira como se fôra arrastado pelo legendario cavallo de
Mazeppa.

Quem lhe vai pensar as feridas ao misero? conchegal-o ao seio quando
pára finalmente depois do torrentoso despenho? Então mirra-se as mais
das vezes na cruciante solidão d'uma existencia sem esperança.

Antigamente fazia-se monge, como aconteceu com Agostinho Pimenta.
Amortalhava-se no habito, cingia-se de cilicios, vivia na cella ou na
gruta, ajoelhava deante da caveira ou da cruz. Depois que passaram os
seculos em que o coração era templo de vestaes, onde flammejava puro e
vivido o fogo dos affectos, o Amor, cego como na antiguidade, se bem que
menos casto e soffrido, atira-se voluptuosamente aos braços da morte,
como Werther, ou ri satanicamente como Byron ao levantar com mão
nervosa os ondulosos cortinados dos leitos conjugaes.

Dedicação que exigia o sacrificio d'uma vida inteira, ou febre impetuosa
que dura o tempo d'uma sezão, sempre cego o Amor, hontem e hoje, hoje e
amanhã, exagerando as suas dores, embalando-se nas fabulas creadas pela
sua phantasia exaltada, fechando os olhos á verdade que, embora vencida
por elle, que é mais forte, lhe sobrevive no seu throno de luz, assente
em degraus de granito,--eterna como Deus.

Tambem no coração de Agostinho Pimenta estava travado a essa hora o
duello horrivel. Turvava-lhe a vista o Amor, suppondo Branca peccadora.
A Verdade quizera poder leval-o pela mão a debruçar-se n'uma das
janellas do conventinho de Cintra, mostrar-lhe as borboletas que
doidejavam nas comas floridas, e perguntar-lhe se alguma d'ellas valia
menos por ter doidejado mais.

Mas o Amor, o grande Amor d'esses tempos legendarios, que fazia do
coração uma lamina d'aço, mais sonora quanto mais martellada, mais
flexivel quanto mais comprimida, o Amor empunhara a sua lyra maguada e
pelos arvoredos da serra fôra soluçando tristes cantares, emquanto a
eterna Verdade ia chorando pelo poeta, que fugia do mundo, lagrimas de luz.

Coincide com a carta dirigida ao infante D. Duarte o versejar das
tristezas que no livro de Frei Agostinho tomaram o titulo de--_A uma
ingratidão_--e que rematam com estas allusões clarissimas:

    Se mal fundei a minha confiança,
    _Se tão mal empreguei amor tão puro,_
    _Porque não tomarei de mim vingança_?
    Quanto mais cruel fôr, quanto mais duro
    Contra mim, tanto mais serei mais brando;
    Pois todo o mal em mim é mais seguro;
    Assi me irei de todo acostumando
    A ser tamanho imigo do meu gosto,
    Que me fique esta magua consolando.
    Dous rios correrão pelo meu rosto,
    Envoltos nos meus gritos, derramados
    Noite, dia, manhã, tarde, sol-posto.
    Os tristes versos meus dependurados
    Nos troncos deixarei das verdes plantas,
    Que das sêccas assaz estão queimados.
    N'elles escreverei além de quantas
    _Cousas já padeci, quantas padeço,_
    Por julgarem tão mal muitas tão santas:
    Comtudo, meu Senhor, eu não esqueço
    Que rogastes na Cruz por _gente ingrata?_
    _Eu por __ELLA__tambem perdão vos peço._
    Se vós, meu Deus, rogais por quem vos mata,
    Como não rogarei a vós, Senhor,
    _Que perdoeis a quem tão mal me trata?_
    Bem claro vendo estou, quanto melhor
    _É ser injustamente perseguido_
    _Que poder ser d'alguem perseguidor._
    A cousa de que mais estou sentido
    É vêr que nos meus olhos faltou vista,
    Para vêr de que côr era vestido
    Um coração devoto do Baptista.

