A ultima ceia do Doutor Fausto

By Alberto Pimentel

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Pimentel


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Title: A ultima ceia do Doutor Fausto


Author: Alberto Pimentel



Release Date: April 27, 2011  [eBook #35982]

Language: Portuguese


***START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A ULTIMA CEIA DO DOUTOR FAUSTO***


E-text prepared by Pedro Saborano



OPUSCULOS ROMANTICOS

I

A ultima ceia

DO DOUTOR FAUSTO

NARRATIVA

POR

ALBERTO PIMENTEL







PORTO
TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA
Rua do Calvario, 36
1876




OPUSCULOS ROMANTICOS

I

A ultima ceia

DO DOUTOR FAUSTO

NARRATIVA

POR

_Alberto Pimentel_

PORTO
TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA
Rua do Calvario, 36
1876




AO MEU PREZADO AMIGO

O

_Snr. Conselheiro Telles de Vasconcellos_




    Ihr naht euch wieder, schwankende Gestalten,
    Die früh sich einst dem trüben Blick gezeigt.
           FAUSTO--Goethe.

    Resurgis outra vez, vagas figuras,
    Vacillantes imagens que á turbada
    Vista accudieis d'antes?
           _Traducção do Visconde de Almeida Garrett._

    Tornai-me a apparecer, entes imaginarios,
    Que me enchieis outr'ora os olhos visionarios!
           _Traducção do Visconde de Castilho._




Fazia n'essa noite setenta annos.

Elle era o mais distincto, o mais elegante, o mais popular e o mais
respeitado dos medicos. Alto, magro, pallido, com as faces ligeiramente
avincadas, bigode nevado como os cabellos, não raros, e ainda penteados
com distincção, vestindo quasi sempre casaca, e trazendo arregaçadas
sobre os hombros as lapellas do seu largo _paletot_ alvadio, calçando
luva escura, fumando continuamente os melhores charutos de contrabando,
tendo uma voz saccudida, firme, sonora, trazendo á flor dos lábios uma
amabilidade para cada mulher que encontrava, um dito conceituoso e
innocente para cada homem, sabendo festejar as creanças e animar os
doentes, sereno, risonho, impavido, chegára a attingir na sociedade uma
d'essas invejaveis posições de fausto e consideração, sem resentimentos,
sem despeitos, sem malquerenças, emfim.

Toda a gente o conhecia pelo appellido: o doutor Filippe Sullivan.

Ninguem pensou nunca em saber de quem era filho, que parentes ou que
ligações de familia elle tinha. Vivia só, servido por criados de lenço
branco e casaca. Appareceu na eschola medica como estudante assombroso.
Os jornaes começaram a fallar dos seus brilhantes exames e das suas
theses magnificas. Acontece aos nomes o que acontece ao dinheiro. Desde
que são lançados á circulação, como qualquer pequena moeda de oiro ou de
prata, quem póde saber a que destino terão de chegar? Umas vezes esse
nome tem a felicidade de merecer uma apotheose, como certas moedas a de
perpetuarem uma epocha esplendorosa na historia das civilisações; outras
vezes esse nome abysma-se no vasto sorvedoiro dos povos, como certas
moedas revoluteam nos abysmos escurissimos da miseria ou do crime. Mas o
nome de doutor Filippe Sullivan estava fadado para o destino glorioso
dos homens immortaes. Começaram todos os doentes a chamal-o, a querel-o,
a disputal-o, porque elle começou tambem a não chegar já para a sua
gloria,--deliciosa contrariedade que acontece a todos os grandes homens
nos paizes pequenos. Toda a gente requer o medico fulano, quando esse
medico é distincto como o dr. Filippe Sullivan, e o paiz é tão pequeno
como Portugal; um habil estadista principia a ser importunado para todas
as commissões de serviço publico, como um actor notavel para todos os
espectaculos de beneficencia. Em França, na Inglaterra, na Allemanha ha
medicos especialistas, que tratam apenas molestias de olhos, de peito
ou de coração. Nenhum medico, nesses vastos paizes, póde ter a
felicidade de ser disputado por todos os doentes da sua patria, e dahi
vem a necessidade de applicar-se exclusivamente a um só ramo da sua
difficil sciencia, para dar na vista, para chegar a entrar nas academias
e nos institutos.

No curso do dr. Filippe Sullivan houve repazes de subido talento, que no
dia das ultimas theses se dispersaram remando cada um ao sabor de sua
imaginação. Uns fizeram-se medicos, unicamente medicos. Outros, para
quem a medicina era apenas uma profissão, dedicaram-se ao jornalismo, á
politica, ás finanças, á litteratura propriamente dita. Em todos esses
espiritos, mais ou menos levantados e instruidos, havia a mais profunda,
a mais leal e a mais perduravel adoração pelo dr. Filippe Sullivan. Elle
tinha sido presidente de quantas sociedades academicas se constituiram
durante o seu curso; elle fôra o ardente orador de todos os comicios
escholares; o leccionista voluntario e gratuito de todos os companheiros
mais destituidos de fortuna ou de intelligencia; elle chamára ás suas
festas de estudante sempre premiado todos os amigos, condiscipulos e
contemporaneos; elle adquirira, finalmente, a mais espontanea e a mais
firme popularidade com que se póde sair das escholas para entrar na
sociedade, por mais difficil que a sociedade seja. Estes homens novos e
intelligentes, socialmente distribuidos consoante as suas aptidões
naturaes, começaram por lembrar ao paiz que tinham sido amigos ou
companheiros d'esse grande medico que estava destinado a ser uma das
primeiras notabilidades do seu tempo e da sua patria. Então
pullularam de toda a parte os livros de sciencia, as dissertações, os
romances, os folhetins, os versos dedicados a elle, ao dr. Filippe
Sullivan, com as mais elegantes e mais ardentes dedicatorias que um
rapaz sabe escrever ao entrar na sociedade. A anecdota, esta grande mola
da celebridade, foi ao encontro do dr. Filippe Sullivan, receiosa de que
tamanho homem conseguisse immortalisar-se sem o seu velho e pittoresco
auxilio. Um dia, n'uma epocha em que o doutor fizera cinco ou seis
operações tão difficeis como felizes, encontrára á sua porta, no momento
de sair de casa, uma elegante equipagem, cuja libré não reconheceu no
primeiro momento. Accendendo vagarosamente o seu charuto, o dr. Filippe
Sullivan perguntou se aquella carruagem o esperava. Responderam-lhe que
era sua. O doutor olhou fito no trem, e viu as iniciaes F. S. Ao mesmo
tempo descia da boleia o cocheiro e perguntava respeitosamente:

--V. ex.ª para onde quer ir?

Nunca pôde descobrir quem lhe offercera a equipagem. Os seus doentes
operados pertenciam a familias nobres e opulentas, todas ellas na
prospera situação de tão largo presente. O caso divulgou-se
immediatamente, toda a gente começou a fazer conjecturas, e a carruagem
do dr. Filippe Sullivan principiou a gozar uma celebridade que fazia
parar na rua para se ficar a olhar para ella, como se fosse dentro o
mysterio,--a pessoa que a offerecera.

Dizia-se alto e bom som:

--Foi o visconde de...

--Foi o marquez de...

--Foi o conde de...

E á bocca pequena:

--Foi a viscondessa...

--Foi a marqueza...

--Foi a condessa...

O que é certo é que o dr. Filippe Sullivan não sabia quem fôra.

Tinha vagado na eschola medica um logar de professor d'uma das mais
importantes cadeiras. Ninguem concorreu a não ser o dr. Filippe
Sullivan, porque ninguem podia e queria esgrimir com elle para ficar
indubitavel e fatalmente vencido. Se o corpo cathedratico podesse ir a
casa buscal-o e trazel-o levantado nos braços para a cadeira do
professorado, o corpo cathedratico havel-o-hia feito. Mas a lei exigia
concurso, e não havia remedio senão satisfazer á lei. Os jornaes
annunciaram com grande antecipação o dia do concurso, e não tardaram a
referir que um medico francez, então residente entre nós, pedira licença
ao dr. Filippe Sullivan para traduzir a sua dissertação a fim de ser
conhecida e devidamente apreciada nos primeiros estabelecimentos medicos
de França. Houve grande empenho em ser admittido na sala dos concursos.
Foi preciso reservar logar para as senhoras, porque foram muitas as que
assistiram desde o primeiro dia. O dr. Filippe Sullivan era então um
rapaz em todo o vigor da sua gentil mocidade. Poderia haver quem lhe
pozesse a pecha de extremamente pallido, mas não faltava quem achasse na
sua face a morbida doçura que caracterisa vulgarmente os homens de
grande coração e maior intelligencia. Diante do corpo cathedratico
grave e attento, em face do publico numeroso e recolhido, elle tinha a
naturalidade da expressão, a fluencia do dizer, as imagens pittorescas e
claras, os arrebatamentos scientificos, e por vezes poeticos, o gesto
vigoroso e proprio, e ao mesmo passo a modestia sincera e captivante que
em toda a parte davam maior relevo ás suas profundas qualidades medicas.
Momentos houve em que elle, respondendo brilhantemente a habeis e
repetidas objecções, fôra acolhido por um longo e voluntario murmurio da
multidão, agitada por as grandes contracções nervosas que nos invadem o
cerebro diante dos mais assombrosos espectaculos de prazer ou dor.

Quando elle se levantou, agitaram-se no ar centenas de braços, de
professores, de estudantes, de amigos, de conhecidos e desconhecidos,
como se todos podessem em verdade abraçar ao mesmo tempo, e no mesmo
logar, um só homem. N'essa mesma noite, posto faltassem ainda as ultimas
provas, teve sob as janellas uma ruidosa serenata de estudantes, que
enthusiasticamente vozeou as mais calorosas e delirantes acclamações,
diremos mesmo os mais doidos gritos que o enthusiasmo póde arrancar de
peitos de vinte annos. Ó boa, ó santa, ó louca mocidade! como são
grandes os teus hymnos, as tuas apotheoses e os teus delirios! Ó meigo
leão, como és imponente e formidavel, quando lambes magestosamente as
plantas do teu deus ou do teu heroe! Ó onda alegre e sonora, que vais
espraiar-te sob a janella do novo Fausto dos teus poemas eternos e
mandar-lhe as fervidas notas da tua rumorosa serenata, tu és a
grande voz da historia, tu és o olympico hymno da gloria, que se
antecipa no coração da mocidade!

A primeira vez que regeu a cadeira, os estudantes de todos os cursos
offereceram-lhe um jantar, em que elle, ao levantar-se para agradecer
n'um só brinde as saudações que de toda a parte lhe foram dirigidas,
rompeu, pronunciada a primeira palavra, numa convulsão de choro e riso,
de que brotou, como entretecida de saudades e esperanças, a mais
arrojada e torrentosa eloquencia que de improviso póde jorrar de labios
humanos.

Não vinham longe as eleições geraes. O nome sympathico do dr. Filippe
Sullivan começou a ser apresentado em alguns comicios e recommendado por
algumas classes extremamente influentes. Pessoas havia porém que
lamentavam esse criminoso roubo da politica á sciencia, e que tinham
sincera magua de privar a sociedade d'um medico por tal modo distincto
para dar ao parlamento mais um orador. Todavia a onda eleitoral foi
crescendo com a rapidez que caracterisa o ardor com que se servem as
causas voluntarias, e o dr. Filippe Sullivan appareceu no parlamento
festejado e respeitado pelo governo e pelas opposições. Toda a gente
tinha os olhos n'elle, e toda a gente esperava com mal contida
impaciencia o seu primeiro discurso. A meio da sessão parlamentar, o
governo pareceu em crise, e as opposições colligadas assestavam as
baterias da sua eloquencia apaixonada para varejarem o ultimo reducto do
governo. N'esse dia o dr. Filippe Sullivan pedira a palavra, mas a
ordem da inscripção collocava-o em ultimo logar. Foi uma carga
terrivel da opposição contra o governo, e, vendo os ministros pallidos,
abatidos, vexados nas suas cadeiras, todo o publico das galerias,
incluido grande numero de representantes extrangeiros que enchiam a
tribuna dos diplomatas, olhava para o dr. Filippe Sullivan como se fôra
o unico homem capaz de oppôr o seu peito á medonha torrente das iras
opposicionistas. Quando finalmente lhe chegára a palavra, e parecia não
estar longe o momento em que as pastas voassem das mãos dos ministros
aos pés do rei, o dr. Filippe Sullivan rompeu na mais eloquente e na
mais arrojada apostrophe de indignação contra as opposições colligadas,
e n'um discurso titanico, em que defendeu, medida a medida, os actos do
governo, exhortando-o a levantar a fronte diante da voz da ambição e das
garras da inveja, elle supplantou esses terriveis antagonistas sedentos
de poder, que combatem o que se fez porque elles o não fizeram. Nunca
jamais orador algum sustentára, um contra cem, tão ardente e
desproporcionada campanha parlamentar. Elle fôra n'esse dia
verdadeiramente um gigante, um assombro de coragem e eloquencia, porque
a sua palavra, interposta a dois campos inimigos, volveu-se um como
baluarte invencivel, a montanha insuperavel que faz o desespero eterno
dos que vendo perto a gloria ficaram finalmente vencidos.

Sempre me pareceu que a Gloria devia de ser caprichosa, porque a fizeram
mulher. Mulher e formosa!

Caprichosa por certo! Ella adora os que a não amam, e aborrece os que a
amam. Ella procurava, seguia, provocava o dr. Fillippe Sullivan, que
a não requestava, que lhe dava um sorriso e que passava adiante; ella
colhia-o nos braços e enleiava-o nas mil ondulações das suas tranças
fluctuantes, no parlamento, no professorado, á cabeceira do doente, sempre!

«Ah! talvez ella dissesse, tu és meu e queres fugir-me! Mais um laço,
mais outro, mais cem: solta-te agora dos meus braços, despedaça, se
pódes, os meus grilhões: liberta-te, escravo da minha vontade soberana!»

E os seus grilhões, doces como os braços das mães quando cingem os
filhos, tinham, e hão de ter eternamente, alguma coisa de terrivel como
os espinhos da juba revolta com que a leoa cobre a victima que empolgou.

«Tu, continuaria ella, tu não pódes ser grande na tua cadeira de
professor, e pequeno na tua cadeira de deputado. A toda a parte chega o
meu influxo, o meu poder e a minha soberania. Eu sou aquelles
resplendores que tu vês ondular em columnas vaporosas a dentro d'uma
janella por onde entra o ar e a luz. Por toda a parte sei passar, pela
janella meia fechada ou pela porta meia aberta, e, para não encontrar
nunca obstaculos, faço-me pó resplendente, e entro. Aqui está o que eu
sou: poeira de luz, amigo, unicamente poeira de luz. Valho tão pouco
como o pó, e valho tanto como a luz! Em toda a parte estarei comtigo,
doutor. Até logo, até já, até sempre!»

E ella dizia, e ficava a espreital-o por detraz dos reposteiros, para o
seguir quando elle sahisse.

A caprichosa!

Ó Gloria, ó bella alma inquieta, que nasceste do pó e caminhas para a
luz, não valias porventura o que vales, se tu fosses realmente a Gloria
sem primeiro haveres sido Mulher!

Por esse tempo celebrava-se, creio eu que em Bruxellas, um congresso
medico em que todos os paizes se faziam representar pelos seus mais
notaveis clinicos. Reuniu-se o corpo cathedratico para escolher o
representante portuguez, e a eleição recahiu por unanimidade no dr.
Filippe Sullivan.

Era mais um convite da Gloria.

No congresso de Bruxellas o dr. Filippe Sullivan foi recebido com a
respeitosa admiração que o seu nome inspirava em toda a parte onde era
conhecido, e foram sobretudo os delegados francezes os primeiros a
encarecerem perante o congresso os profundos dotes medicos do
representante portuguez, cuja dissertação de concurso possuiam traduzida
no idioma patrio.

Nas mais importantes questões de medicina legal, o dr. Filippe Sullivan
subiu a uma altura que foi devidamente apreciada pelo sabio congresso, e
que lhe conquistou desde logo o primeiro logar entre os primeiros
oradores. D'este triumpho lhe advieram subidas honras, sendo as maiores
as relações d'amizade que deixou travadas com os mais conspicuos medicos
europeus, e as menores as condecorações extrangeiras com que foi
agraciado por intervenção dos representantes de França, Allemanha,
Italia e Grecia.

Napoleão III, que reinava a esse tempo, enviou ao medico portuguez a
mais nobre e distincta das condecorações francezas: a legião d'honra.

O Instituto de França abriu-lhe as suas portas de tão difficil ingresso.

Se este notavel medico houvesse permanecido em França, teria chegado á
celebridade europea que lá conquistou para si e para Portugal o doutor
Casado Giraldes, ha pouco fallecido. Mas nós, os portuguezes, temos
profundo e ardente o amor da terra que nos foi berço, e só nos
resignamos á melancolia do exilio quando um grave lance da vida nos
alastra de espinhos o chão da patria. Somos, para a maior parte dos
extrangeiros, uma provincia de Hespanha, um pequeno trato de terreno
interposto aos Peryneos e ao Atlantico, mas o que é certo é que nós
somos ardentemente ciosos d'essas poucas geiras de solo abençoado, e que
respiramos aqui mais livremente do que na vastidão do mundo, que
visitamos para tornar nostalgicos ao nosso ignorado vergel de laranjaes
e rozeiras.