Completo o anno do noviciado, o irmão de Diogo Bernardes tomou
effectivamente o nome de Agostinho da Cruz. Deixára ao mundo o nome que
o mundo lhe dera. Desde o dia da profissão, a sua vida foi quasi
inteiramente de reclusão meditativa. Rareou as visitas á sociedade,
especialmente ao paço do infante D. Duarte, onde a completa mudança da
sua physionomia começou a infundir respeito nas pessoas que annos antes
o conheceram.

Branca attentava no ainda moço Agostinho, e já não ousava disparar-lhe
os chistes proprios do seu genio. Se acertava encontral-o, fugia-o
receiosa de visinhar a tristesa do habito. Agostinho da Cruz tirava
d'esta esquivança indicios de culpabilidade, e recolhia taciturno ao seu
convento, onde aligeirava as horas da clausura compondo versos que dias
depois lançava ao fogo.

Mais de quarenta annos deslisaram entre este repartir-se com Deus e com
a secreta inspiração que não deixava apagar na sua alma o fogo vestal da
poesia. N'este meio tempo, indo ao convento de Cintra D. Diogo Lopes de
Lima, perguntára a Frei Agostinho da Cruz se o habito lhe vedava o
poetar. O monge respondera sorrindo que os versos menos valiosos eram os
que se davam ao papel, e d'esses quasi todos os inutilisava. Outros
havia que recitava áquellas penhas ou confiava áquellas arvores. D.
Diogo de Lima, relanceando os olhos ao tronco a cuja sombra praticavam,
viu repetidas vezes entalhada no cortex a letra B. Preoccuparam-n'o pelo
caminho as palavras do franciscano, e dias depois relatava o succedido
no paço do duque de Aveiro, em Azeitão.

Facil lhes foi correr com a memoria as breves paginas da brevissima
mocidade de Agostinho Pimenta, e o associarem a gentil aiasinha da
infanta D. Izabel á inicial entalhada nas arvores de Cintra. Uma só
pessoa podia aclarar a verdade. No convento de Jesus estava recolhida
desde a morte da infanta D. Izabel uma senhora que podia dar noticia da
gentil aiasinha dos dezesete annos. Esta senhora orçava pelos cincoenta
e cinco. Era D. Branca de Noronha.

De Azeitão a Setubal breve é a jornada, e brevissima o foi para tão
destro cavalleiro como o duque.

Consultada por D. Alvaro de Lencastre a reclusa do convento de Jesus,
pôde ella conciliar as suas recordações no sentido de presumir-se causa
involuntaria da conversão de Agostinho Pimenta.

Desde esse momento D. Branca deixou de ser um segredo da alma do monge,
que, tendo a rogos do provincial Frei Antonio da Assumpção acceitado a
guardiania do convento de S. José de Ribamar, mais que nunca se
afervorou no empenho de retirar-se á serra da Arrabida, desde que
percebeu as allusões do duque de Aveiro e de D. Diogo de Lima aos poucos
annos da sua mocidade vividos na casa do infante.

Obtida a licença, não sem grandes difficuldades, passou-se Agostinho da
Cruz á serra da Arrabida, onde não havia commodo para viver solitario.

Implorou a amisade do duque para ter eremiterio, mas, recreado nas
diversões campestres do seu paço de Azeitão, esqueceu-se D. Alvaro de
Lencastre de lh'o mandar edificar. Frei Agostinho da Cruz não reclamou.
Fez uma cubata de ramos silvestres, e por sua propria mão tentou
levantar casa mais de geito para resistir ás violencias da serra.
Feriu-se nas mãos, e desistiu do intento. N'esta conjunctura
visitaram-n'o os duques de Aveiro e de Torres Novas, o primeiro dos
quaes era padroeiro da Arrabida. Então tornou a lembrar a ermida.
Tratou-se de escolher sitio. Vacillaram na escolha, e o duque de Torres
Novas, floreando a enxada, demarcou, por cortar hesitações, a área da
ermida.

O paço d'Azeitão! O que hoje são paredes ruinosas e negras era n'aquelle
tempo um palacio que, segundo o phrasear de Frei Luiz de Souza, podia
competir com os melhores de Hespanha. Casas, jardins, pomares, bosques e
pinhaes magnificos! E como tudo isso foi docemente conquistado pelos
descendentes do mestre de S. Thiago aos frades de S. Domingos, seus
visinhos! Pediram terreno para fazer uma casa de campo. Os frades,
orgulhosos da nobre visinhança, deram o terreno, e o mais que lhes foram
pedindo, até que appareceu o grandioso palacio, de que restam as paredes!

Mas fiquem em paz as ruinas.

Respirava dilatada na profunda solidão da serra da Arrabida a alma de
Frei Agostinho da Cruz depois que o duque d'Aveiro lhe fizera mercê da
ermida, que ainda hoje se conserva em memoria do seu primeiro morador.
Pequena era a habitação do ermita, em verdade, mas a alma do poeta tinha
maior espaço na amplidão da montanha coroada pelo firmamento e
defrontada pelo oceano. Frei Agostinho amava profundamente a noite,
porque era só então que a sua pallida figura de solitario podia
errar livremente, nas asperesas da serra, acobertada pelas sombrias
azas do mysterio. Algumas vezes, de dia, o molestavam até á mortificação
a visita de pessoas amigas e a reservada espionagem dos religiosos do
mosteiro que, por quererem parecer mais zelosos, não supportavam que
Frei Agostinho vivesse fóra da clausura. Mas a noite adormecia a
vigilancia nos olhos dos espiões, e afugentava da asperesa da serra as
pessoas que lá o procuravam. Então, a sua alma podia voejar desopprimida
de receios, e subir em extasis para Deus ou roçar por ventura as suas
azas, purificadas no chrysol da fé, pelas austeras paredes do mosteiro
de Jesus, onde vivia a que fôra a gentil aiasinha de D. Izabel.

Fossem quaes fossem as tribulações de Frei Agostinho durante os amigos
silencios da lua, como diz a expressão virgiliana, jámais deixou de
fazer oração antes de sair o sol, e de nas primeiras horas da manhã ir á
ermida da Senhora da Memoria ouvir a missa de Frei Diogo dos Innocentes,
outro solitario que depois lhe ajudava.

Era, pois, durante a expressiva mudez da noite que por deante dos olhos
do solitario da Arrabida perpassavam os phantasmas do passado, as visões
do presente, e talvez as prophecias do futuro. Desenhava-se-lhe com
sombrio relevo o ephemero tempo da sua mocidade agora povoado de
cadaveres. Em 1576 havia fallecido em Villa Viçosa a infanta D. Izabel.
O infante D. Duarte, que acompanhára el-rei D. Sebastião na sua primeira
jornada a Africa, voltára enfermo ao reino e fallecera no mesmo anno que
sua mãe, dois mezes depois. A infanta D. Maria, casada com o
principe Farneze, dera em longes terras a alma ao Creador, um anno
depois de sua mãe e de seu irmão. O nome da duqueza de Bragança, D.
Catharina, entremostrava-se-lhe envolvido n'esse labyrintho de graves
acontecimentos politicos que succederam depois da morte do cardeal. Seu
irmão Diogo Bernardes, que estivera captivo em Africa, por haver
acompanhado D. Sebastião a Alcacerquibir, na qualidade de chronista, e
que lográra repatriar-se, recebendo no reino uma tença de Filippe II,
fallecera n'esse mesmo anno em que Frei Agostinho conseguira recolher-se
á Arrabida. Pedro d'Andrade Caminha tinha succumbido dezeseis annos
antes. A colera do Senhor havia passado sobre o ceu da patria como um
gladio de fogo, e a fome, a peste e a guerra haviam devastado a terra
onde o cadaver de Camões, amortalhado na bandeira gloriosa das quinas,
dormia o somno da immortalidade.

Esse fôra o grande poeta que morrera com a patria.

Todos os mais, aquelles de quem Frei Agostinho da Cruz se lembrava, taes
como seu irmão Diogo Bernardes e Pedro Caminha, haviam adorado todas as
realezas e todos os homens; atravessaram a côrte portugueza trovando e
trovando entráram na côrte hespanhola.