Depois, se ha homem que precise de ter sempre o coração desanuveado de
sombras, e desopprimido de espinhos cruciantes, esse homem é o medico.
Elle deve ser a paz, a tranquillidade, a paciencia, a consolação; elle
deve repartir com os seus doentes a coragem que lhe exabunda no peito;
elle deve ter sorrisos para enxugar todas as lagrimas, e palavras de
conforto para calmar todos os desesperos.

Agora rasgai-lhe o coração com a incisiva lamina da saudade, e
dizei-lhe: «Sorri, consola, fortifica.»

Ah! não póde ser!

Tornado a Portugal, o dr. Filippe Sullivan proseguiu na sua
brilhante carreira por cima dos louros que lhe desfolhava todas as
noites a mão namorada da Gloria para elle calcar no dia seguinte.

De triumpho em triumpho, o dr. Filippe Sullivan habituara-se a
esquecer-se de si proprio para viver d'essa vida exterior que de toda a
parte o reclamava, e que todas as noites o preoccupava com os mais
difficeis problemas phatologicos. Frequentava a sociedade, a melhor
sociedade até, mas atravessava ordinariamente as salas com alguma grave
preoccupação a trabalhar-lhe o espirito. Era novo e gentil, via ondular
diante de si os vagalhões doidejantes da valsa, mas a profissão
completára n'elle, como quasi sempre acontece, a educação. Fora moço
sobre os livros; deixára de o ser á cabeceira dos doentes. Não conhecera
aos vinte annos as tentações mentirosas das salas, de modo que um baile
era para elle um espectaculo alegre, mas unicamente espectaculo. No
theatro, seja qual fôr o nosso enthusiasmo pelas tempestades do drama ou
pelas graciosidades da comedia, ha sempre a barreira do tablado a
distanciar-nos d'essa formosa chimera cujas sensações nós fomos comprar.
Tambem para o dr. Filippe Sullivan havia nas salas do baile a mesma
linha divisoria que o separava dos esplendores do festim: essa linha era
a posição austera do medico. «Os outros, dizia elle desculpando a sua
isempção, os outros podem ser do baile, porque são de si mesmos; o
medico não é de si proprio, não póde ser de ninguem. A noite é a
suspensão dos cuidados para as outras classes; mas ao medico cumpre
estar apercebido de noite, porque a doença tem muitas vezes a
cobardia d'um salteador nocturno, e accommette principalmente de
emboscada.»

O Amor via-o pois de longe a fumar os seus bellos charutos havanos e a
conversar discretamente com uma ou outra pessoa, mulher ou homem, a
serenidade era a mesma, e a Gloria, brincando com os anneis do seu a
esse tempo negrissimo cabello, sorria por detraz da cadeira e dizia para
o Amor que ia redemoinhando na sala de mãos enlaçadas com a Valsa:

«Vai, louco, nos braços d'essa louca, creanças doidas que pareceis
correr enamoradas das borboletas da noite. Olhai que apressadamente
desfolhaes as flores do vosso breve reinado n'esse ondejar vertiginoso.
Escreveis os vossos poemas sobre o carmim das faces, e a aurora
primeiro, depois o somno, apagam os vossos poemas. Os meus escrevo-os no
bronze da historia para se lerem na eternidade dos tempos. Por isso não
doidejo. Eu trabalho para o futuro; vós trabalhais para a noite. Ide,
voai, que eu fico com os meus predilectos.»

E o dr. Filippe Sullivan deixava-se ficar sentado commentando alegre e
espirituosamente, com um ou com outro, os mil episodios do baile, essas
breves loucuras côr de roza atravez das quaes um espectador sereno
entrevê sempre um demonio zombeteiro a rir-se mephistophelicamente.

Agora passa a viscondessa entre as nuvens alvacentas do seu pó de arroz,
reclinada no hombro de um cavalheiro cuja casaca vai enfarinhada da
serodia mocidade da viscondessa.

Logo ha-de passar o leão decrepito e amoroso a rociar de agua
circassiana a pomba de vinte annos que elle empolga nos braços com os
ademanes grotescos que eram moda no tempo dos francezes.

Depois... Depois o grande carnaval das salas em todo o esplendor dos
seus fatos de lentejoulas e dos seus pingentes de pechisbeque.

Ás vezes diziam ao dr. Filippe Sullivan:

--Repare como é bonita!

--É bonita! repetia elle quasi machinalmente.

E todavia diz-se que os grandes espiritos foram destinados ás profundas
vibrações dos mais delicados sentimentos. E entre os delicados
sentimentos é delicadissimo o amor. Elle é tão subtil como as essencias
mais finas; elle é uma perola que é preciso saber equilibrar sobre a
palma da mão vestida de luva branca. Um movimento mais ardente póde
despenhar a perola. Quantos amores se não hão perdido por haverem
querido apressar a hora da felicidade!

Ó meu caro dr. Filippe Sullivan, serás tu uma organisação especial e
extraordinaria, talhada no marmore onde se concentra eternamente a
frialdade dos gelos septentrionaes?

Não creio, meu caro doutor, não creio.

Tu és homem, e tens dentro de ti a peior fatalidade do teu sexo: o
coração. A gloria é pezada como todas as prisões. Ha-de haver na tua
vida um momento em que o coração te bata no peito as pulsações violentas
da febre, e te diga finalmente: «Eu quero um momento para mim. A gloria
tem-te escravisado toda a vida. Escravo, rehabilita-te um instante!»

Todavia o dr. Filippe Sullivan fôra envelhecendo com a mesma
tranquillidade risonha dos primeiros annos da vida, e parecia que no seu
coração havia a calmaria que lampejava na face em clarões de paz e
felicidade.

Assim foi que elle chegou aos setenta annos, a essa idade avançada em
que o coração já está morto e amortalhado de gelos no peito dos que o
assassinaram a golpes de punhal, durante a lucta das paixões; a essa
edade em que ha ainda no profundo ceu da nossa alma as cambiantes
formosas d'um bello occaso quando se atravessou o mundo sem receber a
ultima desillusão.

A vida romanesca do dr. Filippe Sullivan era inteiramente desconhecida
dos seus primeiros amigos e das pessoas que mais frequentavam a sua
companhia. Suppunham uns que nunca tivera amado; suppunham outros que
guardava avaramente o segredo das suas felicidades amorosas.

Elle estava velho, chegado aos setenta annos, e os romancistas
desesperariam de copiar tão distincto typo de medico por lhes faltar a
urdidura romantica que particularmente interessa os leitores de novellas.

«É um bello typo á procura d'um romance!» disse d'uma vez, fallando do
dr. Filippe Sullivan, um dos nossos primeiros homens de letras.

Enganava-se.

A verdade é que era um bello romance á procura d'um bom romancista.

Ora o bom romancista não appareceu até hoje a metter hombros á tarefa.
Encarreguei-me eu d'esse pequeno serviço--eu, o mais incompetente de
todos os escriptores portuguezes--prestado á memoria de esse medico
famoso que deixou de si memoria assignalada.

No dia em que completava setenta annos, o dr. Filippe Sullivan convidou
os primeiros medicos e os primeiros escriptores de Lisboa para o que
elle chamava a sua ultima ceia. O agrupamento de todas estas
circumstancias, a curiosidade de devassar pela primeira vez os mais
reconditos aposentos d'um homem por tal modo elegante e erudito, que
nunca recebera com tamanha prevenção; a circumstancia de parecer querer
despedir-se romanescamente da vida esse velho distincto que ultimamente
apenas apparecia no theatro com a fria austeridade da sua casa e das
suas luvas pretas; o orgulho de não ser esquecido para essa _soirée_ em
que se presumiria estaria representada a primeira aristocracia do
talento, mil outras circumstancias emfim de que se fazia acompanhar e
seguir esse convite inesperado e tentador agitaram profundamente o
espirito publico n'uma terra onde os acontecimentos são ordinariamente
poucos e insignificantes.

O dr. Filippe Sullivan habitava n'esse tempo um elegante palacete
convisinho do cemiterio inglez e de esse outro predio notavel onde o
visconde de Almeida Garrett fallecera. Elles haviam sido amigos, elles
estiveram nas camaras ao mesmo tempo, elles tinham o seu que de commum
na delicadeza de gosto e na grandeza de espirito.

Nas primeiras salas, distincta e ricamente mobiladas, estava o bilhar, a
livraria, o gabinete de leitura, onde as mais voluptuosas
commodidades, a mais suave luz, quebrada discretamente em _abat-jours_
convenientemente coloridos, convidavam a esse engolphar do espirito que
põe todo o sabor e todo o encanto aos livros. Á sala de leitura
seguia-se o gabinete anatomico e o arsenal cirurgico, copiosos de
exemplares valiosissimos. Ah! tinham o seu que de terrivelmente
phantastico essas grotescas figuras de cera, de cartão, ou elasticas
representadas em mil differentes posições dolorosas; essas asquerosas
deformidades arrancadas ao corpo humano durante a profunda somnolencia
da anesthesia, e esses ferros de gume delicado e garras dilacerantes
illuminados pelo reflexo tremulo do gaz que, borboleteando por elles em
filetes luminosos, parecia dar vitalidade e contracções a toda essa
inanimada galeria de raros exemplares perfeitamente trabalhados ou
habilmente operados. A maior parte dos convidados que não eram medicos
evitavam inteiramente estas duas salas, espreitando-as da porta do
gabinete de leitura, e deixando-se cahir n'uma _chaise-longue_ com os
olhos disfarçadamente postos n'um livro que não liam. Os medicos
entravam e demoravam-se em grupos de trez ou de quatro deante das
_vitrines_, especialmente deante das copiosas vidraças da secção
obstetricia a discutir por exemplo as vantagens do forceps-serra de Van
Huevel sobre a céphalotribe de Penard e as dimenções dos golpes na
operação cezariana, cujo modelo estava alli deante d'elles quasi tão
paciente como se fosse verdadeiro. A um e outro lado da porta havia
dois bellos esqueletos por cujos vãos intercostaes rompiam
phantasticamente as ondas de luz que irradiavam os candelabros da
sala immediata. Um distincto poeta satanico, especie litteraria que
n'esse tempo começava a pimpolhar em Portugal, e que n'uma das suas odes
terriveis pedira a Satanaz o doce horror de beber o sangue da vingança
pelo craneo da amante que o trahiu, foi visto por um dos nossos mais
espirituosos medicos, no momento de atravessar por entre os dois
esqueletos, tão nervosamente encolhido como se tivesse de escoar-se por
entre as pontas de dois punhaes apontados para os hombros d'elle. Aqui
está a Vida, em todas as suas evoluções, desde o embryão que o ferro
sabe arrancar ao ventre materno até á decomposição repugnante que a
ha-de apodrecer. Aqui, ó poetas, ó romancistas, ó sabios que tendes um
talher na ultima ceia do dr. Filippe Sullivan, aqui é logar para
philosophos, aqui desvelou elle muitas noites, á pallida luz d'uma unica
lampada, emquanto vós doidejaveis nas loucuras que envelheceram para vós
antes que vos achasseis velhos para ellas.

Ah! que se o dr. Sullivan tivesse uma grande ancia de amar, como toda a
vida teve uma grande ancia de saber, como facilmente o poderiamos
imaginar o velho doutor Fausto da legenda universal no meio do seus
livros poentos e dos seus luzentes instrumentos cirurgicos, emquanto lá
ao fundo do gabinete mysterioso appareceria vaporosa e divinal a imagem
de Margarida, como no primeiro acto da opera de Gounod, e Mephistopheles
espreitaria os anhelos arrebatados do namorado doutor sempiterno! Mas a
sua vida é talvez um poema fechado, um cofre de joias por abrir, um
segredo que, porventura ao terminar a ultima ceia, descerá com elle á
sepultura! Ali! meu velho doutor, meu caro Filippe Sullivan, talvez que
estas figuras grotescas e phantasticas, em que tu noite e dia estudavas
as profundezas da sciencia e os mysterios da vida, saibam até que ponto
costumava avoejar a tua phantasia de artista e de erudito, mas só a tua
mão delicada lhes sabia dar movimento e sensibilidade, e agora ahi estão
mudas, sem responderem ás nossas interrogações curiosas, emquanto lá em
cima o tinir dos crystaes e a phosphorecencia das luzes faz esquecer o
mysterio que involve a tua vida, doutor!

Todas estas salas constituiam o _rez-de-chaussée_ e descreviam uma curva
em derredor da escada, lançada em ligeiro caracol e ornamentada de
vasos, espelhos, estatuetas, candelabros, e suspensões floridas.

No andar nobre havia a um lado tres vastas salas que entre si
communicavam por largas portas arqueadas e envidraçadas. Estavam todas
abertas, illuminadas, deslumbrantes de esplendor e elegancia. Do outro
lado correspondiam os aposentos do dr. Filippe Sullivan, quartos
deliciosos, d'uma luz tibia e doce, em grande parte devida á côr das
colgaduras e da mobilia. Estavam corridos de par em par os reposteiros.
Uns compartimentos interiores, destinados a _toilette_ e casa de banho
davam communicação particular para a sala da mesa, cuja entrada
principal era pela terceira sala do lado opposto. Ah! a sala da mesa! As
graças da phantasia de mãos dadas com as pompas da opulencia! As mais
finas e custosas loiças indianas! pratas artisticamente lavradas para os
festins d'um principe! crystaes multicores e resplendentes!
candelabros constellados de lumes sem conto! quadros onde os mimos da
natureza sobresaiam pela delicadeza do colorido! um labyrintho de taças,
de _plateaux_, de _corbeilles_, de ornatos gelatinosos, de fructos
variegados, de pequenos aquarios, de magnificas jarras de Sevres, no
meio d'uma vasta sala cortada por dois arcos de uma grande elegancia de
desenho!

Quando os convidados sairam das outras salas, onde deliciosamente os
detiveram o bilhar, o _Whist_, a bibliotheca, a conversação scientifica
ou humoristica, e entraram á sala da mesa, quasi todos os grupos pararam
de subito ao limiar da porta deslumbrados da surpreza de tão grandioso
espectaculo.

O dr. Filippe Sullivan fazia notabilissimamente as honras da casa. Elle
destacava-se elegantemente n'aquelle vasto quadro por tal modo animado e
confuso. Sobre a casaca, que lhe vestia ainda com a elegancia d'um moço,
a roseta encarnada da legião de honra recordava tacitamente uma das
paginas mais gloriosas da sua vida scientifica.

Essa doce recordação não podia faltar na ultima ceia d'um sabio,--a ceia
dos setenta annos, o ultimo resplendor do sol sobre as neves da velhice,
o derradeiro punhado de flores arremessado alegremente para a silenciosa
aridez do inverno.

A ultima ceia, o ultimo brinde, a ultima taça de champagne! Depois...
talvez a morte.

Prolongou-se pela noite dentro a ceia. Não ha imaginar ahi mais vivida,
mais fervida, mais scintillante conversação! mais doida, mais
caprichosa! borboleta que parecia arrancar de todas as boccas uma
palavra de ouro para as deixar cahir em chuva scintillante, do alto da
mesa, sobre as flores, os crystaes e as luzes! Houve um momento de
indiscriptivel animação e de enthusiasmo sublime.

O mais novo dos membros da faculdade propoz um brinde á gloria que
cingia de luz a fronte encanecida dos seus velhos mestres. O dr. Filippe
Sullivan ergueu-se verdadeiramente commovido e respondeu levantando um
brinde á esperança, ao amor e ao futuro, saudando a mocidade que nas
cadeiras do professorado ia a pouco e pouco substituindo brilhantemente
os ultimos soldados da velha guarda medica.

--Ah! que sejam felizes, disse elle, que menos os namore a gloria do que
o amor! que os loiros da sciencia não affoguem na sua folhagem viridente
as delicadas rosas da felicidade terrena! Ah! que é preciso que o medico
saiba ganhar no dia de hoje as forças herculeas que tem de empenhar
amanhã na sua continuada lucta, braço a braço, com a morte e com o
lucto. É preciso que o medico seja homem uma vez ao menos, porque, se
elle pensou mais nos outros do que em si, morrerá só, na solidão do seu
lar, sem familia, sem mão piedosa que lhe cerre os olhos, sem labios
infantis que lhe beijem a mão inanimada, depois de ter vivido
tristemente a dar a vida aos outros ou de lhes haver procurado suavisar
a morte pelo menos. Por isso eu brindo pelo amor, pela felicidade, e
pela esperança!

Houve então quem se levantasse e dissesse:

--Eu brindo, eu saudo, eu quizera divinisar os gigantes do dever, os
que serenamente poisam a sua cabeça no marmore da sepultura depois de
haverem dado ao mundo o maior, o mais sublime, o mais estupendo exemplo
de abnegação. Eu brindo os que se não fizeram amar porque todo o coração
lhes era pouco para amarem os outros...