Ah! elle não! Elle, o solitario da Arrabida, fizera do amor terreno a
escada de Jacob por onde subira ao amor divino.

A gentil aiasinha da infanta D. Izabel envelhecera reclusa no
convento de Setubal. Era como que um livro que elle fechára ao vestir o
habito, mas que o seu coração encadernára no pergaminho da saudade, como
que para durar sempre.

O unico poema que lhe era dado lêr, quando d'essas encerradas memorias
desviava a vista, era o vasto firmamento arqueado, n'uma grande
serenidade azul, zebrada de lacteas ondulações, sobre o dorso austero da
montanha.

Umas vezes a lua, suspensa como enorme lampada circular, outras vezes as
palpitações luminosas do relampago lhe allumiavam estas horas nocturnas
de funda meditação.

Certo dia, pouco depois da visita do duque d'Aveiro ao convento de
Jezus, procurou-o na serra o Padre Frei Fernando de Santa Maria, _por
negocio preciso_, diz piedosamente o biographo Mesquita. Estava alheiado
em extasi Frei Agostinho da Cruz, quando o Padre Fernando chegou. Foi
mister dar-lhe tempo de redescender á realidade terrena e, quando a alma
do asceta voltou a encarnar-se no homem, o Padre Fernando de Santa Maria
entregou a Frei Agostinho da Cruz uma carta que em Setubal lhe haviam
confiado para o solitario da Arrabida.

--Quem se lembra ainda de mim no mundo? perguntou serenamente Frei
Agostinho.

O Padre Fernando encolheu os hombros, inclinou-se e sahiu.

Frei Agostinho lançou-se contra o solo aspero da ermida, e por longo
tempo permaneceu em oração. Quando a vaga claridade do luar nascente
principiava a cobrir d'uma fina gaze branca a amplidão do mar, Frei
Agostinho desceu tranquillamente a montanha em demanda da lapa de Santa
Margarida, o seu retiro dilecto das noites luminosas.

Ah! a gruta de Santa Margarida!

Ide cortando as aguas com o rumo na serra da Arrabida. Quando ao sopé da
serra encontrardes o legendario penedo chamado do _Duque_, onde D.
Alvaro de Lencastre ia sentar-se a pescar, desembarcai. Então vos espera
a maior formosura que jámais vos foi dado vêr. Abre-se em dois arcos a
rocha, um que dá sobre o mar, outro que dá para as fragas. Entrai pelo
do mar, até onde vos poder levar o vosso barquinho, como fazem os
pescadores do Cabo quando vão ouvir missa ou levar offrenda á santa da
Lapa. De repente arquea-se sobre vós a grande gruta silenciosa, cheia
duma frescura e d'uma suavidade inalteraveis, sepultada num silencio
religioso que o roçar das ondas parece não interromper. Recorta-se
irregularmente em caprichosas estalactites o concavo da lapa. Em alguns
pontos, foram subindo do solo as columnas vitreas a que os naturalistas
chamam estalagmites, e tanto cresceram que poderam fundir-se com as
grandes massas de carambina pendentes da abobada. Abraçaram-se, e
fizeram columnas que tres homens não poderão circullar com os braços: Ao
fundo da gruta tremeluz a alampada no singelo altarsinho de Santa
Margarida, que o mar, quando nas marés vivas entra em cachões pelas
rusticas arcadas, parece respeitar, desenrolando-lhe aos pés um tapete
de espuma: Quando isto não é, encarregam-se as ondas de alastrar de
plantas e despojos marinhos o chão da lapa.

Ahi, como aprazia á sua alma, descançou Frei Agostinho da Cruz.

Houve um momento que pareceu de hesitação, durante o qual o solitario
monge acompanhou com a vista os caprichosos recortes da vaga á bocca da
gruta. O luar descrevia até meio da lapa uma zona clarissima. Frei
Agostinho introduziu a mão direita entre o habito e o peito, e tirou a
carta que o Padre Fernando de Santa Maria lhe havia entregado. Abriu
serenamente e leu... Mas, lidas algumas palavras, Frei Agostinho
levantou-se de golpe, avançou alguns passos como para conseguir que um
raio da lua cahisse em cheio sobre o papel, tornou a ler, ergueu de novo
a fronte, e, saccudindo o papel na mão nervosa, apostrophou:

--Bemdicto sejas tu, Senhor, que não te esqueceste de mim na minha
solidão! Agora posso morrer no teu seio, ó santo Deus dos affligidos e
dos peccadores.

E ajoelhou, e levantou os olhos ao ceu, e assim esteve longo tempo com a
fronte cadaverica melancholicamente illuminada pelo luar.

A chave do segredo, que esse papel continha, está nos versos de Frei
Agostinho, n'essa mesma noite escriptos na gruta de Santa Margarida.
Dizem assim:

                A D. BRANCA

    Como queres que negue a teu esp'rito,
    Branca, serva da branca Virgem pura,
    Mostrar o que me pedes por escripto?
    Não sei eu por qual outra creatura
    Os tristes versos meus desenterrara
    Debaixo de tão alta sepultura.
    Mas pois de branca queres fazer clara,
    Aquella luz Divina te esclareça,
    Que nunca a bons desejos desampara.
    Não imagines cousa que te desça
    Do caminho do Ceu breve, e seguro,
    Por mais que trabalhoso te pareça.
    Com penas immortaes do reino escuro
    Não te quero espantar; pois seguir queres
    A Cruz do teu Senhor por amor puro.
    Que podes esperar, por mais que esperes,
    Do mundo, que te tem desenganada,
    Que te póde faltar, se a Deus te deres?
    Se vires que por tudo deixas nada,
    Por nada deixarás o que descança
    No curso d'esta vida tão cançada.
    A tanto subirás n'esta mudança,
    Que não haverá dôr, por mór que seja,
    Na qual não cresça mais tua esperança.
    Assi de culpas minhas eu me veja
    Tão longe, como perto ess'alma tua
    D'aquillo, que esta minha ver deseja.
    Que vás após de quem á custa sua
    Por nos levar ó Ceu, d'onde nos chama,
    Na terra padeceu morte tão crua.
    Um firme coração, que em vós se inflamma,
    Ardendo por se vêr de Vós amado,
    Por Vos amar, Senhor, tudo desama.
    Do tempo, que gastei tão mal gastado,
    Dera melhor razão, do que daria
    De vos seguir, Senhor Crucificado;
    Mas nunca a fraca voz me faltaria
    Para dizer do mundo a falsidade,
    Como quem n'elle andou cego sem guia.
    Levanta os olhos teus á saudade
    Do Summo Bem dos bens, e n'elle aprende
    Aquillo que mais fôr sua vontade.
    A Fenis, que do tempo se defende,
    Antes que lhe falleça força, e vida,
    No fogo se renova, em que se accende.
    Não se põe mais a Rola, carecida
    Do seu primeiro amor, em verde ramo;
    Foge da fonte clara aborrecida.
    Testimunha me seja por quem chamo,
    Da verdade que escrevo brevemente
    Nos versos que por seu amor derramo.
    Que não podes sem elle ser contente,
    Sem elle, que dilata seu castigo,
    Por não negar perdão ao penitente.
    Busca falsas razões o duro imigo
    Para nos impedir que de mais perto
    Possamos contemplar tamanho amigo.
    Ah braços estendidos, Lado aberto!
    Quanto se sentem mais as vossas dores
    N'esta quietação d'este desejo!
    Nascem n'esta asperesa brandas flores,
    E n'ella tão suave doce fruito,
    Como tu colherás, como lá fôres,
    Amando muito mais quem amas muito.

Estes versos chegaram ao convento de Jezus de Setubal tres dias depois
e, transcorrido um mez, dobrava austeramente o sino do convento
annunciando a profissão da que outr'ora havia sido a tréfega aiasinha da
infanta D. Izabel.