N'este momento, o dr. Filippe Sullivan, extremamente pallido, de pé, com
a mão direita firmada na meza e a esquerda apoiada sobre a taça do
champagne, disse ardentemente, depois de por alguns momentos haver
mergulhado o olhar ennublado de lagrimas no delicioso conjuncto da mesa:

--N'essa phrase está talvez o segredo da minha vida. Ah! que não póde o
peito d'um homem fechar-se sobre si mesmo com os seus pensamentos e com
as suas dores durante o longo e trabalhoso curso de setenta annos! Nunca
sob este tecto se trocaram confidencias porque jámais aqui houve
familia. Faltava a doce intimidade do jantar e do serão, das festas e
das tristezas domesticas. Eu entrava só, estava só, sahia só,--vivia só.
Mas não posso, meus amigos, não posso por mais tempo guardar no seio o
que ha tão longo tempo aqui trago escondido. É a primeira e a ultima
confidencia. Viestes assistir, amigos, aos alegres funeraes d'um velho
collega. Pois bem. Elle quer corresponder á vossa dedicação, e, no
momento de adormecer na paz do tumulo, quer de vós todos fazer a sua
familia, contar-vos a sua vida, revelar-vos os seus segredos. É um morto
que falla, amigos...

Fez-se um silencio profundo. O dr. Filippe Sullivan, conservando a mesma
posição, recomeçou:

--Eu amei, meus amigos, eu amei duas vezes na minha vida, e eu amei duas
pessoas que justamente me não amaram...

Passou em todas as boccas um murmurio de surpreza e talvez de
incredulidade.

O dr. Filippe Sullivan espalmou no ar a mão direita, e o silencio
restabeleceu-se profundissimo:

--Gastam facilmente a vida as illusões. E uma das mais queridas illusões
da mocidade é seguramente a Gloria. Que deslumbramentos a refulgirem no
prisma da nossa phantasia, quando o nosso nome principia a passar de
bocca em bocca e já uma vez por outra ouvimos por detraz de nós
pronunciar na rua o nosso appellido! Ah! as aspirações do homem brilham
para dentro delle com a phantastica coloração das stalactites n'uma
gruta illuminada pelo sol,--sol de esperança é elle--e, como as
stalactites se formam gotta a gotta, as nossas aspirações vão-se
conglobando sonho a sonho. Até que finalmente chega o momento em que
para todo o sempre petrificam... Esse momento chegou. Mas eu queria
dizer-vos que foi a Gloria a grande, a querida, a profunda illusão da
minha mocidade. Sonhar applausos, festas, saudações... ah! meus amigos,
eu sinto agora mesmo a garra traiçoeira da Gloria a estender-se
furtivamente para o meu peito arrefecido pelo gear de longos invernos.
Parece-se n'isto a Gloria com a saudade: quando lembra, commove; quanto
mais doe, mais se arreiga! Ah! deixa-me em paz, esconde a tua garra
tigrina, ó monstro que te chamas Gloria, se não queres que o meu
desprezo esmague o teu coração tão abundante de sangue que chega
para o mundo todo! Foram sonhos os primeiros annos da vida,--sempre
sonhos, deixai-me dizer-vol-o assim, phantasticamente realisados. A
Gloria é como os tyrannos que abrem os thesoiros da sua real
liberalidade para comprarem uma denuncia, mas que, feita a denuncia,
mandam ao sacrificio a victima que ludibriaram. Ah! que em a gente
dizendo á Gloria: «Sou teu», chega o momento em que os tyrannos deixam
de ser generosos para se volverem feras que preparam festins de sangue.
Tudo me concedia a Gloria, tudo me concedeu até esse momento fatal. Eu
escravisara-lhe o meu pensamento, eu vivia d'ella e para ella, e
atravessava a sociedade com a fria exterioridade d'um homem cujas
relações amorosas se involvem no mais profundo mysterio. Todas as
mulheres se me affiguravam lastimaveis quando eu descia ao meu santuario
intimo e queimava o incenso da adoração perante o altar do meu idolo.
Frequentava n'esse tempo os bailes, unicamente para reivindicar o meu
direito, por mim conquistado, de ir aos bailes. Estava nas salas
indifferente. Se o meu mundo não era aquelle! No meu mundo não havia
mulheres que vendiam sorrisos e que pintavam ao espelho a belleza das
faces e dos supercilios. Não! No meu mundo tudo era puro, sincero, leal
e digno: povoavam-n'o as aspirações d'um homem, que nascera obscuro, que
fizera um nome, e que, de todos conhecido, caminhava para um ponto
ideial e luminoso: a Gloria! Ah! que isto é verdadeiramente puro,
sincero, leal e digno...

Aqui sorrira desdenhosamente o dr. Filippe Sullivan e, depois de
brevissima pausa, proseguiu:

--És pó, homem, és pó!... E tu, vivendo nos homens e com elles, o que
has-de ser tambem. Gloria? Deixa-me em paz. Estão por ahi esses moços:
crava-lhes no peito a tua garra tigrina. A mim deixa-me em paz. Não
venhas perturbar os meus funeraes. Foge, foge... Na sociedade diziam-me
ás vezes d'uma ou d'outra mulher: É bonita! Eu quasi sempre respondia
distraidamente: É bonita! Eu era como aquelles viajantes, que deixam na
patria a noiva, e que atravessam os paizes sem repararem nas mulheres
extrangeiras. Assim entrava eu nas salas de baile. Algumas vezes, muitas
vezes me disseram de uma mulher, que por esse tempo chegara de
Inglaterra onde estivera a educar: «Veja, dr., como é bonita!» «Ali! é
bonita!» Para mim valia tanto como as outras. Fallava inglez.
Circumstancia aggravante. O Garrett gostava do anglicismo amoroso.
Muitas vezes me encareceu a doce realidade do verbo: _To flirt._

Eu já nesse tempo tinha como principio que, se o inglez se inventou de
proposito para alguem, foi justamente para os inglezes.

Um sorriso ligeiro perpassou nos labios dos convivas.

--Achei sempre tão violento um inglez a fallar portuguez, como um
portuguez a fallar inglez. Mas... uma portuguesa! Essa gentil menina
entrou na sociedade lisbonense, d'onde saira creança, com a triplice
celebridade da sua bellesa, da sua educação e do seu dote. D'entre vós
conhecem-n'a os que em Lisboa nasceram: a esses a minha velhice
recommenda discrição. Para os que não são lisbonenses desejo eu que ella
fique sendo a mulher ideal d'um romance verdadeiro. Alvoroçaram-se os
mais elegantes moços açulados nas pesquizas de noiva rica. Dois de entre
elles pareciam nivelados nas probabilidades de triumpho: um era barão;
outro visconde. Andava travado um grande duello moral entre os dois. Não
se faltava d'outra coisa: discutia-se a elegancia do barão e a fina
educação do visconde. No theatro, em estando ella, havia trez pontos,
ligados por linhas invisiveis, em que todos os olhares se fixavam: ella,
o barão e o visconde. Este era o triangulo da curiosidade publica. Eu
costumava rir-me dos novos episodios que dia a dia ia offerecendo o
grande pleito amoroso, e algumas vezes cheguei a acreditar ingenuamente
na possibilidade d'uma segunda guerra de Troya... A minha idade era já
tocante na petrificação das illusões: eu tinha quarenta e oito annos.
Esta deve ser a fria idade da critica e, por conseguinte, da reflexão.
Era justamente isso o que eu fazia: Punha sobre a minha pequena mesa
anatomica aquella titanica lucta de Melenau e Páris, e com o meu
escalpello de medico ia minando até encontrar o cofresinho onde se
guardava o dote disputado. Em sentindo tilintar o dinheiro, desatava a rir.

Riu tambem das facetas imagens do doutor Filippe Sullivan a erudita
assembleia.

--A esse tempo, como ia dizendo, começava a entrar commigo o tedio da
gloria. Eu principiava a sentir que viver era mais alguma cousa que
triumphar. Faltava-me, meus amigos, o soffrer. Ah! faltava-me o
soffrer, essa incomparavel doçura do veneno! Solidificavam finalmente na
friura da pedra as prismaticas stalactites da minha gruta remançosa. E
começava a rir dos que comprehendiam a vida sem a necessidade de
soffrer. Ora o barão e o visconde, disputando-se um dote monstruoso,
denunciavam tacitamente a sua repugnancia pela necessidade de soffrer.
Eu fazia d'ambos elles um conceito insignificante. Lembro-me
perfeitamente de que uma noite se conversava ácerca d'esse famoso
casamento. Discutia-se sobre a preferencia de noivo. Foi pedida a minha
opinião. Esquivei-me. Insistiram. Respondi que triumpharia o visconde.
«Porque, dr.?» perguntaram. «Por ser visconde» respondi. «Ora! Isso não
é rasão!» replicaram. «Peço perdão, redargui, os viscondes teem
geralmente mais razão que os barões.» Começava a aborrecer-me tanto como
a gloria a já longa questão do grande casamento. O que eu desejava era
que elle se effeituasse d'um modo ou d'outro para que me deixasse em
paz. Mas... uma noite, uma noite, estava eu em S. Carlos, e vejo entrar
na platea, visivelmente perturbado, o visconde. Phantasiei de repente
uma scena de pugilato como barão. Olhei, a procural-o. O visconde,
porém, aproxima-se de mim, e pede-me com precipitação que o acompanhe a
vêr um doente. Saimos ambos. No corredor, o visconde passa o braço
direito pelo meu dorso, encosta-me ao seu peito, de tal modo que eu
sentia bater vertiginosamente o seu coração, e diz-me com dolorida
vivacidade: «Doutor, um grande favor: salve a minha noiva.» «A sua
noiva!» repeti admirado, enfiando a sobre-casaca. «A minha noiva»
respondeu elle, e accrescentou o nome. Era ella. E, já no trem, emquanto
o visconde mascava avidamente o charuto e olhava através do vidro
enevoado do vapor da noite, ia eu dizendo commigo mesmo: «Afinal de
contas, os viscondes teem geralmente mais razão que os barões.»
Chegamos. Os criados andavam azafamados pelos corredores. Sentia-se no
ar aquelle sinistro alvoroço que acompanha as grandes enfermidades e
succede ao passamento de uma pessoa da familia. O visconde ia adeante de
mim, rapida mas cautelosamente. A meio de uma das salas saiu-nos ao
encontro a attribulada mãe d'essa gentil menina. O pae passeava á porta
do quarto da filha representando a força, como se fizesse sentinella
para obstar a que entrasse a morte. Quando me viu, abriu para mim os
braços: temia-se da morte, e esperava que eu fosse a saude, a vida. Aos
lados do leito velavam, nos vãos do pudico cortinado, trez meninas
parentas da casa. A doente, justamente no momento em que eu entrei,
recostava-se impacientemente nas almofadas, tinha as faces rubras do
carmim da febre, sobretudo na preeminencia dos mallares. Era extrema a
sua agitação proveniente da pontada sobre o lado esquerdo, das nauseas,
dos calafrios, da tosse, da tosse que era violentissima, e que fôra
n'ella, estando á mesa, a subita manifestação da molestia. Estava
perfeitamente diagnosticada á primeira vista a pneumonia aguda
complicada de pleuresia. A auscultação não deixou duvidas. O visconde,
ao pé de mim, allumiava com uma pequena palmatoria de prata. O pae e a
mãe estavam meio escondidos por detraz do cortinado, mirando-me com
olhares dolorosamente interrogadores. As trez meninas haviam sahido do
quarto. Sahi para receitar. O visconde e o pae da doente prenderam-me
cada um por seu braço e interrogaram-me com um gesto. Respondi a
verdade,--que estava gravemente doente, mas que eu não desesperava de
salval-a. O pae voltou-me as costas aturdido d'aquellas verdadeiras e
lentas dores que os paes costumam soffrer pelos filhos; o visconde
poisou o castiçal e com ambas as mãos apertou a minha. «Doutor, tornou a
dizer-me, salve-m'a, salve-m'a!» Havia effusão no que dizia. Eu,
n'aquelle momento, esqueci-me de que aquella mulher era rica, e o
visconde seu noivo. Queria salval-a á custa de sacrificios e de
esforços. Voltou o pae á sala, bateu-me no hombro e disse: «Doutor, não
nos fuja, não nos desampare. Eu vou mandar-lhe preparar um quarto.» E,
sem esperar a minha resposta, sahiu rapidamente. A minha resposta, a ter
tido tempo para responder, era a annuencia. Não se é medico para outra
coisa. O logar do medico é ao pé do doente; eu estava no meu logar. Essa
noite foi terrivel de anciedade para todos. Eu sentei-me á cabeceira do
leito, preparando e ministrando por propria mão os remedios. A insomnia
prolongou-se pela noite dentro, e, não obstante a rapidez das
applicações, sobreveio de madrugada o delirio. Muitas vezes, emquanto o
delirio durou, ouvi á doente o meu nome. «Doutor! doutor!» Invocava o
meu auxilio e a minha amizade, mas não atinava com o mais que desejava
dizer. O nome do visconde nunca o pronunciou. Do outro lado do leito a
mãe, sempre que a ouvia pronunciar o meu nome, punha as mãos sobre
as quaes lhe caiam as lagrimas, voltada para mim, como o faria deante de
um altar, n'uma supplica silenciosa. Já era manhã quando a doente, apoz
alguns momentos de grande agitação, teve que obedecer á acção dos
medicamentos, e descaiu sobre o meu braço no momento em que a amparava.
Dormitou, poisada a cabeça sobre o meu braço, alguns momentos. Quizeram
substituir o meu braço pelas almofadas. Não consenti. Então, de repente,
comecei a entrar n'um estado excepcional, em que me parecia que não
estava ali como medico, conservando todavia a consciencia de o ser. Não
sei, devo dizer-vol-o, que pura e respeitosa voluptuosidade me dava o
corpo gentil d'aquella mulher poisado sobre o meu braço! Se estivessemos
sós, havel-a-ia beijado nas tranças; mas, se ella não estivera doente,
quizera retirar o meu braço! Extranhas loucuras! Extranhos pensamentos
que nunca eu tivera! E, ao mesmo tempo, não sei que mysteriosa attracção
para aquelle leito, para aquella doente, para tudo o que nos cercava
ali! Eu começava a achar em mim mesmo profundezas desconhecidas. O
visconde entrava de vez em quando na camara e todavia eu não odiava o
visconde! A pobre mãe, com os olhos docemente postos na filha, começava
a inspirar-me um profundo sentimento de sympathia. «Que é isto?»
perguntava eu a mim mesmo. «Que estou sentindo eu, que enlouqueci de
repente?» E não sei que doce oppressão soffria o meu braço n'esses
breves momentos,--tão breves foram!--que ella dormiu. Eu estava bem! tão
bem, sem saber por que, n'aquella incommoda posição, sem todavia
pensar uma vez siquer que o visconde desejaria estar como eu! Não
reputava aquillo felicidade. Mas estava bem! tão bem! Durante esse
tempo, que teve para mim a duração d'um momento, eu era um novo homem
que despertava em mim, mas como que aturdido d'um sonho. Não sei bem
explicar o meu estado. Depois, ella teve um frouxo de tosse, e abriu os
olhos. Abriu os olhos, e olhou para mim. Não sei se me viu. Sei que eu
achei no seu desluzido e meigo olhar uma doçura inexcedivel. «Ah! heide
salvar-te!» disse de mim para commigo, cheio de confiança e enthusiasmo,
reptando-me a mim proprio. «Muito bem! continuei eu monologando, acceito
a luva. Aqui está esta vida preciosa, que eu principio, não sei porque,
a estremecer. D'acolá, d'aquelle lado, está a doença, talvez a morte, o
anniquilamento de tudo isto tão delicado e gracioso. Não avançarás,
morte, não espalharás sobre estas faces o teu punhado de pó. Para traz,
miseravel, que vens atacar uma mulher que nem siquer pensava em ti!»
Recolhi-me por algumas horas ao meu quarto por haverem instado commigo,
não que eu quizesse ir, porque já me custava desamparar aquelle leito
cujo alvo cortinado fechava para mim um paraiso. Não me pude deitar; não
poderia adormecer. Comecei a passear e a fumar. De repente faço reparo
nos quadros que pendiam das paredes: o retrato d'ella! Surpreza
providencial! O retrato d'ella! Comecei a sentir-me menos impaciente
desde esse precioso achado. Arrastei a cadeira para defronte do retrato.
Sentei-me, fumava, pensava... Que pensava eu? Não sei. De meia em
meia hora ia ver a doente, e voltava a sentar-me defronte do retrato.
Demorava-me pouco ao pé do leito; tinha receio de que notassem em mim
excesso de zelo medico. Espantosa cobardia a minha! Estava mais tempo em
frente do retrato do que ao pé do leito. Quando chamaram para o almoço,
fui ver a doente e, extraordinaria incongruencia! eu, que principiava a
ter receio de estar ali, ao pé d'ella, senti-me vagamente triste por ter
que sahir para ir ver outros doentes. Não me dispensaram de jantar. Oh!
com que intimo prazer não acceitei eu, apezar de apparente reluctancia,
esse convite que para mim seria de uma impertinencia atroz feito n'esse
mesmo dia por outras pessoas. Dentro do meu trem, fumando continuamente,
fumando sempre, achei-me só, triste, inquieto. Descobri n'esse dia um
dos multiplos segredos da vida, para descerrar os quaes ha sempre uma
chave na mão das circumstancias extraordinarias. O segredo que eu
descobri, meus amigos, essa terrivel surpreza que me assaltou n'esse
para mim notabilissimo periodo da minha existencia, foi a _solidão do
trem_. Acreditem, é uma subtil observação psycologica, que passa
despercebida quando se é feliz. Oh! mas quando se soffre, e se vê e ouve
atravez dos _stores_ d'uma carruagem o mundo, o rumor, o bulicio, a
vida, e nós vamos sosinhos, ali dentro, como quem passa para o
cemiterio, então, meus amigos, a _solidão do trem_ é horrivel, medonha,
pavorosa. Vi os meus doentes preoccupadamente. Com extraordinaria
impaciencia esperei a hora do jantar, a _hora da familia_, como eu ia
dizendo commigo, eu, que nunca tive familia, e que portanto nunca
soube o que era jantar. Recolhi meia hora antes do que devia, para
gastal-a ao pé da minha doente. O seu estado, sem ameaçar perigo
imminente, continuava a ser grave. Mas a esperança de a salvar, direi
mesmo a certeza, cada vez profundava mais no meu coração. A doente por
duas ou trez vezes me relanceou o seu olhar mavioso. Oh! que paraizo
aquelle, o dos seus olhos! Que preciosa recompensa aquella para as
preoccupações d'um medico! Dir-vos-hei, amigos, sinceramente, lealmente,
se aquella mulher houvesse succumbido á molestia, eu haver-me-hia
suicidado para extinguir em mim uma sciencia que desde esse momento
reputaria inteiramente falsa e inutil. Foi ainda de graves cuidados essa
noite, que eu desvelei quasi toda sentado á cabeceira do seu leito.
Depois da meia noite, a doente conseguiu dormir somnos curtos mas
tranquillos. A sua pobre mãe, extenuada pela fadiga physica e moral,
dormitava alguns momentos; na saleta, o visconde, que nas ultimas vinte
e quatro horas havia alterado o seu horario aristocratico, cerrava por
vezes os olhos, e cabeceava. O dono da casa estava descançando para
revezar a esposa no espinhoso cargo de enfermeiro. Só eu velava ali, eu
só, com os meus extraordinarios pensamentos, amando, posso e devo
dizel-o, amando em silencio, pela primeira vez na minha vida, aquella
mulher, cujas fórmas a pallida luz da lamparina e a alva roupa do leito
tornavam vaporosas, e que eu amava desinteressadamente, puramente, como
se ella não fosse rica, como se não fosse formosa e gentil. Ah! que era
de certo essa a primeira vez que ella era assim amada no mundo! que
foi essa de certo a ultima vez que ella foi assim amada!... Sou quasi
chegado, meus amigos, ao para mim mais pungente lance d'esta narrativa.
Não terei forças para historial-o com o vagar que requeria...