Frei Agostinho da Cruz subiu vagarosamente ao seu eremiterio quando as
estrellas começavam a empallidecer no ceu. Entrou em oração, e, horas
volvidas, foi á ermida da Senhora da Memoria ouvir e dizer missa. Depois
recolheu-se ao seu cubiculo, e ahi passou o dia no sagrado mysterio da
solidão. Ao pardejar da tarde, perdeu-se na montanha a continuar as suas
meditativas noites de asceta, a ultima das quaes foi a de 14 de março de
1619, em que, na enfermaria que a Provincia tinha em Setubal, santamente
rendeu a alma ao Creador.

No convento de Jezus, áquella hora, ouvia-se tocar á agonia na egreja da
Annunciada, contigua ao hospital, e pouco depois o dobrar do sino
attraia á beira do cadaver de Frei Agostinho toda a população da villa
de Setubal, que lhe retalhava o habito para guardar uma reliquia.

Ao outro dia vogava rio abaixo, nas aguas do Sado, uma falua, armada de
muitos ramos e de ricas tapeçarias da casa de Aveiro. Transportava para
a serra da Arrabida o cadaver de Frei Agostinho. Em torno do feretro
agrupavam-se n'um silencio religioso o duque de Torres Novas, o marquez
de Porto Seguro, e alguns religiosos arrabidos. O povo de Setubal
alinhava-se na praia e, descoberto e reverente, abençoava o SANTO.

      *      *      *      *      *

Vai, ó casto poeta do amor, repoisar no grande tumulo granitico da tua
montanha querida. Poeta e monge, tens duplo direito a essa ingente
sepultura, onde os monges, tristes e sós, foram muita vez genuflectir
sobre a tua lage, e onde os poetas irão pelas idades a dentro pedir ao
luar que lhes empreste os contornos phantasticos do teu vulto pensativo
para te reporem sob a gruta de Santa Margarida meditando maguas secretas.

Podeste finalmente dormir, onde quizeste viver.

Se a tua musa jamais se librou magestosa nos epicos arrojos da lyra de
Camões, cantor do coração e poeta do Amor como elle, a morte vos irmanou
na grandeza da sepultura.

Para elle foi sepulchro enorme a patria. Quem sabe onde jaz? Era pequena
uma cova para tamanho homem. Repoisa na patria, sepultura por dois lados
orlada pelo mar. É-lhe epitaphio um poema. É-lhe monumento a historia.

Tu repoisas dentro da grande urna de pedra, cinzelada pela naturesa á
beira das aguas marinhas. É-te epitaphio a montanha. É-te monumento a
Cruz, porque ella recorda o teu nome, erguida sobre altar de rocha.

Era pequena uma valla para tamanho soffrer.

Assim foi que a morte igualou no somno derradeiro e glorioso o poeta
guerreiro e o poeta monge, dois leaes amantes antigos, dois finos
corações namorados, que pulsaram, um cingido na cota, o outro oppresso
no habito, por duas damas formosas, Nathercia e Branca, que por longo
tempo hão de viver, não em o mundo phantastico dos poetas,[2]
mas na extensa galeria das grandes dedicações portuguesas.

Aqui fica, n'este livrinho escripto com a sentida saudade que o teu
destino inspira, ó santo eremita da Arrabida, o que quer que seja da
mysteriosa poesia que as silenciosas noites da serra desabrochavam no
teu coração.



FIM.

    [1] D. João III era tão affeiçoado a este sobrinho, que lhe concedeu
    o tratamento de _excellencia_, sendo que o filho natural d'el-rei,
    D. Duarte, apenas tinha o de _senhoria_.

    [2] «....Frei Agostinho da Cruz explicava as abstracções do amor
    divino, em versos da eschola italiana, a uma certa senhora D.
    Branca, hoje desconhecida. Dona Branca tambem seguia a vida
    religiosa, etc.»

_Historia dos Quinhentistas_,--Theophilo Braga.





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THEATRO

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Os tres vol. 1$500

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*Abençoado progresso*, com. em 1 acto, orig. de R. de Lima 100

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de Castilho e Mello. 200

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