E o dr. Filippe Sullivan, cerrando os olhos por alguns momentos, em meio
de geral e profundissimo silencio, concluiu rapidamente:

--Pois bem. Abreviemos. Á medida que a doença cedia, recrescia o meu
amor. Chegou finalmente a hora que eu desejaria retardar
indifinidamente, mas que a minha consciencia de medico me obrigava a
determinar: a hora de a entregar formosa e salva aos braços de seu
marido. Ah! que é terrivel! _Aos braços de seu marido!_ O que se passou
em mim, o que eu soffri, nem o sei, nem vol-o posso dizer... Marcou-se
dia para o casamento. Ella veio pessoalmente a minha casa, com a mãe e
com o noivo, convidar-me com invencivel insistencia. Oh! e foi ella
mesma que me impoz esse enorme sacrificio! Prometti ir. Fui.
Falleceram-me forças para entrar á capella. Fiquei ao limiar. Ella,
quando entrava pelo braço do pae, teve para mim um sorriso de gratidão,
e disse: «Devo-lhe a vida, doutor.» Amigos, lancemos uma onda de
champagne sobre esta primeira pagina do meu breve romance. Pelo amor,
amigos, pelo amor! Hoje, a noiva de ha vinte annos é uma virtuosa
senhora que, se me avista na rua, diz ainda ao marido ou aos filhos: «O
doutor! é o doutor!» Entre a viscondessa de hoje e o seu medico de ha
vinte annos, ergue-te tu, ó generosa mocidade, coroada de rosas e de
loiros, que me ouviste, que me comprehendeste, que me perdoaste decerto!

--Pelo dr. Sullivan, a mocidade eterna! pronunciou tremula de commoção
uma voz.

--Pelo dr. Sullivan!--repetiu rumorosamente, de pé, copos erguidos, a
sabia assembléa.

Houve então um intervallo de extraordinaria animação e vivacidade, de
commoção profunda. Um romance de amores, de maguas intimas e grandes,
vinha completar a biographia d'aquelle homem notavel. Elle pertencia já
a muitas das galerias em que a posteridade costuma admirar o passado: á
medicina, á politica, á historia e á sciencia; desde essa noite, elle
pertencia tambem ao romance, a mais agradavel de todas as apotheoses.
Exclamações, dialogos, abraços, brindes, tudo isso succedeu como n'um
conto phantastico a essa extranha revelação do dr. Filippe Sullivan. E á
surpreza do que se ouvira, misturava-se já a impaciencia pelo mais que
elle promettera contar. Como se todos os convivas obedecessem ao mesmo
impulso, a pouco e pouco retomaram os seus logares na mesa da ceia, de
modo que a figura do dr. Sullivan de novo se destacou, naturalmente, na
primitiva attitude, coroada dos reverberos phosphorecentes dos candelabros.

Elle recomeçou, accendendo negligentemente um charuto, e lançando sobre
as primeiras palavras essas perfumadas e tenues nuvens de fumo que para
logo denunciam um tabaco delicioso.

--Entre os dois capitulos unicos d'este romance medéam vinte annos,
amigos. Durante este longo periodo envelheceu o protogonista, cujo
original tendes presente. Nevaram-se-lhe os cabellos; mas o coração não
envelheceu. O coração, posso dizer-vol-o, atravessou a vida sem conhecer
o mal, sem o suspeitar siquer. Não extranheis a apologia. No epitaphio
tudo se escreve, e eu estou escrevendo o meu. Perante qualquer outro
auditorio, seria risivel o espectaculo d'um velho namorado; para vós não
é, que o sei eu, porque vós sabeis apreciar estas delicadas aberrações
da sensibilidade, vós, grandes phisiologistas, vós, philosophos
distinctos, vós, mais que tudo isto, almas nobilissimas. É o theatro,
amigos, um porto de salvação aberto aos naufragos do mundo. Os que não
teem sociedade especial, compram um logar n'essa sociedade de todos, e
conseguem passar uma noite. Os que da sociedade sahiram feridos, e a
evitam, fogem-lhe, estando entre ella, no theatro. As _boccas inuteis_
da sociedade, deixae-me assim dizer, os que já se não divertem nem
divertem a sociedade, os velhos especialmente, são uma especie de corpo
extranho que o grande mar social arrojou para fóra de si. A praia
protectora, o refugio, o porto unico de todos estes naufragos é--o
theatro. Pois bem. Eu comprehendi, nos ultimos annos, esta verdade, e
comecei a frequentar o theatro. Tinha eu lido, por muitas vezes, em
outro tempo, que o theatro era interiormente um fóco de sensações
extranhas, de fascinações especiaes, uma nova sociedade, um novo mundo,
até. Mas eu ia ao theatro unicamente para gastar uma noite. Nenhum
interesse me inspiravam as intrigas de bastidores. Quando o panno
descia, acabava para mim o theatro; quando subia, recomeçava. Ha
tres annos, meus amigos, que morreu entre nós uma cantora notavel. Todos
a conhecestes, todos a applaudistes, porventura. Ah! ninguem podia vêl-a
e ouvil-a, e ficar indifferente, silencioso, esquecido d'ella! Vi-a, no
dia immediato ao da sua chegada, no Chiado. Ella ia de trem. Viu o
emprezario a fallar commigo. Mandou parar a carruagem, o emprezario
aproximou-se, e apresentou-me. Bella, se o era, bella! Bem o sabeis, se
o era! Lisboa inteira conserva immorredoira recordação d'essa mulher
extraordinaria pela voz e pela formosura. Fui á primeira recita. Que
ovação aquella, amigos, que estrepitosa e espontanea ovação! Tenho ainda
nos ouvidos os fervidos rumores d'essa festa, que se agitava em derredor
de mim, e em que eu tomava parte só intimamente, porque a minha austera
posição de medico, e sobretudo a gravidade da minha velhice, me
obrigavam á fria compostura d'um authomato. Ah! as convenções sociaes,
meus amigos, o que se perde de vida pelas convenções sociaes! É-se novo,
ha fronteiras que importa respeitar e não ultrapassar. É-se velho, novas
balisas,--as ultimas--a delimitarem o numero dos nossos passos e a
largura dos nossos gestos. Tirae á vida os periodos da infancia e da
velhice, e vede o que fica, amigos! Eu não faltava ao theatro. Eu
esperava com impaciencia pela noite. Eu comprei em toda a parte quantas
photographias appareceram d'essa mulher adoravel. Cerquei-me d'ellas,
comparava-as, discuti-as perante o tribunal da minha critica artistica,
e concluia sempre por achal-as inferiores ao original, que eu adorava.
Algumas vezes sahi mais cedo de casa para ir vêl-a entrar no
theatro. Postava-me a distancia, a grande distancia, disfarçadamente.
Via parar o trem, descer o seu vulto, entrar rapidamente pela porta do
palco. Ah! como eu vivia de tudo isso, como eu estimava que lhe
_bisassem_ os mais doces, os mais delicados trechos de musica, para
vêl-a mais tempo, para a poder ter defronte de mim mais alguns momentos!
Se se contra-annunciava um espectaculo, que contrariedade a minha! Que
ditosas que seriam as mulheres se podessem amar, se conhecessem, ao
menos, todos os homens que as amam em segredo! E entre as mulheres
todas, especialmente as de theatro, se soubessem como ás vezes são
amadas puramente, loucamente, ellas, que estão habituadas a ouvir
phrases que já não podem enganar quem as diz nem quem as ouve! Eu ouvia
fallar de ceias que lhe offereciam, ceias sumptuosas e alegres, e das
quaes alguns de vós foram porventura convivas. Nunca assisti a nenhuma.
Um velho n'um banquete onde a mocidade erguia as taças! E depois, novo
que fosse, por Deus, que não iria tambem! Eu quebraria contra a meza a
minha taça, quando outro homem ousasse levantar um brinde á mulher que
eu amava. Uma noite, amigos, entrava eu no theatro e pude, atravez da
agglomeração dos grupos, lêr o contra-annuncio affixado no atrio. _Por
grave doença d'ella_ não havia espectaculo! _Por grave doença d'ella!_
Mas eu era medico, e tinha direito a vêl-a! _Por grave doença d'ella!_
Mas eu era medico, e, permitti-me a vaidade que o amor despertára
impetuosamente, diziam que eu era um dos primeiros medicos, e todavia
não se lembraram de mim! Tive, porém, um momento de reflexão: havia
vinte annos que eu tinha sahido d'aquelle mesmo theatro para acudir a
uma grave enfermidade que se manifestára subitamente. Quem sabe se
aconteceria o mesmo, se procurariam, ao acaso, um medico, e levariam o
primeiro que o acaso lhes deparou? E depois, para que? para que quereria
eu haver sido chamado? para, como ha vinte annos, luctar braço a braço
com a morte, soffrer, soffrer, soffrer e, salvando-a, restituil-a á
vida, á mocidade, á gloria, a todos os que diziam amal-a? Recolhi-me a
casa, resignado pela reflexão, mas profundamente triste. Não quiz
perguntar por ella. O meu orgulho de medico conhecido não me permittia
perguntar por uma doente que eu não tratava. Passei a noite inquieto; os
curtos somnos que seguiram ao primeiro foram intervallados pela sua doce
e dolente recordação. Eu via-a, ora na scena, festejada, applaudida,
disputada por todos: ora morta, amortalhada para a sepultura, pallida,
silenciosa, esquecida de todos. E, o que mais era, eu quizera que a
realidade fosse esta--ó egoismo humano!--para que ninguem gozasse uma
felicidade que eu não tinha, e para que o meu amor, o unico verdadeiro e
duradoiro, fosse chorar sobre o seu tumulo as primeiras e talvez as
ultimas lagrimas da saudade. De manhã, pedi com impaciencia os jornaes.
Procurei noticias. Todos diziam que ella estava perigosamente doente.
Sahi para a rua, sem saber para que e porque. Encontrei logo quem me
fallasse n'ella. Foi para isso de certo que eu sahi. Mais pessoas,
muitas pessoas, as ultimas das quaes me disseram que ella havia
fallecido. Ah! que ella havia fallecido! Então já não era de mais
ninguem! Então realisára-se o meu sonho! Ó natureza humana, que infame
que tu és!

E o dr. Filippe Sullivan por algum tempo escondeu o rosto entre as mãos.

--Não vae sem legenda á sepultura um cadaver illustre. Parece que a
morte não tem direito de roubar os que por algum titulo se nobilitaram.
Em torno do cadaver d'ella inventaram-se boatos sinistros. O rapido e
fatal desfecho da molestia parece que deu margem á suspeita de morte
violenta, e o certo é que, como perfeitamente sabeis, a authoridade
competente requereu autopsia. Eu fui convidado para tomar parte n'esse
acto. Ah! que felicidade essa! Ia vêl-a, ao pé de mim, como nunca vi,
como poucos talvez a viram! Acceitei, acceitei ardentemente. Fui cedo
para o cemiterio. Queria vêl-a sósinho, beijal-a em segredo, dizer-lhe o
que nunca lhe tinha dito. Os meus olhos iam, finalmente, saciar-se de a
vêr. Quando eu cheguei ao cemiterio, não estava ainda ninguem. Ninguem!
Estava ella;--ella era tudo para mim! Levantei respeitosamente o lençol,
deixando a descoberto a fronte e o collo. Assim era que eu a via no
theatro: assim me pareceu bella como então! Mais bella talvez! Mais
branca e mais serena. Levemente affastei os cabellos castanhos que se
annellavam sobre a testa. Que formosa! que formosa! Curvei-me para ella,
beijei-a na face e disse-lhe como se me podesse ouvir:

--Ah! finalmente! posso dizer-te que te amo! Agora, que estás aqui
sósinha, agora, que todos fogem receiosos do cheiro da tua podridão,
agora te posso eu dizer que te adorei como nunca foste adorada! Já
não ha vozes de festa e de applauso em torno de ti, mas ha a minha voz,
querida, a minha voz e as minhas lagrimas... Pois não vês tu que estou
chorando? E quem mais te chorará no mundo a esta hora? Ninguem! Se ainda
tens na patria algum parente que te pranteie, esse mesmo te chorará
depois de mim!... Ah! como tu vivias illudida! Pergunta onde estão os
que diziam amar-te. Bocejam a esta hora no longo somno da manhã. Eu toda
a noite passei inquieto por ti. Elles desvelaram-n'a no prazer. E
todavia nunca me deste um sorriso, nunca soubeste que te adorava! Como
arfava nas noites de festa este teu seio formoso! Como se te coloriam as
faces! Que turbilhões de vida não revolviam estas tranças! E agora tudo
vae para a terra, mas, antes que a terra o receba, tudo eu quero adorar!
Não, não irás para a terra, querida, como os pobres e como os
extrangeiros. Eu tenho ahi um leito de marmore, que é grande de mais
para mim. Já lá repoisam dois amigos. Para lá irás tambem. Lá esperarás
por mim, que não posso tardar. Pretextarei piedade por uma extrangeira
distincta para te fazer esta concessão. Não tive familia em vida;
tel-a-hei em morto, ao menos. Ah! pobre coração tão calado! O que tu
pulsaste, o que tu doidejaste talvez! Não se é nova e formosa
impunemente. Agora tudo é silencio e frialdade em ti; aqueçam-te siquer
as minhas lagrimas, que são puras e ardentes.» E eu via cahir uma a uma
as minhas lagrimas sobre o coração d'ella,--aquelle coração que eu
compraria a peso de oiro, se ella o vendesse. N'esse momento senti
passos, e soavam já tão perto, que mal pude disfarçar-me. Era o seu
assistente, que está alli...

E o dr. Filippe Sullivan indicou um dos mais novos medicos, que estavam
em torno da sua meza.

--Ha de lembrar-se, dr., de que extranhou, ao entrar, a minha commoção.
«Choro esta pobre mulher, que ninguem mais chora» respondi eu. «Porque
ella ninguem choraria tambem» replicou o dr. «Como?» «Porque ella,
caminhando de festa em festa, de prazer em prazer, não teria tempo de
fazer reparo nos que cahiam deante de si. E tamanha era a embriaguez
deliciosa da sua vida, que a levou a apressar a morte, a escaldar o
sangue que lhe refervia no coração em turbilhões aneurysmaticos. Ninguem
a matou; suicidou-se ella. Era preciso, porém, transigir com o mundo:
requeri autopsia.» «Cale-se, dr., por Deus lhe peço!» respondi eu. E não
pude continuar... Entravam os magistrados que tinham de ser presentes. O
dr. offereceu-me o escalpello; eu dei o primeiro golpe. Nunca senti a
mão tão leve como n'esse dia. Dir-se-ia que eu não queria magoal-a... O
ultimo brinde, amigos, o ultimo brinde! Pelo amor! pela esperança! pela
felicidade! É dia; vem rompendo a manhã. Abramos as janellas. Deixemos
brilhar o ultimo raio de sol sobre a minha ultima ceia.

Meia hora depois, dizia-se n'um grupo de homens notaveis, que esperavam
nas salas baixas os seus trens:

--Foi a ultima ceia do dr... Fausto!



***END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A ULTIMA CEIA DO DOUTOR FAUSTO***


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